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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESCÂNDALO & PAIXÃO / Stephanie Laurens
ESCÂNDALO & PAIXÃO / Stephanie Laurens

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ESCÂNDALO & PAIXÃO

 

Martin Cambden Willesden, quinto conde de Merton, percorria decididamente o corredor de Hermitage, a sua residência principal. Qualquer pessoa que o conhecesse teria sabido, pelo sobrolho franzido que alterava as suas feições, que estava com um humor terrível. Era bem sabido entre os homens do sétimo batalhão dos hussardos que o facto de o rosto do comandante Willesden mostrar alguma emoção não era um bom presságio. "E hoje", pensou o ex-comandante Willesden, irritado, "tenho todo o direito de estar furioso".

Tinham-no feito voltar do seu exílio nas Bahamas, de modo que se vira obrigado a deixar para trás a amante mais fogosa que tivera na vida. Quando chegara à sombria cidade de Londres, tivera que travar uma batalha difícil para tirar o patrimônio da família da péssima situação em que se encontrava, aparentemente sem culpa de ninguém. Tanto Matthews, o gerente da Matthews & Sons, como o homem de confiança da família, o tinham prevenido de que Hermitage precisava de atenção e que ele não ia gostar do estado em que se encontrava. Ele pensara que se tratava de uma tentativa do velho Matthews para o convencer a voltar para Inglaterra o quanto antes. Deveria ter recordado a tendência de Matthews a usar eufemismos.

Martin cerrou os lábios. O seu olhar era cada vez mais lúgubre. Hermitage encontrava-se ainda em pior estado do que os investimentos que ele estivera a reorganizar durante as últimas três semanas.

Enquanto percorria o corredor, o som dos saltos das suas botas penetrou nos seus pensamentos. Quase à beira de um ataque de nervos, Martin parou. Não havia passadeiras! Tinha os pés sobre o chão de madeira! E, se os seus olhos não o enganavam, nem sequer estava bem encerado.

Lentamente, os seus olhos cinzentos ergueram-se e fixaram-se no papel de parede, rasgado e cinzento, e nas cortinas das janelas, descoloridas e antiquadas. A casa estava gelada e às escuras.

Cada vez de pior humor, o conde de Merton proferiu uma asneira e acrescentou mentalmente outro assunto à lista dos que requeriam a sua atenção imediata. Se visitasse Hermitage novamente, aquele lugar teria de estar em perfeitas condições. O andar de baixo estava em mau estado, mas aquilo era demais! Não encontrava palavras para o descrever.

Pôs de lado a sua irritação e voltou a encaminhar-se para o quarto da condessa viúva. Desde que chegara, há oito horas, adiara o inevitável reencontro com a sua mãe, com a desculpa de resolver os problemas que afectavam os bens da família. bom, na verdade, a desculpa não fora nenhum exagero. Porém, já tomara as medidas pertinentes e não podia continuar a adiar o encontro.

Sentiu certa curiosidade e uma cautela que não sabia que continuava a ter.

A sua mãe, lady Catherine Willesden, a condessa viúva de Merton, aterrorizara os membros da sua família desde que Martin se entendia por gente. Os únicos aparentemente imunes à sua influência tinham sido o seu pai e ele. O seu pai, ela desculpara-o. Contudo, Martin não tivera tanta sorte.

Deteve-se perante a porta do quarto da viúva.

Acontecesse o que acontecesse entre eles, a condessa era a sua mãe. Uma mãe que ele não via há treze anos e que recordava como uma mulher fria e calculista, que não tinha lugar para ele no seu coração. Até que ponto seria ela responsável pela deterioração das suas posses ancestrais? Não conseguia entender o que acontecera, pois conhecia o orgulho daquela mulher. De facto, tinha mais algumas perguntas, incluindo como ia ela tratá-lo. As respostas estavam à sua espera do outro lado da porta.

Martin endireitou os ombros e cerrou os lábios. Sem mais delongas, bateu à porta com os nós dos dedos. Ouviu claramente a ordem de que entrasse e abriu a porta. Deteve-se na soleira, com a mão no trinco, e com uma calma estudada, passeou o olhar pelo quarto. O que viu esclareceu algumas das suas dúvidas.

A figura da sua mãe, altiva e elegante, sentada numa cadeira ao lado da janela, era quase como ele a recordava. Estava mais magra e tinha o cabelo cinzento, mas conservava aquela expressão decidida que ele tinha na memória.

Foi a visão das suas mãos deformadas, que descansavam no seu colo, que lhe revelou a verdade. Tinham-lhe contado que ela se mantinha fechada no seu quarto, vítima do reumatismo, e ele julgara que se tratava de uma reaccão caprichosa a uma doença sem importância. No entanto, naquele momento estava perante a realidade. A sua mãe era uma inválida que estava presa a uma cadeira.

Sentiu uma pontada de pena. Recordava-a como uma mulher activa, que montava a cavalo e dançava sem descanso. Então, os seus olhares encontraram-se e a sua mãe, cujos olhos eram de um cinzento gélido, altiva como sempre, pareceu-lhe mais fria do que nunca. Imediatamente, Martin soube que a pena seria a última coisa que a sua mãe aceitaria dele.

Apesar da impressão que sofrerá, conseguiu que o seu rosto se mantivesse impassível. Sem se alterar, fechou a porta e entrou no quarto, parando um segundo para olhar para a outra pessoa que olhava para ele, com os olhos arregalados. Era Melissa, a viúva do seu irmão mais velho.

Catherine Willesden observou como o seu terceiro filho se aproximava com a expressão tão inalterada como a dela. Cerrou os lábios ao reparar no seu corpo poderoso e na elegância subtil que o envolvia. A luz iluminou-lhe a cara, enquanto se aproximava, e o olhar aguçado da viúva detectou rapidamente que por trás da elegância havia uma grande determinação e um hedonismo bem dissimulado.

Então, Martin parou em frente a ela e, para seu horror, agarrou-lhe na mão. Ela tê-lo-ia evitado se tivesse sido capaz, mas as palavras ficaram presas na sua garganta, apanhadas pelo orgulho. Sentiu uma mão quente e forte a fechar-se em redor dos seus dedos tortos. A sua surpresa foi varrida por uma emoção repentina, quando o seu filho se inclinou e sentiu os seus lábios na pele. Suavemente, ele voltou a pousar-lhe a mão no colo e beijou-lhe a face.

- Mama.

Aquela palavra, pronunciada com uma voz muito mais grave do que ela recordava, devolveu lady Catherine à realidade. Pestanejou, sentindo o coração a acelerar-se. Que tolice! Fixou o olhar no seu filho, franzindo o sobrolho e lutando para que os seus olhos cinzentos continuassem a transmitir frieza. Pelo sorriso que curvava a boca de Martin, lady Catherine soube que ele tinha consciência de que aquele gesto a afectara. No entanto, estava decidida a pôr na linha aquela ovelha tresmalhada. Ela podia e devia assegurar-se de que o seu filho não provocasse novos escândalos que afectassem a família.

- Acho que te fiz chegar instruções para te apresentares aqui assim que chegasses a Inglaterra, meu menino.

Sem se deixar afectar pelo olhar da sua mãe, Martin aproximou-se da lareira apagada com as sobrancelhas arqueadas, num gesto que expressava a sua surpresa.

- O meu secretário não te escreveu?

A indignação reflectiu-se no rosto de lady Catherine.

- Se te referes à carta de um tal senhor Wetherall, que me informava de que o conde de Merton estava ocupado a assumir o controlo da sua herança e que me visitaria quando tivesse oportunidade, recebi-a, sim. O que quero saber é o que isso significa. E por que, depois de chegares aqui, demoraste um dia inteiro a recordar o caminho até ao meu quarto.

Ao perceber na expressão da sua mãe os sinais inequívocos da ira, Martin teve a tentação de lhe recordar o seu título. Nunca lhe passaria pela cabeça que fosse gostar daquela conversa, mas, de algum modo, a sua mãe já não lhe parecia tão distante nem-tão hostil como ele a recordava. Talvez a doença fizesse com que ela parecesse mais humana.

- Deveria ser suficiente dizer que os assuntos do condado estavam, por assim dizer, muito mais confusos do que eu imaginava apoiou o cotovelo na lareira e, sem se alterar, olhou para a sua mãe. - No entanto, agora que consegui arranjar algum tempo para estar contigo, depois de levar a cabo a tarefa ingrata de pôr os negócios em ordem, talvez pudesses dizer-me por que querias ver-me.

Lady Catherine, fazendo um exercício de controlo, conseguiu que a surpresa não se reflectisse no seu rosto. Não foram as palavras do seu filho que a surpreenderam, mas a sua voz. Já não tinha nem rasto do tom brejeiro e encantador da juventude. Pelo contrário, tinha um tom profundo, rude e áspero, que transmitia autoridade.

Tentou animar-se. Era uma tolice deixar-se intimidar por aquele rebelde. Martin fora sempre insolente, mas não era estúpido. Aquele cinismo contido desapareceria assim que ela esclarecesse as coisas.

Endireitou-se na cadeira com uma expressão altiva e empenhou-se novamente na "educação" do seu filho.

- Eu tenho uma palavra a dizer sobre o que tu deves fazer no futuro.

Com uma expressão atenta, Martin apoiou os ombros na lareira e cruzou as pernas com elegância, ao mesmo tempo que olhava fixamente para a sua mãe.

Lady Catherine franziu o sobrolho.

- Senta-te.

Martin sorriu.

- Estou bem assim, obrigado. Que palavra é essa que queres dizer-me?

Lady Catherine decidiu não se deixar levar pela fúria. A calma de Martin enfurecia-a, mas era melhor não deixar que ele percebesse.

Obrigou-se a olhar para ele nos olhos.

- Em primeiro lugar, penso que é fundamental que te cases o quanto antes. Por isso, arranjei o teu casamento com a menina Faith Wendover.

Martin arqueou as sobrancelhas. Ao vê-lo, a condessa apressou-se a prosseguir:

- Dado que o título recaiu no terceiro dos meus filhos, não deves surpreender-te por eu querer assegurar a sucessão.

O seu primogênito, George, casara-se para agradar à família, mas Melissa não conseguira cumprir as expectativas de lhe dar um herdeiro. O seu segundo filho, Edward, morrera há alguns anos, quando servia no exército durante as invasões napoleónicas. Entretanto, George também morrera, de uma febre, no ano anterior. Até aí, lady Catherine nunca pensara que o seu impossível terceiro filho pudesse herdar o condado. Na verdade, chegara a temer que ele morresse numa das suas arriscadas aventuras. Nesse caso, o seu quarto filho, Damian, teria sido o conde de Merton.

Feliz ou infelizmente, isso não acontecera e, agora, Martin era o conde, portanto, ela tinha de se assegurar de que estivesse à altura das circunstâncias.

Completamente decidida a acabar com qualquer tipo de oposição, lady Catherine olhou autoritariamente para o seu filho.

- A menina Wendower vai herdar e é razoavelmente atraente. Será uma excelente condessa de Merton. A sua família é muito respeitada e ela contribuirá com muitas terras com o seu dote. Agora que tu estás aqui e que podes assinar o contrato, o casamento poderá celebrar-se dentro de três meses.

Pronta para se defender de uma tempestade de protestos, lady Catherine ergueu o queixo e observou com impaciência a figura altiva do seu filho, que estava apoiado na lareira. Mais uma vez, ficou surpreendida pela mudança que se produzira nele, invadida pela sensação irritante de estar a lidar com um estranho que, no entanto, não era um estranho.

Ele estava a olhar para o chão sem dizer nada. com curiosidade, lady Catherine estudou-o.

As suas últimas lembranças de Martin eram de um jovem de vinte e dois anos, já versado em todo o tipo de vícios: na bebida, no jogo e, é claro, nos assuntos de mulheres. Fora precisamente a sua facilidade em atrair o sexo oposto que pusera fim, de repente, à sua carreira tempestuosa.

Serena Monckton... Aquela beldade afirmara que Martin tentara violá-la. Ele negara, mas ninguém, nem sequer a sua família, acreditara nele. Apesar disso, ele resistira a todas as suas tentativas de o convencerem a casar-se com Serena. Furioso, o seu pai pagara à família da rapariga uma quantia considerável e mandara Martin para a casa de um parente distante, nas colônias.

John lamentara-o amargamente até ao dia da sua morte. Martin fora sempre o seu preferido e, infelizmente, o conde falecera sem voltar a vê-lo.

Concentrada na tarefa de encontrar provas de que o filho que ela recordava não mudara realmente, lady Catherine examinou os seus ombros largos e as suas pernas compridas e musculadas com um suspiro. Ele ainda possuía um corpo de Adónis, musculado e ágil, decerto devido à prática de actividades ao ar livre. As suas mãos de dedos compridos estavam muito bem arranjadas e trazia o anel de ouro que o seu pai lhe oferecera no seu vigésimo aniversário. Tinha o cabelo encaracolado e preto como o ébano, exactamente como ela recordava. O que não recordava era a força que estava gravada nas suas feições, a aura de segurança, que era muito mais do que pura arrogância, os movimentos felinos que transmitiam a sensação de poder controlado.

Daquilo, ela não se lembrava absolutamente. Cada vez mais insegura, esperou que ele demonstrasse a sua resistência. No entanto, tal não aconteceu.

- Não dizes nada?

Ele saiu do seu ensimesmamento com um sobressalto. Estava a lembrar-se da última vez que a sua mãe afirmara que ele tinha de se casar.

Martin levantou a cabeça e olhou para a sua mãe na cara, arqueando as sobrancelhas.

- Antes pelo contrário, mas gostaria de ouvir os teus planos, primeiro. Tenho a certeza de que ainda não terminaste.

- Claro que não! - lady Catherine dedicou-lhe um olhar que teria feito estremecer muitos homens. No entanto, ali de pé, ele parecia demasiado confiante para se deixar intimidar. Apesar disso, ela estava decidida a cumprir o seu dever. - Também tenho de te falar do patrimônio e dos negócios da família. Tu disseste que estiveste a pôr-te ao corrente da situação. Eu quero que deixes todos esses assuntos nas mãos dos empregados que George contratou. Não tenho nenhuma dúvida de que eles tratarão de tudo muito melhor do que tu. Afinal de contas, tu não tens experiência e não poderias encarregar-te de umas propriedades de tais proporções.

Os lábios de Martin tremeram, mas ele conseguiu conter-se.

Lady Catherine, concentrada em expor os seus argumentos, não reparou na sua reacção.

- Por último, quando tu e a menina Wendover se casarem, devem viver aqui durante todo o ano - fez uma pausa e olhou para Martin. Talvez tu ainda não te tenhas dado conta, mas é o meu dinheiro que mantém as propriedades dos Merton a funcionar. Lembra-te de que eu não era precisamente uma pobretana antes de me casar com o teu pai. Além disso, permiti que o que herdei quando o teu pai morreu mantivesse as propriedades, que não produzem o suficiente para evitar a ruína.

Martin manteve-se em silêncio.

Apesar da expressão impassível do seu filho, lady Catherine confiava plenamente na sua vitória. Estava na hora de usar o trunfo que tinha na manga...

- A menos que aceites as minhas condições, eu tirarei o meu dinheiro dos negócios e tu ficarás na ruína.

Ao pronunciar a última palavra, os seus olhos percorreram o corpo alto que ainda estava apoiado com indolência na lareira. Martin estava vestido com uma elegância que lhe lembrou que o seu filho nunca fora vulgar.

O objecto do seu escrutínio estava a examinar a biqueira das botas.

Sem se alterar, lady acrescentou um argumento decisivo:

- Além disso, deserdar-te-ei e Damian herdará a minha fortuna.

Tendo feito a sua última ameaça, lady Catherine sorriu e apoiou-se no encosto da cadeira. Martin nunca gostara de Damian e sempre tivera ciúmes dele, pois, por ser o mais novo, fora sempre o preferido da sua mãe.

Sabendo que ganhara a batalha, a condessa olhou para o seu filho.

Não estava pronta para ver o sorriso que se desenhou nos seus lábios, dando um toque maquiavélico às suas feições bonitas. Embora não viesse ao caso naquele momento, a condessa pensou que não era surpreendente que, dos seus quatro filhos, aquele nunca tivesse tido nenhum problema em conquistar o favor das mulheres.

- Se é só isso que tens a dizer, minha mãe, eu também tenho alguns comentários a fazer.

Lady Catherine pestanejou e inclinou a cabeça majestosamente, preparada para ser magnânima na vitória.

com aprumo, Martin endireitou-se e caminhou até à janela.

- Em primeiro lugar, devo dizer-te que, no que diz respeito ao meu casamento, casar-me-ei com quem quiser, quando quiser. E, a propósito, só o farei se quiser.

O silêncio de espanto que se abateu sobre o quarto falava por si só.

Martin continuou a olhar para as copas das árvores de Home Wood.

As ordens da sua mãe eram revoltantes, mas não eram inesperadas. No entanto, embora as suas maquinações não fossem aceitáveis, ele entendia e respeitava a devoção familiar que motivara os seus actos. Além disso, aquilo confirmava a sua teoria de que ela não tivera nada a ver com o declínio da fortuna dos Merton.

Enquanto lady Catherine estava fechada no seu quarto, os criados e o resto da família tinham estado sob o controlo de um administrador sem escrúpulos. O próprio Martin se dera ao luxo de o repreender, antes de o despedir e expulsar da casa. Assim, duvidava que a sua mãe fizesse a menor idéia do estado em que o resto da casa se encontrava. O seu quarto estava em boas condições. O administrador conseguira intimidar o resto da criadagem e, muito provavelmente, convencera Melissa e George de que aquela decadência era irremediável. E se a única coisa que a sua mãe via pela janela do seu quarto era aquela parte dos jardins e o bosque, como poderia ela saber que o resto se encontrava em estado selvagem?

Martin parou ao lado da janela, tamborilando com os dedos no parapeito.

- Quanto a Damian, acho que não te ficará muito agradecido por me apressares a ir para o altar. Afinal de contas, ele é o meu herdeiro até eu ter um filho legítimo. E tendo em conta as suas dificuldades econômicas, não é provável que aprecie as tuas razões para me casar, sobretudo com tanta pressa.

Lady Catherine ficou tensa.

Martin dedicou um olhar à sua cunhada, que estava aninhada na sua cadeira, enquanto ouvia atentamente a conversa entre mãe e filho, com o olhar fixo no bordado. com as sobrancelhas arqueadas e certo cinismo, Martin voltou a olhar para a sua mãe, que estava furiosa.

- Como te atreves? - durante um momento, a raiva deixou a condessa sem fala. Então, explodiu: - Tu vais casar-te, tal como eu te disse! É impossível pensar que as coisas podem ser de outra forma. Já está tudo planeado e combinado.

- Naturalmente - replicou Martin, com um tom de voz frio e preciso, - lamento qualquer transtorno que os teus actos possam causar a terceiros. No entanto, não entendo o que é que te deu a sensação de que podias falar em meu nome no que se refere a este assunto. É difícil acreditar que os pais da menina Wendover tenham sido imprudentes ao ponto de acreditarem nisso. Se o fizeram, o seu espanto será fruto da sua estupidez. Sugiro-te que os informes o quanto antes de que não haverá nenhum casamento entre mim e a menina Wendover.

Estupefacta, lady Catherine protestou:

- Estás louco! Seria mortificante ter de fazer isso! - endireitou-se, sentando-se com a cabeça erguida, com as mãos deformadas no colo, aflita.

Martin reprimiu um súbito impulso de a confortar. Ela tinha de aprender que o jovem que saíra daquela casa há treze anos já não existia.

- Tenho que dizer que qualquer vergonha que possas sentir advém do teu comportamento. É preciso que saibas que não deixarei que me manipules...

Incapaz de olhar para ele nos olhos, lady Catherine baixou o olhar para os seus dedos, sentindo, pela primeira vez em vários anos, uma necessidade incontrolável de as esconder entre as pregas da saia. De repente, Martin falava como o seu pai. Era igualzinho a ele.

Ao ver que a sua mãe permanecia em silêncio, Martin prosseguiu com calma, mas com um tom seco:

- Quanto ao segundo ponto, tenho que te informar de que, assim que tomei posse da minha herança, rescindi todos os contratos que George assinou. Os nossos agentes da Matthews & Sons e os Bromleys, além dos nossos banqueiros, os Blanchards, continuam ao nosso serviço. Foram escolhidos pelo meu pai e foram sempre leais. Contudo, o meu pessoal encarregou-se desta propriedade e das de Dorset, Leicestershire e Northamptonshire. Os homens que George contratou estavam a acabar com as quintas. Está além da minha compreensão, mãe, por que nem sequer questionaste a afirmação de que as terras dos Merton, de repente, tinham deixado de ter a capacidade de manter a família.

