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EM NOME DE DEUS / David Yallop
EM NOME DE DEUS / David Yallop

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

EM NOME DE DEUS

 

               Uma investigação em torno do assassinato de João Paulo I.

Tarde da noite de 28 de setembro ou cedo na manhã de 29 de setembro de 1978, o Papa João Paulo I, Albino Luciani, conhecido como o Papa Sorriso, morreu quando fazia apenas 33 dias que fora eleito. A causa da morte — sem o laudo pericial de uma autópsia — foi anunciado pelo Vaticano à imprensa mundial como tendo sido um "infarto do miocárdio". David Yallop começou a investigar essa morte a pedido de pessoas residentes na Cidade do Vaticano, inconformadas com o silêncio que pesava sobre as verdadeiras circunstâncias a respeito da descoberta do corpo do Papa. Durante a contínua e intensa pesquisa que realizou nos três anos seguintes, Yallop iria descobrir — como Albino Luciani havia descoberto durante seu pontificado — a existência de uma cadeia de corrupção, ligando figuras de proa nos círculos financeiros, políticos, clericais e do crime numa conspiração de âmbito mundial. Um feroz inimigo da corrupção, a despeito de seu modo humilde e cortês, Albino Luciani não chegou a viver para colocar em ordem a casa que agora chefiava.

O novo Papa havia iniciado uma revolução. Havia ordenado uma investigação no Banco do Vaticano, e especificamente nos métodos empregados pelo seu Presidente, o Bispo Paul Marcinkus. Ele estava a ponto de efetuar uma radical mudança de postos no staff do Vaticano e havia discutido uma lista de remoções com o seu Secretário de Estado, o Cardeal Jean Villot (cujo nome constava da lista), na última noite da sua vida. Essa lista tinha relação direta com outra em poder do Papa — uma lista de clérigos dentro do Vaticano que pertenciam à Maçonaria — fato que por si só justificava imediata excomunhão da Igreja Católica Romana. Luciani sabia também de um informal e ilegal ramo da Maçonaria, chamado P2, que se estendendo muito além dos limites da Itália, na sua acumulação de riqueza e poder, havia certamente penetrado no Vaticano, envolvendo padres, bispos e até mesmo cardeais. Causava, porém, alarme talvez ainda maior o fato de que Luciani estava planejando adotar uma posição liberal na controvertida questão do controle da natalidade. Em flagrante contraste com a impressão mais tarde dominante da inflexibilidade do Papa com respeito a esse tópico, Luciani havia de fato planejado receber no mês seguinte uma delegação do Congresso americano enviada pelo Departamento de Estado para discutir a questão do controle populacional.

Seis homens em particular tinham razões poderosas para quererem controlar as atividades do Papa João Paulo I. Além do Bispo Marcinkus e do Cardeal Villot, no Vaticano, o banqueiro siciliano Michele Sindona estava em Nova York resistindo às tentativas do Governo Italiano de conseguir sua extradição A rede de irregularidades no Banco do Vaticano, que a nova investigação do Papa iria inevitavelmente revelar, incluia a "lavagem" do dinheiro da Máfia, com isso levando o assunto de volta a Sindona, através de suas antigas ligações com Roberto Calvi. Em Chicago, o chefe da mais rica arquidiocese do mundo, Cardeal Cody, estava a pique de ser removido pelo novo Papa. Sobre pelo menos três desses homens pairava a sombra de um outro, Licio Gelli — o "Titereiro", que controlava a loja maçônica P2 e através dela controlava a Itália.

As revelações de David Yallop mostram em detalhes as atividades financeiras criminosas que levaram ao suborno, chantagem e, indo além em mais de uma oportunidade, ao assassinato. Yaliop está convencido de que o assassinato era o destino que aguardava o Papa João Paulo I, Albino Luciani, e apresenta neste livro as provas de sua convicção.

O primeiro livro de David Yallop, To Encourage the Others (Para Encorajar os Outros), levou o Governo Britânico a reabrir um caso de homicídio, cujo processo estava oficialmente encerrado na justiça havia 20 anos. O livro provocou acalorados debates na TV inglesa, na Câmara dos Lordes e pronunciamento de diversos escritores, restando ao fim da polêmica a convicção pública de que houvera um grave erro judiciário. Seu segundo livro, The Day the Laughter Stopped (O Dia em que o Riso Parou), foi aclamado nos dois lados do Atlântico como a biografia definitiva e a reabilitação póstuma do comediante do cinema mudo Roscoe (Fatty) Arbuckle, que ficou conhecido no Brasil com o apelido de Chico Bóia. Essa obra esclareceu o mistério de um homicídio praticado havia 50 anos. Deliver Us From Evil (Livrai-nos do Mal) foi estimulado pelo desejo de Yallop de pôr um homem na cadeia, o tristemente célebre Estripador de Yorkshire, homicida que durante mais de cinco anos zombou dos esforços da policia britânica para identificá-lo. As conclusões do autor, certíssimas, resultaram na prisão do criminoso, após uma série horrenda de crimes em que as vítimas foram sempre mulheres. Pouco depois disso, David Yallop, nascido católico romano, foi solicitado a investigar a morte do Papa João Paulo I.

 

 

                   O assassinato de João Paulo I

Este livro, o produto de quase três anos de pesquisas intensivas, não existiria sem a ajuda ativa e a cooperação de muitas pessoas e organizações. Muitas delas só concordaram em ajudar sob a condição rigorosa de que não seriam publicamente identificadas. Como aconteceu em outros livros que escrevi anteriormente, em circunstâncias similares, respeito os seus desejos. Neste momento, há uma necessidade ainda maior de proteger suas identidades. Como ficará patente ao leitor, o assassinato é uma seqüela freqüente dos eventos aqui relatados.

Uma parcela considerável desses assassinatos permanece oficialmente sem solução. Ninguém deve duvidar de que os indivíduos responsáveis por essas mortes possuem a capacidade de assassinar novamente. Revelar os nomes dos homens e mulheres que me proporcionaram uma ajuda crucial e que agora correm um grande risco seria um ato de irresponsabilidade criminosa. Tenho com eles uma dívida particular. Os motivos para divulgarem uma ampla gama de informações foram muitos e variados, mas ouvi repetidamente o comentário: "A verdade deve ser revelada. Se você está disposto a contá-la, então que assim seja." Sinto- me profundamente grato a todos e também às seguintes pessoas, que classifico com o maior respeito como a ponta do iceberg: Professor Amedeo Alexandre, Professor Leonardo Ancona William Aronwald, Linda Attwell, Josephine Ayres, Dr. Alan Bailey, Dr. Shamus Banim, Dr. Derek Barowcliff, Pia Basso, Padre Albe BeIli, Cardeal Giovanni Beneili, Marco Borsa, Vittore Branca, David Buckley, Padre Roberto Busa, Dr. Renato Buzzonetti, Roberto Calvi, Emilio Cavaterra, Cardeal Mario Ciappi, Irmão Clemente, Joseph Coffey, Annaloa Copps, Rupert Cornwall, Monsenhor Ausilio Da Rif, Dr. Giuseppe Da Ros, Maurizio De Luca, Danielli Doglio, Monsenhor Mafeo Ducoli, Padre François Evain, Cardeal Pericle Felici, Padre Mario Ferrarese, Professor Luigi Fontana, Mario di Francesco, Dr. Cano Frizziero, Professor Piero Fucci, Padre Giovanni Gennari, Monsenhor Mario Ghizzo, Padre Carlo Gonzalez, Padre Andrew Greeley, Diane Haíl, Dr. John Henry, Padre Thomas Hunt, William Jackson, John J. Kenney, Peter Lemos, Dr. David Levison, Padre Diego Lorenzi, Edoardo Luciani, William Lynch, Ann McDiarmid, Padre John Magee, Sandro Magister, Alexander Manson, Professor Vincenzo Masini, Padre Francis Murphy, Anna Nogara, Monsenhor Giulio Nicolini, Padre Gerry O’Collins, Padre Romeo Panciroli, Padre Gianni Pastro, Lena Petni, Nina Petri, Professor Pier Luigi Prati, Professor Giovanni Rama, Roberto Rosone, Professor Fausto Rovelli. Professor Vincenzo Ruili, Ann Ellen Rutherford, Monsenhor Tiziano Scalzotto, Monsenhor Mario Senigaglia, Arnaldo Signoracci, Ernesto Signoracci, Padre Bartolomeo Sorges, Lorana Sullivan, Padre Frances- co Taifarel, Irmã Vincenza, Professor Thomas Whitehead, Phillip Willan.

Também agradeço às seguintes organizações: Residência Agostiniana, Roma, Banco San Marco, Banco da Inglaterra, Banco para Pagamentos Internacionais, Basiléia, Banco da Itália, Biblioteca Católica Central, Catholic Truth Society, Departamento de Polícia da Cidade de Londres, Departamento de Comércio, Biblioteca de Estatística e Mercado, o English College, Roma, Bureau Federal de Investigações a Universidade Gregoriana, Roma, New Cross Hospital Poisons Unit, Opus Dei, a Sociedade Farmacêutica da Grã-Bretanha, Tribunal do Distrito de Nova York, Tribunal de Luxemburgo, Departamento de Estado Norte-Americano, Imprensa Oficial do Vaticano, e Rádio do Vaticano.

Entre aqueles a quem não posso agradecer publicamente estão os residentes na Cidade do Vaticano, que me procuraram e me iniciaram na investigação dos acontecimentos envolvendo a morte do Papa João Paulo I, Albino Luciani. O fato de que homens e mulheres que vivem no coração da Igreja Católica não podem falar abertamente e ser identificados é um comentário eloqüente sobre a situação no Vaticano. Não tenho a menor dúvida de que este livro será atacado por alguns e rejeitado por outros. Será encarado por muitos como uma agressão à fé católica em particular e ao cristianismo em geral. Mas não é nada disso. Até certo ponto, é uma acusação a homens especificamente indicados, que nasceram católicos, mas nunca foram cristãos. Como tal, este livro não ataca "A Fé" dos milhões de devotos da Igreja, pois, o que eles consideram sagrado é muito importante para deixarem nas mãos de homens que conspiraram para arrastar a mensagem de Cristo para a lama — uma conspiração que alcançou um tenebroso sucesso. Como já expliquei antes, tenho uma dificuldade insuperável quando confrontado com a tarefa de revelar fontes específicas para fatos e detalhes específicos. Não posso revelar quem exatamente me disse o quê, uma vez que as fontes de informações devem permanecer secretas. Mas posso garantir ao leitor que todas as informações, fatos e detalhes foram conferidos pelo menos duas vezes, não importando qual fosse a fonte. Se houver qualquer erro a responsabilidade é toda minha. Tenho certeza de que haverá comentários porque relato conversas de homens que morreram antes de minhas investigações começarem. Como eu poderia saber, por exemplo, o que se passou entre Albino Luciani e o Cardeal Villot no dia em que discutiram a questão do controle da natalidade? Não existe no Vaticano uma audiência particular que permaneça absolutamente particular. Os dois homens simples- mente conversaram depois com outros a respeito. Essas fontes secundárias, às vezes com opiniões pessoais profundamente divergentes sobre a questão discutida pelo Papa e seu Secretário de Estado, proporcionaram a base para as palavras atribuídas. Nenhum dos diálogos neste livro é fruto da imaginação, assim como os eventos aqui transcritos.

                 Abril de 1984 DAVID A. YALLOP

 

O líder espiritual de quase um quinto da população mundial manipula um imenso poder. Mas qualquer observador desinformado de Albino Luciani, no início de seu pontificado como Papa João Paulo 1, acharia difícil acreditar que aquele homem realmente encarnava tanto poder. A timidez e humildade emanando daquele pequeno e quieto italiano de 65 anos levaram muitos a concluir que o seu papado não seria particularmente notável. Os bem-informados, no entanto, sabiam que não era bem assim: Albino Luciani iniciara uma revolução.

A 28 de setembro de 1978 ele era Papa há 33 dias. Em pouco mais de um mês, lançara-se por diversos cursos de ação que, se prosseguidos, teriam um efeito direto e dinâmico sobre todos nós. A maioria aplaudiria suas decisões, uns poucos ficariam assustados. O homem que fora rapidamente chamado de "O Papa Sorriso" tencionava remover os sorrisos de diversos rostos no dia seguinte.

Naquela noite, Albino sentou para comer na sala de jantar no terceiro andar do Palácio Apostólico, na Cidade do Vaticano. Tinha a companhia de seus dois secretários, Padre Diego Lorenzi, que trabalhara como ele em Veneza por mais de dois anos, quando Luciani, como cardeal, ali fora Patriarca, e Padre John Magee, que assumira o posto recentemente, depois da eleição papal. Enquanto as freiras que trabalhavam nos aposentos papais pairavam ansiosamente pelas proximidades, Albino Luciani comeu uma refeição frugal, de sopa, vitela, vagens frescas e um pouco de salada. Bebia ocasionalmente um gole de água e pensava nos acontecimentos do dia e nas decisões que tomara. Não queria a posição. Não procurara nem solicitara votos para ser o novo Papa. Agora, como Chefe de Estado, tinha de assumir as terríveis responsabilidades.

Enquanto as Irmãs Vincenza, Assunta, Clorinda e Gabrietta serviam silenciosamente os três homens, que assistiam ao noticiário pela televisão sobre os acontecimentos que preocupavam a Itália naquela noite, outros homens, em outros lugares, preocupavam-se profundamente com as atividades de Albino Luciani.

As luzes ainda se achavam acesas um andar abaixo dos aposentos papais, no Banco do Vaticano. Seu diretor, o Bispo Paul Marcinkus, estava absorvido por problemas mais prementes que o seu Jantar. Nascido em Chicago, Marcinkus aprendera tudo sobre a sobrevivência nas ruas de Cicero, em Illinois. Durante a sua meteórica ascensão à posição de "Banqueiro de Deus", sobrevivera a muitos momentos de crise. Confrontava-se agora com a crise mais séria que já lhe surgira. Nos últimos 33 dias, seus colegas no banco haviam notado uma mudança intensa no homem que controlava os milhões do Vaticano. O extrovertido americano de 1,90m de altura, 100 quilos de peso, tornara-se soturno e introspectivo. Estava visivelmente emagrecendo e seu rosto adquirira uma palidez extrema. Sob muitos aspectos, a Cidade do Vaticano é uma aldeia... e é muito difícil se guardar segredos numa aldeia. Marcinkus tomara conhecimento dos rumores de que o novo Papa iniciara discretamente uma investigação pessoal do Banco do Vaticano e especificamente dos métodos usados pelo bispo americano em sua condução. Por muitas vezes, desde o advento do novo Papa, Marcinkus lamentara o negócio em 1972 com o Banca Cattolica del Veneto.

O Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Jean Villot, era outro que ainda se achava em seu gabinete de trabalho naquela noite de setembro. Estudava a lista de nomeações, renúncias a serem pedidas e transferências, que o Papa lhe entregara uma hora antes. Villot aconselhara, argumentara e protestara, mas tudo em vão. Luciani se mostrara intransigente.

Era uma reformulação dramática, por quaisquer padrões. Lançaria a Igreja por novos rumos, que Villot e os outros na lista, prestes a ser substituídos, consideravam altamente perigosos. Quando aquelas mudanças fossem anunciadas, haveria a respeito milhões de palavras escritas e pronunciadas nos meios de comunicação do mundo inteiro, analisando, dissecando, profetizando, explicando. A verdadeira explicação, no entanto, não seria discutida, jamais seria oferecida ao conhecimento público. Havia um denominador comum, um fato que ligava todos os homens que estavam em vias de ser substituídos, Villot sabia disso. E o que era mais importante, o Papa também sabia. Fora um dos fatores que o levaram a agir, a necessidade de despojar aqueles homens de poder concreto e colocá-los em posições relativamente inofensivas. Era a Maçonaria.

Mas não era a Maçonaria convencional que preocupava o Papa, embora a filiação a essa sociedade fosse considerada pela Igreja motivo para excomunhão automática. Sua preocupação maior era com a loja maçônica ilegal que se expandiria além das fronteiras da Itália em sua busca de dinheiro e poder, denominando-se P2. O fato de ter penetrado no Vaticano e estabelecido vínculos com padres, bispos e até mesmo cardeais fez da P2 um anátema para Albino Luciani.

Villot já começara a ficar profundamente preocupado com aquele novo papado antes mesmo daquela última bomba. Era um dos poucos que tinha conhecimento do diálogo ocorrendo entre o Papa e o Departamento de Estado, em Washington. Sabia que, a 23 de outubro, o Vaticano receberia uma delegação do Congresso americano. No dia seguinte, essa delegação teria uma audiência particular com o Papa. O assunto seria o controle da natalidade.

Villot estudara cuidadosamente o dossiê do Vaticano sobre Albino Luciani. Também lera o memorando secreto que Luciani, então Bispo de Vittorio Veneto, enviara a Paulo VI, antes da encíclica Humanae Vitae, que proibira aos católicos todas as formas artificiais de controle da natalidade. Suas próprias discussões com Luciani não deixavam margem a qualquer dúvida sobre a posição do novo Papa na questão. Villot também não tinha qualquer dúvida sobre o que Luciani tencionava fazer. Haveria uma mudança de posição que alguns classificariam de traição a Paulo VI, enquanto muitos aclamariam como a maior contribuição da Igreja ao século XX.

Em Buenos Aires, outro banqueiro estava pensando em João Paulo I naquele final de setembro. Nas semanas anteriores, discutira os assuntos propostos pelo novo Papa com seus protetores, Licio Gelli e Umberto Ortolani, dois homens que podiam incluir, entre suas muitas atividades, o completo controle sobre Roberto Calvi, Presidente do Banco Ambrosiano. Calvi já estava sobrecarregado de problemas, antes mesmo da eleição papal que colocou Albino Luciani no trono de São Pedro. O Banco da Itália investigava secretamente o banco de Calvi em Milão desde abril. Era uma investigação impelida por uma misteriosa campanha contra Calvi, que começara ao final de 1977. Os cartazes forneciam informações sobre algumas das atividades criminosas de Calvi e sugeriam outras tantas.

Calvi conhecia exatamente o progresso da investigação do Banco da Itália. Sua amizade Intima com Licio Gelli lhe garantia um relato diário. Estava igualmente a par da investigação papal no Banco do Vaticano. Como Marcinkus, sabia que era apenas uma questão de tempo antes que as duas investigações independentes compreendessem que sondar um daqueles impérios financeiros era sondar a ambos. Estava fazendo tudo, na extensão do seu poder considerável, para frustrar a investigação do Banco da Itália e proteger o seu império financeiro, do qual se achava no processo de roubar mais de um bilhão de dólares.

Uma análise cuidadosa da situação de Roberto Calvi em setembro de 1978 deixa absolutamente claro que, se o Papa Paulo VI fosse sucedido por um homem honesto, o banqueiro sofreria a ruína total, o colapso de seu império financeiro e certamente a prisão. E não havia a menor dúvida de que Albino Luciani era um homem assim.

Em Nova York, o banqueiro siciliano Michele Sindona também acompanhava ansiosamente as atividades do Papa João Paulo 1. Havia mais de três anos que Sindona lutava contra as tentativas do governo italiano de extraditá-lo. Queriam que ele fosse levado a Milão para enfrentar a acusação de desvio fraudulento de 225 milhões de dólares. Em maio daquele ano, parecia que Sindona finalmente perdera a longa batalha. Um juiz federal americano decidira que o pedido de extradição deveria ser atendido.

Sindona permanecera em liberdade, sob uma fiança de três milhões de dólares, enquanto seus advogados se preparavam para uma última cartada. Exigiram que o governo dos Estados Unidos provasse que havia motivos concretos para justificar a extradição. Sindona assegurava que as acusações levantadas contra ele pelo governo italiano eram obra de comunistas e outros políticos de extrema esquerda. Seus advogados também afirmavam que o promotor de Milão escondera provas da inocência de Sindona e que seu cliente quase que certamente seria assassinado ou recambiado à Itália. A audiência estava marcada para novembro.

Naquele verão, em Nova York, havia outras pessoas igualmente ativas por conta de Michele Sindona. Um membro da Máfia, Luigi Ronsisvaíle, um assassino profissional, ameaçava de morte a testemunha Nicola Biase, que anteriormente prestara depoimento contra Sindona no processo de extradição. A Máfia também expedira um contrato contra a vida de John Kenney, assistente de promotor federal, que atuava no processo. O preço que se oferecia pela morte do promotor era de 100 mil dólares.

Se o Papa João Paulo I continuasse a investigar os negócios do Banco do Vaticano, então não adiantariam todos os contratos da Máfia para evitar que Sindona fosse extraditado de volta à Itália. A teia de corrupção no Banco do Vaticano, que incluía a legalização do dinheiro da Máfia por seu intermédio, ia muito além de Calvi, estendendo-se até Michele Sindona.

Em Chicago, outro Príncipe da Igreja Católica preocupava-se e irritava-se com os acontecimentos na Cidade do Vaticano. Era o Cardeal John Cody, chefe da arquidiocese mais rica do mundo. Cody reinava sobre dois e meio milhões de católicos e quase três mil sacerdotes, sobre 450 paróquias e uma receita anual que ele se recusava a revelar em sua totalidade a quem quer que fosse. Estava na verdade acima dos 250 milhões de dólares. O sigilo fiscal era um dos problemas que atormentavam Cody. Ele já dominava Chicago há 13 anos em 1978.

Durante esse período, os pedidos para sua substituição haviam alcançado proporções extraordinárias. Padres, freiras, trabalhadores leigos e pessoas de muitas profissões seculares solicitaram a Roma, aos milhares, o afastamento de um homem que consideravam um déspota.

O Papa Paulo se angustiara por anos com a perspectiva de remoção de Cody. Pelo menos em uma ocasião reuniu coragem suficiente e tomou a decisão, só para revogar a ordem no último momento. A personalidade complexa e torturada de Paulo era apenas parte do motivo para a vacilação. Paulo sabia que havia outras alegações contra Cody, secretas, com provas substanciais, que indicavam a necessidade urgente de substituir o Cardeal de Chicago.

Ao final de setembro, Cody recebeu um telefonema de Roma. A aldeia que era a Cidade do Vaticano deixara transpirar outra informação — e o Cardeal Cody sempre pagara muito bem por informações importantes, ao longo dos anos. O interlocutor avisou-o de que, onde o Papa Paulo se angustiara na indecisão, seu sucessor João Paulo agira. O Papa decidira que o Cardeal Cody seria substituído.

Mais de três desses homens pelo menos se ocultavam na sombra de outro, Licio Gelli. Chamavam-no "11 Burattinaio" — o titereiro. Os títeres eram muitos e se espalhavam por vários países. Controlava a P2 e, através dela, a Itália. Em Buenos Aires, a cidade onde discutira com Calvi o novo Papa, o titereiro organizou a triunfante volta do General Perón ao poder — um fato que Perón subseqúentemente reconheceu ao ajoelhar-se aos pés de Gelli. Se Marcinkus, Sindona ou Calvi estavam ameaçados pelos vários cursos de ação planejados por Albino Luciani, era de interesse para Licio Gelli que tais ameaças fossem removidas.

É mais do que evidente que, a 28 de setembro de 1978, todos esses homens, Cody, Marcinkus, Villot, Calvi, Sindona e Gelli tinham muito a temer se o papado de João Paulo 1 continuasse. E igualmente evidente que todos eles teriam muito a ganhar, por diversas maneiras, se o Papa João Paulo 1 morresse subitamente.

Foi o que aconteceu, em algum momento entre o final da noite de 28 de setembro de 1978 e o início da madrugada de 29 de setembro de 1978, 33 dias depois de sua eleição, Albino Luciani morreu.

Hora da morte: desconhecida. Causa da morte: desconhecida.

Estou convencido de que os fatos totais e as circunstâncias completas descritas nas páginas subseqüentes contêm a chave para a verdade sobre a morte de Albino Luciani. Estou igualmente convencido de que um desses seis homens já iniciara, no começo da noite de 28 de setembro de 1978, um curso de ação para resolver os problemas apresentados pelo pontificado de Albino Luciani. Um desses homens se encontrava por trás de uma conspiração que aplicou a Solução Italiana.

Albino Luciani fora eleito Papa a 26 de agosto de 1978. Pouco depois do Conclave, o cardeal inglês, Basil Hume disse: — A decisão foi inesperada. Mas depois que aconteceu, parecia total e inteiramente certa. O sentimento de que ele era justamente o que desejávamos foi tão generalizado que compreendemos que ele era, inegavelmente, o candidato de Deus.

Trinta e três dias depois o candidato de Deus morreu.

O que se segue é o resultado de três anos de investigações contínuas e intensivas sobre essa morte. Desenvolvi diversas regras para uma investigação dessa natureza. Regra Um: Começar pelo início. Verificar a natureza e personalidade do morto. Que tipo de homem era Albino Luciani?

 

                   A Estrada para Roma

A família Luciani vivia na pequena aldeia montanhesa de Canale d'Agordo, quase mil metros acima do nível do mar e cerca de 120 quilômetros ao norte de Veneza.

Por ocasião do nascimento de Albino, a 17 de outubro de 1912, os pais, Giovanni e Bortola, já cuidavam de duas filhas, do primeiro casamento do mando. Como um jovem viúvo com duas filhas e carecendo de um emprego fixo, Giovanni não podia ser o sonho de uma moça convertido em realidade. Bortola cogitara antes de se tomar uma freira de convento. Era agora a mãe de três crianças. O parto foi longo e árduo. Bortola, demonstrando uma ansiedade que se tomaria um dos pontos marcantes dos primeiros anos da vida do menino, receava que o filho estivesse prestes a morrer. Ele foi prontamente batizado com o nome de Albino, em homenagem a um amigo íntimo do pai, que morrera na explosão acidental de uma fornalha, quando ambos trabalhavam na Alemanha, O garoto entrou num mundo que dali a dois anos estaria em guerra, depois do assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa.

Os primeiros 14 anos deste século são considerados por muitos europeus como uma época áurea. Incontáveis escritores já descreveram a estabilidade, o sentimento generalizado de bem-estar, a expansão disseminada da cultura de massa, a vida espiritual satisfatória, o alargamento dos horizontes e a redução das desigualdades sociais.

Exaltam a liberdade de pensamento e a qualidade de vida como se fosse um Jardim do Éden eduardiano. Não resta a menor dúvida de que tudo isso existiu, mas também não se pode ignorar a pobreza assustadora, desemprego em massa, desigualdade social, fome, doença e morte prematura. A maior parte do mundo estava dividida por essas duas realidades. A Itália não era exceção.

Nápoles estava sitiada por milhares de pessoas que queriam emigrar para os Estados Unidos, Inglaterra ou qualquer outro lugar. Os Estados Unidos já haviam acrescentado algumas restrições, em letras miúdas, à declaração "Tragam-me os seus desabrigados, famintos e doentes". Os "infelizes recusados" descobriram que doença, recursos insuficientes, contrato de trabalho, criminalidade e deformidade física eram alguns dos motivos para a rejeição do visto de imigração.

Em Roma, à plena vista da Basílica de São Pedro, milhares de pessoas viviam em caráter permanente em barracos de madeira e palha. No verão, muitos se transferiam para as cavernas nas colinas ao redor. Alguns trabalhavam do amanhecer ao anoitecer em vinhedos, ganhando quatro pence por dia. Nas fazendas, outros trabalhavam no mesmo horário e não recebiam qualquer pagamento em dinheiro. O pagamento era geralmente efetuado em milho estragado, um dos motivos para que tantos trabalhadores rurais sofressem de uma doença de pele chamada pelagra. Submersos até a cintura nos campos de arroz de Pavia, muitos contraíam malária devido às freqüentes mordidas de mosquito. O índice de analfabetismo era superior a 50 por cento. Enquanto um Papa depois de outro ansiava pelo retomo aos Estados Papais, essas condições constituíam a realidade da vida para muitos que viviam naquela Itália unificada.

A aldeia de Canale tinha uma predominância de crianças, mulheres e velhos. A maioria dos homens em idade produtiva era forçada a procurar trabalho em outros lugares. Giovanni Luciani viajava para a Suíça, Áustria, Alemanha e França, partindo na primavera e voltando no outono.

A casa dos Luciani, um velho estábulo parcialmente convertido, tinha uma única fonte de calor, um velho fogão de lenha que aquecera o quarto em que Albino nascera. Não havia jardim tais coisas eram consideradas luxo pelos habitantes das montanhas. A paisagem mais do que compensava: florestas de pinheiros e os picos cobertos de neve, o rio Bioi descendo a cascatear nas proximidades da praça da aldeia.

Os pais de Albino Luciani formavam um estranho casal. Bortola era profundamente religiosa e passava tanto tempo na igreja quanto em sua pequena casa, sempre preocupada e angustiada com sua família cada vez maior. Era o tipo de mãe que, à menor tosse, ficava desesperada e corria a levar a criança ao consultório médico mais próximo. na fronteira. Devota, com aspirações ao martírio, tinha a propensão de contar às crianças com freqüência os muitos sacrifícios que era obrigada a fazer por causa delas. O pai, Giovanni, vagueava pela Europa em guerra em busca de trabalho, passando de pedreiro a carpinteiro, eletricista e mecânico. Como um socialista declarado, era visto pelos católicos devotos como um demônio que devorava padres e queimava crucifixos. A combinação produzia atritos inevitáveis. A recordação da reação da mãe, quando viu o nome do marido em cartazes colocados por toda a aldeia, anunciando que ele concorria a uma eleição local como candidato socialista, permaneceu com o pequeno Albino pelo resto de sua vida.

Albino foi seguido por outro menino, Edoardo, vindo depois uma filha, Antonia. Bortola aumentou a pequena receita da família com o expediente de escrever cartas para os analfabetos e trabalhando como copeira.

A dieta da família consistia de polenta de aveia, cevada, macarrão e quaisquer legumes que aparecessem. Nas ocasiões especiais, podia haver uma sobremesa de carfoni, uma massa doce com recheio de sementes de papoula moldas. Carne era uma raridade. Em Canale, se um homem era bastante rico para se dar ao luxo de matar um porco, tratava de salgá-lo e servia aos pouquinhos à família, durando um ano.

A vocação de Albino para o sacerdócio surgiu ainda cedo e foi ativamente encorajada pela mãe e pelo pároco local, Padre Filippo Carli. Mas se alguma pessoa específica merece o crédito por garantir os primeiros passos de Albino para o sacerdócio é justamente o socialista irreligioso Giovanni. A família Luciani teria que despender uma quantia considerável para que Albino pudesse ingressar no seminário perto de Feltre. Mãe e filho discutiram o assunto pouco antes de Albino completar 11 anos. Bortola acabou sugerindo que o menino escrevesse uma carta para o pai, que estava então trabalhando na França. Albino diria mais tarde que foi uma das cartas mais importantes de sua vida.

O pai recebeu a carta e pensou no problema durante algum tempo, antes de responder. Concedeu a permissão e aceitou o fardo adicional, com as seguintes palavras: "Devemos fazer esse sacrifício."

Assim, em 1923, Albino Luciani, com 11 anos, partiu para o seminário e para a guerra interna que assolava a Igreja Católica. Era então uma Igreja em que estavam proibidos livros como As Cinco Chagas da Igreja, de Antonio Rosmini. Sacerdote e teólogo italiano, Rosmini escrevera em 1848 que a Igreja enfrentava uma crise de cinco males: afastamento social entre o clero e o povo; o baixo padrão de educação dos padres; desunião e acrimônia entre os bispos; a dependência de ordenações leigas sobre as autoridades seculares; e o fato da Igreja ter tantos bens e se achar escravizada à riqueza. Rosmini esperava obter com isso uma reforma liberalizante. O que conseguiu, no entanto, em grande parte por decorrência de intrigas dos jesuítas, foi a

condenação de seu livro e a perda do chapéu cardinalício que Pio IX lhe oferecera.

Apenas 58 anos antes do nascimento de Luciani, o Vaticano proclamara o Sílaba de Erros e uma encíclica a acompanhá-lo, Quanta Cura. Nesses documentos, o pontificado denunciava a irrestrita liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. O conceito de posição igual para todas as religiões era totalmente rejeitado. O Papa responsável por essas medidas foi Pio IX. Também deixou claro que detestava profundamente o conceito de governo democrático e que sua preferência era pelas monarquias absolutas. Condenava também "os defensores da liberdade de consciência e da liberdade de religião", assim como "todos aqueles que afirmam que a Igreja não pode usar a força".

Em 1870, esse mesmo Papa convocou um Concílio Vaticano e indicou aos bispos reunidos que o principal item da agenda era a infalibilidade papal. A sua infalibilidade. Depois de muitas pressões intensas, algumas não tão cristãs como se podia esperar, o Papa sofreu uma grande derrota moral quando, entre os mais de mil participantes do Concílio, apenas 451 bispos votaram a favor do conceito. Por uma estratégia combinada, todos os dissidentes, à exceção de dois, deixaram Roma antes da votação final. Na última reunião do Concílio, a 18 de julho de 1870, ficou decidido, por 535 votos contra dois, que o Papa era infalível quando definindo uma doutrina sobre fé ou moral.

Até serem libertados pelas tropas italianas em 1870, o Papa, que se tornara infalível, manteve os judeus de Roma vivendo num gueto. Era igualmente intolerante com os protestantes e recomendava a aprovação da pena de prisão para todos dessa fé que estavam pregando na Toscana. No momento em que escrevo este livro, estão sendo efetuados esforços consideráveis para canonizar Pio IX e convertê-lo num santo.

Depois de Pio IX veio Leão XIII, considerado por muitos historiadores como um homem esclarecido e humanista. Foi seguido por Pio X, julgado por muitos dos mesmos historiadores como um desastre total. Reinou até 1914 e os danos que causou ainda eram muito evidentes quando Albino Luciani ingressou no seminário em Feltre.

O Index de livros que nenhum católico tinha permissão para ler se tomou ainda maior. Editores e autores foram excomungados. Quando livros críticos eram publicados anonimamente, os autores, quem quer que fossem, eram excomungados. O Papa criou uma palavra para abranger tudo o que ele tentava destruir: "modernismo". Contestar os ensinamentos atuais da Igreja constituía um anátema. Com a bênção e ajuda financeira do Papa, um prelado italiano, Umberto Benigni, criou um sistema de espionagem. O objetivo era caçar e destruir todos os modernistas. Assim, no século XX, a Inquisição renasceu.

Com a redução dos seus poderes temporais, pela perda dos Estados Papais, o auto-intitulado "Prisioneiro do Vaticano" não estava em condições de ordenar que as pessoas fossem queimadas vivas em fogueiras, mas uma cutucada aqui, uma piscadela ali, alegações anônimas e sem provas contra um colega ou possível rival foram suficientes para destruir muitas carreiras dentro da Igreja. A mãe estava devorando os próprios filhos. A maioria dos que foram destruídos por Pio e seu circulo era de membros leais e fiéis da Igreja Católica.

Seminários foram fechados. Os que tiveram permissão para continuar a funcionar, a fim de formar a geração seguinte de padres, eram cuidadosamente controlados. Numa encíclica, o Papa declarou que todos os que pregavam ou ensinavam em termos oficiais deviam prestar um juramento especial, repudiando os erros do modernismo. Proclamou também uma proibição geral à leitura de jornais por todos os seminaristas e estudantes de teologia, acrescentando especificamente que essa regra incluía até os melhores jornais.

Anualmente o Padre Benigni, no comando da rede de espionagem que acabou se estendendo por todas as dioceses da Itália e depois pelo resto da Europa, recebia um subsídio de mil liras (aproximadamente 5.000 dólares atuais) diretamente do Papa. Essa organização secreta de espiões só foi dissolvida em 1921. O Padre Benigni tornou-se então um informante e espião de Mussolini.

Pio X morreu a 20 de agosto de 1914. Foi canonizado e tornou-se santo em 1954.

Em Feltre, Luciani descobriu que era crime ler um jornal. Estava num mundo austero, em que os professores eram tão vulneráveis quanto os alunos. Uma palavra ou comentário que não contasse com a aprovação total de um colega podia resultar em um professor perder o direito de ensinar, por causa da rede de espionagem do Padre Benigni. Embora oficialmente dispersada em 1921, dois anos antes de Luciani ingressar em Feltre, a influência dessa rede ainda prevaleceu por todo o período de seu treinamento para o sacerdócio. O questionamento crítico do que era ensinado seria um anátema. O sistema estava projetado para dar respostas, não para estimular perguntas. Os amedrontados professores marcados pelo expurgo, por sua vez, iriam também marcar a geração seguinte.

A geração de sacerdotes de Albino Luciani teve de suportar todo o impacto do Sílabo de Erros e da mentalidade antimodernismo. O próprio Luciani poderia ter se tornado, sob tal influência, mais um padre de mentalidade estreita. Uma variedade de fatores salvou-o desse destino. Um desses fatores, um dom simples mas extraordinário, foi a sede de conhecimento.

Apesar do exagero da mãe com sua saúde nos primeiros anos, houvera um benefício considerável no excesso de proteção. Recusando-se a permitir que o menino se entregasse a brincadeiras rudes com outros de sua idade, substituindo a bola por um livro, ela abriu todo um mundo novo para o filho. Ele começou a ler vorazmente, conhecendo ainda muito pequeno as obras completas de Dickens e Jules Verne. Mark Twain, por exemplo, ele leu aos sete anos, o que era excepcional, num país em que, na ocasião, quase a metade dos adultos nem sabia ler.

Em Feltre, Albino Luciani leu todos os livros que encontrou ali. Mais significativo ainda, lembrava-se praticamente de tudo o que lia. Era dotado de uma memória espantosa. Por isso, embora as perguntas provocantes fosses repudiadas, Luciani assumia a temeridade de apresentá-las de vez em quando. Os professores consideravam-no diligente, mas "esperto demais".

O jovem seminarista voltava para casa no verão. Trabalhava nos campos, usando a batina preta comprida. Quando não estava ajudando na colheita, podia ser encontrado a "reorganizar" a biblioteca do Padre Filippo. Os períodos escolares eram animados ocasionalmente por uma visita do pai. A primeira coisa que Giovanni fazia ao voltar para casa, no outono, era sempre uma visita ao seminário. E, depois, passava o inverno fazendo campanha pelos socialistas.

De Feltre, Luciani passou para o seminário em Belluno. Um dos seus contemporâneos recordou para mim o regime em Belluno:

Éramos acordados às cinco e meia. Não havia aquecimento e a água às vezes virava gelo. Todas as manhãs, eu costumava perder minha vocação por cinco minutos. Tínhamos 30 minutos para nos lavar e arrumar as camas. Conheci Luciani ali em setembro de 1929. Ele tinha então 16 anos. Era sempre amável, sossegado, sereno, a menos que se dissesse alguma coisa que fosse incorreta.., ele se tomava então como uma fonte impetuosa. Fui informado de que sempre se devia falar com todo cuidado em sua presença. Qualquer pensamento confuso e se corria perigo com ele.

Havia diversas obras de Antonio Rosmini entre os livros que Luciani leu nessa ocasião. Destacando-se por sua ausência da biblioteca do seminário estava As Cinco Chagas da Igreja. Em 1930, ainda permanecia no Index dos Livros Proibidos. Conhecendo agora a repercussão do livro, Luciani adquiriu discretamente seu exemplar. Teria uma influência profunda e duradoura em sua vida.

Para os professores de Luciani, o Sílabo de Erros, proclamado em 1864 por Pio IX, ainda devia ser considerado como a suprema verdade na década de 30. Era inconcebível a tolerância de uma opinião não-católica em qualquer país em que os católicos estivessem em maioria. A versão de Mussolini do fascismo não era a única que se ensinava na Itália nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial. O erro não tem direitos. A exceção aparentemente ocorria quando era o professor quem estava em erro, quando então seus direitos se tornavam absolutos.

A visão de Luciani, ao invés de ser expandida por seus professores, começou sob certos aspectos a encolher. Felizmente, estava sujeito a outras influências além da que recebia dos professores. Outro antigo colega de Belluno recordou:

Ele lia os dramas de Goldoni. Lia os romancistas franceses do século XIX. Comprou uma coleção das obras de Pierre Couwase, um jesuíta francês do século XVII, leu tudo, do princípio ao fim.

A influência das obras de Couwase foi tão forte que Luciani começou a pensar seriamente em se tornar jesuíta. Observou um amigo íntimo e depois outro procurarem o reitor, Bispo Giosue Cattarossi, solicitando permissão para ingressarem na ordem jesuíta. Luciani fez a mesma coisa. O bispo considerou o pedido por algum tempo e respondeu:

Não. Três é demais. É melhor você continuar aqui.

Ele foi ordenado padre aos 23 anos, a 7 de julho de 1935, em San Pietro, Belluno. No dia seguinte, celebrou a sua primeira missa, em sua cidade natal. A satisfação sentida por ter sido designado para coadjutor em Forno di Canale foi total. O fato de ser a mais humilde posição clerical na Igreja não tinha a menor importância. Na congregação de amigos, conhecidos, sacerdotes da região e família estava um muito orgulhoso Giovanni Luciano, que agora tinha um emprego permanente, relativamente perto de casa, como soprador de vidro na ilha de Murano, perto de Veneza.

Em 1937, Luciani foi nomeado vice-reitor de seu antigo seminário em Belluno. O conteúdo de seus ensinamentos nessa ocasião não diferia muito do que recebera de seus professores, mas seu comportamento era certamente muito diferente. Elevou o que era quase sempre uma teologia insípida e tediosa a algo revigorante e memorável. Depois de quatro anos, porém, sentiu necessidade de expandir-se. Queria obter um doutorado em teologia. Isso implicava o deslocamento para Roma e ingresso na Universidade Gregoriana. Seus superiores em Belluno queriam que ele continuasse a ensinar ali, ao mesmo tempo em que estudava para o doutorado. Luciani se dispunha a aceitar, mas a Universidade Gregoriana insistiu em pelo menos um ano de freqüência obrigatória, em Roma.

Após a intervenção de Angelo Santin, o diretor de Belluno, e do Padre Felice Capello, um renomado conhecedor de Direito Canônico que ensinava na Gregoriana e era aparentado com Luciani, o Papa Pio XII concedeu pessoalmente uma dispensa, numa carta assinada pelo Cardeal Maglione e datada de 27 de março de 1941. (O fato de que a Segunda Guerra Mundial estava então em pleno furor destrutivo não transparece na correspondência do Vaticano.) Luciani escolheu para sua tese "A Origem da Alma Humana Segundo Antonio Rosmini".

Suas experiências durante a guerra foram uma mistura extraordinária do sagrado e do profano. Incluíram melhorar seu alemão, escutando as confissões de soldados do Terceiro Reich. Incluíram também o estudo meticuloso das obras de Rosmini ou a parte delas que não estava proibida. Posteriormente, quando Luciani tomou-se Papa, haveria de se dizer que sua tese foi "brilhante". Essa pelo menos foi a opinião do jornal do Vaticano, Osservatore Romano uma opinião que não expressaram nas biografias anteriores ao Conclave. Não é uma opinião partilhada pelos professores da Gregoriana. Um descreveu-a para mim como "uma obra competente". Outro declarou:

Na minha opinião, não tem o menor valor. Mostra um conservantismo extremado e também carece de um método de análise.

Muitos diriam que o interesse de Luciani e o envolvimento com as obras de Rosmini eram indicações patentes de seu pensamento liberal.

O Albino Luciani da década de 40, no entanto, estava muito longe de ser um liberal. Sua tese tenta refutar Rosmini em todos os pontos. Ele ataca o teólogo do século XIX por usar citações incorretas e de segunda mão pela superficialidade e "esperteza engenhosa". E uma demolição implacável e uma indicação óbvia de uma mentalidade reacionária.

Nos intervalos de seu empenho para provar que Rosmini citara erroneamente a Santo Tomás de Aquino, Albino Luciani trilhava um caminho delicado quando ensinava a seus alunos em Belluno. Ele lhes dizia para não interferirem quando vissem soldados alemães prendendo grupos locais da resistência. Particularmente, simpatizava com a resistência, mas sabia que, entre os seminaristas na sala de aula, havia muitos que eram pró-fascistas. Sabia igualmente que o movimento de resistência estava provocando represálias dos alemães contra a população civil. Casas eram destruídas, homens detidos e enforcados nas árvores. No último período da guerra, no entanto, o seminário de Luciani tornou-se um refúgio para membros da resistência. A descoberta pelos soldados alemães resultaria em morte certa, não apenas para os combatentes da resistência, mas também para Luciani e seus companheiros.

A 23 de novembro de 1946, Luciani defendeu sua tese. Foi finalmente publicada a 4 de abril de 1950. Ele obteve um magnum cum laude e tornou-se doutor em teologia.

Em 1947, o Bispo de Belluno, Girolamo Bortignon, fez de Luciani, Pró-Vigário-Geral da diocese e pediu-lhe que organizasse o próximo Sínodo e a reunião interdiocesana de Feltre e Belluno. O aumento de responsabilidade coincidiu com um alargamento da perspectiva. Embora ainda incapaz de aceitar Origens da Alma de Rosmini, Luciani começara a avaliar e concordar com a opinião dele sobre os males que afligiam a Igreja. O fato de que os mesmos problemas ainda persistiam um século depois fazia com que se tomassem ainda mais pertinentes os fatores de afastamento social, sacerdócio despreparado, desunião entre bispos, aliança perniciosa de poder entre Igreja e Estado e, acima de tudo, a preocupação da Igreja com a riqueza material.

Em 1949, Luciani foi indicado para ser responsável pela catequese, em preparação para o Congresso Eucarlstico que se realizaria naquele ano em Belluno. Isso e mais a sua experiência de ensinar impeliram-no a escrever, iniciando com um pequeno livro englobando as suas opiniões, intitulado Catechsi in Briciole (Catecismo em Migalhas).

Aulas de catecismo: Constituem possivelmente a mais antiga recordação da maioria dos adultos católicos. Muitos teólogos tendem a menosprezá-las, mas é precisamente a esse estágio de desenvolvimento que os jesuítas se referem quando falam em "pegar uma criança para a vida . Albino Luciani foi um dos melhores professores da matéria que a Igreja teve neste século. Possuía a simplicidade de pensamentos que só se encontra nos que são excepcionalmente inteligentes, acrescentando-se a isso uma humildade genuína e profunda.

Em 1958, Dom Albino, como era agora conhecido por todos, levava uma vida sossegada. O pai e a mãe já estavam mortos. Fazia visitas freqüentes ao irmão, Edoardo, agora casado e residindo na casa da família, e à irmã, Antonia, também casada e morando em Trento. Como Vigário-Geral de Belluno, tinha trabalho mais do que suficiente para ocupá-lo. Como lazer, dispunha de seus livros. Não sentia muito interesse por comida, aceitando qualquer coisa que lhe servissem. As principais formas de exercício eram andar de bicicleta pela diocese ou escalar as montanhas próximas.

Esse homem pequeno e sossegado conseguia, aparentemente sem tentar, causar um efeito extraordinário e duradouro nas pessoas. Conversando muitas vezes com aqueles que o conheceram, pude perceber uma mudança notável se processar na pessoa que recordava Albino Luciani. Os rostos se abrandavam, literalmente relaxavam. As pessoas sorriam. Sorriam muito ao relembrarem o homem. Tornavam-se mais gentis diante de meus olhos. E evidente que ele atingiu algo muito profundo nos outros. Os católicos chamariam de alma. Indiferente a isso, Albino Luciani já estava deixando um legado singular enquanto circulava de bicicleta por Belluno.

No Vaticano, havia um novo Papa, João XXIII, um homem nascido ali perto, em Bergamo, que era também o berço do homem de quem Albino adquirira o nome de batismo. João estava ocupado em reformular as designações episcopais. Urbani foi para Veneza, a fim de substitui-lo, Carraro para Verona. Havia vaga para um bispo em Vittorio Veneto. O Papa pediu ao Bispo Bortignon que indicasse um nome. A resposta fê-lo sorrir e comentar:

Eu o conheço. Ele me servirá muito bem.

Luciani, com a sua humildade desconcertante que tantos deixariam mais tarde de compreender, declarou depois de sua designação para bispo de Vittorio Veneto:

Fizemos duas viagens de trem juntos, mas ele falou durante a maior parte do tempo. Eu disse tão pouco que ele não podia ter me conhecido.

Luciani, aos 46 anos, foi ordenado bispo pelo Papa João na Basílica de São Pedro, dois dias depois do Natal de 1958.

O Papa estava completamente ciente das atividades pastorais do homem do norte e louvou-as efusivamente. Pegando um exemplar de A Imitação de Cristo, de Thomas à Kempis, o Papa João leu o capitulo 23. Nele estão citados os quatro elementos que proporcionam paz e liberdade pessoal:

 

Meu filho, tente fazer a vontade do próximo ao invés da sua. Sempre escolha ter menos ao invés de mais. Sempre escolha o lugar mais humilde e ser menos do que todos os outros. Sempre anseie e reze para que a Vontade de Deus possa ser plenamente realizada em sua vida. Descobrirá que o homem que faz tudo isso caminha na terra da paz e do sossego.

 

Antes de sua ordenação, Luciani escrevera sobre o evento iminente, numa carta a Monsenhor Capovilla, secretário particular do Papa. Usou uma frase que demonstra de maneira impressionante como ele já tentava levar uma vida que abrangia os ideais de Thomas Kempis: "Às vezes o Senhor escreve suas obras na areia."

Na primeira vez em que a congregação se reuniu para ouvir seu novo bispo, em Vittorio Veneto, ele discorreu sobre esse tema:

 

Comigo, o Senhor torna a usar o seu antigo sistema. Tira os pequenos da lama das ruas. Tira homens dos campos. Tira outros de suas redes no mar ou no lago. Transforma-os em Apóstolos. E o seu antigo sistema. Assim que fui consagrado padre, passei a receber de meus superiores tarefas de responsabilidade. Vim a compreender o que significa para um homem dispor de autoridade. E como uma bola cheia. Se observarem as crianças que brincam na grama, diante desta catedral, vão verificar que nem se dão ao trabalho de olhar quando a bola se acha vazia.

Pode ficar tranqüilamente a um canto. Mas quando a bola está cheia, as crianças correm de todos os lados e acham que têm o direito de chutá-la. E o que acontece quando os homens sobem. Portanto, não sejam invejosos.

 

Mais tarde, ele conversou com os 400 sacerdotes que estavam sob sua responsabilidade, Diversos lhe ofereceram presentes, comida, dinheiro. Ele recusou. Quando todos estavam reunidos, Luciani tentou explicar a razão:

 

Cheguei sem cinco liras e quero partir sem cinco liras. Meus queridos padres, meus queridos fiéis, eu seria um bispo muito desafortunado se não os amasse. Mas lhes asseguro que os amo e quero estar a serviço de vocês, por à disposição de todos minhas parcas energias, o pouco que tenho e o pouco que sou.

 

Ele tinha a opção de residir num apartamento luxuoso no centro da cidade ou levar uma vida mais espartana no Castelo de San Martino. Optou pelo castelo.

Para muitos bispos, a vida que levam é relativamente remota. Há um abismo automático entre eles e seu rebanho, aceito pelas duas partes. O bispo é uma figura esquiva, vista apenas em ocasiões especiais. Albino Luciani assumiu uma opinião diferente sobre o seu papel em Vittorio Veneto. Vestia-se como um simples padre e levava o evangelho a seu povo. Com seus padres, praticava uma espécie de democracia que era extremamente rara dentro da Igreja. Seu conselho presbiterial, por exemplo, era eleito na totalidade, sem nomeações do bispo.

Quando esse conselho recomendou o fechamento de um seminário inferior, Luciani, apesar de não concordar com a decisão, foi a todas as paróquias e conversou a respeito com os padres locais. Assim que lhe ficou evidente que a maioria era favorável, autorizou o fechamento. Os alunos foram transferidos desse antigo seminário para escolas do Estado. Mais tarde, declarou publicamente que a opinião da maioria estava certa e a sua era errada.

Nenhum padre jamais precisava marcar uma reunião com seu bispo. Se algum aparecia, era sempre recebido. Alguns consideravam a sua democracia uma fraqueza. Outros viam-no de maneira diferente e comparavam-no com o homem que o fizera bispo.

Era como ter nosso próprio Papa pessoal. Era como se o Papa Roncalli (João XXIII) estivesse aqui, nesta diocese, trabalhando conosco. Havia geralmente dois ou três padres à sua mesa. Era-lhe simplesmente impossível deixar de se dar. Visitava freqüentemente os doentes ou deficientes. Jamais sabiam nos hospitais quando ele ia aparecer. Surgia de repente de bicicleta ou em seu velho cano, deixava o secretário a ler lá fora, enquanto vagueava pelas enfermarias. E logo depois subia a uma das aldeias montanhesas para discutir um problema especifico com o padre local.

Na segunda semana de janeiro de 1959, menos de três semanas depois de ordenar o Bispo Luciani, o Papa João discutia os problemas mundiais com seu pró-Secretário de Estado, Cardeal Domenico Tardini. Conversaram sobre as implicações do que um jovem chamado Fidel Castro estava fazendo ao regime de Batista em Cuba; sobre o fato de a França ter um novo presidente, General Charles de Gaulle; sobre a demonstração russa de tecnologia avançada, enviando um enorme foguete para entrar em órbita em tomo da Lua. Falaram também sobre a rebelião na Argélia, a terrível pobreza em muitos países latino-americanos, a transformação da África, com uma nova nação aparentemente surgindo a cada semana. Parecia a João que a Igreja Católica não estava se mostrando à altura dos problemas de meados do século XX. Era um momento crucial na história, com uma parcela considerável do mundo se virando para as coisas materiais e se afastando das coisas espirituais. Ao contrário de muitos no Vaticano, o Papa considerava que a reforma, como a caridade, devia começar em casa. Subitamente, João teve uma idéia. Diria depois que foi uma inspiração do Espírito Santo. De onde quer que tenha vindo, foi uma excelente idéia: "Um Concílio".

Surgiu assim a idéia do Concilio Ecumênico Vaticano Segundo. O primeiro, em 1870, resultara em dar à Igreja um Papa infalível. Os efeitos do segundo, muitos anos depois de sua conclusão, ainda reverberam pelo mundo.

A 11 de outubro de 1962, 2.381 bispos reuniram-se em Roma para a cerimônia de abertura do Concilio Vaticano Segundo. Albino Luciani estava entre eles. Enquanto as reuniões do Concílio progrediam, Luciani fez amizades que persistiriam pelo resto de sua vida. Suenens, da Bélgica. Wojtyla e Wyszynski, da Polônia. Marty, da França. Thiandoun, de Dakar. Luciani também experimentou, durante o Concílio , a sua estrada para Damasco. Foi a declaração do Concílio da Liberdade Religiosa.

Outros não ficaram tão impressionados com essa nova maneira de encarar um problema antigo. Homens como o Cardeal Alfredo Ottaviani, que controlava a Cúria Romana, estavam determinados a destruir não apenas o conceito de tolerância, implícito em Da Liberdade Religiosa, mas também empreendiam uma encarniçada ação de retaguarda contra qualquer coisa que parecesse com o que Pio X classificara, no inicio do século, de "modernismo". Era a geração que ensinara a Luciani no seminário de Belluno que a "liberdade" religiosa se confinava aos católicos. "O erro não tem direitos." Luciani, por sua vez, também ensinara a seus discípulos essa mesma doutrina estarrecedora. Agora, no Concílio Vaticano Segundo, escutava com crescente dúvida, enquanto um bispo depois de outro contestava o conceito.

Luciani tinha mais de 50 anos quando analisou os argumentos a favor e contra. Sua reação foi típica desse prudente homem das montanhas. Discutiu o problema com outros, meditou bastante, concluiu que o "erro" estava no conceito que lhe fora ensinado.

Foi também típica do homem que posteriormente publicou um artigo explicando como e por que mudara de idéia. Começou com uma recomendação aos leitores:

 

Se depararem com o erro, ao invés de arrancá-lo pelas raízes ou derrubá-lo, vejam se podem desbastá-lo pacientemente, permitindo que a luz brilhe sobre o núcleo de bondade e verdade que geralmente jamais falta, mesmo nas opiniões errôneas.

 

Outros aspectos dos diversos debates causaram-lhe menos dificuldade. Quando os princípios da igreja pobre uma igreja carecendo de poder político, econômico e ideológico foram exaltados, o Concílio estava simplesmente procurando por algo em que Luciani já acreditava.

Antes do início do Concílio, Luciani emitira uma carta pastoral, "Comentários sobre o Concílio", a fim de preparar suas congregações. Agora, com o Concílio ainda em sessão, as mudanças que ele já introduzira na diocese de Vittorio foram aceleradas. Recomendou a seus professores de seminário que lessem os novos ensaios teológicos e descartassem manuais que ainda se viravam ansiosamente para o século XIX. Enviou seus professores a fazerem cursos nas principais universidades teológicas da Europa. Não apenas os professores, mas também os discípulos podiam ser encontrados agora à sua mesa. Escrevia semanalmente para todos os seus padres, partilhando suas idéias e planos.

Em agosto de 1962, poucos meses antes da abertura do Concílio Vaticano Segundo, Luciani se confrontou com um exemplo de erro de uma espécie inteiramente diferente. Dois padres da diocese envolveram-se com um representante de vendas de conversa insidiosa ,que também especulava com imóveis. Cederam à tentação. Depois, um deles procurou Luciani e confessou que o dinheiro que faltava, a maior parte de pequenas poupanças, ultrapassava dois bilhões de liras.

Albino Luciani tinha idéias definidas sobre dinheiro e riqueza, especialmente a riqueza da Igreja. Algumas dessas idéias derivavam de Rosmini, outras diretamente de sua experiência pessoal. Acreditava numa Igreja Católica dos pobres e para os pobres. As ausências compulsórias do pai, a fome e o frio, os sapatos de madeira com pregos extras nas solas para que não gastassem, cortar capim nas encostas da montanha para aumentar a escassa alimentação da família, os longos periodos no seminário sem ver a mãe, que não tinha condições de visitá-lo, tudo isso produziu em Luciani uma profunda compaixão pelos pobres, uma indiferença total à aquisição de riqueza pessoal e uma convicção de que a Igreja, a sua Igreja, não devia apenas ser materialmente pobre, mas também vista assim.

Consciente dos danos do escândalo, procurou pessoalmente o editor do jornal de Veneza, Li Gazzetino. Pediu-lhe que não tratasse o assunto com sensacionalismo. Voltando à diocese, convocou seus 400 padres para uma reunião. A prática normal teria sido alegar imunidade eclesiástica. Com isso, a Igreja não seria obrigada a pagar coisa alguma. Falando calmamente, Luciani disse a seus padres:

 

"É verdade que dois de nós erraram. Acho que a diocese deve pagar. Também acho que a lei deve prosseguir por seu curso normal. Não devemos nos esconder por trás de qualquer imunidade. Há uma lição para todos nós neste escândalo. E a de que devemos ser uma Igreja pobre. Tenciono vender todos os tesouros eclesiásticos. E tenciono também vender um dos nossos prédios. O dinheiro será usado para pagar até a última lira que esses padres devem. Peço a concordância de todos!".

 

Albino Luciani obteve a concordância geral. Sua ética prevaleceu. Alguns dos presentes à reunião admiraram o homem e sua ética. Outros, quase pesarosos, comentaram que achavam Luciani ético demais em tais questões. O especulador imobiliário que envolvera os dois padres estava obviamente entre os que consideravam o bispo "ético demais". Ele cometeu suicídio antes do julgamento. Um dos padres cumpriu uma pena de prisão de um ano e o outro foi absolvido.

Houve muitos entre o sacerdócio que não ficaram satisfeitos com a maneira pela qual Luciani adotou entusiasticamente o espírito do Concílio Vaticano Segundo. Como Luciani, o pensamento deles fora moldado em anos anteriores, mais repressivos. Ao contrário dele, não estavam preparados para reformular esse pensamento. Esse problema haveria de ocupar Luciani constantemente durante o resto do seu tempo em Vittorio Veneto. Com a mesma voracidade com que lera um livro depois de outro na juventude, Luciani agora, nas palavras de Monsenhor Ghizzo, que trabalhou com ele, "absorveu totalmente o Concilio Vaticano Segundo; tinha o Concílio no sangue; conhecia os documentos de cor; mais ainda, aplicava os documentos".

Ele tornou Vittorio Veneto cidade-irmã de Kiremba, no Burundi, anteriormente parte da África Oriental Alemã. Em meados da década de 60, quando visitou Kiremba, ele se defrontou pessoalmente com o Terceiro Mundo. Quase 70 por cento dos três e um quarto milhões de habitantes do pais eram católicos. A fé florescia, mas o mesmo acontecia com a pobreza, doença, um alto índice de mortalidade infantil e a guerra civil. As igrejas estavam cheias, mas as barrigas vazias. Foram realidades assim que inspiraram o Papa João a convocar o Concilio Vaticano Segundo, na tentativa de levar a Igreja ao século XX. Enquanto a velha guarda da Cúria Romana era ofuscada pelo Concilio Segundo, Luciani e outros eram iluminados.

João, literalmente, deu sua vida para que o Concilio que concebera não nascesse morto. Avisado de que se achava gravemente doente, recusou a operação em que os médicos insistiam. Disseram-lhe que tal operação prolongaria sua vida. Ele respondeu que deixar o Concilio Segundo à mercê dos elementos reacionários dentro do Vaticano, durante os primeiros e delicados estágios, implicaria um desastre teológico. Preferia permanecer no Vaticano, ajudando no crescimento da criança que criara. Ao fazer isso, calmamente e com extraordinária coragem, assinou a própria sentença de morte. Quando morreu, a 3 de junho de 1963, a Igreja Católica, através do Concilio Ecumênico Vaticano Segundo, tentava finalmente aceitar o mundo como era, ao invés de como gostaria que fosse.

Com João morto, substituído pelo Papa Paulo VI, a Igreja aproximou-se ainda mais de uma realidade especifica, uma decisão em particular, a mais importante que enfrentaria neste século. Na década de 60, havia uma indagação que se formulava com crescente urgência:

Qual a posição da Igreja em relação ao controle artificial da natalidade? Em 1962, o Papa João instituíra uma Comissão Pontificial sobre a família. O controle da natalidade era uma das principais questões que deveria estudar. O Papa Paulo ampliou essa Comissão, até deixá-la com 68 membros. Criou em seguida diversos cargos de "consultores" para aconselhar e controlar a Comissão. Enquanto centenas de milhões de católicos no mundo inteiro aguardavam, foi se tornando cada vez maior a especulação de que era iminente uma mudança da posição da Igreja na questão. Muitos começaram a usar a pílula ou outras formas anticoncepcionais artificiais. Enquanto os experts em Roma debatiam o significado de Gênesis 38:7-10 e um homem chamado Onã, a vida cotidiana tinha de continuar.

É irônico que a confusão prevalescente no mundo católico em relação à questão fosse espelhada exatamente pelo pensamento do Papa sobre o problema. Ele não sabia o que fazer.

Durante a primeira semana de outubro de 1965, o Papa Paulo concedeu uma entrevista singular ao jornalista italiano Alberto Cavaíla. Discutiram muitos problemas com que se defrontava a Igreja. Cavaílari comentou posteriormente que não levantou a questão do controle artificial da natalidade porque sabia do constrangimento potencial. Seus receios eram infundados. O próprio Paulo abordou o problema. Deve-se lembrar que aquela era uma época em que o Pontificado ainda se apegava às ilusões Reais; os pronomes pessoais não eram o estilo de Paulo. Tomemos o controle da natalidade, por exemplo. O mundo pergunta o que pensamos e nos descobrimos a tentar fornecer uma resposta. Mas que resposta? Não podemos nos manter em silêncio. E, no entanto, falar constitui um problema concreto. A Igreja não teve de lidar com tal problema por séculos. E é um assunto um tanto alheio e mesmo humanamente constrangedor para os homens da Igreja. Por isso, as comissões se reúnem, os relatórios se acumulam, os estudos são divulgados. E eles estudam muito! Mas, então, nós ainda temos de tomar as decisões finais. E, ao decidir, estamos inteiramente sozinhos. Decidir não é tão fácil quanto estudar. Temos de dizer alguma coisa. Mas o quê? Deus terá de nos iluminar.

Enquanto o Papa celibatário esperava pelo esclarecimento de Deus sobre o intercurso sexual, sua Comissão continuava a trabalhar. Enquanto esses 68 homens se empenhavam a fundo na questão, seus esforços eram atentamente observados pela comissão menor de aproximadamente, 20 cardeais e bispos. Para que qualquer recomendação liberal do grupo de 68 alcançasse o Papa, tinha de passar por esse grupo menor, que era chefiado por um homem considerado a epítome do elemento reacionário dentro da Igreja, o Cardeal Ottaviani. Muitos julgavam-no como o líder dessa corrente.

Um momento crucial na história da Comissão ocorreu a 23 de abril de 1966. A esta altura, a Comissão já efetuara um estudo extenuante e exaustivo da questão do controle da natalidade. Os que defendiam sua oposição a uma mudança na posição da Igreja estavam agora reduzidos a quatro sacerdotes, que declaravam estarem irremediavelmente comprometidos a manter a proibição a qualquer forma de controle artificial da natalidade. Pressionados por outros membros da Comissão, os quatro admitiram que não podiam provar a correção de sua posição com base na lei natural. Também não podiam citar as escrituras ou revelação divina que justificasse sua opinião. Argumentavam que vários pronunciamentos papais, ao longo dos anos, condenavam o controle artificial da natalidade. O raciocínio parecia ser "uma vez no erro, sempre no erro".

Em outubro de 1951, Pio XII (1939-58) atenuara a posição um tanto austera sobre o controle da natalidade que herdara de seu antecessor. Durante uma audiência com parteiras italianas, ele concedeu sua aprovação ao uso do método do "ritmo" por todos os católicos que tivessem motivos sérios para desejar evitar a procriação. Tendo em vista a notória falibilidade do que se tornou conhecido como "Roleta do Vaticano", não é de surpreender que Pio XII também determinasse estudos sobre o método do ritmo. Não obstante, Pio arrancara a Igreja de sua posição anterior, que encarava a procriação como o exclusivo propósito do intercurso sexual.

Depois de Pio XII, veio não apenas um novo Papa, mas também a invenção da pílula de progesterona. A infalibilidade fora reivindicada para determinadas opiniões papais, mas ninguém jamais proclamara a clarividência papal. Uma nova situação exigia uma nova visão do problema, mas os quatro sacerdotes dissidentes na Comissão insistiram que a nova situação estava coberta pelas antigas respostas.

A Comissão finalmente apresentou seu relatório. Na essência, comunicava ao Papa que fora alcançado um consenso por uma maioria esmagadora (64 votos contra 4) de teólogos, peritos legais, historiadores, sociólogos, clínicos obstetras e cônjuges: uma mudança na posição da Igreja Católica sobre o controle da natalidade não só era possível, mas também aconselhável.

Esse relatório foi submetido em meados de 1966 à comissão de cardeais e bispos que supervisionava a Comissão Pontifical. Eles reagiram com alguma perplexidade. Obrigados a registrar suas próprias opiniões no relatório, seis prelados se abstiveram, oito votaram a favor de recomendá-lo ao Papa e seis foram contra.

Em determinados setores da Cúria Romana, o corpo administrativo central de servidores civis que controla e domina a Igreja Católica, houve as reações mais diversas. Alguns aplaudiram a recomendação para a mudança, outros encaravam-na como parte da iniqüidade perniciosa gerada pelo Concilio Vaticano Segundo. Nesta última categoria estava o Cardeal Ottaviani, Secretário da Suprema Congregação Sagrada da Cúria Romana. O lema de seu brasão era Semper Idem (Sempre o Mesmo).

Em 1966, Alfredo Ottaviani era a pessoa mais poderosa em toda a Igreja Católica, depois do Papa. Um ex-discípulo do Seminário Romano, passara toda a sua carreira na Secretaria de Estado e na Cúria, sem jamais ter ocupado outro cargo fora de Roma.

Travara uma batalha encarniçada e muitas vezes vitoriosa contra os efeitos liberalizantes do Concílio Vaticano Segundo. A testa permanentemente franzida, o crânio curvado para trás dramaticamente, como se evitando constantemente uma questão direta, a linha do pescoço oculta pelas bochechas flácidas, havia nele uma imobilidade de esfinge. Era um homem não apenas nascido velho, mas nascido fora do seu tempo. Representava aquele setor da Cúria que tem a coragem de seus preconceitos.

Considerava-se o defensor de uma fé que não admitia o aqui e agora. Para Ottaviani, a outra vida era alcançada pela adoção de valores que já eram velhos nos tempos medievais. Não se deixaria demover na questão do controle da natalidade; mais importante ainda, estava determinado a evitar que o Papa Paulo VI se deixasse influenciar pelos novos argumentos.

Ottaviani entrou em contato com os quatro sacerdotes dissidentes da Comissão Pontifical. As opiniões deles já haviam sido plenamente incorporadas no relatório da Comissão. Ele persuadiu-os a ampliarem suas conclusões divergentes num relatório especial. Assim, foi criado um segundo documento, pelo jesuíta Marcellino Zalba, o redentorista Jan Visser, o franciscano Emengildo Lio e o jesuíta americano John Ford.

Não importava que, ao agirem assim, eles se comportavam de uma maneira antiética. O objetivo era proporcionar a Ottaviani uma arma para pressionar o Papa. Esses quatro homens têm uma enorme responsabilidade no que se seguiria. A morte, miséria e sofrimento que resultaram da decisão papal final podem em grandes partes lhes ser diretamente atribuídos. Uma indicação dos processos de pensamento desses quatro homens pode ser avaliada pelo comportamento de um deles, o jesuíta americano John Ford. Ele julgava estar em contato direto com o Espírito Santo em relação à questão e que fora a orientação divina que o levara à suprema verdade. Se a opinião da maioria prevalecesse, Ford declarou que teria de deixar a Igreja Católica. Esse relatório da minoria representa a epítome da arrogância. Foi apresentado ao Papa Paulo juntamente com o relatório oficial da Comissão. O que se seguiu foi um exemplo clássico da capacidade de uma minoria da Cúria Romana para controlar situações e manipular os acontecimentos. Quando os dois relatórios foram submetidos a Paulo, a maioria dos 68 membros da Comissão já se dispersara pelos quatro cantos do mundo.

Convencidos de que esse problema difícil fora finalmente resolvido com a conclusão liberalizante, os membros da Comissão aguardavam em seus diversos países pelo anúncio papal aprovando o controle artificial da natalidade. Alguns começaram a preparar um documento que poderia servir como introdução ou prefácio à iminente decisão papal, com todas as justificativas para a mudança na posição da Igreja.

Pelo ano de 1967 e se prolongando pelo início de 1968, Ottaviani aproveitou ao máximo a ausência de Roma da maioria da Comissão. Os que ainda se encontravam na cidade sempre tomavam o cuidado de não exercer uma pressão adicional sobre Paulo. Ao agirem assim, se colocaram diretamente nas mãos de Ottaviani. Ele tratou de agrupar os membros da velha guarda que partilhavam suas opiniões. Os cardeais Cicognani, Browne, Parente e Samore encontravam-se quase que diariamente com o Papa. Invariavelmente lhe diziam que aprovar o controle artificial da natalidade seria uma traição à herança da Igreja. Falavam dos Cânones da Igreja e da observância dos três preceitos exigida a todos os católicos desejosos de contraírem matrimônio. Sem esses três preceitos essenciais o casamento perdia sua validade aos olhos da Igreja: ereção, ejaculação e concepção. Objetavam que legalizar a contracepção por via oral seria destruir esta lei particular da Igreja. Muitos compararam o Papa Paulo com um Hamlet atormentado por dúvidas. Todo Hamlet tem necessidade de um Castelo de Elsinore em que meditar. O Papa acabou decidindo que ele e somente ele tomaria a decisão final. Chamou o Monsenhor Agostino Casaroli e comunicou-lhe que o problema do controle da natalidade seria retirado da competência da Cúria Romana. Depois, retirou-se para Castel Gandolfo a fim de trabalhar na encíclica.

Na mesa do Papa, em Castel Gandolfo, entre os vários relatórios, recomendações e estudos sobre a questão do controle artificial da natalidade, estava um documento de Albino Luciani.

Ao mesmo tempo em que as comissões, consultores e cardeais da Cúria dissecavam o problema, o Papa também pedira as opiniões de várias regiões da Itália. Uma dessas era a diocese de Veneto. O Patriarca de Veneza, Cardeal Urbani, convocara uma reunião de todos os bispos da região. Depois de um dia de debates, fora decidido que Luciani elaboraria o relatório.

A decisão de entregar a tarefa a Luciani foi decorrente em grande parte do seu conhecimento do assunto. Era um problema que ele vinha estudando há anos. Conversara muito e escrevera a respeito, consultara médicos, sociólogos e teólogos e, especialmente, representantes do grupo que possuía uma experiência prática pessoal do problema, os casais casados.

Entre as pessoas casadas estava o seu próprio irmão, Edoardo, lutando para ganhar o suficiente para manter uma família sempre crescendo e que acabou chegando aos 10 filhos. Luciani conhecia diretamente os problemas causados pela manutenção da proibição ao controle artificial da natalidade. Crescera em meio à pobreza. Agora, ao final da década de 60, parecia-lhe haver tanta pobreza e privação quanto nos dias perdidos de sua juventude. Quando aqueles a quem se ama estão em desespero, por causa de sua incapacidade de prover um número cada vez maior de filhos, tende-se a encarar o problema do controle da natalidade sob uma luz diferente da dos jesuítas que mantêm contato direto com o Espírito Santo.

Os homens do Vaticano podiam citar o Gênesis até o dia do Juízo Final, mas isso não poria pão na mesa dos pobres. Para Albino Luciani, o Concílio Vaticano Segundo visava a relacionar o Evangelho e a Igreja com o século XX; negar a homens e mulheres o direito ao controle artificial da natalidade era mergulhar a Igreja de volta na Idade Média. Ele disse isso muitas vezes, discretamente, em particular, enquanto preparava seu relatório, Publicamente, estava amplamente consciente de sua obediência ao Papa. Nisso, Luciani permanecia um excelente exemplo de seu tempo. Quando o Papa decidia uma coisa, os fiéis concordavam. Mesmo em seus pronunciamentos públicos, no entanto, há indicações claras do seu pensamento sobre a questão do controle da natalidade.

Em abril de 1968, depois de muitas consultas adicionais, o relatório de Luciani fora escrito e apresentado. Recebera a aprovação dos bispos da região de Veneto e do Cardeal Urbani, que o assinara e enviara diretamente ao Papa Paulo. Posteriormente, Urbani viu o documento na mesa do Papa, em Castel Gandolfo. Paulo disse a Urbani que gostara muito do relatório. Louvou-o tanto que Urbani voltou a Veneza através de Vittorio Veneto, a fim de transmitir pessoalmente a Luciani a satisfação papal pelo relatório.

O ponto principal do relatório era a recomendação ao Papa de que a Igreja Católica deveria aprovar o uso da pílula anovulante, desenvolvida pelo Professor Pincus. Essa deveria se tornar a pílula católica do controle da natalidade.

A 13 de abril, Luciani falou à congregação de Vittorio Veneto sobre os problemas que a questão estava causando. Com a delicadeza que a esta altura se tornara uma de suas características, ele chamou o assunto de “ética conjugal”. Depois de comentar que os sacerdotes, ao falarem e ouvirem confissões, “deveriam se ater às diretivas emitidas em diversas ocasiões pelo Papa, até um novo pronunciamento”, Luciani acrescentou três observações:

 

  1. E mais fácil hoje, em decorrência da confusão causada pela imprensa, encontrar pessoas casadas que não acreditam estarem pecando. Se isso acontecer, talvez seja oportuno, em condições normais, não perturbá-las.
  2. Em relação ao onanista penitente, que mostra estar arrependido e desencorajado, é oportuno usar uma bondade animadora, dentro dos limites da prudência pastoral.
  3. Vamos todos rezar para que o Senhor possa ajudar o Papa a resolver essa questão. Talvez nunca tenha havido uma questão tão difícil para a Igreja, não só pelas dificuldades intrínsecas, mas também pelas numerosas implicações afetando outros problemas e pela maneira intensa como é sentida pela vasta maioria das pessoas.

 

A Humanae Vitae foi publicada a 25 de julho de 1968. O Papa Paulo determinou que Monsenhor Lambruschini, da Universidade Lateranense, explicasse seu significado à imprensa, um exercício por si só um tanto supérfluo. Mais importante, no entanto, foi o fato de ser ressaltado que não se tratava de um documento infalível. Para milhões de católicos, tornou-se um momento histórico, como o assassinato do Presidente John F. Kennedy. Anos depois, eles sabiam exatamente o que faziam e onde se encontravam quando receberam a notícia.

Numa escala de desastres para a Igreja Católica, situa-se acima do tratamento aplicado a Galileu no século XVII ou a declaração da infalibilidade papal no século XIX. Esse documento, que visava a reforçar a autoridade papal, teve justamente o efeito oposto.

Esse homem celibatário, então com 71 anos, expandira a comissão que o aconselhava sobre o problema do controle da natalidade, mas depois ignorara as suas recomendações. Declarou que os únicos métodos de controle da natalidade que a Igreja considerava aceitáveis eram a abstinência ou o do ritmo, “... não podendo haver nas relações conjugais qualquer outra repressão à capacidade natural de procriar a vida humana”.

Milhões de pessoas ignoraram o Papa e continuaram a praticar sua fé e usar a pílula ou qualquer outro método que julgassem mais conveniente. Milhões perderam a paciência e a fé. Outros procuraram por um padre diferente para confessar seus pecados. Houve também quem tentou seguir a encíclica e descobriu que evitara um conceito católico de pecado apenas para experimentar outro: o divórcio. A encíclica dividiu totalmente a Igreja.

Não posso acreditar que a salvação dependa da anticoncepção pela temperatura e que a danação seja decorrência de um pedaço de borracha declarou o Dr. Andre Hellegers, obstetra e membro da ignorada Comissão Pontifical.

Uma defesa surpreendente do Vaticano partiu do Cardeal Felict: O possível erro do superior (o Papa) não autoriza a desobediência dos súditos.

Albino Luciani leu a encíclica com crescente consternação. Sabia que a Igreja seria engolfada por um turbilhão. Foi à sua igreja em Vittorio Veneto e rezou. Não tinha a menor dúvida de que devia obedecer à decisão papal; por mais profunda que fosse a sua lealdade ao Papa, no entanto, não podia e não iria tecer louvores à Humanae Vitae, Sabia um pouco do que o documento devia ter custado ao Papa; sabia muito do que iria custar aos fiéis que seriam obrigados a tentar aplicá-lo em suas vidas cotidianas. Horas depois de ler a encíclica, Luciani já escrevera sua resposta à diocese de Vittorio Veneto. Dez anos depois, quando ele se tomou Papa, o Vaticano diria que a manifestação de Luciani foi na base de “Roma falou, o caso está encenado”. Foi mais uma mentira do Vaticano. Nada desse sentimento transparece nas palavras de Luciani. Ele começou por lembrar à diocese os seus comentários em abril e depois acrescentou:

"Confesso que, embora não o revelasse no que escrevi, esperava particularmente que as graves dificuldades existentes pudessem ser superadas e a resposta do Mestre, que fala com especial carisma e em nome do Senhor, pudesse coincidir, pelo menos em parte, com as esperanças de muitos casais, depois da criação de uma relevante Comissão Pontifical para examinar a questão.

Ele reconheceu o muito cuidado e consideração que o Papa concedera ao problema e disse que o Papa sabia que “está prestes a causar amargura em muitos”, mas “a antiga doutrina, apresentada em uma nova estrutura de idéias animadoras e positivas sobre o casamento e o amor conjugal, garante melhor o verdadeiro bem do homem e da família”. Luciani analisou alguns dos problemas que inevitavelmente decorreriam da Humanae Vitae:

"Os pensamentos do Papa e os meus se concentram especialmente nas ocasionais graves dificuldades dos casais. Que não percam o ânimo, pelo amor a Deus. Que se lembrem que, para todos, a porta é estreita e estreito é o caminho que leva à vida (Mateus 7:14). Que a esperança da vida futura possa iluminar os caminhos dos casais cristãos. Que Deus não deixe de ajudar aos que lhe rezam com perseverança. Façam o esforço de viver com sabedoria, justiça e devoção no momento atual, sabendo que as coisas neste mundo passam (Coríntios 7:31) “...E se o pecado ainda os dominar, que não se deixem abater, mas recorram com humilde perseverança à misericórdia de Deus, através do sacramento da Penitência”.

Essa última citação da Humanae Vitae fora uma das poucas migalhas de conforto para homens como Luciani, que esperavam por uma mudança. Confiando que tinha o apoio de seu rebanho, numa "adesão aos ensinamentos do Papa”, Luciani concedeu-lhes a sua bênção.

Outros sacerdotes, em outros países, assumiram uma posição mais abertamente hostil. Muitos deixaram o sacerdócio. Luciani seguiu por um curso mais sutil.

Em janeiro de 1969, ele voltou a esse assunto, no qual deveria ser absolutamente dogmático, nos termos impostos pelo Vaticano. Sabia que alguns de seus padres estavam negando absolvição a casais que usavam a pílula anticoncepcional, enquanto outros prontamente absolviam o que o Papa Paulo julgara um pecado. Lidando com esse problema, Luciani citou a resposta da Conferência dos Bispos Italianos à Humanæ Vitae. Era uma resposta que ele ajudara a elaborar. Os padres eram recomendados a demonstrar “bondade evangélica” com todas as pessoas casadas, mas especialmente, como Luciani ressaltou, com todos aqueles “cujas falhas derivam.., das dificuldades às vezes muito sérias em que se encontram. Nesse caso, o comportamento dos cônjuges, embora não esteja em conformidade com as normas cristãs, certamente não pode ser julgado com a mesma gravidade que haveria se decorresse de motivos corrompidos por egoísmo e hedonismo”. Luciani também advertiu o seu rebanho a não sentir “um complexo de culpa angustiado e perturbador”.

Durante todo esse período, o Vaticano continuou a se beneficiar dos lucros de uma das muitas companhias que possuía, o Instituto Farmacológico Sereno. E um dos produtos mais vendidos do Sereno era justamente um anticoncepcional oral chamado Luteolas.

A lealdade demonstrada por Albino Luciani em Vittorio Veneto não passou despercebida ao Santo Padre em Roma. Melhor do que a maioria, o Papa sabia que tal lealdade custara uma alto preço. O documento em sua mesa tinha a assinatura do Cardeal Urbani, mas era na essência a posição de Luciani em relação ao controle de natalidade, constituía um testemunho mudo do custo pessoal.

Profundamente impressionado, o Papa Paulo Vi comentou para seu Subsecretário de Estado, Giovanni Benelli:

Há em Vittorio Veneto um pequeno bispo que me parece muito convemente. O astuto Benelli tratou então de estabelecer amizade com Luciani Haveria de se tomar uma amizade de profundas conseqúências.

O Cardeal Urbani, Patriarca de Veneza, morreu a 17 de setembro de 1969. O Papa lembrou-se de seu pequeno bispo. Para sua surprêsa, Luciani recusou polidamente o que muitos consideravam uma promoção espetacular. Desprovido de emoção, ele sentia-se feliz e contente com seu trabalho em Vittorio Veneto.

O Papa Paulo lançou suas vistas para mais longe. O Cardeal Antonio Samore, tão reacionário quanto seu mentor Ottaviani, tornou-se um forte candidato. Mas murmúrios de descontentamento de membros da laicidade veneziana, declarando que ficariam mais felizes se Samore permanecesse em Roma, chegaram aos ouvidos do Papa.

O Papa Paulo fez mais uma demonstração da dança papal que inventara depois de subir ao trono de Pedro: um passo para a frente, um passo para trás. Luciani. Samore. Luciani.

Luciani começou a sentir a pressão de Roma. E acabou sucumbindo. Foi uma decisão de que se arrependeu horas depois. Sem saber que o seu novo Patriarca resistira ao máximo à aceitação do posto, Veneza comemorou o fato de que um “homem local”, Albino Luciani, fosse designado, o que ocorreu a 15 de dezembro de 1969.

Antes de deixar Vittorio Veneto, Luciani foi presenteado com uma doação de um milhão de liras. Recusou gentilmente. Sugeriu às pessoas que transferissem a doação para suas próprias caridades pessoais, lembrando o que dissera a seus padres quando chegara à diocese, 11 anos antes:

Cheguei sem cinco liras, quero partir sem cinco liras.

Albino Luciani levou para Veneza algumas roupas, uns poucos móveis e seus livros.

A 8 de fevereiro de 1970, o novo Patriarca, agora Arcebispo Lucíam, chegou a Veneza. A tradição exigia que a chegada de um novo Patriarca fosse um esplêndido pretexto para um desfile de gôndolas alegremente enfeitadas, bandas de metais, cortejos e discursos incontáveis. Luciani sempre tivera uma aversão intensa a tal pompa e cerimônia. Cancelou a recepção ritual e limitou-se a um discurso, em que se referiu não apenas aos aspectos históricos da cidade, mas também reconheceu que a diocese continha áreas industriais, como Mestre e Marghera.

Esta é outra Veneza, com poucos monumentos, mas muitas fábricas, casas, problemas espirituais, almas. E para esta cidade de tantas facetas que a Providência agora me envia. Senhor Prefeito, as primeiras moedas venezianas, cunhadas no ano 850, tinham o lema ‘Cristo, salve Veneza”. Assumo esse lema, com todo o meu coração e transformo-o numa prece: “Cristo, abençoe Veneza.”

A cidade pagã precisava desesperadamente da bênção de Cristo. Estava repleta de monumentos e igrejas, proclamando as glórias antigas de uma república imperial. Mas Albino Luciani não demorou a descobrir que a maioria das igrejas, nas 127 paróquias, estava continuamente quase vazia. Descontando-se os turistas, os muito jovens e os muito velhos, então o comparecimento às igrejas era assustadoramente reduzido. Veneza é uma cidade que vendeu sua alma ao turismo.

No dia seguinte à sua chegada, acompanhado por seu novo secretário, Padre Mario Senigaglia, Luciani já estava trabalhando. Recusando convites para inúmeros jantares, coquetéis e recepções, visitou em vez disso o seminário local, a prisão de mulheres de Giudecca, a prisão masculina de Santa Niaria Maggiore, depois celebrou a missa na Igreja de São Simeão.

Era costume o Patriarca de Veneza ter o seu próprio barco. Luciani não dispunha da riqueza pessoal nem tinha a propensão para o que lhe parecia uma extravagância desnecessária. Quando queria se deslocar pelos canais, ele e o Padre Mario pegavam um ônibus aquático. Se fosse um compromisso urgente, Luciani telefonava para o corpo de bombeiros, os carabineiros ou a polícia, pedindo o empréstimo de um barco. As três organizações acabaram instituindo um sistema de revezamento para atender ao insólito sacerdote.

Durante uma crise nacional do petróleo, o Patriarca passou a andar de bicicleta quando visitava o território continental. A alta sociedade veneziana sacudia a cabeça em consternação e murmurava palavras de desaprovação. Muitos admiravam a pompa e cerimônia que associavam ao Patriarcado. Para eles, um Patriarca era uma pessoa importante e devia ser tratado com toda a importância. Quando Albino Luciani e o Padre Mario apareciam inesperadamente num hospital para visitar os doentes, eram imediatamente cercados por administradores médicos, monges e freiras, O Padre Mario reconstituiu para mim uma dessas ocasiões:

Não quero tomar o seu precioso tempo. Posso andar por aí sozinho.

Não é incômodo nenhum, Eminência. E uma honra para nós.

Iniciava-se assim uma enorme procissão, que começava a desfilar pelas enfermarias, deixando Luciani cada vez mais contrafeito. Ele acabava dizendo:

Talvez fosse melhor eu voltar em outra ocasião, Já é tarde.

Ele efetuava diversas saídas falsas, numa tentativa de se livrar do cortejo. Mas era em vão.

Não se preocupe, Eminência. É nosso dever.

Lá fora, ele comentava para o Padre Mario Senigaglia:

Mas eles são sempre assim? É uma pena. Estou acostumado a algo diferente. Teremos de fazê-los compreender ou perderei um bom hábito.

Gradativamente, as pessoas acabaram compreendendo em parte. Mas nunca foi como em Vittorio Veneto.

Seu comportamento novo não se limitava à técnica de visitar os doentes. Diversos monsenhores e padres, que não agiam de acordo com a opinião de Luciani de que “os verdadeiros tesouros da Igreja são os pobres e os fracos, que não devem ser ajudados com a caridade ocasional, mas sim de uma maneira que possa realmente beneficiá-los”, foram afastados para paróquias remotas.

Um desses padres, que possuía diversas propriedades, recebeu de Luciani uma lição pessoal sobre justiça social que o deixou confuso. O padre aumentou o aluguel de uma de suas casas e descobriu que o inquilino, um professor desempregado, não tinha condições de pagar a diferença. E prontamente iniciou uma ação de despejo. Tomando conhecimento do incidente por intermédio de seu secretário, Luciani protestou em vão contra o padre, que ignorou aquele Patriarca excêntrico que lhe citava Cristo: “Meu reino não é deste mundo”. Prosseguiu com a ação de despejo contra o professor e sua família. Luciani prontamente fez um cheque de três milhões de liras, permitindo que a família se instalasse numa pensão, até encontrar uma residência permanente. Hoje, esse professor tem uma fotocópia do cheque emoldurada e pendurada em sua sala de estar.

Em outra ocasião, Senigaglia interrompeu, inadvertidamente, uma visita que Luciani fazia a um padre doente. Descobrira Luciani a esvaziar sua carteira na cama do padre. Depois, o secretário censurou gentilmente o Patriarca:

Não pode fazer isso.

A resposta de Albino Luciani resume muito do homem:

Mas era tudo o que eu tinha no momento.

Senigaglia explicou que a Cúria dispunha de um fundo especial, a fim de que o Patriarca pudesse ajudar seus padres, discretamente. Acrescentou que era assim que o Patriarca anterior realizava esses atos de caridade. Luciani pediu ao secretário que providenciasse o mesmo arranjo com a Cúria.

Descobriu que, como Patriarca, adquirira mesmo sem querer uma casa em San Pietro de Fileto. Tentou entregá-la ao desafortunado professor, mas o Vaticano não permitiu. Depois de uma batalha com a Cúria, Luciani finalmente obteve permissão para cedê-la ao Bispo Muchin, que se aposentara.

Pouco depois que ele se tomou Patriarca, seu gabinete estava sempre transbordando com os pobres. Dizia ele:

A porta do Patriarca está sempre aberta. Peçam para falar com Dom Mano e sempre me encontrarão disposto a fazer tudo o que puder para ajudar.

As multidões suadas, com os cheiros fortes dos pobres, murmuravam seus agradecimentos. Dom Mario protestou:

Excelência, está me arruinando. Eles não me deixarão em paz.

Luciani sorriu e respondeu:

Alguém nos ajudará.

Assim, o gabinete do Patriarca estava freqüentemente repleto de ex-prisioneiros, alcoólatras, pobres, abandonados, vagabundos, mulheres que não podiam mais trabalhar como prostitutas. Um desses infelizes ainda usa o pijama que Luciani lhe deu e escreve cartas de agradecimento a um homem que não pode mais lê-las.

Durante o seu primeiro ano na cidade, demonstrou toda a sua preocupação pelos que viviam no que descrevera, logo em seu primeiro dia, como “a outra Veneza”. Quando greves e manifestações violentas irromperam em Mestre e Marghera, Luciani exortou operários e patrões a procurarem uma posição intermediária. Em 1971, quando 270 operários foram demitidos da fábrica La Sava, ele lembrou aos patrões da necessidade suprema de preservar a dignidade humana pessoal. Determinados setores da sociedade católica tradicional de Veneza começaram a expressar seu desejo por um Patriarca que se contentasse com sermões para turistas que nada entendiam de suas palavras. O Papa Paulo VI, no entanto, estava visivelmente deliciado com Luciani. Em 1971, indicou-o para participar do Sínodo Mundial dos Bispos. Entre os itens da agenda figuravam o ministério sacerdotal e a justiça no mundo. Uma sugestão de Luciani, no Sínodo, indicava o rumo de coisas futuras:

Sugiro, como um exemplo de ajuda concreta aos países pobres, que as igrejas mais afortunadas cobrem uma taxa de si mesmas e paguem um por cento de sua receita às organizações de ajuda do Vaticano. Esse um por cento sena chamado de “partilha dos irmãos” e não seria dado como caridade, mas sim como algo que é devido, a fim de compensar as injustiças cometidas por nosso mundo consumidor contra o mundo em desenvolvimento e também, de certa forma, o pecado social, do qual todos devemos estar conscientes.

Uma das injustiças que Luciani trabalhava continuamente para eliminar, em Veneza, envolvia a atitude prevalecente contra os subnormais e deficientes. Não apenas o prefeito e demais autoridades municipais demonstravam indiferença, mas Luciani encontrou o mesmo preconceito entre alguns de seus padres paroquianos. Quando se preparava para conceder a primeira comunhão a um grupo grande de deficientes, em São Pio X, em Marghera, recebeu uma dele a ão de padres que protestavam e diziam que não deveria fazer tal coisa, alegando:

Essas criaturas não compreendem. Luciani determinou ao grupo, como uma ordem pessoal, que comparecesse à primeira comunhão. Depois da missa, ele chamou. uma menina deficiente. A congregação se manteve em silêncio total.

- Você sabe quem recebeu hoje? perguntou Luciani.

- Sei, sim. Jesus.

- E está satisfeita?

- Muito.

Luciani virou-se lentamente, fitando o grupo de padres que protestara, e murmurou:

- Como podem ver, são melhores do que nós, os adultos.

Por causa da relutância do conselho municipal em contribuir para o Centro de Obras Especiais, Luciani foi obrigado inicialmente a contar apenas com os fundos diocesanos e o banco conhecido como banco dos padres", Banca Cattolica dei Veneto. Vários meses depois de se tornar cardeal, descobriu que não era mais o banco dos padres. Juntando-se à multidão habitual em seu gabinete em busca de ajuda, passou a encontrar bispos, monsenhores e padres. No passado, o banco sempre emprestara dinheiro aos padres a juros baixos. Era um banco fundado pela diocese e que antes contribuía para o trabalho vital por aquele setor da sociedade que Luciani descreveu com as seguintes palavras:

- Eles não têm peso político. Não se pode contar com seus votos. Por tais motivos, devemos todos demonstrar nosso senso de honra como homens e cristãos em relação a esses deficientes.

Os empréstimos a juros baixos foram suspensos em meados de 1972. O clero veneziano foi informado de que, no futuro, teria de pagar os juros normais em todas as transações bancárias, por mais louvável que fosse a obra. Os padres queixaram-se a seus bispos. Os bispos fizeram indagações discretas.

Desde 1946 o Istituto per le Opere di Religione, o TOR, conhecido por Banco do Vaticano, possuía a maioria das ações no Banca Cattolica dei Veneto. As várias dioceses na região de Veneto também possuíam uma pequena parte no capital do banco, equivalente a menos de cinco por cento das ações.

No mundo normal dos negócios, os acionistas minoritários eram vulneráveis; mas este não era o mundo normal dos negócios. Existia um claro entendimento entre Veneza e o Vaticano de que as ações do IOR (em 1972 eram de 51 por cento) constituíam uma garantia contra qualquer possibilidade de controle por terceiros. A despeito das baixas taxas de juros cobradas ao clero veneziano, o banco era um dos mais ricos do mundo. Onde quer que os padres depositassem seu dinheiro, seriam seguidos pelos paroquianos. (Uma parcela significativa da riqueza do banco vinha de bens imobiliários no norte da Itália.) Esse arranjo satisfatório foi então abruptamente interrompido. O banco que os bispos julgavam possuir, pelo menos moralmente, fora aparentemente vendido sem o conhecimento do Patriarca ou de qualquer pessoa da região de Veneto. O homem responsável pela venda foi o Presidente do Banco do Vaticano, Paul Marcinkus. O homem que o comprara, chamava-se Roberto Calvi, do Banco Ambrosiano, de Milão.

Os bispos da região foram em massa ao gabinete do Patriarca na Praça de São Marcos. Luciani escutou em silêncio enquanto eles relatavam o que acontecera. Contaram-lhe que, no passado, quando desejaram levantar mais capital, recorreram ao Banco do Vaticano que emprestou o dinheiro, ficando com a parte deles no Banca Cattolica como garantia pelo empréstimo. E agora essas ações, assim como uma grande parte adquirida independentemente pelo Banco do Vaticano, foram vendidas com vultoso lucro ao banqueiro Roberto Calvi.

Os bispos estavam furiosos. Ressaltaram a Luciani que, se lhes fosse dada a oportunidade, quase que certamente poderiam levantar o dinheiro necessário para pagar ao Banco do Vaticano e assim recuperar as ações oferecidas em garantia. O mais pertinente em sua opinião era o aparente abuso de confiança perpetrado por Marcinkus, agindo em nome do Vaticano que pregava ser a liderança moral do mundo; tinha, acima de tudo, demonstrado uma total falta de moral. Mas o fato de ter ficado com todo o lucro da transação para o Banco do Vaticano também pode ter contribuído muito para aumentar a furia dos bispos.

Os bispos exortaram Luciani a ir a Roma. Queriam a direta intervenção papal. Se essa intervenção assumisse a forma da demissão de Marcinkus, era evidente que não seriam derramadas muitas lágrimas. Luciani considerou o problema. Sempre um homem prudente, Luciani disse que precisava de mais fatos, antes de apresentar o problema ao Papa.

Luciani começou a fazer sondagens discretas. Descobriu muitas coisas a respeito de Roberto Calvi e também de um homem chamado Michele Sindona. Os fatos o deixaram estarrecido, alertando-o para não reclamar diretamente com o Papa. Baseado nas informações que obtivera, estava claro que Calvi e Sindona eram filhos da Igreja altamente favorecidos e tidos em alta estima por Paulo VI. Albino Luciani recorreu a um homem de quem se tomara amigo íntimo ao longo dos últimos cinco anos, o Subsecretário de Estado, Monsenhor Giovanni Benelli.

Embora Benelli fosse o segundo na Secretaria de Estado, sob o Cardeal Villot, para todos os efeitos e propósitos ele dirigia o departamento. E como homem de confiança do Papa Paulo, Benelli não só conhecia todos os segredos, mas também era responsável pelo sepultamento de muitos.

Benelli escutou com interesse, enquanto o Patriarca de Veneza relatava a história. Luciani concluiu com uma ressalva:

- Mas não vi qualquer prova documental.

- Pois eu tenho certeza - disse Benelli. - Calvi é agora o acionista majoritário do Banca Cattolica del Veneto. Marcinkus vendeu-lhe 37 por cento das ações a 30 de março.

Benelli gostava de enunciar fatos e cifras precisas. Contou ao aturdido Luciani que Calvi pagara 27 bilhões de liras (aproximadamente 45 milhões de dólares) a Marcinkus; foi uma operação tramada por Calvi, Marcinkus e Sindona. Calvi adquiriu de Sindona uma companhia chamada Pachetti após seu preço ser excessiva e criminosamente aumentado na Bolsa de Valores de Milão. Marcinkus ajudou Calvi a encobrir a verdadeira natureza da operação dos funcionários do Banco da Itália colocando os recursos do Banco do Vaticano à disposição de Calvi e Marcinkus.

Luciani estava completamente aturdido.

- Mas o que significa tudo isso?

- Evasão fiscal, movimentação ilegal de ações. Creio também que Marcinkus vendeu as ações do seu banco de Veneza a um preço deliberadamente baixo e Calvi pagou o saldo com a transação de 31 bilhões de liras do Credito Varesino. Creio que a quantia real que Marcinkus recebeu se situa perto dos 47 milhões de dólares.

Luciani não podia mais conter a sua fúria.

- Mas o que tudo isso tem a ver com a Igreja dos pobres? Em nome de Deus...

Benelli levantou a mão para silenciá-lo.

- Não, Albino.., em nome do lucro.

- O Santo Padre tem conhecimento dessas coisas?

Benelli assentiu.

- E então?

- Então você deve lembrar quem pôs Paul Marcinkus no comando do nosso banco.

- O Santo Padre.

- Exatamente. E devo confessar que o aprovei plenamente. Uma coisa de que já tive a oportunidade de me arrepender muitas vezes.

- Mas o que vamos fazer agora? O que posso dizer a meus padres e bispos?

- Deve dizer-lhes para serem pacientes. Para esperar. Marcinkus acabará exorbitando. Seu calcanhar-de-aquiles é sua ânsia pelo louvor papal.

- Mas o que ele quer fazer com todo esse dinheiro?

- Quer ganhar mais dinheiro.

- Para quê?

- Para ganhar mais dinheiro.

- E enquanto isso meus padres devem sair esmolando por todo o Veneto?

- Enquanto isso, você deve aconselhar paciência. Sei que a possui. Ensine-a a seus padres. Eu próprio tenho de aplicá-la.

