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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


...E O PECADO ERA MEU! / Nora Carrel
...E O PECADO ERA MEU! / Nora Carrel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

...E O PECADO ERA MEU!

 

Eram sete horas de uma manhã clara e cheia de sol, quando o Dr. Teodoro Buarque, atravessando o jardim silencioso da casa de Cláudio Monteiro, fez soar a campainha. Enquanto esperava que abrissem, lançou um olhar demorado, que foi escorregando cheio de emo­ção, escada abaixo, pelo caminho de areia branca, pelo gramado todo brilhante ainda das gotinhas de orvalho. Subia de tudo uma serenidade, uma impressão repousante e lânguida, uma como indiferença da natureza pelas paixões que atormentam os homens. Sim, indi­ferença, pois o sol brilhava alegre, as flores desabro­chavam e até dois pássaros saltitantes pousavam agora no galho da acácia e quebravam com seu chilreio o si­lêncio recolhido do jardim. Circunvagou o olhar pela varanda de arcadas redondas, de ladrilho encerrado e brilhante, onde um grupo cromado e vermelho punha uma nota estridente de cor...

Ali estava a mesma casa que êle visitara tantas vezes, como velho amigo da esposa de Cláudio, aquela suave Lucila, a quem vira nascer. Lembrava-se tão bem dela, quando...

O ruído de alguém, abrindo a porta, cortou-lhe as recordações. Endireitou o pince-nez. Era Leonardo, o criado que o recebia solícito. — "Bom dia, Dr. Teo­doro... Entre, faça o favor de entrar".

Tomou-lhe o chapéu e só então percebeu por trás de Leonardo, a velha Teresa, de mãos trêmulas, olhos vermelhos de chorar, mais curvada ainda, como se lhe pesasse a dor que carregava no coração.

"Telefonei muitas vezes, não atenderam" — disse o recém-chegado.

"Ah! Senhor doutor, o Dr. Cláudio mandou aba­far os telefones. Não quer que se atenda a ninguém" — explicou Teresa.

— “Foi bom o senhor ter vindo, — acrescentou Leonardo— o Dr. Cláudio não quer alimentar-se, não

sai do escritório, não quer ver ninguém. Estamos aflitos, êle é capaz de ficar doente."

"E onde está agora?"

"Ainda no escritório."

"Vou vê-lo".

— “Vá, sim. — pediu Teresa — êle precisa tanto de consolo."

Ficaram olhando o velho médico que se afastava. Havia no olhar dos dois servos a angústia e a esperança. O Dr. Teodoro era ainda forte com seus sessenta anos. Sua cabeça, sim, embranquecera completamente, o que lhe dava um aspecto romântico. Magro, alto, ainda ele­gante, atraente em extremo, era disputado como médico e como amigo. Seu olhar tinha uma penetração incomum e sempre pronunciava a palavra esperada. Quem se apro­ximava dele sentia-se confiante, pois a todos ouvia com natural interesse e simpatia.

Ao penetrar no escritório de Cláudio, sentia-se em­polado por emoções várias que o faziam, pela primera vez, vacilar sobre que diria. Bastou-lhe porém um olhar, para que do seu coração subissem ondas de comiseração que se condensaram em palavras amigas.

Cláudio parecia não o ouvir. Apenas lançou-lhe um olhar dorido e exausto. Seus lábios tremeram, mas não pronunciou nem uma palavra. O Dr. Teodoro puxou uma cadeira e sentou-se diante dele. Consertou o pince-nez lentamente, num gesto muito seu, para refletir ou observar.

— “Ouça, eu sei que palavras não amenizarão seu drama. E' terrível, é de fato terrível. Só mesmo o tempo poderá ir levando para mais longe, na nossa saudade, esta dor. Nunca esqueceremos, porém, nunca. Eu sou seu amigo, Cláudio, e vi Lucila nascer."

E como Cláudio continuasse calado e imóvel, pela sua memória passou toda a vida daquela criatura tão querida que já não existia, desde o momento em que a tivera pequenina, tremendo de frio, entre as mãos. Sor­riu a esta visão remota. Depois, os anos passando, e ela crescendo à sombra dos seus cuidados, tão cara como se também fosse um pouco sua filha, sendo filha de Sil­vério, seu melhor companheiro de infância, que estudara com êle, e durante trinta anos trabalhara no mesmo hos­pital. E concluindo em voz alta seus pensamentos, disse:

— “Cercamos sempre Lucila de um carinho extremo...

- "Um carinho extremo — repetiu Cláudio com voz morta. — Quem?

"Você não me ouve, é natural, eu estava relem? brando uma longa história."

— “Uma história longa..." — murmurou Cláudio.

— “Mas ouça, Cláudio, não falemos mais sobre o passado... É preciso que você reaja, que volte à vida, que lute. por você mesmo e pelo seu fliho."

— “Meu filho..."

— “Hoje vim aqui buscá-lo. Tenho um caso difícil no hospital." — Procurava dar à voz um tom natural. — "Uma mulher que sofreu um acidente... Vamos ope­rá-la e eu preciso que você vá para ampará-la pelo lado clínico, compreende?"

Só então, Cláudio pareceu acordar. Fitou o Dr. Teodoro intensamente e sua voz soou estranha.

— “Não, meu amigo, não me peça que volte ao hos­pital! Não posso!"

0 Dr. Teodoro observou-o em silêncio com seu olhar agudo e manso há um tempo. Deixou que serenasse a exaltação que por um momento animara aquele rosto abatido, onde procurava reencontrar os traços antigos que o tornavam tão pessoal. Onde a luz mordaz, que fazia brilhar aqueles olhos amendoados e verdes, em contraste com a pele queimada pelo sol? Onde aquele desembaraço audacioso de atleta ou deus pagão, que atraía todos os olhares, logo que entrava em qualquer lugar? Novamente falou incisivo e firme:

—“É preciso que me ouça, Cláudio. Por que não quer voltar ao hospital? Por quê? Então você pensa que tem o direito de se recusar quando alguém sofre? Você acha justo deixar sem assistência um doente que depende de um hospital de indigentes, só porque determinamos ser impossível retomarmos o ritmo da vida? Sei que você ficou abalado, mas não podemos paralisar a vida, im­pedir a marcha do mundo, trancarmo-nos num egoísmo sem proveito."

Parou ante a expressão de sofrimento de Cláudio.

"Dr. Teodoro, eu sou um fracassado na medicina, como em tudo mais. É inútil querer lutar, é inútil. Ninguém compreenderá o drama que tenho vivido."

"Não diga isto, meu filho. Todos compreendem. Você foi durante dez anos perfeitamente feliz com Lu­cila. Vocês se compreendiam, se estimavam, se comple­tavam. Quem não compreenderá o que representa uma perda assim, um golpe destes?"

"Ninguém, nem o senhor, ninguém mesmo, com­preende." — Passou-lhe pelo rosto um sorriso doloroso, enquanto continuava: — Só eu, só eu mesmo, posso medir a altura do abismo em que me despenhei, ninguém mais. Peço-lhe, se o senhor me tem alguma estima, peço-lhe, não insista. Deixe-me ficar sozinho, remoendo meus pen­samentos ."

"Neste caso... mas não se esqueça de que pode contar comigo em qualquer contingência."

Levantou-se. Cláudio apertou-lhe a mão em silêncio, como se o esforço que fizera para falar tivesse acabado de gastar sua energia.

Na sala de entrada o médico encontrou Teresa que esperava por êle. Interrogou-o com o olhar ansioso.

— “Nada, Teresa. É melhor deixá-lo. A reação se dará por si. E o menino, onde está?"

— “Ainda em casa de D. Lida."

— “Ele naturalmente qualquer dia pedirá para ver o filho. Isto será um bom sinal."

'Pousou a mão no ombro de Teresa com simpatia.

"Você também precisa coragem. Teresa precisa ajudar..."

"Eu tenho feito tudo, seu doutor, mas não posso me acostumar com uma cousa desta..." — As lágrimas começaram a deslizar pelas faces enrugadas da pobre velha.

"Você não é religiosa?"

"Graças a Deus, seu doutor."

—“Então, minha filha, procure resignação junto de Deus."

—“Obrigada..."

Ele desceu a escada sem se voltar. Teresa fazia parte de todas as cenas da vida de Lucila. Fora sua ama desde que a menina nascera, e ali estava fiel à sua me­mória, depois da sua morte, pronta a ser junto do pequeno órfão que ela deixara, o que fora para a morta querida.

Novamente atravessou o jardim, agora povoado de aves e cheio dos ruídos que vinham da rua e atraves­sando as grades invadiam profanamente aquele recinto e quebravam o silêncio recolhido. Seus olhos pousaram no esguicho do repuxo que subia fino e se desfazia em gotas multicores aos raios do sol, ante o olhar parado de um grande sapo de porcelana que parecia não se cansar de admira-lo.. .

Deixou o jardim, ganhou a rua, apressando o passo, depois de ter dispensado o chauffeur, como se quisesse fugir dali, caminhar, caminhar a pé, espairecer, enquanlo seu coração dolorido lhe segredava ser inútil fugir...

 

Cláudio ficou alguns momentos, como que aniqui­lado, sem se mover da poltrona em que passara a noite e onde o Dr. Teodoro fora surpreendê-lo. Ouviu os passos do amigo, afastando-se na sala vizinha, ouviu, sem distinguir as palavras, as vozes que soavam além da sua porta e só quando percebeu que saíra, ergueu-se e espreitou por trás da cortina. Viu o médico atravessar devagar o jardim e então, deixando a janela, deu volta à chave, cautelosamente. Esteve um pouco parado, fitando uma tela onde Lucila sorria, procurando encontrar-lhe. o olhar. o que não conseguiu. pois o autor fixara num traço feliz aquela expressão introspectiva e sonhadora que tanto a caracterizava. Baixou depois os olhos, ca­minhou lento, sentou-se à sua secretara e abrindo a gaveta tirou um livro forrado de couro fino e abriu-o lentamente com mãos trêmulas. Acarciou de leve as folhas largas, cobertas pela letra grande e clara de Lu­cila e teve a impressão estranha de que ela ali estava presente, para viver diante dos seus olhos amortecidos pelas vigílias, aquelas páginas todas.

E começou a ler, pela décima vez.

"O Dr. Teodoro trouxe dois médicos para me ver. Disse me sorrindo que eram velhos amigos seus e de meu pai e eles procuraram conservar um tom cordial de visita, mascarando o verdadeiro motivo de sua pre­sença. Eu sorria intimamente deliciada com este em­buste do Dr. Teodoro. Não sei porque tentou iludir-me. Talvez para que não fique cismada com duas conferên­cias, em apenas um mês. Ele é incansável e tem feito desfilar pela minha sala. todas as sumidades, de pas­sagem ou radicadas no Rio. Eles vêm, conversam uns, interrogam outros e não voltam. Sei o que isto significa, mas nada digo a Cláudio nem ao meu velho amigo, para os não afligir. Não sabem o meu mal. Não podem saber... Uns falam em estado psíquico, outros em traumatismo moral ou nem sei mais quê... 0 fato é que me sinto res­valar lentamente, lentamente, para o fim de todas as minhas amarguras.

A presença do Dr. Teodoro, duas, três vezes ao dia, enche-me o coração de uma ternura emocionada. Lem­bro-me dele em todos os momentos máximos da minha vida. Foi êle quem assistiu minha mãe, quando nasci. Acompanhou meu desenvolvimento e com os anos me encheu de manhas, como dizia meu pai. Entretanto, tenho vagas recordações dos primeiros anos, quando ele chegava com os bolsos cheios de caramelos, e um ar desentendido de caso pensado, que me fazia revistá-lo, malgrado as advertências de minha mãe. Desse tempo, lembro me bem de um dia em que, trepada num ban­quinho, meti a mão no seu bolso e, perdendo o equilí­brio, descosi-o todo. Fiquei muito desapontada e mamar, chamando Teresa, mandou que me levasse.

A primeira recordação nítida que tenho dele, foi quando me tomou ao colo e me levou para espiar minha mãe, toda coberta de flores, deitada no seu caixão, à luz bruxoleante das velas, cujas chamas, ora se espichavam compridas, ora se encolhiam, dando a impressão de mo­vimentos àquele rosto inerte.

—“Ela está dormindo?"

"Psiu! — fez êle, apertando-me mais. — "Está e não fale alto para não acordá-la."

"Mas porque está dormindo na sala e com estas flores? É uma festa? Por que tem tanta gente aqui?" — E avistando meu pai, gritei: "— Papai!"

Ele, ao entrar, não ergueu a cabeça que tinha entre as mãos, para que eu, que só tinha cinco anos então, não o visse chorando e ficasse procurando a significação das suas lágrimas.

Depois desse dia, muitas vezes procurei minha mãe, pela casa toda, ansiosamente. Teresa encontrava-me cho­rando, chamando por ela e procurava distrair-me, mostrando-me livros ilustrados ou contando-me histórias. O Dr. Teodoro vinha todos os d as jantar com meu pai. Em geral eu dormia no colo dele. Gostava de fazer ti­lintar entre os dedos a sua chatelaine de ouro, mas aca­bava dormindo e quando acordava, pela manhã, estava na minha cama. Durante muito tempo fiquei em dúvida, se aqueles longos serões, cujas conversas eu não com­preendia, eram realidade ou sonho.

Assim correu minha vida, sem alternativas, durante três anos, naquele ambiente calmo, entre os três amigos de toda a minha vida: meu pai, o Dr. Teodoro e Teresa.

Um dia soube que ia para um colégio. A primeira reação foi penosa. Ir interna para um colégio, não sabia bem o que seria, mas intuitivamente compreendi que era o fim da minha liberdade. Tive medo, horror mesmo que se cumprisse a resolução de meu pai. Talvez, sem que eu mesma compreendesse, fosse o receio de perder aquela paz que me habituara a desfrutar, vivendo sozinha, sem ter experimentado a companhia de outras crianças, contentando-me com a minha imaginação que criava fantasias, povoando a minha solidão de sonhos sem fim...

E como eu adorava estes sonhos! Qualquer cousa, às vezes banal, excitava a minha sensibilidade e daquele ponto de partida, eu alçava vôo, alto, alto. .. Até hoje gosto destes devaneios, não consigo furtar-me a eles. Empolgam-me, tomam meu espírito de assalto... Por isto, naquele dia, chorei muito, horas a fio, sentada no meu quarto, entre as minhas bonecas e os meus livros.

Foi ainda o Dr. Teodoro quem me esclareceu, fazzendo-me encarar melhor a resolução de meu pai. Sen­tou-se numa cadeirinha baixa e fingindo que era um compadre em visita, começou:

—“Como vai a senhora, D. Lucila?" e fazia uma voz cômica que me fez sorrir. — "E a minha afilhada? Vim vê-la..."

Ele era de fato o padrinho de uma de minhas bonecas. Levantei-me e fui buscá-la.

"Olha aí, compadre, ela estava de castigo... Fale com seu padrinho, menina. — Bom dia, padrinho — continuei em tom de falsete."

"Então, você está de castigo?" — perguntou êle com voz grossa. — Então não pode ganhar um pre­sente ..."

"Pode, pode!" — apressei-me a dizer, pois sabia que os presentes eram sempre para mim.

—“Bem, então, espere. Teresa!" — chamou risonho.

Teresa entrou com um embrulho. Ele começou a desfazê-lo, espiando-me disfarçadamente, enquanto dizia:

— “Isto é para você usar no colégio..."

Foi como um banho frio. Então êle também, que eu contava ter como aliado, estava contra mim?

- "Mas eu não quero ir..."

_ "Não quer? Por que, Lucila?"

"Não sei, não gosto de sair daqui."

"Escute, minha filha, você precisa ir para o co­légio. Lá, você terá muitas meninas como você, para brincar..."

"Eu não gosto de brincar com ninguém."

"Você não sabe se gosta, meu bem. Você vive tão só... Irei visitá-la duas vezes por semana, você virá em casa todos os meses e, pelas férias, passearemos muito."

"Mas eu não quero, não quero..."

As lágrimas começaram a rolar dos meus olhos vermelhos. Ele esperou um pouco para continuar:

"Olhe o que comprei para você." — e abriu o estojo forrado de veludo verde, onde brilhava um jogo de talheres, copo e argola para guardanapo, tudo de prata.

"Que lindo!" — exclamei.

"Pois então?"

"Mas posso usar isto em casa..."

"Não, eu dou para você ir para o colégio."

Eu não concordava com esta condição, mas êle tinha um grande poder de persuasão. E quando saiu, se não me deixou ansiosa pelo colégio, pelo menos já não o en­carava como uma clausura ou uma cousa ruim.

Daí a um mês, no nosso carro, guiado pelo Juvenal, entre meu pai e o Dr. Teodoro, com Teresa no banco da frente, transpunha o largo portão do colégio, onde se ia desenrolar o segundo período de minha vida...

 

Minha adaptação foi mais fácil do que se podia es­perar numa criança que desconhecia a rígida disciplina dos pensionatos religiosos. Era bem tratada pelas freiras, porque era dócil, e consegui conquistar entre as colegas algumas amizades. Entretanto senti muito a falta dos mimos que tinha em casa. Era um tanto caprichosa na alimentação e Teresa cultivava este defeito, inventando quitutes e gulodices.

Os melhores dias para mim eram, naturalmente, os de visita. Ficávamos em classe, com o livro aberto sobre a carteira e o sentido distante, procurando distinguir os passos sutis da irmã que deslizava pelo longo corredor e chegando à porta, pronunciava o nome daquela que era solicitada ao parlatorio. Quando ela aparecia na mol­dura alta da porta pesada, todos os olhos fitavam an­siosos o seu rosto que não exprimia cousa alguma, e todos os ouvidos ficavam atentos às suas palavras.

Ah! a emoção que senti a primeira vez que fui ci­tada assim Tive um desejo louco de sair correndo, em­purrar aquela figura negra, pálida, lenta, e entrar sal­tando no parlatorio envernizado e cair nos braços de meu pai. Em lugar disso, tive que me levantar com cor­reção, fazer uma vénia diante da irmã que nos obser­vava da sua alta cátedra, e seguir vagarosamente a outra, pelos corredores que se me afiguraram sem fim. Mas, afinal, cheguei. Meu pai, o Dr. Teodoro e também a minha velha Teresa, com um embrulho grande, onde adivinhei as delícias costumadas, estavam à minha es­pera. Beijei-os a todos num transporte. E notei pela primeira vez aquele gesto lento com que o velho amigo conserta o pince-nez para ter tempo de observar ou vencer alguma perturbação.

“Você está bem disposta!" disse meu pai sa­tisfeito.

“É.. e alegre" acrescentou o Dr. Teodoro Teresa não dizia nada. Hoje é que compreendo o

seu gesto mudo de me abraçar e me estender o embrulho. Ela estava comovida demais para falar. Fomos para o parque do colégio e eu fiquei surpresa do seu aspecto neste dia. Distitngui algumas colegas com suas visitas, senhoras elegantes, toiletes claras, destacando-se dos som­brios uniformes das alunas. Ouvia risos e conversas em tom alegre. Como ficava bonito, assim, o jardim!

Meu pai queria saber se eu estava satisfeita, se já tinha amigas, se gostava das freiras. Contei-lhes todas as minhas impressões. Enquanto conversávamos, eu ia chupando os caramelos que o Dr. Teodoro me trouxera. A tarde se passou muito rápida. Quando mal podia pensar, ouvi o sino badalando, badalando, e vi que todos se despediam e senti um baque no coração, ao pensar que teria que viver alguns dias, longe do carinho daqueles três entes tão caros, até a nova visita do domingo. Des­pedi-me, porém, corajosamente, retendo a custo as lágrimas, porque prometera ao Dr. Teodoro não chorar. Fiquei junto da escada vendo-os afastarem-se, os dois conversando e Teresa de cabeça baixa, um pouco mais para trás, como se lhe custasse ir-se embora. Antes de entrar no carro, voltou-se para mim e acenou-me adeus. Muitas vezes, iria ver este gesto seu e sempre com a mesma tristeza.

Passei a contar o tempo da minha vida pelos dias de visitas, pelos domingos de saída, até que chegaram as férias de junho. Nunca poderei esquecer aqueles quinze dias que passaram velozes. Esta também foi uma im­pressão que me ficou por muitos anos, até mesmo hoje, de como se tornam impacientes por passar, os nossos dias de alegria.

Assim vivendo, de semana em semana, de mês era mês, de férias para férias, escoaram-se oito anos da mi­nha existência.

Estávamos todas ansiosas pelo dia da nossa forma­tura. Haveria missa solene, um lanche e, à tarde, colação de grau. Aquelas, cujos pais assim o desejassem, pode­riam levar suas filhas na mesma tarde. Meu Deus! Quantas e quantas horas, passamos sonhando com aquele momento, conversando sobre os vestidos, projetando vi­sitas, umas às outras!

O grande dia chegou, maravilhoso e cheio de sol. Eu cantava no coro e, durante a missa, subitamente cru­zou-me o cérebro a lembrança de que era aquela a última vez que assistia e cantava naquele ofício. Que estranha sensação me cerrou o coração! Sim, saudade daquele si­lêncio, daquela calma, daquela capelinha que muitas vezes ajudara a arrumar e ornamentar. Um receio incipiente e indefinível, perturbou-me o espírito. Eu estava junto à balaustrada do coro e justamente naquele instante meus olhos ansiosos encontraram o olhar calmo de meu pai. Foi o bastante para me sentir segura.

Mas, à tarde, quando tive que me despedir das co­legas, das mestras, não pude mais disfarçar e chorei, chorei, todo o caminho para casa, abraçada a meu pai e com uma das mãos entre as mãos do Dr. Teodoro!

 

Logo depois da minha volta, Teresa me passou em parte a direção da casa. Tudo que se referia a meu pai, me ficou afeto. Isto constituía tal novidade que eu não tinha tempo de me demorar pensando. Logo pela manhã, corria a correspondência e sentados na ampla varanda de cujas arcadas pendiam grandes samambaias choronas que balouçavam suas cabeleiras verdes ao vento fresco, ia-lhe passando as cartas, depois de examinar o sobres­crito.

"Esta tem selo francês, papai..." — dizia intri­gada — "Você tem conhecidos lá?"

"Não, minha filha, todos os médicos recebem destas cartas. São reclames de produtos, ou alguma re­vista médica."

"E esta... letra de criança."

"Deixe-me ver."

Leu-a, espiando-me por trás do papel. Eu, confesso, estava curiosa. Que criança seria aquela? Ele me passou a carta em silêncio. Era singela e tocante. Um rapaz a quem amputara o braço direito e que depois de aprender a escrever com a mão esquerda, quisera que êle fosse o seu primeiro destinatário.

—“Coitado! Mas por que cortou o braço?"

—“Feriu-se na roça. Quando chegou ao hospital,, estava gangrenado.. . Não tínhamos alternativa..."

Com o passar do tempo, foi-se habituando a me contar alguns casos interessantes da sua enfermaria. Ora um doente que tivera alta e me mandara uma lembrança. Eu gostava de ouvi-lo e perguntava detalhes pueris, como a idade e a cor dos pacientes, as visitas que recebiam.

Nossos melhores serões eram aqueles em que o doutor Teodoro estava presente. Já não podia sentar no seu colo, nem brincar com sua chatelaine de ouro, mas gostava de ouvi-lo conversar, contar também os seus casos ou discutir qualquer ponto com meu pai.     

Uma noite, estávamos os três conversando, quando meu pai me pediu que tocasse qualquer cousa.

—“É mesmo, o senhor ainda não me ouviu, não é Dr. Teodoro?"

—“Por que não me chama padrinho ou tio?"

—“Não tenho jeito... estou tão acostumada a cha­mar Dr. Teodoro..."

"Bem, então, vejamos, que vai tocar?"

"Que é que prefere ouvir?"

"Qualquer cousa... gosto dos românticos..."

"Chopin, então?"

"Chopin."

Toquei, procurando dar à minha interpretação o maior sentimento. Os sons subiam cristalinos no ar pa­rado, desfazendo-se em reticências subjetivas e melan­cólicas. Eles ouviam contritos e eu também comecei a me sentir dominada pela música. Quando terminei o Dr. Teodoro me abraçou efusivo, intimando meu pai a me fazer terminar o curso. Meu pai cedeu satisfeito e nesta noite ficou estabelecido que no ano seguinte eu prestaria exame de admissão à Escola de Música.

Assim, naquele serão a três, como tantos outros, tra­çamos o meu destino, que era uma incógnita para mim e que hoje lamento já ter decifrado. . .

0 Dr. Teodoro se encarregou, como sempre, de todas as providências a dar. Trouxe programas da escola e chamou um bom professor para me preparar. Era um tipo curioso, muito alto e magro, com mãos compridas e espirituais. Creio que era austríaco. Falava carregado e era extremamente nervoso. Professor Erich. . . Tive-lhe um pouco de medo, no começo. Nunca tivera pro­fessores, só freiras.

Êle chegava sempre à hora exata e não gostava de esperar. Habituei-me a aguardar a sua chegada na sala de música

“Muito bem, sonhorrita. Eu gosta aluna na horra certa."

Eu tocava então os exercícios, as escalas, e, por úl­timo, as músicas. Êle corrigia a técnica, recomendava exercícios de mecanismo, mas elogiava a interpretação. Às vezes enquanto emendava um tema de teoria eu o ana­lisava disfarçadamente e achava-o feio, muito feio mes­mo, com sua pele desbotada, suas sobrancelhas brancas de tão louras, seus olhos miúdos, sua calva vermelha. Como podia, sendo tão feio, ter aquelas mãos tão vívidas, tão expressivas? Suas mãos tinham vida própria, tinham alma! Quando tocava para me mostrar uma passagem qualquer, eu ficava fascinada pela côr que emprestava a qualquer acorde. Um dia não me contive.

"Continue, professor... Toque, quero ouvi-lo. O senhor toca tão bem!"

Ficou muito vermelho, hesitou um instante, mas to­cou afinal. Naqueles instante desejei ser feia também, contanto que Deus me desse aquela centelha divina que o tornava tão admirável!

Quando terminou, notei-lhe um ar contrafeito e estranho.

“Muito obrigada, professor Erich. O senhor acha que poderei algum dia tocar assim?"

“A senhorrita tocará muito melhor!" garantiu na sua voz gutural, carregando nos erres. — "Eu sou medíocre"

Senti, na sua voz, um desânimo, uma expressão In­definível de derrota que me tocou... Deste dia em diante, quando fazia minhas preces, lá estava presente o pro­fessor Erich, com sua calva, sua pele desbotada e suas mãos longas e espirituais, entre aqueles para os quais eu pedia um pouco de felicidade e alegria.

Por tudo isso, quando prestei exame e fui aprovada, tive pena de me despedir dele. Notei-lhe também al­guma emoção e precisei fazer um grande esforço para não o beijar, como fazia a meu pai e Dr. Teodoro.

Era um traço marcante do meu caráter, este carinho transbordante, esta ternura espontânea pelos tristes e infelizes.

Pedi ao professor Erich que continuasse a nos visitar e como êle ficasse um tanto perturbado, estranhando uma delicadeza que talvez nunca tivesse recebido, sorri, in­sistindo e fazendo-o prometer.

Durante o jantar só se falou sobre o concurso, a classificação, as próximas aulas e mais tarde, quando nos reunimos na varanda, onde meu pai e o Dr. Teodoro, fumavam, entremeando a conversa de grandes silêncios pensativos, o meu velho amigo, disse rindo:

"0 professor Erich, acaba se apaixonando por você, Lucila..."

"Oh! Não creio. Ele vive ligado a alguma cousa passada. ."

"Como está me saindo observadora" — gracejou ainda. — "Pois acertou."

—"Ah! E o senhor conhece sua história?"

— “Já sei que quer ouvi-la. E' muito curiosa também".

—“Conte, conte! Gosto tanto dele!"

Então soube que o pobre professor Erich perdera a única filha, já mocinha, e por isto viera sozinho para o Brasil, abandonando tudo que lhe recordasse a morta: esposa, amigos, seus bens e os seus contratos. Aqui vivia modestamente, sem estímulo, sem esperança, das poucas lições que alguns amigos arranjavam. Nunca pedia nada, não se lamentava, não tinha ambições.

Nesta noite custei a dormir, pensando como os filhos influem na vida dos pais. E torturava a imaginação, pro­curando adivinhar como seria aquela pobre menina-morta, que lá do seu túmulo, a tantas, tantas milhas, muda e imóvel, podia dominar o destino daquele homem, apa-gando-lhe o ideal, desbaratando-lhe o futuro, destruindo-lhe o lar, ela que com certeza só queria a felicidade para êle...

Adormeci cansada e triste e tive sonhos aflitivos e confusos onde ela me aparecia como um fantasma cujas feições eu não conseguia definir.

Na manhã seguinte, porém, quando Teresa abrindo as janelas deixou que o sol entrasse alegre e claro, es­queci toda aquela história, erme levantei cheia de dispo­sição, pedindo a Teresa que me acompanhasse às compras, pois queria preparar-me para a nova vida de estudante.

 

Os dias na Escola de Música passavam rápidos, com todos os seus imprevistos e suas novidades para mim. Eu fui classificada no quinto ano e muitos dos meus co­legas, a maioria mesmo, já se conhecia dos anos anterio­res. Tive que me sujeitar, com bom humor, trotes e pilhérias. Às vezes ficava envergonhada e tinha até vontade de não voltar no dia seguinte, mas pensava melhorar e continuava a freqüentar, ansiosa por que passassem depressa aqueles primeiros dias.

As primeiras vezes que entrei na Escola, achei im­possível que alguém pudesse ouvir o que tocava, pois muitos alunos executavam, ao mesmo tempo, nos mais diversos instrumentos, diferentes melodias, em salas con­tíguas . Aquela casa imensa, ressoante de sons, parecia-me uma colmeia fantástica e ruidosa. Às vezes tinha ímpetos de tapar os ouvidos com as mãos, mas tinha medo de me tornar ridícula, pois os outros pareciam nem ouvir o barulho e, ou conversavam, ou solfejavam e ainda alguns sonhavam, de olhos parados, distantes, como se só a ma­téria estivesse presente. Eu então ficava num canto afas­tado, observando aquelas criaturas até pouco tempo es­tranhas para mim, com as quais eu iria conviver agora, competir, sonhar sonhos comuns. Eram motivo de co­gitações intermináveis que me distraíam o espírito. Por isto foi que um dia, estando toda entregue à análise de uma colega, não ouvi o professor me chamar duas vezes para tocar uma peça. Após a segunda solicitação, pesou um grande silêncio em toda a sala e só então, vi todos aqueles olhos voltados para mim. Creio que corei muito, pois senti o rosto quente e as têmporas latejando. E como eu não compreendesse a razão do interesse geral, ouvi alguém dizer:

— "O professor chamou a senhora para tocar..."

Levantei-me tão bruscamente que minhas músicas se espalharam pelo chão. Depois de tudo isto, eu não poderia tocar cousa alguma. 0 professor compreendeu e teve pena da minha confusão, porque sorriu e disse:

— “Deixe estar. Não há mais tempo, a senhora será chamada na próxima aula."

Recebi das mãos do mesmo aluno que me avisara, as minhas músicas que êle juntara, rápido. Agradeci, encarando-o, mas êle desviou os olhos, sem dizer nada. Logo que foi possível, escapuli. No saguão encontrei Teresa. Meti logo o meu braço no dela, satisfeita de encontrar alguém a quem estava afeita, que me conhecia, e assim voltei para casa, naquela tarde muito azul e quente!

Este incidente me valeu a primeira aproximação maior com minhas colegas, pois no dia seguinte logo pela manhã, uma delas, Eugênia, me saudou assim:

— “Bom dia, sonhadora!"

Todos riram, mas eu não me zanguei e respondi:

"Foi horrível aquilo de ontem, não foi? Mas es­tava tão longe..."

"0 que quer dizer que a minha execução não a interessou" — disse Maria Augusta, fingindo-se ofendida.

"Oh! Não me ponham na berlinda. De outra vez, prometo ouvi-la."

Leonor chegou-se mais para mim, baixando a voz. Só neste momento notei-lhe o feitio oriental dos olhos rasgados, num rosto moreno e suave.

"0 mais extraordinário foi que Eduardo falou..."

"Era mudo?" — perguntei zombando

—“Mudo, não... mas não fala a ninguém. Eu acho que é timidez..."

—“Qual timidez, nada! 0 que é, é muito presumido... Julga-se um portento" — disse Eugênia com azedume.

—“Mas quem é afinal esse Eduardo?"

"Pois êle se dirige a você, faz uma gentileza, cousa rara nele, e você nem o nota?" — disse Ritinha.

"Ah! quem? 0 colega que apanhou minhas mú­sicas?"

—“Ora, quem havia de ser? Sabe? Aqui há duas correntes: uns acham que é tímido, outros que é con­vencido... mas eu, acho que êle não tem traquejo, não sabe falar com gente..." — disse Anah. Olhei-a curiosa. Que mentalidade teria ela? Era dessas criaturas que não revelam o que são. Bem dife­rente de Licia que ouvia a conversa, sem se pronunciar e de quem emanava uma personalidade marcante. Toda ela respirava inteligência e agudeza. Os olhos profundos que fixam e dissecam, o talho da boca, tudo enfim. Sorri-lhe e ela me retribuiu o sorriso e ambas sen­timo-nos afins. Quantas e quantas vezes, depois daquela manhã, conversamos horas seguidas sobre os assuntos mais vários!

— "Cala a boca, Anah!" — disse Leonor. — Aí vem o herói!"

Todos se voltaram para êle. Notei que se perturbou e para disfarçar, baixou os olhos. Passou por nós, sem cumprimentar e foi sentar no fundo da sala, isolado de todos. Não sei porque, naquele momento me lembrei do professor Erich. Ambos eram altos e "magros e um pouco curvados c ambos tinham mãos expressivas. Era isso, sim, as mãos que se assemelhavam! Mãos espirituais.

Eduardo... Como era pessoal todo êle ! Modesto, procurando não ser notado, o que era impossível, porque sua personalidade se impunha tenazmente! Não sei se eram os cabelos castanhos e revoltos, se eram os olhos profundos e inteligentes, mas havia um quê de espiri­tualidade que o destacava entre todos.

Neste dia eu o ouvi tocar pela primeira vez. Tive a impressão de que suas mãos tinham o dom de fazer revi­ver na velha página de Chopin, que interpretava, o sen­timento que o inspirara e que ali estava transmudado em sons, o amor, o verdadeiro amor, impondo-se como fata­lidade! Eu estava encantada por ouvi-lo e só então notei que todos estavam suspensos das suas mãos que ressus­citavam aquelas harmonias incomparáveis!

Quando terminou, levantou-se apressado e mais fu­giu do que se dirigiu para o seu canto, com ar quase cul­pado, sem olhar para ninguém... E eu fiquei com a cor­rente que o achava um tímido.

Mais tarde, muitas vezes, tive ocasião de confirmar esse juízo.

Neste dia, depois da aula, Lícia foi comigo, no meu carro, para casa. Era passagem para mim e eu gostei que aparecesse esta ocasião para nos aproximarmos mais. Foi durante todo o curso, senão a única, a melhor amiga que encontrei. As outras eram cordiais, gentis, mas eu notava nelas, aquela prevenção do concorrente e uma rivalidade latente, que umas velavam com elogios irônicos, outras com indiretas. Tudo lhes desculpava, porque com o meu temperamento, passei logo a estimá-las, naquela sede que eu tinha de espalhar ternura, sem esperar retribuição. E assim se foram passando os meses daquele pri­meiro ano, até que chegou o tão temido dia do exame Quem não terá passado por estes excitantes momentos que precedem à nossa chamada ? Enquanto esperava a minha vez, rezava baixinho:

—“Meu Deus, fazei com que eu passe, nem que seja na pior classificação!"

Mas, no dia seguinte, soube cheia de surpresa que tinha sido classificada em segundo lugar. Francamente, até hoje, não sei como interpretei as peças sorteadas

Eduardo tinha sido o primeiro. Quando o Dr. Teo­doro me telefonou, dizendo o resultado, sorri intimamen­te, imaginando que Eduardo seria capaz de pedir descul­pas por tocar tão bem. Mas isto só faria se não fosse tão tímido.

Durante as férias, passei muitas tardes na compa­nhia de Lícia, ora na minha, ora na casa dela. Algumas vezes tivemos Leonor conosco. Aos poucos, ia-me afei­çoando a ela também. Admirava-a porque era bonita e distinta nos mínimos detalhes.

Lembro-me de uma tarde, em que chegou, com uma leve vestida cor de rosa e um grande chapéu da mesma cor que dava à sua pele uma tonalidade suave. Meu pai e o Dr. Teodoro, fizeram-lhe muitos cumprimentos e a tarde correu cheia de alegria. Fizemos música. Teresa serviu refrescos e biscoitos delicados e saborosos, en­quanto Lícia não se cansava de admirar a grande ban­deja de prata portuguesa, toda lavrada, que ainda é pre­sente de casamento de meus pais.

"É uma maravilha, Dr. Silvério!" — exclamava analisando os motivos.

"De fato, é linda! Foi o Comendador Fonseca quem nos presenteou com ela. Era um português cheio de formalidades, muito amigo de tradições... Bom homem!"

E sorria, revendo-o na memória.

"Lembro-me dele" — disse o Dr. Teodoro — "Era muito inteligente e viajado".

"Sim, tinha a paixão das viagens. Sua casa era um museu de recordações dos países que conheceu".

"Eu, também, se pudesse vivia viajando" — disse Leonor — "Como deve ser interessante visitar os países cujos costumes são bem diversos dos nossos!"

"Sim, a China, a Índia, enfim o Oriente." — con­cluiu Lícia. — "Também tinha vontade de viajar".

"Quem não gostaria? — disse eu. — "Detesto os livros de viagens, porque fico louca de inveja!"

"Depois, que nos importa o que sentiu este ou aquele autor, diante das obras eternas da arte? Nossas reações podem ser tão diferentes!" — concluiu Lícia.

"Sim, porque cada qual tem sua personalidade..." — concordou Leonor.

Assim se passou toda a tarde até à hora do jantar. Lícia e Leonor recusaram-se a ficar, alegando motivos justos. Mandei Juvenal levá-las e despedimo-nos no por­tão, prometendo-nos novas visitas.

Depois que elas saíram comentamos ainda a beleza de Leonor e a inteligência de Lícia. Era um encanto pri­var com as duas, tão finas eram.

Uma tarde, Leonor telefonou convidando-me a visi­tar uma exposição de um pintor conhecido, no salão do Pálace Hotel. Lícia já nos esperava na porta e tive oca­sião de conhecer o artista e dois irmãos de Leonor.

Formamos um grupo alegre e depois de apreciarmos as telas expostas, fomos ao salão de chá, onde nos demo­ramos, conversando sobre os mais variados assuntos. O artista pareceu-me muito seguro do seu valor e muito cônscio do seu sucesso.

Um pouco antes das seis horas, deixamos o hotel e ao atravesarmos a Avenida, cruzamos com Eduardo. Re­conheci-o imediatamente. Vestia o mesmo terno azul-marinho com que freqüentara a escola, embora o calor fosse intenso. Ele vinha distraído, mas tive certeza de que nos viu. Um momento pensei que ia cumprimentar, mas êle desviou os olhos e apressou o passo...

Alcançamos o carro, despedimo-nos dos rapazes e voltamos para casa.

Sempre gostei dessa hora, quando começa a escure­cer, mas a cidade está apagada ainda. O carro deslizou pela Avenida Beira Mar. Leonor e Lícia conversavam animadamente, mas eu não lhes prestava atenção. Pelo meu espírito estranhamente perturbado passavam todos os detalhes daquela tarde. Procurava formar uma opi­nião sobre o artista elegante, cujas concepções modernis­tas eu não conseguira compreender. Entretanto todo um «inundo requintado se comprimia diante das telas, na maioria adquiridas, cheio de exclamações, e elogios. Os irmãos de Leonor me pareceram homens de espírito, com cultura, ambos com o mesmo feitio de olhos rasgados e gestos distintos. Não sei porque fiquei com a nítida im­pressão de que desprezavam o pintor e o elogiavam por esnobismo ou ironia. Houve um momento em que notei que trocaram um rápido olhar, cheio de troça. Leonor, pelo contrário, parecia julgá-lo uma revelação e talvez fosse isso que dissesse com tanta veemência à Lícia. Pres­tei atenção.

"E' um impressionista, meu bem" — argumenta­va Leonor.

"Não, minha filha! Você não me convence disto! — Ele devia consultar um oculista, com urgência. Nin­guém me pode convencer de que êle sinta aquela mulher com pernas de elefante e os olhos no outro canto da tela. Ah! isto, nunca!"

"Mas se êle pintou assim, deve ser sincero..."

"É o meu ponto" — disse eu — "a arte, não deve ser uma manifestação para uso privado... Não sei se me entendem... A pessoa pinta, ou esculpe, ou escreve, porque sente vontade, necessidade de concretizar suas emoções. Mas, desde que realize a sua obra, ela passa a pertencer à humanidade. E arte, querida, é perfei­ção".

"Então, você também não compreendeu a arte de Vicente?"

"Não consegui encontrá-la.. . perdão, talvez fosse muito sutil ou muito transcendental." — disse rindo.

Leonor estava desapontada.

"Francamente, não entendo vocês".

"Escute, meu bem, não se zangue conosco e pro­meta-nos uma cousa, para o bem do que é realmente belo e perfeito, sim? — era Lícia quem pedia.

"Como posso prometer, se não sei o que vem por aí?" — respondeu amuada.

"Eu sei!" — disse eu.

"Adivinhou? Então diga lá". — desafiou Lícia, contente de pôr fim à discussão.

"Nunca sirva de modelo para tal impressionista! Poderia pintá-la com cara de Esfinge e com uma pirâ­mide no lugar de cada braço".

"Mas por quê?"

"Porque você tem uns olhos esquisitos, cheios de mistério, assim, não sei explicar... lembram o Oriente".

Rimo-nos, e Juvenal neste momento encostou no portão da casa de Leonor, que nos beijou outra vez ale­gre, e saltou.

Ganhamos a Avenida Atlântica que apresentava um aspecto deslumbrante. Subitamente as luzes se acenderam.

"Leonor pode ter ficado triste, Lícia. Creio que fizemos mal".

"Qual nada! Leonor é incapaz de guardar má­goa de alguém".

—“Gosto dela. Acho-a muito atraente".

"É de fato muito interessante. 0 pai é um intelectual, você gostará dele quando o conhecer".

"Achei os irmãos com um arzinho superior. Pa­recem também muito interessantes".

"De fato, são. Conheço toda a família há muitos anos..." — e mudando de tom: — "Você viu o Eduardo, na cidade?”       

— “Vi, e tive a impressão que também nos viu".

—“Nunca vi ninguém de gênio mais esquisito! Sem­pre finge não ver os colegas. Também já o conheço há quatro anos e tanto, e nunca tivemos cinco minutos de conversa".

Nada respondi. Afinal, que me importava que Eduardo fosse esquisito ou não, que gostasse ou não de conversar? Mas tive a vaga intuição de que tinha um complexo de inferioridade, talvez por ser pobre. Fiquei com vontade de perguntar a Lícia, mas chegávamos a frente à sua casa e nos despedimos. Esse pensamento não me deixou, até chegar a casa.

—“Sim, um complexo. Mas que tolice! Um homem inteligente, um artista, não se devia abater por motivos tão materiais. Pobreza não é defeito afinal. Mas, sa­bia lá Deus, as privações que passava!"

Quando entrei em casa, passei pelo gabinete de meu pai. Era uma peça muito ampla, com prateleiras, pesadas de livros, forrando as paredes até quase o teto e uma grande secretária de jacarandá. Ele lá estava debruçado sobre um tratado qualquer. Quando abri a porta, olhou-me por cima dos óculos e fechou o livro.

—“Olá, fujona!" — gracejou.

Olhei o relógio de mármore sobre a mesa. Um quarto para as sete.

—“Mas não estou atrasada ainda. O Dr. Teodoro não vem hoje?"

— “Hoje é quinta-feira, dia dedicado às irmãs".

— “É verdade." — Sorri divertida, lembrando a des­crição que o nosso amigo fazia dessas reuniões semanais em casa de duas irmãs, uma solteira e outra viúva, que só saíam da chácara da Tijuca, para irem à missa aos domingos e, assim mesmo, às seis horas da manhã. Qual quer cousa as escandalizava e isto era o maior prazer do Dr. Teodoro.

Fui tirar o chapéu e desci para o jantar, durante o qual relatei a meu pai todas as minhas impressões da­quela tarde. Ele gracejou que estava seriamente impres­sionado pela Leonor, mas que não queria brigar com o Dr. Teodoro que se apaixonara também.

—“Não creio. Você mais depressa se impressiona­ria pela Lícia".

Terminada a refeição, toquei algumas músicas e às dez horas, subimos para dormir.

Assim passsaram -se aquelas férias. Quando mal pen­sei já tinha chegado o dia de voltar à escola, dia cheio de alegria, bem diverso daqueles anteriores, que significavam separação, saudade, tristeza.

Ao fim deste outro ano, mantive minha classificação, assim como nos anos seguintes. íamos chegando ao fim do curso. Já falávamos nas festas de formatura, mas a preocupação máxima eram os exames próximos.

Leonor saíra três anos antes, para casar. Seu ma­rido é da reserva diplomática e tinha sido designado para a Itália. Durante todos estes anos, temo-nos correspon­dido. Ela me escreve dos mais longínquos países e me envia o retratinho dos filhos.

Mas, os exames se aproximavam então. Lícia era um estímulo, sempre sincera e amiga. Eu notava que Eduar­do estava abatido e nervoso. Mais de uma vez me dirigi a êle. Era solícito, mas lacônico e se retraía sempre que se referia a si. Mesmo assim, consegui conhecer algumas de suas preferências. Uma vez elogiou a minha in­terpretação. De outra feita, quando lhe disse da impres­são que me fizera a escola com suas salas de aula, onde tocavam ao mesmo tempo tantos instrumentos, sorriu.

—"Parecia uma sinfonia, não é? Já reparou como há música em tudo?" — e como eu ficasse calada: — "Sim, em tudo. . ." — continuou como se falasse consi­go mesmo: — "A chuva caindo, um carro passando, uma criança brincando, até uma folha que se desprende"

Parou confuso. Parece que só então se lembrou que eu estava ouvindo.

—"Não, Eduardo, a música está em você, no seu espírito."

Neste momento, Ritinha que conversava num grupo, com Ana, Maria Augusta e Eugênia, riu-se alto. Era seu hábito, rir-se assim, escandalosamente. Eduardo olhou para o lado dela.. Não sei se de fato comentariam sobre nós. Sei que ficou mais confuso ainda e, pedindo licença, retirou-se. Quebrara-se o encanto daquela conversa mais pessoal, a única que durante quatro anos de convivência diária, conseguira apenas iniciar. E até estranhei o abor­recimento que isto me causou. Achei Ritinha vulgar e guardei muito tempo um indefinível ressentimento dela.

Muitas vezes, durante estes anos todos que tenho vi­vido, recordo aqueles últimos dias da Escola de Música, quando nossos destinos tinham que se definir e tería­mos que seguir cada qual a sua diretriz. Naquela época, perdia horas, pensando se ainda os encontraria, se a vida nos afastaria irrevogavelmente. Tinha certeza de que Lícia faria parte da minha vida para sempre e que quan­do precisasse dela, bastaria chamá-la. Mas, as outras? Que me importava, afinal? Entretanto, teimosamente, procurava desvendar o futuro que se aproximava e sen­tia uma angústia recôndita e indefinível pelo desconhecido. Essas emoções davam trabalho aos meus nervos, muitas vezes custava a dormir, pensando, pensando. . . Foi numa destas noites de insônia e inquietude que, sem querer, achei o verdadeiro motivo da minha agitação in­terior.

Eu me debruçara na varanda do meu quarto, sobre o jardim. Talvez fosse o calor que assim me deixava inso­ne. A brisa que fazia farfalhar a folhagem das árvores era quase imperceptível. Fiquei algum tempo, admirando aquela noite de lua cheia, tão espetacularmente român­tica que parecia um cenário alegórico. Lá embaixo, no jardim, a água do lago lembrava um espelho azulado e imóvel e um grilo trilava aqui, além. Foi então que me lembrei daquelas palavras tão rápidas de Eduardo:

— "Há música em tudo..."

Senti naquele momento a verdade dessa afirmativa. Ouvi a música que caía do céu transformada em lua", neste luar que inspirou uma sonata magistral a Beetho­ven. Música nas árvores espectrais, no lago dormente, no jardim silencioso, e até no trilar daquele grilo ignoto. E, então, meu espírito ansiosamente procurou sentir as emoções que Eduardo sentia, que talvez o empolgassem naquela noite. . . E mais que às suas emoções, meu espí­rito procurava-o, procurava-o...

Um instante fiquei surpresa ante a revelação tácita dos meus sentimentos e interroguei, perturbada, se seria amor, se aquilo seria amor.

Mas de que valia saber que o amava se êle nem mes­mo pensava em mim? Eu sabia que para Eduardo só uma cousa importava verdadeiramente: sua arte, sua música!

Lembrei-me de uma manhã muito fria e chuvosa, em que entrando mais cedo na sala deserta, surpreendera Eduardo tocando. Esgueirei-me sem ruído. Ele executava a "Catedral" de Debussy. Nunca ouvira aquela música tão bem interpretada. Ouvia os sinos badalando ainda submersos e parecia-me sentir o templo imergindo im­ponente e espectral na noite majestosa!

Toda a beleza mística daquela harmonia fantástica, insinuava-se na minha alma exaltada. Ele tocava para mim, só para mim, ninguém mais o ouvia. Nem compreen­di porque a idéia desse isolamento era tão profundamen­te emocionante.

Mas a música ia morrendo no marulho das águas que se abriam para tragar a igreja imortal e os sinos foram ficando mais e mais distantes até se calarem no mistério da água profunda.

Eduardo deixou cair as mãos, e só então deu pela minha presença. Notei-lhe um gesto de confusão ou abor­recimento que procurou disfarçar. Ergueu-se:

—"Estava esperando a hora da aula" — explicou, como se escusando.

"Gostei muito de ouvi-lo."

"Ora", — protestou — "você toca tão bem!"

"Mas nunca tinha apreciado tanto esta música."

—“É uma das minhas prediletas. Faz-me acre­ditar em milagres..."

Sorri. Mas, como sempre acontecia, aquela rápida conversa foi interrompida pela chegada de alguns cole­gas nossos. Fizeram roda conosco e a conversa gene­ralizou-se.

Esta lembrança roçou o meu espírito, diante da­quela noite que me revelara o meu próprio mistério e só então compreendi o sentido da atração que exercia sobre mim.

A madrugada me encontrou no mesmo lugar, so­nhando o meu sonho de encantamento. Então, fui dei­tar-me cansada e tranqüila, com o coração cheio da ine­fável certeza de que teríamos que nos encontrar um dia.

Dormi até tarde, um sono vazio e repousante e quando acordei já Teresa estava junto de mim, com meu roupão nas mãos, enquanto o sol banhava, claro e alegre, o meu quarto.     

.— "Que sono" — disse Teresa. — "Benza-a Deus! Estou aqui há meia hora. Abri a janela, mexi nos ar­mários e a menina nem nada!"

Eu a olhava com as pálpebras meio cerradas, nessa sonolência feliz que nos amolece a vontade e nos faz achar a vida bela e os homens bons. Sorri, pensando no espanto de Teresa se eu lhe dissesse que estava apai­xonada! Tive vontade de dizer, mas não disse porque um pequenino instinto feminino me fez sentir que eu nada devia revelar, porque só eu amava, e a minha vai­dade calou-me aquela maravilhosa verdade nos lábios.

—“Como é? Não quer levantar? O banho está pronto e o doutor espera a menina para verem a correspon­dência ."

Levantei-me preguiçosamente. Teresa começou a andar de um lado para outro, pondo em ordem o quarto. Meia hora depois fui encontrar meu pai, na varanda.

"Bom dia!" — disse alegremente, beijando-o.

"Boa tarde!" — respondeu no mesmo tom alegre.

"Não, senhor, boa tarde é só depois do meio dia e são apenas dez e meia..."

"Apenas, não é? Pois para castigo, não lhe dou esta carta." — e mostrava-me um envelope grande, onde distingui a letra alta e igual de Leonor.

— “Dá, sim, que você não é mau..."

"Vem de Atenas... Leonor afinal parece que realizou o seu sonho: viajar!"

. . . deve ser feliz Gastãozinho nasceu em Ná­poles e Ana Maria em Paris... Já escrevi, advertindo-a para não nos trazer a Liga das Nações, na volta..."

"Não consigo imaginar Leonor, mãe de família. Era tão imaterial..."

"É, mas vamos deixar de rodeios e passe-me a carta!" — intimei com a curiosidade aguçada.

Entregou-a, mas Teresa chegou neste momento, fa­zendo rodar a mesinha, com todo o arsenal complicado de geléias, torradas e biscoitinhos, com que procurava conquistar o meu interesse.

- "Oh! eu quero ler primeiro, Teresa."

Mas ela era irredutível. Tão boa e cordata em tudo, lua tirania se manifestava quando estava em jogo o que chamava o meu conforto! Porque conforto para ela era alimentação e estava acabado.

— “Mas, Teresa, eu leio num instante..."

—“Não, não, faz mal ler logo de manhã, com o es­tômago vazio."

—“Bem, então, eu leio enquanto como, está bem?" Ela saiu resmungando, arreliada, porque a menina

já não se importava com o que ela dizia, já não obedecia, que eia acabava indo embora, porque já não precisávamos dela. Olhei para meu pai que me espiava com ar diver­tido e pisquei garotamente, pois aquela ameaça de Te­resa era das cousas cotidianas, a que já nos habituáramos.

A carta de Leonor vinha, como sempre, cheia de interesse e exclamações. Tinha o dom de descrever, e seus detalhes eram preciosos. Depois de contar sua chegada a Atenas, onde reviveu toda a antiga grandeza daqueles monumentos eternos, entrava em perguntas pueris, cheias da sua feminilidade encantadora. Eu lia alto para meu pai e sorríamos em certas passagens em que ela emprestava tanta cor, tanta personalidade, que tí­nhamos a impressão de ouvir-lhe a voz de timbre quente e cheio e ver-lhe os olhos largos e escuros, que se ani­mavam, quando se entusiasmava.

— “Ela nem fala em voltar" — observou meu pai.

"Nem uma palavra! Como deve ser galante o Gastãozinho, já querendo falar, numa mistura de italiano e francês! Ana Maria é que completou seis meses por estes dias."

"Como passa o tempo... Quase três anos que Leonor embarcou. Até hoje lembro-me dela, tão bonita, acenando, do tombadilho, com um sorriso entre feliz e triste..."

"Como está poético! Olhe que acabo acreditando no seu amor platônico!" — caçoei, abraçando-o.

Ele riu, acariciando-me o rosto. Até hoje, sinto falta da sua convivência terna e íntima. Eu o amava com arre­batamento, sem estas restrições que antigamente sepa­ravam os filhos dos pais. Éramos amigos, companheiros.

—“Vou telefonar à Licia, dando as notícias."

Fui ao telefone e conversei uns dez minutos. Ela também tinha recebido carta da mesma data e trocamos nossas impressões.

— "Estou com muita saudade dela" — disse-me — "mas acho que faz bem em não voltar tão cedo... Deve aproveitar, viajar."

Notei-lhe na voz um tom quebrantado de cansaço ou tristeza, que não pude definir. Naquela época eu ignorava, ainda, que aquelas amigas que se queriam como irmãs, tinham tido a infelicidade de amar o mesmo ho­mem. Êle escolheu Leonor. Talvez nunca tenha suspei­tado o sentimento de Lícia e ela preferia-o longe.

Aquela tarde passamos juntas, em minha casa, revendo algumas páginas do concurso próximo. Um pouco antes do jantar, subimos ao meu quarto, onde nos demoramos examinando figurinos e trocando impressões sobre as festas de formatura e quando mal pensávamos, ouvimos a buzina do carro, com que Juvenal chamava o jardineiro para abrir o portão. Era meu pai que chegava. Retocamos apressadamente os penteados e descemos ao encontro dele e do Dr. Teodoro, que com o seu estoque inesgotável de casos, encheu a nossa noite de alegria. Só assim esquecemos por alguns momentos que no dia seguinte, começariam os exames finais do nosso curso!

 

Embora o dia do concurso estivesse chuvoso, o salão nobre da Escola de Música, ficou literalmente cheio. Na platéia, viam-se as mais variadas cores, em toiletes ele­gantes, entremeando com as roupas escuras dos homens. Havia um movimento desusado na rua do Passeio. Os carros chegavam com um chiar peculiar dos pneus no asfalto molhado e deles saltavam os parentes, os amigos dos concorrentes ou pessoas que gostavam de música.

Entre os alunos, o nervosismo era geral. Lá estava, em cima, bem defronte ao palco, a banca examinadora, que se nos assemelhava a um tribunal de inquisição. Os minutos arrastavam-se morosos, numa preguiça mór­bida de dia de chuva. E pelo palco desfilamos, um a um.

Pouco antes da minha vez, encontrei Anah chorando, enquanto Maria Augusta a animava, cheia de calor.

“Que foi Anah?" perguntei interessada.

"Ela esqueceu a música" respondeu Maria Au­gusta, "mas, recomeçou e foi até o fim."

"Mas de que maneira" soluçou Anah inconsolável.

“Ora, uma falha de memória, não influi." disse eu.

“Sim, numa aluna medíocre como eu, não é? perguntou ríspida.

Encarei-a surpresa. Durante um lapso de tempo, tive vontade de voltar as costas, sem responder, mas refleti melhor e retruquei:

“Não, Anah. Também numa aluna distinta como eu, uma falha de memória é perdoada."

Picamos caladas um instante. Só então no momento de nos separarmos, entrevi aquela alma cheia de arestas. Entretanto, com o meu temperamento compreensivo, arrependi-me da resposta e continuei, estendendo-lhe a mão:

— “Não nos separemos magoadas, Anah! Afinal, quatro anos, não são quatro dias..."

Ela hesitou um pouco, mas apertou minha mão. Eu esperava uma palavra de simpatia ou de retratação, mas ela não me disse nada. Fiquei chocada e triste, mas que fazer? Nunca mais vi Ano. Não sei que foi feito dela. Aquele aperto de mão foi um adeus para sempre!

