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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DUAS HORAS PARA SE AMAREM / Heinz G. Konsalik
DUAS HORAS PARA SE AMAREM / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DUAS HORAS PARA SE AMAREM

 

Ela ouviu‑o chegar, esmagou imediatamente o cigarro no pequeno cinzeiro marroquino e deitou‑se para trás, com os braços cruzados debaixo da nuca.

As cortinas duplas cor de laranja estavam corridas... A luz solar que entrava, suavizada, no interior do quarto, espalhava um clarão ensanguentado na pele nua.

Dobrou um pouco a perna esquerda e fixou a Porta com um olhar cheio de expectativa.

Lá fora, a voz dele soava, imprecisa. Tinha parado, no longo corredor, para falar com Albertine Megges, tal como acontecia sempre que se preparava para entrar naquele quarto da Pensão Sonneck.

Não era por cortesia que se demorava alguns minutos com a hospedeira: tratava‑se de um sentimento de vergonha, de culpa, que se traduzia por palavras acompanhadas de uma nota, que Albertine encontraria, em seguida, na algibeira do seu avental, debaixo do telefone ou no estofo das cadeiras do corredor ‑ emplastro destinado a consolidar o seu silêncio, a sua cegueira. últimas manifestações de uma consciência burguesa.

Margot Grossmann deu uma gargalhada de troça. Espreguiçou‑se ao sol filtrado pela cortina alaranjada, passou as mãos pelo corpo liso e esbelto, depois desgrenhou os cabelos, de um loiro acobreado. Ele gostava daquele aspecto selvagem, daquela negligência primitiva, que o transportava para além da estreiteza da sua vida quotidiana.

Ela imaginava‑o agora no corredor: elegante, não muito esguio mas nada atarracado, bem de carnes, tal como se tinha qualificado a si mesmo, uma vez, por brincadeira. Os olhos azul ‑acinzentados olhavam para a senhora Megges enquanto trocava com ela frases de uma amabilidade convencional, preocupando‑se com o reumatismo do joelho de Albertine e recomendando‑lhe um novo linimento. E a senhora Megges respondia, encantada:

‑ Vou mandá‑lo buscar à farmácia imediatamente, senhor Zumbach: um reumatismo desta espécie é terrível, martiriza as minhas articulações... à noite não posso estender a perna, tão mal me sinto...

Passos. A mão pousou no fecho da porta... Agora, a voz dele soava precisa:

‑ Pedirei um conselho ao meu médico de família, senhora Megges: na próxima sexta‑feira, já lhe posso indicar um bom medicamento...

Uma tossidela.

Margot deitou uma olhadela ao relógio de pulso... Era tudo o que tinha em cima dela, no entanto tirou‑o também e colocou‑o na mesa‑de‑cabeceira.

Meio‑dia e quinze. já um quarto de hora de felicidade desperdiçada.

"Ele tem escrúpulos demais", pensou. "Fala, fala, para se tranquilizar. É sempre assim de cada vez, antes de se libertar de tudo neste quarto para se tornar um outro homem. Não mais o marido que engana a mulher, que seduziu a esposa do seu melhor amigo, que se introduz em segredo na Pensão Sonneck e se desembaraça, com a roupa, da personalidade do famoso arquitecto, da marca que a sociedade lhe impôs. Aqui, neste quarto, renasce duas vezes por semana, à terça e à sexta‑feira, do meio‑dia às duas horas da tarde."


Margot Grossmann voltou a deitar‑se, com os braços estendidos, enquanto a porta se abria e se fechava sem ruído.

Heinrich Zumbach, parado durante um momento no enquadramento da porta, contemplou Margot em silêncio.

o seu corpo brilhava no sol alaranjado, era tão bela que o fazia perder o fôlego. A perfeição deixava‑o mudo... Sentia‑se capitular, abdicar da vontade.

‑ Bom dia, deusazinha ‑ disse Zumbach por fim.

Aproximou‑se, sentou‑se à beira da cama e meteu as mãos pelos cabelos desgrenhados.

‑ Bom dia, ursozinho!

Aproximou a cabeça e beijou‑o com a paixão com que ele sonhava nos dias de "repouso".

experimentou sob o deslizar dos seus dedos a maciez do belo corpo dela e sentiu que a sua própria metamorfose começava.

‑ Estás cada vez mais bonita ‑ disse‑lhe, com uma voz enrouquecida. ‑ Tenho medo!

‑ De mim?

Margot riu e as suas longas pernas envolveram‑lhe a cintura.

‑ Um dia, farei a figura de um reles macaco ao pé de ti. É inquietante como és bonita.

Passou a camisa por cima da cabeça e atirou‑a para os pés da cama.

‑ o que me consola é que os outros homens parecerão repugnantes junto de ti!

‑ De quanto tempo dispões? ‑ perguntou ela.

‑ Precisamente de duas horas! Sabe‑lo bem.

‑ Sim, e fico doente antes mesmo de entrar

neste quarto: o amor cronometrado como uma refeição na cantina! Duas horas de "íntervalo para o almoço"... Drring!... Eis a campainha que soa, toda a gente no seu lugar, boca limpa, cospe‑se nas palmas das mãos, e toca a comer! Havia outra vez muitas migalhas de pão nos croquetes de carne, não havia? Karl? E para beber! Que vinagre! É preciso lambermos as botas ao cozinheiro da cantina! Ou então fazermos greve. Empanturrarmo‑nos assim, é um "intervalo para almoço" perdido, não é? Karl?...

Ela levantou os joelhos e fechou‑os nos braços, apoiando neles o queixo, com o olhar cravado em Zumbach, enquanto ele acabava de se despir, e, preocupado com os vincos das calças, as colocava nas costas de uma cadeira.

‑ Amo‑te, meu ursinho ‑ disse ela muito baixo. De repente, a sua voz tinha inflexões diferentes, quase infantis: ‑ Amo‑te de verdade, não só porque o amor é bom, como uma excelente sanduíche ou uma taça de champanhe... Não, amo‑te com todo o meu ser. Detesto este jogo de escondidas, esta "pensão familiar", este quarto, os passos deslizantes, discretos, da senhora Megges, as mentiras em casa, a comédia que temos de representar quando nos vemos fora deste refúgio, a hipocrisia, quando beijo a tua mulher na cara e tu apertas Benno contra o teu coração, a fim de demonstrares a vossa cordial amizade. Como tudo isto é nojento! Porque não podemos amarmo‑nos e reconhecê‑lo face ao mundo inteiro?

‑ Tínhamos resolvido não voltar a falar nisso, Margot.

Zumbach agarrou‑a pelos ombros e puxou‑a contra si.


o corpo de Margot deslizou debaixo do seu e ele sentiu, primitivo e violento, o desejo dela por ele. Os grandes olhos verdes, debaixo dos cabelos emaranhados, tinham‑se tornado mais brilhantes, mais escuros. Adquirira esta experiência ao longo de vários "descansos para o almoço". A sua respiraÇão acelerou‑se.

‑ Tu és a minha deusa! ‑ disse, com uma voz rouca. ‑ Uma deusa do amor... aos deuses pertence o infinito...

Eram as palavras às quais ela não sabia responder, o que acontecia muitas vezes quando se encontrava com ele.

No arrebatamento no seu abraço, ela deixou‑se

cair para trás e o sol cor de laranja explodiu ao mesmo tempo que o universo, numa sensação de prazer que nenhumas palavras podiam explicar.

Era quase uma e meia quando Margot Grossmann começou a respirar de uma forma estranha nos braços de Zumbach. Parecia um ligeiro estertor, entrecortado por uma tentativa de retomar a respiração, que soava como um suspiro. Qualquer coisa lhe asfixiava a garganta.

Os seus grandes olhos tomaram uma espécie de fixidez, tornaram‑se estranhos... o medo gritava no seu olhar misturado com um terrível pressentimento. o corpo tremia ainda sob as ondas ardentes do prazer, a que esta sensação esmagadora, desconhecida, se misturava já. Zumbach não o notou imediatamente. A sua embriaguez era absoluta, o seu céu irradiava mil fogos crepitantes.

E o grito de Margot, que devia ter sido um grito mas que não passou de um suspiro, não o devolveu à realidade.

‑ Como é curioso... Heinrich... não tenho mais ar, Heinrich... Ursinho... Eu... Medo... Medo... - Tentava afastar‑se dele, a fim de se debater, de gritar mais forte, mas os seus membros eram de chumbo e a sua voz era abafada como por camadas de algodão.

Uma vez ainda, ela empinou‑se, resistiu a qualquer coisa de desconhecido em si mesma e, com uma acuidade nunca conhecida, sentiu o contacto das mãos dele, dos seus lábios quentes, do seu corpo e do seu olhar mergulhado nos olhos dela, cujo êxtase lhe pareceu a própria expressão da crueldade, até que tudo se extinguiu no dilaceramento profundo de uma picada tão fulgurante que a respiração dela parou.

Heinrich Zumbach só notou a mudança de Margot quando, querendo retomar o fôlego, se imobilizou. Notou a falta do abraço feroz de Margot, durante aqueles momentos, tal como o cruzar brusco das pernas sobre as costas dele, acompanhado por um riso arrulhador, através do qual ela proclamava a sua superioridade. Agora, ela continuava estendida, com os olhos fechados, completamente calma, com o rosto descontraído e os lábios entreabertos.

Zumbach, respirando de forma ofegante, acariciou‑lhe a face e deu‑lhe um beijo. Os lábios dela estavam estranhamente frios e ele já ia dizer: "Minha querida, hoje custas mais a degelar que um icebergue!, quando os braços dela se desprenderam dele, deslizaram e caíram a seu lado na cama. De repente, tinha ficado livre do abraço dela. Lentamente, o queixo dela descaiu. Os lábios arroxearam.

Zumbach não percebia ainda o que se tinha passado.

Sentou‑se, acariciou os seios dela e riu.


‑ Acaba com essa brincadeira! ‑ disse, resPirando profundamente. "Um homem de quarenta e cinco anos precisa de facto de ter muito fôlego para amar uma mulher como Margot", pensou. "Mas fica indizivelmente sedutor ao deixar‑se vencer por ela! " ‑ Vamos, não finjas que és a vencida, triunfaste como sempre...

Margot Grossmann não se mexeu. Apenas a sua face mudou de novo. Os traços acentuaram‑se, como que minguados, emaciados.

Zumbach passou as duas mãos pelo rosto, depois esfregou no lençol as palmas cobertas de suor.

‑ Margot ‑ voltou ele a dizer ‑ que quer isto dizer? Pára, não gosto deste jogo. É macabro. Silêncio.

o corpo radioso, banhado pela claridade alaranjada, não se mexeu. Estava frio quando Zumbach o tocou e depois o sacudiu.

‑ Meu Deus! ‑ balbuciou Zumbach, removendo Margot. Depois tomou a cabeça dela entre as mãos e, levantando‑a para si, cobriu‑a de beijos.

‑ Meu Deus ... não é verdade! Não pode ser... É impossível ...

Lutava contra a verdade, porque ela era incompreensível, incomensurável nas suas repercussões destruidoras.

‑ Margot! Margot!... o que é que tu tens? Eu... Eu...

Gaguejava, os pensamentos misturavam‑se‑lhe, o pânico avassalava‑o.

Absurdamente ‑ sabia‑o ‑, pôs‑se a massajar‑lhe o coração, a insuflar‑lhe ar nos pulmões, tal como se faz com os afogados aos quais se tira a água que penetrou nos brônquios.

Abriu‑lhe a boca e tentou praticar a boca‑a‑boca, mas conseguiu apenas um beijo ofegante, sem parar de lhe sacudir o corpo, de o voltar, de o apertar contra si. Finalmente, tremeu de horror ao verificar que cada vez arrefecia mais e mais, enquanto os membros se tornavam rígidos.

Então, como que espancado, sentou‑se perto de Margot, incapaz de um pensamento claro. Mecanicamente, foi tomar duche na cabina de duche que se encontrava no quarto, depois vestiu‑se, atirou sobre a Margot a coberta acolchoada e olhou‑se fixamente no grande espelho colocado por cima do lavatório. Os seus olhos estavam marcados, por baixo, por profundas olheiras devidas a este incidente, mas o seu olhar continuava vazio, desamparado.

"Morreu!" pensava ele. "Margot morreu! No quarto de uma casa de passe dos arredores. Está ali deitada, queimada pelo fogo da sua paixão, e agora vai causar o desabamento de um pequeno mundo burguês e tranquilo; o que nunca teria conseguido durante a sua existência, conseguirá na morte! Irei encontrar‑me com Benno Grossmann e terei de lhe dizer: Benno, a tua mulher morreu, hoje, à uma e meia, nos meus braços. Neste momento, podes abater‑me, mas Margot era minha amante. Desde há seis meses, todas as terças e as sextas, nos encontrávamos naquela pensão... durante duas horas, durante a hora do almoço. A ti, dizia‑te que ia ao cabeleireiro... E toda a família se habituou a isso, todos sabiam: às terças e às sextas, a Margot ia ao cabeleireiro. Era uma instituição insuspeita. Mas era comigo que ela se ia encontrar, Benno, ela enganava‑te comigo.


E à sua mulher, Louise, teria de dizer: "A MargOt morreu, Louise. Era minha amante, tu nunca desconfiaste porque quando estávamos todos juntos sabíamos representar uma espantosa comédia. Por aqui, por ali, um beijo roubado... não éramos excelentes amigos? Sei que o teu instinto fez com que nunca gostasses dela, e não só por ela ser a segunda mulher de Benno e vinte e um anos mais nova do que ele. Não, tu adivinhavas o perigo latente, reconhecias a beleza tirânica do seu corpo. Mas nunca te terá vindo à cabeça que eu... E agora? Será mesmo preciso que tudo acabe para nós?"

Zumbach engoliu dificilmente a saliva e afastou‑se do espelho.

Os seus pensamentos tornavam‑se mais livres, mais frios. Neste momento, era capaz de lançar um olhar para o corpo tapado, estendido ao comprido, sem se sentir tomado pela angústia e pelo pânico. Lentamente, avançou para a cama e olhou para o relógio de pulso.

Tinham passado duas horas. Tinha de telefonar para o atelier, para dizer que já não voltava hoje. Tinha muitas desculpas plausíveis ao seu dispor: fiscalização das obras em actividade, encontro com um novo empreiteiro, visita a uma fábrica de materiais de construção, escolha dos pavimentos de azulejos da Igreja da Ressurreição, na Hallmannstrasse... Um arquitecto tem mais de cem motivos para justificar a sua ausência.

Zumbach voltou para diante do espelho, passou mais uma vez a mão pela cabeleira, perfeitamente penteada, com um ligeiro reflexo prateado e saiu do quarto.

No corredor, voltou‑se, dirigiu‑se para o telefone e marcou o número do seu atelier. Fritz Bramske, o seu mais antigo colaborador, soube que o seu patrão tinha ido de carro a Neuss, a fim de inspeccionar um terreno oferecido para a construção de um complexo industrial.

‑ Um bom negócio, Brannske ‑ concluiu Zumbach, com uma voz calma. ‑ É pura especulação. Este terreno para construir está situado numa região que nos próximos cinco anos despertará o mais vivo interesse.

"Eis um bom álibi", pensou Zumbach ao desligar. "Neuss... Ninguém poderá ter notado se ali fui de facto, porque quem pode provar que viu um homem a atravessar um terreno vago?"

Albertine Megges, ao sair dos seus aposentos, avançava para ele. Não era seu hábito ver partir os clientes que, durante duas horas, ocupavam um quarto em casa dela. Vivendo desses alugueres, temia embaraçá‑los. A sua reputação, entre os senhores que frequentavam a sua casa, assegurava‑lhe a melhor Publicidade, atraía continuamente novos clientes discretos, generosos, para os quais ela representava uma conspiradora cúmplice. Pagavam bem, não preenchiam nenhuma ficha de entrada, o que evitava que as Somas que ela recebia fossem colectadas. à noite, a Pensão Sonneck só estava semiocupada, pelo facto de se achar muito longe do centro da cidade, mas à hora do almoço não havia um quarto livre.

Albertine Megges não era a única a ter o recorde dos alugueres... nos pequenos hotéis e pensões dos arredores das grandes cidades, os quartos desocupados são uma raridade à hora do almoço.

‑ Está na hora, senhor Zumbach... ‑ disse‑lhe Albertine Megges com a familiaridade de uma confidente. ‑ Já passaram duas horas bem passadas! Quis bater à porta, mas não me atrevi.

Não aludia a Margot. Esta dormia ainda uma hora depois da partida de Zumbach, bebia um café forte regado com conhaque, e depois dizia: "Até sexta, minha querida Albertine", ou "Até terça!" Uma gentil mulherzinha. A senhora Megges evitava pensar no lado moral das situações.

Zumbach apertou entre os dedos a mola da gravata e fez‑lhe sinal para se aproximar.


Pôs um dedo nos lábios enquanto a senhora Megges se aproximava, intrigada, depois abriu a porta e empurrou‑a para o interior do quarto. Disfarçava ainda com toda a altivez o espectáculo daquela que repousava no leito.

‑ Senhora Megges ‑ começou Zumbach com voz enrouquecida ‑, suplico‑lhe neste momento... ajude‑me... não grite... aguente o choque... Colo‑lhe uma nota de cem marcos à boca se conseguir calar‑se...

E quando viu os olhos da mulher abrirem‑se muito, deixou cair pesadamente a cabeça, cerrando os punhos um contra o outro:

‑ Sim, passou‑se qualquer coisa... de terrível, de imprevisível. Margot... quero dizer à senhora... - Engoliu o nome e deu um passo para o lado. Albertine Megges observou com os olhos parados a forma deitada sob a coberta. o terror de todos os hospedeiros que alugavam quartos ao dia insinuava‑se nela: a morte numa cama sua! Tinha lido e ouvido contar acidentes como aquele. Nos hotéis, não tinham qualquer importância, chamava‑se a polícia e o carro mortuário, o morto era discretamente encaminhado através de uma porta secreta que abria para o exterior. Mas ali, era um maldito problema, uma enorme e sórdida história.

Uma mulher desconhecida nua... um amante... nenhuma ficha preenchida... alcovitice, para falar francamente... Isso podia custar‑lhe o alvará, haveria um processo, um escândalo. A imprensa falaria: "A morte no ninho do amor"... E a sua fotografia sairia em todos os jornais, era o fim da vida descuidada de Albertine Megges.

Pôs uma mão na boca e não se mexeu mais.

já Zumbach verificava com alívio que ela não gritava e se encaixava num silêncio gelado.

‑ Embolia? ‑ perguntou finalmente a senhora Megges.

‑ Sim. Ao princípio nem notei...

‑ Cambada de bodes velhos!

Toda a sua angústia dos dias futuros se expressava nessa frase.

Zumbach engoliu‑a e ficou quase reconhecido por ela não dizer mais nada.

‑ E agora? ‑ perguntou a hospedeira.

‑ Essa é também a pergunta que faço a mim mesmo. É preciso levar daqui o corpo.

‑ Não posso levá‑lo no saco das compras...

‑ Não, claro!

‑ Tenho de chamar um médico?

‑ Para que serve isso? Ela morreu.

‑ Um médico ocupar‑se‑á de tudo o resto.

‑ Então o quê?

‑ Será preciso enterrar este corpo aqui, na cama?

‑ Ia precisamente falar‑lhe nisso, Albertine.

Zumbach apoiou os punhos nas têmporas, contra as quais o sangue lhe batia sem parar.

‑ É preciso que tudo se passe sem que ninguém o note... Nada de escândalo. Ninguém verá Margot sair daqui.

‑ E então?

‑ Deixe isso comigo... encontrarei a melhor solução.

‑ Quer deixar esta miúda em qualquer parte? Talvez num bosque?

‑ Não.

Zumbach, enervado, pôs‑se a andar de um lado para o outro:


‑ Pensei que seria melhor Margot desaparecer completamente ... simplesmente, ninguém sabe para onde ... Ela saiu de casa de carro para ir ao cabeleireiro, como ela dizia sempre que fazia, e não voltou. Mais um enigma neste mundo ... Aliás, ela nunca pôs os pés na Pensão Sonneck ... A senhora nunca a viu, senhora Megges... Uma pessoa desaparecida, dissolvida como o gás ou como uma nuvem no vento... Que pensa disto?

‑ E o senhor pensa que eu vou entrar no jogo?

‑ Dar‑lhe‑ei cinco mil marcos, Albertine, cinco mil... trá‑los‑ei depois de amanhã à hora do almoço, em dinheiro.

‑ E se, apesar de tudo, isto for descoberto?

‑ Como é que quer que isso seja possível? Somos os únicos a saber, você e eu, o que aqui se passou. Um risco ligado a duas pessoas... Nunca nada foi tão seguro... Mas, neste caso, a segurança é absoluta.

Zumbach parou. o suor brilhava‑lhe na face.

Sabia que, naquele momento, toda a sua existência dependia de Albertine Megges. Entregava‑se totalmente a ela, mas não tinha outra opção.

A senhora Megges aproximou‑se da cama, levantou um canto da coberta acolchoada e olhou atentamente para o rosto de Margot. "Um anjo adormecido", pensou. Depois, rectificou esta sensação. Aquela não valia mais que todas as outras mulheres que vão para a cama com homens de passagem. Apenas acontecia que essas não tinham sido acometidas de embolia. Convém dizer só bem dos mortos. Mas que pensamento vos viria à cabeça face a esta morta?

Deixou cair o canto da colcha e afastou‑se da cama. Zumbach, de pé contra a porta, mordia o lábio inferior.

‑ Encarrega‑se de a levar? ‑ perguntou a senhora Megges. ‑ Também a voz dela estava agora enrouquecida.

‑ Sim. Sem deixar vestígios...

‑ Consegui‑lo‑á?

‑ Tentarei.

‑ Eu negarei tudo, percebe? Não vi nada! Nunca lhes aluguei quarto. São‑me totalmente desconhecidos... Se alguém vier, apesar de tudo, a descobrir a morta...

‑ Prometo‑lhe nunca falar no seu nome, senhora Megges. ‑ Zumbach estava ofegante. ‑ Ajude‑me só a levar a Margot. Como é que vai ser possível? Conseguiremos chegar ao fundo da casa? Há outras saídas?

‑ Sim, a da casa da barrela, no pátio. Terá de pôr o carro completamente encostado a ela. Meu Deus, é horrível! ‑ disse a senhora Megges, juntando as mãos e afastando‑se.

Alguns momentos mais tarde, Zumbach saiu rapidamente da pensão e foi buscar a sua grande carrinha, que tinha estacionado três ruas mais à frente, de forma pouco visível, na frente de alicerces recentemente cavados e de um tapume.

o transporte de Margot foi feito sem dificuldade.

Zumbach colocou o carro de tal maneira que o porta‑bagagens ficou encostado precisamente contra a porta da casa da barrela. Abriu completamente o porta‑bagagens, evitando assim qualquer vista possível desse lado.


Depois, com a ajuda da senhora Megges, voltou a vestir Margot. jamais esqueceria essa tarefa. Com muita dificuldade, vestiram a roupa interior ao corpo rígido, abotoaram‑lhe o vestido, pentearam os cabelos da morta e até a maquilharam. Um pouco de bâton nos lábios, rímel nas pestanas, sombra verde nas pálpebras... Albertine encontrou tudo na pequena bolsa de crocodilo que Margot tinha levado. Zumbach estava sentado junto dela, a tremer, consumido interiormente, repetindo uma vez mais tudo aquilo que iria fazer nos dias seguintes, como se comportaria e de que forma se apresentaria na frente do seu amigo Benno. Era um papel para um actor consumado, e ele não se sentia à altura de o representar.

Quando Margot recuperou o aspecto habitual da sua beleza radiosa e cuidada, Zumbach transportou‑a como uma grande boneca até lá abaixo, à cave, e daí para a casa da barrela.

A senhora Megges ia à frente, a guiá‑lo. Era preciso passar diante de quartos alugados e, se o diabo as tecesse, alguém poderia sair para o corredor precisamente nesse momento.

Mas tudo se passou sem acidentes.

Zumbach colocou Margot no interior do porta‑bagagens da carrinha e voltou a fechar a porta. Quando se voltou, a senhora Megges tinha desaparecido, tão silenciosa e rápida como uma doninha.

Com as pernas hirtas, Zumbach caminhou ao longo do carro, pôs‑se ao volante e arrancou lentamente, como se Margot pudesse ser ferida pelos solavancos.

Durante uma hora, rolou em todos os sentidos na região, antes de ter encontrado a calma necessária e de ter chegado à floresta do domínio de Wildling. Ali, voltou, ao fim de algumas centenas de metros, abandonando a estrada, para se meter pelos caminhos florestais mais estreitos, até que atingiu o centro da arborização, onde parou: pôs Margot atravessada sobre as suas costas e tirou do porta‑bagagens uma pequena pá, de que às vezes se servia, no Inverno, para atirar areia para debaixo das rodas, quando ficava preso no gelo escorregadio diante de qualquer construção. Depois, Penetrou no espesso bosque, à procura de um lugar onde nunca mais pudessem encontrar a morta.

Descobriu um local atapetado de fetos e comeÇou por levantar a primeira camada de terra, que continha a verdura, para depois cavar o solo.

Trabalhou ali durante três horas, as mais amargas da sua existência. Depois, estendeu Margot na cova., tapou‑lhe a cara com o lenço e atirou a terra para cima do corpo. Fê‑lo com a cara voltada até ter a certeza de já nada ver dela. Só então olhou de novo para a cova, colocou ali o resto da terra, hesitou, cerrou os dentes e pôs‑se a calcar com os pés a superfície. Finalmente, voltou a colocar os fetos e a apoiá‑los sobre uma camada de humo, na esperança de que eles voltassem a ter raízes e crescessem ainda misericordiosamente por cima daquela sepultura.

Um riacho permitiu‑lhe lavar a pequena pá, os sapatos e as mãos. Depois, rolou de novo para a cidade. Sabia que Margot tinha o hábito de estacionar o seu pequeno carro de desporto quando ia à pensão Sonneck.

Apeou‑se numa dessas ruas, agarrou nas chaves do automóvel de Margot, dirigiu‑se calmamente para o pequeno carro carmesim, pôs‑se ao volante e arrancou a toda a velocidade. Atravessou a cidade como um furacão e acabou por parar o carro à entrada da auto‑estrada. Voltou de autocarro até ao bairro das Colinas Verdes, entrou na carrinha e foi para o escritório.


"Não se podia fazer melhor para apagar todos os vestígios", pensava ele, sentado à secretária, ocupado a passar em revista a correspondência pronta para ser expedida, que a menina Bender, a secretária, ali tinha posto. Exteriormente, continuava a ser o famoso Zumbach, elegante como sempre, seguro de si, cheio de ideias, dinâmico... apenas o seu olhar estava menos seguro, mas quem se aperceberia disso?

‑ Compramos o terreno de Neuss? ‑ perguntou Bramske, o seu colaborador, uma hora mais tarde.