Albino Luciani voltou a Veneza e convocou os bispos para uma reunião em seu gabinete. Relatou o que acontecera em Roma e que deixava bem claro que o Banca Cattolica del Veneto fora perdido pela diocese para sempre. Depois, alguns conversaram a respeito. Concluíram que isso jamais teria ocorrido nos tempos do Cardeal Urbani.

Achavam que a bondade inata de Luciani demonstrara ser uma arma inútil contra o JOR. A maioria deles, inclusive Luciani, vendeu as ações restantes que ainda possuíam no banco, a fim de manifestar sua desaprovação ao comportamento do Vaticano. Em Milão, Roberto Calvi ficou satisfeito ao saber que seus corretores haviam adquirido, por sua conta, outra pequena parcela das ações do banco dos podres de Veneza.

Albino Luciani e muitos outros em Veneza encerraram suas contas no Banca Cattolica. Foi uma providência extraordinária para o Patriarca de Veneza transferir as contas diocesanas oficiais para o pequeno Banco San Marco. Ele confidenciou a um colega:

- Depois do que descobri sobre Roberto Calvi, não poderia permitir que as contas continuassem em seu banco, mesmo que concedessem empréstimos totalmente sem juros à diocese. O dinheiro de Calvi está contaminado. O próprio homem está contaminado,

Luciani tentou obrigar os diretores do Banca Cattolica a mudarem o nome da instituição. Ele insistiu que a presença do nome Católico no título era um ultraje e uma calúnia a todos os católicos.

Em Roma, o Papa Paulo VI tomou conhecimento do novo fardo impingido à região de Veneto, pela venda do Banca Cattolica. Giovanni Benelli insistiu com o Santo Padre para intervir, mas a venda do banco para Calvi já era um fato consumado. Quando Benelli sugeriu a remoção de Marcinkus, o Papa respondeu com um dar de ombros; mas o fato de Luciani não manifestar uma franca rebelião deixou urna profunda impressão no Papa. Em qualquer ocasião proclamaria a bondade do homem que indicara para Patriarca de Veneza. Numa audiência com o padre veneziano Mario Ferrarese declarou três vezes:

- Diga aos Padres de Veneza que devem amar a seu Patriarca porque ele é um homem instruído, bom, um santo, um sábio.

Em setembro de 1972, o Papa Paulo hospedou-se no Palácio do Patriarca, a caminho de um Congresso Eucarístico, em Udine. Numa apinhada Praça de São Marcos, o Papa removeu sua estola e colocou-a sobre os ombros de um contrafeito Luciani. A multidão delirou. Paulo não era um homem de fazer gestos sem sentido em público.

Quando os dois tomavam café, no Palácio, ele fez outro, mais particular. Avisou a Luciani que "a pequena dificuldade financeira local" fora levada a seu conhecimento. Soubera também que Luciani tentava levantar recursos para a criação de um centro de trabalho para os deficientes em Marghera. Disse que apreciava intensamente tal trabalho e acrescentou que gostaria de fazer uma doação pessoal. Entre os italianos, a mais loquaz das raças, muita coisa fica às vezes por dizer, mas é perfeitamente compreendida.

Seis meses depois, em março de 1973, o Papa elevou Albino Luciani a cardeal. Quaisquer que fossem as suas profundas apreensões em relação à política financeira do JOR, Luciani considerava que devia ao Papa, ao seu Papa, uma lealdade total e inabalável. Os bispos italianos têm uma situação singular em seu relacionamento com o Vaticano. O controle de suas ações é mais rigoroso. A punição por qualquer fracasso, real ou imaginário, é mais rápida.

Quando Luciani foi elevado a cardeal, sabia que Ottaviani e outros reacionários da Cúria não demonstravam uma lealdade total; ao contrário, achavam-se envolvidos numa longa e encarniçada briga com o Papa. Tentavam simplesmente destruir tudo o que resultara de bom das históricas reuniões do Concilio Vaticano Segundo. Convidado a fazer um discurso não apenas na presença dos novos cardeais e do Papa, mas também de Ottaviani e seu grupo, Albino Luciani comentou:

- O Concilio Vaticano Primeiro tem muitos partidários e o mesmo acontece com o Concilio Vaticano Terceiro. O Concílio Vaticano Segundo, no entanto, tem bem poucos.

Dois meses depois, em maio de 1973, Luciani descobriu-se outra vez como anfitrião de um visitante de Roma, Giovanni Benelli. Em termos gerais, Benelli fora informá-lo que os problemas discutidos pelos dois no ano anterior não haviam sido esquecidos. Em particular, ele tinha uma história extraordinária para contar. Envolvia a Máfla americana, títulos falsificados no valor de quase um bilhão de dólares e o Bispo Paul Marcinkus.

A 25 de abril de 1973, Benelli recebera insólitos visitantes em seu gabinete na Secretaria de Estado, na Cidade do Vaticano: William Lynch, chefe da seção do Crime Organizado e Extorsão do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, e William Aronwald, chefeassistente da Força de Impacto para o Distrito Sul de Nova York. Dois membros do FBI os acompanhavam.

- Depois de receber esses cavalheiros dos Estados Unidos - contou-me Benelli - pedi desculpas e deixei-os aos cuidados de três dos meus eficientes auxiliares. É claro que eles me relataram posteriormente tudo o que aconteceu.

O relatório secreto do FBI que obtive, muitos meses depois da minha conversa com o Cardeal Benelli, confirmou que sua narrativa foi absolutamente acurada. Era uma história que se podia ler como o roteiro para um filme de Hollywood.

Monsenhores Edward Martinez, Carl Rauber e Justin Rigali ficaram escutando, enquanto William Lynch falava de uma investigação policial que começara no mundo da Máfia em Nova York e levara inexoravelmente ao Vaticano. Ele disse aos sacerdotes que um pacote de títulos americanos falsificados, no valor de 14.5 milhões de dólares, fora cuidadosa e meticulosamente preparado por uma rede de membros da Máfia, nos Estados Unidos. O pacote fora levado a Roma em julho de 1971 e havia provas substanciais para estabelecer que o seu destino final era o Banco do Vaticano.

Lynch informou que muitas provas, de fontes separadas, indicavam que os títulos haviam sido encomendados por alguém com autoridade financeira no Vaticano. Ressaltou que outros indícios mostravam que os 14,5 milhões de dólares constituíam apenas uma entrega inicial e que o total de títulos falsos encomendados era de 950 milhões de dólares.

Revelou então o nome do "alguém com autoridade financeira" que tramara a transação ilegal. Com base nas provas em poder de Lynch, era o Bispo Paul Marcinkus.

Demonstrando um controle extraordinário, os três monsenhores ouviram em silêncio, enquanto os americanos discorriam sobre as provas de que dispunham.

Àquela altura das investigações, diversos conspiradores já estavam presos. Um deles, que sentira o desejo de desabafar, era Mario Foligni, auto-intitulado Conde de São Francisco, com um doutorado honorário em teologia. Um vigarista de primeira classe, Foligni por mais de uma vez escapara por pouco à prisão. Quando fora suspeito de manipular a falência fraudulenta de uma companhia que controlava, um juiz de Roma emitira um mandado de busca para a polícia. Abrindo o cofre de Foligni, a policia encontrara uma bênção assinada pelo Papa Paulo VI. Os policiais pediram desculpas pela intrusão e foram embora.

Mais tarde, outros ficaram igualmente impressionados com as ligações de Foligni com o Vaticano. Ele abrira as portas do Vaticano para um austríaco chamado Leopoldo Ledl. Fora Ledl quem organizara a operação do Vaticano - a compra de títulos falsificados no valor de 950 milhões de dólares pelo preço de 635 milhões. Uma "comissão" de 150 milhões de dólares seria paga pela Máfia ao Vaticano, sobrando-lhe 485 milhões. O Vaticano ficara com os títulos, que tinham o valor nominal de quase um bilhão de dólares.

A Máfia americana se mostrara cética em relação à operação até que Ledl apresentara uma carta do Vaticano. Escrita em papel timbrado da Sacra Congregazione dei Religiosi, era a confirmação de que o Vaticano desejava "adquirir o estoque completo da mercadoria, até o valor de 950 milhões de dólares".

Foligni dissera aos investigadores americanos que Marcinkus, sempre prudente, pedira um depósito experimental de um e meio milhão de dólares dos títulos no Banco Handel's, de Zurique. Segundo Foligni, Marcinkus queria certificar-se de que os títulos passariam perfeitamente por autênticos. Ao final de julho, Foligni efetuara o depósito "experimental". Ele indicara um clérigo do Vaticano, Monsenhor Mario Fornasari, como o beneficiário da conta que abrira.

Um segundo depósito "experimental", no valor de dois milhões e meio de dólares, fora feito no Banco di Roma, em setembro de 1971. Nas duas ocasiões, os títulos falsificados passaram pelo escrutínio dos bancos, um tributo à eficiência da Máfia. Lamentavelmente para os conspiradores, os bancos enviaram amostras a Nova York para um exame físico. A Associação dos Banqueiros de Nova York declarou que os títulos eram falsos. Era esse o motivo para a presença de procuradores americanos e homens do FBI dentro dos muros do Vaticano.

Além de quererem recuperar o saldo de 10 milhões de dólares da entrega inicial, Lynch e seus colegas estavam ansiosos em levar à justiça todos os participantes na operação criminosa.

Foligni informara aos investigadores que o Vaticano precisava dos títulos falsos para que Marcinkus e o banqueiro e empresário italiano Michele Sindona pudessem comprar a Bastogi, um enorme conglomerado italiano com amplos investimentos, inclusive imobiliários, em mineração e indústria química. A sede da Bastogi era em Milão; a de Sindona também. Fora nessa cidade que o então Arcebispo Montini, mais tarde Papa Paulo VI, conhecera Sindona. Quando Montini se tomara Papa, o Vaticano ganhara um novo herdeiro de Pedro e o Banco do Vaticano ganhara um novo conselheiro financeiro leigo, Michele Sindona.

William Lynch, que era um católico devoto, continuou sua história. Mario Foligni fizera uma série de acusações ao Bispo Marcinkus durante os interrogatórios do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Além da alegação de que Sindona e Marcinkus planejavam comprar a Bastogi com títulos falsificados, Foligni também afirmou que, com a ajuda de Sindona, o bispo abrira diversas contas secretas numeradas nas Bahamas, para seu uso pessoal.

Mario Foligni dissera, no interrogatório, que vinha trabalhando para o gabinete de Benelli, a Secretaria de Estado; em decorrência direta de sua cooperação, "o Secretário de Estado adotara rigorosas medidas administrativas contra Marcinkus, limitando consideravelmente o poder financeiro do bispo no Vaticano". Foligni insistira que informara à Secretaria de Estado sobre os depósitos experimentais que efetuara na Suíça e Roma, que sua informação fora usada pelo gabinete de Beneili contra Marcinkus. Ele também comunicara ao Departamento de Justiça que tinha ordens expressas do gabinete do Secretário de Estado para não fornecer aos investigadores mais detalhes sobre o golpe.

Após relatarem tudo isso, os americanos ficaram aguardando uma resposta. Como William Lynch e William Aronwald deixaram bem claro quando os entrevistei, eles não consideraram essa primeira reunião no Vaticano como um interrogatório. Era um encontro informal, uma oportunidade de apresentar acusações da maior gravidade a membros da Secretaria de Estado do Vaticano.

O Departamento de Justiça sabia perfeitamente que a base das acusações era dois vigaristas conhecidos, mas havia também provas convincentes para apoiar a validade dos depoimentos de Foligni e Ledl.

Fora por causa dessas provas que William Aronwald entrara em contato com o Cardeal Cooke, de Nova York, através do Procurador Federal para o Distrito Sul da cidade. O cardeal cooperara ao máximo e aquela reunião extraordinária fora marcada, por intermédio da nunciatura apostólica em Washington. O verdadeiro objetivo não era o de simplesmente apresentar informações, mas sim provocar uma confrontaçao com Paul Marcinkus.

Enquanto servia-se mais café, os três monsenhores mantiveram-se em silêncio, mas pensativos. Monsenhor Martinez, assessor do gabinete do Secretário de Estado, acabou falando. Assegurou aos americanos que ele e Monsenhor Rauber possuíam total conhecimento de todas as atividades do Arcebispo Benelli e podiam negar categoricamente que Foligni trabalhasse para aquele gabinete. E era aquela a primeira vez em que alguém na Secretaria de Estado tomava conhecimento dos títulos falsificados e dos depósitos experimentais. Assumindo uma posição clássica na Cúria, ele comentou:

- Não é intenção do Vaticano colaborar com as autoridades dos Estados Unidos nas investigações, a esta altura, já que estamos tendo apenas uma reunião informal e nosso propósito no momento é simplesmente o de escutar.

Lynch e seus colegas se defrontavam com uma mentalidade que já derrotara muitas mentes melhores que as deles - a de que a Cúria é um corpo de homens que não entrega absolutamente nada, uma máquina governamental que controla a Igreja Católica com mão de ferro. Lynch lembrou aos monsenhores que até aquele momento só se recuperara os títulos falsos no valor de 4 milhões de dólares. E acrescentou:

- Como tudo parece indicar que o destino dos títulos falsos foi o Banco do Vaticano e tendo em vista que o valor nominal da encomenda total é de 950 milhões de dólares, não gostaria que eu fornecesse uma relação dos tipos de títulos?

Martinez simplesmente esquivou-se ao golpe. Mas Lynch persistiu:

- Assim, será possível verificar os registros do Instituto Perle Opere di Religione, a fim de verificar se quaisquer títulos falsificados não teriam sido recebidos "inadvertidamente".

O estilo de Martinez no ringue era realmente incomparável.

- Claro que não tenho a menor idéia se alguns desses títulos americanos falsificados foram recebidos por nosso banco. Contudo, não posso aceitar uma lista para conferir. Isso seria função do Bispo Marcinkus. E ele quem cuida dessas coisas. Talvez, se tiver dificuldade em fazer contato com o bispo, vocês possam enviar uma lista, com uma carta formal, ao núncio apostólico em Washington.

Era obviamente o momento para uma mudança de tática.

Os representantes do Departamento de Justiça americano apresentaram um documento que fora tirado de Leopoldo Ledl depois de sua prisão. O logotipo do Vaticano estava no cabeçalho e por baixo estava escrito "Sacra Congregazione dei Religiosi". Era o pedido do Vaticano de quase um bilhão de dólares em títulos falsificados. O documento convencera a Máfia. Os monsenhores examinaram-no cuidadosamente, lendo várias vezes, levantando contra a luz.

Martinez coçou o queixo, com uma expressão pensativa, Os americanos inclinaram-se para a frente, ansiosamente. Talvez afinal tivessem conseguido dobrar o inflexível Martinez.

- O cabeçalho parece idêntico ao de uma de nossas sagradas congregações, localizada aqui no Vaticano,

Houve uma pausa. Apenas o momento para que os americanos pudessem desfrutar por um instante o que parecia o triunfo. Mas, depois, Martinez acrescentou:

- Contudo, embora o cabeçalho pareça legítimo, cabe ressaltar que essa congregação em particular mudou de nome em 1968. Pela data desta carta, 29 de junho de 1971, o nome indicado no cabeçalho estaria incorreto. O nome é Sacra Congregazione per i Religiosi e gli Institute Secolari.

Os investigadores americanos, porém, conseguiram realizar seu principal objetivo. Ficou combinado que poderiam se encontrar pessoalmente com o Bispo Paul Marcinkus no dia seguinte. Por si só, isso já era uma façanha extraordinária, pois a Cidade do Vaticano defendia firmemente a sua condição de Estado independente

Na minha entrevista com o Cardeal Benelli, ele confirmou que realmente recebera informações sobre todo o caso de Mario Foligni antes da visita ao Vaticano dos investigadores americanos. O cardeal achara que fora uma providência interesseira de Foligni, que a esta altura já sabia que a operação estava frustrada. Quanto à validade das informações, Bencíli limitou-se a comentar que as achara "muito interessantes e úteis".

Na manhã de 26 de abril de 1973, os dois representantes do Departamento de Justiça americano e os homens do FBI foram introduzidos no gabinete pessoal do Bispo Paul Marcinkus. Lynch e Aronwald repetiram a mesma história do dia anterior, enquanto Marcinkus fumava um enorme charuto. Tendo em vista algumas de suas omissões subseqúentes, seu comentário inicial é de particular interesse:

- Estou profundamente perturbado com a gravidade das acusações. Assim sendo, responderei a todas as perguntas no melhor da minha capacidade.

Ele começou por Michele Sindona.

- Michele e eu somos grandes amigos. Há muitos anos que nos conhecemos. Minhas transações financeiras com ele, no entanto, têm sido bastante limitadas. Michele é um dos mais ricos industriais da Itália. E se encontra muito à frente de seu tempo nas questões financeiras.

Marcinkus louvou as virtudes e talentos de Michele Sindona por bastante tempo. Depois, igualando o Banco do Vaticano a um confessionário, Marcinkus acrescentou:

- Prefiro me abster de citar nomes em muitos dos exemplos que tenciono dar. As acusações que Foligni me fez são de extrema gravidade, mas também tão desvairadas que não creio ser necessário violar as leis do sigilo bancário para me defender.

Enquanto a reunião do dia anterior fora basicamente de uma natureza informal, aquela confrontação com Marcinkus assumia as características de um interrogatório. Pelas provas que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos acumulara durante mais de dois. anos, cuidadosa e meticulosamente, Lynch, Aronwald e os dois agentes do FBI, Biamonte e Tammaro, tinham agora pela frente o autor intelectual do que seria um dos maiores golpes fraudulentos do mundo. Se as provas estivessem corretas, então a notoriedade internacional de Cicero, uma comunidade suburbana de Chicago, seria no futuro uma decorrência não apenas de Aí Capone, mas também de Paul Marcinkus. Mas, como sempre disse a Sra. Beeton, "pegue primeiro a sua lebre".

William Lynch começou a pressionar o bispo.

- Se for necessário, em algum momento no futuro, estaria disposto a comparecer a uma acareação com Mario Foligni?

- Claro.

- E se for necessário, estaria também disposto a testemunhar num tribunal dos Estados Unidos?

- Estaria, se fosse absolutamente necessário. Mas espero que não seja.

- Por quê?

- Só quem ganharia alguma coisa, se eu comparecesse a um tribunal, seria a imprensa italiana.

- Como assim?

- Os jornalistas daqui não perdem nenhuma oportunidade de escrever artigos inflamados contra o Vaticano, quer os fatos expostos sejam ou não verdadeiros,

Lynch e Aronwald demonstraram uma indiferença total à sensibilidade do Vaticano em seu relacionamento com a imprensa italiana.

- O senhor possui uma conta particular numerada nas Bahamas?

- Não.

- Possui alguma conta comum nas Bahamas?

- Não.

- Tem certeza, Bispo?

- O Vaticano possui interesses financeiros nas Bahamas. Mas são exclusivamente operações financeiras normais, similares a muitas outras controladas pelo Vaticano. Não são para o ganho financeiro particular de uma pessoa.

- Estamos interessados apenas nas suas contas pessoais.

- Não tenho contas particulares ou públicas, nas Bahamas ou em qualquer outro lugar.

Nunca foi explicado como Marcinkus pagava todas as suas despesas em dinheiro. E Marcinkus também não revelou que pertencia à diretoria do Banco Ambrosiano Exterior, com sede em Nassau, desde 1971. Fora convidado a ingressar na diretoria pelos dois homens que haviam iniciado aquela operação nas Bahamas, Roberto Calvi e Michele Sindona. Ambos usavam freqüentemente o nome do bispo em suas transações. Sindona explicara bruscamente a Marcinkus em uma ocasião:

- Coloquei-o na diretoria porque seu nome ajuda a levantar dinheiro.

Sindona e Calvi demonstraram sua gratidão dando a Marcinkus e ao Banco do Vaticano 2,5 por cento das ações do banco de Nassau. Essa participação elevou-se posteriormente para oito por cento. Marcinkus freqüentemente participava da junta diretória e tirava férias nas Bahamas. Devia ser bastante incômodo ter de transferir constantemente grandes quantias em dinheiro que ele era obrigado a carregar, segundo seu depoimento aos investigadores americanos. Era o primeiro presidente de banco na história do mundo que não tinha uma conta bancária pessoal. A esta altura do interrogatório, o Bispo Marcinkus comentou:

- Minha posição no Vaticano é singular.

Seguiu-se umas das maiores declarações insidiosas da história do mundo:

- Estou no comando do que muitas pessoas costumam chamar de Banco do Vaticano. Possuo com isso um controle total das atividades financeiras do Vaticano. Uma das coisas que torna a minha posição singular é que só sou responsável perante o Papa sobre a maneira como cuido desses problemas financeiros. Em teoria, minhas operações são orientadas por um grupo de cardeais que se reúnem de vez em quando e funcionam como supervisores do banco. Na verdade, porém, tenho um controle exclusivo na direção dos assuntos financeiros do Vaticano.

O depoimento pessoal não impressionou muito aos americanos.

- Onde está querendo chegar?

- Minha posição acarretou alguns ressentimentos de homens em cargos responsáveis no Vaticano.

- É mesmo?

- E, sim. Infelizmente, é uma decorrência do cargo. Sou o primeiro americano que já se elevou a um posto de tanto poder no Vaticano e tenho certeza de que isso acarretou muitas invejas e ressentimentos.

Quer fosse ou não culpado de ser o autor intelectual por trás daquele golpe gigantesco, Paul Marcinkus indubitavelmente falava a verdade ao se referir a "determinados ressentimentos" de outros homens altamente situados no Vaticano. Só que não era apenas lá. Em Veneza, o Cardeal Albino Luciani era mais um que acalentava "ressentimentos" contra Marcinkus, ao ouvir Benelli relatar o último episódio na saga do bispo americano. Ironicamente, Benelli não sabia que, durante a sua entrevista particular com os investigadores americanos, Paul Marcinkus tentara envolvê-lo na fraude.

Ao se ler os depoimentos de Marcinkus, fica evidente que, em sua opinião, todos mereciam uma investigação, à exceção dele próprio. Sobre o Padre Mario Fornasari, que estaria profundamente envolvido no escândalo, Marcinkus comentou:

- Algumas pessoas que trabalham para mim no banco já me disseram que Fomasari é um homem a se evitar. Tenho certeza de que sabem que ele foi denunciado há algum tempo por escrever cartas caluniosas.

- É mesmo? E o que aconteceu?

- Creio que as acusações foram retiradas.

Marcinkus admitiu que estivera envolvido com Mano Foligni, sem dúvida um dos principais personagens do golpe de um bilhão de dólares, em pelo menos dois empreendimentos financeiros. O primeiro fora um plano de investimento de 100 milhões de dólares, que não chegara a ser consumado. O segundo fora uma operação de 300 milhões de dólares, envolvendo Foligni e o industrial italiano Carlo Pesenti, que também malograra. Enquanto contava a sua história tortuosa, Marcinkus fazia tudo o que podia para arrastar o nome de Benelli ao escândalo. Demonstrava com isso que seu ego ficara bastante abalado porque Benelli pedira ao Papa Paulo que considerasse bem as perspectivas antes de concordar com a operação de 300 milhões de dólares. Marcinkus achava que ninguém além dele deveria conversar com o Papa sobre dinheiro. Tentou ligar Benelli a Foligni, presumivelmente alegando a lei da culpa por associação. Tendo em vista as atividades subseqüentes de Michele Sindona e Roberto Calvi, ambos amigos íntimos de Marcinkus, seria interessante saber se o bispo americano ainda defende esse duvidoso postulado legal.

O que Marcinkus esqueceu de explicar, talvez porque não lhe tenha sido perguntado, foi o motivo pelo qual sequer considerou a possibilidade de fazer uma transação de 300 milhões de dólares envolvendo Foligni, cerca de oito meses depois de o italiano depositar títulos falsos no valor de um e meio milhão de dólares num banco suíço e seis meses depois de descarregar outra remessa dos mesmos títulos, agora no valor de dois e meio milhões de dólares, no Banca di Roma Como presidente do Banco do Vaticano, é inconcebível que Marcinkus fosse o único banqueiro da Europa a ignorar essas atividades criminosas.

Ao final de um longo interrogatório, Marcinkus manteve a sua posição de total inocência e negou qualquer conhecimento do golpe. Aceitou de bom grado uma relação dos títulos falsificados e prometeu que ficaria atento.

Muitas pessoas foram posteriormente consideradas culpadas de envolvimento no golpe de um bilhão de dólares. Sobre as acusações de que o Bispo Paul Marcinkus estava também envolvido, o Procurador William Aronwald me disse:

O máximo que se pode dizer é que a investigação não revelou provas concretas suficientes para confirmar ou negar seu envolvimento. Como não estávamos moralmente convencidos de que houvera algo errado ou que Marcinkus ou qualquer outra pessoa do Vaticano tinha alguma participação, achamos que não seria certo chegar às manchetes com isso.

É perfeitamente claro que a investigação não foi frustrada pela falta de empenho dos americanos. Eles bem que tentaram, com todo afinco. Seria mais tarde alegado que eles próprios pertenciam a uma gigantesca manobra de cobertura. * Que apenas simularam realizar uma investigação profunda. Isso é bobagem e mostra absoluta ignorância dos problemas que surgem quando uma investigação começa num país e tem de continuar em outro. A Cidade do Vaticano é um Estado independente. O simples fato de Lynch, Aronwald e os homens do FBI conseguirem passar pelos portões do Vaticano já é um tributo à sua tenacidade. Não se pode atravessar o Tibre correndo, como um policial de Nova York do tipo que é apresentado na televisão, empunhando uma 45, munido de mandados judiciais e com autoridade para interrogar testemunhas, sem falar de muitos outros recursos legais que se pode usar nos Estados Unidos.

Se a Cidade do Vaticano fosse parte dos Estados Unidos, então certamente todos os membros da Cúria trabalhando na Sacra Congregazione dei Religiosi seriam interrogados exaustivamente. Impressões digitais seriam tiradas. Haveria exame de todas as máquinas de escrever da Congregação. Se tudo isso fosse feito, seria esclarecida a questão da culpa ou inocência do Bispo Marcinkus. Mas o simples fato de o governo dos Estados Unidos ter levado as provas bastante a sério para se arriscar a uma situação política delicada já é bastante esclarecedor.

- Não desperdiçaríamos tanto dinheiro dos contribuintes se não levássemos as provas muito a sério - disse-me William Aronwald.

Ao final da investigação, o caso contra Marcinkus teve de ser arquivado por falta de provas que pudessem convencer um júri.

A grande questão, portanto, permanece sem resposta. Quem era o cliente para o qual se prepararam títulos falsos? Com base em todas as provas oficiais disponíveis, é possível tirar apenas duas conclusões. Ambas são bizarras. Leopoldo Ledl e Mario Foligni planejavam roubar da Máfia americana uma vasta fortuna em títulos falsos, depois de enganarem seus contatos mafiosos, levando a organização a assumir a despesa considerável da falsificação. Essa seção da Máfia tinha muitos membros que matavam ou mutilavam pessoas simplesmente por imaginarem que os insultara. Se essa é a explicação real, então LedI e Foligni procuravam por uma forma insólita de suicídio. A outra conclusão é de que os títulos falsos no valor de 950 milhões de dólares estavam destinados ao Vaticano.

Em Veneza, Albino Luciani continuava a usar as batinas deixadas por seu predecessor, o Cardeal Ubaldi. Durante todo o período do seu patriarcado, recusou-se a comprar outras, preferindo que as freiras que trabalhavam para ele as remendassem e tomassem a remendar. De qualquer forma, raramente usava as vestes de Cardeal e Patriarca, dando preferência a sua simples batina de padre.

Sua humildade pessoal acarretou muitas situações interessantes. Viajando de carro pela Alemanha, em 1975, em companhia do Padre Senigaglia, o Cardeal chegou à cidade de Aachen. Desejava muito rezar no antigo altar da principal igreja local. Senigaglia ficou observando enquanto dirigentes da igreja comunicavam um tanto arrogantemente ao cardeal que o altar já fora fechado e que ele deveria voltar outro dia. Tomando a entrar no carro, Luciani traduziu a conversa para Senigaglia. Furioso, Senigaglia saltou do carro, foi até a igreja e teve uma explosão em italiano com os responsáveis. Eles compreenderam o suficiente para descobrir que o pequeno sacerdote que haviam repelido era o Patriarca de Veneza. Foi agora a vez de Luciani ficar furioso com seu secretário enquanto era quase arrastado do carro pelos sacerdotes alemães. Enquanto Luciani entrava na igreja, um dos padres murmurou-lhe:

- Um pouco de vermelho, por menos que seja, poderia ser útil, Eminência.

Em outra ocasião, Luciani compareceu a uma conferência sobre ecologia, em Veneza. Ficou profundamente absorvido em conversa com um dos participantes. Desejando continuar o diálogo, convidou o ecologista a visitá-lo em sua casa.

- Onde você mora? - perguntou o ecologista.

- Ao lado da Igreja de São Marcos - respondeu Luciani.

- No Palácio do Patriarca?

- Isso mesmo.

- E a quem devo chamar?

- Diga que quer falar com o Patriarca.

Por baixo dessa humildade e gentileza havia um homem que, por sua criação e vocação, era excepcionalmente forte. Nem à esquerda nem à direita, ele se recusava a envolver-se com qualquer das facções em conflito em Roma. As manobras pelo poder no Vaticano deixavam Luciani às vezes desconcertado, sem entender por que alguns daqueles homens haviam se tomado padres. E ele comentou, num sermão na Páscoa de 1976:

Alguns estão na Igreja apenas para criar problemas. São como o empregado que primeiro move céu e terra para entrar na firma, mas depois que consegue o emprego se torna perpetuamente irrequieto, incomodando e atormentando os colegas e superiores. Algumas pessoas prece que só olham o sol à procura de manchas.

Seu desejo de alcançar uma nova síntese, aproveitando o que, em sua opinião, era certo nos dois lados, levou-o a consideráveis conflitos em Veneza. A questão do divórcio é um exemplo.

Na Itália, em meados da década de 70, o divórcio era legal aos olhos do Estado, mas inaceitável aos olhos da Igreja. Começou a haver um movimento para que o problema fosse submetido a um plebiscito. Luciani se opunha profundamente ao plebiscito, convencido de que dividiria a Igreja e resultaria numa maioria se comprometendo nas umas com a decisão de que as leis do divórcio deveriam permanecer inalteradas. Se isso acontecesse, seria uma derrota oficial para a Igreja Católica, no país que tradicionalmente reivindicava como seu.

Benelli assumiu a posição oposta. Estava convencido de que a igreja sairia vencedora, se houvesse um plebiscito.

O debate não foi apenas na Igreja, mas por toda a Itália, alcançando um nível acalorado. Pouco antes do plebiscito, um grupo de estudantes de Veneza, o FUCI, organizado por um padre, enviou um documento de 40 páginas a todos os bispos da região do Veneto. Era uma argumentação forte, defendendo a posição favorável ao divórcio. Albino Luciani leu o documento atentamente, depois se colocou nas manchetes nacionais ao dissolver, aparentemente, o grupo estudantil. Na Igreja, foi encarado por muitos como um ato de coragem. No pais, muitos comentaristas apontaram a atitude de Luciani como mais um exemplo da intolerância da hierarquia católica.

O que indignara Luciani não fora propriamente a argumentação a favor do divórcio, mas sim o fato de usarem citações de um grande número de autoridades da Igreja, teólogos e vários documentos do Concílio Vaticano Segundo. Para Luciani, usar os documentos do Concílio dessa maneira era distorcer os ensinamentos da Igreja. Estivera presente no nascimento de Lunen Gentium, Gaudium et Spes e Dignitatis Humanae. O erro podia ter direitos na Igreja moderna, mas em Veneza, em 1974, para Luciani, ainda havia um limite a esses direitos. Assim, era inadmissível o uso de uma citação de Dignitatis Humanae que exaltava os direitos do indivíduo: "... Proteger e promover os direitos invioláveis do homem é o dever essencial de todo poder civil. O poder civil deve, portanto, garantir a cada cidadão, através de leis justas e outros meios adequados, a proteção efetiva da liberdade religiosa." Ainda mais quando se seguia a argumentação seguinte:

 

"Em outras ocasiões a Igreja defrontou-se com graves problemas na sociedade, contra os quais a única possibilidade não era, obviamente, o uso de métodos repressivos, mas a adoção de critérios morais e métodos jurídicos que favoreciam apenas o único bem historicamente possível: o mal menor. Assim a moral cristã adotou a teoria da guerra justa; assim a Igreja permitiu a legalização da prostituição (mesmo nos estados papais), enquanto obviamente continuava proibida ao nível da moral. E assim também para o divórcio..."

 

Para Luciani, ver argumentos como esses justapostos num apelo à Igreja para tomar uma posição liberal em prol da conveniência, com relação ao divórcio, era inaceitável. Obviamente seus amados ensinamentos do Concílio Vaticano Segundo, assim como a Bíblia, podiam ser usados para provar e justificar quaisquer posições. Luciani sabia que, como ele era o chefe do Conselho dos Bispos para a região do Veneto, o público italiano consideraria a declaração como política oficial, defrontando-se com o dilema de seguir os bispos do Veneto ou os bispos do resto da Itália. Na verdade, ele não dissolveu o grupo estudantil, como em geral se acreditou. Usou uma técnica básica em sua filosofia. Acreditava que é possível se alterar radicalmente os grupos de poder pela identificação do centro exato de influência e sua remoção. Assim, simplesmente afastou o padre que estava aconselhando o grupo estudantil.

Na verdade, como o Padre Mano Senigaglia me confirmou, a opinião pessoal de Luciani sobre o divórcio teria surpreendido os seus críticos

Era mais esclarecida do que o comentário popular imaginava. Ele podia e aceitava os divorciados. Também aceitava facilmente pessoas que viviam no que a Igreja chama de “pecado”. O que o deixou indignado foi a justificativa bíblica.

Como Luciani profetizara, o plebiscito resultou numa maioria favorável ao divórcio. Deixou uma Igreja dividida, um Papa que manifestou publicamente seu espanto e incredulidade pelo resultado e um dilema para os que tinham de conciliar as divergências entre Igreja e Estado.

O próprio dilema de Luciani era o de estar comprometido com uma obediência inabalável ao Papa. Muitas vezes o Papa assumia uma posição diferente da que era defendida pelo Patriarca de Veneza. Quando essa posição tornava-se pública, Luciani achava que era seu dever apoiá-la publicamente. O que ele dizia pessoalmente, em conversas particulares com os membros de sua diocese, muitas vezes não tinha qualquer semelhança com a linha do Vaticano. Em meados de 1970, ele assumira até uma posição mais liberal em relação ao controle da natalidade. Esse homem, que supostamente teria declarado, por ocasião do anúncio da Humanae Vitae, “Roma falou, o caso está encerrado”, sabia que o caso estava longe de encerrado.

Quando seu jovem secretário, Padre Mario Senigaglia, que desenvolvera em relação a ele um relacionamento quase de filho para pai, falava sobre casos morais envolvendo paroquianos, Luciani sempre aprovava as suas posições liberais. Senigaglia me disse:

Ele era um homem muito compreensivo. Ouvi-o dizer muitas vezes a casais:

Transformamos o sexo no único pecado, quando na verdade está vinculado à fraqueza e fragilidade humanas, sendo por isso talvez o menor dos pecados.”

Era óbvio que Albino Luciani não carecia de críticas. Alguns de seus críticos em Veneza consideravam que ele revelava mais unia nostalgia pelo passado do que um desejo de mudança. Alguns o classificavam como homem de direita, outros de esquerda. Outros ainda viam sua humildade e gentileza como simples fraqueza. Talvez a posteridade o julgue pelo que disse realmente em vez do que os outros

Sobre a violência:

Retire Deus do coração dos homens, diga às crianças que o pecado é apenas um conto de fadas inventado por seus avós para torná-los bonzinhos, publique textos para a escola primária que ignorem a Deus e zombe da autoridade, e não fique surpreso com o que está acontecendo. A educação apenas não é suficiente! Victor Hugo escreveu que uma escola a mais significa uma prisão a menos. Seria isso o que é o dia de hoje!

Sobre Israel:

A Igreja também deve considerar as minorias cristãs que vivem em países árabes. Não pode abandoná-las à própria sorte... para mim, pessoalmente, não há dúvida de que existe um laço entre o povo de Israel e da Palestina. Mas o Santo Padre, mesmo que assim o quisesse, não poderia dizer que a Palestina pertence aos Judeus, uma vez que seria tomar uma posição política sobre a questão.

Sobre armas nucleares:

Dizem que as armas nucleares são tão poderosas que usá-las seria o fim do mundo. Elas são feitas e estocadas, mas apenas para “dissuadir” do ataque o inimigo e conservar a situação internacional estável.

Olhe a sua volta. Não é verdade que por mais de 30 anos não temos tido uma guerra mundial?

Não é verdade que têm sido evitadas sérias crises entre Estados Unidos e Rússia?

Fiquemos contentes com este resultado... Um desarmamento universal gradual e controlado só é possível se surgir uma boa organização internacional com poderes e possibilidades mais eficientes para sanções que a ONU e se a educação para a paz tomar-se sincera.

Sobre o racismo nos Estados Unidos:

Nos Estados Unidos, apesar das leis, os negros estão praticamente à margem da sociedade. Os descendentes dos índios só tiveram a sua situação melhorada significativamente nos últimos anos.

Dizer que Luciani era um reacionário nostálgico talvez seja válido. Preferia um mundo que não fosse dominado pelos comunistas e no qual o aborto não se tomasse uma coisa rotineira. Mas se era um reacionário tinha algumas idéias bastante progressistas.

No inicio de 1976, Luciani compareceu a outra Conferência dos Bispos Italianos, em Roma. Um dos assuntos abertamente discutidos foi a grave crise econômica que a Itália então enfrentava. Um assunto discutido menos publicamente foi o papel do Vaticano naquela crise econômica e a participação do bom amigo do Bispo Marcinkus, Michele Sindona. Seu império desmoronara de maneira espetacular. Bancos estavam falindo na Itália, Suíça, Alemanha e Estados Unidos. Sindona era procurado pelas autoridades italianas por diversas acusações e lutava para evitar a extradição dos Estados Unidos. A imprensa italiana garantia que o Vaticano perdera mais de 100 milhões de dólares. O Vaticano negava mas admitia que sofrera alguns prejuízos. Em junho de 1975, as autoridades italianas, enquanto continuavam empenhadas em trazê-lo de volta, condenaram-no in absentia a uma pena de prisão de três anos e meio, o máximo que era possível pelas violações cometidas. Muitos bispos achavam que o Papa Paulo Vi deveria ter afastado Marcinkus do Banco do Vaticano quando estourara o escândalo de Sindona, em 1974. Mas, dois anos depois, o amigo de Sindona ainda controlava as finanças do Vaticano.

Albino Luciani deixou Roma, uma cidade fervilhando com as especulações sobre quantos milhões o Vaticano perdera no escândalo de Sindona, deixou a Conferência dos Bispos, onde a conversa fora sobre o quanto o Banco do Vaticano devia ao Banca Privata, quantas ações o banco tinha naquele conglomerado ou nesta companhia. Voltou a Veneza, onde a Escola Dom Orione, para os deficientes, não dispunha de dinheiro suficiente para os livros escolares.

Luciani sentou diante da máquina de escrever e bateu uma carta que foi publicada na edição seguinte da revista diocesana. O título era “Um pedaço de pão, pelo amor de Deus”. Começava por solicitar dinheiro para ajudar as vitimas de um recente terremoto violento na Guatemala, informando que autorizara uma coleta em todas as igrejas no domingo, 29 de fevereiro. Comentou depois a situação econômica italiana, informando aos leitores que os bispos italianos e suas comunidades eclesiásticas estavam empenhados em apresentar meios práticos de compreensão e ajuda. E, depois, deplorava:

A situação de tantos jovens que procuram por trabalho e não conseguem encontrá-lo. Das famílias que experimentam o drama ou a perspectiva da dispensa. Dos que buscaram a segurança emigrando para longe e que agora se defrontam com a perspectiva de um retomo infeliz. Dos que são velhos e doentes, com pensões insuficientes, sofrendo por isso ainda mais intensamente as conseqüências desta crise...

Eu gostaria que os padres se lembrassem e considerassem, por todos os aspectos, a situação dos trabalhadores. Nós nos queixamos às vezes que os trabalhadores buscam maus conselhos na esquerda e na direita. Mas, na verdade, o quanto temos feito para garantir que os ensinamentos sociais da Igreja possam ser habitualmente incluídos em nosso catecismo e incutidos nos corações dos cristãos?

O Papa João disse que os trabalhadores têm o direito de influenciar seu próprio destino, em todos os níveis, até mesmo nos escalões mais altos. Sempre ensinamos isso com a coragem necessária? Pio XII, enquanto adverte por um lado para os perigos do marxismo, por outro reprova os padres que permanecem indecisos diante do sistema econômico conhecido como capitalismo, cujas graves conseqüências a Igreja jamais deixou de denunciar. Mas será que sempre demos atenção a isso?

Albino Luciani ofereceu em seguida uma demonstração extraordinária de sua aversão a uma Igreja rica e materialista. Exortou e autorizou todos os seus padres paroquianos e diretores de santuários a venderem seu ouro, colares e objetos preciosos. Os lucros seriam aplicados no centro Dom Orione para deficientes. Informou aos leitores que tencionava vender a cruz cravejada de pedras preciosas e a corrente de ouro de Pio XII que o Papa João lhe dera ao elevá-lo a bispo.

Produzirá muito pouco em termos de dinheiro, mas talvez represente algo maior se ajudar as pessoas a compreenderem que os verdadeiros tesouros da Igreja são, como disse São Lourenço, os pobres, os fracos, que devem ser ajudados não com a caridade ocasional, mas de uma maneira em que possam se elevar um pouco para o padrão de vida e o nível de cultura a que têm direito.

Ele também anunciou que tencionava vender, pela oferta mais alta, uma valiosa cruz peitoral com corrente de ouro e o anel do Papa João. Tais coisas haviam sido dadas a Veneza pelo Papa Paulo durante a sua visita em setembro de 1972. Depois, no mesmo artigo, citou dois indianos. Primeiro, Gandhi: “Admiro Cristo, mas não os cristãos.”

Luciani manifestou em seguida o seu desejo de que as palavras de Sadhu Singh talvez um dia não fossem mais verdadeiras: Eu estava sentado um dia à margem de um rio. Peguei na água uma pedra redonda e parti-a. Por dentro, estava perfeitamente seca. Aquela pedra se encontrava na água há muito tempo, mas a água nunca a penetrara. Pensei então que a mesma coisa acontecia aos homens na Europa. Há séculos que estão cercados pelo cristianismo, mas o cristianismo nunca os penetrou, não vive dentro deles.

A reação foi variada. Alguns sacerdotes da diocese haviam se afeiçoado às jóias preciosas que tinham em suas igrejas. Luciani também sofreu ataques de alguns dos tradicionalistas da cidade, os que gostavam de recordar a glória e o poder ligados ao título de Patriarca, o último vestígio do esplendor da Sereníssima. Esse homem, que se empenhava em viver a verdade essencial e eterna do Evangelho, recebeu em seu gabinete uma delegação desses cidadãos. Depois de escutá-los, ele disse:

Sou primeiro um bispo entre os bispos, um pastor entre os pastores, que deve ter como seu primeiro dever a disseminação da Boa Nova e a segurança de seus cordeiros. Aqui, em Veneza, posso apenas repetir o que já falei em Canale Beliuno e Vittorio Veneto.

Depois, ligou para o corpo de bombeiros, pediu uma lancha emprestada e foi visitar os doentes num hospital próximo.

Como ainda se recorda, um dos métodos que esse pastor em particular empregava para se comunicar com seu rebanho era a pena. Em mais de uma ocasião, Luciani disse a seu secretário que, se não fosse um padre, provavelmente teria se tornado um jornalista. A julgar por seus escritos, seria um trunfo para a profissão. No início da década de 70, criou uma técnica interessante para apresentar uma variedade de questões morais aos leitores da revista diocesana: uma série de cartas a diversos personagens literários e históricos. Os artigos atraíram a atenção do editor de um jornal local, que persuadiu Luciani a ampliar seus leitores, através de sua publicação. Luciani raciocinou que tinha mais possibilidades de espalhar as “Boas Novas” através da imprensa do que pregando em igrejas meio vazias. Uma coletânea das cartas acabou saindo em livro, Ilustrissimi.

O livro é uma verdadeira delícia. Além de proporcionar uma percepção valiosa da mente de Albino Luciani, cada carta comenta aspectos da vida moderna. A extraordinária e singular capacidade de Luciani de se comunicar - singular para um cardeal italiano - é demonstrada repetidamente As cartas são também uma prova incontestável de como Luciani era um homem lido. Chesterton e Walter Scott receberam uma carta do Patriarca, assim como Goethe, Alessandro Manzoni, Marlowe e muitos outros. Há até mesmo uma carta endereçada a Cristo, que começa à típica maneira de Luciani:

Caro Jesus:

Tenho sido criticado. Ele é um bispo, é um cardeal, dizem as pessoas, escreve cartas para uma porção de gente: para Mark Twain, Peguy, Caselia, Penélope, Dickens, Marlowe, Goldini e não sei mais quantos outros. E nem uma só palavra a Jesus Cristo!

Sua carta a São Bernardo transformou-se num diálogo, com o santo oferecendo sábios conselhos, inclusive um exemplo de como a opinião pública podia ser volúvel:

Em 1815, o jornal oficial francês Le Moniteur mostrou a seus leitores como acompanhar o progresso de Napoleão: 0 bandido foge da ilha de Elba”; “O usurpador chega a Grenoble”; “Napoleão entra em Lyon”; “O Imperador alcança Paris esta noite”.

Em cada carta há conselhos ao rebanho, sobre prudência, responsabilidade, humildade, fidelidade, caridade. Como uma obra visando a comunicar a mensagem cristã, vale 20 encíclicas papais.

Espalhar as “Boas Novas” foi um dos aspectos dos anos de Luciani em Veneza. Outro foi a recalcitrância constantemente demonstrada por alguns dos seus padres. Além daqueles que passavam seu tempo a despejar inquilinos ou se queixar por ter de vender tesouros da Igreja, havia outros que adotavam o marxismo com o mesmo entusiasmo com que muitos se preocupavam com o capitalismo. Um padre escreveu em tinta vermelha nos muros de sua igreja:”Jesus foi o primeiro socialista.” Outro subiu a seu púlpito em Mestra e declarou à congregação atônita:

- Não trabalharei mais para o Patriarca enquanto ele não me der um aumento de salário.

Albino Luciani, um homem com um senso de humor altamente desenvolvido, não achava graça nessas extravagâncias. Em julho de 1978, do púlpito da Igreja do Redentor, em Veneza, falou à congregação sobre o erro clerical:

- É verdade que o Papa, bispos e padres não deixam de ser pobres humanos, sujeitos a erros, cometendo-os muitas vezes.

A esta altura, ele levantou os olhos do manuscrito e fitou as pessoas, acrescentando com absoluta sinceridade:

- Estou convencido de que o Papa Paulo VI cometeu um erro ao destinar-me para a Sé de Veneza.

O Papa Paulo VI morreu poucos dias depois desse comentário, às 9:40 da noite de domingo, 6 de agosto de 1978. O trono estava vazio.

 

                   O Trono Vazio

 Menos de 24 horas depois da morte de Paulo, seu corpo ainda por sepultar e seu pontificado por avaliar, a Ladbrokes, a casa de apostas de Londres, abriu os lances para a eleição papal. O Catholic Herald publicou um artigo de primeira página criticando a iniciativa, mas não deixou de informar a seus leitores as cotações atuais.

O Cardeal Pignedoli era o favorito, cotado a 5 por 2. Os Cardeais Baggio e Poletti estavam em segundo, a 7 por 2, seguindo-se o Cardeal Benelli, com 4 por 1. Outro bem cotado era o Cardeal Willebrands, a 8 por 1. O Cardeal Koenig estava em 16 por 1. O Cardeal Hume, da Inglaterra, tinha 25 por 1. Essa cotação surpreendentemente desfavorável do inglês podia talvez ser atribuída a uma declaração sua de que não possuía as qualidades para o cargo. A cotação mais alta era o Cardeal Suenens. Albino Luciani nem aparecia na lista de candidatos papais.

Condenada por alguns pela demonstração de mau gosto, a Ladbrokes defendeu-se, ressaltando que, em relação ao trono vazio, "os jornais estão repletos de especulações sobre os favoritos, os diversos Concorrentes e os azarões".

Na verdade, as especulações começaram antes mesmo da morte do Papa Paulo. Peter Hebblethwaite, um ex-padre jesuíta, convertido em observador do Vaticano, indagara no Spectator, a 29 de julho: "Quem está concorrendo a Papa?" Ele indicou três candidatos fortes: Pignedoli, Baggio e Pironio. Não se sabe se o Papa Paulo, em seus últimos dias, leu o comentário de Hebblethwaite de que "não se pode esperar que ele viva por muito mais tempo".

Os meios de comunicação italianos foram um pouco mais comedidos. No dia seguinte à morte do Papa, as emissoras de rádio limitaram-se à apresentação de peças de Beethoven. Relaxaram um pouco no segundo dia, passando para Mozart. Houve no terceiro dia uma dieta de música orquestral ligeira. A solenidade se abrandou ainda mais no quarto, com apresentações vocais de Moonlight Serenade e Stardust. A televisão italiana, durante os primeiros dias, ofereceu a seus espectadores uma variedade de filmes povoados inteiramente por freiras, Papas e cardeais.

Uma análise cuidadosa da imprensa de língua inglesa, cobrindo as primeiras semanas de agosto de 1978, indica que, se os 111 cardeais estavam tão confusos quanto os vaticanologistas, então a Igreja podia esperar um Conclave prolongado e perplexo.

Os seguidores de Hebblethwaite devem ter encontrado a maior dificuldade para escolher em quem apostar. No Sunday Times de 13 de agosto, ele acrescentou à sua lista de palpites os Cardeais Felici, Villot, Willebrands, Pellegrino e Benelli. No domingo seguinte, ele disse a seus leitores: "O novo Papa pode ser Bertoli." Mais um domingo e até mesmo Luciani mereceu uma menção. Parecia até um comentarista discorrendo sobre as possibilidades dos cavalos que vão disputar o Derby. Se mencionar a todos, então depois da corrida o seu jornal pode citar o comentário prévio sobre o vencedor.

Um peixeiro de Nápoles teve mais sorte. Usando os números da data da morte do Papa Paulo, ganhou a loteria nacional.

Apesar da pompa e cerimônia, o funeral do Sumo Pontífice foi estranhamente destituído de emoção. Era como se o seu pontificado há muito que tivesse terminado. Depois da Humanae Vitae não houvera mais encíclicas papais. Além de seus comentários corajosos quando seu grande amigo, o ex-Primeiro-Ministro Aldo Moro, foi seqüestrado e depois assassinado, houve muito pouco de Paulo, ao longo da última década, para inspirar uma efusão de consternação por ocasião de sua morte: um homem para se respeitar, não para se amar. Houve muitos artigos longos e doutos de análise do seu pontificado em profundidade, mas se a posteridade o lembrar será como o homem que proibiu a pílula. Pode ser um epitáfio cruel, um sumário injusto de uma mente às vezes brilhante e freqüentemente torturada, mas o que ocorre no leito conjugal é mais importante para as pessoas comuns do que o fato de Paulo ter voado em muitos aviões, visitado muitos países, acenado para muitas pessoas e sofrer agonias mentais.

O Papa Paulo emitira, em outubro de 1975, diversas determinações que seriam aplicadas por ocasião de sua morte. Uma delas foi a de que todos os cardeais no comando dos departamentos da Cúria Romana deveriam automaticamente renunciar a seus cargos. Isso garantia que o sucessor do Papa teria total liberdade para designar os novos encarregados. Mas também garantia, durante o período de sede vacante, entre a morte e a eleição, muita agitação nervosa. Uma das poucas exceções a essa regra de renúncia automática era o Camerlengo. Esse cargo era ocupado pelo Secretário de Estado, Cardeal Jean Villot. Até que o trono fosse ocupado, Villot tornou-se o guardião das chaves de Pedro, Durante a vacância, o governo da Igreja foi confiado ao Sacro Colégio de Cardeais, que era obrigado a realizar reuniões diárias ou "Congregações Gerais".

Outra determinação do falecido Papa tornou-se rapidamente a causa de acalorados debates durante as primeiras Congregações Gerais. Paulo excluíra especificamente do Conclave que elegeria o seu sucessor todos os cardeais com mais de 80 anos. Ottaviani desfechou um ataque furioso a essa regra. Apoiado pelo Cardeal Confalonieri, que tinha 85 anos, e por outros cardeais com mais de 80 anos, tentou revisá-la. Paulo travara muitas batalhas com esse grupo. Na morte, ganhou a última. Os cardeais votaram a favor da manutenção das regras. As Congregações Gerais continuaram discutindo em determinada ocasião por mais de uma hora se os papéis dos votos deveriam ser dobrados uma ou duas vezes.

Roma começava a encher, mas não com italianos, pois a maioria fora para as praias. Além dos turistas, a cidade enxameava de grupos de pressão, vaticanologistas, correspondentes estrangeiros e muitos lunáticos. Muitos dos últimos circulavam pela cidade com cartazes que pediam "Elejam um Papa Católico".

Um dos "especialistas" informou incisivamente à revista Time: "Não conheço nenhum cardeal italiano que esteja disposto a votar num estrangeiro." Obviamente, não conhecia muitos cardeais italianos e certamente não o que era o Patriarca de Veneza. Antes de partir para Roma, ele dissera ao Padre Mario Senigaglia:

— Creio que chegou o momento apropriado para um Papa do Terceiro Mundo.

Ele também deixou bem claro quem era o seu preferido: Cardeal Aloísio Lorscheider, do Brasil. Lorscheider era considerado uma das melhores mentes da igreja moderna. Durante sua permanência em Veneza veio a conhecê-lo bem, confidenciando a Senigaglia:

— Ele é um homem de fé e cultura. Além disso, tem um bom conhecimento da Itália e do italiano. E, mais importante do que tudo, seu coração e mente estão com os pobres.

Além de seus encontros na Itália, Luciani passara um mês com Lorscheider no Brasil, em 1975. Conversaram em várias línguas e descobriram que tinham muito em comum. O que Luciani não sabia era a alta estima que Lorscheider tinha por ele:

— Naquela ocasião poucos arriscariam dizer que um dia o Patriarca de Veneza tornar-se-ia Papa.

Levado a Roma pelo Padre Diego Lorenzi, o homem que substituíra Senigaglia como secretário do Patriarca dois anos antes, Luciani ficara na residência agostiniana, perto da Praça de São Pedro. Além de comparecer diariamente às Congregações Gerais, ele se mantinha isolado durante a maior parte do tempo, preferindo passear pelos jardins agostinianos, a meditar sossegado. Muitos dos seus colegas levavam vidas mais ativas, como era o caso do favorito da Ladbrokes, por exemplo, o Cardeal Pignedoli.

Pignedoli fora amigo íntimo do falecido Papa. Alguns comentaristas italianos diziam cruelmente que ele fora o único amigo que Paulo tivera. Certamente parecia ter sido o único a tratá-lo com toda intimidade de "Dom Battista". O Cardeal Rossi, do Brasil, esforçava-se para lembrar os outros cardeais da tradição de que os Papas indicavam quem deveria ser o sucessor, insistindo que Pignedoli era "o filho mais amado de Paulo". Pignedoli era um dos mais progressistas da Cúria e por isso mesmo merecia a aversão da maioria dos outros cardeais curiais. Era culto, viajado e, o que talvez fosse mais importante para a sua candidatura, influenciara direta ou indiretamente as designações de pelo menos 28 cardeais.

Uma disputa franca e honesta do Trono do Vaticano é considerada uma coisa lamentável nos altos escalões da Igreja Católica. Os candidatos não são estimulados a anunciarem publicamente qual será o seu programa ou plataforma. Em teoria, não há cabala de votos ou grupos de pressão. Na prática, há tudo isso e muito mais. Em teoria, os cardeais se reúnem em Conclave secreto e esperam que o Espírito Santo os inspire. Enquanto os dias quentes de agosto transcorriam, telefonemas, reuniões secretas e promessas eleitorais garantiam que o Espírito Santo estava recebendo uma considerável ajuda secular.

Uma técnica tradicional para um candidato é declarar que não se julga realmente à altura do cargo. Muitos disseram isso, durante aquele período, com absoluta sinceridade, como foi o caso do Cardeal Basil Hume. Outros fizeram declarações similares, mas ficariam consternados se os colegas aceitassem integralmente.

Num chá da tarde, a 17 de agosto, Pignedoli declarou a um grupo de cardeais italianos, em que estavam representadas todas as tendências, de direita, centro e esquerda, que apesar de todas as insistências e estímulos não se sentia apto a assumir o pontificado. Sugeriu aos colegas que votassem no Cardeal Gantin. Era uma sugestão imaginativa.

Gantin, o cardeal preto de Benin, tinha 56 anos. Havia, portanto, bem pouca possibilidade de ser eleito, por causa de sua relativa juventude. A idade ideal era considerada o final da casa dos 60 anos. Pignedoli tinha 68 anos. Além disso, Gantin era preto. O racismo não está confinado a um lado do Tibre. A proposta do nome de Gantin podia atrair para Pignedoli votos do Terceiro Mundo, cujos cardeais detinham uma parcela vital de 35 votos.

Pignedoli observava que se devia eleger o sucessor, quem quer que fosse, com o máximo de presteza possível. A votação no Conclave deveria começar na manhã de 26 de agosto. um sábado Pignedoli achava que o mais conveniente era que o novo Papa já estivesse eleito na manhã de domingo, dia 27, a fim de poder falar para a multidão comprimida na Praça de São Pedro ao meio-dia.

Se houvesse um desejo generalizado entre os cardeais de encontrar uma solução rápida para o Conclave, o maior beneficiário seria o cardeal que entrasse na competição com o maior número de partidários. Afinal, os cardeais são tão suscetíveis a tais demonstrações quanto os mortais inferiores. Pignedoli sabia que, para alcançar o pontificado, teria de contar com os cardeais que não pertenciam à Cúria para lhe darem os 75 votos vitais (dois terços mais um). Quando a Cúria superasse as lutas internas, acabaria se concentrando num candidato específico, de preferência um dos seus. Os sábios lançavam para o ar, como malabaristas alucinados, diversos candidatos curiais: Bertoli, Baggio, Felici.

Numa curiosa manobra para ajudar sua própria candidatura Baggio entrou em contato com Paul Marcinkus e assegurou-lhe que, se fosse eleito, haveria de confirmá-lo na direção do Banco do Vaticano. O Bispo Marcinkus, ao contrário dos cardeais que haviam renunciado automaticamente em decorrência da determinação do falecido Papa, continuava a dirigir o banco. Não havia qualquer indicação pública de que ele não continuaria no cargo. O gesto de Baggio desconcertou os observadores italianos. Mas se conseguissem persuadir qualquer dos cardeais presentes às secretas Congregações Gerais a falar, compreenderiam que a atitude de Baggio tinha um profundo significado.

As reuniões vinham analisando os problemas com que se defrontava a Igreja e as possíveis soluções. Assim, os candidatos papais mais prováveis eram os que pareciam capazes de executar as soluções. As reuniões de agosto tornaram-se inevitavelmente profundas. Os problemas levantados incluíam a disciplina na Igreja, evangelização, ecumenismo, colegialidade e paz mundial. Havia um outro assunto que também preocupava os cardeais: as finanças da Igreja. Muitos sentiam-se contrariados porque Marcinkus ainda dirigia o Banco do Vaticano, mesmo depois do escândalo de Sindona. Outros queriam uma investigação meticulosa das finanças do Vaticano. O Cardeal Villot, como Secretário de Estado e Camerlengo, teve de escutar uma longa lista de queixas, todas com um denominador comum: o nome do Bispo Paul Marcinkus. Fora esse o motivo da oferta de Baggio de mantê-lo no cargo, uma tentativa de preservar a situação atual e também uma manobra para ganhar os votos de homens como o Cardeal Cody, de Chicago, que ficariam felizes se Marcinkus continuasse à frente do Banco do Vaticano.

O cardeal de Florença, Giovanni Benelli, era outro que merecia a atenção dos observadores. Como o executor de Paulo. fizera muitos inimigos, mas também se reconhecia que ele era capaz de influenciar pelo menos 15 eleitores.

Para confundir ainda mais a situação, os 15 anciãos descontentes que seriam excluídos do Conclave real começaram a pressionar os colegas. O grupo, que continha alguns dos elementos mais reacionários do Vaticano, defendia previsivelmente o cardeal que considerava mais representativo de seu ponto de vista coletivo, o Arcebispo de Gênova, Cardeal Giuseppe Siri. Fora o homem que liderara a luta contra muitas das reformas do Concílio Vaticano Segundo. Fora o principal candidato da ala da direita no Conclave que elegera Paulo. Não havia, porém, unanimidade entre os octogenários, conhecendo-se pelo menos um, o Cardeal Carlo Confalonieri, que discretamente entoava louvores a Albino Luciani. Não obstante, o grupo como um todo achava que Siri deveria ser o próximo Papa.

O Cardeal Siri alega que é um incompreendido Durante um sermão, censurou as mulheres por usarem calças compridas e exortou-as a voltarem aos vestidos, "a fim de que possam se lembrar de sua verdadeira função neste mundo".

Durante a série de nove missas memoriais pelo Papa Paulo, as homilias foram feitas, entre outros, pelo Cardeal Siri. O homem que bloqueara e obstruíra o Papa Paulo em todas as oportunidades comprometeu-se com os objetivos do falecido Pontífice. A campanha por Siri passou em grande parte despercebida da imprensa. Um dos argumentos usados pelos partidários de Siri era o de que o novo Papa deveria ser italiano. Insistir que o novo Papa fosse nascido na Itália. embora apenas 27 dos 111 cardeais eleitores fossem italianos, era uma típica atitude que predomina no Vaticano. A crença de que somente um pontificado italiano pode controlar não apenas o Vaticano e a Igreja além, mas também a própria Itália. está profundamente arraigada no pensamento da aldeia que é o Vaticano. O último dos chamados Papas "estrangeiros fora Adriano VI, da Holanda, em 1522. Esse homem excepcionalmente talentoso e escrupulosamente honesto tornou-se plenamente consciente dos muitos males que floresciam em Roma. Numa tentativa de conter a maré crescente de protestantismo na Alemanha, ele escreveu para o seu núncio naquele país:

Você deve também dizer que reconhecemos francamente que... coisas que merecem repulsa ocorreram por muitos anos na Santa Sé. Coisas sagradas foram mal usadas, preceitos foram violados, de tal forma que houve em tudo uma mudança para pior. Assim, não é de surpreender que a doença tenha se espalhado da cabeça aos membros, dos Papas à hierarquia. Todos nós, prelados e clero, nos afastamos do caminho certo... Portanto, em nosso nome, prometa que usaremos toda diligência para reformar, antes de todas as outras coisas, o que talvez seja a fonte de todos os males, a Cúria Romana.

O Papa Adriano morreu meses depois de fazer essa declaração. Há indícios de que foi envenenado por seu médico.

Agora, com Paulo VI sepultado, a minoria da Cúria Romana tentava mais uma vez prevalecer sobre a maioria. Numa das primeiras Congregações Gerais, com apenas 32 cardeais presentes, quase todos italianos, ficara acertado que os 111 cardeais não entrariam em Conclave até 25 de agosto e a votação só começaria no dia seguinte. O adiamento de 20 dias era apenas um dia a menos que o período mais longo permitido, fixado pelas regras do falecido Papa. Era também o mais longo da história moderna. Em 1878, sem a TWA e a PanAm, os cardeais esperaram apenas 10 dias antes de iniciarem o Conclave que elegeu Leão XIII. O período de três semanas proporcionava aos cardeais italianos o máximo de tempo para persuadir os "estrangeiros" da sabedoria de se eleger um sucessor italiano para Paulo VI. Mas eles se defrontaram com uma oposição inesperada. Albino Luciani não era o único que achava que chegara o momento para um Papa do Terceiro Mundo. Muitos cardeais do Terceiro Mundo pensavam da mesma forma.

A maioria dos cardeais latino-americanos participou de uma reunião secreta no Colégio Brasileiro em Roma, a 20 de agosto. Não emergiu nenhum candidato forte dessa reunião, mas concordou-se que era necessário um Papa pastoral, um homem que manifestasse claramente santidade, que reconhecesse as aflições dos pobres, um homem a favor de partilhar o poder, da colegialidade, um homem que, por sua natureza e qualidades, exercesse uma atração sobre o mundo inteiro. O grupo estava basicamente interessado no que o novo Papa deveria representar, ao invés de quem seria, embora as qualificações especificadas reduzissem consideravelmente os possíveis vencedores.

Em Florença, Giovanni Benelli, considerado erroneamente por muitos como um candidato ao Papado, tomou conhecimento das especificações latino-americanas. Sorriu ao examinar as qualidades que os latino-americanos procuravam. Era justamente unia biografia acurada do homem que Benelli achava que deveria ser o novo Papa. Ele pegou o telefone, discou interurbano e momentos depois estava empenhado numa animada conversa com o cardeal belga, Suenens.

Em Roma, Pignedoli continuava a oferecer jantares suntuosos, os cardeais curiais continuavam a pressionar discretamente em favor de Siri e a imprensa oficial do Vaticano persistia em sua política de fornecer o mínimo de cooperação aos comentaristas do mundo enquanto se aproximava a data do que Peter Nichols, de The Times, de Londres, chamou de "a votação mais secreta do mundo".

Os cardeais latino-americanos não foram os únicos a formar um grupo que apresentou um documento que equivalia a uma descrição das qualificações para o candidato. Uma semana antes, um grupo de católicos que se intitulava a CERP (Comissão para a Eleição Responsável do Papa) concedeu uma entrevista coletiva no Hotel Columbus, em Roma. O bravo homem escolhido para responder às perguntas de mais de 400 repórteres foi o Padre Andrew Greeley. Ele próprio não era um membro da Comissão, mas elaborara, junto com um grupo de teólogos, a descrição das funções necessárias ao novo Papa. Houve muitas criticas ao documento. A maioria era banal, sem a menor importância. Indubitavelmente, os signatários pareciam estar procurando por um homem extraordinário. Também não havia qualquer dúvida de que o documento demonstrava um profundo amor pela Igreja Católica. Aqueles homens se importavam desesperadamente com a natureza e qualidade do novo Papado. Ignorar homens da qualidade de Hans Kung, Yves Congar e Edward Schillebeeck exige uma mentalidade que beira a esterilidade espiritual. O Professor Kung, por exemplo, é considerado por muitos que são qualificados para julgar como o mais brilhante teólogo católico vivo da atualidade. Todos os signatários do documento possuíam antecedentes impressivos.

 

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Um homem santo e esperançoso, que saiba sorrir.

Trabalho interessante, renda garantida, residência oficial com o cargo. Proteção por organização de segurança comprovada. Inscrições no Colégio dos Cardeais, Cidade do Vaticano.

 

Assim começava a descrição do cargo. Relatava como eles gostariam que fosse o homem escolhido pelo Conclave secreto. Não tinha importância que fosse curial ou não-curial, italiano ou não-italiano, do Primeiro, Segundo ou Terceiro Mundo. Não importava que fosse um intelectual ou um não-intelectual, que fosse um diplomata ou um pastor, progressista ou moderado, um administrador eficiente ou carecendo de experiência administrativa. O que era necessário, diziam os teólogos, naquele momento crítico na história, era "um homem de santidade, um homem de esperança, um homem de alegria. Um homem santo que possa sorrir. Um Papa não para todos os católicos, mas para todas as pessoas. Um homem totalmente livre de qualquer mácula de transações financeiras".

O documento acrescentava outras qualificações essenciais. Lendo o e fazendo-se uma comparação com os principais candidatos, a impressão predominante é de necessidade urgente e profunda, quase desesperada.

Greeley passava por momentos difíceis, que se tomaram ainda piores quando teve a temeridade de sugerir que talvez não fosse má idéia um Papa do sexo feminino. Apresentar tal sugestão, numa sala repleta de repórteres italianos machistas, exigia muita coragem. A reunião terminou em alguma confusão, com uma jovem italiana gritando para o Padre Greeley que ele encarnava o mal e tinha problemas sexuais.

Poucos dias depois, o Professor Hans Kung comentou, numa entrevista à revista italiana Panorama, que na sua opinião toda a Igreja Católica tinha e continuaria a ter problemas sexuais, até que se fizesse alguma coisa em relação à Humanae Vitae. Ele colocou o controle da natalidade à frente dos problemas com que se defrontaria o novo Papa. "E uma questão fundamental para a Europa e os Estados Unidos, mas, acima de tudo, para o Terceiro Mundo. ... Uma revisão da Humanae Vitae é indispensável. Muitos teólogos e também bispos não teriam a menor hesitação em aceitar o controle da natalidade, mesmo por meios artificiais, se fosse possível admitir a idéia de que as regras estabelecidas por Papas no passado podem ser corrigidas."

A 21 de agosto, o Cardeal Lorscheider, do Brasil, concedeu uma entrevista em que informava exatamente o que constava da lista de "Procura-se" dos latino-americanos. Queriam um Papa que fosse um homem de esperança, com uma atitude positiva em relação ao mundo. Queriam um homem que não tentasse impor soluções cristãs aos não-cristãos. Queriam um homem que fosse sensível aos problemas sociais e aberto ao diálogo, com o compromisso de procurar a unidade; um bom pastor, como Jesus fora; um homem que acreditasse sinceramente que a Conferência dos Bispos devia ser um fator mais influente no Pontificado, ao invés de meramente decorativa. Ele devia ser aberto para encontrar uma solução nova para a questão do controle da natalidade, que não entraria em contradição com a Humanae Vitae, mas iria além.

Os Cardeais Benelli e Suenens, ainda evitando o calor de Roma, continuavam discretamente a trabalhar pela candidatura de um homem que correspondia aos desejos dos cardeais latino-americanos, do Padre Greeley e do Professor Kung: Albino Luciani.

Quando o nome de Luciani aflorou na imprensa italiana, durante o período imediatamente anterior ao Conclave, sua candidatura foi prontamente descartada como uma mera manobra. Um especialista italiano em coisas do Vaticano, Sandro Magister, não deu a menor importância às possibilidades do "insípido Patriarca de Veneza". Outro que teve reação similar, embora devesse saber que não era bem assim, foi Giancarlo Zizola. Poucos dias antes do Conclave, Zizola — que entrevistara Albino Luciani longamente nove anos antes — escreveu uma pequena biografia em que descartava as suas possibilidades, intitulada Com os Pobres (Mas não à Esquerda). Zizola citou uma fonte anônima, que comentara: "O mínimo que se pode dizer é que ele é agora o líder reconhecido da direita eclesiástica, uma réplica veneziana do Cardeal Ottaviani".

Luciani, quando interrogado pela imprensa a respeito da aparição espasmódica de seu nome entre os candidatos, descartou a sugestão com uma risada.

— Na melhor das hipóteses, estou na lista C para Papa.

Os meios de comunicação deixaram-no em paz. Seu nome foi rapidamente esquecido. Permanecendo alheio às manobras e cabalas, Luciani continuou a passear pelos jardins da residência agostiniana, junto da Praça de São Pedro. Conversava muito com o Irmão Clemente, que suava profusamente, enquanto trabalhava nos canteiros de flores. Luciani recordou que, quando era menino, trabalhara nos campos.

— Tinha então as mãos cheias de calos. Agora, tenho calos no cérebro.

Enquanto o dia do inicio do Conclave se aproximava, Luciani tinha outras preocupações. O Lancia 2000 de cinco anos estava com problemas no motor. Ele disse a seu secretário, Padre Lorenzi, que precisava consertá-lo o mais depressa possível. A votação no Conclave deveria começar no sábado, 26 de agosto. Luciani insistiu que o carro estivesse pronto para seu retorno a Veneza na terça-feira, dia 29. Queria partir bem cedo. Havia muito o que fazer quando voltasse para casa.

A 25 de agosto, Luciani escreveu para sua sobrinha Pia:

 

                   Querida Pia:

Estou escrevendo para enviar-lhe os novos selos da Sede Vacante e também para lhe dar os parabéns pela aprovação em seu primeiro exame. Vamos torcer para que o Senhor a ajude também no resto. Encerramos hoje o pré-Conclave, com a última Congregação Geral. Depois, sorteamos os números para uma cela e fomos visitá-las.

Peguei o número 60, uma sala de estar convertida em quarto; é como voltar ao seminário em Feltre, em 1923. Uma cama de armação de ferro, um colchão, uma pia.

Na 61 está o Cardeal Tomasek, de Praga. Mais adiante, estão os Cardeais Tarandon, de Madri; Medeiros, de Boston; Sin, de Manila; Malual, de Kinshasa. Só está faltando a Austrália e teríamos uma concentração do mundo inteiro. Não sei por quanto tempo o Conclave vai se prolongar, pois é difícil encontrar a pessoa certa para se confrontar com tantos problemas, que são cruzes muito pesadas. Felizmente, estou fora de perigo. Já é uma tremenda responsabilidade votar nessas circunstâncias. Tenho certeza de que, como uma boa cristã, você rezará pela Igreja nestes momentos difíceis. Apresente meus cumprimentos a Francesco, ao pai e à mãe. Não estou lhes escrevendo porque ando bastante ocupado.

                                      Afetuosamente, Albino Luciani

 

No dia seguinte, poucas horas antes do Conclave, ele escreveu para a irmã Antonia:

 

Querida irmã: Estou lhe escrevendo pouco antes de entrar no Conclave. São momentos de grande responsabilidade, embora não haja qualquer perigo para mim, apesar dos comentários dos jornais. Dar o voto para um Papa nas atuais circunstâncias é uma pesada responsabilidade. Reze pela Igreja e transmita os meus cumprimentos afetuosos a Errere, Roberto e Gino.

Albino Luciani

Entregando a carta aos agostinianos para ser despachada, ele informou que deixara a maioria dos seus pertences no quarto. Naquela manhã, celebrara uma missa "para a eleição de um Papa" com os outros cardeais. Clemente já levara para a Capela Sistina uma valise de Luciani. Agora, o cardeal juntou-se aos colegas na Capela Paulina, com seus afrescos de Michelangelo. Escoltados por Monsenhor Virgilio Noe, o Mestre de Cerimônias Papal, e precedidos pelo Coro da Capela Sistina, entoando o hino ao Espírito Santo, eles atravessaram a Sala Ducale, por baixo dos querubins de Bernini, entrando na Capela Sistina.

Quando Monsenhor Noe disse "Extra omnes" (Todos fora), o coro, ajudantes, equipes de televisão e todo o pessoal irrelevante se retiraram. Com o Cardeal Villot de pé junto à porta, no lado de dentro, enquanto Noé ficava na mesma posição no lado de fora, os 111 cardeais foram isolados do mundo. A porta não tornaria a ser aberta enquanto não fosse eleito um novo Papa.

A votação mais secreta do mundo Continuaria até que a fumaça branca informasse às multidões à espera na Praça de São Pedro e aos muitos milhões de observadores no mundo inteiro que o trono do Vaticano tinha um novo ocupante.   

 

                              Dentro do conclave

Quaisquer que fossem as deficiências do Papa Paulo, ele certamente sabia como organizar um Conclave secreto. Deixara instruções precisas sobre os trâmites para eleger seu sucessor.

Uma das preocupações de Paulo fora o sigilo. Dois dias antes do Conclave, os cardeais tiveram de prestar um juramento solene. Sob pena de excomunhão, ficaram proibidos de subseqüentemente discutir a votação, "por sinais, palavras faladas ou escritas ou por qualquer outro meio". Para acentuar ainda mais esse ponto, os cardeais também tiveram de prometer e jurar "não usar no Conclave qualquer tipo de instrumento transmissor ou receptor nem aparelhos destinados a captar imagens por qualquer forma". Era evidente que o Papa Paulo não confiava plenamente naqueles Príncipes da Igreja Católica.

No caso de algum cardeal sofrer um lapso de memória entre o Juramento de Sigilo e o ingresso no Conclave, todos foram obrigados a renová-lo depois que as pessoas alheias à eleição deixaram a Capela Sistina.

Para aumentar ainda mais as garantias, depois que os cardeais se retiraram para seus quartos ou "celas", como Paulo preferira chamá-las, o Cardeal Villot, ajudado por alguns colegas e dois técnicos, efetuou uma revista completa de toda a área do Conclave, à procura de alguém que pudesse ter se escondido por ali, na esperança de conseguir o maior furo de uma vida. Depois, de uma maneira que fazia lembrar o Stalag Cinco ou Colditz, todos os presentes foram fisicamente revistados e fez-se uma chamada geral na Capela.

A fim de que ninguém de fora tentasse entrar, Paulo também dera instruções para que o pessoal do Vaticano, inclusive os Guardas Suíços, vigiasse atentamente os arredores da Capela Sistina, Não está enunciado expressamente nos regulamentos se Paulo receava que os octogenários banidos tentassem pular os muros.

Villot e seus assistentes, com mais os dois técnicos, certamente fizeram jus a muitas liras durante o Conclave. Outra de suas tarefas era efetuar buscas ao acaso de toda a área do Conclave, procurando por gravadores, equipamento de vídeo e quaisquer formas de escuta eletrônica.

Com todas essas buscas, revistas pessoais e contagem dos presentes, o falecido Papa com absoluta certeza compreendia que não restaria muito tempo no primeiro dia para o trabalho de eleição do novo Papa.

Com Roma suando profusamente sob uma onda de calor, a temperatura na Capela Sistina devia estar quase insuportável para aqueles homens, quase todos anciãos. O falecido Papa não esquecera as janelas. Suas instruções eram para que todas fossem fechadas e lacradas. Era nesse ambiente que, no dia seguinte, os 111 cardeais tomariam a decisão mais importante de suas vidas.

Se além dos muros as esperanças, necessidades e desejos de milhões de católicos em relação ao novo Pontificado eram incontáveis tudo se refletia acuradamente num perfil das opiniões contidas no Conclave. A direita representava as aspirações dos que desejavam um retomo ao mundo anterior ao Concílio Vaticano Segundo, cujo princípio básico era a disciplina eclesiástica de natureza rígida. A esquerda procurava um Papa que compreendesse e relacionasse a Igreja com os pobres, um Papa que governasse de maneira democrática e reconhecesse que os bispos deveriam influenciar a orientação da Igreja. A esquerda ansiava por um João XXIII, enquanto a direita sonhava com um Pio XII. No meio, estavam os homens que assumiam ambas as posições, tentando voltar e avançar simultaneamente. Havia também Albino Luciani, um homem de uma simplicidade rara, geralmente encontrada nos que possuem uma mente de extrema inteligência, sofisticada e complexa. Encarava a sua missão como uma necessidade de reconhecer as aspirações irrealizadas no Terceiro Mundo. Por isso é que decidira votar num brasileiro, o Arcebispo de Fortaleza, Aloisio Lorscheider, um homem de inteligência excepcional e que sabia de tudo sobre os problemas dos pobres. Eleger um homem assim para Papa seria uma escolha inspirada, com ou sem a ajuda do Espírito Santo.

Giovanni Benelli e Leon Joseph Suenens tinham uma escolha igualmente inspirada. Antes do Conclave, Benelli acompanhara com ironia a especulação dos meios de comunicação a identificá-lo como um possível Papa. Permanecera em silêncio ao sofrer ataques insidiosos de cardeais da Cúria, como Pericle Felici, o Administrador do Patrimônio da Santa Sé, que comentara a seu respeito:

- O voto dele será apenas para si mesmo.

Felici logo descobriria que Benelli tinha planos diferentes para seu voto e, o que era ainda mais importante, para os votos de outros. Quando os cardeais da Cúria tomaram conhecimento das discretas démarches de Benelli e Suenens, descartaram qualquer possibilidade para Albino Luciani, como já acontecera antes com os homens e mulheres dos meios de comunicação. Entre as muitas biografias fornecidas pelo Vaticano antes do Conclave, a de Luciani era a mais curta. Era evidente que os homens no poder concordavam que, em sua própria avaliação, ele não passava de um candidato na Lista C. Como a imprensa mundial, a Cúria não conhecia o homem. Mas, infelizmente para a Cúria, outros cardeais conheciam. Depois da eleição, muitos jornalistas do mundo inteiro e os especialistas em Vaticano desculparam-se por sua incapacidade de indicar o vencedor com alegação de que ele era 'desconhecido, nunca deixou a Itália e não fala qualquer outra língua".

Albino Luciani era fluente em alemão, francês, português e inglês, além de italiano e latim. Além de ser bastante conhecido pelos cardeais italianos que não pertenciam à Cúria, tinha muitas amizades entre os estrangeiros. Os poloneses Wojtyla e Wyszynski haviam sido seus hóspedes em Veneza. Wojtyla influenciara o pensamento de Luciani em relação ao problema do marxismo. Ele se hospedara com Lorscheider por ocasião de uma viagem ao Brasil, em 1975. O Cardeal Arns, também do Brasil, era outro amigo íntimo. Suenens, da Bélgica, Willebrands, da Holanda, Marty, da França, Cooke, de Nova York, Hoeffner e Volk, da Alemanha, Manning, de Los Angeles, Medeiros, de Boston, eram apenas alguns dos Outros cardeais que mantinham relações de amizade com Luciani. Além do Brasil, ele já visitara também Portugal, Alemanha, França, Iugoslávia, Suíça e Áustria, sem falar na África, onde criara um vinculo entre Vittorio Veneto e Kiremba, uma cidadezinha em Burundi.

Ele mantinha amizade com muitos não-católicos. O negro Phillip Potter, secretário do Conselho Mundial das Igrejas, fora hóspede em sua casa. Também se relacionava com judeus, anglicanos e cristãos pentecostais. Trocava livros e cartas com Hans Kung. Se a Cúria Romana soubesse disso, sinos de alarme soariam por toda a Cidade do Vaticano.

Era assim o homem que desejava apenas dar o seu voto, ver o novo Papa eleito, embarcar em sua Lancia consertada e voltar a Veneza. Já considerara a possibilidade de seu nome emergir de repente, por um absurdo capricho do destino. Quando Maria Senigaglia lhe desejara boa sorte e o exortara a levar alguns de seus discursos, pois "tudo pode acontecer", Luciani descartara a sugestão, dizendo:

- Há sempre uma saída: pode-se recusar.

Em Roma, Diego Lorenzi, secretário de Luciani desde 1976, também manifestara o desejo de que aquele homem, a quem encarava como um pai, como já acontecera com Senigaglia antes dele, se tornasse o novo Papa. Luciani tornara a descartar a sugestão, lembrando a Lorenzi as regras que o falecido Papa elaborara. Referia-se ao momento supremo em que um dos cardeais recebesse dois terços e mais um dos votos, o que representava naquela eleição um total de 75. Perguntou-se então ao cardeal em questão: "Você aceita?" Luciani sorrira ao arrematar:

- Se me elegerem, eu responderei: Sinto muito, mas recuso.

Na manhã de sábado, 26 de agosto, depois de celebrarem a missa e tomarem o café da manhã, os cardeais se dirigiram às suas cadeiras designadas na Capela Sistina. Os regulamentos determinavam que cada cardeal disfarçasse sua letra no cartão de votação, que ficava reduzido a menos de dois centímetros, depois de dobrado duas vezes. Depois que foram escolhidos os escrutinadores, mais três cardeais foram designados para fiscais. A maioria de dois terços mais um era a salvaguarda prevista pelo Papa Paulo para o caso de um cardeal votar em si mesmo.

Finalmente, com a temperatura e a tensão aumentando, começou a primeira votação.

Depois que os votos foram apurados, conferidos, reconferidos e verificados pela terceira vez, a fim de se certificar que nenhum cardeal votara duas vezes, os cartões foram cuidadosamente reunidos, recontados e colocados numa caixa, para serem queimados. A primeira votação apresentou o resultado seguinte:

 

               Siri - 25 votos

               Luciani - 23 votos

               Pignedoli - 18 votos

               Lorscheider - 12 votos

               Baggio - 9 votos

 

Os restantes 24 votos foram dispersos. Os italianos Bertoli e Felici, o argentino Pironio e o cardeal polonês Karol Wojtyla também receberam votos, assim como os Cardeais Cordeiro, do Paquistão, e Franz Koenig, da Áustria.

Albino Luciani escutara com crescente incredulidade enquanto o escrutinador lia seu nome 23 vezes. Quando diversos cardeais nas proximidades viraram-se em sua direção e sorriram, limitou-se a sacudir a cabeça, aturdido. Como pudera obter tantos votos?

Os Cardeais Benelli, Suenens e Marty poderiam fornecer a resposta. Haviam criado o que consideravam uma base bem-sucedida para promover Luciani. Além desses três, também votaram em Luciani na primeira vez um grupo internacional de cardeais: Renard e Gouyon, da França; Willebrands e Alfrink, da Holanda; Koenig, da Áustria; Volk e Hoeffner, da Alemanha; Malula, do Zaire; Nsubuga, de Uganda; Thiandoum, de Dakar; Gantin, de Benin; Colombo, de Milão; Pelargônio, de Turim; Ursi, de Nápoles; Poma, de Bolonha; Cooke, de Nova York; Lorscheider, do Brasil; Ekandem, da Nigéria; Wojtyla, de Cracóvia; e Sin, de Manila.

Sem conhecer as identidades de seus partidários, Luciani concluiu que essa aberração se corrigiria na segunda votação. Pegando outro cartão de votação, tornou a escrever o nome de Aloísio Lorscheider.

Os cardeais da Cúria observavam Luciani com um renovado interesse. O primeiro empenho deles fora conter a campanha de Pignedoli pelo Pontificado. A segunda votação confirmou que esse objetivo fora alcançado:

 

               Siri - 35 votos

               Luciani – 30 votos

             Pignedoli – 15 votos

               Lorscheider - 12 votos

 

Os restantes 19 votos foram outra vez dispersos.

Os cartões de votação, juntamente com os do primeiro escrutínio, foram metidos na estufa antiquada, a maçaneta puxada; só que a fumaça preta, ao invés de sair lá fora, no telhado, prontamente encheu a Capela Sistina. Apesar do funeral do Papa Paulo e do Conclave estar custando milhões de dólares à Igreja, alguma autoridade do Vaticano resolvera economizar umas poucas liras e determinara que a chaminé não precisava ser limpa. O resultado, com todas as janelas fechadas, ameaçava provocar um fim súbito e dramático ao Conclave'. O falecido Papa não previra a possibilidade de todos os 111 cardeais sufocarem até a morte, mas providenciara para que diversos membros do corpo de bombeiros do Vaticano permanecessem na área. Eles se arriscaram à excomunhão abrindo imediatamente diversas janelas.

Um pouco da fumaça preta acabou saindo pela chaminé da Capela Sistina e a Rádio Vaticano confirmou que a manhã não produzira um Papa. Muitos experts em Vaticano previram um Conclave prolongado, raciocinando que seria necessário muito tempo para que 111 homens das mais diversas partes do mundo chegassem a alguma forma de unanimidade relativa. Observando a fumaça preta, os sábios assentiram solenemente e prosseguiram em suas tentativas de arrancar da imprensa oficial do Vaticano informações vitais como o cardápio do almoço no Conclave.

O maior e mais diversificado Conclave de toda a história da Igreja transferiu-se apressadamente da Capela Sistina para o provisório bufê.

A terceira votação seria crucial. Siri e Luciani estavam equilibrados. Enquanto um preocupado Patriarca de Veneza comia com dificuldade, outros cardeais estavam bastante ocupados. Giovanni Benelli conversava discretamente com os cardeais da América Latina. Assegurou-lhes que haviam fixado sua posição, mas era evidente que um Papa do Terceiro Mundo não emergiria naquele Conclave. Queriam no trono um homem como Siri, com opiniões reacionárias? Por que não um homem que podia não ser do Terceiro Mundo, mas claramente o amava? Não era segredo para ninguém, disse Benelli, que Luciani estava votando em Aloísio Lorscheider.

Na verdade, Benelli corria o perigo de chover no molhado. Os cardeais da América Latina haviam se preparado para o Conclave muito mais do que qualquer outro grupo geográfico. Conscientes de que as possibilidades de Lorscheider não eram grandes, antes do Conclave elaboraram uma lista de italianos que não eram da Cúria. Um dos homens com quem discutiram essa lista foi o Padre Bartolomeu Sorges, um jesuíta baseado em Roma. Durante uma reunião de duas horas, Sorges apontou os prós e contras de cada possível candidato. O nome que emergira fora o de Albino Luciani. O Padre Sorges recordou para mim as suas palavras finais de conselho ao grupo de cardeais:

 

Se querem eleger um Papa que ajude a desenvolver a Igreja no mundo inteiro, então devem votar em Luciani. Mas lembrem-se de que ele não é um homem que está acostumado a governar; por isso mesmo, precisará de um bom Secretário de Estado.

 

Enquanto os murmúrios discretos das conversas continuavam, os Cardeais Suenens, Marty e Gantin, menos exuberantes, mas com igual eficácia, falavam a outros que ainda vacilavam. Koenig, de Viena, comentou para os que sentavam ao seu redor que os não-italianos não deveriam ter objeções em eleger outro italiano para seu líder espiritual.

A Cúria também considerava as suas opções durante o almoço. Fora uma boa manhã para os curiais. Haviam contido Pignedoli. Siri, o candidato deles naquela manhã, alcançara obviamente a sua posição máxima. Apesar de toda a pressão exercida antes do Conclave, era agora evidente a Felici e seu grupo que não seria possível atrair elementos suficientes da esquerda e do centro para Siri. Luciani, o homem tranqüilo de Veneza, certamente seria fácil de controlar no Vaticano. Mas os que ansiavam por um Pontificado anterior ao Vaticano Segundo não estavam convencidos. Ressaltaram que Luciani mais do que qualquer outro cardeal italiano, pusera em prática o espírito do Concílio do Papa João.

Na Inglaterra, tudo pára na hora do chá. Na Itália, o mesmo estado de suspensão animada é alcançado na sesta. Enquanto alguns permaneciam no refeitório, conversando calmamente, outros se retiraram para seus quartos a fim de dormirem um pouco. Na cela 60, Albino Luciani ajoelhou-se e rezou.

- Não se pode fazer nhoque com esta massa - Luciani comentara para diversas pessoas que lhe haviam desejado boa sorte, antes do Conclave.

Parecia agora que diversos outros cardeais discordavam dessa auto-avaliação. Através da prece, ele procurou a resposta não para o resultado final da votação, mas para o que deveria fazer se fosse eleito. Luciani, que jamais quisera ser qualquer outra coisa além de um padre paroquial, se achava no limiar da posição mais poderosa da Igreja Católica e caia de joelhos para suplicar a Deus que escolhesse outro.

Saindo de sua cela às quatro horas da tarde, Luciani foi afetuosamente abraçado pelo Cardeal Joseph Malula, do Zaire. Na maior alegria, Malula apresentou-lhe seus parabéns. Luciani sacudiu a cabeça, tristemente.

- Uma grande tempestade está me perturbando - disse ele, enquanto se encaminhavam para a terceira votação.

                 Luciani – 68 votos

                 Siri – 15 votos

                 Pignedoli - 10 votos

 

Os restantes 18 votos foram dispersos. Albino Luciani estava agora a oito votos do Pontificado. Levando a mão à testa, ele murmurou:

- Não, por favor, não...

Foram os Cardeais Willebrands e Riberio, sentados nos lados de Luciani, que ouviram a súplica. Os dois se inclinaram instintivamente para Luciani. Willebrands disse, suavemente:

- Coragem. Se o Senhor dá o fardo, também concede a força para carregá-lo.

Riberio assentiu e acrescentou:

- O mundo inteiro ora pelo novo Papa.

Não houve qualquer dúvida nas mentes de muitos dos presentes que o Espírito Santo se manifestou naquela tarde quente. Outros assumiram uma posição mais cética em relação ao fator que inspirou o Conclave. Taofina'y, de Samoa, foi ouvido a murmurar:

- O poder sob a forma de um homem.., ou melhor, de um cardeal da Cúria.

Seus olhos se fixavam em Felici quando fez esse comentário. Felici, que passara a manhã votando em Siri, aproximou-se agora de Albino Luciani. Entregou-lhe um envelope, dizendo:

- Uma mensagem para o novo Papa.

O papel lá dentro continha as palavras "Via Crucis", um símbolo do caminho da Cruz.

Havia grande excitamento no Conclave. Muitos se achavam agora convencidos de que agiam pela inspiração divina. Dispensando-se a exigência do falecido Papa de que cada cardeal prestasse um juramento solene antes de cada votação, a quarta disputa começou.

 

               Luciano - 99 votos

               Siri - 11 votos

               Lorscheider - 1 voto (o de Albino Luciani)

 

Quando o resultado final foi anunciado, houve uma explosão de aplausos entre os presentes. Eram 6:05 da tarde. Um grupo de partidários de Siri, membros da direita mais intransigente, resistira até o final. As portas da Capela Sistina se abriram e diversos Mestres de Cerimônia entraram, acompanhando o Camerlengo Villot. Encaminharam-se para o lugar em que Albino Luciani sentava. Villot disse:

- Aceita a sua eleição canônica para Supremo Pontífice?

Todos os olhos estavam fixados em Luciani. O Cardeal Giappi descreveu para mim aquele momento.

- Ele sentava três filas atrás de mim. Mesmo depois de sua eleição, ainda hesitava. O Cardeal Villot formulou a indagação e ele continuou a hesitar. Os Cardeais Willebrands e Riberio estavam visivelmente encorajando-o.

Luciani finalmente respondeu:

- Que Deus os perdoe pelo que fizeram comigo. - Após uma pausa, acrescentou: - Aceito.

- Por que nome deseja ser chamado? - perguntou Villot.

Luciani tomou a hesitar. Depois, sorriu pela primeira vez e disse:

- João Paulo I.

Houve murmúrios de satisfação de alguns dos cardeais que escutavam. O nome era uma inovação, o primeiro nome duplo na história do Pontificado. A tradição é de que a escolha do nome pelo novo Papa dá uma indicação dos rumos que ele tenciona assumir. Por isso, a escolha de Pio teria deliciado a ala direita, indicando possivelmente um retomo à Igreja pré-conciliar. A mensagem que Luciani transmitia com aquela escolha do nome dependia da mensagem que os ouvintes desejavam receber.

Por que Luciani, um homem sem ambição, aceitara a posição, que para muitos outros cardeais presentes seria a realização da grande ambição de suas vidas?

A resposta, como tantas coisas naquele homem simples, é complexa. Um levantamento indica que ele ficou desarmado com a rapidez e proporções da votação. Muitos me falaram desse aspecto, Talvez a situação tenha sido melhor resumida por um membro da Cúria, que tinha uma amizade intima de quase 20 anos com Albino Luciani:

Ele ficou consternado com a eleição. Se não se sentisse tão desarmado pela maioria tão expressiva, se os eventos transcorressem mais lentamente, ele teria tempo para se concentrar e recusar. Mas teria recusado de qualquer maneira naquele Conclave se concluísse que não era o homem indicado para tornar-se o Papa. E um dos homens mais fortes que já conheci, em 30 anos na Cúria.

Há também o elemento vital da humildade pessoal de Luciani. Descrever a aceitação do Pontificado como um ato de humildade pode parecer contraditório. Comparar a aceitação do poder supremo com mansidão, no entanto, é perfeitamente coerente, se a última coisa que se quer no mundo é o poder supremo.

Dentro do Conclave, enquanto o novo Papa era levado à Sacristia, tudo era alegria. Lá fora, tudo era confusão. Enquanto os irmãos Gammarelli, alfaiates do Vaticano, procuravam uma batina branca papal que se ajustasse, os cardeais queimavam os cartões de votação com o preparado químico especial que garantia a fumaça branca para o mundo à espera, na maior expectativa. E o mundo viu primeiro a fumaça branca, e pouco depois, lufadas de fumaça preta (indicando que a Igreja continuava sem um Papa) começaram a sair da pequena chaminé. A fumaça começara a emergir ás 6:24 da tarde. Enquanto continuava a sair, em diversas tonalidades, os irmãos Gammarelli não tinham muita sorte com as batinas brancas. Normalmente aprontavam três antes de um Conclave: pequena, média e grande. Desta vez, trabalhando com base numa lista de 12 papabile, haviam feito quatro, inclusive uma bem grande. Luciani, bastante franzino, não fora obviamente incluído na lista de papabile. Finalmente, quase sufocado na batina nova, ele deixou a sacristia e foi sentar numa cadeira diante do altar. Ali, cada cardeal beijou a mão do novo Papa e depois foi afetuosamente abraçado por Luciani.

Suenens, um dos cardeais basicamente responsáveis por aquela eleição, comentou:

- Santo Padre, obrigado por dizer sim.

Luciani sorriu.

- Talvez fosse melhor se eu tivesse dito não.

Os cardeais encarregados da estufa ainda queimavam os cartões de votação, junto com diversas velas químicas, que deveriam produzir a esquiva fumaça branca. A Rádio Vaticano sabia tanto quanto qualquer outra pessoa de fora sobre o que estava acontecendo e emitiu um comunicado extraordinário:

- Podemos agora anunciar com absoluta certeza que a fumaça é preta ou branca.

Na verdade, era cinza naquele momento. A Rádio Vaticano telefonou para a casa e a oficina dos irmãos Gammarelli, mas ninguém atendeu. Os irmãos continuavam na Sacristia, tentando atribuir a alguém mais a culpa pelo malogro das batinas brancas. O incidente rapidamente se transformava numa dessas óperas que somente os italianos são capazes de encenar. Enquanto isso, na Capela Sistina, os cardeais começavam a entoar o Te Deum, o hino de ação de graças.

Lá fora, o Padre Roberto Tucci, o jesuíta que era diretor da Rádio Vaticano, foi observado ao se encaminhar apressadamente para a porta de bronze do Palácio Papal, no outro lado da praça. O comandante da Guarda Suíça, que era obrigado a receber o novo Papa com uma saudação de lealdade de seus homens, interrogava o guarda que dissera ter havido uma explosão de aplausos no interior da Capela. Foi nesse instante que, espantado, ele ouviu o Te Deum. Isso só podia significar uma coisa: havia um novo Papa, quem quer que fosse. O problema era que ele não dispunha de um séquito de guardas pronto.

Presumindo que a fumaça indefinida indicava um impasse no Conclave, a multidão na Praça de São Pedro já se dispersava quando uma voz trovejou dos alto-falantes espalhados por toda parte:

- Attenzione.

As pessoas começaram a voltar apressadamente para a praça. A enorme porta por trás da varanda da Basílica de São Pedro se abriu. Vultos emergiram... Eram agora 7:18 da noite, mais de uma hora desde a eleição. O Cardeal Felici apareceu lá em cima e subitamente a multidão na praça ficou em silêncio.

No meio daquela multidão estava o secretário de Luciani, Diego Lorenzi. Encontrava-se de pé próximo a uma família de suecos que lhe perguntavam qual era sua função. E o jovem Lorenzi respondeu:

- Estou em Roma apenas por alguns dias. Trabalho em Veneza.

A seguir desviou seu olhar para a figura de Felici na sacada.

- Annuncio vobis gaudium magnum! Habemus Papam! (Trago noticias de grande alegria! Temos um Papa!) Cardinalem Albinum Luciani.

À menção do nome Albinum, Lorenzi voltou-se para a família sueca, e com lágrimas rolando por suas faces, sorriu e disse orgulhoso:

- Sou o secretário do Papa recém-escolhido.

A explosão da multidão quase abafou o nome "Luciani". Quando Felici acrescentou "Que escolheu o nome João Paulo I", o tumulto foi total. Muitos, quase a maioria, nunca tinham ouvido falar de Luciani, mas o que importava era que possuíam um novo Papa. A reação pessoal veio pouco depois, quando Albino Luciani apareceu na sacada. A memória que persiste é a do sorriso. Penetrava na própria alma. O homem irradiava satisfação e alegria. O que mais aquele Pontificado pudesse ser, certamente seria divertido. Depois do período sombrio e angustiante de Paulo, o contraste era um choque extraordinário. Quando o novo Papa entoou a bênção Urbi et Orbi, para a cidade e o mundo, o efeito foi similar à eclosão de um sol ofuscante, depois de uma eternidade de dias escuros.

Ele se retirou um momento depois, para voltar logo em seguida. O comandante da Guarda Suíça reunira finalmente um batalhão. Albino Luciani acenava e sorria. Aquele sorriso afetava a todos. O homem das montanhas do Norte da Itália, que em menino sonhava apenas em se tornar um padre paroquial, estava agora na sacada da Basílica de São Pedro, na noite de sábado, 26 de agosto de 1978, como o Papa João Paulo I.

Luciani manteve o Conclave em sessão naquela noite. Sentou para o jantar no lugar que lhe fora designado anteriormente. Um dos seus primeiros pensamentos foi para os cardeais excluídos pelo excesso de idade. Eles já haviam recebido pelo telefone o resultado da eleição. Luciani convidou-os agora para o Conclave, a fim de participarem da missa na manhã seguinte.