Chegou a minha vez. Toquei sem falhas, procurando dar o maior sentimento às minhas músicas. Os aplausos que despertei, encheram-me de alegria. Era sinal de que me saíra bem. Entretanto, não foram cousa alguma, comparados ao entusiasmo frenético que sacudiu toda a platéia quando Eduardo tocou. Chamaram-no duas ve­zes ao palco, mas foi preciso que o obrigassem a aparecer. Lá em cima, os professores do júri, trocavam impressões, tomavam notas. De onde eu ficara para ouvi-lo, via a platéia e o júri, e meu coração estava cheio de satisfação. Via que comentavam com essa excitação feliz que toda gente sente, quando tem oportunidade de assistir uma manifestação de arte excepcional! Durante algum tempo, ainda bateram palmas que foram esmorecendo, ora avi­vadas por um momento, até que se extinguiram num si­lêncio de expectativa.

Eduardo conquistou o prêmio de viagem. Conquis­tou-o por unanimidade do júri. Recebi medalha de ouro. Parece que por fatalidade eu sempre, involuntariamente andava no seu encalço...

Quando soube do resultado, corri a cumprimentá-lo.

—"Como estou contente, Eduardo, eu tinha certeza da sua vitória!"

Êle me fitou mais demoradamente, desta vez sem desviar os olhos. Ficamos um instante de mãos dadas e em silêncio. Pareceu-me que ia dizer qualquer cousa; talvez não encontrasse as palavras para agradecer. Eu também fixava os seus olhos castanhos, uns olhos so­nhadores, quase meigos, sem saber que fazer. Mas foi um instante, um pequenino instante só.

Outros colegas chegaram, cumprimentando-o, abraçando-o e eu senti uma impressão estranha de que tinha sido esposada no meu direito de ficar junto dele, todo o tempo.

Mais tarde, quando no carro de meu pai deixava a rua do Passeio para ganhar a Beira-Mar, vi Eduardo, ca­minhando pela calçada, com sua mãe pelo braço. Ela ia enlevada, sem sentir o mau tempo, os cabelos muito brancos, salpicados de gotinhas de chuvisco, enquanto êle ia com aquele seu ar ausente e sonhador. Eu conhe­cia essa expressão do seu rosto. Caminhava, calcando apenas o chão, enquanto seu espírito voava alto, ou­vindo a música sutil e sublime que, para êle, existia em tudo!

Quase me assustei, quando a voz de meu pai, rompeu o silêncio:

— “Você parece que não ficou contente, Lucila?!

—“Eu?!" — exclamei despertando. — "Fiquei con­tentíssima! E vocês?"

0 Dr. Teodoro consertou o pince-nez com gesto lento e disse:

— “Eu, não!"

Conhecia-lhe aquela seriedade.

—“Por que, senhor Incontentável?"

—“Porque perguntei duas vezes se jantamos na ci­dade e a senhora continuou olhando para dentro, sem me dar atenção."

Achei graça no "olhando para dentro" e ri gostosa­mente.

"Ficaria mais poético o senhor dizer: continuou com o seu encantador olhar introspectivo e.não res­pondeu ..."

"Olha, Silvério, alguém já andou tecendo frases à Lucila..."

"O que é natural." —concordou meu pai, com vaidade. — "Está bem bonita".

"Quantos cumprimentos! Deixe-me ver se é ver­dade." — Abri a bolsa, olhei-me no espelho e retruquei, brincando: — "Não, Dr. Silvério, nada encontro de par­ticular . Olhos escuros como os da maioria dos brasileiros, cabelos cor de bronze, pele clara, dentes certos..."

"Você esqueceu-se de citar o "it". . . — interrompeu o Dr. Teodoro.

"Não, fiquei arrependida de não elogiar os ca­belos ."

"Têm de fato uma cor muito original. . . Mas, com isto, estamos no Flamengo e queríamos jantar na cidade."

O Juvenal fez a volta. Aquela noite foi comemorada com champanhe, pois o Dr. Teodoro e meu pai, eram liberais e estavam muito contentes. O carinho dos dois por mim, era comovente. Nenhum detalhe foi esquecido, por isso, quando chegamos ao Pálace Hotel, já nos aguar­dava um grupo de amigos queridos, entre os quais, Lícia, naturalmente.

A mesa fora ornamentada com lindas flores e no meu guardanapo encontrei um estojo com uma pulseira toda cravejada de brilhantes, muito delicada, formada de pequenos elos, presente dos dois, também. Meu pai co locou-a no meu braço e eu beijei os dois alegremente. Talvez tenha sido o mais alegre jantar da minha vida. Tinha terminado o meu curso e de agora- para diante, achava que tudo devia ser perfeito e alegre, como aquela noite.

Na volta para casa, encostei a cabeça na almofada do carro e ali, entre os dois amigos, fui sonhando, so­nhando .. .

Eu estava cansada e por isto dormi muito bem. Acordei às sete horas, com o tilintar do telefone. Era Lícia.

—“Lucila, que vai fazer do seu dia?!

Só então pensei que nada tinha a fazer. Acabara aquela excitação que precede os exames.

—“Não sei, Lícia, ainda não estou bem acordada."

"Eu vou a Petrópolis. Que tal, almoçarmos lá, em casa de Vovó?"

"Coitada de D. Maroquinha, Lícia, aturar duas entediadas."

— “Deixaremos o tédio na barreira, quer?"

—“Estou quase aceitando, mas primeiro vou saber o programa de papai. Telefono mais tarde, sim?"

Desligamos e eu me deixei ficar deitada, olhando o sol através das cortinas das janelas, aquele bom e ge­neroso sol, que dissipara as nuvens escuras da véspera, e ali estava brincando de se espreguiçar pelo "chão, numa réstia comprida. . .

Que faria Eduardo nesta manhã? Talvez já estivesse providenciando a viagem. . . a viagem. . . Só então esta realidade me feriu. Eduardo ia viajar, ia para longe, muito longe. Empenhada em desejar apenas vitórias para êle, não tinha pensado que esta vitória significava sepa­ração e talvez separação irremediável!

Meu pai tinha que almoçar no Jockey, com alguns médicos paulistas, de passagem aqui no Rio; ficava assim com meu dia livre. Aceitei a ida a Petrópolis. Lícia organizara propositalmente esta saída para nos distra­irmos. Vesti uma toilete clara levei, por intimação de Teresa, um casaquinho para a serra e, às dez horas, saí, com o protesto da minha velha ama, que não achava próprio duas moças sozinhas, "guiando automóvel, por estas estradas..."

"Pois venha conosco." — convidei.

"Deus me defenda Tenho horror àquela subida."

"Então, não temos outro remédio, senão irmos sozinhas... Até logo."

Ela me acompanhou até o portão. Atravessei calada, o jardim que tinha um aspecto alegre, com seus ramos, ainda molhados da chuva da véspera, brilhando ao sol. O céu estava muito azul, mas um azul claro, lavado, suave... Alguns pássaros cantavam nos galhos da acácia, que parecia rir pelos seus pendões de flores douradas. Olhei a rua através das grades de ferro tra­balhado. Teresa abriu o portão.

"Não voltaremos tarde. Venho jantar e não fique com esta cara zangada, que você fica feia..."

"Eu sou feia mesmo".

"Não, você sempre foi um amor, Teresa! Só não é, quando briga."

Ela riu, vencida. Atirei-lhe um beijo, já da calçada, e fiz sinal a um táxi que passava. Já sentada acenei-lhe adeus e vi-a entrar com seu passo um tanto cansado, ba­lançando a cabeça com ar apreensivo, e imaginei que dizia consigo mesma:

—“Estas meninas de hoje..."

Encontrei Lícia na calçada, com a mala do carro aberta, observando a empregada que acomodava alguns volumes. Ela estava encantadora, com um costume de linho inglês, bege. Prendera os cabelos num turbante de seda estampada. Recebeu-me efusivamente.

"Vou entrar para cumprimentar seus pais" — disse, beijando-a.

"Vai, estão no terraço. Mamãe cuida do seu vi­veiro, papai lê os jornais... Não se demore."

—“Cinco minutos, só."

Eram dez e meia, quando arrancamos, Lícia na di­reção, eu a seu lado, observando-a, admirando a sua se­renidade, a elegância com que pousava as mãos cal­çadas em grossas luvas de couro, no volante. Ela per­cebeu que a olhava e perguntou, sorrindo:

"Está me achando feia ou bonita?"

"Por quê?"

"Estava me olhando embevecida."

"Então, bonita!"

"Por condescendência?"

"Não, sinceramente."

E como eu me calasse, deixando o olhar vagar pelas

casas enfileiradas:

"Estamos lacônicas hoje, hein?"

"Ainda não chegamos a barreira."

"E que tem isto?"

"Foi lá que você me convidou a deixar o tédio, não foi?"

"Ah!" — riu, e como fôssemos entrar no túnel: — "Deixe deste lado do túnel, depressa! Não há tédio que resista ao sol de Copacabana!"

Atravessamos a cidade, os subúrbios e a baixada, enquanto nossa palestra saltava daqui para ali, capricho­samente. Lícia tem um modo especial de conversar. Prende, porque sua observação encontra detalhes invi­síveis para outras pessoas. E suas expressões são tão pessoais que não podemos repeti-las, sem associá-las à Lícia. Por isso, conseguiu dissipar em mim aquela es­tranha impressão de vazio, de desinteresse. Quando co­meçamos a subir a serra, meu espírito tinha outra dis­posição e admirando aquelas paisagens sempre novas, disse-lhe:

"Sabe o que me lembra esta subida?"

"Não.

"O Bolero de Ravel."

"O Bolero de Ravel? Como?"

"Por isso: os elementos de beleza são sempre os mesmos. 0 verde do mato, as pedras caprichosas, a pai­sagem que vai ficando mais para baixo, mais para baixo, como no Bolero que é sempre uma mesma melodia, num crescendo contínuo."

"Está bonito isto..." — disse ela entre risonha e interessada. — "E depois?"

"Atingimos o alto da serra, dominando tudo e o Bolero atinge o seu apogeu musical, num grito sonoro e lindo do seu motivo."

"Quem era mesmo de nossos colegas que tinha a mania de procurar motivos musicais nas cousas mais banais?"

Fiquei um pouco perturbada e respondi, desviando os olhos:

—“Não sei..."

Ela também não falou durante alguns momentos, como se sua memória se esforçasse por lembrar. Depois como desistindo de identificar o autor da "mania", con­tinuou, mudando de tom:

— “Vamos encontrar neblina na serra."

O que encontramos foi uma inesperada chuva que nos fez levantar apressadamente os vidros do carro.

— “Esta chuva não demora." — garantiu Lícia. De fato, quando paramos na barreira, cessara aquele

aguaceiro e um grande arco-íris estendia-se no céu como um arco de triunfo para nos receber.

—“Quando eu era pequena, queria passar embaixo do arco-íris para virar homem." — disse Lícia sorrindo evocativamente.

—“Que bom que não conseguiu." — respondi. Ela ia dizer qualquer cousa, quando um inspetor

aproximou-se, dizendo enquanto tocava a pala do boné:

"A senhora está multada!"

"Ué, por quê?"

"Porque não conhece mais os pobres." Só então ela atentou na fisionomia do rapaz.

—“Ah! o Josias!" — disse alegremente. — "Que foi feito de você?"

"Como vê, aqui, para servi-la, D. Lícia."

"Continua estudando?"

"Continuo, sim senhora."

—“Esqueci de apresentar. Lucila, este é Josias, nosso companheiro de travessuras, quando crianças; pas­sávamos as férias em Petrópolis, na chácara da Vovó. Quantas fizemos, hein? Lembra-se do susto que pregamos no Seu Modesto? E daquele dia..."

Só então percebemos que uma quantidade razoável de carros estacionara atrás do nosso, esperando para en­costar e mostrar documentos. Buzinavam impacientes, num concerto dos mais variados sons, cortando aquele fio suave de recordações. Sorrimos para Josias que fez um gesto engraçado de quem se desculpa, por nada po­der contra a eterna pressa dos homens. . .

Lícia pisou o carro e disse:

—“Apareça lá em casa, Josias, o papai gostará de vê-lo, mas vá mesmo."

Êle tocou com os dedos a pala do boné, curvando se um pouco. Admirei-lhe a compleição atlética e o rosto vivo. Era por força um homem inteligente e lutador.

—“Quem é este Josias?" — perguntei.

Lícia parece que continuara sozinha a rememorar aquelas diabruras dos dias passados, pois sorria aos seus pensamentos. E este sorriso era tão garoto e tão puro a um tempo, que senti ter também, com a eterna curiosidade dos mortais, cortado seu devaneio.

"0 Josias? Êle foi criado pela minha tia. Nunca se soube quem eram seus pais. Sempre foi muito inte­ligente, demais mesmo. Quando fazíamos alguma, era apoiados na sua astúcia. Meu tio ficava danado com as nossas brincadeiras, e um dia internou Josias num co­légio. Êle aproveitou. Apareceu anos depois, já rapaz, e contou que ia estudar direito. Já não o via há mais de três anos..."

"Interessante" disse eu pensativamente, "tem muita força de vontade, não é?"

"Uma força de vontade de ferro! A Vovó vai ficar contente quando souber que o vi."

Aproximávamo-nos da cidade. Deixei Lícia pensar em paz, enquanto eu, fitando aquele céu, tão colorido, tão nítido, procurava imaginar Lícia, pequena, com duas trancinhas esvoaçantes, como vira num retrato, já com aqueles olhos perfurantes e iluminados, fugindo à vigi­lância dos maiores e correndo. .. correndo. . . pela chá­cara de Petrópolis, para passar embaixo do arco-íris. . .

A nossa chegada foi saudada pelo ladrar de dois grandes cães policiais, que vieram correndo atrás do carro, desde que transpusemos o portão que o Malaquias abrira, sorrindo o seu grande sorriso de dentes muito brancos no rosto muito preto.

0 carro subiu a rampa de cascalho e parou diante da escada, de apenas oito degraus de pedra, no cimo da qual D. Maroquinha aguardava a nossa vinda com o seu mais acolhedor sorriso.

Subimos e abraçamos a boa velha. Os cachorros em­baraçavam-se nas nossas pernas, balouçando as caudas, muito cordiais. Lícia curvou-se, alisando-lhes simulta­neamente as grandes cabeças de olhos ternos e inteli­gentes e dizendo em seguida:

“Pronto, agora vão-se embora." E voltando-se para a avó:

“Estamos com uma fome devoradora! Vovó está preparada para matá-la?"

"E com arma de luxo!" retrucou D. Maro­quinha .

“Deixe ver se adivinho."continuou Lícia, pas-sando-lhe o braço pelos ombros e cheirando o ar, na di­reção do corredor: "Galinha?"

- Suba!" respondeu alegre.

"Sei de que sutilezas é capaz a sua arte culinária, vovó, e por isto, não posso adivinhar!" — disse num afetamento proposital.

Não foi preciso adivinhar. Entramos na sala de jan­tar, clara, alegre, muito grande, mobilada com antigos móveis de jacarandá, pesados e enormes. Três largas janelas abriam para o pomar, e meus olhos se extasiaram ante os pessegueiros com suas decorativas flores cor-de-rosa, agarradas aos galhos escuros.

"Que beleza, D. Maroquinha!" — exclamei, chegando-me à janela.

"E o laranjal, minha filha?" Você nem pode ima­ginar, quando está florido! 0 chão fica branquinho das flores caídas e é um perfume que chega a incomodar!"

"Deve ser uma maravilha!" — disse eu, conti­nuando a admirar aquela vegetação alegre e dadivosa.

"Mas vão, vão se arranjar para o almoço. Se pre­cisarem chamem a Maria. Já mandei colocar toalhas no banheiro. Vou dar uma "olhada" na cozinha."

E lá se foi ligeira, com seu passinho miúdo e silen­cioso, seu vestido preto, sua bonita cabeleira branca como algodão. Piquei na porta do corredor acompanhando-a com os olhos, imaginando a sua vida tão singela, sempre ali, nas mesmas salas, da chácara. Imaginei-a recém-casada, passeando sob os laranjais floridos, pisando aquele chão branquinho de flores caídas, aspirando o perfume sutil e penetrante a um tempo e volvendo os límpidos olhos azuis para o marido, dizer sorrindo:

—"Vamos entrar, este perfume até incomoda."

Imaginei também o sorriso largo do marido (co­nheço-o do retrato solene da sala de visitas), um sorriso de dentes brilhantes sob os bigodes tratados e castanhos, e um lampejo de orgulho atravessando-lhe o olhar, en­quanto respondia, com uma pontinha de ironia:

—“Não culpe os laranjais, querida, quando flores­cerem outra vez, você suportará o perfume e virá com o bebê, repousar à sombra das laranjeiras."

Estremeci com a voz de Lícia:

"Ande depressa, Lucila, eu já disse que estou morrendo de fome!"

"Vovó, estou com fome!" — gritou uma voz es­tridente, do alpendre.

"Que é isto?" — perguntei.

“É o louro." — e chegando até à porta: — "Bom dia, louro, e deixe de me arremedar."

E veio correndo ao meu encontro, com uma alegria transbordante, levando-me pelo corredor para o banheiro, apressando-me, tagarela e risonha.

"Não se pinte, Lucila, descanse sua pele." Ouvimos a voz de D. Maroquinha:

"Venham meninas, está tudo na mesa." Entramos na sala, agora cheia do cheiro suculento

dos quitutes e tivemos exclamações barulhentas de alegria.

—“Pato recheado!" — gritou Lícia, excitada.

—“E arroz de forno." — concluí. — "Estou até com água na boca."

  1. Maroquinha na cabeceira da mesa, olhava sor­rindo. Seu sorriso era dessas cousas surpreendentes e irresistíveis.

—“Mas comam, meninas, não fiquem só admirando... Este pato é especialidade da Alzira, é recheado com ameixas."

"Meu Deus, como Vovó está extravagante!" — gracejou Lícia.

"Assim não desceremos mais." — disse eu.

"E por que não ficam mesmo uns dias?"

"Para mim é difícil me ausentar. Papai ficaria muito só."

"É verdade," — confirmou Lícia — "Dr. Sil­vério não faz nada sem combinar com Lucila."

— “Pois venham os dois!" — resolveu a boa velhinha.

Era assim o seu feitio. Gostava de ter a casa cheia, para se agitar, obsequiando, conversando, dando um giro pela cozinha, embora a Alzira fosse tão antiga no serviço, como os alicerces da casa.

"A senhora acredita que o papai nunca tirou fé­rias?" — disse eu.

"Os antigos são assim mesmo, minha filha, não gostam de descanso."

"Mas êle precisa. Às vezes noto que está cansa­díssimo. Já fiz tudo. Sabe o que diz? Que doente não tem feriado e que portanto êle também não, e há de morrer no seu posto, como os militares."

"Ora vejam!" — exclamou D. Maroquinha. — "Devia poupar a saúde para poder viver muitos anos, fazendo sempre o bem."

Neste momento entrava na sala a Clarice, mulatinha adolescente, cria da casa, trazendo uma travessa, onde se ostentavam suculentos bifes.

"Deus nos livre, Vovó, que banquente!" ex­clamou Lícia. "Eu não posso comer mais nada."

"Nada mesmo?" perguntou com sorriso mali­cioso a velhinha.

“Bem, mais nada de sal. .."

“Que esperta! Mandei fazer a sua sobremesa pre­dileta."

E comemos os deliciosos doces preparados por Dona Maroquinha e a Alzira, que recebeu depois os nossos cumprimentos pela sua perícia sem igual. 0 café foi servido sob a latada da parreira, onde nos sentamos em cômodas espreguiçadeiras, numa preguiça feliz, conver­sando molemente. Grandes cachos de uvas, ainda verdes, pendiam sobre nossas cabeças e abelhas zumbiam mono­tonamente. D. Maroquinha, que não suportava a inati-vidade, tricotava e o barulhinho regular das suas agulhas chocando-se, era mais um elemento naquela canção de ninar que nos dominava e vencia... Canção de ninar... as abelhas zumbido... as agulhas, téc-téc. . . aquele pálio verde, estendido sobre nós. . . Canção de ninar.. . música. . . música das abelhas, das agulhas, da côr. . . música. .. Eduardo era assim, encontrava música em tudo. Com certeza por isso é que naquela tarde tormen­tosa e fria, êle preferira a companhia da chuva, com sua música, em vez de vir no meu carro, comigo e Lícia. . . O Rex ladrou forte. . . que é mesmo que estava pen­sando? Ah! Sim. Aquela tarde. . . Chovia, uma chuva constante, ininterrupta e forte. Tivemos até que correr da porta da escola para dentro do carro. Ríamos muito, estávamos alegres, nem sei mais porque. O Juvenal esperou uma ordem.

“Vamos para casa, Juvenal. Mas não pare em casa de D. Lícia."

"Isto é sabotagem, Lucila?"

"Mais ou menos. .. é mais um seqüestro..."

"Por que tanta violência?"

"Hoje teremos o professor Erich, para jantar. Você vai gostar dele, é uma criatura muito curiosa mesmo."

"Você já me falou nele." E mudando de tom: "Olhe quem vai por ali, todo molhado."

“Quem é?" — perguntei, debruçando-me sobre ela, para olhar também.

— “É o Eduardo."

—“Pare, pare Juvenal!" — E para ela, um pouco contrafeita: — "Vou convidá-lo."

—“É, chame-o, coitado."

—“Eduardo!" — chamei, quando Juvenal parou o carro.

Êle se voltou para trás, procurando.

—“Aqui, Eduardo!" — orientou Lícia.

Veio para nós, um tanto vexado, com a aba do cha­péu pesada de água e o rosto salpicado. Ia tirar o chapéu.

—“Não se descubra neste mau tempo." — gracejou Lícia. — "Venha conosco, você não mora em Botafogo?"

"Muito obrigado, mas não posso aceitar..."

"Ora, por quê?" — perguntei decepcionada.

"É que. . . não vou agora para casa."

"Vai ficar sonhando sob a chuva?" — perguntou Lícia.

"Não, não é isso, ainda tenho que fazer, aqui na cidade."

"Às seis e pouco e com esta chuva?" — Deixe os afazeres para amanhã." — insisti.

"Muito obrigado, mas tenho um encontro, é isto, sim, tenho um encontro às seis e meia."

Apegava-se àquela idéia.

—“Neste caso, felicidades!" — disse Lícia, com um pouquinho de malícia.

Eu estava desapontada, sem achar palavras. Fi­camos um instante calados e foi Lícia quem deu fim ao constrangimento.

—"Então, vá, que já está quase atrasado."

—“Com licença," — disse apressadamente — "e muito obrigado."

Levantou o chapéu e eu vi os seus cabelos ondulados e brilhantes, aqueles cabelos que lhe ficavam tão bem! Vi-o afastar-se rápido e enquanto o carro se movimentava, olhei Lícia, que também me olhou, como quem diz:

—“Que esquisito!"

—“Não adianta querer humanizá-lo." — disse Lícia, levantando ligeiramente os ombros.

—” É tão tímido, não é?" — comentei.

—"É muito esquisito. Eu esperava que êle não aceitasse. Soube que é muito pobre. Com certeza ficou acanhado de vermos sua casa."

"Que tolice! Que valem afinal estas cousas ma­teriais?"

"Para você e para mim, nadai! Mas, tudo, para muitos outros."

"Seria mesmo por isto? Disse que tinha um en­contro ..."

"E você não percebeu que foi um pretexto? Ga­ranto que está no poste, esperando o bonde. Disseram-me que mora numa vila muito modesta, muito pobre mesmo. "

"Coitado! Como poderá estudar?"

"Não sei. Quem me contou estas cousas, disse-as com tanto desprezo..."

"É mesmo?! Inveja, com certeza."

Lícia demorou um pouco o olhar no meu rosto, e eu procurei evitar o seu "golpe de vista psicológico", como chamava essa assimilação instantânea das cousas, que era um dom nela.

"Mas afinal," — continuei com naturalidade — "somos colegas, êle não precisava fazer esta cerimônia..."

"É o feitio dele, Lucila, que fazer?"

Eu queria saber mais alguma cousa, tive, porém, medo de me trair nesse interesse e esperei que ela fa­lasse por si. Ela esteve um pouco calada e disse em se­guida:

—“É um temperamento interessante. A maior parte dos colegas não o compreende. Tomam o seu retraimento por presunção, mas é uma injustiça. Quando o Renato quis abandonar o curso, soube que Eduardo levou-o para casa uma noite, conversou até tarde, fez com que o Renato se abrisse com êle, aconselhou-o, e até deu umas aulas, sem a menor remuneração. Se o Renato conseguiu che­gar ao fim do curso, deve a Eduardo."

— “Mas não se dão, não é?" — perguntei.

— “O Renato arranjou um pretexto para não falar mais com êle... disseram-me, porém, que Eduardo nem percebe esta ingratidão."

Este fato mais o valorizava os meus olhos. Seu es­pírito pairava muito acima da mesquinhez humana. Dava quanto podia, sem esperar recompensa nem gratidão. Ignorava os que lhe faziam o mal e estava pronto, quando precisavam dele. Era assim, Eduardo. . .

Mas porque o Rex ladrou naquele momento? Quebrou a magia do sonho que eu sonhava semi-acordada. Levantei a cabeça e olhei. Vi Lícia caminhando pela ala­meda de areia, com o braço passado pelos ombros de D. Maroquinha. Vi os dois vultos caminhando irmanados, tão harmoniosos, o passado e o presente, a mocidade e a decrepitude...

Sobre a cadeira de D. Maroquinha, o seu tricô com as agulhas espetadas, repousando, e no chão, um dos no­velos, que um gato cinzento e travesso, ia desenrolando, desenrolando...

Espantei o gato e ergui o novelo. Avó e neta, fizeram a volta no fim da alameda e vinham agora ao meu en­contro, ambas sorrindo alegremente.

"Que dorminhoca!" — disse Lícia.

"Ah! estava tão bom! Que paz, que sossego!"

"Saímos devagar para você não acordar." — disse D. Maroquinha.

"É... mas o Rex não tem estas considerações, teve vontade latir e acabou-se!"

— "Foi bom, Lucila. Temos muito que ver e aprender com a Vovó. Esta chácara é um pequeno mundo!"

— " É o meu mundo." — disse a velhinha de olhos cismadores.

Lícia piscou- para mim e disse séria:

"Você não acha que a Vovó devia ir morar co­nosco? Agora, viver sozinha aqui..."

"Não, Lícia, não acho. A senhora diz bem, D. Ma­roquinha, isto é o seu mundo!"

"Quero morrer na minha chácara, entre as minhas relíquias e as minhas roseiras."

—"Estou brincando, Vovó." — e beijou-a.

Assim conversando, ganhamos o jardim, onde ad­mirei a mais variada coleção de roseiras. Era uma paixão da boa velha. Por isto no portão de entrada, eu vira uma placa com a palavra "Roseiral". Gastei todo o meu reper­tório de exclamações e ainda sobraram rosas esplêndidas.

Às cinco horas, tomamos um lanche de salgados de­liciosos, bebemos leite da chácara, com bolo, e às seis, transpúnhamos o largo portão, deixando aquela mansão de paz, onde habitava a serena velhinha de olhos cheios de saudade e sorriso surpreendente e irresistível.

Durante a viagem de volta, estivemos longos mi­nutos caladas. A tarde estava esplêndida e o meu pensa­mento pulava inquieto de um a outro ponto. Pensava naquela espécie de sonho que tivera à tarde, pensava em Eduardo. Mas, por que aquela obsessão? Êle com certeza nem pensava em mim, atarefado nas mil preo­cupações de quem vai para longe e por um largo tempo. Quando iria? Talvez nem tivesse marcado ainda. Ou estaria ansioso por seguir, buscando um ambiente mais amplo, maiores possibilidades?

E o carro rodava, rodava, serra abaixo...

Escureceu inteiramente. As primeiras estrelas pis­cavam muito alto, num céu longínquo e impassível.

"Você disse a D. Maroquinha que viu o Josias?'' — perguntei para dizer alguma cousa.

"Disse. Ela me deixou contar tudo, perguntou como o achara e acabou dizendo que êle ontem jantou na chácara."

"Sua avó é uma das senhoras mais encantadoras que tenho conhecido."

"De fato, é. E como, mesmo sem deixar o seu cantinho, foi evoluindo com o tempo, tem uma cultura imensa. Lê muito. Aliás é um dos seus passatempos."

"E dirige tudo, ela mesma?"

"Dirige. É muito metódica, de maneira que seu tempo chega para tudo. Até faz tricô para a criançada pobre dos arredores."

—"Tal como uma castelã."

Novamente meus pensamentos se engolfaram por caminhos fantásticos. E pensei como seria maravilhoso se Eduardo também me amasse. Poderíamos viver na nossa arte, com os mesmos ideais. E sonhei com um recanto como o Roseiral.. . Quando a lua subisse no céu, muito pálida de tantas vigílias, nós, na nossa sala reco­lhida, de janelas abertas sobre o jardim, ouvíamos mú­sica. Êle tocaria só para mim. As melodias acordadas pelas suas mãos. prodigiosas, iriam despertar as flores que dormiam nos canteiros perfumados. Então, haveria em todo o nosso universo um êxtase, um deslumbramento! As estrelas ficariam debruçadas sobre nós, sorvendo tanta beleza que da terra subisse para elas, de envolta com os perfumes que se evolariam do nosso jardim!

O carro agora rodava pela baixada, em grandes retas monótonas. De quando em quando, uma luz varava o escuro da noite. Eram as casas que de intervalo em in­tervalo, se erguem à beira da estrada.

— “Estamos perto," — observou Lícia — "mas ainda vem o pior."

Como estava escuro, ela não viu que a sua voa, sem­pre tão cara, cortara-me como um gume, as asas do sonho e eu estremeci quando toquei a terra. Pude responder porém, com voz natural:

— “É... os subúrbios."

Atravessamos os subúrbios com seu aspecto caracte­rístico, sempre festivo. Povo pelas ruas, passeando, ou em grupos. Circos, parques de diversões, cinemas. En­tramos na cidade.

"Você está cansada, Lícia?"

"Eu? Não. Gosto de dirigir."

Às oito horas saltamos em casa. Quando dobramos a esquina, vi Teresa, no portão, esquadrinhando a rua, procurando ver se já vínhamos. Boa velha, sempre tão preocupada comigo! .

"Olá, Teresa." — disse, saltando.

"Já estava aflita; oito horas!"

—“Você já estava aflita antes -de sairmos, Te­resa. .. Vamos subir um momento, lavar o rosto, pen­tear o cabelo... Papai está em casa

—            “E o Dr. Teodoro também."

Quando descemos eram oito e meia. O jantar foi alegre. Contamos todos os episódios da nossa subida, o dia ótimo, o convite de D. Maroquinha para um des­canso no Roseiral.

—“É pena não poder tirar férias agora" — suspi­rou meu pai.

Lícia e eu trocamos um olhar intencional.

"Eu fui logo dizendo a D. Maroquinha, que você não iria." — e voltando-me para o Dr. Teodoro: — "O senhor não arranja um jeito de demitirem o papai?"

"Seria arrancar a alma do hospital..." — disse êle, fitando meu pai com um olhar onde transparecia amizade e admiração.

— “É, Lícia, não temos aliados, mesmo..."

Às dez horas e meia, quando subimos para Lícia se preparar para sair, Teresa entrou no quarto e disse:

"Esqueci de dizer que D. Maria Augusta tele­fonou ."

"Maria Augusta? Qual delas?" — perguntei. — "Conheço duas. Deixou recado?"

"Disse que era para a senhora telefonar para ela. Explicou uma cousa complicada de embarque, não sei bem o que é."

"Será tarde para chamá-la?" — perguntei a Lí­cia.

—“Não sei, Lucila" — respondeu, apanhando sua grande bolsa de viagem e dispondo-se a descer: — "Deixe para amanhã. Qualquer cousa que seja, não nos interessa mais hoje..."

Fiquei ansiosa. Seria sobre o embarque de Eduardo? Descemos. Lícia ofereceu condução ao Dr. Teodoro que dispensara o seu carro, contando com o Juvenal.

"Posso ter confiança?" — perguntou-me o velho amigo, brincando.

"Na motorista, pode! Agora, não sei se Lícia não terá a intenção de raptá-lo."

"Ora, Lucila, por que você foi estragar o meu plano?! Agora, com êle prevenido, é bem mais difícil..." — disse ela alegremente, tomando a direção.

Lá se foram rua afora, enquanto eu, enfiando o meu, no braço de papai, disse, enquanto atravessávamos o jardim:

"Então, Dr. Silvério, sentiu falta da sua filha?"

"Eu? Não. . ."

"Sei que sentiu, sim..."

—“Então, por que pergunta? Sabe que é feio ser tão... vaidosa?" — êle gostava de brincar assim co­migo.

"Você já vai dormir, papai?"

"Não, tenho que ler sobre um caso."

"Ora, você está tão abatido!"

"São os vestígios da saudade que sofri."

"Não brinque. Vamos dormir."

—“Vá você, filha, eu não me demorarei muito, não se preocupe."

Beijamo-nos. Vi-o entrar no gabinete. Fiquei olhando-o, da porta. Êle inspecionou as estantes, desta­cando dois volumes, que folheou, lentamente. Colocou-os sobre a mesa.

— “Então, até amanhã." — disse-lhe, atirando-lhe um beijo nos dedos.

Sorriu-me antes de colocar os óculos. Subi pensando nele, que perdia suas preciosas horas de sono e repouso, pesquisando, buscando nos livros de ciência alívio para a humanidade que não cessa de sofrer.

Custei um pouco a dormir, e quando despertei, corri ao telefone e falei com Maria Augusta. Ela me avisou de que Eduardo seguiria para a Europa, dia vinte e um, e que os colegas iriam ao cais. Queria saber se Lícia e eu, quereríamos ir também. Disse-lhe que sim. Respondi por mim e por Lícia. Desliguei o telefone e antes de voltar para a cama, afastei a cortina e olhei para fora. Então constatei que o sol desertara do céu e uma chu­vinha fina, peneirava, peneirava, envolvendo tudo, num véu frio de tristeza. E achei que só podia ser assim, porque assim também estava o meu espírito; triste, de uma tristeza sem fim, como aquele dia cinzento...

Esta chuva se estendeu pelos dias seguintes, tor­nando-os compridos e úmidos, encharcando tudo. Lícia adoeceu com gripe e passei muitas tardes com ela. Líamos ou conversávamos. Algumas vezes sua mãe também se demorava conosco, numa palestra viva e in­teressante. Eu voltava para casa, umas vezes à tarde, outras à noite e me sentia desanimada e triste. Nas vésperas do embarque de Eduardo, Lícia pôde enfim se levantar. O tempo estava ainda incerto, com rápidas aparições de um sol morno e fosco. Logo em seguida, novamente a chuva despencava teimosa.

“Deus permita que esta chuva acabasse" dizia eu irritada, olhando através da vidraça, para o jardim molhado e silencioso.

Dois dias antes da partida, o tempo se firmou bom e Lícia esteve um pouco na varanda, onde almoçamos em companhia de César, um dos irmãos de Leonor. Nem mesmo o relato que êle fazia de sua recente viagem ao Norte, com seu pitoresco, conseguiu desanuviar-me o espírito.

À tarde despedi-me, pretextando um compromisso, e fui para casa. Fechei-me no meu quarto, até à hora úo jantar. Não podia vencer o tédio que me domi­nava. ..

Dois dias depois, lá estávamos as duas, logo manhã­zinha, no cais. Eu esperava que no momento extremo, se Eduardo de fato sentisse qualquer coisa por mim, eu esperava, que êle o demonstrasse de qualquer modo. Muito no meu íntimo, eu sabia que isto era absurdo, mas esperava ainda assim.

O movimento era intenso. Homens hercúleos, tron­cos nus, braços musculosos, carregando grandes fardos, num vaivém estonteante. E o guindaste com seu ranger de ferros, indo e vindo, transpondo para bordo grandes volumes. Um grito dum estivador fêz-nos afastar e pas­tou um carro carregado, pelo trilho onde estávamos. O sol começava a esquentar e o mar tinha cintilações de prata.

—            “Parece que somos as primeiras" disse Lícia.

Ah! se Eduardo já estivesse ali, sozinho, se eu pu­desse falar com êle! Mas, que poderia dizer? Eu não po­deria tomar a iniciativa, isto nunca! Caminhávamos em silêncio, Lícia atenta, procurando-o, eu entregue aos meus pensamentos.

“Olha! Lá estão Maria Augusta e Eugênia". disse Lícia apressando o passo.

Olhei e vi, com desgosto, que Ritinha também estava presente.

"Olá!" saudaram elas com estardalhaço.

"E Anah?" perguntou Lícia.

"Anah está fora."

Seria uma evasiva? Devíamos esquecer parti-pris e prevenções; era um colega que vencia. E pensando assim, meus olhos encontraram o olhar de Renato. Fi­quei contente por Eduardo e por isso sorri, estendendo-lhe a mão, com simpatia.

"Eu esperava que todos viessem mesmo" — disse-lhe.

"O Ernesto não veio, porque está com a filhinha doente" informou.

Ernesto era o mais velho de todos nós, com família constituída, mas todos o estimavam porque era simples e delicado.

“Os únicos ausentes são Ernesto e Anah" co­mentou Eugênia.

Apesar disso Eduardo ficou tocado com tanta gen­tileza. Apresentou-nos sua mãe, que seguia com êle. Ela sorria emocionada, fitando-nos com a mesma ex­pressão envolvente que caracterizava o olhar de Edu­ardo.

Notei-lhe a distinção inata no trajar sóbrio e no falar natural. Disse-nos que já conhecia a Europa. 0 ma­rido fora da carreira consular.

“Conheci há vinte anos... devia ser muito dife­rente, embora já fosse deslumbrante" — disse-nos. — "Passei um ano em Hamburgo".

Renato pediu a Eduardo que mandasse notícias e o tempo se passava por entre essa conversa generalizada e interrompida, dos momentos extremos, quando há muita gente. Chegou a hora das despedidas. Eduardo abraçou-nos a todos com igual carinho, agradecido e emocionado. Senti seu rosto próximo ao meu. Tive medo de levantar os olhos. Êle segurou ainda um mo­mento minha mão. Tive a impressão de que ia dizer qualquer cousa. Meu coração batia sufocadoramente... Mas foi apenas uma escusa por não me ter cumprimen­tado pelo meu prêmio. Sorri, porque a voz me faltava para falar. E êle também não sentiu a amargurada de­cepção que transparecia no meu sorriso. Estava apres­sado . Todos subiram para bordo, levantaram a prancha. Vi-o debruçado lá em cima ao lado de sua mãe. Percebi que falava a nosso respeito. Algumas pessoas ainda gritavam frases amigas para os que iam partir. Eu apenas olhava, calada, querendo que êle pudesse ler nos meus olhos, todas as emoções que me enchiam a alma, que êle pudesse compreender que eram todos os meus sonhos, os mais caros, que iam com êle mar afora, até nunca mais, talvez...

0 grande navio começou a se afastar lentamente, com aquelas manobras sem pressa, como que poupando as forças para a grande travessia. Fêz a volta e depois lá se foi, cada vez mais longe, com seu penacho de fu­maça, desenhando cousas incompreensíveis contra um céu muito azul.

O movimento esmorecia no cais. As pessoas que ali tinham ido para uma despedida formal, saíam apres­sadas, outras quedavam olhando intensamente, man­dando no olhar sua mensagem de saudades!...

Lícia e eu, olhávamos o vulto do navio e nossas emoções eram muito diversas porque ela me disse:

"Gosto de ver estes navios se afastando, numa viagem imensa, levando tantos destinos diferentes... Uns vão felizes, outros amargurados..."

Não respondi. Já bem longe, o navio lançou no ar, lavado e claro da manhã, três apitos pungentes e longos, que vieram ecoar no meu coração. Então, lentamente deixamos o cais e voltamos para casa.

E nesse dia, senti, ficou fechada mais uma época da minha vida!"

 

Cláudio fechou o livro e se ergueu penosamente. Havia na sua expressão um misto de tristeza e fadiga, uma indefinível amargura. Passou as mãos pálidas pelos cabelos, onde já brilhava um ou outro fio pra­teado.

Esteve algum tempo parado, o olhar perdido, e depois, abrindo a porta, chamou Teresa. Ela veio tré­mula, arrastando os pés, num feitio cansado.

“O Senhor chamou, Dr. Cláudio?" perguntou, fitando-o com uns olhos de cão batido, vermelhos e baços de tanto chorar.

Êle demorou o olhar naquele rosto sulcado de rugas e seu coração se encheu de piedade por ela.

“Teresa, diz ao Leonardo para preparar o meu carro; vou sair."

Ela hesitou um pouco, mas perguntou:

“Mas o senhor almoça antes, não é? Já são duas horas."

“Pois sim, Teresa, você quer, eu almoço. Subiu ao seu quarto, tomou um longo banho frio,

procurando ativar a circulação. Sentia necessidade de sair um pouco. Talvez fosse para uma estrada distante, para pisar no acelerador e correr, correr, numa fúria infernal, sentindo o vento fustigar-lhe o rosto e os cabelos, refrescar a cabeça escaldante, varrer para longe a sua memória e a sua angústia. O Leonardo com ser-teza já tirara o carro da garage, pensando que ia dirigir; mas não, êle é que queria guiar, queria ir sozinho, para poder remoer aquela história que o fascinava e que lia com volúpia, com sadismo, estraçalhando a alma, so­frendo, mas querendo ler mais e mais...

Vestiu-se e desceu. A Teresa atarantada, acabava de arrumar a mesa e foi buscar os pratos. Entretanto êle mal tocou nos alimentos. Quando deu por findo o almoço ficou sentado naquela mesa longa e vazia, fu­mando em silêncio. Muito no seu íntimo, travava-se o mais complexo dos conflitos. Embora sentisse necessi­dade de fugir dali, sentia-se atraído para aquele livro que lhe contava com suavidade, todo um drama intenso que só agora conhecia. Precisava porém reagir, preci­sava sair, fugir àquele fascínio, fugir. . .

O Leonardo entrou, avisando que o carro estava pronto. Cláudio continuou imóvel, o olhar morto, fixo, revendo talvez aquela mesma mesa animada e cheia, algum tempo antes, num dos aniversários de Claudinho. Lícia, o Dr. Teodoro, César, Osvaldo, tantos, tantos amigos e, na cabeceira, Lucila, embora sorridente, já com uma expressão distante e imaterial e mãos transpa­rentes de cera.

A voz de Leonardo soou outra vez, cortando o fio de suas recordações:

—"O senhor vai sair já?"

—“Pode ir almoçar, Leonardo. Eu chamo, quando precisar."

Deixou a sala e. fechando-se novamente no escri­tório, continuou a leitura interrompida.

 

Os meses foram-se passando monótonos, formando os anos vazios. Meu humor tornara-se irregular e ca­prichoso . Ora me trancava num mutismo impenetrável e ficava no meu quarto, sem querer ver ninguém; ora buscava avidamente todas as diversões, saindo muito, reunindo em nossa casa, passando o fim das semanas fora. Duas vezes voltei ao Roseiral, uma com Lícia, outra sozinha. D. Maroquinha me recebeu com solici­tude encantadora. Mandou servir o almoço sob a par­reira e ali conversamos até que o sol começou a cair e eu me dispus a voltar.

"Vou-lhe pedir uma cousa, Lucila."

"Pois não."

"Quer tocar uma música para mim?"

"Decerto! E com que prazer!"

"E um noturno de Chopin."

"Qual deles?"

—"O XIV... Escute, não repare nas caduquices de uma velha romântica... Venha cá, dê-me um beijo.

Ficamos despedidas. Vou ficar aqui, você toca e depois vai embora..."

"De fato, é romântico, ouvir Chopin, sentada nessa pérgola de rosas."

"Então, não conte nada à Lícia, ela seria capaz de caçoar de mim..."

Apertei-a contra o meu coração, beijei-a no rosto e nos cabelos brancos e disse:

—“A senhora me proporcionou os momentos de maior paz íntima depois de muitos meses..."

—“Volte sempre que quiser, minha filha." Entrávamos no salão. Sentei-me ao piano, vi-a sair,

atravessar o gramado e sentar no pequeno caraman­chão. Então, toquei com sentimento, com paixão, acari­ciando o teclado, buscando naquelas melodias Eduardo, procurando-o em cada motivo. As lágrimas corriam-me dos olhos, lágrimas consoladoras e amigas...

Quando terminei, o céu crepuscular estava estriado de azul e rubro, que se ia esbatendo... Tomei o meu carro e desci sozinha para o Rio, sozinha com a minha grande saudade, com o meu amor insensato e sem esperança.

Foi a última vez que vi D. Maroquinha e o Roseiral. Pouco tempo depois, estando em Friburgo, recebi uma cartinha de Lícia, contando que a Vovó morrera, numa tarde serena. Como se demorasse a entrar, foram en­contrá-la sentada na sua cadeira, sob os laranjais flo­ridos, com o tricô abandonado no colo, como se dormisse. Algumas flores se tinham desprendido e jaziam nos seus cabelos e no seu regaço. O jardineiro pensou que esti­vesse dormindo e chamou a Alzira para acordá-la. Mas, dormia o sono sereno e eterno dos que deixaram de sofrer. Morrera serenamente, suavemente, como tinha vi­vido.

Guardei uma dolorosa impressão dias seguidos, e como estivesse com a sistema nervoso alterado, sonhava com ela, quase todas as noites...

Passou-se mais um ano, o terceiro que Eduardo estava ausente. Eu recebera apenas um cartão, agrade­cendo a gentileza de ter ido ao cais, e dois, por ocasião do Natal. Respondi a todos, mas a nossa correspondên­cia não foi além disso. Talvez ao fazer os endereços, êle pensasse: — "Lucila Bastos, qual era mesmo?" — e me confundisse com outra colega. Três anos afinal, era muito tempo, para quem estava tão longe! Naturalmente com todo este tempo de separação, o meu sentimento se fora transformando numa saudade suave, que se avivava sempre que eu ouvia uma música qualquer que se relacionasse àquele passado que parecia tão remoto. Às vezes eu ia para o piano e tocava, tocava, pensando nele. Isto acontecia depois de alguns dias de agitação, em que eu procurava esquecer, deixar de pen­sar ... Uma tarde, depois de algumas peças tocadas em surdina, lembrei-me de Debussy e toquei a Catedral. A noite fora avançando lentamente, entrando pelas ja­nelas, escorregando pelos tapetes, galgando as paredes, dominando tudo. Eu tocava aqueles acordes que são como as vibrações dos sinos submersos, cantando, bada­lando. Assim era também o sentimento que me escra­vizara: quando eu pensava que estava morto, êle res­surgia à primeira evocação, com toda a sua plenitude, cantando alto como os sinos da Catedral, a glória de ser imortalí

Meu pai surpreendeu-me ainda com a sala às es­curas, repetindo aquela melodia, baixinho, baixinho, só para mim...

Acendeu a luz. Olhei-o.

"Você está abatido, papai."

"Não é nada, filha, cousas..."

Corri para êle, abracei-o. Eu talvez com o meu gênio desigual também o estivesse preocupando. No egoísmo em que me trancara, esquecia-me dele que era, afinal, o meu único bem! O Dr. Teodoro apareceu depois do jantar. Notei-lhe também uma indisfarçável pre­ocupação, mas não tive oportunidade de esclarecê-la. Não sei se por espírito prevenido, tive a impressão de que meu pai nos vigiava, por qualquer motivo. Nessa noite, sozinha no meu quarto, passei horas de preocupa­ção e insónia, receando que êle estivesse doente, pen­sando em pequenos detalhes aos quais não dera impor­tância e que agora se enfileiravam nítidos na minha memória excitada. Acordei cedo e desci. Êle já estava na varanda, com a correspondência e os jornais sobre a mesa, mas pensava, com os olhos perdidos no jardim. Quando me aproximei, encarou-me e sorriu.

"Dormiu bem?" perguntei.

"Como um justo. E você?"

"Otimamente !Já tomou café?"

"Não, mas a Teresa está providenciando."

"Então, vou pedir para mim também."

Fui até a cozinha. Aspirei o perfume das torra-dinhas.

"Hum! Que bom, Teresa. Traga o meu café também, estou com fome."

Enquanto comíamos, eu observava disfarçadamente meu pai, mas me pareceu refeito, brincando como sem­pre.. Vimos a correspondência, conversamos sobre as­suntos diversos.

"Você vai sair depois do almoço?" — perguntou.

"Só mais tarde. Por quê?"

"Porque hoje preciso do Juvenal."

"Eu não preciso do carro, hoje, papai, pode ir sossegado. Pode-se saber onde vai?"

"Vou ver as obras da Maternidade do subúrbio."

"Mas não se canse muito, papai."

Saiu a uma e meia, dizendo-me que voltaria para jantar. Corri ao telefone, chamei o Dr. Teodoro. Êle me atendeu logo.

"Dr. Teodoro? É Lucila."

"Eu já esperava o seu chamado."

"Que é que há com papai?"

"Não se assuste, Lucila, não é nada de grave por ora, desde que êle se trate. O Silvério está se prejudi­cando com o seu dinamismo."

"Mas que tinha ontem?"

"Teve uma vertigem. Está com a tensão arterial um pouco elevada."

"Por que o senhor não se encarrega de tratá-lo, Dr. Teodoro?"

"Não me ouve, Lucila, êle é muito teimoso. Pre­cisamos impedir que continue trabalhando demais, como tem feito."

"Mas que hei de fazer?"

—“Não se preocupe demais. Acharemos um meio." Despedimo-nos. Eu tinha que arranjar um meio de

afastar meu pai do trabalho. Mas como? Conversei com Lícia. que também se mostrou preocupada.

À tarde saí, para encontrar-me com ela. Queríamos ver uma exposição de um pintor nortista. Encontramos, conhecidos, conversamos, tomamos chá na Colombo, as cinco horas, e depois voltamos para casa. Eu não con­seguira dissipar a preocupação que me martelava a ca­beça, todo o tempo, sem cessar. Lícia saltou antes de mim, que segui no ônibus, com os meus pensamentos. A tarde estava maravilhosa e calma, com um céu cor de rosa que abraçava lá longe, no horizonte, o mar muito azul. E em toda a extensão da praia, as ondas levan­tavam-se em convulsões raivosas que se desfaziam em espuma cariciosa, deslizando pela areia. A sombra ia-se adensando aos poucos, mas foi subitamente repelida pele acender das luzes, numa corrente comprida, que ganhou toda a Avenida Atlântica. Era a minha hora predileta! Hora mística. Chegava ao fim da minha viagem. Olhei mais uma vez aquele mar tão belo e tão misterioso e saltei. Eram seis horas. Não sei porque me lembrei do Internato. Angelus! Ave-Maria! Ave-Maria de Gounod, de Schubert... Ave-Maria... Ia atravessar a rua, quan­do ouvi o guincho estridente de um carro freando, ouvi gritos também, voltei a cabeça, mas não pude fugir...

Quantos dias estive inconsciente, só soube depois. Durante muito tempo, ignorei os detalhes daquele de­sastre. Lembro-me que despertei dolorida e fiquei de olhos fechados, com medo de abri-los. A primeira cousa que vi, foi o vulto de uma enfermeira que caminhava sem ruído de um lado para outro. Procurei então re­cordar, mas os pensamentos assaltavam-me em turbi­lhões, muito confusos, causando-me vertigens. Cerrei os olhos novamente. Quis mover-me, mas senti dores, dores que não sabia localizar, enquanto um estado vertiginoso, outra vez, me imobilizou. Eu tinha uma sensação es­quisita de vôo através de cenários colossais de fantas­magoria, com muita luz, tanta luz, que precisava fechar os olhos. Ouvia, muito longe, vozes incompreensíveis que mais pareciam um marulhar, que aumentava e de­crescia de momento a momento e por mais que me esforçasse não conseguia entender o que diziam. Tinha a impressão de vozes, falando num templo vazio, desper­tando ecos ressoantes e demorados em abóbadas altas. Então, procurava mergulhar outra vez naquele estado inconsciente...

Uma vez, porém, abrindo os olhos, vi meu pai, vi os seus cabelos brancos, o seu rosto ansioso debruçado sobre mim, e num esforço, murmurei:

— “Papai."

Êle levou um dedo aos lábios, indicando-me que devia ficar calada.

—“Você precisa repousar."

Repousar. . . Repousar. . . Repousar. . . Como nestas grutas cheias de ecos, aquela palavra ficou ressoando no meu cérebro perturbado e eu fiquei imóvel. Quanto tempo durou aquele estranho estado? Muitas e longas horas para os que se revezavam à minha cabeceira, cheios de angústia pela minha vida ameaçada. Para mim, um hiato ou uma eternidade; não tinha noção de tempo, nem de cousa alguma. Vi, confusamente, Lícia, , o Dr. Teodoro, Teresa, o Professor Erich e uma des­conhecida. . . Procurava-me lembrar quem era, mas não conseguia. Era loura. Talvez fosse a filha do Professor Erich, aquela que morrera havia muitos anos, na Eu­ropa. Quem sabe se viera, para me buscar? E na minha perturbação, às vezes me debatia aflita, vendo todos eles rodarem à minha volta, rindo, rindo e fazendo caretas. Depois via o vulto branco da enfermeira, sentia uma picada no braço e esquecia tudo.

Uma manhã, porém, abri os olhos, como se acor­dasse de um sono normal. Estava lúcida e por isto per­cebi que meu pobre pai parecia suspenso da minha ex­pressão, olhando-me atentamente.

“Não consigo lembrar-me de nada" murmurei. A enfermeira fêz-me a vontade e uma viração fresca

entrou, trazendo o ruído da vida que continuava lá fora. Meu pai tomou-me a mão entre as suas e eu fiquei calada, concentrando-me, procurando recordar. Creio que assim fiquei uma hora.

"Não consigo lembrar-me de nada" murmurei.

"E não se canse, pensando nisto."

Alguém bateu de leve e logo em seguida vi Lícia entrar no quarto, sorrindo para mim. Cumprimentou meu pai.

"Vim logo que a enfermeira telefonou contando as melhoras de Lucila."

"E veio voando" disse êle. "Não admira, sendo um anjo, como é..."

"Não fale mal dos anjos, Dr. Silvério. 0 doutor Teodoro vem mais tarde, depois do hospital."

"E a Teresa?"

"Falei também com ela. Quem telefonou foi o Cláudio, quando eu já ia saindo."

"Coitado, êle também tem passado um pedaço bem mau."

“Disse que hoje só poderá vir mais tarde." Cerrei os olhos novamente, cansada. A enfermeira

pediu silêncio e ficou à minha cabeceira, enquanto Lícia e meu pai continuaram a conversar baixinho, junto da janela.

Guardei recordações vagas e baralhadas dos meus primeiros dias de retorno à vida. Soube que vinha muita gente me visitar. Antigas colegas do Internato e da Escola de Música, amigos de meu pai, e tive muita pena . ao saber que Leonor, de passagem para Buenos Aires, ali estivera junto de mim, beijara-me, e eu não a vira. A maior parte destas pessoas, porém, ficava na ante-sala, pois foram proibidas as visitas. Com os dias, fui-me fortalecendo, até que uma tarde Lícia me disse, ri­sonha:

"Vou pentear seus cabelos e enfeitá-la, porque hoje você vai conhecer o Dr. Cláudio Monteiro."

"E quem é esse herói, que precisa tantos prepa­rativos?"

“É o herói que a atropelou."

Fiquei olhando fixamente para os desenhos lavrados na colcha, enquanto meus dedos emagrecidos seguiam-lhe os contornos.

"Você não está curiosa?"

"Não sei..."

Ela acabou de amarrar uma fita azul, contendo os meus cabelos, ajeitou a liseuse, arranjou as cobertas e os travesseiros e dispôs-se a esperar.

“Conte o que tem havido desde que estou aqui."

“Ernesto e Leonor, estiveram de passagem no Rio. É esta a novidade mais sensacional!"

"Leonor?! Que pena que não a vi."lamentei.

"Mas ela viu você."

Senti uma emoção que me apertou o coração e se desfez em lágrimas, pensando em Leonor, ali, junto de mim, penalizada, pensando que eu ia morrer, e eu não ter podido vê-la, depois de tantos anos.

“Bem, se você vai fazer feio e chorar, não conto mais nada!"

“Conte, prometo não chorar."

Mas eu estava muito fraca, muito abatida, e quando ela falou nos filhos de Leonor, novamente as lágrimas teimosas apontaram nos meus olhos.

“Bem, agora falemos de” outras cousas. Você está muito manhosa."

Mas não falamos de cousa alguma, porque a enfer­meira apareceu na porta, perguntando se o Dr. Cláudio podia entrar. Lícia enxugou-me os olhos e disse que sim.

Eu estava um pouco constrangida, sem saber como seria este primeiro contacto, pensando como eu deveria recebê-lo para deixá-lo à vontade. Mas não foi preciso dizer nada. A porta se abriu e êle entrou com natura­lidade, risonho, uma braçada de rosas frescas na mão, os cabelos meio desfeitos.

"Então, já está quase boa?" foi dizendo, en­quanto abraçava com intimidade Lícia, entregando-lhe as flores. Puxou uma cadeira, sentou-se junto da cama e ficou um instante me fitando. Eu não podia deixar de admirar a sua beleza máscula e viril. Vi que tinha os olhos verdes e amendoados, uns olhos contrastando com a pele, quase bronzeada pelo sol. Parecia-me um deus pagão, alegre e confiante, com certa malícia petu­lante no olhar e uma candura desconcertante nas ati­tudes. Notei que me observava também, antes de dizer:

"Felizmente não se feriu no rosto."

"Não sei mesmo, como foi. ..”comecei. Mas êle me interrompeu:

"Você vinha, positivamente, sonhando."

"Lembro-me só que quis fugir, mas era tarde." Lícia acabava de arrumar as flores na jarra.

"Está bem assim, Cláudio?"

"O que não sairá bem dessas mãos de fada?' Eu estava intrigada com esta familiaridade. Que

eu soubesse Lícia não conhecia nenhum Cláudio Mon­teiro. Fiquei curiosa e perguntei:

“Já se conheciam?"

Cláudio riu divertido. Era atraente rindo assim.

"Você está vivendo há poucos dios, mas dormiu, quase duas semanas e a ansiedade aproxima as criatu­ras. Tenho a impressão de que conheço a Lícia há sé­culos!"

"Ah! sim, quase quinze dias, morta, pode-se dizer... Que estranho!"

