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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EM BUSCA DE UMA ESPOSA / Corin Tellado
EM BUSCA DE UMA ESPOSA / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

EM BUSCA DE UMA ESPOSA

 

André era viúvo, pai de duas adolescentes. Vivia um relacionamento às escondidas com Maria, durante um bom tempo. Suas filhas achavam que André trabalhava muito e precisava de uma esposa, por isso trataram de arranjar possíveis candidatas para ele. Maria ficou arrasada com isso e mesmo que o amasse, talvez não fosse mais possível conviver com um homem que não a assumia...          

 

Ambrosia gritou-lhes do corredor:

— Parem com isso e vão dormir!

Como se elas quisessem dormir.

Marcela levou o dedo aos lábios e Pau¬la, de um salto, pulou da cama paralela a de sua gêmea.

— Essa Ambrosia sempre ouve tudo — cochichou. — O melhor é irmos para o jardim pela janela.

— Está louca! E se papai nos encon¬tra ali?

— Ora, papai vai demorar a chegar e, depois, nunca vê nada mesmo. É o homem mais distraído que conheço.

— Pobre papai — lamentou-se Paula.

— Não acha que vive muito só? — sussurrou Marcela. — Eu acho que o que nós pensamos...

— Psiu! Não quero que Ambrosia nos ouça.

Ouviram passos. Cansados, como se ar¬rastassem os pés.

Paula pulou da cama de sua gêmea pa¬ra a sua. Cobriu-se até as orelhas, depois de sussurrar:

— Apague a luz! É a Ambrosia!

Logo, a porta se abria e surgia a fi¬gura de uma senhora de idade, baixa, vestida de escuro.

— Estão dormindo, meninas?

Silêncio.

— Será que estão dormindo mesmo? — insistiu a criada.

O mesmo silêncio.

— Pobrezinhas — sussurrou Ambrosia. Em seguida, voltou as costas e fechou a porta, afastando-se do quarto.

Dali a segundos, Paula se sentou na cama. Marcela foi para a da irmã. No escuro, recomeçaram os cochichos.

— David — disse Paula — diz que pa¬pai trabalha demais.

— Bem, Santi diz que não é tanto. Que ele fica no escritório porque quer. Tem gente suficiente para trabalhar por ele.

— Santi é um egoísta, Marcela.

— Não diga isso. Santi é um doce.

— Será que papai sabe da gente?

Ambas coraram.

— Como são vizinhos nossos e papai é amigo do deles, é bem possível que não te¬nha reparado.

— Também, papai não repara em na¬da — murmurou Marcela. — Anda sempre tão solitário... Por que trabalha tan¬to? Só chega em casa bem tarde, quase de madrugada.

— David diz que...

— Eu não ligo para o que David diz.

Paula ficou acalorada:

— Claro, não sendo o que diz Santi...

— Tem que reconhecer que Santi é mais sério que David.

— Essa não! David tem dezessete anos e já tem responsabilidades de um homem feito, maduro.

— Não diga bobagens, Santi também tem dezessete e é muito mais responsável, além de estar muito adiantado nos estudos.

As gêmeas tinham quinze anos e ha¬viam custado a vida de sua mãe.

Estavam ambas terminando o ginásio.

E ambas adoravam o pai, como também a mulher que as criara, Ambrosia. Além do mais, adoravam-se, uma à outra.

Paula estava namorando David e Mar¬cela a Santi. David, filho de um oficial de registro de propriedade e Santi filho de um inspetor de ministério.

A fileira de casas de pessoas de boa si¬tuação econômica, embora não ricas, es-tendia-se ao longo da avenida residencial. Todos se conheciam. Ali, Paula a Marce-la haviam se criado, convivendo com os vi¬zinhos.

— Eu penso — opinava Paula — que vivemos muito bem e graças ao esforço de papai. Não acha que podíamos fazer algo por ele?

— E o que podemos fazer por um ho¬mem que quase não vemos?

Paula pareceu meditar.

— Tenho a solução. Amanhã falare¬mos com David e Santi sobre o assunto. O que acha?

— Acho uma excelente idéia.

Ambrosia tinha ouvidos aguçados.

Em breve, as gêmeas percebiam seus passos de novo.

— Deite-se e cubra-se bem — sussur¬rou Paula. — Lá vem Ambrosia.

De fato, Ambrosia reapareceu.

Vestia um camisolão, e por cima deste, um roupão grosso. Na cabeça, um gorrinho branco, mais branco que seus cabelos le¬vemente despenteados.

— Meninas, são vocês que estão falan¬do? — perguntou.

Nada. Silêncio completo.

— Deve ser impressão minha — deci¬diu Ambrosia.

E lá se foi de novo, arrastando os pés cansados.

Quase instantaneamente, as duas jovens se levantaram.

— Acho que agora ela foi dormir — murmurou Marcela. — Podemos continuar nossa conversa.

— Bem, com David e Santi falaremos amanhã. Agora, tratemos de papai. Tem levado uma vida de ermitão. De casa pa¬ra o trabalho, do trabalho para casa. Nun¬ca sai, nunca aceita os convites dos amigos para uma partidinha no clube. Talvez, esteja em má situação e precise trabalhar tanto.

— Não o creio. Acontece que papai devia ter-se casado quando éramos ainda pequenas.

— Talvez a época melhor seja esta, agora.

— Mas você acha que ele tem tempo?

— Não, é verdade. E não posso imagi¬nar papai ligado a esses assuntos.

Paula pensou um pouco.

— Sabe o que eu digo, Marcela? Eu penso que, desde a morte de mamãe, papai não... tem contato com mulheres.

— Será?

— Sou capaz de jurar. Não vê a ex¬pressão dele, desligada? Vive no escritó¬rio ou na oficina, entre carros e motos. Trabalha, apenas isso. Que horas são?

— Meia-noite e ele ainda não veio pa¬ra casa.

— Depois, é um tanto tímido. Não te¬ria coragem de olhar para uma mulher.

— Com trinta e seis anos, creio que ele arranjaria facilmente uma esposa.

— Com quantos anos papai se casou?

— Ambrosia diz que ele se casou aos vinte e, aos vinte e um, quando nós nascemos, mamãe morreu. Ambrosia sabe de tudo, já que estava trabalhando aqui.

— Bem, estávamos falando da timidez de papai. Teremos que conversar com David e Santi, amanhã. Penso que devemos ajudar papai a encontrar uma mulher de sua idade.

— Acha que ele vai nos dar atenção?

— Não. Mas há mil maneiras de con¬seguirmos o que pretendemos.

— A verdade é que ele está se matan¬do. Trabalha, trabalha e nunca se distrai.

— Pois é, só chega em casa tarde da noite ou da madrugada. Teve um dia em que a avó de Santi morreu e eu não con¬seguia dormir direito. Vi papai regressar às seis da manhã. Tímido e sério, como sempre...

— Devia estar morto de sono e cansa¬ço. Bem, acho melhor dormirmos agora. Amanhã temos que acordar cedo.

— Será que papai não desconfia de nós?

— Claro que não! — exclamou Marce¬la, que era mais desligada que a irmã.

Paula começou a rir.

— Os homens felizes encaram com otimismo o namoro das filhas. Não acha que é mesmo uma necessidade que ele se case? Veja, nós nos casaremos, assim, que os rapazes terminarem os estudos. O po¬bre do papai ficará apenas com Ambrosia a lhe fazer companhia.

— Pois então, é preciso arranjar-lhe uma esposa.

— Amanhã falaremos nisso de novo. Agora, vamos dormir.

— Está bem. Até amanhã!

Em breve, ambas dormiam.

 

Maria nunca dizia nada. O que podia dizer?

Estava metida naquilo há muito tem¬po. Não podia escapar e nem queria.

— Seis horas, André.

O pai das gêmeas já o sabia.

Mas estava tão bem ali. Nem em sua casa sentia-se melhor do que ali. Maria era um amor. Nunca perguntava nada. Nada exigia. Não se metia onde não era chamada.

A discrição em pessoa.

Ele sabia que não agia bem. Devia ca¬sar-se com ela. Ao menos, dar-lhe esperan¬ça para o futuro, mas...

Nunca dizia nada.

— André... é tarde.

— Oh, sim!

André vestia-se com muita calma. Era um tipo alto, forte. Tinha os cabelos ne-gros, com alguns fios brancos nas têmpo¬ras. Um homem interessante. Moreno, olhos esverdeados.

Maria estava ao seu lado, com um robe.

— Amanhã é dia de levar as meninas ao cinema — disse. — Mas virei depois.

— Sim, André.

André teve vontade de dizer-lhe que a amava.

Mas não o demonstrava?

Segurou-a pelo queixo, obrigando-a a fitá-lo. Tanta coisa para dizer e não dizia na¬da!

Assim, o que fez foi beijá-la intensa¬mente na boca. Não sabia ele que encanto especial tinha a boca de Maria. O cer¬to é que o atraía incrivelmente.

— Maria, o que pensa de mim?

— Você... é você.

— Só isso?

Maria sorria de leve.

— Só isso. E basta.

— Obrigado, Maria.

Abraçava-a fortemente e tornava a procurar-lhe a boca. Era quase como um vício.

— Virei depois de amanhã.

— Estarei à sua espera.

— Obrigado, Maria.

Ia-se embora.

Ela, de robe fino, descalça, com o ca¬belo louro solto, ajudava-o a vestir o casaco.

— Um dia desses, mandarei as meni¬nas aqui.

Mana quase deu um salto.

— O que disse?

Ele sorriu apenas. Tinha um rosto gra¬ve. Sério. De olhar profundo.

— Para que você faça um vestido pa¬ra elas. Não quer?

— Não — disse baixo, meio sem jeito. — Posso costurar para toda a cidade, mas não me faça olhar para elas. Se souberem de algo, vão me odiar.

— Ninguém pode odiar você.

— Você é muito indulgente comigo.

Amanhecia já.

— O sol já vai sair — comentou ele. — Vai se deitar mais um pouco, ou ficará de pé?

— Ficarei de pé. Tenho o que fazer.

— Você trabalha demais, Maria.

— Nem tanto.

Ele fez um carinho em seu rosto e de¬pois, rapidamente, virou-se e se foi.

Tinha que cruzar toda a cidade. Às vezes, usava o carro, mas jamais o deixava estacionado junto à casa de Maria. Tentava ser o mais discreto possível.

Quando começou aquilo?

Maria era quase uma criança.

Tudo começou de... brincadeira e de¬pois se converteu em algo sério, íntimo, necessário.

Caminhou para o centro e, lentamen¬te, com as mãos afundadas nos bolsos do sobretudo, ia pensando em si mesmo. Em suas filhas, em sua vida. Em Maria...

Maria era como uma razão secreta de viver...

Há oito anos que conhecia Maria. Que se viam assim, às escondidas, apenas qua¬tro, mas lhe pareciam quatro dias.

Devia se casar com ela. Mas... estava tão bem assim. Claro, devia uma compensação a Maria.

Passou os dedos pelo cabelo. Não iria para casa. O sol já estava saindo. Iria logo para o escritório. Sentia-se bem. Sem¬pre que saía da companhia de Maria era assim.

Estava Maria com vinte anos, quando se conheceram, numa festa qualquer: Não soube como se viram conversando anima¬damente. Maria era modista e muitas das moças presentes usavam vestidos feitos por ela.

Não a viu por uns dias. Até que, certa vez, chovia muito e ele a encontrou na rua.

— Entre, Maria. Vou levá-la em casa.

No dia seguinte, ele a procurou, com um pretexto qualquer. Dizia que as moças de sua firma precisavam mandar fazer uniformes e queria encomendá-los nela.

— Não costumo fazer esse tipo de ser¬viço — dissera Maria rindo. — Dedico-me a modelos...

— Oh...!

— Mas não tem importância, Sr. Gil. Sente-se.

Ele se sentou. Sentia-se bem ali.

Desde que sua mulher morrera, anda¬va muito solitário. Claro, tivera uma ou outra aventurazinha, coisas sem impor¬tância. Mas um amor de verdade... nun¬ca!

Ao se despedir dela, disse-lhe:

— Posso vê-la outra vez?

Era tão sério. Tão formal. Maria sentiu-se à vontade.

— Volte quando quiser.

Ele voltou. Um dia. Outro dia. Sempre às escondidas.

Um dia, contou-lhe coisas de sua vida.

— Tenho duas filhas. Sou viúvo.

Maria o sabia. A cidade não era grande. As pessoas ficavam sabendo de tudo sobre as outras.

— Eu sei, André.

Já então se tratavam com mais inti¬midade. Eram bons amigos e se sentiam muito ligados.

— Você não tem ninguém...? Nem amigas?

— Poucas... Família, só tenho um tio na América, que não sei em que parte vive.

Assim três anos. Sem um beijo. Uma carícia. Mas ambos sabendo que as coisas não podiam ficar daquele jeito.

De repente, André deixou de ir vê-la. Por uns seis meses. Por quê? Medo. Medo de se deixar prender. De magoar Maria. Ele não se sentia com coragem para casar de novo.

Durara pouco o seu casamento. E, as¬sim mesmo, vivia sobressaltado, já que sua esposa era frágil, delicada demais. E, ao ficar viúvo, sentiu-se abandonado, qua¬se traído.

Assim, ao conhecer Maria, sentia-se es¬caldado. Queria começar de novo, mas não se casar. Por isso, deixou de vê-la.

Mas um dia voltou e aconteceu. Ti¬nha que acontecer.

Maria não exigia nada. Era bonita, jo¬vem. Estava com vinte e quatro anos e, provavelmente, muitos homens queriam casar-se com ela. Mas ela preferiu a incógnita com ele, a incerteza com ele.

