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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DIFÍCIL CONQUISTA / Hannah Howell
DIFÍCIL CONQUISTA / Hannah Howell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Pleasance Dunstan está acostumada a suportar em silêncio as crueldades de sua família, mas nada a preparou para a maior de todas as indignidades: ser vendida como serviçal a um brutamontes como Tearlach O'Duine. Os modos selvagens do homem são conhecidos na cidade inteira, e é óbvio que ele olha para Pleasance com intenções que vão bem além de um patrão para com uma criada. Ele a quer em sua cama!

Pleasance poderia escapar desse terrível destino com uma única palavra, mas seu orgulho a impede de protestar. Em vez disso, ela segue seu novo senhor até a região indômita onde ele vive, e acaba descobrindo um mundo totalmente desconhecido para ela: o mundo do desejo e da sedução! Embora Tearlach a mantenha cativa, ele é o único homem que poderá libertar seu coração apaixonado e convencê-la de que nada poderá separá-los...

 

 

 

 

Worcester, colônia de Massachusetts, 1769.

— Não quero me casar com John Martin — Letitia se lamentou.

Pleasance observou a atitude infantil da irmã mais nova. Desde ò momento que elas e os pais haviam se sentado à enor­me mesa do café da manhã, Letitia começara a se queixar.

No mesmo momento, Pleasance perdeu o apetite e não gostou do rumo da conversa. Sempre que Letitia demonstrava desprazer, em geral era ela quem sofria as conseqüências.

De soslaio, fitou os pais. Thomas Dunstan, corado, não estava conseguindo esconder a raiva. Ele desejava o casamen­to de Letitia com os abastados Martin para aumentar o próprio prestígio. Sarah, sua mãe, dedilhava o fichu de renda em um indicativo de agitação. Sem dúvida, ela estivera elaborando secretamente um casamento pomposo. Lawrence, irmão mais velho de Pleasance, estudava com o tutor, o que era providen­cial, pois o rapaz tinha a mesma verborragia do pai e já havia usado sua linguagem bombástica o suficiente à mesa. Nathan, o irmão mais novo, não viera para o desjejum, decerto ocupado com os carregamentos ilícitos que trouxera para as colônias.

— John Martin é um rapaz excelente. — Thomas puxou o colete bordado sobre o abdômen antes de se servir de presunto defumado e ovos mexidos das finas travessas de estanho. — Ele tem residência, ofício e pertence a uma família proeminen­te da colônia. Os Martin são muito respeitados em Worcester.

— Isso não me interessa, papai. — O senhor prometeu que eu poderia escolher meu marido.

— E quem escolheria se não fosse John Martin?

— O escocês.

Pleasance sentiu uma dor aguda no peito e tentou se acalmar antes que alguém notasse que ela empalidecera. A preferência de sua irmã não devia chocá-la, porém ela não queria acreditar que a irmã fosse tão cruel. O escocês, a quem a família não chamava pelo nome, fazia a corte a ela.

— O escocês? — Thomas berrou. — Ele é um homem sem cultura e não serve para você. Além de não ser de uma tradicio­nal família inglesa, é um simples caçador de peles.

— O senhor permitiu que ele cortejasse Pleasance. — Letitia ajeitou cuidadosamente os cachos loiros sobre o ombro direito.

— Pleasance é uma mulher madura que não se casou e não pode ser tão seletiva.

— Quanta bondade! — Pleasance engoliu a ironia com um gole de chá.

— Se minha irmã acha o escocês interessante, ele não pode ser tão desprezível, não?

Letitia fixou em Pleasance um olhar duro e frio.

— Por que não o chama pelo nome, se ele lhe interessa tanto? — Pleasance indagou.

— É um nome muito estranho.

— Se você o escutasse pronunciar, não teria dificulda­de. Tearlach O’Duine. Tearlach é o mesmo que Charles em gaélico.

— Então por que não o chamamos de Charles? — Letitia foi ríspida.

— Porque ele não é inglês, certo? — Pleasance respondeu com sarcasmo.

— Não seja tão atrevida com sua irmã, Pleasance — Thomas a advertiu antes de se dirigir à filha mais nova. — Letitia, o escocês é rude, não tem instrução e, além disso, os comercian­tes de pele, ordinariamente, não são dignos de confiança.

— Não me importo, papai. Tentei gostar de John Martin para agradar ao senhor, mas não deu resultado. — O lábio infe­rior de Letitia tremeu, e ela encostou nos olhos o guardanapo de linho bordado. — Pelo bem de Pleasance, também tentei esquecê-lo, mas foi impossível. Creio estar apaixonada pelo sr. O’Duine.

Pleasance estava a ponto de sentir-se enjoada quando Letitia segurou uma mecha dos cabelos dourados, fingindo uma expressão de desespero com lágrimas nos olhos. Era um truque muito empregado por ela, que nunca falhava, e Pleasance teve vontade de gritar. Letitia sempre conseguia o que desejava.

Sem a presença de Nathan, que a apoiava, Pleasance sentiu-se só, mas, pela primeira vez decidiu lutar pelo que queria. Tearlach valia o esforço.

— Tarde demais, Letitia — ela afirmou. — O sr. O’Duine já me escolheu.

— Ele falou em casamento? — Sarah Cordell Dunstan bateu a ponta do guardanapo na boca.

— Não ainda, mas ele me faz galanteios com assiduidade.

— Mas, como não pediu sua mão, não deve ter feito a esco­lha. — Sarah acariciou a mão bonita de Letitia, que estava à sua esquerda. — Querida, Pleasance se afastará, e você ficará com o escocês.

— A senhora o faz parecer um joguete — Pleasance argumentou.

— Não seja tão rude, Pleasance — Sarah a recriminou. — Letitia o escolheu.

— Mas talvez ele não a tenha escolhido. Ele fez a corte a mim, sem se importar com ela.

— Com certeza imaginou que Letitia fosse bem superior a ele.

Pleasance se surpreendeu com a crueldade da mãe.

— Não posso simplesmente descartá-lo e avisá-lo que deve cortejar minha irmã.

— Ora, pode evitar as atenções dele.

— Isso seria uma maldade e não pretendo mentir.

— Então prefere destruir o coração de sua irmã e desafiar seus pais em vez de ferir a vaidade do escocês? Ou será a sua vaidade que a faz incorrer em desobediência?

Pleasance sentiu um frio na espinha com o desdém da mãe.

— E o fato de ele ser inferior a Letitia? — Pleasance per­cebeu o amargor de suas palavras, contudo seus pais faziam muita diferença entre as filhas.

— Apesar disso, teremos de manter nossa palavra.

— Acredito que ele tem potencial — Letitia acrescen­tou. — Com um pouco de educação poderei deixá-lo mais apresentável.

— John Martin tem boa aparência — Pleasance comentou.

— Mas eu prefiro o escocês.

— Já se esqueceu de que ele mora em uma região agreste?

— Não me esqueci, mas tenho certeza de que o convencerei a ficar e a esquecer as terras dele.

— Mas...

— Chega! — Sarah encerrou o assunto. — Está se tornan­do muito maçante, Pleasance. Está resolvido. Você se afastará do sr. O’Duine.

Ao ver a expressão resoluta dos pais, Pleasance desistiu de argumentar. Tudo o que dissesse seria tomado como impertinência e crueldade contra a irmã. Dois graves pecados segundo Thomas e Sarah. Se insistisse, seria trancada no ático.

Mesmo abominando a própria fraqueza e a necessidade de agradar aos pais, Pleasance se resignou a perder não apenas o único homem que por ela se interessara, mas também a única chance de se casar... e ser feliz.

 

Sentada no banco de mármore do jardim da mãe, Pleasance observou Tearlach se aproximar, trajando a mesma roupa com que vinha visitá-la havia duas semanas. Ele sempre apa­rentava e cheirava a limpeza, mas na certa não tinha condições de comprar um novo vestuário.

Ela torceu o lenço de renda entre as mãos e procurou osten­tar um sorriso. Transpirava, mas não era pelo calor da tarde de julho. Fazia apenas quatro horas que os pais haviam toma­do a decisão por ela, e procurara, sem sucesso, encontrar uma maneira de agradar à família e a si mesma.

Alto, esguio e moreno, Tearlach era um belo homem. As meias e os calções apertados revelavam pernas longas, musculosas e bem torneadas. A casaca preta e o colete prata se ajustavam perfeitamente ao abdômen reto e aos ombros lar­gos. A renda dos, punhos e do colarinho contrastava com a pele morena.

Quando ele parou diante dela e a beijou nos dedos, Pleasance sentiu-se dividida entre chorar e fugir. Fitou os olhos cinzentos e não se achou capaz de rejeitá-lo nem de entregá-lo nas mãos de Letitia.

— Por favor, sente-se, sr. O’Duine. — Ela indicou o local no banco, a seu lado.

— Por que me trata por sr. O’Duine? Ontem me chamou de Tearlach.

— Foi insensato. Não devo tratá-lo com tanta familiaridade.

— Espero que logo esteja usando de familiaridade ain­da maior. — Ele segurou a mão delicada. — Talvez eu tenha me apressado demais, mas tenho pouca experiência em cortejar uma moça bem-nascida.

— Você faz isso com muito charme e estilo. Não tenho do que me queixar. — Ela usou o mesmo tom altivo e presunçoso da mãe, a única maneira de conseguir dizer o que a família a obrigava.

— Nesse caso, por que se tornou tão fria e distante?

Tearlach a observou desviar os olhos azul-esverdeados e percebeu que havia algo errado. Aquela não era a tímida e calorosa Pleasance que o atraíra. Ela estava nervosa, tensa e até dissimulada. O tom presunçoso em sua voz sinalizava uma mudança que só poderia ser contra ele. Estava com a impressão alarmante de que seria descartado e não entendia o motivo. Seria preciso se defender.

— Sr. O’Duine, eu não pretendia agir desta maneira. — Pleasance suspirou. — Tem sido muito galante, e eu não tenho intenção de retribuir com indelicadeza.

— Quanto mais se esforça para ser dissimulada e cortês, menos eu gosto.

Tearlach se levantou e começou a andar diante dela, de um lado para o outro.

Pleasance se recriminou. Ele era muito astuto e desconfia­ra de seu estratagema. Por isso teria de recorrer à mentira. Não queria que ele soubesse da fraqueza que a fizera obedecer aos pais, uma constante que a fazia agir como uma tola.

No entanto quando Tearlach parou e a encarou, Pleasance sentiu ódio dele. Se ele não a houvesse procurado nem des­pertado suas emoções de maneira inusitada, ela não estaria naquela situação constrangedora. Nem a consciência, que a acusava de injusta e até de ridícula, a acalmou. Se ele tives­se se encantado com Letitia, como todos, aliás, não estaria confusa nem sofrendo naquele momento.

— Uns são mais corteses do que outros.

— Algo aconteceu desde ontem, quando eu lhe trouxe um ramo de flores e a senhorita se desmanchou em sorrisos, sentada neste mesmo banco. Chamou-me de Tearlach e me permitiu beijá-la.

— Agi por impulso e não pensei em como meu comporta­mento poderia ser interpretado. Peço-lhe desculpas.

Ele corou, furioso.

— A senhorita está me pondo de lado, como se eu fosse uma criança aborrecida? Esteve me fazendo de tolo?

— Não! Tenho o direito de não querer ser mais cortejada. Não há razão para desperdiçar o nosso tempo. Neste momento, eu deveria ter sentimentos mais profundos pelo senhor depois de ter me cortejado durante semanas.

— E não tem?

Pleasance entendeu que cometera um erro. Tearlach poderia tomar suas palavras como um desafio para provar o contrário, e foi o que ele fez.

Ficou tensa ao ser abraçada por ele.

— Solte-me, sr. O’Duine. Nada provará se não se compor­tar como um cavalheiro.

— Pois agora não me sinto como tal, e a senhorita nunca pensou que eu o fosse, não é mesmo? Vejo que é tão pretensio­sa quanto o restante de sua família.

— Está enganado.

— Não estou. Apenas pensei que a senhorita fosse mais sincera.

— Mas eu sou. — Pleasance escutou a falta de convic­ção nas próprias palavras e percebeu que Tearlach sabia que ela mentia. — Solte-me ou terei de chamar meu pai ou meu irmão Lawrence! — Embora nem o irmão magricela nem o pai corpulento fossem páreo para ele.

— Pois duvido de que eles correrão para resgatá-la. Eles sempre nos deixaram à vontade, e creio que isso se deve ao fato de a senhorita não ser mais tão jovem para se casar.

Com desprezo, Pleasance nem se dignou a responder. Ainda mais quando Tearlach a apertou com firmeza entre os braços.

Apesar de seus esforços, ser pressionada pelo corpo rijo a fez se esquecer de tudo o mais. O pior era Tearlach perceber o efeito que tinha sobre ela. Apesar da maneira escandalosa com que ele a segurava, ela ainda queria mais.

— O senhor não tem o direito de me insultar.

— Tenho, sim. A senhorita pretende ferir minha dignidade com suas mentiras.

Tearlach sentia-se furioso. Ele preferira Pleasance em vez da irmã muito mais bonita, por razões pouco lisonjeiras. Ela era a mais velha, mais modesta e, segundo rumores, a mais humilde. Não teria de se esforçar muito para conquistá-la, e ela seria uma esposa mais dócil em agradecimento por ter sido a escolhida.

Ele acreditara ter encontrado uma mulher confiável, que não olharia com superioridade para um caçador de peles da fronteira oeste. Pensara que Pleasance o quisesse por ele mes­mo, mas se enganara.

Beijou-a e, quando ela tentou resistir, virando a cabeça, prendeu-a pelo queixo. O sabor dos lábios quentes e macios o agradou, mas o deixou com mais raiva. Ele sentia desejo por Pleasance e percebeu que ela também sentia o mesmo por ele.

Mesmo assim, ela procurou afastá-lo, na certa por não achá-lo à sua altura. Tearlach quis encontrar uma maneira satisfatória de fazê-la pagar pelo esnobismo. Mas ele a faria ver o que Pleasance negava a si mesma...

Passou a língua pelos lábios carnudos, e ela os entreabriu. Ele continuou a abraçá-la enquanto lhe investigava o interior da boca, e o gemido de Pleasance encontrou eco no dele. Tearlach segurou-lhe os quadris e os apertou de encontro aos dele, movendo-se sensualmente.

Não ficou surpreso quando ela correspondeu com movi­mentos excitantes. Mas ficou furioso ao se dar conta de que não provaria nada além disso. E precisou de toda a força de vontade para encerrar o beijo. Viu o rosto afogueado, o busto subir e descer, o olhar brilhante. Ela estava tão excitada quanto ele, mas a despeito disso, Pleasance pretendia rejeitá-lo.

Ansioso por fazê-la raciocinar, Tearlach se afastou.

— Por que solicita que eu vá embora apesar do calor que existe entre nós? Não faz sentido me beijar desse jeito e pedir que eu não volte mais.

Pleasance procurou romper a névoa do desejo ardente que a envolvia para responder de modo inteligente.

— Os motivos que me levam a tomar essa atitude não lhe interessam, senhor.

— Nem depois de me indicar a saída?

— Por isso mesmo já devia ter ido embora.

— Muito bem, senhorita. Não a perturbarei mais com a minha presença. — Deu-lhe as costas abruptamente e se afastou a passos largos.

Pleasance largou-se no banco, atordoada com o beijo, lutando para não chamá-lo de volta. De um lado, havia o senso de dever, de outro, o desejo.

Aflita, levantou-se. Deu um passo, mas se deteve. Tearlach estava em pé no portão do pátio, a poucos passos de Letitia.

Voltou a sentar-se. Era tarde demais para chamá-lo de volta. Letitia empregaria todo o seu charme para cativá-lo.

Tearlach se espantou com a presença de Letitia e, quando a exuberante loira passou o braço no dele, teve vontade de sacudi-la. Contudo, ao ver que Pleasance os observava de longe, voltou-se para a beldade a seu lado com o melhor dos sorrisos. Querendo que Pleasance se sentisse ferida em seu orgulho, como acontecera com ele, ignorou o instinto que o alertava sobre a extensão de seus sentimentos.

— Srta. Letitia, que prazer em encontrar um rosto simpático.

— Ah, pobrezinho. — Letitia acariciou-lhe o braço. — Pleasance me contou o que pretendia fazer.

— Sei. — Tearlach não apreciou que o rompimento fosse tema de discussão na família cheia de soberba de Pleasance.

— Ela não escutou meus conselhos contrários a uma atitude tão cruel. Não lhe contarei o que ela disse, pois não desejo que sofra ainda mais.

Tearlach considerou que ela poderia ser uma boa atriz e teve vontade de mandá-la guardar para si mesma os boatos imundos, mas a curiosidade falou mais alto. Se Letitia sabia o motivo por que fora dispensado, queria ouvi-la. Nada poderia ser pior do que ele imaginava.

— Prefiro saber a verdade, mesmo que seja desagradável.

— Não compartilho dos sentimentos de minha irmã, mas creio que ela acumule os pecados do orgulho e da vaidade. Imagine que ela tem a ilusão de conseguir alguém bem melhor do que o senhor. — Letitia suspirou e sacudiu a cabeça. — Ela o considera um homem culturalmente atrasado, o que é uma tolice. Qualquer um pode ver que é um homem refinado, que faz o possível para superar as limitações de seu nascimen­to. Porém, nada mais direi, pois não quero aborrecê-lo.

— Seu coração bondoso lhe assenta bem, srta. Letitia.

Tearlach surpreendeu-se que o discurso suave e malicio­so de Letitia o houvesse ferido tanto. Ele já havia enfrentado o esnobismo dos ingleses sobre os escoceses, más o irritava saber que Pleasance pudesse ter atravessado suas defesas e o deixado tão magoado.

Olhou para Pleasance, que ainda os observava de longe, e sorriu com frieza. Ela parecia aborrecida em vê-lo com a irmã, e ele resolveu se aproveitar disso. Embora suspeitas­se de que Letitia também o considerava indigno, resolveu fazer o jogo.

— Sr. O’Duine? — Letitia sorriu e tocou-lhe a face com o dedo. — Sinto-me envergonhada com a rudeza de Pleasance e gostaria de reparar a situação. Vamos até a sala e eu lhe servirei uma limonada.

— Será ótimo. — Ele acompanhou a bela loira para dentro da casa.

Pleasance ponderou que cometera o maior erro de sua vida e que começava a pagar por isso.

 

— Terá de roubar uma coisa para mim.

Pleasance achou que nada mais a espantaria depois que, havia um mês, sua família exigira que se separasse de Tearlach para o bem da irmã.

— Do que está falando, Letitia?

— Não sei por que essa expressão de horror. Não se trata de nada fora do comum.

— Não sabe? Aquele que é apanhado roubando pode enfrentar o pelourinho, o enforcamento, as chibatadas ou a escravidão! — Ela andou de um lado para o outro no seu quarto pequeno e pouco mobiliado.

— Conheço muito bem as penas aplicadas aos ladrões.

— E mesmo assim pede que eu me arrisque.

Letitia acomodou suas formas voluptuosas na cadeira. Ela parecia derrotada e temerosa, ao contrário do orgulho que habitualmente ostentava, e Pleasance se comoveu.

— O que quer que eu roube, e por que eu deveria fazê-lo?

— Ah, muito obrigada, Pleasance! — Letitia se endireitou.

— Não se apresse. Ainda não me decidi. Apenas que­ro saber do que se trata. — Pleasance abriu a janela, pois a noite do fim de agosto estava tão quente como o dia.

— Quero que roube algumas cartas de amor que escrevi. — E que mal poderá haver em uma coisa tão inocente? Letitia passou a mão nos cabelos, em um gesto nervoso.

— Elas foram escritas para o homem com quem eu não vou me casar.

— Vai se casar? Por que eu não soube de nada? — Pleasance perguntou, nervosa.

— Porque ainda não recebi o pedido oficialmente, mas, em um ou dois dias, papai será procurado.

Pleasance não discutiu a suposição arrogante.

— E com quem pretende se casar? — indagou, temendo a resposta.

— John Leonard Martin.

Pleasance ficou estarrecida.

— O homem de quem você nem queria ouvir falar?

— Sim, mas eu mesma tinha de reconhecer o valor dele.

— Entendo. E as tórridas cartas de amor não foram escritas para ele.

— É evidente que não, ou eu não precisaria delas de volta.

— Mas por que não se casa com o homem para quem teve coragem de escrever tais cartas?

— Porque finalmente reconheci o valor de John Martin. — Ela olhou para o teto.

— E esse outro homem, não tem nenhum valor?

— Não da maneira que importa. Tive de amadurecer para enxergar além de sua boa aparência e das belas palavras.

— E o que enxergou?

— O futuro e a segurança aos quais estou acostumada. Como já disse, John é bem superior.

E muito mais rico também, Pleasance pensou e logo se arrependeu. Não adiantaria se aborrecer. Letitia sempre fora mimada e por isso se tornara fútil.

— Com quem estão as cartas?

— Tearlach O'Duine.

Pleasance odiou pensar que o flerte entre a irmã e Tearlach tivesse ido além de olhares calorosos e belas palavras. Também não gostou da ideia de roubar algo dele e ainda poder ser acanhada.

— Tentou pedir as cartas?

— Sim, mas ele riu e afirmou que seria ótimo se eu me preocupasse um pouco.

O pior seria o escândalo. Letitia não tinha perspicácia para controlar seus arroubos e quando julgava estar apaixona­da, possuía menos juízo do que o usual.

E Letitia não estava apaixonada por John, pois ela só sabia amar a si mesma. No entanto, o dinheiro dele permitiria que ela se destacasse na sociedade que adorava.

Seu pai escolhera o par perfeito para ela, e Pleasance se alegrou que Letitia houvesse chegado à mesma conclusão. O casamento poderia trazer felicidade à sua irmã.

— Você flertou com o sr. O’Duine e depois o desprezou. Ainda espera que ele seja bondoso? Aliás, ele tem boa moral e uma boa renda.

— Ele vive no meio do mato, a oeste da colônia de Massachusetts, longe da civilização e onde há apenas fazen­das, algumas cabanas e uma pequena aldeia.

— Pelo que me recordo, você pretendia mudar a opinião dele.

— O sr. O’Duine é muito teimoso e insiste em não morar em outro local. Tenho certeza de que lá ainda existem índios selvagens.

— A recente guerra entre nós e os franceses, com os índios como aliados, acabou com a questão indígena. Eu me preocu­paria muito mais com os franceses.

Letitia a fitou com raiva.

— Sabia que ele tem uma irmã?

— Sim, uma menina de uns doze anos. Qual é o problema, Letitia?

— Ele esperava que eu cuidasse dela.

— O que não faz dele um irracional. — Pleasance com­preendeu que a maior queixa da irmã era não ter conseguido submeter Tearlach à sua vontade.

— Pleasance, a menina é meio selvagem e é fruto do estupro da mãe dele por um gentio — Letitia sussurrou. — A mulher sobreviveu ao ataque indígena até o bebê nascer. Eu teria me matado de vergonha, e Tearlach ainda pretende educar a criatura entre pessoas civilizadas. Ele não é muito certo da cabeça.

— A menina é irmã dele! Os dois são filhos da mesma mãe.

Pleasance suspirou e imaginou por que tentava explicar tais sentimentos a Letitia, uma insensível. Mordeu o lábio, pensando em uma solução menos drástica e menos criminosa para o problema da irmã.

— Eu poderia falar com o sr. O’Duine —: concluiu.

— Isso não daria certo. — Letitia se levantou e começou a andar de um lado para o outro. — Ele está com raiva de todos nós. Outra coisa — nervosa, ela fitou Pleasance —, dei a ele um presente que precisa ser recuperado. Um caneco de prata.

Pleasance sufocou um grito pela extravagância e impropriedade do presente.

— Onde foi que conseguiu isso?

— John me deu a peça. Era uma herança de sua família.

Pleasance ficou muda por um instante. Letitia tinha incli­nação para fazer coisas sem pensar, mas aquilo parecia muita imprudência e estupidez até mesmo para ela. E o problema se tornava muito maior do que algumas cartas.

— Como pôde ser tão tola?

— Na época não me pareceu assim. Tearlach admirou muito o caneco e...

— Como é que John ainda não deu pela falta do caneco?

— Inventei algumas desculpas, mas não posso continuar a enganá-lo por muito tempo. — Letitia se pôs de joelhos, diante de Pleasance e agarrou suas mãos. — Você. precisa recuperá-lo para mim, por favor! Se John descobrir o que fiz, tudo estará perdido.

Pleasance fitou os olhos azuis rasos d'água e teve von­tade de deixar a irmã afundar no lodaçal em que se metera. Infelizmente, as conseqüências atingiriam a família inteira, e ela seria forçada a protegê-la do escândalo. Até o seu próprio futuro estava em risco.

— Você não pediu que o sr. O’Duine devolvesse o presen­te? — Ela não conseguiu conter a fúria na voz.

— Sim, expliquei que eu havia lhe dado o caneco em um ímpeto de generosidade, mas que fora um erro. Ele disse que eu realmente tinha sido generosa. Quanto ao erro, ele alegou que eu vinha cometendo erros em excesso. E, desejando-me melhor sorte, literalmente me empurrou para fora. O homem é insuportável! — Letitia se levantou e voltou á ocupar a poltrona, sem-disfarçar a raiva.

— Não, Letitia, insuportável é você. Depois de fazer com que eu desistisse do sr. O’Duine e de flertar abertamente com ele, fez com que ele ficasse em Worcester por mais tempo do que poderia. Por fim, ainda o trocou por John. Escreveu a ele cartas de amor, deu-lhe um presente que não era seu e agora quer tudo de volta?

— Então não irá me ajudar?

— Eu adoraria vê-la cair de bruços na lama que você mes­ma produziu.

— Por favor, não pode fazer isso comigo! — Letitia implorou.

— É verdade, infelizmente eu não posso. — Pleasance sacudiu a cabeça, desgostosa com a irmã e consigo. — Acho John um idiota, mas ele e seus parentes têm sido amigos de nossa família há tempos e não é justo que o escândalo o atinja também.

— A culpa não é só minha.

— Temos de considerar nossa família, na qual você não pensou. — Pleasance não deu ouvidos à interrupção da irmã. — Mamãe ficaria arrasada. Ela não suportaria tamanho escândalo. Não posso imaginar a reação de papai. Eles se sen­tiriam no dever de nos defender de qualquer crítica, e isso resultaria em uma tragédia.

— Fará isso por mim? Você é a única que saberia como entrar no quarto trancado de Tearlach.

— Lamento a destreza que possuo — Pleasance murmurou.

— Se não tivesse sido uma criança malvada, não teria ficado trancada tantas vezes no ático. Você aprendeu a abrir fechaduras para poder escapar, e eu nunca contei a mamãe nem a papai do que você era capaz. Nem que abria a fechadura da despensa para roubar comida depois de ser condenada ao jejum.

Pleasance ignorou a ameaça de chantagem.

— Mas, se eu não tivesse essa habilidade, você não teria me envolvido nesta confusão. Agora terei de me arriscar por causa da sua imprudência. — Mordeu o lábio. — Convide o sr. O’Duine para um conversa no jardim, amanhã à noite, e mantenha-o lá a qualquer custo por, no mínimo, duas horas.

— E se ele não quiser ficar?

— Eu serei apanhada, e nós duas teremos de enfrentar a vergonha. Agora me diga onde o sr. O’Duine está morando e onde pode estar essa maldita taça.

 

* * *

Escondida sob as dobras de um casaco imenso, Pleasance se esgueirou pelas ruas escuras da cidade. Trêmula de pavor, quando avistou a estalagem teve vontade de recuar. Não pode­ria perder a coragem, ou a insensatez de Letitia arruinaria a todos.

Caminhou sem ruído por uma alameda que ladeava a gran­de estalagem de madeira de dois andares indicada pela moça. Seu coração batia em descompasso, e ela limpou as mãos suadas na saia. Se não controlasse o medo, falharia. Se não parasse de tremer, não conseguiria abrir a fechadura do quarto de Tearlach.

Parou nos fundos da hospedaria e fitou a escada íngreme. Uma vez, ela entrara e saíra dali ao ajudar o irmão Nathan a pregar uma peça no amigo Chadwick. Mas aquilo fora apenas engraçado, sem risco de perigo.

À cada degrau que subia, os barulhos e gemidos da madeira velha assumiam proporções ameaçadoras.

Chegou ao último degrau e respirou fundo. Tirou do bol­so um espeto longo e fino, que Nathan fizera para ela, e o introduziu na fechadura.

Em vão.

Soltou uma imprecação, encostou-se na parede de ripas e procurou se acalmar. Conseguiu seu objetivo após mais algumas tentativas. Abriu devagar a porta pesada de madeira e ferro e amaldiçoou os menores ruídos. Entrou e fechou a por­ta. O pequeno hall estava vazio, mal iluminado por poucos candelabros de parede.

Encontrou o quarto também trancado, mas logo conseguiu soltar a lingueta da fechadura e entrou. Sentiu o orgulho costu­meiro, bem como culpa por seu ato criminoso. Fechou a porta com o mínimo de ruído. Abaixou-se e acendeu a lamparina que ganhara de um dos amigos de Nathan para ter luz sufi­ciente para a procura, porém sem chamar a atenção. Esperava que o falatório da taverna disfarçasse o barulho que poderia fazer.

Era um quarto grande, apesar de ser de fundos, e o teto era rebaixado em alguns lugares por causa da inclinação do telhado. Havia uma enorme cama de dossel e, ao lado, uma mesa coberta por uma toalha. Um grande baú estava encosta­do em uma das paredes, e um guarda-roupa alto, em um dos cantos. Ao lado da porta, via-se uma pequena escrivaninha e uma cadeira. No chão de tábuas largas, tapetes. Aquele devia ser um dos melhores aposentos da hospedaria.

Provavelmente Tearlach tinha dinheiro e era organiza­do. Thomas Cobb, o estalajadeiro, jamais alugaria um quarto daqueles se não tivesse certeza de receber. A procura pelas cartas não demorou. Elas estavam em uma caixa sobre a escrivaninha. Guardou-as no bolso interno do manto, mas perdeu a batalha para a curiosidade e abriu uma delas para ler.

Desistiu após dois parágrafos, e não pela dificuldade em decifrar a letra rebuscada de Letitia. O texto poderia ser clas­sificado de tórrido. Se sua irmã e Tearlach não haviam sido amantes, certamente não fora por falta de esforço de Letitia.

Suspirou e guardou a carta com mãos trêmulas. Ainda não se esquecera de sua própria fascinação por Tearlach.

— Letitia sempre consegue o que quer — ela murmurou enquanto procurava o caneco —, e você não teve chance, estúpi­da. Não creio que ainda o deseje depois de ela experimentá-lo!

Pleasance olvidou a humilhação quando encontrou o cane­co dentro da sacola em cima do armário. Era uma obra de arte, e ela não entendia como Tearlach aceitara aquela jóia de grande valor, a qual não poderia ter sido comprada por uma moça. Ele não devia ter aceitado o presente, supondo que se tratava de uma herança.

Pleasance desconfiou de que poderia haver outro motivo para ele não ter devolvido o caneco além do valor e da beleza da peça. Talvez vingança, deduziu, admitindo que os Dunstan mereciam isso.

— Olá, boa noite, Tearlach! Não o esperávamos tão cedo. A voz retumbante de Cobb, vinda de baixo, acordou Pleasance dos devaneios. Por um momento ela se quedou, estática e indecisa. Letitia não conseguira conversar com Tearlach!

— Fui a uma caçada de gansos selvagens — ele explicou —, mas não foi uma completa perda de tempo. Na volta encon­trei Corbin. Thomas, prepare uma cerveja para mim e para meu amigo. Vou até meu quarto.

— Claro. O senhor e o sr. Corbin podem sentar-se na mesa próxima da janela.

— Agradecido. Corbin, não demoro.

As palavras tiraram Pleasance do torpor em que se encon­trava. Ela apagou o pavio da lamparina e se deitou embaixo da cama, um lugar óbvio demais para se esconder, mas não havia outro. A colcha chegava até o chão, e ela procurou não respirar quando a porta foi aberta. Rezou para não ter deixado nenhuma pista que a entregasse.

Tearlach entrou no quarto rindo das brincadeiras do amigo Corbin Matthias, mas logo ficou sério. Ao acender o cande­eiro, sentiu o cheiro de pavio recém-apagado. E havia outra fragrância no ar, leve e bem mais agradável.

Franziu o cenho e tornou a cheirar, reconhecendo o aro­ma de lavanda. E se lembrou muito bem da última vez que o sentira... Sua memória estava mais vivida do que gostaria.

Agiu como se não houvesse desconfiado de nada e foi à procura de dois itens específicos. Espiou dentro da caixa e no interior da sacola. Não se surpreendeu ao não encontrar o que procurava, porém seu "pássaro" poderia ainda não ter fugido.

Ele teria visto se alguém tivesse se evadido nos últimos minutos, pois havia apenas uma porta de saída. Olhou dentro do guarda-roupa, onde não havia ninguém. Para enganar quem o estivesse observando, apanhou uma camisa e voltou para a cama, onde a estendeu. Estreitou o olhar para baixo do colchão e concluiu que não havia outro local para ocultar uma intrusa.

— Pode sair agora, srta. Dunstan.

O coração de Pleasance deu um pulo e ela parou de respirar. Quando voltou a fazê-lo, não emitiu o menor som. Como ele sabia que alguém estava ali e que era ela?

Permaneceu em silêncio absoluto, segurando a lamparina e o caneco. Mas sua esperança foi extinta quando uma fresta de luz penetrou nas sombras sob a cama. A barra da colcha foi levantada, e ela viu a fisionomia de Tearlach, assustadora de tão inexpressiva.

Com um grito, engatinhou para fora da cama, bateu com o caneco no joelho de Tearlach para desequilibrá-lo e correu para a saída.

Ele se levantou depressa e conseguiu fechar a porta que Pleasance começara a abrir, admirado com a velocidade e o silêncio quase total com que ela se movia. Pleasance possuía habilidades incomuns para uma dama bem-nascida, pensou, enquanto a agarrava pela cintura fina e a jogava sobre o ombro. Sem se incomodar com os esperneios, nem com os ataques com a lamparina e o caneco, ele a atirou na cama, imobilizou-a com o próprio corpo e tirou a lamparina de sua mão.

— Se não estou enganado, esta peça é feita por encomen­da e usada por contrabandistas. Acho estranho que esteja nas mãos de uma moça. — Ele notou que o medo dos olhos dela fora disfarçado ou substituído pela fúria. — É um instrumento empregado também por ladrões.

O olhar duro de Tearlach não trazia esperança de misericórdia.

— Não sou ladra.

— Não? Então entrou aqui só para admirar meu caneco? — Ele perguntou, fitando a mão presa na cama que agarrava a peça.

— Sabe muito bem que ele não é seu.

— Eu o ganhei de presente.

— De uma pessoa que o quer de volta! — ela revidou.

Como ele poderia ser ao mesmo tempo tão aterrorizador e irritante?

— Ah, mas eu me afeiçoei muito a ele. — Sempre man­tendo o corpo esbelto sob o seu, Tearlach apalpou o casaco e logo encontrou as cartas. — Estas coisas também são minhas.

Pleasance o fitou com ódio, pois nada poderia fazer. Duvidava de que ele lhe desse uma chance de pensar em uma resposta inteligente.

— Você se recusou a devolvê-las, por isso vim buscá-las. — Ela teve vontade de gritar diante do olhar de desprezo e troça.

— Não as entregarei, elas são minhas.

— Não são! Elas pertencem a Letitia.

— Creio que nunca chegaremos a um acordo. — Ele se levantou, segurou-a pelos pulsos com a mão calosa e grande, e a puxou para que ficasse em pé. — Nesse caso, precisare­mos de uma opinião neutra. Não deixe cair meu caneco para não danificá-lo. — conduziu-a para fora do quarto.

Pleasance lamentou não poder atirar o objeto na cabeça dele.

— Pará onde está me levando?

— Vai falar com Corbin Matthias. A senhorita tem sorte, ele me aguarda na taverna.

A última pessoa no mundo com quem ela desejava se encontrar era o magistrado Corbin Matthias. Tearlach preten­dia denunciá-la como ladra?

Pleasance tentou soltar-se, mas foi impossível. Ele a arras­tava pelo corredor. No alto da escada, ela se agarrou ao corrimão. Tearlach a fitou com desdém, desvencilhou o braço dela do painel e continuou.

Para evitar uma queda, Pleasance parou de lutar.

Eles chegaram ao térreo e ela tentou novamente se agar­rar ao balaústre, mas Tearlach a puxou pelo braço. Ela colidiu com o corpo forte e o corrimão ficou fora de seu alcance. A porta da taverna estava a poucos passos.

Encolheu-se ao entrar no ambiente amplo e, apesar da pou­ca luz proveniente das velas de sebo, reconheceu os freqüenta­dores. Muito pior: eles a reconheceram.

Determinado, Tearlach continuou a andar até uma mesa situada embaixo da janela frontal. Corbin se levantou deva­gar e demonstrou surpresa quando ele a jogou para a frente, e ela, por pouco, não colidiu com o jovem magistrado.

— Tearlach, o que houve? — perguntou, assombrado.

— A srta. Dunstan e eu divergimos quanto à propriedade do caneco e das cartas que estão em seu poder. Eu digo que são meus e ela afirma que não.

Corbin deu uma tossidela e analisou os itens.

— Tearlach, as cartas lhe são endereçadas, portanto são suas. O mesmo posso afirmar sobre o caneco, pois sei que o recebeu de presente. Por conseguinte, ele é seu também.

— Então está resolvido — Tearlach disse, sem deixar Pleasance se defender.

— Isso é tudo o que deseja de mim? — Corbin perguntou.

— Não, quero que cumpra seu dever. Prenda esta moça, ela é uma ladra.

Pleasance notou a relutância de Corbin em cumprir o pedi­do. Irada, ela não pensou duas vezes, nem mesmo nas con­seqüências de seu ato. Pulou para cima de Tearlach e, com o caneco, atingiu-o com toda a força na têmpora. Ele caiu a seus pés.

Atarantada, viu um fio de sangue escorrer por sua face enquanto Corbin a segurava com energia.

Com tristeza, ela refletiu que, com certeza, tinha resolvido o problema de Letitia. Mesmo se o pregoeiro lesse as sórdi­das cartas de amor de sua irmã em voz alta, o povo da cidade se interessaria muito mais pela irmã madura e solteira que seria enforcada por assassinato.

Pleasance estremeceu quando a porta da cela foi tranca­da. De costas para Corbin, ela continuou em silêncio. Tearlach não os acompanhara, pois o médico cuidava de seu ferimento. Mas, pelo olhar de fúria dele, ela entendeu que não poderia esperar nenhuma misericórdia.

— Mandarei avisar sua família. — Nervoso, Corbin sacu­diu as chaves.

— Para que se preocupar? — Ela suspirou e se virou. Nathan a ajudaria depois que voltasse da viagem à Filadélfia.

— Seus parentes precisam saber. Eles poderão ajudá-la. Sei que há mais no assunto do que parece.

Obviamente, ela gostaria que a família soubesse e pensas­se em um meio de libertá-la sem revelar a verdade. Afinal, arriscara tudo por Letitia, e a família poderia fazer o mesmo por ela.

— Srta. Dunstan?

— Sim, será melhor contar a eles, o que não lhes agradará.

— Se quiser revelar toda a verdade, poderei ajudá-la. Embora eu a tenha visto atingir Tearlach, não acredito que seja uma ladra.

— Nesse caso, fale com seu amigo Tearlach. A culpa é dele.

— Como quiser. Espero que sua permanência aqui seja breve.

— Eu também.

Ele saiu e subiu a escada rumo à parte superior do edifí­cio. Pleasance sentou-se no catre estreito de corda e examinou a cela que ficava entre outras duas, separada por barras de ferro. Não tinha nenhuma privacidade, mas, felizmente, era a única prisioneira. No centro da cela havia uma mesa velha e uma cadeira instável. O colchão era de palha e a manta, rústi­ca. A parede era fria e úmida, e dava calafrios. Apesar disso, não podia afastar dela o catre acorrentado na pedra.

Pleasance tirou o abridor de fechaduras de dentro do bolso do casaco, que Tearlach se esquecera de examinar, e Corbin tivera a fineza de não apalpar. Foi até a porta e estudou a fechadura. Abriu-a facilmente e tornou a fechá-la. Repetiu os movimentos mais uma vez, olhando a escada por onde fugiria, caso a situação piorasse, o que a deixou de melhor humor.

— Srta. Dunstan?

Pleasance, que estivera encolhida no catre, sentou-se e olhou para Corbin. Ela não o via desde que ele a trancara ali, três dias antes. Sua família também não dera notícias. No pri­meiro dia, pensara que eles faziam planos para libertá-la, mas naquele momento sabia que a haviam abandonado. A fisiono­mia tensa de Corbin, que lhe trazia a refeição, só veio con­firmar o fato. Ele temia contar a verdade, por isso mandara a criada servir as refeições nos dias anteriores.

— Pode falar, sr. Matthias. Não me consumirei em pranto e autopiedade. — Ela se levantou e tentou em vão alisar o vestido e arrumar os cabelos.

— O que quer que eu fale? — Nervoso, Corbin brincava com os talheres.

— Que minha família decidiu me atirar aos lobos. — Ela sentou-se e esboçou um sorriso.

— A senhorita não pode ter certeza disso. — Ele andava de um lado para o outro.

— Posso, e o senhor sabe disso, pois os procurou e deve ter ouvido essa resposta.

Ele parou de andar e esfregou o queixo.

— Isso poderá surpreendê-la, mas eles virão antes do julgamento.

Ele optara por não contar exatamente o que sua família dissera, mas as palavras de Corbin confirmaram seu temor.

Sem sentir o gosto, Pleasance comeu o ensopado de peixe e se esforçou para não ceder ao desespero.

— Se o sr. O’Duine não retirar a queixa...

— Uma vez que a acusação foi aceita, nada mais poderá ser feito.

— Entendo. E quando será o julgamento?

— Será daqui a quatro dias. Tempo suficiente para a sua família vir em seu socorro, e quem sabe fazer um acordo com Tearlach, ou comigo e os outros juizes.

— O julgamento não será diante de um júri? Ninguém me defenderá?

— Não. Como deve saber, isso requer dinheiro.

— E ninguém se dispõe a pagar. — Era difícil de acreditar em tamanha desconsideração.

— Bem, os custos de sua prisão têm sido pagos.

— Sei. Não querem me libertar, mas se assegurar de que eu continue presa. — Ela empurrou a tigela quase vazia para o lado. — Suponho que serei enforcada, então.

— Não enforcamos mais ladrões, srta. Dunstan.

— Mas a questão é que eu não sou uma mera ladra. Eu ataquei um homem.

— Conte-me o que aconteceu de verdade e poderei ajudá-la — Corbin tornou a insistir.

Pleasance ficou tentada. A família a abandonara, condenan­do sua lealdade cega. Mas duas coisas a impediam de falar: sua honra e a necessidade de proteger seu irmão Nathan de um escândalo.

— Não há nada a dizer — Pleasance murmurou e bebeu a sidra para evitar o olhar de frustração de Corbin.

Suspirou. Seriam quatro longos dias, ainda mais se a família continuasse a ignorá-la.

Corbin saiu, e ela se deitou no catre, dando vazão às lágri­mas contidas desde sua prisão.

Estava completamente sozinha.

Pleasance tiritou de frio ao lavar o rosto. A água quente trazida por Corbin perdera o calor na cela fria. Secou-se depressa e vestiu a roupa amarrotada.

Era difícil acreditar que os pais a tinham abandonado para salvar a honra da família e sua preciosa Letitia, mas a raiva que a invadira fazia dias a ajudaria a enfrentar a provação que a aguardava.

 

Corbin chegou para levá-la ao tribunal, e ela vestiu a capa por cima do vestido. A caminho da carruagem que os aguar­dava nos fundos, pôs a mão no bolso, e o espeto de ferro deu-lhe mais coragem. A opção de fugir a faria suportar com firmeza a indiferença da família.

Pleasance precisou de toda a sua energia para permanecer ereta quando foi conduzida à frente dos juizes. Sua confiança a abandonou, entretanto, quando viu a sala do tribunal com os bancos de madeira repletos de pessoas. Seu pai, sua mãe, Letitia e Lawrence sentavam-se na primeira fila, ao lado de John Martin e dos pais dele.

Sentiu uma leve esperança apesar de todos a ignorarem. Nathan não viera. Certamente não voltara da Filadélfia ainda e nada sabia sobre o que estava acontecendo. Pensar que o irmão gostava dela e que poderia ajudá-la, deixou-a mais cal­ma e com ar mais digno.

Permaneceu aprumada na pequena área fechada, à direi­ta da longa mesa onde se sentavam os quatro juizes. A sala estava tão cheia que havia pessoas em pé nos fundos. Muitos se abanavam naquela primeira semana quente de setembro.

O nome Dunstan aguçava a curiosidade das pessoas, que, com certeza, se perguntavam por que não havia um júri e advogados, como ocorria entre os ricos. Muitos se espantavam por ela estar sendo julgada como uma indigente.

Respirou fundo e espiou Tearlach, que mantinha uma fisio­nomia impenetrável, sentado à frente da multidão fascinada. Felizmente não o matara, mas isso não a consolava.

A raiva contra ele se equiparava à fúria que ela sentia da família. Apesar de havê-lo tratado mal, ela não merecia aque­la humilhação. Nada do que sua família fizera, ao ferir seu orgulho ou lhe causar sofrimento, justificava aquele tipo de vingança. A acusação de Tearlach e o julgamento arruinariam sua existência, enquanto ele iria para casa e logo todos esque­ceriam sua participação no caso. Ela continuaria a viver como uma rejeitada, uma excluída até mesmo do círculo íntimo dos familiares.

Tearlach se virou e seus olhares se encontraram. Havia remorso e até simpatia na expressão dele, no entanto ela não se deixou abalar. Ele era o culpado por sua prisão. Olhou-o com fúria e pensou, que encará-lo como acusador faria com que se curasse de sua empolgação por ele.

Tearlach estremeceu quando ela lhe deu costas. Não pensara em levar as acusações tão longe. Tinha certeza de que a famí­lia de Pleasance, a salvaria daquela situação, mas os Dunstan tinham agido como se ela fosse simplesmente uma desconhe­cida para eles. Apenas uma vez haviam perguntado sobre a filha logo após a prisão, para saber o que ela dissera. Logo depois, encorajaram Letitia a lhe contar uma história absurda.

Trêmula e com uma admirável demonstração de pesar, Letitia difamara Pleasance, insinuando que a irmã roubara seu cane­co de prata para presenteá-lo e conquistar seu amor. Daquele momento em diante, a pequena brincadeira iniciada por ele se transformara em uma grave acusação contra Pleasance, regi­da pela família Dunstan.

E ele nada poderia fazer contra o poder e o prestígio dos Dunstan e dos Martin para que ela não fosse condenada. Àquela altura, ninguém o escutaria, nem haveria tempo para buscar ajuda a fim de que combatessem os retrógrados cidadãos de Worcester.

Ele tivera uma idéia que na certa não agradaria a Pleasance, mas seria a única maneira de evitar a execração pública com possível castigo corporal. Ela acabaria por entender que seria a melhor alternativa, diante da postura de sua família.

Pálida e cansada, Pleasance usava o mesmo vestido com que fora presa, o qual se apresentava agora amarrotado e sujo. A pele alva realçava as olheiras profundas, os olhos e os cabelos haviam perdido o brilho que ele sempre admirara, e denunciavam seu sofrimento. A visão renovou a raiva que ele sentia de si mesmo por haver começado aquele jogo, e tam­bém seu ódio por aquela família que se comportava de maneira tão desprezível.