A Secretaria de Estado já preparara um discurso, que em teoria visava a indicar o rumo do novo Pontificado, qualquer que fosse. Luciani pegou o discurso e retirou-se para a cela 60, alterando e emendando o que eram inicialmente pronunciamentos vagos a respeito do amor, paz e guerra, além de questões mais específicas.

O discurso foi pronunciado ao final da missa de ação de graças na manhã seguinte. Luciani disse que pautaria seu pontificado pelos ensinamentos do Concílio Vaticano Segundo. Ressaltou a importância do colegiado, a partilha do poder com os bispos. Declarou que tencionava restaurar com pleno vigor a grande disciplina da Igreja e por causa disso dava prioridade à revisão dos dois códigos de leis canônicas. A união com as outras denominações seria procurada, sem qualquer concessão dos ensinamentos da Igreja, mas também sem hesitação.

A essência do discurso revelava que aquele homem, que se descrevia em Veneza como "um homem pobre, acostumado às coisas pequenas da vida e ao silêncio", teve um sonho: um sonho anárquico, revolucionário. Ele comunicou a sua intenção de prosseguir na pastoralização da Igreja... mais do que isso, do mundo inteiro.

É o que o mundo aguarda hoje; sabe muito bem que a perfeição sublime que alcançou, através da pesquisa e da tecnologia, já atingiu um auge, além do qual se escancara o abismo, ofuscando os olhos com as trevas. E a tentação de substituir as decisões de Deus pelas próprias, que prescindiriam das leis morais. O perigo para o homem moderno é o de reduzir a terra a um deserto, o ser humano a um autômato, o amor fraternal à coletivização planejada, muitas vezes promovendo a morte onde Deus deseja a vida.

Tendo nas mãos o texto de Lumen gentium (Luz das Nações), a Constituição Dogmática da Igreja do Vaticano Segundo, Albino Luciani disse que tencionava levar a Igreja de volta ao lugar a que pertencia; de volta ao mundo e às palavras de Cristo; de volta à simplicidade e honestidade de suas origens. Se Cristo voltasse à terra, Luciani queria que Ele encontrasse uma Igreja que pudesse reconhecer, livre de interesses políticos, livre da mentalidade dos grandes negócios que corroera a visão original.

Ao meio-dia, o novo Papa apareceu na sacada central da Basílica de São Pedro. A praça lá embaixo estava atulhada com cerca de 200 mil pessoas. Muitos outros milhões assistiam pela televisão no mundo inteiro, quando o sorriso de Luciani se alargou, em resposta aos aplausos ensurdecedores. Ele fora até ali para dizer o Angelus. Mas, antes de fazer a oração do meio-dia, resolveu proporcionar às pessoas um vislumbre do Conclave secreto. Depois que os aplausos e aclamações cessaram, ele violou duas Regras Papais, o sigilo paranóico em que Paulo insistira que envolvesse o Conclave e o uso do majestoso "nós", que por quase dois mil anos demonstrara as aspirações papais a território. Ele sorriu para a multidão e começou:

- Ontem...

A palavra foi acompanhada por um dar de ombros quase imperceptível, como a dizer "uma coisa engraçada me aconteceu a caminho do Conclave". A multidão desatou a rir. Luciani acompanhou-a por um momento e depois recomeçou:

- Ontem de manhã fui à Capela Sistina para votar pacificamente. Nunca poderia imaginar o que estava prestes a acontecer. Assim que começou a representar um perigo para mim, dois dos meus colegas, sentados próximos, sussurraram palavras de encorajamento.

Com extrema simplicidade, sem qualquer resquício de pomposidade, relatou as palavras de Willebrands e Riberio. Explicou à multidão por que escolhera aquele nome em particular.

Meus pensamentos foram os seguintes. O Papa João quis consagrar-me com suas próprias mãos, aqui, na Basílica de São Pedro. Embora não estivesse à altura, sucedi-o na Catedral de São Marcos, na Veneza que ainda se encontra repleta do espírito do Papa João. Os gondoleiros lembram-se dele, as irmãs, todos enfim. Por outro lado, o Papa Paulo não apenas fez-me cardeal mas também, alguns meses antes disto, na larga passarela da Praça de São Marcos, fez-me corar até as raízes dos cabelos, na presença de 20 mil pessoas, ao tirar sua estola e colocá-la em meus ombros. Nunca fiquei tão vermelho. Além disso, nos 15 anos de seu pontificado, o Papa Paulo mostrou não apenas a mim mas ao mundo inteiro como amava a Igreja, como a servia, trabalhava por seu engrandecimento, como sofria pela Igreja de Cristo. Por isso, assumi o nome de João Paulo. Tenham certeza de uma coisa. Não possuo a sabedoria do coração do Papa João, não tenho o preparo e a cultura do Papa Paulo. Apesar disso, estou agora a substitui-los. Procurarei servir à Igreja e espero que vocês me ajudem, com suas orações.

Com essas palavras simples, seguidas pelo Angelus e sua Bênção, o Papa João Paulo I anunciou sua chegada ao mundo. A reação entusiástica da multidão em Roma foi um reflexo acurado da recepção do mundo expectante.

Os observadores do Vaticano ficaram aturdidos com as indicações sobre o novo Pontificado que estavam contidas na escolha dos nomes. Ele é João ou é Paulo? Perguntaram isso ao Cardeal Suenens, que respondeu:

- Ele será ambos, à sua maneira. Claro que está mais próximo de João, mas é como misturar oxigênio e hidrogênio... obtém-se água, dois elementos diferentes produzindo uma terceira substância.

O nome João Paulo poderia insinuar uma continuidade. O fato de Luciani intitular-se João Paulo I uma convenção que nunca antes se aplicara até haver um segundo do mesmo nome, deveria revelar alguma coisa aos observadores do Vaticano. O que eles e o resto da Igreja estavam prestes a experimentar não se relacionava com qualquer dos antecessores imediatos do novo Papa. Era singular.

Ele não explicara ao mundo à escuta, naquele primeiro dia, como exatamente tencionava converter em realidade o seu sonho de uma Igreja pobre, mas poucas horas depois lançou-se a um curso de ação que era de importância vital se queria que sua visão se consumasse.

Na noite de domingo, 27 de agosto de 1978, ele jantou com o Cardeal Jean Villot e pediu-lhe que continuasse, pelo menos por mais algum tempo, na Secretaria de Estado. Villot aceitou. O novo Papa também confirmou os diversos cardeais que já ocupavam a direção dos departamentos da Cúria Romana. Tendo entrado no Conclave sem quaisquer aspirações de tornar-se Papa, seria extraordinário se emergisse com uma relação preparada de novos membros do Gabinete. No dia 31 de agosto, o mais importante e altamente respeitado periódico econômico da Itália. El Mondo, publicou uma longa carta aberta a Albino Luciani. A carta pedia a intervenção papal para impor "ordem e moralidade" nas transações financeiras do Vaticano, que incluíam a "especulação em águas insalubres'. A carta, intitulada "Isto é certo, Sua Santidade?", fazia uma série de ataques contundentes às operações financeiras do Vaticano. Acompanhando a carta aberta, havia uma longa análise com o título de "A Riqueza de Pedro".

Il Mondo apresentava a Albino Luciani diversas indagações altamente relevantes:

E certo para o Vaticano operar em mercados como um especulador? E certo para o Vaticano ter um banco cujas operações ajudam a transferência ilegal de capital da Itália para outros países? E certo para esse banco ajudar italianos a sonegarem impostos?

O editor financeiro, Paolo Panerai, atacava as ligações do Vaticano com Michele Sindona. Atacava Luigi Mennini e Paul Marcinkus, do Banco do Vaticano, e suas relações com "os mais cínicos operadores financeiros do mundo, de Sindona aos dirigentes do Continental Illinois Bank, de Chicago (através do qual, como os conselheiros financeiros de Sua Santidade podem informar, são manipulados todos os investimentos da Igreja nos Estados Unidos)". Panerai indagava:

Por que a Igreja tolera investimentos em companhias, nacionais e multinacionais, cujo único objetivo é o lucro, companhias que estão sempre dispostas, quando necessário, a violar e desdenhar os direitos humanos de milhões de pobres, especialmente naquele Terceiro Mundo que está tão fundo no coração de Sua Santidade?

Sobre Marcinkus, a carta aberta comentava:

Ele é, no entanto, o único bispo que pertence à diretoria de um banco leigo, o qual, diga-se de passagem, possui uma sucursal num dos maiores refúgios fiscais do mundo capitalista. Estamos nos referindo ao Cisalpine Overseas Bank, em Nassau, Bahamas. Usar os refúgios fiscais é permitido pela lei terrena e nenhum banqueiro leigo pode ser levado aos tribunais por aproveitar essa situação (todos o fazem); mas talvez não seja lícito pela lei de Deus, que deveria nortear todos os atos da Igreja. A Igreja prega a igualdade, mas não nos parece que a melhor maneira de promover a igualdade seja a sonegação de impostos, justamente o meio pelo qual o Estado secular procura impor essa mesma igualdade.

Não houve qualquer reação oficial da Igreja. Dentro da Cidade do Vaticano, no entanto, as reações variaram da satisfação discreta dos que objetavam as atividades do Banco do Vaticano e da Seção Extraordinária da Administração do Patrimônio da Santa Sé (APSA) à ira e ressentimento dos que achavam que o único problema com as especulações financeiras do Vaticano era de que deveriam proporcionar lucros ainda maiores.

O jornal italiano La Stampa também entrou na questão, com um artigo intitulado "A Riqueza e os Poderes do Vaticano". O jornalista Lamberto Fumo assumia uma posição compreensiva e simpática em relação às finanças do Vaticano, relevando algumas acusações formuladas ao longo dos anos contra a maciça riqueza da Igreja. Mas Fumo considerava que havia diversos problemas prementes a confrontar o novo Papa, inclusive a confirmação de que as reformas da Igreja para alcançar um estado de pobreza (que na opinião do jornalista foram executadas pelo Papa João e continuadas pelo Papa Paulo) haviam se tornado uma realidade. Isso só aconteceria com a "divulgação dos orçamentos do Vaticano".

Fumo concluía:

A Igreja não dispõe de riquezas e recursos que excedam suas necessidades. Mas é necessário dar prova disso. Bernanos põe seu prelado do interior a comentar: Nos sacos de dinheiro, Nosso Senhor escreveu com sua própria mão "Perigo de morte".

O novo Papa lia todos esses artigos com o maior interesse. Em sua mente, confirmavam a sensatez de um curso de ação em que já se lançara.

Antes de sua eleição, Luciani já estava a par das muitas queixas sobre as finanças do Vaticano transmitidas ao Cardeal Villot: queixas sobre a maneira como o Bispo Marcinkus dirigia o Banco do Vaticano; queixas sobre o seu envolvimento com Michele Sindona; queixas sobre os vínculos entre a APSA e Sindona. Luciani tinha experiência pessoal da maneira pela qual Marcinkus operava o Banco do Vaticano. Datava de 1972, quando Marcinkus vendera o controle acionário do Banca Cattolica dei Veneto a Roberto Calvi, sem qualquer consulta ao Patriarca de Veneza.

Assim, ele sabia pelo menos desde 1972 que havia algo profundamente errado com as finanças do Vaticano. Mas sempre fora impotente para fazer qualquer coisa. Agora, porém, tinha o poder para isso. No domingo, 27 de agosto de 1978, ao jantar com o Cardeal Villot, ele deu instruções a seu Secretário de Estado, que acabara de confirmar no cargo, para que iniciasse imediatamente uma investigação. Deveria haver uma revisão de toda a operação financeira do Vaticano, com uma análise detalhada de cada aspecto.

- Nenhum departamento, congregação ou seção deverá ser excluído - disse Luciani a Villot.

Ele deixou bem claro que estava especialmente preocupado com a operação do Instituto per le Opere di Religione, o Instituto para Obras Religiosas, geralmente conhecido como Banco do Vaticano. Esse levantamento da situação financeira deveria ser efetuado discretamente, com rapidez e profundidade. O novo Papa avisou seu Secretário de Estado que decidiria sobre o curso de ação conveniente depois de estudar o relatório. Luciani acreditava firmemente em praticar o que se pregava. Numa de suas "cartas" a São Bernardo, discutira a virtude da prudência.

Concordo que a prudência deve ser dinâmica e deve exortar as pessoas à ação. Mas há três estágios a se considerar: deliberação, decisão e execução. Deliberação implica procurar os meios que levam ao fim. Baseia-se na reflexão, nos conselhos solicitados, na análise cuidadosa. Decisão significa, depois da análise dos diversos métodos possíveis, a opção por um deles... A prudência não é uma gangorra permanente, a mente se angustiando na incerteza; também não é espera interminável, a fim de se decidir pelo melhor. Diz-se que a política é a arte do possível; de certa forma, está certo. Execução é o mais importante dos três estágios: a prudência, ligada com a força, evita o desânimo diante de dificuldades e obstáculos. E o momento em que um homem demonstra ser líder e guia.

Assim, Albino Luciani, um homem totalmente empenhado na convicção de que a Igreja Católica devia ser a Igreja dos pobres, desencadeou uma investigação sobre a riqueza do Vaticano. Iria deliberar, decidir e depois executar.

Vaticano S.A.

Quando se tomou o chefe da Igreja Católica, em agosto de 1978, Albino Luciani assumiu o comando de uma organização realmente singular. Mais de 800 milhões de pessoas, quase um quinto da população mundial, consideravam Luciani como seu líder espiritual. Na Cidade do Vaticano estava a estrutura que controlava não apenas a fé, mas também a política fiscal da Igreja.

Vaticano S.A. é uma parte vital dessa estrutura. Feita de tijolo e argamassa, dentro de certa filosofia. Atribui-se a Paul Marcinkus, do Banco do Vaticano, o seguinte comentário:

- Não se pode administrar a Igreja com aves-marias.

Obviamente, o poder da oração foi desvalorizado, junto com muitas moedas do mundo, nos últimos anos. Marcinkus não deve ser condenado pelo que pode parecer um comentário materialista. A Igreja desempenha muitos papéis, em muitos países. Precisa de dinheiro. A quantidade de dinheiro já é outra questão. O que se deve fazer com esse dinheiro também. Não resta a menor dúvida de que faz muita coisa boa. E também é incontestável que se faz muita coisa altamente questionável. Há incontáveis trabalhos publicados com detalhes das muitas obras de caridade financiadas pela Igreja, da ajuda que presta para atenuar a fome no mundo e para aliviar sofrimento de todos os tipos. Educação, assistência médica, alimentação, habitação... esses são alguns dos benefícios proporcionados pelo trabalho da Igreja. O que falta é quanto a Igreja ganha e como ganha. Nessa questão, o Vaticano é e sempre foi reticente. Esse sigilo inevitavelmente acarretou um dos maiores mistérios não esclarecidos do mundo. Quanto vale a Igreja Católica?

Em meados de 1970, comentando o artigo de um jornal suíço, que disse que "o capital produtivo do Vaticano pode ser calculado entre 50 e 55 bilhões de francos suíços" (aproximadamente 13 bilhões de dólares), o Osservatore Romano assim se manifestou:

É uma cifra simplesmente fantástica. Na realidade, o capital produtivo da Santa Sé, incluindo depósitos e investimentos, na Itália e no exterior, está longe de alcançar um centésimo dessa quantia." Isso situaria os recursos do Vaticano, a 22 de julho de 1970, em 46 milhões de libras ou 111 milhões de dólares.

A primeira falsidade contida nessa declaração é a exclusão dos recursos do Banco do Vaticano. Seria a mesma coisa que pedir à ICI ou à Dupont que revelasse o total de seus recursos e receber como resposta o total do que se costuma chamar de caixa pequena. Mesmo excluindo-se os lucros anuais do Banco do Vaticano, a cifra citada pelo Observatore Romano é uma mentira afrontosa. Mas era uma mentira que tornaria a ser ouvida ao longo dos anos. Em abril de 1975 Lamberto Fumo, de La Stampa, perguntou ao Cardeal Vagnozzi:

- Se eu calculasse 300 bilhões de liras como patrimônio produtivo das cinco administrações, estaria próximo da realidade?

Deliberadamente, Fumo excluía o Banco do Vaticano de sua pergunta. Ele obteve a seguinte resposta de Vagnozzi:

- Posso lhe garantir que o patrimônio produtivo da Santa Sé, na Itália e no resto do mundo, é menos de um quarto da quantia que menciona.

Se fosse verdade, a 10 de abril de 1975 a riqueza produtiva da Santa Sé, excluindo-se o Banco do Vaticano, seria inferior a 75 bilhões de liras ou aproximadamente 113 milhões de dólares. Uma única administração do Vaticano, a APSA, é considerada como um banco central pelo Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Banco Internacional de Compensação, com sede em Basiléia. Todos os anos a equipe de Basiléia publica as cifras anuais que os bancos centrais do mundo depositaram ou tomaram emprestados de outros bancos do Grupo dos Dez. As cifras de 1975 mostram que o Vaticano possuía 120 milhões de dólares depositados em bancos estrangeiros e que não tinha dúvidas, o único banco do mundo inteiro que se encontrava em tal situação. Isso incluía apenas um setor do Vaticano, e, para se verificar a riqueza verdadeira dessa administração, pode-se acrescentar muitos outros bens tangíveis.

Como a própria Roma, a riqueza do Vaticano não se fez num dia. O problema de uma Igreja rica - e todos os que aspiram seguir os ensinamentos de Jesus Cristo devem considerar essa riqueza como um problema - tem suas raízes no século IV. Quando o imperador romano Constantino converteu-se ao catolicismo e deu sua fortuna colossal ao Papa de então, Silvestre I criou o primeiro Papa rico. Dante conclui o Inferno com as seguintes palavras:

 

                 Ah, Constantino, quanto infortúnio causaste

                 Não por te tornares cristão, mas pelo dote

                 Que o primeiro Papa rico aceitou de ti.

 

A reivindicação da fé católica à singularidade é válida. Trata-se da única organização religiosa do mundo que tem como sede um Estado independente, a Cidade do Vaticano, que tem suas próprias leis. Com seus 108,7 acres, é menor do que muitos campos de golfe do mundo. É do tamanho do St. James's Park, em Londres, e aproximadamente um oitavo do Central Park, em Nova York. Um passeio a pé, sem qualquer pressa, por toda a Cidade do Vaticano, leva pouco mais de uma hora. Para se contar a riqueza do Vaticano seria preciso muito mais tempo. A riqueza moderna do Vaticano está baseada na generosidade de Benito Mussolini. O Tratado de Latrão de seu governo, com o Vaticano, concluído em 1929, proporcionava à Igreja Católica uma ampla variedade de garantias e benefícios. A Santa Sé obteve reconhecimento como um Estado soberano, Ficou isenta do pagamento de impostos, tanto por suas propriedades como por seus cidadãos, além de não pagar taxas sobre mercadorias importadas; contava com imunidade diplomática e os privilégios inerentes, para os seus próprios diplomatas e os que eram credenciados como representantes de potências estrangeiras. Mussolini garantiu a adoção do ensino religioso católico em todas as escolas secundárias oficiais e colocou toda a instituição do casamento sob a lei canônica, que proibia o divórcio. Os benefícios para o Vaticano foram muitos e os fiscais não estavam entre os menores.

Artigo Primeiro: A Itália assume o compromisso de pagar à Santa Sé, por ocasião da ratificação do Tratado, a quantia de 750 milhões de liras, ao mesmo tempo em que entregará títulos da divida pública, a juros de cinco por cento, ao portador, no valor nominal de um bilhão de liras.

Às taxas de câmbio na ocasião, isso representava 81 milhões de dólares. Um cálculo equivalente para 1984 é de aproximadamente 500 milhões de dólares. Era o Vaticano SA. em ação. A situação nunca mais se alterou.

Para manipular essa fortuna inesperada, o Papa Pio XI criou, a 7 de junho de 1929, a Administração Especial. Designou o leigo Bernardino Nogara para dirigir esse departamento. Além de ter muitos milhões de dólares para administrar, Nogara tinha outro importante trunfo. Uma centena de anos antes, a Igreja Católica tinha mudado completamente sua posição sobre empréstimos. A Igreja pode legitimamente reivindicar ter trocado o significado da palavra usura.

Tradicionalmente, usura significa todos os ganhos obtidos através do empréstimo de dinheiro. Por mais de 18 séculos a Igreja Católica tem dogmaticamente estabelecido que a cobrança de juros em qualquer empréstimo era completamente proibida por ser contrária às leis Divinas. A proibição foi reiterada em vários Concílios da Igreja: Arles (314 d.C.), Nice (325), Cartago (345), Aix (789), Latrão (1139)- neste Concilio os usurários foram condenados à excomunhão - várias leis do Estado tornaram sua prática legal. Ainda era heresia, portanto até 1830. Até então, por cortesia da Igreja Católica Romana, usura significa agora emprestar dinheiro a juros exorbitantes.

Para defender seus próprios interesses a Igreja modificou totalmente sua linha de pensamento com relação a empréstimos. Talvez se o celibato não fosse mais um dos preceitos da Igreja propiciaria uma mudança de posição no que diz respeito ao controle da natalidade.

Nogara era membro de uma família católica devota; muitos de seus membros fizeram, de maneiras diversas, significativas contribuições à Igreja. Três de seus irmãos tornaram-se padres, outro tornara-se diretor do Museu do Vaticano. Mas a contribuição de Bernardino foi, sem sombra de dúvidas, a mais profunda. Nascido em Belíano, próximo do lago Como, em 1870, alcançou logo sucesso como mineralogista trabalhando na Turquia. Em 1912, desempenhou um papel de liderança no tratado de paz de Ouchy entre a Itália e a Turquia. Em 1919, também foi representante da delegação italiana que negociou o tratado de paz entre a Itália como representante do Banca Commerciale, em Istambul. Quando o Papa Pio XI procurava um homem capaz de administrar os frutos do Tratado de Latrão, seu amigo intimo e confidente, Monsenhor Nogara, sugeriu seu irmão Bernardino. Com essa escolha Pio XI encontrou ouro puro. Nogara relutou em aceitar o cargo e só o fez depois que o Papa Pio XI concordou com determinadas condições. Nogara não queria ser estorvado pelas opiniões tradicionais que a Igreja ainda pudesse ter sobre ganhar dinheiro. Nogara exigiu algumas regras básicas, entre as quais estavam as seguintes:

Qualquer investimento que ele resolvesse fazer deveria ser total e completamente livre de quaisquer considerações religiosas ou doutrinárias.

Teria plena Liberdade para investir recursos do Vaticano em qualquer lugar do mundo.

O Papa concordou e isso abriu as portas para especulações de câmbio e nas Bolsas de Valores, inclusive a aquisição de ações de companhias que fabricavam produtos incongruentes com os ensinamentos católicos, Produtos como bombas, tanques, canhões e anticoncepcionais podiam ser condenados do púlpito, mas as ações que Nogara comprava em companhias que fabricavam tais coisas contribuíam para encher os cofres do Vaticano.

Nogara também especulava no mercado de ouro e nos mercados futuros. Comprou a Italgas, fornecedora exclusiva de gás para muitas cidades italianas, colocando na diretoria, como representante do Vaticano, Francesco Pacelli. O irmão de Pacelli acabou se tornando o Papa seguinte, Pio XII. O nepotismo que derivava do Pontificado tomou-se patente por toda a Itália. A regra era simples: Se há um Pacelli na diretoria, seis contra quatro como pertence ao Vaticano.

Entre os bancos que caíram sob a influência e controle do Vaticano, através das aquisições de Nogara, estavam o Banco di Roma, Banco di Santo Spírito e Casa di Risparmio di Roma. O homem obviamente não apenas sabia manipular dinheiro, mas também era excepcionalmente dotado na arte da persuasão. Quando o Banco di Roma estava sob a ameaça de falir, provocando grandes prejuízos para o Vaticano, Nogara persuadiu Mussolini a assumir os títulos em grande parte sem valor e transferi-los para uma empresa holding do governo, a IRI. Mussolini também concordou que o Vaticano deveria ser reembolsado não pelo valor atual de mercado dos títulos, que era praticamente nenhum, mas pelo preço original de compra. A IRI. pagou ao Banco di Roma mais de 630 milhões de dólares. Os prejuízos foram absorvidos pelo tesouro italiano, o que é outra maneira de dizer que o povo pagou a conta, assim como fazia pelos clérigos na Idade Média.

Muitas das especulações a que Nogara se entregava, por conta do 'vaticano, contradiziam as leis canônica e civil, Mas como seu cliente era o Papa, que não fazia perguntas, Nogara, um ex-judeu convertido ao catolicismo, não se deixava perturbar por tais sutilezas.

Usando o capital do Vaticano, Nogara adquiriu parcelas consideráveis e muitas vezes o controle acionário de uma companhia depois de outra. Depois de adquirir uma empresa, ele raramente participava de sua diretoria, preferindo designar um dos homens de confiança da elite do Vaticano para defender os interesses da Igreja.

Os três sobrinhos de Pio XII, Príncipes Carlo, Marcantonio e Giulio Pacelli, pertenciam a essa elite, cujos nomes começaram a aparecer como diretores numa lista sempre crescente de companhias. Eram os "Uomini di fiducia", os homens de confiança da Igreja.

Empresas têxteis. Comunicações telefônicas. Ferrovias. Cimento. Eletricidade. Água. Bernardino Nogara estava em toda parte. Quando Mussolini precisava de armamentos para invadir a Etiópia, em 1935, uma parcela considerável foi fornecida por uma fábrica de munições que Nogara comprara por conta do Vaticano.

Compreendendo, antes de muitos, a inevitabilidade da Segunda Guerra Mundial, Nogara converteu em ouro uma parte dos títulos à sua disposição. Comprou ouro no valor de 26,8 milhões de dólares, a 35 dólares por onça. Posteriormente, vendeu cinco milhões de dólares no mercado livre. O lucro na operação foi superior aos 26,8 milhões de dólares que ele pagara por toda a quantidade original. As especulações com ouro continuaram durante todo o tempo em que controlou o Vaticano S.A.: 15,9 milhões de dólares comprados entre 1945 e 1953; 2 milhões de dólares vendidos entre 1950 e 1952. Minhas pesquisas indicam que 17,3 milhões de dólares dessa aquisição original ainda se encontram depositados em Forte Knox, em nome do Vaticano. Aos preços atuais de mercado, esses 17,3 milhões de dólares, comprados originalmente a 35 dólares por onça, valem agora em torno de 230 milhões de dólares.

Em 1933, o Vaticano S.A. demonstrou novamente sua capacidade de negociar com governos fascistas. A Convenção de 1929 com Mussolini foi seguida por uma Convenção entre a Santa Sé e o Reich de Hitler. O advogado Francesco Pacelli fora um dos elementos fundamentais no acordo com Mussolini; seu irmão, o Cardeal Eugenio Pacelli, o futuro Pio XII, teve uma participação destacada, como Secretário de Estado do Vaticano, na conclusão do tratado com a Alemanha Nazista.

Hitler achava que havia muitos benefícios em potencial no tratado, entre os quais o fato de que Pacelli, um homem que já assumia acentuadas atitudes pró-nazistas, poderia se tornar um aliado útil na guerra mundial inevitável. A história provaria que a avaliação de Hitler foi acurada.

Apesar da intensa pressão mundial, o Papa Pio XII recusou-se a excomungar Hitler ou Mussolini. Talvez a recusa se baseasse na percepção de como ele era irrelevante. Seu Pontificado ostentava neutralidade, falava com o episcopado alemão sobre "guerras justas" e fazia exatamente a mesma coisa com os bispos franceses. O resultado foi que os franceses apoiaram a França na guerra, enquanto os bispos alemães defendiam o esforço bélico da Alemanha. Foi um Pontificado que se recusou a condenar a invasão nazista da Polônia sob a seguinte alegação:

- Não podemos esquecer que há 40 milhões de católicos no Reich. A que eles não ficariam expostos depois de um ato assim de parte da Santa Sé?

Para o Vaticano, uma das maiores vantagens a derivar do lucrativo acordo com Hitler foi a confirmação do Kirchensteuer, o Imposto da Igreja. Trata-se de um imposto que ainda é deduzido na fonte de todos os assalariados na Alemanha. A pessoa pode optar por renunciar a qualquer religião e assim se esquivar do imposto. Na prática, porém, são bem poucos os que fazem isso. Esse imposto representa entre 8 e 10 por cento do imposto de renda recolhido pelo governo alemão. O dinheiro é depois encaminhado às igrejas católica e protestante. Quantias substanciais, derivadas do Kirchensteuer, começaram a fluir para o Vaticano, nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial. O fluxo continuou ao longo da guerra, chegando a 100 milhões de dólares em 1943, por exemplo. No Vaticano, Nogara coloca a receita alemã para trabalhar junto com as outras moedas que estavam entrando.

A 27 de junho de 1942, o Papa Pio XII decidiu trazer para o mundo moderno outra parte do Vaticano, colocando-a no âmbito de Bernardino Nogara. Mudou o nome da Administração de Obras Religiosas para Instituto para as Obras Religiosas. Essa mudança não foi noticiada nas primeiras páginas dos jornais do mundo, que estavam então mais interessados na Segunda Guerra Mundial. Nascera o IOR ou Banco do Vaticano, como é conhecido por todos, à exceção do próprio Vaticano. O Vaticano SA. gerara um filho bastardo. A função original da Administração, criada por Leão XIII em 1887, fora a de concentrar e administrar recursos para as obras religiosas; não era absolutamente um banco. Sob Pio, a função tornou-se "a custódia e administração de recursos (em títulos e dinheiro) e propriedades, transferidos ou confiados ao próprio Instituto, por pessoas físicas ou jurídicas, para os propósitos das obras religiosas e da piedade cristã". Era e é, por todos os sentidos, um autêntico banco.

Nogara estudou atentamente o Tratado de Latrão, especialmente as cláusulas 29,30 e 31, que cuidavam das isenções fiscais e da formação de "corporações eclesiásticas", sobre as quais o Estado italiano não teria controle. Começou-se a discutir o significado exato de 'corporações eclesiásticas". Certamente preocupado com outros problemas na ocasião, Mussolini assumiu uma posição liberal. A 31 de dezembro de 1942, o Ministério das Finanças do governo italiano emitia uma circular, declarando que a Santa Sé estava isenta do pagamento de impostos sobre dividendos. Era assinada pelo então diretor-geral do ministério, que apropriadamente se chamava Buoncristiano (Bom Cristão). A circular especificava as diversas organizações da Santa Sé que estavam isentas do imposto. A lista era longa e incluía a Administração Especial e o Banco do Vaticano.

O homem que Nogara escolheu para controlar o Banco do Vaticano foi o Padre Alberto di Jorio, posteriormente um cardeal. Já operando como assistente de Nogara na Administração, ele passou a atuar nos dois setores, mantendo o cargo anterior e assumindo o posto de primeiro-secretário e depois presidente do Banco do Vaticano. Além do controle acionário de muitos bancos fora dos muros do Vaticano, Nogara tinha agora dois bancos internos para operar.

Concentrando-se na tarefa de aumentar os recursos do Vaticano, Nogara foi ampliando suas operações. Os tentáculos do Vaticano SA. espalharam-se pelo mundo. Foram criados vínculos estreitos com inúmeros bancos. Os Rothschilds de Paris e Londres já faziam negócios com o Vaticano desde o início do século XIX. Com Nogara no comando financeiro do Vaticano, esses negócios aumentaram consideravelmente, incluindo o Crédit Suisse, Hambros, J.P. Morgan, The Bankers Trust Company de Nova York. Bastante úteis quando Nogara queria comprar e vender ações na Bolsa de Valores de Wall Street eram o Chase Manhattan, First National e Continental Bank de Illinois.

Obviamente, Nogara não era um homem com quem se pudesse criar monopólio. Além de bancos, ele adquiriu para o Vaticano o ...controle acionário de companhias nos setores de seguros, siderurgia, financiamento, farinha de trigo e macarrão, indústria mecânica, cimento e imobiliário. No último setor, o Vaticano adquiriu pelo menos 15 por cento de uma gigantesca empresa italiana, a Immobiliare, o que proporcionou à Igreja uma espantosa variedade de propriedades. A Societá Generale Immobiliare é a mais antiga companhia construtora da Itália. Através de outra firma, a SOGENE, a Immobiliare - e, por conseguinte, o Vaticano, embora apenas até certo ponto - possuía o Hilton de Roma; Itale Americana Nuovi Alberghi; Alberghi Ambrosiani, em Milão; Compagnia Italiana Alberghi Cavalieri; e Soc. Italiani Alberghi Moderni. Esses são simplesmente os maiores hotéis da Itália. A relação de grandes prédios e companhias industriais também possuídas é duas vezes maior.

Na França, eles construíram um enorme prédio de escritórios e lojas, na Avenue des Champs Elysées, 90, outro na Rue de Ponthieu, 61, e um terceiro na Rue de Berry, 6.

No Canadá, possuíam o edifício mais alto do mundo, a Torre da Bolsa de Valores, em Montreal, além da Port Royal Tower, com 224 apartamentos, um vasto loteamento em Greensdale, Montreal...

Nos Estados Unidos, tinham em Washington cinco imensos prédios de apartamentos, inclusive o Watergate Hotel; em Nova York, possuíam uma área residencial de 277 acres, situada em Oyster Bay.

No México, possuíam toda uma cidade-satélite da Cidade do México, chamada Lemas Verdes.

A lista de propriedades é quase interminável. Nogara também comprou ações da General Motors, Shell, Gulf Oil, General Electric, Bethlehem Steel, IBM e TWA. Se as ações oscilavam - e sempre para cima - eram homens como Nogara que provocavam o movimento.

Nogara aposentou-se em 1954, mas continuou a oferecer seus conselhos financeiros ao Vaticano até sua morte, em 1958. A imprensa quase não mencionou a sua morte, pois a maior parte das atividades de Nogara por conta da Igreja Católica permanecera envolta em sigilo, Esse homem que demonstrou que, independente do lugar em que pudesse estar o Reino de Cristo, o da Igreja Católica era certamente neste mundo, recebeu um epitáfio apropriado do Cardeal Spellman, de Nova York:

- Depois de Jesus Cristo, a melhor coisa que já aconteceu à Igreja Católica é Bernardino Nogara.

Começando com 80 milhões de dólares, menos os 30 milhões de dólares que Pio XI e seu sucessor Pio XII retiravam para aplicar em seminários regionais e casas paroquiais no Sul da Itália, a construção de San Travestere e a instituição da biblioteca e galeria de arte do Vaticano, Nogara criara o Vaticano SA. Entre 1929 e 1939, ele também tinha acesso à coleta anual dos Dízimos de Pedro. Com os 'dízimos" dos fiéis e mais as liras de Mussolini, e os marcos de Hitler, entregou a seus sucessores uma gama ampla e complexa de interesses financeiros com pelo menos 500 milhões de dólares controlados pela Administração Especial, 650 milhões de dólares controlados pela Seção Ordinária da APSA, sem falar nos recursos do Banco do Vaticano, ultrapassando 940 milhões de dólares, com um lucro médio anual de 40 milhões de dólares indo diretamente para o Papa. Em termos capitalistas, os serviços prestados por Nogara à Igreja Católica foram um sucesso extraordinário. A luz da mensagem contida no Evangelho, foram um desastre total. O Vigário de Cristo adquirira um novo título, extra-oficial - Presidente do Conselho de Administração.

Quatro anos depois da morte de Nogara, em 1958, o Vaticano teve uma necessidade premente de sua competência. O governo italiano da época tornara a levantar o espectro de taxar os dividendos. O que se seguiu tem uma relação direta com uma seqüência de desastres para o Vaticano, incluindo envolvimentos com a Máfia, a chantagem financeira e o assassinato. Começando em 1968.

Em qualquer lista de anos, 1968 deve figurar como um dos piores na história da Igreja. Foi o ano da Humanae Vitae. Foi também o ano em que O Gorila e O Tubarão, como eram conhecidos, ficaram à solta nos dois bancos do Vaticano. O Gorila é Paul Marcinkus; O Tubarão é Michele Sindona.

Benjamin Franklin comentou, de maneira memorável: "As únicas coisas certas neste mundo são a morte e os impostos", Não são muitos os que contestam essa afirmativa. Entre os poucos que o fazem estão os homens que controlam as finanças do Vaticano. Eles têm efetuado os esforços mais vigorosos para tentarem se livrar do pagamento de impostos.

Em dezembro de 1962, o governo italiano ratificou a legislação que aplicava impostos aos lucros sobre os dividendos de ações. Inicialmente, o imposto foi fixado em 15 por cento. Depois, como acontece com os impostos, foi dobrado.

A princípio, o Vaticano não levantou qualquer objeção a pagar o imposto, pelo menos publicamente. Particularmente, através de canais diplomáticos, sugeriu ao governo italiano que, "de acordo com o espírito de nosso acordo e levando-se em consideração a lei de 2 de outubro de 1942, seria desejável que fosse concedido um tratamento privilegiado à Santa Sé".

A carta secreta do Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Cicognani, ao embaixador italiano na Santa Sé, Bartolomeo Mignone, relata em detalhes qual deveria ser exatamente esse "tratamento privilegiado": isenção fiscal para uma lista de departamentos tão longa quanto o braço de um cardeal, incluindo, como não podia deixar de ser, os dois bancos do Vaticano, a Administração Especial e o IOR.

O Vaticano queria atuar no mercado de capitais, mas sem pagar por esse privilégio. O governo de minoria da época, democrata-cristão, apoiado pelo Vaticano, baixou a cabeça, beijou o anel papal e concordou com a solicitação do Vaticano. O Parlamento italiano não foi consultado, a opinião pública não tomou conhecimento. Quando o governo minoritário caiu, sendo substituído pelo de Aldo Moro, outro democrata-cristão, em coalizão com os socialistas, o cargo de Ministro das Finanças foi para o socialista Roberto Tremelloni. Ele não se sentia propenso a aprovar o que era claramente um acordo ilegal feito por seu antecessor, sem ratificação do Parlamento e, o que era ainda mais importante, oito dias depois do governo ter renunciado.

Aldo Moro, confrontado por um lado com um Ministro das Finanças que ameaçava renunciar e por outro com um Vaticano intransigente, procurou um meio-termo. Pediu ao Vaticano que apresentasse uma relação de suas ações, como um prelúdio para a obtenção da isenção fiscal. O primeiro-ministro achava, com toda razão, que a nação italiana deveria saber de quanto dinheiro seria privada. O Vaticano se recusou a revelar os detalhes e proclamou que era um Estado soberano. Aparentemente, é perfeitamente aceitável explorar o mercado de capitais de outro Estado soberano e obter lucros com isso, sem que o Estado explorado possa tomar conhecimento de quanto está sendo privado.

Diversos governos subiram ao poder e caíram. O problema era discutido intermitentemente no Parlamento italiano. Em determinado momento, em 1964, o Vaticano demonstrou até que ponto abandonara o ditame de Cristo, de que "meu reino não é deste mundo", passando a adotar os ensinamentos de Bernardino Nogara: "Aumente as dimensões de sua companhia, porque assim os controles fiscais por parte do governo se tomam proveitosamente difíceis". A companhia a que Nogara se referia era o Vaticano 5 A., e o governo era constituído pelos infelizes do outro lado do Tíbre, obrigados a suportar um paraíso fiscal em pleno coração de Roma.

Em junho de 1964, com Aldo Moro outra vez no poder, a Igreja dos pobres ameaçou destruir toda a economia italiana. Durante as negociações, representantes do Vaticano declararam ao governo italiano que lançariam no mercado todas as ações que possuíam na Itália, se suas reivindicações não fossem atendidas. Com essa jogada escolheram o momento certo. O mercado de ações italiano passava por um momento particularmente difícil, com as ações caindo diariamente. Lançar subitamente no mercado a vasta quantidade de ações possuída pelo Vaticano destruiria por completo a economia da Itália. O governo italiano, confrontado por essa realidade, acabou capitulando. Em outubro de 1964, foi elaborado um projeto de lei que ratificaria o acordo ilegal.

O projeto não chegou a ser encaminhado ao Parlamento, principalmente porque os governos caíam mais depressa do que os diversos Ministros das Finanças podiam descobrir o que havia à espera de seu exame. Enquanto isso, o Vaticano continuou a desfrutar da isenção fiscal. Não pagava impostos sobre suas ações desde abril de 1963. Em 1967, a imprensa italiana, especialmente a de esquerda, voltou ao ataque. Queria saber por quê. Queria também saber o quanto. Queria saber quantas ações o Vaticano possuía no país. As cifras se tornaram vertiginosas. Variavam de estimativas que indicavam o valor dos investimentos do Vaticano no mercado de ações italiano em 160 milhões de dólares a outras que se elevavam a 2,4 bilhões de dólares.

Em março de 1967, o então Ministro das Finanças italiano Luigi Preti, em resposta a indagações no Senado italiano, prestou alguns esclarecimentos oficiais sobre as ações possuídas pelo Vaticano na Itália. Seu relatório indicava que o maior investidor do Vaticano era o IOR, seguindo-se a Administração Especial. Diversos outros departamentos do Vaticano, com nomes pomposos como Obra de São Pedro, Sociedade Pontifical para o Apóstolo São Pedro, Administração do Patrimônio da Santa Sê e Propaganda Fide, também especulavam no mercado de ações. O Ministro das Finanças Preti declarou que o Vaticano possuía ações no valor aproximado de 100 bilhões de liras, o equivalente a 104,4 milhões de dólares, pelo câmbio da ocasião. A cifra total verdadeira é indubitavelmente muito maior. As cifras de Preti não levavam em consideração os vultosos investimentos do Vaticano em títulos da divida pública e debêntures, que são completamente isentos de qualquer forma de taxação. Ele só cuidou das ações que eram sujeitas a impostos.

O Ministro das Finanças também não se preocupou com o fato de que, nos termos dos regulamentos do mercado de ações italiano, os detentores de ações podem ficar sem receber os dividendos pelo prazo de cinco anos. As evidências indicam que os investimentos do Vaticano abrangidos nessas categorias eram pelo menos tão volumosos quanto os que se encontravam na esfera do ministro. Assim, o valor real dos investimentos do Vaticano, em 1968, somente em ações italianas, era no mínimo de 202,2 milhões de dólares. Deve-se acrescentar o valor dos bens imobiliários do Vaticano, especialmente em Roma e nos distritos vizinhos, e todos os investimentos não-italianos.

A Itália acabou decidindo pagar para ver o blefe do Vaticano: a Igreja Católica deveria, pelo menos na Itália, dar a César o que é de César. Em janeiro de 1968, outro governo transitório, liderado por Giovanni Leone, declarou que, ao final do ano, o Vaticano teria de começar a pagar. Com considerável má vontade e comentários sobre o estímulo maravilhoso para a economia italiana representado por seus investimentos, o Vaticano concordou.., mas à sua maneira típica. Como o prisioneiro no banco dos réus considerado culpado, pediu tempo para pagar em suaves prestações.

A questão teve diversos resultados lamentáveis para o Vaticano. Qualquer que fosse o total verdadeiro, todos na Itália estavam agora conscientes de que a Igreja dos pobres possuía vultosos investimentos, produzindo milhões de dólares de lucros anuais. Além disso, a discussão de seis anos resultara em muitas companhias sendo identificadas como possuídas ou controladas pelo Vaticano. Os investimentos amplos podiam indicar um capitalismo sagaz, mas era uma péssima atitude de relações públicas deixar que o homem comum, que se queixava que seu telefone/água/eletricidade/gás não funcionavam, saber que tinha de agradecer à Igreja por isso. O mais importante, no entanto, era que o Vaticano teria de pagar enormes impostos se mantivesse os seus investimentos na Itália. O Papa Paulo VI tinha um problema. Os homens a quem recorreu, em busca de uma solução, foram O Gorila e O Tubarão.

Se é correta a conclusão de Sigmund Freud de que toda a personalidade do homem é formada nos primeiros cinco anos de vida, então Paul Marcinkus merece um exame meticuloso, um estudo profundo, por parte dos especialistas. Mesmo se contestando a opinião de Freud, não se pode deixar de reconhecer que o meio ambiente é certamente um fator de grande influência nos anos de formação.

Marcinkus nasceu numa cidade dominada pela Máfia, onde os assassinatos eram ocorrências cotidianas e a corrupção se estendia do prefeito às crianças. Era uma cidade assolada por todos os tipos

possíveis e concebíveis de crimes, onde foram cometidos, entre 1919 e 1960, 976 assassinatos por gangsters, sendo que apenas dois assassinos foram condenados. Era uma cidade em que, no outono de 1928. o presidente da Comissão Contra o Crime Organizado apelou a um homem para garantir que as eleições em novembro seriam conduzidas de maneira honesta e democrática. O homem em questão era Al Capone. A cidade era Chicago. Capone gabou-se um dia:

- Eu mando na polícia.

Poderia fazer outra declaração, mais acurada: "Eu sou o dono da cidade." Capone atendeu ao pedido por eleições justas. Disse à polícia da segunda maior cidade dos Estados Unidos o que deveria fazer. A polícia obedeceu. O presidente da Comissão Contra o Crime Organizado declarou posteriormente:

- Foi o dia de eleição mais ordeiro e mais bem-sucedido em 40 anos. Não houve uma única queixa, nenhuma acusação de fraude eleitoral ou qualquer ameaça de problema e violência durante o dia inteiro.

Paul Marcinkus veio ao mundo na comunidade suburbana de Cícero, no Illinois, a 15 de janeiro de 1922. No ano seguinte, confrontado com o espetáculo extraordinário de um prefeito honesto em Chicago, Aí Capone transferiu seu quartel-general para Cícero. A população de 60 mil habitantes, principalmente poloneses, boêmios e lituanos de primeira e segunda geração, acostumou-se à presença da Máfia em seu meio. Capone instalou-se no Hawthorne Inn, na Rua 22, 4833. Juntamente com Capone, fixaram-se na cidade homens como Jake "Dedo Seboso" Guzik, Tony "Cabeleira" Volpi, Frank Carrasco" Nitti, Frankie "O Jornaleiro Milionário" Pope.

Foi essa a Cícero em que Paul Casimir Marcinkus cresceu. Seus pais eram imigrantes lituanos. O pai ganhava a vida limpando as janelas que ainda não tinham sido espatifadas pelas balas das metralhadoras e a mãe trabalhava numa padaria. Falavam muito mal a língua inglesa. A maneira clássica de muitos imigrantes pobres que procuravam uma vida melhor na terra da liberdade, decidiram que os filhos, através do esforço honesto e do trabalho árduo, deveriam ter realmente vidas melhores. Marcinkus, o mais jovem de cinco filhos, conseguiu isso, muito além dos sonhos mais delirantes do pais. Sua história é a do menino pobre que se tomou o banqueiro de Deus.

Orientado por seu padre paroquial, Marcinkus desenvolveu uma vocação sacerdotal. Foi ordenado em 1947, o ano em que Al Capone morreu, de sífilis. O sepultamento católico do Inimigo Público Número Um de todos os tempos nos Estados Unidos foi oficiado em Chicago pelo Monsenhor William Gorman, que explicou aos repórteres:

- A Igreja jamais justifica o mal em si nem o mal na vida de qualquer homem. Esta breve cerimônia é para reconhecer o arrependimento dele e o fato de que morreu fortalecido pelos sacramentos da Igreja.

Marcinkus foi para Roma e estudou na mesma universidade católica, a Gregoriana, em que Albino Luciani obtivera seu diploma. Marcinkus foi também um bom aluno e concluiu o doutorado em Direito Canônico. Durante os seus dias de seminarista, usava o seu 1,93m de altura e os seus 100 quilos de músculos com considerável sucesso nos campos de esporte. Quando partia para pegar uma bola, numa partida de futebol, geralmente sala da confusão a levá-la. Sua força física seria um instrumento importante em sua ascensão. Não resta a menor dúvida de que algumas lições aprendidas nas ruas de Cícero foram extremamente proveitosas.

Voltando a Chicago, ele trabalhou como pároco, depois tomou-se membro do Tribunal Eclesiástico da diocese. Um dos primeiros a se impressionar com Marcinkus foi o chefe da Arquidiocese de Chicago na ocasião, Cardeal Samuel Stritch. Depois de uma recomendação do cardeal, Marcinkus foi transferido para a seção inglesa da Secretaria de Estado do Vaticano, em 1952. Seguiram-se períodos de serviço como adido aos núncios apostólicos na Bolívia e Canadá. Ele voltou a Roma e à Secretaria de Estado em 1959. Sua fluência em espanhol e italiano garantia-lhe um emprego constante como intérprete.

Em 1963, o Cardeal Francis Spellman, de Nova York, aconselhou ao Papa Paulo, durante uma de suas freqüentes viagens a Roma, que Marcinkus era um padre de excelente potencial. Tendo em vista o fato de Spellman chefiar a mais rica diocese do mundo na ocasião e ser freqüentemente chamado de "Cardeal Ricaço", um tributo a seu gênio financeiro, o Papa começou a observar Paul Marcinkus, discretamente.

Em 1964, durante uma visita ao Centro de Roma, a multidão muito entusiasmada ameaçava pisotear o Vigário de Cristo. Subitamente, Paul Marcinkus apareceu. Usando os ombros, cotovelos e mãos, ele abriu fisicamente uma trilha através da multidão para que o assustado Papa pudesse passar. O Papa chamou-o para agradecer pessoalmente no dia seguinte. Desse momento em diante, tomou-se o guarda-costas não-oficial do Papa. Foi nessa época que nasceu seu apelido, O Gorila.

Em dezembro de 1964 ele acompanhou o Papa Paulo à Índia; no ano seguinte à ONU. A esta altura, Marcinkus já assumira as funções de assessor de segurança nessas viagens. Guarda-costas pessoal. Assessor de segurança pessoal. Tradutor pessoal. O menino de Cícero fora longe. Tornou-se amigo Intimo do secretário particular do Papa, Padre Pasquale Macchi, que era um dos principais elementos do circulo íntimo de Paulo VI e que a Cúria Romana chamava de "A Máfia de Milão". Quando Montini, Arcebispo de Milão, fora eleito Papa, em 1963, levara para o Vaticano todo um grupo de assessores, financistas e clérigos. Macchi pertencia a esse grupo. Todos os caminhos podem levar a Roma; alguns passam por Milão. A dependência do Papa em relação a homens como Macchi estava em completa desproporção com os cargos que eles ocupavam. Macchi censurava o Papa quando o considerava mórbido ou deprimido. Dizia-lhe quando devia se deitar, quem devia promover, quem merecia ser punido com uma transferência desagradável. Depois de pôr Sua Santidade na cama à noite, Macchi podia ser encontrado invariavelmente num excelente restaurante perto da Piazza Gregorio Settimo. Seu companheiro habitual ao jantar era Paul Marcinkus.

Outras viagens ao exterior com o "Papa Peregrino", a Portugal em maio de 1967 e à Turquia em julho do mesmo ano, consolidaram a amizade entre o Papa Paulo e Marcinkus. Posteriormente, nesse mesmo ano, o Papa Paulo VI criou um departamento com o nome de Prefeitura de Assuntos Econômicos da Santa Sé. Um titulo mais compreensível seria o de Ministro das Finanças ou Auditor-Geral, O que o Papa queria era um departamento que pudesse proporcionar um sumário anual da posição exata da riqueza do Vaticano e o progresso de todos os bens de cada Administração da Santa Sé, a fim de obter cifras objetivas num balanço final ou estimativa para cada ano. Desde a sua criação que esse departamento teve de lutar contra duas sérias dificuldades. Em primeiro lugar, por ordens expressas do Papa, o Banco do Vaticano foi especificamente excluído desse levantamento econômico. Em segundo lugar, havia a paranóia do Vaticano.

Depois que o departamento foi estabelecido por um trio de cardeais, o homem subseqüentemente designado para dirigi-lo foi o Cardeal Egidio Vagnozzi. Em teoria, ele precisaria permanecer no cargo por um ano antes de poder apresentar ao Papa a situação exata das finanças do Vaticano. Na prática, Vagnozzi descobriu que o desejo maníaco de sigilo financeiro, que os diversos departamentos do Vaticano costumavam demonstrar em relação aos jornalistas curiosos também se estendia a ele. A Congregação do Clero não queria revelar suas cifras a ninguém. O mesmo acontecia com a APSA. E com todas as outras. Em 1969, o Cardeal Vagnozzi comentou com um colega:

- Seria necessário uma combinação de KGB, CIA e Interpol para se obter apenas uma indicação de quanto e onde estão os recursos.

A fim de proporcionar uma ajuda ao idoso colega de Nogara, o Cardeal Alberto di Jerio, então com 84 anos e ainda funcionando como o chefe do Banco do Vaticano, o Papa Paulo elevou Paul Marcinkus a bispo. Um dia depois de prostrar-se aos pés do Papa, Marcinkus assumiu as funções de secretário do Banco do Vaticano. Para todos os efeitos práticos, ele agora dirigia o banco. Servir de intérprete para o Presidente Johnson, quando ele conversara com o Papa, fora relativamente fácil, em comparação com as novas funções, pois Marcinkus reconheceu francamente:

- Não tenho a menor experiência bancária.

O inexperiente banqueiro chegara. Para um obscuro padre em Cícero, Paul Marcinkus obteve mais poder do que qualquer americano antes dele.

Um dos homens que ajudaram na ascensão de Paul Marcinkus foi Giovanni Benelli. Sua avaliação inicial de golfista extrovertido e fumante de charutos de Cícero foi a de que Marcinkus seria um elemento valioso para o Banco do Vaticano, conforme ele disse ao Papa. Em dois anos, Benelli concluiu que cometera um equívoco desastroso e que Marcinkus deveria ser afastado o mais depressa possível. Descobriu que, nesse breve período, Marcinkus constituíra uma base de poder mais forte do que a sua. Quando houve a confrontação final, em 1977, foi Benelli quem deixou o Vaticano.

A promoção extraordinária de Marcinkus foi parte de uma mudança cuidadosamente planejada na política do Vaticano. Pagar elevados impostos sobre os lucros das ações e aparecer como proprietário de incontáveis empresas italianas eram coisas que contrariavam o Vaticano, especialmente quando essas empresas produziam artigos embaraçosos como a pílula anticoncepcional, para a qual o Papa Paulo acabara de invocar a ira de Deus. O Papa e seus assessores tomaram a decisão de reduzir as aplicações nos mercados de capitais italianos e transferir a maior parte da riqueza do Vaticano para os mercados do exterior, particularmente dos Estados Unidos. Eles queriam também entrar no mundo altamente lucrativo do eurodólar e dos lucros internacionais.

Marcinkus foi escolhido como um componente essencial nessa estratégia. O Papa aproveitou outra parte de sua "Máfia de Milão" para completar a equipe. Selecionou um homem que era realmente da Máfia, embora não fosse de Milão, apenas a sua cidade adotiva. O Tubarão nascera em Patti, perto de Messina, na Sicília. Seu nome: Michele Sindona.

Como Albino Luciani, Michele Sindona conhecera a pobreza na infância; como Luciani, ficara profundamente afetado pelo ambiente em que fora criado. Mas enquanto o primeiro cresceu com a determinação de aliviar a pobreza dos outros, o segundo resolveu aliviar os outros de sua riqueza.

Nascido a 8 de maio de 1920 e educado pelos jesuítas, Sindona demonstrou ainda muito cedo uma propensão acentuada para a matemática e economia. Tendo se formado em Direito na Universidade de Messina, ele se esquivou em 1942 ao recrutamento para as forças armadas de Mussolini, com a ajuda de um parente distante de sua noiva, Monsenhor Amleto Tondini, que trabalhava na Secretaria de Estado do Vaticano.

Durante os últimos três anos da Segunda Guerra Mundial, Sindona pôs de lado o diploma de advogado e ganhou a vida de forma bastante lucrativa, fazendo aquilo em que se tornaria internacionalmente famoso: comprar e vender. Comprava alimentos no mercado negro de Palermo e os contrabandeava, com a ajuda da Máfia, para Messina, onde vendia à população faminta.

Depois de junho de 1943 e dos desembarques Aliados, Sindona passou a procurar seus suprimentos junto às forças americanas. À medida que os negócios se expandiam, também aumentavam as suas ligações com a Máfia. Ele deixou a Sicília e foi para Milão em 1946, levando sua jovem mulher Rina, lições valiosas sobre a lei da oferta e da procura e diversas cartas de apresentação, ainda mais valiosas, do Arcebispo de Messina, cuja amizade sempre cultivara cuidadosamente.

Em Milão, ele se instalou no subúrbio, em Affori, trabalhando para uma firma de consultora e contabilidade. A especialidade de Sindona, demonstrada à medida que o capital americano começou a fluir para a Itália, era indicar aos investidores em potencial como se esquivar pelas complexas leis fiscais italianas. Os associados da Máfia ficaram devidamente impressionados com o seu progresso. Ele era talentoso, ambicioso e, mais importante ainda, aos olhos da Máfia, implacável, plenamente corruptível e um dos seus. Conhecia a importância das tradições da Máfia, como a omertâ, a lei do silêncio. Era siciliano.

A família Gambino da Máfia ficou especialmente impressionada com o jovem Sindona e sua habilidade em colocar investimentos em dólares sem quaisquer problemas com os regulamentos fiscais. A família Gambino possui interesses globais, mas seus dois principais centros de poder são Nova York e Palermo. O primeiro é controlado pelos Gambino, o segundo por seus primos sicilianos, os Inzerillo. A 2 de novembro de 1957, houve uma reunião da "família" no Grand Hotel des Palmes, em Palermo. Michele Sindona também foi convidado a desfrutar os vinhos e comidas.

A família Gambino apresentou uma proposta que Sindona aceitou com o maior entusiasmo. Queriam que ele cuidasse dos reinvestimentos dos lucros fabulosos que a família vinha obtendo com as vendas de heroína. Precisavam de alguém que pudesse limpar esse dinheiro. Sindona, com a sua capacidade comprovada de transferir para dentro e para fora da Itália quantias vultosas, sem incomodar os departamentos fiscais do governo italiano, era a escolha ideal. Acrescente-se a isso o fato de que, por ocasião dessa conferência de cúpula da Máfia, ele já era diretor de um número crescente de empresas. Sindona dizia Freqüentemente a clientes agradecidos:

- Aceitarei o pagamento em ações de sua empresa.

Ele começara também a aperfeiçoar a técnica de adquirir empresas em dificuldades, dividi-las, vender partes, fundir outras, misturar tudo e finalmente vender com grande lucro. Era uma operação espetacular, particularmente quando eram outros que pagavam os prejuízos inevitáveis.

Cerca de 17 meses depois da conferência de cúpula da Máfia, Sindona comprou o seu primeiro banco, ajudado por recursos mafiosos. Sindona já descobrira uma das regras básicas do roubo: A melhor maneira de assaltar um banco é comprá-lo.

Sindona criou uma empresa holding em Liechtenstein, a Fasco AG. Pouco depois, a Fasco adquiriu o Banca Privata Finanziaria, de Milão, geralmente conhecido como BPF. Fundado em 1930 por um ideólogo fascista, o BPF era uma instituição pequena, particular, exclusiva, servindo como conduto para a transferência de recursos da Itália, por conta de uns poucos privilegiados. Não resta a menor dúvida de que foi essa herança arrogante que atraiu Sindona. Embora desdenhasse lutar por Mussolini, Michele Sindona era um fascista natural. Comprar um banco assim não poderia deixar de ser uma atração irresistível para ele.

Nesse mesmo ano, 1959, Sindona fez outro investimento excepcional. O Arcebispo de Milão tentava levantar recursos para um asilo de velhos. Sindona interveio e levantou toda a quantia: 2,4 milhões de dólares. Quando o Cardeal Giovanni Battista Montini inaugurou a Casa della Madonnina, quem estava a seu lado era Michele Sind9na. Tornaram-se amigos e Montini passou a confiar cada vez mais nos conselhos de Sindona em outros problemas que não apenas os investimentos diocesanos.

O que o Cardeal Montini talvez não soubesse é que os 2,4 milhões de dólares foram fornecidos a Sindona basicamente por duas fontes: a Máfia e a CIA. Um ex-agente da CIA, Victor Marchetti, revelaria posteriormente:

Nos anos 50 e 60, a CIA proporcionou apoio econômico a muitas atividades promovidas pela Igreja Católica, de orfanatos a missões. Milhões de dólares eram dados a bispos e monsenhores todos os anos. Um deles foi o Cardeal Giovanni Battista Montini. E possível que o Cardeal Montini não soubesse de onde vinha o dinheiro. Ele podia pensar que era de amigos.

Itália "Amigos" que, como parte de sua determinação de impedir que a levasse ao poder um governo comunista eleito livremente, não apenas despejavam milhões de dólares no pais, mas também estavam dispostos a sorrir afavelmente para homens como Michele Sindona. Ele podia ser um criminoso de importância cada vez maior, mas pelo menos era um criminoso de extrema direita.

O Tubarão começou a nadar mais depressa. Os milaneses, que tendem a desdenhar os romanos e ainda mais os sicilianos, a principio ignoraram aquele homem polido, de fala mansa, que viera do Sul. Depois de algum tempo, os círculos financeiros da cidade, que é a capital financeira da Itália, passaram a admitir que Sindona era um extraordinário consultor para questões fiscais. Quando ele começou a adquirir uma companhia aqui, outra ali, atribuíram isso à sorte de principiante. Quando ele se tornou um banqueiro e confidente do homem que muitos apostavam que seria o próximo Papa, já era tarde demais para contê-lo. Seu progresso era irresistível. Outra vez através de sua empresa holding, a Fasco, Sindona adquiriu o Banca di Messina. Esse movimento agradou particularmente às famílias mafiosas Gambino e Inzerillo, proporcionando-lhe um acesso ilimitado a um banco na Sicília, a própria província natal de Sindona.

Sindona criou ligações intimas com Massimo Spada, um dos homens de confiança do Vaticano, diretor-executivo do Banco do Vaticano e participando, como representante da Igreja, da diretoria de 24 empresas, inclusive do Banca Cattolica del Veneto. Também tornou-se amigo intimo de Luigi Mennini, outro alto dirigente do Banco do Vaticano. O Padre Macchi, secretário de Montini, foi outro que se tornou seu amigo intimo. O Banca Privata começou a prosperar. Em março de 1965, Sindona vendeu 22 por cento de seu banco ao Hambros Bank, de Londres. Com os seus vínculos antigos com as finanças do Vaticano, o Hambros concluiu que a orientação imprimida por Sindona aos recursos que fluíam para o BPF era "brilhante". O mesmo acontecia com as famílias Gambino e Inzerillo. E também com o Continental Bank, de Illinois, que comprou outros 22 por cento do banco de Sindona. Aquela altura, o Continental era o principal veículo para todos os investimentos do Vaticano nos Estados Unidos. Os vínculos que Sindona estabelecia ao seu redor e com diversos elementos do Vaticano eram agora de muitas camadas. Ele tomou-se amigo Intimo de Monsenhor Sergio Guerri, que assumira a responsabilidade de dirigir a criação monolítica de Nogara, a Administração Especial.

Sindona adquiriu outro banco em 1964, desta vez na Suíça, o Banque de Financement, em Lausanne, conhecido como Finabank. Possuído em grande parte pelo Vaticano, era também, como o seu banco anterior, pouco mais que um veículo ilegal para a evasão de dinheiro da Itália. Depois da aquisição por Sindona do controle acionário, o Vaticano ainda manteve 29 por cento das ações. O Hambros de Londres e o Continental Illinois de Chicago também participavam do Finabank.

O fato de três instituições tão augustas como o Vaticano, o Hambros e o Continental se envolverem tão profundamente com Sindona devia indicar que ele dirigia seus bancos de maneira exemplar. Ou será que não?

Carlo Bordoni descobriu uma realidade diferente. Bordoni conheceu Sindona na segunda quinzena de novembro de 1964, no Studi Síndona, Via Turati, 29, em Milão. Anteriormente, Bordoni trabalhar como gerente da sucursal de Milão do First National City Bank, de Nova York. Pouco antes de seu encontro com Sindona, Bordoni for despedido pelo Citibank por ultrapassar o limite estabelecido em transações com moeda estrangeira. Era de se esperar que Sindona, encarasse favoravelmente um homem assim. Ofereceu a Bordoni oportunidade de lidar com as operações de câmbio do BPF. Como o depósitos totais do banco eram inferiores a 15 bilhões de lira (aproximadamente 15 milhões de dólares), Bordoni recusou. Em comparação com o bilhão de dólares de movimento do Citibank, isso era coisa pequena. Além do mais, naquela altura, o banco nem mesmo era um agente bancário autorizado e assim não podia operar com moedas estrangeiras. Era desconhecido internacionalmente e, na opinião de Bordoni, "não tinha a menor possibilidade de ingressar no clube fechado dos bancos internacionais"

Bordoni teve uma idéia melhor. Por que não criar uma corretora internacional? Com trabalho árduo e os excelentes contatos de Bordoni, uma corretora assim poderia ganhar grandes comissões. Outra vez nas palavras de Bordoni, isso "expandiria o potencial do modesto Grupo Sindona e depois de algum tempo haveria a quase certeza de créditos substanciais em moedas estrangeiras a favor do BPF e do Finabank".

Como Bordoni recordou mais tarde, em depoimento jurado perante um magistrado de Milão, Sindona mostrou-se visivelmente excitado e concedeu sua aprovação ao projeto sem a menor hesitação. E fácil entender a alegria de Síndona. O Moneyrex, um nome apropriado, iniciou suas operações a 5 de fevereiro de 1965. Inicialmente administrado dentro da ética, proporcionou lucros vultosos. Em 1967 já manipulava 40 bilhões de dólares por ano, com um lucro líquido superior a dois milhões de dólares.., um lucro que, nas mãos de Sindona, prontamente desapareceu, antes que as autoridades fiscais tivessem tempo de piscar. Mas Sindona queria mais do que o lucro honesto. Recomendou a Bordoni que canalizasse o máximo possível em moedas estrangeiras para seus dois bancos. Bordoni ressaltou que havia diversas dificuldades graves para impedir que essa idéia se tornasse prática. O Tubarão ficou furioso e gritou que Bordoni deveria lembrar-se de sua "força de convicção" e de seu "poder". Bordoni gritou em resposta que isso constituía justamente as dificuldades a que se referira. No caso de Sindona ainda ter alguma dúvida, Bordoni acrescentou:

- Sua "força" é a Máfia e seu "poder" a Maçonaria. Não tenciono arriscar a minha reputação e o sucesso de Moneyrex só porque um mafioso assim me pede.

Bordoni acabou se deixando convencer e concordou em supervisionar as operações bancárias do BPF e do Finabank. O que descobriu muito revela sobre o Vaticano, o Hambros e o Continental, assim como sobre Sindona. Em seu depoimento, prestado num hospital-prisão ao magistrado de Milão, ele disse:

 

Quando comecei a trabalhar no BPF, no verão de 1966, fiquei profundamente impressionado com o caos que prevalecia em todos os setores. Era um banco pequeno, que só conseguia sobreviver graças aos lucros decorrentes de diversas operações escusas executadas por conta do Crédito Italiano, Banca Commerciale Italiana e outros importantes bancos nacionais. Essas operações em moedas estrangeiras, uma vasta exportação de capital ilegal, ocorriam diariamente e as cifras envolvidas eram vultosas. A técnica era a mais tosca e criminosa que se pode imaginar.

 

Ele descobriu inúmeras contas em vermelho, sem quaisquer garantias reais, e num valor que excedia em muito o limite legal de um quinto do capital e reservas. Também encontrou desvios maciços. A equipe estava transferindo quantias vultosas das contas de depositantes, sem que estes tomassem conhecimento da operação. Essas quantias eram transferidas depois para a conta do Banco do Vaticano. A seguir, o Banco do Vaticano transferia as quantias, menos a sua comissão de 15 por cento, para a conta de Sindona no Finabank, em Genebra. O nome da conta no Finabank era Mani. MA para Manco e NI para Nino, os nomes dos filhos de Sindona. A comissão de 15 por cento paga ao Vaticano era variável, dependendo do câmbio do momento no mercado negro.

Se um cliente do Finabank protestava que um cheque feito de boa fé fora devolvido ou que sua conta devia ter mais dinheiro, ouvia inicialmente que deveria procurar outro banco para operar. Se insistia o gerente aparecia e, exibindo toda a sua sinceridade milanesa, pedia desculpas e oferecia uma explicação:

- Foi um lamentável erro contábil, uma decorrência desses computadores modernos.

As descobertas de Bordoni no Finabank, em Genebra, foram igualmente terríveis. O diretor-executivo, um certo Mario Olivero, nada conhecia da atividade bancária. O gerente-geral passava os dias inteiros especulando nos mercados de ações, câmbio e mercadorias. Se perdia, o prejuízo era transferido para a conta de um cliente. Se ganhava, o lucro era seu. Os chefes das diversas divisões seguiam o exemplo do gerente-geral, assim como o Banco do Vaticano.

O IOR, além de ser dono em parte do banco, também tinha diversas contas ali. Bordoni constatou que essas contas "serviam exclusivamente para gigantescas operações especulativas, que resultavam em perdas colossais". Os prejuízos, como os de todos os demais, eram financiados por uma companhia de fachada, chamada Liberfinco (Liberian Financial Company). Por ocasião da inspeção de Bordoni, essa companhia apresentava um prejuízo de 30 milhões de dólares. Quando os inspetores bancários suíços apareceram, em 1973, o prejuízo dessa companhia fantasma já se elevava a 45 milhões de dólares. Os suíços comunicaram a Sindona, Vaticano, Continental, Illinois e Hambros que tinham 48 horas para fechar a Liberfinco ou declarariam a falência do Finabank. Outro assessor de Sindona, Gian Luigi Clerici di Cavenago, demonstrou nesse momento que tinha tantas idéias brilhantes quanto nomes. Através da abertura de uma conta com 45 milhões de dólares, recorrendo a um artifício em que não entrava dinheiro, ele fechou a Liberfinco e abriu outra empresa, a Aran Investment do Panamá, com um déficit imediato de 45 milhões de dólares.

Quando pedira a Bordoni que desse uma olhada no Finabank, Sindona comentara, no que era uma profunda ironia:

- Coisas estranhas estão acontecendo por lá.

Quando Bordoni informou-o do quanto essas coisas eram realmente estranhas, Sindona insultou-o e expulsou-o de seu gabinete. Os negócios continuaram como sempre nos dois bancos. Quando Bordoni tentou se livrar, Sindona usou uma de suas técnicas clássicas: chantagem. Bordoni também violara as leis em suas especulações no exterior. Essas transgressões seriam comunicadas ao Banco da Itália. Bordoni ficou.

Carlo Bordoni deveria ter lido o que estava escrito na parede, antes de se envolver. Durante uma das confrontações iniciais, Sindona gritara-lhe:

- Você nunca será um banqueiro de verdade porque não apenas é incapaz de mentir, mas também é um homem de princípios. Nunca saberia como usar a arma válida da chantagem.

O respeito de Sindona por seu colega poderia aumentar consideravelmente se soubesse que Bordoni começara a desviar dinheiro para contas secretas na Suiça. Antes do fim, Bordoni tiraria mais de 45 milhões de dólares de Sindona. Claro que não se comparava com as atividades criminosas de Sindona, mas também ele carecia do aprendizado siciliano.

Sindona era um mestre em questões de chantagem. Além de sua capacidade inata, tinha o treinamento da Máfia e também contava com os talentos do mais hábil chantagista que então praticava essa arte na Itália, Licio Gelli. Quando Bordoni lançara desdenhosamente na cara de Sindona as suas ligações com a Máfia e a Maçonaria, estava jogando com fogo duplo. Sindona não era membro de uma Loja Maçônica que pudesse reivindicar suas origens até os maçons de Salomão. A sua não era uma Loja inspirada pelo patriota italiano Garibaldi. Não havia nenhum Duque de Kent como Grão-Mestre. A Loja era a Propaganda 2 ou P2, e seu Grão-Mestre era Licio Gelli.

Gelli nascera em Pistóia, na região central da Itália, a 21 de abril de 1919. Sua educação formal cessou quando foi expulso da escola no meio da adolescência.

Uma história dessa época de sua vida revela que desenvolveu bem cedo uma peculiar forma de esperteza. Havia um menino em uma das escolas particulares freqüentadas por Gelli que era mais forte e maior que os outros. Era admirado por muitos e temido por todos. Um dia Gelli roubou-lhe o lanche e, na confusão que se seguiu, disse-lhe:

- Eu sei quem roubou o lanche, mas não quero criar qualquer problema para o cara. Seu lanche está escondido embaixo do terceiro banco.

A partir daquele dia o menino tomara-se seu amigo e protetor, e Gelli aprendera a arte da manipulação.

Aos 17 anos, já adquirira um ódio ao comunismo comparável com a atitude do Rei Herodes em relação aos primogênitos. Como membros da Divisão Camisa Preta Italiana, Gelli e seu irmão lutaram contra os comunistas na Espanha, ao lado do exército de Franco. Gelli comentava laconicamente sobre esse período de sua vida:

- Só eu voltei vivo,

No inicio da Segunda Guerra Mundial, lutou na Albânia. Posteriormente, obteve o posto de Oberleutnanr na 5.5., na Itália, trabalhando para os nazistas como um "oficial de ligação". Seu trabalho incluía espionar os guerrilheiros e denunciá-los aos seus superiores alemães. Uma parte de sua riqueza inicial decorreu de sua presença na pequena cidade italiana de Cattaro, onde foram escondidos os tesouros nacionais iugoslavos durante a guerra. Uma parcela significativa desses tesouros nunca fora devolvida à Iugoslávia, por ter sido roubada por Gelli. A devoção inicial de Gelli ao ódio por tudo o que era comunista diminuiu na razão direta das derrotas sofridas pelas potências do Eixo, à medida que a guerra continuava. Começou a colaborar com os guerrilheiros, comunistas, em sua maioria. Localizava um esconderijo de guerrilheiros, comunicava submissamente aos alemães e depois avisava os guerrilheiros para fugirem antes do ataque.

Ele continuou a jogar com os dois lados pelo restante da guerra e foi um dos últimos fascistas a se render no norte da Itália, perto do lugar em que um jovem padre chamado Albino Luciani estivera escondendo guerrilheiros, em Belluno.

A concordância de Gelli em continuar a espionar para os comunistas, depois da guerra, foi essencial para salvar sua vida, quando enfrentou uma Comissão Antifascista, em Florença. As provas de que ele torturara e assassinara patriotas foram consideradas insuficientes, após a intervenção discreta dos comunistas.

Depois de inocentado dessas acusações, organizou imediatamente um "caminho subterrâneo" para os nazistas que desejavam fugir para a América do Sul. Cobrava 40 por cento do dinheiro que eles possuíam. Outro membro dessa organização foi um sacerdote católico da Croácia, Padre Krujoslav Dragonovic. Entre os homens que assim escaparam estava o chefe da Gestapo Klaus Barbie, geralmente chamado de "O Carniceiro de Lyon". Barbie não precisou pagar ao Padre Dragonovic ou a GeIli. O custo foi coberto pelo Serviço de Contra-Espionagem dos Estados Unidos, que utilizou o alemão em trabalho de espionagem até fevereiro de 1951.

Enquanto continuava a ajudar as autoridades do Vaticano e o Serviço de Informações dos Estados Unidos, Gelli ainda espionava para os comunistas, o que fez até 1956. O término do seu trabalho de espionagem para os comunistas coincidiu com o início de sua colaboração com o serviço secreto italiano. Parte do pagamento que recebeu para espionar em seu próprio país foi o arquivamento das acusações que o serviço secreto italiano levantara a seu respeito. Isso ocorreu em 1956. Dois anos antes, seguiu o mesmo caminho pelo qual despachara tantos membros do Terceiro Reich para a América do Sul, aliando-se a elementos da extrema direita na Argentina, tornando-se amigo íntimo e confidente do General Juan Perón. Quando Perón foi excomungado pela Igreja Católica, Gelli sofreu um dos seus poucos fracassos na tentativa de interferir junto ao Vaticano. A campanha anticlerical de Perón, que levara à sua excomunhão, pesou mais para a Igreja do que as garantias oferecidas por Gelli de que o general era um gênio incompreendido. Quando Perón fugiu do pais, depois de um golpe militar em 1956, Licio Gelli prontamente se empenhou em fazer amizade com a junta militar que subiu ao poder. Lenta e cuidadosamente, Gelli estava construindo uma base de poder que começou a se estender pela maior parte da América do Sul, Gelli sempre cortejava os ricos e poderosos ou os que tinham o potencial para se tornarem ricos e poderosos. Em termos de filosofia ou ideais políticos, Gelli era um prostituto. Trabalharia para quem pudesse pagá-lo. Enquanto ajudava a junta militar de extrema direita da Argentina, ele simultaneamente espionava por conta da União Soviética, através de suas ligações com a Romênia. Tinha uma recomendação dos comunistas da Itália, que salvaram sua vida depois da guerra, e os telefones dos contatos da CIA, para a qual também vendia informações. Para completar, continuou a trabalhar para o SID, serviço secreto italiano.

Enquanto Sindona escalava a selva financeira da Milão do pós- guerra, Gelli ascendia pelas complexas estruturas de poder da política sul-americana. Um general aqui, um almirante ali, políticos, altos servidores públicos. Enquanto Sindona cultivava contatos na convicção de que o poder estava no dinheiro, Gelli, através de seus novos amigos, aspirava à fonte do poder real: o conhecimento. Informações, as fichas pessoais deste ou daquele banqueiro, o dossiê secreto sobre um político, sua rede estendeu-se da Argentina para o Paraguai, Brasil, Bolívia, Colômbia, Venezuela e Nicarágua. Na Argentina, ele adquiriu dupla nacionalidade e tomou-se o conselheiro econômico do país para a Itália em 1972. Uma de suas principais tarefas foi promover a compra de armamentos para a Argentina, incluindo tanques, aviões, navios, instalações de radar e até mesmo os ultramodernos mísseis Exocet. Antes disso, ele ocupara cargos de menor importância. Na Itália, fora gerente-geral da Permaflex, uma fábrica de colchões, e também gerente da Remington Rand da Toscana. Entre os membros da diretoria da Remington Rand na ocasião estava Michele Sindona.

Sempre ansioso em ampliar seu círculo de poder e influência, ele achou que o movimento maçônico reabilitado era o veículo perfeito. Ironicamente, fora o seu amado líder Mussolii que proscrevera os maçons. Mussolini considerara-os "um Estado dentro de um Estado". Era igualmente irônico que o governo democrático italiano, que Gelli tanto desprezava, restaurasse a liberdade dos maçons, embora mantivesse um aspecto da lei fascista, que tornava uma violação da lei a criação de uma organização secreta. Conseqüentemente, os maçons reconstituídos foram obrigados a apresentar ao governo as relações de seus membros.

Gelli ingressou numa Loja Maçônica convencional em novembro de 1963. Elevou-se rapidamente a um membro de terceiro grau, o que lhe permitia chefiar uma Loja. O Grão-Mestre na ocasião, Giordano Gamberini, sugeriu a Gelli que formasse um círculo de pessoas importantes, algumas das quais poderiam se tornar maçons, mas todas seriam úteis ao crescimento da maçonaria legitima. Gelli tratou de aproveitar prontamente a oportunidade. O que ele de fato concebeu foi uma organização secreta ilegal. Esse grupo recebeu o nome de Raggruppamento Gelli, P2. O P representava Propaganda, o nome de uma loja histórica do século XIX. Inicialmente, atraiu diversos oficiais superiores reformados das forças armadas. Por intermédio deles, teve acesso aos oficiais no serviço ativo, em postos de comando. A teia que ele teceu acabaria por cobrir toda a estrutura de poder na Itália. Os ideais e aspirações da genuína maçonaria foram rapidamente abandona- dos, embora não oficialmente. O objetivo de Gelli era um pouco diferente: o controle da Itália pela extrema direita. Esse controle funcionaria como um Estado secreto dentro de um Estado, a menos que o imprevisível acontecesse e os comunistas ganhassem uma eleição. Se isso ocorresse, então haveria um golpe de estado. A direita assumiria o poder. Gelli tinha certeza de que as potências ocidentais aceitariam a situação. E na verdade, desde o inicio da formação da P2, contou com o ativo apoio e o estimulo da CIA operando na Itália. Se isso parece o roteiro de um lunático, condenado ao mesmo destino de todos os planos desvairados, cabe ressaltar que entre os membros da P2 somente na Itália (havia e ainda há ramificações poderosas em outros países) estavam o comandante das forças armadas, Giovanni Torrisi, os chefes do serviço secreto, Generais Giuseppe Santovito e Giulio Grassini, o chefe da policia financeira da Itália, Orazio Giannini, ministros e políticos de todas as tendências (à exceção dos comunistas, é claro), 30 generais, oito almirantes, editores de jornal, executivos de televisão, industriais e banqueiros, inclusive Roberto Calvi e Michele Sindona. Ao contrário da maçonaria convencional, a lista de membros da P2 era tão secreta que somente Gelli conhecia todos os nomes.

Gelli usou uma variedade de técnicas para aumentar o poder da P2. Uma delas foi o método inócuo de contato e apresentação pessoal de uma pessoa já associada. Outras foram menos elegantes. A chantagem era a mais proeminente. Quando uma pessoa ingressava na P2, era obrigada a demonstrar sua lealdade pondo à disposição de Gelli documentos comprometedores, informações delicadas, em suma, segredos que comprometessem não apenas o novo membro, mas também outros alvos possíveis. Confrontado com o alvo de seus crimes, o alvo se juntava à P2. Essa técnica foi usada, por exemplo, com o presidente da ENI, a empresa petrolífera estatal, Giorgio Mazzanti. Diante das provas de sua corrupção, envolvendo uma vultosa operação de petróleo com os sauditas, Mazzanti cedeu e ingressou na P2, oferecendo a Gelli ainda outras informações sobre corrupção.

Outra técnica que Gelli usava para seduzir um novo membro era descobrir, por uma fonte já corrompida, a lista tríplice de candidatos a um cargo importante. Telefonava para todos os três e anunciava a cada um que tomaria as providências necessárias para a sua nomeação. E, no dia seguinte, a P2 recebia um novo membro agradecido.

Na superfície, a P2 era e ainda é uma apólice de seguro fanática contra a possibilidade de governos comunistas. Excluindo a Itália, ainda há sucursais funcionando na Argentina, Venezuela, Paraguai, Bolívia, França, Espanha, Portugal e Nicarágua. Há também membros ativos na Suíça e Estados Unidos. A P2 se liga com a Máfia na Itália, Cuba e Estados Unidos. Relaciona-se com diversos regimes militares da América Latina e com uma variedade de grupos neofascistas. Também está intimamente relacionada com a CIA. Estende-se ao próprio coração do Vaticano. O interesse central comum a todos esses elementos é aparentemente o ódio e medo do comunismo.

Na realidade, a P2 não é urna conspiração mundial com o objetivo de prevenir a propagação do marxismo ou suas variações. E um grupo internacional com um número variado de intenções. Combina uma linha de pensamento com uma associação de auto-interesse, não tendo como sua principal meta a destruição de uma ideologia em particular mas uma insaciável cobiça por poder e riqueza, e o avanço do egoísmo, escondendo-se atrás da fachada de "defensores do mundo livre". No mundo da P2, entretanto, nada é livre. Tudo tem um preço.

Os contatos e associados de Licio Gelli eram amplos. Incluíam Stephan Della Chiaie, Pierluigi Pagliani e Joachim Fiebelkorn, todos membros do exército particular criado na Bolivia por Klaus Barbie, o ex-chefe da Gestapo. O grupo assumiu o nome de "Noivos da Morte". Os assassinatos políticos eram cometidos por encomenda, inclusive o do líder socialista boliviano Marcelo Quiroga Cru!, todos contribuindo para levar ao poder na Bolivia o General Garcia Meza, em 1980. Klaus Barbie usou o seu treinamento nazista para se tornar assessor de segurança" do Coronel Gomez, um homem que tinha muito sangue boliviano nas mãos.

O grupo controlado por Barbie expandiu suas atividades sob a proteção da junta Boliviana após o golpe de 1980. O assassinato de adversários políticos, jornalistas, líderes trabalhistas e estudantes aumentou. Além disso, exerciam a tarefa de 'controlar" a indústria de cocaína, destruindo os pequenos traficantes para assegurar a prosperidade dos grandes traficantes de drogas sob a proteção do governo. Desde 1965, as atividades de Barbie incluíam o negócio de armas não só na Bolívia como em outros regimes de extrema direita na América do Sul e Israel. Foi através da negociação de armas que Klaus Barbie, um impune membro da SS, e Licio Gelli tornaram-se parceiros nos negócios: Barbie, que entre maio de 1940 e abril de 1942, foi o homem responsável pela eliminação de todos os maçons conhecidos em Amsterdam e Lício Gelli, o grão-mestre da Loja Maçônica P2. Os dois homens tinham muito em comum, inclusive a consideração que ambos nutriam por homens como Stephan Della Chiaie. O italiano Della Chiaie esteve envolvido em pelo menos duas tentativas de golpe de estado em seu próprio país. Quando um governo civil voltou ao poder na Bolívia. em outubro de 1982, Della Chiaie fugiu para a Argentina. Recebeu ali abrigo e ajuda do membro da P2 José Lopez Rega. o criador dos notórios esquadrões da morte Triplo A.

Rega também criara uma gigantesca rede de contrabando de heroína entre a Argentina e os Estados Unidos. Obviamente Licio Gelli é tão hábil em vender sua visão particular do mundo quanto foi em vender colchões. Ter uma variedade de amigos e associados que inclui uma criatura como José Lopez Rega, Klaus Barbie e o esotérico Cardeal Paolo Bertoli é urna façanha extraordinária. Como Gelli, o cardeal é um toscano. Sua carreira inclui 40 anos no serviço diplomático do Vaticano. Bertoli não estava sem apoio no Conclave que elegeu Albino Luciani,

O Cardeal Bertoli foi apenas uma das muitas portas para o ingresso de Gelli no Vaticano. Gelli teve diversas audiências com o Papa Paulo. Bebia e comia com o Bispo Paul Marcinkus. Muitos cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores e padres, que hoje negariam conhecer Licio Gelli, tinham a maior satisfação em serem vistos em sua companhia nos anos 60 e 70.

Um dos associados mais íntimos da P2 de Gelli era o advogado italiano Umberto Ortolani. Assim como "O Titereiro", Ortolani aprendeu o valor das informações secretas bem cedo na vida. Durante a Segunda Guerra Mundial tornou-se chefe das duas maiores unidades operacionais do SISMI, o Serviço Militar de Inteligência Italiano. Sua especialidade era a contra-espionagem. Como católico, descobriu, ainda bem jovem, que um dos centros de poder encontrava-se do outro lado do Tibre, na Cidade do Vaticano. A partir daí, sua penetração e influência nos corredores do Vaticano foram totais.

Dignatários do Vaticano eram convidados freqúentes na casa de Ortolani, em Roma, na Via Archimede. Uma indicação de quão antigos são os contatos de Ortolani no Vaticano é o fato de que foi apresentado ao Cardeal Lercaro em 1953. Lercaro tinha imensa influência dentro da Igreja e tomou-se um dos quatro "moderados" do Concílio Vaticano Segundo. Ficou muito conhecido como um dos liberais cuja influência ajudou a assegurar que a maioria das reformas estabelecidas no Concfiio se tornasse realidade. Ortolani era geralmente conhecido como o "primo" do cardeal, um engano que ele mesmo encorajava.

No Conclave que elegeu Paulo VI, a preocupação principal era se o novo Papa continuaria o trabalho de João XXIII ou se reverteria seu trabalho ao estilo reacionário de Pio XII. Os "liberais" precisavam de um lugar seguro para debater a estratégia a ser seguida. Lercaro, um dos liberais que liderava, pediu a Ortolani que atuasse como anfitrião para o encontro, que aconteceu na vilia de Ortolani em Grottaferata, próximo de Roma, poucos dias antes do Conclave. Um grande número de cardeais compareceu, inclusive Suenens de Bruxelas, Doepfner de Munique, Koenig de Viena, Alfrink da Holanda e "Tio" Giacomo Lercaro.

Este encontro altamente secreto foi o fator mais importante que marcou o posteriormente ocorrido no Conclave. Ficou decidido que se o apoio considerável recebido por Lercaro não fosse suficiente, o apoio se voltaria para Giovanni Battista Montini. Assim, na terceira votação, Montini viu-se de repente com 20 votos adicionais, próximo ao papado que eventualmente conseguiu.

Com poucos meses, o novo Papa conferiu a Umberto Ortolani o título de "Cavaleiro de Sua Santidade". Posteriormente, recebeu muitas outras homenagens e prêmios do Vaticano. Conseguiu até filiar Licio Gelli, um não-católico, à ordem dos Cavaleiros de Malta, e do Santo Sepulcro. Amigo íntimo de Casaroli, normalmente conhecido como o Kissinger do Vaticano devido a seu envolvimento com política exterior, o advogado Ortolani premiou o mestre da P2 com uma entrada incomparável a todas as partes do Vaticano. Como seu mestre Licio Gelli, Ortolani é cidadão de muitos países, pelo menos no papel. Nascido em Viterbo, na Itália, adquiriu posteriormente a nacionalidade brasileira. A utilidade desse arranjo é que não existe tratado de extradição entre a Itália e o Brasil.

A lista de membros da P2 crescia cada vez mais. Em 1981, uma grande quantidade dos documentos secretos de Gelli foi apreendida em Toscana, e revelavam que a sociedade secreta possuía quase mil membros só na Itália. Mas esse número era apenas a ponta do iceberg. O serviço secreto italiano está convencido de que há pelo menos mais de dois mil. Gelli posiciona esse número em 2.400. Qualquer que seja esse número, vários serviços secretos europeus concordam em que a identidade da maioria dos membros da P2 ainda não foi revelada e que entre os quais há quase 300 dos homens mais poderosos do que o século XX convencionou chamar de mundo livre.

Quando houve a denúncia italiana dos quase mil membros dessa sociedade secreta ilegal, em 1981, um membro da P2, o Senador Fabrizio Cicchitto, enunciou uma verdade fundamental:

— Quando se queria alcançar o topo na Itália, durante a década de 70, o melhor caminho era Gelli e a P2.

O relacionamento íntimo entre a P2 e o Vaticano era, como acontecia com todos os relacionamentos de GeIli, proveitoso para ambas as partes. Gelli jogou com o medo quase paranóico do comunismo que existia no Vaticano. Gostava particularmente de citar pronunciamentos anteriores à Segunda Guerra Mundial que justificaram o fascismo, inclusive do Cardeal Hinsley, de Westminster, que dissera aos católicos em 1935:

— Se o fascismo afundar, a causa de Deus afundará junto.

O mais fantástico nos contatos íntimos e contínuos entre o Vaticano e a P2 é que vários cardeais, bispos e padres podiam sorrir benevolentes a essa criança bastarda, a maçonaria ortodoxa. A Igreja Católica considerara os maçons, por muitas centenas de anos, como os filhos do demônio. A organização foi repetidamente condenada e inspirou pelo menos seis bulas papais, completamente contra a maçonaria; sendo a mais antiga in eminente a do Papa Clemente XII em 1738.

A Igreja considerava essa sociedade secreta como uma religião alternativa controlada pelos ateus, cuja principal finalidade era a destruição da Igreja Católica. Conseqúentemente qualquer católico denunciado como pertencente a ela era automaticamente excomungado pela Igreja.

Não há dúvida de que muitos movimentos revolucionários na história utilizaram-se da maçonaria em suas divergências com a Igreja. Um exemplo clássico é o patriota italiano Garibaldi, que arregimentou os maçons do país em uma força que levantou a população contra a dominação papal e resultou em uma Itália unificada.

Hoje em dia a Maçonaria tem diferentes significados em diferentes países. Todos os maçons afirmam ser uma força para o bem. Os não maçons encaram esta sociedade secreta com diferentes graus de hostilidade e suspeita. Mas até bem recentemente a Igreja Católica manteve uma posição inteiramente firme: a maçonaria é um mal muito grande e todos os que pertencem a ela são, aos olhos da Igreja, anátemas. Se esse era o pensamento da Igreja sobre a maçonana convencional então torna os laços entre a P2 e o Vaticano ainda mais extraordinários: um dos menores e mais poderosos estados sobre a Terra abrigando um estado dentro de um estado. A esmagadora maioria de membros da P2 era, e continua sendo, de católicos praticantes.

Embora a Loja P2 italiana jamais se reunisse em sua totalidade (precisariam alugar La Scala para isso), havia indubitavelmente encontros de grupos selecionados. As discussões não se confinavam a lamentar os males do comunismo. Providências ativas eram planejadas para combater e impedir o que Gelli e seus amigos consideravatn o supremo desastre, um governo comunista eleito democraticamente.

Houve nas duas últimas décadas diversos atentados a bomba na Itália que nunca foram esclarecidos. Se as autoridades italianas algum dia pegarem Gelli, estarão em condições, se ele resolver falar e contar a verdade, de esclarecer alguns desses misteriosos atentados. Podemos citar alguns: Milão, 1969, atentado a bomba na Piazza Fontana, 16 mortos; Bolonha, 1974, atentado a bomba no expresso Roma-Munique, o "Italicus", perto de Bolonha, 12 mortos; Bolonha, 1980, atentado a bomba na estação ferroviária, 85 mortos, 182 feridos. Segundo um desencantado partidário de Geili, um neofascista chamado Elio Ciolii, esse último atentado foi planejado numa reunião da P2 em Monte Carlo, a 11 de abril de 1980. Licio Gelli foi o Grão-Mestre nessa reunião.

De acordo também com o depoimento juramentado de Ciolini, três dos homens supostamente responsáveis pelo atentado a bomba na estação ferroviária são Stephan Della Chiaie, Pierluigi Pagliani e Joachim Fiebelkorn.

O motivo para essa série de terríveis atentados foi uma manobra contra os comunistas italianos, procurando-se dar a impressão de que eram os responsáveis.

Em julho de 1976, o juiz italiano Vittorio Occorsio estava no meio de uma investigação sobre as ligações entre o movimento neofascista chamado Vanguarda Nacional e a P2 No dia 10 de julho, o juiz foi assassinado por uma prolongada rajada de metralhadora. O grupo neonazista Nova Ordem reivindicou posteriormente a autoria do assassinato. Nova Ordem, Vanguarda Nacional... os nomes tornam-se acadêmicos. O que importava era que Vittorio Occorsio, um homem de integridade e coragem, estava morto e a investigação sobre a P2 foi suspensa.

Ao final dos anos 60, Michele Sindona era membro da P2 e também um amigo íntimo de Licio Geili. Tinha muito em comum com Gelti, inclusive a atenção constante que ambos mereciam da CIA e da Interpol. As funções dessas duas organizações nem sempre são paralelas. A investigação da Interpol sobre Sindona é um exemplo perfeito disso. Em novembro de 1967, a Interpol de Washington transmitiu o seguinte telex à chefatura de polícia de Roma: Recebemos recentemente informações não confirmadas de que as seguintes pessoas se acham envolvidas na transferência ilegal de drogas sedativas, estimulantes e alucinogênicas entre a Itália, Estados Unidos e possivelmente outros países europeus

O primeiro da lista de quatro nomes era Michele Sindona. A polícia italiana respondeu que não tinha qualquer evidência que ligasse Sindona ao tráfico de tóxicos. Uma cópia do pedido da Interpol e outra da resposta chegaram às mãos de Sindona naquela mesma semana. Um pedido similar da Interpol de Washington à CIA, operando da Embaixada Americana em Roma e da legação em Milão, se respondido honestamente, produziria a confirmação de que a informação era absolutamente correta.

O dossiê da CIA sobre Michele Sindona já era extenso por esta data. Tem informações detalhadas sobre a ligação de Sindona com a Máfia de Nova York: a "família" Gambino, com seus 253 membros e 1.147 associados. Conta como as cinco famílias mafiosas de Nova York, Colombo, Bonanno, Gambino, Lucchese e Genovese estavam interlígadas por uma série de crimes que incluía o refinamento de contrabando e distribuição de drogas, as drogas em questão eram a heroína, cocaína e a maconha. Outras atividades criminosas incluídas no dossiê da CIA são a prostituição, o jogo, a pornografia, a agiotagem, o protecionismo, a chantagem, a fraude e roubos de bancos em larga escala.

O dossiê está repleto de detalhes de como a máfia siciliana, as famílias Inzerillo e Spatola, transferia a heroína da Sícília para seus colegas em Nova York; de sua infiltração na companhia aérea italiana Alitalia, e de como 50.000 dólares foram doados por algumas "famílias" nova-iorquinas a alguns de seus associados para receberem bagagens de Palermo, contendo heroína refinada em um dos cinco laboratórios de narcótico da família Inzerilio, na Sicília. No final dos anos 60 os lucros das famílias sicilianas com a venda da heroína excediam 500 milhões de dólares por ano.

O dossiê detalha as viagens anuais de aproximadamente 30 navios por ano que até recentemente deixavam os portos libaneses com cargas de heroína refinada ou não, com destino a vários portos no sul da Itália.

A pergunta mais séria levantada por esta questão é por que tais evidências incriminadoras não foram usadas e ficaram ocultas durante os anos 60 e 70? A CIA nunca inicia um plano de ação, apenas executa ou tenta executar instruções do presidente. Será que uma sucessão de presidentes acharam que as atividades mafiosas deveriam ser toleradas para garantir que a Itália, um membro da OTAN, não caísse nas mãos dos comunistas através da eleição popular?

As famílias mafiosas precisavam desesperadamente de homens como Michele Sindona. O extraordinário aumento de depósitos bancários e a criação de novos bancos e filiais na Sicília, uma das regiões mais pobres do país, dão testemunho da extensão do problema da máfia. Entra em cena Michele Sindona. Em determinada ocasião, perguntaram a Sindona onde obtivera o dinheiro necessário para as suas operações grandiosas. Ao que ele respondeu:

— Cerca de 95 por cento constituem dinheiro dos outros.

Era uma resposta 95 por cento verdadeira.

Assim era Michele Sindona, o homem escolhido pelo Papa Paulo VI para atuar como conselheiro financeiro do Vaticano; o homem escolhido, depois de uma longa amizade com o Papa, para substituir a Igreja em sua posição financeira na Itália. O plano era vender a Sindona alguns dos principais bens adquiridos sob o comando de Nogara. O Vaticano SA. estava prestes a se distanciar da face inaceitável do capitalismo. Teoricamente, adotaria a filosofia contida na mensagem que o Papa Paulo VI deu ao mundo em sua encíclica de 1967, Populorum Progressio.

"Deus destinou a terra e tudo o que contém para o uso de todos os homens e todos os povos, de forma a que os benefícios da criação possam fluir em proporções justas para as mãos de todos, de acordo com a regra de justiça que é inseparável da caridade. Todos os outros direitos, inclusive o de propriedade particular e de livre comércio, devem estar subordinados a isso; não devem obstruir, mas ao contrário promover sua realização. É um dever grave e urgente restaurar os objetivos originais".

O Papa Paulo, na mesma encíclica, citou Santo Ambrósio: “Nunca se dá aos pobres o que é seu; simplesmente se devolve o que lhes pertence. Pois aquilo de que se apropriou foi dado para o uso comum de todos. A terra é dada a todos e não apenas aos ricos.”

Quando essa encíclica foi divulgada, o Vaticano era o maior proprietário imobiliário particular do mundo. A Populorum Progressio também contém a observação memorável de que, mesmo quando populações inteiras sofrem terríveis injustiças, a insurreição revolucionána não é a resposta: “Não se pode combater um mal real com um mal ainda maior”.

Confrontados com o problema do mal de uma Igreja Católica rica quando aparentemente se desejava uma Igreja pobre para os pobres, o Papa e seus conselheiros decidiram liquidar uma parcela considerável de seus bens italianos e reinvestir em outros países. Evitariam assim os altos impostos, e a receita sobre os investimentos seria melhor. Quando o Papa Paulo proclamou as magníficas aspirações da Populorum Progressio, em 1967, o Vaticano já operava há alguns anos com Michele Sindona. Através da evasão ilegal de moeda dos bancos italianos de Sindona, através do Banco do Vaticano, para o banco suíço que possuíam conjuntamente, Sindona e o Vaticano podiam não estar fazendo os bens da criação fluírem para os pobres, mas certamente faziam com que fluíssem para fora da Itália. No início de 1968 outro banco controlado pelo Vaticano, o Banca Unione, estava com problemas. O Banco do Vaticano possuia 20 por cento do banco aproximadamente, Massimo Spada e Luigi Mennini eram seus representantes no conselho diretor. Em teoria, em 1970, dois anos após Sindona assumir controle do banco, obteve surpreendente sucesso. Visando o pequeno corrrentista e oferecendo taxas mais vantajosas, os depósitos subiram de 35 milhoes para mais de 150 milhões de dólares. Pelo menos na teoria.