Fiquei impressionada, pensando naquele sono mor­tal e insensível de dias seguidos, entregue aos outroa, sem memória e sem consciência.

"Mas isto passou, Lucila" disse Lícia, com meiguice. "Agora é começarmos a contar a vida, do dia em que você acordou."

"Sim, mas depois você me contará todos os de­talhes?"

“Conto, sim."

"Mas há um," interrompeu Cláudio "que eu contarei, porque já sei que vai omitir."

“Cláudio!" ralhou Lícia.

“Não tem Cláudio, nem meio Cláudio. A Lucila precisa saber a amiga que tem!"

Achei o meu nome tão esquisito pronunciado por aquele estranho, que pensei se haveria outra Lucila me­tida naquilo.

“Conte então o senhor" disse eu.

"0 senhor?! Ora esta! Eu não sou sensor. 0 se­nhor está no céu, segundo vocês acreditam."

"Você é impossível, Cláudio" censurou Lícia, rndo.

"Também é outra cousa que não sou. Mas ouça, Lucila, de tudo o que aconteceu, você só precisa saber que deve a sua vida à Lícia."

“Que tolice, Cláudio, francamente!" protestou

"Ela costuma ficar zangada?" — perguntou-me com ar trocista.

"Não, sempre foi muito cordata. Mas, conte, que fêz ela?"

"Você precisava de uma transfusão e houve um pouco de dificuldade, por cousa do tipo do sangue, então ela foi voluntária."

Piquei um momento sem poder falar, sentindo a garganta apertada e os olhos ardendo.

“Então, somos quase irmãs agora" disse, estendendo-lhe a mão.

Ela sorriu, desviando a conversa à qual Cláudio dava muito colorido, com seus apartes alegres, sua bla­gue fácil e a propósito. Quando se despediu, prometeu voltar muitas vezes. Agradeci as flores, e vi ainda o seu vulto atlético e harmonioso na meia luz da ante-sala e ouvi seus passos se perdendo no corredor.

"Que tal?" perguntou Lícia.

"É muito simpático, não acha?"

“Você não imagina o estado em que ficou com o desastre! Não saía daqui! Passou as primeiras noites na saleta, sentado numa cadeira."

“Que horror! Mas, quem é êle, afinal?"

“É de família paulista. Os pais são fazendeiros. Êle é formado em medicina, mas não clinica. É funcionário de um Ministério. 0 pai dele telefonava todos os dias, perguntando notícias."

"Coitados! Mas por que deixaram saber?"

"E os jornais, Lucila? Saiu a notícia."

"Ah! sim..."

Eu não pensara nesta publicidade dolorosa, como também não pensara no espetáculo ainda mais doloroso de um atropelado, atirado ao chão, entre os curiosos que se comprimem à volta para ver. Sentia uma angus­tiosa impressão imaginando as posições grotescas e dra­máticas, em que tombam as criaturas, colhidas assim, de surpresa. Eu queria perguntar isto à Lícia, mas não tinha coragem, porém ela, com a sua acuidade admirável não esperou para dizer:

—"Felizmente, quase ninguém viu o seu desastre. Você caiu ali mesmo. O guarda da esquina correu logo e Cláudio, constatando que você estava viva, convidou uma senhora que também assistira, para acompanhá-los, e vieram logo para o hospital. Foi fácil, porque êle é médico."

Eu ouvia estes detalhes, como se referissem a outra pessoa.

"Escute, Lícia, eu às vezes tinha delírios, não é? Alucinações..."

"Isto era natural, depois de um choque daqueles."

—“Mas eu via uma pessoa aqui, uma moça loura." Eu estava acanhada de contar-lhe o receio que tinha

tido de que fosse o fantasma da filha do Professor Erich.

"Ah! A Sônia."

"Sônia? Que Sônia?"

—“Uma prima de Cláudio. Ela veio três ou quatro vezes, aqui."

Fiquei calada, pensando nesta desconhecida que tam­bém velara à minha cabeceira, talvez esperando a minha morte.

— “Mas, que espécie de criatura é?"

— “Uma moça chique da sociedade, muito preo­cupada consigo mesma e com os seus prazeres. Alegre, falante."

“Frívola?"

— “Você a julgará. Ela virá amanhã ou depois. É divertida."

Sônia veio no dia seguinte e muitas vezes mais. E como eu estivera à beira do túmulo, gostava das suas vi­sitas, porque ela possuía tanta vida que contagiava tudo. Era frívola, era vazia, não conhecia conveniências, dizia o que lhe vinha à boca e isto me divertia. Quando se ia embora, ríamo-nos ainda, comentando sobre ela e seus disparates.

Eu queria saber quanto tempo ia ficar na casa de saúde, mas o Dr. Teodoro respondia com evasivas e des­conversava sempre que perguntava sobre isto. Sentia-me cansada principalmente por causa do aparelho da perna esquerda que ficara fraturada em dois lugares. Às vezes ficava enervada, sentia dores e cãibras e todos pro­curavam amenizar aquele sofrimento que já durara tanto.

Passei três meses na casa de saúde e durante todo este tempo Cláudio foi de um valor inestimável para todos nós. Quando chegava, trazia consigo como que a essência de tudo quanto de bom existe no mundo. Sua alegria era espontânea, irrestrita, uma alegria larga, que abrangia todos e todas as cousas. Conversava com viva­cidade e graça sobre todos os assuntos. Eu o esperava com ansiedade, porque na sua companhia, dissipava-se aquele nervosismo que a imobilidade e o sofrimento ti­nham feito nascer. Algumas vezes, trazia-me flores, outras, bombons, revistas, enfim, tinha lembranças ca­rinhosas de tudo quanto me pudesse distrair. Os mexe­ricos da sociedade tinham, contados por êle, um sabor especial. E assim, aos poucos, foi-se tornando necessário, indispensável mesmo.

Quando a tarde começava a cair. eu, irresistivel­mente espiava o relógio a todo momento. Já conhecia o seu pisar forte, quando vinha pelo longo corredor e meus olhos fixavam-se na porta, esperando o seu sorriso reconfortante, o seu olhar confiante e irônico, e a sua palavra amiga.

—"Quando eu sair daqui estarei muito mimada, Cláudio." — dizia-lhe, desfazendo os embrulhos que me trazia cada tarde.

Êle ria o seu riso travesso de criança grande e res­pondia:

—“Mas eu também gosto de bombons, trago-os por isto."

—“E as flores?" — perguntava coquete.

— “São também para o prazer dos meus olhos. Gosto de tudo quanto é bonito."

— “E as revistas?"

— “Ajudam-me a trazê-la sempre em dia com a vida, o mundo."

E um dia, acrescentei:

— “Quer dizer que sempre pensa em você mesmo, quando é amável comigo?"

Estávamos sós, por um momento. Meu pai tinha ido acompanhar o médico assistente à ante-sala.

- "Em parte, sim... porque procuro agradá-la."

"E que interesse tem nisso?"

"Não basta saber que tenho interesse?"

Senti que pisava um terreno perigoso e quis recuar. Sem querer, eu o flertava, porque êle era irresistível.

"Bem, se quer desfazer a impressão do atropela­mento..." — comecei.

"Não, não! Não me arrependo de ter atropelado você."

"Mas que mau! Por quê?"

Não pôde responder. Meu pai voltava satisfeito e anunciou-me que eu teria alta naquela semana. Lícia chegou pouco depois com Teresa e foi uma alegre tarde aquela, em que todos sentíamos uma grande satisfação, essa alegria plena que nos assalta, quando vencemos um perigo mortal!

Mais uma semana e voltamos para casa, onde nos reunimos num jantar, comemorando o meu restabeleci­mento. Nenhum dos amigos que tanto se interessavam por mim faltou. Éramos quinze pessoas à mesa, quinze pessoas que queriam esquecer as angústias imensas, as horas arrastadas, os cochichos assustados, e ríamos e falávamos alto, querendo ficar em dia com a vida.

Naturalmente eu ainda não andava com desembaraço, muito ao contrário; mas, tinha o braço forte de Cláudio, para me amparar e sentia-me segura. A sua solicitude era tão natural que me deixava à vontade para chamá-lo, quando me queria transportar de uma sala para outra. —"Você não fica cansado?"

"De quê?" — e êle me olhou do alto da sua esta­tura, com ar cômico de superioridade.

"De me ajudar assim?"

"Peguei-a como a uma criança, naquele dia." — respondeu. — "Leve como uma criança!"

"E agora, então, que emagreci..."

"E que não a carrego, apenas amparo."

"É o tributo que está pagando por me ter pe­gado." — disse-lhe rindo.

—"Uma vez já lhe disse que não me arrependo."

Sônia veio ter conosco. Ria-se muito, fingindo-se escandalizada, com qualquer cousa que lhe contara o César.  

— “É louco este César, não é, Lucila?" — pergun­tou-me .

—“Nunca me deu esta impressão. Por que?"

— “Diz cada uma!" — e olhando-o, ria-se ainda divertida.

César atravessou a sala ao nosso encontro.

"Não me intrigue com Lucila, nem conte as tolices que digo a você."

"E por que não posso saber?" — perguntei, fingindo-me enciumada.

"Porque faço questão de que me tenha em bom conceito..."

"Será que você diz cousas que o diminuam? — perguntei.

"Não sei... Depende de quem julgue."

Percebi a ironia e troquei com êle um olhar de com­preensão. Mas Sônia levara dali Cláudio e eu os via de­bruçados sobre uma mesa de discos, fazendo uma se leção.

Teresa espiava de vez em quando, na sua eterna preocupação. Fiz-lhe um sinal. Ela veio um pouco constrangida.

"Que é Teresa? Você está preocupada?"

"È' que já são dez horas, e a menina está tão fraca..."

"Escute, Teresa, quando eu me cansar, subirei O Juvenal está esperando para me carregar. Eu dormi por muitos meses, deixe-me viver agora."

Ela ficou um pouco parada junto da poltrona onde eu me acomodara e acariciei-lhe a mão grossa, aquela mão tão mal tratada e tão carinhosa.

Estivemos em alegre reunião, até meia-noite.

—“Se vocês quiserem continuar a tocar vitrola e conversar, não façam cerimônia. Vou subir, porque estou um pouco cansada."

Cercaram-me solícitos, mas não quiseram ficar.

— “Meia-noite!" — exclamavam surpresos. — "Come o tempo passou!"

"Como vão levá-la para cima?" — perguntou Cláudio antes de sair.

"0 Juvenal e o chofer do Dr. Teodoro carre­garão a cadeira."

Então todos ficaram para assistir ao meu transporte,, rindo e gracejando. Sentei-me numa cadeira de junco e os dois empregados, com o auxílio de Cláudio, levaram-me pela escada acima. Eu ia com o coração parado de medo, medo de que tropeçassem, ou escorregassem, enquanto os amigos, cantavam alegremente, agrupados no hall:

- "Lá vai a Senhora Madeira Sentada na sua cadeira..." Felizmente chegamos. Agradeci aos dois empregados e Cláudio se demorou ainda um pouco.

— "Estimo que tenha uma boa noite" — disse — "e que sonhe com os anjos."

—“Não, Cláudio, são muito insípidos, pobrezinhos só sabem esvoaçar e sorrir."

Por que eu o provocava sempre?

"Então, sonhe comigo, está bem?"

"Nem tanto ao mar, nem tanto a terra..."

"Quer dizer que sou a antítese de um anjo? '

— “Justamente! Você é um demônio gentil..." Mas os amigos protestavam com os privilégios que Cláudio se arrogava e César galgou rápida a escada, di­zendo que êle também queria se despedir, outra vez. Então, subiram, todos e nessa nova despedida, passou-se meia hora, de animada conversa.

Com tudo isto, era uma hora e pouco, quando afinal, desejei boa noite à Lícia, que estava passando. dias co­migo e apaguei a luz para dormir.

Minha convalescença era morosa e por mais cui­dados de que me cercassem, eu não parecia melhorar, nem no estado físico, nem no estado nervoso. Ora era acometida de insónias exaustivas, de excitação, ora caía num estado apático, que nem mesmo Cláudio conseguia mais vencer*. Meu pai estava preocupado e vi que muitas vezes conversava com o Dr. Teodoro e outros médicos, que me vinham ver. Eu procurava reagir, mas estas manifestações eram independentes da minha vontade e mais que cansava, com os esforços para vencê-las. Por isto, resolveram que eu precisava de um repouso pro­longado, num lugar calmo, onde não fosse perturbada por cousa alguma. Pecamos indecisos sobre a escolha, até que Cláudio, ao saber desta hesitação, resolveu-a com o seu espírito prático, de sempre:

"Mas nem precisavam pensar. Pois a fazenda de papai, o Sacramento, é o lugar indicado, o ideal!" — e com o seu sorriso garoto, fitando-me:

"E você, Lucila, poderá dizer que conheceu um sacramento, por intermédio de um demônio..."

Corei um pouco.

—- "Agradeço muito, mas não quero incomodar seus pais, Cláudio." — disse papai.

— “Incomodá-los?! Nem pensem nisto! Eles ficarão radiantes, pois a cousa de que mais gostam, é de vi­sitas."

Ainda procuramos esquivarmo-nos, mas ele era te­naz e insistiu tanto que resolvemos aceitar. Mas quando me deitei, naquela noite, custei a dormir, imaginando como seria aquela fazenda e como seriam os pais de Cláudio, para cujo convívio eu iria dentro de breves dias e que me eram ainda desconhecidos. Seria um lugar como o Roseiral? Não podia ser, pois uma grande fazenda de lavoura não se podia comparar com uma chácara. Eu, aliás, nunca tinha estado numa fazenda, só as co­nhecia pelos filmes americanos e pensava se lá também os agregados usariam duas garruchas no cinturão e se seriam galantes. Imaginava uma casa de madeira, no alto de uma colina, com varandas à volta e grades isolando-a do resto do campo. Pensava nos agregados, de botas e chapéu de couro, desempenados e arrogantes, todos peões destemidos e atiradores infalíveis. E não podia dormir, pensando, pensando. Tinha receio de per­turbar com a minha presença o ritmo daquele lar, cons­tranger a dona da casa, ter que faaer cerimônia e ficar eu também constrangida e por isto a idéia dessa viagem me desagradava inteiramente. Licia me assegurava que estas pessoas, em geral, são hospitaleiras e simples.

"Se ao menos você fosse também, Licia!" — suspirava eu, pesarosa.

"Eu gostaria, mas Alfredo deve chegar qualquer dia destes e eu não posso estar ausente."

Era justíssimo. Alfredo era o único irmão de Licia e residia em Curitiba, com a esposa e um filhinho.

"E sua cunhada vem também?"

"Ainda não resolveram. Queria muito que vies­sem os três."

"Ainda é bom que papai vai."

"0'timo! Só assim descansa."

E os dias iam passando, com os preparativos lentos da minha viagem. Cláudio vinha diariamente e era sem­pre o mesmo. Às vezes, quando estava mais animado, Licia desconcertava-o, dizendo:

"Qual, Cláudio, você não tem mesmo juízo!"

"Para que, minha filha? Não há nada mais in­cômodo do que juízo!" era a esposta.

Uma semana antes da nossa partida, Sônia foi-me visitar e me disse que resolvera ir também, para esquecer um amor.

- "Um amor?" — perguntei alegremente.

"Sim, um amor infeliz!"

"Mas você acha que seja cousa que se esquece assim, mudando de ambiente?"

"Naturalmente, Lucila."

"Então, não é amor." — disse eu, pensativa.

E não sei por que, naquele momento, pensei na Ca­tedral de Debussy. Pensei naquela igreja submersa e que ressurgia do seio das águas, majestosa e espectral. Por isso, pensei em mim mesma e no meu amor, aquele sentimento que por mais que eu quisesse relegar para o esquecimento, ressurgia sempre, dominante, soberano, exclusivista, absoluto! E tanto era assim, que naquele momento, depois de tanto tempo, em que estivera adormecido, a uma simples alusão, era nele que eu pensava, enquanto uma saudade sutil ia me abraçando a alma irresistivelmente. Já nem ouvia Sônia e o seu tagarelar contínuo. A sua voz, falando, era apenas uma música, embalando os meus sonhos. Ela notou, porque me per­guntou qualquer cousa e eu não respondi.

—“Vou embora, Lucila, você está preocupada, nem me ouve." — disse rindo.

—“Desculpe, Sônia, estava desatenta... estou comum pouco de dor de cabeça. Não vá embora, não."

"Vai descansar um pouco. Tenho mesmo que fazer umas compras."

"Gostei muito de você ter resolvido ir. Assim será muito bom, não é?"

"Para quem gosta de fazenda..." — respondeu espichando o lábio inferior com desdém.

Despediu-se e eu fiquei só, com os meus pensamentos. Então, sentei-me ao piano. Como noutra ocasião, que me parecia muito distante no tempo, lá fora a tarde caía, lenta, mística, envolvendo tudo. Abri o piano, onde os sustenidos lembravam reticências inéditas, e comecei a tocar a Catedral. E à proporção que os acordes cres­ciam, cresciam, vibrando como se surgindo do seio das águas os sinos cantassem livremente, também a minha memória fazia emergir do passado a saudade dos dias que compunham um período da minha vida, um período particularmente sentido. . .

Experimentava um prazer estranho e infinito, em reencontrar aquele velho amigo, que me falava com suas vozes harmoniosas, que me recordava uma outra Lucila, com o coração cheio de idealismo, sofrendo, amando, es­perando... Procurava me reencontrar naquela visão inquieta que ressurgia. Tocava, tocava, enquanto me identificava com ela, me reconciliava com o meu passado, que eu quase esquecera. Depois as harmonias foram-se suavizando em acordes "pianos", como se buscassem novamente o recesso das águas, para adormecer. Eu sentia que assim era a minha saudade, sempre viva, mas avaramente guardada no meu íntimo.

Tão esquecida estava de tudo o que me cercava e tão alheia, que estremeci violentamente com a voz de Cláudio, dizendo alegre:

—“Por que não toca cousas mais compreensíveis? Isto é horrível!"

No primeiro momento, não soube que fazer, nem que dizer. Meu coração batia acelerado.

"Que susto me pregou, Cláudio!"

"Ora esta! Não sou tão feio assim."

"Não, é que eu estava tão distraída, que não o ouvi entrar e quando você falou..."

"Está muito nervosa então, Lucila. Precisa mes­mo de um repouso. Quando pretende ir?"

—"Quinta-feira, pelo rápido, está bem?"

— “Mamãe já está à espera há quinze dias." Fiquei um pouco calada. Depois disse:

—“Não conheço nenhuma fazenda, nunca estive em fazenda..."

— "Então você vai gostar, tudo é novidade, você terá muito que ver."

— “E você, gosta de lá?"

"Gosto. Mas naturalmente gosto mais daqui. A fazenda é o cenário familiar da minha vida. Lá passei toda a infância. Corria como um diabrete por aqueles campos, subia nas árvores, montava em pêlo."

"Era mesmo um diabrete, então! Coitada de Dona Joaninha"

"Por que? Mamãe não se preocupava. Ela tinha confiança em mim. Além disso o meu "secretário", o Mingote, era um moleque astucioso!"

Ria-se à lembrança do Mingote, com o seu riso expressivo e seus olhos brilhavam, no rosto queimado.

— “Mas, não quis ficar...*' — arrisquei.

—"Eu?! Deus me livre! Não tenho temperamento para aquilo. Eu preciso de agitação, de alegria. Meu pai queria que eu fosse o médico de lá."

— “E você o desapontou."

- "Dei minhas razões; concordou."

Eu fiquei imaginando todos os castelos que, com certeza, tinham feito os dois velhos. O filho voltando formado, clinicando, vivendo com eles, depois de tantos anos. Talvez já tivessem uma noiva escolhida para Cláudio. . .

Por que tenho a imaginação tão vadia assim? Não consigo prendê-la. quando encontra campo para se expandir.

"Em que está pensando?" — perguntou Cláudio, vendo-me calada.

"Ora, que indiscreto! Procuro fazer uma idéia do ambiente, mas não consigo."

—“Não imagine cousa alguma. Espere, é melhor." Teresa apareceu com a mesinha portátil e Cláudio

saudou-a com alegria:

—            “Então Teresa, cada vez mais moça!"

—“Qual o quê, seu doutor, estou mais é ficando mesmo encarangada..."

— “Alguém telefonou, Teresa?" — perguntei.

— “O Professor Erich. Disse que vem aí- depois do jantar."

—“Ah! Que bom! E Lícia, telefonou?"

—“Não; menina, mas deve voltar com o seu doutor Silvério."

Lícia saíra para fazer umas compras de que eu precisava.

Mais tarde chegaram os dois, carregados de embru­lhos e mais o Dr. Teodoro, que me trouxe alguns livros, para as minhas horas de repouso. Abrimos os pacotes e fiquei contente. Lícia tinha o senso do sóbrio e bonito.

Nesta tarde, Cláudio não pôde ficar para o jantar e estranhei o meu descontentamento com a sua saída. Pa­recia-me que levava um pouco da alegria, da beleza, do interesse, daquele ambiente que era tão meu.

Com a nossa longa amizade o Professor Erich, fora perdendo o retraimento frio que o caracterizava e já conversava sobre cousas passadas, tocava para nós e, às vezes mesmo, ria. Outras vezes, porém, via-o afastar-se um pouco, debruçar-se numa janela, ou retirar-se para a varanda, onde ficava entregue aos seus estranhos pen­samentos. Que se passaria no seu íntimo? Também nele, com certeza, a saudade se suavizava ou se avivava, tan­gida por elementos exteriores, uma saudade bem mais dolorosa do que a minha, pois o seu objeto fora um bem concreto e seu, que o destino lhe furtara. Tinha imensa pena dele e mais de uma vez, segui-o para lhe dizer qual­quer banalidade carinhosa, que o fazia voltar ao seu presente vazio, porém menos triste talvez. Outras vezes, deixava-o entregue às suas cogitações, respeitando o seu desejo de volver atrás e sofrer as suas memórias.

Nesta noite, notei-lhe qualquer cousa estranha no modo de falar, um brilho diferente nos olhos azuis, que se perdiam em sonhos introspectivos e distantes. . Achei-o. mais do que nunca, com aquela expressão ilumi­nada de Eduardo. Que se passaria com êle? Eu o vigiava, curiosa. Pedi-lhe que tocasse um pouco. Acedeu pronta­mente. Suas mãos correram esvoaçantes pelo teclado Tocou tudo que lhe pedimos, com sentimento, um sen­timento tão seu! Entre dois noturnos, não me contive mais. Todos conversavam dispersos pela sala.

“Professor Erich, hoje pela primeira vez em quase dez anos de conhecimento, noto que o senhor está con­tente. Acertei?"

Olhou-me um pouco surpreso e gracejou, com sua voz gutural:

“Lucila, andou-me espionando?"

“Espionando, propriamente, não... Não foi pre­ciso. 0 senhor tem uma alegria qualquer, que talvez quisesse guardar para o senhor só, mas que espia pelos seus olhos indiscretamente, aparece na sua voz. no seu riso, no modo como o senhor tocou..."

"Eu não sabia que você era tão perigosaí" Êle me fitava com simpatia e gratidão.

"Acertei, então?

"Acertou e por isso vou contar a você."

Mas. em vez de contar, tirou do bolso um envelope, endereçado à Embaixada da Áustria no Rio de Janeiro, onde se lia o seu nome. Examinei o selo e fitei-o.

"Se você soubesse a minha língua, daria a carta para você ler."

"Mas como não sei, vai-me contar depressa o que contém."

Então êle me contou que a carta era de sua esposa, que nunca deixara de envidar esforços para descobri-lo e afinal conseguira o seu objetivo.

- "Você sabe que eu sou casado na Áustria?"

- "Sei." disse simplesmente.

- "Todos estes anos, procurei fugir à lembrança de Iria, minha única filha, que morreu. Pensei que pu­desse esquecê-la.”

Estava emocionado. Eu, então, ajudei-o:

"Mas esta saudade estava no senhor mesmo, não é?"

"E lendo esta carta, vi quanto tenho sofrido e feito sofrer, sem proveito, nem resultado."

"E que vai fazer?"

"Volto à minha terra..."

Abracei-o. Tive. ímpetos de beijá-lo, sentindo que ressuscitava da sua dor, que conseguira libertar-se da­quele abismo em que tombara. E, instintivamente, pensei se eu também um dia, me libertaria dos meus sonhos, dos meus sentimentos e poderia ressurgir para o amor! E muito no meu íntimo sentia que, talvez, se Cláudio me estendesse a sua mão vigorosa, eu conseguisse me salvar!...

 

Nossa viagem foi longa e fatigante. 0 "Sacramento" ficava a nove horas do Rio e com o calor e o desconforto do trem, estávamos ansiosos para chegar. Sônia conver­sava ininterruptamente sobre os assuntos mais dispa­ratados e isto também me acabou fatigando. Papai lia os jornais ou conversava. Ela tomou uma revista e eu cerrei os olhos, recostando-me no travesseiro de penas. Nem cinco mnutos depois, Sônia puxou conversa com um casal que viajava no outro banco e continuou taga­relando com volubilidade, como se já os conhecesse de muito tempo. Eu fingia dormir e ouvia a voz viva de Sônia, misturada com o rumor do comboio correndo, correndo; e me lembrei de que quando era pequena e viajava, repetia com o trem:

Café com pão, bolacha não... Café com pão, bolacha não...

E acabava dormindo, malgrado o sacolejar dos va­gões... Mas desta vez eu não dormia. Ia de olhos fe­chados, ia levada por aquele barulhento trem que cor­tava campinas verdes, varava túneis, vencia pontes, anu­lando as distâncias, jogando para o ar o seu penacho de fumaça. Penacho de fumaça... um céu muito azul e este apito prolongado, fatigado, ecoando aqui, além.. O navio que levou Eduardo, também tinha um penacho assim, também apitou; lembro-me como me impressionou aquele apitar pungente como um adeus...

Que seria feito dele? Quase quatro anos no estran­geiro, quase quatro anos...

O trem foi diminuindo a velocidade e parou numa estação. Senti que Sônia desceu a janela, comprou cousas, e ouvi vozes de pessoas que vinham à estação ver o trem passar.

"Que cidade é esta?" perguntou papai.

"Lorena" respondeu Sônia.

Ainda temos um bom pedaço."

A moça com quem Sônia estivera conversando ofe­recia a ela e a meu pai frutas que comprara também.

—"A senhora vai para S. Paulo?" — perguntou era seguida.

—“Não. vamos para a fazenda de um tio meu."

—“Ah! vão para uma fazenda?" — perguntou o rapaz.   

—“Sim, o Sacramento, o senhor conhece?"

—“O Sacramento? Como não?! A senhora é sobrinha do Coronel Sebastião Monteiro?"

—“Conhece também meu tio?"

—“Somos vizinhos... quero dizer, meu pai, por­que agora resido na cidade, em S. Paulo."

— "Qual é a fazenda de seu pai?"

"A Esperança. Mas, que notícias me dão de Cláudio.

"Cláudio? Está no Rio. Sabe que se formou em medicina?"

"Sei. E ainda é boêmio?"

Eu os ouvia de olhos cerrados sem tomar parte na conversa.

—“Boêmio? Cláudio é um encanto, o senhor não acha? É um companheirãol"

Abri preguiçosamente os olhos como se despertasse, mas queria era observar Sônia.

—“Cláudio é um encanto... Cláudio é um en­canto... é um encanto... é um encanto..."

Parecia-me que o entrechocar dos ferros do trem ficara repetindo aquela frase, que era aliás muito banal em Sônia.

—"Acordou?" — disse ela alegremente. — "Deixe-me apresentá-la. . . É Lucila Bastos, minha amiga..."

0 rapaz levantou-se ligeiramente, cumprimentando, e a moça sorriu-me com simpatia.

—“Imagine que coincidência. Lucila é amiga de tio Sebastião e de Cláudio.

"É?!" — perguntei, fingindo surpresa.

"Moram pertinho, são vizinhos."

"Ah, sim?" — disse eu.

"Você ainda está com sono. Lucila?"

"Não. Sônia, um pouco cansada... ainda falta muito?"

"Se estivermos no horário, vima hora e meia" — informou o rapaz.

- "Saltam na mesma estação?"

"Saltamos, sim... A Esperança fica a meia hora da cidade. Vocês levam uns 45 minutos seguros para chegar ao Sacramento."

Senti um pequeno desânimo com a perspectiva de quase uma hora por aquelas estradas de rodagem de in­terior, que imaginava intransitáveis, mas não disse nada. Papai voltara à leitura dos seus jornais. Eu notava que a inatividade já começara a enervá-lo. Só mesmo assim sairia do Rio, deixaria o hospital, repousaria um pouco. Pelo menos estes trinta dias, respirando um bom ar, passeando a pé pela manhã, saboreando boas frutas, dor­mindo sem preocupação, haviam de ser salutares ao seu estado. O Dr. Teodoro me tranquilizara, recomendando, me apenas que o fizesse descansar bastante.

Nova parada do trem. Gente desembarcando e em­barcando. Vozes confusas na plataforma. Despedidas e boas-vindas. Palavras alegres, vivas, palavras arrastadas, carregadas de saudade, e novamente o trem resfolegando, respirando forte, largando, primeiro vagaroso, depois mais e mais ligeiro, no seu destino de aproximar e se­parar as criaturas...

Sônia falava sempre vivamente e ouvi que contava o meu desastre. Que tolice, falar naquilo! E o casal que interrompia a sua narrativa com exclamações penalizadas. Senti, mesmo de olhos fechados, que me olhavam e fiquei constrangida.

"Quase morreu! Todos dizem que nasceu outra vez."terminou ela.

"E o Cláudio, não foi detido?" perguntou o rapaz, que agora eu sabia que se chamava Joaquim Pi­nheiro.

"Não" informou Sônia vivamente "ficou pro­vado que não teve culpa."

"Em geral os pedestres são responsáveis por estes desastres." comentou a moça. "Eu vejo quando saio com o Joaquim, como andam distraídos..."e pensando que cometia uma gafe, emendou: "Não digo que no seu caso tenha sido isto. .."

-              "Mas foi" — disse-lhe sorrindo. "Eu estava

pensando em tudo, menos em que havia automóveis no mundo."

“Cláudio disse que não pôde desviar. Freou com toda força, mas não adiantou."

O trem parou novamente e Joaquim, apontando ale­gremente para a plataforma, exclamou:

— “Olhe lá, Branca, olhe o Bento!"

Gritou pelo outro com alvoroço. Vi se acercar da janela um homem simpático, de meia idade, pele quei­mada, olhos inquietos, cabelos brancos, camisa aberta no peito, culote impecável, botas polidas, respirando saúde e inteligência. Tinha um rebenque na mão esquerda. Trocaram palavras de satisfação e o timbre da sua voz impressionou-me pela personalidade. Eu gostaria de ou­vi-lo mais e mais. porém o trem começou a se movimentar. Inclinei um pouco a cabeça e fiquei olhando a sua figura atraente, acenando com o rebenque, sorrindo. Ia perguntar quem era, mas não foi preciso porque o Joaquim Pinheiro também tinha a doença da conversa.

"É um tipo interessantíssimo! Vive só. numa fa­zenda que é a cousa mais original deste mundo."

"Sozinho, numa fazenda?" —• interrompeu Sônia, horrorizada.

"É verdade. Tem uma quantidade enorme de cães de raça."

— “Ora essa!" comentou Sônia.

—“Pois é... Entretanto, é um espírito fino. Poeta inspirado, adora boa música."

—“E vive sempre aqui?" — perguntei interessada.

— “Não, às vezes se ausenta por uma temporada. Viaja, mas volta para o seu canto. Tem uma biblioteca ótima e seus discos são maravilhosos!"

— “E nunca recebe em sua casa?" perguntou Sônia.

— “Pelo contrário, recebe e muito, no verão. Dizem que é um encanto nestas ocasiões."

E desvirtuando o rumo que tanto me interessava, en­veredaram por um caminho de superficialidade, de festas, de reuniões. Eu então deitei novamente a cabeça no meu travesseiro e cerrando os olhos, pus-me a imaginar sobre a vida daquele solitário e assim adormeci.

Quando despertei, vi que meu pai e Sônia se movi­mentavam dispondo maletas e pacotes para facilitar o desembarque. Chegávamos ao fim da viagem. A tarde começara a cair preguiçosamente sobre aqueles cenários sempre renovados nas pequenas molduras das janelas. Não sei por que, estava um pouco triste, receando aquela mudança total de ambiente. A máquina apitou longa­mente .

—“Olhe lá" — disse Sônia — "já se vê a igreja. Mais cinco minutos e chegaremos."

De fato, quando mal pensei, o trem diminuiu a ve­locidade até parar na pequena estação. Saltamos. Estávamo-nos despedindo de Joaquim e Branca, quando se aproximou de nós um rapaz desempenado, muito preto, com um largo riso de boas-vindas, o chapéu na mão.

—            “Boa tarde, D. Sonha!" — disse.

—            “Olá Domingos. Como vai você?" — e sem es­perar resposta, naquele seu jeito avoado: — "Onde está o Tio Sebastião?"

Olhei com curiosidade e o meu receio se dissipou naquele relance. O Coronel Monteiro tinha uma expressão acolhedora e amiga. Vinha para nós sorrindo, falando ainda de longe. Notei que Cláudio herdara dele a esta­tura, os cabelos rebeldes, o feitio dos olhos, que eram ne­gros, no pai. Apenas não notei aquele sarcasmo que mesmo quando estava sossegado, costumava brilhar no olhar de Cláudio. Cumprimentou-nos efusivamente e eu senti a sua mão forte e calejada apertando a minha. Bei­jou Sônia e depois encarando-me risonho:

—“Sabe que me tirou noites de sono?

"Nem imagina como lamento isto, mas enquanto o senhor não dormia, eu dormia contra a vontade" — respondi.

"O principal é que você aí está, sã e salva" — e, mudando de tom — "não repare chamá-la você, mas como podia ser minha filha..."

"Quem sabe se isto não é uma profecia?" — inter­rompeu Sônia.

Aquela inconveniência deixou-me confundida. Fingi que não a ouvia e voltei-me, procurando nossos compa­nheiros de viagem. Eles vinham um pouco atrás, em companhia de um preto velho e como a noite caíra com­pletamente, via apenas a brasa inquieta do cigarro que Joaquim segurava entre os dedos, gesticulando. Paramos junto do carro. Era um Ford, aberto e bem antigo, mas todos asseguravam que nada melhor do que aquilo para o interior. Novas despedidas com promessas de visitas e tomamos lugar no carro para iniciar a última etapa da nossa viagem. O Coronel Sebastião ia guiando com meu pai a seu lado. Sônia e eu acomodamo-nos no banco de trás e enquanto o carro seguia penosamente, eu ouvia o trotar do animal montado pelo Domingos e que nos acom­panhava de perto. Eu procurava ver a paisagem, mas a noite, que se fechara completamente, não era de lua e mal divisava os vultos escuros das moitas ressoantes de pipilos, cricris, piados, estas mil vozes que enchem a sombra da mata de uma orquestração misteriosa. O céu cintilava de estrelas e os vagalumes marchetavam aos milhares a sombra da terra.. . Felizmente Sônia ia ca­lada, não sei se contagiada pelo silêncio imponente da­quela noite. O Coronel e meu pai conversavam, mas eu não os ouvia. Procurava distinguir os ruídos sutis e múl­tiplos que de dentro das touceiras se elevavam à nossa passagem. Passamos sobre uma ponte rústica com um ruído estranho, de madeira rolando, e logo em seguida ouvi o pisar do cavalo. Por vezes, uma ou outra palavra dita pelo Coronel, chegava até meus ouvidos e eu notava um timbre familiar que me despertava lembranças que pareciam remotas mas eram recentes. Era a voz de Cláudio, aquela voz agradável, clara e alegre como todo êle era alegre e agradável. E sem querer comecei a procurar na minha memória o eco de uma outra voz que não conseguia encontrar. Como era mesmo a voz de Eduardo? Eu a ouvira muito poucas vezes e já fazia tanto tempo. . . Porque me lembrava dele agora? Talvez porque a noite estivesse espetacularmente bela, com todas as suas estrelas piscando num céu muito distante. . . Ou seria por causa dessa música fantástica que sobe da mata quando o sol se apaga? Por estas razões ou sem razão alguma, a lembrança de Eduardo lá estava sempre, pronta a ocupar a minha memória e a minha saudade, em­bora eu sentisse que nunca mais. nunca mais. nos pode­ríamos encontrar. Todas as vezes que eu pensava nele então, era acometida desse desânimo que oprime as cria­turas que desejam uma cousa qualquer que não está ao seu alcance. Por isso, enquanto o carro rodava, rodava dentro da noite espessa, comecei a pensar que assim também é o destino dos homens, que são levados irremedia­velmente, sempre para a frente, sem poder adivinhar o fim da sua jornada.

Mas, como era longe! Tinha vontade de perguntar se ainda faltava muito, se estávamos perto, mas me dei­xei ficar quieta, sondando aquela treva impenetrável.

Junto de uma moita, uma ave noturna esvoaçou es­tonteada diante dos faróis do carro e bateu no pára-brisa. Assustamo-nos.

— "Terá morrido?" — perguntei.

— “Com certeza. Isto é comum" — respondeu o Coronel — "elas ficam tontas com a luz das lanternas."

Mergulhei novamente nos meus pensamentos. O car­ro ia agora mais devagar e eu distingui aos lados da es­trada manchas brancas, destacando-se na sombra, ao mesmo tempo que um cheiro penetrante invadia tudo, trazido no vento, bailando no ar.

— “Que é isto branco, aí?" — perguntei tentando ver.

—“São os lírios do brejo" — informou o Coronel. — "A estrada aqui é construída no brejo."

— “Que horror!" — murmurei sem querer.

— “Não tenha receio. Amanhã você poderá ver como é bonita e bem feita." — tranquilizou êle.

Nada respondi, mas fiquei imaginando que só vol­taria por aquelas estradas no dia em que tivesse que voltar ao Rio. Entretanto o perfume começara a me enton­tecer e eu desejava chegar porque já estava exausta. Sônia continuava num mutismo impressionante nela.

"Sônia" — murmurei.

"Que é?"

"Pensei que você tivesse dormido..."

"Com estes solavancos? Qual nada!"

"Então?"

Ela, baixando a voz, acercou-se de mim:

— “Olhe Lucila, estou arrependida de ter vindo. Não adianta tentar, sou mesmo "flor do asfalto"... Esta tranqüilidade, este silêncio, esta escuridão fazem-me mal. Chego a ter raiva desses vagalumes insignificantes que

parecem querer lutar contra esta escuridão! “Tenho raiva também desses lírios...” Fiquei um pouco calada, pen­sando, e disse em seguida:

—“Você está cansada. Amanhã, com o sol, será melhor."

Ela não retrucou e eu comecei a achar graça naquela idéia dos vagalumes brigando com a treva, inutilmente! Assim é muitas vezes o esforço dos homens, um facho insignificante de boa vontade na noite profunda e in­sondável da fatalidade. Eu, por exemplo...

Mas o carro parou suavemente. Ouvi o trotar do cavalo do Domingos, senti que passava para a frente e em seguida cortou o silêncio da noite o ranger comprido da porteira, abrindo passagem para o carro. Olhei em frente e vi no fim da estrada luzes acolhedoras, brilhando muito claras naquela escuridão intensa. Mais uns mo­mentos e descíamos em frente à casa.

—“Não se incomodem com a bagagem. O Domingos se encarrega de tudo. Vamos subir que devem estar com fome também."

Subimos uma pretensiosa escada de pedra, cujo cor­rimão terminava embaixo numa pilastra encimada por um vaso de samambaia. Entramos na varanda de la­drilho, onde nos aguardava a dona da casa. Sônia ia apresentar-me, mas a simpática velhinha adiantou-se.

— “Não é preciso, Sônia, esta é Lucila. Cláudio des­creveu-a tão bem que eu a reconheceria em qualquer lugar."

Sorri um pouco contrafeita por me saber tão comen­tada e tive um desejo irreprimível de saber o que diria Cláudio na sua descrição. Mas D. Joaninha, depois de me abraçar ternamente, estendia a mão a meu pai, com palavras amáveis de boas vindas.

—“Mas vamos entrar, devem estar cansados, achando que isto é o fim do mundo..."

—“Nem tanto, D. Joaninha" contraveio meu pai.

Mas ela interrompeu-o risonha, contando que um amigo que fora visitá-los dissera que aquele sacramento devia ser a Extrema-unção.

Rimos, protestando, e meu pai confessou que, para êle, era um batismo, pois nunca estivera em cantato com a terra, preso eternamente nos grandes centros, pelos seus afazeres.

  1. Joaninha acompanhou-nos por um largo corredor, para onde davam inúmeras portas. Abriu duas contíguas e mostrou-nos nossos quartos.

— “As meninas ficam aqui, cada uma no seu quarto, a menos que tenham medo de dormir sozinhas."

Dissemo-lhe que não tínhamos medo e, mesmo, abri­ríamos a porta de comunicação para conversar um pouco antes de dormir. O quarto de papai ficava em frente ao nosso. Era uma peça muito espaçosa, guarnecida de móveis imensos de vinhático, com uma cama muito alta, ornada de colunas retorcidas.

—"Que linda mobília" — disse a papai.

Mas Sônia me chamou para perguntar se queria to­mar um banho antes do jantar. Naturalmente eu não desejava outra cousa, sentindo-me "cheia de poeira e carvão.

—"Então, venha" — disse ela.

Pegamos nossas toalhas no quarto e senti um cheiro sutil de ervas com que as fazendeiras perfumam suas roupas. Quando voltei ao meu quarto, sentindo-me dis­posta, encontrei uma mulatinha, que cantarolava, dis­pondo meus vestidos no armário. À minha chegada, voltou-se.

"Boa noite" — disse. — "Eu sou Benedita. Dona Joaninha me mandou servir à senhora."

"Ah! sim, muito prazer, Benedita. Então dê-me este vestido de linho azul que você pendurou aí."

Ela trouxe solícita, ajudou-me a despir o roupão, abotoou-me o vestido e perguntou-me se queria que me penteasse. Sorri.

— “Não, Dita, amanhã experimentarei."

—“Precisa mais alguma cousa?" — perguntou com­penetrada .

—“Não, Dita, agora vou é jantar."

A sala de jantar muito ampla era mobiliada ao gosto sóbrio dos seus moradores. Os móveis eram antigos, ma­ciços, pesados. Olhei demoradamente à minha volta. Vi cristais e pratas, brilhando nas vitrines altas dos armários.

A mesa estava posta com gosto. Sobre a toalha de linho branco bordada a crivo, os talheres brilhavam à luz do grande lustre trabalhado. E no centro, numa jar­dineira lapidada cujas facetas cintilavam, ostentavam-se as mais lindas violetas que já admirei.

"Mas que maravlha de violetas!" — exclamei, aproximando-me para observar.

"São dobradas" — esclareceu D. Joaninha. — "Tenho destas um canteiro enorme. Amanhã você verá o jardim."

Meu pai entrou neste momento, acompanhado do Coronel Monteiro. D. Joaninha mandou chamar Sônia que ainda se demorava no quarto. Somente às oito horas, sentamo-nos à mesa onde nos serviram um esplêndido jantar regado a vinho velho da coleção do Coronel Mon­teiro.

—“Tenho umas garrafas de mil setecentos e tantos que reservo para o casamento de Cláudio" — disse êle, experimentando o perfume da bebida que brilhava como um rubi no copo de cristal.

Sentíamo-nos à vontade com aquela acolhida fran­ca. Depois do jantar sentamo-nos numa varanda para a qual abriam três largas portas da sala e que corria toda a extensão da casa. D. Joaninha ofereceu-me a rede ar­mada ali. Recostei-me. O Coronel fumava cachimbo e apreciava o bom fumo inglês que Cláudio lhe remetia regularmente do Rio.

"O cachimbo não a incomoda, Lucila?" — per­guntou, às primeiras baforadas.

"A mim? Absolutamente. Até gosto. Acho muito elegante o cachimbo."

Sônia estava decididamente deprimida ou mal-humo­rada. Pouco falou e às dez horas recolheu-se, alegando estar muito fatigada. Então nos lembramos dos hábitos do interior e acompanhamos o seu exemplo.

— “Durmam bem" — disse-nos ainda D. Joaninha à porta do nosso quarto.

Deitamo-nos, mas eu, embora muito fatigada, não conseguia dormir. A longa viagem, talvez o ar, ou ainda o silêncio, aquele silêncio absoluto, pesado, do campo adormecido, somente cortado de quando em vez por es­talidos secos, que ressoavam pela casa ampla, ou pelo grito estranho de aves noturnas, impedia-me conciliar o sono. Eu abria muito os olhos, mas a treva era absoluta, também, e eu então comecei a sentir um nervosismo im­placável, envolvida por aqueles dois elementos do nada: o silêncio e a sombra. . . Se ao menos a noite fosse de luar. .. Ouvia o ressonar regular de Sônia no quarto ao lado. Às vezes os cachorros ladravam também e o seu latir era a única voz familiar aos meus ouvidos. Se ao menos eu dormisse! Experimentei contar, dizer uma frase muitas vezes, mas minha atenção desperta fixava-se em outros pensamentos e meu ouvido, adquirindo uma acui­dade fantástica, buscava no silêncio denso, apreender os ruídos mais sutis. Aos poucos essa insónia inesperada tornou-se um suplício. Comecei a estranhar a cama, os travesseiros, embora estes fossem de penas e deliciosos. Súbito uma voz espectral gritou por trás da minha ja­nela.

—“Curiango!"

Não sei como me contive. Quase gritei. Então se­riam verdadeiras aquelas histórias de fazendas mal-assombradas, onde as almas penadas povoam, à noite, todos os aposentos para assustar os vivos? E aquela voz? Que nome seria aquele? A noite tornava-se interminável! Eu tinha vontade de estender a mão e acender a luz, mas estava aniquilada pelo pavor. Talvez fosse o cansaço, ou o meu estado de debilidade que me deixava assim impo­tente para vencer aquele pânico. Encolhia-me, transida de medo com as cobertas até o pescoço e, embora os co­bertores fossem grossos, o frio me martirizava também. Como custavam a passar as horas! Tinha a impressão de que era de propósito. Com certeza um fantasma fizera parar o tempo para me atormentar mais. Estremeci ao ouvir muito longe um galo cantar. Se ao menos eu sou­besse as horas! Mas para que, também? Outro galo res­pondeu ao primeiro, mais distante, e mais outro, perdido na noite. Talvez anunciassem a madrugada. E', devia ser isto. Mas estava tão escuro ainda! Em todo caso havia os galos cantando e isto eram vozes vivas e reais. Afinal adormeci exausta e enervada, num sono profundo, do qual despertei na manhã seguinte, já com o sol alto, ou­vindo a voz sussurrada da Benedita:

— “D. Lucila... D. Lucila... são nove horas, a senhora não quer ir tomar o seu café?"

Abri os olhos sonolentos e sorri para ela.

—“Bom dia, Dita, que sono que tenho..." Graças a Deus ali estava o sol inimigo dos fantasmas

e das almas penadas, entrando pelas janelas, beijando a terra toda, numa festa de luz. Apurei o ouvido e ouvi pela primeira vez o movimento matinal de uma fazenda. A passarada cantava pelas árvores numa alegria pura e ilimitada. Ouvi o boiadeiro, tangendo o seu gado com voz arrastada que ia correndo, repetida pelo eco, nas moitas, nas colinas.

"Eia... Fio de Maio... Eia... Mimosa..."

E mais distante, incessante, um lamento desafinado, que enchia aquela alegria da sua tristeza estranha.

"Que é isto. Dita?" — perguntei.

"Isto quê, D. Lucila?"

"Esta voz, nhem.. . nhem. . . nhem..."

"Ah! É o carro de bois."

— "Mas que cousa triste!" — murmurei.

—"Pois carreiro que o carro não canta, não é car­reiro ..." — explicou-me.

—"Ora, que graça! Preciso ver tudo isto de perto". Levantei-me, corri ao banheiro onde me demorei num

ótimo chuveiro que era uma ducha e depois fui procurar os outros. Encontrei-os na varanda que só então pude apreciar. Dali se descortinava o mais belo panorama bu­cólico que se possa imaginar. A casa era cercada de gra­mados lisos como tapetes e ficava numa elevação. Mais abaixo, passava, cristalino, um regato murmurante e, fe­chando este quadro encantador, um bambusal, que sepa­rava aquele recanto dos campos de pastagem e das la­vouras .

"Mas, como é lindo isto!" exclamei, demorando o olhar na paisagem."

"Dormiu bem?" — perguntou-me D. Joaninha, sempre preocupada com o bem estar dos seus hóspedes.

"Dormi, sim... ou antes, custei um pouco, estava muito cansada" respondi.

"Eu também sou assim" disse o Coronel. "Quando estou cansado custo a dormir."

"Que quer dizer curiango?" perguntei.

"Curiango é uma ave noturna" — explicou-me D. Joaninha. "Por que?"

"Porque esta noite fiquei assustada, ouvindo gri­tarem curiango."

Todos riram. Piquei um pouco encabulada porque o Coronel disse divertido:

“Então não foi cansaço, foi medo que não a deixou dormir, hein?"

Naquele momento, na companhia de todos, com aquele sol generoso brilhando alto, achei infantis os meus temores e lamentei ter perdido tantas horas de sono. Sô­nia, que vestia umas calças de flanela e uma camisa es­porte, balançava-se molemente na rede, que rangia bai­xinho. Engraçado como cada cousa tem uma voz par­ticular!

“Amanhã você deve acordar cedo para conhecer a vida interessante de uma fazenda" disse meu pai.

Assim fiz e foi uma festa para mim, tudo que vi na­quela manhã, com um céu transparente, a passarada can­tando alvorada, o orvalho brilhando pelo capim como um tapete de pedrarias perdulariamente estendido pelo chão. Ainda o sol não se levantara de todo e já caminhávamos pela picada aberta na encosta da colina, em direção do curral. Os cães corriam à nossa frente e voltavam muitas vezes, pulando nas nossas pernas, farejando as touceiras, numa insensata alegria. Ouvíamos o mugido lânguido das vacas, respondido pelo mugido das crias, num apelo constante. O curral erguia-se numa clareira aberta na pastagem imensa. Sua construção primitiva era uma no­vidade para mim. Cerca de moirões ligados por traves grossas, cobertura de sapé. Seu acesso era por uma por­teira pesada que também cantava nas dobradiças enor­mes... Tudo de um pitoresco inédito. 0 encarregado de ordenhar as vacas, com seu chapéu de palha desfiado na beira da aba, camisa de chita, calças de brim, arre­gaçadas acima das canelas, uma larga cara franca, de riso desdentado, parou o serviço, para olhar aquela gente toda que chegava. 0 Coronel acercou-se do curral, se­guido por todos nós.

"Bom dia, Tomaz."

"Bom dia, seu Coroné" respondeu.

“Olha, este pessoal todo quer ver como se tira o leite e prová-lo cru. São da cidade."

Êle, que estava de cócoras, levantou-se tocando o chapéu com reverência.

“Está bem, seu Coroné."

“Escolha uma boa vaca para eles. Esta moça es­teve doente e veio para ficar bem forte" acrescentou, pousando a sua mão morena no meu ombro.

Sorri para o Tomaz, que me devolveu o sorriso com simpatia. Depois, para o fazendeiro:

“A Caravela que deu cria no mês passado é que serve seu Coroné. O bezerro dela tá rebentando de gordo..."

Trocamos um olhar divertido.

“Pois vou apostar com o bezerro da Caravela, Tomaz disse eu, contente.

Êle voltou ao serviço. Amarrava o bezerro nas per­nas traseiras da vaca, deixava-o mamar um pouco, de­pois afastava-o, limpava o úbere e tirava o leite num balde grande. A vaca ficava impassível com o seu olhar parado e triste e o bezerrinho também se deixava ficar docilmente logrado, ajudando o homem na sua eterna rotina de enganar os outros seres. Depois vinha um moleque, conduzia-os para o pasto e então, enquanto ela ruminava paciente, o bezerro mamava um pouco e de­pois corria doidamente pelo sol.

"Mas como são lindos os bichinhos!" exclamava eu encantada.

O Tomaz olhou risonho para mim e disse:

"Oie, sá dona, lá no outro currá, tem uma cria novinha, desta noite."

"E eu posso vê-la?" perguntei, volvendo os olhos para o Coronel.

"Pode, mas vai pagar um tributo."

"Qual é?" perguntei curiosa.

"Escolher um nome para ela."

__ "É fêmea?"

— “É fêmea, sim, e muito bonitinha."

Eu estava ansiosa para vê-la, mas precisei esperar que a Caravela viesse, para beber o leite espumante e morno. Não o achei muito saboroso, mas resolvi tomá-lo como remédio. E então fomos ver a recém-nascida. Es­tava deitada num monte de palhas secas e era a cousa mais galante que se possa imaginar. Entrei, abaixei-me junto dela, acariciei-lhe o pêlo macio como seda e ela curvaram a cabeça procurando se esquivar.

—“Que amor!" — exclamei.

Todos riram. Chamar um bezerro de amor era no­vidade para eles.

—“Não fuja de sua madrinha, Princesa" — disse-lhe afagando-a no pescoço.

Ela se deixou ficar quieta, agora, como se compre­endesse as minhas palavras. O nome de Princesa foi aprovado e registrado com as honras do estilo, com dia e hora de nascimento e filiação. Senti ter que deixar aquele bichinho tão lindo, mas o sol já ia alto e precisá­vamos voltar.

"Então, que tal?" — perguntou o Coronel.

"Isto tudo é um paraíso!"

Êle riu satisfeito, assegurando-me que eu ainda não vira quase nada. E assim conversando chegamos a casa, onde D. Joaninha nos esperava para o café.

"Mas já tomamos um copo de leite cru" — disse eu.

"Mas isto não é café, minha filha."

"Creio que não poderei" — comecei.

"Venha ver primeiro, depois dirá..."

Com efeito, quando me acerquei da mesa o apetite foi aparecendo, despertado pelos biscoitos dourados e quentinhos, o bolo recheado de passas e o bom creme fresco que era especialidade na fazenda. Não resisti e provei de tudo, mas depois gracejei que me sentia tão culpada quanto as sucuris que sucumbem vítimas da pró­pria gulodice.

"Pois faça um passeiozinho, depois deite-se na rede, um pouco, que ainda vai dizer que o almoço está demorando."

"E a senhora onde vai com este chapéu desabado?" — perguntei, vendo-a colocar sobre os cabelos grisalhos um chapéu de palha para se proteger do sol.

—            “Vou ao galinheiro. Há uma ninhada de patinhos que hoje vai nadar pela primeira vez e outra que acabou de sair esta noite."

"E eu posso ir com a senhora?" — perguntei.

"Mas naturalmente que pode. Olhe, apanhe no cabide da varanda um chapéu também."

Fui correndo e voltei amarrando sob o queixo as fitas compridas. D. Joaninha deu-me uma cestinha cheia de milho e apanhou outro com milho socado."

"Você não vem?" — perguntei a Sônia.

"Não, vou ler um pouco" — respondeu.

"Então até logo!" — gritei, já do terreiro.

"Onde fica o galinheiro?" — perguntei.

"Um pouco além da aléia de bambus. Aproveitei o riacho para o tanque dos patos que assim têm sempre água renovada."

"E são muitos?"

—“Mais de duzentos, entre galinhas e patos." Assim conversando chegamos ao galinheiro. Era

um grande cercado, onde havia plantas, cobertas, po­leiros, ninhos, tudo quanto se possa imaginar para a criação. De um lado, aproveitando o leito do riacho, alargado e com uma espécie de comporta, o tanque dos patos, onde avistei inúmeros, amarelinhos e ligeiros. Corri para lá.

—"Mas que cousa linda! Olhe aquele, aquele de biquinho côr-de-rosa!"

  1. Joaninha ria-se com o meu entusiasmo. Eu não me cansava de admirá-los, mas era preciso alimentar a criação. Notei que a porta do galinheiro estava aberta ao chegarmos. Então soube que cedinho um dos em­pregados dava-lhes liberdade para pastarem à vontade.

"E agora? — perguntei. — "A senhora joga este milho aí e os que estão passeando ficam logrados."

"Mas não. Você vai apreciar o melhor" — e assim dizendo, levou aos lábios um apito que trouxera no bolso. Mal o eco acabara de repetir aquele estridulo, levantou-se de todos os lados um cacarejar confuso de muitas vozes e das capoeiras próximas, das moitas, de todos os lados, surgiram patos, galos, galinhas, toda uma multidão, atropelando-se na porta estreita do galinheiro.

—“Olhe os anjos!" — disse D. Joaninha.

Eram os patos que, no afã de chegar, corriam muito espichados, de asas abertas, como anjos de procissão.

— “Nunca pensei que fosse tão engraçado! E aquele, coitado, aquele pato preto que caiu e todos pulam por cima dele como se pulassem carniça"

Demoramo-nos no galinheiro, onde tomei conheci­mento de hábitos até então ignorados. E assim seria todos os dias naquela vida desconhecida para mim, cheia de ineditismo, em que eu me identificava com a terra, apren­dia a amá-la, a compreender que em tudo dependemos dela. Às vezes, eu ficava sentada à sombra de uma ár­vore, com um livro entre as mãos. Esforçava-me por ler, mas a minha atenção fugia das páginas para aquele poema bucólico e real que se desenrolava ante meus olhos fascinados. A voz do boiadeiro, tangendo o gado lá longe, numa colina verde, numa toada triste e monó­tona que chegava até meus ouvidos esfarrapada pela distância. Um caboclo, sentado no barranco, imóvel, com o caniço entre as mãos pescando e cismando. As lava­deiras, lavando à beira do córrego, cantando também ou conversando, com voz arrastada. O mugido do gado, o chilrear da passarada, tanta vida, tanto som, tanto mo­vimento. Depois, a noite, profunda, com o perfume das flores adormecidas à luz da lua, e outras vozes, outra orquestração, outra vida oculta nas moitas e nos charcos, com os sapos, os grilos, as aves noturnas continuando esta sinfonia pastoral que não cessa nunca. Por isso eu não podia ler, ficava olhando, procurando reter aquelas paisagens, procurando penetrar aquela vida, gravar aquela música que havia em tudo!