E assim vinham vivendo, uma existên¬cia tranqüila, feliz.

Naquele dia, trouxera um par de brin¬cos para Maria. Ela, ao vê-los, empalidecera.

— Não posso aceitá-los.

— Por quê?

— Não preciso de nada. Amo você, não quero nada material em troca de meu amor... Por favor — estava chorando — não me traga mais presentes.

Ficara surpreso.

Talvez ela pensasse que ele tentava pagar pela felicidade que ela lhe proporcionava.

Maria chorava.

Ele nunca a vira chorar.

— Não chore... — pedia. — Não cho¬re... Pelo amor de Deus, perdoe-me.

— Não... não estou sentida com você, nem com raiva. Só que não quero aceitar nenhum presente. Isso é tudo.

André pensara:

"Devo me casar com ela. Mesmo por¬que, eu a amo. Não seria capaz de viver sem ela."

Sacudiu a cabeça, afastando essas lem¬branças. Estava diante de seu escritório... Um empregado abria as portas.

— Já chegou, tão cedo, Sr. André?

— Hum...

Foi como um grunhido. Entrou e man¬dou ligar a calefação. Sentia frio.

"O que devo fazer a cerca de Maria? Dizer a minhas filhas que tenho uma namorada, uma amante ou o que seja...?"

Impossível. Eram muito jovens para entender.

Por outro lado, sua liberdade... Por que não deixar as coisas como estavam?

Maria aceitava-o assim. Estava tudo tão bem.

— Já acendemos a calefação, senhor.

— Obrigado.

Sentou-se e dispôs-se a trabalhar.

E suas filhas? Tinha que ir vê-las. Eram boas meninas. Inocentes, sem malícia. Estudiosas... Muito boas mesmo.

Mas estavam crescendo. E eram boni¬tas. Um dia qualquer, dentro de alguns anos, começariam a namorar, pensariam em casar...

Depois, ele faria o que quisesse.

— Olá, André.

Levantou vivamente a cabeça.

— Juan... entre.

— O que há? — e Juan olhou em to¬das as direções.

— Nada.

Ninguém sabia de seu caso com Maria. Ele tinha fama de homem austero, inca-paz de aventuras. Dedicado ao trabalho.

— Está um dia frio — comentou Juan, sem suspeitar da vida íntima de seu ami-go. — Não sei quando a primavera vai co¬meçar.

— É o que estive pensando.

Ao falar, remexia em seus papéis, co¬mo se tivesse muito o que fazer. Juan de¬ve tê-lo entendido assim, pois, após alguns segundos de conversa, despediu-se.

André voltou aos seus pensamentos. Chegava à conclusão que não ia todos os dias em casa, para que suas filhas e Am¬brosia, não lessem em seu olhar toda a verdade.

Porque existia uma verdade.

A que ele amava Maria. Disso, não cabia dúvida. Mas casar-se! Ele gostaria de dei¬xar as coisas assim, eternamente. Mas ha¬via sua consciência. Ele adorava Maria. Quatro anos de convivência íntima e tinha certeza absoluta de seu amor por ela. Ama¬va-a e desejava-a.

Não gostaria de pensar tanto naquilo, mas essa manhã, estava difícil afastar tais idéias. Remorsos?

Sacudiu a cabeça. Como em muitos momentos, apertou-a entre as mãos.

Quantas vezes, naqueles quatro anos, tentou deixar de ver Maria. Chegou a viajar, a mergulhar no serviço... Pretendia conhecer-se, saber até que ponto ela formava parte de sua vida.

Mas foi tudo inútil.

E o pior é que, até então, ela jamais lhe fizera uma censura, uma crítica. Jamais lhe pediu nada.

Sempre o sorriso meigo, compreensivo, melancólico? Sim, melancólico. Ele sentia que estava em suas mãos alegrar aquele sorriso. Mas, egoísta, nada fazia.

Acima de tudo, não passava de um egoísta.

Os quatro discutiam o assunto à saída do colégio. Os rapazes escutavam com atenção o que lhes diziam as gêmeas.

— Mas vocês sabem se ele quer se ca¬sar? — perguntou David, em dado momento. — Afinal, o importante é ele que¬rer.

Santi comentou:

— Se elas querem ajudá-lo, é porque o amam. Agora, é fato comprovado que An¬dré é um homem tímido. Está sozinho e é justo que suas filhas queiram ajudá-lo.

— Puxa! — exclamou David. — Acon¬tece que não vamos nos casar amanhã.

Marcela interveio.

— Não é isso exatamente, David. É claro que não vamos nos casar tão cedo. Que tolice! Mas se um dia papai souber de nosso namoro, manda-nos para o internato, ao passo que, se estiver entretido...

— Ou seja — atalhou Santi — vocês querem é entretê-lo.

— Ora, se ele é a pessoa mais entreti¬da do mundo — riu David — e mais des-ligada também. Está farto de nos ver no jardim de sua casa e só faz dizer: “Olá, rapazes!”, e nem desconfia de nada.

— Mas um dia vai desconfiar.

— Tem razão — disse Santi. — Não vamos poder dissimular tanto — esfregou as mãos, animado. — Pensemos na mulher ideal. O que acha, Marcela?

A aludida devia ter alguém em mente, pois disse, rápida:

— Eu penso que Rita Julián não seria na¬da mau. É uma mulher muito religiosa, vai a igreja todos os dias.

— E como sabe que é o tipo que agra¬daria a seu pai?

Paula interveio:

— Muito simples. Rita é parecida com papai. De poucas palavras, tímida, tran-qüila.

— Não gostei — resmungou David muito sério. — Dizem que os opostos se atraem, é que dá mais certo.

— Vejam, é bobagem isso — disse Paula. — Nós até já pensamos em convidar Rita para um lanche no domingo.

— E por que no domingo? — quis sa¬ber David.

— Porque é o único dia em que papai fica em casa.

— Acha que ele estará de acordo?

— Nessa idade, o pobre papai não sa¬be nem o que quer. Nós — dizia Marcela, como se fosse o chefe da família — te¬mos de pensar por ele. Papai vive tão só, uma vida tão monótona. Como podemos viver em paz, vendo-o se consumir?

— Posso dar a minha opinião? — in¬dagou David.

— Claro! Para isso estamos reunidos, não acha?

— A parte de achar tudo isso uma lou¬cura total, eu penso que seu pai é bastante homem para saber encontrar uma mu¬lher do seu agrado, se quiser se casar.

— Papai não sabe se o deseja — ex¬clamou Paula, dando um empurrão no namorado. — Papai só sabe que vive e que trabalha, nós é que devemos pensar por ele. Se demorar muitos anos, ele fica ve¬lho e Rita não quererá aceitá-lo.

Santi caiu na gargalhada.

— Rita está "matando cachorro a gri¬to", ela casa até com uma múmia. Se você visse os olhares dela para o sacristão... Qual, vocês mulheres, são muito românti-cas. Nós — e inchou o peito — os homens, é que sabemos das coisas. Não é David?

— Estamos nos afastando da questão.

— É melhor mesmo — opinou David. — Temos coisas mais importantes em que pensar. Que tal uma volta pela praia?

Logo, os quatro já não pensavam no assunto do casamento do pai das gêmeas, deixando aquilo para outro dia...

 

Nem mesmo Ambrosia desconfiava dos namoros. Afinal, os quatro jovens se co¬nheciam de crianças e era natural que se vissem no jardim. Por outro lado, Ambro¬sia estava velha, mal ouvia e pouco enxer¬gava.

Ainda por cima, as gêmeas não eram só bonitas, eram vivas também. Inteligentes e espertas.

No entanto, quando naquela tarde as irmãs a puxaram para um lado, cheias de mistério, perguntou-se que assunto as gê¬meas teriam em mãos. E as escutou em silêncio, esperando ver onde iriam parar.

— Amanhã, vamos oferecer um lan¬che, Ambrosia.

A criada estava acostumada com a ca¬sa cheia de jovens.

De vez em quando, acontecia. E colo¬cavam umas músicas barulhentas e dançavam estranhamente. Ah, seus tempos! Mas o fato da festinha ter lugar num domin¬go a intrigava, pois as gêmeas, no verão, iam à praia e, no inverno, iam patinar. Não imaginava o motivo de tal festa.

— Não será para jovens — informou Paula.

Agora, Ambrosia ficou desconcertada.

— É para pessoas maduras. Poucas — disse Marcela. — Papai, nós, você, Rita Julián e mais ninguém.

— Rita Julián?

— Não gosta dela?

Não gostava, nem deixava de gostar. Era uma solteirona que vivia na igreja. Muito elegante, muito séria.

— Seu pai já sabe? — indagou, meio receosa.

Foi Paula, mais decidida, a que repli¬cou logo:

— Não! Será uma surpresa para ele. Ele vive trabalhando. Nos domingos, fica trancado em seu gabinete. Assim, chamamos Rita para um lanche. Quando ela chegar, chamaremos papai.

— O que estão tramando?

— Nada, ora. Papai vive entediado.

— Como podem saber disso?

— Ambrosia, papai está ficando velho — disse Marcela. — E preciso pensar ne¬le, em algo para ele. Não gostaria de ter Rita como sua patroa?

Ambrosia levantou as mãos para o céu.

— Se seu pai sabe que estão procuran¬do esposa para ele, é capaz de matá-las.

Marcela era persuasiva. Por outro la¬do, adorava Ambrosia como a uma mãe, ou uma avó muito querida. Ajoelhou-se ao seu lado e começou a falar-lhe da vida, de uma vida que ela mesma não conhecia, mas que com certeza havia lido em algu¬ma parte.

— Papai é muito tímido — dizia Mar¬cela. — É claro, ele amava muito a mamãe. Sofreu demais, quando ela morreu. E ainda está sofrendo, Ambrosia. E isso, não podemos deixar que continue indefi¬nidamente. Mas é claro que não podemos dizer a ele que deve se casar de novo. No entanto, é fora de dúvida que papai pre¬cisa de uma companheira, alguém que cui¬de dele, que o mime — olhou para sua irmã, pedindo ajuda. — Não é mesmo, Paula?

— É a pura verdade. E se não fizer¬mos nada, papai vai ficar assim o resto de sua vida, pois afinal, não tem coragem para procurar uma esposa.

— Ai, meu Deus! — gemeu a pobre mulher. — Que confusão! Vocês, então, acham, que seu pai vai gostar de Rita Julián.

— É bonitona, não?

— Eu sei lá... Eu não entendo de be¬lezas femininas, mas... Ainda acho que seu pai prefira ele mesmo achar uma es¬posa.

— Mas ele não o fará, Ambro — sal¬tou Marcela. — Não tem tempo, nem jei¬to. Portanto, está decidido. Vamos convi¬dar Rita. Ela vai gostar do convite — Marcela baixou a voz: — Lembremo-nos que ela está doida para casar e papai é um bom partido.

— E se depois de tudo arranjado, ele se nega a vir lanchar com vocês?

As duas irmãs se fitaram, muito satis¬feitas.

— Papai é o homem mais correto do mundo. Não nos deixará mal. Afinal, ele passa os domingos em casa e nós vamos sacrificar nosso passeio na neve, não? Papai é educado. E nós esticaremos o lanche e, ao fim deste, papai será obrigado a levar Rita em casa. Muitos amores come¬çam assim, Ambrosia.

Ambrosia entendia pouco disso. Mas, adorando as meninas, tratou de providenciar um bom lanche para o dia seguinte.

André, alheio a tudo, como cada do¬mingo, fechou-se em seu gabinete e tratou de pôr em dia alguns assuntos, quan¬do apareceu Paula na porta.

Ficou espantado.

— Ué, não saiu hoje? — disse.

Paula ficou um tanto sem graça. Real¬mente, a seriedade de seu pai, seu modo de ser a deixavam inibida. Mas estava disposta a ir até o fim.

— Avisaram-nos que a neve está pou¬ca e não dará para esquiarmos. Ficamos em casa com uma amiga, Vamos lanchar agora, papai, e vim chamá-lo.

— Mas...

— Estamos sem jeito, sabe? Essa ami¬ga não é de nossa idade e pensamos... Importa-se de nos ajudar a recebê-la, papai?

— Está bem. Vou colocar o paletó.

Nem por um segundo lhe passou pela cabeça que as filhas queriam casá-lo com Rita Julián. Assim, vestiu o paletó e des¬ceu à saleta.

Educado como era, portou-se gentil¬mente com a convidada. Suas filhas ficavam cada vez mais esperançadas. Rita era uma mulher de seus trinta e tantos anos, simpática, bem-vestida, com expressão in¬gênua nos olhos. Para André, homem vivido e experiente, aquela expressão tinha mais de coquetismo, mas, assim mesmo, não lhe ocorreu que Rita tentasse conquis¬tá-lo.

O tempo ia passando, a noite ia che¬gando e André não conseguia se livrar daquela companhia insossa. Assim, quando deu nove horas e Rita quis se despedir, as gêmeas apressaram-se a dizer:

— Sozinha? Essa não, Rita. Nós a acompanharemos.

André não permitiria que suas filhas saíssem tão tarde de casa. Decidiu que ele iria com a visitante.

— Eu a levarei, Rita. Meu carro está aí fora.

As duas gêmeas trocaram um olhar. Ambrosia, atrás das cortinas, suspirou. André estava ficando intrigado, mas não fez comentário. Ele mesmo ajudou-a a ves-tir o abrigo. E quando ambos saíram, as irmãs começaram a dançar e a pular. Até Ambrosia participou da alegria.

— Desta vez, ele se casa! Aposto como casa!

— Gostaria de saber o que estão con¬versando agora...

— O importante é que marquem a da¬ta do casamento, o mais rápido possível.

Pouco depois, Marcela, escapando a vi¬gilância de Ambrosia, foi até o jardim.

