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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DIREITOS IGUAIS RITUAIS IGUAIS / Terry Pratchett
DIREITOS IGUAIS RITUAIS IGUAIS / Terry Pratchett

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DIREITOS IGUAIS RITUAIS IGUAIS

 

ESTA É UMA HISTÓRIA SOBRE MAGIA, O LUGAR para onde ela vai e, talvez principalmente, de onde vem e por que, embora o livro não pretenda responder nem a todas, nem a qualquer uma dessas questões.

Pode, no entanto, ajudar a explicar o motivo de Gandalf nunca ter se casado e de Merlin ser homem. Porque também é uma história sobre sexo, embora muito provavelmente não no sentido atlético e acrobático em que se contam as pernas para dividir por dois, a menos que os personagens fujam ao controle do autor. Pode acontecer.

Seja lá como for, é, em essência, a história de um mundo. Ali vem ele. Observe com atenção, os efeitos especiais são bem caros.

Um som grave se faz ouvir. Trata-se de um acorde vibrante e profundo sugerindo que a qualquer momento os metais podem desatar numa fanfarra para o cosmo. O cenário é a escuridão retinta do espaço com algumas estrelas brilhando feita caspa nos ombros de Deus.

Então, ainda maior e mais terrivelmente armado do que o maior cruzador estelar saído da imaginação de um cineasta lunático, ela surge acima: uma tartaruga com 16 mil quilômetros de comprimento. É Grande A'Tuin - um dos raros astroquelônios de um universo em que as coisas são menos como são e mais como as pessoas imaginam — e ela traz na carapaça marcada por crateras quatro elefantes gigantescos que, por sua vez, sustentam no lombo a imensa roda do Discworld.

Quando mudamos o ponto de vista, um mundo inteiro pode ser visto à luz do minúsculo sol. Há continentes, arquipélagos, oceanos, desertos, cordilheiras e até uma calota glacial central. É evidente que os habitantes desse lugar não querem nem saber de teorias sobre globos. O mundo deles, limitado por um mar circundante que não pára de desaguar no espaço através de uma imensa queda-d’água, é redondo e plano como uma pizza geológica, embora sem anchovas.

Um mundo assim, que só existe porque os deuses apreciam uma boa piada, deve ser um lugar onde a magia subsiste. E o sexo também, é claro.

Ele vinha andando debaixo da tempestade. Dava para ver que era mago, também por causa do manto comprido e da vara entalhada, mas principalmente porque as gotas da chuva paravam e evaporavam alguns metros acima de sua cabeça.

Chovia muito nas Montanhas Ramtop, uma região de picos pontiagudos, florestas fechadas e pequenos vales fluviais tão enfiados entre as encostas que, mal a luz do dia chegava ao fundo, já estava na hora de voltar. Farrapos de nuvem se adensavam nos picos menos elevados, abaixo da trilha difícil pela qual o mago avançava aos escorregões. Umas poucas cabras o observavam com algum interesse. Não é preciso muito para despertar o interesse das cabras.

De vez em quando ele parava e jogava a vara no ar. O objeto caía sempre apontando no mesmo sentido. O mago suspirava, pegava o bastão e continuava a escorregadia caminhada.

A tempestade açoitava as colinas, trovejando.

O mago sumiu na curva da trilha. As cabras voltaram a pastar o capim molhado.

Até outra coisa fazê-las olhar para cima. O pêlo dos animais se arrepiou, os olhos se arregalaram e as narinas se abriram, alargadas.

Era uma reação estranha, porque não havia nada na trilha. Mas as cabras olharam o nada passar até desaparecer de vista.

 A aldeia ficava metida num vale estreito entre as escarpas cobertas por densa mata. Era uma aldeia pequena. Num mapa das montanhas, nem teria aparecido. Mal aparecia no mapa da aldeia.

Era, na verdade, um desses lugares que só existem para as pessoas saírem de lá. O mundo está cheio deles: povoados remotos, cidadezinhas castigadas pelo vento sob a vastidão do céu, cabanas isoladas em montanhas frias cuja única importância na história consiste em ser um lugar totalmente ordinário onde algo extraordinário começou a acontecer. Muitas vezes nesses lugares nada existe além de uma placa para indicar que, contra toda probabilidade ginecológica, uma pessoa muito famosa nasceu no meio de um caminho, em cima de um muro.

A névoa enroscou-se por entre as casas quando o mago cruzou a ponte estreita sobre o regato e se dirigiu à ferraria da aldeia, embora os dois fatos não tivessem nada a ver um com o outro. A névoa teria feito aquelas voltas de qualquer maneira: era uma névoa experiente e havia levado ao grau de excelência o ato de dar voltas.

É claro, a ferraria estava cheia de gente. Ferraria é um lugar onde podemos estar certos de encontrar uma boa fogueira e alguém para conversar. Vários aldeões estavam recostados de qualquer jeito nas sombras aquecidas. Quando o mago se aproximou, endireitaram-se e tentaram parecer espertos, sem conseguir convencer quase ninguém.

O ferreiro não se sentiu obrigado a ser tão subserviente. Cumprimentou o mago, mas foi um cumprimento entre iguais, pelo menos na opinião do ferreiro. Afinal, qualquer ferreiro com alguma competência no ofício tem mais que uma simples familiaridade com a magia. Pelo menos gosta de pensar que tem.

O mago fez uma saudação. O gato branco, que dormia perto da fornalha, acordou e o observou, atento.

-           Senhor, qual é o nome deste lugar? - perguntou o mago.

O ferreiro encolheu os ombros.

-           Cabra da Peste - respondeu afinal.

-           Cabra...?

-           ... da Peste - repetiu o ferreiro, com o tom de voz a desafiar qualquer um que ousasse criar caso.

O mago considerou a situação.

-           Um nome com uma história por trás - disse por fim. - Em

outra ocasião adoraria ouvir em que circunstâncias a aldeia ganhou esse nome. Mas agora gostaria de falar com o senhor sobre o seu filho.

-           Qual deles? - disse o ferreiro, e os desocupados presentes riram abafado. O mago sorriu.

-           O senhor tem sete filhos, não tem? E é o oitavo filho de seus pais.

O rosto do ferreiro endureceu. Ele se virou para os outros aldeões.

-           Olhai, a chuva já tá parando - gritou ele. - Fora todo mundo. Eu e o... - O ferreiro olhou para o mago com as sobrancelhas erguidas.

-           Drum Billet — completou o mago.

-           Eu e o senhor Billet temos coisas pra conversar.

Ele agitou um pouco o martelo, e a platéia se foi, um depois do outro, espiando sobre os ombros para não perder nada do que o mago fizesse de interessante.

O ferreiro apanhou algumas ferramentas embaixo de um banco. Pegou uma garrafa no armário próximo ao tanque e serviu um líquido claro em dois copinhos.

Os dois homens se sentaram e observaram a chuva e a névoa brigando em cima da ponte. Então o ferreiro disse:

-           Sei de que filho o senhor está falando. Vovó está com minha mulher agora. É claro, o oitavo filho de um oitavo filho. Já tinha passado pela minha cabeça mas, para ser sincero, não parei pra pensar muito no assunto. Ora, ora. Mago na família, né?

-           O senhor pega as coisas rápido — disse Billet.

O gato branco pulou de onde estava, deu voltas no chão e saltou no colo do mago, onde se enroscou afinal. Distraído, Billet alisava o animal.

-           Ora, ora — disse o ferreiro outra vez. — Um mago em Cabra da Peste, hein?

-           Possivelmente, possivelmente - respondeu Billet. - É óbvio que ele vai ter que ir à Universidade antes. Mas é claro que ele deve se dar muito bem.

O ferreiro considerou a idéia de todos os ângulos e decidiu que era muito boa. Um pensamento lhe ocorreu.

-           Espere aí - pediu ele. - Estou tentando me lembrar do que meu pai me falou. O mago que sabe que vai morrer pode meio que passar meio que sua magia meio que para um sucessor, não é isso?

-           Nunca ouvi nada posto de maneira mais sucinta. Exatamente - disse o mago.

-           Então o senhor meio que vai morrer?

-           Pois é.

O gato ronronou quando os dedos provocaram cócegas atrás de sua orelha. O ferreiro parecia constrangido.

-           Quando?

O mago pensou por um instante.

-           Dentro de uns seis minutos.

- Ah.

-           Não se preocupe - disse o mago. - Para dizer a verdade, estou bastante ansioso. Ouvi dizer que não dói nada.

O ferreiro pensou um pouco na última frase.

-           Quem disse? - perguntou por fim.

O mago fingiu não ouvir. Estava olhando a ponte, procurando sinais de turbulência na névoa.

-           Olhe - disse o ferreiro. - É melhor o senhor me contar como é que se cria um mago, entende, porque não tem outro desses profissionais na região e...

-           Tudo vai se resolver - garantiu Billet. - A magia me guiou até aqui e vai cuidar de tudo. Quase sempre cuida. Acho que ouvi um choro.

O ferreiro olhou para o teto. Acima do barulho da chuva, pôde ouvir o som de um par de pulmões novíssimos em plena ação. O mago sorriu.

-           Peça que o tragam aqui — disse ele.

O gato se sentou e olhou interessado para a ampla porta da oficina. Quando o ferreiro gritou animado para a escada, o bichano saltou para o chão e começou a andar devagar, ronronando como uma serra de fita.

Uma mulher alta de cabelos brancos surgiu ao pé da escada, segurando uma trouxa. O ferreiro pediu que ela fosse até onde estava o mago.

-           Mas... - começou a mulher.

-           É muito importante - cortou o ferreiro, fazendo-se importante. - Senhor, o que fazemos agora?

O mago suspendeu a vara. Era do tamanho de um homem, quase tão grossa quanto seu pulso e coberta de entalhes que pareciam mudar sob a vista do ferreiro, como se ela não quisesse que ele visse do que se tratava.

-           A criança deve segurá-la - disse Drum Billet.

O ferreiro assentiu e remexeu a trouxa até localizar uma minúscula mão rosada. Então a conduziu com suavidade até a madeira. E a mãozinha segurou firme o objeto.

-           Mas... — insistiu a parteira.

-           Vovó, está tudo bem. Sei o que estou fazendo. Ela é bruxa, senhor, não lhe dê ouvidos. Bom - disse o ferreiro. - E agora?

O mago permaneceu em silêncio.

-           O que fazemos ag... - começou o ferreiro e parou.

Ele se inclinou para olhar o rosto do velho mago. Billet estava sorrindo, mas quem saberia qual era a piada?

O ferreiro empurrou o bebê de volta aos braços da parteira irrequieta. Então, com o máximo de respeito possível, desprendeu da vara os dedos finos e pálidos do mago.

O bastão possuía uma textura estranha e oleosa, como eletricidade estática. A madeira era quase negra, mas os entalhes se mostravam ligeiramente mais claros e feriam os olhos de quem tentava entender o que eram.

-           Satisfeito? - perguntou a parteira.

-           Hã? Ah. Estou. Na verdade, estou. Por quê?

Ela puxou de lado uma dobra da manta. O ferreiro olhou para baixo e engoliu em seco.

-           Não - murmurou ele. - Mas o mago disse...

-           E como é que o mago saberia? - irritou-se Vovó.

-           Ele disse que seria um filho!

-           Não me parece que seja um filho, meu caro.

O ferreiro se deixou cair no banco, com a cabeça escorada nas mãos.

-           O que foi que eu fiz? — resmungou ele.

-           Deu ao mundo sua primeira maga - respondeu à parteira.

-           Onde qui tá mia fofa?

-           O quê?

-           Eu estava falando com a menina.

O gato branco ronronou e arqueou as costas como se estivesse se esfregando nas pernas de um velho amigo - o que era estranho, porque não havia ninguém ali.

- Fui insensato - disse uma voz usando tons que nenhum mortal jamais conseguiria ouvir. - Achei que o poder mágico ia saber o que estava fazendo.

-           TALVEZ SAIBA.

-           Se pelo menos eu pudesse fazer alguma coisa...

-           NÃO TEM VOLTA. NÃO TEM VOLTA - disse a voz grave e pesa

da como portas de cripta se fechando.

O fiapo de nada que era Drum Billet pensou por um instante.

-           Mas ela vai ter muitos problemas.

-           A VIDA É ASSIM. PELO MENOS FOI O QUE OUVI DIZER. EU MES

MO NÃO SABERIA, É CLARO.

-           Mas e a reencarnação?

Morte hesitou.

-           VOCÊ NÃO GOSTARIA - disse. - VÃ POR MIM.

-           Ouvi dizer que algumas pessoas reencarnam o tempo todo.

-           É

-           É PRECISO TREINAMENTO. O SUJEITO COMEÇA PEQUENO E VAI AVANÇANDO. VOCÊ NÃO FAZ IDÉIA DE COMO É HORRÍVEL SER FORMIGA.

ruim:

- NEM IMAGINA. E, COM O SEU CARMA, FORMIGA É QUERER DEMAIS.

O bebê havia sido levado de volta para a mãe. O ferreiro observava a chuva, desanimado.

um Billet coçou o gato atrás da orelha e pensou em sua vida. Havia sido longa - essa era uma das vantagens de ser mago - e ele tinha feito muitas coisas de que não se orgulhava. Já era hora de...

-           NÃO TENHO O DIA TODO - disse Morte, reprovando a demora.

O mago baixou os olhos e notou que agora o gato parecia muito estranho.

Os viventes quase nunca percebem como o mundo parece complicado para quem está morto porque a morte, além de liberar a mente da camisa-de-força das três dimensões, também rompe as amarras do Tempo - que não passa de outra dimensão. Assim, embora o gato que agora roçava a perna invisível fosse sem dúvida o mesmo gato que Billet havia visto alguns minutos antes, também era muito claramente um filhotinho, um gato velho - gordo e quase cego - e todas as fases intermediárias. Tudo de uma só vez. Na verdade, parecia uma cenoura branca em forma de gato - descrição com a qual teremos que nos contentar até que alguém invente adjetivos quadridimensionais mais apropriados.

Morte bateu a mão esquelética de leve no ombro do mago.

-           VAMOS, MEU FILHO.

-           Não tem nada que eu possa fazer?

-           A VIDA É PARA QUEM VIVE. NÃO TEM JEITO, VOCÊ DEU A VARA PRA ELA.

-           É. Foi mesmo.

O nome da parteira era Vovó Cera do Tempo. Ela era bruxa. Era um ofício bem aceito nas Ramtops. Ninguém nunca tinha nada para falar contra as bruxas. Principalmente se fizesse questão de acordar pela manhã com a mesma aparência com que se havia deitado.

O ferreiro ainda estava contemplando a chuva desanimado quando a mulher surgiu outra vez na escada e cutucou seu ombro.

Ele olhou para ela.

-           Vovó, o que devo fazer? - perguntou, sem conseguir esconder a súplica na voz.

-           Que fim deu no mago?

-           Botei no depósito de combustível. Fiz certo?

-           Por enquanto isso basta - respondeu ela. - Agora precisa queimar a vara.

Os dois viraram para olhar o bastão, que o ferreiro havia apoiado no canto mais escuro da oficina. A vara parecia quase olhar de volta.

-           Mas é mágica - sussurrou ele.

-           E daí?

-           Será que vai queimar?

-           Não conheço madeira que não queime.

-           Não me parece certo!

Vovó Cera do Tempo fechou a porta e se virou irritada para ele.

-           Agora escute aqui, Gordo Smith! - disse ela. - A existência

de magas também não está certo! Não é o tipo de magia adequado para mulheres, é magia de magos: só livros, estrelas e jometria. Ela nunca vai entender. Alguém já ouviu falar de magas?

-           Existem bruxas - disse o ferreiro, sem muita convicção. – E feiticeiras também. Ouvi dizer.

-           Bruxas são outra história - rebateu Vovó Cera do Tempo. - É magia da terra, não do céu. E os homens nunca pegaram o jeito da coisa. Quanto a feiticeiras - acrescentou - não fazem nada mais do que deveriam. Vá por mim: queime a vara, enterre o corpo e finja que tudo isso nunca aconteceu.

Relutante, Smith assentiu, cruzou a oficina e bombeou o fole até saltarem faíscas. Então se dirigiu à vara. Pegou e tentou puxar. Ela não se mexia.

-           Está presa!

Fazia força e o suor lhe brotava da testa. O bastão permanecia obstinadamente imóvel.

-           Sai daí, me deixe tentar — disse Vovó, passando à frente dele.

Houve um estrondo e surgiu um cheiro forte de estanho queimado.

Resmungando, Smith correu até o outro lado da oficina, onde Vovó tinha ido parar de cabeça para baixo.

-           A senhora está bem?

Ela abriu dois olhos como diamantes enfurecidos e disse:

-           Ora, ora. Então é assim, não é?

-           É assim o quê? - perguntou Smith, desorientado.

-           Ajude aqui, imbecil. E me traga um machado.

O tom de voz era de quem não queria ser desobedecida. Morrendo de medo, Smith vasculhou a tralha nos fundos da oficina até achar um velho machado.

-           Ótimo. Agora tire o avental.

-           Para quê? O que pretende fazer? - disse o ferreiro, que já começava a perder o fio da meada.

Vovó deu um suspiro irritado.

-           É couro, idiota. Vou amarrar o avental em volta do cabo.

Esse negócio não vai me pegar duas vezes!

Smith tirou o pesado avental de couro e entregou-o cauteloso à mulher. Ela enrolou a pele no cabo do machado e fez um ou dois movimentos no ar. Então, feito uma aranha sob o clarão da fornalha quase incandescente, atravessou a ferraria e, num grunhido de esforço e vitória, desceu a lâmina pesada no meio exato da vara.

Ouviu-se um clique. Ouviu-se um ruído parecido com o som de uma perdiz. Ouviu-se um baque.

Ouviu-se o silêncio.

Smith estendeu a mão devagar, sem mexer a cabeça, e tocou a lâmina. Não estava mais no machado. Havia se enterrado na porta - do lado de sua cabeça - tirando um minúsculo naco da orelha.

Vovó estava parecendo trêmula demais para quem tinha acertado um objeto completamente imóvel e ainda fitava o toco de madeira que tinha nas mãos.

-           Tttuuuddooo bbeeeemmm — ela gaguejou. — Nnneeessseee ccaaassooo...

-           Não! - disse Smith, decidido, esfregando a orelha. - O que quer que a senhora sugira, não. Deixe pra lá. Vou empilhar alguns trastes em volta da vara. Ninguém vai perceber. Deixe. É só um pedaço de pau.

-           Só um pedaço de pau?

-           Tem alguma idéia melhor? Uma que não me corte fora a cabeça?

A mulher olhou para a vara, que pareceu nem notar.

-           Agora não - admitiu. - Mas me dê algum tempo...

-           Tudo bem, tudo bem. De qualquer modo, tenho coisas para fazer, magos para enterrar, sabe como é.

Smith pegou uma pá atrás da porta dos fundos e hesitou. -Vovó.

-           Que é?

-           A senhora sabe como os magos são enterrados?

-           Sei!

-           Como?

Vovó Cera do Tempo se deteve ao pé da escada.

-           Com relutância.

Mais tarde, quando o último raio de luz do mundo fluiu para fora do vale, a noite caiu serena e uma lua pálida e lavada de chuva brilhou entre as estrelas. Do sombrio pomar atrás da ferraria, vinham ocasionais tinidos de pá e praguejamentos abafados.

No berço do andar de cima, a primeira maga do mundo sonhava com quase nada.

O gato branco estava deitado meio adormecido no seu lugar favorito, perto da fornalha. O único barulho na oficina quente e escura era a crepitação dos carvões ajeitando-se sob a cinza.

A vara permanecia no canto - onde queria ficar - envolta em sombras um pouco mais escuras do que são as sombras em geral.

O tempo passou — cumprindo sua função básica.

Houve um leve tinido e uma agitação no ar. Depois de um tempo, o gato se sentou e passou a observar o negócio com atenção.

Amanheceu. Nas Ramtops, a alvorada era sempre impressionante, em especial quando uma tempestade havia limpado a atmosfera. O vale em que se encontrava Cabra da Peste dava vista para uma paisagem de montanhas menores e contrafortes, agora tingidos de roxo e laranja pela luz do alvorecer, a fluir suavemente na superfície (porque a luz se locomove em ritmo lento no vasto campo mágico do Discworld). Mais adiante, as grandes planícies ainda não passavam de um pântano de sombras. Mais longe ainda, o oceano soltava lampejos ocasionais.

Na verdade dali dava para ver a beira do mundo.

Não se trata de mera imagem poética, mas de um fato, já que o mundo era definitivamente plano e vinha sendo carregado através do espaço no lombo de quatro elefantes, que, por sua vez, sustentavam-se na carapaça de Grande A’Tuin, a Tartaruga Celestial.

A aldeia de Cabra da Peste está acordando. O ferreiro acabou de entrar na oficina e descobrir que o lugar está arrumado como nunca esteve nos últimos cem anos, com todas as ferramentas no local exato, o chão varrido e um fogo recém-aceso na fornalha. Ele está sentado na bigorna - que foi arrastada até o outro lado da ferraria - observando a vara e tentando pensar.

Durante sete anos, nada de mais aconteceu, salvo por uma das macieiras no pomar da ferraria, que cresceu muito mais do que as outras e era sempre escalada pela menininha de cabelo castanho com uma fenda entre os dentes da frente e traços que prometiam transformá-la numa mulher, senão bonita, pelo menos sedutoramente interessante.

Foi batizada Eskarina sem nenhum motivo especial, só porque a mãe gostava do som da palavra. Vovó Cera do Tempo ficou sempre de olho atento nela, mas nunca detectou nenhum sinal de magia. Era verdade que ela passava mais tempo que as outras meninas subindo em árvores e correndo pelas redondezas, mas podemos relevar muita coisa numa garota com quatro irmãos mais velhos em casa. Na verdade, a bruxa começou a relaxar, imaginando que a magia não tinha vingado.

A magia, porém, tem o costume de ficar na moita.

 O inverno voltou rigoroso. As nuvens se aglomeravam em torno das Ramtops como enormes ovelhas gordas, enchendo os riachinhos de neve e transformando as florestas em cavernas sombrias e silenciosas. As estradas mais altas foram fechadas. As caravanas só voltariam na primavera. Cabra da Peste virou uma pequena ilha de luz e calor.

No café-da-manhã, a mãe de Esk disse:

-           Estou preocupada com Vovó Cera do Tempo. Não tem mais aparecido.

Smith fitou a esposa por cima da colher de mingau.

-           E você está reclamando? - perguntou. - Ela...

-           Ela tem nariz grande - cortou Esk.

Os pais se voltaram para a menina.

-           Não tem a menor necessidade de fazer esse tipo de comentário - disse a mãe com rispidez.

-           Mas papai disse que ela está sempre metendo o dedo no...

-           Eskarina!

-           Mas ele disse...

-           Eu já falei...

-           Tá bom, mas ele disse que ela tem...

Smith estendeu o braço e lhe deu um tapa. Não foi forte, mas ele se arrependeu no mesmo instante. Sempre que mereciam, os meninos lhe sentiam a palma da mão e, vez por outra, até a largura do cinto. O problema com a filha, no entanto, não eram as travessuras comuns, mas a maneira enervante com que se agarrava num argumento, insistindo muito tempo além do que deveria. Isso sempre o deixava perturbado.

Ela desatou a chorar. Smith se levantou, nervoso e constrangido, e saiu para a oficina.

Ouviu-se um estalo e um baque surdo.

Encontraram-no deitado no chão. Depois do incidente, sempre ia insistir que havia metido a cabeça no alto do batente da porta. Coisa estranha, porque Smith não era muito alto e antes sempre tinha havido espaço suficiente. Mas o ferreiro estava certo de uma coisa: o que quer que tivesse acontecido, nada tinha a ver com movimentos quase imperceptíveis no canto mais escuro da oficina.

De qualquer modo, vários acontecimentos marcaram essa data. Foi um dia de louças quebradas, de pessoas pisando em pés alheios e ficando irritadas. A mãe de Esk deixou cair um vaso que pertencera à avó e, no celeiro, uma cesta inteira de maçãs apodreceu. Na ferraria, a chaminé da fornalha se recusou a expulsar a fumaça. Jaims, o filho mais velho, escorregou no gelo da estrada e machucou o braço. O gato branco, ou talvez um de seus filhotes - já que os gatos levavam uma intrincada vida secreta no palheiro próximo à oficina -, subiu a chaminé da cozinha e não quis saber de descer. Até o céu ficou carregado como um colchão velho. E o ar se tornou abafado, apesar da neve.

Irritação, tédio e mau humor faziam o ar zumbir como uma tempestade.

-           Muito bem. Chega! - gritou a mãe de Esk. - Cern, você, Gulta e Esk podem ir visitar Vovó e... onde está Esk?

Os dois meninos ergueram os olhos, interrompendo a luta desanimada debaixo da mesa.

-           Foi para o pomar — respondeu Gulta. — Outra vez.

-           Vão buscá-la e depois podem ir.

-           Mas está frio!

-           Vai nevar de novo!

-           Fica só a um quilômetro e meio daqui, e a estrada está clara. Além do mais, estão reclamando por quê? Não me fizeram o favor de sair escondido e ficar andando lá fora quando tivemos a primeira nevasca? Vão logo e só voltem quando estiverem de bom humor.

Encontraram Esk sentada numa forquilha da macieira. Os meninos não gostavam muito da árvore. Para começo de conversa, o vegetal era tão viscoso que parecia verde até no meio do inverno; suas frutas eram pequenas e, da noite para o dia, passavam do azedume que faz revirar o estômago para a podridão que se faz cercar de vespas. E, embora parecesse bastante fácil de subir, a árvore tinha o costume de quebrar ramos, deslocando os pés de quem subia em momentos inconvenientes. Cern poderia jurar que, uma vez, um galho havia se dobrado só para derrubá-lo. Mas a macieira agüentava Esk, que costumava sentar lá em cima quando estava aborrecida, cansada ou apenas querendo ficar sozinha. Os meninos sentiam que o direito de torturar a irmã, que todo irmão tinha, acabava ali ao pé do tronco. Desta vez, jogaram uma bola de neve na direção da menina. E erraram.

-           Vamos visitar Vovó Cera do Tempo.

-           Mas você não precisa ir.

-           Porque vai nos atrasar e sempre acaba chorando mesmo.

Esk olhou séria para eles. Não era de chorar. Nunca parecia adiantar muito.

-           Se vocês não querem, aí que eu vou mesmo - avisou ela. Esse tipo de raciocínio só tem lógica entre irmãos.

-           Ah, nós queremos que você vá - disse Gulta, bem depressa.

-           Fico contente em ouvir isso - disse Esk, saltando para a neve dura.

Os três levaram uma cesta com lingüiças defumadas, ovos em conserva e - já que a mãe deles era tão prática quanto generosa - um grande vidro cheio de compota de pêssegos. Ninguém na família gostava daquela compota, mas ela fazia o doce todos os anos, quando os pequenos pêssegos silvestres ficavam maduros.

A população de Cabra da Peste havia aprendido a conviver com as longas nevascas de inverno. As estradas que davam na aldeia eram margeadas com tábuas para diminuir as derrapagens e - principalmente - impedir que os viajantes se perdessem. Isso não tinha muita importância se a pessoa era da região, porque, várias gerações antes, um conselheiro da aldeia tivera a brilhante idéia de fazer marcas em cada décima árvore da floresta que cercava o povoado, num raio de até três quilômetros. A empreitada levara anos, refazer as marcas era função de todo homem com tempo livre. Nos invernos em que as tempestades de neve podiam fazer pessoas sumir depois de se afastar apenas alguns metros de casa, muitas vidas haviam sido salvas pelas marcas na madeira. Para orientação, bastava tatear debaixo da neve grudada nos troncos.

Nevava outra vez quando eles deixaram a estrada e começaram a subir a trilha onde, no verão, a casa da bruxa se escondia -numa confusão de moitas de framboesa e vegetais estranhos.

-           Não tem pegadas - notou Cern.

-           Só de raposas - disse Gulta. - Contam que ela se transforma em raposa. Em qualquer coisa. Até em pássaro. Qualquer bicho. É assim que fica sabendo de tudo que acontece.

Os garotos olharam ao redor. De fato, um corvo estropiado os observava do toco de uma árvore distante.

-           Contam que, lá no Pico da Fenda, tem uma família inteira que se transforma em lobo - disse Gulta, que não era menino de largar assuntos promissores. - Uma noite atiraram num lobo e, no dia seguinte, a tia deles estava mancando por causa de uma ferida de flecha na perna e...

-           Não acho que gente possa se transformar em bicho – disse Esk, baixinho.

-           Ah é, Dona Esperteza?

-           Vovó é muito grande. Se virasse raposa, para onde iriam as partes que não coubessem?

-           Ela se livraria de tudo através da mágica - respondeu Cern.

-           Não acho que a magia funcione assim - continuou Esk. - Não dá para simplesmente fazer as coisas acontecer, tem uma espécie de... Como uma gangorra: se a gente desce de um lado, o outro sobe...

A voz se perdeu. Os irmãos olharam para ela.

-           Não consigo ver Vovó numa gangorra - disse Gulta.

Cern riu.

-           Não. Estou falando que, sempre que alguma coisa acontece, outra coisa também tem que acontecer... eu acho - arriscou

Esk, desviando-se de um banco de neve mais fundo do que os outros. — Só que no... sentido contrário.

-           Besteira - disse Gulta. - Lembra quando a feira veio para cá no verão passado e tinha um mago que fazia um monte de pássaros e outras coisas surgirem do nada? Quer dizer, ele só dizia as palavras e agitava as mãos, e acontecia. Não tinha nenhuma gangorra.

-           Tinha um balanço - Cern disse. - E um negócio em que a gente atirava umas coisas em outras coisas para ganhar coisas.

-           Você não acertou nada, Gul.

-           Nem você, aí disse que as coisas estavam presas nas coisas e que não conseguia derrubar porque...

A conversa deles prosseguiu à toa como dois filhotinhos de cachorro passeando. Esk ouvia sem prestar muita atenção. Sei do que estou falando, disse a si mesma. Magia é fácil, basta achar o lugar onde tudo se equilibra e empurrar. Qualquer um consegue. Não tem nada de mágico nisso. Todas as palavras esquisitas e o gestual, aquilo não passa de... é só para...

Ela se deteve, surpresa consigo mesma. Sabia do que estava falando. A idéia se encontrava ali na ponta da língua. Mas Esk não conseguia botá-la em palavras, ainda que para si própria.

Era uma sensação pavorosa ter idéias na cabeça e não saber juntá-las. Era...

-           Vamos logo, não temos o dia inteiro.

Ela sacudiu a cabeça e correu atrás dos irmãos.

O chalé da bruxa tinha tantos puxados e alpendres que era difícil descobrir algo da construção original, ou mesmo se havia existido uma construção original. No verão, cercava-se de canteiros espessos do que Vovó chamava "as Ervas" - plantas estranhas, peludas, baixas ou entrelaçadas com flores curiosas, frutos brilhantes ou legumes desagradavelmente volumosos. Apenas Vovó sabia para que serviam todas. Qualquer pombo com fome o bastante para atacá-las aparecia depois rindo sozinho e dando encontrão nos objetos (ou, às vezes, nunca mais aparecia).

Agora estava tudo sob a neve. Uma biruta desolada batia contra o mastro. Vovó não gostava de voar, mas algumas de suas amigas ainda usavam as vassouras.

-           Parece vazio — Cern disse.

-           Não tem fumaça - concordou Gulta.

As janelas parecem olhos, pensou Esk, mas não disse nada.

-           É só a casa da Vovó - falou ela por fim. - Não tem nada de errado.

O chalé irradiava ausência. Dava para sentir. As janelas pareciam mesmo olhos - negras e ameaçadoras contra a neve. E ninguém nas Ramtops deixava o fogo apagar, por uma questão de orgulho.

Esk queria dizer "Vamos para casa", mas sabia que, se dissesse, os meninos iriam correndo. Então falou "Mamãe disse que tem uma chave pendurada no prego da latrina", e não foi muito melhor. Mesmo uma latrina comum e desconhecida apresentava terrores como casas de marimbondo, aranhas enormes, criaturas se locomovendo no telhado e, num inverno bastante frio, um ursinho hibernando já causara prisão de ventre em toda a família até ser convencido a se deitar no celeiro. A latrina de uma bruxa poderia ter qualquer coisa.

-           Vou dar uma olhada, tá bom? - ela disse.

—        Se você quer — respondeu Gulta distraído, quase conseguindo esconder o alívio.

Ao contrário do esperado, quando ela enfim abriu a porta empurrando o monte de neve, o lugar estava limpo e arrumado, sem nada mais sinistro do que a metade de um velho almanaque cuidadosamente pendurado num prego. Vovó tinha uma resistência filosófica à leitura, mas seria a última a dizer que livros -em especial aqueles com páginas finas — não tinham utilidade.

A chave estava numa prateleira próxima à porta, junto a uma crisálida e a um toco de vela. Esk pegou-a com cuidado, tentando não incomodar o casulo da futura borboleta, e voltou correndo até onde se encontravam os irmãos.

Nem adiantaria tentar a porta da frente. Em Cabra da Peste, as portas da frente só eram usadas por noivas e cadáveres, e Vovó sempre tinha evitado se tornar qualquer um dos dois. Nos fundos, a neve se acumulara na frente da porta, e ninguém havia quebrado o gelo no tonel de água.

A luz começava a fluir do céu quando os três cavaram passagem até a porta e conseguiram convencer a chave a virar.

No interior da casa, a grande cozinha estava escura e fria, cheirando apenas a neve. Era sempre escura, mas os meninos estavam acostumados a ver uma grande fogueira na lareira ampla e sentir o cheiro do que quer que Vovó estivesse cozinhando na ocasião — coisas que às vezes davam dor de cabeça ou faziam ver coisas.

Eles percorreram os cômodos meio sem vontade, chamando o nome dela, até Esk resolver que não podiam mais adiar a investigação do andar de cima. O estalido no trinco da porta em que dava a escada estreita soou bem mais alto do que deveria.

Vovó estava na cama, com os braços cruzados sobre o peito. A minúscula janela tinha se aberto. Havia neve no chão e sobre a cama.

Esk estudou a colcha-de-retalhos estendida debaixo da velha mulher, porque havia momentos em que um pequeno detalhe se agigantava e tomava o mundo inteiro. Mal ouviu Cem começar a chorar. Por estranho que pareça, ela se lembrou do pai fazendo aquela mesma colcha dois invernos antes, quando as nevascas foram terríveis e não havia muito que fazer na oficina. E de como ele havia usado todo tipo de trapo que havia conseguido chegar a Cabra da Peste vindo de algum canto do mundo, como seda, couro-dilema, algodão d'água e lã-de-targa. E, é claro - visto que também não era bom costureiro -, o resultado fora um negócio encrespado e esquisito, mais como uma tartaruga achatada do que como uma colcha, que a mãe havia generosamente decidido dar a Vovó no último Réveillon dos Porcos e...

-           Ela está morta? - perguntou Gulta, como se Esk fosse especialista no assunto.

Esk olhou para Vovó Cera do Tempo. O rosto da mulher parecia fino e cinzento. Então era assim que ficavam os mortos? O peito não deveria estar subindo e descendo?

Gulta se recompôs.

-           Precisamos buscar alguém e tem que ser agora porque daqui a pouco vai escurecer - considerou ele. - Mas Cern fica aqui.

O irmão o encarou, horrorizado.

-           Pra quê? — perguntou.

-           Alguém precisa ficar com os mortos - informou Gulta. - Lembra de quando tio Deghart morreu e papai teve que ficar lá a noite toda com aquelas velas e não sei que mais? Se não, vem uma aparição horrorosa levar a alma deles... pra algum lugar – concluiu, de maneira pouco convincente. - E depois ainda volta pra assombrar você.

Cern abriu a boca para chorar outra vez. Esk se apressou em dizer:

 -          Eu fico. Não me incomodo. É só a Vovó.

Aliviado, Gulta olhou para ela.

-           Acenda umas velas - sugeriu. - Acho que é o que se deve fazer. E então...

Houve um leve rangido no peitoril da janela. Um corvo havia pousado ali e começou a piscar suspeitoso para eles. Gulta soltou um grito e agitou o boné naquela direção. O pássaro voou com uma grasnada recriminadora, e o menino fechou a janela.

-           Já vi esse bicho aqui - disse ele. - Acho que Vovó dá de comer a ele. Dava - corrigiu-se. - Seja como for, logo voltamos com mais gente. É rápido. Ce, vamos.

Os meninos desceram os degraus escuros da escada. Esk os acompanhou até a porta, depois trancou-a.

O sol era uma bola vermelha acima das montanhas, e já havia algumas estrelas prematuras no céu.

Ela andou pela cozinha escura até achar um pedaço de vela e um isqueiro. Depois de certo sacrifício, conseguiu acender a vela e depositou-a sobre a mesa, embora a chama não iluminasse o cômodo, mas apenas povoasse de sombras a escuridão. Então encontrou a cadeira de balanço da Vovó perto da lareira fria e se sentou para esperar.

O tempo passou. Nada aconteceu.

Aí houve batidas na janela. Esk pegou o toco de vela e espiou através do grosso vidro circular.

Um olho amarelo piscou para ela.

A vela derreteu e se apagou.

A menina permaneceu imóvel, quase sem respirar. As batidas recomeçaram e pararam. Houve um silêncio curto, e o trinco da porta soltou um estalo.

Vem uma aparição horrorosa, os meninos haviam dito.

Ela saiu tateando pela sala até tropeçar na cadeira de balanço, então a arrastou e colocou-a na melhor maneira possível contra a porta. O trinco soltou um último estalo e silenciou.

Esk esperou, aguçando os ouvidos até o silêncio rugir em seus ouvidos. Então alguma coisa começou a bater na janelinha da copa, de leve mas com insistência. Depois de algum tempo, parou. Um instante mais tarde, começava novamente no quarto do andar de cima - um barulho de arranhão, como garras.

Esk sentiu que essa era a hora de criar coragem, mas numa noite como aquela a coragem durava apenas o tempo de a vela queimar. A menina caminhou de olhos fechados, tateando pela cozinha escura, até alcançar a porta.

Uma grande massa de fuligem caiu na lareira com um baque, e, quando Esk ouviu os arranhões desesperados se aproximando, destrancou a fechadura, abriu a porta e saiu para a noite.

O frio cortava como faca. O gelo havia deixado uma crosta sobre a neve. Não importava para onde estava indo: o terror havia lhe dado a incandescente determinação de chegar lá o mais rápido possível.

Dentro do chalé, o corvo despencou na base da lareira, coberto de fuligem e irritado, resmungando para si mesmo. Saltitou nas sombras e, um instante depois, ouvia-se o tinido da porta da escada e um barulho de grande agitação nos degraus.

Esk estendeu o braço o mais alto que pôde e procurou as marcas na árvore. Desta vez teve sorte, mas a disposição dos pontos e traços era uma advertência de que se encontrava a mais de um quilômetro e meio da aldeia e de que vinha correndo na direção errada.

Havia uma meia-lua e um punhado de estrelas pequenas, brilhantes e impiedosas. A floresta em volta era um arranjo de sombras negras e neve descorada, e — Esk bem sabia — nem todas as sombras estavam paradas.

Não era segredo que havia lobos nas Ramtops — porque em certas noites os uivos ecoavam das montanhas - mas os animais quase nunca se aproximavam da aldeia. Os lobos modernos descendiam de criaturas que haviam sobrevivido por terem aprendido muito bem que a carne humana tinha lá seus contratempos.

Mas o frio estava inclemente e essa alcatéia estava com fome suficiente para esquecer tudo sobre seleção natural.

 Esk se lembrou do que se dizia às crianças. Suba numa árvore. Acenda uma fogueira. Quando tudo mais falhar, procure um pedaço de pau e bata com força no focinho deles. Jamais tente correr mais do que eles.

A árvore atrás da menina era uma faia, lisa, impossível de escalar.

Esk viu uma sombra comprida se desprender da escuridão à frente e se aproximar. Ela se ajoelhou - cansada, assustada e incapaz de pensar - e remexeu a neve gelada atrás de um pedaço de pau.

Vovó Cera do Tempo abriu os olhos e encarou o teto, que era rachado e arqueada como uma tenda.

Ela se concentrou em lembrar que tinha braços, e não asas, e que não precisava mais saltitar. Sempre era prudente permanecer um pouco deitado depois de um Empréstimo - para deixar a mente se acostumar ao corpo - mas ela sabia que não havia tempo.

-           Droga de criança - murmurou, e tentou voar até a grade da cama.

O corvo, que já passara por aquilo centenas de vezes e achava - até onde pássaros podem achar alguma coisa - que a alimentação regular de pele de bacon e restos de comida e um poleiro quente durante a noite valiam o ocasional inconveniente de deixar Vovó partilhar sua mente, observou-a com certo interesse.

Vovó achou as botas e correu escada abaixo, bravamente resistindo à vontade de voar. A porta estava escancarada e já havia um monte de neve no chão.

-           Ah, inferno - irritou-se.

Imaginou se valeria a pena tentar achar a mente de Esk, mas a mente humana nunca era tão clara e aguçada quanto a animal. De qualquer modo, a mente suprema da própria floresta tornava a busca improvisada tão difícil quanto a tentativa de se ouvir uma queda-d'água na tempestade. Mesmo sem olhar, entretanto, pôde sentir a mente coletiva dos lobos - uma sensação forte e penetrante que lhe deixou um gosto de sangue na boca.

 Vovó Cera do Tempo divisou as pegadas na crosta já se enchendo de neve recente. Praguejando, ajeitou o Hale e partiu.

Ao ouvir os ruídos que vinham do canto mais escuro da oficina, o gato branco, aninhado em seu canto favorito, acordou. Smith havia fechado a porta quando saiu acompanhando os meninos que já estavam à beira da histeria. O gato observou interessado a sombra fina que cutucou a fechadura e testou as dobradiças.

A madeira da porta era carvalho, endurecida pelo calor e pelo tempo, mas isso não impediu que fosse parar do outro lado da rua.

Enquanto corria pela estrada, Smith ouviu um barulho no céu. Vovó também ouviu. Era um zumbido constante, determinado - como o vôo de gansos - e, conforme passava, as nuvens cheias de neve se contorciam, derretendo.

Os lobos também escutaram, quando o barulho se aproximou da copa das árvores e zuniu na clareira. Mas escutaram tarde demais.

Agora Vovó Cera do Tempo já não precisava seguir as pegadas. Bastava se dirigir aos distantes clarões de luz estranha, ao som de murros e pancadas e aos uivos de medo e dor. Dois lobos passaram em disparada por ela com as orelhas baixas, cegamente concentrados em botar as patas para correr o máximo, sem se importar com o que estivesse à frente.

Ouviu-se o estalo de galhos se partindo. Alguma coisa grande e pesada caiu num pinheiro perto de Vovó e despencou, gemendo, na neve. Outro lobo passou à altura de sua cabeça, na horizontal, e bateu no tronco de uma árvore.

Houve silêncio.

Vovó abriu caminho entre os ramos cobertos de gelo.

Viu que a neve parecia aplanada num círculo branco. Alguns lobos se encontravam nas beiradas, mortos ou sabiamente decididos a não se mexer.

O bastão estava de pé na neve, e Vovó teve a nítida sensação de que se virava para encará-la.

No meio do círculo também havia um pontinho enroscado sobre si mesmo. Com algum sacrifício, Vovó se ajoelhou e estendeu suavemente o braço.

A vara se mexeu. Não foi mais do que um tremor, mas a mão se deteve pouco antes de tocar o ombro de Esk. Vovó mirou os entalhes na madeira e desafiou o bastão a se mexer outra vez.

O ar ficou pesado. Então a vara pareceu recuar sem se mover, embora ao mesmo tempo alguma coisa indefinível ficasse completamente clara para a bruxa: no que dizia respeito ao bastão, não se tratava de uma derrota, apenas um procedimento tático. Ele detestaria que ela imaginasse ter vencido, porque não tinha.

Esk estremeceu. Indecisa, Vovó a acariciou.

-           Sou eu, pequerrucha. É só a Vovó.

O montinho não se desenroscou.

Vovó mordeu o lábio. Nunca entendera muito bem as crianças e pensava nelas - quando chegava a pensar nelas - como seres que ficavam entre as pessoas e os animais. Bebês ela compreendia. Bastava enfiar leite numa extremidade e manter a outra o mais limpa possível. Com adultos era ainda mais fácil, porque eles próprios se alimentavam e limpavam a si mesmos. Mas nesse espaço intermediário havia todo um mundo que jamais investigara. Até onde ela sabia, apenas tentávamos impedi-las de pegar alguma doença fatal e torcíamos para que, no fim, tudo desse certo.

Na verdade, Vovó estava desorientada, mas sabia que precisava fazer algo.

-           U lubinho mau axustô a zente? - arriscou ela.

Pelo motivo errado, aquilo pareceu funcionar. Das profundezas do montinho, uma voz abafada disse:

-           Eu tenho oito anos, sabia?

-           Meninas de oito anos não ficam sentadas no meio da neve — rebateu Vovó, procurando caminho no meio das complexidade des da conversa entre adultos e crianças.

O montinho não respondeu.

-           É provável que eu tenha leite e biscoitos em casa – aventurou-se Vovó.

A tentativa não surtiu nenhum efeito aparente.

 -          Eskarina Smith, se a senhora não se comportar nesse instante, vou lhe dar um tapa!

Esk levantou a cabeça com cautela.

-           Também não precisa ficar assim - respondeu ela.

Quando Smith alcançou o chalé, Vovó tinha acabado de chegar, trazendo Esk pela mão. Os meninos espiavam por trás do pai.

-           Hum - soltou Smith, incerto de como travar conversa com alguém que deveria estar morto. - Eles, hã, falaram que a senhora estava... doente.

E se virou para os filhos.

-           Eu só estava descansando e devo ter cochilado. Tenho o sono pesado.

-           Sei - disse Smith, sem muita certeza. - Bom. Então está tudo bem. O que aconteceu com a Esk?

-           Levou um susto - disse Vovó, apertando a mão da menina.

- O escuro e outras coisas. Precisa se aquecer. Está um pouco confusa. Vou botá-la na cama, se não se importa.

Smith não estava nem um pouco certo de que não se importava. Mas estava bastante certo de que sua mulher, bem como todas as outras mulheres da aldeia, nutria por Vovó Cera do Tempo um grande respeito, e mesmo reverência. Se começasse a fazer objeções, estaria perdido.

-           Ótimo, ótimo - disse por fim. - Se não tiver problema. Amanhã de manhã mando buscá-la, está bom?

-           Certo - respondeu Vovó. - Eu o convidaria a entrar, mas meu fogo está apagado e...

-           Não, não, tudo bem — apressou-se em dizer Smith. — O jantar me espera. Quieto — acrescentou, olhando para Gulta, que já abria a boca para falar, mas pensou duas vezes.

Quando os três já se haviam ido - com os protestos dos meninos ressoando por entre as árvores - Vovó abriu a porta, puxou Esk para dentro e passou o trinco. Pegou duas velas no estoque sobre a cômoda e acendeu-as. Depois, de um baú antigo, tirou algumas mantas de lã - velhas mas úteis, ainda cheirando a erva contra traças - enrolou Esk com elas e fez a menina sentar na cadeira de balanço.