Sua fúria aumentou quando John Martin, o epítome de um cavaleiro respeitável, da ponta da peruca branca até o bico dos sapatos de fivela de prata, levantou-se e avisou que falaria em nome de sua noiva. Declarou que ela era muito delicada para suportar um interrogatório e que estava muito perturbada com a atitude da irmã.

Tearlach ficou enojado e supôs duas coisas: ou John acre­ditava nas mentiras de Letitia, ou apoiava os Dunstan na farsa para arruinar Pleasance e salvar a outra do escândalo. Como Pleasance se sentiria diante daquilo?

Pleasance sufocou um grito de indignação quando John começou a falar. Sua tentativa de salvar Letitia fora recom­pensada com uma traição inimaginável, e ela jamais se veria limpa daquela pecha de criminosa.

Está certo de que esse caneco lhe pertence, sr. Martin? — Corbin perguntou.

— Sim. Minha noiva deu pela falta dele há quinze dias.

— E ela disse como foi que o perdeu?

— Bem, não exatamente. Ela queria proteger a irmã.

Pleasance refletiu, com amargura, que jamais se salvaria.

— Está dizendo que a srta. Pleasance Dunstan roubou o caneco?

— Sim. E o deu de presente ao sr. O’Duine.

Pleasance ouviu John acusá-la de ladra e, pior, de ser uma mulher sem moral, que perdera a castidade. Em suma, um peso que a família agüentava fazia anos. John afirmou que o fato de ela ser uma mulher de vinte e um anos, sem perspectiva de casamento, a fizera pegar um objeto da própria família para impressionar Tearlach. Para ela, aquela acusação era tão dolorosa quanto a de roubo. E a anuência de tantas pessoas era estarrecedora.

Um golpe ainda maior foi desferido quando alguns pre­sentes se levantaram para acusá-la de amoral, atestando que ela mantivera um tórrido romance com Tearlach até na estalagem. Letitia fizera todos acreditar que fora a irmã quem se encontrara com Tearlach nos aposentos dele.

Pleasance sentiu-se atordoada ao constatar a vileza da irmã.

O julgamento foi interrompido para o almoço, e ela foi con­duzida até uma pequena sala, sob a guarda do jovem Luther Granston. Apesar dos pulsos amarrados e da comida fria, ela se forçou a comer para não perder as forças.

A sessão foi retomada, e mais mentiras foram relatadas pelos amigos de Letitia, que certamente os instruíra a depor contra Pleasance. Apesar de não haver provas, eles pareciam estar convictos do que Letitia lhes dissera. Em seguida, os que haviam estado presentes na taverna, na noite em que a tinham visto atacar Tearlach e ser presa, fizeram um relato fantástico e vicioso.

Pleasance se perguntou qual seria a necessidade de expô-la a tanta humilhação, se ela fora presa em flagrante.

Tearlach permaneceu em silêncio durante o julgamento. Ela tinha convicção de que ele não refutara as acusações por saber que se tratava de mentiras. Na certa, decidira deixar que sua família a destruísse. As cartas Letitia tinha escrito, e que poderiam salvá-la, haviam desaparecido.

Apesar de a família ter se voltado contra ela, Pleasance ainda se preocupou com a hipótese de que Tearlach pretendes­se causar mais problemas para os Dunstan.

Finalmente chegou o momento de ela se defender e, pela primeira vez naquele dia, tanto os Dunstan quanto os Martin a fitaram.

— Por acaso, vocês estão pretendendo me abandonar? — ela indagou, com os olhos fixos na família.

— Você terá de encarar sua punição — o pai respondeu.

— Sim, talvez o senhor tenha razão: a estupidez pode ser um crime. — Ela se dirigiu a Letitia. — É assim que pretende conduzir esse jogo?

— Como pode chamar isso de jogo? — A expressão de Letitia não poderia ser mais pesarosa. — Isso revela seu des­prezo pela lei. Não podemos continuar a protegê-la, mas saiba que a eu perdôo.

— Quanta bondade! — ela respondeu, cínica.

— Srta. Dunstan? — Corbin a chamou. — Tem algo a dizer em sua defesa?

De nada adiantaria contar a verdade, ninguém acredita­ria. As acusações da família e dos Martin eram tudo o que importava. O plano que Letitia e ela haviam arquitetado para invadir os aposentos de Tearlach não contava com testemu­nhas. Também não adiantaria chamar Tearlach para depor. Ninguém daria atenção às palavras de um simples caçador e comerciante de peles diante das declarações dos mais preeminentes cidadãos de Worcester.

Quando Corbin a questionou novamente, ela respondeu com evasivas que tiveram apenas o propósito de condená-la. Pouco à vontade, Corbin começou a pronunciar a sentença, quando Tearlach se adiantou e Pleasance refletiu qual seria o golpe seguinte.

— Qual multa o senhor pretende estipular? — ele indagou.

— Não pensei em multa, pois ela não tem dinheiro. A menos — Corbin fitou os Dunstan — que o senhor pretenda pagar pela penalidade, sr. Dunstan.

— Não, sir. Não estou disposto. — Thomas respondeu.

— A senhorita possui algum recurso, srta. Dunstan? — Corbin perguntou com suspiro.

— Nem um centavo.

— Então me parece inútil estabelecer uma multa.

— Pode determinar, sr. Corbin, e eu a pagarei — Tearlach afirmou.

Surpresa, Pleasance não pôde conter a indignação.

— Não quero nenhuma caridade sua! Já fez mais do que o suficiente por mim, muito obrigada!

— Não estou falando de caridade, srta. Dunstan.

— Também não possuo os meios para retribuir um empréstimo.

— Não estou falando em empréstimos. — Ele se voltou para Corbin. — Estabeleça um preço e eu o pagarei. Depois cobrarei minha parte em trabalhos feitos pela srta. Dunstan.

Admirado, Corbin levou alguns segundos para se recuperar do choque.

— Bem, não sei se podemos fazer isso...

— Essa é a lei. O culpado poderá pagar a multa estipulada em dinheiro ou em pena alternativa, nesse caso em trabalho.

— Conheço a lei — Corbin fitou o pai de Pleasance —, mas o senhor concordará com tal acordo, sr. Thomas? Levantando-se, Thomas Dunstan disse friamente.

— Faça o que quiser. Renuncio a toda responsabilidade em relação a ela. — Saiu seguido pela família.

Pleasance rezou para que seu martírio tivesse um fim rápido. Não suportando o esforço que fizera para se conter, temia desabar no chão e chorar diante de todos se Corbin não se apressasse em acabar logo com aquilo.

— A multa, Corbin — Tearlach insistiu.

— Não sei... — O juiz ficou indeciso.

Tearlach se aproximou do amigo, e os dois iniciaram uma discussão em voz baixa. Pleasance ficou tensa por saber que outros decidiam seu futuro, até que Tearlach se afastou do companheiro.

— Pleasance Dunstan, a senhorita foi considerada culpada pelos crimes de roubo e agressão. Pelo período de um ano, prestará serviços ao sr. Tearlach O’Duine, em troca da multa que ele pagará em seu nome. Daqui a um ano, a contar de hoje, a senhorita e o sr. O’Duine voltarão aqui e decidiremos se cumpriu com os deveres necessários para ressarci-lo do prejuízo. — Corbin se levantou e olhou para Tearlach. — Até a partida, sr. O’Duine, a srta. Dunstan permanecerá em sua cela.

Sozinha e amargurada na cela escura, Pleasance não enten­dia o significado do que lhe acontecera. O som de passos a lembrou de que estava na hora de comer, mas duvidou de que pudesse engolir um bocado de comida. Ao ver que se tratava de Corbin, levantou-se. Ele entrou, pôs a bandeja na pequena mesa deteriorada e sentou-se no banco de três pernas.

— Coma, srta. Dunstan — ordenou com cortesia. — É preciso estar de estômago cheio para enfrentar o frio e a umidade que até hoje não consegui eliminar desta cela.

— Creio que todas devem ser assim, e esta é bastante con­fortável. — Ela se esforçou para comer o substancioso cozido de veado e imaginou por que Corbin não se retirava.

— Sinto muito pelo julgamento, pela sentença e pela humi­lhação que deve estar sentindo.

— O senhor apenas cumpriu a lei.

— Este foi meu último caso, e eu gostaria que pudesse ter sido mais agradável.

— Vai para um posto melhor?

— Não, mas de qualquer forma entregarei o cargo de juiz.

— Por quê?

— As perspectivas desta localidade não são boas. Muitos estão contra o rei e suas normas. O problema começou com a Lei do Selo, em 1765, e piorou com os Atos de Townshend de 1767. Deus nos ajude, mas os agentes do rei inspecionam até as galinhas que um fazendeiro resolva transportar pelo rio. O ânimo nas colônias anda exaltado e há um clima de rebelião no ar.

— Escutei os rumores e alguns foram bem insistentes. — Corbin esboçou um sorriso e sacudiu a cabeça. — Sinto-me dividido, visto que os dois lados parecem corretos. Não quero ter de julgar amigos e vizinhos por traição. Hoje vi claramente que, mesmo agindo segundo a lei, posso estar muito errado.

O olhar sério de Corbin, deixou-a nervosa. Ele era um homem inteligente, conhecia todos na cidade, e era de se supor que desconfiasse da verdade. Embora isso fosse reconfortante, ela não ousava confirmar a suposição.

— O senhor presenciou minha agressão ao sr. O’Duine e viu quando fui presa. Como pode pensar que tenha cometido um erro?

— Eu sei que a, senhorita o atacou, mas tenho certeza de que não deu o caneco a Tearlach.

Era evidente que se Tearlach tivesse mostrado o caneco a Corbin, também lhe teria contado a origem dela.

— O senhor, não acreditou nas histórias contadas por John e pelos outros, não é?

— Em nenhuma delas. Só escutei mentiras, as faladas e as veladas. Sei que a senhorita e Tearlach poderiam ter prova­do que tudo aquilo não passava de falsidade.

Pleasance não contestou a conclusão acertada. Embora não tivesse se defendido, não poderia mentir para se condenar. Corbin devia apenas estar curioso e talvez quisesse corrigir o malogro da justiça, porém ela decidira permanecer em silên­cio, evitando assim, maiores escândalos. Se a família a sacrifi­cara para se proteger, ela não precisava fazer o mesmo.

— Acha que eu mancharia a honra de minha família com mentiras e perjúrios? Eu jamais faria isso com meus parentes.

— A senhorita agiu com muito mais honradez do que eles.

— O sr. O’Duine não teve o mesmo motivo para se manter calado.

— Ele jamais esperava que as acusações fossem resultar em um julgamento.

— Seria mesmo? Mas, diga-me, para onde eu poderia ir depois de presa?

— Sua família poderia tê-la libertado. O’Duine preten­dia apenas assustá-la, mas como seus parentes nada fizeram pela senhorita, ficamos presos em nossa própria armadilha, sem possibilidade de retorno.

A explicação parecia razoável, embora ela estivesse relu­tante em acreditar que Tearlach não tivera intenção de levá-la a julgamento. Mas por que ele permitira que a prendessem? Fora um jogo muito cruel, e a vingança superara de longe o crime.

— Vejo que não acredita em mim. Não permita que a amar­gura e a raiva a ceguem. O’Duine é um bom homem, e eu o conheço desde que chegou aqui.

— O senhor quer que eu fique feliz diante da perspectiva de trabalhar como escrava para ele durante um ano?

— Ele tentou salvá-la de uma punição mais drástica e de uma humilhação pública maior.

— Veremos o que acontecerá. — Ela empurrou a tigela em sinal de que terminara a refeição.

Corbin se levantou para recolher o prato e o copo.

— Não permita que a ira, embora legítima, torne a situa­ção ainda pior. Tearlach é um homem justo e precisa de uma mulher para ajudá-lo a criar a irmã. Posso não concordar com os meios que ele usou para conseguir uma preceptora para ela, mas eu o compreendo. Se não pode desculpá-lo, pelo menos não desconte na pobre criança.

Dito isso, Corbin a deixou, embora Pleasance quisesse conversar mais um pouco. Assim, pelo menos esqueceria um pouco o que a atormentava.

Tirou do bolso o abridor de fechaduras e o analisou. Poderia escapar dali, mas para onde? Aquela altura, Nathan já não estaria mais na Filadélfia. Ela não tinha dinheiro, roupas, alimentos nem cavalo, e também não conhecia ninguém que poderia ajudá-la a fugir.

Diante do que a população de Worcester pensava dela, ir para uma região desabitada tornava-se uma atrativa possibi­lidade. Além do mais, Nathan acabaria por vir a seu encontro para socorrê-la.

Os minutos se arrastavam, e Pleasance desejou que Tearlach não demorasse em levá-la rumo à servidão.

— Vim buscar minha nova criada — Tearlach anunciou ao entrar na sala de Corbin, dois dias após o julgamento.

Corbin serviu vinho aos dois e sentou-se em frente ao amigo.

— Não a provoque, chamando-a de criada. Ela é muito orgulhosa e não merece passar por um vexame desse. Errou por motivos admiráveis, e sua punição foi muito severa.

— Ela não tentou se defender — Tearlach contestou.

— Pois sabia que ela tem mais honra e lealdade do que toda a sua família e John Martin juntos. Exceto por Nathan, seu irmão mais novo. Não se esqueça de que se ele souber o que aconteceu, irá atrás dela.

— Quer dizer que terei um garoto ultrajado batendo em minha porta a qualquer momento?

— Tearlach, por que não desiste disso?

— Não quero.

— Você tem dinheiro para contratar uma dúzia de criadas.

— Ninguém aqui sabe disso, e você jurou que não contaria nada.

— Mantenho a minha palavra, mesmo que não explique o motivo de tanto segredo.

— Quando enriqueci, pensei em me casar. O chocalhar das moedas em meu bolso tornou-me popular e, como um tolo, achei que todas as atenções eram para mim. Apaixonei-me por uma mulher e não percebi que ela era uma leviana merce­nária. O desenlace foi cruel e eu aprendi a lição. Sem dinhei­ro, ninguém se interessa por mim. Com ele, atraio atenções indesejáveis.

— Você não deveria permitir que uma triste experiência o azedasse.

— Uma e mais algumas.

— Está bem, mantenha sua riqueza em segredo. Mas não é preciso muito dinheiro para contratar uma mulher que tome conta de sua irmã.

— O que ela fará aqui? A família a rejeitou e a cidade acre­dita que ela seja uma ladra. Depois de um ano, as lembran­ças estarão arrefecidas e a verdade poderá vir à tona. Fique tranqüilo, ela não sofrerá.

— Não? Pode jurar que não cederá a um eventual desejo? O inverno é longo e frio em Berkshires, meu amigo. E ela é uma mulher muito bonita.

— Não a requisitei com esse propósito, mas acho que partilhar de minha cama não a fará sofrer, Corbin.

— Mas que droga, Tearlach. Eu devia tê-la declarado ino­cente e tê-la libertado.

— Você não fez isso pelo mesmo motivo pelo qual eu me mantive em silêncio. Esse era um assunto entre ela e a famí­lia. Se ela escolheu proteger aqueles tolos ingratos, quem somos nós para impedi-la? Soltá-la significaria jogar a culpa naquela gente, e é evidente que ela não desejava isso. Por isso fiquei calado.

— Como puderam agir contra ela? — Corbin sacudiu a cabeça. — E você, por não se pronunciar, acabou protegendo Letitia.

— Nada disso. Apenas segui o rumo de Pleasance, que não divergiu da história contada por eles. E com tantas testemu­nhas apoiando a versão dos Martin e dos Dunstan, quem acre­ditaria em nós? Posso ter o poder e a riqueza para lutar contra eles, mas Pleasance teria de ficar presa durante semanas. Quanto a Letitia, não vejo a menor graça nela, embora seja bonita. Ela é uma garota fútil, mimada, que insistiu em me perseguir porque eu me interessei por sua irmã mais velha.

— Você nunca tocou nesse assunto.

— É que, depois de cortejar Pleasance durante uma quin­zena, fui descartado sem a menor consideração. — Admitir isso ainda o feria.

— Pleasance é conhecida por ter a língua ferina, mas não por ser cruel ou rude sem nenhum motivo.

— A razão é simples. Os Dunstan desprezam o fato de eu ser um fazendeiro escocês que mora no campo, e acreditam que eu seja pobre.

— Creio que tenha se enganado. Por favor, não se ofenda, mas Pleasance não é como eles. Ela não é presunçosa. Deve ter um bom motivo para ter agido dessa maneira. Procure desco­brir o que houve. Ela tem o caráter parecido com o de Nathan, que eu conheço bem. O rapaz trata a todos como seus iguais: maltrapilhos ou ricos. Não creio que ela tenha afastado você por achá-lo muito simples.

Tearlach desejava acreditar nisso, pois aquela fora a primeira vez que seu interesse por uma mulher tinha propósi­tos honrados e duradouros. E esse fora um dos motivos pelos quais pagara a multa e fizera o acordo para que ela o acom­panhasse. O outro, bem mais importante, e que o perturbava, era a vontade de resgatá-la da deslealdade da família.

Um ano seria tempo suficiente para que avaliasse o caráter de Pleasance. Nas montanhas, ela não teria tempo para afeta­ção nem artifícios. Ele tinha uma boa vida, bem superior ao que ela poderia imaginar, mas era uma existência difícil e em um local pouco povoado. Tampouco se podia ter certeza de que a recente paz com os franceses resolvera os problemas indígenas.

— Por que está tão quieto, Tearlach?

— Estou pensando no que me disse. Não me esquecerei de suas palavras e não deixarei que o pecado do orgulho me deixe cego. Conseguiu pegar as coisas dela?

— Sim, depois de muita relutância. Não imagino o que pretendiam fazer com as roupas, pois Pleasance é bem menor do que a mãe e a irmã.

— Thomas Dunstan é um comerciante até a raiz dos cabe­los e provavelmente iria vender os vestidos.

Tearlach terminou o vinho e se levantou.

— Levarei as coisas delas para a carroça e depois virei buscá-la.

 

Pleasance ficou tensa ao escutar passos que se aproxima­vam. Corbin a avisara de que ela partiria com Tearlach naquela manhã, mas ela esperara até o último minuto por uma interven­ção da Providência, que não veio.

Ao ver Tearlach, sua raiva ressurgiu. Apesar de tudo o que sofrera por ele, ainda o achava atraente. Alto, moreno, feições benfeitas, ele conseguia perturbar seus sentidos.

E ela o odiava porque ele lhe despertava emoções que se julgava incapaz de ter. As calças justas, feitas de pele de gamo revelavam pernas longas e musculosas. A camisa solta, do mesmo material, deixava entrever o peito liso e moreno, e Pleasance sufocou uma onda de desejo.

— Está na hora de irmos, srta. Dunstan — Tearlach disse, quando Corbin destrancou a porta da cela. — Estou surpreso por encontrá-la aqui em vista de sua habilidade em entrar e sair de lugares trancados.

— Eu jamais lhe negaria a vitória, senhor.

— Talvez se arrependa de sua decisão após alguns dias de trabalhos forçados e longe do luxo a que está acostumada.

— Não se preocupe, não estou acostumada a me arrepender das decisões que tomo.

— Vamos? — Corbin apressou-os.

— Sim, não há motivos para ficarmos aqui — Pleasance respondeu.

Os três subiram os degraus do porão, saíram pelos fundos da construção e, quando alcançaram a rua, Tearlach a segu­rou pelo braço. Pleasance teve vontade de se desvencilhar para evitar o calor do desejo que a invadia. Era assustador pensar que viveria perto daquele homem durante um ano, pois sentimentos indomáveis, que não conseguia evitar, poderiam completar sua queda.

O carroção de carga puxado por quatro cavalos a assus­tou, porém Tearlach a segurou pela cintura e a deixou sobre o assento alto. Enquanto se despedia de Corbin, ele a segurou pelo pulso, de modo a impedi-la de escapar.

Pouco tempo depois, eles já estavam a caminho, e Pleasance se acalmou um pouco. Quando deixavam a cidade, pelo lado oeste, ficou novamente tensa. Sua casa apareceu diante deles e, mesmo sem querer fazê-lo, ela espiou de soslaio. Não havia ninguém na porta da residência de dois andares, nem do lado de dentro, olhando pelas vidraças. Os Dunstan não a espera­vam para vê-la passar.

Olhou para as mãos cruzadas no colo, lutando contra as lágrimas e jurou, para si mesma que não permitiria que a trai­ção da família a derrotasse.

Tearlach notou o sofrimento que ela procurava ocultar. Teve vontade de parar a carroça, entrar na casa e dar uma surra não só em Thomas, mas também em John e Letitia.

Aquela ira contra os que haviam traído Pleasance o per­turbava. Talvez tivesse sido melhor tê-la soltado logo após o pagamento da fiança.

Contudo, necessitava de Pleasance para cuidar de Moira, sua meio-irmã insubordinada e caipira, que logo faria treze anos e atingiria a puberdade.

Lembrou-se do motivo que o levara a Worcester em busca de uma esposa. Moira batera em um menino, fato considerado um escândalo, mesmo numa região inóspita onde moravam, o que indicava que a garota precisava da orientação e do carinho de uma mulher.

Pleasance fez uma careta ao esfregar as costas doloridas. As anáguas não eram proteção suficiente para atenuar a dure­za do assento. Aquela estrada devia ser a única que conduzia aos assentamentos ocidentais da colônia e viajar por ela já era castigo suficiente por seus crimes. Felizmente o calor de setembro havia diminuído.

No entanto, uma boa hospedaria acalmaria seus ânimos. Porém Tearlach estava evitando passar esses lugares ou não havia, de fato, estalagens por ali. Apesar de que após o térmi­no da guerra, os indígenas e os franceses tinham transformado a região em um campo de batalha, e as hospedarias nem sem­pre eram seguras.

Tearlach parou em um posto fronteiriço, construído com troncos de madeira, onde perambulavam soldados indolentes. Ela não ficaria surpresa se a permanência deles em local tão remoto pudesse ser considerada uma forma de punição.

Em poucos minutos, ele desatrelou os cavalos e, quando o fez, Pleasance teve de se conter para não revelar sua preocu­pação com a maneira como os soldados a olhavam. Endireitou as costas e encarou os combatentes com uma coragem que não sentia. Se a considerassem inferior, uma mulher frágil que precisava de proteção, poderiam ameaçá-la.

A fortaleza era minúscula, úmida e mal iluminada, mas ao menos oferecia segurança contra ataques. Tearlach escolheu o canto menos sujo do local e estendeu as cobertas para seu repouso noturno.

— Onde eu vou dormir? — ela perguntou, preocupada.

— Entre mim e a parede.

— Está me forçando a dormir a seu lado? — Pleasance não teve certeza se estava surpresa, com raiva, ou as duas coisas, ao aceitar o pão de milho e a carne seca que ele oferecia.

Tearlach se aproximou e lhe ofereceu uma pequena cane­ca de latão com sidra. Queria falar com ela de modo que os soldados não os escutassem.

Apesar da estrada poeirenta, Pleasance exalava um aroma de pele limpa e lavanda. O olhar brilhante era encantador, no entanto ele não deveria se precipitar. Estavam juntos fazia apenas um dia.

— Reparou naqueles soldados ingleses?

— Claro que sim.

— Eles formam a escória do exército do rei e foram espa­lhados pelos postos fronteiriços considerados inúteis pelas autoridades. Os bons soldados estão encarregados de perse­guir os importadores ilegais, os contrabandistas e agitadores. Os que temos aqui não são confiáveis e, pelo olhar, conside­ram-nos desprezíveis. Enquanto estivermos aqui, você terá de ficar a meu lado.

— E apenas seu tamanho poderá me salvar?

— Isso mais um olho aberto toda as noites. Agora coma e descanse. E não solte nenhum botão de seu belo vestido azul, pois não queremos tentar esses patifes. Sairemos deste maldito lugar ao alvorecer.

Pleasance obedeceu, sabendo que ele estava certo e que só podia contar com ele para protegê-la. Depois de comer e beber, deitou-se sobre as mantas, quase encostada à parede. Após algum tempo, percebeu que Tearlach se deitara e cobrira a ambos com um cobertor fino. Só depois disso, ela conseguiu adormecer.

Tearlach se deitou de costas para Pleasance, de olho nos soldados. Com poucos movimentos, escondeu uma faca sob o saco dobrado que lhes servia de travesseiro.

E o aroma inebriante de Pleasance garantiu que a noite seria longa, não apenas por ele ter de vigiar aqueles patifes.

Irritada, Pleasance murmurou algo, sem querer acordar, e estendeu a mão para o lado. Tearlach não estava ali.

Foram necessários alguns instantes para ela entender o que estava acontecendo. Abriu os olhos depressa, porém era tar­de demais. Alguém lhe tapava a boca, enquanto outro homem a prendia junto das mantas.

Um riso baixo e triunfante provocou-lhe um calafrio de puro terror. Ela tentou escapar, o que serviu somente para divertir seus captores, que agora se ocupavam em soltar suas roupas. O homem que estava sobre ela prendeu sua pernas nas dele e passou a levantar suas saias.

Como usavam luvas grossas de couro de gamo, Pleasance não conseguiu morder a mãos que a amordaçava, e nem teve tempo de gritar, pois enfiaram um trapo sujo em sua boca. O grito de socorro morreu em sua garganta, no entanto ela continuou a se contorcer, procurando se desvencilhar dos agressores. Enojada, ela se perguntava o que teria acontecido a Tearlach.

Após inspecionar os cavalos e a carroça, Tearlach olhou em volta e disse uma imprecação. Ele desviara sua atenção por um momento e fora o suficiente para que percebesse dois soldados parados na entrada da pequena cabana de estacas, enquanto dois outros espiavam para dentro dela. Fora disso, ninguém mais à vista.

Entendeu imediatamente o que se passava. Pegou o mosquete, enfiou a pistola no cinto e ajeitou a faca na bainha.

Procurou controlar a fúria. Aqueles homens eram conside­rados a escória do exército, verdadeiros criminosos, e despre­zavam os colonos. Aquela atitude era comum a muitos soldados ingleses, contribuindo para o crescimento da ruptura entre a Inglaterra e as colônias. Isso permitia aos canalhas pensar que poderiam estuprar Pleasance e permanecer impunes, sem medo de reprimendas ou de sua intervenção.

Ah, ele provaria o quanto estavam enganados!

Bateu na cabeça do primeiro guarda com o cabo do mosquete e o homem caiu sem um gemido sequer. O segundo mal teve tempo de registrar a surpresa antes de ser atingido no queixo com a arma. O sujeito caiu de costas, desacordado. Tearlach passou por cima deles, sem amarrá-los por falta de tempo. Se tivesse sorte e agisse depressa, libertaria Pleasance, e ambos escapariam dali antes que os guardas acordassem.

Ninguém o viu entrar, e a visão de um homem debruça­do sobre o corpo de Pleasance quase o fez atirar. Aturdida, ela se debatia freneticamente. O corpete estava aberto e as saias tinham sido erguidas até as coxas. O homem abria a pró­prias calças enquanto seus companheiros a seguravam, indife­rentes aos gemidos de desespero e às tentativas de se livrar dos agressores.

Tearlach controlou o ódio e o instinto assassino. Seria pre­ciso armas carregadas para ameaçar os homens. Se atirasse naquele momento, mataria dois deles, porém ficaria à mercê dos outros. Sua única chance era blefar.

— Deixem-na! Agora!

Pleasance quase desmaiou de alívio quando a voz familiar e gélida quebrou o silêncio. Tensos, os agressores a soltaram e se afastaram devagar. Apesar de fraca e trêmula, ela conse­guiu tirar a mordaça e ajeitar as roupas. A necessidade de fugir deu-lhe forças para se mover.

— Pegue as mantas e vá para a carroça! — Tearlach viu as calças abertas do homem que se deitara sobre Pleasance.

— Por acaso, ele...

— Não — ela balbuciou em resposta.

— Não pode atirar em todos nós — um dos soldados provo­cou-o numa tentativa inglória de esconder sua surpresa.

— Não. Apenas em dois. Gostaria de ser um deles? — Quando Pleasance passou, Tearlach a empurrou para a porta.

— Entre na carroça. Sabe manejar uma parelha?

— Mais ou menos.

— Não importa. Entre na carroça, segure as rédeas e esteja pronta. Espere! Preciso de ajuda — ele murmurou e recuou devagar até a entrada sem desviar o olhar dos atacantes. — Joguem suas armas para mim... devagar! — ordenou para os soldados.

Após uma ligeira hesitação, eles obedeceram. De olhar fixo nos homens, Tearlach pediu a Pleasance que as reunisse em uma sacola. Apesar do nervosismo, ela cumpriu as ordens com extraordinária rapidez e deixou o saco ao lado dele. Em seguida, ele ordenou que ela deixasse os mosquetes na carro­ça, e Pleasance foi obrigada a fazer duas viagens por conta do peso das armas.

Tearlach temeu não ter tempo de fugir antes que os guardas do lado de fora acordassem. Escutou dois baques surdos e, quando Pleasance voltou, fitou-a com olhar interrogador.

— Os guardas estavam acordando, mas estão quietos nova­mente — ela murmurou, enquanto pegava as mantas do chão, apressada.

— Muito bem, agora vá para a carroça. — Tearlach escutou os passos que se afastavam e levantou o saco com as armas.

— Elas são propriedade da Coroa, e é contra a lei roubá-las!— um dos soldados advertiu.

— Não as roubarei. Atirarei todas na estrada, e os senho­res poderão procurá-las. — Tearlach correu para a carroça. — Agora, Pleasance!

Sem hesitar, ela estalou as rédeas. Os cavalos arrancaram para a frente, e ele se jogou na traseira da carroça. Enquanto apontava o mosquete para os soldados que tropeçavam sobre os companheiros inconscientes, Pleasance se concentrava em manter os animais a galope, sem tombar o veículo.

Quando eles já haviam se afastado algumas milhas, Tearlach começou a jogar fora as armas dos soldados, uma a uma. Os bastardos levariam tanto tempo para achá-las que poderiam ser considerados desertores.

A certa altura, que pareceram horas para Pleasance, Tearlach ordenou que ela diminuísse a marcha, pulou para a frente e tomou as rédeas de suas mãos.

Ela procurou ignorar a dor dos braços, ombros e costas, e lutou para afastar a náusea. Não havia tempo para ceder ao desespero. Teria de esquecer o ataque que, felizmente, falhara.

O sol já se punha atrás das montanhas, quando Tearlach conduziu a carroça à beira da estrada onde havia uma espessa fileira de árvores que levavam à floresta. Haviam feito uma pausa ligeira ao meio-dia para descanso dos cavalos. Pulando da carroça, ele tratou de apagar, com galhos cortados, os ras­tros do veículo na estrada até o local onde se encontravam.

Em silêncio, ergueram acampamento e, por via das dúvi­das, não acenderam nenhuma fogueira. A refeição consistiu de pão de milho e uma mistura de carne seca com passas, gordura e açúcar, conhecida como pemmican.

Tearlach estendeu as mantas, considerando perturbador o silêncio de Pleasance. Era evidente que havia cicatrizes em seu coração e em sua alma pela quase concretização do estu­pro. Ele vira isso em sua mãe e não desejava que o mesmo acontecesse com ela.

— Venha, Pleasance, é preciso descansar. — Franziu a testa, pois não o agradavam as emoções por ela despertadas.

Pleasance obedeceu sem contestar, e ele a cobriu antes de se deitar a seu lado. A princípio, notou a tensão no corpo dela, contudo logo foi relaxando, pois percebera que ele se comportava como um cavalheiro.

Ao se ajeitar melhor, gemeu por causa da dor nos ombros.

— Eles a machucaram — Tearlach tocou-a de leve.

O gesto e a preocupação na voz dele minaram os esfor­ços de Pleasance em permanecer forte. Ela não queria ceder à fraqueza, nem procurar consolo. Mas Tearlach mexia com seus sentimentos e seria essencial que ela se afastasse dele durante o ano em que cumpriria a pena.

— Apenas alguns arranhões. Na verdade, dirigir os cavalos me deixou dolorida.

— Ah, sim. — Ele se levantou, foi até a carroça e voltou em seguida. — Solte o corpete.

— O quê? — ela se espantou.

— Tenho um unguento para aliviar a dor dos ombros e das costas.

— Não é um linimento de cavalo, é? Aquilo tem um cheiro terrível, que prefiro suportar o desconforto.

— De certa forma é usado em cavalos, sim. Mas seu odor é suave e não fará sua pele mimada feder. A pomada é prepara­da pela esposa de um amigo e, quando posso, sempre compro um pote ou dois. Vamos, solte o corpete.

O rubor de Pleasance foi disfarçado pela escuridão, e ela obedeceu. Pensou na referência à sua pele e não entendeu o motivo da ironia. Afinal, ela não era afeita a banhos de leite e outras bobagens que Letitia costumava fazer.

— Vire-se de bruços.

Quando ela o fez, Tearlach começou a massagear o creme em suas costas, procurando ignorar a silhueta esguia e o bri­lho da pele clara sob os raios da lua crescente. Aquela não era uma noite conveniente para iniciar uma sedução. Não que­ria que ela o relacionasse a algum dos soldados que tinham acabado de deixar para trás.

— Eu deveria ter imaginado que não estava acostumada a trabalhos duros, mas, em um ano, acabará por aprender que lá é preciso mais do que servir o chá ou flertar com algum pobre-coitado. — Mordeu a língua. Não queria ser considerado um deles.

Pleasance suspirou, contrafeita. Ele a comparava a Letitia e não se esquecera de que o havia rejeitado.

Ah, o orgulho ferido...

Ela evitou se defender. Tearlach devia estar com raiva e não daria ouvidos à razão. E como explicar que fora obrigada pelos pais a terminar o que mal começara, e para o bem de Letitia? Não queria dar a impressão de ser tola e fraca, mas desejava demonstrar o quanto ele se enganara a seu respeito.

As reflexões foram interrompidas por um calor agradável, proveniente das mãos dele, e que se espalhava por seu cor­po. Era bom e tentador sentir aquelas mãos fortes e calosas se movendo devagar sobre sua pele. Tearlach despertava nela emoções difíceis de ignorar, mesmo depois de se sentir imun­da pelo que enfrentara com os soldados. Tudo o que queria, naquele momento, era se atirar nos braços dele.

— A dor já passou, obrigada. A pomada é ótima.

Tearlach piscou, como se acordasse de um sonho. Relutante, afastou as mãos e as limpou no lenço, enquanto ela, apressada, levantava o corpete.

Mais um pouco e ele seria tentado a tocar em outros locais da pele sedosa. Chegou a pensar como seria beijá-la na nuca.

— Se precisar, amanhã farei mais uma massagem.

— Está bem, eu agradeço. — Pleasance se afastou para a beira das mantas.

— Não seja por isso. — Tearlach deixou no chão o pote de unguento e entrou sob a coberta. — Há algum outro padecimento da que eu poderia aliviá-la?

Pleasance agradeceu à escuridão que ò impediu de ver o rubor tomar seu rosto por conta do pensamento lascivo que lhe ocorreu.

— Nenhuma pomada me livrará da sensação de imundície deixada por aquelas mãos.

Tearlach se virou de lado e alisou-lhe os cabelos.

— Mesmo tendo afirmado que eles nada conseguiram?

O assunto era desagradável, mas a ajudaria a se distrair daquela proximidade perturbadora e do toque suave de suas mãos.

— Sim, e é disso que terei de me lembrar.

— Tem razão. O que importa é que não foi estuprada.

— Embora eu me sinta como se tivesse sido.

Pleasance ficou tensa quando ele passou o braço em torno de sua cintura e a puxou. O desejo imediatamente voltou à vida e ela temeu demonstrar o quanto ainda o queria.

— Eu não pretendia aborrecê-la, apenas confortá-la. O desgosto por um toque indesejado pode desaparecer, ao con­trário de quando há uma invasão brutal de seu corpo. — Era difícil para um homem dizer as palavras certas nessas horas. — Soube o que aconteceu com minha mãe?

— Sim, Letitia me contou.

— Infelizmente não tive palavras para diminuir o horror dela e, treze anos após o ocorrido, ainda não as encontrei. Apesar de você ter sido molestada por aquelas mãos rudes, o que parece o pior dos crimes, se eles houvessem conse­guido seu intento, os ferimentos em sua alma jamais seriam esquecidos.

— Posso imaginar... Mas demora um pouco para que o coração e a mente entendam isso.

— Se minha mãe tivesse vivido por mais tempo, talvez ela pudesse esquecer a barbárie que sofreu. Depois do estupro, ela não suportava mais nem meus abraços afetuosos.

— Mas você nada teve a ver com isso. — Ela se como­veu com a tentativa de ele tocar em um assunto tão difícil apenas para ajudá-la a superar o próprio horror.

— Eu tinha dezessete anos, mas já era um homem. Era ter­rível para nós dois vê-la estremecer com meu toque, contudo sua mente torturada a fazia ver todos os homens como uma ameaça. Embora ela estivesse perto da menopausa, o nasci­mento de Moira não foi muito problemático. A questão foi que ela se recusou a comer e a lutar pela vida quando teve a febre. Essas são as conseqüências deixadas em uma mulher após um estupro. Por isso, eu gostaria de saber como você se sente neste momento.

— Suja e desonrada.

— E se estivesse com raiva e muito ofendida? Eles não tinham nenhum direito. Somente os tolos tentam culpar a mulher por seus crimes, e apenas animais têm uma necessidade cega de copular. Um homem não deve ceder às provocações.

— Não provoquei ninguém. Eu estava adormecida quando me pegaram. Mal os olhei quando chegamos àquele posto. Ele sorriu ao sentir a raiva na voz dela.

— O crime foi deles, não seu, e é daí que virá a cura. Agora é melhor você descansar. Tente dormir um pouco, pois partire­mos ao amanhecer.

— Obrigada por me contar a respeito de sua mãe — Pleasance sussurrou, comovida. — Isso ajuda bastante.

— Temi que o acontecimento a deixasse depressiva, mas felizmente isso não ocorreu. Não há motivo para se esquivar de meu toque. — Tearlach fez um movimento circular sobre o ventre dela.

A carícia sutil a deixou imóvel por um momento, e o calor que sentiu se espalhou por seu corpo. Convicta de que o homem era perigoso, ela afastou a mão de Tearlach de seu corpo.

— Desde que você saiba que eu posso sobreviver ao seu toque, não há necessidade de me testar.

Esboçando um sorriso, ele se deitou de costas com os bra­ços sob a cabeça. Percebera uma ondulação suave sob a mão e escutara o traço de rouquidão na voz dela. Pleasance não tinha aversão por ele, nem mesmo depois do ataque que sofrera, e isso o fazia concluir que ela também se sentia atraída.

— Eu apenas quis ter certeza.

— Ótimo. Mas procure manter as mãos afastadas de mim. E lembre-se de que sou uma criada temporária e não uma amante. Agora, deixe-me dormir.

Pleasance ouviu-o sorrir e por pouco não o agrediu. Tearlach percebia sua reação e parecia querer tirar vantagem daquela sua fraqueza.

O pior era ela não ter confiança na própria resistência a um apelo insistente.

Amaldiçoou Tearlach mentalmente, assim como Letitia e os demais responsáveis por sua desdita. Em seguida, fechou os olhos e tentou dormir.

 

Pleasance se acomodou diante do fogo. Após seis dias sen­tada no banco de madeira da carroça, tinha a impressão de que os ferimentos jamais cicatrizariam.

— Amanhã, no final do dia, chegaremos à minha cabana. — Tearlach entregou a ela uma porção de comida. — Logo poderemos comer algo diferente.

— E poderemos nos sentar em algo mais confortável do que este maldito assento — ela murmurou enquanto mastigava a tira de carne seca e tomava a sidra para tirar o gosto.

Tearlach riu ao ver o olhar enojado dela.

Pleasance terminou de comer, lavou o copo e o rosto com um pouco de água, depois pisou nas mantas que Tearlach estendera perto da carroça. Ah, como seria bom ter de novo uma cama e um cobertor!

Sonolenta, sentiu que ele se deitava e murmurou uma imprecação quando ele a abraçou pela cintura. Cansada demais para lutar, estremeceu quando ele tocou com os lábios quentes a depressão perto da orelha.

E a resistência que conseguiu reunir para empurrá-lo logo sumiu quando ele a beijou.

Pleasance gemeu, abraçou-o e se entregou ao beijo. Entreabriu os lábios para a língua que queria percorrer o inte­rior de sua boca. Sua paixão aflorou, banindo o cansaço e fazendo-a esquecer as dores. O calor de seu desejo a fez sen­tir-se renovada, forte e vibrante.

— Teremos muitas noites quentes enquanto estiver em Berkshires comigo. — Tearlach a beijou no pescoço.

Pleasance se desvencilhou dos braços fortes e fechou a mão em punho para não estapeá-lo.

— Pensa em me usar para aquecer suas noites?

— Não notei nenhuma grande resistência de sua parte.

— Foi mais um erro de julgamento seu. Torno a lembrá-lo de que serei sua criada e não sua rameira. — Ela se deitou de lado, de costas para ele.

— Pensei que nos tornaríamos amantes.

— Sr. Tearlach, poderei ser a criada em sua casa, mas jamais em sua cama.

— Ótimo, porque eu não procurava servidão. Eu quero a paixão revelada em meus braços.

— Você imagina coisas, e seus braços permanecerão vazios.

— Veremos.

Pleasance sabia que sua resistência minguava. Fechou os olhos e teve a certeza de que teria um longo ano pela frente.

 

— Será melhor eu explicar o que a espera lá em casa. Pleasance revirou os olhos. Como todos os homens, Tearlach esperara até o último momento para falar. Após sete dias de uma viagem exaustiva, já próximos de chegar ao destino, ele transmitiria todas as informações em meia dúzia de frases concisas.

— Isso fará alguma diferença? —: Ela o fitou com inocência.

Tearlach não gostou do sarcasmo.

— É sempre melhor saber. Moira, minha irmã, vai fazer treze anos. Ela tem algumas dificuldades pelo fato de ser fruto de um estupro e ter sangue indígena. E, sem orientação femi­nina, cresceu um tanto selvagem.

— E em um ano, como poderei ajudar?

— Creio que você poderá abrandar o temperamento dela. Ela se tornará uma moça em breve e não poderá andar por aí como se fosse um rapaz. Claro que não será preciso lhe ensinar as frivolidades da vida social, que de nada servirão a ela. Não quero que ela se envolva em namoricos e boatos, que esnobe amigos e vizinhos, e muito menos que fique com mãos macias que a impeçam de trabalhar.

Pleasance se irritou com a opinião precária que Tearlach tinha a seu respeito.

— Eu lhe asseguro, sr. O’Duine, farei o possível para não corromper sua irmã.

Tearlach a ajudou a apear da carroça, mas não chegou a responder. Moira saiu da cabana e correu para os braços do irmão, seguida do desengonçado e velho Jake, que cuidava da menina. Tearlach os apresentou.

Jake era alto e magro, tinha cabelos brancos e era um homem rústico. Moira usava um vestido azul de tecido gros­seiro, e sua herança indígena era evidente. Ambos seriam considerados de nível inferior pela sociedade de Pleasance.

Tearlach a observou em busca de sinais de insulto ou des­prezo, mas seu cumprimento foi caloroso e cortês. No entan­to, a surpresa veio com a reação de Moira, que olhava para Pleasance com frieza.

— Você não precisava tê-la trazido — resmungou a menina, enquanto Jake e Tearlach descarregavam a carroça.

— Ah, mas ele pagou um bom dinheiro por mim — Pleasance respondeu por Tearlach, e Moira arregalou os olhos castanhos.

— Você a comprou?

— Não a comprei, Moira. Eu paguei muito bem por ela.

— Para quê?

— Não importa.

Pleasance gostou de ver o constrangimento de Tearlach.

— Meus crimes foram roubo e ataque com uma arma absurda. — Ela ignorou o olhar raivoso dele.

— Qual arma?

— Agredi seu irmão na cabeça com um caneco de prata.

— Que a senhorita roubou — ele comentou.

— Então a senhorita é uma ladra comum, e por isso seus pais a abandonaram — disse Moira.

— Como é que sabe disso? — Pleasance se admirou.

— Foi apenas uma suposição — Tearlach atalhou depressa. Pleasance supôs que se tratasse de uma mentira, e ele se voltou para a irmã.

— Moira, é muito complicado explicar, mas não deve se referir a Pleasance dessa maneira. — Tearlach a fitou com seriedade, e logo a menina concordou.

— Uma defesa decidida de meu acusador. O mundo é mes­mo muito estranho.

— Nos últimos dias você tem se mostrado insolente.

— Ela é uma criada contratada? — Moira quis saber.

— Sim, por um ano.

— Então posso mandar nela?

— Não, não pode. — Pleasance encarou Moira com o cenho franzido.

— Mas você é nossa criada.

— Sou criada de seu irmão, não sua.

Pleasance gostou de ver que Tearlach não discordara. Ela não suportaria receber ordens de qualquer um, e também nada poderia ensinar a Moira se a menina tivesse permissão para mandar nela. Era preciso ter controle sobre a. garota.

Observou a discussão entre Moira e Tearlach. Moira era uma menina bonita, de pele acobreada, com cabelos negros que caíam em ondas até a cintura. Nos traços bem formados, destacavam-se os olhos imensos. Ela se tornaria uma bela mulher.

Pleasance pegou a menor das sacolas, seguiu os homens para dentro da cabana, e Moira se apressou atrás dela. O inte­rior da habitação a surpreendeu. As peles de animais espalha­das pelo piso de madeira deixavam o ambiente com um aspecto selvagem, porém agradável. Os homens saíram para tirar a carga da carroça. Pleasance deixou a sacola no chão e espiou ao redor.

— Posso ter de obedecer a você — Moira se aproximou —, mas cuidado com o que me mandar fazer.

— Ah, e por que isso? — o recinto principal fora dividi­do em sala e cozinha ampla, ao lado da qual havia um quarto menor.

— Porque sou uma feiticeira. — Moira foi atrás de Pleasance, que subia a escada rumo ao sótão.

— Que interessante.

O sótão era dividido em dois quartos, com um pequeno corredor separando-os.

— Pois é. Se você me desagradar, eu a encantarei.

— Moira. — A voz severa de Tearlach assustou Pleasance, que recuou do quarto grande, certamente o dele.

— Você não me contou a respeito das habilidades de sua irmã — acusou. Afinal, Moira sabia que sua família a despre­zara, sem ninguém ter lhe contado.

— Ela ilude a si mesma, e estou cansado dessa brincadeira. — Tearlach abriu a porta do quarto de Moira para Pleasance olhar e indicou a descida para as duas.

— Posso afligir você com algo revoltante — a menina ameaçou Pleasance.

— Pois faça isso agora. — Cansada, Pleasance sentou-se em um banco junto à mesa, e Jake, que já estava acomodado, serviu-lhe uma taça de hidromel. — Obrigada, senhor. — Ela fitou Moira, que tentava parecer ameaçadora. — É difícil acreditar em feitiçaria nesta época moderna. Talvez valesse uma demonstração.

— O que pretende dizer com isso?

— Ora... por exemplo, transforme seu irmão em uma cobra, o que não deve ser difícil, pois ele já é quase uma.

— Tearlach, ela o insultou! Deveria bater nela. — Moira sentou-se no banco, ansiosa.

— Isso é tentador. — Carrancudo, ele fitou Jake, que se esforçava para não rir. Sentou-se e serviu-se de hidromel.

— Faça isso!

— Não, Moira.

— Mas é permitido açoitar uma criada.

— Não é permitido e, mesmo se fosse, não seria correto. A srta. Dunstan não é uma criada qualquer.

— Então há vários tipos delas? — O sarcasmo de Moira beirava a insolência.

— Não se pode bater em Pleasance. Esqueça isso.

— Estou tentando entender.

— Você está tentando é me irritar. Pois saiba que já conseguiu.

Pleasance perdeu o interesse na discussão entre os irmãos. Se não estivesse tão cansada, acharia engraçada a explicação de como uma criada não era bem uma criada.