— Santi, Santi...

O rapaz apareceu, intrigado.

— O que aconteceu? Tudo certo?

— Tudo cem por cento. Eles saíram, sabe? Ele foi levá-la em casa.

— Pelo jeito, caíram direitinho — ale¬grou-se o rapaz. E, segurando a mão da garota: — Vamos dar um pulo até a praia?

— Sozinhos?

— O que tem isso?

— Você está louco. Se papai volta e não me encontra em casa...

— Aposto como ele nem perceberia. Ainda mais agora, que está interessado na Rita...

— Será que ela sabe conquistá-lo?

— É claro! Ainda mais estando louca para se casar, como está ela. Mas venha. Vamos nos sentar um pouco.

— Tenho medo. Papai pode chegar e Paula não está comigo.

— Pois chame-a, que eu chamo o David. Ele está jogando pingue-pongue com seu irmão Roberto. Chamo-o?

— Bem...

— Já vou chamá-lo. Espere um pouco.

Dali a minutos, os quatro estavam reu¬nidos, embora cada par fosse para um canto do jardim.

Foi uma meia hora depois que ouvi¬ram o ruído do motor do carro de seu pai e ambas as irmãs correram, sozinhas, pa¬ra recebê-lo.

— Olá, papai.

Ele as fitou, desconfiado.

— O que estão fazendo aqui fora, no sereno?

— Estávamos à sua espera.

— Ah!

Atravessaram o jardim juntos.

— O que achou de Rita, papai?

Este não pareceu abalado.

— Já a conhecia.

— Não é mesmo uma simpatia, uma graça?

O pai arqueou uma sobrancelha.

Uma graça? Bem, a pobre Rita não ti¬nha nada de bonito ou gracioso.

— É muito amiga de vocês? — pergun¬tou indiferente.

— Demais! Gostamos dela como se fosse nossa mãe.

Fitou-as, mas nem assim pensou que as filhas queriam arranjar-lhe um casamento.

 

Não costumava falar com Maria sobre suas filhas, nem nada relacionado a sua vida íntima longe daquela casa.

Estava no salãozinho contíguo à sala, tomando um aperitivo. Maria estava mui¬to ocupada, terminando um vestido de noiva.

— Você vai se entediar, André — dizia, indo de um lado para o outro. — Não pos¬so quase fazer-lhe companhia.

— Não se preocupe comigo — respon¬deu André. — Vou ler o jornal, já que ul-timamente quase não tenho tempo para isso. O mundo anda muito mal. Se o petróleo tiver outra alta, a vida vai ficar mais cara, haverá uma crise econômica mun¬dial.

— Será que vai haver outro aumento? — perguntou Maria, dando uns retoques no modelo.

— Creio que sim...

E se dedicou à leitura.

Sentia-se bem ali. Em paz.

Na sua casa, as coisas andavam estra¬nhas. As gêmeas eram ótimas meninas, mas ultimamente andavam esquisitas. Até mesmo Ambrosia. Viviam recebendo visi¬tas femininas. Primeiro, foi a tal de Rita. Depois, Helen, por último, Encarnação.

As filhas já nem pareciam interessadas em sair aos domingos. Gostaria de comen¬tar aquilo com Maria, mas não era costu¬me seu conversar assuntos de família com ela.

Apenas uma vez, quando as meninas tiveram sarampo, Maria se interessou, per-guntando de vez em quando: "Como es¬tão as gêmeas? Melhoraram?"

E ele respondia, apenas: "Já estão bem". Só isso.

— Prefere que eu me vá por hoje, Maria?

Maria soltou o que estava fazendo. Era delicada, muito loura, olhos ver¬des imensos... Estava naquele momento de saia e blusa, com uma sandalinha bai¬xa. Parecia uma menina.

— Não precisa sair. Estou, terminando o vestido da filha dos Sainz.

— Piluca vai se casar?

— Parece.

Ele suspirou. Quase sem se dar conta, murmurou:

— Ainda ontem, era uma criança... Daqui a pouco, serão as minhas que começarão a namorar... Que pena! — sor¬riu de leve, dobrando o jornal. — você costura para a melhor sociedade de nossa cidade.

Maria veio se sentar ao seu lado no so¬fá, abraçando-se com ele.

— André, você nunca pensou no dia em que suas filhas pedirem para vir aqui.

André se espantou.

— Vir aqui? E por que o fariam?

— Mais cedo ou mais tarde, elas vão querer um vestido de festa e acabarão sabendo que eu costuro muito para garotas de sua idade... O que vai fazer, André?

André não queria pensar nisso. Olhava para ela e se sentia excitado.

Procurou seus lábios. Beijaram-se, esque¬cendo-se de tudo que estavam falando.

Somente depois, quando se separaram, André murmurou:

— Se elas quiserem vir, eu as trarei. São muito vivas, sabe? — e, sem se dar conta, começou a falar de sua vida em família, de coisas que até então nunca havia comentando. — Têm quinze anos e estão no segundo grau. São muito inteligentes. E sossegadas. Nada de namoros ou danças. Apenas, uma praia ou a pati¬nação na neve, no inverno...

Aí, deteve-se.

A neve?

— Escute, Maria, você que costura pa¬ra o pessoal dá alta, para as moças, ouviu dizer se a neve está ruim para os espor¬tes de inverno?

Maria já estava de pé, ajeitando uns alfinetes no vestido sobre o manequim.

— Não ouvi nada disso.

— As meninas não vão esquiar há uns três domingos...

— É estranho, não?

André começou a rir.

— Realmente, elas são um tanto ca¬seiras. Têm muitas amigas e, ultimamente, apareceram umas de idade respeitável.

Maria parou o que estava fazendo no ato.

Era mulher. Tinha certa intuição para determinadas coisas.

— Quer dizer que elas têm convidado mulheres maduras, para irem à sua casa?

— Exato! Conhece Rita Julián?

— Claro! É minha freguesa.

— Foi o que pensei.

— Pensou...?

E o fitava, entre triste e inquisidora. André, inocentemente, respondeu:

— Claro. Você tem uma classe espe¬cial e a roupa que Rita veste é muito elegante. Aliás, é o que se salva nela.

— Ah... então você a conhece.

Morria de ciúmes. Mas dominava-se. Como dizer a André o que estava se passando em sua cabeça? Não, nunca!

Não queria estragar seu relacionamen¬to com André.

— Claro! É uma das convidadas de mi¬nhas filhas. Era disso que eu lhe falava — e, de repente, parecendo farto de falar de si mesmo e de suas coisas: — Não vai terminar?

Maria voltou para o seu lado. Adorava-o.

— Amanhã eu termino isso, querido — sussurrou, aconchegando-se a ele.

Era sensível. Emotiva. De temperamen¬to ardente, apaixonado, sob aquela aparên¬cia dócil, meiga.

André a abraçou e ficou olhando para ela muito tempo, devagar, como gozando aquele instante interminável. Procurou seus lábios e a beijou até ficarem os dois como paralisados.

 

A discussão era entre Santi e Marcela, à saída da escola. Santi estava terminando o secundário e se preparando para a fa¬culdade. Naquele momento, não discutiam o assunto de André Gil.

Paula e David estavam mais à frente e também discutiam, mas Santi estava ar-rebatado.

— E o que quer que eu faça? Quando eu terminar o curso, é bem provável que me mandem estudar em Madrid.

— E eu? O que faço eu?

— Mas, Marcela, nós poderemos nos escrever, falar ao telefone. E nas férias, poderei vir vê-la.

— E as garotas de lá?

— Ora, vamos, assim não dá.

— Eu não vou ficar à sua espera de braços cruzados. Sabe o que vou dizer a papai?

— Nem desconfio.

— Que me mande a Madrid, para es¬tudar no cursinho.

Santi ficou alvoroçado. Puxou Marcela pelos braços, abraçando-a.

— Seria capaz de convencer a seu pai?

— Claro! Direi a ele para nos matri¬cular num bom colégio e você não poderá fazer das suas.

— Ora, deixe de bobagens. Sou um ho¬mem decente. E seu namorado firme, não? Algum dia lhe dei motivos para descon¬fianças? O que faço eu, aos domingos, en¬quanto você procura esposa para seu pai? Jogo pingue-pongue o tempo todo. E olhe que adoro esquiar na neve ou patinar no gelo. Temos perdido domingos maravilho¬sos, mas este agora...

Marcela o atalhou.

— Este domingo, papai cai. Encarna¬ção é a mais bonita das que já nos visitaram.

— A do farmacêutico.

— Como assim?

— Ela não sai da farmácia. Se não está com dor de barriga, é porque está atrás do farmacêutico.

— Hum... não gostei.

— Sabe o que estive pensando, Marcelinha? Seu pai pode ser muito desligado, muito tímido e calado, mas não me en¬gana. Isso dele, um homem ainda jovem, viver para o trabalho, está me parecendo suspeito. Que tal se o vigiássemos?

— O que está dizendo? Vigiar meu pai?

— O que tem isso? Aposto como ele tem algo escondido por aí.

Marcela ficou vermelha de indignação.

— Papai é um homem.... muito sério, muito decente. Não é capaz de se meter em assuntos escabrosos, como certas pessoas.

— Está se referindo a meu pai?

— Ah, não sei!

— Se está, não me ofende. Papai não se entende com minha mãe. E o que deve fazer, enquanto ela vai fazer compras, ou ao cabeleireiro? Se ele arranja aventuras fora de casa, acho que faz muito bem. Eu faria o mesmo.

— Ah, ainda confessa?

— Se minha mulher se negar a me dar a atenção que mereço como marido? Claro que o faria!

— Não me diga que seu pai e sua mãe...

— Bem, são problemas deles. O que te¬mos agora que pensar é na forma de ir-mos estudar em Madrid. Eu, para a fa¬culdade de Arquitetura e você e sua irmã, para o cursinho. E esqueça-se do lanche de domingo. Não vou passá-lo jogando pingue-pongue, nem que você chore.

— Santi!

— Tenho dito! Se seu pai não quer se casar, porque diabo não o deixam em paz?

— Se papai souber que estou namo¬rando você e se souber que você diz tanta tolice, ele me prende de vez.

Vendo que Marcela estava ficando realmente aborrecida, Santi sorriu, puxando-a para seu lado e dizendo, baixinho:

— Vamos, não fique zangada. Vamos até a praia. Os outros — referia-se a Pau-la e David — já devem estar lá.

— Santi...

— Vamos, bobinha.

— Promete que vai se comportar?

— Droga, está bem, eu prometo.

E lá se foram, de mãos dadas.

Paula e David não estavam no cais, o que deixou Santi mais satisfeito.

— Comporte-se, Santi... — dizia Mar¬cela, sem resistir aos beijos do namorado. — Fique quieto...

Paula e David foram para uma disco¬teca. Estavam sentados num canto, com os livros sobre a mesa.

A jovem estava ainda obcecada com a idéia de casar o pai, para poderem, ela e a irmã, gozar de maior liberdade.

— Encarnação é uma mulher muito bonita. Aposto como papai vai ficar impressionado com ela.

— Você acha?

— Estou torcendo para isso. Pobre pa¬pai! Quanto ele trabalha! Eu penso que não tornou a se casar por nossa causa. Mas nós agora somos adultas. Falta pou¬co para completarmos dezesseis anos. Sa¬be por que estou ansiosa para chegar meu aniversário?

— Para ganhar muitos presentes.

— Sim. E muitas roupas mais adequadas a uma moça. Creio que vou pedir a papai para me levar na Maria.

— A tal que costura para a Piluca?

— A mesma. Está costurando seu vesti¬do de noiva.

— Dizem que é muito boa. Eu não en¬tendo disso.

— É maravilhosa. Tanto faz vestidos de noite, como trajes a passeio e esporte. É a modista mais procurada na cidade. E suas freguesas são todas da sociedade. Pretendo usar, no baile de fim do ano, um vestido feito por ela. Estivemos falando sobre isso, eu e Marcela. Já é hora, não acha?

— De quê? — perguntou ele, meio tonto, admirando a beleza de Paula, a quem adorava sem restrição.

— De usar roupas de moça. Maria costura para todas as moças chiques da cidade.

— Fale com seu pai. Não creio que ele vá se zangar.

— De fato, papai nunca se zanga com nada. Por isso, sendo assim, não sei se vou me atrever a lhe falar de seu casamento.

David pareceu meditar por uns instan¬tes.

— Está querendo "abrir o jogo" com ele...?

— O que me diz disso?

— Vamos dançar?

— Ahn?

— Bem, não penso que a coisa tenha tanta importância. Aqui, ninguém nos vê e se olhar para os lados, verá um pessoal da nossa idade.

— Eu não estou falando em dança e sim do casamento de papai.

David, como todo jovem de sua idade, era um pouco egoísta e não queria se preocupar com coisas dos outros. E já que estavam ali, achava que o melhor era apro¬veitarem.

— Já pensou se alguém resolve falar com papai?

— E quem o faria, se seu tímido pai jamais entrou ou entraria num local como este?

— Algum amigo que nos conheça.

— Não seja boba, Paula. Aqui somos todos jovens e o que menos nos interessa é fazer fofoca. Venha! Vamos dançar.

Paula também o desejava.

Assim, embora pensasse ainda no caso do pai, foi dançar com o namorado.

Enquanto dançava, continuou a con¬versa.

— Eu acho que Encarnação vai con¬quistá-lo.

— O que houve com a Rita?

— Não tornei a vê-la.

— E Helen?

— Talvez papai lhe tenha dito algu¬ma coisa, mas ela o tenha recusado.

— Não seja ingênua. Helen recusando seu pai, um homem maduro, de posição... interessante...

— Quantos anos você acha que ela tem?