Na prática, durante o mesmo período o banco foi roubado em 250 milhões por Sindona e seus associados. Grande parte dessa fortuna desapareceu através de outro banco de Sindona, o Banco Amincor, de Zurique. Outra parte dessa quantia perdeu-se numa enorme especulação no mercado de prata. Um dos homens profundamente impressionados com Sindona nessa época era David Kennedy, presidente do Continental Illinois, que breve seria escolhido para Secretário da Fazenda no Governo do Presidente Nixon.

Em 1969, era evidente para o Vaticano que perdera a longa batalha com o govemo italiano sobre a taxação dos dividendos por ações. Compreendendo que descarregar todas as suas ações no mercado resultaria no possível colapso da economia italiana, ocorreu ao Vaticano que tal ação também sena prejudicial a si mesmo. Um colapso de tal .magnitude acarretaria vultosos prejuízos para o Vaticano.

O Papa, juntamente com o Cardeal Guerri, chefe da Administração Especial da APSA, resolveu retirar da carteira de investimentos do Vaticano na Itália a participação acionária na gigantesca Socíetà Generale Immobiliare. Com bens num valor supenor a meio bilhão de dólares espalhados pelo mundo, era uma riqueza altamente visível. O Papa tomou a chamar O Tubarão.

A cotação da ação da Società Generale Immobiliare estava em tomo de 350 liras. O Vaticano possuía, direta ou indiretamente, cerca de 25 por cento das 143 milhões de ações. Sindona não gostaria de comprar? A questão foi apresentada pelo Cardeal Guerri. A resposta de Sindona foi imediata e positiva. Ficaremos com tudo, ao dobro do preço do mercado. Guerri e o Papa Paulo experimentaram a maior satisfação. O acordo entre Sindona e Guerri foi assinado numa reunião secreta à meia-noite, no Vaticano, na primavera de 1969.

Para o Vaticano, foi uma reunião particularmente proveitosa. Queria também descarregar a sua participação acionária majoritária na Condotte d’Acqua, a companhia fornecedora de água de Roma, e o controle acionário da Cerâmica Pozzi, uma empresa química e de porcelana que vinha sofrendo prejuízos. O Tubarão sorriu, acertou um preço e fechou os dois negócios.

Precisamente, quem idealizara toda essa operação? Quem era o homem que conseguira uma maravilhosa comissão de Sindona e recebeu altos elogios do Papa Paulo VI e do Cardeal Guerri? A resposta é a prova irrefutável não só de quanto a P2 penetrara no Vaticano mas também de como os interesses da P2, da Máfia e do Vaticano eram idênticos. O segundo homem depois de Lucio Gelli, Umberto Ortolani, era o responsável pela articulação da gigantesca transação. Tudo o que Sindona tinha de fazer era efetuar o pagamento.

É facil comprar companhias quando se usa o dinheiro dos outros. O pagamento inicial foi feito exclusivamente com dinheiro ilegalmente convertido dos depósitos do Banca Privata Finanziaria. Na última semana de maio de 1969, Sindona transferiu cinco milhões de dólares para um pequeno banco de Zurique, o Privat Kredit Bank. Esse banco recebeu instruções para enviar o dinheiro de volta ao BPF, na conta da Mabusi Beteiligung. A Mabusi, instalada numa caixa postal em Vaduz, a capital de Liechtenstein, era uma companhia controlada por Sindona. O dinheiro foi transferido em seguida para outra companhia controlada por Sindona, a Mabusi Italiana. E, depois, os cinco milhões de dólares foram pagos ao Vaticano. Mais dinheiro foi levantado para o pagamento das enormes aquisições com a participação do Hambros e da gigante americana Gulf Western.

Sindona obviamente possuia um senso de humor muito desenvolvido. Uma das empresas possuidas pela Gulf Western era a Paramount. Um dos seus filmes mais bem-sucedidos no período foi a adaptação do livro de Mario Puzo, O Poderoso Chefão. Assim, um filme apresentando uma visão atraente e amoral do mundo da Máfla produzia lucros vultosos, uma parte dos quais serviu para apoiar Michele Sindona assessor financeiro das famílias mafiosas Gambino e Inzerillo. Em troca, eles canalizavam os lucros multimilionários, adquiridos em grande parte das transações com heroína, para os bancos de Sindona. O círculo se completava. A vida imitava a arte.

No inicio dos anos 70, a maciça evasão ilegal de dinheiro da Itália produzia graves consequências na economia. Sindona e Marcinkus podiam estar obtendo lucros vultosos em decorrência de seus esforços para retirar dinheiro da Itália legalmente, mas o efeito sobre a lira era devastador. O desemprego aumentou. O custo de vida disparou. Indiferentes, Sindona e seus associados prosseguiram em suas especulações. Pressionando as cotações das ações para um nível exagerado, os bancos de Sindona se beneficiavam com milhões de dólares dos outros.

Sindona e seu amigo Intimo Roberto Calvi, do Banco Ambrosiano, gabavam-se abertamente nessa época que controlavam o mercado de ações de Milão. Era um controle que aproveitaram criminalmente por vezes incontáveis. As cotações subiam e desciam como ioiõs. Manobrava-se com as companhias para diversão e beneficio financeiro de Sindona e seus associados. A manipulação de uma empresa possuída pelo Vaticano, chamada Pacchetti, dá um exemplo das atividades corriqueiras desses homens.

Pacchetti começou sua vida com um pequeno e insignificante curtume. Sindona a adquiriu em 1969 decidido a transformá-la num conglomerado. Tomou como modelo a Gulfand Western, um gigantesco conglomerado norte-americano com uma larga gama de interesses que se estendiam desde os estúdios da Paramount a editoras e empresas de aviação. As aquisições de Sindona pela Pacchetti foram mais modestas. Na verdade, tornou-se uma lata de lixo comercial, contendo participação em usinas siderúrgicas não lucrativas e detergentes de uso doméstico, malsucedidos comercialmente. Entretanto, possuia uma jóia: adquirira do Arcebispo Marcinkus uma opção para comprar o Banca Cattolica dei Veneto. Indubitavelmente, o fato de que o diretor gerente do Banco do Vaticano, Massimo Spada, era também o presidente da Pacchetti ajudou Marcinkus a esquecer os pedidos do clero de Veneza e do Patriarca Luciani.

Roberto Calvi, um dos cúmplices nessas negociações, concordou em comprar numa data específica uma das companhias de Sindona chamada Litropo. O palco estava armado para manipular o mercado de ações de Milão mais uma vez ilegalmente.

O valor da ação estava em torno de 250 liras. Sindona instruiu o departamento de ações do Banca Unione a comprar as ações da Pacchetti; por intermédio de testas-de-ferro as ações foram ilegalmente transferidas para companhias possuidas por Sindona. O preço das ações continuou elevando a cotação na Bolsa de Valores de Milão, chegando a 1.600 liras. Em março de 1972, chegou o dia para a conclusão da venda da Zitropo a Calvi. Simultaneamente, todas as companhias receptoras despejaram as ações da Pachetti na Zitropo. A finalidade era valorizar artificialmente a Zitropo. O preço que Calvi pagou pela Zitropo foi astronomicamente mais alto do que o valor real da companhia. Sindona obteve um enorme lucro ilegal. Financiara toda a operação com garantias fictícias. Uma indicação do lucro obtido nessa única operação pode ser encontrada no fato de que, em 1978, um liquidante designado pelo governo, Giorgio Ambrosoli, conseguiu provas de que Sindona pagara uma comissão a Calvi de 6,5 milhões de dólares, e Calvi, por sua vez, pagou 50% dessa comissão ilegal ao Bispo Paul Marcinkus.

Por que Calvi pagaria tanto para adquirir a Zitropo? Há três motivos. Primeiro, usou o dinheiro de outros para efetuar a compra. Segundo, teve um lucro pessoal de 3,25 milhões de dólares. Terceiro, à conclusão da transação Pacchettil/Zitropo, obteve uma opção para comprar o Banca Cattolica deI Veneto. Sindona adquirira a opção anteriormente. O fato de ninguém consultar Albino Luciani, o Patriarca de Veneza, nem os membros de sua diocese que haviam colocado suas ações no Banco do Vaticano, foi considerado uma irrelevância pelo Bispo Marcinkus.

Sindona e Calvi tomaram-se extremamente eficientes nessa forma de assalto. Na história bancária, nunca se pagou tanto por tão pouco. Em 1972, Calvi embolsou mais cinco milhões de dólares de Sindona, quando as ações da Bastogi trocaram de mãos, além de 450 milhões de francos suíços, quando Sindona vendeu-lhe 7.200 ações do Finabank. Sindona sempre pagava as comissões a Calvi através de sua conta Mani, no Finabank. Essas quantias vultosas eram depositadas nas contas suíças secretas que Calvi possuía junto com a mulher. Calvi possuía quatro contas secretas no Union de Banques Suisses e no Credit Bank de Zurique: conta 618934; conta 619112; conta Ralrov/G21; e conta numerada Ehrenkranz. O mínimo que o próprio Sindona ganhava em cada operação era equivalente à quantia que pagava de comissão a Calvi.

Roberto Calvi desenvolveu um apetite insaciável por esse crime em particular e houve ocasiões em que o cometeu sozinho. Obrigou um de seus bancos, o Centrale, a comprar um bloco considerável de ações da Toro Assiscurazioni em 1976 por mais 25 bilhões de liras do que valia. Os 25 bilhões terminaram numa das contas suíças anteriormente indicadas. O mesmo aconteceu com 20 bilhões de liras decorrentes de uma operação de Calvi com mais de um milhão de ações do Centrale. Essas quantias gigantescas não eram apenas cifras num balanço. O dinheiro fisicamente se transferia dos bolsos de uma variedade de acionistas diretamente para os bolsos de Sindona e Calvi. Ainda não foi definido o que o Bispo Marcinkus fez com sua comissão de 3,25 milhões de dólares do golpe com a Pacchetti.

As ações do Banca Cattolica também foram submetidas a esse tratamento. Sindona sabia que Calvi negociava com Marcinkus a aquisição do controle do banco, ocorrendo então a pressão nas ações. Ao final da operação, todos estavam muito mais ricos, à exceção da diocese de Veneto.

Calvi fora apresentado a Marcinkus por Sindona, em 1971. Assim o Bispo Marcinkus, que por sua própria confissão “nada sabia de banco”, contou com dois excelentes tutores. Enquanto isso, Marcinkus foi promovido pelo Papa Paulo, tomando-se então o presidente do Banco do Vaticano.

Os diversos departamentos do Vaticano continuaram a descarregar uma ampla variedade de companhias em Sindona e depois em Calvi. Em 1970, por exemplo, finalmente venderam a Serono, uma indústria farmacêutica que tinha entre os seus produtos de maior sucesso uma pílula oral anticoncepcional.

Uma fonte de renda adicional do Finabank, de propriedade de Sindona e do Vaticano, era outra causa para agravar a difícil economia italiana: o duplo faturamento. Bordoni comentou a respeito:

— Não era tão suculento quanto as comissões obtidas pela exportação ilegal de capitais, mas mesmo assim alcançava uma cifra elevada.

As exportações eram faturadas a um custo inferior ao real. A fatura assim deturpada era paga oficialmente, através do Banco da Itália, que passava a informação para o Departamento da Receita. O exportador pagava o imposto por essa cifra reduzida.

O saldo era pago pelo destinatário das mercadorias no exterior diretamente ao Finabank. Em muitos casos, os exportadores italianos chegavam a apresentar oficialmente um prejuízo, que era convertido em créditos fiscais pelo governo.

As empresas de exportação possuidas por Sindona apresentavam tais prejuízos. Sindona subornava diversos políticos com cargos no governo para permitir que essa situação continuasse. Alegava que, ao agir assim, ajudava o governo a manter em baixo nível o índice de desemprego.

Um crime similar era cometido nas importações. A fatura apresentava um valor muito mais elevado do que o custo real das mercadorias. Depois que as mercadorias passavam pela alfândega, o pagamento da cifra artificialmente elevada seria efetuado pela companhia ao fornecedor estrangeiro. Este, por sua vez, transferia a diferença para uma conta numerada no Finabank ou ocasionalmente em algum outro banco suíço.

A Igreja pobre para os pobres do Papa Paulo tornava-se em vez disso cada vez mais rica. O despojamento pelo Vaticano da riqueza italiana resultara em homens como Sindona e Calvi roubarem o mundo para pagar a São Pedro e ao Papa Paulo.

O Finabank era também um repassador do dinheiro criminoso da Máfia e da P2. O Vaticano tinha uma participação nessas operações ao manter cinco por cento da participação acionária na Società Generale Immobiliare. Com a utilização adicional pela Máfia do Banco do Vaticano para colocar e tirar dinheiro da Itália, o Vaticano possufa, em última análise, todo o mecanismo para as operações ilícitas. O uso por Sindona e seu grupo das contas do Banco do Vaticano no BPF já foi explicado. Era um dos métodos de se tirar dinheiro escuso do país e limpá-lo no Finabank. Mas era uma operação de ida e volta, o que se chamava de lavanderia. O dinheiro escuso das atividades da Máfia no México, Canadá e Estados Unidos também estava sendo limpo ao fluir para a Itália. A operação era muito simples. Citarei Carlo Bordoni outra vez:

“Essas companhias no México e Canadá eram usadas para levar aos Estados Unidos, através das fronteiras canadenses e mexicanas, dólares da Máfia, dos maçons e de numerosas operações ilegais e criminosas; o dinheiro chegava em valises e era depois investido em títulos govemamentais dos Estados Unidos. Esses títulos eram enviados ao Finabank. Limpos e facilmente negociáveis”.

A Máfia dos Estados Unidos obviamente não tinha problemas nas fronteiras. Seu dinheiro era convertido em títulos públicos diretamente pela Ediltecno, de Washington; depois, os títulos também eram encaminhados ao Finabank. Se a Máfia desejava levar para a Itália uma parte do seu dinheiro limpo, usava os canais do Banco do Vaticano.

No início dos anos 70, Sindona louvou as suas próprias virtudes para Bordoni:

— Minha filosofia de operação se baseia na minha personalidade, que é singular no mundo, em mentiras bem contadas e na arma eficiente da chantagem.

Uma parte da técnica de chantagem era o suborno. Na opinião de Sindona, um suborno era “apenas um investimento, proporcionando um elemento de pressão sobre o subornado”. Assim, ele “financiava” extra-oficialmente o partido italiano dominante, o democrata-cristão: dois bilhões de liras para garantir a promoção do indicado do partido, Mario Barone, ao cargo de diretor-executivo do Banco di Roma; 11 bilhões de liras para financiar a campanha do mesmo partido contra o plebiscito do divórcio. Conseguiu que os democratas-cristãos “ganhassem bilhões de dólares. Abriu uma conta para o partido no Finabank, conta SIDC. Durante o início dos anos 70, três quartos de um milhão de dólares foram transferidos para essa conta, mensalmente. Sindona, que se proclamava o herói do anticomunismo, não era homem de correr qualquer risco. Abriu outra conta no Finabank para o Partido Comunista Italiano, para a qual também canalizou três quartos de milhão de dólares por mês, do dinheiro de outras pessoas, conta SICO.

Ele especulou contra a lira, o dólar, o marco alemão e o franco suíço. Em relação à sua maciça especulação contra a lira (uma operação de 650 milhões de dólares, inteiramente criada por Sindona), ele disse ao primeiro-ministro italiano Andreotti que tomara conhecimento de uma especulação contra a moeda italiana e, para saber mais sobre a operação, dera instruções a Bordoni para entrar no negócio, através da Moneyrex, de uma maneira “simbólica”. Depois de obter enormes lucros atacando a lira, foi aclamado por Andreotti como “O Salvador da Lira”. Foi durante esse período que recebeu uma homenagem do embaixador americano em Roma. Foi escolhido “Homem do Ano de 1973”.

Um ano antes, numa recepção oferecida para celebrar a aquisição do Daily American, de Roma, Sindona anunciara que tencionava expandir suas operações e transferir 100 milhões de dólares para os Estados Unidos. Entre os presentes estava o seu amigo íntimo Bispo Paul Marcinkus. Na verdade, Sindona já estava expandindo os seus interesses nos Estados Unidos ao comprar o Daily American. O jornal fora apoiado pela CIA. O Congresso dos Estados Unidos pressionava a CIA para revelar como aplicara exatamente os milhões de dólares que lhe eram destinados. Como o Papa Paulo, eles achavam que o momento parecia propicio para se livrar de alguns investimentos embaraçosos. Síndona insiste que comprou o jornal a pedido expresso do Embaixador Martin, que temia a possibilidade de que caísse “nas mãos de esquerdistas”. Martin, numa linguagem decididamente antidiplomática, negou isso, chamando Sindona de “mentiroso”.

Independente de quem tenha formulado o pedido, é incontestável que o jornal era anteriormente subsidiado pela CIA. Também não resta a menor dúvida de que esse não foi o primeiro favor que Sindona prestou à CIA. Em 1970, a CIA pediu-lhe que comprasse uma emissão de títulos no valor de dois milhões do Banco Nacional da Iugoslávia. Sindona atendeu. A CIA colocou os títulos na Iugoslávia no que considerava ‘mãos amigas”. Sindona também transferiu dinheiro por conta da CIA para grupos de extrema direita na Grécia e Itália.

Frustrado em sua tentativa de assumir, o controle da Bastogi, a grande empresa holding sediada em Milão, através do Sistema Italiano, (que estava particularmente motivado pelo medo do crescimento do poder de Sindona e parcialmente pelo racismo em relação aos sicilianos, cada vez maiores), O Tubarão concentrou sua atenção nos Estados Unidos. Ali, esse italiano que possuía mais bancos do que muitos homens têm camisas, comprou mais um, o Franklin National Bank, de Nova York.

O Franklin era o vigésimo maior banco americano. Sindona pagou 40 milhões de dólares por um milhão de ações, representando uma participação de 21,6 por cento. Pagou 40 dólares por ação numa época em que a cotação era de 32 dólares. Mais importante ainda, desta vez comprara um banco em estado completamente precário. O Franklin se encontrava à beira da falência. O fato de usar 40 milhões de dólares de dinheiro de outras pessoas, dos seus bancos italianos, sem qualquer consulta aos donos, não deve esconder de nós que, mais uma vez, uns poucos em Nova York notaram a chegada do garoto de Patti.

A verdadeira megalomania de Sindona pode ser avaliada pelo fato de que, depois de descobrir o que realmente adquirira, não se importou. Para ele, cuidar de bancos em situação precária era uma ocorrência corriqueira, desde que enormes depósitos pudessem ser mantidos em movimento no papel. Bastava que o telex funcionasse para transferir de A para B, depois para C e de volta a A.

Menos de 24 horas depois da aquisição e antes que tivesse sequer a oportunidade de experimentar a sala da presidência, o banco anunciou as cifras para o segundo trimestre de 1972. Apresentavam uma queda de 28 por cento em relação ao mesmo periodo de 1971. Sindona, O Tubarão, O Salvador da Lira, o homem que Marcinkus considerava estar “muito à frente de seu tempo em questões bancárias”, recebeu a notícia à sua maneira típica.

— Tenho ligações em todos os principais centros financeiros. Os que fazem negócios com Michele Sindona farão negócios com Franklin National.

Enquanto isso, os proprietários anteriores do banco riam sem parar, enquanto se transferiam para outro estabelecimento. Quanto às ligações importantes de Sindona, ninguém podia negar que de fato existiam. Variavam das famílias mafiosas Gambino e Inzerillo, na Sicília e Nova York, ao Papa Paulo VI, Cardeais Guerri e Caprio e o Bispo Paul Marcinkus, no Vaticano. Cobriam todo o espectro político; de Andreotti e Fanfani na Itália, ao Presidente Nixon e David Kennedy, na Casa Branca. Incluiam estreitos relacionamentos bancários com algumas das mais poderosas instituições do mundo, como o Banco do Vaticano, o Hambros de Londres, o Continental de Chicago e o Rothschilds de Paris. Através da P2 de Gelli, ele criara vínculos profundos com os homens que governavam na Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Nicarágua. Sobre o ditador nicaragúense, Somoza, ele disse a um advogado mafioso de Roma:

Prefiro lidar com homens como Somoza. Fazer negócios com a ditadura de um só homem é muito mais fácil do que fazer negócios com governos eleitos democraticamente. Eles têm muitos comitês, controles em excesso. Também aspiram à honestidade, o que é péssimo para as operações bancárias.

É um exemplo perfeito da filosofia da P2 apresentada a seus membros pelo fundador, Licio Gelli:

As portas de todos os cofres de bancos se abrem para a direita.

Enquanto Sindona fazia negócios com Somoza e procurava por um equivalente nos Estados Unidos, Gelli não se mantivera ocioso na Argentina. Sentindo o desencantamento da nação com a junta militar no poder, começou a tramar o retorno do General Perón do exflio. Em 1971, convenceu o Presidente Lanusse que a única maneira da Argentina recuperar a estabilidade política era a volta de Perón. O general retomou em triunfo. Uma de suas primeiras ações foi ajoelharse em gratidão aos pés de Licio GeIli, um gesto testemunhado, entre outros, pelo primeiro-ministro italiano, Andreotti. Perón tornou-se o Presidente da Argentina em setembro de 1973.

Enquanto Gelli se ocupava em fazer um presidente, Sindona, depois de analisar a arena política nos Estados Unidos, concentrava-se no homem que, em sua opinião, era o mais próximo dos ideais políticos de Somoza e Perón: Richard Milhous Nixon.

Para reforçar as suas boas ligações, Sindona arrumou um encontro com Maurice Stans, o chefe do levantamento de recursos para a campanha presidencial de Ntxon em 1972. Ele levou uma valise grande para a reunião. Continha um milhão de dólares em dinheiro. Sindona ofereceu a quantia a Stans para a campanha presidencial, a fim de “demonstrar a sua fé na América”. Sua fé era obviamente limitada, pois insistiu que a doação para ajudar Nixon a voltar à Casa Branca devia permanecer em segredo. Segundo depoimentos posteriores, Stans recusou a doação. E que uma nova lei federal proibia as doações eleitorais anônimas.

Mais ou menos na mesma ocasião em que louvava o talento bancário do Tubarão aos procuradores americanos que investigavam a operação de títulos falsificados no valor de um bilhão de dólares, o Bispo Marcinkus emitiu um cheque de 307 mil dólares. Era o quanto Sindona dera de prejuízo ao Vaticano, em decorrência de transações ilegais na Bolsa de Valores Americana com as ações de uma companhia chamada Vetco Industries. Violando regulamentos oficiais, uma corretora de investimentos de Los Angeles adquirira, por conta de Sindona e Marcinkus, 27 por cento da Vetco. O Vaticano pagou a multa e depois vendeu suas ações com lucro.

Em meados de 1973, o buraco nos bancos de Sindona alcançara proporções enormes. Uma coisa é transferir vastas quantias no papel de um banco para outro, violando todas as leis e cometendo os mais diversos crimes (desde que os subornos sejam colocados nas mãos certas, é uma manobra que pode se tornar interminável). O problema surge quando se desviam capitais em vastas quantidades para terceiros. Um buraco começa a aparecer. Pode ser preenchido com a declaração de lucros falsos e inexistentes, mas isso fica apenas no papel. Enquanto isso, o dinheiro propriamente dito continua a ser absorvido por terceiros. O buraco torna-se maior, os lucros falsos e inexistentes necessários para preenchê-lo têm de ser proporcionalmente maiores. Sindona estava despejando o dinheiro dos outros numa variedade de direções. P2, os democratas cristãos, Vaticano, juntas militares de extrema direita na América do Sul — esses eram apenas uns poucos dos maiores beneficiários. Muitos de sua equipe também estavam criando as suas fortunas pessoais.

Apropriadamente, O Tubarão sentava à sua mesa praticando a arte japonesa do Origami. A suíte executiva na Sexta Avenida, em Nova York, estava repleta de incontáveis exemplares de sua perícia em dobrar papel — como tantas de suas companhias, pequenas caixas vazias, empilhadas umas sobre as outras. O Tubarão se envolvia agora num frenético malabarismo intercontinental — a fusão desta companhia com aquela empresa financeira, a transferência destas ações para aquela companhia. Fundir. Dividir. Refundir.

Il Crack Sindona, como os italianos chamaram. Quando veio, foi espetacular o colapso do monumento à ganância e corrupção que Sindona erguera. Ele dissera pretensiosamente que não sabia a quanto montava sua nqueza pessoal, mas calculava que estava na altura de meio bilhão de dólares. Sindona achava-se um pouco confuso. A realidade era um tanto diferente.., mas também a percepção da realidade nunca fora um dos atributos do Tubarão. Suas ilusões eram alimentadas pelas ilusões dos outros, como demonstra o padrão meteórico de sua carreira:

Setembro de 1973: No Valdorf Astoria, em Nova York, o Primeiro-Ministro da Itália, Giulio Andreotti, levanta-se num banquete e pronuncia um discurso de louvor ao Tubarão, aclamando-o como “O Salvador da Lira”.

Janeiro de 1974: Grand Hotel, Roma. O embaixador americano John Volpe concede ao Tubarão o título de Homem do Ano”.

Março de 1974: As cotações na Bolsa de Valores de Milão disparam para o alto, assim como a taxa de câmbio do dólar, que está a 825 liras. Se Sindona encerrasse nesse momento as suas vultosas operações de câmbio, sairia com um lucro de pelo menos 100 bilhões de liras. Anna Bonomi, uma rival no mundo financeiro de Milão, apresenta uma excelente oferta pela holding de Sindona na Immobiliare. Sindona se recusa a vender.

Abril de 1974: O mercado de ações entra em declínio e a taxa de câmbio cai drasticamente. E o começo de Il Crack Sindona. O Franklin Bank, em Nova York, anuncia uma renda líquida operacional para o primeiro trimestre de dois cents por ação, em comparação com 68 cents por ação no ano anterior. Mesmo essa cifra é forjada. A realidade é que o banco sofreu um prejuízo de 40 milhões de dólares.

Maio de 1974: O Franklin é contido em suas maciças especulações de câmbio. O National Westminster, de Londres, protesta contra o volume de compensação em libras do Franklin, através de sua conta. Na semana anterior, a média fora de 50 milhões de libras por dia. O Franklin anuncia agora que não haverá um dividendo trimestral, a primeira vez desde a Depressão em que um grande banco americano é obrigado a omitir um pagamento aos acionistas.

Julho de 1974: Os buracos começam a aparecer na Itália e Estados Unidos. Numa tentativa de cobrir o buraco italiano, O Tubarão funde o Unione com o Banca Privata Finanziara. Dá à nova criação o nome de Banca Privata. No lugar de dois bancos médios em Milão, ele possui agora um banco muito grande no centro financeiro da Itália. Em vez de dois enormes buracos, ele possui agora um buraco gigantesco de 200 bilhões de liras.

Agosto de 1974: E o momento do sistema reagir. Na Itália, o Banco di Roma, tendo recebido uma grande parte do império de Sindona como garantia, põe 128 milhões de dólares no Banca Privata, numa tentativa de cobrir o buraco. Nos Estados Unidos, receando que o colapso do Franklin possa desencadear um Armagedom capitalista, o governo concede ao banco um acesso ilimitado aos recursos federais. Mais de dois bilhões de dólares fluem das reservas para o Franklin.

Setembro de 1974: O Banca Privata entra em liquidação compulsóna. Os prejuízos estimados ultrapassam os 300 milhões de dólares. Estão incluídos os 27 milhões de dólares do Vaticano, além de sua participação no banco.

3 de outubro: Licio Gelli paga em parte o vultoso investimento que Sindona fez na P2. Por cortesia de membros da P2 no judiciário e na polícia, ele é informado que Sindona será preso no dia seguinte. Gelli avisa Sindona.

4 de outubro: E emitido um mandado de prisão contra Michele Sindona. Sindona foge do país. Sempre um homem de visão, ele mudara anteriormente a sua nacionalidade. E agora um cidadão da Suiça. O garoto da Sicília foge para a sua pátria, instalando-se em Genebra.

8 de outubro: O Franklin Bank desmorona. Os prejuízos da Câmara Federal de Depósitos de Seguro se elevam a dois bilhões de dólares. E o maior estouro de um banco na história americana.

Outubro de 1974/janeiro de 1975: A Europa treme com o estrondo do estouro dos bancos que são controlados ou ligados a Sindona-Bankhaus Wolff A.G., de Hamburgo, Bankhaus I.K. Herstatt, de Colônia, Amincor Bank, de Zurique, e Finabank, de Genebra. Somente no Finabank, fontes bancárias suíças calculam que os prejuízos do Vaticano foram de 240 milhões de dólares. Os prejuízos do Finabank apenas em operações de câmbio são no mínimo de 82 milhões de dólares.

As autoridades italianas, ou melhor, o setor das autoridades italianas que não é controlado pela P2, tomaram-se a esta altura muito agitadas. Sindona, seguindo finalmente para os Estados Unidos, mostrava uma evidente relutância em voltar à Itália. A partir de outubro de 1974, começou uma longa batalha para extraditá-lo. Essa batalha estava fadada a ter uma influência direta no destino final do homem que, na ocasião, preocupava-se em Veneza com o esforço de levantar recursos para ajudar outro grupo de pessoas mentalmente deficientes. Seria difícil encontrar um contraste maior entre dois homens do que os valores que separavam Albino Luciani do Tubarão.

Embora a presença de Sindona na Itália fosse exigida com toda urgência, ele se tomara certamente persona non grata no Vaticano. A medida que o Secretário de Estado, Cardeal Villot, levava-lhe noticias de cada novo aspecto de Il Crack, o Papa Paulo tornava-se cada vez mais consternado. Já se disse que o Papa Paulo aspirara a ser o primeiro Papa pobre dos tempos modernos. Isso é uma falácia. A liquidação da maior parte dos investimentos italianos do Vaticano só tivera um objetivo: mais lucro. Impelido pelo desejo de evitar os impostos italianos sobre lucros de ações e querendo uma discrição maior na Itália, o Vaticano deixara-se seduzir por Sindona e seu grupo, com a perspectiva de maior riqueza através de investimentos nos Estados Unidos. Suíça, Alemanha e outros países.

A história que o Vaticano quer impingir hoje é de que o Papa Paulo sozinho foi responsável, por quase uma década, pelo profundo e continuado envolvimento com Michele Sindona. E outra falácia do Vaticano. Significativamente, essa mentira em particular jamais aflorou enquanto o Papa Paulo ainda estava vivo. Persuadido por seu secretário particular, Monsenhor Pasquale Macchi, por seus assessores Cardeal Guerri e Benedetto Argentieri, da Administração Especial, e por seu Secretário de Estado, Cardeal Villot e Umberto Ortolani, de que Sindona era a resposta para as orações do Vaticano, o Papa indubitavelmente abriu a porta de bronze e fez sinal para que o Tubarão entrasse. Uma vez lá dentro, ele passou a fazer o que bem queria. Na verdade, o Papa poderia ser alertado, se os seus assessores exercessem uma cautela elementar. Um exame meticuloso dos acontecimentos já descritos leva à conclusão inevitável de que muitos no Vaticano estavam prontos, dispostos e até mesmo ansiosos em aderir às atividades criminosas de Michele Sindona. Macchi, Argentieri, Guerri e Villot eram homens honrados? Marcinkus, Mennini e Spada, do Banco do Vaticano, eram homens honrados? Sua Santidade, o Papa Paulo VI, era um homem honrado?

O Bispo Marcinkus foi obrigado a sofrer a indignidade de diversas sessões de interrogatório intensivo pelas autoridades italianas sobre o seu relacionamento pessoal e comercial com Michele Sindona. Marcinkus, que por determinação de Sindona e Roberto Calvi era diretor de um banco em Nassau, no paraíso fiscal das Bahamas, Marcinkus, o amigo íntimo de Sindona, que em abril de 1973, durante outro interrogatório intensivo, dissera aos representantes do governo dos Estados Unidos:

Michele e eu somos grandes amigos. Nós nos conhecemos há muitos anos. Minhas transações financeiras com ele, no entanto, têm sido bastante limitadas. Ele é um dos industriais mais ricos da Itália. E está bem à frente de seu tempo em questões financeiras.

Menos de dois anos depois, o honrado Bispo Paul Marcinkus foi entrevistado pela revista italiana L’Espresso a respeito de seu relacionamento com Sindona. O bispo disse, na manhã de 20 de fevereiro de 1975:

A verdade é que nem mesmo conheço Sindona. Como poderia então perder dinheiro para ele? O Vaticano não perdeu um único centavo e o resto é fantasia.

Para presidente de um banco, o Bispo Marcinkus constantemente demonstrava uma memória muito fraca.

Declara a representantes do governo dos EUA, em 1973:

— Minhas transações financeiras com Michele Sindona têm sido bastante limitadas.

Pelo contrário, suas transações financeiras com o banqueiro mafioso eram muitas e constantes desde o final dos anos 60 até um pouco antes de Il Crack Sindona, em 1975. Menos de dois anos antes de seu interrogatório pelos representantes do governo norte-americano e do FBI, Sindona desempenhara um papel decisivo na venda do Banca Cattolica por Marcinkus a Roberto Calvi, no valor de 46,5 milhões de dólares, uma transação em que Sindona fez um pagamento ilegal de 6,5 milhões de dólares a Calvi e a Marcinkus. Esta, assim como outras perdas infligidas ao Vaticano por Sindona, não foi uma “fantasia”.

O Dr. Luigi Mennii, Secretário-Inspetor do Banco do Vaticano, foi preso em decorrência do estouro de Sindona e seu passaporte confiscado. Mennini, que trabalhava diretamente sob as ordens de Marcinkus, negou tudo, nada sabia. Possivelmente um de seus filhos, Alessandro, que ocupava um alto cargo executivo na seção de assuntos exteriores do Banco Ambrosiano, o centro nervoso de grande parte das especulações de câmbio, ficaria igualmente desconcertado se interrogado sobre as atividades criminosas de Sindona e Calvi.

Antes de Il Crack Sindona, Mennini especulava, por conta do Banco do Vaticano, com moedas estrangeiras, junto com o colega de Sindona, Cano Bordoni. Ao longo dos anos, Bordoni passou a conhecêlo muito bem.

Apesar de se comportar como um prelado, ele era um jogador inveterado. Atormentava-me, em todos os sentidos da palavra, porque queria ganhar dinheiro em quantidades sempre crescentes. Especulava no Finabank, em ações, em mercadorias. Lembro que um dia ele me entregou uma carta curta de Paulo VI, que me dava sua bênção por meu trabalho como consultor da Santa Sé. Mennini era virtualmente um escravo da chantagem de Sindona, que muitas vezes ameaçou divulgar informações sobre as operações ilegais que ele realizara com o Finabank.

Massimo Spada, secretário-administrativo do Banco do Vaticano, também sob as ordens diretas do Bispo Marcinkus, aposentou-se oficialmente em 1964, mas continuou a representar uma ampla gama de interesses do Vaticano. Como Mennii, Spada abriu a porta de sua casa uma manhã para deparar com agentes da polícia financeira italiana munidos de um mandado de busca e apreensão. Suas contas bancárias foram bloqueadas por determinação judicial, o passaporte foi confiscado. Três ações judiciais diferentes foram iniciadas contra ele, por inúmeras violações das leis bancárias e falência fraudulenta.

Spada, que pelo depoimento juramentado de Carlo Bordoni era outro escravo da chantagem de Sindona, que conhecia plenamente todas as operações ilegais de Sindona, assumiu a posição clássica do Banco do Vaticano quando foi entrevistado por L’Espresso, em fevereiro de 1975:

— Quem poderia imaginar que Sindona era um louco? — Spada, diretor de três bancos de Sindona, com altos salários, continuou: — Em 45 anos, nunca me encontrei numa situação assim. Já atravessei os periodos mais difíceis, mas nunca vi nada parecido. Lunáticos delirantes que começaram a comprar bilhões de dólares em moedas européias. Todos os prejuízos decorreram disso. Quem poderia imaginar que todos os dias Bordoni vendia 50 ou 100 milhões de dólares contra francos súlços ou florins holandeses? O que um conselho de administração pode saber das operações alucinadas que ocorreram entre janeiro e junho de 1974?

Na ocasião em que fez esses comentários, Spada era considerado, aos 70 anos de idade, um homem de negócios tão brilhante que ainda pertencia ao conselho de administração de 35 empresas.

E assim continuou. Ninguém no Vaticano conhecia Sindona ou sabia de suas atividades criminosas. Os confiantes Homens de Deus foram “enganados” pelo Diabo.

E possível que, todos fossem de fato homens honrados, traidos por Michele Sindona? E possível que representantes do Vaticano, como Mennini e Spada, participassem das diretorias dos bancos de Sindona e permanecessem ignorantes dos crimes que Sindona e Bordoni cometiam? Massimo Spada entregou tudo em sua entrevista a L’Espresso. Perguntaram-lhe se apenas Sindona e Bordoni eram culpados de especulações de câmbio.

Você deve estar brincando. Usar centenas e centenas de bilhões em operações de câmbio tornou-se um hábito para os bancos. Quando um operador médio do mercado de Milão movimenta uma média diária de 25-30 bilhões de liras e um pequeno banco milanês movimenta 10-12 bilhões de liras, em operações de câmbio, e todo o sistema bancário italiano permanece em silêncio, então temos de agradecer à Providência, Deus, Santo Ambrósio, São Jorge e, acima de tudo, São Januário. Eu diria que, a esse respeito, deveriam enviar cartas legais a todos os bancos italianos, comunicando que estavam sendo investigados.

Assim, de acordo com Spada, um homem cujo nome era sinônimo de Vaticano SA., um homem que nascera na dinastia financeira da família Spada (o bisavô fora banqueiro do Principe Torlonia, o avô um diretor do Banco da Itália, o .pai Luigi um agente de câmbio e ele mesmo trabalhara para o Vaticano SA. desde 1929), um homem com antecedentes ilustres, todo o sistema bancário italiano se achava afundado até o pescoço em atividades criminosas. Mas ele próprio alegava ignorar o que acontecia nos próprios bancos de que era diretor.

Depois do estouro, as estimativas dos prejuízos do Vaticano foram muitas e variadas, indo do cálculo dos banqueiros suíços, anteriormente citado, de 240 milhões de dólares, à declaração do próprio Vaticano:

"Não perdemos um centavo." A verdade pode ser encontrada provavelmente na faixa de 50 milhões de dólares. Quando a multinacional do outro lado do Tibre falou não ter perdido um centavo, certamente levava em consideração os enormes lucros anteriores decorrentes de sua associação com O Tubarão. Mas uma redução do lucro total de 300 milhões para 250 milhões de dólares é um prejuízo em qualquer língua, inclusive o latim.

Acrescente-se a esse prejuízo de 50 milhões de dólares acarretado por Sindona mais 35 milhões de dólares perdidos pelo Vaticano S.A. no curioso caso do Banco di Roma per la Svizzera (Svirobank), de Lugano. O Banco do Vaticano possuía a maioria acionária de 51 por cento nesse banco suíço, que tinha como presidente o Príncipe Giulio Pacelli. Luigi Mennini era o diretor-executivo. Como todos os outros bancos ligados ao Vaticano, o Svirobank especulava com os recursos escusos dos exportadores ilegais de liras e de setores da confraria criminosa da Itália. Especulações em ouro e moedas estrangeiras eram ocorrências cotidianas. Em 1974, um rombo começou a aparecer. A culpa foi prontamente atribuída ao diretor-gerente, Mario Tronconi, o que é bastante estranho, tendo em vista que a pessoa que cuidava pessoalmente das transações era Franco Ambrosio.

Mario Tronconi foi "suicidado" no outono de 1974. Encontraram seu corpo na linha ferroviária Lugano-Chiasso. Havia em seu bolso uma carta de despedida para a esposa. Antes de sua morte, indubitavelmente para sua tranqüilidade, Pacelli, Mennini e os outros diretores do Svirobank obrigaram Tronconi a assinar uma confissão em que assumia plena responsabilidade pelo rombo de 35 milhões de dólares. Ninguém denunciou Ambrosio, o homem que realmente criara o rombo. Ao contrário, Ambrosio foi incumbido de recuperar o prejuízo. A verdade só veio à luz dois anos depois, quando Mario Barone, um dos presidentes do conselho de administração do Banco di Roma (que possuía os outros 49 por cento do Svirobank), foi preso e interrogado a respeito de Il Crack Sindona. Evidentemente, o sistema bancário italiano apresenta muitos riscos inerentes. Mario Tronconi foi apenas um dos membros da confraria cuja morte deu a impressão de se tratar de suicídio. Na década subseqüente, a lista aumentaria de maneira alarmante. A Solução Italiana seria aplicada a um número crescente de problemas.

Enquanto Michele Sindona lutava contra sua extradição de Nova York e tramava vingança, o Vaticano S.A. voltava a especular, através do sucessor dele, Roberto Calvi. Ele era conhecido nos círculos financeiros de Milão como "Il Cavaliere", O Cavaleiro, um curioso apelido para o homem que era o pagador da P2. Originou-se em 1974, quando Giovanni Leone, então Presidente da Itália, fê-lo "Cavaliere del Lavoro", Cavaleiro do Trabalho, por seus serviços à economia italiana. Calvi deveria substituir Sindona como o homem que limpava o dinheiro da Máfia, e realizara o maior roubo na história dos negócios bancários.

Roberto Calvi nasceu em Milão, a 13 de abril de 1920, mas suas raízes familiares estão em Valtellina, um longo vale alpino perto da fronteira suíça e próximo da cidadezinha natal de Albino Luciani. Ambos eram homens das montanhas. Depois de estudar na prestigiosa Universidade Bocconi, lutou por Mussolini na frente russa, durante a Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, seguiu o caminho do pai, ingressando na atividade bancária. Começou a trabalhar no Banco Ambrosiano em Milão, em 1947. Derivando seu nome de Santo Ambrósio, o banco irradiava religiosidade. Como o Banca Cattolica del Veneto, era conhecido como "Banco dos Padres". Certificados de batismo estabelecendo que o portador era católico se faziam indispensáveis para a abertura de uma conta. Orações agradecendo a Deus pelos lucros anuais eram feitas ao final das assembléias. No início dos anos 60 havia um clima de reverência no banco, maior do que em muitas igrejas próximas. O Cavaleiro de olhos frios tinha outros planos para o apático banco diocesano, que incluía entre os seus clientes o Cardeal Giovanni Montini, Arcebispo de Milão. Quando Montini tornou-se o Papa Paulo VI, em 1963, Calvi já progredira para o posto de executivo júnior no banco. Quando o Papa Paulo decidiu chamar Sindona ao Vaticano, a fim de aliviar a Igreja de seus investimentos italianos embaraçosamente vultosos, O Tubarão e O Cavaleiro já eram amigos íntimos. Conspiravam então para assumir o controle do Banco Ambrosiano e transformá-lo num tipo muito especial de instituição bancária internacional. Calvi tornou-se o diretor-gerente do banco em 1971. Aos 51 anos, elevara-se muito além do humilde cargo burocrático do pai. O homem médio se contentaria com os louros já conquistados e em desfrutar da condução das orações nas reuniões de diretoria. Só que a única coisa mediana em Roberto Calvi era a sua altura. Sua capacidade de elaborar esquemas tortuosos para limpar o dinheiro da Máfia, exportar liras ilegalmente, sonegar impostos, ocultar os atos criminosos de comprar ações em seu próprio banco, fraudando o mercado de ações de Milão, para subornar, para a corrupção, obstruir a ação da justiça, providenciar uma prisão indevida aqui, um assassinato ali... sua capacidade para fazer tudo isso e muito mais põe O Cavaleiro numa categoria criminosa muito especial. Calvi estava inclinado a aconselhar a todos em geral que se quisessem entender os caminhos do mundo deveriam ler O Poderoso Chefão, um romance de Mario Puzo. Carregava um exemplar sempre a todos os lugares que ia, como um padre com sua Bíblia.

Calvi foi apresentado ao Bispo Marcinkus por Sindona em 1971, ingressando imediatamente no seleto clã do Vaticano dos uomo di fiducia, os homens de confiança, a pequena elite que trabalhava com e para o Vaticano S.A. Eram homens como Sindona, Spada, Mannini e Bordoni, escolhidos com o maior cuidado possível.

Em 1963, formou uma companhia no Luxemburgo chamada Compendium (o nome foi posteriormente mudado para Banco Ambrosiano Holdings S. A.). Essa empresa-fantasma era a base dos esquemas de Calvi. Milhões de eurodólares emprestados estavam destinados a passar por essa holding do Luxemburgo. O número de bancos do mundo inteiro, enganados a emprestar dinheiro diretamente a essa pequena empresa-fantasma, ultrapassou a 250 milhões. O valor total em dinheiro foi superior a 450 milhões de dólares.

O império do Cavaleiro cresceu rapidamente. No início dos anos 60, o Banco Ambrosiano já adquirira o Banca del Gottando em Lugano, Suíça. Este tornou-se o principal conduto para limpar o dinheiro da Máfia, depois do colapso do Amincor de Sindona, em Zurique. Outros bens estrangeiros se seguiriam.

Um deles foi o Banco Ambrosiano Overseas Ltd., sediado em Nassau. Essa sucursal no paraíso fiscal das Bahamas foi aberta em 1971 e desde o começo o Bispo Paul Marcinkus constou do seu conselho de administração. Foi originalmente chamado Cisalpine Overseas Bank, a fim de afastar membros curiosos da polícia financeira italiana.

Os lucros canalizados para os cofres do Banco do Vaticano aumentaram proporcionalmente ao império de Calvi. Para se compreender muitas das operações financeiras complicadas e às vezes deliberadamente confusas em que Calvi se empenhou, ao longo dos anos 70, deve-se compreender um fato da maior importância: essencialmente, o Banco Ambrosiano de Milão e o Banco do Vaticano estavam estreitamente ligados. Muitas das operações cruciais foram conjuntas. Calvi só foi capaz de violar as leis tantas vezes porque o Banco do Vaticano lhe prestava uma assistência total. Quando Calvi, a 19 de novembro de 1976, desejou adquirir 53,3 por cento do Banco Mercantile S.A., de Florença, a operação pareceu ser efetuada por conta do Banco do Vaticano. As ações seguiram um caminho tortuoso para chegarem, a 17 de dezembro de 1976, à corretora de Milão Giammei & Cia, que freqüentemente operava por conta do Vaticano. Através de hábeis manobras no papel, as ações foram "estacionadas" no mesmo dia no Banco do Vaticano. O fato de o Vaticano não dispor de fundos suficientes, numa conta especifica, para pagar as ações foi superado por um crédito, a 17 de dezembro de 1976, numa conta recentemente aberta, nº 42801, de oito bilhões de liras. No verão seguinte, a 29 de junho de 1977, a Giammei comprou de volta as ações do Banco do Vaticano, por intermédio do Credito Commerciale, de Milão. Enquanto as ações seguiam por esse caminho tortuoso, estavam passando, pelo menos no papel, por um dramático aumento de preço. A aquisição original fora efetuada a 14 mil liras por ação. Quando as ações voltaram à Giammei, estavam cotadas a 26 mil liras por unidade. A 30 de junho de 1977, as ações foram vendidas pelo Credito Commerciale à Immobiliare XX Settembre S.A., controlada por Calvi. No papel, o Banco do Vaticano obteve um lucro de 7.724.378.100 liras, com a alta das cotações. A realidade foi que Calvi pagou ao Banco do Vaticano 800 milhões de liras pelo privilégio de usar seu nome e instalações. O Banco do Vaticano, sediado no Estado independente da Cidade do Vaticano, estava fora do alcance dos inspetores bancários italianos. Vendendo a si mesmo as ações que já possuía pelo dobro do preço de compra original, Calvi aumentou consideravelmente, no papel, o valor do Banco Mercantile e roubou 7.724.378.100 liras, menos a comissão que pagou ao Banco do Vaticano. Posteriormente, Calvi vendeu as ações à sua rival financeira de Milão, Anna Bonomi, por 33 bilhões de liras.

Com a cooperação intensa e contínua do Banco do Vaticano, Calvi pôde abrir um caminho ilegal e criminoso através das leis italianas. Operações como a que foi descrita não poderiam ocorrer sem o pleno conhecimento e aprovação de Marcinkus.

Com relação ao esquema Sindona/Calvi/Marcinkus para o Banca Cattolica del Veneto, todos os indícios disponíveis sugerem uma conspiração criminosa de todos os três.

Marcinkus queria manter a operação em segredo, até mesmo do Papa Paulo VI. Alguns anos depois, Calvi recordou a transação para Flavio Carboni:

Marcinkus, que é um tipo rude, nascido de pais pobres, num subúrbio de Chicago, queria executar a operação sem sequer informar ao chefão. Estou falando do Papa. Tive três reuniões com ele a respeito do Banca Cattolica dei Veneta. Queria vendê-lo a mim. Perguntei-lhe se tinha certeza, se lhe era viável, se o chefão concordava com isso. Eu é que insisti e disse a ele: "Conte tudo ao chefão." Marcinkus aceitou meu conselho. Depois me disse que falara com Paulo VI, que deu seu consentimento. Algum tempo depois arranjou-me uma audiência com Paulo VI, que me agradeceu por ter resolvido alguns dos problemas da Biblioteca Ambrosiana. Mas compreendi que ele me agradecia pela compra do Banca Cattolica del Veneto.

 

Se alguém procura a confirmação de que no início dos anos 70 o Papa adquiriu o novo título de Presidente pode achá-la na descrição de Calvi. O Santo Padre e Vigário de Jesus é reduzido a "o chefão".

Igualmente esclarecedora é a apreensiva pergunta de Calvi ao Bispo Marcinkus:

— Tem certeza? É viável para você?

O banqueiro milanês estava obviamente ciente dos laços que ligavam o banco ao clero de Veneto. O fato de que Marcinkus desejava manter o Papa alheio às transações é mais uma indicação de quão escusa foi a venda a Calvi. E óbvio que era sensato o conselho do Cardeal Benelli a Luciani, de que o Papa não intercederia a favor do Patriarca, seus bispos e padres em relação à compra do Banca Cattolica por Calvi. Não fazia muito sentido reclamar com o homem que dera sua bênção pessoal à venda. O que o Papa Paulo VI criou, com a ajuda de Calvi, Marcinkus e Sindona, foi uma bomba-relógio, que continuaria a tiquetaquear até setembro de 1978.

Temerosos de uma reação hostil por parte de Veneza, todas as notícias sobre a venda do banco foram proibidas por Calvi e Marcinkus. Em 30 de março de 1972, o grupo de Calvi anunciou que havia adquirido 37,4 por cento do Banca Cattolica, mas os documentos que consegui contam uma outra história.

Em julho de 1971, Calvi escreveu para Marcinkus:

 

Por intermédio desta carta, desejamos formalizar a nossa firme proposta de comprar até 50 por cento das ações do Banca Cattolica del Veneto, Vicenza, ao preço de 1.600 liras por ação, com o usufruto ocorrendo nas seguintes etapas:

  1. Por 45 por cento das ações da referida empresa, num total de 16.254.000 ações, com a aplicação dependendo da aceitação de nossa oferta e contra um pagamento a ser efetuado por nós de 42 milhões de dólares.
  2. Para as ações restantes, constituindo mais 5 por cento do capital, num total de 1.806.000 ações, a se efetuar depois da data da declaração de intenções" relativas ao mencionado Banca Cattolica del Veneto, a ocorrer antes de 31 de outubro de 1971 e contra um pagamento de 4,5 milhões de dólares, a 29 de outubro de 1971

Na prática, o Banco do Vaticano recebeu 46,5 milhões de dólares, pelo valor de 1971, o que representaria hoje 115 milhões de dólares.

Calvi sabia que, por sua insistência, a proposta seria apresentada ao Papa, acrescentou na carta:

Comunicamos ainda que assumimos formalmente a responsabilidade de manter inalteradas as atividades do Banca

Cattolica del Veneto em seus critérios de elevados padrões morais, sociais e religiosos.

A cópia dessa carta do Vaticano está oficialmente carimbada e assinada por Marcinkus. Assim, Veneza só tomou ciência da venda secreta de 1971 aproximadamente um ano depois.

Os "elevados padrões morais, sociais e religiosos" foram tão depressa abandonados por Calvi, depois que assumiu o controle do banco, que, em 1972, todo o clero da região se levantou em protesto e começou a assediar a residência de Luciani, em Veneza. Luciani partiu às pressas para Roma, mas 1972 não era obviamente o momento para uma ação reparadora, com Paulo VI abençoando a transação. O momento para a ação seria setembro de 1978.

Uma estranha situação assinalou os anos de intervalo. As ações nunca deixaram o Banco do Vaticano. A 29 de outubro de 1971, a data em que os cinco por cento finais das ações foram em teoria vendidos a Calvi, os títulos, que ainda eram inteiramente controlados pelo Banco do Vaticano, foram transferidos para a Zitropo, uma empresa pertencente na ocasião a Sindona. Posteriormente, a Zitropo passou ao controle de Calvi e depois do próprio Banco do Vaticano. E as ações do Banca Cattolica continuaram nos cofres do Vaticano. Não é de admirar que em março de 1982 o então Arcebispo Paul Marcinkus se referisse a nosso investimento no Banca Cattolica, que está indo muito bem".

Quando a Bolsa de Valores de Milão entrou em baixa, em 1974, o Banco Ambrosiano estava entre os que sofreram prejuízos. Calvi era particularmente vulnerável. O principal ingrediente na atividade bancária internacional é a confiança. Sabia-se que ele era um grande associado de Sindona. Quando Il Crack ocorreu, o mundo bancário passou a assumir uma posição mais cautelosa em relação a ,,Il Cavaliere". Os limites de crédito para o Ambrosiano foram reduzidos. Tornou-se difícil obter empréstimos no mercado internacional. O pior de tudo é que a demanda dos pequenos investidores por ações do banco começou a diminuir, com a conseqüente queda nas cotações. Como um passe de mágica, no que se estava tornando rapidamente o momento final para o Ambrosiano, uma empresa chamada Suprafin S.A., com escritório registrado em Milão, entrou no mercado. Essa casa financeira demonstrava a maior confiança no Signor Calvi. Comprava ações de seu banco diariamente. Mas antes que houvesse tempo para que o nome da Suprafin fosse incluído entre os acionistas, as ações eram revendidas no Panamá e Liechtenstein. A confiança em Calvi começou a ressurgir e a Suprafin continuou a comprar. Em 1975, 1976, 1977 e 1978, a Suprafin demonstrou uma fé absoluta no futuro do banco de Calvi... uma fé no valor de 50 milhões de dólares.

A Suprafin obviamente sabia de alguma coisa que não era do conhecimento de mais ninguém. Entre 1974 e 1978, as ações do Ambrosiano continuaram a cair, apesar da Suprafin adquirir mais de 15 por cento do banco. A Suprafin era oficialmente possuída por duas companhias do Liechtenstein, Teclefin e Impanfin. Em teoria, essas duas companhias pertenciam ao Banco do Vaticano. Só teoria. Na prática, a Suprafin pertencia a Calvi. Consequentemente, com o pleno conhecimento do Banco do Vaticano, ele estava sustentando a cotação no mercado das ações do Ambrosiano com aquisições maciças, uma operação totalmente ilegal. O dinheiro para financiar a fraude provinha de empréstimos internacionais à subsidiária de Luxemburgo e do banco gerador em Milão.

O Banco do Vaticano recebia vultosos pagamentos anuais por proporcionar os instrumentos para que O Cavaleiro pudesse executar uma gigantesca fraude internacional. Esse dinheiro era pago de diversas maneiras. Todos os depósitos do Vaticano nos bancos Ambrosiano recebiam juros pelo menos um por cento superiores aos dos outros depositantes. Outro método era o Ambrosiano "comprar" ações do Vaticano. No papel, o Banco do Vaticano vendia um lote de ações a uma companhia panamenha a um preço cerca de 50 por cento mais alto que o valor real do mercado. As ações nunca deixavam o Vaticano e o banco que Marcinkus controlava se tomava milhões de dólares mais rico. A companhia panamenha, geralmente com um capital de apenas alguns milhares de dólares, tomava emprestados os milhões do Banco Ambrosiano Overseas, sediado em Nassau, do qual Marcinkus era diretor. A subsidiária de Nassau tomava o dinheiro emprestado da companhia do Luxemburgo, que por sua vez levantava empréstimos dos bancos internacionais.

Calvi estava obviamente esperando, contra todas as expectativas, que as ações do banco acabassem subindo, quando então poderia descarregá-las. Por volta de 1978, ele andava numa corda bamba. Como se toda essa operação não fosse suficiente para manter O banqueiro acordado durante as noites, ele também enfrentava problemas nas manobras para limpar o dinheiro da Máfia. Além disso, havia a constante demanda de novos recursos por parte da P2. O que envolvia ainda mais desfalques. Calvi também sofria os efeitos posteriores de uma campanha de chantagem desencadeada por Michele Sindona.

Enquanto O Cavaleiro se mantinha ocupado a desviar milhões de dólares para manter fraudulentamente a cotação das ações do Ambrosiano, O Tubarão estava longe de permanecer inativo. Sindona lembra inevitavelmente o personagem de uma peça de Pirandello, em que todas as expectativas podem não passar de ilusões. O homem parece uma criação para o teatro. Um autor de ficção, no entanto, rejeitaria uma criação assim. Somente a vida real pode criar Michele Sindona.

Licio Gelli continuava a retribuir as contribuições de Sindona a P2. Quando a promotoria pública de Milão solicitou a extradição de O Tubarão, em janeiro de 1975, as autoridades judiciárias americanas solicitaram mais informações, inclusive uma fotografia de Sindona. Pediram também que os documentos de extradição fossem traduzidos para o inglês. A promotoria de Milão preparou um novo processo de extradição, com 200 páginas, enviando para o Ministério da Justiça, em Roma, a fim de ser traduzido e remetido para Washington. O Ministério da Justiça devolveu tudo, com a observação de que não poderia se encarregar da tradução. Apesar de possuir um dos maiores departamentos de tradução da Itália. A Embaixada Americana em Roma declarou que não tinha o menor conhecimento do pedido de extradição. Licio Gelli tinha amigos em muitos lugares.

Enquanto isso, Sindona residia num luxuoso apartamento no Hotel Pierre, em Nova York. Contratou a firma de advocacia de Richard Nixon e John Mitchell para ajudá-lo a combater a extradição. Descartou os seus problemas italianos como insignificantes quando interrogado por repórteres:

O presidente do Banco da Itália e outros membros do sistema financeiro italiano estão conspirando contra mim. Nunca fechei um único contrato de câmbio em toda a minha vida Meus inimigos na Itália me incriminaram falsamente, mas tenho certeza de que um dia se fará justiça.

Em setembro de 1975, quando apareceram na imprensa italiana fotografias do Tubarão, vestido a rigor, apertando a mão do prefeito de Nova York, Abraham Beame, houve uma ira intensa pelo menos em alguns setores da Itália. O Corriere della Sera comentou:

Sindona continua a divulgar declarações e conceder entrevistas, em seu exílio-refúgio americano, a fim de freqüentar o jet set. As leis e os mecanismos de extradição não são iguais para todos. Alguém que rouba maçãs pode definhar na prisão por muitos meses, talvez anos. Um emigrante que trabalha no exterior e não responde à convocação é obrigado a voltar e enfrentar o rigor de um tribunal militar. Para eles, as voltas e reviravoltas da burocracia não existem.

Na Itália, pequenos investidores contrataram um advogado, numa tentativa de salvar pelo menos algum dinheiro do estouro de Sindona, enquanto o Vaticano anunciava um grave déficit orçamentário". Nos Estados Unidos, O Tubarão contratou um agente de relações públicas e iniciou uma série de conferências no circuito universitário.

Quando executivos sêniores do Franklin National Bank foram presos e acusados de conspiração para o desfalque de milhões de dólares, na especulação com moedas estrangeiras, Sindona estava dizendo aos estudantes da Wharton Graduate School, em Filadélfia:

"O objetivo desta breve conversa, talvez um tanto ambicioso, é contribuir para restaurar a fé dos Estados Unidos em seus setores econômico, financeiro e monetário e lembrar que o mundo livre precisa da América".

 

Enquanto era condenado in absentia por um tribunal de Milão a três anos e meio de prisão, considerado culpado de 23 acusações de apropriação indébita, no valor de 10 milhões de liras, Sindona dava lições de moral aos alunos da Universidade de Columbia:

Quando se efetuam pagamentos com a intenção de se esquivar ao cumprimento da lei, a fim de se obter benefícios injustos, é obviamente necessária uma reação pública. Tanto o corrupto como o corruptor devem ser punidos.

 

Enquanto planejava a chantagem de seu companheiro da P2 e amigo íntimo Roberto Calvi, descrevia uma imagem visionária a estudantes que ansiavam por imitá-lo:

Em futuro não muito distante, quando estivermos em contato com outros planetas e novos mundos, em nossas incontáveis galáxias, espero que os estudantes desta universidade possam sugerir às companhias que representem que se expandam pelo cosmo, criando as "cosmo-corporações", que levarão o espírito criativo da iniciativa privada por todo o universo.

Sindona não estava a fim de brincar. Promoveu diversas reuniões com membros da Máfia americana, Cosa Nostra e Máfia siciliana. Tentou persuadi-los e a Licio Gelli que deveriam organizar a secessão da Sicília da Itália. Anteriormente, em 1972, ele fora um conspirador no chamado "Golpe Branco", um plano para assumir o controle da Itália. A Máfia ficou cética e Gelli se mostrou desdenhoso. Classificou a idéia de "lunática" e disse a Sindona que a secessão da Sicília só poderia ocorrer com o apoio dos membros militares e políticos da P2, que procuravam ganhar tempo para não tomar uma iniciativa. E aconselhou a Sindona:

— Ponha o plano na pasta de "pendentes".

Em setembro de 1976, as autoridades italianas conseguiram finalmente que Sindona fosse preso em Nova York. Era a primeira vitória significativa que obtinham na longa batalha por sua extradição. Sindona manifestou sua surpresa pelo fato de "os Estados Unidos decidirem agora, cerca de dois anos depois que essas falsas acusações foram apresentadas contra mim na Itália, iniciar o processo de extradição". E acrescentou: "Quero enfatizar que as acusações foram formuladas na Itália sem investigações mais profundas e são totalmente falsas."

Ele foi posteriormente libertado, sob uma fiança de três milhões de dólares. A rede, porém, começou a fechar-se inexoravelmente em 1977. Um grande júri federal americano começou a investigar acusações de violações de Sindona envolvendo o colapso do Franklin Bank.

Sindona usou todos os recursos de que dispunha. Pessoas importantes compareceram ao tribunal para falar em defesa do Tubarão, enquanto ele continuava a lutar contra o pedido de extradição. Carmelo Spagnuolo, presidente de uma divisão do Supremo Tribunal, em Roma, jurou em depoimento com testemunhas que as acusações contra Sindona não passavam de uma conspiração comunista. Jurou também que Sindona era um grande protetor da classe trabalhista, que as pessoas que o investigavam na Itália eram na melhor das hipóteses incompetentes, sendo controladas por perseguidores políticos. Alertou ao tribunal americano que muitos membros do judiciário italiano eram extremistas de esquerda e que O Tubarão seria assassinado se voltasse à Itália. Carmelo Spagnuolo pertencia à P2.

Licio Gelli também fez um juramento a favor de Sindona. Declarou que ele mesmo fora acusado de ser um agente da CIA; o chefe do esquadrão da morte argentino; um representante do serviço secreto português; o coordenador do serviço secreto da Grécia, Chile e da Alemanha Ocidental; chefe do movimento fascista secreto internacional. etc.

Não fez qualquer tentativa de negar essas várias acusações, e não ofereceu nenhuma prova de que fossem infundadas. Atribuiu-as ao crescimento do poder comunista na Itália". Sob juramento passou então a fazer algumas afirmações, tais como:

A influência comunista já alcançou alguns setores do governo, especialmente no Departamento de Justiça, onde nos últimos cinco anos tem havido uma mudança política de posição em direção à extrema esquerda.

 

Novamente não ofereceu qualquer prova. Gelli afirmou que em decorrência da "infiltração de esquerda" Sindona não teria um julgamento justo na Itália e provavelmente seria assassinado. Continuou:

O ódio dos comunistas a Sindona decorre do fato de ele ser um anticomunista intransigente, sempre favorável ao sistema da livre iniciativa, numa Itália democrática.

 

A 13 de novembro de 1977, Michele Sindona ofereceu uma demonstração de sua versão do sistema de livre iniciativa em ação numa Itália democrática. A planejada chantagem contra Calvi foi desencadeada, cartazes e panfletos começaram a surgir por toda a cidade de Milão. Acusavam Calvi de fraude, exportação ilegal de liras, falsificação de contas, desfalques, sonegação fiscal. Citavam os números de contas secretas na Suíça pertencentes a Calvi. Detalhavam transações ilícitas. Revelavam os vínculos com a Máfia. Tornou-se mais interessante ler os muros da cidade do que o Corriere della Sera. Sindona, que organizara a denúncia pública de Calvi, achava que seu companheiro da P2 e protegido Roberto Calvi não estava dispensando real interesse aos apuros do Tubarão. Sindona recorrera a Gelli, e ambos concordavam que Calvi deveria fazer uma "substancial contribuição" à reserva financeira de Sindona. Gelli ofereceu-se como intermediário entre seus dois amigos maçons, desde que ambos lhe pagassem uma comissão.

Roberto Calvi tornou a meter a mão no bolso... ou melhor, nos bolsos dos que operavam com seus bancos. Calvi depositou meio milhão de dólares no Banca del Gottardo, de Lugano, em abril de 1978. Na conta de Sindona.

O homem que cuidou da campanha de cartazes e panfletos por conta de Sindona foi Luigi Cavallo, que se empenhou na operação com a maior satisfação. Cavallo se dedicava há algum tempo na Itália a esse tipo de campanha de difamação, vendendo-se como uma prostituta a quem pagasse mais. Os cartazes e panfletos foram seguidos, a 24 de novembro de 1977, por uma carta ao presidente do Banco da Itália Paolo Baffi, relacionando todas as acusações que haviam aparecido nos muros de Milão. A carta também se referia a uma correspondência anterior com as fotocópias das contas suíças de Calvi. Cavallo concluiu com a ameaça de processar o Banco da Itália por omissão no cumprimento dos seus deveres legais, a menos que fosse iniciada uma investigação no Banco Ambrosiano.

Essa carta revela as diferenças fundamentais entre um criminoso de primeira categoria como Sindona e um escroque de terceira classe como Cavallo. A carta foi idéia de Cavallo e escrita sem consulta a Sindona, que jamais autorizaria tal ação. Pode-se roubar os ovos de ouro da galinha, mas jamais matá-la.

Na mesma semana de abril de 1978 em que Sindona recebeu seu pagamento de meio milhão de dólares, os dirigentes do Banco da Itália, que há vários anos faziam graves restrições ao Banco Ambrosiano e a Roberto Calvi, decretaram a intervenção na instituição. Os 12 homens que assumiram a intervenção foram cuidadosamente escolhidos pelo próprio Paolo Baffi e por seu colega Mario Sarcinelli. Giulio Padalino foi designado para chefiar a investigação. Infelizmente para Calvi, Padalino era incorruptível.

A campanha de cartazes e panfletos desfechada por Sindona foi uma mera mordida de pulga em comparação com os problemas que Calvi tinha agora pela frente. Noticias da investigação vazaram pelos círculos financeiros de Milão. A cotação das ações do Ambrosiano caíram ainda mais, forçando Calvi a desviar ainda mais dinheiro para sustentá-la. A essa altura, o complexo império que ele controlava tinha uma subsidiária na Nicarágua, enquanto outra era planejada para o Peru. Havia bancos de Calvi em Porto Rico, Ilhas Cayman e Paris, empresas no Canadá, Bélgica e Estados Unidos.

O calcanhar-de-aquiles era a Suprafin. Se os inspetores bancários descobrissem a verdade a respeito da Suprafin, então seriam inevitáveis o colapso do Banco Ambrosiano e a prisão de Roberto Calvi. Da mesma forma, a extradição há tanto desejada de Michele Sindona se tomaria muito mais fácil. Os dois homens estavam correndo o risco de perder tudo, inclusive a liberdade, se os inspetores conseguissem deslindar o enigma da Suprafin. Em Milão, Calvi sentia-se cada vez mais nervoso. Em Nova York, Sindona deixou de se gabar do meio milhão de dólares que acabara de extorquir do Cavaleiro. A única esperança de ambos era o Bispo Paul Marcinkus. E Marcinkus tratou de ajudá-los. Quando os inspetores do Banco da Itália perguntaram ao gerente-geral do Ambrosiano, Carlo Olgiati, quem possuía a Suprafin, ele respondeu que era o Instituto per le Opere di Religione, o Banco do Vaticano.

Calmamente, os inspetores bancários continuaram a investigar, aprofundando-se no labirinto de compras de ações, transferências, retransferências, recompras, estacionamento. Tais operações eram severamente limitadas pelas leis italianas. As informações que podiam obter de seus colegas estrangeiros eram insuficientes. Se conseguissem, por exemplo, obter informações detalhadas sobre a companhia holding de Calvi no Luxemburgo, compreenderiam que os milhões de dólares captados no mercado europeu haviam sido canalizados para Nassau, onde Marcinkus era colega de diretoria de Calvi, e Manágua, e que esses dois bancos controlados pelo Ambrosiano haviam em seguida emprestado milhões a empresas-fantasmas panamenhas, sem qualquer segurança, tudo estaria acabado. Mas foram negadas aos inspetores informações completas sobre a companhia holding de Luxemburgo. Calvi tentou ganhar tempo, mostrou-se evasivo:

— E muito difícil. Sabe como são esses estrangeiros, não é mesmo? Não posso violar os regulamentos sobre sigilo bancário.

Os inspetores do Banco da Itália continuaram a investigar.

Descobriram que, a 6 de maio de 1975, Luigi Landra, um antigo executivo do Ambrosiano, e Livio Godeluppi, o irmão do contador-chefe do Ambrosiano, haviam sido nomeados diretores da Suprafin. Esses dois homens, que obviamente contavam com a plena confiança da direção do Ambrosiano, teriam também ingressado na elite dos uomo di fiducia do Vaticano?

Os inspetores verificaram que a Suprafin fora criada em Milão, em novembro de 1971, por dois associados de Calvi, Vahan Pasargiklian, que por ocasião da investigação de 1978 se tomara diretor-gerente do Banca Cattolica, e Gennaro Zanfagna. Teriam eles se tornado também homens de confiança do Vaticano? A Suprafin tinha a imagem de "possuída por Calvi" de alto a baixo.

A investigação prosseguiu. Uma análise cuidadosa das contas correntes da Suprafin convenceu os inspetores de que a companhia era na verdade de propriedade do Banco Ambrosiano e não do Vaticano. Por que o banco compraria ações de La Centrale da Suprafin por 13.864 liras, contra um preço de mercado de 9.650, vendendo-as depois de volta à Suprafin por 9.340? Para obter uma carta de agradecimento do Papa? Ou um tapinha nas costas de Marcinkus?

Em julho de 1978, eles tomaram a pressionar o colega executivo de Calvi, Carlo Olgiati. Este consultou Calvi. E voltou com uma carta. Com o maior charme milanês, Olgiati entregou a carta a Padalino. Era do Banco do Vaticano, endereçada a Roberto Calvi. Estava datada de 20 de janeiro de 1975 e dizia:

Esta serve para encaminhar uma relação da carteira de investimentos em ações da companhia Suprafin S.A., conforme a posição a 31 de dezembro de 1974. A companhia pertence a nosso Instituto. Solicitamos por esta que passem a administrar a carteira, da forma mais apropriada, providenciando inclusive as operações de liquidação convenientes. Agradeceríamos se nos mantivessem periodicamente informados da posição da carteira e das transações relacionadas.

 

A carta era assinada por Luigi Mennii e pelo contador-chefe do Banco do Vaticano, Pellegrino de Strobel. Podia estar datada de janeiro de 1975, mas os inspetores bancários desconfiaram que fora escrita depois de iniciada sua investigação, em abril de 1978, com total aprovação do Bispo Marcinkus.

Se fossem acreditar em Marcinkus e seus colegas no Banco do Vaticano então a Santa Sé teria dado uma nova definição à expressão "caridade cristã". Agora incluiria entrar no mercado de ações de Milão e gastar milhões somente para sustentar o preço das ações do Banco Ambrosiano. Era difícil para os inspetores do Banco da Itália acredita-

nem que as doações aos pobres nas igrejas ao redor do mundo tenham sido feitas com essa intenção. De qualquer forma, Calvi, numa cortesia do bispo, estava inocentado, pelo menos temporariamente. A carta era a prova concreta de que a Suprafin pertencia ao Banco do Vaticano. O frio e distante Calvi tomou-se quase afável aos olhos de seus colegas mais antigos na sede de Milão. Confiante de que bloqueara as investigações do banco no que considerava sua área mais vulnerável, finalizou os preparativos para uma viagem à América do Sul com sua mulher, Clara. A viagem foi planejada para ser parte negócios e parte prazer. Haveria algumas visitas turísticas a vários lugares estendendo-se por todo o continente sul-americano mais as inevitáveis reuniões de negócios associados a uma certa gama de acontecimentos, depois visitas turísticas de uma natureza mais popular.

Uma vez na América, Calvi começou a relaxar. E então o Papa Paulo VI morreu. As linhas telefônicas entre a suíte do hotel em que Calvi se hospedara em Buenos Aires e várias cidades da Itália ficaram congestionadas. Calvi ficou horrorizado quando soube o nome do novo Papa, Albino Luciani. Qualquer um dos outros 110 cardeais seria preferível.

Estava perfeitamente consciente da ira que a tomada do Banca Cattolica del Veneto gerara em Veneza. Sabia também que Luciani fora a Roma numa tentativa de recuperar o controle diocesano sobre o banco. E estava igualmente a par que Luciani era um homem de formidável reputação pela pobreza pessoal e intransigência em relação a transações financeiras clericais. O episódio dos dois padres e do especulador em Vittorio Veneto era legendário no norte da Itália. Calvi começou a vender algumas das ações no banco que a Suprafin possuía. Com os inspetores bancários olhando por cima de seu ombro, tinha de agir cautelosamente. Mesmo assim, descarregou 350 mil ações nas três primeiras semanas de setembro de 1978. E foi então que soube da notícia que tanto temia. Os dias do Bispo Paul Marcinkus no comando do Banco do Vaticano estavam contados. Se Marcinkus caísse seria inevitável a denúncia total de toda a fraude. Não esquecera o que Marcinkus lhe dissera poucos dias depois da eleição de Luciani:

— As coisas serão muito diferentes daqui por diante. Este Papa é totalmente diferente.

Albino Luciani representava uma grave ameaça a Roberto Calvi e Michele Sindona. Os acontecimentos subseqüentes demonstrariam convincentemente o que acontecia às pessoas que representavam graves ameaças a esses dois.

O novo Papa também representava uma grave ameaça para o Bispo Paul Marcinkus, presidente do Banco do Vaticano. Se Luciani resolvesse investigar o banco, haveria certamente muitos cargos vagos. Mennini e De Strobel, que haviam assinado a carta da Suprafin,

também estariam com os dias contados. Ambos haviam se envolvido, ao longo dos anos, com as atividades criminosas de Sindona e Calvi. Se Marcinkus tinha qualquer dúvida sobre a capacidade de Luciani de tomar providências vigorosas e eficazes, bastava conversar com De Strobel, um advogado dos arredores de Veneza, que conhecia muito bem o incidente dos padres peculatários de Vittorio Veneto.

Bernardino Nogara podia ter sido um homem de pura e exclusiva mentalidade capitalista, mas era um santo em comparação com o que viera depois dele no Vaticano S.A. A companhia percorrera um longo caminho desde que Mussolini lhe dera o impulso inicial, em 1929.

Em setembro de 1978, o Papa presidia uma enorme corporação multinacional. Enquanto Albino Luciani olhava pelas janelas de seu terceiro andar de seu apartamento de 19 aposentos, um homem dedicado a uma Igreja pobre para os pobres, a tarefa que tinha pela frente era tão suprema quanto a sua posição.

Para que se convertesse em realidade o seu sonho de ser o último "Santo Padre rico", seria preciso desativar o Vaticano S.A. Os Estados Papais podiam ter desaparecido para sempre, mas surgira em seu lugar uma extraordinária máquina de ganhar dinheiro.

Havia a Administração do Patrimônio da Santa Sé (APSA), com seu presidente, o Cardeal Villot, e um secretário, Monsenhor Antonetti, com suas sessões ordinária e extraordinária. A sessão ordinária administrava toda a riqueza das várias congregações, tribunais e ofícios. Administrava especificamente uma parcela considerável dos bens imobiliários do Pontificado, Somente em Roma, isso eqüivalia a mais de cinco mil apartamentos alugados. Em 1979, o valor patrimonial ultrapassava um bilhão de dólares.

A sessão extraordinária, o outro banco do Vaticano, era tão ativo em suas especulações diárias no mercado financeiro quanto o IOR controlado por Marcinkus. Especializava-se no mercado cambial e operava em estreito contato com o Crédit Suisse e Société de Banque Suisse. Seu patrimônio, em setembro de 1978, era superior a um bilhão e 200 milhões de dólares.

O Banco do Vaticano, que Marcinkus dirigia, tinha um patrimônio de mais de um bilhão de dólares. Seus lucros anuais, por volta de 1978, eram de 120 milhões de dólares; 85 por cento desse total iam diretamente para o Papa, a fim de usar como julgasse conveniente. Possuía mais de mil contas-correntes. Pelos termos em que o banco fora criado, por Pio XII, durante a Segunda Guerra Mundial, essas contas deveriam pertencer em grande parte a ordens e institutos religiosos, Quando Albino Luciani tornou-se Papa, porém, apenas 1.047 pertenciam a ordens e institutos religiosos, 312 a paróquias e 290 a dioceses. As restantes 9.351 eram de diplomatas, prelados e "cidadãos privilegiados". Uma parte significativa da última categoria, nem mesmo

era de cidadãos italianos. Havia quatro que eram: Sindona, Calvi, Gelli e Ortolani. Outras contas pertenciam a políticos eminentes de todas as tendências e a grandes industriais. Muitos desses correntistas aproveitavam as facilidades como um conduto para exportar capitais da Itália ilegalmente. Os depósitos não estavam sujeitos a qualquer taxação.

Os dois departamentos da APSA e o Banco do Vaticano eram os maiores problemas que Albino Luciani tinha de superar antes que a Igreja pudesse reverter a suas origens cristãs. Havia muitos outros e a riqueza adquirida ao longo dos séculos não era um dos menores. Assumia muitas formas, inclusive incontáveis tesouros de arte.

Vaticano S.A., como todas as multinacionais que aspiram à respeitabilidade, não era negligente em assuntos de arte. A generosidade do Vaticano está lá para todos verem, os horários de visita permitindo: os Caravaggio, as tapeçarias de Raphael, o altar de ouro de Farnese e os castiçais de Antonio Gentili, o Apolo do Belvedere, o Torso do Belvedere, os quadros de Leonardo da Vinci, as esculturas de Bernini. As palavras de Jesus Cristo seriam ouvidas menos claramente em algum outro lugar mais modesto que a Capela Sistina, com seu majestoso Juízo Final, de Michelangelo? O Vaticano classifica tudo isso como bens não-produtivos. A classificação que seria dada pelo fundador do cristianismo pode ser avaliada por Seus comentários a respeito da riqueza e propriedade.

O que pensaria Jesus Cristo se voltasse à terra em setembro de 1978 e tivesse ingresso na Cidade do Vaticano?

O que sentiria o homem que declarou "Meu reino não é deste mundo" se vagueasse pelos departamentos da APSA, com suas equipes de analistas de investimentos clericais e leigos, acompanhando as flutuações dia a dia e até mesmo minuto a minuto das ações e outros títulos possuídos no mundo inteiro? O que pensaria o filho do carpinteiro dos equipamentos IBM em funcionamento tanto na APSA como no Banco do Vaticano? O que diria o homem que comparou a dificuldade dos ricos entrarem no Reino do Céu com um camelo passar pelo fundo de uma agulha sobre as últimas cotações do mercado de ações em Londres, Wall Street, Zurique, Milão, Montreal e Tóquio, transmitidas incessantemente ao Vaticano?

O que diria o homem que proclamou "Bem-aventurados os pobres" sobre o lucro anual da venda de selos do Vaticano? Um lucro que ultrapassa um milhão de dólares. Qual seria a sua opinião sobre os Dízimos de Pedro, que iam diretamente para o Papa? Essa coleta anual, considerada por muitos como um barômetro acurado da popularidade do Papa, produziu entre 15 e 20 milhões de dólares sob o carismático João XXIII. Sob Paulo VI, depois de Humanae Vitae, caiu para uma média de quatro milhões de dólares por ano.

O que pensaria o Fundador da Fé sobre esses poucos exemplos de como seus ensinamentos maravilhosos e inspiradores foram deturpados? E claro que a indagação é retórica. Se Jesus Cristo voltasse à terra em setembro de 1978 ou se viesse agora e tentasse entrar no Vaticano, o resultado seria o mesmo. Não chegaria sequer às portas do Banco do Vaticano. Seria preso no Portão de Santa Ana e entregue às autoridades italianas. Nunca teria a oportunidade de conhecer diretamente o Vaticano S.A., o conglomerado multinacional que é alimentado de muitas direções. Não saberia, por exemplo, como obtém quantias vultosas dos Estados Unidos e da Alemanha Ocidental; como em 1978, através do imposto oficial do Kirchensteuer, a Igreja Católica da Alemanha Ocidental recebeu 1,9 bilhão de dólares, passando depois uma parcela considerável para o Vaticano.

Se Albino Luciani queria realizar o seu sonho de uma Igreja pobre para os pobres, seria uma tarefa hercúlea. O monstro moderno, criado por Bernardino Negara, tornara-se auto-suficiente por volta de 1978. Quando os cardeais elegeram Albino Luciani para o Pontificado, naquele dia quente de agosto de 1978, lançaram um Papa honesto, santo e totalmente incorruptível num curso de colisão com o Vaticano S.A. As irresistíveis forças de mercado do Banco do Vaticano, APSA e os outros elementos geradores de dinheiro estavam prestes a se confrontarem com a integridade absoluta de Albino Luciani.

 

                      Os Trinta e Três Dias

Quando Albino Luciani abriu as janelas dos aposentos papais, 24 horas depois de sua eleição, o gesto simbolizou todo o seu Pontificado. Ar fresco e os raios do sol penetraram por uma Igreja Católica que se tomara cada vez mais escura e sombria durante os últimos anos de Paulo VI.

Luciani, que se descrevera com franqueza durante os seus dias em Veneza, “Sou apenas um homem pobre, acostumado às coisas pequenas e ao silêncio”, descobria-se agora obrigado a se confrontar com a, grandeza do Vaticano e as intrigas da Cúria. O filho de um pedreiro era agora o Chefe Supremo de uma religião cujo fundador tora o filho de um carpinteiro.

Muitos dos especialistas em Vaticano, que nem sequer levaram em consideração a possibilidade da eleição de Luciani, aclamaram-no como “O Papa Desconhecido”. Ele era bastante conhecido por 99 cardeais para que lhe confiassem o futuro da Igreja, a um homem sem qualquer treinamento diplomático ou experiência curial. O número considerável de cardeais da Cúria fora rejeitado. Em suma, toda a Cúria fora rejeitada, em favor de um homem quieto e humilde, que prontamente anunciou que preferia ser chamado de Pastor ao invés de Pontífice. As aspirações de Luciani logo se tomaram claras: uma revolução total. Estava determinado a levar a Igreja de volta a suas origens, de volta à simplicidade, honestidade, ideais e aspirações de Jesus Cristo. Outros antes dele tiveram o mesmo sonho, apenas para que a realidade do mundo, conforme impingida por seus conselheiros, acabasse prevalecendo. Como poderia aquele homem pequeno e modesto realizar sequer os primórdios da transformação material e espiritual que seria necessária?

Ao elegerem Albino Luciani, os cardeais fizeram diversas declarações profundas sobre o que queriam e o que não queriam. Claramente, não queriam um Papa reacionário, que poderia deixar sua marca no mundo com exemplos desconcertantes de intelectualismo incompreensível. Pareceria que haviam buscado causar um impacto no mundo ao elegerem um homem cuja bondade, sabedoria e humildade exemplar seriam manifestas a todos. No caso, foi justamente o que conseguiram. Um pastor empenhado nos cuidados pastorais.

Seu novo nome foi considerado muito comprido pelos romanos que prontamente passaram a tratá-lo de forma mais intima como “Gianpaolo”, uma corruptela que o Papa aceitou alegremente e adotou para assinar cartas, apenas para tê-las devolvidas pelo Secretário de Estado Villot, a fim de serem corrigidas para o titulo formal. Uma dessas cartas, escrita pessoalmente por Luciani, foi para agradecer aos agostinianos pela hospitalidade antes do Conclave. Esse ato simples era típico do homem. Dois dias depois de eleito Papa, tomando-se o líder espiritual de mais de 800 milhões de católicos, Luciani encontrava tempo para agradecer a seus antigos anfitriões.

Outra carta, escrita no mesmo dia, era mais sombria. Escrevendo a um padre italiano, cujo trabalho admirava, Luciani revelou estar consciente do fardo que agora lhe pertencia exclusivamente. “Não sei como pude aceitar. Já estava arrependido no dia seguinte, mas a esta altura era tarde demais.” Um dos seus primeiros atos, ao entrar nos aposentos papais, fora telefonar para sua terra natal no norte. Falou com um atônito Monsenhor Ducoli, um antigo amigo e colega de trabalho, agora Bispo de Beiluno. Disse ao bispo que sentia “saudade da minha gente”. Depois, falou com o irmão Edoardo, “Veja só o que me aconteceu”. Foram atos particulares; outros, de natureza mais pública, despertariam a imaginação do mundo.

Para começar, havia o seu sorriso. Somente com essa expressão facial de alegria, ele comoveu milhões de pessoas. Era impossível não simpatizar com o homem e experimentar uma sensação agradável. Paulo VI, com sua angústia, afastara milhões de pessoas. Albino Luciani inverteu dramaticamente a tendência. Recuperou o interesse do mundo pelo Pontificado. E quando o mundo escutou o que havia por trás daquele sorriso, o interesse aumentou. O sorriso nao pode ser encontrado em qualquer livro que alega tornar o leitor um cristão melhor, mas eficazmente projetava a alegria que aquele homem descobrira no cristianismo. O que Luciani demonstrou, numa extensão jamais conhecida antes em qualquer Papa, foi a capacidade de se comunicar, quer pessoalmente ou pelo rádio, imprensa e televisão. Era um trunfo jamais sonhado para a Igreja Católica.

Luciani era uma lição objetiva de como vencer a batalha pelo coração, mente e alma da humanidade. Pela primeira vez na memória viva, um Papa falava a seu povo numa maneira e estilo que todos podiam compreender. O suspiro de alívio dos fiéis foi quase audível. Os murmúrios de satisfação continuaram por todo o veranico de 1978. Luciani começou a levar a Igreja pela longa caminhada de volta ao Evangelho.

O público rapidamente converteu esse homem carismático num tremendo sucesso. Os observadores do Vaticano simplesmente não sabiam como analisá-lo. Ofereceram opiniões imediatas e doutas sobre a escolha do nome papal, falando em “continuidade simbólica”. Luciani involuntariamente demoliu tudo isso no primeiro domingo, ao dizer “João me fez um bispo, Paulo me fez um cardeal”. Não havia muita continuidade simbólica ai. Os especialistas escreveram artigos especulativos sobre o que o novo Papa poderia fazer ou deixar de fazer nas mais variadas questões. Uma parcela considerável dessas especulações se tomara supérflua por um comentário do Papa João Paulo, em seu primeiro discurso:

— Desejo dedicar ao Concilio Vaticano Segundo meu total ministério, como padre, como mestre, como pastor...

Não havia mais necessidade de especular; bastava consultar as diversas conclusões do Concilio.

No domingo, 10 de setembro, perante uma Praça de São Pedro apinhada, Luciani falou em Deus e disse:

— Ele é nosso Pai; mais do que isso, é nossa Mãe.

Os especialistas italianos do Vaticano, em particular, ficaram frenéticos. Num pais notório por seu machismo, sugerir que Deus era uma mulher foi julgado por alguns como a confirmação do fim do mundo. Houve muitos debates ansiosos sobre esse quarto membro da Trindade até que Luciani, gentilmente, informou que citara Isaías. A Mãe Igreja, dominada pelos homens, relaxou.

Antes, a 6 de setembro, durante uma Audiência Geral, membros do círculo papal, agitando-se em tomo do Santo Padre de uma maneira que lembrava moscas irritantes ao redor de um cavalo, exibiram publicamente o seu embaraço, enquanto Luciani mantinha 15 mil pessoas completamente fascinadas. Entrando quase a correr no Salão Nervi, inteiramente lotado, ele falou sobre a alma. Não havia nada de extraordinário nisso. Excepcionais foram apenas a maneira e o estilo.

Um homem foi comprar um carro novo na revendedora. O vendedor deu-lhe alguns conselhos: “É um carro excelente, mas deve tratá-lo corretamente. Ponha a melhor gasolina no tanque, o melhor óleo no motor.” Ao que o cliente respondeu: “E impossível. Não suporto o cheiro de gasolina e óleo. Encherei o tanque com champanha, que me agrada muito mais, farei a lubrificação com geléia.” O vendedor deu de ombros. “Faça como quiser, mas depois não venha se queixar se terminar numa vala com o carro. O Senhor fez uma coisa similar conosco: deu-nos este corpo, animado por uma alma inteligente, uma boa vontade. Disse que esta máquina é boa, mas deve ser bem tratada.

Enquanto a elite do Vaticano estremecia por tal profanidade, Albino Luciani sabia perfeitamente que suas palavras eram transmitidas ao mundo inteiro. Espalhe bastante sementes, algumas germinarão. Ele fora presenteado com o mais poderoso púlpito da terra. O uso que fez dessa dádiva foi profundamente comovente. Muitos na Igreja falam ad nauseam das “Boas novas do Evangelho”, enquanto dão a impressão de que comunicam aos ouvintes desastres absolutos. Quando Luciani falava em boas novas, era evidente por toda a sua atitude que se tratava mesmo de boas novas.

Em diversas ocasiões, Luciani tirou um menino do coro para partilhar o microfone com ele, ajudando-o não apenas com a audiência dentro do Salão Nervi. mas também com a audiência mas vasta lá fora. Outros líderes mundiais eram propensos a pegar crianças no colo e beijá-las. Mas ali estava um homem que falava com as crianças e, o que era ainda mais extraordinário, escutava e respondia ao que tinham a dizer.

Ele citava Mark Twain, Jules Verne e o poeta italiano Trissula. Falava de Pinóquio. Já tendo comparado a alma a um carro, fez então uma analogia entre a oração e o sabonete.

A oração bem usada seria um sabonete maravilhoso, capaz de transformar todos nós em santos. Não somos todos santos porque não temos usado esse sabonete o suficiente.

A Cúria estremecia, particularmente determinados bispos e cardeais. O público escutava.

Poucos dias depois da eleição, ele enfrentou mais de mil representantes da imprensa internacional. Censurou-os de maneira gentil por se concentrarem excessivamente nos aspectos triviais do Conclave e não no seu verdadeiro significado, mas reconheceu que o problema deles não era novo e recordou o conselho que um editor italiano dera a um de seus repórteres:

Lembre-se de que o público não quer saber o que Napoleão III disse a Guilherme da Prússia. Quer saber se ele usava calça bege ou vermelha e se fumava um charuto.

Luciani obviamente sentia-se à vontade com os repórteres. Comentara mais de uma vez, ao longo de sua vida, que teria sido jornalista se não fosse um padre. Seus dois livros e numerosos artigos indicam um talento que poderia se comparar ao de muitos correspondentes presentes. Recordando o comentário do falecido Cardeal Mercier, de que o Apóstolo Paulo seria um jornalista se estivesse vivo hoje, o novo Papa demonstrou uma profunda compreensão da importância dos diversos meios de comunicação na ampliação do possível papel moderno do Apóstolo:

— Não apenas um jomalista. Possivelmente chefe da Reuters. Não apenas chefe da Reuters, acho que ele pediria tempo no ar na televisão italiana e na NBC.

Os correspondentes adoraram. A Cúria não achou muito engraçado. Todos os comentários acima referidos foram omitidos da transcrição oficial do discurso. O que permanece para a posteridade é um discurso insípido preparado de antemão, escrito por autoridades do Vaticano, do qual o Papa se afastou muitas vezes, um testemunho mudo e inacurado do espírito e personalidade de Albino Luciani. Essa censura do Vaticano ao Papa tornou-se um fato constante durante o mês de setembro de 1978.

Ilustrissimi, a coletânea de suas cartas aos famosos, era encontrada em forma de livro na Itália desde 1976. Fora um grande sucesso. Agora, com seu autor se tornando o líder de 800 milhões de católicos, o potencial comercial não passou despercebido ao mundo editorial. Executivos começaram a aparecer nos escritórios de Il Messaggero, em Pádua. O mensário católico estava sentado na proverbial mina de ouro, menos os royalties do autor. Para o autor, a verdadeira recompensa era saber que as idéias e comentários das cartas seriam lidos por uma audiência mundial. O fato de que só seriam lidos porque ele se tornara Papa não tinha a menor importância para Luciani. Mais sementes eram espalhadas. Mais germinariam.

Um dos melhores resultados da eleição do novo Papa, que se tornou patente nos dias subsequentes ao Conclave, foi que os intérpretes, observadores, especialistas e analistas do Vaticano se tornaram redundantes. Só era necessário uma reprodução literal. Havendo isso, as intenções do novo Papa eram bastante claras.

A 28 de agosto, foi anunciado o início de sua revolução papal. Assumiu a forma de uma declaração do Vaticano de que não haveria coroação, pois o novo Papa se recusava a ser coroado. Não haveria a sedia gestato ria, a cadeira em que se carregava o Papa, não haveria tiara cravejada de esmeraldas, rubis, safiras e diamantes. Não haveria penas de avestruz, não haveria a cerimônia de seis horas. Em suma, foi abolido o ritual com que a Igreja demonstrava que ainda ansiava pelo poder temporal. Albino Luciani fora obrigado a se empenhar numa longa e tediosa discussão com os tradicionalistas do Vaticano antes que sua vontade prevalecesse. Luciani, que jamais usou o real “nós”, a primeira pessoa do plural monárquica, decidira que o Pontificado real, com suas ostentações de grandeza temporal, seria substituído por uma Igreja que mais se assemelhasse aos conceitos de seu fundador. A coroação” converteu-se numa missa simples. O absurdo de transportar o Pontífice a balançar numa cadeira, como um califa das Mil e Uma Noites, foi suplantado por um Pastor supremo, subindo calmamente os degraus do altar. Com esse gesto, Luciani aboliu mil anos de história e fez a Igreja voltar mais um pouco no caminho para Jesus Cristo.

A tiara de pedras preciosas foi substituida pelo pálio, uma estola branca de lã sobre os ombros do Papa. O monarca dera passagem ao pastor. A era da Igreja pobre começara oficialmente.

Entre os 12 chefes de Estado e outros representantes de dezenas de países à cerimônia, havia homens a quem o Papa preferia evitar. Em particular, pedira à sua Secretaria de Estado que não convidasse os lideres da Argentina, Chile e Paraguai para a sua missa inaugural. Mas o departamento do Cardeal Villot já expedira os convites, sem antes consultar Albino Luciani. Presumiram que haveria a coroação tradicional, e a lista de convidados refletia essa suposição.

Consequentemente, participaram da missa na Praça de São Pedro o General Videla, da Argentina, o ministro do exterior chileno e o filho do presidente do Paraguai, representantes de países em que os direitos humanos não eram considerados prioridades urgentes. Manifestantes italianos protestaram contra a presença deles e houve quase 300 prisões. Posteriormente, Albino Luciani seria criticado pela presença desses homens na missa. Os críticos não sabiam que toda a culpa deveria ser atribuida ao Cardeal Villot. Quando os comentários de censura apareceram, Luciani não estava em condições de responder e Villot se manteve em silêncio.

Na audiência particular que se seguiu à missa, Luciani, o filho de um socialista que abominava todos os aspectos do fascismo, não deixou qualquer dúvida ao General Videla de que herdara as opiniões do pai. Falou especialmente de sua preocupação com “Los Desaparecidos”, os milhares de pessoas que sumiram misteriosamente do território argentino. Ao final da audiência de 15 minutos, o general já desejava ter atendido às pressões de última hora de emissários do Vaticano para que nao fosse a Roma.

A audiência com o Vice-Presidente Mondale, dos Estados Unidos, foi um encontro mais agradável. Mondale entregou ao novo Papa um livro contendo a primeira página de mais de 50 jornais americanos, noticiando a eleição de Luciani. Um presente mais deferente foi uma primeira edição do livro Vida no Mississippi, de Mark Twain. Era evidente que alguém no Departamento de Estado americano trabalhara bem.

Assim começou o Pontificado de João Paulo I, com objetivos e aspirações definidos. Antes da missa inaugural, ele falara ao Corpo Diplomático credenciado no Vaticano. Sua própria equipe diplomática empalideceu visivelmente quando ele comentou, em nome de toda a Igreja Católica:

Não temos bens temporais para trocar, não temos interesses econômicos a discutir. Nossas possibilidades de intervenção são especificas e limitadas, de um caráter especial. Não interferem com os assuntos puramente temporais, técnicos e políticos, que são problemas de seus governos. Assim, nossas missões diplomáticas junto às suas mais altas autoridades civis, longe de serem uma sobrevivência do passado, constituem um testemunho do nosso profundo respeito pelo poder temporal legitimo e do nosso intenso interesse pelas causas humanas que esse poder temporal deve promover.

“Não temos bens temporais para trocar...” Era uma sentença de morte pública ao Vaticano S.A. Tudo o que restava indefinido era o número de dias e meses em que continuaria a funcionar. Os homens dos mercados financeiros internacionais, em Milão, Londres, Tóquio e Nova York, analisaram com o maior interesse as palavras de Luciani. Se ele realmente falava a sério, então haveria muitas mudanças. Tais mudanças não se limitariam ao movimento de pessoas deixando o Banco do Vaticano e a APSA, mas inevitavelmente incluiria uma drástica redução das atividades do Vaticano S.A. Os homens dos mercados financeiros internacionais poderiam ganhar bilhões se adivinhassem corretamente o rumo por que enveredaria essa nova filosofia do Vaticano. Albino Luciani queria uma Igreja pobre para os pobres. O que ele planejava fazer com os que haviam criado uma Igreja rica? O que planejava fazer com a riqueza?

A humildade de Luciani foi responsável pelo nascimento de diversas concepções errôneas. Muitos observadores concluíram que esse homem obviamente santo era simples e sem qualquer complexidade, carecendo dos talentos culturais de seu antecessor, Paulo VI. A realidade era que Luciani possuía uma cultura muito mais rica e uma sofisticação muito maior do que Paulo. Seus talentos eram tão excepcionais que esse homem extraordinário podia parecer completamente plebeu. Tinha a simplicidade que só é adquirida por uns poucos, a simplicidade que deriva de uma profunda sabedoria.

Uma das peculiaridades de nossa época é que a humildade e gentileza são inevitavelmente encaradas como indicações de alguma espécie de fraqueza. Pois muitas vezes indicam justamente o oposto, uma grande força.

Quando o novo Papa comentou que andara folheando o Anuário do Vaticano para descobrir quem fazia o que, muitos na Cúria sorriram e concluíram que ele seria facilmente manobrável, um homem que não teriam a menor dificuldade para controlar. Havia outros que sabiam que não era bem assim.

Homens que conheciam Albino Luciani há muitos anos observavam e esperavam. Conheciam o aço no fundo, a força para tomar decisões difíceis ou impopulares. Muitos me falaram desses atributos ocultos. Monsenhor Tiziano Scalzotto, Padre Mario Senigaglia, Monsenhor Da Rif, Padre Bartolomeo Sorge e Padre Busa são apenas cinco dos muitos que me falaram sobre a força interior do Papa João Paulo I. O Padre Busa comentou:

Sua mente era tão forte, tão dura e tão contundente quanto um diamante. Era lá que estava o seu poder real. Compreendia e possuía a capacidade de chegar ao ceme de um problema. Não podia ser sufocado. Enquanto todos aplaudiam o Papa risonho, eu esperava que ele tirare fuori le unghie, revelasse as suas garras. Era um homem de tremendo poder.

Sem um grupo pessoal, pois nenhuma Máfia veneziana substituiu a turma de Milão nos aposentos papais, Albino Luciani precisaria de toda a sua força interior se queria evitar se tomar o prisioneiro da Cúria do Vaticano.