Música em tudo, tal como sentia Eduardo! Mas afastei a sua lembrança para o fundo da minha memória, com este cuidado com que defendemos uma ferida que dói muito se a tocarmos. Mas ali estava a sua sombra se in­sinuando entre mim e o ambiente onde me refugiava. Por que voltava sempre insistente, tenaz? Talvez porque fora apenas um sonho do meu coração. Quem sabe se o esqueceria se tivesse convivido com êle, como com tantos outros, que nem sequer deixaram uma impressão? Seria verdade esta teoria de afinidades imponderáveis, que fo­gem à nossa percepção e atraem irresistivelmente as cria­turas? Mas, se era real, êle também devia sentir a mesma atração, sendo as afinidades forçosamente recíprocas... Por que então só eu sofria e esperava ainda, embora sabendo que esperava em vão? Talvez fosse pela razão muito simples de guardar aquela impressão só para mim. Se eu a partilhasse com alguém, podia ser que ela se dissipasse. Mas eu não tinha coragem de dizer a nin­guém, nem mesmo a Lícia, nem ao meu pai. Nunca! Se minha mãe fosse viva, eu certamente me sentiria à von­tade para lhe contar aquele segredo. Meu pai era bom, era bom em excesso, mas, pensava que os homens não assimilam certas sutilezas do sentimento feminino. Po­dia, contando a meu pai, estender aquele sofrimento ao seu coração, sem nenhum alívio para mim. Então o re­médio era deixar a vida passar, evitando acordar aquelas lembranças dolorosas. Esses debates íntimos eram fre quentes e iam criando complexos estranhos na minha personalidade. Eu procurava libertar-me da lembrança de Eduardo, mas esta lembrança se aferrara ao meu espírito, dominando-o, intoxicando-o. Não podia ouvir música que não associasse a melodia a uma passagem qualquer em que êle figurara. Por isto quinze dias após nossa chegada ao "Sacramento", eu apresentava um as­pecto muito diverso do que trouxera e todos se mostravam encantados. Mas o que fugia à observação deles, era o meu estado psíquico que ali, procurando muitas vezes a solidão, à sombra das árvores mais frondosas, para onde Benedita transportava uma espreguiçadeira, ou armava à rede em dois galhos de uma mangueira, ia-me deixando resvalar para um perigoso aniquilamento, vizinho de um colapso nervoso. Quando em convívio, procurava dissimular, ria. gracejava, mas sentia que aquela comédia não podia durar muito. Na fazenda não havia piano, o que constituía para mim uma verdadeira tortura. Em casa, eu recorria ao velho amigo e. tocando, tinha a impressão de que minhas mágoas se diluíam naquelas músicas sen­tidas, que embora avivassem minha memória, aplacavam a saudade também. Eu procurava distrair-me compartilhando com D. Joaninha, sempre boa e terna comigo, os seus afazeres. Ela achava muita graça na minha igno­rância em todos esses pequenos nadas que constituem a obrigação de uma dona de casa e, a meu pedido, foi-me iniciando nos segredos culinários, que têm uma importância, capital na vida cotidiana. Cada dia era uma cousa que eu conseguia e que ela gabava satisfeita:

—“Olhe Tião, prove estes biscoitinhos, foram feitos pela Lucila."

Ou então anunciava:

— “Hoje temos surpresa no jantar! Daqui a pouco terei que desistir, porque a aluna vai ultrapassar a pro­fessora ."

Eram os meus momentos felizes, as refeições. O Co­ronel Monteiro tinha uma prosa pitoresca, ilustrada de fatos tão originais, que sempre nos divertia imenso. Mas quando nos recolhíamos novamente, o silêncio e a es­curidão começavam a me oprimir e eu ficava muito tempo de olhos abertos, pensando, pensando.

Uma manhã deixei-me ficar deitada. Ouvia lá fora a chuva tamborilando monótona num telheiro de zinco e sentia uma friagem incômoda que convidava a_ ficar na cama, preguiçando. Deviam ser seis horas, porque o sino que tocava às cinco, chamando os empregados aos seus postos, já tocara havia um bom pedaço. Era a primeira vez que chovia desde que chegáramos. Fiquei pensando como devia ser triste o campo com a chuva, caminhos enlameados, as árvores encharcadas, os pássaros mudos nos ninhos e eu presa também, sem poder fugir para as minhas cogitações. Tinha vontade de ficar deitada o dia inteiro. E enquanto deixava o tédio se infiltrar insidioso, olhava as taboas do teto, contando-as sem perceber. Ainda estava escuro por causa do mau tempo, mas eu ouvia o movimento da casa. Ouvia a voz de D. Joaninha dando ordens e por duas vezes, sentindo que Benedita me vinha espiar, fechei os olhos, fingindo dormir. Ela voltava pela segunda vez, pé ante pé e eu ouvia seus passos se perderem no interior da casa, quando o tropel de um animal a galope me prendeu a atenção. Ouvi que corriam para a frente da casa e em seguida a voz do Te­rêncio, excitado, gritar:

—"D. Joaninha, seu Coroné! Olhe quem chegou!" Mais passos confusos, vozes, e, sobressaindo entre

elas, uma que me fez estremecer:

—“Pois aqui estou eu."

Era Cláudio. Mas por que senti o coração bater mais rápido, emocionado?

—“Por que não avisou, meu filho? Olhe como está molhado, a cavalo debaixo desta chuva!" — dizia Dona Joaninha.

— “Mas se queria fazer surpresa, mamãe? '

Foi um reboliço em casa. Levantei-me apressada, ajudada pela Benedita. Surpreendi-me apurando-me na toilete e intimamente estranhei este cuidado. 0 nosso encontro foi efusivo, e alegre. Cláudio veio para mim com as mãos estendidas e estreitando as minhas, obser­vou-me um instante para dizer risonho:

—“Vêem que aspecto tem? É outra!" — e abraçou-me com aquela intimidade natural que era tão sua.

— “Também, Cláudio: tratada como sou... Só se fosse de ruim "engorda" como diz o Tomaz" — gracejei contente.

—“Pois tem a cor saudável de uma fazendeira!" Sentamo-nos para tomar o café que D. Joaninha no

seu dinamismo incomparável já mandara servir.

Cláudio falava, contando-nos as novidades do Rio, dando-me recados de Lícia, trazendo notícias do Doutor Teodoro e de Teresa, pois não esquecera ninguém com a sua gentileza ampla e franca. Falava e à sua voz tudo se enchia de vida e de alegria, como se a sua presença espalhasse uma magia benéfica.

—“Mamãe, venha sentar também. Deixe estar que as empregadas sabem me servir." — E, como não o atendesse, êle se levantou da mesa e pegou-a ao colo.

Foi um sucesso. D. Joaninha gritava-lhe que a lar­gasse que acabaria jogando-a no chão, o Coronel ria-se divertido e êle só a largou sentada na cadeira.

— “Olhe seu malcriado, de outra vez, dou-lhe umas palmadas, isto são modos?"

Dirigi os olhos insensivelmente para fora, pela janela que me ficava fronteira e, embora a chuva continuasse a cair, achei que a vida era boa e que não são as cousas exteriores que causam nossas alegrias ou nossas mágoas. Eu ainda não podia definir bem aquele sentimento que me fazia esquecer o tédio de pouco antes, ou talvez ti­vesse medo de analisá-lo. Apenas sentia vagamente que fora Cláudio quem modificara o meu estado de espírito.

Voltaram os dias alegres e descuidosos e releguei os devaneios para o esquecimento. Cláudio não me deixava tempo para abstrações. Todos os recantos que eu já conhecia, tinham na companhia dele um cunho de no­vidade. Levei-o para visitar a Princesa e êle batizou um bezerro que nascera naquela noite.

—“Quero que se chame Corsário" — disse — "eu ba­tize: a Caravela, uma que papai vendeu era Fragata, este bezerro há de ser Corsário."

"Ora, Cláudio, isto é deixar uma esquadra em seco e depois Corsário é sinônimo de pirata e êle é tão bonito" — protestei.

"E que tem isto?" — juntou Sônia que pela pri­meira vez nos acompanhava — "pois por ser bonito mes­mo é que tem que ser pirata..."

—“Não entendo" — retruquei.

— “Pois é charada para pichote" — volveu ela com ironia. — "O Cláudio também é bonito e é pirata..."

—“Ah!" — fiz eu — "então têm um ponto de afi­nidade, ou melhor dois, é isto que você quis dizer?"

Mas Cláudio retorquiu com vivacidade:

— “Ora, Sônia, não ofenda o animal!"

—“Que horror!" — exclamei escandalizada. Continuamos o nosso passeio com a mesma alegria,

mas no fundo eu perdera um pouco da espontaneidade porque sentia, sim, sentia, embora não o confessasse, uma ponta de ciúme de Cláudio. E um pensamento começou a bailar na minha cabeça. Exist ria alguma cousa entre os dois? Verdade que nunca surpreendera nenhum gesto, nenhum olhar, que pudesse justificar o meu receio. Mas ambos eram tão modernos que podiam ter estabelecido uma maneira cômoda de esperarem, sem mudar o ritmo da vida, o dia do casamento. Tudo era possível, mas não sei porque essa idéia me magoava tanto!

Quando chegamos em casa, D. Joaninha disse-nos que o Joaquim Pinheiro, da Esperança, mandara um con­vite para jantar. Reuniam alguns amigos. Pedia que não faltássemos. Meu pai achou que isto de maneira alguma me prejudicaria e assim conheci naquela noite alguns amigos de Cláudio, dos quais gostei imenso e que Sônia detestou! Tive uma ótima impressão de Branca, que me pareceu sensata e equilibrada mas, na volta, como eu a elogiasse, Cláudio respondeu lacônicamente:

—“É uma água morna..."

—“Incrível'" — desafogou Sônia. — "Nunca vi gente mais desenxabida!"

Fiquei perplexa, sem palavras para responder, mas disse ainda:

"Branca me pareceu uma criatura muito sensata mesmo..."

"Ninguém contesta isto, Lucila" — respondeu Cláudio evasivamente e, mudando de tom, falou noutra cousa.

íamos os três na frente do carro, eu na ponta e Sônia no meio. Fiquei calada, olhando a noite imensa, uma noite que era de lua e dava um aspecto diverso àquele percurso que fizera na noite da minha chegada. Cláudio e Sônia continuaram a conversar, mas eu não os ouvia contagiados pelo romantismo que se desprendia de tudo.

Chegamos a casa às onze horas e fomos à cozinha, onde tomamos leite e comemos bolo, numa gulodice de colegiais. Ainda ficamos conversando um pouco e nos recolhemos projetando dormir até tarde no dia seguinte.

Insensivelmente, Cláudio modificou o nosso regime e o ritmo da nossa vida na fazenda. D. Joaninha reco­lhia-se às nove horas, o mais tardar, o Coronel e Papai ainda se demoravam um pouco, num jogo das cartas ou palestrando, mas não passavam das dez. Então ficávamos os três conversando até onze horas ou meia noite. Quan­do pensávamos em ir dormir, alguém dizia que estava com fome e então íamos para a cozinha, varejávamos os armários e a geladeira e ceávamos despreocupados e con­tentes. A Benedita me chamava as nove ou dez horas da manhã. D. Joaninha balançava a cabeça sem co­mentar o absurdo daquelas noitadas, mas Cláudio abra­çava-a e ela se rendia ao seu encanto, concordando que os moços precisam de divertimentos.

Um mês se passou, sem que sentíssemos o tempo. Meu pai aproveitara imenso, embora tivesse atendido al­guns casos urgentes, entre as pessoas pobres do lugar. Mas aproximava-se o fim da nossa estadia e já pensá­vamos na volta. Esta idéia produzia reações diferentes em cada um de nós. Meu pai estava ansioso para rever o hospital, embora pesaroso por deixar o convívio de tão bons amigos e a vida pacata que lhe facilitara longas leituras há muito tempo abandonadas pelos tratados ci­entíficos. Sônia encarava aquilo como uma libertação. Não sei explicar as emoções que me empolgavam. Eu sentia uma impressão estranha de quem tem que abrir mão de qualquer cousa à qual se adaptou com prazer. Tinha saudades dos dois amigos que sentia ter nos velhos fazendeiros e, talvez, bem no íntimo também sentisse perder a convivência diária de Cláudio.

Quando nos reuníamos às refeições, ou na grande varanda, de cujo teto pendia tocos de madeira com as mais raras parasitas, de quando em quando, pesava um silêncio momentâneo e sentíamos a presença da saudade que se dividiria entre nós, ao nos separarmos. Por isso, uma manhã, vindo eu do pomar pelo braço de meu pai, D. Joaninha, que fazia o seu croché na varanda, olhou-me por cima dos óculos e disse com certo pesar:

—“Estava, aqui, dizendo à Sônia e Cláudio da falta que me vão fazer."

Sônia embalava-se molemente na rede e Cláudio fu­mava, sentado no parapeito. Era realmente bonito, na­quele à vontade displicente, camisa aberta no peito mo­reno, culote e botas.

—            “Nós também vamos sentir muito" — assegurei, subindo os degraus para a varanda e sentando-me no braço da sua cadeira de balanço, acariciei-a nos cabelos.

—“Eu sempre quis ter uma filha também, mas Deus não quis. Você sabe, Lucila, as filhas são mais nossas..."

—“E os filhos?" — perguntou Cláudio.

"São do mundo, meu filho" — respondeu com mágoa na voz. — "Vocês mal crescem um pouco, não querem mais saber de casa..."

"Ora titia, case o Cláudio com a Lucila e terá a filha dos seus sonhos" — disse Sônia, para me con­fundir.

Senti que corava e tive raiva de não achar uma res­posta para a pilhéria. 0 pequeno silêncio de constran­gimento que se seguiu foi interrompido pela voz de Cláudio:

"Até que enfim, Sônia, você disse uma cousa razoável. E olhe que nos conhecemos desde o berço!"

"Olhem a gracinha dele! Você é bem dez anos mais velho do que eu" — protestou Sônia.

"Pois às vezes as melhores sentenças vêm da ino­cência das crianças, ou dos ignorantes..."

— “E em qual dos dois grupos me classifica?"

— “Pode acumular os títulos" — respondeu, provocando-a. — "Mas, não me interrompa mais... você hoje já teve a sua frase feliz, não tente outra."

  1. Joaninha e eu seguíamos aquele estranho duelo com interesse.

— “Então fique com a palavra" — disse Sônia.

—“Não, ofereço-a a Lucila para me dizer que pensa da sua sugestão."

Eu estava completamente confundida. Senti repen­tinamente as mãos frias e um calor intenso no rosto. Fiz um grande esforço e respondi, fazendo blague:

—“Se é um pedido de casamento, peço vinte e quatro horas para responder."

— “Nem mais um minuto então..."

Rimo-nos, encerrando aquela brincadeira. D. Joa­ninha continuou seu trabalho interrompido e Sônia deu impulso na rede, recostando-se preguiçosa. Fui para meu quarto, pensando quanto Sônia era inconveniente, muitas vezes.

Este dia correu como todos os outros, apenas nos recolhemos um pouco mais cedo, pois o frio já se fazia sentir bem intenso. Benedita tinha colocado na minha cama uma botija de água quente, para me aquecer os pés. Sorri a estes cuidados da mulatinha e adormeci ra­pidamente num sono tranqüilo e despreocupado.

A manhã seguinte foi alegre e cheia de luz. Desper­tei com o sol entrando indiscreto pela janela aberta e o vento suave enfunando as cortinas de cassa. Abri os olhos sonolentos, espreguicei-me contente, Benedita entrou em seguida.

"Bom dia, D. Lucila."

"Bom dia, Dita, que horas são?"

"Nove. D. Joaninha foi tratar da criação e pe­diu para a senhora apanhar aquelas ervilhas de cheiro, junto do cercado, para enfeitar a mesa".

"Então, veja a minha toalha e aquele vestido ver­de. Enquanto tomo banho e me visto, providencie o meu café. Quero que as flores estejam prontas quando ela chegar."

Sentia uma alegria ampla que me fazia a mais oti­mista das criaturas. Em meia hora descia a escada e me dirigia ao jardim. Empurrei o portãozinho que ve­dava o acesso àquele recanto que D. Joaninha cuidava com desvelo e entrei. Contornei os canteiros onde de­sabrochavam as mais variadas flores. À esquerda um cara machão de rosas-chá, no centro um tanque com plantas aquáticas. Tinha um encanto particular àque­la hora e assim em solidão. Muitas vezes antes da vinda de Cláudio, aí me refugiava com os meus pensamentos, e dava liberdade aos meus sonhos e sofria sobre a mi­nha saudade. Parei um pouco diante de uma roseira. Eram maravilhosas as rosas que ali desabrochavam. Ru­bras como sangue, com um perfume intenso. Só vi tão lindas no Roseiral. Procurava focalizar na minha me­mória o que me recordavam aquelas rosas tão grandes e tão rubras. .. Ah! sim. .. uma pérgola, uma velhinha sentada num banco, a tarde caindo suave embalsamada de poesia, e o noturno quatorze de Chopin, se insinuan­do na alma das rosas, ganhando tudo, de envolta com aquele mesmo perfume. Era a última visão que tinha de D. Maroquinha. Segui pensando nela, um pouco alheia àquela beleza que pouco antes me tocara tanto. Acer­quei-me das ervilhas, que se erguiam, mostrando ao sol suas corolas de diversas cores. Ia-me curvar para colhê-las, quando estremeci à voz de Cláudio. Voltei a cabeça e vi que saía de trás de um arbusto.

—- "A senhora está quinze minutos atrasada..."

"Oh! que susto, Cláudio!!" exclamei ainda trêmula. — "Que horror!"

“Se não andasse tão distraída, me teria visto. Estava bem à mostra."

"É que não o esperava" disse, desculpando-me.

"Não me esperava?! Pois olhe" e estendia-me o braço, mostrando-me o relógio que marcava dez e meia "está quinze minutos atrasada..."

"Atrasada?! Que me lembre não tínhamos mar­cado um encontro, tínhamos?"

"Um encontro, não. Mas você pediu vinte e qua­tro horas para refletir sobre o meu pedido e o prazo ven­ceu às dez e quinze, logo..."

"Ora, que graça, Cláudio..."

"Não estou brincando, Lucila..."

Só então atentei na sua seriedade. Tomada de sur­presa, não soube quê responder. Fiquei parada, olhando-o, e vi que também me fitava com uma ansiedade estranha no olhar, de onde desaparecera aquele reflexo mordaz.

“Mas, então..."gaguejei sem jeito.

—É verdade, Lucila. Mas não hesite tanto, que já estou com medo de uma recusa."

“Pensei que estivesse brincando..."

“Pois não estava. E agora, que responde?" Baixei os olhos, concentrando-me nas emoções que

me despertava aquele diálogo tão imprevisto. Procurei protelar uma resposta definitiva e perguntei:

“Então, você e Sônia..."

Cláudio riu-se divertido. Ergui os olhos para êle e assim, naquele cenário, era a própria imagem da força harmoniosa, da beleza máscula. Êle puxou-me para si e murmurou:

“Não, bobinha, Sônia é uma boneca vazia, nada mais... E agora, que diz?"

Comecei a sentir o coração pulsar mais rápido e uma emoção envolvente e inédita tomar conta de mim. Os pensamentos dispersavam-se em desordem, atropeladamente, e eu só tinha noção daqueles olhos verdes que me interrogavam, daquelas mãos fortes pousadas nos meus ombros. Então, sem mesmo saber como, respondi, baixinho:               

“Sim, Cláudio, se é verdade, sim..."

Êle me abraçou num transporte, feliz, e eu tive a impressão de que concorria imenso para a sua felicidade.

—"Vamos, vamos dizer aos velhos" — disse, puxando-me pela mão.

— “E as flores?" — perguntei, procurando detê-lo. "— Não é preciso, o recado não era da mamãe, era “meu”.

— “Então foi uma tocaia?" — perguntei quase cor­rendo para poder acompanhar a sua pressa.

Êle respondeu, rindo, que sim. A notícia foi recebi­da com grande alegria e surpresa por todos. Pomos abraçados com emoção por nossos pais. D. Joaninha mostrava-se radiante.

"Só sinto não ficarem morando aqui..." — dizia.

"Eu protestaria contra isto... — disse papai.

E assim foi tratado o meu casamento, tão cercado de bons presságios e de alegria sincera. Ia começar um novo capítulo da minha vida e eu nem suspeitava os seus lances, as suas alegrias ou as suas desventuras. Para mim, devia ser um capítulo cheio de luz, como cheia de luz era aquela esplêndida manhã!

 

Cláudio deixou-se ficar com aquele livro entre as mãos, os olhos parados, acompanhando obstinadamente os arabescos complicados do tapete. Assim fora a vida simples de Lucila, vida cercada de ternura, como uma música em surdina, sem sensações e sem sofrimentos, até aquela manhã em que a tomara nos braços, num ar­rebatamento do seu feitio impulsivo.

Sim, ia começar um novo capítulo da sua vida, aque­la vida que deslizara até então, protegida da maldade dos homens que se mascara de sorrisos fingidos para ferir sem ser pressentida.

Em todas aquelas páginas tão singelas, onde trans­parecia o seu sentimento, os seus sonhos de moça, as suas alegrias, as suas emoções, parecia rever aquela Lucila de outros tempos, daquelas passagens fixadas pela sua pena. Sentia a sua emotividade, a sua sensibilidade de sonha­dora, a sua fibra de artista...

Revia-a sorrindo alegre nos seus primeiros encon­tros, quando ela, se apoiando ao seu braço forte, confian­te, recomeçara a andar, após o seu desastre. Revia-a na­queles dias na fazenda, cheia de curiosidade pela vida do campo, que ignorava, rindo alegremente com Tomaz, com Domingos, com Benedita, com todos os empregados, os mais humildes, que a adoravam, porque ela para cada um tinha uma palavra amiga ou um carinho espontâ­neo. E depois, nos curtos meses de noivado, cheia de alegria, combinando os detalhes do seu futuro, arru­mando com êle a casa onde iria habitar, dissimulando a tristeza e a decepção que tivera quando lhe dissera que queria morar sozinho. Lembrava-se do olhar triste com que contemplara a sua casa, ao saírem no carro dele, no dia do casamento, a expressão com que ficara olhando o vulto de seu pai, de cabelos brancos, acenando-lhe do portão, entre os amigos, sorrindo um sorriso triste de re­núncia. E quando chamara por ela, voltara-se com um sorriso compreensivo e terno, contrastando com as lá­grimas que tremiam em seus olhos.

Ela não suspeitava as alegrias e as amarguras da­quele novo capítulo que ia começar e que para seu so­nho só podia ser cheio de luz.

Cláudio ergueu as mãos pálidas e por um momento passou-as lentamente pelos cabelos rebeldes.

Sentia-se envelhecido e vencido. Era, como dissera ao Dr. Teodoro, um fracassado em todos os terrenos. Nem mesmo podia revoltar-se relendo aquelas páginas cheias de sinceridade, onde Lucila deixara sua alma. As emoções contraditórias que se chocavam no seu íntimo, deixavam-no exausto. Era dominado apenas por uma vontade, uma como volúpia; ler mais uma vez, ler sem­pre, continuar martirizando a alma, como se cumprisse uma penitência para se libertar dos seus remorsos e re­dimir-se de suas culpas!

Deixou o escritório, vagou como uma sombra, pela casa, que a noite invadira, tocando de leve nos objetos que eram dela, como se buscasse o seu contato. No seu quarto, abriu o guarda-vestidos e deixou-se ficar, aca­riciando as sedas claras dos seus vestidos, sentindo aque­le perfume fanado, que se evola das cousas guardadas, sem uso.

Depois acercou-se da sua secretária, onde encontra­ra na tarde da sua última crise, aquele livro aberto.

Voltou sobre seus passos. Encontrou Teresa que ti­midamente o tomou pelo braço, conduzindo-o à sala de almoço. Chegou a estranhar aquele ambiente claro, com móveis laqueados e vasos com flores.

— "O senhor vai tomar pelo menos um prato de sopa, «eu doutor" — disse.

Êle obedeceu sem replicar. O relógio bateu nove ho­ras. Levantou-se então e ganhou o jardim. Ali estava o caramanchão que Lucila idealizara, com roseiras trazi­das do Sacramento e por ela mesma plantadas e tratadas. Era o seu refúgio predileto, o lugar onde aguardava a sua chegada, onde lia ou bordava, vigiando Claudinho no gramado.

E seu filho? Que estaria sentindo longe dele quase um mês? No seu egoísmo nem se lembrara do pequeno". Sacudiu a cabeça como para afastar um pensamento in­cômodo ou doloroso. Olhou o repuxo, os canteiros, a escada e ergueu os olhos para sua casa, que parecia dor­mir plácida, alheia aos dramas do mundo, como uma for­taleza inexpugnável ao sofrimento, e no entanto...

Baixou a cabeça e continuou a caminhar, agora em direção da porta por onde saíra. Atravessou a sala de jantar que estaya às escuras, voltou ao seu escritório e, acendendo a lâmpada, junto à poltrona, sentou-se e con­tinuou a ler.

 

"Um ano se passou desde o dia em que uni a minha à vida de Cláudio, certa de que era a felicidade que se concretizava para mim. E, de fato, aquele ano foi qua­se perfeito! Notava às vezes, em meu marido, alguns tra­ços estranhos de personalidade mas pensava comigo que isto o tornava mais encantador e mais humano. Habi­tuei-me a lhe fazer as vontades, porque êle era capri­choso como uma criança e quando eu discordava um pouco, ficava amuado, tomava um jornal ou uma revis­ta e absorvia-se na leitura, sem me dar atenção. Eu en­tão fingia não perceber e cantarolava ou fazia-lhe uma pergunta banal que me respondia por um monossílabo. Continuava não me dando por achada, mas requintava a minha toilette, enfeitava-me e vinha ter com êle. Era assim que eu o vencia, com exterioridades. Êle me to­mava nos braços, beijava-me dizendo:

"Por que se enfeita tanto, Lucila?"

"Para você fazer as pazes..."

Êle me beijava ainda e eu acariciava-lhe os cabelos rebeldes, dizendo-lhe já risonha:

—“Você é um garoto muito mimado... Quando voltarmos, hei de dizer a D. Joaninha que ela o estragou...

Mas Cláudio já esquecera o arrufo. Desde que não se interferisse nas suas determinações, era uma criatura ideal. As nossas desinteligências eram, de resto, incon­seqüentes e pueris. Uma noite, eu quis ir ao "Colon". Estávamos em Buenos Aires havia dez dias e conhecía­mos umas vinte boites, uns tantos dancings e bars. Pedi-lhe. Êle se mostrou desinteressado. Insisti, mas pro­curou desviar o assunto, gracejando.

—“Escute, querido, é uma oportunidade para ver­mos o teatro. Brailowsky é o maior pianista do mundo.

Ouviremos boa música e ficaremos conhecendo o "Co­lon". Vamos?"

"Lucila, eu hoje tinha planejado ir a uma boíte muito interessante, de que me falou um casal, aqui do hotel".

"Podíamos adiar..."

"Mas combinei com eles."

"Ah!" fiz eu desapontada. "Mas quem é este casal?"

"Conheci aí no bar do hotel. Gente fina e muito alegre".

"Bem", disse eu abrindo o armário "traje de passeio ou rigor?"

Vesti-me. Perdera a animação e a alegria. Nossa intimidade ia ser perturbada pela presença de estranhos, ia perder aquele privilégio tão bom de gozar sozinha a companhia de Cláudio. Antes de sairmos, êle me abra­çou carinhoso:

“Mas que carinha aborrecida!"

“É porque acho que não precisávamos da com­panhia de ninguém. Estávamos tão bem, os dois..."

Êle riu, beijando-me.

“Ciúmes?"

“Não, Cláudio, egoísmo talvez. Eu queria você só para mim".

Tomou-me pelo braço sem responder e saímos para o largo corredor atapetado, onde brilhavam ricos lus­tres de cristal.

“Quero que todos vejam que além de uma linda mulherzinha, tenho uma esposa distinta e inteligente".

“Que diferença nos faz a opinião de pessoas com as quais nunca mais conviveremos?"

Nada respondeu. Perdi aquele último concerto de Brailowsky em Buenos Aires e perdi a noite, que foi como todas aquelas que tenho passado em ambientes de efêmera alegria, onde as criaturas porfiam por parece­rem alegres e riem, riem para não pensarem talvez. ..

Na volta, deixei-me ficar calada, recostada no fundo do automóvel, de olhos fechados, analisando todos os de­talhes daquela noite, rememorando cada frase, cada ges­to, surpreendida e perturbada. De vez em quando, en­treabria os olhos e via o perfil correto de Cláudio tão bo­nito, de uma beleza que começava a me assustar.

“Está com sono, Lucila?" e absorver a minha consciência, o meu íntimo. Isto foi-me fazendo descrente e pessimista, desanimada e indiferente. Creio que até esqueci o consolo da prece e o rufúgio da religião. Fiquei perdida, sem porto e sem rumo, pois detestava o materialismo de Cláudio e desertava o meu espiritualismo. Por isto comecei a me deixar levar, pas­sivamente, como os náufragos que se entregam à vo­ragem, sem forças para lutar. Às vezes, ficava pensando como se despedaçara a minha vida! E recordava-me de mim mesma, como uma criatura que eu conhecera no passado, muito diferente do que eu era então. Tinha saudades daquela outra Lucila e tinha também inveja da sua felicidade tão tranqüila.

Aquele desamparo fizera-me perder a esperança de que qualquer cousa sobreviria para mudar o rumo do meu destino. Resignara-me! Esderecei as cartas e depois tomei os jornais. Eu estava louca para chegar à França, país que sempre exercera sobre o meu espírito uma sin­gular fascinação. Além disto, encontraria lá D. Lulu Andrade, velha amiga de nossa casa e que vira minha mãe mocinha. Eu queria ouvir falar de minha mãe que tão pouco conhecera. D. Lulu às vezes me escrevia, pois viera residir em Paris, havia oito anos, na com­panhia da única filha, que se casara com um industrial francês. Era alegre, agradável, fina. Talvez eu conse­guisse ir a alguns concertos na companhia dela. Cláudio cederia, quem sabe?

Enquanto pensava, ia correndo os olhos pelas largas folhas do jornal. Que era aquilo? "Grande Orquestra Sinfônica! Solista: Eduardo..." Seria possível? Não, não podia ser! Eduardo em Paris! Eduardo! Meu coração batia sufocadoramente. Como o mundo era pequeno para conter a minha emoção Mas a orquestra estava em trân­sito, seguiria depois para a Inglaterra, viria à Alemanha. Que notícia comprida! Até falava num possível contrato na América do Norte. Talvez nos desencontrássemos. Quando eu chegasse a Paris, êle estaria em Londres, quando voltasse, eu teria seguido outra vez. Era bom que assim fosse! Para que nos encontrarmos? Podia-me falar com um prazer relativo, o prazer com que encon­tramos pessoas indiferentes num país estranho. Era melhor, então, que não nos encontrássemos... era me­lhor! O mundo fora crescendo, crescendo, e nós ficamos cada um num extremo, longe, longe, irremediavelmente separados! Estes pensamentos fizeram-me esquecer as horas. O meu apartamento pàrecia-me agora pequeno, abafado. Precisava andar, espairecer, sair pelas ruas, ao ar livre, com muito espaço para expandir minhas emo­ções e minha alegria. Estar tão perto de Eduardo, de­pois de tantos anos... Mas, por que tanto emoção? Que era êle afinal para mim? E Cláudio? Não, não queria pensar em Cláudio naquele momento. Torturava minha memória procurando recordar os traços, a voz, o olhar de Eduardo. Estranhava que já não pudesse nem mesmo argumentar contra este absurdo, eu que sempre me acre­ditara segura na cidadela dos meus princípios e dos meus preconceitos. E, do fundo do meu passado, do silêncio aparentemente tranqüilo da minha saudade, que era como um lago de superfície lisa, escondendo o tumulto de todas as vagas do meu infortúnio, sua imagem, sua re­cordação emergiam, impondo-me a certeza da sua imor­talidade! Era a Catedral, que vinha subindo do fundo das águas, encrespando-as em ondas de som, em magia invencível, os sinos agitando na noite espantada, os sal­picos que brilhavam ao luar e caíam como lágrimas! En­tão, eu que perdera a fé e a confiança, que nem ousava sonhar, assisti ao milagre daquele ressurgimento e pro­curei, desesperada, abrigo naquela catedral simbólica, procurei abrigo no meu amor!

Quando o ruído da chave, abrindo cautelosamente a porta, me trouxe de volta ao mundo, fiquei atordoada como se despertasse de um sonho maravilhoso. Cláudio entrou com cuidado e vendo-me ainda acordada e de pé não pôde conter sua surpresa:

“Ué, Lucila, você disse que ia repousar e ainda não dormiu?" e olhando o relógio de pulso: "Três horas da manhã..."

Fiquei perturbada como se êle pudesse ler no meu pensamento a razão da minha vigília.

“Estou com dor de cabeça..." — murmurei com voz quebrada.

Êle se aproximou de mim e encostou a mão na minha testa:

“Você está quente, está com febre?"

“Não, Cláudio, você é que está com a mão fria." Abracei-o, procurando nele um refúgio, querendo

apagar no meu íntimo o incêndio que ameaçava irromper,

- "Não, por que?"

"Vai tão calada..."

"Estava pensando que é muito feio flertar em plena lua de mel, e que quando chegarmos ao hotel, vou lhe dar umas palmadas..."

"Flertar?"

"Flertar, sim... Esta Lolita é muito interessan­te, mas não quero mais sair com ela".

Êle ficou calado, o olhar parado, e só muito mais tarde compreendi que lutava para dominar um dos seus rompantes que depois se tornaram comuns.

Meti minha mão entre as suas.

—“Lucila, também acho muito feio uma mulher ciumenta e maliciosa, que não pode compreender uma aproximação sem intenções escusas..."

Sua voz era calma, porém fria. Senti que fizera mal, mas queria que soubesse que eu notara. Fiquei um pou­co perturbada mas acrescentei:

"E' que enquanto você dançava e conversava com ela, o marido me assediava com uma insistência imper­tinente. Você não se incomoda?

"Não, porque não lhe faço a ofensa de julgar que isto em alguma cousa lhe importe, ou altere o seu ca­ráter".

"Sim, mas não me agrada este gênero de socie­dade... não sei, fico muito constrangida, Cláudio. Esta noite tinha a impressão de que todos percebiam que aquele homem me dirigia galanteios..."

"E você, que lhe disse?"

"Eu procurava mudar de assunto, falar sobre qualquer cousa, mas era em vão! Nunca vi um olhar mais incômodo"

Novo silêncio de Cláudio, até chegarmos ao hotel. Já no elevador perguntou-me baixando a voz:

Mas não foi audacioso, foi?"

"Conforme o que você compreenda por audácia. Para mim foi intolerável!"

"Você é uma criança que começa a freqüentar uma sociedade que ainda desconhece. Tenho certeza que ela não a afetará, pois confio nos seus princípios, na sua educação. Portanto não há perigo".

"Mas eu fico muito chocada, Cláudio, sem jeito, nem sei que dizer".

— “Diga qualquer cousa, o que lhe vier à cabeça, não importa" — e ria com seu adorável riso que era sem­pre um refrigério para mim.

Não se falou mais nisto. Voltamos a sair com Lolita e Arturo, mas coloquei-o tão bem no seu lugar, que não se atreveu mais a insinuações; pelo contrário, soube me apreciar e até acabamos bons amigos. Alguns anos de­pois êle veio ao Rio e foi visitar-nos. Claudinho era pe­queno e dormia no carro, numa sombra do jardim, sob a vigilância da ama. Eu estava lendo no caramanchão. Ouvi uma voz estranha, com acento castelhano, perguntar por nós. Espiei e reconheci logo, embora seus cabe­los tivessem embranquecido prematuramente. Fui-lhe ao encontro, cheia de alegre surpresa.

“Oh! Arturo, quem poderia imaginar um prazer destes? Entre. E Lolita? Quando chegaram?"

Êle parou diante do carrinho e ficou contemplando o menino, enquanto um sorriso animou seu rosto, que tinha uma expressão triste.

—“Como é lindo!" — murmurou. Sorri orgulhosa. E êle atentando mais:

"Com qual dos dois se parece? Creio que com você, não é?"

"Com seis meses é difícil parecer com alguém". — e, mudando de tom: — "Você está há muitos dias no Rio?"

—“Um mês..."

"E só nos procura agora?!" Alcançáramos a varanda:

"Vamos entrar" — convidei.

Podemos ficar aqui?"

"Como quiser".

Eu começava a estranhar o seu modo preocupado, esquisito e observava-o enquanto dizia:

— “E Lolita, por que não veio?"

"Lolita?" — sacudiu a cabeça negativamente, en­quanto acendia o cigarro.

Não a incomoda o fumo? Lembro-me que não fumava..."

"Ah! não se esqueceu disto? Mas pode fumar à vontade, não me incomoda".

"Pois estamos separados..." — disse.

"Quem?" — perguntei desastradamente.

"Lolita e eu".

"E'?! Mas por que? Pareciam tão felizes!"

- "Eu era, ela porém declarou-me que não!"

Calamo-nos um pouco, cada qual recordando qual­quer cousa. Lembrei-me de Lolita em Buenos Aires, ca­sada havia tão pouco tempo e flertando abertamente meu marido. Êle também parecia rememorar cousas desa­gradáveis, pois subitamente amassou com um gesto in-contido o cigarro no cinzeiro e, fitando-me, disse:

— “Por isto não os procurei antes... Ela transfor­mou minha vida num inferno, mas eu não podia viver mais sem a sua companhia. Era uma espécie de doença, de desagregação do meu caráter que a tudo me sujeita­va contanto que pudesse estar no seu halo de encanto, respirando o seu ambiente, vendo-a, ouvindo-lhe as pa­lavras, embora amargas..."

Falava como se tivesse esquecido a minha presença e estremeceu quando pousei a mão no seu braço:

"Arturo" — murmurei — "você é uma criatura desconcertante, francamente."

"Por quê?"

"Quando o conheci, naquele tempo, — lembra-se? — você me pareceu um "bon vivant", um conquistador, um destes tipos que casam porque acham que casar faz parte dos seus deveres sociais... Não sei se me explico."

"Compreendo, sim."

"Pois é. Você era atencioso com Lolita, porém, não sei como dizer, talvez displicente. Tive a impressão de que lhe era indiferente o que ela pudesse fazer. Um casal moderno demais... Agora, tantos anos depois, vejo que falhei nas minhas observações..."

"Naquele tempo eu era dominado por ela. Não podia vencer a sua fascinação".

Novamente o silêncio caiu entre nós. Pobre Arturo! Como eu, lutara desesperadamente para conservar a sua felicidade. Cláudio tomara parte naquele desmoronamen­to também, mas talvez Arturo não soubesse disto e ali estava, em nossa casa, falando nela, com uma estranha volúpia.

Um pouco antes das seis horas despediu-se. Insisti para que jantasse conosco mas alegou um compromis­so, prometendo voltar.

Deixei-me ficar debruçada na varanda, pensando.

Lembrei-me da nossa volta naquela ocasião. Artu­ro e Lolita foram acompanhar-nos a bordo e prometeram visitar-nos logo. Seria recomeçar aquela vida tumultuosa de prazeres, pensei, mas até lá haveria uma trégua. Eu estava, então, ansiosa para me ver afinal na minha casa, com meu marido, e fazer um pouco de vida tran­qüila, nós dois, sozinhos, conversarmos, trocarmos idéias, ler um pouco, enfim encher nossos serões de interesse comum, como toda gente. Mais uma vez, tudo isto não passou de um sonho que se desfez muito depressa. Mat chegamos, os amigos começaram a nos procurar, exigin­do saídas, insinuando-se em nossa vida, irresistivelmen­te. Isto porém não chegava a perturbar a minha ven­tura naqueles primeiros meses.

Uma noite, o cassino estava cheio. Estreava Pedro Vargas. Ambiente requintado, toilettes elegantes, uma fragrância de perfumes vários espalhados pelo ar. Nossa mesa reunia um grupo animado e barulhento. Diva, Paulo, Norma, Osvaldo e Glauco Mendel, Sônia, que então fler­tava um cadete argentino, enfim, toda aquela sociedade que sempre nos cercava. As conversas cruzavam-se rui­dosas, cheias de blagues e sentidos dúbios, por vezes.

Norma centralizou subitamente as atenções com seus argumentos perigosos, falando sobre o amor. Prestei atenção ao que dizia:

— “Eu só acredito no amor carnal, amor de amantes, com requintes de astúcia para enganar os que os cercam, amor pecado..."

Seus olhos lânguidos tinham um brilho velado de promessa.

"Mas os homens, Norma, não praticam o ato car­nal como amor. São aventuras que vêm e passam, não deixam marca" — contraveio Jacy, sorrindo.

"Você parece ingênua, Jacy" — e Norma sorria maliciosamente •— "não creia no que lhe diz o Luiz André., Os homens gostam de se gabar, para melhorar sua cotação entre as mulheres. Tudo como num comércio, em que os artigos precisam reclame para terem saída. Mas garanto que não têm tempo, nem resistência física para fazerem metade do que dizem."

Uma gargalhada geral acolheu este disparate. Ela parecia encantada com seu sucesso, enquanto eu, intima­mente lastimava sua ânsia de chamar a atenção de qual­quer forma. Sentia-me deslocada, sem assunto, insípida para os que se sentavam a meu lado. Por que eu era di­ferente? Esforçava-me por me adaptar àquele meio, mas não conseguia. Eu estava sentada entre Paulo e Osvaldo.

Felizmente Paulo conversava animadamente com Nice. Restava Osvaldo por quem sempre me sentira atraída. Talvez fosse o seu quase imperceptível ar crítico, aquele sorriso picante, ou o olhar. Não sei, achava-o inteligente, acima do nível intelectual daquele meio. Tinha vontade de conhecê-lo melhor, sabendo-o um esteta, mas recea­va-o e por isto não sabia como iniciar uma conversa. Dei graças a Deus, quando tocaram um fox e êle me con vidou. Comecei a reunir estas frases banais, adequadas à ocasião:

“Como está cheio hoje o Cassinoí Reparou na mesa junto à nossa, aquela loura de preto? Que ótima orquestra!"

Frases convencionais, terrivelmente vazias. Passou um casal conhecido; cumprimentos.

“Não conhece?" perguntei. "Êle é cronista social, terrível!"

“E ela?"

“Linda, não é? E' a senhora dele. Há muito não os via; o ano atrasado quando estive na Argentina, saímos algumas vezes juntos."

E pensei no meu íntimo: "Devagar Lucila, você esgota o seu repertório de banalidades... e depois?"

Sorri a esta idéia e ergui os olhos para meu par. Nosso olhar se encontrou. Êle me observava. Fiquei um pouco perturbada quando me perguntou:

“Por que sorria Lucila? Fica tão bem sorrindo! Por que esconde um sorriso tão bonito? Egoísmo?"

Calei um momento, mas retruquei:

“Não, Osvaldo, não escondo o sorriso, não sabia que fico bem sorrindo."

“Não sabia?! Então nunca se olha ao espelho?"

“Apenas o indispensável para não usar o chapéu às avessas."

Êle é que ria agora com simpatia, fixando-me ainda.

"Você é interessante", continuou "inteli­gente, culta..."

"Quem lhe disse isto?" interrompi. "Não acredite, por favor, isto é sabotagem."

“Como, sabotagem?!"

“Quando uma mulher quer "boicotar" outra, com elegância, espalha entre os homens com que convive, esta lenda: Fulana é inteligentíssima! Tem uma gran­de cultura, muito lida mesmo. — Dá a impressão de que elogia, não é?"

"De fato, elogia..."

"Não, os homens não gostam de mulheres assim. Os homens se arvoraram em entes superiores e querem iniciar as mulheres em todos os assuntos."

A música terminou.

—"Você quer sentar?" — perguntei.

—“Pelo contrário. Ia pedir que continuássemos dançando."

A orquestra lançou os compassos lânguidos de um tango.

"Não danço bem o tango" — escusei.

"Não faz mal, eu a guio."

— “Vê? Não se importa porque ficará no seu papel." Rimos.

—“Não é isto. Não me importo porque a dança é a oportunidade para conversarmos. Nunca tivemos oca­sião para uma palestra mais pessoal."

Um par passou, chamando atenção com suas evolu­ções exageradas. Iam alheios aos que os olhavam. Os­valdo comentou. Segui o par que se exibia, sorrindo. Sú­bito meu sorriso desapareceu e desviei o olhar. Osvaldo vira também. Cláudio e Norma dançavam muitos juntos e, justamente naquele momento, estavam-se beijando com a cumplicidade da meia luz e da aba larga do chapéu dela. Notei que Osvaldo procurava afastar-se dos dois. Senti-me profundamente humilhada, mas venci esta im­pressão num momento. Olhei serenamente o meu com­panheiro e disse sorrindo, outra vez:

—“A Norma é muito interessante, não acha? Tem "it"... oh! desculpe, errei... Suas teorias são avan­çadas..."

—“ Não, Lucila. A Norma é uma mulher bonita, nada mais. Leu alguns romances franceses, viu filmes de argumentos audaciosos, sem assimilar a moral que sempre há neles, e formou sua mentalidade."

—“Que é isto! Sempre pensei que você também fosse "fan".

Em lugar de responder, disse:

"Não sei porque Cláudio age assim..."

"Assim, como? Êle apenas se diverte."

"Mas, você deve sofrer."

"Não. Eu espero" — não sei porque me senti tentada a um desafogo e terminei: "Sou uma espécie de "intermezzo" e me contento com isto."

"Êle merecia que alguém, eu, por exemplo, fizesse tudo para conquistá-la. . ."

"Mas eu não merecia e além disto seria em vão... gosto de Cláudio apesar de tudo."

Êle ficou calado e como a música terminasse fomos para a mesa. Mas no caminho, disse-lhe:

—            “Não fique triste, comigo, Osvaldo. Seja meu amigo. Isto, sim, preciso de um bom amigo..."

Assim foi. Muitas vezes é no seu conselho que encontro um pouco de coragem para prosseguir. Muitas vezes, sinto que lhe causei uma impressão profunda, que êle procura disfarçar e sou grata do fundo do meu co­ração. Sua atitude é sempre correta, mas noto que suas alegrias e suas repentinas tristezas são muitas vezes um reflexo das minhas.

Às vezes me lembro daquela noite e ela toma as proporções de um pórtico por onde penetrei no inferno das desilusões, pagando como ingresso aquele beijo fur­tivo que involuntariamente surpreendi.

Fico espantada, contando mentalmente as mulheres que têm roçado pela vida de Cláudio.

Isto foi desgastando a minha vida, desbaratando-a de maneira irremediável.

 

Aquela tarde, como nunca, eu sentia a solidão moral, o deserto espiritual em que me perdera. As minhas ilu­sões tinham tido uma duração tão efêmera que nem mesmo deixaram lugar para saudade. Apenas um sofri­mento, uma angústia que se insinuara na minha vida e que eu não conseguia vencer. 0 meu noivado fora tão imprevisto que mal me deixara tempo para ponderar. Achava-me, além disto, desamparada, pois somente uma mãe é capaz para orientar-nos num transe desses. Nos dias que se seguiram àquele fato, procurei meu pai e perguntei-lhe sua opinião sobre Cláudio. Achava-o en­cantador, um ótimo rapaz! Quem não acharia? Cláudio tinha este dom de atrair toda gente. Era insinuante, alegre, agradável.

“Se você gosta dele, será uma grande tranqüi­lidade para mim" terminou.

"Mas é isto que eu não sei. .."interrompi.

"Se gosta dele?"

“É, papai... Acho Cláudio atraente, elegante, inte­ligente. Durante os primeiros dias que passei aqui na fazenda, senti a falta dele e quando chegou, de surpresa, naquela manhã, fui tomada da maior emoção e de uma alegria sem limites... Mas isto será amor? Depois, temos alguns pontos de vista tão diferentes..."

Meu pai, riu, acariciando-me o rosto.

“Minha filha, não deixe que neste assunto o seu cérebro domine o coração. Quando há verdadeira estima, estes pontos de vista não têm importância. Além disso é quase impossível encontrarmos duas pessoas absoluta­mente iguais."

—“Isto é verdade."

Mas aquela conversa não dissipara a minha ansie­dade . O noivado estava feito e eu procurava agora pensar o menos possível naquela razão recôndita que me fazia vacilar.

  1. Joaninha pediu que adiássemos a viagem por uns quinze dias. Acedemos, porém meu pai precisou ir ao Rio, pois terminara a sua licença. Cláudio resolveu aproveitar a companhia.

“Iremos por quatro dias só" — asseguraram-me. Ao saber desta oportunidade, Sônia dispôs-se a voltar

também, pois, confessou-me, morria de tédio.

Fiquei um pouco triste com a perspectiva daqueles dias, mas o Coronel D. Joaninha, cercavam-me de atenções e carinho e eu procurei não demonstrar o meu sentimento.

Benedita passou a dormir no quarto junto ao meu, para não me deixarem muito isolada. Eu, às vezes, custava a dormir e ela, então, sentava-se junto da minha cama e contava-me casos com sua linguagem pitoresca, alisando-me os cabelos com ternura. Para a sua ingenuidade, eu era uma criatura extraordinária. Moça, branca, bonita, rica, da cidade e, além de tudo, ia agora casar-me com o filho dos patrões! Pobre Benedita, tão dedicada e tão fiel!

Mas os quatro dias passaram, como tudo passa na vida, mesmo que seja penosamente. Fiz com D. Joa­ninha algumas visitas pelas fazendas vizinhas. íamos de charrete, por caminhos ensombrados, marginados de flores silvestres. Às vezes, eu apeava para colher al­gumas, com as quais formava ramos e enfeitava a char­rete . D. Joaninha ria-se da minha alegria e chamava-me carinhosamente dè criança. Numa destas visitas, ao en­trarmos na sala, vi um piano. Cumprimentei a dona da casa, mas não me sentei. A atração que senti domi­nou-me, fazendo-me esquecer as regras do bom tom.

“É a senhora quem toca?" perguntei.

“Não, minha filha, tocava antigamente. .. Agora? Não tenho tempo, com cinco crianças."

  1. Joaninha veio em meu socorro:

“Ah! é verdade, Lucila toca muito bem. É prêmio da Escola de Música do Rio. .. Quer tocar um pouco?"

  1. Iaiá interveio constrangida:

—“0 piano deve estar desafinado..."

Mas eu não resistia mais, levantei a tampa e o te­clado surgiu, falhado, algumas teclas sem o marfim. Po­bre piano! Corri os dedos numa escala e as vozes que en­cheram a sala, foram tão desarmoniosas, que não tive coragem de prosseguir. Ainda ficou dançando no ar aquela vibração de cordas partidas...

- "Está fechado há muito tempo?" — perguntei decepcionada.

—“Bem uns dez anos" — respondeu, erguendo os ombros num gesto desanimado de renúncia.

Depois deste dia a música voltou a ser uma obsessão para mim. Eu tinha necessidade de tocar, de reencontrar naquelas melodias a minha personalidade. Às vezes, fi­cava abstrata, tamborilando com os dedos no peitoril de uma janela ou no parapeito da varanda, enquanto re­cordava páginas preferidas.

Meu pai e Cláudio voltaram no dia marcado, cheios de recados de Lícia e do Dr. Teodoro que esperavam an­siosos minha volta. Chegaram pelo noturno e, desde cedo, eu os esperava na varanda, olhando a estrada, até que avistei o carro transpondo a porteira. Pouco antes do almoço, meu pai bateu no meu quarto.

—“Pode entrar.

Êle abriu a porta e depois de caminhar um pouco de um lado para outro, como era seu hábito, sentou-se na beira da cama.

"A Teresa está aflita pela sua volta."

"Pobre Teresa" — murmurei.

—“Ah! E' verdade," — disse com naturalidade — "encontrei este cartão para você."

"Cartão de quem?" — perguntei com indiferença.

"Não sei" — e estendeu-me o envelope.

Meu coração bateu num ritmo acelerado e senti que meus dedos tremiam. Antes de abrir, já uma grande emoção me dominava. Era de Eduardo. A sua letra, o meu nome escrito pela sua mão, de tão longe, tão longe! Por que não se extraviara aquela carta? Tive um pouco de remorso por desejar que se tivesse perdido. Então Eduardo não me esquecera?

Meu pai disse sorrindo:

"Pode ler sua carta, Lucila, ou prefere ficar a sós..."

"Não, não." — apressei-me em dizer. — "Não será uma carta, talvez um desses cartõezinhos formais" — e, procurando controlar a voz — "é de Eduardo, aquele meu colega que está na Europa."

Abri. Era de fato um cartão apenas. Fazia-me uma visita. Soubera do meu acidente pelos jornais brasileiros que lia na Embaixada. Desejava que já estivesse resta­belecida e no fim, muito laconicamente contava-me que fora contratado por uma orquestra sinfônica. Li e reli, sem me lembrar da presença de meu pai que talvez me observasse.

Então êle também soubera daquele desastre! Que reações teria operado no seu espírito, saber-me assim, em perigo? Teria ficado ansioso, penalizado? Ter-se-ia demorado pensando em mim? Mas, que me importava saber? Êle estava longe, talvez nunca mais voltasse, prin­cipalmente agora que conseguira aquele contrato.

—“Este cartão deve ser cifrado" — gracejou meu

pai.

"Por que?" — perguntei estremecendo.

"Há quase meia hora que você o lê..." Dei-lhe o cartão.

— “Pode ler. É que me despertou tantas lembran­ças da Escola, dos colegas..."

—Neste momento, o sino bateu onze horas.

—“A chamada para o rancho" — disse meu pai, sorrindo. — "Já não é sem tempo, começo a ter fome."

Enquanto passava o pente pelos cabelos, pensei se devia ou não comunicar o meu noivado a Eduardo. E acabei escrevendo um cartão de agradecimento e de pa­rabéns pelas suas vitórias, nada mais. Muitas vezes tenho pensado que esta omissão tenha concorrido para mudar o meu destino, ou talvez não.

Mais dez dias se passaram até regressarmos ao Rio. Levei a promessa de que D. Joaninha e o Coronel iriam para o meu casamento e despedimo-nos.

Como foi bom voltar à nossa casa! Nossa casai Tal­vez não fosse bonita, nem moderna, mas era grande, clara, cercada de varandas pitorescas, debruçadas sobre o jardim.

Embora tivesse mil cousas a providenciar para o ca­samento já muito próximo, todos os dias encontrava tempo para me dedicar ao piano. Tocava então para ma­tar aquela saudade de tantos meses!

Uma tarde, uma tarde como aquela tão cheia de re­cordações, toquei a Catedral. E enquanto a melodia subia do piano, parecia-me ver Eduardo, ver o seu olhar tão profundo, suas mãos morenas e expressivas... Por que viera assim do fundo da minha saudade, outra vez, per­turbar-me? Sentia-o quase presente, como se aquela mú­sica mística tivesse o dom de materializá-lo.

Oh! Eduardo, por que nossos destinos divergiram irrevogavelmente para tão diversos objetivos?

Súbito, outra imagem sobrepôs-se àquela. Um rapaz cheio de uma alegria despreocupada, o olhar confiante uma expressão irônica e a voz clara dizendo:

— "Por que não toca cousas mais compreensíveis?"

Sorri. Cláudio insinuara-se suavemente na minha vida, relegando a saudade do ausente querido, para muito longe, muito no fundo da minha memória. Entretanto, não o esquecera. Havia entre nós afinidades sutis e im­periosas. Nós nos amaríamos na nossa arte, através daquela música que compreendíamos tão profundamente.

E, enquanto tocava, parecia-me que os dois ali es­tavam presentes, um com o seu feitio suave de sonhador, o outro com a sua alegria, disputando os meus pensa­mentos.

Então fechei o piano para afastar do meu espírito atribulado aquele confronto desconcertante.

Hoje, aqueles meus problemas parecem-me pueris. A vida passou e eu vou aprendendo a minha lição nestas páginas que chamamos dias.

Mas, naquela tarde, eu me sentia desamparada e in­feliz e por isto as recordações não cessavam de desfilar pela minha memória para aumentar minhas penas! Meu pai morrera oito meses antes. Eu estava casada havia dois anos e já conhecia amarguras que não suspeitara nunca pudessem atingir-me.

Cláudio e eu éramos tão diferentes em tudo! Não dessas diferenças que se completam, fazendo de dois seres um amálgama perfeito. Não. Éramos diferentes em preferências, em princípios. Não tínhamos um único ponto de afinidade. Cláudio gostava de viver em socie­dade, não podia ficar uma noite em casa, nestes serões íntimos de que eu tanto gostava. Êle precisava viver numa agitação sem fim, que me fez pensar porque me es­colhera, tendo Sônia, por exemplo, cujos gostos eram os mesmos que os seus. Talvez fosse por serem ambos autoritários e absorventes e sentirem que entrariam em conflito. Eu, não. Cedia, cedia sempre, evitando discutir. Deixava-me levar pela vida perdulária e dispersiva de Cláudio, na qual êle se sentia feliz e eu me debatia aflita, sem encontrar prazer naquele mundanismo vazio. Quan­do ficava sozinha, perguntava-me angustiada que pro­veito tiraríamos daquilo tudo, proveito espiritual ou moral. Tinha a impressão que dispersávamos a vida, que o terreno que pisávamos tornava-se cada vez menos só­lido e que se poderia esboroar, levando-me na sua ava­lanche. Revoltava-me contra minha própria passividade, prometendo-me reagir, chamá-lo à razão. Mas nas duas tentativas que fiz, Cláudio me fatigou tanto com seus argumentos que continuei a me deixar arrastar, guar­dando, porém, avaramente o meu íntimo, que não dei­xava que atingissem. Mas a minha vida seguia acorren­tada àquela rotina de cassinos, festas, coquetéis, reuniões, presa à mediocridade, como se os sonhos de glória que tinham enchido a minha vida, na Escola de Música, me fossem estranhos.

Deixei de tocar. Não havia tempo para isto, porque dos poucos momentos que ficava em casa tinha fatal­mente a companhia de Sônia para meu desespero.. . Com tudo isso aprendi a controlar minhas emoções e a ocultar minha personalidade.

Tudo suportei com estoicismo e paciência, pro­curando sufocar a revolta que às vezes emergia do meu íntimo, até o dia em que soube, por uma indiscrição de Sônia, que ainda durava a ligação de Cláudio com Norma. À noite interpelei meu marido. Êle negou com veemência.

"Olhe, Cláudio, eu não peço que você me dê con­tas de seus atos, apenas peço que não me force a receber em minha casa esta criatura."