— Uns quarenta.

— Não exagere!

— Que diferença faz, quarenta ou trin¬ta e tantos? Mais ânimo, garota.

Assim... Os dois seguiam o ritmo frenético da música.

— Onde será que foram Santi e Mar¬cela?

— Estavam discutindo.

— Sobre o quê?

— Parece que Santi se vai.

— Ah, sim! Eu também vou.

Paula deixou de dançar.

— Escute aqui...

— Vamos para a mesa.

— Mas, Paula...

— De modo que você também vai se espalhar?

— E o que quer que eu faça? Que fi¬que aqui, vegetando? Tenho que fazer algo, não? Pretendo me formar médico e, para isso, tenho que deixar esta cidade — e, seguindo-a até a mesa, acrescentou: — Você sim, podia ir fazer o cursinho em Madri. Assim, ficamos todos juntos.

— E você acha que papai vai permi¬tir...

David deu de ombros.

— Não está fazendo seu casamento? Pois se você e sua irmã forem para Madri, ele ficará melhor com a esposa. Mais à vontade, entende?

— Tenho que falar com Marcela. Mas antes, é preciso casar papai...

 

Piluca experimentava o vestido de noi¬va.

— Dizem que dá azar alguém ver a noiva de vestido, antes do casamento. O que acha, Maria?

Maria era uma moça simples, mas mui¬to fina. Olhava para as três jovens com um sorriso aberto.

— Eu não sou supersticiosa — disse, muito alegre. — E depois, não são suas amigas?

— Oh, sim! Esqueci de apresentá-las. São Marcela e Paula Gil. Dentro de pouco tempo, vão encomendar roupas em você.

Maria sentiu que suas mãos tremiam.

As filhas de André...!

Teve medo que elas percebessem sua agitação, seu nervosismo.

Observou-as. Eram lindas mesmo. Mar¬cela era morena, de olhos claros. Paula, com os cabelos castanhos, tinha os olhos cor de caramelo. Vestiam-se ainda como garotas, é claro.

— Papai — dizia Marcela, desinibida — tem nos comprado roupa pronta Mas daqui à poucos meses, quando completarmos dezesseis anos, pediremos a ele para nos trazer aqui.

— Mesmo porque — completou Paula — iremos estudar em Madri. Não podemos andar mal-vestidas.

Claro, não sabia nada das gêmeas. Por que as imaginara crianças?

Eram mocinhas. E muito bonitas.

Com um tipo fino. Com classe. E perso¬nalidade. Com amadurecimento? Talvez.

André era muito desligado. Será que não percebia nada? Seria capaz de apostar como as duas estavam apaixonadas.

Enquanto pensava isso, Piluca comen¬tava:

— Eu não esperaria pelos dezesseis anos. Eu falaria com meu pai logo.

— Sobre a nossa ida a Madrid?

A conversa era entre as três. Claro, isso era bom para Maria, que podia disfarçar melhor o seu abalo.

— Sim. E sobre os vestidos.

— Mas papai é tão antiquado.

— Não sabe nada sobre Santi e David?

Maria viu que as gêmeas ficavam coradas.

Pobre André! Andava nas nuvens. Ou não andava?

Realmente, o que sabia ela da vida in¬tima de André, em casa com suas filhas.

— Nada.

Nunca perguntava nada a ele.

— Estamos querendo casá-lo — dizia Marcela.

Piluca deu uma gargalhada.

Paula disse:

— Não ria assim. Papai e incapaz de declarar amor a uma mulher, por isso nos a estamos procurando para ele.

Maria estremeceu. Quase não podia se¬gurar os alfinetes.

 Chegou a espetar um dedo. E também o corpo de Piluca.

— Ai, Maria!

— Perdão...

Piluca já não prestava atenção naquilo.

Virou-se de novo para as gêmeas

— E já encontraram alguém?

— Só nos resta Encarnação. Ate já a convidamos para o lanche de domingo

Maria se agitou. Procurou não sei o que.

Em alguns segundos, estava, sabendo mais de André e sua família do que soube em quatro anos.

E sentiu uma grande dor. E, mesmo não querendo, tinha que escutar o que as três diziam.

— Há vários domingos que não saímos — dizia Marcela. — Os rapazes é que andam sacrificados e reclamam. Mas nós temos que encontrar a esposa para papai.

Maria, meio encolhida, lembrava da pergunta de André: "A neve anda fraca?"

Claro. Agora se dava conta do que se passava.

Dizê-lo a André? Não podia.

Amava-o muito... E, ao mesmo tempo, sentia por ele um respeito estranho, uma timidez rara. Quase como se André fosse um estranho.

Paula dizia, à meia voz:

— Eu penso que papai deve se casar. Nós queremos ir estudar em Madrid. E não podemos deixá-lo sozinho com Am¬brosia. Não achamos direito, concorda?

— Não sei o que dizer — respondeu Piluca, olhando-se ao espelho. — Se fosse co¬migo, não faria diferença se papai se ca¬sasse ou não.

— Isto porque seu pai já é casado.

— Supondo-se que ficasse viúvo.

— Nós não somos egoístas — disse Mar¬cela — Queremos ver papai casado. Caso contrário, não vamos conseguir nada. Não acha que Encarnação é uma moça bonita e agradável?

Maria estava trêmula. Nunca esperou que André se casasse com ela. Mas ago-ra... pensar que outra podia ser esposa dele, era terrível.

Por que as gêmeas tinham que se meter na vida do pai?

— Eu a acho meio tola — comentou Piluca. — Desculpem, mas vocês me pedi¬ram minha opinião, estou sendo sincera.

"Obrigada", pensou Maria.

De fato, também considerava Encarna¬ção uma tola. Conhecia-a também e era essa a impressão que dava.

Mas era de boa família, muito distin¬ta...

 

Foram-se.

Sentia-se exausta. Deitada no divã, olhava para o traje de noiva de Piluca.

Não o via.

Via-se a si mesma.

O que aconteceria?

Conseguiriam as gêmeas seu propósito? E ela? O que podia fazer?

Se tivesse coragem de dizer a André... que queria se casar. Mas sabia que não tinha. Nunca haviam falado naquilo.

Ela preferia morrer a forçar André. Se comentasse e recebesse uma negativa, se¬ria uma tremenda decepção.

Chorou. Ela, que não era manhosa, cho¬rou.

Teve raiva de si mesma. De sua fra¬queza.

Secou as lágrimas. Ela não amava An¬dré só para ter um marido. Claro, se ele quisesse casar com ela, seria melhor. Mas parecia-lhe impossível casar-se com An-dré. Tinha que se resignar a ser apenas sua amante e nada mais.

Tornou a chorar.

Era uma boba. Afinal, André continua¬va solteiro. Talvez nem desconfiasse dos planos de suas filhas. Mas, e se...

Não podia mais. Estava apavorada, te¬mendo perdê-lo.

"Não devo fraquejar", — dizia-se. "Não posso ser fraca. Eu amo André, para o que for. Não posso viver sem ele."

De repente, pensou se as gêmeas con¬seguissem o que queriam e se casassem o pai, se André viria à sua casa, em busca de seu amor.

Casado ele com outra mulher, poderia dar-lhe seu carinho, sua ternura? Poderia?

Uma coisa era ser a amante de um ho¬mem livre e outra... desfazer um lar.

Isso, não. Nunca!

Era uma mulher íntegra. Só perten¬cera a um homem: André.

Nenhum outro antes, nem depois...

Não soube como passou o resto do dia. Foi horrível.

"Oxalá não venha hoje", pensava. "Vai me ver assim e não quero. Não quero que note nada. Direi que conheci suas fi¬lhas ou talvez nem lhe diga nada..."

Às dez, ouviu o ruído na porta. Tratou de se acalmar.

Era tão emotiva! Precisava ser um pouco mais dura.

— Onde está?

A mesma voz rouca de sempre. Os mesmos passos firmes. Fez um esforço tremendo para se por¬tar normalmente.

— Estou aqui, André. Ele entrou na saleta.

Sua presença enchia o ambiente. Alto, forte, simpático. Másculo. Fitou-a intensamente, de sua altura, enquanto se aproximava dela. Sempre fazia assim. Apro¬ximava-se, levantava seu queixo com um dedo. Não a tocava mais do que isso. As¬sim, lentamente, com uma ansiedade ir¬reprimível, procurava sua boca. Beijou-a longamente.

— Está gelada.

Ela se agitou.

— Está frio na rua?

— Sim. Mas aqui dentro não há moti¬vo de senti-lo.

— Não.

— Mas você sente.

— Talvez...

— Venha cá, deixe-me aquecê-la.

Não ia.

Tinha medo de ir.

De prender-se demais a ele.

De beijá-lo como louca, de perder o con¬trole que nunca havia perdido. De dizer-lhe tudo, bruscamente.

André segurou sua mão e a puxou sua¬vemente, sentando-a ao seu lado. Depois passou-lhe o braço em volta dos ombros.

— Feche os olhos — disse-lhe.

— É que...

— O quê?

— Nada.

— Não está diferente?

— Não... não...

— Pois parece. É o trabalho. Você tra¬balha demais. Por quê? Por que se esgota? Mande ao diabo todas as mulheres capri¬chosas. Por que não aceita minha ajuda e deixe de trabalhar?

Foi como uma alfinetada.

Desvencilhou-se.

Saiu de seu lado.

Ficou de costas, tremendo.

— Maria!

Ela estava com a voz rouca. Diferente.

Mudada.

— Nunca mais... diga isso. Não quero nada de você — virou-se rapidamente. Pa¬recia mais sensível que nunca. Tinha as mãos apertadas, juntas, sob o queixo. — Não torne a dizer isso.

— Mas...!

— Nunca! Eu não quero nada de você. De seu dinheiro. Nunca! Eu trabalho, ganho mais do que necessito. Posso até dizer que sou rica. Não sabe quanto cobro por um vestido? Não sabe que tenho a melhor clientela da cidade? Por favor...

— Maria — ele estava assombrado — você está excitada.

Estava.

Não podia remediá-lo.

O fato dele pensar que podia pagar, amor, o amor que ela lhe dava desinteressadamente, deixava-a louca. Ofendia-a, co¬mo nada jamais a ofendera.

— Maria, desculpe. Mas... você está esquisita, hoje.

Ela o disse.

Custa dizer, mas tinha que fazê-lo.

— De fato, estou irritada. Talvez o tra¬balho... Talvez os nervos estejam abala-dos. Se me deixasse hoje sozinha...

— Está me mandando embora?

— Não é isso. Não se zangue. Mas é que hoje...

— Mas, Maria...

E ia até ela. Parecia ansioso. Desejoso de saber mais coisas dela.

Tudo o que sentia.

Mas não era possível.

Maria sabia que nada lhe diria, só aqui¬lo, que se fosse, que a deixasse sozinha naquela noite. Que lhe permitisse pensar, ordenar suas idéias.

Estava como enlouquecida, mas nin¬guém o diria, ao vê-la. Porque, fitando-a, podia se pensar que estava ausente, com a sensibilidade à flor da pele.

Apertou-a contra si.

— Maria... está zangada comigo?

— Não... Oh, não. Mas... preciso fi¬car sozinha hoje.

— Por quê? Maria?

— Não sei. Nunca sentiu isso? Nunca?

— Bem...

— Diga...

Não podia.

Ir-se assim, sem beijá-la de novo, não.

Por isso, procurou seus lábios. Ao bei¬já-la, sentiu os lábios de Maria mais ansiosos do que nunca, numa entrega de¬sesperada.

Quando se separaram, ele a fitou demoradamente.

— E quer me dizer que não lhe passa nada?

— Não... há nada.

Afastava-se dele.

André parecia mais alto. Mais firme.

— Maria, até seu beijo foi diferente

— É que...

Postou-se à sua frente. Dominava-a com sua estatura.

— Então? Diga! O quê?

— Nada.

— Maria — segurou-a pelos cotovelos — O que se passa?

Maria fechou os olhos. André não suportava isso. Queria apre¬ciar a beleza daqueles olhos.

— Irei embora — disse. — É a primei¬ra vez, em tantos anos, que não nos entendemos.

— Perdão, André.

— Outro homem?

— O que disse?

— Não sei mais o que pensar.

— Amanhã estarei diferente — sussur¬rou Maria, afastando-se dele. — Tenho cer¬teza que estarei melhor. Deve ser um mal-estar qualquer.

— Mal-estar, o que seus lábios acabam de me dizer?

— É que... para você não sair zanga¬do... beijei-o assim. Já sei que...

Hesitava.

Ele compreendeu que devia deixá-la so¬zinha. Era a primeira vez que ocorria e se perguntava o que teria acontecido, para magoar tanto Maria.

O ter dito que podia mantê-la?

Tão sensível era ela?

Tão honesta, apesar de tudo?

Era honesta. Disso, podia ter certeza.

O seu amor por Maria estava acima de tudo que fosse material. Muito acima!

Foi ele quem a fez mulher.

Quase sem o querer, é verdade.

— Até amanhã, Maria.

— Obrigada, André.

— Mas... — apontou-lhe o dedo em riste, já na porta — irei magoado. Queria ficar com você esta noite. Como nenhuma outra noite, Maria.

Para despedir-se?

Para se casar depois com uma mulher das que ela vestia?

— Boa noite, André — disse apenas. E sua voz era como um gemido.

 

Escutava-as, mas estava distraído.

Mal saíra da cama, teve uma vontade louca de ir ver Maria. Saber como estava, se aquilo, fosse o que fosse, tinha passado.

Mas ali estava, diante do desjejum. E via Paula perto e Ambrosia indo de um lado para o outro. Marcela falava. O que estava dizendo?

Ah, sim! Algo de ir para Madrid, para estudar.