 A bruxa se ajoelhou, com os ossos rangendo, e começou a ajeitar as coisas para acender o fogo. Era um trabalho complicado que envolvia cogumelos secos, aparas de madeira, lascas de galhos partidos, muito sopro e juramento.

Esk disse:

-           Vovó, a senhora não precisa fazer assim.

Vovó se deteve e fitou a parte de trás da lareira. Era um belo trabalho que Smith havia moldado para ela anos antes, com o desenho de um morcego e uma coruja. No momento, porém, não estava interessada na gravura.

-           Ah, é? - perguntou, com a voz abafada. - Imagino que você conheça algum jeito melhor.

-           Pode acender com magia.

Vovó prestou uma enorme atenção no arranjo de lascas sobre as chamas relutantes.

-           Dá pra você me dizer como é que eu faria isso, por favor? - disse ela, aparentemente dirigindo-se à lareira.

-           Hã - soltou Esk. - Eu... não lembro. Mas, de qualquer forma, a senhora deve saber, não sabe? Todo mundo sabe que a senhora faz mágica.

-           Existe mágica - observou Vovó - e existe mágica. O importante, minha filha, é saber para que serve e para que não serve a mágica. Vá por mim, não foi feita para acender fogueira. Pode estar certa disso. Se o Criador quisesse que usássemos magia para acender fogueiras, não teria nos dado... hã, fósforos.

-           Mas a senhora poderia acender a fogueira com mágica? - perguntou Esk, enquanto Vovó pegava uma antiga chaleira preta.

-           Quer dizer, se quisesse. Se fosse permitido.

-           Talvez - respondeu Vovó, que na verdade não podia: fogo não tem mente, não está vivo, e essas eram apenas duas das três razões.

-           Seria muito mais fácil.

-           Se queremos algo, não importa que seja difícil – rebateu Vovó, escapando para os aforismos, último refúgio do adulto sob fogo cerrado.

-           Está bom, mas...

-           E não me venha com "mas".

 Vovó remexeu numa caixa de madeira escura sobre a cômoda. Orgulhava-se de seu incomparável conhecimento sobre as características das ervas das Ramtops - ninguém sabia mais sobre as muitas utilidades de folha-de-larva, desejo-de-moça e flor-das-mentiras-de-amor. Mas havia momentos em que necessitava recorrer ao pequeno sortimento de remédios comprados com desconfiança e cuidadosamente armazenados, vindos das Estranjas (que, no seu entender, era qualquer lugar localizado a mais de um dia de viagem) para obter os resultados pretendidos.

Vovó esfarelou algumas folhas vermelhas e secas na caneca, encheu-a de mel e água quente da chaleira e entregou-a para Esk. Então colocou uma grande pedra redonda debaixo da grelha -mais tarde, enrolada num cobertor, serviria para aquecer a cama -e, com uma ordem severa para que a menina permanecesse na cadeira, foi até a copa.

Esk se limitou a bater os calcanhares nas pernas da cadeira e tomar o líquido. Tinha um gosto estranho, apimentado. Ela imaginou o que seria. É claro que já havia provado as bebidas de Vovó, com maior ou menor quantidade de mel - dependendo de como vinha se comportando -, e Esk sabia que a mulher era famosa em toda a região pelas poções especiais para curar doenças. Sua mãe e, de vez em quando, outras jovens falavam nisso, sempre de sobrancelhas erguidas, em voz baixa...

Quando Vovó retornou, a pequena estava dormindo. No dia seguinte, não se lembraria de ter sido posta na cama ou de ter visto a mulher aferrolhando as janelas.

Vovó Cera do Tempo desceu outra vez a escada e puxou a cadeira de balanço para perto do fogo.

Tem alguma coisa ali, disse a si mesma. Alguma coisa oculta na mente da menina. Não lhe agradava pensar no que poderia ser, mas Vovó não podia deixar de lembrar o que havia acontecido com os lobos e toda aquela história de acender fogueiras com mágica. Os magos faziam isso, era uma das primeiras lições que aprendiam.

A bruxa suspirou. Só havia um modo de descobrir, e ela estava ficando velha para esse tipo de coisa.

 -          Já? Impressionante, disse a árvore.

Não é o tipo certo de magia!, gorjeou Vovó. É magia para mago, não para mulher! Ela ainda não sabe do que se trata, mas hoje à noite matou uma dezena de lobos!

Ótimo!, disse a árvore.

Vovó piou de raiva.

Ótimo? Imagine se ela estivesse brigando com o irmão e perdesse a paciência. A árvore deu de ombros. Flocos de neve se desprenderam dos galhos.

Então deve ensiná-la, sugeriu a macieira.

Ensiná-la? E eu lá sei ensinar magos?

Pois o jeito é a Universidade.

Ela é mulher!, piou Vovó, dando pulos no galho.

E daí? Quem disse que mulher não pode ser mago?

Vovó hesitou. Era o mesmo que perguntar por que peixes não podem ser pássaros. Ela respirou fundo e começou a falar. Então desistiu. Sabia que existia uma resposta decisiva, pungente, incisiva e sobretudo evidente. Só que, para sua grande irritação, não conseguia trazê-la à memória.

Mulheres nunca foram magas. É contra a natureza. Daqui a pouco você vai dizer que bruxas podem ser homens.

Se definimos bruxa como alguém que cultua o impulso pancreático, ou seja, idolatra o básico..., começou a árvore e continuou durante vários minutos. Irritada e sem a menor paciência, Vovó Cera do Tempo ouviu expressões como Deusa Mãe e veneração da lua primitiva e tranqüilizou a si mesma dizendo saber muito bem o que era ser bruxa: era conhecer ervas e maldições, voar à noite, em geral seguir a tradição, e com certeza não envolvia nada de deusas - mães ou não -, que aparentemente recorriam a alguns truques bastante questionáveis. Quando a árvore disparou a falar em dançarem nuas, Vovó tentou não escutar porque, muito embora soubesse que, em algum lugar debaixo das complicadas camadas de túnicas e anáguas, houvesse algo chamado pele, isso não queria dizer que aceitasse o fato.

A árvore terminou o monólogo.

 

Vovó esperou até estar certa de que ela não acrescentaria nada e perguntou, Então isso é bruxaria?

É, a base teórica.

Sem dúvida, vocês magos têm idéias estranhas.

A árvore rebateu, Já não sou mago, só árvore.

Vovó eriçou as penas.

Pois bem, Dona Árvore da Base Teórica, agora escute aqui: se fosse para mulher ser mago, a gente teria barba branca. E Esk não vai ser maga, ficou claro? A magia dos magos não é a forma certa, está ouvindo? Não passa de luzes, chamas e poder, e ela não vai fazer parte disso. Agora boa noite.

A coruja saltou do galho. Vovó só não tremeu de ódio porque interferiria no vôo. Magos! Os cretinos falavam demais e espetavam feitiços em livros como borboletas, mas o pior de tudo é que pensavam que a magia deles era a única que valia a pena praticar.

Vovó estava completamente segura de uma coisa. Mulheres jamais tinham sido magas e não era agora que iam começar.

Ela voltou ao chalé pouco antes da alvorada. Depois do cochilo sobre o feno, pelo menos seu corpo estava descansado. Vovó ainda esperava passar algumas horas na cadeira de balanço, botando as idéias em ordem. Esta era a hora em que a noite não havia acabado e o dia não havia começado - quando os pensamentos se mostravam mais claros. Ela...

A vara estava encostada na parede, perto da cômoda.

Vovó parou.

- Estou entendendo - disse por fim. - Então é assim, não é? Na minha própria casa também?

Andando bem devagar, foi até o canto da lareira, jogou algumas lenhas nas brasas da fogueira e bombeou o fole até as chamas estalarem.

Quando estava satisfeita, virou-se, sussurrou uns feitiços preventivos e puxou com força o bastão. O objeto não ofereceu resistência; ela quase caiu para trás. Mas agora o tinha em mãos, e era possível sentir o formigamento e o chiado da magia. Vovó riu.

 -          É verdade - assentiu Vovó.

-           A senhora não quis casar?

Foi a vez de Vovó pensar.

-           Não aconteceu - respondeu por fim. - Muita coisa para fazer, entende?

-           Papai disse que a senhora é bruxa - observou Esk.

-           Sou, sim.

Esk concordou com a cabeça. Nas Ramtops, as bruxas tinham um status semelhante ao que outras culturas conferiam a freiras, cobradores de impostos ou lixeiros. Equivale a dizer que eram respeitadas, às vezes admiradas e, com freqüência, louvadas por fazerem um trabalho que alguém precisava fazer. Mas ninguém se sentia muito à vontade estando no mesmo cômodo que elas.

Vovó perguntou:

-           Gostaria de aprender bruxaria?

-           A senhora está falando de mágica? - Esk disse, com os olhos acesos.

-           Estou, de mágica. Mas não essa magia floreada. Magia de verdade.

-           A senhora pode voar?

-           Existe coisa melhor do que voar.

-           E vou aprender?

-           Se os seus pais concordarem.

Esk suspirou.

-           Meu pai não vai.

-           Então preciso dar uma palavrinha com ele - concluiu Vovó.

-           Agora preste atenção, Gordo Smith!

O ferreiro recuava pela oficina, as mãos erguidas para conter a fúria da velha mulher. Ela avançava em sua direção, com um dedo cheio de autoridade em riste.

-           Idiota, eu trouxe você ao mundo e vejo que hoje não tem mais juízo do que naquela época...

-           Mas... - arriscou Smith, rodeando a bigorna.

 -          A magia encontrou sua filha! Magia de magos! Magia errada, está me entendendo? Que não devia se destinar a ela.

-           Tá bom, mas...

-           Você tem idéia do que ela pode fazer?

Smith fraquejou.

-           Não.

Vovó parou e deu uma respirada.

-           Não - disse ela, já com mais suavidade. - Não, não tem.

A bruxa se sentou na bigorna e tentou pensar com calma.

-           Olhe. A magia tem uma espécie de... vida própria. Não importa, porque... de qualquer maneira, sabe, a magia dos magos...

Ela olhou a fisionomia confusa do homem e tentou de novo.

-           Bem, sabe suco de maçã?

Smith assentiu. Ali ele se encontrava em terreno mais seguro, embora não imaginasse aonde aquilo poderia levar.

-           Depois tem a bebida alcoólica. Sidra - continuou a bruxa.

O ferreiro assentiu. No inverno, todo mundo em Cabra da Peste fazia sidra deixando barris de suco de maçã do lado de fora durante a noite e tirando o gelo até sobrar apenas uma pequena quantidade de álcool.

-           Pois bem, podemos tomar suco de maçã à vontade e vamos nos sentir bem, não é?

O ferreiro assentiu outra vez.

-           Mas, sidra, a gente toma em canecas pequenas e não bebe muito nem com tanta freqüência, porque logo sobe à cabeça.

O ferreiro assentiu novamente e, como sabia que não vinha fazendo grandes contribuições para o diálogo, acrescentou:

-           Isso mesmo.

-           Essa é a diferença.

-           Diferença de quê?

Vovó suspirou.

-           A diferença entre magia de bruxa e magia de mago - explicou afinal. - Já acharam a menina. Se Esk não controlar a magia, tem Aquelas que vão controlar sua filha. A mágica pode ser um tipo de porta, e existem Coisas horrorosas no outro lado. Está entendendo?

O ferreiro assentiu. Na verdade não entendia, mas acertada-mente supôs que, se expusesse o fato, Vovó começaria a entrar em detalhes pavorosos.

-           Ela é durona e pode ser que leve algum tempo – admitiu Vovó. - Só que mais cedo ou mais tarde vão vir desafiá-la.

Smith pegou um martelo no banco, olhou a ferramenta como se a visse pela primeira vez e botou-a de volta no lugar.

-           Mas - retrucou ele - se o que ela tem é magia de mago, aprender bruxaria não vai adiantar nada, vai? A senhora disse que é diferente.

-           Ambas são magias. Se não podemos aprender a montar elefante, que pelo menos a gente aprenda a montar cavalo.

-           O que é elefante?

-           Uma espécie de texugo - respondeu Vovó.

Não foi admitindo ignorância que ela manteve a credibilidade na floresta durante quarenta anos.

O ferreiro suspirou. Dava-se por vencido. A esposa já havia deixado claro que gostava da idéia e, agora que ele parava para pensar, havia mesmo algumas vantagens. Afinal de contas, Vovó não duraria para sempre, e ser pai da única bruxa da região até que poderia ser interessante.

-           Tá certo - concordou ele.

E assim, quando o inverno mudou e principiou a longa e relutante escalada em direção à primavera, Esk começou a passar vários dias seguidos com Vovó Cera do Tempo, aprendendo bruxaria.

O negócio parecia consistir principalmente em coisas para lembrar.

As aulas eram todas práticas. Tinha a arrumação da mesa da cozinha e a Introdução à Ervagem. Havia a limpeza das cabras e a Utilização dos Fungos. Tinha a lavagem da louça e a Evocação dos Pequenos Deuses. E sempre havia a guarda do grande alambique de cobre na copa e a Teoria e Prática da Destilação. Quando os ventos quentes da Borda começaram a soprar e a neve não passava de tracinhos de lama no chão, Esk já sabia preparar diversos ungüentos, várias aguardentes medicinais, uma série de infusões especiais e inúmeras poções misteriosas, cujas utilidades Vovó prometia ensinar quando chegasse a hora. O que não havia feito era magia.

-           Quando chegar a hora - repetia Vovó, distraída.

-           Mas estou aqui para ser bruxa!

-           Só que ainda não é. Diga o nome de três ervas boas para o intestino.

Esk jogou as mãos para trás, fechou os olhos e disse:

-           O talo florescente da ervilha-é-a-tal, a medula da raiz de calça-de-velho, as folhas de lírio-sangrento, o pericarpo...

-           Tá bom. Onde encontramos pepinos aquáticos?

-           Em turfeiras e poças de água parada, nos meses de...

-           Ótimo. Você está aprendendo.

-           Mas não é mágica!

Vovó se sentou à mesa da cozinha.

-           A maioria das mágicas não é - ela disse. - Basta saber as ervas certas, aprender a observar o tempo e descobrir os costumes dos animais. E das pessoas também.

-           Só isso? - indignou-se Esk.

-           Só isso? É muita coisa - rebateu Vovó. - Mas não é só. Tem mais.

-           E a senhora não pode me ensinar?

-           Quando chegar a hora. Não tem necessidade de ficar se xibindo.

-           Ficar me exibindo? Para quem?

Vovó correu os olhos para as sombras, nos cantos da sala.

-           Esqueça.

Até os últimos traços de sobras de neve haviam sumido, as brisas primaveris já sopravam nas montanhas. O ar da floresta cheirava a húmus e terebentina. Algumas flores prematuras enfrentaram o gelo noturno, as abelhas começaram a voar.

-           Já abelha - disse Vovó Cera do Tempo - é magia de verdade.

Com cuidado, a bruxa suspendeu a tampa da primeira colméia.

-           Abelha - prosseguiu ela - é colméia, cera, mel, que misturado com água é hidromel. É uma coisa maravilhosa. E as abelhas também são governadas por uma rainha - acrescentou, com um quê de aprovação.

-           Não picam a senhora? - perguntou Esk, recuando um pouco.

As abelhas se agitaram no favo e ultrapassaram as laterais de madeira da caixa.

-           Quase nunca - respondeu Vovó. - Você queria mágica. Pois veja.

Ela enfiou a mão no enxame em alvoroço e produziu um som baixo e agudo no fundo da garganta. Houve uma movimentação no enxame e uma abelha grande, mais gorda e comprida do que as outras, subiu em sua mão. Algumas operárias a seguiram, tocando-a e lhe dando assistência.

-           Como fez isso? — surpreendeu-se Esk.

-           Ah - soltou Vovó. - Nem queira saber.

-           Quero, sim. Foi por isso que perguntei - rebateu Esk, com rispidez.

-           Acha que usei magia?

Esk fitou a rainha. A abelha olhava para Vovó.

-           Não - arriscou afinal. - Acho que apenas sabe muito sobre abelhas.

Vovó sorriu.

-           Exatamente. E isso é uma forma de magia, claro.

-           O quê? Saber coisas?

-           Saber coisas que as outras pessoas não sabem – explicou Vovó.

Com cuidado, a bruxa devolveu a rainha às súditas e fechou a tampa da colméia.

-           Acho que já é hora de você aprender alguns segredos - acrescentou.

Até que enfim, pensou Esk.

-           Mas primeiro devemos saudar a Colméia - Vovó disse.

Ela conseguiu pronunciar o C maiúsculo.

Sem pensar, Esk fez uma reverência. Vovó segurou a cabeça da menina.

-           Eu já falei que a gente se inclina - ela disse, sem rancor. - Bruxas se inclinam.

Ela demonstrou.

-           Mas por quê? - reclamou Esk.

-           Porque as bruxas têm de ser diferentes, e isso faz parte do segredo - Vovó disse.

As duas se sentaram num banco descorado de frente para o chalé. Diante delas, as Ervas já se mostravam com trinta centímetros de altura - um sinistro conjunto de folhas verdes e pálidas.

-           Muito bem - disse Vovó, acomodando-se. - Sabe o chapéu no cabide atrás da porta? Vá pegá-lo.

Em obediência, Esk entrou na casa e apanhou o chapéu da Vovó. Era comprido, pontudo e, obviamente, preto.

Vovó virou a peça de cabeça para baixo e estudou o interior.

-           Dentro deste chapéu - começou ela, com toda seriedade -está um dos segredos da bruxaria. Se não puder me dizer qual é, então não poderei mais ensiná-la, porque quando aprendemos o segredo do chapéu não tem volta. Diga o que sabe do chapéu.

-           Posso segurar?

-           Fique à vontade.

Esk espiou o interior. Havia um reforço de arame para garantir a forma e alguns alfinetes. Era tudo.

Não havia nada de particularmente estranho no objeto, com exceção do fato de ninguém na aldeia possuir nada parecido. Mas isso não o tornava mágico. Esk mordeu o lábio; teve uma visão de si mesma sendo mandada de volta para casa desacreditada.

A textura era normal, e não havia Compartimentos secretos. Tratava-se apenas de um típico chapéu de bruxa. Vovó sempre usava a peça quando ia à aldeia, mas na floresta se limitava a botar um capuz de couro.

Esk tentou se lembrar das lições que, com relutância, Vovó passava. Não é o que sabemos, é o que os outros não sabem. A magia pode ser algo certo no lugar errado ou algo errado no lugar certo. Pode ser...

Vovó sempre usava o chapéu para ir à aldeia — junto com a grande capa negra que com certeza não era mágica, porque durante a maior parte do inverno havia servido de manta para uma cabra. Vovó só a lavara na primavera.

 A menina começou a sentir a resposta na ponta da língua e não gostou nada. Era como muitas das respostas de Vovó. Apenas um jogo de palavras. Ela apenas dizia coisas que já estávamos cansados de ouvir, só que de modo diferente para que parecessem importantes.

-           Acho que sei - respondeu afinal.

-           Então diga.

-           É meio em duas partes.

-           Sim?

-           É um chapéu de bruxa porque a senhora usa. Mas a senhora é bruxa porque usa o chapéu. Hum.

-           Então... — provocou Vovó.

-           Então as pessoas vêem a senhora chegar com o chapéu e a capa, sabem que é uma bruxa e por isso a magia funciona - arriscou Esk.

-           Isso mesmo — confirmou Vovó. — Chama-se cabeçologia.

A mulher bateu no cabelo grisalho, amarrado num coque justo que poderia muito bem partir rochas.

-           Mas não é de verdade! - protestou Esk. - Isso não é magia, é... é...

-           Escute aqui - cortou Vovó. - Se damos a alguém uma garrafa de gulatina vermelha para curar os gases, pode ser que funcione. Mas, se queremos ter certeza de que vai dar certo, então precisamos deixar a mente da pessoa fazer com que funcione. Diga a ela que são raios de luar engarrafados com vinho encantado ou algo do tipo. Resmungue umas palavras. É a mesma coisa com as maldições.

-           Maldições? - Esk disse, baixinho.

-           É, maldições, pragas, minha filha. E não precisa ficar tão chocada! Quando houver necessidade, você vai praguejar. Quando estiver sozinha, não tiver ajuda por perto e...

Ela se deteve e, pouco à vontade sob o olhar inquisitivo de Esk, concluiu hesitante:

—... e ninguém estiver mostrando respeito. Fale alto, complicado, comprido e até inventado, que funciona. No dia seguinte, quando prenderem o dedo, caírem da escada ou virem o cachorro bater as botas, vão se lembrar de você. E na próxima vez já se comportam melhor.

-           Mas ainda não parece mágica - insistiu Esk, raspando a terra com o pé.

-           Uma vez salvei a vida de um homem - contou Vovó. - Remédio especial duas vezes por dia. Água fervida com um pouco de suco de frutas. Falei que tinha comprado dos anões. Pra dizer a verdade, essa é a grande jogada da nossa doutrina. A maioria das pessoas supera qualquer coisa se acredita na cura, basta dar a elas um motivo.

Com o máximo de delicadeza, Vovó desferiu palmadinhas na cabeça de Esk.

-           Você é um pouco nova para isso - considerou ela. – Mas quando crescer vai descobrir que as idéias da maioria das pessoas não voam muito longe. Nem as suas - acrescentou, com ar de superioridade.

-           Não entendo.

-           Eu ficaria surpresa se entendesse - rebateu Vovó, animada.

-           Mas pode me dizer cinco ervas adequadas para tosse seca.

A primavera se abriu por inteiro. Vovó começou a levar Esk em passeios longos, que tomavam o dia inteiro, até lagos remotos ou ladeiras de montanha, para colher plantas raras. Esk gostava de ficar no alto das montanhas, onde o sol era forte mas o ar continuava gelado. As plantas cresciam e já se espalhavam pelo chão. De alguns dos picos mais elevados, era possível divisar até o Oceano da Borda, que desaguava na beira do mundo. No outro sentido, as Ramtops se estendiam à distância, enredadas num inverno eterno. A cordilheira avançava até o centro do mundo, onde, como se sabia, os deuses moravam - numa montanha de pedra e gelo com dezesseis quilômetros de altura.

-           Os deuses não são ruins - disse Vovó, enquanto as duas comiam o almoço, olhando a vista. - Não incomode os deuses, e não vão incomodar você.

-           A senhora conhece muitos deuses?

-           Vi os deuses do trovão algumas vezes — respondeu Vovó. — E Hoki, é claro.

 -          Hoki?

Vovó mastigava o sanduíche sem casca.

-           Ah, é um deus da natureza - explicou ela. - Às vezes se manifesta como um carvalho ou então vem metade homem metade bode, mas em geral o vejo sob a forma de uma criatura sanguinária. Claro que só o encontramos no meio do mato. Ele toca flauta. Se quer saber, muito mal.

Deitada de bruços, Esk olhava do alto a paisagem, enquanto alguns abelhões autônomos patrulhavam uns molhos de tomilho. O sol estava quente, mas lá em cima ainda havia rastros de neve no lado das pedras virado para o Centro.

-           Como é lá embaixo? - perguntou ela, cheia de preguiça.

Com nojo, Vovó correu os olhos pelos 15 mil quilômetros de terra.

-           São só outros lugares - respondeu. - Exatamente como aqui, só que diferente.

-           Tem cidades?

-           Imagino que sim.

-           A senhora nunca viu?

Vovó se recostou, arrumando a saia com cuidado para exibir vários centímetros de suas anáguas ao sol e deixar o calor lhe afagar os velhos ossos.

-           Não — admitiu. — Já tem problema demais aqui para irmos procurar outros nas estranjas.

-           Uma vez sonhei com outra cidade - lembrou Esk. –Tinha centenas de pessoas e um prédio com portões enormes, que eram mágicos...

Atrás dela surgiu um leve ruído, como tecido rasgando. Vovó havia caído no sono.

-           Vovó!

-           Mhnf?

Esk pensou por um instante.

-           A senhora está se divertindo? - perguntou, cheia de manha.

-           Mnph.

-           A senhora disse que, quando chegasse a hora, mostraria a mágica de verdade para mim - continuou Esk. - E chegou a hora.

 -          Mnph.

Vovó Cera do Tempo abriu os olhos e olhou direto para o céu: estava escuro, mais roxo do que azul. Pensou: por que não? A menina é boa aluna. Sabe mais de ervas do que eu. Na idade dela, a mestra Velhota Tumulto já me deixava Tomar Emprestado, Transmitir e Transformar o tempo todo. Talvez eu esteja sendo precavida demais.

-           Só um pouquinho - implorou Esk.

Vovó ponderou a questão. E não conseguiu pensar em nenhuma desculpa. Certamente vou me arrepender disso, pensou com seus botões, revelando grande capacidade de previsão.

-           Tá certo — assentiu afinal.

-           Magia de verdade? - disse Esk. - Nada de ervas e cabeçologia?

-           É, magia de verdade.

-           Um feitiço?

-           Não, um Empréstimo.

A fisionomia de Esk era uma grande máscara de expectativa. A menina parecia mais animada do que jamais estivera.

Vovó correu os olhos sobre os vales que se estendiam diante delas até achar o que vinha procurando. Uma águia cinza dava voltas indolentes sobre um distante trecho enevoado da floresta. No momento, a mente da ave estava descansada. Serviria muito bem.

Vovó fez o Chamado, e a águia começou a voar em círculos na direção delas.

-           No Empréstimo, a primeira coisa de que devemos nos lembrar é que precisamos estar num lugar confortável e seguro - observou ela. - O melhor é a cama.

-           Mas o que é Empréstimo?

-           Deite-se e segure minha mão. Está vendo a águia lá em cima?

Esk comprimiu os olhos contra o céu quente e escuro.

Havia... dois pontinhos no gramadoy e ela girava ao sabor do vento...

Era possível sentir o açoite do ar nas penas. Como a águia não estava com fome - apenas desfrutava a sensação do sol nas asas - a terra lá embaixo não passava de uma imagem sem importância. Mas o ar... o ar era um negócio tridimensional, complexo e variável, um arranjo de curvas e espirais entrelaçadas e se abrindo à distância, um ziguezague de correntes criadas em pilares térmicos. Ela... ... sentiu uma leve pressão refreando-a.

-           A segunda coisa a lembrar - irrompeu a voz de Vovó, bastante próxima — é não incomodar o dono. Se deixamos a criatura saber que estamos aqui, ela vai lutar ou entrar em pânico e, em nenhum dos casos, teremos a menor chance. A vida inteira ela foi águia, você não.

Esk não respondeu.

-           Está com medo? - perguntou Vovó. - Pode acontecer na primeira vez e...

-           Não estou com medo - respondeu Esk. - Como faço para controlá-la?

-           Você não controla. Pelo menos por enquanto. De qualquer modo, não é fácil controlar um animal verdadeiramente selvagem. É preciso... sugerir que ele talvez se sinta disposto a fazer coisas. Claro que com o animal domesticado é diferente. Mas não podemos obrigar nenhum bicho a fazer nada que seja contra sua natureza. Agora tente achar a mente da águia.

Era possível sentir Vovó como uma nuvem difusa e prateada atrás de sua própria mente. Depois de algum tempo procurando, Esk achou a águia. O animal quase passara despercebido. A mente era pequena, aguda e roxa - como a ponta de uma flecha. Estava totalmente concentrada em voar e nem notou sua presença.

-           Ótimo - aprovou Vovó. - Não vamos voar longe. Se quiser que ela vire, basta...

-           Tá bom, tá bom — cortou Esk.

A menina dobrou os dedos, onde quer que se encontrassem, e o pássaro se inclinou contra o vento e virou.

-           Muito bem — disse Vovó, surpresa. — Como fez isso?

-           Eu... não sei. Só me pareceu óbvio.

-           Hmph.

 

Com cuidado, Vovó testou a pequena mente da águia. O bicho ainda não havia notado as passageiras. Vovó ficou genuinamente impressionada, um acontecimento raro.

Elas sobrevoaram a montanha, enquanto Esk explorava os sentidos do animal. A voz de Vovó zumbia em sua consciência, dando conselhos, instruções e orientação. A menina ouvia desatenta. Parecia complicado demais. Por que não podia controlar a mente da águia? Não doeria nada.

E dava para ver como agir. Era só um truque, como estalar os dedos - o que na verdade jamais havia conseguido fazer - e então poderia ter a experiência de voar para valer, e não de carona.

Aí poderia...

-           Nem tente - advertiu Vovó. - Não vai adiantar.

-           O quê?

-           Minha filha, realmente acha que é a primeira? Não acha que todas nós já pensamos em como seria bom assumir o controle de outro corpo e deslizar no vento ou respirar debaixo d'água? E acha mesmo que seria fácil assim?

Esk fez uma cara emburrada.

-           Também não precisa me olhar assim - continuou Vovó. - Um dia vai me agradecer. Só não brinque com o que não conhece. Antes de aprender os truques, é preciso saber como proceder caso alguma coisa dê errado. Não tente andar quando ainda nem sabe correr.

-           Vovó, mas eu sinto que sei como fazer.

-           E se não souber? Tomar Emprestado é mais difícil do que parece, embora eu admita que você leva jeito. Já chega. Leve-nos para onde estamos, e vou mostrar como Voltar.

A águia sobrevoou os dois corpos deitados, Esk viu os dois canais abertos para elas. A mente de Vovó desapareceu.

Agora...

Vovó estivera errada. A mente da águia mal chegou a lutar e tampouco teve tempo para entrar em pânico. Esk envolveu-a em sua própria mente. O negócio se contorceu por um instante e então se dissolveu dentro dela.

Vovó abriu os olhos a tempo de ver a ave soltar um grito rouco de triunfo, curvar-se bem baixo sobre a ladeira relvada e planar pela encosta da montanha. Por um instante, transformou-se apenas num pontinho distante e então sumiu, deixando para trás outro guincho ressonante.

Vovó olhou o corpo adormecido de Esk. A menina era leve, mas se tratava de um longo caminho até a casa, e a tarde já se esvaía.

- Inferno - disse Vovó, sem muita ênfase.

A bruxa levantou, limpou-se e, com um gemido, içou o corpo inerte de Esk ao ombro.

No ar cristalino do poente, bem acima das montanhas, a águia Esk buscava cada vez mais altura, embriagada com a vitalidade do vôo.

No caminho de casa, Vovó se deparou com um urso faminto. As costas da mulher estavam doendo, e ela não estava no menor clima para ouvir rosnados. Sussurrou umas palavras e o urso, de repente, surpreendendo a si mesmo, arrastou-se até uma árvore e só recobrou consciência várias horas depois.

Quando chegou ao chalé, Vovó deitou o corpo de Esk na cama e acendeu a fogueira. Botou as cabras para dentro, ordenhou-as e concluiu as tarefas noturnas.

Certificou-se de que todas as janelas se encontravam abertas e, quando começou a escurecer, acendeu um lampião e colocou-o no parapeito da janela.

Vovó Cera do Tempo quase sempre dormia só algumas poucas horas. Acordou quando era meia-noite. O quarto não havia mudado, apesar de o lampião ter seu próprio pequeno sistema solar de mariposas.

Ao amanhecer - quando acordou outra vez - a vela já havia se apagado e Esk ainda dormia o sono superficial e inabalável do Empréstimo.

Quando levou as cabras para o pasto, Vovó investigou o céu com atenção.

O meio-dia chegou e aos poucos a luz diurna ia embora. Sem ânimo, ela andava na cozinha de um lado para o outro. De vez em quando, tinha acessos de serviço doméstico: crostas antigas foram removidas sem a menor cerimônia das fendas do piso, a parte de trás da lareira se viu livre da fuligem de inverno e grafitada até não poder mais. O ninho de ratos atrás da cômoda foi jogado, com delicadeza e determinação, no abrigo das cabras.

O ocaso chegou.

A luz do Discworld era antiga, lenta e pesada. Da porta do chalé, Vovó observou-a escoar das montanhas, correndo em rios dourados pela floresta. Aqui e ali, formava pequenas poças até sumir de todo.

Ela tamborilou os dedos com força no batente da porta, entoando uma melodia breve e amarga.

A alvorada chegou, e o chalé continuava vazio - exceto pelo corpo imóvel e silencioso de Esk sobre a cama.

Mas quando a luz dourada começou a fluir pelo Discworld como a primeira vaga da maré sobre a terra lamacenta, a águia voava em círculos cada vez mais altos na abóbada celeste, açoitando o ar com golpes lentos e poderosos das asas.

O mundo inteiro se abria abaixo de Esk - todos os continentes, arquipélagos, rios e, especialmente, o grande aro do Oceano da Borda.

Lá em cima não havia mais nada - nem mesmo barulho.

Esk se regozijava com a sensação, forçando os músculos debilitados a grandes esforços. Mas havia algo errado. Os pensamentos pareciam lhe escapar e desaparecer. Sofrimento, alegria e cansaço brotavam em sua mente, mas era como se ao mesmo tempo outras coisas lhe fugissem. As lembranças eram abatidas pelo vento. Tão logo Esk se agarrava a uma idéia, o pensamento evaporava sem deixar rastro.

A menina vinha perdendo partes de si mesma e não conseguia nem se lembrar do que estava perdendo. Entrou em pânico, voltando-se para aquilo de que tinha certeza...

Eu sou Esk, roubei o corpo de uma águia e a sensação do vento nas penas, a fome, a procura do não-céu abaixo...

 Tentou novamente. Eu sou Esk e a trajetória do vento, a dor nos músculos, os golpes no ar, o frio...

Eu sou Esk bem acima do branco molhado do ar, acima de tudo, o céu esparso...

Eu sou eu sou.

Vovó estava entre as colméias do jardim, com a brisa matutina a lhe agitar as saias. Andou de colméia em colméia, batendo no alto das caixas. Então, sobre as moitas de borago e erva-cidreira que havia plantado ao redor, manteve-se parada com os braços estendidos à frente e cantou alguma coisa em tons muito agudos, que nenhuma pessoa normal poderia ouvir.

Mas das colméias surgiu um bramido e o ar de repente se adensou com a presença de zangões de corpos pesados, olhos grandes e zumbido profundo. Circulando em torno da cabeça de Vovó, eles acrescentavam um zunzum grave ao canto.

Então partiram, avançando para a luz que se intensificava acima da clareira e voando sobre as árvores.

Todos sabem muito bem - ou pelo menos as bruxas sabem muito bem - que colônias de abelhas são apenas partes isoladas da criatura chamada Enxame, da mesma forma que abelhas individuais são elementos constituintes da mente da colméia. Vovó não costumava trocar idéia com abelhas, em parte porque a mente dos insetos era um negócio esquisito com gosto de estanho, mas principalmente porque suspeitava de que o Enxame era bem mais inteligente do que ela.

A bruxa sabia que os zangões não tardariam a alcançar as colônias de abelhas selvagens no meio da floresta, e dentro de poucas horas todos os cantos da região estariam sendo vigiados. Só lhe restava esperar.

Ao meio-dia os zangões retornaram. Vovó leu nos pensamentos ácidos da mente da colméia que não havia nenhum sinal de Esk.

Ela voltou para o frescor do chalé e se sentou na cadeira de balanço, fitando o vão da porta.

 Sabia o que deveria fazer em seguida. Detestava a idéia. Mas arrumou uma pequena escada de mão, subiu os degraus rangentes até o telhado e retirou a vara de seu esconderijo.

Estava gelada. E fumegante.

-           Então ela deve estar acima das neves eternas – concluiu Vovó.

Desceu a escada e fincou o bastão num canteiro. Olhou para ele. E teve a terrível sensação de que o olhar era retribuído.

-           Não pense que ganhou, porque não ganhou - avisou ela. - Acontece que não tenho tempo para ficar vagabundeando por aí. Você deve saber onde a menina está. Exijo que me leve até ela!

A vara a encarou.

-           Por... - Vovó se deteve, as invocações se encontravam meio enferrujadas. - ... por pau e pedra, eu ordeno!

Atividade, agitação, movimento - estas palavras não servem para descrever a reação da vara.

Vovó coçou o queixo. Então se lembrou da liçãozinha que toda criança aprendia: qual é a palavrinha mágica?

-           Por favor? - arriscou ela.

A vara tremeu, afastou-se do chão e se virou no ar de modo a ficar convidativamente suspensa à altura de sua cintura.

Vovó ouvira dizer que vassouras estavam outra vez na moda entre as bruxas mais jovens, mas não concordava com aquilo. Não havia jeito de a pessoa parecer respeitável zunindo pelo ar a bordo de um utensílio doméstico. Além disso, ficava-se exposto demais ao vento.

Mas não era hora de pensar em respeitabilidade. Demorando-se apenas para pegar o chapéu no cabide atrás da porta, trepou no bastão e se encarapitou o melhor que podia - de lado, obviamente, e com as saias bem presas entre os joelhos.

-           Estou pronta - disse ela. - E ago-ooooooooo...

Na floresta, os animais se dispersavam à medida que a sombra passava, soltando gritos e imprecações. Vovó se segurava com tanta força que os dedos já estavam embranquecidos, suas pernas davam chutes desvairados no ar, enquanto - bem acima da copa das árvores — ela aprendia lições importantes sobre centros de gravidade e turbulência aérea. A vara seguia adiante, indiferente aos berros.

Quando finalmente sobrevoou campos mais elevados, ela já havia se acostumado um pouco, isto é, conseguia se firmar com os joelhos e as mãos, desde que não se incomodasse em ficar de cabeça para baixo. Pelo menos o chapéu era útil - tinha forma aerodinâmica.

A vara mergulhou entre penhascos negros e avançou por vales sem vegetação onde, diziam, correram rios gelados no tempo dos Gigantes do Gelo. O ar ficou mais rarefeito, machucando a garganta.

O bastão parou de repente sobre um monte de neve. Vovó caiu ofegante, enquanto tentava lembrar qual era o motivo de estar passando por tudo aquilo.

Alguns metros adiante, debaixo de um ressalto, havia um feixe de penas. Quando Vovó se aproximou, uma cabeça se ergueu, e a águia olhou para ela com olhos ao mesmo tempo duros e assustados. O bicho tentou voar e não conseguiu. Quando Vovó estendeu o braço para tocá-lo, o animal lhe arrancou um triângulo de carne da mão.

-           Sei - murmurou Vovó, para ninguém em especial.

Ela correu os olhos à volta e achou um penedo do tamanho certo. A bem da respeitabilidade, desapareceu ali atrás durante alguns segundos e voltou segurando uma anágua. A ave se debateu, arruinando várias semanas de bordados meticulosos, mas Vovó conseguiu enrolar o animal e segurá-lo de modo a evitar suas ocasionais investidas.

A bruxa se virou para o bastão, que agora se encontrava ereto no monte de neve.

-           Prefiro voltar andando - disse ela, com frieza.

Acontece que estavam num pico de várias centenas de metros, em cuja base havia pedras negras e pontudas.

-           Pois muito bem - assentiu Vovó. - Mas você vai voar devagar, entendeu? E nada de ir alto.

De fato, como ela estava um pouquinho mais experiente e talvez porque a vara também viesse tomando mais cuidado, a viagem de volta foi quase tranqüila. Por um triz Vovó não se deixou convencer de que, com o tempo, conseguiria chegar a apenas desgostar de voar - em vez de detestar. O que precisava haver era uma forma de impedir a pessoa de olhar para baixo.

A águia estava escarrapachada no velho tapete de frente para a lareira. O animal havia bebido um pouco de água - sobre a qual Vovó sussurrara alguns dos encantamentos que normalmente dizia para impressionar as clientes (mas que, nunca se sabe, talvez tivessem mesmo algum poder) - e também havia devorado algumas tiras de carne crua.

O que não tinha feito era manifestar nenhum sinal de inteligência.

Vovó chegou a duvidar de ter apanhado o bicho certo. Arriscando-se a levar outra bicada, fitou de perto os duros olhos laranja, tentando se convencer de que bem no fundo, quase além do alcance da vista, havia uma pequena chama diferente.

Ela investigou o interior da cabeça. A mente da águia ainda se encontrava ali - forte e aguçada - mas também havia outra coisa. É claro que a mente não tem cor, só que os filamentos na mente da águia pareciam roxos. E, enredados neles, havia leves traços de prata.

Esk descobrira tarde demais que a mente molda o corpo, que o Empréstimo é uma coisa, mas o sonho de assumir outra forma é outra, e tinha seu preço.

Vovó se sentou e a cadeira começou a balançar. Ela sabia que tinha perdido. Separar mentes enredadas era algo além de sua alçada, além da alçada de qualquer um nas Ramtops e mesmo além...

Não se ouviu nenhum barulho, mas talvez tivesse havido uma sutil mudança na textura do ar. Ela olhou para a vara, que agora voltara a ter permissão para ficar dentro do chalé.

-           Não - disse, resoluta.

Então pensou: para quem foi que eu disse isso? Para mim? Existe poder ali, mas não é meu tipo de poder.

-           Sei, entendi. Agora gostaria que você fosse lá embaixo, pegasse o bacon que está na copa e botasse para o pássaro. E acho que seria uma boa idéia agradecer a ele. Nunca se sabe.

Quando Esk voltou, Vovó passava manteiga no pão. A menina levou seu banco até a mesa, mas a velha apenas agitou a faca no ar.

-           Primeiro as coisas importantes. Levante. Olhe para mim.

Esk obedeceu, intrigada. Vovó deixou a faca na tábua de pão e balançou a cabeça.

-           Dane-se - disse para o mundo de maneira geral. - Não sei como se faz isso. Se bem conheço os magos, deve ter algum tipo de ritual. Eles sempre têm que complicar tudo...

-           Do que está falando?

Vovó parecia ignorá-la, dirigia-se ao canto escuro próximo à cômoda.

-           Talvez você devesse estar com o pé metido num balde de mingau gelado, uma luva e tudo mais - prosseguiu ela. - Eu não queria fazer isso, mas Elas estão me obrigando.

-           Vovó, do que está falando?

A velha bruxa puxou a vara e agitou-a vagamente na direção de Esk.

-           Aqui. É sua. Tome. Só espero estar fazendo a coisa certa.

De fato, a entrega da vara ao aprendiz de mago, em geral, é uma cerimônia bem impressionante, principalmente se a vara foi herdada de um mago mais velho. De acordo com a tradição, deve haver uma longa e assustadora iniciação envolvendo máscaras, capuzes, espadas e juramentos terríveis, que falam em pessoas com as línguas cortadas, as vísceras devoradas por pássaros selvagens, as cinzas lançadas aos oito ventos e assim por diante. Depois de algumas horas desse tipo de procedimento, o aprendiz pode enfim ser admitido na fraternidade dos Inteligentes e Iluminados.

Também acontece um discurso comprido. Por feliz coincidência, Vovó transmitiu sua essência em poucas palavras.

Esk pegou a vara e olhou para ela.

-           É legal - arriscou, sem muita certeza. - As marquinhas são bonitas. Para que serve?

- Agora sente e me escute com atenção. No dia em que você nasceu...

- ... e é isso.

Esk olhou para a vara, depois para Vovó.

-           Tenho que ser maga?

-           Tem. Não. Não sei.

-           Vovó, isso não é resposta - repreendeu Esk. - Tenho ou não tenho?

-           Mulher não pode ser maga - disse Vovó, bruscamente. - Vai contra a natureza. Seria o mesmo que termos uma mulher trabalhando na oficina, uma ferreira.

-           Pra dizer a verdade, estive observando papai e não vejo por que não...

-           Olhe aqui - cortou Vovó. - Não existe maga, da mesma maneira que não existe bruxo, porque...

-           Já ouvi falar de bruxos - Esk disse, baixinho.

-           Feiticeiros!

-           Acho que sim.

-           Eu digo, não existem bruxos, só homens idiotas – rebateu Vovó, encolerizada. - Se o homem fosse bruxo, seria mago. Tudo se resume a...

Ela bateu na cabeça.

-           ... cabeçologia. Como a mente funciona. A mente dos homens funciona de modo diferente, entendeu? A magia deles são só números, ângulos, limites e o que as estrelas estão fazendo, como se isso fosse importante. É só poder. É só - Vovó se deteve, à procura de sua palavra preferida para descrever tudo que mais desprezava na magia dos magos — jometna.

-           Então ótimo - disse Esk, aliviada. - Fico aqui e aprendo bruxaria.

-           Ah - lamentou Vovó. - É fácil falar. Acho que não vai ser tão simples assim.

-           Mas a senhora disse que homem só pode ser mago e mulher só pode ser bruxa.

 -          Exatamente.

-           Então pronto - concluiu Esk, triunfante. - Está tudo resolvido, não está? Sou obrigada a ser bruxa.

Vovó apontou para a vara. Esk deu de ombros.

-           É só um pedaço de pau.

Vovó sacudiu a cabeça. Esk piscou os olhos.

-           Não?

-           Não.

-           E não posso ser bruxa?

-           Não sei o que você pode ser. Segure o bastão.

-           O quê?

-           Segure o bastão. Já botei lenha na lareira. Acenda.

-           O isqueiro está no... — começou Esk.

-           Um dia você disse que existiam maneiras melhores de acender fogueiras. Mostre para mim.

Vovó se levantou. No breu da cozinha, ela pareceu crescer até encher todo o ambiente com sombras tortas, instáveis e ameaçadoras. Os olhos se dirigiram à menina.

-           Mostre para mim - ordenou ela, com gelo na voz.

-           Mas... - disse Esk em desespero, pegando o bastão e derrubando o banco na pressa de se afastar.

-           Mostre para mim.

Com um grito, Esk se virou. Chamas irromperam das pontas de seus dedos e correram pelo cômodo. A lenha explodiu com uma força que fez a mobília sair do lugar, e uma bola de luz verde estourou na lareira.

Formas mutantes corriam pela superfície e rodopiavam sobre as pedras, que então começaram a rachar e ceder. A traseira de ferro resistiu bravamente durante alguns segundos, até derreter feito cera - e ainda fez uma aparição final como uma nódoa vermelha na bola de fogo antes de desaparecer. Um instante depois, acontecia o mesmo com a chaleira.

Quando pareceu que a chaminé teria o mesmo fim, a antiga pedra da lareira cedeu e, com um último estampido, a bola de fogo sumiu de vista.

 Os ocasionais estalos e jatos de vapor marcaram sua passagem pela terra. Fora isso, havia silêncio - o silêncio alto e chiado que vem depois de um barulho lancinante. E, após todo aquele brilho radiativo, a sala pareceu completamente escura.

Por fim, Vovó saiu engatinhando de trás da mesa e se arrastou até onde a ousadia lhe permitiu para perto do buraco - que ainda estava coberto de crosta de lava. A bruxa recuou ao ver outra nuvem de vapor superaquecido subir como um cogumelo.

-           Dizem que os anões têm minas debaixo das Ramtops - comentou. - Eta, os cretinos vão ter uma surpresa.

Ela cutucou a pequena poça de ferro que um dia fora a chaleira, e acrescentou:

-           Uma pena o que aconteceu com a parede traseira. Tinha corujas ali, sabia?

Com a mão trêmula, bateu no cabelo chamuscado.

-           Acho que isso pede um bom copo de, um bom copo de água fria.

Assombrada, Esk fitava a própria mão.