Martin fez uma pausa para controlar a raiva que sentia. Só de pensar no estado em que encontrara o condado ficava fora de si.

Pela expressão da sua mãe, deduziu que ela precisava de alguns instantes para assimilar o que ele estava a revelar, portanto deixou que o seu olhar vagueasse pelo quarto.

A mente de lady Catherine trabalhava febrilmente. De repente, recordou o olhar estranho que o velho Matthews lhe dedicara quando ela, furiosa por Martin ter herdado, expressara a sua frustração e fizera uma longa lista dos defeitos do seu filho. Ficara boquiaberta quando o homem respondera, calmamente, que o senhor Martin era exactamente o tipo de homem de que as propriedades dos Merton precisavam. Ela nunca teria pensado que Matthews apoiaria alguém como Martin, esbanjador e libertino. Mais tarde, soubera que Martin entregara a gestão dos seus negócios à mesma firma que a sua família. Fora um verdadeiro choque dar-se conta de que o seu filho tinha o tipo de negócios que requeriam a assessoria e a gestão da Matthews & Sons. O comentário de Matthews incomodara-a. E agora compreendia o que ele quisera dizer. Por que não se explicara ele com mais clareza? E por que não lhe perguntara ela nada?

Após observar a cabeça inclinada de Melissa, loira com alguns cabelos brancos, e chegar à mesma conclusão a que chegara há anos, de que não tinha nada lá dentro, Martin voltou-se para a sua mãe.

Como que adivinhando o que ela estava a pensar, cerrou os lábios.

- Tens toda a razão ao dizer que eu não tenho experiência em dirigir propriedades do tamanho desta. As minhas são muito maiores.

Aquelas palavras, que confirmavam que o seu filho mudara completamente, fizeram perigar a compostura da condessa e acabaram com os seus planos.

Martin sorriu ao ver a sua expressão.

- Julgavas que o filho pródigo ia voltar de uma vida de privações para se agarrar às tuas saias?

O olhar que ela lhe dedicou foi resposta suficiente.

Martin sentou-se no parapeito da janela e esticou as pernas.

- Lamento muitíssimo desiludir-te, mas não preciso do teu dinheiro. Quando voltar a Londres, direi a Matthews que venha ajudar-te a mudar o teu testamento. Espero que mantenhas a tua promessa de me deserdar. Damian nunca te perdoaria se não o fizesses. Além disso - acrescentou com uma expressão serena, - ele precisa da segurança de saber que é o teu herdeiro. Pelo menos, isso deve livrar-me da necessidade de impedir a toda a hora e a todo o instante que os seus credores o atirem ao rio Tick. Por mim, ele pode ir para o Inferno como e quando quiser. E se usar o teu dinheiro para o fazer, eu não me oporei. No entanto, decidas o que decidires, não será usado nem mais um tostão do teu dinheiro para manter as propriedades da família Merton.

Martin examinou o rosto da sua mãe, cuja beleza acusava o peso da idade. Depois do choque inicial ela recuperara a compostura. O seu olhar tornou-se novamente gelado e tinha os lábios cerrados, como se quisesse disfarçar a incredulidade. Apesar da sua doença, ainda tinha o mesmo caracter forte e decidido.

Para sua surpresa, Martin deu-se conta de que já não sentia a necessidade de contra-atacar, nem de lhe devolver os golpes, nem de a impressionar com os seus êxitos para lhe demonstrar que merecia o seu amor. Aquilo também morrera com o passar dos anos.

- com respeito à tua última condição disse, levantando-se do parapeito da janela e puxando as mangas do casaco, - eu, é claro, viverei a maior parte do tempo em Londres. À excepção disso, tenho intenção de visitar as minhas propriedades e as dos meus amigos, como é de esperar. Também tenho intenção de trazer convidados aqui. Se bem me lembro, enquanto o meu pai era vivo, Hermitage era famosa pela sua hospitalidade - olhou para a sua mãe, enquanto terminava de falar. Ela tinha o olhar perdido, como se tivesse dificuldade em focar a sua nova imagem. - Evidentemente, essas visitas não acontecerão enquanto a casa não estiver totalmente restaurada e mobilada.

- O quê? - a exclamação, pouco apropriada numa dama, escapou dos lábios de lady Catherine. Atônita, olhou para o seu filho na cara, com uma pergunta nos olhos.

- Não tens de te preocupar com isso - respondeu Martin, franzindo o sobrolho. Não havia necessidade de ela saber em que estado se encontrava a casa. Só serviria para a mortificar. - vou mandar cá os meus decoradores, assim que terminarem o trabalho em Merton House - fez uma pausa, mas a sua mãe tinha novamente o olhar perdido. Quando viu que ela não fazia mais nenhum comentário, Martin endireitou-se. - Volto para Londres dentro de uma hora, portanto, se não tens mais nada para me dizer, despeço-me já.

- Devo concluir que os teus decoradores, seguindo as tuas instruções, também vão mudar este quarto? - o sarcasmo que impregnava as palavras da sua mãe poderia ter talhado o vidro.

Martin sorriu. Rapidamente, pensou nas opções que tinha.

- Se quiseres, posso dizer-lhes que venham falar contigo. Sobre a decoração do teu quarto, claro.

Ele não podia, evidentemente, encarregar a sua mãe de fiscalizar as obras e a decoração de toda a casa. Além disso, queria aproveitar aquela oportunidade para imprimir a sua marca naquela que fora a casa de todos os seus antepassados.

O olhar da sua mãe livrou-o da preocupação de que ela respondesse à sua rebeldia deixando-se morrer. Aliviado, arqueou as sobrancelhas com impaciência.

De evidente má vontade, lady Catherine inclinou a cabeça a modo de despedida.

Martin fez-lhe uma vénia e acenou a Melissa. Seguidamente, saiu do quarto.

Lady Catherine observou-o a sair do quarto, reflectindo em silêncio.

Muito tempo depois de a porta se ter fechado, ela mantinha o olhar fixo na lareira apagada. Finalmente, livrando-se das suas lembranças, não conseguiu deixar de se perguntar se, no fundo da sua alma e apesar das dificuldades, não estava um pouco aliviada por ter novamente um homem a sério no comando da situação.

Martin desceu as escadas e saiu pela porta da frente.

A sua carruagem, puxada pelos seus puros-sangue preferidos, que davam coices com impaciência, esperava-o. Uma tosse profunda cumprimentou-o de um dos lados da carruagem.

Franzindo o sobrolho, Martin acariciou o focinho aveludado de cada cavalo e contornou-os para se aproximar do seu cocheiro, cavalariço, secretário e ordenança, Joshua Carruthers, que tinha os olhos lacrimejantes e metade da cara tapada por um enorme lenço branco.

- O que tens? - enquanto Martin formulava a pergunta, deu-se conta da resposta.

- E uma constipaçãozinha de nada - murmurou Joshua, enquanto sacudia uma mão para tirar importância ao assunto. Engoliu em seco e guardou o lenço num dos bolsos, deixando o nariz, vermelho e brilhante, à vista do seu amo. - Vamos pôr-nos a caminho.

Martin não se mexeu.

- Tu não vais a nenhum lado.

- Mas eu ouvi-o dizer claramente que nada neste mundo o obrigaria a passar uma noite neste buraco em ruínas.

- Como sempre, a tua memória é excelente, mas não a tua audição. Eu disse que tu não vais a nenhum lado. Eu sim.

- Não! Sem mim, não.

Impaciente, com as mãos nas ancas, Martin observou o velho soldado a cambalear para a parte de trás da carruagem. Quando o viu a apoiar-se numa das portas, enquanto outro ataque de tosse o fazia estremecer, Martin praguejou. Viu dois cavalariços que estavam a observar a cena e chamou-os, ordenando:

- Segurem os cavalos!

Assim que os dois cavalos foram estabilizados, Martin agarrou Joshua pelo cotovelo e levou-o para dentro de casa, fazendo ouvidos de mercador aos seus protestos.

- Considera isto como uma ordem para permaneceres nas barricadas. Raios, Joshua, não percebes que desmaiadas antes que tivéssemos tempo de percorrer um quilômetro?

Joshua tentou protestar: -Mas...

- Eu sei que este lugar não está em boas condições - interrompeu-o Martin, empurrando-o escadas acima, - mas agora que nos livrámos do bendito administrador, o resto dos criados deve lembrar-se de como se fazem as coisas. Pelo menos - acrescentou, parando à porta da entrada, - eu espero que sim.

Dera ordens para que os criados se comportassem como quando o seu pai era vivo. A maioria dos antigos criados ainda trabalhava ali, portanto esperava que tudo corresse razoavelmente. Aqueles criados, que tinham trabalhado para a família Merton durante gerações, tinham sido oprimidos pelo tirano que George contratara e, agora que estavam livres dele, pareciam decididos a fazer com que Hermitage recuperasse o seu antigo esplendor.

- E os cavalos? - perguntou Joshua. Martin arqueou as sobrancelhas.

- Não estás a insinuar que eu não sei conduzir os meus próprios cavalos, pois não?

Balbuciando alguma coisa em voz baixa, Joshua dedicou-lhe um olhar sombrio.

- Vai já para a cama, velho rabugento. Quando estiveres bem e puderes montar, sela um dos cavalos do estábulo e vai ter comigo a Londres.

Joshua suspirou, sabendo que não valia a pena discutir. Contudo, ainda lhe fez uma última advertência:

- Vai chover, portanto é melhor despachar-se, senhor.

Então, deu meia volta e entrou por uma das portas laterais do hall.

Sorrindo, Martin voltou para carruagem.

Despediu-se dos cavalariços e sentou-se no lugar do cocheiro da carruagem. Sacudiu as rédeas para os cavalos começarem a andar e partiu sem olhar para trás.

Quando saiu pelo portão de ferro da propriedade, suspirou.

Durante treze anos, a casa brilhara na sua lembrança como um lugar cheio de encanto, um paraíso que ansiava recuperar. O destino permitira-lhe voltar ao seu lar, mas recusara-lhe o seu sonho. O encanto desaparecera quando a casa fora privada de todos os cuidados, após a morte do seu pai.

Ele recuperá-lo-ia. Devolveria a beleza, o sentimento de paz à casa dos seus antepassados. Estava completamente decidido a consegui-lo.

Para ser sincero, até estava contente por deixar a casa para trás. Permaneceria em Londres até as obras estarem concluídas e, da próxima vez que visse o seu lar, seria novamente o lugar que ele trouxera no seu coração durante todos aqueles anos de exílio. O seu paraíso particular.

O caminho para Taunton estendia-se à sua frente.

Martin olhou para o Oeste. Joshua tinha razão ao dizer que ia chover. Pensou nas opções que tinha. Se parasse em Taunton teria um longo caminho a percorrer até Londres no dia seguinte, portanto era melhor ir até Ilchester. Joshua e ele tinham passado uma noite em Fox e tinham ficado razoavelmente bem instalados.

Uma vez decidido, Martin soltou um pouco as rédeas e deixou que os cavalos esticassem as pernas. Se a sua memória não o enganava, o trajecto até Ilchester não era muito longo, portanto conseguiria chegar antes que a tempestade começasse.

Duas horas mais tarde, a carruagem inclinou-se perigosamente quando as rodas se enfiaram, pela centésima vez, num buraco.

Martin praguejou. Puxou as rédeas para deter os cavalos e observou o céu, cada vez mais escuro. O caminho, que ele recordava ter um bom piso, não estivera à altura das suas expectativas.

Um ruído ribombou à distância. Martin olhou para a linha do horizonte, que quase não se via sob as nuvens escuras. Não acreditava que fosse possível nem sequer chegar à estrada de Londres antes de a tempestade começar.

Estava a falar com ternura com os cavalos para prosseguirem o caminho quando um grito corou o ar. Os animais assustaram-se. Rapidamente, ele saiu da carruagem e aproximou-se deles para os acalmar, mesmo antes de ouvir um segundo grito.

Não havia dúvida, era um grito de mulher e vinha do pequeno bosque que havia ao lado do caminho.

Sem hesitar, Martin atou os cavalos a um tronco e pegou nas duas pistolas que trazia no assento de trás da carruagem.

Silenciosamente, avançou para o lugar de onde provinham os gritos. Passados alguns instantes, parou.

Na pequena clareira à sua frente havia três pessoas envolvidas numa luta.

- Fica quieta, rapariga...

- Oh, meu Deus! Mordeu-me o dedo, a desgraçada...

Quando uma das figuras se afastou, Martin viu claramente que eram dois homens e uma mulher. Não uma mulher qualquer, mas uma lady. Trazia um vestido de seda que brilhava à luz do entardecer. O mais alto dos homens conseguiu agarrar a mulher por trás e prendeu-lhe as mãos atrás das costas. Apesar dos esforços que ela fazia para se soltar, ele conseguiu segurá-la.

- Ouça, senhora, o meu amo disse que a mantivéssemos aqui e que não lhe tocássemos nem num fio de cabelo. Mas como podemos nós conseguir isso, se não fica quieta?

A irritação que se reflectia na voz do homem fez com que Martin sorrisse, compreensivo.

A clareira era demasiado grande para que ele pudesse arrastar-se até eles sem ser visto. Silenciosamente, contornou-a até ficar atrás do homem que segurava a mulher.

- Idiotas! Não sabem qual é a pena por rapto? Se me deixarem ir embora, eu pago-vos o dobro do que o vosso amo vos ofereceu.

Martin arqueou as sobrancelhas.

A voz da mulher pareceu-lhe, inesperadamente, muito madura. Era óbvio que ela não perdera a cabeça.

- Talvez sim, senhora - respondeu o outro homem, que fora mordido no dedo, - mas o nosso amo é um latifundiário, e eles são muito maus quando se zangam. Não. A verdade é que não sei como poderíamos agradar-lhe.

Segurando as duas pistolas carregadas, Martin saiu de entre as árvores.

- bom, ninguém vos ensinou que se deve agradar sempre a uma senhora?

O homem que segurava a mulher soltou-a e virou-se para olhar para Martin.

Naquele momento, ao ver como o outro sacava de um punhal, Martin disparou e atingiu-o no cotovelo. O homem soltou o punhal e deixou escapar um grito de dor. O seu companheiro virou-se para ele, de modo que não pôde assistir à bonita cena do ex-comandante Martin Willesden, soldado e experiente homem de armas, a ser derrubado por um murro no queixo, dado por um punho minúsculo.

Martin, que estava a prestar atenção ao homem que atingira, nem sequer percebeu o que tinha acontecido. Ao cair para trás, bateu com a cabeça num ramo, perdeu os sentidos e estatelou-se no chão.

Helen Walford observou o corpo forte estendido aos seus pés. Meu Deus! Não era Hedley Swayne! O homem ainda tinha a pistola descarregada na mão esquerda e na direita tinha a outra, pronta para disparar. Rapidamente, Helen pegou nela e voltou-se para a apontar ao seu raptor.

- Não se aproxime! Eu sei usar isto.

Ao reparar na firmeza com que Helen lhe apontava a pistola ao peito, o homem levou a ameaça a sério. Olhou para o seu companheiro, que estava de joelhos, gemendo de dor. Então, dedicou um olhar maldoso a Helen.

- Raios partam!

Agachou-se para ajudar o seu amigo, resmungando:

- Vamo-nos embora daqui. O chefe deve estar a chegar. Eu acho que ele pode tratar disto.

Ao ouvir o que o homem dizia, Helen arregalou os olhos.

- Quer dizer que este não é o seu chefe? perguntou, olhando para a figura que jazia aos seus pés. Meu Deus! O que fizera ela?

O homem também olhou para ele.

- Esse estúpido? Eu nunca o tinha visto, senhora.

- Seja quem for, não vai ficar muito contente consigo quando acordar - acrescentou o outro homem com sarcasmo.

Helen engoliu saliva e fez sinal aos delinqüentes para se irem embora.

Cambaleando, eles foram até aos seus cavalos, montaram e partiram.

Sozinha na clareira, com o seu salvador desmaiado, Helen reflectiu sobre o dia terrível que tivera.

Fora raptada de madrugada, envolvida numa manta mal cheirosa e passada de uma carruagem para a outra como um saco de batatas.

Ainda lhe doía a cabeça. Para piorar, quando por fim a resgatavam, ela derrubava o seu salvador com um murro.

com um gemido, Helen massajou as fontes da cabeça. O destino estava a divertir-se às suas custas.

 

Doía-lhe a nuca. A primeira sensação que Martin teve ao acordar convenceu-o de que ainda estava vivo.

No entanto, quando abriu os olhos, deu-se conta do seu erro. Tinha de estar morto. Havia um anjo debruçado sobre ele cujo cabelo dourado brilhava sobrenaturalmente. Uma pontada de dor fez com que fechasse novamente os olhos.

Não podia estar morto. Doía-lhe muito a cabeça, embora estivesse apoiado no colo mais suave do mundo. Uma mão delicada acariciava-lhe a testa. Martin agarrou nela com uma das suas. Não era um espectro, aquele anjo, mas um ser de carne e osso.

- O que aconteceu? - perguntou, fazendo uma careta de dor.

Helen, inclinando-se para a frente, olhou para ele com um ar compreensivo.

- Receio que o atingi no queixo. Caiu para trás e bateu com a cabeça num ramo.

Helen sentia-se muito culpada. Assim que os dois raptores se tinham ido embora, ela ajoelhara-se ao lado da sua vítima. Deixando de um lado todas as dúvidas próprias de uma donzela, já que, ao fim e ao cabo, ela já não era nenhuma donzela, inclinara-se sobre ele para examinar a gravidade dos ferimentos. Aquele homem tinha uns ombros muito pesados, mas, por fim, ela conseguira levantar-lhe a cabeça, colocara-a no seu colo e tirara-lhe da testa os caracóis pretos e brilhantes.

Martin agarrou-lhe na mão, sem querer deixar escapar a única coisa que o ligava à realidade. Era uma mão pequena, de ossos delicados. A pouco e pouco, a dor foi diminuindo até se tornar suportável.

Levantou a mão livre para apalpar o queixo e concluiu que não devia tentar fazer o mesmo com o galo da nuca. Era evidente que estava a descansar sobre o colo de uma senhora.

- Costuma atacar quem a salva? - perguntou Martin, fazendo um esforço para se levantar.

- Peço-lhe desculpas - disse Helen, enquanto o ajudava, olhando para ele com preocupação. - Pensei que fosse Hedley Swayne.

com cuidado, Martin examinou o seu galo.

A voz daquela mulher confirmava o seu caracter angelical. Era como o mel quente.

- Quem é Hedley Swayne? - perguntou com o sobrolho franzido. - O homem que planeou o seu seqüestro?

Helen assentiu com a cabeça.

- Acho que sim.

Devia ter adivinhado que aquele homem não era Hedley Swayne. A sua voz era muito profunda e grave. Sentiu-se mal pelas circunstâncias do seu encontro e baixou o olhar para examinar as suas próprias mãos, juntas no colo, perguntando-se o que estaria a pensar o seu salvador. Ela tivera a oportunidade de admirar o seu tamanho mais do que impressionante, enquanto estava inconsciente. Além disso, vira o olhar que ele lhe dedicara antes de ela lhe bater.

Apesar da situação em que se encontrava, Helen sorriu. Ninguém a impressionara tão favoravelmente nos últimos anos. De repente, deu-se conta de algo: batera-lhe e deixara-o sem sentidos. Evidentemente, ele não estava nada impressionado.

Observando furtivamente a sua dama em apuros, ajoelhada ao seu lado, Martin entendia perfeitamente por que pensara que era um anjo. O seu cabelo grosso, encaracolado e loiro caía despenteado sobre os ombros. Uns ombros muito bem torneados. Trazia um vestido cor de pêssego que se ajustava perfeitamente às suas curvas. Não podia saber se era muito alta, mas o resto do seu corpo tinha linhas generosas. Olhou para ela na cara, mas à luz do entardecer, não conseguia distinguir as suas feições. Teve um súbito e inesperado desejo de a ver à luz do dia.

- Devo deduzir que o tal Hedley Swayne chegará a qualquer momento?

- Segundo os dois homens que estavam aqui, sim - respondeu Helen com desprezo. Na verdade, o seu seqüestrador não lhe suscitava muito interesse. O homem que a salvara era muito mais fascinante.

Lentamente, Martin levantou-se com a ajuda do seu anjo. Sentia-se um pouco afec-É tado pela sua proximidade.