Podiam ir, se quisessem. Mas... por que não entendiam que ele estava desligado, pensando em outras coisas?

— É que assim, poderemos escolher a carreira que quisermos — dizia Marcela. — Fazendo o cursinho aqui, só poderemos cursar a faculdade daqui. Você entende, papai?

Como estaria Maria?

O que lhe acontecera na noite passada?

— Esta tarde — dizia Paula, tomando a palavra — não podemos esquecer que Encarnação vem lanchar conosco.

Quem?

Ah, sim! A solteirona de olhos salta¬dos.

Que idéia de suas filhas...

E Maria? Precisava ir vê-la. Nunca ia de dia, mas agora sentiu que devia ir.

Afinal, o prédio era grande, não era necessário que o vissem entrando lá. E se o vissem, que mal havia? Maria era modista e ele podia estar encomendando algo para as filhas.

Era uma boa idéia.

— O lanche será às quatro — dizia Marcela.

O pai estava longe.

Em outro lugar.

As duas filhas o perceberam.

— Papai, estávamos dizendo...

— Que querem ir para Madrid?

— Sim, mas...

— Vou pensar.

— É que estamos terminando o curso e não queremos perder tempo.

— Sim?

— Papai... não está um tanto dis¬traído?

— Ah, sim! É possível. O trabalho — passou os dedos pelos cabelos com nervo¬sismo. — Muito trabalho. Acaba-se esque¬cendo das coisas. Mas vocês me perdoam, não?

E ia ficar de pé.

Mas as duas gêmeas se precipitaram para ele.

— Papai... não vai sair, não é?

— Por quê, não posso?

— Vê-se que não estava nos ouvindo.

— Por quê?

— Nós estávamos dizendo — Marcela perdia a calma — que vamos ter convidada hoje.

O pai, ainda distraído, disse:

— Sejam educadas. Portem-se como boas anfitriãs.

— Mas, papai, você tem que estar pre¬sente.

— Eu? — espantou-se. — Será que to¬dos os domingos vocês vão me monopoli¬zar?

— É um assunto para toda a família — observou Paula.

— Meu também?

— Claro, papai. Encarnação é uma mo¬ça muito sensível, você compreende.

Não compreendia nada.

Nem queria compreender.

Olhou o relógio.

Meio-dia. Iria ver Maria.

A primeira vez que ia vê-la durante o dia. Não importava. Tinha que se arriscar. Que se expor. Havia mil modos de jus¬tificar sua visita, se fosse visto.

— Tenho que sair.

As duas gêmeas o seguraram pelo bra¬ço.

Era espantoso.

— O que têm vocês hoje? — exclamou. Começava a se irritar. Ora, afinal, o que lhe importava aquela visita?

A ida a Madrid, sim. Tinha que pensá-lo. Gostaria de se consultar com Maria. E por que não?

Nunca trocava confidencias com ela, mas começava a sentir necessidade de fa-zê-lo.

— Papai — dizia Marcela — você não pode faltar ao lanche de hoje. Seria indelicado.

— Vocês a convidaram, o que tenho eu com isso?

As gêmeas se fitaram.

Era um bom momento para dizer-lhe. Mas... o pai não parecia de bom humor. Podiam até arriscar a ida para Madrid, se insistissem mais.

Soltaram-no.

André se afastou, dizendo:

— Depois conversaremos... depois.

 

— Está preocupado — dizia Marcela a Santi.

Santi pensava que não lhe interessava se André estava ou não preocupado.

— Assim, se hoje ele não comparecer ao lanche, o que poderemos fazer?

Santi explodiu:

— Esquiar! É isso que devemos fazer e deixar seu pai em paz. Se ele quiser se casar, ele que procure a mulher de seus sonhos. Se não quer, deixem-no em paz. Vocês são umas chatas!

— Santi, veja lá como fala...

— Não amole, Marcela! Já estou farto com esse assunto do casamento de seu pai — e, sem transição: — Ele vai deixar vo¬cê estudar em Madrid?

— Ainda não sei. Tornarei a falar com ele esta noite.

— Depois de vocês encherem bem a paciência dele, com o tal lanche e a presen¬ça daquela chata da Encarnação?

— Santi! Você está impossível!

Santi gostava um bocado dela. Claro, era um amor de adolescente, puro, mas emocionante. E ele não queria vê-la zan¬gada, nem que ela se fosse.

— Vamos, não fique assim. A gente fa¬la sem sentir. Que tal se tomássemos algo? Conheço um lugar bem agradável de se ir.

— E Paula?

— Deve estar com David, azucrinando seus ouvidos.

— Por quê?

— Nada, nada. O casamento de seu pai.

Puxava-a pela mão e Marcela o queria, pois também gostava dele.

— O melhor que têm a fazer — dizia Santi, já na praça — é deixar seu pai em paz. Vocês precisam é insistir na viagem a Madrid. Isto sim, é importante...

— E se papai não deixar?

— Se vocês escolherem uma carreira que não exista aqui, ele acabará deixando. Foi o que fiz, quando me decidi pela Medicina. Aqui não tem faculdade mes¬mo e meu pai teve que ceder. Ainda bem que, hoje em dia, os pais não obrigam os filhos a seguirem a profissão que eles mes¬mos tinham. Agora, nós mesmos escolhe¬mos nosso futuro, o que é uma tranqüi¬lidade. Estuda-se com mais gosto, com mais prazer e vontade.

Respirou melhor. Sentia-se envaidecido por falar e Marcela o escutar atentamente. Assim, acrescentou rapidamente:

— Diga a seu pai que quer ser jorna¬lista. Ele será forçado a deixá-la estudar em Madrid.

— Mas o cursinho...

— Apele para seus direitos. Não é o ano internacional da mulher? Então... Claro que eu acho tudo isso uma grande palhaçada, mas...

— Santi, veja bem o que fala...

— Está bem, está bem. Não vou mais falar assim. Vamos, ande. Quero ver o jogo de futebol.

— Ah, isso é enjoado!

— E pensa que não é enjoado jogar pingue-pongue, durante uma tarde de domingo? Foi o que fiz, enquanto vocês tra¬tavam de achar noiva para o infeliz de seu pai.

— Papai não é infeliz.

— Bem, não precisa se ofender. Des¬culpe — disse pacientemente. — Aonde você quer ir, afinal?

— Tomar um refrigerante e ouvir dis¬cos.

— Certo. Tudo pela paz. Eu não sei o que se passa conosco, mas desde que vocês cismaram em casar seu pai, só temos bri¬gado.

— Se estivesse em meu lugar e visse o seu pai desorientado, tentaria fazer algo por ele, não?

— O que eu gostaria de saber — repli¬cou Santi — é quem lhes disse que seu pai está desorientado.

— É um homem solitário, triste. O que fará, quando não estivermos em casa?

— Ora, procurar um consolo, aposto.

— O quê?

— Nada... Vamos tomar nosso refri¬gerante, antes que eu diga alguma bobagem.

Lá se foram os dois, agora em silêncio.

Depois, Santi lhe falou o quanto a que¬ria e como sentaria sua falta em Madrid, caso ela não pudesse ir também. Marcela esqueceu o casamento do pai, a visita que esperavam e o quanto seu pai andava dis¬traído ultimamente.

Já o tema de Paula e David era di¬ferente.

Paula, embora pensasse muito no caso de seu pai, não esquecia a viagem a Ma-drid, nem os vestidos que vira Piluca usar no dia anterior.

— São maravilhosos. Essa modista é sensacional.

— Também acho.

— O quê?

— Já a conheço. De vista, é claro. É muito bonita.

— David!

— O que tem isso? Para que tenho dois olhos? Para ver o belo e o feio, claro. Não se pode negar um, nem outro.

— Maria me pareceu um tipo tão es¬piritual.

— Pode ser, não sei. Mas que é bonita, isso é.

— E como costura! Vou pedir a papai para encomendar uns vestidos para mim. Afinal, estou quase com dezesseis anos.

David a fitou.

Como se a analisasse. De fato, Paula era uma graça de garota. Ele não a trocaria por nenhuma outra. Mas... a verda¬de é que não andava vestida de acordo com sua beleza. Parecia mesmo uma colegial, com aqueles sapatos baixos, saia pregueada e blusa branca.

— David, está me olhando como se me conhecesse agora.

David (calça de brim desbotada, camiseta de malha, cabelos claros e olhos azuis, alto e magro) pôs-se a rir.

— Você devia usar saltos altos — dis¬se, entre sério e risonho. — Afinal, está na idade e ficaria muito mais elegante. Desse jeito, parece mais uma antiga alu¬na de colégio interno. As coisas mudaram, Paula. Não é preciso uma garota esperar os dezesseis anos, para se vestir melhor ou calçar sapatos de salto. Não sabia?

— Claro que sabia.

— Há cinqüenta anos — continuava David, com ar de quem sabe tudo — as mulheres viviam fazendo bordados e tri¬cô e, se ouviam falar em sexo, ficavam roxas de vergonha e os pais escondiam seu amor como se fosse um pecado amarem-se. Assim, nascia a malícia e os filhos an¬davam atrás de saber e conhecer coisas proibidas, coisas que agora estão ao al¬cance de todo mundo. Eu prefiro nossa época. A gente sabe de tudo, ninguém en¬gana ninguém. Meus pais discutem qual¬quer assunto na minha presença e eu me sinto parte integrante da família. Antiga¬mente, os filhos mais jovens se sentiam alheios, afastados da intimidade do lar.

Caminhavam lado a lado, pela beirada do cais. Paula sentia sobre si o olhar ana-lítico do namorado e ficava um tanto sem jeito.

— Na minha opinião, antes de tentar casar seu pai, você devia era pedir a ele um guarda-roupa novo.

Paula quase chorava.

— Não gosta da roupa que eu uso?

— Não é isso, mas se quiser, vou com você escolher uns modelos novos.

— Você?

— Gostaria de ver essa Maria de perto. Dizem que tem um amiguinho que a visi¬ta sempre. Só queria saber quem é o afor¬tunado.

— David!

— O que foi? Será que não posso fa¬lar? Você mais parece uma pessoa de outra época.

— Eu não creio que Maria tenha ne¬nhum amiguinho.

— O que há? — perguntou David. — Será diferente das outras filhas de Eva?

— Não sei o que quer dizer.

— Pois está claro, não? É mulher e bonita. Então, não sente o amor? Sempre metida em suas costuras, comandando suas auxiliares e nada mais? Bonita do jeito que é, naturalmente tem um namorado, não?

— Como pode saber se o tem?

— Pois saiba que não o tem. Em com¬pensação, tem algo diferente. Ah! Que fe-lizardo!

— Você é muito maldoso — irritou-se Paula. — Se visse a expressão suave de seus olhos, seu sorriso meigo... É uma mulher espiritual. Não acredito que amas¬se um homem às escondidas. Talvez, claro, um noivo sim. Mas não sei, me dá a sen-sação...

— De quê? De ser celestial?

— Vamos mudar de assunto, David?

— Tem razão, mas foi você quem come¬çou a falar de vestidos e eu penso que, para fazer vestidos bonitos, só mesmo essa modista tão falada. Não pensa igual?

— Penso, sim.

— Então? A gente acaba falando da Maria... e, voltando a falar nela, eu torno a lhe dizer que você devia pedir a seu pai para levá-la e encomendar uns vestidos na modista.

— Mas ainda tenho quinze anos.

— Faltam só dois para completar de¬zessete e não fica bem andar feito uma menininha. Fale com seu pai isso, ele tem dinheiro para pagar os novos modelos. Ah, e não se esqueça de me avisar quando for à casa de Maria. Quero ir junto.

Paula ficou enciumada.

— Só para ver Maria, não?

— O que tem isso? Não posso distrair meus olhos? Não se pode gostar de uma garota e olhar para uma mulher?

— Aonde quer chegar?

— Neste passo, dentro do mar, pois o cais terminou.

Apertou-a contra seu corpo e o pare¬dão, fez voz de homem e disse:

— Não tenha ciúmes, Paulinha. Eu nunca deixarei de amá-la. E, assim que tivermos idade suficiente, vamos nos ca¬sar.

— Mas esta tarde — disse Paula timi¬damente — terá que jogar mais pingue-pongue, pois iremos receber Encarnação em nossa casa.

David deu um salto.

— Outra vez? Que mania, meu Deus! E eu, sem namorada, sem a neve. O que vou fazer? Ainda por cima, o idiota do meu irmão me ganha sempre no jogo... Es-cute, Paula, esta é a última vez que eu aturo isso, ouviu?

— Prometido — sussurrou Paula — es¬ta é a última vez. Acredito que desta vez, papai não resista. Encarnação é perfeita.

 

Abriu a porta com timidez.

Era a primeira vez que aparecia ali durante o dia e não queria ser visto.

Não por ele. Claro. Mas por Maria. Ma¬ria era algo sagrado para ele. Só em pensar que podia perdê-la, ficava louco. Ele, nor¬malmente tão sereno, tão seguro de si, ficava transtornado, quando pensava que podia perdê-la.

Podia casar-se com ela. Mas... e as filhas? O que diriam? Dar-lhes uma madrasta...?

Hum! Não! Não podia fazer isso.

Mas, e Maria? Um dia qualquer, cansava-se daquilo e casava-se com outro. Qualquer homem que a conhecesse como ele a conhecia, quereria casar-se com ela, mesmo sabendo de seu passado.

Ela mesmo, se estivesse em outra situa¬ção.

Entrou e ficou paralisado no vestíbulo.

Havia gente na casa? Não lhe passara tal coisa pela cabeça, mas era perfeitamente natural.

— Quem está aí?

Era a voz de Maria.

Sentiu-se reconfortado, só em ouvi-la.

— Sou... eu...