— Há quanto tempo o senhor conhece o sr. O’Duine? — Pleasance perguntou a Jake, após ele servir a todos um cozido de cervo que preparara.

— Por favor, chame-me de Jake, como todos fazem. Eu o conheço desde a primeira vez que tentou caçar. Na época ele era tão pequeno que nem conseguia subir em uma mula.

Jake tinha um ótimo senso de humor e era um bom conta­dor de histórias. O relato da primeira caçada de Tearlach a fez rir várias vezes.

Pleasance ficou pesarosa quando, ao anoitecer, ele foi para a própria cabana, a oitocentos metros de distância.

Com um suspiro, ela deixou os dois irmãos, que ain­da discutiam, e foi até o pequeno quarto junto à cozinha, que Tearlach indicara como sendo o dela. Desempacotou as sacolas e guardou suas roupas na cômoda. Voltou à cozinha, esquentou água, encheu a bacia que estava em cima de uma mesa próxima à cama estreita e lavou-se. Vestiu a camisola e foi para a cama, suspirando pela ventura de ter de novo um colchão para dormir.

Antes de adormecer, pensou apenas que precisaria de forças para suportar a birrenta Moira.

Tearlach a acordou cedo demais, após a longa e difícil viagem desde Worcester. Resmungando, Pleasance o seguiu até o lado de fora e estremeceu diante do sol que feria seus olhos cansados.

— Achei que o café da manhã a acordasse — ele murmurou enquanto a levava até a estrebaria. — Será melhor se acostu­mar a levantar cedo.

Pleasance viu um utensílio de ferro em cima de um monte de feno, próximo às portas largas da estrebaria, e pensou em assassinato. Viu a si mesma erguendo o instrumento e enfiando-o nas costas largas de Tearlach.

Avistou também uma grande vaca ruminando e mais meia dúzia no estábulo.

— Agora preste atenção, pois lhe ensinarei a cuidar dos animais.

— Que delícia...

Ele ignorou o sarcasmo.

— Quando eu estiver caçando, a tarefa de cuidar dos ani­mais será sua. — Tearlach acariciou o focinho de um cava­lo ruano. — Eles têm importância vital e devem ser tratados como se fossem nossos parentes.

Ela revirou os olhos, desviando a vista enquanto ele expli­cava, como se falasse a uma tola, como dar água e alimento aos animais, o horário em que deveria fazê-lo, a melhor hora para soltá-los no pasto, e também quando deveria ordenhar as vacas.

Não agradava a Pleasance a idéia de cuidar de animais, mas faria o melhor que pudesse para provar a Tearlach que ele se enganara a seu respeito. Seria a sua vingança.

Em seguida, ele a levou para um passeio por suas terras, que se estendiam a uma boa distância da casa. Passaram pelo campo que preparava para a colheita da primavera seguin­te e pelo pomar de maçãs quase maduras que plantara além da cabana.

Voltaram pela horta, e Pleasance sentou-se sobre uma bar­rica enquanto Tearlach identificava cada planta e explicava a ocasião da colheita de cada erva medicinal e hortaliça.

De volta a casa, ele ainda explicou como se faziam pão e velas.

Pleasance suspirou quando Moira apareceu com um sorriso pretensioso e irritante.

— Só isso? — indagou quando Tearlach terminou a expli­cação de como bater manteiga.

Ele se regozijou com o ódio que brilhava no olhar dela desde que começara a ladainha de instruções, e imaginou quan­do ela perderia o controle.

— Não. Agora iremos até Durham, a cidade mais próxima. Preciso de alguns suprimentos, e isso servirá para conhecer o que acontece nas colinas que nos rodeiam. — Ele foi até a porta. — Moira, não vamos demorar.

— Posso ir?

— Sele seu cavalo. Vamos, senhorita?

Pleasance cerrou os dentes, seguiu-o para fora da cabana e esperou que Tearlach e Moira aprontassem os cavalos. Murmurou uma imprecação quando Tearlach saiu do estábulo apenas com um cavalo selado. Ele montou, aproximou-se dela e estendeu a mão.

— Sei que tem mais do que dois cavalos.

— Não vejo necessidade de cansar mais um para um sim­ples trajeto até a cidade.

— Posso ir com Moira, então.

— O cavalo dela não gosta de estranhos.

Pleasance teve certeza de que ele forçava um contato mais íntimo. No entanto, Tearlach seria uma companhia melhor do que Moira, que vivia carrancuda.

Enquanto cavalgavam com a menina atrás deles, Pleasance respirou o ar refrescante da floresta e entendeu por que Tearlach gostava de morar em uma área pouco colonizada. Uma pessoa forte para enfrentar o trabalho duro e os perigos era recompensada pelas maravilhas da natureza.

Entre as terras de Tearlach e a cidade havia apenas uma cabana. Ali moravam Mary e Henry Peterson, mas o casal não apareceu, o que deixou Pleasance aliviada. Assim não teria de dar explicações a respeito de sua presença.

Na cidade, ela ficou ao lado de Moira enquanto Tearlach deixava as montarias com o ferreiro. Durham era uma peque­na aldeia, com poucas edificações. Perto do barracão do ferreiro, ela viu uma estalagem e uma taverna. Mais adiante, um posto comercial e uma loja onde se vendia de tudo. Do outro lado da rua, avistou o estabelecimento de um tanoeiro, com várias barricas do lado de fora da porta. Mais adiante, outra estalagem. Havia várias construções de madeira que não eram comerciais. Do lado oeste da estrada de terra, erguia-se uma edificação que se parecia com uma igreja. A cidade estava à margem do desenvolvimento.

No caminho para a venda, Moira se pôs ao lado do irmão e deixou Pleasance intencionalmente para trás, de modo a proteger o próprio território.

Dentro da loja, Tearlach as levou até uma mesa onde esta­vam expostas peças de tecidos.

— Quero que a senhorita faça alguns vestidos bonitos para Moira.

— Depois de tratar dos animais, cozinhar, esfregar o chão, cuidar da horta, fazer velas e cortar lenha — Pleasance comentou.

— Sim, depois de tudo isso. Embora eu não lhe tenha dito para cortar lenha.

— Deve ter sido um descuido. Quantos vestidos deseja que eu faça?

— Não sei. Deixo a quantidade a seu critério. Vou falar com Ben Tucker para ele separar o que for preciso. — Tearlach se afastou.

— Ele nem mesmo perguntou se eu sei costurar!

— E você sabe? — perguntou Moira.

— Sei, e muito bem, sem falsa modéstia.

Após analisar a figura esguia da menina, Pleasance sele­cionou os tecidos que combinavam melhor com suas feições. Surpreendentemente, a garota se mostrou mais amável e interessada nas roupas novas.

Pleasance pretendia mostrar a Tearlach os tecidos que escolhera quando três mulheres se aproximaram com ar altivo.

— Você é a nova criada do sr. O’Duine? — a mais alta das três perguntou.

— Meu nome é Pleasance Dunstan. — Ela apertou as peças de tecido.

— Sou Martha Teasdale, esta é Elizabeth Chadwick, e esta, Charlotte Holmes. — Ela indicou as outras duas.

— Prazer em conhecê-las. — Pleasance notou que as três arriscavam olhares nervosos em direção a Moira. — As senhoras conhecem Moira O’Duine, não?

— Sim, mas não sabemos se você a conhece.

— Não entendi.

— Ela é uma feiticeira — Elizabeth disse, brincando com a renda do vestido.

— Que tolice — comentou Pleasance.

— Não é tolice. — Martha endireitou os ombros ossu­dos. — Temos provas de que ela enfeitiçou a vaca de Truth MacGovern, como ameaçou que faria.

— Por acaso cresceu nela mais uma cabeça?

— Não caçoe, a vaca morreu. Ela foi forte e saudável por mais de vinte anos e de repente caiu morta no pasto, no dia em que a menina a amaldiçoou.

— Na certa a vaca morreu de velhice e deve ter sido uma coincidência Moira tê-la ameaçado naquele dia.

— Será melhor levar em consideração os avisos de Martha. — Elizabeth chegou mais perto da amiga ao ver Moira se aproximar.

— Acreditar nessas fantasias só alimenta a importância da menina. Sugiro que encontrem uma ocupação para não gastar o tempo livre com rumores.

As três se ofenderam e saíram da loja. Pleasance suspirou e sacudiu a cabeça. Moira a fitou com espanto.

— Moira, está tecendo um caminho difícil com essa con­versa de bruxaria.

— Elas são estúpidas, ninguém as escuta.

— Você não conquistará a amizade e o respeito de ninguém brincando com as superstições alheias.

— Você não sabe nada a respeito disso. — Moira se afastou e foi para o lado do irmão.

Seria difícil convencer a garota de seus erros, mas Pleasance não desistiria. Tratava-se de uma brincadeira peri­gosa que deveria ser evitada.

— Não se pode encontrar tanta beleza em Worcester — Tearlach comentou uma hora depois, no caminho de volta.

— É verdade. — Pleasance imaginou como ficariam as folhas no outono que se aproximava.

— Você não terá chás, nem bailes, mas fará um trabalho honesto e não perderá tempo com fofocas.

— Você tem uma péssima opinião a meu respeito, e já estou ficando cansada disso.

— Ora, sei muito bem de onde você veio.

— Você nada sabe a meu respeito.

— Não? A senhorita é filha de um rico mercador, uma cria­tura mimada, acostumada ao ócio, e ainda por cima é inglesa, ou seja, despreza os outros. Os escoceses e os ingleses pode­riam ter um mesmo rei, mas os ingleses sempre nos conside­raram inferiores.

— Não sou inglesa. Nasci e fui criada neste país. Sou colo­na e também ameaçada pelos ingleses. Você me julga sem saber nada sobre mim.

Tearlach a fitou por sobre o ombro.

— O que pretende dizer com isso?

— Nenhuma palavra que eu disser modificará a opinião formada que você tem a meu respeito. Na certa pensará que estou mentindo. Pois saiba que pretendo provar o quanto está errado a meu respeito.

Tearlach sorriu.

— Aceito o desafio.

Ele se virou e Pleasance fez uma careta. Esperava poder cumprir a promessa arrogante.

 

— Eu me recuso a ficar seu lado.

Pleasance parou de amassar pão por um instante e olhou para Moira. Em uma semana, desde sua chegada, concluíra que a menina tinha apenas duas expressões: a carrancuda e a raivosa.

— Ótimo. — Ela continuou a amassar pão. — Aonde vai?

— Acamparei do lado de fora da cabana até Tearlach levar você de volta a Worcester, ou eu a enfeitiçarei.

— Você continua me ameaçando.

— Lancei um feitiço sobre a vaca de Truth MacGovern.

— A vaca morreu de velhice.

Pleasance se lembrou do confronto em Durham. Admirou-se que as pessoas ainda acreditassem em tais coisas e que se assustassem com as ameaças de uma criança. Moira tinha a mente perturbada, mas não era uma bruxa.

— Moira, não estou tentando levar seu irmão embora.

— Você não poderia fazer isso, mesmo que quisesse.

— Não, porque ele a ama.

— Isso mesmo, e eu o farei despedi-la. Espere e verá. — Moira se afastou.

— Será melhor levar muitos cobertores, pois as noites estão ficando frias...

Momentos depois, Pleasance ouviu uma batida forte na porta. Como sempre, a reação de Moira contra ela era intem­pestiva. De certa forma, Tearlach lhe dava carta branca para lidar com a menina e, em certas ocasiões, como aquela, era preciso falar alto.

Apressou-se a terminar de amassar o pão para estar livre quando o confronto se apresentasse.

Quinze minutos depois, Pleasance estremeceu com uma batida na porta pesada. Tearlach devia estava furioso. Apressada, terminou de lavar as mãos e as enxugou. Escutou os passos pesados que se aproximavam e se virou. Estremeceu como de costume ao ver o rosto moreno.

— No que estava pensando quando expulsou Moira de sua própria casa?

— Ela disse isso?!

— Bem, não exatamente. Ela me disse que dormirá fora por sua causa, o que é a mesma coisa.

— Não é, embora Moira queira que você pense isso. Ela pretende ficar fora de casa até que eu vá embora, e preten­de forçá-lo a me levar para Worcester, de modo que tenha de escolher entre mim e ela. E, por precaução, pretende me enfeitiçar.

— Menina tola... Eu a trarei de volta pela orelha.

— Não. — Pleasance perdeu a confiança quando Tearlach a olhou como se ela estivesse louca. — Deixe-a onde está.

— Perdeu o juízo? Eu a deixei à vontade por achar que saberia o que fazer nas horas difíceis, o que foi um erro. Você não deveria permitir a uma criança acampar do lado de fora da casa. Além da ameaça de animais e pessoas, ainda há o frio do outono.

— Tem razão, mas não creio que ela passará a noite toda ao relento.

— Não? Moira sabe ser bastante teimosa.

— Se a trouxer de volta, terá de me mandar de volta a Worcester.

— Absurdo, não tenho intenção de ceder à chantagem dela.

— Mas é o que acabará fazendo. Posso até ficar aqui, mas ela entenderá que, se forçar bastante, poderá fazer com que você me contrarie. E ela fará isso até que nada do que eu disser ou fizer tenha valor. Moira vencerá, a não ser que ela mesma desista de seu esquema. Talvez não de maneira tão retumbante, mas vencerá.

— É possível que esteja certa, mas não posso deixar uma criança do lado de fora à noite, sozinha e desprotegida.

— Encontraremos uma maneira de vigiá-la sem que ela perceba. Como eu disse, duvido que ela fique lá fora a noite toda.

— Moira nunca foi tão rebelde. Não entendo o que aconte­ceu com ela.

— Como qualquer menina que esteja com raiva, ela ataca com agressividade, não importa o quê ou a quem. E também está com ciúme.

— Ciúme de quem?

— Moira se sente rejeitada por qualquer pessoa que não seja você ou Jake. Sabe como as pessoas da cidade a tratam, e me considera uma ameaça que pode se interpor entre vocês dois.

Embora não estivesse convencido, Tearlach não discutiu. Pleasance parecia entender Moira, e muito do que dissera fazia sentido. Como ele sabia a maneira de vigiar a menina enquanto ela estivesse fora, decidiu que o risco de deixá-la ao relento era pequeno. Moira poderia aceitar a derrota quando visse sua estratégia falhar, e talvez a paz voltasse para aquela casa.

— Agora que o problema foi resolvido, voltarei ao meu trabalho. — Pleasance tentou se afastar, mas ele a segurou pelo braço. — Estou ocupada, fazendo pão.

— O que explica a farinha em seu nariz. — Ele removeu a mancha e acariciou-lhe os traços delicados. — Eu não espe­rava que fosse tão prendada, Pleasance.

Como das outras vezes, ela ignorou a ponta de insulto nas palavras, Na verdade, isso era irrelevante. O que importava era não permitir que ele a tomasse nos braços. Entretanto, para seu próprio desagrado, cedeu e sentiu um tremor quando ele passou a mão em sua espinha, parando na parte mais estrei­ta das costas para adverti-la de que seu abraço poderia ser perigoso para seu coração, moral e sanidade.

Tearlach a beijou na testa, nas duas faces, e a ouviu suspi­rar. Pleasance era suave e flexível, e seus olhos se tornaram de um azul mais intenso, denotando desejo. Os lábios estavam úmidos e entreabertos.

Deus! Nenhum homem resistiria àquela tentação.

Roçou a boca na dela e Pleasance ficou tensa, sabendo que deveria resistir. Mas ele continuava a provocá-la, e o bom-senso foi levado embora pela nuvem que lhe toldou a mente. O formigamento dos lábios se espalhou por seu corpo. Tearlach a apertou pela cintura e a ergueu do chão, aprofun­dando o beijo. Sua resistência foi dissipada e ela o abraçou, rendida.

Tearlach suspirou quando ela cedeu à provocação de sua língua. Doce e quente, ela o enlaçou pelo pescoço e pressionou o corpo ao dele.

— Eu sabia que você a tinha trazido aqui para isso.

A voz de Moira cortou a névoa de desejo que os envolvia e Tearlach a afastou, sem-graça, com vontade de estrangular a irmã.

Pleasance foi dominada pela vergonha e depois pela raiva. Ele não negara a pressuposição de Moira, o que a fez con­siderar que Tearlach vinha mesmo planejando aquela gentil sedução.

— Moira está certa? — indagou.

Frustrado, ele tentou não ceder à raiva que sentia diante do olhar acusador. Ela não tinha o direito de culpá-lo por tudo.

— Não de todo. Eu precisava de alguém para me ajudar a cuidar de Moira. Mas não vejo nenhum mal em ganhar algum benefício extra.

Pleasance sentiu um aperto no coração e concluiu que era uma tola. Chegara a pensar que a paixão dele fosse mais profunda do que mero desejo. E sua dor foi seguida por uma fúria cega. Agarrou o objeto mais próximo, uma frigideira de ferro fundido, e tentou atingi-lo.

— O que houve?! Não a ouvi protestar quando a beijei. Na verdade, nunca estive com uma mulher que se rendesse tão depressa.

Pleasance emitiu um som inarticulado de ódio e novamen­te tentou acertá-lo com a panela. Ele foi atingido no braço e gritou uma imprecação que soou como música aos seus ouvidos.

Moira continuou parada na porta, de boca aberta e olhos arregalados, porém a fúria de Pleasance era tão grande que ela não se importou com a presença da menina.

— Verme! Porco! Desejo que volte ao buraco do inferno de onde foi cuspido! — Ficou frustrada quando ele tirou a frigideira de sua mão e a deixou fora de seu alcance.

— Não era isso o que desejava há poucos minutos, quando gemia em meus braços.

— Canalha sem coração! Não acha que já fez o suficiente para me ferir?

— Eu só a beijei, sua maluca!

— Com intenção de me tornar sua meretriz. Era esse o seu plano. Acusou-me de ladra na minha cidade e provocou minha expulsão da casa de meus pais...

— Não tive nada a ver com isso. Não pode me atribuir toda a culpa.

— Talvez não inteiramente, mas tem muita culpa, sim! Se não fosse seu jogo idiota, eu não teria ficado sabendo do que eu apenas suspeitava: que minha família não se incomo­da comigo. Eu continuaria na minha abençoada ignorância se não estivesse procurando cicatrizar seu orgulho ferido. E, como se não fosse suficiente, ainda tentou arrancar de mim os últimos resquícios da honra que me resta. Bancou o liber­tino comigo, tentando fazer de mim uma cortesã. Isso nunca acontecerá, entendeu? Será melhor encontrar outra tola para aquecer seus lençóis, pois não pretendo entrar debaixo deles!

Vê-la escapar por entre seus dedos fez brotar toda a ira que Tearlach tentava controlar.

— Há poucos minutos, não se importaria se eu lhe ofere­cesse uma cama. Eu poderia ter deixado que a açoitassem.

Não foi preciso ver a palidez extrema de Pleasance para entender a crueldade e a estupidez do que dissera.

Pleasance não perdeu tempo e, com uma imprecação, atin­giu-o com um soco no queixo, jogando-o contra a parede.

— Vá para o inferno, Tearlach O’Duine!

Em seguida subiu correndo a escada e se trancou em seu quarto, humilhada e ferida.

Tearlach corou ao ver Moira. Ela ouvira tudo e agora o fitava com uma expressão indefinível.

— Fez tudo isso com ela?

— Às vezes ela torce a verdade.

— Então eu estava certa. A família deu as costas a ela.

— Sim. Eles a rejeitaram sem pestanejar.

Moira saiu e voltou com as mantas e a comida que levara para fora.

— Essa disputa com Pleasance não significa que a manda­rei de volta a Worcester — ele afirmou.

— Sei disso.

— Então está desistindo do plano de dormir fora?

— Estou. O que me perturbava era Pleasance adivinhar tudo a meu respeito e poder ver dentro do meu coração. Eu odeio isso. Como ela poderia saber o que eu sinto? Agora entendo o motivo. Ela sabe como é sentir-se rejeitada e ser obrigada a viver entre pessoas que a tratam friamente...

Moira levou seus pertences para o quarto e Tearlach saiu para terminar de consertar a cerca. Estava consciente de que ferira Pleasance, e seria preciso mais do que alguns gestos carinhosos para acalmá-la.

Pleasance demorou a voltar ao trabalho e só o fez quando teve a certeza de que Tearlach saíra. A armadilha dele fora des­prezível, e ela estivera a ponto de cair nela como uma idiota.

Logo depois, Moira entrou na cozinha e, sem dizer nada, começou a trabalhar a seu lado. A altercação com Tearlach parecia ter modificado a opinião da menina a seu respeito. Se ao menos aquele pequeno sucesso pudesse aliviar a dor em seu coração!

Tearlach se aproximou de Pleasance por trás e a segurou pela cintura. Ela vacilou, porém continuou a cortar as cenouras para o cozido, pensando em feri-lo com a lâmina. Havia doze dias, tinham discutido pela última vez. Ela tivera três dias de paz, nos quais Tearlach mal falara com ela, contudo ele logo recomeçara seu processo de sedução. Toques constantes, bei­jos roubados na nuca, no rosto e na cavidade sob a orelha, sempre que a encontrava. Se ela perdia a paciência e ameaçava protestar, saía depressa, o covarde.

— Pleasance, onde foi que aprendeu a cozinhar tão bem? — Ele a beijou no alto da cabeça.

— Na minha casa. Sempre me mandavam ajudar a cozi­nheira. — Ela ficou tensa quando ele lhe acariciou o quadril.

— Cuidado ou perderá seus dedos, sr. O’Duine. — Virou-se para fitá-lo, e ele a prendeu de encontro à mesa.

Tirou a faca de suas mãos e a jogou na mesa antes de abraçá-la.

— Pare de se contorcer.

— Estou tentando me soltar de um patife.

— Este patife partirá amanhã.

— Partirá para onde? — Ela se admirou.

— Vou caçar. Será uma viagem curta, não mais de uma semana.

— Para que caçar, se aqui existe muita terra pronta para plantio?

— A época de plantar já passou e tenho prazer de caçar em minhas colinas. — Ele a apertou nos braços. — Só existe outra coisa que me daria mais prazer.

Pleasance percebeu suas intenções, mas não teve tempo de reagir. Tearlach a beijou e venceu sua resistência.

Ela o abraçou e gemeu enquanto ele invadia o interior de sua boca com a língua e lhe acariciava as laterais do corpo. Ela inclinou a cabeça para trás, permitindo livre acesso ao pes­coço, e fechou os olhos para saborear o toque úmido e quente dos lábios dele.

Mas levou um choque quando ele lhe apalpou um seio.

De início, a carícia íntima provocou ondas de calor, porém a sensação inusitada era intensa e a fez entender até onde fora a intimidade entre eles.

Deixou escapar um incoerente grito de raiva e se soltou, deixando-o aturdido.

Incapaz de entender os próprios sentimentos, e receosa de voltar aos braços de Tearlach, Pleasance o fulminou com o olhar e correu.

Fechada dentro do quarto, encostou-se na porta e respirou fundo várias vezes, sem acreditar até onde o deixara chegar com suas carícias. Ele estava perto de levá-la para a cama. Seria ótimo Tearlach partir na manhã seguinte, assim teria tempo para reconstruir suas defesas.

Quando escutou a porta da cabana se fechar, saiu do quar­to, espiou ao redor e voltou ao preparo do cozido de carne de veado. Era preciso se distanciar dele para recuperar o bom-senso. Ergueu o caldeirão de ferro e o pendurou no gancho sobre o fogo, refletindo que um pouco de covardia não era tão ruim... às vezes.

Após limpar a cozinha, ocorreu-lhe que, naquela manhã, prometera a Tearlach cuidar dos animais para que ele pudesse arar o campo.

A coragem desapareceu quando abriu a porta do estábulo. Dali podia enxergar Moira e Tearlach, que tiravam as pedras do campo e com elas erguiam um muro baixo e circular. Ele estava sem camisa, e sua pele morena parecia cálida e convi­dativa. Sem poder tirar os olhos dele, viu-o erguer uma pedra grande e colocá-la no muro que crescia, e achou estranho o calor que experimentava só por vê-lo daquela maneira.

De repente, Tearlach a olhou. Ela se virou depressa e depa­rou com o imenso cavalo ruano. Deu um grito de surpresa, recuou e tropeçou. Agarrou-se à cerca, e uma lasca de madeira entrou em sua palma. Aborrecida, deixou de lado a vara, tirou a lasca e resmungou por saber que Tearlach observava seu trabalho malfeito.

Tornou a segurar a vara e tocou os animais para a estrebaria.

Os cavalos não deram trabalho, porém as vacas eram obsti­nadas, o que acabou por irritá-la. Uma vaca em particular se recusava a cooperar. Pleasance recolheu os outros animais e deixou aquela para o fim.

— Agora, sra. Vaca — ela se aproximou do animal que ruminava —, faça o favor de entrar na sua baia para que eu possa tirar essa porcaria de leite. — Cutucou-a com a vara, mas o animal se limitou a encará-la.

Pleasance agarrou a corda amarrada ao pescoço do ani­mal, mas caiu de costas e gritou quando a vaca lhe deu uma marrada. Lutou contra o medo, levantou-se e tornou a se apro­ximar, mas perdeu a coragem e recuou quando o animal se moveu em sua direção. A vaca avançou depressa, com a cabeça baixa. Pleasance virou-se, ergueu as saias e correu.

Olhou por sobre o ombro e viu o animal ganhando terreno. Saiu em disparada do pasto sem fechar a grande porteira e rumou para o estábulo. Entrou na única baia aberta e fechou o portão. A vaca parou e então investiu. Pleasance recuou no momento em que Moira e Tearlach entravam no recinto. Ela gemeu ao entender que ele presenciara, o fiasco e teve vontade de estapeá-lo ao ver que ele achava graça.

— Vejo que finalmente conseguiu trazer a vaca para cá... O problema é que a baia era para ela — Tearlach caçoou.

— Quer fazer o favor de tirar essa besta assassina daqui? — ela exigiu por entre os dentes.

Tearlach agarrou a vaca pela corda e a afastou. Pleasance saiu, e ele pôs o animal para dentro, fechando a portinhola. Cruzou os braços, encostou-se na parede de tábuas e observou Pleasance endireitar as saias. Quando ela o olhou, ele apenas sorriu.

— Bem, a fera está enjaulada, pronta para ser ordenhada.

— Obrigada.

— Por que não me disse que não sabia cuidar de animais?

— Sei cuidar de cavalos, mas não de vacas teimosas e selvagens.

— Mas sabe ordenhá-las?

— Sem dúvida.

— Então eu a deixarei à vontade. Vamos, Moira. — Ele foi rumo à porta.

— Se não se incomodar, Tearlach, prefiro ficar aqui e ajudar Pleasance — Moira respondeu. — Ordenhar vacas é mais fácil do que carregar pedras.

— Está bem. Avisem quando o jantar estiver pronto.

Ele saiu, e Moira pôs as mãos nos quadris, sorrindo para Pleasance.

— Não adianta mentir, sei que não entende nada disso.

— Eu vi como se ordenha, e poderia ter feito o mesmo. — Pleasance se aproximou da baia, e a vaca abaixou de novo a cabeça.

— Por que não cuida da comida e da água enquanto tiro o leite? Se quiser, pode sentar-se comigo quando eu estiver ordenhando. — Moira pegou o balde e o banco. — Deixe-me entrar aí.

— Acha que é seguro? — Pleasance abriu a porta. — Sim, ela me conhece.

Vendo que o animal não atacaria Moira, Pleasance foi alimentar e dar água para o gado. Depois voltou, pegou outro banquinho de três pernas e sentou-se ao lado da menina. Mesmo ciente do processo da ordenha, aquilo não a agradava. A proximidade com um animal tão grande a deixava nervosa.

— Não gosta disso, não é?

— Não, mas posso fazer.

— Eu sei, mas não será preciso. Que tal um acordo?

— Seu irmão pensará que eu me recusei a ordenhar ou que a fiz trabalhar por mim.

— Não. Além disso, ele vai caçar amanhã cedo. Quando voltar, terá esquecido o que houve e pensará que dividimos as tarefas.

— Está certo — concordou Pleasance, agradecida.

 

— Eu lhe disse que ela é uma bruxa. — Mary Peterson apontou o dedo para Moira.

— Aponte o dedo para mim outra vez, sua megera, e eu a transformarei em cobra!

— Chega, Moira. — Pleasance empurrou a menina para trás.

Fazia um mês que Moira jurara não falar mais naquilo, contudo não cumprira sua promessa. Pleasance admitiu que não deveria ter ido à cidade, porém Tearlach estava ausente havia quase duas semanas, e ela precisava fazer compras.

Mas os cidadãos locais não vinham se mostrando muito cordiais, e a velha Mary Peterson era a terceira pessoa a se queixar sobre a feitiçaria de Moira.

Pela primeira vez, desde sua chegada, cinco semanas antes, Pleasance desejou que Tearlach estivesse ali.

— Moira não é bruxa, sra. Peterson — afirmou, imaginan­do quantas vezes teria de dizer isso. — Por acaso ela cum­priu alguma de suas ameaças? A senhorita se deixou envolver pelas brincadeiras dela. Moira não passa de uma criança.

— Vou fazer treze anos! — Moira protestou.

— Exatamente.

— Ela vê coisas — Mary afirmou.

— Como é, sra. Peterson? — Pleasance não entendeu.

— Ela vê coisas que meninas não deveriam ver e entende coisas que não deveria entender.

— Trata-se de intuição, sra. Peterson. Todos temos a nossa. É aquele aviso, quando um perigo se aproxima. E a intuição de Moira é mais aguçada do que o normal. Foi um prazer conhe­cê-la, mas preciso voltar para a cabana. O sr. O’Duine deve voltar da caçada a qualquer hora, e tenho muito trabalho para terminar.

— O sr. O'Duine é um homem muito atraente e não é casado.

— Sim.

— Ele fica na casa com a senhora?

— A casa é dele — retrucou Pleasance, exasperada.

Após suportarem mais algumas perguntas maliciosas, ela e Moira deram um jeito de escapar e foram direto para a car­roça. Pleasance pretendia conhecer aos poucos os vizinhos e amigos de Tearlach, mas, se não conseguia nem mesmo amenizar os problemas em relação a Moira, dificilmente pode­ria evitar questões que envolvessem o relacionamento entre ela própria e Tearlach.

Talvez devesse contar a todos a verdade, pensou, enquanto subia na carroça e incitava o cavalo a um trote rápido. O que existia entre ela e Tearlach era uma verdadeira loucura.

E, para piorar, saber que ele só a desejava em sua cama não lhe dera força suficiente para resistir. Chegara a beijá-lo na noite anterior à viagem dele, mas recuperara o bom-senso e fora para o quarto.

A situação sempre se repetia: ele se aproximava, ela enfra­quecia, ele chegava mais perto, ela o rejeitava, se Tearlach se irritava, ela sentia o mesmo e depois fugia. "Loucura" era mesmo o termo mais adequado.

— Aquela gralha velha e intrometida estava querendo descobrir se você dorme com Tearlach — Moira falou ao che­gar em casa, depois do silêncio que tinham mantido no trajeto de volta.

— Moira! — Pleasance corou. — Não deveria falar dessas coisas.

— Por que não? Sei de tudo e logo me tornarei uma mulher. — Moira ajudou Pleasance a tirar as compras da carroça e as duas voltaram juntas para a cabana.

— Vamos fazer um trato. Poderá falar sobre o que sabe, mas terá cuidado com quem fala.

— Essa é uma lição de boas maneiras?

— Em parte. Trata-se de uma lição de como manter um bom nome. Uma mulher não deve falar dessas coisas. Se alguém escutar, pensará que ela fala por experiência própria.

— Isso é injusto. Posso falar da Itália e da Espanha, sem nunca ter estado lá.

— É difícil explicar. Essa é uma das regras que se deve obedecer sem questionar, pois o custo de lutar contra elas é muito alto.

— Como assim? — Moira ajudou Pleasance a guardar as compras, e elas começaram a preparar o jantar.

— A reputação de uma mulher tem muito valor. Uma vez perdida, é muito difícil de recuperar. Muitas vezes fica perdi­da para sempre. Justo ou não, é assim. Se uma mulher perde seu bom nome, ela passa a ser evitada pelas pessoas e talvez nunca encontre um marido. Está entendendo?

— Mais ou menos. Se é assim, Tearlach está abalando seu bom nome. Por isso aquela megera velha acha que pode lhe fazer perguntas grosseiras.

— Talvez ela apenas goste de perguntar. Quando ao meu bom nome, minha irmã Letitia tratou de destruí-lo antes de eu vir para cá. Ela se fez passar por mim para se encontrar com homens na estalagem. — Pleasance não mencionou que Tearlach era um deles. — As acusações e o julgamento me trouxeram para cá. Não creio que ainda me reste uma ponta de dignidade. Agora chega. Vamos preparar o jantar.

— Acha que Tearlach chegará hoje?

— Quem sabe? Não fique triste, tenho certeza de que seu irmão está bem.

Pleasance suspirou. Tearlach partira para uma semana e estava fora fazia onze dias. Moira começara a se preocupar no oitavo dia, e Pleasance admitiu que sua preocupação se iniciara um dia depois.

Passou a noite tentando animar a menina, e foi um alívio quando Moira foi para a cama. Cansada, Pleasance fechou tudo e foi para o quarto.

Mal adormecera quando foi acordada. Era Moira, pálida e com um castiçal na mão.

— O que houve, querida? Está passando mal? — Pleasance sentou-se.

— É sobre Tearlach.

— Ele voltou? Não escutei nada. — Pleasance tentou encontrar o penhoar no escuro.

— Não, mas há algo muito errado. Sinto isso.

Com a experiência da intuição de Moira, Pleasance ficou alarmada, porém procurou manter a voz calma.

— Moira, pedi que você não se preocupasse. Sei que é difícil, mas...

— Por favor, Pleasance. Estou com uma sensação muito forte.

— Céus, o que poderemos fazer? Nem sabemos onde ele está.

— Vamos procurar lá fora, ao redor da casa. Por favor!

Pleasance concordou, mesmo sabendo que deveria discor­dar. Moira estava inquieta. Era perigoso sair à noite, entretan­to era óbvio que a menina faria isso sozinha se achasse por bem.

Vestiram as capas sobre as camisolas. Moira levou a lam­parina, e Pleasance, um mosquete. Saíram com cautela da cabana. Rodearam a área, e Pleasance pensou em dar um fim à busca quando ouviram o relinchar de um cavalo.

— O que as duas tontas estão fazendo do lado de fora no meio da noite? — uma voz rouca repreendeu.

— Tearlach, é você? — perguntou Moira.

— Sim.

No momento em que o cavalo saiu das sombras, Moira e Pleasance correram até ele. Tearlach mal se mantinha na sela.

— O que houve?! — Pleasance notou sua extrema palidez sob a pouca luz da lamparina que Moira segurava.

— Um urso me atacou.

— Oh, Deus! Foi muito grave?

— Um pouco...

— Se Moira e eu o ajudarmos, poderá chegar até a cama?

— Creio que sim.

Pleasance deu o rifle para Moira e ajudou Tearlach a des­montar. Abraçou-o pela cintura e pôs o braço dele sobre os ombros. Levou-o devagar até os degraus da varanda, enquan­to Moira prendia o cavalo no estábulo. Tearlach ficava mais pesado a cada passo, e Pleasance duvidou que conseguiria levá-lo até o sótão.

Moira voltou correndo para ajudá-la, e as duas pratica­mente arrastaram Tearlach, quase inconsciente, até a cama. Moira pegou água quente, bandagens e outros acessórios indis­pensáveis para os curativos, enquanto Pleasance lutava para tirar-lhe a roupa.

Os ferimentos eram assustadores. As garras do urso haviam deixado uma trilha funda no peito largo e outras menores nos braços, ombros e costas.

Ela tirou as tiras sujas e ensangüentadas com que Tearlach se atara.

— Entende alguma coisa disto? — balbuciou ele, como se acordasse de um pesadelo.

— Sim. Uma vez tive de cuidar, sem que ninguém soubes­se, dos ferimentos de meu irmão e de seus amigos.

— Moira, preciso de conhaque.

A menina trouxe uma caneca com uma dose e o ajudou á beber.

— Tem certeza de que precisa disso? — Pleasance franziu a testa e lavou as mãos.

— Ajudará a aliviar a dor.

Pleasance duvidou. Tratou de esquecer os receios e as preocupações, e começou a trabalhar.

Quando todos os ferimentos tinham sido limpos e suturados, Tearlach estava inconsciente. Moira, pálida e com os olhos arregalados, ajudava no que podia, virando o corpo lar­gado do irmão para que o enfaixe pudesse ser benfeito.

Terminada a tarefa, Pleasance serviu-se de um pouco de conhaque, puxou uma cadeira de balanço para perto da cama e sentou-se, cansada. Tomou um gole e fitou Moira, que tam­bém parecia exausta.

— Vá para a cama, Moira. Só nos resta esperar.

— Acha que ele vai ficar bem?

— Creio que sim. Ele perdeu muito sangue, mas é um homem forte. Durma um pouco. Se ele tiver febre, precisarei de sua ajuda e será melhor que descanse um pouco. Não se preocupe, eu a chamarei caso seja necessário.

Num impulso, Moira beijou Pleasance no rosto e saiu correndo.

Pleasance fitou Tearlach e refletiu que os ferimentos eram graves, mas não fatais. Pensar que ele poderia morrer causou-lhe um frio na espinha. Fechou os olhos e rezou com fervor para que ele se recuperasse.

Pela manhã, a febre tomou conta de Tearlach. Pleasance fez o que pôde sozinha, para não assustar Moira com os delí­rios do irmão. Quando Jake apareceu, oferecendo ajuda, ela chorou de alívio. Ele a mandou descansar e não precisou argumentar muito para persuadi-la.

O cuidado dos três foi ininterrupto, mas a febre só cedeu depois de dois dias e duas noites.

Pleasance foi se deitar, um pouco mais relaxada. Teria de estar bem descansada para ajudar na recuperação de Tearlach.

Fechou os olhos assim que encostou a cabeça no traves­seiro. Não se sentiu culpada por dormir. Gostaria de estar ao lado de Tearlach quando ele acordasse, mas seria sensato não fazê-lo, pois suas emoções poderiam aflorar.

Durante o período difícil em que ele estivera fraco, deliran­te e lutando pela vida, Pleasance teve de encarar a dura rea­lidade que tentava esconder de si mesma: estava apaixonada por Tearlach, apesar de todos os problemas que ele causara e das vantagens que ele pretendia tirar da situação.

Porém, Tearlach não devia saber disso, e ela rezou para jamais deixar transparecer seu amor.

Pleasance ficou com Tearlach na noite seguinte, após Moira ter se retirado para dormir e Jake ter ido para casa, e termi­nou de ler um poema de um pequeno livro com que Nathan a presenteara em seu décimo oitavo aniversário.

Levantou a cabeça devagar e encontrou o olhar firme de Tearlach.

— Cuidou dos ferimentos muito bem — ele murmurou.

— Obrigada. — Ela se alegrou.

— Onde está Moira?

— Dormindo.

— Ótimo, pois precisamos conversar.

— Não, Tearlach. Precisa descansar.

— Tenho de falar sem que Moira escute. — Ele tentou sentar-se, mas o pequeno esforço o fez suar de dor.

— Fique deitado ou arrebentará os pontos! Os ferimentos não estão fechados.

— Sei disso. — Ele fez uma pausa. — Àquele urso foi uma armadilha.

— Como é?

— Alguém o feriu de propósito e o soltou em cima de mim.

— Impossível. Quem faria tal coisa? Além disso, o urso poderia ter matado quem feriu você. É uma insensatez.

— Não para um louco como Lucien, pai de Moira. Vi as pegadas do homem. Ele não teve chance de ficar por perto para ver se sua trama maluca tinha dado certo.

— O pai de Moira ainda está vivo?

— Sim... para meu pesar. Durante esses anos todos não fui capaz de fazê-lo pagar por seus crimes. Ele está livre e aparece nas horas mais estranhas para me atormentar.

— Ou para tentar matá-lo, pelo visto.

— Também. Eleja tentou acabar comigo muitas vezes... assim como eu tentei dar um fim nele.

O ódio na voz de Tearlach fez Pleasance estremecer.

— Ele está atrás de Moira?

Tearlach se surpreendeu com a preocupação sincera na voz dela.

— Na verdade, não. Mas um sabe da existência do outro, e Moira já o viu. Há dois anos consegui pegá-lo e mandá-lo para a prisão. O carcereiro não escutou meus avisos de que Lucien era um assassino esperto, e dois dias depois foi encontrado com a garganta cortada. Lucien fugiu.

— E você ainda está atrás dele.

— E assim continuarei, até que ele morra. Até agora enfren­tamos uma longa lista de ataques e contra-ataques. Sempre o achei insano, mas creio que ele tenha piorado.

— Ele seria capaz de atacar a casa?

— Não por enquanto, embora eu não tenha certeza. Lucien não gosta de vilarejos. Nosso jogo tem lugar quando vou caçar, sempre que entro na floresta.

Então por que vai caçar?, Pleasance pensou, mas per­maneceu quieta. Caçar animais para negociar as peles era o meio de vida de Tearlach, e ele adorava fazê-lo. Se ficasse afastado do que mais gostava, seria uma vitória para Lucien, e nenhum homem se submeteria a isso.

Pleasance suspirou, entendendo que se encontrava no meio de uma batalha mortal entre dois homens. Por certo ele se preocupava com a aproximação de Lucien, e queria que ela ficasse ciente dos perigos que os rodeavam.

— E o que devo fazer com esse lunático?

— Fique precavida. Não se afaste dos outros e impeça a aproximação de desconhecidos. Há treze anos ele me procu­ra, e os ataques têm se tornado mais freqüentes e perigosos. — Cansado, Tearlach fechou os olhos. — Tome cuidado.

Ele adormeceu e Pleasance se certificou de que a febre não voltara. Mas suas preocupações se intensificaram. Era sabido que, naquela região Oeste da colônia, os perigos eram imensos. Ela e Moira poderiam ser arrastadas na batalha letal entre Tearlach e o tal Lucien.

Deu um longo suspiro. Teria sido melhor se não tivesse sabido de nada.

— Que mulheres sem préstimo me deixam apodrecer aqui!

Pleasance revirou os olhos com a voz reverberante de Tearlach, que ecoou pela cabana.

— Tearlach está impossível! — Moira reclamou, acrescen­tando um pouco de leite na massa de biscoitos.

— E verdade, mas temos de entender. Ele está irritado por estar na cama há mais de quinze dias e por não poder trabalhar.

— Vocês me ouviram?! — ele vociferou de novo.

— Dá para ouvi-lo até na cidade! — Pleasance gritou de volta.

— Então por que ninguém vem até aqui? Quero água!

— Eu levarei assim que terminar o que estou fazendo! — Pleasance sacudiu a cabeça e recheou o frango que pretendia assar para a refeição da noite.

— Quer que eu leve a água? — Moira perguntou.

— Não, você tem outras coisas para fazer. — Pleasance deu um sorriso enviesado. — Quero que ele saiba como é irritante.

As duas riram, e Pleasance pôs o frango sobre o fogo para assar. Lavou as mãos e estava enchendo uma jarra com água, quando se ouviu um baque na parte superior. Ela largou, tudo e Moira subiu a escada correndo.

Tearlach estava caído no chão, do lado de fora da porta do quarto.

Após levá-lo de novo para a cama, Pleasance pediu que a menina trouxesse a água e examinou-o à procura de novos ferimentos.

— Como é possível ser tão estúpido? — perguntou, assim que Moira desceu. — Será que o urso devorou seu juízo também?

— Não agüento mais ficar deitado.

— Será melhor aprender a agüentar. Se continuar tentan­do fazer coisas enquanto está fraco e os ferimentos ainda não cicatrizaram, acabará ficando neste quarto por muito mais tempo.

— Já fiquei tempo demais.

— Nem chegou a quinze dias! — Ela pôs o caneco vazio na mesa de cabeceira. — Sugiro que use um pouco o juízo. Sua irmã e eu temos muito que fazer e não podemos atendê-lo toda vez que se sente aborrecido.

— Tem razão. — Tearlach se moveu na cama, estremeceu por causa da dor e passou os dedos nos cabelos. — Acho que ficarei maluco se tiver de ficar aqui sem fazer nada por mais uma hora.

— Creio que um pouco de loucura é preferível a se matar por causa de uma teimosia estúpida.

— Está bem, tentarei ser um paciente melhor. — Ele ergueu a mão direita. — Eu juro.

— Cuidado com o que jura.

— Não acredita em minha palavra?

— Por um dia ou dois. — Ela foi até a porta. — Voltarei mais tarde com o jantar.

— E terei de ficar aqui sozinho novamente?! — ele gritou quando ela fechou a porta.

Pleasance sorriu ao voltar para a cozinha, sabendo que ele não se atreveria a sair da cama. Fora uma pequena vitória.

Enquanto batia a manteiga com vigor, Pleasance refletiu que gostaria de poder fazer o mesmo com Tearlach. Ela tirara os pontos, e ele ficava mais forte a cada dia. A recuperação fora rápida em relação à gravidade dos ferimentos.

Apesar disso, ele continuava impertinente, e sua promessa durara pouco tempo.

— Fazendo queijo? — Moira se aproximou.

— Manteiga.

— Mas poderá virar queijo, se continuar batendo com tanta força.

— Já terminou suas tarefas, Moira?

— Sim, até enchi a caixa com madeira.

O sorriso da menina era agradável, embora despertasse suspeitas em Pleasance. Moira trabalhava pesado, e algumas vezes até a ensinava a fazer o que ela desconhecia. Contudo, quando Moira fazia um trabalho extra, como encher a caixa de madeira, geralmente tinha em vista uma recompensa.

— Quanta bondade — ela murmurou, divertida.

— Eu sei.

— Moira, peça logo o que quer, ou acabarei mais irritada.

— Jake vai visitar sua irmã, Elizabeth, que mora a três dias de viagem daqui, e me pediu que eu fosse junto.

— Falou com seu irmão?

— Ele disse que poderei ir se você puder ficar sem minha ajuda durante esses .quinze dias. Posso?

Pleasance mordeu o lábio. Podia dar conta do serviço, mas teria de ficar sozinha com Tearlach, que já se recuperara o suficiente para tentar seduzi-la novamente. A presença de Moira era uma linha de defesa crucial.

— Quer mesmo ir?

— Sim, eu quase não saio, e gosto de Elizabeth. Quando eu voltar, talvez Tearlach esteja mais bem-humorado.

— Então pode ir. Não é necessário que nós duas agüente­mos os desaforos de seu irmão.

— Então vou falar com Tearlach e arrumar minhas coisas!

Pleasance sabia que era uma imprudência deixar a menina ir, mas não havia um bom motivo para recusar o pedido.

Endireitou as costas e criticou a própria covardia. O que aconteceria ou não entre Tearlach e ela dizia respeito a eles. Moira não deveria ser envolvida. Uma mulher deveria saber como lidar com um homem e, se não soubesse, deveria ser adulta o suficiente para sofrer as conseqüências.

Sua energia e determinação sofreram um duro golpe quan­do ela viu Moira partir, algumas horas mais tarde. Preocupada, acenou para a menina e Jake até vê-los sumir. Não poderia mais pedir a Moira que levasse as refeições de Tearlach, nem que ela fizesse companhia ao irmão enquanto ela se refugiava no quarto.

— Pois trate de ficar atenta — disse a si mesma.

Um pouco de bom-senso e força de vontade não lhe fariam nenhum mal, matutou, voltando ao trabalho. Mas ela não encontrava em si mesma essas duas qualidades quando trata­va com Tearlach. Lembrar-se de que ele estivera tão perto de morrer tinha tornado suas negativas mais difíceis. Não que­ria ser usada e abandonada, mas talvez estivesse virando as costas para algo que jamais voltaria a ter. Não seria melhor aproveitar o que ele lhe oferecia?