- Por que se foram embora? - naquele mo-i mento, deu-se conta de que ela era bastante alta Os seus caracóis ter-lhe-iam feito cócegas no nariz se estivesse mais perto e a sua testa teria ficado à altura dos seus lábios. Era a estatura adequada para um homem tão alto como ele. Tinha umas pernas lindas, incrivelmente altas. Ele conteve o desejo de as examinar de perto.

- Apontei-lhes a segunda pistola - ao reparar na distracção do seu salvador, Helen perguntou-se, preocupada, se não o teria ferido gravemente na cabeça.

Naquele momento, recordou as pistolas e agachou-se para as apanhar, de maneira que a saia do vestido desenhou a sua parte traseira com precisão.

Martin desviou o olhar, abanando a cabeça para se desfazer das fantasias que se amontoavam na sua mente. Raios, estavam em perigo! Não eram horas de pensar em seduzir quem quer que fosse.

Pigarreou, dizendo:

- Tendo em consideração o estado em que eu me encontro, penso que é melhor sairmos daqui antes que o senhor Swayne chegue. A menos que prefira que fiquemos e que o enfrentemos.

- Meu Deus, não! Ele virá com os seus homens. Nunca viaja sem eles - o desprezo que sentia pêlo seu seqüestrador estava patente no seu tom de voz. De repente, veio-lhe um pensamento à cabeça. - Onde estamos, senhor?

- A sul de Taunton, perto do caminho que vai para Ilchester.

- Taunton? Hedley mencionou uma propriedade na Comualha. Suponho que era para lá que pretendia levar-me.

Martin assentiu. A explicação fazia sentido, tendo em conta o lugar onde, se encontravam. Olhou em redor para se orientar e pegou nas pistolas que ela segurava.

- Se esse homem traz companhia, sugiro que nos partamos o quanto antes. A minha carruagem está no caminho ao lado do bosque. Eu ia a passar quando ouvi os seus gritos.

- Graças a Deus! - exclamou ela, sacudindo as saias. - Tinha muito poucas esperanças de que alguém passasse pela estrada principal.

Olhou para o seu salvador e viu que ele estava a estudá-la, embora as sombras escondessem a expressão do seu rosto.

Martin estava a sorrir com ironia. O seu anjo ainda não saíra daquele bosque.

- Não quero desiludi-la, mas estamos bastante longe de qualquer estrada principal. Eu vim por um atalho, com a esperança de chegar a Londres antes de a tempestade começar.

- Quer dizer que vai para Londres?

- Sim - respondeu Martin. Os ramos das árvores impediam-no de ver se a tempestade estava muito perto. - Só que primeiro teremos que encontrar um lugar para nos abrigarmos da chuva.

Com um último olhar em redor, Martin ofereceu-lhe o seu braço.

Contendo uma pontada de nervosismo, Helen aceitou-o e apoiou-se nele. Não tinha outro remédio senão confiar nele, embora a sua confiança nos homens, naquele momento, não fosse muito grande.

- Raptaram-na em Londres?

- Sim - aquela pergunta lembrou-lhe que tinha que ser muito cautelosa até saber mais coisas sobre o seu salvador, por muito fascinante que ele fosse.

Enquanto caminhavam para a carruagem, o cavalheirismo com que ele a ajudava a ultrapassar os obstáculos do caminho fez com que os seus medos desaparecessem e com que se sentisse protegida. Aliviada por constatar que ele era tão cavalheiresco quanto elegante, descontraiu-se.

Martin esperou até estarem a alguma distância da clareira para matar a sua curiosidade.

Estava mortinho por lhe perguntar quem era, mas sabia que era melhor deixá-lo para mais tarde. Por isso, limitou-se a fazer-lhe perguntas sobre o seu seqüestrador.

- Quem é Hedley Swayne?

- Um peralvilho - respondeu ela, sem entrar em pormenores.

- Quer dizer que me confundiu com um peralvilho? - apesar da gravidade da situação em que se encontravam, os impulsos de Martin eram demasiado fortes para os reprimir. Quando ela voltou a cabeça para olhar para ele com os olhos arregalados e com uma expressão confusa, ele aproveitou para a interrogar com o olhar.

Helen ficou sem respiração. Durante um instante, o seu olhar ficou preso ao daquele homem e teve de fazer um esforço para recuperar o bom senso e responder à pergunta.

- Eu não cheguei a vê-lo, lembre-se.

Ao ouvir a sua voz suave e rouca, Martin riu-se entredentes.

-Ah, é verdade!

O tronco de uma árvore caída tapava a passagem. Ele soltou-lhe a mão para passar para o outro lado e, depois, virou-se e estendeu-lhe as mãos.

Helen olhou para ele na cara. Tinha uma expressão misteriosa, umas feições rudes e a pele mais bronzeada do que as pessoas que ela conhecia. Perguntou-se de que cor seriam os seus olhos.

com uma calma que não tinha a certeza de sentir, deu-lhe as mãos. Quando sentiu os dedos fortes do seu salvador a fecharem-se em redor dos seus, sentiu uma pressão estranha no peito.

Helen olhou novamente para baixo para disfarçar o nervosismo que a invadiu. Não era demasiado velha para ter aquelas reacções infantis?

Ao tê-la novamente ao seu lado, Martin observou a sua cabeça inclinada, certo de que o tremor que sentira nos dedos dela não fora fruto da sua imaginação. Tinha muita experiência naquele tipo de reacções. Para a distrair, disse:

- Espero que aqueles rufiões não lhe tenham feito mal.

Decidida a não deixar transparecer o seu estúpido nervosismo, Helen abanou a cabeça.

- Não, não fizeram. Aparentemente, eles tinham ordens para cuidarem bem de mim.

- Eu ouvi. No entanto, eu diria que a menina estava um pouco confusa e assustada.

Helen riu-se.

- Oh, não! Asseguro-lhe que não sou uma criatura indefesa - olhou para ele na cara e deu-se conta de que ele não acreditava nela. Está bem. Reconheço que tinha algumas dúvidas, mas quando vi que estavam a ser tão amáveis quanto podiam ser, não temi pela minha vida.

- Então, salvei uma mulher corajosa.

A afirmação fez com que Helen se risse e abanasse a cabeça, mas não deixou que ele a provocasse mais. Enquanto avançavam para o caminho, concentrou-se na sua situação. Uma vez que a incerteza do seu seqüestro terminara, apercebeu-se de que reagira de forma estranha ao que estava a acontecer. Estava a anoitecer e ela estava a caminhar pelo bosque sozinha com um desconhecido. Embora tivesse a certeza de que ele era um cavalheiro, não sabia se era seguro baixar a guarda.

Naquele momento, sentiu uma sensação estranha. Um sorriso curvou-lhe os lábios sem que pudesse evitá-lo. Desde a sua infância que não voltara a sentir aquele desejo de aventuras. Não entendia por que aquele sentimento vinha à superfície naquele momento, mas tinha a certeza de que era em resposta ao efeito que aquele desconhecido tinha nela. Para ser sincera, não tinha nenhum desejo de o conter. A sua vida fora muito séria e mundana desde menina. Um pouco de aventura aliviaria a triste perspectiva do seu futuro solitário.

Saíram de entre as árvores. No caminho havia uma carruagem moderna com dois cavalos que davam coices e mexiam-se, impacientes.

- Que belezas! - exclamou Helen.

A carruagem e os animais falavam por si só. O seu salvador era um homem rico.

Sorrindo, ela soltou-lhe a mão ao lado da carruagem e aproximou-se dos cavalos para lhes acariciar o focinho.

Helen olhou para o assento da carruagem e perguntou-se como poderia subir com decoro se trazia aquele vestido justo. De repente, duas mãos fortes agarraram-na pela cintura e acomodaram-na no assento sem nenhum esforço.

- Oh! - exclamou, surpreendida, contendo um grito. Corou vivamente e balbuciou: Eh... obrigada.

O sorriso do seu salvador era malicioso.

Helen observou-o a desatar as rédeas e a sentar-se ao seu lado com a elegância e a agilidade de um atleta.

"Ele afectava-a de um modo deliciosamente excitante", pensou Helen.

Então, ele olhou para ela.

- Está confortável?

Ela assentiu. Aquela pergunta deu-lhe segurança. Na sua opinião, nenhum patife perguntaria à sua vítima se estava confortável. O seu salvador punha-a nervosa, mas não a assustava.

Uma gota de água caiu no ombro de Martin quando sacudiu as rédeas. Tinha que tentar não contemplar a mulher que tinha ao seu lado e concentrar-se em assuntos mais práticos.

Estava a anoitecer e o tempo era cada vez pior. Além disso, deu-se conta de que a sua companheira não agüentaria o frio que se avizinhava. Só trazia um vestido de seda e se ainda não estava a tintar, não demoraria a começar.

- Peço desculpa pela indiscrição, mas por que nem sequer traz um casaco?

Helen franziu o sobrolho, reflectindo. Até que ponto seria seguro revelar o que acontecera? Erguendo o queixo inconscientemente, respondeu:

- Eu estava em Chamam House, no baile do aniversário de lady Chatham. Um criado entregou-me um bilhete em me pediam para ir ver um... um amigo à porta.

Pensando bem, agora dava-se conta que devia ter sido mais prudente.

- Havia... havia circunstâncias que faziam com que aquele pedido fosse razoável naquele momento - explicou. - Mas não estava lá ninguém. Pelo menos, eu pensei que não. Esperei durante alguns instantes e, precisamente Quando ia entrar novamente, alguém, certamente um daqueles dois rufiões, me cobriu a cabeça com uma manta.

Helen estremeceu.

- Meteram-me numa carruagem que estava à espera sem ninguém ver, porque era cedo e não havia mais carruagens à espera. É por isso que não trago casaco.

- Compreendo - Martin puxou as rédeas e virou-se para o assento de trás para agarrar no seu casaco. Pô-lo nos ombros da sua acompanhante e voltou a sacudir as rédeas. - Por que pensa que foi Hedley Swayne quem mandou raptá-la?

Helen franziu o sobrolho. Na verdade, pensando bem, não havia nenhuma prova concludente que relacionasse Hedley com o rapto.

Ao observar a sua expressão pensativa, Martin perguntou:

- Não tem provas, é só um pressentimento, não é?

Ao notar o seu tom de superioridade, Helen replicou:

- Se soubesse como Hedley se tem comportado ultimamente, não duvidaria.

- Como se tem comportado, exactamente?

- Tem-me pressionado para me casar com ele, só Deus sabe porquê.

- Não foi pelas razões óbvias?

Absorta nos seus pensamentos sobre Hedley Swayne, Helen abanou a cabeça.

- Não, definitivamente não - de repente, recordou com quem estava a falar e corou. Rezando para que a escassa luz do entardecer não a denunciasse, apressou-se a acrescentar: Hedley não é daqueles que se casam, sabe?

Martin sorriu, mas não fez nenhum comentário.

Helen pensou no iníquo senhor Swayne e franziu o sobrolho.

- Infelizmente, não sei por que quer ele casar-se comigo.

Enquanto percorriam em silêncio o caminho que atravessava os pastos verdes rodeados de sebes, sem encontrarem nenhuma quinta, Martin lembrou-se de um pormenor importante.

- Disse que estava num baile quando aqueles homens a raptaram? Quer dizer que está desaparecida desde ontem à noite?

Helen assentiu.

- Sim, mas eu fui na minha carruagem, porque muitos dos meus amigos ainda não regressaram à cidade, depois do Verão.

- Acha que o seu cocheiro deu o alarme? Lentamente, Helen abanou a cabeça.

- Não imediatamente. Deve ter pensado que voltei para casa na carruagem de algum amigo e que não recebeu o meu recado por algum acaso. Isso já aconteceu antes. O meu pessoal não deve ter dado conta que eu desapareci até esta manhã. Pergunto-me o que terão feito terminou, pensativa.

Martin também reflectiu sobre o seu papel naquilo tudo. Havia a possibilidade de o tomarem pelo seqüestrador, o que o obrigaria a dar explicações. Aquela era uma confusão na qual ele não queria ver-se envolvido assim que chegava a Inglaterra, quando ainda tinha de consolidar a sua reputação.

- Certamente, causará um bom reboliço quando aparecer novamente.

- Hum... - a mente de Helen viajou rapidamente do que poderia estar a acontecer em Londres para a preocupação com o homem que estava ao seu lado.

O seu salvador ainda não lhe perguntara o seu nome, nem se identificara. No entanto, ela ainda tinha vontade de viver uma aventura. Permanecer incógnita era algo perfeitamente adequado. Sentia-se cômoda e segura. Tinha a certeza de que era desnecessário saberem o nome um do outro.

Concentrado em controlar os cavalos por aquele caminho cada vez mais difícil, Martin espremia o cérebro em busca de um modo aceitável de perguntar à sua companheira como se chamava.

Aquela situação era estranha. Por um lado, não tinham sido apresentados formalmente e ele não tinha esperanças de que ela lhe desse aquela informação voluntariamente. Por outro lado, ele não queria perguntar-lhe directamente como se chamava, pois não queria que ela se sentisse obrigada a responder-lhe só porque a salvara. No entanto, sem saber o nome, como poderia encontrá-la em Londres? Ele também tinha de se apresentar, claro, mas não queria fazê-lo enquanto não soubesse mais alguma coisa sobre ela.

Começaram a ouvir-se trovões ao longe. O céu estava cada vez mais escuro e Martin sentiu outra gota de chuva a cair no seu ombro. Olhou para a sua acompanhante, que ainda estava pensativa, e disse:

- Parece, minha querida, que acabamos de encontrar um lugar para passarmos a noite. Não é o mais apropriado, mas estamos a quilômetros de distância da estalagem mais próxima e os cavalos não agüentarão uma tempestade.

Helen olhou para a frente. Ao ver uma estrutura de madeira, reflectiu sobre a possibilidade de passar a noite num palheiro com aquele homem e gostou da idéia.

- Não se preocupe comigo - respondeu.

Passar a noite num palheiro é um bom final para esta aventura. Parece que está abandonado, não?

- Nesta zona? Não acredito. Certamente, estará cheio de palha fresca.

E estava mesmo.

Enquanto Martin desemparelhava os cavalos, ela contornou o palheiro e encontrou um poço. Apressou-se a tirar água para os cavalos e a encher todos os baldes que encontrou. Então, depois de matar a sede aos animais, lavou a cara para tirar o pó do caminho. De repente, recordou que não tinha um lenço para se secar. com os olhos fechados, ouviu um riso suave ao seu lado e sentiu uns dedos fortes a puxar-lhe a mão e a darem-lhe um lenço. Rapidamente, Helen secou a cara e virou-se.

O seu salvador estava a um metro de distância dela com um sorriso sensual nos lábios. Encontrara um lampião e pendurara-o nas escadas que levavam ao andar de cima. A luz reflectia-se no cabelo e fazia com que os seus caracóis pretos brilhassem. Tinha os olhos cinzentos e olhava para ela languidamente. Era bonito. Muito bonito. Raios! Nenhum homem tinha o direito de ser tão bonito.

com esforço, Helen disfarçou a sua reacção e fez uma vénia elegante.

- Obrigada, senhor, de todo o coração, pelo seu lenço e por me salvar.

O seu sorriso tornou-se mais profundo, dando ao seu rosto uma expressão sensual.

- Foi um prazer, bela Juno.

Daquela vez, a sua voz fez com que Helen estremecesse.

Bela Juno?

Helen estendeu-lhe o lenço, esperando que não reparasse no tremor da sua mão.

Enquanto pegava no lenço, Martin deixou que o seu olhar se recreasse na contemplação daquela linda mulher, mas controlou-se rapidamente. Raios, supunha-se que ele era um cavalheiro e ela era, obviamente, uma senhora. Se continuasse a olhar para ela daquela forma, era provável que se esquecesse disso.

com suavidade, voltou-se para uma arca apoiada numa das paredes.

- Aqui há milho. Se conseguirmos moer um pouco, poderemos fazer pão para o jantar.

- Receio que... - disse ela, um pouco nervosa, obrigada a admitir a sua ignorância.

O seu salvador dedicou-lhe um sorriso deslumbrante.

- Não se preocupe, eu sei como se faz. Venha ajudar-me.

Saíram do palheiro e encontraram duas pedras, uma bastante plana para a base e a outra ovalada, para moer o milho. Enquanto ela fazia um pouco de farinha, ele acendeu uma pequena fogueira ao lado da porta do palheiro, mesmo sob a beira do telhado, que o protegia da chuva.

De vez em quando, um trovão assustava os cavalos, mas depois os animais acalmavam-se. Dentro do palheiro estavam cômodos e secos.

- Isto deve chegar.

Helen, que estava sentada num fardo de palha, olhou para o seu salvador, de pé ao seu lado, com um balde de água na mão.

Martin ensinou-a a fazer uma massa e, depois, ela aproximou-se da fogueira, onde ele colocara, depois de a lavar, uma velha peça de ferro.

Martin deitou algumas gotas de água na superfície de ferro e observou como borbulhava com olho crítico.

- Perfeito! - exclamou, sorrindo. - O truque consiste em não deixar que aqueça muito.

com facilidade, colocou dois pedaços de massa na frigideira improvisada.

- Como sabe fazer todas estas coisas?

- Entre outras coisas, eu já fui soldado.

- Na Península?

Martin assentiu. Enquanto cozinhavam e comiam o pão, ele distraiu-a com uma versão fascinante, embora censurada, dos seus tempos de soldado. Evidentemente, o relato culminou com a batalha de Waterloo.

- Depois disso, voltei para os meus... negócios.

Martin levantou-se e espreguiçou-se.

A noite abatia-se, escura, sobre eles. Eram as únicas almas em quilômetros à volta.

Os seus lábios curvaram-se num sorriso irônico. Perdido num palheiro, com a bela Juno. Que oportunidade de a seduzir! Infelizmente, a bela Juno era de bom berço e estava sob a sua protecção. Apagou o sorriso do seu rosto antes que ela o visse, levantou-se e ofereceu-lhe a sua mão para a ajudar a levantar-se.

- Hora de dormir - disse, apontando para a escada. - Há muitos fardos de palha na parte de cima. Estaremos mais confortáveis lá em cima.

Martin subiu e, quando chegou lá acima, conteve-se para não praguejar. Pensar que era melhor subir primeiro para evitar ver acidentalmente as pernas e os tornozelos da sua companheira. Contudo, a vista que tinha naquele momento, uma notável extensão de peito branco sob o decote do seu vestido, era igualmente escandalosa e tentadora. E ele tinha de passar a noite inteira com ela ao seu alcance...

Cerrou os dentes e adoptou uma expressão tranqüila.

Quando ela subiu, ele apagou o lampião e estendeu sobre a palha o casaco que lhe emprestara. Seguidamente, entregou-lhe a manta que trouxera da carruagem.

- Pode dormir aqui. Cubra-se, senão terá frio.

No entanto, embora usasse um vestido muito fino, Helen não aceitou, ao dar-se conta de que era a única manta.

- E o senhor, não terá frio?

Oculto nas sombras, Martin sorriu. Tinha a esperança de que o ar frio da noite arrefecesse a sua imaginação febril. Para desviar o rumo dos seus pensamentos, declarou com um tom de voz menos grave:

- Dormir num palheiro cheio de palha fresca não é nada comparado com os rigores de uma campanha militar - sem mais delongas, deitou-se sobre a palha, a uma boa distância do seu casaco.

Quase às escuras, Helen viu que ele sorria. Ela também sorriu e envolveu-se na manta antes de se deitar sobre o casaco.

- Boa noite.

- Boa noite.

Durante dez minutos, reinou o silêncio.

Martin contemplou as nuvens através da janela do palheiro, que deixavam entrever a lua. De repente, ouviu-se um trovão e os cavalos relincharam suavemente. Ele ouviu a sua acompanhante a mexer-se, inquieta.

- O que se passa? Tem medo dos ratos?

- Dos ratos? - Ao ouvi-lo, Helen sentou-se de um salto.

Em silêncio, Martin amaldiçoou-se por ter uma língua tão comprida.

- Não se preocupe com eles.

- Não me preocupo... Deve estar a brincar! Martin viu-a a estremecer, iluminada pelo

luar que entrava pela janela. Meu Deus, era uma fada!

Helen embrulhou-se bem no casaco, enquanto lutava por controlar o pânico. Respirou fundo, permanecendo sentada até ouvir outro trovão.

- Para que saiba, eu tenho pavor das tempestades - a confissão foi feita com uma voz muito aguda. - E estou gelada.