Nos primeiros dias depois do Conclave, a máquina governamental do Vaticano não se manteve ociosa. No domingo, 27 de agosto, após seu discurso do meio-dia à multidão, Luciani almoçou com o Cardeal Jean Villot. Como Secretário de Estado do Papa Paulo desde abril de 1969, Villot criara reputação de serena competência. Durante o Conclave, Villot, como camerlengo, funcionou virtualmente como substituto do Papa, ajudado pelos comitês de cardeais. Luciani pediu a Villot que continuasse como Secretário de Estado por “mais um pouco, até que eu encontre meu caminho”. Villot, aos 73 anos de idade, esperava o momento de aposentar-se. Luciani designara Villot para seu Secretário de Estado e confirmara todos os chefes curiais em seu cargos anteriores. Mas a Cúria sabia perfeitamente que era apenas uma medida temporária. Sempre o homem prudente das montanhas, o novo Papa queria ganhar mais algum tempo. “Deliberação. Decisão. Execução.” Se a Cúria queria saber como agiria o novo Papa, bastava ler sua carta a São Bernardo. Muitos o fizeram. E também efetuaram uma pesquisa mais profunda sobre o Papa João Paulo I. O que descobriram causou consternação em diversos setores do Vaticano e um profundo prazer de expectativa em outros.

A morte do Papa Paulo VI fizera aflorar muitas hostilidades que existiam na aldeia do Vaticano. A Cúria Romana, o corpo administrativo central da Igreja, vinha se empenhando numa guerra interna há vários anos; somente a habilidade de Paulo evitara que a maioria das batalhas chegasse ao conhecimento público. Agora, depois da rejeição no Conclave, a guerra curial alcançou os aposentos papaís. Albino Luciani queixou-se amargamente da situação a alguns amigos que foram visitá-lo:

— Quero aprender depressa o ofício de Papa, mas quase ninguém explica problemas e situações de uma maneira meticulosa e imparcial. Passo a maior parte do tempo a escutar comentários desfavoráveis sobre tudo e sobre todos.

A outro amigo do norte ele disse:

— Já notei que há duas coisas que parecem estar em escassez no Vaticano: honestidade e uma boa xícara de café.

Havia tantas facções curiais quanto garotos no coro da Capela Sistina. Havia a Cúria do Papa Paulo VI, totalmente empenhada em garantir não apenas que a memória do falecido Papa fosse constante e continuamente homenageada, mas também a evitar que houvesse qualquer desvio de suas posições, opiniões e pronunciamentos.

Havia a Cúria que era favorável ao Cardeal Giovanni Benelli e a Cúria que desejava vê-lo no Inferno. O Papa Paulo VI elevara Benelli a Subsecretário de Estado, o segundo homem depois do Cardeal Villot. Ele se tornara rapidamente o homem forte do Papa, assegurando o cumprimento de sua política. Paulo o transferira para Florença e o promovera a fim de protegê-lo, durante os seus últimos anos. Agora, seu protetor estava morto, mas os punhais afiados permaneciam embainhados, Luciani era Papa por causa de homens como Benelli.

Havia facções curiais que favoreciam ou se opunham aos Cardeais Baggio, Felici e Bertoli. Havia facções que queriam mais poder central e controle, outras que queriam menos.

Durante toda a sua vida, Albino Luciani evitara as visitas ao Vaticano. Mantivera seus contatos com a Cúria Romana num nível mínimo. Em decorrência, antes de sua eleição tinha provavelmente menos inimigos na Cúria do que qualquer outro cardeal. Mas era uma situação que mudou rapidamente. Ali estava um Papa que considerava a “mera execução” como a função básica da Cúria. Ele acreditava numa maior divisão do poder com os bispos do mundo inteiro e planejava descentralizar a estrutura do Vaticano. Recusando-se a ser coroado, ele contrariara os tradicionalistas. Outra inovação que não poderia granjear para Luciani a estima dos membros da Cúria de mentalidade material foi a sua instrução para que o salário extra, que automaticamente se pagava por ocasião da eleição de um novo Papa, fosse reduzido à metade.

É claro que havia muitos entre os três mil membros da Cúria que lealmente serviriam e amariam o novo Papa; mas neste mundo as forças negativas muitas vezes predominam. Assim que o resultado da eleição foi conhecido, a Cúria ou determinados setores dela entraram em ação. Em poucas horas, uma edição especial do Osservatore Romano estava nas ruas, com uma biografia completa do novo Papa. A Rádio Vaticano já estava irradiando detalhes similares.

Como um exemplo da melhor maneira de influenciar o pensamento do mundo sobre um líder de Estado até então desconhecido, o tratamento que o Osservatore Romano dispensou a Albino Luciani é definitivo. Porque deliberadamente descreveu uma pessoa que só existia na mente reacionária e opressiva de quem escreveu os detalhes biográficos, essa edição em particular do Osservatore Romano é também um excelente exemplo do motivo pelo qual o jomal semi-oficial do Vaticano tem sido comparado desfavoravelmente ao Pravda. Aproveitando os “fatos oficiais”, muitos jornalistas pressionados por prazos improrrogáveis descreveram um homem que não existia. The Economist, para citar apenas um entre centenas de exemplos, disse o seguinte a respeito do novo Papa: “Ele não se sentiria muito à vontade em companhia do Dr. Hans Kung.” Uma pesquisa revelaria que Luciani e Hans Kung mantinham uma correspondência cordial e frequentemente enviavam livros um ao outro. Mais alguma pesquisa mostraria que Luciani muitas vezes citara Kung favoravelmente em seus sermões. Praticamente todos os jornais e revistas do mundo que publicaram perfis do novo Papa cometeram erros similares.

Ler a edição especial do Osservatore Romano é tomar conhecimento de um novo Papa que era ainda mais conservador do que Paulo VI. A distorção se estendia por diversas opiniões de Luciani, mas uma em particular é extremamente relevante quando se considera a vida e a morte de Albino Luciani: o controle da natalidade. O jornal do Vaticano descreveu um homem que era um intrépido e incondicional partidário da Humanae Vitae.

Ele efetuou um estudo meticuloso da questão da paternidade responsável, consultou especialistas médicos e teólogos. Alertou para a grande responsabilidade da Igreja ao se pronunciar sobre uma questão tão delicada e controvertida.

Isso era perfeitamente acurado e verdadeiro. O que vem depois é que era completamente incorreto.

Com a publicação da encíclica Humanae Vitae não podia mais haver margem para dúvidas. O bispo de Vittorio Veneto foi um dos primeiros a divulgá-la e a insistir, aos que estavam confusos com o documento, que seus ensinamentos eram incontestáveis .

Quando a Cúria entra em ação, é uma máquina formidável. Sua eficiência e rapidez deixariam atordoados outros serviços civis. Homens da Cúria Romana apareceram no Colégio Gregoriano e removeram de lá todos os estudos e documentos referentes ao período de estudo de Luciani. Outros membros da Cúria foram a Veneza, Vittorio Veneto, Belluno. Onde quer que Luciani estivera, a Cúria ia até lá. Todas as cópias do documento de Luciani sobre o controle da natalidade foram confiscadas e imediatamente guardadas nos Arquivos Secretos do Vaticano, juntamente com sua tese sobre Rosmini e diversos outros escritos. Pode-se dizer que o processo de beatificação de Albino Luciani começou no dia em que ele foi eleito Papa. Seria igualmente acurado dizer que o trabalho da Cúria para encobrir o verdadeiro Albino Luciani começou no mesmo dia.

O que determinados setores da Cúria compreenderam, com um profundo choque, foi que, ao elegerem Albino Luciani, os cardeais haviam lhes dado um homem que não deixaria a questão do controle da natalidade ser encerrada pela Humanae Vitae. Um estudo cuidadoso por membros da Cúria do que Luciani dissera, não apenas a seus paroquianos em público, mas também a seus amigos e colegas em particular, prontamente indicou que o novo Papa era favorável ao controle artificial da natalidade. O quadro impreciso falso que o Osservatore Romano pintara de um homem que aplicava rigorosamente os princípios da Humanae Vitae foi o tiro inicial num contra-ataque destinado a conter Albino Luciani dentro dos limites da encíclica de seu antecessor. Rapidamente seguido por outra rajada.

A agência noticiosa UPI descobriu que Luciani fora a favor de uma decisão do Vaticano que permitisse o controle artificial da natalidade. Os jornais italianos também divulgaram matérias sobre o documento de Luciani encaminhado ao Papa Paulo pelo Cardeal Urbani, de Veneza, com uma recomendação favorável à pílula anticoncepcional. A Cúria apressadamente localizou o Padre Henri de Riedmatten, que fora o secretário da Comissão Papal de Controle da Natalidade. Ele descreveu os relatórios em que Luciani se opusera a uma encíclica que condenasse o controle artificial da natalidade, alegando que isso não passaria de uma “fantasia” . Riedmatten também informou que Luciani nunca fora membro da comissão, o que era verdadeiro. Depois negou que Luciani houvesse algum dia escrito uma carta ou relatório sobre o assunto enviado ao Papa Paulo.

Essa negativa e a maneira como foi apresentada é um exemplo da duplicidade que predomina na Cúria. O documento de Luciani chegou a Roma por intermédio do Cardeal Urbani e, portanto, com a sua aprovação. Negar que existisse um documento assinado por Luciani era tecnicamente correto. Negar que Luciani, em nome dos outros bispos da região do Veneto, tivesse encaminhado tal documento ao Papa, por intermédio do Patriarca de Veneza, era uma mentira iníqua.

Ironicamente, nas três primeiras semanas de seu Pontificado, Albino Luciani já dera os primeiros passos significativos para inverter a posição da Igreja Católica na questão do controle artificial da natalidade. Enquanto essas providências eram tomadas, a imprensa internacional permanecia na ignorância, por cortesia do Osservatore Romano e da Rádio Vaticano, controlados por determinados membros da Cúria Romana, que já projetara uma imagem inteiramente falsa das opiniões de Albino Luciani.

Durante o seu Pontificado, Luciani citou diversos pronunciamentos e encíclicas do Papa Paulo VI. Mas, expressivamente, não houve qualquer referência à Humanae Vitae. Os defensores dessa encíclica foram alertados para as opiniões do novo Papa quando souberam, consternados, que o discurso de aceitação para o sucessor de Paulo, preparado pela Secretaria de Estado e contendo referências candentes à Humanae Vitae, fora alterado por Luciani, que suprimira a todas. A facção anticontrole da natalidade dentro do Vaticano descobriu em seguida que, em maio de 1978, Albino Luciani fora convidado a comparecer e falar num congresso internacional realizado em Milão, a 21-22 de junho. O objetivo principal do congresso era celebrar o 10º aniversário da encíclica Humanae Vitae. Luciani respondera que não falaria no congresso e também não compareceria. Entre os que compareceram e falaram, em louvor da Humanae Vitae, estava o cardeal polonês Karol Wojtyla.

Agora, em setembro, enquanto a imprensa mundial fielmente repetia as mentiras do Osservatore Romano, Albino Luciani foi ouvido nos aposentos papais a dizer a seu Secretário de Estado, Cardeal Villot:

— Terei o maior prazer em falar com essa delegação dos Estados Unidos sobre a questão. Na minha opinião, não podemos deixar a situação como está.

A “questão” era a população mundial. A “situação” era a Humanae Vitae. A conversa continuou e Villot ouviu o Papa João Paulo I manifestar uma opinião que muitos outros, inclusive o secretário particular dele, Padre Diego Lorenzi, já tinham escutado várias vezes. O Padre Lorenzi é somente um dos muitos que foram capazes de reproduzir para mim ás palavras exatas de Lucíani:

Estou à par do período de ovulação de uma mulher, com seu âmbito de fertilidade de 24 à 36 horas. Mesmo que se admita uma vida de 48 horas para o espermatozóide, o tempo máximo de concepção possível é inferior a quatro dias. Num ciclo regular, isso significa quatro dias de fertilidade e 24 (lias de infertilidade. Como pode ser um pecado falar em 28 em vez de 24 dias?

O que provocara essa conversa realmente histórica fora um contato com o Vaticano da Embaixada Americana em Roma. Esta forá instruída pelo Departamento de Estado americano e procurada pelo congressista James Scheuer. O congressista presidia o Comitê Sobre População dá Câmara dos Representantes e era também vice-presidente do fundo da ONU para pesquisas sobre população. A história do documento de Luciani ao Papa Paulo VI sobre o controle da natalidade alertara Scheuer e seu comitê para a possibilidade de mudança na posição da Igreja. Scheuer achava que era improvável que seu grupo obtivesse uma audiência com Luciani logo depois da eleição, mas concluiu que valia a pena a tentativa de pressionar o Vaticano através do Departamento de Estado e da Embaixada Americana em Roma. Pois Scheuer ouviria boas notícias.

Villot. como muitos que cercavam Luciani, encontrava uma considerável dificuldade para se ajustar ao novo Pontificado. Nomeado por Paulo VI, ele desenvolvera ao longo dos anos um íntimo relacionamento de trabalho com o falecido Papa. Aprendera à admirar o estilo Montini. Agora, o Hãmlet cansado do mundo de 81 anos fora substituido por um otimista Henry VI, que aos 65 anos era relativamente um rapaz.

O relacionamento entre Luciani e seu Secretário de Estado era bastante desconfortável. O novo Papa achava Villot frio e distante, sempre comentando o que Paulo VI diria a respeito dessa questão ou como Paulo VI trataria aquele problema. Paulo VI estava morto, mas era evidente que Villot e uma parcela significativa da Cúria não haviam aceitado esse fato, e que o estilo Martini de resolver problemas morrera com ele.

O discurso que o novo Papa pronunciara, 24 horas depois do Conclave, fora de caráter geral. O verdadeiro programa começou à ser formulado somente durante os primeiros dias de setembro de 1978. Foi desencadeado com a inspiração dos primeiros 100 dias do Papa João XXIII.

João fora eleito Papa à 28 de outubro de 1958. Nos primeiros 100 dias, efetuara diversas nomeações cruciais, inclusive a do Cardeal Domenico Tardini para à Secretaria de Estado, um posto que se achava vago desde 1944. O mais importante foi à sua decisão de convocar o Concílio Vaticano Segundo. Essa decisão tornou-se pública a 25 de janeiro de 1959, 89 dias depois da eleição.

Agora que usava as sandálias do pescador, Albino Luciani estava determinado a seguir o exemplo de João de 100 dias revolucionários. No alto de sua lista de prioridades de reformas e mudanças estava a necessidade de alterar radicalmente o relacionamento do Vaticano com o capitalismo e o desejo de mitigar os sofrimentos que testemunhara pessoalmente e que derivavam diretamente da Humanae Vitae.

De acordo com o Cardeal Benelli, o Cardeal Felici e outras fontes do Vaticano, o austero Cardeal Villot ficou escutando contrariado, enquanto o novo Papa discorria sobre os problemas que a encíclica causara. Durante as entrevistas com ele, ficou claro que sua atitude com relação à este assunto concordava vivamente com Villot.

Poucos meses antes, Villot louvara a encíclica, no 10º aniversário de sua publicação. Numa carta ao Arcebispo John Quinn, de São Francisco, Villot reafirmara a oposição de Paulo à anticoncepção artificial. O Secretário de Estado ressaltara como Paulo considerava importante esse ensinamento e que estava “de acordo com a Lei de Deus”.

Houve muito mais, no mesmo espírito. Agora, menos de dois meses depois, era obrigado a escutar o sucessor de Paulo assumir uma posição inversa. O café esfriou, enquanto Luciani se levantava e andava de um lado para o outro no gabinete, falando sobre alguns efeitos que a Humanae Vitae produzira durante à última década.

A encíclica que fora projetada para reforçar à autoridade papal, negando que pudesse haver qualquer mudança no ensinamento tradicional sobre o controle da natalidade, tivera justamente o efeito oposto. As evidências eram irrefutáveis. Na Bélgica, Holanda, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e muitos outros países não apenas houvera uma acentuada oposição à encíclica, mas também uma desobediência ostensiva. A máxima se tomara rapidamente à de que, se um padre não assumisse uma posição tolerante no confessionário, o pecador procuraria um padre mais liberal. Luciani citou exemplos dessa contradição que conhecia pessoalmente, na região do Veneto.

A teoria da Humanae Vitae podia parecer um ponto de vista moral ideal quando proclamada do interior do reduto exclusivamente masculino do Vaticano. A realidade que Luciani observara no norte da Itália e no exterior demonstrava claramente a desumanidade da encíclica. Naquela década, a população mundial aumentara em mais de três quartos de um bilhão de pessoas.

Quando Villot objetou que o Papa Paulo ressaltara as virtudes do método anticoncepcional natural, Luciani limitou-se à sorrir. Mas não era o sorriso cheio e radiante que o público conhecia, antes um meio sorriso triste.

— Eminência, o que nós, velhos celibatários, sabemos realmente sobre os desejos sexuais das pessoas casadas?

Essa conversa, a primeira de muitas que o Papa teve com seu Secretário de Estado sobre o assunto. ocorreu no gabinete dos aposentos papais na terça-feira, 19 de setembro. Eles discutiram o problema por quase 45 minutos. Quando à reunião terminou e Villot estava se retirando, Luciani acompanhou-o até a porta e acrescentou:

Eminência, conversamos sobre o controle da natalidade durante cerca de 45 minutos. Se as informações forem corretas, se as estatísticas forem precisas, então no período de nossa conversa mais de mil crianças com menos de cinco anos de idade morreram de desnutrição. Durante os próximos 45 minutos, enquanto nós dois aguardamos com expectativa a nossa próxima refeição, outras mil crianças morrerão de desnutrição. Amanhã, a esta hora, 30 mil crianças que se encontram vivas neste momento estarão mortas de desnutrição. Deus nem sempre provê.

O Secretário de Estado do Vaticano aparentemente não foi capaz de encontrar uma resposta adequada.

Todos os detalhes da possível audiência com uma delegação dos Estados Unidos sobre população mundial foram mantidos em sigilo, tanto pelo Vaticano como pelo Departamento de Estado americano. Tal reunião, ocorrendo tão cedo no Pontificado de Luciani, seria corretamente encarada como extremamente significativa, se transpirasse para o conhecimento público.

Um significado ainda maior seria atribuído ao encontro pela opinião pública mundial se fosse divulgado por que o Papa João Paulo I não compareceria à Conferência de Puebla, no México. Era à seqúência de uma conferência muito importante que se realizara em Medellin, na Colômbia. em 1968.

Em Medellin, os cardeais e bispos da América Latina injetaram uma vida nova na Igreja Católica no continente sul-americano. A declaração contida no ““Manifesto de Medellín” incluia à afirmativa de que o esforço básico de sua Igreja no futuro seria procurar se relacionar com os pobres, os abandonados e negligenciados. Era uma mudança revolucionária numa Igreja que anteriormente sempre se relacionara com os ricos e os poderosos. A “Teologia da Libertação”, que emergiu de Medellín, alertava as diversas juntas militares e regimes ditatoriais da América do Sul para o fato de que à Igreja tencionava trabalhar para acabar com a exploração financeira e à injustiça social. Fora, na verdade, um chamado às armas. Inevitavelmente, a resistência a essa filosofia liberal veio não apenas dos diversos regimes, mas também dos elementos reacionários dentro da Igreja. A conferência de Puebla, uma década depois, prometia ser crucial. A Igreja continuaria a seguir pela mesma trilha ou haveria um recuo para a antiga posição odiosa? O fato de o novo Papa recusar o convite para comparecer à conferência ressalta à importância que atribuia à seu encontro com o comitê de Scheuer. Ele certamente conhecia as implicações da reunião em Puebla.

No Conclave, menos de uma hora depois de ser eleito Papa, Luciani fora procurado pelos Cardeais Baggio e Lorscheider, dois homens-chave na projetada conferência no México. Puebla fora adiada por causa da morte do Papa Paulo VI. Os cardeais queriam saber se o novo Papa estava disposto a aprovar uma nova data para a conferência no México.

Luciani discutiu os problemas que seriam tratados em Puebla, em profundidade, menos de uma hora depois de sua eleição. Concordou que à conferência deveria ser realizada e foi definida a data, de 12 a 28 de outubro. Durante a conversa com Baggio e Lorscheider, ele surpreendeu os dois cardeais com seu conhecimento e percepção das questões que seriam examinadas em Puebla. Em relação à seu comparecimento, recusou-se à assumir um compromisso firme logo no início do Pontificado. Quando Villot informou-o que o comitê de Scheuer gostaria de ter uma audiência a 24 de outubro’. Luciani disse à Baggio e Lorscheider que não poderia ir a Puebla. E mandou que Villot confirmasse o encontro com à delegação americana. Fora a confirmação final para Luciani de que seu lugar era no Vaticano durante as semanas seguintes. Havia outros motivos válidos para a sua decisão de permanecer em Roma. O Papa João Paulo I concluíra, em meados de setembro, que a sua primeira prioridade deveria ser à de pôr a casa em ordem. O problema do Banco do Vaticano e sua filosofia operacional tornara-se de suprema importância para ele.

Luciani agiu com uma urgência que faltara perceptivelmente nos últimos anos do seu antecessor imediato. A vassoura nova não tinha a intenção de limpar todo o Vaticano nos primeiros 100 dias, mas ele estava ansioso para que, nesse período, à Igreja começasse a mudar de direção, particularmente em relação ao Vaticano S.A.

Ainda em sua primeira semana, o novo Papa deu uma indicação do rumo que seguiria. “Concordou” com o desejo do Cardeal Villot de ser substituído em um dos seus muitos cargos, a presidência do Conselho Pontifical, Cor Unum. O cargo foi para o Cardeal Bernard Gantin. Cor Unum é um dos principais funis por que passam os recursos coletados no mundo inteiro. a serem distribuídos às nações mais pobres.

Para Luciani, Cor Unum era um elemento vital em sua filosofia de que as finanças do Vaticano deveriam ser inspiradas pelo Evangelho. Villot foi gentilmente substituído, mas mesmo assim substituido, poí Gantin, um homem de grande espiritualidade e evidente honestidade.

A aldeia do Vaticano fervilhava com especulações. Alguns proclamavam que nunca haviam conhecido Sindona, Calvi ou qualquer outro da Máfia de Milão que infestara o Vaticano durante o período do Papa Paulo. Outros, em seus esforços individuais de sobrevivência, começaram a transmitir informações aos aposentos papais.

Poucos dias depois da designação de Gantin, o novo Papa encontrou em sua mesa uma cópia de uma circular do Controle de Câmbio Italiano. Não havia à menor dúvida de que a circular era uma resposta direta à carta aberta de El Mondo ao Papa, descrevendo uma situação inadmissível para um homem que se comprometera com a pobreza pessoal e com uma Igreja pobre.

A circular, assinada pelo Ministro do Comércio Exterior Rinaldo Ossola, fora enviada à todos os bancos italianos. Lembrava que o IOR, o Banco do Vaticano, é “para todos os efeitos uma instituição bancária não-residente”. . . em outras palavras, um banco estrangeiro. Assim, as relações entre o Banco do Vaticano e as instituições de crédito italianas eram governadas pelas mesmas regras que se aplicavam a todos os outros bancos estrangeiros.

O ministro estava particularmente preocupado com os abusos de câmbio, envolvendo à exportação ilegal de capitais da Itália. A circular era também uma inequívoca confissão ministerial de que tais abusos eram realidade. Os círculos financeiros italianos encararam-na como uma tentativa de reprimir pelo menos uma das muitas atividades escusas do Banco do Vaticano. No Vaticano, foi considerada uma confirmação adicional de que o dobre de finados para à presidência no banco do Bispo Paul Marcinkus soava cada vez mais alto.

Uma história que acreditei ser boato, mas que muitos no Vaticano e na imprensa italiana me garantiram ser verdadeira, começou a circular pelo Vaticano no início de setembro de 1978. Dizia respeito à venda do Banca Cattolica deI Veneto e à viagem de Albino Luciani ao Vaticano na tentativa de evitar à venda do banco à Roberto Calvi. Já narrei anteriormente o encontro de Luciani e Benelli. A versão que circulou introduziu elegantes variações em estilo italiano. Luciani se defrontara com Paulo VI que respondera:

— Mesmo você tem de fazer esse sacrifício pela Igreja. Nossas finanças ainda não se recuperaram dos prejuízos causados por Sindona. Mas leve seu problema à Monsenhor Marcinkus.

Pouco depois, Luciani estivera no escritório de Marcinkus e repetira a lista de pedidos da diocese com relação à venda do banco. Marcinkus o escutara e respondera:

— Eminência, não tem nada melhor para fazer hoje? Faça seu trabalho e farei o meu.

A esta altura Marcinkus lhe mostrara a porta de saída. Qualquer um que já tenha visto Marcinkus em ação saberá que faz jus ao seu apelido: “o Gorila”. Para os bispos, monsenhores, padres e freiras no Vaticano é certo que à confrontação realmente aconteceu.

Agora, inesperadamente, o pequeno e pacato homem de Belluno podia remover Marcinkus num piscar de olhos.

Membros da Cúria organizaram uma loteria. Ganharia quem adivinhasse o dia em que Marcinkus seria formalmente removido do banco. O Papa, que acreditava em prudência, ainda reunia as provas necessárias. Além da investigação sendo conduzida por conta do Papa pelo Cardeal Villot, o risonho João Paulo I, com a típica astúcia das montanhas, abriu outras linhas de inquérito. Começou a conversar com o Cardeal Felici sobre o Banco do Vaticano. E também telefonou para o Cardeal Benelli, em Florença.

Foi por intermédio de Giovanni Benelli que o Papa tomou conhecimento da investigação do Banco da Itália no Banco Ambrosiano. Era tfpico da maneira como funcionava a Igreja Católica. O cardeal em Florença disse ao Papa em Roma o que estava acontecendo em Milão.

O ex-segundo homem da Secretaria de Estado do Vaticano formara uma vasta rede de contatos por toda a Itália. Licio Geldi, da P2, ficaria devidamente impressionado com a extensão e a qualidade das informações a que o Cardeal Benelli tinha acesso. Incluía fontes muito bem situadas dentro do Banco da Itália. Foram essas fontes que informaram ao cardeal sobre a investigação no império de Roberto Calvi, um inquérito que se aproximava do climax em setembro de 1978. O que mais preocupou Benelli e posteriormente Albino Luciani era a parte da investigação que levantava as ligações de Calvi com o Vaticano. O contato no Banco da Itália estava convencido de que a investigação seria seguida por graves acusações criminais contra Roberto Calvi e possivelmente alguns de seus diretores. Parecia igualmente certo que o Banco do Vaticano estava bastante envolvido em diversas transações que violavam uma variedade de leis italianas. Os homens no Banco do Vaticano que estavam sendo mais investigados, como criminosos em potencial, eram Paul Marcinkus, Luigi Mennini e Pellegrino de Strobel.

Benelli aprendera, por quase uma década, que não se influenciava Luciani com a insistência vigorosa para que assumisse um determinado curso de ação. Ele me disse:

Com o Papa Luciani, apresentavam-se os fatos, fazia-se uma recomendação e depois se lhe dava tempo e espaço para considerar. Depois de absorver todas as informações disponíveis, ele decidia... e quando o Papa Luciani decidia, nada, mas absolutamente nada, podia demovê-lo ou contê-lo. Era um homem gentil, é verdade. E humilde. Mas quando se lançava a um determinado curso de ação, era inabalável como um rochedo. Bennelli não era o único a ter acesso aos pensamentos dos altos dirigentes do Banco da Itália. Membros da P2 estavam transmitindo exatamente as mesmas informações para Licio Gelli em Buenos Aires. E ele, por sua vez, mantinha plenamente informados os seus companheiros de viagem, Roberto Calvi e Umberto Ortolani. Outros membros da P2, infiltrados no poder judiciário em Milão, informaram a Gelli que, concluída a investigação sobre o Banco Ambrosiano, tudo seria encaminhado ao Juiz Emilio Alessandrini. Poucos dias depois que Gelli tomou conhecimento disso, um grupo terrorista de extrema esquerda, baseado em Milão, Prima Linea, recebeu um aviso de seu contato no sistema judiciário sobre o homem recomendado como sua próxima vítima em potencial. O líder terrorista pregou uma fotografia do alvo na parede de seu apartamento: Juiz Emilio Alessandrini. A P2 movia-se por muitos caminhos, inclusive o Vaticano

No início de setembro, Aibino Luciani descobriu que, por algum meio misterioso, fora acrescentado à lista de distribuição exclusiva de uma insólita agência de notícias chamada L’Osservatore Político (O.P.). Era dirigida pelo jornalista Mino Pecorelli e invariavelmente divulgava histórias escandalosas, que posteriormente eram confirmadas como altamente verdadeiras. Agora, juntamente com políticos, jornalistas e outras pessoas que tinham a necessidade de tomar conhecimento das coisas em primeira mão, o Papa leu uma reportagem sobre o que a O.P. classificou de A Grande Loja do Vaticano”. O artigo dava os nomes de 121 pessoas que supostamente pertenciam a lojas maçônicas. Diversos leigos estavam incluidos na lista, mas abrangia principalmente cardeais, bispos e prelados em altos postos. Os motivos de Pecorelli para divulgar a lista eram simples. Ele estava empenhado numa luta com seu antigo Grão-Mestre, Licio Geldi. Pecorelli era um membro da P2... um membro desencantado.

Estava convencido de que a publicação da lista dos maçons do Vaticano causaria um profundo embaraço ao Grão-Mestre da P2, especialmente porque muitos eram amigos íntimos de Gelli e Ortolani.

Se a informação era correta, então Luciani estava virtualmente cercado por maçons... e ser um maçom significava a excomunhão automática da Igreja Católica. Antes do Conclave, houvera rumores de que vários dos mais eminentes papabile eram maçons. Agora, a 12 de setembro, o novo Papa recebia a lista completa. Luciani tinha a opinião de que era inconcebível que um sacerdote se tornasse membro da maçonaria. Sabia que diversos católicos leigos de suas relações pertenciam a várias Lojas. Da mesma forma, tinha amigos que eram comunistas. Aprendera a conviver com essa situação, mas achava que os critérios eram diferentes quando se tratava de alguém do clero, A Igreja Católica decretara há muito tempo que se opunha implacavelmente à maçonaria. O novo Papa estava aberto a uma discussão da questão, mas uma lista de 121 homens que eram membros confirmados da maçonaria não chegava a constituir uma discussão.

O Secretário de Estado Cardeal Villot, nome maçônico Jeanni, registrado numa Loja de Zurique a 6 de agosto de 1966, com o número 041/3. Ministro do Exterior Monsenhor Agostino Casaroli. Cardeal Vigário de Roma Ugo Poletti. Cardeal Baggio. Bispo Paul Marcinkus e Monsenhor Donato de Bonis, do Banco do Vaticano. O aturdido Papa leu uma relação que parecia o “Quem é Quem” do Vaticano. Notando com alívio que nem Benelli nem o Cardeal Felici apareciam na lista, que incluia até mesmo o secretário particular do Papa Paulo, Monsenhor Pasquale Macchi, Albino Luciani prontamente telefonou para Felici e convidou-o para tomar um café.

Felici informou ao Papa que uma lista similar circulara discretamente pelo Vaticano, há mais de dois anos, em maio de 1976. O motivo para o seu reaparecimento era obviamente uma tentativa de influenciar o pensamento do novo Papa sobre nomeações, promoções e remoções.

— A lista é verdadeira? — perguntou Luciani.

Felici disse ao Papa que, em sua opinião, era uma hábil mistura. Alguns nomes na lista eram de fato maçons, outros não. E acrescentou:

— Essas listas parecem proceder da facção Lefebvre... não foram criadas por nosso irmão francês rebelde, mas certamente usadas por ele.

O Bispo Lefebvre fora um incômodo para o Vaticano e particularmente para o Papa Paulo VI durante alguns anos. Um tradicionalista que considerava o Concilio Vaticano Segundo como a suprema heresia, ignorara quase que totalmente as conclusões conciliares. Alcançara notoriedade internacional com sua insistência de que a missa fosse celebrada exclusivamente em latim. Suas posições de extrema direita, numa variedade de assuntos, resultaram numa condenação pública pelo Papa Paulo VI. Em relação ao Conclave que elegera o Papa João Paulo I, os partidários de Lefebvre haviam inicialmente declarado que se recusariam a reconhecer o novo Papa, por ter sido eleito num Conclave que excluira os cardeais com mais de 80 anos. Posteriormente, eles lamentaram a escolha como ‘‘sinistra’’.

Luciani refletiu sobre a situação por um momento, antes de perguntar:

— Quer dizer que listas como esta existem há mais de dois anos?

— Isso mesmo, Santidade.

— A imprensa tomou conhecimento delas?

— Tomou, Santidade. A lista completa jamais chegou a ser publicada, mas saiu um nome aqui, outro ali.

— E qual foi a reação do Vaticano?

— A normal.., ou seja, nenhuma reação.

Luciani riu. Gostava de Pericle Felici. Curial até a raiz dos cabelos, tradicionalista em seu pensamento, mas um homem espirituoso e sofisticado, de cultura considerável.

— Eminência, na revisão da lei canônica, que ocupou tanto de seu tempo, o Santo Padre por acaso previu uma mudança na posição da Igreja em relação à maçonaria?

— Ao longo dos anos, houve muitos grupos de pressão. Determinadas partes interessadas exortavam a que se assumisse uma posição mais “moderna”. O Santo Padre ainda estava considerando esses argumentos quando morreu.

Felici continuou a deixar claro que entre os que defendiam fortemente um afrouxamento da lei que declarava que qualquer católico que se filiasse à maçonaria estava automaticamente excomungado estava o Cardeal Jean Villot.

Nos dias que se seguiram, o Papa passou a observar mais atentamente alguns de seus muitos visitantes. O problema era que os maçons pareciam extraordinariamente com o resto da humanidade. Enquanto Luciani considerava esse problema imprevisto, diversos membros da Cúria Romana, intensamente simpáticos à visão do mundo de extrema direita de Licio GeIli, vazavam informações para fora do Vaticano. Essas informações acabaram chegando a seu destino, Roberto Calvi.

As notícias do Vaticano eram sombnias. O banqueiro milanês estava convencido de que o Papa queria se vingar pela tomada do Banca Cattolica deI Veneto. Não podia conceber que a investigação de Luciani no Banco do Vaticano não fosse pessoalmente orientada e inspirada por seu desejo (de atacar Roberto Calvi . Lembrava muito bem a ira do clero de Veneza e os protestos de Luciani, sem falar no encerramento de muitas contas diocesanas e a transferência para um banco rival. Por alguns dias, Calvi chegou mesmo a considerar a possibilidade de subornar Luciani. Quem sabe se uma doação substancial ao Vaticano não resolveria o problema? Uma doação generosa para as obras de caridade? Mas tudo o que aprendera a respeito de Luciani dizia a Calvi que lidava com um tipo de homem que só encontrara raramente nos negócios, alguém que era totalmente incorruptível.

Enquanto os dias de setembro passavam, Calvi viajou pelo continente sul-americano, Uruguai, Peru, Argentina. Com ele estavam sempre Gelli ou Ortolani. Marcinkus caindo, um novo homem logo descobriria qual era a situação e a verdadeira natureza das relações entre o Banco do Vaticano e o Banco Ambrosiano. Mennini e De Strobel seriam afastados. O Banco da Itália seria informado e Roberto Calvi passaria o resto de sua vida na prisão.

Ele cobrira todas as eventualidades, considerara todos os perigos em potencial, bloqueara todas as brechas. Era perfeito o que criara: não um roubo, nem mesmo um grande roubo, mas sim um roubo contínuo numa escala até então jamais imaginada. Em setembro de 1978, Calvi já roubara mais de 400 milhões de dólares. Os conglomerados no exterior, os associados estrangeiros, as empresas de fachada... a maioria dos ladrões experimentaria um senso de triunfo por realizar um único assalto a banco. Calvi, no entanto, estava empenhado em roubar bancos às dúzias. Todos entravam em fila para serem roubados, disputando o privilégio de emprestar dinheiro ao Banco Ambrosiano.

Agora, no meio de seu sucesso irresistível, ele tinha de lidar com inspetores do Banco da Itália que não podiam ser corrompidos e a cada dia mais se aproximavam da conclusão de sua investigação. Gelli lhe assegurara que o problema podia e seria controlado. Mas como poderia até mesmo Gelli, com todo o seu imenso poder e influência, manipular um Papa?

Enquanto os dias passavam, Calvi foi ficando obcecado pelo problema. Como se pode impedir um homem honesto de destruí-lo? Se fosse um mortal comum, poderia ser pressionado, talvez ameaçado. Se isso não desse certo, haveria muitos que não hesitariam em silenciar uma ameaça... permanentemente. Mas não se tratava de um mortal comum. Era o Chefe de Estado da Cidade do Vaticano. Mais objetivamente, era o Papa. Como se podia ameaçar um Papa?

Se Albino Luciani, por algum milagre, morresse antes de substituir Marcinkus, então Calvi disporia do tempo de que precisava. Era verdade que seria apenas um mês. Mas muita coisa coisa pode acontecer em um mês. E muita coisa poderia acontecer no próximo Conclave. Deus não produziria outro Papa que quisesse reformar as finanças do Vaticano, não é mesmo? Como sempre, ele virou-se para Licio Gelli e confidenciou-lhe os seus piores receios. Depois de um longo telefonema internacional para Gelli, Roberto Calvi sentiu algum alivio. Gelli o tranqúilizara. O “problema” podia e seria resolvido.

Enquanto isso, a rotina cotidiana nos aposentos papais rapidamente se assentava em um novo padrão, em torno do novo ocupante. Mantendo, o hábito de uma vida inteira, Luciani se levantava muito cedo. Optara por dormir na cama usada por João XXIII, ao invés de na cama de Paulo VI. O Padre Magee disse a Luciani que Paulo se recusara a dormir na cama de João “por causa de seu respeito pelo Papa João”. Ao que Luciani respondeu:

— Pois dormirei na cama de João por causa do meu amor por ele. Embora o despertador na mesinha-de-cabeceira estivesse preparado para tocar às 5:00, caso dormisse demais, o Papa era sempre despertado por uma batida na porta às 4:30. Informava-o que a Irmã Vincenza deixara um bule de café ali. Até mesmo esse ato simples ficara sujeito à interferência curial. Em Veneza, a freira se acostumara a bater na porta, gritar um “bom-dia” e levar o café até a cama para Luciani. Os ativos monsenhores do Vaticano acharam que esse ato simples violava algum protocolo imaginário. Protestaram junto ao aturdido Luciani, que acabou concordando que o café fosse deixado na porta do gabinete adjacente. O hábito de tomar um café logo depois de acordar derivava de uma operação de sinusite realizada muitos anos antes. A operação deixara Luciani com um gosto amargo na boca ao despertar. Quando viajava, se não havia café disponível, chupava uma bala.

Depois de tomar o café, Luciani fazia a barba e tomava um banho, Das 5:00 às 5:30, praticava seu inglês com a ajuda de um curso gravado em cassette. Deixava o quarto às 5:30 e ia para a pequena capela particular ali perto. Orava, meditava e dizia o seu breviário até as 7:00.

Recebia então a companhia de outros membros do círculo papal, particularmente seus secretários, Padre Lorenzi e Padre Magee. Lorenzi, também novo no Vaticano, perguntara ao Papa se Magee, um dos secretários do Papa Paulo, não poderia continuar no posto. Luciani, que se impressionara com a capacidade do Padre Magee de providenciar xícaras de café, durante os dois primeiros dias do seu Pontificado, prontamente concordara. Os três homens tinham a companhia das freiras da Congregação de Maria Bambina durante a missa, cujas funções eram limpar e cozinhar para o Papa. As freiras, Madre Superior Elena, Irmãs Margherita, Assunta, Gabriella e Clorinda logo receberam a ajuda de mais uma pessoa, a Irmã Vincenza, de Veneza, por sugestão do Padre Lorenzi. Vincenza trabalhara para Luciani desde os seus dias em Vittorio Veneto e conhecia seus jeitos, seus hábitos. Ela o acompanhara a Veneza e fora a. madre superiora da comunidade de quatro freiras que cuidava do Patriarca. Sofrera um ataque cardíaco em 1977 e fora hospitalizada. Os médicos disseram-lhe que nunca mais deveria trabalhar, limitando-se a ficar sentada e dar instruções às outras freiras. Vincenza ignorara as determinações médicas e continuara a supervisionar a cozinha da Irmã Celestina, a se movimentar constantemente em torno do Patriarca, lembrando-o de tomar seu remédio para a pressao baixa.

Para Albino Luciani, Vincenza e o Padre Lorenzi representavam seu único vinculo com as terras do norte da Itália, que agora só veria raramente e onde nunca mais tornaria a viver. E um pensamento profundo saber que, ao ser eleito Papa, um homem passa imediatamente a viver onde possivelmente morrerá e com toda certeza será enterrado. E como viver em seu próprio cemitério.

O café da manhã, de cafe latte, um pão e uma fruta, era servido logo depois da missa, ás 7:30. Como Vincenza diria às outras freiras, alimentar Luciani era um desafio considerável. Ele geralmente se mostrava indiferente ao que comia e seu apetite era como o de um canário. Como muitos que haviam conhecido a pobreza extrema, ele detestava o desperdício. O que sobrara de um jantar especial para convidados seria uma de suas refeições no dia seguinte.

Ao café da manhã, Luciani lia diversos jornais italianos. Determinara que o diário Il Gazzetino, de Veneza, fosse acrescentado à lista. Entre 8:00 e 10:00, o Papa trabalhava em seu gabinete, preparando-se para a primeira audiencia. Entre 10:00 e 12:30, com homens como Monsenhor Jacques Martin, Prefeito da Residência Pontifical, tentando fazer com que as pessoas entrassem e saíssem no horário, o Papa recebia e conversava com os visitantes, no segundo andar do Palácio Apostólico.

Martin e outros membros da Cúria não demoraram a descobrir que Luciani era um homem de vontade própria e firme. Apesar das objeções murmuradas, as conversas do Papa com os visitantes tinham o hábito de se prolongar além do horário, acarretando a maior confusão para a programação. Homens como Monsenhor Martin representam uma atitude predominante no Vaticano de que todos poderiam se desincumbir a contento de suas funções se não fosse pelo Papa.

Um almoço de minestrone ou macarrão, seguido por qualquer outra coisa que Vincenza tivesse preparado para segundo prato, era servido as 12:30. Mesmo isso dava margem a comentários. O Papa Paulo sempre almoçava às 13:30. O fato de uma coisa tão banal inspirar comentários excitados nó Vaticano é indicativo de quanto o lugar é uma aldeia. Os rumores se tornaram ainda mais intensos quando se espalhou a noticia de que o Papa aceitava a presença de mulheres à sua mesa de refeições. A sobrinha Pia e a cunhada provavelmente entraram para o livro de recordes do Vaticano. Luciani fazia uma pequena sesta entre 13:30 e 14:00. De pois, passeava um pouco pelo terraço ou pelos jardins do Vaticano. Ocasionalmente, era acompanhado pelo Cardeal Villot; com mais freqúência, Luciani lia. Além do breviário, encontrava prazer em autores tão diversos como Mark Twain e Sir Walter Scott. Ele voltava a seu gabinete pouco depois das 16:00, estudava o conteúdo de um envelope recheado que era entregue por Monsenhor Martin, relacionando os visitantes do dia seguinte e um breve sumário a respeito de cada um.

As 16:30, enquanto tomava uma xícara de chá de camomila, o Papa recebia em seu gabinete, o “Tardella”, os diversos cardeais arcebispos e secretários de congregações que constituíam o seu ministério. Eram reuniões importantes, pois garantiam o funcionamento seguro das engrenagens da Igreja Católica.

A refeição da noite era às 19:45. Às 20:00, enquanto ainda comia Luciani assistia à televisão. Seus companheiros ao jantar, a não ser que houvesse convidados especiais., eram os Padres Lorenzi e Magee.

Depois do jantar, havia mais preparativos para as audiências do dia seguinte. O Papa dizia a parte final do breviário diário e em seguida se retirava para dormir, em torno das 21:30.

O jantar, assim como o almoço que o precedera, seria simples e sem sofisticações. A 5 de setembro Luciani recebeu um padre veneziano, Padre Mario Ferrarese. Para convidar o padre aos aposentos papais, Luciani deu a desculpa de que desejava retribuir a hospitalidade que Padre Mario lhe dispensara em Veneza. Preferia a companhia de um padre paroquiano a considerar o fato de que os ricos e poderosos da Itália tentavam conseguir que partilhasse de sua mesa. Aquela refeição em particular foi servida por dois membros da equipe papal, Guido e Gian Paolo Guzzo. O Papa pediu notícias de Veneza, a seguir observou tranquílamente:

— Peça às pessoas por lá que rezem por mim porque não é fácil ser um Papa.

E dirigindo-se aos irmãos Guzzo disse:

— Como temos um convidado devemos servir-lhe uma sobremesa.

Após alguma demora, taças de sorvete foram servidas à mesa papal. Para os de fora, vinho. Luciani se contentava com água mineral.

Essa era a rotina diária do Papa João Paulo I... uma rotina que ele tinha a maior satisfação em perturbar de vez em quando. Sem avisar a ninguém, saía inesperadamente a passear pelos jardins do Vaticano. Podia-se pensar que era uma simples diversão, mas um passeio improvisado lançava o protocolo do Vaticano e os guardas suíços na maior confusão. Luciani já causara consternação entre os oficiais da Guarda Suiça ao conversar com homens de sentinela e também pedir que se abstivessem de ajoelhar-se cada vez que se aproximava. Ele comentou para o Padre Magee:

— Quem sou eu para que se ajoelhem na minha presença?

Monsenhor Virgilio Noe, o mestre-de-cerimônias, suplicou-lhe que não conversasse com os guardas e se limitasse a um aceno de cabeça silencioso. O Papa perguntou por quê. Noé abriu os braços numa reação de espanto.

— Santo Padre, isso simplesmente não se faz. Nenhum Papa jamais falou com os guardas.

Albino Luciani sorriu e continuou a falar com os guardas. Era muito diferente dos primeiros dias do Pontificado de Paulo, quando padres e freiras ainda ficavam de joelhos para conversar com o Papa, mesmo quando fosse pelo telefone.

A atitude de Luciani em relação ao telefone também provocou alarme entre os tradicionalistas da Cúria. Tinham de lidar agora com um Papa que se considerava perfeitamente capaz de discar para alguém que desejasse falar e atender ligações. Ligava para amigos ern Veneza. Telefonava para diversas madres superioras apenas para uma conversa inconsequente. Certa ocasião, comentou com seu amigo Padre Bartolomeo Sorges que gostaria que o Padre Dezza, um jesuíta, ouvisse sua confissão. Uma hora depois, o Padre Dezza telefonou para combinar a visita. A voz ao telefone informou-o:

— Lamento muito, mas o secretário do Papa não está no momento. Posso ajudar?

— Quem está falando?

— O Papa.

Simplesmente não se fazia assim. Nunca acontecera antes e talvez nunca mais torne a acontecer. Os dois homens que atuavam como secretários de Luciani negaram categoricamente que jamais tivesse acontecido. Era inconcebível. Mas aconteceu realmente.

Luciani começou a explorar o Vaticano, com seus 10 mil cômodos e corredores, 997 escadas, sendo que 30 secretas. Muitas vezes deixava subitamente os aposentos papais, sozinho ou acompanhado apenas pelo Padre Lorenzi. E também de repente aparecia nos escritórios da Cúria.

— Estou apenas descobrindo os caminhos por aqui — ele explicou uma ocasião ao surpreso Arcebispo Caprio, Subsecretário de Estado.

Eles não gostavam. Não gostavam absolutamente. A Cúria estava acostumada a um Papa que conhecia o seu lugar, que atuava através dos canais burocráticos. Mas aquele Papa circulava por toda parte, se intrometia em tudo, e a pior de tudo, queria fazer mudanças. A batalha pela sedia gestatoria, a cadeira em que os papas anteriores eram transportados, começou a assumir proporções extraordinárias. Luciani a banira para a depósito. Os tradicionalistas iniciaram uma luta para trazê-la de volta. O fato de coisas tão insignificantes ocuparem o tempo de um Papa e um comentário esclarecedor sobre as perspectivas de determinados setores da Cúria Romana.

Luciani tentou argumentar com homens como Monsenhor Noé como se faz com uma criança. O mundo deles não era o seu e o Papa não estava disposto a mudar. Explicou a Noe e aos outros que circulava a pé em público porque não se considerava melhor do que qualquer outro homem. Detestava a cadeira e o que ela simbolizava.

— Mas as multidões não podem vê-lo sem a cadeira — protestou um representante da Cúria. — Todos estão pedindo a sua volta. Todos devem poder ver o Santo Padre.

Obstinadamente, Luciani lembrou que aparecia com frequência na televisão e que todos os domingos aparecia na sacada para o Angelus. Disse também o quanto detestava a idéia de ser virtualmente carregado nos ombros de outros homens.

— Mas se Sua Santidade procura uma humildade ainda mais profunda do que claramente já tem, o que poderia ser mais humilhante do que ser carregado na cadeira que tanto detesta? Diante desse argumento, o Papa reconheceu a derrota. Em sua segunda audiência pública, foi levado ao Salão Nervi na sedia gestatoria.

Enquanto uma parte do tempo de Luciani era absorvida pelas atividades triviais da Cúria, a maioria de suas horas de vigília era dedicada a problemas mais sérios. Dissera ao corpo diplomático que o Vaticano renunciava a todas as reivindicações de poder temporal. Não obstante, o novo Papa logo descobriu que praticamente todos os grandes problemas do mundo passavam por sua mesa. A Igreja Católica, com mais de 18 por cento da população mundial lhe prestando fidelidade espiritual, representa uma força poderosa; como tal, era obrigada a assumir uma posição e tomar uma atitude numa enorme variedade de problemas.

Além de sua atitude em relação ao General Videla, da Argentina, qual seria a reação de Albino Luciani à pletora de ditadores que presidiam vastas populações católicas? Qual seria a sua reação à camarilha de Marcos, nas Filipinas, com seus 43 milhões de católicos? Em relação ao auto-eleito Pinochet, no Chile, que tem mais de 80 por cento da população de católicos? E o General Somoza, da Nicarágua, o ditador tão admirado pelo assessor financeiro do Vaticano, Michele Sindona? Como Luciani restauraria a posição de uma Igreja Católica para os pobres e oprimidos num pais como Uganda, onde Amin providenciava acidentes fatais para padres como uma ocorrência quase cotidiana? Qual seria sua resposta aos católicos de El Salvador, onde alguns membros da junta militar no poder consideravam que ser católico era ser um inimigo”? Trata-se de um país em que 96 por cento dos habitantes são católicos e que prometia oferecer ao mundo uma receita de genocídio, um problema um pouco mais sério do que o debate no Vaticano sobre a cadeira do Papa.

Como o homem que dissera palavras duras sobre o comunismo de seu púlpito em Veneza falaria ao mundo comunista da Basílica de São Pedro? O cardeal que aprovara um “equilíbrio do terror” em relação às armas nucleares manteria a mesma posição quando os defensores internacionais do desarmamento unilateral solicitassem uma audiência?

Havia também incontáveis problemas, herdados de Paulo VI dentro de suas próprias fileiras. Muitos padres queriam o fim do voto de celibato. Havia pressões para se permitir o ingresso das mulheres no sacerdócio. Havia grupos que exigiam a reforma das leis canônicas sobre o divórcio, aborto, homossexualismo e uma dúzia de outras questões... e todos se dirigiam a um só homem, exigindo, suplicando, exortando. O novo Papa demonstrou rapidamente, nas palavras de Monsenhor Loris Capovilla, o ex-secretário de João XXIII, que “havia mais em sua loja do que ele mostrou na vitrine”. Quando o Ministro do Exterior Monsenhor Agostino Casaroli procurou o Papa com sete questões sobre as relações da Igreja com diversos países do lest europeu, Albino Luciani prontamente deu as soluções para cinco pediu um pouco de tempo para analisar as outras duas. O aturdido Casaroli voltou a seu gabinete e relatou a um colega o que acontecera O sacerdote perguntou-lhe:

— As soluções foram corretas?

— Totalmente corretas, na minha opinião. Mas seria preciso um ano para se arrancar as respostas de Paulo.

Outro dos problemas encaminhados ao Papa envolvia a Irlanda e a atitude da Igreja em relação ao IRA. Muitos consideravam que a Igreja Católica não fora bastante franca e objetiva em sua condenação da continua carnificina na Irlanda do Norte. Poucas semanas antes da eleição de Luciani, o Arcebispo O’Fiaich, então o Primaz Católico de Toda a Irlanda, alcançara as manchetes com sua denúncia das condições na prisão de Maze, em Long Kesh. O’Fiaich visitara a prisão e depois falara de seu choque “com o fedor e sujeira em algumas celas, os remanescentes de carne putrefata e excremento humano espalhados pelas paredes”. Havia muitos outros comentários similares. Em nenhum lugar do seu longo pronunciamento, liberado para os meios de comunicação com extremo profissionalismo, o arcebispo reconhecia que as condições na prisao eram criadas pelos próprios presos.

A Irlanda estava sem um cardeal. Muitos tentavam influenciar o Papa. O Arcebispo O’Fiaich era considerado por alguns como o maior candidato ao posto, outros sentiam que sua promoção à Arquidiocese de Armagh provou ser um absoluto desastre.

Albino Luciani devolveu o dossiê sobre O’Fiaich a seu Secretário de Estado com um movimento negativo e a frase:

— Acho que a Irlanda merece um pouco mais.

A procura por um cardeal continuou.

Em setembro de 1978, a crise no Líbano não era considerada de maior importância na lista dos problemas mundiais. Havia dois anos que reinava uma espécie de paz, entremeada de combates esporádicos entre tropas sírias e cristãs. Muito antes de qualquer outro chefe de Estado, o pequeno e discreto sacerdote do Veneto compreendeu que o Líbano era um matadouro em potencial. Discutiu o problema em profundidade com Casaroli e disse que desejava visitar Beirute antes do Natal de 1978.

Um dos homens que Luciani recebeu, durante as audiências matutinas de 15 de setembro, foi o Cardeal Gabriel-Marie Garrone, Prefeito da Sagrada Congregação para a Educação Católica. Essa audiência em particular é um exemplo extraordinário de como eram excepcionais os talentos de Luciani. Garrone viera discutir um documento chamado Sapientia Christiana, que versava sobre a constituição apostólica e as diretivas e regras de todas as faculdades católicas do mundo. Já no início dos anos 60 o Concílio Vaticano Segundo revisara as orientações para os seminários. Depois de dois anos de discussões internas, a Cúria Romana enviara suas propostas aos bispos do mundo, a fim de que estudassem e apresentassem suas recomendações. Todos os documentos relevantes foram depois submetidos a mais duas reuniões curiais, com a presença de consultores não-curiais. Os resultados foram em seguida examinados pelo menos por seis departamentos curiais, o documento final sendo apresentado ao Papa Paulo VI em abril de 1978, 16 anos depois das reformas propostas serem discutidas pela primeira vez. Paulo pensara em divulgar o documento a 29 de junho, dia de São Pedro e São Paulo. Mas um documento com um período de gestação de cerca de 16 anos naõ podia ser aprontado tão depressa no departamento de tradução da Cúria. E o Papa Paulo já morrera quando o documento finalmente ficou pronto. Qualquer iniciativa não proclamada por ocasião da morte de um Papa perde o valor, a menos que seja aprovada pelo sucessor. Por isso, o Cardeal Garrone entrou na audiência com o novo Papa com uma profunda apreensão. Cerca de 16 anos de trabalho árduo poderiam ser jogados no lixo se Luciani rejeitasse o documento. O antigo professor de seminário de Belluno disse a Garrone que passara a maior parte do dia anterior estudando o documento. Depois, sem sequer consultar uma cópia. pôs-se a discuti-lo em profundidade e detalhes. Garrone ficou atônito com a percepção e compreensão do Papa de um documento tão complexo. Ao final da audiência, Luciani comunicou que o documento tinha sua aprovação e deveria ser publicado a 15 de dezembro.

Como Casaroli, Baggio, Lorscheider e diversos outros homens Garrone saiu da audiência com Luciani extremamente admirado. Voltando a seu gabinete, encontrou por acaso com N’lonsenhor Scalzotto, da Propaganda Fide, com quem comentou:

— Acabo de me encontrar com um grande Papa.

Enquanto isso, o “grande Papa” continuava a abrir caminho pela montanha de problemas deixados por Paulo, Um deles era o Cardeal John Cody, de uma das mais poderosas e ricas dioceses do mundo, Chicago.

Para um cardeal, qualquer cardeal, ser considerado um grande problema pelo Vaticano é insólito.., mas Cody era um homem insólito. As acusações formuladas contra o Cardeal Cody, nos 10 anos anteriores ao início do pontificado de Luciani, eram extraordinárias. Mesmo que apenas cinco por cento fossem verdadeiras, então Cody não tinha condições de ser um padre, muito menos o cardeal de Chicago.

Antes de sua promoção à Arquidiocese de Chicago, em 1965, ele dirigira a diocese de Nova Orleans. Muitos padres que tentaram trabalhar com ele em Nova Orleans ainda exibem as cicatrizes para prová-lo. Um deles recordou:

— Quando aquele filho da puta ganhou Chicago, promovemos uma festa e entoamos o Te Deum. Nosso ganho era a perda de Chicago.

Quando conversei sobre a carreira subsequente do cardeal de Chicago com o Padre Andrew Greeley, famoso sociólogo cristão, escritor e antigo critico de Cody, comentei que outro padre de Chicago comparara o Cardeal Cody ao Capitão Queeg, o despótico e paranóico comandante, naval em The Caine Mutiny. A resposta do Padre Greeley foi imediata:

— Acho que é uma injustiça com o Capitão Queeg.

Nos anos que se seguiram à nomeação do Cardeal Cody para Chicago, tornou-se’moda na Cidade dos Ventos compará-lo com o Prefeito Richard Daley, um homem cujas práticas no comando da cidade só eram democráticas por acaso. Havia, porém, uma diferença básica. A cada quatro anos, Daley tinha de prestar contas de seus atos aos eleitores, pelo menos em teoria. Se conseguissem superar a sua máquina política, poderiam afastá-lo do cargo. Mas Cody não fora eleito. A não ser por uma ação muito drástica de Roma, ele continuaria ali pelo resto de sua vida. Cody gostava até de comentar:

— Não tenho de prestar contas a ninguém além de Roma e Deus.

Os acontecimentos provariam que Cody se recusava a prestar contas até a Roma. Com isso, só restava Deus.

Quando chegou a Chicago, Cody tinha a reputação de ser um excelente gerente financeiro, um liberal progressista que batalhara por muito tempo e com grande afinco pela integração escolar em Nova Orleans e um prelado muito exigente. Ele não demorou a perder os dois primeiros atributos. No início de junho de 1970, quando era tesoureiro da Igreja Americana, aplicou dois milhões de dólares em ações da Penn Central. Houve um colapso das ações poucos dias depois e a companhia faliu. Cody investira ilegalmente o dinheiro durante a administração de seu sucessor devidamente eleito, a quem se recusara a entregar os talões de cheques até muito depois do prejuízo. Mas conseguiu sobreviver ao escândalo.

Semanas depois de sua chegada a Chicago, ele demonstrou o seu tipo particular de liberalismo progressista no tratamento com alguns padres. Nos arquivos de seu antecessor, Cardeal Albert Meyer, descobriu uma lista de padres “problemas”, homens que eram alcoólatras, senis ou simplesmente incompetentes. Cody começou a passar as tardes de domingo a visitar as residências paroquiais. Demitia pessoalmente os padres, dando-lhes apenas duas semanas para deixarem as residências. Não havia fundos de pensão, planos de aposentadoria ou esquemas de seguros para os padres em Chicago em meados dos anos 60. Muitos daqueles tinham mais de 70 anos. Cody simplesmente jogouos na rua.

Ele começou a transferir padres de uma parte para outra da cidade, sem qualquer consulta. Assumia uma atitude similar em relação a fecnar conventos, residências paroquiais e escolas. Houve uma ocasião em que, por ordem de Cody, uma equipe de demolição começou a derrubar uma residência paroquial e um convento enquanto os ocupantes ainda se banhavam e tomavam o café da manhã.

O problema básico de Cody parecia ser uma profunda incapacidade de reconhecer o Concílio Vaticano Segundo como um fato da vida. Houvera conversas intermináveis no Concilio sobre partilhar o poder, tomar as decisões em colegiado. Mas essas notícias nunca chegaram à mansão do cardeal.

Numa diocese com 2,4 milhões de católicos, começaram a ser definidas as linhas de batalha entre as facções a favor e contra Cody. Enquanto isso, a maioria dos católicos na cidade se perguntava o que estava acontecendo.

Os padres formaram uma espécie de sindicato, a Associação dos Padres de Chicago. Cody ignorou quase que totalmente suas reivindicações. Cartas pedindo reuniões não eram respondidas. Telefonemas descobriam que o cardeal estava constantemente “ocupado”. Alguns permaneceram para continuar a luta por uma Igreja dirigida de forma mais democrática. Muitos desistiram. Numa década, um terço dos clérigos de Chicago abandonou o sacerdócio. Embora essas de monstrações maciças comprovassem que havia algo de podre no Estado de Illinois, o Cardeal Cody continuou a insistir que seus oponentes não passavam de “uma minoria altamente ruidosa”.

O cardeal também atacou a imprensa local, declarando-a hostil. Na verdade, porém, os meios de comunicação de Chicago foram extraordinariamente tolerantes durante o reinado de Cody.

O homem que lutara pela integração em Nova Orleans tornou-se conhecido em Chicago como o homem que fechou escolas para negros, alegando que a Igreja não tinha condições de mantê-las... numa diocese com uma receita anual que beirava os 300 milhões de dólares.

Como acontecia praticamente com todos os seus atos, Cody fechou a maioria das escolas sem consultar ninguém, nem mesmo a junta escolar. Quando o clamor de “racista” se elevou, Cody tratou de se defender com a declaração de que muitos negros não eram católicos e que a Igreja não tinha a obrigação de educar negros protestantes de classe média. Mas foi muito difícil de se desvencilhar do rótulo de racismo.

A medida que os anos passaram, as acusações contra Cody se multiplicaram. O conflito com amplos setores do seu próprio clero tornou-se encarniçado. Sua paranóia desabrochou.

Começou a contar histórias de como fora utilizado em trabalho secreto de espionagem para o governo dos Estados Unidos, e as contribuições com o FBI. Disse aos padres que também realizara missões especiais para a CIA, inclusive voando a Saigon. Os detalhes eram sempre vagos. Mas se Cody dizia a verdade, envolvera-se em atividades de serviço secreto para o governo desde o inicio dos anos 40. Parecia que John Patrick Cody, o filho de um bombeiro de St. Louis, levara muitas vidas.

A reputação de astúcia financeira que levara para Chicago e fora um tanto afetada pelo prejuízo de dois milhões de dólares da Penn Central sofreu um novo golpe quando alguns de seus oponentes começaram a investigar sua carreira anterior, bastante movimentada. Nos intervalos dos vôos reais ou imaginários sobre territórios inimigos, ele conseguira involuntariamente reduzir a um estado de pobreza uma parte da Igreja, embora não da maneira idealizada por Albino Luciani. Deixara a diocese de São José, em Kansas City, com uma dívida de 30 milhões de dólares. Fizera a mesma coisa em Nova Orleans, o que acrescentava um significado maior ao Te Deum do clero local por ocasião de sua partida. Pelo menos deixara um memento permanente de sua passagem por Kansas City, tendo aplicado somas vultosas para dourar o domo da catedral restaurada no centro da cidade.

Cody passou a vigiar os movimentos diários dos padres e freiras que suspeitava de deslealdade. Dossiês foram reunidos. Interrogatórios secretos de amigos de “suspeitos” tornaram-se uma norma. Nunca se definiu o que tudo isso tinha a ver com o Evangelho de Cristo.

Quando algumas dessas atividades foram denunciadas a Roma pelo clero de Chicago. o Papa Paulo VI ficou preocupado e angustiado. Era mais do que evidente que o membro sênior da Igreja Católica em Chicago já demonstrara, no início dos anos 70, que não tinha condições de presidir a diocese. Apesar disso, imbuido de um estranho senso de prioridades, o Papa ainda hesitava. A paz de espírito de Cody parecia pesar mais que o destino de 2,4 milhões de católicos.

Um dos aspectos mais extraordinários do caso de Cody é que ele controlava, aparentemente sem qualquer consulta a quem quer que fosse, toda a receita da Igreja Católica em Chicago. Um homem são e extremamente inteligente já teria dificuldades para controlar com plena eficiência uma receita anual entre 250 e 300 milhões de dólares. O fato dessa incumbência ser entregue às mãos de Cody desafia qualquer explicação.

Por volta de 1970, os bens da Igreja Católica em Chicago ultrapassavam um bilhão de dólares. Por causa da recusa do Cardeal Cody em publicar um balanço anual fiscalizado, padres de diversas partes da cidade passaram a reter algumas somas, que em tempos mais felizes seriam encaminhadas ao controle do cardeal. Finalmente, em 1971, seis anos depois de iniciar seu domínio despótico, Cody se dignou a divulgar o que passava por uma prestação de contas anual. Foi um curioso balanço. Não revelava os investimentos imobiliários, Não revelava os investimentos em ações. Em relação à receita dos cemitérios, apresentava finalmente uma prova de vida depois da morte. Os lucros eram enormes. Seis meses antes de as cifras serem divulgadas, Cody confidenciara a um assessor que o lucro andava na casa dos 50 milhões de dólares. Quando a prestâção de contas foi divulgada, à cifra caíra pará 36 milhões de dólares. Para um homem que podia estar simultaneamente em Romã, Saigon, Casa Branca, Vaticano e nâ mansão do cardeal em Chicago, desviar cerca de 14 milhões de dólares de receita de cemitérios era brincadeira de criança.

Cerca de 60 milhões de dólares de recursos da paróquia estâvam depositados na chancelaria de Chicago. Cody recusava-se a revelar a quem quer que fosse onde o dinheiro se achava investido ou quem se beneficiava dos juros.

Um dos trunfos pessoais mais notáveis do cardeal era o número de amigos influentes que ele continuamente adquiria dentro da estrutura de poder da Igreja. Seus tempos na Cúria Romana, antes dá guerra, trabalhando inicialmente no Colégio Norte-Americano em Roma e depois na Secretaria de Estado, produziram ricos dividendos para os momentos de necessidade. Cody era um homem que desde cedo soube aproveitar as melhores oportunidâdes. Insinuando-se nas boas graças de Pio XII e do futuro Paulo VI, ele estabeleceu uma formidável base de poder em Romã.

A ligação do Vaticano com Chicago era, no inicio dos anos 70, um de seus vínculos mais importântes com os Estados Unidos. A maior parte dos investimentos do Vaticano S.A. no mercado de ações americano era canalizada pelo Continental de Illinois. Na diretoria do banco, juntamente com David Kennedy, um amigo íntimo de Michele Síndona, estava o padre Jesuíta Raymond C. Bãumhart. As grandes somas que Cody canalizava para Roma tornaram-se um fator importante na política fiscal do Vaticano. Cody podia não ser capaz de controlar seus padres, mas certamente sabia como lidar com questões de dinheiro, Quândo o bispo que controlava a diocese de Reno fez alguns “investimentos infelizes” e houve um totâl colapso financeiro, o Vaticano pediu a Cody que o socorresse. Cody ligou para seus amigos banqueiros e o dinheiro foi prontamente providenciado.

Ao longo dos anos, a amizade entre Cody e Marcinkus tornou-se particularmente intima; tinham muita coisa em comum, muitos interesses envolvidos. Em Chicago, com sua vasta população de origem polonesa involuntariamente ajudando-o, Cody começou a desviar centenas de milhares de dólares para Marcinkus, no Banco do Vaticano, através do Continental Illinois, Marcinkus encaminhava o dinheiro para os cardeãis na Polônia.

O cardeal cuidava de garantias adicionais, distribuindo a riqueza de Chicago por determinados setores da Cúria Romana. Quando estava na cidade, e fez mais de uma centena de viagens a Roma, distribuia presentes caros pelas pessoas que mais lhe poderiam ser úteis, um isqueiro de ouro para este monsenhor, um relógio caro para aquele bispo.

Mas as queixas que continuavam a chegar a Roma superavam os presentes caros. Na Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, que age como a polícia do Vaticano em questão de ortodoxia doutrinária e moralidade clerical, a pilha de cartas crescia continuamente. Vinham não apenas de padres e freiras de Chicago, mas também de homens e mulheres dos mais diversos níveis. O Arcebispo Jean Hamer, OP, na direção da Congregação, analisou o problema. Entrar em ação contra um padre é relativamente fácil. Depois da devida investigação, a Congregação recorre ao bispo relevante, solicitando que o padre seja removido da área de controvérsia. Mas a quem recorrer quando a ação proposta é contra o cardeal?

A União dos Padres condenou Cody publicamente e declarou que ele mentia. Acabaram aprovando um voto de censura contra ele, Apesar disso, Roma permaneceu em silêncio,

No inicio de 1976, o Arcebispo Hamer não era o único membro destacado da Cúria Romana que conhecia os problemas que a conexão de Chicago estava causando. Os Cardeais Benelli e Baggio, independentemente a princípio e depois em conjunto, haviam chegado à conclusão de que Cõdy devia ser substituído.

Foi encontrada uma fórmula depois de longas conferências com Paulo VI. Numa das numerosas viagens de Cõdy a Roma, na primavera de 1976, Benelli ofereceu-lhe um posto na Cúria Romana, Ele teria um título maravilhoso, mas absolutamente nenhum poder. Reconhecia-se que Cody era ambicioso e achava que possuía talento para subir além do controle de Chicago. O plano do cardeal era tornar-se Papa. E indicativo da arrogância de Cody o fato de um homem que causara tanta confusão e transtorno em Chicago pensar seriamente que tinha possibilidades de alcançar o Pontificado. Com essa ambição, ele teria o maior prazer em trocar Chicago pelo controle de uma das Congregações da Cúria que distribuíam dinheiro às dioceses necessitadas do mundo inteiro. Cody raciocinou que poderia comprar votos suficientes para ascender ao trono de Roma quando surgisse a oportunidade. Benelli sabia disso e fora o motivo pelo qual oferecera o cargo. Mas não era o que Cody queria. Ele recusou. Era necessário encontrar outra solução.

Em janeiro de 1976, poucos meses antes da confrontação Beneldi Cody, uma delegação de Chicago visitou Jean Jadot, o núncio apostólico em Washington. Jadot informou que Roma estava cuidando da situação. A medida que o ano prosseguia sem qualquer solução, a batalha em Chicago recomeçou. A imagem pública de Cody se tornara a essa altura, tão lamentável que ele contratou uma agência de relações públicas de Chicago, à custa da Igreja, numa tentativa de obter uma cobertura favorável dos meios de comunicação.

Os irados padres e freiras começaram a se queixar outra vez a Jadot em Washington. Ele aconselhou paciência, prometendo:

— Roma encontrará a melhor solução. Mas vocês devem suspender os ataques públicos. Deixem o problema se aquietar. Roma então cuidará de tudo com a discrição necessária,

O clero aceitou as ponderações. As críticas públicas foram atenuadas. Mas logo foram reacendidas pelo próprio Cody, que decidiu fechar diversas escolas da cidade. Baggio aproveitou essa questão para outra tentativa de persuadir o Papa Paulo VI a agir de forma decisiva. O conceito de firmeza do Papai foi escrever uma carta formal a Cody, pedindo uma explicação para o fechamento das escolas. Cody ignorou a carta e gabou-se publicamente por isso.

Em Chicago, impedidos pela inatividade do Vaticano, os oponentes enviaram mais cartas a Roma, Havia novas acusações, apoiadas por depoimentos juramentados, e registros de irregularidades financeiras. Muitas evidências indicavam que o comportamento de Cody em outra área também deixava a desejar. Envolvia a sua amizade com uma mulher chamada Helen Dolan Wilson.

Cody dissera a seu pessoal na Chancelaria que Helen Wilson era sua parente. A natureza exata do parentesco variava; mas, de um modo geral, ela era descrita como prima. A fim de explicar a vida elegantede Helen Wilson, as roupas sempre na última moda, as viagens constantes, o apartamento luxuoso, o cardeal espâlhou que a prima fora deixada "muito bem de vida" pelo falecido marido. As acusações encaminhadas a Romã eram de que Cody e Helen Wilson não tinham qualquer parentesco, que o marido, de quem ela se divorciara há muito tempo, estava vivo na ocasião em que o cardeal o declarara morto e que, ainda por cima, quando o ex-marido morreu, em maio de 1969, não deixou testamento e seu único bem terreno, um carro de oito anos, no valor de 150 dólares, ficou para a segunda esposa.

As acusações, apresentadas a Roma em termos confidenciais, incluíam provas de que a amizade de Cody com Helen Wilson era antiga, ele fizera um seguro de vida no valor de 100 mil dólares indicando-a como beneficiária, e o registro de emprego dela na Chancelaria de Chicago fora falsificado pelo cardeal para permitir-lhe obter uma pensão maior. A pensão se baseava em 24 anos de trabalho para a diocese, o que era comprovadamente falso. Havia também provas de que Cody dera à amiga a quantia de 90 mil dólares, a fim de que ela pudesse comprar uma casa na Flórida. O Vaticano foi lembrado de que Helen Wilson acompanhara Cody a Roma quando ele fora elevado a cardeal, mas a verdade é que muitas outras pessoas integravam a sua comitiva. Ao contrário de Helen Wilson, no entanto, as outras não participavam da direção da diocese de Chicago, não decidiam os móveis e a decoração da residência do cardeal. Foi também alegado que Cody desviara centenas de milhares de dólares dos fundos dá Igreja para essa mulher.

Como se tudo isso não fosse suficiente, as acusações ainda enumeravam as vultosas quantias de seguros diocesanos encaminhadas para David. o filho de Helen. David Wilson começara a se beneficiar com a generosidade de "Tio" John já em St. Louis, em 1963, À medida que o cardeal subia, o negócio de seguros prosperava. Foi alegado que as comissões que David Wilson ganhara, aparentemente monopolizando os seguros da Igreja, controlados por Cody, ultrapassavam os 150 mil dólares.

Baggio estudou cuidadosamente a lista longa e detalhada. Houve investigações. O Vaticano é incomparável no negócio de espionagem. Basta se considerar o número de padres e freiras existentes no mundo, todos devendo fidelidade a Roma. As respostas chegaram ao Cardeal Baggio, confirmando: as acusações eram procedentes. Era agora o final de junho de 1978.

Em julho de 1978, o Cardeal Baggiõ tornou a discutir o problema do Cardeal Cody com o Papa Paulo VI, que acabou aceitando que Cody devia ser substituído. Ele insistiu, porém, que isso devia ser feito com compaixão, de uma maneira que permitisse a Cody manter as aparências. Mais importante ainda, devia ser feito de maneira a evitar qualquer publicidade escandalosa. Ficou combinado que Cody seria informado que devia aceitar uni coadjutor, um bispo que dirigiria a diocese, para todos os efeitos práticos. Oficialmente, seria anunciado que isso acontecia por causa dos problemas de saúde de Cody, que realmente existiam. Cody teria permissão para continuar como titular da diocese de Chicago até alcançar a aposentadoria compulsória, aos 75 anos, em 1982.

Munido com o édito papal, o Cardeal Baggio prontamente articulou sua viagem, fez as malas e seguiu para o Aeroporto Fiumicino, de Roma, Ali chegando, foi informado de que o Papa desejava lhe falar antes que voasse para Chicago.

Paulo mais uma vez voltara atrás. Disse a Baggio que o plano de colocar um coadjutor em Chicago para assumir o poder só poderia ser executado se Cody concordasse, Consternado, Baggio suplicou:

— Posso insistir, Santo Padre?

— Não, não pode. O plano só deve ser executado se Sua Eminência concordar.

Um irado e frustrado Cardeal Baggio voou para Chicago.

As redes de espionagem transmitem as informações para um lado e outro. O Cardeal Cody tinha as suas fontes na Cúria Romana, O elemento surpresa, com que Baggio esperava desconcertar Cody, se perdera um dia antes de sua reunião crucial com o Papa. Cody estava pronto e esperando.

A maioria dos homens na situação de Cody se submeteria a uma pequena auto-análise, talvez uma consideração dos acontecimentos que, ao longo dos anos, haviam levado aquele Papa tão relutante à conclusão angustiante de que o poder que o cardeal de Chicago detinha, no interesse de todos, devia ser entregue a outro. Sempre atencioso com os sentimentos do homem que desejava substituir, o Papa até providenciara para que o motivo da viagem de Baggio a Chicago fosse um segredo. Oficialmente, ele estava seguindo para o México, a fim de cuidar das providências finais para a Conferência de Puebla. Mas o Cardeal Cody em nenhum momento levou em consideração esses melindres.

A confrontação ocorreu na residência do cardeal, na área do seminário em Muridelein. Baggio apresentou as provas. Mostrou que, ao dar presentes em dinheiro a Helen Wilson, o cardeal incluira quantias que pertenciam à Igreja. Além disso, a pensão que concedera à sua amiga era indevida. A investigação do Vaticano revelara uma variedade de inconveniências, que certamente acarretariam descrédito para a Igreja Católica, se chegassem ao conhecimento público.

Cody estava longe de se mostrar arrependido, enquanto a confrontação rapidamente evoluia para uma discussão aos gritos. Pôs-se a falar de suas vultosas contribuições a Romã, todo o dinheiro que despejara no Banco do Vaticano para ser usado na Polônia, as doações que fizera ao Papa durante as suas visitas ad limina (as visitas e relatórios obrigatórios a cada cinco anos)... não os míseros poucos milhares de dólares que os outros levavam, mas centenas de milhares de dólares. Por toda a área do seminário podia-se ouvir os gritos dos dois Príncipes da Igreja. Cody se manteve intransigente. Outro bispo só dirigiria a diocese "por cima do meu cadáver". Ao final, como uma agulha enguiçada num disco, ele só podia pronunciar insistentemente uma única frase:

— Não renunciarei ao poder em Chicago.

Baggio foi embora, temporariamente derrotado. Um Cody desafiante, que se recusava a aceitar um coadjutor, era uma total violação das leis canônicas. Mas era inconcebível para Paulo que o público soubesse que o cardeal de uma das mais poderosas dioceses do mundo estava desafiando abertamente a autoridade papal. O Papa toleraria Cõdy até o final de seus dias, ao invés de suportar a alternativa. Para Paulo, os dias de tolerância forarri poucos. Uma semana depois de receber o relatório de Baggio, o Papa Paulo VI morreu.

Em meados de setembro, Albino Luciani já estudara em profundidade o problema de Cody. Reuniu-se com o Cardeal Baggio e discutiu o assunto. Falou das implicações da crise com Villot, Benelli, Felici e

Casaroli. A 23 de setembro, teve outra reunião longa com o Cardeal Baggio. Ao final, comunicou a Baggio que lhe falaria de uma decisão nos próximos dias.

Em Chicago, pela primeira vez em sua longa e turbulenta história, o Cardeal Cody começou a sentir-se vulnerável. Depois do Conclave, ele partícularmente não dera a menor importância ao italiano tranquilo que sucedera a Paulo.

— Tudo continuará a mesma coisa — declarara Cody a um dos seus amigos íntimos na Cúria.

Era justamente o que Cõdy queria, pois assim continuaria a mandar e desmandar em Chicago. Agora, no entanto, as notícias de Roma indicavam que ele subestimara seriamente o novo Papa. A medida que setembro de 1978 se aproximava do fim, John Cody convenceu-se de que Luciani agiria onde Paulo permanecera inativo. Os amigos de Cody informaram-no que o novo Papa, com toda certeza, levaria sua decisão até o fim, qualquer que fosse. Citaram muitos exemplos da vida de Luciani que revelavam uma excepcional força interior.

Na mesa de trabalho de Luciani estava um dos poucos bens pessoais que ele estimava. Uma fotografia. Originalmente se encontrava numa moldura velha e escalavrada, Durante a sua permanência em Veneza, um paroquiano agradecido mandara remontar a fotografia numa moldura de prata, cravejada com pedras semipreciosas. A fotografia era dos pais, tendo ao fundo as Dolomitas, cobertas de neve. Nos braços da mãe estava a bebê Pia, agora uma mulher casada, com seus próprios filhos. Durante o mês de setembro de 1978, seus secretários observaram que o Papa, em diversas ocasiões, parecia perdido em pensamentos, enquanto contemplava a fotografia. Era uma lembrança de tempos mais felizes, quando homens como Cody, Marcinkus, Calvi e os outros não perturbavam sua tranquilidade. Houvera então tempo para o silêncio e para pequenas coisas. Agora, Luciani tinha a impressão de que nunca encontrava tempo suficiente para os aspectos mais importantes de sua vida. Estava isolado de Canale e até mesmo de sua família. Ainda conversava ocasionalmente pelo telefone com Edoardo e Pia, mas as visitas inesperadas haviam acabado para sempre. A máquina do Vaticano cuidava disso. Até mesmo Diego Lorenzi tentava afastar Pia quando ela telefonava. Ela queria levar alguns pequenos presentes, lembranças do norte.

— Deixe no portão — disse Lorenzi. — O Papa está muito ocupado para recebê-la.

Luciani ouviu essa conversa e pegou o telefone.

— Venha me visitar, Não tenho tempo, é verdade, mas darei um jeito.

Almoçaram juntos. Tio Albino gozava de excelente saúde e parecia muito animado. Durante a refeição, comentou seu novo papel:

— Se soubesse que um dia me tornaria Papa, eu teria estudado mais. E muito difícil ser Papa.

Pia compreendia como o trabalho podia ser árduo e difícil, e tudo agravado pela obstinação da Cúria. Luciani desejava tratar Roma como sua nova paróquia, passeando pelas ruas como costumava fazer em Veneza e suas outras dioceses. Mas havia problemas para um Chefe de Estado se comportar assim. A Cúria declarou categoricamente que a idéia não apenas era inconcebível, mas também inexeqúivel. A cidade mergulharia num caos constante se o Santo Padre saísse a perambular pelas ruas. Luciani abandonou a idéia, mas apenas por uma versão modificada. Comunicou aos homens do Vaticano que desejava visitar todos os hospitais, igrejas e centros de refugiados em Roma, gradativamente conhecendo e circulando por todos os setores do que considerava a sua paróquia. Para um homem determinado a ser um Papa pastoral, a realidade em sua porta constituía um poderoso desafio.

Roma possui uma população católica de dois milhões e meio de habitantes. Deveria estar produzindo pelo menos 70 novos padres por ano. Quando Luciani tornou-se Papa, produzia apenas seis. A vida religiosa de Roma era mantida pela importação de clérigos. Muitas partes da cidade eram na verdade pagãs, com o comparecimento às igrejas sendo inferior a três por cento da população. Ali, no coração da fé, o ceticismo era grande.

A cidade que se tornara agora o lar de Albino Luciani também abrigava o prefeito comunista Cardo Argan, um prefeito comunista numa cidade em que o maior produto é a religião e cuja indústria só encontra equivalente no índice de criminalidade, Um dos novos títulos que Luciani adquirira era o de Bispo de Roma, uma cidade que não contava com um bispo, no mesmo sentido de Milão, Veneza, Florença ou Nápoles, há mais de um século. E isso transparecia.

Enquanto Pia almoçava com o Papa, Dom Diego estava envolvido numa discussão prolongada com um elemento da Cúria, que se recusava a sequer considerar o desejo papal de visitar diversas partes de Roma. Luciani interrompeu a conversa com Pia para dizer a seu secretário:

— Diga a ele que tem de ser feito, Dom Diego. Diga que o Papa assim deseja.

Lorenzi transmitiu a determinação papal, mas a recusa persistiu. Virando-se para o Papa, ele informou:

— Eles dizem que nâo é possível, Santo Padre, porque nunca foi feito antes.

Pia observava, fascinada, enquanto prosseguia a partida de tênis do Vaticano, Luciani acabou pedindo desculpas à sobrinha pela interrupção e disse a seu secretário que daria as instruções necessárias a Villot. E acrescentou para Pia, sorrindo:

— Se a Cúria Romana permitir, seu tio espera visitar o Líbano antes do Natal.

Ele discorreu longamente sobre aquele país conturbado e seu desejo de interferir antes que o barril de pólvora explodisse. Depois do almoço, quando a sobrinha estava de partida. Luciani insistiu em lhe dar de presente uma medalha que ganhara da mãe do Presidente do México. Poucos dias depois, a 15 de setembro, recebeu o irmão Edoardo para jantar. Essas duas reuniões familiares estavam destinadas a ser as últimas que Albino Luciani teria.

Enquanto o Pontificado de Albino Luciani prosseguia, aumentava o abismo entre o papa e os observadores profissionais do Vaticano, na proporção direta em que se tornavam mais estreitos os laços e relacionamentos entre o novo Papa e o público em geral. A perplexidade dos profissionais era compreensível.

Confrontados com um cardeal não-curial, que aparentemente carecia de reputação internacional, os profissionais concluíram que observavam o primeiro de uma nova espécie de Papa, um homem deliberadamente escolhido para garantir que houvesse uma redução de poder, um papel menos significativo para o Pontificado. Não pode haver muita dúvida de que o próprio Luciani encarava o seu papel nesses termos reduzidos. O problema essencial nessa visão de um Pontificado menos significativo era o próprio homem. A essência de Albino Luciani, sua personalidade, inteligência e talentos extraordinários fizeram com que o público em geral conferisse ao novo Papa uma posição de maior importância, aceitando o que ele tinha a dizer como algo de significado mais profundo. A reação pública a Luciani demonstrava claramente uma necessidade profunda de uma atuação papal ampliada, exatamente o inverso do que tencionavam muitôs cardeais. Quanto mais Luciani se mostrava humilde, mais exaltado se tomava para os fiéis.

Muitos que só haviam conhecido Luciani em seus dias em Veneza estavam profundamente surpresos com o que consideravam a mudança no homem. Em Vittorio Veneto, Belluno e Canale, no entanto, não houve qualquer surpresa. Aquele era o verdadeiro Albino Luciani. A simplicidade, o senso de humor, a ênfase no catecismo.., esses eram os elementos integrantes do homem.

A 26 de setembro, Luciani podia olhar para trás e contemplar com satisfação o seu primeiro mês no novo cargo. Fora um mês repleto de impactos poderosos. Suas investigações sobre atividades corruptas e desonestas lançaram os responsáveis no medo mais profundo. Sua impaciência com a pomposidade da Cúria causara indignação. Em diversas ocasiões, ele abandonara os.discursos escritos oficialmente e se queixara em público:

— O estilo é curial demais.

Ou comentava:

— Está untuoso demais.

A Rádio Vaticano e o Osservatore Romano raramente reproduziam as suas palavras literalmente, mas o público as ouvia e o mesmo acontecia com outros meios de comunicação. Tomando emprestada uma frase de São Gregório, o Papa comentou que, ao elegê-lo, "o imperador queria um macaco para se transformar em leão". Lábios se contraíram no Vaticano, enquanto bocas se abriam em sorriso pelo público. Ali estava um "macaco" que, no transcorrer de seu primeiro mês de Pontificado, falara-lhes em latim, italiano, francês, inglês, alemão e espanhol. Como Winston Churchill poderia ter comentado, "que macaco!"

A 7 de setembro, durante uma audiência particular com Vittore Branca, às 8:00 da manhã, um horário que causou consternação na Cúria, o amigo manifestou sua preocupação pelo peso do Pontificado.

Ao que Luciani respondeu:

É verdade, claro que sou muito pequeno para grandes coisas. Só posso repetir a verdade e o chamado Evangelho, como fazia na igrejinha da minha terra. Basicamente, os homens precisam disso. Sou o guardião das almas, acima de tudo. Entre o padre da paróquia de Canale e mim só há diferença no número de fiéis. A missão, no entanto, é a mesma: lembrar Cristo e sua palavra.

Mais tarde, nesse mesmo dia, reunido com todos os padres de Roma, ele falou da necessidade de meditação. Suas palavras têm um significado profundamente pungente quando se considera quão pouco tempo e espaço um novo Papa dispõe para meditação.

Fiquei comovido na estação ferroviária de Milão ao ver um carregador dormindo na maior felicidade, com a cabeça num saco de carvão e as costas numa pilastra. Os trens apitavam ão partirem, as rodas guinchavam ao chegarem. Os altofalantes constantemente interrompiam. As pessoas passavam ruidosamente. Mas o homem continuava a dormir e parecia dizer: "Façam o que devem, mas eu preciso de alguma paz. Nós, sacerdotes, devemos fazer a mesma coisa. Há um movimento contínuo ao nosso redor. Pessoas falando, jornais, emissoras de rádio e televisão. Com a disciplina e moderação de sacerdotes, devemos dizer: "Além de determinados limites, vocês não existem para mim. Sou um sacerdote do Senhor. Preciso de um pouco de silêncio para a minha alma. Eu me distancio de vocês para estar com meu Deus por algum tempo."

O Vaticano registrava os seus discursos nas audiências gerais, quando ele falou, em sucessivas quartas-feiras, em Fé, Esperança e Caridade. Mas a súplica de Luciani para que essas virtudes fossem demonstradas, por exemplo, em relação aos viciados em tóxicos, foi ignorada pela Cúria, que controlava os meios de comunicação do Vaticano.

A 20 de setembro, quando ele pronunciou a frase memorável que era errado acreditar Ubi Lenin, ibi Jerusalem (Onde Lenin está, há Jerusalém), a Cúria anunciou que o Papa estava rejeitando a "teologia da libertação". Não estava. Além disso, a Rádio Vaticano e o Osservatore Romano deixaram de registrar a qualificação importante de Luciani, de que entre a Igreja e a salvação religiosa, por um lado, e o mundo e a salvação humana, por outro, "há alguma coincidência, mas não podemos fazer uma equação perfeita".

No dia 23 de setembro, um sábado, a investigação de Luciani sobre o Vaticano S. A. estava bastante adiantada, Villot, Benelli e outros haviam fornecido relatórios sobre os quais o Papa meditara, Nesse dia, ele deixou o Vaticano pela primeira vez, a fim de tomar posse de sua catedral como o Bispo de Roma. Apertou a mão do Prefeito de Roma, Argan, trocaram discursos. Depois da missa que se seguiu, com a maioria da Cuna presente, o Papa abordou por diversas vezes os problemas intemos com que se defrontava. Referindo-se aos pobres, o setor da população que mais falava ao seu coração, Luciani disse:

Como afirmou o diácono romano Lawrence, esses são os verdadeiros tesouros da Igreja. Mas devem ser ajudados por aqueles que podem, pelos que têm mais e são mais, sem serem humilhados e ofendidos pelas riquezas ostensivas, pelo dinheiro esbanjado em coisas inúteis e não investido em empreendimentos que beneficiem a todos, na medida do possível.

Mais adiante, no mesmo discurso, ele virou-se e olhou diretamente para os homens do Banco do Vaticano, reunidos a um lado, passando a falar sobre as dificuldades de guiar e governar.

Embora tenha sido bispo de Vittorio Veneto e em Veneza por mais de 20 anos, reconheço que não aprendi o trabalho muito bem. Em Roma, eu me colocarei na escola de São Gregório, o Grande, que escreveu que (o pastor) deve, com compaixão, estar próximo de cada um que lhe está sujeito; independente de seu posto, deve se considerar no mesmo nível que o rebanho, mas sem temer exercitar os direitos de sua autoridade contra os iníquos...

Sem conhecimento do que acontecia no Vaticano, o público limitou-se a assentir sabiamente. Mas a Cúria sabia exatamente a que o Papa se referia. Era um pronunciamento elegante e indireto, ao melhor estilo do Vaticano, sobre os eventos futuros.

As mudanças pairavam no ar, e na aldeia do Vaticano havia especulações frenéticas. O Bispo Marcinkus e pelo menos dois de seus assessores mais chegados, Mennini e De Strobel, estavam para cair. Isso era considerado um fato inevitável. O que mais agitava as mentes curiais era que havia também rumores de outras substituições.

No domingo, 25 de setembro, um visitante particular dos aposentos papais foi identificado por um monsenhor atento como sendo Lino Marconato. O excitamento na aldeia alcançou um novo auge. Marconato era diretor do Banco San Marco. Sua presença nos aposentos papais indicava que já fora encontrado um sucessor para o Banco Ambrosiano?

Na verdade, porém, a reunião foi sobre questões bancárias menos exóticas. O Banco San Marco tomara-se o banco oficial da diocese de Veneza depois que Luciani, furioso, encerrara todas as contas no Banca Cattolica Veneto. Agora, Luciani precisava encerrar suas contas pessoais no San Marco, sabendo que nunca mais voltaria a residir naquela cidade. Marconato encontrou o seu quase ex-cliente na melhor saúde. Conversaram cordialmente sobre Veneza, Luciani deu instruções para que o dinheiro em sua conta de Patriarca fosse transferido para o seu sucessor.

A preocupação com as mudanças iminentes era intensa. Em muitas cidades. Por muitas pessoas.

Outro que tinha um interesse velado no que Luciani podia estar prestes a fazer era Michele Sindona. A batalha de quatro anos de Sindona pára evitar a extradição dos Estados Unidos para a Itália encaminhava-se para o climax em setembro de 1978. Pouco antes, em maio desse mesmo ano, um juiz federal americano decidira que o siciliano, que se tornara cidadão suíço, deveria ser recambiado a Milão, a fim de enfrentar o julgamento pelo que fizera. Em sua ausência, Sindona fora condenado a três anos e meio de prisão, mas sabia que essa sentença pareceria clemente depois que os tribunais italianos acabassem com ele. Apesar da investigação federal, ele ainda se achava livre de qualquer acusação nos Estados Unidos. O colapso do Franklin Bank fora seguido pela prisão de diversos homens, sob várias acusaçoes, mas em setembro de 1978 O Tubarão permanecia incólume. Seu maior problema na ocasião estava na Itália.

A bateria de advogados de um milhão de dólares persuadira os tribunais americanos a não decretarem a extradição, até que os procuradores federais provassem que havia provas concretas contra Sindona das diversas acusações formuladas em Milão.

De maio em diante, os procuradores se empenhavam ao máximo para obter essas provas. Sindona, ajudado pela Máfia e por seus companheiros da P2, empenhava-se com igual afinco para dar um sumiço nas provas. Quando setembro de 1978 se aproximava do fim, ele ainda tinha muitos "problemas".

O primeiro era o depoimento prestado no processo de extradição por uma testemunha, Nicola Biase, um antigo empregado de Sindona. Seu depoimento era considerado perigoso. Sindona procurou tomá-lo seguro". Discutiu o problema com a farmília mafiosa Gambino e um pequeno contrato foi fechado. Não chegava a ser particularmente sinistro: Biase, a mulher, a família e seu advogado seriam ameaçados de morte. Se sucumbissem à ameaça e Biase refutasse o depoimento, tudo ficaria por aí. Mas se Biase se recusasse a cooperar com a Máfia, então a família Gambino e Sindona planejavam "revisar" a situação. O que não pressagiava nada de bom para a saúde de Biase. O contrato de menos de mil dólares seria trocado por outro mais condizente. Luigi Ronsisvaíle e Bruce McDowall foram os escolhidos para executar o contrato. Ronsisvaíle é um assassino profissional.

Outro contrato também foi discutido com Ronsisvaíle, A Máfia informou-o que Michele Sindona queria a morte do promotor federal John Kenney.

Nada demonstra tão claramente a mentalidade de Michele Sindona quanto o contrato para liquidar John Kenney. O promotor que atuava no processo de extradição, era o homem que comandava a pressão do governo americano para acabar com a permanência de Sindona nos Estados Unidos. Sindona estava convencido de que o problema terminaria se Kenney fosse eliminado. Funcionaria como uma advertência ao governo de que ele, Michele Sindona, não admitia mais a pressão. A investigação seria suspensa. Não haveria mais irritantes comparecimentos ao tribunal, não haveria mais tentativas absurdas para enviá-lo de volta à Itália, O processo de pensamento neste caso é cem por cento da Máfia siciliana. E uma filosofia que funciona repetidamente na Itália. Faz parte essencial da Solução Italiana. As autoridades podem ser intimidadas e de fato o são. Os investigadores que substituem um colega assassinado não se mostram tão ansiosos em esclarecer um caso. Sindona raciocinou que qualquer coisa que funcionava em Palermo também daria certo em Nova York.

Luigi Ronsisvaíle, embora fosse um assassino profissional, relutou em aceitar o contrato. O pagamento de 100 mil dólares era ótimo, mas Ronsisvaíle. compreendendo o sistema americano muito mais do que Sindona, achava que não teria qualquer oportunidade de gastá-lo. Se Kenney fosse assassinado, haveria ondas, a repercussão seria tremenda. Ronsisvaíle começou a procurar alguém, por conta da família Gambino, que julgasse ter possibilidades de sobrevivência depois de assassinar um promotor federal americano.

Sindona e seus associados concentraram-se no problema seguinte, Cardo Bordoni, ex-associado nos negócios e amigo intimo de Sindona. Bordorti já enfrentava diversas acusações pela falência do Franklin Bank. Poderia aceitar um acordo para redução de sua pena, em troca de um depoimento fatal contra O Tubarão. Ficou decidido que o tratamento previsto para Nicola Biase, sua família e seu advogado seria também aplicado a Carlo Bordoni.

Os problemas restantes de Sindona estavam na Itália, especialmente no Vaticano. Se Marcinkus caísse, Calvi também estaria perdido. Se Calvi afundasse, Sindona também seria arrastado. A luta de quatro anos para evitar a extradição seria encerrada com a sua derrota. Um homem que julgava ser possível resolver seus problemas nos Estados Unidos com o assassinato de um promotor federal não pensaria que a grande ameaça com que se defrontava na Itália poderia ser eliminada com a morte de um Papa?

Sindona, Calvi, Marcinkus e o Cardeal Cody: a 28 de setembro de 1978, todos esses homens seriam destruidos se Albino Luciani resolvesse prosseguir nos cursos de ação que já indicara. Outros que seriam diretamente afetados: Licio Gelli e Umberto Ortolani, para esses lideres da P2 perder Calvi seria para a Loja Maçônica perder seu pagador. Em 28 de setembro, um outro nome foi acrescentado aos que seriam seriamente afetados pelas ações propostas por Luciani. O novo nome era o do Cardeal Jean Villot, Secretário de Estado do Vaticano.

Na manhã de 28 de setembro, depois de tomar café com leite e comer um croissant, Luciani já estava á sua mesa de trabalho antes das oito horas da manhã; Havia muito o que fazer.

O primeiro problema que ele enfrentou foi o Osservatore Romano. Durante o mês anterior, ele tivera motivos para se queixar do jornal em diversas ocasiões. Depois de vencida a batalha inicial contra o uso do real "nós", com que o jornal insistia em substituir o uso mais humilde da primeira pessoa do singular pelo Papa, cada nova edição diária proporcionava mais motivos de irritação para Luciani. O jornal aderia rigorosamente aos discursos escritos pela Cúria e ignorava os comentários pessoais que o Papa acrescentava. Até mesmo se queixava quando jornalistas italianos reproduziam acuradamente o que o Papa dissera, em vez de se limitarem ao que o Osservatore Romano achava que ele deveria ter dito. Havia agora novos problemas, de natureza muito mais séria.

Diversos cardeais da Cúria descobriram, horrorizados, que pouco antes do Conclave, Albino Luciani fora entrevistado a respeito do nascimento de Louise Brown, conhecida como "primeiro bebê de proveta". A entrevista se realizara três dias antes da morte do Papa Paulo VI, mas suas opiniões só se tornaram geralmente conhecidas depois que a matéria saiu em Prospettive nel Mondo, depois da eleição. Os partidários da linha dura na questão do controle da natalidade ficaram consternados ao lerem as opiniões do homem que era agora o Papa.

Luciani começara cautelosamente, deixando bem claro que estava expressando apenas a sua opinião pessoal, já que, como todo mundo "esperava para saber quais seriam os autênticos ensinamentos da Igreja depois que os experts fossem consultados".. Os eventos subsequentes criaram uma situação em que os ensinamentos autênticos da Igreja, naquele ou em qualquer outro assunto, estavam totalmente dentro da competência de Luciani.

Na entrevista, Luciani manifestou um entusiasmo comedido pelo nascimento. Estava preocupado com a possibilidade de "fábricas de bebês", uma apreensão profética, tendo em vista os acontecimentos atuais na Califórnia, onde mulheres fazem filas para serem fecundadas pelo esperma de ganhadores do Prêmio Nobel.

Numa mensagem pessoal aos pais de Louise Brown, Albino Luciani disse:

Seguindo o exemplo de Deus, que deseja e ama a vida humana, eu também envio os meus melhores votos de felicidades para a criança. Quanto aos pais, não tenho o direito de condená-los; subjetivamente, se agiram com boas intenções e de boa fé, talvez até tenham um grande mérito aos Qlhõs de Deus pelo que decidiram e pediram aos médicos que fizessem.