Quase em seguida, apareceu Maria.

— Você? — sussurrou. — A esta hora?

— De fato, é a primeira vez — disse ele, quase sem graça.

Viu-a respirar fundo.

Como se lhe faltasse o ar.

Estava usando um vestido adorável, es¬portivo, muito elegante. Um lencinho ver¬de no pescoço. Calçava sapatos de salto alto. Sem dúvida, vinha da rua.

Teria ido ver outro?

Só em pensar nisso, sentiu-se morrer por dentro.

— De onde... você vem, Maria? — murmurou.

— Da missa. Por quê? Parecia-lhe im¬possível?

— Oh, não!

— Estive me confessando. O padre me conhece há muitos anos e sabe de tudo da minha vida — acrescentou com doçura: — E você não imagina como briga comigo.

Podia imaginar, sim.

Não imaginava é que Maria precisasse confessar.

— Pode entrar, André. Estou sozinha — acrescentou. — Pode entrar e se servir de algo, mas você sabe que não gosto que venha a esta hora.

— É que ontem, você estava assim...

Parecia um menino grande. Maria se aproximou e passou os dedos em seus ca-belos.

— Às vezes, você parece tão infantil. Estou melhor.

Mas estava com olheiras. André a ob¬servava.

— Não dormiu, Maria.

— Pouco, mas dormi — e, dando-lhe as costas: — Um pouco de dor de cabeça... Escute — sem transição: — O que vai tomar? Não conheço seus hábitos a estas horas.

Ele parecia coibido.

Ver Maria de dia, ela lhe parecia uma desconhecida.

Ou o estaria? Teria Maria mudado?

— Um vermute — disse, finalmente.

— Vou prepará-lo — disse Maria, indo até o bar. — Você o toma e depois se vai.

— Maria... está diferente.

— Não, não... É a dor de cabeça. Ve¬nha de noite. Até lá, estarei boa. Sente-se...

 

Sentou-se, mas sentia-se inibido. Pare¬cia-lhe quase impossível ser a mesma Ma¬ria, de seus momentos de intimidade.

Tão fina! Tão distante!

Tão delicada!

Não sabia do que falar. Havia ido ali para saber como estava ela, se aquilo, fosse o que fosse, havia passado. Mas não sabia o que dizer.

Maria, por sua vez, sentada diante de¬le, fitava-o de quando em quando.

— O que fará de tarde? — pergun¬tou.

E não sabia porque o perguntava.

Ela deu de ombros. Olhava ao longe. Eram lindos os olhos verdes de Maria, seu busto pequeno e firme, o modelo que ves¬tia, aquela cintura tão fina. Tinha um ar de tristeza, de melancolia no olhar.

— Maria, você não é feliz comigo — disse ele, de repente.

E levou o copo aos lábios, olhando por cima da borda.

Maria sorriu de leve.

Sua resposta foi breve e concisa:

— Sou feliz sim, André.

— Parece que algo mudou entre nós.

Ela pensava que, quanto a ela, não.

Mas, um dia qualquer, correria pela cida¬de a notícia do casamento de André Gil.

E ela morreria de desgosto. Tinha cer¬teza disso.

Ao pensar nisso, sentiu um suor frio percorrer sua espinha, seu corpo ficou rí-gido.

— Maria, você não me ouviu.

— O que... o que dizia...?

— Que algo se rompeu entre nós. Será outro homem, Maria?

A aludida não se ofendeu. Não tinha forças para se ofender. Tal era seu medo de perder André.

Havia lhe dado toda a sua vida. Tudo quanto era. Aos vinte e três anos, quase sem se dar conta, havia-se dado toda. Não censurava nada em André. Foi coisa dos dois. Ambos caíram no mesmo abismo, na mesma paixão.

Primeiro, talvez, foi o deslumbramen¬to, depois veio o amor. Amor verdadeiro. Nunca pensou em sua idade. Nem na dele.

Só pensou que André era um homem, o seu homem e ela, uma mulher, a mulher de André. Viam-se as escondidas? Pois viam-se mesmo. O padre Pedro se revolta¬va contra isso. Naquela manhã mesmo, quando ela o procurou, disse que procura¬ria André. Ela não queria, mas sabia que o padre o faria, mais cedo ou mais tarde.

Como sabia também que, apesar de to¬das as promessas que fazia, acabava cain-do nos braços de André...

— Maria, você está ausente...

E, como a jovem não contestava, ele se pôs de pé, deixou o copo sobre a mesa de centro e acrescentou baixo, amargo:

— Seja o que for o que se passa, está como ontem. Não se alterou em nada. Pen¬sei que a noite... — hesitou. — Por isso vim agora. Não devia vir, mas... não re-sisti mais.

Podia dizer-lhe que havia conhecido suas filhas e que elas estavam namorando e queriam casá-lo de qualquer jeito. Mas seria uma traição às garotas e quase uma traição a si mesma...

— Já disse que estou indisposta.

Ele se dirigia à porta e Maria não o detinha. Estava parada, firme, rígida junto a janela.

André a fitou, já na porta.

A Maria, ele pareceu mais alto, mais firme. Mas vacilante também. Desarvorado.

— Voltarei à noite, Maria... Ou pre¬fere que não volte?

Preferia que voltasse, que não se fosse, que ficasse conversando com ela, sobre qualquer coisa. Coisas que a distraíssem, que a livrassem daquela angústia.

— Não quer que eu venha, Maria?

— Quero — disse à meia voz. — Quero.

— E estará assim distante, alheia.

Não poderia estar de outro modo. Mor¬ria de medo de perder André...

Mas, em voz alta, disse:

— Provavelmente, estarei bem melhor da dor de cabeça.

— Tchau, Maria. E desculpe por ter vindo agora.

— Está bem, André.

Ele se foi. Ela ficou tensa.

Pensou no padre Pedro. Em si mesma. Na vida irregular que estava levando. Se-ria pecado amar assim a um homem...? Amá-lo mais que a própria vida?

Comia em silêncio.

Ambrosia ia de um lado para o outro, servindo a mesa. As gêmeas falavam entre si. Discutiam. Sobre a viagem a Madrid, sobre vestidos novos.

Vestidos!

Era a única coisa que ficara em seus ouvidos. Vestidos! Porque Maria estava re¬lacionada a eles.

— Eu acho que precisamos de um novo guarda-roupa — dizia Paula. — Já somos moças e ainda usamos rou¬pa de criança.

O pai as fitou com expressão vaga. Não as via. Mas algo do que diziam ficava em sua mente.

— O da Piluca me deixou maravilhada — dizia Paula. — Você viu, Marcela? Que trajes de noite! E os esportivos! As fazen¬das também são divinas.

— É que Maria tem as fazendas mais bonitas da cidade.

André quase deu um salto.

Olhou fixamente para as filhas. Mas as gêmeas não reparavam em nada. Estavam conversando animadamente. Prova¬velmente, preparavam o terreno para en-trar no assunto com o pai.

— Deve-se ter em conta — opinava Paula — que Piluca vai se casar. Mas há muito tempo que faz suas roupas com Ma¬ria.

André ficou com o garfo no ar. Foi quando Marcela o fitou.

— Papai, você precisa ir pensando em nos levar um dia desses a casa de Maria, encomendar umas roupas.

André ficou tenso.

— Mas... o que sabem vocês disso? De vestidos. De quem os faz? — perguntou, a voz enrouquecida.

As gêmeas se fitaram. Começaram a rir.

— Não vá pensar que vivemos em ou¬tro planeta, papai. Sabemos que Maria é a melhor modista da cidade. É tão famosa, que é conhecida apenas pelo primeiro no-me. Ninguém conhece o sobrenome. Como uma grande cantora, ou uma atriz de fa-ma. Basta o nome, para se saber de quem se trata. Já a conhecemos.

Desta vez, André não pôde mais ficar sentado.

— E vocês... a conhecem — gague¬jou.

As duas jovens tornaram a rir alegre¬mente.

— Claro! Fomos a sua casa com Piluca. Maria nos pareceu maravilhosa e a roupa que faz... Oh! — fechou os olhos. — Não faz idéia, papai. Claro, você não entende disso... Os homens não entendem de moda feminina. Mas o curioso é que gostam de mulheres bem vestidas.

O pai parecia arrasado.

Conheciam Maria? Então... Maria as conhecia também. Seria por isso...? Mas por que não lhe contara nada?

— Encarnação virá lanchar, papai — já dizia uma das gêmeas. — Preste aten¬ção nela. É uma mulher maravilhosa.

O que era aquilo? Por que aquelas vi¬sitas todas? O que estavam planejando as gêmeas?

Súbito, deu de cara com Ambrosia e no¬tou que esta corava, desviando os olhos. O que saberia Ambrosia de tudo isso?

— Não sei se poderei comparecer ao lanche. Talvez saia.

No íntimo, estava resolvido a saber com Ambrosia o que suas filhas tramavam.

— Mas, papai! — gritou Paula. — Não pode nos fazer isso!

Ele as fitou, desde sua altura.

— O que tenho a ver com suas amiza¬des? O que posso fazer entre tantas mulhe-res?

Marcela e Paula se fitaram, desoladas. Estavam mudas.

— Com certeza ontem, quando foram à modista com Piluca, mencionaram este lanche de hoje.

As duas se agitaram.

— Claro, papai... É natural. Piluca nos convidava para irmos esta tarde à sua casa e nós lhe dissemos que tínhamos uma convidada...

— Ah!

— Fizemos mal?

Já não as escutava. Pensava em Ma¬ria.

Que coisas não teria ela ouvido daque¬las louquinhas?

— Pois vocês terão que recebê-la — disse. — Eu vou sair.

Ao passar pelo vestíbulo, assomou a cabeça na cozinha.

— Ambrosia, vá até o meu quarto.

— Sim... senhor.

— Agora, se puder.

E subiu para seu quarto. No mesmo ins¬tante, Ambrosia o seguiu, arrastando um pouco os pés. Ambrosia estava em sua casa desde os tempos de seus pais, quando ele mesmo ainda era um garoto.

Os anos não passavam só para Ambro¬sia. Ele havia vivido nas nuvens. Vendo Ambrosia, via-se a si mesmo e ficava tris¬te. Sentiu-se velho, cansado. Desolado.

— Entre, Ambrosia — convidou. — Entre e sente-se. Vamos conversar, nós dois.

 

Era fácil arrancar de Ambrosia tudo que queria saber. Tudo sobre o que suas filhas pretendiam.

Ambrosia era uma mulher da roça, simples, sem malícia. E, mais do que tudo, era uma fiel servidora e suas filhas eram jovens demais para saber o que Ambrosia e ele podiam falar.

— Diga-me, Ambrosia, o que há acer¬ca dessas visitas domingueiras.

— Bem, senhor, eu...

— Já sei que você não tem culpa. Mas sabe o que se passa. O que está aconte-cendo?

— As meninas...

— Prossiga, Ambrosia.

— Elas acham que o senhor... Ahn... O senhor estaria melhor casado. É isso.

— E assim, trazem para casa todas as solteironas da cidade.

— Mais ou menos isso, senhor.

— Ora, ora!

— Eu não tenho culpa se elas pensam que o senhor vive muito só. Elas querem ir estudar em Madrid e, é claro, não querem deixá-lo tão sozinho.

— E você não conta, Ambrosia?

— Eu sou velha — lamentou-se a criada. — Já não me contam. Por isso, que-rem deixá-lo casado, senhor.

— E andam me descobrindo uma es¬posa. Não é isso?

— Sim, senhor.

Era para se rir.

Se não fosse por Maria, dava para rir. De modo que o "mal-estar" de Maria era isso... Mas por que não lhe disse? Por que não contou que as conhecera?

Que foram tão ingênuas, que falaram na sua frente sobre seus planos? Imagina-va a voz de Paula, dizendo: "O pobre papai tão sozinho. Temos que fazer algo por ele".

— Pode ir, Ambrosia.

— O que faço...? Digo-lhes que o se¬nhor sabe...?

André moveu a mão no ar.

— Não vale a pena. Mas elas que rece¬bam essa nova candidata. Eu não me caso, Ambrosia. Mas se resolver fazê-lo, será com quem eu escolha e não com quem mi-nhas filhas tragam aqui. Por favor, pode sair e fique tranqüila.

Ouviu-se a voz de Paula no vestíbulo.

— Papai... procuram-no aqui.

— Vá ver quem é, Ambrosia. Se for essa tal de Encarnação, não volte.

— Está bem, senhor — murmurou a criada.

André ficou sozinho em seu quarto. An¬dava de um lado para o outro.

Maria! Oh, Maria!

Por que não lhe disse? Outra mulher em sua vida... Só mesmo um absurdo, vindo de meninas absurdas como suas fi¬lhas.

Ouviu as batidas na porta. Era Ambro¬sia, com uma carta.

— Trouxeram-na para o senhor. Espe¬ram a resposta.

— Está bem, Ambrosia. Pode deixar.

Assim que ficou só, rasgou o envelope e leu o bilhete:

"André, preciso vê-lo o mais cedo pos¬sível. Espero-o na sacristia. Padre Pedro".

Ficou rígido, tenso.

Sem dúvida, era o confessor de Maria. Mas o que queria com ele?

Resolveu ir vê-lo imediatamente.

— Papai, não nos diga que vai sair.

Olhou para as filhas. Com ternura. Afi¬nal, eram suas filhas e adoravam-no.

— Exatamente — disse, quase rindo — e devo demorar. Tenho muito o que fazer fora de casa.

— Mas é que... nós não saberemos conversar com...

— Não é convidada de vocês? Então, terão que recebê-la.

E foi saindo, com as gêmeas no seu en¬calço.

— Se quiserem — disse ainda, já na porta — podem ligar para ela e dar uma desculpa qualquer, cancelando o convite.