-           Foi mágica de verdade - soltou afinal. - E fui eu que fiz.

-           Um tipo de mágica de verdade - corrigiu Vovó. - Não se esqueça disso. E não me vá fazer isso toda hora. Se está em você, precisa aprender a controlar.

-           A senhora pode me ensinar?

-           Eu? Não!

-           Como vou aprender se ninguém me ensinar?

-           Você tem que ir para onde fazem isso. A faculdade dos magos.

-           Mas a senhora disse...

Vovó parou de encher de água um vaso.

-           Sei, sei - ela disse, irritada. - Não importa o que eu disse, nem o bom senso. Às vezes temos que seguir o caminho que traçaram para nós. Acho que de um jeito ou de outro você vai para a escola de magos.

Esk pensou naquilo.

-           Quer dizer que é meu destino? - perguntou por fim.

Vovó encolheu os ombros.

-           Talvez. Provavelmente. Quem sabe?

Aquela noite, muito depois de Esk ter ido para a cama, Vovó botou o chapéu, acendeu uma vela nova, limpou a mesa e tirou uma caixinha de madeira de seu esconderijo na cômoda. A caixa continha um vidro de tinta, uma velha pena de escrever e algumas folhas de papel.

Vovó não ficava muito à vontade quando tinha que encarar o mundo das letras. Os olhos se arregalaram, a língua saltou para fora e gotículas de suor se formaram na testa, mas a pena rabiscou todo o papel, acompanhada pelo eventual som de "inferno" e "droga".

A carta está redigida como segue, embora esta versão não tenha os pingos de cera, os borrões, as rasuras, nem as manchas gordurosas do original.

Ao Magu Director,

Universedadi Invesivil.

Saudançõesy isperu qui esteje tudu beim. Mandupru sinhôr Escarrina Smith, ella teim cualidadis di magu mas naum sei o que si podi fazer delia é trabanhadeira i limpa tambéim prendada em diuersas artis donmésticas. Vou inviar dinnhero com ella Qui o senhor tenha vidda longa i termini céus dias empas. Gratta, Esmerelder Cerra do Tempo (Senhorita) Brucha.

Vovó segurou o papel à luz da vela e analisou o manuscrito com olhar crítico. Era uma boa carta. Ela havia tirado "diversas" do Almanacke, que lia todas as noites. O livro sempre profetizava "pestes diversas" e "azar diverso". Vovó não sabia ao certo o que significava, mas ainda assim era uma bela palavra.

Fechou a carta com cera de vela e colocou-a sobre a cômoda. No dia seguinte, quando fosse à aldeia comprar uma nova chaleira, deixaria para o mensageiro levar.

De manhã, Vovó caprichou na roupa, escolhendo um vestido preto com bordado de sapos e morcegos, uma grande capa de veludo — ou pelo menos uma capa feita com o tipo de material que parece veludo, depois de trinta anos de uso constante - e um chapéu de ritual, pontudo, com alfinetes em forma de cruz.

 

 

A primeira visita foi ao canteiro, para pedir uma nova pedra de lareira. Então seguiram para a casa do ferreiro.

Foi uma visita demorada e tempestuosa. Esk saiu para a horta e subiu na macieira, enquanto da casa vinham gritos do pai, lamúrias da mãe e longas pausas, que indicavam que Vovó Cera do Tempo estava falando baixinho com o que Esk considerava sua voz "nem mais nem menos". Às vezes a mulher tinha um jeito compassado e ao mesmo tempo categórico de falar. Era o tipo de voz que o Criador provavelmente usara. Se havia mágica ou apenas cabeçologia envolvida não importava muito, de qualquer modo aquilo eliminava toda possibilidade de argumentação. Deixava claro que o que estava sendo dito era exatamente como as coisas deveriam ser.

A brisa sacudiu a árvore de leve. Esk continuava sentada num galho, balançando as pernas.

Pensava em magos. Eles não apareciam com freqüência em Cabra da Peste, mas havia inúmeras histórias a seu respeito. Eram inteligentes, lembrou-se ela, e quase sempre bem velhos. Faziam mágicas complexas, misteriosas e possantes. Quase todos tinham barba. Também eram, sem exceção, homens.

Ela se sentia em terreno mais firme com as bruxas, porque já havia visitado algumas, em outras aldeias, com Vovó e, de qualquer forma, as bruxas apareciam bastante no folclore das Ramtops. As bruxas eram espertas, recordou, e quase sempre bem velhas — pelo menos tentavam parecer velhas - e realizavam magias simples, orgânicas e ligeiramente suspeitas. Algumas tinham barba. E também eram, sem exceção, mulheres.

Havia um problema fundamental nisso tudo que a menina simplesmente não conseguia resolver. Por que não...

Cern e Gulta avançaram pela trilha e pararam de repente ao pé da árvore. Então olharam a irmã com um misto de fascínio e desprezo. Bruxas e magos eram objeto de admiração; mas irmãs, não. De alguma forma, saber que a própria irmã vinha estudando para ser bruxa desvalorizava um pouco toda a profissão.

—        Você não pode fazer mágica — começou Cern. - Pode?

—        Claro que não pode - disse Gulta. - Que vara é essa?

 

 

Esk havia deixado o bastão encostado na árvore. Cern o tocou com cuidado.

-           Não toque - apressou-se em pedir Esk. - Por favor. É minha.

Em geral Cern tinha a sensibilidade de um rolimã, mas -

para surpresa dela - a mão se deteve em pleno ato.

-           Eu não queria mesmo - murmurou ele, tentando esconder

a perplexidade. — E só um pedaço de pau.

-           Verdade que sabe fazer feitiços? — perguntou Gulta. — Ou vimos Vovó dizer que sabe.

-           Escutamos atrás da porta - acrescentou Cern.

-           Vocês disseram que eu não sabia - retrucou Esk, distraída.

-           Bom, sabe ou não sabe? - indagou Gulta, com o rosto já vermelho.

-           Talvez.

-           Sabe nada!

Esk o encarou. Ela amava os irmãos — quando se lembrava de amar, praticamente como quem cumpre uma obrigação - embora quase sempre se lembrasse deles como um conjunto de barulhos altos vestidos de calça. Mas havia algo terrivelmente porco e desagradável na maneira como Gulta agora a fitava, como se ela o tivesse insultado pessoalmente.

Esk sentiu o corpo começar a formigar, e de repente o mundo pareceu mais claro e definido.

-           Posso sim - afirmou ela.

Gulta olhou para a irmã e para a vara, e os olhos se apertaram. Então desferiu um chute violento no bastão.

-           Pedaço de pau!

Ele parecia, pensou Esk, exatamente um porquinho irritado.

Os gritos de Cern levaram Vovó e os pais, primeiro até a porta dos fundos, depois ao pé da árvore.

Esk estava empoleirada num galho da macieira, com uma fisionomia de meditação sonhadora. Cern estava escondido atrás da árvore — o rosto, um mero aro em torno do grito vibrante e sonoro.

Gulta se achava desnorteado numa pilha de roupas que já não cabiam, franzindo o focinho.

Vovó se aproximou da árvore, até o nariz adunco se encontrar à altura de Esk.

-           É proibido transformar gente em porco - protestou ela. - Mesmo irmãos.

-           Eu não fiz nada. Aconteceu. De qualquer jeito, a senhora tem que admitir que ele ficou bem melhor assim - Esk disse, com tranqüilidade.

-           O que está acontecendo? - perguntou Smith. - Onde está Gulta? O que esse porco está fazendo aqui?

-           Esse porco — informou Vovó Cera do Tempo — é o seu filho.

A mãe de Esk soltou um suspiro ao cair para trás, mas Smith se encontrava um pouco menos despreparado. Ele olhou de Gulta — que havia conseguido se desvencilhar das roupas e agora mostrava entusiasmo fuçando a terra entre as frutas - para a filha única.

-           Ela fez isso?

-           Fez. Ou aconteceu através dela - Vovó disse, olhando desconfiada para o bastão.

-           Ah.

Smith mirou o quinto filho. Tinha que admitir que aquela forma lhe caía bem. Sem olhar, estendeu o braço e deu um tapa na cabeça de Cern, ainda aos berros.

-           E a senhora pode transformá-lo outra vez? - perguntou.

Vovó se virou e transferiu a pergunta para Esk, que se limitou a dar de ombros.

-           Gulta não acreditou que eu soubesse fazer mágica - explicou ela, com calma.

-           É, tá certo, mas acho que você já deixou bem claro que sabe - Vovó disse. - E agora a senhorita vai desfazer a transformação. Neste instante. Está ouvindo?

-           Não quero. Ele foi grosso.

-           Sei.

Esk olhou desafiadora para baixo. Vovó olhou com dureza para cima. As vontades contrárias tiniram como pratos musicais, e o ar entre elas se adensou. Mas Vovó havia passado a vida inteira dobrando criaturas teimosas e, embora Esk se mostrasse uma adversária surpreendentemente forte, era óbvio que desistiria até o fim do parágrafo.

-           Ah, tá bom - ela disse. - Não sei por que me dei ao trabalho de transformá-lo num porco. Ele estava conseguindo fazer isso muito bem sozinho.

Ela não sabia de onde vinha a magia, mas mentalmente olhou naquele sentido e fez uma sugestão. Gulta reapareceu, nu, com uma maçãzinha na boca.

-           Oinc oinctinique - disse ele.

Vovó se virou para Smith.

-           Acredita em mim agora? - perguntou. - Realmente acha que ela deve ficar aqui e esquecer a magia? Se vier a se casar, dá para imaginar o coitado do marido?

-           Mas a senhora sempre disse que era impossível mulher maga - disse Smith.

Ele estava, de fato, muito impressionado. Vovó Cera do Tempo nunca havia transformado ninguém em nada.

-           Já não importa - Vovó disse, acalmando-se um pouco. - Ela precisa estudar. Precisa aprender a se controlar. Tenha dó, alguém bote uma roupa nesse menino.

-           Gulta, vá se vestir e pare de gemer - ordenou o pai, virando-se de volta para Vovó. - A senhora falou que existia uma espécie de estabelecimento de ensino — ele continuou.

-           Isso mesmo, a Universidade Invisível. É onde os magos se formam.

-           E sabe onde fica?

-           Sei — mentiu Vovó, cujo domínio de geografia era um pouco pior do que seu conhecimento de física subatômica.

Smith desviou o olhar para a filha, que estava amuada.

-           E vão transformá-la em maga? — quis saber ele.

Vovó suspirou.

-           Não sei no que vão transformá-la - confessou afinal.

E foi assim que, uma semana depois, Vovó trancou a porta do chalé e pendurou a chave no prego da latrina. As cabras ficariam na casa de uma amiga bruxa, que também prometera ficar de olho no chalé. Durante algum tempo, Cabra da Peste teria que se virar sem bruxa.

Vovó sabia que ninguém achava a Universidade Invisível a não ser que ela, Universidade, quisesse. E o único lugar para iniciar a procura era a vila de Corta Cinza Ohulan, uma extensão de terra com mais ou menos cem casas a cerca de 25 quilômetros dali. Era aonde os habitantes mais cosmopolitas de Cabra da Peste iam uma ou duas vezes por ano - Vovó só estivera ali uma vez na vida e não tinha gostado nem um pouco. Tudo parecera errado, ela tinha se perdido e não confiou nunca no povo da cidade, com seus modos espalhafatosos.

As duas pegaram carona na carroça que abastecia de metal a ferraria. Era imunda, mas melhor do que andar - principalmente quando Vovó havia botado todos os poucos pertences num único saco grande. Por medida de segurança, a bruxa foi sentada em cima dele.

Esk viajava segurando a vara e observando as florestas passarem. Quando já se encontravam a vários quilômetros da aldeia, disse:

-           A senhora não disse que as plantas eram diferentes nas estranjas?

-           E são.

-           Estas árvores são exatamente iguais.

-           Não chegam nem perto - disse a bruxa.

O fato era que ela já estava começando a se deixar tomar pelo pânico. A promessa de acompanhar Esk à Universidade Invisível fora feita sem pensar, e Vovó - que aprendera o pouco que sabia do resto do Discworld a partir de boatos e das páginas do Almanacke - tinha certeza de estar indo ao encontro de terremotos, maremotos, pestes e massacres. Mas estava decidida a levar até o fim a empreitada. Bruxas dependiam demais das palavras para faltar a elas.

Vovó estava vestindo preto e trazia, ocultos na roupa, inúmeros alfinetes e uma faca de pão. Ela havia escondido a pequena quantia de dinheiro, adiantada com relutância por Smith, nas misteriosas camadas da roupa de baixo. Os bolsos da saia tilintavam com amuletos, e uma ferradura recém-forjada - excelente proteção para as horas de sufoco - pesava na bolsa. Ela se sentia mais pronta do que nunca para enfrentar o mundo.

A estrada ziguezagueava pelas montanhas. Por incrível que pareça, o céu estava limpo, as altas Ramtops apareciam brancas e rugosas como noivas do céu (com seus vestidos acolchoados de tempestades). Os muitos regatos que margeavam ou cruzavam a estrada corriam preguiçosamente pelas campinas cobertas de ulmária e raiz-vai-mais-rápido.

Na hora do almoço, chegaram ao subúrbio de Ohulan. A vila era pequena demais, tinha só um subúrbio, e nele havia apenas uma hospedaria e um punhado de chalés pertencentes a pessoas que não suportavam a pressão da vida urbana. Alguns minutos mais tarde, a carroça as deixava na principal - a bem da verdade, única — praça da vila.

Era dia de feira.

Vovó Cera do Tempo se manteve imóvel sobre o pavimento - segurando firme o ombro de Esk - enquanto a multidão trançava ao redor das duas. Ela ouvira dizer que coisas indecorosas podiam acontecer a mulheres do campo recém-chegadas à cidade grande, então comprimiu a bolsa até os nós dos dedos ficarem brancos. Se algum homem desconhecido ousasse acenar, levaria um golpe violento.

Os olhos de Esk brilhavam. A praça era um festival de ruídos, cheiros e cores. Num lado ficavam os templos das mais exigentes divindades do Disco, e aromas estranhos saíam dos prédios para se juntar à atmosfera infecta do comércio, numa complexa colcha-de-retalhos de odores. Havia barracas abarrotadas de curiosidades tentadoras. A menina se segurava para não ir lá investigar.

Vovó se deixou levar com Esk pela multidão. As barracas também a intrigavam. Ela examinou as mercadorias — embora sem nem por um segundo relaxar a vigilância contra assaltos, terremotos e traficantes de erotismo - até dar com os olhos em algo vagamente familiar.

Era uma pequena tenda coberta, com cortinas pretas e mofadas, enfiada no estreito vão entre duas casas. Apesar de não chamar nenhuma atenção, parecia bem movimentada. Os clientes eram, na maioria, mulheres - de todas as idades - embora também houvesse alguns poucos homens. Todos, no entanto, tinham uma coisa em comum. Ninguém se aproximava de maneira direta. Todos chegavam a quase passar pela tenda e, de repente, se enfiavam ali dentro. Não passava muito tempo, estavam de volta, tirando a mão às pressas do bolso ou da bolsa e competindo pelo título de Caminhada Mais Indiferente do Mundo com tanta eficiência que quem estivesse olhando poderia até duvidar do que havia visto.

Era impressionante que uma barraca tão insignificante fosse, ao mesmo tempo, tão popular.

—        O que tem lá dentro? — perguntou Esk. — O que todo mundo está comprando?

—        Remédios - respondeu Vovó, com firmeza.

—        Deve ter muita gente doente na vila — considerou Esk.

Por dentro, a tenda era uma profusão de sombras aveludadas.

E o ar cheirando a ervas parecia tão denso que poderia ser engarrafado. Vovó cutucou alguns molhos de folhas secas com os dedos hábeis. Esk se afastou dela e tentou ler os rótulos rabiscados nas garrafas. A menina era especialista na maioria das poções de Vovó, mas não reconheceu nenhuma delas ali. Os nomes eram bastante divertidos, como Óleo do Tigre, Prece de Donzela e Socorro de Marido. Uma ou duas das rolhas cheiravam como a copa, depois de Vovó ter preparado algumas destilações secretas.

Um vulto se mexeu no fundo escuro da tenda, uma pequena mão enrugada e morena se dirigiu a ela.

—        Posso ajudar, mocinha? - perguntou a voz falha, em tons

de xarope de figo. - Quer saber a sorte ou mudar o futuro?

—        Ela está comigo - interveio Vovó. - E se não consegue nem adivinhar a idade dela, Hilta Cabreira, é porque seus olhos não estão nada bem.

O vulto diante de Esk se inclinou para frente.

—        Esme Cera do Tempo? - perguntou.

 -          A própria - respondeu Vovó. - Ainda vendendo gotas de trovão e pedidos baratos, Hilta? Como está a vida?

-           Agora melhor, por ver você - disse o vulto. - O que a traz aqui, Esme? E a menina... sua assistente?

-           Por favor, o que a senhora vende? - perguntou Esk.

O vulto soltou uma risada.

-Ah, meu anjo, coisas para impedir coisas que não deveriam acontecer e facilitar coisas que deveriam - explicou. — Deixe-me fechar a loja, meus amores, e já volto.

O vulto passou por Esk num caleidoscópio nasal de fragrâncias e abotoou as cortinas da frente. Então abriu a parte de trás da tenda, deixando entrar a luz do sol vespertino.

-           Não suporto escuridão e ar abafado - reclamou Hilta Cabreira. - Mas, sabe como é, os clientes esperam isso.

-           Sei — confirmou Esk, com discrição. - Cabeçologia.

Hilta, uma mulher baixa e gorda usando um chapéu imenso com frutas no topo, olhou da menina para Vovó e sorriu.

-           É isso aí - assentiu. - Aceitam chá?

Elas se sentaram em pacotes de ervas desconhecidas no canto formado pela barraca e as paredes angulares das casas e beberam um líquido verde e cheiroso em canecas surpreendentemente delicadas. Ao contrário de Vovó, que se vestia como um corvo bastante respeitável, Hilta Cabreira era toda xales, rendas, cores, brincos, e havia tantas pulseiras que um leve movimento do braço parecia um conjunto de percussão despencando morro abaixo. Mas Esk conseguia ver a semelhança.

Era difícil descrever. Mas não dava para imaginar nenhuma das duas fazendo cortesia a ninguém.

-           Então - disse Vovó. - Como vai a vida?

A outra bruxa deu de ombros, fazendo os bateristas do conjunto de percussão se soltarem, quando já haviam escalado quase todo o morro de volta.

-           Como o amante apressado, vem e vai... - começou ela, e se

deteve ao ver os olhares sugestivos de Vovó em direção a Esk.

-           Nada mal, nada mal - corrigiu-se às pressas. - O conselho tentou me expulsar uma ou duas vezes, sabe, mas todos têm mulheres e de algum modo acaba nunca acontecendo. Dizem que não sou um bom exemplo, mas eu digo que muitas famílias da cidade estariam bem maiores e mais empobrecidas se não fosse pelos Preventivos Aromáticos de Madame Cabreira. Sei quem entra na loja. Lembro-me muito bem de quem compra Gotas de Caubói e Ungüento Podicrê. A vida não vai mal. E como está tudo na sua aldeia de nome engraçado?

-           Cabra da Peste - Esk disse, sempre prestativa.

A menina pegou um pote de barro do balcão e cheirou o conteúdo.

-           Tá tudo bem - reconheceu Vovó. - Os remédios naturais são sempre procurados.

Esk cheirou outra vez o pó, que parecia poejo com uma base não identificada, e recolocou a tampa com cuidado. Enquanto as duas mulheres se entregavam à fofoca numa espécie de código feminino - cheio de olhares insinuantes e adjetivos tácitos - ela examinou as outras poções exóticas à mostra. Ou melhor, não à mostra. De algum estranho modo, os produtos pareciam estar engenhosamente escondidos pela metade, como se Hilta não estivesse muito interessada em vender.

-           Não reconheço nenhuma dessas - murmurou ela, quase para si mesma. - Dão o que à pessoa?

-           Liberdade - respondeu Hilta, que tinha boa audição. Ela se dirigiu a Vovó. - Quanto ensinou à menina?

-           Não muita coisa - explicou Vovó. - Tem poder ali, mas não sei de que tipo. Talvez poder de mago.

Hilta se virou bem devagar e olhou Esk de cima abaixo.

-           Ah — soltou afinal. - Isso explica a vara. Eu já estava me perguntando do que as abelhas tanto falavam. Ora, ora. Filha, me dê a mão.

Esk obedeceu. Os dedos de Hilta eram tão cheios de anéis que aquilo era como enfiar a mão num saco de nozes.

Irradiando reprovação, Vovó se endireitou no lugar onde estava sentada, enquanto Hilta começava a inspecionar a palma da mão de Esk.

-           Realmente acho que isso não é necessário - opinou Vovó, ríspida. - Não entre nós.

-           A própria - respondeu Vovó. - Ainda vendendo gotas de trovão e pedidos baratos, Hilta? Como está a vida?

-           Agora melhor, por ver você - disse o vulto. - O que a traz aqui, Esme? E a menina... sua assistente?

-           Por favor, o que a senhora vende? - perguntou Esk.

O vulto soltou uma risada.

-           Ah, meu anjo, coisas para impedir coisas que não deveriam acontecer e facilitar coisas que deveriam - explicou. - Deixe-me fechar a loja, meus amores, e já volto.

O vulto passou por Esk num caleidoscópio nasal de fragrâncias e abotoou as cortinas da frente. Então abriu a parte de trás da tenda, deixando entrar a luz do sol vespertino.

-           Não suporto escuridão e ar abafado - reclamou Hilta Cabreira. — Mas, sabe como é, os clientes esperam isso.

-           Sei - confirmou Esk, com discrição. - Cabeçologia.

Hilta, uma mulher baixa e gorda usando um chapéu imenso com frutas no topo, olhou da menina para Vovó e sorriu.

-           E isso aí - assentiu. - Aceitam chá?

Elas se sentaram em pacotes de ervas desconhecidas no canto formado pela barraca e as paredes angulares das casas e beberam um líquido verde e cheiroso em canecas surpreendentemente delicadas. Ao contrário de Vovó, que se vestia como um corvo bastante respeitável, Hilta Cabreira era todaxales, rendas, cores, brincos, e havia tantas pulseiras que um leve movimento do braço parecia um conjunto de percussão despencando morro abaixo. Mas Esk conseguia ver a semelhança.

Era difícil descrever. Mas não dava para imaginar nenhuma das duas fazendo cortesia a ninguém.

-           Então - disse Vovó. - Como vai a vida?

A outra bruxa deu de ombros, fazendo os bateristas do conjunto de percussão se soltarem, quando já haviam escalado quase todo o morro de volta.

-           Como o amante apressado, vem e vai... — começou ela, e se

deteve ao ver os olhares sugestivos de Vovó em direção a Esk.

-           Nada mal, nada mal — corrigiu-se às pressas. — O conselho

tentou me expulsar uma ou duas vezes, sabe, mas todos têm mulheres e de algum modo acaba nunca acontecendo. Dizem que não sou um bom exemplo, mas eu digo que muitas famílias da cidade estariam bem maiores e mais empobrecidas se não fosse pelos Preventivos Aromáticos de Madame Cabreira. Sei quem entra na loja. Lembro-me muito bem de quem compra Gotas de Caubói e Ungüento Podicrê. A vida não vai mal. E como está tudo na sua aldeia de nome engraçado?

-           Cabra da Peste — Esk disse, sempre prestativa.

A menina pegou um pote de barro do balcão e cheirou o conteúdo.

-           Tá tudo bem - reconheceu Vovó. - Os remédios naturais são sempre procurados.

Esk cheirou outra vez o pó, que parecia poejo com uma base não identificada, e recolocou a tampa com cuidado. Enquanto as duas mulheres se entregavam à fofoca numa espécie de código feminino - cheio de olhares insinuantes e adjetivos tácitos - ela examinou as outras poções exóticas à mostra. Ou melhor, não à mostra. De algum estranho modo, os produtos pareciam estar engenhosamente escondidos pela metade, como se Hilta não estivesse muito interessada em vender.

-           Não reconheço nenhuma dessas - murmurou ela, quase para si mesma. - Dão o que à pessoa?

-           Liberdade - respondeu Hilta, que tinha boa audição. Ela se dirigiu a Vovó. - Quanto ensinou à menina?

-           Não muita coisa - explicou Vovó. - Tem poder ali, mas não sei de que tipo. Talvez poder de mago.

Hilta se virou bem devagar e olhou Esk de cima abaixo.

—Ah - soltou afinal. - Isso explica a vara. Eu já estava me perguntando do que as abelhas tanto falavam. Ora, ora. Filha, me dê a mão.

Esk obedeceu. Os dedos de Hilta eram tão cheios de anéis que aquilo era como enfiar a mão num saco de nozes.

Irradiando reprovação, Vovó se endireitou no lugar onde estava sentada, enquanto Hilta começava a inspecionar a palma da mão de Esk.

-           Realmente acho que isso não é necessário - opinou Vovó, ríspida. - Não entre nós.

-           Mas a senhora também faz - argumentou Esk. - Na aldeia. Eu já vi. Com xícaras de chá. E cartas.

Vovó mudou de posição, pouco à vontade.

-           É, bom - disse ela. - É um acordo. Apenas seguramos a mão da pessoa, e ela conta a própria sorte. Mas não tem necessidade de sair acreditando, Ficaríamos em maus lençóis se andássemos por aí acreditando em tudo.

-           As Forças Que Existem têm características estranhas, e as formas com que se fazem conhecer no círculo de luz chamado mundo físico são enigmáticas e variadas - proclamou Hilta, em tom solene.

Ela piscou para Esk.

-           Hum, sei — rebateu Vovó.

-           Não, de verdade - insistiu Hilta. - Sério.

-           Hmph.

-           Vejo uma longa viagem - começou Hilta.

-           Vou conhecer um homem alto e moreno? - perguntou Esk, examinando a própria palma. - Vovó sempre diz isso para as mulheres que...

-           Não - cortou Hilta, enquanto Vovó respirava agitada. - Mas vai ser uma viagem muito estranha. Ao mesmo tempo em que você vai percorrer longas distâncias, vai ficar no mesmo lugar.

E a direção é inusitada. Vai ser uma exploração.

-           Dá pra dizer isso tudo só pela minha mão?

-           Bom, a maior parte estou adivinhando - admitiu Hilta, recuando e estendendo o braço para pegar a chaleira (o baterista principal do conjunto de percussão, que já havia subido metade do braço, caiu sobre os tocadores de pratos). Ela olhou com atenção para Esk e perguntou:

-           Maga, hein?

-           Vovó está me levando para a Universidade Invisível - confirmou Esk.

Hilta ergueu as sobrancelhas.

-           Sabe onde fica?

Vovó franziu a testa.

-           Não exatamente - reconheceu. - Achei que você poderia me orientar melhor, já que fica menos isolada que eu.

 -          Dizem que possui muitas portas de entrada, mas que as deste mundo ficam na cidade de Ankh-Morpork- informou Hilta. Vovó parecia confusa. - No Mar Círculo - acrescentou Hilta.

O olhar desorientado de Vovó permaneceu. - A 800 quilômetros daqui - concluiu Hilta.

-           Ah - disse Vovó.

Ela se levantou e tirou uma mancha de poeira imaginária do vestido.

-           Então é melhor irmos andando - acrescentou ela.

Hilta deu uma risada. Esk gostou do som. Vovó nunca ria -apenas deixava os cantos da boca virar para cima - mas Hilta ria como alguém que havia pensado bastante sobre a Vida e entendera a piada.

-           Comecem amanhã - sugeriu ela. - Tenho espaço lá em casa. Podem ficar comigo, e então estará claro.

-           Não queremos incomodar - disse Vovó.

-           Bobagem. Por que não dão uma olhada aí fora enquanto desarmo a barraca?

Ohulan abastecia toda uma extensa área rural, e o dia de feira não terminava ao pôr-do-sol. Tochas cintilavam em cada uma das tendas e barracas, e vinha luz de todas as hospedarias. Até os templos botavam candeias coloridas na entrada a fim de atrair fiéis notívagos.

Hilta avançava pela multidão como cobra em grama seca, com toda a barraca e o estoque reduzidos a uma trouxa surpreendentemente pequena presa às costas e as bijuterias chacoalhando feito um saco cheio de dançarinos de flamenco. Vovó se arrastava em seu encalço, já com os pés doendo - desacostumados de andar sobre o pavimento de pedras.

E Esk se perdeu.

Demorou um pouco, mas conseguiu. Foi preciso se abaixar entre duas barracas e correr por uma ruela lateral. Vovó havia cansado de falar das coisas indescritíveis que se escondiam nas cidades, o que mostra que lhe faltava maior entendimento sobre cabeçologia — uma vez que aqueles avisos só serviram para Esk decidir ver pelo menos uma ou duas por conta própria.

De fato, como Ohulan era um tanto bárbara, muito pouco civilizada, as únicas coisas que aconteciam depois de escurecer eram alguns roubos, alguns camelôs nos becos da luxúria e a bebedeira desenfreada, até o sujeito cair para trás ou começar a cantar — ou ainda as duas coisas.

De acordo com as instruções poéticas vigentes, a pessoa deveria avançar pela feira como o cisne branco em movimentos noturnos sobre a baía. Mas por causa de algumas dificuldades práticas Esk se contentou em avançar pela multidão como um carrinho de bate-bate, trombando em todos, com a ponta da vara oscilando um metro acima da cabeça. Algumas pessoas se viravam e não apenas porque o bastão as havia acertado: de vez em quando magos passavam pela cidade, mas era a primeira vez que viam um mago de um metro e vinte de altura, ainda por cima com cabelos compridos.

Qualquer observador mais atento teria notado que coisas estranhas aconteciam à medida que ela passava.

Houve, por exemplo, o caso do homem que exibia três xícaras de cabeça para baixo e convidava um pequeno ajuntamento de pessoas a explorar com ele o emocionante mundo da sorte e da probabilidade, adivinhando a localização de uma ervilhinha seca. Durante alguns instantes ele notou a presença de um vulto baixo assistindo a tudo com bastante seriedade. De repente, de cada xícara que pegava, começou a cair um saco de ervilha. Em poucos segundos estava afundado até o joelho no meio dos grãozinhos. E mais afundado ainda em problemas - pois de um momento para o outro devia muito dinheiro a todo mundo.

Houve o caso do desafortunado macaquinho que já há muitos anos vinha dançando desanimado, preso a uma corrente, enquanto o dono tocava alguma melodia pavorosa no realejo. De repente o animal se virou, comprimiu os olhos vermelhos, mordeu com força a perna do proprietário, rompeu a corrente e fugiu pelos telhados com os ganhos da noite numa caneca de lata. A história não diz como eles foram gastos.

Na barraca ao lado, patinhos de marzipã ganharam vida e passaram voando pelo dono da tenda até pousarem - grasnando alegremente - no rio (onde, ao amanhecer, todos haviam derretido. É o que chamamos de seleção natural).

A barraca saiu andando por um beco e nunca mais foi vista.

Na realidade, Esk avançava pela feira mais como o incendiário caminha por um campo de feno ou o nêutron salta através do reator, a despeito dos poetas. E um observador hipotético poderia ter traçado seu caminho apenas seguindo as súbitas explosões de histeria e violência. Mas, como todo bom catalisador, ela não se envolvia nas ações que desencadeava e, quando todos os observadores potenciais não-hipotéticos desviavam os olhos da confusão, Esk já havia sido empurrada para algum outro lugar.

Ela também estava começando a se cansar. Embora de modo geral Vovó Cera do Tempo gostasse da noite, certamente não concordava com o uso indiscriminado da luz de vela. Se tinha algo para ler depois que escurecia, costumava convencer uma coruja a se encarapitar no espaldar da cadeira e lia através dos olhos da ave. Então Esk estava acostumada a ir para a cama quando o sol se punha, e isso acontecera fazia algum tempo.

Mais à frente, havia uma entrada que parecia simpática. Ruídos animados saíam do clarão de luz amarela e chegavam à rua de pedras. Com a vara ainda irradiando magia aleatória como um farol, a menina se dirigiu para lá - exausta mas decidida.

O proprietário do Enigma do Embusteiro se considerava um homem do mundo e tinha razão: era burro demais para ser mau, preguiçoso demais para ser mesquinho e, embora seu corpo já tivesse passado por muitos lugares, a mente jamais havia saído de dentro da própria cabeça.

Não estava acostumado a ser abordado por pedaços de pau. Principalmente quando falavam com voz baixa e fina, pedindo leite de cabra.

Com cuidado, e ciente de que todos na taberna olhavam sorrindo para ele, esticou-se até poder ver abaixo, do outro lado do balcão. Esk fixou o olhar nele. Mire bem nos olhos deles, Vovó sempre dissera: concentre suas forças, encare mesmo, ninguém consegue encarar uma bruxa, a não ser as cabras, é claro.

O proprietário, cujo nome era Skiller, viu-se olhando para uma menina que parecia estar comprimindo bastante os olhos.

-           O quê? - perguntou ele.

-           Leite - respondeu a menina, ainda furiosamente concentrada. - Aquilo que tiramos da cabra. Sabe?

Skiller só vendia cerveja, os clientes diziam que ela era extraída de gatos. Nenhuma cabra que se prezasse teria agüentado o cheiro do Enigma do Embusteiro.

-           Não tem - disse afinal.

Ele fitou a vara, e as sobrancelhas se encontraram conspiradoramente sobre o nariz.

-           O senhor poderia dar uma olhada? - pediu Esk.

Skiller voltou para o bar, em parte para evitar o olhar fixo -que já estava fazendo seus olhos lacrimejarem de simpatia - e em parte porque uma terrível suspeita vinha lhe congelando a mente.

Mesmo balconistas de quinta categoria são capazes de entrar em sintonia com a cerveja que servem, e as vibrações que vinham dos grandes barris logo atrás já não tinham o zunido de cevada e espuma. Transmitiam um som muito mais láctico.

Ele experimentou abrir uma torneira. Um jato fino de leite coalhou no balde que aparava as gotas de cerveja.

A vara ainda assomava sobre o balcão, como um periscópio. E o homem podia jurar que aquilo olhava para ele.

-           Não desperdice - advertiu uma voz fina. - Um dia ficará grato por isso.

Era o mesmo tom de voz que Vovó usava quando Esk não se mostrava muito entusiasmada pelo prato cheio das nutritivas folhas de morrião cozinhadas até ficar amarelas e as últimas poucas vitaminas desistirem. Mas para os ouvidos supersensíveis de Skiller aquilo não era um aviso, mas presságio. Ele tremia, não conseguia imaginar onde e em que dia se sentiria grato por um copo de leite coalhado. Preferia morrer antes.

Talvez fosse morrer antes.

Com cuidado, esfregou o polegar numa caneca quase limpa e encheu-a na torneira. Sabia que boa parte dos fregueses estava indo embora. Ninguém gostava de magia, especialmente nas  mãos de mulher. Nunca se sabia o que elas cismariam de fazer em seguida.

-           Seu leite - anunciou ele. E acrescentou: - Senhorita.

-           Tenho dinheiro - mentiu Esk.

Vovó não se cansava de avisar: esteja sempre pronta a pagar, e não vai ser preciso. As pessoas querem que gostemos delas, é tudo cabeçologia.

-           Não, imagine - tratou de dizer Skiller.

Então se inclinou sobre o balcão.

-           Mas se você pudesse, hã, fazer alguma coisa para transformar o resto de volta... Nessas bandas não tem muita procura de leite.

Ele se dirigiu um pouco para o lado. Esk havia apoiado a vara no balcão enquanto bebia o leite, e o fato o deixava inquieto. A menina fitou-o com um bigode de nata.

-           Eu não transformei nada em leite. Só sabia que era leite porque era o que eu queria — esclareceu ela. — O que o senhor achou que fosse?

-           Hã. Cerveja.

Esk pensou um pouco. Lembrava-se vagamente da vez em que experimentara cerveja, e o gosto era meio de coisa usada. Mas então se lembrou de uma bebida que todo mundo em Cabra da Peste considerava muito melhor do que cerveja. Era uma das receitas mais estimadas de Vovó. O líquido fazia bem à pessoa porque só tinha frutas e seguia todo um processo de fervuras e esfriamentos.

Se era noite muito fria, Vovó punha uma colherzinha cheia no leite. Mas tinha que ser colher de madeira, por causa do que a bebida fazia com metal.

A menina se concentrou. Era possível sentir o gosto na boca. E com as habilidades que vinha desenvolvendo - mas não conseguia entender - separou o sabor em pequenas formas coloridas...

A magérrima mulher de Skiller surgiu do quarto dos fundos para saber o motivo de tudo ter ficado tão silencioso, mas ele acenou para que continuasse quieta - enquanto Esk oscilava de leve, com os olhos fechados e os lábios se movendo.

 ... as formas de que não precisávamos voltavam para o grande poço de formas, e então achávamos as extras de que necessitávamos e juntávamos todas. Depois havia uma espécie de negócio em forma de gancho, que significava que transformariam tudo que fosse apropriado em algo como elas e...

Devagar, Skiller se virou e olhou para os barris. O cheiro do bar havia mudado, e dava para sentir o ouro puro vertendo da madeira antiga.

Com certo cuidado, pegou um copo debaixo do balcão e deixou que um pouco do escuro líquido dourado escapasse da torneira. Skiller olhou pensativo para a bebida sob a luz artificial, girou o copo de maneira metódica, cheirou o conteúdo algumas vezes e bebeu tudo num único gole.

O rosto permaneceu inalterado, embora os olhos tenham ficado molhados e a garganta tenha tremido um bocado. Sua esposa e Esk observaram o filete de suor lhe brotar na testa. Dez segundos se passaram, e ele se encontrava obviamente prestes a quebrar algum grande recorde. Talvez os ouvidos tenham soltado vapor, mas pode ser boato. Os dedos tamborilaram um estranho batuque na madeira do balcão.

Por fim, ele engoliu, pareceu chegar a uma decisão, virou-se com toda a seriedade para Esk e perguntou:

-           Urrsh, goem chaaaargue ich ooorgue?

Franziu a testa ao tentar reorganizar a pergunta na cabeça e fez uma segunda tentativa.

-           Aargue argue chaah gok?

Então desistiu.

-           Burrgch nurgue!

A esposa resfolegou e tirou o copo de sua mão. Cheirou. Olhou para os barris, todos os dez. E fitou o marido. Num paraíso particular para dois, o casal calculou em silêncio o preço de 600 galões de aguardente de pêssego montanhês branco três vezes destilado e lhe faltaram números.

A senhora Skiller pescava as coisas mais rápido do que o marido. Inclinou-se e sorriu para Esk, que então já estava cansada demais para comprimir os olhos em retribuição. Não foi um sorriso muito convincente, porque a senhora Skiller não tinha quase nenhuma prática.

-           Mocinha, como chegou aqui? — perguntou ela, numa voz que sugeria casas de pão de mel e o estrondo de grandes portas de forno se fechando.

-           Eu me perdi da Vovó.

-           E onde está a Vovó agora, minha filha?

Bum, ecoaram as portas novamente. Seria uma noite difícil para todas as criaturas perambulando por florestas metafóricas.

-           Em algum lugar.

-           Quer dormir numa cama grande de pena, toda quente e gostosa?

Esk olhou para ela com gratidão - muito embora notasse vagamente que a mulher parecia ter o rosto de uma fuinha cobiçosa - e aceitou.

O leitor tem razão. Vai ser preciso mais do que um lenhador de passagem para resolver a situação.

Enquanto isso, Vovó estava a duas ruas dali. Também estava, pelos padrões das outras pessoas, perdida. Ela não pensaria assim. Sabia onde estava, os outros é que não sabiam.

Já dissemos que é muito mais difícil encontrar a mente humana do que, digamos, a de uma raposa. A mente humana, achando isso um disparate, quer saber por quê. Eis o porquê.

A mente dos animais é simples, e portanto clara. Os animais nunca perdem tempo dividindo em pedacinhos experiências vividas e especulando sobre pedacinhos que perderam. Todo o arranjo do universo lhes foi apresentado como coisas (a) com as quais se acasalar, (b) das quais fugir, (c) para comer e (d) pedras. Isso afasta a mente de pensamentos desnecessários e deixa-a aguçada para o que realmente interessa. De fato, o animal comum jamais tenta andar e mascar chiclete ao mesmo tempo.

O homem médio, por outro lado, pensa sem parar em todo tipo de coisa, sob todos os ângulos, com interrupções de dezenas de circunstâncias biológicas. Existem pensamentos prestes a serem ditos, pensamentos pessoais, pensamentos reais, pensamentos sobre pensamentos e toda uma gama de pensamentos subconscientes. Para o telepata, a cabeça humana é uma algazarra. É a estação terminal de uma ferrovia com todos os trens partindo ao mesmo tempo. É uma faixa de ondas FM completa, e algumas estações não são dignas de respeito - são piratas proscritos que, tarde da noite, em oceanos proibidos, tocam músicas com letras límbicas.

Ao tentar localizar Esk apenas através da magia mental, Vovó procurava agulha no palheiro.

Não estava tendo êxito, mas pulsações de sentido chegavam a ela através das ondas de lamúrias superpostas vindas de mil cérebros, todos pensando ao mesmo tempo para convencê-la de que o mundo era de fato tão tolo quanto ela sempre acreditara.

Encontrou Hilta na esquina da rua. A amiga estava com uma vassoura, o melhor para conduzir uma busca aérea (mas sempre escondida: os homens de Ohulan apoiavam o Ungüento Prolongador, mas faziam restrição a mulheres voadoras). Hilta estava desnorteada.

-           Nem pista dela - reclamou Vovó.

-           Foi ao rio? Talvez tenha caído dentro d'água!

-           Era só sair. De qualquer jeito, ela sabe nadar. Inferno, acho que está se escondendo.

-           O que vamos fazer?

Vovó lhe dirigiu um olhar fulminante.

-           Hilta Cabreira, estou estranhando você, agindo como uma covarde. Veja se pareço preocupada.

Hilta a encarou.

-           Parece. Um pouco. Os lábios ficaram finos.

-           Porque estou com raiva, só isso.

-           Os ciganos sempre vêm à feira, talvez a tenham levado.

Vovó estava preparada para acreditar em tudo que lhe dissessem sobre o povo das cidades, mas ali ela se encontrava em terreno firme.

-           Então são muito mais cretinos do que eu imaginava - rebateu ela. - Olhe aqui, a menina tem a vara.

-           E de que adiantaria? - perguntou Hilta, já à beira das lágrimas.

-           Acho que você não entendeu nada do que falei - irritou-se Vovó. — Tudo que temos de fazer é voltar para a sua casa e esperar.

-           Pelo quê?

-           Gritos, explosões, bolas de fogo. Sei lá - respondeu Vovó.

-           Que falta de sensibilidade!

-           Ah, mas acho que é o que vai acontecer. Agora vamos, vá na frente e ponha a chaleira no fogo.

Confusa, Hilta se limitou a olhá-la, então montou na vassoura e alçou vôo devagar, serpenteando pelas sombras entre as chaminés. Se vassouras fossem carros, aquela seria um fusquinha caindo aos pedaços.

Vovó observou-a se afastar e então seguiu pelas ruas molhadas no seu rastro. Estava decidida. Não se deixaria convencer a montar num negócio daqueles de novo.

Esk estava deitada na cama extra do sótão do Enigma, sobre grandes lençóis macios e ligeiramente úmidos. Estava cansada, mas não conseguia dormir. Em primeiro lugar, a cama era fria demais. Ficou pensando se ousaria tentar aquecê-la, mas achou melhor nem tentar. Não conseguia pegar o jeito dos feitiços de fogo, por mais cuidadosa que fosse: ou não funcionavam nem um pouquinho ou funcionavam bem demais. As florestas em torno do chalé estavam ficando perigosas por causa dos buracos deixados por bolas de fogo que apareciam e desapareciam. Vovó dizia que, se a magia dos magos não desse certo, ela teria futuro pelo menos como construtora de latrinas ou escavadora de poços.

Esk se virou e tentou ignorar o cheiro de cogumelos na cama. Então estendeu o braço na escuridão até achar a vara, encostada na cabeceira. A senhora Skiller insistira bastante em levar o bastão para o andar baixo, mas Esk tinha ficado firme como a morte implacável. A vara era a única coisa no mundo da qual ela tinha total certeza de ser dona.

A superfície envernizada com os entalhes incomuns pareceu-lhe estranhamente reconfortante. Esk adormeceu e sonhou com pulseiras, pacotes esquisitos e montanhas. E estrelas remotas sobre as montanhas e um deserto frio onde criaturas sobrenaturais se arrastavam na terra seca e a fitavam através de olhos de insetos...

Ouviu-se um estalido na escada. Depois outro. Depois silêncio - o tipo de silêncio aveludado e reprimido feito por alguém querendo ficar o mais quieto possível.

A porta se abriu. O corpo de Skiller fez uma sombra negra contra a luz da vela na escada. Houve uma breve conversa sussurrada antes de ele seguir na ponta dos pés até a cabeceira. A vara quase caiu quando foi tocada, mas ele a pegou rápido e soltou a respiração devagar.

Então quase não teve ar suficiente para gritar quando o bastão se mexeu em suas mãos. Ele sentiu as escamas, as curvas, o músculo...

Esk se sentou na cama a tempo de ver Skiller rolar escada abaixo, ainda se agitando em desespero contra alguma coisa invisível que se movia em seus braços. Quando caiu em cima da mulher, houve outro grito.

A vara tombou no chão, cercada de um leve brilho de luz octarina.

Esk desceu da cama e atravessou o sótão. Ouviu palavrões terríveis, coisa de gente muito má. Espiou pela porta e olhou para baixo, dando com a senhora Skiller.

-           Passe a vara!

Esk recuou e pegou a madeira envernizada.

-           Não — desafiou. - É minha.

-           Isso não é coisa para menina - rebateu a mulher do dono do bar.

-           Mas é muito minha — disse Esk, e fechou a porta em silencio.

Durante alguns instantes, ela ouviu os murmúrios que vinham de baixo e tentou pensar no que fazer em seguida. Transformar o casal em alguma coisa provavelmente só traria confusão e, de qualquer modo, não sabia ao certo como proceder.

O fato é que a magia só funcionava de verdade quando ela não estava pensando a respeito. A mente parecia atrapalhar.

Ela cruzou o sótão e abriu a janelinha. Os estranhos odores noturnos da civilização entraram - o cheiro úmido das ruas, o aroma dos jardins, o distante indício de uma latrina sobrecarregada. Do lado de fora, havia telhas molhadas.

Quando Skiller começou a subir a escada outra vez, ela jogou o bastão no telhado e seguiu o objeto, equilibrando-se na moldura da janela. O telhado ia em declive até um anexo, e ela conseguiu se manter mais ou menos ereta ao deslizar pelas telhas irregulares. Um salto de dois metros sobre uma pilha de barris velhos, uma rápida descida pela madeira escorregadia, e ela estava caminhando no pátio da hospedaria.

Enquanto avançava pelas ruas enevoadas, dava para ouvir o som de briga vindo do Enigma.

Skiller passou correndo pela mulher e pôs a mão na torneira do barril mais próximo. Então se deteve e abriu.