Depois, ele chamou a atenção para um pronunciamento de Pio XII, que poderia pôr o ato de fecundação artificial em conflito com a Igreja. Considerando a opinião de que cada individuo tem o direito de escolher por si mesmo, manifestou uma posição que estava na própria essência de sua atitude em relação a muitos problemas morais:

Concordo que a consciência individual deve ser sempre seguida, quer ordene ou proíba; o indivíduo, porém, deve sempre procurar desenvolver uma consciência bem formada.

Os setores do Vaticano que acreditam que a única consciência bem formada é aquela moldada exclusivamente por eles começaram a se pronunciar. Houve reuniões secretas. Os que compareciam a essas reuniões achavam que era evidente que se precisava deter Luciani. Falaram da "traição a Paulo", o que para certas mentes romanas refinadas é uma maneira elegante de dizer "Eu discordo".

Quando notícias do cauteloso diálogo entre a Secretaria de Estado do Vaticano e o Departamento de Estado americano começaram a vazar, esse grupo resolveu entrar em ação. A informação subsequente de que uma delegação americana envolvida com o controle da natalidade teria uma audiência com o Papa acrescentou uma urgência adicional aos homens no Vaticano que consideravam que a Humanae Vitae deveria ser a última palavra sobre o assunto.

A 27 de setembro, apareceu na primeira página do Osservatore Romano um longo artigo intitulado "Humanae Vitae e a Moral Católica". Era do Cardeal Luigi Ciappi, OP, teólogo do círculo papal. O Cardeal Ciappi fora o teólogo pessoal de Paulo VI e Pio XII. Com um autor assim, o artigo parecia ter a aprovação pessoal do novo Papa. Fora publicado antes em Laterano, para "celebrar" o 10° aniversário da Humanae Vitae. Sua republicação era uma tentativa deliberada de bloquear qualquer mudança na questão do controle da natalidade que Albino Luciani pudesse desejar. O artigo é uma sucessão de louvores à Humanae Vitae. Há muitas citações de Paulo VI, mas nenhuma palavra de Luciani confirmando que partilhava as opiniões de Paulo ou Ciappi. O motivo para isso é simples, Ciappi não discutira o artigo com Luciani. Na verdade, a 27 de setembro de 1978, o Cardeal Ciappi ainda aguardava uma audiência particular com a novo Papa. Luciani só tomou conhecimento do longo artigo e das opiniões que continha quando o leu no jornal. Na segunda página, ele encontrou outro esforço dá Cúria para solapar a sua posição: mais um artigo, em três colunas, intitulado "O Risco da Manipulação na Criação da Vida". Era uma condenação dogmática da "bebê de proveta" Louise Brown e de toda fertilização artificial.

Também não continha qualquer referência a Luciani. A Cúria sabia muito bem que, apesar de todas as alegações do Osservatore Romano de ser apenas semi-oficial, tais artigos seriam encarados pelo mundo como sendo posições do novo Papa. A batalha começara abertamente,

A 28 de setembro, pouco depois de oito horas da manhã, o Papa telefonou para seu Secretário de Estado, Jean Villot. Exigiu uma explicação completa sobre a publicação dos dois artigos. Telefonou depois para o Cardeal Felici, em Pádua, onde faria retiro espiritual.

Luciani passara a usar Felici, cada vez mais, como uma caixa de ressonância para suas idéias. Sabia que suas opiniões divergiam em muitas coisas, mas sabia também que Felici reagiria com absoluta franqueza e honestidade. O Papa estava igualmente consciente de que poucos conheciam tanto quaonto Felici, como Decano do Sacro Colégio, as maquinações da Cúria.

Luciani manifestou a sua irritação pelos dois artigos e depois disse:

— Lembra-se que há alguns dias avisou-me de que a Cúria desejava conter minha exuberância natural?

— Foi apenas um palpite, Santidade.

— Talvez possa fazer a gentileza de retribuir o cumprimento em seu nome. Avise ao pessoal desse jornaízinho para conter suas opiniões sobre essas questões. Os editores são como os Papas. Nenhum deles é indispensável.

Depois de marcar um encontro com Felici para mais- tarde, naquele mesmo dia, Luciani passou ao problema seguinte, a Igreja da Holanda. Cinco dos sete bispos holandeses planejavam assumir uma posição moderada nas questões do aborto, homossexualismo e o emprego de padres casados. Entre os cinco estava o Cardeal Willebrands, o homem que oferecera palavras de conforto a Luciani durante o Conclave. Os cinco tinham a oposição de dois bispos extremamente conservadores, Gijsens, de Roermond, e Simonis, de Rotterdam. Uma reunião na Holanda, em novembro de 1978, prometia ser o campo de batalha que revelaria as divisões profundas ao público holandês. Havia um outro problema, que fora exposto num relatório detalhado ao falecido Papa Paulo VI.

Os jesuítas moviam uma campanha contra o teólogo e professor dominicano Edward Schillebeeckx, famoso no mundo inteiro. Como acontecia com seu contemporâneo suíço Hans Kung, os conservadores desejavam silenciar o que lhes parecia ser as idéias radicais de Schillebeeckx, O temido Index dos Livros Proibidos fora abolido por Paulo VI. Sua morte deixara sem solução o problema de como a Igreja Católica controlaria seus pensadores avançados. No passado, Luciani tomara emprestada uma frase de Hans Kung para condenar os "teólogos de tocaia". Mas esse não era o caso de homens como Kung e Schillebeeckx, que manifestavam apenas um profundo desejo de levar a Igreja de volta a suas origens, uma posição que Albino Luciani aprovava plenamente. Poucos minutos antes das dez horas, Luciani pôs o relatório para o lado e se concentrou em aspectos mais felizes de seu cargo. Uma série de audiências.

Receberia primeiro um grupo que incluia o homem que Luciani promovera à presidência do Cor Unum, Cardeal Bernard Gantin, O Papa ficou radiante com a presença forte e juvenil de Gantin, que na sua opinião representava o futuro da Igreja. Durante a conversa, Luciani comentou:

— E apenas Jesus Cristo que devemos oferecer ao mundo. Além disso, não teríamos razão nem propósito, nunca seríamos escutados.

Outro que teve uma audiência naquela manhã foi Henri de Riedmatten. Quando circularam por Roma, pouco depois do Conclave, notícias de que Luciani escrevera ao Papa Paulo, antes da Humanae Vitae, exortando-o a não confirmar a proibição á anticoncepçáo artificial, fora Riedmatten quem classificara tais rumores de "total fantasia". Sua conversa com o Papa a 28 de setembro foi sobre o seu trabalho como secretário de Cor Unum, mas Luciani advertiu-o a não se precipitar a outras "negativas".

— Meu relatório sobre o controle da natalidade não chegou ao seu conhecimento?

Riedmatten murmurou algumas palavras sobre uma possível confusão.

— Deve-se tomar cuidado, Padre Riedmâtten, para não se manifestar publicamente até que toda a confusão esteja esclarecida. Caso precise de uma cópia do meu relatório, tenho certeza de que se pode providenciar.

Riedmatten agradeceu ao Papa profusamerite. E manteve um silêncio sensato a partir daí, enquanto Luciani discutia os problemas do Líbano com o Cardeal Gantin. Ele informou a Gantin que no dia anterior conversara sobre a projetada visita ao Líbano com o Patriarca Hakin, cuja diocese de rito greco-melquita se estendia não apenas pelo Líbano invadido, mas também pela Síria invasora.

Luciani também recebeu em audiência naquela manhã um grupo de bispos das Filipinas, que fazia a suá visita ad limina. Diante de homens que tinham de enfrentar a realidade cotidiana do Presidente Marcos, Luciani falou de um assunto no fundo de seu coração: a evangelização. Perfeitamente consciente das dificuldades que aqueles homens defrontariam se falasse diretamente contra o Presidente Marcos, o Papa preferiu em vez disso discorrer sobre a importância da evangelização. Lembrou-lhes a visita do Papa Paulo ás Filipinas e disse:

Num momento em que ele resolveu falar sobre os pobres, sobre justiça e paz, direitos humanos, libertação econômica e social, num momento em que ele empenhou a Igreja efetivamente no esforço para atenuar a miséria, não permaneceu e não podia permanecer em silêncio em relação ao "bem maior", que é a plenitude da vida no Reino do Céu.

A mensagem foi claramente compreendida, não apenas pelos bispos, mas também pela família Marcos.

Depois das audiências matutinas, Luciani teve uma reunião com o Cardeal Baggio. Chegara a diversas decisões e agora estava prestes a transmitir duas delas a Baggio.

A primeira era sobre o problema do Cardeal John Cody, de Chicago. Depois de avaliar todos os fatos, Luciani decidira que Cody devia ser afastado, Ele esperava que isso se efetuasse à maneira clássica do Vaticano, sem qualquer publicidade desagradável. Ele disse a Baggio que Cody deveria receber a oportunidade de renunciar por motivos de saúde. Isso não acarretaria comentários adversos da imprensa, porque a saúde de Cody não estava mesmo muito boa, Se Cody se recusasse a renunciar, ao invés de sofrer o tumulto público de um afastamento contra a sua vontade, um coadjutor seria designado. Outro bispo seria escolhido para assumir todo o poder efetivo e dirigir a diocese. Luciani tinha certeza de que, confrontado com essa alternativa, Cody optaria por se retirar com toda dignidade. Se insistisse em continuar, então não haveria outro jeito. Seria destituído de toda e qualquer responsabilidade. Luciani foi bastante claro e objetivo. Não se tratava de um pedido, uma mera sugestão. Um coadjutor seria nomeado se Cody não quisesse sair.

Baggio ficou na maior satisfação, pois o problema finalmente se resolvia. Mas não ficou tão satisfeito com a decisão seguinte que Luciani anunciou. Veneza estava sem um Patriarca. O Papa ofereceu o posto a Baggio.

Muitos homens se sentiriam honrados com tal oferecimento, Mas isso não aconteceu com Baggio. Ficou furioso. Achava que seu futuro, a curto prazo, estava em dominar a Conferência de Puebla, no México, Acreditava que o futuro da Igreja se encontrava no Terceiro Mundo. A longo prazo, seu lugar era em Roma, o centro da ação. Em Veneza, estaria fora de vista e, o que era ainda mais importante, fora dos pensamentos, quando chegasse o momento de formular os planos futuros. A sua recusa em aceitar Veneza surpreendeu Luciani. A obediência ao Papa e ao Pontificado fora incutida em Luciani desde os seus primeiros dias no seminário em Feltre. A obediência que ele adquirira fora de uma natureza incontestável. Ao longo dos anos, à medida que sua carreira progredia, passara a questionar as decisões papais, especialmente nas questões do Vaticano S.A. e da Humanae Vitae, Mas seria inconcebível para Luciani liderar uma rebelião publicamente, mesmo em questões tão importantes. Aquele era o homem que, a pedido de Paulo, escrevera diversos artigos em apoio à linha papal; ao escrever um desses artigos, sobre o divórcio, entregara-o a seu secretário, Padre Mario Senigaglia, com o seguinte comentário:

— Tenho certeza de que isto me criará muitas dores de cabeça quando for publicado, mas o Papa pediu.

Recusar um pedido do Papa, da maneira arrogante como Baggio agora o fazia, era algo inadmissível. Os dois homens tinham noções de Valores completamente diferentes. Luciani considerava o que era melhor para a Igreja Católica. Baggio considerava o que era melhor Para Baggio.

Havia diversos motivos para que o Papa concluísse que Baggio devia ser transferido de Romã para Veneza. Um deles era um nome na lista de maçons que Luciani recebera: Baggio, nome maçônico Seba, número de Loja 85/2640. Registrado a 14 de agosto de 1957.

Luciani fizera mais indagações depois de sua conversa com o Cardeal Felici. Um comentário de Felici o preocupara:

— Alguns da lista são mesmo maçons, outros não.

O problema de Luciani era distinguir os genuínos dos falsos. As investigações ajudaram a produzir alguns esclarecimentos.

O encontro entre Baggio e Luciani foi-me descrito como "uma discussão muito violenta, com toda a violência e ira derivando inteiramente de Sua Eminência, enquanto o Santo Padre permanecia calmo".

Calmo ou não, Luciani tinha um problema sem solução na hora do almoço. Veneza continuava sem um Patriarca e Baggio insistia em que seu lugar era em Roma. Um pensativo Luciani começou a tomar sua sopa.

O veranico que Roma vinha desfrutando desde o início do mês foi substituido por um tempo mais frio naquela quinta-feira. Depois de uma breve sesta, Luciani resolveu confinar seu exercício diário a andar internamente, Começou a perambulâr pelos corredores. O Papa voltou a seu gabinete às 15:30 e deu diversos telefonemas. Conversou com o Cardeal Felici em Pádua e com o Cardeal Benelli em Florença. Discutiu os acontecimentos da manhã, inclusive a confrontação com Baggio, depois falou de sua reunião seguinte, que seria com Villot. As diversas decisões a que Luciani chegara estavam prestes a ser transmitidas ao Secretário de Estado,

Luciani e Villot sentaram a tomar um chá de camomila. Numa tentativa de se aproximar mais de seu Secretário de Estado, o Papa de vez em quando conversava com Villot em francês, durante as suas constantes reuniões. Era um gesto que o cardeal de Si. AmandeTaílende apreciava. Ficara impressionado com a rapidez com que Luciani assumira o Pontificado. A notícia transpirara da Secretaria de Estado para diversos amigos e antigos colegas de Luciani. Monsenhor Da Rif, ainda trabalhando em Vittorio Veneto, foi um dos muitos que receberam um relatório de progresso.

Do Cardeal Villot para baixo, todos admiravam a maneira de trabalhar do Papa Luciani. Sua capacidade de chegar à raiz dos problemas, de tomar decisões rápidas e firmes. Todos se impressionavam com a sua capacidade de executar múltiplas tarefas. Era evidente que se tratava de um homem que tomava decisões e as mantinha. Não cedia a pressões. Em minha experiência pessoal, essa capacidade de manter as suas decisões era uma das características mais notáveis de Albino Luciani.

Durante o final da tarde de 28 de setembro, Jean Villot recebeu uma demonstração prolongada dessa capacidade que tanto o impressionara durante o último mês. O primeiro problema a ser discutido era o Istituto per le Opere di Religione, o Banco do Vaticano. Luciani dispunha agora de muitas informações detalhadas. O próprio Villot já apresentara um relatório preliminar. Luciani também obtivera outras informações do segundo homem da Secretaria de Estado, Arcebispo Giuseppe Caprio, assim como de Benelli e Felici,

Para a Bispo Paul Marcinkus, que iniciara o plano e desempenhara um papel tão ativo para ajudar Calvi a assumir o controle do Banca Cattolica, era mais um dos muitos problemas pelos quais teria de prestar contas. Villot comunicou ao Papa que inevitavelmente transpiraria a notícia das investigações no banco. A imprensa italiana se tornava cada vez mais curiosa e uma grande repoitagem acabara de ser publicada.

A revista Newsweek contava obviamente com excelentes fontes no Vaticano. Soubera que, antes do Conclave, diversos cardeais haviam pedido a Villot um relatório completo sobre o Banco do Vaticano. Também informara que sua "fonte bem situada" dizia que havia um movimento no Vaticano para afastar Marcinkus. Citara literalmente a sua fonte curial: "Há um movimento para tirá-lo do banco. Ele será provavelmente nomeado bispo auxiliar."

Luciani sorriu.

— A Newsweek me diz quem colocarei no lugar de Marcinkus?

Villot sacudiu a cabeça. Enquanto a conversa continuava, Luciani deixou bem claro que não tinha a menor intenção de deixar Marcinkus na Cidade do Vaticano, muito menos no Banco do Vaticano. Depois de avaliar pessoalmente o homem numa entrevista de 45 minutos no início do mês, Luciani concluira que Marcinkus seria mais proveitosamente aproveitado como bispo auxiliar em Chicago. Não manifestará sua intenção a Marcinkus, mas a polidez fria demonstrada com o homem de Cicero não passara despercebida. Voltando a seu escritório no banco, depois da entrevista, Marcinkus confidenciara a um amigo:

— Talvez eu não fique aqui por muito mais tempo.

A Calvi e a outros colegas do banco, ele dissera:

— Não se pode esquecer que este Papa tem idéias diferentes do anterior. Haverá mudanças por aqui. Grandes mudanças.

Marcinkus estava certo. Luciani comunicou a Villot que Marcinkus deveria ser removido imediatamente. Não dentro de uma semana ou um mês. Mas no dia seguinte. Marcinkus deveria tirar uma licença. Um posto conveniente lhe seria escolhido, assim que o problema do Cardeal Cody estivesse resolvido.

Villot foi informado que Marcinkus seria substituido por Monsenhor Giovanni Angelo Abbo, secretário da Prefeitura de Assuntos Econômicos da Santa Sé. Como um elemento fundamental no tribunal financeiro do Vaticano, Monsenhor Abbo certamente levaria para o novo cargo uma profunda capacidade financeira.

A inspiração dos primeiros 100 dias do Papa João com toda certeza galvanizara Albino Luciani. As garras do leão, que seus íntimos esperavam ver reveladas, apareceram para Villot ao cair da noite de 28 de setembro, Luciani, um homem despretensioso e gentil, antes do Pontificado parecera muito menor do que o seu 1 ,75m de altura. Para muitos observadores ao longo dos anos, ele dera a impressão de se fundir com o papel de parede. Seu comportamento era tão discreto e sereno que, depois de uma reunião grande, muitos desconheciam a sua presença. Mas não houve qualquer dúvida para Villot sobre a presença e firmeza dele naquele dia. Luciani lhe disse:

Há outras mudanças no Istituto per de Opere di Religione que desejo executar imediatamente. Mennini, De Strobel e Monsenhor De Bonis serão afastados. Agora. De Bonis será substituido por Monsenhor Antonetti. Discutirei o preenchimento das outras duas vagas com Monsenhor Abbo. Quero que todos os nossos vínculos com o grupo do Banco Ambrosiano sejam cortados, o mais depressa possível. Na minha opinião, porém, será impossível conseguir-se isso com as pessoas que atualmente controlam a situação.

O Padre Magee comentou para mim:

— Ele sabia o que queria. Era bastante claro e objetivo em relação ao que queria. E a maneira com que se empenhava para alcançar seus objetivos era muito delicada.

A "delicadeza" estava em sua explicação a Villot. Os dois sabiam que Marcinkus, Mennini, De Strobel e De Bonis estavam inextricavelmente ligados não apenas a Calvi, mas também a Sindona. O que não se disse não podia ser citado erroneamente mais tarde.

O Cardeal Villot anotou as mudanças sem muitos comentários. Tomara conhecimento de muitas coisas, ao longo dos anos. Muitos no Vaticano consideravam-no ineficaz. Para Villot, no entanto, fora um caso de olhar para o outro lado deliberadamente. Era o que se chamava de técnica de sobrevivência na aldeia do Vaticano.

Luciani passou para o problema de Chicago e sua conversa com Baggio sobre o ultimato que seria apresentado ao Cardeal John Cody. Villot manifestou sua aprovação. Como Bâggio, ele considerava Cody como uma chaga supurada na Igreja nos Estados Unidos. O fato do problema ser finalmente resolvido proporcionava uma profunda satisfação ao Secretário de Estado. Luciani disse que gostaria que houvesse sondagens, através do núncio apostólico em Washington, sobre um possível sucessor para Cody. E comentou:

— Houve uma traição da confiança em Chicago. Devemos cuidar para que o homem que venha a substituir Sua Eminência tenha a capacidade de conquistar os corações e as mentes de todos na diocese.

Luciani discutiu a recusa de Baggio em aceitar a Sé de Veneza. Estava determinado a que Baggio fosse para onde mandasse.

— Veneza não é um tranquilo mar de rosas. Precisa de um homem com a força de Baggio. Eu gostaria que você conversasse com ele. Diga-lhe que todos devemos fazer algum sacrifício neste momento. Talvez seja bom lembrar-lhe que eu não tinha a menor vontade de assumir este posto.

O argumento teria um valor limitado para um homem que desejara tão ansiosamente tornar-se o sucessor de Paulo, mas Villot diplomaticamente deixou de fazer essa observação.

Luciani em seguida informou a Villot de outras mudanças que planejava fazer. O Cardeal Pericle Felici se tornaria o Vigário de Roma, substituindo o Cardeal Ugo Poletti, que tomaria o lugar de Benelli como Arcebispo de Florença. Benelli se tornaria o Secretário de Estado. Assumiria o cargo de Villot.

Villot analisou as mudanças propostas, que incluía a sua própria "renúncia". Estava velho e cansado. Além disso, achava-se também gravemente doente. Uma doença que não atenuava com os dois maços de cigarros que fumava diariamente. Villot já deixara bem claro, ao final de agosto, que desejava uma aposentadoria prematura. Agora, conseguia o que desejava um pouco mais cedo do que previra. Haveria, é claro, um período de transição, mas para todos os efeitos e propósitos seu poder estava agora acabando. O fato de Luciani propor substitui-lo por Benelli deve ter sido particularmente irritante para Villot, Beneldi fora o seu segundo homem no passado e o relacionamento deles não fora dos mais felizes.

Villot estudou as anotações que fizera sobre as mudanças propostas, Albino Luciani, largando as suas próprias anotações, serviu mais chá para ambos. Villot disse:

— Pensei que estivesse pensando em Casaroli para me substituir,

— E pensei mesmo, por algum tempo. Acho que a maior parte do seu trabalho é extraordinária, mas partilho as restrições de Giovanni Benelli a algumas de suas iniciativas no passado recente com relação à Europa Oriental.

Luciani aguardou algum sinal ou palavra de estimulo. O silêncio prolongou-se. Durante todo o relacionamento entre os dois, Villot nunca abandonara seu formalismo; sempre havia a máscara, sempre havia a frieza. Luciani tentara, diretamente e também por intermédio de Felici e Benelli, injetar um pouco de cordialidade em suas relações com Villot. Mas persistira a frieza profissional que era a característica do cardeal. O silêncio acabou sendo rompido por Luciani, que perguntou:

— E então, Eminência?

— Sua Santidade é o Papa. Tem absoluta liberdade para decidir.

— Sei disso. Mas qual é sua opinião?

Villot deu de ombros.

— Essas decisões agradarão a alguns e deixarão outros consternados. Há cardeais na Cúria Romana que se empenharam a fundo por sua eleição e agora se sentirão traidos. Acharão que as mudanças, as nomeações que apontou, são contrárias aos desejos do falecido Santo Padre.

— O falecido Santo Padre por acaso planejava fazer nomeações vitalícias? Quanto aos cardeais que alegam terem se empenhado com afinco por minha eleição, quero que compreenda uma coisa. Já disse isso muitas vezes, mas obviamente preciso continuar a insistir, Não procurei a eleição para Papa. Não queria ser Papa. Não pode mostrar um único cardeal a quem eu tenha proposto qualquer coisa. Não há ninguém a quem eu tenha persuadido, por qualquer forma, a votar em mim. Não era o meu desejo. Não foi minha obra. Há homens na Cidade do Vaticano que esqueceram seu propósito. Reduziram este lugar a um mero mercado. E por isso que estou efetuando as mudanças.

— Dirão que traiu a Paulo,

— Será dito também que trai a João. Traí a Pio. Cada um formulará sua própria lista, de acordo com suas necessidades e conveniências. Minha preocupação é não trair a Jesus Cristo.

A conversa se prolongou por quase duas horas. Villot se retirou às 19:30.

Voltou ao seu escritório que ficava próximo, sentou a uma escrivaninha e pôs-se a estudar as mudanças. Depois, abriu uma gaveta e tirou outra lista. Talvez fosse apenas coincidência. Todo o pessoal clerical que Luciani estava removendo constava de supostos maçons. A relação divulgada por Pecoreldi, o desencantado membro da P2. Marcinkus. Villot. Poletti. Baggio. De Bonis. E todos os substitutos indicados por Luciani estavam notavelmente ausentes da lista de maçons. Benelli. Felici. Abbo. Antonetti.

O Cardeal ViIlot largou a lista e estudou outro documento que estava em sua mesa. Era a confirmação final de que o encontro proposto entre o comitê americano que cuidava do controle populacional e Albino Luciani seria realizado a 24 de outubro. Um grupo de representantes do governo dos Estados Unidos que desejava mudar a posição da Igreja Católica em relação à pílula anticoncepcional se encontraria dentro de algumas semanas com um Papa que desejava efetuar a mesma mudança. Villot levantou-se e deixou os papéis à vista, descuidadamente. O leão realmente revelará as suas garras.

Assim que terminou a reunião com Villot, às 19:30, Albino Luciani pediu ao Padre Diego Lorenzi para entrar em contato com o Cardeal Colombo, em Milão. Lorenzi informou-o um momento depois que Colombo só estaria disponível às 20:45. Enquanto Lorenzi voltava à sua mesa de trabalho, o Papa recebeu a companhia do Padre Magee. Juntos, recitaram a parte final do breviário diário, em inglês. Quando faltavam 10 minutos para as 20:00, Luciani sentou para jantar, com Magee e Lorenzi. Absolutamente tranquilo, apesar da prolongada reunião com Villot, ele conversou jovialmente, enquanto as Irmãs Vincenza e Assunta serviam o jantar de sopa, vitela, vagens frescas e saladas. Luciani tomou alguns goles de água enquanto Lorenzi e Magee bebiam vinho tinto.

Na extremidade da mesa, o Padre Lorenzi lembrou-se de repente que o Pontificado de Luciani já ultrapassara o mais curto da história papal. Estava prestes a fazer um comentário a respeito quando o Papa começou a mexer no seu relógio novo. Era um presente do secretário de Paulo, Monsenhor Macchi, depois dos comentários curiais de que o Papa não deveria usar um relógio velho e avariado. Ao que parecia, isso representava uma imagem negativa. E assim se reduzia o Papa à mesma posição de um vendedor de carros de segunda mão, que precisa tomar cuidado para que sua calça esteja sempre impecavelmente passada. A última vez que Luciani fora visitado pelo irmão Edoardo presenteou-o com o relógio dizendo:

— Aparentemente não é permitido ao Papa usar um velho relógio usado que se precisa constantemente dar corda. Você se ofenderia se eu o desse a você?

Luciani acabou entregando o relógio a Magee, para acertar pelo noticiário da televisão. Faltava um minuto para as 20:00.

Logo depois de um jantar agradável e tranquilo, o Papa foi para seu gabinete, a fim de examinar as anotações que usara durante a sua conversa com Villot. As 20:45, Lorenzi fez a ligação para o Cardeal Colombo, em Milão. O cardeal recusou-se depois a conceder uma entrevista, mas outras fontes indicam que eles conversaram sobre as mudanças que Luciani tencionava efetuar. Obviamente, não houve divergência. O Cardeal Colombo recordou depois, sem fazer outros comentários:

— Ele me falou por bastante tempo, num tom absolutamente normal, pelo qual não se podia inferir qualquer doença física. Estava cheio de serenidade e esperança. Sua saudação final foi "reze",

Lorenzi anotou que a conversa telefônica terminou por volta das 21:15. Luciani examinou então o discurso que tencionava fazer para os jesuítas no sábado, dia 30. Antes, ele telefonara para o Superior Geral dos Jesuítas, Padre Pedro Arrupe, avisando-o que diria algumas coisas a respeito de disciplina. Ressaltou que uma parte do discurso seria relacionada com as mudanças que acabara de efetuar.

Todos sabem e com razão se preocupam com os grandes problemas econômicos e sociais que conturbam a humanidade hoje e que estão intimamente ligados com a vida cristã. Ao se encontrar uma solução para esses problemas, no entanto, há que se distinguir entre as tarefas dos padres e as dos religiosos leigos. Os padres devem sempre estimular e inspirar a laicidade a cumprir seus deveres, mas não devem assumir seu lugar, negligenciando a sua tarefa especifica de evangelização.

Largando o discurso, pegou as anotações sobre as mudanças drásticas que discutira anteriormente com Villot. Foi até à porta de seu gabinete, abriu-a e deparou com o Padre Magee e o Padre Lorenzi, Despediu-se deles, dizendo:

— Buona notte. A domani. Se Dio vuole. (Boa noite, Até amanhã. Se Deus quiser.)

Faltavam alguns minutos para as 21:30, Albino Luciani fechou a porta do gabinete. Pronunciara as suas últimas palavras. Seu cadáver seria encontrado na manhã seguinte. As circunstâncias precisas dessa descoberta deixam bem claro que a Vaticano tentou encobrir. Começou com uma mentira, depois continuou com uma teia de mentiras. Mentiram sobre pequenas coisas. Mentiram sobre grandes coisas. Mas todas as mentiras tinham o mesmo propósito: encobrir o fato de que Albino Luciani, Papa João Paulo I, fora assassinado em algum momento entre 21:30 de 28 de setembro e 4:30 de 29 de setembro de 1978.

Albino Luciani foi o primeiro Papa a morrer sozinho em mais de um século.., mas também fazia muito mais tempo desde que um Papa fora assassinado.

Cody. Marcinkus. Villot. Calvi. Gelli. Sindona. Pelo menos um desses homens decidira-se por um curso de ação que foi executado durante o final da noite de 28 de setembro ou na madrugada do dia seguinte. Esse curso de ação derivava da conclusão de que a Solução Italiana tinha de ser aplicada. O Papa devia morrer.

 

                          Ficamos Apavorados

Como e por que as trevas caíram sobre a Igreja Católica a 28 de setembro de 1978?

O “porquê” já foi definido. Havia uma pletora de motivos. O “como” também possui um número alarmante de possibilidades.

Se Albino Luciani foi assassinado por causa de qualquer dos motivos já registrados, então diversos fatores tinham de se aplicar.

  1. O assassinato teria de ser cometido sub-repticiamente. Para que continuasse a situação de corrupção que existia antes da eleição de Luciani, então o assassinato precisava ser encoberto. Não podia haver um dramático assassinato a tiros do Papa no meio da Praça de São Pedro. Um atentado público acarretaria inevitavelmente uma investigação em grande escala sobre o motivo pelo qual aquele homem suave e santo fora eliminado. A morte súbita teria de ser consumada de uma maneira que reduzisse ao mínimo as dúvidas e a ansiedade do público.
  2. A maneira mais eficiente de matar o Papa era com veneno. Um veneno que não deixasse quaisquer vestígios externos denunciadores. A pesquisa indica que havia mais de 200 drogas que atendiam a esse requisito A digitalina é apenas uma entre muitas. Não tem gosto. Não tem cheiro, pode ser acrescentada à comida, bebida ou medicamentos comuns, sem que a vítima desconfie em momento algum que ingeriu uma dose fatal.

3.Quem planejou assassinar o Papa dessa maneira precisaria um conhecimento profundo dos esquemas do Vaticano, A pessoa ou pessoas teriam de saber que, não importavam as indicações que permanecessem depois do ato, não haveria autópsia. Confiando nesse fato, poderiam usar qualquer uma entre 200 drogas. Uma droga como a digitalina mataria de tal maneira que, num exame externo do corpo, os médicos do Vaticano concluíram que a morte fora causada por um ataque cardíaco. Os conspiradores estariam plenamente conscientes de que não havia coisa alguma nas leis apostólicas que determinasse a realização de uma autópsia. Além disso, os conspiradores saberiam que, mesmo havendo suspeitas nos mais altos níveis, seria praticamente certo que as autoridades e médicos do Vaticano se contentariam com um exame elementar do corpo. Se uma droga como a digitalina foi realmente ministrada a um Luciani que de nada desconfiava, ao final da noite, então havia a certeza virtual de que o Papa se retiraria para o seu quarto pelo resto da noite. Ele se deitaria e mergulharia no sono final. A morte ocorreria entre duas e seis horas depois do consumo da dose fatal. O Papa mantinha ao lado da cama, na mesinha com o relógio-despertador todo amassado, um vidro de Effortil, um medicamento líquido que tomava há anos, para atenuar o problema de pressão baixa. Uma dose fatal de digitalina, meia colher de chá, passaria despercebida ao ser acrescentada ao remédio.

Os únicos outros medicamentos que o Papa tomava eram pílulas de vitamina, três vezes ao dia, com as refeições, e injeções para a glândula supra-renal, drogas para estimular a glândula que segrega adrenalina. Também serviam para o problema de pressão baixa. Séries dessas injeções eram aplicadas duas vezes ao ano, na primavera e no outono. As drogas variavam e uma das usadas com mais freqüência era Cortiplex. As injeções eram aplicadas pela Irmã Vincenza, Luciani estava tomando uma série durante o seu Pontificado e por isso havia necessidade da presença de Vincenza nos aposentos papais. As drogas usadas nas injeções, assim como o Effortil ao lado da cama, poderiam ser adulteradas facilmente. Não havia precauções especiais para guardar os medicamentos. O acesso a elas não representaria qualquer problema para uma pessoa pensando em assassinato. Mais do que isso, como será demonstrado, o acesso a qualquer parte dos aposentos papais não representava qualquer problema para alguém determinado a acabar com a vida de Albino Luciani.

Às 4:30 de sexta-feira, 29 de setembro, a Irmã Vincenza levou o café para a porta do gabinete, como sempre fazia. Bateu na porta do quarto do Papa um momento depois e gritou:

— Bom dia, Santo Padre.

Não houve resposta, o que era muito estranho. Vincenza esperou por mais um momento e depois afastou-se silenciosamente, Voltou à porta do gabinete 15 minutos depois. Não havia qualquer barulho, nenhum sinal de movimento. Ela trabalhava para Luciani desde 1959, em Vittorio Veneta. Nem uma única vez, em 18 anos, ele dormira além do horário habitual. Preocupada, tentou escutar alguma coisa. Silêncio total, Tornou a bater na porta, timidamente a princípio, depois com mais vigor. O silêncio persistia. Podia-se ver uma luz por baixo da porta do quarto. Ela bateu na porta do quarto. Também não houve resposta.

Abrindo a porta, ela avistou Albino Luciani sentado na cama. Ele estava de óculos, tinha alguns papéis nas mãos. A cabeça se virava para a direita, os lábios estavam entreabertos, mostrando os dentes, Não era o rosto risonho que impressionara milhões de pessoas, mas sim uma expressão de agonia. Ela foi sentir o pulso do Papa. Não faz muito tempo, Irmã Vincenza relatou-me esse momento:

— Foi um milagre que eu tenha sobrevivido, pois sofro do coração. Puxei o cordão da campainha para chamar os secretários e depois saí para procurar as outras irmãs e acordar Dom Diego.

As irmãs ocupavam o outro lado dos aposentos papais. O Padre Magee dormia lá em cima, na área do sótão. O Padre Lorenzi dormia, em caráter temporário, perto do quarto do Papa, enquanto seu próprio quarto, também na área do sótão, anteriormente ocupado pelo secretário de Paulo, Monsenhor Macchi, era reformado. Foi acordado por Irmã Vincenza.

Diversos romanos que se levantavam cedo já haviam notado, com uma tranqüila satisfação, a luz acesa no quarto do Papa, Era bom saber que não se era o único a levantar tão cedo. A luz acesa passou despercebida pelos guardas de segurança do Vaticano durante toda a noite.

Um Diego Lorenzi ainda mais aturdido observou o corpo sem vida de Albino Luciani. O primeiro a reagir foi o Padre Magee. Pela segunda vez, em dois meses, olhava para um Papa morto. Só que as circunstâncias eram completamente diferentes. Quando Paulo VI morrera, a 6 de agosto, muitos estavam reunidos em torno de seu leito, em Castel Gandolfo, a residência de verão papal, nos arredores de Roma. Os boletins médicos forneceram um relato detalhado das últimas 24 horas da vida do Papa e uma descrição igualmente detalhada da seqüência de males físicos que levaram à sua morte, às 21:40min.

Agora, depois de apenas 33 dias como Papa, Albino Luciani morria sozinho. Causa da morte? Hora da morte?

Depois de um dos mais breves Conclaves da história, houvera um dos mais curtos Pontificados. Nenhum Papa morria tão pouco tempo depois de sua eleição há quase 400 anos. Para se encontrar um Pontificado mais curto, é necessário voltar a 1605, aos tempos do Medici Leão XI, que foi Papa apenas por 17 dias. Como Albino Luciani morrera?

O primeiro ato do Padre Magee foi telefonar para o Secretário de Estado, Jean Villot, que residia dois andares abaixo. Menos de 12 horas antes, Albino Luciani comunicara a Villot sua iminente substituição por Benelli. Agora, ao invés de se tornar um ex-Secretário de Estado, a morte do Papa não apenas lhe garantia a permanência no cargo até que um sucessor fosse eleito, mas também lhe permitia assumir o papel de Camerlengo, agindo virtualmente como o chefe da Igreja. Por volta das 5:00, Villot estava no quarto do Papa e confirmava para si mesmo que Luciani estava morto.

Se Luciani morreu naturalmente, os atos e instruções subsequentes de Villot são completamente inexplicáveis. Seu comportamento só se torna compreensível quando relacionado com uma conclusão especifica. Ou o Cardeal Jean Villot era cúmplice de uma conspiração para assassinar o Papa ou encontrou provas concretas no quarto papal de que João Paulo I fora assassinado e prontamente deliberou que para proteger a Igreja essas provas deviam ser destruídas,

Ao lado da cama do Papa, na mesinha-de-cabeceira, estava o medicamento que Luciani vinha tomando para a pressão baixa. Villot guardou no bolso o vidro de remédio e retirou das mãos do Papa morto as anotações sobre as transferências e nomeações papais que também guardou. Da escrivaninha no gabinete foi removido o testamento de Luciani. E também desapareceram do quarto os óculos e as chinelas do Papa. Nenhuma dessas coisas jamais foi vista outra vez. Villot criou então, para os aturdidos membros do círculo papal, um relato totalmente fictício das circunstâncias que levaram à descoberta do corpo. Impôs um voto de silêncio sobre a descoberta de Irmã Vincenza e determinou que a notícia da morte não seria revelada enquanto ele não autorizasse expressamente. Depois, sentando no gabinete papal, Villot fez uma série de ligações.

Baseado no que disseram as testemunhas oculares que entrevistei, o remédio, os copos, os chinelos e seu testamento estavam todos no quarto e no escritório papal antes que Villot entrasse nos aposentos. Após seu exame e visita inicial todos os itens acima mencionados desapareceram.

A notícia da morte foi transmitida ao Cardeal Confalonieri, o Decano do Sacro Colégio, com 86 anos. E depois ao Cardeal Casaroli, chefe da diplomacia do Vaticano. Villot mandou que as freiras no centro telefônico localizassem seu subsecretário e o terceiro homem na hierarquia da Igreja, Arcebispo Giuseppe Caprio, que estava de férias em Montecatini. Somente depois é que telefonou para o Dr. Renato Buzzonetti, subchefe do serviço médico do Vaticano. Ligou em seguida para a sala dá guarda. Falou com o Sargento Hans Roggan e ordenou-lhe que viesse imediatamente aos aposentos papais.

O Padre Diego Lorenzi, o único homem que acompanhara Luciani de Veneza, vagueava chocado e aturdido pelos aposentos. Perdera um homem que, durante os últimos dois anos, fora como um segundo pai. Em lágrimas, ele tentava compreender, encontrar algum sentido. Quando Villot finalmente decidiu que o mundo podia tomar conhecimento, milhões de pessoas partilhariam a dor e a perplexidade de Lorenzi.

Apesar das determinações de Villot de que a notícia não podia transpirar, Diego Lorenzi telefonou para o médico de Luciani, Giuseppe da Ros. Ele fora médico de Luciani por mais de 20 anos. Lorenzi recorda nitidamente a reação do médico:

— Ele ficou chocado. Atordoado. Incapaz de acreditar. Perguntou-me a causa, mas eu não sabia. O Dr. Da Ros estava igualmente perplexo. Disse que partiria imediatamente para Veneza e pegaria um avião para Roma.

O telefonema seguinte de Lorenzi foi para a sobrinha de Albino, Pia, que era provavelmente mais chegada ao tio do que qualquer outra pessoa da família. Diego Lorenzi parecia ser o único membro da Igreja a compreender que até mesmo os Papas têm parentes. Lorenzi naturalmente achou que a família justificava um telefonema pessoal, ao invés de brutalmente receber a notícia pelo rádio.

— Nós o encontramos morto esta manhã. Você precisa de muita fé agora.

Muitos precisariam de uma grande fé. Muitos teriam de recorrer a toda a sua fé para aceitar o que Villot e seus colegas diriam nos próximos dias.

A notícia começava a se espalhar pela aldeia do Vaticano. No pátio, perto do Banco do Vaticano, o Sargento Roggan encontrou o Bispo Paul Marcinkus. Faltavam 15 minutos para as 7:00. O que Marcinkus, que morava na VilIa Stritch na Via della Nocetta, em Roma, e não estava habituado a acordar cedo, como era do conhecimento de todos, fazia ali tão cedo permanece um mistério. A VilIa Stritch fica a 20 minutos de carro do Vaticano. Roggan deu-lhe a notícia:

— O Papa está morto.

Marcinkus limitou-se a olhar fixamente para o sargento da Guarda Suiça. Roggari chegou mais perto do presidente do Banco do Vaticano.

— O Papa Luciani morreu. Encontraram-no morto na cama.

Marcinkus continuou a olhar fixamente para Roggan, sem demonstrar qualquer reação. O sargento finalmente se afastou, deixando Marcinkus a olhar em sua direção.

Alguns dias depois, durante o funeral do Papa, Marcinkus apresentou uma explicação para o seu estranho comportamento:

— Desculpe, mas pensei que você tivesse enlouquecido.

O Dr. Buzzonetti fez um rápido exame do corpo. Comunicou a Villot que a causa da morte era infarto do miocárdio agudo, um ataque cardíaco. O médico calculou que a morte ocorrera por volta das 23:00 do dia anterior.

Determinar a hora da morte como 23:00 e a causa como infarto do miocárdio, depois de um exame externo tão breve, é uma impossibilidade médica.

Villot já decidira, antes do exame de Buzzonetti, ocorrido ás 6:00 aproximadamente, que o corpo de Albino Luciani deveria ser imediatamente embalsamado. Mesmo antes de telefonar para o Cardeal Confalonieri, às 5:15, Villot já tomara as primeiras providências para um rápido embalsamamento. Os irmãos Signoracci. Ernesto e Renato, haviam embalsamado os três últimos Papas. Agora, um telefonema ao amanhecer e um carro do Vaticano que chegou às 5:00 foram os atos iniciais no que seria um longo dia para os irmãos Signoracci. O fato de terem sido procurados tão cedo prova que o Vaticano já entrara em contato com o Instituto de Medicina que emprega os irmãos e dera as instruções necessárias, entre 4:45 e 5:00.

As 7:00, mais de duas horas depois da morte ter sido descoberta pela Irmã Vincenza, o mundo em geral ignorava que João Paulo I não estava mais vivo. Enquanto isso, a aldeia do Vaticano continuava a ignorar totalmente o édito de Villot. O Cardeal Benelli, em Florença, soube da noticia por um telefonema às 6:30. Dominado pela dor e chorando abertamente, retirou-se imediatamente para seu quarto e começou a rezar. Todas as esperanças, sonhos e aspirações estavam destruídos. Os planos que Luciani fizera, as mudanças, a nova orientação, tudo dava em nada. Quando um Papa morre, todas as decisões ainda a serem anunciadas morrem com ele. A menos que seu sucessor decida adotá-las.

Às 7:20, sinos da igreja da paróquia em que Albino Luciani nascera, Canale d’Agrodo, estavam repicando. A Rádio Vaticano permanecia em silêncio sobre a morte. Finalmente, às 7:27, cerca de duas horas e 45 minutos depois da descoberta da morte pela Irmã Vincenza, o Cardeal Villot sentia-se suficientemente no controle da situação para que a morte do Papa fosse anunciada:

"Esta manhã, dia 29 de setembro de 1978, por volta das 5:30, o secretário particular do Papa, não encontrando como de hábito o Santo Padre na capela de seus aposentos particulares, procurou-o em seu quarto e descobriu-o morto na cama, com a luz acesa, como alguém concentrado em ler. O médico, Dr. Renato Buzzonetti, prontamente convocado, confirmou o óbito, que ocorreu presumivelmente por volta das 23:00 de ontem, como "morte súbita que pode ser relacionada com infarto agudo do miocárdio".

Posteriormente, boletins informaram que o secretário em questão era o Padre Magee, que geralmente dizia a missa com o Papa às 5:30. O Vaticano informou também que, na ocasião de sua morte, o Papa lia A Imitação de Cristo, a obra do século XV geralmente atribuída a Thomas A. Kempis.

Juntamente com o remédio, as anotações papais, os óculos e as chinelas, a Irmã Vincenza e sua descoberta do corpo às 4:45 também se desvaneceram. Mesmo com duas horas e 45 minutos para forjar uma boa história, Villot e aqueles que o aconselhavam criaram a maior confusão. Enquanto todos os jornais e emissoras de rádio e televisão do mundo livre divulgavam a notícia, baseada em boletins do Vaticano, Villot encontrava as maiores dificuldades para sustentar sua versão.

A idéia de colocar um livro que Luciani reverenciava em suas mãos na ocasião da morte parecera um pensamento inspirado a Villot. O problema era que não havia um único exemplar no quarto do Papa. Mais do que isso, não havia um exemplar em qualquer lugar dos aposentos papais. O exemplar de Luciani ainda se achava em Veneza. Alguns dias antes, ele desejara citar corretamente um trecho do livro e Lorenzi tivera de pedir emprestado o exemplar de seu confessor no Vaticano. Mas Don Diego devolvera o livro antes da morte do Papa. Suas queixas sobre uma invenção óbvia não puderam ser reprimidas. O Vaticano continuou a manter essa mentira em particular até 2 de outubro — ou seja, por quatro dias. Durante esses primeiros quatro dias, as informações falsas transmitidas pelo Vaticano tornaram-se, nas mentes das pessoas, a realidade, a verdade.

Muitos se deixaram enganar pela desinformação que saía do Vaticano. Houve a história, por exemplo, do Padre Magee ter ido ao quarto do Papa pouco antes das 22:00 de 28 de setembro. Emanava diretamente da Cúria Romana e dizia que Magee falara ao Papa sobre o assassinato de um estudante em Roma. Ao que o Papa teria dito:

— Esses jovens estão atirando uns contra os outros novamente? É uma coisa horrível.

Essas foram noticiadas amplamente, no mundo inteiro, como sendo as últimas palavras do Papa. Proporcionavam o bônus adicional de uma possível explicação paira a inesperada morte de Luciani. Ele morreu de choque ao tomar conhecimento das trágicas noticias. A conversa entre Magee e Luciani não ocorreu. Foi uma invenção do Vaticano.

Outra invenção do Vaticano foi a sugestão de que Luciani tinha o hábito de dizer a missa com Magee às 5:30. A missa nos aposentos papais não ocorria antes das 7:00. Como já foi registrado antes, Luciani aproveitava o período entre 5:30 e 7:00 para meditação e oração, geralmente sozinho, às vezes em companhia de Magee e Lorenzi, a partir das 6:30. A imagem de um Magee transtornado e consternado, alarmado pelo não aparecimento de Luciani às 5:30 é fantasia do Vaticano.

O choque pela morte trágica e inesperada espalhou-se pelo mundo. As maciças portas de bronze da Basílica de São Pedro foram fechadas, a bandeira do Vaticano foi hasteada a meio-pau — essas foram as indicações exteriores. Mas a notícia da morte de Albino Luciani era tão desconcertante que a incredulidade manifestada por seu médico particular foi partilhada por milhões de pessoas. Ele deliciara o mundo. Como podia o candidato de Deus devidamente eleito deixar o mundo tão depressa?

O Cardeal Willebrands, da Holanda, que acalentara grandes esperanças pelo Pontificado de Luciani, declarou:

— E um desastre. Não posso exprimir em palavras o quanto ficamos felizes naquele dia de agosto em que escolhemos João Paulo. Tínhamos as maiores esperanças. Foi um sentimento maravilhoso, um sentimento de que algo novo aconteceria à nossa Igreja.

O Cardeal Baggio, um dos homens que Luciani decidira afastar de Roma, foi mais comedido.

— O Senhor nos usa, mas não precisa de nós—disse pela manhã, depois de ter visto o corpo. E acrescentou: — Ele era como um padre paroquial para a Igreja.

Perguntaram o que aconteceria agora e Baggio respondeu calmamente:

— Providenciaremos outro.

Baggio, porém, foi uma exceção. A maioria das pessoas demonstrou profundo choque e amor. Quando o Cardeal Benelli finalmente emergiu de seus aposentos, às nove horas da manhã, foi imediatamente cercado pelos repórteres. Ainda com lágrimas escorrendo pelas faces, ele disse:

— A Igreja perdeu o homem certo para o momento certo. Estamos profundamente consternados. Ficamos assustados. O homem não pode explicar uma coisa assim. E um momento que nos limita e condiciona.

No Vaticano, os planos de Villot para um embalsamamento imediato depararam com dificuldades. Os Cardeais Felici, em Pádua, e Benelli, em Florença, que conheciam exatamente a natureza das mudanças que Luciani estava prestes a efetuar, sentiam-se particularmente transtornados e foi o que disseram em conversas telefônicas com Villot. Já havia rumores na Itália de que se deveria fazer uma autópsia. Era uma posição que, nas circunstâncias, Benelli e Felici estavam pelo menos dispostos a considerar, Caso o corpo fosse embalsamado, uma autópsia posterior seria inútil se a causa da morte fosse envenenamento.

Oficialmente, o Vaticano criou a impressão de que o corpo de João Paulo 1 foi embalsamado antes de ser exposto à visitação pública, na Sala Clementina, ao meio-dia de sexta-feira. Na verdade, os visitantes naquele dia viram um Luciani em estado natural, sem estar embalsamado. O Padre Diego Lorenzi me disse:

O corpo foi levado dos aposentos particulares diretamente para a Sala Clementina, Na ocasião, ainda não houvera qualquer embalsamamento. O Papa Luciani foi vestido pelo Padre Magee, Monsenhor Noe e eu. Fiquei junto ao corpo, assim como Magee, até as 23:00. Os irmãos Signoracci voltaram nessa ocasião e o corpo foi levado para a Sala Clementina.

O contraste com a morte do Papa Paulo era espantoso. Houvera então pouca emoção pública; agora, os sentimentos eram incontroláveis, No primeiro dia, 250 mil pessoas passaram pelo corpo. A especulação pública que sua morte não fora natural aumentava a cada minuto. Homens e mulheres passavam pelo corpo inerte e comentavam:

— Quem fez isso com você? Quem o assassinou?

Enquanto isso, continuava o debate sobre se deveria ou não haver uma autópsia, entre a minoria de cardeais que se reunia em Roma. Se Luciani fosse um cidadão comum de Roma, não haveria qualquer discussão e a autópsia seria efetuada imediatamente. A lei italiana declara que não pode haver embalsamamento sem a autorização expressa de um juiz, até 24 horas depois da morte. Se um cidadão italiano comum morresse em circunstâncias similares às de Luciani, a autópsia seria prontamente determinada. A moral seria a de que os cidadãos italianos que desejam garantir as providências legais normais depois de sua morte não devem se tornar Chefe de Estado da Igreja Católica.

Para homens que nada têm a esconder, as ações de Villot e outros membros da Cúria Romana continuaram a ser incompreensíveis. Quando alguns homens conspiram para esconder alguma coisa, é porque existe algo a esconder.

Foi de um cardeal residente em Roma que tomei conhecimento do motivo mais extraordinário apresentado para toda a cobertura:

Ele (Villot) me disse que ocorrera um trágico acidente. Que o Papa involuntariamente tomara uma dose excessiva de seu remédio. O Camerlengo ressaltou que ficaria patente a dose excessiva fatal se fosse efetuada uma autópsia. Ninguém acreditaria que Sua Santidade a tomara acidentalmente. Alguns alegariam suicídio, outros falariam em assassinato. Por isso, ficou combinado que não haveria autópsia.

Em duas ocasiões, entrevistei o Professor Giovanni Rama, o especialista responsável por receitar Effortil, Cortiplex e outros medicamentos para aliviar o problema de pressão baixa de Albino Luciani. Ele era paciente do Dr. Rama desde 1975. Seus comentários, a propósito de uma superdose acidental, administrada pelo próprio paciente, são esclarecedores:

Uma superdose acidental não é verossímil. Ele era um paciente consciencioso. E muito sensível aos medicamentos, Precisava de bem pouco. Estava tomando uma dose mínima de Effortil, Normalmente, são 60 gotas por dia. Mas 20 ou 30 gotas por dia eram suficientes para ele. Sempre fomos muito prudentes ao prescrever medicamentos.

Conversas adicionais estabeleceram que Villot chegara a essa conclusão naqueles poucos momentos no quarto do Papa em que embolsara o vidro de remédio. Villot era evidentemente um homem de muito talento, O Papa morre sozinho, depois de se retirar para o seu quarto como um homem gozando de boa saúde, que acaba de tomar algumas decisões cruciais, inclusive a que afeta diretamente o futuro de Villot. Sem quaisquer exames, sem provas internas ou externas, o idoso Secretário de Estado deduz que o racional Albino Luciani se matara acidentalmente. Talvez, na atmosfera rarefeita da aldeia do Vaticano essa história tenha credibilidade. Para nós, que vivemos no mundo real aqui de fora, provas que teriam indicado a verdade seriam essenciais.

Algumas dessas provas essenciais que teriam indicado a verdade já haviam sido destruídas por Villot... o remédio e as anotações de Luciani sobre as mudanças fundamentais. Pode-se avaliar o pânico de Villot pelo desaparecimento do testamento de Albino Luciani. Nada continha de importância em relação à sua morte, mas mesmo assim foi destruído junto com outras provas essenciais. Ainda é um mistério por que os óculos e as chinelas do Papa também desapareceram.

Os rumores espalharam-se por toda a aldeia do Vaticano. Comentou-se que uma luz de alarme num painel nos aposentos papais ficara acesa durante a noite inteira e ninguém respondera ao pedido de socorro, Falou-se que sinais de vômito foram encontrados no quarto, sujando diversas coisas, era por isso que as sandálias e os óculos desapareceram. O vômito é freqüentemente um dos primeiros sintomas de uma superdose de digitalina. Grupos de bispos e padres se reuniram em diversas salas e recordaram o insólito incidente da súbita morte trágica do arcebispo ortodoxo russo de Leningrado, Nikodem. Ele fora recebido em audiência especial por Albino Luciani a 5 de setembro, E de repente, inesperadamente, o prelado russo de 49 anos tombara para a frente em sua cadeira. E um momento depois estava morto. Espalhou-se agora pelo Vaticano a notícia de que Nikodem tomara uma xícara de café destinada a Albino Luciani. Nikodem tinha uma saúde precária e já sofrera anteriormente alguns ataques cardíacos. Na assustada cidade-estado, esses fatos haviam sido afastados para um lado. Agora, no entanto, em retrospecto, eram encarados como um sinal, um prenúncio para os eventos pavorosos que acabaram ocorrendo nos aposentos papais.

Durante o dia 29 de setembro, tudo o mais nos aposentos papais que pertencia a Albino Luciani foi removido, inclusive suas cartas anotações, livros, todos os documentos e até mesmo os poucos mementos pessoais, como a fotografia dos pais com a pequena Pia. O pessoal da Secretaria de Estado removeu todos os documentos confidenciais. Rapidamente, todas as provas materiais de que Albino Luciani já vivera e trabalhara ali foram encaixotadas e despachadas para longe. Por volta das 18:00, todos os 19 cômodos estavam despojados de qualquer coisa associada sequer remotamente com o Pontificado de Luciani. Era como se ele nunca tivesse estado ali, como se nunca existisse. As 18:00 os aposentos papais foram lacrados pelo Cardeal Villot. Permaneceriam fechados até que um sucessor fosse eleito.

Discretamente, as freiras e os dois secretários foram embora. Magee guardou como lembrança as fitas cassette que Luciani usava para melhorar seu inglês. Lorenzi ficou com uma miscelânea de imagens e recordações. Evitando cuidadosamente os repórteres à espera, o grupo foi se instalar numa residência dirigida pelas Irmãs Maria Bambina.

John Magee se tornaria secretário de um Papa pela terceira vez, algo extraordinário e sem precedentes. Diego Lorenzi ficou profundamente abalado pela morte de um homem a quem amava. Voltaria ao norte da Itália para trabalhar numa pequena escola. Vincenza seria despachada ainda mais para o norte, ficando num obscuro convento. A máquina do Vaticano garantia assim, com esse virtual banimento, que se tornasse quase impossível localizá-los.

Depois que as portas da Sala Clementina foram fechadas ao público, às 18:00 de sexta-feira, 29 de setembro, o homem que se sentia mais aliviado no Vaticano era Villot, O trabalho dos técnicos podia finalmente começar. Depois que o corpo fosse embalsamado, seria impossível numa autópsia subsequente encontrar vestígios de veneno. Se o Papa realmente morrera de infarto agudo do miocárdio, os fluidos do embalsamamento não destruiriam os vasos sangüíneos naturalmente lesionados.

No que foi presumivelmente uma coincidência irônica, a Associação dos Proprietários de Farmácias de Roma distribuiu justamente naquele dia um comunicado ao público de que diversos medicamentos essenciais para o tratamento de determinados casos de envenenamento e males cardíacos se encontravam em falta. De maior pertinência ainda talvez tenha sido a declaração que os repórteres italianos conseguiram finalmente arrancar do Cardeal Villot:

Quando estive ontem com Sua Santidade, ao cair da noite, ele gozava de boa saúde e estava totalmente lúcido, dando-me todas as instruções para o dia seguinte.

Por trás das portas fechadas, na Sala Clementina, o processo de embalsamamento prolongou-se por três horas. Os cuidados e preservação do corpo foram de responsabilidade do Professor Cesare Gerin, mas o trabalho de embalsamamento foi executado pelo Professor Marracino e por Ernesto e Renato Signoracci. Quando examinaram o corpo antes que fosse removido para Clementina, os dois irmãos Signoracci concluíram, pela ausência de rigidez cadavérica e pela temperatura do corpo, que a morte ocorrera não às 23:00 da noite anterior, mas entre 4:00 e 5:00 horas daquela madrugada. Receberam uma confirmação independente de sua conclusão de Monsenhor Noe, que informou aos irmãos que o Papa morrera pouco antes das cinco horas da manhã. Entrevistei os dois irmãos amplamente, em três ocasiões diferentes. Eles estão absolutamente convencidos de que a morte ocorreu entre 4:00 e 5:00 da madrugada do dia 29 de setembro e que o corpo foi descoberto uma hora depois. Se essa conclusão é acurada, então o Papa acabara de morrer quando Irmã Vincenza entrou em seu quarto. Somente a autópsia resolveria essas opiniões conflitantes.

Por insistência do Vaticano, nenhum sangue foi retirado do corpo nem removido qualquer órgão. Injeções de formol e outros elementos químicos preservativos foram aplicadas no corpo principalmente através da veia femoral e arterial, O processo demorou três horas porque o Vaticano insistiu que nenhum sangue fosse retirado, contrariando a prática normal, em que o sangue é drenado ou limpo com uma solução de água salgada que circula pelo corpo. Uma pequena quantidade do sangue seria mais do que suficiente para que um laboratório estabelecesse a presença de qualquer substância venenosa.

O tratamento cosmético aplicado no corpo eliminou a expressão de angústia no rosto. As mãos que seguravam os papéis agora desaparecidos foram cruzadas sobre um rosário. O Cardeal Villot finalmente foi se deitar, pouco antes da meia-noite,

O Papa Paulo VI, de acordo com as leis italianas, não foi embalsamado até 24 horas depois de sua morte. Embora tenha havido suspeita de incompetência médica após sua morte, não houve qualquer indicação de crime. Agora, não só com o público mas o rádio, a televisão e a imprensa em geral pedindo uma autópsia, o corpo de Luciani foi embalsamado 12 horas após ter sido descoberto.

No sábado, 30 de setembro, uma indagação em particular era formulada com crescente pressão: "Por que não houve autópsia?" Os meios de comunicação começaram a procurar uma explicação para uma morte tão súbita e inesperada. A Cúria se apressou em lembrar aos repórteres curiosos um comentário informal que Luciani fizera durante a sua Audiência Geral, na quarta-feira, 27 de setembro. Virando-se para um grupo de doentes e deficientes físicos, no Salão Nervi, Luciani dissera:

— Lembrem-se de que o seu Papa já esteve nu hospital Oito vezes e sofreu quatro operações.

O Serviço de Imprensa do Vaticano começou a responder a pedidos de informações sobre a saúde de Luciani com a frase do falecido Papa. Usaram-na tão excessivamente que até adquiriu as características de uma máquina de respostas telefônicas, deixando frustrados os que pediam notícias mais detalhadas do acontecimento.

Os vários meios de comunicação recordaram que Luciani não dera a impressão de estar com problemas de saúde durante o seu breve Pontificado. Ao contrário, comentaram todos, ele parecia ser a própria imagem da saúde, cheio de vida e animação. Outras pessoas que conheciam Luciani há muito tempo começaram a ser procuradas para dar suas opiniões.

Quando Monsenhor Senigaglia, secretário de Luciani em Veneza por mais de seis anos, revelou que o falecido Papa se submetera a um check-up médico completo, pouco antes de viajar para o Conclave, os resultados sendo "favoráveis sob todos os aspectos’ , as exigências de uma autópsia tornaram-se ainda maiores.

Quando diversos especialistas médicos começaram a proclamar categoricamente a necessidade de uma autópsia, a fim de se determinar a causa precisa da morte, o pânico no Vaticano atingiu um novo auge. Era evidente que os médicos estavam dispostos a admitir uma variedade de motivos que podiam ser fatores contributivos (a súbita tensão de se tornar Papa era um dos prediletos), mas nenhum se dispunha a aceitar sem uma autópsia, a declaração do Vaticano de que Albino Luciani morrera de infarto do miocárdio.

O Vaticano reagiu com a declaração de que a execução de uma autópsia era contrária às regras da Igreja. Tratava-se de outra mentira divulgada à imprensa mundial. Os jornalistas italianos pressionaram e ficou evidente que o Vaticano dizia isso com base na Constituição Apostólica, anunciada por Paulo VI em 1975. Era o documento que fixava as normas para a eleição de seu sucessor, determinando uma busca por microfones secretos na área do Conclave e definindo as dimensões dos cartões de votação. Uma leitura cuidadosa do documento revela que Paulo não previra a possibilidade de qualquer controvérsia a respeito da causa de sua morte. Uma autópsia não era proibida nem aprovada. Não havia simplesmente qualquer referência a respeito.

A morte de Paulo tornou-se então assunto para debate público. E abundantemente claro que a vida de Paulo poderia ter sido prolongada. O tratamento médico que ele recebera em seus últimos dias, na opinião de muitos dos maiores especialistas do mundo, deixara muito a desejar. Em seu hospital em Cape Town, o Dr. Christian Barnard comentou, ao saber que o Papa Paulo não fora colocado num centro de tratamento intensivo:

— Se isso acontecesse na África do Sul, os médicos responsáveis seriam denunciados à Associação Médica por negligência.

Um dos principais responsáveis pelo tratamento do Papa Paulo fora o Dr. Renato Buzzonetti, o subchefe dos serviços médicos do Vaticano, Agora, o mesmo médico, que na opinião do Dr. Barnard se mostrara negligente em agosto, realizava uma impossibilidade médica ao determinar a causa da morte solitária de Albino Luciani, Sem uma autópsia, sua conclusão não tinha o menor significado.

Foi nesse ambiente que o Cardeal Confalonieri presidiu a primeira reunião da Congregação de Cardeais, o grupo que controla os assuntos da Igreja depois da morte de um Papa. Essa Congregação inclui todos os cardeais... se por acaso estiverem em Roma. Quando essa reunião inicial ocorreu, às 11:00 da manhã de sábado, 30 de setembro, a maioria dos cardeais ainda estava espalhada pelo mundo. Dos 127 cardeais, somente 29 se achavam presentes, a maioria sendo constituída naturalmente por italianos. Essa minoria tomou diversas decisões. Decidiu que o funeral de Albino Luciani se realizaria na quarta-feira seguinte, 4 de outubro. Enquanto isso, a maciça manifestação pública de pessoas que queriam visitar pessoalmente o corpo do Papa causava a maior confusão e tumulto para as autoridades do Vaticano. Previam um grau de interesse similar ao que fora demonstrado quando Paulo morrera... um outro exemplo de como a Cúria não fora capaz de compreender o impacto de Luciani. Foi tomada a decisão de transferir o corpo naquela noite para a Basílica de São Pedro. As duas decisões mais significativas, tomadas naquela manhã, porém, foram a de que o próximo Conclave ocorreria na data mais próxima possível, 14 de outubro, e que não haveria autópsia.

As dúvidas de homens como Benelli, Felici e Caprio sobre a morte de Luciani foram repelidas. Sabendo que a controvérsia cresceria até que o público recebesse um elemento novo para desviar sua atenção, Villot e seus colegas inverteram totalmente a maneira como haviam raciocinado em agosto. Naquela ocasião, o Conclave fora protelado por quase tanto tempo quanto o máximo permitido. Agora, seria o prazo mais curto. Era uma trama astuta. Os cardeais da Cúria, em particular, raciocinaram que, depois do funeral, os meios de comunicação se concentrariam nas especulações sobre o possível sucessor de Luciani. Se pudessem resistir até o funeral, a se realizar dentro de poucos dias, estariam seguros. Além disso, qualquer um da maioria de cardeais ainda por chegar que pedisse a autópsia se confrontaria com decisões já tomadas. Inverter tais decisões, no tempo limitado antes do funeral, seria uma virtual impossibilidade. "E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará", diz a Bíblia, uma exortação que 29 cardeais preferiram ignorar, em nome da Igreja Católica, naquela manhã de 30 de setembro de 1978.

Depois que a reunião foi encerrada, o Cardeal Confalonieri deu sua opinião sobre o motivo pelo qual o Papa morrera subitamente:

Ele não podia suportar a solidão. Todos os Papas vivem numa espécie de solidão institucional, mas talvez Luciani tenha sofrido com isso mais do que os outros. Sempre vivera no meio de muitas pessoas, mas descobriu-se a conviver apenas com dois secretários, que não conhecia antes, e duas freiras, que nem mesmo levantavam os olhos na presença do Papa. Ele não tinha tempo sequer para fazer amigos.

O Padre Diego Lorenzi trabalhava em estreito contato com Luciani há mais de dois anos. A Irmã Vincenza trabalhara com Luciani por quase 20 anos. Ao invés de abaixar os olhos quando ele se aproximava, Vincenza era uma fonte de grande conforto para Luciani. Ele estava de fato isolado, mas será que uma legião de amigos íntimos poderia evitar uma morte solitária e misteriosa?

Não pode haver a menor dúvida de que a hostilidade e arrogância curiais, demonstradas durante os seus últimos 33 dias, não foram das experiências mais felizes, mas Albino Luciani lutara contra a hostilidade e arrogância clericais em Veneza por quase uma década.

Às 18:00 de sábado, 30 de setembro, o corpo embalsamado foi transferido, descoberto, para a Basílica de São Pedro. Uma grande parte do mundo assistia pela televisão, enquanto o cortejo, incluindo 24 cardeais, 100 bispos e arcebispos, passava pela Primeira Loggia, o Salão Ducal, o Salão e Escada dos Reis, atravessava a Porta de Bronze e saía para a Praça de São Pedro. A esta altura, o canto do Magnificat foi inesperadamente abafado por um desses gestos que são tipicamente italianos. A enorme multidão prorrompeu em aplausos altos e prolongados, o equivalente latino ao respeitoso silêncio anglo-saxão.

No mundo inteiro, opiniões informadas e desinformadas tentaram avaliar a vida e a morte de Albino Luciani. Muito do que se escreveu revela bem mais do autor que a respeito do homem. A convicção de que as mentes podiam ser rapidamente desviadas da morte para a sucessão, manifestada naquela manhã pela Cúria, começou rapidamente a se provar acurada. Na Inglaterra, The Times espelhou com perfeição a natureza transitória da vida com um editorial intitulado "O Ano dos Três Papas".

Alguns observadores falaram perceptivamente de uma grande promessa irrealizada, outros de um Pontificado que dera a impressão de que seria divertido. Em relação à explicação para a morte súbita, a campanha de desinformação da Cúria Romana alcançou um sucesso extraordinário. Um jornalista depois de outro apresentou uma longa lista de doenças. O fato de alguém tão experiente como Patrick O’Donovan, do Observer, se deixar enganar a ponto de escrever o seguinte, mostra como a campanha foi vitoriosa: "Somente agora se sabe que o Cardeal Luciani tinha um longo registro de doenças, embora não fatais".

Não foi anunciado exatamente quais eram essas doenças. Confrontados com um prazo de fechamento de seus jornais ou revistas, é claro que O’Donovan e outros jornalistas não tiveram tempo para pesquisa pessoal e foram obrigados a se basear em contatos no Vaticano. Alguns falaram que Luciani fumava demais, que só tinha um pulmão, que sofrera diversas crises de tuberculose. Outros foram informados, por fontes do Vaticano, que ele tivera quatro ataques cardíacos em decorrência de uma flebite. Outros mencionaram que ele sofria de enfisema, uma doença crônica dos pulmões, geralmente causada pelo cigarro. Não há nenhum fundo de verdade em tudo isso,

O exagero das mentiras do Vaticano causa o próprio fracasso. Será que 111 cardeais se reuniriam em Roma, em agosto de 1978, para eleger um homem que sofria de tantas doenças? E, depois, permitiriam que ele morresse sozinho? Juntamente com as mentiras sobre a história médica de Luciani, a campanha de desinformação do Vaticano era ativa em outras áreas. A Cúria divulgava a opinião extra-oficial, que não podia ser atribuída especificamente a ninguém, de que Luciani não era de qualquer forma um bom Papa. Por que então lamentar tanto quem não tinha o menor valor? Conversei sobre essa campanha de difamação com o Cardeal Benelli, que comentou:

Pareceu-me que o objetivo deles (da Cúria Romana) era duplo. Minimizar a competência de Luciani reduziria o senso de perda e, por conseguinte, as exigências de uma autópsia. Em segundo lugar, a Cúria se preparava para o próximo Conclave. E queria um Papa curial.

Quando Luciani almoçara com a sobrinha Pia, um dos temas da conversa fora distorção da imprensa. Agora, na morte, Luciani tornou-se uma vítima disso. Os comentários negativos eram inspirados basicamente por padres e monsenhores insignificantes, que normalmente se ocupavam a escrever memorandos irrelevantes no Vaticano. Acharam que era extremamente lisonjeiro serem interrogados a respeito de suas opiniões sobre o falecido Papa. O fato de nenhum deles ter acesso aos corredores do poder ou sequer se aproximar dos aposentados papais era disfarçado pela descrição abrangente "uma alta fonte do Vaticano disse hoje". O que eles disseram foi parte da grande injustiça cometida contra o Papa morto. Permitiu a muitos jornalistas e observadores, que antes do Conclave de agosto ignoravam as possibilidades de Luciani, se livrar do fato incômodo de que a eleição do Patriarca de Veneza demonstrava como eram mal-informados. O pensamento de todos parece ter sido o seguinte: "Nós não lhe demos qualquer importância, mas todos compreendem agora que estávamos certos". E a explicação para comentários como os seguintes:

As audiências atraíram a simpatia imediata do público, mas desapontaram e às vezes preocuparam as altas autoridades da Igreja. O Papa expressava uma filosofia de existência que parecia ocasionalmente calcada em Seleções do Reader’s Digest: bom senso, um tanto simplista, diga-se de passagem, em contraste com os grandes vôos teológicos de oratória de Paulo VI. Evidentemente, ele não possuía a cultura e o preparo intelectual de seu antecessor.

(Roberto Sole, correspondente no Vaticano de Le Monde)

 

Acompanhamos primeiro com ansiedade e depois com um crescente senso de ridículo os seus generosos esforços para descobrir quem era. Ele sorria, seu pai fora socialista, trocou a tiara por uma simples estola, falava informalmente nas audiências.

(Commonweal)

Newsweek comentou que a rejeição por Luciani da filosofia "Ubi Lenin, ibi Jerusalem" era uma traição aos cardeais latino-americanos, que haviam participado de forma tão valiosa em sua eleição. A revista achou que Luciani, ao fazer esse comentário, rejeitara a teologia da libertação. Não perceberam que Luciani, por causa da censura da Cúria, acrescentara um importante qualificativo, que alterava completamente a situação: "Existe alguma coincidência, mas não podemos fazer um perfeito equilíbrio."

Peter Nichols, o experiente correspondente do Times, mas nessa ocasião escrevendo para o Spectator, comparou Luciani a um popular comediante italiano que só precisava se mostrar ao público para receber uma ovação. Ele só não explicou por que Paulo VI jamais conseguia receber ovações ao se apresentar em público.

Outros criticaram o fato de que Luciani mantivera todos os membros da Cúria nas mesmas funções. Esqueceram de mencionar, porém, que todos os três Papas que o antecederam agiram da mesma forma e que ele detinha o poder e a autoridade de remover a qualquer um deles em qualquer ocasião.

Nos dias que seguiram à morte do Papa, a maior parte dos meios de comunicação do mundo inteiro divulgaram histórias sobre o ritual do

Vaticano que envolve esse momento. Os jornais contaram que o Cardeal Villot se aproximara do corpo inerte e indagara três vezes "Albino, você está morto?", a cada uma batendo simbolicamente na testa do Papa com um martelinho de prata. A imprensa também descreveu dramaticamente como Villot retirara da mão de Luciani o Anel do Pescador Papal e o destruíra.

Por ocasião da morte de Albino Luciani, na verdade, não houve a indagação ritual nem a batida simbólica na testa. Tais cerimônias haviam sido abolidas no Pontificado de Paulo, Quanto ao anel de Luciani, o Pontificado fora tão breve que o Vaticano não tivera tempo para providenciá-lo. O único anel na mão de Luciani, durante todo o seu Pontificado, fora o recebido por cada bispo que comparecera ao Concílio Vaticano Segundo.

A divulgação de todos esses absurdos completamente falsos, quando se sabe o quanto Luciani realizou em tão pouco tempo e como era tido em alta conta por homens como Casaroli, Benelli, Lorscheider, Garrone, Felici e muitos Outros, só se explica por uma campanha meticulosamente organizada. Nenhum obituário critico ou artigo referiu-se a qualquer dos fatos registrados no capitulo anterior, Uma das muitas frases que os homens do Vaticano gostam de citar é bastante esclarecedora: "Nada vaza do Vaticano sem um propósito especifico."

A 1° de outubro, a pressão para uma autópsia do cadáver de Luciani aumentou ainda mais. O jornal mais respeitado da Itália, Corriere della Sera, publicou um artigo na primeira página com o título "Por que dizer não a uma Autópsia?" Era de Carlo Bo, um jornalista extraordinário, com profundo conhecimento do Vaticano, A simples publicação do artigo já é significativa. Na Itália, por causa do Tratado de Latrão e de acordos subsequentes entre o Estado italiano e o Vaticano, a imprensa sofre sérias restrições ao escrever sobre a Igreja Católica, as leis de calúnia são rigorosas. Os comentários críticos, ainda mais os ataques diretos, podem resultar em processos judiciais.

Carlo Bo evitou habilmente qualquer risco. Num estilo reminescente do discurso de Marco Antônio à turba romana, Bo falou das suspeitas e acusações que haviam aflorado depois da morte súbita. Disse aos leitores que estava convencido de que os salões e porões do Vaticano estavam livres há séculos de tais ações criminosas. Por esse motivo, ele não podia compreender por que o Vaticano resolvera não efetuar nenhuma verificação científica, "em palavras mais humildes, por que não houve autópsia". E acrescentava:

A Igreja nada tem a temer; portanto, nada tem a perder. Ao contrário, teria muito a ganhar. Saber agora de que o Papa morreu é um fato histórico legítimo, parte da nossa história visível, não afeta por qualquer forma o mistério espiritual de sua morte. O corpo que deixamos para trás, quando morremos, pode ser compreendido com nossos parcos instrumentos e não passa de um refugo. A alma já está, ou melhor, sempre esteve, dependente de outras leis, que não são humanas, e assim permanecem inescrutáveis. Não transformemos em mistério um segredo a guardar por razões terrenas. Devemos reconhecer a insignificância de nossos segredos. Não declaremos sagrado o que não é.

Enquanto os 15 médicos do serviço de saúde do Vaticano recusavam-se a comentar se era ou não desejável efetuar autópsias em Papas mortos, Edoardo Luciani, voltando da Austrália, não ajudou a posição do Vaticano ao ser interrogado por jornalistas sobre a saúde do irmão:

No dia seguinte à cerimônia de entronização, perguntei a seu médico particular como ele estava, levando-se em consideração toda a tensão a que estava sujeito agora. O médico tranqüilizou-me, garantindo que meu irmão gozava de excelente saúde e seu coração estava em bom estado.

Indagado se o irmão já sofrera alguma vez de problemas cardíacos, Edoardo respondeu:

— Absolutamente nenhum, ao que eu saiba.

Esses comentários não combinavam com a fantasia promovida pelo Vaticano.

Na segunda-feira, 2 de outubro, a controvérsia sobre a morte do Papa assumira proporções internacionais. Na França, em Avignori, o Cardeal Silvio Oddi descobriu-se pressionado por muitas perguntas. Como um cardeal italiano, ele não podia revelar aos franceses os verdadeiros fatos? Oddi disse que o Colégio de Cardeais "não examinará de jeito nenhum a possibilidade de uma investigação, não aceitará interferência de quem quer que seja e nem sequer discutirá o assunto

E concluiu:

— Sabemos com toda certeza que a morte de João Paulo 1 ocorreu porque seu coração parou de bater por causas perfeitamente naturais.

O Cardeal Oddi realizara uma grande façanha médica, diagnosticando sem uma autópsia o que só se pode determinar dessa forma.

Enquanto isso, os protestos do Padre Lorenzi e de outros que serviram ao Papa, sobre uma mentira em particular, finalmente produziram resultados. O Vaticano anunciou:

Depois das verificações necessárias, estamos agora em condições de informar que o Papa, ao ser encontrado morto na manhã de 29 de setembro, tinha nas mãos determinados papéis, contendo seus escritos pessoais, como homilias, discursos, reflexões e diversas anotações.

Quando o Vaticano anunciara anteriormente que Luciani tinha nas mãos A Imitação de Cristo, o Padre Andrew Greeley registra em seu livro, Como se Fazem os Papas: "Alguns repórteres riram abertamente."

Os papéis, detalhando as mudanças cruciais que Luciani estava prestes a fazer, sofreram metamorforses extraordinárias ao longo dos anos: um relatório sobre a Igreja na Argentina; anotações para o seu próximo discurso no Angelus; sermões feitos em Belluno, Vittorio Veneto e Veneza; uma revista paroquial; o discurso que faria aos jesuítas (que foi encontrado, na realidade, em sua mesa de trabalho); um relatório escrito pelo Papa Paulo, Quando um Chefe de Estado morre nas circunstâncias de Luciani, as últimas coisas que ele escreveu ou leu são de interesse mais do que meramente acadêmico. De mais de cinco fontes diferentes obtive a confirmação de que Luciani tinha nas mãos suas anotações pessoais sobre as diversas mudanças que pretendia fazer. Duas dessas fontes são diretamente do Vaticano; as outras três vieram de fora, de pessoas que não residem no Vaticano. Com o Vaticano defendendo oficialmente a versão de que Luciani tinha nas mãos A Imitação de Cristo, a máquina curial começou a mostrar sinais de tensão,

A tensão tornou-se ainda maior quando a imprensa mundial começou a comentar diversos aspectos desconcertantes da tragédia. Muitos observadores acharam que era errado não haver ninguém para acompanhar o bem-estar de um Papa do anoitecer até a manhã seguinte. Parecia um absurdo que o Dr. Renato Buzzonetti trabalhasse principalmente num hospital de Roma e assim não pudesse garantir uma disponibilidade absoluta para atender ao Papa. Se os observadores conhecessem toda a ineficiência do Vaticano, a indignação seria ainda maior. Os fatos completos demonstram não apenas o potencial para uma morte natural prematura mas também as condições para um assassinato.

Na Espanha, assim como em outros países, a controvérsia transformou-se num debate público. O Professor Rafael Gambra, da Universidade de Madri, foi um dos muitos que lamentaram estar o Vaticano "fazendo coisas ao estilo italiano ou ao estilo florentino da Renascença". Clamando por uma autópsia, Gambra manifestou temores de que um Papa disposto a restaurar uma disciplina tão necessária na Igreja pudesse ter sido assassinado,

Na Cidade do México, o Bispo de Cuernavaca, Sergio Arothco, exigiu publicamente uma autópsia, declarando que isso seria útil, na minha opinião e na do Cardeal Miranda". O bispo determinou que uma proclamação detalhada fosse lida em todas as igrejas de sua diocese. A máquina do Vaticano entrou em ação rapidamente. A proclamação detalhada, como muitas outras coisas nesse caso, desapareceu por completo da face da terra. Quando o Vaticano acabou de trabalhar o Cardeal Miranda, ele pôde declarar, ao chegar a Roma, que não tinha absolutamente qualquer dúvida sobre a morte do Papa.

A 3 de outubro, enquanto o povo continuava a passar pelo corpo do Papa, numa média de 12 mil pessoas por hora, a controvérsia se tornou ainda mais acesa. O testamento de Albino Luciani desapareceu, mas, por seu extraordinário comportamento, o Vaticano garantia-lhe um legado amargo. Um Papa com a capacidade de falar abertamente, com absoluta objetividade e simplicidade, era envolvido na morte pela fraude e desonestidade. Obviamente a perda sentida pelas pessoas comuns era enorme. No Vaticano, não houve praticamente qualquer reconhecimento a esse sentimento disseminado. Ao contrário, a preocupação era uma furiosa ação de retaguarda, não pela memória de Albino Luciani, mas para proteger aqueles que se apresentavam como suspeitos de cumplicidade em seu assassinato.

Sacerdotes não-curiais estavam agora debatendo nos jornais os méritos e deméritos de uma autópsia. Os mestres e observadores criticaram severamente o Vaticano por sua obstinação. Mas o que era absolutamente evidente, como Vittorio Zucconi ressaltou em Corriere della Sera. era que, "por trás das dúvidas sobre a morte do Papa, há uma profunda insatisfação com as ‘versões oficiais"’.

A organização tradicionalista cristã conhecida como Civilita Christiana expressou como se sentia profundamente insatisfeita. O secretário Franco Antico revelou que apresentara um apelo oficial para um completo inquérito judicial sobre a morte do Papa João Paulo I ao tribunal da Cidade do Vaticano.

A decisão de apresentar o apelo e os motivos para isso ganharam manchetes no mundo inteiro. Antico citou diversas contradições que emergiram das informações do Vaticano. O grupo queria não apenas uma autópsia, mas um completo inquérito judicial. Antico disse:

Se o Presidente Carter morresse em circunstâncias similares, o povo americano certamente exigiria uma explicação.

Antico declarou à imprensa que sua organização aventara inicialmente a possibilidade de uma acusação formal de que o Papa fora assassinado por pessoa ou pessoas desconhecidas. Exibindo um exemplo maravilhoso da complexidade da mente italiana, ele disse que se abstiveram de tal providência porque ‘não estamos procurando um escândalo". A Civilita Christiana também encaminhara seu pedido ao Cardeal Confalonieri, Decano do Sacro Colégio. Algumas das questões que eles levantaram foi o prolongado intervalo entre a descoberta do corpo e o anúncio público da morte, um Papa aparentemente trabalhando até na cama sem que houvesse ninguém disponível para cuidar de seu bem-estar e o fato de que não fora apresentado o atestado de óbito. Nenhum médico do Vaticano, através de um atestado de óbito oficial, assumiu publicamente a responsabilidade do diagnóstico da causa mortis de Albino Luciani.

Os partidários do rebelde Arcebispo Marcel Lefebvre, que já haviam proclamado que Luciani morrera porque Deus não o queria como Papa, anunciaram agora, por intermédio do braço direito do cardeal, Abade Ducaud-Bourget, uma teoria diferente: "É difícil acreditar que a morte tenha sido natural, levando-se em consideração todos os demônios que habitam o Vaticano."

Tendo sido obrigado anteriormente a retirar a declaração de que as autopsias papais eram especificamente proibidas, o Vaticano defrontou-se na terça-feira, 3 de outubro, com os esforços de investigação de alguns tenazes repórteres italianos. A imprensa revelou, por exemplo, que já se efetuara autópsias em Papas. Foi o caso de Pio VIII, que morreu a 30 de novembro de 1830. O diário do Príncipe Dom Agostini Chigi registrou que na noite seguinte foi feita uma autópsia no corpo. O resultado dessa autópsia é oficialmente desconhecido porque o Vaticano jamais admitiu que tenha sido efetuada. Na verdade, além de alguns problemas e deficiências nos pulmões, todos os órgãos se encontravam em perfeitas condições. Suspeitara-se que o Papa fora envenenado.

Naquela noite, 3 de outubro, às 19:00, ocorreu um estranho incidente. Os portões da Basílica de São Pedro já haviam sido fechados ao público naquele dia. A’ basílica ficou deserta, exceto pelos quatro guardas suíços postados nos cantos do catafalco, a tradicional proteção de 24 horas por dia concedida ao corpo de um Papa morto. As 19:45, um grupo de cerca de 150 peregrinos de Canale d’Agrodo, o povoado de Albino Luciani, acompanhado pelo Bispo de Belluno, foi introduzido na basílica por uma entrada lateral. Os peregrinos acabavam de chegar a Roma e receberam uma permissão especial do Vaticano para entrarem na basílica, depois do fechamento oficial para o dia, a fim de prestarem suas últimas homenagens a um homem que muitos conheceram pessoalmente. Mas alguém na Cidade do Vaticano, com planos pessoais em relação ao corpo do Papa, não foi avisado disso. Poucos minutos depois de entrarem na basílica, os peregrinos foram expulsos sem a menor cerimônia para a Praça de São Pedro,

Autoridades do Vaticano apareceram, junto com alguns médicos. Todos os demais receberam ordens para saírem. Os quatro guardas suíços também foram dispensados. Enormes biombos vermelhos foram colocados em torno do corpo, a fim de impedir que qualquer espectador, que por acaso ainda se encontrasse no interior da basílica, visse o que os médicos faziam. Esse exame médico não anunciado prolongou-se até as 21:30. Depois que foi concluído, alguns peregrinos de Canale d’Agrodo, que permaneceram do lado de fora, perguntaram se não poderiam finalmente prestar suas últimas homenagens ao corpo. O pedido foi negado.

Por que foi feito esse exame a menos de 24 horas do funeral? Muitos jornalistas não tiveram qualquer dúvida a respeito. Houvera uma autópsia.

O Vaticano finalmente tomara providências para apaziguar a ansiedade pública? Se foi isso, então as declarações subsequentes do Vaticano sobre esse exame médico inexoravelmente à conclusão de que confirmaram-se os temores de que o Papa fora assassinado,

Não houve qualquer anúncio oficial depois do exame. Apesar de pressionado com perguntas pelos meios de comunicação, o serviço de imprensa do Vaticano continuou a manter um silêncio total sobre o que ocorrera na Basílica de São Pedro, até o momento em que o Papa foi sepultado. Somente depois é que apresentou sua versão. Antes, extra-oficialmente, informara à agência noticiosa italiana ANSA que o exame médico fora uma verificação normal do estado de preservação do corpo, efetuado pelo Professor Gerin e Arnaldo e Ernesto Signoracci, entre outros. A ANSA foi também informada que haviam sido aplicadas mais injeções do fluido embalsamador.

Quando finalmente se manifestou em termos oficiais, o serviço de imprensa do Vaticano reduziu a duração do exame de 90 para 20 minutos. Declarou também que se constatara que tudo estava em ordem e que depois os peregrinos de Canale d’Agrodo receberam permissão para retornar à basílica. Além dos erros ou mentiras deliberadas na declaração oficial, há outros fatos inquietantes. O Professor Cesare Gerin, ao contrário do que disseram os informantes do Vaticano interrogados pela ANSA, não estava presente. Além disso, os irmãos Signoracci, entrevistados por mim, garantiram que também não se achavam presentes durante essa bizarra ocorrência, Era uma verificação da preservação do corpo sem os preservadores.

Se, como muitos acreditam, foi realmente efetuada uma autópsia, até mesmo uma autópsia parcial, pois em 90 minutos não se poderia realizar todos os processos padronizados de um post mortem completo, então os resultados, se negativos, certamente seriam anunciados com estardalhaço. Que outra maneira melhor de silenciar os rumores? O Corriere della Sera informou que, "no último momento, um famoso médico da Universidade Católica juntou-se à equipe especial". Posteriormente, o "famoso médico" desvaneceu-se na neblina matutina que se elevava do Tibre.

O psicólogo católico Rosario Mocciaro, comentando o comportamento dos homens que tinham a incumbência de controlar a Igreja Católica durante aquele período de trono vazio, assim descreveu a situação:

Houve uma espécie de omertá (silêncio) como na Máfia, disfarçada de caridade cristã e protocolo.

Enquanto isso, continuava o diálogo de amor que Albino Luciani inspirara, entre ele próprio e o povo. Ignorando a chuva contínua, quase 100 mil pessoas se concentraram na Praça de São Pedro para assistir à missa campal de réquiem, no dia 4 de outubro, Quase um milhão de pessoas passaram junto ao corpo durante os quatro dias anteriores. A primeira das três leituras, tirada do Apocalipse de São João, terminava com as seguintes palavras: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o principio e o fim. Eu darei água do poço da vida para quem esteja com sede."

O corpo de Albino Luciani, hermeticamente encerrado em três caixões, de cipreste, chumbo e ébano, foi para o seu lugar de repouso final, dentro de um sarcófago de mármore, na cripta da Basílica de São Pedro. Mesmo enquanto seus restos mortais, ao frio crepúsculo romano, iam ocupar seu lugar entre João XXIII e Paulo VI, a discussão continuou, todos querendo saber se antes de sua morte não haviam dado a Albino Luciani alguma coisa além de água do poço da vida.

Muitas pessoas permaneceram perturbadas pela ausência de uma autópsia, entre as quais o próprio médico particular de Luciani, Giuseppe Da Ros. O fato de que o próprio médico particular do Papa achava que "podia ser oportuno determinar a causa da morte cientificamente" é bastante significativo.

Com o Papa encerrado dentro de três caixões, seria praticamente impossível persuadir o Vaticano a mudar de idéia. O pedido formal da Civilita Christiana ao Tribunal do Vaticano foi julgado por um único magistrado, Giuseppe Spinelli. Mesmo que ele quisesse que houvesse uma autópsia e uma investigação completa, seria muito difícil superar o poder do Vaticano e dos homens que o controlavam,,, homens que alegam, como um "fato" histórico, que eles e seus antecessores têm quase dois mil anos de prática na direção da Igreja Católica.

Era perfeito para os jesuítas compararem a morte de Luciani a uma flor no campo que se fecha à noite ou para os franciscanos falarem na morte como sendo um ladrão na calada da noite. Os que não tinham aspirações estéticas continuaram a procurar por uma explicação mais prática. Podia-se encontrar céticos nos dois lados do Tibre, Entre os mais perturbados no Vaticano estava o grupo que conhecia ao verdade sobre a descoberta do corpo pela Irmã Vincenza. A preocupação se avolumava, à medida que aumentavam as mentiras oficiais. Com o Papa sepultado, vários deles acabaram se manifestando. Inicialmente, falaram à agência noticiosa ANSA; recentemente, conversaram comigo. Na verdade, foram diversos membros desse grupo que me convenceram a investigar a morte de Albino Luciani.

No dia 5 de outubro, pouco depois da hora do almoço, eles começaram a fornecer à ANSA os detalhes sobre a descoberta do corpo pela Irmã Vincenza, As informações até identificavam corretamente que os papéis que Luciani tinha nas mãos, por ocasião de sua morte, referiam-se "a determinadas nomeações na Cúria Romana e no episcopado italiano". O grupo também revelou que o Papa discutira o problema da recusa de Baggio em aceitar o Patriarcado de Veneza. Quando a história explodiu sobre o público, a reação do Vaticano foi a mesma que Monsenhor Henri Riedmatten tivera ao ser confrontado com indagações sobre o documento de Luciani a respeito do controle da natalidade. Como já foi dito, Riedmatten descartou esse documento como "uma fantasia". Agora, confrontado por centenas de repórteres, literalmente, exigindo um comentário oficial sobre as últimas informações, o diretor do serviço de imprensa do Vaticano, Padre Pancirolli, limitou-se a uma negativa lacônica:

— São notícias destituídas de qualquer fundamento,

Entre os que não se deixaram embair por essa negativa estavam muitos dos cardeais que ainda chegavam a Roma para o próximo Conclave. Na reunião da Congregação de Cardeais, realizada a 9 de Outubro, a inquietação deles aflorou. O Cardeal Villot, em particular, descobriu-se sob um ataque cerrado. Como Camerlengo, ele tomara as decisões e autorizara as declarações que indicavam claramente que a morte de Luciani fora seguida por uma operação para encobrir os fatos. Muitos dos Príncipes da Igreja não-italianos queriam saber exatamente o que estava sendo encoberto. Queriam saber por que a causa da morte não fora determinada com precisão, por que fora apenas presumida. Queriam saber por que não houvera um esclarecimento maior sobre a hora da morte e por que um médico não assumira a responsabilidade oficial de pôr seu nome num atestado de óbito que pudesse ser divulgado ao público.

Não foram bem-sucedidos em seus esforços para obter essas informações. O novo Conclave se aproximava rapidamente, graças à decisão tomada por uma minoria, no dia seguinte à descoberta do cadáver do Papa. Os cardeais começaram a se concentrar nas manobras e intrigas para a escolha do homem que sucederia Luciani, uma indicação de que a Cúria Romana, com uma experiência herdada de quase dois mil anos, aprendera realmente muita coisa com seus antecessores.

A 12 de outubro, menos de 48 horas antes do Conclave seguinte, o Vaticano fez a sua declaração final a respeito da morte de Luciani, Foi apresentada pelo chefe do serviço de imprensa do Vaticano, Padre Romeo Panciroli:

Ao final dos Novemdiales, quando entramos numa nova fase de Sede Vacante, o diretor do Serviço de Imprensa da Santa Sé expressa palavras de firme desaprovação aos que, nos últimos dias, se regozijavam em espalhar estranhos rumores sem qualquer confirmação, freqüentemente falsos e às vezes alcançando o nível de graves insinuações, ainda mais sérios pelas repercussões que podem ter nos países em que as pessoas não estão acostumadas a formas de expressão excessivamente informais. Nestes momentos de luto e pesar para a Igreja, espera-se um comedimento maior e um respeito maior.

Ele repetiu que "tudo o que aconteceu foi fielmente informado no comunicado da manhã de sexta-feira, 29 de setembro, que conserva sua absoluta validade e que refletiu o atestado de óbito assinado pelo Professor Mário Fontana e pelo Dr. Renato Buzzonetti de tal forma que tornou a sua divulgação desnecessária".

Ele também ressaltou, com satisfação, "a integridade de muitos profissionais, que num momento difícil para a Igreja demonstraram uma leal participação nos acontecimentos e informaram a opinião pública com noticias comedidas e objetivas".

A fim de evitar "graves insinuações", farei em vez disso uma declaração categórica: Estou absolutamente convencido de que o Papa João Paulo I, Albino Luciani, foi assassinado.

Até hoje, o atestado de óbito não foi divulgado; apesar dos pedidos insistentes, o Vaticano sempre se recusou a me fornecer uma cópia. Não resta a menor dúvida de que declara que a causa da morte foi infarto do miocárdio. A recusa sistemática em divulgar o atestado de óbito só pode significar que nenhum médico está disposto a aceitar publicamente a responsabilidade legal pelo diagnóstico da causa da morte de Albino Luciani. O fato do diagnóstico se basear apenas num exame externo, o que é inaceitável medicamente, pode ter alguma relação com essa recusa do Vaticano.

Não ter havido uma autópsia a despeito da preocupação internacional é prova irrefutável de que o Papa foi assassinado. Se Luciani morreu naturalmente por que então não se efetuar uma autópsia que acabasse com os rumores?

E evidente que, pelo menos oficialmente, o Vaticano não sabe quando Albino Luciani morreu ou o que o matou. "Presumivelmente em torno das 23:00" e "morte súbita que pode ser relacionada com infarto do miocárdio" são expressões que demonstram um alto grau de especulação. O corpo de um mendigo encontrado nas sarjetas de Roma mereceria mais cuidados e atenções profissionais.

O escândalo se torna ainda maior quando se sabe que o médico que fez o exame jamais cuidara de Albino Luciani em vida. Conversei com o Dr. Renato Buzzonetti em Roma e perguntei quais os medicamentos que o Papa tomara nas semanas anteriores à sua morte. Ao que ele respondeu:

— Não sei que remédios o Papa tomava. Não era seu médico. A primeira vez em que o vi numa relação médico/paciente foi por ocasião de sua morte.

O Dr. Seamus Banim é um cardiologista com mais de 20 anos de experiência profissional. E consultor do St. Bartholomew’s Hospital, em Londres, e do Nuffield Hospital. Durante uma entrevista declarou:

Para um médico, diagnosticar infarto do miocárdio como causa da morte é errado. Eu não ficaria satisfeito. Se ele conhecesse o paciente antes, se o tivesse tratado por algum tempo, se observasse o homem vivo depois do que provaria ser um ataque cardíaco fatal, então o diagnóstico poderia ser permissível. Mas se não conhecesse o paciente antes, ele não teria o direito de fazer esse diagnóstico. E assumir um risco muito grande e ele não poderia fazer um diagnóstico assim na Inglaterra. Tal diagnóstico só pode ser apresentado depois de uma autópsia.

Temos, portanto, uma conclusão altamente suspeita sobre a causa da morte e uma conclusão igualmente suspeita sobre a hora da morte.

O Vaticano disse ao mundo que acontecera ‘presumivelmente por volta das 23:00 do dia 28 de setembro o Dr. Derek Barrowcliff, um ex-patologista do Ministério do Interior Britânico, com mais de 50 anos de experiência, explicou:

A menos que haja uma série de registros da temperatura no reto, somente um homem muito corajoso dirá que a morte ocorreu numa hora determinada. E precisa haver mesmo muita coragem para se fazer tal afirmativa.

O rigor mortis tende a ficar patente depois de cinco ou seis horas, dependendo de diversos fatores, inclusive a temperatura ambiente. Uma sala quente faz com que ocorra mais depressa, a temperatura mais baixa torna-o mais lento.

Pode levar até 12 horas para se desenvolver, permanece por outras 12 horas e depois começa a enfraquecer, nas 12 horas subseqüentes. Este cálculo é bastante aproximado. Mas se o rigor mortis está presente, pode-se presumir que a morte ocorreu em torno de seis horas antes ou mais. Claro que a temperatura do fígado (que não foi verificada) poderia ajudar. Se a pessoa examina o corpo cuidadosamente num sentido médico-legal. vai perceber diferentes graus de rigor. O processo é suave. Assim, se o corpo estava rígido às 6:00 da manhã, seria razoável supor que a morte ocorrera às 23:00 da noite anterior. Mas poderia igualmente ter ocorrido às 21:00.

Portanto, dois fatos foram estabelecidos incontestavelmente:

  1. Não sabemos o que causou a morte de Luciani.
  2. Não sabemos com qualquer grau de certeza a que horas ele morreu.

Quando o Papa Paulo VI morreu, em agosto de 1978, estava cercado por médicos, secretários e diversos sacerdotes. Considere-se os detalhes contidos no boletim oficial que foi publicado e assinado pelos médicos Mário Fontana e Renato Buzzonetti.

No transcorrer da última semana, o Santo Padre Paulo VI sofreu um sério agravamento dos dolorosos sintomas decorrentes do artritismo que tem há muitos anos. Na tarde de sábado, 5 de agosto, teve febre por causa do repentino ressurgimento de cistite aguda. Depois de uma consulta ao Professor Fabio Prosperi, urologista-chefe dos Hospitais Unidos de Roma, foi iniciado o tratamento conveniente. Durante a noite de 5 para 6 de agosto e durante todo o domingo. 6 de agosto, o Santo Padre teve febre alta. Por volta das 1 8:15 do domingo, 6 de agosto, observou-se uma grave e progressiva alta da pressão arterial. Seguiram-se rapidamente os sintomas típicos de insuficiência do ventrículo esquerdo, com o quadro clínico de edema pulmonar agudo.

Apesar de todos os cuidados médicos que foram prontamente aplicados, Sua Santidade Paulo VI faleceu às 21:40.

Na ocasião da morte, os médicos responsáveis indicaram o seguinte quadro clínico geral: poliartritismo arteriosclerótico cardiopático, pielonefrite crônica e cistite aguda. Causa imediata da morte: crise hipertensiva, insuficiência do ventrículo esquerdo, edema pulmonar agudo. Menos de dois meses depois o sucessor de Paulo morria como uma flor do campo que se fecha à noite" sem um único médico por perto.