Zumbach encolheu os ombros:

‑ Talvez. Ainda preciso de fazer descer o preço.

‑ A cidade de Gelsenkirchen pergunta‑nos se poderíamos construir um novo depósito mortuário...

‑ Um novo... quê?

Zumbach teve um sobressalto. o seu rosto crispou‑se. Bramske relia precisamente a carta, por isso não notou a mudança da expressão do seu chefe.

‑ Um depósito mortuário, compreendendo uma capela e câmaras frigoríficas para trinta caixões. Devemos inscrever‑nos como candidatos a esta obra?

‑ Não.

‑ De verdade? Porque não, chefe?

‑ Já estou sobrecarregado, sabe isso melhor que ninguém.

‑ É um negócio sem complicações, se considerarmos bem a questão...

‑ Construo complexos habitacionais, igrejas,

ospitais, lojas, mas não depósitos mortuários! É um princípio. Uma questão pessoal, Bramske. Deite essa oferta para o cesto dos papéis!

Quando a noite chegou, Zumbach voltou para a casa à hora exacta, como habitualmente. A mulher, Louise, com cabelos de ébano, de uma beleza exótica rara e única, acolheu‑o com um beijo no vestíbulo da sua grande vivenda mobilada em estilo barroco.

Quem visse Louise Zumbach não compreendia como alguém podia enganar esta mulher com uma outra. Era completamente o inverso de Margot Grossmann: reservada, doce, de uma feminilidade requintada que encantava. Oferecia o contraste absoluto da violência animal que caracterizava Margot, aquele assalto constante dirigido ao outro sexo, aquela beleza provocante e conquistadora. Os seus olhos amendoados, sob os cabelos lisos e curtos, não eram provocantes, mas misteriosos. Era um tipo de mulher de que os contistas orientais falavam com agrado.

Zumbach conhecera Louise num baile da imprensa e tinha casado logo com ela, a fim de que ninguém lha roubasse. Ela era a jóia da sua casa e da sua existência oficial, uma maravilha exibida por toda a parte, uma peça de museu personificando a beleza.

‑ Benno já telefonou quatro vezes ‑ disse Louise a Zumbach logo a seguir ao beijo de acolhimento.

Não notou a rigidez da nuca de Heinrich.

‑ Margot ainda não voltou do cabeleireiro!

Zumbach deu uma pequena gargalhada.

‑ Disparate! ‑ exclamou. ‑ Benno exagera de novo. Sem dúvida corre em todos os sentidos, com o relógio na mão, não? o que queres que tenha acontecido? Margot deve ter encontrado uma amiga e instalaram‑se num café a tagarelar de tal forma que se esqueceram das horas!

‑ Isso nunca aconteceu à Margot. Voltou sempre à mesma hora da sua sessão no cabeleireiro.

‑ Há sempre uma primeira vez".

‑ Margot saiu do cabeleireiro às onze e meia.


‑ Então o Benno telefonou para o salão do cabeleireiro? Não tem vergonha? Torna‑se ridículo! Nós sempre dissemos, Louise, que quem casa com uma rapariga vinte anos mais nova mais lhe valia amestrar um cento de pulgas!

Zumbach arriscou ainda uma gargalhada, embora tivesse a garganta seca como a seguir à travessia de um deserto, e depois rodeou com um braço as ancas de Louise:

‑ Tenho uma destas fomes! Hoje andei o dia inteiro a visitar obras... visitámos também terrenos para construir... qual é a surpresa do jantar?

‑ Uma perna de porco assada com molho de vinho, querido...

‑ Era mesmo disso que o Benno precisava neste momento. Perna de porco assada, perfeito.

Queria dizer esta piada com um tom brincalhão, mas foi um amargo fel o que cuspiu.

Louise deu‑lhe uma ligeira cotovelada e riu. As noites com Heinrich eram para ela o ponto alto do dia. Amava o marido, que revestia das ilusões ideais que dormitam no coração de uma esposa.

‑ Estamos convidados para ir amanhã a casa do cônsul Wennermann: vamos? ‑ perguntou ela.

‑ Naturalmente!

Zumbach dirigiu‑se rapidamente para a sala‑de‑jantar. Berta, a governanta, acabava de trazer o primeiro prato.

‑ Wennermann projecta uma nova construção junto à sua casa comercial em Bochum ‑ respondeu ele. ‑ Disseram‑me... Ainda teria um lugarzinho para esse projecto no meu emprego de tempo. Achas que o Wennermann nos convidaria sem motivo?

Sentou‑se à mesa e comeu com muito apetite.

 

às nove horas da noite, Benno Grossmann telefonou de novo. A sua voz tremia, chorosa:

‑ Heinrich! Graças a Deus, estás aí! A Louise te contou?

Zumbach agarrou bem no auscultador e respirou fundo. "Vamos estar calmos, totalmente calmos", dizia a si mesmo; "tu és amigo de Benno, que não desconfia de nada."

‑ Naturalmente, logo que entrei. Como todas as mulheres, Benno, ela faz um grande alarido por nada. A Margot já voltou, não foi?

‑ Infelizmente, não! ‑ A voz de Grossmann tremeu: ‑ Nove horas, Heinrich, não consigo encontrar uma explicação: ela nunca fez isto...

‑ Acabei de o dizer à Louise. Ela deve ter encontrado alguma amiga por acaso e estão as duas a tagarelar sem descanso...

‑ A Margot, não! E há telefones em toda a parte. Ter‑me‑ia telefonado há muito tempo.

‑ Ela já te domesticou assim tão bem, meu velho?

‑ Não estou com humor para brincadeiras parvas, Heinrich! Estou sinceramente aflito: às onze e meia ela já tinha saído do cabeleireiro!

‑ Repara! Será uma prova? Depois de penteada, ela deve ter‑se encontrado com alguém e continuado o passeio. Neste momento, Benno, mete a mão na consciência: não te terás mostrado um pouco exausto, nestes últimos tempos, na cama?


‑ As tuas idiotices dão‑me cabo dos nervos! - disse Grossmann, levantando a voz. ‑ Heinrich, sê razoável, pelo menos desta vez leva a sério aquilo que te digo. Margot nunca iria passear dessa forma, não é desse género ,sempre se mostrou correcta... e hoje isto... Que diabo, poupa‑me a esses pensamentos deslocados: sê franco, que dirias se Louise te fizesse a mesma coisa?

‑ Diria: "Benno, posso ir encontrar‑me contigo?", e neste momento digo‑te: "Vem a nossa casa, Benno! Tomas um conhaque e acalmas!"

- Achas que devo alertar a... polícia...?

- É idiota. A polícia? Queres que façam pouco de ti? Quando uma mulher casada não volta para casa até às nove horas da noite, não se pode, apesar de tudo, dá‑la como desaparecida! Benno, domina os teus nervos! Não chegaste aos cinquenta anos para começares com criancices! A Margot vai voltar logo e terá uma explicação muito simples para te dar. Vem beber um copo connosco.

Zumbach desligou sem esperar a resposta de Grossmann.

"O que acontecerá quando toda a verdade se abater sobre ele?" pensou. "Quando souber que Margot não voltará nunca mais, nem de noite nem de manhã? Quando lhe disserem: "Ela desapareceu, simplesmente. Sem deixar rasto..."

Louise olhava‑o. Sorriu um pouco inquieto e depois levantou‑se bruscamente:

‑ Benno... ‑ disse. ‑ Aconselhei‑o a que viesse ter connosco para se acalmar. Está completamente fora de si. Estes vinte anos de diferença de idade dão‑lhe neste momento água pela barba... Devíamos animá‑lo um pouco. - Disse estas palavras num tom distraído, cuja perfeição o espantou a ele próprio. Somos capazes de tudo quando se trata de salvar a cabeça. É então que os talentos ignorados se revelam.

Ao fim de meia hora, a campainha da porta do jardim tocou como se fosse agitada por um furacão. Benno Grossmann acabava de chegar.

Parecia mudado, assustadoramente envelhecido. Como proprietário de uma fábrica, pequena mas muito estável, que fabricava instrumentos de medida electrónicos, a sua existência não tinha sido até àquele momento, exceptuando as pequenas contrariedades do dia‑a‑dia, senão uma ascensão constante. Tinha uma vivenda rodeada por um belo jardim, uma segunda esposa das mais sedutoras ‑ depois de a sua primeira mulher, Erna, ter Morrido, havia quatro anos, numa operação à vesícula. ‑ e um filho, estudante de Direito, do qual se podia orgulhar. Esta existência satisfazia plenamente Benno Grossmann e considerava‑a como uma carreira‑modelo.

A ela, podia‑se juntar a amizade que o ligava a Heinrich Zumbach. Para Grossmann, tratava‑se de mais que uma vulgar simpatia. Zumbach servia‑lhe de crivo moral e de confessor.

Com ele podia‑se falar de tudo e tinha‑se em seguida o sentimento de se ficar aliviado. Grossmann tinha necessidade de se abrir.

Neste momento, plantado no meio do átrio da grande casa dos Zumbach, tentava enxugar o suor que lhe corria pelo rosto. Louise Zumbach estendeu‑lhe um copo de conhaque, mas ele abanou a cabeça sem uma palavra. Os seus olhos castanhos pareciam brilhar através de um véu.

‑ Apesar de tudo, telefonei à polícia... ‑ disse muito baixo, com uma voz molhada de lágrimas. ‑ Não aguentei mais.

‑ E eles riram‑se de ti, não foi, velho? ‑ perguntou Zumbach, ofegante, enquanto fixava para lá de Grossmann a parede revestida de painéis.


‑ Não, ouviram‑me. Depois, encarregaram a brigada de busca dos carros desaparecidos de encontrar o de Margot..

Grossmann tomou finalmente o conhaque que lhe estendiam e engoliu‑o de um trago. Depois, respirou ruidosamente e passou as mãos trémulas pelos cabelos:

‑ Daí a dez minutos, a polícia telefonou: tinham encontrado o carro de Margot!

‑ o quê? - Louise apertava com as duas mãos o braço do marido.

Zumbach tentava ainda sorrir.

‑ Havia qualquer coisa que não batia certo, não era?

Grossmann, ofegante, acabou por se sentar num sofá da entrada:

‑ Dieter foi lá, imediatamente, para o identificar. Eu... não teria conseguido... Esperarei aqui, junto de vós, que se saiba mais alguma coisa.

‑ E Margot? ‑ perguntou Louise com uma voz dificilmente perceptível.

‑ Desaparecida. A viatura estava estacionada, vazia, e a chave na ignição... à entrada da auto‑estrada.

‑ É incrível ‑ disse Zumbach, rodeando com um braço os ombros do amigo. ‑ Benno, levanta a cabeça, tudo se há‑de explicar.

‑ Como? Eu estou acabado... tenho um pressentimento terrível... ‑ e olhou para Louise Zumbach como se fosse um cão moribundo. ‑ Posso tomar outro conhaque?

Louise correu para o bar do grande salão. Enquanto enchia um copo, tocou o telefone. Zumbach atendeu, depois estendeu o telefone a Grossmann.,

‑ É para ti, Benno, é o Dieter... - A sua voz vacilou nestas palavras.

"Apaguei todos os vestígios", dizia a si mesmo incansavelmente. "Não podem senão tactear no escuro. Não descobrirão, evidentemente, nada no carro de Margot. Até lavei o acelerador e não tirei as luvas nem um só momento."

Grossmann enxugou de novo o rosto:

‑ Sim, meu rapaz, quais são as notícias? ‑ disse ele numa voz que tentava dificilmente tornar mais firme. ‑ já se sabe alguma coisa?

Depois escutou em silêncio o relato do filho e a sua face empalideceu. Finalmente, colocou o auscultador no descanso sem uma palavra, como que petrificado.

Zumbach tirou o copo de conhaque das mãos da mulher e estendeu‑o a Grossmann:

‑ Bebe, Benno...

Grossmann deixou‑se cair para trás do sofá. Estava visivelmente abalado:

‑ Examinaram rapidamente o carro ‑ voltou a dizer, com a respiração apressada ‑; neste momento, estão a rebocá‑lo... Isso qquer dizer que o Dieter o leva para o laboratório da polícia, pois descobriram sangue numa prega do estofo...

Subitamente, ouviu‑se o estilhaçar de vidros rompendo o silêncio que reinava. Zumbach tinha deixado cair o copo.

‑ Sangue? ‑ balbuciou. ‑ Mas é impossível... Como é isso, sangue...

Um pânico surgia em si. "Mas ela nunca sangrou! dizia a si mesmo; "e levei‑a no meu carro. "


Baixou‑se para apanhar alguns fragmentos de vidro e para evitar olhar para a cara de Grossmann. De repente, viu uma pequena escoriação nas costas da mão esquerda. Na tormenta das emoções aquela pequena dor tinha‑lhe escapado e nem sequer sabia quando teria aparecido aquela lesão da pele. Aquilo não podia ter acontecido senão quando cavava a terra da cova... um ramo mais aguçado - um espinho ‑ quem é que dá por isso em tal situação?

E eis que os estofos do carro de Margot apareciam manchados de sangue!

Verificamos às vezes, COM espanto, que em muitas conjunturas críticas, no seio das quais os homens arrancam os cabelos, são precisamente as mulheres que conservam o sangue‑frio e restabelecem o equilíbrio das coisas.

Não foi diferente nesta circunstância; enquanto Grossmann, desesperado, continuava prostrado junto do telefone, com o olhar perdido no vácuo, e Zumbach, completamente contra os seus hábitos, caminhava de um lado para o outro, esmagando sob as solas os pedaços do copo partido, e mostrando‑se incapaz de uma ideia clara, Louise Zumbach encontrou as palavras necessárias.

Os dois homens ouviram‑na finalmente.

‑ Ainda não aconteceu nada de definitivo - disse ela em voz alta. ‑ Encontraram o carro de Margot... muito bem. Há sangue nos estofos... Muito bem.

‑ Tu dizes: muito bem? ‑ A voz de Grossmann soava cavernosa, como se estivesse muito afastada. ‑ Achas bom que tenham encontrado sangue?

‑ Os estofos podem ter sido manchados de sangue por milhares de razões diversas, podia até ser das compras de casa... Se, por exemplo, Margot comprou fígado...

Zumbach agarrou‑se a esta versão, como um homem que se afoga se agarra a um ramo que mergulha na água.

‑ Certamente foi isso, Benno! ‑ exclamou, fixando a parede para lá de Grossmann. Um quadro moderno estava ali pendurado, um desenho impreciso, cores, ritmo, que Zumbach tinha intitulado "A Vida da Alma".

‑ Serviram fígado na vossa casa nos últimos dias?

‑ Meu Deus, será preciso que eu me lembre agora do almoço?

Grossmann tapou a cara com as mãos e explodiu em soluços.

‑ Quem é que disse que se tratava de sangue humano? Do sangue de Margot?

Zumbach meteu as mãos nos bolsos. A escoriação na base do punho parecia‑lhe um enigma. Mesmo admitindo que no laboratório da polícia tivessem a certeza, através das análises, que o sangue colado aos estofos do carro de Margot era sangue humano... quem iria imaginar que era sangue de Zumbach, o seu sangue? Grupo sanguíneo A‑Rh negativo.... havia milhões! Ninguém imaginaria o arquitecto Zumbach sentado naquele carro à uma hora, quando, aliás, ele visitava um terreno para comprar, tal como podia provar. o seu álibi era inatacável... e porquê um álibi? Tinha necessidade disso? Se por acaso o interrogassem lá em cima, uma enorme indignação conviria à situação e também uma queixa dirigida ao chefe da polícia, que ele conhecia muito bem.

Deste ponto de vista, Zumbach conseguia aquilo que nenhum criminoso tinha sabido preparar tão bem como ele: um crime perfeito.


Um crime? Zumbach deu meia volta e encostou‑se à parede. O que fiz eu então?", interrogou‑se. "Não matei Margot. Ela sucumbiu a uma embolia, no preciso momento do mais vivo prazer. Uma morte natural, na verdade, um acidente se quisermos, mas não mais. o que foi criminoso foi ter feito desaparecer o cadáver... Mas não foi um crime no verdadeiro sentido da palavra. Foi cobardia, nada mais que cobardia face ao escândalo, ao pensamento desta confissão: Margot é minha amante há meses, ela é a minha hora de almoço às terças e às sextas‑feiras."

A voz de Louise arrancou Zumbach às suas considerações íntimas.

‑ Não te queria causar desgosto, Benno ‑ dizia ela suavemente ‑, mas não achas possível que Margot tivesse um... encontro com um outro homem... percebes o que quero dizer, Benno?

‑ Impossível! ‑ Grossmann afastou as mãos da cara. ‑ Eu podia confiar em Margot.

‑ Ela era nova, bonita... Meu Deus, porque falamos já dela no passado? Ela é bonita!

LOuise Zumbach deitou uma olhadela ao telefone, como se a campainha fosse tocar e em seguida Margot anunciasse a sua presença.

‑ Tu não a julgas capaz de ter um amante?

‑ Não!

Grossman levantou‑se e foi para o salão.

‑ Se a julgo capaz? Que quer isso dizer? Uma mulher como Margot atrai os olhares dos homens, eu sei. Mas ela não tem qualquer gosto por flirts! Eu dou‑lhe tudo o que necessita, tudo!

‑ Nós sabemos alguma coisa disso, Benno. Zumbach não olhava para o amigo ao dizer estas palavras. "Que ela tinha um ar esfomeado de cada vez... como uma fera que não comesse carne senão um dia por semana. Então, do meio‑dia às duas horas, saciava‑se... que maravilhosa amante... "

Depois, em voz alta, disse ainda:

‑ Mas, apesar de tudo... abandonar o carro na beira da auto‑estrada, com a chave na ignição, parece‑me querer dizer que ela se apeou, simplesmente, talvez para trocar de veículo, e depois quando voltou já lá não estava o carro. Esta situação pode estar a acontecer neste preciso momento. Compreende‑se bem, Benno... É terrível falar assim a um marido, mas é preciso admitir como possível esta espécie de acidentes.

Grossmann abanou a cabeça lentamente. Tacteava tudo à sua volta como um urso saltimbanco, uma criatura desamparada que procura um amparo, uma mão segura, um retro escondido.

‑ Somos demasiado optimistas ‑ disse finalmente em surdina. ‑ Dieter disse‑me ao telefone que ficaria um polícia, onde foi encontrado o carro, de vigia para o caso de Margot voltar àquele lugar... mas não acredito nisso. Sinto uma sensação estranha, uma inquietação inexplicável... e parece‑me que poderia correr, correr durante horas, sempre a direito na minha frente...

‑ Os teus nervos estão em franja. ‑ Zumbach pôs o braço à volta do ombro do amigo. ‑ Ainda bem que estás aqui, na nossa casa, e podes aqui ficar até quereres...

Meia hora mais tarde, apareceu Dieter, o filho que Grossmann tivera do primeiro casamento. Era estudante, e acompanhava‑o um homenzinho obeso. Este trazia óculos com lentes sem aros e tinha um ar de bonomia reconfortante.

‑ Meier ‑ disse ao apresentar‑se. ‑ Lutz Meier terceiro, como dizem nas repartições. Imaginem que somos três Meier na repartição! Com este mesmo nome próprio: Lutz! Que fatalidade!


‑ o senhor Meier é da secção criminal ‑ explicou Dieter Grossmann, levantando uma das mãos num gesto que reclamava silêncio quando viu o pai voltar‑se de repente. ‑ Não, não, papá... não foi nomeado expressamente para fazer um inquérito... mas, neste momento, a secção criminal não está sobrecarregada de trabalho, assim é‑lhe possível dispensar alguns funcionários para outros domínios. o senhor Meier teve a amabilidade de se interessar pelo caso da Margot.

‑ Uma ajuda macabra... ‑ Zumbach considerou com hostilidade o homenzinho de ar amável.

‑ Não é de modo nenhum tranquilizador...

‑ Quando uma mulher não volta de noite para casa, isso nada tem de inquietante aos olhos da Polícia. Mas se encontramos um carro abandonado e, o que é mais importante, na berma da entrada da auto‑estrada, então ficamos alerta!

Meier III voltou‑se para Grossmann:

‑ Tem alguma fotografia da sua mulher consigo?

‑ Sim, logicamente...

Grossmann tirou da carteira um retrato de Margot e estendeu‑o ao polícia. Meier III examinou‑o longamente e devolveu‑lho sem uma palavra.

Dieter quebrou o silêncio, que exasperava os nervos.

‑ Eu tinha‑lhe dito, senhor Meier... A minha madrasta era uma pessoa sedutora, mas fiel, sem qualquer dúvida possível.

‑ Era‑o, de facto ‑ disse Grossmann de todo o coração.

‑ E o senhor não vê nenhum sítio onde ela possa estar?

‑ Nenhum.

‑ Então temos de esperar... ‑ Meier III tirou do bolso um bloco de apontamentos: ‑ Ocupemo‑nos a reunir algumas indicações gerais. Depois vamos de carro a sua casa, Senhor Grossmann, e aí pedir‑lhe‑ei que me mostre o quarto da sua esposa.

Para não encobrir nada inutilmente, Meier III, da secção criminal, andou também à procura no vazio. Tudo o que estipulou no seu processo verbal compunha a existência de uma família rica, sem dúvida, mas das mais burguesas. Uma vida quotidiana sem sobressaltos, um correr descuidado dos dias: uma casa, uma criada, uma mulher‑a‑dias que trabalhava meio dia, três carros, passeatas dominicais a canasta à noite com os Zumbach, férias duas vezes por ano: no Inverno em Saint‑Moritz ou em Saas Fee, de Verão a reunião de dois casais numa casa alugada na Sardenha, onde as famílias Grossmann e Zumbach moravam mesmo ao lado da Costa Esmeralda, do Aga Khan. De tempos a tempos, um desfile de alta costura, dois festivais de Salisburgo, uma vez em Bayreuth, apenas uma vez, porque Wagner era muito barulhento para Margot... uma existência muito cheia mas limitada.

Margot apenas tinha um luxo: o cabeleireiro. Orgulhava‑se da sua cabeleira ardente, que brilhava ao sol como fio de cobre.

Na manhã seguinte, Meier III voltou a ler, várias vezes seguidas, o seu processo verbal. Depois, irritado, atirou‑o para uma pilha de outros documentos: "A existência deles é tão monótona que não se encontra nela nada a que nos possamos agarrar!" grunhiu ele; "numa vida tão protegida, uma mulher não devia desaparecer! Não diz uma coisa com a outra!"

E foi apenas esta constatação que o impediu de passar o dossier da secção criminal para o serviço de busca de pessoas desaparecidas.


Durante todo o dia seguinte, Grossman, Dieter e Zumbach estiveram em estado de alerta.

Procuravam a pista de Margot. Zumbach tinha‑se posto à disposição dos Grossmann. A bem dizer, estava presente em toda a parte para poder apagar imediatamente qualquer vestígio possível. A prudência com que ele e Margot se tinham encontrado nos últimos meses mostrava‑se compensadora: nenhum indício levava à Pensão Sonneck, ninguém tinha visto Margot na companhia de Zumbach.

Benno Grossman conduzia as suas pesquisas com uma lógica rigorosa. Começou pelo sítio onde a mulher ia mais vezes: o cabeleireiro.

Foi lá que teve a primeira surpresa. Meier III tinha‑o precedido no salão de cabeleireiro, mas isso não era de espantar; pelo contrário, o que lhe contou a cabeleireira traçou aos seus olhos um retrato Completamente novo de Margot.

‑ já o referi ao senhor da polícia criminal - disse a cabeleireira, uma jovem rapariga encimada por uma montanha de cabelos loiros apanhados num carrapito, lábios pintados, olhos afundados nas órbitas escurecidas. ‑ A senhora Grossmann vinha ao nosso salão quatro vezes por semana, todos os dias, excepto à quarta e ao sábado...

‑ Exactamente ‑ reconheceu Grossmann ‑, e depois?

‑ Depois, o quê? Ao fim de uma hora, ia‑se embora.

‑ Como, ao fim de uma hora?

‑ Porque estava penteada.

Grossmann fixava um olhar inexpressivo no filho e no amigo Zumbach.

‑ Uma hora ‑ gaguejou. ‑ Mas Margot ficava ausente pelo menos três ou quatro horas... A maior parte das vezes, saía às onze e voltava às três da tarde.

‑ A senhora Grossmann nunca nos deixou depois do meio‑dia. ‑ A cabeleireira encolheu os ombros, como que para se desculpar: ‑ Quando a senhora Grossmann chegava, às onze horas, nós sabíamos o que ela ia dizer: "Despachem‑se, só posso dar‑lhes uma hora!" A maior parte das vezes, o penteado estava acabado antes da hora.

‑ Obrigado... É... muito importante. - Grossmann estendeu uma moeda de cinco marcos à cabeleireira, que a fez desaparecer no bolso da bata cor‑de‑rosa. Depois saiu do salão, com a cabeça baixa, arrastando os pés como um cego que procura o contacto com a rua. Lá fora, ainda perto do salão, parou e olhou para os companheiros com os olhos completamente inexpressivos. Sentiam que qualquer coisa se tinha quebrado nele.

‑ Vocês percebem o que quer isto dizer? - perguntou em voz baixa.

‑ Sim! ‑ disse Zumbach imediatamente, a fim de poder controlar a conversa que ia seguir‑se. Aquilo que nunca quisemos reconhecer... ‑ Benno, reassume‑te! ‑ agora está bem claro: Margot levava uma vida dupla. Talvez eu me exprima um pouco brutalmente... Digamos que ela reservava para si horas que só a ela pertenciam, que toda a gente ignorava, horas de que não tinha de justificar o uso... ou que ela não teria podido justificar...

‑ Achas então que Margot era capaz disso? - perguntou Grossmann com voz enrouquecida.

‑ Quem é que sabe o que esconde o carácter de uma mulher, Benno? ‑ respondeu Zumbach num tom de filósofo.


‑ E onde está ela agora?

Esta pergunta levaram‑na com eles, quando se puseram a desenrolar sistematicamente a vida de Margot.

Foram a toda a parte onde Margot tinha ido, mesmo que apenas uma vez; a todos os lugares que ela referira a casa de pessoas que Grossmann sabia terem estado em contacto com Margot.

Este périplo durou quatro dias. Quatro dias durante os quais a polícia se manifestou três vezes: uma vez, pelas conclusões relacionadas com as pesquisas do seu laboratório: o sangue que estava nos bancos manchados do carro era sangue de animal, Sem dúvida de frango. Teriam os Grossmann conSumido recentemente frango?

Benno não sabia nada disso. Já não se interessava por esse maldito sangue, progredia através da misteriosa vida do dia‑a‑dia da sua esposa como uma toupeira ao atravessar um terreno argiloso.

Na segunda vez, a polícia anunciou que tinham inscrito a senhora Grossmann na lista dos desaparecidos e que também se encontrava na das pessoas procuradas.