— Oh, papai! Estragou tudo.

Ele conteve o riso e saiu.

Estava ansioso para saber o que o pa¬dre ia lhe dizer, embora já o desconfiasse.

Já o conhecia de vista. A cidade era pe¬quena e de vez em quando via aquele ho-mem ainda jovem, sempre às voltas com a pobreza, sempre ativo.

— Entre, André — convidou o padre. — Não faça cerimônia. Espero poder ser seu amigo.

André continuava calado. Sério. Des¬confiado.

— Imagino que esteja se dizendo para que o chamei aqui. Bem, André, vou direto à questão. Sou o confessor de Maria e há muito que discutimos os dois.

Silêncio.

— Você não está agindo correto, An¬dré. Maria não merece esse tratamento.

— Maria se queixou? — quase gritou.

— Calma, calma. Maria não se queixa. Mas isso que faz com ela é covardia. É sujeira. Ontem vi Maria tão desolada. On¬tem à noite, André. E hoje, também.

— Mas eu pensei que ontem ela não havia saído.

— Com alguém ela precisava desaba¬far.

— Mas eu a amo.

— Comodamente, André.

— E como se pode amar?

— Sacrificando tudo que se quer de verdade.

André ia se levantar, mas o sacerdote o fez sentar-se de novo.

— Maria teme perdê-lo e eu digo a ela que seria melhor se o perdesse.

— Por que... tem que se meter?

— É a minha função, André. Veja, vo¬cê é um homem maduro. Experiente. Ma-ria é muito jovem. O que fez com ela? Pensa que tinha o direito de mantê-la tran-cada, à sua disposição? Mais cedo ou mais tarde, você se casa.

— Se um dia me caso, será com Maria — murmurou André.

— Então, case-se logo. É um conselho que lhe dou. É duro para ela viver assim... Conheceu suas filhas. São duas mocinhas. Sentiu-se magoada. Você nunca falou ne¬las. Conheceu-as casualmente.

— Essas meninas devem ter falado dian¬te dela sobre as mulheres que têm ido à minha casa, a convite delas, não?

O padre riu.

— Não me diga que querem casá-lo.

— Exatamente. É o que querem. Maria o sabe?

— Talvez. Não sei bem. O fato é que anda desolada.

— O que não entendo, padre, é por¬que, se tem queixa de mim...

— Oh, ela não tem queixa. Fui eu que descobri a verdade. E não a deixo em paz. É meu dever, essa é a verdade. Mas não quero atormentá-la. A você, sim. Com você, posso falar mais claramente. Você está co¬metendo pecado mortal. Por que, se a ama, não se casa com ela?

André tornou a se levantar. Apavorava-se à idéia de se casar. Desejava-o, mas se apavorava, também. Passou os dedos pelo cabelo.

— Não pense — disse, irritado — que eu me casarei por sua causa. Gosto de Ma¬ria, não sei viver sem ela, mas tenho que pensar muito. Não estou acostumado com a idéia do casamento. Tenho medo, essa é a verdade.

— Quem o entende?

Sim. Quem o entendia? Como podia al¬guém entendê-lo, se nem ele mesmo po-dia?

— Tomemos algo como bons amigos e continuemos conversando — propôs o pa¬dre.

E serviu dois copos de vinho.

Mas, não era fácil reiniciar a conversa, vendo André tão absorto, tão ausente e pensativo. Por outro lado, o padre se sentia desconcertado.

Maria falava muito em André e no amor que sentiam um pelo outro, como também na existência dos dois em comum. Mas nunca imaginou que André fosse um ho¬mem introvertido, sério, grave. Chegou a vê-lo uma ou outra vez em sua oficina e lhe parecera bem jovem. Mas era um tipo maduro, que não precisava esperar para se casar. Tinha idade e experiência. E amor por Maria, pelo visto.

Então, por que aquilo?

Temor?

— André, você ama Maria — disse o padre, subitamente.

O pai das gêmeas assentiu com a ca¬beça.

— E não lhe dói o mal que está lhe fa¬zendo?

Olhou-o, estranhado.

Mal? Fazia mal o carinho? A ternura que sentia por Maria? Por que tinha alguém que se meter em um assunto tão ín¬timo, que só dizia respeito a ele e a ela?

— Você não sabe o mal que lhe faz — continuava o padre, tentando ser convin-cente. — Até agora, pôde esconder o que se passa, mas chegará o dia, logo, talvez, em que você vai comprometer uma mulher que sempre foi digna, até que você a en-volveu. Não. Maria não se queixa. Mas so¬fre. Ou por medo de perdê-lo, ou por se sentir em falta. Ela sempre vinha aqui, ajudava na catequese. Depois, foi espaçan¬do suas visitas. Eu descobri, aos poucos, o motivo. E, desde então, venho apelando pa-ra sua consciência de cristã. E agora, re¬solvi procurar por você.

André tomou o vinho, deixando o copo sobre a mesa.

Depois, olhou-o ante si. Mas não en¬xergava nada.

Via-se a si mesmo, isto sim. Pergunta¬va-se o que sentia. Se desejo de se casar com Maria ou de fugir. Afinal... suas fi¬lhas, o mundo, a sociedade... Que importava tudo isso? Suas filhas; logo seriam moças, breve se casariam. Iriam esquecê-lo. Valia a pena perder sua liberdade? Ele sabia quanto amava Maria e o quanto pre-cisava dela, mas... não havia porque mudar. Tudo estava tão bem, como estava...

— Por suas filhas mesmo — dizia o padre, sem entrar em seu cérebro. — Hoje, ainda não pensam. Amanhã, um dia qual¬quer, saberão...

— É a minha vida — defendeu-se. — Não a delas.

— Por isso mesmo. Porque sua vida e a delas, é quase a mesma.

— Nada disso, padre. Nós, os pais, da¬mos tudo aos filhos. Mas eles, só pensam em si mesmos. É a lei da vida. Acontece todos os dias.

— Mas... você não ama Maria?

Fitou-o, espantado.

— Com todas as minhas forças.

— No entanto, deixa-a nesta situação delicada e nada faz para mudar.

— Está bem — exaltou-se — prefiro seguir assim. Não me pergunte porquê. Te¬nho medo de me casar, de iniciar uma nova vida.

O padre se descontrolou um pouco e gritou:

— Isso é pura comodidade. Uma co¬modidade cruel, condenável. Não tem esse direito, André.

André ficou irritado, mal humorado.

— O senhor está fazendo um bicho-de-sete-cabeças, padre. Não creio que seja pecado, duas pessoas se amarem.

— É preciso santificar esse amor, An¬dré. Legalizá-lo. Pelo menos, em considera¬ção a Maria. Pois se ela continua nesse es¬tado de coisas, vai acabar na boca do povo. Perderá a honra e a dignidade.

— Ninguém precisa saber do que ocorre entre nós — defendeu-se puerilmente.

— Não se incomoda que eu já o saiba — retrucou o padre.

Estava revoltado, furioso mesmo. E disse algo que tencionava ferir, atingir o outro, de alguma forma.

— Afinal de contas — grunhiu — o senhor é apenas um homem, como eu.

— André!

— Desculpe, mas é só o que tenho a dizer. Boa tarde!

Em vez de ir para a casa de Maria, co¬mo pretendia, resolveu ir se trancar em seu escritório. Estava com a mente confusa, perturbada. Precisava raciocinar calma¬mente.

— É claro que um dia se casaria com Maria. Mas não agora. Não forçado. Nem por ela.

Mas preocupava-se com o que ela esti¬vesse sofrendo.

Sua consciência, porém, não o acusava de nada. Jamais Maria mencionara a palavra casamento. Aceitava a situação com a mesma tranqüilidade dele. Jamais qui-sera nada, jamais aceitara, sequer, um presente!

Agora, porém, estava inquieto com o que ela tivesse ouvido de suas filhas. Esperou que as horas passassem, em lenta agonia.

Finalmente, apagou as luzes da sala e saiu. Dirigiu-se a pé, como sempre fazia, à casa de Maria.

Pensava, ainda irritado, na figura do padre, em suas palavras. Ora, o que podia saber um padre de ansiedades amoro¬sas, principalmente, de seu grande amor por Maria e do dela por ele?

Olhou o relógio. Dez horas. A hora em que normalmente ia ver Maria. Quase como um bandido, como um ladrão, esgueirou-se entre as árvores, para não ser visto e deslizou pelo portal da casa de Maria.

Estava já com as chaves na mão. Sen¬tia um pouco de frio, apesar de bem agasalhado. Até a chave, em sua mão, estava gelada.

Ao se achar no patamar, deteve-se. Pensou se era direito o que vinha fazendo, se tinha direito a perturbar assim a vida de uma jovem. Ainda assim, deu a volta na chave.

— André...

Era sua voz. Cálida. Aveludada.

— Sou eu... Maria.

— Sim.

Tirou o sobretudo e entrou na salinha. Ali estava Maria, recostada no divã, com os pés descalços sob a saia.

— Olá, Maria — saudou.

— Olá, André — disse ela, sem se mo¬ver.

 

Foi até ela.

Devagar. Como se tivesse medo de ma¬goá-la até com o olhar. Para ele, apesar da intimidade entre ambos, Maria conti¬nuava como algo sagrado e, naquela noite, o era mais do que nunca.

Sentou-se ao seu lado. Lentamente, Ma¬ria baixou os pés e tocou o chão com eles. Procurou os sapatos, sem olhar para baixo.

— Deixe — murmurou ele. — Eu a ajudo.

Abaixou-se e ajudou-a a calçar-se.

— Deixe — pediu Maria, baixíssimo.

Ele elevou os olhos. Assim, como es¬tava, fitou-a.

— Já sei o que há com você.

Só isso. Maria fechou os olhos.

Era pura. Ele sempre a respeitara, ape¬sar de tudo.

Maria era uma moça virtuosa. Seu amor era... algo sublime, era só o que sabia.

— Eu queria que você mesma me con¬tasse, Maria.

Ela tentou esboçar um sorriso, mas este saiu tristonho. Melancólico.

— Você conheceu minhas filhas — disse.

Maria tentou se erguer. Precisava se mo¬ver. Dissipar tudo aquilo, tudo o que sen¬tia, o que talvez ele sentisse.

— Sei que estiveram aqui com Piluca...

Segurou-a pelo braço, obrigando-a a sentar-se ao seu lado. Maria parecia con-fusa. André procurou seus olhos.

— Não feche os olhos, Maria. Quero ver esses olhos.

— É que...

— Sei o que é.

Não o sabia. Não podia saber o que para ela significava haver conhecido as gêmeas e ouvir delas aquelas coisas.

— Não estive em casa esta tarde, Ma¬ria.

Ela o fitou. De uma forma diferente. Ansiosa?

— Não estive no lanche...

É o dizia quase rindo.

— Já sei que querem me casar. Por isso, levaram umas donas em minha casa. Mas são coisas de crianças.

— Não sabem sobre nós — sussurrou Maria.

Ele segurou suas mãos. Levou-as aos lábios. Eram duas mãos finas, macias.

— Você é bobinha em se atormentar por isso, Maria... Por que não me contou? Quero partilhar de suas alegrias e de suas tristezas também.

Queria dizer-lhe o quanto estava sen¬do difícil, aquela situação. Que, depois de conhecer as meninas, sentia-se mais pecadora ainda. Mais insignificante. Mas pre-feria morre, a sugerir um casamento com André.

Este, sem perceber seus tormentos, abraçou-a e procurou seus lábios. Era como uma autêntica necessidade de comunica¬ção, de saber que estava a seu lado, que era sua.

— Não há mulher para mim, senão você. Minhas filhas são crianças. Loucas e deliciosas crianças.

Com namorados. Isto, André não sa¬bia. André vivia desligado, mas precisava estar a par do que ocorria com suas filhas. Era seu dever de pai.

— Querem encomendar vestidos em você — dizia André, rindo — e também es¬tudar em Madrid. Não sei ainda o que re¬solver. Acho que as levarei a uma boutique, onde comprarei um novo guarda-roupa para ambas.

Maria conseguiu se separar. Ficou de pé.

Parecia mais esbelta, com aquele ves¬tido leve, que mal revelava suas formas delicadas. Com os cabelos soltos no ombro, parecia uma adolescente. Apenas no olhar, havia amadurecimento.

— Quer tomar algo, André?

— Como você está mudada, Maria.

Nunca, como então, ela vira o egoísmo dele, como via naqueles instantes. Desde que conheceu as gêmeas e soube que en¬ganavam o pai, como seu pai as enganava e ao mundo todo.

André, egoisticamente, tomava o que lhe era oferecido e nem se perguntava se ti¬nha direito a isso. Bastava crer que era seu e pronto.

Estava errado.

— Prefiro que as traga aqui...

Falou com súbita decisão.

— Aqui? — repetiu André, espantado.

— Sim. Se elas forem para Madrid, pos¬so confeccionar-lhes os vestidos. Se é que vai deixá-las ir.

— E por que não as deixaria?

Mais uma coisa do egoísmo de André. Não pensava nos perigos, numa Madrid tão grande para duas garotas tão jovens.

— Maria, gostaria de discutir isso com você.

Maria acendeu uma outra lâmpada e foi até o barzinho, de onde tirou uma gar-rafa e um copo.

— Preparo-lhe algo para tomar.

— Maria, deixe isso e venha cá. Tudo está mudado. Sinto que algo se rompe en-tre nós. A confiança, que era o mais boni¬to de nosso amor.

— Eu pensaria mais nessa viagem das gêmeas a Madrid.

Ele pareceu assombrar-se.

— Por quê?

— Os perigos.

— Que perigos?

— Todos — disse Maria com raiva. — Todos.

