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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ERIC / Terry Pratchett
ERIC / Terry Pratchett

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ERIC

 

As ABELHAS DE MORTE são grandes e pretas, e seu zumbido é grave e sombrio. Elas guardam o mel em favos tão brancos quanto velas de altar. Um mel negro como a noite, denso como o pecado e doce como o melado.

É fato conhecido que oito cores formam o branco. Mas o preto também pode ser dividido em oito cores, para quem tem a capacidade de vê-las. As colméias de Morte estão no meio do gramado negro, no pomar negro, sob velhos galhos de árvores cheias de flores negras que um dia produzirão maçãs que... digamos... provavelmente não serão vermelhas.

A grama estava curta. A foice que realizara o trabalho estava apoiada no tronco retorcido de uma pereira. Morte examinava as abelhas erguendo as colméias com movimentos suaves de seus dedos esqueléticos.

Algumas zumbiam ao redor dele. Como todo apicultor, Morte usava um véu. Não porque possuísse algo em seu corpo que pudesse levar uma ferroada, mas é que às vezes uma abelha entrava em seu crânio e ficava zumbindo, o que lhe dava dor de cabeça.

Quando ele ergueu um favo na direção da luz cinzenta do seu pequeno mundo entre duas realidades, sentiu um leve tremor. Um zunido saía da colméia, uma folha caía flutuando. Uma coluna de vento atravessou o pomar por um instante, e isso era o mais estranho, porque o ar na terra de Morte é sempre quente e parado.

 

*                    *                    *

 

Ele imaginou ter escutado, por um milésimo de segundo, o som de pés correndo e uma voz dizendo... não, uma voz pensando "quemerdaquemerdaquemerda, eu vou morrer eu vou morrer eu vou MORRER!"

Morte é quase a criatura mais velha do universo, com hábitos e uma maneira de pensar que o homem comum nem sequer imagina. Mas, como também é um bom apicultor, colocou o favo de volta na prateleira e fechou a tampa da colméia antes de reagir.

Voltou a sua cabana andando com passos largos pelo jardim escuro. Retirou o véu, expulsou algumas abelhas que tinham se perdido nas profundezas de seu crânio e foi para o escritório.

Quando se sentou diante da escrivaninha, sentiu outra agitação no ar, que sacudiu as ampulhetas na estante e fez o grande relógio de pêndulo do corredor interromper por um instante ínfimo sua interminável tarefa de repartir o tempo em partes controláveis.

 

Morte suspirou e ajustou seu foco de visão.

Não existe lugar aonde ele não possa ir, não importa o quanto seja distante ou perigoso. Na verdade, quanto mais perigoso o lugar, mais provável que Morte já esteja lá.

Naquele momento estava com o olhar fixo voltado para as névoas do tempo e do espaço.

- OH - disse. - É ELE.

 

Era uma tarde quente nos últimos dias de verão em Ankh-Morpork, geralmente a cidade mais próspera, mais agitada e, acima de tudo, mais populosa do Disco. Naquele momento, os raios lancinantes do sol fizeram aquilo que inúmeros invasores, guerras civis e toques de recolher nunca haviam conseguido. Acalmaram a cidade.

Os cachorros, deitados, ofegavam às sombras escaldantes. O rio Ankh, que não era o que se poderia chamar de reluzente, se arrastava entre as margens como se o calor tivesse sugado toda sua vitalidade. As ruas estavam vazias, quentes como os tijolos de um forno de pizza.

Nenhum inimigo jamais ocupara Ankh-Morpork. Bem, em termos estritamente técnicos, a cidade foi ocupada com bastante freqüência. Ela recebia de braços abertos os esbanjadores invasores bárbaros, mas de alguma maneira os perplexos conquistadores sempre descobriam, alguns dias depois, que não eram mais os donos dos próprios cavalos. Após alguns meses, não passavam de outra minoria com suas próprias pichações e mercearias.

Mas o calor havia sitiado a cidade e ultrapassado os limites de seus muros. Ele pairava sobre as ruas trêmulas como uma mortalha. Sob o maçarico do sol, os assassinos ficavam cansados demais para matar. Os ladrões se tornavam honestos. Dentro da fortaleza coberta de hera da Universidade Invisível, principal escola de magia, os internos cochilavam com os chapéus pontudos caídos sobre o rosto. Até as moscas varejeiras estavam cansadas demais para se debater contra o vidro da janela. A cidade fazia a sesta, aguardando o pôr do sol e a breve interrupção quente e aveludada da noite.

Somente o bibliotecário não sentia calor. Era também o único que estava suspenso no ar, se balançando.

Isso porque havia amarrado algumas cordas e aros num dos porões da Biblioteca da Universidade Invisível - onde eram guardados os livros, humm, eróticos.(NOTA: Apenas eróticos. Nada pervertidos. A distinção é tão sutil como a diferença entre usar uma pena e uma galinha).

 Em tanques de gelo triturado. E ele ficava pendurado acima deles, sonhando no meio do vapor gelado.

Todos os livros de magia possuem vida própria. Quanto aos mais vigorosos, simplesmente não é possível prendê-los às estantes. Eles têm que ficar fechados com pregos ou entre placas de aço. Ou, no caso da magia sexual tântrica para especialistas sérios, são mantidos sob água muito fria para que não entrem em combustão e queimem a capa dura e totalmente lisa.

O bibliotecário se balançava suavemente para a frente e para trás, dormindo como um anjo sobre a inquietação dos tanques.

Enquanto isso, passos que saíam do nada correram pela sala fazendo um ruído que arranhava a superfície exposta da alma e desapareceram atravessando a parede. Ouviu-se um grito distante e fraco que soava como algo do tipo "aimeusdeusesaimeusdeuse-saimeusdeuses, já ERA, vou MORRER".

O bibliotecário acordou, soltou a argola e caiu dentro dos poucos centímetros de água morna que havia entre A Alegria do Sexo Tântrico com Ilustrações para Alunos Avançados, de autoria de Uma Senhora, e a combustão espontânea.

Teria sido ruim para o bibliotecário se ele fosse um ser humano. Por sorte, no momento era um orangotango. Com tanta magia exposta espirrando para todos os lados na Biblioteca, seria surpreendente se às vezes não ocorressem acidentes - e um especialmente impressionante o havia transformado num símio. Não são muitas as pessoas que têm a chance de deixar a raça humana ainda em vida e, desde então, ele havia resistido a todos os esforços para fazê-lo voltar à forma anterior. Pelo fato de ele ser o único bibliotecário do universo que conseguia pegar os livros com os pés, a Universidade também não fazia muita pressão.

Isso também significava que sua idéia de companhia feminina desejável agora se parecia com algo como um saco de manteiga que passou por uma tubulação antiga. Na verdade ele tinha sorte de ter apenas azias suaves, dor de cabeça e alguns sentimentos um tanto ambivalentes em relação aos pepinos, que chegam estragados no final da tarde.

Na Biblioteca acima, os grimórios rangiam e faziam suas páginas se roçarem de espanto enquanto o sujeito invisível passava batido pelas estantes e desaparecia; ou melhor, desaparecia mais ainda...

Ankh-Morpork despertava aos poucos de seu estado de inércia. Algo invisível gritava com toda a potência de sua voz e atravessava todas as partes da cidade, deixando atrás de si um rastro de destruição. Por que quer que passasse, as coisas mudavam.

Uma cartomante da rua dos Artífices Espertos ouviu passos em seu quarto e viu que sua bola de cristal havia se transformado numa pequena esfera de vidro com uma cabana e flocos de neve dentro.

Num canto sossegado da taverna Tambor Remendado, onde as aventureiras Herrena, a Megera de Cabelos com Hena, Scharron Vermelha e Diome, a Bruxa da Noite, estavam reunidas para uma conversa feminina e um jogo de canastra, os copos com bebida se transformaram em elefantes amarelos.

- São aqueles magos da Universidade - disse o barman, repondo os copos rapidamente. - Isso não deveria ser permitido.

A meia-noite saltou do relógio.

Os membros do Conselho dos Magos esfregaram os olhos e se encararam com a visão embaçada. Eles também achavam que aquilo não deveria ser permitido, principalmente porque não foram eles que permitiram.

Finalmente o novo arquichanceler, Ezrolith Churn, conteve um bocejo, endireitou-se na cadeira e tentou assumir o ar autoritário que a ocasião exigia. Ele sabia que não estava à altura de um arquichanceler. Nunca quis realmente o cargo. Tinha 98 anos e havia atingido essa idade avantajada sempre com o cuidado de não causar nenhum problema nem representar uma ameaça a ninguém. Esperava passar seus anos crepusculares terminando seu tratado de sete volumes sobre Alguns Aspectos Pouco Conhecidos dos Rituais Kuianos de Dança da Chuva, em sua opinião um objeto ideal para o estudo acadêmico, uma vez que os rituais somente davam certo em Ku, e o continente em questão havia afundado no oceano milhares de anos atrás. (NOTA: Levou 30 anos para afundar. Os habitantes passaram muito tempo vivendo em meio à água. O fato entrou para a história como a catástrofe continental mais constrangedora do multiverso).

 O problema era que naqueles anos a expectativa de vida dos arquichanceleres parecia um pouco baixa, e a ambição natural de todos os magos pelo cargo havia dado lugar a uma curiosa cortesia autodepreciativa. Certa manhã, ele percebeu que todos o tratavam por "senhor". Demorou dias para descobrir por quê.

Sua cabeça doía. Sentiu que seu sono estava algumas semanas atrasado. Mas tinha que dizer alguma coisa.

- Senhores... - começou.

- Oook.

- Perdão... e ma...

- Oook.

- Quer dizer, símios, é claro...

- Oook.

O arquichanceler abriu e fechou a boca em silêncio algumas vezes, tentando reaver sua linha de pensamento. O bibliotecário, graças a seu cargo, também era membro do conselho. Ninguém havia sido capaz de encontrar alguma regra que vetasse os orangotangos, embora secretamente tivessem procurado bastante.

- É uma assombração - arriscou. - Uma espécie de fantasma talvez. Um caso para incensos, rezas e sinos.

O tesoureiro suspirou.

- Nós já tentamos isso, arquichanceler.

O arquichanceler se inclinou para perto dele. -Ãh?

- Eu disse que já tentamos isso, arquichanceler - repetiu o tesoureiro, mais alto, direcionando a voz para o ouvido do velho.

- Depois do jantar, lembra? Usamos Os Nomes das Formigas de Humptemper e tocamos o Velho Tom. (NOTA: Velho Tom era o único sino de bronze rachado da torre da Universidade. O badalo caiu assim que foi empurrado, mas o sino ainda soava alguns silêncios extremamente sonoros de hora em hora).

 

- Ah, foi? E funcionou?

- Não, arquichanceler.

- Ãh?

- Em todo caso, nunca tivemos nenhum problema com fantasmas - interrompeu o chefe do corpo docente. - Magos não trabalham com assombrações.

O arquichanceler tentou oferecer um consolo.

- Talvez seja apenas algo natural. É possível que sejam os estrondos de uma nascente subterrânea. Movimentos da terra, talvez. Alguma coisa nos canos de esgoto. Às vezes eles fazem uns barulhos muito estranhos, sabe, quando o vento está numa determinada direção.

Ele se recostou na cadeira e sorriu.

O restante do conselho trocou olhares.

- Os escoamentos não fazem sons que parecem pés correndo, arquichanceler — observou o tesoureiro, cansado.

- A não ser que alguém tenha deixado uma torneira aberta - disse o chefe do corpo docente.

O tesoureiro fez cara feia. Estava na banheira quando a coisa invisível passou gritando pelo seu quarto. Não era uma experiência que gostaria de repetir.

O arquichanceler acenou para ele com a cabeça.

- Está resolvido então — disse, e caiu no sono.

O tesoureiro o observou em silêncio. Depois tirou o chapéu do velho e o colocou com cuidado sob sua cabeça.

- E então? — perguntou num tom cansado. — Alguém mais tem alguma sugestão?

O bibliotecário ergueu a mão.

- Oook - disse.

- Sim, muito bem, bom garoto - respondeu o tesoureiro, com uma voz alegre. - Mais alguém?

O orangotango olhou fixamente para ele enquanto os outros magos balançavam a cabeça.

- É um tremor na textura da realidade - disse o chefe do corpo docente. - Só pode ser isso.

- O que nós temos que fazer então?

- Sei lá. A não ser que tentássemos o velho...

- Ah, não - interrompeu o tesoureiro. - Não diga isso. Por favor. É arriscado demais...

Suas palavras foram cortadas por um grito que começou na extremidade da sala e se propagou pela mesa, acompanhado pelo som de muitos pés correndo. Os magos se abaixaram numa confusão de cadeiras viradas.

As chamas das velas se estenderam em finas labaredas de luz octarina antes de se apagarem.

Em seguida houve silêncio - do tipo especial que se faz após um som muito desagradável.

E o tesoureiro disse:

- Está bem. Eu desisto. Vamos tentar o Rito de AshkEnte.

 

Trata-se do ritual mais sério que os oito magos podem conduzir. Evoca Morte, que naturalmente sabe tudo o que se passa em todos os lugares.

E claro que é feito com relutância, porque os magos superiores geralmente são velhos e preferem não fazer algo que possa atrair a atenção de Morte.

Aconteceu à meia-noite, no Salão Nobre da Universidade, num rebuliço de incensos, castiçais, inscrições rúnicas e círculos mágicos. Nada disso era estritamente necessário, mas fazia os magos se sentirem melhor. A magia se espalhava, os cânticos eram entoados, as invocações eram invocadas com sinceridade.

Os magos mantinham o olhar fixo no octograma mágico, que permanecia vazio. Depois de algum tempo, o círculo de vultos com trajes cerimoniais começou a murmurar.

- Devemos ter feito algo errado.

- Oook.

- Talvez Ele tenha saído.

- Ou está ocupado...

- Será que poderíamos desistir e voltar para a cama?

- QUEM EXATAMENTE ESTAMOS ESPERANDO?

O tesoureiro se virou lentamente para o vulto ao seu lado.

Era fácil reconhecer o manto de um mago. Tinha lantejoulas, símbolos mágicos, pele, renda e geralmente um volume considerável de mago dentro dele. Esse manto, porém era muito preto. O material dava a impressão de ter sido escolhido por sua resistência e durabilidade. Assim como seu dono. Parecia alguém que, se escrevesse um livro sobre dietas, criaria um best-seller.

Morte observava o octograma com uma expressão de interesse educado.

- É... - começou o tesoureiro. - A questão é que, na verdade, é... você deveria estar do lado de dentro.

- DESCULPE.

Morte andou cheio de dignidade até o centro da sala e olhou esperançoso para o tesoureiro.

- ESPERO QUE DESTA VEZ NÃO TENHAMOS QUE PASSAR POR AQUELE "INFERNO" NOVAMENTE.

 

- Espero que não estejamos interrompendo nenhum assunto importante — disse o tesoureiro, educadamente.

- O MEU TRABALHO É IMPORTANTE.

- Naturalmente - concordou o tesoureiro.

- PARA ALGUÉM.

- É... É... O motivo, o dia... senhor, pelo qual o chamamos aqui, é pelo motivo...

- É RINCEWIND.

- O quê?

- O MOTIVO PELO QUAL ME EVOCARAM. A RESPOSTA É RINCEWIND.

- Mas ainda não lhe fizemos a pergunta!

- AINDA ASSIM, A RESPOSTA É: RINCEWIND.

- Olha, o que nós queremos saber é o que está causando esse... oh.

Morte retirou partículas invisíveis do gume de sua foice num gesto intencional.

O arquichanceler pôs a mão retorcida em forma de concha perto do ouvido.

- O que ele disse? Quem é o sujeito de bengala?

- É Morte, arquichanceler - respondeu o tesoureiro, paciente.

- Hein?

- É Morte, senhor. O senhor sabe de quem se trata.

- Diga a ele que não precisamos de nada - afirmou o velho mago, balançando a bengala.

O tesoureiro suspirou.

- Nós o evocamos, arquichanceler.

- Evocamos? Por que fizemos isso? Que coisa mais besta de se fazer.

O tesoureiro sorriu sem graça para Morte. Estava prestes a lhe pedir para perdoar o arquichanceler por causa da idade, mas percebeu que, naquelas circunstâncias, seria um completo desperdício de saliva.

-           É do mago Rincewind que estamos falando? Aquele que tem... - o tesoureiro sentiu um arrepio - a terrível Bagagem com pernas? Mas ele estava naquela explosão quando houve a confusão com o mago, não estava? (NOTA: O tesoureiro estava se referindo, de forma indireta, à difícil ocasião em que a Universidade chegou muito perto de causar o fim do mundo, e realmente teria causado, não fosse por uma seqüência de eventos envolvendo Rincewind, um tapete mágico e meio tijolo dentro de uma meia (ver O Oitavo Mago). O caso todo foi muito constrangedor para os magos, como sempre ocorre com as pessoas que só depois descobrem que o tempo todo estiveram do lado errado (ou seja, o lado que perdeu). E era notável a quantidade de membros da ala mais experiente da Universidade que era irredutível ao afirmar que na época estavam afastados por motivo de doença, visitando uma tia ou fazendo pesquisas com a porta fechada e cantarolando alto, e não faziam idéia do que estava acontecendo do lado de fora. Houve algumas conversas sobre erguer uma estátua para Rincewind, mas, pela estranha alquimia que tende a se aplicar nessas questões delicadas, logo se transformou numa placa, depois numa mensagem nos Anais da Honra e finalmente uma moção de repreensão por estar vestido de forma inapropriada).

 

- FOI PARA O CALABOUÇO DAS DIMENSÕES. E AGORA ESTA TENTANDO VOLTAR PARA CASA.

- Ele pode fazer isso?

- SERIA PRECISO HAVER UMA CONJUNÇÃO INCOMUM DE CIRCUNSTÂNCIAS. A REALIDADE TERIA QUE SER ENFRAQUECIDA DE UMA FORMA INESPERADA.

- Não é provável que isso aconteça, né? - perguntou o tesoureiro, ansioso. As pessoas que deixaram registros de que estiveram visitando a tia durante dois meses sempre ficam nervosas em relação a reaparições. Especialmente se os reaparecidos puderem, por engano, pensar que elas não estavam fora e, devido a algum engano visual, acreditar que as viram fazer coisas que não poderiam fazer porque estavam na casa da tia.

 

- A CHANCE SERIA DE UM EM UM MILHÃO – disse Morte. -EXATAMENTE UM EM UM MILHÃO.

- Oh... - começou o tesoureiro, imensamente aliviado. – Nossa. Que pena. - Ele se animou consideravelmente. - É claro, tem esse barulho, mas acho que infelizmente Rincewind não sobreviverá por muito tempo.

- PODE SER QUE SEJA ESSE O CASO - concordou Morte, impassível. - NO ENTANTO ESTOU CERTO DE QUE VOCÊ NÃO ESPERA QUE EU TENHA O COSTUME DE EMITIR AFIRMAÇÕES EXATAS NESSA ÁREA.

- Não! Não, é claro que não - apressou-se em confirmar o tesoureiro. - Certo. Bom, muito obrigado. Pobre sujeito. É lamentável. Mas não há o que fazer. Talvez tenhamos que ser filosóficos quanto a essas coisas.

- TALVEZ SIM.

- E é melhor não ficarmos prendendo você aqui - acrescentou o tesoureiro, com educação.

- OBRIGADO.

- Adeus.

- A GENTE SE VÊ.

De fato, o barulho parou pouco antes do café-da-manhã. O bibliotecário foi o único que ficou triste. Rincewind tinha sido seu assistente e amigo, e era um homem bom no que diz respeito a descascar uma banana. Também era extremamente bom em fugir correndo. E não era, lembrou o bibliotecário, do tipo que é pego facilmente.

Era provável que uma conjunção incomum de circunstâncias tivesse ocorrido.

Essa era uma explicação muito mais plausível.

Uma conjunção incomum de circunstâncias havia ocorrido.

A uma probabilidade exata de um para um milhão, alguém esteve observando, estudando, procurando as ferramentas certas para fazer um trabalho especial.

E lá estava Rincewind.

Era quase fácil demais.

Então Rincewind abriu os olhos. Havia um teto acima dele. Se fosse o chão, estaria em apuros.

Até aqui, tudo bem.

Sentiu cuidadosamente a superfície sobre a qual estava. Ela parecia ter ranhuras, como madeira, e um estranho buraco deixado por um prego. Uma espécie de superfície humana.

Seus ouvidos captaram estalos de fogo e o barulho de algo efervescente, de origem desconhecida.

Seu nariz, sentindo que estava deixando de fora alguma coisa, apressou-se para comunicar um bafo de enxofre.

Certo. Então aonde tudo isso o levava? Deitado num piso de madeira, num local iluminado por fogo, com algo que efervescia e soltava odores sulfurosos. Nesse estado irreal, onírico, ele se sentiu bastante satisfeito com seu processo de dedução.

O que mais?

Ah, sim.

Abriu a boca e gritou e gritou e gritou.

Isso o fez se sentir um pouco melhor.

Ficou deitado ali por mais algum tempo. Através do monte de lembranças que desmoronavam, vieram as memórias das manhãs na cama, quando era um menino, subdividindo desesperadamente o tempo que passava em unidades cada vez menores para adiar o momento terrível de se levantar e ter que enfrentar todos os problemas da vida, tais como, nesse caso, quem era, onde estava e por que estava ali.

- O que você é? - perguntou uma voz no limite de sua consciência.

- Eu já ia chegar nesse ponto - murmurou Rincewind.

A sala entrou em foco quando ele se apoiou nos cotovelos.

- Devo lhe avisar - começou a voz, que parecia vir de uma mesa - que estou sob a proteção de muitos amuletos poderosos.

- Maravilha - disse Rincewind. - Quem me dera eu também estivesse.

Os detalhes começaram a sobressair na visão embaçada. A sala era longa e baixa, e uma das extremidades estava totalmente ocupada por uma lareira enorme. Um banco que percorria toda uma parede continha uma coleção de copos que parecia ter sido criada por um soprador de vidro bêbado e com soluço. Dentro de suas espirais bizantinas, líquidos coloridos ferviam e borbulhavam. Havia um esqueleto pendurado num gancho, numa postura relaxada. Num poleiro ao lado dele, alguém havia pregado um pássaro empalhado. Quaisquer que tenham sido os pecados cometidos por ele em vida, não merecia o que o taxdermista fizera com ele.

 

O olhar de Rincewind então percorreu o chão. Era óbvio que fazia muito tempo que ninguém varria aquele piso. Somente ao seu redor havia um espaço limpo, entre os entulhos de cacos de vidro e tubos de ensaio retorcidos que formavam...

... um círculo mágico.

Parecia um trabalho extremamente bem-feito. Deixava claro que quem quer que o tivesse projetado tinha em mente que seu propósito era dividir o universo em duas partes: a de dentro e a de fora.

Rincewind estava obviamente dentro.

- Ah - ele disse, com uma sensação familiar e quase reconfortante de terror e impotência tomando conta de seu corpo.

- Eu te conjuro e esconjuro contra qualquer ato de agressão, ó demônio das profundezas - disse a voz que vinha, Rincewind percebeu naquele momento, de trás da mesa.

- Ótimo, ótimo - concordou Rincewind rapidamente. – Por mim, tudo bem. É... não é possível que tenha havido o mínimo errinho aqui, é?

- Fora!

- Está bem! - Rincewind olhou ao redor em desespero. - Como?

- Não penses que podes me atrair para a minha perdição com tua língua, ó demônio de Shamharoth - disse a mesa. – Sou versado nos hábitos do capeta. Obedece a todas as minhas ordens ou te mandarei de volta para o inferno fervente do qual veio. Do qual vieste, desculpa. De onde tu vieste, na verdade. E eu estou falando sério.

O vulto saiu de onde estava. Era bem pequeno, e a maior parte dele se escondia sob uma infinidade de amuletos, medalhas e talismãs, os quais, mesmo se não fossem eficientes contra a magia, provavelmente o protegeriam contra um golpe de espada razoavelmente bem dado. Usava óculos e tinha um chapéu com abas longas que lhe davam o ar de um cocker spaniel míope.

Segurava uma espada com a mão trêmula. Ela era tão carregada com gravuras de símbolos mágicos que estava começando a entortar.

- Inferno fervente, você disse? - perguntou Rincewind,   vacilante.

- Exatamente. Onde os gritos de angústia e os tormentos atordoados...

- Sim, sim, já entendi — interrompeu Rincewind. — Só que, sabe, a questão é que na verdade eu não sou um demônio. Então será que poderia me deixar sair daqui?

Não me deixarei enganar por tua roupagem externa, demônio, - disse o vulto. Com uma voz mais normal, acrescentou: - De todo modo, os demônios sempre mentem. É fato bastante conhecido.

- E? - perguntou Rincewind, tentando se agarrar ao último fio de esperança. - Neste caso, então... Eu sou um demônio.

- A-ha! Condenado pela própria boca!

Olha, eu não tenho que agüentar isso. Eu não sei quem é você nem o que está acontecendo, mas vou beber alguma coisa, está bem?

Tentou sair do círculo e ficou em choque quando as faíscas saíram estalando das inscrições rúnicas e se enterraram por todo o seu corpo.

Vós não podei... vós não podeis... vós não podes... — O encantador de demônios desistiu. - Olha, você não pode pisar fora do círculo até que seja libertado por mim, está bem? Sabe, não é que eu queira ser desagradável, mas, se eu deixar você sair do círculo, você vai conseguir retomar sua forma verdadeira. E essa forma é muito horrível, imagino. Vade-retro! - acrescentou, ao sentir que não conseguia manter o tom.

- Está bem. Estou indo de retro. Estou indo de retro – disse Rincewind, esfregando o cotovelo. - Mas ainda assim eu não sou um demônio.

Por que respondeu à evocação então? Imagino que simplesmente aconteceu de você estar passando pelas dimensões paranaturais, não é?

Alguma coisa assim, eu acho. Está tudo um pouco obscuro.

Tenta outra, nessa eu não caio. - O encantador inclinou a espada sobre um apoio de livros, em cima do qual estava aberto um volume pesado, cheio de marcadores de páginas. Em seguida, fez uma dancinha maluca com os pés.

Funcionou! He! he! - Ele percebeu o olhar horrorizado de Rincewind e se recompôs. Deu uma tossida sem graça e se aproximou do apoio com o livro.

Eu realmente não sou... - começou Rincewind.

Essa lista estava aqui comigo em algum lugar - disse o vulto. - Vejamos agora. Ah, sim. Eu ordeno que você... tu, ãh

 me conceda três desejos. Sim. Eu quero o domínio sobre os reinos do mundo, quero conhecer a mulher mais bonita que já existiu e quero viver para sempre. - Lançou um olhar encorajador para Rincewind.

- Tudo isso?

- Sim.

- Ah, sem problemas - concordou Rincewind, num tom sarcástico. - E depois eu posso tirar folga pelo resto do dia, certo?

- E eu quero um baú cheio de ouro também. Só pra garantir.

- Estou vendo que você já pensou em tudo.

- Sim. Vade-retro!

- Está bem, está bem. Só que... - Rincewind pensou rápido.

"Ele é totalmente maluco, mas um maluco com uma espada na mão. A única chance que eu tenho é convencê-lo a desistir usando sua própria linha de raciocínio." — Só que, sabe, eu não sou um demônio muito evoluído, e infelizmente esse tipo de tarefa está um pouco acima do meu nível. Desculpa. Você pode me mandar ir de retro até se cansar, mas isso está além da minha capacidade.

O pequeno vulto espiou por cima dos óculos.

- Entendo - disse, impaciente. - O que você acha que conseguiria fazer então?

- Bom, é... - refletiu Rincewind. -Acho que eu poderia ir até uma loja e comprar umas balas de hortelã ou algo do tipo.