à terceira vez, Meier telefonou para dar esta notícia: a secção criminal ia ocupar‑se activamente deste caso, que oferecia alguns mistérios. Meier III não disse mais nada e desligou.

‑ Desistam todos! ‑ berrou Grossmann, depois da última chamada. ‑ Esperar! Ter paciência! Esperar o quê? Não sabemos já bastante? Mas eu quero saber mais! Quero saber tudo! Continuemos as nossas pesquisas!

E os "périplos" foram retomados.

Zumbach já não aparecia no seu atelier de arquitecto senão para assinar e para dar ordens. Adiou para mais tarde projectos importantes, e permitiu‑se não fazer nada durante alguns dias. Para ele, nesse momento, o importante era não deixar Grossmann sozinho. Como um cão de caça que farejou o cheiro da caça ferida, este vagueava através da cidade.

Paradeiros de uma mulher elegante: uma modista, três lojas de novidades famosas, duas grandes casas de modas, três sapatarias em voga na venda de modelos italianos, um peleiro, dois joalheiros, uma casa especializada em casacos de senhora, outra em bordados e enfeites de cama, duas boutiques, dois cafés, um comerciante de tapetes.

Grossmann obteve todos estes endereços ao percorrer as facturas que conseguiu encontrar, as etiquetas e as "chancelas" de costureiros, de encarregadas de rouparia, etc., que conseguiu descobrir e anotar a direcção e não desdenhou dirigir‑se a casa de três espartilheiras, a fim de procurar informações relacionadas com a mulher.


Agora, era já inútil brincar às escondidas. Os jornais tinham publicado algumas linhas sobre o desaparecimento da senhora Grossmann e até um jornal de bairro imprimira em subtítulos: "ESPOSA DE GRANDE CAPITALISTA, EVAPORA‑SE NA Atmosfera." Os repórteres fazem‑se assim... e Grossmann engoliu estas patranhas durante alguns dias, em que evitou ir à fábrica e nunca mais atendeu o telefone. o seu filho Dieter encarregava‑se disso e evitava as explicações. A maior parte das vezes, tratava‑se de interlocutoras que faziam parte do círculo alargado das suas relações, adivinhava‑se logo, ao ouvi‑las, quanto esta "sensação" fustigava a sua curiosidade. Dieter contentava‑se em responder‑lhes: "Querida senhora, a minha madrasta ainda não voltou, se a encontrar em casa de amigos comuns, diga‑lhe, peço‑lhe, que nós estamos bem. " Desligavam imediatamente do outro lado da linha.

Na boutique designada pela etiqueta "Chez LillY", Grossmann e Zumbach encontraram uma pista escaldante. Finalmente!, deviam ter gritado, mas ambos guardaram um silêncio obstinado: um estava decepcionado, o outro tinha medo.

‑ Foi há umas três semanas, ‑ começou "Liliy‑Boutique", uma rapariga com longas pernas e uma juba selvagem, coberta com um vestido de pele de leopardo que lhe assentava no corpo como uma segunda pele e atraía sobre ela os olhares.

‑ A senhora Grossmann. veio informar‑se sobre os nossos novos artigos, depois remexeu um pouco, como sempre, nos nossos expositores, e finalmente comprou um pulôver acabado de chegar de Paris, um sonho! Ela tinha mais gosto do que qualquer dos nossos clientes. Vi‑a a ir‑se embora através da montra, lá em baixo... Ela tinha estacionado o carro junto do passeio em frente, um carro de desporto vermelho, não é?

‑ Sim... ‑ acrescentou Grossmann com uma voz enferrujada. ‑ Continue...

‑ Ela entrou no carro. A capota estava levantada, chuviscava um pouco... mas quando abriu a porta vi, durante um segundo, que não estava sozinha no carro. Alguém a esperava, sentado no lugar ao lado do seu...

Os olhos de Grossmann diminuíram:

‑ Não estava sozinha?

‑ Não, eu tenho bons olhos... estava um homem ao lado dela. Quando abriu de repente a porta para deslizar para o seu lugar, vi um casaco e pernas de calças... de calças de homem, perceba‑se.

‑ Não estará confundida? ‑ perguntou Zumbach em voz alta.

Na sua cabeça, os pensamentos dançavam a sarabanda. Não se lembrava de ter parado com Margot na frente daquela boutique e de a ter ali esperado... Mas isso devia ter acontecido talvez três semanas antes... Não havia outra explicação.

‑ Pense bem, peço‑lhe, porque as mulheres de hoje também usam calças!

‑ Eram umas calças de homem. ‑ Lilly sorriu trocista. ‑ Acredite em mim, nunca me enganaria.

‑ Impossível! ‑ Zumbach voltou‑se para Grossmann, mas este teve um gesto cansado.

‑ Deixa estar, Heinrich, neste momento já consigo encaixar tudo. É inútil tentares proteger‑me. - Enxugou a testa e tentou mesmo um sorriso na direcção de Lilly: ‑ Quando é que isso se passou? Pouco mais ou menos em que dia?

‑ A uma segunda‑feira, não posso estar enganada; recebêramos uma nova remessa que ainda não tínhamos tirado das embalagens.

Lilly, com um gesto felino, esticou no busto o tecido imitando a pele de leopardo:

‑ A senhora Grossmann até disse: "Muito bem, volto na terça." Era uma segunda‑feira...

‑ É assim tão importante? ‑ disse de repente Dieter. ‑ Segunda ou terça? Que importa, não saberemos mais nada.

Zumbach não respondeu. Para ele, era, pelo contrário, da maior importância. Segunda‑feira... uma segunda, não poderia ser ele o homem sentado no automóvel, porque só se encontrava com MargOt à terça.


E, bruscamente, foi atravessado por essa evidência fulgurante: Margot devia ter outro amante além dele. Juntava‑se a si às terças‑feiras, depois de sair dos braços do homem das segundas, e às sextas acabava de deixar o amante das quintas. Todos os seus beijos, as suas juras, todas as palavras murmuradas, os suspiros, toda a sua paixão, os abandonos tinham sido partilhados com outro. Era moeda corrente, nada mais. o amor ao desbarato, uma liquidação à dúzia, saldos excepcionais antes de murchar.

‑ Viu o homem? ‑ perguntou Zumbach com a língua subitamente espessa. Sentia‑se traído... um amante enganado... Haverá coisa mais ridícula?

‑ Não. ‑ "Lilly‑Boutique" sacudiu a juba negra. ‑ Tudo se passou muito depressa. Mas era jovem... isso juraria.

Jovem. Grossmann voltou‑se e abandonou a boutique.

Zumbach seguiu‑o imediatamente, enquanto Dieter ficava para trás. A sua bela face inteligente e franca tinha tomado uma expressão dura que lhe carregava as feições.

‑ Eis‑nos sós ‑ disse a meia‑voz, como se fosse possível ouvirem‑no da entrada. ‑ Quero ajudar o meu pai, compreenda‑me: se viu tanto como pretende... diga‑me com franqueza, reconheceria esse jovem?

‑ Não. Impossível.

‑ o seu fato, talvez?

‑ Isso sim, talvez; era castanho com finas riscas brancas, muito à moda, por isso repito: era um homem novo!

‑ Castanho com finas riscas brancas... ‑ Dieter respirou fundo. ‑ Agradeço‑lhe muito, menina Lilly. As suas declarações serão certamente muito úteis.

 

Nessa mesma noite, os Grossmann jantaram em casa dos Zumbach. Benno examinou as suas novas descobertas como um cirurgião ao dissecar um cadáver. Falava calmamente, com uma terrível ausência de paixão, como um homem que venceu a dor.

‑ Um jovem à segunda‑feira ‑ disse ‑, à hora em que ainda devia estar no cabeleireiro. Meu Deus, que idiota crédulo eu fui...

‑ Se o reconheces... ‑ Zumbach puxou para si a cigarreira. ‑ Tiremos daí as consequências, Benno: não pensemos mais em Margot.

‑ Estás louco? ‑ Grossmann bateu os punhos um contra o outro. ‑ Margot desapareceu!

‑ o problema da polícia é pôr isso em pratos limpos.

‑ E, além disso, amo‑a. Continuo a amá‑la... apesar de tudo. ‑ Grossmann deitou a cabeça para trás e fechou os olhos. ‑ Ah! vocês ignoram como a Margot sabia fazer amor...

Sem uma palavra, Zumbach abandonou a sala.

o pior eram as noites. Durante horas, Zumbach ficava deitado junto de Louise, fingindo dormir, esforçando‑se por respirar num ritmo normal, com profundas inspirações, enquanto julgava explodir interiormente de angústia.

Só quando Louise adormecia é que se erguia suavemente e se encostava à cabeceira da cama, com o olhar fixo na escuridão baça.

Não eram os remorsos que lhe roubavam o sono, mas apenas o medo de ter cometido um erro e de ser descoberto por força do acaso, o inimigo número um dos criminosos.


Segundo ele, a sua falta era leve... Ocultação de cadáver, falsos testemunhos, e talvez mais alguns Pecadilhos condenáveis, dos quais ignorava a designação jurídica. Tudo isso podia ser contornado com a ajuda de um bom advogado e de alguns médicOs. Mas a partir do momento em que se apercebera de que Margot morrera nos seus braços no momento do orgasmo, nunca mais dominara os seus sentimentos e tinha‑se encontrado num "túnel afectivo", expressão que encontrara no relato de uma audiência, e que, por uma razão insondável, o seduzira, porque era muito bem imaginada: via‑se um homem num túnel escuro, a avançar às apalpadelas, sem meta, sem vontade. De seguida, teria só de defender‑se, de se prevenir, de atacar em nome da razão. Sim, podia explicar tudo e não haveria tribunal que não se mostrasse indulgente em semelhante caso.

Contudo, o pânico que o avassalava era suscitado pela sua cobardia, pela vontade de iludir as consequências. A descoberta da verdade, por mais simples que fosse, significava o fim da sua união com Louise, que nunca lhe perdoaria o facto de fazer de Margot sua amante. Acarretaria a ruína social, a renúncia à casa, o começo de uma nova vida oprimida pela maldição de Grossmann, que o perseguiria por toda a parte, pois a influência de Benno era considerável.

Assim, todas as noites, Heinrich Zumbach ficava sentado na cama durante horas, olhando para o tecto ou para a parede, torturado pelo medo, obcecado por planos sempre novos.

o último desses planos era o mais terrível: "Se Benno desconfiar do que quer que seja, mato‑o... Secretamente, terá o ar de ter sido um acidente. Encontrarei facilmente um bom meio... "

No dia seguinte, ao pequeno‑almoço, Zumbach pulou da cadeira. No jornal da manhã, um anúncio tarjado de negro saltou‑lhe à vista. Grossmann apelava à população para que o ajudasse nas suas buscas:

"A todas as pessoas que me derem informações sobre a ausência da minha mulher, comprometo‑me a dar a quantia de dez mil marcos. Qualquer pormenor é importante. "

Ao lado, havia uma fotografia de Margot, uma bonita mulher que deixava flutuar os cabelos ao vento.

‑ Olha para isto! ‑ disse Zumbach, estendendo o jornal a Louise por cima da mesa, enquanto a mão lhe tremia ligeiramente. ‑ Repara, o Benmo deve ter enlouquecido. Cobre‑nos de ridículo e vota‑nos ao desprezo com a sua agência de informações, desnuda‑se aos olhos de toda a gente! Terá, então, perdido o pudor? Benno precisava de ser mandado para uma casa de repouso até que a erva tivesse tempo de crescer sobre todo este assunto!

Depois do pequeno‑almoço, Zumbach foi de carro a casa de Grossmann. Ali, encontrou‑se primeiro com Dieter, sentado junto ao telefone, com um bloCO‑notas coberto de apontamentos junto de si.

‑ Diz‑me já que este estúpido apelo no jornal teve êxito ‑ gritou Zumbach da entrada. ‑ Por dez mil marcos deve haver milhares de pessoas que viram qualquer coisa! Não se entreguem às cegas a esse jogo!

‑ ´´É verdade. Noventa e nove por cento das testemunhas não têm qualquer interesse, mas um por cento continua válido! ‑ Dieter Grossmann estendeu o bloco‑notas a Zumbach: ‑ Não podemos contar mais com o raciocínio do meu pai. Esta notícia no jornal... discuti seis horas com ele, depois desisti. Mas agora parece‑me que o velho tinha razão: há uma nova pista...


‑ Onde? ‑ perguntou Zumbach.

Garras geladas despedaçavam‑lhe o coração.

‑ Uma testemunha ocular.

Foram encontrar Grossmann. no seu escritório. Benno, sentado na frente da janela, contemplava fixamente o jardim da sua casa, fumava, e se não fosse o fumo do cigarro podia passar por um autómato com a estatura de um ser humano.

‑ Benno ‑ disse Zumbach, dominando‑se com dificuldade ‑, Benno, já não posso assistir ao espectáculo da tua aniquilação por ti mesmo. Esta notícia exibicionista que tu mandaste publicar no jornal...

‑ É necessária, Heinrich. ‑ Grossmann voltou‑se na sua cadeira. ‑ Devo isso a mim... desde há alguns dias... nunca falei nisso... penso que tens razão.

‑ o quê? Como? Para... quê?

‑ Tu disseste que Margot ainda está viva. Sim, eu sinto‑o... está viva... e muito perto daqui...

Grossmann levantou‑se de repente. Dieter entregou‑lhe o bloco‑notas no qual tinha apontado as chamadas telefónicas.

‑ Sabes, sou caçador e um bom caçador descobre a caça. Farei tudo no mundo para descobrir Margot...

‑ E então?

‑ Dar‑lhe‑ei a sua liberdade. Sem comentários. para quê? Todos nós nos enganamos na vida. Margot foi um brilhante erro.

Deitou uma olhadela à série de notas e aquiesceu com um abanar de cabeça, ao tomar conhecimento da que estava sublinhada com lápis encarnado, acompanhada por esta observação:

‑ Vamos ver no local o que lá há.

‑ Vamos onde?

‑ à Liebigestrasse. Duas mulheres notaram que o carro de Margot estacionava muitas vezes naquela rua, durante horas, porquê? Onde é que será esta rua?

‑ Nos arredores, papá. ‑ Dieter apontou com um gesto um vago longínquo. ‑ Além, na Colina Verde. É uma loucura...

Zumbach baixou a cabeça e os olhos ficaram vermelhos de medo.

A Colina Verde, a Liebigestrasse, naturalmente. A duas ruas dali encontrava‑se a Pensão Sonneck.

Teria então chegado a hora de matar Benno Grossmann?

As duas mulheres, duas irmãs solteironas de idade madura, que dirigiam um atelier de costura na Liebigestrasse, ficavam sentadas à máquina de costura ronronante diante da janela, a maior parte do tempo, e viam tudo o que se passava na rua. Concordaram de imediato quando Benno lhe mostrOu uma fotografia que representava o carro de Margot.

‑ Sim! É esse carro! ‑ gritaram ao mesmo tempo. ‑ Vimo‑lo estacionado aqui!

Levaram Grossmann, Zumbach e Dieter até às janelas diante das quais estavam colocadas as máquinas de costura:

‑ o carro estava parado ali, em frente; víamo‑lo perfeitamente.


Grossmann olhava, com o olhar fixo, para o outro lado da rua. Zumbach também se calava. No entanto, eram pensamentos diferentes dos de Grossmann que o atormentavam. "Que diabo terão estas duas velhas visto mais?", perguntava a si mesmo. "Pensa‑se sempre que um ser humano perdido numa grande cidade é o objecto mais anónimo, mais sem importância, mais pardacento que há... E no entanto há sempre dois olhos para registarem o acidente mais insignificante que agarram no ar e de que se recordam. Não há esconderijo seguro!"

‑ Quantas vezes viram o automóvel estacionar além? ‑ perguntou Zumbach com uma voz sombria.

Grossmann afastou‑se da janela e voltou para o fundo da grande sala estreita. Colocou‑se diante dos cabides onde estavam pendurados vários vestidos semiacabados, prontos para uma primeira ou segunda prova. Com um olhar vazio, observou a parede. Dieter foi ter com ele e pôs um braço à volta dos seus ombros.

As duas mulheres de idade tinham lágrimas nos olhos e juntaram as mãos. "Pobre homem! A mulher desapareceu, ele anda à procura dela por toda a parte e tem de se entregar sozinho a estas buscas porque a polícia desistiu disso. Ah! a polícia, o que é que ela faz de facto? Distribui multas aos ciclistas que não têm farol à retaguarda, aos carros estacionados em sítios onde não devem estacionar... Isso está nas suas normas... Mas Procurar uma mulher desaparecida parece‑lhes uma tarefa muito cansativa!"

Estas mulheres tinham, como sempre, os mesmos pensamentos. Há quarenta anos que elas se encontravam sentadas desde as sete horas da manhã à máquina de costura encostada a uma das janelas, enquanto a vida se escoava sob os seus olhos atrás dos vidros. Também tinham conhecido duas gerações de agentes da polícia, de que podiam falar durante horas da mesma forma que da transgressão que tinha acontecido na frente, em casa do merceeiro Hurake, do suicídio com gás da menina Liselotte por causa de um desgosto de amor, pobre pateta! Da cena de pugilismo entre os esposos Petermann, durante a qual viram o senhor Petermann arrancar a orelha à mulher, tal como de centenas de multas por estacionamento proibido às quais haviam assistido. Mas nunca tinham tido uma mulher desaparecida... Era de facto o máximo das suas exPeriências.

Atormentadas por um sentimento de alegre expectativa, porque uma grande recompensa lhes estava assegurada ‑ dez mil marcos significam um fim de vida feliz, liberto de qualquer cuidado, quando se tem respectivamente sessenta e seis e sessenta e oito anos ‑, olhavam para Zumbach, Postado diante da janela, com os olhos cravados no lugar onde Margot estacionava o carro.

‑ Será que o nosso testemunho pode fazer avançar as vossas pesquisas? ‑ perguntou Hermine, a mais velha das duas mulheres. ‑ Ireis reencontrar aquela que procurais?

‑ É difícil de dizer. ‑ Zumbach deixou cair a cortina que tinha levantado. ‑ Quantas vezes viram o carro aqui parado?

‑ Pelo menos duas vezes... ‑ disse Hermine.

‑ Oh, não, pelo menos quinze! ‑ exclamou Agathe, a mais nova. - Uma mulher jovem, não era? Com os cabelos ruivos? Sempre elegante. "Olha", disse eu muitas vezes à Hermine, "isto é Paris, quer dizer os seus vestidos, modelos parisienses. Nunca conseguiremos atingir aquela elegância!"

Agathe riu, intimidada, com a mão à frente da boca:

‑ Uma vez, até copiei um dos seus vestidos num desenho, enquanto essa senhora saía do carro e se afastava a pé. Ainda tenho o esboço.

Folheou um montão de revistas de moda e de amostras e encontrou o esboço.

Grossmann deitou‑lhe um breve olhar e fez um lento sinal com a cabeça.


‑ Era Margot. Reconheço o vestido que comprámos juntos em Dusseldórf. Agradeço‑vos.

Agathe estava muito contente. Hermine pensava com mais lógica. Agarrou Zumbach por uma manga enquanto ele se dirigia para a porta:

‑ Podemos contar com a recompensa? ‑ perguntou a meia voz num tom insistente.

‑ Se encontrarmos a senhora Grossmann, com certeza.

Zumbach cumprimentou e abandonou o pequeno atelier.

Grossmann parou na entrada, mergulhou uma mão na algibeira e fez deslizar duzentos marcos para a mão de Hermine.

‑ Agradeço‑lhe ‑ disse com voz rouca. ‑ As suas observações constituem uma ajuda preciosa. Voltará a ter notícias minhas.

Duzentos marcos. Hermine e Agathe fecharam imediatamente a porta e caíram nos braços uma da outra.

‑ Domingo, faremos uma excursão à floresta e ofereceremos a nós mesmas um café com natas batidas! ‑ disse Hermine. Era ela quem dirigia as operações. Quando o pai morrera, trinta e quatro anos antes, tinha‑lhe recomendado: "Toma conta da miúda!", e ela dedicara‑se a isso com fidelidade e dedicação.

‑ Comprarei para mim um par de luvas! ‑ exclamou Agathe ‑, e tu o chapéu debruado a pele!

Correram para a janela, sentaram‑se à máquina e

prometeram prestar mais atenção do que nunca ao espectáculo da rua.

Lá fora, Grossmann colocou‑se no preciso lugar que as velhas senhoras tinham assinalado.

‑ Margot estacionou aqui ‑ disse ‑ quinze vezes de seguida! Ou ainda mais. Vocês percebem isto? Vêem nisto o mais pequeno motivo? E depois continuou a pé, para onde? Nesta direcção parece...

Apontava a rua que descia para a esquerda. Zumbach enfiou as mãos nas algibeiras do casaco. A duas esquinas dali, estava a Pensão Sonneck.

"Porque não disseram as duas velhas que eu tinha levado o carro? Não estariam à janela nesse momento? Qual será a hipótese?"

‑ Temos de nos resignar a admitir que Margot levava uma vida dupla ‑ disse prudentemente, ao constatar quanto essas palavras magoavam Grossmann, e pôs‑lhe uma mão no ombro. ‑ Benno, não nos podemos comportar como avestruzes que se recusem a olhar a realidade de frente; convém dizer a verdade, com o espírito perfeitamente calmo: a partir daqui, Margot levava uma outra vida e foi nessa outra vida que se volatilizou!

‑ Deixando o carro na berma da estrada? Com as chaves?

‑ Prova de que cortava todas as pontes atrás de si: "Devolvo‑te o carro!", significava este abandono.

‑ Não posso acreditar.

Grossmann voltou‑se e desceu a rua na direcção que a mulher tomava todos os dias: a da Pensão Sonneck.

‑ Aonde vais? ‑ perguntou Zumbach, com voz rouca.

‑ Sempre em frente... não sei. ‑ Grossmann parou. ‑ Pressinto que a chave do mistério de Margot está por aqui. Sinto‑o. Nesta rua, neste bloco de casas, em qualquer parte... um sentimento estranho, de verdade, como um galgo descobre um caminho que ainda não tinha sido revelado. Conheces isto, Heinrich?


‑ Sim. ‑ Zumbach cerrou os punhos no fundo dos bolsos do casaco. ‑ Metes‑te então por um caminho com o teu galgo: convido‑te para a caça no domingo. Ouve, Benno, não digas que não. Por um dia, um só, sonharás e pensarás noutra coisa sem ser na Margot! às cinco horas da manhã, subiremos para o carro e arejaremos os cérebros! Sentir‑te‑ás bem!

Grossmann respondeu com uma fraca inclinação de cabeça:

‑ Está bem. ‑ Ficou no mesmo lugar e respirou fundo: ‑ Voltemos para casa. Amanhã, inspeccionarei mais atentamente este bairro. Neste momento... sinto o coração cansado...

 

"Domingo!" Heinrich Zumbach subiu para o carro e seguiu os dois Grossmann.

"Durante a caça, é preciso que se passe qualquer coisa. Durante uma caçada, os acidentes são frequentes. o que disse o Benno? Que pressentia algo! " Zumbach agarrou o volante com dureza. Gotas de suor surgiram‑lhe na testa.

"Este medo... este maldito medo. Esta insuportável cobardia de confessar isto: sim, ela era minha amante! Morreu com uma embolia nos meus braços. Só que perdi a cabeça e enterrei‑a. É o meu único crime... e além disso, a indecência de te ter enganado, a ti, meu amigo Benno, e à minha mulher, com a Margot. Desprezem‑me, mereço‑o." Mas quem teria esta coragem?

"Domingo, na floresta, quando se levantarem as brumas matinais... "

Zumbach ofegava de emoção, a camisa estava completamente ensopada de suor.

Estava a caminho de se tornar um assassino por cobardia. Era tão monstruoso que teve medo de si mesmo.

No sábado, Heinrich Zumbach foi à caça na floresta. Disse em casa que tinha de falar com um novo empreiteiro e que ia ver dois terrenos para construção nos arredores de Essen. Num dos dois construir‑se‑ia um café, no outro elevar‑se‑ia uma igreja moderna.

Nem sequer mentia, pois estes projectos existiam, só que os alicerces já tinham começado a ser escavados e Zumbach não tinha qualquer motivo Para visitar os terrenos.

Louise estava habituada a que o marido tivesse ao sábado, e até ao domingo, reuniões com muitas Pessoas. Assim, não se preocupava com os pormenOres, e tinha até o cuidado de preparar sanduíches de paio, porque Zumbach, entre as suas reuniões em vários sítios, evitava almoçar e contentava‑se eM comer uma sanduíche no carro.

Também não era nada de admirar que ele calçassse nesse dia sapatos de sola de borracha. As obras são frequentemente sulcadas por tractores e por camiões, cheias de poças de lama, onde se fica atolado se se calçar sapatos vulgares, e sobretudo nesse sábado, depois de dois dias de chuva.

Zumbach dirigiu‑se directamente para a floresta de Beringer e parou o carro atrás de um pequeno pavilhão de caça de madeira. Um estreito caminho transitável conduzia até ali. No sítio onde esta vereda, que partia da estrada, se metia pela floresta, um poste feito de uma árvore caída ostentava um letreiro indicativo: "Caça privada. Perigo." Até àquele momento, ninguém se tinha arriscado a meter‑se por esse caminho por causa daquele aviso.


Ali, naquele abrigo rústico, Zumbach tinha‑se encontrado duas vezes com Margot. De facto, era um paraíso destinado aos homens, feito para ele e para os seus amigos. Até esse dia, Louise só tinha ali posto os pés três vezes, para tomar parte, como dona da casa, num almoço de caça oferecido a colegas do marido. Ela não gostava de caça e lamentava os infelizes animais que corriam na frente do cano da espingarda de Zumbach, por isso nunca estava presente quando ele caçava.

o plano de Zumbach era simples: Margot desaparecera antes... depois seria o marido. A polícia veria uma relação entre estes dois desaparecimentos e apontaria as suas pesquisas numa direcção que conduziria ao nada. Não havia motivos... nada, a bem dizer, que pudesse justificar a hipótese de uma tragédia familiar.

o suicídio não era admissível. Grossmann não poderia ser vítima de uma chantagem nem espoliado dos seus bens, a sua morte não era de qualquer utilidade para quem quer que fosse. Não tinha inimigos, a fábrica não escondia nenhum segredo de Estado, era estimado por todos os seus companheiros, exactamente como Zumbach, e fazia parte daqueles que são qualificados como bons camaradas.

Benno Grossmann e a mulher tornar‑se‑iam um daqueles casos misteriosos onde ninguém vislumbra um motivo aceitável. Desapareceriam para sempre. Porquê? Para onde? Perguntas simples que ficariam sem resposta.