"Não seja tola, Lucila, na nossa sociedade, todas as mulheres... — mas interrompeu-se para continuar em outro tom: — "Não falemos mais nisto. Norma é uma senhora distinta, apenas, um pouco moderna... men­talidade avançanda, e muito inteligente!"

"Se falta de compostura é inteligência..." — respondi.

"Falta de compostura?!" — exclamou Cláudio, exaltado.

Nunca tinha visto os seus olhos, aqueles olhos verdes de expressão atraente, refletirem tanta cólera, como aquela com que me fulminou.

—"Bem, Cláudio, não se fala mais nisto."

E calei, procurando não agravar mais um desentendimento como tantos que iam aos poucos abalando a nossa vida conjugal. Cláudio, porém, não se calou e na sua indignação exagerada, disse-me cousas amargas, que nunca poderei esquecer. Chamou-me de atrasada e ta­canha, somente porque era honesta e não discutia teses escabrosas com os homens das nossas relações! Odiei o meu feitio e os meus princípios que me deixavam isolada naquela sociedade de moral equívoca e cômoda benevo­lência. Lembrei-me de procurar papai, mas recuei. Para que? Aquela enfermidade de coração que tanto preo­cupava o Dr. Teodoro, tinha evoluído desafiando trata­mentos e cuidados e poderia baquear com aquela revelação. Resolvi ficar sozinha, esperando que qualquer cousa indefinível sobreviesse para trazer meu marido à razão Mas este milagre tardava sempre. Então eu me habituei a seguir os sintomas das comédias sentimentais que agi­tavam a vida de Cláudio. Norma, Nice, Isaura, Mary... todas elas dominaram por um momento meu marido. Eu sentia quando esperava conquistá-las, pelo seu nervo­sismo, e quando constituíam um fato consumado, pela sua alegria e prodigalidade, e quando eram uma fadiga e não compreendiam, pela sua irritação. Conhecia-o como a palma de minhas mãos e observava-o serenamente como via meu pai seguir a marcha da moléstia de seus pa­cientes .

E os dias se passavam... passavam os meses, cor­ria o carrilhão do tempo. Um ano e mais outro...

Uma manhã acordei sobressaltada com a campainha do telefone. Era Teresa. Atendi, tonta de sono, sem imaginar as horas.

—“Como vai, Teresa?" — perguntei.

—“Venha, venha, menina... Êle está passando mal."

O sangue afluiu-me impetuosamente ao coração, dan-do-me uma sensação de vertigem. Vesti-me às pressas, trêmula, sem acertar com os meus objetos, as lágrimas turvando-me a vista.

Cláudio acordou:

— “Que horas são?"

—“Não sei, Cláudio, vou sair. Papai está passando mal."

"Espere, vou levá-la no carro. Ih! cinco horas..."—     “Não é preciso, pego um táxi..."

"Por que não me chamou?"

Não sei, Cláudio, nem me lembrei."

"Está bem" — respondeu e, voltando-se para o outro lado, continuou a dormir.

Eu, então, saí sozinha, naquela madrugada fria, ti­ritando de nervosismo e angústia para chegar a tempo de meu pai morrer nos meus braços.

Oito meses já se tinham passado desde aquela hora patética e eu ainda sentia a garganta apertada ao lembrar todos os detalhes.

A noite tinha caído completamente Comecei a ouvir longe, num rádio da vizinhança a Ave-Maria de Gounod. Instintivamente busquei naquela hora de meditação e recolhimento, meu pai...

Estremeci ao estridulo da campainha. Teresa veio abrir. Cláudio entrou.

— “Ué! Você" — perguntei surpresa.

Êle me abraçou como nos velhos tempos. Notei-lhe um entusiasmo incontido.

"Esqueci as chaves..." — explicou.

"Qual é a novidade?" —- perguntei.

"Que novidade?"

"Não há uma novidade?"

—“Você adivinha tudo! Mas enxugue os olhos, não quero que chore mais. Escute, vamos viajar."

"Viajar? S. Paulo?"

"Que S. Paulo, nada!"

"Argentina?"

"Mais longe..."

"Mais longe?!"

"Europa."

"Europa?! Oh, Cláudio, que bom!"

—“Resolvi hoje. Você anda tão triste... precisa de distração. Dentro de um mês e meio..."

"Tão depressa?"

"Apenas o tempo para nos prepararmos."

"Que bom!" — repeti, abraçando-o.

Talvez fosse aquele o esperado milagre... Afastando-nos daquele meio, convivendo mais, nos dias da travessia, viajando através de países estranhos, isolados nas grandes multidões cosmopolitas, êle talvez come­çasse a me apreciar melhor. Visitaríamos museus, ruínas. Ouviríamos boa música, quem sabe? Teria oportunidade de absorver o seu espírito volúvel, interessando-o nas cousas mais espirituais. Tudo isto me atravessou o pensamento como um raio de luz. Mas Cláudio continuou a falar.

—“E sabe? Sônia, Carlos e Alice, também vão. Será uma excursão maravilhosa!"

Deixei cair os braços desanimadamente e desviei o olhar, dizendo apenas:

—“É... será ótimo"

Sei que Cláudio percebeu minha decepção, mas fin­giu não dar por isto.

Assim, num triste dia chuvoso, um dia frio de junho, abracei no cais os meus melhores amigos, o Dr. Teo­doro, Lícia e a minha velha Teresa e subi para. bordo daquele grande transatlântico que, ao se sumir da vista de todos, barra fora, fechava mais um capítulo da minha vida, aquela vida que já me pesava como uma predes­tinação!

 

Guardo da minha viagem pela Europa dolorosas reminiscências. Tudo me era tão adverso que eu seguia, como numa Via-Crucis, resignada e estoicamente. Os outros pareciam acometidos de um delírio frenético e insaciável de prazer. Mal chegávamos a uma cidade, co­meçávamos a vida absurda de cassinos e dancings e boites, trocando as noites pelos dias, sem que ninguém cogitasse de excursões ou visitas a museus e monumentos.

Creio que, se eu falasse numa cousa destas, seria con­siderada sacrílega ou insensata. Embora aquelas noi­tadas que para mim se tornavam mais e mais insípidas me deixassem exausta, muitas vezes, apelei para minhas forças e fui sozinha fazer as peregrinações, embriagando me de beleza, compensando-me dos momentos que perdia da minha vida, tão mal empregados, afinal.

Uma noite em Berlim, o meu esgotamento impediu-me de acompanhá-los. Eu já começara a me vestir, mas a perspectiva daquelas horas todas, desambientada, assis­tindo às manobras de dissimulação de Alice junto a Cláudio e a displicência do próprio marido, aquele abo­minável Carlos que fingia grande interesse na conversa de Sônia, para deixar os dois à vontade, tinham acabado por destroçar a minha coragem e a minha força de vontade.

"Cláudio, se vocês não se incomodassem, eu gos­taria de ficar hoje no hotel..."

"Por que? Você está doente?"

"Eu? Não, apenas cansada."

"É esta mania de andar pelos museus, as manhãs inteiras em vez de se refazer, repousando..."

"Desculpe, Cláudio, mas este é o meu prazer. Prometo-lhe que só faltarei hoje..."

"Você quer, fique, mas é uma cousa aborrecida a sua ausência. Sônia e Alice vão sentir."

Sorri com tristeza.

—"Ficarão dois casais... Se ficasse um cavalheiro sem companhia..."

Ele me olhou desconfiado, procurando adivinhar uma insinuação. Mas eu sorri novamente, implorando-lhe com os olhos. Ficou um pouco calado e, depois, voltando-se para o espelho, deu o laço na gravata, assobiando entre dentes.

—"Está bem" — disse simplesmente, apanhando o sobretudo e o chapéu e dispondo-se a sair.

—"Você não me deseja boa noite?" — perguntei. Ele se voltou, beijou-me a testa apressadamente e

Saiu. Fiquei só, só com os meus pensamentos e a solidão pareceu-me preciosa. No primeiro momento nem soube que fazer. Andei pelo quarto, debrucei-me à janela, acendi e apaguei o abajur da mesinha. Depois toquei a campai­nha e pedi à criada os jornais franceses. Ela os colocou sobre a mesa e retirou-se. Sentei-me e escrevi a Leia e ao Dr. Teodoro longas cartas, cheias de mentiras, aque­las mentiras com que eu, com pudor, procurava esconder a minha desventura. Também escrevi uma cartinha a Teresa, que cada dia me fazia mais falta.

Depois da morte de papai, desfizemos a casa, onde cada recanto guardava uma saudade dele e, então, Teresa foi para nossa casa, embora tanto ela como Juvenal ti­vessem a velhice assegurada no testamento. Eu às vezes tinha receio que ela percebesse a minha luta moral, aquela batalha surda com que eu procurava defender o resto da minha felicidade que desmoronava implacavelmente. Embora fosse uma pobre mulher ignorante, tinha um grande coração amoroso, de onde lhe vinha uma acuidade espantosa relativamente ao que me tocava. Diante dela eu procurava desempenhar o papel de esposa feliz e ex­pansiva, enquanto sofria duplamente por ser tudo aquilo apenas uma comédia. Eu queria ser feliz! Poderia ter sido feliz com Cláudio, apesar de todas as nossas diver­gências, se ele me tivesse um pouco de estima, porque, quando nos casamos, eu o queria muito! Mas, não sei por que, quanto mais eu me resignava e sofria, mais ele se encarniçava contra todos os elementos que formavam a minha personalidade. Até o meu espírito religioso so­freu a influência devastadora do seu materialismo dis­solvente.

O seu egoísmo ia ao extremo de querer dominar e absorver a minha consciência, o meu íntimo. Isto foi-me fazendo descrente e pessimista, desanimada e indiferente. Creio que até esqueci o consolo da prece e o refúgio da religião. Fiquei perdida, sem porto e sem rumo, pois detestava o materialismo de Cláudio e desertava o meu espiritualismo. Por isto comecei a me deixar levar, pas­sivamente, como os náufragos que se entregam à vo­ragem, sem forças para lutar. Às vezes, ficava pensando como se despedaçara a minha vida! E recordava-me de mim mesma, como uma criatura que eu conhecera no passado, muito diferente do que eu era então. Tinha saudades daquela outra Lucila e tinha também inveja da sua felicidade tão tranqüila.

Aquele desamparo fizera-me perder a esperança de que qualquer cousa sobreviria para mudar o rumo do meu destino. Resignara-me! Enderecei as cartas e depois tomei os jornais. Eu estava louca para chegar à França, país que sempre exercera sobre o meu espírito uma sin­gular fascinação. Além disto, encontraria lá D. Lulu Andrade, velha amiga de nossa casa e que vira minha mãe mocinha. Eu queria ouvir falar de minha mãe que tão pouco conhecera. D. Lulu às vezes me escrevia, pois viera residir em Paris, havia oito anos, na companhia da única filha, que se casara com um industrial francês. Era alegre, agradável, fina. Talvez eu conse­guisse ir a alguns concertos na companhia dela. Cláudio cederia, quem sabe?

Enquanto pensava, ia correndo os olhos pelas largas folhas do jornal. Que era aquilo? "Grande Orquestra Sinfônica! Solista: Eduardo..." Seria possível? Não, não podia ser! Eduardo em Paris! Eduardo! Meu coração batia sufocadoramente. Como o mundo era pequeno para conter a minha emoção Mas a orquestra estava em trân­sito, seguiria depois para a Inglaterra, viria à Alemanha. Que notícia comprida! Até falava num possível contrato na América do Norte. Talvez nos desencontrássemos. Quando eu chegasse a Paris, ele estaria em Londres, quando voltasse, eu teria seguido outra vez. Era bom que assim fosse! Para que nos encontrarmos? Podia-me falar com um prazer relativo, o prazer com que encon­tramos pessoas indiferentes num país estranho. Era melhor, então, que não nos encontrássemos... era me­lhor! O mundo fora crescendo, crescendo, e nós ficamos cada um num extremo, longe, longe, irremediavelmente separados! Estes pensamentos fizeram-me esquecer as horas. O meu apartamento parecia-me agora pequeno, abafado. Precisava andar, espairecer, sair pelas ruas, ao ar livre, com muito espaço para expandir minhas emo­ções e minha alegria. Estar tão perto de Eduardo, de­pois de tantos anos... Mas, por que tanto emoção? Que era êle afinal para mim? E Cláudio? Não, não queria pensar em Cláudio naquele momento. Torturava minha memória procurando recordar os traços, a voz, o olhar de Eduardo. Estranhava que já não pudesse nem mesmo argumentar contra este absurdo, eu que sempre me acreditara segura na cidadela dos meus princípios e dos meus preconceitos. E, do fundo do meu passado, do silêncio aparentemente tranqüilo da minha saudade, que era como um lago de superfície lisa, escondendo o tumulto de todas as vagas do meu infortúnio, sua imagem, sua re­cordação emergiam, impondo-me a certeza da sua imor­talidade! Era a Catedral, que vinha subindo do fundo das águas, encrespando-as em ondas de som, em magia invencível, os sinos agitando na noite espantada, os sal­picos que brilhavam ao luar e caíam como lágrimas! En­tão, eu que perdera a fé e a confiança, que nem ousava sonhar, assisti ao milagre daquele ressurgimento e pro­curei, desesperada, abrigo naquela catedral simbólica, procurei abrigo no meu amor!

Quando o ruído da chave, abrindo cautelosamente a porta, me trouxe de volta ao mundo, fiquei atordoada como se despertasse de um sonho maravilhoso. Cláudio entrou com cuidado e vendo-me ainda acordada e de pé não pôde conter sua surpresa:

"Ué, Lucila, você disse que ia repousar e ainda não dormiu?" e olhando o relógio de pulso: "Três horas da manhã..."

Fiquei perturbada como se êle pudesse ler no meu pensamento a razão da minha vigília.

"Estou com dor de cabeça murmurei com voz quebrada.

Êle se aproximou de mim e encostou a mão na minha testa:

"Você está quente, está com febre?"

"Não, Cláudio, você é que está com a mão fria." Abracei-o, procurando nele um refúgio, querendo apagar no meu íntimo o incêndio que ameaçava irromper, de sob as cinzas. Ele retribuiu o carinho com indiferença, dizendo em seguida:

—"Na minha maleta há uma cafiaspirina, é melhor você tomá-la e deitar."

Aquela noite, como em outras vezes que se seguiram, Cláudio afastou das minhas mãos aflitas a tábua de sal­vação. Se me estendensse os braços e vivesse comigo uma vida de compreensão, embora freqüentando a socie­dade, como fazíamos, se houvesse entre nós estes pe­quenos nadas que formam a segurança da vida íntima dos casais, eu estaria salva e não temeria soçobrar. Mas Cláudio era um homem superficial e material. Até ao amor se estendia o seu materialismo. No nosso primeiro ano de casados, quando conversávamos a sós, muitas vezes abordamos o assunto amor. Lembro-me particular­mente de uma manhã, na fazenda do Sacramento. Tí­nhamos ido de surpresa, passar três dias com os velhos. D. Joaninha e o Coronel estavam entregues a seus afa­zeres e nós dois saímos para caminhar um pouco. Havia no céu todo azul um frêmito de asas. Bandos de aves revoavam buscando beirais, baixando em curvas, elevando-se. Toda a paisagem policroma cintilava ao sol. Pelo caminho sinuoso, marginado de vegetação agreste, nas montanhas abruptas, nas moitas misteriosas, no céu alto e igual, nos ninhos chilreantes, na cascata que es­padanava uma poeira luminosa de água, no lago de su­perfície tranqüila, havia uma palpitação sutil, miste­riosa e contínua. Eu ia calada pelo braço de Cláudio, procurando penetrar, apreender aquela palpitação que mais adivinhava em todas as cousas.

"Você sente Cláudio" — perguntei — "esta es­pécie de - vida subterrânea e oculta, este frêmito, este quê imponderável? Que significa?"

"É a renovação, a germinação, a procriação, a fecundidade que se processa sob a luz vitalizante do sol. Você chamaria a isto: amor..."

Meu pensamento fugiu então e foi pelas charnecas, nas caatingas, nas restingas e até nos pantanais, buscou os ninhos suspensos dos galhos floridos que espalham perfumes. Mergulhou na podridão da água estagnada do charco, sempre encontrando o amor, germinando, avançando no seu ciclo ininterrupto e eterno!

Pensei nas larvas asquerosas, pululando, arrastando-se, nas aves belas revoando alto, existindo também em conseqüência do amor! Amor? Este instinto inconsciente seria amor? E os festões perfumados ..quebrando a mo­notonia do verde, com suas flores e os galhos pesados de frutas saborosas, por que florescem e frutificam? Então também era o amor! O sol, amante da terra, aque­ce-a nos seus ra os fecundantes e a terra rebenta em flo­restas, rasga-se em torrentes caudalosas, espadana suas cachoeiras numa festa perene para o sol! E nós, pobres mortais, jogados nessa avalanche eterna, que poderíamos fazer, senão amar?

Levantei os olhos para o rosto de Cláudio. Êle me fitava, com o seu sorriso atraente e uma curiosidade aguda espiando pelos olhos verdes. Sorri também.

"Há muito tempo estava observando-a."disse êle. "Está preocupada?"

"Não... pensava no que você disse que eu cha­maria amor..."

"Picou impressionada?"

"Impressionada, propriamente não. Mas estava pensando que a procriação dos irracionais não é propria­mente amor, é instinto. Entre nós, criaturas humanas, seres pensantes, embora haja também o instinto, sim, não posso negar, há outros elementos mais sutis, sen timentais e até espirituais que compõem, que melhor, completam esta atração."

"Como está ela filósofa!" gracejou, abraçando-­me. — "E que elementos são estes?"

"As afinidades."

"Entre nós, quais são estas afinidades?"

"Talvez sejam imponderáveis, quem sabe?

"Não consegue encontrá-las?"

“Não tentei ainda, porque não é necessário. No nosso caso o ponto de partida foi um afeto instantâneo e grande, não foi?"

Êle passou o braço pelos meus ombros e continuamos caminhando em silêncio, enquanto o meu pensamento devassava o mistério daquela natureza que se alargava potente e inexaurível à nossa volta. Pensei então na noite profunda e misteriosa com sua orquestração bi­zarra de batráquios nos brejos e nos córregos, cumprindo também o seu destino irrevogável dentro da criação, sob a luz das estrela remotas, ou ao luar.

Compreendi esta fatalidade imutável que sempre acompanhará a humanidade porque é o seu princípio e o seu fim! Nem mesmo a morte muda o destino de amor dos homens, porque, quando deixamos dé viver, quando cruzamos as mãos sobre o peito, vamos para o abraço transfigurador da terra, continuar o ciclo, transmudados num galho farfalhante, abrigando ninhos e amantes. E nessa transmigração eterna, iremos percorrendo toda a escala sonora dessa sinfonia universal e imortal que é o amor.

Cláudio também ia pensativo. E assim chegamos em casa, já à hora do almoço, cheios de apetite, cheios de esperança, cheios da certeza de que cumpríamos também a nossa finalidade na vida! Por que, então, elementos exteriores e mesquinhos tinham podido destruir essa confiança e eliminar aquele afeto? Ou fora apenas uma ilusão? Muitas vezes eu ficava entregue a estas cogitacões, sem encontrar as razões que tinham determinado uma mudança tão radical nas nossas vidas.

Naquela noite estes pensamentos voltaram a dançar no meu cérebro exaltado, enquanto Cláudio que ador­mecera cansado ressonava a meu lado. Novamente a imagem de Eduardo ressurgia do fundo da minha sau­dade e ali estava reclamando os meus pensamentos, de­pois de tanto tempo. Levantei-me, fui para a saleta, abri a janela e me debrucei. Na madrugada fria os globos acesos punham grandes reticências nostálgicas. As es­trelas empalideciam remotas, cada vez mais remotas.. Silêncio, um silêncio intercalado de ruídos, silêncio de grande cidade que nunca repousa. Meus olhos seguiram a rua que se estendia numa preguiça comprida, com arranha-céus que pareciam gigantes crivados de olhos que se revezavam na vigília e no repouso. Fiquei pen­sando nos dramas, nas comédias, que se desenrolavam no interior daqueles grandes prédios, atraída por aquelas janelas acesas toda a noite ou envolvidas em sombra... Quando começou a clarear, voltei para a cama. O ar fresco da madrugada fizera-me bem. Consegui dormir. Na manhã seguinte, Cláudio me contou que seguiríamos dali a dois dias para a Holanda, provavelmente. Conver­samos toda a manhã sobre o itinerário e os planos, diante dos mapas que Sônia abria na minha frente, encantada porque eu começava a me interessar pela excursão.

Daí por diante, como se tivesse um objetivo certo, tomei parte nas diversões alegremente, procurando afo­gar naquele torvelinho festivo a minha memória impla­cável. Tornei-me benevolente com Alice, com Alberto, com Sônia e, sobretudo com Cláudio. Pensava que com isto eu pagaria aos deuses a fortuna de rever, pelo menos de longe, nem que fosse por um rápido momento, Edu­ardo. Ainda que ele não me visse, que nem suspeitasse da minha presença, eu queria vê-lo. Quem sabe se desta prova dependeria a tranqüilidade para o resto dos meus

Dias?

Assim, de país em país, de cidade em cidade, che­gamos à Cidade-Luz.

Minha primeira grande alegria foi encontrar na estação D. Lulu à nossa espera. Eu tinha telegrafado avisando-a da chegada. Reconheci-a imediatamente e corri para ela:

— “Lucila, como você está bonita, menina!"

E abraçou-me emocionada, dizendo-me que eu era o vivo retrato de minha mãe.

— “E Cláudio? Qual deles é o Cláudio?" Cláudio chegou-se com seu sorriso mais amável:

"Aqui estou, D. Lulu, e tenho muito prazer em conhecê-la."

"Não seja mentiroso" — gracejou ela — "que prazer pode ter em conhecer uma velha?"

— "Quando o disse, apliquei a velha chapa, mas com sua réplica estou certo de que é um grande prazer."

—“Então, venha de lá um abraço, porque sendo velha, levo esta vantagem: pedir abraços aos moços bonitos."

Todos rimos divertidos. Apresentei os amigos e tomei-a pelo braço.

—“A senhora não está velha" — garantia-lhe Cláu­dio que caminhava do outro lado: — "com este espírito vivo não se envelhece."

  1. Lulu riu alegre e voltou-se para mim:

"Você precisa tomar cuidado com ele." "Por que, D. Lulu?"

"Tem o galanteio na ponta da língua."

Assim, entre risos e pilhérias deixamos a estação e nos dirigimos ao hotel. D. Lulu foi conosco até a porta, despedindo-se de nós e prometendo telefonar na manhã seguinte. Cláudio tinha conquistado a sua simpatia. Penso mesmo que foi recíproca a boa impressão, porque ao se despedirem ele beijou-a na testa com seu ar garoto, que lhe ia tão bem.

—“Lucila, não se esqueça de vigiá-lo, porque vejo que o rapaz é mesmo perigoso."

Beijei-a com carinho e segui os meus companheiros. Sentia-me cansada e estava louca para me recolher, mas após o jantar todos queriam sair um pouco e eu resolvi acompanhá-los, pois não queria ficar sozinha. Vesti-me apuradamente. Usei jóias, demorei-me aperfeiçoando a maquilagem e quando Cláudio gabou a minha toilete, estranhei que isto não me causasse nenhum prazer. Eu me preparava assim, pensando em Eduardo. Embora houvesse ínfimas probabilidades de um encontro, esme­rava-me, porque era naquela cidade que ele vivia e eu não podia ser uma nota destoante num cenário de beleza que lhe era familiar... Isto era o que eu pensava para des­culpar aqueles requintes, mas, muito escondido, tinha a esperança de poder vê-lo, por um acaso qualquer.

 

Não houve este acaso aquela noite, nem nos dias que se seguiram. Passaram-se três semanas e eu já me resignara a estar tão perto dele sem que nos encon­trássemos, quando um dia Sônia lembrou passarmos uma semana em Monte-Carlo. Cláudio achou ótima a idéia. Eu não tomei parte na conversa.

—“E Carlos," — perguntou Cláudio — "quererá ir?"

—“Carlos quer o que Alice quer" — respondeu. — "Vai ser formidável! Que acha. Lucila?"

—“Eu, penso que não vou."

Cláudio encarou-me um instante, surpreso, mas disse em seguida com naturalidade:

—“Você quer ficar? Está bem. D. Lulu lhe fará companhia."

Fiquei um pouco chocada de que ele aceitasse tão prontamente a separação. Sônia também não insistiu e ambos começaram a combinar a viagem, consultando horários e prospectos dos hotéis. Eu ouvia, calada, que­rendo mudar minha resolução, mas sem coragem para voltar atrás. Como era de esperar Carlos e Alice apro­varam o plano e três dias depois eu os acompanhei à gare. Quando o comboio se pôs em movimento, senti-me desamparada, perdida naquela multidão onde se cruza­vam os mais diversos idiomas, e meus olhos se encheram de lágrimas. Cláudio nem mesmo insistira comigo, como se a minha resolução tivesse ido ao encontro de seu ín­timo desejo. Fiquei algum tempo acompanhando com o olhar o trem que se afastava, até perdê-lo de vista e, então, a passos lentos deixei a estação. Pensava como empregaria meu tempo e crescia, com a impressão de isolamento, um arrependimento incipiente por ter que­rido ficar. D. Lulu seria uma boa companheira, mas.. .' Felizmente minha carta de crédito era exorbitante e se me sentisse muito só, poderia ainda alcançar os outros. Mas, para que? Estava sentida com a indiferença com que Cláudio aceitara deixar-me só em Paris. Os dois pri meiros dias arrastaram-se monótonos. O frio vinha che­gando intenso e eu não tinha disposição para sair pela manhã. Deixava-me ficar na cama, sem fazer nada, sem ler, sem ter com quem falar, deprimida e angustiada. Às vezes, Paule, a criada, se demorava conversando comigo. À tarde, vestia-me, tomava um táxi e ia ao encontro de D. Lulu.

Ao fim de uma semana, porém, adaptara-me àquela vida,, organizando programas, saindo pela manhã, ven­cendo o tédio que me queria empolgar e até achando prazer no frio cortante que me fustigava o rosto. D Lulu era-me providencial. Às vezes, jantava em casa dela, que ficava num arrabalde e onde reencontrava os hábitos de família brasileira. Destas visitas voltava sempre cheia de saudade dos velhos tempos em que meu pai e eu mo­rávamos na nossa velha casa.

Uma tarde, D. Lulu me telefonou:

"Lucila, hoje à noite, há uma audição interessante de piano, num curso particular de aperfeiçoamento. Pen­sei em irmos, que tal?"

Achei ótima a idéia. Teríamos que chegar cedo, pois não havia lugares numerados. Quando chegamos, um bom número de pessoas estava aglomerado à entrada. Distraí-me observando os mais próximos. Um casal gor­do, ela muito loura, êle muito sanguíneo questionava à meia voz, numa língua que não consegui distinguir. Se­nhoras elegantemente vestidas em tailleurs escuros, aba­fadas em peles, homens envergando grandes sobretudos Na nossa frente, sozinho, um rapaz'alto, de quem não via o rosto, com a gola levantada, as mãos nos bolsos,' sem demonstrar impaciência com a demora, como alheio aos que o rodeavam. Notei junto dele uma moça que se esforçava por lhe chamar a atenção. Era bonita, pare­cia-me quase uma menina, com cabelos dourados e olhos claros, mas seus manejos eram vãos. A cada momento batiam portas de táxis, saltando outros espectadores que iam aumentando a aglomeração. Levantei ligeiramente a manga do casaco e disse à D. Lulu:

"Quase nove horas e ainda não abriram!" Neste momento, o homem que parecia tão abstrato,

voltou-se bruscamente para nós. A voz me faltou. Senti que uma estranha emoção paralisava-me o sangue, emudecia-me. Só tinha vida nos olhos, que o fitavam intensamente, como se duvidassem da graça divina de poder revê-lo. Foi um momento só. Estendemo-nos as mãos:

"Lucila! Mas que surpresa!"

"Eduardo!"

A mocinha fitava-me invejosamente. Nem sei como o notei e sorri.

"Como o mundo é pequeno!" — disse-lhe.

"Nunca pensei encontrá-la aqui, em Parisi" Ria-se com uma alegria incontida.

"Foi preciso que eu viesse a Paris."

"Desde quando chegou?"

"Um mês. É, precisamente, um mês."

"Tenho viajado ultimamente, ora com a orques­tra, ora para dar recitais. Cheguei há cinco dias." — disse-me.

"Até ia esquecendo de apresentar D. Lulu, mi­nha amiga."

Trocaram palavras convencionais e já o frio dei­xara de existir, desaparecera a aglomeração, como se só nós dois estivéssemos ali, frente a frente, afinal.

—“Conheci-a pela voz" — disse ele.

— “Que ouvido tem! Pois muitas vezes julguei que você nem se lembrasse de mim. Pensei que confundisse nomes e pessoas."

Notei-lhe um modo diferente, um à vontade, como se a estadia tão longa em países estranhos, cercado pela crítica, aplaudido por múltiplas platéias, tivesse derretido o retraimento que antes o caracterizava.

"Você está diferente, Eduardo... não sei, mais vivido, talvez."

"Pelo menos mais velho seis anos estou, embora para você o tempo não tenha influído."

"Isto é uma demonstração dos seus progressos como galanteador?" — perguntei rindo.

Neste momento, abriram a porta e eu tomei o braço de D. Lulu. Com a precipitação do povo para tomar lugares, separamo-nos de Eduardo. Nos intervalos, po­rém, veio conversar um pouco. D. Lulu deu-lhe im­pressões dos arestas que ouvíamos. Falou-nos de suas estréias. À saída perguntou-me o telefone. Disse-o, explicando-lhe que mandasse ligar para o meu apartamento. Tomou nota dos dois números. Despedimo-nos. Quando o táxi que nos levava começou a rodar, ainda o vi na calçada levantar o chapéu, cumprimentando. Guardei daquela noite uma impressão grande de felicidade, de alegria indefinida, como se aquele encontro fosse a verdadeira finalidade da minha viagem!

Quando me deitei, não conisegui durante muitas horas conciliar o sono. Meu pensamento excitado, re­vivia todos os detalhes do encontro. Repetia baixinho as palavras de Eduardo, procurando na minha memória o timbre da sua voz. E me debatia em emoções contra­ditórias, num conflito moral, querendo sufocar um sen­timento que já sentia dominar minha vontade. Lembrei-me também que ao dar o meu telefone a Eduardo, re­comendara-lhe que mandasse ligar para o apartamento em lugar de dizer que mandasse ligar para Mme. Mon­teiro. Instintivamente não citei o meu estado, nem o meu nome de casada, o que depois, sozinha no meu quarto, tomava o vulto de uma dissimulação inexplicável. Só consegui dormir pela madrugada, exausta e perplexa, com a complexidade da minha situação.

Quando acordei, liguei para D. Lulu e soube que estava de cama, muito resfriada. Pretextei uma dor de cabeça e fiquei no hotel o dia todo. Eu não ousava pensar que assim agia na esperança de que Eduardo telefo­nasse. Mas neste dia e no seguinte, esperei em vão. Só no terceiro dia fui procurada. Reconheci imediatamente sua voz:

"Eduardo?"

"Como passou, Lucila?"

"Oh! estranhando o frio..."

"Vai sair hoje?"

"D. Lulu está de cama. Estou desarticulada"

“Hoje tenho ensaio às quatro... posso ir bus­cá-la às oito?"

Hesitei um pouco. Parecia-me um sonho que fosse Eduardo quem assim me falava com naturalidade. Como eu demorasse em responder, repetiu:

"Às oito é cedo? Podíamos jantar em qualquer lugar, aceita?"

"Está bem. Eduardo, estarei à sua espera às oito. . ““.

Desligamos. Ainda era de manhã. Aquele dia de espera, pareceu-me imenso, alongado pela ansiedade com que eu queria que êle passasse. Esta impaciência me assustou. Eu devia estar louca. Todo o meu antigo amor despertava, aumentado pelos anos de separação e pelos meus sofrimentos. Eduardo parecia-me agora humani­zado, tangível ao meu alcance! Todo o dia agitei-me em dúvidas sobre o meu modo de agir e resolvi dizer-lhe logo que me casara e tratá-lo como a um bom camarada que se reencontra com prazer depois de longa ausência e que se pode deixar em seguida sem mágoa. Sim, era isto que eu devia fazer, porque colocaria logo entre nós a existência do meu marido. Tentei ler, mas não con­seguia fixar a atenção. Recebi um cartão de Cláudio, avisando-me de que se demorariam mais do que supu­nham. Respondi, chamei um "groom" para levar meu cartão. Vesti-me e um pouco antes de oito hroas desci para esperar Eduardo. Êle chegou pontualmente. Ves­tia o mesmo sobretudo escuro que realçava seu porte. Fui ao seu encontro, evitando que se dirigisse à portaria .

"Você então é diferente de todas as mulheres?"

—            disse-me sorrindo.

"Por que?"

"Não se faz esperar."

—“Dei-lhe a impressão de que estava ansiosa para encontrá-lo?"

“Não, deu-me a impressão de que é pontual."

“Tem esperado muito, por outras?" perguntei, sem poder conter a curiosidade.

Êle sorriu, divertido.

“Não, Lucila, talvez só espere por uma mulher, que quase sempre falta aos encontros que supomos que nos marcou."

"E quem é esta mulher?" _ "A Glória..."

"Ah!" fiz eu com uma pontinha de decepção

—            “portanto só espera por esta?"

“Sim, porque à outra não darei ocasião, irei ao seu encontro..."

Olhei-o, mas êle tinha uma expressão ausente, como se falasse consigo mesmo. Depois, cortando o assunto, tomou-me pelo braço e chamou um táxi. Deu o nome de um restaurante. Ficou um momento calado e per­guntou-me depois:

“Que perfume é este que você usa? É tão sutil!"

Disse-lhe o nome. Novo silêncio. Eu estava um pou­co constrangida, sem encontrar o que dizer, não podendo continuar na realidade os diálogos que com êle tinha na imaginação. Tinha, sim, muito que lhe dizer, mas quando não me pudesse ouvir... De repente, parece que caiu em si e olhando-me, disse:

"Você há de me achar muito esquisito, não é? Distraio-me a cada momento."

"Não. Lembro-me que sempre foi assim." — senti a voz insegura.

Neste momento o táxi parou. Descemos.

— “Este restaurante é muito interessante. Todo em estilo bretão, com uma lareira ao fundo. Você, que é friorenta, vai gostar."

Atravessamos a sala repleta. Nossa mesa estava reservada. Sentamo-nos. O garçom trouxe o menu. Edu­ardo perguntou-me o que eu queria. Escolhi e, enquanto esperávamos, pus-me a observar as outras mesas.

—“Você está com seu pai?" — perguntou-me.

—“Não, Eduardo, você não sabe de nada que me aconteceu."

—“Sim, nunca mais me escreveu..."

— “Perdi meu pai há quase um ano" — murmurei. Pareceu-me tão estranho dizer aquilo, ali, naquele

ambiente, que baixei a voz. Ele também ficou surpreso c disse simplesmente:

— “Não soube... A última notícia que tive foi a do seu atropelamento."

Esta frase trouxe-me o fio de um interminável ro­sário de acontecimentos. O desastre, Cláudio, a fazenda, o noivado, o casamento, as desilusões... Cláudio! Mas a voz de Eduardo me despertou:

—“Está então com aquela senhora?"

"Não.... preciso contar uma história comprida, porém começando do princípio, se é que não o abor­reço..."

"Nada que venha de você poderia aborrecer-me. Lucila."

Senti que pisava um terreno perigoso. Precisava dizer logo que existia Cláudio, que eu não era livre, pois percebia que ele procurava um momento para falar, ou falhava-nos mais elementares instintos femininos. Mas ao mesmo tempo, pensava que ao fim de tantas renún­cias, despojada de todos os encantos da minha vida, bem merecia aquelas migalhas de felicidade, que para mim valiam toda uma existência. Sem pensar, perguntei:

— “Por quê?"

Ele me fitou longamente. Na lareira a lenha crepi­tava, dando um tom avermelhado ao ambiente.

“Porque qualquer detalhe da sua vida me interessa."

“Não sei se é caso para agradecer..."

“Não, porque teria que agradecer muitas vezes, pelos anos todos em que já existia esse interesse e você nem o sentia."

Fiquei perplexa. Aquele Eduardo que estava na minha frente, dizendo-me serenamente que sempre se interessara por mim, era tão diverso do que eu conhecera na Escola de Música, tímido e retraído, que não me can­sava de contemplá-lo, cheia de surpresa. E, depois de uma ligeira pausa, retruquei:

“Se é assim, estamos quites, porque eu também acompanhei sua vida com interesse igual... aliás, de­monstrei mais de uma vez, ao passo que você..."

"Não ousava demonstrá-lo." terminou.

"Não ousava? Por que?"

"Vivíamos em planos muito diferentes. Eu, paupérrimo, você... parecia-me uma princesa!"

"Planos materiais, então, não é? Porque pessoal­mente éramos iguais... ou melhor, se considerarmos as cousas pelo prisma da arte, você era muito superior a mim."

"Não, Lucila, e por causa desta distância que eu sentia entre nós, foi que me esforcei, que lutei para vencer, para poder algum dia me aproximar de você."

Procurei torcer o sentido do que êle dizia, receando que prosseguisse.

"Lembro-me que uma tarde preferiu ficar apa­nhando chuva a vir no meu carro, na companhia de Lí-cia também. Nunca me esqueci disto."

"Também eu não esqueci, por motivos talvez bem diversos dos seus."

“E que motivos eram estes?"

"Bem, como todos os mortais, eu também tinha a minha vaidade e o meu amor próprio. Tive acanha­mento de entrar no seu carro, guiado por um chofer im­pecável, com o meu terno tão velho, e..."

"Eduardo, você se deixou empolgar por cousas tão materiais que nem sei como puderam preocupá-lo."

"Aprendi duramente, com a vida, a dar valor a estas ninharias. . ."

Senti uma profunda pena dele.

“Também me lembro de uma manhã" conti­nuei "em que o encontrei tocando a Catedral..."

- "Lembra-se também da música?"

"Muitas vezes toquei a Catedral, rememorando aquela manhã" — disse, como se dissesse a cousa mais simples deste mundo.

Eu me habituara tanto a pensar nele. que tinha a impressão de que nada do que eu dissesse poderia sur­preendê-lo .

"Também eu tocava a Catedral, buscando reviver aquele momento."

"No entanto, tive a impressão de que o molestei com a minha intromissão."

"Não foi isto... Eu tocava para você, mas..."

— “Escute, Eduardo" — procurei interromper. Ele me fitou com meiguice:

—“Sempre tive medo invencível do ridículo" — terminou.

—“Do ridículo?"

—“É. Quando você surgiu naquela manhã, tive a desagradável impressão de que poderia adivinhar o meu sonho. Acharia ridículo, um desclassificado como

eu..."

—"Eduardo!" — protestei.

"Sim, um pobre diabo, sem futuro e sem fortuna,' pensando em você, se consumindo num platonismo irremediável. . ."

"Todos nós temos destas ilusões" — tentei gracejar — "mas os anos passam e vemos que nossos ídolos tinham pés de barro..."

—"Não no meu caso. Você não é ídolo. Ídolos, podem ser convencionais. . . Sem fazer poesia, posso dizer que você foi a inspiração da minha vida. Lutei desespe­radamente para ter o direito de dizer isto, embora supu­sesse que nunca chegaria a dizê-lo..."

—“Eduardo.. ."

—“Fique como está. Pela primeira vez, tenho ocasião de olhá-la como sempre quis."

Eu não podia continuar calada. Já sabia muito e em lugar da alegria que esperava sentir, foi uma amar­gura profunda o que me dominou a alma atribulada. A minha vida havia de ser assim, desencontrada e para­doxal! Os fados me perseguiam com seu ódio gratuito. Por quê?. Levantei os olhos para Eduardo que conti­nuava me fitando.

— “Eduardo, você precisa saber... nem sei como hei de dizer."

Sua expressão tornou-me ansiosa.

"Estou casada" — concluí rapidamente.

"Casada?!"

"Eu queria contar, mas você não me deu ocasião". Não sei que conflitos se travaram no seu íntimo e não se refletiram no seu rosto. Ficou de olhos cravados na toalha, enquanto o seu silêncio me martirizava. De­pois, ergueu o olhar agora sereno e disse:

—"Tinha que ser assim... nunca a alcançaria. Res­ta-me o consolo de sabê-la feliz."

Sorri com tristeza. Neste momento a orquestra ci­gana lançou os compassos de uma valsa romântica:

—“Você quer dançar?" — perguntou-me como se quisesse afastar a impressão de tudo o que disséramos. Aceitei. Estávamos ambos constrangidos, dissimulando o desgosto que nos dominava. Tive a impressão de que lhe voltava aquele retraimento antigo. Dançamos calados, sem achar mais que dizer, como se aos poucos qualquer cousa se fosse insinuando entre nós, afastando-nos cruel­mente outra vez. E à proporção que aquele silêncio se alongava eu sentia crescer a tortura do meu destino que parecia comprazer-se com a minha dor. Tinha uma von­tade imensa de fugir para bem longe e poder sozinha sofrer!

A música terminou, voltamos para a nossa mesa. Consultei o relógio. Meia-noite.

— “Vamos sair?" — perguntei. Levantamo-nos. Lá fora o frio era cortante. Caíra

a primeira neve. Tomamos um táxi. Na porta do meu hotel despedimo-nos. Eduardo beijou minha mão, prometendo telefonar no dia seguinte. Ainda no ele­vador beijei a minha própria mão, onde Eduardo bei­jara. Sorri. Como o amor é pueril. ..

Na manhã seguinte acordei muito cedo. Via através da vidraça a neve caindo, caindo, bailando no ar como bocados de paina, espalhando um frio intenso. Fiquei deitada, aconchegando as cobertas, cismando. Precisava ir visitar D. Lulu. Talvez fosse almoçar com ela. Ma­taria assim o tempo, até Eduardo chamar. Sentia-me febricitante e ansiosa. Pensava em não voltar a tempo de atendê-lo, mas não, precisava falar-lhe, ainda que pela última vez. "0 amor é uma divindade exigente, que a princípio parece contentar-se com pouco, mas vai, em seguida, absorvendo-nos a vontade..." Onde lera mesmo isto? Não podia precisar. Ah! sim, talvez fosse em Mayerling. Demorei-me pensando apiedada naquele príncipe e naquela menina para os quais o amor era proibido. . . Pobre de mim, que estava igualmente proibida de ser feliz! Pobre de mim! A criada trouxe o café, os jornais, um cartão de Eduardo. Li e reli, mil vezes, guardei de cor as palavras tão simples com que me desejava um bom dia. Às dez horas, vesti-me e saí. Encontrei D. Lulu ainda de cama, com febre. Ela, com sua observação aguda, notou-me desatenta, aérea.

—"Você também não está bem. Parece preocupada." —" Não, Dona Lulu, um pouco cansada." — res­pondi.

Mas enquanto conversávamos, meus olhos de mo­mento em momento fixavam-se no relógio. Ela sorriu.

"Minha filha, de fato é insípido visitar velhas doentes."

"Oh! D. Lulu, não diga isto! Gosto de estar aqui com a senhora. E' que pedi uma ligação para Cláudio, pedi que ligassem para cá."

"Ah! saudade do maridinho! Quase duas semana3 longe..." — gracejou.

Pobre D. Lulu! Como teve o dom de me irritar! Tive desejos de lhe gritar que precisava de Cláudio em Paris para não ter oportunidade de rever Eduardo. So­zinha, tendo ocasião de estar com ele, nem sei o que poderia acontecer. Eu o amava muito e já não ponde­rava as conseqüências que poderiam ter aquele amor. Estremeci violentamente com o estridulo da campainha telefônica. D. Lulu atendeu.

—“Sim, sim, um momento. Lucila, é Cláudio." Tomei o fone. A linha estava péssima, mas reconheci

a voz de Cláudio. Recebeu-me com alegria, com volubilidade..

"Cláudio, quando voltam?" — perguntei.

"Ainda não sabemos..." —*-"Você não pode voltar?"

"Por quê? Você está doente?"

"Não, não, mas como já se passou mais de uma semana..."

"Mas temo-nos divertido muito. Se você está bem, ficaremos mais uns dias."

Era inútil. Despedimo-nos, Eu estava profunda­mente desapontada e amedrontada com o rumo que tomavam os fatos. Tudo parecia colaborar para me deixar desamparada. A doença de D. Lulu, a ausência de Cláudio, ainda mais agora que eu me sabia amada por Eduardo! Deixei-me ficar em casa de minha velha amiga, conversando, para não estar no hotel à hora que ele telefonasse. Era melhor fugir do seu convívio. Sim, era melhor. Às seis horas, despedi-me de D. Lulu, tomei um carro, mas em lugar de ir para o hotel, jantei sozinha num restaurante, pensando ir em seguida a um cinema. Mas, enquanto jantava, comecei a sentir um vago re­morso, que foi crescendo, remorso por deixá-lo assim, esperando, sem um aviso. Então voltei ao hotel. O "groom" disse-me que haviam telefonado três ou qua­tro vezes, sem deixar recado. Eram oito horas e eu subi ao meu apartamento, sem saber em que empregaria aquela noite. Mas, meia hora depois, Eduardo telefonou. Desculpei-me com a visita que fizera à D. Lulu. Per­guntou-me se ia sair. Disse-lhe que não tinha compro­misso e por isto combinamos um encontro às dez.

Como o frio fosse intenso, entramos numa casa de chá aquecida e ficamos longo tempo conversando sobre assuntos impessoais, como se nos fosse alheio tudo o que disséramos na véspera. Eduardo readquirira o seu ar natural. Apenas notei-lhe no olhar uma sombra de tristeza. Perguntou-me pelos antigos colegas. Disse-lhe da minha amizade com Lícia, da sua dedicação sem limites quando do meu desastre.

— “E Leonor?" — perguntou ainda.

—“Nunca mais a vi, depois do casamento. Está sempre viajando..."

—“Mas esteve no Rio, não esteve?" — inquiriu.'

"Sim, de passagem para Buenos Aires. De lá seguiu para o Chile."

"Estive com ela em Gênova. E', creio que foi em Gênova. Você conhece o Ernesto, marido dela?"

"Muito vagamente."

"E' um excelente homem."

Como me soavam falsas nossas vozes, falando de cousas que não nos tocavam, enquanto tínhamos o co­ração cheio de ternuras que lutavam para se corporizar em palavras!

—""Quando Leonor passou pelo Rio, não a vi.. . Eu tinha sido atropelada e estava em estado de shock. Lícia me contou que ela esteve muito tempo junto de mim."

Ele ficou calado, torturando entre os dedos um fós­foro que estava sobre a mesa.

— “Mas, como foi o seu desastre?"

— “Eu estava muito preocupada com papai, que já andava doente. Estive com Lícia na cidade à tarde. Juvenal, o chofer, estava ocupado e eu saí de ônibus. Você nem imagina que tarde linda fazia! Eram seis horas e não sei porque comecei a me lembrar do pensio­nato onde me eduquei... Era tão sossegado àquela hora! 0 sino da capela chamava as religiosas para as preces e nós rezávamos ali mesmo em classe. Saltei do ônibus e fui atravessar a rua. . . Depois, nada mais sei. Foi um sono bom e vazio, do qual acordei com pena."

Ele me fitava com uma profunda piedade nos olhos.

"Nem imagina o choque que tive, quando li a notícia no jornal."

"Mas escreveu um cartãozinho formal..." — não terminei, notando a emoção que o agitava. Falamos de outra cousa e à meia noite nos despedimos.

Nos dois dias que se seguiram evitei seus telefo­nemas, demorando-me em casa de D. Lulu, à tarde, e ocupando as manhãs com visitas aos museus, mas no terceiro dia deixei-me ficar no hotel à espera da sua cha­mada . Falamo-nos e saímos à tarde para visitar uma ex­posição de escultura. Eu tinha a impressão de que como certas terras são propícias a determinadas culturas, na­quele clima espiritual da França desabrochavam as ma­nifestações de arte espontaneamente como plantas que não precisam cultura.

"Então, andou fugindo?" — perguntou-me com uma certa tristeza, quando nos encontramos.

"Fugindo? Não, Eduardo. Você sabe, D. Lulu se resfriou aquela noite e eu não posso deixá-la sem uma visita."

"Então, escolheu a hora em que eu devia tele­fonar."

"Como você é desconfiado" — disse eu, tentando gracejar.

"Tenho razões poderosas para ser desconfiado."

"Ainda o complexo absurdo?"

"Absurdo ou não. ainda não consegui desfazer-me

dele."

"Não posso acreditar que fale sério. Você tem vencido brilhantemente na sua carreira, aqui na Eu­ropa! Quando voltar ao Brasil voltará consagrado."

"Mas isto não vem ao caso..." — disse, fitando-me.

Baixei os olhos. Caminhávamos a pé, lado a lado.'

Embora muito agasalhada eu estava transida de frio. Num dado momento, escorreguei na nave da calçada. Eduardo me amparou.

—“É melhor você me dar o braço" — disse. Assim fiz. Continuamos andando e chegamos às

margens do Sena.

—"Quero passar aquela ponte" — pedi.

Mas a nevada recrudesceu bruscamente e nós nos abrigamos numa casa de chá.

—“Estou morta de frio" — confessei, esfregando as mãos, sem tirar as luvas.

Eduardo pediu vinho. Serviram-nos bom vinho fran­cês, reconforta dor.

"E agora, está melhor?" — perguntou-me.

"Começo a sentir calor. Estamos muito longe?"

—“Do seu hotel, sim. Voltaremos de carro. Eu moro perto daqui."

—“É um lugar muito bonito. Fica perto do Sena?"

"Fica, e é de fato bonito." — E, depois de uma pequena pausa: — "Você só não me falou da sua arte."

"Pois eu sou dos tais que pretenderam ter um encontro marcado com D. Glória e afinal nem cogitei em ir até lá."

"E ela ficou à sua espera, desapontada com o "bluff." — disse Eduardo sorrindo. — Mas continua à

locar?"

"Passo meses sem ter tempo de pensar nisto" — respondi com tristeza.

"Queria tanto ouvi-la! Se você quisesse, podería­mos ir à minha casa."

Achei que seria ridículo me esquivar.

—"Para me ouvir, não. Se você quiser tocar para mim. irei com muito prazer."

Saímos. Ele chamou um táxi.

—“Não é perto?" — perguntei.

— "E' mas com este frio, será melhor." Logo em seguida o carro parou. Subimos dois lan­ços de escada.

— “São apartamentos, mas em todos há escritórios; morador, só eu — explicou-me. Isto foi um achado, pois me mudei muitas vezes por causa do meu estudo. Em toda parte tinha que fechar o piano às dez."

Entramos para uma saleta que dava acesso a uma sala ampla e de ornamentação interessante. A um canto, o piano de cauda. Nas paredes, quadros originais, desde a pintura clássica até os mais exóticos modernistas. Estantes com livros e músicas, algumas flores que fanavam numa jarra da Boêmia. Um tapete um pouco gasto di­ante de um largo divã.

—“Parece um museu" — disse eu.

—“Estes quadros são de artistas que lutam deses peradamente em busca de sua "chance." Há alguns de grande valor. Esta menina sentada num batente, olhando os pedaços da sua boneca partida é muito expressiva, não acha? Ainda não começou a chorar, mas você vê as lágrimas que vão apontar nos seus olhos espantados."

—“É extraordinário!" — murmurei.

— “Foi pintado aqui." — esclareceu Eduardo. — "Seu autor conseguiu a decoração do palácio de um bur­guês milionário e, agora, perdi-o de vista."

"É sinal de que prosperou" — comentei.

"Exatamente."'

Ele ativou um bom fogo na lareira e eu me apro­ximei para aquecer as mãos. Sentei-me numa poltrona.

—“Quer mais um cálice de vinho?" — perguntou-me Eduardo.

— “Mais tarde. Agora você vai tocar, não é?"

Ele sorriu e se dirigiu para o piano. Fiquei onde es­tava e recostei a cabeça no espaldar para ouvi-lo. Suas mãos correram pelo teclado com uma sonoridade maravi­lhosa. Parou um pouco e perguntou, voltando-se para mim:

"Quer ouvir?..."

"Em primeiro lugar... a Catedral."

"Tinha pensado nisto."

E tocou. Não posso descrever como refletiu no meu espírito aquela música tocada por ele. Lembrei-me da sua frase, aquela manhã:

—“Esta música faz-me acreditar em milagres." As­sim era. Ele terminou e ficou à espera que eu dissesse qualquer cousa.

— “Então?" — perguntou.

— “Você dá a esta página uma interpretação tão pessoal, que nas suas mãos ela é mil vezes mais bonita!" — respondi.

Sorriu com expressão pensativa de quem procura recordar qualquer cousa.

—“Agora o noturno V de Chopin. Você não se lem­bra talvez, mas foi a primeira peça que a ouvi tocar."

— “Lembro-me perfeitamente. Eu estava com tanto medo de tocar diante dos colegas! Depois fui perdendo o acanhamento."

"Você interpretava muito bem Chopin."

"Menos bem que você" — respondi — "mas toque." E naquele ambiente recolhido e morno, ele tocou

Lindas páginas, empolgantes, enchendo aquela noite de beleza e espiritualidade. Sua execução admirável, seu sentimento espontâneo, tornavam-no um intérprete que não fatigava. Dominava o instrumento com sua perso­nalidade.

Eu o ouvia quieta e até tinha medo de que tudo fosse apenas um sonho e eu acordasse só, e me perdesse nova mente naquela rotina de intrigas sociais que queria ab­sorver meu espírito.

Depois de algumas páginas de Chopin, tocou o pri­meiro movimento da Patética de Beethoven e eu senti quase palpável, a tragédia íntima e ignorada, que ins­pirou aquela música tocante!

Em seguida deixou o piano e se aproximou de mim:

—“Venha agora tocar, Lucila. Também quero ouvi-la."

Protestei. Nunca mais estudara, não tinha coragem de tocar diante dele, um artista. . . Mas com gesto na­tural, tomou-me as mãos para me fazer levantar, dizendo:

—            “Venha sim qualquer cousa que seja." Resisti, pedindo-lhe que não insistisse. O contato de

suas mãos fazia-me mal, deixava-me aniquilada. Puxou me ainda, brandamente. Ergui-me.

— “Não, Eduardo, nunca tocaria para você..."'

—“Mas por quê?" — perguntou, levando-me para junto do piano.

—“Você sabe que nunca mais toquei."

Ergui os olhos para ele. Nosso olhar se encontrou ansioso, revelando sem palavras o que ambos já sabíamos e não ousávamos dizer. Nem sei como me encontrei entre seus braços, que me apertavam num transporte, num longo abraço torturado, enquanto me repetia que me amava, que sempre me amara muito! Não o repeli.. Antes, pelo contrário, também o estreitei nos meus braços, de­sesperadamente. Naquele momento senti-me compensada de todas as minhas amarguras, de todas as minhas lon­gas esperas e senti que poderia reconstruir a minha vida junto da sua, para vivermos a nossa felicidade. Nossos lábios se buscaram e só então compreendi a expressão do beijo, e me deixei beijar, sentindo que já não Glover­ nova minhas emoções, numa síncope deliciosa da von- tade.      

Em seguida, afrouxando aquele abraço, pousou as mãos nos meus ombros, afastou-me de si para me fitar:

— “Lucila, isto é mais forte do que nós." — disse. Eu me afastei dele suavemente:

—“Entretanto, não é possível, você sabe, eu não me pertenço."

Ficou parado diante de mim, fitando-me ainda. De­pois, com a serenidade que era tão sua, fêz-me sentar, sentou-se por sua vez, e perguntou:

— “Diga-me agora, Lucila: não devo mais esperar? Você o ama?"

Havia tanta ansiedade na sua voz e no seu olhar, que esqueci o pudor que tinha da minha desventura e contei toda a minha vida de incompreensão e de abdi­cações sucessivas, vida dispersiva e sem ideal.

— “Então, não o ama?" — perguntou novamente.

— “Só amei uma vez e infelizmente não soube es­perar. Durante muitos anos pensei que só fosse capaz de sofrer."

— “E agora?"

— “Sei que o sentimento que durante todos estes anos esteve adormecido, despertou..."

Não sentia nenhum constrangimento, nenhuma ver­gonha do meu amor. Apenas uma ventura inefável. Sentia-me com coragem para lutar fosse contra o que fosse, para defender o meu direito de ser feliz! Sentia-me tão contente que as lágrimas começaram a apontar nos meus olhos, sem que eu as pudesse reter.

"Que é isto. querida?" — perguntou, abraçando-me outra vez e enxugando-me os olhos.

"Que tolice, não é?" — murmurei. — "É que eu já não esperava mais nada."

Tomou-me as mãos, apertou-as brandamente contra seu rosto. Desprendi uma das mãos e acariciei-lhe os cabelos.

"Escute, Lucila, agora que sei que você também gosta de mim, não a deixarei mais fugir."

"Mas eu não penso em fugir" — respondi. —"Se tivesse que fugir de alguém, não seria de você, pode estar certo... Apenas, Eduardo, preciso antes de tudo me libertar."

Como era estranho tudo aquilo! Eu precisava me libertar? Ah, sim, Cláudio! Era dele que eu precisava libertar-me. Por um momento imaginei como poderia falar-lhe sobre tudo aquilo. Tinha mil razões e argu­mentos para me defender. O seu abandono moral, o es­petáculo deprimente das suas conquistas, as humilhações que me impunha, deixando-me sem defesa contra o assé­dio de outros homens. Todas estas cousas que tinham culminado com aquele abandono em Paris, enquanto ele podia livremente gozar a companhia de Alice... Mas, súbito, atravessou-me a memória aquela noite em Buenos Aires, em que êle me dissera: — "Tenho certeza de que esta sociedade não a afetará, pois confio nos seus prin­cípios, na sua educação. Portanto, não há perigo." Ele repousava na minha moral, julgando-me fora do alcance das tentações, escudada nos meus preconceitos. Além disto, sua vaidade de homem não deixava lugar para o receio de uma preterição. Entretanto, não pensara que acima destas comédias sociais, de amantes e maridos en­ganados, pairava o amor, aquele sentimento em que êle não acreditava senão como uma necessidade instintiva de procriação ou uma prática material, para o gozo da carne... Como poderia fazê-lo compreender que não era nada disto, o que me arrebatava da sua vida? Porque eu não queria me rebaixar ao nível daquelas mulheres que giravam à nossa volta estonteadas com a sedução de Cláudio, atraídas pela indiferença com que êle as to­mava e as deixava.