O cheiro de aguardente de pêssego tomou o bar, cortante como uma faca. Ele interrompeu o fluxo e relaxou.

-           Com medo de que se transformasse em alguma coisa nojenta? — perguntou a mulher.

Ele concordou com a cabeça.

-           Se não tivesse sido tão desastrado... - começou ela.

-           Estou dizendo pra você, o negócio me mordeu!

-           Você podia ser mago, e a gente não teria que se incomodar com isso. Será que não tem nenhuma ambição na vida?

Skiller sacudiu a cabeça.

-           Acho que não basta uma vara pra ser mago - disse. – De qualquer forma, já li em algum lugar que mago não pode casar, não pode nem...

Ele hesitou.

-           O quê? Não pode nem o quê?

Skiller se retraiu.

-           Bom. Você sabe. Aquilo.

-           Tenho certeza de que não sei do que está falando – rebateu a senhora Skiller.

-           É, acho que não.

Com um pouco de medo, ele a seguiu pelo bar escuro. E então lhe pareceu que talvez os magos não tivessem uma vida tão ruim assim.

Viu que estava certo quando a manhã seguinte revelou que os dez barris de aguardente de pêssego haviam, de fato, se transformado numa coisa nojenta.

Esk andou ao acaso pelas ruas acinzentadas até alcançar as minúsculas docas fluviais de Ohulan. Barcaças largas de fundo chato balançavam suavemente contra os ancoradouros, e uma ou duas soltavam fiapos de fumaça. Sem dificuldade, Esk subiu na mais próxima e usou o bastão para levantar a lona que cobria a maior parte da embarcação.

Irrompeu um cheiro morno - um misto de lanolina e estrume. A barcaça estava carregada de lã.

É tolice dormir numa barcaça desconhecida, sem saber que morros estarão passando por nós ao acordarmos, sem saber que as barcaças tradicionalmente partem cedo (antes de o sol nascer), sem saber que novos horizontes nos saudarão no dia seguinte...

Nós sabemos disso. Esk não sabia.

Ela acordou com o assobio de alguém. Mas continuou deitada, lembrando os acontecimentos da noite até recordar o motivo de se encontrar ali, e então se virou com muito cuidado e ergueu um pouco a lona.

Ali estava ela. Só que "ali" havia mudado de lugar.

- Então é isso que chamam de navegação - disse ela, olhando a margem distante passar. - Não parece nada extraordinário.

Não lhe ocorreu começar a se preocupar. Durante os primeiros oito anos de vida, o mundo fora um lugar especialmente chato. Agora que estava começando a ficar interessante, Esk não tinha por que reclamar.

Ao assobio distante juntou-se um latido. Esk se deitou na lã, procurou a mente do cachorro e fez com cuidado o Empréstimo.

 Pelo cérebro ineficiente e desorganizado do cachorro, ficou sabendo que havia pelo menos quatro pessoas naquela barcaça e muito mais em outras, também viajando pelo rio. Parecia que algumas eram crianças.

Ela abandonou o animal e durante um bom tempo voltou a contemplar a paisagem - a barcaça agora passava entre rochedos cor-de-laranja estriados com tantos tons de pedra que era como se algum deus faminto tivesse feito o maior sanduíche de todos os tempos - tentando evitar o pensamento seguinte. Mas ele persistiu, chegando-lhe como a inusitada carta que surge debaixo da porta da Vida. Mais cedo ou mais tarde, ela teria que sair. Não era o estômago que a estava incomodando, mas a bexiga não agüentaria por muito mais tempo.

Talvez se ela...

Alguém puxou a lona que a cobria, e uma grande cabeça barbada sorriu para ela.

—        Ora, ora - disse. - O que temos aqui? Uma passageira clandestina, é ou não é?

Esk fitou o rosto desconhecido.

—        É - respondeu.

Não fazia sentido negar.

—        O senhor poderia me ajudar a sair daqui?

—        Não está com medo de que eu jogue você para os... para os lúcios? - perguntou a cabeça.

Percebeu que a menina não sabia do que ele estava falando.

—        Aqueles peixes grandes de água doce - acrescentou, no intuito de esclarecer melhor. - Velozes. Muitos dentes. Lúcios.

A idéia nem lhe havia ocorrido.

—        Não - admitiu. - Por quê? O senhor vai?

—        Não. Imagine. Não precisa ficar com medo.

—        Não estou.

-           Ah.

Um braço moreno surgiu, preso à cabeça pelos ajustes normais, e a ajudou a sair do abrigo na lã.

Esk se viu no convés da barcaça e então olhou ao redor. O céu estava azul, ajustando-se perfeitamente ao amplo vale através do qual o rio corria moroso como um inquérito.

Atrás, as Ramtops ainda funcionavam como um anteparo de nuvens, mas já não dominavam a cena como sempre haviam feito. A distância causava erosão.

-           Onde estamos? - perguntou ela, aspirando os novos cheiros de pântano e carriço.

-           No Vale de Cima do Rio Ankh - respondeu o homem. – O que acha?

Esk olhou para os dois lados do rio. O curso d'água já estava bem mais largo do que estivera em Ohulan.

-           Não sei. É muita água. Esse é o seu navio?

-           Barco - corrigiu ele.

O homem era mais alto do que o pai dela, embora não tão velho, e se vestia como um cigano. A maior parte dos dentes havia ficado dourada, mas Esk decidiu que não era hora de perguntar por quê. Ele tinha o bronzeado profundo que as pessoas ricas passam anos tentando conseguir, com férias caras e pedaços de papel-alumínio, quando tudo que precisam fazer é trabalhar feito burros de carga debaixo do sol todos os dias. Ele franziu a testa.

-           É, é meu - respondeu afinal, decidido a recobrar a iniciativa. - E gostaria de saber o que está fazendo nele. Fugindo de casa, é ou não é? Se fosse menino, eu diria que estava tentando a sorte.

-           Meninas não podem tentar a sorte?

-           Acho que tentam meninos com sorte - o homem disse, e abriu um sorriso de 200 quilates.

Estendeu a mão morena, pesada de anéis.

-           Venha tomar café-da-manhã.

-           Na verdade, eu gostaria de usar o banheiro — disse ela.

A boca do cigano se abriu.

-           Isso aqui é uma barcaça, é ou não é?

-           E daí?

-           Significa que só tem o rio.

Ele afagou a mão da menina.

-           Não se preocupe - acrescentou. - Ele está acostumado.

Vovó estava no cais - uma das botas batendo na madeira. O homenzinho que era a coisa mais próxima de supervisor portuário em Ohulan recebia toda a força de um de seus olhares e vinha murchando visivelmente. A fisionomia dela talvez não fosse tão mórbida quanto um instrumento de tortura, mas parecia sugerir que instrumentos de tortura não estavam descartados.

-           Você diz que saíram antes do amanhecer - observou ela.

-           I-isso - respondeu ele. - Hã. Eu não sabia que não podiam.

-           Viu uma menina a bordo?

Toc, toc, faziam as botas.

-           Hum. Não. Sinto muito.

Ele se iluminou.

-           Mas eram zoonitos - disse. - Se a menina estiver com eles, não tem perigo. Sempre podemos confiar nos zoonitos. Gostam muito da vida em família.

Vovó se voltou para Hilta, que estava agitada como uma borboleta entontecida, e ergueu as sobrancelhas.

-           É, é isso mesmo - concordou Hilta. - Os zoonitos têm

ótima reputação.

-           Mmph - soltou Vovó.

Ela se virou e avançou em direção ao centro da cidade. O supervisor portuário estava com as pernas bambas, como se acabassem de lhe tirar um cabide da camisa.

A casa de Hilta ficava sobre um herbanário, atrás de um curtume, proporcionando vistas maravilhosas dos telhados de Ohulan. Hilta gostava do lugar porque oferecia privacidade, sempre muito estimada pelos, como dizia ela, "clientes mais exigentes, que preferem fazer suas compras especiais numa atmosfera de tranqüilidade, onde discrição é a palavra de ordem".

Vovó Cera do Tempo corria os olhos pela sala sem esconder seu desprezo. Havia laçarotes, cortinas de contas, mapas astrológicos e gatos pretos em excesso. Vovó não suportava gatos. Ela espirrou.

-           É o curtume? — perguntou, de maneira acusadora.

-           Incenso - respondeu Hilta.

A mulher resistia bravamente ao desprezo de Vovó.

-           Os clientes gostam — garantiu ela. - Faz com que entrem no clima. Sabe como é?

-           Hilta, achei que fosse possível conduzir um negócio totalmente respeitável sem precisar recorrer a truques e enganações - Vovó disse, sentando-se e dando início à longa e complicada tarefa de retirar os alfinetes do chapéu.

-           Nas cidades é diferente - defendeu-se Hilta. – Precisamos acompanhar a mudança dos tempos.

-           Não sei por quê. A chaleira está no fogo?

Vovó estendeu o braço sobre a mesa e tirou o pano de veludo da bola de cristal de Hilta, uma esfera de quartzo do tamanho de uma cabeça.

-           Nunca entendi para que esse troço de silício - disse. - Quando eu era pequena, bastava uma bacia d'água com uma gota de tinta dentro. Agora vejamos...

Ela espiou o interior ondulante da bola, tentando usá-lo para se concentrar no paradeiro de Esk. Na melhor das circunstâncias, a bola de cristal era um negócio difícil. Olhar muito para ela quase sempre era prever que haveria, no futuro próximo, uma enxaqueca violenta. Vovó não confiava nelas e achava que cheiravam a magia de mago. Sempre lhe pareceu que a desgraçada da bola sugaria sua mente como se suga um molusco de dentro de uma concha.

-           A porcaria está cheia de brilhos, faíscas - queixou-se ela, soprando o cristal e limpando-o na manga da camisa.

Hilta examinou a bola.

-           Não é faísca. Isso quer dizer alguma coisa - explicou.

-           O quê?

-           Não sei. Posso tentar? Ela está mais acostumada comigo.

Hilta expulsou um gato da outra cadeira e se aproximou para investigar as profundezas do vidro.

-           Mnph. Fique à vontade - disse Vovó. - Mas não vai achar...

-           Espere. Está aparecendo alguma coisa.

-           Daqui só dá pra ver faísca - insistiu Vovó. - Luzinhas prateadas flutuando, como naqueles brinquedos que fazem tempestade de neve num vidro. Na verdade, bem bonito.

-           É, mas olhe além dos flocos...

Vovó olhou.

Eis o que viu:

O ponto de vista era bem elevado, e uma ampla faixa de terra se estendia abaixo - azul à distância - cortada por um vasto rio que serpeava feito uma cobra bêbada. Em primeiro plano, havia luzes prateadas flutuando, mas eram apenas alguns flocos na grande tempestade de luzes que giravam numa imensa e vagarosa espiral - como um tornado já idoso tendo um ataque fulminante de neve - e se afunilavam até alcançar a paisagem enevoada. Forçando os olhos, Vovó divisou uns pontinhos no rio.

De vez em quando, algum tipo de clarão brilhava dentro do funil de grãos a girar suavemente.

Vovó piscou e olhou para cima. A sala parecia escura.

-           Clima estranho - comentou, porque não conseguia pensar em nada melhor a dizer.

Mesmo com os olhos fechados, os grãos brilhantes ainda dançavam em suas vistas.

-           Acho que não é o clima - contestou Hilta. - Pra dizer a verdade, acho que as pessoas não enxergam, mas a bola de cristal mostra. Acho que é magia, condensando-se a partir do ar.

-           Para entrar na vara?

-           Exato. É o que fazem os bastões dos magos. Meio que destilam magia.

Vovó arriscou outra espiada no cristal.

-           Para entrar em Esk - disse, com cuidado.

-           É.

-           E tem uma quantidade enorme.

-           Tem.

Vovó, que já havia pensado naquilo muitas vezes, desejou saber mais sobre a forma como os magos realizavam mágica. E teve uma visão de Esk se enchendo de magia até todos os poros e tecidos se encontrarem inchados. Então o negócio começaria a vazar - primeiro devagar, caindo no chão em pequenas explosões; mas depois agigantando-se numa enorme descarga de potencialidades ocultas. Isso poderia fazer estragos de toda espécie.

-           Inferno - resmungou ela. - Jamais gostei dessa vara.

-           Pelo menos a menina está seguindo em direção à Universidade - Hilta disse. - Lá devem saber o que fazer.

-           Talvez. Em que altura do rio acha que estão?

-           A mais ou menos trinta quilômetros daqui. Essas barcaças não andam mais rápido do que o homem. Os zoonitos não têm pressa.

-           Ótimo.

Vovó se levantou, erguendo o queixo em desafio. Pegou o chapéu e o saco de pertences.

-           Acho que posso andar mais rápido do que a barcaça – disse ela. - O rio é cheio de curvas, e posso ir em linha reta.

-           Você vai andar até ela? - surpreendeu-se Hilta. - Mas tem florestas e animais selvagens!

-           Maravilha. Quero mesmo voltar à civilização. E a menina precisa de mim. A vara está assumindo controle. Eu disse que isso acabaria acontecendo, mas alguém me ouviu?

-           Ouviu? - perguntou Hilta, ainda tentando entender o que a outra pretendeu dizer falando em voltar à civilização.

-           Não - respondeu Vovó, com frieza.

O nome dele era Amschat B'hal Zoonito. Vivia no barco com as três mulheres e os três filhos. E era Mentiroso.

O que sempre irritou os inimigos da tribo zoonita não era apenas a honestidade - irritantemente absoluta - mas a franqueza que usavam para abordar qualquer um. Os zoonitos jamais haviam ouvido falar em eufemismos e não saberiam o que fazer com eles - mas sem dúvida diriam que era "um jeito doce de dizer algo nojento".

A rígida adesão à verdade não lhes havia sido incutida por um deus, como em geral é o caso, mas parecia ter base genética. Da mesma forma que não podia respirar debaixo d'água, o zoonito comum não podia contar mentiras; e o próprio conceito já era suficiente para deixá-los chateados. Contar Mentira significava alterar completamente o universo.

Isso era um tanto inconveniente para um povo mercantil e, com o passar dos milênios, os líderes dos zoonitos estudaram este estranho poder - que todos os demais possuíam em abundância -e decidiram que também deveriam tê-lo.

Os homens jovens que manifestavam sinais de ter o dom foram encorajados a dobrar ao máximo a Verdade, em competições especiais. O primeiro registro de uma mentira zoonita foi "meu avô era bastante alto", mas os rapazes acabaram pegando o jeito, e instituiu-se o posto de Mentiroso tribal.

Deve-se entender que, embora a maioria dos zoonitos não saiba mentir, o povo demonstra enorme respeito por qualquer zoonito que consiga dizer que o mundo é algo que não é, e o Mentiroso desfruta de uma posição bastante eminente. É ele que representa a tribo em todas as transações com o mundo exterior, que o zoonito médio há muito tempo desistiu de compreender. As tribos zoonitas têm orgulho de seus Mentirosos.

Os outros povos ficam bastante incomodados com tudo isso. Acham que os zoonitos deveriam ter adotado títulos mais apropriados, como "diplomata" ou "relações-públicas". Pois, do contrário, parece que estão ridicularizando o negócio.

-           É tudo verdade? - perguntou Esk, desconfiada, correndo os olhos pela abarrotada cabine da barcaça.

-           Não - respondeu Amschat, com firmeza.

A esposa mais jovem, que vinha preparando mingau num minúsculo fogareiro ornamentado, sorriu. Do outro lado da mesa, os três filhos observavam Esk com as fisionomias sérias.

-           O senhor nunca fala a verdade?

-Você fala?

Amschat abriu o sorriso de ouro, mas os olhos não estavam sorrindo.

-           Por que estava deitada na lã? Amschat não é nenhum seqüestrador. E vão ficar preocupados em casa, é ou não é?

-           Acho que Vovó vem me procurar - Esk disse. - Mas acho que não vai ficar muito preocupada. Só chateada. De qualquer forma, estou indo para Ankh-Morpork. Pode me jogar para fora do navio...

-           Barco.

-           É

-           ... se quiser. Não me importo com os lúcios.  Não posso fazer isso - Amschat disse.

Esk assentiu com entusiasmo.

-           Então está combinado - disse. - Não me incomodo de dormir na lã. E posso pagar pela passagem. Eu sei fazer...

Ela hesitou. A frase inacabada permaneceu suspensa no ar como uma ondulação de cristal, enquanto a discrição fazia uma feliz tentativa de lhe controlar a língua.

-           ... coisas úteis - concluiu, pouco convincente.

Esk notou que Amschat olhava de esguelha para a esposa mais velha, que costurava perto do fogareiro. Pela tradição zoonita, ela só podia usar preto. Vovó teria dado todo seu apoio.

-           Que tipo de coisas úteis? - perguntou ele. - Lavar roupa e varrer chão?

-           Se o senhor quiser - Esk disse. - Mas também a destilação com o alambique duplo ou triplo; a fabricação de vernizes, esmaltes, cremes, tagarélicos e ponche-maluco; o preparo da cera; a manufatura de velas; a seleção adequada de sementes, raízes e mudas; e o preparo da maioria das Oitenta Incríveis Ervas. Sei fiar, cardar, macerar Unho, alqueivar e tecer à mão ou no tear. E posso tricotar, se acertarem a lã para mim. Sei decifrar pedras e solos, carpintejar até o encaixe de três posições, prever o tempo pelos animais ou pelo céu, multiplicar abelhas, preparar cinco tipos de hidromel, fazer tintas, mordentes e corantes, inclusive um azul bem resistente. Sei trabalhar com lata, consertar botas, curar a maioria dos couros. E, se tiverem cabras, posso cuidar delas. Gosto de cabras.

Amschat a encarou, pensativo. Esk achou que deveria continuar.

-           Vovó não gosta de ver ninguém à toa — justificou. — Sempre diz que à menina prendada nunca falta um jeito de ganhar a vida.

-           Ou marido - concordou Amschat, em voz baixa.

-           Na verdade, Vovó falava bastante sobre isso...

-           Aposto que sim — imaginou Amschat.

Ele fitou a esposa mais velha, que balançou a cabeça afirmativamente, de modo quase imperceptível.

-           Muito bem - concluiu ele. - Se pode ser útil, tem permissão para ficar. Sabe tocar algum instrumento?

 Esk retribuiu o olhar sério, sem piscar. - Provavelmente.

E assim, com pouquíssima dificuldade e só um tanto de arrependimento, Esk deixava as Ramtops e o clima já conhecido e se unia aos zoonitos na grande viagem mercantil pelo Rio Ankh.

Havia pelo menos trinta barcaças, cada qual com pelo menos uma extensa família zoonita, e nenhuma embarcação levava a mesma carga. A maioria viajava junta, e os zoonitos apenas puxavam a amarra e saltavam para o convés do vizinho, no caso de quererem um pouco de convívio social.

Esk se alojou no meio da lã. Era quente, cheirava levemente como o chalé de Vovó e - muito mais importante - significava que não seria incomodada.

Ela já estava ficando preocupada com a magia.

O negócio vinha fugindo ao controle. Esk não fazia mágica; a mágica acontecia à sua volta. E ela sentia que o pessoal não ficaria muito satisfeito se descobrisse.

Isso queria dizer que, quando lavava a louça, precisava ficar agitando a água durante um bom tempo para esconder o fato de que os pratos vinham lavando a si mesmos. Se quisesse cerzir, precisava realizar a tarefa em algum lugar isolado para esconder o fato de que as pontas do buraco se uniam sozinhas como se fosse... como se fosse mágica. Então ela acordou no segundo dia da viagem e descobriu que durante a noite vários montes de lã só tosquiada, próximos de onde havia escondido a vara, estavam cardados, fiados e dispostos em belas meadas.

Esk tirou da cabeça qualquer idéia de acender fogueiras.

Mas havia suas compensações. Cada curva indolente do rio marrom trazia novas paisagens. Havia trechos escuros ladeados por florestas cerradas, através das quais as barcaças seguiam no meio exato do rio, com os homens armados e as mulheres agachadas — menos Esk, que ficava sentada ouvindo as fungadas e espirros que vinham dos arbustos nas margens. Havia extensões de terra cultivada. Havia muitas vilas maiores do que Ohulan.

Havia até algumas montanhas, embora fossem velhas e aplainadas - e não novas e alegres como as dela. Não era que Esk estivesse exatamente com saudade de casa, mas às vezes se sentia como um barco correndo no limite de uma corda infinita mas sempre ligado à remota âncora.

As barcaças paravam em algumas vilas. De acordo com a tradição, somente os homens desembarcavam e apenas Amschat, usando o chapéu ritual de Mentiroso, falava com os não-zoonitos. Esk quase sempre o acompanhava. Ele tentou insinuar que ela também deveria obedecer às leis da vida zoonita e permanecer a bordo, mas insinuações estavam para Esk como mordidas de mosquito estavam para um rinoceronte. Ela já estava aprendendo que, se ignoramos as regras, na metade das vezes as pessoas vão alterá-las para que não se apliquem a nós.

De qualquer modo, parecia a Amschat que, quando Esk estava junto, ele sempre conseguia preços melhores. Havia alguma coisa na garotinha a comprimir os olhos atrás de suas pernas que fazia os mais calejados negociantes se apressarem em concluir o negócio.

Para dizer a verdade, ele já estava começando a se preocupar. Na cidade fortificada de Zemphis, quando um intermediário ofereceu um saco de ultramarinas em troca de cem lãs, uma voz à altura de seu bolso disse:

-           Não são ultramarinas.

-           Olhe só o que a menina está falando! - exclamou o intermediário, sorrindo.

Amschat analisou uma das pedras.

-           Estou olhando - disse. - E parecem ultramarinas. Têm o mesmo brilho e a vibração.

Esk sacudiu a cabeça.

-           São só espírculos - protestou.

Ela falou sem pensar e logo se arrependeu, ao notar que os dois homens se viravam para ela.

Amschat virou a pedra de cabeça para baixo na palma da mão. Botar os camaleônicos espírculos na caixa junto com algumas pedras verdadeiras - de modo que mudassem de cor – era um truque antigo, mas aqueles ali tinham a verdadeira chama azul interna. Amschat encarou o intermediário. Havia sido treinado na arte da Mentira. E era possível reconhecer os sinais, agora que parava para pensar a respeito.

—        Parece que há uma dúvida - ele disse. - Mas é fácil resolver. É só levar as pedras ao analista na Rua dos Pinheiros, porque todo  mundo sabe que espírculos se dissolvem em líquido hipático, é ou não é?

O homem hesitou. Amschat havia mudado levemente a postura, e a disposição dos músculos sugeria que qualquer movimento por parte do intermediário acabaria deixando-o estirado no chão. A desgraçada da menina, por sua vez, comprimia os olhos como se pudesse enxergar através de sua mente. Ele perdeu as estribeiras.

—        Não vamos mais falar nisso - disse. - Recebi as pedras acreditando que fossem ultramarinas. Para não criar discórdia entre nós, peço que as aceite como um... como um presente e, em troca das lãs, posso lhe oferecer esta roseata de primeira qualidade?

Ele tirou uma pedrinha vermelha da minúscula bolsa de veludo. Amschat mal chegou a examiná-la e, sem desviar os olhos do homem, entregou-a para Esk. A menina assentiu.

Quando o negociante já se havia retirado, Amschat tomou a mão de Esk e arrastou-a até a tenda do analista na Rua dos Pinheiros - que não passava de um vão na parede. O velho pegou a menor das pedras azuis, ouviu as explicações apressadas de Amschat, encheu um pires de líquido hipático e jogou a pedra dentro. Ela espumou até desaparecer.

—        Muito interessante — observou ele.

Então pegou outra pedra com a pinça e examinou-a através de um vidro.

—        São de fato espírculos, mas espécimes extraordinariamente superiores — concluiu. - Sem dúvida têm seu valor, estou disposto a oferecer... Tem alguma coisa errada com os olhos da menina?

Amschat cutucou Esk, que parou de arriscar outra Olhada.

—        Estou disposto a oferecer... que tal duas zats de prata?

—        Que tal cinco? - Amschat pediu, satisfeito.

 -          Eu gostaria de ficar com uma das pedras - disse Esk.

O velho agitou as mãos.

-           Mas não passam de curiosidades! - exclamou. - Só têm valor para colecionador.

-           Só que o colecionador pode vendê-las como excelentes roseatas ou ultramarinas - disse Amschat. - Principalmente se é o único analista da vila.

O analista resmungou um pouco, mas os homens acabaram acertando o negócio em três zats e um dos espírculos preso a uma correntinha de prata, para Esk.

Quando já estavam longe, Amschat entregou a ela as minúsculas moedas de prata e disse:

-           Essas são suas. Você merece. Mas...

Ele se agachou, de modo que os olhos ficassem ao nível dos dela.

-           ... precisa me dizer como sabia que as pedras eram falsas.

Amschat parecia preocupado, mas a menina teve a impressão de que ele não gostaria de ouvir a verdade. Magia deixava as pessoas pouco à vontade. Ele com certeza não ia gostar se ela apenas respondesse: espírculos são espírculos, ultramarinas são ultramarinas. Você pode achar que são iguais, mas isso acontece porque a maioria das pessoas não usa os olhos de forma correta. Nada consegue disfarçar completamente sua verdadeira natureza. Em vez disso, falou:

-           Os anões extraem espírculos perto da aldeia em que nasci. Aprendemos desde pequenos a ver como misturam as cores de  maneira estranha.

Durante algum tempo, Amschat se limitou a olhá-la nos olhos. Então deu de ombros.

-           Tá certo - disse. - Certo. Bom, tenho mais alguns negócios para fazer aqui. Por que não vai comprar umas roupas novas? Eu até ia prevenir você contra negociantes inescrupulosos mas, de algum jeito, não sei, acho que não vai ter nenhum problema desse tipo.

Esk assentiu. Amschat avançou pela feira. Na primeira esquina, virou-se, olhou pensativo para ela e desapareceu na multidão.

 Bem, aqui termina a navegação, Esk disse a si mesma. Ele não sabe exatamente por que, mas agora vai ficar me observando e, antes que eu me dê conta, o bastão já vai ter sido levado embora, causando um monte de problemas. Por que todos ficam tão perturbados com a magia?

Ela soltou um suspiro filosófico e se pôs a estudar as possibilidades da vila.

Havia a questão da vara, porém. Esk a havia escondido entre as lãs que ainda não seriam descarregadas. Se voltasse agora para buscá-la, as pessoas começariam a fazer perguntas, e ela não sabia as respostas.

A menina encontrou um beco providencial e correu até um vão que oferecia a privacidade de que necessitava.

Se voltar ao barco estava fora de cogitação, só restava uma alternativa. Ela estendeu a mão e fechou os olhos.

Sabia exatamente o que pretendia fazer - a solução estava bem diante de seus olhos. A vara não deveria chegar ali voando pelo ar, destruindo a barcaça e despertando atenção para si mesma. Esk só queria que houvesse uma pequena alteração no modo como o mundo se encontrava organizado. Não deveria ser um mundo em que a vara estava entre as lãs, mas um mundo em que a vara estava em suas mãos. Uma mudança irrisória, uma alteração mínima na Maneira Como as Coisas Eram.

Se Esk tivesse sido devidamente treinada na magia dos magos, saberia que isso era impossível. Todo mago aprendia a mover as coisas de lugar — começando com prótons e seguindo a partir daí - mas o importante, quando mudamos algo de A a Z, de acordo com a física básica, é que, a certa altura, o objeto tem que passar pelo resto do alfabeto. A única forma de fazer a matéria sumir em A e aparecer em Z seria modificando toda a Realidade. Os problemas que isso acarretaria são inimagináveis.

Esk obviamente não havia sido treinada, e não é segredo nenhum que um ingrediente vital para o sucesso é não sabermos que o que estamos tentando é impossível. A pessoa ignorante da possibilidade do fracasso pode ser um ladrilho no caminho da bicicleta da história.

Enquanto Esk tentava descobrir um jeito de mover a vara de seu lugar, ondulações se espalhavam no espaço celestial mágico, transformando o Discworld em milhares de maneiras diminutas. A maior parte delas passou despercebida. Talvez alguns grãos de areia tenham mudado de posição na praia ou folhas tenham ficado suspensas nas árvores de forma ligeiramente diversa. Mas em seguida a onda de probabilidade estourou no limite da Realidade e voltou como a água da margem do lago que encontra lentas ondulações vindas no sentido contrário - assim causando pequenos mas importantes redemoinhos no próprio tecido da existência. Podem ocorrer redemoinhos no tecido da existência, porque se trata de um tecido muito estranho.

Esk não ficou sabendo de nada disso - é claro - mas ficou bastante satisfeita quando a vara lhe surgiu nas mãos.

O objeto parecia quente.

Esk olhou-o por um tempo. Tinha que fazer alguma coisa a respeito do bastão; era grande demais, peculiar demais, inconveniente demais. Chamava atenção.

Se vamos juntos a Ankh-Morpork, disse ela mentalmente, você precisa ir disfarçado.

Alguns clarões tardios de magia irromperam na vara, e então o objeto escureceu.

Afinal Esk resolveu o problema na feira principal de Zemphis: numa barraca que vendia vassouras, comprou a maior, levou-a de volta ao vão do beco, retirou o cabo e enfiou o bastão no feixe de piaçava. Não parecia certo tratar um objeto nobre daquela maneira, e ela se desculpou baixinho.

De qualquer forma, fazia uma grande diferença. Ninguém olhava duas vezes para uma menina carregando vassoura.

Enquanto explorava a vila, ela comprou um pastel (o dono da barraca descuidadamente deu troco de menos e só mais tarde percebeu que na verdade havia entregado mais de duas moedas de prata; além disso, ratos entraram na tenda durante a noite e comeram todo o estoque e um raio caiu na cabeça da avó dele).

A vila era menor do que Ohulan e bem diferente, porque ficava na junção de três rotas comerciais independentes do rio.

 Havia sido construída em torno de uma imensa praça que era o misto de um exótico e constante engarrafamento com um vilarejo de barracas. Camelos coiceavam burros, burros coiceavam cavalos, cavalos coiceavam camelos e todos coiceavam os homens. Havia uma orgia de cores, um clamor de vozes, uma orquestração nasal de odores e o som uniforme e inebriante de centenas de pessoas dando duro para ganhar dinheiro.

Um motivo para o alvoroço era que, em grandes partes do continente, outras pessoas preferiam ganhar dinheiro sem ter que trabalhar e, como o Discworld ainda não havia criado a indústria fonográfica, eram obrigadas a se voltar para formas mais antigas e tradicionais de banditismo.

Por estranho que pareça, estas sempre envolviam doses consideráveis de esforço. Empurrar pedras pesadas até o alto das colinas a fim de realizar uma emboscada decente, cortar árvores para bloquear estradas, cavar armadilhas alinhadas com pregos e sempre manter a lâmina do punhal afiada provavelmente envolviam muito mais desgaste físico e mental do que as profissões socialmente aceitas. Mas ainda existiam indivíduos ingênuos o bastante para tolerar tudo isso - além de longas noites em lugares desconfortáveis - apenas para deitar mão em grandes arcas de jóias perfeitamente comuns.

Assim, a cidade de Zemphis era o tipo de lugar onde as caravanas se separavam, misturavam-se e voltavam a se juntar para proteção dos necessitados, nas estradas que tinham à frente. Vagando despercebida em meio ao alvoroço, Esk ficou sabendo disso tudo pelo método bastante simples de achar alguém que parecia importante e lhe puxar a barra do casaco.

Este homem em particular vinha contando fardos de tabaco e teria conseguido chegar à soma final se não fosse pela interrupção.

-           Que é?

—        Perguntei o que está acontecendo aqui.

O homem queria dizer: "Dê o fora e vá encher a paciência de outro". Quase lhe deu um cascudo. Ficou espantado quando se viu agachando e conversando seriamente com a menininha de rosto sujo segurando uma vassoura grande (que também, assim lhe pareceu mais tarde, estava, de um modo inexplicável, prestando atenção).

Ele falou sobre as caravanas. A menina queria saber mais.

-           O pessoal se junta para viajar?

-           Exatamente.

-           Para onde?

-           Todo tipo de lugar. Sto Lat, Pseudópolis... Ankh-Morpork, é claro...

-           Mas o rio também chega lá - retrucou Esk, com sensatez. -

As barcaças. Os zoonitos.

-           Ah, sim - confirmou o negociante. - Mas cobram preços altos, não podem levar tudo e, de todo jeito, ninguém confia muito neles.

-           Mas são tão honestos!

-           Hã, é - disse ele. - Mas sabe o que dizem: jamais confie num homem honesto.

Ele abriu um sorriso sugestivo.

-           Quem diz isso?

-           Dizem. Sabe. As pessoas - respondeu ele, já com uma ponta de apreensão aparecendo na voz.

-           Ah - soltou Esk, e então pensou a respeito. - Elas devem ser muito bobas - considerou, com ares de afetação. - De qualquer modo, obrigada.

O homem a observou se afastar e voltou às contas. Um instante depois, sentia lhe puxarem o casaco outra vez.

-           Cinqüentaesetecinqüentaesetecinqüentaesetesim? - disse, tentando não se perder.

-           Desculpe incomodar de novo - disse Esk. - Mas esses fardos...

-           O que têm eles cinqüentaesetecinqüentaesetecinqüentaesete?

-           Bem, deveriam mesmo ter minhoquinhas brancas dentro?

-           Cinqüentaeset... O quê?

O negociante abaixou a lista e encarou a menina.

-           Que minhoquinhas?

-           Umas brancas. Que se contorcem - acrescentou Esk. –Todas escondidas no meio dos fardos.

-           Está falando de larvas?

O negociante voltou os olhos arregalados para a pilha de fardos de tabaco sendo descarregados por um - agora que ele parava para pensar — vendedor com a aparência nervosa de um duende da meia-noite querendo fugir antes que descubramos no que o ouro se transforma pela manhã.

-           Mas ele disse que essas tinham sido bem guardadas e... como é que você sabe?

A menina havia desaparecido na multidão. O negociante mirou o lugar em que ela tinha estado. Mirou o vendedor, que ria nervosamente. Mirou o céu. Então pegou a faca no bolso, olhou para ela durante alguns instantes, pareceu chegar a uma conclusão e se dirigiu ao fardo mais próximo.

No meio tempo, Esk havia, por acaso e bisbilhotice, achado a caravana que se reunia para viajar até Ankh-Morpork. O organizador estava sentado à mesa formada por uma tábua sobre dois barris.

Estava ocupado.

Falando com um mago.

Viajantes experientes sabem que o grupo que pretende cruzar terras possivelmente hostis precisa de inúmeras espadas, mas também precisa decididamente de um mago - para realizar artes mágicas e, mesmo que estas não se façam necessárias, para acender fogueiras. O mago, de terceiro nível em diante, não paga pelo privilégio de acompanhar o grupo. Na realidade, ele é pago. Negociações bastante delicadas chegavam ao fim naquele momento.

-           Está ótimo, mestre Treatle, mas e quanto ao rapaz? - perguntou o organizador de caravanas Adab Palerma, uma figura impressionante com casaco de pele de troll, chapéu estilisticamente mole e kilt de couro. - Ele não é mago, dá para notar.

-           Está em treinamento - disse Treatle, homem alto e magro, cujo manto evidenciava fazer parte dos Irmãos Antigos e Verdadeiramente Originais da Estrela Prateada, uma das oito ordens da magia.

-           Mas não é mago — insistiu Palerma. — Conheço as regras, e só é mago quem tem vara. Ele não tem.

-           Pois está indo à Universidade Invisível exatamente para resolver esse detalhe - rebateu Treatle, de maneira pomposa.

Magos se aferram ao dinheiro como tigres se aferram à presa.

Palerma encarou o rapaz em questão. Já conhecera muitos magos e se considerava bom julgador, então tinha que admitir que o menino parecia excelente material para a profissão. Em outras palavras, era magro, desengonçado, pálido por ler livros perturbadores em lugares mórbidos e tinha olhos lacrimejantes como dois ovos mal cozidos. Uma idéia cruzou a mente de Palerma: era preciso especular para acumular.

Tudo que o garoto precisa para chegar ao topo, pensou ele, é de um problema físico. Os magos sempre sofrem de coisas como asma e pés chatos; parece lhes dar, de algum jeito, motivação.

-           Qual é o seu nome, rapaz? - perguntou, com o máximo de simpatia possível.

-           Ssssssssssssss - respondeu o menino.

O pomo-de-adão oscilou como um balão de gás preso. Ele se virou para o companheiro, em súplica silenciosa.

-           Simon - interveio Treatle.

-           ... imon - confirmou Simon, agradecido.

-           Sabe lançar raios ou feitiços que possam ser atirados contra inimigos?

Simon olhou de esguelha para Treatle.

-           Nnnnnnnnnn — arriscou ele.

-           Meu amigo se dedica a um tipo mais elevado de magia, não ao mero lançamento de feitiçarias - explicou o mago.

-           ... ão - terminou Simon.

Palerma assentiu.

-           Bem - disse ele. - Meu jovem, talvez você venha de fato a ser mago. Talvez quando tiver a vara concorde em viajar comigo, tudo bem? Vou fazer um investimento em você, tudo bem?

-T...

-           Apenas mexa a cabeça — pediu Palerma. No íntimo ele não

era um homem cruel.

Simon concordou de bom grado. Treatle e Palerma trocaram cumprimentos e o mago se foi, com o aprendiz atrás dele, sob o peso da bagagem.

 

Palerma estudou a lista à frente e, com cuidado, riscou "mago". Uma sombrinha se formou na página. Ele olhou para cima e teve um sobressalto.

-           Sim? - disse, com frieza.

-           Quero ir a Ankh-Morpork - anunciou Esk. - Por favor. Tenho dinheiro.

-           Vá para casa, menina.

-           Não, de verdade. Quero tentar a sorte.

Palerma suspirou.

-           Por que está segurando a vassoura? - quis saber.

Esk olhou o objeto como se fosse pela primeira vez.

-           Tudo precisa estar em algum lugar - respondeu.

-           Minha filha, vá para casa - pediu Palerma. - Não vou levar nenhuma fugitiva a Ankh-Morpork. Nas cidades grandes, coisas muito estranhas podem acontecer com menininhas.

Esk se iluminou.

-           Que tipo de coisa estranha?

-           Olhe, já mandei ir para casa, certo? Agora!

Ele pegou o giz e continuou cortando os itens da lista, ao mesmo tempo tentando ignorar o olhar fixo que parecia perfurar o alto da sua cabeça.

-           Posso ser útil - sussurrou Esk.

Palerma abaixou o giz e coçou o queixo, irritado.

-           Quantos anos você tem? - perguntou ele.

-           Nove.

-           Bem, Senhora Nove Anos, tenho duzentos animais e cem pessoas que querem ir a Ankh, e metade delas detesta a outra metade. Não tenho lutadores suficientes, e dizem que as estradas estão péssimas, que os bandidos estão ficando descarados nas montanhas e que esse ano os trolls estão exigindo um pedágio maior na ponte. Tem gorgulho nos suprimentos, essa dor de cabeça não pára e, nisso tudo, onde é que eu preciso de você?

-           Ah - soltou Esk, correndo os olhos pela praça abarrotada. - Então qual dessas estradas leva a Ankh?

-           Aquela lá com o portão.

-           Obrigada - disse ela, seriamente. -Tchau. Espero que não tenha mais problemas e que a cabeça melhore.

 -          Está bom - respondeu Palerma, hesitante.

Ele tamborilou os dedos na mesa enquanto observava Esk se afastar em direção à estrada de Ankh. Uma estrada longa, sinuosa. Uma estrada infestada de ladrões e gnolls. Uma estrada que resfolegava por desfiladeiros elevados e, arfante, cruzava os desertos.

-           ô droga! - exclamou ele a meia voz. - Ei! Você!

Vovó Cera do Tempo estava em apuros.

Em primeiro lugar, pensou ela, jamais deveria ter se deixado convencer por Hilta a levar a vassoura emprestada. Era antiga, imprevisível, só voava à noite e mesmo então não alcançava uma velocidade maior do que passos rápidos.

Os feitiços que a mantinham no ar estavam tão gastos que só começava a funcionar depois de levar um tranco. Era a única vassoura que precisava ser empurrada.

Vovó Cera do Tempo estava xingando e correndo irritada por uma trilha da floresta, levando, pela décima vez, o maldito objeto em cima do ombro, quando caiu dentro da armadilha para ursos.

O segundo problema é que um urso havia caído antes. Isso não foi, de fato, um problema, porque, já de mau humor, Vovó acertou o animal bem no meio dos olhos com a vassoura. Agora o bicho estava sentado o mais longe possível, tentando pensar em coisas agradáveis.

Não foi uma noite muito confortável, e a manhã não se mostrou nada melhor para o grupo de caçadores que, quando chegou a aurora, espiou dentro da armadilha.

-           Demoraram muito - Vovó disse. - Tirem-me daqui.

Os rostos estarrecidos desapareceram. Vovó escutou uma rápida conversa sussurrada. Eles haviam visto o chapéu e a vassoura.

Por fim, uma cabeça barbada reapareceu, com relutância, como se o corpo ao qual estava ligada tivesse sido empurrado para frente.

—        Hum — começou o caçador. — Olhe aqui, mãe...

 —       Não sou sua mãe - rebateu Vovó. — Com certeza não sou sua mãe. Se é que você algum dia teve mãe, o que duvido. Se eu fosse sua mãe, teria fugido antes de você nascer.

—        E só um modo de dizer - contestou a cabeça.

—        É um grande insulto, isso sim!

Houve outra conversa sussurrada.

—        Se eu não sair daqui agora - ameaçou Vovó, falando bem alto - você vai ter Problema. Está vendo meu chapéu, não está? Dá para ver?

A cabeça ressurgiu.

—        É essa a questão - explicou. - Quer dizer, o que vai acontecer se tirarmos a senhora daí? Não será menos arriscado apenas

encher o buraco de terra? Nada pessoal, certo?

Vovó percebeu o que a vinha incomodando em relação àquela cabeça.

—        Você está ajoelhado? - perguntou ela, ameaçadora. – Não está. Está? São anões!

Sussurros e sussurros.

—        Bom, e daí? - perguntou a cabeça, desafiadoramente. - Não há nada de errado nisso. O que a senhora tem contra anões?

—        Sabem consertar vassouras?

—        Vassouras mágicas?

Sussurros e sussurros.

—        E se soubermos?

—        Bem, poderíamos entrar num acordo...

Nas galerias dos anões ressoava o som de marteladas, e isso tinha um objetivo. Os anões achavam difícil pensar sem as batidas dos martelos - que consideravam tranqüilizadoras. Por isso os anões ricos, que trabalhavam com vendas, pagavam aos gnomos para que batessem em pequenas bigornas rituais, apenas para que nada destoasse da imagem anã tradicional.

A vassoura estava entre dois cavaletes. Vovó Cera do Tempo se sentou numa saliência de rocha, enquanto um anão, que tinha a metade de seu tamanho, e usava um avental com uma enorme quantidade de bolsos, andava ao redor da vassoura, vez por outra cutucando o objeto.

Por fim, chutou as cerdas e aspirou demoradamente o ar numa espécie de assobio às avessas, que é o sinal secreto dos artífices de todo o universo e significa que alguma coisa muito cara está prestes a acontecer.

-           Beeemm - começou ele. - Eu deveria até chamar os aprendizes para darem uma olhada nisso. É uma verdadeira aula. E a senhora disse que levantava vôo?

-           Voava como um passarinho - confirmou Vovó.

O anão acendeu um cachimbo.

-           Gostaria de ver CSSQ passarinho - comentou, pensativamente.

-           Imagino que seja extraordinário um passarinho assim.

-           É, mas tem conserto? - perguntou Vovó. - Estou com pressa.

O anão se sentou devagar.

-           Quanto a conserto - analisou ele - bem, não sei se dá para consertar. Talvez refazer. Evidentemente hoje em dia é difícil encontrar as cerdas, mesmo que se ache pessoas para realizar a cerzidura apropriada, e os feitiços precisam...

-           Não quero refazer. Só quero que funcione - Vovó disse.

-           É um modelo antigo, entende? - insistiu o anão. – Muito complicados, esses modelos antigos. Não se acha mais a madeira...

Ele foi içado no ar até os olhos se encontrarem no mesmo nível dos de Vovó. Os anões - sendo eles próprios mágicos — têm bastante resistência à magia mas, pela fisionomia da bruxa, parecia que ela estava tentando soldar os globos oculares dele na parte traseira do crânio.

-           Apenas conserte - murmurou ela. - Por favor.

-           O quê? Executar um serviço porco? - disse o artífice, deixando cair no chão o cachimbo.

-           É.

-           Fazer de qualquer jeito? Deixar de lado todo o meu aprendizado fazendo um trabalho pela metade?

-           É - respondeu Vovó.

As pupilas dela eram dois buracos negros.

-           Ah - disse o anão. - Então tá.

 

Palerma, o organizador de caravanas, era um homem preocupado.

Os viajantes tinham deixado Zemphis havia três manhãs e agora subiam em direção ao desfiladeiro rochoso que passava pelas montanhas conhecidas como Tetas de Scilla (havia oito; Palerma sempre pensava em quem poderia ter sido Scilla e se teria gostado dela).

Durante a noite, um grupo de gnolls havia se aproximado deles. As criaturas medonhas - espécie de gnomos de pedra -tinham cortado a garganta de um guarda e pareciam dispostos a massacrar todo o grupo. Só que...

Só que ninguém sabia exatamente o que havia acontecido. Acordaram com os gritos e, quando conseguiram reavivar as fogueiras e o mago Treatle lançou, afinal, um raio azul sobre o acampamento, os gnolls sobreviventes já se encontravam longe - meras sombras aracnóides fugindo como se legiões do Inferno as perseguissem.

A julgar pelo que havia acontecido com seus colegas, provavelmente estavam certos. Pedaços de gnolls pendiam das rochas mais próximas, dando a elas um ar alegre e festivo. Palerma não sentia pena - os gnolls gostavam de capturar viajantes e oferecer aquele tipo de hospitalidade que inclui facas afiadas e porretes -mas se sentia apreensivo. Estava no mesmo lugar que Alguma Coisa que atravessava uma dúzia de gnolls sólida e cruelmente armados como uma colher atravessa ovos levemente cozidos, sem deixar rastros.

De fato, o chão estava impecável.

Tinha sido uma longa noite e a manhã não parecia melhor. A única pessoa totalmente desperta era Esk, que durante todo o episódio havia dormido debaixo de uma das carroças e só reclamara de sonhos estranhos.

Mesmo assim, era um alívio sair da cena macabra. Palerma ainda observou que os gnolls eram tão feios por dentro quanto por fora.

  Esk viajava na carroça de Treatie, conversando com Simon, que guiava desajeitadamente enquanto o mago tentava, lá atrás, recuperar o sono perdido.

Simon fazia tudo desajeitadamente. Era ótimo nisso. Era um desses rapazes altos, que parecem feitos de joelhos, polegares e cotovelos. Observá-lo andar era um tormento, quem via ficava esperando que feixes de nervos se soltassem e espalhassem para todos os lados. E, quando ele falava, o espasmo de agonia que lhe transfigurava o rosto - no caso de avistar um S ou um M pairando mais adiante na frase - fazia com que os interlocutores instintivamente dissessem a palavra por ele. Valia a pena só pelo ar de gratidão que logo se espalhava no rosto cheio de acne, como a luz do sol na superfície da lua.