Zumbach tirou uma pá da arrecadação das ferramentas e também uma picareta, que pôs ao ombro. Depois pendurou um pequeno machado à cintura e afastou‑se do abrigo em direcção ao norte. Ali, uma centena de metros mais longe, começava uma zona florestal marcada por cumes naturais e cortada por encostas escarpadas onde crescia uma espessa floresta pré‑histórica, com bosques cerrados, num solo esponjoso que exalava um cheiro constante de podridão pantanosa. Não se caçava nada ali. Apenas durante as batidas os monteiros passavam aquela reserva florestal a pente fino.

"É um terreno esquecido", dizia Zumbach, e esta fórmula "tornou‑se a designação daquele terreno esquecido" tornara‑se uma imagem concreta que agradava a Zumbach. Uma "mania", dizia ele aos seus companheiros de caça. "Quero ser um dos raros proprietários de solo virgem onde, quem sabe?, uma nova variedade de Sáurios virá a aparecer."

Zumbach abriu um caminho através dos altos fetos e dos silvados até perto de um regato que corria naquele canto deserto. Havia até naquele lugar um casal de castores, uma raridade, que tinham construído a sua fortaleza numa margem. Zumbach proibia todos os amigos de dispararem sobre eles... e no dia seguinte iriam servir de chamariz para Grossmann!

Durante todo o dia, Zumbach cavou uma fossa‑armadilha na vizinhança do regato: media dois metros de comprimento e de largura e três metros de profundidade... foi um trabalho abominavelmente duro.


Ao meio‑dia, comeu os pãezinhos recheados de Louise e bebeu dois golos de conhaque contido no seu frasco de algibeira, e depois voltou a cavar. Finalmente, saiu da fossa acabada com a ajuda de dois chuços e pôs‑se a tapá‑la com um entrelaçado de ramagens, que deviam dissimular a abertura. juntou ramos, fetos, musgo, depois lançou sobre eles uma fina camada de terra, alguns raminhos e folhagem e pôs de lado até à noite a terra retirada do buraco, que atirou em seguida com a pá para um recôndito do terreno, colocando‑lhe por cima alguns ramos grandes. Finalmente, de pé diante daquele canto de terra florestal armadilhada, regozijou‑se com o seu trabalho. Nem sequer ele reconheceria o sítio exacto e arriscava‑se a cair na armadilha, tão bem preparada ela fora. Grossmann não tinha qualquer hipótese de escapar se ele o atraísse para ali... para se aproximar dos castores, tinha de passar por cima da cova. o que iria então acontecer ainda não estava decidido no espírito de Zumbach.

Havia várias possibilidades: ou Grossmann daria uma queda de três metros e partiria o pescoço então seria mesmo um acidente e ele poderia prevenir a polícia e sem dúvida a censura de o ter conduzido imprudentemente ficaria ligada à sua pessoa, mas esqueceriam isso depressa ‑; ou Grossmann sobreviveria à queda ‑ e então havia duas soluções: ou abandoná‑lo à sua sorte, ou esperar que ele morresse de fome e de sede e entulhar então o seu túmulo. Mas era tudo tão cruel e satânico que Zumbach rejeitou imediatamente esse pensamento. Tremeu ao imaginar Grossmann a definhar lentamente, próximo da loucura, enrouquecido à força de gritar, enterrando as unhas nas paredes de terra que o encerravam, prisioneiro num buraco onde via chegar o dia, a noite, e de onde a sua voz já não conseguia sair.

"É um fim que Benno não merece pensava Zumbach. Decidiu então abater Grossmann. depois da queda no fundo da armadilha, e a seguir cobrir o corpo com terra. Mas este plano também tinha inconvenientes.

Conseguiria disparar sobre Benno? Teria ele, Zumbach, coragem para meter o cano da espingarda no interior da fossa e puxar o gatilho? Poderemos nós disparar sobre um amigo quando ele grita por socorro?

Zumbach voltou a tremer para o abrigo de toros de madeira, atirou as ferramentas para a arrecadaÇãO, limpou os sapatos de sola de borracha na barrica da água da chuva e fumou, enervado, quatro cigarros de seguida. Isso não o acalmou, mas foi honesto para consigo mesmo quando disse em voz alta:

‑ És doido, completamente doido! Vá, confessa a verdade...

Tendo tomado essa resolução, voltou para casa. Louise recebeu‑o com um beijo e disse‑lhe: "Pobre querido, ficaste até agora nessas obras..." Tudo desabou dentro dele. Retribuiu‑lhe o beijo, sentou‑se no sofá, escondeu‑se atrás do jornal, enquanto a criada punha a mesa e Louise, na cozinha, lhe fazia o prato.

"Não o posso fazer!" Esta constatação atravessou‑o como um tiro. "Tudo se perderia... o meu casamento, a organização da nossa existência, o nosso futuro... "

Sabia que entraria num círculo infernal, numa engrenagem sem regresso, se não fosse capaz de sacrificar a sua pessoa.

Traumatizado por esta situação sem saída, deitou a cabeça para trás e encostou‑a ao espaldar do sofá. Louise entrou, trazendo um guisado que cheirava requintadamente.

‑ Não te sentes bem, Heinrich? ‑ perguntou, preocupada.

Zumbach levantou‑se de um salto. o jornal desfolhou‑se no tapete.

‑ Estou apenas fatigado ‑ disse excitado - terivelmente fatigado, todo o dia ao ar livre...

 


às quatro horas da manhã, Grossmann tocou à porta da casa dos Zumbach. Os batentes da porta eléctrica afastaram‑se, deslizando para o lado, ele conduziu o carro para a garagem dupla e fechou‑a. O carro de Zumbach já estava pronto para partir, parado na larga avenida. Na entrada brilhavam preciosos lustres de cristal.

‑ Sempre pontual, Benno! ‑ exclamou Zumbach, enquanto introduzia Grossmann em casa. - Louise pede desculpa, mas dorme a sono solto!

Riu muito alto, atirou a bolsa de caça para cima do ombro e tomou a espingarda nos braços.

‑ Tu conhece‑la, ela toma os caçadores por verdadeiros brutos! Tens aguardente contigo, Benno?

‑ Sim, e famosa.

‑ Então, partamos. Reservo‑te uma surpresa: tens o direito de apanhar um castor!

Grossmann olhou para o amigo, surpreendido:

‑ Mas a sua caça é proibida!

‑ Não na minha casa! No meu "terreno esquecido", sou eu quem decide o que se pode caçar. Quero dar‑te esse prazer, Benno.

Grossmann trouxe os apetrechos de caçador do seu carro para o de Zumbach, depois destapou o frasco de aguardente e estendeu‑o ao amigo.

‑ Aqui está o que te vai fazer alvejar com precisão! ‑ disse.

Zumbach bebeu e sentiu um arrepio quando Grossmann acrescentou:

‑ Boa caça!

‑ Obrigado ‑ respondeu Zumbach num tom arrogante.

‑ Sobe, Benno...

Na floresta de Beringer, a noite ainda se estendia debaixo das grandes árvores quando eles chegaram ao abrigo de caça, acenderam o fogão a gás, e colocaram a chaleira para o chá. Tinham antecipadamente partilhado as tarefas: Zumbach faria o chá, Grossmann ocupar‑se‑ia do equipamento. Benno preparava naquele momento as espingardas, carregava‑as, engatilhava‑as na segurança, enchia os bolsos dos casacos de tabaco e de cachimbos, e também de salsichões, sem esquecer um frasco de aguardente de cevada.

‑ Pronto? ‑ perguntou.

‑ Pronto! ‑ disse Zumbach em surdina.

‑ Quero agradecer‑te.

‑ Porquê?

‑ Que me levas para outros pensamentos durante algumas horas. Tu és um tipo porreiro, Heinrich, um verdadeiro amigo.

‑ Acaba com essas considerações idiotas!

‑ Não, repito‑o: os verdadeiros amigos são raros. Procuramo‑los à lupa...

‑ Fazes‑me corar! ‑ Zumbach colocou copos para o chá e pãezinhos na mesa. ‑ Fecha a boca, meu velho, nós não somos mulheres, que não perdem uma ocasião de chorar em comum!

"Não serei capaz", este pensamento atravessou‑o de lado a lado. "Não o posso matar. Não sou um assassino. É preciso ter nascido para isso. Mesmo que seja por medo ou por desespero, matar um homem de quem se gosta deve ser o resultado de uma espécie de demência, de um curto‑circuito no cérebro."

Viu Grossmann comer os pãezinhos com apetite, despejar aguardente no chá e fazer o mesmo no de Zumbach. Beberam à saúde deles, chocando os copos cheios de chá como perfeitos amigos, como há poucos neste mundo.


Zumbach levantou‑se de um salto. Sentia uma angústia insuportável.

‑ Vamos embora! ‑ disse, respirando com dificuldade. ‑ o dia já está a aparecer.

Por cima da floresta de Beringer, o céu era percorrido por faixas coloridas. Nuvens avermelhadas passavam baixo, tocando os cumes. Ainda fazia escuro, mas, a leste, a palidez do novo dia rompia a noite.

‑ Onde vamos? ‑ perguntou Grossmann, caminhando atrás de Zumbach. ‑ Ao "terreno esquecido"?

Zumbach não se voltou.

‑ Não! ‑ disse ele, acelerando o passo na clareira. ‑ Os cabritos‑monteses machos concentram‑se aqui ao amanhecer...

‑ Eu julgava... tinhas falado em castores...

Zumbach respondeu com um aceno de cabeça. Foi preferível que Grossmann não tivesse visto a cara dele nesse momento, mas apenas a nuca.

‑ Pensei melhor, Benno. Os castores e a protecção da natureza... tu tens razão. Esqueçamos o castor que te prometi, proponho‑te em troca um belo cabrito‑montês... Esqueçamo‑lo...

Esquecer! Esquecer!

"Nunca poderia matar Benno... "

Nessa manhã, Grossmann caçou o mais belo cabrito‑montês da sua vida.

Durante algumas horas, esqueceu Margot e fiCOU Profundamente reconhecido a Zumbach.

Os acasos são os prodígios prometidos aos indivíduos perplexos. Heinrich Zumbach agarrou de passagem uma ocasião inesperada, como um homem que se afoga se agarra a uma tábua que voga à tona de água.

 

Lilo Bender, a sua secretária, veio anunciar‑lhe a partida na segunda‑feira. Ficou surpreendido.

‑ As minhas férias começam amanhã, senhor Zumbach ‑ explicou‑lhe a jovem. ‑Tinha‑se esquecido?

‑ As suas férias? Ah, sim! ‑ Zumbach passou a mão pela testa. ‑ Nestes últimos tempos tenho tido um tal reboliço à minha volta... Naturalmente, você vai de férias e eu desejo‑lhe muito repouso e muito sol, Lilo! Para onde vai?

‑ Para Maiorca!

‑ Maiorca? Durante quanto tempo?

‑ Três semanas. Divirto‑me imenso com essa permanência.

Lilo Bender regozijava‑se tanto quanto uma rapariga se pode regozijar com o pensamento das suas férias. Não notou, portanto, que Zumbach tinha ficado pensativo e que a olhava com a cabeça pendida.

Maiorca! Que ideia! Zumbach ficou nervoso intimamente com esse pensamento. Era uma escapatória que respondia a tudo. Como é fácil de encontrar a solução dos problemas quando nos chega a inspiração!

‑ Maiorca! ‑ repetiu Zumbach deslumbrado. ‑ Far‑me‑á um serviço, Lilo, se eu lho pedir?

‑ De boa vontade, senhor.

‑ Trata‑se de uma brincadeira entre velhos camaradas.

Zumbach sentou‑se e examinou a face de Lilo Bender para ali descobrir a surpresa. Mas era uma rapariga sem desconfianças. Prestar um serviço ao patrão era uma honra. Não se pensa muito nessa espécie de coisas.


‑ Escrevo uma carta ‑ continuou Zumbach lentamente, articulando cada uma das palavras ‑ e você deita essa carta em Maiorca. É tudo. Ponha‑a numa caixa dos correios de Maiorca. É importante, só a meta lá!

Tirou a carteira do bolso e fez deslizar duas notas de cinquenta marcos por cima da mesa. Lilo Bender corou, embaraçada.

‑ Não posso aceitar isso, senhor Zumbach - balbuciou.

‑ Pode sim, é um pequeno contributo à margem para a sua viagem. E boca calada! Agora partilha um segredo com o patrão. - Zumbach riu e encostou‑se confortavelmente. ‑ Venha buscar esta carta daqui a uma hora, Lilo,... Como acabo de lhe dizer é apenas uma brincadeira: colabora comigo, Lilo?

‑ Com certeza, senhor Zumbach.

Zumbach esperou que Lilo voltasse para a sua sala de secretariado, então tirou da gaveta da secretária uma pequena máquina de escrever portátil e dactilografou algumas linhas numa simples folha de papel branco.

"Uma pista que se perde ao longe... ", pensava, feliz por ter encontrado aquela saída. "Benno vai julgar que Margot fugiu para outro mundo com um amante... e não sozinha, de certeza.

"Será certamente dura para ele, mas acabará por se habituar. Engolimos melhor as decepções que os mistérios. Antes de tudo, deixará de procurar Margot... E eu serei libertado deste medo, deste medo ignóbil... "

Colou o sobrescrito, pesou‑o na mão e sorriu com um rosto transtornado:

‑ Vinte gramas, tal pode ser o peso do destino. Vinte gramas insignificantes e temos a paz!

Ao fim de uma hora, Lilo Bender veio buscar a carta. Uma cúmplice que não sabia que o era.

‑ Onde é que a vai meter? ‑ perguntou Zumbach com o indicador esticado.

‑ Nos Correios Centrais de Palma.

‑ Quando?

- Amanhã à tarde.

‑ Muito bem.

Zumbach apertou a mão de Lilo Bender.

‑ Volte muito bronzeada e repousada, mas tome conta com os ardentes espanhóis: são embriagantes como o vinho maduro!

‑ A minha mãe vai comigo, e acredite, é das mais severas!

‑ Com uma filha tão bonita...

Zumbach acompanhou Lilo até à porta do seu atelier e seguiu‑a com um olhar pensativo, enquanto ela se afastava rapidamente pelo longo corredor que levava ao secretariado.

Sentia‑se aliviado, embora isso fosse prematuro da sua parte. o peso interior afastava‑se, sentia‑o nitidamente.

"Margot em Maiorca! Que alívio!"

 

As pesquisas ligadas à desaparecida continuavam. Todas as repartições de polícia estavam agora de acordo. A fotografia de Margot encontrava‑se nos registos da Interpol, nas esquadras de polícia tinham afixado estas linhas:

Quem pode dar informações que digam respeito a Margot Grossmann? Para onde fugiu ela? Quem é que a viu? Margot Grossmann vestia no dia do seu desaparecimento...

Oferece‑se uma recompensa de...


Mas ninguém disse nada a este respeito. As pesquisas simultâneas empreendidas por Grossmann no Bairro da Colina Verde não deram resultado. Passou incansavelmente pelo crivo todas as lojas, mostrou a fotografia de Margot, interrogou sem descanso, esquadrinhou entre as recordações dos seus interlocutores... em vão.

Um grande silêncio cobria a pouco e pouco a desaparecida... um ser humano isolado não passa de uma gota de água evaporada no asfalto de uma grande cidade.

Grossmann passou até diante da Pensão Sonneck, mas era apenas um homem, não tinha os poderes de detecção de um cão, não descobriu a pista ainda fresca, mas Zumbach, que o acompanhava, sentia o suor a correr‑lhe na nuca. Consumia‑se interiormente.

‑ Desiste ‑ disse mais tarde. ‑ Benno, estás a destruir‑te aos poucos. Sejamos cruelmente verdadeiros. Margot não merece que te destruas por sua causa! Olha por ti!

Uma semana mais tarde, chegou a carta enviada de Maiorca. Lilo Bender cumprira a sua missão sem se atrasar. Grossmann leu aquelas linhas a tremer como se fosse assaltado por um vento glacial.

‑ Isto é mesmo idiota! ‑ exclamou Dieter. - Margot nunca escreveria à máquina.

Chamava sempre Margot à madrasta, porque só tinha seis anos de diferença dela.

‑ Mas lê, apesar de tudo; lê, apesar de tudo! - berrou Grossmann ‑ Ei‑la: "Estou em Maiorca. Não te preocupes, Benno... Estou feliz e quero continuar assim. Nunca me perguntes porque tudo isto aconteceu... Esqueçamo‑nos um ao outro. Escrevo esta carta à máquina porque a minha mão treme... mas devo escrevê‑la. Adeus, Benno. Felicidades. Perdoa‑me se puderes. Margot." Será isto uma explicação?

Dieter abanou a cabeça. Também evitava olhar para o pai.

‑ Margot nunca escreveria dessa maneira.

‑ o que é que tu sabes disso? ‑ Grossmann correu para o telefone e marcou o número de Zumbach. ‑ Não sentes, então, ao ler essas linhas, que ela tem remorsos? Que tem vergonha?

Dieter olhou para o pai em silêncio. "Pobre velho! Danças na corda bamba, embora não haja nem sombra de corda!", pensava.

Zumbach. Estava no escritório. Grossmann tentou dominar o ritmo da respiração antes de falar.

‑ Heinrich... Daqui Benno. Tenho notícias de

Margot! Sim! Estás espantado, não? Uma carta, uma carta apenas. Mas ela está viva! Onde? Em Maiorca! Quem teria desconfiado? Estivemos lá no Verão passado... tão felizes... e agora ela está lá... o que é que eu vou fazer? Ignorar esta carta? Rasgá‑la? Estás louco. Amanhã tomo o avião para Palma, o primeiro que houver nesta linha. Trarei Margot de volta...

Com o rosto fechado, Zumbach desligou. Pobre Benno, nesse momento voltava‑se cheio de esperança para o nada. As pistas estavam apagadas... definitivamente.

Estariam na verdade?

 

Grossmann voou sozinho para Maiorca, pois Dieter recusou‑se a segui‑lo:

‑ Durante esse tempo, ocupar‑me‑ei do mistério relacionado com o carro de Margot, procurarei a razão pela qual estacionou tantas vezes na Liebigestrasse. Duas pistas valem mais que uma... além disso, pai, mesmo com o risco de te magoar, não acredito na autenticidade dessa carta.


‑ Quem é que tu queres que a tenha escrito? E Porquê? ‑ indagou Grossmann.

Colocou‑se na fila de espera das pessoas que iam tomar o avião da Air France para Marselha. Ali, apanharia outro avião para a ilha de Maiorca. Já não havia mais voos directos nesse dia.

‑ Ouve, há o carimbo dos Correios de Palma... ‑ insistiu.

Dieter não tinha qualquer explicação para dar como resposta. Fez adeus ao pai logo que as portas se abriram e os passageiros do avião que ia partir se dirigiram para o aparelho, que cintilava ao sol. Grossmann voltou‑se ainda para lhe responder.

"Pobre velho", pensava Dieter afastando‑se. "Ela enganou‑te sistematicamente e tu ainda a amas, ainda corres atrás dela, mentindo a ti próprio. Porque sabes perfeitamente que a Margot está perdida para ti e que persegues apenas uma sombra. Quer ela se esconda aqui, em Maiorca ou no pólo norte... Nunca mais voltarás a trazê‑la para tua casa."

Logicamente, Benno Grossmann não tirou qualquer proveito da sua viagem. Ruminando sombriamente, com o olhar perdido no vácuo, sentou‑se num lugar forrado de branco, prendeu o cinto quando a voz da hospedeira o ordenou, depois desprendeu‑o, comeu sem alegria qualquer coisa que lhe serviram, mudou de avião em Marselha, olhou com um olhar parado para o Mediterrâneo de um azul eléctrico por baixo dele e abandonou o avião no aeródromo de Palma, com o mesmo sentimento aterrador de um vazio interior absoluto. Como que incendiado no âmago do seu ser, parecia‑lhe não passar de escória.

Num táxi, que conseguiu a troco de pesetas e graças a uma sorte especial, rolou para Palma e foi até à maravilhosa Praça da Catedral. Não tinha dado o nome de qualquer hotel, contentando‑se em dizer ao motorista: "Palma!" Por isso, o táxi parou no centro da cidade. o motorista abriu a porta e fez‑lhe um sinal de cabeça:

‑ Buenos dias, señor!

Ponto final.

Grossmann desceu do táxi, foi pôr‑se à sombra de uma casa e abriu o desdobrável de viagem impresso em cores vivas que lhe tinham dado no balcão de embarque do aeródromo.

A lista dos hotéis. Nomes românticos, mas só conhecia o "Palma Nacional", onde tinha ficado com Margot. Quatro semanas radiosas. Um céu sempre soalheiro, noites tão ardentes como os dias, porque o amor de Margot era mais ardente que os calhaus saturados de calor jacentes à beira‑mar.

"Ela foi sempre uma criatura de luxo", pensou Grossmann. Mas isso sempre lhe tinha agradado, reflectia o brilho que emanava da sua beleza, e ele divertia‑se a adivinhar o interesse manifestado pelos outros homens. Ela pertencia‑lhe, só a ele... era um triunfo, no qual, ao longo dos anos de vida conjugal, investira uma fortuna.

Grossmann fora sempre um homem metódico... o progresso da sua fábrica, que tinha herdado do pai com doze empregados e que presentemente contava com dois mil operários, era disso uma prova.

"A lógica é o segredo do êxito", gostava de repetir. Até esse momento, aquela fase sentenciosa nunca o tinha traído.


Grossmann começou a ronda dos hotéis no Miramar. o recepcionista, sentado atrás do balcão da recepção, de madeiras preciosas, mandou buscar o registo dos hóspedes e fôlheou‑o.

‑ Señora Grossmann? ‑ perguntou, seguindo COM o dedo a lista de inscrições. ‑ Lamento, não... não há nenhuma Señora Grossmann aqui. Ela veio mesmo para cá?

‑ Não sei.

Grossmann tirou uma fotografia da algibeira, onde se via Margot em vestido de noite de brocado verde, com uma capa de chinchila lançada negligentemente sobre os ombros nus. Uma fotografia real.

o recepcionista examinou a fotografia com uma espécie de respeito: ele conhecia bem as mulheres bonitas. Palma estava saturada delas... de Janeiro a Dezembro.

Ilha de mulheres bonitas, ilha do amor, ilha do silêncio, das felicidades conquistadas ou compradas.

‑ Trata‑se de um assunto importante ‑ disse Grossmann quando notou a reserva disfarçada do porteiro. ‑ Não sou detective, sou notário na Alemanha. A senhora Grossmann herdou uma herança importante pela morte de um tio. Esta herança compreende terrenos situados aqui em Maiorca e em Ibiza. Sabemos apenas que a senhora Grossmann está cá desde há algumas semanas, mas ignoramos a sua direcção. Se nos pudesse ajudar...

Fez deslizar sobre o balcão uma grande nota de banco.

o porteiro pôs uma mão em cima dela e disse com um ar de pena sincera:

‑ A senhorita não está hospedada aqui.

‑ E nunca a viu?

‑ Lamento, Acredite, tê‑la‑ia notado!

Grossmann continuou as suas buscas do Hotel Palma Star para o Hotel Olívia, do Hotel Nacional para o Mimosa. Em todo o lado, era a mesma coisa: registos folheados, exame das fotografias, explicações relacionadas com a herança, uma nota no balcão da recepção, desculpas sinceras, palavras de admiração pela beleza de Margot.

Pelo fim da tarde, Grossmann estava sentado no jardim do Nacional, onde tinha alugado um quarto e tomado um duche frio depois daquele dia esgotante. Estava agora instalado à sombra de uma palmeira e via a alegre animação que reinava na piscina, ao mesmo tempo que fazia o balanço daquele primeiro dia.

Os grandes hotéis tinham sido um falhanço. Restavam as pensões familiares. E quem é que dizia que Margot morava em Palma? Um carimbo postal não é uma prova... podia ter metido a carta na caixa durante uma visita à cidade.

Talvez naquele momento ela se estivesse a bronzear numa das numerosas baías à beira‑mar... Toda a ilha não passava de uma praia soalheira, onde os hotéis e as pensões se sucediam como as pérolas de um colar nas costas de Maiorca.

"Gastarei uma fortuna em telefone", pensou encostando‑se no sofá acolchoado do jardim. "Começarei amanhã de manhã... Telefonarei para todos os hotéis, para todas as pensões, à volta de toda a ilha! Não contaste com a minha teimosia Margot!"

Quando a noite chegou, foi também à grande festa da ilha, no Nacional. Vestido com um smoking branco que o criado de quarto lhe tinha arranjado, Grossmann debruçava‑se atrás de uma coluna próxima da orquestra para inventariar a sala.


No ondear da multidão, julgou ver a cabeça de Margot... Abriu caminho por entre os dançarinos e chegou junto de um casal estreitamente enlaçado, que ultrapassou logo que reconheceu o seu erro. "Se Margot estivesse em Palma, teria vindo a esta festa de Verão... Está ali o seu universo, o seu estilo, a confirmação necessária da sua beleza", pensou.

Vagueou ainda através do salão, sentou‑se no bar gigantesco, deslizou à volta da imensa piscina, onde, sentados em cadeiras de praia coloridas, se divertiam os casais de namorados, depois atravessou o jardim, desculpando‑se quando assustava os amantes ou os surpreendia em atitudes por causa das quais lhes convinha permanecer no escuro. Finalmente, voltou para o salão de festas e tentou acalmar os nervos excitados com a ajuda do álcool.

Embebedou‑se até perder a noção das coisas. Um groom ajudou‑o a voltar para o quarto, tirou‑lhe os sapatos e o fato e meteu‑o na cama.

A noite foi terrível. Sonhou com Margot. Viu‑a correr nua através da floresta, perseguida por uma matilha de cães que tinham cabeças de homens com expressões lúbricas, com olhos corrompidos. Ele mesmo, amarrado a uma árvore, era obrigado a assistir, impotente, ao ataque de Margot pelos molossos, que, com uivos de triunfo, a despedaçavam com os dentes.

Mas não era tudo. Os despojos do corpo continuavam dotados de vida. As pernas afastavam‑se a saltitar, tal como os braços, a cabeça, o corpo, os seios, cada parte da sua pessoa, numa direcção diferente.

Esta visão mudou. Margot apareceu num barco a motor. Um fora‑de‑borda de corridas, sofisticado, com o mogno a brilhar. Ela estava ao leme e corria através do mar cujas águas esguichavam para todos os lados enquanto ele mesmo, Benno Grossmann, seguia na sua esteira, com o pescoço preso num só corredio, batido pelas vagas, com o corpo coberto de feridas, sentindo a pela arrancada aos pedaços. E Margot ria, ria e aumentava a velocidade...

Com um grito abafado, Grossmann sentou‑se na cama. Precisou de alguns minutos para voltar a si. Maiorca. Um quarto de hotel. A cabeça ardia‑lhe sob o efeito do álcool absorvido. A língua era um ignóbil farrapo de couro.

Levantou‑se a vacilar, foi até à casa de banho e encostou‑se à parede. o duche borrifou‑o com uma chuva gelada, mas parecia‑lhe que aquela água se evaporava logo que entrava em contacto com a sua pele ardente.