Houve uma pausa.

- Você realmente não consegue fazer todas essas coisas?

- Desculpa. Olha, vamos fazer assim: você me solta e eu aviso todo mundo que eu encontrar quando eu voltar para... - Rincewind hesitou. "Que inferno...onde é mesmo que os demônios vivem?" - o País dos Demônios — disse, esperançoso.

- Você quis dizer Pandemônio? - corrigiu seu captor, desconfiado.

- É, isso mesmo. Foi o que eu quis dizer. Vou falar pra todo mundo: "Da próxima vez que estiver no mundo real, não deixe de procurar por..." Qual é o seu nome?

- Thursley. Eric Thursley.

- Certo.

- Demonólogo. Travessa do Monte de Estéreo, Pseudópolis. Ao lado do curtume - disse Thursley, esperançoso.

- Ótimo. Não se preocupe. Agora se pudesse me soltar...

Thursley desanimou de repente.

- Tem certeza de que você não consegue? - insistiu, e Rincewind não pôde deixar de notar um tom de súplica em sua voz.

- Pode ser até um baú de ouro pequeno. E não precisa ser a mulher mais bonita de toda a história. Pode ser a segunda mais bonita. Ou a terceira. Você pode escolher qualquer uma que quiser de um grupo de, sei lá, as cem ma... mil mais bonitas. O que você tiver no estoque, por assim dizer.

Ao final da frase, sua voz vibrava de ansiedade.

Rincewind queria dizer: "Olha, o melhor para você seria parar de ficar mexendo com esses produtos químicos em lugares escuros e fazer a barba, cortar o cabelo, tomar um banho, ou melhor, dois banhos, renovar seu guarda-roupa e sair à noite para então..." Mas Rincewind teria que ser honesto, porque mesmo lavado, barbeado e encharcado de colônia Thursley não ganharia nenhum concurso de beleza... Mas poderia levar um tapa de qualquer mulher que escolhesse.

Quer dizer, não seria muita coisa, mas haveria contato físico.

- Desculpa - repetiu.

Thursley suspirou.

- A chaleira está no fogo — disse. — Você aceita uma xícara de chá?

Rincewind deu um passo na direção de uma rachadura na energia psíquica.

- Ah — disse Thursley, de modo incerto, enquanto o mago chupava os dedos. — Vou lhe contar uma coisa. Eu o colocarei sob um encantamento de retenção.

- Garanto que isso não é necessário.

- Não, é melhor assim. Significa que você pode sair do círculo. Eu já tinha deixado tudo pronto mesmo, caso você pudesse ir buscar, você sabe, ela.

- Está bem - concordou Rincewind. Enquanto o demonólogo murmurava as palavras do livro, ele pensou: "Pés. Porta. Escadas. Que ótima combinação".

Rincewind notou que havia algo incomum no demonólogo, mas não conseguia definir o quê. Parecia muito com os demonólogos que conhecera em Ankh-Morpork, que eram todos curvados, manchados de produtos químicos e com pupilas que pareciam cabeças de alfinete por causa dos vapores químicos. Esse se encaixaria facilmente no perfil. Mas havia alguma coisa estranha.

- Pra ser sincero - começou Thursley, desfazendo uma parte do círculo com muito cuidado —, você é o meu primeiro demônio. Nunca tinha dado certo antes. Qual é o seu nome?

- Rincewind.

Thursley pensou um pouco.

- Não me parece familiar. Tem um Riinjswin no Demonologia. E um Winswin. Mas eles têm mais asas que você. Pode sair agora. Devo dizer que esta é uma materializaçao de primeira classe. Só de olhar pra você, ninguém diria que é um demônio. A maioria dos demônios, quando querem se parecer com humanos, se materializa na forma de nobres, reis e príncipes. Essa aparência de mago roído pelas traças é muito inteligente. Você quase poderia me enganar. É uma pena que não consiga fazer nenhuma daquelas coisas.

- Não vejo por que você gostaria de viver para sempre - observou Rincewind, depois de concluir que as palavras "roído pelas traças" teriam troco assim que tivesse a oportunidade. - Voltar a ser jovem eu até posso entender.

- Humpf. Ser jovem não é muito divertido - disse Thursley, e depois tapou a boca com a mão.

Rincewind olhou mais de perto.

Uns 50 anos. Era isso o que estava faltando.

- Essa barba é falsa! Quantos anos você tem?

- Tenho 87! - gritou Thursley.

- Dá pra ver os ganchos nas orelhas!

- Tenho 78, é sério! Vade-retro!

- Você é um garotinho!

Eric se ajeitou com orgulho.

- Não sou! - berrou. -Já tenho quase 14!

-  A-ha!

O menino balançou a espada para Rincewind.

- De qualquer forma, isso não importa! - gritou. - Os demonólogos podem ter qualquer idade. Você ainda é o meu demônio e tem que fazer o que eu mandar!

- Eric - eles ouviram uma voz que vinha de algum lugar mais abaixo.

O garoto ficou pálido.

- O que é, mãe? - gritou, com o olhar fixo em Rincewind.

Sua boca formou a frase: "Não diga nada, por favor".

- Que barulheira é essa aí em cima?

- Nada, mãe!

- Desça e lave as mãos, querido, o café-da-manhã está pronto!

- Está bem, mãe. - Olhou encabulado para Rincewind. – É a minha mãe.

- Ela tem bons pulmões, hein?

- É melhor... é melhor eu ir andando então - disse Eric.

- Você vai ter que ficar aqui em cima, é claro.

Ele se deu conta de que estava perdendo um pouco da credibilidade a essa altura e balançou a espada mais uma vez.

- Vade-retro! Eu ordeno que você não saia deste quarto!

- Certo. Claro - concordou Rincewind, examinando as janelas.

- Promete? Caso contrário, será mandado de volta para as Profundezas.

- Oh, isso eu não quero — observou Rincewind. — Vá tranqüilo. Não se preocupe comigo.

- Vou deixar a espada e as coisas aqui — disse Eric, retirando a maior parte de seus acessórios e revelando um jovem pequeno, de cabelos castanhos e cujo rosto ficaria muito melhor quando as espinhas desaparecessem. - Se você tocar nelas, coisas terríveis sucederão.

- Não quero nem imaginar.

Quando ficou sozinho, Rincewind foi até o apoio e olhou para o livro. O título, em letras vermelhas extremamente brilhantes, era Mallificarum Sumpta Diabolicite Occularis Singularum, o Livro do Controle Supremo. Ele o conhecia. Havia um exemplar em algum lugar da Biblioteca, embora os magos nunca tivessem se preocupado com ele.

Isso pode parecer estranho, porque, se existe uma coisa pela qual os magos trocariam a própria avó, essa coisa é o poder. Mas não era tão estranho assim, porque qualquer mago esperto o bastante para sobreviver por cinco minutos também era esperto o bastante para perceber que, se havia algum poder na demonologia, ele estava na mão dos demônios. Usá-lo para benefício próprio seria como tentar matar ratos batendo neles com uma cascavel.

Até mesmo os magos achavam os demonólogos estranhos. Tendiam a ser homens pálidos e traiçoeiros, que aprontavam coisas complicadas em quartos escuros e cujo aperto de mão era úmido e fraco. Não era igual à magia boa e limpa. Nenhum mago de respeito se envolveria com as regiões demoníacas, cujos habitantes eram um grupo de cabeças de bagre que poderia ser encontrado em frente a qualquer peixaria.

Por via das dúvidas, examinou o esqueleto de perto. Ele não parecia disposto a dar uma contribuição à situação.

- Pertenceu ao coiso dele, ao avô - disse uma voz estridente atrás de Rincewind.

- É uma herança um pouco fora do comum.

- Ah, não foi dado pessoalmente. Ele comprou numa loja, em algum lugar. É um daqueles coisos, coisos articulados.

- Ele não está dizendo muita coisa agora - disse Rincewind, e ficou muito silencioso e pensativo. -É...começou, sem mexer a cabeça - com o quê exatamente estou falando?

- Eu sou um coiso. Tá na ponta da língua. Começa com P.

Rincewind se virou devagar.

- Você é um papagaio?

 - É isso aí.

O mago olhou fixamente para a coisa no poleiro. Tinha um olho que cintilava como um rubi. O resto era quase todo feito de pele rosa e roxa, salpicada de restos de penas, de modo que a primeira impressão que passava era a de uma escova de cabelo pronta para ir ao forno. Ele se sacudiu sobre o poleiro com um movimento artrítico e foi perdendo o equilíbrio aos poucos, até ficar pendurado de cabeça para baixo.

- Eu achei que você fosse empalhado — observou Rincewind.

- Vá se ferrar, mago.

Rincewind ignorou a ofensa e foi lentamente até a janela. Era pequena, mas dava para um telhado levemente inclinado. E lá fora havia vida, céu de verdade, prédios de verdade. Ele estendeu a mão para abrir as venezianas...

Uma corrente de estalos subiu por seu braço e se enterrou em seu cerebelo.

Rincewind se sentou no chão, chupando os dedos.

- Ele te avisou - disse o papagaio, balançando para a frente e para trás, de cabeça para baixo. - Mas você não coisô. Ele te deixou preso pelos coisos.

- Mas isso só deveria funcionar com demônios!

- Ah — começou o papagaio, adquirindo impulso suficiente para dar mais uma volta para cima e depois se firmar com o auxílio das sobras eriçadas do que um dia tinham sido suas asas. – Está tudo nos conformes, não está? Se você entrar por uma porta em que esteja escrito "Coisos", isso significa que você será tratado como coiso, certo? Quer dizer, demônio. Sujeito a todas as regras e coisas. A coisa ficou difícil pra você.

- Mas você sabe que eu sou um mago, não sabe?!

O papagaio deu um grito agudo.

- Eu já vi esses caras, colega. E o verdadeiro senhor Coiso. Alguns dos que tivemos aqui dentro fariam você engasgar com o alpiste. Grandes coisos brilhantes e cheios de escamas. Demorou dias para tirar a fuligem das paredes - acrescentou, num tom de aprovação. — Isso foi nos tempos do avô, é claro. O garoto não é nada bom nisso. Pelo menos até agora. Moleque inteligente. Eu culpo os coisos, os pais. Novos-ricos, sabe como é. Ramo do vinho. Mimaram muito o garoto, deixam que ele brinque com as coisas antigas do coiso dele. "Oh, é um menino tão inteligente, sempre com a cara nos livros" — remedou o papagaio. — Eles nunca dão a ele nenhuma das coisas que um coiso sensível, em fase de crescimento, realmente necessita, se você quer saber o que eu penso.

- Você está falando de amor e orientação? — perguntou Rincewind.

- Eu estava pensando numa boa coisa, uma surra – respondeu o papagaio.

Rincewind apertou a cabeça dolorida. Se era por aquilo que os demônios geralmente tinham que passar, não era de se estranhar que estivessem sempre tão irritados.

- Louro quer café — disse o papagaio vagamente, de forma muito semelhante a um humano dizendo "Ãah..." ou "Como eu ia dizendo", e prosseguiu: - O avô dele adorava essas coisas. Essas coisas e os pombos.

- Pombos - repetiu Rincewind.

- Não que tivesse muito sucesso. Era tudo meio na base da tentativa e coiso.

- Achei que você tinha dito coisas grandes, cheias de escamas e...

- Ah, sim. Mas não era isso o que ele queria. Ele estava tentando evocar um súcubo. - Olhar de soslaio, quando se tem um bico, deveria ser algo impossível, mas o papagaio conseguia. – É um demônio feminino que aparece à noite e faz coisas loucas e excit...

- Já ouvi falar neles - interrompeu Rincewind. - São perigosos demais.

O papagaio virou a cabeça para o lado.

- Nunca funcionou. O máximo que ele conseguiu foi um neuralger.

- O que é isso?

- E um demônio que vem e dá uma dor de cabeça em você.

 

Existem demônios no Disco há pelo menos tanto tempo quanto os deuses, que são muito parecidos com eles em diversos aspectos. A diferença é basicamente a mesma que há entre os terroristas e os que lutam pela liberdade.

A maioria dos demônios ocupa uma dimensão próxima à realidade, com uma tradicional decoração em tons de chamas, mantida em temperatura máxima de forno. Tudo isso na verdade não é necessário, mas se existe algo que o demônio costuma ser é tradicionalista.

No centro do inferno, erguendo-se de forma majestosa de dentro de um lago de lava falsa e com uma visão incomparável dos Oito Círculos, encontra-se a cidade de Pandemônio. (NOTA: Os demônios e seu inferno são muito diferentes do Calabouço das Dimensões, aquelas intermináveis regiões devastadas em um mundo paralelo fora do espaço e do tempo. As criaturas tristes e dementes do Calabouço das Dimensões não possuem compreensão nenhuma do mundo, simplesmente anseiam por luz e forma e tentam se aquecer perto do fogo da realidade, aglomerando-se ao seu redor com o mesmo efeito - quando chegam a tanto - de um oceano tentando se aquecer ao redor de uma vela. Já os demônios pertencem mais ou menos ao mesmo coiso que os humanos no espaço-tempo e têm interesse profundo e permanente nas questões cotidianas da humanidade. É interessante notar que os deuses do Disco nunca se preocuparam muito em julgar a alma dos mortos. Portanto as pessoas só vão para o inferno se acreditarem, no fundo do coração, que é para lá que merecem ir, o que não acontece se não souberem que ele existe. Isso explica o porquê de se atirar nos missionários assim que aparecem).  Naquele momento, ela fazia jus ao nome.

Astfgl, o novo rei dos demônios, estava furioso. Não apenas porque o ar-condicionado havia quebrado de novo, ou porque se sentia cercado de idiotas e conspiradores por todos os lados, ou mesmo porque ninguém conseguia pronunciar seu nome corretamente, mas porque acabara de receber uma péssima notícia. O demônio que, por sorteio, havia sido escolhido para dar a notícia se curvou de medo diante do trono, com o rabo entre as pernas. Sentia um medo imortal de que algo maravilhoso acontecesse com ele. (NOTA: os demônios tinham uma visão distorcida dos valores)

- Ele fez o quê?. - perguntou Astfgl.

- Ele, é... ele se abriu, ó senhor. O círculo em Pseudópolis se abriu.

- Ah. O garoto esperto. Temos muita esperança nele.

- E... E depois fechou de novo, senhor.

O demônio fechou os olhos.

- E quem atravessou?

- E... O demônio olhou para seus colegas, amontoados num canto distante da sala do trono, que tinha quase um quilometro de comprimento.

- Eu disse: quem atravessou?

- Na realidade, ó senhor...

- Sim?

- Não sabemos. Alguém.

- Eu não ordenei que, quando o garoto conseguisse, o duque Vassenego deveria se materializar e oferecer a ele prazeres proibidos e deleites secretos para submetê-lo à Nossa vontade?

O rei resmungou alguma coisa. O problema de ser demoníaco, ele tinha que admitir, era que os demônios não eram grandes e inventivos pensadores, e precisavam de um toque da habilidade humana. E ele realmente estava ansioso para se aproximar de Eric Thursley, cujo tipo de não-estupidez superdotada era um prazer raro. O inferno precisava de pessoas egocêntricas e terrivelmente inteligentes como Eric. Elas conseguiam ser muito mais imorais do que qualquer demônio.

- E verdade, senhor — respondeu o demônio —, e o duque está esperando para ser evocado há anos, afastando todas as outras tentações, estudando o mundo dos homens com constância e paciência...

- E onde ele estava?

- É... Atendendo a um chamado da sobrenatureza, senhor — disse rapidamente o demônio. — Ele virou as costas por um minuto e...

—        E alguém atravessou?

- Estamos tentando descobrir...

A paciência do lorde Astfgl, que tinha a força elástica da massa de vidraceiro, se rompeu. Aquilo praticamente resumia tudo. Seus súditos eram do tipo que usavam a palavra "descobrir" quando queriam dizer "averiguar". O fogo do inferno era bom demais para eles.

- Saia daqui — sussurrou. — Providenciarei que você receba uma menção favorável por este...

- Ó mestre, eu imploro...

- Saia!

O rei atravessou com passos pesados os corredores incandescentes até seus aposentos privativos.

Seus predecessores haviam preferido patas traseiras peludas e cascos. Lorde Astfgl rejeitara completamente esse tipo de coisa. Afirmava que ninguém seria levado a sério por aqueles infelizes convencidos com o traje que resolveram chamar de Dun Manifestin e com o traseiro ruminando o tempo todo. Por isso preferiu uma capa de seda vermelha, calças de malha carmesim, um capuz com dois chifrinhos sofisticados e um tridente. O rabo ficava deixando o tridente cair, mas ele sentia que aquele era o tipo de vestimenta que faria um rei demônio ser levado a sério...

No ar frio de seu quarto — oh!, por todos os deuses... ou melhor, não por todos os deuses... havia levado séculos para elevá-los a padrões minimamente civilizados; seus predecessores ficavam muito satisfeitos em apenas passar o tempo sem fazer nada e tentando as pessoas; nunca tinham ouvido falar em estresse - ele ergueu com um gesto suave a capa do Espelho das Almas e observou a luz trêmula que lhe dava vida.

Sua superfície negra e fria era cercada por uma moldura adornada, da qual caracóis de fumaça gordurosa se desenrolavam e subiam constantemente.

- Seu desejo, mestre?

- Mostre os acontecimentos nas proximidades do portão de Pseudópolis na última hora - pediu o rei, se acomodando para assistir.

Depois de algum tempo, foi procurar o nome "Rincewind" no arquivo que havia mandado instalar recentemente no lugar dos velhos livros de contabilidade com encadernações sofríveis que havia ali. O sistema ainda tinha alguns probleminhas a ser resolvidos, porque os desorientados demônios arquivavam tudo na letra P de "Pessoas".

Depois se sentou para observar as imagens trêmulas e ficou brincando com objetos que estavam sobre sua mesa, distraído, para acalmar os nervos.

Tinha um monte de coisas ali: blocos de anotação com ímãs para clipes, porta-canetas engenhosos e práticos, aqueles cadernos minúsculos e sempre úteis, estatuetas extremamente engraçadas com frases como "Você é quem manda!" e bolinhas e espirais cromadas que se deslocavam por meio de um tipo de mecanismo sucedâneo com movimento curto e inesgotável. Ninguém que olhasse para aquela mesa poderia duvidar de que estava de fato condenado.

- Entendo - disse lorde Astfgl, fazendo um grupo de bolinhas reluzentes balançarem com um tapinha de uma das garras.

Ele não conseguia se lembrar de nenhum demônio chamado Rincewind. Por outro lado, havia milhões de pobres coitados fervilhando por todos os cantos sem nenhuma noção de ordem, e ele ainda não havia tido tempo de realizar um censo adequado para aposentar aqueles que eram desnecessários. Esse parecia ter menos membros e mais vogais no nome do que a maioria. Mas tinha que ser um demônio.

Vassenego era um tolo orgulhoso, um dos demônios mais velhos, daqueles que sorriam, desdenhavam e não obedeciam direito. Tudo isso porque o rei havia dado duro durante milênios para sair da posição humilde em que começara e chegar onde estava. Ele não duvidaria que o velho demônio tivesse feito tudo isso de propósito, apenas para prejudicá-lo.

Bom, cuidaria disso mais tarde. Mandaria um memorando ou algo do tipo. Era tarde demais para fazer alguma coisa. Ele precisava cuidar do assunto pessoalmente. Eric Thursley representava uma perspectiva boa demais para deixar escapar. Trazer Eric Thursley para o seu lado seria algo que realmente perturbaria os deuses.

Deuses! Como odiava os deuses! Ainda mais do que odiava um velho guarda como Vassenego, ainda mais do que odiava os humanos. Ele havia dado um pequeno sarau na semana anterior, para o qual se preparara muito. Queria mostrar que estava pronto para esquecer as águas passadas e trabalhar junto com eles por um novo universo, melhor e mais eficiente. Deu ao evento o nome de festa "Para Conhecê-los Melhor!" Tinha salsichão no espeto e tudo o mais. Havia feito de tudo para que fosse uma coisa legal. Mas eles nem se deram ao trabalho de dar uma resposta. E ele tinha tomado o cuidado especial de colocar RSVP nos convites.

 

- Demônio? — Eric apareceu perto da porta. — Qual é a sua forma?

- Fora de forma - respondeu Rincewind.

- Eu trouxe comida pra você. Você come, não come?

Rincewind provou a comida. Era uma tigela de cereal, nozes e frutas secas. Não tinha nada contra aquilo. O fato era que, em algum momento do preparo da refeição, parecia que alguma coisa era feita com esses ingredientes inocentes que exigiria um milhão de vezes a força da gravidade para ser feita com uma estrela de nêutron. Se alguém morresse por comer esse tipo de coisa, não seria necessário enterrar, bastaria deixá-lo em algum lugar onde o solo fosse macio.

Conseguiu engolir. Não teve muita dificuldade. O truque era evitar que a coisa descesse de uma vez.

- Ótimo — observou, engasgando. O papagaio fez uma excelente imitação de alguém com enjôo.

- Decidi soltá-lo - disse Eric. - Não faz sentido ficar segurando você aqui, não é?

- Absolutamente.

- Você não tem nenhum poder mesmo?

- Sinto muito. Falha mortal.

- Pensando bem, você não parece muito demoníaco.

- Eles nunca parecem. Não dá pra confiar nesses coisos — interrompeu o papagaio em voz baixa. E perdeu o equilíbrio de novo. — Louro quer café — disse, de cabeça para baixo.

Rincewind se virou rapidamente. — Fique fora disso, bicudo!

 Ouviu-se um som atrás deles, como se o universo estivesse limpando a garganta. As marcas de giz do círculo mágico ficaram terrivelmente brilhantes por um momento, transformaram-se em linhas de fogo sobre as tábuas gastas, e alguma coisa caiu do ar vazio e bateu com força no chão.

Era uma grande arca com acabamento de metal. Caiu sobre a tampa arredondada. Após algum tempo, começou a chacoalhar com violência, estendeu centenas de perninhas cor-de-rosa e, com esforço considerável, virou-se no ar.

Por fim se arrastou até ficar de frente para os dois. Tudo aquilo era ainda mais desconcertante pelo fato de que a arca os observava sem ter olhos para fazê-lo.

Eric foi o primeiro a se mover. Apanhou a espada mágica feita em casa, que se agitou loucamente.

- Você é um demônio - ele disse. - Quase acreditei em você quando disse que não era!

- Uiii! - fez o papagaio.

- E só a minha Bagagem — explicou Rincewind, desesperado.

- É uma espécie de... bom, ela vai pra todo lugar comigo. Não tem nada de demoníaco... é... - Ele hesitou. - Não muito, pelo menos — e terminou pior do que começou.

- Vade-retro!

- Ai, de novo, não.

O menino olhou para o livro aberto.

- Retomando minhas ordens anteriores — começou, com firmeza. — A mulher mais bonita que já existiu, domínio sobre todos os reinos do mundo e viver para sempre. Anda logo com isso. - Rincewind ficou imóvel. - Bom, vamos lá - exigiu Eric.

- Você tem que desaparecer numa nuvem de fumaça.

- Olha, se você acha que eu posso simplesmente estalar os dedos...

Rincewind estalou os dedos. Apareceu uma nuvem de fumaça.

Rincewind ficou olhando, em estado de choque, para os próprios dedos, como alguém que olha uma arma que estava pendurada na parede há décadas e dispara de repente, perfurando o gato.

- Eles quase nunca fizeram isso antes - disse.

Olhou para baixo.

- Aarghl — exclamou, e fechou os olhos.

O mundo era melhor na escuridão por trás das suas pálpebras. Se batesse os pés, poderia se convencer de que era possível sentir o chão, saberia que realmente estava num quarto e que os sinais urgentes de todos os outros sentidos, que lhe diziam que estava suspenso no ar milhares de quilômetros acima do Disco, eram apenas um sonho ruim do qual logo despertaria. Refutou esse pensamento rapidamente. Se realmente estava dormindo, preferia continuar daquele jeito. Nos sonhos, é possível voar. Se acordasse, a queda seria grande.

"Talvez eu tenha morrido e realmente seja um demônio", pensou.

Era uma idéia interessante. Abriu os olhos mais uma vez.

- Uau!- disse Eric, com os olhos brilhando. - Posso ficar com tudo isso?

O menino mantinha a mesma posição em que estava antes, no quarto. Assim como a Bagagem. Assim como, para o desgosto de Rincewind, o papagaio. Estava empoleirado no ar, com o olhar especulativo voltado para o panorama cósmico abaixo.

Talvez o Disco tenha sido projetado para ser visto do espaço. Com certeza não havia sido, e Rincewind estava certo disso, projetado para que vivessem nele. Mas tinha que admitir que era admirável.

O Sol estava prestes a nascer no horizonte distante e formava uma linha de fogo que brilhava sobre metade da circunferência. Um amanhecer longo e lento apenas dava início à sua passagem pelo panorama pesado e sombrio.

Abaixo, mal iluminada no vácuo árido do espaço, a Grande ATuin, a tartaruga estelar, curvava-se sob o peso da Criação. Sobre a carapaça dela — ou dele, essa questão nunca havia sido realmente resolvida -, os quatro elefantes gigantes se esforçavam para suportar o Disco.

Talvez houvesse formas mais eficientes de construir um mundo. Poderiam ter começado com uma bola de ferro fundido e depois coberto com várias camadas de rocha, como um quebra-queixo de tempos antigos. Seria um planeta muito eficiente, mas com aparência não muito boa. Além disso, as coisas cairiam pela parte de baixo.

- Muito bom - disse o papagaio. - Louro quer um continente.

- E tão grande - suspirou Eric.

- É - concordou Rincewind, sem muita animação. – Sentiu que esperavam algo mais dele. - Não interrompam - acrescentou.

Rincewind tinha uma dúvida persistente em relação a tudo aquilo. Se fosse, por força da argumentação, um demônio — e, com todas as coisas que haviam acontecido com ele, se sentia preparado para aceitar que talvez estivesse morto e não tivesse notado isso durante toda aquela confusão" (NOTA: Alguém dissera a Rincewind que morrer era apenas como ir para outro quarto. A diferença é que, quando você grita "Cadê as minhas meias limpas?", ninguém responde), - assim ele não conseguia entender como o mundo poderia ser dele para que pudesse dá-lo a alguém. Tinha certeza de que o mundo tinha outros donos que se sentiam da mesma maneira.

E também tinha certeza de que um demônio tinha que receber algo por escrito.

- Acho que você tem que assinar algum papel para poder ganhar essas coisas - disse. - Com sangue.

- De quem? - perguntou Eric.

- Seu, acho - respondeu Rincewind. - Numa emergência, sangue de passarinho também serve. - E lançou um olhar fixo para o papagaio, que rosnou para ele.

- Não posso testar antes?

- O quê?

- Bom, e se não funcionar? Eu não vou assinar até ver se a coisa vai funcionar bem.

Rincewind ficou olhando para o menino. Depois olhou para baixo, para o amplo panorama dos reinos do mundo. "Será que eu era assim na idade dele?", pensou. "Como foi que eu sobrevivi?”.

- O mundo é isso aí - disse, pacientemente. - É óbvio que vai funcionar muito bem. Quer dizer, veja isso. Furacões, deslocamento de continentes, o ciclo da água... está tudo ali. Tudo funcionando feito um maldito relógio. Um mundo assim vai durar a vida inteira pra você. Se usar com cuidado.

Eric observou o mundo com um olhar crítico. Tinha a expressão de alguém que sabia que todos os melhores presentes da vida pareciam exigir o equivalente psíquico a duas pilhas grandes e que as lojas só abririam depois das férias.

- Tem que haver homenagens — disse, num tom inexpressivo.

- O quê?

- Os reis do mundo - disse Eric. - Eles têm que me prestar homenagem.