Naquele instante, os olhos lacrimejavam com a rinite alérgica.

-           Você queria ser mago quando era pequeno?

Simon sacudiu a cabeça.

-           Eu sss...

-           ... só...

-           queria sss...

-           ... saber?...

-           É. C-como as coisas funcionavam. Então alguém na aldeia escreveu à universidade, e o p-professor T-Treatle foi m-m-me buscar. Um dia ainda viro mmm...

-           ... mago...

-           E. O p-professor Treatie disse que tenho excelente domínio da t-teoria.

Os olhos molhados de Simon se enevoaram, uma expressão quase de êxtase cruzou o rosto em ruína.

-           Ele f-falou que tem uma infinidade de livros na b-biblioteca da Universidade Invisível - disse, em apaixonado tom de voz.

—        L-livros que durante toda uma v-vida ninguém conseguiria ler.

-           Não sei se gosto de livros — Esk disse. — Como é que papel pode saber das coisas? Minha avó diz que livro só é bom se o papel for fino.

-           Não, v-você está enganada — apressou-se em dizer Simon.

—        Os livros sss...

 

Ele arquejou e dirigiu um olhar de súplica a Esk.

-           ... são?...

-           ... é, cheios de p-palavras que podem transformar as coisas. É isso que quero descobrir. Eu sss...

-           ... sei?...

-           ... que está lá, em algum lugar n-naqueles livros. Dizem que não existem feitiços novos, mas eu sss...

-... sei...

-           que está lá, escondido. A sssen...

-... sentença?...

-           ... que nenhum mmma...

-           ... mago... - disse Esk, com o rosto irradiando concentração.

-           E, jamais achou.

Ele fechou os olhos, abriu um sorriso beatífico e acrescentou:

-           A Sentença que vai Mudar o Mundo.

-           O quê?

-           Hã? - fez Simon, abrindo os olhos a tempo de impedir que os bois saíssem da estrada.

-           Você falou palavras com esse e eme!

-           Falei?

-           Eu ouvi! Tente outra vez!

Simon tomou fôlego.

-           A sensensen... a sususu... - arriscou ele. - A sesesec. Não adianta - lamentou. - Às vezes acontece, q-quando não estou pensando a respeito. O p-professor Treatie diz que t-tenho alergia a alguma coisa.

-           Alergia a emes?

-           Não, susssusu...

-           ... sua... - completou Esk, com generosidade.

-... boba. Tem alguma coisa no ar. T-talvez pólen, ou poeira. O p-professor Treatie tentou achar a causa, só que não tem mmm...

-           ... magia...

-           ... que dê jeito.

Eles estavam passando por um estreito desfiladeiro de rochas alaranjadas. Simon olhou à volta desconsolado.

mulheres acesso aos fluxos mágicos, mas é preciso lembrar que não se trata de alta magia.

-           Sei. Não é alta magia - disse Esk, ríspida.

-           Ah, não. A bruxaria é ótima para ajudar as pessoas ao longo da vida, é claro, mas...

 

-           Imagino que as mulheres não sejam sensatas o bastante para ser magas - Esk disse. - Acho que é isso.

-           Tenho muito respeito pelas mulheres - disse Treatle, que não havia notado a pitada de atrevimento no tom de Esk. – Nada se compara a elas na hora de, na hora de...

-           Ter filhos e tal?

-           Exatamente - admitiu o mago, cheio de generosidade. -

Mas às vezes podem ser um pouco instáveis. Um pouco nervosas demais. A alta magia exige muita clareza de idéias, sabe, e esse não é o forte das mulheres. Os cérebros tendem a superaquecer. Sinto dizer que só existe uma porta de entrada para a magia dos magos: é o portão principal da Universidade Invisível. E mulher nenhuma jamais passou por ali.

-           Agora me diga - pediu Esk. - Para que exatamente serve a alta magia?

Treatle sorriu.

-           Minha filha, a alta magia - respondeu ele - pode nos dar tudo que quisermos.

-Ah.

-           Então tire da cabeça esse absurdo de maga, está bom?

Treatle lhe dirigiu um sorriso compassivo.

-           Qual é o seu nome, filha?

-           Eskarina.

-           E por que está indo a Ankh, querida?

-           Achei que poderia tentar a sorte - sussurrou Esk. – Mas acho que talvez meninas não tenham sorte para tentar. O senhor tem certeza de que os magos dão às pessoas tudo que querem?

-           Claro. É para isso que serve a alta magia.

-Sei.

A caravana avançava lentamente. Esk saltou para o chão, tirou o bastão de seu esconderijo temporário - entre sacos e caçambas, na lateral da carroça - e saiu correndo pela fila de carretas e animais. Apesar das lágrimas, avistou Simon espiando da traseira do veículo, com um livro aberto nas mãos. O rapaz abriu um sorriso intrigado e começou a dizer algo, mas ela continuou correndo e saiu da estrada.

Quando escalou o barranco, o matagal lhe fustigou as pernas. E então já estava disparando por uma campina árida, cercada de rochedos laranja.

Só parou quando estava bem perdida, mas a raiva ainda lhe ardia por dentro. Já havia ficado com raiva antes, mas nunca dessa maneira. Em geral a raiva era como a chama vermelha que acende a fornalha - luminosa e faiscante - mas esta raiva era diferente: tinha um bramido por trás e havia se restringido à minúscula chama branco-azulada de um maçarico.

O corpo tinia. Era preciso fazer alguma coisa ou acabaria explodindo.

Por que é que quando ouvia Vovó defender a bruxaria, ansiava pela refinada magia dos magos, mas, sempre que escutava Treatle falar com sua voz aguda, lutava com unhas e dentes pela bruxaria? Ela seria ambas as coisas ou nada. E, quanto mais tentavam detê-la, mais queria seguir em frente.

Seria bruxa e maga também. Mostraria a eles.

Esk sentou debaixo do zimbro ao pé de uma colina escarpada, com a mente fervilhando de ódio e planos. Sentia as portas se fechando antes mesmo de ter começado a abri-las. Treatle estava certo: não a deixariam entrar na universidade. Não bastava ter a vara para ser maga; também era preciso estudar, e ninguém lhe ensinaria.

O sol do meio-dia batia na colina. O ar começou a cheirar a abelhas e gim. Ela se recostou, olhando, através das folhas, o céu quase roxo. Acabou dormindo.

Um efeito secundário do uso da magia é a pessoa passar a ter sonhos realistas e perturbadores. Existe um motivo, mas só de pensar nisso o mago já começa a ter pesadelos.

O fato é que a mente do mago pode dar forma aos pensamentos. As bruxas trabalham, de modo geral, com o que existe no mundo. O mago - se for bom mesmo - pode pôr carne na imaginação. Isso não causaria nenhum problema, não fosse o fato de o pequeno círculo de luz chamado imprecisamente "o universo do tempo e do espaço" estar à deriva em algo muito mais desagradável e imprevisível. Coisas estranhas rondam as frágeis barreiras da normalidade; existem misteriosos uivos e trinados nas gretas fundas do limite do Tempo. Há Coisas tão horríveis, que até o escuro tem medo.

A maior parte das pessoas não sabe disso e é melhor que assim seja. Porque o mundo não funcionaria se todos ficassem na cama com a cabeça enfiada debaixo do cobertor. É o que aconteceria se as pessoas soubessem dos horrores que pairam a uma sombra de distância.

O problema é que os indivíduos interessados em magia e misticismo passam muito tempo no limite da luz, e são notados pelas criaturas do Calabouço das Dimensões, que passam a querer usá-los na incansável tentativa de entrar nesta precisa Realidade.

A maioria das pessoas consegue resistir, mas a investida implacável das Coisas é sempre mais forte quando o sujeito está dormindo.

Bel-Shamharoth e Chulagen, o íntimo - os antigos e medonhos deuses sombrios do Necrotelicomnicon, livro conhecido por alguns entendidos pelo nome verdadeiro de Liber Paginarum Fulvarum - estão sempre prontos para entrar na mente adormecida. Os pesadelos às vezes são coloridos e são sempre desagradáveis.

Desde o sonho que tivera após o primeiro Empréstimo, Esk já havia se acostumado com eles. A familiaridade tinha quase substituído o medo. Quando se viu numa planície empoeirada e cintilante sob estrelas obscuras, percebeu logo que estava na hora de mais um.

- Droga - lamentou. - Então tá, vamos logo com isso. Tragam os monstros. Só espero que não seja aquele com a concha na cabeça.

Mas desta vez parecia que o pesadelo havia mudado. Esk correu os olhos ao redor e viu aparecer um castelo negro e alto. Os torreões se perdiam entre as estrelas. Nas ameias superiores havia luzes, fogos de artifício e música. Os grandes portões duplos estavam abertos, convidativos. Uma festa bem animada parecia estar acontecendo lá dentro.

Ela se levantou, sacudiu a areia prateada do vestido e correu em direção aos portões.

Quase tinha chegado quando eles fecharam. Não pareciam ter se mexido: uma hora estavam tranqüilamente abertos, no momento seguinte, trancados com um tinido que fez balançar o horizonte.

Esk estendeu a mão e tocou a superfície. Era negra e tão fria que uma camada de gelo já começava a se formar.

Houve um tremor atrás dela. Esk se virou e viu o bastão -sem o disfarce de vassoura - parado de pé na areia. Pequenas descargas de luz corriam pela madeira envernizada e sobre os entalhes que ninguém conseguia ler.

Ela pegou a vara e deu com ela no portão. Surgiu uma torrente de faíscas octarinas, mas o metal negro permaneceu incólume.

Esk comprimiu os olhos. Segurou a vara com o braço estendido e se concentrou até uma linha fina de chama sair da madeira e se lançar contra o portão. O gelo virou vapor, mas a escuridão -ela agora estava certa de que não era metal - absorveu a energia sem nem mesmo reluzir. Esk dobrou a intensidade, deixando a vara lançar toda magia acumulada num raio tão claro que ela precisou fechar os olhos (e ainda assim podia ver a linha brilhante em sua mente).

Então tudo se apagou.

Depois de uns instantes, Esk saiu correndo e tocou o portão com cuidado. O frio quase lhe congelou os dedos.

E, das ameias, veio o som de riso abafado. Uma gargalhada não teria sido tão ruim - mesmo que fosse uma terrível gargalhada demoníaca, cheia de ecos - mas ali havia apenas... o riso abafado.

O rumor continuou durante algum tempo. Era um dos sons mais hediondos que Esk tinha ouvido em sua vida.

Ela acordou tremendo. Havia muito já passara da meia-noite. As estrelas pareciam úmidas e frias. A atmosfera estava tomada pelo silêncio diligente da noite, gerado por centenas de criaturas peludas andando com muito cuidado à procura do jantar, ao mesmo tempo que evitavam virar o prato principal.

Uma lua crescente se punha. O brilho cinza na direção da Borda do mundo sugeria que, contra todas as probabilidades, outro dia estava fadado a raiar.

Alguém havia jogado um cobertor sobre Esk.

-           Sei que está acordada - disse a voz de Vovó Cera do Tempo.

- Você bem poderia ser de alguma serventia e acender uma fogueira. Tem todo tipo de madeira aqui.

Esk sentou e quis se agarrar na moita de zimbro. Ela parecia flutuar de tão leve.

-           Fogueira? - murmurou.

-           É. Sabe. Apontar o dedo e bum! - Vovó disse, azeda.

A mulher estava sentada na rocha, tentando encontrar uma posição que não lhe provocasse a artrite. -Acho... acho que não posso.

-           Pra cima de mim? - Vovó disse, enigmática.

A velha bruxa se inclinou para a frente e botou a mão na testa de Esk; era como ser acariciada por uma meia cheia de pedras quentes.

-           Está com um pouco de febre - acrescentou ela. - Sol quente e chão frio. É o que são as estranjas.

Esk se deixou tombar para a frente até a cabeça se apoiar no colo de Vovó, com seu cheiro familiar de cânfora, ervas e cabra. Vovó afagou-a com - esperava que fossem - gestos delicados.

Depois de um tempo, em voz baixa, Esk disse:

-           Não vão me deixar entrar na universidade. Um mago me falou. E eu sonhei. Foi um daqueles sonhos de verdade. Sabe, como a senhora disse, uma mate-não-sei-quê.

-           Matéfora - esclareceu Vovó, com calma.

-           Desses.

-           E você achou que ia ser fácil? - Vovó disse. - Achou que ia entrar pelos portões acenando a vara? Aqui estou eu, quero ser maga, muito obrigada?

-           Ele falou que não permitem mulheres na universidade!

-           Ele está errado.

-           Não, dava pra ver que estava dizendo a verdade. Sabe, Vovó,

como a gente nota...

-Tolinha. Tudo que notou foi que ele pensava estar dizendo a verdade. O mundo nem sempre é como vemos.

-           Não entendo - Esk disse.

-           Vai entender - garantiu Vovó. - Agora me diga. O sonho. Não deixavam você entrar na universidade, é isso?

-           É, e ficavam rindo!

-           Aí você tentou queimar o portão?

No colo de Vovó, Esk virou a cabeça e abriu um olho desconfiado.

-           Como é que a senhora sabe?

Vovó sorriu, mas como um lagarto sorriria.

-           Eu estava a quilômetros daqui - contou Vovó. – Vinha concentrando minha mente em procurá-la. De repente você parecia estar em todos os lugares. Brilhava como um farol. Quanto ao fogo... olhe ao redor.

À meia-luz da alvorada, a planície era uma extensão de terra assada. Diante de Esk, a colina parecia ter escorrido como asfalto quente sob o ataque furioso. Havia enormes cortes por onde tinha descido a rocha derretida. E agora Esk podia ouvir os estalidos de rocha esfriando.

-           Ah! — exclamou ela. - Eu fiz isso?

-           É o que parece - respondeu Vovó.

-           Mas eu estava dormindo! Só estava sonhando!

-           É a magia - explicou Vovó. - Está tentando achar um jeito  de sair. A magia das bruxas e a magia dos magos estão, não sei,meio que se alimentando uma da outra. Eu acho.

Esk mordeu o lábio.

-           O que é que eu faço? - quis saber. - Sempre sonho com um monte de coisas!

-           Bom, para começar, vamos direto à Universidade – decidiu Vovó. — Devem estar acostumados com novatos que não conseguem controlar a magia, senão o lugar já teria queimado há muito tempo.

 Ela olhou na direção da Borda, depois baixou os olhos para a vassoura ao seu lado.

Nem vamos falar no sobe-desce maluco, nas mãos apertando o cabo, na sussurrada esconjuração contra anões, nos breves momentos de esperança - quando a magia vibrava regularmente -, nas sensações terríveis, quando falhava, na nova pressão das mãos sobre o cabo, o sobe-desce outra vez, o êxito súbito do feitiço, a escalada de volta a bordo, os gritos, a decolagem...

Voando a algumas centenas de metros do chão, Esk se segurava em Vovó com uma das mãos e levava o bastão na outra. Alguns pássaros começaram a acompanhá-las, interessados na nova árvore voadora.

-           Caiam fora! - gritou Vovó, tirando o chapéu e agitando-o no ar.

-           Não estamos indo muito depressa - Esk disse, baixinho.

-           Pra mim, estamos rápido demais!

Esk olhou ao redor. Lá atrás, a Borda era um brilho dourado encoberto pelas nuvens.

-           Vovó, acho que devemos ir mais baixo - disse, um pouco

aflita. - A senhora falou que a vassoura não voa durante o dia.

Ela olhou a paisagem distante. Parecia acidentada e inóspita. Também parecia em expectativa.

-           Mocinha, sei o que estou fazendo - rebateu Vovó, segurando com força o cabo da vassoura e tentando tornar-se o mais leve possível.

Já foi dito que a luz do Discworld anda devagar, efeito da travessia pelo vasto e antigo campo mágico do Disco.

Então a alvorada não é o negócio rápido que acontece em outros mundos. O dia não rompe, apenas avança suavemente pela terra adormecida do mesmo modo que a maré se insinua pela praia, desmanchando os castelos noturnos de areia. Corre ao redor das montanhas. E, se as árvores são muito próximas, sai das florestas cortado em faixas, retalhado em sombras.

A pessoa que observasse de um lugar bem alto, digamos que de um fiapo de cirro-estrato no limite do espaço, poderia falar sobre a beleza da luz se espalhando na paisagem, sobre como avança nas planícies e se retarda ao encontrar elevados, sobre a esplêndida...

Existem, de fato, observadores que - diante de toda essa maravilha - reclamam que não se pode ter luz pesada e que certamente não conseguiríamos vê-la, se ela existisse. Aos quais retrucaríamos apenas: então como é que você está sentado numa nuvem?

Chega de ironia. No auge da alvorada a vassoura ainda disparava, desviando-se para a sombra da noite.

-Vovó!

O dia nasceu. Na frente da vassoura, as pedras pareciam brilhar acesas quando varridas pela luz. Vovó sentiu o cabo guinar e olhou com fascínio horrorizado a sombrinha lá embaixo. Estava ficando cada vez maior.

-           O que vai acontecer quando a gente cair no chão?

-           Depende de encontrarmos ou não pedras macias - respondeu Vovó, preocupada.

-           A vassoura vai se espatifar! Podemos fazer alguma coisa?

-           Bom, acho que podemos pular fora.

-           Vovó - disse Esk, com a voz irritada e extraordinariamente adulta que as crianças usam para repreender os mais velhos -, acho que a senhora não entendeu. Não quero bater no chão. Ele nunca me fez nenhum mal.

Vovó estava tentando pensar em algum feitiço conveniente enquanto lamentava que a cabeçologia não se aplicasse às pedras. E, se tivesse notado o tom na voz de Esk, talvez não dissesse: "Então fale isso para a vassoura".

E teriam, de fato, se espatifado. Pelo menos ela lembrou a tempo de agarrar o chapéu e se preparar. A vassoura estremeceu, ficou inclinada...

... e a paisagem ficou turva.

Foi uma viagem muito curta, mas Vovó sempre lembraria dela, geralmente por volta das três horas da manhã, depois de um jantar muito bem temperado. Veria de novo as cores que zumbiam pelo ar, a aflição pavorosa e também a impressão de que alguma coisa grande e pesada estava sentada sobre o universo.

Lembraria o riso de Esk. Lembraria, apesar de todos os seus esforços, a maneira como o chão corria debaixo delas - cordilheiras inteiras passando em meio a zunidos terríveis.

Sobretudo lembraria a ocasião em que alcançaram a noite.

A noite surgira à frente das duas - uma linha esfarrapada de escuridão correndo diante da impiedosa manhã. Com um misto de fascínio e horror, Vovó testemunhou a linha virar um ponto, depois uma mancha, seguida por todo um continente de escuridão que saltou na direção delas.

Por um instante, ficaram suspensas na crista da alvorada, que rebentou num estrondo silencioso sobre a terra. Nenhum surfista jamais pegara tal onda, mas a vassoura atravessou a confusão de luz e avançou serenamente para a tranqüilidade adiante.

Vovó, finalmente, voltou a respirar.

A escuridão tirava do vôo um pouco de seus horrores. E também significava que, se Esk perdesse o interesse, a vassoura conseguiria voar por conta própria.

-           ? - tentou chamar Vovó, e pigarreou para fazer uma segunda tentativa. - Esk?

-           É divertido, não é? Fico imaginando como faço.

-           É, divertido - sussurrou Vovó. - Mas será que posso guiar,

por favor? Não quero que a gente passe da Borda. Por favor.

-           É verdade que tem uma queda-d’água enorme em torno da beira do mundo, e que podemos olhar para baixo e ver estrelas? - Esk perguntou.

-           É. Agora podemos ir mais devagar?

-           Eu gostaria de ver.

-           Não! Quer dizer, não agora.

A vassoura desacelerou. A bolha que havia em volta dela sumiu com um "plim" audível. Sem nenhum solavanco, sem nem mesmo um tremor, Vovó se descobriu voando novamente a uma velocidade suportável.

Vovó havia conquistado excelente reputação por sempre ter resposta para tudo. Fazê-la admitir ignorância, mesmo que para si mesma, era uma façanha. Mas a larva da curiosidade estava comendo a maçã de sua mente.

-           Como - perguntou ela por fim - fez isso?

Atrás da bruxa, não se ouviu nada além de um pensativo silêncio. Então Esk respondeu:

-           Não sei. Sabia que precisava fazer isso e estava na minha cabeça. Como quando a gente lembra uma coisa que tinha esquecido.

-           Tudo bem, mas ...

-           Não... não sei. Eu tinha uma imagem de como gostaria que as coisas fossem e... e então meio que... entrei nessa imagem.

Vovó fitou a escuridão da noite. Nunca tinha ouvido ninguém falar de magia assim, mas parecia terrivelmente poderosa e provavelmente letal. Entrou na imagem! É claro que toda magia alterava de alguma forma o mundo. Os magos achavam que aquela era a única maneira de fazer as coisas — não punham fé na idéia de deixar o mundo ficar como estava e mudar as pessoas -, mas naquele caso a idéia parecia estar sendo levada demais ao pé da letra. Era preciso pensar a respeito. No chão.

Pela primeira vez na vida, Vovó se perguntou se haveria algo importante em todos aqueles livros que as pessoas juntavam. Ela se opunha aos livros por motivos morais, desde que ouvira falar que muitos deles haviam sido escritos por pessoas mortas, sendo sua leitura, portanto, um delito tão grave quanto a necromancia. Entre as muitas coisas do universo infinito e variado que Vovó não aprovava estava o contato com gente morta, que - era o que diziam — já tinha problemas suficientes para resolver.

Mas não tantos quanto ela. Vovó olhou para o chão escuro e se perguntou vagamente por que as estrelas estavam lá embaixo.

Por um instante de muita tensão, imaginou se elas não teriam de fato passado da beira, mas logo descobriu que os milhares de pontinhos eram amarelos demais e bruxuleavam. Além disso, quem já ouvira falar de estrelas dispostas de maneira tão ordenada?

-           Que lindo! - disse Esk. - É uma cidade?

Vovó examinou o terreno. Se era uma cidade, era grande demais. Mas agora que estava pensando nisso, aquele era com certeza, o odor de muita gente reunida.

Havia instruções para evitá-la a qualquer custo. Os bandidos, sendo eles próprios criaturas da noite, reconhecem problemas de longe.

Vovó também havia escrito mais duas cartas à Universidade. Não recebera resposta.

-           Prefiro a floresta - disse Esk.

-           Não sei - retrucou Vovó. - Pra dizer a verdade, isso aqui é um pouco como a floresta. E as pessoas gostam de bruxa.

-           São muito simpáticas - admitiu Esk. - Sabe a casa no fim da rua, onde aquela dona gorda mora com uma porção de meninas que a senhora falou que são filhas dela?

-           A senhora Palm - disse Vovó, com certo tato. - Uma senhora de muito respeito.

-           A noite inteira elas recebem visita. Eu vi. Não sei como conseguem dormir.

-           Hum - Vovó disse.

-A mulher deve passar muita dificuldade, com todas aquelas filhas para sustentar. Acho que as pessoas deveriam ter mais consideração.

-           Bom - arriscou Vovó. - Talvez...

Ela foi salva pela chegada de uma enorme carroça reluzente aos portões da Universidade. O condutor levou os bois até a alguns metros de Vovó e disse:

-           Desculpe, minha boa senhora. Poderia dar licença, por favor?

Vovó se pôs de lado, afrontada pela demonstração inequívoca de educação e irritadíssima que alguém pudesse pensar nela como sua "boa senhora". Então o condutor avistou Esk.

que correspondia ao nível socialmente aceito de roubos, surras e assassinatos e, em troca, providenciava de modo bastante cabal e definitivo que o crime extra-oficial fosse não apenas eliminado, mas também esfaqueado, estrangulado, desmembrado e largado nos arredores da cidade embrulhado em sacos de papel. Todos consideravam este um acordo fácil e iluminado - menos os revoltados que eram de fato surrados ou assassinados e se recusavam a encarar o episódio como uma obrigação social — e isso permitia aos bandidos da cidade planejar uma carreira decente, com provas de admissão e códigos de conduta semelhantes aos adotados pelas outras profissões da cidade - com as quais, não sendo a diferença muito grande, logo vieram a se parecer.

Era Treatle. Ele sorriu feito uma cobra aborrecida.

-           Ora essa. É a jovem que acha que mulher deveria ser maga, não é?

-           Sou - respondeu Esk, ignorando o chute de Vovó na canela.

-           Que ótimo. Veio se juntar a nós?

-           Sim - respondeu Esk, e, porque alguma coisa no jeito de Treatle parecia exigir, acrescentou: - senhor. Só que nós não podemos entrar.

-           Nós? - Treatle disse, e voltou os olhos para Vovó. - Ah, sim, é claro. Deve ser sua tia.

-           Avó. Mas não é avó de verdade, é meio que a avó de todo mundo.

Vovó acenou a cabeça rija.

-           Bom, isso não está certo - disse Treatle, com voz cordial como pudim de ameixa. — Palavra de honra, não está. Nossa primeira maga barrada na porta? Que absurdo! Deixe-me acompanhá-la.

Vovó segurou firme o ombro de Esk.

-           Se o senhor não se incomoda... - começou ela.

Mas Esk se desvencilhou e correu até a carroça.

-           Pode mesmo me levar pra dentro? — perguntou ela, olhos brilhando.

-           Claro. Tenho certeza de que os chefes das Ordens vão ficar encantados em conhecê-la. Admirados e pasmos – acrescentou ele, e soltou uma risada.

-           Eskarina Smith - chamou Vovó, mas logo se deteve.

Ela olhou para Treatle.

-           Senhor Mago, não sei o que pretende, mas não estou gostando nada disso - disse. - Esk, você sabe onde a gente mora. Se quiser dar cabeçada, vá dar cabeçada sozinha.

Ela se virou e atravessou a praça.

-           Que mulher admirável - Treatle disse, distraído. – Vejo que você ainda está com a vassoura. Ótimo.

Por um instante, ele soltou as rédeas e fez um gesto complicado com as duas mãos.

Os grandes portões se abriram, revelando um pátio amplo, cercado de gramados. Atrás, havia um único ou talvez vários prédios. Era difícil saber, porque não parecia ter sido planejado arquitetonicamente. Parecia mais com colunas, arcos, torres, pontes, cúpulas e abóbadas que tivessem se juntado por causa do frio.

-           É assim mesmo? - perguntou Esk. - Parece meio... apagado.

-           É, é assim mesmo — respondeu Treatle. — Alma mater, a instituição do saber! Claro que é muito maior por dentro, assim como os icebergs, ou pelo menos eu acho. Nunca vi o negócio. A famosa Universidade Invisível, só que obviamente grande parte é invisível. Vá lá atrás e traga o Simon.

Esk afastou a cortina pesada e espiou a traseira da carroça. Simon estava deitado sobre uma pilha de cobertores, lendo um livro enorme e fazendo anotações em pedaços de papel.

Levantou a cabeça e abriu um sorriso preocupado.

-           É v-você? — perguntou.

-           Sou - Esk disse, com convicção.

-           P-pensamos que tivesse nos deixado. T-todos achavam que você estava em alguma outra carroça e q-quando a gente parou...

-           Alcancei vocês. Acho que o senhor Treatle quer que você venha ver a Universidade.

-           Já chegamos? - alegrou-se ele, e então dirigiu um olhar assustado para ela. - E você está aqui?

-           Estou.

-           C-como?

-           O senhor Treatle me convidou. Disse que todo mundo ficaria admirado em me conhecer.

A barbatana da incerteza reluziu nas profundezas de seus olhos.

-           Será que é verdade?

Simon fitou o livro e passou um lenço vermelho nas vistas lacrimejantes.

-           Ele t-tem essas idéias — murmurou —, mmm...

-           ... mas...

-           É boa pessoa.

Aturdida, Esk olhou as páginas amareladas abertas na frente do menino. Eram cheias de uns símbolos pretos e vermelhos que, de alguma forma inexplicável, mostravam-se tão fortes e desagradáveis quanto uma carta-bomba, mas atraíam os olhos como um acidente feio. A pessoa ficava querendo saber o significado, embora, ao mesmo tempo, desconfiasse que, quando enfim descobrisse, ia preferir ter ficado na ignorância.

Simon notou a fisionomia de Esk e fechou o livro.

—        Um pouco de mmm... - começou ele.

—        ... magia... - completou Esk, de maneira automática.

—        Obrigado. Na qual estou t-trabalhando.

—        Ler livros deve ser muito interessante - arriscou Esk.

—        É. V-você não ssss...

—        ... sabe...

-... ler?

O espanto na voz dele chegou a ofendê-la.

—        Acho que sim - respondeu ela, desafiadoramente. – Nunca tentei.

Esk não reconheceria um substantivo coletivo mesmo que estivesse a um palmo de seu nariz, mas reconhecia um rebanho de cabras e uma convenção de bruxas. Por outro lado, não sabia como chamar um monte de magos. Ordem de magos? Conspiração? Círculo?

O que quer que fosse, é isso que havia na Universidade. Magos caminhando entre claustros e sentados debaixo de árvores. Magos jovens passando apressados com os braços cheios de livros ou — no caso dos alunos mais adiantados — com os livros agitando as capas no ar voando atrás deles. O ar tinha a textura oleosa da magia e gosto de estanho.

Esk caminhava entre Treatle e Simon, absorvendo aquilo tudo. Não era apenas o fato de haver magia no ar, espantoso era o negócio se mostrar domesticado e funcionando, como uma represa. Era energia, mas aproveitada.

Simon estava tão animado quanto ela, mas só dava para notar porque os olhos lacrimejavam mais que de costume e a gagueira tinha piorado. A toda hora, ele parava e apontava para os muitos departamentos e prédios de pesquisa.

Um deles era bem baixo, com janelas altas e estreitas.

 -          É a b-biblioteca - ele disse, com a voz irradiando encanta mento e respeito. - P-posso d-dar uma olhada?

-           Vai ter muito tempo para isso depois - respondeu Treatle.

Simon dirigiu um olhar desejoso para o prédio.

-           T-todos os livros j-já escritos - sussurrou ele.

-           Por que as janelas têm grade? - quis saber Esk.

Simon engoliu.

-           Hã, p-porque os livros de mmm...

-           ... magia...

-           ... não s-s-s-são como os outros. L-levam uma vida...

-           Já chega - cortou Treatle.

O mago olhou para Esk como se acabasse de lhe notar a presença e franziu a testa.

-           O que está fazendo aqui?

-           O senhor me convidou - respondeu Esk.

-           Eu? Ah, sim. Claro. Desculpe, minha cabeça estava longe.

A jovem que quer ser maga. Vejamos.

Ele subiu a escada larga até uma porta majestosa. Pelo menos, havia sido arquitetada para ser majestosa. O criador investira bastante em cadeados pesados, dobradiças recurvas, tachas de bronze e uma arcada entalhada para deixar absolutamente claro que quem estava entrando não era nem um pouco importante.

Ele era mago. Havia se esquecido da aldrava.

Treatle bateu de leve com a vara na porta. Ela hesitou por um instante, e então correu as lingüetas e se abriu.

A sala estava cheia de magos e meninos. E pais de meninos.

Havia duas formas de se entrar na Universidade Invisível (na verdade, havia três - mas a esta altura os magos ainda não sabiam disso).

A primeira era realizando um grande trabalho mágico, como a recuperação de uma relíquia antiga e poderosa, ou a invenção de um feitiço jamais imaginado. Isso, hoje em dia, era muito raro. Existiram grandes magos no passado, capazes de criar feitiços novos e completos a partir da caótica magia em estado bruto existente no mundo... magos dos quais provieram todos os feitiços. Mas agora os tempos eram outros.

Assim, o método mais comum era ser apadrinhado por um mago sênior respeitado, depois de um conveniente período de aprendizagem.

A competição por uma vaga na Universidade - com a honra e os privilégios que o diploma da Invisível poderiam trazer - era acirrada. Muitos dos meninos que agora corriam na confusão da sala, lançando feitiços menores uns contra os outros, não seriam admitidos e teriam que passar a vida como reles mágicos - meros tecnólogos da magia, com barbas desafiadoras e remendos de couro nos cotovelos, que se reuniam nas festas em grupinhos de invejosos.

Não ganhariam o cobiçado chapéu pontudo com símbolos astrológicos opcionais, nem os magníficos mantos ou a vara da autoridade. Mas, pelo menos, sempre poderiam olhar com superioridade para os ilusionistas, habitualmente alegres e gordos, com tendência a comer o erre, beber cerveja, sair com mulheres magras e tristes vestidas com meias brilhosas. Além de enfurecer os mágicos por não perceberem quanto eram desprezíveis e continuarem contando piadas. No entanto, os mais baixos de todos -fora as bruxas, evidentemente - eram os milagreiros, que não tinham nenhuma escolaridade. O milagreiro só ficava encarregado de tarefas como lavar o alambique. Muitos feitiços exigiam coisas como bolor de gente morta por esmagamento, sêmen de tigre vivo ou raiz de planta que solta gritos ultra-sônicos quando colhida. Quem era enviado para buscá-los? Exatamente.

É erro comum nos referirmos às classes mágicas mais baixas como magos ordinários. Na verdade, a magia ordinária é uma forma muito honrada e especializada de mágica que atrai calados e pensativos homens de seitas druídicas e inclinação para moldar arbustos em jardins ornamentais. Se convidássemos algum mago ordinário para uma festa, ele passaria metade da noite falando com a planta da casa. E a outra metade, ouvindo.

Esk percebeu que havia algumas mulheres na sala, porque até jovens magos têm mães e irmãs. Famílias inteiras haviam comparecido para se despedir dos filhos adorados. Havia uma boa dose de fungadas, lágrimas e tilintar de moedas, quando pais orgulhosos depositavam pequenas somas nas mãos dos filhos.

 

Magos sêniores perambulavam entre a multidão, examinando os possíveis alunos e conversando com seus padrinhos.

Vários deles abriram caminho entre as pessoas para falar com Treatle, avançando como galeões com todas as velas abertas e enfeitados de ouro. Cumprimentaram-no com solenidade e fitaram Simon cheios de apreço.

-           Então este é o jovem Simon? - perguntou o mais gordo deles, sorrindo para o menino. - Ouvimos falar muito bem de você, meu rapaz. E então? Que tem a dizer?

-           Simon, cumprimente o arqui-reitor Cortângulo, arquimágico dos Magos da Estrela Prateada - disse Treatle.

Apreensivo, Simon obedeceu.

Cortângulo olhou para ele com benevolência.

-           Ouvimos coisas maravilhosas a seu respeito - frisou ele. -

O ar da montanha deve fazer bem ao cérebro, hein?

Ele riu. Os magos em volta riram. Treatle riu. E Esk achou muito divertido, porque não estava acontecendo nada interessante mesmo.

-           Não sssssei...

-           Rapaz, pelo que ouvimos dizer, deve ser a única coisa de que não sabe! - insistiu Cortângulo, com a papada a sacudir.

Houve outra explosão de risos cuidadosamente calculados. Cortângulo bateu de leve no ombro de Simon.

-           Este é o garoto da erudição - apontou ele. – Resultados admiráveis, sem precedentes. E autodidata. Magnífico, hein? Não é, Treatle?

-           Extraordinário, arqui-reitor.

Cortângulo olhou para os outros magos.

-           Talvez o rapaz pudesse nos dar uma amostra - sugeriu. - Uma pequena demonstração.

Simon o fitou em desespero.

-           N-na verdade, não é tão b-b-b...

-           Ora, ora - protestou Cortângulo, com o que provavelmente considerava ser um tom animador de voz. - Não tenha medo. Leve o tempo que quiser. Quando estiver pronto.

Simon passou a língua pelos lábios secos e dirigiu a Treatle um olhar de súplica.

 

-           Hum - disse. - O s-s-s-s...

Ele se deteve e engoliu em seco.

-           O f-f-f-f...

Os olhos se arregalaram. Lágrimas escorreram, e os ombros começaram a balançar.

Treatle lhe deu tapinhas tranqüilizadores nas costas.

-           Rinite alérgica - explicou. — Não há o que cure. Já tentou de tudo.

Simon balançou a cabeça. Com as mãos longas e brancas, afastou Treatle e fechou os olhos.

Durante alguns segundos, nada aconteceu. Ele mexia os lábios sem produzir nenhum som. Então o silêncio irradiou dele como luz de vela. Ondulações de silêncio fluíram pela multidão da sala, batendo nas paredes com toda a força de um beijo estalado, e voltaram em pequenas ondas. As pessoas viram os amigos falar sem produzir nenhum som e ficaram vermelhas quando seu próprio riso soou alto como o guincho de um mosquito.

Minúsculos pontinhos de luz surgiram em torno da cabeça de Simon. Rodopiaram e se espiralaram numa complexa dança tridimensional, depois formaram uma imagem.

Na realidade, pareceu a Esk que a imagem sempre estivera ali, esperando que seus olhos a vissem, do mesmo modo que uma nuvem inocente de repente pode virar - sem nenhuma alteração - uma baleia, um navio ou um rosto.

A imagem em torno da cabeça de Simon era o mundo.

Parecia bastante evidente, embora o brilho e o fluxo das luzinhas toldassem alguns dos detalhes. Mas ali estava Grande ATuin, a tartaruga celestial, com os quatro Elefantes na carapaça e, sobre eles, o próprio Discworld. Ali estava a centelha da grande queda-d'água que contornava o mundo; e, lá no centro, a linha de pedra que era a grande montanha Cori Celesti, a morada dos deuses.

A imagem expandiu e se voltou para o Mar Círculo, depois para a própria cidade de Ankh, com as luzinhas irrompendo de Simon e sumindo a alguns metros de sua cabeça. Agora mostravam a cidade vista de cima. Lá estava a Universidade, cada vez maior. Ali, o Salão Principal...

 

... e as pessoas, observando de queixo caído, em silêncio, e o próprio Simon, contornado por pontinhos de luz prateada. E uma minúscula imagem flutuando em torno dele. Esta imagem continha outra imagem e mais uma e outra ainda...

Parecia que o universo havia sido virado pelo avesso em todas as dimensões, de uma só vez. Era uma sensação que dava vontade de gritar. Parecia que o mundo inteiro havia dito "glup".

As paredes sumiram. O chão também. Os quadros dos grandes magos antigos - em que só figuravam rolos de pergaminho, barbas e carrancas ligeiramente constipadas - desapareceram. Os ladrilhos, com um desenho belíssimo em branco e preto, evaporaram e foram substituídos por uma areia fina, cinza como o luar e fria feito gelo. Estrelas estranhas e inesperadas brilhavam acima. No horizonte, havia colinas baixas erodidas não pelo vento ou pela chuva, nesse lugar sem clima, mas pela suave lixa do próprio Tempo.

Ninguém além de Esk parecia notar. Para dizer a verdade, ninguém parecia vivo. A menina estava cercada de pessoas imóveis como estátuas.

E eles não estavam sós. Havia outras... Coisas... no lugar, e a toda hora surgiam mais. As Coisas não tinham uma forma definida, ou melhor, pareciam copiar aleatoriamente a forma de uma infinidade de criaturas. Dava a impressão de que já tinham ouvido falar de braços, pernas, mandíbulas, garras e órgãos, mas não sabiam como tudo se encaixava. Ou não se importavam. Ou estavam com fome demais para se dar ao trabalho de descobrir.

Faziam o mesmo ruído de uma nuvem de moscas.

Eram os seres dos sonhos, que vinham se alimentar de magia. Esk sabia que não estavam interessados nela agora, a não ser como uma possível sobremesa. Toda a concentração das criaturas se voltava para Simon, que não percebia de jeito nenhum sua presença.

Esk chutou o tornozelo do rapaz.

O deserto gelado sumiu. O mundo real voltou. Simon abriu os olhos, sorriu vagamente e caiu nos braços de Esk.

Um burburinho irrompeu entre os magos, e vários deles começaram a aplaudir. Ninguém parecia ter notado nada de estranho, a não ser as luzes prateadas.

Cortângulo se sacudiu e ergueu a mão para conter o ânimo das pessoas.

-           Muito... Impressionante - falou, dirigindo-se a Treatle. – E ele elaborou tudo sozinho?

-           Sim, senhor.

-           Sem nenhuma ajuda?

-           Não tinha ninguém para ajudar - respondeu Treatle. – Ele perambulava de cidade em cidade, realizando pequenos feitiços.

Mas só se lhe pagassem em livros ou papel.

Cortângulo assentiu.

-           Foi bem real - disse. - Só que o garoto não usou as mãos.

O que estava sussurrando? Você sabe?

-           Ele diz que são só palavras para fazer a cabeça funcionar direito - esclareceu Treatle, e encolheu os ombros. - Pra dizer a verdade, não entendo metade do que diz. Explicou que está tendo de inventar palavras novas porque não existe nenhuma para o que vem fazendo.

Cortângulo olhou de esguelha para os colegas. Os magos balançaram a cabeça, afirmativamente.

-           Vai ser uma honra admiti-lo na Universidade - anunciou.

- Diga a ele quando acordar.

O arqui-reitor sentiu lhe puxarem o manto e olhou para baixo.

-           Com licença - pediu Esk.

-           Olá, mocinha - disse ele, com voz melosa. - Veio ver o irmão entrar na Universidade?

-           Ele não é meu irmão - respondeu Esk.

Havia momentos em que o mundo parecia povoado de irmãos, mas este não era um deles.

-           O senhor é importante? - quis saber ela.

Cortângulo olhou os colegas e sorriu. Na magia dos magos, bem como em tudo mais, havia modismos. Os magos, às vezes, eram magros e pálidos e falavam com animais (os animais não ouviam, mas o que vale é a intenção), ao passo que em outras épocas costumavam se mostrar sombrios e tristes, com barbinhas pretas pontudas. Agora o estilo vereador estava em alta. Cortângulo se encheu de modéstia.

 

142     

-           Muito importante — respondeu. - A gente faz o que pode.

Sim, eu diria que muito importante.

-           Quero ser maga - informou Esk.

Atrás de Cortângulo, os magos inferiores olharam para a menina como se fosse uma nova e interessante espécie de besouro. O rosto do arqui-reitor ficou vermelho, e os olhos se arregalaram. Ele fitou Esk e pareceu segurar a respiração. Então desatou a rir. O riso começou em algum lugar da enorme barriga e subiu ecoando por todas as costelas, provocando pequenos magomotos no peito, até explodir numa série de bufos abafados. Era fascinante de ver. A gargalhada tinha uma personalidade toda própria.

Mas ele parou ao deparar com os olhos de Esk. Se a gargalhada era um palhaço de circo, o olhar decidido de Esk era um balde de cal em trajetória acelerada.

-           Maga? - indagou ele. - Quer ser maga?

-           Quero - desafiou a menina, empurrando o estonteado Simon para os braços relutantes de Treatle. - Sou o oitavo filho de um oitavo filho. Quer dizer, filha.

Os magos ao redor olhavam para ela e cochichavam uns com os outros.

-           O que foi que a garota disse?

-           Ela está falando sério?

-           Acho uma maravilha crianças nessa idade.

-           Você é o oitavo filho de uma oitava filha? – perguntou Cortângulo. - Jura?

-           O contrário, só que não exatamente - avaliou Esk.

Cortângulo limpou os olhos com o lenço.

-           É fascinante! — exclamou. - Acho que nunca ouvi falar em nada igual. Hein?

Ele correu os olhos pela platéia crescente. As pessoas que se encontravam mais para trás não conseguiam enxergar Esk e esticavam o pescoço para ver se estava acontecendo alguma mágica interessante. Cortângulo estava perplexo.

-           Pois então - disse ele. — Você quer ser maga?

-           Eu falo pras pessoas, mas parece que ninguém escuta - lamentou Esk.

 -          Mocinha, quantos anos você tem?

-           Quase nove.

-           E quer ser maga quando crescer?

-           Quero ser maga agora — frisou Esk. - Este é o lugar certo, não é?

Cortângulo encarou Treatle e piscou um olho.

-           Eu vi - protestou Esk.

—Acho que nunca existiram magas — argumentou Cortângulo. - Imagino que seja contra a doutrina. Não prefere ser bruxa? É uma ótima profissão para meninas.

Um dos magos inferiores começou a rir. Esk o encarou.

-           Ser bruxa é muito bom - admitiu ela. - Mas acho que os magos se divertem mais. O que o senhor acha?

-           Acho que você é uma menininha singular – respondeu Cortângulo.

-           O que quer dizer isso?

-           Quer dizer que só existe uma como você — explicou Treatle.

-           Exatamente - concordou Esk. - E ainda quero ser maga.

Faltavam palavras a Cortângulo.

-           Bom, mas não pode - rebateu. - Que idéia!

Ele endireitou o corpanzil e se virou. Alguma coisa lhe puxou o manto.

-           Por que não? - perguntou uma voz.

Ele se virou novamente.

-           Porque... — respondeu, demorada e cautelosamente — por que... é uma idéia ridícula, por isso. Vai contra a doutrina!

-           Mas eu sei fazer a magia dos magos! - retrucou Esk, com uma leve insinuação de tremor na voz.

Cortângulo se agachou até o rosto se encontrar à altura do dela.

-           Não sabe - sussurrou ele. - Porque você não é mago. Mulheres não podem ser magos, fui claro?

-           Veja - pediu Esk.

Ela estendeu a mão direita com os dedos abertos e correu os olhos pela sala até avistar a estátua de Malício, o Sábio, fundador da Universidade. Por instinto, os magos que se encontravam entre ela e a estátua se afastaram e depois se sentiram bem tolos.

-           Estou falando sério - avisou ela.

-           Menininha, vá para casa - disse Cortângulo.

-           Certo - desafiou Esk.

Ela fitou a estátua e se concentrou...

Os grandes portões da Universidade Invisível são feitos de octirona - metal tão instável que só pode existir num universo impregnado de magia em estado bruto. São invulneráveis. Com exceção da magia: nenhum aríete, nenhum, nenhuma força pode rompê-los.

Esse é o motivo de a maioria dos visitantes comuns entrar no recinto da universidade usando a porta dos fundos. É feita de madeira comum e não sai por aí aterrorizando as pessoas - nem fica parada aterrorizando as pessoas. Além disso, tem uma aldrava e tudo mais que costumam ter as portas.

Vovó examinou os batentes com cuidado e soltou um grunhido de satisfação ao ver o que estava procurando. Jamais duvidara de que estariam ali, astuciosamente escondidas pelos veios naturais da madeira.

Ela segurou a aldrava em forma de cabeça de dragão e bateu três vezes com força. Depois de um tempo, a porta foi aberta por uma jovem com a boca cheia de pregadores de roupa.

- Ãã ãã ãã ãnt? - perguntou ela.

Vovó se curvou, dando à menina chance de assimilar o chapéu preto e pontudo com alfinetes de asa de morcego. A coisa fez surtir um efeito incrível: ela corou e, espiando o beco silencioso, acenou apressada para que a bruxa entrasse.

Do outro lado do muro, havia um grande pátio com muito musgo no chão e cheio de varais. Vovó teve oportunidade de tornar-se uma das poucas mulheres que sabiam o que os magos de fato vestiam por baixo dos mantos, mas recatadamente desviou o olhar. Acompanhou a menina pelo chão lajeado e subiram por uma escada larga.