Mandou vir a lista dos telefones de Maiorca com o pequeno‑almoço. A partir desse momento, a instalação telefónica do Nacional não parou de ter uma linha ocupada pelo quarto 148.

Todo o dia.

Um cego no deserto chamava em vão por um surdo.

 

Ao fim de oito dias, Dieter procurou conselho junto do único amigo do pai, Heinrich Zumbach.


Em casa dos Zumbach, a vida continuava o seu curso na via do êxito assegurado a um arquitecto da moda. Novos contratos, uma escola, duas casas, uma piscina... o atelier de Zumbach trabalhava a ritmo acelerado. o tempo dos seus subordinados estava cheio de projectos extraordinários, de construções nunca vistas, que fixavam solidamente a fama de Zumbach. Ele próprio apenas se encarregava do primeiro esboço, de distribuir as ideias, da Primeira faísca que animaria o projecto... e os pormenores eram confiados aos seus colaboradores.

o casal Zumbach não tinha qualquer notícia de GrOssmann, desde a sua partida. Dieter também estava sempre ausente quando eles lhe telefonavam. Andava de um lado para o outro como um gato que sentiu a presença de um rato, farejando o bairro à volta da Liebigestrasse. Obedecia a pressentimentos mais realistas que os do pai.

No raio de dez quarteirões habitacionais, havia duas pensões e um pequeno hotel. Em três casas alugavam de vez em quando quartos ‑ à hora. Refúgios para secretas "horas de almoço". Paraísos que se evaporavam como névoa ao barulho da cegarrega de um despertador de bolso. Ilhas de pecado.

Dieter, o estudante, conhecia essas alegrias clandestinas. Contam‑se muitas coisas nas universidades entre camaradas de estudos: experiências pessoais, segredos de velhos senhores. Pacientemente, conduziu o seu inquérito nas pensões e nas casas que alugavam quartos ao dia. Não esperava qualquer resposta às suas perguntas, mas observava os olhos dos que interrogava. Encontraria aí a resposta, se Margot tivesse ocupado um daqueles quartos. Pode‑se disfarçar o assombro, mas ele fica inexoravelmente anichado nas pupilas.

Foi também a casa da senhora Megges, mas ali também houve o mesmo movimento de abanar a cabeça num sinal de negação, um olhar calmo, embora interessado:

‑ Não conheço. Lamento. Mesmo por dez mil marcos, é‑me impossível identificar uma pessoa que nunca vi ‑ disse ela.

Albertine Megges não ficou aborrecida por ver afastar‑se aquele jovem inquiridor. A seguir, sentou‑se na cozinha, pensou na modesta indemnização que Zumbach lhe tinha dado e decidiu reabrir a torneira das gratificações.

Dez mil marcos de recompensa... ‑ o silêncio devia ser cotado tão alto como a palavra. Estava velha, endurecida pelos negócios. A palavra "extorsão" não figurava no seu vocabulário. Considerava o seu plano mais do ponto de vista justificável dos negócios. Conservou, portanto, a consciência limpa e procurou numa lista telefónica o número do telefone do atelier de Heinrich Zumbach.

 

‑ Acreditas que ele obtenha algum resultado concreto? ‑ perguntou, uma noite, Louise Zumbach ao marido.

Estava sentada junto dele frente à televisão. Louise estava à espera do começo da transmissão de uma opereta. Heinrich lia o jornal.

‑ o quê? ‑ perguntou distraído.

‑ Benno, em Maiorca!

‑ Façamos votos que sim!

‑ Temo que a viagem não lhe dê qualquer satisfação.

No écran, o sinal anunciava uma pausa, traços coloridos em eclipse duravam ainda.

‑ Tu também acreditas que Margot se foi embora com outro homem? ‑ insistiu Louise.

‑ Sim. ‑ Zumbach largou o jornal. ‑ Benno devia cuidar mais dele. Nunca tive confiança em Margot, mas ele é teimoso e cego.

‑ Ele ainda a ama.

‑ E nós devíamos decidir abandonar este tema de conversa.


Zumbach encostou‑se no sofá. Música. Primeira imagem: um castelo e por cima o título.

‑ Nós temos que chegue com os nossos próprios problemas, querida. Pela minha parte, tenho de construir uma escola, eu que nunca as pude aguentar!

Riu com um riso que queria descuidado e que soava angustiado.

Louise despejou‑lhe outro copo de cerveja. Quando pousou a garrafa, ele agarrou‑lhe bruscamente na mão e depositou nela um beijo. Espantada, baixou o olhar sobre a cabeleira grisalha dele. Seria o impulso de ternura uma consequência do copo de cerveja? o seu casamento era feliz de facto, mas da parte dele os gestos de pura galanteria tinham‑se tornado raros. Era a felicidade de uma união sem nuvens... Parecida com um dia de Verão, já não eram os arrebatamentos fogosos da Primavera.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela campainha da porta de entrada e a criada introduziu Dieter Grossmann. Zumbach baixou o som da televisão e suspirou. Louise respondeu ao seu olhar. Margot! Não a podiam esquecer um só dia! Quer estivesse presente, quer tivesse desaparecido sem deixar pistas, conseguia sempre que pensassem nela!

‑ Alguma coisa de novo em Maiorca? ‑ exclamou Zumbach apontando com um gesto o grande sofá forrado de couro. ‑ Sente‑se, Dieter. Uma cerveja? Um aperitivozinho? Que estudante diria que não?

Dieter sentou‑se.

Louise ocupou‑se dos copos e das bebidas.

No écran apareceu um cantor, do qual mal se percebia a voz porque o som estava baixo. Só se viam os esgares e era um espectáculo ridículo.

‑ Vim por causa disto ‑ declarou Dieter. - o pai não me dá nenhuma notícia e já telefonei nove vezes para o Hotel Nacional... Manda sempre dizer que está ocupado e que não tem tempo...

‑ Será talvez verdade? Benno volta a descobrir a vida! ‑ concluiu Zumbach.

Mas Dieter não estava com humor para se entregar a piadas lascivas, engoliu a bebida de um trago e lançou a Louise um olhar em que suplicava o apoio dela:

‑ Estou preocupado. o director do hotel disse‑me, quando telefonei pela nona vez, que o meu pai já gastou quinhentas e noventa e duas mil pesetas em chamadas telefónicas. Bloqueia uma das linhas só para ele, e como o hotel só tem duas linhas, o homem está desesperado.

Zumbach deu uma gargalhada como se se tratasse de uma piada com êxito. julgava ver os espanhóis, de mau‑humor, a acometerem Benno Grossmann, primeiro polidamente, depois cada vez com mais veemência, enquanto Benno, impassível, não arredava do seu lugar, colado ao telefone, onde discava número após número.

‑ É preciso tentar qualquer coisa ‑ concluiu Dieter. ‑ Nunca conseguiremos trazer o pai de Maiorca com a ajuda de argumentos razoáveis. Não voltará antes de ter telefonado para todos os hotéis e pensões da ilha. É uma loucura e ele sabe‑o... mas teima nisso. Quer aturdir‑se a si próprio e poder dizer: "Tentei tudo o que era humanamente possível!" É uma bebedeira masoquista!

Dieter levantou‑se de repente e deu a volta ao aparelho de televisão.


‑ Pensei que podiam mandar um telegrama ao pai a dizer que tinham encontrado uma pista de Margot. Então viria imediatamente.

‑ Como, eu? ‑ Zumbach olhava sem ver a imagem oferecida pelo écran do televisor, La Pusta, uma fotografia de atelier de relva artificial. ‑ Para que em seguida ele me arranque os olhos? Vai lá tu, Dieter, porque neste momento ele deve ter uma necessidade desesperada da tua presença. Conheces o teu pai: um colosso com os pés de barro.

Zumbach inclinou‑se, aumentou o som e os trinados de uma opereta alegre, alada, encheram o salão.

‑ Louise, mais uma cerveja...

Ao fim de uma hora de televisão, Dieter despediu‑se.

Louise acompanhou‑o até à porta. Estava triste e desamparado.

‑ É preciso que te ocupes a sério de Benno - disse ela, quando voltou e se sentou ao lado de Heinrich. ‑ Além de tudo, trata‑se do teu melhor amigo.

Zumbach resmungou algumas palavras ininteligíveis e, apontando para o écran, gesticulou:

‑ Silêncio! As notícias!

No canal de Suez, novas trocas de tiros. Nenhum avião desviado.

Nem bombardeamentos. Nem crimes sexuais. Nem assaltos a bancos.

‑ Amanhã, tenho uma reunião com a igreja local ‑ disse Zumbach, que bocejou e se dirigiu para o quarto.

 

Em Maiorca, Grossmann continuava a telefonar. Mas, como sempre que a vida parece estagnar, um facto inesperado perturbou esta paz aparente. A casa dos Zumbach chegou um postal enviado de Marrocos.

o grande fabricante de materiais de construção Windrock enviava as suas lembranças do país dos dromedários e das mulheres veladas. E acrescentava no velho estilo do estudante bebedor de cerveja. "Aqui, as mulheres parecem‑se com cartuchos‑surpresa, nunca se sabe o que contém a embalagem! Até agora, no entanto, acertei sempre no bom cartucho!"

Marrocos! Uma faísca brilhou no espírito de Zumbach. Procurou na sua secretária, ao lembrar‑se que tinha guardado um postal trazido de uma viagem ao Norte de áfrica, havia quatro anos. Tivera a intenção de o colar num álbum, mas, tal como acontece muitas vezes, tinha‑se ficado pela intenção.

‑ Marrocos.

Zumbach encontrou o postal numa pasta de antigos projectos de construções. Uma vista geral de uma cidade do Oriente mais feérica do que real: mesquitas, minaretes, casas‑brancas com os telhados em terraços, populações com djellabas deslumbrantes. A velha cidade real: Tetuão.

"Vá lá, agora vai ver um pouco de outro país, Benno", pensou Zumbach.

Não havia nada de sarcástico naquele voto, que lhe era inspirado pelo medo constante da sepultura solitária no fundo do bosque.

"Tetuão é uma cidade maravilhosa, devias visitá‑la e ao seu bazar, Benno... "


Zumbach escreveu de novo algumas linhas no postal com a ajuda da sua pequena máquina de escrever. Depois meteu o postal num sobrescrito, rabiscou algumas palavras para o seu velho camarada Windrock e foi ele mesmo meter a missiva no correio. Por avião, carta‑expresso.

"Trata‑se de uma brincadeira", tinha escrito a Windrock. "Meta essa carta em qualquer parte de Marrocos, peço‑lhe. Se se esquecer de o fazer, desejo que Alá lhe reserve num dos seus cartuchos‑surpresa uma bisavó decrépita."

Windrock, velho companheiro da juventude, de cuja firma de construções Zumbach era cliente fiel, não hesitou e não se admirou nada: são conhecidas estas espécies de partidas que a seguir fazem rebentar de rir!

Mas em casa de Dieter Grossmann, porque a carta foi enviada para o endereço de Grossmann, na Alemanha, fez o efeito de uma bomba.

Maiorca, Marrocos. Era o caminho directo, lógico, mas só o que contava: Dieter, ele próprio, começava a acreditar que Margot tinha de facto deixado o pai para se lançar à conquista do mundo, armada apenas com a sua beleza.

Grossmann não pareceu surpreendido quando, ao almoço, o filho surgiu na sua frente. Estava instalado no terraço à sombra de um guarda‑sol e comia fatias de melão gelado acompanhadas por presunto.

‑ Mais cinquenta e sete pensões familiares e terei terminado ‑ disse como se falasse da chuva e do bom tempo. ‑ Não omitirei nenhuma, mesmo que Margot já tenha partido.

‑ Ela foi‑se embora, pai, olha!

Dieter atirou o postal para cima da mesa. Grossmann leu‑o e meteu‑o no bolso do peito.

‑ Marrocos! Tetuão! Corre à recepção, meu rapaz, pergunta quando partirá um avião para Marrocos e compra logo dois bilhetes. Não resmungues, filhinho... seguiremos Margot até na floresta equatorial, se for preciso!

‑ E porquê, pai? Valerá a pena? Ela abandonou‑te.

‑ Precisamente por essa razão. Tenho de lhe perguntar por que razão agiu assim. É tudo. Ela vale tudo o que eu tenho e quero saber que erro cometi na nossa vida conjugal.

Aterraram às duas horas da manhã em Rabat, tomaram um táxi e seguiram para Tetuão.

No Hotel Oásis, alugaram um quarto duplo e começaram, como em Maiorca, a fazer a ronda dos hotéis. A opção não era muito extensa. Os porteiros marroquinos mostravam‑se particularmente amáveis, mas também abanavam a cabeça ao ver a fotografia de Margot.

"Bonita senhora", diziam com uma careta de admiração, depois encolhiam os ombros. Grossmann estava no fim. A viagem de táxi de Rabate para Tetuão, as dez horas através de uma paisagem rochosa, a escaldar, e de regiões desérticas, seguidas Por um curto sono banhado de suor, envolvido por mil barulhos desconhecidos, a saída do hotel para encontrar o mesmo encolher de ombros... Grossmann apoiava‑se ao braço do filho e, depois de várias tentativas, recuperou dificilmente o fôlego.

‑ Paremos, pai ‑ disse Dieter em voz alta - vais rebentar!

‑ Só mais um hotel, aqui, filho: El Sheikh, a seguir vou dormir vinte e quatro horas de seguida!

E ali, no Hotel El Sheikh, velho abrigo de caravanas com os estuques cheios de poeira, o porteiro fez um pequeno aceno de cabeça hesitante ao ver a fotografia, que examinou uma segunda vez, e depois disse em francês:


‑ Não estou bem seguro, messieurs, mas talvez seja ela! Vimo‑la duas vezes aqui... mas posso‑me enganar.

Dieter traduziu lentamente a resposta. Grossmann foi percorrido visivelmente por um longo arrepio.

‑ Pergunta onde ela mora... ‑ disse com voz rouca.

‑ No Casbá, a cidade velha, pai.

Dieter seguiu as explicações do marroquino.

‑ Vão ao número dezanove da Rua Domingues...

‑ Pai, ele está enganado de certeza!

‑ Para o Casbá! ‑ Grossmann atirou uma nota para o balcão e foi‑se embora sob o sol ardente. Encontraram a rua depois de muitas buscas.

o Casbá engoliu‑os finalmente... nas suas ruelas cobertas, a fim de lhes assegurar sombra, o que não as impedia de encerrar uma atmosfera asfixiante e nauseabunda.

Subida e descida de escadarias. Vaguearam até ao momento em que se encontraram diante do número 19. Uma casa sem janelas como as outras, com paredes de barro e uma porta manchada de vermelho com um batente de cobre, que evocava a face enrugada de um velho.

Grossmann baixou a cabeça, aproximou‑se da porta e agarrou no batente.

As pancadas soaram abafadas no interior da casa.

Espera de um minuto. Um minuto tormentoso. Mais um minuto atormentado pela maré de questões íntimas: porque tinha Margot agido assim? Ter‑se‑ia ela escondido ali de facto? O que é que teria atraído Margot a Maiorca e agora a Tetuão? Estaria doente? Ou teria Heinrich Zumbach dito a verdade no seu estilo brutal? "Deixa‑a ir, Benno, ela está simplesmente farta! A diferença de idade, a existência burguesa, Margot não é uma dona de casa. Não lhe concedas nem uma lágrima... "

Passos atrás da porta cor de sangue de boi, uma chave a ranger.

Grossmann, sem energia, apoiou‑se no filho. Dieter pôs‑lhe um braço à volta dos ombros e puxou‑o contra si.

‑Se... se ela estiver aqui ‑ disse em voz baixa ‑, Pai, peço‑te, deixa‑me falar‑lhe sozinho, o teu coração...

‑ o meu coração está óptimo! ‑ Grossmann sacudiu o braço do filho: ‑ Sempre fui capaz de suportar a verdade...

‑ É uma outra espécie de verdade o que tu vais encarar aqui, pai.

‑ Cala‑te!

A porta vermelha abriu‑se a chiar. Uma mulher gorda, com um cigarro colado ao canto esquerdo da boca, estava atrás dela. Analisou os dois visitantes com desconfiança. Vestia um vestido comprido pintalgado de cores violentas e um pequeno colete de seda de ervilha, que se entreabria no começo dos seios volumosos, que não eram contidos por soutien e que se viam oscilar sob a seda transparente.

Com as pálpebras crispadas pelo fumo, a mulher continuava a examinar os dois homens chegados tão cedo, depois traiu o seu grande conhecimento dos seres humanos. Num alemão titubeante, disse‑lhes:

‑ Isto só custará aos germânicos trinta dirhams. Amo os germânicos. Mas antes pagar, mesmo os germânicos!


Estendeu uma mão gorda exalando um perfume adocicado, depois fez um sinal com o indicador. Grossmann estava desamparado. Mantinha‑se imóvel na frente da velha e olhava fixamente por cima do seu ombro para o interior da casa.

Um vestibulo que abria para um pátio interior, depois de novo o sol, uma palmeira, algumas portas dando para a entrada, uma parte das dependências fechando o último pátio num branco deslumbrante com portas azuis como se estivessem divididas em apartamentos. Olhar lançado para um mundo próprio, fechado ao exterior., o modo de vida árabe: hostil à rua, sem janelas... mas um pátio interior, por mais sujo que pudesse estar, um raio de magia oriental.

‑ Dinheiro? Como é, dinheiro? ‑ gaguejou Grossmann.

A mulher gorda sorriu abertamente:

‑ Vale a pena, senhor, apenas trinta dirhams... e raparigas bonitas, venha, querido, elas fazem tudo o que lhes pedir, apenas trinta dirhams... um preço de favor para germani!

Ela continuava a estender a mão e ocupava a entrada da porta com a sua imponente estatura. Dieter mergulhou a mão no bolso e entregou‑lhe um maço de notas entre os dedos sem sequer ver que quantia lhe dava.

A mulher gorda sorriu como um caldeirão de cobre polido, lançou uma olhadela rápida ao dinheiro e afastou‑se para o lado:

‑ Por este preço, terão quatro raparigas que dançarão para vós ‑ disse ela. ‑ Podem ficar tanto tempo quanto quiserem.

Voltou‑se, fez‑lhes sinal e avançou pelo vestíbulo em direcção ao pátio.

Grossmann deu alguns passos e depois parou.

‑ Onde estamos nós? ‑ perguntou sempre desamparado.

‑ Num bordel, pai ‑ respondeu Dieter com dureza.

‑ Impossível. É um falso endereço, Margot num...

‑ Veremos, pai, vem...

A mulher gorda conduziu‑os para um grande quarto obscurecido, com o chão coberto de espessos tapetes. Do tecto de madeira trabalhada pendiam candeeiros mouriscos cuja luz velada lançava sombras bizarras sobre as paredes embranquecidas a cal.

De repente, um altifalante invisível despejou música marroquina monocórdica, com ritmos rápidos, duo de flauta e tambor.

Uma cortina feita de tapetes levantou‑se e quatro raparigas nuas com longos cabelos flutuantes puseram‑se a dançar no meio do quarto, depois, tendo‑se inclinado até muito baixo na frente de Grossmann e de Dieter, começaram uma dança do ventre com os braços levantados, os rins a baloiçar, os ventres a saltar enquanto projectavam para eles os baixos‑ventres ao ritmo do tambor.

Noutra ocasião, Grossmann teria apreciado este espectáculo, como qualquer homem, aliás, face a quatro belas raparigas, oferecendo‑se neste ballet rítmico cheio de abandono. Mas nesse momento, gesticulando com as duas mãos como se tentasse afastar visões, Grossmann berrou:

‑ Basta!

Com um gesto vivo, tirou a fotografia de Margot da algibeira e lançou‑lhe um breve olhar. o seu coração crispou‑se de novo.

‑ Só tenho uma pergunta...


A música calou‑se num gemido de flauta. As raparigas, pasmadas, encararam os dois estrangeiros, depois taparam os seios nus com os longos cabelos e deslizaram para o outro lado da cortina feita de tapetes. Em contrapartida, a mulher gorda apareceu, com uma ruga de preocupação a franzir‑lhe a testa.

‑ Não é bom? ‑ perguntou. ‑ São as minhas raparigas mais bonitas, mas ainda lhes posso trazer Fátima, a flor do deserto...

‑ Não quero nenhuma Fátima! ‑ berrou Grossmann. ‑ Quero uma informação. Onde está esta mulher?

Pôs a fotografia de Margot debaixo dos olhos da gorda patroa.

‑ Aqui, não!

‑ Dar‑lhe‑ei cem dirhams se me levar junto dela!

Grossmann meteu a fotografia na carteira. De repente, começou a tremer:

‑ Apenas umas palavras... uma pergunta... mais nada.

‑ A senhora não está... mesmo por mil dirhams. - A mulher gorda bateu em retirada em direcção à saída do quarto. Este alemão metia‑lhe medo. Vinham muitos clientes incómodos àquele estabelecimento, mas ela acabava sempre por os dominar porque aterravam todos nos divãs das raparigas e acalmavam‑se de uma certa maneira.

Todavia, este homem que desprezava as raparigas era pouco normal e queria uma mulher que ela não tinha na sua casa, que nunca tinha feito parte do seu elenco de prostitutas.

‑ Chamo a Fátima? ‑ perguntou, parada junto à cortina de tapetes.

‑ Não! ‑ gritou Grossmann, avançando com o braço em riste. ‑ o porteiro do Scheik conhece a senhora que eu procuro e diz que está na sua casa!

‑ Mustafá é idiota! ‑ exclamou a mulher gorda. ‑ Espancá‑lo‑ei ainda hoje.

‑ Será que terei de chamar a polícia, madame?

A polícia! Eis uma palavra que não é ouvida pronunciar com indiferença em nenhum bordel do mundo. A polícia entre as paredes das felicidades venais é coisa tão repugnante como um arenque com compota.

Além disso, em Marrocos, a polícia é considerada como o castigo de Alá. Quem ameaçar mandá‑la chamar sem razão atrai sobre si a vindicta do orgulho oriental.

A mulher gorda fez uma careta como se lhe beliscassem os seios e desapareceu atrás dos tapetes. Grossmann. quis segui‑la, mas Dieter reteve‑o.

‑ Saiamos daqui, pai! ‑ disse excitadamente. ‑ Não sabes do que os árabes são capazes!

‑ Mas eles também não sabem do que eu sou capaz! ‑ berrou Grossmann. ‑ Margot está aqui, nesta casa, sinto‑o. Que diabo, solta‑me... Quero ver quem se atreve a agarrar‑me neste momento!

A resposta não tardou. Pela porta com tapetes surgiram dois homens gigantescos com calças tufadas e camisas brancas, parecidos com lutadores marroquinos que oferecem um espectáculo dos seus músculos antes de iniciar o combate.

Em silêncio, avançaram para Grossmann e, agarrando‑o pelos braços, levantaram‑no como um boneco, depois levaram‑no Para fora do quarto. Não tocaram em Dieter... este seguiu‑os com a cabeça baixa e os punhos cerrados, mas consciente da sua impotência face àqueles gigantes.


Antes de chegarem ao vestíbulo que ligava o pátio interior à rua, atiraram simplesmente Grossmann para o chão com tanta energia que ele rolou três vezes sobre si mesmo no pó e ficou estendido ofegante contra a parede da casa. Então os homens alinharam em silêncio no pátio, formando um muro inultrapassável para Grossmann.

No limiar da sala das danças apareceu a mulher gorda, que gritou em árabe palavras pouco amenas, sem dúvida. Adivinhava‑se no timbre da voz.

Dieter levantou o pai, sacudiu a poeira do fato dele, e conduziu‑o através do vestíbulo até à rua. A porta vermelha fechou‑se atrás dele com um som cavo.

Grossmann encostou‑se ao muro e enxugou a cabeça, sem descanso, com o lenço.

‑ A polícia... ‑ gaguejava ‑, a polícia. Margot está aqui. Num bordel. Meu Deus, o que significa isto? Não compreendo nada.

Quando a noite chegou, o adjunto do chefe da polícia de Tetuão fez‑se anunciar no hotel e teve uma conversa com Grossmann. Era um homem amável, educado em Madrid, com aquele charme que convence apesar de tudo. Mas, desta vez, tinha o difícil dever de dizer a verdade.

‑ Senhor Grossmann ‑ começou, enquanto fumava um cigarro com um aroma adocicado ‑, visitámos o estabelecimento: a sua mulher nunca ali esteve... e se ali esteve, não deixou a mais pequena pista. o senhor não conhece Marrocos, as coisas aqui são diferentes da Europa. Se uma pessoa quiser desaparecer neste país, pode perfeitamente fazê‑lo. Os interrogatórios não servem para nada. É lamentável ser obrigado a dizer‑lhe isto... Que vai o senhor fazer?

‑ Volto para a Alemanha. ‑ Grossmann apertava na mão o copo cheio de um vinho espesso de Marrocos. ‑ Talvez Margot volte a aparecer... Não pararei de procurá‑la... compreende‑me?

‑ Sim e não. ‑ o oficial da polícia dava voltas ao cigarro entre os dedos. ‑ Porque não deixa a sua mulher seguir o seu caminho? A razão pela qual o deixou é assim tão importante?

‑ Para mim, sim. É preciso que eu saiba que erro cometi na minha existência... sempre fui um homem correcto. Para mim, o meu universo racional afundou‑se.

No dia seguinte de manhã, voou para a Alemanha na companhia de Dieter.

 

Heinrich Zumbach tinha muito tempo para reflectir sobre as novas pistas que poderia traçar eternamente, a fim de convencer Grossmann de que a busca de Margot era inútil. Porque seria apenas quando Grossmann capitulasse perante a evidência dos factos que o problema de Margot seria também enterrado por ele.

Enterrado... Uma palavra que lhe fazia arrepios e que provocava em si um tal complexo que se recusava a assistir a enterros.

Precisamente na mesma altura em que GrossMann seguia os vestígios de Margot, tinha morrido uma tia de Louise e um colega de Zumbach morrera num acidente de viação. Zumbach recusou‑se duas vezes de seguida a comparecer nas exéquias, dando como desculpa uma ameaça de enfarte, porque tinha há muito tempo uma tensão demasiado baixa. Quando aconteceu o segundo falecimento, disse que tivera uma avaria no carro no regresso de uma reunião com um empreiteiro. Chegou com uma hora de atraso ao cemitério, quando tudo já tinha terminado...


A cova aberta... o corpo a descer para o fundo, mesmo metido no caixão e não coberto por uma onda de cabelos ruivos, como o de Margot, cujos cabelos escorriam sobre os braços, enquanto a encantadora face desaparecia sob as Pazadas de terra.

Uma visão que, tal como uma marca de um ferro em brasa, jamais desapareceria. Agora era impossível para ele assistir ao abandono de um corpo humano entregue à decomposição inevitável.