Eduardo estava calado, como se respeitasse a minha reflexão. O fogo ia morrendo em pequenos surtos, desfazendo-se em cinzas.

—“Vou buscar mais lenha" — disse.

Mas neste momento, o relógio bateu meia noite e o som das badaladas ficou ressoando no ar.

—“Não, Eduardo, vou embora... meia noite."

"Você parece Cinderela, querida, sempre foge à meia noite."

"Só que em lugar do sapatinho de cristal, foi o coração que perdi." —'respondi alegremente. — "Que­ria um carro."

"Vou levá-la."

"Para que? Posso ir sozinha."

—“Você está linda demais, e Paris sempre foi a cidade do amor..."

Vesti o manto, calcei as luvas, coloquei o chapéu di­ante de um espelho veneziano. Eduardo observava-me.

—“Pronto," — disse-lhe — "agora vamos."

Saímos. A neve continuava caindo, cobrindo toda a cidade de branco, dando-lhe um aspecto espectral e triste. Eu, porém, não sentia o frio, nem o vento cortante que atravessava as ruas correndo, correndo, arrepiante. Eduardo estava junto de mim, eu me sentia amparada pelo seu amor, aquecida no seu carinho e esta impressão de segurança era tão nova e tão boa, que nem me lem­brava de todos os obstáculos que teria que remover para torná-la definitiva. Tomamos um carro. À porta do hotel, pediu-me que pensasse, pois precisávamos resolver nossa vida. Disse-me que teria que se ausentar por uma semana. Tinham que tocar numa solenidade em Munich.

—"E só agora me diz isto? Quando vai?"

— "Dentro de cinco ou seis dias, talvez."

Despedimo-nos e eu fui para o meu apartamento, sentindo crescer no meu íntimo a angústia antecipada por mais aquela separação.

A sua ausência durou apenas cinco dias. Fui esperá-lo à sua volta. Como ficou contente! Não contava co­migo na estação. Abraçamo-nos, ali, à vista de todos aqueles desconhecidos que nem davam por nós. Tomamos um táxi. Eduardo precisava passar pelo seu aparta­mento. Acompanhei-o. Em caminho perguntou-me:

— “Onde iremos jantar?"

—“Onde você quiser. . . mas conte-me sobre o concerto. Li todos os telegramas, mas não foi bastante."

"Tocamos o Concerto n.° I de Chopin. Uns jornalistas me entrevistaram, custando a acreditar que eu fosse brasileiro. Depois, muito reservadamente, quiseram saber se pelas selvas brasileiras já se tocava piano ou se eu viera conhecê-lo na Europa..."

"Que absurdo, Eduardo! E nós que desde o curso primário já sabemos todos os países civilizados do mundo?!"

Rimos divertidos. Fiquei imaginando o que pen­savam de nós aqueles super-civilizados ignorantes. . . Para eles seríamos eternamente tribos, vivendo em malocas, tocando inúbia, adorando o sol e a lua, num pri­mitivismo irremediável! Paciência, talvez até fosse me­lhor que nos ignorassem!

—“É verdade, Eduardo, e sua mãe?" — perguntei.

— “Mamãe passa o inverno em Nice com um casal amigo, tinha esquecido de lhe dizer."

Fiquei calada. Que pensaria de mim? Lembrava-me do seu aspecto respeitável e sóbrio. Não sei se compreen­deria as nossas razões. Quem sabe se eu iria criar uma situação difícil entre os dois? Senti um mal-estar es­tranho, pensando nisto, e outra figura venerável foi sur­gindo também na minha memória, com os cabelos gri­salhos, a pele enrugada, olhando-me ternamente por cima dos óculos, naquele feitio tão seu. D. Joaninha, tão mi­nha amiga, tão boa, tão acima das paixões humanas! E vi também o velho Coronel Monteiro, pele tisnada, ca­belo ainda negro, com sorriso franco, cheio de simpatia para mim. E como num delírio, vi ainda Lícia, com um gesto de surpresa pelo meu procedimento, a velha Te­resa, o Dr. Teodoro, e Osvaldo, que me fitava com se­renidade, com compreensão, a serenidade e a compreensão que tinha sempre para os meus problemas. E todos aque­les vultos diante dos quais eu tinha que baixar os olhos, eram seguidos por outros ainda mais temidos e mais intoleráveis, que riam, cochichavam o meu segredo, en­xovalhando o nosso amor, nas suas alusões abomináveis!

Não sei o que leu na expressão do meu rosto, pois me tomou as mãos e perguntou-me carinhoso:

"Lucila, por que está tão preocupada?"

"Por tudo..."

"Tudo quê?"

"Que pensará sua mãe de tudo isto?"

"Minha mãe há de querer-lhe muito bem, primeiro porque você é a minha felicidade e depois por você mesma."

"Não sei, Eduardo, tenho medo de que ela não compreenda."

"Não pense nestas cousas. Vamos tratar de con­seguir um desquite e depois casaremos e ela um dia poderá contar uma linda história, acabando assim: en­tão a princesa casou com o músico, foram muito felizes e tiveram muitos filhos lindos, que eram príncipes como a mamãe e músicos como os dois..."

Rimos alegremente. Era tão inédita aquela sua ale­gria, que eu não me cansava de ouvi-lo gracejar.

"Mas a quem contará a história?" — perguntei.

"Aos netos dela, naturalmente."

"Oh, Eduardo, como tudo isto que parece tão simples, está longe.. ." — murmurei.

"Depende de nós, mas principalmente de você, querida. E não se esqueça de que eu estou sempre à sua espera."

Novamente a sombra de Cláudio, escurecendo a mi­nha felicidade apenas entrevista.. . Eu não queria demorar meu pensamento no momento da nossa explicação decisiva. Tinha medo, sim, tinha medo desse momento.

Chegamos. Eduardo encontrou cartas sob a porta. Abriu a janela que dava para o lado do Sena e a paisagem que aparecia naquela moldura tinha como fundo o vulto imponente da Notre Dame. Entrou um ar frio do in­verno que, lá fora, despira as árvores de suas folhas, que cobrira toda a terra com a sua mortalha branca. Sentei-me diante do piano e acariciei o teclado de leve, como se ali pairasse o contato das mãos de Eduardo.

"Toque um pouco," — disse — "não me demoro. O tempo de mudar a roupa."

"Não se apresse. Não vou tocar, porque não me atrevo. O piano podia até estranhar."

Ele não respondeu. Abri um livro que estava sobre uma mesa. Era uma biografia. Folheei-o distraidamente, mas um recorte de jornal saiu de entre as páginas, dançou no ar e caiu no tapete. Apanhei-o. Era o resul­tado do nosso concurso e Eduardo marcara com uma chave em lápis vermelho os nossos dois nomes que abriam a lista. O papel estava amarelecido pelo tempo. Sorri. Também entre as minhas relíquias figurava um recorte igual àquele. Li todos os nomes e todos os colegas fo­ram se materializando na minha memória. Uma sau­dade pungente, uma grande tristeza de não poder reco­meçar a vida daquela época, começou a me abraçar a alma. Pensei em Lícia, que se conservava solteira, em­bora cheia de predicados que a destacavam entre todas as moças das minhas relações e, pela primeira vez este detalhe me fez pensar se haveria uma razão oculta para isto. E, então, pequenos fatos, frases ou gestos, foram tomando expressão diante do meu raciocínio e por um encadeamento de deduções, concluí surpresa que a razão daquele celibato era uma afeição sem esperança. Mas, quem? — torturava a imaginação. César, Celso... não, ne­nhum deles podia ser. E pensei que também eu devia ter-me conservado livre, embora sem esperança, porque já não me pertencia, quando aceitei casar com Cláudio. Eu andava sempre em conflito com o meu destino, por isso, quando devia lutar...

Eduardo interrompeu com sua chegada estes pensamentos.

—            “Por que não tocou? Afinal sou menos assustador que aquele júri que a classificou..."

— “Mas Eduardo, aquilo foi há tantos anos! Às vezes, chego a pensar que aquela era outra Lucila."

Ele vestiu o, sobretudo, pôs o cachecol e abriu a porta:

—“Vamos, Madame?"

Não sei por que me causou um mal-estar aquele tratamento que me deu por brincadeira. Saí em silêncio. Que pensaria de mim Eduardo, que pensaria muito no seu íntimo? Tive desgosto desta desconfiança e pensei que o magoaria se lhe falasse nela. Por isto continuei calada. Já no táxi, êle se debruçou para mim e roçando-me de leve os lábios pelo rosto, perguntou-me:

"Por que está triste? Acho-a diferente, por quê?"

"Nada. Talvez a saudade que sofri... Onde va­mos jantar?" — perguntei mudando de tom, para desviar o assunto.

"Naquele restaurante onde jantamos juntos a pri­meira vez, quer?"

"Quero sim. Gostei da orquestra cigana e do vio­linista com um ar patético."

"Preciso avisá-la de que sou ciumento?"

—“Oh, não! Prometo flertar com discrição." Puxou-me para junto dele, dizendo-me que sentira

uma saudade mortal. E assim aconchegados um ao outro, chegamos. Notei que a mesa era a mesma e pelo modo como tratavam Eduardo, deduzi que era seu hábito fre­qüentar a casa.

"Você vem aqui muitas vezes?" — perguntei.

"Tenho uma mesa reservada sempre."

"E vem sozinho?"

"Freqüentemente. Às vezes trago um amigo."

"Só amigos?"

"Não. Às vezes, vinha com uma linda moça. Conversávamos. Ela sorria para mim, mas eu não corres­pondia, porque ninguém a via a não ser eu."

"Então era um fantasma?" — perguntei come­çando a adivinhar.

"Era. E tanto invoquei aquele fantasma que con­segui que se materializasse."

"Ora, Eduardo, sempre brincando."

"Só que o fantasma não era curioso."

"E eu sou?"

"E também astuciosa."

"Ciumenta, também?"

"Penso que sim”

"Quantos defeitos, querido" — lamentei.

"Pois é assim que a quero" — respondeu sério.

"Cheia de defeitos?"

— “Claro... Criaturas perfeitas costumam ser ca­nonizadas e não dariam por mim."

Rimos. A orquestra tocava suavemente uma música Tussa. E eu me sentia muito feliz!

Naqueles momentos, eu esquecia todos os elementos que impediam a minha ventura. Não pensava em Cláu­dio, nem nos amigos, nem nos prováveis inimigos. Não pensava senão em nós mesmos e assim, junto de Eduardo, achava que seria fácil vencer todos os imprevistos que pudessem surgir para impedir a minha felicidade. Uma noite, voltávamos do teatro e êle me disse no táxi:

—“Querida, amanhã sigo para Bruxelas."

— “Por que nunca me avisa senão nas vésperas?" — perguntei, sentida.

“—” Porque custa muito me despedir de você. Será por poucos dias, uma semana, no máximo."

“Oh, Eduardo, e que vou fazer todo este tempo sozinha?"

"Venha então comigo, quer?"

"Se eu pudesse, querido..."

"Você ficará ainda em Paris muitos dias?" — perguntou-me depois de um silêncio.

"Não sei... eles foram por duas semanas e faz quase vinte dias que estão lá e não falam em voltar."

Ficamos calados algum tempo. Depois Eduardo disse, ao chofer o endereço do seu apartamento.

—“Querido, é tão tarde" — murmurei.

—“Hoje Cinderela já perdeu a hora, portanto não nos importa mais tarde ou mais cedo... Preciso deixar umas recordações com você, para que fique ao par da minha vida."

— “Vai-me confiar um testamento?"

— “Não, porque o que eu tinha, o meu amor, já o leguei em vida a você, está satisfeita?"

"Não, porque você o disse com ênfase de caçoada."

"O que não impede que seja verdade."

Eu não estava com vontade de brincar. Por mais que êle tentasse afastar a lembrança daquela nova se­paração, ela se insinuara no meu espírito, fazendo-me achar tudo triste e vazio. Pensava nos dias que se ar­rastariam monótonos, como se se tivessem cansado de correr, quando Eduardo estava junto de mim! Sentia uma grande vontade de chorar, mas procurava conter as lágrimas, para não parecer caprichosa ou pouco re­signada. Tomou-me a mão com carinho:

—“Vê, Lucila, como eu tenho razão? Devia avisá-la somente à última hora..."

Compreendi que era preciso não envenenar de tris­teza os momentos que nos restavam. Sorri, vencendo a custo a angústia que se acentuava.

"Não, Eduardo, prefiro que você me diga com antecedência. Depois de Bruxelas... será?"

"Temos um contrato em Londres."

"E.. . e depois?"

"Não sei bem, querida, mas consta que será Amé­rica do Norte."

"Mas, para breve?"

"Não, daqui a quatro ou seis meses..." — e passando o braço pelos meus ombros, disse-me:

"Quem sabe se iremos juntos?"

"Isto seria um sonho, não é? Imagine, eu, indo a todos os seus concertos! Havia de me enfeitar muito e ficaria esperando que você do palco me olhasse de vez em quando. Quando saíssemos juntos, as mulheres di­riam com inveja: — Olhe a mulher do pianista... e nem se atreveriam a pedir autógrafos."

"E os homens se acotovelariam murmurando com despeito: — "Que bonita pequena! Como pôde um sujeito tão feio casar com ela?" — concluiu Eduardo.

Rimos alegremente, como se todos estes castelos de­pendessem apenas da nossa vontade. Quando chegamos em casa, vi que Eduardo já arrumara sua maleta, que estava a um canto da entrada, concretizando a impressão da viagem. Havia algumas músicas separadas sobre o piano.

"Você vai ver. querida, como num instante acendo a lareira... está com frio?"

"Um pouco" — respondi.

— “Pois sirva-nos dois cálices de vinho enquanto faço isto... ali naquela mesinha, está tudo na bandeja."

Olhei contra a luz a garrafa lapidada. Despejei de­pois e fui para êle, com os dois copinhos, um em cada mão. Levantou-se de junto da lareira, soltou a tenaz com que atiçava algumas brasas que pareciam mortas e abraçou-me pela cintura, puxando-me para êle e beijando-me o rosto repetidas vezes.

“Você entorna o vinho, Eduardo" — disse-lhe, ralhando entre risos.

"Não faz mal... dizem que traz felicidade. Não posso perder esta ocasião em que você não pode me repelir, com as mãos ocupadas..." — ia dizendo, enquanto con­tinuava a beijar-me.

“Espere, querido, vamos brindar a nossa felici­dade, prometo não o repelir."

Bebemos o vinho. Êle tomou os dois copos igual­mente facetados, onde a luz incidindo faiscava, colocou-os sobre a mesa e voltando-se para mim, tornou a me abra­çar, como se adiantadamente se pagasse a tortura da saudade que sentiria depois. Beijei-o também, com ter­nura, com arroubo, sentindo que deixava passar através de meus lábios ansiosos toda a minha alma. Sentia que só os beijos de amor têm significação ou valor. Do contrário, são como orações que se pronunciam por há­bito ou obrigação, dirigidas a deuses nos quais não acre­ditamos! De nada valem!

E aquêles beijos mudos e atormentados levaram     j

de vencida, como uma avalanche, todos os diques de ra­zões, com que eu procurava represar o meu desejo ingente de ser dele! Sentia-me impotente para reagir con­tra aquela vertigem que me deixava aniquilada.

Por isto, quando me tomou nos braços, deixei que se cumprisse o meu destino de amor, sentindo-me feliz por me integrar afinal naquela sinfonia universal e irrevo­gável que dirige a humanidade, que só existe em conse­qüência dessa fatalidade!

Conheci naquela noite o verdadeiro amor que, em­bora se cumpra na atração física dos seres, eleva-se muito acima dessa escravidão sexual, que acorrenta os homens. Sucumbi na síncope dos sentidos, sob a carícia dos seus beijos e aquele momento resumiu a ressurreição da mi­nha fé e a redenção da minha vida!

 

Eduardo partiu na manhã seguinte para Bruxelas. Levei-o à estação, almocei sozinha num pequeno res­taurante próximo. Instintivamente procurava os lugares de movimento, evitando a solidão. Sentia ainda latente, ainda indistinto, o conflito que se travaria no meu íntimo e tinha medo! Visitei D. Lulu e me demorei toda a tarde com ela. Sua gripe fora grave e o médico aconselhou uma estação em Vichy, para melhorar o fígado comprometido com as vacinas que lhe tinham ministrado. Ela se mos­trava rebelde a esta prescrição. Saí já tarde, recusando jantar com ela e prometendo voltar no dia seguinte para o almoço.

No hotel, subi ao meu apartamento e pedi o jantar. Passei o resto da noite escrevendo ao Dr. Teodoro e à Lícia e às dez horas deitei-me cansada e triste, com a ausência de Eduardo.

Os dias que se seguiram foram cheios de ansiedade e lutas morais para mim. Minha personalidade dividia-se assustadoramente. O meu eu de amorosa exigente, que defende o seu amor, não importa como, entrara em con­flito com a minha personalidade de mulher honesta que sempre pautara a vida por princípios de moral rigorosa. Por vezes tinha asco de mim mesma, comparando-me à Norma, à Alice e outras. Em seguida sentia dó do meu destino, que me colocava em choque comigo mesma. Subitamente, porém, uma sensação de paz subia do meu coração. Afinal, sempre amara Eduardo e já lhe perten­cia desde anos, quando juntos frequetávamos a Escola de Música. Minha desonestidade, se existia, estava jus­tamente no fato de me ter casado com Cláudio, com o coração cheio daquele amor. Desejava que Eduardo^vol­tasse depressa, pois, junto dele, tinha certeza de que estes pensamentos desapareceriam e a serenidade voltaria ao meu espírito. Todo o dia passava algum tempo no seu apartamento. Eu ficara com uma chave, pois como a volta de Cláudio podia dar-se inesperadamente, ficara combinado que êle enviasse notícias para lá. Eu me sen­tia segura, tranqüila no seu ambiente e ali, sozinha, lia e relia suas cartas, encontrando sempre uma nova emo­ção na sua leitura. Quando recebi o telegrama, avisando-me da chegada, minha alegria foi sem limites. Como da primeira vez fui esperá-lo. Perguntei todos os de­talhes dos seus concertos. Além de três audições da orquestra, dera um recital, também.

—“E agora, querido, você não irá tão cedo viajar outra vez, não é?"

Ele sorriu com um pouco de tristeza.

— “Infelizmente vou. Na próxima semana devemos estar em Londres."

Fiquei abalada com aquela perspectiva tão próxima.

"Não sei se posso resistir" — suspirei. — "Custou tanto a passar o tempo!"

"Precisamos ter um pouco de paciência. Mais já esperamos e sem o conforto de uma esperança."

— “É verdade." Mudando de tom, perguntei:

—            “Está tudo em ordem? Era aqui que eu me refugiava para suportar tanta saudade."

— “E eu tinha, apenas, o quarto impessoal e frio do hotel, que só me sugeria solidão."

O relógio bateu seis horas.

"Sabe? Estou com fome" — disse êle.

"Pensei que não sentisse uma cousa tão prosaica"

—            repliquei, gracejando.

— “Onde quer jantar?"

"Aqui mesmo."

"Aqui? Como?"

—“É uma surpresa que reservei para você. Se me quer ajudar, sente-se ao piano e vai ver como tudo sur­girá na magia da sua música."

Fui para a saleta ao fundo, onde guardara os pa­cotes que mandara trazer durante o dia. Eduardo tocou uma valsa de Strauss, que encheu da maior alegria o ambiente. Jantamos depois, entremeando nossa conversa de silêncios compridos, cada qual pensando, talvez, em outros serões pela vida fora, quando não tivéssemos que pensar em separações e saudades. Fui muito tarde para o hotel, pois como já fazia quase um mês que Cláudio fora para Monte-Carlo, eu tinha receio de que regres­sasse de um momento para outro, sem mesmo avisar, e por isto não podia ficar ausente.

Na manhã seguinte escrevi a meu marido um rápido cartão, dizendo-lhe que ia bem e perguntando-lhe se ainda se demorariam. Dois dias depois, telefonou-me dizendo que estavam presos, pois Carlos sofrera um aci­dente de bicicleta e não podia regressar ainda por uns quinze dias. Perguntou-me se queria ir ao encontro de­les. Fiquei perturbada, sem encontrar uma razão a certeza, ouvindo meus passos ressoarem pela nave, reper­cutirem nas altas abóbadas. Tinha até certo terror supersticioso de erguer os olhos para os altares. Mas Eduardo murmurou:

— "Você tem o direito de fazer três pedidos: é a primeira vez que entra aqui."

Ajoelhei-me e pedi a Deus que me libertasse daquela perturbação e que perdoasse a minha felicidade. Fal­tava um pedido e eu não sabia o que escolher. Tinha medo de pedir muito e tinha pena de pedir pouco. Afinal, pedi ao bom Deus que preservasse Eduardo de todo so­frimento e o fizesse feliz! Apesar de tudo não conseguia vencer o estranho estado de alma que me amargurava. Sentia-me mesquinha, insignificante, dentro da impo­nência daquele templo todo banhado de uma estranha luz, que se coava pelos vitrais e se difundia, de mistura com um sentido quase palpável de misticismo!

Recordei frases de Cláudio, relativas à religião: — "Deus não se preocupa com as misérias do mundo. De­vemos gozar a vida enquanto podemos, porque não sa­bemos depois o que nos espera..." — Seria verdade? Por que pensava semelhante absurdo, naquele momento? Mas, ao sairmos, respirando o ar frio, pisando a neve branca, recuperei-me, ri, conversei, procurando esquecer o con­flito de minhas emoções. Eduardo caminhava pensativo. Eu já lhe conhecia aquele ar sonhador, quando calcava a terra, mas seu espírito perdia-se em mundos maravi­lhosos de melodia. Por isto também eu me calei e mer­gulhei nos meus pensamentos.

Passamos uma semana de completa felicidade. Eu ia ver D. Lulu, nas horas em que Eduardo ficava preso nos ensaios com a orquestra. Mais de uma vez o esperei à saída do teatro e, então, ficávamos com o resto do tempo para nós e o aproveitávamos avaramente, cobrando-nos de tantos anos de amor recalcado e infeliz. Mas ambos sabíamos que cada dia que se passava nos aproximava de mais uma separação. Eu pensava também que che­gava o dia em que teria que falar a Cláudio. Perdia o sono, compondo na imaginação a cena. Ora pensava em Cláudio ouvindo com indiferença toda a minha história e dando-me liberdade com um mal dissimulado gesto de alívio. Outras vezes, imaginava-o no paroxismo da cólera, insultando-me cruelmente. Depois, via-o sorrir com sarcasmo, fitando-me com aqueles perfurantes olhos ver­des e levantando os ombros, dando-me as costas. Fitável para não ir e acabei alegando a doença de D. Lulu. Ele aceitou relutante e eu compreendi que a sua aven­tura entrara em declínio e que êle, como sempre, bus­caria junto de mim o porto seguro, onde se refazia das suas desilusões. Esta idéia deixou-me perturbada. Fui encontrar Eduardo, procurando dissimular aquela apre­ensão, mas êle com sua observação aguda percebeu logo e me perguntou:

"Que tem você?"

"Nada" — respondi, desviando o olhar.

"Por que não confia em mim?"

—“Em quem mais posso confiar?" — perguntei, querendo desviar o rumo da conversa.

Ele não insistiu. Estávamos na rua. Chamou um táxi e perguntou-me se queria visitar a Notre Dame.

— “Parece incrível que ainda não tenha ido, não é?"

"Por quê? Há tanta cousa para ver, que alguma tem que ficar para o fim."

"Eduardo, você parece que ficou zangado comi­go..." — disse.

"Zangado, não. Apenas um pouco sentido."

"Mas não tem razão."

"Se você acha que pode ter preocupações tão pessoais..."

"Ora, querido, que bobinho!" — exclamei. — "Pois se quer saber, é isto: ontem Cláudio me telefonou e insistiu para eu ir ter com êle."

"E você?"

"Recusei."

Ele ficou em silêncio, com o chapéu entre as mãos, o olhar perdido numa cisma indevassável.

—“Não disse quando voltam?" — perguntou, afinal.

—“Não sabe ao certo. Carlos luxou uma perna num passeio de bicicleta e não pode locomover-se."

— “Então, não pensemos mais neles" — concluiu, puxando-me para si. E, baixando a voz, juntou:            “Chego a ter ciúme..."

— "Mas já passou, não é?"

Penetrei na grande Catedral com o espírito agitado por grande emoção. Por um momento, senti-me culpada, humilhada pelo pecado de ser feliz. Eram os remanes­centes da minha educação religiosa, que fora desbaratada pelos motejos irreverentes de Cláudio, que ali, naquele ambiente místico, vinham à tona, fazendo-me encarar diversamente a minha situação. Sentia uma vaga tristeza ficava ansiosa, debatia-me sem encontrar repouso na noite densa. E sentia minha coragem vacilar, diante do des­conhecido daquele momento. Ah! Se sobreviesse uma cousa qualquer! Na véspera da partida de Eduardo, fui procurar um médico, pois além de todos aqueles receios, assaltava-me por vezes a desconfiança de que estava grávida. Não queria demorar o pensamento em tal su­posição, mas precisava saber. Esperei trêmula, febrici­tante, numa sala fria, entre outras pessoas que cochicha­vam banalidades. Quando me encontrei diante do médico, um homem de meia idade senti-me desfalecer de vergo­nha, como se êle pudesse adivinhar minha vida. Respondi ao seu interrogatório, depois de lhe contar a minha descon­fiança . Ao fim do exame, nada assegurou, pois era muito cedo para qualquer afirmativa. Deixei o consultório aba­tida, vendo fechar-se diante de mim, em mistério impe­netrável, o meu futuro. Passamos o resto do dia no apar­tamento. Eduardo tocou um pouco. Jantamos juntos e quando nos separamos, prometi-lhe acompanhá-lo à es­tação.

Sozinha, no hotel, resolvi confiar a Eduardo aquele se­gredo que me agitava, pois, talvez, dividindo-o, não fosse tão penoso guardá-lo. E dormi extenuada. Na manhã seguinte, vesti-me às pressas, pois acordei um pouco tar­de. Mal pude tomar o café. O "groom" chamou um carro, mas pequenos incidentes se acumulavam, atrasando-me. Eu sentia um crescente desespero e quando consegui entrar na platarforma, o comboio já começara a sua mar­cha. Vi Eduardo debruçado na janela, olhando ansioso, procurando-me ainda. Gritei por êle. Vi seu rosto se iluminar de alegria e sua mão se agitar num adeus que se sumiu ao longe. Fiquei de pé na gare, com os olhos cravados naqueles trilhos compridos que levavam para muito longe toda a minha alegria! E resignadamente voltei para o hotel, com a angústia daquela partida. Reco­mecei minhas visitas mais longas a D. Lulu. O resto das toras, passava no apartamento, tocava um pouco, lia seus livros, deixava-me às vezes ficar sentada naquela poltrona em frente à lareira agora apagada, pensando, recordando. Depois voltava ao hotel para repousar e re­começar no dia seguinte aquela espera que me parecia tão grande. Recebi a primeira carta de Eduardo três dias depois. Eu tinha ido a outro médico, aliás com o mesmo resultado e aquela dúvida deixava-me ansiosa. Por isto, quando no quarto dia, ao atravessar o vestíbulo do hotel, o "groom" veio a meu encontro, avisando-me que de MonteCarlo, tinham chamado por mim, tive uma sensação tão grande de vertigem, de queda, que precisei reunir desesperadamente minhas forças para vencer.

—“Peça à telefonista que complete agora a ligação" — pedi com voz apagada.

—“Quer falar na cabine?"

— “Não, peça que ligue para o meu apartamento." Tirei o chapéu e fiquei olhando por trás da vidraça

a rua lá fora, com os vultos escuros, embuçados, cami­nhando naquele tapete branco, enquanto os flocos ge­lados continuavam caindo, caindo... Estremeci com a campainha do telefone. Era Sônia, avisando-me de que estariam em Paris, na tarde seguinte.

"E Cláudio, por que não fala?" — perguntei.

"Ontem tentamos falar, você não estava."

"Não soube." — respondi.

— “Hoje êle saiu com Alice e eu fiquei fazendo companhia a Carlos."

Despedimo-nos. Cláudio saíra com Alice... Agora que se precisava o momento do meu encontro com êle, tinha a impressão de que me trairia ao seu primeiro olhar. Por que teriam resolvido voltar, justamente ago­ra? Eduardo ainda se demoraria alguns dias, mais do que supusera. Talvez ficassem em Londres duas sema­nas. .. Quando voltasse seria difícil encontrar-me com êle. Já me afizera àquela liberdade sem limites com que lhe dava todo o meu tempo e achava estranho ter que me ocultar, dissimular, enquadrar nossos encontros em rápidos momentos, roubados, com o nervosismo exci­tante de fugas. E fui no dia seguinte à estação esperá-los. tendo passado uma noite insone e agitada, sem poder me deitar, mais uma vez concatenando razões com que ilustraria aquele entendimento, do qual dependia a minha felicidade. Bastou-me um olhar para compreender que o capricho de Cláudio por Alice entrara em colapso! E quando êle, saltando do trem, veio para mim, estreitando-me nos braços, senti um mal-estar invencível, uma revolta pro­funda por ter que ficar à mercê do seu capricho e do seu desejo, agora que pertencia a Eduardo!

Ao contrário do que temia, entretanto, pude mostrar-me natural e conversei com desembaraço. Durante o jantar, Cláudio perguntou-me em que ocupava o meu tempo, na sua ausência, e eu fiquei surpreendida comigo mesma, com a facilidade com que mentia, sem que isto me causasse nenhum desgosto.

Carlos ainda não estava de todo bom, por isto, todos ficamos no hotel, no apartamento deles, conversando. Tudo imensamente tedioso, com as descrições intermi­náveis que Sônia fazia das toilettes de uma baronesa vampiresca, uma princesa russa e um americano que perdia sorrindo, milhares de dólares, na roleta... Eu ouvia im­passível, observando Alice, disfarçadamente, Alice que não se conformava com o rompimento e suspirava com ares patéticos... E pensava como me compensaria daquele tédio, quando Eduardo voltasse! Havia de arranjar um meio de ir ter com êle, de passar todo um dia para matar aquela saudade mortal!

"Lucila" — disse Cláudio rindo — "Sônia já se dirigiu a você duas vezes sem obter atenção..."

"Desculpem-me. Quase não dormi a noite pas­sada..."

"Onze horas," — observou Cláudio — "também estou cansado."

Pomos para o nosso apartamento, mas quando Cláu­dio me tomou nos braços, beijando-me, tive uma sensação desagradável de que traía a Eduardo, de que êle, sim, tinha direitos sobre a minha vida. Tentei repeli-lo, mas Cláudio fitou-me com uma estranha expressão, murmu­rando:

— “Afinal, é a você, somente a você que eu amo." E mais uma vez sua vontade absorveu a minha, mais

uma vez, tombei ao hipnotismo irresistível dos seus olhos de abismo...

 

Ainda nos demoramos em Paris. Eu receava que subitamente Cláudio e os outros resolvessem seguir para qualquer outra cidade, pois Eduardo também prolongava mais do que esperava sua estadia na Inglaterra. Todos os dias, levantava-me cedo, deixando Cláudio ainda adormecido e saía. Corria ao apartamento em busca de notícias. Lia suas cartas, respondia-as. Algumas vezes, to­cava em surdina músicas cheias de evocações. E assim, dia a dia, passou-se uma semana. Uma manhã, encon­trando uma carta longa, passei muito tempo com ela entre as mãos, sem coragem de ir embora, relendo muitas vezes suas palavras... Ah, Eduardo, por que fiquei en­tregue aos imprevistos do meu destino, para defender sozinha nosso direito de sermos felizes?

Quando voltei ao hotel, levava a resolução de falar a meu marido, definitivamente, e talvez até fosse em seguida para Londres, encontrar-me com Eduardo. Sim, era isto que eu faria. E esta idéia de surpreendê-lo, fêz-me sorrir de alegria, pensando como seria bom aquele encontro! Tomei um carro, algumas ruas adiante, e saltei na porta do hotel.

Ao deixar o elevador, vi Sônia no corredor, um pouco perturbada, estonteada. Ao dar comigo, teve uma exclamação de alívio e tomou-me nervosamente o braço.

"Venha, venha depressa, Lucila" — balbuciou. Senti o sangue gelar-se em minhas veias.

"Que aconteceu, Sônia? Que é?"

Mas já alcançáramos o nosso apartamento e ela me disse apressada:

—“Chegou um telegrama de tia Joaninha. Tio Se­bastião está muito mal."

Por um momento, imaginei que qualquer cousa tivesse revelado o meu segredo e temia um escândalo. Ao saber que era um motivo tão diverso, senti uma im­pressão paradoxal de tristeza e alívio. Mas quando en­trei, fiquei admirada ante o abatimento de Cljudio. Es­tava sentado junto de uma janela, olhando sem ver, e seu rosto estava tão mudado, que me deu a impressão de uma máscara. Sônia deixou-nos sós. Aproximei-me dele, pousando-lhe a mão no ombro.

—“Cláudio" — disse baixinho.

E, cousa inédita e desconcertante, êle rompeu em soluços.

"Que é isso, Cláudio? Coragem, talvez sua mãe tenha, com a aflição de nos saber tão longe, exagerado um pouco..."

"Você sabe se Carlos conseguiu as passagens para quinta-feira?"

—“Para quinta-feira?!"

Meu Deus, partir assim, daí a dois dias? E Eduardo? Que pensaria? Tive ímpetos de lhe dizer que não seguiria com êle, que ficaria em Paris, de contar-lhe tudo, deixar que me julgasse como quisesse, contanto que eu ficasse! Ele era, afinal, o maior culpado! E, além disto, nada me significava mais na vida, senão aquela felicidade que defenderia fosse como fosse! Recuei um pouco, sentindo uma emoção estrangular-me. Mas, ao fitá-lo, assim ani­quilado, êle também me olhou angustiosamente e pediu:

— “Lucila, não me deixe só..."

Então, o meu instinto de sacrifício, o meu altruísmo sufocou o grito de revolta e de amor, com que termi­naria de vez o meu sofrimento.

—"Cláudio, você não deve pensar no pior. E' isto mesmo, D. Joaninha talvez se afligisse sem razão."

Carlos chegou neste momento. Conseguira as pas­sagens. Deixei-o com Cláudio e fui para a saleta, onde me debrucei na janela. Minha cabeça latejava dolorida e tinha as mãos geladas. Não pude conter as lágrimas que começaram a rolar pelo meu rosto sem que eu as enxugasse, enquanto através delas, Paris dançava ao longe.

O nosso embarque foi triste e sem concorrência. Dei­xamos Paris na quarta-feira, sozinhos, pois nossos com­panheiros resolveram terminar a excursão. Na quinta-feira, muito cedo, embarcamos no Havre, sob a incle­mência de uma chuva que caía em rajadas frias, sob um céu cinzento e opaco. Nem mesmo tive tempo de escrever a Eduardo. E era um verdadeiro tormento pensar na sua ansiedade, quando chegasse, não sabendo que fora feito de mim! Esta idéia me enlouquecia quase e eu fi­cava aniquilada, os dias inteiros, olhando o mar escuro e raivoso e o céu sempre opaco e ameaçador. Cláudio continuava entregue ao seu desespero, aguardando an­sioso notícias que chegavam regularmente. Ao fim de três dias de viagem, recebemos a notícia de que meu sogro fora considerado fora de perigo. Respiramos ali­viados e Cláudio com seu gênio vivo se refez imediata­mente, voltando ao seu natural cheio de disposição. Mais dois dias e já se fizera o centro de todas as diversões, en­chendo as noites de alegria, sempre pronto a organizar jogos e distrações. E, um dia, resolveram festejar o ani­versário de um passageiro, igualmente apreciado pelo seu gênio comunicativo. Primeiro haveria um programa de arte, e não sei por que Cláudio teve a idéia desastrada de dizer que eu tocava. Não me deixaram mais em paz. Insistiam para que eu tocasse qualquer cousa. Eu me escusava, alegando falta de estudo, mas Cláudio instou também, dizendo-me que qualquer cousa, pequena que fosse, satisfaria àquela platéia. Por que não me deixavam em paz? E a idéia de ter que tocar naquele ambiente tão superficial fazia-me mal, exasperava-me.

Chegou a hora do "show", como diziam animada­mente." Todos tomaram seus lugares e no palco impro­visado começaram a desfilar, um a um, aqueles artistas de última hora. Recitaram, dançaram, cantaram, sem preocupação de ridículo ou de estética. Eu estava cada vez mais aflita, desejando que passasse de uma vez aquele momento detestável! Ouvi pronunciarem o meu nome. Levantei-me automaticamente e sentei-me ao piano. Que poderia tocar para eles? E, sem sentir, minhas mãos acor­daram os sinos dormentes da Catedral submersa. E ela veio subindo, subindo, poderosa, dominando todo o am­biente, quase trágica, na sua aparição sobrenatural! 03 sinos badalavam, cantavam, envolvendo tudo naquela es­tranha certeza da sua imortalidade. E crescendo com a música a minha saudade, a presença imponderável de Eduardo, o fatalismo invencível do meu amor! Depois, novamente, como cumprindo um imutável destino, foi submergindo lentamente outra vez, até que as torres, onde os sinos dançavam e vibravam, sumiram nas águas, sempre dançando e sempre vibrando!

Deixei cair as mãos abandonadas. As palmas estrondaram, acordando-me, e vi Cláudio que sorria surpreso. Tentei agradecer, quis me levantar, mas subitamente tudo à minha volta pôs-se a rodar alucinadamente e eu yacilei, procurando um apoio qualquer. Cláudio correu para mim e, ajudado por um passageiro, levou-me dali, enquanto todos se comprimiam sem compreender, pro­curando ver, comentando, querendo ajudar em qualquer cousa. Mas ao receber o ar frio da noite, reanimei-me pedindo que não interrompessem a festa; fora apenas uma tonteira, um enjôo de mar. Ia descansar um mo­mento no camarote e voltaria em seguida ao salão.

Cláudio me conduziu, amparando-me, e chegamos ao camarote ao mesmo tempo que o velho médico de bordo. Recostei-me no divã, sentindo crescer invencivelmente o mal-estar. Cláudio fechou a porta e o médico fitou-me atentamente.

- "Já se sente melhor?" — perguntou.

"Já" — balbuciei a custo. — "Apenas o navio joga muito..."

Tive uma náusea violenta. 0 Dr. Morrison proce­deu ao exame. Sentia o suor porejando na minha testa fria e, por mais que eu tentasse dissimular era evidente a minha indisposição. Mas meu olhar fixou-se no rosto de Cláudio e eu notei que estava mais contrariado que aflito. Fechei os olhos. Sentia-me impotente para con­tinuar reagindo. Entretanto o Dr. Morrison ergueu-se e eu comecei a observá-lo. Notei que olhava disfarçada­mente para Cláudio, enquanto lavava as mãos, sem pressa. Ele talvez tivesse notado também o tédio de meu marido, por causa da diversão interrompida.

—“Então, doutor?" — perguntou Cláudio impaciente.

0 velho tirou o pince-nez, enervantemente lento nos seus gestos.

— "Apenas um enjôo de mar, não?" — insistiu

ainda.

"Não, meu velho" — respondeu laconicamente o médico.

"Então, ela está doente?"

"E lhe dou os parabéns! Vem por aí o príncipe herdeiro."

Ergui-me um pouco, sentindo a palidez que me invadiu o rosto. Vi Cláudio abraçar o médico, mas não consegui distinguir nada do que diziam. Uma nuvem escureceu-me a vista, senti-me suspensa sobre um abismo, rodando numa vertigem, sem encontrar o chão. Um ruído ensurdecedor não me deixava ouvir o que diziam junto de mim. Era o meu sangue correndo impetuoso nas veias. Graças a Deus, o Dr. Morrison saiu. Eu podia dizer agora que aquilo não o impediria de se divertir, de levar a sua vida dispersiva e vazia de finalidades, de continuar suas aventuras! 0 filho era apenas meu! Podia dizer, sim, que o filho era meu e de...

Mas, depois de fechar a porta à saída do médico, Cláudio voltou-se para mim. Estava transfigurado pela alegria, com um brilho inédito de orgulho nos olhos.

- "Lucila querida, por que não me disse antes?" — e ajoelhando -se junto do divã, cobria-me as mãos e o rosto de beijos, cheios de ternura.

E como eu não contivesse as lágrimas de desespero, ficou surpreso:

— "Que é isto? Você não se sente feliz? Um filho, um filho nosso... Quero que seja homem, há de ser homem e bem levado, como eu fui!" — e, outra vez carinhoso: — "Não chore, Lucila, não quero que se emo­cione sem motivo, pode prejudicar o bebê."

Mas eu não podia falar. Estava estrangulada pelo pranto que me subia em ondas do coração. Não podia também conter as lágrimas que desciam pelo meu rosto e iam molhando o travesseiro.

E naquele momento, tive ódio de mim mesma, de ser tão pusilânime a ponto de calar um segredo que me pesaria mais que aquela revelação. Com o meu si­lêncio tracei o meu caminho, que havia de ser o caminho do meu Calvário!

0 livro resvalou das mãos de Cláudio e caiu a seus pés, aberto naquela página dolorosa. Já não sofria, re­lendo tudo aquilo. A primeira vez, abalara o silêncio espantado da casa com um acesso de fúria louca. Arremessara longe a mesa de fumo, que se espatifara contra a parede, arrepelara osi cabelos, e depois, tombando exausto sobre a poltrona, arrepiara, com seus soluços desesperados, a velha Teresa e o fiel Leonardo que ou­viam, encolhidos atrás da porta, sem compreender o que se passava. Seu ódio era impotente! Não se podia vingar! Eduardo! Lucila! Claudinho! O seu filho! Lu­cila! Lucila! Odiou a sua memória, amaldiçoou o seu espírito! Mas, depois, extravasando seu desespero em lágrimas amarguradas, esvaiu-se-lhe o ódio, dando lugar a uma lástima que abrangia todos, desde Eduardo que lá ficara, sem compreender que fatalidade lhe arrebatara a mulher que sempre amara, Lucila, vítima de tantas circunstâncias contraditórias, até êle, que insensatamente desbaratara a sua felicidade! Releu muitas vezes aquelas páginas num delírio sádico de se maltratar ainda mais! Mas desta vez, nem mesmo sofria. . . Parecia que se es­gotara sua capacidade de emoção. Tudo que lhe suce­desse daí por diante não o afetaria mais! Sentia-se ex­tenuado, indiferente, e tinha vontade de ser cruel, de ser brutal! Mas a sombra diáfana de Lucila parecia povoar o escritório com seu perfume espiritual. Sentia-a quase. Tinha a impressão de que ouviria a sua voz, a qual­quer momento. Novamente ergueu o livro e continuou a ler:

"Depois daquele dia, minha vida com Cláudio se modificou completamente. Quando eu me debruçava na amurada, olhando intensamente o céu distante ou o mar insondável, remoendo os meus pensamentos, êle estava sempre junto de mim. Isto me mortificava! Um dia, disse-lhe:

—“Vão pensar que estou muito doente... se é que você já não contou a todos."

Ele sorriu.

— “Só não contei, porque você proibiu..."

Era então aquele o milagre que eu esperara arden­temente e que só viera tarde demais!

Cada noite, nas largas horas insones, prometia-me falar a Cláudio na manhã seguinte, mas mal abria os olhos, via-o, desperto, imóvel para não me despertar, vigiando o meu repouso, à espera, para perguntar com uma ternura imensa:

— “Dormiu bem, querida?"

Querida... Era assim que Eduardo me chamava! Era este o nome que nos seus lábios tinha o sabor de todas as cousas boas da vida!

0 Dr. Morrison me visitava todos os dias e eu sentia que embora fosse como amigo, êle me observava dis­farçadamente . Ria-se, divertido com os exageros de Cláu­dio, conversava com bonhomia, procurava me deixar à vontade, como se sua sutileza o fizesse sentir a minha amargura. Aquelas visitas eram um refrigério. Como em outra ocasião da minha vida, meu sistema nervoso osci­lava, numa superexcitação que eu lutava para recalcar e que era sempre seguida de profunda apatia. Nestes mo­mentos, pedia a Cláudio que me deixasse só, que fosse embora, que não deixasse ninguém me perturbar e fi­cava deitada, olhos fixos, inerte, enquanto o cérebro tra­balhava intensamente, depauperando-me, arruinando-­me a saúde, já abalada. Comecei a emagrecer assustado­ramente . Uma tarde, passando peio camarote do Doutor Morrison, ouvi a voz de Cláudio. A porta estava apenas cerrada e eu parei para escutar.

— “Não posso compreender" — dizia êle. — "O se­nhor tem assistido a tudo. Toma os remédios, segue suas prescrições, faz repouso e não melhora..."

"Sua senhora precisa de uma terapêutica espi­ritual."

"Como?"

"O senhor tem visto como definha de dia para dia, não é? 0 que ela tem, não é um mal físico. É qualquer cousa que a aflige e que não confia a ninguém."

Seguiu-se um silêncio, cheio de apreensões e foi ainda a voz do Dr. Morrison que se fez ouvir:

— "Não se aflija demais. 0 senhor é médico, tam­bém, portanto sabe que estes distúrbios nervosos correm às vezes por conta do estado... Embora não pareça, pode ser explicado por este prisma, quem sabe?"

Segui meu caminho e me encerrei no camarote. Mais tarde Cláudio, ao me encontrar abatida, olhos fixos no teto, acariciou-me os cabelos, perguntando-me se era êle o responsável por aquela mágoa que eu não revelava. Disse-lhe que não, que não havia mágoa alguma, mas que me deixasse só.

Dois dias depois, dissemos adeus ao Dr. Morrison e desembarcamos no Rio, onde nos demoraríamos pouco, para seguir para o Sacramento.

Quando entramos em casa, abracei-me nervosamente à Teresa, sem conseguir conter os soluços, ante a cons­ternação do velho Juvenal e de Leonardo que me espe­ravam no jardim.

Cláudio, então, me conduziu ao quarto, fêz-me deitar e chamou o Dr. Teodoro.

 

Os meses passavam-se arrastadamente. Fomos pas­sar algum tempo no Sacramento. D. Joaninha recebeu-me comovida e notei que seus cabelos estavam mais brancos e o olhar amortecido pelas lágrimas que cho­rara. Meu sogro tivera uma trombose e ficara com uma paralisia parcial. Não podia montar a cavalo para fis­calizar suas lavouras e, por isto, Cláudio tomou-lhe o lugar na direção da fazenda. Eu ficava admirada de vê-lo tão à vontade naquele ambiente, como nas salas de sociedade. Montava com elegância e quando voltava à tarde, bronzeado pelo sol, e me acenava de longe com o chapéu largo de couro, parecia-me a encarnação do la­vrador, destemido e robusto, identificado com a terra, dando-lhe o seu cuidado, espiando o desabrochar das sa­fras, num interesse vital e incansável. À hora do jantar Cláudio fazia ao pai o seu relatório, entremeado de ane­dotas e observações pitorescas, que faziam o velho rir, esquecido, no seu contato alegre, do mal que tanto o afligia.

E eu me perguntava porque não tínhamos ido logo para a fazenda, onde poderíamos ser felizes, com aquela felicidade feita de serenidade, de simplicidade, sem o ar­tificialismo com que os homens pretendem vestir a ven­tura. Seríamos felizes como as árvores frondosas, como as campinas, como os rios, como-ss montanhas, sabendo apenas porque éramos felizes! Seria a felicidade da na­tureza com o raciocínio de seres vivos e pensantes... Cláudio cuidaria das terras, eu poderia tocar romanzas suaves ou berceuses, ou faria longos trabalhos de agulha, ouvindo os casos que minha sogra sempre tinha que contar.

Os anos passariam sem pressa, cheios de tranqüi­lidade, enquanto outros lugares fossem sendo postos à mesa e outros berços no quarto.

Perdia-me nestes devaneios, balançando-me na cadeira austríaca e cômoda, na sombra fresca da varanda Quase sempre era Cláudio quem interrompia estes so­nhos, dizendo-me risonho:

—“Está sonhando outra vez?"

Eu então reentrava na minha trágica realidade, cer­cada do carinho de todos, carinhos redobrados em virtude do meu estado. Entretanto, minha saúde parecia declinar dia a dia, desafiando cuidados, e Cláudio resolveu que voltássemos para o Rio.

— “Para que, Cláudio? Estamos tão bem aqui!..."

"Mas você vive tão triste!! Não quero que fique contrariada."

"Mas não estou contrariada" — respondi, bai­xando os olhos, ante o seu olhar perscrutador.

"Então, que se passa com você? No Rio, podería­mos ouvir outros médicos..."

— “Mas não é preciso. Estou apenas cansada." Cláudio não insistiu mais. Ainda nos demoramos

quase dois meses no Sacramento e quando voltamos para nossa casa, faltava pouco para meu filho nascer.

Nos últimos tempos eu me agarrara à esperança de morrermos ambos, meu filho e eu, na ocasião do parto, idéia que me parecia à única salvação possível. Queria pedir a Deus que me concedesse esta graça extrema, mas não encontrava palavras para me dirigir a êle.

Claudinho, porém, nasceu normalmente e Deus não me tirou a vida, o que me fez duvidar ainda "mais da justiça!

Parece que ainda agora vejo a expressão de Cláudio debruçado sobre o menino, mudo de emoção e, depois, o seu olhar para mim! Ah, Cláudio, como tudo podia ter sido diferente! Minha culpa foi sempre não ter sabido esperar. Eu quis ir ao encontro do meu destino e êle talvez não goste de se ver antecipado! Não soube esperar por Eduardo e me casei com Cláudio e, depois, não soube esperar por Cláudio e voltei para Eduardo, sem ter este direito!

Eu tinha tanta vontade de ser boa e só espalhei in­felicidade na minha vida contraditória! Resta-me o con­solo de tê-lo feito involuntariamente!

Mas o tempo continuava passando e agora que eu tinha Claudinho, encontrava nele uma finalidade. Meu filho desabrochava à sombra do meu carinho, tão robusto, tão lindo, como as mais lindas crianças. Aos oito meses, já conhecia Cláudio, a vovó e o Dr. Teodoro que era para êle o vovô, a titia Lícia e a Babá, a minha velha Teresa.

Meu sogro morrera dois meses depois do nascimento do neto. Foi um grande abalo para nós. Cláudio passou quinze dias no Sacramento, enquanto Lícia me fazia com­panhia com sua imutável e serena dedicação. Eu não voltara mais à fazenda e pensava como seria estranha a vida lá, sem o esteio do seu chefe. Tudo fiz para ser na­tural na convivência de Lícia, mas, às vezes, não podia dominar meus pensamentos e ficava calada, abismada nos meus problemas, alheia a tudo, esquecida e distante. Por mais de uma vez, notei que Lícia me observava com curiosidade, mas nada dizia. Estimava-a ainda mais por isto, porque Lícia, com seu tato, nunca me forçou a uma confidência. Muitas vezes senti-lhe a preocupação: ela porém, não me interrogava. Conversávamos sobre meu pai, sobre velhos amigos perdidos no tempo, afastados do nosso convívio. Lembrávamos passagens do Professor Erich. Que seria feito dele? E aqueles quinze dias pas­sados assim, na serena companhia de Lícia, restituíram-me um pouco de calma.

Às vezes, eu ficava pensando no desespero que do­minara Cláudio, quando fora chamado para assistir à morte do pai, e então lembrava aquela madrugada fria e desolada em que eu saíra sozinha, varada de angústia para assistir também à morte do meu pai! Quando voltou, ainda abatido, eu soube encontrar palavras de compre­ensão e solidariedade para com êle. Por isto, quando seis meses depois falou em ir ver D. Joaninha, resolvi ir também, pois Claudinho com oito meses, já podia via­jar, ainda mais que íamos de automóvel, podendo des­cansar, quando fosse preciso. Não posso descrever a mi­nha emoção, quando no dia imediato ao da minha che­gada, os empregados, todos antigos servidores do velho Coronel vieram conhecer o menino. Sorríamos às excla­mações enlevadas do velho Tomaz, do Terêncio, do Do­mingos — aquele endiabrado Mingote da infância de Cláudio — e de todos que o olhavam como se olhassem o próprio Menino Jesus.

"Benza-o Deus" — diziam eles.

"Que forte!"

- "Que esperto!"

"Dá uns ares com o seu Coroné..."

E cada um achava um novo adjetivo para o menino que lhes sorria como se entendesse, agitando as mãos rosadas e rechonchudas.

Nos dias seguintes, deixava-me ficar na companhia de minha sogra que não se cansava de embalar o Clau-dinho, nos braços. Ou então, refugiava-me em al­gum recanto, isolava-me para pensar, pensar. Não con­seguia adaptar-me àquela vida fictícia, vida de mentiras, que esperava sempre que mudasse. Não definindo os fatores que pudessem alterar aquele ritmo, esperava ainda assim. Mas o tempo ia passando sem que sobre­viesse cousa alguma e eu continuava na mesma situação. Minha saúde parecia cada vez mais precária, a tal ponto que Cláudio me pediu que não carregasse o menino que estava muito forte e muito pesado. Eu me conformava com isto e me contentava em tê-lo quase sempre sob a minha vigilância.

Foi no Sacramento que, pela primeira vez, notei que Claudinho, embora fosse tão corado e tão grande, já com nove meses, não se firmava nas pernas.

O dia amanhecera claro e alegre e eu que sempre gostei do campo a esta hora, saí para andar um pouco Toda a natureza ia despertando nas tintas douradas do sol. Nem sei como, tomei o atalho que corta o bosque de eucaliptos, com suas árvores esguias de troncos claros e frondes altas. Caminhava ao sabor dos passos, sem des­tino. .. Também não me lembro quais os pensamentos que povoavam meu cérebro cansado. Sei que, quando menos esperava, encontrei-me na clareira, onde se ergue pequenina e tratada a casa do José do Moinho. As crianças brincavam ao sol, numa algazarra alegre. Ao me verem cessou o barulho e pararam de brincar, olhando-me des­confiadas. O menorzinho, agarrando-se aos irmãos, an­dava também, sobre as pernas rechonchudas e rosadas. Naquele momento pensei, surpresa, que o meu filho ain­da não tentara ficar em pé, como normalmente devia fazer.

—            “Que idade tem este menino?" — perguntei.

—            “Vai fazer dez meses" — respondeu a maiorzinha, desembaraçada.

"Ainda vai fazer?!"

"Vai sim senhora..."

Afaguei o garoto e continuei meu caminho, mas aquela impressão não me abandonou mais. Talvez fôssc por ser inverno e trazê-lo muito agasalhado... ou quem sabe se tê-lo sempre no colo podia atrasar-lhe o desenvol­vimento? Voltei para casa e ao me aproximar avistei D. Joaninha na varanda, olhando para a estrada. Ven­do-me, acenou-me. Apressei o passo. O passeio fizera-nií bem. Sentia a circulação mais viva.

“Então, fugiu?" — perguntou-me quando me apro ximei mais.

Subi apressada os degraus.

“Onde está Claudinho?" perguntei sem res ponder ao gracejo.

"Está dormindo, por que?"

"Nada, D. Joaninha..."

Pui ao quarto ver o menino. Êle estava dormindc sossegado, corado como um cromo, com os cabelos alou rados em volta do rosto saudável, uma suave expressãc de repouso. Descobri-o. Aparentemente nada havia de anormal. Suas pernas gordas e torneadas eram perfeita? Que tolice fora aquela, então? Somos, realmente nossas piores inimigas, pois mart?rizamo-nos com supc sições infundadas. . . Com efeito, as crianças pobres, têm que se defender desde mais cedo sozinhas e, por isto an dam antes da idade que deveriam andar. .. Devia ser isto. Claudinho era um menino forte, nunca tivera nem um resfriado desde que nascera, portanto estava me as sustando sem razão. Mas, apesar desta argumentação ao meu subconsciente, o que se patenteava era um retar damento inexplicável num menino tão bem conformado Todo o dia aquela impressão não me deixou mais. Quando Benedita o trouxe para a varanda, depois do café, tomei-o nos braços e procurei pô-lo de pé. Mas o menino não s firmava. Suas perninhas vergavam, sem resistência, bam bas, sem ação. D. Joaninha olhava intrigada. Meu olha: encontrou o seu.

“D. Joaninha, a senhora não acha esquisito Claudinho não ficar de pé?"

Ela se levantou e veio para mim com um ar de estra nheza e preocupação.

“Claudinho, pé-pé, pé-pé, para a vovó." Claudinho sacudia freneticamente os bracihhos, ri com os quatro dentinhos brancos aparecendo, mas não se firmava.

“Talvez seja preguiça" murmurou. — "É tão gordo que talvez tenha preguiça... Olhe, o filho da comadre Eulália só andou com quase dois anos. Até já pensávamos que fosse aleijado..."

Aleijado! Aquela palavra caiu como uma ducha no meu espírito atribulado. Aquela palavra concretizava toda a minha apreensão. Aleijado! Não, não era possível! Não podia ser, eu não poderia resistir a mais isto, não poderia!

—“D. Joaninha," — murmurei — "não vamos di­zer nada ao Cláudio. . . Talvez seja apenas impressão, não é? Assim não vale a pena preocupá-lo com isto..."

Minha sogra concordou, mas durante o resto do dia, ambas sentíamos tacitamente que aquela cousa não se afastava do nosso pensamento, como uma sombra que se alargava ameaçadora!

Quando Cláudio chegou àquela tarde, foi em vão que procurou derreter a tristeza glacial que sentia latente. Às dez horas todos nos recolhemos.

"Escute, Lucila," — perguntou logo ,que ficamos a sós — "que tinha mamãe, hoje?"

"D. Joaninha? Que eu saiba, nada... Passou todo o dia relativamente bem. Por que?"

"Achei-a tão acabrunhada! Aliás, você também não parece menos abatida."

Tive vontade de lhe contar, mas para que? Afinal eu não tinha o direito de perturbar Cláudio. Ele adorava o menino, mas, só eu sabia que Claudinho usurpava um lugar e um amor que não eram seus! Cláudio adorava-o. Insistiu:

"Veio alguém visitar vocês? Porque às vezes as visitas começam a falar no papai, porque fazia, porque acontecia e mamãe fica neste estado.. ."

"Não veio ninguém..." — respondi. — "Não é nada, às vezes, a pessoa está mais acabrunhada, não sei... Ainda acho D. Joaninha muito corajosa, muito confor­mada!"