Martin reparou que ela estava realmente assustada. Raios! A tempestade ainda nem sequer mostrara toda a sua fúria. Se não fizesse nada para a acalmar, ficaria histérica. Perguntou-se o que seria mais seguro: passar uma noite inocente com a bela Juno ou lutar em Espanha.

Suspirando, levantou-se e resignou-se a fazer algo que poderia ser descrito como masoquismo. Aquilo faria com que fosse impossível adormecer.

Aproximou-se dela, sentou-se ao seu lado e deu-lhe um abraço. Seguidamente, sem fazer caso da sua hesitação e da sua confusão, obrigou-a a deitar-se e a apoiar a cabeça no seu ombro. Os caracóis loiros faziam-lhe cócegas no queixo.

- Agora, toca a dormir - disse com seriedade. - Os ratos não vão atacá-la e está a salvo da tempestade. Além disso, assim não terá frio.

Helen não sabia o que lhe dava mais medo, se a tempestade ou a maré de emoções que estava a acabar com a sua confiança. Nada a preparara para passar a noite nos braços de um estranho, mas com a tempestade, preferia não sair do seu refugio.

A pouco e pouco, ao reparar que o homem estava silencioso e quieto, Helen descontraiu-se.

Quando Martin reparou que ela se aconchegava a ele, conteve uma asneira e obrigou os seus músculos a permanecerem imóveis.

- Boa noite - murmurou Helen, sonolenta.

- Boa noite - respondeu ele com uma voz entrecortada.

No entanto, Helen não conseguiu dormir.

Martin, consciente do corpo quente e tentador que estava a abraçar, sentia-a a estremecer cada vez que trovejava. Após um trovão particularmente violento, ela murmurou:

- Acabo de me dar conta que nem sequer sei como se chama.

Helen desculpou a sua mentira valendo-se das subtilezas sociais quando, na verdade, estava há horas a pensar em abordar o assunto. Aquela intimidade inesperada deu-lhe a desculpa perfeita. O facto de ele não saber o seu nome fazia parte da aventura, mas ela queria saber o dele.

- Martin Willesden, ao seu serviço - apesar da agonia que estava a passar, Martin sorriu na escuridão. Estava desejoso de a servir de muitas formas diferentes.

- Willesden - repetiu Helen, bocejando. Então, arregalou os olhos. - Oh, meu Deus! Não pode ser esse Martin Willesden... É o novo conde de Merton? - Helen afastou-se um pouco para olhar para ele na cara.

Martin estava hipnotizado pelo seu tom de voz.

- Receio que sim - respondeu. - Deduzo que a minha reputação me precedeu.

- A sua reputação? - Helen respirou fundo.

- Meu prezado senhor, foi o único assunto de conversa durante os últimos quinze dias. Toda a gente está ansiosa por ver a sua cara! A ovelha negra, que agora ostenta o título, vai unir-se à sociedade ou vai deixar-nos com água na boca?

Martin soltou uma gargalhada.

Helen reparou como lhe retumbava o peito. A tentação de estender as suas mãos sobre os músculos duros era demasiado grande. No entanto, ela resistiu e voltou a apoiar a cabeça no ombro dele.

- Eu não tenho vocação para o drama - declarou Martin. - Desde que cheguei, estive muito ocupado a pôr as coisas em ordem para me apresentar à sociedade. Estou aqui precisamente porque fui inspeccionar a minha casa principal. Começarei a comparecer aos eventos sociais e aos entretenimentos comuns quando chegar a Londres.

- Entretenimentos comuns? - repetiu Helen. - Sim, imagino.

- A sério? O que pode imaginar sobre os entretenimentos de um bon vivantl

Helen resistiu à tentação de responder que fora casada com um.

- Muitas coisas - replicou. Então, percebeu que aquela conversa era muito estranha e soltou uma gargalhada. - Acho que devia dizer-lhe que esta conversa é imprópria - disse com um tom alegre. Estava perfeitamente consciente de que a sua situação, naquele momento, era escandalosa. Contudo, parecia-lhe que tudo era correcto e estava contente.

A opinião de Martin era muito mais mordaz. Primeiro, ela dera-lhe um murro no queixo e fizera com que batesse com a cabeça num ramo. Agora, aquilo. Que outras torturas ia infligir-lhe?

com um suspiro, Helen aninhou-se contra ele.

Martin cerrou os dentes, fazendo um esforço para se manter passivo.

Ela soltou uma gargalhada que lhe pareceu de sereia.

- Acho que escapei das garras de um gatinho para cair nas do maior tigre que Londres conheceu - soltou outra gargalhada e, para espanto de Martin, adormeceu.

Martin ficou imóvel, reflectindo na escuridão. Ela admitira que conhecia o estilo de vida e as actividades dos bons vivants. Aquilo era estranho...

Antes que a sua imaginação fértil pudesse causar-lhe problemas, afastou aquela afirmação da sua mente, pensando em averiguar o que significava noutro momento, numa ocasião mais conveniente. Era evidente que levar aquela afirmação a sério e agir em conformidade não era a atitude mais inteligente.

com um esforço, concentrou-se em tentar dormir. No entanto, a sua imaginação causou-lhe todo o tipo de problemas, conjurando visões do que poderia haver por baixo daquele vestido de seda. Era a pior das torturas mentais.

Tomou a decisão de averiguar o nome real da bela Juno e, depois de a devolver à sua família e de já não a ter sob a sua protecção, tentaria localizá-la-ia novamente. Então, obrigou-se a não pensar em mais nada.

Passada uma hora, mergulhou num sono inquieto.

 

O sol acordou Martin.

Felizmente, abriu os olhos antes de se mexer, algo que nem sempre fazia. O que viu impediu-o de seguir os seus impulsos. Contendo uma asneira, libertou-se dos braços suaves que o aprisionavam e, sem acordar a bela Juno, levantou-se e desceu as escadas.

Cumprimentou os cavalos e saiu. A tempestade terminara e o sol brilhava no céu azul. Era um bom dia para viajar.

Martin estava prestes a voltar a entrar para acordar a sua companheira de aventuras quando pensou no estado em que se encontrariam as estradas.

O caminho do palheiro para a estrada principal transformara-se num lamaçal e a estrada não estava muito melhor.

Martin compreendeu que teriam de esperar algumas horas até os caminhos estarem secos.

Resignado a esperar, voltou para o palheiro.

Subiu as escadas e encontrou Juno a dormir. O sol da manhã fazia com que os seus caracóis loiros brilhassem. Tinha os lábios entreabertos e respirava profundamente. Estava ligeiramente rosada.

Ele observou-a durante um longo momento, admirando a simetria dos seus traços, as suas sobrancelhas e os seus lábios. O resto estava coberto pela manta, para seu alívio.

Quem seria ela?

Silenciosamente, Martin desceu as escadas. Ia deixá-la dormir. Depois da tempestade, certamente precisava de descansar.

Ele também precisava de mais algumas horas de sono, mas não acreditava que pudesse descontrair-se ao lado da bela Juno.

Quando Helen acordou, a manhã já ia bem avançada. Endireitou-se, confusa, e deu-se conta de que estava sozinha. Então, ouviu uma voz ao longe e deduziu que Martin estava lá fora, a falar com os cavalos.

Desceu a escada com cuidado e encontrou um balde de água fresca, com o lenço que ela usara no dia anterior ao lado. Rapidamente, layou a cara e as mãos. Estava a secar-se quando ouviu passos atrás de si.

- Ah! A bela Juno acordou. Estava prestes a ir acordá-la.

Helen virou-se.

À luz do dia, o seu salvador ainda era mais bonito do que à luz do lampião. Era muito alto e tinha os ombros muito largos. Os seus traços eram aquilinos e estava bronzeado.

Helen pestanejou e reparou que ele a estudava com o olhar. Rezou para que não reparasse que ela estava corada.

- Lamento. Devia ter acordado mais cedo.

- Não tem importância - Martin foi buscar o arnês que pendurara ao lado da porta do palheiro.

Ele estivera a perguntar-se de que cor seriam os olhos da sua acompanhante à luz do dia. Agora sabia que eram dois lagos cor de âmbar, verdes e dourados. Eram os traços mais impressionantes de um conjunto perfeito.

Martin agradeceu não a ter visto à luz do dia e depois ter tido que passar a noite ao seu lado.

O rubor dela dava a entender que ela pensava o mesmo. Martin tinha a certeza de que era muito mais fácil descontrair-se ao lado de um cavalheiro à noite, mas não queria que ela se escondesse atrás da etiqueta. Sorriu e sentiu-se aliviado quando ela correspondeu ao seu sorriso.

- As estradas já estão suficientemente secas para que possamos continuar a viagem.

Helen seguiu-o para fora do palheiro e respirou fundo o ar fresco da manhã. Viu que ele lutava para pôr o arnês aos cavalos e aproximou-se dele para o ajudar. Pegou nas rédeas de um dos animais e começou a sussurrar-lhe palavras com ternura, acariciando-lhe o focinho aveludado.

Martin assentiu, agradavelmente surpreendido pela sua ajuda. Juntos, conseguiram atrelar facilmente os cavalos à carruagem.

Então, ele pegou nas rédeas e aproximou-se dela com intenção de a ajudar a entrar na carruagem.

- Eu... eu deixei a manta e o casaco lá em cima - disse ela, gaguejando. Entrava em pânico perante a simples idéia de que ele lhe tocasse novamente. Depois de ter tido oportunidade de o observar durante dez minutos, não compreendia como tivera forças para sobreviver àquela noite.

Ele arqueou as sobrancelhas e observou-a, pensativo. De repente, estendeu-lhe as rédeas e disse:

- Eu vou buscá-los. Não tente fazer andar os animais.

Ele voltou passados dois minutos, mas ela já conseguira serenar-se. Ele pôs o casaco e a manta sob o assento e aproximou-se dela para pegar nas rédeas, que Helen lhe entregou. No segundo seguinte, ele agarrou-a pela cintura e sentou-a suavemente no assento.

Enquanto alisava a saia, Helen pensou que as experiências novas eram sempre inquietantes. Não tinha nenhuma dúvida de que aquilo que sentia cada vez que ele lhe tocava era escandaloso. E delicioso. E viciante, também. com certeza que era um dos truques que os bons vivants sabiam fazer com os dedos para conseguirem que as mulheres susceptíveis se convertessem em suas escravas.

Não que o seu marido tivesse tido aquela habilidade. De facto, Arthur nunca tivera muito tempo para a desajeitada adolescente de dezasseis anos com quem se casara por causa da sua fortuna e que substituíra rapidamente por mulheres mais experientes.

No entanto, nenhum dos inumeráveis admiradores que tivera desde que voltara a apresentar-se em sociedade a afectara como Martin Willesden. Fosse o que fosse, aquele homem era perigoso e ela devia lembrar-se disso.

Todavia, aquela situação era uma verdadeira aventura, a primeira que ela tinha em muitos anos. Já que tinham que pôr de lado o decoro e as convenções sociais, por que não desfrutava da liberdade daquele momento?

Um pouco mais tarde, depois de terem percorrido alguns quilômetros, Martin comentou:

- Espero que cheguemos a Ilchester a tempo de tomarmos o pequeno-almoço.

Helen desejou que ele não tivesse mencionado a comida. Decidida a esquecer-se de que tinha o estômago completamente vazio, procurou algum assunto de conversa inofensivo.

- Disse-me que foi visitar a sua casa. É perto daqui?

- Do outro lado de Taunton.

- Esteve longe durante muito tempo, não? Encontrou-a muito mudada?

- Treze anos de má gestão traçaram o seu destino, infelizmente - o silêncio que se seguiu àquela afirmação fê-lo compreender que a raiva que sentia transparecera no seu tom de voz, de modo que tentou suavizar o efeito. - A minha mãe vive lá, mas está inválida há vários anos. A minha cunhada é a sua dama de companhia, mas, infelizmente, não é muito perspicaz. Não é das que investigam se os tapetes desaparecem.

- Desapareceram? - Perguntou Helen com incredulidade.

Martin sorriu a contragosto.

- Infelizmente, a casa, além do quarto da minha mãe, está inabitável. Por isso volto para Londres rapidamente. Tenho uma equipa de decoradores e restauradores na minha casa da cidade. Quando tiverem terminado lá, vou enviá-los para Hermitage.

Intrigada pelo seu olhar distante, Helen pediu:

- Conte-me como é.

Martin sorriu e, com os-olhos fixos nos cavalos, recordou.

- Quando o meu pai era vivo, era um lugar maravilhoso. Estava sempre cheio de convidados. Espero que, agora que voltei, possa devolvê-la ao seu estado de graça.

Helen ouvia-o atentamente, espantada pelo ardor com que ele falava.

- É a sua casa preferida? - perguntou ela, tentando descobrir a razão.

- Suponho que é o lugar ao qual posso chamar lar. O lugar que mais associo ao meu pai e... e às minhas lembranças mais felizes.

O tom com que pronunciou a última frase desencorajou-a de fazer mais perguntas. Helen pensou que sabia muito pouco sobre o conde de Merton. Sabia que estivera fora do país, sim, mas não sabia onde. Ouvira falar de um escândalo no seu passado, mas não tinha informação específica. Porém, dada a impaciência com que as matronas da alta sociedade esperavam por ele, não devia ter sido suficientemente grave para o excluírem dos seus bailes e dos seus jantares.

Entretanto, Martin reflectia sobre o mistério que rodeava a sua acompanhante. Juno não era muito jovem, mas também não era velha. Devia ter entre vinte e cinco e trinta anos. Só não percebia por que não usava uma aliança na mão esquerda. Era muito bela, atraente, sensual, o tipo de senhora que convidavam para ir a Chatham House. Não era possível pensar que fosse uma mulher de outro tipo, pois era suficientemente culta para reconhecer o seu potencial de bon vivant mulherengo e ficar em estado de alerta. Não era uma característica de uma mulher que se deixava arrastar pelas fraquezas humanas. Juno era um verdadeiro enigma.

- Agora - disse ele, interrompendo o silêncio - deveríamos pensar na melhor forma de a devolver a sua casa - então, olhou para ela nos olhos. - Diga uma só palavra e eu deixá-la-ei à sua porta - sem querer, a sua voz baixou vários tons, algo que, pensou, só indicava até que ponto ela o afectava.

- Não acho que seja inteligente deixar que nos vejam sozinhos - respondeu Helen, contendo as suas fantasias escandalosas. Ele estava a gozar com ela, tinha a certeza.

- Talvez não. Tinha a esperança de que Londres tivesse perdido toda a sua rigidez com o passar dos anos, mas vejo que isso não aconteceu - Martin sorriu e olhou para ela nos olhos, dando à sua expressão toda a inocência de que era capaz. - Então, como?

Helen olhou para ele com os olhos semicerrados.

- Eu pensava, milorde, que alguém com a sua reputação não teria nenhuma dificuldade em ultrapassar esse obstáculo. Se pensar bem, tenho a certeza de que encontrará uma solução.

Decididamente, era uma observação impertinente, e provocou uma resposta audaz. Os olhos de Martin brilhavam ao responder:

- Devo dizer-lhe, minha querida, que se investigar a minha reputação saberá que eu nunca fui dos que respeitam as regras de etiqueta.

Ao dar-se conta do seu erro táctico, Helen ficou calada. Que parva fora ao tentar dar uma lição a um bon vivant usando a insolência!

- A sério que não tem nenhuma idéia? Confesso que pensava que saberia o que fazer.

Durante um instante, os seus olhares encontraram-se. Então, Helen viu-o esboçar um sorriso brincalhão e desviar o olhar.

- Como a menina disse, Juno, a minha experiência é muito vasta. Penso que seria melhor alugarmos uma carruagem numa das pequenas estalagens que há perto de Hounslow para a levar a Londres. Eu acompanhá-la-ei até aos subúrbios, onde poderá dar a direcção ao cocheiro.

- Sim - respondeu Helen, ainda confusa, tentando conservar a calma perante a descoberta do poder que aqueles olhos cinzentos tinham sobre ela. Durante uns instantes, tinha estado completamente hipnotizada, privada de vontade, totalmente à sua mercê... e achara delicioso. - Suponho que seja o mais conveniente.

O tom desgostoso com que aceitou a sua proposta fez com que Martin sorrisse. Aquela mulher era completamente receptiva e, ao mesmo tempo, inocente. O seu interesse por ela crescia de minuto a minuto.

- Chegaremos a Hounslow antes de anoitecer - disse, desejoso de esclarecer aquele ponto.

Prosseguiram viagem em silêncio.

Martin perguntava-se como devia abordar o assunto do seu nome e Helen pensava nele. Não havia dúvida de que era o homem mais atraente que ela conhecera na sua vida, não só pelo seu físico e pelas suas maneiras, mas também por algo mais profundo, algo que estava no tom grave da sua voz e no brilho que ardia nos seus olhos.

- Passa muito tempo no campo, miladyl A pergunta tirou Helen das suas reflexões.

- Visito freqüentemente... - calou-se, fazendo uma pausa antes de completar: - os meus amigos.

-Ah!

O olhar fugaz que Martin lhe dedicou confirmou as suspeitas de Helen: ele estava a tentar descobrir mais coisas sobre ela.

- Quer dizer, passa a maior parte do ano em Londres - acrescentou ele.

- Quando não estou a visitar alguém, sim.

- Costuma ir à ópera?

- Durante a temporada.

- Fica nos camarotes dos seus amigos? Helen dedicou-lhe um olhar altivo.

- Eu tenho o meu próprio camarote.

- Então, vou vê-la lá, certamente - Martin sorriu, satisfeito de ter conseguido um ponto.

Ao dar-se conta de que cometera um erro, Helen não teve outro remédio senão ser amável. Inclinou a cabeça.

- A condessa de Lieven vem comigo com freqüência. Tenho a certeza de que terá muito gosto em o conhecer.

- Oh! - frustrado pela menção da matrona mais austera de todo o Almack's, Martin deixou transparecer um certo desgosto. Então, descontraiu-se. - Uma informação muito interessante. Assim, poderei pedir-lhe autorização para dançar a valsa no Almack's consigo.

Helen teve de se rir perante aquela idéia. A visão de Martin Willesden a caminhar por aquele local sagrado como um lobo entre um rebanho era mais do que atraente.

Então, foi Martin quem se tornou altivo.

- Acha que não o farei?

- Eu... nunca pensei que gostasse dos entretenimentos inocentes que o Marriage Mart oferece.

- Não gosto, não. Só a promessa de todos os prazeres terrestres poderia fazer com que eu assistisse.

Helen não tentou responder àquilo e concentrou-se em observar a paisagem.

Martin sorriu. Não se lembrava de alguma vez ter gostado tanto de conversar com uma mulher. Na verdade, não se lembrava de ter falado durante tanto tempo com nenhuma mulher.

Juno era uma novidade, tinha uma mente muito rápida. Embora a informação que conseguira com aquela conversa fosse inocente, confirmara a sua suspeita de que ela ocupava uma posição na sociedade que estava reservada normalmente às velhas senhoras... ou às viúvas.

Ao pensar naquilo, deixou que os seus olhos percorressem as formas da mulher que viajava ao seu lado.

Helen viu o brilho de predador nos olhos cinzentos e compreendeu a mensagem. Embora soubesse que era perigoso conversar com um bon vivant fora de limites muito estritos, estava a adorar fazê-lo e, para ser sincera, era seguro. Ela dera-se conta disso há muitos quilômetros atrás. Estava sob a protecção do conde e sabia que ele honraria a sua missão. Enquanto estivesse aos seus cuidados, estaria a salvo dele.

Que Deus a ajudasse depois!

Todavia, não haveria um "depois", claro.

Helen reprimiu um suspiro quando a realidade se impps. O futuro de ambos estava decidido. Quando chegassem a Londres, ele seria o homem mais importante para todas as mães com filhas casadoiras, por boas razões: tinha um título, era rico e, para completar, era muito bonito. As debutantes iam matar-se umas às outras para o caçarem como marido. E, obviamente, ele escolheria uma delas. Uma debutante que tivesse um bom dote e uma reputação imaculada. Urna viúva sem propriedades e com um casamento infeliz às costas, sem outra recomendação do que as suas amizades, não era um bom partido.

No entanto, pela conversa que acabavam de ter, Helen não imaginava aquele homem adaptado a um casamento com uma jovem debutante. Na verdade, parecia ser do tipo que tinha uma ou duas amantes... como o seu marido fora, com a sua bênção. Todavia, se Martin Willesden fosse o seu marido ela não teria abençoado aquela situação.

A muito custo, Helen mudou o rumo dos seus pensamentos. Ele queria saber o seu nome. Ela poderia dizer-lho, mas sentia-se melhor no anonimato.