Em contraste com a pletora de mentiras que se despejou da Cidade do Vaticano sobre a história médica de Luciani, vale a pena enunciar os fatos.

Na infância ele apresentou sinais de tuberculose, os sintomas sendo a dilatação de gânglios no pescoço. As amígdalas foram removidas aos 11 anos. Tirou as adenóides aos 15 anos. Essas operações foram realizadas no hospital-geral de Pádua. Em 1945 e outra vez em 1947, foi internado num sanatório, com suspeita de tuberculose. Os exames nas duas ocasiões apresentaram resultados negativos e os problemas pulmonares foram diagnosticados como bronquite. Teve uma total recuperação e as radiografias subseqüentes foram negativas. Foi operado em abril de 1964 por cálculos biliares e bloqueie) no cólon; em agosto, foi operado de hemorróidas. O Professor Amedeo Alexandre, que realizou as duas operações, no Hospital Pordenone, conferiu suas fichas médicas do período anterior. Ele me informou que Albino Luciani não sofria de quaisquer outros males e que todos os exames médicos, antes e depois das operações, confirmaram que gozava de perfeita saúde. Os exames incluíram radiografias e eletrocardiogramas, que detectam anomalias do coração. O professor declarou também que a recuperação de seu paciente das duas pequenas intervenções cirúrgicas foi total. Disse ele:

— Tornei a examiná-lo no verão seguinte à segunda operação. Ele continuava em excelente saúde.

Um exemplo de como Albino Luciani era saudável pode ser encontrado em sua rotina diária, que me foi descrita por um colega seu na ocasião, Monsenhor Taferal. E praticamente idêntica à rotina em Veneza e posteriormente no Vaticano. Ele acordava entre 4:30 e 4:45 e ia se deitar cerca de 16 horas depois, entre 21:00 e 22:00. Monsenhor Taferal informou-me que Luciani, além de muitas outras funções, fazia visitas pastorais em todas as suas 180 paróquias e já estava concluindo uma segunda ronda quando foi promovido e transferido para Veneza. Sofreu um coágulo na veia central da retina do olho esquerdo, em dezembro de 1975. Não houve necessidade de uma operação. O especialista que o tratou, Professor Rama, disse-me:

O tratamento foi apenas de caráter geral, baseado em anticoagulantes e medicamentos brandos para dilatar os vasos sangüíneos, além de alguns dias de repouso no hospital, o que era muito importante. Os resultados foram quase imediatos, com uma completa recuperação da visão e do estado geral. Ele nunca foi o que se chamaria de um "colosso físico", mas era fundamentalmente saudável e os exames feitos em diversas ocasiões jamais revelaram problemas cardíacos.

O Professor Rama ressaltou que Luciani tinha pressão baixa, que em circunstâncias normais oscilava em torno de 120/80. Consultei 23 médicos e todos consideraram que a pressão era "o melhor diagnóstico possível para expectativa de vida".

Durante o tempo que passou em Veneza, Luciani ficava de vez em quando com os tornozelos inchados. Seus médicos acharam que isso era decorrente da pressão baixa e da necessidade de mais exercício. Em julho, ele passou 10 dias internado no Instituto Stella Maris, no Lido, a fim de prevenir uma possível recorrência dos cálculos biliares. Foi submetido a uma dieta branda e fazia amplas caminhadas pela manhã e ao entardecer, a fim de atenuar a ligeira inchação. Fez um check-up médico depois disso e foi constatado que gozava de excelente saúde.

Essa é a história médica total de Albino Luciani, durante sua vida inteira. Está baseada em entrevistas com os médicos que cuidaram dele, parentes, amigos e colegas. Deve ser comparada com as mentiras que saíram do Vaticano sobre sua saúde. A questão maior que aflora imediatamente a qualquer um é: Por que todas as mentiras? Quanto mais se investiga a vida de Luciani, maior se torna a convicção de que ele foi assassinado. Durante cinco anos, as mentiras do Vaticano sobre o falecido Papa permaneceram incontestadas e sem confirmação. A Cúria Romana queria que o mundo acreditasse que Albino Luciani era um simplório, quase um idiota, um homem gravemente doente, cuja eleição foi uma aberração e cuja morte natural foi uma misericordiosa libertação para a Igreja. Esperava assim encobrir o assassinato. Os últimos 400 anos nada significaram. Estamos de volta aos tempos dos Bórgias.

Enquanto os meios de comunicação do mundo inteiro divulgavam detalhes da fantasia do Vaticano sobre a saúde de Luciani, havia muitos que, se interrogados, poderiam oferecer um quadro diferente.

Eu o conhecia desde 1936. Além dos dois períodos de internamento por suspeita de tuberculose, ele era perfeitamente saudável. Teve uma recuperação completa depois do segundo internamento. Posso garantir, com absoluta certeza, que até 1958, quando ele se tornou Bispo de Vittorio Veneto, não sofreu qualquer doença mais grave.

(Monsenhor Da Rif ao autor)

Sua saúde, durante o tempo qua passou em Vittorio Veneto, era excelente. Sofreu duas operações em 1964. por cálculos biliares e hemorróidas, mas teve uma recuperação completa. Sua capacidade de trabalho permaneceu a mesma. Ouvi falar de pressão baixa e pernas inchadas. Nenhuma das duas coisas ocorreu enquanto esteve aqui (em Vittorio Veneto). Encontrei-o muitas vezes depois que foi para Veneza. Estava sempre com uma ótima saúde. Entre 1958 e 1970, tirando essas duas operações, sua saúde foi perfeita.

(Monsenhor Taferal ao autor)

Nos Oito anos que passou em Veneza só vi o Cardeal Luciani acamado por doença uma vez, mas foi por uma simples gripe. O Patriarca de Veneza era muito saudável e não sofria de qualquer doença.

(Monsenhor Giuseppe Bosa, Administrador Apostólico de Veneza)

Ele não tinha absolutamente características cardiopáticas. Além do mais, sua pressão baixa deveria, pelo menos em teoria, deixá-lo a salvo de ataques cardiovasculares agudos. A única vez em que precisei aplicar-lhe um tratamento foi por uma gripe.

(Dr. Carlo Frizzerio, um médico de Veneza)

Albino Luciani não tinha coração fraco. Quem tem problemas de coração não escala montanhas, como o Patriarca fazia todos os anos, em minha companhia, de 1972 a 1977. Íamos para Pietralba, perto de Bolzano, escalávamos o Corno Bianco, de 1.500 a 2.400 metros, a uma boa velocidade,.. Nunca houve qualquer sinal de insuficiência cardíaca. Ao contrário. Em 1974, por insistência minha, foi feito um eletroencefalograma, que não registrou nada de irregular. Imediatamente antes de partir para o Conclave, em agosto de 1978, e depois de sua visita à Clínica Stella Maris, ele fez um check-up médico completo. Os resultados foram favoráveis, sob todos os aspectos. E é um absurdo a teoria de stress ou exaustão. Seu dia de trabalho no Vaticano não era maior do que aqui em Veneza. Além disso, ele tinha mais assistentes no Vaticano, muito mais ajuda e não sei quantos conselheiros mais. Os homens das montanhas não morrem do coração.

(Monsenhor Mano Senigaglia, secretário de Albino Luciani de 1970 a 1976, ao autor)

O Dr. Da Ros me disse: "Você tem algum remédio secreto? Albino Luciani está com uma saúde perfeita e muito mais relaxado. Quais são as drogas mágicas que está lhe dando?"

(Padre Diego Lorenzi, secretário de Albino Luciani de 1976 até sua morte, ao autor)

Todas as pessoas citadas e mais 20 outras, que conheceram Albino Luciani desde a infância, confirmaram que ele nunca fumou, bebia álcool raramente e comia com moderação. Seu estilo de vida e mais a pressão baixa não poderiam ser melhorados se desejasse evitar qualquer doença das coronárias.

Além dos médicos já referidos, que cuidaram de males específicos, havia o seu médico clínico, Dr, Giuseppe Da Ros. Seu relacionamento com Albino Luciani revela que a saúde do Papa foi constante e regularmente controlada ao longo dos últimos 20 anos de sua vida.

Da Ros era também um amigo e em Vittorio Veneto visitava Luciani todas as semanas. Em Veneza, aparecia pelo menos uma vez por quinzena, às 6:30, e ficava pelo menos 90 minutos. Tomavam juntos o café da manhã, mas as visitas eram também profissionais, além de sociais.

As visitas continuaram depois da eleição de Luciani para Papa. Da Ros fez três exames médicos completos em Luciani durante os 33 dias de Pontificado. O último foi no sábado, dia 23, pouco antes de Luciani deixar o Vaticano para o seu primeiro compromisso público em Roma, um encontro com o Prefeito Argan, em que receberia oficialmente a Igreja de São João de Latrão uma autêntica provação que certamente agravaria qualquer problema físico de que o Papa sofresse. Da Ros encontrou o paciente em tão boa saúde que sugeriu a Luciani que, em vez de voltar dentro de duas semanas, como fora inicialmente combinado, só tornaria a aparecer em três semanas.

Da Ros encontrou-se com o Dr. Buzzonetti, do serviço médico do Vaticano, nesse mesmo dia. Conversaram sobre a história médica de Luciani. Obviamente, o Papa precisaria de um clínico geral baseado em Roma, mas os dois médicos concordaram que não havia uma urgência imediata. Por mais algum tempo, Da Ros continuaria a vir periodicamente de Vittorio Veneto.

Ofato de o médico que cuidava dele há mais de 20 anos e a equipe médica do Vaticano concordarem que o clínico geral do Papa podia residir a quase 600 quilômetros de Roma é provavelmente a evidência esclarecedora que se poderia imaginar. Sendo essa disposição satisfatória para todos os envolvidos, só podemos chegar a duas conclusões: o Dr. Da Ros e os médicos do Vaticano foram culpados de uma terrível negligência e não tinham competência para exercer a profissão ou então Albino Luciani era um homem perfeitamente saudável, sem qualquer doença, por ocasião de sua morte. ‘Levando-se em consideração os cuidados e atenções que o Dr. Da Ros sempre dispensou a Luciani, para não falar de sua afeição genuína pelo paciente, a segunda conclusão é a óbvia. Da Ros ficou "chocado, atordoado e perplexo" quando foi informado da morte do Papa.

O Dr. Da Ros declarou que encontrou o Papa com tão boa saúde que no futuro só viria a cada terceiro sábado, em vez de no segundo. Não havia necessidade disso, pois o Papa estava muito bem. Ele se encontrava em perfeitas condições na última noite. Durante o seu Pontificado, não ocorreu o tal problema de inchaço das pernas. Ele fazia seus exercícios diariamente, nos jardins do Vaticano ou no grande salao.

(Padre John Magee, secretário do Papa João Paulo 1 de final de agosto de 1978 até sua morte, ao autor)

Em grande parte por causa de sua amizade com o Dr. Da Ros, poucos homens podem alegar ter recebido uma atenção médica maior do que Luciani, com visitas semanais e depois quinzenais por mais de 20 anos. A uma atenção médica tão intensa seguiu-se uma morte súbita e inesperada, acompanhada por um falso diagnóstico e a omissão na apresentação do atestado de óbito.

Como então explicar o inexplicável? Uma teoria popular por ocasião da morte do Papa foi a de ter sido causada pela tensão. Não é uma teoria que mereça credibilidade por muitos dos médicos que entrevistei. Não foram poucos os que se mostraram contundentes com o que classificaram de "negócio do estresse", uma indústria que ganha milhões explorando os medos populares. Um excesso de relação sexual causa o estresse. Pouca atividade sexual causa estresse. Brincar com as máquinas eletrônicas causa estresse. Exercício em demasia causa estresse. Pouco exercício causa estresse.

Examino muitas pessoas com sintomas de estresse, mas que não têm qualquer problema nas coronárias. São insuportáveis. Trabalham demais, seis ou sete dias por semana, absorvem-se totalmente no trabalho, perdem a perspectiva. Minha impressão é que, depois de algum tempo, acumulam, esse tremendo saldo negativo, se não relaxarem. Procuram um neurologista para as dores de cabeça, um especialista para distúrbios estomacais como úlceras, vêm a mim por causa das dores no peito. Nunca estão sofrendo realmente de alguma doença cardíaca. Aqui, no St. Bartholomew, temos uma unidade coronária das mais movimentadas. Mas não são os jovens brilhantes da cidade que temos como pacientes e sim os carregadores e mensageiros. Se o mito do estresse tivesse alguma validade, não teríamos a mudança na mortalidade que estamos testemunhando. E o que estamos vendo é as classes superiores reduzirem seus ataques coronários, enquanto aumentam os das classes mais baixas. Os fatores de risco, se você pertence à classe social cinco, são muito maiores do que se você está na classe social um ou dois. A vasta quantidade de pessoas com sintomas de estresse não se torna em problemas de coronárias; apenas apresentam insólitas dores no peito, respiração ofegante, reações singu- lares. Nunca é o coração. Precisam apenas ser tranquilizadas. E não se pode dizer-lhes quais são os verdadeiros sintomas cardíacos, caso contrário voltarão pouco depois a se queixarem deles.

(Dr. Seamus Banim ao autor)

As pesquisas indicam que o estresse pode às vezes levar à doença cardíaca e até mesmo a um ataque cardíaco fatal. A diferença é que a doença cardíaca causada pelo estresse não ocorre da noite para o dia. Os sintomas se manifestam, por meses ou mesmo anos. Nenhum desses sintomas jamais foi registrado por qualquer dos médicos que cuidaram de Albino Luciani ao longo de toda a sua vida.

O Vaticano mentiu quando declarou que uma autópsia no Papa era proibida pela regras do Vaticano. O Vaticano mentiu quando declarou que uma autópsia num Papa nunca fora efetuada antes.

O filete de mentiras se transformou numa enxurrada.

O testamento do Papa. A saúde do Papa. O momento de seu embalsamamento. A natureza exata dos exames médicos que foram feitos no corpo antes do funeral. O Vaticano mentiu sobre cada um e todos esses aspectos.

Considere-se o testamento de Albino Luciani. Nenhum testamen- to jamais foi apresentado ou divulgado. A família de Luciani foi informada de que não existia qualquer testamento. E, no entanto...

Claro que existe. Não conheço a extensão ou sequer o que diz. Lembro que o Papa falou a respeito duas semanas antes de sua morte. Edoardo, o irmão, comentou com grande entusiasmo o testamento de Paulo VI. "O meu testamento é de outro tipo e menos solene", disse o Papa Luciani. Depois, mostrando um pequeno espaço entre o indicador e o polegar, ele acrescentou: "O meu é assim." (Padre Diego Lorenzi ao autor)

Quando Cardeal de Veneza, ele elaborou um testamento de três linhas que deixava tudo para o seu seminário em Veneza e designava o seu bispo auxiliar como executor. Quando o bispo auxiliar morreu, Luciani riscou o seu nome e o substituiu pelo meu, mostrando-me o testamento. (Padre Mario Senigaglia ao autor)

Quando ele morreu, seu testamento nunca foi encontrado, embora eu tenha certeza de que o fizera. Algum dinheiro que ele tinha numa conta em Veneza foi enviado para a minha família, porque em teoria ele morreu intestado. Mandamos o dinheiro para a diocese de Veneza, sabendo que essa era a sua intenção. Uma parte foi para seu sucessor e outra para obras da caridade específicas. Sei que havia um testamento. Quando ele foi de Belluno para Vittorio Vene- to, destruiu o testamento que tinha e fez um novo. Teve a mesma iniciativa quando foi para Veneza. E quando ele se tornou Papa, o Padre Carlo, um dos seus secretários em Veneza, recebeu o pedido para que levasse o testamento ao Vaticano. Dom Carlo o levou. Deveria haver o testamento datando dos 33 dias ou então o testamento de Veneza. Ele sempre foi meticuloso nessas coisas. Não entendo por que não foram capazes de encontrar o testamento. (Pia Luciani ao autor)

Como já ficou estabelecido, os bens materiais não tinham o menor interesse para Luciani. Mas um testamento papal invariavelmente inclui mais do que apenas instruções sobre os bens materiais. Há sempre uma mensagem espiritual... comentários e reflexões sobre a situação da Igreja. O testamento de Albino Luciani foi destruído porque refletia os sentimentos e opiniões do Papa sobre o que descobrira naqueles 33 dias? Luciani, um escritor refinado, um dos Papas mais literários dos tempos modernos, não deixando um comentário escrito final? Não houve as últimas reflexões do Papa revolucionário?

Pode ser considerado chocante que tanta informação falsa ema- nasse diretamente do Vaticano, um lugar considerado por milhões como o lar espiritual do cristianismo. E menos chocante que homens que dedicaram a vida inteira a Jesus Cristo tivessem destruído tantas provas fundamentais? É menos chocante que o Secretário de Estado Cardeal Villot impusesse um juramento de silêncio aos membros do círculo papal? É menos chocante que Villot, agindo como virtual curador do Papa, tirasse do quarto papal o remédio, os óculos e as chinelas? Deveria remover e destruir os papéis que se encontravam na mão do Papa morto... papéis que descreviam as mudanças importantes que estavam prestes a serem feitas e que Albino Luciani discutira com o Cardeal Villot pouco antes de sua morte totalmente inesperada? Villot seria um cúmplice na conspiração para assassinar o Papa? Não resta a menor dúvida de que suas ações subseqüentes foram as de um homem determinado a encobrir a verdade sobre a morte. Não resta a menor dúvida de que ele pegou o testamento ao sentar à mesa de Luciani no estúdio papal e dar a série de telefonemas matutinos. Tendo removido os papéis da mão de Luciani, o Cardeal Villot estava obviamente determinado a não deixar qualquer vestígio das mudanças que tanto o haviam preocupado na última noite de vida do Papa. Só Deus sabe o que mais foi retirado dos aposentos papais. Sabemos com toda certeza de que os itens acima mencionados desapareceram.

O Padre Magee, as Irmãs e eu procuramos por toda parte. Não conseguimos encontrar essas coisas. Vasculhamos tudo durante a manhã de 29 de setembro. (Padre Diego Lorenzi ao autor)

Sabemos com toda certeza que esses itens estavam nos aposentos antes de Villot ser chamado. Mais do que isso, os óculos estavam no rosto de Albino Luciani. Quando Villot se retirou, as coisas haviam desaparecido.

O Vaticano mentiu quando declarou que a descoberta inicial do corpo foi feita pelo Padre Magee, "por volta das 5:30 da manhã de 29 de setembro". A Irmã Vicenza relatou-me diretamente o momento em que descobriu o Papa morto. Antes, ela usara praticamente as mesmas palavras para Monsenhor Mario Senigaglia, para a sobrinha de Luciani, Pia, e para sua irmã Nina.

Foi um milagre que eu tenha sobrevivido. Tenho um coração fraco. Toquei a campainha para chamar os secretários e depois sal para procurar as outras Irmãs e acordar Dom Diego.

Ela também me contou que, enquanto se mantinha imóvel por um momento, paralisada, a olhar para o cadáver do Papa, o despertador começou a tocar. Instintivamente, ela estendeu a mão e desligou-o.

Há um curioso fato externo que confirma a veracidade do depoimento de Irmã Vincenza. Conan Doyle pôs a sua criação fictícia, Sherlock Holmes, a comentar em determinado momento que houve algo estranho e significativo com um cachorro. Não latiu. Nos aposentos papais, havia ao lado da cama do Papa um despertador que não tocou. Interroguei os dois secretários papais e outros membros do círculo papal a respeito. Todos se mostraram inflexíveis. Na manhã em que Albino Luciani foi encontrado morto, o despertador que armava todos os dias, há muitos anos, não tocou. Estava marcado para 4:45 horas da madrugada. O corpo não foi oficialmente encontrado antes das 5:30. Diego Lorenzi, que dormia tão perto do quarto do Papa que podia acompanhar seus movimentos, não ouviu o despertador.

Quando o Papa Paulo VI morreu, em agosto de 1978, 24 horas transcorreram antes que seu corpo fosse embalsamado, de acordo com a lei italiana. Quando Albino Luciani morreu, em setembro de 1978, a lei italiana foi ignorada e o Vaticano fez o que bem queria.

O corpo de Albino Luciani foi embalsamado 14 horas depois da morte. Por que a pressa? Há indícios de que Villot desejava um embalsamamento ainda mais rápido. Há provas de que os embalsama- dores foram chamados antes mesmo que se encontrasse "oficialmente" o corpo. Se Magee encontrou o corpo "pouco depois das cinco e meia", por que então os agentes funerários do Vaticano, os Signoracci, foram chamados 45 minutos antes? A prudência foi levada a limites extremos.

A 29 de setembro, a agência noticiosa italiana ANSA, uma organização altamente respeitada, no mesmo plano que a Press Association ou a Reuters, transmitiu muitas informações sobre a morte do Papa. Uma das notícias era a seguinte: "Dois irmãos Signoracci, Ernesto e Renato (os outros dois são Cesare e Arnaldo), foram despertados ao amanhecer e às 5:00 um carro do Vaticano pegou-os em suas casas, levando-os para o necrotério do pequeno estado, onde começaram imediatamente a trabalhar."

Procurei e entrevistei o jornalista responsável por essa noticia, Mario de Francesco. Ele confirmou a acurácia de sua história, baseada numa entrevista com os Signoracci, conduzida naquele mesmo dia. Entrevistei os irmãos Signoracci em diversas ocasiões. Eles se mostram agora, cinco anos depois, meio indecisos sobre o momento em que foi feito o primeiro contato. Confirmaram que foi bem cedo na manhã de 29 de setembro. Se a história de Francesco é acurada, então temos uma situação típica da Máfia. Agentes funerários são chamados antes que se tenha um corpo.

Embalsamadores convocados antes que a causa da morte seja determinada. Por que o Vaticano haveria de querer destruir a prova mais valiosa antes que a causa oficial da morte fosse determinada?

Houve uma autópsia secreta na véspera do funeral do Papa? Tudo indica que houve um exame prolongado e detalhado. Qual teria sido o propósito? Uma verificação rotineira do embalsamamento levaria apenas alguns minutos, O que os médicos estavam fazendo por trás dos biombos, numa igreja trancada, durante quase uma hora e meia?

Deve ser registrado que o médico pessoal de Albino Luciani voou de Veneza para Roma a 29 de setembro e concordou com os médicos do Vaticano de que a causa da morte foi infarto do miocárdio. Deve igualmente ser registrado que sua opinião médica não tem o menor valor, pois observou um corpo morto há muitas horas e só efetuou um exame superficial.

Se havia um homem na Itália que estava em condições de confirmar que Albino Luciani morreu de fato de infarto do miocárdio era o Professor Giovanni Rama, o oftalmologista que tratava Luciani desde 1975 por um coágulo sangüíneo no olho esquerdo. Ele acha que o problema vascular poderia em última análise levar à morte de Luciani, mas ressalta que tal opinião médica não tem o menor valor sem uma autópsia. Se o Cardeal Villot e seus colegas mais antigos do Vaticano realmente acreditavam que Albino Luciani morrera naturalmente de um infarto do miocárdio, o Professor Rama, com mais de três anos de experiência em tratá-lo, era o homem certo a ser convocado. Ele me garantiu que não recebeu qualquer chamado do Vaticano depois da morte de Albino Luciani e comentou:

- Fiquei muito surpreso porque eles não me chamaram para examinar o corpo do Papa.

O comentário mais significativo de um médico foi certamente o atribuído ao Professor Mario Fontana. Ao que parece, ele deu a sua opinião em particular, pouco depois da morte do Papa. Mas só se tornou pública depois de sua própria morte, em 1980.

Se eu tivesse de atestar, nas mesmas circunstâncias, a morte de um cidadão comum, sem qualquer importância, teria simplesmente me recusado a permitir que fosse enterrado.

O Professor Mano Fontana era o chefe do serviço médico do Vaticano.

Como e por que a escuridão caiu sobre a Igreja Católica em 28 de setembro de 1978?

Para se determinar que houve um assassinato não é necessário estabelecer um motivo, embora sempre ajude, como qualquer policial experiente pode confirmar. Sempre há problemas quando não se encontra um motivo. Com relação à morte de Albino Luciani, porém, houve uma quantidade assustadora de motivos. Já identifiquei alguns neste livro. Também identifiquei os homens que tinham esses motivos.

O fato de três desses homens - Villot, Cody e Marcinkus - serem sacerdotes não os exclui da lista de suspeitos. Pelo menos em teoria, os homens do clero deveriam estar acima de qualquer suspeita. Deveriam estar. Lamentavelmente, no entanto, muitos têm demonstrado, desde a origem do cristianismo, a capacidade de cometer crimes horríveis. Villot, Cody, Marcinkus, Calvi, Sindona, Gelli: cada um tinha um motivo muito forte. O Cardeal Villot poderia cometer um assassinato para conservar sua posição como Secretário de Estado, proteger outros homens que também estavam prestes a ser removidos e, acima de tudo, evitar a sensação que seria inevitável quando Albino Luciani assumisse publicamente uma posição diferente na questão do controle da natalidade?

O Cardeal Cody, ajudado por algum dos seus muitos amigos no Vaticano e numa tentativa de se manter corruptamente no posto em Chicago, poderia silenciar o Papa que estava prestes a afastá-lo?

O Bispo Paul Marcinkus, na presidência de um banco comprovadamente corrupto, poderia tomar alguma providência drástica para garantir sua permanência no IOR?

É possível que um desses três homens seja culpado. As ações de Villot, depois da morte do Papa, foram certamente criminosas: destruição de provas; uma história falsa; a imposição de silêncio. Foi um comportamento que deixa muito a desejar.

E por que o Bispo Paul Marcinkus circulava pelo Vaticano tão cedo? Uma investigação policial normal exigiria muitas respostas desses três homens. Mas esses interrogatórios vitais se tornaram impossíveis cinco anos depois. Villot e Cody estão mortos, Marcinkus se esconde no interior do Vaticano. A prova mais pertinente, em defesa desses três homens, não está em seus inevitáveis protestos de inocência. E o próprio fato de serem homens do clero, homens da Igreja Católica. Dois mil anos ensinaram a homens assim a assumirem uma perspectiva a longo prazo. A história do Vaticano é a história de incontáveis Papas ansiosos em fazer reformas, mas contidos e neutralizados pelo sistema. Se a Igreja em geral e a Cidade do Vaticano assim o querem, podem e conseguem influenciar e afetar drasticamente as decisões papais. Já foi registrado como uma minoria impôs sua vontade a Paulo VI na questão do controle da natalidade. Já foi registrado como Baggio se recusou categoricamente a substituir Luciani em Veneza.

Quanto às mudanças que Luciani estava prestes a efetuar, muitos no Vaticano as teriam acolhido com satisfação, mas mesmo os que se opunham profundamente haveriam de reagir provavelmente de uma forma menos drástica que o assassinato. Mas é claro que isso não exclui Villot, Cody e Marcinkus. Na melhor das hipóteses, coloca-os no fundo da lista de suspeitos e transfere Calvi, Sindona e Gelli para o alto. Qualquer desses homens tinha condições para cometer o assassinato? A resposta é sim.

Quem assassinou Lucianni estava obviamente contando que o próximo Conclave e o próximo Papa não reativariam as últimas instruções de Luciani. Todos os seis suspeitos tinham muito a ganhar se o homem "certo" fosse eleito. Alguém mataria apenas para ganhar um mês de adiamento? Se o homem "certo" fosse eleito, esse mês se Prolongaria indefinidamente pelo futuro. Dois desses homens, Villot e Cody, estavam em condições de influenciar o próximo Conclave. Marcinkus também tinha alguma influência. E o mesmo acontecia com Calvi, Sindona e Gelli.

Foi na villa de Umberto Ortolani que um grupo de cardeais elaborou as planos finais que resultaram na eleição do Papa Paulo VI. Gelli e Ortolani, como os líderes da P2, tinham acesso a todo os pontos da Cidade do Vaticano, assim como tinham acesso também aos altos escalões do governo italiano, aos bancos e ao sistema judiciário.

Em termos práticos, como poderia ser cometido o assassinato de Albino Luciani? Era possível se infiltrar além da segurança do Vaticano? A verdade é que se podia penetrar pela segurança do Vaticano, por ocasião da morte de Luciani, com extrema facilidade... com a mesma facilidade com que um homem chamado Michael Fagin entrou calmamente no Palácio de Buckingham, de madrugada, circulou por toda parte e finalmente foi sentar no quarto de Sua Majestade, pedindo um cigarro à Rainha da Inglaterra.

Em 1978, a segurança do Vaticano podia ser penetrada tão facilmente quanto a segurança do Presidente Ronald Reagan, dos Estados Unidos, no momento em que John Hinckley baleou-o e a outros membros de sua equipe. Ou tão facilmente quanto aconteceu a 13 de maio de 1981, uma quarta-feira, quando Mehmet Ali Agca acertou três tiros no Papa João Paulo II.

João XXIII abolira a prática da Guarda Suiça de manter uma vigília durante a noite inteira fora dos seus aposentos. Não obstante, Albino Luciani merecia uma proteção melhor do que lhe foi concedida. A Cidade do Vaticano, um pouco maior do que o St. James's Park, em Londres, com seis entradas, não apresentava qualquer dificuldade para quem estivesse determinado a se infiltrar.

O Conclave que elegera Luciani era em teoria um dos lugares mais rigorosamente guardados do mundo. O leitor deve recordar os detalhes extraordinários que o Papa Paulo VI descrevera para garantir que ninguém pudesse entrar ou sair durante as sessões que escolheriam o novo Papa. Depois de sua eleição, Luciani manteve o Conclave em sessão no sábado, 26 de agosto. Contudo, um padre simples e modesto, Diego Lorenzi, relatou-me como, ansioso em se encontrar com Luciani, vagueou sem que ninguém o interpelasse até o próprio meio do Conclave. Somente quando se encontrava à vista dos 110 cardeais e do seu Papa recentemente eleito é que lhe perguntaram quem era e o que fazia ali. A esta altura, ele já poderia ter explodido todo o prédio para o outro mundo, se assim desejasse.

Por ocasião do Conclave, muitos autores comentavam a total ausência de segurança. Citarei apenas dois.

Havia também, nessa ocasião, a ameaça incessante de terrorismo, embora não se falasse a respeito. Na minha opinião, a segurança em torno do Vaticano não foi tão impressionante durante a última semana. O palácio amplo e irregular, que se abre para as ruas em muitos lugares, talvez apresente problemas insuperáveis. O que constituía um motivo ainda maior para acabar o Conclave o mais depressa possível.

(Paul Johnson, Sunday Telegraph, 27 de agosto de 1978)

Até onde posso constatar, os guardas de segurança estão mais interessados em conversar com as mulheres nos cafés com mesas pela calçada. Espero que a Brigada Vermelha não esteja planejando qualquer coisa para esta noite (o dia do funeral de Paulo VI). Poderiam se aproximar facilmente e liquidar de uma só vez muitos dos líderes do mundo. (Padre Andrew Greeley, Como se Fazem os Papas)

O funeral de Albino Luciani, menos de dois meses depois, recebeu do mesmo autor o seguinte comentário: As medidas de segurança são enormes. (Padre Andrew Greeley, Como se Fazem os Papas)

Foi curioso que, depois da morte, a segurança inexistente durante a vida de Albino Luciani aparecesse subitamente. E o Padre Diego Lorenzi informou:

- Não havia guardas na área dos aposentos papais quando lá estive com Albino Luciani.

Entrevistei o Sargento Hans Roggan, da Guarda Suíça. Ele estava no comando da guarda na noite em que Luciani morreu. Contou-me que no inicio da noite deixou o Vaticano para ir jantar com a mãe, em Roma mesmo. Viram a luz acesa no quarto papal ao voltarem, por volta das 22:30. A mãe de Roggan foi deitar e ele voltou a seu plantão. Ele me contou:

Por algum motivo, foi uma noite horrível para mim. Estava encarregado do palácio naquela noite. Não conseguia dormir de jeito nenhum. Acabei me levantando e fui para o escritório e trabalhei em algumas contas. Normalmente, durmo muito bem.

Esse é o depoimento do homem que estava encarregado da segurança do Vaticano na noite da morte súbita de Luciani, revirando-se em sua cama, sem conseguir dormir. Acrescentar que ninguém julgou conveniente descobrir por que a luz continuou acesa no quarto do Papa durante a noite parece quase supérfluo. Muito se criticou a segurança inepta ou inexistente por ocasião do assassinato do Presidente Kennedy em Dallas. Em comparação com o que passava por segurança em torno de Luciani, o presidente americano era extremamente bem protegido.

Investigações adicionais determinaram que, na ocasião do Pontifi cado de Luciani, havia um guarda suíço no alto da escada da Terceira Loggia. Sua função era meramente cerimonial, já que poucas pessoas entravam nos aposentos papais por aquele caminho. O acesso aos aposentos se fazia geralmente pelo elevador. A entrada para o elevador, de que muitos tinham a chave, não era guardada. Qualquer homem vestido como um padre podia entrar e sair dos aposentos papais sem ser interpelado.

Há muitos outros exemplos da segurança caótica na Cidade do Vaticano. Recentemente, depois da morte de Albino Luciani, foi redescoberta uma escada próxima dos aposentos papais. Não estava escondida, não fora encoberta por qualquer obra posterior. Simplesmente ninguém sabia de sua existência. Ou será que sabiam? E que alguém usou-a em setembro de 1978?

Guardas suíços oficialmente adormecidos durante o seu turno de vigia. Guardas suíços que tomam conta de uma entrada que ninguém usa. Uma escada que ninguém conhecia. Até mesmo um assassino amador não teria maiores dificuldades e quem matou Albino Luciani não era certamente um amador. Para ajudar qualquer assassino em potencial, L'Osservatore della Domenica publicou uma planta detalha- da, inclusive com fotografias, dos aposentos papais. Data da publicação: 3 de setembro de 1978.

Se Mehmet Ali Agca efetuasse preparativos elementares, o Papa João Paulo II estaria morto agora. Assassinado como o seu antecessor. Quanto mais investiguei, mais ficou evidente que alguém decidido a matar Albino Luciani tinha uma tarefa relativamente simples. Não haveria a maior dificuldade para se ter acesso aos aposentos papais em setembro de 1978 e adulterar o remédio, a comida ou a bebida do Papa, com qualquer uma de 200 drogas letais.

A certeza de que não haveria uma autópsia, facilitou ainda mais o assassinato. Não havia sequer um médico de plantão 24 horas por dia. O serviço médico do Vaticano não dispunha dos equipamentos comuns em qualquer hospital moderno. Não havia uma estrutura de atendimento médico de urgência. E no meio de tudo isso se encontrava um homem honesto, que se lançara a diversos cursos de ação, que ofereciam a pelo menos seis homens motivos muito fortes para assassiná-lo.

A despeito do estarrecedor ataque sofrido pelo sucessor de Luciani, muito pouco mudou com relação à segurança no Vaticano.

Durante minha pesquisa, circulei pelos jardins da residência agostiniana, por onde Luciani passeava antes do Conclave. Foi num domingo, em setembro de 1982. No outro lado da Praça de São Pedro, Sua Santidade apareceu na sacada para pronunciar o Angelus do meio- dia. Eu me encontrava numa linha de fogo direta, a cerca de 1.800 metros de distância, com toda a parte superior do corpo do Papa inteiramente desprotegida. Se Agca ou alguém de seu tipo estivesse ali, o Papa estaria morto e o assassino se perderia no coração de Roma em poucos minutos. E circulei pelos jardins sem que ninguém me interpelasse.

Poucos dias depois, passei facilmente pelo Portão de Santa Anna do Vaticano. Levando uma valise bastante grande para conter bombas, fui até o Banco do Vaticano sem que ninguém me detivesse. Na semana seguinte, em companhia de dois pesquisadores, todos carregando valises e bolsas, atravessamos o próprio coração do Vaticano sem que nos revistassem, a caminho de um encontro com o Cardeal Ciappi. Isso aconteceu apenas 17 meses depois que o Papa João Paulo II foi quase assassinado na Praça de São Pedro.

Será possível que na Itália, um país com um dos índices mais baixos de mortes por ataques cardíacos em toda a Europa, um homem perfeitamente são, que tinha pressão baixa com uma característica física excepcional, o que diminuía a possibilidade de um ataque cardíaco fatal, morresse de infarto do miocárdio? É possível que Albino Luciani, um homem que não fumava, comia moderadamente e era abstêmio, que fazia tudo o que os cardiologistas costumam aconselhar, tenha sido apenas um desventurado? Tão desventurado que acabou morrendo depois de todas as precauções médicas concebíveis. Tão desventurado que, apesar dos constantes check-ups médicos, incluindo numerosos eletrocardiogramas, jamais apresentou qualquer indício de deficiência cardíaca em 65 anos de existência. Tão desafortunado que sofreu uma morte de tal forma súbita e imediata que nem teve tempo de apertar a campainha a poucos centímetros de sua mão. Segundo os professores Ruili e Masini, dois dos especialistas que consultei em Roma, "é extremamente improvável que a morte seja tão rápida que o indivíduo não tome qualquer ação. Isso é muito raro".

Na verdade, todas as evidências são contrárias à possibilidade da morte de Luciani ter sido natural. Tudo sugere homicídio. Pessoalmente, não tenho a menor dúvida. Estou igualmente convencido de que pelo menos um dos seis suspeitos que já identifiquei é a chave para se esclarecer tudo.

Aos 65 anos, Albino Luciani foi considerado pelo Conclave que o elegeu como estando na idade certa para o Pontificado. Paulo VI tinha 66 anos ao ser eleito e permaneceu no Vaticano por 15 anos. João XXIII tinha 77 anos quando foi eleito numa espécie de mandato-tampão mas seu pontificado durou cinco anos. O Conclave concluira que Luciani reinaria por um mínimo de 10 anos. Os Conclaves são operações dispendiosas. A morte de Paulo VI e a eleição de seu sucessor custou mais de cinco milhões de dólares. A Igreja não gosta de realizar Conclaves freqüentes. Em decorrência da morte súbita e inesperada de Albino Luciani, houve dois Conclaves em menos de dois meses.

É claro que não estou alegando que a trama para assassinar Albino Luciani foi concebida a 28 de setembro de 1978. O ato final foi obviamente executado nesse dia, mas a decisão fora tomada anteriormente. Não é fácil determinar em que momento.

Pode ter sido poucos dias depois da eleição de Luciani, quando o novo Papa iniciou as suas investigações sobre o Vaticano S.A. Pode ter sido nas duas primeiras semanas de setembro, quando alguns membros da aldeia do Vaticano souberam que Luciani investigava a maçonaria na Igreja. pode ter sido em meados de setembro, quando as atitudes do novo Papa em relação ao controle da natalidade e seus planos de pôr em prática uma posição liberal no problema causavam profunda preocupação em setores do Vaticano. Pode ter sido na terceira semana de setembro, quando se tornou uma certeza que Marcinkus e outros membros do Banco do Vaticano seriam removidos. Pode ter sido poucos dias antes de sua morte que o plano foi acionado, num período em que Albino Luciani chegava a decisões profundas e cruciais. Quando dos, o ato quer que o plano tenha surgido, para os suspeitos já mencionados, final foi cometido no momento exato. Se permitissem que mais uns poucos dias transcorressem, teria sido tarde demais.

Certamente alguns comentarão que muitas das provas já apresen- tadas são de natureza circunstancial. Quando se está lidando com assassinato, as provas são muitas vezes inteiramente circunstanciais. Homens e mulheres que planejam cometer um assassinato não têm o hábito de anunciar suas intenções na primeira página do The Times, Le Monde ou The Washington Post. E muito raro que observadores independentes estejam presentes e em condições de oferecerem um testemunho incontestável. As provas circunstanciais por si mesmas têm sido consideradas suficientes para enviar muitos homens e mulheres para a forca, cadeira elétrica, pelotão de fuzilamento ou câmara de gás. Um fato é de extrema importância quando se analisa o assassinato de Albino Luciani. Para que alcançasse seu objetivo, O assassinato tinha de ser cometido secretamente e de tal maneira que houvesse uma possibilidade razoável de parecer morte natural. Por quase seis anos, os responsáveis pelo assassinato de Albino Luciani conseguiram isso, no que deve ser classificado como um dos crimes do século.

Para se identificar corretamente quem foi o responsável pelo assassinato de Albino Luciani, deve-se levar em consideração o que ocorreu no segundo Conclave e o que aconteceu depois. Uma análise de determinados eventos deve determinar qual dos seis homens se encontrava no centro da conspiração para assassinar o "Candidato de Deus".

 

                      Graças ao Assassinato, Os Negócios Continuam Como Sempre

Quando começou a votação no Conclave para eleger um sucessor de Albino Luciani, no domingo, 15 de outubro de 1978, o Espírito Santo estava ostensivamente ausente. Uma luta longa e encarniçada, principalmente entre os partidários de Siri e Benelli, foi o tema predominante no primeiro dia de votação. Os responsáveis pelo assassinato de Luciani quase que se viram diante da necessidade de providenciar a morte súbita de um segundo Papa. Durante oito votações, em dois dias, o Cardeal Giovanni Benelli esteve a poucos votos da vitória. Se Benelli fosse eleito, não resta a menor dúvida de que muitos cursos de ação iniciados por Luciani teriam continuidade. Cody seria removido. Villot seria substituído. Marcinkus, De Strobel e Mennini seriam prontamente afastados do Banco do Vaticano.

Mas Benelli ficou a nove votos da eleição e o eventual vencedor, Cardeal Karol Wojtyla, não tem muita semelhança com Albino Luciani. Quanto a seguir o caminho de Albino Luciani, Wojtyla tem dado incontáveis demonstrações de que tudo o que possui em comum com o seu antecessor é o nome papal, João Paulo.

Apesar dos esforços de Benelli, Felici e outros cardeais, o Pontificado de João Paulo II tem sido norteado pelos negócios, como sempre, que se beneficiaram imensamente não só pelo assassinato de Albino Luciani, mas por todos os assassinatos que se seguiram à estranha e solitária morte ocorrida no Vaticano, em setembro de 1978. Depois de sua eleição, o atual Papa tomou conhecimento das mudanças que Luciani tencionava efetuar. Foi informado das várias consultas de seu antecessor sobre uma ampla variedade de assuntos.

Os levantamentos financeiros coligidos por Benelli, Felici, membros da APSA e outros, por conta de Luciani, foram postos à disposição de Wojtyla. Ele conheceu as provas que levaram Luciani a concluir que o Cardeal Cody, de Chicago, devia ser substituído. Conheceu as provas que confirmavam a infiltração da maçonaria no Vaticano. Foi informado do diálogo de Luciani com Departamento de Estado americano e a planejada reunião com o comitê do Congresso dos Estados Unidos sobre população e controle da natalidade. Villot também esclareceu plenamente o novo Papa sobre a atitude de Luciani em relação ao controle da natalidade. Em suma, o Papa João Paulo II se encontrava em posição excepcional para pôr em prática todos os planos de Luciani. Mas nenhuma das mudanças propostas por Luciani se converteu em realidade. Quem quer que tenha assassinado o Papa, não cometeu um crime em vão.

Villot foi novamente confirmado como Secretário de Estado. Cody permaneceu no controle de Chicago. Marcinkus, ajudado por Mennini, De Strobel e Monsenhor de Bonis continuou a controlar o Banco do Vaticano e a garantir que florescessem as atividades criminosas em conluio com o Banco Ambrosiano. Calvi e seus mestres da P2, Gelli e Ortolani, estavam livres para continuarem em seus roubos e fraudes gigantescas, sob a proteção do Banco do Vaticano. Sindona pôde manter sua liberdade em Nova York, pelo menos a curto prazo. Baggio não foi para Veneza. O corrupto Poletti permaneceu como o Cardeal Vigário de Roma.

Muitos milhões de palavras já se escreveram desde a eleição de Karol Wojtyla, em tentativas de analisar e compreender como é o homem. É o tipo de homem que pode permitir que homens como Villot, Cody, Marcinkus, Mennini, De Strobel, De Bonis e Poletti permaneçam em seus cargos. Não pode haver qualquer defesa sob alegação de ignorância. Marcinkus é diretamente subordinado ao Papa e desafia a imaginação e credulidade que Wojtyla não tenha conhecimento nenhum dos crimes do americano. Em relação a Cody, Sua Santidade tomou conhecimento de todos os fatos em outubro de 1978, pelos cardeais Benelli e Baggio. Wojtyla não fez nada. Temos um Papa que publicamente censura os padres da Nicarágua que se envolvem em política, mas ao mesmo tempo concede sua bênção às enormes quantidades de dólares remetidas para o Solidariedade na Polônia, secreta e ilegalmente. E o Pontificado dos duplos padrões: um jogo para o Papa e um segundo para o resto da humanidade. O Pontificado de João Paulo II tem sido um trunfo para os negocistas, os corruptos, os ladrões internacionais como Calvi, Gelli e Sindona, enquanto Sua Santidade mantém uma imagem altamente divulgada que não é muito diferente da que se poderia imaginar num astro do rock em perpétua excursão. Os homens por trás do astro beija-pista-de-aeroporto estão garantindo que os negócios continuam como sempre, as bilheterias aumentando cada vez mais, ao longo dos últimos cinco anos. E de se lamentar que os discursos severamente moralistas de Sua Santidade não possam presumivelmente ser ouvidos nos bastidores.

Como já registrei anteriormente, depois da eleição de Luciani o Bispo Paul Marcinkus advertiu a seus colegas no Banco do Vaticano e a Roberto Calvi em Buenos Aires:

— Não se esqueçam de que este Papa tem idéias diferentes do anterior e que muitas coisas mudarão por aqui.

Com a eleição de Wojtyla, tudo voltou aos valores de Paulo VI, acrescido de juros. Como no caso da infiltração dos maçons no Vaticano. O Vaticano, através do atual Papa, não apenas absorveu em seus quadros uma ampla variedade de maçons, de uma ampla variedade de lojas, mas também adquiriu a sua própria versão interna. Seu nome é Opus Dei... a Obra de Deus.

A 25 de julho, Albino Luciani escrevera sobre a Opus Dei em li Gazzetino o jornal veneziano. Os comentários se limitaram a uma curta história do movimento e o relato de algumas aspirações da organização para a espiritualidade leiga. Em relação aos aspectos mais controvertidos da Opus Dei, Luciani os ignorava, o que é improvável, ou estava novamente demonstrando a sua discrição.

Com a eleição de Karol Wojtyla, a discrição tornou-se um artigo raro. Seu apoio à Opus Dei está bem documentado. Como essa organização católica partilha muitas posições e valores com a corrupta P2 e se tornou uma força dentro da Cidade do Vaticano, deve-se registrar alguns detalhes a seu respeito.

A Opus Dei é uma organização católica de dimensões internacionais. Embora tenha relativamente poucos associados (as estimativas variam entre 60 e 80 mil), sua influência é vasta. E uma sociedade secreta, algo estritamente proibido pela Igreja. A Opus Dei nega que seja uma organização secreta, mas se recusa a divulgar a lista de seus associados. Foi fundada por um sacerdote espanhol, Monsenhor Josemaria Escriva, em 1928. Situa-se na extrema direita da Igreja Católica, um fato político que lhe tem atraído inimigos, mas também muitos associados. Há uma pequena parcela de sacerdotes entre seus membros, cerca de cinco por cento; e leigos de ambos os sexos. Embora se encontre pessoas de todos os níveis sociais, procura atrair principalmente elementos dos escalões superiores, inclusive estudantes e recém-formados que aspiram a conquistar uma posição executiva. O Dr. John Roche, professor da Universidade de Oxford e ex-membro da Opus Dei, descreve-a como "sinistra, furtiva e orwelliana". E possível que a preocupação com a auto-flagelação seja a causa da hostilidade dos meios de comunicação contra a seita. Certamente a idéia de uma pessoa chicotear suas próprias costas ou usar tiras de metal cheias de pinos pontiagudos na coxa pela grandeza da glória de Deus, demonstra ser de difícil aceitação pela maioria das pessoas nesta última parte do século XX. Contudo, ninguém pode duvidar da total sinceridade dos membros da Opus Dei. Estão igualmente voltados para uma tarefa de grande importância: assumir o controle da Igreja Católica. Tal coisa deveria ser motivo de grande preocupação não só para os católicos como para todos os outros. Sem dúvida, existem alguns aspectos a se admirar nesta sociedade secreta. Albino Luciani ressaltou eloqüentemente alguns dos conceitos espirituais básicos, embora tenha se mantido em discreto silêncio com relação à questão da auto-flagelação e da filosofia política fascista. Sob o pontificado do Papa João Paulo II, Opus Dei floresceu. Se o atual Papa não é um membro da Opus Dei, é exatamente como os membros da Opus Dei gostariam que um Papa fosse. Um dos primeiros atos após sua eleição foi dirigir-se à sepultura do fundador da Opus Dei e rezar. A seguir garantiu à seita status de organização episcopal, um passo significativo para o Cardeal Cody, que diz apenas prestar contas a Roma e a Deus.

Esta organização tem, de acordo com suas próprias informações, membros trabalhando em mais de 600 jornais, revistas e publicações científicas espalhadas ao redor do mundo. Possui membros em mais de 50 estações de rádio e televisão. Em 1960, três de seus membros faziam parte do gabinete do ditador espanhol, Franco, criando o "milagre econômico" espanhol. O cabeça do enorme conglomerado Rumasa na Espanha, José Mateos, é um membro da Opus Dei, também está fugindo após construir uma teia de corrupção semelhante ao império de Calvi, como foi recentemente revelado. A Opus Dei é extremamente rica. Até recentemente, quando trocou de dono, qualquer um que entrasse numa loja de vinhos Augustus Barnett, na Inglaterra, estaria depositando dinheiro nos cofres da Opus Dei.

José Mateos, conhecido como o homem mais rico da Espanha, canalizou milhões para a Opus Dei. Uma parte considerável desse dinheiro proveio de transações ilegais com Calvi, perpetradas tanto na Espanha como na Argentina. O dono do dinheiro da P2 e o dono do dinheiro da Opus Dei: seria possível que a Igreja se refira a isso quando fala nos misteriosos caminhos de Deus?

Desde a morte de Albino Luciani e sua sucessão por Karol Wojtyla, a Solução Italiana, aplicada ao problema de um Papa honesto, tem sido usada freqüentemente para superar as dificuldades com que se defrontam Marcinkus, Sindona, Calvi e Gelli. A litania de assassinato e ameaça para se encobrir o saque, numa escala além de nossa imaginação, constitui uma leitura macabra. Também serve para confirmar que Albino Luciani foi mesmo assassinado.

Roberto Calvi, Licio Gelli e Umberto Ortolani não voltaram à Itália enquanto Luciani reinava como Papa. Calvi só retornou ao final de outubro, depois da eleição de Karol Wojtyla. Gelli e Ortolani continuaram a controlar os acontecimentos do Uruguai. Teria sido apenas mera coincidência o fato desses três homens permanecerem em diversas cidades sul-americanas? As conferências financeiras precisavam realmente se prolongar por agosto e setembro, e estender-se até novembro? Era realmente necessário a Gelli e Ortolani insistirem em ficar próximos de Calvi durante o mês de setembro de 1978? Seria mesmo preciso todo esse tempo para que se discutisse a abertura de novas sucursais do Banco Ambrosiano?

O espaço para respirar obtido pelo líder da P2 com a morte de Luciani parecia ser de natureza temporária, depois do encontro de Calvi com o inspetor do Banco da Itália, Giulio Padalino, a 30 de outubro, em Milão. Mais uma vez, com os olhos fixados nas pontas dos sapatos, Calvi recusou-se a dar respostas diretas a uma série de perguntas. A 17 de novembro estava concluída a inspeção do Banco da Itália no Banco Ambrosiano.

Apesar da carta fraudulenta de Marcinkus e seus colegas do Banco do Vaticano sobre a propriedade da Suprafin, apesar das mentiras e evasivas de Roberto Calvi, apesar da ajuda de seu protetor. Licio Gelli, os inspetores do banco central italiano concluíram, num longo relatório, que havia muita coisa de podre na situação do império de Calvi.

Usando mais uma vez o seu codinome especial, Gelli telefonou da América do Sul para Calvi, em sua residência particular. Para Calvi, afundando cada vez mais nas areias movediças dos negócios da Máfia/Vaticano/P2, as notícias eram péssimas.

Poucos dias depois do Inspetor Giulio Padalino entregar seu relatório ao chefe da Vigilância Bancária do Banco da Itália, Mano Sarcinelli, Licio Gelli, em Buenos Aires, tinha em suas mãos uma cópia completa. Não a recebera de Sarcinelli ou Padalino, mas por cortesia da rede da P2. Gelli informou a Calvi que o relatório estava prestes a ser enviado pelo Banco da Itália para os magistrados em Milão. especificamente ao homem que o líder da P2 previra em setembro, Juiz Emilio Alessandrini.

Calvi se encontrava novamente á beira da denúncia e da ruína total. Emilio Alessandrini não podia ser comprado. Muito inteligente e corajoso, ele representava para Calvi, Marcinkus, Gelli e também Sindona uma ameaça muito grave. Se prosseguisse nas investigações, com seu vigor costumeiro, Calvi certamente estaria liquidado, Marcinkus seria denunciado, Gelli perderia a galinha dos ovos de ouro que era o roubo continuo do Ambrosiano e Sindona teria pela frente o argumento mais poderoso e convincente para sua extradição imediata dos Estados Unidos.

No inicio de janeiro de 1979, os círculos financeiros de Milão estavam outra vez preocupados com os rumores sobre O Cavaleiro, Roberto Calvi. O Juiz Emilio Alessandrini, depois de estudar cuidadosamente o relatório de 500 páginas compilado pelo Banco da Itália, determinou ao tenente-coronel Cresta, o comandante da polícia fiscal em Milão, que enviasse seus homens ao banco dos padres". A instrução era conferir ponto a ponto as muitas irregularidades criminosas detalhadas no relatório. Fora dos círculos oficiais, ninguém teve acesso ao relatório, isto é, ninguém à exceção de Calvi e Gelli.

A 21 de janeiro, L'Espresso comentou os rumores que circulavam pela cidade, inclusive as notícias alarmantes de que Calvi e todos os seus diretores estavam prestes a ser presos e que o passaporte de Calvi seria confiscado, Era preciso tomar alguma providência imediata antes que houvesse uma corrida do público em geral ao Banco Ambrosiano.

Na manhã de 29 de janeiro, Alessandrini despediu-se da esposa com um beijo, depois levou o filho pequeno à escola, de onde seguiu para seu gabinete. Parou num sinal de trânsito na Via Muratori poucos segundos antes das 8:30. Ainda olhava para a luz vermelha quando cinco homens se aproximaram do carro e começaram a disparar contra ele.

Mais tarde, no mesmo dia, um grupo de terroristas de extrema esquerda, chamado Prima Línea, reivindicou a responsabilidade pelo assassinato. O grupo também deixou um manifesto sobre o crime numa cabine telefônica na Estação Central de Milão. Nem o telefonema nem o manifesto ofereciam algum motivo definido para o assassinato.

Por que um grupo de extrema esquerda assassinaria a sangue-frio um juiz que era nacionalmente conhecido por suas investigações sobre o terrorismo de extrema direita? Emilio Alessandrini era um dos principais investigadores do atentado a bomba na Piazza Fontana, que era reconhecida como uma atrocidade de extrema direita. Por que a Prima Línea assassinaria um homem que obviamente tentava, através de meios legais, que eles, em teoria, mais aplaudiriam, levar elementos criminosos da extrema direita a julgamento por seus atos?

Grupos como a Prima Línea e a Brigada Vermelha não se limitam a matar e mutilar pela ordem política e ideológica. São também pistoleiros de aluguel. Por exemplo, os vínculos entre a Brigada Vermelha e a Máfia local estão bem documentados.

Na ocasião em que este livro foi escrito, cinco homens que já confessaram o assassinato de Alessandrini estão aguardando julgamento. Seus depoimentos sobre o crime propriamente dito são detalhados, mas levantam mais perguntas do que oferecem respostas quando se passa para o motivo.

Marco Donat Cattin, o segundo homem que abriu fogo contra o juiz acuado, desarmado e impotente, comentou:

— Esperamos que os jornais noticiassem a morte e encontramos nos obituários do juiz os motivos para justificar o atentado.

Três dias depois do assassinato, na tarde de 10 de fevereiro, Roberto Calvi tomava um drinque num coquetel em Milão. A conversa inevitavelmente se virou para o crime recente. Calvi prontamente

tentou obter simpatia, não para a Sra. Alessandrini ou para seus filhos sem pai, mas para si mesmo:

— E realmente uma pena. No dia anterior, Alessandrini me disse que não tomaria mais nenhuma providência e arquivaria o processo.

O assassinato de Luciani proporcionara a Marcinkus, Calvi, Sindona e seus amigos da P2 uma pausa para respirar. O assassinato de Emilio Alessandrini proporcionou mais algum tempo. A investigação iniciada pelo Juiz Alessandrini continuou, só que num ritmo de lesma.

No Banco da Itália, Mario Sarcinelli estava consciente da falta de ímpeto. Sarcinelli e o presidente do banco, Paolo Baffi, se achavam determinados a impedir que a longa e complexa investigação, realizada durante o ano anterior, fosse um desperdício.

Em fevereiro de 1979, Mario Sarcinelli convocou Calvi ao Banco da Itália. Calvi foi interrogado sobre a Suprafin, o relacionamento do Ambrosiano com o JOR, a subsidiária de Nassau e quem exatamente possuía o Banco Ambrosiano. Com Alessandrini morto, Calvi era um novo homem. Ou melhor, voltava a ser o antigo. Os olhos se mostravam de novo frios como gelo, A proteção de Licio Gelli inspirara uma arrogância ainda maior do que o normal. Ele se recusou categoricamente a responder ás perguntas de Sarcinelli. Mas o encontro deixou Calvi com a certeza de que a investigação do Banco da Itália não fora inibida pelo assassinato.

Tornou a discutir o problema com Gelli, que garantiu-lhe uma solução para o problema. Antes disso, porém, havia outra questão que causava uma preocupação considerável aos maçons da P2. Era o problema apresentado pelo advogado e jornalista Mino Pecorelli. Entre as muitas atividades de Pecorelli estava a de editor de um insólito semanário chamado O.P.

Essa publicação já foi descrita como "sensacionalista’ e de ‘imprensa marrom". Era as duas coisas. E era também acurada. Ao longo dos anos 70, publicou uma quantidade espantosa de denúncias e acusações de corrupção na Itália. Tornou-se uma leitura obrigatória para quem se interessasse em saber exatamente quem roubava quem. Apesar das leis rigorosas sobre calúnia na Itália, a publicação parecia levar uma vida encantada. Pecorelli obviamente tinha acesso ás mais explosivas informações. Jornalistas italianos freqüentemente aproveitavam os inspirados artigos de O.P. Particularmente, tentavam descobrir quem se encontrava por trás dessa agência noticiosa que estava obviamente acima da lei. Mas a O.P. permanecia um organismo misterioso. A irmã de Pecorelli, Rosita, comentou numa entrevista pela televisão que a agência noticiosa O. P. era financiada pelo primeiro-ministro Andreotti.

No início dos anos 70, o nome de Michele Sindona era freqüentemente relacionado com a O. P. Pecorelli obviamente tinha fontes no serviço secreto italiano, mas seus principais contatos eram num organização mais poderosa e até mais secreta do que essas agência oficiais do governo. Mino Pecorelli era um membro dá P2 e era dessa Loja Maçônica ilegal que tirava muitas das informações que fazian fervilhar os meios de comunicação da Itália. Numa reunião da Loja Lício Gelli convidava os membros a contribuir com documentos o informações a serem transmitidos à O.P. A principal função da O.P durante esse período foi a de promover as ambições de Gelli e os objetivos da P2. Em meados de 1978, no entanto, Pecorelli decidiu se lançar a um pequeno empreendimento particular. Obteve informações sobre uma das maiores fraudes na história financeira italiana. O mentor do roubo foi Licio Gelli. No início dos anos 70, a operação privou a Itália de dois e meio bilhões de dólares em impostos petroliferos. Na Itália, o mesmo subproduto do petróleo é usado para o aquecimento das casas e para abastecer os caminhões diesel. O combustfvel para aquecimento é tingido, a fim de distingui-lo do que é usado nos veículos tendo um imposto 50 vezes mais baixo. Era uma situação ideal para um criminoso como Gelli. Sob sua orientação, o magnata do petróleo Bruno Musselli, um membro da P2, adulterava as tinturas. O chefe da policia financeira, General Raffaele Giudice, também um membro da P2, falsificava os documentos para garantir que todo o combustível fosse taxado pelo índice mais baixo. O combustível era então distribuído aos postos de abastecimento, que pagavam aos conspiradores pela taxa mais alta.

Com a ajuda de Michele Sindona, outro membro da P2, os lucros eram transferidos, através do Banco do Vaticano, para uma série de contas secretas no banco suíço de Sindona, o Finabank. Licio Gelli tornou-se uma presença familiar a passar pelo Portão de Santa Anna, levando enormes valises contendo bilhões de liras roubadas,

O General Giudice fora nomeado para o comando da policia financeira pelo Primeiro-Ministro Giulio Andreotti, um amigo íntimo de Licio Gelli. A nomeação fora consumada depois que o Cardeal Poletti, Cardeal Vigário de Roma escrevera ao Primeiro-Ministro recomendando Giudíce para o cargo. Poletti era um dos homens que Albino Luciani planejava afastar de Roma. A ligação do Vaticano com esse escândalo era desconhecida de Pecorelli, mas ele soubera o suficiente desse roubo gigantesco para começar a publicar pequenas informações a respeito. Uma delegação que incluía o senador democrata-cristão Claudio Vitalone, o Juiz Cárlo Testi e o General Donato lo Prete comprou o seu silêncio. As notíciais sobre o escândalo cessaram.

Compreendendo que poderia ganhar mais dinheiro com a mesma tecníca, Pecorelli começou a escrever sobre os maçons. O número que saiu no principio de setembro de 1978, contendo os nomes de mais de cem maçons no Vaticano, foi uma advertência a Licio Gelli. O fato de um exemplar chegar à mesa de Albino Luciani, que conferiu cuidadosamente e começou a agir, foi a suprema ironia para Licio Gelli, que já estava perfeitamente consciente da ameaça que o novo Papa representava para seu principal pagador. Roberto Calvi.

Com Luciani morto, Gelli tentou negociar com Pecorelli. Subornou-o. Inevitavelmente, Pecorelli exigiu mais dinheiro por seu silêncio. Gelli recusou-se a pagar. Pecorelli publicou o primeiro do que prometia ser uma série de artigos. Revelava que GeIli, o pilar do fascismo de extrema direita, espionara para os comunistas durante a guerra e continuara a trabalhar para eles depois. Pecorelli, assumindo agora o manto de um jornalista investigador destemido, prometeu aos leitores que revelaria tudo sobre a P2. Informou ainda que Licio Gelli, antigo nazista, ex-fascista, comunista ocasional, também mantinha fortes ligações com a CIA. Com a revelação de uma parcela tão grande da verdade, os colegas de Pecorelli na P2 concluíram que ele os traíra.

A 20 de março, Gelli telefonou para Pecorelli, em seu escritório em Roma. Sugeriu uma conversação de paz durante o jantar no dia seguinte, "se for conveniente". Era. Na verdade, Pecorelli comentou que, naquela noite, trabalharia no escritório até tarde, mas poderia jantar com Gelli no dia seguinte. Foi um jantar que Pecorelli não chegou a comer.

Mino Pecorelli deixou seu escritório na Via Orazio ás 21:15. Encaminhou-se para seu carro, estacionado a pouca distância, As duas balas que o mataram, ao sentar no carro, foram disparadas no interior de sua boca, um gesto clássico da Máfia siciliana, sasso in bocca, uma pedra na boca de um morto para demonstrar que ele não mais falará.

Não podendo jantar com seu antigo amigo, Licio Gelli aproveitou o tempo para abrir as suas fichas secretas de membros da P2 e escrever "falecido" junto ao nome de Mino Pecorelli.

Ninguém jamais "reivindicou" a responsabilidade pelo assassinato de Pecorelli. Em 1983, no entanto, Antonio Viezzer, que fora um alto funcionário do SID, o serviço secreto italiano, foi preso sob suspeita de envolvimento na morte de Pecorelli. Antonio Viezzer era um membro da P2.

Poucos dias antes de Pecorelli ser silenciado para sempre, um dos homens que ele incluira na lista de maçons do Vaticano, Cardeal Jean Villot, precedeu-o no caminho para a sepultura. Ele morreu ainda mantendo o vasto rol de títulos oficiais que possuía durante o breve pontificado de Luciani. Para um homem que, se não foi um cúmplice da conspiração criminosa para assassinar Albino Luciani, quase que certamente prestou uma ajuda vital à conspiração, a morte de Villot, com os diversos estágios descritos em relatórios médicos, constitui um curioso contraste com a de João Paulo I, que "morreu como uma flor na noite".

Enquanto o Vaticano sepultava o seu falecido Secretário de Estado, a batalha por um pouco de purificação temporal continuava no outro lado do Tibre. O chefe da vigilância do Banco da Itália, Mário Sarcinelli, e seu presidente, Paolo Baifi, estavam agora exigindo uma ação rápida na investigação sobre Calvi. Insistiam que havia provas mais do que suficientes para justificar uma prisão imediata. Obviamente, Gelli e Calvi concordavam com essa opinião.

As prisões foram efetuadas a 25 de março de 1979... mas não de Roberto Calvi e seus colegas. Os presos foram Sarcinelli e Baffi. Um juiz de Roma, Mario Alibrandi, conhecido por suas tendências de extrema direita, concedeu fiança a Baffi por causa de sua idade, 67 anos. Sarcinelli foi menos afortunado e ficou na prisão. As acusações contra os dois, omissão na revelação de um crime, eram claramente capciosas. Sarcinelli também teve uma fiança fixada, depois de duas semanas. As acusações, no entanto, persistiriam até janeiro de 1980, quando se admitiu que eram totalmente falsas e não tinham a menor justificativa. Enquanto isso, porém, o juiz manteve a sua decisão de proibir que Sarcinelli voltasse a seu cargo de chefe da Vigilância do Banco da Itália durante um ano. Com essa ação, a P2 conseguira eficazmente imobilizar o Banco da Itália. Paolo Baifi, o chocado e consternado presidente do banco, renunciou em setembro de 1979. A demonstração de poder de Calvi e seus companheiros criminosos convencera Baifi de que ele e seus homens lutavam contra uma força que era muito maior do que a possuida pelo Banco da Itália, Entre o escândalo da prisão injustificada de Sarcinelli e a renúncia de Baifi, os dirigentes do Banco da Itália receberam uma demonstração final de como eram poderosas as forças que enfrentavam. A demonstração ocorreu em Milão. Foi organizada e paga por Michele Sindona.

Enquanto Calvi e seus amigos cuidavam à sua maneira dos problemas que tinham na Itália, o companheiro deles na P2, Michele Sindona, também fazia a sua parte em Nova York. Sindona finalmente sufocara as tentativas de extraditá-lo para a Itália. Mas a maneira como a vitória se consumou não lhe trouxe grande conforto.

A 9 de março de 1979, o Departamento de Justiça americano indicou Sindona por 99 acusações, de fraude, perjúrio e apropriação indébita de fundos do banco. As acusações provinham diretamente da falência do Franklin National Bank. Sindona pagou uma fiança de três milhões de dólares e foi libertado, com a condição de se apresentar diariamente a um delegado federal.

Na primeira semana de julho de 1979, um juiz federal decidiu que Sindona não podia ser extraditado para a Itália para enfrentar acusações de fraude bancária porque em breve seria julgado por acusações similares nos Estados Unidos. O tratado de extradição entre Itália e Estados Unidos tinha uma cláusula de dupla ação. O promotor público, John Kenney, comentou que o governo norte-americano pretendia extraditá-lo após a solução do caso nos Estados Unidos.

Kenney, ainda vivo apesar do contrato de 100 mil dólares que fora oferecido pelos colegas de Sindona. devia a sobrevivência a apenas um fato. Na Itália, matar um juiz ou um promotor é muitas vezes uma providência eficaz para persuadir as autoridades a irem mais devagar num processo. O assassinato de Alessandrini é um excelente exemplo. Nos Estados Unidos, tal assassinato teria justamente o efeito oposto. O pagamento de 100 mil dólares era tentador, mas os profissionais sabiam que o assassinato de Kenney resultaria não apenas numa perseguição implacável ao assassino, mas também numa aceleração rigorosa do processo contra Sindona.

Diante da realidade de um julgamento em Nova York, com o tenaz Kenney na acusação, Sindona resolveu usar a Solução Italiana em outro homem que estava lhe causando problemas ainda maiores:

Giorgio Ambrosoli.

A 29 de setembro de 1974, o advogado Giorgio Ambrosoli foi designado para liquidante do Banca Privata Italiana de Sindona. Como já foi registrado antes, Sindona criara o Banca Privata em julho de 1974, com a fusão de dois de seus bancos. Banca Privata Finanziara e Banca Unione, um banco fraudulento grande para substituir dois bancos fraudulentos médios. Por volta de 1979, nenhum homem sabia mais do que Giorgio Ambrosoli sobre as trapaças de Sindona. Nomeado liquidante pelo Ministro do Tesouro e o presidente do Banco da Itália, Ambrosoli iniciara a tarefa de pesadelo de esclarecer as operações de um moderno Maquiavel. Já a 21 de março de 1975, o cauteloso e cuidadoso Ambrosoli, num relatório secreto ao Procurador Geral da Itália, declarava estar convencido do caráter criminoso das atividades de Sindona. As provas que estudara até aquele momento demonstravam claramente que a falência não fora causada simplesmente por maus negócios; no início de 1974, Sindona e seus companheiros "queriam que as operações de fevereiro criassem as circunstancias para a falência".

Fora uma manobra fraudulenta friamente planejada.

Giorgio Ambrosoli era um homem extremamente corajoso. Mais ou menos na ocasião em que comunicou suas descobertas iniciais ao Procurador Geral, ele confidenciou à esposa alguns dos seus sentimentos mais íntimos:

O que quer que aconteça, certamente pagarei um alto preço por ter aceitado o trabalho. Mas eu sabia disso antes de aceitar e não estou me queixando. Foi uma oportunidade excepcional de fazer alguma coisa pelo país... Obviamente, estou também fazendo inimigos.

Lenta e metodicamente, Ambrosoli começou a pôr algum sentido no que Sindona deliberadamente confundira e misturara. O estacionamento de ações, as recompras, as transferências desconcertantes por incontáveis companhias. Enquanto Sindona falava a universitários americanos sobre seus sonhos de capitalismo cósmico, o circunspecto advogado milanês estava estabelecendo acima de qualquer dúvida que o siciliano era corrupto até as pontas dos dedos manicurados.

Em 1977, Ambrosoli foi procurado por um advogado de Roma, Rodolfo Guzzi, que apresentou uma proposta complicada para comprar o Banca Privata e tirá-lo da falência. Ambrosoli descobriu que Guzzi representava Michele Sindona. Recusou a oferta, apesar de apoiada pelo menos por dois ministros democrata-cristãos.

A força que Sindona ainda tinha pode ser avaliada por esse apoio ministerial. Ambrosoli teve outro exemplo desse poder quando o presidente do Banco da Itália lhe falou da pressão que era exercida por Franco Evangelisti, o braço direito do Primeiro-Ministro Andreotti, insistindo por uma solução tipicamente italiana. Ele queria que Baffi autorizasse o banco central a encampar as dívidas de Sindona. Baffi bravamente recusou. A investigação de Ambrosoli continuou.

Ambrosoli continuou a encontrar referências na montanha de documentos que diligentemente examinava sobre "os 500"; outras alusões deixavam bem claro que essas 500 pessoas eram as superexportadoras do mercado negro. Os homens e mulheres que, com a ajuda de Sindona e do Banco do Vaticano, haviam transferido dinheiro para fora da Itália ilegalmente. A lista dos nomes podia continuar a se esquivar a Ambrosoli, mas ele tomou conhecimento de praticamente todo o resto. Verificou que inúmeras organizações públicas, instituições respeitáveis como a gigantesca seguradora INPDAI, depositaram seus recursos nos bancos de Sindona por uma taxa de juro inferior à que estava em vigor no mercado, 8% em vez de 13%. Recebiam, no entanto, uma taxa de juros secreta, que ia direta e particularmente para os bolsos dos diretores da INPDAI e de outras augustas empresas.

Ambrosoli identificou muitos dos artifícios que Sindona usara para exportar dinheiro ilegalmente, inclusive comprar dólares a um câmbio maior que o do mercado, o saldo depositado numa conta em banco estrangeiro, em Londres, Suíça ou Estados Unidos.

Ambrosoli começou a compilar sua própria lista de culpados. Nunca chegou aos 500 — Michele Sindona cuidou de evitá-lo — mas alcançou a 77 nomes, inclusive homens de confiança do Vaticano, Massimo Spada e Luigi Mennini. O liquidante acumulou provas irrefutáveis da cumplicidade do Banco do Vaticano em muitos dos crimes de Sindona. Durante todo o seu período de trabalho para o Banco da Itália, Ambrosoli, atuando praticamente sozinho, foi submetido por Sindona a todo tipo de pressão. Primeiro, houve ações judiciais de Sindona contra Ambrosoli, sob a acusação de desvio de dinheiro. Depois, as ações eram canceladas e substituidas por um meio diferente pelo genro de Sindona, Pier Sandro Magnoni, convidando Ambrosoli a tornar-se presidente do novo banco de Sindona, "depois que acertar esse problema cansativo das falências".

A infiltração da P2 de Sindona era total entre os que Ambrosoli pensava que podia confiar que Magnoni foi capaz de transcrever literalmente um relatório secreto coligido por Ambrosoli e do qual só tomaram conhecimento oficialmente poucos funcionários do banco.

Em março de 1979, Ambrosoli pôde determinar uma cifra para as dimensões de II Crack Sindona, pelo menos em relação ao Banca Privata. O prejuízo era de 257 bilhões de liras. Também em março de 1979, Ambrosoli recebeu uma série de ameaças por telefone. Os interlocutores sempre tinham um sotaque ítalo-americano.

As ameaças e os insultos aumentaram de intensidade a partir do final de 1978. Os interlocutores variavam as táticas, tentando Ambrosoli com ofertas de muito dinheiro ou fazendo ameaças diretas. Sempre deixavam bem claro por conta de quem telefonavam.

— Por que não vai procurar Sindona nos Estados Unidos como um amigo? — perguntou um dos homens, com um forte sotaque americano.

Ambrosoli recusou o convite e passou a gravar os telefonemas. Falou a amigos e colegas sobre as ligações. Acabou tocando uma das gravações para um advogado de Sindona. Recebeu o telefonema seguinte poucos dias depois:

— Seu filho da puta nojento! Pensa que é muito esperto gravando telefonemas, hein?

O advogado admitiria depois que, ao tomar conhecimento da gravação, ligara imediatamente para Sindona em Nova York.

A 10 de abril de 1979, Sindona confrontou-se com outro homem que considerava um inimigo: Enrico Cuccia, diretor-executivo do Mediobanca, um banco de investimentos de capital aberto. A avaliação de Sindona era acurada. Cuccia frustrara a manobra de Sindona para assumir o controle da Bastogi em 1972. Chegara à conclusão, antes de muitos outros, de que Sindona era um escroque maníaco. Durante o seu encontro em abril de 1979, Cuccia teve amplas provas para justificar a conclusão a que chegara quase oito anos antes. O que levara Cuccia a visitar Nova York fora uma série de telefonemas que recebera, de homens com sotaque ítalo-americano. Como os telefonemas para Ambrosoli, também eram de natureza ameaçadora. Mas enquanto Ambrosoli preferira continuar em Milão com seu trabalho, Cuccia resolveu ter uma confrontação com Sindona.

Sindona apresentou diversas exigências. Queria que Cuccia revogasse o mandado de prisão italiano contra ele. Sindona encarou como trivial o fato de ter sido condenado, em sua ausência, a três anos e meio de prisão, em 1976. Exigiu também que Cuccia arrumasse 257 bilhões de liras e cobrisse o rombo do Banca Privata. E queria ainda mais dinheiro para sustentar sua família. Além do gesto gracioso de permitir que o Signor Cuccia continuasse a viver, não está muito claro o que mais Sindona oferecia em troca.

Durante essa conversa extraordinária, talvez para demonstrar o perigo que Cuccia corria, Sindona referiu-se a Giorgio Ambrosoli:

— Aquele maldito liquidante do meu banco está me prejudicando e por isso quero a sua morte. Farei com que ele desapareça sem deixar vestígios.

Essa é a realidade da mentalidade da Máfia. Al Pacino e ternos elegantes. filhos maravilhosos e pais amorosos é o mundo de fantasia da Máfia. A realidade é a ralé como Michele Sindona.

Essas ameaças foram proferidas menos de um mês depois de Sindona ter sido indiciado por 99 acusações. A mesma mentalidade, que concluiu que o processo de extradição seria arquivado se o promotorassistente John Kenney fosse assassinado, estava em ação outra vez. Se Ambrosoli fosse silenciado, as acusações criminais presumivelmente se dissipariam como a neblina da manhã. Uma mentalidade que funciona com um raciocínio tão pervertido pode planejar matar um Papa sem a menor hesitação.

Enrico Cuccia deixou a reunião sem estar impressionado. Em outubro de 1979. uma bomba explodiu na porta da frente do apartamento de Cuccia em Milão. Felizmente, ninguém ficou ferido. Giorgio Ambrosoli não teve tanta sorte.

Era evidente para todas as partes envolvidas no julgamento iminente de Sindona que as provas reunidas por Giorgio Ambrosoli eram de extrema importância. A 9 de junho de 1979, o juiz designado para o processo de Sindona, Thomas Griesa, marcou o depoimento de Ambrosoli em Milão.

Nesta data, o homem que aceitara o contrato de 100 mil dólares para matar Giorgio Ambrosoli se encontrava no Hotel Splendido, em Milão, há 24 horas. Estava registrado como Robert McGovern. Era também conhecido como "Billy, o Exterminador". Seu verdadeiro nome é William Arico. No hotel de primeira classe, a menos de 50 metros da Estação Central de Milão, Arico jantou com os cinco homens que deveriam ajudá-lo no assassinato. Os dois cúmplices principais eram Charles Mico, seu filho, e Rocky Messina. As armas incluiam uma metralhadora M-11, especialmente adaptada com um silenciador, e cinco revólveres P-38. Arico alugou um Fiat e começou a vigiar Ambrosoli.

O pedido de um depoimento detalhado e longo de Ambrosoli fora formulado inicialmente pelos advogados de Sindona. Esperavam assim

demonstrar o absurdo das acusações a seu cliente, apresentadas em Nova York. O despertar deles, que começou na manhã de 9 de julho, foi extremamente brusco. Quatro anos de trabalho, mais de 100 mil laudas de petições cuidadosamente preparadas e a inteligência de um advogado excepcional começaram a revelar toda a verdade a um punhado de advogados americanos, dois delegados especiais representando o Juiz Griesa, de Nova York, e o Juiz Giovanni Galati, italiano.

Quando a sessão foi suspensa, ao final do primeiro dia, os advogados de Sindona podiam ser facilmente identificados, ao se retirarem. Eram homens com expressões preocupadas.

Seguido por Arico e sem desconfiar do perigo que corria, Ambrosoli foi a outra reunião. Era com o vice-superintendente da força policial de Palermo e chefe do CID naquela cidade, Boris Giuliano. O assunto era o mesmo sobre o qual Ambrosoli prestara depoimento durante o dia inteiro: Michele Sindona. Giuseppe Di Cristina, um pistoleiro da Máfia contratado pelas famílias Gambido, Inzerillo e Spatola, fora assassinado em Palermo em maio de 1978. Giuliano encontrara em seu corpo cheques e outros documentos que indicavam que Sindona vinha reciclando os lucros da venda de heroína através do Banco do Vaticano e enviado para o seu Smincor Bank, na Suíça. Depois de comparar as anotações sobre as investigações separadas, os dois homens marcaram uma reunião mais ampla, depois que Ambrosoli concluísse seu depoimento para os advogados americanos.

Mais tarde, nesse mesmo dia, Ambrosoli voltou a falar sobre Sindona. Teve uma longa conversa pelo telefone com o Tenente-Coronel Antonio Varisco, chefe do Serviço de Segurança, sediado em Roma. O assunto foi a investigação em que Varisco se empenhava: a P2.

A 10 de julho, Ambrosoli continuou seu depoimento e largou algumas bombas. Descrevendo como o Banca Cattolica del Veneto trocara de mãos e como Pachetti fora descarregado por Sindona para Calvi, Ambrosoli declarou que Sindona pagara "uma comissão de seis e meio milhões de dólares a um banqueiro milanês e um bispo americano".

Ambrosoli concluiu seu depoimento a 11 de julho. Ficou combinado que ele voltaria no dia seguinte para assiná-lo e ficaria disponível durante a semana subseqüente para interrogatório e esclarecimentos a respeito aos promotores americanos e advogados de Sindona.

Pouco antes da meia-noite do dia 11, Ambrosoli aproximou-se de seu apartamento. A mulher acenou da janela. Teriam um jantar tardio. Quando Ambrosoli encaminhou-se para a porta, Arico e dois cúmplices emergiram das sombras. A indagação veio da escuridão.

— Giorgio Ambrosoli?

— Si.

Arico apontou à queima-roupa e pelo menos quatro balas de um P-38 penetraram no peito do advogado. Ele teve morte instantânea.

Arico já estava na Suíça às seis horas da manhã. Cem mil dólares foram transferidos de uma conta de Sindona no Banca dei Gottardo, pertencente a Calvi, para uma conta que Arico tinha sob o nome de Robert McGovern no Crédit Suisse, em Genebra. O número da conta é 41585 1-22-1.

A 13 de julho de 1979, menos de 48 horas depois do assassinato de Giorgio Ambrosoli, o Tenente-Coronel Antonio Varisco seguia num BMW branco pela Lungotevere Arnaldo da Brescia, em Roma. Eram 8:30. Uma Fiat 128 branca emparelhou. Uma espingarda de cano serrado apareceu na janela. Quatro tiros foram disparados, matando o tenente-coronel e seu motorista. Uma hora depois, a Brigada Vermelha "reivindicou" a autoria.

Na manhã de 21 de julho de 1979, Boris Giuliano entrou no Lux Bar, na Via Francesco Paolo Di Biasi, em Palermo, para tomar um café. Eram 8:05. Depois de tomar o café, ele encaminhou-se para o caixa, a fim de pagar. Um homem aproximou-se e disparou seis tiros em Giuliano. O café estava apinhado na ocasião. O interrogatório policial subsequente constatou que ninguém vira coisa alguma. Ninguém ouvira nada. O cargo de Boris Giuliano foi ocupado por Giuseppe Impallomeni, um membro da P2.

Nem mesmo criaturas como os membros da Brigada Vermelha "reivindicaram", falsamente ou não, a responsabilidade pelos assassinatos de Giorgio Ambrosoli e Boris Giuliano. Quando a notícia do assassinato de Ambrosoli chegou a Nova York, Michele Sindona, o homem que pagara para que o liquidante fosse morto por um exterminador, reagiu de maneira típica:

— Ninguém deve me relacionar com esse ato de covardia e processarei imediatamente qualquer um que o fizer.

Dois anos antes, numa entrevista a II Fiorino, Sindona fizera uma declaração muito mais significativa. Falando da "conspiração que existe contra mim", ele relacionara os líderes, entre os quais figurava Giorgio Ambrosoli. E Sindona comentara:

— Há muitos que deveriam estar com medo, muitos mesmo.

Giorgio Ambrosoli não morreu em vão. Seus muitos anos de trabalho e mais o seu depoimento, embora sem assinatura, seriam poderosos instrumentos da acusação no julgamento de Michele Sindona.

O banqueiro milanês e o bispo americano referidos no depoimento de Ambrosoli foram rapidamente identificados como Calvi e o Bispo Paul Marcinkus. Marcinkus negaria categoricamente ter recebido qualquer comissão. Ambrosoli não era, com toda certeza, um homem de fazer acusações sem provas concretas. Quanto à veracidade da declaração do Bispo Marcinkus, basta lembrar que pouco depois do estouro de Sindona ele negou jamais ter conhecido Sindona.

Quais foram os principais beneficiários dessa série de crimes brutais? A lista começa a ter uma ressonância familiar: Marcinkus, Calvi, Sindona, Gelli e Ortolani.

Em Milão, o terror depois da série de assassinatos era mais discernível no Palácio da Justiça. Homens que trabalharam com Ambrosoli descobriram uma súbita dificuldade em lembrar que o haviam ajudado na investigação das atividades de Sindona. O Juiz Luca Mucci, que assumira a investigação criminal depois do assassinato de Alessandrini, reduziu o inquérito a um ritmo tão lento que os espectadores podiam pensar que ele se transformara numa estátua de pedra. Uma avaliação inicial da investigação do Banco da Itália no Banco Ambrosiano concluiu, espantosamente, que as explicações de Calvi eram perfeitamente aceitáveis. Ou pelo menos foi essa a opinião da polícia financeira.

Pedalino, o funcionário do Banco da Itália que conduzira a investigação de 1978, passou a ser frequentemente convocado a Milão, onde era confrontado por magistrados em dúvida. Enquanto o verão de 1979 prosseguia, Padalino foi ameaçado e pressionado por elementos do judiciário de Milão. Foi advertido que seu relatório sobre o Ambrosiano equivalia a uma calúnia. A P2 de Gelli e a Máfia de Sindona reduziam os conceitos de justiça a uma depravação.

Um exemplo de como o eixo Calvi/Gelli era poderoso foi a série de acontecimentos na Nicarágua, mais ou menos na ocasião do assassinato de Emilio Alessandrini, em janeiro de 1979. Calvi abrira uma sucursal de seu império em Manágua, em setembro de 1977. Era o Banco Comercial do Grupo Ambrosiano. Sua função oficial "era realizar transações comerciais internacionais". A função verdadeira, no entanto, era transferir da subsidiária de Nassau, com a aprovação do diretor Bispo Paul Marcinkus, as provas que revelariam as manobras fraudulentas e criminosas, na compra e venda de ações do banco de Milão. A Nicarágua servia para afastar ainda mais toda a sujeira dos olhos do Banco da Itália. Como sempre, havia um preço a ser pago. Gelli facilitara as coisas por um contato com o ditador da Nicarágua, Anastacio Somoza. Depois que vários milhões de dólares foram embolsados pelo ditador, ele anunciou que seria uma excelente idéia a abertura de uma sucursal do banco de Calvi em seu país. Um dos benefícios secundários para Calvi foi a obtenção de um passaporte diplomático da Nicarágua, que ele manteve até o final de sua vida.

Calvi e Gelli analisaram a situação política na Nicarágua, com a crescente possibilidade da rebelião sandinista assumir o poder, num futuro não muito distante. Esses homens, que possuíam documentos tanto de uma associação fascista como de guerrilheiros durante a Segunda Guerra Mundial, não haviam mudado os hábitos da vida inteira de jogo duplo e prudência, em termos bancários. Calvi também distribuiu muito dinheiro aos rebeldes, uma parte para comprar alimentos, outra para armas.

No início de 1979, a tomada do poder pela esquerda na Nicarágua tornou-se uma realidade. Como acontece muitas vezes quando a esquerda sobe ao poder, os sandinistas prontamente nacionalizaram os bancos estrangeiros — com uma exceção: o Banco Comercial do Grupo Ambrosiano continuou em atividade, sob o comando de Roberto Calvi. Até mesmo os idealistas de esquerda, ao que parece, têm um preço.

Em Nova York, com muitos dos seus inimigos italianos silenciados, permanente ou temporariamente, Michele Sindona decidiu, ao final de julho de 1979, que já podia voltar à Itália. Ilegalmente. O fato de que estava sob uma fiança de três milhões de dólares em Nova York e obrigado a se apresentar diariamente ao gabinete de um delegado federal, assim como o fato de já estar condenado a três anos e meio de prisão na Itália e ser procurado por outras acusações, deviam representar um bom motivo para não voltar. A solução de Sindona foi a própria simplicidade. Com a ajuda de seus associados da Máfia, em Nova York e Sicília, ele providenciou o próprio "sequestro".

Os motivos de Sindona para um retorno secreto à sua terra natal incluiam a necessidade de obter o máximo de apoio para seu iminente julgamento em Nova York. Sindona achava que muitas pessoas lhe deviam favores. Queria agora cobrar. Se os favores passados não persuadissem os amigos e colegas italianos a cooperarem, Sindona estava disposto a recorrer ao último trunfo de que dispunha. Revelaria os nomes dos 500.

A lista dos 500 maiores exportadores italianos ilegais de liras escapara às autoridades italianas durante os últimos 10 anos. Diversos investigadores, inclusive Giorgio Ambrosoli, haviam deparado constantemente com referências à lista dos 500, que supostamente incluía os nomes de muitos dos mais poderosos homens da Itália. Tornara-se uma espécie de Santo Graal das finanças italianas. Mas a lista não é apenas legendária. Existe de fato. Sindona e Gelli certamente possuem cópias, assim como Calvi também tinha. Sindona estava convencido de que a ameaça de divulgar os nomes misteriosos seria suficiente para consumar sua total reabilitação na sociedade italiana. A sentença de prisão seria revogada, todas as outras acusações contra ele seriam arquivadas e recuperaria seus bancos italianos. O tribunal de Nova York se defrontaria com um homem em condições de alegar que era vítima de conspirações iníquas, possivelmente de inspiração comunista. Diversas pessoas respeitáveis testemunhariam que Michele Sindona era não apenas um homem caluniado, mas também o mais brilhante banqueiro do mundo, um homem que personificava o capitalismo bom, puro e saudável. Tudo isso seria alcançado através de uma técnica na qual Sindona se gabara muitas vezes para Carlo Bordoni de ser um mestre: a chantagem.

Mais tarde. Sindona declarou que havia uma outra razão para a viagem. Sindona insiste hoje, para quem quer que esteja disposto a ouvi-lo, que tudo fez para derrubar o governo italiano na Sicília e declarar a ilha um Estado independente. Sindona diz que depois ofereceria a Sicília aos Estados Unidos como o 51° Estado americano, em troca do arquivamento de todas as acusações criminais que enfrentava em Nova York. Ele garante que o plano teria dado certo, se não fosse pelo fato da Máfia, depois de encenar um falso sequestro, parar para uma ação autêntica. Fantasias e ilusões assim são cômicas, até que a gente se lembra que homens bons e honestos como Giorgio Ambrosoli não morreram rindo.

A loucura de Michele Sindona talvez fique mais patente nos detalhes desse plano do que em qualquer outra coisa. Sindona assegura que a família Gambino estava plenamente disposta a abrir mão de suas fábricas de heroína na Sicília. Cabe ressaltar que essa indústria letal proporciona lucros às famílias Gambino, Inzerillo e Spatola calculados pelas autoridades italianas num mínimo de 600 milhões de dólares por ano. Em troca dessa atitude de espírito público, a família Gambino ganharia o controle do comércio de laranjas e Rosario Spatola teria permissão para construir um cassino em Palermo.

Sindona desapareceu das ruas de Nova York a 2 de agosto de 1979. Teria de trabalhar muito se quisesse que a Sicília fosse anexada e houvesse um acordo com o Presidente dos Estados Unidos antes do julgamento, marcado para começar a 10 de setembro. Levando um passaporte falso com o nome de Joseph Bonamico e acompanhado por Anthony Caruso, de óculos, peruca branca, bigode e barba postiços, Sindona embarcou no Vôo 740 da TWA para Viena, no Aeroporto Kennedy. A farsa, completada com pedidos de resgate encaminhados a diversas pessoas pelos "sequestradores", que se intitulavam do Comitê Proletário para a Eversão (sic) de uma Justiça Melhor, prolongou-se até 16 de outubro, quando um Sindona "emocionalmente exausto e fisicamente debilitado", com um curativo de ferimento a bala na coxa, telefonou para um dos seus advogados em Nova York, de uma cabine na esquina da Rua 42 com a Décima Avenida, em Manhattan.

A viagem não fora absolutamente um sucesso. A Sicília não se tornara parte dos Estados Unidos. Muitos dos antigos amigos de Sindona permaneceram apenas assim, antigos amigos. A lista dos 500, apesar de todas as ameaças, não fora revelada, e Sindona, em futuro próximo, teria de enfrentar acusações adicionais de perjúrio, quebra de fiança e de um falso sequestro. O maior ganho para Sindona parece ter sido de 30 bilhões de liras. Essa quantia foi paga por Roberto Calvi, depois da gentil interferência de Licio Gelli, por conta de Sindona. Em teoria, o dinheiro foi pago aos "seqüestradores" de Sindona por um banco pertencente a Calvi, Banca dei Gottardo, na Suíça. Em teoria, o dinheiro foi pago ao mafioso Rosario Spatola pela "libertação" de Sindona.

Os principais conspiradores, além do próprio Sindona, foram Anthony Caruso, Joseph Macaluso, Johnny Gambino, Rosano Spatola, Vincenzo Spatola e Joseph Michele Crimi. As autoridades italianas determinaram que Rosario Spatola, que normalmente podia ser encontrado a circular entre as misturadoras de cimento na companhia construtora que possuía em Palermo, estivera em Nova York exatamente na ocasião em que Sindona sumira. Interrogado a respeito de sua viagem a Nova York, respondeu simplesmente:

— Fui tratar de problemas de família.

O julgamento de Sindona por todas as acusações decorrentes da quebra do Franklin National Bank finalmente começou, no início de fevereiro de 1980. Pouco antes, o Vaticano deixou bem claro que a Igreja Católica pelo menos continuaria a apoiar o seu antigo assessor financeiro.

O Cardeal Giuseppe Caprio, o Cardeal Sergio Guerri e o Bispo Paul Marcinkus concordaram com o pedido de um advogado de defesa de gravar depoimentos em vídeo-teipe para ajudar Sindona. Intrigada com o que esses homens devotos poderiam dizer a respeito de Sindona, a promotoria não levantou objeções a essa manobra insólita. O normal é que as testemunhas prestem seus depoimentos sob juramento, num tribunal, na presença do juiz e do júri. O Juiz Thomas Griesa, presidindo o julgamento, revelou essa exigência para os homens do Vaticano e determinou aos advogados de Sindona que voassem para Roma na sexta-feira, 1° de fevereiro. O acordo era os advogados tomarem os depoimentos no dia seguinte e voltarem a Nova York para apresentá-los ao juiz na segunda-feira. A transcrição do relatório deles, encontrada nos autos do processo Estados Unidos da América x Michele Sindona, é uma leitura extraordinária.

No último minuto — ou mais precisamente quatro horas antes dos depoimentos serem gravados — o Cardeal Casaroli, Secretário de Estado do Vaticano, interferiu. Não haveria depoimentos. Casaroli declarou:

— Seria um precedente incômodo. Tem havido muita publicidade lamentável a propósito desses depoimentos. Lamentamos profundamente que o governo americano não conceda reconhecimento diplomático ao Vaticano.

Os sofisticados advogados de Nova York ainda se encontravam em estado de incredulidade quando se apresentaram ao Juiz Griesa. As onze horas da manhã de sábado, o secretário do Cardeal Guerri, Monsenhor Blanchard, telefonara para a Embaixada Americana, a fim de confirmar que os cardeais e Marcinkus lá estariam às 4:00 da tarde. Tornara a telefonar poucos minutos depois para informar que Casaroli proibira os depoimentos: Foi interrogado a respeito de seu telefonema anterior. Negou categoricamente qualquer telefonema anterior. Agravou essa mentira com outra, ao comunicar à embaixada que "o juiz americano já sabe de tudo".

O aturdido funcionário da embaixada, desacostumado a uma demonstração tão ostensiva de desonestidade do Vaticano, entrou em contato diretamente com o Cardeal Guerri. Localizou Sua Eminência, que disse que não sabia se iria ou não prestar o depoimento. Acabou não o fazendo. Guerri, Caprio e Marcinkus asseguraram aos advogados americanos que seus depoimentos teriam sido repletos de louvores a Michele Sindona. O problema não era esse, mas sim a proibição do Cardeal Casaroli, que percebera as terríveis implicações. Se o júri considerasse Sindona culpado, então os três prelados da Igreja Católica seriam marcados como mentirosos. Além disso, permitir que os três testemunhassem, mesmo em depoimentos voluntários, abriria um portão do Vaticano pelo qual se lançaria cada magistrado italiano, a exigir a mesma cooperação. isso levaria a uma violação do Tratado de Latrão, que concedia a um cardeal total imunidade contra prisão na Itália. O passo seguinte seria um refletor indesejável iluminando o Vaticano S.A.

Casaroli sagazmente salvara o Vaticano no último momento. O que os advogados americanos não sabiam era que, ao fazer isso, ele passara por cima de uma decisão tomada pelo Papa. João Paulo II concordara na maior satisfação com o pedido para que Marcinkus e os outros revelassem ao mundo o quanto tinham Michele Sindona em alta conta.

A 27 de março de 1980, Michele Sindona foi considerado culpado de 65 acusações, incluindo fraude, conspiração, perjúrio, falsas declarações bancárias e apropriação indébita de recursos bancários. Ficou preso no Centro Correcional Metropolitano, em Manhattan, aguardando a sentença.

A 13 de maio, dois dias antes da sentença final, Sindona tentou o suicídio. Cortou os pulsos superficialmente, mas também consumiu uma boa quantidade de digitalina. A conselho do Grão-Mestre Gelli, Sindona há muitos anos que andava por toda parte com uma dose letal de digitalina. Gelli aconselhara não apenas a Sindona, mas também a outros membros importantes da P2 a fazerem isso. Era a apólice de seguro da P2 contra um membro ser forçado a revelar os detalhes da organização.

Ainda é um mistério como a droga foi contrabândeadá para a prisão. Sindona aparentemente alegou que há anos tinha a droga escondida no forro de um terno. Mas contrabandear a digitalina para a sua prisão seria muito mais difícil do que levá-la para os aposentos papais em setembro de 1978.

A princípio, parecia que a morte de Sindona era inevitável, especialmente porque os médicos estavam desorientados. sem saber que droga ele ingerirá, mas a dose foi insuficiente. Concluindo finalmente que era digitalina, eles puderam aplicar o antídoto. Sindona teve uma recuperação total e a 13 de junho de 1980 foi condenado a 25 anos de prisão e multado em mais de 200 mil dólares. Carlo Bordoni, que fora a principal testemunha de acusação contra Sindona, recebeu uma sentença de sete anos de prisão e multa de 20 mil dólares. Posteriormente, Sindona foi considerado culpado de encenar o próprio sequestro e condenado a mais dois anos e meio de prisão. Anthony Caruso e Joseph Macaluso foram considerados culpados de conspirar com ele e ajudá-lo a violar a fiança. Ambos foram condenados a cinco anos de prisão.

Enquanto tudo isso acontecia em Nova York, os companheiros de Sindona na P2, Calvi e Gelli, continuavam os negócios como sempre, no outro lado do Atlântico. Por volta de 1979, Roberto Calvi procurava proteção por toda parte. Tinha um exército particular de oito guardacostas; guardas vigiavam Calvi, sua família, suas casas em Milão, Roma e Drezzo, 24 horas por dia; os Alfa Romeo eram blindados, com pneus à prova de balas. Essas manifestações dos medos pessoais do mestre dos ladrões estavam custando aos acionistas do Ambrosiano mais de um milhaõ de dólares por ano. Ninguém na Itália, incluindo o Presidente e o Primeiro-Ministro, era tão bem protegido. Calvi procurava também a proteção de partidos políticos de todas as tendências e cores — democratas-cristãos, socialistas, comunistas, todos eram ilegalmente beneficiados por Calvi. Ele contava com a proteção da P2 de Gelli e de seus associados da Máfia, mas ambas eram espadas de dois gumes, que podiam ser usadas contra ele.

As ações ilegalmente adquiridas do Ambrosiano foram escondidas em companhias panamenhas, além da jurisdição do Banco da Itália. Mas o temor de Calvi sempre fora a possibilidade de que as autoridades descobrissem esse aspecto de suas muitas atividades criminosas. Primeiro, usara a subsidiária de Nassau para encobrir as transações ilegais. Quando o Banco da Itália estivera próximo de provar todas as coisas de que se desconfiava, Calvi transferira o centro da fraude para a Nicarágua. Depois, em 1979, transferira para mais longe ainda, para o Peru, a atividade central que governava a fraude, O Banco Ambrosiano Andino, com sede em Lima, foi inaugurado a 11 de outubro de 1979. Pouco depois, a maioria dos empréstimos concedidos às companhias de fachada do Panamá e Liechtenstein foi transferida para o Peru. Essas pequenas companhias de fachada, muitas com um capital nominal de apenas 10 mil dólares, continuaram a proliferar e chegaram a ser 17. A maioria era possuída por uma empresa de Luxemburgo chamada Manic S.A., que por sua vez era possuída pelo Banco do Vaticano.