O dia passou muito quieto, sem Tearlach berrando por aju­da ou atenção, como fora seu hábito, durante a convalescen­ça. Pleasance preparou o jantar e se preocupou. Nem queria pensar que ele tivesse sofrido uma recaída.

— Talvez ele tenha resolvido se comportar melhor — murmurou ao subir a escada.

Hesitou do lado de fora da porta e escutou um barulho estranho, que logo desapareceu.

Por que a relutância?, pensou. Ele é apenas um homem.

O homem a quem você ama, uma voz interior a lembrou. Que a faz amolecer com apenas um olhar e que a deixa acordada de desejo durante a noite.

— Cale-se! — ordenou à voz da consciência. Endireitou os ombros e pôs a mão no trinco. Não deveria deixar a verdade nortear seus passos, nem fazê-la temerosa de encarar Tearlach. Afinal, ele precisava comer.

 

Tearlach fingiu estar fraco e indefeso quando Pleasance entrou no quarto. No momento em que a ouviu hesitar do lado de fora, imaginou que seu plano iria fracassar e que ela fugiria.

— Por que esteve tão quieto hoje? — Pleasance deixou a bandeja sobre a mesa de cabeceira e o ajudou a se recostar.

— Está pior?

— Apenas um pouco debilitado.

Ela pôs a bandeja no colo dele e olhou-o mais de perto.

— Seus cabelos estão molhados.

— Estão? — Ele procurou parecer inocente.

— Por acaso tomou banho?— Ela se endireitou, com as mãos nos quadris.

— Eu me lavei, mais ou menos. — Ele começou a comer. — Estava me sentindo pegajoso.

— E se arriscou a pegar uma pneumonia. Veja como está cansado.

— Eu me sentirei melhor sem ter de suportar o mau odor.

— Não estava tão ruim. — Pleasance sentou-se.

— Eu é que sei. — Ele sorriu. — Moira partiu sem percalços?

Tearlach a observou enquanto ela descrevia a partida da menina. A fraqueza simulada funcionara. Pleasance perde­ra a precaução que a mantinha à distância. Seria mais fácil atraí-la, beijá-la e vencer a resistência dela.

Sentiu uma ponta de remorso, mas deu de ombros. Ele a desejava demais. Ela também o desejava e não lutaria contra ele caso decidisse que não era pecado sucumbir a seus carinhos.

Além do mais, uma simples negativa seria o suficiente. Ele não tomaria uma mulher à força. Mas Pleasance ia a extremos para evitar ser tocada.

Tearlach suspirou. Pensar nas poucas vezes em que ela cedera o deixava tenso de desejo, pois ainda se lembrava do sabor de seus lábios. Dessa vez não a deixaria fugir.

— Excelente jantar. Ainda bem que não tive de passar muito tempo com uma dieta de caldo é mingau.

— Que são muito bons para a convalescença, aliás.

— Meu pai levou um tiro e, depois do ferimento tratado, deram-lhe caldo e mingau durante uma semana. Ele morreu.

— Isso não tem graça. Quem atirou em seu pai?

— Soldados ingleses, Ele estava caçando e encontrou um pequeno grupo deles. Houve um confronto, e como meu pai não falava muito bem o inglês, os soldados pensaram que ele fosse francês. Seu companheiro de caçada o trouxe de volta para morrer... Tem razão, isso não tem graça.

— Como pode gostar tanto da região onde perdeu seus pais?

— Não foi o local que os matou. Minha mãe e meu pai amavam Berkshires e estão sepultados aqui. Estas terras são propriedade dos O’Duine.

Pleasance se levantou, pegou a bandeja e a deixou sobre a mesa de cabeceira. Quando procurou ajeitá-lo para dormir, sentiu um braço forte ao redor da cintura. Deu um pequeno grito quando foi puxada para cima de Tearlach e impedida de protestar por um beijo.

Esqueceu tudo, então, exceto a língua que explorava o recesso de sua boca. Não conseguiu formar um pensamento coerente. O ataque súbito a seus sentidos era tudo o que ela temia... e desejava.

Não houve aviso nem tempo para levantar a defesa. A cada afago da língua quente, as muralhas de sua resistência ficavam mais fendidas. Seu protesto foi tênue, mesmo com a convicção de que ele planejara tudo.

— Sua fraqueza foi uma farsa — acusou-o quando ele se afastou e fez sua pulsação se acelerar com beijos cálidos em seu pescoço.

— Ah, mas estou doente... — Virou-a e a pôs debaixo dele.

— Não está. — Pleasance estremeceu quando ele a beijou atrás da orelha.

— Estou doente de desejo.

Pleasance só percebeu que ele havia tirado seus sapatos ao escutar a pancada no chão. Tentou empurrá-lo, porém ele a puxou para baixo das cobertas.

— Não, Tearlach, eu disse...

— Shh... Você fala demais.

Ele a beijou novamente, e Pleasance parou de empurrá-lo, abraçando-o pelo pescoço. Ela o criticou pelo atrevimento, mas gemeu ao retribuir o beijo.

Cada vez mais faminto de amor, Tearlach lutava para manter o raciocínio. Precisava ter certeza de que ela sentia a mesma necessidade que o cegava.

Pleasance fez uma única tentativa para impedir a remoção de suas roupas, más Tearlach não fez caso. Ele obtinha sua complacência com beijos destinados a anular qualquer tenta­tiva de recusa.

Fez uma pausa quando a viu de camisa e meias. Ela o fitou, enquanto ele se,abaixou para desatar o laço da blusa com o olhar brilhante e as feições cheias de paixão.

Pleasance se viu enfeitiçada com a evidência do que provocava nele.

— Por que fazer esse jogo comigo? — perguntou em um fio de voz.

— Não estou fazendo nenhum jogo, estou apenas sendo sincero. — Tearlach tirou a blusa delicada pelos ombros e respirou fundo ao ver os seios firmes. — Tenho pensado neles por dias e noites sem fim. — Segurou-os, deliciando-se com os contornos que preenchiam suas mãos e os mamilos que roça­vam suas palmas. Sentiu-a estremecer. — Você me deseja.

Pleasance não respondeu nem o impediu de lhe tirar total­mente a veste fina. Quieta, permitiu ser observada enquan­to fazia o mesmo com ele. As cicatrizes dos ferimentos ainda estavam vermelhas, porém isso não diminuía em nada a beleza diante de seus olhos. Apesar de esbelto, Tearlach tinha ombros largos e sua musculatura rija aparecia sob a pele morena. Uma linha fina de pelos negros começava no umbi­go e ia até a virilha, rodeando sua masculinidade. As pernas eram longas, musculosas e ligeiramente cobertas de pelos.

Tearlach lutava para manter o controle. Devagar, tirou as meias de Pleasance e adorou sentir a pele macia que desnuda­va. A maneira como ela o fitava disparava sua circulação e o calor em seu olhar aumentava a cada carícia.

Após jogar de lado a última peça, ficou ajoelhado entre as pernas delgadas para observá-la. Era tão pequena e esbelta... Como poderia acomodá-lo?

Um leve rubor tocou-lhe as faces e se espalhou pelos seios, revelando sua vergonha, mas Pleasance não tentou se cobrir.

— Não pretende lutar contra mim? — Ele deslizou as mãos pelas laterais do corpo benfeito enquanto se abaixava lentamente.

— Acho que perdi a vontade de me rebelar.

Tearlach tomou os seios firmes com as mãos em concha e a observou cerrar as pálpebras de prazer.

— Acho que se vangloria com minha fraqueza.

— Não, minha querida. — Passou a língua sobre um mamilo, e Pleasance se arqueou de encontro a ele. — Não me van­glorio, apenas sinto um enorme prazer em tê-la para mim — confessou, sugando a ponta túrgida de um seio.

Pleasance não conteve um gemido de satisfação. Agarrou-se aos ombros largos e fechou os olhos. O contato com a pele quente a deixou mais corajosa, e ela retribuiu os carinhos, feliz em vê-lo estremecer, pois era um sinal de que o agradava.

Teve um sobressalto quando Tearlach lhe acariciou a parte interna da coxa. Apesar da sensação incrível, não concordava com tal intimidade.

— Não. — Segurou o pulso dele, mas não conseguiu tirar a mão que a tocava.

— Calma. — Ele a beijou. — Você é quente, deliciosa... Não deixe o receio e a modéstia impedir seu prazer.

Os beijos gentis e as palavras roucas acabaram por ven­cê-la. Pleasance o acariciou nas nádegas, e Tearlach gemeu, sem poder suportar mais a tensão. Ele apertou o maxilar para conter o impulso de penetrá-la e começou a se introduzir devagar, sentindo-se envolvido por seu calor.

Experimentou uma sensação de plenitude diante da bar­reira da virgindade de Pleasance. Aquela era a prova final de que era o primeiro a possuí-la.

Ela deixou escapar uma exclamação abafada de espan­to e dor quando sentiu o rompimento do obstáculo. Arfante, Tearlach permaneceu imóvel.

Pleasance segurou-se nos ombros largos quando a dor começou a ceder e não entendeu por que ele não se movia, mais. Com esforço, abriu os olhos e viu sua expressão tensa.

— Isso é tudo?...

— Não, doçura. —Tearlach a beijou, carinhosamente. — Estou esperando seu sofrimento passar.

— Já passou. Na verdade, foi apenas um rápido desconforto.

— Que bom. Agora estamos livres para ter o que nós dois desejamos...

Mesmo pensando em recuar, Pleasance deixou de prestar atenção nas palavras quando ele começou a se mover e pediu que ela o abraçasse com as pernas. Entontecida de prazer, desejou se unir mais a Tearlach à medida que ele prosseguia com os movimentos.

De início, Tearlach investiu devagar e com cuidado. Porém não conteve o ímpeto ao perceber a maneira como Pleasance se agarrava a ele, o modo como ela sé arqueava para permitir um acesso mais profundo. Ao ouvir os gemidos de prazer que escapavam dos lábios cheios, murmurou uma desculpa e deixou de lado a delicadeza.

Mas Pleasance foi ao encontro de seus impulsos e o acom­panhou.

Tearlach teve a certeza de que jamais sentira um êxtase tão poderoso. Notou que Pleasance também atingia o auge e seu gemido rouco se mesclou perfeitamente com o dela.

Pleasance o abraçou com força quando ele se largou sobre ela, os dois ainda trêmulos. Quando Tearlach rolou para o lado, contudo, foi forçada a encarar a dura realidade do que acabara de fazer.

Continuou deitada, as pálpebras cerradas, o coração aos saltos. Deduziu, pelo modo como ele ainda ofegava, que Tearlach se ressentira do esforço, mas não se levantou para ajudá-lo. Sentia-se constrangida, apesar do prazer que acaba­ra de experimentar. Enquanto estivera envolvida na paixão, saboreara a intimidade a que se entregavam. Naquele momen­to, porém, envergonhava-se da própria lascívia, por ter ficado nua diante dele e por ter deixado que ele a tocasse de modo tão íntimo.

Tearlach continuou deitado ao lado dela, na cama, e sentiu seu embaraço. Tomou-a nos braços e agradeceu por ela não irromper em soluços nem se tornar histérica. Esperava, tam­bém, evitar recriminações e raiva, o que estragaria tudo.

— Está machucada?

— Não, mas preciso me vestir.

— Fique aqui.

— Para quê? Já não conseguiu o que queria?

— A fome que sinto por você não se aplacou com apenas uma vez.

Ele a viu estremecer com as palavras rudes, mas não se desculpou. Pleasance lhe dera o maior prazer que já conhece­ra, entretanto era preciso manter apenas a paixão e, sobretudo, a distância entre eles.

Não pense que a conhece, tinham sido as palavras de Corbin. Pleasance Dunstan não é afetada nem tem ostentação.

De fato, ela não era dissimulada. Mas não baixaria a guar­da, nem lhe daria oportunidades para humilhá-lo. A orgulho­sa Pleasance, que o rejeitara sem motivo a princípio, poderia mostrar as garras o quanto quisesse.

— Eu me tornei uma prostituta — ela finalmente sussurrou.

— Não, você se tornou minha amante.

— Para o mundo não existe essa distinção.

— Por que se importar com o que pensam os hipócritas?

— Para viver neste mundo é preciso respeitar certas regras e, em um momento de fraqueza, joguei para o lado o pouco de respeitabilidade que me restava.

— Isso aconteceu em Worcester, onde você foi acusada de ladra e caluniada por sua família. — Tearlach notou sua palidez e se arrependeu de haver tocado no assunto. — Sabemos que a maioria pensara que somos amantes. Por que negar a si mesma o prazer por causa de pessoas que já a condenaram?

— É verdade. Mas isso não torna acertada a minha maneira de agir. Agora nunca poderei negar as mentiras do povo.

— Isso pouco importa.

— Pelo menos eu poderia encará-los, sabendo que dizia a verdade.

— Não se preocupe tanto. Acabará roubando o prazer do que sentimos. — Tearlach a acariciou nas costas e nas nádegas. — Não podemos negar as sensações que compartilhamos.

— Eu sei. Para um homem experiente, isso não deve ser novidade.

— Não sou o patife nem o sedutor que você imagina.

— Pode negar que me seduziu?

— Não, mas espero não levar a culpa toda por este ato.

— Claro que não. Fui seduzida por minha fraqueza, que permitiu tudo isso.

— Eu prefiro pensar que foi pela força da paixão.

— Está me pressionando para admitir algo?

— Sim, quero ouvi-la dizer o que sentiu em meus braços. Tearlach não pretendia escutar palavras de amor, pois ele mesmo só pensava no desejo. Pleasance, por outro lado, não pretendia abrir o coração até ter certeza de que ele sentia algo mais profundo por ela.

— Estou aqui porque concordei em ceder à sua... insistência.

— Eu a importunei?

— Bastante.

— Está me culpando.

— Não. Somente um tolo não vai atrás do que deseja, ainda mais quando há uma possibilidade de conseguir o que quer. Fui incapaz de esconder o que você me faz sentir. Tentei me prender às normas sem muito empenho... talvez porque eu o desejasse demais.

Apesar de ela não culpá-lo, Tearlach estremeceu, sentindo-se egoísta, insensível, guiado pelo desejo.

Mas não diria a ela o quanto isso o perturbava. Pleasance passou o dedo em uma das cicatrizes.

— Estão doendo? Quer que eu me afaste?

— Não. Elas apenas coçam agora.

— Você se cura rápido.

— Dos ferimentos, sim. Mas sou mais lento para recuperar a energia e abomino essa fraqueza.

— Não foi o que me pareceu — ela murmurou e o viu sorrir.

— Para isso eu já estava com força há dias... mas você nunca se aproximava para eu poder agarrá-la.

— O que prova que sou inteligente.

— Pretendia me atormentar.

— Pronto, descobriu meu segredo. Tearlach riu, gostando da brincadeira.

— Estou um pouco fraco. Se eu estivesse em pleno vigor de minha força física, não estaríamos conversando.

— Está pretendendo... — Ela não encontrou as palavras certas. — De novo?

— Acha que um homem como eu se contentaria apenas com uma vez? — Tearlach deslizou os dedos pelo quadril arredondado. — Não, minha querida. Eu sabia que demoraria para me saciar quando conseguisse trazê-la para a minha cama. Seja lá como for, minhas forças estão voltando.

Pleasance deu um gritinho de surpresa quando Tearlach a puxou para cima dele e pressionou a virilha na sua para demonstrar o que dissera.

Ficou ainda mais admirada ao sentir que o desejo voltava a consumi-la. Tearlach conseguira fazer dela uma libertina.

— Talvez fosse melhor guardar suas energias — sugeriu, sem-graça.

— Ao contrário, nada melhor do que isso para recuperá-las.

— Nunca ouvi nenhum médico recomendar tal tratamento. —Esse é um segredo muito bem guardado. — Ele esboçou um sorriso matreiro.

Pleasance sentiu o calor daquele sorriso se espalhar pelo corpo. Estava achando a brincadeira deliciosa, mas se lem­brou de que não deveria deixá-lo perceber isso. Tearlach con­seguira o que tinha desejado e por isso estava de bom humor. Mas ela, cujos sentimentos eram mais profundos, não.

A despeito disso, acomodou-se sobre ele e reconheceu que aceitaria aquela paixão sem mais reservas, pois, talvez, esta levasse ao amor. A esperança era a última que morria.

Dessa vez, entretanto, não foi tão passiva. Retribuiu os beijos com ternura e imitou as carícias de Tearlach.

Quando ele finalmente se virou e a deixou sob ele, já esta­va cega de desejo. Abraçou-o com as pernas e se segurou com firmeza em busca da realização que ambos procuravam.

Pouco depois, quieta e deitada nos braços de Tearlach, Pleasance percebeu suas preocupações retornando. Entregara tudo a ele e só recebera paixão.

Saciado e feliz, Tearlach apoiou a face no alto de sua cabeça.

— Eu tinha certeza de que seria bom.

— Sua experiência o torna um bom juiz — ela comentou, taciturna. Era doloroso pensar nas mulheres que ele conhecera, mas era demais querer que ele fosse inocente como ela.

Tearlach riu e a beijou nos lábios.

— Não sou nenhum grande sedutor. Tenho me ocupado demais com a dura tarefa de viver, em tentar melhorar meu quinhão na vida, e não tive muito tempo para me dedicar à arte do amor. Posso contar nos dedos das mãos as mulheres que conheci e, delas, pouco tenho lembranças. De você eu sempre me lembrarei.

— Já é alguma coisa — Pleasance sussurrou, tristonha. — Agora vou para a cama.

Ela a impediu de se levantar.

— A partir de agora sua cama é esta.

— Mas Moira...

— Ela não achará errado e nada comentará.

— Como pode ter tanta certeza? Todos acham isso errado.

— Moira não foi criada por todos. Eu a eduquei e não enchi sua cabeça com regras inflexíveis. Ela não fará comentários nem a condenará, conheço muito bem minha irmã.

Pleasance não discutiu, mas prometeu a si mesma que faria Moira entender que tais liberdades não eram corretas. Não havia dúvida de que Tearlach também a aconselharia, pois não haveria de querer que a irmã se tornasse amante de algum homem.

Fechou os olhos, mas os pensamentos turbulentos não a abandonaram. Desejava agir e pensar independentemente das normas, contudo uma parte dela se recusava a permitir tais imprudências.

Tearlach dissera que se lembraria dela. Apesar da lisonja, isso significava que não via futuro para eles, ao passo que ela queria amor, ser sua esposa e criar seus filhos.

Por outro lado, os planos de Tearlach poderiam falhar, concluiu.

Pois faria o possível para fazê-lo mudar de idéia. A forte paixão entre eles poderia ser o começo, refletiu, ansiosa.

No entanto, teria de ser inteligente para baixar as defesas dele e atingir seu coração. Sorriu, disfarçadamente. Tinha um ano pela frente para alcançar essa meta.

Dependendo de sua astúcia, ao término do contrato de servidão, Tearlach a amaria.

Pleasance se espreguiçou e encontrou o outro lado da cama vazio. Tearlach estava ao pé da cama, já vestido e de cenho franzido.

Ela estremeceu e segurou o lençol de encontro ao corpo para sentar-se.

— Já amanheceu -- ele disse, distante. — Creio que tenha tarefas a cumprir. Isto aqui não é Worcester. Não pode ficar na cama o dia inteiro. — Caminhou até a porta. — Quero meu desjejum pronto assim que eu tratar dos animais.

— Mas...

— Não pensou que nosso envolvimento mudaria tudo, não é?

Tearlach a viu empalidecer e desejou não ter dito nada. Entretanto, manteve o olhar distante. Era preciso haver uma distinção entre o papel de amante e o de criada. Pleasance não deveria pensar que seu trabalho terminara.

— Não, não pensei — ela respondeu no mesmo tom. Ele jamais saberia o quanto a ferira.

— Ótimo, assim nos daremos bem.

No momento em que a porta se fechou, Pleasance caiu sobre os travesseiros, estremecendo com o gelo das palavras. Fitou a cama de viés e entendeu que não poderia se afastar da paixão que ali encontrara. Embora o desejo que havia expe­rimentado não fosse o amor que desejava, sentia-se saciada.

Esperava não deixar que ele a usasse com mesquinhez, mas daria um tempo a Tearlach.

Determinada, lavou-se e desceu a escada correndo para preparar a refeição matinal.

— Deu muita forragem aos animais — Tearlach dis­se naquela noite enquanto se servia do jantar que Pleasance pusera diante dele.

— Eu os alimentei de acordo com suas instruções. — Ela pôs a torta de carne de cervo na mesa e sentou-se do lado oposto, servindo-se depois dele.

— Está demorando muito nas tarefas. — Sei que em Worcester você não fazia trabalho pesado, mas não é necessário tanto tempo para aprender serviços tão simples.

— Não pode ser tão exigente.

— Os animais têm muito valor. Sugiro que tente tratá-los bem.

— Eu sei, está bem. — Pleasance se conteve para não jogar a jarra de sidra na cabeça de Tearlach. Tentava ser paciente e compreensiva, mas uma voz interior lhe dizia que sé com­portava com a mesma fraqueza que usara diante da família. Não desejava ser submissa, c queria que ele a considerasse mais do que uma companheira de cama.

Depois do jantar, ela ainda pensava em seu problema enquanto limpava a mesa da cozinha. Tearlach se aproxi­mou por trás e a abraçou pela cintura. Pleasance ficou tensa, contudo abrandou quando ele a beijou na nuca, despertando novamente seu desejo.

— Veio até aqui para me dizer que não limpei bem a mesa?

— Não, minha querida. — Ele a virou, segurou-a junto dele, e tirou o pano da mão dela. — O dia terminou, nosso trabalho foi feito e agora podemos brincar.

— Brincar?

Tearlach a beijou, silenciando sua pergunta e banindo suas dúvidas. Ela fez menção de protestar, mas ele a tomou nos braços e a levou para o quarto.

Pleasance suspirou. Na certa um homem que a desejava tanto devia ter por ela um sentimento mais profundo.

Ele a deitou na cama, e ela o acolheu, esperando não estar mentindo para si mesma.

Tearlach fechou a porta da cabana, atrás de si. Pela jane­la, Pleasance acompanhou-o com olhar até vê-lo desaparecer na estrada. A dor em seu coração a consumia, Havia três dias desde que ela e Tearlach tinham finalmente sucumbido ao desejo que os consumia, ela relutava em enxergar a verdade que estava bem diante de seus olhos. Tentava com todas as suas forças se convencer de que imaginava coisas. Não podia enganar mais a si mesma, nem encontrar desculpas para o comportamento dele. Era como se vivesse com dois homens diferentes. À noite, Tearlach sussurrava-lhe palavras doces, e de dia a tratava como se fosse a mais inferior das criadas.

— Como pude ser tão tola?

O que mais a fazia sofrer, porém, era não ter esperança. Ele se comportava de uma maneira que a fazia sentir-se como uma meretriz, apesar de suas negativas. E ela não tinha nenhum ganho com aquilo. Trabalhava para o conforto de Tearlach durante o dia e a noite.

De repente, decidiu que não suportaria aquilo por mais tempo. Ela o deixaria, mesmo que ficasse com o coração partido. Pouco se preocupava em se tornar uma fora da lei. Encontraria Nathan, e ele a ajudaria a quebrar os vínculos legais que a prendiam a Tearlach.

Seria difícil, mas não impossível, localizar seu irmão. Voltaria a Worcester e, se fosse cautelosa, não seria presa e tentaria encontrar um dos muitos amigos de Nathan. Como o fim do ano se aproximava, talvez ele mesmo já tivesse voltado da Filadélfia, onde tinha negócios.

Mas sair dali seria um problema. Ela não poderia levar seus pertences, mesmo se fosse a cavalo, e levar um animal seria um roubo.

A pé, porém, não iria muito longe. O inverno já teria chega­do antes de ela vencer metade do caminho.

Determinada, escolheu o que lhe parecia essencial e pôs tudo em uma sacola. Em um saco, arrumou comida e água.

Já estava na porta quando voltou, decidida a deixar uma mensagem:

Tearlach,

Estou voltando para Worcester: Além do que lhe devo, acrescente um cavalo, uma sela e o pouco de comida que estou levando. Faço questão de reembolsá-lo, mesmo se meu irmão Nathan não puder ou não quiser me ajudar. Com sua aju­da, aprendi muitas habilidades valiosas. Em qualquer outro lugar ganharei dinheiro pelo que faço e não precisarei trabalhar dia e noite.

Pleasance

 

Ela mordeu o lábio. Esperava que Tearlach não a seguisse ao saber para onde ela se dirigia. Ao menos ele não pensaria que ela fora raptada, ou que fugira pela floresta.

Releu a carta e não se importou com o tom amargo das palavras. Pelo menos Tearlach entenderia que ela não era nenhuma tola para suportar um tratamento tão vil.

Por mais que tentasse justificar seus atos, contudo, sentia-se uma ladra. Seu único consolo era a idéia de que restitui-ria cada centavo do que devia. Se fosse possível, devolveria até o cavalo.

Selou uma égua ruana de bom temperamento, amarrou o pequeno saco de suprimentos no arção da sela, tirou o animal do estábulo e montou.

Olhou na direção da cidade. Nem sinal de Tearlach.

Decidida, incitou a égua em sentido contrário, rumo a Worcester. De repente pensou em Moira e quase voltou. Elas haviam se tornado amigas, e a menina confiava nela. Talvez Moira não entendesse sua fuga.

Pleasance suspirou e prometeu a si mesma que mais tarde escreveria uma carta.

 

Tearlach diminuiu o passo ao se aproximar da cabana. Resolvera rapidamente os negócios na cidade para voltar a tempo do almoço, mas não queria demonstrar a ansiedade de um jovem apaixonado. Não fora fácil, mas fizera Pleasance entender os limites de seu novo relacionamento e que a presença dela em sua cama em nada mudara a situação.

— Pleasance? — chamou ao entrar. — Eu trouxe mantimentos.

O silêncio o alertou de que havia algo errado, Pleasance não estava do lado de fora, portanto logo deveria estar dentro de casa, e à vista, dentro de um espaço tão restrito.

— Pleasance!

Com o cenho franzido, ele deixou o açúcar, o chá e a fari­nha sobre a mesa e, ao ver a mensagem, não conteve uma imprecação.

— Habilidade valiosas?! — esbravejou. — Ela está pensando em se tornar uma cortesã?!

Leu outra vez o bilhete e sacudiu a cabeça.

— Meu Deus, como ela pôde ser tão... tola?

Largou a carta, pegou as armas e constatou que Pleasance não levara nenhuma, o que o deixou ainda mais irritado. Foi até o estábulo e viu que ela usara sua melhor sela, o que o fez praguejar de novo.

Além da raiva, o pavor o invadia por saber os perigos que ela enfrentaria na floresta. E desarmada!

Deus, talvez fosse muito tarde para salvá-la!

O tropel de cavalos se aproximando acordou Pleasance. Ela se assustou, pois não pretendia adormecer, e logo percebeu que não estava sozinha.

O cheiro de suor a deixou enjoada. Os dois homens diante dela usavam calças de couro de gamo imundas. As barbas e os cabelos longos estavam grudados em mechas sebosas. Ela já vira pessoas que não gostavam de água e sabão, mas o que a deixou com medo foi o olhar dos dois.

— Veja isso, mano...

— A generosidade da floresta é infinita, Dec.

Pleasance se ergueu com cautela e procurou esconder o medo.

— Fico satisfeita que os cavalheiros tenham me acorda­do. Preciso continuar meu caminho, ou não chegarei ao meu destino antes do anoitecer.

— Ouviu isso, Sep? Ela nos chamou de "cavalheiros"...

— O pai certamente acharia graça nisso.

— Se os senhores me derem licença, preciso ir. — Deu um passo em direção ao cavalo, mas eles a seguiram.

Em pânico, Pleasance correu, e os homens gargalharam ao interceptá-la. Arfando, ela parou e os encarou.

— Está pensando em nos deixar sem antes conversarmos um pouco? — Sep arrastou as palavras.

— Na certa não aprendeu boas maneiras, não é, moça?

— Fui ensinada a fugir de gente como os senhores, que não têm boas intenções.

— Mas as nossas intenções são as melhores possíveis...

— Meu irmão e eu vamos lhe conceder muitos benefícios. — Dec se acariciou com lubricidade.

— Se eu não chegar a tempo, as pessoas virão à minha , procura — ela mentiu.

— Ninguém vai se preocupar. Não vamos nos demorar.

— Não seja tão apressado, Sep. Ela é uma moça de fino trato.

— Bem pensado, Dec. Muita gente não deixaria uma coisinha dessas andar por aí sozinha. Sabe o que eu acho? Ou ela está fugindo, ou não tem ninguém. Talvez devêssemos levá-la conosco.

Pleasance estremeceu, enojada. Já era terrível pensar em ser violentada por aqueles dois, mas ela ficou desnorteada ao escutar que eles pretendiam levaria para abusos futuros.

Deu um grito, virou-se e correu.

Dessa vez não foi em direção ao cavalo, mas para as pro­fundezas da floresta. Mesmo que fosse uma decisão tola, não tinha escolha. Rezou para que pudesse voltar mais tarde e reaver o animal. Com o coração disparado, ergueu as saias para correr, porém, ainda assim, as sarças se agarravam à bar­ra. O desespero não. a impediu de virar o rosto e abaixar a cabeça diante dos ramos de árvores mais baixos. Tropeçou em uma pedra, mas recuperou o equilíbrio, e, ignorando a dor, continuou a corrida.

Os homens berravam em sua perseguição, o que aumen­tava seu pavor. Ela corria para salvar a própria vida, e eles achavam o jogo engraçado.

Logo se tornou evidente que eles pretendiam transformar a perseguição em um esporte macabro. Alternadamente, um deles aparecia diante dela, obrigando-a a mudar de rumo, e os dois gargalhavam.

Pleasance perdeu a noção de onde se encontrava, e a cruel­dade deles incitou sua fúria. Quando um deles tornou a inter­ceptá-la, ela parou, olhou em volta e avistou um galho grosso no chão. Pegou-o imediatamente e o ameaçou, com a certeza de que jamais odiara tanto uma pessoa.

— Dec, onde está a mocinha? — Sep apareceu à direita dela e sorriu.

Pleasance deu um passo para trás e se posicionou de modo a poder para ver os dois, sem pensar nas poucas chances que teria de escapar. Pelo menos ela morreria lutando.

— Acha que pode nos vencer? — Dec perguntou, sarcástico.

— Talvez seja melhor sumirem daqui enquanto podem, seus bastardos! — ela gritou.

— Ah, uma moça não deveria falar desse jeito. Não quere­mos uma mulher que pragueja como um homem.

— O que lhes agrada ou deixa de agradar não é da minha conta! Sugiro que usem a pouca inteligência que têm para pensar na punição pelo crime que têm em mente. Estou avisando, existem pessoas que vingarão minha desonra.

— Elas poderão fazê-lo... se a encontrarem.

Pleasance sentiu um calafrio diante das palavras ame­açadoras, mas lutou contra o pânico que a impediria de raciocinar.

Os dois homens a rodearam, e ela não duvidou de que teria apenas uma chance de acertar um golpe eficiente.

— Não precisa lutar conosco.

— É verdade... Só pretendemos nos divertir um pouco.

— Não me lembro de lhes ter oferecido entretenimento.

— Pois mudará de idéia ao ver como Sep e eu podemos alegrá-la.

— Duvido muito.

Os dois avançaram sobre ela. Pleasance atingiu o ombro de Dec com o galho e saboreou seu grito de dor. Ao mesmo tempo, saiu do lugar para evitar que Sep a agarrasse. Sentiu um puxão na saia e não se incomodou ao escutar o rasgão do tecido. Virou o braço e brandiu o galho, atingindo-o no rosto. Ele caiu no chão e ela tentou correr, mas Dec a derrubou pelas costas. O impacto a deixou sem ar, porém o desespero não a impediu de lutar.

Dec a virou de costas e Pleasance aproveitou para lhe dar uma joelhada na virilha. Ele berrou e, dobrando-se de dor, saiu de cima dela.

Nervosa, ela tentou ficar em pé, porém dessa vez Sep a derrubou. Ainda assim, Pleasance não ousou se render.

— Saia de cima de mim, seu porco imundo! — gritou, esperneando contra os esforços dele para mantê-la no chão.

— Se continuar com os xingamentos, poderemos não ser tão bondosos...

— Maldição, Sep, a vadia me arruinou! — Dec se ajoelhou ao lado, segurando a virilha com uma expressão de sofrimento. — Ela pagará por isso!

— Já que está muito machucado para aproveitá-la, segure-a para mim.

— Vocês dois apodrecerão no inferno! — Pleasance ame­açou com desespero quando Dec segurou seus braços sobre a cabeça. — Eu os verei ser presos e castrados, seus vermes fedorentos!

Sep a esbofeteou, e ela gritou de dor.

— Eu lhe disse para evitar nomes feios, moça! Não quer que eu me enfureça e a machuque, não é?

A coragem que restava a Pleasance foi levada de roldão quando Sep puxou uma faca. Ela pensou em irritá-lo para que ele a matasse antes de ser violentada, mas não queria morrer, apesar do horror que teria de enfrentar.

Deu um grito ao vê-lo cortar o corpete.

Tearlach ficou tenso e praguejou ao ouvir o grito. Era de uma mulher. Era de Pleasance!

As gargalhadas masculinas que se seguiram o fizeram imprecar de novo. Não se surpreendia por ela ter encontrado os piores predadores daquela floresta indômita.

Desmontou e, segurando o cavalo, caminhou cuidadosa­mente em direção aos sons com o rifle em uma das mãos e a pistola na outra. Não escutou mais a voz de Pleasance, o que o fez temer que tivesse chegado tarde para salvá-la.

Ao divisar os homens que a mantinham presa ao chão, sentiu uma fúria mortífera. Precisou se dominar para aplacar aquele instinto animal.

Aproximou-se o mais possível dos homens. Não queria alertá-los até que estivesse pronto. A surpresa seria a melhor arma.

— Soltem-na! — ordenou, assim que se encontrou em posição favorável.

Pleasance não ousou acreditar no que ouvia. Raramente suas preces eram atendidas com tanta presteza. Temerosa de que estivesse imaginando coisas, espiou ao redor de Sep, que, imóvel, se aprontava para lhe cortar a blusa. Sentiu-se zonza de alívio ao ver Tearlach ali, armado e pronto para a luta.

— Por que não segue seu caminho? Isto não é da sua conta.

— Está enganado, Septimus Tater

— Jesus e Maria, Sep, é Tearlach O’Duine!

Pleasance viu Sep empalidecer sob a sujeira, abrir os bra­ços e largar a faca. Na certa os irmãos não apenas conheciam Tearlach, mas também sua força. Ela desejou que o medo e o respeito os impedissem de lutar.

— O’Duine, encontramos esta mulher primeiro, e temos alguns direitos — Dec protestou.

— Direito nenhum, ela é minha.

— Sua? Ela estava vagando sozinha pela floresta. Jamais deixaria sua mulher fazer isso.

— Ela se esqueceu de pedir minha permissão. Deixe-a se levantar. Agora!

Os irmãos hesitaram por um instante, mas a soltaram. Tremendo, Pleasance juntou o corpete rasgado e ficou em pé. Os homens levantaram as mãos em um gesto de rendição, e ela rezou para que assim fosse.

— Talvez um pouco de disciplina... — Dec relutava em perder o prêmio.

— Sou capaz de disciplinar minha criadas — Tearlach fitou Pleasance de viés, sem baixar as armas nem perder de vista os irmãos Tate. — Estou ficando cansado de resgatá-la de suas tolices.

Boa parte do prazer que ela sentira com a chegada dele desapareceu. Pleasance nunca o vira tão furioso. Até os Tate procuravam mostrar submissão.

— Eles consumaram o ato? — ele perguntou por entre os dentes.

— Não! Eles haviam apenas começado o ataque...

— Então pode procurar o cavalo que roubou de mim. Espero que não o tenha perdido junto com seu juízo.

Pleasance assentiu com um gesto de cabeça e se apres­sou em recuperar o animal, apesar das lágrimas. A fúria de Tearlach quase a fez desejar que ele não a tivesse salvado, mas logo recriminou-se pelo pensamento. Preferia suportar a raiva dele, que despedaçava seu coração, às maldades que os Tate haviam planejado.

Segurou as rédeas da montaria e voltou para perto de Tearlach. Os homens continuavam do mesmo jeito, o que a deixou satisfeita.

— Parece-me que a moça é problemática... Poderíamos levá-la e lhe dar algumas lições — Dec se aventurou a dizer.

As feições impassíveis e o olhar gélido de Tearlach fizeram Pleasance sentir náuseas.

— Sua oferta é tentadora, Decimus, mas eu a levarei comigo.

— Faça bom proveito.

— É o que pretendo. Pleasance, meu cavalo está ali atrás, a poucos metros. Espere lá por mim.

Ela obedeceu, segurando o corpete com uma das mãos e o cavalo na outra. Ocorreu-lhe montar e fugir, mas não pode­ria se arriscar novamente. Enquanto esperava, rezou para que não ocorresse uma tragédia.

Tearlach encarou os dois homens, desejando matá-los. Contudo, o clã Tate era muito grande, e seus membros, favo­ráveis à vingança. Mesmo entregá-los à lei seria cutucar um vespeiro.

— Um aviso: será melhor se não nos seguirem.

— Nem pensaríamos em fazer tal coisa, Tearlach.

— Fico feliz em ouvir isso, Decimus. Pleasance Dunstan é minha e, apesar de tudo, pretendo ficar com ela.

— Não podemos culpá-lo por isso. Mas quando se cansar dela...

— Isso não vai acontecer. Não mencionarei o fato para seu pai. Mas se puserem as mãos nela novamente...

— Jamais pensaremos nisso, e essa é uma promessa dos Tate — Dec afirmou. — Ela é sua, leve-a. Voltaremos à nossa caçada de esquilos.

Após um momento, Tearlach anuiu.

— Muito bem. — Deu as costas aos irmãos, porém não baixou a guarda. Os outros Tate costumavam manter a palavra, mas ele não conhecia bem Decimus e Septimus.

Ao avistar Pleasance esperando perto dos cavalos, entendeu que parte de sua raiva se devia ao fato de ela ter se arriscado a cavalgar sozinha pela floresta. Ficara muito receoso, qui­sera matar os homens que haviam ousado tocá-la, mas o pior era sofrer por ela pretender abandonar a paixão que os unia.

E o que o deixava mais furioso ainda era o fato de ela mexer tanto com seus sentimentos. Enquanto não controlasse as emoções, seria melhor não falar com Pleasance. Não que­ria magoá-la com palavras rudes, nem queria demonstrar a perturbação que ela lhe provocava.

— Monte, mulher. Não precisamos mais ficar aqui.

Pleasance detestava ser chamada de "mulher", ainda mais naquele tom de voz.

— Acha que eles nos seguirão? — Tentou montar sem a ajuda dele.

— Não.

— Tem certeza?

— Eles prometeram, e os Tate não quebram uma promes­sa. Além disso, Jud Tate e seus dez filhos obedecem a uma lei: não tocam em nenhuma mulher que pertença a outro homem. — Ele incitou o cavalo a meio-galope.

Pleasance mordeu a língua para não dar uma resposta à altura. Apesar do que acontecera, ressentia-se por ele con­siderá-la um objeto. Mesmo sendo uma criada, merecia ter mais consideração do que uma vassoura.

Mas não tinha como se defender. Ela lhe pertencia por direito. Ao menos por enquanto.

— Ponha isso em seu ferimento.

Pleasance pegou a toalha fria da mão de Tearlach e a encostou na face onde Sep acertara uma bofetada. Sentada, observou-o servir a refeição sem esconder seu ódio, e se per­guntou quando ele o descontaria nela.

Tearlach tirou a mesa e franziu o cenho ao ver o pouco que ela comera. Pleasance o ignorou e se levantou. .

— Aonde vai?

— Tomarei um banho para tirar o fedor dos Tate.

— O que não teria acontecido se tivesse ficado em seu canto.

Ela comprimiu os lábios. A resposta ficaria para depois.

Pleasance ficou na água até que esta esfriasse. Mas não adiantaria se esconder na banheira ou ficar doente para evitar um confronto.

Uma vez vestida, endireitou as costas e saiu do quarto.

Foi direto para a frente da lareira, sentou-se em um tambo­rete e começou a escovar os cabelos.

Enquanto ela estivera no banho, Tearlach relera várias vezes a mensagem deixada. Servia para restaurar a ira e esfriar o desejo, pensou consigo.

— O que quis dizer com isso? — Amassou o papel e o jogou na direção dela.

Embora receosa, ela o fitou com calma.

— Apenas o que escrevi. Eu estava voltando para Worcester.

— Não me referia a isso. O que quer dizer com "Com sua ajuda, aprendi muitas habilidades valiosas. Em qualquer outro lugar ganharei dinheiro pelo que faço e não precisarei trabalhar dia e noite"? Será o que estou pensando?

— Embora eu não leia pensamentos, imagino que esteja pensando corretamente.

— Pretendia se prostituir?

— Eu só tinha três alternativas. Poderia conseguir dinhei­ro com Nathan, mas, se ele ficasse ao lado de minha famí­lia, eu teria de ganhar meu próprio sustento. Eu poderia ser uma criada ou...

— Uma rameira? E ainda tem coragem de dizer que eu lhe ensinei a profissão?

— Sim, ensinou.

Tearlach avançou na direção dela.

— Eu lhe disse que você não era uma rameira.

— Disse, mas agiu de modo inverso às palavras.

— Não diga besteiras. Eu não disse nem fiz nada que levasse qualquer pessoa em sã consciência a imaginar que eu a treinei para ganhar a vida com o próprio corpo.

— Permita-me discordar, sr. O’Duine. Cada atitude sua dei­xava claro que não me considerava melhor do que uma vadia.

Atônito, ele entendeu que Pleasance acreditava no que dizia. Mas como explicar seu engano?

— Palavras doces eram ditas no meio da noite, quando ninguém podia escutar — Pleasance continuou. — Mas, com o raiar do dia, eu tinha o mesmo valor de um urinol. Nunca recebi a mais básica das cortesias. — Afastou-se da banqueta, pretendendo ir para o quarto onde poderia chorar à vontade. — Posso ser tola o bastante para me entregar à paixão, mas o pouco orgulho que me resta exige que eu lhe negue o direito de me tratar como uma rameira.

Pleasance deu um grito de frustração quando Tearlach a agarrou pelo braço e a impediu de fugir.

— Está tentando arrancar de mim palavras de amor e promessas de casamento? — Ele a sacudiu ligeiramente.

— Não estou, e sabe muito bem disso! Peço apenas respeito.

— Eu a respeito.

De que maneira?!

— Então fugiu porque não a bajulo como um idiota apai­xonado? Sim, você é minha amante, mas também está presa a mim por um contrato legal.

— Por acaso alguma vez negligenciei meus deveres? Agi como se o uso do meu corpo facilitasse o trabalho que devo fazer ou sugeri algo nesse sentido? Nunca. Isso deveria fazê-lo supor que esta pobre retardada sabia onde terminava o papel de amante e começava o de criada. Suas atitudes trans­formaram a palavra "amante" em substituta para "rameira", emporcalhando o ato de amar. Você me atirava para fora da cama a cada manhã como se eu fosse um traste, Tearlach. Mas, ao contrário das prostitutas, não ganhei nada pelo calor que eu oferecia.

Pleasance se desvencilhou.

— Agora, chega. Se tenho de ficar, será apenas como cria­da. Cumprirei meus deveres, mas eles cessarão na porta do quarto, sr. O’Duine. Se estiver precisando de uma meretriz, vá procurá-la em outro lugar.

Ela tentou se afastar, contudo foi agarrada outra vez ape­sar do esforço que fazia. Tearlach afastou o tamborete com o pé e a atirou na pele de urso que ficava em frente à lareira. Pleasance quis se levantar, mas ele se deitou sobre ela.

Não era difícil entendê-la, mas ele se enfurecia por ela considerar aquele relacionamento um dever. Segurou-lhe a cabeça e a beijou, sentindo um gosto de triunfo quando Pleasance se debateu com mais suavidade.

— Isto parece um dever? — Viu nos olhos dela o desejo difícil de ocultar.

— Dessa vez não usará seus beijos para me dominar.

— É o que sente quando a beijo? — Tearlach quase sor­riu quando ela murmurou uma imprecação e tentou tirá-lo de cima dela. — É o dever que a traz para minha cama? — Ele segurou-lhe um seio e sentiu o mamilo endurecer.

Pleasance ficou desanimada. Apesar de tudo o que ele dizia e fazia, o estímulo era imediato.

— Pretende mesmo acabar com o orgulho que me resta?

— Você me interpretou mal, Pleasance.

Sem saber como consertar o equívoco, Tearlach começou a abrir o corpete.

— Suas atitudes foram muito claras — ela murmurou, rouca.

— Talvez eu deva me explicar. Eu apenas procurava sepa­rar as duas partes de nossa vida. Uma nada tem a ver com a outra, e nosso relacionamento não deve ser misturado ao contrato que a prende a mim. Apenas isso.

Pleasance não o impediu de despi-la. Não queria inter­romper aquele discurso franco e, além disso, desejava muito fazer amor com ele para apagar o horror do ataque dos Tate.

— Não se podem separar os dois momentos — alegou com voz fraca. — A mulher que aquece sua cama à noite é a mes­ma que escova seu chão durante o dia. Se você interpretasse dois papéis diferentes, o de amante e o de senhor, eu fica­ria maluca. Sua cortesia e seu respeito terminaram quando fui para a sua cama. O que eu poderia pensar?

Estava seminua agora. Enquanto pensava na concessão seguinte, Tearlach tirava as calças.

— Então será como você quer daqui em diante. O amante não desaparecerá pela manhã, como também não desaparecerá a criada. Confiarei que saberá distinguir os dois papéis.

— Sua generosidade me humilha — ela falou com sarcas­mo e o abraçou.

— Não me provoque, Pleasance. Agiu como uma grande tola e arriscou não apenas sua vida, mas também a minha. Se eu tivesse chegado mais tarde ou se aqueles não fossem os Tate, o final poderia ter sido outro.

— Eu sei.

— Faremos o seu jogo. Na verdade, eu mesmo achava difícil fazer a distinção.

Era agradável saber que ele tinha de se esforçar para man­ter a distância. Benevolente, Pleasance acariciou o peito com cicatrizes. Sem saber, Tearlach lhe dera um pouco de espe­rança. Se não ficasse afastada dele, poderia ter a chance de conquistar seu coração.

— Escute bem, isso terá de ser feito sem artimanhas, Pleasance. Nem pense em usar nossa paixão contra mim ou a seu favor, ou terá motivos maiores para fugir. Sei quando pretendem me fazer de tolo.

As carícias suaves de Pleasance despertavam nele um calor que ameaçava lhe roubar as palavras e o raciocínio.

— E por isso suspeitará de artifícios inexistentes.

— Não. Sou um homem justo.

Pleasance estava ciente de que ele não confiava nela, mas não conseguiria persuadi-lo com palavras bonitas. Era preci­so se lembrar disso e também que prometera lhe mostrar o erro por meio de atitudes. Esperava que algum dia ele se con­vencesse de que ela não merecia desconfiança.

— Justo o suficiente, Tearlach. Então... — passou os dedos no cós do calção e o sentiu estremecer — ...vamos recomeçar?

— Sim. — Ele entrelaçou os dedos nos cabelos dela e os espalhou sobre a pele de urso, notando os reflexos avermelha­dos pelas chamas.

— O sol já se pôs — ela murmurou.

—Sei que os Tate a maltrataram. Se estiver dolorida, não será preciso cumprir este "dever" hoje.

Ela não conseguiu reprimir o riso.

— A palavra "dever" machuca, não?

— Neste caso, sim.

— Sua experiência nas artes do amor, por menor que seja, deveria fazê-lo entender que nunca fui fria.