- Você realmente planejou tudo isso, não? - ironizou Rincewind. — Só uma homenagem? Você não quer a Lua, já que estamos aqui em cima? Oferta especial da semana, um satélite grátis a cada mundo dominado.

- Ela tem algum mineral útil?

- O quê?

Eric deu um suspiro de paciência resignada.

- Minerais. Minério, sabe?

Rincewind corou.

- Eu acho que um garoto da sua idade não deveria ficar pensando em...

- Estou falando de metais e coisas do tipo. Não adianta nada se for só um monte de rochas.

Rincewind abaixou a cabeça. A minúscula Lua do Disco estava começando a aparecer no horizonte distante e irradiava uma luz pálida sobre o contorno recortado de terra e mar.

- Ah, não sei. O visual é muito interessante - ele disse, sem ser perguntado. - Olha, agora já escureceu. Talvez o mundo possa lhe prestar uma homenagem amanhã de manhã...

- Eu quero uma homenagem agora.

- É, eu imaginei.

Rincewind examinou bem os próprios dedos. Nunca tinha sido especialmente bom em estalá-los.

 

Tentou mais uma vez.

Quando abriu os olhos de novo, tinha lama até os tornozelos. Entre os talentos de Rincewind, destacava-se sua capacidade de fugir, que ao longo dos anos elevara ao status de ciência genuinamente pura. Não importava se a fuga era "de" ou "para", desde que estivesse fugindo. O que contava era a fuga. Corro, logo existo. Ou, mais corretamente: corro, logo, com sorte, continuarei existindo.

Mas ele também era bom em línguas e geografia prática. Sabia gritar "socorro!" em 14 idiomas e pedir misericórdia em outros 12. Passara por muitos países do Disco, alguns em alta velocidade, e durante as longas, fascinantes e tediosas horas de quando trabalhara na Biblioteca passava o tempo pesquisando sobre os lugares exóticos e distantes que nunca visitara. Lembrava-se de que, na época, suspirava aliviado por nunca tê-los conhecido. E agora lá estava ele.

Cercado pela selva. Não uma selva bonita, interessante, aberta, daquelas em que heróis vestidos com pele de leopardo podem passear pendurados num cipó. Era uma selva de verdade, que se erguia com porções sólidas de verde, espinhos e farpas. Uma selva em que todos os representantes do reino vegetal realmente arregaçaram as cascas para encarar o trabalho estressante de crescer mais do que seus adversários. O chão tinha um pouco de terra e muito mais de plantas mortas a caminho da decomposição. A água pingava de folha em folha, os insetos se lamentavam no ar úmido e carregado de germes, e havia o terrível silêncio aflito produzido pelos motores da fotossíntese na monotonia de seu funcionamento. Tentar passar por ali pendurado num cipó seria o mesmo que tentar a sorte num moedor de carne.

- Como é que você faz isso? - perguntou Eric.

- Deve ser um talento que eu tenho — respondeu Rincewind.

Eric sujeitou as maravilhas da Natureza a um olhar curioso e arrogante.

- Isso não parece um reino — reclamou. — Você disse que poderíamos ir a um reino. Chama isto de reino?

 - Isto aqui provavelmente são as florestas tropicais de Klatch — explicou Rincewind. — Estão abarrotadas de reinos perdidos.

- Você quer dizer de raças misteriosas de princesas amazônicas que submetem todos os prisioneiros a ritos de procriação estranhos e exaustivos? - perguntou Eric, com os óculos começando a embaçar.

- Ha, ha - disse Rincewind, num tom artificial. - Que imaginação as crianças têm.

- Aquela coisa, aquela coisa, aquela coisa! - gritou o papagaio.

- Eu li sobre elas — começou Eric, espiando entre as folhagens. - E claro que esses reinos também são meus. - Ele se perdeu em alguma visão interna. - Nossa! - disse, ávido.

- Eu me concentraria na homenagem se fosse você — sugeriu Rincewind, seguindo pelo que poderia ser uma trilha.

As flores de cores brilhantes de uma árvore próxima se viraram para ver aonde ele ia.

Nas florestas do Klatch central há realmente reinos perdidos de misteriosas princesas amazônicas que capturam exploradores para tarefas especificamente masculinas. Essas tarefas realmente são rigorosas e exaustivas, e as vítimas sem sorte não duram muito. (NOTA: Isso porque instalar tomadas, montar prateleiras, verificar barulhos estranhos no sótão e cortar a grama são coisas que podem desgastar até mesmo a condição física mais vigorosa.)

Também existem os planaltos escondidos, onde os monstros rasteiros de uma época remota brincam animados, além de cemitérios de elefantes, minas de diamante perdidas e estranhas ruínas decoradas com hieróglifos cuja mera visão é capaz de paralisar o mais valente coração. Em qualquer mapa razoável da região quase não há lugar para as árvores.

Os poucos exploradores que conseguiram retornar deixaram diversas dicas para aqueles que seguissem seus passos, tais como: 1) ficar longe de qualquer bicho rasteiro que tenha olhos redondos e brilhantes e língua bifurcada na ponta; 2) não pegar nenhum bicho rasteiro com listras pretas e laranjas que pareça estar deitado no meio do caminho se contorcendo, porque geralmente há um tigre na outra ponta; e 3) não vá.

"Se eu sou um demônio", Rincewind pensou, confuso, "por que é que estão todos me cobrando e tentando me passar a perna? Quer dizer, eu só poderia ser atingido por uma adaga de madeira no coração. Ou será que tem que ser de alho?"

No final a selva se abria numa área muito ampla que ia até uma distante cadeia azul de vulcões. O terreno se estendia diante deles até uma colcha de retalhos de lagos e campos pantanosos, marcada aqui e ali por grandes pirâmides escalonadas, todas coroadas com uma camada fina de fumaça subindo em espirais no ar da manhã. A trilha da selva se abriu para uma estrada estreita, porém pavimentada.

- Que lugar é este, demônio?

- Parece um dos reinos de Tezuman — respondeu Rincewind. - Eles são governados pela Grande Muzuma, acho.

- Ela é uma princesa amazônica, não é?

- Por mais estranho que pareça, não. Eric, você ficaria pasmado com a quantidade de reinos que não são governados por princesas amazônicas.

- Parece muito primitivo mesmo. Meio Idade da Pedra.

- Os sacerdotes de Tezuman possuem um calendário sofisticado e uma horologia avançada - recitou Rincewind.

- Ah! - disse Eric. - Bom.

- Não — respondeu Rincewind, paciente. — Significa medição de tempo.

- Oh.

- Você iria gostar deles. São excelentes matemáticos, parece.

- Ah — disse Eric, demonstrando um desânimo solene. — Não acho que eles tenham muito o que contar numa civilização atrasada como esta.

Rincewind observou as carruagens que vinham velozes na direção deles.

- Acho que eles contam suas vítimas.

O Império Tezuman, nos vales da selva da Klatch central, é conhecido por suas hortas orgânicas, seu belíssimo artesanato em obsidiana, plumas e jade e seus sacrifícios humanos em massa em honra de Quezovercoatl, o Boá de Plumas, deus dos sacrifícios humanos em massa. Como eles diziam, com Quezovercoatl você sempre sabia qual era o seu lugar. Geralmente era junto com muita gente, no topo de uma grande pirâmide escalonada, com alguém usando um elegante enfeite de cabeça de plumas e afiando uma delicada faca de obsidiana para usar em você.

Os tezumanos são famosos no continente por ser o povo mais pessimista, irritável, sombrio e suicida que você poderia encontrar, por razões que serão esclarecidas em breve. Isso também se aplicava a como eles mediam o tempo. Os tezumanos perceberam havia muito tempo que tudo estava piorando de forma invariável e, por terem um pensamento terrivelmente literal, desenvolveram um sistema complexo para registrar o quanto as coisas pioravam a cada dia que passava.

Ao contrário da crença geral, os tezumanos inventaram, sim, a roda. Apenas tinham idéias radicalmente diferentes quanto a seu uso.

Aquela era a primeira carruagem puxada por lhamas que Rincewind tinha visto. Não era isso o que era estranho nela. O estranho era que estava sendo conduzida por duas pessoas que seguravam as extremidades de um machado e corriam atrás dos animais com as sandálias batendo no pavimento de pedras.

- Você acha que isso tem alguma coisa a ver com a homenagem? - perguntou Eric.

Tudo o que a primeira carruagem parecia conter, fora o cocheiro, era um homem atarracado, basicamente em formato de cubo, usando um traje de pele de puma e um enfeite de cabeça com plumas.

Os corredores se esforçaram para parar, e Rincewind viu que cada um dos homens usava algo que poderia ser descrito como uma espada primitiva, feita com cacos de obsidiana colados num bastão de madeira. Mas não pareciam menos mortais do que as espadas sofisticadas e extremamente civilizadas. Na verdade, pareciam piores.

- E então? - cobrou Eric.

- E então o quê? — perguntou Rincewind.

- Diga a ele para prestar a minha homenagem.

O homem gordo desceu da carruagem com movimentos pesados, caminhou até Eric e, para a extrema surpresa de Rincewind, se curvou.

O mago sentiu alguma coisa subindo pelas costas até o ombro, e uma voz que parecia uma folha de metal sendo rasgada ao meio disse:

- Assim está melhor. Muito coiso, confortável. Se você tentar me derrubar daqui, demônio, pode coisar adeus à sua orelha. Deu zebra, hein? Parece que esperavam por ele.

- Por que você fica falando coiso o tempo todo? – perguntou Rincewind.

- Meu coiso é limitado. O negócio. Como é que chama? Sabe? Tem palavras - disse o papagaio.

- Dicionário? - arriscou Rincewind. Os passageiros da outra carruagem haviam descido e também se curvavam diante de Eric, que sorria feito um idiota.

O papagaio pensou sobre a resposta.

- É, provavelmente. Vou ter que dar a asa a torcer - continuou. - Achei que você fosse meio coiso no começo, mas parece que está dando conta do coiso.

- Demônio? — chamou Eric, com ar afetado.

- Sim?

- O que eles estão dizendo? Você não fala a língua deles?

- É... não - disse Rincewind. - Mas sei ler - gritou, depois que Eric se afastou. - Se você fizer algum gesto para que eles escrevam o que estão dizendo...

Era quase meio-dia. Na selva atrás de Rincewind, havia criaturas gritando e fazendo algazarra. Mosquitos do tamanho de beija-flores zuniam perto da sua cabeça.

- É claro — disse, pela décima vez. — Eles nunca chegaram perto de inventar o papel.

 

O pedreiro recuou, entregou o cinzel de obsidiana quase sem ponta para seu ajudante e lançou um olhar esperançoso para Rincewind.

Rincewind recuou e examinou a pedra com uma expressão crítica.

- Muito bom. Quer dizer, a semelhança é muito boa. Vocês fizeram o penteado dele e tudo o mais. É claro que não é tão... é... quadrado assim normalmente, mas é... muito bom. A carruagem está ali e aqui, as pirâmides escalonadas. É. Bom, parece que eles querem que você vá à cidade com eles - disse a Eric.

- Diga a eles que sim - respondeu Eric, decidido.

Rincewind se virou para o chefe.

- Sim - disse.

-1 [Figura-encurvada-com-enfeite-de-cabeça-triplo-sobre-três-pontos] ?

Rincewind suspirou. Sem dizer uma palavra, o pedreiro pôs um novo cinzel de pedra entre os incansáveis dedos e posicionou mais uma placa de granito.

Um dos problemas de ser um tezumano, excluindo o fato de ter um deus como Quezovercoatl, é que, se você precisar de um litro a mais de leite amanhã, deveria ter começado a escrever o bilhete para o leiteiro no mês passado. Os tezumanos são o único povo que usa o próprio bilhete suicida para se matar.

Já era fim de tarde quando a carruagem entrou trotando na cidade de lajes perto de uma das pirâmides maiores, entre fileiras de tezumanos eufóricos.

- Assim está melhor — disse Eric, respondendo com cortesia às saudações. - Eles estão muito felizes em nos ver.

- E — concordou Rincewind, desanimado. — Por que será?

- Bom, porque eu sou o novo chefe, é claro.

- Humm. - Rincewind olhou de lado para o papagaio, que ficara estranhamente em silêncio por algum tempo e agora se encolhia contra a sua orelha, parecendo uma senhora de idade numa boate de strip tease. Estava pensando seriamente nos enfeites de cabeça feitos de plumas.

 - Desgraçados do coiso - grasniu. - Qualquer coiso que colocar a mão em mim vai ficar com um dedo a menos, estou avisando.

- Alguma coisa não está certa aqui - observou Rincewind.

- E o que é? - perguntou o papagaio.

- Tudo.

- Estou avisando, uma pena fora do lugar...

Rincewind não estava acostumado com pessoas ficando alegres ao vê-lo. Não era natural. E nem um bom sinal. Aquelas pessoas não só estavam aplaudindo como também jogavam flores e chapéus. Os chapéus eram feitos de pedra, mas o que contava era a intenção.

Achou os chapéus muito estranhos. Não tinham copa. Na verdade, eram apenas discos com buracos no meio.

A procissão marchou pelas amplas avenidas da cidade até um agrupamento de construções ao pé da pirâmide, onde outro grupo de dignitários cívicos esperava por eles.

Usavam muitas jóias. Eram todas basicamente iguais. Muitos usos podem ser atribuídos a um disco de pedra com um furo no meio, e os tezumanos exploraram todos eles, exceto um.

O mais importante, no entanto, eram as caixas e mais caixas de tesouro empilhadas na frente deles. Estavam abarrotadas de jóias.

Eric arregalou os olhos.

- A homenagem! - gritou.

Rincewind desistiu. Realmente estava funcionando. Ele não sabia como, não sabia por quê, mas finalmente tudo estava dando certo. O sol poente reluziu em uma dúzia de caixas cheias de riquezas. É claro que pertenciam a Eric, mas talvez houvesse o suficiente para ele também...

- Naturalmente - disse, incerto. - O que mais você esperava?

Houve banquetes e intermináveis discursos que Rincewind não conseguia entender, marcados por vivas, expressões de aprovação e reverências na direção de Eric. E longos recitais de música dos tezumanos, que soa como alguém desobstruindo uma narina com grande dificuldade.

 

Rincewind deixou Eric orgulhosamente sentado num trono à luz do fogo e caminhou desconsolado até a pirâmide.

- Eu estava curtindo o coiso - disse o papagaio, num tom de reprovação.

- Não consigo sossegar - explicou Rincewind. - Desculpe, mas esse tipo de coisa nunca aconteceu comigo antes. Todas essas jóias e tal. Tudo saindo conforme o esperado. Isso não está certo.

Olhou para a face gigantesca da pirâmide altíssima, vermelha e tremeluzente a luz da fogueira. Cada bloco imenso era esculpido com um baixo-relevo de tezumanos fazendo coisas terrivelmente inventivas com seus inimigos. Isso parecia indicar que os tezumanos, por mais que possuíssem excelentes qualidades, não tinham o costume de receber bem e encher de jóias pessoas totalmente estranhas. O efeito do grande amontoado de esculturas era muito artístico - apenas os detalhes se mostravam horríveis.

Enquanto caminhava ao longo da parede, Rincewind encontrou uma porta enorme que trazia uma representação artística de um grupo de prisioneiros que aparentemente passava por um check-up médico completo. (NOTA: De longe, realmente parecia. De perto, não.)

A porta dava para um túnel curto, iluminado por tochas. Rincewind avançou alguns passos, dizendo a si mesmo que a qualquer momento poderia correr de volta. Saiu num espaço amplo, que ocupava a maior parte do interior da pirâmide.

Havia mais tochas nas paredes, deixando tudo muito bem iluminado.

A impressão causada não era muito agradável, já que as tochas iluminavam principalmente uma estátua gigante de Quezovercoatl, o Boá de Plumas.

Se você tivesse que ficar numa sala com aquela estátua, iria preferir que estivesse tudo escuro.

Por outro lado, talvez não. Talvez fosse melhor deixar a coisa num quarto escuro e ficar a milhares de quilômetros de distância, com insônia, tentando esquecer a aparência dela.

“É apenas uma estátua", Rincewind disse a si mesmo. "Não é de verdade. Eles usaram a imaginação, só isso."

- Que coiso é esse? — perguntou o papagaio.

- É o deus deles.

- Disfarçado?

- Não, sério. E Quezovercoatl. Meio homem, meio galinha, meio onça, neio serpente, meio escorpião e meio louco.

O bico do papagaio se mexia enquanto fazia os cálculos.

- Isso dá um coiso total de três maníacos homicidas.

- E mais ou menos isso - concordou a estátua.

- Por outro lado - disse Rincewind no mesmo instante -, eu realmente acho que é extremamente importante que as pessoas tenham o direito de cultuar seus deuses da maneira que julgarem adequada, e agora acho que já vamos indo...

- Por favor, não me deixem aqui - pediu a estátua. – Por favor, me levem com vocês.

- Pode ser complicado, pode ser complicado – ponderou Rincewind apressadamente, recuando. - Não sou eu, entende, é que de onde venho todo mundo tem preconceito contra pessoas com nove metros de altura, garras, presas e colares de crânios. Talvez seja difícil você se adaptar.

O papagaio beliscou a orelha dele.

- Está falando de trás da estátua, seu coiso burro - grasniu.

Descobriram que a voz vinha de um buraco no chão. Um rosto pálido observou Rincewind do fundo de um poço, com dificuldade. Era um rosto bondoso e de idade avançada, com uma leve expressão de preocupação.

- Olá? - disse Rincewind.

- Vocês não têm idéia do que significa ouvir uma voz amigável novamente - respondeu o rosto, abrindo um amplo sorriso.

- Se você puder, por favor, me ajude a subir...

- Perdão? - interrompeu o mago. - Você é um prisioneiro, não é?

- Pobre de mim. É isso mesmo.

- Não sei se devo andar por aí salvando prisioneiros desse jeito. Quer dizer, você pode ter feito qualquer coisa.

- Sou totalmente inocente de todos os crimes, posso lhe garantir.

- Ah, sim, é o que você diz - disse Rincewind, num tom sério. - Mas se os tezumanos julgaram...

- Coiso, coiso, coiso - o papagaio deu gritos estridentes no seu ouvido, pulando para cima e para baixo no seu ombro. – Você não tem a mínima noção? Por onde tem andado? Ele é um prisioneiro! Um prisioneiro num templo! Você tem que resgatar prisioneiros em templos! É pra isso que eles existem, caramba!

- Não, não é - gritou Rincewind. - Isso é tudo o que você sabe! Ele provavelmente está aqui para ser sacrificado! Não é isso?

- Ele olhou para o prisioneiro para confirmar.

O rosto fez um movimento afirmativo.

- Realmente você está correto. Esfolado vivo, na verdade.

- Olha aí! - exclamou Rincewind para o papagaio. – Está vendo? Você acha que sabe tudo! Ele está aqui para ser esfolado vivo.

- Cada centímetro da pele removido, acompanhado por uma dor magnífica - acrescentou o prisioneiro, para ajudar.

Rincewind parou. Ele achava que sabia o significado da palavra "magnífica", e ele não parecia de forma nenhuma combinar com o da palavra "dor".

- O quê? Cada pedacinho? - perguntou.

- Parece que é o caso.

- Nossa! O que foi que você fez?

O prisioneiro suspirou.

- Você nunca acreditaria em mim...

O rei demônio esperou o espelho escurecer e tamborilou os dedos na escrivaninha por um momento. Depois pegou um megafone e soprou nele.

Por fim, uma voz distante disse:

- Sim, chefe?

- Sim, senhor! - gritou o rei.

A voz distante resmungou algo.

- Sim, SENHOR? - acrescentou.

- Nós temos algum Quezovercoatl trabalhando aqui?

- Vou ver, chefe. - A voz se ausentou e voltou. - Sim, chefe.

- E um duque, conde ou barão?

- Nenhum deles, chefe.

- O que ele é então?

Houve um longo silêncio do outro lado.

- E então? — perguntou o rei.

- Ele não é muita coisa, chefe.

O rei ficou olhando para o megafone por algum tempo. "Você tenta", pensou. "Você faz planos apropriados, tenta se organizar, tenta ajudar as pessoas, e é isso o que recebe."

- Traga-o para falar comigo.

Do lado de fora, a música seguiu num crescendo e parou. As fogueiras estalavam. Das selvas distantes, milhares de olhos reluzentes observavam os procedimentos.

O sumo sacerdote se levantou e fez um discurso. Eric sorria feito uma abóbora de dia das bruxas. Uma longa fila de tezumanos trazia cestas de jóias, espalhadas diante dele.

Então o sumo sacerdote fez um segundo discurso, que parecia terminar com uma pergunta.

- Ótimo - respondeu Eric. - Maravilha. Continuem assim.

- Coçou a orelha e arriscou: - Vocês todos podem ter meio dia de feriado.

O sumo sacerdote repetiu a pergunta mais uma vez, num tom de voz levemente impaciente.

- Eu sou o homenageado, sim - respondeu Eric, caso ainda não estivesse claro para eles. - Vocês estão certíssimos.

O sumo sacerdote falou mais uma vez. E desta vez a impaciência não era leve.

- Vamos apenas repassar a história mais uma vez, sim? - disse o rei demônio, recostando-se no trono. - Um dia, você encontrou os tezumanos por acaso e concluiu, acho que lembro bem as palavras que usou, que eram "um bando de fracassados da Idade da Pedra que moram num brejo e não representam ameaça a ninguém", estou certo? Depois disso, você entrou na mente de um de seus sumos sacerdotes, acredito que na época eles cultuavam um graveto, fez com que enlouquecesse e incentivou as tribos a se unir, aterrorizar seus vizinhos e criar uma nova nação no continente, empenhada na proposta de que todos os homens fossem levados ao topo de pirâmides cerimoniais e cortados em pedaços com facas de pedra. — O rei puxou as anotações para perto de si.

- Ah, sim, alguns deles também teriam que ser esfolados vivos -acrescentou.

Quezovercoatl arrastou os pés.

- Depois disso - continuou o rei -, eles entraram imediatamente numa guerra prolongada com quase todas as outras tribos, trazendo morte e destruição para milhares de pessoas razoavelmente inocentes etc. etc. Olha, esse tipo de coisa tem que acabar.

Quezovercoatl pendeu um pouco para trás.

- Era apenas um hobby, entende? - explicou o diabrete. -Achei que estava fazendo a coisa certa, por assim dizer, entende? Morte, destruição e coisa e tal.

- Você fez tudo isso, não foi? - perguntou o rei. – Milhares de pessoas mais ou menos inocentes morrendo? Direto das suas mãos — ele estalou os dedos —, assim. Direto para a terra da caça feliz ou seja lá o que for. Esse é o problema de vocês. Não pensam no que realmente importa. Veja os tezumanos, por exemplo. Melancólicos, sem imaginação, obsessivos... já poderiam ter inventado todo um sistema de burocracia e taxação que teria transformado as mentes do continente em escória. Em vez disso, tornaram-se apenas um bando de assassinos de segunda categoria com machados. Que desperdício.

Quezovercoatl se remexeu, desconfortável.

O rei balançou o trono para a frente e para trás.

- Agora quero que você volte lá e peça desculpas a eles.

- Como?

- Diga a eles que mudou de idéia. Diga que o que você realmente queria era que eles se empenhassem dia e noite para o progresso da sociedade. Será lindo.

- O quê? - perguntou Quezovercoatl, parecendo extremamente astuto. - Você quer que eu me manifeste?

- Eles já viram você, não foi? Eu vi a estátua, é bastante realista.

- Bom, é verdade. Já apareci em sonhos e coisas assim - concordou o demônio, hesitante.

- Está certo, então. Faça isso.

Quezovercoatl estava claramente insatisfeito com alguma coisa.

- E... — começou. — Você quer que eu me materialize mesmo? Quer dizer, aparecer mesmo?

- Sim!

- Oh.

O prisioneiro bateu a poeira e estendeu a mão enrugada para Rincewind.

- Obrigado mesmo. Ponce da Quirm.

- Como?

- É o meu nome.

- Ah.

- É um nome antigo e imponente - observou da Quirm, buscando no olhar de Rincewind algum traço de ironia.

- Ótimo - disse Rincewind, num tom vago.

- Nós estávamos procurando a Fonte da Juventude - continuou da Quirm.

Rincewind o olhou de cima a baixo.

- Acharam alguma coisa? — perguntou, com educação.

- Nada significativo.

Rincewind procurou dentro do poço.

- Você disse nós. Onde estão os outros?

- Se meteram com religião.

O mago olhou para a estátua de Quezovercoatl. Não precisava de muita imaginação para adivinhar o que aquilo significava.

- Eu acho — disse, com cuidado — que devemos ir embora.

- É bem verdade - concordou o velho. - E rápido. Antes que o governante do mundo apareça.

 Rincewind ficou gelado. "Começou", ele pensou. "Sabia que tudo ia acabar mal, e está começando agora. Eu devo ter um instinto pra essas coisas."

- Como é que você sabe sobre isso? - perguntou.

- Ah, eles têm uma profecia. Bom, não é uma profecia, na verdade, é toda a história do mundo, do começo ao fim. Está escrito por toda a parte nesta pirâmide — respondeu da Quirm, animado. - Pode acreditar, eu não queria estar na pele do governante quando ele chegar. Eles têm planos.

 

Eric se levantou.

- Agora vocês me ouçam. Não vou tolerar esse tipo de coisa. Eu sou o seu governante, sabiam...

Rincewind olhava fixamente para os blocos de pedra mais próximos à estátua. Os tezumanos precisaram de duas histórias, 20 anos e 10 mil toneladas de granito para explicar o que pretendiam fazer com o governante do mundo, mas o resultado era... bem... gráfico. Não lhe restava nenhuma dúvida de que estavam aborrecidos. Poderia até chegar a deduzir que se sentiam bastante irritados.

- Mas, para início de conversa, por que dão todas essas jóias para ele? - perguntou, apontando.

- Bom, ele é o governante - respondeu da Quirm. - Tem o direito de ser respeitado, suponho.

Rincewind concordou. Havia uma espécie de justiça naquilo. Se você fosse de uma tribo que vivia num pântano no meio de uma floresta úmida, sem nenhum metal e tendo que se contentar com um deus como Quezovercoatl, quando encontrasse alguém que se dissesse responsável por toda a situação, você provavelmente iria, sim, querer gastar algum tempo explicando a ele o quão decepcionado você estava. Os tezumanos nunca haviam visto razão para ser sutil no trato com as divindades.

A semelhança com Eric era muito grande.

Seu olhar acompanhou a história até a parede seguinte.

O bloco mostrava uma semelhança enorme com Rincewind. E tinha um papagaio no ombro.

- Espere aí. Esse sou eu!

- Você deveria ver o que fazem com você no próximo bloco - disse o papagaio, com ar de convencimento. - Vai revirar o seu coiso.

Rincewind olhou para o bloco. Seu coiso ficou embrulhado.

- Vamos sair bem devagar — disse, com firmeza. — Quer  dizer, não vamos parar para agradecê-los pela refeição. Dá pra mandar uma carta depois. Sabe como é, para não parecer falta de educação.

- Só um minuto - pediu da Quirm, enquanto Rincewind o puxava pelo braço. - Não tive a chance de ler todos os blocos ainda. Quero saber como o mundo vai acabar...

- Como vai acabar para os outros, eu não sei — disse Rincewind, com ar grave, arrastando-o pelo túnel. - Eu sei como vai acabar para mim.

Saiu à luz do amanhecer, o que foi bom. O erro foi sair no meio de um semicírculo de tezumanos. Eles tinham lanças. Com pontas de obsidiana lascadas de forma primorosa, que, assim como as espadas, passavam longe de ser tão sofisticadas como armas inferiores, comuns e grosseiras de metal. Ajudava alguma coisa saber que você seria espetado por peças de origem étnica genuína, e não itens repugnantes, martelados numa fornalha por pessoas desprovidas do contato com os ciclos da natureza?