A escada levava i. uma galeria alta e comprida repleta de arcadas e, nesse instante, cheia de fumaça. Vovó avistou enormes fileiras de tinas de lavar roupa nos cômodos grandes; o ar tinha cheiro de roupa passada. Um grupo de meninas carregando bacias passou por ela e subiu correndo a escada, então parou no meio dos degraus e se virou devagar para olhá-la.

Vovó se aprumou e tentou parecer o mais misteriosa possível.

A guia, que ainda não havia se livrado dos pregadores de roupa, dobrou um corredor lateral e entrou numa sala que era uma confusão de prateleiras cheias de roupa suja. No centro exato da bagunça, sentada à mesa, havia uma mulher gorda de peruca castanho-avermelhada. Estivera escrevendo num livro enorme - ainda aberto à sua frente - mas naquele momento examinava uma veste manchada.

-           Tentou alvejante? - perguntou ela.

-           Sim, siora - respondeu a moça ao lado.

-           Tintura de mirra?

-           Sim, siora. Só fez com que ficasse azul, siora.

-           Bom, essa é nova pra mim - disse a mulher. - E olha que já vi tirar enxofre, sangue de dragão, sangue de diabo e não sei que mais.

Ela virou a peça pelo avesso e leu o nome cuidadosamente bordado no lado de dentro.

-           Hum. Granpone, o Branco. Se não cuidar melhor das roupas, vai virar Granpone, o Cinza. Menina, estou lhe dizendo, mago de magia branca é o mago de magia negra com uma boa governanta. Leve isso...

Ela viu Vovó e calou-se.

-           Ela bateu na porta - informou a guia de Vovó, fazendo uma reverência apressada. – A senhora disse...

-           Certo, certo, Ksandra, obrigada, pode ir - cortou a mulher gorda.

Ela se levantou, sorriu para Vovó e, com um clique quase audível, fez a voz subir várias classes sociais.

-           Oh, minha querida, desculpe - ela disse. - Ficamos um tanto confusas nos dias de lavar roupa. Essa é uma visita de cortesia ou será que - ela abaixou a voz - tem alguma mensagem do Outro Lado?

Vovó pareceu confusa, mas só por uma fração de segundo. As marcas das bruxas no batente da porta haviam revelado que a governanta acolhia bem essas profissionais e estava particularmente ansiosa por notícias de seus quatro maridos. Também procurava um quinto, daí a peruca castanho-avermelhada e, se os ouvidos de Vovó estavam certos, o rangido de barbatanas de osso de baleia usadas em espartilho, suficientes para enfurecer toda uma entidade ecológica. Tola e ingênua, diziam as marcas no batente. Vovó decidiu esperar para ver com seus olhos, porque as bruxas da cidade não pareciam, elas próprias, muito inteligentes.

A governanta deve ter interpretado mal a fisionomia.

-           Não tenha medo - disse ela. - Minha equipe tem instruções muito claras para receber bruxas, embora eles 14 de cima não aprovem. Aceita uma xícara de chá e alguma coisa para comer?

Vovó concordou solenemente.

-           E também vou ver se achamos uma trouxa de roupas velhas para a senhora - alegrou-se a governanta.

-           Roupas velhas? Ah. É. Obrigada.

Com o barulho de uma velha tesoura podando folhas de chá ao vento, a governanta avançou pela sala e acenou para que Vovó a seguisse.

-           Vou pedir para que levem o chá ao meu quarto. Chá com muitas folhas.

Vovó se pôs a acompanhá-la. Roupas velhas? A gorda realmente disse isso? Que audácia! É claro que se fossem de boa qualidade...

Parecia haver todo um mundo debaixo da Universidade. Era um labirinto de porões, celas, quartos, cozinhas e copas, e todas as residentes estavam sempre carregando alguma coisa, despejando alguma coisa, empurrando alguma coisa ou apenas paradas e gritando. Vovó viu cômodos cheios de gelo e outros reluzindo ao calor de imensos fornos quentes, que tomavam toda a parede. As padarias cheiravam a pão, e os bares cheiravam a cerveja velha. Tudo cheirava a suor e fumaça.

A governanta a conduziu por uma antiga escada em espiral e abriu a porta com uma das inúmeras chaves que levava no cinto.

 O quarto era rosa e cheio de babados. Havia babados em objetos que ninguém, em juízo perfeito, enfeitaria com babados. Era como estar no interior de um algodão-doce.

-           Que bonito - disse Vovó.

E, por achar que era o que se esperava dela, acrescentou:

-           De muito gosto.

Vovó correu os olhos à procura de algum lugar sem babados em que pudesse sentar. Desistiu.

-           Onde é que estou com a cabeça? — desculpou-se a governanta. - Eu sou a senhora Paroníquia, mas imagino que já saiba disso. E tenho o prazer de estar falando com...

-           Hã? Ah, Vovó Cera do Tempo - disse Vovó.

Os babados estavam deixando-a atordoada. Era uma desmoralização para a cor rosa.

-           Também sou médium - notou a senhora Paroníquia.

Vovó não tinha nada contra a leitura do futuro, desde que fosse mal feita por pessoas sem nenhum talento para o negócio. Mas a coisa mudava de figura se quem fazia sabia o que estava fazendo. Acontece que ela considerava o futuro uma coisa frágil e, se o sujeito ficasse olhando demais, poderia mudá-lo. Ela tinha complexas teorias sobre o tempo e o espaço - por quais razões não deveriam estar atrelados. Felizmente bons adivinhos eram raros e, de qualquer forma, as pessoas preferiam maus adivinhos. Confiavam neles porque sempre diziam o que elas queriam ouvir.

Vovó sabia tudo sobre má leitura do futuro. Era mais difícil do que a verdadeira. Requeria boa imaginação.

Ela não pôde deixar de imaginar se a senhora Paroníquia não seria uma bruxa nata que, por algum motivo, não havia recebido instrução. A mulher, sem dúvida, perseguia o futuro. Havia uma bola de cristal debaixo de uma espécie de abafador de chá bordado e cor-de-rosa, vários baralhos de cartas adivinhatórias, um saco de veludo rosa com pedras de runa, uma daquelas mesinhas sobre rodas em que nenhuma bruxa em sã consciência tocaria, nem com uma vassoura de três metros e - Vovó não tinha certeza – os excrementos secos de um monge do lamaísmo ou os excrementos secos do lama de um monastério, que, parecia, poderiam se juntar ao resto de modo a revelar o conhecimento e a sabedoria cabais do universo. Tudo era, de fato, muito lamentável.

- E tem as folhas de chá - lembrou a senhora Paroníquia, indicando o grande bule marrom, sobre a mesa, entre elas. - Sei que são, em geral, as preferidas das bruxas, mas sempre me pareceram tão, bem, comuns. Sem querer ofender.

Provavelmente não tinha havido mesmo nenhuma intenção de ofender, pensou vovó. A senhora Paroníquia olhava para ela com aquele olhar muito usado pelos cachorrinhos, quando não sabem ao certo o que esperar em seguida, preocupados com o fato de que talvez o jornal seja enrolado.

Ela pegou a xícara da senhora Paroníquia. Já havia começado a espiar seu interior, quando notou a expressão decepcionada que cruzou o rosto da governanta como uma sombra num campo nevado. Então lembrou o que estava fazendo e girou a xícara no sentido anti-horário três vezes, fez alguns gestos vagos sobre ela e murmurou um feitiço (que normalmente empregava para curar mastite nas cabras mais velhas, mas não importava). Essa manifestação de óbvio talento mágico pareceu animar muitíssimo a senhora Paroníquia.

            Na maior parte das vezes Vovó não era muito boa com folhas de chá, mas fitou o monte coberto de açúcar no fundo da xícara e deixou sua mente ir para onde quisesse. Agora o que realmente precisava era um rato ou mesmo uma barata que por acaso estivesse perto de Esk, para que pudesse fazer o Empréstimo de sua mente.

O que Vovó acabou descobrindo é que a Universidade tinha uma mente própria.

Já sabemos muito bem que as pedras pensam — porque toda a eletrônica se baseia nesse fato - mas em alguns universos os homens passam séculos procurando seres inteligentes no céu, sem jamais olhar debaixo dos próprios pés. É porque não entenderam o tempo. Do ponto de vista da pedra, o universo mal acabou de ser criado e as cordilheiras já sobem e descem como registro de órgão, ao passo que os continentes se movem para a frente e para trás cheios de energia, entrechocando-se pelo mero prazer de aproveitar o momento e sacudir suas rochas. Vai levar um bom tempo para a pedra notar sua pequena e deformadora doença de pele e começar a cocar, e é melhor que assim seja.

As pedras que compõem a Universidade Invisível, no entanto, vêm absorvendo magia há milhares de anos. Toda aquela energia aleatória tinha que ir a algum lugar.

De fato, a Universidade desenvolveu uma personalidade.

Vovó pôde senti-la como a um animal grande e amigo esperando para se deitar com o telhado voltado para baixo e ter o chão acarinhado. Mas o prédio não vinha prestando atenção nela. Observava Esk.

Vovó achou a menina seguindo os filamentos de atenção da Universidade e, fascinada, assistiu às cenas que se desenrolavam no Salão Principal...

-... aí?

A voz vinha de longe.

-           Mmph?

-           Perguntei o que está vendo aí - repetiu a senhora Paroníquia.

-Hã?

-           Perguntei o que...

-Ah.

Desnorteada, Vovó se concentrou para voltar. O problema de fazer o Empréstimo de outra mente é que sempre nos sentimos deslocados quando retornamos ao nosso corpo. Vovó era a primeira pessoa a ler a mente de um prédio. Agora estava se sentindo grande, sólida e cheia de corredores.

-           A senhora está bem?

Vovó fez que sim e abriu as janelas. Estendeu as alas leste e oeste e tentou se concentrar na minúscula xícara envolta em suas pilastras.

Felizmente a senhora Paroníquia achou que o rosto duro feito pedra e o silêncio sepulcral se deviam às forças ocultas postas a correr ainda mais rápido, dobrando a esquina na praça principal com uma derrapagem violenta das botas, que então deixaram um longo risco branco nas pedras.

Ela chegou bem a tempo de ver Esk sair correndo pelo portão, aos prantos.

- A magia não funcionou! Eu sentia que estava ali, mas não funcionou!

-           Talvez você estivesse querendo demais - Vovó disse. – Mágica é como pescaria. Ficar pulando na água nunca trouxe peixe pra ninguém. É preciso ficar quieto e deixar acontecer naturalmente.

-           E depois todo mundo riu de mim! Alguém até me deu uma bala!

-           Então ainda tirou algum proveito do dia - Vovó disse.

-           Vovó! — censurou Esk.

-           Bom, o que é que você esperava? - perguntou ela. – Pelo menos só riram de você. Riso não dói. Você vai até o chefão dos magos e se exibe na frente de todo mundo, e só riem de você? Pois está indo muito bem. Comeu a bala?

Esk franziu as sobrancelhas.

-           Comi.

-           Era de quê?

-           Puxa-puxa.

-           Não suporto puxa-puxa.

-           Hum - soltou Esk. - Da próxima vez vou pedir de hortelã.

-           Garotinha, não venha com graça pra cima de mim. Tem alguma coisa de errado com hortelã? Passe a tigela.

Outra vantagem da vida urbana, Vovó já descobrira, eram os artigos de vidro. Algumas de suas poções mais complicadas exigiam aparatos que, ou precisavam ser comprados dos anões a preços exorbitantes, ou — se encomendados ao soprador de vidro mais próximo - quase sempre chegavam aos pedaços no meio da palha. Ela própria já havia tentado soprar vidro algumas vezes, mas o esforço sempre lhe provocava tosse, gerando resultados engraçados. Entretanto, como na cidade a alquimia era uma profissão em alta, havia lojas inteiras cheias de vidro, e as bruxas sempre conseguiam bons preços.

Ela observou com atenção o vapor amarelo avançar pelo labirinto retorcido de tubos até se condensar numa grande gota viscosa. Depositou-a numa colher de vidro e, com muito cuidado, derramou-a num vidrinho.

Esk observava com os olhos molhados.

—        O que é isso? - perguntou.

-           É um não lhe interessa - respondeu Vovó, lacrando a tampa do vidrinho com cera.

-           Remédio?

-           Mais ou menos.

Vovó pegou o estojo e escolheu uma caneta. Ao escrever o rótulo — com muitas rasuras e interrupções para soletrar as palavras — a língua se insinuou para fora, num canto da boca.

-           É para quem?

-           Para a senhora Herapath, a mulher do soprador de vidro.

Esk assoou o nariz.

—        É aquele que já não sopra muito o vidro?

Vovó olhou para ela por sobre a mesa.

—        Do que está falando?

—        Ontem, quando ela estava conversando com a senhora, chamou ele de Velho Senhor Uma a Cada Quinzena.

—        Mmph - soltou Vovó.

Ela terminou, com cuidado, de escrever a frase: "Dissulva num cuartilho di álgua e pingui uma gotta nu xá, esteje di roppa laargha e si certificqui di qui nãum vaum cheghar visittas".

Um dia, disse a si mesma, vou precisar ter essa conversa com ela.

A menina parecia curiosamente lerda. Já havia ajudado em muitos partos e levado as cabras para o bode de Babá Annaple sem tirar nenhuma conclusão óbvia. Vovó não sabia exatamente como proceder, mas a hora nunca parecia apropriada para puxar o assunto. No fundo do coração, ficava se perguntando se não seria ela própria quem ficava embaraçada com esses assuntos. Parecia uma veterinária que ferrava, curava, criava e avaliava cavalos, mas tinha apenas uma leve noção de como montar.

Colou o rótulo no vidrinho e embrulhou-o com papel comum.

Agora.

-           Existe outro jeito de entrar na Universidade - disse ela, olhando de lado para Esk, que estava fazendo o desagradável trabalho de amassar ervas num pilão. - O jeito das bruxas.

Esk ergueu os olhos. Vovó sorriu para ela e começou a preparar outro rótulo. Escrever rótulos era sempre a parte mais difícil da magia.

-           Mas acho que você não deve estar interessada – continuou ela. - Não é muito glamouroso.

-           Eles riram de mim - murmurou Esk.

-           E. Você falou. Então não vai querer tentar de novo. Entendo perfeitamente.

Houve silêncio, quebrado apenas pelos rabiscos da caneta de Vovó. Por fim, Esk disse:

-           Esse jeito...

-           Mmph?

-           Vai me botar dentro da Universidade?

-           Claro - respondeu Vovó, orgulhosa. - Falei que ia achar um jeito, não falei? E um jeito excelente. Você não vai ter que se preocupar com deveres de casa, pode ir a todo canto, ninguém vai notar... você vai ser invisível. E, bem, pode dar uma geral no lugar.

Mas é óbvio que depois de todas essas risadas não vai querer. Vai?

A senhora Paroníquia perguntou:

-           Aceita outra xícara de chá, senhora Cera do Tempo?

-           Dona — corrigiu Vovó.

-           O quê?

-           É Dona Cera do Tempo - disse Vovó. — Três torrões de

açúcar, por favor.

A senhora Paroníquia empurrou a tigela em direção a ela. Por mais que gostasse das visitas de Vovó, elas saíam caras em termos de açúcar. Os torrões não duravam muito perto de Vovó.

 -          Não faz bem às formas - disse ela. - Nem aos dentes.

-           Nunca tive um corpo digno de nota e meus dentes sabem se cuidar — rebateu Vovó.

Por pior que fosse, tratava-se da verdade. Vovó sofria de dentes resistentes e saudáveis, o que considerava um terrível inconveniente na profissão. Ela invejava Babá Annaple, a bruxa que vivia nas montanhas e, aos 20 anos, já tinha conseguido perder todos os dentes, adquirindo a verdadeira credibilidade de uma bruaca. Isso significava tomar muita sopa, mas também alcançar muito respeito. Além disso, havia as verrugas. Sem o menor esforço, Babá conseguira ter o rosto feito casca de abacaxi, ao passo que Vovó havia tentado os mais conceituados e consagrados artifícios geradores de verruga e não chegara nem mesmo a ter aquela obrigatória no nariz. Algumas bruxas tinham toda a sorte.

-           Mmph? - perguntou ela, ao ouvir a voz aguda da senhora Paroníquia.

-           Eu disse - repetiu a governanta - que Eskarina é um verdadeiro tesouro. Um achado. Deixa o chão impecável, impecável. Para ela, não existe serviço pesado. Ontem mesmo falei, essa sua vassoura parece ter vida própria. E sabe o que a menina respondeu?

-           Nem imagino - murmurou Vovó.

-           Disse que a poeira tem medo da vassoura! Dá para acreditar?

-           Dá - sussurrou Vovó.

A senhora Paroníquia empurrou a xícara de chá em direção à bruxa e abriu um sorriso constrangido.

Vovó suspirou em silêncio e espiou as indistinguíveis profundezas do futuro. A imaginação decididamente já estava lhe faltando.

A vassoura se agitava pelo corredor levantando uma grande nuvem de poeira, que - se observássemos com atenção - parecia de algum modo ser aspirada para dentro da própria vassoura. Se olhássemos com mais atenção ainda, veríamos que o cabo da vassoura tinha entalhes misteriosos que não eram exatamente esculpidos, mas antes grudados - e estavam sempre mudando.

 Mas o fato era que ninguém olhava.

Esk se encontrava sentada numa das janelas altas e contemplava a cidade. Estava com mais raiva do que o habitual, então a vassoura atacava a poeira com uma energia inusitada. As aranhas corriam em desespero para se esconder, enquanto teias ancestrais desapareciam no nada. Nas paredes, os camundongos formavam grupos, mantendo as patinhas firmes no interior dos esconderijos. Cupins tentavam avançar com dificuldade nas vigas do teto, mas eram inexoravelmente arrastados de costas por seus túneis.

- Você sabe fazer faxina mesmo, hein? - disse Esk.

Havia algumas vantagens. A comida era simples mas abundante, ela tinha um quarto só dela no sótão e era um luxo, porque podia dormir até as cinco da manhã, o que, pelos padrões de Vovó, era quase meio-dia. O trabalho não era difícil. Esk só começava a varrer, até a vassoura perceber o que se esperava dela. Depois a menina podia brincar enquanto o serviço era feito. Se alguém se aproximava, a vara encostava na parede imediatamente.

Mas ela não estava aprendendo a magia dos magos. Podia entrar nas salas de aula vazias e olhar os diagramas riscados no quadro-negro — e também no chão, nas turmas mais adiantadas — mas as figuras não tinham sentido. E eram feias.

Lembravam a Esk as imagens no livro de Simon. Pareciam vivas.

Ela mirou os telhados de Ankh-Morpork e pensou o seguinte: a escrita eram apenas as palavras que as pessoas diziam espremidas entre camadas de papel até serem fossilizadas (no Discworld, os fósseis eram bem conhecidos: grandes conchas espiraladas e criaturas malfeitas, largadas no tempo em que o Criador ainda não havia decidido o que fazer e estava só embromando com o Plistoceno). E as palavras que as pessoas diziam eram apenas sombras das coisas reais. Mas algumas coisas eram grandes demais para serem apreendidas por palavras, e mesmo as palavras eram poderosas demais para serem completamente dominadas pela escrita.

Portanto, algumas palavras vinham tentando virar coisas. A essa altura, os pensamentos de Esk se embaralharam, mas ela tinha certeza de que as palavras realmente mágicas eram aquelas que pulsavam irritadas, tentando fugir, tentando ser mais que apenas palavras.

Não tinham uma aparência muito agradável.

Então Esk lembrou do dia anterior.

Havia sido muito estranho. As salas de aula da Universidade eram desenhadas sob o princípio do funil, com as fileiras de assentos - lustrados pelos traseiros dos principais magos do Discworld - descendo de maneira íngreme até a área central onde havia um estrado, um banco, uma estante de leitura, dois quadros-negros e, no chão, espaço suficiente para um octograma educativo de bom tamanho. Havia muitos espaços vazios debaixo das fileiras, e Esk descobrira que davam um ótimo posto de observação, de onde podia avistar o professor por entre as botas bicudas dos magos aprendizes. Era bastante tranqüilo, com a exposição monótona das aulas a lhe chegar suave como o zumbido das abelhas ligeiramente intoxicadas no jardim especial de Vovó. Parece que nunca havia aulas práticas, somente palavras. Parece que os magos gostavam de palavras.

Mas o dia anterior tinha sido diferente. Esk estava sentada na escuridão empoeirada, tentando fazer algumas mágicas simples, quando ouviu a porta se abrir e o som de botas estalando no chão. Isso, por si só, já era estranho. Esk conhecia bem os horários. Os alunos do segundo ano - que normalmente ocupavam aquela sala - estavam no ginásio para a aula de Desmaterialização I com Jeophal, o Ligeiro. (Os alunos de magia não precisavam de exercícios físicos; o ginásio era uma sala ampla revestida de chumbo e madeira de sorva, onde os iniciantes podiam praticar a Alta Magia sem desequilibrar seriamente o universo, embora nem sempre sem desequilibrar seriamente a si mesmos. A magia era implacável com os desajeitados. Alguns alunos desastrados tinham sorte de sair andando; outros eram removidos em garrafas.)

Esk espreitou entre as tábuas. Aqueles ali não eram alunos; eram magos. Bem importantes, a julgar pelos mantos. E não havia como não reconhecer o sujeito que subiu ao estrado como um cachorrinho mal amarrado, batendo com força na estante de leitura e pedindo desculpas ao objeto. Era Simon. Nenhuma outra pessoa tinha os olhos como dois ovos crus em água quente e o nariz vermelho de tanto ser assoado. Para Simon, o teor de pólen na atmosfera era sempre excessivo.

Esk pensou de repente que, descontada a alergia generalizada a todos os elementos da Criação, com um bom corte de cabelo e algumas aulas de postura, o menino podia ficar bastante bonito. Era uma idéia surpreendente, e ela a guardou para futuras considerações.

Quando os magos já se haviam acomodado, Simon começou a falar. Ele leu as anotações e, sempre que gaguejava numa palavra, os magos, compulsivamente, diziam-na em coro para ele.

Depois de algum tempo, um pedaço de giz se ergueu da estante de leitura e passou a escrever no quadro-negro. Esk já entendia o suficiente sobre a magia dos magos para saber que aquilo era uma façanha extraordinária: Simon estava na Universidade havia apenas duas semanas, a maioria dos alunos só vinha a dominar levitação no fim do segundo ano.

O pequeno toco branco riscava e rangia no negrume do quadro, acompanhando a voz de Simon. Mesmo se desconsiderássemos a gagueira, ele não era bom orador. Deixava cair as anotações. Corrigia a si mesmo. Falava muitos hums e és. E, até onde Esk podia entender, não estava dizendo grandes coisas. As frases chegavam até o esconderijo. "Tecido básico do universo" era uma delas, e Esk não fazia idéia do que queria dizer, a menos que o rapaz estivesse se referindo a brim, ou talvez algodão. "Mutabilidade da matriz de possibilidades" ela não conseguia nem imaginar o que fosse.

Às vezes, ele parecia estar dizendo que nada existia - a não ser se as pessoas pensassem que existisse — e o mundo só estava aí porque a gente continuava acreditando. Mas então parecia afirmar que havia muitos mundos, todos praticamente iguais e ocupando o mesmo espaço, separados apenas pela densidade de uma sombra, de modo que tudo que pudesse acontecer teria algum lugar para acontecer.

(Essa parte Esk conseguia entender. Ela vinha suspeitando disso desde que limpara o lavatório dos magos sêniores, ou, para ser mais exato, desde que a vara tinha feito o serviço enquanto ela examinava os urinóis e — com o auxílio de alguns quase esquecidos detalhes dos irmãos na banheira de lata em frente à lareira de casa - formulou sua Teoria Geral de Anatomia Comparada. O lavatório dos magos sêniores era um lugar mágico, com água corrente de verdade, azulejos curiosos e - o mais importante - dois grandes espelhos de prata pendurados um de frente para o outro, de forma que a pessoa que se olhasse num deles veria a si mesma refletida várias vezes, até a imagem ficar pequena demais para continuar sendo vista. Nessa ocasião Esk foi apresentada à idéia de infinito. Talvez ainda seja mais relevante o fato de ela ter desconfiado que uma das Esks, bem no limite de seu campo visual, estava acenando para ela.)

Havia algo perturbador nas frases empregadas por Simon. Metade do tempo, ele parecia estar dizendo que o mundo era tão real quanto uma bolha de sabão ou um sonho.

O giz continuava rangendo no quadro-negro. Às vezes Simon precisava parar e explicar alguns símbolos para os magos, que, era o que Esk achava, pareciam ficar animados com algumas frases bastante tolas. Então o giz recomeçava, traçando, como um cometa, curvas no negrume do quadro.

Lá fora, a luz diminuía. Quando a sala ficou mais escura, as palavras de giz brilharam e o quadro pareceu não somente negro, mas inexistente - apenas um buraco retangular cortado no mundo.

Simon continuava falando, agora sobre o universo ser feito de coisinhas minúsculas cuja presença só podia ser determinada pelo fato de que não estavam ali, pequenas bolas giratórias de nada que a magia juntava a fim de fazer estrelas, borboletas e diamantes. Tudo era feito de nada.

O engraçado é que ele parecia achar isso fascinante.

Esk notou as paredes da sala ficarem finas e impalpáveis feito fumaça — como se o nada nelas viesse se expandindo para devorar o que quer que as definisse como paredes - e logo só tinha sobrado a familiar planície fria, deserta e resplandecente, com suas distantes colinas corroídas e as criaturas que permaneciam imóveis como estátuas, olhando para baixo.

 Agora havia uma quantidade muito maior de criaturas. Elas pareciam se aglomerar ali como mariposas em volta da luz.

Uma diferença importante era que o rosto de uma mariposa, mesmo de perto, era lindo como um filhote de coelho, comparado às coisas que observavam Simon.

Então um empregado entrou para acender as luzes, e as criaturas sumiram, transformando-se em sombras perfeitamente inofensivas escondidas nos cantos da sala.

Em algum momento do passado recente, alguém tinha decidido deixar mais claros os antigos corredores da Universidade pintando as paredes, com base numa vaga noção de que Aprender Deve Ser Divertido. Não funcionou. É fato conhecido em todos os universos que, por maior que seja o cuidado na hora de escolher as cores, a decoração institucional sempre acaba sendo verde-vômito, marrom-impronunciável, amarelo-nicotina ou rosa-cirúrgico. Por algum desconhecido processo de ressonância, os corredores pintados com essas cores sempre cheiram um pouco a repolho cozido - mesmo que não haja nenhum repolho sendo cozido nas redondezas.

Em algum lugar dos corredores, tocou o sinal. Esk desceu do peitoril da janela, pegou a vara e começou a varrer com afinco, enquanto as portas se abriam e os corredores se enchiam de alunos. Os rapazes passavam por ela como água em torno de pedra. Por alguns minutos, houve um grande alvoroço. Então as portas se fecharam, alguns passos retardatários soaram além delas, e Esk estava sozinha outra vez.

A menina desejou, mais uma vez, que a vara falasse. As outras empregadas eram simpáticas, mas não dava para falar com elas. Ainda mais sobre magia.

Esk também vinha chegando à conclusão de que deveria aprender a ler. A leitura parecia ser a chave para a magia dos magos, que não passava de palavras. Era como se os magos achassem que os nomes eram o mesmo que as coisas e que, se mudássemos o nome, também mudaríamos a coisa. Pelo menos, parecia ser algo assim...

Ler. Em outras palavras, a biblioteca. Simon dissera que existiam milhares de livros lá dentro e, entre todas aquelas palavras, deveria haver uma ou duas que ela conseguisse ler. Botou a vara no ombro e partiu resoluta para o escritório da senhora Paroníquia.

Já estava chegando, quando uma parede disse "Psiu!" Esk olhou para o lado e viu que se tratava de Vovó. Não é que a Vovó pudesse ficar invisível; apenas tinha um enorme talento em se confundir com a paisagem, de modo a não ser notada.

-           Então, como vai? — perguntou Vovó. - A magia está evoluindo?

-           Vovó, o que está fazendo aqui? - Esk disse.

-           Vim ler a sorte da senhora Paroníquia - respondeu a bruxa, segurando satisfeita uma grande trouxa de roupas velhas.

O sorriso de Vovó desapareceu sob o olhar severo de Esk.

-           Bom, as coisas são diferentes na cidade - justificou ela. - As pessoas daqui estão sempre preocupadas com o futuro. É de tanto comer comida artificial. E daí - acrescentou, ao notar que estava se desculpando - por que eu não deveria ler a sorte?

-           A senhora sempre disse que Hilta estava tirando proveito das tolices do sexo feminino - condenou Esk. - A senhora dizia que quem lia sorte deveria ter vergonha na cara e, de qualquer forma, a senhora não precisa de roupa velha.

-           Quem economiza tem quando precisa - Vovó disse, pedante.

Ela havia passado a vida inteira com roupas velhas e não deixaria a temporária prosperidade transformá-la:

-           Está conseguindo se alimentar bem?

-           Estou — respondeu Esk. - Vovó, em relação à magia dos magos, não passa de palavras...

-           Eu sempre disse isso - Vovó lembrou.

-           Não, quer dizer... - começou Esk, mas Vovó agitou a mão, irritada.

-Agora não estou com tempo — ela disse. -Tenho encomendas grandes para hoje à noite. Se continuar assim, vou precisar treinar alguém. Você não pode ir me dar uma ajuda quando tiver uma tarde ou quando tiver uma folga?

-           Treinar alguém? - Esk perguntou, horrorizada. - A senhora quer dizer, como bruxa?

-           Não - respondeu Vovó. - Quero dizer, talvez.

-           Mas e eu?

-           Bem, você está seguindo o seu caminho - Vovó disse. - Qualquer que seja ele.

-           Mmph - soltou Esk.

Vovó a encarou.

-           Então já vou - disse, afinal.

Ela se virou e saiu em direção à cozinha. Ao fazer isso, a capa se agitou no ar, e Esk pôde ver que agora estava forrada de vermelho. Um vermelho avinhado e escuro, mas vermelho. Em Vovó, que jamais vestira qualquer outra cor que não o conveniente preto, era chocante.

- A biblioteca? - surpreendeu-se a senhora Paroníquia. - Acho que ninguém limpa a biblioteca!

Ela parecia genuinamente espantada.

-           Por que não? - perguntou Esk. - Não fica suja?

-           Bem — respondeu a senhora Paroníquia. Ela pensou por um instante. — Imagino que sim, agora que você tocou no assunto. Nunca pensei nisso.

-           Já acabei de limpar todos os outros lugares - lembrou Esk, com doçura.

-           Sei - disse a senhora Paroníquia. - Acabou, não acabou?

-           Pois então.

-           Acontece que nós nunca... fizemos isso - considerou a se Senhora Paroníquia. - Mas nem imagino por quê.

-           Pois então - repetiu Esk.

- Uuuh! - exclamou o Bibliotecário, e se afastou de Esk.

Mas a menina já ouvira falar dele e fora até ali preparada. Ofereceu-lhe uma banana.

O orangotango estendeu o braço devagar e agarrou a fruta com um sorriso de vitória.

Pode ser que haja universos em que o trabalho do bibliotecário seja considerado um tipo de ocupação tranqüila, onde os perigos se restrinjam à possibilidade de um volume grande cair na cabeça da pessoa. Mas a manutenção da biblioteca mágica não é serviço para covardes. Os feitiços têm poder. O fato de escrevê-los e fechá-los não diminui sua força. A coisa vaza. E os feitiços de um livro costumam reagir ao encontrar feitiços de outros livros, criando magias aleatórias, detentoras de vontade própria. Os livros de magia, quase sempre, ficam acorrentados, e não é para impedir possíveis roubos...

Um desses acidentes havia transformado o bibliotecário em macaco. E desde então ele resistira a todas as tentativas feitas para transformá-lo de volta, explicando, na linguagem dos sinais, que a vida como orangotango era bem melhor que a vida como homem, porque todas as grandes questões filosóficas se reduziam a imaginar de onde viria a banana seguinte. De qualquer modo, braço longo e pé preênsil eram ideais na hora de lidar com as prateleiras altas.

Esk lhe entregou o cacho inteiro de bananas e, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, saiu correndo por entre as estantes.

A menina nunca vira mais que um livro de cada vez na vida e por isso, até onde sabia, aquela biblioteca era como qualquer outra. Verdade que parecia um pouco estranha a maneira pela qual, a distância, o chão se transformava em parede, e havia algo desconcertante no modo com que as prateleiras pregavam peças nos olhos, parecendo se dobrar em mais dimensões do que as três normais. Além disso, era bastante assombroso olhar para cima e ver estantes no teto, com um ou outro aluno trançando entre elas.

A verdade é que a presença de muita magia distorcia o lugar. Nas estantes, o próprio brim - ou talvez algodão - do universo se torcia em formas peculiares. Incapazes de fugir, as muitas palavras ali presas deformavam a realidade à volta.

A Esk aquilo parecia uma coisa óbvia: entre todos aqueles livros deveria haver pelo menos um que ensinasse a ler todos os demais. Ela não sabia ao certo como achá-lo, mas no fundo do coração sentia que a capa provavelmente teria desenhos de coelhos felizes e gatinhos alegres.

A biblioteca não era nem um pouco silenciosa. Havia os eventuais chiados e zumbidos de descargas mágicas, e faíscas octarinas cintilavam pelas estantes. Correntes tiniam de leve. E é evidente que havia o rumor dos milhares de páginas em suas prisões encadernadas de couro.

Esk certificou-se de que ninguém prestava atenção e puxou o volume mais próximo. O livro se abriu em suas mãos, e a menina viu com tristeza que se tratava do mesmo tipo horroroso de diagrama que tinha visto um dia no livro de Simon. A escrita era completamente desconhecida. Ela achou ótimo que assim fosse: seria terrível saber o que todas aquelas letras, que pareciam compostas de criaturas pavorosas fazendo coisas complicadas umas com as outras, de fato significavam. Ela conseguiu fechar o livro, muito embora as palavras parecessem fazer força no sentido contrário. Na capa, havia o desenho de uma criatura que lembrava as Coisas do deserto gelado. Com certeza não parecia nenhum gatinho alegre.

-           O-olá! Esk, não é? C-como chegou aqui?

Era Simon, parado diante dela com um livro debaixo de cada braço. Esk enrubesceu.

-           Vovó ainda não me explicou - respondeu ela. - Acho que tem a ver com um homem e uma mulher.

Confuso, Simon olhou para a menina. Então sorriu. Esk reconsiderou a pergunta.

-           Trabalho aqui. Varro o chão.

Ela agitou a vara à guisa de esclarecimento.

-           Aqui.

Esk o encarou. Vinha se sentindo sozinha, perdida e mais do que apenas um pouco ludibriada. Todo mundo parecia ocupado vivendo a própria vida, menos ela. Passaria o resto de sua existência limpando tudo para os magos. Não era justo, e ela já estava farta.

 

-           Na verdade, não. Estou aprendendo a ler para me tornar maga.

 Durante alguns segundos, o garoto se limitou a fitá-la com os olhos lacrimejantes. Então pegou o livro das mãos de Esk e leu o título.

-           Dhemonologia Malyfycorum de Henchanse, o Insatisfatório. Como achou que aprenderia a ler com isso?

-           Hum - disse Esk. - Bom, a gente fica tentando até conseguir, não é? Igual a tirar leite de cabra, tricotar ou...

A voz se perdeu.

-           D-disso não sei. Esses livros podem ssser meio, hã, hostis. Ssse não tomar cuidado, c-começam a ler v-você.

-           Como assim?

-           Dizem que tinha um mmmm...

-           ... mago... - completou Esk, automaticamente.

-           ... que c-começou a ler o Necrotelecomnicon e deixou a mmmmmm...

-... mente...

-           ... divagar e no dia ssseguinte acharam sssuas roupas na c-cadeira com o chapéu em cima. E o livro tinha...

Esk pôs as mãos nos ouvidos, mas não com muita força -para não perder nenhum detalhe.

-           Se for horrível, não quero saber.

-           ... t- tinha várias outras páginas.

Esk tirou as mãos dos ouvidos.

-           Tinha alguma coisa nessas páginas?

Simon assentiu.

-           Tinha. Em c-cada uma delas, havia...

 

-           Não - cortou Esk. - Não quero nem imaginar. Achei que ler fosse mais tranqüilo do que isso. Quer dizer, Vovó lia o Almanacke todos os dias e nada de ruim acontecia.

-           Com as palavras c-comuns não tem problema - reconheceu Simon, magnânimo.

-           Tem certeza? - Esk disse.

-           As palavras têm força - disse Simon, enfiando o livro de volta na estante, onde as correntes retiniram. — E dizem que a caneta é mmm...

-           ... mais...

 -          ... poderosa do que a espada.

-Tá bom — Esk disse. - Mas com qual das duas você preferiria ser ferido?

-           Hã. Acho que não v-vai adiantar eu dizer que você não d-deveria estar aqui, vai? - perguntou o jovem mago.

Esk considerou a pergunta.

-           Não - respondeu afinal. - Acho que não.

-           P-posso mmmmmmandar chamarem os ssssseguranças e fazer com que a tirem daqui.

-           É, mas você não vai fazer isso.

-           Eu sssó não quero que você ssssse mmmmm...

-           ... machuque...

-           Realmente não quero. Isso aqui pode sssser perigoso...

Esk notou uma leve tremulação acima da cabeça de Simon.

Por um instante, viu os grandes vultos acinzentados do deserto frio. Observando. Na calma da biblioteca, onde o peso da magia desgastava as fronteiras do universo, elas haviam decidido Agir.

O rumor abafado dos livros cresceu numa agitação desesperada de páginas. Alguns dos volumes mais poderosos conseguiram pular das estantes e agora balançavam, sacudindo nas correntes. Um grande volume saltou de seu poleiro na última prateleira - livrando-se assim da corrente - e saiu voando como uma galinha assustada, deixando algumas páginas para trás.

Um vento mágico levou o lenço da cabeça de Esk, e os cabelos se soltaram. Ela viu Simon tentando se equilibrar numa estante, enquanto os livros despencavam ao redor. A atmosfera estava carregada e tinha gosto de estanho. O ar zumbia.

-           Elas estão tentando entrar! - berrou Esk.

O rosto transtornado de Simon se voltou para ela. Um incunábulo apavorado o acertou com força na nuca e jogou-o ao chão, depois saltou por cima das prateleiras. Esk se agachou quando um bando de enciclopédias passou por ela, arrastando junto a estante, e ficou de quatro diante dele.

-           É isso que está deixando os livros tão assustados! – gritou ela em seu ouvido. - Não está vendo as Coisas lá em cima?

 Simon sacudiu a cabeça. Um livro estourou a encadernação e deixou cair as páginas sobre eles.

O pavor pode se infiltrar na mente através de todos os sentidos. Tem o som bastante significativo do risinho no quarto escuro e fechado, a visão de meia taturana no garfo cheio de salada, o cheiro curioso que vem do quarto do inquilino, o gosto de lesma em meio à couve-flor. Em geral, o tato não faz surtir o mesmo efeito.

Mas alguma coisa vinha acontecendo com o chão. Esk olhou para baixo e ficou com o rosto endurecido de medo, porque o assoalho empoeirado de repente pareceu arenoso. E seco. E muito, muito frio.

Havia areia entre seus dedos.

Ela pegou o bastão e, protegendo os olhos do vento, agitou-o contra os grandes vultos acima. Seria ótimo poder dizer que um raio de chama branca limpou o ar engordurado. Não aconteceu nada disso...

A vara se dobrou como uma cobra e golpeou Simon na lateral da cabeça.

As Coisas acinzentadas vibraram e desapareceram.

A realidade voltou e tentou fingir que jamais se fora. O silêncio desceu em ondas, como veludo grosso. Um silêncio pesado, ressonante. Alguns livros despencaram do ar, sentindo-se tolos.

O chão agora era, sem dúvida, de madeira. Esk bateu o pé com força para confirmar.

Havia sangue no chão, e Simon estava deitado em meio ao líquido. Esk olhou para ele, depois para cima e então finalmente para a vara. O bastão parecia envaidecido.

Ela ouviu passos e vozes a distância.

Com suavidade, uma grande mão feito luva de couro fino tomou a sua, e uma voz atrás dela disse "Ook", bem baixinho. Esk se virou, encarando o simpático rosto do bibliotecário. Num gesto inconfundível, ele pôs o dedo sobre os lábios e tentou puxá-la pela mão.

— Eu o matei! — sussurrou ela.

O bibliotecário sacudiu a cabeça e puxou-a com insistência.

 -          Ook - explicou ele. - Ook.

Ele a puxou para uma passagem lateral no labirinto de estantes antigas, alguns segundos antes de um grupo de magos sêniores apareceu no fim do corredor, atraído pelo barulho.

-           Os livros brigaram de novo...

-           Ah, não! Vai levar séculos para capturar todos os feitiços.

Eles se escondem...

-           Quem está deitado ali no chão?

Houve uma pausa.

-           Está desmaiado. Ao que parece, uma estante caiu em cima dele.

-           Quem é?

-           O novo rapaz. Sabe, aquele que dizem que tem a cabeça cheia de cérebros.

-           Se a estante tivesse caído um pouco mais para cá, poderíamos conferir.

-           Vocês dois, levem-no para a enfermaria. É melhor o resto de nós recolher os livros. Onde está o desgraçado do bibliotecário? Ele sabe que não pode deixar se formar uma Massa Crítica.

Esk olhou de esguelha para o orangotango, que então mexeu as sobrancelhas para ela. O bibliotecário puxou da estante um grande livro sobre feitiços de jardinagem, tirou uma banana marrom e macia do esconderijo ali atrás e comeu a fruta com a tranqüilidade e o prazer de quem sabe que, quaisquer que sejam os problemas, pertencem exclusivamente aos seres humanos.

A menina olhou na outra direção, para a vara, e os lábios se contraíram. Ela sabia que não tinha feito nada. O bastão havia golpeado Simon, querendo, com seu duro coração de madeira, assassiná-lo.

O menino estava deitado na cama dura do quarto estreito, com uma toalha fria sobre a testa. Treatle e Cortângulo observavam-no com atenção.

- Tem quanto tempo? - perguntou Cortângulo.

Treatle encolheu os ombros.

—        Três dias.

—        E ele não voltou nenhuma vez?

-Não.

Cortângulo se sentou na beira da cama e esfregou o osso do nariz. Simon nunca  parecera muito saudável, mas agora o rosto tinha um terrível aspecto sombrio.

—        Que cabeça brilhante, essa aí! - exclamou ele. - A aula do menino sobre os princípios fundamentais da magia e da matéria... admirável.

Treatle assentiu.

—        A maneira como ele absorve o conhecimento... - continuou Cortângulo. - Trabalho como mago desde que me entendo por gente e, de alguma forma, só vim a compreender a magia quando ele me explicou. Tão claro. Tão, bem, óbvio,

—        É o que todos dizem - confirmou Treatle, de maneira vaga.

- Dizem que é como se nos tirassem uma venda dos olhos e víssemos a luz do dia pela primeira vez.

—        Exatamente - disse Cortângulo. - Não há dúvida de que ele é um mago nato. Você estava certo em trazê-lo para cá.

Houve uma pausa para meditação.

—        Só que... - começou Treatle.

—        Só que o quê? — disse Cortângulo.

—        Só que o que exatamente você entendeu? – perguntou Treatle. - É isso que vem me incomodando. Quer dizer, você saberia explicar?

—        Como assim, explicar?

Cortângulo parecia preocupado.

—        O que ele fica falando — disse Treatle, uma leve ponta de desespero na voz. - Ah, eu sei que é autêntico. Mas o que exata mente 锓!

Cortângulo olhava, boquiaberto para ele. Por fim, respondeu:

—        Ah, isso é fácil. A magia cobre todo o universo, entende? e cada vez que o universo muda, não, quer dizer, cada vez que a magia é invocada, o universo muda, só que em todas as direções

ao mesmo tempo, percebe? E...

Ele agitou as mãos sem muita certeza, procurando um lampejo de compreensão no rosto de Treatle.

-           Em outras palavras, qualquer porção de matéria, como por exemplo uma laranja, o mundo ou, ou...

-           ... um crocodilo? - sugeriu Treatle.

-           É, um crocodilo ou... o que quer que seja. Tem sempre a forma básica de uma cenoura.

-           Não me lembro dessa parte - disse Treatle.

-Tenho certeza de que foi isso que ele disse - insistiu Cortângulo. O mago já estava começando a suar.

-           Não, lembro aquele ponto em que ele parecia sugerir que, se fôssemos longe o bastante em alguma direção, veríamos nossa própria nuca - recordou Treatle.

-           Tem certeza de que ele não estava se referindo à nuca de outra pessoa?

Treatle pensou um pouco.

-           Não, estou certo de que era a nossa própria nuca - afirmou. - Acho que ele até disse que poderia provar.

Eles consideraram a questão em silêncio.

Por fim, Cortângulo falou, lenta e cuidadosamente.

-           Vejo a coisa assim - começou ele. - Antes de Simon, eu era como todo mundo. Entende o que quero dizer? Estava confuso e incerto sobre todos os aspectos da vida. Mas agora - alegrou-se ele -, embora eu ainda esteja confuso e incerto, é num plano muito mais elevado, entende? E pelo menos sei que estou inseguro em relação aos fatos verdadeiramente importantes e fundamentais do universo.

Treatle assentiu.

-           Eu não tinha pensado no assunto dessa maneira - admitiu -, mas você tem toda razão. Ele realmente alargou as raias da ignorância. Existe tanto no universo que não conhecemos!

Ambos os magos provaram o estranho ardor de serem mais ignorantes do que as pessoas comuns — que só eram ignorantes em relação a coisas comuns.

Então Treatle disse:

-           Só espero que ele esteja bem. A febre já passou, mas parece que o menino não quer acordar.

Duas funcionárias entraram no quarto, com uma bacia de água e toalhas limpas. Uma delas também trazia uma vassoura

bastante esfarrapada. Quando começaram a trocar os lençóis ensopados de suor debaixo do rapaz, os dois magos saíram, ainda discutindo as amplas perspectivas do desconhecimento que Simon revelara ao mundo.

Vovó esperou os passos se afastarem e tirou o lenço da cabeça.

-           Droga de pano! - reclamou. - Esk, fique na porta escutando.

Ela tirou a toalha da testa de Simon e lhe sentiu a temperatura.

-           Foi muita bondade sua vir - disse Esk. - Com tanto trabalho para fazer e tal.

-           Mmmph.

Vovó franziu os lábios. Suspendeu as pálpebras de Simon e buscou a pulsação. Encostou o ouvido no peito barulhento como um xilofone e escutou o coração. Durante algum tempo, permaneceu imóvel, investigando o interior da cabeça do rapaz.

Então franziu a testa.

-           Ele está bem? - perguntou Esk, ansiosa.

Vovó olhou as paredes de pedra.

-           Droga de quarto - lamentou. - Isto aqui não é lugar pra gente doente.

-           É, mas ele está bem?

-           O quê?

Vovó estava assustada.

-           Ah. Sim. Provavelmente. Onde quer que ele se encontre.

Esk a encarou, e então olhou para o corpo de Simon.