— Então este dever lhe agrada... Mas lembre-se de que foi você quem chamou isto de "dever": — Tearlach corou, enver­gonhado por erguer a voz quando Pleasance o segurou no membro com firmeza.

— A primazia de agir como se isto fosse um dever foi sua... — Era divertido e excitante observá-lo tentar manter o controle enquanto ela o acariciava.

— Nunca imaginei que se tratasse de uma obrigação sua ou minha. — Tearlach fechou os olhos diante do prazer que ela provocava. — Este é um esporte muito perigoso.

— E qual é o nome deste esporte?

Tearlach deu um riso rouco e, com dedos trêmulos, tentou soltar as fitas da blusa que ela usava.

— Os nomes são muito grosseiros para seus ouvidos. Santo Deus... Suas carícias são suficientes para destruir a sani­dade de qualquer homem!

Tearlach se afastou levemente e a despiu por completo. Embora pensasse em um amor lento é minucioso, suspeitou que não seria possível. Esperava que ela nunca descobrisse o quanto o deixava vulnerável.

Tirou o calção e mergulhou em seus braços.

— Este dever levará muito tempo para ser cumprido, Pleasance — murmurou e a beijou.

— Muito tempo? — ela perguntou quando o beijo teve fim.

— O quanto eu puder fazê-lo durar... — Tearlach segurou as mãos dela na pele de urso. — Fique quieta. Se eu permitir que me toque, perderei o pouco controle que tenho.

— Mas acabei de aprender como acariciá-lo.

— Poderá fazer isso à vontade em outra ocasião. É a minha vez.

Ele a beijou com aquela volúpia que fazia a pulsação dela acelerar, e Pleasance se entregou ao prazer da carícia inebriante. Queria se abandonar àquela emoção, ao calor dos beijos e à alegria das palavras roucas. A paixão de Tearlach era real, quente... e toda para ela.

Gemeu ao sentir os lábios quentes e úmidos sugando seus seios e afundou os dedos nos cabelos escuros. Com o aumento da paixão, tentou se esfregar no corpo dele, porém Tearlach se manteve afastado. Ele controlava os beijos e os carinhos.

Afastou-se dos seios e a beijou das coxas até a ponta dos pés, para então voltar. Quando alcançou os pelos sedosos do monte de Vênus, Pleasance tentou afastá-lo.

Tearlach segurou-lhe os pulsos e, com apenas um toque de língua, venceu sua hesitação. Ela se abriu ao beijo íntimo, e Tearlach gemeu.

Mais uma vez, Pleasance mergulhou os dedos nos cabe­los dele e puxou-lhe a cabeça ao ser dominada pela febre do desejo que ele alimentou até ouvi-la gritar seu nome.

Ao atingir o clímax, ela o chamou para acompanhá-lo, mas ele ignorou o pedido e a deixou se lançar sozinha no doce abismo do prazer.

Mal ela se recuperou, Tearlach fez retornar a paixão. Atendeu ao apelo e se moveu para dentro dela com uma força que revelava a intensidade de seu desejo. Pleasance encora­jou as arremetidas ferozes com palavras de incentivo e movi­mentos do próprio-corpo e, dessa vez, os gritos de ambos se misturaram ao clímax simultâneo.

A sanidade voltou, mas Pleasance permaneceu imóvel, de olhos fechados. Fingindo dormir, ouviu-o trancar a porta e apagar o fogo. Tearlach a pegou no colo, deitou-a na cama e se estendeu a seu lado.

— O que a perturba? — Tearlach abaixou o lençol e obser­vou os mamilos endurecer com o ar frio.

— Sou uma desavergonhada. — Ela não abriu os olhos.

— Se fosse, não estaria tão corada. Você é, graças a Deus, uma mulher ardente. Talvez eu possa diminuir seu constrangi­mento se lhe disser que também estou surpreso.

Pleasance descerrou parcialmente uma pálpebra e notou a expressão sincera.

— Como pôde fazer o que fez se não sabia muita coisa?

— Eu não disse que não sabia, apenas que não havia feito isso antes. Um homem não precisa entrar em ação para saber como se faz. Quando os homens se reúnem para conversar, seus três assuntos favoritos são política, dinheiro e a arte de amar.

Tearlach passou a ponta do dedo pelos mamilos rosados.

— Só estive com mulheres que já conheciam muitos homens, mas a realização não se dava com entusiasmo — ele confessou. — Com você é diferente. Sei que fui o primeiro e único. — Beijou os seios túrgidos. — Seu gosto também é o mais doce.

Pleasance tentou golpeá-lo, mas ele a segurou pelos braços.

— Estão esteve me usando para práticas lascivas... — ela o acusou, sabendo que ele pretendia fazer outra incursão por seu corpo. Acariciou o abdômen reto e desceu aos poucos.

Tearlach se preparou para mais uma onda repentina de desejo que se manifestaria quando ela o segurasse.

— Há mais algumas coisas que eu gostaria de tentar — falou, rouco.

— E agora? Também tenho uma ou duas curiosidades... Ele se deitou de costas, levou Pleasance consigo e se deliciou com os carinhos dela.

— Assim está bem. — Não resistiu à tentação de acariciá-la.

Pleasance se ajeitou por cima dele e decidiu inovar. Se fosse uma boa amante, poderia chegar ao coração de Tearlach. Um provérbio antigo dizia que o melhor caminho para o coração de um homem era pelo estômago, mas ela sus­peitava que fosse um pouco mais embaixo...

Tearlach murmurou uma aprovação quando ela beijou-lhe o peito delicadamente. Pôs as mãos debaixo da cabeça para impedir a si mesmo de retribuir os carinhos. Não que­ria se apressar e sim se comprazer com aquela delícia, o que se tornou mais difícil quando os beijos desceram. A maneira como ela lhe acariciava os quadris e as coxas levou sua pai­xão às alturas, mas ele perdeu o controle de vez quando os lábios quentes de Pleasance o tocaram na intimidade.

Gemeu de prazer e tentou segurá-la, porém Pleasance afas­tou suas mãos. Tearlach se surpreendeu, mas depois ficou satisfeito em poder saborear o desejo ardente que o invadia a cada movimento dela.

Descontrolou-se ao sentir o calor da boca de Pleasance envolvê-lo. Com um grito rouco, ele a puxou e, para sua alegria ela se ajeitou rapidamente na nova posição.

Não demorou e ambos chegaram ao auge.

A paixão deles foi tão intensa que ficaram deitados, abraçados, e demoraram a se recuperar.

— Como sabia o que fazer? — Tearlach sussurrou, acariciando-lhe os cabelos.

— Como assim? — Pleasance não teve como disfarçar um bocejo.

— Fazer aquilo. — Ele não estava desconfiado, só curioso.

— Eu apenas o imitei.

— Nada poderia ser mais correto.

Pleasance se aconchegou junto a ele e fechou os olhos.

— Fiquei com medo de tê-lo desagradado...

—De maneira alguma, eu... — Tearlach silenciou ao descobrir que ela adormecera.

Suspirou, abraçou-a e fechou os olhos. Jamais sentira tanto prazer, mas teria de encontrar uma forma de ocultar o quanto ela o afetava.

 

— Você e Tearlach vão se casar?!

Pleasance tirou as velas quentes da panela e as deixou esfriar no suporte.

Moira voltara fazia quase uma semana, e Pleasance não se animava a explicar o que acontecia entre ela e Tearlach, na esperança de que a menina aceitasse a situação sem questioná-los.

— Não vamos. — Continuou o trabalho para Moira não notar que corava.

Moira franziu a testa e adicionou sebo em uma das duas panelas sobre o fogo.

— Foi forçada a dormir com ele por ser sua criada?

— Não houve pressão, Moira. Creio que não tive forças para me comportar como devia.

— Ou ele, para se comportar como devia.

— Ou como nós dois deveríamos ter tido. Logo poderemos começar a fazer velas de miricáceas — desconversou.

— Gosto mais delas, pois são aromáticas. Uma pena que os frutos cerosos não sejam tão profusos quanto a gordura animal.

— Sim. — Pleasance respirou fundo. — Não quero fazê-la pensar que Tearlach e eu agimos corretamente, Moira. Tudo o que eu disse sobre a honra e o bom nome de uma mulher ainda é verdadeiro.

— Então fez isso porque o ama?

— Moira...

— Jamais direi a ele, pois nada tenho a ver com isso. Você o ama e permitiu que ele a levasse para a cama mesmo sem obter promessas.

— Não se preocupe. Não há lei que o obrigue a assumir um compromisso. Não sei como lhe explicar isso.

— Não precisa medir as palavras comigo, Pleasance. Aqui nós aprendemos cedo os caminhos da natureza. Sei que as pessoas necessitam acasalar como os animais, embora não tenham uma estação específica para fazê-lo, e que podem interagir todos os dias do ano. Isso pode ser feito com ou sem casamento, por amor, por dinheiro ou... — ela abaixou a voz — ...com ódio e violência.

Pleasance a abraçou, sabendo que a menina se lembrava da mãe. Para sua alegria, Moira retribuiu o gesto. Elas sorri­ram, separaram-se e voltaram ao trabalho.

— Fico relutante em falar sobre o assunto, Moira, pois é como se eu dissesse "Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". O fato de o meu nome ter sido enlameado certamente abalou minhas convicções, mas não é apenas isso. Sou uma pessoa fraca e só posso esperar que você, quando crescer, não se comporte como eu.

— Não acho que tudo seja um erro, e preciso pensar no assunto. Vi como Tearlach a perseguia sem descanso por você ser uma criada. Ele não lhe permitiu nem ao menos conseguir forças para negar.

— Não o culpe, Moira.

— Não o culpo, mas ele errou. Tem razão, Pleasance, não é fácil falar sobre o assunto. Mas digamos que enxergo a ver­dade. Não se preocupe. Vejo também que, apesar de você ser uma boa pessoa e querer fazer ò que é certo, as coisas não saem de acordo. Como Tearlach diz, gente é gente, e ninguém é santo.

— Ele deve bem saber disso. — As duas sorriram.

Pleasance se admirou por Moira ser tão sincera e madura aos treze anos, pôs a mesa, refletindo que Tearlach não dava a atenção necessária aos sentimentos da menina.

Tearlach viu Moira se aproximar e largou o machado com que cortava lenha. Evitara a irmã desde a chegada dela, o que o fazia sentir-se culpado e tolo. Mesmo que ele e Pleasance mantivessem discrição quanto ao seu relacionamento, com certeza Moira entendera o que se passava. Ele teria de reunir coragem para falar com ela, sem contar com Pleasance para substituí-lo na tarefa.

— Pleasance está pondo a mesa para o jantar — Moira anunciou.

— Eu já vou.

Ela não se mexeu.

—Deveria se casar com Pleasance.

Tearlach agarrou as ferramentas e franziu o cenho enquanto se dirigia ao estábulo a passos largos.

— Foi Pleasance quem disse isso?

— Não. Ela disse que não há lei que o obrigue a se casar.

— E está certa.

Tearlach guardou as coisas e inspecionou o estábulo.

— Ouvi dizer que um homem honrado deve se casar com a mulher que seduziu. Mas se Pleasance é uma moça leviana...

— Escute, isso não é conversa para uma menina.

— Jake descreveu assim as moças da taverna que são fáceis de conquistar.

— Você nada deveria saber sobre essas coisas. E Pleasance não é desse tipo, de maneira nenhuma.

— Então ela é uma moça direita.

— Claro que é. E não quero ouvi-la falar outra coisa.

— Jamais. Claro que isso nos deixa ainda com o problema da honra...

— Droga de honra! — Tearlach saiu do estábulo, lançou um olhar feroz para a irmã, que ò seguiu e trancou a porta. — Desista, Moira. Você é muito nova para entrar nesse jogo.

— Se ela não é leviana, é uma moça direita, e você deve se casar com ela.

— Isso é o que as pessoas da cidade diriam.

— Mas você não pretende...

— Não.

— Pleasance disse que não foi obrigada a dormir com você.

Tearlach suspeitara de que Pleasance poderia usar Moira para tentar forçá-lo a um compromisso, mas não era o que acontecia. No entanto não ousava baixar a guarda.

— É verdade. O lugar dela como criada temporária é uma coisa diferente do restante.

— E você pode separar as coisas desse modo?

— Sim, eu posso e quero.

— Por que não quer se casar com ela? Pare de me olhar com essa cara. A pergunta é razoável.

— Não acho que ela seja uma boa escolha. — Ele se repre­endeu por mentir.

— Bobagem. Pleasance faz todo o serviço de uma esposa, e muito benfeito.

— Sim, mas isso pode mudar.

— Por que não confia nela?

— Ela é a filha mimada de uma família rica.

— Se Pleasance é como a família, por que eles a rejeita­ram? — Moira entendeu que atingira o alvo quando Tearlach diminuiu o passo. — Você sempre me disse que as pessoas se afastavam de mim porque eu era diferente. Talvez a família dela a tenha recusado também por isso, e pode ser que ela o tenha rejeitado por motivos alheios à sua vontade. Sempre me disse que há dois lados de uma mesma história, e a mim parece que está olhando apenas para um deles.

— E a mim parece que está falando demais!

Moira deixou Tearlach na varanda da frente para se lavar e entrou, desejando que ele pensasse na conversa, pois estava convencida de que Pleasance e Tearlach haviam nascido um pára o outro.

Ele franziu a testa enquanto jogava a água do pesado jar­ro de argila na bacia e enrolava as mangas. Errara em tratar Moira de igual para igual por causa de sua inteligência e curiosidade sobre as pessoas e a vida. Agora ela se achava no direito de passar sermões nos mais velhos.

Pegou uma toalha macia de um prego e secou o rosto e as mãos, pensando na perspicácia e na intuição da irmã. Embora suas palavras não tivessem a maturidade de seus pen­samentos, daquela vez o sentido ficava claro e confirmava o que Corbin lhe dissera fazia semanas.

Sentiu-se culpado, pois prometera a Corbin que seria justo com Pleasance e que não se deixaria influenciar pelo comportamento anterior dela.

Entrou na cabana sem ter certeza de que cumpria a promessa.

Pleasance ficou desconfiada durante a refeição. Solenes, Tearlach e Moira pouco conversaram, o que lhe pareceu inapropriado justamente no aniversário da menina.

— Moira, é hoje que faz treze anos, não é? — perguntou quando ela terminou de comer.

— Sim, treze — a garota respondeu depois de um olhar nervoso para Tearlach.

— Ainda bem, ou eu me sentiria uma tola com minha pequena celebração... — Pleasance começou a tirar a mesa.

— Nós não celebramos a data. — Tearlach pegou dois pratos e seguiu Pleasance até a pia.

— Por que não? — Pleasance tomou os pratos dele e os deixou na cuba.

— E precisa perguntar? — ele murmurou, para que Moira não ouvisse.

— Sim, por quê?

— Eu lhe contei tudo sobre nossa mãe. Foi um tempo de sofrimento. Não há nada para comemorar.

— Se não quiser, não participe. Pretendo comemorar o aniversário de Moira. Ela nada tem a ver com o crime ou com a morte de sua mãe, que nem fazia questão de viver. Pretende culpar Moira por isso?

— É evidente que não.

— Mas parece que a culpa. Se permitir minha opinião...

— Você dirá o que acha, a despeito do que eu penso.

— Pois acho que Moira precisa festejar seu aniversário mais do que qualquer outra menina. Ela precisa saber que ninguém a culpa pelo passado e que estamos felizes por ela ter nascido, independentemente das circunstâncias.

Tearlach a fitou e, envergonhado, entendeu que Pleasance estava certa. Ele sempre pensara que o aniversário de Moira trazia más recordações e fizera a irmã concordar com ele.

— Não tenho presente para ela — lembrou, perturbado. Pleasance tirou dois pacotes do guarda-louça e os entregou a ele.

— Pode dar a ela o de cima.

— Moira saberá que não é meu.

— Ela vai encarar sua concordância com o festejo o melhor presente... desta vez. — Ela o fitou, sorrindo, e levou a torta que havia preparado para a mesa.

Tearlach deixou os pacotes diante de Moira e sentou-se.

— Pleasance disse que o de cima é o meu presente para você. — Ele piscou para a irmã.

Moira olhou para Pleasance e deu um grito de surpresa.

— Torta de nozes e creme?

— Sim. — Pleasance começou a cortar a torta. — Pelo que eu me lembro, é a sua favorita.

— Ah, nem sei o que fazer primeiro! Se como a torta ou se abro meus presentes.

— Abra os presentes — Tearlach aconselhou. — Quero saber o que lhe dei.

Moira riu e começou a desembrulhar os pacotes.

Tearlach ficou tão surpreso quanto ela ao ver surgir um vestido e um toucado de babados, e se perguntou quando Pleasance tivera tempo de fazê-los.

Moira, encantada, trocou de roupa e exibiu o novo traje. Naquela noite, Tearlach permitiu-lhe ficar até mais tarde conversando e, na hora de dormir, ela subiu a escada, feliz.

Como de hábito, ele foi depois ao quarto dela para lhe desejar boa-noite e a encontrou admirando os presentes, maravilhada. Mais uma prova de que errara ao lhe negar a celebração dos aniversários.

— Sinto muito, Moira — murmurou, constrangido.

— Pelo quê?

— Por não honrar seus aniversários anteriores. — Sentou-se na beira do colchão.

— Ah, não há nada para se desculpar.

— Pressupus que você pensasse como eu, sem nunca lhe perguntar nada.

— Na verdade, sinto o mesmo, mas esta noite pensei pouco em mamãe e em seu sofrimento. Isso é errado?

— Não. Você não pode se lamentar a vida inteira por um acontecimento infeliz do qual não é culpada. Pleasance tem razão. Seu nascimento só me trouxe alegrias, e de agora em diante não o deixaremos passar em branco.

— Eu gostei muito. Agradeça novamente a Pleasance por mim e obrigado a você por concordar.

— Não há de quê, minha querida. — Ele acariciou-lhe a mão e saiu.

Pleasance esfregava a mesa da cozinha e olhou para cima quando ouviu Tearlach descer. Inquieta, não sabia se sua interferência em um problema familiar tão sério fora bem recebida.

Seu coração se confrangeu quando ele se sentou em silêncio diante da grande lareira.

Continuou a limpeza dos outros objetos, inclusive dos que já estavam limpos, até não suportar mais o silêncio. Já escu­recera, e Tearlach continuava a olhar o fogo que se apagava. Era preciso conversar. Poderia entender que ele estivesse furioso com ela, mas sabia estar certa em relação a Moira.

Respirou fundo, aproximou-se da lareira e tirou os pés de Tearlach do banquinho de três pernas, sentando-se diante dele. Não notou raiva em sua fisionomia e ficou confusa.

— Achou que eu não prestava atenção em você? — Tearlach segurou a trança de Pleasance e começou a desfazê-la.

— Não. Imaginei que estivesse com raiva de mim.

— Sobre o aniversário de Moira? Não, você estava certa. Moira é uma bênção e uma alegria. No entanto, a memória de minha mãe ainda é cercada de tragédia. Algumas vezes me pergunto como posso considerar como meu lar um local onde mamãe e papai foram assassinados.

Era raro ele comentar sobre si mesmo ou sobre seu passado, e Pleasance resolveu aproveitar a oportunidade.

— O que o perturba, Tearlach?

— Eu ter sentido tanta raiva de minha mãe. Creio que ela desistiu da vida, pois ficou fraca e doente depois do nascimen­to de Moira, embora não estivesse tão mal.

— E isso lhe dá a impressão de que ela o abandonou. Mas o estupro deve ter sido insuportável. Talvez ela não pudesse perdoar a si mesma, nem viver com os que amava.

— Ela poderia ter tentado sobreviver.

— Poderia. Ela era sua mãe, e se você não a odiar, não vejo nenhum motivo de deslealdade de sua parte. Aceitando o direito de ficar com raiva, acabará por perdoá-la e prosseguirá com sua vida.

— Tem razão. É que não foi fácil criar Moira sozinho. Quando havia um problema difícil de resolver, ou uma deci­são que eu não podia tomar, chegava a amaldiçoar minha mãe.

— E então sentia culpa. Ah, pobre Tearlach, há certamen­te muitas coisas para se sentir culpado, mas ter ficado com raiva de sua mãe porque ela desistiu da vida não é motivo para isso.

Tearlach percebeu o olhar provocativo, ficou em pé, tirou-a do tamborete é se deitou com ela na pele de urso. No momento em que encostou nela, o desejo reviveu.

— E há alguma coisa para eu me recriminar? — Tearlach a beijou.

— Claro que sim, patife.

— Bem, com essa culpa eu poderei conviver — ele. murmurou e a beijou com intensidade.

Tearlach terminou o beijo e a olhou. Pleasance o deixava confuso. Ela trabalhava pesado e fazia muitas tarefas domés­ticas que antes não conhecia. E ele se surpreendia com sua qualidade de entendimento e compaixão, além da confiança que ela despertava em Moira. Até o desejo por ela era inespe­rado. Ela era esbelta, tímida e às vezes pudica, ou seja, não era o tipo de mulher que o interessara antes. Pleasance despertava nele uma série de sentimentos contraditórios e confusos.

Ele sacudiu a cabeça e começou a abrir o corpete do vestido.

— Não será melhor irmos para seu quarto? — Ela o abra­çou pelo pescoço, sem impedi-lo de despi-la.

— Sim, mas levaria tempo demais.

Pleasance acariciou-lhe os quadris e enfiou a mão no calção para desabotoá-lo.

— Está com pressa, não é? — Acariciou-lhe a virilha e o membro.

Tearlach fechou os olhos e se entregou à delícia do toque. Cada vez que faziam amor, Pleasance se tornava mais ousa­da, mais segura do que ele gostava. E com o passar do tempo e o aumento da paixão, mais ele se convencia de que seria difícil deixá-la partir ao término da pena.

— Sim, estou. — Tirou as roupas dela com maior rapidez. — Você tem a capacidade de me deixar muito ansioso.

 

Pleasance jamais teria imaginado os planos de Tearlach, que, desde o aniversário de Moira, quinze dias antes, mostrava-se tenso. Teria ele perdido o juízo?

— Tivemos uma geada ontem à noite — Pleasance comen­tou ao fitar Moira, que comia mingau de aveia e mel sem desviar os olhos do irmão.

— Sim, fez muito frio — concordou Tearlach, segurando entre as mãos a pesada xícara de cerâmica com café.

— E você disse que a nevasca será iminente — Pleasance acrescentou.

— É verdade. Posso sentir o cheiro de neve no ar.

— Então por que resolveu caçar, seu cabeça-dura? Da última vez em que discutimos suas caçadas, você afirmou que se tratava de uma época péssima para caçar, e agora está dizendo que pretende sair às primeiras horas da manhã?

Tearlach concordou, afastou o prato e apoiou os braços na mesa. Pleasance parará de comer para fazer o comentário e ele se perguntou se não deveria ter esperado até terminarem o desjejum. Mas ela estava certa, e ele teria de explicar as razões de sua decisão.

— Este ano terei de me arriscar, mesmo com tempo ruim.

— Por quê? Parece uma imprudência desnecessária.

— O tempo que fiquei na cama me recuperando dos feri­mentos, eu poderia ter passado caçando na floresta. Fiz um negócio com um camarada de Worcester para entregar certo numero de peles. Ele e eu perderemos dinheiro, se eu não cum­prir o trato. Agora terei de tentar recuperar o tempo perdido.

— E vai se expor ao perigo por isso?

— Na verdade, não é o que espero. Como eu disse, sei dos riscos e não os esquecerei. Ficarei perto de casa para que eu possa voltar depressa se o tempo piorar.

— De qualquer jeito, parece uma loucura sair para caçar.

— Tenho de tentar recuperar o tempo perdido, e não se discute.

— Assim mesmo, tentarei impedi-lo.

Tearlach logo entendeu que Pleasance falava a sério. Ela o seguia por toda parte, na cabana ou na estrebaria, e não pro­curava desculpas para aparecer. Chamava-o de tolo e saía. De vez em quando Moira vinha com ela e repetia o refrão. Tearlach encontrava-se dividido entre o riso e a raiva, como­via-se com a óbvia preocupação com seu bem-estar, mas se aborrecia com a intervenção.

No final da tarde, ele avisou que iria ao estábulo para veri­ficar o cavalo e a sela. Certo de que Pleasance o seguiria, escondeu-se ao lado da porta e não tardou a escutar o farfalhar das saias que se arrastavam no chão de terra batida. Deu um sorriso maroto.

Pleasance entrou, pôs as mãos nos quadris e franziu o cenho ao olhar em volta. Nem sinal de Tearlach. Ficou aborrecida por não poder dizer a ele o discurso que ensaiara. Ou talvez ele estivesse se escondendo para escapar das reprimendas que ela não se cansara de repetir desde cedo.

Um ruído baixo atrás dela chamou sua atenção. Pleasance não chegou a se virar quando foi agarrada pela cintura e pressionada contra uma pilha de feno. Era Tearlach, sorridente como nunca.

— Você me fez envelhecer dez anos — ela resmungou, séria.

— Ah, mas não aparenta isso...

— Você esperava que eu caísse em sua armadilha. Não gosto de trapaças infantis.

— Estranho, mas eu acho atraentes suas tentativas de manter a altivez e o decoro. — Ele começou a abrir o corpete e beijou cada centímetro de pele nua que aparecia. — Estou inspirado para beijá-la até fazer desaparecer seu mau humor e transformá-lo em uma disposição quente e receptiva.

Tearlach baixou o corpete e segurou os seios de Pleasance as mãos em concha, fazendo-a emudecer. Ela prendeu a res­piração enquanto ele provocava os mamilos com os polegares levemente calosos. Procurou se lembrar de onde estavam e o que pretendia dizer a ele.

— Não vim aqui para isso — murmurou e entrelaçou os dedos nos cabelos de Tearlach, enquanto ele a beijava e suga­va. — Minha intenção era repreendê-lo.

— Eu sei. — Ele abaixou sua saia até os tornozelos, e fez o mesmo com as duas anáguas. — Você veio me dizer que sou um grande tolo por pretender caçar.

— É isso. — De camisa e calçola, Pleasance o agarrou pelos ombros, sem forças nem vontade de afastá-lo. — Estamos no meio do dia — protestou em um sussurro.

— Não, está quase na hora do jantar. — Tearlach termi­nou por livrá-la da blusa e beijou-lhe o ventre várias vezes. — Foi muita gentileza sua me trazer este banquete.

O desejo dele se intensificou quando Pleasance deu risinhos roucos. Era quase impossível falar enquanto ele lhe beijava o lado interno das coxas, mas havia um fato relevante para ser dito.

— Tearlach, estou aqui, em plena luz do dia, apenas de calçola e ligas...

— E que bela visão! — Tearlach se afastou um pouco para abrir as calças e sorriu ao notar que ela já desabotoara sua camisa. — Nunca vi coisa mais linda.

— Agradeço muito, mas você realmente quer que outras pessoas me vejam?

— Não. E por que essa pergunta tola?

— Porque deixou a porta do estábulo aberta.

Tearlach correu para fechar e trancar a porta e, quando retornou, não conseguiu respirar. Pleasance estava em pé, ligeiramente corada, com os cabelos castanhos caindo até a cintura em mechas grossas e escondendo levemente seus encantos, vestindo apenas a calçola e ligas azuis. Tearlach não conseguia nem raciocinar e só encontrou forças para se apro­ximar quando ela olhou para as roupas a seus pés.

— Não. — Ele a tomou nos braços. — Nem pense em se vestir agora. Fechei a porta e estamos sozinhos.

— E Moira?

— Eu a conheço bem, ela não virá até aqui, ainda mais que está batendo a manteiga.

Tearlach se encostou no monte de feno e a ergueu no colo. No momento em que ela o abraçou pela nuca, ele a segurou pelos quadris e fez com que o abraçasse pela cintura comas pernas esguias. Segurou-a em uma posição mais confortável e começou a beijá-la.

Pleasance estremeceu de prazer quando os corpos se uni­ram, sabendo que Tearlach pretendia fazê-la esquecer de sua restrição à caçada, mas o amor deles não podia esperar, nem que ela se arrependesse mais tarde.

— Incline-se para trás, amor. — Tearlach suspirou.

Ela obedeceu e gemeu de prazer quando ele sugou um dos mamilos. Segurando-a pelos quadris, ele a moveu em um ritmo lento que a deixou arfante. Pleasance fechou os olhos, entregou-se ao amor e quando se sentiu perto do clímax, agarrou-se em Tearlach. Ele a beijou, invadindo-lhe a boca com a língua com a mesma ferocidade com que a penetrava. Segundos depois Tearlach gemeu, segurou-a com força ao cair de joelhos e pressionou o rosto suado entre os seios dela. Pleasance deu um gemido de pura satisfação ao sentir que ele alcançara o êxtase.

Tearlach aconchegou o rosto de Pleasance em seu peito e acariciou-lhe os cabelos, ignorando os fios de palha que atra­vessavam seu calção, para não arruinar o prazer do momen­to. Queria se entregar ao calor e à ternura que sentia por ela, apesar do perigo que isso representava. Após alguns minutos, e com relutância, afastou-se, sentou-se e segurou Pleasance no colo. Contra a vontade, ele não parava de pensar no que aconteceria após um ano, incomodado pelo fato de que ela o rejeitara logo após se conhecerem.

Com um suspiro, afastou-se um pouco e assumiu uma posição mais sentada, embora ainda recostado ao feno.

— Que cara feia... — Pleasance passou apontado dedo nos lábios dele. — Eu estava certa de que agradava a você.

— Você me agrada, querida, e muito. — Tearlach sorriu e afastou as mechas de cabelo dela para atrás das orelhas. — Você me faz tão feliz que até me esqueci de como o feno pode empalar um homem.

Ela fez menção de se levantar, e ele a impediu.

— Aonde pensa que vai?

— Vou voltar para a cabana. Não posso negligenciar minhas obrigações por tanto tempo.

— Elas esperarão por você amanhã cedo, mas eu já terei partido.

— Para uma caçada em pleno mês de dezembro, quando as feras ficam ainda mais perigosas.

— Você se preocupa demais. Em nossa vida curta e difícil devemos aproveitar o que realmente nos dá prazer.

Pleasance não comentou aquela maneira um tanto egoísta e simples de encarar a vida.

— Não devemos ser gananciosos.

— Ah, Pleasance, é impossível não ser ganancioso a seu lado — murmurou ele, inclinando-se para beijá-la outra vez.

Ela, porém, se esquivou.

— Agora preciso voltar ao meu trabalho — falou, com um sorriso. — Caso contrário, você ficará sem jantar.

— E terei de escutar nova reprimenda enquanto estiver comendo?

— Possivelmente. Ainda me lembro do que vim fazer, e você me distraiu.

— Você não mudará minha opinião.

— Sei disso.

— Então por que você e Moira me atormentaram o dia todo?

— Para ter certeza de que o sermão foi completado antes de você se empenhar nessa jornada insensata.

Tearlach tentou agarrá-la, mas Pleasance ficou em pé de um pulo. Ele riu, sentou-se e pegou as próprias roupas. Pleasance apoiou uma das pernas sobre o feno, e endireitou a meia e a liga. Preparava-se para fazer o mesmo com a outra meia, quando escutou um barulho estranho, pequenos estalos na parede dos fundos, espiou os nós da madeira que deixavam entrar luz e entendeu que alguém os observava pela pequena abertura! Por uns momentos ficou paralisada, depois chamou Tearlach e segurou uma das anáguas diante do corpo.

— O que foi? — Ele calçou uma das botas.

— Alguém estava... está nos espiando. — Ela apontou o dedo trêmulo para o nó da madeira onde vira um olho.

— Não vejo nada — disse ele, espiando pelo vão.

— A pessoa deve ter me escutado e fugido, mas juro que tinha alguém ali.

— Fique aqui. — Tearlach agarrou a faca antes de sair do estábulo.

Pleasance se vestiu depressa, imaginando quanto da inti­midade deles fora vista por um estranho. Fechando o corpete, saiu também.

Ele procurou por todos os cantos, mas não encontrou nin­guém. Pleasance não imaginava coisas, e ele também senti­ra a presença de alguém que viera e se fora. O pior de tudo era a intuição de que não se tratava de uma presença benigna. Voltou correndo para o estábulo e encontrou Pleasance à sua procura.

— Eu lhe disse para ficar aí dentro... Nada, não vi ninguém.

Pleasance cruzou os braços, sentindo calafrios.

— Tearlach, eu juro que vi alguém espiando aqui para dentro!

— Eu acredito em você. Vá para casa que vou examinar os arredores mais uma vez.

— Espera encontrar alguma coisa?

— Não. Não há sinal de nada, nem rastros para seguir.

— Quer que eu traga seu mosquete?

— Não. Se a pessoa pretendesse nos machucar, não teria desaparecido.

Pleasance não concordou, mas não discutiu e voltou para a cabana. Meia hora depois, Tearlach apareceu sem novidades.

— Tem certeza de que não há perigo para nós? — Ela começou a pôr a mesa.

— Se fosse o caso, ele teria ficado em vez de fugir.

Tearlach sentou-se e sorriu quando Moira entrou, vindo da direção da horta. Perguntou se ela vira alguém, e a meni­na disse que não vira ninguém por perto o dia todo. Tearlach acalmou Pleasance, desejando, ele próprio, sentir a confiança que demonstrava.

Ele chegou a imaginar a hipótese de adiar a caçada, mas era preciso recuperar o tempo perdido. Se o intruso fosse Lucien, não teria espiado e fugido. Ao término do jantar, convenceu-se de que o indiscreto devia ser o filho de algum vizinho. Recomendaria cuidado às duas, e elas ficariam em segurança.

Pleasance ficou de costas para Tearlach enquanto tirava o vestido e estendia a mão para pegar uma camisola de seda, jogada sobre o espaldar da cadeira. Deu um risinho repentino e nervoso quando ele se aproximou por trás, enlaçou-a pela cintura e jogou-a na cama, puxando as cobertas em cima de ambos.

— Eu queria vestir a camisola porque faz muito frio à noite! — protestou, aconchegando-se nos braços dele.

— Comigo, você não vai sentir frio — ele a provocou.

— Se pretende sair ao alvorecer, não seria melhor dormir­mos? — Ela acariciou com o pé a panturrilha musculosa.

— Algumas horas a menos de sono é um preço pequeno a pagar para desfrutar sua companhia.

— Hum, que galante, sr. O’Duine... — Pleasance riu quan­do ele soprou sua orelha, mas logo ficou séria. — Não mudou de idéia, não é?

— Não, querida. Perdi metade da temporada de caça por causa de Lucien e agora tenho a oportunidade de recuperá-la. Na verdade, sempre imaginei que seria possível ter mais lucro caçando antes dos outros. Agora terei essa confirmação.

Apesar do discurso, Tearlach perdera o entusiasmo pela caça nos últimos meses. Relutava ter de deixar a cabana, vagar pela floresta e passar as noites sozinho. Mas não queria admitir que a causa desse desinteresse era Pleasance.

— Não estou aqui só para que a fazenda produza. Não posso ignorar o lucro das peles.

— Claro que não. — Ela acariciou com um dedo o contorno do queixo dele, detestando ter de preocupá-lo. — E o homem que nos espiava hoje?

— Se for um homem...

— Tenho a intuição de que era.

— Tenho o mesmo pressentimento. Mas ele fugiu, e não posso desperdiçar uma chance de ganhar meu sustento por causa de um fantasma.

— Eu entendo e prometo que serei cuidadosa. A responsa­bilidade por Moira me deixará alerta.

— Deixarei com você um rifle e uma pistola carregados. — Ele a abraçou com força. — Agora vamos ver qual será a despedida para seu caçador.

— Desconfio que está com idéias impróprias, senhor...

Pleasance se espreguiçou e estendeu o braço para o lado... vazio. Abriu os olhos e suspirou. Tearlach já saíra, sem uma palavra.

Ela saiu da cama e se vestiu depressa. O ar trazia, definiti­vamente, a aproximação do inverno, e o frio era intenso. Abriu as venezianas internas da janela e a vidraça com armação de chumbo. Uma lufada de vento gelado bateu-lhe no rosto, e ela tornou a fechar tudo, inclusive as cortinas.

— Até eu senti o cheiro da neve no ar, desta vez... — mur­murou para si mesma, voltando-se para acender as lamparinas e arrumar a cama. — E aquele escocês tonto saiu para caçar com esse tempo!

— Nada acontecerá a ele, não é, Pleasance?

Pleasance se assustou ao ouvir a voz de Moira. Ao ver a expressão preocupada e os lábios trêmulos da menina, Pleasance a abraçou.

— Não. Seu irmão é muito teimoso, mas não será derrotado pelo frio.

Pleasance rezou para que não fosse mentira.

 

Tearlach olhou a ruma de peles e disse uma imprecação. Apesar da boa qualidade, eram em número insuficiente. A viagem não fora o sucesso que esperava. Fazia quinze dias que andava pelas florestas e não estava nem um pouco mais rico, apenas exausto, com frio e ansioso para voltar para casa.

Logo nos primeiros dias, caíra um pouco de neve, mas não o suficiente para fazê-lo voltar para a cabana. Mas ele estava sempre atento ao céu cinzento, o que mais o aborrecia era que a neve, embora pouca, não derretera, o que significava que ele deixaria um rastro bem visível aonde quer que fosse. E ele não gostava nem um pouco disso.

Tearlach atiçou a pequena fogueira que acendera. O fogo mirrado pouco fazia para protegê-lo do frio inclemente, talvez apenas o suficiente para que ele não morresse de frio, mas, pelo menos, servira para ele esquentar uma refeição. Jurou que nunca mais caçaria no inverno, a menos que fosse para sobre­viver. O que ele fizera fora loucura, ainda mais tendo deixado para trás uma cama quente e uma mulher bonita. Ele sacudiu a cabeça. Fora mesmo um tolo.

Estendeu a manta sobre uma porção do solo de onde tirara a neve, deitou-se e se cobriu com outras duas mantas. Deixara um amontoado de gravetos à mão, caso fosse necessário para alimentar o fogo, e prometeu a si mesmo que aquela seria a última noite. Ao amanhecer voltaria para casa, para Pleasance e para Moira.

Fechou os olhos e sorriu. Pensar em Pleasance o aquecia, por dentro e por fora.

 

Lucien Dubois se aproximou sorrateiro por sobre a vege­tação rasteira e tirou a faca da bainha amarrada na coxa. Não fez ruído algum ao se aproximar do homem que dormia. Não acreditava na própria sorte de ter encontrado o inimigo sozinho e tão vulnerável. Coçou a barba espessa com a mão enluvada e baixou o gorro de lã sobre as orelhas. Ficara furio­so ao descobrir que o plano brilhante de levar o urso raivoso até Tearlach falhara, e fazia tempo que esperava por uma segunda chance.

Arreganhou os dentes e apertou a faca na mão ao estudar a presa através da claridade tênue do alvorecer. Tearlach per­dera tempo demais envolvido com mulheres e enfiado dentro daquela cabana, e agora pagaria por essa fraqueza. Lucien quase riu, antecipando a vitória.

A um passo de Tearlach, ele se preparou para atacar. Seria um golpe de sorte levar consigo o escalpo de Tearlach. O homem tinha uma reputação admirável, tanto entre amigos como inimigos, e Lucien saboreava a idéia de provar que estavam todos enganados a respeito dele.

Levantou a faca, pronto para enterrá-la em Tearlach, quan­do uma mão o agarrou pelo pulso, detendo o golpe. Lucien viu-se olhando para o semblante furioso de Tearlach, e um grito de ódio escapou de sua garganta quando levou um soco no rosto e caiu de costas no chão gelado.

Tearlach jogou as mantas de lado e ficou em pé, com a faca em uma das mãos e a pistola na outra. Apontou para Lucien e atirou quando ele se ergueu devagar, mas soltou uma imprecação quando o outro se jogou para o lado, escapando da bala. Não haveria tempo de recarregar a arma.

— E então, mon ami... — Lucien o encarou com a faca na mão. — Aqui estamos, frente a frente, de homem para homem. — Ele jogava a faca de uma mão para a outra com destreza.

— Você quer dizer de homem para animal. — Tearlach acompanhava o inimigo passo a passo, até que passaram a andar em círculo, um ao redor do outro. — Só mesmo uma besta, um réptil desprezível e rastejante, seria capaz de estu­prar uma mulher e espancá-la quase até a morte. O pagamento por esse crime está muito atrasado.

— Crime? Que crime? — Lucien riu alto. — Sua mãe pediu para ser possuída. Ela era uma rameira esfomeada por homem. Precisava ter ouvido os gritos de prazer dela, enquanto eu a penetrava...

Tearlach cerrou os dentes e lutou para conter o ódio. Lucien tentava irritá-lo e distraí-lo, com o intuito de desconcentrá-lo. Era um truque antigo, mas com ele não funcionaria.

Estudou o oponente enquanto se rodeavam, procurando uma abertura, uma oportunidade para atacar. Sob as roupas grossas de lã, tecidas à mão, Lucien usava uma calça de couro de veado imunda e mocassins com meias de couro sobrepos­tas nas pernas arqueadas. A capa de lã era grossa e suja, e cobria os braços até os cotovelos.

Tearlach se admirou com o péssimo estado das roupas de Lucien, pois o renegado sempre se apresentava bem com o produto dos roubos. O fato de ele não ter dinheiro nem mulher para cuidar das roupas sugeria que Lucien devia ter se tornado ainda mais perigoso.

A parte de baixo do rosto fino de Lucien estava escondi­da por uma barba grossa, negra com alguns fios grisalhos.

Os cabelos também negros e sujos estavam divididos em duas trancas finas, e ele usava um gorro manchado. Seu aspecto exterior traduzia exatamente sua natureza pérfida. A malda­de e a selvageria de Lucien não podiam mais ser ocultas por uma boa aparência e roupas finas.

Os olhos de Lucien já não guardavam semelhança com os de Moira. Estavam escurecidos de ódio e loucura. Ao perder o tênue fio de sanidade, Lucien perdera toda a similaridade com a filha ilegítima.

— Dessa vez não me enganará com suas mentiras — Tearlach o avisou.

— Não são mentiras, escocês. Sim, mon ami, sua mãe era uma amante quase tão ardente quanto a menina bonita que você tem agora. Como é o nome dela? Pleasance? Oui, é isso. Foi como eu ó ouvi chamá-la no estábulo.

— Então era você que nós espiava.

— Oui, e foi uma bela imagem ver vocês subindo e des­cendo no feno. Deu para notar a pele suave e as belas curvas, adorarei tê-la sob mim.

— Você jamais encostará suas mãos imundas e sangrentas nela!

— E quem vai me impedir? Você vai apodrecer nesta neve, e será fácil me livrar de minha filha bastarda. Oui, mon ami, ficarei com sua bela amada e não vejo a hora de ser abraçado por aquelas pernas lindas. Eu a possuirei muitas vezes antes de cortar aquele pescoço alvo. Agora vamos parar de nos rodear como gaviões em volta de um cadáver e provar quem é mais homem?

Lucien pulou em sua direção, e Tearlach se esforçou para manter o raciocínio afiado, mas quase perdeu o controle quando a faca de Lucien o atingiu no antebraço. Por um ins­tante, o ferimento o enfraqueceu, mas ele rapidamente recu­perou o equilíbrio. Aquela seria a última batalha com Lucien, e apenas um deles ficaria vivo.

Um ataque quase vitorioso de Lucien, no qual a faca dele cortou a frente da capa de Tearlach, foi um aviso de que ele estava perdendo a concentração. Lucien era louco, mas tinha muita habilidade com a faca, e a pouca claridade o ajudava. Ele era mais animal do que homem.

— Ora, O’Duine, para que lutar tanto? De qualquer forma, você perderá. — Lucien jogou a faca e riu quando Tearlach se desviou da lâmina. — E um iniciante e nunca me derrotará na faca. Além disso, não tem estômago para, matar um homem.

— Pois eu o matarei, Lucien. Para mim, será bem menos penoso do que se eu tivesse de sacrificar um cão raivoso.

— Pois está demorando tempo demais, mon ami. Doze anos? Creio que minha pequena bastarda teria um desempe­nho melhor. — Ele fingiu atacar e riu de novo. — Talvez eu devesse treiná-la.

— Não chegue perto de Moira! Você já lhe causou mal suficiente.

— Nunca toquei nela. Merde, você a tirou de mim! Isso é justo? Bem, ela é apenas uma menina inútil, não o filho que um homem precisa, mas ainda assim é sangue do meu sangue. Pensando nisso, ela até poderá ser útil. Está chegando à idade de poder parir uma criança. Poderá render uma boa soma no Canadá. Oui, algum solitário caçador de peles pagará muito bem por ela, e talvez eu devesse fazer isso com sua mulher também.

Tearlach ficou cego de ódio ao pensar que Moira e Pleasance poderiam ser vendidas para algum brutamontes desprezível. Atirou-se contra Lucien e se engalfinhou com ele. Teve sorte. Pegou-o de surpresa e, agarrando-o pelos joe­lhos, jogou-o no chão. Por um momento, sentiu o sabor da vitória.

Mas Lucien era mais forte do que Tearlach previra. Os dois homens rolaram pelo chão, apagando com os corpos as cha­mas baixas. Ambos eram fortes e bem-treinados, mas Lucien tinha uma vantagem: uma compulsão selvagem para matar.

Sua expressão era de puro deleite, enquanto Tearlach lutava com desespero pela própria vida.

— O jogo terminará agora, escocês! — Arfante, Lucien prendeu Tearlach no chão.

Em posição desfavorável, Tearlach apertou o maxilar. Lucien prendia seu pulso para não ser apunhalado, mas tam­bém tinha o pulso direito preso pelo mesmo motivo. Era um empate difícil para Tearlach manter.

— Morrerá aqui, escocês, longe das belezinhas que pretende proteger!

Lucien bateu a testa no peito de Tearlach e, valendo-se da surpresa, desarmou-o. Tearlach se contorceu para sair de baixo do oponente, e esse movimento impediu que Lucien lhe atingisse o coração com a faca, mas Tearlach gritou quando a lâmina cortou seu peito.

A dor deu forças a Tearlach para tirar Lucien de cima dele. Tentou pegar a faca, mas o outro foi mais rápido e o atingiu nas costas. Tearlach gritou e tentou outra vez reaver a faca, mas os ferimentos minavam suas forças, e ele dobrou os joe­lhos, recebendo um soco de Lucien. Caiu de costas no chão gelado e não se levantou.

Lucien se entregou a um ataque furioso com mãos e pés, e Tearlach já nem discernia uma dor da outra. Abriu os olhos inchados quando Lucien parou de bater e viu o inimigo arreganhando os dentes.

— Termine logo com isso, seu canalha louco — disse com voz roufenha.

— Por que eu haveria de me incomodar? Está sangran­do como um porco, deve ter alguns ossos quebrados e está a quilômetros de algum possível socorro. Eu o deixarei aqui para apodrecer aos poucos.

— Poderei sobreviver e ir atrás de você.

— Oui, poderá, mas chegará muito tarde para salvar as duas belezas. Oui, deixá-lo vivo é um ótimo plano. Se você morrer, a morte será lenta e penosa. Se viver, ficará sabendo que matei e roubei tudo o que você possuía.

Tearlach rogou uma praga e agarrou os tornozelos de Lucien, que se livrou facilmente. A risadinha do inimigo o fez ter vontade de gritar, mas ele não daria a Lucien o gosto de ver o terror que o inundava. Lucien era um matador frio e não adiantaria implorar pela vida de Moira e Pleasance.

— Elas não estão sozinhas. — Ele viu Lucien pegar suas coisas.

— Mentiroso. Você as deixa sempre sozinhas. Eu o tenho observado desde que trouxe para casa a bela mulher de pernas brancas. Isso é maneira de agir diante de minha filha inocen­te? Preciso livrá-la de sua influência perniciosa. Oui, é isso que devo fazer.