No entanto, o caso, a arma imprevisível do destino, interveio no jogo de Zumbach quando ele pensava ter apagado os vestígios de Margot em Tetuão. Depois de Tetuão só havia o silêncio do deserto... Ali acabava para Grossmann a sua vida com Margot. Tinha de reconhecê‑lo.

"Nada de novas pistas", pensava Zumbach. "Neste momento, basta calarmo‑nos e empenharmo‑nos todos em convencer Benno de que deve riscar Margot da sua existência.

"Arrastá‑lo‑emos para as reuniões. Conhecerá outras mulheres. o clube de equitação e o de golfe encarregar‑se‑ão de lhe mudar as ideias. Podemos entregá‑lo aos amigos... e Benno gostará de uma mulher nova e lembrar‑se‑á de que é um homem. Este será o ponto final do caso Margot. Com cinquenta anos, Grossmann não é velho e não há melhor bálsamo para as feridas da alma do que um corpo quente, leve, coberto pelos lençóis. As recordações perdem‑se entre as coxas das mulheres."

Foi a distracção de Zumbach que o perdeu. Nessa manhã tinha mudado de fato sem o pendurar num cabide do roupeiro, como de costume, mas sim no espaldar de uma cadeira do seu quarto‑de‑vestir. Louise encontrou‑o ali e, porque era uma mulher metódica, escovou o fato antes de o guardar no roupeiro.

No entanto, convém despejar os bolsos antes de escovar um casaco a fundo. Os homens acumulam toda a espécie de restos nas algibeiras, essa mania faz parte da sua fenomenologia.

Zumbach não era excepção à regra. Louise sabia‑o e não se admirou de ver aparecer um cigarro esmagado, um lenço de papel, um botão, um selo de correio, uma boquilha, uma carteirinha de fósforos.

Pôs tudo em cima de uma mesa, escovou as algibeiras e pendurou o fato num cabide. Quando quis voltar a pôr os restos recolhidos nos bolsos do marido, o seu olhar caiu na carteira‑reclame e na sua fiada de fósforos.

Pensão Sonneck

Louise ficou admirada, pegou na carteira, voltou a ler a publicidade e quis deitar fora aquela coisa com um encolher de ombros, quando um sentimento estranho, insinuante, a impediu.

"Pensão Sonneck. Certamente um cliente de Heinrich. Uma reconstrução, uma ampliação... " Deu voltas aos fósforos entre as mãos, indecisa, rePentinamente assaltada por uma dúzia inexplicável.

Que dizia Heinrich desde há meses? Nada de pequenas obras... apenas grandes construções, igrejas, escolas, escritórios... "Não tenho tempo para essa espécie de trabalhos!" Ora a Pensão Sonneck devia ser uma "pequena obra" comparada com as novas grandes obras de Zumbach.

Abriu a tampa da carteira. Apenas dois fósforos tinham sido tirados dali, a carteira estava completamente nova e quase nada amarfanhada, como é hábito.


Louise Zumbach meteu os fósforos no bolso da sua blusa e saiu para o corredor. Ali, procurou na lista telefónica o número do telefone da Pensão Sonneck e fechou‑a bruscamente quando leu o nome da rua... como se quisesse fugir à verdade que se abatia sobre ela.

De repente tudo concordava com uma exactidão diabólica.

Os testemunhos das velhas senhoras que tinham visto o carro de Margot. Um homem desconhecido sentava‑se ao volante e aquela rua ficava a dois quarteirões da Pensão Sonneck.

As declarações das outras testemunhas que tinham visto o automóvel. Duas vezes por semana estacionava quase sempre na mesma rua... a uM bloco de casas da Pensão Sonneck... e sempre ao meio‑dia... durante duas horas.

Ao meio‑dia, quando Heinrich não vinha para casa e almoçava fora num restaurante qualquer.

Ao meio‑dia, quando Margot estava instalada no cabeleireiro. O melhor momento! ", dizia às vezes, a rir. "Benno está na fábrica, eu aborreço‑me e quando Benno volta para casa estou sempre bem penteada..."

Meio‑dia, hora dos grandes álibis, a hora do pecado em pleno dia.

Louise ficou extremamente nervosa, vestiu‑se, penteou‑se e viu no espelho a sua cara envelhecida, desconhecida, quase lívida. Pintou‑se um pouco e tirou da garagem o seu pequeno carro descapotável, depois guiou em direcção aos arredores.

Contornou duas vezes o bloco de casas e a Pensão Sonneck antes de travar para parar e se apear. Com as pernas hirtas, dirigiu‑se para a entrada e tocou. A campainha da porta tiniu, ela empurrou o batente e entrou numa espécie de vestíbulo onde se encontrava uma mobília moderna com estofos claros. De uma sala que devia ser o escritório da casa, saiu Albertine Megges sorridente, completamente à vontade no seu papel de dona de pensão que inspira confiança. Com um olhar rápido, apreciou Louise Zumbach e classificou‑a imediatamente. Uma boa cliente para uma pensão. o quarto número nove, com duche, vista para o jardim. De manhã, ao pequeno‑almoço, ovos escalfados, duas fatias de presunto magro, chá sem açúcar e com limão.

Louise Zumbach observava Albertine Megges em silêncio, com o coração a bater. Depois olhou à sua volta: limpa mas modesta. De facto, nada o estilo do seu marido, tão mimado, o esteta da construÇão, o fanático da beleza. Mas para ficar escondido, incógnito, durante duas horas, esta pensão era o refúgio ideal.

‑ Procura um quarto? ‑ perguntou a senhora Megges, enquanto Louise continuava calada. ‑ Tem sorte, madame... o quarto número nove está livre e é precisamente o que dá para o jardim, o melhor que lhe posso oferecer.

‑ Obrigada. Louise abriu o saco. De crocodilo", constatou a senhora Megges. "Isto custa bem mil marcos. Posso aumentar dois marcos o preço do quarto, não lhe faz diferença... "

‑ Não procuro um quarto, procuro uma mulher...

A cara de Albertine Megges distanciou‑se e fechou‑se como se um estore tivesse caído sobre o seu rosto.

‑ Duvido que lhe possa ser útil ‑ disse, reticente. A sua voz traía uma recusa certa.

Louise Zumbach acenou com a cabeça. Com a respiração presa, sentia o coração cada vez mais apertado.

‑ julgo, no entanto... Peço‑lhe que olhe para esta fotografia.

Um alegre instantâneo dos casais Zumbach e Grossmann tirado durante uma excursão à montanha. Em fundo, o Drachenfels.


Uma fotografia que tinha agora um significado angustiante e que no momento em que fora tirada não revelava qualquer segunda intenção. Heinrich rodeava com um braço a cintura de Margot e Benno dava um beijo no rosto de Louise: pareciam os quatro alegremente entre as dez e as onze.

A senhora Megges lançou uma olhadela à fotografia. o coração saltou‑lhe, mordeu os lábios e esforçou‑se por parecer indiferente. Apenas a vermelhidão que lhe invadiu o pescoço foi reveladora.

‑ A senhora está aqui ‑ disse, devolvendo a fotografia.

‑ E quem conhece mais aí?

‑ Ninguém que tenha morado na minha casa. Aliás, o que significa o seu inquérito? Estou muito ocupada. Se não quer um quarto, vou deixá‑la, não tenho tempo para conversar.

‑ A senhora conhece três pessoas que estão nesta fotografia. - A voz dela tinha enrouquecido de repente por causa da emoção. ‑ Eu, o meu marido e a senhora Margot Grossmann, que ele tem nos braços. Durante semanas, encontraram‑se ambos na sua casa... sempre ao meio‑dia.

‑ A senhora está louca ‑ disse Albertine Megges, e quis afastar‑se para a cozinha, mas a frase seguinte, dita por Louise, reteve‑a no seu lugar.

‑ Como quiser. Podemos conversar acerca de tudo entre nós duas... mas se preferir que a polícia se intrometa...

A polícia? Albertine voltou‑se com uma rapidez de que ninguém a julgaria capaz.

‑ o que pretende a senhora ao ameaçar‑me com a polícia? Apresentarei queixa contra si por acusação sem fundamento!

‑ E isto! ‑ Louise tirou a carteira de fósforos Pensão Sonneck. ‑ Não acredito que se imprima tal reclame por pura brincadeira. Isto veio da sua casa... Aliás, estão aqui outras!

Em três passos, Louise aproximou‑se de uma Mesinha‑de‑centro e tirou três carteiras parecidas.

‑ Sabe onde encontrei estes fósforos? No bolso do casaco do meu marido!

Albertine Megges cruzou as mãos na barriga.

‑ Que safado! Os homens são todos uns safados!...

Sentou‑se bruscamente porque as pernas tremiam. A recordação dessas terríveis horas no meio de um dia assaltava‑a. o cadáver nu na cama. o transporte, passando pela cave, as noites de angústia intermináveis a pensar que alguém podia ter notado qualquer coisa, as buscas da polícia, os artigos dos jornais... Uma só carteirinha de fósforos provocava o afundar de todo um montão de mentiras, de falsos testemunhos.

‑ Será preciso... que a polícia intervenha? - perguntou com uma vozinha infantil.

‑ Não, se nos explicarmos.

Louise sentou‑se na frente da senhora Megges. Também tremia visivelmente, toda a sua face estremecia:

‑ Diga... diga‑me a verdade. Sem delicadezas. Estou pronta para ouvir tudo... peço‑lhe...

E Albertine Megges contou, evitando olhar para Louize Zumbach, mas ouviu‑a quando ela começou a chorar.

 

Nessa mesma noite, Zumbach voltou para casa bem disposto, como habitualmente. Trazia uma garrafa de champanhe, um cocktail de lavagante fresco num frasco de boca larga e um ramo de flores.


‑ Louise! ‑ gritou à entrada, atirando o sobretudo despreocupadamente para cima de uma cadeira. ‑ Querida! É um grande dia! Vou construir a nova sede da administração dos Seguros Hektor! o conselho de administração escolheu o meu projecto! Neste momento, podemos oferecer a nós mesmos uma casa em Tessin, na Sardenha, em Espanha ou em Ischia! Onde quiseres! Consegui o grande furo. Louise, querida... onde estás?

Louise ouvia‑o chamar. Estava sentada no quarto, na beira da cama e tinha fechado a porta com duas voltas.

"Vai ver já a seguir... ", pensava. "Dentro de alguns segundos. Como reagirá? Meu Deus, vem em meu auxílio... Como abordá‑lo? Com esta certeza!" E de repente, teve medo do marido.

Zumbach voltou a chamar a mulher por quatro vezes, depois meteu o champanhe e o cocktail de lavagante debaixo do braço e foi até ao grande vestíbulo. Ali depositou os seus tesouros e admirou‑se de nem sequer ver a criada. Um silêncio angustiante reinava na grande casa.

"Isto é que é. Voltamos para casa cheios de alegria", disse Zumbach interiormente, "e não está ninguém para nos acolher! Mas tomemos um copo, apesar de tudo, meu velho!"

Na mesinha de mármore de pé‑de‑galo, colocada perto do sofá, estava uma fotografia e uma carteirinha de fósforos.

Margot e a Pensão Sonneck.

 

Zumbach fechou os olhos durante alguns segundos, como que sob o efeito de um conhaque que o paralisasse. Vacilou ligeiramente, voltou a abrir os olhos e retomou o fôlego.

‑ Louise! ‑ berrou. ‑ Louise! Não faças asneiras! Meu Deus! Louise...

Subiu a escada até aos quartos sem deixar de gritar o nome da mulher. Quando encontrou a porta fechada à chave, agarrou no puxador, ganhou impulso e arrombou‑a.

Louise achava‑se sentada na cama, com as mãos cruzadas nos joelhos, e olhava‑o com os olhos muito abertos, numa expressão cansada, e vermelhos de lágrimas. Zumbach só a tinha visto uma vez neste estado, quando o seu único filho, com oito semanas de idade morrera de uma infecção. A partir de então a sua união tinha‑se tornado estéril, infelicidade a que tiveram de se habituar.

Dessa vez, Louise também se achava sentada na cama, muda, com um olhar em que se lia toda a sua incompreensão face ao destino. Era uma atitude entorpecida, terrífica, que levava a crer que a alma se lhe tinha petrificado.

‑ Louise ‑ repetiu Zumbach ofegante. Agarrava‑se com uma mão à porta arrombada e com a outra enxugava o rosto luzidio de suor.

‑ Louise, vou explicar‑te tudo.

‑ Eu sei tudo.

Uma voz desconhecida, sem timbre, como que desumanizada.

‑ Estiveste em casa da senhora Megges...

‑ Evidentemente.

‑ Foi uma morte natural. Louise, acredita em mim. Um acidente. Uma embolia. Meu Deus, olha para mim, apesar de tudo!... Acredita em mim: não matei Margot! ‑ Gritou as últimas palavras, como se o torturassem com ferros em brasa. - Tudo o que aconteceu depois foi o resultado do meu pânico...

‑ És um cobarde ‑ disse Louise calmamente. Zumbach apoiou a testa ao puxador da porta:


‑ Sim... Deus, sim, sou um cobarde. Não queria um escândalo nem explicações... Tinha vergonha por causa de ti e de Benno...

‑ Vergonha? Alguma vez foste capaz de demonstrar isso? ‑ Abanou a cabeça lentamente: - Não, tu ignoras a vergonha, tu nem sequer sabes o que é a consciência. Tu só tiveste medo das consequências, tiveste medo da luz, és um mesquinho e miserável cobarde.

‑ Louise...

‑ Desde quando me enganas?

‑ Não sei exactamente. Aconteceu pouco a pouco sem o ter querido...

‑ Queres fazer‑me rir?

‑ Estávamos sós, a Margot e eu. Benno ainda se encontrava na fábrica, Dieter tinha exame, então ela voltou para a sala, trazendo uma bandeja com chá, e trocara o vestido por um roupão de rendas... não tinha nada por baixo. Pousou a bandeja e disse‑me: Serve‑te."Sabia que ela esperava aquele momento há muito tempo. Sentia‑o quando dançava com ela, na forma como me olhava, como apertava a minha mão quando nos despedíamos ou quando eu estava um minuto sozinho com ela no bar, no terraço, no jardim. Tudo a empurrava para mim e eu não deixei de resistir. Mas nesse dia, à vista daquele corpo vestido e no entanto revelado na sua nudez tão tentadora... Louise, não sou um santo e qualquer homem naquela situação...

‑ É uma justificação?

Louise levantou‑se e aproximou‑se da janela. Voltou as costas ao marido e apoiou os punhos fechados nos lábios.

"Não o oiças mais", pensava. "Põe um ponto final na comédia da tua vida conjugal. Durante todos estes anos representámos aos olhos do mundo e os nossos papéis estavam tão bem estudados que se colavam a nós como uma segunda pele. Ninguém punha em causa o êxito, a felicidade de Zumbach nem a de sua mulher, tão amimada, coberta de jóias, de casacos de pele, de carros de desporto. Todos os invejavam, tinham‑se tornado um exemplo do êxito: olhem o que eles conseguiram! Ah! Viver também um dia daquela maneira! Ter uma casa rodeada por um parque, uma piscina coberta, viajar para áfrica, para as ilhas Canárias, no Verão ir a Salzburgo, no Inverno a Saint‑Moritz... uma vida cuja plenitude não deixa nada para desejar...

E que dissimulava esta brilhante fachada? o aborrecimento, os bocejos, a vida em comum, a delicadeza do hábito ‑ e até esta às vezes faltava ‑, o correr dos dias, dos meses, dos anos, interrompido de vez em quando por uma recordação que reanimava o brilho dos dias volvidos... um beijo, um abraço, uma noite de amor parecida com um dever cumprido, depois de novo os dias insípidos, as noites cheias, sem problema, pela televisão, pelo cansaço, pela cama, pelo sono, pela refeição e pela fuga perante a verdade. Porquê? "Sim, porquê?"

Louise não sabia responder a esta pergunta e Zumbach evitava todas as explicações.

Em contrapartida, ela sentia que Heinrich saía da sua letargia na companhia de outras mulheres. Fora uma aventura com uma mulher chefe de uma empresa de construções, depois um romance com uma jovem arquitecta, dois anos antes tivera um namoro muito arrebatado com uma decoradora.


Sempre histórias bruscas, frenéticas como as fugas de um gato selvagem esfomeado, depois o regresso ao lar, um presente para Louise e a vida regada de pequeno paxá que tem uma mulher à qual permite que o sirva. Uma vida conjugal como há centenas de milhares em todo o mundo: uma comunhão de enganos.

Louise tinha suportado tudo aquilo durante anos em silêncio, pacientemente, conservando‑se no seu lugar incansavelmente porque amava Heinrich. Mas o limite tinha sido atingido...

Zumbach sentou‑se numa das cadeiras forradas diante do toucador. Sabia que aquela explicação não se iria desenrolar como as justificações anteriores. o coração martelava‑lhe o peito e estava admirado com a calma de Louise.

‑ Não é uma justificação ‑ disse com a respiração ofegante. ‑ É apenas uma tentativa de explicação.

‑ Fizeste um jogo sujo com todos nós. Meteste‑te com a mulher de Benno, o teu melhor amigo, e a mim enganaste‑me com uma mulher que, sendo a esposa de Benno, estava aos meus olhos acima de qualquer suspeita. Como tudo isto era simples, praticamente sem perigo e cómodo! A tua amante "em casa" de qualquer maneira. Quanto mais os casais Zumbach e Grossmann estivessem unidos, menos se perceberia à nossa volta a tua deslealdade. Reconheço‑o... não me apercebi de nada e se Margot não tivesse... tido este acidente... chamemos‑lhe assim... o vosso sujo jogo nunca seria descoberto.

‑ Estava em vias de tornar esta ligação pouco a pouco mais calma ‑ disse Zumbach com uma voz terna.

‑ De tal forma que ela teve uma crise cardíaca nos teus braços! Deves ter confundido o travão com o acelerador!

‑ Louise... ‑ Zumbach martelava com os dedos a placa de vidro que cobria o toucador. - A máquina está atolada na lama, tentemos sair dela.

‑ Eu não.

Ele levantou bruscamente a cabeça.

‑ o que quer isso dizer?

‑ Sim, eu não jogo mais, Heinrich. Para mim, basta. Não tenho forças para continuar a suportar tudo. Acabou‑se, nós dois.

‑ Louise, eu...

Zumbach procurou palavras mas não as encontrou. Sabia também que não comoveriam Louise. A grande rotura, a hora temida, a situação perante a qual sempre tinha fugido... estava ali agora.

‑ Quem escreveu os postais enviados de Maiorca e de Marrocos?

‑ Eu...

‑ Tu mandaste o Benno correr mundo, lançaste‑o de um desespero para outro desespero, fizeste dele um ser grotesco para melhor apagares uma pista enquanto te escondias atrás da tua cobardia... Heinrich, que porco que tu és, para além de tudo!

‑ Foi o pânico, Louise. Tens de repente uma morta estendida contra ti, a mulher do teu melhor amigo. Perdi simplesmente a cabeça. É um crime? Não tenho o direito de ter nervos?

‑ Nunca te interrogaste se tinhas o direito de fazer isso. - Louise afastou‑se da janela, a sua face estava parada, fechada, como a de um acusador. Nada mais do que isso: ‑ Quando irás prevenir a polícia? ‑ perguntou com dureza.

‑ A polícia? ‑ Zumbach teve um sobressalto.

‑ Impossível!

‑ Quando dirás ao Benno? Ele volta hoje de Marrocos.

‑ Louise... é preciso pensar em tudo isto muito seriamente. Não posso dizer ao Benno...


‑ Tu nunca podes. ‑ A boca de Louise ficou com um Jeito cruel. ‑ Não podes deixar Margot passar mais tempo por desaparecida. Quero uma situação clara. é preciso que a polícia saiba o que aconteceu a Margot e Benno deve saber no que a sua mulher se tornou. É o menos que posso exigir.

‑ Isso vai provocar um escândalo!

‑ Logicamente!

‑ Podemos evitá‑lo.

‑ Se eu me calar como tu? Não, Heinrich, já não há qualquer laço entre nós.

‑ É então o fim?

‑ Sim, o fim.

‑ Também pensei antecipadamente neste caso ‑ recomeçou Zumbach. Levantou‑se, o que o fez vacilar um pouco. o seu rosto estava pálido e parecia destroçado. Quem, aos quarenta e cinco anos se encontra face ao nada e se vê obrigado a voltar a partir do zero, tem a impressão de que mesmo a terra firme não passa de um pântano.

‑ Desaparecerei da vossa vista ‑ continuou. - Irei para a América do Sul, lá têm falta de arquitectos que tenham ideias novas e ninguém dirá que as não tenho. Tudo o que deixar aqui será para ti: a casa, a firma, as contas do banco. Só levarei uma pequena quantia e o meu avião. Pararei na Suíça e esperarei ali que a América do Sul entre em negociações comigo.

‑ Não é tão fácil como isso, deixarás muitas ruínas atrás de ti.

‑ Peço‑te uma única coisa em troca ‑ disse Zumbach como se não tivesse ouvido as últimas palavras dela. ‑ Guarda silêncio até eu chegar ao Brasil.

A voz de Zumbach vacilou.

Mas Louise forçou‑se a parecer indiferente. o teatro era o segundo domínio de Zumbach: vivia duplamente um argumento grandioso.

‑ Enviar‑te‑ei um telegrama, então poderás dizer a verdade. úma última súplica, Louise! ‑ disse, suplicante. ‑ Em troca, receberás tudo o que eu edifiquei!

‑ A pobreza e uma vida honesta estariam mais de acordo comigo ‑ respondeu ela. Considerava o marido como um ser de outro planeta: "já não é o Heinrich Zumbach que amei", pensou, sobressaltada. "Mas será que ele existiu mesmo? Ou apenas o fantasiei na minha imaginação amorosa? Terá ele sido sempre assim e eu nunca me terei apercebido? Terá sido sempre um fascinante hipócrita?" - Bem ‑ disse por fim. ‑ Calar‑me‑ei até lá. Quando é que estarás na América do Sul?

‑ Talvez dentro de um mês.

Zumbach avançou para ela, mas Louise repeliu-o com um gesto de ambas as mãos. Zumbach parou bruscamente:

‑ Amanhã, iremos ao notário por causa das formalidades. Voarei na sexta‑feira para Zurique, depois irei mais longe, até Agno, perto de Lugano. Louise...

‑ Sim?

‑ Não haverá outra solução?

‑ Não, só a verdade. Tem a coragem de confessar.

Zumbach abanou a cabeça com cansaço. Com os ombros descaídos, saiu do quarto, transformado num homem velho que a cobardia destruíra.

 


Quando a noite chegou, Benno Grossmann aterrou em Colónia‑Wahn. A sua primeira visita depois daquela perseguição aturada em busca das pistas apagadas de Margot, foi para Heinrich Zumbach, o seu melhor amigo.

Tinha necessidade que o consolassem. Heinrich e Louise representaram de novo a comédia do casal‑modelo, afastado de todas as tormentas. Desempenhavam os seus papeis na perfeição, como sempre, apenas a ruga dura que crispava a boca de Louise era nova.

Contudo Benno, como Dieter, não tinha o dom de notar as diferenças. Enterrados nos sofás, sentiam‑se vazios, no limite das forças.

Zumbach despejou‑lhes conhaques e Louise grelhou quatro grandes bifes... Mas Benno parecia inacessível a qualquer atenção.

Bebia e comia mecanicamente e enquanto Dieter contava a odisseia deles atrás das pistas de Margot, Grossmann olhava a direito para a sua frente com um olhar tão vazio que Louise sentiu um frio glacial invadir‑lhe o coração.

Heinrich Zumbach deitou‑lhe um olhar rápido... os olhos dela tinham mudado, neles apenas lia o desprezo. Zumbach engoliu a saliva com dificuldade e respirou fundo.

‑ o que vais fazer, Benno? ‑ perguntou com voz rouca.

‑ Ignoro‑o.

Grossmann apertava entre as mãos o copo de conhaque. A sua cara redonda, que sempre tinha exprimido a alegria de viver, estava completamente engelhada:

‑ Espero.

‑ o quê?

‑ Um milagre. Talvez Margot volte.

‑ Nunca!

‑ Não se deve dizer nunca quando se trata de uma mulher. Aprendi isso nos últimos tempos. Com uma mulher, tudo é possível.

Benno pousava no amigo um olhar que partia o coração de Zumbach.

‑ Heinrich, não consigo esquecer Margot. Mas neste momento já sei que a perdi. Vê tu, passar o tempo a juntar dinheiro não é uma garantia de felicidade. Não cometas o mesmo erro. Heinrich, inverte o teu barco: primeiro a vida privada, depois a fábrica. Tinha atingido um certo patamar onde é Permitido levar uma vida dupla, mas falhei o salto na vida quotidiana. Falhei completamente o alvo, é insuportável...

Zumbach sentou‑se perto de Benno, no braço do sofá:

‑ o teu exemplo é frutuoso ‑ disse com voz rouca. ‑ Eu próprio já decidi acabar uma grande obra e depois deixar andar a máquina mais devagar. Sexta‑feira, vou voar no meu avião até à Suíça... ‑ Hesitou e recomeçou: ‑ Quando voltar, concederei a mim mesmo tempo para respirar. Mas peço‑te que te ocupes um pouco de Louise durante esse período.

Benno aceitou com um aceno de cabeça, embora não tivesse compreendido totalmente o sentido das palavras de Heinrich.

Ao fim de dez minutos, levantou‑se bruscamente do sofá e fez sinal a Dieter, que se encontrava perto de Louise, encostado ao pequeno bar da sala, onde bebia uísque sem parar.

‑ Agradeço‑lhes ‑ disse Grossmann com a língua entaramelada. ‑ Sois os meus únicos verdadeiros amigos. Que teria sido de mim sem vocês? A solidão esmagar‑me‑ia neste momento...


Zumbach acompanhou Benno e Dieter até ao carro, depois ficou muito tempo, na noite, diante de casa, com o olhar cravado nos faróis vermelhos que se afastavam e mesmo depois de eles terem desaparecido.

Sobressaltou‑se quando ouviu a voz de Louise atrás de si:

‑ Deves reconhecer por ti mesmo que és um miserável!

Zumbach não respondeu. Voltou para casa e arrancou a gravata do colarinho.

‑ Amanhã de manhã, iremos ao notário ‑ disse por fim, enquanto Louise levava os copos. - Não tenho mais nada a fazer aqui. Recomecemos do princípio.

 

Para Benno Grossmann, já não havia recomeço. Durante muito tempo o telefone tocou em casa de Heinrich Zumbach, até que ele, a vacilar de sono, saltou finalmente da cama e agarrou no auscultador:

‑ sim?

A voz de Dieter gaguejou, misturando as palavras, num paroxismo de emoção.

‑ Vem depressa! Tio Heinrich... Depressa, o Pai envenenou‑se... o médico já chegou... mas não será tarde de mais?