Provavelmente não, decidiu Rincewind.

- Eu sempre digo - começou da Quirm - que tudo tem um lado bom.

Rincewind, amarrado à placa de pedra ao lado, virou a cabeça com dificuldade.

- E qual é o lado bom deste momento? - perguntou.

Da Quirm espremeu os olhos para enxergar o que havia do outro lado dos pântanos e do topo da floresta.

- Bom, a vista daqui de cima é de primeira classe, para início de conversa.

- Ah, que bom - disse Rincewind. - Sabe que eu nunca teria enxergado a coisa dessa maneira? Você está absolutamente certo.

É o tipo de visão que a gente lembra pro resto da vida, imagino. E não será preciso nenhum esforço de memória.

- Não precisa ser sarcástico. Eu estava apenas fazendo um comentário.

- Eu quero a minha mãe - interrompeu Eric, na placa do meio.

- Ânimo, rapaz! - aconselhou da Quirm. - Pelo menos você está sendo sacrificado por algo que vale a pena. Eu apenas sugeri que usassem as rodas de pé, para que girassem. Infelizmente eles não são receptivos a novas idéias por aqui. Ainda assim, nil desperandum. Onde há vida, há esperança.

Rincewind resmungou. Se havia uma coisa que ele não suportava era gente que não sentia medo diante da morte. Parecia ir contra algo absolutamente fundamental para ele.

- Na verdade - observou da Quirm - eu acho... - ele girou de um lado ao outro, testando os movimentos, puxando os cipós que o prendiam. - É, eu acho que quando eles amarraram estas  cordas... sim, com certeza, eles...

- O quê? O quê? — perguntou Rincewind.

- É, com certeza. Estou absolutamente certo disso. Eles fizeram um trabalho de profissional. Nem um centímetro de folga.

- Obrigado - disse Rincewind.

O topo plano da pirâmide incompleta era de fato muito grande, com bastante espaço para estátuas, sacerdotes, placas de pedra, calhas, linhas de produção de facas lascadas e todas as outras coisas de que os tezumanos precisavam para transmitir a religião em larga escala. Diante de Rincewind, diversos sacerdotes agitados entoavam uma longa lista de reclamações a respeito de pântanos, mosquitos, falta de minérios, vulcões, o clima, o fato de a obsidiana nunca manter o corte, os problemas de ter um deus como Quezovercoatl, o fato de as rodas nunca funcionarem direito por mais que fossem colocadas horizontalmente e puxadas e assim por diante.

As orações da maioria das religiões geralmente louvam e fazem agradecimentos aos deuses em questão - ou por sua piedade, ou na esperança de que ele ou ela entenda a indireta e comece a agir com responsabilidade. Os tezumanos, após olharem com bastante atenção para o seu próprio mundo e decidirem de repente que as coisas nunca chegariam a ficar pior do que estavam, aperfeiçoaram a arte da lamentação em canto gregoriano.

- Não vai demorar muito - disse o papagaio, do seu poleiro no alto de uma estátua dos deuses menores dos tezumanos.

Ele havia chegado ali por meio de uma complicada seqüência de eventos, que incluiu muitos guinchos estridentes, uma nuvem de penas e três sacerdotes tezumanos com o polegar seriamente inchado.

- O sumo sacerdote está realizando um coiso em honra a Quezovercoatl - prosseguiu, como se estivesse batendo papo.

- Você atraiu uma multidão e tanto.

-           Imagino que você não poderia dar um pulinho aqui para roer essas cordas, poderia? - perguntou Rincewind.

- Sem chance.

- Foi o que eu pensei.

- O sol logo vai nascer - continuou o papagaio. Rincewind sentiu uma alegria desnecessária na sua voz.

- Eu vou reclamar disso, demônio - murmurou Eric. – Espere até a minha mãe descobrir. Meus pais são influentes, sabia?

- Ah, que bom - disse Rincewind, sem forças. - Por que você não diz para o sumo sacerdote que, se ele arrancar o seu coração fora, a sua mãe irá à escola amanhã mesmo para reclamar?

Os sacerdotes tezumanos se curvaram para o Sol, e todos os olhares da multidão logo abaixo se voltaram para a floresta.

Onde algo acontecia. Ouviu-se o som de moitas se partindo. Aves tropicais saíram das árvores num ímpeto, guinchando.

Rincewind, é claro, não podia ver isso.

- Você nunca deveria ter desejado ser o dono do mundo – ele disse. - Quer dizer, o que você esperava? Não se pode imaginar que as pessoas fiquem felizes ao ver você. Ninguém fica feliz quando o proprietário do imóvel aparece.

- Mas eles vão me matar!

- E apenas o jeito deles de dizer, metaforicamente, que ficaram de saco cheio de esperar que você refaça a pintura da casa e verifique a tubulação de esgoto.

A selva inteira estava num grande alvoroço. Animais pulavam para fora das moitas como se fugissem de um incêndio, Alguns baques surdos e fortes indicavam que as árvores estavam caindo.

Por fim, uma onça desvairada passou arrebentando as moitas e atravessou o pântano correndo. A Bagagem seguia alguns metros atrás dela.

Estava coberta de trepadeiras, folhas e penas de várias aves raras da floresta, algumas delas ainda mais raras agora. A onça poderia ter desviado dela, se tivesse feito um movimento em zigue ou zague para qualquer lado, mas um simples e imbecil pavor não deixou. Ela cometeu o erro de virar a cabeça para ver o que vinha atrás.

Esse foi o último erro que ela cometeu.

- Sabe aquela sua caixa? — perguntou o papagaio.

- O que tem ela? - disse Rincewind.

- Está vindo nesta direção.

Os sacerdotes olharam para o vulto que vinha correndo lá embaixo. A Bagagem tinha um modo bastante direto de lidar com as coisas que estivessem entre ela e seu destino final: as ignorava.

Foi naquele momento que, contra todos os seus instintos, com uma tremedeira terrível e, o pior de tudo, sem sequer imaginar o que estava acontecendo, o próprio Quezovercoatl resolveu se materializar no topo da pirâmide.

Alguns dos sacerdotes notaram sua presença. As facas caíram de suas mãos.

- E... - soltou o demônio.

Outros sacerdotes se viraram para ele.

- Certo. Bom, quero que todos vocês prestem atenção — começou Quezovercoatl, com uma voz esganiçada, colocando as mãos miúdas em forma de concha ao redor de sua boca principal, num esforço para ser ouvido.

Isso era muito constrangedor. Um dia ele gostara de ser o deus dos tezumanos, impressionado com sua devoção obstinada e muito agradecido pela incrível estátua dentro da pirâmide, e era muito doloroso ter que revelar que, num detalhe importante, ela estava incorreta.

Ele tinha 15 centímetros de altura.

 

- Agora, então, isso é muito importante...

Infelizmente ninguém nunca descobriu por quê. Naquele momento, a Bagagem se lançou sobre o topo da pirâmide, com as pernas girando feito hélices, e aterrissou direto sobre as placas de pedra.

Ouviu-se um grito agudo, curto e suave.

"O mundo era muito engraçado", dissera da Quirm. "Só rindo mesmo. Quem não risse, enlouquecia, não? Num minuto, preso a uma placa de pedra e prestes a sofrer torturas extraordinárias. No minuto seguinte, recebendo café-da-manhã, uma troca de roupa, um banho quente e uma carona para sair do reino. Isso te fazia acreditar que existia um deus." É claro que os tezumanos sabiam que existia um deus, que naquele momento era uma manchinha melada e infeliz no topo da pirâmide. O que os deixava com um pequeno problema.

A Bagagem sentou de cócoras na praça principal da cidade. Todos os sacerdotes sentaram à sua volta, observando-a com atenção para ver se ela faria algo que pudesse ser considerado divertido ou religioso.

- Você vai deixá-la aqui? - perguntou Eric.

- Não é tão simples assim - respondeu Rincewind. – Ela geralmente consegue me alcançar. Vamos embora rápido.

- Mas vamos levar os presentes das homenagens, não vamos?

- Acho que pode ser uma idéia incrivelmente ruim - observou Rincewind. - Vamos embora sem fazer barulho enquanto eles estão de bom humor. A novidade deve perder o efeito rapidamente.

- E eu tenho que prosseguir minha busca pela Fonte da Juventude - disse da Quirm.

- Ah, sim - concordou Rincewind.

- Dediquei toda a minha vida a isso, sabe - disse o velho, com orgulho.

Rincewind o olhou de cima a baixo.

- E mesmo?

- Ah, sim. Com exclusividade. Desde quando eu era menino.

A expressão de Rincewind era de estarrecimento agudo.

 - Nesse caso - começou, como se falasse com uma criança —, não teria sido melhor... entende, mais sensato... se você tivesse apenas aproveitado...

- O quê?

- Ah, deixa pra lá - desistiu Rincewind. - Mas eu vou lhe dizer uma coisa - acrescentou -, eu acho que, para que você não fique, bem, entediado, deveríamos lhe dar de presente este maravilhoso papagaio falante. - Pegou o papagaio rapidamente, garantindo a segurança dos polegares. - É uma ave da selva. É crueldade sujeitá-la à vida na cidade, não?

- Eu nasci numa gaiola, seu coiso alucinado! - gritou o papagaio. Rincewind o encarou, nariz com bico.

- É isso ou vai pra panela - disse. O papagaio abriu o bico para morder o nariz do mago, mas, ao examinar sua expressão, resolveu pensar bem antes de fazê-lo.

- Louro quer café - conseguiu dizer, e acrescentou, sussurrando: - coisocoisocoiso.

- O meu próprio e gracioso passarinho — animou-se da

Quirm. - Eu cuidarei dele.

- coisocoiso.

Chegaram à floresta. Alguns minutos depois, a Bagagem foi correndo até eles.

Era meio-dia no reino de Tezuman.

De dentro da pirâmide principal, vieram os sons de uma estátua muito grande sendo demolida.

Os sacerdotes sentaram por perto, pensativos. De vez em quando, um deles se levantava e fazia um pequeno discurso.

Estava claro que algumas opiniões estavam sendo apresentadas. Por exemplo, que a economia do reino dependia de uma indústria sempre instável de facas de obsidiana, que os reinos vizinhos escravizados haviam passado a confiar na noção de um governo firme e, conseqüentemente, nos golpes e carnificinas de um governo firme também, e no destino terrível que aguardava qualquer povo que não tivesse deuses. Povos sem deuses poderiam aprontar qualquer coisa: poderiam se voltar contra as grandes tradições antigas de parcimônia e auto-sacrifício que fizeram do reino  o que ele é hoje; poderiam começar a se perguntar por que, já que não tinham um deus, precisavam de todos aqueles sacerdotes; em resumo, qualquer coisa.

A opinião de Mazuma, o sumo sacerdote, foi bem colocada, quando ele disse:

- [Figura-esmagada-corn-nariz-quebrado, pata de onça, três penas, tamanduá estilizado cheio de espinhos].

Depois de algum tempo, foi feita uma votação.

Ao anoitecer, os pedreiros mais importantes do reino trabalhavam numa nova estátua.

Era basicamente uma figura retangular, com um monte de pernas.

 

O rei demônio batia os dedos na mesa. Não que estivesse insatisfeito com o destino de Quezovercoatl, que agora teria que passar vários séculos em um dos infernos inferiores enquanto formava um novo corpo físico. Bem feito para ele, diabinho desagradável. Também não estava aborrecido por causa do curso geral dos eventos sobre a pirâmide. Afinal de contas, a parte principal do negócio dos desejos era providenciar para que o cliente recebesse exatamente o que pediu e exatamente o que na verdade não queria.

O problema era que ele não se sentia no controle das coisas.

O que era obviamente ridículo. Na pior das hipóteses, poderia se materializar e resolver tudo pessoalmente. Mas ele queria que as pessoas acreditassem que todas as coisas ruins que acontecessem a elas eram apenas destino. Era uma das poucas coisas que o deixavam animado.

Voltou para o espelho. Depois de algum tempo, teve que ajustar o controle temporal.

Num minuto, as selvas úmidas e abafadas de Klatch, no outro...

- Eu achei que voltaríamos para o meu quarto – reclamou Eric.

- Eu também — disse Rincewind, gritando para ser ouvido por cima do estrondo.

- Estala os dedos de novo, demônio.

 - Não enquanto você estiver vivo! Há muitos lugares piores do que este!

- Mas está tudo escuro e quente.

Rincewind tinha que admitir aquilo. Além disso, tudo balançava e fazia barulho. Quando sua vista se acostumou à escuridão, conseguiu distinguir alguns pontos de luz aqui e ali, cujo brilho opaco sugeria que eles estavam dentro de algo semelhante a um barco. Havia um quê de carpintaria em tudo aquilo, e um forte cheiro de raspas de madeira e cola. Se fosse mesmo um barco, estava sendo lançado de forma terrivelmente dolorosa sobre uma rampa coberta de pedras.

Um solavanco o arremessou com tudo contra um anteparo.

- Devo dizer que - começou Eric -, se é aqui que mora a mulher mais bonita do mundo, eu não respeito muito a escolha de budoá dela. Eu esperava que ela usasse algumas almofadas ou algo assim.

- Budoá? - perguntou Rincewind.

- Ela deve ter um - disse Eric, convencido. - Eu li sobre isso. Ela fica recostada nele.

- Me diz uma coisa, você já sentiu a necessidade de tomar um banho frio e dar uma corrida revigorante pelos campos?

- Nunca.

- Talvez fosse bom experimentar.

O estrondo parou de forma abrupta.

Houve um som metálico distante, do tipo que poderia ter sido produzido por grandes portões sendo fechados. Rincewind pensou ter ouvido vozes desaparecendo à distância e uma risada. Não era uma risada especialmente agradável, mas um riso de escárnio, e anunciava algo nada bom para uma pessoa. Rincewind sabia muito bem para quem.

Ele havia parado de se perguntar como tinha acabado ali, onde quer que estivesse. Forças malignas, provavelmente. Pelo menos nada de terrível estava acontecendo com ele naquele momento. Mas provavelmente era apenas uma questão de tempo.

O mago tateou um pouco no escuro até seus dedos encontrarem algo que descobriu ser, após uma inspeção à luz do furo na madeira mais próximo, uma escada de corda. Tateando mais na ponta do casco, ou do que quer que fosse, acabou entrando em contato com uma escotilha pequena e redonda. Estava trancada por dentro.

Ele se arrastou de volta para onde estava Eric.

- Tem uma porta - sussurrou.

- Que vai pra onde?

- Ela fica onde está, eu acho - respondeu Rincewind.

- Descubra a que ela dá acesso, demônio!

- Pode ser uma má idéia - observou Rincewind, com cuidado.

- Anda logo com isso!

O mago se arrastou desanimado até a escotilha e segurou a tranca.

Ela se abriu com um rangido.

Lá embaixo - muito abaixo - havia um pavimento úmido de pedras, sobre o qual a brisa empurrava alguns restos de névoa da manhã. Com um pequeno suspiro, Rincewind desenrolou a escada.

Dois minutos depois, estavam na escuridão do que parecia ser uma grande praça. Alguns prédios apareceram através da névoa.

- Onde estamos? - perguntou Eric.

- Sei lá.

- Você não sabe.

- Não faço idéia - disse Rincewind.

Eric olhou fixamente para a arquitetura coberta de névoa.

- Sem chance de encontrar a mulher mais bonita do mundo num fim de mundo como este.

Ocorreu a Rincewind ver de onde haviam saído. Olhou para cima.

Acima deles - muito acima deles -, e sustentado por quatro pernas enormes que desciam até uma imensa plataforma com rodas, havia, sem sombra de dúvida, um imenso cavalo de madeira. Mais especificamente, o traseiro de um imenso cavalo de madeira.

O construtor poderia ter colocado a escotilha de saída num local mais digno, mas, por razões humorísticas próprias, parece que decidiu não fazê-lo.

- É... - começou Rincewind.

Alguém tossiu.

Ele olhou para baixo.

A névoa evaporava e passava a revelar um amplo círculo de homens armados, muitos deles sorrindo e todos com longas lanças produzidas em massa, desalmadas e, acima de tudo, afiadas.

- Ah - disse Rincewind.

Olhou de novo para a escotilha. Realmente ela dizia tudo.

- A única coisa que eu não entendo - disse o capitão da guarda - é: por que dois? Estávamos esperando uns 100.

Ele se reclinou no banquinho, com o grande capacete de plumas sobre o colo e um sorriso satisfeito no rosto.

- Francamente, vocês ephebianos! Que piada! Devem achar que a gente nascemos ontem! A noite toda só serrando e martelando e, de repente, tem uma droga de um cavalo gigante de madeira em frente aos portões. Aí eu penso: que engraçado... um maldito cavalo gigante de madeira com buracos de ventilação. Esse é o tipo de pequeno detalhe que eu noto, sabe. Buracos de ventilação. Eu convoquei todos os rapazes e a gente viemos supercedo e arrastou ele para dentro dos portões e depois ficamos quietos, tipo, perto dele, esperando para ver o que ele ia botar pra fora. Maneira de dizer. Agora - ele chegou o rosto com a barba por fazer perto de Rincewind — você pode escolher, sabe? Assento de cima ou assento de baixo, você é quem manda. Eu só tenho que colocar a palavra. Se você não pisar no disco com a gente, está tudo certo. (NOTA: Jogos com bola não eram conhecidos no Discworld nessa época).

 - Que assento? - perguntou Rincewind, desviando-se das rajadas de alho.

- São as trirremes de guerra - disse o sargento, animado. - Três assentos, um acima do outro, entende? Trirremes. A pessoa fica acorrentada aos remos durante anos, entende, e tudo muda de figura se você está no assento de cima, no alto, com o ar fresco e tal, ou no assento de baixo, onde - ele deu um sorriso - a situação é outra. Depende de vocês, rapazes. Cooperem e só precisarão se preocupar com as gaivotas. Agora digam. Por que só dois?

Ele se recostou novamente.

- Com licença - disse Eric -, aquilo é o Tsort, por acaso?

- Você não estaria tentando tirar sarro da minha cara, não é, garoto? Acontece que existe uma coisa chamada qüinqüirreme, sabia? Você não ia gostar dela de jeito nenhum.

- Não, senhor. Por gentileza, senhor, sou apenas um pequeno garoto que foi levado para o mau caminho por más companhias.

- Oh, obrigado - disse Rincewind, num tom áspero. – Você só desenhou um monte de círculos ocultos sem querer e...

- Sargento! Sargento! - um soldado entrou correndo na sala da guarda. O sargento olhou para ele.

- Tem mais um, sargento! Bem em frente aos portões desta vez!

O sargento deu um sorriso triunfante pra Rincewind.

- Ah, então é isso, é? Vocês eram apenas o grupo adiantado. Vieram para abrir os portões ou algo assim. Certo. Vamos lá dar conta dos seus amigos e já voltamos. — Ele apontou para os prisioneiros. — Você fica aqui. Se eles se mexerem, faça alguma coisa horrível com eles.

Rincewind e Eric foram deixados sozinhos com o guarda.

- Você sabe o que fez, não sabe? - perguntou Eric. - Você nos trouxe de volta às Guerras Tsorteanas! Milhares de anos! Nós vimos isso na escola, o cavalo de madeira e tudo o mais! Como a bela Eleonor foi raptada dos ephebianos, ou talvez pelos ephebianos, e fizeram um cerco para pegá-la de volta e tudo o mais. - Ele fez uma pausa. - Ei, isso significa que eu vou conhecê-la.

- Ele fez outra pausa. - Uau!

Rincewind olhou ao redor. A sala não parecia antiga. E nem pareceria mesmo, porque ainda não era. Por toda a parte, o tempo era o agora, desde que você estivesse lá ou naquele tempo. Tentou se lembrar do pouco que sabia sobre história clássica, mas não passava de uma confusão de batalhas, gigantes de um olho só e mulheres que lançavam milhares de navios com seus rostos.

- Não está vendo? - sussurrou Eric, com os óculos cintilando. - Eles devem ter trazido o cavalo para dentro para que os soldados se escondessem dentro dele depois! Nós sabemos o que vai acontecer! Podemos ganhar uma fortuna!

- Como exatamente?

- Bom... - o garoto hesitou. - Poderíamos apostar em cavalos, esse tipo de coisa.

- Grande idéia - concordou Rincewind.

-  É,e...

- Tudo o que temos que fazer é fugir, descobrir se eles têm corridas de cavalos aqui e depois tentar com todas as forças lembrar os nomes dos cavalos que ganharam corridas em Tsort milhares de anos atrás.

Voltaram a olhar para o chão com o ar abatido. Esse era o problema da viagem no tempo. Você nunca estava pronto para ela. A única coisa que podia esperar, Rincewind decidiu, era encontrar a Fonte da Juventude de da Quirm e se manter vivo por alguns milhares de anos, até que estivesse pronto para matar o próprio avô, o que era o único aspecto da viagem no tempo que o interessava vagamente. Ele sempre sentiu que seus ancestrais mereciam isso.

Mas uma coisa era engraçada. Conseguia se lembrar do famoso cavalo de madeira que tinha sido usado para arrumar um jeito de entrar numa cidade fortificada. Ele não lembrava nada sobre o fato de haver dois cavalos. Havia algo inevitável no próximo pensamento que surgiu.

- Com licença - disse ao guarda. - Essa... é... essa segunda  coisa de madeira em frente ao portão... provavelmente não é um cavalo, é?

- Bem, é claro que você deveria saber isso, não é? – observou o guarda. - Vocês são espiões.

- Com certeza é mais alongado e um pouco menor? – perguntou Rincewind, com uma expressão que era a imagem fiel do questionamento inocente.

- É isso mesmo. Muito sem imaginação da sua parte, seus desgraçados.

- Entendi. — Rincewind cruzou as mãos sobre o colo.

- Tentem escapar — disse o guarda. — Vamos lá, tentem. Tentem e verão o que acontece.

- Imagino que os seus colegas o trarão para dentro da cidade — continuou Rincewind.

- Pode ser que eles façam isso - admitiu o guarda.

Eric começou a gargalhar.

O guarda começava a se dar conta de que havia uma gritaria distante. Alguém tentou tocar um clarim, mas as notas murmuraram até o silêncio total após alguns compassos.

- Pelo som, parece que tem uma briguinha rolando lá fora — disse Rincewind. — Pessoas se destacando, praticando atos heróicos de valor, sendo notadas por oficiais superiores, esse tipo de coisa. E você aqui sem fazer nada com a gente.

- Eu tenho que me manter firme no meu posto.

- Exatamente a atitude correta - aprovou Rincewind. – Não importa que todo mundo esteja lutando lá fora com toda a coragem para defender a cidade e a mulherada contra o inimigo. Você fica parado aqui vigiando a gente. Esse é o espírito. Provavelmente erguerão uma estátua para você na praça da cidade, se ela continuar existindo. "Ele cumpriu o seu dever", vão escrever nela.

O soldado pareceu pensar naquilo e, enquanto o fazia, houve um rangido terrível de algo se quebrando proveniente dos portões principais.

- Olha - começou, desesperado -, se eu sair só um pouquinho...

- Não se preocupe com a gente - disse Rincewind, para incentivá-lo. - Não estamos nem armados.

- Certo - disse o soldado. - Obrigado.

Deu um sorriso preocupado para Rincewind e saiu correndo na direção do barulho. Eric olhou para o mago com algo próximo à admiração.

- Isso realmente foi bem impressionante.

- Vai longe, aquele garoto - observou Rincewind. – Um honrado pensador militar, se é que eu já vi algum. Venha. Vamos fugir.

- Para onde?

Rincewind suspirou. Ele tentava deixar claro qual era a sua filosofia básica de vida, mas as pessoas nunca captavam a mensagem.

- Não se preocupe com onde. Pelo que eu sei por experiência própria, isso sempre se resolve. A palavra importante é fugir.

 O capitão ergueu a cabeça com cautela acima da barricada e rosnou.

- É apenas uma caixinha, sargento - gritou. - Nem caberiam um ou dois homens nela.

- Perdão, senhor - discordou o sargento, e sua expressão era a de um homem cujo mundo mudou muito em poucos minutos. - Cabem pelo menos quatro, senhor. O cabo Desuso e seu pelotão, senhor. Eu os enviei para abri-la, senhor.

- Você está bêbado, sargento?

- Ainda não, senhor — respondeu o sargento, num tom simpático.

- Caixinhas não comem pessoas, sargento.

- Depois disso, ela ficou brava, senhor. O senhor pode ver o que ela fez com os portões.

O capitão espiou sobre os pedaços de madeira novamente.

- Imagino que ela criou pernas e andou até lá, não foi? — perguntou, num tom sarcástico.

O sargento deu um enorme sorriso aliviado. Finalmente eles pareciam estar na mesma sintonia.

- Isso mesmo, senhor. Pernas. Centenas das danadinhas, senhor.

O capitão olhou fixamente para ele. O sargento fez aquela famosa cara de quem não sabe de nada, aquela que tinha sido passada de subalterno a subalterno desde quando um proto-anfíbio mandou um proto-anfíbio de posto inferior reunir um pelotão de salamandras e Invadir Aquela Praia. O capitão tinha 18 anos e acabara de sair da academia, onde havia sido aprovado com êxito em disciplinas como Táticas Clássicas, Odes de Adeus e Gramática Militar. O sargento tinha 55 anos e, em vez de estudar, havia passado cerca de 40 anos atacando ou sendo atacado por harpias, humanos, ciclopes, fúrias e coisas horríveis com pernas. Sentiu que estavam se aproveitando dele.

- Bom, eu vou dar uma olhada nisso...

- ... não é um bom plano, senhor, se me permite...

- ... e depois que eu der uma olhada, sargento, vai haver problemas.

 

O sargento bateu continência para ele.

- Certo, senhor — previu.

O capitão rosnou, subiu pelas barricadas e seguiu em direção à caixa, que estava sentada, silenciosa e imóvel, dentro de seu círculo de devastação. O sargento, enquanto isso, sentou disfarçadamente atrás da viga de madeira mais firme que conseguiu encontrar e, com grande determinação, puxou o capacete para baixo, cobrindo as orelhas.

Rincewind se arrastava pelas ruas da cidade, com Eric o seguindo de perto.

- Vamos encontrar a Eleonor? - perguntou o garoto.

- Não - respondeu firmemente Rincewind. - Vamos é encontrar outra saída. E vamos sair por ela.

- Isso não é justo!

- Ela é milhares de anos mais velha que você! Quer dizer, atração por uma mulher mais velha, tudo bem, mas nunca daria certo.

- Eu exijo que você me leve até ela - resmungou Eric. - Vade-retro!

Rincewind parou tão de repente que Eric bateu nele.

- Olha, estamos no meio da guerra mais insensata que já existiu. A qualquer momento, milhares de guerreiros vão travar um combate mortal e você quer que eu vá encontrar uma mulher superestimada para dizer: meu amigo quer que você saia com ele. Bom, eu não vou fazer isso. - Rincewind silenciosamente se aproximou de mais uma passagem pelo muro da cidade. Era menor que o portão principal, não tinha nenhum guarda e havia um portão com uma cancela. Rincewind empurrou os ferrolhos. — Não temos nada a ver com isso. Nós nem nascemos ainda. Não temos idade suficiente para lutar, não é da nossa conta e não faremos mais nada para perturbar o curso da história, está bem?

Ele abriu a porta, o que poupou o exército ephebiano inteiro de um pequeno esforço. Estavam prestes a bater.