-           Não tem ninguém aí - explicou Vovó.

-           Como assim?

-           Ora, vejam só essa menina - disse Vovó. - Quem ouve deve achar que nunca lhe ensinei nada. A mente dele está Divagando. Simon está Fora da própria Cabeça.

Ela mirou o garoto com algo próximo a admiração.

-           Incrível - acrescentou. - Nunca encontrei nenhum mago que pudesse Tomar Emprestado.

Vovó se virou para Esk, cuja boca era um O de pavor.

-           Quando eu era pequena, a velha Babá Annaple foi Divagar. E ficou concentrada demais em ser raposa. Levamos dias para achá-la. Depois teve você também. Eu nunca a teria encontrado, se não fosse pela vara e... menina, o que fez com ela?

 -          A vara bateu nele - murmurou Esk. - Tentou matar Simon.

Joguei-a no rio.

-           Não é o que se faz com algo que nos salvou a vida – rebateu Vovó.

-           Salvou minha vida batendo nele?

-Você não entende? Simon estava trazendo aquelas... Coisas.

-           Não é verdade!

Vovó fitou os olhos desafiadores de Esk, e o pensamento lhe cruzou a mente: eu a perdi. Três anos de trabalho indo latrina abaixo. A menina não poderia ser maga, mas talvez pudesse ter sido bruxa.

-           Dona Inteligência, por que não é verdade? – perguntou Vovó.

-           Ele não faria uma coisa dessas! - respondeu Esk, à beira das lágrimas. -Já conversei com Simon. Ele não é mau. Pelo contrário: é brilhante e quase entende como tudo funciona...

-Acredito que seja um bom menino -Vovó disse, irritada. -Nunca falei que ele fazia magia negra, falei?

-           Essas Coisas são horríveis! - exclamou Esk, aos soluços. - Ele não estava trazendo nada para cá. Simon quer exatamente o oposto do que essas criaturas são, e a senhora não passa de uma bruxa velha e má...

O tapa tiniu como um sino. Esk recuou, pálida e assustada. Vovó manteve a mão suspensa, tremendo.

Ela havia batido uma vez em Esk - o tapa que desferimos no neném para apresentá-lo ao mundo e lhe dar uma vaga idéia do que o aguarda pela frente. Mas aquela fora a última vez. Nos anos que as duas passaram sob o mesmo teto tinha havido motivos de sobra (quando o leite havia transbordado ou as cabras tinham sido deixadas sem água), mas uma palavra ríspida ou um silêncio ainda mais ríspido faziam mais do que a força jamais poderia fazer e não deixavam marcas.

Vovó agarrou Esk pelos ombros e olhou dentro de seus olhos.

-           Escute aqui - disse ela. - Eu não falei com você que, se usar magia, deve cruzar o mundo como uma faca avança na água? Não falei?

 Hipnotizada como o coelho encurralado, Esk assentiu.

-           E você achou que fosse conversa da Vovó, não achou? Mas o fato é que, se usamos magia, chamamos atenção. Atenção De las. Essas Coisas observam o mundo o tempo inteiro e Para Elas, a mente comum é obscura, mas a mente com mania interior brilha, entende? É um farol. Não é a escuridão que elas buscam; é a luz, a luz que gera sombras!           /

-           Mas... mas... por que o interesse? O áxxe Elas querem?

-           Corpo e vida - respondeu Vovó.    /

Ela relaxou e soltou Esk.

-           Pensando bem, são patéticas - disse a bruxa. - Só têm o corpo e a vida do que roubam. Não sobreviveriam neste mundo mais do que um peixe sobreviveria numa fogueira, mas isso não As impede de tentar. E são espertas o bastante para nos detestar porque estamos vivos.

Esk se arrepiou, lembrando a textura da areia gelada.

-           O que são Elas? Sempre achei que fossem apenas uma espécie de... uma espécie de demônio.

-           Não. Ninguém sabe ao certo. São só as Coisas do Calabouço das Dimensões, que fica do lado de fora do universo. Criaturas das sombras.

Vovó se voltou para o corpo inerte de Simon.

-           Você não faz idéia de onde ele possa estar, faz? – perguntou a bruxa, lançando um olhar incisivo para Esk. - Não saiu por aí voando com as gaivotas, saiu?

Esk sacudiu a cabeça.

-           Não - disse Vovó. — Achei que não. Elas pegaram Simon, não pegaram?

Não era uma pergunta. Esk assentiu, com o rosto tomado pela aflição.

-           Não é sua culpa - Vovó disse. - A mente de Simon abriu caminho para as Coisas e, quando ele desmaiou, foi levado com Elas. Só que...

Ela tamborilou os dedos na beirada da cama e pareceu chegar a uma conclusão.

-           Quem é o mago mais importante daqui? - indagou.

 -          Hum, o lorde Cortângulo - respondeu Esk. - O arqui-reitor. Era um dos que estavam aqui no quarto.

-           O gordo ou o que parece um risco manchado de vinagre?

Esk afastou da cabeça a imagem de Simon no deserto gelado e se viu respondendo:

-           Para dizer a verdade, ele é mago do 8º nível e profeta do 33a.

-           Quer dizer que é torto? - perguntou Vovó. - Ah, minha filha, todo esse tempo convivendo com magos fez com que os levasse a sério. Todos se chamam de Lorde Superior Isso e Soberano Aquilo. Faz parte do jogo. Até os ilusionistas recorrem a isso.

A gente fica achando que seriam mais sensatos... que nada! Saem por aí se dizendo os Incríveis Pego e Nego. Enfim, onde está Vossa Alteza Tchuco-Tchuco?

-           Estão todos jantando no Salão Principal - informou Esk. - Será que ele pode trazer Simon de volta?

-           Essa é a parte difícil - admitiu Vovó. - Acho que todos nós podemos trazer alguma coisa de volta. Se vai ser Simon, são outros quinhentos.

Ela se levantou.

-           Então vamos procurar o Salão Principal. Não temos tempo

a perder.

-           Hã. Mulher não pode entrar lá - avisou Esk.

Vovó se deteve à porta. Os ombros se levantaram. Ela se virou bem devagar.

-           O quê? - perguntou ela. - Estes velhos ouvidos me traíram? E não diga que sim porque ouvi muito bem.

-           Desculpe - disse Esk. - Força do hábito.

-           Estou vendo que você anda aceitando idéias abaixo do seu nível - Vovó disse, com frieza. - Vá procurar alguém pra ficar com o garoto. Depois vamos ver o que tem de tão especial nesse salão que eu não possa pisar lá.

E foi assim que, quando todo o corpo docente da Universidade Invisível se encontrava jantando no Venerável salão, as portas se abriram com um efeito dramático que acabou se perdendo um pouco quando uma delas bateu no garçom e voltou, acertando o queixo de Vovó. Em vez das passadas largasse rebeldes que pretendera dar sobre o chão quadriculado, a bruxa foi forçada a algo entre pular e coxear salão adentro. Esperava estar, pelo menos, coxeando com dignidade.

Esk correu atrás dela, ciente das centenas de Velhos que se voltavam para as duas.

O barulho de conversas e talheres cessou. Algumas cadeiras tombaram para trás. No fim do salão, Esk avistou os magos sêniores à mesa mais alta, que de fato pairava a alguns metros, do chão. Eles observavam.

Um mago de nível médio - que a menina lembrou se tratar do professor de astrologia aplicada - avançou na direção deles, agitando as mãos.

-           Nãnãninãnã - gritou ele. - Porta errada. Precisam sair daqui.           -           Não se incomode comigo - disse Vovó calmamente, passando por ele.

-           Nãnãni, isso vai contra a doutrina, têm que sair agora. Damas não podem entrar aqui!

-           Não sou dama, sou bruxa - Vovó disse, virando-se para Esk. - Ele é muito importante?

-           Acho que não - respondeu a menina.

-           Certo.

Vovó se virou para o professor:

-           Por favor, vá me chamar um mago importante. Rápido.

Esk cutucou as costas de Vovó. Dois magos com maior presença de espírito haviam saído às pressas pela porta, e agora vários seguranças avançavam de maneira ameaçadora pelo salão, em meio aos gritos e vaias dos alunos. Esk jamais gostara muito dos seguranças, que levavam uma vida secreta na guarita, mas agora até sentia uma pitada de compaixão por eles.

Dois dos homens estenderam as mãos peludas e seguraram os ombros de Vovó. O braço dela desapareceu atrás das costas, e houve uma breve movimentação que terminou com os rapazes saltando para longe, recompondo-se e praguejando a plenos pulmões.

-           O alfinete do chapéu - disse Vovó.

-           Hum, o lorde Cortângulo - respondeu Esk. - O arqui-reitor. Era um dos que estavam aqui no quarto.

-           O gordo ou o que parece um risco manchado de vinagre?

Esk afastou da cabeça a imagem de Simon no deserto gelado e se viu respondendo:

-           Para dizer a verdade, ele é mago do 82 nível e profeta do 33a.

-           Quer dizer que é torto? - perguntou Vovó. - Ah, minha filha, todo esse tempo convivendo com magos fez com que os levasse a sério. Todos se chamam de Lorde Superior Isso e Soberano Aquilo. Faz parte do jogo. Até os ilusionistas recorrem a isso.

A gente fica achando que seriam mais sensatos... que nada! Saem por aí se dizendo os Incríveis Pego e Nego. Enfim, onde está Vos sa Alteza Tchuco-Tchuco?

-           Estão todos jantando no Salão Principal - informou Esk. - Será que ele pode trazer Simon de volta?

-           Essa é a parte difícil - admitiu Vovó. - Acho que todos nós podemos trazer alguma coisa de volta. Se vai ser Simon, são outros quinhentos.

Ela se levantou.

-           Então vamos procurar o Salão Principal. Não temos tempo a perder.

-           Hã. Mulher não pode entrar lá - avisou Esk.

Vovó se deteve à porta. Os ombros se levantaram. Ela se virou bem devagar.

-           O quê? - perguntou ela. - Estes velhos ouvidos me traíram? E não diga que sim porque ouvi muito bem.

-           Desculpe - disse Esk. - Força do hábito.

-           Estou vendo que você anda aceitando idéias abaixo do seu nível - Vovó disse, com frieza. - Vá procurar alguém pra ficar com o garoto. Depois vamos ver o que tem de tão especial nesse salão que eu não possa pisar lá.

E foi assim que, quando todo o corpo docente da Universidade Invisível se encontrava jantando no Venerável salão, as portas se abriram com um efeito dramático que acabou se perdendo um pouco quando uma delas bateu no garçom e voltou, acertando o queixo de Vovó. Em vez das passadas largas e rebeldes que pretendera dar sobre o chão quadriculado, a bruxa foi forçada a algo entre pular e coxear salão adentro. Esperava estar, pelo menos, coxeando com dignidade.

Esk correu atrás dela, ciente das centenas de olhos que se voltavam para as duas.

O barulho de conversas e talheres cessou. Algumas cadeiras tombaram para trás. No fim do salão, Esk avistou os magos sêniores à mesa mais alta, que de fato pairava a alguns metros do chão. Eles observavam.

Um mago de nível médio - que a menina lembrou se tratar do professor de astrologia aplicada - avançou na direção dela agitando as mãos.        

-           Nãnãninãnã - gritou ele. - Porta errada. Precisam sair daqui.           V         /

-           Não se incomode comigo - disse Vovó calmamente, passando por ele.

-           Nãnãni, isso vai contra a doutrina, têm que sair agora. Damas não podem entrar aqui!

-           Não sou dama, sou bruxa - Vovó disse, virando-se para Esk. - Ele é muito importante?

-           Acho que não - respondeu a menina.

-           Certo.

Vovó se virou para o professor:

-           Por favor, vá me chamar um mago importante. Rápido.

Esk cutucou as costas de Vovó. Dois magos com maior presença de espírito haviam saído às pressas pela porta, e agora vários seguranças avançavam de maneira ameaçadora pelo salão, em meio aos gritos e vaias dos alunos. Esk jamais gostara muito dos seguranças, que levavam uma vida secreta na guarita, mas agora até sentia uma pitada de compaixão por eles.

Dois dos homens estenderam as mãos peludas e seguraram os ombros de Vovó. O braço dela desapareceu atrás das costas, e houve uma breve movimentação que terminou com os rapazes saltando para longe, recompondo-se e praguejando a plenos pulmões.

-           O alfinete do chapéu - disse Vovó.

 

 O arqui-reitor se afastou, batendo numa pilastra, e o choque fez com que recobrasse  os sentidos. Pos a mão em concha e 1; sentidos. Sacudiu a cabaça, irritado, lançou um raio de chama branca na sua direção.

Ela pegou Esk com a mão livre e seguiu em direção à mesa alta, mantendo o olho em todos que pudessem vir a se meter no caminho. Os alunos mais jovens, que sabiam muito bem o que era uma boa diversão gratuita, batiam o pé, aplaudiam e batucavam os pratos nas mesas compridas. Com um baque, a mesa alta pousou no chão, e os magos sêniores se alinharam às pressas atrás de Cortângulo, enquanto o arqui-reitor tentava reunir o que lhe restava de dignidade. Não funcionou: é difícil parecer digno com um guardanapo enfiado no colarinho.

Ele ergueu as mãos para pedir silêncio, e o salão esperou Vovó e Esk se aproximarem. Com curiosidade, Vovó observava as antigas pinturas e estátuas de magos passados.

—        Quem são os cretinos? - perguntou ela, com o canto da boca.

—        Eram magos influentes - sussurrou Esk.

—        Parecem entupidos. Nunca conheci um mago que não tivesse prisão de ventre - considerou Vovó.

—        Só sei que são um inferno para acumular poeira - reclamou Esk.

Cortângulo estava parado, as pernas abertas, as mãos pousadas nos quadris e a barriga dando impressão de uma rampa de esqui para iniciantes. Seu corpo tinha adotado a postura normalmente associada a Henrique VIII, mas que também pode ser estendida a Henrique IX ou X.

—        Muito bem - gritou ele. - O que significa esse ultraje?

—        Esse aí é importante? - perguntou Vovó para Esk.

—        Eu> minha senhora, sou o arqui-reitor! Dirijo a universidade! E a senhora está invadindo uma área bastante perigosa! Estou lhe avisando que... Pare de me olhar desse jeito!

Cortângulo recuou, com as mãos suspensas para se proteger do olhar de Vovó. Os magos atrás dele debandaram, virando mesas na pressa de fugir.

Os olhos de Vovó haviam mudado.

Esk jamais os vira desse modo. Estavam totalmente prateados, como pequenos espelhos redondos refletindo tudo que viam. Em suas profundezas, Cortângulo era apenas um pontinho, com a boca aberta e os braços minúsculos se agitando em desespero.

Sem quebrar o olhar iridescente, Vovó levantou a mão e desviou as chamas para o teto. Houve uma explosão e uma cascata de telhas.         1

Os olhos dela se arregalaram.

Cortângulo sumiu. No lugar em que estivera, uma cobra enorme se enroscava, pronta para o bote.

Vovó sumiu. Em seu lugar, havia uma grande cesta de vime.

A cobra virou um réptil gigantesco da aurora dos tempos.

A cesta virou a ventania de neve dos Gigantes do Gelo, cobrindo o monstro de flocos.

O réptil se transformou num tigre-de-dente-de-sabre, já curvado para saltar.

A ventania se transformou numa borbulhante fossa de alcatrão.

O tigre virou uma águia, lançando-se sobre a presa.

A fossa virou uma rede.

Então, à medida que uma imagem substituía a outra, tudo começou a vibrar. Sombras estroboscópicas dançavam pela sala. Surgiu um vento mágico espesso e gorduroso, produzindo faíscas octarinas em dedos e barbas. Com os olhos embaciados, Esk conseguiu divisar os corpos de Vovó e Cortângulo - estátuas lustrosas em meio às imagens mutantes.

Também notou outra coisa: um som agudo quase impossível de se ouvir.

Ela já escutara esse mesmo zumbido antes, na planície gelada - um barulho chiado, de colméia, um barulho de formigueiro...

- Elas estão vindo! - gritou Esk acima do alarido. — Estão chegando!

A menina saiu de trás da mesa onde se escondera, buscando refúgio durante o duelo mágico e tentou alcançar Vovó. Uma rajada de magia em estado bruto a suspendeu do chão e jogou-a numa cadeira.

Agora o zumbido estava mais alto, de modo que o ar retumbava como um cadáver de três semanas em dia de verão. Esk fez outra tentativa de chegar até Vovó e recuou quando uma chama verde lhe correu pelo braço, chamuscando o cabelo.

Ela olhou à volta em busca dos outros magos, mas os que haviam fugido dos efeitos da magia agora se encolhiam atrás dos móveis tombados, enquanto a tempestade oculta trovejava em suas cabeças.

Esk atravessou todo o salão e saiu para o corredor escuro. As sombras se enovelavam ao redor, mas ela galgou a escada e a galeria que levava ao quarto estreito de Simon.

Alguma coisa tentaria entrar no corpo do rapaz, dissera Vovó. Alguma coisa que andaria e falaria como Simon, mas não era ele...

Um grupo de alunos parecia hesitar à porta. Quando Esk surgiu correndo, os garotos viraram os rostos pálidos para ela e, por estarem transtornados, recuaram nervosos diante da marcha decidida da menina.

-           Tem alguma coisa aí dentro - avisou um deles.

-           Não conseguimos abrir a porta!

Os alunos olharam para ela em expectativa. Então um deles perguntou:

-           Por acaso, teria uma chave mestra?

Esk tentou a maçaneta. A porta se abriu um pouco, mas logo voltou com força suficiente para quase lhe arrancar a pele das mãos. O zumbido no quarto aumentou e também surgiu outro barulho, como o açoite de tiras de couro.

-           Vocês são magos! - gritou ela. - Façam alguma coisa!

-           Ainda não fizemos telecinesia - justificou um dos garotos.

-           Eu estava doente quando ensinaram lançamento de chamas...

-           É que não sou muito bom em desmaterialização...

Esk se dirigiu novamente à porta, mas parou com o pé em pleno ar. Lembrou o que Vovó falara sobre até os prédios terem mente, se fossem bastante antigos. A Universidade era muito antiga.

Ela se afastou e correu as mãos pelas velhas pedras. O Empréstimo teria que ser feito com cuidado, para não assustar a construção... Agora já dava para perceber a mente nas pedras - lenta e tosca, mas todavia mente. Tudo pulsava. Esk sentiu as pequenas centelhas no interior das pedras.

Alguma coisa vinha trinando atrás da porta.

Estupefatos, os três alunos observaram Esk se manter completamente imóvel, com a testa e as mãos apoiadas na parede.

Ela estava quase lá. Já era possível sentir o peso de si mesma, a magnitude de seu corpo, as remotas lembranças da aurora dos tempos, quando a pedra era líquida e livre. Pela primeira vez na vida, Esk entendeu o que era ter varandas.

Ela avançou com suavidade pela mente do prédio, refinando as sensações e procurando o mais rápido possível por aquele corredor, aquela porta.

Com extremo cuidado, estendeu o braço. Os alunos viram um dedo se desdobrar, bem lentamente.

As dobradiças da porta começaram a estalar.

Houve um momento de tensão e então os pregos saltaram das dobradiças e caíram. A madeira começou a se dobrar, uma vez que a porta ainda tentava se abrir contra a força do... do que quer que a estivesse mantendo fechada.

A madeira vergou.

Feixes de luz azul irromperam no corredor, dançando como vultos indistintos embaralhados no brilho ofuscante do interior do quarto. A luz era enevoada e radioativa, o tipo de luz que faria Steven Spielberg ligar com urgência para o seu advogado de direitos autorais.

Esk ficou de cabelo em pé, parecia um ouriço grande. Quando passou pelo vão da porta, pequenos raios mágicos lhe irrompiam na pele.

Apavorados, os alunos observaram-na desaparecer sob a estranha luz.

Então a luz sumiu numa explosão silenciosa.

Quando eles enfim reuniram coragem suficiente para espiar o interior do quarto, não viram nada além do corpo adormecido de Simon — e Esk, gelada e quieta no chão, respirando muito devagar. O assoalho estava coberto por uma leve camada de areia prateada.

Esk flutuou pelas brumas do mundo, sentindo, uma sensação curiosamente impessoal, a maneira exata como se atravessa a matéria sólida.

Havia outras criaturas com ela. Dava para ouvir os chiados.

A fúria subiu feito bílis. Ela se virou e avançou na direção do barulho, lutando contra as forças tentadoras que insistiam em convencê-la a relaxar a mente e afundar no oceano quente do nada. Ter raiva, esse era o lance. Ela sabia que o mais importante agora era estar com bastante raiva.

O Discworld desapareceu e surgiu lá embaixo, como no dia em que ela havia sido águia. Mas desta vez o Mar Círculo (que, óbvio, era circular, como se Deus não tivesse conseguido pensar em nada mais criativo) se encontrava abaixo dela e, para além do mar, estavam o litoral do continente e a longa Cordilheira das Ramtops, estendendo-se até o Centro. Havia outros continentes e também arquipélagos dos quais ela jamais ouvira falar.

Quando o ponto de vista mudou, a Borda surgiu à frente. Era noite e, como o sol do Disco se encontrava debaixo do mundo, o astro iluminava a longa queda-d'água que contornava a Beira.

Também iluminava Grande ATuin, a Tartaruga Celestial. Esk tinha pensado muitas vezes se a Tartaruga não seria apenas um mito. Parecia complicação demais apenas para tocar adiante o mundo. Mas lá estava Ela, quase tão grande quanto o Discworld que carregava na carapaça coberta de poeira estelar e marcada por crateras meteoríticas.

A cabeça diante de Esk, e a menina viu um olho grande o suficiente para poder ser navegado por todas as esquadras do mundo. Ela já tinha ouvido dizer que, se olhássemos na mesma direção de Grande ATuin, poderíamos avistar o fim do universo. Talvez fosse apenas o feitio da boca, mas Grande ATuin parecia vagamente esperançosa e até otimista. Talvez o fim de tudo não fosse tão terrível assim.

Como em sonho, a menina tentou Tomar Emprestada a maior mente do universo.

Ela se deteve bem a tempo, como a criança brincando de tobogã que espera se deparar com rampas suaves e de repente vê as magníficas montanhas cobertas de neve se estendendo até os campos gelados do infinito. Ninguém jamais Tomaria Emprestada aquela mente. Seria como tentar beber todo um oceano. Os pensamentos que ali cruzavam eram grandes e lentos como as geleiras.

Para além do Disco, estavam as estrelas. Mas havia algo errado: elas giravam como flocos de neve. De vez em quando paravam e se mantinham imóveis como sempre haviam sido, depois botavam na cabeça dançar outra vez.

Estrelas de verdade não fazem isso, pensou Esk. O que queria dizer que ela não estava vendo estrelas de verdade. O que queria dizer que não se achava num lugar de verdade. Mas um zumbido próximo ao seu ouvido fez com que ela lembrasse que era quase certa a possibilidade de morrer, caso se perdesse daqueles sons. Ela se virou e acompanhou os chiados em meio à tempestade de neve estelar.

As estrelas pulavam e paravam, pulavam e paravam...

À medida que subia, Esk tentou se concentrar nas coisas cotidianas porque, se prestasse atenção naquilo que a vinha seguindo, sabia que acabaria voltando - e não tinha certeza se seria capaz de lembrar o caminho. Ela tentou recordar as dezoito ervas que curavam dor de ouvido, e isso a manteve ocupada durante algum tempo, já que nunca se lembrava das últimas quatro.

Uma estrela passou por ela e se afastou com rapidez. Tinha cerca de seis metros de extensão.

Quando acabaram as ervas, passou a relacionar doenças de cabra, o que tomou bastante tempo, porque as cabras podem pegar um monte de coisas que as vacas pegam, mais uma porção de coisas que as ovelhas pegam, mais toda uma gama de horrorosas enfermidades só delas. Quando acabou de listar úbere duro, orelha murcha e mastite octarina, tentou lembrar o complexo código de pontos e linhas que se costumava cortar nas árvores que cercavam Cabra da Peste, de modo que os viajantes perdidos conseguissem achar o caminho de casa nas noites de neve.

Ela estava no pontinho pontinho pontinho traço pontinho traço (direção Centro no sentido horário, a um quilômetro e meio da aldeia), quando sumiu o universo à sua volta, com um estalido fraco. Ela caiu para frente, bateu em algo duro e saibroso e rolou no chão até parar.

O chão saibroso era areia. Uma areia fina, seca, gelada. Dava para dizer que, ainda que cavássemos vários metros, continuaria tão seca e gelada como a superfície.

Por um instante, Esk permaneceu com o rosto enterrado ali, juntando coragem para olhar para cima. Só conseguia ver a bainha da roupa de alguém, a alguns metros de distância. A menos que aquilo fosse uma asa. Poderia ser uma asa, de couro e particularmente esfarrapada.

Ela correu os olhos até encontrar um rosto, mais alto que uma casa, recortado contra o céu cheio de estrelas. Era evidente que o dono daquele rosto estava tentando parecer tenebroso, mas errara na mão. O aspecto geral era de uma galinha morta havia dois meses, mas o efeito desagradável era bastante prejudicado por dentes de javali, antenas de mariposa, orelhas de lobo e chifre de unicórnio. Toda a coisa parecia montada, como se a criatura já tivesse ouvido falar de anatomia mas não entendesse muito o conceito.

Ela mantinha os olhos fixos, mas não em Esk. Alguma coisa atrás da menina absorvia todo o seu interesse. Devagar, Esk virou a cabeça.

Simon estava sentado de pernas cruzadas no meio de um círculo de Coisas. Havia centenas delas, quietas e imóveis como estátuas, observando o rapaz com a paciência de um réptil digerindo a presa.

Nas mãos dele, havia um objeto pequeno e anguloso que desprendia uma luz azul. Seu rosto, azulado pela luz, parecia estranho.

Havia outros objetos no chão, cada qual com seu leve brilho interior. Eles apresentavam as formas variadas que Vovó chamava, com desprezo, jometria: cubos, diamantes de muitos lados, cones, até um globo. Todos eram transparentes, e dentro havia...

Esk se aproximou. Ninguém prestava atenção nela.

 

Dentro de uma esfera de cristal que fora deixada de lado na areia, flutuava uma bola azul e verde, riscada de nuvens brancas e o que poderiam ser continentes, se alguém fosse doido o bastante para tentar viver numa bola. Talvez fosse apenas uma espécie de modelo, mas alguma coisa na maneira como brilhava sugeria que era real, muito grande e que não estava - em todos os sentidos -completamente dentro da esfera.

Com cuidado, Esk botou a esfera no chão e se dirigiu a um bloco de dez lados no qual flutuava um mundo muito mais plausível. Tinha a apropriada forma de disco mas, em vez da Queda da Borda, o que havia era um muro de gelo e, em vez do Centro, uma árvore gigantesca - tão grande que as raízes formavam cordilheiras.

Ao lado dele, um prisma sustentava outro disco, girando lentamente, cercado por estrelinhas. Mas neste não havia nenhum muro de gelo, apenas uma linha vermelho-dourada que, numa inspeção mais apurada, revelava-se uma cobra — uma cobra grande o suficiente para contornar o mundo. Por motivos desconhecidos, o animal mordia o próprio rabo.

Curiosa, Esk virou o prisma para todos os lados, notando que o pequeno disco se mantinha sempre na vertical.

Simon soltou uma risada. Esk botou o disco da cobra no chão e espiou por sobre o ombro do garoto.

Ele segurava uma pequena pirâmide de vidro. Havia estrelas ali dentro e de vez em quando ele sacudia o objeto, de modo que as estrelas se agitavam como flocos de neve ao vento e então voltavam aos devidos lugares. Aí ele ria.

E além das estrelas...

Era o Discworld. Uma Grande ATuin do tamanho de um pires avançava debaixo de um mundo que mais parecia o trabalho de um joalheiro perfeccionista.

Sacudida, turbilhão. Sacudida, turbilhão, riso. Já havia rachaduras finas no vidro.

Esk fitou os olhos inexpressivos de Simon e os rostos famintos das Coisas mais próximas. Então tirou a pirâmide das mãos dele e saiu correndo.

 

As Coisas não se mexeram quando a menina disparou na direção delas, toda curvada, com a pirâmide presa junto ao peito. Mas de repente os pés de Esk já não corriam sobre a areia, e ela se viu suspensa no ar frio. Uma Coisa com cara de coelho afogado se virou lentamente para ela e estendeu as garras.

Você não está aqui de verdade, Esk disse a si mesma. É só uma espécie de sonho, o que Vovó chama de analogia. Não podemos nos machucar para valer, é só imaginação. Nada de mal pode nos acontecer, está tudo dentro da nossa própria cabeça.

Só me pergunto se a criatura sabe disso.

As garras pegaram-na em pleno ar, e a cara de coelho se abriu como uma casca de banana. Não havia boca, apenas um buraco escuro — como se a própria Coisa fosse uma abertura para uma dimensão ainda pior. Em comparação a esse lugar a areia gelada e o luar sem lua seriam quase uma tarde festiva na praia.

Esk segurou a pirâmide do Discworld e, com a mão livre, bateu na pata que a mantinha presa. Não surtiu nenhum efeito. A escuridão se agigantou sobre ela, uma porta para o esquecimento absoluto.

Ela chutou o mais forte que pôde.

O que, naquelas circunstâncias, não foi muito forte. Mas houve uma explosão de faíscas brancas e um estalo - que teria sido um estrondo muito mais satisfatório se a atmosfera rarefeita não abafasse o som.

A Coisa guinchou como uma serra elétrica que, dentro da árvore, encontrasse um prego oculto e esquecido. As criaturas ao redor lançaram um zumbido solidário.

Esk deu outro chute. A Coisa gritou e soltou-a na areia. A menina foi esperta o bastante para rolar - com o minúsculo mundo aninhado ao corpo - porque mesmo em sonho tornozelo quebrado pode doer.

A Coisa cambaleava acima dela. Esk comprimiu os olhos. Com cuidado, botou o mundo no chão, golpeou a Coisa com força onde deveria ser a canela - se houvesse canela debaixo da capa - e pegou novamente o mundo, num único movimento perfeito.

 

A criatura gemeu, curvou-se e veio abaixo, como um saco cheio de cabides. Quando bateu no chão, espatifou-se numa infinidade de membros soltos. A cabeça rolou para longe, até parar.

Então é isso?, pensou Esk. Mal conseguem andar! E, quando batemos nelas, simplesmente desmoronam?

As Coisas mais próximas trinaram e tentaram recuar, mas, como os corpos pareciam se sustentar mais ou menos pela força de vontade, não eram muito boas no negócio. Esk golpeou uma delas, que tinha o rosto parecido com uma pequena família de lulas, e a criatura se reduziu a uma pilha de ossos, retalhos de pele e estranhas pontas de tentáculos, bem semelhante à comida grega. Outra teve um pouco mais de sorte e já havia começado a se afastar, hesitante, quando Esk lhe partiu uma das cinco canelas.

Ao cair, a Coisa se agitou em desespero e derrubou mais duas.

A essa altura, as outras já haviam conseguido se arrastar para longe e observavam à distância.

Esk deu alguns passos em direção àquela que estava mais próxima. A criatura tentou fugir e tombou.

Elas podiam ser feias. Podiam ser perversas. Mas, se fossem poesia em movimento, as Coisas apresentavam a graça e a coordenação de uma espreguiçadeira.

Esk as encarou e depois deu uma olhada no Disco, em sua pirâmide de vidro. Parece que toda a agitação não o havia afetado nem um pouco.

Ela havia conseguido sair, se de fato aquilo ali era o fora e o Disco fosse o dentro, Mas como voltar?

Alguém riu. Era o tipo de riso...

Era essencialmente Wzarnihiwkov. Essa palavra estranguladora da epiglote quase não é usada no Discworld, a não ser por lingüistas prodigiosos muito bem pagos e - é claro - a minúscula tribo de k'turni, que a inventou. O termo não tem sinônimos, embora a palavra de Cumhoolie "squernt" ("sensação de descobrir que o usuário anterior da latrina acabou com o papel") se aproxime em intensidade geral de sensações. A tradução mais próxima é a seguinte:

terrível ruído de espada sendo desembainhada bem atrás do indivíduo quando ele achava que havia liquidado os inimigos

 

 

... embora os falantes da língua k'turni garantam que a definição não transmite toda a sensação de sudorese, taquicardia e frio na espinha da palavra original.

Era esse tipo de riso.

Esk se virou devagar. Simon vinha andando na direção dela, com as mãos em concha. Os olhos do rapaz estavam fechados.

-           Achou mesmo que seria fácil assim? - perguntou ele.

Ou alguma coisa perguntou: não parecia a voz de Simon, mas dezenas de vozes falando ao mesmo tempo.

-           Simon? — arriscou ela.

-           Ele não tem mais nenhuma utilidade para nós - considerou a Coisa com o corpo de Simon. -Já nos mostrou o caminho. Agora devolva o que é nosso.

Esk recuou.

-           Acho que não pertence a vocês — desafiou ela. – Quem quer que sejam.

O rosto em frente a ela abriu os olhos. Não havia nada ali além da escuridão - nenhuma cor, apenas buracos que davam num outro lugar.

-           Poderíamos dizer que, se você nos entregar o objeto, seremos misericordiosos. Poderíamos garantir que a deixaremos sair daqui com essa mesma aparência. Mas não adiantaria muito, não é?

-           Eu não acreditaria em vocês — confirmou Esk.

-           Pois bem.

A Coisa - Simon sorriu.

-           Você só está adiando o inevitável - analisou.

-           Por mim, tudo bem.

-           Podemos pegar a pirâmide de qualquer maneira.

-           Então peguem. Mas acho que não podem. Não podem pegar nada que não tenha sido dado a vocês, podem?

Os dois andavam em círculo.

-           Mais cedo ou mais tarde, vai entregá-la pra nós - disse a Coisa - Simon, irritada.

Agora algumas das outras criaturas já se aproximavam, arrastando-se pelo deserto com terríveis movimentos espasmódicos.

-           Você vai se cansar - continuou o ser estranho. – Podemos esperar. Somos muito bons em esperar.

A Coisa fez um ataque dissimulado pela esquerda, mas Esk se virou para encará-la.

-           Não tem importância - rebateu a menina. - Só estou sonhando isso. Ninguém se machuca em sonho.

A Coisa parou e fitou Esk com os olhos vazios.

-           Vocês têm uma palavra no seu mundo... Acho que se chama "psicossomático".

-           Nunca ouvi falar - Esk disse.

-           Significa que a pessoa pode se machucar nos sonhos. E o interessante é que, se você morrer no sonho, vai ficar aqui. Seria óóóótimo!

Com o canto dos olhos, Esk espiou as montanhas remotas, espalhadas pelo horizonte frio como tortas de lama derretida. Não havia nenhuma árvore, nem mesmo pedras. Apenas areia, estrelas geladas e...

Mais do que ouvir, ela sentiu o movimento no ar e se virou com a pirâmide presa nas mãos como um bastão. O objeto acertou a Coisa - Simon no meio de um pulo, mas, tão logo a criatura caiu no chão, deu um salto mortal para a frente e se pôs de pé com terrível facilidade. No entanto, ouvira o gemido abafado da menina e avistara o breve sofrimento de seus olhos. A Coisa parou.

-           Ah, você ficou triste. Não gosta de ver os outros sofrerem, não é? Pelo menos, não este aqui.

A criatura se virou e acenou, então duas das Coisas altas avançaram para ela e suspenderam-na pelos braços.

As vistas se transformaram. A escuridão desapareceu, e os olhos de Simon voltaram ao rosto. Ele olhou para as Coisas que o seguravam e tentou se soltar, mas uma delas tinha vários pares de tentáculos envoltos em seu pulso e a outra lhe segurava o braço com a maior pinça de lagosta do mundo.

Então Simon viu Esk, e os olhos se dirigiram à pequena pirâmide de vidro.

-           Fuja! - gritou ele. - Leve isso daqui! Não deixe elas pegarem! O garoto fez uma careta ao sentir a pata lhe apertar o braço.

      

-           Ah — alegrou-se Cortângulo. - Acha mesmo?

Vovó assentiu.

Cortângulo apalpou várias partes do manto até localizar um saco alcatroado de tabaco e um rolo de papel. As mãos tremiam ao jogar fragmentos da erva de segunda mão na fina seda de fazer cigarros. Ele passou a língua no troço esfarrapado e mal conseguiu umedecê-lo. Então uma vaga lembrança de decoro brotou no fundo de sua mente.

-           Hum - soltou ele. - A senhora se importa?

Vovó deu de ombros. Cortângulo riscou um fósforo na parede e tentou desesperadamente botar a chama e o cigarro na mesma posição. Com gentileza, Vovó lhe tomou o fósforo da mão e acendeu para ele.

Cortângulo aspirou o tabaco, teve uma leve tosse ritual e se acalmou. A ponta brilhante do cigarro era a única luz do corredor escurecido.

-           Eles estão Divagando - disse Vovó afinal.

-           Eu sei - respondeu Cortângulo.

-           Os seus magos não vão conseguir trazê-los de volta.

-           Também sei disso.

-           Mas pode ser que tragam alguma coisa,

-           Eu preferiria que a senhora não tivesse mencionado isso.

Houve uma pausa, enquanto os dois pensavam no que poderia ser trazido de volta, habitando o corpo humano e praticamente agindo como seus ocupantes originais.

-           A culpa é minha... - disseram os dois em uníssono e então se detiveram, admirados.

-           A senhora primeiro - ofereceu Cortângulo.

-           Essa coisa de cigarro - perguntou Vovó - é bom para os nervos?

Cortângulo abriu a boca para lembrar, com bastante polidez, que o tabaco era um hábito restrito aos magos, mas pensou duas vezes. E estendeu o saco de erva para Vovó.

Ela discorreu sobre o nascimento de Esk, a visita do velho mago, a vara e as incursões da garota na magia. Quando terminou, já conseguira enrolar um cigarro fino, que acendeu com uma pequena chama azul e lhe fez os olhos lacrimejarem.

 

—        Não sei se isso é melhor que estar com os nervos em frangalhos - ela disse.

Cortângulo já não ouvia.

—        É incrível - murmurou ele. - E a menina, não sofreu nada?

—        Não que eu tenha notado - respondeu Vovó. - A vara parecia... ficar do lado dela.

—        E agora onde está?

—        Ela disse que jogou no rio...

O mago sênior e a velha bruxa se entreolharam - os rostos iluminados pelo clarão de um raio. Cortângulo sacudiu a cabeça.

—        O rio está cheio - disse ele. - É uma chance em um milhão.

Vovó abriu um sorriso sinistro. Era o tipo de sorriso que afugentaria lobos. Decidida, pegou a vassoura.

—        Chances em um milhão - disse ela - surgem a toda hora.

Existem tempestades claramente teatrais, cheias de relâmpagos e trovões metálicos. Existem tempestades tropicais e abafadas, propícias a ventos quentes e raios. Mas esta era uma tempestade das planícies do Mar Círculo, e sua grande pretensão era verter o máximo possível de chuva. Era o tipo de tempestade que nos dá a entender que o céu inteiro tomou um diurético. Os relâmpagos e as trovoadas se mantinham ao fundo - fazendo uma espécie de coro — mas a chuva era a estrela principal do espetáculo. Ela sapateava pela terra.

O campus da universidade se estendia até o rio. De manhã, formava um arranjo perfeito e convencional de sebes e trilhas de cascalhos. Mas, no meio das noites chuvosas, parecia que as sebes debandavam e as trilhas fugiam a fim de não se molhar.

Uma luz fraca brilhava sem efeito entre as folhas gotejantes. Mas, apesar disso, a maior parte da chuva conseguia achar caminho até o chão.

-           Não pode fazer uma daquelas bolas de fogo?

-           Minha senhora, tenha dó.

-           Ela viria mesmo por aqui?

 -          Existe uma espécie de cais mais adiante, a não ser que eu esteja perdido.

Ouviu-se o barulho de um corpo pesado caindo num arbusto e depois uma pancada na água.

-           Achei o rio.

Vovó Cera do Tempo fitou a escuridão úmida. Dava para ouvir o barulho da correnteza e divisar a superfície branca das águas. Também havia o cheiro inconfundível do Ankh, sugerindo que vários exércitos tinham-no usado, primeiro como urinol, depois como sepulcro.

Desanimado, Cortângulo caiu na água e foi em direção dela.

-           É loucura - disse ele. - Não leve a mal. Mas, nesta água toda, a vara vai ser levada para o mar. E eu vou morrer de frio.

-           Não pode ficar mais molhado do que já está. Aliás, você não sabe lidar com a chuva.

-           O quê?

-Anda todo curvado, lutando contra ela. Não é assim. Precisa... caminhar entre as gotas.

E, de fato, Vovó parecia estar apenas úmida.

-           Daqui pra frente, vou me lembrar disso. Agora vamos. Quero uma boa fogueira e um copo de alguma bebida quente e forte.

Vovó suspirou.

-           Não sei. Achei que fosse dar de cara com o bastão na lama.Não esperava esta água toda.

Cortângulo lhe deu um leve tapinha no ombro.

-           Talvez a gente possa fazer outra coisa... - começou Cortângulo, e foi interrompido por um raio.

-           Eu disse que talvez a gente possa... — começou ele, novamente.

-           Que foi que eu vi? - cortou Vovó.

-           Que foi que o quê? - perguntou Cortângulo, aturdido.

-           Jogue um pouco de luz ali!

O mago suspirou e estendeu a mão. Um feixe de chamas douradas se lançou pela água espumante e desapareceu.

 -          Lá! - exclamou Vovó, triunfante.

-           É só um barco - retrucou Cortângulo»"Os meninos usam no verão...

Ele seguiu o vulto de Vovó rio adentf0 ° ma*s rápido que polia.

-           Numa noite dessas, a senhora não pode estar nem cogitando tirá-lo daí - alarmou-se ele. - É absurdo!

Vovó deslizou pelas tábuas do cais, que já se encontrava praticamente submerso.

-           A senhora não sabe nada sobre barcos ~ protestou Cortângulo.

-           Então vou ter que aprender rápido ^ rebateu Vovó, com tranqüilidade.

-           Mas não entro num barco desde que era pequeno!

-           Não chamei você para ir junto. O lado pontudo fica para a frente?

Cortângulo soltou um gemido.

-           É tudo muito louvável - admitiu ele -> mas talvez devamos esperar até o amanhecer.

Um raio iluminou o rosto de Vovó.

-           Talvez não - disse Cortângulo.

Ele atravessou o cais e puxou o barquí11*10 a remo em sua direção. Entrar era uma questão de sorte, m^s acabou conseguindo, e então desamarrou a boca que o prendia a uma estaca.

O barco avançou para a correnteza e c0meÇou a ser arrastado, girando devagar.

À medida que a embarcação balançava na$ águas turbulentas, Vovó se agarrou ao assento e, em expectativa» mirou Cortângulo na escuridão.

-           E aí? - perguntou ela.

-           E aí o quê?

-           Você disse que sabia tudo sobre barco5-

-           Não. Eu disse que a senhora não sabia»

-Ah.

Flutuaram com o barco que rodopiou, endireitou-se miraculosamente e foi arrastado de costas rio abaixo.

-           Quando você disse que não entrava num barco desde que era pequeno... - começou Vovó.

-           Acho que tinha uns dois anos.

O barco avançou para um rodamoinho, deu meia-volta e se lançou na correnteza.

-           ... pensei que tivesse sido o tipo de menino que entrava e saía de barcos o dia inteiro.

-           Nasci nas montanhas. Fico enjoado só de pisar em grama molhada — informou Cortângulo.

O barco se chocou violentamente contra um tronco de árvore submerso. Uma ondazinha cobriu a proa.

-           Conheço um feitiço contra afogamento - acrescentou ele, desconsolado.

-           Que bom!

-           Só que tem que ser dito em terra firme.

-           Tire as botas — ordenou Vovó.

-           O quê?

 

-           Homem, tire as botas!

Cortângulo se ajeitou no banco.

-           O que está pretendendo? - perguntou.

-           A água tem que estar do lado de fora do barco!

Vovó apontou para a água escura se agitando no fundo da embarcação:

-           Encha as botas e despeje!

Cortângulo assentiu. Parecia-lhe que, nas duas últimas horas, havia sido conduzido sem que tivesse o menor poder de escolha. Por um instante, o arqui-reitor acalentou a sensação, estranhamente reconfortante, de a vida estar além de seu controle e de que ninguém poderia culpá-lo pelo que acontecesse, fosse lá o que fosse. Encher as botas de água enquanto seguia sem rumo na cheia dum rio, à meia-noite, com o que só poderia ser descrito como uma mulher, parecia tão lógico quanto qualquer outra coisa naquelas circunstâncias.

Um belo vulto de mulher, disse uma voz esquecida no fundo de sua mente. Havia algo, na maneira como ela usava a esfrangalhada vassoura para impulsionar o barco pelas águas revoltas, que eriçava partes do subconsciente de Cortângulo há muito esquecidas.

Não que ele pudesse ter certeza em relação ao belo vulto, com toda a chuva, o vento e aquela mania de Vovó: usar o guarda-roupa inteiro de uma só vez. Cortângulo pigarreou. Metaforicamente um belo vulto, concluiu ele.

-           Hã, olhe só - disse. - Isso tudo é muito louvável, mas veja os fatos. Quer dizer, a velocidade da correnteza e tudo mais, entende? A essa altura, a vara já pode estar no mar, a vários quilômetros do litoral. Talvez nunca mais volte. Pode ser até que caia da Borda.

Vovó, que vinha fitando o rio, deu meia-volta.

-           Não lembra mais nada que poderíamos fazer? - perguntou ela.

Por uns instantes, Cortângulo se limitou a jogar água para fora.

-           Não - respondeu afinal.

-           Já ouviu falar de alguém que tenha Voltado?

-Não.

-           Então vale a pena tentar, não é?

-           Não gosto do mar - considerou Cortângulo. - Deveria ser pavimentado. Tem coisas horríveis nas partes mais fundas. Monstros marinhos medonhos. Pelo menos é o que dizem.

-           Continue tirando água, meu jovem, ou ainda vai conferir pessoalmente.

A tempestade oscilava. Estava perdida ali, nas planícies fluviais. Pertencia às altas Ramtops, onde se apreciava uma boa tempestade. Ela ressoou, procurando uma colina para lançar os raios.

A chuva virou aquele tipo de garoa capaz de cair durante dias. Também surgiu uma névoa marinha para ajudá-la.

-           Se tivéssemos remos, se soubéssemos para onde estamos indo — disse Cortângulo.

Vovó não respondeu.

Ele continuou jogando água para fora, e então lhe ocorreu que o debrum de ouro do manto provavelmente nunca mais seria o mesmo. Era bom pensar que talvez um dia isso voltasse a ter importância.

 -          Por acaso, a senhora sabe para que lado fica o Centro? - arriscou ele. - Sei que só estou jogando conversa fora.

-           Procure o lado das árvores que tenha musgo – respondeu Vovó, sem virar a cabeça.

-           Ah — disse Cortângulo.

Ele reparou na oleosidade da água e pensou que águas oleosas poderiam ser aquelas. A julgar pelo cheiro salgado, já estavam na baía.