Quando chegassem a Londres e ele descobrisse quem ela era, perceberia que a sua amizade era inapropriada, uma vez que ninguém acreditaria que era inocente. Assim, se não lhe dissesse o seu nome, ele não se sentiria obrigado a reconhecê-la quando voltassem a ver-se. Além disso, muitos homens pensavam que as viúvas eram fáceis de seduzir e ela detestaria que ele pensasse que era uma candidata às suas aventuras extraconjugais.

Por tudo isso, decidiu que era melhor que ele não soubesse o seu nome.

Martin perguntava-se no que estaria a sua deusa a pensar para estar tão calada. No entanto, a paz da manhã envolvia-os, e ele não fez menção de a interromper. Apesar de não saber o seu nome, tinha a certeza de que a encontraria em Londres. Era possível que a capital se tivesse transformado no local mais movimentado do país, mas as casas ricas só eram freqüentadas por algumas pessoas. Seria fácil encontrar uma deusa de ouro e marfim.

O caminho estava em piores condições do que ele supusera, de modo que os cavalos e a carruagem não podiam avançar tão rapidamente como seria de esperar.

Passadas algumas horas, muito atrasados em relação ao horário que ele planeara, chegaram à estrada de Londres e por fim, depois das duas horas da tarde, Martin conduziu a carruagem para o pátio da Frog & Duck, a estalagem de Wincanton.

com um sorriso nos lábios, voltou-se para Juno, que olhava para ele sem perceber o que estava a acontecer.

- Está na hora do almoço. Eu estou morto de fome, mesmo que a senhora, sendo uma mulher que acompanha a moda, não tenha fome.

Helen arregalou os olhos.

- Eu não dou assim tanta importância à moda.

Martin soltou uma gargalhada e saiu da carruagem. Sem demora, contornou-a para ajudar Juno a sair.

Gorada, Helen aceitou o braço que ele lhe oferecia e subiram juntos os degraus que levavam à porta. O criado da estalagem aproximou-se de Martin para ouvir as suas ordens e, enquanto eles falavam, Helen entrou.

A porta dava directamente para o bar e, ao ouvir alguém a entrar, o estalajadeiro aproximou-se da porta. Ao vê-la, deteve-se e ficou a olhar para ela, surpreendido.

Helen deu-se conta de que os outros ocupantes do bar, outros seis homens, também ficaram atônitos. Então, para seu desconforto, o estalajadeiro dedicou-lhe um olhar luxurioso, parecido com os dos outros clientes.

Naquele momento, ela também se deu conta do aspecto que devia ter e da conclusão a que provavelmente aqueles homens tinham chegado. Endireitou-se, pronta para defender o seu estatuto.

No entanto, não houve necessidade disso, pois Martin entrou e parou ao seu lado. com um olhar, ele compreendeu o que estava a acontecer. Olhou para o estalajadeiro com desprezo, dizendo:

-Arranje-nos um quarto confortável, estalajadeiro, em que a minha esposa possa descansar calmamente.

O tom áspero da instrução apagou o olhar luxurioso da cara do homem.

Helen não sabia se devia rir ou soltar uma exclamação de assombro. Esposa? Rapidamente, cobriu a mão esquerda com a direita e ergueu o queixo para olhar para o estalajadeiro com altivez.

O homem encolheu-se e deu meia volta com uma atitude servil.

- Sim, milorde! É claro, milorde. Queira acompanhar-me, milady.

Fazendo vénias a cada dois passos, conduziu-os a uma sala, onde Martin lhe encomendou uma refeição farta.

- Tivemos um acidente com a nossa carruagem. Os nossos criados vêm um pouco mais atrás, com a bagagem - disse ao estalajadeiro. Levantou um pouco a voz para se dirigir Helen, que se sentara numa cadeira, cansada: Quer subir e arranjar-se um pouco, minha querida?

Helen pestanejou e apressou-se a aceitar.

Foi conduzida a um quarto pequeno. Ali, layou as mãos e a cara e aproximou-se de um espelho para ver os estragos que aquela viagem fizera na sua aparência. Não eram tão graves como ela temia. Tinha os olhos claros, brilhantes e o vento dera cor às suas faces. Era evidente que viajar pelo campo com Martin Willesden fazia bem ao seu estado físico. Finalmente, penteou o cabelo, sacudiu a saia e voltou para a sala.

A comida já estava servida.

Martin levantou-se com um sorriso e ofereceu-lhe uma cadeira.

- Quer vinho?

Ela assentiu e ele encheu-lhe o copo. Seguidamente, ambos começaram a comer com apetite.

Quando terminaram, Martin recostou-se na cadeira e pôs de lado os seus problemas para desfrutar de um copo de vinho enquanto observava Juno, concentrada na tarefa de cortar uma ameixa. Deixou viajar o olhar pelas suas curvas generosas, enquanto pensava nos adjectivos adequados para a descrever, alguns dos quais não eram muito aceitáveis socialmente. Escondeu o seu sorriso atrás do copo de vinho.

- Não vamos chegar a Londres esta noite, pois não?

Aquela pergunta fez com que Martin olhasse para os lábios dela, sujos do sumo da ameixa. Sentiu o desejo de os provar.

Bruscamente, os problemas voltararn-lne à mente. Olhou para Juno nos olhos e descobriu que ela estava preocupada. Sorriu-lhe Para a reconfortar.

-Não.

Helen não fez caso daquele sorriso. Ele não se daria conta da sua inquietação?

Aparentemente, sim, pois acrescentou:

- O mau estado da estrada atrasou-nos muito e não me parece aconselhável conduzir de noite até Londres. Poderíamos ter uni acidente. Além disso, também não acho que seJa aconselhável chegar a Londres ao amanhecer.

Helen franziu o sobrolho, vendo-se obrigada a aceitar que aquilo era verdade. Ele não poderia alugar uma carruagem para ela se passassem por Hounslow à meia-noite.

- E, antes que o sugira, não vou alugar nenhuma carruagem aqui para que viaje sozinha de noite.

Helen franziu ainda mais o sobrolho e abriu a boca para protestar.

- Nem sequer com escolta.

Helen fechou a boca e olhou para ele fixamente. Pelo seu tom e pela forma como cerrava os dentes, soube que não conseguiria fazer com que mudasse de idéias. E, para ser sincera, ela também não queria passar a noite na estrada, exposta aos bandoleiros e a coisas piores.

- Então, o que podemos fazer? - perguntou amavelmente.

Como recompensa, obteve um sorriso deslumbrante que quase lhe cortou a respiração. Teve a esperança de não ter que falar naquele momento.

- Eu estava a pensar - começou a dizer Martin, sem saber se o seu plano ia ser aceite ou não, - se poderíamos encontrar alguma estalagem onde não nos conheçam para passarmos a noite.

Helen reflectiu. Não via outra alternativa. Limpou os lábios com o guardanapo e olhou para ele.

- E como vamos explicar o nosso aspecto e a nossa falta de criados e de bagagem?

No instante em que fez a pergunta, soube a resposta. Era deliciosamente malvado, mas, pensou ela, tudo aquilo fazia parte da sua aventura, portanto podia fazer vista grossa.

Satisfeito por ela ter aceitado tacitamente o único plano viável que tinham, Martin tirou um anel de ouro da mão direita.

- Podemos contar a mesma história que contámos ao estalajadeiro. É melhor pôr isto disse, entregando-lhe o anel.

Helen sentiu que ainda estava quente da sua mão.

Era evidente, pensou, um pouco nervosa, que iam fazer-se passar por um casal.

Ela pôs o anel e, para sua surpresa, ao senti-lo no dedo anelar, não sentiu o horror que esperava. Pelo contrário, sentiu-se mais confiante, mais protegida.

- Está bem - disse. Respirou fundo e acrescentou: - Mas dormiremos em quartos separados.

- Claro! - exclamou Martin.

Não havia dúvida de que seria muito mais seguro assim. Além disso, ele precisava de dormir.

Observou o rosto de Juno e reparou que cada vez tinha mais vontade de conhecer o seu nome real. Dado que iam fingir que eram um casal, pensou que a sua intimidade justificava que lho perguntasse.

- Acho, minha querida, que dada a nossa suposta relação seria conveniente que me dissesse o seu nome.

- Oh! - exclamou Helen.

De repente, e apesar de todas as razões que tinha para não o fazer, sentiu o impulso de confiar naquele homem. No entanto, o que pensaria ele quando ouvisse o seu nome? Saberia quem fora o seu marido? O que sentiria? Pena? Talvez sentisse repugnância, embora disfarçasse... E ela não queria que nada estragasse a proximidade que se estabelecera entre eles.

- Eu... para ser sincera... - ficou sem palavras, incapaz de explicar o que sentia.

Martin sorriu. Não queria que ela se sentisse obrigada nem inquieta.

- Talvez seja melhor não mo dizer.

- É que esta aventura parece mais... mais completa e... - acrescentou, para que ele soubesse pelo menos uma parte da verdade, - e o meu comportamento parece um pouco mais desculpável se continuar incógnita.

Martin sorriu ainda mais e inclinou a cabeça.

- Está bem, mas, então, como devo chamá-la?

Helen olhou para ele com uma expressão agradecida e respondeu com um sorriso tímido:

- Escolha o senhor. Tenho a certeza de que inventará algo apropriado.

- Juno - respondeu ele. - A bela Juno. Martin não conseguia parar de sorrir.

Aquela mulher era a maior tentação que ele tivera à sua frente. Tinha a cabeça cheia de pensamentos escandalosos.

Helen arqueou as sobrancelhas.

- Penso, senhor, que essa alusão não é apropriada.

Ele sorriu ainda com mais intensidade.

- Antes pelo contrário, minha querida. Eu acho que é muito apropriada.

Helen franziu o sobrolho. Juno, a rainha das deusas. Como podia rebater aquilo?

- bom, agora que decidimos o nosso futuro imediato, sugiro que nos ponhamos a caminho novamente - Martin levantou-se e esticou as pernas.

Se não saísse dali rapidamente, não poderia responder pelos seus actos. A companhia de Juno estava a pôr à prova a sua resistência. E ainda tinha de. jantar com ela, também a sós... Teria de recuperar todas as forças possíveis durante o caminho.

- Vamos, milady. A sua carruagem espera-a.

 

Escolheram a estalagem Bells, em Cholderton, para passarem a noite.

A pequena povoação situava-se a sul da estrada de Londres e a maior parte dos viajantes não parava ali. A estalagem era antiga, mas confortável.

Martin contou a sua história ao estalajadeiro com arrogância: lorde e lady Willesden precisavam de quartos para passarem a noite. O homem não viu nada de estranho no pedido. Na verdade, até se mostrou bastante contente por ter hóspedes.

- A minha esposa já vai servir-vos o jantar, milorde. Há pato, perdiz, borrego e vinho.

com superioridade, Martin assentiu.

- Muito bem.

Quando a porta se fechou atrás do homem, ele virou-se para Helen com uma expressão risonha.

- Perfeito - disse e, com o seu sorriso, deu a Helen tanto calor como o lume que ardia na lareira.

Helen sentiu-se ainda mais nervosa quando ele se aproximou a para ajudar a tirar o casaco, que Martin voltara a pôr-lhe nos ombros quando a noite caíra, no caminho. Os seus dedos tocaram-se.

- Deixe-me ajudá-la.

Ela aceitou, pois não teria conseguido mexer-se nem que o tecto lhe caísse em cima. O toque suave de Martin deixou-a sem acção. O efeito que ele tinha sobre ela era cada vez mais intenso...

Como conseguiria sobreviver àquela noite?

Assim que ele se afastou para pendurar o casaco, Helen sentou-se numa cadeira em frente à lareira. Respirou fundo, obrigando-se a olhar para ele quando se virou novamente para ela.

Martin observou a visão que tinha à sua frente e reparou que ela estava insegura.

Se as circunstâncias fossem diferentes, ela teria motivos para se sentir ameaçada, mas por enquanto estava a salvo. Ou, pelo menos, suficientemente a salvo, corrigiu-se. Ele tinha-se dado conta de que ela sabia que o atraía. Até era divertido observar os esforços que ela fazia para disfarçar. Na verdade, era divertido e intrigante. Era óbvio que, se Juno era viúva, não era das que dispensavam os seus favores com facilidade.

Enquanto ele a observava, Juno franziu o sobrolho.

- Por que não viaja com um criado ou um cocheiro?

Martin sorriu, disposto a manter uma conversa sobre assuntos inocentes.

- O meu cocheiro ficou em Hermitage porque está com gripe.

- Hermitage tem muitas quintas?

- Seis. Todas estão ocupadas por agricultores que continuarão lá a longo prazo.

Aquelas perguntas desviaram a conversa para a agricultura e a gestão das propriedades.

Martin reparou que Juno evitava conversar sobre a cidade, pois isso proporcionar-lhe-ia mais pormenores sobre a sua identidade. No entanto, as suas idéias sobre a organização do trabalho numa quinta e sobre os problemas dos rendeiros que as ocupavam eram igualmente reveladoras. Os seus conhecimentos sobre o assunto não podiam ter sido adquiridos senão através da experiência.

Aquilo contribuiu para completar a imagem que ele tinha dela. Evidentemente, ela passara grande parte da sua vida numa propriedade grande e bem administrada.

Alguém bateu à porta.

- Trago o jantar, milorde.

O estalajadeiro entrou no quarto, pôs a bandeja em cima da mesa, fez uma vénia e retirou-se.

Martin levantou-se e estendeu a mão a Juno.

-Vamos?

Ela deu-lhe a mão, ignorando o arrepio provocado pelo seu toque, e acompanhou-o à mesa.

O sorriso que se desenhava no rosto de Martin deu-lhe a entender que o seu ar sofisticado não o enganara.

Felizmente, a comida proporcionou-lhes outro assunto de conversa.

- Tenho que admitir que, depois de treze anos de ausência, não sei o que se serve à mesa das pessoas que estão na moda.

Animada por aquele comentário, Helen não fez caso do olhar de gozo dos seus olhos e enumerou uma lista das últimas delícias culinárias.

Quando o estalajadeiro entrou para tirar a mesa, Helen aproveitou a oportunidade para se retirar para a cadeira em frente à lareira. Ao ouvir a porta a fechar-se, perguntou-se, um pouco frenética, como ia desenvencilhar-se nas próximas horas.

- Quer um brandy?

Ela abanou a cabeça, recusando, e observou como ele se servia de uma boa dose.

Não havia dúvida, pensava Martin, que ia ter dificuldade em dormir, sabendo que Juno dormia no quarto ao lado. Aproximou-se da lareira e apoiou-se nela.

- O seu mordomo não vai ficar muito contente quando vir as suas botas - comentou Helen.

Martin seguiu o seu olhar e sorriu.

- Terei de as confiar aos criados da estalagem. Decerto que Joshua nunca me perdoará.

Helen sorriu. À excepção dos nervos que sentia, devido à sua companhia, sentia-se em paz, uma sensação que não experimentara muitas vezes na sua vida. Estava contente. Estava no meio de uma escapadela escandalosa, mas sentia-se contente... Que estranho!

Ao surpreender Martin a olhar para ela sub-repticiamente, sorriu. Ele também sorriu, pensativo, e ela sentiu um calor no seu coração. Os seus olhares ficaram fixos um no outro e Helen reparou que a sua força de vontade começava a fraquejar.

De repente, ouviu-se uma grande algazarra.

Martin olhou para a porta.

Uma invasão chegara à estalagem.

Helen franziu o sobrolho.

- O que será isto?

Quase imediatamente, o estalajadeiro chegou para satisfazer a sua curiosidade.

- Desculpe, milorde, mas parece que esta é a noite dos acidentes. A diligência nocturna de Plymouth perdeu uma roda muito perto daqui. O ferreiro diz que não poderá arranjá-la até de manhã, portanto teremos que dar quartos aos viajantes. Se milorde e milady me permitirem, levá-los-ei para o quarto principal. Não os decepcionará, milorde. Tem uma cama enorme. Há mais hóspedes do que camas, portanto pensei que não se importariam de mudar de quarto.

O homem olhou para Martin, esperançoso.

Martin olhou para trás, perguntando-se como Juno encararia aquelas notícias. Do seu ponto de vista, aquele acidente era uma complicação adicional, mas se insistisse em ficar com os quartos separados, provavelmente teriam que os partilhar com pessoas muito menos recomendáveis. E com tantos homens na estalagem, ele preferia que Juno ficasse ao seu lado, onde estaria mais segura, embora ele também não dormisse naquela noite.

- Está bem - respondeu ele, ouvindo Juno a respirar fundo. - Nestas circunstâncias, aceitaremos o quarto principal.

com evidente alívio, o estalajadeiro fez outra vénia e saiu.

Martin virou-se e deparou com o olhar de reprovação de Juno.

- Na verdade, minha querida, estará mais segura comigo do que sozinha, numa noite como esta.

Não havia resposta para aquilo.

Helen fixou o olhar nas chamas que crepitavam na lareira. A perspectiva de dormir no mesmo quarto que Martin Willesden assustava-a. Dormira nos seus braços num palheiro, mas um palheiro não era a mesma coisa que uma cama. Aquela aventura estava a tomar um rumo perigoso... Não! Era impossível! Tinha que pensar numa alternativa.

Quando subiram ao quarto e fecharam a porta atrás deles, Helen disse:

- Milorde, isto é impossível.

Ele sorriu e aproximou-se da janela.

- Martin - respondeu. - É melhor deixar de me chamar "milorde", se queremos fingir que somos casados, e também é melhor tratarmo-nos por tu - Martin fechou as cortinas e sorriu a Juno, que ainda estava ao lado da porta, nervosa e insegura. - Não é impossível. Vem cá e deixa-me ajudar-te a desabotoar o vestido - disse, sem prestar atenção ao olhar assustado que ela lhe dedicou. - Depois poderás meter-te entre os lençóis e passar a noite tão casta como uma freira.

Helen tentou pensar, mas a sua mente não foi capaz de encontrar outra solução para o problema. Começou a andar de um lado para o outro com o olhar perdido.

com um sorriso, Martin puxou-a pela mão e aproximou-a da lareira acesa. Pôs-se atrás dela e encontrou os cordões do vestido, que não resistiram aos seus dedos hábeis. Resistiu à tentação de abrir o vestido e percorrer a coluna de Juno com um dedo. Ela só trazia uma fina combinação de seda.

- Espera aqui um momento. vou trazer-te o lençol.

Helen olhava fixamente para as chamas, completamente corada.

Até àquele momento, o comportamento do conde de Merton fora tão pouco ameaçador como as suas palavras. Eram os seus desejos que estavam a debilitar a sua confiança. Estava perfeitamente consciente de que estava muito perto de ter uma aventura amorosa ilícita com um dos bons vivants mais famosos de Inglaterra. Só tinha de lhe dar uma pequena indicação de que as suas atenções seriam bem recebidas e aprenderia por que aquele tipo de homem era tão apreciado como amante.

Martin Willesden era a viva imagem da tentação. No entanto, o seu bom-senso interpôs-se e fê-la ver que a última coisa que precisava era de ter uma aventura passageira, baseada na atracção física. Aquele nunca fora o seu estilo.

Ele voltou com o lençol e segurou-o no ar.

- Eu vou olhar para o outro lado. Prometo-te que não te espiarei.

Helen não se atreveu a olhar para ele, para se certificar de que cumpria a sua palavra. Rapidamente, despiu o vestido e enrolou-se no lençol.

- Agora, se te deitares na cama, eu cubro-te com a manta.

- E onde vais tu dormir? - perguntou ela, enquanto se dirigia para a cama.

- Tal como o estalajadeiro disse, a cama é muito grande - respondeu ele, começando a desabotoar o casaco.

Helen deteve-se e olhou para ele fixamente.

- O que vais fazer?

- vou deitar-me. Não estou disposto a dormir outra noite com esta roupa - ao ver a cara de horror de Juno, totalmente escandalizada, resmungou: - Por amor de Deus, mulher! Deita-te na cama e vira-te de costas. Tens a minha promessa de que não me aproveitarei de ti.

"Não é isso que me preocupa!", pensou Helen enquanto se deitava. Estava escandalizada, fascinada, aterrorizada pelas possibilidades. Passara muito tempo desde que estivera na cama com um homem. A noite anterior não contava, porque tinham dormido num palheiro. No entanto, aquilo era uma cama.

Para seu horror, continuou a pensar como seria fácil descontrair-se e deixar-se levar, deslizar-se até ao pé do corpo musculado que se deitou ao seu lado e que fez o colchão afundar-se.

Na escuridão, Martin cerrou os dentes.