Durante todo o dia, o barulho da batalha soou violento. Isso foi registrado mais tarde por historiadores, que se estenderam muito nos episódios sobre belas mulheres raptadas, frotas montadas, animais de madeira construídos, heróis lutando uns contra os outros e se esqueceram de mencionar o papel desempenhado por Rincewind, Eric e a Bagagem. Mas os ephebianos perceberam o entusiasmo com que os soldados tsorteanos correram atrás deles... não tão ansiosos para entrar na batalha, mas muito preocupados em fugir de alguma outra coisa.

Os historiadores também deixaram de notar outro fato interessante sobre a antiga arte da guerra klatchiana: ela ainda estava naquele estágio primitivo, envolvendo apenas soldados, não havia sido aberta para o público em geral. Basicamente todo mundo sabia que um lado ou outro ganharia, a cabeça de alguns generais sem sorte seria cortada, grandes quantias em dinheiro seriam pagas em homenagem aos vencedores, todos voltariam para casa a tempo da colheita e aquela maldita mulher teria que decidir de que lado estava, a sem-vergonha.

A vida nas ruas de Tsort prosseguiu mais ou menos normal, com os cidadãos se desviando de grupos de homens lutando ou tentando vender espetinhos. Alguns mais empreendedores começaram a desmontar o cavalo de madeira para vender como souvenir.

Rincewind não tentou entender. Sentou-se em um café e assistiu a uma batalha animada que era travada entre barracas do mercado, de modo que, em meio aos gritos "Azeitonas maduras!", havia os berros dos feridos e os gritos de "Cuidado, por favor, a pancadaria está vindo pra cá".

Difícil era ver os soldados pedirem desculpas quando esbarravam nos clientes. Ainda mais difícil era fazer o dono do café aceitar uma moeda com a cabeça de alguém cujo tatara-tataravô ainda não havia nascido. Felizmente Rincewind conseguiu convencer o homem de que o futuro era outro país.

- E uma limonada para o garoto - acrescentou.

- Meus pais me deixam tomar vinho — protestou Eric. — Eu posso tomar uma taça.

- Certamente eles deixam — disse Rincewind.

O dono do café limpou a mesa com dedicação, espalhando a cobertura de resíduos e vinho derramado até transformá-la num fino verniz.

- Está indo para a batalha, é? — perguntou.

- Pode-se dizer que sim - respondeu Rincewind, cauteloso.

- Eu não ficaria andando muito por aí — aconselhou o proprietário. - Dizem que um civil deixou os ephebianos entrarem... Não que eu tenha alguma coisa contra os ephebianos, um grupo de homens excelentes - acrescentou rapidamente quando uma aglomeração de soldados passou correndo. - Dizem que foi um estrangeiro. Isso é trapaça, fazer uso de civis. Estão procurando por ele, para que possa se explicar. - O dono do café fez um movimento de decepamento com a mão.

Rincewind ficou olhando para a mão como se estivesse hipnotizado.

Eric abriu a boca. Eric deu um grito e segurou a canela.

- Eles têm alguma descrição? - perguntou Rincewind.

- Acho que não.

- Bom, boa sorte para eles - disse Rincewind, muito mais animado.

- O que houve com o menino?

- Cãibra.

Quando o homem saiu de perto e foi para trás do balcão, Eric sussurrou:

- Você não precisava me chutar!

- Você está absolutamente certo. Foi um ato inteiramente voluntário da minha parte.

Uma mão pesada caiu sobre o ombro de Rincewind. Ele olhou ao redor e para cima, e viu o rosto de um centurião ephebiano. Um soldado ao seu lado disse:

- É ele, sargento. Eu apostaria um ano de sal.

- Quem diria? - começou o sargento. Ele deu um sorriso malvado para Rincewind. - Cá estamos, amigão. O chefe gostaria de ter uma conversa com você.

Alguns falam de Alexandre, outros de Hércules, Heitor, Lisandro e tantos outros grandes nomes como esses. Na verdade, por toda a história do multiverso, as pessoas sempre disseram coisas boas sobre todos os orelhas de couve-flor que balançaram uma espada, pelo menos perto delas, baseando-se no fato de que estavam muito mais seguras dessa forma. E engraçado como as pessoas sempre respeitaram comandantes que criam estratégias do tipo "Quero 50 mil de vocês, rapazes, correndo com tudo para cima do inimigo", enquanto os comandantes mais prudentes, que dizem coisas como "Por que não construímos um maldito cavalo de madeira gigantesco e depois corremos pelo portão de trás enquanto eles estiverem ao redor do negócio esperando que a gente saia?", ficam apenas um degrau acima de um caipira qualquer ou do tipo de pessoa para a qual você não emprestaria dinheiro.

Isso é assim porque a maioria dos comandantes desse primeiro tipo é composta de homens corajosos, enquanto os melhores estrategistas são grandes covardes.

Rincewind foi arrastado até os líderes ephebianos, que haviam montado um posto de comando na praça principal da cidade para que pudessem vigiar o ataque à fortaleza central, que crescia acima da cidade em sua colina vertiginosa. Mas não estavam muito perto, porque os defensores atiravam pedras.

Eles discutiam estratégias quando Rincewind chegou. Parecia ser consenso que, se um número muito grande de homens fosse enviado para atacar a montanha, um número suficiente sobreviveria para invadir a fortaleza. Essa é a essência de qualquer raciocínio militar.

Alguns dos comandantes vestidos de forma impressionante ergueram a vista quando Rincewind e Eric se aproximaram. Depois soltaram um olhar que insinuava que larvas de moscas eram mais interessantes e viraram a cara novamente. O único que parecia satisfeito em vê-los...  não se parecia nem um pouco com um soldado. Vestia uma armadura manchada e um capacete com uma pluma que dava a impressão de ter sido usada como pincel, mas era magro demais e tinha o porte militar de uma doninha. Mas havia algo vagamente familiar em seu rosto. Rincewind achou que era muito bonito.

 

"Satisfeito em vê-los" era apenas modo de dizer. Na verdade ele tinha sido o único a registrar a existência deles.

Descansava numa cadeira e dava sanduíches para a Bagagem.

- Oh, olá - disse, num tom desanimado. - São vocês.

E impressionante quanta informação se pode obter a partir de algumas palavras. Para obter o mesmo efeito, o homem poderia ter dito: "A noite é longa, tenho que organizar tudo, da construção de cavalos de madeira à lista de responsáveis pela lavanderia, esses idiotas são tão úteis quanto um martelo de papel, eu nunca quis estar aqui mesmo e, para completar, aí estão vocês. Olá".

Ele apontou para a Bagagem, que abriu a tampa, esperançosa.

- É de vocês?

- Mais ou menos - respondeu Rincewind, cauteloso. – Veja bem, não tenho como pagar por nada que ela tenha feito.

- Coisinha engraçada, não? - comentou o soldado. - Nós a encontramos encurralando 50 tsorteanos. Por que você acha que ela fez isso?

Rincewind pensou rápido.

- Ela tem uma habilidade fabulosa para saber quando as pessoas pensam em me fazer mal. — Olhou fixamente para a Bagagem, como alguém olharia para um animal de estimação da família dissimulado, mal-humorado e quase sempre repreensível que, após anos mordendo as visitas, tivesse rolado no chão e se fingido de cachorrinho fofo.

- É? — disse o homem, sem muita surpresa. — Mágica, é?

- Sim.

- Alguma coisa na madeira, é?

- Sim.

- Ainda bem que não construímos o maldito cavalo com ela, então.

- Sim.

- Conseguiu isso por meio de mágica, foi?

- Sim.

- Imaginei. — Jogou mais um sanduíche para a Bagagem. - Vocês são de onde?

Rincewind decidiu abrir o jogo.

 - Do futuro — respondeu. Não teve o efeito esperado. O homem apenas balançou a cabeça.

- Oh! - exclamou, e depois perguntou: - Nós ganhamos?

- Sim.

- Oh. Imagino que você não consiga lembrar o resultado de alguma corrida de cavalos? - perguntou o homem, sem muita esperança.

- Não.

- Achei que provavelmente não se lembraria. Por que abriu o portão para nós?

Ocorreu a Rincewind que responder que o fez porque sempre tinha sido um grande admirador da postura política ephebiana não seria, por mais estranho que parecesse, a coisa certa a fazer. Decidiu tentar a verdade mais uma vez. Era uma abordagem nova e valia a pena experimentar.

- Eu estava procurando uma saída.

- Para fugir.

- Sim.

- Bom homem. Era a única coisa sensata a fazer naquelas circunstâncias. - Então notou Eric, que olhava fixamente para os outros capitães reunidos ao redor da mesa, mergulhados numa discussão.

- Você, garoto. Quer ser soldado quando crescer?

- Não, senhor.

O homem se animou um pouco.

- É isso aí.

- Eu quero ser eunuco, senhor - acrescentou Eric.

A cabeça de Rincewind se virou como se estivesse sendo arrastada.

- Por quê? - perguntou, e depois pensou na resposta óbvia ao mesmo tempo em que Eric respondeu:

- Porque você trabalha num harém o dia todo — disseram num coro lento.

O capitão tossiu.

- Você não é o professor deste menino, é?

- Não.

- Você acha que alguém já explicou a ele...?

- Não.

 - Talvez fosse uma boa idéia se você pedisse a um dos centuriões que tenha uma conversa com ele. E impressionante o domínio da linguagem que esses caras têm.

- Faria bem a ele, imagino - concordou Rincewind.

O soldado pegou o capacete, suspirou, acenou com a cabeça para o sargento e alisou as dobras da capa. Era uma capa imunda.

- Acho que querem que eu lhe dê uma bronca ou algo assim.

- Por quê?

- Por ter estragado a guerra, parece.

- Estragado a guerra?

O soldado suspirou.

- Venha. Vamos dar um passeio. Sargento... você e alguns rapazes, por favor.

Uma pedra desceu zunindo, vinda do forte acima deles, e se espatifou.

- Eles conseguem resistir durante semanas lá em cima - disse o soldado, pessimista, enquanto andavam com a Bagagem seguindo pacientemente atrás deles. - Eu sou Lavaeolus. Quem são vocês?

- Ele é o meu demônio - respondeu Eric.

Lavaeolus ergueu uma sobrancelha, chegando o mais próximo que conseguia de expressar surpresa diante de alguma coisa.

- É? Imagino que existam muitas espécies. Ele é bom em entrar nos lugares, é?

- É mais do tipo que sai dos lugares.

- Certo - disse Lavaeolus. Ele parou ao lado de um prédio e andou de um lado para o outro com as mãos nos bolsos, batendo nas pedras do pavimento com a ponta da sandália.

- Bem aqui, acho, sargento - disse, depois de algum tempo.

- Está certo, senhor.

- Fique de olho naquele grupinho, sim? — pediu Lavaeolus, enquanto o sargento e seus homens começavam a arrancar as pedras. - Aquele grupo ao redor da mesa. Rapazes corajosos, eu admito, mas olhe para eles. Muito preocupados em posar para estátuas triunfantes e em se certificar de que os historiadores estejam escrevendo seu nome corretamente. Há anos sitiamos este lugar. Mais militares, eles disseram. Sabia que eles até gostam? Quer dizer, no final das contas, quem se importa? Vamos acabar logo com isso e ir para casa, é o que digo.

- Encontramos, senhor - avisou o sargento.

- Certo. — Lavaeolus não olhou a sua volta. — Ok. — Ele esfregou as mãos. - Vamos resolver isso, e aí podemos descansar mais cedo. Vocês poderiam me acompanhar? Seu mascote poderá ser útil.

- O que vamos fazer? - perguntou Rincewind, desconfiado.

- Apenas encontrar algumas pessoas.

- É perigoso?

Uma pedra estraçalhou o telhado de um prédio próximo.

- Na verdade, não - respondeu Lavaeolus. - Quer dizer, comparado a ficar aqui fora. E se o resto deles tentar invadir o lugar de um modo apropriado em termos militares...

O buraco dava num túnel. O túnel, depois de algumas curvas, dava numa escada. Lavaeolus foi seguindo por ele, chutando, de vez em quando, pedaços de tijolos caídos, como se sentisse um rancor pessoal contra eles.

- É... - começou Rincewind - aonde isto vai dar?

- Ah, é apenas uma passagem secreta para o centro da fortaleza.

- Imaginei que seria algo assim. Tenho um instinto para essas coisas, sabe. E imagino que os tsorteanos mais importantes estarão lá em cima, certo?

- Espero que sim — concordou Lavaeolus, subindo os degraus com dificuldade.

- Com muitos guardas?

- Dúzias, suponho.

- Altamente treinados?

Lavaeolus fez que sim com a cabeça.

- Os melhores.

- E é para lá que estamos indo - disse Rincewind, determinado a explorar todo o terror do plano, como alguém que investiga a posição de um dente podre.

- Isso mesmo.

- Nós seis.

- E a sua caixa, é claro.

- Ah, sim - concordou Rincewind, fazendo uma careta no escuro.

O sargento lhe deu um tapinha no ombro e se inclinou para a frente.

- Não se preocupe com o capitão, senhor. Ele possui o cérebro militar mais admirável do continente.

- Como é que você sabe? Alguém já o viu em ação? — perguntou Rincewind.

- Sabe, senhor, é que ele gosta de vencer sem que ninguém se machuque, senhor, especialmente ele. É por isso que ele cria coisas como o cavalo, senhor. E o suborno e coisas do tipo. Nós vestimos trajes civis ontem à noite, saímos e ficamos bêbados num bar com um dos faxineiros do palácio, sabe, e descobrimos este túnel.

- Sim, mas é uma passagem secreta! - disse Rincewind. - Haverá guardas e tudo o mais do outro lado!

- Não, senhor. Eles o usam para guardar material de limpeza, senhor.

Ouviu-se um som metálico na frente deles, em meio à escuridão. Lavaeolus havia tropeçado num esfregão.

- Sargento?

- Senhor?

- Pode abrir a porta, por favor?

Eric estava puxando o manto de Rincewind.

- Que foi? - perguntou Rincewind, irritado.

- Você sabe quem é Lavaeolus, não sabe? — sussurrou Eric.

- Bom...

- Ele é Lavaeolus!

- Jura?

- Você não conhece os Clássicos?

- Isso não é uma dessas corridas de cavalos que deveríamos lembrar, é?

Eric revirou os olhos.

- Lavaeolus foi responsável pela queda de Tsort, por não ser muito astuto. Depois levou dez anos para chegar em casa e passou por todos os tipos de aventuras com mulheres sedutoras, ninfas e bruxas sensuais.

- Ah, entendi por que você estudou sobre ele. Dez anos, hein? Onde ele morava?

- A cerca de 300 quilômetros — respondeu Eric, sério.

- Ele se perdia com freqüência, hein?

- E, quando chegou em casa, lutou com os que cortejavam sua mulher e tudo o mais, e seu velho e querido cão o reconheceu e morreu.

- Minha nossa!

- O ato de carregar os chinelos dele durante 15 anos acabou com o cachorro.

- Que coisa.

- E quer saber de uma coisa, demônio? Tudo isso ainda não aconteceu. Nós poderíamos poupá-lo de todo esse trabalho!

Rincewind pensou a respeito.

- Poderíamos dizer a ele para usar um navegador melhor, pra começar.

Eles ouviram um rangido. Os soldados haviam aberto a porta.

- Todo mundo, entrar em forma, ou qualquer que seja o comando idiota - ordenou Lavaeolus. - A caixa mágica à frente, por favor. Não matem ninguém, a menos que seja estritamente necessário. Tentem não danificar as coisas. Certo. Avante.

A porta dava para um corredor com colunas enfileiradas. Havia um murmúrio distante de vozes.

A tropa se arrastou em direção ao som até chegar a uma cortina pesada. Lavaeolus respirou fundo, empurrou-a para o lado, deu um passo à frente e iniciou um discurso pronto.

- Eu pretendo ser absolutamente claro — começou. — Não quero que haja aborrecimento de nenhum tipo nem gritaria com guardas e assim por diante. Vamos apenas pegar a moça e ir para casa, que é onde qualquer pessoa com o mínimo de juízo deveria estar agora. Caso contrário, realmente terei que pegar todo mundo na espada, e eu odeio fazer coisas desse tipo.

 Quem ouviu essa colocação não pareceu impressionado. Isso porque era uma criancinha sentada num penico.

Lavaeolus trocou a marcha mental e prosseguiu de modo suave:

- Por outro lado, se você não me disser onde está todo mundo, pedirei ao sargento aqui para lhe dar uma palmada bem forte.

A criança tirou o dedo da boca.

- Mamãe está cuidando de Cassie — disse. — Você é o senhor Beekle?

- Acho que não - respondeu Lavaeolus.

- O senhor Beekle é um bobo. - A criança retirou o dedo e, com o ar de alguém que acabou de concluir uma pesquisa exaustiva, acrescentou: - O senhor Beekle é um cocô.

- Sargento?

- Senhor?

- Vigie esta criança.

- Sim, senhor. Cabo?

- Sargento?

- Cuide desta criança.

- Sim, sargento. Soldado Archeios?

- Sim, cabo — respondeu o soldado, com um tom pessimista e premonitório.

- Olhe o nenê.

O soldado Archeios olhou ao redor. Sobravam apenas Rincewind e Eric, e, embora fosse verdade que um civil era, sob todos os aspectos, o posto mais baixo que existia, inclusive depois do jumento da tropa, a expressão no rosto deles sugeria que não estavam prontos para receber nenhuma ordem.

Lavaeolus andou pelo local e aproximou o ouvido de outra cortina.

- Nós poderíamos dizer a ele todos os tipos de coisas sobre seu futuro - sussurrou Eric. -Aconteceram... quer dizer, vão acontecer muitas coisas com ele. Naufrágios, mágicas, toda sua tripulação transformada em animais e coisas do tipo.

- É. Poderíamos dizer: "Vá para casa a pé" — concordou Rincewind.

A cortina se abriu com um ruído.

Havia uma mulher ali — rechonchuda, com uma beleza levemente passada, usando um vestido preto e com princípios de bigode. Diversas crianças de vários tamanhos tentavam se esconder atrás dela. Rincewind contou pelo menos sete.

- Quem é essa? - perguntou Eric.

- Hã... — começou Rincewind. — Eu diria que é Eleonor de Tsort.

- Não seja bobo. Ela se parece com a minha mãe. Eleonor era muito mais jovem e toda... - Sua voz falhou, e ele fez vários movimentos com a mão, indicando as formas de uma mulher que provavelmente não seria capaz de se manter de pé.

Rincewind tentou não olhar para o rosto do sargento.

- É - disse, ficando um pouco vermelho. - Bom, sabe como é. É... Você está absolutamente certo, mas, bem, o cerco demorou muito, por causa de umas e outras coisas.

- Não sei o que isso tem a ver - continuou Eric, inflexível.

- Os Clássicos nunca disseram nada sobre filhos. Disseram que ela passou o tempo todo de um lado para o outro, nas torres de Tsort, lamentando o amor perdido.

- Bem, sim, imagino que ela tenha lamentado um pouco — disse Rincewind. — Só que, sabe como é, a lamentação tem um limite, e devia ser muito frio lá em cima daquelas torres.

- Você pode morrer de tanto lamentar - concordou o sargento, acenando com a cabeça.

Lavaeolus observou a mulher, pensativo. Depois fez uma reverência.

- Espero que saiba por que estamos aqui, milady — disse.

- Se você tocar em qualquer uma das crianças, eu grito — respondeu Eleonor, sem se abalar.

Mais uma vez, Lavaeolus mostrou que, além de suas habilidades de guerrilha, tinha uma forte relutância em desperdiçar um discurso pronto, uma vez que o tivesse todo preparado na cabeça.

- Amável donzela - começou. - Enfrentamos muitos perigos para que pudéssemos salvá-la e levá-la de volta para o seu amad...  - Sua voz falhou. - ... seus entes queridos. É... Isto deu terrivelmente errado, não?

- Não tive culpa - disse Eleonor. - O cerco parecia demorar tanto, o rei Mausoleum foi bastante gentil, e eu nunca gostei muito de Ephebe mesmo...

- Onde está todo mundo agora? Os tsorteanos, quero dizer. Além de você.

- Estão todos lá nas muralhas, atirando pedras.

Lavaeolus jogou as mãos para o alto, em desespero.

- Você não poderia pelo menos ter nos mandado um bilhete ou algo assim? Ou nos convidado para um dos batizados?

- Vocês todos pareciam estar se divertindo tanto... - ela respondeu.

Lavaeolus se virou e deu de ombros, triste.

- Tudo bem. Ótimo. Quod erat demonstrandum. Sem problemas. Eu queria sair de casa e passar dez anos num pântano com um bando de imbecis cabeças-ocas. Eu realmente não tinha nada importante para fazer na minha terra, só um pequeno reino para governar, esse tipo de coisa. Ok. Está bem então. Já podemos ir. Tenho certeza de que não saberei como contar isso para todo mundo... - comentou, num tom provocador - ... eles estavam se divertindo tanto. Provavelmente farão um banquete enorme, vão rir de tudo isso e ficar bêbados. É do feitio deles.

Ele olhou para Rincewind e Eric.

- Vocês poderiam me dizer o que vai acontecer agora. Tenho certeza de que sabem.

- Humm - começou Rincewind.

- A cidade pega fogo - respondeu Eric. - Especialmente as torres altas a perder de vista. Eu não consegui vê-las - acrescentou, mal-humorado.

- Quem fez isso? O pessoal deles ou o nosso? – perguntou Lavaeolus.

- O seu pessoal, acho.

Lavaeolus suspirou.

- É o tipo de coisa que eles fariam - disse. E se virou para Eleonor. — O nosso pessoal... ou melhor, o meu pessoal... vai botar fogo na cidade. Soa bastante heróico. É bem o tipo de coisa que eles fariam sem pensar duas vezes. Talvez seja uma boa idéia vir conosco. Traga as crianças. Vai ser como passar o dia fora com toda a família. Por que não?

Eric puxou a orelha de Rincewind para perto de sua boca.

- Isso é uma brincadeira, não é? Ela não é a bela Eleonor. Você está brincando comigo?

- E sempre assim com essas pessoas de sangue quente — respondeu Rincewind. — A decadência é definitiva depois dos 35.

- E a massa que faz isso — observou o sargento.

- Mas eu li que ela era a mais bonita...

- Ah, sim - interrompeu o sargento. - Se você for sair por aí lendo...

- O negócio é o seguinte — disse Rincewind, rapidamente-, é o que chamam de necessidade dramática. Ninguém vai ter interesse numa guerra por uma, uma dama bastante agradável, moderadamente atraente sob a iluminação certa, não é?

Eric chorava.

- Mas estava escrito que o rosto dela lançou ao mar mil navios...

- E o que chamamos de metáfora - disse Rincewind.

- Mentir - explicou o sargento, gentilmente.

- De qualquer modo, você não deveria acreditar em tudo o que lê nos Clássicos - acrescentou Rincewind. - Eles nunca checam os fatos. Só estão interessados em vender lendas.

Lavaeolus, enquanto isso, estava envolvido numa discussão com Eleonor.

- Está bem, está bem. Fique aqui se quiser. Vou me importar por quê? Vamos, pessoal. Vamos embora. O que você está fazendo, soldado Archeios?

- Estou sendo um cavalo, senhor — explicou o soldado.

- Ele é o senhor Cocô - disse a criança, que usava o capacete do soldado Archeios.

- Bom, quando você acabar de ser um cavalo, encontre uma lamparina para nós. Dei uma pancada feia no joelho naquele túnel.

As chamas estrondavam sobre Tsort. O céu estava vermelho.

Rincewind e Eric observavam de uma pedra, lá embaixo, perto da praia.

- Não são torres altas a perder de vista mesmo – observou Eric, depois de algum tempo. - Dá pra ver o topo.

- Acho que queriam dizer torres altivas a perder de vista — arriscou Rincewind, enquanto outra torre desmoronava, em brasas, sobre as ruínas da cidade. - E isso estava errado também.

Eles observaram em silêncio por mais algum tempo, e depois Eric disse:

- Engraçado isso. O jeito como você tropeçou na Bagagem e derrubou a lamparina e tudo o mais.

- É - concordou Rincewind, brevemente.

- Nos faz pensar que a história sempre arruma um jeito de se realizar.

- É.

- Mas foi bom o modo como sua Bagagem salvou todo mundo.

- É.

- Engraçado ver todas aquelas crianças montando nas costas dela.

- É.

- Todo mundo parece ter ficado muito contente.

Os exércitos inimigos, pelo menos, estavam. Ninguém se preocupou em perguntar aos civis, cuja opinião sobre questões de guerra nunca foi muito confiável. Entre as tropas, pelo menos entre as tropas de certo nível hierárquico, havia muitos tapinhas nas costas e piadas, trocas de escudos joviais e um consenso geral de que, com os incêndios, cercos, armadas, cavalos de madeira e tudo o mais, a guerra havia sido uma beleza. O som da cantoria ecoava além do mar escuro como vinho.

- Ouçam-nos com atenção - observou Lavaeolus, surgindo da escuridão perto dos navios ephebianos encalhados. – Agora serão 15 refrões de "O Baile de Philodelphus",  (NOTA: Paródia de uma antiga canção inglesa intitulada "The Bali of Kerrymuir" geralmente cantada em celebrações e bebedeiras. (N. E.)  ouçam o que estou dizendo. Bando de idiotas que pensam com a cabeça de baixo.

Ele se sentou na pedra.

- Desgraçados - disse, com raiva.

- Vocês acham que a Eleonor vai conseguir explicar tudo isso para o namorado dela? - perguntou Eric.

- Imagino que sim - respondeu Lavaeolus. - Elas geralmente conseguem.

- Mas ela se casou. E tem um monte de filhos.

Lavaeolus deu de ombros.

- Uma paixão desvairada de momento — explicou. E lançou um olhar penetrante para Rincewind. - Ei, você, demônio. Eu gostaria de ter uma conversa reservada com você, se possível.

Levou Rincewind na direção dos barcos, com passos pesados pela areia úmida, como se muita coisa estivesse pesando em sua mente.

- Vou voltar para casa nesta noite, com a maré. Não faz sentido ficar parado aqui, com a guerra tendo terminado e tudo o mais.

- Boa idéia.

- Se tem uma coisa que eu odeio é viagem marítima – disse Lavaeolus. Deu um chute no barco mais próximo. - Um monte de idiotas andando de um lado para o outro e gritando, sabe? Puxar isso, baixar aquilo, parar mais aquilo. E, além disso, eu tenho enjôo.

- Eu tenho medo de altura - informou Rincewind, solidário.

Lavaeolus chutou o barco mais uma vez, obviamente lutando contra algum problema emocional sério.

- O negócio é o seguinte - começou, com tristeza. – Você por acaso não sabe se eu chego bem em casa, sabe?

- O quê?

- São apenas algumas centenas de quilômetros. Não vai demorar muito, vai? - perguntou Lavaeolus, como um farol irradiando ansiedade.

- Oh. - Rincewind olhou para o rosto do homem. "Dez anos", pensou. "E todos os tipos de coisas estranhas com seres alados e monstros marinhos. Por outro lado, faria algum bem a ele saber disso?" — Você chega bem em casa. E fica conhecido por isso, na verdade. Há lendas inteiras sobre você indo para casa.

 - Ufa! - Lavaeolus se inclinou sobre um casco, tirou o capacete e limpou a testa. — Vou lhe dizer uma coisa, isso tira um peso das minhas costas. Temia que os deuses tivessem algum rancor contra mim. - Rincewind não disse nada. - Eles ficam meio bravos quando a gente sai por aí tramando coisas como cavalos de madeira e túneis. São tradicionalistas, sabe? Preferem que as pessoas apenas dêem pontapés umas nas outras. Sabe, eu achei que, se pudesse mostrar às pessoas como conseguir o que queriam com mais facilidade, elas deixariam de ser tão burras.