Lucien coletou o que lhe interessava dos pertences de Tearlach e se levantou sorrindo.

— Somente um covarde machucaria uma mulher e uma criança.

— Quanta nobreza... Não pretendo fazer mal a nenhuma delas, mon ami. Mais non... Sua morte as deixará sem prote­ção, e pretendo apenas prover-lhes a subsistência. Como sou um homem ocupado, encontrarei alguém que faça isso. Por uma remuneração, é claro. Mas se elas me irritarem, eu as matarei. E você ficará aí sangrando e morrerá pensando nisso.

Tearlach tentou se mover, mas caiu de bruços, com o bra­ço estendido e inútil. Lucien bateu no lombo do cavalo dele, incitando-o a um trote, amarrou o saco roubado na sela do próprio cavalo e montou. Antes de ir, passou a centímetros da cabeça de Tearlach.

— Que vergonha! — Sacudiu a cabeça. — Diverti-me com seus jogos durante anos, mon ami. Que pena. Boa morte, Tearlach O’Duine. Que ela seja longa e tormentosa.

Tearlach deu um grito de dor diante da incapacidade de perseguir o inimigo. Moira e Pleasance pagariam por esse fracasso. Ele não saberia dizer o que doía mais: se Os ferimen­tos ou saber que não poderia protegê-las.

Tearlach ficou deitado por um bom tempo no chão gelado, viu o sangramento das feridas diminuir e pensou que morreria de frio. Cansado e zonzo, pensava nos abusos que Moira e Pleasance sofreriam, o que o deixava ainda mais fraco. O sofrimento era ainda maior ao entender o que Pleasance representava para ele. Mesmo sem saber se ela era igual à família, precisava dela.

Um relinchar suave o fez olhar para cima. Seu cavalo vol­tara. Tearlach maldisse a si mesmo. Fora preciso um animal para lhe mostrar que não deveria desistir.

Lutando contra a tontura, Tearlach conseguiu sentar-se e se arrastar até ficar apoiado em um tronco de árvore. Após alguns minutos, inclinou-se para a frente e pegou uma das camisas que Lucien tirara para fora do alforje. Aos poucos ras­gou-a em tiras e enfrentou a árdua tarefa de enrolá-las nos ferimentos.

Suado e trêmulo, tentou ficar em pé, usando a árvore como suporte. Chamou o cavalo e fez uma prece de agradecimen­to quando o animal atendeu. Foi difícil montar sem a sela, e quando conseguiu, Tearlach teve de ficar deitado no lombo do cavalo por alguns minutos. O sol já aparecia no horizonte quando ele segurou as rédeas e incitou o cavalo para casa.

Imaginando que jamais alcançaria Lucien, lutou contra nova vontade de desistir. Poderia não impedir Lucien naquele momento, mas isso não significava uma derrota. Havia pes­soas a quem ele poderia pedir a ajuda. Tinha amigos, além de Nathan, irmão de Pleasance, cuja lealdade seria posta à prova. Se Lucien tivesse levado as duas para o Canadá, ele precisaria de toda a ajuda para encontrá-las.

 

Nathan Dunstan esfregava as mãos diante da lareira e espe­rava, impaciente, a chegada de sua família e prometeu a si mesmo que não ficaria mais longe de casa no inverno.

Os cumprimentos reservados que recebera, o olhar nervo­so da governanta e principalmente o não comparecimento de Pleasance o deixaram preocupado, ainda mais que pressentira problemas para ela.

Virou-se ao som da porta sendo aberta. Espantou-se ao ver apenas seu pai e imaginou se ele descobrira seus esquemas de não pagamento de impostos, mas deu de ombros. Seu pai nunca se incomodaria com o modo como ele ganhava dinhei­ro. Nathan sempre suspeitara de que ele vendia mercadorias ilegais.

— Olá, filho — ele disse com olhar solene e pegou uma garrafa de vinho. — Aceita? — Ele serviu a si mesmo.

— Mais tarde. Onde estão todos?

— Em um chá na casa da sra. Delaney.

— Pleasance também? Ela odeia a sra. Delaney e aquelas duas sobrinhas rabugentas.

— Pleasance sempre foi seletiva demais em relação a seus conhecidos. — Thomas tomou o vinho e foi até a janela. — Sua irmã Pleasance não mora mais aqui.

Atônito, Nathan não pôde falar por alguns instantes.

— O que o senhor está dizendo?

Thomas olhou o filho.

— Pleasance não está mais aqui. Ela é a criada temporá­ria de Tearlach O’Duine e foi morar com ele em Berkshires. Se eu fosse você, hão me preocuparia mais com ela.

— Eu me preocupo, e o senhor também deveria se preo­cupar. Acha mesmo que não farei nada ao saber que ela se tornou uma criada? Ela é minha irmã, e quero saber o que houve. Essa notícia chocante não é para ser esquecida.

— Está bem, mas você não vai gostar da explicação. Sua irmã se envolveu em uma ação vergonhosa, e você entenderá que sua devoção a ela é errônea.

— Isso é o que o senhor diz. — Ele viu o pai ficar verme­lho. — O que aconteceu com Pleasance?

Nathan escutou a história e não pôde acreditar que Pleasance tivesse se envolvido em um escândalo obviamente preparado por Letitia. Os esforços de seu pai para manter a integridade de Letitia eram sobejamente conhecidos. Quanto mais Thomas procurava inocentar a filha, mais Nathan acre­ditava na culpa de Letitia. Era evidente que Pleasance fora enganada e traída pela família.

— Depois de tudo o que fizemos por ela, é um sofrimento ver que ela se voltou contra nós.

— Canalha — Nathan sussurrou.

— Como é? — Thomas tornou a ficar vermelho e encarou o filho com ódio.

— Como sempre, sua preciosa Letitia criou um escânda­lo e Pleasance levou a culpa. — Nathan ergueu a mão para evitar o protesto de seu pai. — Não me insulte contando mais mentiras. Pelo menos entenda que sou esperto e concluí a verdade. Senhor Deus, muitas vezes aceitei a maneira como Pleasance levou a culpa no lugar de Letitia. Mas desta vez foi demais. Por que o senhor não falou com o sr. O’Duine ou mes­mo com Corbin? Como pôde deixar Pleasance ser condenada e levada para aquele sertão por um estranho?

— Fazer ou dizer qualquer coisa arruinaria a chance de Letitia se casar com John Martin.

— E por isso o senhor destruiu o bom nome de Pleasance e permitiu que um desconhecido a levasse como serviçal por um ano? Além do mais, John jamais perderia a chance de se casar com Letitia. O senhor não só abandonou Pleasance, como também viu a oportunidade de se ver livre dela. Que Deus nos ajude, o senhor desprezou sua filha, protegeu a culpada e permitiu que uma inocente sofresse.

— Não esqueça com quem está falando!

— Não me esqueci, nem por um momento, mas creio que o senhor tenha se esquecido de quem eu sou e de quem Pleasance é. Discutiremos o assunto melhor, quando eu voltar. — Nathan se dirigiu à porta.

Aonde vai?

— Vou falar com Corbin Matthias. Quero saber o que real­mente aconteceu com Pleasance e sobre o homem em cujas mãos o senhor a atirou.

 

— Tentei avisá-lo — Corbin disse em seu gabinete, enquanto Nathan andava de um lado para o outro.

Nathan sentou-se em frente à mesa de Corbin.

— Não é fácil me encontrar quando estou fora de casa. Eu...

— Prefiro não saber onde esteve nem o que fazia. Por enquanto sou o juiz da cidade. — Corbin sorriu diante da risada de Nathan.

— Quer dizer que há a possibilidade de você perder a posição?

— Venho pedindo para ser substituído. Chegará a hora de tomar partido e ficar ao lado dos colonialistas revoltados ou ao lado da Coroa. Não quero mandar conhecidos para a prisão como traidores. O julgamento de sua irmã me mostrou que a lei pode nos forçar a agir de maneira injusta.

— Teve mesmo de mandá-la com aquele sujeito?

— Juro que sim. Foi a única alternativa depois de ela ter sido rejeitada pela família. — Era aquilo ou a prisão.

— Tem certeza de que um ano com Tearlach O’Duine será melhor do que a prisão?

— Sua irmã voltará viva e saudável. — Corbin sorriu diante do olhar sarcástico de Nathan.

Suponho que conheça o homem.

— Sim, e muito bem.

— Então me fale sobre ele e conte tudo.

— Por que deseja saber tudo?

— Além do fato de ele estar com minha irmã? Preciso saber qual a melhor maneira de trazer Pleasance de volta. Corbin olhou pela janela a neve que caía.

— Tão cedo você não poderá fazer isso.

— A neve vai parar.

— E seria uma tolice você ir para Berkshires antes de o inverno rigoroso chegar. Eu juro que a vida de sua irmã não está em perigo e você não deve arriscar a sua numa viagem nessa época do ano.

— Então sairei aos primeiros sinais de primavera. E Deus ajude Tearlach O’Duine se ele encostar em um fio de cabelo de Pleasance!

 

— Tem certeza de que a menina não é uma bruxa? — Mary Peterson observou Moira sair da cabana.

Pleasance sufocou o riso, por achar a mulher um pouco tola, embora tivesse bom coração. E havia gostado da visita, após duas semanas sozinha com Moira.

Moira sabia que Mary tentava dominar as superstições a respeito da garota e que procurava ignorar os boatos a respeito. Mas Moira não resistira à vontade de brincar com Mary, agindo de modo estranho. Pleasance prometeu castigar Moira mais tarde, mas sorriu para a convidada que se sentava do outro lado da mesa.

— Moira a está provocando — Pleasance explicou. — Quer mais café?

— Não, preciso ir para casa. Agora escurece cedo e temo ficar presa na neve.

— Entendo. — Pleasance franziu o cenho, olhando pela janela da frente. — Eu gostaria que o sr. O’Duine voltasse, pois uma tempestade está se formando.

— Por aqui nós sempre temos tempo borrascoso. — Mary enfiou uma media de cabelos grisalhos sob o toucado. — No passado, havia muitas mortes nessa época.

— Prefiro não discutir as mortes ocasionadas pelo inverno.

— Ah, querida, perdoe esta velha. — Mary estendeu o braço sobre a mesa e acariciou a mão de Pleasance.

— A senhora não é velha.

— Mais velha do que alguns e mais tola do que muitos. — Mary sorriu com a leve risada de Pleasance. — O’Duine perdeu o juízo. É uma temeridade caçar nesta época do ano, mas os homens são teimosos.

— É verdade. O sr. O'Duine precisava recuperar o tempo que ficou em convalescença depois do ataque do urso. Um homem tem de ganhar a vida.

— È verdade, querida, mas é preciso trabalhar de maneira tão perigosa?

Não tenho o direito de criticar o que o sr. O’Duine faz. — Era o que esperavam que ela dissesse.

— Bobagem, o homem tem por obrigação proteger as mulheres de sua casa. O sr. O’Duine não poderá fazer isso se estiver vagando pela floresta. Meu Henry diz que caçar e tirar peles não são bons meios de se sustentar. A menos que as pessoas se embrenhem fundo na floresta. Mas nunca ouvi dizer que o sr. O’Duine quisesse sair daqui. Sempre o conside­rei como um dos moradores permanentes.

— Creio que sim. Ele considera a cabana como seu lar.

— Então ele deveria ficar mais em casa. — Mary se levan­tou. — Ele não deveria deixá-las sozinhas.

Pleasance pegou a capa de Mary.

— Jake vem ficar conosco sempre que pode.

— Aquele velho não serve como proteção e tem sua pró­pria casa para cuidar. — Mary vestiu o manto e as luvas. — Bem, minha querida, espero que faça bom uso dos mirtilos. São os primeiros da estação.

— Eu lhe agradeço muito pelo presente.

— Se minha prima mandar mais, eu os repartirei com você.

Pleasance acompanhou Mary até a varanda e a viu montar na égua cinzenta.

— Muito obrigada.

Mary segurou as rédeas, arrumou as saias e o casaco, e fitou Pleasance.

— Se a solidão a incomodar, você e a menina bruxa serão bem-vindas em minha casa.

— É muita bondade sua, Mary, mas ficaremos bem aqui.

— Filha, não receie os boatos que recairão sobre mim. Sou muito velha, e meu Henry é insensível e rabugento. É verdade que fico preocupada com a garota, mas não creio que sua permanência aqui seja adequada.

— Não é, mas não tenho escolha. Sou uma criada temporá­ria, como a senhora deve saber.

— Claro, Jake e Henry são amigos. Henry veio falar com Jake no dia seguinte à sua chegada e soube da história. Além disso, minha prima é de Worcester. Foi ela quem me mandou a carta com os mirtilos. Não fique tão alarmada, filha. Eu ficaria sabendo do caso pela minha prima, mas ela não acreditou na história contada pelos vizinhos. Ela acha que você deveria ter sido libertada. Poderia contar a verdade por aqui. Sua família não ficaria sabendo, e eu posso influenciar as pessoas para tratá-la com maior bondade.

— Pode ser. — Pleasance deu de ombros e sorriu. — Os que me condenam por eu estar aqui não se convencerão, e de qualquer modo minha estadia será curta. Por que se pre­ocupar com mentes estreitas se eu logo os deixarei para trás? Nem todos são bondosos como a senhora.

— Você não me conhece, filha. — Mary corou de pra­zer. — Você poderá se demorar mais do que pensa. Bem, não se esqueça. Se não suportar mais ficar aqui, empacote suas coisas e as de Moira, deixe um bilhete para o irmão dela e venha ficar conosco. Cuide-se. — Mary incitou o cavalo a um passo lento.

Pleasance acenou e esperou Mary desaparecer de vista. Gostara da visita, mas não falara de sua preocupação sobre Tearlach, pois Mary, apesar de bondosa, gostava de mexericos.

— Talvez devêssemos ir para a casa da velha.

Pleasance virou-se e fitou Moira, que estava encostada à parede da cabana com o olhar sombrio. A menina teria de aprender algumas lições de boas maneiras. Moira parecia mais um garoto do que uma menina perto de se tornar mulher.

— Se continuar a me assustar, terá de ir sozinha, pois eu estarei morta. O coração pode parar com tantos sustos.

Moira ignorou a reprimenda.

— Talvez fosse mais seguro ficarmos na casa dos Peterson.

— Está com receio de algum perigo ou notou um sinal que eu não percebi?

— Não sei o que estou sentindo ou pensando.

— É possível que seja efeito desses dias cinzentos.

— Fico nervosa em esperar pela neve que o céu escuro pro­mete. Não ligue. Estamos bem seguras aqui.

— Eu gostaria que parecesse mais confiante. Confesso que também não gosto de ficarmos sozinhas aqui. É muito isola­do, bem diferente de Worcester, onde não se pode falar um pouco mais alto com receio de que os vizinhos escutem. No começo a solidão me agradou, mas agora vejo as desvantagens. Pelo menos no inverno, eu gostaria de ter em volta vizinhos abelhudos.

Moira riu e depois ficou séria, olhando a floresta.

— Não gosto disso. Nunca me senti tão inquieta e perturba­da, mesmo sem saber o motivo.

— Não pense dessa maneira, para não atrair problemas,

— Acha que isso é tão simples assim?

— Por que não? Vamos entrar, o vento está muito for­te. — Ela deu um tapinha afetuoso no ombro da menina. — Você tem um grande dom, querida, mas é melhor não forçá-lo.

— Tem razão. Os avisos mais claros e certos que já tive me pegaram de surpresa. Se meu instinto quiser me dizer algo, será na hora certa.

— Muito bem. Será melhor terminarmos nossas tarefas externas e fazer mais se pudermos. Temos de nos preparar para uma nevasca pesada.

— Sim, logo estaremos com a neve pelos joelhos.

Pleasance pôs o pão para crescer. Foi até a janela à direi­ta da porta dianteira, olhou a floresta circundante e não se surpreendeu ao ver o primeiro floco de neve cair do céu. Suspirou, embrulhou-se no xale e saiu.

— Moira — ela chamou da varanda, e a menina surgiu a seu lado. — Você faz isso para eu parecer uma tola.

— Não — Moira riu. — Está nevando.

— Deus, como você é esperta! — Pleasance deu risada quando Moira bateu levemente em seu braço.

— Ainda temos o que fazer, não é?

— Sim. Temos de preparar lenha, comida e água para vários dias, além de deixar os animais com feno e grãos suficientes. É preferível estar preparada e acordar com um dia ensolarado a tremer de frio sob a neve.

— E o que prefere fazer? Cuidar dos animais ou trazer mais lenha para dentro?

— Como eu não tenho muita afinidade com os animais da fazenda, deixarei a tarefa para você. Trarei mais lenha e talvez um pedaço extra de carne.

Assim que Moira saiu, Pleasance trouxe um pedaço de pernil e outro de carne de veado do pequeno defumadouro que ficava atrás da cabana. Em seguida reabasteceu o cesto de madeira coberto que ficava na porta dos fundos. Antes de terminar, seus braços já doíam.

Assou o pão e virou-se para lavar os utensílios. Ao ver que havia pouca água, pegou os baldes e foi até a bomba.

Estava enchendo os vasilhames pela segunda vez, quan­do Moira apareceu a seu lado, quieta e pálida. Ela esperou Moira falar.

— É melhor entrarmos... e ficarmos lá dentro — sussurrou a garota.

— Por causa da tempestade? — Pleasance seguiu Moira, que pegou um dos baldes e se apressou até a cabana. — Ela será mesmo grande?

— Sim. É bom estarmos preparadas, embora eu não creia que seja tão grande.

— Então não é por isso que está preocupada. — Pleasance deixou os baldes na mesa da cozinha.

— Não. — Moira sentou-se. — Há uma coisa muito ruim lá fora.

Pleasance fitou aporta com olhar nervoso.

— Do que se trata?

— Não sei, apenas sinto. É muito ruim e maligno, como o próprio diabo. Acho que logo teremos problemas. Sabe atirar com o mosquete e com a pistola?

— Sim, tenho mão boa.

— Verdade? Então por que deixa Tearlach carregar as armas para você?

— Ele nunca me dá oportunidade. — As duas trocaram olhares entendidos a respeito dos homens. — Tem certeza de seu pressentimento?

— Tenho, embora eu não quisesse que ele fosse correto. — Moira bateu com o punho na mesa. — E pôr que eu não fico sabendo quem, quando e onde?

O medo no olhar de Moira era evidente. Pleasance sentou-se perto dela e abraçou os ombros estreitos. Moira considera­va seu dom mais como uma praga do que uma bênção. Devia ser terrível saber que algo estava errado e não saber do que se tratava.

— Vamos trancar as portas e as venezianas. Talvez seu pressentimento desapareça quando você se sentir mais segura.

— Pleasance ficou em pé e levantou Moira.

— Essa porcaria de instinto só serve para nos apavorar.

— Mas nos deixa precavidas, e estaremos prontas quando o perigo vier. Devemos ser agradecidas por isso.

Pleasance fechou as venezianas e Moira passou a tranca na porta da frente. Depois foram para os fundos.

— Por que não consigo ver mais? Pareço um bebê que não sabe explicar o que sente.

— Deve ser frustrante. É como ficar sabendo um pedacinho de um segredo torturante.

— Mais ou menos, mas às vezes não posso impedir de me questionar se sou mesmo uma bruxa.

— Não, você não é bruxa, Moira.

— Não acredita nelas, não é?

— Na verdade, não sei. Mas seus sentimentos e avisos me deixam muito nervosa.

— Porque eles querem dizer que sou uma feiticeira. — Moira afastou as lágrimas.

— Não, porque eu não os entendo. Muitas pessoas pen­sam em bruxas como seres malvados, e você não é nada disso. Uma bruxa apoia o trabalho do demônio, e você jamais faria isso, — Pleasance entregou a Moira o lenço de renda.

— Não? Mas e se esses sentimentos e visões forem do diabo? — Moira enxugou as lágrimas com o lenço e começou a torcê-lo.

— Se fossem obra do demônio, você causaria problemas aos outros, e não os ajudaria.

— Isso parece razoável, mas e se o diabo pretende me enganar quanto aos meus pressentimentos e a você sobre quem eu sou?

Moira era jovem e impressionável. Era preciso escolher as palavras com cuidado.

— Vamos trancar as venezianas superiores. — Sem saber o que dizer, Pleasance foi até a escada.

— Não respondeu à minha pergunta. E se o demônio estiver pregando peças em nós?

— Dizem que o diabo costuma fazer isso, mas não para ajudar. Se tudo o que nossos sacerdotes dizem for verdade, então eles devem concordar comigo.

— Pleasance, pessoas honradas disseram que sou uma bruxa.

— Se disseram isso de você, não são honradas. São sim­plesmente pessoas que freqüentam a igreja.

— Tem uma diferença, não é?

— Muita. Se seu irmão herege levasse você à igreja com maior freqüência, você perceberia essa verdade por si mes­ma. As pessoas podem ser muito hipócritas, recitar de cor os versículos da Bíblia, e não aplicar seus ensinamentos na vida. Quanto a chamá-la de bruxa, elas deveriam se envergo­nhar. Não dê atenção a essa gente.

— É isso que Tearlach sempre diz.

— Pelo menos uma vez ele acertou, embora seja difí­cil admitir isso. — As duas sorriram, e no alto da escada, Pleasance apontou para o quarto de Moira. — Feche sua janela que eu farei o mesmo com a do quarto de Tearlach.

Pleasance espiou pela janela e nada viu. Tremendo de frio, fechou as venezianas e pôs a tranca de madeira no lugar. Saiu do quarto e ficou satisfeita ao encontrar Moira mais corada.

— Venha me ajudar a despejar a água na tina.

Pleasance desceu, seguida por Moira. Enquanto trabalha­vam, ela percebeu que Moira ainda estava confusa. Parte da culpa era de Tearlach, que não se preocupara muito em assegu­rar à irmã que ela não era uma bruxa. Teria de lhe passar uma reprimenda.

As duas esvaziaram os baldes na tina e começaram a pre­parar o jantar. Uma hora mais tarde, Moira estava bem mais inquieta e preocupada. Pleasance limpou a mesa e Moira ficou parada junto à janela da frente após abrir a veneziana e olhar para fora. Pleasance ficou nervosa ao vê-la imóvel, observan­do a neve que caía.

Pendurou o pano de lavar louça em um gancho para secar, secou as mãos, aproximou-se de Moira e a segurou pelos ombros.

— É uma bela imagem ver a neve cair vagarosamente.

— Logo teremos uma visão ameaçadora, mas não é a neve que devemos temer.

O tom sinistro de Moira fez Pleasance estremecer. Embora não lhe agradasse ficar na cabana na ausência de Tearlach, até aquele momento não sentira medo. Por que ele resolvera caçar?

— Uma pena que sua intuição não revele do que se trata. Bem, ao menos estamos seguras trancadas aqui.

— E assim deveremos ficar. — Moira cruzou os braços e franziu a testa. — Temos de manter as trancas nas portas, independentemente do que possa acontecer. Acho que devemos ficar com uma pistola à mão e manter turnos de vigilância. Vou fechar a janela.

— Será necessário tudo isso? Parece até que estamos em uma tumba.

— É preferível parecer do que estar de verdade. — Moira fechou a veneziana. — Se tivermos sorte, a tempestade levará embora a maldade que estou pressentindo.

Pleasance ajudou Moira a acender as lamparinas e refle­tiu que não poderia ignorar as predições de Moira, freqüen­temente certas. Mas as duas poderiam resistir ao mal que as aguardava?

Recriminou-se por não ter pedido lições de autodefesa a Tearlach, pois não considerava suficiente seu conhecimento no uso de armas.

— Creio ser muito tarde para correr até a cabana de Jake ou ir até a casa dos Peterson — comentou. — Com um ou com o outro, não teríamos de enfrentar sozinhas a ameaça.

— Que já está lá fora — Moira afirmou e sentou-se à mesa.

— Tem certeza? — Pleasance pegou o rifle que estava sobre a lareira e sentou-se ao lado de Moira.

— Sim, se tentássemos sair agora, ele nos pegaria. — Moira, com a mão trêmula, serviu-se de um copo de sidra.

— Você disse "ele"?

— Não sei, disse?

— Sabe que se trata de um homem?

Sim, é. É um demônio de duas pernas. É um homem.

— Tem certeza de que não está permitindo seu medo interferir em sua percepção? Talvez seja apenas Tearlach voltando para casa.

— Meu irmão não é mau, e eu estou sentindo a proximidade do mal.

— Ou Tearlach pode estar ferido... — Pleasance tentava qualquer explicação.

— Não.

Pleasance murmurou uma imprecação e um pedido de desculpas.

— Eu gostaria de lhe dizer o que você deseja ouvir — Moira murmurou.

— A verdade é sempre melhor.

— Agora vejo com clareza. Trata-se de um homem.

— E você o conhece, não é?

— Sim, é o homem que desonrou minha mãe.

— Lucien?

— Sim, o cão raivoso.

— Quando ele chegará?

— Ele já está aqui.

— Olá? Quem está aí dentro da cabana? — uma voz com sotaque francês chamou.

Pleasance continuou a fitar Moira, com as palavras da menina girando em sua mente. Por algum motivo, deixara de perseguir Tearlach e viera atrás de Moira.

E um terror ainda maior se apoderou do coração de Pleasance. Talvez Lucien houvesse derrotado Tearlach e por isso procurava a filha.

— Pode ser apenas um caçador à procura de abrigo até a tempestade passar. — Pleasance não tirava os olhos da porta que o homem continuava esmurrando.

— Não, é ele, o homem que violentou minha mãe, que tirou sua vontade de viver e que está tentando matar meu irmão.

— Então você sabe de tudo? — Pleasance observou a expressão contrafeita de Moira, — Tearlach esperava manter isso em segredo.

— Tearlach não pode me proteger da verdade, só por ela ser terrível.

— Vocês vão deixar um pobre homem congelar diante de sua porta? — Lucien gritou.

— Ele não tem como entrar — Pleasance disse ao ver o rosto pálido de Moira.

— Espero que esteja certa.

— Vamos, belezinhas, sei que estão aí! — Lucien ber­rou em tom cantarolado. — Vão deixar um homem sob esta tempestade terrível?

— Sim, quando ele é um miserável como o senhor! — Moira gritou.

Pleasance tentou tapar a boca de Moira, mas já era tarde. Ficou em pé e se apressou em pegar mais pólvora e projé­teis de dentro da caixa próxima à lareira. Voltou até a mesa, relutante, pensando no homem em quem pretendia atirar.

— Não fique tão horrorizada, Pleasance. — Moira se levantou, pegou a pistola e munição extra da despensa ao lado da porta dos fundos.

— Eu nunca atirei em um homem antes, e esse é seu pai.

— Ele é o estuprador e assassino de minha mãe, e o per­seguidor de meu irmão. Não tema. Não a culparei se tiver de atirar nele.

Pleasance ergueu o rifle, foi até a janela da frente e a entreabriu para espiar o homem que continuava batendo na porta. Não parecia assustador, apenas cabeludo e sujo. A fina cama­da de neve que lhe cobria a cabeça e os ombros acentuava o aspecto imundo. Ela se admirou de ele sobreviver como caçador, pois os animais certamente sentiriam seu fedor à distância. Conseguiria ela lutar contra o perigo?

Lucien percebeu-se observado e se virou. O rosto que viu da janela não era de sua filha, então devia ser da amante de Tearlach e ele se percebeu imediatamente atraído por ela. Ao tentar segurá-la, ela recuou depressa e fechou a persiana com uma batida. Ele praguejou.

— Você não conseguirá manter afastado o velho Lucien — murmurou.

— O que ele está fazendo? — Moira quis saber.

— Olhando para mim. A primeira impressão não foi das piores, mas quando vi o olhar bestial dele, mudei de opinião. Ele não desistirá e, considerei a hipótese de atirar naquela hora.

— E por que não atirou?

— Eu lhe disse, nunca atirei em um homem, e eu teria de fazê-lo a sangue-frio.

Moira tirou um batoque de um nó da madeira e espiou.

— Acha que ele pode ter ferido Tearlach?

— Temo por isso, mas não podemos saber. O que ele está fazendo agora?

— Olhando a janela. Ele deve saber que o espiamos.

— O que não é promissor. Ele deve estar planejando algo.

— Por exemplo?

— Ensurdecer-nos para que não o escutemos se aproximar — Pleasance murmurou ao ouvi-lo bater na porta novamente.

— Pare com isso ou atirarei no senhor! — ela gritou.

— E por que faria isso? — Lucien retrucou. — Não tem queixa contra mim.

— O senhor matou minha mãe — Moira o acusou.

— Ah, minha filha, quem lhe contou essas mentiras? Sou seu pai, tire-me deste frio.

— O senhor pode congelar aí mesmo, pois nunca entrará nesta cabana! — Pleasance voltou-se para Moira. — Moira, se tudo está fechado, como poderemos atirar nele?

— Há fendas para o mosquete. — Ela apontou as peque­nas aberturas nas venezianas frontais, por onde uma pessoa podia distinguir o alvo.

— Claro, eu deveria ter suposto.

— Já ouviu falar delas? Onde você mora é tão civilizado que certas coisas não passam de lembranças?

— Estamos muito isoladas aqui, e eu gostaria de saber o motivo da vinda de Lucien para cá. — Pleasance largou o rifle e avivou o fogo.

— Talvez a tempestade fique tão forte que o obrigue a fugir.

— Nesse caso ganharíamos tempo, mas ele pode voltar quando a nevasca melhorar.

— Ele veio para nos matar, não é?

— Não podemos ter certeza, embora ele não tenha vindo em missão de boa vontade. Seu instinto lhe diz alguma coisa?

— Nada. Por que esse fogo tão alto? Vamos assar aqui dentro.

— Quero me assegurar de que ele não entrará pela chaminé. — Pleasance ficou tensa e agarrou o rifle.

— O que houve? — Moira perguntou.

— Ele parou de bater na porta. Rápido, precisamos encontrá-lo.

Elas olharam por todos os nós da madeira, e Pleasance rezou para que ele tivesse desistido e ido embora. Nisso ela viu o pobre cavalo ainda carregado e amarrado no portão da cerca. Ela espiou pelo buraco da janela dos fundos. Lucien estava de costas, próximo ao defumadouro, e Pleasance infor­mou Moira de sua descoberta.

— O que ele está fazendo lá? — Moira correu para espiar também. — Ele está se consolando com nossas carnes.

— Desagradável, porém menos perigoso. De alguma for­ma teremos de manter a dianteira e tentar adivinhar o que ele pretende fazer.

— Por quanto tempo?

— Não imagino, mas teremos de rezar para que a neve o faça se afastar. — Pleasance resmungou quando Lucien come­çou a bater na porta dos fundos. — Espero que ele quebre a mão. — Ela largou o rifle e tirou a chaleira do fogo.

— O que pretende fazer? — Moira perguntou quando Pleasance derramou água fervente em uma pesada jarra de estanho.

— Usar uma antiga técnica de guerra. A janela de seu quarto fica em cima da porta dos fundos, não é?

— Sim. — Moira arregalou os olhos. — Vai jogar isso nele?

— Vou tentar. Fique aqui com a pistola na mão.

Pleasance foi até o quarto de Moira e escutou Lucien baten­do sem parar, o que a deixava com dor de cabeça. Deixou a jarra no chão e abriu a veneziana, felizmente sem chamar a atenção de Lucien.

Com cuidado e sem fazer barulho, pegou a jarra, esperando que a água não tivesse esfriado, inclinou-se para fora e mirou. No mesmo instante, Lucien Olhou para cima e Pleasance jogou a água, mas ele teve tempo de se afastar um pouco. Os berros eram sinal de que houvera queimaduras, mas não no grau que ela pretendera.

— Errei o alvo — ela disse para Moira após fechar a vene­ziana e descer correndo.

— Não de todo. — Moira o observava. — Ele está esfregando neve no rosto, no pescoço e nas mãos.

— Então foi melhor do que eu pensei. — Ela pegou na despensa um pequeno balde com sebo e passou parte do conteúdo para uma panela.

— E o que vai fazer agora?

— Derreter o sebo, e se Lucien cometer a tolice de ir para debaixo de outra janela, jogarei isso nele. Sebo derretido cola na pele e não sai facilmente com neve.

— Agora você irritou Lucien! — ele berrou e voltou a bater na porta. — Vai se arrepender muito quando eu a pegar.

Moira se assustou e fechou o nó da madeira quando ele socou a janela. Pleasance abraçou Moira pelos ombros e as duas ficaram em silêncio enquanto Lucien ia de janela em janela, de porta em porta, socando todas. Ela imaginou como ele agüentava o ritmo.

— Vocês têm a última chance de permanecerem vivas, belezinhas. Entreguem-se a Lucien, e ele as perdoará por vocês o terem machucado.

— Vá para o inferno! — Pleasance gritou, mas Lucien recomeçou as batidas. — Será que ele acha que pode derru­bar as paredes com os punhos? — ela murmurou, esfregando as têmporas.

— Não, ele quer nos enlouquecer para que lhe façamos companhia.

Pleasance deixou a panela com sebo perto do fogo para derreter aos poucos.

— Ainda acho que deveríamos atirar nele. Seria conside­rado legítima defesa, pois ele pretende nos matar. Mas fico apavorada de pensar em uma coisa dessas. Por outro lado, acho que não vai dar certo, porque ele deve estar atento a portas e janelas, No momento em que abrirmos o buraco para atirar, ele sairá correndo. Eu gostaria de prever o que ele fará em seguida, mas não é fácil entrar na mente de um maluco.

— Poderíamos atirar nele ao mesmo tempo.

— Eu preferia que você não tivesse de agir contra ele, Moira.

— Eu já lhe disse que não penso nele como meu pai.

— Acredito, mas você tem só treze anos e não deve sujar as mãos com o sangue de um homem.

Pleasance se levantou, ajeitou as saias, pegou o, rifle e foi até a janela da frente, enquanto Lucien batia na porta de trás. Quando abriu o orifício do mosquete, teve uma decepção.

— Moira, seu irmão fechou a abertura com vidro!

— Ah, ele fez isso antes de ir para Worcester... Você terá de quebrar.

— Mas Lucien vai ouvir o barulho.

— Talvez não, com essas batidas todas.

Pleasance duvidava que tivessem tanta sorte. Ela bateu o cabo do rifle no vidro, que apenas rachou, obrigando-a a bater de novo até abrir um buraco que desse passagem para o cano da arma. Ela teve a impressão de escutar um barulho ensurdecedor, mas não houve mudança nos golpes de Lucien. Aprontou o rifle e esperou ele aparecer em seu campo de visão aproveitando o tempo para se convencer de que agia corretamente.

No momento em que ele apareceu, Pleasance atirou. Lucien caiu, mas ela não teve certeza se o atingira. Recolheu o rifle e espiou, mas não o viu.

De repente ele apareceu diante dela com o rosto sujo de sangue. Pleasance deu um grito e tentou recuar, mas Lucien enfiou a mão pelo buraco e a agarrou pelo pescoço. Pleasance arranhou-lhe a mão, mas ele não a soltou. Moira correu para ajudar, mas também não conseguiu afrouxar o aperto. Lucien era insensível à dor que Pleasance e Moira lhe infligiam arra­nhando, batendo e mordendo. As roupas grossas pareciam protegê-lo. Quando ela ou Moira tentavam alcançá-lo, ele recuava e batia a cabeça de Pleasance contra a vidraça.

— Não consigo tirar a mão dele! — Moira gritou.

— Pegue a pistola. — A voz de Pleasance saiu estrangulada.

Moira correu e trouxe a pistola de cima da mesa, mas não conseguiu usá-la. Toda vez que tentava apontar, Lucien usava Pleasance como escudo.

Pleasance estava a ponto de desmaiar, e amoleceu na mão de Lucien. Antes que ele a sufocasse, Moira se aproximou e ele soltou Pleasance, abaixando-se quando Moira atirou. Ela recuou, mas Lucien se endireitou, enfiou o braço para den­tro e a segurou pelo pescoço. Pleasance segurou a arma e se levantou. Sem tempo para recarregar, ela usou o cabo do rifle como um cacete.

Bateu repetidas vezes na cabeça de Lucien, arrancando dele uivos e pragas. Ele finalmente soltou Moira, que caiu no chão, e Pleasance teve a oportunidade de acertá-lo mais uma vez no rosto, com toda a força. Ele deu um grito de dor, cobriu o rosto com as mãos e cambaleou para trás. Pleasance fechou o buraco da veneziana, trancou-o e sentou-se no chão ao lado de Moira, que arfava.

— Está morta, entendeu? — Lucien gritou. — Morta!

— Morta de enjôo por sua causa! — Pleasance esfregou o pescoço machucado e olhou para Moira. — Pelo jeito, sim­plesmente atirar nele não adiantará.

A risada de Moira tinha um tom histérico.

— Ele quase a matou, Pleasance.

— Quase. Como está seu pescoço?

— Machucado, mas não tanto como o seu, a menos que esteja sussurrando de propósito.

— Claro que não. — Pleasance tossiu e esfregou os olhos. — Agora teremos de elaborar um novo plano. Está ouvindo alguma coisa?

— Não, ele está em silêncio. — Moira tossiu e estremeceu, e massageou o pescoço.

— Ele parou de berrar e provavelmente está preparando um ataque.

Pleasance ficou em pé, pegou o mosquete e entregou a pis­tola para Moira.

— Recarregue. — Ela tossiu de novo, com os olhos lacrimejantes, e entendeu. — É a fumaça.

Pleasance olhou para a lareira e pouco enxergou por cau­sa da fumarada que escoava para dentro da casa, ao mesmo tempo que escutava alguém andar no telhado.

— Santo Deus, ele está em cima da cabana e tapou a chaminé! Ajude-me a apagar o fogo! — Pleasance gritou e correu para a lareira.

Tossindo e engasgando, as duas carregaram baldes de água até abafar as chamas. O esforço resultou em mais fumaça, e quando terminaram, as duas tiveram de lavar o rosto com água fria. Pleasance fez uma compressa nos olhos com um pano molhado e maldisse o tempo que sua visão demorou para voltar ao normal. Lucien continuava a andar no telhado.

— Eu já posso ver, Pleasance, e tornarei a carregar ás armas — Moira afirmou.

Por que meus olhos não param de doer? Posso ouvir o canalha andando lá em cima.

— Eu também. Talvez eu devesse subir.

— Não, Moira! Você não pode enfrentá-lo sozinho. — Ela largou o pano, enxugou os olhos e olhou em volta. — A visão está um pouco nublada, mas pelo menos posso ver para onde vou. — Ela foi até a mesa e segurou o rifle que Moira acabara de carregar. — Vamos subir juntas e investigar o que o louco está fazendo. Pronta?

— Sim. — Moira pegou a pistola e seguiu Pleasance escada acima. — Não estou gostando dos sons que ele está fazendo.

— Nem eu. Parece que ele está tentando entrar. A questão é... como e onde?

Pleasance entrou no quarto de Tearlach, e Moira a seguiu. Pararam um pouco, escutaram e foram para o quarto de Moira. Lucien tentava quebrar o telhado por ali, e Pleasance localizou o ponto exato. Uma pequena pilha de entulho já cobria o chão, mas não havia sinal de quebra.

— Pegue pólvora e balas, Moira.

— O que vai fazer?

— Tentar atirar nele. Depressa!

Moira desceu correndo, e Pleasance procurou localizar o ponto por onde Lucien entraria. As batidas fortes ecoavam no quarto, impedindo-a de escutar outra coisa. Lucien parou de andar e Pleasance teria de supor o local exato em relação ao buraco que ele tentava fazer.

Moira voltou com a pólvora e as balas.

— Vamos começar a atirar?

— Sim, uma por vez. — Pleasance procurou decidir quem daria o primeiro tiro. — Eu atirarei e, quando eu tiver carrega­do a arma de novo, você atira.

— Por que esperar?

— Ele pode entrar aqui se não o impedirmos de terminar o buraco, e não quero ser apanhada com duas armas vazias. — Ela apontou para a provável localização de Lucien.

— A bala do mosquete atravessará a madeira, não é?

— Creio que sim. Pleasance apontou e apertou o gatilho. Houve um rugido ensurdecedor e imediatamente as batidas cessaram.

— Merde! — Lucien gritou. — Vai pagar por isso, rameira branquela!

— Suas ameaças estão ficando cansativas! — Pleasance grilou e se apressou a recarregar o rifle. — Aconselho-o a sair daqui enquanto é tempo.

— Non. Você não mandará Lucien embora e se arrependerá de não ter sido mais acolhedora.

As batidas recomeçaram.

— Não acredito que ele seja tão tolo a ponto de pensar que abriremos a porta para ele. O mosquete está pronto. Pode ati­rar, Moira. — Ao vê-la hesitar, lembrou-se de que a menina tinha apenas treze anos. — Quer que eu faça isso? Você pode carregar as armas e eu atiro.

— Não, eu só estava tentando decidir onde atirar.

— Tem alguma intuição sobre onde ele possa estar?

— Nenhuma. — Moira atirou e houve uma pequena hesitação nas batidas. — Errei.

— Acha que eu o acertei? — Pleasance pensou onde atiraria enquanto Moira recarregava a pistola. — Ele parou por um momento e disse uma porção de palavrões.

— Ele podia estar apenas admirado.

— Eu até prefiro não tê-lo atingido.

— Por quê?

— Na primeira vez que atirei, esfolei a cabeça dele, pois vi sangue em seu rosto. Tenho certeza de que quebrei seu nariz quando o atingi com a coronha e o feri de novo quando atirei no teto. Isso é preocupante. Ele é um homem muito forte e determinado a acabar conosco.

— Ele está no telhado, e poderíamos aproveitar a chance para fugir. — Moira carregou a pistola. — Correríamos até o estábulo, montaríamos e sairíamos a galope.

— Parece tentador. — Pleasance olhou para cima. — Mas não dará certo. Ele descerá do telhado e nos alcançará antes de podermos selar os cavalos. Além disso, está ficando escu­ro e a tempestade piora. E, do lado de fora, a vantagem será de Lucien.

Pleasance mirou o mosquete e atirou. Admirou-se ao ouvir Lucien gritar em francês e em seguida deslizar do telhado. Ela prendeu a respiração, esperando o som de um baque que não aconteceu.

Entregou o rifle para Moira carregar e pegou a pistola. Abriu a janela e espiou para fora. Nada no chão, exceto a esca­da de mão que ele usara para subir. Um ruído leve chamou sua atenção, e ela olhou para cima a tempo de ver os pés dele sumir sobre o beiral. Resmungou, frustrada, e fechou a janela.

— Ele ainda está vivo, não é? — Moira perguntou.

A resposta foram as pancadas que recomeçaram no telha­do. Pleasance mirou e atirou, e não evitou uma imprecação quando o barulho continuou igual. Entregou a pistola a Moira e pegou o rifle, acreditando que a sorte estava do lado de Lucien. Atirou novamente e, diante da continuidade das bati­das, teve um estranho senso de resignação.

— Parece que ele nos enxerga — ela murmurou e entregou o mosquete para Moira que, trêmula, não terminara de carre­gar a pistola. — Moira, sei que isso é terrível, mas temos de continuar e esquecer o medo.

— Estou tentando...

— Entendo, Moira, mas é preciso maior empenho na tentativa.

Nesse momento, Pleasance sentiu algo e frio e úmido no rosto. Olhou para cima e não se surpreendeu ao ver que Lucien conseguira furar o telhado. Horrorizada, viu o buraco se tornar maior e pedaços de madeira cair no chão. Mas quan­do avistou Lucien, seu medo regrediu. Virou-se para Moira, que olhava para o teto com a pistola vazia na mão.

— Moira! Ele está quase dentro. Precisamos da pistola.

Não daria tempo para carregar a pistola nem o rifle, que ela segurou como um porrete à espera de Lucien.

Ela nem chegou a se posicionar quando ele irrompeu pelo buraco e se jogou contra ela. Pleasance o atingiu com o mosquete, mas não o impediu de acertar seu peito com os pés. Ela foi ao chão, e ele se jogou por cima. Enrolada e com dor, enquanto lutavam no chão, ela espiou Moira, que tentava mirar Lucien. Pleasance tentou mantê-lo em um mesmo lugar, mas foi impossível. Mesmo quando parou de lutar, viu-se entre ele e Moira.

O homem era muito forte, e logo Pleasance perdeu a bata­lha. Ele a puxou e a fez ficar em pé, pressionada diante dele, segurando-lhe os pulsos para trás e passando um braço em seu pescoço com tanta força, que ela encontrou dificuldade para respirar. Qualquer movimento aumentava sua dor. Moira se levantou e, apesar da pistola em riste, estava apavorada.

— Atire nele, Moira —, Pleasance ordenou num fio de voz, que não foi suficiente para tirar Moira do estado de choque.

— Minha pequena bastarda não atirará em mim — dis­se Lucien. — Portanto, minha filha, que tal um beijo para o papai? — Ele projetou os lábios e estalou um beijo. — Melhor não. Você não deve ser muito boa, minha filha. É branquinha demais, não é?

— Solte-a! — Moira exigiu em voz alta e trêmula. — Senão atiro no senhor.

— A única maneira de você fazer isso é abrindo primeiro um buraco nesta rameira.

— Posso atirar na sua cara terrível.

Lucien riu, mas ficou sério quando Moira puxou o gatilho.

 

O tiro errou o alvo. Lucien gritou e empurrou Pleasance para o lado. Ela bateu na parede e, zonza, dobrou-se no chão. Mas os gritos de Moira lhe deram forças para se erguer e tentar ajudar a menina. Lucien tirou a pistola da mão da filha e a golpeou na cabeça com a arma. Pleasance sufocou um grito quando Moira caiu com um fio de sangue escorrendo pela face e pegou o rifle, impedindo o avanço de Lucien.

— Tearlach o matará por ter ferido Moira — ela o advertiu. — Ele o perseguirá como se faz com um cão raivoso.

— Tearlach? — Lucien riu. — Isso me surpreenderia bastante. Ele não poderá vir atrás de mim, a não ser para assombrar.

Pleasance sentiu-se mal, sem querer acreditar na impli­cação daquelas palavras. No entanto aquilo fazia sentido e explicava a vinda de Lucien e também o motivo de Tearlach não ter voltado da caçada.

— Por que o espanto em seu rosto bonito? Não entendeu o que eu quis dizer?

— Entendi que o senhor está mentindo para nos fazer pensar que venceu Tearlach.

O ódio na voz de Pleasance acabou por enfurecer Lucien.

— Pois eu o deixei esvaindo-se em sangue na floresta!

— Não! — Pleasance gritou e avançou com o mosquete na mão, mas Lucien se desviou facilmente. — Covarde amaldiçoado e mentiroso!

— Será que ainda não entendeu, sua tonta? — Ele falava devagar para não deixar dúvidas. — Eu venci Tearlach. Ele nunca mais me perseguirá nem virá para ajudá-las. Ele está morto.

— O senhor não disse que o matou, mas que o deixou sangrando na floresta. Tearlach ainda pode estar vivo. — Pleasance precisava acreditar nisso. — Se o senhor não o viu dar o último suspiro, não pode ter certeza de que ele morreu.

— Sabe que isso não é verdade, minha linda rameira. Oui, deixei O’Duine tão fraco que ele não poderia ter evitado um golpe de misericórdia caso eu resolvesse aliviar seu sofrimen­to. Se ele encontrasse forças para sobreviver, teria de vir até aqui rastejando, porque afugentei o cavalo dele para a floresta. Ele não tem água, nem comida, nem meios de voltar. Pode considerá-lo um homem morto, mesmo que ele ainda não tenha dado o último suspiro. E ainda o deixei com a certeza de que eu viria à sua procura, minha bela.

Pleasance precisava ignorar o horror daquelas palavras. Se não podia salvar Tearlach, pelo menos teria de tentar salvar Moira e a si mesma.

— Como Tearlach morrerá atormentado pelo pensamento do que acontecerá conosco, o senhor não precisa mais de nós. Não há necessidade de cumprir a promessa. Deixe-nos ir.