Se os bancos internacionais que faziam fila para emprestar milhões e milhões de dólares a Calvi, ao longo dos anos, tivessem feito uma investigação elementar, o banqueiro milanês seria denunciado muito antes de sofrer o seu destino final. E verdade que o relatório do Banco da Itália em 1978 sobre o Banco Ambrosiano foi altamente confidencial e não estava disponível a qualquer um. Essa ainda era a situação quando obtive uma cópia, em 1981. Se um escritor pode ter acesso a um relatório assim, então presumivelmente também podem o Midland, o Lloyds, o National Westminster ou qualquer outro dos 250 bancos espalhados pelo mundo que foram enganados por Calvi, que acabou roubando o nosso dinheiro. Esses banqueiros possuem uma reputação muito alardeada de sagacidade e astúcia, mas acreditaram piamente nas contas manipuladas que Calvi lhes apresentava. Aceitaram as declarações que ele fazia, de que os enormes empréstimos serviam para financiar as exportações italianas. Ninguém verificou a alegação? Não houve qualquer controle subseqüente? O fato de mais de 450 milhões de dólares serem emprestados por bancos internacionais, não a outro banco, mas a uma mera companhia holding, chamada Banco Ambrosiano Holdings, baseda em Luxemburgo e sem contar ostensivamente com o apoio de qualquer banco central, é uma condenação absoluta às práticas de empréstimo do mercado interbancário. Os homens que ocupam as diretorias desses bancos emprestadores deveriam prestar contas a seus acionistas e a todos os correntistas. Não é agradável refletir que alguns de nós, ingleses, financiaram os mísseis Exocet que a Argentina usou para matar tantos homens durante a guerra nas Falklands. Contudo, não resta a menor dúvida de que isso ocorreu. Calvi desviou milhões de dólares para Licio Gelli, que por sua vez usou uma parte desse dinheiro para comprar Exocets para a Argentina. Investir no futuro é uma ótima coisa, mas investir para garantir que muitos de seus compatriotas não tenham qualquer futuro é outra muito diferente. Com toda certeza, os homens que negociaram esses enormes empréstimos a Calvi alegariam que parecia um ótimo negócio na ocasião.

A indecência dessa transação em particular só pode ser avaliada quando se toma conhecimento que esse dinheiro foi desviado para Gelli e Ortolâni através de uma companhia panamenha que pertencia ao Vaticano.

A companhia em questão, Bellatrix, era controlada por Marcinkus no Banco do Vaticano, mas fora criada por uma trindade de membros da P2, Gelli, Ortolani e Bruno Tassan Din, diretor-executivo e estrategista financeiro do gigantesco grupo editorial Rizzoli. Esses maçons ordenharam a vaca Ambrosiano de 184 milhões de dólares. O capital da Bellatrix? Apenas 10 mil dólares. O empréstimo não restituível foi garantido no papel com um bloco considerável de ações da Rizzoli, que era possuída conjuntamente pela P2 e o Vaticano. O preço indicado para as ações da Rizzoli ultrapassava em muito o seu valor real.

A Astolfine, mais uma das companhias panamenhas possuidas pelo Vaticano, com um capital de 10 mil dólares, pôde assumir dividas de 486 milhões de dólares. Sua garantia? Um bloco enorme de ações do Banco Ambrosiano com um valor muito acima do mercado.

Com transações financeiras desse tipo, o capitalismo não precisa temer a destruição final pelo marxismo. Tudo o que os marxistas precisam fazer é cruzar os braços e esperar que o capitalismo se autodestrua automaticamente.

E compreensível que a ENI, um dos maiores conglomerados do mundo, começasse de repente a emprestar dinheiro a Calvi; é compreensível que essa gigantesca empresa petrolífera estatal passasse subitamente a funcionar como banco, emprestando dinheiro ao invés de tomar emprestado do Banco Ambrosiano Holdings, em Luxemburgo. Afinal, o presidente da ENI, Giorgio Mazzanti, e seu diretor financeiro, Leonardo di Donna, são membros da P2. Até agora, nenhum membro da P2 foi descoberto nos altos escalões dos muitos bancos internacionais que continuamente despejaram milhões de dólares nos bolsos de Calvi, entre 1978 e 1980.

Quando o homem comum em Londres, Paris, Nova York, Copenhagen, Tóquio, Ottawa, Sydney e Wellington protesta contra os juros altos cobrados por seu banco, deveria tirar o chapéu ao fantasma de Roberto Calvi e aos sempre esquivos Licio Gelli e Umberto Ortolani. Deveria também reservar um pensamento à Cidade do Vaticano. Quando pagamos os juros altos, estamos contribuindo para cobrir o prejuízo que eles causaram.

As provas de que o Vaticano possui essas misteriosas companhias panamenhas remontam a 1971, à época em que Calvi e Sindona puseram o Bispo Paul Marcinkus na diretoria do banco subsidiário em Nassau.

Em Milão, durante o ano de 1979, o Juiz Luca Mucci interrogou Calvi periodicamente. Calvi examinava atentamente os próprios sapatos, murmurava alguma coisa sobre a necessidade de preservar o sigilo bancário, discutia as possibilidades da Inter de Milão vencer a sua próxima partida de futebol e deixava o juiz atordoado.

Ao final de 1979, a descoberta financeira das companhias de fachada possuidas pelo Vaticano e controladas por Calvi era superior a 500 milhões de dólares. Felizmente, as fantasias bancárias intercósmicas de Sindona ainda não haviam se tornado uma realidade. Calvi não podia, contudo, controlar algumas situações financeiras. O dólar começou a subir em relação à lira. Os bens do Ambrosiano consistiam essencialmente de ações baseadas em liras. A manipulação tornou-se frenética. Era preciso um malabarismo incessante só para manter a fraude, especialmente quando os custos elevados incluíam 30 bilhões de liras para comprar o jornal veneziano Il Gazzettino, a fim de manter os democrata-cristãos felizes, e um empréstimo'" de 20 bilhões de liras ao diário romano Paese Sera, para deixar os comunistas satisfeitos. Todos metiam as mãos e parecia sempre que as mãos maiores eram de Licio Gelli.

Em janeiro de 1980 foi inaugurado em Buenos Aires o Banco Ambrosiano de America del Sud. Não havia praticamente atividades bancárias, mas foi esse braço do império de Calvi que ajudou a financiar as compras argentinas de mísseis Exocet. Também proporcionou recursos para compras de armamentos por outros regimes sulamericanos.

Em julho de 1980, o Juiz Luca Mucci sentiu-se bastante impressionado com a investigação realizada pela Guardia di Finanza, a polícia financeira, na esteira do inquérito do Banco da Itália, em 1978, para ordenar que Calvi entregasse seu passaporte à justiça e o advertisse de que teria de enfrentar acusações criminais. Era um pequeno passo a frente, em nome da justiça.

Mas houve um passo para trás, poucos meses depois, quando Calvi recuperou seu passaporte, graças aos bons ofícios de Licio Gelli. O Grão-Mestre não parecia tão propenso a intervir quando Massimo Spada, que fora do Banco do Vaticano e nessa ocasião se tornara o presidente do conselho de administração do Banca Cattolica del Veneto, foi preso e acusado de cumplicidade criminosa com Il Crack Sindona. O seguinte a sentir as algemas, pelo menos momentaneamente, foi Luigi Mennini, ainda em atividade no Banco do Vaticano, sob acusações similares.

Enquanto o cerco em torno de Calvi se apertava, apesar dos ingentes esforços de Gelli para corromper a todos, as esperanças do banqueiro milanês de continuar a roubar quantias vultosas baseavam-se em grande parte em Marcinkus. As manobras se tornavam cada vez mais difíceis e Calvi não conseguiria mais esconder os seus crimes sem a ajuda constante do Banco do Vaticano. Essa ajuda sempre existira, mas no passado a pressão sobre o Vaticano era mínima; agora, com a prisão de Mennini, a pressão aumentou. Calvi começou a temer que, apesar de todo o dinheiro que canalizava para as mãos do Bispo Paul Marcinkus, podia estar se aproximando rapidamente o momento em que o homem do outro lado do Tibre retiraria seu apoio e o deixaria sozinho, numa situação altamente vulnerável,

No início de 1981, o Ministro do Tesouro Beniamino Andreatta, que fora promovido ao cargo em outubro anterior, concluiu que o Vaticano deveria retirar seu apoio imediatamente. Ele estudara o relatório de 1978 do Banco da Itália e sentia-se compelido a fazer uma tentativa de proteger a Igreja. Foi ao Vaticano e conversou longamente com o Ministro do Exterior, Cardeal Casaroli. Descreveu toda a situação. Recomendou que o Vaticano rompesse todos os vínculos com o Banco Ambrosiano antes que fosse tarde demais, O conselho foi ignorado. Marcinkus alegaria mais tarde que não teve conhecimento dessa reunião. De qualquer forma, se estivesse a par de todos os fatos, o devoto católico Andreatta saberia que era impossível ao Vaticano romper os vínculos. O Vaticano possuía de fato o Banco Ambrosiano. Através da rede de companhias sediadas no Panamá e Liechtenstein, adquirira o controle de mais de 16 por cento do Banco Ambrosiano. Com o resto das ações do banco bastante disperso entre pequenos acionistas, o Vaticano tinha o controle acionário.

Ao meio-dia de 2 de março de 1981, o serviço de imprensa do Vaticano divulgou um documento que deixou muita gente perplexa. Apresentado sem qualquer explicação, lembrava a todos os católicos que as leis canônicas abrangiam os maçons e ressaltava que o atual código "proíbe aos católicos, sob pena de excomunhão, ingressarem em associações maçônicas ou similares". Ninguém entendeu o motivo para a divulgação do documento naquele momento. Os católicos estavam sujeitos à excomunhão automática se se tornassem maçons desde 1738. Por que lembrá-los no início de março de 1981? A resposta não demorou muito a surgir e indica que a rede de informações da Igreja é pelo menos tão eficiente quanto a de Licio Gelli. A declaração do Vaticano não explicava como todos os bons católicos que figuravam nas listas de associados da P2 podiam ter seus nomes suprimidos dos registros antes que as autoridades italianas os descobrissem. Para o membro da P2 Calvi, esse problema aparentemente insuperável teria conseqüências desastrosas.

Quando a denúncia pública finalmente chegou, foi ironicamente através da associação de Calvi com seu protetor, Licio Gelli. Em 1981, os magistrados italianos ainda tentavam esclarecer os fatos sobre o auto-sequestro de Sindona. A 17 de março de 1981, a policia deu uma batida na mansão de Gelli em Arezzo e em seu escritório na fábrica têxtil Giole. Procurava provas do envolvimento de Gelli na viagem de surpresa de Sindona à Itália. O que encontrou foi uma caixa de Pandora de escândalos, Havia no cofre de Gelli uma lista de 962 membros da P2. Também encontraram dossiês e relatórios secretos do governo.

A lista de membros da P2 era um verdadeiro "Quem é Quem" da Itália, As forças armadas estavam muito bem representadas, com mais de 50 generais e almirantes. O governo no poder estava presente com dois ministros. Havia industriais, jornalistas (inclusive o editor do Corriere della Sera e diversos elementos importantes de sua equipe), 36 parlamentares, artistas famosos, professores e policiais. Era um Estado dentro de um Estado. Muitos disseram que Gelli planejava assumir o poder na Itália. Pois estavam enganados. Ele já tinha o poder. Mas não havia qualquer sinal do Grão-Mestre. Os preparativos para a batida policial foram ultra-secretos, o que significava o seguinte: avisem apenas aos agentes policiais de absoluta confiança e a Licio Gelli. Ele fugira para a América do Sul.

O escândalo subseqüente derrubou o governo italiano e proporcionou um impulso considerável à investigação do juiz de Milão sobre Calvi. O Juiz Mucci fora substituido por Gerardo d’Ambrosio. Já se haviam passado dois anos desde o assassinato do Juiz Emilio Alessandrini... dois anos de protelações. Agora, com um novo juiz presidindo o inquérito e com a ajuda dos documentos comprometedores encontrados no cofre de Gelli, em apenas dois meses Calvi foi preso e posto numa cela em Lodi.

Era o momento de todos os bons amigos ajudarem o homem que tantas vezes os financiara. Nas semanas seguintes a prisão de Calvi Bettino Craxi, o líder do Partido Socialista, e Flaminio Piccoli, o presidente do Partido Democrata Cristão, levantaram-se no Parlamento para fazer comentários favoráveis sobre Calvi e seu banco. O Vaticano permaneceu em silêncio. Toda a sua atenção estava focalizada numa situação muito mais grave. Sete dias antes da prisão de Calvi, o Papa João Paulo II tivera o seu encontro quase fatal, na Praça de São Pedro., com Mehmet Ali Agca.

Enquanto uma grande parte do mundo orava para que o Papa sobrevivesse, Roberto Calvi em sua cela de prisão estava totalmente absorvido no que lhe parecia ser um problema infinitamente mais importante: a sua própria sobrevivência. Através de sua família, começou a pressionar Marcinkus para admitir publicamente que, ao longo dos anos, os dois haviam trabalhado juntos.

Depois de muitos telefonemas inúteis, o filho de Calvi, Carlo, conseguiu finalmente falar com Marcinkus. Argumentou com o bispo que a grave situação do pai ficaria consideravelmente atenuada se o Vaticano reconhecesse seu envolvimento. As transações haviam sido canalizadas através do Banca del Gottardo, em Lugano, pertencente a Calvi, mas que não podia revelar a verdade por causa dos rigorosos regulamentos bancários suíços. Mas a Banco do Vaticano não tinha de obedecer a ninguém. Podia fornecer voluntariamente as informações. Marcinkus, no entanto, não tinha a menor intenção de assumir publicamente a responsabilidade. E disse ao filho de Calvi:

— Se fizermos isso, não será apenas a imagem do IOR e do Vaticano que sofrerá. Vocês também perderão, pois nossos problemas são igualmente seus. E eram mesmo. Os dois bancos estavam indissoluvelmente ligados. Há anos que isso acontecia, O Bispo Marcinkus se encontrava numa situação terrível. Se revelasse a verdade, atrairia sobre o Vaticano a ira da Itália. A alternativa era deixar Calvi sem qualquer apoio, na esperança de que o envolvimento profundo e continuado do Vaticano permanecesse em segredo e tudo voltasse a ser um problema de negócios, como sempre, depois do julgamento de Calvi. O Bispo Marcinkus adotou a segunda opção. Essa decisão indubitavelmente se baseou no fato de que, entre todos os crimes cometidos, as acusações que Calvi enfrentava agora envolviam apenas duas de suas transações ilegais, quando vendera a si mesmos ações que já possuia, na Toro e Credito Varesino, a preços altamente inflacionados, Isso envolvera a exportação ilegal de moeda para fora da Itália e era por esse crime que os magistrados de Milão esperavam obter a condenação de Calvi. Marcinkus raciocionou que o jogo poderia continuar se todos se mantivessem calmos e controlados, Calvi, na prisão de Lodi, não se deixou sensibilizar pelas mensagens de seu cúmplice no Vaticano, Os banqueiros internacionais sacudiam a cabeça em incredulidade, enquanto ele continuava a dirigir o Banco Ambrosiano, do interior da prisão.

A 7 de julho, o governo italiano acusou Michele Sindona de ordenar o assassinato de Giorgio Ambrosoli, A reação de Calvi a essa notícia foi particularmente interessante. Ele tentou cometer suicídio na noite seguinte. Engoliu uma quantidade grande de barbitúricos e cortou os pulsos. Explicou mais tarde o motivo:

— Foi por causa de um desespero lúcido. Porque não havia qualquer vestígio de justiça em tudo o que se fazia contra mim. E não estou me referindo ao julgamento.

Se ele quisesse realmente acabar com a própria vida, é claro, bastaria obter a quantidade de digitalina recomendada que Gelli contrabandeou para a prisão. Os magistrados encarregados do julgamento não se mostraram impressionados.

A 20 de julho, Roberto Calvi foi condenado a quatro anos de prisão e uma multa de 16 bilhões de liras. Seus advogados entraram imediatamente com um recurso e ele foi solto sob fiança. Uma semana depois, o conselho de administração do Ambrosiano reconduziu-o por unanimidade à presidência do banco e ofereceu-lhe uma ovação de pé. Os banqueiros internacionais tornaram a sacudir a cabeça em perplexidade. Como Marcinkus previra, os negócios continuariam como sempre. A P2 ainda era um poder. O Banco da Itália permitiu o retorno de Calvi. O governo italiano não tomou qualquer iniciativa para acabar com o espetáculo extraordinário de um homem condenado por crimes bancários voltar a dirigir um dos maiores bancos do país.

Houve um banqueiro que protestou. O gerente-geral do Ambrosiano, Roberto Rosone, pediu ao Banco da Itália que determinasse o afastamento de Calvi e sua substituição pelo presidente anterior, Ruggiero Mozzana. O Banco da Itália, ainda preocupado com o poder da P2 e a força política que Calvi comprara ao longo dos anos, recusouse a interferir.

A segunda ameaça ao império bancário de Gelli veio do Peru e Nicarágua. Pára anulá-la, Calvi recrutou a ajuda de Marcinkus. O bispo recusara-se a dar seu apoio público a Calvi por ocasião do julgamento, mas estava agora disposto a prestar-lhe toda assistência para garantir que a fraude criminosa perpetrada por ambos continuasse em segredo.

Durante o julgamento de Calvi, o Vaticano anunciou que o Papa João Paulo II nomeara uma comissão de 15 cardeais para examinar as finanças da Igreja Católica. A função da comissão era recomendar melhorias que aumentassem a receita do Vaticano.

O Bispo Paul Marcinkus não integrava a comissão, mas achava que, como presidente do Banco do Vaticano, podia assim mesmo oferecer uma grande contribuição ao problema aflitivo das finanças do Vaticano. Manteve diversos encontros secretos com o condenado Calvi, que tiveram como resultado o Banco do Vaticano admitir oficialmente o aumento de quase um bilhão de dólares em suas dívidas pendentes. Essa era a quantia devida aos bancos de Calvi no Peru e Nicarágua, em decorrência dos empréstimos de centenas de milhões de dólares à Bellatrix, Astolfine, etc,, por instruções de Calvi. Peru e Nicarágua, embora subsidiários de Calvi, estavam finalmente adquirindo independência. As garantias para esses vultosos empréstimos eram insignificantes.

Peru e Nicarágua queriam maior cobertura. Quem pagaria a conta no caso de uma omissão? Quem exatamente possuía as misteriosas companhias panamenhas? Quem emprestara tanto dinheiro com tão pouca garantia? Os homens do Peru estavam particularmente preocupados, tendo emprestado cerca de 900 milhões de dólares.

A esta altura, em agosto de 1981, Calvi e Marcinkus cometeram a sua maior fraude. Os documentos tornaram-se conhecidos como “cartas de conforto". Mas não oferecem conforto algum a qualquer católico, nenhuma garantia a quem acreditava na integridade moral do Vaticano. As cartas foram escritas em papel timbrado do Instituto per de Opere di Religione, Cidade do Vaticano, sendo datadas de 1º de setembro de 1981. Estavam endereçadas ao Banco Ambrosiano Andino, em Lima, Peru, e ao Banco Comercial do Grupo Ambrosiano, na Nicarágua. Por determinação do Bispo Paul Marcinkus, estavam assinadas por Luigi Mennini e Pellegrino de Strobel. Diziam o seguinte:

Prezados Senhores:

Confirmamos por esta carta que controlamos, direta ou indiretamente, as seguintes empresas:

 

                 Manic S. A. — Luxemburgo

                 Astolfine S. A. — Panamá

                 Nordeurop Establishment – Liechtenstein

                 UTC — United Trading Corporation — Panamá

                 Erin S. A. — Panamá

                 Bellatrix S.A. — Panamá

                 Belrose S.A. — Panamá

                 Starfield S.A. — Panamá

 

Confirmamos também que temos conhecimento das dívidas dessas empresas da data de 10 de junho de 1981, conforme o extrato de contas em anexo,

O extrato de contas mostrava que as dividas somente com a subsidiária do Peru se elevavam a 907 milhões de dólares.

Os diretores na Nicarágua e Peru relaxaram. Possuíam agora uma admissão objetiva de que as dívidas enormes eram de responsabilidade do Banco do Vaticano, A Santa Igreja Católica garantia, Nenhum banqueiro poderia desejar uma garantia melhor. Só havia um pequeno problema. Os diretores no Peru e Nicarágua conheciam apenas a metade da história, Havia outra carta, de Roberto Calvi para o Banco do Vaticano, datada de 27 de agosto de 1981. Chegou às mãos de Marcinkus antes que ele reconhecesse que o Banco do Vaticano era responsável por dívidas no valor de um bilhão de dólares. A carta de Calvi continha uma solicitação formal para as cartas de conforto em que o Vaticano admitiria possuir as companhias no Luxemburgo, Liechtenstein e Panamá. Calvi assegurava que essa admissão do Vaticano "não acarretaria responsabilidades para o IOR", Terminava com um parágrafo confirmando que, não importava o que acontecesse, o Banco do Vaticano não sofreria futuros danos ou prejuízos". Assim, o Banco do Vaticano ficava secretamente isento das dívidas que estava prestes a admitir.

Para que a carta secreta de Calvi a Marcinkus tivesse alguma validade legal, era necessário que sua existência e conteúdo preciso fossem revelados aos diretores no Peru e Nicarágua. Além disso, os acordos entre Calvi e Marcinkus teriam de ser aprovados pela maioria dos diretores em Milão. Mais ainda: para que o acordo fosse legal, era essencial que o conteúdo das duas cartas fosse comunicado a todos os acionistas do Banco Ambrosiano, inclusive os muitos pequenos acionistas na área de Milão.

As duas cartas e os acordos entre Calvi e Marcinkus constituem um caso inequívoco de fraude criminosa cometida pelos dois. O fato de tudo isso ter transpirado no terceiro aniversário da eleição de Albino Luciani para o Pontificado aumenta o escândalo. Luciani, um homem empenhado em eliminar a corrupção no Vaticano, fora sucedido pelo Papa João Paulo II, um homem que apoiava plenamente o Bispo Paul Marcinkus.

Essa desfaçatez vergonhosa aumentou a 28 de setembro de 1981, o terceiro aniversário da morte de Luciani, quando Marcinkus foi promovido pelo Papa. Foi anunciado que ele fora designado PróPresidente da Comissão Pontifical pará o Estado da Cidade do Vaticano. Ele se tornava assim, virtualmente, o Governador da Cidade do Vaticano. Ainda mantinha o seu cargo à frente do Banco do Vaticano e o novo posto lhe garantia a elevação automática a arcebispo.

Graças a suas origens lituanas, apoio constante em termos financeiros às necessidades da Polônia e proximidade com o Papa, em decorrência de seu papel como guarda-costas pessoal e supervisor de toda a segurança nas viagens ao exterior, Marcinkus descobrira na pessoa de Karol Wojtyla o mais poderoso protetor que um empregado do Vaticano poderia ter. Sindona, Calvi e os outros iguais são, na opinião do Vaticano, homens iníquos que enganaram sacerdotes ingênuos e confiantes. Ou Marcinkus enganou, mentiu e escondeu a verdade do Papa João Paulo II desde outubro de 1978, ou o atual Papa também é culpado.

Enquanto Karol Wojtyla demonstra um carisma extraordinário e diz ao mundo que um homem que olha para a esposa com desejo pode muito bem estar cometendo adultério no coração, Marcinkus continua a seduzir muitos dos banqueiros do mundo. Enquanto o Papa de Cracóvia demonstra sua preocupação em manter o status quo católico com sua declaração que os católicos divorciados que tornam a casar só podem receber o sacramento se se abstiverem totalmente das relações sexuais, os banqueiros do Papa não se mostram tão exigentes com as pessoas com quem se consorciam.

Nos anos que transcorreram desde a eleição de Wojtyla, Licio Gelli, o incrédulo, continuou a demonstrar seu poder e carisma. Ninguém o chamaria de representante de Deus, mas muitos continuariam a pular quando o mestre dos títeres puxasse os seus cordões.

Do santuário de sua casa em Montevidéu, a capital do Uruguai, Licio Gelli permaneceu em contato com Calvi. Ainda manobrando nos bastidores, ainda extorquindo enormes quantias do banqueiro italiano, telefonava com freqüência quando Calvi se achava em sua mansão em Drezzo. Sua mulher, Clara, e suá filha, Anna, confirmaram que o número do telefone só era conhecido de Gelli e de Umberto Ortolani, um canal direto de emergência da P2. Gelli jamais anunciava seu nome quando alguém da família de Calvi atendia. Era sempre o codinome especial: Luciani.

Por que o Grão-Mestre da P2 assumia o nome de Albino Luciani... um nome que usava em seus contatos com Calvi desde 1978? Seria um lembrete constante de um determinado acontecimento? Uma ameaça constante de que o mestre da chantagem poderia revelar os detalhes desse acontecimento, a menos que o dinheiro continuasse a ser despejado em suas contas bancárias? Não resta a menor dúvida de que o dinheiro continuou a fluir para Gelli, Até o final, Calvi ainda pagava a Gelli. Com o Grão-Mestre em desgraça e escondido na América do Sul, procurado pelas autoridades italianas por incontáveis acusações, a proteção que podia proporcionar a Calvi era bastante limitada. Por que então os milhões de dólares que a simples menção do nome "Luciani" despejava nos bolsos de Gelli? Calvi, pessoalmente, estimou que as fortunas de Gelli e Ortolani excediam os 500 milhões de dólares cada uma.

Meses antes do escândalo da P2 irromper, Calvi tentou claramente cortar todos os seus vínculos com Gelli, quando o Grão-Mestre ainda se encontrava na Itália. Por que evitava os telefonemas? Por que mandava a família dizer que se achava doente ou saíra? Segundo os relatos da família, Gelli, o insaciável colecionador de segredos e informações, incutia pavor a Roberto Calvi. Qual era o supremo segredo que Gelli conhecia que lançava Calvi ao terror, trêmulo e suado, à simples menção de seu nome? O poder de Gelli sobre Calvi continuou até o fim da vida dobbanqueiro. Quando ele assoviava, Calvi dançava. Ao final de 1981, Carlo de Benedetti, diretor-executivo da Olivetti, tornou-se vicepresidente do Banco Ambrosiano, a convite de Calvi, Proporcionou à imagem tão afetada do banco uma saudável injeção de respeitabilidade, No Uruguai, Gelli e Ortolani ficaram alarmados ao serem informados Um vice-presidente honesto não combinava com seus planos de continuar a saquear o Banco Ambrosiano, "Luciani" pegou o telefone e ligou para a linha particular da mansão em Drezzo. Depois de persuadir Benedetti a ingressar no banco, Calvi depois tornou praticamente impossível a ação do homem da Olivetti.

— Você deve tomar o maior cuidado — disse ele a Benedetti — A P2 está preparando um dossiê sobre você. Aconselho-o a tomar cuidado porque sei como são essas coisas,

Pouco mais de um mês depois de assumir o cargo, Benedetti foi forçado a renunciar.

Uma longa carta de reclamação, com apêndices detalhados, foi enviada por um grupo de acionistas milaneses do Banco Ambrosiano a João Paulo II. Datada de 12 de janeiro de 1982, a carta era um ataque contundente ao banco. Relatava as ligações entre Marcinkus, Calvi, Gelli e Ortolani, Os acionistas estavam particularmente consternados pelo rompimento da aliança entre o Ambrosiano e o Banco do Vaticano. Os aflitos católicos de Milão comentaram:

O IOR não é apenas um acionista do Banco Ambrosiano É um associado e parceiro de Roberto Calvi. As ações judiciais, em número cada vez maior, revelam que Calvi é hoje uma das principais ligações entre o setor mais degenerado da maçonaria (a P2) e os círculos da Máfia, como o herdeiro de Sindona, Isso se tornou possível com o envolvimento de pessoas generosamente nutridas pelo Vaticano. Uma delas é Ortolani, que circula entre o Vaticano e poderosos grupos do submundo internacional.

Ser associado de Calvi significa ser também associado a Gelli e Ortolani, pois ambos o orientam e influenciam decisivamente. Portanto, quer goste ou não, o Vaticano é também um cúmplice ativo de Gelli e Ortolani, através de sua associação com Roberto Calvi.

A carta terminava com um apelo de ajuda e orientação ao Papa João Paulo II. Embora o Papa fale muitas línguas, inclusive italiano, os milaneses acharam melhor traduzi-la para o polonês e providenciaram para que nem a Cúria em geral ou o substituto de Villot, Casaroli evitassem que a carta chegasse até o Papa. Os autores não receberam resposta, sequer uma notificação de que a carta foi recebida. Talvez Sua Santidade estivesse muito ocupado com uma homília sobre a caridade ser um dos maiores dons.

Calvi tomou conhecimento da carta e também que contara com a aprovação de seu gerente-geral e vice-presidente, Roberto Rosone. Ele conversou com seu amigo íntimo e companheiro da P2 Flávio Carboni sobre a ameaça representada pelas tentativas de Rosone de limpar o banco.

A extensão dos amigos e contatos de Carboni era a maior possível. Incluía homens como os dois chefões do submundo do crime em Roma, Danilo Abbruciati e Ernesto Diotavelli.

Na manhã de 27 de abril de 1982, Rosone deixou seu apartamento poucos minutos antes das 8:00. Felizmente para Rosone, ele por acaso residia no prédio por cima de uma agência do Ambrosiano, protegida por guardas armados 24 horas por dia, como acontece com todos os bancos italianos. Quando Rosone saiu para a rua, um homem aproximou-se e começou a atirar. Ferido nas pernas, Rosone caiu. Os guardas do banco responderam ao fogo. Momentos depois, o atacante também estava estendido na calçada. Morto. Seu nome era Danilo Abbruciati.

No dia seguinte à tentativa de assassinato de Rosone, 28 de abril, Flavio Carboni pagou 530 mil dólares ao chefão sobrevivente do submundo de Roma. O trabalho fracassara, mas Calvi era um homem que honrava seus compromissos... com o dinheiro dos outros, é claro.

Calvi, que com toda certeza encomendara o assassinato de seu próprio vice-presidente, foi postar-se o mais depressa possível à cabeceira de seu colega, levando inclusive um ramo de flores.

— Madonna! Que mundo de loucos! Eles querem nos assustar, Roberto, a fim de se apropriarem de um grupo que vale 20 trilhões de liras.

O cerco a Calvi se apertou ainda mais em maio de 1982. Consob, a agência italiana que controla e regulamenta o mercado de valores mobiliários, obrigou-o a relacionar publicamente suas ações na Bolsa de Valores de Milão, Essa relação implicaria uma auditoria independente dos liv'ros do banco.

Clara, a mulher de Roberto Calvi, declarou sob juramento que no inicio deste ano, numa audiência particular com o Papa João Paulo II, Calvi discutira o problema da dívida de um bilhão de dólares assumida pelo Vaticano em decorrência das atividades de Calvi, Gelli, Ortolani e Marcinkus, O Papa fez uma promessa a Calvi:

— Se puder livrar o Vaticano dessa divida, assumirá o controle total da recuperação de nossas finanças.

Se essa oferta foi realmente apresentada, então Sua Santidade estava obviamente querendo mais da mesma coisa. Seriam os negócios como de hábito para todo o sempre, sem qualquer Amém.

O Papa e Calvi eram apenas dois entre os muitos que começaram a demonstrar uma profunda preocupação com a fortuna em dólares despejada nas companhias no exterior possuidas pelo Vaticano. A 31 de maio de 1982, o Banco da Itália escreveu para Calvi e sua diretoria em Milão. Exigia que a diretoria apresentasse um relato completo de todos os empréstimos externos do grupo liderado pelo Banco Ambrosiano. A diretoria, numa demonstração lamentavelmente tardia de resistência a Gelli, votou 11 à 3 em favor do atendimento do pedido do banco central italiano.

Licio Gelli que voltara secretamente da Argentina para a Europa a 10 de maio, estava apresentando outra exigência a Calvi, Gelli se encontrava no mercado em busca de mais mísseis Exocet para ajudar seu país adotivo na guerra das Falklands com a Grã-Bretanha. Como a maior parte dos bens argentinos no exterior estavam congelados e havia um embargo oficial às transações com armamentos, Gelli foi obrigado a recorrer aos operadores do mercado negro, que demonstraram algum ceticismo sobre a capacidade de Gelli em pagar o que oferecia pelos mísseis mortíferos. Ele oferecia quatro milhões de dólares por míssil, com uma encomenda mínima de 20. A seis vezes mais que o preço oficial, hav'ia um interesse considerável pela encomenda, desde que Gelli provasse ser capaz de levantar o dinheiro necessário. Ele era bem conhecido dos traficantes de armamentos, como um homem que no passado comprara equipamento de radar, aviões, canhões, tanques e os Exocets originais. por conta da Argentina. Agora, ele precisava de pelo menos 80 milhões de dólares e a necessidade era urgente. A guerra nas Falklands se achava na balança.

Calvi, já fazendo malabarismos com as necessidades do Papa João Paulo II, sua clientela da Máfia, seus irados acionistas. os vigias da Bolsa de Valores de Milão, uma diretoria recalcitrante e um assassino incompetente, que conseguira apenas se matar, tornou a se defrontar com Gelli com a mão estendida.

Calvi só via dois caminhos para a sobrevivência. O Vaticano tinha de ajudá-lo a preencher o buraco sempre crescente que aparecia no banco ou Gelli devia mais uma vez demonstrar que ainda controlava a estrutura de poder italiana e salvar da ruína o pagador da P2.

Calvi discutiu as opções com Flávio Carboni, que continuava secretamente a gravar suas conversas.

Pelos comentários de Calvi, é evidente que ele considerava que o Banco do Vaticano devia preencher o enorme buraco do Banco Ambrosiano, quanto menos não fosse por ser o principal beneficiário dos milhões desaparecidos e também por haver a obrigação legal. Calvi disse:

O Vaticano deve honrar seus compromissos, vendendo parte da riqueza controlada pelo IOR. E um patrimônio fabuloso. Calculo que se eleva a 10 bilhões de dólares. Para ajudar o Ambrosiano, o IOR pode começar por vender em parcelas de um bilhão.

Se algum leigo no mundo conhecia a riqueza do Vaticano, só podia ser Roberto Calvi, Ele estava a par praticamente de todos os seus segredos financeiros. Há mais de uma década era o homem a quem o Vaticano recorria em questões financeiras. Já registrei anteriormente que, na ocasião em que Albino Luciani foi eleito Papa, em 1978, a riqueza controlada pelas duas seções da APSA e pelo Banco do Vaticano andava no mínimo pela casa dos três bilhões de dólares. Agora, no inicio de 1982, Roberto Calvi, sempre moderado, situa o patrimônio do IOR somente em 10 bilhões de dólares.

É evidente que, à medida que progredia o ano de 1982, o homem erroneamente conhecido pelo mundo como "o banqueiro de Deus" enfrentava incontáveis problemas. A maioria fora criada por ele próprio. ""O Ladrão de Deus" seria um título mais apropriado para esse homem que roubou milhões por conta da P2 e do Vaticano. Desde o final dos anos 60 que só há um homem que merece o apelido de "Banqueiro de Deus"... e esse homem homem é o Arcebispo Paul Marcinkus.

Apesar da profusão de problemas terríveis com que se defrontava na ocasião, problemas que eu só conhecia em parte, Roberto Calvi mostrou-se inicialmente calmo quando o entrevistei pelo telefone, n noite de 9 de junho de 1982. A entrevista fora combinada por um intermediário em quem Calvi confiava. Estendia-se por uma ampla variedade de assuntos. Através do intérprete, comecei a interroga Calvi sobre a transação do Banca Cattolica dei Veneto. Ele fora informado que eu escrevia um livro sobre o Vaticano. Quando fale sobre o banco de Veneza, ele perguntou qual seria o tema central do livro, E respondi:

— É um livro sobre a vida do Papa João Paulo I. O Papa Luciani.

O comportamento de Calvi sofreu subitamente uma mudança total, A calma e o controle se desvaneceram sendo substituidos por uma torrente de comentários em voz muito alta. Ele estava obviamente nervoso e emocionado. O intérprete começou a traduzir a torrente de palavras para mim:

— Quem o mandou me perseguir? Quem lhe disse para fazer isso? Sempre pago. Sempre. Como conheceu Gelli? O que você quer? Quanto terei de pagar?

Declarei que jamais me encontrara com Gelli, não o conhecia pessoalmente Calvi fez apenas uma breve pausa para me escutar, antes de concluir bruscamente a conversa:

— Quem quer que você seja, não vai escrever esse livro. Não posso lhe contar coisa alguma. Não torne a me telefonar Nunca mais.

Oito dias depois, o corpo de Roberto Calvi foi encontrado a pender de uma corda sob a Ponte Blackfriars, em Londres, a poucos quilômetros de minha casa.

Poucos dias depois, foi descoberto um rombo no Banco Ambrosia no de Milão, Um rombo de 1 bilhão e 300 milhões de dólares.

O objetivo central da minha investigação foi a morte de outro homem. Albino Luciani, Villot, Calvi, Marcinkus, Sindona, Gelli, Cody: um desses homens estava no próprio centro da conspiração que resultou no assassinato de Luciani. Antes de chegar a seu veredicto, leitor, vamos fazer uma análise final desses homens.

O Cardeal Jean Villot, a quem Albino Luciani estava determinado a afastar da Secretaria de Estado, manteve o posto com a eleição de Karol Wojtyla. Também manteve os outros cargos, inclusive no comando da APSA. E foi a APSA que assumiu o papel de noiva no casamento entre Sindona e o Vaticano, O Bispo Marcinkus tem sido freqüentemente acusado de levar Sindona para o interior da Cidade do Vaticano, Mas ele não tem qualquer responsabilidade por esse ato. A decisão foi do Papa Paulo, Monsenhor Macchi, Umberto Ortolani e os homens da APSA, inclusive o seu diretor, Cardeal Villot, como não podia deixar de ser. Se Luciani vivesse, o afastamento de Villot da Secretaria de Estado implicaria automaticamente a sua remoção da APSA. É essa organização, não o Banco do Vaticano de Marcinkus, que é reconhecida como um banco central pelo Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Banco de Compensação Internacional, com sede na Basiléia, E uma organização que tem muito a esconder, desde o seu profundo envolvimento com Sindona.

Por ocasião da eleição de Luciani, Villot não tinha muito tempo a mais para viver. Era um homem cansado, fraco, que em setembro de 1978 já sabia que estava gravemente doente. Morreu menos de seis meses depois de Luciani, a 9 de março de 1979. Sua morte, segundo o Vaticano, foi causada por "broncopneumonia com complicações, colapso circulatório, insuficiência renal e hepática". Sabia-se que ele queria se aposentar, mas também desejava escolher seu sucessor, e o homem que tinha em mente não era Benelli. Se Benelli descobrisse o escândalo da APSA, certamente alertaria o novo Papa. Isso e mais as outras mudanças que Villot sabia que Luciani estava prestes a fazer criavam um clima propicio. Se Villot estava no centro de alguma conspiração para assassinar Luciani, o motivo seria o futuro da Igreja. De acordo com os depoimentos de três testemunhas do Vaticano, Villot considerava as mudanças prestes a serem executadas ""uma traição à vontade de Paulo, um triunfo da restauração". Temia que levassem a Igreja de volta ao pré-Concílio Vaticano Segundo. O fato de seus receios serem nulos não é relevante. Villot os sentia e sentia profundamente. Também se opunha encarniçadamente ao plano de Luciani de modificar a posição da Igreja Católica em relação ao controle da natalidade, passando a permitir que os católicos do mundo inteiro usassem a pílula anticoncepcional. Com Paulo VI, o criador da Humanae Vitae, recentemente morto, Villot observava de perto a destruição de um édito que muitas vezes apoiara publicamente, Villot não poderia concluir que a Igreja estaria melhor servida com a morte de Luciani?

Seu comportamento depois da morte do Papa foi o de um homem que sentia responsabilidade por essa morte ou sofria de uma grave crise de consciência, Destruiu provas. Mentiu. impôs um voto de silêncio aos membros do serviço papal. Precipitou o processo de embalsamamento antes que a maioria dos cardeais estivesse em Roma, Não consultou os colegas. Se Villot é inocente em relação à morte de Luciani, pelo menos ajudou materialmente quem quer que tenha sido o responsável. Suas ações e declarações garantiram que alguém escapasse impune a um assassinato. Ele próprio tinha um motivo; e também teve a oportunidade. Além disso, por sua posição de Camerlengo, ele tinha virtualmente o controle total dos acontecimentos imediatamente subseqüentes... ou não-acontecimentos, como no caso de sua recusa em permitir uma autópsia oficial,

É bem possível que as diversas ações ilegais cometidas por Villot depois da descoberta do corpo de Albino Luciani fossem motivadas pelo que considerava o fator supremo, o bem maior da Igreja Católica, s encontrou provas óbvias de assassinato, se ficou convencido de que Papai não tivera uma morte natural. Muitos alegariam que suas açõe subseqüentes visavam a proteger a Igreja. Mesmo assim, eu ainda insistiria que moralmente ele pareceria estar precisando de ajuda.

O Cardeal John Cody, outro dos homens que Luciani estava determinado a afastar do cargo, manteve a sua posição como Cardeal de Chicago com a eleição do sucessor de Albino Luciani, Karol Wojtyla. Em seu livro The Making of The Popes (Como se Fazem os Papas), o Padre Andrew Greeley comenta:

O Cardeal Cody aproveitou suas contribuições passadas à Polônia (e também algumas contribuições novas, segundo fontes de Chicago), as dimensões da população polonesa de Chicago e sua suposta amizade com o Papa para desfechar uma vitoriosa contra-ofensiva sobre seus inimigos. João Paulo II, segundo o que disse o cardeal a visitantes no inicio de dezembro (1978), ofereceu-lhe um cargo em Roma, que ele recusou, O cardeal insinuou ainda que o Papa considerava que a questão estava encerrada,

Minhas pesquisas confirmam tudo isso. Além do mais, as contribuições financeiras que Cody entregou posteriormente ao Vaticano e que foram secretamente canalízadas para a Polônia eram parte de uma operação muito maior, promovida por Marcinkus e Calvi, por conta do Papa João Paulo II.

O Cardeal Cody continuou a ser um generoso distribuidor de presentes. O Papa João Paulo II visitou os Estados Unidos em outubro de 1979. No Aeroporto O’Hare, em Chicago, foi recebido pelo Cardeal Cody, que pôs em suas mãos uma pequena caixa de madeira, dizendo que era um presente pessoal", Havia 50 mil dólares na caixa. Ninguém negaria ao cardeal o direito de dar um presente ao Papa, mas a dúvida que o ato levanta, além da grosseria óbvia, é simples: de onde vinha o dinheiro? Seria dos fundos diocesanos? Seria de fundos controlados exclusivamente por Cody? De que fonte exatamente saíram os misteriosos 50 mil dólares?

Menos de um ano depois desse incidente, o governo dos Estados Unidos iniciou uma investigação oficial, embora secreta, sobre Cody. Promotores estudaram as acusações de que Cody desviara ilegalmente um milhão de dólares de fundos da Igreja para sua velha amiga Helen Wilson, Também começaram a investigar diversas outras acusações, inclusive a de que ele misturava seus recursos pessoais com os da Igreja, que pagara um salário secreto a Helen Wilson durante muitos anos, que lhe concedera benefícios de pensão indevidamente e que lhe comprara uma casa de 90 mil dólares na Flórida. O fato de tudo isso ter sido feito supostamente com recursos da Igreja, que são isentos de impostos, tornava o caso da alçada do governo federal. Tendo em vista as implicações políticas altamente delicadas de tal investigação, o fato do governo iniciá-la constitui por si só uma indicação da força dos indícios. A investigação foi iniciada em setembro de 1980.

Em janeiro de 1981, um grande júri federal emitiu diversas intimações a Cody, exigindo que ele apresentasse os seus registros financeiros. Se Cody era puro como a neve, seu comportamento subsequente foi inexplicável. Somente o cardeal, seus advogados e um ou dois confidentes muito íntimos tinham conhecimento das investigações e das intimações. Cody ocultou os acontecimentos da congregação de Chicago, do núncio apostólico em Washington e do Vaticano. Também se recusou a atender aos pedidos do governo para apresentar os registros financeiros diocesanos. Para um cidadão comum, a recusa em cooperar acarretaria a prisão. Mas Cody, que um dia declarou "não dirijo o país, mas mando em Chicago", demonstrou que não se gabava à toa.

Em setembro de 1981, quando o Chicago Sun Times divulgou a história, Cody ainda não atendera às intimações. O Sun Times vinha conduzindo a sua própria investigação sobre o cardeal há quase dois anos. Apresentou a seus leitores uma longa relação de crimes alarmantes, supostamente cometidos por Cody.

O cardeal recusou-se a apresentar uma só prova que refutasse as muitas acusações. Em vez disso, tentou concentrar por trás dele os dois e meio milhões de católicos da cidade, ao declarar:

— Não é um ataque contra mim, mas um ataque contra toda a Igreja.

Muitos reagiram favoravelmente a essa declaração totalmente capciosa. Muitos não o fizeram. Os danos enormes à imagem e reputação da Igreja Católica que Albino Luciani previra se tornavam agora uma realidade. A cidade estava dividida. Inicialmente, é claro que a maioria apoiou Cody. Mas, à medida que os meses passaram, um fato fundamental foi sobressaindo. Cody ainda não atendera às intimações. Seus próprios partidários começaram a exigir que ele obedecesse ao governo. Sua resposta inicial, através de seus advogados, fora categórica:

Só tenho de prestar contas a Deus e a Roma.

Era um conceito que ele levou para a sepultura. Em abril de 1982, com o governo ainda aguardando as respostas, o Cardeal Cody morreu. Apesar de haver uma longa história de doenças, o corpo de Cody, ao contrário do que acontecera com Albino Luciani, foi submetido a uma autópsia. A morte fora causada por "grave lesão da artéria coronária".

Ele deixara uma mensagem final para ser lida depois de sua morte.

Não oferecia qualquer prova de sua inocencia diante das sérias acusações. Ao contrário, ostentava a arrogância que fora uma de suas características durante toda a vida: "Perdôo a meus inimigos, mas Deus não perdoará."

Com o déspota tirânico Cody morto, houve especulação imediata sobre o seu sucessor. Um nome frequentemente mencionado era o do Arcebispo Paul Marcinkus, cidadão de Cicero, Chicago. que no momento chafurdava em escândalo na Itália. A hierarquia da Igreja americana protestou e comunicou ao Vaticano que entregar Chicago a Marcinkus "seria mais da mesma coisa". O posto acabou indo para o Arcebispo Joseph Bernardin, de Cincinatti. que prometeu urna imediata investigação da Igreja sobre as atividades de Cody.

O governo anunciou que estava encerrando a sua própria investigação e o inquérito do grande júri federal foi arquivado sem que se formalizasse qualquer acusação. Com a morte do acusado, não restava muita alternativa.

Em dezembro de 1982, Bernardin emitiu urna carta pastoral de duas páginas para os católicos de Chicago. A carta não estava apoiada em qualquer prova documental. Bernardin concluía que uma investigaçao das finanças de Cody não revelara nada de errado, embora ele pudesse ter concedido indevidamente uma pensão a Helen Wilson e nem sempre "adotasse as normas reconhecidas de contabilidade". Mais significativo foi o fato de que os contadores contratados por Bernardin recusaram-se a confirmar "a precisão das cifras estimadas de receita e despesa", apesar de considerarem que estavam "dentro de limites aceitáveis para os propósitos de inquérito". O motivo para a recusa dos contadores, como o próprio Bernardin admitiu. foi o fato de não ser possível localizar alguns dos registros financeiros da arquidiocese... e "se eles forem encontrados posteriormente, então as conclusões podem exigir uma reavaliação". Mais de um ano depois, esses registros financeiros ainda estão desaparecidos.

O despótico e arrogante Cody obviamente tinha um motivo — e dos mais fortes — para envolver-se numa conspiração para assassinar Albino Luciani. Pode ficar um ponto de interrogação em relação à sua corrupção financeira. Mas não pode haver dúvida de que Cody sofria de paranóia aguda. Se ele era um psicótico paranóico, é perfeitamente coerente que tenha procurado resolver os seus problemas, reais ou imaginários, de uma maneira violenta. E evidente que qualquer Papa só conseguiria remover Cody de Chicago por cima de seu cadáver... o de Cody ou o do proprio Papa. Com seus muitos anos em Roma e depois em suas visitas numerosas, Cody conseguira insinuar-se nas boas graças de dois futuros Papas, Pacelli e Montini. Criou uma ampla rede de amigos e informantes. O fato de que esse homem podia comandar o Papa Paulo VI é uma indicação do seu poder. Os muitos presentes em dinheiro, não apenas à Polônia mas também a membros favoritos da Cúria Romana, também serviram para consolidar um tipo muito especial de lealdade. Cody possuía a sua própria Máfia ou P2 plantada no coração do Vaticano, homens com constante acesso aos aposentos papais.

O Arcebispo Paul Marcinkus, o terceiro dos homens que Albino Luciani estava determinado a afastar do cargo, manteve a sua posição no comando do Banco do Vaticano com a eleição de Karol Wojtyla. Mais do que isso, como já foi registrado antes, ele foi promovido a arcebispo e adquiriu um poder ainda maior. Para um homem que comentara, por ocasião de sua designação para o Banco do Vaticano, que "minha única experiência financeira anterior é cuidar da coleta dominical", Marcinkus percorrera um longo caminho. Ele tinha muito mais direito ao titulo de "banqueiro de Deus" do que seus dois velhos amigos íntimos e associados nos negócios, Roberto Calvi e Michele Sindona. Também pode reivindicar com justiça a façanha de promover mais descrédito e desonra para a Igreja Católica do que qualquer outro homem nos tempos modernos.

É absolutamente evidente que, em meados dos anos 70, Calvi e Marcinkus idealizaram um esquema que gerou incontáveis crimes. E igualmente evidente que as companhias panamenhas e as outras que o Vaticano possuía no exterior — e ainda possui — eram operadas exclusivamente para o benefício mútuo do Banco Ambrosiano e do Banco do Vaticano.

O Vaticano alegou, depois da morte de Calvi, que só tomou conhecimento das companhias no exterior e sua propriedade em agosto de 1981. As provas estabelecem que isso é mais uma mentira do Vaticano. Há provas documentais, já em 1978, de que o Bispo Marcinkus procurava ativamente garantir que fosse escondido o fato de que o Vaticano possuía essas companhias. Um exemplo bastará. A UTC, United Trading Corporation, do Panamá, é uma das companhias indicadas nas cartas de conforto, uma companhia que o Vaticano alega agora desconhecer até pouco antes das notórias cartas serem escritas por Marcinkus. Documentação datada de 21 de novembro de 1974, devidamente assinada por dirigentes do Banco do Vaticano, solicita que o Banca deI Gottardo, de Calvi, providencie por conta do Banco do Vaticano a formação de uma companhia chamada United Trading Corporation.

Para Calvi, o esquema ilegal tinha muitas vantagens. E o que Marcinkus e o Banco do Vaticano ganhavam com isso? Ganhavam dinheiro. Muito dinheiro. Calvi comprava ações de si mesmo, a preços altamente inflacionados; mas, no papel, essas ações eram legalmente possuidas — e ainda são legalmente possuidas — pelas companhias panamenhas, que por sua vez são possuidas pelo Vaticano. Calvi devidamente entregava os dividendos anuais dos gigantescos lotes de ações a seu legítimo proprietário, o Banco do Vaticano. A quantia envolvida variou ao longo dos anos, mas a média foi de dois milhões de dólares anuais.

Essa era apenas a ponta do iceberg. Ganhos mais substanciais podem ser localizados. Darei um exemplo. Em 1980, o Banco do Vaticano vendeu dois milhões de ações numa companhia construtora internacional, com sede em Roma, chamada Vianini. As ações foram vendidas a uma pequena companhia panamenha chamada Laramie. Foi o primeiro estágio de uma operação em que o Vaticano venderia à Laramie seis milhões de ações da Vianini. O preço das ações estava bastante inflacionado. O primeiro lote de dois milhões de ações custou à Laramie 20 milhões de dólares. A Laramie é mais uma das companhias possuidas pelo Vaticano. Pode ser considerado um exercício de futilidade vender a si mesmo as próprias ações, a um preço inflacionado. A situação pode se tornar diferente quando se usa o dinheiro dos outros, como Calvi demonstrara ao longo dos anos. Os 20 milhões de dólares para pagar as ações vieram de Roberto Calvi. E o Banco do Vaticano manteve as ações que já possuia, além de ficar também com os 20 milhões de dólares. Outra coisa: não tinha e nunca tivera seis milhões de ações da Vianini. O máximo que já teve nunca ultrapassou três milhões de ações. Era com transações assim que Calvi pagava a Marcinkus.

O Arcebispo Marcinkus concedeu uma de suas raras entrevistas em março de 1982. Foi para o semanário italiano Panorama. Os comentários que fez a respeito de Roberto Calvi são particularmente esclarecedores. Era uma opinião emitida oito meses depois de Calvi ser multado em 13,7 milhões de dólares e condenado a quatro anos de prisão, apenas sete meses depois de o Vaticano e Marcinkus (se quisermos acreditar na versão do Vaticano) descobrirem que Calvi roubara mais de um bilhão de dólares e deixara o Vaticano para pagar a conta.

Calvi merece nossa confiança. Não tenho o menor motivo para duvidar disso. Não temos a menor intenção de ceder as ações do Banco Ambrosiano que possuímos. Não apenas isso: temos outros investimentos nesse grupo, como Banca Cattolica, por exemplo, que estão indo muito bem.

Estava de acordo com os elogios que Marcinkus fizera aos procuradores do governo americano e agentes do FBI que investigavam o seu suposto envolvimento num golpe de títulos falsificados no valor de um bilhão de dólares, em abril de 1973. Naquela ocasião, Marcinkus louvava as virtudes de um homem que alega agora não conhecer, um homem que por sua vez insiste em dizer:

— Nós nos encontramos muitas e muitas vezes ao longo dos anos em que fizemos negócios juntos. Marcinkus foi meu sócio em dois bancos.

Esse homem é Michele Sindona, que entre muitos outros crimes é o responsável pelo maior desastre bancário isolado da história dos Estados Unidos e que Marcinkus considerava estar "muito à frente de seu tempo em questões bancárias".

Pode-se alegar, em defesa de Marcinkus, que essa declaração foi feita um ano antes de il Crack Sindona. Em 1980, seis anos depois do estouro de Sindona, Marcinkus estava disposto a testemunhar em sua defesa e só foi impedido pela intervenção do Cardeal Casaroli, que se sentiu na obrigação de passar por cima de uma decisão do Papa João Paulo II.

Hoje, só há um motivo para que Marcinkus não tenha sido elevado a cardeal. Apesar da maciça desgraça internacional que suas atividades acarretaram para o Vaticano, Karol Wojtyla ainda queria conceder um chapéu vermelho ao homem de Cicero. Foi somente a insistência de Casaroli, mais uma vez, que evitou que isso acontecesse. Parece que o Papa é mais tolerante com os pecados cometidos por trás do balcão de um banco do que com os pecados cometidos na cama.

Em relação ao assassinato de Albino Luciani, Marcinkus tinha o motivo e a oportunidade.

Uma das funções que desempenhava para Paulo VI era a de atuar na segurança pessoal do Papa e conselheiro nas questões de segurança. Tarefas que desempenhou posteriormente para o Papa João Paulo II, sem sucesso.

Seu conhecimento das medidas de segurança que protegiam o Papa era insuperável. Ainda não foi explicado por que ele vagueava pela Cidade do Vaticano antes das sete horas, na manhã em que Luciani foi encontrado morto. Tudo indica que não poderia ser encontrado tão cedo nas imediações do banco. Ao contrário de Villot, ele não residia no Vaticano, mas sim na Villa Stritch, em Roma. Marcinkus levou muitas facetas para o seu trabalho no Banco do Vaticano, inclusive elementos de sua infância na Cicero de Al Capone. "Como vão os seus amigos gangsters de Chicago, Paul?" era uma piada corrente no início dos anos 70. Foi ouvida muito menos depois do julgamento de Sindona. E nunca mais foi ouvida depois do colapso de Calvi.

Se não estava ativamente envolvido na conspiração para assassinar Albino Luciani, é possível que Marcinkus tenha atuado como catalisador, voluntária ou involuntariamente. Um rei inglês bradou há muitos anos: "Ninguém me livrará desse padre intrometido?" Pouco depois, a Igreja Católica tinha um mártir na pessoa de Thomas Beckett. Não resta a menor dúvida de que Marcinkus transmitiu a Robert Calvi os seus receios pelo novo Pontificado. Também não resta a menor dúvida de que Albino Luciani estava prestes a remover Marcinkus do Banco do Vaticano e cortar todos os vínculos com o Banco Ambrosiano. As apreensões que Marcinkus manifestara sobre aquele novo Papa, não apenas a Calvi, mas também a outros, teriam provocado o curso de eventos que na manhã de 29 de setembro deixou o bispo americano atordoado quando um guarda lhe disse que Luciani estava morto?

Michele Sindona foi muitas vezes incorretamente chamado de"Banqueiro de Deus". Um rótulo mais acurado seria de "Especulador de Deus". Por ocasião do assassinato de Albino Luciani, Sindona lutava contra um pedido de extradição apresentado pelo governo italiano. Era também procurado para interrogatório por muitos crimes financeiros em diversos outros países. Em setembro de 1978 era bem provável que as autoridades americanas iniciassem um processo criminal contra ele pela falência fraudulenta do Franklin Bank. Havia quem garantisse que isso era inevitável. O processo americano o salvaria da extradição, mas o deixaria em risco imediato nos Estados Unidos. O único trunfo que lhe restava para jogar dependia da cooperação do Vaticano. Sindona raciocinava que um júri se deixaria influenciar se pessoas tão augustas como o Bispo Marcinkus, Cardeal Guerri e Cardeal Caprio testemunhassem em sua defesa. Com Albino Luciani como Papa, não existia qualquer possibilidade de depoimentos do Vaticano, muito menos favoráveis.

Sindona, como membro tanto da Máfia e da P2, não apenas tinha o motivo e a oportunidade para o assassinato, mas também já demonstrara amplamente que possuía a capacidade. Era um homem perturbado o bastante para acreditar que seus problemas nos Estados Unidos acabariam com o assassinato de um promotor-assistente federal, um homem bastante perturbado para pensar que seus problemas italianos desapareceriam com o assassinato de Giorgio Ambrosoli. Um homem assim possui claramente a capacidade para remover um Papa honesto e reformador.

Sindona continua a ser um homem em evidência. Há uma sentença de três anos e meio de prisão contra ele na Itália. Há a investigação americana sobre a tentativa de resgatá-lo de helicóptero de sua prisão nos Estados Unidos, em janeiro de 1981. Há o indiciamento do governo italiano, em 10 de julho de 1981, sob a acusação de ter ordenado o assassinato de Giorgio Ambrosoli. Também indiciados nesse processo estão seu filho Nino Sindona e o genro Pier Sandro Magnoni. Há o indiciamento de janeiro de 1982 de Palermo, Sicília, em que ele e 65 membros das famílias mafiosas Gambino, Inzerillo e Spatola são acusados por uma operação de 600 milhões de dólares anuais em tráfico de heróina entre a Sicília e os Estados Unidos. Há ainda os processos sicilianos em que Sindona é acusado de posse ilegal de armas, fraude, uso de passaporte falso e violação dos regulamentos monetários. Há também os indiciamentos do governo italiano em julho de 1982, acusando Sindona e outros, inclusive Massimo Spada e Luigi Mennini. do Banco do Vaticano, com uma longa lista de crimes relacionados com a falência fraudulenta do Banca Privata Italiana. Nada mais apropriado que esses últimos processos estejam baseados em grande parte no trabalho corajoso do assassinado Giorgio Ambrosoli. Nenhuma palavra minha poderia descrever tão apropriadamente que tipo de homem é Sindona e que família ele gerou como uma declaração de seu filho Nino Sindona. Era uma entrevista gravada com o escritor Luigi di Fonzo. (A gravação se encontra agora no gabinete da promotoria federal de Nova York.) A longa entrevista se prolongou pela noite de 18 de março e a madrugada de 1º de março de 1983.

Meu pai admitiu para mim que foi Arico... quem cometeu o assassinato. Estavam ameaçando Ambrosoli e foi eficaz por algum tempo. Billy Arico foi enviado a Milão por Venetucci (um traficante de heroína e supostamente membro da família Gambino), a pedido de meu pai. Deveria balear Ambrosoli, mas não matá-lo. Arico cometeu o assassinato. .. . A família de Ambrosoli não merecia qualquer piedade. Não tenho compaixão pelo desgraçado e acho que não foi o bastante para um filho da puta como ele. Lamento apenas que ele tenha morrido sem sofrer. Vamos deixar uma coisa bem clara. Jamais condenarei meu pai porque Ambrosoli não merecia estar neste mundo... Meu pai já sofreu demais. Agora, chegou a vez de nossos inimigos sofrerem um pouco. Griesa. Kennev, é a vez deles sofrerem. Não meu pai de novo, não nós. Não fizemos nada. . . Pára obter justiça, não haveria crime que eu tivesse receio de cometer. Pessoas como Griesa e Kenney podem morrer sofrendo as maiores dores e pára mim seria apenas um motivo para comemorar com champanha. Acredito no homicídio justificado.

Thomas Griesa era o juiz que presidia o julgamento de Estados Unidos x Sindona. John Kenney era o promotor que atuava no caso. Luigi di Fonzo perguntou a Nino Sindona como ele podia justificar um assassinato.

Poderia justificar em um segundo e meio. Como também poderia justificar o assassinato político em um segundo e meio. Vamos supor que eu quisesse matar o Juiz Griesa. Para mim, é legítima defesa... porque ele cometeu o crime terrível de meter meu pai na cadeia pelo resto da vida. E não há qualquer possibilidade de um novo julgamento enquanto o Juiz Griesa estiver vivo. Portanto, ao matá-lo, estaríamos obtendo a chance de um novo julgamento. Portanto, trata-se de legitima defesa.

Evidentemente, para pessoas como Michele Sindona e seu filho assassinar um Papa que se punha em seu caminho seria "legitima defesa".

Passemos a Roberto Calvi. Lenin disse um dia: "Dê a um capitalista corda suficiente e ele acabará se enforcando." É óbvio que o primeiro inquérito judicial que tratou da morte de Calvi concordou com Lenin. E apresentou o veredicto de suicídio. O fato da audiência ser comprimida em apenas um dia, testemunhas faltarem e outras cometerem perjúrio, além de não haver praticamente provas relevantes, não pareceu perturbar o juiz sumariante. Na Itália, o veredicto foi recebido com incredulidade. Em 1983, um segundo inquérito judicial chegou mais perto da verdade ao concluir por um veredicto em aberto sobre a morte do homem que apropriadamente foi encontrado enforcado junto a uma saída de esgoto.

Não tenho a menor dúvida de que Calvi foi "suicidado" por seus amigos da P2 — mais um exemplo dos altos riscos inerentes à carreira bancária na Itália. Horas antes de Calvi morrer, sua secretária em Milão, Graziella Corrocher, foi "suicidada" de uma janela no quarto andar da sede do Banco Ambrosiano. Sua "mensagem de suicida", com muitas imprecações e insultos a Roberto Calvi, foi encontrada por Roberto Rosone, ainda andando com a ajuda de muletas, depois do atentado contra sua vida. Poucos meses depois, a 2 de outubro de 1982, Giuseppe Dellacha, um executivo do banco, também foi "suicidado" de uma janela da sede em Milão. Clara Calvi, a viúva, também não tem qualquer dúvida, atribuindo toda a culpa às portas de bronze do Vaticano:

— O Vaticano mandou matar meu marido para esconder a falência do Banco do Vaticano.

Se é esse o caso e não é uma opinião que eu partilhe, então talvez tenha ocorrido uma justiça poética. As provas contra Roberto Calvi, em relação) a seu envolvimento direto na morte de Albino Luciani, são fortes. Muito fortes.

Calvi estava empenhado num roubo progressivo e continuado de mais de um bilhão de dólares, um roubo que seria totalmente denunciado se Luciani vivesse. Essa denúncia ocorreria em 1978. Com Luciani morto, Calvi ficou livre para continuar a cometer toda uma gama colossal e assustadora de crimes. Mais de 400 milhões de dólares do dinheiro que aparentemente desapareceu no triângulo panamenho foram tomados emprestados por Calvi depois da morte de Albino Luciani:

Calvi aconselhava a todos que lessem O Poderoso Chefão, explicando:

— Poderão então compreender como são as coisas no mundo.

Era certamente assim que acontecia no mundo que ele habitava. Até o final de sua vida, Calvi continuou a limpar dinheiro para a Máfia, função que herdara de Michele Sindona. Também reciclava dinheiro para a P2. Essas funções eram executadas com a ajuda do Banco do Vaticano. O dinheiro era transferido do Banco Ambrosiano para uma conta do Vaticano na Itália e depois para o Banco Gottardo, na Suíça. Calvi limpava o dinheiro de seqüestros vendas de tóxicos e armas, assaltos a bancos, roubos de jóias e obras de arte. Seus contatos criminosos iam do que é conhecido como Alta Máfia e assassinatos comuns, passando por organizações terroristas de extrema direita.

O rombo de 1 bilhão e 300 milhões de dólares no Banco Ambrosiano não foi criado apenas pela aquisição fraudulenta por Calvi de ações do seu próprio banco. Muitos milhões foram desviados para Gelli e Ortolani. Um exemplo: 55 milhões de dólares foram transferidos por Calvi do Peru para uma conta numerada no UBS, em Zurique. O dono da conta é Licio Gelli. Outros 30 milhões de dólares foram desviados para contas suíças do membro da P2 Flavio Carboni.

No início de 1982, Calvi transferiu diretamente do banco matriz em Milão para o Peru a quantia de 470 milhões de dólares. Entregou à sua secretária uma passagem de avião para Monte Carlo e uma pilha de mensagens de telex. Essas mensagens, devidamente despachadas de Monte Carlo, transferiam o dinheiro para diversas contas numeradas suíças.

Os partidos políticos italianos, tanto o democrata-cristão como o comunista e o socialista, não foram as únicas facções políticas a se beneficiarem da galinha dos ovos de ouro. Por ordens expressas de Calvi, milhões foram entregues aos regimes militares, que ainda controlam o Uruguai e Paraguai e antes controlavam também a Argentina. Dinheiro roubado por Calvi foi usado pela junta militar argentina para comprar mísseis Exocet dos franceses, com a participação do banco de Calvi no Peru na operação. Milhões foram ilegalmente enviados para o Solidariedade, na Polônia. Essa transação em particular envolveu dinheiro roubado por Calvi e recursos do Banco do Vaticano recebidos de fiéis católicos. Calvi falou muitas vezes sobre essa transação a amigos de confiança. Carboni foi um deles: como todos os bons membros da P2, ele tinha na ocasião um gravador ligado secretamente.

Marcinkus deve tomar cuidado com Casaroli, que é o chefe do grupo que se opõe a ele. Se Casaroli se encontrasse com um dos financistas de Nova York que trabalham para Marcinkus, enviando dinheiro para o Solidariedade, o Vaticano desabaria. Ou então bastava que Casaroli encontrasse um desses papéis que eu conheço. E adeus Marcinkus. Adeus Wojtyla. Adeus Solidariedade. A última operação seria suficiente, a de 20 milhões de dólares. Já falei com Andreotti. mas não é muito claro de que lado ele está. Se as coisas na Itália seguirem por um rumo determinado, o Vaticano terá de alugar um prédio em Washington, por trás do Pentágono. Muito longe da Basílica de São Pedro.

A quantia total canalizada pelo Vaticano para o Solidariedade, secreta e ilegalmente, foi superior a 100 milhões de dólares. Muitos que sentem a maior simpatia pelo Solidariedade podem aplaudir tal atitude. Mas interferir dessa maneira com os problemas internos de outro país cria um precedente perigoso. Por que não 100 milhões de dólares canalizados secretamente para o IRA matar e mutilar na Inglaterra? Ou um bilhão de dólares para os Sandinistas explodirem alguns prédios em Nova York, Chicago e São Francisco? Bancar Deus, mesmo para um Papa, pode ser uma ocupação perigosa. Pois, Karol Wojtyla censurar publicamente os padres da Nicarágua por se envolverem em política, enquanto ele interfere dessa maneira com os problemas internos da Polônia, é uma hipocrisia descomunal,

Não temos bens temporais a trocar, não temos interesses econômicos a discutir. Nossas possibilidades de intervenção são específicas e limitadas, de um caráter especial. Não interferem com os assuntos puramente temporais, técnicos e políticos, que são problemas para os seus governos.

Assim falou Albino Luciani ao Corpo Diplomático credenciado junto ao Vaticano. É evidente que o homem que o sucedeu assume exatamente o ponto de vista oposto.

Em relação ao assassinato de Albino Luciani. Roberto Calvi tinha o motivo. a oportunidade e, indubitavelmente, como Michele Sindona, a capacidade.

Antes do assassinato de Luciani, os associados de Calvi na P2 demonstraram a sua capacidade de matar com diversos atentados a bomba monstruosos. A capacidade de matar uma pessoa especifica foi comprovada pelo assassinato de Vittorio Occorsio. Depois da morte do Papa. os assassinatos e atentados aumentaram de intensidade, no ritmo dos roubos gigantescos que Calvi cometia. O fato de Emilio Alessandrini, Mino Pecorelli, Giorgio Ambrosoli, Antonio Varisco e Bons Giuliano estarem mortos é a prova mais evidente do tipo de companhia em que Roberto Calvi andava. O fato do presidente do Banco da Itália e um dos seus colegas de absoluta confiança poderem ser vítimas de falsas acusações, o fato de Sarcinelli passar seis semanas na prisão, o fato de homens que conheciam a verdade passarem anos com medo de agir, tudo isso demonstra o tremendo poder que estava às ordens de Calvi.

Era um poder que emanava de muitas fontes, inclusive de Licio GeIli, o Grão-Mestre da P2.

Licio GeIli, o mestre dos títeres, com alguns milhares de cordões para manipular. Cordões que pareciam levar a toda parte. Ao coração do Vaticano. A Casa Branca. Aos palácios presidenciais em muitos países. Gelli, com seu conselho singular aos membros mais destacados da P2 de que deveriam andar sempre com uma dose fatal de digitalina, uma dose letal que causaria, para usar um termo leigo, um ataque cardíaco. Qualquer exame subseqüente por um médico, se for puramente externo, confirmará que a morte foi causada por um infarto do miocárdio. A droga é inodora e impossível de se detectar, a menos que seja efetuada uma autópsia.

Licio Gelli, usando um estranho codinome sempre que telefonava para o pagador da P2 pela linha especial, "Luciani", será que a simples menção desse nome era suficiente para fazer com que milhões e milhões fluíssem da Calvi para as várias contas bancárias da Gelli?

Segundo pessoas da família de Calvi, ele atribuía todos os seus problemas "aos padres". E deixou bem claro que os padres a que se referia eram os do Vaticano. Em setembro de 1978, um padre em particular representava para Calvi a maior ameaça com que ele já se defrontara. Calvi estivera com Gelli e Ortolani na América do Sul em agosto de 1978, planejando novas operações criminosas. Alguém pode acreditar que Gelli e Ortolani se limitaram a dar de ombros quando Calvi lhes disse que Albino Luciani estava prestes a adotar providências que acabariam com toda a operação?

O assassinato de um juiz ou um policial pode ser executado abertamente. A morte permaneceria um mistério ou seria atribuida a uma das muitas organizações terroristas que então assolavam a Itália. Mas o assassinato de um Papa teria de ser cometido sub-repticiamente.

Teria de despertar o mínimo de preocupação possível. Para que o assassinato alcançasse seu objetivo, a morte teria de parecer natural.

Não importa quão alto fosse, o custo em subornos, contratos honorários e comissões, era irrelevante. Se o objetivo da morte do Papa era proteger e resguardar Roberto Calvi, permitindo-lhe continuar a roubar milhões, era preciso envolvê-la no mais absoluto mistério. O problema do vice-presidente Roberto Rosone, que Calvi discutira com seu companheiro da P2 Carboni, deveria ser resolvido com o contrato para seu assassinato. Rosone sobreviveu ao atentado, mas mesmo assim Carboni pagou 530 mil dólares, no dia seguinte, ao gangster sobrevivente, Ernesto Diotavelli. Meio milhão por um vice-presidente de banco. Quanto por um Papa, quando se tem um banco inteiro à disposição?

Depois da morte de Roberto Calvi, o obituário mais pertinente veio de Mário Sarcinelli. um dos muitos que experimentaram pessoalmente os poderes a que o banqueiro milanês tinha acesso:

— Ele começou como criado, depois tornou-se patrão, só para mais tarde voltar a ser criado de outros patrões.

O último patrão de Calvi foi o homem que acredito ter sido a peça mais importante da conspiração para matar Albino Luciani: Licio Gelli.

Este livro já registrou muitos exemplos do poder e influência que Licio Gelli exercia. Por ocasião da morte de Albino Luciani, em setembro de 1978, Licio Gelli, para todos os propósitos práticos, dominava a Itália. Seu acesso a qualquer pessoa ou lugar na Cidade do Vaticano era incomparável, graças a Umberto Ortolani. O fato de esses dois homens estarem na América do Sul no momento da morte de Luciani não constitui um álibi, no sentido legal convencional. Sindona saboreava um martini seco em Nova York, ao cair da tarde, no exato momento em que Giorgo Ambrosoli era assassinado por William Arico em Milão. Isso não salvaria Sindona se as autoridades italianas conseguissem a sua extradição dos Estados Unidos.

Gelli, que usa codinome secreto de Luciani, continua a oferecer demonstrações impressivas de que é um homem de extraordinária influência. Em 1979, Gelli e Ortolani começaram a trabalhar para promover uma reconciliação política entre o líder democrata-cristão, o ex-primeiro-ministro Giulio Andreotti e o líder socialista Bettino Craxi.

A denúncia de quase mil membros da P2 em 1981 prejudicou essas delicadas negociações. E agora voltam a florescer. Na ocasião em que escrevo, o primeiro-ministro da Itália é Bettino Craxi e o ministro do exterior é Giulio Andreotti ... e ambos têm muito o que agradecer a Licio GeIli.

A 8 de abril de 1980, Gelli escreveu da Itália para Phillip Guarino, um membro eminente do comitê nacional do Partido Republicano americano, que na ocasião concentrava todos os seus esforços em levar Ronald Reagan à presidência. Gelli escreveu: "Se acha que pode ser útil e favorável a seu candidato ser divulgado na Itália, envie-me algum material e cuidarei para que saia num dos jornais daqui."

Sem ter conhecimento do poder que Gelli controlava, pareceria uma oferta curiosa. Como poderia um homem que não possuia nenhum jornal garantir cobertura favorável ao presidente Reagan? Com uma associação de membros da P2 mais a Rizzoli, controlada pelo Vaticano e o maior grupo publicador, com interesses que se estendem até Buenos Aires. Entre as muitas publicações, jornais e revistas, figuram o Corriere della Sera, o jornal de maior prestígio na Itália, Outros membros da P2 se encontravam nos meios de rádio, televisão e da propaganda na Itália. Os comentários favoráveis ao presidente Reagan cuidadosamente solicitados por Gelli realmente apareceram.

Em janeiro de 1981, por ocasião da posse do presidente americano, Licio Gelli era um convidado de honra. Guarino mais tarde observou pesarosamente: "Ele conseguiu uma posição melhor do que a minha.’"

Em maio de 1981, após a descoberta da lista dos mil nomes de membros da P2, que incluíam vários ministros e que levou ao colapso o governo italiano, Gelli continuou o exercício de poder de uma variedade de bases sul-americanas. Uma indicação de que Gelli estava longe de perder tempo pode ser sentida na movimentação de 95 milhões de dólares por Calvi do Banco Ambrosiano para a companhia Bellatrix, uma das companhias controladas pela P2. Essa transferência através de rotas exóticas, inclusive através do Rotschild, em Zurique, em Guernsey e o Banque Nationale de Paris, no Panamá, pulverizou 20 milhões de dólares no Ansbacher & Cia, um pequeno banco mercantil em Dublin.

Um ano depois, em maio de 1982, com a guerra das Falklands com a Grã-Bretanha no auge, Licio Gelli, um homem escondido, em fuga, procurado por incontáveis acusações, voltou calmamente à Europa para ajudar seus amigos argentinos. Os mísseis Exocet originais que Gelli comprara para a junta militar haviam demonstrado ser uma arma devastadora. Como já foi informado anteriormente, Gelli vinha comprar mais Exocets. Ficou com Ortolani numa vilia em Cap Ferrat e iniciou negociações secretas, não apenas com diversos traficantes de armas, mas também com a Aerospatiale, que fabricava o míssil. O serviço secreto británico tomou conhecimento dessas negociações e alertou o serviço secreto italiano, que prontamente se dirigiu à villa em Cap Ferrat. Mas os italianos foram impedidos de pegar Gelli pelo DST, o serviço secreto francês, que frustrou clamorosamente todas as tentativas de prender o líder da P2. Aí está um exemplo do poder de Licio Gelli.

Enquanto negociava com uma ampla variedade de fornecedores em potencial do Exocet, Gelli também se mantinha em contato diário com Calvi, Os dois maçons ainda tinham muita coisa em comum, Na segunda semana de junho de 1982, Calvi também era um homem em fuga, como Gelli. Com seu império do Ambrosiano à beira do colapso ele deixara ilegalmente a Itália, primeiro viajando para a Austria e posteriormente para Londres. Ele e Gelli tinham outra vez uma profunda necessidade mútua. Calvi precisava da proteção das autoridades italianas, Gelli precisava de muitos milhões para a compra dos Exocets. Minhas pesquisas indicam que os franceses planejavam encontrar um meio de contornar o embargo de vendas de armas à Argentina que então vigorava. Os mísseis seriam encaminhados à Argentina por intermédio do Peru. Técnicos franceses se encontravam de prontidão para seguirem de avião com a missão de modificar os Exocets para a força aérea argentina.

As prioridades de Gelli e Calvi se confrontaram de uma maneira fatal. A guerra não esperaria enquanto o mestre dos títeres puxava os seus cordões italianos. Calvi, por sugestão de Gelli, viajou para Londres, ao encontro de sua morte. Ele foi "suicidado" a 17 de junho de 1982, o mesmo dia em que o General Galtieri era substituído na presidência da Argentina pelo General Bignone. A Argentina perdera a guerra. Os colegas de Calvi na P2 acharam que a demora em desviar dinheiro para os Exocets contribuíra para a derrota.

Em agosto de 1982, a junta militar argentina decidiu secretamente reiniciar as hostilidades contra as forças britânicas que guardavam as Falklands. Estavam convencidos de que um suprimento de Exocets lhes garantiria a vitória e a posse das ilhas.

Desta vez, Gelli tratou com um ex-oficial do serviço secreto italiano, o Coronel Massimo Publiese, um membro da P2. Outra vez o serviço secreto britânico tomou conhecimento da operação. E garantiu que malograsse.

Durante esse mesmo mês, agosto de 1982. Gelli se defrontava com um problema em uma de suas contas bancárias secretas na Suíça. Não estava funcionando como deveria.

Cada vez que Gelli, em Buenos Aires, tentava transferir dinheiro o UBS em Genebra recusava-se a atender às instruções, Gelli foi informado que teria de comparecer pessoalmente ao banco.

Usando um passaporte argentino falso, Calvi voou para Madri e depois para Genebra, a 13 de setembro de 1982. Apresentou sua documentação falsa e foi informado que haveria uma pequena espera. Foi preso poucos minutos depois. Caíra numa armadilha cuidadosamente preparada. A conta fora congelada a pedido do governo italiano, que fora informado pelos suíços da verdadeira identidade do correntista.

A conta fora aberta para Gelli por Roberto Calvi, O banqueiro milanês depositara nela mais de 100 milhões de dólares. Na ocasião de sua prisão. Gelli tentava transferir para O Uruguai os 55 milhões de dólares que ainda tinha na conta.

O processo de extradição começou imediatamente com Gelli entoando a mesma cantiga de Sindona e Calvi: "Sou vítima de perseguição política. E uma conspiração da esquerda." Enquanto os magistrados examinavam o processo, Gelli ficou detido numa prisão de segurança máxima, Champ Dollon. Os processos de extradição de quaisquer membros da P2, como já ficou explicado neste livro, tendem a ser prolongados. Gelli ainda se encontrava em Champ Dollon no verão de 1983.

Com a Itália prestes a enfrentar eleições gerais em junho, a comissão parlamentar que investigava a P2 foi suspensa. O Partido Democrata-Cristão apresentou pelo menos cinco membros da P2 como candidatos. A Signorina Tina Anselmi, que presidira a comissão, interrogada a respeito de suas opiniões sobre a P2, depois de dois anos de investigação intensiva da sociedade secreta, declarou:

A P2 não está absolutamente morta. Continua a funcionar em diversas instituições. Está em ação na sociedade. Possui dinheiro, meios e instrumentos ainda à sua disposição. Tem centros de poder em plena operação na América do Sul. E ainda é também capaz de influenciar, pelo menos parcialmente, a vida política italiana.

Tudo confirma a validade das declarações da Signorina Anselmi. Quando a notícia da prisão de Gelli chegou à Argentina. o Almirante Emilio Massera. que era um membro da junta militar reinante, comentou:

— O Signor Gelli prestou serviços valiosos à Argentina. Este país tem muito a agradecer-lhe e estará sempre a dever-lhe.

O Almirante Massera, assim como o General Carlos Suarez Mason, o comandante do 1 Exército argentino, e José Lopez Rega, o organizador dos Esquadrões da Morte argentinos, era membro da seçao argentina da P2. No Uruguai. a P2 conta entre seus membros com o antigo comandante-supremo das Forças Armadas, General Gregorio Alvarez.

Se alguém na Itália ou em qualquer outro país pensou que Tina Anselmi estava apenas tentando ganhar benefícios políticos antes de uma eleição, deve ter levado um susto a 10 de agosto de 1983. Champ Dollon tinha um preso a menos que no dia anterior. Licio Gelli fugira. As autoridades suíças, procurando disfarçar seu profundo constrangimento, tentam agora atribuir toda a culpa a um guarda corrupto, Umberto Cerdana, que recebeu de Gelli um suborno de pouco mais de seis mil libras. Se algum leitor deste livro acredita que Gelli escapou da Suíça com a ajuda de apenas um guarda da prisão, então provavelmente também acredita que Albino Luciani morreu de causa natural. Um guarda recebe o equivalente a quatro meses de salário por um ato que pode agora lhe valer uma sentença de prisão de sete anos e meio.

Nove dias depois da fuga, as autoridades suíças aceitaram o pedido de extradição da Itália. O problema era que Gelli não estava mais à disposição para ser extraditado. Levado por seu filho de carro para a França, ele partiu em seguida para Monte Carlo, A desculpa que o piloto recebeu para se desviar de Nice em direção a Monte Carlo foi a de que Gelli precisava de tratamento dentário urgente. E num iate de Francesco Pazienza, um homem que diz ter sido amigo do falecido Roberto Carboni, Gelli continuou sua procura por um bom dentista no Uruguai, onde, no momento em que este livro é escrito, continua a exercer influência de uma fazenda a poucos quilômetros ao norte de Montevidéu. É procurado em muitos países, acusado de muitos crimes, mas a quantidade de informações que adquiriu com o passar dos anos assegura-lhe proteção.

A eleição italiana, em junho de 1983, levou ao cargo de PrimeiroMinistro o Signor Bettino Craxi, um dos muitos beneficiários da generosidade de Calvi. Interrogado a respeito da fuga de Gelli, ele declarou:

— A fuga de Gelli confirma que o Grão-Mestre possui uma rede de amigos poderosos.

Se — e é realmente um se muito grande — Licio Gelli for entregue vivo algum dia ao governo italiano, terá de enfrentar muitas acusações criminais, incluindo as seguintes: extorsão, chantagem, tráfico de tóxicos, contrabando de armas, conspiração para derrubar o governo legal, espionagem política, espionagem militar, posse ilegal de segredos de Estado, cumplicidade em vários atentados a bomba, inclusive o da estação ferroviária de Bolonha. em que morreram 85 pessoas.

É muito forte a corrente que, de elo em elo, leva de um Papa assassinado ao Bispo Paul Marcinkus, Roberto Calvi, Umberto Ortolani e Licio Gelli. Para que sejam aceitas, as provas circunstanciais devem ser fortes, devem resistir à inspeção mais rigorosa, antes que um júri possa apresentar o veredicto de "culpado". Nenhum júri confrontado com as provas apresentadas neste livro poderia oferecer um veredicto de "morte por causas naturais", Nenhum juiz do mundo aceitaria tal veredicto com as provas existentes. Não pode haver a menor dúvida quanto a isso. Não há qualquer prova para indicar que a morte de Albino Luciani foi o resultado de um acidente. Só nos resta o homicídio. Na minha opinião, não por pessoa ou pessoas desconhecidas, mas sim por pessoas muito bem conhecidas, com Licio Gelli no centro da conspiração. Um homem que por acaso contava, entre os membros da P2, com Francesco, o irmão do Cardeal Sebastino Baggio. Gelli, um homem cujas reuniões com os poderosos e famosos incluiram audiências com o Papa Paulo VI. Gelli, o homem com amigos íntimos como o Cardeal Paolo Bertoli. Gelli, cujo assessor mais chegado na P2, Umberto Ortolani, conhecia a Cidade do Vaticano melhor do que muitos cardeais. Ortolani, cumulado de honrarias e prêmios do Vaticano. O homem que estava tão perto do centro nervoso do poder no Vaticano que foi em sua villa, ele servindo como anfitrião, que se realizou a reunião secreta pré-conclave que concluiu a estratégia e definiu a eleição de Paulo VI. Ortolani, que concebeu a idéia da venda de muitos milhões de dólares da participação do Vaticano na Societa Generale Immobiliaire, Ceramiche Pozzi e Condotte. Ortolani, o casamento da P2 unindo como parceiros o mafioso e colega maçônico Michele Sindona com Sua Santidade o Papa Paulo VI. Recebendo de um vultosas comissões e honrarias papais de outro. Por intermédio de Ortolani, não havia sala em toda Cidade-Estado do Vaticano em que fosse negado o acesso ao Mestre dos Fantoches ou homens e mulheres que ele controlava, Gelli, o colecionador de conhecimentos e informações curiosas, inclusive fotografias do Papa João Paulo II completamente nu ao lado de sua piscina. Quando Gelli mostrou essas fotografias ao veterano Vanni Nistico, líder do Partido Socialista, não pôde deixar de comentar:

— Pense nos problemas que a maioria dos serviços secretos enfrenta. Se é possível tirar estas fotografias do Papa, imagine como seria fácil alvejá-lo.

Absolutamente certo. Ou envenenar seu antecessor.

E Jesus entrou no templo de Deus, expulsou todos os que ali vendiam e compravam, derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombos.

E lhes disse: Está escrito. Minha casa será chamada a casa da oração, mas vós a transformastes num covil de ladrões. Mateus, 21:12/13.

Albino Luciani teve um sonho. Imaginou uma Igreja Católica Romana que atenderia de verdade às necessidades de seus fiéis em questões vitais cruciais como o controle de natalidade. Sonhou com uma Igreja que dispensaria a riqueza. o poder e o prestígio adquiridos através do Vaticano S.A.; uma Igreja que deixaria o mercado financeiro e abandonaria a agiotagem em que o nome de Cristo fora maculado; uma Igreja que voltaria a se apoiar no que sempre fora seu maior trunfo, sua fonte do verdadeiro poder, seu maior direito a um prestígio singular: o Evangelho.

Ao cair da noite de 28 de setembro de 1978, Albino Luciani já dera os primeiros passos para a realização do seu sonho extraordinário. Às 9:30 da noite fechou a porta de seu quarto e o sonho acabou.

Na Itália, agora, fala-se em converter Albino Luciani num santo. Já houve petições com milhares de assinaturas. Em última análise, se esse homem que foi "um homem pobre, acostumado às pequenas coisas e ao silencio, for beatificado, nada mais condizente. A 28 de setembro de 1978 ele foi martirizado por suas convicções. Em confrontação com um homem como Albino Luciani, com os problemas que sua presença continuada apresentaria, a Solução Italiana foi aplicada. A decisão de que o Papa deve morrer foi tomada e assassinaram o Candidato de Deus.

 

Se o bem que Albino Luciani representava foi enterrado com seus ossos, o mal perpetrado por Roberto Calvi certamente sobreviveu à sua morte.

Poucas horas depois de seu corpo ser identificado em Londres, campainhas de alarme soavam em vários lugares da Itália. Na segunda-feira, 22 de junho, o primeiro dia em que os bancos abriram depois que O Cavaleiro foi encontrado enforcado, não muito longe do lugar em que os frades carmelitas ofereciam santuário a vigaristas e ladrões na Idade Média, o Banco Ambrosiano, em Milão, sofreu uma corrida intensa de saques. O que não é do conhecimento público, até agora, é se o Banco do Vaticano passou pelo mesmo apuro. Muitos milhões de dólares foram retirados por membros da elite italiana, que estavam a par dos fatos e sabiam que um rombo de um bilhão e 30 milhões de dólares no grupo Ambrosiano chegaria em breve ao conhecimento público. Sabiam também que esse rombo não estava desligado do antigo relacionamento comercial e pessoal de Calvi com o Bispo Paul Marcinkus e o IOR.

Em setembro de 1982, o homem que nunca se afastara do lado do Papa, durante a visita à Grã-Bretanha em maio e junho, tornara-se um virtual prisioneiro dentro do Vaticano. Foi substituído como organizador e guarda avançada das viagens internacionais do Papa... pois se arriscar a sair da Cidade do Vaticano seria se expor à prisão imediata pelas autoridades italianas.

Marcinkus continuou a exercer o comando do Banco do Vaticano e declarou que o Vaticano não tinha e não aceitaria qualquer responsabilidade pelo um bilhão e 300 milhões de dólares desaparecidos.

A Cúria Romana recusou-se a aceitar intimações judiciais que o governo italiano tentou entregar a Marcinkus e a outros no Banco do Vaticano. O protocolo devia ser respeitado em todas as circunstâncias, insistiu a Cúria, mesmo quando está envolvido o roubo de mais de um bilhão de dólares. As intimações teriam de ser encaminhadas através do embaixador italiano credenciado no Vaticano.

A Cidade do Vaticano acabou instituindo uma comissão de inquérito, depois de muitas pressões do governo italiano. Simultaneamente, os advogados do Banco do Vaticano também se empenharam numa investigação. O próprio governo italiano também criou uma comissão de inquérito. A esta altura, havia cargos para quase todo mundo. Os advogados trabalhando para Marcinkus apresentaram primeiro as suas conclusões.

 

1.O Instituto para as Obras da Religião não recebeu dinheiro do Grupo Ambrosiano ou de Roberto Calvi. Portanto, não precisa restituir coisa alguma.

2.As companhias estrangeiras devedoras do Grupo Ambrosiano nunca foram dirigidas pelo IOR, que não tem qualquer conhecimento das operações realizadas pelas mesmas.

3.É absolutamente certo que todos os pagamentos efetuados pelo Grupo Ambrosiano às referidas companhias foram feitos antes das chamadas "cartas de conforto".

4.Essas cartas, pelas datas em que foram emitidas, não exerceram qualquer influência sobre os pagamentos.

  1. Em qualquer verificação futura dos fatos, tudo o que foi exposto acima será confirmado.

 

Já demonstrei que esses "fatos" do Vaticano estão muito longe da verdade.

A comissão de inquérito instituída pelo Vaticano ainda não apresentou seu relatório. As conclusões deveriam ser apresentadas ao final de março de 1983, depois ao final de abril, agosto, outubro, novembro...

A comissão é integrada por "quatro homens sábios". Dois deles, por sua simples presença numa comissão que o Cardeal Casaroli previsivelmente classificou de "objetiva", invalidam completamente quaisquer descobertas a que se possa eventualmente chegar. Um deles é Phillipe de Weck, o ex-presidente do UBS, de Zurique. De Weck ainda mantém ligações profundas com o UBS, o banco que guarda, por conta de Licio Gelli, 55 milhões de dólares do dinheiro roubado. E também o banco que guarda, por conta do falecido Roberto Calvi e de Flavio Carboni, mais de 30 milhões de dólares do dinheiro roubado.

É o banco que guarda por conta da amante australiana de Carboni. Manuela Kleinszig, dois milhões de dólares do dinheiro roubado.

Phillipe de Weck é também o homem no centro do que os franceses chamam de "o caso dos aviões farejadores". Envolveu uma invenção maravilhosa, criação de um técnico italiano, Aldo Bonassoli, e de um idoso belga, o Conde Alain de Villegas. A invenção se desdobrava em duas partes, uma alojada num avião e transmitindo para a segunda em terra, definindo as camadas geológicas muitas centenas de metros abaixo da superfície.

O potencial era ilimitado. Além da prospecção mineral e petrolífera. a uma fração do custo tradicional, havia também as implicações militares: qualquer sistema que pudesse localizar petróleo centenas de metros abaixo da superfície da terra, podia igualmente localizar um submarino nuclear submerso. Estimulada pelo Presidente Giscard d'Estaing. a gigantesca companhia petrolífera francesa Elf aplicou cerca de 120 milhões de dólares na companhia panamenha do conde, a Fisalma. Villegas era o único acionista e a companhia era administrada por Phillipe de Weck. Quando os franceses finalmente perceberam que haviam sida vítimas de um golpe de mestre. 60 milhões de dólares já tinham desaparecido. De Weck disse aos franceses que o dinheiro fora gasto em pesquisa e "obras de caridade". Um dos homens que. representando a UBS. acompanhava esse interessante trabalho pioneiro da arte da vigarice internacional era Ernst Keller. que ao mesmo tempo era também acionista da Ultrafin AG, uma companhia possuída por Calvi e ligada ao Ambrosiano Holding de Luxemburgo. A Ultrafin foi o canal pelo qual a companhia panamenha do conde recebeu os pagamentos iniciais.

Outro membro da comissão é Herman Abs, que foi diretor do Deutsche Bank. de 1940 a 1945. O Deutsche Bank foi o principal instrumento financeiro nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Abs era na realidade o pagador de Hitler, Durante esse período. Abs integrou também a diretoria da I.G. Farben, o conglomerado químico e industrial que prestou uma colaboração tão entusiástica ao esforço de guerra de Hitler. Abs participou de reuniões de diretoria da I.G. Farben em que se discutiu o aproveitamento de trabalho-escravo numa fábrica de borracha localizada no campo de concentração de Auschwitz.

Não importa quantos ex-presidentes de bancos ou ex-pagadores nazistas o Vaticano contrate. a verdade não desaparecerá. Pelo menos um bilhão ele dólares de empréstimos devidos a vários bancos são de responsabilidade do Vaticano. Talvez a maior ironia sejam o tato de que. não importando quanto tenha-se beneficiado das companhias-fantasmas espalhadas pelo Panamá e outros lugares. O vaticano as possuía no momento em que as dividas foram executadas. Na verdade. beneficiou-se enormemente. Mas se os bancos que são os credores estiverem realmente determinados a recuperar seu dinheiro, só lhes resta um caminho lógico: processar o Vaticano. Mais especificamente, processar o Vaticano e o Papa João Paulo II. pois 85 por cento dos lucros do banco vão diretamente para o Papa.

Por ocasião de sua morte, Calvi estava, segundo os depoimentos juramentados de pessoas de sua família, negociando com a Opus Dei, que concordara em comprar 16 por cento do Banco Ambrosiano que pertenciam ao Vaticano. Se essa operação fosse concluída, o rombo de um bilhão e 300 milhões de dólares seria coberto, o império de Calvi permaneceria intacto e o Arcebispo Paul Marcinkus seria afastado do cargo. Muitos, inclusive Marcinkus, protestaram contra essa salvação de ultima hora, provindo de uma organização assim.

Agora, com Calvi morto, o Vaticano vem discutindo com o governo italiano e um consórcio representando bancos internacionais há quase dois anos, em fevereiro de 1984, a notícia de que finalmente se chegara a um acordo transpirou da sala de reuniões em Genebra. Em maio de 1984, os acordos foram definidos. Os bancos internacionais receberão aproximadamente dois terços dos 600 milhões de dólares que emprestaram à companhia holding de Calvi no Luxemburgo. Desse total, cerca de 250 milhões de dólares serão pagos pelo Banco do Vaticano.

Este pagamento é esperado para 30 de junho de 1984, e será feito pelo Vaticano "não pelo fato de ter alguma culpa", mas "em reconhecimento de um envolvimento moral". O leitor pode conferir as negativas de envolvimento do Vaticano com relação a este iminente pagamento.

Os fiéis devem ignorar todos os apelos que certamente serão feitos nas igrejas católicas romanas do mundo inteiro. Tudo o que o Banco do Vaticano está fazendo é pagar o dinheiro que lhe foi emprestado. E, depois, ainda escapará impune com milhões e milhões de dólares que representam uma parcela substancial dos recursos ainda desaparecidos.

Na ocasião em que este livro é escrito, o Arcebispo Paul Marcinkus ainda se apega ao seu cargo. Já foi ameaçado de afastamento em diversas ocasiões, mas ainda sobrevive, Ainda se mantém escondido no Banco do Vaticano, com receio de sair e ser imediatamente preso pelas autoridades italianas. Recentemente, Marcinkus apelou para a justiça italiana, pedindo imunidade contra as acusações. Seria bom que antes da justiça italiana considerar o pedido de Marcinkus obtivesse acesso aos documentos secretos de negociação entre a Itália e a Cidade-Estado do Vaticano. Provavelmente, a mais extraordinária informação contida nos documentos oficiais é a revelação que o acordo secreto entre Marcinkus e Calvi, ocorrido em agosto de 1981, não foi, como o Vaticano gostaria que o mundo acreditasse, um acordo singular entre um indulgente arcebispo e um devoto banqueiro católico. Existem provas agora de outros acordos criminosos e ilegais entre Marcinkus e Calvi, desde novembro de 1976. A conspiração foi iniciada em pleno pontificado do Papa Paulo VI. Estes fatos servem para ressaltar o que ocorreria se Albino Luciani continuasse vivo, Também escondido no Vaticano está seu colega e parceiro em tantos crimes, Luigi Mennini. E também escondido no Vaticano se acha Pellegrino de Strobel. E assim que o Papa João Paulo II preside o seu Banco do Vaticano em maio de 1984.

Enquanto os três continuavam a se esquivar à justiça italiana, as autoridades confiscaram todos os bens italianos pertencentes a Mennini e Strobel. Todos os três são procurados por inúmeras autoridades italianas, em diversas cidades. Outro colega que seria prontamente removido por Luciani, se vivesse, Monsenhor Donato de Bonis, o secretário do IOR, esconde-se entre os muros do Vaticano dos magistrados de Turim, que investigam um escândalo de sonegação fiscal no valor de um bilhão de dólares. De Bonis, que teve seu passaporte confiscado pelas autoridades, continua a trabalhar no Banco do Vaticano, como seus três colegas. E dessa maneira que o Papa João Paulo II, a quem esses homens se reportam, preside o Banco do Vaticano em maio de 1984.

O Cardeal Ugo Poletti, o Cardeal Vigário de Roma, a quem Luciani desejava afastar, é outro exemplo em que há provas abundantes para confirmar a sabedoria dessa decisão. Poletti foi o responsável por recomendar ao então primeiro-ministro Giulio Andreotti que o comando da Polícia Financeira fosse entregue ao General Raffaele Giudice. Posteriormente, Giudice, um membro da P2, promoveu a sonegação fiscal de um bilhão de dólares, desviando quantias vultosas para Licio Gelli, Em 1983, o Cardeal Poletti negou indignado ter usado qualquer influência para levar Giudice ao cargo. Os magistrados de Turim mostraram ao Cardeal Vigário de Roma uma cópia de sua carta a Andreotti, Poletti continua a ser o Cardeal Vigário de Roma. E dessa maneira que o Papa João Paulo II preside a Igreja Católica Romana em abril de 1984.

A nova Concordata recentemente assinada entre o Vaticano e o governo italiano constituiu um epitáfio apropriado para o pontificado do atual Papa. A Itália, por quase dois mil anos encarada pelos católicos como a base de sua fé, não tem mais o catolicismo romano como "a religião do estado". A posição privilegiada da Igreja na Itália está acabando.

Outra mudança deve trazer um sorriso satisfeito ao rosto de Licio Gelli, A nova lei canônica, que entrou em vigor a 27 de novembro de 1983, abandonou o preceito de que os maçons estão sujeitos à excomunhão automática. Os sobreviventes da lista de maçons do Vaticano que Albino Luciani estudou estão agora seguros. O expurgo que ele planejara não será executado por seu sucessor.

Como já foi registrado anteriormente, nenhuma das mudanças propostas por Luciani foi realizada. O Vaticano S.A. continua funcionando. Em todos os mercados.

 

                                                                                David Yallop  

 

                      

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