De algum ponto mais distante da costa, veio o som de vozes masculinas entoando uma canção:

- ... "virgens castas vieram de Heliodeliphilodelphiboschro-menos, e quando o baile acabou havia..."

- Nunca dá certo - disse Rincewind.

- Mas deve valer a pena tentar. Não?

- Ah, sim.

Lavaeolus deu um tapinha nas costas dele.

- Anime-se. As coisas não têm como piorar.

Eles andaram até as ondas escuras da arrebentação, onde o navio de Lavaeolus estava ancorado, e Rincewind o viu nadar e subir a bordo. Após algum tempo, os remos foram fixados, ou desarmados, ou o que quer que falassem quando os prendiam nos buracos das laterais, e o barco saiu lentamente em direção à baía.

Algumas vozes voltaram pelo ar acima da espuma das ondas.

- Aponte a ponta pontuda desta forma, sargento.

- Sim, sim, senhor!

- E não grite. Eu disse para gritar? Por que vocês todos têm que gritar? Agora eu vou descer para repousar.

Rincewind voltou com dificuldade até a praia.

- O problema é - disse consigo mesmo - que as coisas nunca melhoram, apenas continuam as mesmas, só que mais ainda. Mas ele terá coisas suficientes com que se preocupar.

Atrás dele, Eric assoou o nariz.

- Isso foi a coisa mais triste que eu já ouvi.

Num ponto mais distante da praia, as vozes dos exércitos ephebiano e tsorteano ainda soavam com toda a força ao redor de suas fogueiras festivas.

- ... ua harpia da aldeia, ela estava lá"...

- Vamos lá - disse Rincewind. - Vamos para casa.

- Você percebeu alguma coisa engraçada no nome dele? - perguntou Eric enquanto caminhavam pela areia.

- Não. Do que está falando?

- Lavaeolus significa "aquele que enxágua ventos".(NOTA: Em inglês, "Rinser of Winds". (N. E.)

Rincewind olhou para ele.

- Ele é meu ancestral?

- Quem sabe?

- Oh. Caramba! — Rincewind pensou nisso. - Bom, deveria ter dito a ele para evitar de se casar. Ou visitar Ankh-Morpork.

- Ela provavelmente nem foi construída ainda...

Rincewind tentou estalar os dedos.

Desta vez funcionou.

 

Astfgl se recostou. Ele se perguntava o que realmente teria acontecido a Lavaeolus.

Deuses e demônios, por serem criaturas alheias ao tempo, não se movem por ele como bolhas num rio. Tudo acontece ao mesmo tempo para eles. Isso deveria significar que eles sabem tudo o que vai acontecer porque, num certo sentido, já aconteceu. O motivo pelo qual não sabem é que a realidade é um lugar grande com um monte de coisas interessantes acontecendo, e registrar todas elas é como tentar usar um videocassete muito grande sem botão de "pause" nem um marcador de tempo. Geralmente é mais fácil esperar para ver.

Um dia ele teria que ir ver.

Aqui e agora, e levando em conta a limitação das palavras em relação a uma área fora do espaço e do tempo, as coisas não progrediam muito bem. Eric lhe parecia um pouco mais simpático, o que não era aceitável. Ele também parecia ter mudado o curso da história, embora isso seja impossível, uma vez que a única coisa que se pode fazer com o curso da história é facilitá-lo.

Era preciso algo como um clímax. Algo que realmente destruísse almas.

O rei demônio percebeu que estava enrolando os bigodes.

 

O problema de estalar os dedos é que nunca se sabia aonde isso iria levar...

Tudo estava preto ao redor de Rincewind. Não era simplesmente uma falta de cor. Era uma escuridão que negava completamente qualquer possibilidade de as cores jamais terem existido.

Seus pés não tocavam nada, e ele parecia flutuar. Faltava alguma coisa. Ele não conseguia identificar exatamente o quê.

- Você está aí, Eric? - arriscou.

Uma voz clara e próxima disse:

- Estou. Você está aí, demônio?

- Onde nós estamos? Estamos caindo?

- Acho que não - disse Rincewind, falando por experiência própria. - Não tem vento. Você sente um vento batendo com força quando está caindo. A sua vida também passa rápido diante dos seus olhos, e eu ainda não vi nada muito familiar.

- Rincewind?

- Sim?

- Quando eu abro a boca, não sai nenhum som.

- Não seja... - Rincewind hesitou. Não saía nenhum som da boca dele também. Sabia o que estava dizendo, suas palavras só não alcançavam o mundo externo. Mas conseguia ouvir Eric. Talvez as palavras tivessem desistido de seus ouvidos e estivessem indo direto para o cérebro.

 - Deve ser alguma espécie de mágica ou algo do tipo. Não tem ar. É por isso que tem som nenhum. Todos os pedacinhos de ar batem uns nos outros, como bolinhas de gude. É assim que se forma o som, sabia?

- É mesmo? Caramba.

- Então estamos cercados de absolutamente nada — disse Rincewind. - Um nada total. - Ele hesitou. - Existe uma palavra para isso. E o que você tem quando não sobrou mais nada e tudo foi consumido.

- É. Acho que é a conta.

Rincewind pensou um pouco. Parecia estar certo.

 

 

- Isso mesmo. A conta. É onde nós estamos. Flutuando na conta total. Total, completa e concreta conta.

 

Astfgl já estava perdendo a cabeça. Ela possuía feitiços que podiam encontrar qualquer pessoa, em qualquer lugar, a qualquer momento, e eles não estavam em lugar nenhum. Num minuto, estava observando eles na praia e, no minuto seguinte... nada.

Com isso, só restavam dois lugares.

Felizmente ele escolheu o errado primeiro.

- Pelo menos umas estrelas seria legal - reclamou Eric.

- Tem alguma coisa muito estranha nisso tudo — disse Rincewind. — Você está sentindo frio?

- Não.

- Bom, está sentindo calor?

- Não. Não estou sentindo muita coisa, na verdade.

- Nem calor, nem frio, nem luz, nem ar — constatou Rincewind. - Só a conta. Há quanto tempo estamos aqui?

- Não sei. Parece que faz séculos, mas...

- A-ha! Não tenho certeza de que o tempo exista também.

Não o que chamaríamos de tempo propriamente dito. Só o tipo

de tempo que as pessoas inventam conforme a necessidade.

- Bom, eu não esperava encontrar mais ninguém aqui — disse uma voz perto do ouvido de Rincewind.

Era uma voz levemente gasta, feita para reclamar, mas pelo menos não havia nenhuma indicação de ameaça. Rincewind flutuou para o lado.

Um homenzinho com cara de rato estava sentado de pernas cruzadas, observando-o com vaga desconfiança. Tinha um lápis atrás da orelha.

- Ah! Olá - cumprimentou Rincewind. - Onde estamos exatamente?

- Lugar nenhum. Esta é a questão, não?

- Lugar nenhum mesmo?

- Ainda não.

- Está bem - interrompeu Eric. - Quando isto aqui será algum lugar?

- Difícil dizer - respondeu o homenzinho. - Olhando para vocês dois, e juntando uma coisa à outra, taxas metabólicas e tal, eu diria que este local deve se tornar algum lugar em, bem, com uma pequena variação para mais ou para menos, cerca de 500 segundos. — Ele começou a desembrulhar um pacote que estava no seu colo. — Aceitam um sanduíche enquanto esperamos?

- Quê? Eu poderia... - A essa altura, o estômago de Rincewind, ciente de que, se seu cérebro tinha permissão para comandar as coisas, era sob o risco de perder a iniciativa, interrompeu a fala e o induziu a dizer: — De quê?

- Sei lá. De que você gostaria que fosse?

- Como?

- Não estrague as coisas. Diga apenas de que você gostaria que fosse.

- Oh? - Rincewind olhou fixamente para ele. - Bom, se você tiver de ovo com agrião...

- Que seja de ovo com agrião, por assim dizer – concordou o homenzinho. Enfiou a mão no pacote e ofereceu um triângulo branco para Rincewind.

- Caramba! — espantou-se Rincewind. — Que coincidência.

- Deve começar a qualquer momento — avisou o homenzinho. — Logo ali. Não que haja qualquer tipo de direção definida por aqui, é claro.

- Tudo o que vejo é escuridão — disse Eric.

- Não vê, não - corrigiu o homenzinho, triunfante. – Você só está vendo o que existe antes de a escuridão ter se instalado, por assim dizer. — Olhou com reprovação para a ainda-não-escuridão. — Vamos. Por que estamos esperando, por que é que estamos esperando?

- Esperando o quê? - perguntou Rincewind.

- Tudo.

- Tudo o quê? — insistiu Rincewind.

- Tudo. Não tudo o quê. Tudo, por assim dizer.

 

Astfgl olhou através das nuvens de gás espiraladas. Pelo menos estava no lugar certo. A questão crucial sobre o fim do universo é que não é possível passar por ele acidentalmente.

As últimas brasas começavam a apagar. O tempo e o espaço colidiram em silêncio e desmoronaram.

Astfgl tossiu. Você pode se sentir muito solitário quando está a 20 milhões de anos-luz de casa.

- Alguém aí? - perguntou.

- SIM.

A voz estava bem perto do seu ouvido. Até os reis demônios ficam arrepiados.

- Além de você, quero dizer. Você viu alguém?

- SIM.

- Quem?

- TODO MUNDO.

Astfgl suspirou.

- Quero dizer recentemente.

- ESTÁ BEM CALMO POR AQUI - disse Morte.

- Droga.

- VOCÊ ESPERAVA MAIS ALGUÉM?

- Achei que talvez houvesse alguém chamado Rincewind, mas... - começou Astfgl.

As órbitas dos olhos de Morte ficaram vermelhas.

- O MAGO?

- Não, ele é um dem... -Astfgl parou. Durante o que seriam vários segundos, caso o tempo ainda existisse, ele pairou num estado de desconfiança terrível. - Um humano - resmungou.

- SERIA AMPLIAR UM POUCO O SENTIDO DO TERMO, MAS, DE MANEIRA GERAL, SIM.

- Eu vou me dar mal! - exclamou Astfgl.

- ACREDITO QUE NÃO VA DEMORAR MUITO.

O rei demônio estendeu a mão trêmula. Sua fúria crescente superava sua noção de estilo. As luvas de seda vermelha rasgaram quando as garras se abriram.

E depois, porque nunca é boa idéia se opor a alguém com uma foice na mão, Astfgl disse:

 

- Desculpe o incômodo - e desapareceu.

Somente quando julgou estar fora do alcance da audição extremamente apurada de Morte, gritou de raiva.

O nada desenrolou sua interminável extensão através dos espaços ventilados do fim do mundo.

Morte esperou. Após algum tempo, começou a batucar com os dedos esqueléticos no cabo da foice.

A escuridão o envolvia. Não havia mais sequer o infinito.

Tentou assobiar alguns trechos de músicas impopulares entre os dentes, mas o som era absorvido pelo nada.

A eternidade havia terminado. Todos os grãos de areia haviam caído. A grande corrida entre a entropia e a energia havia chegado ao fim, e o favorito tinha vencido.

Será que ele deveria afiar a lâmina mais uma vez?

Não.

Não faria muito sentido, na verdade.

Enormes aglomerações de nada absoluto estendiam-se pelo que seria chamado de distância, se houvesse um padrão de referência de espaço-tempo para dar a palavras como "distância" algum significado coerente.

Não parecia haver muito o que fazer.

"TALVEZ ESTEJA NA HORA DE ENCERRAR O EXPEDIENTE", pensou.

Morte se virou para partir, mas, exatamente quando o fez, ouviu um barulho baixíssimo. Era para o som o que um fóton é para a luz, tão fraco e insignificante que teria passado totalmente despercebido em meio ao ruído contínuo de um universo em funcionamento.

Era um pedaço de matéria minúsculo que de repente passava a existir.

Morte caminhou até ele e observou com atenção.

Era um clipe de papel.

Muita gente acha que deveria ter sido uma molécula de hidrogênio, mas isso vai contra os fatos observados. Qualquer um que já tenha encontrado uma até então desconhecida batedeira de ovos congestionando uma gaveta da cozinha sabe que a matéria em estado natural flui continuamente no universo de formas bastante desenvolvidas, passando a existir normalmente de maneira repentina em cinzeiros, vãos e porta-luvas. Ela escolhe sua forma para atenuar suspeitas, e entre as manifestações mais comuns estão clipes de papel, alfinetes presos em camisas novas, pequenos botões em aparelhos de ar-condicionado, bolinhas de gude, pedaços de giz de cera, partes misteriosas de dispositivos para picar temperos e discos antigos da Kate Bush. O motivo pelo qual a matéria faz isso não é claro, mas é evidente que ela tem um plano.

Parece também que os criadores às vezes preferem o método Big Bang de construção do universo, e outras vezes usam os métodos mais suaves de Criação Contínua. Isso vai de acordo com alguns estudos de cosmoterapeutas, que revelaram que a violência do Big Bang poderá causar sérios problemas psicológicos quando ele for mais velho.

 

Bom, já era um começo.

Houve mais um estouro, que deixou um pequeno botão de camisa branco girando com delicadeza no vácuo.

Morte relaxou um pouco. É claro que levaria algum tempo. Haveria um intervalo até que tudo isso se tornasse complexo o suficiente para produzir nuvens de gás, galáxias, planetas e continentes, isso sem mencionar coisas em forma de saca-rolhas se remexendo em poças lodosas e se perguntando se valeria a pena, pela evolução, todo o trabalho de criar nadadeiras, pernas e outras coisas. Mas aquilo indicava o começo de uma tendência inevitável.

Tudo o que ele tinha a fazer era ser paciente, e ele era bom nisso. Logo haveria criaturas vivas se desenvolvendo feito loucas, correndo e rindo à nova luz do sol. Cansando-se. Envelhecendo.

Morte se recostou. Ele podia esperar.

Assim que precisassem dele, estaria lá.

 

O Universo passou a existir.

Qualquer cosmogonista recriado diz que todas as coisas interessantes aconteceram nos primeiros minutos, quando o nada se agrupou para formar o espaço e o tempo, e surgiu um monte de pequenos buracos negros, e assim por diante. Depois disso, dizem, era só uma questão de... bem... matéria. Ela estava por toda parte, exceto na radiação de microondas.

Vendo de perto, no entanto, havia certo encanto vistoso.

O homenzinho fungou.

- Espalhafatoso demais - disse. - Não é preciso todo esse barulho. Poderia ser um Grande Sussurro ou ter um pouco de música.

- Poderia? — perguntou Rincewind.

- Sim, e pareceu muito improvável por volta da marca dos dois pico-segundos. Definitivamente pareceu que estavam enchendo lingüiça. Mas é assim que funciona hoje em dia. Não é preciso mais ter habilidade. Quando eu era garoto, eram necessários dias para fazer um universo. Dava para se orgulhar depois. Agora eles só juntam tudo e vão embora. E quer saber de uma coisa?

- Não? - disse Rincewind, em voz baixa.

- Eles passa a mão em algumas coisas. Eles encontra alguém por perto que quer ampliar o próprio universo e, quando você vai ver, mandaram as coisas embora junto com pedaços de firmamento e usaram para fazer uma extensão em algum lugar.

Rincewind olhou bem para ele.

- Quem é você?

O homem tirou o lápis de trás da orelha e olhou com uma expressão de reflexão para o espaço ao redor de Rincewind.

- Eu faz coisas.

- Que tipo de coisas?

- Que tipo de coisas você gostaria?

- Você é o Criador.

O homenzinho pareceu muito sem jeito.

- Não o. Não o. Apenas um. Eu não assino contrato para coisa grande, estrelas, nebulosas, pulsares e assim por diante. Eu me especializo apenas no que se poderia chamar de negócios por encomenda. - Ele os olhou com um orgulho desafiador. – Eu faço as minhas próprias árvores, está bem? - revelou. – Trabalho de habilidade. São necessários anos para aprender a fazer árvore. Inclusive as coníferas.

- Oh — disse Rincewind.

- Eu não contrato ninguém para terminá-las. Nada de terceirizar, é o meu lema. Os danados sempre te enrolam enquanto estão instalando estrelas ou outras coisas para os outros. - O homenzinho suspirou. — Sabe, as pessoas acham que deve ser muito fácil criar. Acham que você só tem que mexer na superfície das águas e balançar as mãos um pouco. Não é nada disso.

- Não?

O homenzinho coçou o nariz mais uma vez.

- Você logo fica sem idéias de nomes para cereais matinais, por exemplo.

- Oh.

- Você começa a achar que seria sacanagem tentar alguns nomes idênticos.

- Você acha?

- Eu penso consigo mesmo: "existem bilhares de trilhares de zilhares deles, ninguém vai notar". Mas é aí que entra o profissionalismo, por assim dizer.

- Ah, é?

- Algumas pessoas — naquele momento, o criador olhou fixamente para a matéria amorfa que ainda se derramava – acham que basta usar fórmulas básicas da física e depois pegar o dinheiro e sair correndo. Um bilhão de anos mais tarde, o céu está cheio de vazamentos, os buracos negros estão do tamanho da sua cabeça e, quando você reza para reclamarem, só tem uma mocinha no balcão que diz que não sabe onde está o patrão. Acho que as pessoas apreciam o toque pessoal, você não acha?

- Ah! - disse Rincewind. - Então... Quando as pessoas são atingidas por um raio... E... Não é só por causa de toda aquela coisa de descargas elétricas e pontos mais altos e tudo o mais... É... Na verdade é intencional?

- Ah, não da minha parte. Eu não controlo as coisas. Já dá muito trabalho construí-las, não se pode esperar que eu seja responsável pelo funcionamento também. Há um monte de outros universos, sabe - acrescentou, com um leve toque de acusação na voz. - Tenho uma lista de trabalhos tão comprida quanto o seu braço.

Ele pôs a mão embaixo de si e tirou um livro grande com capa de couro, sobre o qual parecia estar sentado. O livro se abriu com um rangido.

Rincewind sentiu um puxão no seu manto.

- Olha... - começou Eric. — Esse não é realmente... Ele é?

- Ele diz que é - respondeu Rincewind.

- O que estamos fazendo aqui?

- Não sei.

O criador olhou firmemente para ele.

- Um pouco de silêncio, por favor - pediu.

- Mas ouça — sussurrou Eric —, se ele for mesmo o criador do mundo, aquele sanduíche é uma relíquia religiosa!

- Caramba! — exclamou Rincewind, em voz baixa. Estava sem comer havia um tempão. Ele se perguntou qual seria a pena por comer um objeto venerado. Provavelmente era severa.

- Você poderia colocá-lo num templo em algum lugar e milhões de pessoas iriam até lá para vê-lo.

Rincewind ergueu com cuidado a fatia de cima do pão.

- Não tem maionese. Ainda conta?

O criador pigarreou e começou a ler em voz alta.

 

Astfgl escapou pela rampa da entropia. Uma faísca vermelha e raivosa sobre os turbilhões do espaço. Estava com tanta raiva que os últimos vestígios de autocontrole começavam a desaparecer. Sua boina elegante, com os chifrinhos estilosos, havia se transformado num mero tufo vermelho pendurado na ponta de um dos cornos espiralados que moldavam seu crânio.

Com um barulho forte de tecido rasgando, a seda vermelha sobre as suas costas se rompeu, e as asas se abriram.

Geralmente elas são representadas em couro, mas o couro não resistiria por mais de alguns segundos naquele ambiente. Além disso, ele não dobra muito bem.

Essas asas eram feitas de magnetismo e espaço moldado, e se abriam até formar uma leve cortina sobre o firmamento incandescente, batendo de modo tão lento e inexorável quanto o nascimento das civilizações.

Elas pareciam asas de morcego, mas isso era apenas em nome da tradição.

Em algum lugar por volta do 29º milênio, ele foi ultrapassado, sem perceber, por alguma coisa pequena e alongada e provavelmente ainda mais nervosa do que ele.

 Oito são os encantos que criam o mundo. Rincewind sabia muito bem disso. Sabia que o livro que os continha era o Oitavo, porque ele ainda existia na biblioteca da Universidade Invisível... dentro de uma caixa de ferro soldada no fundo de um poço cavado especialmente para ela, onde suas radiações mágicas podiam ficar sob controle.

Rincewind se perguntava como tudo teria começado. Imaginou uma espécie de explosão ao contrário, com gases interestelares se chocando para formar a Grande A Tuin, ou pelo menos um estrondo de trovão.

Em vez disso, houve um som metálico leve e musical, e onde não havia o Discworld, lá estava o Discworld, como se estivesse escondido em algum lugar o tempo todo.

Ele também percebeu que a sensação de estar caindo, com a qual ele tão recentemente tivera que aprender a conviver, era algo que provavelmente morreria com ele. A medida que o mundo surgia logo abaixo, trazia consigo a oferta especial daquela era: a gravidade, disponível numa variedade de forças, no corpo planetário mais perto de você.

Ele disse, como é tão comum nessas ocasiões:

- Aargh!

O criador, ainda sentado serenamente no ar, apareceu ao seu lado enquanto ele caía.

- Belas nuvens, não acha? Fiz um bom trabalho nas nuvens.

- Aargh! - repetiu Rincewind.

- Algum problema com a matéria?

- Aargh!

 

- Esses são os humanos — comentou o criador. — Sempre correndo. — Ele se aproximou. — Não depende de mim, é claro, mas eu já me perguntei várias vezes o que é que passa pela cabeça de vocês.

- Daqui a um minuto serão os meus pés! - gritou Rincewind.

Eric, caindo ao lado dele, deu um puxão no seu calcanhar.

- Isso não é jeito de falar com o criador do universo! — gritou.

- Diga a ele apenas para fazer alguma coisa, para fazer o chão ficar mole ou algo do tipo!

- Ah, não sei se eu poderia fazer isso — disse o criador. — São as regras da causalidade. O Inspetor viria para cima de mim com quatro, quatro, quatro tijolos na mão - acrescentou. - Eu provavelmente poderia arrumar para vocês um brejo bem esponjoso. Ou areia movediça, que também está muito popular no momento. Poderia lhe fazer uma suíte de areia movediça completa, com um brejo e um pântano, sem problemas.

- ! - disse Rincewind.

- Você vai ter que falar um pouco mais alto, desculpe. Espere um pouco.

Houve outro som metálico e harmonioso.

Quando Rincewind abriu os olhos, estava numa praia. Eric também. O criador flutuava por perto.

Não havia vento nenhum batendo com força. Ele não sofreu nada além de um hematoma.

- Eu só ajustei umas coisinhas nas velocidades e nas posições -explicou o criador, ao notar sua expressão. - Muito bem, o que é que você estava dizendo?

- Eu gostaria de parar de mergulhar para a morte — disse Rincewind.

- Ah! Ótimo. Que bom que foi resolvido então — O criador olhou em volta, distraído. - Você não viu meu livro por aí, viu? Achei que estivesse na minha mão quando comecei. - Suspirou.

- Só falta perder a cabeça agora. Uma vez fiz um mundo inteiro e esqueci completamente os troços. Não o dos negócios. Não consegui arranjá-los na época e disse a mim mesmo que daria para voltar rapidinho, quando tivesse em estoque. Imagina só. Ninguém percebeu, é claro. Porque obviamente evoluíram lá e não sabiam que deveria haver troços, mas estava claro que aquilo lhes causava, sabe, sérios problemas psicológicos. Bem lá no fundo, eles sabiam que estava faltando alguma coisa, por assim dizer.

O criador se recompôs.

- Enfim, não posso ficar sem fazer nada o dia todo. Como eu ia dizendo, tenho muitos trabalhos me esperando.

- Muitos? — perguntou Eric. — Achei que fosse só um.

- Oh, não. Um monte — disse o criador, desaparecendo aos poucos. - A mecânica quântica é assim, sabe. Você não faz uma vez e está acabado. Não, eles vão se ramificando. Múltipla escolha é como chamam. É como enxugar... enxugar... enxugar alguma coisa que não seca nunca, por assim dizer. É muito fácil dizer que você só tem que mudar um pequeno detalhe, mas essa é a verdadeira encheção. Bom, foi um prazer conhecê-los. Se precisarem de algum serviço extra, uma lua extra ou algo assim...

- Ei!

O criador reapareceu, com as sobrancelhas erguidas demonstrando surpresa.

- O que acontece agora? - perguntou Rincewind.

- Agora? Bom, imagino que logo virão alguns deuses. Eles não esperam muito para aparecer, sabe. Parecem moscas em volta da... moscas em volta da... parecem moscas. Tendem a ser um pouco empolgados demais no começo, mas logo sossegam. Acho que tomam conta das pessoas etc. - O criador se inclinou para a frente. — Nunca fui bom em fazer pessoas. Não consigo acertar os braços e as pernas. - E desapareceu.

Eles esperaram.

- Acho que desta vez ele realmente se foi — disse Eric, depois de algum tempo. — Que homem simpático.

- Realmente dá para entender melhor por que o mundo é o que é depois de conversar com ele - observou Rincewind.

- O que é mecânica quântica?

- Não sei. É um lugar onde se consertam quânticas, eu acho.

Rincewind olhou para o sanduíche de ovo com agrião, que ainda tinha nas mãos. Não havia maionese nele, e o pão estava empapado, mas demoraria milhares de anos até existir outro. Teria que haver o surgimento da agricultura, a domesticação de animais, a evolução da faca de cortar pão a partir de sua ancestral primitiva, a pederneira, o desenvolvimento da tecnologia para laticínios — e, caso houvesse o desejo de fazer uso apropriado desse ofício, o cultivo de oliveiras, pimenteiras, salinas, processos de fermentação de vinagre e as técnicas de química gastronômica elementar - até que o mundo pudesse ver outro sanduíche como aquele. Era um pequeno triângulo branco, único, cheio de anacronismos, perdido e totalmente solitário num mundo hostil.

Ele mordeu assim mesmo. Não era muito bom.

- O que eu não entendo - começou Eric - é por que estamos aqui.

- Espero que não tenha sido uma pergunta filosófica — disse Rincewind. —Acho que o que você quis dizer é: por que estamos aqui, no início da criação, nesta praia quase virgem?

 

- Sim. Foi o que eu quis dizer.

Rincewind sentou numa pedra e suspirou.

- Parece bastante óbvio, não? Você queria viver para sempre.

- Eu não disse nada sobre viagem no tempo. Deixei bem claro que não queria nenhum truque.

- Não é truque. O desejo está tentando ajudar. Quer dizer, é óbvio, se você parar pra pensar. "Para sempre" significa toda a extensão do espaço e do tempo. Para sempre. Por todo o tempo. Entendeu?

- Você está querendo dizer que temos que começar do Marco Zero?

- Exatamente.

- Mas isso não é nada bom! Vai demorar anos até que haja alguém por aqui!

- Séculos - corrigiu Rincewind, com desânimo. - Milênios. Eions. E depois virão todos os tipos de guerras, monstros e coisas assim. A maior parte da história é bastante apavorante quando você olha bem para ela. E mesmo sem olhar bem.

- Mas eu queria continuar vivendo para sempre de agora em diante— explicou Eric, exaltado. — Quer dizer, daquele dia em diante. Quer dizer, olhe para este lugar. Nenhuma garota. Ninguém.

Nada pra fazer nas noites de sábado...

- Não vão existir nem as noites de sábado durante milhares de anos — disse Rincewind. — Apenas noites.

- Você tem que me levar de volta. Estou mandando. Vade-retro!

- Diga isso mais uma vez, e eu te dou um puxão de orelha.

- Mas você só tem que estalar os dedos!

- Não vai funcionar. Você já teve os três desejos. Sinto muito.

- O que eu faço?

- Bom, se você vir alguma coisa se arrastando para fora do mar, diga a ela para não se dar ao trabalho.

- Você acha que isto é engraçado, não é?

- E bastante divertido, já que você mencionou – concordou Rincewind, inexpressivo.

- A piada vai perder a graça com o passar dos anos então.