— Non. Faço questão de cumprir a palavra. Você me irri­tou, me feriu, e eu a farei sofrer.

Lucien se atirou sobre Pleasance. Ela girou o mosquete com força e o atingiu na lateral da cabeça. Ele gritou e cam­baleou para trás. Pleasance correu até Moira, que lutava para se levantar. Agarrou o braço da menina e a empurrou para fora do quarto, parando apenas para pegar a pistola. Do lado de fora, fechou a porta e entregou as armas para Moira.

— Desça e carregue-as. — Notou a palidez de Moira. — Acha que pode fazer isso?

— Sim, ele não me atingiu com muita força.

— Então vá depressa, não temos muito tempo.

Moira desceu correndo e, quase em seguida, Pleasance o escutou praguejar, e o berro de raiva ecoou na cabana.

Pleasance se encostou na porta, mas sabia que seu peso não seria empecilho para ele. Teria de agüentar até Moira ter tempo de carregar as armas.

Lucien bateu na porta e Pleasance se surpreendeu de supor­tar até a quarta batida de Lucien, que já recuperara a energia. Ela esperou até ouvi-lo recuar e correr para a porta, e então desceu os degraus de dois em dois. Ouviu-o atingir a porta e praguejar ao sair do quarto. Ela olhou por sobre o ombro. Lucien a perseguia.

Junto à mesa da cozinha, Moira tentava colocar a bala na pistola.

Pleasance gritou de surpresa e dor quando ele se jogou por cima dela e os dois caíram no chão, ela debaixo dele.

Ela se contorcia na tentativa de escapar. O cheiro de Lucien a fazia tossir, e ela cerrou os dentes na luta para se desvencilhar.

Ao mesmo tempo, rezava para que Lucien tivesse mentido e que Tearlach estivesse a caminho da cabana. Ela e Moira nunca haviam precisado tanto dele.

 

Tearlach acordou e fez um esforço para não voltar à inconsciência. Corria o risco de ficar enregelado e mergulhar em um sono fatal provocado pelo frio e pela nevasca. Enfraquecido pela perda de sangue, não suportaria as adversidades do clima por muito tempo. Não sabia onde se encontrava. A tontura e a vista enevoada atrapalhavam seu senso de direção, e depende­ria do cavalo para voltar. Pelo menos o frio diminuíra o sangramento, o que o ajudava a reunir as poucas forças que lhe restavam.

— O que poderei fazer por elas? — ele resmungou enquanto tentava segurar-se no pescoço do cavalo, que sem o comando do cavaleiro, andava a passo lento. — Desse jei­to não poderei lutar contra Lucien. Ele dará risada na minha cara antes de me matar.

Murmurou uma imprecação. Seus olhos começaram a arder, e lágrimas deslizaram por seu rosto, cristalizando-se sobre a barba por fazer. Ergueu a mão para limpar os olhos e quase caiu do cavalo. Maldisse a situação e se agarrou ao animal com mais energia. Tentou fechar os olhos para evitar a irritação, mas teve sono. Lutou contra a madorra e procurou se impreg­nar com o calor da montaria.

Ainda com medo de desmaiar, sentiu um odor penetran­te e fácil de reconhecer, e a esperança deu-lhe um pouco de força, mas ele nada viu ao redor. O cheiro se tornava mais forte.

— Fumaça de chaminé, meu rapaz — ele disse ao cavalo. — Há uma cabana por perto e rezemos para que seja a minha.

Tearlach se endireitou na expectativa de um confronto com seu maior inimigo, mas a dor o fez cair para a frente. Agarrou-se no animal e lutou para não perder os sentidos. Arfante, trêmulo e suando frio, riu com amargura. A única maneira de derrotar Lucien seria cair por cima dele.

— Seu idiota — ele se repreendeu. — Não deixe sua mente derrotá-lo, não perca as forças.

Tearlach duvidou que conseguisse enxergar uma cabana mesmo que chegasse até a porta da frente, mas dali a pouco sua avaliação sombria provou estar errada. As árvores cobertas de neve começaram a rarear, e ele reconheceu o formato de uma cabana. Piscou para clarear a vista e entendeu que seu cavalo o trouxera para casa.

E o animal que fora deixado do lado de fora na neve tam­bém o fez supor que fosse tarde demais. Lucien já chegara.

Tearlach desmontou quase deslizando, mas não conseguiu ficar em pé. Deitado de costas na neve, sem força nas per­nas, refletiu se estaria destinado a morrer na porta de sua casa, a poucos metros das pessoas que precisavam tanto dele.

 

Pleasance sentiu o vestido se rasgar e tentou morder o bra­ço de Lucien, mas ele a esbofeteou com força e as orelhas dela latejaram.

— Tearlach o matará — ela ameaçou quando Lucien final­mente a dominou.

Ele riu.

— Não ouviu o que eu disse? Tearlach está morto e já deve ter sido comido pelos abutres. — Lucien encostou a ponta da faca no corpete de Pleasance. — Ele não a ajudará nem se vingará de mim pelo que eu vou fazer.

— Então o senhor terá de prestar contas com deus.

— Deus terá dificuldade em escolher entre os crimes quê pratiquei, minha bela. E quando a encontrar, ele pensará nos que você cometeu, parecidos com os praticados no estábulo junto com seu amante escocês... non?

— Era o senhor que estava espiando naquele dia — Pleasance sussurrou, enojada.

— Oui, minha pequena fogosa. — Lucien começou a cor­tar o tecido, centímetro por centímetro. — Observei vocês se vestirem e pude ver suas belas pernas, oui? Logo eu as verei mais de perto.

— Canalha! — Pleasance tentou empurrá-lo, mas só conse­guiu um corte na pele.

— Essa é a maneira de tratar um homem que está para se tornar seu amante? — Lucien estalou a língua e balançou a cabeça.

— O senhor jamais será meu amante — Pleasance falou com frieza, apesar de seus temores. — O senhor está rouban­do o que deseja e não é melhor do que o mais desprezível dos estupradores.

— Você me dará o mesmo que deu ao escocês.

— Jamais.

— Oui, dará, sim. Você é muito ardente e arderá por mim.

— Quer que eu alimente seus desejos antes de me matar? Deve estar maluco. — Ela não pôde conter um grito quando ele a esbofeteou. — Bater em mim não mudará minha opinião.

— Mulher idiota! Deveria pensar no próprio sofrimento e não tentar me enraivecer.

— Poderá haver sofrimento maior do que o senhor me garantir que matou Tearlach? — Pleasance falou em voz baixa, receando o pior.

— Saia de cima dela! — Moira interrompeu a discussão, apontando a pistola para Lucien com mãos firmes, apesar da palidez e do tremor interno.

— Ora, minha bela bastarda, você não pode matar seu próprio pai.

— Não o considero meu pai, e sim um criminoso. O senhor matou minha mãe e meu irmão.

Com uma velocidade surpreendente, Lucien deu um pulo e correu em sua direção. Moira atirou e o feriu no ombro, mas ele nem hesitou. Agarrou Moira pelo pulso, arrancou a pistola de sua mão e atirou a arma no chão.

Pleasance não perdeu tempo. Levantou-se e, com o coração acelerado, correu até a cozinha. Virou-se com o mosquete na mão e apontou para Lucien. Ele bateu na filha até deixá-la inconsciente e voltou-se para Pleasance.

Deu um passo adiante, e Pleasance puxou o gatilho. O rifle explodiu e ela cambaleou para trás com o coice da arma. Mas equilibrou-se, e o silêncio na cabana foi agourento.

Pleasance não ousava olhar o resultado terrível de sua atitude. Uma espiadela mostrou Lucien estatelado no chão, imóvel e em silêncio. Cobriu os olhos com a mão trêmula e se deixou cair em uma cadeira próxima à mesa.

O estrondo de um tiro de mosquete tirou Tearlach do estupor em que se encontrava. Apoiado no cavalo, forçou o próprio corpo frio, rígido e dolorido a se ajoelhar, e deu um grito. Embora soubesse que de nada adiantaria, cambaleou até a cabana. Precisava saber o que acontecera.

— Pleasance. — Moira se aproximou. — O perigo passou, estamos seguras.

Pleasance abraçou Moira.

— Eu o matei? — sussurrou.

— Sim, o tiro foi direto no coração.

Pleasance abriu os olhos e viu Moira cutucando o cadáver com o pé.

— Não toque nele.

— Eu só queria ter certeza de que ele estava morto. — Moira passou a ponta do dedo no lábio inferior partido e mexeu o queixo com cuidado. — Ele não vai me bater no rosto outra vez.

Pleasance segurou o queixo de Moira e examinou a face machucada. Felizmente seriam apenas hematomas. O olhar dela já não era temeroso, e a cor voltava a seu rosto. Pleasance respirou fundo antes de olhar para Lucien. Deitado de costas, o cadáver mirava o teto sem ver. Havia um buraco rodeado de queimaduras de pólvora na sua roupa, pois o tiro fora de perto. Um filete de sangue escorria debaixo dele, o que a espantou, pois ela esperava uma hemorragia. Mesmo sabendo que o matara, sua mente não aceitava o fato.

Enquanto tentava assimilar o que acabara de fazer, notou que a cor macerada da morte já se instalava na pele suja. Estremeceu ao fitar os olhos sem vida e muito semelhantes aos de Moira. Curvou-se, criando coragem para cerrar-lhes as pálpebras.

— Ele não merece um tratamento tão terno — Moira afir­mou com as mãos nos quadris. — Eu o deixaria mirando o Criador e o Céu onde ele nunca entrará.

Pleasance lavou as mãos na pia da cozinha e espiou Moira por sobre o ombro.

— Não suportei ver aquele olhar vazio. Eu os fechei para minha própria paz de espírito. — Ela fez uma careta. — Pode parecer tolice, mas eu não suportava ver sem vida olhos tão parecidos com os seus.

— Não acho isso uma tolice — Moira disse em voz baixa. — É um conforto saber que alguém se sente como eu. — Ela sorriu com constrangimento quando Pleasance a abraçou. — Achei que eu fosse fraca e boba por não querer ver aquilo.

— Nada disso.

— Não ajudei muito.

— Você estava apavorada.

— E você também.

— Moira, você foi muito valente. Tanto que estamos vivas.

— E Tearlach?

— Não sei. Só rezo para que Lucien estivesse mentindo.

Com incerteza e sofrimento, tornou a abraçar Moira, e no momento em que Moira retribuiu, uma pancada soou na porta da frente. Pleasance e Moira deram um grito de surpresa e medo. Ela empurrou Moira para trás de si enquanto as duas olhavam para a porta com olhos arregalados.

— Santo Deus, o que poderá ser agora? — Pleasance sussurrou e olhou ao redor à procura de uma arma.

Um peso foi largado contra a porta antes da batida seguinte.

— Maldito Lucien, abra a porta!

As duas se entreolharam, abismadas.

— Tearlach?

Pleasance não conseguiu impedir Moira de correr até a janela e espiar pelo nó da madeira da veneziana.

— Cuidado!

— Santo Deus, Pleasance, não estou acreditando! É Tearlach, e parece muito ferido. — Ela correu até a porta e Pleasance já tirava a tranca. — Lucien mentiu para nós! Ele não matou meu irmão.

— Esse seu irmão tem mais vidas do que um gato! — Pleasance falou, extasiada.

No momento em que abriu a porta e viu Tearlach apoia­do na parede, ela duvidou das próprias palavras e se admirou por ele ter conseguido voltar. Tearlach parecia um moribundo, e seria difícil dizer o que o castigara mais: se os ferimentos ou o frio. A pele estava cinzenta e com um alarmante tom azulado. Os olhos pareciam vidrados, e ele oscilava muito. Ela só teve tempo de estender os braços e impedi-lo de cair.

— Escutei um tiro — ele disse em um sussurro.

— Matei Lucien.

Pleasance não sabia como apoiá-lo sem lhe causar mais dor. A neve e o céu escuro impossibilitavam que tivesse uma idéia exata da extensão e localização dos ferimentos.

Tearlach entrou arrastando as pernas, amparado por Moira à direita e por Pleasance à esquerda. Apesar da obscuridade da cabana, viu o corpo estendido no chão.

Bufou. Era um pouco humilhante pensar que duas mulhe­res delicadas haviam feito o que ele não conseguira fazer em onze anos.

— Vocês terem conseguido se salvar é um golpe no meu orgulho... — murmurou antes de desmaiar.

Pleasance deu um grito e, com a ajuda de Moira, evitou que ele caísse no chão.

— E melhor levá-lo para o seu quarto — Moira disse, aflita.

— Ele não caberá na minha cama.

— Teremos de levá-lo para cima?!

— Ou trazer a cama para baixo.

— Acho que Tearlach não é tão pesado quando aquele móvel. Só espero que não o derrubemos.

As duas finalmente conseguiram erguê-lo e levá-lo para o sótão. Uma vez na cama, Pleasance livrou-o das roupas frias e molhadas, enquanto Moira pegava os materiais necessários para tratar as feridas.

Depois de despido, a brutalidade dos ataques de Lucien foi revelada. Além dos ferimentos a faca, muitos deles profundos, havia equimoses sérias, o que levou Pleasance a pensar em traumatismos internos. Mesmo preocupada com o frio que ele enfrentara, cuidou primeiro das lesões. Quanto maior a perda de sangue, menor a possibilidade de mantê-lo aquecido.

Moira começou a chorar, e Pleasance teve de se segurar para não acompanhá-la.

— Moira, ele precisa de nossa ajuda e não de nossas lágri­mas — falou com seriedade, enquanto começava a limpar as feridas.

Após alguns instantes, a menina se controlou e a ajudou. Limparam o sangue do corpo de Tearlach e viram os cortes com mais clareza. Moira ajudou a segurá-lo, e Pleasance suturou as feridas mais profundas. Em seguida, aplicaram ataduras em cada ferimento com tiras limpas de tecido.

Assim que foi possível, Pleasance pediu a Moira que cui­dasse dos cavalos de Tearlach e Lucien. Moira obedeceu com relutância e, tão logo a menina saiu, ela cobriu Tearlach com mantas, lavou-se e sentou-se a seu lado para esperar e obser­vá-lo. Ele parecia ter recuperado parte da cor e sua respiração estava normal.

Pleasance relaxou na cadeira e sentiu-se mais confian­te. Embora fosse esperada uma febre que abalaria as poucas forças de seu amado, pelo menos ele estava vivo.

Suspirou. O desmaio de Tearlach fora providencial. Quando o vira com vida, ficara tão aliviada que por pouco não revelara o seu amor por ele. Felizmente fora salva do cons­trangimento de declarar sentimentos que Tearlach não desejava ouvir.

Talvez a prova de que pudera tomar conta de si mes­ma e de Moira o convencessem que ela era indispensável, pensou, esperançosa. Ou seria preciso mais de um ano para conquistar o coração arredio de Tearlach?

— Ele está bem? — Moira perguntou ao entrar e se aproxi­mar da cama. — Por que está com o cenho franzido?

— Minha expressão foi causada por meus próprios pen­samentos e não pelas condições de seu irmão. A aparência e a respiração dele melhoraram bastante, e creio que ele vá se recuperar. A febre ainda não veio e o frio está se afastan­do. Aquecê-lo e tratar de seus ferimentos talvez tenha sido suficiente.

— Acha que ele poderá ficar um pouco sozinho?

— Sim, por quê?

— Não tenho estômago para ficar dentro de casa com Lucien morto. Eu preferia sepultá-lo antes que a tempestade piore.

— Oh, céus, eu havia me esquecido dele! — Pleasance ficou em pé, ajeitou Tearlach que dormia e foi até a porta, — Espero que consigamos dar conta de tarefa tão árdua.

— Eu também, porque ainda temos de tapar o telhado.

Elas arrastaram pedaços de madeira para consertar o for­ro e pregaram todos no lugar, depois desceram para sepultar Lucien. Enrolaram o corpo em um lençol, cavaram uma cova rasa, não muito próxima às terras da família, e cobriram o buraco com uma pilha de pedras alta o suficiente para enganar os corvos.

Nisso, a tempestade estava no auge e os ventos gelados sopravam os flocos de neve em nuvens que cegavam. Pleasance sentiu-se feliz por não ter de sair outra vez até a nevasca passar.

Dentro da cabana, elas terminaram o serviço no teto. Não ficou perfeito, mas ao menos serviu para manter o frio do lado de fora.

Finalmente, Pleasance deixou Moira encarregada da limpe­za e voltou para o quarto de Tearlach.

Esfregando as mãos para aquecê-las, levou um susto ao vê-lo tentando se levantar. Correu e o forçou a deitar-se de novo.

— O que pretende fazer? — Limpou o suor do rosto dele.

— Eu deveria fazer a mesma pergunta.

— Acho que meu destino é mesmo cuidar dos tolos. Foi uma falta de juízo sair para caçar com esse tempo! — Ela o ajudou a tomar um chá de ervas. — E ainda por cima se deixar cortar em pedaços por aquele louco, voltar para casa arrastan­do a carcaça e desmaiar a meus pés. Agora que fui forçada a remendá-lo de novo, faça-me o favor de se comportar e ficar na cama para que os ferimentos sarem.

Ao perceber que o recriminava como se ele fosse uma criança, Pleasance sentou-se na cadeira ao lado da cama, juntou as mãos no colo e se obrigou a ficar quieta.

Tearlach a fitou e sorriu ao perceber seu esforço para man­ter a pose. Ao acordar e ver-se sozinho, seus receios haviam retornado, mesmo sabendo que Lucien não poderia ter ressuscitado nem estaria ameaçando as duas.

— Acordei e não vi ninguém. Chamei e não obtive respos­ta. Considerando os acontecimentos, preocupei-me.

— Moira e eu fomos sepultar Lucien, antes que o temporal piorasse. Foi impossível cavar uma sepultura digna, por isso o pusemos em uma cova rasa e a cobrimos com pedras. Também tivemos de consertar o buraco que ele fez no telha­do. Embora não tenha sido um trabalho de primeira, servirá para evitar o frio e a neve,

— Sinto muito por tê-las obrigado a enfrentar essa podri­dão. Lucien as deixou feridas?

— Ele bateu no rosto de Moira, mas as contusões foram superficiais. Também rasgou minha roupa, mas não conseguiu nada além disso.

— Tem certeza? — Ele apertou-lhe a mão.

— Sim. Estou bem.

— E o fato de ter matado um homem?

— Creio que levará algum tempo para eu me recuperar desse horror... Ainda não acredito que eu tenha feito isso.

— Ele teria matado vocês duas sem remorso.

— Eu sei. E é a essa verdade que me apegarei sempre que sentir culpa.

— Moira está bem?

— Eu já lhe disse, ela não teve ferimentos severos.

— Eu me refiro ao fato de Lucien ter sido assassinado por você.

— Moira parece ter aceitado bem esse triste episódio.

— Ela sabia tudo a respeito do pai?

— Sim. Não adianta querer esconder as coisas de sua irmã.

Agora precisa repousar, Tearlach, para que a cicatrização seja mais rápida.

— Na verdade, estou com sono. Você teve um desempenho admirável... — ele falou, fechando os olhos.

Ao ver que ele adormecera, Pleasance se recostou na cadei­ra com um suspiro. O elogio a animara, porém suas emoções continuavam confusas. Sentia orgulho, esperança e irritação. Ainda assim, preferia se agarrar ao grão de esperança que a lisonja lhe despertara. Ela provara ser enérgica e capaz de cuidar de si mesma e de Moira. Talvez Tearlach pedisse a feia para ficar, e ela pudesse finalmente se dedicar a conquistar seu amor.

 

— Que bela visão para um dia delicioso de primave­ra! — Tearlach cruzou os braços na altura do peito e sorriu para Pleasance, que cuidava da horta.

Ela o fitou de soslaio, decidida a ignorá-lo para não enco­rajar seu atrevimento. Tirou as últimas ervas daninhas, endi­reitou-se e esfregou as costas. Estavam no começo de abril, e era cedo para o plantio, mas ela queria deixar a terra pronta para quando chegasse a hora.

Limpou as mãos no avental, pensando que Tearlach esta­va magro, mas já se recuperara. Um pouco de trabalho ao ar livre lhe devolveria a forma perdida pelo confinamento de três meses dentro da cabana.

— Não tem nada para fazer exceto perturbar o trabalho das mulheres?

— Hoje, não. — Ele a segurou pelo braço e a fez seguir rumo à floresta.

— Tearlach — ela protestou, tropeçando e tentando se desvencilhar. — Que brincadeira é essa? Não podemos deixar Moira sozinha, ela ficará preocupada.

— Não vamos nos demorar.

Eles haviam se aproximado bastante durante o tempo de convalescença. Tearlach revelara emoções, falara do passa­do e de planos para o futuro. Pela primeira vez, Pleasance se sentira integrada à vida dele.

— Essa vista nos leva a amar a primavera... — Pleasance murmurou diante das cores vibrantes, que tingiam à flores­ta antes de notar uma manta estendida, na clareira junto ao regato, com uma cesta no meio. — É uma oferenda para os esquilos?

— É para você. — Ele fez uma mesura exagerada e apontou a manta. — Eu teria imenso prazer se milady se acomodasse. Preparei um belo almoço para nós.

— Verdade? — Ela sorriu e foi sentar-se.

— Sim, pedi a Moira o que eu queria, ajudei-a a arrumar a cesta e trouxe tudo até aqui.

— Pará um homem, isso é extraordinário.

— Ah, não seja impertinente. — Ele começou a desempacotar a cesta. — Pão, queijo, sidra, manteiga, presunto frio e geleia. E o melhor de tudo: pão de mel.

— Não me parece justo deixar Moira almoçando sozi­nha — Pleasance comentou ao cortar uma fatia de pão. — Tenho certeza de que ela adoraria comer à margem do riacho, rodeada pelos sons da primavera.

— Concordo, mas nós três ficamos muito juntos por vários meses. Não é crime termos um pouco de privacidade.

Pleasance sorriu com timidez e aceitou um copo com sidra.

— Tivemos privacidade quando dormimos juntos em seu quarto.

— Certo. Com Moira do outro lado. Adoro minha irmã, mas será agradável ficarmos sozinhos, sem ela por perto.

— Mas Moira está no máximo a alguns metros de nós...

— O ar da primavera a deixa atrevida, Pleasance. Moira foi com Jake para a cidade, onde ficará a tarde toda. Portanto, minha querida, podemos ficar à toa, como faz a pequena nobreza.

Pleasance riu e tomou apenas um gole da sidra. Sabia dos efeitos da bebida e não queria repetir o que acontecera duran­te uma festa com Nathan e os amigos dele, quando bebera demais e não se lembrara de mais nada, exceto das caçoadas do irmão.

Enquanto comia, encantou-se com a beleza da paisagem. O riacho estava cheio por causa de neve que derretera. Parecia frio e perigoso, mas muito bonito. Apesar da turbulência, os sons da correnteza eram repousantes. Aquelas águas ajuda­vam a enriquecer às terras de Tearlach.

Tearlach se aproximou, abraçou-a, e Pleasance se recostou nele. Ficava satisfeita com a afeição que ele passara a demonstrar no inverno, mas gostaria que os abraços, apertos de mão e beijos viessem acompanhados de algumas palavras essenciais. Afinal, Tearlach gostava de Moira e não hesita­va em dizer a ela o quanto a amava, Pleasance pensou com amargura.

Mas recriminou-se em seguida. Era um belo dia, e Tearlach se mostrava afetuoso. Ela não estava trabalhando, e a refei­ção deliciosa combinava com a paisagem encantadora. Seria tolice estragar tudo com pensamentos tristes.

— A primavera traz muita coisa boa... —Tearlach acari­ciou a trança que caía pelas costas delgadas de Pleasance.

— Não precisa me lembrar disso. — Ela não conteve um sorriso diante de dois esquilos barulhentos e brincalhões.

Tearlach olhou os bichinhos que se mostravam entretidos no acasalamento.

— Há muito romance no ar. — Ele começou a desmanchar a trança. — É a estação da caça.

— Caça? — Pleasance se alarmou. — Será que nunca vai deixar os pobres animais descansar de sua perseguição?

— Eu deixei... no inverno. — Tearlach deu uma risa­da. — Caçar nem sempre foi uma atividade traiçoeira para mim. Se eu fosse supersticioso, poderia imaginar que a sua presença me trouxe má sorte.

— Não acho graça. — Penso que a caçada como meio de vida já perdeu a viabilidade. A primavera poderia ser a época para você começar um trabalho novo em vez de insistir no que tem sido chamado de "comércio em extinção".

Pleasance ficou tensa, com receio de ter falado demais sobre um assunto que não era de sua conta. Não desejava ser lembrada de que não passava de uma criada temporária, tam­pouco arruinar o encontro agradável.

— Está certa — Tearlach disse após um longo momento de reflexão. — O comércio de peles na região está diminuindo, e não tenho vontade de me arriscar em terras inexploradas.

— Apesar disso, pretende retomar essa atividade?

— Sim. Prometi entregar certo número de peles a um homem de Worcester. Ele pagará uma taxa sobre as peles que eu levar, mas me prometeu um grande bônus se eu conseguir uma quantidade maior. Farei uma última tentativa de cumprir o acordo e depois me dedicarei à fazenda.

— Tem certeza de que é isso que deseja e que o fará feliz?

— Por que se preocupa tanto com o que me fará feliz? — Ele a beijou na face.

Pleasance sentiu um arrepio na espinha, mas se endirei­tou. Não podia permitir que a voz quente de Tearlach a fizes­se dizer o que não deveria. A pergunta dele era capciosa, e qualquer resposta poderia desvendar suas emoções. Decidiu apenas dar de ombros.

— Se pretende se tornar fazendeiro, precisará arar um campo muito maior do que tem agora.

Tearlach percebeu a evasiva. Pleasance fazia isso sem­pre que não desejava se referir a seus sentimentos. Ele sabia ser o responsável por essa atitude, mas não imaginava como resolver o problema. A única coisa certa era a aproximação da data em que teria de levá-la para Worcester, quando sua vontade era que ela ficasse.

Decididamente, não tinha idéia do que se passava em seu coração.

Além do mais, havia algumas verdades que ele precisava lhe dizer. Se Pleasance as descobrisse sozinha, poderia haver um rompimento entre eles. No começo, não achara necessário contar nada a ela, pois ele ainda sofria, estava com raiva e não confiava nela por completo. Mas esse receio fora esquecido quando a conhecera melhor. Pleasance não era mimada, nem era uma inútil. E ele queria que ela ficasse por lhe ter alguma afeição e não por sua riqueza.

Todavia, Pleasance também teria de contar por que o rejei­tara em Worcester. Muitas vezes ele desejara sacudi-la pelos ombros até ela revelar a verdade, porém a covardia o mantinha em silêncio.

— Tearlach? — Ela sorriu ao vê-lo se espantar. — Estava longe em seus pensamentos. Por acaso refletia no que fará em seguida?

Ele ignorou a voz da razão, que o aconselhava a dizer a ela que era rico, e que continuaria a sê-lo até o fim da vida, mes­mo sem trabalhar e sustentando uma família. Pleasance não tinha como saber de nada, pois apenas Moira e Jake sabiam da verdade, e eles haviam jurado silêncio.

Resolveu esperar até estar mais seguro de que ela gostava dele.

— Sempre planejei me tornar um fazendeiro e por isso plantei aquelas macieiras há alguns anos. Essa também é uma das razões por que decidi construir uma nova casa nesta primavera.

Uma nova casa indicava a vontade de se estabelecerão que era promissor, refletiu Pleasance. Mas, e se ela não fosse a mulher com quem ele pretendia viver?

— Precisa de uma casa para quê?

— A cabana é sólida, mas eu preciso de um lugar maior para morar. — Ele mordiscou-lhe a orelha e sorriu ao ver seu olhar preocupado.

— Para você e Moira? — Se ela pretendia ter uma con­versa séria com ele, precisava terminar com aqueles beijos sedutores. Mas era impossível recusá-los.

— E para você, Pleasance. — Tearlach a fez ficar de costas na relva e se deitou sobre ela. — Somos três.

— Mas eu ficarei aqui somente por mais alguns meses.

— Planos podem ser mudados — ele replicou, enigmático, antes de tomá-la nos braços e beijá-la profundamente.

 

Tearlach rolou para o lado, espreguiçou-se sob as cobertas, pôs os braços sob a cabeça e observou Pleasance se prepa­rar para dormir. Partiria na manhã seguinte e ficaria vários meses sem vê-la, lembrou-se com uma ponta de angústia.

E ela se demorava demais escovando os cabelos diante do espelho, vestida com a camisola fina.

— Vai acabar ficando careca — falou, impaciente. Pleasance largou a escova e se virou. Tearlach estava deitado, e o lençol cobria apenas o essencial.

Ao chegar perto da cama, ela decidiu levar adiante o pla­no que concebera naquela tarde. Fitou a bagagem a um can­to do quarto e entendeu que restavam poucas horas para ficarem juntos.

— Pretende partir amanhã cedo? — Ela brincou com a renda da camisola.

— Sim. Quanto mais cedo eu partir, mais cedo voltarei.

— Por quanto tempo ficará fora?

— Vários meses.

Tearlach tentou segurá-la, porém Pleasance se afastou.

— Não vem para a cama?

— Sim. — Ousada, ela começou e desfazer os laços da camisola. — Acha que eu o deixaria passar sozinho sua última noite em casa?

— Não sei. Esteve estranha hoje. — Tearlach considerou intensamente erótico o lento despir.

— Acha mesmo? — A camisola deslizou pelos ombros esguios, e Pleasance a segurou na altura do busto. — Será um elogio?

Tearlach se ergueu um pouco, o olhar fixo nos contornos dos seios redondos acima da renda.

— Você também está sendo vagarosa.

— Paciência. — Ela sorriu, e a paixão que escurecia os olhos dele a fez prosseguir. — Aposto que é daqueles apressa­dos para abrir os presentes.

— Há certos presentes que um homem tem pressa em ver.

Sempre sorrindo, Pleasance soltou a camisola, que caiu a seus pés. O olhar faminto de Tearlach a excitou. Ele a segu­rou pela cintura, contudo ela resistiu à tentativa de ser puxada para a cama. Estava disposta a conduzir a dança.

— Entendo. — Apesar da ansiedade, ele ficou curioso. — Você pretende me atormentar.

— Eu jamais seria tão cruel. Sei que tem de descansar para sair amanhã, bem cedo, e seria uma falta de consideração da minha parte deixá-lo fazer todo o trabalho sozinho.

Tearlach a puxou para beijá-la no ventre e depois se recostou nos travesseiros.

— Agradeço a consideração embora fazer amor com você não possa ser chamado de "trabalho".

— Muita bondade sua. — Ela tirou os lençóis de cima dele e sorriu ao descobrir sua ereção.

Sentou-se sobre o corpo tenso, decidida a conduzir aque­la noite. Pretendia fazê-lo se esquecer de tudo, exceto dela, e afastou o medo do insucesso. Tearlach a desejava, e sua pouca experiência em nada atrapalharia.

Acariciou o peito largo e se curvou para beijá-lo. Ficou sem ar ao término do beijo profundo e sensual e sorriu, facei­ra. Usou as mãos e o corpo para acariciá-lo, começando pelo pescoço. Traçou uma trilha de beijos em sentido descendente, devagar e com amor, e se deteve nas cicatrizes para garantir que estas não diminuíam seu desejo por ele.

Tornou-se cada vez mais difícil para Tearlach manter a passividade. Ele lutou contra a vontade de agarrar Pleasance e possuí-la, pois queria saborear a delícia de seus beijos, as carícias e sua perfeita capacidade de sedução.

Gemeu e fechou os olhos quando ela o beijou intimamente, e precisou apertar os dentes para se dominar. A poucos ins­tantes do êxtase, ele a agarrou por baixo dos braços e a puxou para cima dele.

O riso suave e rouco de Pleasance aumentou dez vezes o fogo em suas veias. Ela o impedia de comandar e ele gemeu, frustrado. Respirou fundo e tentou clarear a mente envolta naquela paixão cega.

Pleasance se abaixou sobre ele, unindo os corpos em uma sedução lenta que o fez estremecer de prazer. Tearlach a segurou pelos quadris, e ela provou que podia levá-los sozinha até o êxtase.

O grito rouco de prazer de Pleasance mesclou-se ao dele, que sentiu o corpo delgado se pressionar de encontro ao seu enquanto ele procurava penetrá-la ainda mais fundo.

Pleasance se abandonou em seus braços, arfante, e ele mal teve forças para segurá-la.

Demorou para que ela deslizasse de cima dele e se acon­chegasse a seu lado. Com a mão no peito largo, Pleasance percebeu as batidas aceleradas de seu coração. Sorriu, feliz e orgulhosa, e o beijou no pescoço.

— Pensei que pretendesse poupar minhas forças — Tearlach murmurou e sorriu ao vê-la achar graça. — Não me sinto tão exausto há muito tempo.

— Eu queria que você se lembrasse de mim na sua ausência.

— Com certeza não a esquecerei. Isso fará as longas noites na floresta ainda mais frias e solitárias. — O que o fará retornar mais cedo.

— Ah, então sentirá falta de mim, Pleasance?

— Digamos que eu esteja curiosa para ver pronta a tal casa que você pretende construir. — Ela não o olhou.

Não adiantava pressioná-la, ele concluiu, mas não a faria pensar que ela conseguira se desviar da resposta. Precisavam ser sinceros um com o outro.

— A casa começará a ser construída enquanto eu esti­ver fora. Já conversei com o carpinteiro e foi tudo acertado. Jake conhece minhas preferências e virá aqui periodicamente para acompanhar a obra.

— Mas não será muito dispendioso?

— Minhas peles me forneceram lucro suficiente. Quando eu voltar, assumirei o comando da obra. Ainda há outra coisa que pretendo fazer no meu retorno.

— O que é? — Ela suspirou com prazer quando ele acari­ciou seu corpo e segurou-lhe um seio.

— Nós dois teremos uma longa conversa.

Ele a beijou no pescoço, detendo-se no ponto da pulsa­ção, enquanto acarinhava com o polegar o mamilo endureci­do. Pleasance gemeu com frustração quando Tearlach beijou levemente a aréola e, com os dedos entrelaçados nos cabelos dele, forçou-o a beijar o botão palpitante.

— Por que não conversamos agora? — Ela arqueou o corpo quando Tearlach começou a sugá-la.

— Agora não é o momento adequado, e tenho coisas mui­to melhores para fazer nas poucas horas que nos restam. Na minha volta, será a segunda coisa que farei.

— Falar sobre o quê? — Ela o fitou quando ele a deitou de costas e sentou-se sobre ela.

— Sobre como eu a ensinei a ser evasiva.

— Evasiva?

— Sim, senhora. E também acho melhor discutir sobre nos­so futuro.

— Nosso futuro?

Tearlach se concentrava nos seios, aumentando o prazer com cada beijo, cada passada de língua, o que tornava difícil para Pleasance se concentrar no que ele dizia.

— Exatamente. Mas agora só posso pensar em aproveitar o máximo de sua doçura até o sol raiar.

Pleasance fechou os olhos e se entregou à paixão.

 

Pleasance inspirou a brisa agradável da primavera que prometia nova vida e atirou no chão mais um punhado de sementes de linho, confiante de que elas floresceriam no solo fértil. Mesmo em um ano ruim, aquelas terras proveriam o necessário para a sobrevivência.

Um olhar de relance para a cabana a fez sorrir. Lembrou-se de que a considerara uma prisão, mas depois do que Tearlach dissera antes de partir, nada lhe parecera mais satis­fatório. Exceto, é claro, a esperança de participar da vida de Tearlach na nova casa que era erguida a poucos metros dali. Ele partira havia quinze dias. Ela estava ansiosa por seu retor­no, pela conversa que teriam sobre o futuro e rezava para que suas expectativas não fossem enganosas.

— Pleasance.

Ela se assustou e viu Moira na porta da cabana, apontan­do para o leste, onde um cavaleiro solitário se aproximava. Pleasance atirou no solo as últimas sementes, preparou-se para saudar o visitante e, perto da varanda, reconheceu de quem se tratava.

— Nathan!

Pleasance correu para o irmão, que desmontara e a aguarda­va com os braços estendidos. Ela riu quando Nathan a levan­tou e a rodou várias vezes. Ele não a rejeitava como fizera sua família.

Apresentou o irmão a Moira e sorriu. Galante, Nathan bei­jou a mão da menina, que imediatamente se encantou com a beleza loira dele. Pleasance conhecia o irmão e sabia que ele nada faria que pudesse prejudicar Moira.

Dentro da cabana, convidou o irmão para sentar-se à mesa e serviu-lhe comida e bebida. Ele conversava amigavelmen­te com Moira, mas Pleasance sentiu nele certa tensão, o que a preocupou. Seriam mais problemas? Pôs sidra no copo de Nathan e no de Moira e esperou com impaciência que ele terminasse de comer.

— O que houve, Nathan? — perguntou quando ele afastou o prato.

Nathan deu um breve sorriso e tomou um gole de sidra.

— Talvez fosse melhor Moira nos deixar a sós.

— Não, Moira e eu somos como irmãs, e não há nada que ela não possa escutar.

— Fico feliz que tenha encontrado pelo menos essa ami­zade aqui. — Nathan deixou sobre a mesa uma pequena algibeira de couro. — Você está livre.

— O quê? — Pleasance se alarmou.

— Está livre. Esta é a quantia que Tearlach O’Duine pagou por você. Junto há uma carta de Corbin. Ele concorda que eu pague o restante de seu compromisso ao sr. O’Duine para libertá-la dos serviços.

— Papai...?

— Eu paguei por isso. Papai continua tão apegado a seu dinheiro como sempre.

— De que adianta minha liberdade? Papai me expulsou de casa e não tenho para onde ir.

— Ele passou dos limites desta vez. — Nathan segurou a mão de Pleasance por cima da mesa. — Tenho de lhe contar um segredo há muito guardado. — Ele fitou Moira de esguelha.

— Está certa de que ela pode ouvir o que vou dizer?

— Você vai revelar a Pleasance que ela é uma bastarda — Moira murmurou.

— O que foi que a levou a essa conclusão? — Nathan se admirou.

— Tive um pressentimento.

— Isso é verdade, Nathan? — Pleasance sussurrou, chocada.

— Sim, Pleasance. — Nathan concordou com uma care­ta. — Você e eu somos filhos ilegítimos. Nosso pai teve uma mulher antes de mandar buscar Sarah Cordell, que é sua esposa legal e nossa madrasta. Nós somos filhos da ligação ilícita com Elizabeth Thurston.

— Por que sempre moramos com papai, que não morria de amores por nós?

— Pelo motivo que sempre o move, dinheiro. Elizabeth não era pobre e o dinheiro dela permitiu a papai levar adiante seus negócios e ter uma vida boa.

— Onde ela está? — Pleasance se admirou pela facilidade com que aceitava a notícia.

— Ela morreu. Meu nascimento logo após o seu a enfra­queceu, e ela não se recuperou. Às vezes eu me pergunto se papai fez alguma coisa para ajudá-la. Afinal, a morte dela resolveu grande parte de seus problemas. Sarah Cordell era filha de um homem poderoso e rico, e papai precisava dele para incrementar os negócios. Rupert Cordell poderia tê-lo arruinado com facilidade, e papai precisava do dinheiro de nossa mãe e do poder do pai de Sarah. Nossa mãe morreu e ele não precisou se decidir entre as duas. E ele não nos expulsou por um único motivo.

— Qual?

— Ele não podia nos mandar embora de nossa própria casa.

— Como é?

— A casa era de Elizabeth, Se ela soubesse realmente quem papai era, não teria se envolvido com ele. Creio que ela deve ter descoberto sua cobiça mais tarde, quando já era tar­de para se proteger, mas não para nos proteger. Ela deixou para nós a casa e uma boa soma, administrada por advogados em Boston.

Nathan sacudiu a cabeça antes de continuar.

— Sabendo disso, fiquei furioso ao descobrir como papai a traiu. Eu poderia facilmente pagar sua fiança, mas, na ver­dade, papai deveria honrar esse valor, pois é nosso dinheiro que tilinta em seus bolsos. No ano passado, nossa adorável família viveu de nossas rendas e tive de aprovar isso, pois bem-administradas ou não, fomos criados com esse dinheiro. Recentemente papai fez maus investimentos, o que já aconte­ceu antes. Nosso dinheiro sempre o livrou das dívidas.

— A traição deles pode ter sido uma espécie de vingança por eu ser dona do que eles querem, a casa e o dinheiro?

— Com certeza. Papai sempre se ressentiu do que era nos­so e achava que devia ser dele. Ele nunca parou de tentar se apossar de tudo.

— Como soube disso?

— O advogado me contou no dia em que fiz dezesseis anos.

— Sou a mais velha, por que ele nada me disse?

— Na opinião de nosso advogado, você ainda não devia ser informada e eu concordei. Mas agora vejo que estava errado. Precisava saber para entender as razões por que eles a trata­vam de maneira tão deplorável. Agora sabe que não precisa depender de papai para sua sobrevivência, nem mesmo precisa morar com ele, se não quiser.

Pleasance riu da ironia da situação. Quantas vezes ela desejara fugir da frieza dos pais e da irmã mimada! Naquele momento, nada lhe agradaria menos do que morar sozinha. Nada saíra a contento.

— Precisamos voltar para Worcester, e se acha que não suportará viver com ele, encontraremos outro local para você morar. A despeito do que eles fizeram com você, não pode­mos atirá-los na rua, mas informei a papai que ele terá de procurar outra casa assim que os negócios melhorarem. Eu já cheguei à idade de querer minha própria residência.

— E eu não posso ficar aqui?

— Não. — A raiva dele era evidente. — Nenhuma irmã minha fará trabalho servil para ninguém. Iremos para casa.

— Vá — Moira disse, com o olhar concentrado em outro pressentimento.

Pleasance sentiu o costumeiro frio na espinha diante da intuição, mas também ficou magoada.

— Moira, quer que eu vá embora?

— Você precisa ir. Eu amo você, e nunca amei ninguém exceto Tearlach. Bem, também amo Jake, é claro. Vá, será melhor assim. Tenho um forte pressentimento de que será melhor você estar livre. Vá para casa com seu irmão.

Pleasance sofria apesar de saber que Moira estava certa. Seria melhor que ela e Tearlach se unissem como iguais e livres. Se ele não tivesse nenhum poder sobre ela, a não ser o amor, poderiam chegar a um entendimento.

— Só preciso arrumar minhas coisas, Nathan.

— Está bem. Preciso pegar os outros cavalos que dei­xei escondidos em um bosque, pois não sabia qual seria a recepção à minha chegada. Não demoro.

Nathan saiu, e Pleasance começou a arrumar seus poucos pertences. Moira fez o mesmo, pois ficou decidido que ela ficaria com Jake até a volta de Tearlach. Pleasance não sabia como escrever a Tearlach e, embora desejasse, não ousaria pedir que ele fosse buscá-la. Finalmente ela escreveu, expli­cando apenas para onde iria e onde ele encontraria Moira. Ela não encontrou mais palavras, a não ser essas, distantes e frias.

— A senhorita está partindo? — Jake estava incrédulo.

— Sim, meu irmão Nathan pagou minha dívida com Tearlach e agora sou uma mulher livre.

— Assim é melhor, Jake. — Moira segurou a mão de Jake na varanda simples da cabana dele. — Bem melhor.

— Não posso entender tal coisa, mas não importa. Espero que tenham uma boa viagem. Foi um grande prazer tê-la aqui por um tempo.

— Sinto o mesmo, Jake. Obrigada por tudo. Adeus. — Pleasance o beijou na face. — Adeus, Moira. — Ela abraçou a garota. — Tem certeza...

— Isso tem de ser feito — Moira respondeu —, e não será para sempre. Confie em mim: a intuição é muito forte.

Pleasance fitou Moira por um momento e sentiu diminuir o medo e o sofrimento. —Forte mesmo, Moira?

— Sim, muito. Cuide-se, Pleasance. — Moira a beijou no rosto.

— Tearlach não vai gostar nada disso — Jake murmurou, observando Pleasance e Nathan se afastar.

— Não, mesmo. — Moira sorriu e foi então que ele come­çou a entender. — Não vai gostar nem um pouco.

Os dois riram a valer.

Pleasance suspirou. Ela e Nathan haviam parado em uma estalagem acolhedora para passar a primeira noite. Ela se surpreendera com a existência daquele estabelecimento, mas decerto Tearlach nunca se hospedara ali por falta de dinheiro.

A comida que ela não conseguia engolir parecia saboro­sa. Seria melhor aproveitar o conforto enquanto pudesse, pois seriam raros os bons locais até se aproximarem de Worcester. Ainda demoraria um pouco para as estradas rumo ao oeste se tornarem movimentadas e boas como as que iam para Boston. E todo o tempo ela só pensava em voltar para a cabana de Tearlach e ficar à espera dele.

— Você o ama, não é?

Espantada, Pleasance pensou em negar, mas a simpatia da expressão de Nathan a fez confessar.

— Sim, amo.

— Um homem que a acusou falsamente e a forçou à servidão?

— Não foi bem assim. Tearlach esperava que nossa família me livrasse das falsidades de Letitia, e ele só pretendia me assustar um pouco. Nós lhe ferimos muito o orgulho ao rejei­tar a corte dele. Ele apenas retribuiu à altura, o que não foi muito louvável, mas também não configurou nenhum grande pecado. Muitos teriam agido da mesma maneira.

— Pode ser.

— Ele não passa de um fazendeiro pobre e lutador que caça e vende peles para suplementar a renda.

Nathan engasgou com a sidra e olhou a irmã como se ela tivesse perdido o juízo.

— O que foi, Nathan?

— Tearlach O’Duine, pobre? Lutador?

— Você viu como e onde ele vive. Mas ele quer progredir.

— Ah, sim, embora ele tenha ultrapassado as expectativas de muitos.

— O que está dizendo?

— Ele é muito rico, Pleasance. Não há uma indústria na Inglaterra em que Tearlach não tenha participação. Ele tem negócios diversificados e bons investimentos. Se quisesse, poderia comprar tudo o que eu tenho mais de dez vezes.

Pleasance sentiu um calafrio.

— Por que ele viveria dessa maneira se tem tudo isso que você diz?

— As terras são da família dele, e quando a menina ficou sozinha, ele decidiu ficar com ela. Tearlach tem uma briga­da de advogados que cuidam de seus negócios. Ele deve ter ficado por causa da irmã, porque em outro lugar ela não teria chance de ser bem-aceita. Ele nunca lhe disse nada?

— Nem uma palavra. Tem certeza? — Pleasance não queria acreditar que Tearlach tivesse mentido para ela.

— Absoluta. Cheguei a Worcester no inverno e tive de esperar para vir buscá-la. Nesse tempo procurei informações a respeito do homem que a levara. Nosso advogado de Boston e Corbin Matthias me ajudaram muito. Após ficar saben­do quem era Tearlach O’Duine, fiquei mais descansado por entender que você não estaria em uma casa de taipa com um sujeito rude e tosco, vestido com peles. Mas fiquei com muita raiva ao saber que ele poderia ter vinte criados e assim mesmo a levou em contrato de servidão.

Pleasance olhou as mãos embrutecidas por meses de trabalho pesado que ela não se incomodara de fazer. Àquela altura, as mãos calosas pareciam representar todas as mentiras que ele dissera.

A pretensa pobreza de Tearlach a fizera trabalhar com mais empenho para provar a ele que era capaz e que desejava ajudá-lo a progredir na vida. Sentiu-se uma idiota completa,

— Papai também desconhecia sua riqueza?

— Sim.

— Foi o que pensei, ou ele o teria empurrado para Letitia. Ela escolheu John Martin por sua fortuna.

— O’Duine é cem vezes mais rico do que John. Por falar nisso, ele e Letitia se casaram há algumas semanas.

— O pobre John decerto queria se casar com ela o mais depressa possível para se afastar dos problemas. Não revelará o valor da riqueza de Tearlach?