Doíam-lhe as virilhas de desejo. O perfume suave que emanava dela aguçava-lhe os sentidos. O seu corpo respondia à proximidade.

Se a noite anterior fora difícil, aquela ia ser uma tortura. Enquanto a luz do lume se ia apagando, deixando-os às escuras, ele deu-se conta de que ela continuava acordada e tensa ao seu lado.

- Não te preocupes, eu não me mexo de noite. Durmo muito profundamente - "quando consigo", pensou. - Penso que se deve ao facto de ter estado no exército. As pessoas dormem quando podem e, normalmente, não em lugares confortáveis.

- Durante quanto tempo estiveste na Península?

Aquela pergunta recordou a Martin que uma das suas amantes lhe dissera que não havia nada mais aborrecido do que ouvir as histórias militares dos homens. Aproveitou a idéia e, passados dez minutos, a verdade daquela afirmação tornou-se evidente. Martin interrompeu-se no meio de uma descrição de uma batalha. Não se ouvia nada além do crepitar da lenha na lareira e da respiração profunda de Juno.

Ela estava a dormir.

Ele sorriu na escuridão, estranhamente contente, como se tivesse ganhado outra batalha. Saber que ela estava a dormir permitiu-lhe relaxar e, por fim, rendeu-se ao sono.

Quando acordou, Martin viu que de facto não se mexera durante toda a noite. Infelizmente, Juno mexera-se. Ela aconchegara-se entre os seus braços e tinha a cabeça apoiada no seu peito. Um dos seus braços nus agarrava-o pela cintura. O lençol escorregara para baixo e ele tinha as pernas de Juno, suaves como a seda, entre as suas.

Martin obrigou todos os músculos do seu corpo a obedecerem e, com cuidado, soltou-se dos braços e das pernas que o abraçavam, tentando não olhar. Então, voltou a cobri-la. Se ela acordasse naquele momento, apanharia um bom susto.

Foi um alívio sair do calor da cama.

Martin vestiu-se rapidamente e desceu para o bar. Ali encontrou ao estalajadeiro, que atendia alguns dos viajantes da diligência nocturna. Alguns deles dormiam sentados nos bancos do bar.

Após cumprimentar o homem e fazer um comentário sobre o tempo, Martin perguntou despreocupadamente:

- Por acaso apareceram os nossos criados? O estalajadeiro abanou a cabeça.

- Não, milorde. Não chegou ninguém esta manhã.

Martin franziu o sobrolho e praguejou.

- Nesse caso, vou alugar unia das suas carruagens. A minha mulher vai para a cidade, enquanto eu volto para trás para averiguar o que aconteceu.

O homem foi extremamente prestável e garantiu-lhe que a carruagem era muito boa, que o cocheiro e os cavalariços eram de confiança e que levariam a sua esposa a Londres sã e salva.

- Muito bem - respondeu Martin, enquanto lhe pagava. - Prepare a carruagem. Quero que a minha mulher parta assim que tomar o pequeno-almoço. Poderia fazer o favor de nos levar uma bandeja ao quarto? - com certeza, milorde!

Martin subiu as escadas e parou no patamar para reunir forças antes de bater à porta e entrar. Para seu alívio, Juno, tão bela como sempre, estava completamente vestida, penteando-se sentada à mesa.

Helen voltou-se quando entrou Martin e sorriu com calma. Quando acordara, dera-se conta de que ele saíra e que ela estava no meio da cama, com o lençol enrolado nas coxas. Não queria pensar onde estava quando ele acordara. - bom dia.

A pulsação de Helen acelerou-se.

- Está uma linda manhã - Martin aproximou-se dela e apoiou-se na parede ao lado.

Para os sentidos sensibilizados de Helen, ele era todo masculinidade e poder. Lutando por manter o controlo, ela ouviu atentamente os planos dele.

- com sorte, estarás em casa pouco depois do meio-dia.

Apesar de desejar já estar em casa, Helen sentiu um aperto no estômago. A sua aventura estava prestes a terminar... De repente, o dia parecia menos luminoso.

Quando o pequeno-almoço foi servido na mesinha ao lado da janela, Helen tentou livrar-se da tristeza e responder às suas brincadeiras.

Ele fora o seu cavaleiro andante e devia-lhe muito. Por isso, ignorou o seu abatimento e respondeu alegremente aos comentários dele.

Teria ficado mortificada se soubesse com que facilidade ele lia os seus pensamentos. Era mais do que evidente que Juno não era uma mestre na arte do engano. A sua expressão e os seus olhos reflectiam o seu estado de espírito. Martin adivinhou o que ela estava a sentir e o seu desejo de o disfarçar. Sabiamente, não fez nenhum comentário, embora estivesse extraordinariamente satisfeito por saber que ela estava triste com a sua separação.

Assim, seria muito mais fácil atraí-la quando se encontrassem novamente.

Quando terminaram de tomar o pequeno-almoço, ele acompanhou-a ao rés-do-chão. A carruagem que ia levá-la a Londres estava à sua espera. Os cavalariços e o cocheiro estavam prontos.

- Eu disse-lhes para te levarem a Londres, mas que quando chegarem lá tu decidirás para onde queres ir. Paguei-lhes por todo o serviço, portanto não precisas de te preocupar com isso.

Helen ficou sem ar.

- Não sei como te agradecer - disse ela, em voz baixa, para que ninguém pudesse ouvi-la.

- Foste de uma ajuda inestimável.

O sorriso de Martin acentuou-se.

- Foi um prazer, bela Juno - pegou-lhe na mão e deu-lhe um beijo nos dedos trêmulos.

- O seu anel... - sussurrou ela. Suavemente, a contragosto, Martin tirou-lhe

o anel e pô-lo no seu dedo. Então, olhou para ela nos olhos.

- Até à próxima vez que nos encontrarmos. Helen sorriu, consciente do desejo que sentia de se apoiar nele e agarrar-lhe na mão.

De repente, Martin lembrou-se de que estavam a fingir ser marido e mulher e que o facto de ser o seu marido lhe dava certos direitos. Além disso, ao ser um bon vivant, estaria louco se não aproveitasse uma oportunidade como aquela. Sorriu maliciosamente.

Helen viu o seu sorriso e arregalou os olhos, mas não teve como o evitar. Ele abraçou-a e puxou-a, enquanto lhe erguia o queixo. Os seus lábios pousaram sobre os de Juno íntima, possessivamente.

O tempo pareceu parar.

Durante um instante, ela resistiu ao beijo, mas depois não pôde resistir mais. Abriu os lábios e ele aproveitou automaticamente a oportunidade de a saborear, explorando-a de uma forma lânguida e brincalhona. Ela sentiu que ele a abraçava com força e aconchegou-se mais a ele.

Era delicioso, um convite ao prazer. O seu aroma inebriante invadiu-a e não pôde ter consciência de outra coisa senão dele.

A contragosto, Martin pôs fim ao beijo.

Sabia que, no momento, era impossível ir mais longe, mas pelo menos dera-lhe algo para que o recordasse em Londres, até que voltassem a encontrar-se e ele pudesse continuar a seduzi-la.

Olhando para ela nos olhos, sorriu e, demasiado sábio para tentar conversar, conduziu-a para a carruagem. O cavalariço abriu a porta e Martin ajudou a sua deusa a subir e a sentar-se comodamente. Então, voltou a beijar-lhe a mão.

- Adeus, bela Juno. Até à vista.

Helen pestanejou.

A mensagem que se reflectia no seu olhar era óbvia.

De repente, a porta fechou-se e a carruagem começou a andar. Ela teve que fazer um esforço para não se assomar à janela e olhar para ele. Não havia necessidade. "Até à vista", dissera ele. E ela não tinha nenhuma dúvida de que ele tinha toda a intenção de a procurar.

Ainda a tremer, Helen respirou fundo. Oxalá os sonhos pudessem tornar-se realidade.

No pátio da estalagem, Martin ficou a observar a carruagem até a perder de vista na estrada de Londres. Juno não lhe escaparia. Ia encontrá-la em Londres, tinha a certeza.

Ela era a deusa da sua devoção.

 

Passadas três semanas, Helen estava no seu quarto, observando o conteúdo do seu roupeiro para decidir o que podia e o que não podia usar naquela Little Season, quando Janet, a sua criada, assomou a cabeça à porta.

- Tem uma visita, tnilady.

Antes que Helen pudesse perguntar quem era, Janet foi-se embora.

Helen voltou a sentir o nervosismo que experimentara diversas vezes desde que voltara à cidade. "Contudo, não podia ser ele", pensou. Não às onze da manhã.

com um suspiro, Helen despiu o robe e sentou-se em frente à cômoda para se arranjar.

O seu reaparecimento na capital provocara um grande reboliço entre os seus amigos, mas graças à discrição dos seus criados, a notícia não se espalhara. Apesar das explicações que tivera que dar, o episódio fora esquecido sem maiores conseqüências. Durante o seu relato, conseguira revelar o nome do seu raptor, que não queria mencionar porque não tinha provas de que fosse Hedley Swayne, nem o do seu salvador, cuja menção provocaria um escândalo. Tivera sorte, porque as circunstâncias tinham feito com que o nascimento do filho e herdeiro do seu protector, Marc Henry, o marquês de Hazelmere, tivesse coincidido com o seu regresso a Londres e o marquês ficara na sua casa de Surrey. Se tivesse tido de enfrentar os seus penetrantes olhos cor de avelã, tinha a certeza de que teria confessado toda a verdade. Felizmente, o destino ajudara-a.

Helen desceu as escadas, impaciente, embora soubesse que os olhos cinzentos que a tinham enfeitiçado não estariam à sua espera lá em baixo. E, de qualquer forma, se ele a procurasse, saberia o seu nome e descobriria tudo. Então, os seus sonhos tolos nunca se tornariam realidade.

A pessoa que estava à sua espera era Dorothea, a marquesa de Hazelmere.

- Helen! - Dorothea levantou-se, tão elegantemente vestida como sempre e com uma expressão radiante de felicidade.

- Thea, o que estás a fazer aqui? Eu pensei que ficarias em Hazelmere durante meses!

Helen abraçou-a carinhosamente. Elas tinham-se tornado muito amigas desde que Dorothea se casara com Hazelmere, há um ano. A amizade de Helen com Hazelmere já vinha da infância. Ela era uma parente afastada dos Henry e passara muitos Verões com a irmã mais nova de Hazelmere, em Surrey.

Helen observou Dorothea e sentiu uma pontada de inveja, ao saber que ela nunca experimentaria a felicidade da sua amiga.

- Como está o meu afilhado? - perguntou.

- Darcy está perfeitamente bem - respondeu Dorothea, enquanto as duas iam para o pátio traseiro da casa, que era soalheiro e estava cheio de flores.

Sentaram-se num banco e Dorothea começou a contar-lhe:

- Instalei-o no segundo andar da casa. Mytton não sabe como reagir e Murgatroyd está dividido entre o orgulho e a vontade de pedir a demissão.

Helen sorriu. O mordomo e o criado de quarto de Hazelmere eram muito seus amigos.

- Como conseguiste convencer Marc de que estavas suficientemente bem para vires à cidade? Eu tinha a certeza de que ele te manteria fechada em casa até Darcy começar a andar, no mínimo.

- Foi fácil - respondeu Dorothea, com os olhos muito brilhantes. - Disse-lhe que se estava suficientemente bem para fazer amor com ele, também o estava para agüentar os rigores da temporada.

Helen soltou uma gargalhada.

- Oh, meu Deus! O que eu não daria para ver a sua cara!

- Sim. Foi digna de se ver - respondeu Dorothea, estudando Helen com atenção. - bom, já falámos o suficiente sobre o meu marido. Que história é essa sobre o teu desaparecimento?

Fingindo despreocupação, Helen contou-lhe a história. Dorothea não a pressionou para lhe contar os pormenores que omitiu e limitou-se a comentar, no fim do relato:

- Hazelmere não soube de nada e não vejo nenhuma razão para lhe contar. Para ser sincera, eu vim aqui para te convidar para jantar na quinta-feira. Será um jantar só para a família... pelo menos, para os que estão na cidade. Ainda é muito cedo para organizar um jantar formal e teremos tempo para isso quando a temporada começar. Tu vens, não é?

- Claro! - exclamou Helen com uma expressão brincalhona. - Mas... mas até lá, Hazelmere já deve ter ouvido a história da minha escapadela. Podias dizer-lhe que não há nenhuma razão para se preocupar e que eu não gostaria nada que ele me fizesse um interrogatório durante o jantar?

Dorothea riu-se e apertou-lhe uma mão.

- Fica descansada. Eu farei com que ele se porte bem.

Helen confiava plenamente na sua amiga naquele ponto. Sorriu ao pensar no capitalista Hazelmere a ser manipulado, em algumas coisas, pela sua elegante esposa.

Dorothea levantou-se.

- Tenho de me despachar. Ainda preciso de ir falar com Cecily.

Helen acompanhou-a à porta.

- Vem cedo, se puderes - pediu Dorothea. - Darcy porta-se sempre muito bem quando tu estás presente - deu-lhe um abraço afectuoso e desceu as escadas para a carruagem que estava à sua espera na rua.

Helen viu-a a ir-se embora e, sorrindo, subiu ao seu quarto para escolher um vestido para quinta-feira.

Martin caminhava pela rua de Saint James, totalmente alheio ao barulho e à agitação que o rodeava. Ainda tinha de descobrir o nome verdadeiro da bela Juno, uma falha que ia rectificar assim que pudesse. Pensara que poderia investigar assim que chegasse a Londres, mas deparara com uma crise na sua propriedade de Leicestershire, de modo que só ficara em Londres durante o tempo necessário para pegar nos documentos que precisava e partira novamente. Quando por fim resolvera os problemas, tinham passado três semanas.

Naquela manhã, levantara-se da cama com a determinação de recuperar o tempo perdido. O White's parecera-lhe o local mais indicado para começar. Nunca deixara de pagar as cotas de sócio, apesar de todos os anos que estivera ausente da cidade. Assim, quando foi interrogado pelo porteiro, respondeu-lhe com toda a naturalidade que consultasse a lista de sócios. Estava tudo em ordem.

Pela mudança de atitude do homem, Martin deduziu que o seu título já fosse do domínio público. Enquanto atravessava as salas, as pessoas saudavam-no com respeito.

Quando entrou no salão principal, observou os grupos em busca de caras familiares.

- Martin?

A pergunta fez com que ele se virasse. Viu dois olhos castanhos ao mesmo nível que os seus.

Encantado, Martin sorriu.

-Marc!

Os dois homens apertaram as mãos afectuosamente.

Puseram a "escrita em dia" e, então, Hazelmere apontou para as outras salas.

- Tony está por aí. Ele também se casou. com a irmã de Dorothea, por coincidência.

Martin olhou para ele, divertido.

- Isso deve ter dado asas a muitos comentários. Como encarou Tony os comentários de gozo sobre ele seguir sempre o teu exemplo?

- Por muito estranho que pareça, desta vez, nem sequer lhes prestou atenção.

Encontraram Anthony, lorde Fanshawe, e outros membros do que fora o grupo de Martin, nas salas das traseiras. A entrada de Martin provocou um verdadeiro reboliço. Bombardearam-no com perguntas, a que ele respondeu de bom humor, voltando a atar os fios que uniam velhas amizades e, para sua surpresa, começou a sentir-se à vontade. No entanto, entre tanta gente, esqueceu-se das perguntas sobre Juno. Podia admitir perante Hazelmere e Fanshawe, os seus melhores amigos, que estava interessado por uma viúva, mas não queria criar especulações entre tanta gente.

Passadas algumas horas, saiu do clube juntamente com os seus dois amigos e reflectiu ironicamente que, pelo menos, fizera o seu reaparecimento em sociedade.

Quando estavam prestes a despedir-se, Hazelmere reteve-o.

- Acabo de me lembrar de uma coisa. Vem jantar amanhã a minha casa. Vai ser uma reunião informal, só para a família. Tony também vem, portanto poderás conhecer as nossas esposas - e acrescentou, sorrindo com orgulho: e o meu herdeiro.

- Claro! - exclamou Fanshawe. - Vem e contribui para animar o jantar. Vai ser um caos de qualquer forma.

Martin não pôde evitar soltar uma gargalhada.

- Está bem. Tenho que confessar que estou desejoso de conhecer os vossos modelos de virtudes.

- Então, às seis horas. Ainda jantamos cedo, nesta época.

Depois de se despedirem, Martin regressou à sua casa recém-restaurada e decorada, em Grosvenor Square, pensando que a nova lady Hazelmere poderia ajudá-lo a descobrir a identidade de Juno.

Quando chegou, entregou as luvas e o casaco ao seu mordomo, Hillthorpe, que aparei céu instantaneamente para o receber. Seguidamente, dirigiu-se para a biblioteca, impressionado pelo silêncio que reinava na enorme casa. Nas suas lembranças, aquela casa estava sempre cheia de crianças, dos amigos dos seus irmãos, dos seus pais, dos seus. Tudo isso desaparecera. Só restava a sua mãe, fechada no seu quarto em Somerset, e o seu irmão mais novo, Damian, que só Deus sabia onde estava naquele momento. A expressão de Martin endureceu-se ao pensar no seu irmão. Rapidamente, ele afastou aquele pensamento da sua mente. Damian sabia cuidar de si.

Sentou-se numa cadeira recém-estofada com um copo de brandy na mão e pensou no seu lar. Estava vazio e ele precisava de o encher de vida e de risos. Continuava a sentir falta disso. Acabara com a decadência, com a humidade e com os estragos feitos por pessoas sem escrúpulos. Agora, a casa estava como nova, portanto estava na hora de dedicar todas as suas energias e a sua inteligência à tarefa de reconstruir a sua família.

O orgulho com que Hazelmere falara da sua mulher e do seu filho impressionara-o. Conhecia Marc e só precisara de algumas horas para saber que os laços que uma vez tinham existido entre eles ainda perduravam. Teria o destino posto Juno no seu caminho?

Martin sorriu com certo cinismo. Por que não podia admitir, simplesmente, que se apaixonara perdidamente por aquela mulher? Não havia necessidade de pensar no destino, nem em nada sobrenatural. Juno era muito real e, do seu ponto de vista, muito sensual. E, pela primeira vez na sua vida, não estava a pensar numa relação passageira. Tinha a certeza de que o seu interesse por Juno nunca desapareceria.

com um sorriso, Martin levantou o seu copo num brinde silencioso à sua deusa. Terminou o brandy e pousou o copo na mesinha, depois saiu da biblioteca.

Na quinta-feira à tarde fazia bom tempo.

Martin foi a pé para Cavendish Square. O mordomo de Hazelmere, Mytton, recebeu-o e, para seu assombro, reconheceu-o.

- Bem-vindo, milorde. Fico feliz por ter regressado.

- Eh... Obrigado, Mytton. Hazelmere apareceu no hall.

- Vi logo que eras tu.

Martin apertou-lhe a mão, mas o seu olhar fixou-se na mulher que acompanhava o seu amigo. Era muito esbelta, tinha a pele branca e o cabelo castanho avermelhado. A sua cara tinha uma beleza clássica. Martin olhou novamente para Hazelmere, com as sobrancelhas arqueadas interrogativamente.

O sorriso do marquês deu-lhe a resposta.

- Permite-me que te presente a minha esposa, Dorothea, marquesa de Hazelmere. Martin Willesden, conde de Merton.

Martin fez uma vénia à marquesa e Dorothea correspondeu com outra.

- Bem-vindo, milorde. Ouvi falar muito de si. Sinto-me muito honrada por ser a primeira anfitriã a recebê-lo.

Martin sorriu.

- Muito prazer, milady - Dorothea era uma mulher encantadora, perfeita para Hazelmere.

- Por favor, entre, que eu vou apresentá-lo aos outros - Dorothea pôs-lhe a mão no braço e conduziu-o à sala.

Hazelmere pôs-se do outro lado.

- Também tens que conhecer o meu herdeiro - disse com os olhos brilhantes.

Detiveram-se à entrada da sala. As conversas animadas misturavam-se. Martin passeou o olhar pelas pessoas e descobriu Fanshawe com uma rapariga loira muito bela ao seu lado, falando com outra mulher que Martin reconheceu. Era a mãe de Marc, a marquesa viúva.

Martin recordava-se dela com afecto. Fora uma das poucas pessoas que não o condenara aquando do episódio com Monckton.