Zumbach atirou o telefone para o descanso e correu para o roupeiro, onde tinha os fatos pendurados; a toda a pressa, vestiu um fato por cima do Pijama e, chegado à porta, cruzou‑se com Louise, que saía do quarto.

‑ Que se passa? ‑ perguntou ela. - Benno!

Zumbach calçou os sapatos e passou dois dedos abertos no cabelo:

‑ o Benno envenenou‑se!

Vítima número dois! Louise afastou‑se da porta:

‑ Moralmente, és um assassino.

‑ Não sou nada! Nada! Nada! Nada! ‑ gritou Zumbach com a face devastada. ‑ Meu Deus, em que atoleiro me lançaste?

Um quarto de hora mais tarde, estavam sentados diante da porta do quarto de Benno e aguardavam. o médico ainda se encontrava junto de Benno, Dieter corria de um lado para o outro e esmurrava com o punho direito a palma da mão esquerda sem poder estar quieto.

‑ Vão fazer‑lhe uma lavagem ao estômago - tinha dito, quando Zumbach entrara como um furacão na casa de Benno. ‑ Marcámos um quarto na clínica para o caso de ser necessário... - Meia hora mais tarde: ‑ o pai... ‑ Dieter engoliu penosamente a saliva ‑ descobri a tempo que ele fizera... por acaso. o pai tinha escolhido um livro e queria emprestar‑mo, e foi assim que o encontrei lá em cima, rebolando na cama: tinha‑se envenenado! E tudo isto por causa dessa Margot! Juro‑lhes: se a tivesse aqui neste momento, estrangulava‑a.

Zumbach calava‑se. Evitava encontrar o olhar de Louise. o peso da sua falta tinha‑se‑lhe tornado insuportável.

"Ir‑se embora, sobretudo ir‑se embora", pensava. "Para longe... se restasse uma réstia de esperança... este gesto desesperado de Benno extinguira tudo. Tinha‑se vingado sem saber... "

Ao fim de uma hora, a porta do quarto abriu‑se finalmente. o médico e uma enfermeira que trouxera apareceram no limiar. Dieter e Louise fizeram a mesma pergunta:

‑ Como está ele?

o médico encolheu os ombros:


‑ Está desesperado, completamente desesperado por eu o ter devolvido à vida. Ele queria mesmo morrer. ‑ Olhou para Dieter com gravidade. - Não devemos perder o seu pai de vista nem um minuto. A enfermeira Erna vai ficar aqui. Substitui‑la‑ão mais tarde na vigília. E se a senhora, Madame Zumbach...

‑ Naturalmente, fico ao pé de Benno ‑ disse Louise. ‑ Não o deixaremos só.

‑ Talvez nos possa ser útil, senhor Zumbach. ‑ o médico pousou a pasta. ‑ Quando o senhor Grossmann retomou o conhecimento, as suas primeiras palavras foram: é preciso que Heinrich venha...

Zumbach julgou que uma chama lhe atravessava o corpo. Dentro do crânio, o cérebro ardia‑lhe.

‑ Gostava de lhe falar... mas depois de amanhã

tenho de ir à Suíça. Infelizmente. Podemos entrar no quarto dele?

‑ Neste momento está a dormir. A situação voltará a ser crítica quando ele acordar amanhã de manhã. Nesse momento será preciso que esteja à cabeceira dele, senhor Zumbach.

‑ Estarei lá ‑ prometeu Zumbach. Voltou‑se, deixou os outros e dirigiu‑se lentamente para a sala de entrada. Deixou‑se cair num sofá, deitou a cabeça para trás e tapou a cara com as mãos.

As últimas mentiras. Amanhã de manhã... E depois ir‑se‑ia dali, para sempre, uma terra‑de‑ninguém de milhares de quilómetros iria estender‑se entre ele e tudo o que tinha existido.

Temos de pagar por tudo na vida, até pela própria cobardia.

As formalidades no notário demoraram cerca de duas horas, após as quais Heinrich Zumbach ficou sem a sua fortuna, sem o seu negócio e sem os seus direitos e Louise Zumbach assinou como única proprietária.

o notário não fez nenhuma pergunta, mas não parou de olhar para Heinrich Zumbach, enquanto lhe leu o texto da doação. Porque razão um homem que teve tanto êxito na sua carreira abandona toda a obra da sua vida? o que há por trás disso? Vantagens fiscais? Dificilmente, porque quer fosse Zumbach ou a mulher a pagarem os impostos... as somas seriam sempre as mesmas.

Um divórcio? Nesse caso, Zumbach era louco, porque, fosse qual fosse o motivo da separação, metade da fortuna continuaria na sua posse.

No regresso, Louise e Zumbach permaneceram em silêncio. Sem uma palavra, chegaram à sua sumptuosa casa, onde beberam um conhaque, julgando que deviam celebrar o acto, que ratificava o afundar do seu casamento, como um negócio bem sucedido.

‑ Quando partes? ‑ perguntou Louise bruscamente.

‑ Amanhã, às sete horas... pedi autorização para descolar às sete horas. Porquê?

‑ Por causa da distribuição das vigílias junto de Benno. Quero acompanhar‑te ao aeródromo.

‑ o teu último triunfo?

‑ A minha última prova de afeição, porque eu amei‑te muito, Heinrich!

‑ Louise!

Era um grito, mas Louise cortou‑o logo.


‑ Nada de mais teatro, conheço os teus dons de comediante. E ainda mais: se Benno fizer uma nova tentativa de suicídio, terei de lhe dizer a verdade sem rodeios, quer estejas já no Brasil ou não.

‑ Logicamente. ‑ Zumbach bebeu mais um conhaque. o copo tremia‑lhe nas mãos. ‑ Mas, então, diz‑lhe que eu já estou na América do Sul. Poderás também pôr‑me um processo de divórcio. Mais alguma pergunta, Louise?

‑ Sim. Porque procedeste assim?

‑ Nem eu próprio sei. ‑ Zumbach encolheu os ombros. ‑ Não há explicação, Louise, caiu tudo em cima de mim e eu aguentei tudo. Sem reflectir. É o resultado de uma filosofia de vida muito simples: agarra o que aparecer!

‑ Não podes dizer mais nada?

‑ Não.

‑ Que lamentas...

‑ o que teríamos mais, eu e tu, remorsos? Tão tardios?

‑ Quero apenas saber se ainda tens um coração, uma alma, uma consciência.

‑ Tenho tudo isso... mas de uma certa maneira está tudo morto. - Consultou o relógio de pulso. ‑ Ainda vou ao escritório, quero despedir‑me dos meus colegas e nomear Léo Hannsbach chefe de planeamento. Podes confiar em Hannsbach, é um homem honesto, trabalhador. Posso voltar para casa?

‑ Porque não?

Os olhos de Louise ensombraram‑se, mas dominou‑se, dando provas de uma vontade quase desumana:

‑ Esta casa ainda é a tua...

‑ Obrigado.

Zumbach levantou‑se e partiu. Chegado à porta de casa, voltou‑se ainda uma vez. Louise estava de pé no grande vestíbulo abobadado que conduzia ao salão. Muda, como que petrificada, pálida.

‑ Agarras‑te então tanto às tuas mentiras? ‑ perguntou em voz baixa.

Zumbach baixou a cabeça e saiu rapidamente.

às seis horas da manhã, o pequeno avião Chessna de Zumbach rolou na pista e dirigiu‑se para o ponto que lhe tinha sido indicado para a descolagem. Da torre de controlo chegou‑lhe o anúncio de que a pista estava livre.

Zumbach estava sentado aos comandos como se fosse conduzir o seu carro, só o capacete e os auscultadores é que lhe davam um ar estranho. Lançou um olhar de revés e viu Louise na berma da pista. Agitava um lenço, o vento da hélice apossou‑se dele e ela teve dificuldade em segurá‑lo.

Lentamente, ele levantou a mão direita em sinal de adeus. Um adeus definitivo.

Zumbach nem teve tempo de pensar mais nisso, de regressar aos anos em que tinha sido feliz com Louise, ou julgado sê‑lo. No seu capacete, a voz da torre de controlo fez‑se ouvir.

‑ Porque não descola? Se não parte, lembro‑lhe...

‑ D 1340 pronto!

Zumbach accionou as hélices. Fez rolar o avião na pista de voo, passou em revista mais uma vez todos os instrumentos de controlo, abriu mais o gás. Os motores aceleraram. o Chessna tomou impulso para descolar.

Voz da torre de controlo dentro do capacete: "Perturbações tempestuosas por cima de Baden‑Wurtemberg, uma frente de tempestade com a altitude de dois mil e quatrocentos pés. Vá para sul. "


‑ Entendido.

Zumbach puxou o leme de profundidade, a cauda do Chessna elevou‑se... depois descolou como um pássaro cintilante ataca os céus.

Louise, na berma da pista de voo, olhava para o ar. Seguia com o olhar o ponto em breve absorvido pelo azul, como uma gota de orvalho.

"Está tudo acabado", disse, dirigindo‑se a si própria. "Está tudo finalmente acabado."

Neste momento, a manhã começa. Mas como será amanhã?

 

A uma altitude de mil metros, o avião ronronava em direcção ao sul. Heinrich Zumbach vigiava os instrumentos: altímetro, radar, termómetro, motor, pressão de óleo e de vez em quando falava para as diversas torres de controlo dos aeródromos de aeroclubes.

Este voo era para ele igual a um hábito diário. Tinha comprado o bimotor dois anos antes e equipara‑o com tudo o que pudesse ajudar à segurança do voo. Este avião era tão seguro como um aparelho das linhas comerciais e possuía comandos automáticos. Estava autorizado a aterrar nos grandes aeródromos, cuja torre de controlo o fazia aterrar Por radar na pista.

‑ É o meu hobby ‑ dissera a Louise nessa altura. ‑ Não fumo, bebo pouco, não tenho ambiÇões... concede‑me o prazer de vogar o céu...

Louise não tinha, pois, feito qualquer objecção, embora empalidecesse de medo, quando Heinrich se metia valentemente pelos céus onde o seu pequeno aparelho se fundia no azul.

E ficava inexplicavelmente feliz de todas as vezes que o Chessena começava a descer, com os motores bloqueados, em direcção ao aeródromo e depois rolava sussurrante para o hangar. Então, beijava Heinrich como se ele voltasse de um outro mundo.

Nada de outras ambições... Zumbach ligou o piloto automático. Nesse momento, o Chessna voava regularmente em altitude e andamento iguais sem que fosse obrigado a olhar muito para os instrumentos. Tirou o capacete com os auscultadores, o que era proibido, estendeu‑se na sua cadeira de piloto e através do largo vão da janela lateral contemplou a terra que deslizava lentamente por baixo de si.

Aldeias, casas parecidas com as de uma loja de brinquedos. Manchas verdes de florestas, um fragmento de carta geográfica fascinante.

"Que vou eu fazer para começar?" pensava Zumbach. "Primeiro Zurique, depois Locarno. Lá esperarei a carta do meu futuro sócio do Rio de Janeiro."

A última conversa telefónica que tivera, precisamente antes de descolar, tinha clarificado as coisas: na América do Sul, os alicerces de uma nova cidade esperavam Heinrich Zumbach. Uma cidade em plena floresta virgem, como tinha sido Brasília, a nova capital.


Projecto fantástico que justificava a sua situação no centro de jazidas de enxofre, prata e, segundo se dizia, urânio. Terra carregada de riquezas, onde a grande floresta elevava ainda as suas gigantescas árvores, ligadas por lianas e grinaldas de orquídeas, cortada por cursos de água cheios de crocodilos, de piranhas, os peixes assassinos, assediada por tribos de índios desconhecidos que ainda iam à "caça das cabeças" e que, com as flechas envenenadas atiradas pelas zarabatanas, venciam até as armas automáticas dos geólogos. Era a "morte silenciosa" e mais de um explorador daquelas regiões não tinha voltado. Seria uma luta sem quartel travada contra a natureza. Durante esse tempo, Heinrich Zumbach, sentado no seu escritório do Rio, desenharia, projecto após projecto, complexos habitacionais, ruas, fábricas, grandes estabelecimentos industriais, enquanto esperava que os bulIdozeres abrissem caminho através do inferno verde para ali ser feito um paraíso dourado.

Um paraíso? A civilização será alguma vez um dom de Deus?

Zumbach duvidava. Mas teria, no Rio, trabalhado até ao fim da vida. A sua nova vida estava assegurada. Não queria voltar a saber da sua antiga existência, de que presentemente fugia. Cada qui lómetro percorrido o afastava dela.

"Amei verdadeiramente Louise", pensou. "Foi uma boa esposa, perseverante, dedicada, pronta a todos os sacrifícios. Sem ela, nunca me teria tornado o grande Zumbach, o arquitecto famoso que Podia escolher entre os projectos que lhe propunham, enquanto outros lambiam as botas dos clientes para conseguirem encomendas. Durante esses anos de ascensão, ela tinha colaborado no seu trabalho como um mestre‑de‑obras... No atelier, nas obras, no controlo, e, à noite, no gabinete de desenho... Um verdadeiro companheiro de trabalho. Nunca a esquecerei e, no entanto, enganei‑a... Mas quem conheceu Margot, há‑de compreender‑me."

Todo aquele que tivesse sido alvo do olhar de Margot, de olhos verdes semicerrados, cuja boca se entreabria ligeiramente, enquanto, sob a sua blusa ou o seu vestido, os seios apontavam para ele ao mesmo tempo que ela balançava as ancas e que tudo nela era um convite, uma promessa, sexo velado... Qual era o homem que nesse momento teria feito de Santo Antônio? Heinrich Zumbach, não, com certeza; não era feito para isso. Precisava de se render ao encanto de Margot de pés e mãos atados e nenhum homem naquelas circunstâncias teria pensado nas possíveis consequências.

As consequências... teria de as extrair da sua aventura. Metade da sua existência tinha ficado estragada com a morte de Margot nos seus braços. Quem teria previsto esta terrível partida do destino? E no preciso momento da sua mais viva felicidade, um suspiro, o último... Margot tinha‑se anulado completamente naquele orgasmo e depois ele tinha‑a enterrado como um cadávér incómodo.

Zumbach olhou para os instrumentos de voo. Ia tudo bem: altitude 1200 metros, velocidade 290 quilómetros, a atmosfera conservava‑se límpida; em contrapartida o capacete de escuta, pousado nos joelhos, emitia constante ruído. Voltou a colocar os auscultadores nos ouvidos e ouviu uma voz nervosa que vinha de uma estação de terra.

‑ Dê a sua posição! Que diabo! Está a dormir?

‑ Estou perfeitamente acordado ‑ respondeu Zumbach, cordial. - Vá lá, faça nas calças, camarada. Está tudo bem a bordo.

‑ Porque não responde? ‑ exclamou a voz que vinha de terra. ‑ Aqui, aeródromo de Estugarda.

‑ Estava em plena meditação ‑ respondeu Zumbach, divertido.

‑ Medite se quiser; mas para onde vai?

‑ Zurique ‑ Klothen.


‑ Mude de rota. Voe por cima do vale do Reno até Basileia, depois em direcção a Klothen. Anuncie‑se a Friburgo.

‑ Porquê?

‑ Há grandes formações tempestuosas por cima dos Alpes Bávaros. Nenhuma visibilidade em terra, fortes correntes eléctricas.

‑ Muito bem, e então? ‑ respondeu Zumbach. Desligou o piloto automático e tomou os comandos na mão sem mudar de rota: ‑ Não tenho medo de relâmpagos!

‑ Vento de força nove.

‑ Então agarre‑se ao chapéu ‑ disse Zumbach, trocista.

De longe, apercebeu‑se da muralha escura e ameaçadora que tapava o horizonte. Massas negras que rolavam umas sobre as outras, mudando constantemente de forma.

‑ Vou subir mais e estou‑me nas tintas para o vosso muro tempestuoso! ‑ gritou.

‑ Ignora que altura atinge a massa das nuvens. Vá pelo vale do Reno. Nós alertámo‑lo, não garantimos nada se continuar em frente. E sabe que isto lhe custará o seu brevet.

‑ Meus filhos, não façam chichi nas calças! - Zumbach apertou o volante em meia‑lua. ‑ Uma vez, atravessei uma tempestade de areia por cima da Tunísia. o que é uma tempestade alemã comparada com isto? Beba um copo... chamá‑lo‑ei de Klothen.

Heinrich Zumbach ouviu um estalido no capacete de escuta. Estugarda tinha cortado o contacto.

"Agora, vão alertar a vigilância aérea", pensou. "Tiram‑me o brevet. Eles só têm de me largar o cu! Disse bem, o cu. Vou até Agno, depois para Lugano... então já podem pendurar o papel no boné. No Brasil, ninguém me vai perguntar se atravessei o espaço aéreo por cima dos Alpes Bávaros com tempestade."

o pequeno avião continuava na sua rota imperturbavelmente. Os dois motores roncavam tranquilamente, intrépidos.

"Bom. material", pensava Zumbach. "Se as pessoas soubessem como voar é mais seguro, mais excitante! Mas a maior parte tem medo. o ar é pérfido, dizem... Mas quem olha para as auto‑estradas numa manhã de geada?"

Zumbach tomou altura. Dois mil metros. "Nenhuma tempestade tem tal altitude", pensou, "e se esta rebentar, se os relâmpagos faiscarem por baixo de mim, que me importa?"

Os Alpes da Suábia enterrados em camadas de nuvens em ebulição. Florestas veladas pelo nevoeiro, maciços montanhosos, rochedos retalhados parecidos com um montão de pedras atiradas por um gigante. Uma fenda nas nuvens revelava lá em baixo uma paisagem molhada, luzidia, polida pela chuva e pelo vento.

Zumbach olhava fixamente para o muro de tempestade. Os relâmpagos fenderam as nuvens retalhadas como nos desenhos das crianças. Os cúmulos entrechocavam‑se, lutavam entre si, fundiam‑se, atiravam‑se uns contra os outros, abriam crateras infernais de onde jorrava o fogo. Zumbach, com a testa enrugada, preocupado, mudou de rumo.

Fixemos o campo", pensou. "Meu Deus, eles tinham razão em Estugarda, isto é um grande caldo! ‑ Contornemos numa elegante viragem... eu sou mais rápido do que o vento... "

Era um erro. o vento, a tempestade, o inferno apanharam‑no.


De repente, estava a voar no seio de uma escuridão efervescente. Um punho gigante apoderou‑se do pequeno bimotor e lançou‑o pelo ar como um floco. Zumbach agarrou‑se mais à manche.

‑ Imbecil! ‑ gritou para si próprio, e como ainda tinha o microfone ligado, o pessoal da torre do Aeródromo de Estugarda ouviu‑o. ‑ Que maçada!

Puxou a manche para se arrancar às garras do vento, mas o pequeno avião só vacilava, incapaz de seguir a sua direcção, transformado em brinquedo dos elementos.

Heinrich Zumbach perdeu a orientação, não sabia já onde estava o alto e o baixo, se saltava mais alto para os céus ou se se abatia na direccção do solo aproximando‑se dos rochedos alpinos.

A barreira negra do horizonte girava como a agulha louca de um mostrador que indicasse os segundos. o compasso avisou Zumbach de que o avião girava sobre si mesmo como um avião‑robot de que se perdeu o controlo.

Quanto tempo o frágil aparelho suportaria aquele estado de coisas era impossível prever.

‑ Que imundície! ‑ berrou Zumbach, tentando dominar o avião.

Mas a natureza foi mais forte... o avião rodou sobre si mesmo rodeado de relâmpagos, envolvido pelas nuvens. Só restava a esperança que ele acabasse por se safar por si próprio daquele inferno cinzento‑branco e reencontrasse o ar livre.

Na estação em terra, ouviram o combate desesperado de Zumbach. Ninguém podia ir em sua ajuda, mas também ninguém tinha pena dele.

‑ Um tal idiota ‑ disse o chefe do serviço de segurança aérea, rouco pela emoção ‑, um tal idiota merece ser precipitado no solo. Este acontecimento é muito cruel e como camarada de um outro aviador eu não devia exprimir esta opinião, mas... ele não mereceu outra coisa. Prevenimo‑lo a tempo. - Agora...

No altifalante, a voz de Zumbach soou de novo. Gritos desesperados.

‑ o motor esquerdo partiu‑se, já não consigo manobrar o leme de direcção, voo a direito sobre a tempestade. Meu Deus, estou a descer! Onde é que eu estou mesmo? Posso fazer uma aterragem de emergência?

Na torre de controlo de Estugarda, e também na de Friburgo, calculavam a toda a pressa, através dos radiogoniómetros, o ponto onde Zumbach se encontrava. Sobrevoava precisamente Ebingen e onde quer que fosse aterrar encontraria vales e rochedos contra os quais esmagaria inevitavelmente o aparelho.

‑ Voe para o vale do Danúbio ‑ disse uma voz que crepitava nos auscultadores. ‑ Mantenha‑se no sul... Ainda pode navegar?

‑ Vale do Danúbio! ‑ rugiu Zumbach como resposta.

Agarrava‑se a uma das numerosas alavancas de comando. o Chessna saltava entre as nuvens como um cabrito.

‑ Como se eu soubesse onde está o Danúbio! - gritou ‑, enquanto voo através de um puré de ervilhas em fogo! Meu Deus, o motor direito está a falhar! Preciso de descer!

o suor corria pelo rosto de Zumbach, um suor frio de angústia, pegajoso. Tentou empurrar o avião para terra, mas parecia que a manche não passava de um enfeite do aparelho.

A tempestade apanhou o Chessna, atirou‑o para o alto como uma bola, depois atirou‑o para baixo entre os bancos de nuvens negras e fez explodir relâmpagos nos seus flancos como se fosse fogo‑de‑artifício visto de muito perto.


Zumbach olhava fixamente para os seus aparelhos, calava‑se. Os ponteiros já não reagiam. Corte da corrente eléctrica, o avião já não era nada, um grão de poeira entre o céu e a terra. A tempestade empurrava‑o para onde queria. Zumbach ficou dez minutos no meio da tormenta.

Dez minutos durante os quais expiou toda a sua vida.

Dez minutos durante os quais provou o gosto da morte até o seu coração quase se extinguir.

Dez minutos longos como dez eternidades, dez estações do inferno, dez mil anos de expiação, dez condenações divinas.

Depois, o Chessna pôs‑se a descer em espiral. Zumbach agarrou‑se com toda a força ao leme de direcção, blasfemou, gritou.

Na torre de controlo de Estugarda, ouviam tudo com o sangue a gelar‑se‑lhes nas veias.

Como uma pedra, o avião furou a camada de nuvens. Voltou a ver a terra reluzente de chuva, iluminada pelas faíscas dos relâmpagos.

Mas também viu que caía, em direcção a um maciço montanhoso, acidentado, coberto de florestas que pareciam impenetráveis lá de cima.

E Zumbach dizia a si mesmo (com o espírito perfeitamente lúcido, curiosamente afastado de todas as coisas, como se já tivesse deixado o corpo): "Isto é o Lemberg... cento e quinze metros. Vou morrer aqui no Lemberg, contra um rochedo, entre os cumes, em qualquer parte, lá em baixo, nesta solidão de onde se elevam estes vapores de humidade."

A terra aproximava‑se a uma velocidade louca.

‑ o fim! ‑ berrou Zumbach ao seu microfone.

‑ Sobre o Lemberg. É o castigo de Deus. Digam à minha mulher Louise ... Meu Deus... Meu Deus... Estou a ver a morte ...

Sete segundos mais tarde, o aparelho esmagara‑se contra um planalto rochoso. o Chessna abriu‑se, a gasolina derramou‑se, incendiou‑se e explodiu. Os destroços foram projectados a centenas de metros dali e com eles Heinrich Zumbach, cujo último pensamento tinha sido o nada e que fechara os olhos quando se despenhara.

Não sentiu nada do desmembramento da sua pessoa. A morte que fulmina entre as nuvens é mais piedosa que a que assedia as auto‑estradas.

Nos écrans de radar em Estugarda e Friburgo, um pequeno ponto apagou‑se.

Terminado. Um ser humano tinha deixado de viver.

Na torre de controlo de Estugarda, o controlador de voo juntou as mãos, depois disse em voz baixa:

‑ Dêem o alerta por toda a parte: bombeiros,

ambulância, a estação de helicópteros de Pfullingen. Talvez ele tenha sobrevivido...

Mas era uma forma de falar, bem o sabia.

 

Só encontraram Heinrich Zumbach no dia seguinte, precisamente por baixo do cume do Lemberg. Quer dizer, encontraram os pedaços do avião. Quanto a ele mesmo, apanharam dois braços, duas pernas e uma parte do tronco. Faltava a cabeça.

Nas buscas que foram feitas entre os destroços e nos arredores do aparelho, e isto com a ajuda de uma matilha de cães‑polícias e de outros meios de investigação... não encontraram a cabeça.


juntaram os restos num caixão, que chumbaram e remeteram para a viúva de Heinrich Zumbach. Evitaram dizer‑lhe que o caixão continha um corpo decapitado... Pelo contrário, o procurador da República, que, segundo a lei, tinha tido de fazer, depois do acidente, as buscas regulamentares, exprimiu a sua simpatia e acrescentou que Heinrich Zumbach parecia dormir, não tinha fracturas expostas... que partira a coluna vertebral... Piedosa mentira, tão convincente que Louise acreditou nela.

Para dizer tudo, encontraram a cabeça três semanas mais tarde. Lenhadores que abatiam um troço da floresta descobriram, ao desbastar o cimo de um pinheiro, a cabeça de Zumbach solidamente presa entre os ramos. Enterraram‑na em silêncio, depois de uma breve oração, no cemitério de Reichenbach.

Benno Grossmann quis consolar Louise. Estava de cama desde o envenenamento com barbitúricos, velado permanentemente por Dieter, mas continuava a ter o desejo de morrer.

Quando Louise lhe participou a morte de Heinrich, tomou a mão dela entre as suas. A mão estava fria, como privada de vida.

‑ A desgraça abate‑se sobre nós como um castigo bíblico ‑ disse com uma voz terna. ‑ Porquê? Porquê então? Primeiro Margot, agora Heinrich. Seríamos nós demasiado opulentos? Começo, pouco a pouco, a acreditar em Deus. Neste momento, estamos ambos sozinhos.

Louise hesitou. "Devo dizer‑lhe a verdade sobre Margot? Devo dizer‑lhe que Heinrich morreu quando fugia? Que tudo na vida acaba por cair sob o golpe da justiça? Que cada um deve, mais ou menos, mais cedo ou mais tarde, pagar os seus erros? Não há na vida nenhuma dívida que não seja saldada. No fim de uma vida, o balanço é sempre justo."

Calou‑se, porém. Via a palidez de Benno, os olhos afundados nas órbitas, a ruga desesperada dos lábios, o tremor contínuo das mãos em cima da colcha.

"Ele próprio está à beira da morte" pensou, "e é também uma vítima de Heinrich. Uma vítima perfeitamente inocente, empurrada para o fim pelo desespero, pela mentira e pela traição."