- O quê?

- Bom, você não vai a lugar nenhum, vai? Você vai ter que ficar comigo.

- Bobagem, eu vou... - Rincewind olhou ao redor em desespero. "Eu vou o quê?", pensou.

As ondas rolavam serenamente na praia, não muito fortes naquele momento, porque ainda estavam examinando a situação. A primeira maré alta se aproximava, cautelosa. Não havia nenhuma marca de subida da maré, nenhuma linha raiada de algas e conchas velhas para dar alguma idéia do que se esperava dela. O ar tinha aquele cheiro puro e fresco que ainda não conhece os escoamentos do solo de uma floresta nem os detalhes do sistema digestivo de um ruminante.

Rincewind havia crescido em Ankh-Morpork. Ele gostava de um ar que já estivesse por perto há algum tempo, que conhecesse as pessoas e os lugares onde as pessoas já tinham morado.

- Temos que voltar - disse, com urgência.

- E o que venho dizendo - concordou Eric, com uma paciência forçada.

Rincewind deu outra mordida no sanduíche. Havia encarado a face da morte muitas vezes, ou, mais precisamente, Morte havia olhado para a parte de trás da cabeça dele em fugas rápidas muitas vezes. E, de repente, a perspectiva de viver para sempre não agradou. Havia, é claro, grandes perguntas cujas respostas ele viria a saber, como de que modo a vida evoluiu e todo o resto. Mas, visto como uma maneira de passar todo o seu tempo livre por uma eternidade, isso não se comparava a passear pelas ruas de Ankh numa noite tranqüila.

 

Ainda assim, ganhara um ancestral. Isso era impressionante. Nem todo mundo tinha um ancestral. O que seu ancestral teria feito numa situação como esta?

Ele não estaria ali.

Bom, sim, é claro, mas fora isso ele teria... ele teria usado seu raciocínio militar refinado para refletir sobre as ferramentas disponíveis. E isso o que teria feito.

Ele tinha: item 1, um sanduíche de ovo com agrião pela metade. Nada útil aqui. Jogou fora.

Ele tinha: item 2, ele mesmo. Desenhou um tique na areia. Não tinha certeza de qual seria sua utilidade, mas poderia voltar a pensar nisso mais tarde.

Ele tinha: item 3, Eric. Demonólogo de 13 anos de idade e alvo do ataque de acnes.

Isso parecia tudo.

Ficou olhando para a areia limpa e pura por algum tempo, fazendo rabiscos nela.

Depois disse, calmamente:

- Eric, venha aqui um momento...

As ondas estavam ficando muito mais fortes. Elas haviam realmente compreendido o espírito das tais marés e arriscavam um pouco de fluxo e refluxo.

 

Astfgl se materializou numa baforada de fumaça azul.

- A-ha! - ele disse, mas acabou sendo tudo muito sem graça, já que não havia ninguém ali para ouvir.

Olhou para baixo. Havia pegadas na areia. Centenas delas. Corriam para trás e para a frente, como se tivessem procurado algo freneticamente e depois desaparecido.

Ele chegou mais perto. Era difícil distinguir, com tantas pegadas e os efeitos do vento e da maré, mas, bem na beira da espuma invasora, havia sinais inconfundíveis de um círculo mágico.

Astfgl proferiu um palavrão que fez a areia ao seu redor se transformar em vidro e desapareceu.

A maré prosseguiu em sua atividade. Mais adiante, na praia, uma onda se lançou para dentro de uma cavidade entre as rochas e o novo sol brilhou sobre os restos encharcados de um sanduíche de ovo com agrião pela metade. A ação da maré o virou ao contrário. Milhares de bactérias se viram, de repente, em meio a um explosão de sabor e começaram a se reproduzir feito loucas.

Se pelo menos tivesse um pouco de maionese, a vida poderia ter se tornado algo completamente diferente. Mais picante, e talvez com um toquezinho extra.

Viajar por mágica sempre implicava grandes empecilhos. Havia a sensação de que seu estômago ficava para trás. Além disso, sua mente se enchia de horror porque o destino era sempre um pouco incerto. Não que você pudesse aparecer em qualquer lugar. "Qualquer lugar" representava uma variedade de escolhas muito restrita em comparação aos lugares aos quais a mágica poderia lhe transportar. A viagem era realmente simples. Alcançar um destino que permitisse, por exemplo, que você sobrevivesse em todas as quatro dimensões ao mesmo tempo era o que realmente dava trabalho.

Na verdade, a margem de erro era tão grande que parecia uma espécie de anticlímax aparecer numa caverna totalmente comum, com chão de areia.

Na parede do fundo havia uma porta.

Sem dúvida nenhuma, era uma porta proibida. Dava a impressão de que o projetista havia estudado todas as portas de celas que pôde encontrar e depois produzira uma versão para, digamos assim, reunir a impressão passada por todas elas numa só. Parecia mais um portal. Um aviso antigo, e provavelmente terrível, fora gravado sobre seu arco dilacerado, mas estava destinado a não ser lido porque, acima dele, alguém havia colado uma advertência brilhante vermelha e branca, com os dizeres: "Você Não Tem Que Ser Abominável' Para Trabalhar Aqui, Mas Ajuda!!!"

Rincewind olhou para a advertência com os olhos espremidos.

- E claro que consigo ler - comentou. - Apenas não acredito. - Pontos de exclamação múltiplos - prosseguiu, balançando a cabeça — são um sinal garantido de uma mente doentia. — Ele olhou para trás. Os contornos reluzentes do círculo mágico de Eric ficaram mais fracos e sumiram. — Não é exigir demais, entende. Mas pensei que você tinha dito que podia nos levar de volta para Ankh. Isto não é Ankh. Consigo ver pelos pequenos detalhes, como as sombras vermelhas e trêmulas e os gritos distantes. Em Ankh, os gritos geralmente estão muito mais perto.

- Acho que me saí muito bem fazendo ao menos ele funcionar -observou Eric, aborrecido. - Aposto que ninguém mais é capaz de fazer os círculos mágicos funcionar ao contrário. Em teoria, significa que você fica dentro do círculo e a realidade gira ao seu redor. Acho que me saí muito bem. Sabe — acrescentou, com uma vibração de entusiasmo repentina -, se você reescrever o códice de origem e, esta é a parte mais difícil, se o expedir através de um alto nível...

- Sim, sim, muito bem sacado, o que mais vocês vão inventar? -perguntou Rincewind. - A única questão é que nós estamos... Acho que é muito possível que estejamos no inferno.

- Oh!?

- A falta de reação de Eric provocou a curiosidade de Rincewind.

- Sabe do que estou falando? - acrescentou. - Aquele lugar cheio de demônios?

- Oh!?

- Não é um bom lugar para estar, é o que dizem por aí.

- Você acha que seremos capazes de explicar?

Rincewind parou para pensar. Na verdade, ele não estava muito certo acerca do que os demônios faziam com as pessoas. Mas sabia, sim, o que os humanos faziam e, após uma vida inteira em Ankh-Morpork, o inferno poderia se revelar um progresso. Mais caloroso, pelo menos.

Ele olhou para a argola na porta. Era preta e horrorosa, mas isso não tinha importância. Ela estava amarrada, justamente para não ser usada. Ao lado dela, com tudo indicando que tinha sido instalado recentemente por alguém que não sabia o que estava fazendo e não queria fazê-lo, havia um botão encaixado na madeira lascada. Rincewind experimentou tocá-lo.

 

 

O som que produziu pode ter sido, um dia, uma melodia popular, quem sabe escrita por um compositor talentoso a quem tenha sido revelada, num breve momento de êxtase, a música das esferas. Agora, no entanto, só fazia bing-BONG-ding-DONG.

E seria um uso preguiçoso da linguagem dizer que o bicho que atendeu à porta parecia um pesadelo. Os pesadelos costumam ser coisas bastante idiotas, e torna-se muito difícil explicar para quem ouve por que foi terrível quando suas meias ganharam vida ou cenouras gigantes pularam para fora dos arbustos. Esse bicho era o tipo de coisa aterrorizante que só poderia ser criada por alguém que realmente parou para pensar em coisas horríveis. Ele tinha mais tentáculos do que pernas, mas menos braços do que cabeças.

E usava um crachá.

Estava escrito: "Meu nome é Urglefloggah, Cria das Profundezas, o Vil Guardião Repugnante do Portal Terrível: Em que posso ajudar?"

Ele parecia não gostar muito daquilo.

- Pois não? - disse, num tom estridente.

Rincewind ainda lia o crachá.

- Em que você pode nos ajudar? — perguntou, chocado.

Urglefloggah, que guardava certa semelhança com o falecido Quezovercoatl, rangeu alguns de seus dentes.

- Olá... Você... - começou, como se tivesse recebido uma explicação paciente sobre o que dizer, dada por alguém com um ferro em brasa na mão. - "Meu nome é Urglefloggah, Cria das Profundezas, e hoje serei seu anfitrião... Peço licença para ser o primeiro a recebê-los em nossas bem equipadas e luxuosas..."

- Espera um pouco — interrompeu Rincewind.

- "... escolhidas para melhor servi-los..." — murmurava Urglefloggah.

- Tem alguma coisa errada aqui - insistiu Rincewind.

- "... total consideração pelos SEUS desejos, consumidor..." - continuou o demônio, impassível.

- Com licença - arriscou Rincewind.

- "... o mais agradável possível" - disse Urglefloggah. Ele fez um barulho que soava como um suspiro de alívio saído de algum lugar no fundo de suas mandíbulas. Naquele momento parecia escutar pela primeira vez. — Sim? O quê?

- Onde estamos? — perguntou Rincewind.

Diversas bocas sorriram.

- Tremam, mortais!

- O quê? Estamos num lugar frio?

- Arrastem-se e curvem-se, mortais! — O demônio corrigiu. - Vocês estão condenados ao perpétuo... - Ele parou e resmungou um pouco.

- Haverá um período de terapia corretiva - corrigiu mais uma vez, pronunciando as palavras rapidamente e com raiva – que esperamos ser o mais instrutivo e prazeroso possível, com a devida consideração por todos os SEUS direitos, consumidor.

Ele encarou Rincewind com vários olhos.

- Terrível, não? - observou, com uma voz mais normal. – Não me culpe. Se dependesse de mim, seria a boa e velha queimação de coisas no fogo agora mesmo.

- Aqui é o inferno, não é? - perguntou Eric. - Já vi em fotos.

- E isso mesmo — respondeu o demônio, pesaroso. Ele se sentou ou, pelo menos, se dobrou de um jeito complicado. – Serviço personalizado, era assim antigamente. As pessoas sentiam que nós tínhamos interesse, que não eram apenas números, e sim...bem... vítimas. Tínhamos uma tradição de serviço. Ele não está nem aí. Mas pra que estou contando meus problemas pra vocês? Como se já não tivessem muitos, estando mortos e vindo pra cá. Vocês não são músicos, são?

- Na verdade, nós nem estamos mor... - começou Rincewind.

O demônio o ignorou, se levantou e começou a caminhar pensativo pelo corredor abafado, com um gesto para que o seguissem.

- Vocês odiariam muito este lugar se fossem músicos. Odiar mais ainda, quero dizer. As paredes tocam música o dia todo. Bom, ele chama isso de música. Não tenho nada contra uma bela melodia, vejam bem, algo para gritar junto, mas não é assim...  quer dizer... Dizem que a gente tem as melhores melodias. Mas então por que temos essas coisas que soam como se alguém tivesse ligado o piano e saído de perto?

- Na realidade...

- E tem os vasos de plantas. Não me leve a mal, gosto de um pouco de verde por perto. Só que alguns dos rapazes dizem que essas plantas não são de verdade. Mas eu digo que elas têm que ser. Ninguém em sã consciência faria uma planta que parece um pedaço de couro verde-escuro e cheira a bicho-preguiça morto. Ele diz que o ambiente ganha uma aparência livre e acolhedora. Aparência livre e acolhedora! Eu vi jardineiros perspicazes caírem no choro. Estou dizendo, eles falaram que tudo o que fizemos com eles depois pareceu fichinha.

- Mortos é que nós não est... - começou Rincewind, tentando forçar as palavras numa brecha da monotonia sem fim daquela coisa, mas era tarde demais.

- A cafeteira. A cafeteira é boa, eu garanto. A gente só afogava as pessoas em lagos de xixi de gato, não as obrigava a comprar isso em copos.

- Nós não estamos mortos! - Eric gritou.

Urglefloggah estremeceu e parou.

- É claro que estão. Senão não estariam aqui. Não dá pra imaginar gente viva aqui. Não duraria cinco minutos. — Ele abriu diversas bocas, revelando uma variedade de presas. - Grr, grr - acrescentou. - Se eu pegasse alguma pessoa viva aqui embaixo...

Não havia sido à toa que Rincewind conseguira sobreviver por anos nas estruturas complexas e paranóicas da Universidade Invisível. Ele se sentia quase em casa. Seus reflexos funcionavam com uma precisão incrível.

- Quer dizer que não lhe contaram? - perguntou.

Era difícil saber se a expressão de Urglefloggah havia mudado, porque já era difícil saber qual parte daquilo tudo era a sua expressão. Mas definitivamente ele transmitiu um ar familiar de incerteza súbita e ressentida.

- Não contaram o quê? — perguntou.

Rincewind olhou para Eric.

- A gente esperava que eles contassem para as pessoas, não?

- Contar para as pessoas o q... arrrrgh — disse Eric, segurando o tornozelo.

- A administração moderna é assim - começou Rincewind, irradiando raiva e preocupação. - Eles fazem todas essas mudanças, esses novos ajustes, e você acha que consultam as pessoas que formam a espinha dorsal...

- Exoesqueleto — corrigiu o demônio.

- ... ou outra estrutura calcária ou quitinosa da organização?

- Rincewind terminou calmamente. E esperou confiante o que sabia vir em seguida.

- Eles não - disse Urglefloggah. - Estão muito ocupados com as ordens que têm que repetir, isso sim.

- Acho isso detestável - observou Rincewind.

- 'Cê sabia que não me deixaram entrar pro Clube dos 18.000 a 30.000? Disseram que sou velho demais. Que estragaria a diversão.

- Onde é que o mundo inferior vai parar? - perguntou Rincewind, solidário.

- Eles nunca vêm aqui embaixo, sabe - disse o demônio, com os ombros caídos. - Nunca me contam nada. Ah, sim, muito importante: fico cuidando do maldito portão. O mais importante: eu não penso!

- Olha, você não gostaria que eu fosse falar com eles?

- Aqui embaixo o tempo todo, trazendo as pessoas para dentro...

- E se conversássemos com alguém?

O demônio fungou com vários narizes ao mesmo tempo.

- Você faria isso?

- Seria um prazer.

Urglefloggah se animou um pouco, mas não demais, por precaução.

- Mal não vai fazer, não é?

Rincewind respirou fundo e deu um tapinha no que esperava fervorosamente que fossem as costas do bicho.

- Não se preocupe.

- E muita gentileza sua.

Rincewind olhou para Eric, que estava do outro lado da criatura trêmula.

- É melhor irmos andando. Para não nos atrasarmos para o nosso compromisso. — Ele fez sinais frenéticos por cima da cabeça do demônio.

Eric deu um largo sorriso.

- É, isso mesmo, compromisso - disse.

Eles atravessaram a ampla passagem. Eric caiu numa gargalhada histérica.

- Hora de correr, certo?

- Hora de andar - corrigiu Rincewind. - Apenas andar. O importante é parecer despreocupado. Sentir a hora certa.

Ele olhou para Eric. Eric olhou para ele.

Atrás deles, Urglefloggah fez um barulho do tipo "acabei-de-me-dar-conta".

- Tipo agora? - perguntou Eric.

- Tipo agora, isso.

Eles correram.

O inferno não era o que Rincewind imaginava, embora houvesse sinais do que ele deveria ter sido um dia - alguns resíduos de carvão nos cantos, uma marca feia de queimadura no teto. No entanto, ainda fazia calor, o tipo de calor que resulta do aquecimento do ar dentro de um forno durante anos...

O inferno, já havia sido sugerido, são os outros.

Isso sempre surpreendia muitos dos demônios em serviço, que achavam que o inferno era espetar coisas afiadas nas pessoas, empurrá-las em lagos de sangue e assim por diante.

E que os demônios, como a maioria das pessoas, não conseguiam diferenciar corpo e alma.

De fato, como vários reis demônios tinham constatado, havia um limite para o que se podia fazer a uma alma com, por exemplo, pinças incandescentes. Isso porque até mesmo as almas corrompidas e bastante más eram inteligentes o suficiente para perceber que, como não possuíam corpo e as terminações nervosas, não havia razão real, senão a força do hábito, para que sofressem uma aflição dolorosa. E não sofriam. Os demônios continuavam torturando-as assim mesmo, porque a estupidez entorpecida e tediosa é inerente a ser um demônio, mas, como ninguém sofria, eles também não acharam muita graça e tudo isso deixou de fazer sentido. Séculos e mais séculos de falta de sentido.

Astfgl havia adotado, sem se dar conta do que fazia, uma abordagem radicalmente nova.

Os demônios podem transitar pelas dimensões, e assim ele encontrou os ingredientes básicos para criar algo para a alma que equivalesse vantajosamente ao lago de sangue. "Aprendam com os humanos", ele disse aos lordes demônios. "Aprendam com os humanos. É impressionante o que se pode aprender com os humanos."

Tome como exemplo um certo tipo de hotel. Provavelmente é uma versão inglesa de um hotel americano, mas administrado com aquele peculiar espírito inglês que pega algo americano e subtrai seu único aspecto vantajoso, de modo que resulte em algo como um fastfood lento ou, bem, este hotel.

E fim de tarde. O bar se resume a uma mesa, com uma toalha rosa pastel e um balde de gelo idiota em cima, colocada num canto. E ainda levaria horas para abrir. Depois você acrescenta chuva e faz com que o único canal de TV disponível seja o Canal 4 do País de Gales, transmitindo um festival de tradições folclóricas, como de costume. E só existe um livro neste hotel, deixado por uma vítima anterior. E um daqueles em que o nome do autor aparece na frente com letras douradas em relevo, muito maior que o título, provavelmente com a figura de uma rosa e uma bala de revólver também. Falta metade das páginas.

E no único cinema da cidade está passando algo legendado e com guarda-chuvas franceses.

Depois você pára o tempo, mas não a experiência, de modo que a penugem do carpete começa a dar a impressão de estar subindo até o seu cérebro e enchendo a sua boca com um gosto de dentadura velha.

E você providencia para que isso dure para sempre. Demora ainda mais do que o horário de abertura do bar.

Daí você tira uma idéia.

E claro que no Discworld não existem diversos desses itens, mas o tédio é algo universal, e Astfgl havia alcançado, no inferno, uma qualidade de tédio especialmente elevada, como o que você sente quando a) o próprio tédio lhe custa dinheiro e b) ele existe enquanto você deveria estar se divertindo.

As cavernas que se abriram diante de Rincewind estavam cheias de névoa e divisórias elegantes. De vez em quando, gritos de enfado se manifestavam entre os vasos de plantas, mas em geral o que havia era o terrível silêncio entorpecido do cérebro humano reduzido a requeijão de dentro para fora.

- Não entendo — começou Eric. — Cadê as fornalhas? Cadê as chamas? Cadê - acrescentou, esperançoso - os súcubos?

Rincewind examinou o objeto de decoração mais próximo.

Um demônio inconsolável - cujo crachá declarava ser Aza-remoth, o Fedor de Bafo de Cachorro, e desejava um bom dia a quem o lesse - permanecia sentado à beira de uma fossa rasa, onde havia uma pedra em que um homem estava acorrentado com os membros esticados.

Uma ave com aparência muito cansada estava empoleirada ao lado dele. Rincewind achou que o papagaio de Eric estava aos frangalhos, mas aquela ave estava destruída. Parecia que tinha sido depenada e depois tido as penas colocadas de volta.

A curiosidade superou a covardia habitual de Rincewind.

- O que está acontecendo? — perguntou. — O que está havendo com ele?

O demônio parou de balançar as pernas na beira da fossa. Não lhe ocorreu questionar a presença de Rincewind. Presumiu que ele não estaria ali a não ser que tivesse o direito de estar. O contrário seria inacreditável.

- Num sei o que ele fez - começou -, mas quando cheguei aqui seu castigo era ser acorrentado a essa pedra, e todos os dias uma águia viria arrancar um pedaço do fígado dele. Esse castigo faz muito sucesso.

- Parece que a águia não anda atacando muito – observou Rincewind.

- Não. Mudou tudo. Agora ela vem voando todos os dias e fala com ele sobre sua operação de hérnia. Isso é eficaz - disse o demônio, com tristeza —, mas não é o que eu chamaria de tortura.

Rincewind virou o rosto, não sem antes ver de relance a expressão de agonia terminal da vítima. Era terrível.

Havia piores, no entanto. Na fossa ao lado, diversas pessoas acorrentadas gemiam e olhavam para uma série de fotos. Um demônio diante delas lia um roteiro.

- ... isso foi quando estávamos no Quinto Círculo, só não dá pra ver onde ficamos, era logo aqui à esquerda, Este é aquele casal divertido que conhecemos lá. Vocês não iam acreditar, eles moravam nas Planícies Geladas da Perdição, bem ao lado do...

Eric olhou para Rincewind.

- Ele está mostrando fotos das férias? - perguntou.

Os dois deram de ombros e saíram andando, balançando a cabeça.

Depois se depararam com uma pequena colina. Ao sopé, havia uma pedra redonda. Um homem permanecia sentado ao lado da pedra, com a cabeça afundada entre as mãos, em desespero. Um demônio verde e atarracado estava ao seu lado, quase curvado pelo peso de um livro enorme.

- Deste eu já ouvi falar - comentou Eric. - O homem que desafiou os deuses ou algo assim. Tem que ficar empurrando aquela pedra colina acima, mas ela sempre rola de volta para baixo...

O demônio olhou para cima.

- Mas antes — disse, com a voz trêmula — ele tem que ouvir as Normas de Insalubridade e Falta de Segurança que governam os Atos de Erguer e Mover Grandes Objetos.

O volume 93 dos Comentários, na verdade. A normas em si constituíam mais 1.449 volumes. Quer dizer, só a parte 1.

 Rincewind sempre gostou da monotonia, apreciando seu valor ao menos pela pouca freqüência com que lhe ocorria. Sempre lhe parecera que os únicos momentos em sua vida em que não era perseguido, preso ou agredido foram aqueles em que havia sido derrubado de coisas. Ainda que cair por uma grande distância envolvesse uma certa mesmice, não chegava a contar como "monotonia". O único momento de que conseguia se lembrar com relativa carga de afeto era o seu breve período de trabalho como bibliotecário-assistente na Universidade Invisível, onde não havia muito o que fazer a não ser ler livros, cuidar para que o fornecimento de bananas do bibliotecário não fosse interrompido e, raras vezes, ajudá-lo com algum grimório teimoso.

Agora ele percebia o que tornava a monotonia algo tão atraente. Saber que coisas piores — coisas perigosamente empolgantes - estavam acontecendo não muito longe, e você estava bem longe delas. Para que o tédio fosse apreciado, tinha que haver algo com o que compará-lo.

Por outro lado, aquilo era monotonia em cima de mais monotonia, enrolando-se ao redor de si mesma até se tornar uma grande marreta esmagadora, que paralisava todo pensamento e experiência e fazia a eternidade parecer algo como uma flanela.

- Isto é terrível - disse.

O homem acorrentado ergueu o rosto fatigado.

- Você está dizendo isso pra mim? - perguntou. - Antes eu gostava de empurrar a bola colina acima. Dava para parar e bater um papo com alguém, dava para empurrar de várias maneiras diferentes e tudo o mais. Eu era meio que uma atração turística, as pessoas ficavam apontando para mim. Eu não diria que era divertido, mas dava um propósito para a vida após a morte.

- E eu o ajudava — observou o demônio, com a voz áspera de indignação e mau humor. Dava uma mãozinha às vezes, não dava? Contava umas fofocas e tal. Tentava incentivá-lo quando a bola rolava de volta e tal. Dizia coisas como "Opa, lá vai a danada de novo", e ele dizia "Dane-se ela". A gente se distraía, não? Bons tempos - e assoou o nariz.

Rincewind tossiu.

 - Não tá dando pra agüentar - continuou o demônio. – Nos velhos tempos, a gente era feliz. Não machucava muito nenhum dos dois e, bem, a gente tava nisso junto.

-           E isso aí - concordou o homem acorrentado. — Dava pra saber que, se a gente não aprontasse, tinha chance de sair daqui algum dia. Sabia que agora, uma vez por semana, eu tenho que parar com isto para aulas de artesanato?

- Deve ser legal - opinou Rincewind, incerto.

O homem apertou os olhos.

- Cestos de vime?

- Eu to aqui há 18 milênios, demônio e diabrete — resmungou o demônio. - Aprendi o meu ofício, sim. Dezoito mil malditos anos atrás do garfo, e agora isto. Lendo um...

Um estrondo sônico ecoou por toda a extensão do inferno.

- Ai, ai - disse o demônio. - Ele voltou. E parece nervoso. É melhor baixarmos a cabeça. E realmente, por todos os círculos de Hades, demônios e condenados gemiam em uníssono e retornavam a seus infernos pessoais.

O homem acorrentado começou a suar.

- Olha, Vizzimuth - ele disse -, será que a gente não podia pular um ou dois parágrafos...

- É o meu trabalho - respondeu o demônio, num tom triste. — Você sabe que Ele checa tudo e isso conta mais que o meu trabalho... - Ele parou, fez uma expressão de tristeza para Rincewind e deu um tapinha com a garra nas costas do homem, que soluçava.

- Quer saber? — começou, num tom amável. — Vou pular algumas das subcláusulas.

Rincewind pôs a mão no ombro receptivo de Eric.

- É melhor irmos embora - disse, com discrição.

- Isto é horrível mesmo — comentou Eric, quando saíram andando. — Isso acaba com a reputação do mal.

- Humm - disse Rincewind. O mago não estava gostando do som que Ele estava fazendo ao retornar, nem do som da Sua ira. Sempre que algo tão importante a ponto de merecer letras maiúsculas ficava nervoso perto de Rincewind, geralmente estava nervoso com ele.

 - Já que você sabe tanto sobre este lugar, talvez você se lembre de como sair daqui.

Eric coçou a cabeça.

- Fica mais fácil se você for ou estiver com uma garota. De acordo com a mitologia ephebiana, existe uma garota que vem para cá todo inverno.

- Para se esquentar?

- Acho que a história conta que, na verdade, ela meio que criou o inverno.

- Já conheci mulheres assim — observou Rincewind, balançando a cabeça sabiamente.

- Uma lira também facilita as coisas, eu acho.

- Ah. Agora estamos pisando num terreno mais sólido - disse Rincewind. Ele pensou um pouco e depois disse - E... Eu conheço alguns poemas...

- Lira de tocar - explicou Eric pacientemente.

- Ah!

- E... e... e, quando você sair daqui, se olhar para trás... Acho que romãs entram por algum lugar ou... ou... ou você se transforma num pedaço de madeira.

- Eu nunca olho para trás - disse Rincewind com firmeza.

- Uma das primeiras regras da fuga é nunca olhar para trás.

Houve um estrondo atrás deles.

- Especialmente quando você ouve barulhos altos – continuou Rincewind. - Quando se trata de covardia, isso é o que separa os homens das ovelhas. E sair correndo de uma vez. — Ele segurou as barras do seu manto.

E eles correram sem parar, até que uma voz conhecida disse:

- Ei, vocês, rapazes. Entrem aqui. E impressionante como a gente encontra velhos amigos aqui embaixo.

E outra voz disse:

- Coiso? Coiso?

 

- Onde estão eles?!.