André a fitava, estarrecido. Ela, já exal¬tada, continuou, a voz vibrante:

— Você só pensa em você mesmo. Isso é ruim. Você tem filhas. São mocinhas e não crianças. Enquanto você envelhece, elas crescem, André. Não se esqueça disso. Nunca pensou?

— Não, confesso.

— Claro! Só pensa em si mesmo.

— É o que pensa de mim?

— Começo a ver claro, desde que co¬nheci as meninas. Até saber que desejavam casá-lo.

— E ficou enciumada. Ora, Maria. Ve¬nha cá, querida...

Maria não queria ir. Tinha medo. De seu amor por ele, de sua fraqueza, que permitiu que ela vivesse como vivia. À margem de tudo, como uma leprosa. Só para ter a companhia de André, durante algumas noites.

Viu-se nos braços dele, com a boca presa na dele. Queria ter forças para se negar, mas não a tinha.

— Maria, não seja infantil. As meninas são espertas. Esqueça-se delas. Você viu, elas queriam me casar... — e, baixo, sobre os lábios femininos, como se tudo o mais deixasse de existir: — Não me diga que não posso ficar hoje ao seu lado.

— Não... não lhe direi.

Dobrou-a contra si.

Foi egoísta. Apaixonado.

Veemente, mas mais egoísta que nada, porque não sentia nada mais que seu amor e os lábios de Maria cálidos e suaves, diluindo-se em sua boca e nada de quanto se referisse a suas filhas tentava saber, nem queria saber.

Levou-a nos braços, corredor abaixo.

Dizia-lhe coisas, mordia-lhe de leve a ponta da orelha. Beijava-a de leve, nos cantos dos lá¬bios.

Maria quisera gritar. Chorar. Falar-lhe sobre as gêmeas.

Adverti-lo.

Mas não era possível.

André a monopolizava.

Amava-a.

E o estava demonstrando...

Não soube se porque o desejava Maria e ele o adivinhava ou porque nascia nele um pressentimento, o certo é que às doze da noite ia a caminho de casa.

Há meses que não voltava para casa naquela hora. Ou não regressava, ou o fazia ao amanhecer. Naquela noite, não havia usado o carro, deixando-o em frente a sua oficina.

Caminhava pela avenida a passos lar¬gos, com as mãos nos bolsos, o olhar fixo no chão, o pensamento cheio dela...

Cada dia representava mais para ele.

Era como se estivesse recorrendo um longo caminho durante vários meses, mui¬tos anos e lhe faltasse pouco para chegar à meta proposta. Mas... tinha uma meta?

E por que não ia tê-la?

Seria diferente dos demais mortais?

Deteve-se na penumbra, ao ouvir vo¬zes femininas. Olhou em todas as direções.

Havia luz no pórtico. Ambrosia, ainda levantada? Acelerou o passo.

De repente, deteve-se em seco. Dentre os arbustos, saía uma voz masculina.

André sentiu como se todos os pecados de sua vida se voltassem contra ele. Como se seus cabelos se eriçassem e sua pele se arrepiasse.

— É que você não faz força, Paula, puxa! Você tem que dizer a seu pai, ao inocente do seu pai, que você precisa es¬tudar em Madrid. O que farei ali, sem você?

— Papai anda distraído. Esta tarde mesmo, ele nem ficou para o lanche com Encarnação.

— Esqueça esse casamento. O que im¬porta se ele casa ou fica solteiro? Vocês têm cada uma na cabeça. Escute, se você lhe disser...

André empalideceu.

David? Não era a voz de David, o fi¬lho de seu vizinho?

Era o que Maria tentou dizer-lhe? O que ela temia?

De repente, pela mente de André pas¬saram mil coisas.

Suas filhas já não eram crianças.

Eram duas mocinhas, brincando de ser mulheres. O mais perigoso que possa exis¬tir. E David? Parecia muito à vontade com Paula, muito... íntimo.

Deu um passo à frente. Quase em se¬guida, ouviu a voz de Marcela:

— Não, Santi, não. Já é tarde.

— Ora, seu pai não vem mesmo.

Santi tinha razão.

Ele não fora um pai. Mal prestara aten¬ção nas filhas que tinha. Como pudera ser tão desinteressado?

Abandonar assim suas filhas... Fazer o que fazia com a sua Maria...

— Seu pai — ouviu ainda a voz de San¬ti — nunca percebe nada. Você vai ver, quando estivermos os quatro em Madrid. Iremos a todos os lugares da moda. Vai ser uma transa sensacional. Uma tremen¬da curtição...

André sentiu os olhos úmidos.

Resolveu dar a volta, para não ser vis¬to. Iria primeiro falar com Ambrosia.

Como pudera estar tão cego em rela¬ção a suas filhas? Ao mesmo tempo, pensou em Maria. Tomara uma decisão.

Entrou pela porta da cozinha. A po¬bre velha estava sentada, com a cabeça apoiada nos braços, sobre a mesa.

— Até que enfim — disse Ambrosia, quando ele a tocou no ombro. — O dia que seu pai chegar mais cedo em casa...

— Oh! — exclamou ao vê-lo. — Oh...

André estava controlado. Sentou-se junto a Ambrosia e tocou a sua mão enrugada.

— Diga-me, Ambrosia... há quanto tempo é assim?

Ambrosia ainda não queria admitir que ocorresse algo. Tinha medo. O patrão era bom, generoso, silencioso, mas quando perdia a cabeça, era terrível.

Estava sereno, é verdade, mas...

— Fale, Ambrosia, há quanto tempo minhas filhas se encontram com os rapazes no jardim?

— Senhor...

— Diga, Ambrosia.

— Bem, há um ano... dois, não sei bem.

André se levantou. Mantinha-se sere¬no, apesar de tudo.

— Ambrosia — disse, indo até a ja¬nela — aqui falta uma mãe para essas duas.

— Sim, senhor — disse a criada, mor¬ta de medo.

André abriu a janela. Chamou:

— Paula, Marcela!

Houve um silêncio.

Ele repetiu, mais enérgico:

— Marcela, Paula, venham imediata¬mente.

Em seguida, as duas entraram. Pare¬ciam assustadas.

— Quero avisar que vou me casar — avisou o pai. E completou: — Amanhã mesmo.

As duas ainda não haviam recuperado a fala.

André ainda acrescentou:

— Você terão uma nova mãe. Aliás, a única que conhecerão. Ela virá morar aqui...

As duas gêmeas se abraçaram, seus olhos pareciam indagar: "Quem será? Rita, Helen, Encarnação?"

Ele viu o olhar interrogante.

— Outra coisa, desistam da viagem a Madrid — completou: — E acabaram-se os encontros às escondidas.

Era a primeira vez que seu pai se me¬tia em suas vidas, mas elas já sabiam que seria inútil discutir com ele.

— Quando forem mais velhas, se esses rapazes ainda as amarem e vocês a eles, poderão se casar. Agora, são muito jo¬vens e não permitirei que se encontrem como namorados. Vou falar com os pais deles, assim que puder. Se quiserem con¬versar com eles, terá que ser na minha presença. Quanto à ida para Madrid, nem é bom pensar. Está claro? Se quiserem, o máximo que posso consentir, é que se ve¬jam nas férias, mas à luz do dia, diante de todo mundo. Entendido?

— Sim, papai.

— E agora, para a cama.

Mas ficou ainda algo no ar. As gêmeas não se deitariam enquanto não o soubessem.

— Papai, é que...

Ele adivinhou o que elas queriam sa¬ber.

E o disse, dando-se conta de que há muito tempo devia tê-lo dito.

— Caso-me com Maria, a modista.

— Oh...

— Papai...

— Agora, para a cama.

As duas se foram, correndo escadas acima, depois que assomaram as cabeças à janela e gritaram para o jardim:

— Santi, David, papai se casa. Final¬mente, casa-se. E com Maria, a modista...

Ambrosia pensou que o patrão ia se zangar, mas André só comentou:

— São mesmo crianças. Não passam de duas crianças...

E pensou que, casando-se, reparava to¬do o mal causado.

Seu próprio mal e o de Maria...

 

Maria ouviu o toque da campainha bem cedo.

Perguntava-se como podiam suas aju¬dantes chegar tão cedo, numa segunda-feira.

Pulou da cama e escovou os cabelos.

A campainha continuava tocando.

— Que gente agoniada! — resmungou. — Já vou, já vou...

Tinha mesmo que deixar o quarto. E depois de uma noite mal dormida, na qual ela só fez pensar e pensar... Vestiu um quimono, calçou os chinelos e abriu a por¬ta.

— Ohhh! — exclamou.

As duas gêmeas entraram ao mesmo tempo e se atiraram sobre ela, beijando-a.

— Parabéns!

— Papai já nos contou tudo. E nos passou um sermão danado. Foi você quem lhe contou sobre nosso namoro?

— Não.

— Bem, ele nos pegou em flagrante — e logo contaram o ocorrido. — Papai é muito calmo, mas quando resolve uma coi¬sa, nem adianta discutir. A voz dele só se alterou um pouco, quando nos disse que vocês iam se casar hoje.

Maria teve que se agarrar a um mó¬vel, para não cair.

— Hoje?! — repetiu, como estonteada.

— Por isso madrugamos tanto. Sabe, ficamos muito contentes com a escolha do papai. Vejam só e nós que o julgávamos distraído. Soube encontrar uma esposa jo¬vem e bonita!

Paula se meteu no meio.

— Há quanto tempo se conhecem? Por que não diziam nada?

Maria nem sabia o que dizer. E, antes que pudesse abrir a boca, a porta se abriu de novo e surgiu André em pessoa.

As meninas correram ao seu encontro.

— Viemos ajudar Maria a se arrumar, papai — exclamaram.

André olhava por cima das cabeças de suas filhas.

Maria parecia aturdida.

— Acabo de falar com o padre Pedro — disse André.

Então, era verdade. Iam se casar. Ficou vermelha e logo pálida, sentindo um mundo de emoções ao mesmo tempo.

— Podem ir para casa — disse André para suas filhas. — Se ela precisar, cha-ma vocês. Logo após o casamento, nós iremos viajar. Depois, iremos nos instalar lá em casa.

— E não vai mais costurar? — lamen¬tou Paula.

— Não, não vai. Mas haverá aqui quem o faça. Há várias ajudantes competentes. Não é certo, Maria?

— Eu pensei...

— Eu preferia que não continuasse trabalhando — atalhou André. — Essas duas — apontou as gêmeas — precisam de uma mãe vigilante. Estão de namoro...

— Não acham que é muito cedo? — perguntou Maria.

— Sé nos impedirem de namorar, será pior — desafiou-os Paula. — Podemos nos ver às escondidas, não se esqueçam.

Maria disse, com suavidade:

— Não impediremos nada, nem proibi¬remos, mas... vocês terão que esperar muito, até se casarem.

— Não faz mal. Esperaremos.

— Todo o tempo preciso.

André procurou os olhos de Maria. Eles também haviam esperado. Sem dar-se conta, perseguiram aquela meta, que agora alcançavam.

 

David dizia a Paula:

— Então, eles se casaram e foram via¬jar! Que inveja! Ah, mas o nosso dia também vai chegar.

Santi dizia a Marcela:

— Até que os velhos não foram de to¬do ruins. Seu pai, embora não as deixe ir para Madrid, não vai impedir nosso na¬moro, desde que seja à luz do dia, à vista de todos. E o meu pai, depois de uma bron¬ca, também deu seu consentimento.

— Você viu como a Maria estava bo¬nita?

— Seu pai é um espertalhão de marca maior...

— Santi!

Do pórtico, Ambrosia chamava:

— Meninas, para dentro! São ordens de seu pai.

Da janela da casa ao lado, os pais de David e os de Santi contemplavam os jo-vens no jardim e comentavam:

— Esse é o amanhã, Santiago. E que amanhã mais lúcido. Veja nossos cabelos grisalhos. Eles avançavam, nós retrocede¬mos.

— Mas somos os autores da vida des¬ses rapazes.

— É o único consolo que nos resta.

E se foram os dois fumar seu cachim¬bo, tratando de aproveitar a companhia e a amizade de tantos anos.

 

Estava deitado na cama do hotel. Olhava para o alto. Sentia a presença deliciosa de Maria ao seu lado.

— Estou feliz — dizia André, com os dedos metidos entre os cabelos sedosos de Maria. — Muito mesmo. Já devíamos ter feito isto antes.

— Devíamos.

— Mas você nunca me pediu...

— Posso lhe dizer uma coisa?

— Dizer-me, o quê?

Maria ria.

Tinha um riso diferente. Mais aberto, mais... coquete? Sim, mais coquete.

Tocava-lhe de leve nos lábios.

Delineava-os com a ponta do dedo. De¬pois, veemente, numa entrega total, pro-curou seus lábios.

Assim.

Demoradamente.

— Teria lhe pedido no mesmo dia — disse à meia voz.

André apertou-a contra si.

— E não o fez.

— Teria fugido de mim. Você tinha horror ao casamento.

— Não era isso, Maria. Não sei o que era. Não sou do tipo covarde. Mas pensei que por amá-la tanto, tinha o suficiente.

— Mas não bastava. Assim como quis que suas filhas amassem à luz do dia, as-sim queria eu amá-lo.

Era André quem ria. Um riso feliz. Descontraído.

— Gosto de fazê-la minha. Mil vezes minha, Maria.

— E eu, adoro ser sua. Mil vezes sua.

E o era.

Perante Deus e os homens.

Anoitecia.

Mas era como se amanhecesse.

A vida estava ali, para eles dois, co¬mo muitas vezes o esteve em casa de Maria, na silenciosa casa de Maria.

 

                                                                                            Corin Tellado

 

 

                      

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