Ele parece que achou razoável a explicação. Já de pijama, curvou-se sobre Claudinho e beijou-o de leve, para não o despertar.

—“Olha o bichinho como dorme!" — disse, já es­quecido das apreensões, sorrindo.

Apaguei a luz, mas não conseguia dormir. O luar clareava muito o quarto e, na meia luz, eu via os filhos do José do Moinho pulando e correndo, enquanto Clau­dinho se arrastava ansiosamente. Acendi a luz. Cláudio voltou-se, sonolento.

- "Que é, Lucila?" — perguntou.

"Não posso dormir..." —" Por que?"

"Não sei, estou nervosa."

Ele me abraçou, pousando minha cabeça sobre o seu braço.

"Nervosa, por que? Vamos, durma, eu estou aqui para protegê-la... e quando eu morrer ali está o ma chiou, futuro defensor, para continuar meu trabalho."

"Boa maneira de acalmar quem está nervosa, falando em morte e não sei mais quê..."

Cláudio riu e começou a alisar-me de leve os cabelos e assim adormeci.

Nos dias que se seguiram, porém, aquele receio cres­ceu, dominando todos os meus pensamentos. D. Joaninha também observava o menino, embora nunca mais falássemos sobre isto. E chegou afinal o dia em que, conster­nadas, tivemos que falar com Cláudio sobre aquele es­tranho sintoma. O seu choque foi enorme! Resolveu que seguiríamos na manhã seguinte para o Rio, a fim de ou­virmos um médico. À noite, após o jantar, tendo deitado o menino, procurei por êle. D. Joaninha que cismava, embalando-se de leve na cadeira da varanda, disse-me que saíra para o lado do jardim. A noite estava clara, uma noite de lua cheia. Desci a escada e, seguida de Tupã, o grande e fiel cão do Coronel, fui na direção que êle to­mara. Encontrei-o adiante, sentado num tronco derru­bado à beira do caminho, com os cotovelos apoiados nos joelhos, riscando com uma varinha traços na areia do chão.

— “Cláudio" —- murmurei.

Levantou bruscamente a cabeça, como se não me tivesse sentido chegar. Depois novamente baixou-a.

—“Cláudio, vamos entrar... está frio aqui. Você pode apanhar um resfriado..."

—“Eu queria era morrer..." — disse com voz dura.

— “Ora. que tolice. Não se desespere sem razão. Claudinho não tem nada, pode estar certo. Vamos, sua mãe está sozinha."

Mas êle obstinava-se, sem se levantar.

—“Venha, que eu também estou com frio."

— “Vai você, Lucila, eu preciso ficar só... deixe-me pensar um pouco" — e sua voz soou estranha aos meus ouvidos.

—“Está bem.

Na manhã seguinte voltamos ao Rio e logo na tarde imediata procuramos, a conselho do Dr. Teodoro, um es­pecialista de crianças.

Como foi longa a espera, numa sala de cadeiras incômodas, onde se amontoavam revistas infinitamente ma­nuseadas, sobre uma mesa ao canto. Havia dois clientes antes de nós. Uma senhora ainda moça, mas de olhos cansados de vigílias. Acompanhava-a uma outra, mais velha, gorda e morena, fisionomia autoritária, que tinha nos braços uma menina, provavelmente sua neta. A avó, de tempos a tempos, falava em voz abafada. A moça ouvia com expressão cansada, de tédio. Embora eu não ouvisse o que diziam, sentia que a velha censu­rava qualquer cousa. Do outro lado, um casal, quase crianças ambos, acompanhados de uma ama-seca, impe­cavelmente uniformizada, tendo ao colo um bebê de uns seis meses. A criança era gorda, mas estava impertinente, debatendo-se, com o rosto coberto de uma erupção grossa e feia. Súbito, a menina de outro grupo começou a tossir convulsamente e vomitou todo o chão, embora a mãe procurasse evitar com uma fralda, o desastre iminente. Comecei a pensar no inconveniente de se trazerem cri­anças com moléstias contagiosas aos consultórios e não pude mais vencer o medo de que Claudinho apanhasse coqueluche ou aquela afecção de pele, tão feia, da outra criança. A velha ficou impaciente recomeçou a arenga a meia voz. Desviei os olhos, notando o constran­gimento crescente da pobre mãe. Esperamos muito tem­po. Cláudio atravessou a sala, debruçou-se na janela, acendeu um cigarro, mas não fumou até o fim. Voltou para junto de mim, tomou Claudinho no colo. A porta do fundo se abriu e uma enfermeira chamou um número. As duas senhoras, levantaram-se e entraram na outra sala, cuja porta novamente se fechou. A outra moça, então, olhou-nos, dizendo:

—“É uma inconveniência trazer uma criança com coqueluche para o meio de outras crianças, não acha?

Sorri constrangida.

—“Às vezes, não podem chamar o médico em casa" — disse o marido.

— “O seu garoto já teve coqueluche?" — perguntou-me ainda.

— “Não," — respondi — "êle ainda não teve nenhu­ma das moléstias que as crianças costumam ter."

—            “O meu também. Agora está com esta erupção, mas o médico disse que é da alimentação. Ainda não acertamos com um leite artificial."

Ela era tão criança, com uns olhos tão cândidos e in­fantis, que eu sorri com a impressão de que brincava de mamãe, com boneca.

"E' o primeiro filho, não é?" — perguntei.

"E', sim senhora. Tem seis meses."

—“Muito forte, pena a erupção, mas isto passa logo."

"E o seu, quantos meses tem?"

"Vai fazer dez..."

"Ainda não anda?"

"Ainda não..."

Que bom que a porta se abriu naquele momento e a enfermeira chamou outro número. O casal entrou, acompanhado da ama que carregava o menino. A en­fermeira veio até o meio da sala.

"Que foi aquilo?" — perguntou, apontando o lugar onde estivera a outra família.

"Foi aquela garotinha com coqueluche" — res­pondeu Cláudio.

"Que horror! Sempre acontecem cousas assim... — e dirigindo-se para o corredor, chamou um empregado e mandou-o limpar a sala. Depois, sorriu-nos antes de desaparecer pela porta por onde entrara.

"Já estou cansada de esperar" — murmurei. Cláudio consultou o relógio.

"Quatro horas... chegamos às duas e meia."

—“Sempre tive horror às salas de espera de den­tistas e médicos" — comentei.

"Pois muita gente gosta de frequentá-las..."

"Não é possível, Cláudio."

— “Eu conheci um sujeito, que se divertia obser­vando tipos, nos consultórios..."

"Era um psicólogo?"

"Não, era um batedor de carteiras."

— “Ora, que idéia!" — disse eu rindo. — "Não sabia que você tinha destes conhecimentos..."

Ele procurava, com os gracejos, parecer despreocupado.

Chamaram nosso número. Entramos. O médico es­tava sentado em uma secretária laqueada de branco, sobre a qual vi, de relance, um calendário, um tinteiro e uma fotografia.

“Façam o favor de sentar" disse, dispondo-se a ouvir.

A ama sentou-se um pouco afastada, com o menino. Notei que o médico olhava Claudinho, enquanto falá­vamos .

“Mas... nunca levaram o garotinho a nenhum médico?"

"Tudo foi sempre tão normal..."começou Cláudio.

"Vê o senhor a vantagem de uma assistência, mesmo quando não há doenças?" concluiu o doutor.

"Meu marido é médico. . ““.”

"Ah, o senhor é colega?! Desculpe então. .."

"Não, doutor" contraveio Cláudio "eu me formei em medicina, mas nunca exerci a profissão."

"Ah! Sim, sim," fêz o outro, pensativo "mas nunca notou nenhuma anormalidade?"

"Não. 0 menino sempre gozou ótima saúde. Nas­ceu normalmente. Desmamou-se sem trabalho, dentição regular.. . enfim, não sei como explicar. .."

0 médico se levantou e pediu-me que despisse Clau­dinho. Deitou-o na mesa e procedeu a longo exame, sem­pre fazendo perguntas.

"Se, como dizem, nunca teve nem uma febre, só pode ser uma lesão congênita." — disse êle, dirigindo-se a Cláudio. "Pode vesti-lo, minha senhora."

"E que devo fazer?" perguntou meu marido.

"Aconselho mostrarem o menino a um orto­pedista ."

Saímos. À noite, telefonei ao Dr. Teodoro. Tinha caído uma chuva inesperada e êle não pôde vir à nossa casa, por causa da sua bronquite. Disse-nos, porém, o nome de um bom especialista. Iríamos no dia seguinte. Agarramo-nos a esta esperança. Jantamos em silêncio," ambos engolfados nos nossos pensamentos. Depois, Cláu­dio foi para o escritório e eu subi ao quarto de Claudinho. Êle já estava dormindo. Afastei o cortinado e fiquei con-templando-o muito tempo. Não era possível que a vida lhe reservasse um destino tão mau! Não, havíamos de encontrar um médico capaz de curá-lo. Talvez no dia seguinte, até, o que íamos consultar, risse da nossa aflição. Imaginava-o dizendo:

“Que lesão congênita, o que! Dêem-lhe este re­médio que isto não é nada!"

Mas se, ao contrário, também achasse que era um mal incurável? Não, não, não podia ser! Isto era um absurdo!

Desci e fui ao escritório ter com Cláudio. Estava debruçado sobre um grosso volume. Procurei dar à voz um tom de naturalidade:

"Que é que você está lendo?" — perguntei.

"Estava vendo nestes livros de seu pai..."

Debrucei-me também. Era a primeira vez que Cláu­dio pegava um livro da biblioteca que fora de papai. Fechei-o.

— “Não se. preocupe Cláudio. Há tantas crianças atrasadas e afinal não têm nada de mais."

— “Mas o médico falou em lesão, não foi?"

Era verdade. Fiquei relembrando todos os detalhes daquela tarde. As perguntas do médico, suas expressões. Eu tinha uma esperança inexplicável na consulta do dia seguinte. Disse isto a Cláudio. Ele, porém ficou olhando para mim, com fisionomia impenetrável e não respondeu. Colocou o volume na estante, procurou outro, tirou-o e folheou diversas páginas que lia como se procurasse uma indicação qualquer sobre o caso de Claudinho. Co­locou-o também no lugar e disse como se falasse para si mesmo:

—“E eu que andei nos maiores centros e nunca pensei em visitar um único hospital!"

Não respondi. Que poderia dizer? Naquele momento não encontrei a palavra própria para confortá-lo. Fingi que o não ouvia. Sentei-me numa poltrona, sob o abajur, e tomei um romance que estava acabando de ler. Abri-o, mas não conseguia assimilar o que lia. Abandonei-o sobre a mesinha próxima. Na copa, o relógio bateu dez horas. Como a noite custava a passar! Recostei a cabeça no es­paldar da poltrona e cerrei os olhos.

"Quer ir dormir, Lucila?"

"Não, não tenho sono."

Cláudio continuou na sua busca ansiosa. Nada dizia; talvez porque pensasse que eu estava cochilando. Pelo meu pensamento passava toda a minha vida. Era insu­portável a rememoração! Já não conseguia afastar as recordações que me assaltavam. À meia noite, subimos para nosso quarto. Deitamo-nos e embora Cláu­dio se conservasse imóvel, no escuro da noite, eu sentia que não conseguia dormir. Como era estranha a sua preocupação! Nunca esperara que alguma cousa pudesse vencer-lhe a superficialidade. A consulta do dia seguinte não teve resultado mais positivo. 0 mesmo interrogatório. Os antecedentes de Cláudio e os meus. Se havia algum caso de paralisia, de nem sei mais quê.

Cláudio respondia:

—“Não, não."

Seu pai era fortíssimo... sim, tinha morrido com sessenta e oito anos. Sua mãe gozava saúde, nunca ouvira falar em casos especiais na família. Quanto aos meus, também, nada de notável. Arteriosclerose vitimara meu pai, e mamãe morrera de uma intoxicação alimentar, com menos de trinta anos... Eu sempre fora sadia, a não ser nos últimos tempos.

0 médico ouvia atento, tomava notas, observava o menino.

Meu Deus! Como me torturava aquela comédia! Eu nada sabia de Eduardo e de seus ascendentes. De que adiantavam todas as informações que dávamos?

Mais uma vez despi Claudinho, que foi minuciosa­mente examinado pelo especialista. Eu olhava fixamente para êle, procurando ler na sua expressão alguma cousa. Ao fim, disse laconicamente a Cláudio:

— “É uma lesão congênita."

—“Sim," — respondeu meu marido — "e que de­vemos fazer?"

Ele aconselhou tratamentos específicos, banhos de luz. Ainda era muito pequenino, se não tivesse resultado, então mais tarde, poderíamos experimentar um aparelho.

Voltamos para casa, mudos de desespero, sucum­bidos. Cláudio dirigia o carro, em silêncio. Eu, então, voltei o rosto para fora, como se olhasse a rua e deixei que as lágrimas, tanto tempo represadas, rolassem duas a duas, pelo meu rosto. No banco de trás, Claudinho dor­mia no colo da ama, alheio ao seu destino que se deli­neava tão adverso! Chegamos em casa, cansados como se carregássemos o peso da nossa desventura. O Dr. Teo­doro veio depois do jantar. Pouco mais tarde chegaram Lícia e Osvaldo. Tinham-se encontrado na praia. Ficamos na sala, enquanto Cláudio e o Dr. Teodoro se fecharam no escritório para conversar.

"Cláudio tem alguma cousa?" — perguntou Lí­cia. — "Estava tão sério.. ."

"Não, Lícia, Cláudio, tem tido tantos choques, ul­timamente!"

Osvaldo vinha ver-nos, de tempos em tempos. Era sempre o mesmo amigo sóbrio e atencioso, cuja solicitude discreta me era tão agradável. Lícia estimava-o e ambas encontrávamos grande prazer na sua palestra. Nesta noite, porém, eu não podia dar atenção ao que dizia. Lí­cia percebeu que eu também estava preocupada, mas como sempre nada demonstrou.

— “E Claudinho?" — perguntou.

—“Está dormindo, abraçado com o urso de pelúcia que você lhe deu."

—“Vou espiá-lo um pouco..."

E saiu. Ouvimo-lhe os passos, subindo a escada.

—“Que conta de novo, Osvaldo?"

— “Ontem estive com Norma. Ela perguntou por vocês."

—“Ainda se lembra de nós, então?"

"Disse-me que vocês são os tipos dos pais de fa­mília e como tal, cacetíssimos!"

"Que bom!" — sorri. — "Só assim, não nos pro­curará ."

Ele ficou em silêncio, com o cigarro entre os dedos, os olhos apertados, deixando escapar lentamente a fumaça entre os lábios entreabertos por um sorriso imper­ceptível. Depois, continuou:

—“Também estive há tempos com o Glauco Mendel..."

—"E êle, já casou?"

— “Ah, você não sabia? Casou sim, com uma viúva rica, que tinha idade para ser mãe dele... talvez até avó..."

Contou diversas anedotas sobre o casal.

—“Que horror! E você? Não pensa em casar?" Ele tirou uma nova baforada do cigarro, lenta­mente. Depois fixou-me, dizendo:

—"Não, Lucila, não penso em me casar.. . creio mesmo que nunca pensarei em tal! Tenho hábitos inve­terados que teria que sacrificar. . . Tenho mesmo vocação para solteirão."   t

Lícia entrava neste momento e ouviu o final da frase.

— “Então somos dois!" — gracejou, — "eu já nasci solteirona!"

"E Sônia?" — perguntou Osvaldo.

"Sônia também desertou daqui" — respondi.

"Também Cláudio, nunca mais prestou atenção a ninguém" — disse Lícia. — "E" só Claudinho e mais Claudinho!"

Osvaldo continuava a fumar tranqüilamente, seguin­do com os olhos apertados a fumaça que subia. Cláudio veio do escritório, acompanhando o Dr. Teodoro, des-culpando-se por nos ter deixado aquele tempo todo.

—“Não se incomode, Cláudio, Lucila nos fez ótima companhia." — respondeu Osvaldo, com uma ponta de ironia.

Pobre amigo! Ele não podia suspeitar a amargura que eu sufocava para poder falar de assuntos indife­rentes, enquanto crescia a certeza do infortúnio de meu filho, contra o qual eu era impotente! Sorri-lhe.

— “É... estou, de fato, lamentavelmente monótona, foi o que você quis dizer..." — rematei com um pouco de tristeza.

Ele com sua acuidade parece que percebeu qualquer motivo profundo na minha voz, pois se voltou para Lícia, continuando a falar sobre as antigas relações. Ela ria divertida, ouvindo-o contar os casos daquele grupo, com o qual tivera pouco contato. Ouvia-a exclamar por vezes:

—“Mas que horror, Osvaldo! Ela era louca, com certeza, para dizer isto!"

Eu não ouvia o que êle contava, pois tinha a atenção presa ao diálogo que se travava entre Cláudio e o Dou­tor Teodoro, que também não podia distinguir comple­tamente. Percebi que falavam sobre médicos e vi Cláu­dio tirar um caderninho do bolso e tomar diversas notas. Depois o nosso velho amigo se despediu. Pui levá-lo até ao portão.

"Dr. Teodoro" — disse eu — "diga-me com fran­queza, o senhor acha que o que Claudinho tem pode-se curar?"

"Nada é impossível a Deus" — respondeu evasi­vamente o bom vellho.

Tive um choque. Então, já entráramos no terreno de um necessário milagre para curar meu filho? Fiquei calada, esmagada sob o peso daquela certeza.

—“Mas, não desanime, Lucila. Eu talvez não me te­nha expressado bem" — continuou êle como se lesse o meu íntimo: — "E' a medicina que há de curar o Clau­dinho, com a graça de Deus. Hoje aconselhei outros mé­dicos a Cláudio. Vamos ver se são mais optimistas."

Beijei-o afetuosamente. Ele entrou no carro, bateu a porta e ainda me deu adeus, pelo vidro de trás. Demo­rei-me no portão, olhando a rua comprida, com os globos acesos, movimento escasso àquela hora.

Que seria feito de Eduardo? Muitas vezes, perdia o sono imaginando que pensaria de mim na sua volta dc Londres, não me encontrando à sua espera... Escrevi inúmeras cartas, mas nenhuma me pareceu boa. Era inexplicável, inqualificável, o que eu fizera com êle! E agora que a fatalidade me marcara para cumprir uma pena tão dura, recordava sempre uma tarde, em que me dissera emocionado, quando lhe falei que receava o fu­turo:

— "Lucila, não tenha medo. E' natural que você o tema, mas pense em mim, querida. Eu aqui estou para afastar tudo o que possa perturbar o seu sossego."

E, no entanto, era o seu filho, aquele filho que êle ignorava, que involuntariamente afastava do meu ca­minho toda a possibilidade, não de felicidade, mas da mínima alegria! E nunca mais poderia ser feliz!

Voltei, caminhando devagar pelo caminho de areia branca que atravessa o jardim, entre dois quadrados de grama verde e tratada. A areia rangia sob meus passos com seu ruído próprio. .. No platô da direita uma acá­cia imperial estendia os galhos, dos quais despencavam cachos oscilantes. Lá no fundo, do lado esquerdo, erguia-se o meu caramanchão de roseiras. Eu tinha trazido as roseiras do Sacramento e pegaram todas as mudas. Tam­bém trouxe violetas i dobradas, mas não consegui nem um pezinho. Que tolice pensar nestas cousas agora! Eu precisava era pensar em Claudinho! No dia seguinte iría­mos a outro médico. Como seria este? Velho? Moço? Que importava? Importava que algum deles, desse, pelo menos, um pouco de esperança. Subi á escada, atravessando a varanda e quando entrei, ouvi a voz de Cláudio conver­sando e estranhei-lhe o timbre. Perdera a cor, soava neutra, talvez cansada. Lícia e Osvaldo, notariam tam­bém esta mudança, ou era aos meus ouvidos que ela soava assim? Comecei a sentir uma vaga piedade por Cláudio. Ele adorava o Claudinho e com isto talvez apa­gasse as culpas passadas!

Conversamos até dez e meia sobre assuntos alheios àquela preocupação que nos martelava a cabeça. Não sei se eu estava impressionada, mas acabei achando Os­valdo e Lícia também tristes, como se ficassem conta­giados. Os dois saíram a pé, conversando. Da esquina ainda se voltaram, acenando adeus. Entramos então. Cláudio parou diante do gramado.

“Mandei fazer este gramado para Claudinho brin­car, lembra-se?"

Fiz que sim com a cabeça. Continuamos em silêncio, com o crac-crac da areia sob nossos passos e o barulhinho do repuxo, caindo sobre a água da bacia. Lá estava o grande sapo- de porcelana, olhando extasiado aquele es­guicho fino que se desmanchava em salpicos, empolando a superfície do tanque. Claudinho sacudia os bracinhos, gritando alegremente quando via o sapo.

Levantei os olhos para o céu, procurando encontrar a emoção que nos faz crer em seres imponderáveis governando o nosso destino. Mas o céu era apenas uma abóbada infinitamente grande e escura, cheia de pontos luminosos, como furmhos no toldo de um circo monu­mental! Sim, um circo.. . O mundo não era mais que um circo, povoado de palhaços tristes e inconscientes, de feras amansadas à custa cie chicote, de heróis de fancaria, de equilibristas.. . enfim toda uma companhia, levando a sério o seu papel, no espetáculo interminável da vida!

Antes de nos deitarmos passamos pelo quarto de Claudinho. Teresa estava sentada junto da caminha, des fiando o seu terço que já rezava maquinalmente.

“Vai deitar, Teresa, quase onze horas..." Ela dormia num quarto contíguo ao do menino.

“Deixe acabar de rezar a novena, menina, é para o Claudinho crescer forte."

Eu ainda não pensara na pobre Teresa, sofrendo também conosco, também tomando parte naquela pro­vação .

“Então, até amanhã, babá..." disse refc-rando-me.

Cláudio estava fumando na sacada do nosso quarto, que ficava sobre o jardim. Uma bougainville vermelha subia enroscando-se nas grades de ferro, muito decora­tiva, com seus festões. As cortinas leves, caídas, enfu-navam-se ao vento fresco da noite. Fui para o quarto de vestir e de lá voltei já de roupão. Êle acabara de fumar e continuava imóvel, com aquela mesma atitude em que eu o surpreendera no Sacramento, aquela noite, quando me disse que queria era morrer. Deitei-me. De onde .estava podia vê-lo pelas costas. Êle fumou mais dois ci­garros. Por que fumaria assim seguidamente? Os homens acham um derivativo para suas preocupações no cigarro. Mas aquela não era preocupação que se evolasse com a fumaça que ia se esgarçando no ar...

Como a casa estava em silêncio, ouvi o relógio da copa bater meia-noite.

Eu tinha comprado aquele relógio em Paris. Era uma manhã fria e saí para encontrar Eduardo. íamos visitar o museu de cera, depois do almoço. Antes, que­ríamos porém, andar sem destino, entrando nas lojas mais modestas, comprando inutilidades, lembranças. E comprei o relógio. O dono da loja, regateou muito co­migo, mas eu estabeleci um preço e na terceira investida para sair sem comprar, êle aceitou a minha oferta, cheio de lamentações.

—“Todas as vezes que êle bater as horas, hei de me lembrar de você" — disse eu a Eduardo.

— “Não é preciso, estaremos juntos, sempre." Fiquei um pouco calada, como se o pressentimento

de tudo que aconteceu depois, me roçasse a alma naquele momento.

"Cláudio, meia-noite, venha deitar..."

"Já vou.

Mas continuou imóvel. Meia-noite!

—"Você parece Cinderela, sempre foge à meia-noite. . ."

Meia-noite! Que estaria fazendo Eduardo? Pensei nas. suas esperas ansiosas, quando o correio lhe le­vasse cartas e procurasse, em vão, reconhecer minha letra no envelope. Pensei nele, vagando pelas ruas, na volta de Londres, depois de telefonar para o hotel e saber que já tínhamos partido. Que pensaria? Talvez sua mãe estranhasse a sua tristeza e perguntasse a razão. Quem sabe se não lhe contaria? Não, talvez não contasse e ela ficasse preocupada, perdendo horas de sono, pensando* na mágoa indevassável do filho... E se contasse? Ela ficaria surpresa de que alguém pudesse fugir de Edu­ardo, depois de se saber amada por êle. Talvez, no íntimo, ' detestasse quem causava tanto mal a êle. .. Eu então comecei a lutar para afastar estes pensamentos do meu cérebro e dormi exausta, mergulhando num sono fundo e vazio. como aquele que me envolvera depois do meu atropelamento! Ah. se eu pudesse dormir outra vez, mui­tos dias, como naquela ocasião! Mas não, no dia seguinte, acordei para recomeçar minhas lutas íntimas.

Cláudio saiu a negócio, prometendo-me vir almoçar.

Passei a manhã com Claudinho. Eu mesma dei o banho nele e o vesti. Teresa protestava.

"Olhe, menina, o senhor doutor, não quer que a menina carregue êle."

"Você está é com ciúmes, Teresa.. . Deixe estar, êle pode gostar das duas, não há de ser um dia também que vai alterar a minha saúde..."

"Está bem, está bem..."murmurou ela, sa­indo arreliada com a minha velha rebeldia.

Cláudio chegou ao meio dia. Almoçamos quase em silêncio, já prontos para sair.

“Teresa, diga à ama-sêca para almoçar depressa, que temos hora no médico."

Ela sumiu para o interior.

"Coitada, ela fica cheia de ciúmes, mas não pode mais sair para carregar o menino. Êle está tão pesado" comentei.

"Você também não deve carregá-lo" respondeu Cláudio, olhando-me atentamente. "Aposto que se cansou hoje, está com umas olheiras..."

"Ora, peguei só um pouquinho nele. . “.” — res­pondi. "Afinal uma vez ou outra não faz mal, não é?"

Êle não respondeu, erguendo os ombros mos­trando que eu devia resolver. Saímos. Claudinho ficava sempre contente, quando saíamos. Cláudio gostava de dirigir e eu ia ao seu lado. Às vezes levava meu filho comigo, outras, deixava-o ir atrás no colo da babá.

"Quem é o médico que vamos ver hoje?" per­guntei depois de algum tempo.

"E' um professor da Faculdade. . . também orto­pedista, o Dr. Teodoro recomendou-o."

"E onde você foi hoje, pela manhã?" perguntei .

Êle ficou em silêncio e depois respondeu sem me olhar, como se a atenção estivesse presa no caminho que fazíamos.

“Estive no hospital, com o Dr. Teodoro..." Nada mais perguntei. Passou-me pela memória

aquela espécie de repulsa que Cláudio sempre tivera pelos males alheios. Muitas vezes quando conversávamos sôbrc a sua carreira de medicina, dizia-me que estudara para fazer a vontade ao pai, mas não encontrava nenhuma atração na medicina. Repugnava-o o cheiro dos desin-fetantes de que sempre está saturado o ambiente dos hospitais. E, urh dia, explicou-me:

- "Eu gosto de tudo quanto é bonito e agradável, Lucila. Nada posso contra os eternos males da huma­nidade! Que adianta curar uma úlcera hoje, quando mi­lhões de criaturas, apodrecem no mundo inteiro sem assistência?"

"Se todos pensassem assim, seria maior ainda o número dos desgraçados, morrendo à míngua de trata­mento" — respondi.

"Qual! 0 médico já nasce médico, pode estar certa. Eu sempre tive horror aos males físicos, não suporto o espetáculo da dor! No entanto, tive colegas que andavam desencavando toda série de doenças para curar, sem pro­veito próprio algum, além da prática. .. Estes eram os médicos de nascença. Eu não!"

E no entanto, agora, êle fora, vencendo aquela aver­são, espontaneamente ver um hospital. Como as contin­gências da vida modificam as criaturas — pensei. E mer­gulhada nestas idéias, chegamos ao consultório, onde ou­viríamos a terceira opinião sobre Claudinho. A mesma espera longa e monótona das vezes anteriores e. depois, o mesmo rosário de perguntas: as doenças que havia na família, de que tinham morrido nossos pais, enfim, um interrogatório martirizante! Depois o exame minucioso, sob o nosso olhar ansioso e esperançado. A ruga que se formou na testa do médico foi o primeiro sinal de desa­lento. Ficamos suspensos da sua palavra.

— "Pode vesti-lo" — disse-me, e se dirigiu pensati­vamente para a mesa.

Sentou-se, tomou uma faca de marfim, para cortar papéis, com a qual ficou batendo de leve na mesa, sem pressa, ignorando a nossa presença e a nossa aflição.

Olhei para Cláudio. Ele esperava, parecendo calmo, mas notei que apertava os dedos cruzados, nervosamente.

— “Então, doutor?" — perguntou.

O médico encarou-o surpreso, como se viesse de longe.

"É na minha opinião, uma lesão congênita... O senhor disse que o parto de sua senhora, foi normal, não é?"

"Normalíssimo. Eu estava um tanto receoso por causa de Lucila..."

—“Que tinha ela?"

—“Como disse ao senhor, seu humor sofria alte­rações chocantes. A maior parte do tempo queria estar só, chorava sem motivo."

-E o médico, que disser

"Consultei mais de um. Foram de opinião que este estado acomete muitas vezes as gestantes sendo, em geral, sem conseqüências."

Ele sacudia aprobativamente a cabeça.

; de fato, é comum."

"Quer dizer que isto não deve ter influído?"

"É pouco provável... creio que poderíamos mes­mo garantir que não influiu. Ambos fizeram tratamentos específicos?"

"Fizemos. Minha senhora é filha do Dr. Silvério Bastos e êle mesmo tratou-a, antes do casamento." — respondeu Cláudio.

"É verdade, o Teodoro me disse." E, noutra tom: — "O Silvério, bom amigo, ótimo profissional!''

Senti a garganta apertada. E muito intimamente pensei que era bom meu pai já ter morrido, porque assim, estava afastado do desgosto de assistir a tudo aquilo.

Mais uma vez voltamos para casa, sem o consolo de uma esperança. E ainda era apenas o princípio da nossa peregrinação pelos consultórios de tantos médicos, onde tudo corria sistematicamente igual. íamos deixando na­quelas consultas a reduzida fé que ainda nos restava na ciência tão limitada dos homens. Apesar de tudo não deixávamos de tentar. Continuamos procurando todos os médicos que nos indicavam. Clínicos, pediatras, orto­pedistas, endocrinologistas... Cláudio, por seu lado, atirara-se ao estudo, varando as noites debruçado sobre os livros, acompanhando o Dr. Teodoro todas as manhãs ao hospital e ao consultório, como se quisesse reaver o tempo perdido e disto dependesse a cura de Claudinho. Dois meses depois começaram a chegar, endereçadas a ele, aquelas cartas e revistas médicas que meu pai re­cebia regularmente.

Às vezes Cláudio chegava durante o dia, deixava o carro encostado no portão e dizia:

—“Lucila, você pode vestir depressa o Claudinho e se aprontar também?"

Eu fazia-lhe a vontade, antecipadamente amargu­rada com a perspectiva de uma nova desilusão. Já no carro, perguntava quem era o novo médico.

— “É um paulista. Volta amanhã, queria que visse Claudinho."

Outras vezes eram sumidades estrangeiras, cientistas, de projeção mundial. Mas o resultado era o mesmo.

Claudinho á sendo submetido a tratamentos dolorosos, de injeções, muitas causando reações que o abatiam. E o pior é que quase sempre o novo médico discordava da terapêutica do anterior, deixando-nos desorientados.

Lícia, que já sabia da nossa amargura, mais uma vez mostrou-se de grande dedicação. Passava quase todas as manhãs comigo, pois os médicos aconselhavam banhos de sol e, na praia ou no jardim, tinha sempre sua com­panhia.

Minha sogra veio passar conosco o primeiro aniver­sário de meu filho. Fizemos uma bonita festa para ele. Mandei enfeitar todo o quintal, com guirlandas, balões e lanternas. Osvaldo e Lícia foram incansáveis. Recebi an­tigas relações e só então conheci os filhos de Norma, um casal de cinco e quatro anos, muito galantes, os três me­ninos de Jacy e toda a petizada que encheu a casa de ale­gria e algazarra, até oito horas da noite. Houve números de prestidigitação e um palhaço que divertiu a garotada.

Meu filho estava lindo! Muito corado de excitação, estonteado com tanto barulho, tanta gente estranha e quando terminou a festa ficou até tarde sentado no ta­pete da sala, entre os brinquedos que recebera, fazendo-nos rir com sua carinha expressiva. Nós também nos sentamos no chão com ele e Cláudio pegava os bichos de veludo, de olhos redondos de vidro, fazia-os vir cum­primentar o aniversariante, andando aos pulinhos, fa­lando com voz de falsete, o que fazia Claudinho rir em gargalhadas gostosas, jogando a cabecinha encacheada para trás, com os olhinhos brilhantes. Ríamos também, esquecidos momentaneamente da nossa tristeza.

—“Cláudio, dez horas, Claudinho precisa dormir." Mas o menino choramingou quando a babá quis le­vá-lo. Cláudio interveio:

— “Eu mesmo faço o garoto dormir. Vamos, meu filho, com papai. Vamos levar o macaco preto. Ele vai-se chamar Mingóte, como o Domingos."

O menino esfregou as mãos rechonchudas nos olhos sonolentos, mas foi com Cláudio. Já no alto da escada, parou um pouco, dizendo:

—“Dá adeus a mamãe e a vovó, filhinho. Mas o menino escondeu a carinha no ombro de Cláudio, protestando.

— “Deixa, Cláudio, ele está com sono" — disse Dona Joaninha.

Desde aquela noite foi sempre Cláudio quem deitou meu filho, fazendo-o rezar, quando ficou mais crescidinho, aconchegando-lhe as cobertas no inverno, inventando lon­gas histórias fantásticas, para adormecê-lo.

Eu via crescer aquela adoração recíproca, sem mais poder definir a emoção que ela me causava.

0 Dr. Teodoro não desanimava de curar o menino. Visitava-nos quase diariamente e procurava dissipar o desalento em que eu caía, à proporção que o tempo pas­sava sem resultados concretos.

Entretanto, o menino era forte e vivo, de inteligên­cia acima mesmo do comum, na sua idade.

Festejamos também o seu segundo aniversário, que foi tão alegre como o anterior. Neste dia, amanheci an­siosa e perturbada, imaginando a surpresa e talvez a curiosidade de certos conhecidos nossos, que ainda igno-ravam a moléstia de meu filho. Dispus tudo de maneira que ele não precisasse locomover-se muito. Mas a festa correu sem incidentes. Claudinho estava lindo, todo ves­tido de seda azul. Quando terminou a mesa de doces, Osvaldo adiantou-se com naturalidade e disse:

— "Venha no colo do titio, Claudinho."

Ele nunca poderá avaliar a gratidão que este gesto tão simples, fez nascer em meu coração. Evitou uma situação desagradável, pois naquele momento todas as crianças, correram para se acomodar no quintal, diante do palco improvisado, e as pessoas que ainda não sabiam, continuaram ignorando que meu filho não podia andar. Quando os convidados saíram, quase nove horas. Clau­dinho dormia sobre o sofá da sala, cansado e feliz. Es­tava corado e lindo, as mãozinhas abandonadas, os lábios entreabertos, os cachos sedosos espalhados na almofada em que pousara a cabeça.

—"Olhem que quadro mais lindo!" — exclamou Jacy. parando diante da criança adormecida.

Vieram todos admirar, cheios de exclamações co­chichadas, para não acordar o menino. Lícia foi a úl­tima a se despedir. Fiquei ainda conversando com ela, no portão. Quando entrei Cláudio já subira, levando Claudinho para deitar. Entrei despreocupadamente no quarto, sem ruído. Ele deitara o menino e estava parado junto da caminha. Só me pressentiu quando cheguei muito perto. Voltou rapidamente o rosto e se dirigiu para a janela, mas eu vi que estava com os olhos mo­lhados de lágrimas. Senti um baque no coração e voltei sobre meus passos, sem encontrar a palavra de consolo; que nos identificaria naquela dor tão grande!

Quando me deitei, ele ainda se demorava junto de meu filho. Piquei de olhos cerrados. Sentia-me no ex­tremo de minhas forças. Eu não podia mais sofrer! Cláu­dio se deitou em silêncio. Supondo que eu dormisse, movia-se cautelosamente.

"Cláudio..." — murmurei.

"Você não está dormindo?"

"Não. Teresa mudou o pijama no Claudinho?"

"Ela e eu."

—“Cláudio, eu não posso mais!" — e comecei a so­luçar em grandes soluços estranguladores.

Ele me deixou chorar por algum tempo. Apenas pas­sou o seu braço por cima de mim, puxando-me.

— “Tenha fé, Lucila, Claudinho há de ficar bom."

— “Já não espero mais nada! Dois anos! Daqui por diante será pior! Eu não posso resistir a isto!"

Esteve um longo tempo calado, depois disse:

"Deus é bom, Lucila, peça a Deus..." Mas eu o interrompi:

"Eu não acredito em Deus!"

—“Lucila, é preciso acreditar. Você tinha fé, por que descrê agora, quando mais precisamos dele?" — -sua voz era grave, pausada.

Não pude responder. Estava sufocada pelas lágri­mas. Ele continuou:

"Se Deus não existisse, nós não teríamos o nosso filho."

"Se existisse, Claudinho não seria um inválido!"

"Querida, não blasfeme. Tudo o que acontece tem uma razão qualquer... Às vezes, nós não conseguimos descobrir esta razão, mas ela existe! Nada acontece em vão. Nenhuma lágrima, sinceramente chorada, é em pura perda. Eu tenho culpas a espiar... e nada me podia ser mais doloroso do que ver meu filho assim e você sofrendo."

"Não! Eu não creio que os filhos paguem os pe­cados dos pais! Isto não seria justo!"

"Não vamos discutir o que Deus determinou. Não está ao nosso alcance entender porque acontece tudo o que acontece."

Todas estas cousas, partindo de Cláudio soavam-me estranhamente. Eu não conseguia encontrar conforto na religião que fora minha, enquanto Cláudio se refu­giava nela! Deixei que falasse. Êle me acariciava os ca­belos lentamente.

"Veja se dorme, Lucila, você está cansada."

"Eu preferia que Deus me mandasse as piores do­enças mas poupasse o meu filho. . . 0 único que não tem culpas a pagar é justamente o que vai pagar mais duramente!"

"Você não tem também, querida... Só eu sou responsável pela infelicidade de todos! Só peço a Deus que me dê resignação."

Aquilo era insuportável! Se Deus existia mesmo, por que não me dava o descanso da morte? E fiquei esmagada, imaginando que até a morte me repudiava para aumentar me o castigo! Eu não podia fugir ao meu destino, era inútil!

Pelo menos, se eu não moresse, Deus podia tirar-me a razão: eu não teria mais a tortura do raciocínio... Continuaria a viver como as pedras, ou as cousas que existem porque existem! Mesmo os animais irracionais, têm o instinto que pode fazê-los sofrer, por isto eu queria ser uma pedra, ou uma árvore, ou um rio! Mas não, eu não morria nem enlouquecia! Tinha que pagar cada mi­nuto da felicidade que tomara sem ter este direito, com meses e anos de tortura! Não era só a vida sacrificada de meu filho, era a transformação que se operava em Cláudio. Se êle continuasse a vida de dissipação, de irresponsabilidade, se eu tivesse que carregar sozinha aquela cruz, penso que ela me pesaria menos!

Às vezes era Osvaldo quem indicava um médico. Mais de uma vez foi conosco à consulta. Claudinho ia ficando muito agarrado a êle, que sempre lhe trazia um agrado qualquer, contava histórias, que ia ilustrando ha­bilmente. Tenho muitos álbuns de figuras feitas por Os­valdo, que é um grande desenhista. Sua paixão é a pintura, mas a família não podia conceber um artista entre seus membros. Abriram-lhe uma guerra tenaz. Osvaldo formou-se em direito, mas nunca advogou. Sua mesa é uma prancheta. Os livros de leis, amontoam-se empoeirados e esquecidos nas prateleiras, enquanto êle, que é independente e agora sozinho, vai criando perso­nagens cheios de "it", zombando das leis das criaturas vivas. Lembro-me de um dia em que conversávamos:

—            “Nenhum de nós consegue ser o que realmente desejaria..." — disse-me pensativo. "Você, por exem­plo, é musicisfa inata, fêz um curso brilhante, e agora nem ao menos toca para os amigos. Eu queria ser pintor. Lutei por isto, mas o carrancismo de meu pai impediu-me que seguisse o caminho da minha vocação. Hoje sou um mau advogado, aliás, não exerço a profissão, porque não me interesso por lógicas tão convencionais, compiladas em livros, nem sujeitaria o meu raciocínio às deduções alheias."

Continuou fumando, algum tempo em silêncio, de­pois perguntou:

— “Você não toca mesmo?"

— “Não, Osvaldo... A música passou a me causar reações dolorosas... não sei explicar."

Envolveu-me num olhar cheio de piedade e sim­patia.

—“Você deve vencer esta impressão."

Ele não podia suspeitar o motivo daquelas reações. 'Não, não podia! Eu estava irremediavelmente só, com a minha amargura e a minha culpa! Se eu pudesse dizer a alguém... mas não podia isto também fazia parte da minha provação.

Cláudio entrou com Claudinho no colo.

“Titio! Titio!" — gritou meu filho, estendendo os bracinhos para Osvaldo.

Ele o tomou sorrindo e dizendo: — "Cuidado para o papai não ficar com ciúmes!" Rimos. Cláudio sentou-se junto de mim.

— “Embora a preferência seja escandalosa, não tenho ciúmes... talvez herdasse isto de Lucila."

"Isto, que?" — perguntei.

"A simpatia pelo Osvaldo."

"Será que você tem ciúmes da nossa amizade?" — inquiri.

"Se tivesse não seria nada de mais. Osvaldo tor­na-se cada dia mais romanesco, com seu ar displicente, sua serenidade impressionante... você, Lucila, é uma mulher inteligente, bonita..."

"Que é isto, Cláudio? Nunca o vi tão galanteador! Aliás, não gosto que me chamem inteligente, não gosto..."

Osvaldo ficou em silêncio, com os olhos presos na fumaça que subia enroscando-se ou esgarçando-se no ar. Senti que se recordava de alguma cousa. Desviei o olhar do seu rosto expressivo. Através de minha vida de sofrimento, sinto a presença do seu afeto, tão bom como. para o caminhante que vem exausto por uma estrada cheia de sol e encontra a sombra fresca de uma árvore frondosa.

"Você janta conosco, Osvaldo?" perguntou Cláudio.

"Janta sim" — apressei-me em dizer. "Lícia também nos fará companhia."

"Por que você e Lícia não se casam?" pergun­tou Cláudio sorrindo. "Seria um casal adorável!"

"Porque ambos estamos presos a mundos íntimos, onde se desenrola uma vida subjetiva, muito nossa. Eu seria sempre um estranho no seu mundo, se conseguisse penetrá-lo e ela também se sentiria demais no meu, com­preende?"

"Então, quer dizer que existe outra?" per­guntou Cláudio, divertido.

"Subjetivamente, quem sabe?" respondeu êle.

"Vêem, não errei! Está mesmo romântico! For­mou um ideal e acabou-se!"

"Quanto ao meu ideal, não podia interessar a vocês... mas o principal é que Lícia nem sequer me nota! Portanto é pena que não possamos realizar o tal casal adorável que Cláudio imaginou."

"Pois é pena" suspirou meu marido.

"Por que? Será que você se sentiria mais seguro,' vendo-me casado?" gracejou Osvaldo.

"Quem sabe?" respondeu Cláudio rindo.

"Lucila é um tabu, pode ficar certo, Cláudio"

—            contraveio Osvaldo.

“Não garantiria por ninguém mais."

Senti o sangue subir-me ao rosto e pretextando uma ordem que esquecera, saí da sala. Quando ia atrvaessando o hall, ouvi a voz de Lícia, chamando-me. Parei.

—            “Vocês não se interessam pela correspondência?"

—            perguntou alegre, escondendo a mão esquerda nas costas.

"Por que?"

"Encontrei esta carta para você, na caixa, e cora selo estrangeiro. . ."

Não sei porque, meu coração bateu tão forte que senti uma vertigem. Por um momento pensei que a carta pudesse ser de Eduardo. Penso que empalideci pois. Lícia olhou-me com espanto. Passei a mão gelada pela testa, molhada de suor frio.

“Você está sentindo alguma cousa?" perguntou ela tentando amparar-me.

— “Não é nada, Lícia, tenho tido estas vertigens, nada de cuidado."

Tentei sorrir.

—“Vê? Já passou."

Ela porém não parecia tranqüila.

"Sente-se um pouco. Cláudio sabe disto?"

"Para que? Já tem suficientes preocupações... Isto não vale nada. Talvez eu esteja um pouco cansada."

Lícia tinha posto a carta sobre a mesa. Olhei e re­conheci a letra do Professor Erich. Respirei aliviada. Tomei docilmente uns goles de água que eja fora buscar.

"E Claudinho, como vai?" — perguntou.

"Já sabe chamar pela Dindinha."

Lícia e o Dr. Teodoro são os padrinhos de meu filho.

—“Ele está tão engraçadinho!" — disse ela. Baixei a cabeça com tristeza.

— “Lucila, você precisa vencer esta tolice de ima­ginar que a doença do Claudinho é pior do que é na verdade. Graças a Deus ele é um menino de mentali­dade normal e inteligência acima mesmo do comum para a sua idade. O fato de não poder andar não impede que ainda tenha um destino brilhante. Temos o exemplo de uma grande e poderosa nação, governada por um homem que igualmente não pode andar! Ele não precisou das pernas para entrar na Casa Branca, usou apenas a in­teligência ."

Isto era verdade mas até que ele .se tornasse um homem, tinha que atravessar a mais triste infância, preso a uma cadeira, sem poder correr como os outros meninos e talvez se tornasse precocemente refletido e resignado. Não disse nada a Lícia. Para que?

—“Bem, vamos ter com Cláudio, aliás, Osvaldo tam­bém janta conosco."

— “Ótimo!! Gosto de conversar com ele."

E entramos na sala, onde encontramos o Osvaldo com Claudinho no colo, conversando. Eu pegara a carta do Professor Erich.

— “Cláudio, adivinha quem nos escreveu?" Ele me olhou interrogativamente.

"O Professor Erich. Depois de quase dois anos é uma surpresa!"

"Ele nunca se esqueceu de você." — comentou Lícia. — "Quem se esqueceria?"

—“Vocês me puseram na berlinda, hoje?" — per­guntei, querendo dar um tom natural à voz.

Felizmente Teresa chamou para o jantar naquele momento. Quando íamos passando por ela, murmurou para o Osvaldo:

“Eu mesma fiz o seu prato predileto." Êle pousou a mão no ombro da velha:

“Você nunca se esquece de me agradar, Teresa. Muito obrigado."

0 jantar foi agradável com a conversa variada de Osvaldo e Lícia. Cláudio estava também bem humorado. Quase à sobremesa, a ama apareceu na porta com Clau-dinho.

“Dá adeus a todos, Claudinho" dizia. Êle sacudiu os bracinhos, rindo alegre.

"Mude a roupinha nele que eu subo para deitá-lo" recomendou Cláudio. E voltando-se para nós, depois que saíram: "Li hoje que o Professor Voronoff vem aí. Estou com vontade de mostrar-lhe o Claudinho."

"Mas não é a especialidade dele, é?" perguntou Osvaldo que pouco sabia de medicina.

"Bem, é um endocrinologista. Se o motivo da ina­ção das pernas de Claudinho, tiver alguma relação com as glândulas..."

Fiquei calada imaginando o que diria mais aquele médico. Não adiantava nada a opinião de mais um ou mais dez. Eu não acreditava mais em cousa alguma. Nem no poder de Deus, nem na ciência dos homens. Tudo isto eram embustes com que os sofredores pro­curavam desviar a atenção do motivo de suas penas. Agarravam-se a Deus, esperando que êle se lembrasse de olhar do alto da sua grandeza incomensurável para o nosso ínfimo destino! Como se o lapso de tempo que passamos na terra pudesse ter importância na eternidade! A única libertação que eu esperava era a morte! Só então deixaria de sofrer! Que ao menos pudesse morrer depressa, sem sofrer muito...

Eu estava tão mergulhada nos meus pensamentos que até me assustei quando Lícia colocou diante de mim uma xícara de café.

“Você estava tão longe, que eu mesma servi para não esfriar. Depois Cláudio não pode esperar, tem que ir correndo para junto do filho." disse ela, risonha.

Tomamos o café e fomos em seguida para a varanda. Acendi um abajur e li a carta do Professor Erich em voz alta. Depois ficamos falando sobre êle. Osvaldo, que não o conhecera, ouvia interessado, pedindo de­talhes.

"Que tipo curioso!" — disse.

"Muito interessante mesmo" — confirmou Lícia. E o resto da noite passamos rememorando velhos

tempos e velhos amigos... Quando saíram, fiquei ainda pensando naquele passado já tão remoto e tão tranqüilo, um passado que me parecia um sonho de felicidade, um paraíso perdido!

 

O tempo continuou passando, sem que os dias nos trouxessem maior esperança de cura para Claudinho. Apesar disto não deixávamos de fazer todos os trata­mentos que nos iam indicando. Massagens elétricas, aparelhos, banhos de luz, enfim, tudo quanto a ciência vai inventando, aplicamos. Nem o Dr. Voronoff, nem outros que vieram em seguida, lograram melhor resulta­do. Aliás, nada garantiam. E nesta busca ansiosa, pas­saram-se mais dois arrastados anos.

Não festejamos o quarto aniversário de Claudinho porque D. Joaninha morrera de repente, de um colapso, dois meses antes. Ela estava-se preparando para vir como todos os anos passar dois ou três meses conosco. Nós insistíamos sempre para que viesse ficar em nossa casa, mas não quis deixar o Sacramento.

Recebemos a notícia durante a noite, dada pelo Domingos. Acordamos sobressaltados com a campainha do telefone. Eu atendi e embora a ligação estivesse pés­sima, reconheci logo a voz. Fiquei com o coração aos trancos, a respiração suspensa, mas nunca pensei que estivesse tudo acabado. Quando ele me disse que D. Joaninha acabara de falecer o sangue fugiu-me das veias e deixei cair o fone. Tive uma daquelas vertigens que se tornavam cada vez mais freqüentes. Cláudio então tomou o telefone e recebeu a notícia do próprio Domin­gos. Quando voltei a mim, vi o seu rosto inclinado so­bre o meu e senti a pressão dos seus dedos frios, no meu pulso. Reagi. Teresa também ali estava, com um copo de água na mão, trêmula e assustada.

"Oh! Cláudio" — disse eu, emocionada.

As lágrimas começaram a cair duas a duas pelo meu rosto. Ele me abraçou sem uma palavra. Senti que não podia falar, apenas me estreitou muito, como se buscas­se um amparo. Com um esforço grande me refiz.

- Teresa, que horas são?"

"Quatro e meia".

"Chama depressa o Leonardo, Cláudio precisa ir já para o Sacramento".

"Mas que aconteceu, menina?"

“D. Joaninha, Teresa, D. Joaninha morreu"e novamente rompi em soluços.

A pobre velha, também emocionada, saiu às pressas, do quarto, para chamar o Leonardo e fazer um café. Cláudio vestia-se aparentemente calmo. Ajudei-o a vestir o sobretudo e meti na maleta alguma roupa indispensá­vel.

“Telefone cedo para Lícia vir ficar com Lucila, ouviu Teresa?" recomendou ao sair.

Levei-o até o carro. Abracei-o, sentindo uma infi­nita pena dele! Retribuiu-me o abraço e beijou-me tam­bém muito demoradamente.

“Cuide de sua saúde. Nada de excessos, de car­regar o Claudinho ou ficar subindo e descendo a escada."

Abraçou-me ainda e entrou no carro ao lado do Leonardo.

“Cuidado também por estas estradas!"

O carro arrancou, sumindo na esqquina, na madru­gada fria. Entrei, pensando naquela viagem que pare­ceria interminável, por estradas sem fim, sabendo que no seu término teria apenas o consolo de fechar o cai­xão de sua mãe.

Chorei longa e desconsoladamente, sentada numa cadeira num canto do hall, embora Teresa procurasse confortar-me e fazer-me deitar.

Lícia chegou às oito horas e ainda me encontrou ali, abatida e aniquilada. Pediu-me detalhes e mostrou-se penalisada com o choque de Cláudio.

“Mas porque este empregado foi logo dando a notícia assim, sem preparar vocês?"

"— Coitado. Êle também estava atordoado. Eu imagino o que terá sido aquilo! Felizmente os criados são antigos e fiéis".

Ficamos caladas, imaginando aquele drama distan­te, no meio da noite.

Lícia porém procurou distrair-me o espírito, con­versando sobre outros assuntos e subimos para o meu quarto, onde me deitei para descansar.

“Você precisa consultar um médico sobre estas vertigens, Lucila" advertiu ela preocupada.

— “Isto não é nada. Foi o susto."

Nem sei como dormi sob a vigilância de Licia. Acordei muito tempo depois. Fiquei deitada, procuran­do concentrar-me sobre a hora e o que se passava. Lem­brei-me de D. Joaninha e de Cláudio. Levantei-me in­disposta, com a cabeça pesada, a boca amarga. No hall, encontrei Teresa que andava nas pontas dos pés.

"Que horas são Teresa? — perguntei.

"Quase duas, menina... quer almoçar?"

"Nem me fale em comer... vou é tomar um ba­nho. E Claudinho?"

"Dormiu há pouco. D. Licia desceu inda agorinha".

Desci em seguida e encontrei Licia me esperando na sala de almoço.

— “Você precisa alimentar-se, Lucila. Mandei fa­zer uma canja".

— “Não tenho vontade".

— “Mas precisa. Cláudio telefonou recomendando que cuidasse de você. Chegou bem".

Não respondi. Sentei-me e tomei a canja maquinal­mente. Licia também ficou calada, deixando-me pen­sar. À noite o Dr. Teodoro veio visitar-nos. Conversou muito conosco e fez muitas perguntas sobre minha saúde. Pedi que não se preocupasse comigo. Falamos sobre Claudinho e eu então perguntei:

— “Dr. Teodoro, se houvesse na família de Cláudio ou na minha, um caso qualquer de alguma doença grave, isto poderia orientar os médicos para um tratamento mais eficaz?"

Ele ficou pensativo, depois ergueu os ombros, di­zendo:

—''Seria um ponto de partida... pelo menos sa­beríamos que era um mal hereditário, ao passo que um caso tão esporádico desorienta, ou melhor, confunde os médicos".

Talvez o meu velho amigo não me quisesse desen­ganar, ou então a ciência andava ainda às apalpadelas, em certos casos.

Ia aos poucos me convencendo que só tinha um refúgio: a resignação! Entretanto, não me achava in­clinada a ela! Além de Claudinho tinha que assistir ao sofrimento de Cláudio, sem poder afastar do seu cami­nho tanta amargura!

Às vezes eu pensava: que seria feito da vida de Eduardo? Talvez êle nem se lembrasse mais de mim! Era um artista famoso, consagrado pelas grandes platéias do mundo. Talvez recordasse aqueles dois meses de Paris, como uma aventura que passara como chegara. Quem sabe se não pensaria que eu, em contacto com uma sociedade tão benevolente e fácil me deixara contaminar pela sua falta de escrúpulos? Até podia ser que nem se lembrasse mesmo... Quantas mulheres teriam, depois, passado pela sua vida agitada? E se tivesse ca­sado? Era possível que se tivesse casado... Esta idéia particularmente me fazia sofrer muito! Um sentimento indefinível de saudade e de desgosto, nascia no meu es­pírito perturbado. E dominando todos estes sentimentos, um ciúme surdo da que pudesse ser sua esposa. Talvez até tivesse filhos, filhos lindos e perfeitos, dos quais se orgulhasse! Mas eu não sentiria inveja dessas crianças felizes e perfeitas, se elas existissem... Eu queria apenas poder esquecê-lo!

“Dez horas!" exclamou o Dr. Teodoro. "Vou embora, hoje queria deitar cedo!"

Despediu-se, abraçando-me ternamente. Lícia pas­sou conrgo os vinte dias que Cláudio precisou ficar no Sacramento.

Quando meu marido chegou, até estranhei a mu­dança do seu rosto. Só então notei que a sua cabeleira tão bonita e rebelde estava entremeada de fios brancos. Os olhos verdes tinham perdido aquele brilho mor­daz e tinham uma expressão de abandono, de renúncia! Falou-nos da morte e do enterro de D. Joaninha com serenidade repassada de tristeza. Pensei no seu desespero quando perdera o pai, tão diferente da sua resignação de então. Êle estava cansado de sofrer ou talvez achasse que a morte não é propriamente um motivo de desespero! Lícia foi para sua casa, depois do jantar. Dei-tamo-nos cedo, ambos cansados e tristes. Cláudio contou-me que deixara o Domingos como administrador. Aprovei esta resolução.

E o tempo continuou passando, levando aquelas emoções dolorosas para o passado...

Cláudio continuava trabalhando no hospital. Pedi­ra uma licença no Ministério, para se dedicar à medicina. Uma tarde, Lícia veio tomar chá comigo e mais tar­de Cláudio chegou trazendo um médico com êle.

“Chegaram à boa hora" — disse-lhes sorrindo. "Mandei servir o chá".

Entramos na sala de jantar.

— “O senhor veio ver meu filho?" — perguntei. Ele olhou para Cláudio interrogativamente.

—“Não, querida" — respondeu meu marido. — "O Dr. Jackson veio examinar você..."

Fiquei perturbada.

— “Mas não tenho nada" — protestei.

— “Quem vai dizer é o doutor, Lucila" — disse Lícia com carinho.

E naquela tarde começou também para mim o des­file dos médicos. Quantos têm vindo ver-me, nem sei mais. Uns pedem radiografias, exames de laboratório, conferências, mas sinto que não avançaram nenhum passo sobre a origem do meu mal. Um deles, um sim­pático velho de barbas patriarcais, esteve a sós comigo, mais de uma hora, apenas, conversando. Sondou ha­bilmente o meu íntimo com perguntas sutis. Observa­va-me com olhos inteligentes. Ao fim, perguntou-me, de chofre:

—“A senhora não deseja viver... Por quê? Todo o seu mal é psíquico. É preciso que ajude aos médicos, não só se submetendo aos tratamentos, mas querendo ficar boa, não se entregando a estas causas íntimas que sinto existirem e que a senhora não revela..."