Então, dirigiu o olhar para outro grupo que estava ao lado da lareira. Ficou petrificado. Havia uma mulher ao lado da lareira com um bebê nos braços. Tinha o cabelo loiro, encaracolado e brilhante, e trazia um lindo vestido cor de âmbar. Era mais alta do que o homem elegante com quem estava a conversar, o seu amigo Ferdie. A entrada de Martin interrompeu a sua conversa. De repente, os seus olhos verdes, arregalados, fixaram-se nele.

com um sorriso malicioso, Martin aproximou-se de Juno.

Enquanto atravessava a sala, Martin ouviu amavelmente os comentários de Dorothea, que pensava que ele estava interessado em ver o seu filho. O sorriso de Martin acentuou-se. Vê-la com um bebê nos braços afectara-o mais do que ele gostaria. Queria tê-la em frente à sua própria lareira, com o seu filho nos braços.

Helen não conseguia respirar. O facto de ver Martin a entrar na sala deixara-a aturdida. No meio da resposta a uma pergunta do seu amigo Ferdie, emudeceu, pois a sua mente só conseguia prestar atenção ao cavalheiro que se aproximava dela. com um esforço, respirou fundo. Estava em pânico. Ergueu o olhar para o dele e viu-se envolta em duas nuvens cinzentas. Ao ver o seu sorriso perverso, teve que conter um estremecimento de impaciência e tentou livrar-se do seu feitiço.

Meu Deus! Tinha de lidar com aquela situação de uma forma mais habilidosa. Onde tinham ido parar todos os seus anos de experiência?

Então, Dorothea aproximou-se dela para pegar no seu filho ao colo.

- Deixe-me apresentar-lhe lorde Darcy Henry.

O conde de Merton mal olhou para o bebê.

- Tem quase dois meses - disse Dorothea, mas quando ergueu os olhos viu que o conde nem sequer estava a olhar para o seu filho.

Na verdade, ele estava distraído, olhando para Helen. Dorothea seguiu o seu olhar e deparou com a sua amiga hipnotizada pelos olhos de lorde Merton.

Fascinada, Dorothea olhava de um para o outro até o seu marido aparecer em cena.

Hazelmere compreendeu imediatamente o que estava a acontecer.

- Martin, lorde Merton, apresento-te Helen, lady Walford, a madrinha de Darcy - Hazelmere virou-se para a sua esposa. - Talvez, minha querida, devesses levar o menino para o quarto - com uma expressão inocente, voltou a olhar para Helen. - É tu, Helen, talvez pudesses apresentar Martin aos outros.

Sem mais delongas, Hazelmere retirou-se.

Ao ver-se com liberdade de movimentos, Martin sorriu novamente. Aproximou-se de Helen com as sobrancelhas arqueadas.

- Apanhada pelo destino, bela Juno.

Aquelas palavras, pronunciadas suavemente, acariciaram os ouvidos Helen e provocaram-lhe um calafrio nas costas.

- Helen - sussurrou ela, rapidamente.

- Tu serás sempre a bela Juno para mim respondeu ele. - Que homem de carne e osso deixaria escapar essa visão? Só tenho que fazer uso da memória.

Helen pensou que seria melhor que não o fizesse. A sua compostura já estava suficientemente ameaçada.

Calmamente, Martin puxou-a pela mão e beijou-lhe os dedos, sorrindo perante o tremor que aquele gesto provocou nela.

Helen deu-se conta de que o seu sorriso era uma verdadeira declaração de intenções. A indignação veio em sua ajuda.

- Vejo que conhece Hazelmere.

- Hum... sim, somos velhos amigos. Bons velhos amigos.

Disso, Helen não tinha nenhuma dúvida.

Durante anos, Marc protegera-a dos avanços de todos os cavalheiros da alta sociedade. No entanto, na sua própria sala, atirara-a para os braços de Martin Willesden. Típico! Helen conteve uma gargalhada de desprezo.

com as boas maneiras do costume, Ferdie afastara-se ligeiramente ao ver que Martin se aproximara com tanta decisão. com um olhar de advertência para o homem que estava ao seu lado, Helen elevou a voz.

- Ferdie, conheces o conde de Merton? Era evidente que não. Helen apresentou-os e

acrescentou, para dar mais informação a Martin:

- Ferdie é primo de Hazelmere. Martin franziu ligeiramente o sobrolho.

- O que se atreveu a cavalgar o garanhão do seu pai?

Helen notou, divertida, que Ferdie corava.

- Nunca pensei que alguém se lembrasse disso.

- Eu tenho uma boa memória - disse Martin, procurando Helen com o olhar. Então, acrescentou em voz baixa: - Especialmente boa.

Foi a vez de Helen corar. Para desviar a conversa para outro assunto, apressou-se a perguntar a Martin:

- Conhece a mãe de Dorothea, milorde? inclinou a cabeça a Ferdie e conduziu a Martin em direcção às viúvas, com a esperança de que na sua presença ele não tivesse tanta facilidade para dizer aquelas indirectas.

Para seu alívio, enquanto circulavam por entre os convidados de Hazelmere, Martin comportou-se de uma forma que serviu para confirmar perante Helen que era perito naquelas lides. Conversou com facilidade com toda a gente que lhe apresentou, com o encanto que ela atribuíra aos bons vivants mais perigosos. No entanto, em nenhum momento deu sinal de querer abandonar a sua companhia. De facto, com a sua atitude declarou que, se fosse possível, tê-la-ia monopolizado completamente.

Deixou as suas preferências tão claras que ambas as viúvas, a mãe de Marc e a de Dorothea, se entretiveram a meter-se com ele.

- Penso que esteve vários anos nas colônias, milorde. Poderia dizer-se que demora muito tempo a recordar o nosso modo de fazer as coisas?

O olhar significativo que lady Merion dedicou a Martin deveria tê-lo feito corar. No entanto, Helen ouviu, horrorizada, a sua resposta:

- Acabo de dizer que tenho uma memória excepcional, portanto agora não posso alegar má memória como desculpa, senhora.

Helen, por muito que tentasse, não pôde evitar olhar para ele. Tinha os olhos cinzentos muito brilhantes e fixos nela. - Talvez, milorde, devesse procurar ajuda para realizar a sua reentré em sociedade - o olhar da marquesa era ainda mais inocente do que o do seu filho. - Talvez lady Walford esteja disposta a ajudá-lo.

Helen ficou corada que nem um tomate.

- Muito boa idéia, senhora - com um sorriso para as adoráveis viúvas que libertou Helen da necessidade de falar, Martin retirou-a da sua mais do que questionável segurança.

A sua compostura estava em perigo, mas Helen tentou agir com calma, mesmo quando descobriu, enquanto a noite avançava, que Martin tratara de tudo para a acompanhar à sala de jantar e sentar-se ao seu lado.

Sob a coberta de uma conversa tumultuosa sobre os últimos deslizes do Príncipe Regente, Martin inclinou-se para ela e perguntou:

- Permites que te leve a passear pelo parque de carruagem, Juno?

Helen dedicou-lhe um olhar brilhante, tentando mostrar-lhe a sua desaprovação por usar continuamente aquele nome.

Respondeu-lhe com um sorriso impenitente.

- Bem. Irei buscar-te amanhã, às onze horas em ponto.

Antes que ela pudesse reagir perante a sua desfaçatez, ofereceu-lhe a travessa da lagosta. Helen respirou fundo, determinada.

- Milorde... - começou a dizer.

- Miladyl - perguntou ele, com ênfase. Procurando freneticamente alguma forma de lhe apontar as suas faltas quanto às maneiras aceitáveis em sociedade, Helen olhou para ele nos olhos e soube que não tinha nenhuma oportunidade de fazer com que desistisse do seu propósito.

Ele olhou para ela fixamente e o fogo que ardia nos seus olhos cinzentos brilhou com força. Arquequ as sobrancelhas.

Bruscamente, Helen olhou para o prato.

Então, Martin virou-se para o seu outro companheiro de mesa com um sorriso confiante nos lábios.

com os nervos à flor da pele, Helen decidiu que seria muito melhor voltar para o seu grupo de amigos assim que tivesse oportunidade do que ter de enfrentar um oponente do calibre de Martin Willesden.

Quando todos voltaram para a sala, foi a jovem lady Fanshawe, Cecily, quem propiciou sem intenção o próximo movimento de lorde Merton.

A jovem Cecily, com apenas dezassete anos, cumprimentara toda a gente com simpatia, como era usual, mas ninguém lhe apresentara Martin ao princípio.

Helen fez as apresentações e surpreendeu-se ao ver a reacção de Cecily. Os enormes olhos castanhos da rapariga arregalaram-se. Lady Fanswahe ficou pensativa, olhando para ele fixamente.

- Oh! - exclamou, finalmente.

Tony Fanswahe aproximou-se a tempo de presenciar a reacção da sua mulher. com um profundo suspiro, agarrou-a pelo braço.

- Vai-te embora, Martin - disse e, com um olhar divertido, virou-lhe as costas juntamente com Cecily. Quando estavam prestes a afastar-se, voltou-se novamente com um brilho perverso nos olhos. - Pensando bem, por que não levas Helen?

Helen olhou para ele, espantada. Eram insuportáveis, todos eles. Um monte de casamenteiros sem remorsos.

O riso de Martin atraiu o olhar de Helen.

- Boa idéia! - exclamou, agarrando-lhe na mão.

Helen, hipnotizada pelos seus olhos cinzentos, não pôde fazer outra coisa senão observá-lo a levar a mão aos lábios e a beijar-lhe os dedos com uma emoção que ela começava a reconhecer. Foi um gesto simples, mas cheio de significado. Ele prolongou aquela carícia por um momento e ela sentiu calafrios de prazer nas costas.

Desesperada, Helen pestanejou e tentou vê-lo através dos olhos de Cecily. Estava habituada a que os homens tivessem a sua altura, mas Martin era mais alto e tinha o poder de a hipnotizar com o olhar. As rugas dos seus olhos sugeriam que se ria com freqüência. Tinha as faces lisas, bronzeadas e os lábios finos e firmes. O seu queixo quadrado era uma espécie de aviso sobre o seu temperamento.

com um suspiro suave, Helen deu-se conta de que estivera a olhar para ele durante muito tempo e perguntou, confusa:

- Estás a ver Ferdie em algum lado? Martin percebeu o pânico no seu tom de voz. Sorriu e, complacente, passeou o olhar pela sala. A resposta inconsciente de Juno animara-o, mas não ia pressioná-la mais.

- Está ao lado da lareira - respondeu, colocando a sua mão no antebraço dela para a conduzir para o grupo reunido ao pé da lareira.

Agradecida pela sua compreensão, Helen aproveitou aquele passeio curto pela sala para se recompor e pôr os pés no chão novamente. Sentiu alívio quando Hazelmere se aproximou deles e disse a Martin:

- Eu e Tony vamos ao White's. Gisborne também vem - disse, apontando para o seu cunhado. - Queres jogar uma partida?

- Claro! - exclamou Martin, sorrindo. Hazelmere riu-se.

- Bem me parecia que não podias ter mudado tanto - comentou e, depois, despediu-se de Helen e partiu.

Martin apertou-lhe a mão. Ela olhou para ele e descobriu que a sua expressão estava além do aceitável, o seu olhar era uma carícia cálida e íntima. Ele voltou a beijar-lhe a mão.

- Até manhã, bela Juno.

Ela só pôde assentir e despedir-se.

Muito tempo depois, na privacidade do seu quarto, Helen observou o seu reflexo no espelho, enquanto perguntava para si quando terminaria aquela loucura.

 

Era evidente que não ia terminar em breve, pensou Helen quando, no dia seguinte, Martin apareceu para a levar a dar um passeio pelo parque, tal como prometera. Enquanto passavam sob as árvores, sentados numa carruagem que lhe era muito familiar, Helen descobriu que ele não pretendia dar-lhe a oportunidade de reflectir sobre a conveniência de dar aquele passeio. Pelo contrário, parecia que estava totalmente decidido a seguir o conselho da marquesa viúva de Hazelmere e conseguir a sua ajuda.

- Quem é aquela que traz um vestido vermelho vivo?

Helen seguiu o seu olhar.

- É lady Havelock. É um verdadeiro dragão.

- Tem aspecto disso. Ainda exerce o seu domínio sobre a Casa Melbourne?

- Não muito, agora que lady Melbourne vive tão isolada - respondeu Helen, ao mesmo tempo que levantava a mão para cumprimentar um conhecido.

- Quem é esse homem?

Ao ouvir aquele resmungo possessivo, Helen cerrou os dentes.

- Shiffy? É sir Lumley Sheffington.

- Oh! - Martin observou novamente aquela cara pintada e aquele horrível fato cor de pêssego. - Agora lembro-me! Tinha-me esquecido dele, algo bastante compreensível.

Helen soltou uma gargalhada. Shiffy era um dos indivíduos mais notáveis da alta sociedade.

Martin continuou a fazer perguntas sobre os outros transeuntes, sobre as coisas que tinham acontecido na cidade e sobre se certas pessoas eram como ele as recordava.

Concentrada em responder, Helen não reparou que a hora que passaram juntos passava rapidamente e com muito mais facilidade do que ela esperava.

Ao descer as escadas da casinha de Helen em Half Moon Street, depois de a ter deixado sã e salva, Martin surpreendeu Joshua, que estava a segurar as rédeas dos cavalos, com um sorriso resplandecente nos lábios.

Martin pegou nas rédeas e apontou a Joshua a parte de trás da carruagem.

- O dia está lindo, os meus projectos progridem... o que mais posso pedir?

Enquanto subia para o seu assento, Joshua ré virou os olhos.

- O que está a acontecer não é nenhum mistério, decerto - murmurou, tomando nota de averiguar algumas coisas sobre lady Walford.

Completamente satisfeito e alheio aos pensamentos do seu cocheiro, Martin sacudiu as rédeas para os cavalos começarem a andar.

À medida que a semana passava, Martin tinha cada vez mais motivos para se sentir feliz. O seu reaparecimento em sociedade fora muito mais fácil do que ele pensara. Uma visita ao teatro, para acompanhar Juno a ver a última obra de madame Siddons, fez com que todas as senhoras mais velhas reparassem nele. O monte de cartas que se empilhava sobre a sua lareira era cada vez maior.

Ignorando as regras de etiqueta, descobriu a quais daqueles bailes e jantares ia assistir a sua deusa, perguntando directamente. Então, decidiu ir só aos mesmos eventos que ela.

Ao chegar ao baile de lady Burlington, Martin prestou atenção à forma como era recebido. Os convites eram uma coisa, mas como tratariam a ovelha negra quando estivesse à sua frente? Se ia casar-se com Helen, devia conseguir a aprovação da sociedade.

Contudo, não havia nenhuma necessidade de se preocupar.

- Lorde Merton! - lady Burlington quase saltou para cima dele. - Estou tão contente por ter encontrado tempo para assistir à minha festa!

- Fico feliz por ter vindo - corroborou lorde Burlington.

Depois de saudar e cumprimentar os seus anfitriões, Martin entrou no salão de baile e viu-se rodeado de mulheres.

Uma mistura de perfumes invadiu-o.

- Lorde Merton! - exclamava toda a gente.

As matronas, que treze anos antes lhe tinham fechado as suas portas, estavam desejosas de lhe mostrarem os seus créditos. Martin conseguiu disfarçar a sua antipatia e, com um certo ar de superioridade, aceitou a sua admiração, ao mesmo tempo que averiguava como devia jogar aquele jogo.

- Espero que encontre tempo para me visitar.

Martin arqueou as sobrancelhas ao ouvir o tom da voz que lhe fizera aquele convite. Provinha de uma loira de olhos azuis brilhantes e frios. Ele não podia deixar de reparar nos olhares ardentes que lhe dedicavam algumas das damas presentes e, com cinismo, perguntou-se o que teria acontecido se ele não tivesse regressado munido do título de conde e de grandes posses. Decerto que a atenção que lhe dedicariam não seria a mesma.

Devido a todas aquelas saudações, Martin não viu Helen senão mais tarde. Imediatamente, ele soube que ela também o vira, mas, insegura, não queria dar-se por rendida.

com um sorriso perverso, Martin despediu-se da sua corte de admiradoras e aproximou-se da sua deusa.

Helen soube que ele estava a aproximar-se muito antes de chegar ao seu lado, mas continuou a falar com a senhora Hitchin, até a mulher se calar, olhando por cima do ombro de Helen. Então, ela virou-se.

- Milorde - cumprimentou-o.

Ele agarrou-lhe na mão suave mas possessivamente. Decidida a não corar nem ficar nervosa, Helen fez-lhe uma vénia.

Martin fez com que se endireitasse e lenta, e deliberadamente, levou a sua mão aos lábios. O brilho dos seus olhos fez com que ela sentisse algo muito quente e familiar no seu interior. Para seu alívio, pôde reagir graças à experiência de todos os anos de etiqueta, que chegou em sua ajuda.

- Milorde, permita-me que lhe apresente a senhora Hitchin.

Contudo, Martin não tinha nenhum interesse na senhora Hitchin. Ele inclinou a cabeça educadamente e sorriu. No entanto, não deixou escapar a mão de Juno. Pelo contrário, pô-la no seu antebraço.

- Minha querida lady Walford, vai começar uma valsa. Espero que a senhora Hitchin não se importe de nos dar licença...

Helen pestanejou. Como se atrevia ela a aproximar-se e apropriar-se dela? De repente, assimilou por completo o que significava aquela frase. Uma valsa? Nos seus braços? Que Deus a ajudasse! Só de pensar nisso sentia-se doente.

Morta de medo, procurou ajuda com o olhar, mas não serviu de nada. A senhora Hitchin estava hipnotizada pelo sorriso de Martin. Assim, antes que Helen pudesse evitá-lo, Martin dirigiu-se à pista de dança com ela.

- Garanto-te que não mordo.

Aquelas palavras, sussurradas docemente ao seu ouvido, fizeram com que Helen recuperasse a compostura. Estava a ser tola e afectada. Afinal, ele não ia fazer nada pouco aceitável no meio do baile, pois não?

De repente, viu-se nos seus braços, abraçada com tanta força como temera. Uniram-se aos casais que rodopiavam na pista. Estar tão perto de Martin Willesden produziu-lhe uma maré de sensações que nunca experimentara.

Helen lutou por se controlar. Não podia deixar que ele a afectasse daquele modo, que dirigisse de tal forma os seus sentidos.

- Milorde - disse ela firmemente, olhando para ele nos olhos.

- Milady - respondeu ele, dando à palavra, com o seu tom de voz, um significado que ia muito além do mundano e confirmando a sua intenção com o olhar.

Helen revirou os olhos. Santíssimo Sacramento! Ele estava a seduzi-la! No meio do baile de lady Burlington, com metade do salão a observá-los!

Revendo rapidamente o que ela o julgara capaz de fazer, baixou as pálpebras e procurou um assunto de conversa menos comprometedor.

- O que achas da sociedade que conheceste até agora? Aprova-la?

- Ainda não sei. Tenho muito pouca sabedoria acumulada durante os anos passados para poder comparar. Porém, para ser sincero, tenho as minhas reservas.

- Sim? - perguntou, agradecida por ele estar disposto a conversar razoavelmente, Helen decidiu fazer de conta que não notava que ele a apertava cada vez mais. - Porquê?

- bom... - respondeu Martin, fingindo reflectir. - É com o elemento feminino que eu tenho mais problemas.

Helen ficou desconfiada. O que seria que um bon vivant considerava uma conversa razoável? Sentindo-se obrigada a conceder-lhe o benefício da dúvida, perguntou:

- O que o preocupa, concretamente?

- As suas tendências de predador - quando ela lhe dedicou um olhar desconfiado, ele apressou-se a acrescentar: - É frustrante para um bon vivant de renome sentir-se a presa em vez do predador. Tenta imaginar, se puderes.

- É estranho - comentou Helen, com os olhos muito brilhantes. - Acho que sei como te sentes.

Ao ouvir a sua resposta, ele esboçou um sorriso que fez com que Helen quase perdesse os sentidos. Quando recuperou a compostura, a música terminara.

- Talvez eu devesse voltar para... - na sua confusão, Helen mordeu o lábio.

Raios, ela não era nenhuma debutante para voltar a correr para o lado da sua dama de companhia! No que estava a pensar? O que aquele homem estava a conseguir que pensasse?

Martin soltou uma gargalhada irônica, adivinhando facilmente o que ela estava a pensar.

- Não tenhas medo, bela Juno. A tua reputação está a salvo comigo - Martin fez uma pausa e prosseguiu com um tom pensativo: O resto, no entanto...

O olhar de espanto que ela lhe dedicou fez com que ele se risse novamente.