Era terrível, de facto, mas rapidamente o desgosto que sentia pela morte de Heinrich se desvaneceu. Em contrapartida, encheu‑se de pena de Benno. Debruçou‑se para ele e beijou‑o.

‑ Obrigado, Louise ‑ disse ele muito baixo.

‑ Está tudo ao contrário, de facto. Heinrich devia estar vivo e eu a repousar num caixão.

‑ Talvez esteja tudo melhor assim, Benno.

‑ Não. Heinrich era um bom tipo. Devia viver até muito velho.

Sem mais uma palavra, Louise abandonou o quarto de Grossmann.

No corredor do primeiro andar, Dieter estava instalado num sofá de estilo barroco, com as mãos cerradas entre os joelhos.

‑ Como reagiu ele? ‑ perguntou em voz baixa.

‑ julgo que já nada lhe pode fazer mal. Dieter, é preciso vigiar bem o teu pai. É uma loucura o seu desejo de se destruir. Não tem qualquer razão para isso. Se alguém deve viver, é ele. É um homem de grande valor.

‑ Diz‑lhe isso então, ele não acredita. A enfermeira da noite não pode fechar os olhos nem um momento. Temos de esperar que a todo o momento ele tente atirar‑se da janela.

‑ Então, ponham a cama dele no rés‑do‑chão, na biblioteca.

‑ Para que serve isso? Se ele quer morrer, arranjará maneira de o conseguir. Não lhe faltam ideias nesse domínio. ‑ Dieter levantou‑se: Benno não podia ser deixado sem vigilância um só momento.


‑ Seria bom se pudesses vir agora mais vezes...

‑ Fá‑lo‑ei, Dieter. ‑ Louise acenou com a cabeça várias vezes. ‑ Sou mesmo obrigada a isso...

Dieter não percebeu o sentido daquelas palavras, mas endereçou a Louise um sorriso de reconhecimento e voltou para o quarto do pai. Mas voltou a sair imediatamente.

Assustada, Louise voltou‑se. já ia a descer as escadas.

‑ Passa‑se alguma coisa, Dieter? ‑ gritou.

‑ Não. o papá está a dormir... Mas esqueci‑me de te dizer uma coisa... A polícia pensa que Margot já terá morrido.

Louise apertou os lábios até os tornar delgados como um fio.

‑ Tem provas?

‑ Não. Mas o criminalista Haberle disse‑me: "Tenho a impressão de que a sua madrasta já morreu. Não sei dar‑lhe a razão desta sensação. Isto deve ter sido um crime sexual. Estamos em vias de passar a pente fino sistematicamente as relações da senhora Grossmann. Até os amigos que tinha antes do casamento com o seu pai. É inútil dizer‑lhe quanto estas pesquisas são complicadas, sobretudo agora, que já passou tanto tempo... Estamos perante uma tarefa longa e minuciosa. " ‑ o que é que devemos pensar?

- Não sei. ‑ Louise olhava fixamente para a alcatifa que cobria os degraus da escada. ‑ Tudo é possível. Apesar de tudo, Margot era uma mulher misteriosa.

‑ Era uma puta! ‑ exclamou Dieter com amargura. ‑ Só que o pai é que nunca o deve saber!

‑ Sabes mais alguma coisa dela, Dieter?

‑ Sei que ela tinha outros homens! Como é que o seu carro abandonado veio a ser encontrado à entrada da auto‑estrada? o que foi ela lá fazer?

‑ Não será uma pista falsa?

‑ Ou o bom local para um encontro... e tê‑la‑ão assassinado ali! Se pelo menos eu o pudesse fazer compreender ao pai!

‑ Tentarei ‑ disse Louise.

Desceu lentamente as escadas. De repente, as pernas pareciam‑lhe pesadas e moles até aos joelhos.

"Tenho de dizer o mais depressa possível ao Benno. Ele tem de saber a verdade antes que enlouqueça."

o seu melhor amigo Heinrich era um safado. Seria o segundo universo a afundar‑se no coração de Benno.

 

o enterro de Zumbach foi mais um acontecimento mundano que uma cerimónia de luto.

o cemitério estava cheio. Todas as empresas de construção tinham mandado delegações. Diante da cova aberta, os caçadores tocaram o Grande Hallali e os membros do clube de ténis atiraram a raqueta de Zumbach para cima do caixão. o coro de que ele fazia parte cantou um hino à vida eterna, o clube de tiro disparou uma salva, até a montada de Zumbach, a égua Leila, um meio‑sangue árabe, foi levada, ao cuidado do clube de equitação, até junto do caixão, onde deixou cair uma pequena coroa de flores que levava presa nos dentes.

Foi um enterro comovente e ao mesmo tempo um gigantesco show.

Quando o caixão de Zumbach foi finalmente descido para o fundo da sepultura, muitas pessoas respiraram aliviadas. Todas deitaram uma flor ou uma pá de terra e, tendo apertado em silêncio a mão da viúva, abandonaram o cemitério, atravessado por correntes de ar.


Finalmente, só ficaram junto da sepultura Louise e o notário que tinha sido encarregado por Zumbach de redigir o testamento feito para a mulher.

‑ A senhora herda tudo ‑ disse ele a meia voz.

‑ é, pois, inútil terminar os actos de transferência de bens. Apesar de tudo, devo terminar o trabalho?

Louise abanou a cabeça. o notário respondeu com um aceno e afastou‑se da sepultura. "Envolvamos tudo isto num manto de silêncio", pensou. "Para quê provocar mais um escândalo mundano? A quem podia isso servir? A terra cobre Zumbach. Cubramos com o véu do esquecimento tudo aquilo que pode ter acontecido."

Louise, ao sair do cemitério, foi imediatamente no seu carro para casa de Benno Grossmann. Sentado na cama, ele bebia chá. Levantou as duas mãos ao ver Louise.

‑ Está tudo acabado, Louise ‑ disse com um tom consolador. ‑ Mas a vida continua. Heinrich nunca será substituído, bem o sabemos... No entanto, não seria agir de acordo com o feitio dele passarmos a viver de cabeça baixa. Era um homem que tinha um gosto muito grande pela vida...

‑ Se era! ‑ disse Louise. Mas Benno não notou o tom ligeiramente sarcástico da resposta. Louise sentou‑se na beira da cama, agarrou na bandeja com o bule, a chávena, o açucareiro e a leiteira e colocou‑a em cima da mesa‑de‑cabeceira. Depois agarrou nas duas mãos de Benno.

Espantado, Benno adivinhou que Louise não procurava conforto junto dele, mas que tinha medo por ele, Benno. o estreitar das mãos não pedia qualquer socorro, mas ela parecia querer contê‑lo.

‑ Benno... ‑ disse com voz grave. ‑ Benno, neste momento em que Heinrich desapareceu, tenho de te dizer uma coisa. Se me calei até agora, apesar de tudo o que se passou, foi porque concedi a Heinrich esta última prova de amor. Sabes que o amei e é por isso que é preciso que me compreendas, por eu ter esperado tanto para te dizer... Benno...

‑ Sim, Louise...

Grossmann olhava‑a fixamente. Estava pálida como os lençóis da cama dele.

Louise respirava com dificuldade, as palavras magoavam‑na.

‑ Margot morreu.

Grossmann caiu sobre as almofadas.

‑ Não... ‑ balbuciou. ‑ Não... não...

‑ Sim, Benno. Morreu numa "hora de almoço", entre o meio‑dia e as duas horas... numa pensãozinha... numa cama, nos braços de Heinrich...

Há momentos na vida em que é superior às nossas forças olharmos para o nosso interlocutor.

Louise estava nesta situação.

Olhava fixamente para a parede atrás de Grossmann, onde se achava uma tapeçaria estupidamente florida, com grinaldas de rosas um pouco desbotadas pelo sol. E esperava sem saber o quê.

o que tinha confessado a Grossmann significava o afundar de dois pequenos universos até então intactos... Pelo menos era o que parecia até ao dia em que Margot desaparecera misteriosamente.


Benno Grossmann, deitado nas almofadas, olhava para Louise em silêncio. Os dedos deslizavam à toa sobre a colcha num vaivém incessante, que traía uma confusão muda, esmagadora.

‑ Sim ‑ disse Louise com um aceno de cabeça.

‑ E tu sabias?

‑ Não. Descobri por acaso no dia em que voltaste de áfrica com o Dieter. Prometi a Heinrich que me calava até ele ter abandonado a Europa. Queria ir para a América do Sul recomeçar uma nova vida, cortar os laços atrás de si...

‑ E saiu‑se perfeitamente. ‑ Grossmann pôs as mãos nos olhos como se estivesse ofuscado pela luz. ‑ E... onde... está Margot neste momento?

Louise ficou silenciosa, abanou a cabeça e quis levantar‑se, mas as mãos de Grossmann prenderam‑na solidamente.

‑ Di‑lo... ‑ A voz quebrava‑se‑lhe. ‑ já engoli tanta coisa... Aguentarei mais esse golpe.

‑ Ele enterrou‑a na floresta.

‑ Na floresta... ‑ Grossmann voltou a cair, aniquilado, nas almofadas. ‑ Enterrada como uma galdéria...

‑ Ele estava num estado que o tornava surdo a qualquer tentativa de escutar a razão. Estava na cama com a amante e de repente ela morreu. A mulher do seu melhor amigo. Que havia de fazer? Pode‑se pensar com juízo numa tal situação? E o medo, o medo ignóbil... ‑ Louise calou‑se por um momento, antes de continuar: ‑ Heinrich era um brilhante herói... nas suas histórias, entre os seus fantasmas. Na realidade, era um cobarde. E aquela morte apanhou‑o desprevenido...

‑ Tentas justificá‑lo?

‑ Não. É curioso, mas consigo falar de Heinrich como de um estranho. Vejo‑o na minha frente como se estivesse com centenas de outros indivíduos‑tipo numa montra cuja transparência permitisse ver todos os seus defeitos, os seus lados bons, o seu carácter, os seus sonhos, as suas preocupações...

Louise olhou finalmente para Grossmann. Os olhares deles encontraram‑se como os dos seres que começam a surgir dos escombros do passado.

‑ Tentei compreender, Benno, e não desculpá‑lo ‑ disse por fim. ‑ o que ele fez não tem desculpa, mas é preciso pensar nisso com lógica. Sim, enterrou Margot na floresta, levou o carro dela para a berma da auto‑estrada, desempenhou junto de nós um teatro infame. Com a ajuda dos falsos postais, afastou‑te de qualquer pista que conduzisse à verdade. E quanto mais te conduzia para o escuro, mais nele ardia o medo de ter cometido um erro revelador. E... acabou por ser traído por uma carteirinha de fósforos.

Grossmann suspirou. Agora, que sabia a verdade e que a morte de Margot era irremediável e tinha definitivamente quebrado qualquer coisa em si, respirava finalmente, liberto da sua obsessão, embora fosse até ao fim.

‑ Já foste... falar com a polícia? ‑ perguntou.

‑ Não. Primeiro tinhas de saber, mas vou daqui para a esquadra da polícia. ‑ Louise levantou‑se: ‑ Benno, perdemos ambos metade da nossa existência. Seria inútil perder a outra. A vida continua.

‑ A tua coragem é um exemplo, Louise.

‑ A minha coragem? ‑ Louise sorriu com amargura. ‑ É fácil sermos corajosos quando estamos num mundo que ficou deserto!

 


o criminalista Franz Haberle deixou falar Louise Zumbach. Não a interrompeu nem com perguntas nem com comentários.

Ao lado dele, a fita magnética deslizava nas bobinas. Extrair‑se‑ia dali a declaração cujo texto seria depois lido mais calmamente e do qual se poderia verificar a autenticidade.

‑ Está enterrada num local da floresta ‑ dizia Louise Zumbach. ‑ o meu marido fez‑me um desenho do sítio...

Procurou no saco de mão e colocou uma folha de papel em cima da secretária do homem da polícia.

‑ Ei‑lo!

o criminalista parou o gravador. Seguiu‑se uma conversa que não apareceria nos autos oficiais.

‑ Mandaremos em seguida examinar a morta. Esperemos que se tenha tratado de facto de uma embolia.

Um arrepio percorreu o rosto de Louise:

‑ o senhor conheceu o meu marido, senhor; nunca teria sido capaz de cometer um crime...

Haberle interrompeu‑a:

‑ Quando eu era jovem assistente (estava em Estugarda) tive de prender o meu melhor camarada. Violara crianças sem parar, durante três anos. Teria posto as mãos no fogo por ele, era tão bom companheiro... Mas veja, senhora Zumbach, nós só vemos a cara de um homem, não vemos o que se passa dentro dele.

‑ No caso de Margot Grossmann, tratou‑se de um acidente. Acredite‑me.

‑ Seremos obrigados a esperar as conclusões da autópsia.

o criminalista ofereceu um cigarro a Louise. Ela aceitou‑o e fumou‑o com rápidas aspirações. A mão tremia‑lhe.

‑ o senhor... o senhor acredita no assassínio de uma amante tornada importuna, não é?

‑ Não, mas não compreendo porque agiu o seu marido de uma forma tão louca, quando verificou que ela lhe morrera nos braços. Uma chamada telefónica para mim teria anulado todos os problemas imagináveis. Os casos, de crises cardíacas na sequência, desculpe, dos excessos sexuais não são tão raros como as pessoas julgam. Não é razão para se pôr em causa toda a existência!

- Heinrich temia sobretudo o escândalo.

- É uma infantilidade! ‑ Haberle esmagou o cigarro no cinzeiro de vidro. ‑ Sem dúvida que a amizade dele com Grossmann ficaria tramada... Um divórcio a mais neste mundo... Quem é que falaria disso nos nossos dias? A senhora também se teria divorciado?

‑ Nessas condições, sim. Uma aventura em qualquer parte, durante uma viagem, ter‑lha‑ia perdoado. Nunca fui mimada com a sua fidelidade... Mas a mulher do seu melhor amigo, a minha própria amiga... Isso abre um precipício no casal que não se consegue ultrapassar. Sim, teria deixado Heinrich e ele sabia‑o... Isso explica o pânico dele, o medo da revelação pública do seu carácter...

‑ Ao fim de três meses, já ninguém falaria nisso ‑ respondeu Haberle.

Carregou no botão da campainha, apareceu uma secretária e tirou a bobina do gravador, a fim de dactilografar o texto.

‑ Deliciam‑se com estes pequenos casos; como sabe, devoram‑nos como caviar. Mas quando o prato fica vazio, já tudo está esquecido.


‑ Para Heinrich, essa morte foi um choque; era um cobarde, não um assassino.

‑ Sabê‑lo‑emos quando for feita a exumação. - Haberle levantou‑se e apertou ambas as mãos de Louise. ‑ Acima de tudo, isto já não tem importância depois da morte do seu marido.

‑ Não.

Louise abanou a cabeça.

No seu luto, transmitia uma sensação de extrema fragilidade, tão destroçada que metia medo, mas também singularmente rejuvenescida. Haberle, que a conhecia por a ter visto no clube de golfe e de ténis, estava pasmado.

‑ Para um funcionário da Justiça, isto não passa de um trabalho de rotina: a exumação de um cadáver.

‑ Um caso encerrado sem drama ‑ disse ela passado um instante ‑, mas para mim trata‑se de bastante mais. Foi tudo o que conservei do meu marido: a certeza de que ele não era um assassino. Se me tiver deixado essa convicção, poderei pensar nele em paz porque... o senhor não compreende, sem dúvida... eu amei‑o de verdade e não deixei de o amar, fosse ele o que fosse.

o criminalista Haberle só podia responder com acenos de cabeça. As palavras eram inúteis. Acompanhou Louise Zumbach até à porta e seguiu‑a com o olhar, enquanto ela se afastava ao longo do vestíbulo num passo rápido, segura na sua inquebrantável certeza de ter testemunhado uma última vez o seu amor por Heinrich.

 

A exumação do corpo de Margot estava prevista para o começo da manhã do dia seguinte.

Dois carros da brigada criminal, um furgão mortuário com o habitual caixão de zinco, um médico legista, seis polícias que deviam vedar o acesso à floresta, o fotógrafo da polícia e uma secretária da brigada criminal para o processo verbal encontravam‑se no estreito caminho florestal a partir do qual, segundo o desenho de Zumbach, não havia mais que vinte passos até ao lugar da sepultura.

‑ Vamos lá! ‑ disse o chefe da secção criminal Meier III, fazendo um sinal para dois guardas‑florestais ‑ Quando a tiverem encontrado, se se sentirem mal bebam uma pinga, rapazes!

A equipa criminal rodeava o local onde Margot teria sido enterrada. Haberle puxou o boné Para a nuca. Era uma manhã fria e cheia de neblina, silenciosa e hostil, e apesar deste tempo refrigerante Haberle começou a suar por todos os poros.

‑ Aqui? ‑ perguntou, crispado. ‑ Não está enganado, Meier?

‑ No desenho de Zumbach, está indicado assim.

Meier III levantou a folha de papel:

‑ Se o desenho for preciso, estamos a três metros da sepultura.

‑ Então, examinem bem o solo!

Haberle apontava com o guarda‑chuva o chão da floresta. Um solo intacto, não havia vestígios em nenhum lado que permitissem supor que alguém tivesse sido enterrado naquele lugar.

‑ Nada de monte de terra, um húmus que nunca foi revolvido. Nem os índios das histórias da nossa infância sabiam apagar tão bem todos os vestígios! Mas vamos lá! julgo, apesar de tudo, que não estamos no sítio certo!


o pessimismo de Haberle iria encontrar justificação. Cavaram um raio de quatro metros com um metro de profundidade. Não encontraram Margot Grossmann.

o tempo avançava, os homens dos serviços florestais suavam, os rostos dos representantes da secção criminal alongavam‑se visivelmente.

Haberle fumava um dos seus grandes charutos brasileiros, o que nele era sempre mau sinal. Meier III corria em todos os sentidos como uma raposa ávida de encontrar a presa. Farejava o chão e procurava as pistas. Nada indicava que uma pessoa tivesse sido ali enterrada. Por toda a parte, só havia o chão da floresta virgem. E ao meio‑dia começou a chover. Ao meio‑dia, que tinha sido a hora fatídica para os dois amantes.

‑ o desenho é falso ‑ disse finalmente Meier III, esgotado. ‑ Parem de cavar! Acabou‑se! Não estamos no bom caminho!

‑ E que significará isto? ‑ perguntou Haberle, que retomava o fio do discurso para responder à sua própria pergunta: ‑ Este caso ficará por explicar nas suas últimas consequências. Margot Grossmann morreu... mas nunca saberemos COMO.

‑ Continuaremos as buscas, senhor Haberle - respondeu Meier III, desencorajado.

‑ Pretende revolver toda esta floresta do Estado?

‑ Examiná‑la‑emos a partir dos movimentos das terras.

‑ Essa é boa! Os movimentos das terras! Que anedota!

Haberle acendeu o segundo charuto.

‑ E se a orientação for falsa? Se se tratar de uma parcela do norte? Ou da floresta de Spierung? Estamos cercados por inúmeras florestas.

‑ Então, senhor Haberle, Zumbach deixou‑nos um desenho errado, quis enganar‑nos e, de facto, assassinou Margot Grossmann.

Meier III reluzia debaixo do seu guarda‑chuva. à sua volta, o chão estava todo revolvido. Um cheiro de bolor flutuava no ar, mas não o de um corpo humano em decomposição.

‑ Isso seria uma explicação demasiado simples.

Haberle aspirava o charuto e tinha o rosto envolvido numa nuvem de fumo:

‑ Além de tudo, temos tempo, vamos passar pelo crivo todas as parcelas florestais. Durante o interrogatório, a senhora Megges tinha afirmado que Margot Grossmann estava deitada na cama, morta, quando Zumbach a introduziu no quarto. Nua, morta. E a senhora Megges tinha acreditado, sem a menor dúvida, no que Zumbach lhe tinha dito: "Crise cardíaca." Não examiinara o cadáver... Disse, segundo o processo verbal, que a morta parecia dormir. Mas uma mulher estrangulada também pode ter o ar de quem dorme. Deixemos o caso Zumbach‑Grossmann em suspenso até à descoberta do corpo.

Foi um momento terrível aquele em que o criminalista Haberle teve de explicar a Louise, sem rodeios, que aos olhos da secção criminal o marido dela era suspeito de assassínio até que a morta por si mesma o desmentisse.

‑ Não acredito que a cheguemos a encontrar - disse Haberle francamente. ‑ Só me interrogo porque lhe terá o seu marido dado um desenho falso.

‑ Ignoro‑o ‑ respondeu Louise com uma voz pouco audível. ‑ Mas ele não era um assassino, estou convencida.


‑ Quando o seu marido enterrou Margot Grossmann, não sofreria ele de falta de memória? Podia facilmente lembrar‑se do sítio onde a tinha enterrado. Foi tomado pelo pânico quando teve de reconhecer que a amante estava morta... Se isto foi de facto um acidente, como a senhora julga. Mas em seguida, levou‑a, agiu conscientemente e com um espírito perfeitamente lúcido.

Haberle olhava para o rosto caído de Louise.

‑ Não devo esconder‑lhe que o seu marido a deixou com uma última mentira.

‑ Não é verdade!

Louise levantou bruscamente a cabeça. Os olhos azuis estavam muito abertos, cheios de horror e de revolta contra o aumento de desgosto que a assaltava. Quando se recompôs, explicou:

‑ o senhor não ouviu Heinrich durante essa hora em que ele me confessou tudo. Estava acabado, totalmente destruído. Nesse ponto já não se mente mais, queremo‑nos apenas libertar de um peso esmagador.

Haberle abanou ligeiramente a cabeça:

‑ Psicologicamente, tudo isso é verdade. Mas onde está o cadáver de Margot Grossmann? Só ele é que conta! E o seu marido levou esse segredo para o túmulo! Porquê? o que é que ele tinha a esconder!

‑ Ele não a matou! ‑ gritou Louise, e, enfiando a cara nas mãos, começou a chorar. ‑ Ele não a matou! Era incapaz disso!

‑ Eu acreditá‑la‑ia de boa vontade mas em ciência criminal a fé não conta, mas sim a prova. E enquanto o cadáver não for encontrado, Heinrich Zumbach será aos nossos olhos...

Calou‑se, mas Louise sabia o fim da frase. E não podia responder‑lhe.

Heinrich Zumbach passava por um assassino. Ela era mulher de um criminoso.

Só tinha de cerrar os dentes e esperar um milagre: que encontrassem finalmente o sítio onde Margot tinha sido enterrada. Mas ainda há milagres nos nossos dias?

Ao fim de três semanas, cessaram as buscas. o dossier Grossmann foi metido no arquivo dos casos suspensos. Não haviam ali muitos e Haberle estava orgulhoso dos êxitos conseguidos pelos subordinados nas suas actividades profissionais.

Este dossier Grossmann irritava‑o. Ficaria ali a encher‑se de pó e não interessaria mais a ninguém. Mas ele carregaria sempre a memória de Zumbach da acusação de crime, embora racionalmente se pudesse dizer que tinha sido um acidente: colapso pós‑coito.

‑ Henrich Zumbach foi um idiota perfeito - disse Haberle, quando a secção criminal se reuniu uma vez mais com o chefe. ‑ o que há de novo?

o comissário Feiger, da secção de crimes II, colocou um delgado dossier na secretária do chefe:

‑ Christian Hahmel confessou:

‑ Finalmente! ‑ Haberle respirou aliviado. Mais um caso esclarecido. Assassínio de uma velhota por causa das suas economias. No entanto, o assassino não tinha encontrado o dinheiro, apenas o porta‑moedas da velha, que continha catorze marcos.

Acontece que a vida humana, às vezes, está por um bom preço. E Hahmel, o assassino, tinha dezassete anos...

 

No fim do Verão, Benno Grossmann e Louise Zumbach eram mais vistos juntos que nunca. Iam às soirées dos clubes, faziam compras em Meran, iam à ópera e aos concertos.


o que já toda a gente murmurava foi transformado por Grossmann em realidade numa noite de Outubro.

‑ Louise ‑ disse ‑, ajudaste‑me a esquecer Margot... Não, não é apenas uma frase. Penso nela, mas como um ser que passou pela minha vida. Já não sinto amargura nem desgosto com a sua recordação. Não sei como te sentes quando pensas no Heinrich.

‑ Pertence a uma época passada... é tudo. Quanto a nós, vivemos uma vida nova, para nós - respondeu a sorrir, e este sorriso encorajou Benno.

‑ Para nós, de verdade?

‑ É assim que eu a considero...

‑ Não estaremos nós já habituados um ao outro... mais do que habituados, Louise? Nestes últimos meses... Não seremos feitos um para o outro? Não me terei tornado para ti mais que um bom amigo?

‑ às vezes, acontece‑me estar à espera do teu toque na campainha.

‑ Só às vezes?

‑ Não... De facto, sempre. ‑ Louise abanou a cabeça a rir: ‑ Tens medo, Benno?

‑ Sou um velho idiota.

‑ Oh, não, um tipo distinto.

‑ Devíamos casar‑nos, Louise, não achas? - Benno Grossmann puxou‑a para cima do sofá e tomou‑a nos braços. o rosto de Louise estava muito próximo e os seus lábios tinham uma expressão infantil comovedora. Ele deu‑lhe um beijo na boca, não com paixão, mas sobretudo com uma delicadeza extrema, como se esperasse que ela lhe recusasse os lábios. Mas ela continuou nos braços dele e fechou os olhos sob os seus beijos.

‑ Diabo! ‑ reconheceu ele em seguida ‑, tive uma dificuldade terrível em me decidir.

‑ Queres dizer que te meto medo? ‑ perguntou ela a rir.

Benno fez eco com o seu riso e pôs‑lhe um braço à volta da cintura, depois saíram para o terraço.

‑ Neste momento, gostava que o Dieter estivesse aqui ‑ disse Grossmann. ‑ Regozijar‑se‑ia connosco.

Contudo, Dieter estava longe. Desde há seis meses, estava a continuar os estudos nos Estados Unidos. Tinha deixado o pai como se fugisse quando ele deixara de ter dúvidas acerca da morte de Margot.

‑ A juventude quer conquistar o mundo... Que bom que é que ela o consiga hoje...

Benno ignorava apenas uma coisa. Na gaveta, fechada com duas voltas, da secretária de Dieter, da qual ele tinha levado a chave para a América, encontrava‑se um delgado fascículo ‑ o diário dele ‑ que apenas continha algumas notas breves. Mas uma delas era importante.

"Margot já não existe. o que quer que seja que tenha acontecido, quer ela tenha morrido nos braços de Zumbach, ou ele a tenha morto, pouco importa... pois eu tê‑la‑ia morto, eu próprio, se soubesse que todas as terças e sextas‑feiras ela era amante dele. Porque ela me pertencia só a mim, todas as segundas e quintas‑feiras... na Pensão Else, em Erlenbruch, durante duas requintadas horas de intervalo para o almoço."

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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