Fiquei um pouco perturbada sob aquele olhar agu­do e respondi:

— “E que prazer posso encontrar na vida, doutor? Tenho procurado resistir, mas minhas forças me faltam. Eu não posso mais..." — comecei a chorai, sentida­mente .

Parece que era esta a reação que ele esperava, pois se inclinou atento para mim.

"Que desgosto pode valer uma vida moça e ain­da cheia de promessas?" — perguntou.

"O senhor deve estar brincando e isto é desuma­no... Que promessas o senhor vê na minha vida? As­sistir meu marido definhar de desgosto, sofrendo em si­lêncio para não aumentar minha tristeza? Assistir meu filho crescer, marcado com uma invalidez injustificável? De fato, doutor, devo me agarrar à vida, para não perder estas dádivas, não é isto?"

— “E a falta que fará aos dois?" — perguntou.

—“O que não tem remédio, remediado está. Quan­do eu morrer, Cláudio arranjará as cousas da melhor maneira, porque o caso é que não posso mais resistir por muito tempo".

Recostei-me na poltrona e cerrei os olhos, exausta. Aquele também nada conseguiu. Soube depois que era um psiquiatra e sorri por imaginarem que me poderia curar.

Apesar das preocupações que aumentavam com o meu estado de saúde em declínio, não descurávamos de Claudinho. Nem sempre eu podia ir com o menino às consultas, mas Lícia era incansável e me substituía com solicitude. Eu ficava em casa, esmagada de desânimo e indiferença, sabendo de antemão o resultado que Cláudio obteria.

Uma tarde, estava sozinha e Osvaldo apareceu para saber de nós. Mandei-o entrar. Eu estava no terracinho dos fundos, porque era ali que o sol se demorava mais. Sentava-me na espreguiçadeira e ficava-me aque­cendo. 0 céu estava muito azul, com pequenas nuvens fugidias e rosadas e os pássaros cortavam o ar com seus chilreios e o esvoaçar rápido.

“Como vai, Lucila?" perguntou, observan-do-me.

“Como vê, emagrecendo sempre..."

Êle esteve um pouco calado e notei-lhe no olhar aquela mesma ansiedade recalcada que transparecia no olhar de Lícia, quando me fitava.

“Tem feito o tratamento do Dr. Porto?" Sorri.

“Depois dele, já vieram mais dois. e discordaram da sua terapêutica. . . tenho pena de ver Cláudio gastan­do tanto dinheiro em vão..."

“Mas você precisa ajudar também" murmurou.

Fitei-o. Nosso olhar se cruzou um momento e no dele havia apenas simpatia e solidariedade.

“Para que? Você já pensou no meu destino? Eu queria ter podendo fazer o bem... e, no entanto, todos de quem me aproximei, sofreram por minha causa..." respondi.

"Você precisa afastar estas idéias do seu pensamento. Por que havia de ser você o motivo das tristezas que tinham que sentir aqueles que as sentem? Você não acredita que todos nós já nascemos com um fado tra­çado?"

—            “Não, Osvaldo, não acredito! Não acredito em cousa alguma fora da matéria. Somos como as cousas que compõem o todo universal. Nascemos, crescemos, vivemos e morremos como as árvores e os bichos, naturalmente, sem que seres imponderáveis se preocupem conosco!"

Osvaldo ficou em silêncio, com aquele seu jeito, cismando e fumando lentamente.

- "Não sei porque você se deixa arrastar por um materialismo destes..."disse por fim.

"Porque só consigo encontrar a verdade nele. Pense bem. Cláudio, você o conheceu. Era alegre, des­preocupado, feliz. E agora? Meu filho podia ser uma criança perfeita, sadia, mas não é por minha causa..."

"Ora, Lucila, que tolice! O Dr. Teodoro que conheceu seus pais, sempre assegura não haver uma razão, pelo seu lado..."

"Mas sei que sou eu a culpada, Osvaldo, tenho a certeza.. . Lícia também foi envolvida por preocupa­ções e sofrimentos que não merece, pois pode viver feliz, sem pensar nas minhas provações. O Dr. Teodoro, que não se casou, chega ao fim da vida sobrecarregado tam­bém com o peso da cruz que devia ser só minha. Teresa sempre foi um exemplo de fidelidade, de virtude, e tem a velhice atribulada e triste por minha causa. Até mesmo você, Osvaldo, embora não demonstre, também sofre por minha causa. De fato é um destino in­vejável!"

Novo silêncio. Eu estava cansada daquele esforço para dizer tanta cousa. Osvaldo talvez estivesse um pouco confundido. Levantou-se da cadeira, cruzou o terraço lentamente, voltou, sentou-se outra vez.

“Você teceu um emaranhado de argumentos que podem parecer razoáveis a quem desconheça cada uma destas vidas que encadeou à sua volta, isoladamen­te. Para mim, tudo isto é falho de lógica e funda­mento. Vou responder apenas por mim, Lucila, e esta será a última vez em que me referirei ao assunto. Você não seria responsável pelo meu sofrimento se êle de fato existisse. Muito ao contrário, porém, você foi na mi­nha vida, o único motivo de real alegria, vamos chamar o lado bom que ela teve. Há alguns anos, quando tentei insinuar-me valendo-me do seu desamparo moral, era levado pelo egoísmo comum entre nós, homens... Sua dignidade colocou-me em meu justo lugar e colocou-a dentro da minha vida, embora intangível! Contento-me com este mundo íntimo, onde você habita subjetiva­mente. .. e sou feliz!"

Fiquei em silêncio por um momento, depois estendi-lhe a mão:

— “Obrigada."

A tarde caíra inteiramente. Osvaldo levantou-se e ajudou-me a levantar também. — "Vamos entrar?" — perguntou.

Estranhei o timbre da sua voz, tão diferente da que pouco me falara. Mas respondi também num tom natural:

— “Cláudio está demorando, que horas são?"

Já na sala de almoço que abria para aquele terraço, olhou o relógio e respondeu:

— “Seis horas... Este relógio é muito original." Não respondi, mas resolvi presenteá-lo com o reló­gio, depois de falar a Cláudio.

A música com que marcava as horas, dividindo nossa vida, passara a ser um tormento para mim:

—“Sempre que bater as horas, me lembrarei de você, Eduardo..."

—“Não é preciso, porque estaremos juntos..." Mas o relógio implacavelmente cumprira aquela

missão através de todos os anos que vou vivendo... Afastei estes pensamentos.

— “Osvaldo, o Claudinho me mostrou os seus últi­mos desenhos, querendo que eu contasse a história e como não soube ficou zangado... você precisa escrevê-las, pois nunca vi tanta caraminhola como as que inventam."

Ele sorriu.

"Caraminhola?

"É, fantasia ou cousa assim."

Ouvimos o ruído do carro e o bater das portas e em seguida Cláudio e Lícia, acompanhados da ama com Claudinho ao colo, entraram. Beijei meu filho muitas vezes. Com quase cinco anos, ainda é uma criança linda, que chama a atenção em toda parte. Osvaldo tomou o nos braços, beijou-o.

—“Babá vai dizer a Teresa para pôr o jantar de Claudinho, são seis e pouco."

Volvi os olhos para Cláudio.

— “O médico vai experimentar um aparelho ortopédico..." — disse ele.

Experimentar! Experimentar! Todos eles faziam experiências, nada mais! Baixei a cabeça com desalento, mas Cláudio estava esperançado e durante todo o jan­tar não falou noutra cousa. Que resultado daria esta nova tentativa?

Cláudio não poupa dinheiro, tentando tudo o que os médicos aconselham. Eu, porém, começo a ficar preo­cupada. Há meses, pediu-me para assinar uma escritura de venda de dois prédios seus na Tijuca. Disse-me que eram motivo de aborrecimento, sempre precisando re­forma, etc. Fingi acreditar, mas fiquei cismando que precisou do dinheiro para estas intermináveis despesas de médicos e tratamentos. Algum tempo depois, a chácara de Jacarépaguá teve o mesmo destino. Resta-nos uma casa em Ipanema, que está alugada, esta em que moramos e o Sacramento.

“Cláudio" — disse-lhe um dia "vou passar procuração a você para não precisar comparecer todas às vezes, sim?"

Êle demorou o olhar no meu rosto, como se pro­curasse os motivos da minha resolução e respondeu simplesmente:

“Como quiser..."

Eu queria poupar-lhe a humilhação de ter que pedir minha assinatura e arranjar desculpas para as transa­ções. Não sei se terá percebido, o caso é que não comentamos mais sobre isto.

O aparelho ortopédico não deu o resultado que? Cláudio esperava. O menino não se adaptou a êle; as correias magoavam-lhe as perninhas e ao fim de algu­mas tentativas fomos forçados a desistir. Lá ficou es­quecido dentro de um armário, sem utilidade. Agora Claudinho usava freqüentemente uma cadeira de rodas para se mover pelo jardim ou dentro de casa. Gos­tava de rodar pelos caminhos de areia branca do jardim, apanhando sol, todas as manhãs. Às vezes, paravam crianças espiando pelas grades, curiosamente. Isto po­rém não afetava Claudinho, que parecia não as notar. Eu, pelo contrário, ficava revoltada. Com o tempo, po­rém, também me habituei a esta curiosidade.

O quinto aniversário de Claudinho amanheceu chu­voso e frio. Não haveria festa, porém, nós receberíamos os mais íntimos, Lícia, Osvaldo, Dr. Teodoro, César, que nos visita freqüentemente, e Ernesto, Leonor e as crian­ças que se encontravam de passagem para os Estados-Unidos .Cinco anos! Seria possível? Já cinco anos de luta, de busca ansiosa em todos os setores da ciência e sem resultado algum! Amanheci desanimada, levantei-me tarde. Cláudio trouxera o Claudinho muito cedo à nossa cama, onde recebeu os presentes que tínhamos compra­do para ele. Lícia veio almoçar conosco. Chegou cedo, para ajudar nos últimos arranjos.

À tarde, reunimo-nos ao redor da mesa, presidida pelo meu filho. Tudo correu alegremente — todos procuravam ser agradáveis ao menino. Quando termi­nou a mesa de doces, fomos para a sala pois a chuva continuava a cair impertinente. Marly, a caçula de Leo­nor e que tinha só três anos, quis por força andar na ca­deira de rodas de Claudinho. Todos ficamos constran­gidos, mas meu filho chamou Osvaldo para tirá-lo da ambicionada cadeira e ficou alegre, rindo muito, vendo a pequenina Marly passear como uma princesa naquela triste carruagem. Depois as outras crianças quiseram também experimentar e com isto o tempo foi passando, desapareceu o primeiro constrangimento diante da na­tural alegria da criançada e eu acabei sorrindo também por imaginar que até as mais tristes cousas encontram quem as ambicione, mesmo que seja por inconsciência in­fantil. Senti que Claudinho ficara contente por se sentir invejado na sua deplorável situação, ele que, com certeza, muito no íntimo, invejava aquelas crianças todas!

Assim terminou a festa de aniversário de meu filho...

 

Um dia, Cláudio me disse que ia levar o menino a uma sessão espírita. Esta idéia me revoltou e surpreen­deu. Protestei.

—“Não, Cláudio, tenho horror a estas cousas. De­pois, ele pode ficar impressionado..."

Mas meu marido ficou irredutível. Tinham-lhe contado maravilhas sobre um médium que recebia um espírito iluminado que já fizera curas miraculosas. Não custava experimentarmos. Cedi, muito contrariada. Marcamos para a primeira sexta-feira. Custei muito a dormir nessa noite, pensando como Cláudio podia acre­ditar em semelhantes mistificações, apavorada, imagi­nando um ambiente cheio de mistério, feito de propósito para impressionar ou sugestionar. Recordei o materia­lismo de que se gabava, ridicularizando tudo quanto fosse sobrenatural. Como podia esperar algum resultado da magia? E sonhei com bruxas e fantasmas que me atormentavam, perseguindo Claudinho apavorado por­que não podia fugir! Acordei abatida, cansada, e não pude levantar-me .0 Dr. Teodoro veio ver-me, antes de ir ao hospital. Prometeu voltar, durante a tarde. Lícia veio logo depois do almoço me fazer companhia. Eu estava num deplorável estado de nervos. O menor ruído me sacudia em tremores violentos. Tive uma crise de choro agarrada a Lícia que tudo fazia para me acalmar À tarde, Cláudio trouxe-me um rádio para a mesa de ca­beceira .

—“Quem sabe se você poderá distrair-se um pouco?"

Sentou-se junto de mim, tomou-me o pulso, acariciou-me os cabelos pensativamente. O Dr. Teodoro chegou um pouco mais tarde, com um novo médico, um clínico, rapaz moço ainda, olhar arguto, larga testa, atitudes cal­mas. Conversou sobre assuntos vários, enquanto me observava. Examinou-me detidamente, sempre fazendo perguntas. Eu também o observava. Tive pena dele que se esforçava para encontrar alguma cousa além do que todos os outros têm encontrado. De fato é desconcer­tante esta desagregação de todos os elementos vitais de um organismo, somente por motivos imponderáveis e íntimos. O espírito dominando a matéria?

Este também, como tantos outros, não voltou a nossa casa. Piquei três dias na cama e durante este tempo ouvi muitos programas em diversas estações. Ficava de olhos fechados, alheia ao que me cercava, sentindo a vida apenas através da audição, como se só este sentido vivesse em mim... A música já não me fazia mal aos ner­vos gastos.

Uma tarde porém, após uma valsa de Brahms, a voz do locutor, soou neutra: "Uma nota: A família de D. Fulana de tal, tem o pesar de comunicar o seu faleci­mento, ocorrido esta madrugada. O enterro sairá da Capela de Santa Teresinha, para o Cemitério de S. João Batista, às cinco horas."

Notei que falava apressadamente como querendo de-sincumbir-se de uma cousa molesta. Desliguei o rádio. Talvez um dia, também, os locutores espalhassem pela cidade a notícia da minha morte... Muitas pessoas di­riam enfadadas:

“Ora, que idéia, esta notícia agora..." Talvez algum antigo colega comentasse:

“Lucila Bastos Monteiro... Na Escola de Música, havia uma Lucila Bastos... talvez se tenha casado. Que pena!”!

E a notícia voaria através dos oceanos, pelo mundo todo... Quem sabe se Eduardo ouviria também... Que pensaria êle? Talvez desligasse o rádio, surpreso, e se quedasse pensando, rememorando.

E, embora soasse em todos os ambientes na mesma voz neutra e impassível, despertaria as mais diversas emoções. As antigas relações conversariam sobre o im­previsto do desenlace. Osvaldo, ouviria fumando lenta­mente, seguindo a fumaça com os olhos semi-cerrados. Não sei porque não o podia imaginar velando o meu corpo. Êle esperaria, em casa, a hora do enterro... Nor­ma, Alice e algumas outras, suspirariam aliviadas com o meu desaparecimento...

A tarde foi espalhando a sua sombra pelo quar­to silencioso. Ouvi os passos da Teresa no hall, andando cautelosamente. Deviam ser seis horas. Muito distante um rádio tocava a Ave-Maria e subia do jardim um perfume sutil de flores misturadas. Àquela hora devia ser o enterro da desconhecida. "Sairá às brinco horas..." Até chegar ao cemitério seriam seis... mas, afinal, que tinha eu com aquele enterro? Nem conhecia a morta, não sabia se era moça, cheia de sonhos, se era velha, pisada de desilusões. . . mas queria que o meu entêrro. quando eu morresse, fosse também à tarde, com os rádios espalhando os compassos místicos da Ave-Maria em todos os lares, com o céu todo estriado de ouro e rubro, com a terra querendo adormecer na noite cheia de estrelas. Toda a gente, que passara o dia trabalhando, esta­ria voltando para casa, para repousar, ansiosa pelo acon­chego do lar... Eu ficaria dormindo no aconchego da terra, começando a minha transmigração, enquanto pelo mundo afora a vida continuaria, com as famílias reuni­das à volta da mesa do jantar, as crianças brincando nos jardins...

E Claudinho? Havia de procurar por mim, pergun­taria a Cláudio, Teresa, Lícia, e Osvaldo, na esperança de que alguém lhe devolvesse a minha presença. Este pensamento doeu-me quase fisicamente. Imaginei-o ro­dando na sua cadeira, pela casa toda, procurando instin­tivamente a minha sombra nas cousas. Que pena, eu não poder mais reagir! Às vezes, tinha vontade de viver para meu filho. Pensava em apagar o passado, desdobrando-me em dedicação, em sacrifícios para amenizar-lhe o destino. Isto era contudo uma incoerência, pois Claudi­nho é tudo quanto de palpável existe do meu passado. Não poderia esquecer e a minha vida seria sempre into­lerável!

Há pessoas que perdem a memória de trechos da vida, o passado refugia-se em escaninhos escondidos do cérebro e vivem sem se lembrarem até quem são... Chama-se amnésia esta doença que, para mim, podia ser a salvação.

Um dos médicos que me examinaram, perguntou-me se eu não tinha crises de amnésia. Sorri com tristeza.

"Infelizmente não, doutor."

"Infelizmente? Isto melhora a situação."

"Para mim, piora..."

Cláudio olhou-me com expressão sentida, julgando que eu quisesse esquecer tudo, a sua e a existência do Claudinho. Não achei que dizer, naquele momento, mas, quando o médico se retirou, abracei-o ternamente.

— "Desculpe, Cláudio, não quis magoá-lo, apenas seria bom esquecer algumas cousas; talvez você também gostasse, não é?"

"Todos nós temos recordações que nos incomo­dam, Lucila, mas não devemos dar tanto valor ao pas­sado, quando nada podemos fazer para remediar o que nos perturba. Devemos procurar esquecer..."

"O pior é que isto é impossível, eu bem queria, mas..."

Senti-lhe o olhar intenso, querendo devassar mi­nhas mágoas. Muitas vezes notei-lhe aquela ansiedade, julgando-se culpado por todas as minhas tristezas. Des­viei a conversa para Claudinho. que era uma fonte ines­gotável de assunto para nós.

Eu me deixava levar por este encantamento sem fim de recordações, quando ouvi a voz cochichada de Cláudio no quarto contíguo:

— “Dormiu a tarde toda?!"

— “Mas já estou acordada..." — respondi, acen­dendo a lâmpada de cabeceira.

Fiz um grande esforço para levantar na sexta-feira e ir com Claudinho à sessão. Tudo foi bem diferente do que eu esperava. Fomos recebidos por uma senhora idosa, muito simpática, que nos conduziu a uma sala modesta, limpa e clara, onde já havia outras pessoas. Ainda não tinham iniciado. Cumprimentei com a cabe­ça e sentei numa cadeira que me indicaram. Fiquei segurando a mãozinha de meu filho, que estava no colo de Cláudio, sentado a meu lado. Todos olhavam para nós. Uma senhora sorriu bondosamente e perguntou:

"E* seu filhinho?" Fiz que sim.

"Que criança linda!" — disseram todos.

—“Está doente?" — perguntou uma moça. — "Não parece, é tão coradinho!"

—“Ele não anda" — respondi.

"Que pena! Mas vai ficar bom..." — disse-me uma outra senhora, procurando animar-me.

"A senhora não imagina as curas que temos tido aqui" — acrescentou uma outra, gorda e morena, de expressão cansada.

Neste momento entrou na sala um homem de meia idade, cabelos quase totalmente brancos, olhos miúdos," pele muito enrugada. Todos ficaram em silêncio. Ele cumprimentou e manteve-se de pé no meio da sala.

— “Vamos formar uma corrente, elevando o pensa­mento a Deus, para iniciarmos nossos trabalhos de hoje" disse com voz suave.

Todos se levantaram e deram-se as mãos, formando uma roda. Eu observava tudo aquilo, com grande curio­sidade. Rezaram em voz alta, invocaram os "guias". Eu sentia um certo receio. Súbito, o "médium" que era o senhor de cabelos brancos estremeceu violentamente, respirando forte.

— “Graças a Deus!" — disseram em coro.

— “Graças a Deus, meus filhos". — respondeu ele. Eu não perdia nenhum dos seus movimentos,

nenhuma das expressões que lhe animavam o rosto.

—“Ponham o menino nesta cadeira" — disse ele Não compreendi que era conosco, mas me disseram

e Cláudio levou Claudinho ao colo, sentando-o diante do médium.

—“Deus te abençoe, meu filho" — murmurou o homem com voz contrita, afagando a cabeça de meu filho!

Claudinho olhava para ele sem entender, mas ficou quietinho enquanto as mãos do médium traçavam no ar, em volta dele e sobre a sua cabeça, desenhos misteriosos. Olhei disfarçadamente para Cláudio e percebi que rezava, como todos os presentes. Porque, então, só eu não podia acreditar no que se passava? Nem ao menos podia rezar? O homem parou os seus "passes", cruzou os braços, concentrando-se. Assim ficou algum tem­po, depois disse:

—“Nem sempre podemos curar os males do corpo..." — sua voz era lenta, destacando as palavras. — "Muitas vezes, temos que cumprir provações que nós mesmos escolhemos..."

Eu já sabia que o resultado seria nulo! A provação era minha e ninguém poderia amenizá-la. Baixei a ca­beça, desanimada.

— “Mas", continuou ele — "se não podemos curar o mal do corpo, podemos guiar o espírito para uma resig­nação perfeita, de modo a que não fique perdido um so­frimento destinado a purificá-lo e elevá-lo."

Resignação! Resignação! Era só o que podiam aconselhar!

Saímos em seguida porque o menino não podia ficar acordado até tarde. No carro, enquanto Cláudio guia­va em silêncio, fui meditando, com meu filho adormecido nos braços. Procurei encontrar conforto naquela teoria apenas entrevista, mas não consegui. Penso que Cláu­dio também ficou desanimado, porque não me falou mais sobre o assunto.

Depois disto, consultamos mais dois médicos e um aconselhou Cláudio a fazer Claudinho andar com muletas. Eu estava presente e senti um grande choque.' Imaginei-o tão pequenino, podendo cair, magoar-se. Mas meu marido resolveu tentar isto e também novos trata­mentos de sangue e massagens elétricas. Dois dias depois, trouxe as muletas e fizemos a primeira experiência. Claudinho chorava e ria ao mesmo tempo, com receio e com vontade de conseguir andar. Nós o animáva­mos, cada um de um lado, mas neste dia não tivemos êxito. 0 médico veio à noite e recomendou um aparelho para manter firmes os joelhos, pois sem o apoio das pernas, não seria possível nenhum resultado. E veio o novo aparelho. Durante quase duas semanas, fizemos exercícios para que êle se adaptasse e andasse. Osvaldo também ajudava-o. animando-o e até a pedido do menino fêz uma história ilustrada sobre uma criança que usava muletas. . .

Quando Licia, que estava em Petrópolis, desceu um mês depois, já Claudinho andava pela casa, sob a vigi­lância de um de nós ou de Leonardo. Ela fêz muita fes­ta por este progresso e me abraçou emocionada. Mas, pouco antes do jantar, Claudinho quis ir ao encontro de Cláudio, escorregou e não tivemos tempo de ampará-lo. Nunca poderei esquecer a sua dolorida expressão de de­cepção! Corremos para levantá-lo. Fizera um galo na testa. Não resisti ao susto e desmaiei. Quando dei acordo de mim. estava deitada no sofá e vi o rosto aflito de Cláudio, que me observava ansiosamente. Licia fazia-me cheirar qualquer cousa.

“Passou, querida?" — perguntou-me.

Não respondi. Sentia-me abalada, sentia que não podia resistir por muito tempo.

“Todas as cranças caem. Lucila" disse Licia carinhosa "quando começa a andar, isto é natural, e o Claudinho começou a andar agora".

Mas eu não podia esquecer o seu olhar espantado, a sua expressão de desapontamento, caído no chão, sem poder esguer-se, com as muletas tombadas também. Ti­nha uma vontade imensa de chorar, mas procurei reagir, sorri para Cláudio, que me abraçou com ternura, pedindo-me que não pensasse mais no que acontecera.

Claudinho se familiarizou com as muletas. Passou a andar pelo jardim e a cadeira de rodas ficou esquecida embaixo da escada. Eu, porém, não posso me acos­tumar ao ruído surdo que as muletas fazem no assoalho. Fico exasperada! Às vezes, estou no meu quarto escrevendo e ouço aquele toc-toc pelo corredor. Logo depois surge na porta o rosto querido, risonho, vitorioso, de Claudinho. Já não depende dos outros para se loco­mover! Também fazemos os tratamentos indicados.

Uma tarde, surpreendi Cláudio sentado no escritório com a cabeça entre as mãos, entregue a profunda medi­tação. Aproximei-me e pousei a mão no seu ombro. Ele estremeceu.

"Ah! é você?" — disse, procurando disfarçar a preocupação com um sorriso.

"Assustou-se?" — perguntei. — "De fato já estou com cara de alma do outro mundo, não é?"

"Se as almas do outro mundo fossem tão bonitas, não fariam medo a ninguém."

Pobre Cláudio! Eu não me iludo. Sei que estou muito doente, que minha vida é um fio muito tenso, que pode rebentar de um momento para outro... Só peço a Deus que me dê uma morte rápida, sem muito sofrimen­to, como foi a de D. Maroquinha ou de minha sogra. Há pessoas que custam a morrer em dolorosas agonias e é a única coisa que me faz medo!

—“Cláudio, você está aborrecido?"

—“Não, por quê?"

—“Então, está preocupado?"

"Também não. Resolvi vender o Sacramento" — dis­se de um fôlego, como querendo se desfazer de uma idéia que o molestava.

"0 Sacramento? Não, Cláudio, não devemos vender a fazenda!"

"0 caso é que as safras têm sido muito baixas e foi preciso hipotecar as terras..."

Compreendi tudo. Cláudio continuava a lançar mão de todos os nossos recursos para que nada faltasse a mim e a Claudinho. Inventava que as safras não correspon­diam, para justificar aquela venda, despojando-se de tudo que possuía, com um desprendimento tocante! Quanto de­via ter sofrido para chegar àquela resolução! Aqueles recantos faziam parte da sua vida e estavam povoados de recordações caras. Fiquei calada. Dia a dia, crescia no meu íntimo um sentimento, misto de remorso e pena por todo o sofrimento que se abatera sobre Cláudio.

à noite custei a dormir e a imagem de Eduardo foi surgindo do fundo do meu passado sempre com aquele olhar sonhador, aquele feitio sereno. . . Procurei na minha memória o timbre da sua voz. Não afastei como de outras vezes a sua lembrança. Procurei, pelo con­trário, acordar todos os detalhes daqueles dois meses em Paris.. . Suas frases, seus carinhos. Revivi tudo como se me despedisse daquelas recordações! Lembrei-me do símbolo eu criara entre o nosso amor e a "Catedral" de Debussy. E muito no íntimo desejei que a Catedral submergisse irremediavelmente e ficasse para o resto da eternidade no fundo das águas, muda, esquecida, morta. . . Tinha a impressão supersticiosa de que com ela fi­caria aquele amor!

Cláudio ressonava a meu lado, repousando no sono, das suas amarguras. E na claridade do luar que entrava, coando-se através das cortinas de cassa, eu via o seu perfil aquele fascinante perfil, outrora animado e alegre, marcado agora pela adversidade. Até os seus olhos tinham mudado. Já não eram daquele verde claro e trans­parente, brilhando de sarcasmo. Eram de um verde pro­fundo, mais escuro, repousado e misterioso, como o verde sombrio das florestas tropicais. Pobre Cláudio! Ele pensou que podia dominar o seu destino, como absorvia as criaturas que o cercavam, mas fora vencido! Lembrei-me do Professor Erich com a vida perdida, sem rumo, porque lhe morrera a filha. .. e recordei como me impressio­nara a influência que os filhos exercem na vida dos pais! Afinal o professor Erich encontrara um abrigo junto a esposa e envelhecia, senão feliz, pelo menos serenamente ... E eu? Eu não me acomodava em parte alguma porque não soubera defender o meu verdadeiro lugar. . . Não sabia que fora feito de Eduardo. . . mas, com certeza, continuava sua vida de artista, festejado nas grandes ca­pitais, disputado pelos empresários. Talvez não fosse de todo feliz, mas devia ter pouco tempo para pensar em suas desilusões, todo entregue à sua música. De todos, Cláudio parecia-me o mais infeliz! As lágrimas começaram a correr silenciosamente pelo meu rosto. Eu trouxera só tristezas para a sua vida e, agora, quando podia ampará-lo, ajudá-lo a sofrer, deixava-me morrer, descer­ tava no destino, deixando que Cláudio continuasse sozinho a carregar a minha cruz, até o cimo do Calvário! Eu falhara em tudo, falhara sempre, nunca fora útil a pessoa alguma! Além de tudo não sabia sofrer!

Nos dias que se seguiram, procurei reagir, conversando com Cláudio, passeando à noite com ele, pelo nosso jardim.

—“Você se sente melhor, Lucila?"

—“Muito melhor" — respondi, sentindo a inutili­dade desta mentira — "tão melhor que ia pedir-lhe que domingo fizéssemos um passeio de automóvel, quer?

Ele aceitou com alegria.

— “E onde iremos" — perguntou sorrindo.

— “Onde você quiser, mas bem longe..." Ficou pensando um pouco e depois perguntou:

—            “Quer passar o dia no sítio do Dr. Teodoro? Ele tem oferecido tanto..."

— “É verdade, seria bom..."

O Dr. Teodoro ficou contentíssimo com a idéia.

—“Até que enfim, Lucila, você resolveu conhecer aquele refúgio... Preparo-o para o fim da minha vida" — dizia-me no dia seguinte, ao almoço.

"Quantas horas leva-se até lá?" — perguntei.

"Numa velocidade normal, três ou quatro horas."

"Então, se sairmos bem cedo, chegaremos para almoçar."

"E' melhor vocês irem no sábado à tarde," — aconselhou — "senão ficarão muito cansados."

E ficou resolvido assim. Nosso bom amigo telefonou para o sítio, mandando preparar quarto e jantar, para sábado.

"Por que não vai conosco?" — perguntei. Ele ficou pensativo, depois respondeu:

"Não quero, perturbar a lua de mel..." Nossa viagem foi agradável. Claudinho ia muito

contente, tagarelando todo o tempo com a babá.

— “Vamos ouvir música?" — perguntou Cláudio, ligando o rádio do carro.

Viajávamos, ora cortando a mata densa, ora campinas extensas, onde o verde corria toda a escala de nuanças. Era a hora suave do crepúsculo, quando, quase sem sentirmos, nosso espírito se inclina para o sonho, a evocação. E nesse cenário recolhido, o rádio do carro espalhava os sons angustiados do "Por quê?" de Schu-mann. Por quê? Meus olhos contemplavam todas as pai­sagens, as matas luxuriantes onde parece que as árvores se contorcem numa angústia de amor, numa ânsia de estender o galhos ao beijo do sol. Súbito, senti, como se todas as cousas interrogassem aflitas: — Por quê? Minha alma inquieta perguntava também: — Por quê?

E a música continuava a fazer vibrar o ambiente da­quela hora romântica.

Por que tanta beleza dispersa, esta luxuriante beleza que a natureza ostenta, que se despenca das árvores cen­tenárias, transformada em rendas de cipós, que galga os troncos transformada em parasitas exóticas, que canta na voz dos pássaros, que cai do céu mudada em luz, que se espalha pelo mundo diluída em som, na música divina?!

Por quê? Por quê? Por que conhecemos toda a emoção, o sentimento e o amor, se um dia temos que partir irregovavelmente e tudo continuar indiferente e belo?

E sofri a alegria da natureza eterna e a tristeza da humanidade transitória.

A voz de Cláudio me despertou:

"Você está cansada?"

"Não... já devemos estar chegando. O Dr. Teodoro disse-me que são três ou quatro horas de viagem.

"Então, estava sonhando?"

"Também não. Estava pensando."

"Pode-se saber em quê?"

"Vou ver se consigo dizer... Bem, eu estava olhando todos estes cenários que se multiplicam infinita­mente variados, tão belos, e talvez sentisse inveja da natureza, que é eterna, e tristeza por passarmos tão rapidamente pelo mundo.. . porque sempre achamos curta a nossa vida; quando somos felizes, querendo aproveitar a nossa felifcidade e quando somos desventurados, por­que nunca perdemos a esperança.. . Aliás, creio que tudo na natureza é tão perfeito justamente para ame­nizar os nossos sofrimentos e talvez ensinar a huma­nidade ..."

"Quanta filosofia!" — exclamou Cláudio, rindo alegre como nos velhos tempos, como se aquele ar, sa­turado do cheiro fragrante da mata, lhe fizesse bem.

Sorri também. Ah, se fosse possível recomeçarmos a vida. . . Mas quase todos os que erram ou são infelizes, lamentam não poder voltar atrás e, no entanto, se isto fosse possível, talvez tudo corresse da mesma maneira!

Foi tão bom aquele domingo que passamos no encantador sítio do Dr. Teodoro! Acordamos muito cedo, com aqueles ruídos familiares que também nos desper­tavam no Sacramento. Os pássaros cantando, vozes dis­tantes tocando as vacas, ali em número muito menor, naturalmente, o galopar de um cavalo que vinha do ar­raial com as compras, a voz arrastada da velha caseira, xingando os moleques que andavam vadiando em vez de cumprirem com as obrigações...

Espreguicei-me e abri os olhos. Por um momento, toda a minha vida pareceu-me um pesadelo do qual me libertava. Vi Cláudio, já de pé, espiando pela janela. Fi­quei olhando-o, admirando a sua beleza máscula, o seu porte, que as lutas não tinham conseguido abater. Como se sentisse o meu olhar, voltou-se para mim.

— “Ah! Já acordou? Está um dia maravilhoso! Claudinho está lá fora. Fez um passeio de charrete com a babá e um empregado do sítio."

—“Não há perigo, Cláudio?"

— “Não. Estava vendo daqui. Ele está muito con­tente!"

Foi um dia quase perfeito. Almoçamos ao ar livre, sob as mangueiras copadas e imensas. Todos os empregados procurando agradar-nos. O Joca divertiu Clau­dinho, imitando o piar dos pássaros com grande perfei­ção. Era uma interessante figura de caipira adolescente, conhecendo todas as manhas das caças, nadador, bron­zeado, com um olhar manso e doce.

—“Faz o sabiá" — pedia Claudinho.

E ele imitava o pássaro. Depois fabricou com bambu um pio com que presenteou o menino. Deu-o. dizendo:

— “Toque, para eu ver se está bom." Claudinho tocou.

— “Ótimo!" — exclamou o Joca. — "É o pio do macuco na capoeira."

Todo o dia esteve com meu filho. Cláudio gratificou-os à saída, mas o Joca, na sua simplicidade, nunca poderá saber o sentimento de terna gratidão que sua solicitude fez nascer em mim.

Voltamos segunda-feira, antes do almoço. Saímos cedo. com o sol ainda frio e a mata toda cheia de orvalho.

Foi o meu último passeio, estou certa. Nunca mais terei um dia igual àquele. Até mesmo o mal de Claudinho, amenizou-se naquela quietude, naquele refúgio, como o chamou o Dr. Teodoro. Também para ele, talvez tenha sido um dos dias mais felizes! E Cláudio, vê­do-nos satisfeitos, também teve o seu dia de ventura, como estes surtos de luz que têm as chamas antes de se extinguirem!

À noite o Dr. Teodoro veio jantar conosco. Cláudio contou-lhe as nossas impressões, como acháramos lindo o sítio. Eu estava calada, cansada.

—"Você parece que não gostou. Lucila?" — perguntou.

—“Não diga isto... este domingo foi como um parêntese na minha vida. Nunca mais terei um dia assim."

— “Terá quantos quiser" — apressou-se ele em dizer. — "0 sítio está à disposição."

"Eu sei" — respondi — "mas eu é que não po­derei voltar lá... já não agüento mais nada..."

"Bem, não voltará por uns tempos, mas, quando melhorar iremos juntos passar umas férias" — disse o Dr. Teodoro, procurando ser natural.

Pobre velho, não sabe mentir. Nunca conseguiu men­tir-me. Por isto é que quando trouxe aqueles dois mé­dicos, dizendo que eram velhos amigos dele e de meu pai, eu sorri, intimamente deliciada com aquele embuste. .. Em todo caso, não me dei por achada, respondi às perguntas com que procuraram mascarar o verdadeiro motivo da visita.

Recomendaram-me repouso, super-alimentação e distrações. . .

Mas eu sei que nada disto adiantaria, porque vou resvalando lentamente para o fim da minha desdita. . .

Hoje mesmo, acordei com uma sensação estranha de que qualquer cousa de imprevisto deve suceder. Não posso conceber o que seja, mas há uma intuição sutil que me faz sentir esta cousa ainda imponderável.

Cláudio fechou há dias o negócio do Sacramento Embora tenha estado alegre, rindo e conversando, notei-lhe esta alegria falsa, forçada com que nos queremos aturdir, quando estamos sofrendo muito! Resta-nos agora a nossa casa apenas. Sua fortuna, que era razoável, foi-se esboroando, desmoronando-se. . . Por isto é que voltou a trabalhar no Ministério, embora continuando a freqüentar o hospital. Precisa daquele emprego, que antes conservava por conservar!

Lícia me telefonou, avisando-me que não virá hoje, senão à tarde. Tenho, portanto, uma grande parte do dia só para mim.

Falei a Cláudio que queria oferecer o relógio da sala de almoço a Osvaldo e ele concordou. Por isto telefonei há dias, avisando-o de que ia mandar uma encomenda pelo Leonardo. Apareceu aqui à tarde, para agradecer, protestando por nos desfazermos de um objeto de arte, só porque ele elogiara.

"Não, Osvaldo, não recuse uma lembrança tão insignificante."

"Insignificante?! E' o mais o original relógio que já vi" — protestou.

"Pois fique sabendo que nem mesmo com o Big-Ben eu poderia demonstrar a gratidão que tenho pelo seu carinho com o meu filho..." — disse.

"Mas o meu carinho é natural. Claudinho é meu amigo e com ele vou aprendendo uma porção de cousas"

—            respondeu com seu ar pensativo.

Imagino que aprenda a ser alegre com o pouco que tem conformado e dócil. Deve ser isto, porque meu filho é assim.

Quando vem outras crianças brincar com ele, contenta-se em vê-las correndo pelo jardim, com os seus brinquedos que empresta sem egoísmo. Olha cheio da alegria os outros meninos e eu sinto que encara com naturalidade a sua situação.

Todos o estimam por isso.

Daqui do meu quarto, ouço a sua voz clara, conversando com a babá e a Teresa, no jardim. Espiei da janela e vi os três sentados na grama, armando a grande fazenda que o Dr. Teodoro lhe deu no dia em que fez cinco anos. É um brinquedo muito interessante, tendo desde a casa colonial até os curraizinhos, com o gado, o galinheiro, os bonequinhos, o carrinho de bois e a charrete, o poço, tudo, sem esquecer nenhum detalhe. Claudinho fez Osvaldo desenhar uma placa com o nome

—            Sacramento — que coloca no lugar em que determina que começam as terras desta fazenda em miniatura.

Foi o brinquedo que mais lhe agradou e com ele brinca horas seguidas.

Meu filho! Duas palavras pequeninas que resumem um mundo de alegria e sofrimento, de renúncias e com pensações!

Presto atenção. É a voz da babá que diz:

— “Não, Claudinho, a mamãe está descansando... Você pergunta depois."

Vou à janela:

— “Meu filho! Claudinho!"

Ele ergue a cabeça de cabelos castanhos dourados e eu vejo o seu rosto corado, risonho.

"Você não estava dormindo?" — pergunta.

"Não, meu filho, você quer alguma cousa?"

"Eu vou aí, mãezinha."

A ama ajuda-o a se erguer, entrega-lhe as muletas.

— “Não guarda a fazendinha não, sim, babá?"

É tão meigo! Apesar de lhe fazermos todas as von­tades, não se tornou voluntarioso, nem tem caprichos. Aceita tudo quanto se diz, com docilidade.

Afasto-me da janela. Abro a porta do quarto. Meu filho me abraça, sento-o nos meus joelhos. Quantos beijos trocamos!

"Você estava escrevendo?" — pergunta-me.

"Estava, meu amor."

"É uma história?"

"É, meu filho... uma história."

"Depois você lê pra mim?"

"Leio, meu filho adorado."

"E o tio Osvaldo pinta os bonecos?" —"Se ele quiser, pode pintar."

"Então, eu vou agora brincar, sim?"

— “Vai, querido, mas dá mais um beijinho na mamãe."

Ele deu. Depois lá se foi, com o seu barulho surdo pelo corredor, suspenso nas muletas, enquanto eu fico...

Assim encontrara Cláudio aquele livro, inacabado, cortada a frase, como um símbolo, naquela tarde em que Lucila teve sua última crise

Claudinho saiu do quarto de sua mãe e, ao atravessar o hall, colocou uma das muletas num tapete, que res­valou, fazendo-o cair. O menino gritou apavorado, por­que bateu de encontro a uma mesa que virou, quebrando com estardalhaço, alguns objetos que estavam sobre ela. O ruído da queda e o grito da criança, provocaram na pobre doente um choque acima da sua resistência gasta. Quis correr em socorro de Claudinho, mas deu apenas dois passos, tombando desamparada. Todos acudiram: a ama, Leonardo, Teresa e a cozinheira. O menino não sofrera senão o susto, mas Lucila estava sem sentidos.

Na confusão, só Leonardo teve tino para telefonar cha­mando Cláudio, o Dr. Teodoro e Lícia.

Colocaram-na na cama e, enquanto Teresa esfregava trêmula os pulsos de Lucila com água de colônia. Leo­nardo desceu para ver um calmante.

Os três chegaram quase ao mesmo tempo, perguntando aflitos o que sucedera.

—“O menino caiu e D. Lucila perdeu os sentidos com o susto" — explicou Leonardo.

Cláudio galgou os degraus e correu para o quarto. Mas Lucila ainda não voltara a si. Parecia morta, muito branca, os olhos cerrados, os lábios secos, entreabertos.

— “Lucila, meu amor, que foi isto?"

Mas o Dr. Teodoro e Lícia afastaram-no dali. Pre­pararam injeções de urgência que o médico aplicou, enquanto Lícia agasalhava os pés de Lucila. Lutaram mais de meia hora para fazê-la reagir. Cláudio, dominando os nervos descontrolados, ajudava-os também. A ama descera com Claudinho para o jardim, enquanto em cima, os três lutavam encarniçadamente contra a morte. Afinal ela entreabriu os olhos amortecidos, mas os fechou outra vez. Cláudio debruçou-se.

— “Lucila, responde, meu bem, sou eu. Cláudio..."

"Cláudio" — murmurou ela, sem abrir os olhos. Sua voz era apenas um murmúrio.

"Que é Lucila, fale, eu estou aqui..."

Lícia voltou-se para a janela, como se olhasse o jardim, enquanto as lágrimas começavam a cair, grandes e silenciosas pelo seu rosto. Sabia que era o fim. Lu­cila não resistiria mais. 0 sofrimento tinha-lhe minado a saúde e tirava-lhe a vida. Mas era horrível! Não podia acreditar que Lucila morresse, não podia. Deus havia de vir em socorro deles, havia de salvar aquela pobre vida! Ou então, ela também não teria mais fé, em cousa alguma! Enxugou com as costas da mão aquelas lágrimas que teimavam em apontar nos seus olhos.

— “Cláudio" — murmurou novamente Lucila.

— “Eu estou aqui" — respondeu ele emocionado, tomando-lhe as mãos.[

- "Você promete não abandonar meu filho... nunca..."

"Oh! Lucila, que tolices dizem! “Nós dois havemos de tomar conta dele, sempre...”

Um sorriso tênue entreabriu os lábios dela. Esteve

um momento calada, ofegante, como vencida pelo can­saço.

— “Promete que haja o que houver..."

—“Não se canse com estas preocupações" — pediu Cláudio.

—“Eu não posso mais..." — sua voz era entrecortada, quase inaudível. — "Isto é o fim... o fim...

"Respirou fundo. O Dr. Teodoro debruçou-se sobre ela, auscultou-lhe o coração. Aplicaram novas injeções. Chamaram outros médicos. Nem mesmo naquele mo­mento extremo, o destino foi menos avaro para ela. Não teve a morte rápida e calma que desejou ter. Cinco dias e cinco noites, debateu-se, torturada por dispnéias cruéis.

Às vezes, ficava de olhos abertos, muito abertos e brilhantes de febre, fixando todos numa súplica muda, como a pedir que acabassem com aquela agonia... Depois caía numa espécie de estado comatoso, do qual des­pertava alucinada pela falta de ar.

Lícia não se afastou do seu quarto. Seus nervos mantinham-na forte, aumentavam-na. Às vezes beijava a amiga ternamente, na testa, nas mãos.

— “Lucila, é Lícia, que está aqui."

A doente volvia os olhos para ela, mas não respondia. Talvez não tivesse forças para falar.

Morreu na madrugada do quinto dia, entre ester­tores, convulsa, numa morte patética e impressionante, que deixou todos abalados. Ela, que sempre procurara espalhar suavidade e harmonia...

Claudinho tinha sido levado na véspera, com a babá, para a casa de Lícia.

O Dr. Teodoro esteve três dias de cama. Era como perder uma filha. Sofreu muito. Lícia ainda teve forças para amparar Cláudio, que quase enlouquecia de desespero, e confortar a velha Teresa que parecia não poder resistir.

Nunca mais se esqueceria daquele momento em que Lucila deixara de existir! Por que não nos habituamos com as cousas irrevogáveis da vida? Por que a morte nos faz sofrer, quando é o fim inevitável de todos?

Lucila ficou linda, depois de morta. Parecia ador­mecida, cheia de serenidade, libertada de todos os so­frimentos que tinham transformado sua vida num martírio sem par. Foi ainda Lícia que a vestiu e penteou-lhe os cabelos castanhos, pesados, ligeiramente ondu­lados, enquanto as lágrimas caíam, caíam, sem cessar.

À saída do cemitério perguntou a Cláudio:

—“Você vai para casa?"

—“Eu? Não sei... vou sim, vou... adeus, Lícia, muito obrigado."

Recusou a companhia de Osvaldo e entrou no carro. 0 Leonardo, de olhos inchados e vermelhos, guiou para casa.

Lícia, então, apoiada no braço de seu pai e de Osvaldo, entrou também no seu carro e seguiu, sentada entre os dois, para sua casa, onde a esperava, sem dúvida, a parte mais difícil da sua missão: responder às perguntas de Claudinho, dissimular, não trair diante dele a sua dor imensa!

 

A tarde caíra inteiramente, uma tarde cinzenta, ameaçando chuva...

Cláudio atravessara o jardim, na volta do enterro, estranhando aquele ambiente familiar, como se lhe fal­tasse um elemento qualquer. Ao subir a escada, pisou uma flor que se desprendera talvez de alguma coroa. Curvou-se e ergueu-a. Estava fanada, sem perfume, mas estivera junto dela. Guardou-a no bolso. A escada e a varanda tinham muitas marcas de pés, de todos os que tinham vindo trazer o conforto da sua solidariedade.

Abriu de manso a porta, como se receasse entrar ali, onde tudo lhe falaria daquela que se fora. Ainda pai­rava no ar uma estranha fragrância de flores misturadas e da cera dos círios...

Atravessou o hall lançando um olhar quase furtivo para a escada, por onde descera, carregando o corpo inerte, mas ainda morno de Lucila, para colocá-lo no caixão.

Como lhe parecera estranho o seu contato... e de­pois como tomara outra expressão, entre as flores, na eça, banhada pela luz hesitante das velas. .. Desviou o olhar e abriu a porta do seu escritório. Ali deixara-se ficar, sentado naquela poltrona, indiferente a tudo. Não almoçara e não sentia necessidade de se alimentar. Para que? Era melhor que morresse de uma vez, que estou­rasse, que levasse a breca! Nada lhe interessava no mundo! Nada!

E Claudinho?...

— "Você promete não abandonar meu filho?"

E' verdade, Claudinho. .. Claudinho precisava dele, não podia deixá-lo, tinham que se amparar mutuamente. Iria buscar o menino. .. Levantou-se, sentindo as pernas pesadas, dormentes. Era cansaço. Passara aqueles dias e noites, sem dormir, sem ao menos se recostar. Mal se alimentara, ali mesmo no quarto, junto da cama de Lu­cila. Não queria deixá-la nem um instante, com um re­ceio supersticioso de que ela morreria, no momento em que ele se ausentasse.

A pobrezinha sofrera tanto! Não se conformava com o drama daquela agonia lenta, dilacerante. Que cousa triste! Nunca poderia esquecer os seus olhos mortos, baços, súplices...

E foi caminhando pela casa cheia de penumbra que se adensava em sombra triste. Subiu a escada, entrou no quarto, que lhe pareceu estranho, ainda com esta de­sordem dos quartos onde morreu alguém. A cama estava sem lençóis e os travesseiros também sem as fronhas. Tinham retirado da mesinha todos os vidros de remédios, não houvera, porém, tempo nem calma para arrumar os objetos familiares, a lâmpada, o despertador, uma jarra de cristal... A mesa estava vazia, inexpressiva. Olhou à volta. Tinham retirado o tapete. O quarto dava a impressão triste, de um quarto abandonado para sem­pre. Para sempre! Era isto mesmo. Lucila se fora para sempre! Seu olhar pousou sobre a secretária. Aproxi­mou-se lentamente e acendeu a luz. Ah, é verdade! Aquele livro estava aberto em cima da mesa, naquela tarde tormentosa. Lembrava-se bem deste detalhe. Quando Lucila recobrara os sentidos, ele estivera sentado junto da mesa e o folheara distraidamente, mas não lera, nem sentira nenhuma curiosidade pelo texto. Apenas vira a letra bonita e clara de sua mulher, enchendo aque­las páginas longas. Mas agora, que ela estava morta, teve vontade de ler, procurando reencontrá-la em tudo. . .

E tomando o livro, encerrou-se novamente no escritório, deixando para buscar Claudinho no dia seguinte.

 

Fora assim todo o seu drama. E através dos dias penosos em que leu e releu aquelas páginas, sua alma foi sofrendo transformações e reações radicais...

Não foi buscar o menino no dia seguinte, nem nos que se seguiram. Proibiu que atendessem o telefone e fechou-se num mutismo enervante que enchia os em­pregados de sustos. No primeiro dia, quando espatifara a mesa e soluçara alto, a Teresa dissera ao Leonardo que com certeza o patrão estava louco e que era melhor cha­marem o Dr. Teodroo e a Lícia. Mas no dia seguinte quando êle apareceu, pálido, de olhos fundos, curvado e quase trôpego, compreenderam a sua dor e procuraram cercá-lo de cuidados e atenções. Os dias foram passando, sem que Cláudio retomasse o ritmo da vida. Seu espírito empenhava-se numa luta extenuante. Que faria com Claudinho? Êle afinal não era seu filho! Até tinha von­tade de rir do papel ridículo que representara em tudo aquilo! Maldisse todos e tudo, num ódio largo e absor­vente. Mas, com os dias, foi-se retraindo aquele sentimento de revolta, foi-se apaziguando aquele ódio e uma grande piedade difundiu-se na sua alma quebrantada. Teve pena de todos e mais que todos de Claudinho, tão pequenino, tão lindo e já tão desventurado! Sentiu um remorso fundo de o ter envolvido no seu ódio, na sua sanha de vingança! E chorou, baixinho, sentidamente, pensando na tristeza da vida que se arrastaria para êle, sem ideal, sem esperança!

Ao fim de um mês, sentiu uma falta imensa do me­nino. Tinha vontade de ouvir a sua vozinha, de ver aquele rostinho sempre contente, aqueles olhos meigos... os olhos de Eduardo, com certeza... É, devia ser aquele, o olhar envolvente de Eduardo... E se não pudesse mais olhar para o menino sem que visse entre eles a sombra sem feições daquele desconhecido? Então seria uma tortura intolerável! Mas, não! Precisava reagir, lu­tar, vencer aquele complexo que sentia incipiente, e que poderia dominar o seu espírito!

Um mês !Lucila morrera,havia um mês! Como era estranha a sua falta! A casa perdera a expressão, deixara de ser lar, era apenas uma casa! Estava fria, cheia apenas de um silêncio que oprimia.

Precisava de Claudinho. Embora tão pequenino e tão frágil, era nele que se agarraria para não soçobrar! Chamou a Teresa.

"Pronto, seu doutor" atendeu solícita.

"Ligue o telefone para D. Lícia."

Ela correu ao aparelho, vendo naquela ordem, o sintoma de reação que o Dr. Teodoro anunciara, dias antes. Quando Lícia atendeu Cláudio tomou o fone, perguntou pelo filho. Claudinho ia bem, falava todos os dias no papai.

“Amanhã é a missa de trigésimo dia, Cláudio. Mandamos celebrar na Candelária, ouviu? Às dez horas..."

Parecia lhe um pesadelo. Missa de trigésimo dia por Lucila. Lucila. Que nome estranho aquele que tinha o poder de torturá-lo, depois de ter sido tão caro ao seu coração!

Deitou-se cedo e pela primeira vez, depois de tudo, conseguiu dormir toda a noite, num sono pesado, espesso, sem sonhos.

Na manha seguinte, quando entrou na igreja e ouviu os compassos da Marcha Fúnebre de Chopin, sentiu que vencera a tormenta, que sufocara qualquer complexo e que nunca mais teria medo de encarar aquela criança que adorava como seu filho!

A missa solene, cheia de música, fez vibrar-lhe a alma até então fechada à arte. Sentiu naquele momento como a música traduz as nossas emoções, como ameniza as torturas da nossa alma.

O Dr. Teodoro acompanhou-o até a casa e ficou para almoçar.

"Quando vai buscar o Claudinho?" — perguntou num tom natural, ao café.

"Hoje, à tarde" — respondeu Cláudio do mesmo modo.

"Tenho estado com ele diariamente..."

"E que pensa de tudo?"

"Que a mamãe está no céu." Cláudio abaixou a cabeça.

"Vou primeiro ao cemitério" — disse.

— “Ah! é verdade, quando volta ao hospital?" —"Se ainda me quer lá, um dia destes..."

E não falaram mais sobre isto. À saída, o Dr. Teodoro disse também que Osvaldo visitava o menino, todos os dias.

—“Bom amigo" — murmurou Cláudio — "tão bom mesmo..."

À tarde, Cláudio transpôs sozinho o portão do cemitério. Entrava naquele momento um enterro de terceira, classe, sem flores, acompanhado por um pobre homem magro e desalentado. Ele foi atrás da carreta, até o Cru­zeiro . Quando teve de mudar o rumo, tirou um apanhado das flores que levava e colocou-as sobre o caixão. O homem fixou nele um olhar amargurado onde brilhou um fugidio clarão de agradecimento e seguiu tristemente, enquanto Cláudio continuou pela alameda sombria.

Diante do túmulo, ajoelhou-se no chão, passando as mãos pela pedra branca, como se quisesse acariciar o corpo que sob ela jazia. Custava a conceber que nada restasse mais daquela Lucila emotiva, cheia de graça e beleza, senão a matéria inerte, decompondo-se sob a terra!

E pensou no que lera.. . Ela, sim, iria continuar o seu ciclo. Seria uma árvore agasalhadora, seria talvez um pássaro canoro, ou uma flor, mas não desapareceria, tinha que perdurar com a sua bondade suave. . .

— "Lucila," — murmurou baixinho: — "eu prometo, meu amor, que nunca abandonarei o nosso filho... nada mais pode acontecer que nos separe, senão a minha ou a morte dele. Pode dormir em paz, eu carregarei a sua cruz, carregarei enquanto Deus permitir."

Levantou-se, enxugou lentamente as lágrimas que vinham correndo dos seus olhos cansados e afastou se. Ainda voltou a cabeça, fitando o túmulo que se enfilei­rava com os outros, cada um encerrando o desfecho de um drama diverso. Seguiu pela alameda cheia da sombra da noite, uma sombra que se alargava e adensava, toda entrecortada pelos retângulos brancos das campas.

E nas árvores daquela alameda havia o murmúrio dos ninhos ocultos, preparando-se para dormir. Lembrou-se das palavras de Lucila, sobre o ciclo inevitável, o ritmo eterno... Enquanto uns se transfiguravam sob a terra, nos galhos daquelas árvores, por todos os recantos da noite, continuava o amor, procriando, num desdobramento sem fim, de todos os seres. . . Ergueu os olhos para o céu, onde as primeiras estrelas começavam a brilhar. Lucila comparara aquela abóbada imensa ao toldo de um circo, onde a humanidade levava a sério o drama bufo da vida! E era verdade! Apenas entre aqueles artistas todos, nenhum conseguia tirar da cartola mágica dos ilusionistas um pouco de felicidade!

Lucila, Lucila. . . Como parecia longe no tempo a sua presença. Trinta dias tão torturados que valiam por trinta anos. . .

Quando ia ganhar a alameda principal, ergueu os olhos para o grande Cruzeiro de pedra que, lá em cima, abre os braços, como querendo abençoar o repouso dos mortos. Entreparou com os olhos fitos na cruz que se des­tacava escura contra o fundo azul do céu que empali­decia. . .

Por que raramente nos lembramos de Deus, quando somos felizes? Muita gente, como êle, precisava sofrer para então procurar um amparo na sua bondade infinita!

Lucila, pelo contrário, se fora afastando, descrendo, terrivelmente desamparada! Pobre Lucila! Até, quando êle dissera que esperava ainda irem a Aparecida pagar uma promessa que fizera pela saúde dos dois, ela e Claudinho, vira-a sorrir de maneira indefinível, dizendo de­pois, pensativa:

"Você acredita nestes favores trocados?"

Sentia-se culpado pelo ceticismo da esposa. Até êste conforto espiritual faltara para mantê-la resignada.

Pensando assim, cheio de amargura, foi caminhando para o grande portão que defende o sono dos que dei­xaram de sofrer, aquele portão que é uma fronteira, onde as paixões atormentadas da humanidade não encontram passagem, porque ecoariam inúteis e sem significação no silêncio e no nada...

Já sob a porta, voltou-se, lançando um último olhar para a grande cruz, pensando ainda unia vez que ela era o símbolo da sua remissão.

Ganhou a rua, tomou o seu carro, que seguiu entre tantos outros, na hora tumultuosa, carregando o seu destino dramático. .. Seguiu perdido e anônimo, estranho e triste, para continuar a escalar o seu Calvário, levando a cruz que esmagara Lucila, sob o seu peso excessivo

Precisava cumprir o seu fado. . .

Viver. . . Viver. . . Viver. . .

 

                                                                                Nora Carrel  

 

                      

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