O que apavorava Cortângulo em relação ao mar era saber que apenas a água estava entre ele e os bichos medonhos que viviam no fundo. Evidentemente ele sabia que a única coisa que o separava, digamos, dos tigres comedores de gente das selvas de Klatch era a distância, mas estava longe de ser a mesma coisa. Os tigres não subiam das profundezas frias com a boca cheia de dentes afiados...

Ele estremeceu.

-           Está sentindo? - perguntou Vovó. - O gosto do ar. Magia! Está vazando de algum lugar.

-           Não é solúvel em água - lembrou Cortângulo.

Ele estalou os lábios uma ou duas vezes. Era preciso admitir que havia de fato um leve sabor na névoa e certa oleosidade na atmosfera.

-           Você é mago - cobrou Vovó, com rispidez. - Não pode chamar a vara?

-           Nunca ninguém levantou essa questão - disse Cortângulo.

- Os magos não costumam jogar fora os bastões.

-           Está aqui em algum lugar - rebateu Vovó. - Ajude a procurar!

Cortângulo soltou um gemido. Havia sido uma noite movimentada e, antes de tentar fazer mais feitiços, precisaria de pelo menos doze horas de sono, várias boas refeições e uma tarde tranqüila na frente da lareira. Estava ficando velho — esse era o problema. Mas fechou os olhos e se concentrou.

Certo, havia mágica ao redor. Existem lugares onde a magia naturalmente se acumula: nos depósitos do transcendente metal octirona, na madeira de algumas árvores, em lagos isolados. E quem entende dessas coisas pode capturá-la e armazená-la. Naquela área havia uma concentração de magia.

-           É forte - avaliou Cortângulo. - Bem forte.

Ele levou as mãos à testa.

-           Está ficando frio - reclamou Vovó.

A chuva insistente já se transformara em neve.

Houve uma súbita mudança no mundo. O barco parou, não com um baque, mas como se o mar de repente tivesse resolvido ficar sólido. Vovó olhou para o lado.

O mar havia ficado sólido. O som das ondas vinha de longe e se afastava cada vez mais.

Ela se inclinou na lateral da embarcação e bateu na água.

-           Gelo — anunciou.

O barco estava parado num mar de gelo. E rangia ameaçadoramente.

Cortângulo assentiu.

-           Faz sentido — observou. — Se eles estão... onde achamos que estão, é muito frio. Frio como a noite entre as estrelas. Então a vara também sente.

-           Isso mesmo - confirmou Vovó, descendo do barco. –Tudo que temos a fazer é achar o meio da superfície gelada, e a vara vai estar lá.

-           Eu sabia que a senhora ia dizer isso. Posso pelo menos calçar as botas?

Os dois avançaram pelas ondas congeladas. De vez em quando, Cortângulo parava a fim de tentar localizar o bastão. Suas vestes congelavam grudadas nele. Os dentes batiam.

-           A senhora não está com frio? - perguntou para Vovó, cujo vestido estalava à medida que caminhavam.

-           Estou com frio - admitiu ela. - Só não estou tremendo.

-           Quando eu era pequeno, tínhamos invernos assim - recordou Cortângulo, soprando os dedos. — É raro nevar em Ankh.

-           Jura? - perguntou Vovó, olhando adiante através da cerração fria.

-           Eu me lembro que tinha neve o ano inteiro nos picos das montanhas. Ah, a temperatura hoje em dia não é como antigamente. Pelo menos, até agora - acrescentou ele, batendo os pés no gelo.

A superfície se partiu, lembrando-lhe que era tudo que havia entre ele e o fundo do mar. Cortângulo bateu outra vez o pé, o mais suavemente possível.

-           Que montanhas eram essas? - indagou Vovó.

-           Ah, as Ramtops. Na direção do Centro. Um lugar chama do Pescocinho Branco.

Os lábios de Vovó se mexeram.

-           Cortângulo, Cortângulo — disse ela, baixinho. – Alguma ligação com o velho Acktur Cortângulo, que morava numa casa grande e antiga ao pé da Montanha Saltando e tinha uma porção de filhos?

-           Meu pai. Como neste disco você sabe disso?

-           Eu cresci lá - respondeu Vovó, resistindo à tentação de simplesmente sorrir. - Num vale próximo. Cabra da Peste. Estou lembrada da sua mãe. Simpática, criava galinhas brancas e marrons. Eu costumava ir lá comprar ovos para minha mãe. Isso foi antes de ingressar na bruxaria.

-           Não me lembro de você - disse Cortângulo. - É claro, faz muito tempo. Sempre tinha uma porção de crianças na casa.

Ele suspirou.

-           É possível que eu tenha puxado seu cabelo uma ou duas vezes. Era o tipo de coisa que eu costumava fazer.

-           Talvez. Lembro de um menininho gordo. Bem antipático.

-           Podia ser eu. Acho que estou me lembrando de uma garota mandona, mas isso foi muito tempo atrás. Muito tempo atrás.

-           Eu não tinha cabelos brancos então — suspirou Vovó.

-           Naqueles dias tudo tinha uma cor diferente.

-           Verdade.

-           Não chovia tanto no verão.

-           O pôr-do-sol era mais avermelhado.

-           Tinha mais gente velha. O mundo era cheio de pessoas idosas - considerou o mago.

-           Sei. Agora está cheio de jovens. Engraçado. Quer dizer, deveria ser o contrário.

 —       Até o ar era melhor. Mais fácil de respirar – acrescentou Cortângulo.

Eles avançavam em meio ao turbilhão de neve, refletindo sobre os curiosos caminhos do tempo e da Natureza.

—        Desde então, já voltou para casa? - quis saber Vovó.

Cortângulo encolheu os ombros.

—        Quando meu pai morreu. É estranho, nunca contei isso a ninguém, mas... bom, lá estavam meus irmãos, porque é claro que sou o oitavo da família, e eles tinham filhos, até netos, mas nenhum deles sabia sequer escrever o próprio nome. Eu poderia ter comprado a aldeia inteira. Me trataram como um rei, mas... quer dizer, já estive em lugares e vi coisas que os deixariam apavorados, enfrentei criaturas mais abomináveis do que poderiam imaginar, sei segredos conhecidos por poucos...

—        Você se sentiu excluído - cortou Vovó. - Não tem nada de estranho nisso. Acontece com todos nós. Foi uma escolha nossa.

—        Os magos jamais deveriam voltar para casa – opinou Cortângulo.

—        Acho que não podem voltar para casa - concordou Vovó. - Sempre digo que não se pode cruzar o mesmo rio duas vezes.

Cortângulo considerou o raciocínio.

—        Acho que está enganada - ele disse. - Devo ter cruzado o mesmo rio, hã, um milhão de vezes.

—        Ah, mas não era o mesmo rio.

—        Não era?

-Não.

Cortângulo encolheu os ombros.

—        Parecia a mesma droga de rio.

—        Não precisa falar nesse tom - reagiu Vovó. - Não sei por que deveria ouvir esse tipo de linguagem de um mago que nem responde as cartas que recebe!

Por um instante, Cortângulo ficou quieto, menos pelo bater desesperado dos dentes.

—        Ah - disse ele. - Ah, entendi. Eram suas?

—        Eram. Assinei no fim. Isso deveria ser uma espécie de pista, não é não?

 -          Tudo bem, tudo bem. Só achei que fosse brincadeira - rebateu Cortângulo, de mau humor.

-           Brincadeira?

-           Não recebemos muitos pedidos de mulheres. Aliás, não recebemos nenhum.

-           Fiquei imaginando por que não me respondiam - lamentou Vovó.

-           Se quer saber, joguei fora.

-           Você poderia pelo menos ter tido a... Ali está!

-           Onde? Onde? Ah, ali.

A névoa se dissipou, e eles viram com maior clareza: uma fonte de flocos de neve, uma coluna ornamental de ar congelado. E abaixo...

A vara não se encontrava presa no gelo, mas tranqüilamente deitada numa poça d'água.

Um dos aspectos singulares do universo mágico é a existência dos opostos. Já foi mencionado que escuridão não é o contrário de luz, mas apenas sua ausência. Da mesma forma, zero graus é apenas ausência de calor. Se quisermos saber o que é frio de verdade —frio tão intenso que a água não consegue nem congelar, mas borbulha pelo avesso - basta olharmos essa poça.

Durante alguns segundos eles olharam em silêncio, esquecidos da briga. Então, devagar, Cortângulo disse:

-           Se botar a mão ali, seus dedos ficam crocantes feito cenouras.

-           Acha que consegue suspendê-la com magia? – perguntou Vovó.

Cortângulo começou a apalpar os bolsos até achar o saco de fumo. Com dedos hábeis, esmigalhou os restos de alguns tocos num papel novo e lambeu as pontas, sem tirar os olhos do bastão.

-           Não — respondeu. - Mas de qualquer jeito vou tentar.

Ele olhou desejoso para o cigarro e meteu-o atrás da orelha.

Estendeu as mãos com os dedos abertos e murmurou algumas palavras de força.

A vara girou na poça e se ergueu suavemente da superfície de gelo, imediatamente transformando-se no centro de um casulo de ar congelado. Cortângulo soltava gemidos: a levitação direta é a mais difícil das magias práticas por causa do eterno perigo dos já bem conhecidos princípios de ação e reação, o que vale dizer: um mago tentando suspender um objeto pesado apenas com a força da mente pode acabar com os miolos nas botas.

-           Consegue botá-lo de pé? - quis saber Vovó.

Com delicadeza, o bastão se virou no ar até estar de frente para Vovó, a alguns centímetros do chão. O gelo reluzia nos entalhes, mas - através das brumas vermelhas da enxaqueca que então lhe surgia diante dos olhos — Cortângulo achou que o bastão parecia fitá-lo. Com ressentimento.

Vovó ajeitou o chapéu e se endireitou.

-           Certo - gritou ela.

Cortângulo vacilou. O tom de voz atravessou-o como uma serra de diamantes. Veio a lembrança da mãe ralhando com ele. Bom, era essa mesma voz, só que refinada, concentrada e afiada, com pontas abrasivas, uma entonação de comando que deixaria qualquer cadáver em pé e pronto a marchar metade do cemitério antes de poder lembrar que estava morto.

Vovó se pôs diante da vara flutuante, quase derretendo a superfície de gelo apenas com o ódio presente em seu olhar.

-           Então esta é a sua idéia de boa conduta? Ficar deitado no mar enquanto as pessoas morrem? Ah, muito bem!

Ela avançou em semicírculo. Para surpresa de Cortângulo, o bastão girou para acompanhá-la.

-           Então jogaram você fora? — continuou Vovó. - E daí? Ela  não passa de uma criança, e mais cedo ou mais tarde as crianças jogam todos nós fora. Que espécie de serviço leal é esse? Não tem vergonha? Ficar de mau humor quando finalmente poderia ser útil.

Ela se inclinou para a frente, com o nariz adunco a alguns centímetros da vara. Cortângulo estava quase certo de que o bastão havia tentado se afastar.

-           Posso dizer o que acontece com varas malvadas? — sussurrou ela. - Se perdermos Esk, posso falar o que vou fazer? Uma vez você se safou da fogueira porque passou a dor para ela. Da próxima vez, não vai ser a fogueira.

A voz de Vovó baixou num murmúrio punitivo.

-           Primeiro vai ser a plaina. Depois a lixa, a verruma e a faca...

-           Calma aí - cortou o mago, com os olhos lacrimejando.

-           ... e o que sobrar vou deixar na floresta para os fungos, bichos-de-conta e besouros. Pode levar anos.

Os entalhes se retorciam. A maioria havia se voltado para trás, longe do olhar da bruxa.

-           Agora - prosseguiu ela - veja o que vou fazer: pegar você, e então voltaremos todos à Universidade. Senão, está aberta a temporada de serras cegas.

Vovó dobrou as mangas e estendeu a mão.

-           Mago - chamou ela. - Vou querer que solte a vara.

Aflito, Cortângulo assentiu.

-           Quando eu disser já! Já!

Cortângulo abriu os olhos outra vez.

Vovó estava com o braço esquerdo estendido à frente e a mão presa à vara.

O gelo explodia em bolhas de vapor.

-           Muito bem - concluiu Vovó. - E, se isso acontecer de novo, vou ficar bem  chateada. Ficou claro?

Cortângulo baixou as mãos e correu até ela.

-           Machucou?

Vovó sacudiu a cabeça.

-           É como segurar gelo quente - explicou. - Vamos lá, não temos tempo para ficar batendo papo.

-           Como vamos voltar?

-           Ah, rapaz. Pelo amor de Deus, tenha mais expediente. Voando.

-           Nisso?

-           Claro. Os magos não voam nos bastões?

-           Não é nada digno.

-           Se eu posso lidar com isso, você também pode.

-           Tudo bem, mas é seguro?

Vovó lhe dirigiu um olhar fulminante.

 - No sentido absoluto da palavra? - perguntou ela. - Ou, digamos, comparado a ficar parado numa crosta de gelo prestes a derreter?

-           É a primeira vez que viajo numa vassoura - Cortângulo disse.

-           Jura?

-           Achei que bastasse sentar em cima e voar - disse o mago.

—        Não sabia que era preciso correr pra cima e pra baixo e gritar com ela.

-           É um truque - disse Vovó.

-           Achei que voasse mais rápido - continuou Cortângulo. -

E, para ser sincero, mais alto.

-           Como assim, mais alto? - indagou Vovó, tentando com pensar o peso do mago no assento traseiro, enquanto os dois seguiam rio acima.

Como todos os passageiros de assento traseiro desde o início dos tempos, ele insistia em se inclinar para o lado errado.

-           Bem, mais por cima das árvores - respondeu Cortângulo, abaixando-se ao sentir um galho lhe arrancar o chapéu.

-           O que está errado na vassoura são seus quilos a mais - rebateu Vovó. - Prefere saltar e ir andando?

-           Pra quê, se meus pés já tocam o chão metade do tempo - ironizou Cortângulo. -Além disso, não gostaria de deixá-la constrangida. Se alguém tivesse me pedido para fazer uma lista dos perigos de voar, sabe, jamais teria me ocorrido mencionar "ter as pernas castigadas por samambaias altas".

-           Está fumando? — perguntou Vovó, olhando irritada para a frente. — Tem alguma coisa queimando.

-           Foi só para me acalmar os nervos, com todos esses mergulhos aéreos.

-           Pois trate de apagar o cigarro agora mesmo. E se segure.

A vassoura deu uma guinada e alcançou a velocidade de um velho fazendo jogging.

-           Senhor Mago.

-Sim?

 

-           Quando falei para segurar...

-           Hum?

-           Não quis dizer aí.

Houve uma pausa.

-           Ah, sim. Entendo. Sinto muito.

-           Não se preocupe.

-           Minha memória já não é o que era... estou lhe dizendo... Não leve a mal.

-           Não levei.

Por um instante, os dois voaram em silêncio.

-           Mesmo assim - disse Vovó - não é nada pessoal, mas acho que prefiro que tire a mão.

A chuva caía nos telhados da Universidade Invisível e jorrava nas calhas onde ninhos de corvos - abandonados desde o verão — boiavam como barcos mal construídos. A água gorgolejava nos condutores enferrujados. Abria caminho sob as telhas e cumprimentava aranhas debaixo dos beirais. Vertia das empenas e formava lagos secretos entre as flechas das torres.

Ecossistemas inteiros habitavam os infindáveis telhados da Universidade. Passarinhos cantavam em selvas minúsculas formadas a partir de caroços de maçã e sementes de ervas, sapos nadavam em calhas superiores e uma colônia de formigas vinha diligentemente criando uma complexa e interessante civilização.

Uma coisa que a água não podia fazer era jorrar das gárgulas ornamentais dispostas em torno dos telhados. O motivo disso era que, ao primeiro sinal de chuva, elas fugiam e se escondiam nos sótãos. Alegavam que ser feio não significa ser também burro.

Chovia a cântaros. Chovia aos borbotões. Chovia a potes. Mas chovia principalmente pelo telhado do Salão Principal, onde o duelo entre Vovó e Cortângulo havia deixado um buraco imenso. Treatle achava que, de algum modo, chovia precisamente nele.

O mago comandava, de cima de uma mesa, as equipes de alunos que retiravam as pinturas e tapeçarias antigas, antes que ficassem ensopadas. Tinha que ser de cima da mesa porque o chão já estava tomado pela água.

 

Não água de chuva, lamentavelmente. Esta era água com personalidade, a distinta originalidade que a água adquire depois de uma longa viagem por campos lodosos. Tinha a textura espessa da autêntica água ankhiana: grossa demais para se beber, fluida demais para se cortar.

O rio havia transbordado. Um milhão de pequenos cursos d'água corriam dele, irrompendo nos porões e brincando de pique debaixo das lajes. De vez em quando havia um estouro distante, quando alguma mágica esquecida num calabouço submerso entrava em curto-circuito e perdia seu poder. Treatle não estava prestando nenhuma atenção às borbulhas e aos sussurros medonhos que escapavam para a superfície.

Pensava outra vez como seria bom ser o tipo de mago que mora numa caverninha longínqua, colhe ervas, tem pensamentos importantes e entende o que as corujas estão dizendo. Mas era provável que a caverna fosse úmida, as ervas venenosas e Treatle jamais tinha certeza sobre exatamente quais pensamentos eram de fato importantes.

Com custo, desceu da mesa e avançou pelas agitadas águas escuras. Bem, havia feito o melhor que podia. Tentara organizar os magos sêniores para consertarem o telhado com magia, mas tinha ocorrido uma briga generalizada depois de uma discussão a respeito dos feitiços que deveriam ser empregados para, finalmente, chegarem ao consenso de que aquilo era trabalho para pedreiro.

Mago é isso aí, pensou de mau humor, ao se esgueirar por entre as arcadas gotejantes: sempre sondando o infinito, mas nunca notando o palpável, principalmente quando o assunto era tarefas domésticas. Nunca tivemos este problema antes da chegada daquela mulher.

Treatle subiu a escada ao clarão de um relâmpago especialmente impressionante. Tinha certeza de que, embora estivesse claro que ninguém poderia culpá-lo, era isso que todo mundo ia fazer. Com tristeza, suspendeu a ponta do manto e torceu-a, depois pegou a bolsa de tabaco.

:. Indescritível.

Era verde e à prova d'água. Isso queria dizer que toda a chuva que havia conseguido entrar não conseguiria sair.

Por fim, encontrou os papéis. Estavam aglomerados num bolo único, como a lendária nota de dinheiro achada nos bolsos traseiros das calças depois de terem sido lavadas, torcidas, penduradas para secar e passadas.

-           Droga - irritou-se.

-           Olhe! Treatle!

Treatle se virou. Ele havia sido o último a deixar o salão, onde alguns bancos já começavam a boiar. Rodamoinhos e borbulhas marcavam as áreas onde a magia vazava dos porões, mas não havia ninguém no recinto.

A não ser, é claro, que uma das estátuas tivesse falado. Eram pesadas demais para serem carregadas. Treatle dissera aos alunos que uma boa lavada não lhes faria mal.

Ele fitou os rostos severos e logo se arrependeu. Às vezes, as estátuas de magos muito poderosos, já mortos, pareciam mais vivas do que qualquer estátua tinha o direito de ser. Talvez tivesse sido melhor ter ficado quieto.

—        Sim? - arriscou, ciente dos penetrantes olhares de pedra.

—        Aqui em cima, imbecil!

Ele olhou para cima. A vassoura descia através da chuva numa série de giros e guinadas. A cerca de um metro e meio da água, perdeu as pretensões aéreas restantes e caiu pesadamente num rodamoinho.

-           Não fique aí parado, idiota!

Treatle espreitou a escuridão.

-           Tenho que ficar parado em algum lugar - defendeu-se.

—        Estou dizendo que é pra você ajudar a gente! – rebateu Cortângulo, erguendo-se das ondas como uma Vênus gorda e irritada. - Primeiro a senhora, é claro.

Ele se virou para Vovó, que vinha tateando a água.

—        Perdi o chapéu - informou ela.

Cortângulo suspirou.

-           Numa hora dessas, isso tem importância?

—        Bruxa precisa de chapéu, senão quem vai saber o que ela é?

- Vovó disse.

Por fim, achou alguma coisa escura e ensopada, gargalhou triunfalmente, despejou a água do interior e enfiou o chapéu na cabeça. A peça havia perdido a armação e tombou sobre um dos olhos.

—        Hum - disse ela, num tom de voz que parecia dizer ao mundo inteiro que tomasse cuidado.

Houve o brilhante clarão de mais um relâmpago, o que demonstra a desenvolvida sensibilidade dos deuses do tempo para a arte dramática.

—        Até que ficou bom - opinou Cortângulo.

—        Desculpe - disse Treatle - mas ela não é aquela b...

—        Não importa - respondeu Cortângulo, tomando a mão de Vovó para ajudá-la a subir a escada.

Ele brandiu a vara.

—        Mas vai contra a doutrina permitir m...

Treatle se deteve e observou Vovó estender o braço e tocar a parede úmida próxima à porta. Cortângulo bateu de leve no peito do colega.

—        Onde é que está escrito? - perguntou ele.

—        Estão na biblioteca — interrompeu Vovó.

—        Era o único lugar seco - explicou Treatle -, mas...

—        O prédio tem medo de tempestade - avisou Vovó. – Seria bom reconfortá-lo.

—        Mas a doutrina... — repetiu Treatle, em desespero.

Vovó já avançava pela porta, com Cortângulo em seu encalço. Ele se virou.

—        Ouviu o que ela disse.

Boquiaberto, Treatle observou o casal se afastar. Quando os passos morreram à distância, permaneceu parado por um instante, pensando na vida, imaginando onde é que havia desandado.

No entanto, não seria acusado de desobediência.

Com muito tato e sem saber exatamente por quê, estendeu a mão e acariciou a parede.

—        Já passou, já passou - murmurou ele.

Por incrível que pareça, sentiu-se bem melhor.

 Ocorreu a Cortângulo que, em seu território, deveria ir na frente, mas Vovó, apressada, não era páreo para nenhum viciado terminal em nicotina. Ele só conseguia manter o ritmo recorrendo a uma espécie de salto de lado.

-           É por aqui - informou, patinhando nas poças.

-           Eu sei. O prédio me disse.

-           É, eu estava mesmo querendo saber mais sobre isso - admitiu Cortângulo. — Porque ele nunca me disse nada, e moro aqui há alguns anos.

-           Já parou para ouvir?

-           Não exatamente - reconheceu Cortângulo. - Não dessa  maneira.

-           Pois então - concluiu Vovó, passando pela cachoeira onde costumava ficar a escada da cozinha (as roupas sujas da senhora Paroníquia jamais seriam as mesmas). -A gente segue o corredor, não é?

Ela disparou por três magos atônitos, surpresos tanto pela presença dela como por causa do chapéu.

Cortângulo avançava arfante logo atrás e só lhe pegou o braço à porta da biblioteca.

-           Olhe - disse ele, aflito. - Sem querer ofender. A senhorita... hã, senhora dona...

-           Acho que agora pode me chamar Esmerelda. Depois de termos partilhado a mesma vassoura e tal.

-           Posso ir na frente? Afinal, é a minha biblioteca - pediu ele.

Vovó se virou - o rosto, uma máscara de surpresa. Então sorriu.

-           É claro. Sinto muito.

-           Para não pegar mal, entende? - desculpou-se Cortângulo.

E abriu a porta.

A biblioteca estava cheia de magos, que cuidam de seus livros como as formigas cuidam de seus ovos e, em tempos de dificuldade, carregam-nos de modo bastante semelhante. A água já chegava até ali e surgia em locais estranhos, por causa dos curiosos efeitos gravitacionais da biblioteca. Todas as prateleiras mais baixas haviam sido esvaziadas, e grupos de magos e alunos empilhavam os volumes nas mesas disponíveis e estantes secas. O ambiente estava cheio do ruído de páginas se agitando, quase suficiente para abafar o furor distante da tempestade.

É evidente que tudo aquilo estava perturbando o bibliotecário, que corria de mago em mago, puxando as barras dos mantos e gritando "ook".

Ele avistou Cortângulo e avançou em sua direção. Vovó jamais vira um orangotango, mas não ia admitir uma coisa dessas. Permaneceu bastante calma diante do homem baixo e barrigudo com braços extremamente compridos e pele tamanho 44 no corpo tamanho 38.

—        Ook - explicou ele. — Ooook.

—        Espero que sim - respondeu Cortângulo, rispidamente.

E agarrou o mago mais próximo, que vinha cambaleando sob o peso de uma dezena de livros mágicos. O homem o encarou como se fosse um fantasma, olhou de esguelha para Vovó e deixou os livros caírem no chão. O bibliotecário suspirou.

-Arqui-reitor? - soltou o mago. - O senhor está vivo? Quer dizer... ouvimos dizer que tinha sido raptado pela... - ele olhou outra vez para Vovó - ... quer dizer, achamos que... o Treatle disse...

—        Oook - gritou o bibliotecário, mandando algumas páginas voltar para dentro das capas.

—        Onde estão Simon e a menina? O que fizeram com eles? - quis saber Vovó.

—        Eles... pusemos ali - disse o homem, afastando-se. - Hã...

—        Mostre onde - ordenou Cortângulo. - E pare de gaguejar, homem de Deus! Parece que nunca viu mulher.

O mago engoliu em seco e assentiu.

—        Claro. E... quer dizer... por favor me acompanhem... hum...

—        Você não ia falar nada sobre a doutrina, ia? – indagou Cortângulo.

—        Hum... não, arqui-reitor.

—        Ótimo.

Eles seguiram o homem que passava por entre os magos. A maioria deles interrompia o que estava fazendo para fitar Vovó.

 -          Já está ficando constrangedor - sussurrou Cortângulo. - Vou ter que declará-la maga honorária.

Vovó continuou olhando à frente, e os lábios mal se mexeram.

-           Faça isso - ameaçou ela - e eu te declaro bruxo honorário.

Cortângulo fechou a boca.

Esk e Simon estavam deitados na mesa de uma das salas de leitura laterais, com meia dúzia de magos a observá-los. Aflitos, os homens se afastaram ao ver o trio se aproximar, seguido pelo bibliotecário.

-           Estive pensando - falou Cortângulo. - Com certeza seria

melhor darmos a vara para o Simon. Ele é mago e...

-           Sobre o meu cadáver - desafiou Vovó. - E o seu também. Essas Coisas estão tirando força dele. Quer dar ainda mais poder a elas?

Cortângulo suspirou. Vinha admirando o bastão; era um dos melhores que já tinha visto.

-           Muito bem. Você está certa, é claro.

Ele se inclinou, depositou a vara sobre o corpo adormecido de Esk e então recuou de maneira dramática. Não aconteceu nada. Um dos magos tossiu, nervoso. Continuou a não acontecer nada. Os entalhes da vara pareciam sorrir.

-           Não está funcionando - alarmou-se Cortângulo. - Está?

-Ook.

-           Espere um pouco - sugeriu Vovó.

Eles esperaram. Do lado de fora, a tempestade soprava forte, tentando suspender os telhados das casas.

Vovó se sentou numa pilha de livros e esfregou os olhos. Cortângulo levou a mão ao bolso em que guardava o tabaco. O mago da tosse nervosa foi conduzido para fora da sala.

-           Ook - disse o bibliotecário.

-           Já sei! - gritou Vovó, fazendo o cigarro já quase enrolado cair numa cascata de tabaco dos dedos combalidos de Cortângulo.

-           O quê?

-           Não está pronto!

 

-           O quê?

-           É óbvio, ela não sabe usar a vara - explicou Vovó, pondo-se em pé.

-           Mas você disse que ela varria o chão e era protegida por... - começou Cortângulo.

—        Nãnãnão - cortou Vovó. - Isso quer dizer que o bastão usa a si mesmo ou usa Esk, mas ela nunca conseguiu usá-lo. Entende?

Cortângulo olhou para os dois corpos deitados.

-           Deveria conseguir. É um autêntico bastão de mago.

—        Ah — disse Vovó. - E por acaso ela é uma autêntica maga?

Cortângulo hesitou.

—        Bem, claro que não. Você não pode nos pedir para declará-la maga. Onde estão os precedentes?

—        Os o quê? - perguntou Vovó, azeda.

—        Isso nunca aconteceu antes.

-           Muitas coisas nunca aconteceram antes. Só nascemos uma única vez.

Cortângulo lhe dirigiu um olhar de súplica.

—        Mas vai contra a d...

Ele começou a dizer "doutrina", mas a palavra terminou em silêncio.

-           Onde está escrito? - indagou Vovó, vitoriosa. - Onde está escrito que mulher não pode ser maga?

Os seguintes pensamentos cruzaram a mente de Cortângulo:

... Não está escrito em lugar nenhum, está escrito em toda parte.

... Mas o jovem Simon parecia dizer que toda parte se assemelha muito a lugar nenhum, e nem dá para notar a diferença.

... Será que quero ser lembrado como o primeiro arqui-reitor que permitiu mulheres na universidade? Por outro lado... eu, com certeza, seria lembrado.

... Ela é uma mulher realmente magnífica quando fica parada desse jeito.

... A vara tem idéias próprias.

... Existe uma espécie de sensibilidade.

... Ririam de mim.

 

... Pode ser que não funcione. ... Pode ser que funcione.

Ela não podia confiar neles. Mas não tinha escolha.

Esk fitou os rostos medonhos a espreitá-la do alto e os corpos desconjuntados, felizmente semi-ocultos.

As mãos dela formigaram.

No mundo das sombras, as idéias são reais. Um pensamento pareceu lhe atravessar os braços.

Era um tipo de pensamento decidido, cheio de energia. Ela riu e afastou os braços. O bastão surgiu brilhando em suas mãos como eletricidade sólida.

Nervosas, as Coisas começaram a trinar, e uma ou duas mais afastadas já recuavam. A criatura que estava segurando Simon soltou-o. Ele tombou para a frente e caiu de mãos e joelhos na areia.

-           Use a vara! - gritou ele. - Isso mesmo! Elas estão com medo! Esk sorriu para ele e continuou examinando o bastão. Pela primeira vez, conseguiu ver o que de fato eram os entalhes.

Simon apanhou a pirâmide do mundo e correu na direção dela.

-           Vamos com isso! - pediu Simon. — Elas estão apavoradas!

-           Quê? - perguntou Esk.

-           Use a vara - impacientou-se o rapaz, estendendo o braço para pegar o bastão. - Ai! A madeira me mordeu!

-           Desculpe - disse Esk. - Do que estávamos falando?

Ela olhou para cima e pela primeira vez viu as Coisas, ávidas, como realmente eram.

-           Ah, delas. Só existem dentro da nossa cabeça. Se não acreditássemos, não existiriam.

Simon olhou as criaturas.

-           Não sei se acredito em você - confessou.

-           Acho que devemos ir para casa — Esk disse. —Já devem estar preocupados.

Ela juntou as mãos e a vara desapareceu. Antes, por um instante, as mãos brilharam como se estivessem em torno de uma vela.

 As Coisas gemeram. Algumas vieram abaixo.

-           O importante em relação à magia é saber não usá-la - explicou Esk, tomando a mão de Simon.

Ele examinou os seres desmoronando à volta e sorriu.

-           Saber não usá-la? - indagou.

É - disse Esk, enquanto os dois seguiam na direção das Coisas. - Experimente só.

Ela estendeu os braços, fez o bastão surgir do nada e ofereceu o objeto ao rapaz. Ele fez menção de pegá-lo, então afastou a mão.

-Ah, não - contestou. -Acho que ela não gosta muito de mim.

-           Se sou eu que estou dando, não tem problema. A vara não pode fazer nada contra isso - Esk disse.

-           Para onde ela vai

-           Acho que vira só uma idéia de si mesma.

Ele estendeu a mão outra vez e fechou os dedos em torno da madeira reluzente.

-           Certo - disse, e suspendeu a vara na pose clássica de mago vingativo. - Vou mostrar a elas!

-           Não, errado.

-           Como assim, errado? Eu tenho a força!

-           Elas são meio que... reflexos nossos - disse Esk. – Não podemos vencer nossos reflexos, são tão fortes quanto nós. É por isso que elas se aproximam quando começamos a usar magia. E não se cansam. Elas se alimentam da magia, então não dá para derrotá-las com magia. Não, o negócio não é... não usar a magia porque não podemos, o que não adianta nada. Mas não usar a magia porque podemos, isso deixa as Coisas irritadíssimas. Elas detestam. Se parássemos de usar a magia, morreriam.

Na pressa de fugir, as criaturas caíam umas sobre as outras. Simon olhou para a vara, depois para Esk, então para as Coisas e de volta para a vara.

-           É preciso refletir muito a esse respeito - disse, sem muita certeza. - Eu gostaria de apurar isso melhor.

-           Acho que vai se sair muito bem.

-           Afinal, você está dizendo que o poder verdadeiro é quando atravessamos a magia e saímos do outro lado.

-           Mas funciona, não é?

Agora eles já estavam sozinhos na planície. As Coisas não passavam de vultos à distância.

-           Será que é isso que chamam criar magia? - perguntou

Simon.

-           Não sei. Talvez.

-           Eu gostaria mesmo de apurar isso melhor - repetiu Simon, virando e revirando o bastão. - Podemos organizar experimentos em que a magia não seja usada. Podemos não desenhar o octograma no chão, não invocar todo tipo de coisas e... fico nervoso só de pensar!

-           Mas eu quero pensar em como voltar para casa - Esk disse,olhando para a pirâmide.

-           Bom, essa é a minha idéia do mundo. Devo saber achar a saída. Como é que você fez aquele negócio com as mãos?

Ele juntou as mãos. A vara escorregou brilhando entre os dedos e desapareceu. Simon sorriu.

-           Muito bem. Agora tudo que temos a fazer é procurar a Universidade...

Cortângulo acendeu o terceiro cigarro na ponta do segundo. Aquele último muito devia às forças criativas da energia nervosa, parecia um camelo sem pernas.

Ele já observara o bastão se dirigir de Esk para Simon.

Agora a vara havia voltado a flutuar no ar.

Outros magos se aglomeravam na sala. O bibliotecário se achava sentado debaixo da mesa.

-           Se pelo menos a gente soubesse o que está acontecendo —

disse Cortângulo. - O que me mata é o suspense.

-           Homem, pense positivo - rebateu Vovó. - E apague esse

maldito cigarro! Não consigo imaginar ninguém que pudesse

querer voltar para uma sala que fede a lareira.

Todos os magos ali reunidos se viraram para Cortângulo, em expectativa.

Ele tirou a bituca acesa da boca e, com o olhar fixo que nenhum mago ousou sustentar, esmagou-a com o pé.

-           Já era hora de eu parar com isso — disse. - Isso também serve para vocês. Às vezes, esse lugar fica pior do que uma lareira

Então notou a vara. Ela estava...

A única maneira de Cortângulo descrever o que vinha acontecendo era que ela parecia estar voando muito rápido enquanto permanecia exatamente no mesmo lugar.

Gases irrompiam do bastão e desapareciam - se é que eram gases. A vara resplandecia feito um cometa arquitetado por um inepto criador de efeitos especiais. Faíscas coloridas saltavam e sumiam no ar.

O objeto também vinha mudando de cor. Começou com um vermelho fosco e depois, avançando por todo o espectro, ficou de um roxo ofensivo. Raios de fogo branco coruscavam na superfície.

(Ele pensou que deveria haver um termo para palavras que soam como as coisas deveriam soar, se produzissem som. A palavra "luzir" de fato brilha, oleosa. E se havia uma palavra que soava exatamente como faíscas avançando em papel queimado ou como as luzes das cidades avançariam pelo mundo, caso toda a civilização humana se apinhasse numa única noite, era "coruscar".)

Cortângulo sabia o que estava prestes a acontecer.

—        Cuidado - murmurou. - Ela vai...

No silêncio absoluto - o tipo de silêncio que absorve o som e abafa os ruídos - a vara ficou toda octarina.

A oitava cor, produzida pela luz que incide sobre um campo mágico intenso, brilhou em corpos, estantes e paredes. As outras cores esmaeceram e se fundiram, como se a luz fosse um copo de gim derramado numa pintura do mundo. As nuvens sobre a Universidade reluziram, torceram-se em imagens, tomaram formas inusitadas e fascinantes, depois se afastaram.

Alguém que observasse acima do Discworld teria visto uma pequena extensão de terra próxima ao Mar Círculo cintilar como uma pedra preciosa durante vários segundos e então se apagar.

O silêncio da sala se quebrou quando a vara caiu sobre a mesa.

Alguém disse "Ook", bem baixinho.

 

Cortângulo afinal se lembrou de como usar as mãos e suspendeu-as até onde esperava se encontrarem os olhos. Tudo era um negrume só.

-Tem... alguém aí? - perguntou ele.

-           Meu Deus, não sabe como fico feliz de ouvir isso – disse outra voz.

De repente, o silêncio se encheu de sussurros.

-           Ainda estamos onde estávamos?

-           Não sei. Onde estávamos?

-           Aqui, eu acho.

-           Pode estender o braço?

-           Meu bom homem, só se eu tiver certeza do que vou tocar - respondeu a inconfundível voz de Vovó Cera do Tempo.

-           Todo mundo experimenta estender o braço - pediu Cortângulo, e sufocou o grito quando uma grande mão, parecendo luva de couro quente, lhe agarrou o tornozelo.

Ouviu-se um breve "ook", que a um só tempo conseguiu transmitir satisfação, alívio e a alegria de tocar um igual ou, nesse caso, semelhante.

Houve um estalido e um abençoado fulgor de luz vermelha, quando um mago, no canto extremo da sala, acendeu o cigarro.

-           Quem fez isso?

-           Desculpe, arqui-reitor. Força do hábito.

-           Fume o que quiser.

-           Obrigado, arqui-reitor.

-           Acho que já estou conseguindo ver o contorno da porta - falou outra voz.

-Vovó?

-           É, estou vendo o...

-Esk!

-           Estou aqui, Vovó.

-           Senhor, posso fumar também?

-           O garoto está com você?

-           Está.

-Ook.

-           Estou aqui.

 -          O que se passa?

-           Parem todos de falar!

A luz comum - lenta e agradável aos olhos - voltou à biblioteca.

Esk se sentou, derrubando a vara. O objeto rolou para debaixo da mesa. Ela sentiu alguma coisa lhe escorregar sobre os olhos.

-           Só um minuto - interrompeu Vovó, correndo em sua direção.

Segurou a menina pelos ombros e fitou-a nos olhos.

-           Seja bem-vinda - disse, e lhe beijou o rosto.

Por fim, Esk ergueu o braço e sentiu um negócio duro sobre a cabeça. Pegou a peça para examinar.

Era um chapéu pontudo, ligeiramente menor do que o de Vovó, mas azul-claro e com duas estrelas prateadas pintadas.

-           Um chapéu de mago? - surpreendeu-se.

Cortângulo deu um passo à frente.

-           Ah, sim - respondeu, e pigarreou: - Acontece que achamos... pareceu que... enfim, quando consideramos o assunto...

-           Você é maga - resumiu Vovó. - O arqui-reitor mudou a doutrina. Na verdade, foi uma cerimônia bastante simples.

-           A vara está em algum lugar por aqui - lembrou Cortângulo.

— Eu vi quando caiu... ah.

Ele se levantou com o bastão na mão e mostrou-o a Vovó.

-           Achei que tivesse umas marcas - objetou. - Isto aqui parece só um pedaço de pau.

E era fato. A vara parecia tão ameaçadora e poderosa quanto um graveto qualquer.

Esk revirava o chapéu como a pessoa que, depois de abrir o famoso pacote maravilhosamente embrulhado, depara-se com sais de banho.

-           É bonito - avaliou, sem muita convicção.

-           Não tem mais nada a dizer? - indagou Vovó.

-           E pontudo.

De alguma forma, ser mago não parecia nada diferente de não ser mago. Simon se aproximou dela:

 -          Lembra? É preciso ter sido mago. Então podemos começar a procurar do outro lado. Como você falou.

Eles se entreolharam e sorriram.

Vovó fitou Cortângulo. Ele deu de ombros.

-           Não entendi - disse. - Menino, o que aconteceu com a gagueira?

-           Parece que sumiu, senhor - respondeu Simon, radiante. -

Devo ter deixado para trás em algum lugar.

O rio ainda estava barrento e volumoso, mas pelo menos parecia outra vez um rio.

Estava excepcionalmente quente para fim de outono, e em toda a parte mais baixa de Ankh-Morpork o vapor se desprendia dos milhares de tapetes e cobertores estendidos para secar. As ruas se achavam tomadas pelo lodo, o que, de maneira geral, era um avanço - o impressionante acervo municipal de cachorros mortos de Ankh-Morpork tinha sido carregado para o mar.

O vapor também se desprendia das lajes da varanda particular do arqui-reitor e da chaleira sobre a mesa.

Vovó se recostou na antiga cadeira de palhinha e deixou o calor lhe envolver os tornozelos. Observava com preguiça uma colônia de formigas urbanas - havia tanto tempo moravam embaixo da Universidade que os altos níveis de magia experimental tinham para sempre alterado seus genes - conduzindo um torrão de açúcar molhado, da tigela até um minúsculo carrinho. Outro grupo estava construindo um guindaste de palitos de fósforo na beira da mesa.

Vovó poderia, ou não, gostar de saber que uma das formigas era Drum Billet, que finalmente decidira dar outra chance à Vida.

-           Dizem - começou ela - que, se encontramos uma formiga

no Dia do Réveillon dos Porcos, o resto do inverno vai ser ameno.

-           Quem diz isso? - perguntou Cortângulo.

-           Em geral quem está errado - respondeu Vovó. - Sempre

tomo nota no meu Almanacke. Confiro. A maioria das coisas que

as pessoas dizem está errada.

 -          Como "santo de casa não faz milagre" - sugeriu Cortângulo.

- E "cachorro que ladra não morde".

-           Morde e arranca pedaço - disse Vovó.

Agora o torrão de açúcar já chegava ao guindaste, e algumas formigas prendiam-no a um bloco microscópico.

-           Não entendo metade do que diz Simon - lamentou Cortângulo. - Embora alguns alunos estejam bastante animados com as aulas.

-           Entendo o que Esk fala, só não acredito - Vovó disse. – A não ser aquela parte sobre os magos precisarem de coração.

-           Ela também disse que as bruxas precisam de cérebro - rebateu Cortângulo. - Quer um pedaço de bolo? Está molhadinho.

-           Ela falou que, se a magia nos dá o que queremos, não usar a magia pode nos dar o que precisamos - lembrou Vovó, com a mão parada em cima do prato.

-           Foi o que o Simon disse. Mas não entendo. Magia é para usar, não guardar. Sirva-se.

-           Magia além da magia - ironizou Vovó.

Ela pegou o bolo e passou geléia. Depois de um instante, também passou creme.

O torrão de açúcar caiu no chão e foi imediatamente cercado por outro grupo de formigas, preparadas para levá-lo até uma comprida fileira de formigas vermelhas do jardim dos fundos, usadas como mão-de-obra escrava.

Cortângulo se ajeitou na cadeira, que rangeu.

-           Esmerelda - começou ele. - Já tem um tempo que venho querendo perguntar se...

-           Não — cortou Vovó.

-           Eu só ia dizer que estamos pensando em abrir mais vagas para meninas na Universidade. Para experiência. Quando resolvermos o problema do sistema hidráulico - concluiu Cortângulo.

-           Essa é uma decisão que só cabe a vocês, é claro.

-           E, eu pensei que, como parece que estamos destinados a virar um estabelecimento de educação associada, achei que, quer dizer...

-Hã?

 -Talvez você quisesse se tornar, quer dizer, aceitar uma Cadeira.

Ele se recostou. O torrão de açúcar passava por debaixo de sua cadeira num engenho de palitos de fósforos. Quase era possível ouvir os gritos do supervisor das formigas escravizadas.

-           Humm - considerou Vovó. - Não vejo por que não. Sempre quis uma daquelas grandonas de vime, sabe? Com guarda-sol no alto. Se não for problema.

-           Não é exatamente disso que eu estava falando – esclareceu Cortângulo, e tratou de acrescentar: - Embora isso também possa ser providenciado. Não, é o seguinte: será que você gostaria de vir ensinar os alunos? De vez em quando?

-           Ensinar o quê?

Cortângulo procurou um tema.

-           Ervas? - arriscou. - Aqui não somos muito bons em ervas. E cabeçologia. Esk me falou bastante da cabeçologia. Parece fascinante.

Com um puxão final, o torrão de açúcar desapareceu na fenda de uma parede próxima. Cortângulo olhou naquela direção.

-           São viciadas em açúcar - disse. - Mas não temos coragem de fazer nada contra elas.

Vovó franziu as sobrancelhas e então assentiu, fitando por sobre a cidade o brilho distante da neve nas Ramtops.

-           É muito longe - observou ela. - Não posso ficar indo e voltando a essa altura da vida.

-           Podemos comprar uma vassoura melhor para você - ofereceu Cortângulo. - Uma que não precise ser empurrada. E você poderia, poderia ter um apartamento aqui. E todas as roupas velhas que quiser - acrescentou, usando sua arma secreta.

Ele, sabiamente, havia investido algum tempo conversando com a senhora Paroníquia.

-           Mmph - soltou Vovó. - Seda?

-           Preta e vermelha — provocou Cortângulo.

A imagem de Vovó vestida de seda preta e vermelha lhe cruzou a mente, e ele mordeu o bolo com vontade.

-           E talvez no verão possamos levar alguns alunos ao seu chalé

— prosseguiu Cortângulo. — Para cursos extracurriculares.

-           Quem é Esteia Curriculares?

-           Estou dizendo que eles podem aprender ainda mais coisas.

Vovó considerou a questão. Com certeza a latrina precisava

de um bom reparo antes que o tempo ficasse quente demais e, até a primavera, o abrigo das cabras estaria pronto para a limpeza. Cavar o canteiro de Ervas também era um serviço que precisava ser feito. O teto do quarto estava uma tristeza, e algumas telhas tinham que ser consertadas.

-           Coisas práticas? - perguntou Vovó, meditativa.

-           Com certeza - respondeu Cortângulo.

 

-           Mmph. Bom, vou pensar no assunto - prometeu Vovó,com consciência de que não se devia ir longe demais no primeiro encontro.

-           Aceita jantar comigo hoje à noite e me dar a resposta? -

convidou Cortângulo, com os olhos brilhando.

-           O que tem para comer?

-           Carne fria e batatas.

A senhora Paroníquia fizera muito bem seu trabalho.

E assim foi.

Esk e Simon desenvolveram um tipo completamente novo de magia que ninguém conseguia entender, mas que, mesmo assim, era considerado importante e, de certa forma, tranqüilizador.

Talvez mais importante que tudo isso seja o fato de as formigas terem usado todos os torrões de açúcar que conseguiram roubar para construir uma pequena pirâmide, na qual sepultaram, com pompa e circunstância, o corpo mumificado da rainha. Na parede de um minúsculo quarto escondido, escreveram - nos hieróglifos dos insetos - o verdadeiro segredo da longevidade.

Elas, de fato, haviam resolvido o enigma. É provável que a descoberta viesse a ter implicações significativas para o universo, caso não viesse a ser completamente apagada na enchente seguinte.

 

                                                                                            Terry Pratchett  

 

                      

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