Os sublordes do inferno estremeceram. Aquilo seria terrível. Talvez até resultasse num memorando.

- Não é possível que tenham escapado! - disse Astfgl, com a voz estridente.

- Eles estão aqui, em algum lugar. Como você conseguiu não encontrá-los? Estou cercado de incompetentes, além de idiotas?

- Meu senhor...

Os príncipes demônios se viraram.

Quem falava era o duque Vassenego, um dos demônios mais velhos. Quantos anos tinha, ninguém sabia. Mas, se não era ele o inventor do pecado original, pelo menos tinha feito uma das primeiras cópias. Por pura aventura e perversões da mente, deve até mesmo ter se passado por humano e, de fato, costumava tomar a forma de um advogado velho e bastante triste, com uma águia em algum ponto de sua linhagem.

E todas as mentes demoníacas pensaram: "Coitado do velho Vassenego, desta vez ele conseguiu. Não será apenas um memorando, será uma declaração sobre a política da empresa, com cópia em carbono para todos os departamentos e uma cópia para os arquivos".

Astfgl se virou lentamente, como se estivesse sobre uma plataforma giratória. Voltara à sua forma preferida, mas havia se recomposto, por assim dizer, num nível emocional mais alto. A simples idéia de seres humanos vivos em seus domínios o fazia vibrar de fúria como a corda de um violino. Não dava para confiar neles. São muito incertos. O último humano a obter permissão para descer vivo ao inferno gerou uma péssima propaganda para o local. Acima de tudo, os humanos faziam com que ele se sentisse inferior.

Naquele momento, toda a energia de sua raiva se concentrava na figura do velho demônio.

- Você ia fazer algum comentário pertinente? — perguntou.

- Eu simplesmente ia dizer, senhor, que fizemos uma extensa busca em todos os oito círculos e tenho realmente certeza...

- Silêncio! Não pense que não sei o que está acontecendo — berrou Astfgl, rodeando a figura desenhada. — Já vi você... e você... e você- seu tridente apontava para alguns dos outros lordes - conspirando pelos cantos, incitando rebeliões! Eu mando aqui, não é verdade? E serei respeitado!

Vassenego ficou pálido. Suas narinas aristocráticas se alargaram como turbinas de jato. Tudo nele parecia dizer: sua criaturinha arrogante, é claro que incitamos rebeliões, nós somos demônios! E eu enlouquecia os príncipes enquanto você incitava os gatos a deixar ratos mortos debaixo da cama, seu tolo, tacanho e amante da burocracia!" Tudo nele parecia exprimir isso, exceto sua voz, que dizia calmamente:

— Ninguém está negando isso, majestade.

— Então façam a busca de novo! E o demônio que os deixou entrar deve ser levado ao poço mais fundo, onde será desmontado, está claro?

Vassenego ergueu as sobrancelhas.

— O velho Urglefloggah, majestade? Ele é um imbecil, certamente, mas é leal...

— Você, por acaso, está se esforçando para me contradizer?

Vassenego hesitou. Por mais que achasse o rei uma lástima, os demônios acreditam muito na precedência e na hierarquia. Havia muitos demônios jovens abaixo deles pressionando os lordes mais velhos a demonstrar abertamente como cometer um regicídio e tramar golpes, qualquer que fosse o motivo. Vassenego tinha seus próprios planos. Não valia a pena estragar as coisas naquele momento.

- Não, majestade. Mas isso significa, majestade, que o portal terrível não será mais...

- Obedeça!

A Bagagem chegou ao portal terrível.

É impossível descrever a raiva que se pode sentir após correr duas vezes pela extensão do contínuo espaço-tempo, e a Bagagem já estava bastante irritada antes de começar.

Ela olhou para as dobradiças. Olhou para os cadeados. Recuou um pouco e pareceu ler o novo letreiro acima do portal.

E possível que isso a tenha deixado ainda mais irritada, embora no caso da Bagagem não haja nenhuma forma confiável de saber, já que ela era sempre, por assim dizer, no mínimo hostil.

 

As portas do inferno eram antigas. Não foram apenas o tempo e o calor que assaram sua madeira até virar algo parecido com granito preto. Aquelas portas tinham acumulado medo, maldade e tédio. Eram mais que coisas usadas para preencher um buraco na parede. E espertas o suficiente para ter uma vaga consciência do que esperar do futuro.

Elas observaram a Bagagem se afastar, arrastando os pés pela areia, flexionar as pernas e se agachar.

A fechadura se abriu. Os ferrolhos se arrastaram de volta rapidamente. As grandes barras saltaram de seus orifícios num tranco. As portas se jogaram contra a parede.

A Bagagem se esticou e depois se ajeitou. Deu um passo à frente. Andou com um ar quase pomposo. Passou entre as dobradiças desgastadas e, quando estava quase do outro lado, se virou e deu um belo chute na porta mais próxima.

Havia um enorme moinho de tração humana, do tipo que é acionado por pessoas enfileiradas caminhando sobre uma grande roda com degraus. Não produzia energia para nada, e suas engrenagens faziam um rangido considerável. Era uma das idéias mais inspiradas de Astfgl, e não tinha absolutamente nenhuma utilidade a não ser mostrar a centenas de pessoas que, se elas achavam que sua vida não tivera sentido, ainda não tinham visto nada.

- Não podemos ficar aqui para sempre - disse Rincewind. — Precisamos fazer alguma coisa. Por exemplo, comer.

- Essa é uma das grandes vantagens de ser uma alma condenada - observou Ponce da Quirm. - Todas as velhas preocupações com cuidados físicos desaparecem. E claro que você passa a ter um conjunto de preocupações totalmente novo, mas eu sempre achei aconselhável ver as coisas pelo aspecto positivo.

- Coiso! — exclamou o papagaio, que estava sentado no seu ombro.

- Olha só - começou Rincewind. - Não sabia que animais iam para o inferno. Embora eu entenda bem por que fizeram uma exceção neste caso.

- Vai se ferrar, mago!

- Eu não entendo por que eles não nos procuram aqui - ponderou Eric.

- Cale a boca e continue andando - disse Rincewind. – Por que são burros, por isso. Não conseguem imaginar que estaríamos fazendo algo assim.

- É, nesse ponto eles estão certos. Eu não consigo imaginar que estejamos fazendo algo assim.

Rincewind caminhou por um instante sobre a roda com degraus que acionava o moinho, observando uma multidão de demônios que passou apressada, vasculhando tudo freneticamente.

- Então você não encontrou a Fonte da Juventude no fim das contas - disse, sentindo que tinha que puxar conversa.

- Ah, eu encontrei - contestou da Quirm, seriamente. – Uma nascente cristalina no meio da floresta. Foi muito emocionante. Eu dei um belo gole. Talvez trago seja a palavra mais apropriada.

- E...?

- Definitivamente funcionou. Sim. Por um momento, eu definitivamente pude sentir que rejuvenescia.

- Mas... — Rincewind fez um gesto vago com a mão, abrangendo da Quirm, o moinho e os altos círculos das Profundezas.

- Ah! — começou o velho. — E claro, esta é a parte mais desagradável. Eu havia lido tanto sobre a Fonte... Era de esperar que, em todos esses livros, alguém tivesse mencionado aquilo que é realmente vital em relação à água, não?

- Que é...?

- Ferver primeiro. Não é preciso dizer mais nada, não é? Realmente lamentável.

A Bagagem desceu correndo a grande estrada em espiral que ligava os círculos das Profundezas. Mesmo em condições normais, ela provavelmente não teria atraído muita atenção. Era bem menos espantosa que a maioria dos habitantes dali.

- Isso é muito tedioso — reclamou Eric.

- Essa é a idéia - disse Rincewind.

- Não deveríamos estar passeando por aqui, e sim tentando encontrar uma saída!

- Ah, sim. Só que não existe saída.

- Na verdade, existe — interrompeu uma voz atrás de Rincewind. Era a voz de alguém que já havia visto de tudo e não gostara muito do que vira.

- Lavaeolus? - perguntou Rincewind. Seu ancestral estava bem atrás dele.

- "Você chega bem em casa" — disse Lavaeolus, num tom amargo. - Suas exatas palavras. Hã... Dez anos de um apuro atrás do outro. Você poderia ter me contado.

- É... — começou Eric. — Não queríamos perturbar o curso da história.

- Vocês não queriam perturbar o curso da história — repetiu Lavaeolus devagar. Ele olhou para a estrutura de madeira do moinho. - Oh! Ótimo. Isso faz com que fique tudo bem. Eu me sinto muito melhor sabendo disso. Falando em nome do curso da história, gostaria de dizer muito obrigado.

- Com licença — interrompeu Rincewind.

- Pois não?

- Você disse que existe outra saída?

- Ah, sim. Uma passagem pelos fundos.

- Onde fica isso?

Lavaeolus parou de caminhar sobre a roda com degraus por um momento e apontou para o outro lado do vale nebuloso.

- Está vendo aquele arco ali?

Rincewind tentou enxergar alguma coisa.

- Quase. É a saída?

- Sim. Uma subida longa e íngreme. Mas não sei onde vai dar.

- Como você ficou sabendo disso?

Lavaeolus deu de ombros.

- Perguntei a um demônio. Sempre existe um jeito mais fácil de fazer as coisas, sabe.

- Demoraria um século para chegar lá - observou Eric. – É lá do outro lado, nunca vamos conseguir.

 Rincewind concordou com a cabeça e, carrancudo, continuou a marcha sem fim. Após alguns minutos, disse:

- Vocês também estão com a impressão de que estamos indo mais rápido?

Eric se virou.

A Bagagem havia embarcado e tentava alcançá-los.

Astfgl permanecia parado diante do seu espelho.

- Mostre-me o que eles estão vendo - ordenou.

- Sim, mestre.

Astfgl examinou a imagem acompanhada de chiado por um instante.

- Diga-me o que significa isso.

- Sou apenas um espelho, mestre. Como é que vou saber?

Astfgl resmungou.

- E eu sou o senhor de Hades - disse, gesticulando com o tridente. - E estou disposto a arriscar ter mais sete anos de azar.

O espelho considerou as opções disponíveis.

- Talvez eu consiga ouvir um chiado, senhor - arriscou.

- E?

- Sinto cheiro de fumaça.

- Nada de fumaça. Eu fui bem específico ao banir todas as fogueiras ao ar livre. E um conceito muito antiquado. Estragou a reputação do lugar.

- Ainda assim, mestre.

- Mostre-me... Hades.

O espelho deu o melhor de si. O rei estava prestes a ver a roda do moinho desmontar, com seus pontos de apoio em brasa, cair do seu suporte e rolar, com uma lentidão tão ilusória quanto a de uma avalanche, pela terra dos condenados.

Rincewind estava pendurado na barra de apoio, vendo os degraus da roda passar girando a uma velocidade que teria queimado as solas de suas sandálias caso tivesse sido tolo a ponto de baixar os pés. Os mortos, no entanto, encaravam aquilo tudo com o desembaraço animado dos que sabem que o pior já passou. Gritos de "passe o algodão-doce" podiam ser ouvidos. O mago ouviu Lavaeolus elogiar a esplêndida tração que girava a roda e explicar a da Quirm como, com um veículo blindado que destruísse a estrada por onde passasse - exatamente como a Bagagem fazia —, as guerras passariam a ser menos sangrentas, terminariam na metade do tempo e todos poderiam demorar ainda mais no caminho de volta para casa.

A Bagagem não fez absolutamente nenhum comentário. Conseguia ver seu dono pendurado a alguns metros de distância e continuou a tracionar a roda. Pode ter lhe ocorrido que a empreitada estava demorando um pouco, mas isso era problema do Tempo. E assim, arremessando-se sobre uma ou outra alma penada que berrava no chão, atropelando, atirando longe e passando por cima de um ou outro demônio sem sorte, a roda saiu rolando.

Ela se arrebentou contra o rochedo que ficava do outro lado.

Lorde Vassenego sorriu.

- Agora é a hora.

Os outros demônios mais antigos tinham um ar desonesto. Estavam, é claro, mergulhados no mal, e Astfgl definitivamente não era Um de Nós, além de ser o sujeitinho mais repugnante a conseguir chegar ao posto por meios duvidosos...

Mas... bem, isto... talvez houvesse algumas coisas que eram muito...

- "Aprendam com os humanos" - arremedou Vassenego. – Ele me mandou aprender com os humanos. Eu! Que descaramento! Que arrogância! Mas eu observei, ah, eu observei. Eu aprendi. Eu planejei.

A expressão em seu rosto era indescritível. Até mesmo os lordes dos círculos mais inferiores, que se vangloriavam da baixeza, tiveram que virar o rosto.

Duque Drazometh, o Pútrido, levantou a garra hesitante.

- Mas se ele ao menos desconfiar... Quer dizer, ele tem um temperamento abominável. Aqueles memorandos... — ele estremeceu.

- Mas o que estamos fazendo? — Vassenego estendeu as mãos num gesto inocente. — Que mal há nisso? Irmãos, eu lhes pergunto: que mal há?

 Seus dedos se enrolaram. As juntas revelavam um brilho branco abaixo da pele fina com veias azuis enquanto ele examinava os rostos indecisos.

- Ou vocês preferem receber mais uma declaração sobre a política da empresa? - perguntou.

Rostos se contraíram quando os lordes tomaram sua decisão. Era como uma fileira de dominós desmoronando. Havia algumas coisas em torno das quais até eles se uniam. Chega de declarações sobre a política da empresa, chega de documentos consultivos, chega de mensagens de incentivo a toda a equipe. Aquilo era o inferno, mas as coisas tinham que ter algum limite.

Earl Beezlemoth esfregou um de seus três narizes.

- E os humanos, em algum lugar, inventaram essas coisas sem a ajuda de ninguém? - perguntou. - Nós não lhes demos nenhuma, sabe como é, dica?

Vassenego balançou a cabeça.

- Tudo obra deles mesmos - respondeu, orgulhoso como um professor amoroso que acabou de ver um dos pupilos prediletos se formar com menção summa cum laude.

O duque tinha o olhar fixo no infinito.

- Pensei que nós éramos os desagradáveis - comentou, com a voz cheia de respeito.

O velho lorde concordou com a cabeça. Havia esperado muito tempo por isso. Enquanto os outros falavam da revolução vermelha em brasa, ele apenas direcionara seu olhar para o mundo dos homens, observara, e se encantara.

Esse tal de Rincewind tinha sido extremamente útil. Conseguira manter o rei totalmente ocupado. Tinha feito todo o esforço valer a pena. O humano idiota ainda achava que seus dedos realizavam o trabalho! Três desejos, até parece!

E foi assim que Rincewind, assim que conseguiu se libertar dos destroços da roda encontrou Astfgl, rei dos demônios, senhor do inferno, mestre das profundezas, parado diante dele.

Astfgl havia passado pelo estágio inicial da fúria e estava naquela calma lagoa de raiva em que a voz fica firme, a conduta permanece comedida e educada, e apenas um sinal de saliva no canto da boca revela o inferno interior.

 Eric saiu se arrastando de baixo de um poste e olhou para cima.

- Ai, caramba - disse.

O rei demônio rodopiou o tridente. De repente, deixou de parecer cômico. Parecia um bastão de metal pesado com três espetos horríveis na ponta.

Astfgl sorriu e olhou ao redor.

- Não - ele disse, aparentemente para si mesmo. - Não aqui.

Não tem público o bastante. Venham!

Uma mão pegou cada um deles pelo ombro. Não conseguiam resistir mais do que uma dupla de pedras de gelo não-idênticas resistiria a um lança-chamas. Houve um momento de desorientação, e Rincewind se viu na sala mais ampla do universo.

Era o grande salão. Daria para construir foguetes espaciais ali dentro. Os reis do inferno devem ter ouvido falar em palavras como "sutileza" e "discrição". Mas também ouviram que quem tinha precisava ostentar. E concluíram que, se não tivessem, precisariam ostentar ainda mais. O que realmente não tinham era bom gosto. Astfgl fizera o possível, mas nem ele fora capaz de acrescentar muito ao péssimo design básico, às cores chocantes e ao papel de parede horroroso. Ele havia colocado algumas mesas de centro e um pôster de tourada, mas ficou tudo meio perdido no caos geral, e a nova manta sobre o encosto do Trono do Medo serviu apenas para dar destaque aos seus baixos-relevos mais irritantes.

Os dois humanos foram atirados ao chão.

- E agora... - começou Astfgl.

Mas sua voz foi abafada por uma gritaria repentina.

Ele ergueu o olhar.

Demônios de todos os tamanhos e formas enchiam quase todo o salão, subindo pelas paredes e até se pendurando no teto. Uma banda endemoniada começou a tocar uma seleção de acordes numa variedade de instrumentos. Em uma bandeira, esticada de ponta a ponta no salão, lia-se: "Saudação Ao Líder".

("Hale To Ther Cheve" no original, refere-se a "Hail to the Chief", espécie de hino tocado como saudação ao presidente norte-americano. (N. T.)

Astfgl franziu a testa com uma sensação de paranóia instantânea quando Vassenego, trazido pelos outros lordes, veio em direção a ele. O rosto do velho demônio estava tomado por um sorriso totalmente sincero. O rei quase entrou em pânico e acertou Vassenego com o tridente antes que ele lhe estendesse a mão e lhe desse um tapinha nas costas.

- Muito bem! — ele gritou.

- Quê?

- Ah! Muitíssimo bem!

Astfgl olhou para Rincewind.

 

- Oh! Sim. Bem. - Ele tossiu. - Não foi nada - começou, se endireitando. — Eu sabia que vocês não chegariam a lugar nenhum, então eu só...

- Não se trata desses aí - disse Vassenego, com desprezo. - Coisas tão triviais. Não, majestade. Estava me referindo à sua elevação.

- Elevação?

- Sua promoção, majestade!

Gritos de viva partiram de um grupo de demônios jovens, que gritavam viva por qualquer coisa.

- Promoção? Mas, eu sou o rei... -Astfgl protestou, vacilante.

Ele sentia que a compreensão dos acontecimentos começava a lhe escapar.

- Pfooie! — exclamou Vassenego, entusiasmado.

- Pfooie?

- Com certeza, majestade. Rei? Rei. Majestade, eu falo por todos nós quando digo que isso não é título para um demônio como o senhor, majestade, um demônio cuja compreensão das questões e prioridades organizacionais, cuja visão das funções adequadas de nossa natureza, cuja, se é que posso dizê-lo, capacidade intelectual absoluta nos levou a novos e mais profundos níveis, majestade!

Sem querer, Astfgl se envaideceu.

- Bem, sabe como é...

- E, no entanto descobrimos que, apesar do seu cargo, o senhor se interessa pelos mínimos detalhes de nosso trabalho - observou Vassenego, olhando para baixo, para Rincewind.

- Tanta dedicação! Tanta devoção!

Astfgl inflou.

- E claro, eu sempre senti que...

Rincewind se ergueu pelos cotovelos e pensou: "Cuidado, atrás de você..."

- Então — continuou Vassenego, sorrindo feito uma praia cheia de faróis - o Conselho se reuniu e decidiu, e devo acrescentar, majestade, decidiu por unanimidade, criar um prêmio inteiramente novo em honra de suas impressionantes realizações!

- A importância de documentos e papéis é... Que prêmio? —perguntou Astfgl, com as arraias da desconfiança atravessando os oceanos da auto-estima.

- O cargo, majestade, de supremo presidente vitalício do inferno!

A banda tentou começar mais uma vez.

- Com o seu próprio escritório... muito maior do que aquela coisa apertada que o senhor teve que suportar todos esses anos, majestade. Ou melhor, senhor presidente!

A banda tentou outro acorde. Os demônios esperaram.

- Vai ter... Vasos de plantas? - perguntou Astfgl, devagar.

- Inúmeros! Plantações! Florestasl

Astfgl pareceu ter sido iluminado por um suave brilho interior.

- E tapetes? Tem que ser de parede a parede...

- As paredes tiveram que ser demolidas e reconstruídas especialmente para acomodar todos eles, majestade. São muito felpudos, majestade. Tribos de pigmeus inteiras estão se perguntando por que a luz fica acesa à noite, majestade!

O rei, desnorteado, permitiu que um braço expansivo se jogasse sobre seu ombro, e foi conduzido com um movimento suave — esquecendo de todos os pensamentos de vingança — por entre multidões eufóricas.

— Eu sempre adorei aquelas coisas especiais para fazer café — murmurou enquanto se corroíam os últimos vestígios de autocontrole.

- Uma fábrica oficial foi instalada, majestade! E um alto-falante, majestade, para que o senhor se comunique com seus subordinados. E as últimas novidades em agendas, duas eras por página, e uma coisa para...

- Canetas coloridas para marcar textos. Eu sempre afirmei que...

- Arco-íris completos, majestade — Vassenego aumentou o volume da voz. - E vamos até lá sem demora, majestade, porque suspeito que, com a visão perspicaz que tem das coisas, o senhor não vê a hora de se atracar com a imensa quantidade de trabalho que tem pela frente, majestade.

- Certamente, certamente! Já era para ter acabado tudo na verdade... - Uma expressão de vaga perplexidade passou pelo rosto ruborizado de Astfgl. — Essa imensa quantidade de trabalho...

- Nada menos que uma análise detalhada, completa, minuciosa, integral e competente de nossos papéis, funções, prioridades e objetivos, majestade!

Vassenego chegou para trás. Os lordes demônios prenderam a respiração. Astfgl franziu a testa. O universo parecia ter ficado mais lento. As estrelas pararam seu curso por um momento.

- Com planejamento antecipado? - perguntou por fim.

- Isso é prioridade máxima, majestade, e o senhor a identificou de forma instantânea com sua atitude incisiva de costume - concordou Vassenego rapidamente.

Os lordes demônios voltaram a respirar.

O peito de Astfgl se expandiu alguns centímetros.

- Precisarei de uma equipe especial, é claro, para formular...

- Formular! Exatamente! - disse Vassenego, que talvez estivesse só um pouco empolgado. Astfgl olhou para ele com um ar levemente desconfiado, mas naquele momento a banda começou novamente.

As últimas palavras que Rincewind ouviu, enquanto o rei era levado para fora do salão, foram: "E para que eu possa analisar a informação, precisarei de..."

E depois ele se foi.

 

O resto dos demônios, consciente de que o entretenimento do dia se encerrara, começou a se mover de forma desordenada e sair aos poucos pelas portas enormes. Os mais inteligentes começavam a se dar conta de que o fogo logo voltaria a arder.

Ninguém parecia notar os dois humanos. Rincewind puxou o manto de Eric.

- Agora é hora de correr, certo? - perguntou Eric.

- Hora de andar — corrigiu Rincewind, com firmeza. — Como quem não quer nada, com calma e, é...

- Depressa?

- Você aprende rápido, hein?

É essencial que o uso adequado dos três desejos traga felicidade ao maior número de pessoas possível, e isso foi o que de fato aconteceu.

Os tezumanos estavam felizes. Quando viram que, por mais que dedicassem cultos à Bagagem, não conseguiriam fazê-la voltar e acabar com seus inimigos, envenenaram todos os sacerdotes e experimentaram o ateísmo esclarecido, o que ainda significava que poderiam matar quantas pessoas quisessem, mas sem ter que acordar tão cedo para fazê-lo.

O povo de Tsort e de Ephebe estava feliz - pelo menos aqueles que escrevem e contracenam nas peças de teatro históricas, que são os que realmente têm importância. Sua longa guerra havia terminado, e eles podiam dar início à principal ocupação de uma nação civilizada, que é se preparar para a próxima guerra.

O povo do inferno estava feliz, ou pelo menos mais feliz do que antes. As chamas tremeluziam brilhantes novamente, as mesmas velhas torturas conhecidas eram impostas a corpos etéreos completamente incapazes de senti-las, e os condenados adquiriram aquela visão que torna as dificuldades tão mais fáceis de ser suportadas: o conhecimento certo e absoluto de que as coisas poderiam ser piores.

Os lordes demônios estavam felizes.

Eles se reuniram ao redor do espelho mágico, brindando em comemoração. De vez em quando, um deles arriscava um tapinha nas costas de Vassenego.

- Devemos deixá-los ir, majestade? - perguntou um duque, observando as figuras que subiam correndo na imagem escura do espelho.

- Ah, eu acho que sim - respondeu Vassenego, distraído. – É sempre bom deixar algumas histórias se espalharem, sabe. Pour encouragy le... por encoura... pra todo mundo ficar esperto e não perder a noção do perigo. E eles foram úteis, à sua maneira.

Ele olhou para as profundezas de seu drinque, regozijando-se em silêncio.

Ainda assim, ainda assim, nas profundezas de sua mente encrespada, achou que podia ouvir a vozinha que ficaria cada vez mais alta ao longo dos anos, a voz que persegue todos os reis demônios em qualquer lugar: "Cuidado, atrás de você...”.

Era difícil saber se a Bagagem estava feliz. Ela atacara ferozmente 14 demônios e deixara três deles encurralados em seu próprio poço de óleo fervente. Logo teria que seguir seu dono, mas não precisava ter pressa.

Um dos demônios fez um gesto desesperado para se segurar na borda. A Bagagem deu um pisão nos dedos dele.

O criador dos universos estava feliz. Havia acabado de inserir um floco de neve de sete faces dentro de uma nevasca para fazer um experimento, e ninguém havia notado. No dia seguinte, estava meio inclinado a experimentar pequenas letras do alfabeto cristalizadas de forma delicada. Neve Alfabética. Podia ser um sucesso.

Rincewind e Eric estavam felizes.

- Estou vendo o céu azul! — disse Eric. — Onde você acha que vamos sair? - perguntou. - E quando?

- Em qualquer lugar — respondeu Rincewind. — Em qualquer época.

Ele olhou para os amplos degraus que subiam. Constituíam uma inovação. Cada um era um conjunto de grandes letras de pedra. No degrau em que estava pisando, por exemplo, estava escrito: "A Minha Intenção Era A Melhor Possível".

No outro, lia-se: "Eu Achei Que Você Ia Gostar".

Eric estava em cima de: "Pelo Bem Das Crianças".

- Estranho, não? - perguntou. - Por que será que fizeram isso?

- Acho que isso tudo simboliza boas intenções – respondeu Rincewind. Eles estavam no inferno e, afinal de contas, os demônios eram tradicionalistas.

Se, por um lado, são maus de modo irredimível, por outro, não são sempre maus. Assim Rincewind tirou os pés de "Somos Favoráveis a Oportunidades Iguais", atravessou uma parede, que se recompôs atrás dele, e entrou no mundo.

Poderia ter sido, ele tinha que admitir, muito pior.

 

O presidente Astfgl, sentado num poço de luz em seu escritório enorme e escuro, bufou no alto-falante mais uma vez:

- Alô? Alô?

Ninguém parecia responder.

Estranho.

Ele pegou uma de suas canetas coloridas e olhou para as pilhas de trabalhos atrás dele. Todos aqueles registros a serem analisados, considerados, avaliados e calculados... e depois as metas gerenciais a serem atingidas... E um documento detalhado sobre política interna a ser delineado, para então, após a devida consideração, delineado de novo...

Ele tentou o alto-falante novamente.

- Alô? Alô?

Não tinha ninguém. Ainda assim, nada que preocupasse, havia muito o que fazer. Seu tempo era importante demais para ser desperdiçado.

Afundou os pés no tapete quente e grosso.

Olhou com orgulho para os vasos de plantas.

Deu um tapinha num complicado arranjo de bolas e fios cromados, que começaram a balançar e estalar ativamente.

Desatarraxou a tampa da caneta com a mão firme e decidida.

Escreveu: "Qual é o nosso negócio???"

Pensou um pouco e depois escreveu, com cuidado, embaixo: "Nosso negócio é a condenação!!!"

E isso também era um tipo felicidade.

 

                                                                                            Terry Pratchett  

 

                      

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