— Não. De nada adiantaria, e só criaria mais confusão. Pleasance, está tudo bem? Eu não queria aborrecê-la, mas a verdade é sempre o melhor caminho.

— Uma pena que Tearlach não pense assim. Sinto-me uma idiota completa.

— Não diga isso.

— Nathan, passei os últimos meses me virando do avesso para mostrar a ele que eu poderia ser uma mulher pioneira e resistente porque pensei que ele gostasse ou precisasse. Quis demonstrar que, apesar de meu berço privilegiado, eu não seria um fardo. Eu trabalhava desde a aurora até o escurecer e nunca me esfalfei tanto em minha vida, embora não me queixe do que fiz.

Pleasance suspirou antes de continuar:

— Tenho uma sensação de dever cumprido e de orgulho diante de um trabalho benfeito, mas fiz tudo para provar a ele do que eu era capaz. Eu sofria quando cometia algum engano, por não querer prejudicar Tearlach. Fui levada a pensar que havia pouco tempo para aprender, por acreditar que um homem pobre como ele deveria ter uma companheira que fizesse tudo, desde esfregar o chão até tecer o linho. Minhas velas, contudo, não precisavam ser tão perfeitas, porque ele pode­ria comprar muitas outras. Tudo não passava de um jogo, de uma perda de tempo.

Nathan segurou as mãos dela por cima da mesa.

— Nem sei por que defendo esse homem, mas é possível que você o julgue com severidade excessiva. Talvez esse seja o jeito dele, afinal ele também trabalhava duro, não é?

— Sim, de manhã até a noite. Mas não é do serviço que estou me queixando, e sim de que tudo em que me empenhei foi baseado em uma mentira.

Nathan nada argumentou. Pleasance amava Tearlach, mas lhe parecia um amor não cor­respondido. Seria melhor que ela sofresse agora, enquanto estava com raiva e se sentia insultada. Isso lhe daria forças para se curar.

Apesar da impressão de que Pleasance fizera mais do que limpar o chão, ele não a forçaria a falar.

Pleasance deu boa-noite ao irmão sem tocar na comida.

Pleasance fitava o teto, deitada na cama. Não conseguia dormir, apesar das acomodações confortáveis. A mente e o coração estavam em frangalhos, e as perguntas sem resposta a deixavam com dor dê cabeça. Acreditara em uma mentira, e a verdade não era agradável.

Não se incomodava que Sarah fosse sua madrasta, só lamentava não ter conhecido a verdadeira mãe.

Saber que era ilegítima explicava muitos sofrimentos de seu passado. E entender que seu pai faria tudo para que o escândalo não viesse a público a deixava mais tranqüila. Ela não seria rejeitada por isso.

O que a perturbava era o que Nathan lhe contara sobre Tearlach. A mentira conspurcava todo o relacionamento deles. Nunca se sentira tão tola. Como pudera se apaixonar por um homem tão desumano?

Afastou uma lágrima. Não choraria por ele por enquanto. Para o bem de seu próprio discernimento, esperaria um pou­co. Se Tearlach não a procurasse, saberia que ele apenas se divertira com ela. Se a seguisse, daria a ele a oportunidade de se explicar. Ela devia isso a si mesma.

 

Tearlach parou de assobiar ao avistar sua cabana, curio­samente vazia. Ao se aproximar, o temor fez seu coração disparar. Os quatro meses de ausência lhe pareceram exces­sivos. Mas a morte de Lucien e o fim do inverno o levaram a pensar que Moira e Pleasance estariam em segurança.

Empurrou a porta da cabana e olhou ao redor. Apavorou-se, fazia muito tempo que ninguém pisava ali. Nisso viu um pedaço de papel sobre a mesa da cozinha.

Querido Tearlach. Meu irmão Nathan veio me buscar quin­ze dias após sua partida. Ele pagou a fiança e não sou mais sua criada temporária. Nathan vai me levar de volta a Worcester. Moira está bem. Ela e a criação estão na casa de Jake.

Pleasance

Droga! Ele amassou o bilhete e o atirou no chão.

Como ela pudera ir embora e se esquecer de tudo o que acontecera entre eles? Aquele abandono o feria mais do que gostaria de admitir. Agarrou a algibeira cheia de moedas e a atirou contra a parede.

Deixou seus pertences de lado, lavou-se e vestiu roupas limpas. Montou novamente e galopou rumo à cabana de Jake.

Moira riu ao ver pela janela a aproximação de Tearlach.

— Ele vem vindo.

— Galopando furioso?

— Sim, até que viu sua cabana. Agora vem vindo para cá como se estivesse passeando. — Moira sacudiu a cabeça e foi até a porta. — Homens e seu orgulho... Ele não quer que veja­mos seu tormento.

— Não o provoque, menina.

— Não farei isso, Jake. Mas posso sacudir a cabeça de vez em quando com desagrado. — Ela saiu da cabana para saudar o irmão, seguida por Jake, que mal continha o riso.

Tearlach franziu a testa para o caneco de sidra que lhe foi servido, sentado na cadeira junto à mesa velha de Jake. Moira não acrescentara muito ao que ele já sabia. A mensagem de Pleasance, apesar de concisa e fria, dissera tudo. Ela estava em Worcester fazia pouco mais de três meses, e a imprecisão de Moira era irritante. E seu humor piorava com a idéia de que Pleasance estaria mais confiante e sensual de volta a seu círculo social. Homens sentiam de longe uma mulher ardente que conhecia o desejo, e na certa não lhe faltariam admiradores.

— Então ela se levantou, foi para casa e quebrou o acordo — ele resmungou.

— Não. — Moira deixou a sacola com seus pertences ao lado da cadeira de Tearlach. — Nathan pagou a multa e trouxe uma carta de Corbin dizendo que o trato foi legal. Você a trouxe para cá por ela não ter recursos próprios, e agora ela está livre. Não viu o dinheiro?

— Vi. — Ele tomou a sidra e se levantou. — Vamos para casa, Moira. Obrigado por sua bondade de ficar com ela, Jake. Amanhã virei buscar minha criação.

— Não se preocupe. — Jake se apressou atrás deles. — Não vai procurar Pleasance?

Tearlach pôs Moira no cavalo e virou-se para o amigo com olhar sombrio.

— Procurá-la para quê?

— Bem, sempre há um motivo — Jake resmungou. — Ela ajudava muito.

— Posso encontrar muita ajuda em qualquer barco vindo da Inglaterra. — Ele montou sem desfazer a carranca. — Ela poderia ter ficado, mas preferiu voltar para Worcester. Tenho mais a fazer do que correr atrás de uma anágua. — Incitou o cavalo a um trote rápido. Desejava chegar em casa e pensar.

Naquela noite Tearlach sentou-se junto ao fogo e franziu o cenho para as chamas. Passara aqueles quatro meses pre­parando cuidadosamente o que diria para Pleasance, e ela o abandonara. Advertiu a si mesmo que mulheres apenas serviam para confundir os sentimentos e decidiu prosseguir sozinho sua vida. Ele e Moira estavam muito bem antes de Pleasance irromper na existência deles, e assim continuariam.

Durante duas semanas, usou toda a sua força de vontade para não procurá-la. A imagem de Pleasance, porém, o ator­mentava. Procurava-a na cadeira de balanço de que ela tanto gostava e se recordava das conversas nem sempre tranqüilas. Sentia falta de sua figura esguia na porta da cabana e de seu canto suave enquanto remendava suas camisas, fiava ou assa­va. O que mais lhe fazia falta era o aconchego dela na cama. Tinha saudades dos momentos calmos e dos apaixonados. Ao trabalhar dia e noite em sua nova casa, também se recorda­va de Pleasance, pois gostaria de ter sua opinião a respeito.

— Amanhã eu a levarei até a cabana de Jake — Tearlach anunciou no jantar daquela noite, exatamente quinze dias depois de sua volta. — Terei de me ausentar por um tempo.

— Vou com você. — Moira afastou a tigela, apoiou os braços na mesa e fitou o irmão.

— Você nunca foi caçar comigo. — Tearlach se admirou com a pequena rebelião de Moira.

— Desta vez, não irá atrás de esquilos nem de veados, mas sim de Pleasance Dunstan.

Às vezes a perspicácia de Moira era irritante.

— Eu não disse isso.

— E nem precisava. Toda vez que olha para a cadeira dela, para a mesa, para o batedor, para a roca ou...

— Chega. Você me faz parecer um rapaz apaixonado, e sou muito velho para isso.

— Tearlach, ninguém é tão velho para se sentir solitário. Eu também sinto muita falta dela.

— Então gostará de saber que pretendo trazê-la de volta por sua causa.

— Não gostarei. Sei que ela me ama e eu gosto muito dela, mas tem de trazê-la de volta por sua causa e lhe dizer isso de maneira digna. Com direito a casamento e tudo o mais. Não quero que continue a envergonhá-la.

— Vá para o inferno — ele resmungou.

— Se você insiste... mas se não se incomodar, prefiro ir primeiro para Worcester.

 

— Vai me contar, ou devo continuar fingindo que não vejo? — Nathan parou de andar de um lado a outro da pequena sala e olhou para Pleasance, que tecia renda de bico, sentada em um sofá.

Ela levantou a cabeça, viu o olhar significativo de Nathan para sua barriga e corou. Na certa ele sabia sobre sua gra­videz, e isso explicava a fácil concordância dele em procu­rar um chalé fora da cidade e longe dos olhares curiosos, um mês após o retorno a Worcester. Surpreendia-se por ele não ter feito nenhum comentário durante mais de dois meses.

O escândalo não era a única coisa que ela temia. Havia leis que puniam a prática sexual até com prisão ocasional e, se isso acontecesse, um inocente também seria castigado.

Ela suspirou, receosa pela confrontação que aguardava fazia tempo. Deixou de lado a renda, cruzou as mãos no colo e encarou Nathan.

— É verdade, estou grávida.

— Pretendia esconder isso de mim até a criança dar o pri­meiro grito?

— Não, apenas relutei em lhe dar essa notícia chocante. A covardia me deixou muda.

— Por que estava com medo de me contar?

— Eu não queria decepcioná-lo. Nathan sentou-se a seu lado e a abraçou.

— Você jamais me decepcionaria. — Ele se recostou. — Porém um desrespeito à sua honra merece uma indenização. — Ele se levantou e recomeçou a andar.

— Esta é outra razão por que eu nada queria dizer. Não suporto a idéia de você e Tearlach brigarem por minha causa ou, pior, se enfrentarem em um duelo. Um fato desses arran­caria meu coração do peito, e tive vários pesadelos vendo vocês se engalfinhar.

Nathan respirou fundo e passou a mão nos cabelos.

— Eu sei, Pleasance, eu sei. E por isso lutei para aplacar minha raiva durante esse tempo.

— Sinto muito por ter lhe trazido tanto aborrecimento.

— Não estou preocupado comigo, mas com você. — A fuga será o menor dos males que terá de enfrentar quando a gra­videz for descoberta. Isso não é algo que se possa esconder para sempre.

— Eu entendo.

— Eu tinha catorze anos quando vi uma mulher ser açoi­tada pelo crime de prática sexual —: Nathan murmurou e fez uma careta quando a viu empalidecer. — A punição não é muito aprovada, pois causa um escândalo por si só. Eu não pretendia assustá-la.

— Não se preocupe. — Pleasance se levantou devagar. — Acha que podemos passear no jardim? De tempos em tempos preciso me movimentar.

— Claro.

Nathan deu-lhe o braço e foram até o pátio. Por um momento, caminharam em silêncio e ele sorriu ao olhar o jardim que ela formara. Com o canto do olho, analisou Pleasance. Ela engor­dara um pouco, suas curvas haviam ficado mais pronunciadas, mas a gravidez ainda não se notava. Ou o bebê era muito pequeno ou ela se vestia com inteligência.

— Pleasance — ele murmurou com as mãos cruzadas nas costas e a observou recolher algumas flores secas de uma roseira —, temos uma solução para o dilema.

— Suponho que vá revelar o desfecho perfeito, que não quero saber.

— Sim, O’Duine deverá se casar com você.

— Deverá? Por acaso já falou sobre isso com ele? Nathan a fitou, aborrecido.

— Percebo que você pretende dificultar as coisas. Antes de começarmos a discutir, diga-me quanto tempo temos.

— O que quer dizer?

— Quero saber quando essa criança chegará ao mundo.

— Ah. — Ela corou. — Não tenho certeza.

— Não tem a menor idéia, não é?

— Não precisa ser sarcástico. — Pleasance colheu uma margarida e começou a puxar as pétalas uma a uma, pensan­do no antigo verso rimado. — É possível que esteja de seis meses, não sei direito. Atribuí o atraso do fluxo ao excesso de trabalho. Não pensei em gravidez até sentir os movimentos dentro de mim.

— Seis meses. Não perdeu tempo em conceber a criança.

— Devo confessar que sim, para minha vergonha.

— Era ele quem deveria se envergonhar, pois a seduziu.

— Não foi bem assim. Percebi minha grande fascinação por Tearlach logo que o conheci, e ele não teve de se esforçar para me seduzir, se é que o fez. Eu me senti atraída como uma mariposa pelas chamas e, enquanto resisti, foi desanimador. Apesar do que me aguarda, não me arrependo. Pelo contrá­rio, lembro-me e saboreio todos os momentos que passamos juntos.

— Você, que é sempre tão sincera, por que não admite que ele a abandonou?

Pleasance empalideceu. Nathan se arrependeu da insen­sibilidade, levou-a até um banco de pedra e sentou-se a seu lado, segurando a mão dela.

— Fui cruel, perdoe-me.

— Não há nada para perdoar, Nathan. É a verdade.

— Eu não deveria ter dito o que disse. Não gosto de vê-la sofrer, e por isso quero ajudá-la. Ao menos permita que eu peça a ele que dê o nome ao filho. Você sabe como um bas­tardo sofre pela falta do nome do pai. Por que acha que nossa ilegitimidade foi guardada em segredo por tantos anos? Pense no que aconteceu, com Moira.

— Não discordo.

— Então permita que eu peça a ele que assuma o filho. É o mínimo que Tearlach pode fazer.

— Nathan, escute. Quero só uma coisa. Quando você foi me buscar, ele tinha acabado de sair para uma longa caçada e talvez tenha chegado há pouco tempo. Por favor, dê a ele mais um mês para se manifestar. Estou bem escondida e não me importo de esperar mais um pouco. Se até lá ele não apare­cer, estará livre para procurá-lo e fazer o que achar certo.

— Apenas um mês?

— Sim. Se Tearlach não vier e for você a procurá-lo, peço que analise com cautela as reações dele. Se a relutância dele for muito grande, não lhe peça que se case comigo, nem para o bem da criança.

— Não espera que eu concorde com isso.

— Nathan, se Tearlach ficar furioso por ter de se casar comigo, não servirá para ajudar meu filho.

— Sim, mas não ter pai também de nada adiantará. — Nathan a impediu de protestar. — Preciso refletir sobre o assunto. Agora só posso concordar em esperar um mês antes de agir.

— Eu gostaria que entendesse o quanto eu receio um enlace forçado. Um homem com raiva pode querer revidar na criança.

— Pensarei nisso, mas acho que é um erro não considerar a hipótese de casamento, independentemente das circunstân­cias. Você logo se arrependerá de não ter um marido.

— Talvez você tenha razão. Teremos um mês para pensar sobre isso.

— Tem certeza de que o bebê não nascerá antes de um mês?

— Creio que sim, não se preocupe.

— Outra coisa... Como não poderei ficar todo o tempo a seu lado, teremos de contratar uma governanta ou uma criada para ajudá-la.

— Não pretende contar a ela que estou grávida, não é? — Pleasance conhecia o gosto dos servos pelos boatos e preferia testar antes a confiabilidade da candidata.

— Não de início, e você decidirá quando revelar a verdade. Vamos entrar?

— Se não se incomodar, gostaria de ficar um pouco mais. O ar refrescante me faz bem.

— Como queira. Preciso falar com Corbin, mas estarei de volta para o jantar.

— Um último favor, Nathan.

— Fale, querida.

— Se Tearlach aparecer, deixe-me falar com ele primei­ro. Se ele ficar sabendo de minha gravidez logo de início, nunca saberei o que se passa no coração dele.

— Está certo, mas também espero ter controle e não lhe dar uns bons socos.

— Terá só um mês, Tearlach O’Duine — ela disse, ele­vando a voz. — Peço a Deus que não torne isso mais difícil do que já é. Venha me procurar. Não terá de fazer promessas nem pronunciar palavras de amor. Apenas venha e mostre o quanto sentiu falta de mim.

 

— Pleasance, eu gostaria que conhecesse Martha. — Nathan apresentou a criada que havia contratado.

Pleasance continuou sentada e estendeu a mão para a moça. O aperto de mão foi firme e a agradou. Seria bom ter alguém para ajudá-la, pois já encontrava alguma dificuldade com as tarefas caseiras.

— É um prazer conhecê-la, Martha. Espero que goste de trabalhar conosco.

— Poderia detalhar minhas tarefas, senhora? Receio que o sr. Dunstan não tenha sido muito claro.

— Eu lhe mostrarei o que deve ser feito e responderei às suas perguntas.

Nathan resmungou ao olhar a irmã sair da sala com a criada. Serviu-se de uma dose do uísque que fora comprado antes do inverno e não passara pela alfândega, rezando para agüentar duas mulheres em um espaço tão pequeno. Pleasance não demorou a voltar, e ele franziu o cenho ao vê-la sentar-se novamente.

— Que rapidez.

— Martha não é muito fina, mas fala pouco e entende tudo.

— Acha que vai dar certo?

— Não tenho dúvida. Mas por que a contratou em apenas uma semana?

— Não vi motivos para esperar. Com alguém para ajudá-la, você poderá descansar mais.

— Concordo — ela respondeu, sorrindo.

 

Duas semanas depois, Nathan se irritou deveras ao rece­ber a visita de Tearlach, e teve vontade de agredi-lo, dividido entre a frustração de perder a autonomia sobre a irmã e a von­tade de vê-la feliz. Esboçou um sorriso para Moira, antes de saudar formalmente o irmão dela.

— O que o trouxe aqui, Tearlach O’Duine?

Tearlach achou difícil enfrentar Nathan que, apesar de loi­ro, era muito parecido com Pleasance. Não podia tratar com dureza alguém que o mirava com os mesmos olhos dela.

Suando, e não pelo calor de setembro, tirou o tricórnio e jurou que seria cortês, independentemente das provocações.

— Fomos informados de que Pleasance estava morando com você e viemos visitá-la.

— Entrem. Pleasance está descansando na sala, o local mais fresco da casa neste calor opressivo. — Voltou-se para Martha, que se encontrava nos fundos do pequeno vestíbulo. — Martha, por favor, traga-nos uma bebida refrescante e algo para comer.

A mulher gorda e de olhar arregalado fez uma cortesia e disparou para a cozinha, enquanto Nathan levava os convida­dos para a sala.

Pleasance escutou outros passos além dos do irmão e sentou-se com mais decoro no sofá onde estivera escarrapachada. Ajeitou as saias e o avental branco para disfarçar o volume do ventre, e o cobriu com a camisa para remendar.

Felicitou a si mesma pelas precauções ao ver Tearlach entrando com Nathan.

— Tearlach! — exclamou, aborrecida por ainda achá-lo tão atraente.

— Pleasance... — Tearlach a cumprimentou com um gesto de cabeça. — Está com ótima aparência.

Moira a abraçou e beijou, radiante. Ao entender que a meni­na pressentira sua gravidez, Pleasance a fitou com um olhar penetrante, pedindo segredo. Moira anuiu e sentou-se a seu lado.

Enquanto Martha servia sidra e biscoitos, Pleasance aproveitou para observar Tearlach. Parecendo tenso e pouco à von­tade numa camisa de renda, que ficava ainda mais branca em contraste com a pele morena, ele se acomodou na ponta da cadeira.

Ela sentiu-se perigosamente lisonjeada com a preocupação dele em se vestir para agradá-la.

Tearlach procurou manter uma conversa cortês e frívola, mas se levantou assim que Martha saiu e fechou a porta.

— Vim para levar Pleasance comigo de volta a Berkshires.

— Talvez ela queira ficar aqui comigo. — Nathan também ficou em pé.

Espantada pela discussão repentina, Pleasance resolveu não intervir de imediato. Supondo que a verdade acabaria vindo à tona, divertiu-se ao ver os dois se encarando como inimigos.

Tearlach, impaciente, fitou Pleasance de soslaio. Vê-la após tantas semanas o deixava perturbado. Esquecido dos argumentos persuasivos, das palavras gentis e das lisonjas que preparara, teve vontade de lhe rasgar a touca, agarrar uma mecha de seus cabelos e arrastá-la de volta.

— Ela me deve trabalho — afirmou, o olhar fixo em Nathan.

Moira murmurou uma imprecação, e Pleasance continuou atenta a Tearlach, cujas palavras, embora esperadas, a fizeram sofrer.

— Ela não lhe deve nada! — Nathan foi brusco. — Paguei mais do que o necessário.

— Pleasance terá de honrar o acordo feito.

— Honrar um acordo baseado em mentiras? Não, sr. O’Duine. O senhor a fez trabalhar pesado por meses e ainda recebeu a fiança. Estamos conversados.

— Se precisa de uma escrava — Pleasance interveio, seca —, sugiro que vá procurar o próximo navio que atracar no porto de Boston. Tenho certeza de que poderá comprar o lote todo.

— Você... — Tearlach começou, e sentiu desvanecer as poucas esperanças de que Pleasance voltasse com ele.

— Eu contei a ela — Nathan declarou, desafiador.

— Quem lhe deu o direito de se intrometer?

— O fato de minha irmã estar em sua casa. Eu lhe dei o dinheiro da multa, portanto trate de procurar uma criada em outro local. Pleasance não está mais disponível.

— Não se pode quebrar um acordo jogando algumas moe­das sobre a mesa e levando a pessoa embora. A lei exige uma concordância no assunto, e não me recordo de ter concordado com nada.

— Saia daqui, Tearlach. — Pleasance procurava manter a dignidade. — Não suporto vê-lo.

Tearlach estremeceu como se tivesse levado um tiro. Ele a fitou por um longo momento, pôs o tricórnio na cabeça e deixou a sala.

Pleasance suspirou e fitou Moira, que a beijou no rosto.

— Coragem, Pleasance. — A menina piscou e correu atrás do irmão.

 

Tearlach afastou o prato e bebeu a cerveja sob o olhar implacável de Moira. Eles não haviam conversado desde a saída da casa de Pleasance e a chegada à estalagem Cobb's. Contudo, ele percebeu que o silêncio seria quebrado. Teve von­tade de correr para o quarto para não ter de enfrentar Moira, que tinha idade para ser sua filha.

— Não está com fome? — Moira fitou a comida que ele mal tocara e estalou a língua em reprovação. — Também, depois de tanta grosseria...

— Está me acusando de falta de sutileza?

— Sem dúvida. Não imaginei que meu próprio irmão pudesse ter a cabeça tão dura.

— Você se esquece com quem está falando, menina.

— Nada disso. Eu o amo e o respeito, mas é muito tolo em relação às mulheres. Esse encontro era muito importante, e o que você fez? Estragou tudo.

Mesmo sendo verdade, Tearlach não gostou da acusa­ção. Suspirou, esticou-se na cadeira e olhou para a ponta das botas.

— Mentir para ela não ajudou em nada — Moira continuou.

— Nunca menti para Pleasance.

— Como pode dizer isso? Não contou a ela a verdade sobre sua situação, deixando-a pensar que era um homem pobre. Nada dizer é o mesmo que mentir.

— Tem razão. Bem, agora será melhor descansarmos, pois sairemos logo cedo.

— Por quê?

— Temos de voltar para casa.

Tearlach estremeceu com o olhar insolente de Moira.

— Ah, então simplesmente desistirá e rastejará de volta para casa.

— Pleasance disse que não suporta me ver. — Aquelas palavras o haviam atingido como uma punhalada.

— Não importa, Tearlach. Pleasance disse aquilo em um ímpeto, e tudo mudará amanhã se você disser o que deveria ter dito hoje. Se ela não quisesse vê-lo, você não teria entrado naquela casa.

Tearlach se endireitou. Moira estava certa. Os Dunstan tinham sido precisos nas informações sobre o paradeiro de Pleasance. Ela não deixaria uma pista tão clara se não qui­sesse ser encontrada, e fora sua atitude imbecil que a deixara irritada.

— Por que tem de tornar tudo mais difícil? — Moira res­mungou. — Sei que não a quer de volta como criada, nem para cuidar de mim.

— Mas ela fez muito bem a você. — Tearlach admitia que Moira ficara mais calma e madura depois da vinda de Pleasance.

— Concordo, mas não é por isso que você a quer a seu lado. Por que não disse a ela palavras gentis, lisonjeiras, ou a pediu em casamento? Agora terá de cortejá-la.

— Eu?

— Sim, senhor. Até mesmo Tom Purdy, o homem mais grosseiro que conheço, fez a corte para a mulher dele, levando flores e coisas assim.

— Não tenho tempo para essas baboseiras.

— Se gosta de Pleasance, é melhor que arrume tempo. Terá de compensar o sofrimento que causou a ela, e não adian­ta parecer surpreso.

— Não sei se Pleasance sofre por minha causa.

— Que bobagem. Ela ia para a cama com você.

— Moira!

Ela ignorou a reprimenda.

— Pleasance nunca escondeu isso de mim, o que prova os sentimentos dela a seu respeito. Ela não é como Líza, da taverna de Purdy. É uma mulher direita, que apenas se entrega­ria a um homem se gostasse dele.

— Como sabe a respeito de Liza?

— Jake me contou.

— Ele fala demais.

— Não vamos discutir sobre isso. O problema agora é como fazer você e Pleasance ficar juntos. Se foi capaz de levar para a cama uma mulher tão correta, será capaz também de fazê-la acreditar que não a deseja apenas para que ela esfregue seu chão. Trate de encontrar as palavras certas.

Tearlach franziu a testa e deu um sorriso enviesado.

— Vamos dormir. Precisamos sair cedo amanhã.

— Ainda está pensando em voltar para casa?

— Não, minha doce e intrometida irmãzinha. Reconheço que o caminho para pedir a mão de Pleasance será longo e árduo. Portanto, terei de ficar bem descansado para percorrê-lo.

 

Pleasance suspirou quando Nathan, sorridente, entre­gou-lhe mais um pequeno ramalhete de violetas. Ela aca­baria enterrada por tantas flores, doces e bugigangas. Fazia duas semanas que não via Tearlach, mas ele a sufocava com inúmeros presentes.

Apenas o primeiro, uma colher de prata, viera com uma mensagem: Perdoe-me. Tearlach.

Mordeu o lábio. O pedido abrangeria tudo?

— Isso já está passando da conta. — Deixou as flores a seu lado no sofá.

— Creio que ele a esteja cortejando.

Nos últimos dias, a preocupação de Nathan com o futuro de Pleasance parecia ter diminuído.

— Na verdade é uma corte silenciosa, mais parecida com um pedido de desculpas.

— Deve ser a maneira de O’Duine solicitar as atenções de uma dama. — Nathan fitou o ventre arredondado da irmã. — Só espero que ele não se demore demais. Tem certeza de que está apenas de sete meses e meio?

— Não, mas não acredito que esteja na hora.

— Pleasance, acho que eu deveria...

— Nathan, por favor. Esperemos mais alguns dias. Preciso saber se ele me quer, e não apenas por causa do bebê.

— Está bem. Apenas mais alguns dias. — Nathan a ajudou a se levantar do sofá.

— Vou dar um passeio. A brisa fria servirá para me acalmar.

— Não vá muito longe. Quer que eu a acompanhe?

— Não será necessário, ficarei por perto.

Do lado de fora, Pleasance inspirou o aroma das flores e sorriu. Flores não lhe faltavam. Balançou a cabeça e caminhou até a mata que rodeava a casa.

Após alguns minutos na floresta fria, ouviu alguém que a chamava pelo nome. Espiou por sobre o ombro e deu um grito. Tearlach pulara a cerca baixa e se aproximava correndo.

Não era o momento para falar com ele. Por causa do calor, ela usava apenas a camisa debruada em renda, o corpete solto e uma anágua azul-clara. Não tinha saias nem avental para esconder a gravidez.

Decidida a se esconder, embrenhou-se na mata.

Uma imprecação seguida pelo som de botas deu-lhe a certeza de que Tearlach a perseguia.

No momento em que ela pensava em sentar-se e amontoar a saia em cima da barriga, tropeçou em uma raiz exposta e estendeu os braços para a frente a fim de amortecer a queda e não cair de bruços.

Em um instante, Tearlach estava a seu lado.

Pleasance sentou-se rapidamente, tentando ignorar a dor insuportável no tornozelo. Amontoou a anágua, vendo que Tearlach estava com a atenção fixa em seu pé.

— Você o torceu? — Ele lhe fez uma massagem delicada.

— Um pouco, mas a dor está passando. Preciso apenas descansar alguns minutos.

Tearlach sentou-se ao lado dela.

— Por que correu como se eu fosse seu inimigo?

— Eu não queria que conversássemos... a sós.

Pleasance sentiu uma dor súbita no ventre e se apavorou com a idéia de ter machucado a criança ou ter desencadea­do muito cedo o trabalho de parto. De repente, entendeu que estava na hora, por isso seu desconforto e ansiedade durante o dia.

Céus! Não haveria tempo para resolver o assunto com Tearlach.

— Tem certeza de que está bem? Você está pálida. — Ele fitava seu rosto e não se dera conta do que a anágua levantada escondia.

— Estou bem, Tearlach, mas o que veio fazer aqui?

— Não gostou das flores? — Ele se controlou para não tomá-la nos braços.

— Eram muito lindas. — Pleasance desejou que ele se apressasse, pois não conseguiria se manter em silêncio por muito tempo. — Suas desculpas foram aceitas.

— Eu pretendia me desculpar, mas também cortejá-la. Se não percebeu, então eu não me esmerei o suficiente. Presentes, belas palavras, lisonjas... é o que se costuma usar.

— Você se esqueceu das belas palavras e das lisonjas.

— Por isso vim vê-la hoje. Mas não posso prometer muito. Não sou um homem galante.

Outra contração a fez virar o rosto.

— Por que fez tudo isso? — indagou, tentando disfarçar a dor.

— Por que um homem corteja uma moça? Quero me casar com você.

O coração dela deu um pulo de esperança.

— Para cuidar de sua casa?

— Não. Pretendo contratar pessoas para fazer esse serviço.

— Por causa de Moira, então?

— Não, Pleasance. Por mim. Eu a quero de volta.

— E posso saber para quem eu deveria voltar? Para o pobre fazendeiro e caçador ou o rico comerciante? Ou será que existe algum outro Tearlach O’Duine?

— Sinto muito ter escondido a verdade de você, mas, assim que consegui juntar algumas moedas em meu bolso, aprendi o quanto elas atraem a maioria das mulheres. O problema era que eu não queria comprar uma esposa. Acha isso tão errado?

— Não. É desagradável ser testada, mas posso entender o que o levou a isso. Tenho visto Nathan enfrentar essa dificuldade.

— Então case-se comigo. O que mais quer de mim?

Havia muitas coisas, mas não haveria tempo para mais nada, ou um bastardo nasceria se ela não se apressasse.

— Há três coisas que desejo de você agora, Tearlach...

— E quais são?

— Primeira: ajude-me a ir para casa. — Ela o encarou. — Depois vá buscar o juiz de paz.

— Assim, tão depressa? — Ele se espantou. — Não quer uma comemoração?

— Creio que não terei tempo para isso. — Ela apertou o maxilar com uma nova contração e esticou o tecido sobre o ventre abaulado, achando engraçado vê-lo de boca aberta.

— A terceira coisa é que vá chamar uma parteira ou o médico!

Pleasance se maravilhou com a rapidez com que Tearlach se recuperou do susto. Ele a tomou nos braços e correu para o chalé, praguejando contra as mulheres por suas tolices.

Irrompeu na casa e, com um berro, fez Martha e Nathan surgir a seu lado. Distribuiu ordens e disse impropérios con­tra Nathan por permitir que Pleasance mantivesse segredo da gravidez, arriscando a legitimidade de seu filho. Em seguida a levou para cima, entrou no quarto, deixou-a aos cuidados de Martha e saiu correndo.

Uma hora mais tarde, quando Pleasance já estava preo­cupada, Tearlach entrou no quarto, trazendo Corbin com os cabelos desalinhados pelo vento. Ela mal teve tempo de cum­primentar o juiz, pois a cerimônia de casamento foi realizada de imediato.

Tearlach segurou sua mão e ignorou as perguntas de Corbin a respeito das irregularidades. Os dois homens empalideceram ao ver que as contrações continuavam, no entanto a cerimônia continuou sem interrupções.

Pleasance sentiu-se aliviada quando Tearlach a beijou nos lábios. A criança dentro dela, tão ansiosa por chegar ao mundo, não seria bastarda.

Nathan voltou nesse momento para anunciar que não encontrara nem a parteira nem o médico, e os três homens a fitaram com desamparo e horror. Martha, sempre quieta, não titubeou e começou a agir com eficiência, para surpresa de Pleasance, que não demorou em dar à luz um menino saudá­vel que não parava de chorar.

Vinte minutos mais tarde, Tearlach entrou no quarto e Pleasance sorriu, apesar da exaustão. Pela primeira vez ele lhe parecia hesitante, e ela o amou ainda mais por isso.

— Temos um filho, Tearlach.

— Eu sei — ele sussurrou. — Você está bem? — A emoção de vê-la com o filho deles nos braços o impediu de dizer outra coisa.

— Cansada, mas bem.

Tearlach queria dizer tantas coisas, mas as frases ficavam presas na garganta.

— Obrigado, esposa.

A maneira como ele disse as duas palavras fez o coração dela se inflar de esperança quanto ao futuro.

 

— Os aldeões saberão que tivemos intimidades antes de eu sair daqui — Pleasance murmurou e respondeu timida­mente ao aceno de Tom Purdy quando a carroça passou pela taverna dele. — Nenhuma participação pode ser mais ruidosa do que este bebê. — Ela acariciou as costas pequeninas do filho em uma tentativa vã de acalmá-lo, e o enrolou melhor na manta para protegê-lo do ar frio do início de novembro.

— E verdade. Thaddeus tem bons pulmões. — Tearlach espiou Moira por sobre o ombro e piscou quando a menina, sentada atrás deles, sorriu.

— Vocês dois sabem o que eu quis dizer — Pleasance retorquiu. — Como poderei encarar essas pessoas?

— De frente. Eles não são os puritanos de Worcester e têm coisas mais importantes com que se preocupar do que o com­portamento dos vizinhos.

Richard Treeman os cumprimentou. Tearlach deteve a carroça, tirou cuidadosamente o filho de dois meses dos braços de Pleasance e o exibiu com orgulho.

Ao mesmo tempo divertida e envergonhada, Pleasance ficou menos ansiosa quando um pequeno grupo de pessoas os rodeou. Algumas piscadelas eram sinais de que a concepção da criança anterior ao casamento era de conhecimento geral, mas que ninguém a condenava.

Pensou na atitude de familiares e conhecidos, e sorriu para Hope Treeman.

A maioria dos moradores da região não a perturbaria, e ela saberia ignorar os que a acusassem.

Assim que saíram da cidade, Pleasance abriu o corpete, desnudou um seio e começou a amamentar o filho. Corou ao perceber que Tearlach a fitava. Levaria tempo para ela se acostumar com aquele olhar cobiçoso que ela não seria capaz de modificar. Tearlach adorava observá-la amamentando o bebê, o que a comovia e a deixava confusa.

Muitas coisas a confundiam em relação a Tearlach. Depois do nascimento de Thaddeus, ele se mostrara tão terno que ela chegara a pensar que conquistaria o amor do marido, ou talvez que já o conquistara.

Mas o sonho tivera curta duração. Bem depressa, Tearlach voltara a ser afetuoso, mas arredio. Tanto que ela chega­ra a temer que a paixão tivesse morrido, pois até seus beijos tinham se tornado mais espaçados.

Algumas vezes tentara conversar sobre o futuro, os sen­timentos e as expectativas de ambos, mas Tearlach evitava o assunto, o que a confundia e entristecia.

Suspirou e bateu nas costinhas de Thaddeus para tirar o ar que ele pudesse ter engolido. Quando chegaram à cabana, apressou-se em fechar o corpete e se espantou. A casa, que não passava de um esboço quando ela saíra dali com Nathan, estava pronta, e até com o terraço na frente toda.

— Você nada me contou nada! — exclamou, quando Tearlach parou a carroça.

— Eu queria lhe fazer uma surpresa e também não tinha certeza de que a casa ficaria pronta a tempo. Quando saí daqui, deixei Jake supervisionando a obra e, pelo visto, ele apres­sou os trabalhadores. Quando paramos na cidade, Tom Purdy sussurrou que ela fora terminada. Ainda há alguns detalhes a ser feitos, mas ela está habitável.

— É linda, Tearlach! Temos de agradecer a Jake.

— Ali vem ele. Jake se mudou para a cabana. — Tearlach abaixou a voz. — Com essa idade, ele não podia ficar mais naquele casebre.

— Claro, ele ficará ao nosso lado.

 

As horas seguintes foram exaustivas para Pleasance. Tearlach mostrou-lhe a residência, e ela ficou encantada com tudo, principalmente com as grandes lareiras nos quartos. A casa precisava de decoração, entretanto, pois a mobília de Tearlach era escassa e não adequada.

Pleasance corou ao ver o quarto deles, onde encon­trou a única peça nova do mobiliário: uma enorme cama de baldaquino.

Desempacotar as coisas, guardá-las, preparar a refeição e cuidar do bebê ocupou-a até a hora de dormir.

Ficou surpresa ao encontrar um banho quente à sua espe­ra, no quarto, e tratou de aproveitá-lo. Sentiu-se bem melhor após soltar os músculos doloridos e vestir a camisola.

Sentou-se diante da lareira, sobre a pele de urso, e escovou os cabelos, deixando-os secar com o calor.

De repente, a porta foi aberta: Tearlach entrou, e ela prendeu a respiração ao vê-lo: seus cabelos molhados caíam em ondas pelo pescoço forte. Ele usava um kilt escocês que chegava aos joelhos, com uma faixa longa do mesmo tecido cruzando o peito desnudo. O aspecto um tanto bárbaro do traje era muito atraente, contudo. Ela nunca o vira vestido como esco­cês, mas imaginou o que ele pretendia ao sentar-se a seu lado.

— Por que me olha desse jeito? — ele murmurou.

— Imagino o que o fez usar essa roupa.

— Quando conversamos na mata, no dia do nascimen­to de Thaddeus, você me perguntou com qual homem vol­taria a Berkshires. Por isso decidi lhe mostrar o verdadeiro.

Tearlach O’Duine.

— Está muito atraente — ela murmurou e sorriu. — E suponho que eu deva lhe agradecer pelo banho e pela lareira acesa.

— Sim, esta é uma ocasião especial.

— Qual? — Pleasance pensou que houvesse esquecido alguma data importante.

— Thaddeus já tem dois meses e não precisaremos mais caminhar na ponta dos pés, um ao redor do outro... a menos que não se sinta pronta. Nesse caso poderei esperar mais um pouco. — Ele franziu o cenho quando ela riu. — Qual a graça?

— Sinto muito, mas eu não tinha entendido que você esta­va me preservando. E sou obrigada a dizer que sua sugestão de esperar foi feita com voz de mártir.

Tearlach riu, deitou Pleasance na pele de urso e a beijou.

— O que tinha em mente? — perguntou com voz rouca.

— Bem, eu estava um pouco preocupada por achar que você tinha perdido a paixão por mim. — Ela escutou um som abafado e olhou para cima. — Por que está rindo?

— Desculpe, não pude evitar. — Tearlach escondeu o rosto no pescoço macio e riu a valer.

— Fico feliz por tê-lo feito se divertir tanto.

— Ah, minha querida... Às vezes você é encantadoramen­te tola. Pensou mesmo que eu tivesse perdido meu desejo por você? — Ele balançou a cabeça. — Eu me senti atraído por você desde o início, e essa foi a causa de todos os nossos problemas.

— Verdade? Achei que os problemas haviam começa­do quando o rejeitei. — Pleasance notou o olhar sombrio e sorriu. — Nunca me perguntou por que eu fiz aquilo.

— Tinha o direito de mudar de opinião, e eu não deveria ter me irritado por isso.

— Ao contrário, você tinha o direito de se zangar. Eu o fiz acreditar que estava contente com os seus galanteios, e era o que acontecia.

— Então por que me rejeitou? Eu não poderia imaginar que era tão volúvel.

— Meus pais ordenaram que eu desistisse de você em favor de Letitia.

Tearlach ficou surpreso e sentou-se.

— Eles fizeram isso?

— Sim. Meu pai havia prometido a Letitia que ela pode­ria escolher o marido que quisesse, e ela resolveu que seria você. Portanto, eu deveria deixar claro que você não me inte­ressava mais.

Tearlach não acreditava no que ouvia.

— Não entendo por que obedeceu.

— Talvez esteja na hora de você saber que se casou com uma covarde.

— Depois de tudo o que enfrentou, eu jamais pensaria isso.

— Pois eu costumava ser e fazia tudo o que minha família mandasse. Queria agradá-los a qualquer custo. Quando pedi­ram que eu me afastasse, protestei, mas não por muito tem­po. Achei mais fácil desistir do homem que me interessava do que aborrecer meus pais ou Letitia.

— Então você me desejava naquela época.

— Escutou tudo o que lhe contei?

— Sim, e apesar de estranhar, creio que posso entendê-la.

— Sei que feri seu orgulho, mas não pude contrariar minha família.

— Foi muito mais do que isso, Pleasance. Acha que eu fica­ria tão furioso só porque feriu meu orgulho? Ele, de fato, é muito grande, mas não foi isso o que me deixou tão amargo.

— Achou que eu fosse uma aristocrata mimada e volúvel.

— Sei que fui injusto. Na verdade, você me rejeitou com menos tato do que eu merecia, mas eu não deveria ter me vingado. O problema foi que aquilo me feriu e fiquei ainda mais irritado por não poder esquecê-la.

— Perdoe-me, Tearlach, jamais desejei magoá-lo.

— E eu peço desculpas por ter sido tão desprezível. Na ver­dade, nunca pensei que minhas acusações a levassem a um julgamento. Eu a ataquei da única maneira que conhecia.

— De certa forma, creio que isso tenha me ajudado. Você me afastou de minha família e aqui, aprendi a contar comi­go mesma. Quando voltei a Worcester, descobri que eles não me intimidavam mais, e ficar sabendo que eu não era filha legítima me ajudou a ver o relacionamento com eles sob uma nova perspectiva. Há males que vêm para o bem.

Tearlach segurou o rosto delicado e a beijou enquanto a deitava. Devagar, e de maneira excitante, tirou-lhe a roupa, beijando cada parte que ficava exposta.

— Por Deus... — sussurrou após tirar o saiote dela. Fazia meses não encostava em Pleasance. — Senti muito a sua falta.

— Eu também senti a sua, escocês.

O amor deles logo se tornou selvagem. Pleasance não se reprimiu, retribuiu as carícias em igual medida e deixou livre a própria sensualidade, tentando demonstrar com o corpo as emoções que não tivera coragem de expressar com palavras.

Sua realização foi rápida, intensa, e acompanhou a dele.

Ficaram abraçados por um bom tempo, e Pleasance refletiu que estava satisfeita com o que tinha.

— Pleasance — ele murmurou —, creio que devemos ser mais parcimoniosos com essa paixão, ou ficarei velho antes do tempo.

Ela riu e o empurrou.

Tearlach se apoiou no cotovelo para olhá-la.

— Isso também esgota minha energia — ela concordou.

— Você é um achado raro para qualquer homem, e sou abençoado por tê-la encontrado. Não é sempre que um sujeito depara com uma mulher que possa ser tão boa esposa e mãe amorosa. E uma linda moça, capaz de me dar filhos fortes, e uma amante que me deixa fraco como uma criança.

— Obrigada. — Ela entendeu que corava pelo sorriso dele. — Sinto que também consegui o melhor. Posso me queixar de tempos em tempos de sua cabeça dura, mas sinto-me afortuna­da com você.

— Então nos daremos muito bem.

Tearlach ficou sério de repente, desapontado por ela não se referir ao que mais importava agora: o amor. Queria o amor de Pleasance.

A repentina barreira entre eles a deixou confusa, Ela sabia o que a perturbava, mas não entendia o que acontecera com Tearlach.

— Acho que já é tempo de dizermos algumas verdades e esperar o melhor. Não quero que isso continue acontecendo durante nosso casamento.

— O que houve? — ele indagou, pensando que ela se refe­ria à sua mudança de humor.

— Ainda pergunta? Será que não sentiu nenhuma mudan­ça? Acabamos de fazer amor quase com selvageria e, no instante seguinte, nos distanciamos. — Pleasance se endirei­tou e o encarou. — Decidi não ser mais covarde nem esconder meus sentimentos.

— Isso está me parecendo algo perigoso.

— Não deveria, pois tenho apenas três palavras para dizer: eu amo você.

Tearlach mal acreditou no que ouvira. Ela dissera aquilo como se esperasse ser repreendida pela confissão.

— O que foi que disse?

— Eu te amo.

Tearlach começou a rir, completamente feliz, e Pleasance se ressentiu. Ao ver seu olhar de sofrimento, ele se apressou em tomá-la nos braços e beijá-la nas faces.

— Não fique assim. Jamais ouvi palavras tão bem-vindas. — Por favor, não chore, minha doce Pleasance... Eu também te amo! Eu amei você muito antes do que gostaria de admitir.

Pleasance se arriscou a fitá-lo, A expressão de Tearlach trouxe alegria a seu coração, mas ela ainda temeu ter se enganado.

— Você me ama?

— Eu venero você, Pleasance O’Duine. — Ele a beijou nos lábios após cada palavra e se admirou ao vê-la esconder o rosto e soluçar. — Maldição, isso deveria fazê-la sentir-se melhor!

— E faz! — Pleasance procurou se controlar. — Sinto muito.

— Você é mesmo capaz de me desconcertar.

— Eu me preparei como um soldado para dizer o que sinto, mas não estava preparada para ouvir a mesma coisa.

— E por isso começou a chorar?

— Não tente entender. Nem eu mesma entendi minha reação.

— Felizmente não estou sozinho em minha confusão. Ah, querida, eu amo você, mesmo quando age como uma maluca... Não sei ainda se o sentimento me agrada, pois ele às vezes me faz agir como um tolo, mas sei que será uma emoção que perdu­rará para sempre, Estou apaixonado por você, Pleasance.

— Não imagino outro lugar onde eu poderia me sentir melhor, nem outro homem com quem eu gostaria de ficar. Existe apenas uma questão que eu gostaria de esclarecer.

— E do que se trata? — Tearlach abriu o decote da camisola dela.

— Gostaria de saber a respeito daquelas cartas de Letitia.

— Ah. Sua irmã tem sentimentos malignos.

— Algum deles foi justificado? Quero dizer, você e Letitia...

— Se dormimos juntos? Claro que não. Cheguei a pen­sar nisso por estar com raiva de você, mas eu não a desejava. Você já tinha capturado o meu corpo, e meu coração o seguiu. O mundo a viu como minha criada temporária, mas a verda­de era bem diferente... Não havia dinheiro nisso, e sim uma ligação tão firme como uma rocha.

— Sei o que quer dizer. Eu mesma sinto com você um vín­culo que jamais será rompido.

— Então trilharemos juntos e felizes nosso caminho. — Ele a beijou nos lábios. — Os liames entre nós serão eternos.

Pleasance sorriu. Sabia que aquela verdade se aplicava a ambos, e que eles permaneceriam unidos até o fim da vida.

 

 

                                                                  Hannah Howell

 

 

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