Passados alguns minutos, quando a levou para o lado de lorde Alvanley, ainda um pouco aturdida, mas suficientemente bem para lhe dedicar um olhar de advertência, Martin pensou que não dissera mais do que a verdade durante aquela conversa. Na verdade, ele achava o interesse das mulheres solteiras bastante repulsivo e suspeitava que aquilo provinha do seu desejo de ser sempre a força motriz das suas relações. A resposta de Juno perante ele, completamente natural, era muito mais gratificante. As suas tentativas de disfarçar, ao acreditar, com razão, que aquilo lhe dava mais influência sobre ela do que gostaria, tornavam-na irresistivelmente atraente aos olhos de um homem como ele. Tendo em consideração os seus planos de futuro para ela, não tinha nenhuma intenção de que a reputação dela sofresse nas suas mãos nem nas mãos de nenhum outro homem. Além disso, sentia que, uma vez que chegara tão longe, tinha o direito de lhe dar a entender quais eram as suas intenções.

Enquanto pensava, circulava pelo salão, esperando que chamassem para o jantar.

Enquanto isso, Helen, que dançava com uns amigos, teve tempo de reflectir sobre o que Martin Willesden lhe dissera. Tinha a certeza de que se não soubesse que ela era amiga de Hazelmere, ele teria querido torná-la sua amante. Contudo, Helen conhecia suficientemente o código de honra dos cavalheiros para saber que a protecção de Hazelmere não seria desafiada pelo seu amigo. Então, se não era aquela a sua finalidade, as palavras de Martin só podiam significar que estava à procura de uma esposa e que acreditava que ela podia servir para o lugar.

No seu interior, Helen suspirou e desejou que fosse verdade. Porém, ele estava enganado e o quanto antes soubesse disso, melhor. Se ele não desistisse da sua perseguição, partir-lhe-ia o coração.

Ninguém melhor do que ela sabia que, embora o seu nascimento fosse perfeitamente aceitável e as suas amizades estivessem acima de qualquer suspeita, ser viúva de um homem que fora expulso da sociedade não era um passado apropriado para a condessa de Merton. Aquela posição só podia ser ocupada por uma das incomparáveis da temporada ou, pelo menos, por uma debutante com um bom dote. Ela nunca fora uma das primeiras, embora, um mês antes do seu casamento, fosse das segundas.

O cotilhão terminou e lorde Peterborough, que ela conhecia desde sempre, fez-lhe uma vénia elegante.

- Obrigada, Gerry - agradeceu ela com um sorriso. - És sempre tão agradável...

Lorde Peterborough riu-se e ofereceu-lhe o braço. O jantar ia ser servido no andar de baixo. Helen levantou a mão para a colocar no antebraço do seu amigo, quando sentiu uns dedos fortes a fecharem-se em redor dos seus.

- Gerry, lady Birchfield anda à tua procurai Lorde Peterborough olhou para o rei

cém-chegado fixamente.

- Ora, Martin! Lady Birchfield pode procurar-me à vontade. Tem idade para ser minha mãe!

- A sério? Não sabia que era tão nova - os olhos de Martin cintilavam. - Então, é uma sorte eu ter vindo para acompanhar lady Walford à mesa. Não seria bom que toda a gente pensasse que ela é uma abusadora de menores.

Tendo privado lorde Peterborough e Helen da palavra, Martin pôs suavemente a mão da sua deusa no antebraço e conduziu-a para a sala de jantar.

Quando Helen pôde falar novamente, estava sentada a uma pequena mesa num dos cantos da sala, com um prato à sua frente. Dedicou ao homem que estava sentado ao seu lado um olhar gélido e empertigou-se.

- Lorde Merton... - começou a dizer.

- O meu nome é Martin, não te lembras? interrompeu ele, sorrindo. - Não pensaste mesmo que eu ia deixar que jantasses ao lado de outra pessoa, pois não?

Helen sentiu-se completamente confusa. Devia responder sim ou não? Se dissesse que sim, ele aproveitaria a oportunidade para lhe dizer que devia ter sido mais esperta, algo que era verdade. Porém, era impensável dizer que não. Por fim, olhou para ele.

-És impossível!

- Come um rissol de camarão.

Helen deu-se por vencida. Tinha de aprender a mantê-lo à distância. Se não aprendesse a fazê-lo o quanto antes, em breve seria demasiado tarde. Já vira muitos olhares curiosos fixos neles, embora ainda pensasse que ele só procurava uma companhia amável até a Little Season chegar ao seu esplendor e dedicar-se a sério à tarefa de procurar uma esposa.

Satisfeito pela sua rendição, Martin dedicou-se a distraí-la. Fê-lo tão bem que, quando voltaram para o salão de baile, ela estava completamente aturdida. Martin não lhe pediu outra dança, só lhe deu um beijo impróprio na palma da mão antes de a deixar à mercê de cavalheiros menos perigosos.

O baile dos Burlington foi o ponto de partida da campanha de Martin. A partir dali, ele passou a ir a todos os bailes a que Helen ia e divertia-se a gozar com ela, sabendo que ela nem sequer imaginava qual era o seu objectivo. Muitas gente reparara na sua predilecção pela compa-l nhia dela, mas ele não se importava. Tinha toda i a intenção de continuar a demonstrar a sua pré-1 dilecção por ela e muito mais.

Tudo o que descobrira sobre ela confirmava a sua certeza de que era a mulher que queria no seu lar. Era aceite e respeitada por todos. Era uma mulher madura, evidentemente, mas embora conhecesse as regras do jogo, não jogava. Tanto os homens como as mulheres a admiravam, o que não era uma façanha insignificante naqueles dias.

Uma semana depois do começo da Little Season, a sua perseguição levou-o ao Almack's. O Marriage Mart nunca fora dos seus eventos preferidos. Quando era jovem costumava chamar-lhe o Templo do Tédio.

com uma careta, Martin muniu-se de paciência e subiu as escadas. Helen estava lá dentro e ele decidira conquistá-la e também conquistar aquele último bastião da alta sociedade.

O porteiro deixou-o entrar no hall, mas como não era uma presença assídua, precisava do aval de alguma das organizadoras do evento. Por sorte, foi Sally Jersey quem atendeu ao chamamento do porteiro.

A mulher ficou boquiaberta.

-Meu Deus! És tu!

Martin sorriu ironicamente e fez uma vénia.

- Eu, em carne e osso, e venho sozinho anunciou, sorrindo de uma forma encantadora.

- Vais deixar-me entrar, Sally?

Lady Jersey conhecia Martin Willesden e o escândalo que havia no seu passado. Também era uma das poucas pessoas que tinham acreditado nele. Ela olhou para ele e franziu o sobrolho.

- Prometes-me que não vais arranjar sariLhos?

Martin pôs a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

- Sally, isso é impossível!

- Oh... bom, está bem. De qualquer forma, eu nunca acreditei no que a tal Monckton disse

- murmurou.

Martin pegou-lhe na mão e fez-lhe uma vénia.

- Oh, deixa-te disso! - resmungou Lady Jersey. - Fazes com que me sinta velha.

- Nunca, Sally - com um último olhar perverso, Martin entrou na sala.

Para seu horror, viu-se imediatamente rodeado de mães de jovens casadoiras. Aparentemente, enquanto estivera a falar com Sally, a notícia da sua chegada espalhara-se e mães e filhas insípidas aproximaram-se da entrada.

- Meu querido lorde Merton, sou lady Dalgleish, uma velha amiga da sua mãe... Por favor, permita-me que o apresente a...

- Teve uma vida muito interessante, milorde. Tem que visitar a minha filha Annabelle para lhe contar. Ela adora ouvir histórias sobre países estrangeiros.

Martin nunca enfrentara nada como aquilo. Evidentemente, todas aquelas mulheres tinham decidido que, dado que ninguém podia dizer que o conhecia para se aproximar dele, devido às suas viagens, passariam por cima das convenções sociais e apresentar-se-iam directamente. A razão pela qual estivera exilado durante treze anos fora esquecida.

- Tem que vir à minha soirée da semana que vem. Só assistirão algumas pessoas e poderá conversar com a minha Julia muito mais facilmente sem esta horda à volta.

Martin pestanejou ao ouvir aquilo. Eram umas desavergonhadas, todas elas. Resistiu à tentação de lhes dizer o que pensava e de as mandar para o Inferno, pois Sally. nunca o perdoaria. Além disso, queria ver Helen, que estava ali.

Por fim, Martin fez uma vénia à matrona que tinha à sua frente e despediu-se.

- Peço desculpa, senhoras, mas tenho de vos deixar. Foi um prazer conhecer as vossas filhas - com um sorriso vago, saiu do meio do grupo que o rodeava.

Helen reparara que uma multidão se aglomerava à porta e vira a cabeça de Martin no centro. Tal como ela esperava, ele estava a cumprir o seu dever. com um suspiro, tentou prestar atenção à conversa dos seus amigos. A partir daquele momento, lorde Merton estaria rodeado de debutantes.

- Querida, queridíssima lady Walford! Martin não tentou disfarçar o alívio que sentia.

- Que prazer vê-la, finalmente!

Sobressaltada, Helen virou-se, sabendo quem encontraria à sua frente. Mais ninguém podia afectar tanto os seus sentidos.

- Milorde - murmurou, fazendo uma vénia. Como de costume, ele pegou na sua mão e

beijou-a, algo que ela começara a aceitar como inevitável. No entanto, ainda tinha que aprender a assimilar o calor dos seus olhos quando descansavam sobre ela e a promessa que brilhava nas suas pupilas.

Quase sem respiração, Helen apresentou-o às três senhoras que estavam com ela. Para sua surpresa, ele não tentou levá-la dali, mas ficou ao seu lado, conversando amavelmente, encantando as suas amigas, claro.

Quando elas partiram para conversar com outros conhecidos, Martin pôs de lado a reserva que usava naqueles eventos sociais e olhou para Helen nos olhos.

- Terás que ser a minha conselheira nesta batalha. Onde podemos estar a salvo?

Helen olhou para ele, espantada.

- A salvo?

Martin sorriu com um pouco de arrependimento.

- Estou a pedir-te a tua protecção - ao ver que ela continuava confusa, ele acrescentou: Como pagamento pelos meus esforços anteriores.

Ela corou, olhando para ele da cabeça aos pés.

- E como poderia eu proteger-te? Queres confundir-me, não é?

- Absolutamente. Por fninha honra - Martin levou a mão ao peito, sorrindo. - As mamas casamenteiras estão a tentar caçar-me, garanto-te. Além disso, caçam em grupo. Se eu quiser conservar a minha liberdade, precisarei de toda a ajuda possível.

Helen abafou uma gargalhada.

- Não podes ignorá-las. Algum dia, terás que escolher uma esposa.

- Não pensas que eu vou casar-me com uma dessas delicadas debutantes, pois não?

- É... É o que se espera de alguém na tua posição - Helen olhou para ele, corada, e desviou o olhar bruscamente. Aquela conversa não só era desapropriada, como também estivera prestes a revelar-lhe que o seu casamento fora arranjado. E tinha que admitir que aquilo não era exactamente uma boa recomendação.

Ele fixou os olhos na sua cara, como se quisesse obrigá-la a voltar a olhar para ele. Incapaz de resistir àquela pressão, ela obedeceu.

Martin sorriu com ternura e voltou a beijar-lhe a mão.

- Eu nunca me casaria com uma debutante, minha querida. O meu gosto inclina-se mais para... para os encantos voluptuosos.

Se Helen tinha alguma dúvida do que ele estava a dar a entender, a expressão de Martin acabou com ela. Além disso, quando ela corou, ele baixou o olhar para as curvas dos seus seios, que se adivinhavam sob o decote do vestido. Helen sentiu as faces a arder.

-Martin!

Ele voltou a olhar para a cara dela com os olhos risonhos.

- Hum?

O que podia ela dizer? Devia falar-lhe da realidade, das razões pelas quais ela não era apropriada. E aquele era o momento certo. Estava convencida de que devia acabar com as suas loucuras antes que fossem demasiado longe e antes que ficasse com o coração partido.

- Martin, tu não podes casar-te comigo. O meu marido era Arthur Walford... Tu deves tê-lo conhecido. Ele suicidou-se, depois de ter sido expulso da alta sociedade e de ter gastado a sua fortuna e a minha nas mesas de jogo. com semelhante passado, não sou uma esposa apropriada para ti.

Toda a ligeireza de Martin desapareceu. A expressão do seu rosto, doce e decidida ao mesmo tempo, não tremia, e acariciava-lhe as costas da mão com o dedo polegar.

- Minha querida, eu sei disso. Achas que me importo?

Martin sorriu e começou a andar de mão dada com ela.

- Minha querida Helen, eu nunca fui dos que agem de acordo com as convenções sociais. Fui sempre um espírito livre e garanto-te que ninguém achará estranho que eu, entre todos os homens, prefira casar-me com uma mulher madura a ter de agüentar alguma cabeça-de-vento.

Um riso nervoso deu-lhe a entender que ela aceitara a verdade que havia naquilo tudo.

- Agora, acabaram-se as objecções. Se isto é um plano para me recusares a tua protecção, devo dizer-te que é um truque demasiado visto.

- Como se tu precisasses da minha protecção! - Helen prosseguiu de boa vontade com aquela conversa que se afastava do assunto do casamento. Tinha a mente num redemoinho. O que ele sugerira estava além dos seus sonhos mais loucos. Precisava de tempo para reflectir e não podia fazê-lo com ele ao seu lado. - Tenho a certeza de que poderás esquivar-te das mães casamenteiras sem muito esforço.

- Claro! - exclamou ele. - Só que, se o fizer, expulsar-me-ão destas salas sagradas e não poderei voltar, de forma que não poderei ver-te às quartas-feiras à noite. Não é uma perspectiva que me agrade. Então, no interesse das suas noites de quarta-feira, queres ser a minha pró tec tora, Juno?

Helen teve de se rir.

- Está bem, mas com algumas condições. Martin franziu o sobrolho.

- Quais condições?

- Não deves comportar-te mal comigo - declarou, tentando parecer implacável. - Não dançaremos mais de duas valsas numa noite e nunca seguidas. De facto - acrescentou ela, recordando a sua habilidade para pensar em novás formas de a tratar, - não poderás sair da linha.

- Isso é injusto! Como vou poder controlar as minhas tendências de bon vivanfí Tem piedade, Juno! Não posso reformar-me de um momento para o outro.

Helen manteve-se firme.

- Esta é a minha melhor oferta, milorde quando viu que ele arqueava as sobrancelhas, também arqueou as suas. - Achas que vou pôr em perigo a minha situação aqui?

Martin suspirou, dando-se por vencido.

- És um osso duro de roer, querida. Rendo-me. No interesse da minha própria pele, aceito as tuas condições.

Passou um minuto antes que Helen assimilasse aquela frase e, quando o fez, era demasiado tarde para se mostrar surpreendida.

Para seu alívio, Martin comportou-se impecavelmente durante o resto da noite. Ela não se dava por rendida, pois sabia que ele podia conseguir tudo aquilo a que se propunha. As suas "tendências de bon vivant", tal como ele lhes chamara, eram muito fortes. Todavia, nem sequer a pessoa mais tenaz poderia ter encontrado uma falha na sua actuação, além de ficar sempre ao seu lado.

Após a agitação da noite no Almack's, Helen previra passar uma noite de insónia. No entanto, inebriada de felicidade, dormiu como uma pedra.

Sem se fazer anunciar, certo de que seria bem recebido, Martin foi buscá-la às onze horas para a levar a passear pelo parque.

A noite, no baile de Hatcham House, Helen deu por si nos braços dele, dançando uma valsa.

- Diz-me, Juno, é normal que neste baile quase não haja gente jovem?

- bom - respondeu ela, - suponho que é porque os Hatcham estão a afastar-se do grupo das debutantes. Os seus filhos já são casados. Além disso, lorde Pomeroy dá um baile em honra da sua filha esta noite, portanto a maioria dos jovens deve de estar lá.

Martin franziu o sobrolho.

- Imagino que não possa convencer-te ai evitar os bailes mais importantes, pelo menosl este ano.

Helen correspondeu ao seu olhar com outrol igualmente brincalhão.

- Depois de te teres livrado das mamas casamenteiras durante treze anos, o mínimo que podes fazer é dar-lhes a oportunidade de tentarem conquistar-te.

- Lembra-te de que as suas tentativas são inúteis - a sua expressão tornou-se mais séria.

- Não achas que eu devia, em nome do interesse da sociedade e dessas mães, manter-me fora de circulação?

A música cessou. Eles afastaram-se um do outro e começaram a andar.

- Nem pensar! - Helen não sabia aonde aquela conversa os levaria. - É teu dever comparecer aos maiores eventos sociais.

- Tens a certeza? Cautelosamente, Helen assentiu.

- Está bem - ele suspirou. - Nesse caso, se tu estiveres lá para me proteger, eu irei.

- Martin, eu não posso estar sempre ao teu lado.

- Por que não? - o seu olhar terno fixou-se no de Helen.

- Porque...

Helen tentou enumerar as razões, as suas razões lógicas e sensatas. No entanto, não pôde, porque os olhos dele pareciam hipnotizá-la.

- Martin, querido! Que emoção ver-te novamente, depois de tantos anos!

Helen sobressaltou-se e Martin olhou para a mulher que o cumprimentara. "Não era de admirar", pensou Helen, "que ele fugisse das senhoras se o tratamento que lhe dispensavam era sempre aquele". Reparou que os músculos do braço dele se retesavam e aproximou-se mais dele. De repente, viu uma mulher loira, mais velha do que ela, mas não o suficiente para ser uma mama casamenteira.

A mulher dedicou-lhe um olhar gélido, antes de fixar os seus olhos azuis no conde de Merton.

Ele ficou silencioso.

No entanto, a mulher prosseguiu sem se alterar:

- Que surpresa, meu querido! Devias ter ido visitar-me. Oh! Claro, tu não deves saber. Agora eu sou lady Rochester.

Helen compreendeu tudo ao ouvir aquele nome. Controlou o impulso de olhar para Martin para ver o que estava a pensar da actuação daquela dama. Lady Rochester era viúva há alguns anos e, embora o escândalo nunca tivesse afectado o seu nome, os rumores constantes tiravam-lhe brilho.

O silêncio de Martin estava a criar tensão. No entanto, lady Rochester prosseguiu como se nada fosse:

- Meu querido Martin, tenho tantas coisas para te contar... Talvez, como velhos amigos que somos, devêssemos procurar um lugar mais privado para falarmos das nossas vidas. Se lady Walford tiver a amabilidade de nos dar licença...

Aquela última frase foi pronunciada com um tom depreciativo. Lady Rochester pôs a mão no outro antebraço de Martin.

Helen ficou tensa e teria tirado a sua se Martin não a tivesse agarrado com firmeza.

- Acho que não.

Helen pestanejou, feliz por Martin não usar aquele tom com ela. O gelo e o vento árctico deviam ser menos frios. Intrigada, dado que era evidente que havia muito mais naquela troca de palavras do que ela sabia, Helen viu a cara de lady Rochester a empalidecer.

- Mas... - protestou lady Rochester.

- Acontece - interrompeu Martin, com a mesma frieza, - que lady Walford e eu íamos dar um passeio pelo jardim. Permite-nos, lady Rochester?

com uma inclinação de cabeça, Martin virou-lhe as costas com Helen ao seu lado, deixando lady Rochester boquiaberta, olhando para eles.

Em poucos minutos, estavam a dar um passeio pelo jardim. Helen reparou que Martin se descontraía a pouco e pouco. Quem seria lady Rochester, para ser capaz de provocar uma reacção tão violenta em Martin? De repente, soube a resposta.

- Oh! Foi ela que... - começou a fizer, mas calou-se bruscamente, sobressaltada.

Martin suspirou.

- Sim, foi ela que inventou o pequenos drama que fez com que me exilassem de Inglaterra.

Inventar? A que drama se referia ele? Oxalá se atrevesse a perguntar.

No entanto, não foi necessário, pois ele explicou:

- Quando eu tinha vinte e dois anos, Serena, hoje lady Rochester, era uma debutante. Ela atirou-se a mim, literalmente. Como já te disse, eu tenho fobia a ser perseguido. Neste caso, no entanto, subestimei o inimigo. Serena planeou uma situação comprometedora e, então, gritou que eu estava a tentar violá-la.

Helen arqueou as sobrancelhas, mas não fez nenhum comentário.

- Infelizmente, isso aconteceu ao mesmo tempo que o meu pai descobria umas dívidas de jogo... Não era nada por aí além, nada que muitos outros jovens não tivessem. No entanto, o meu pai estava decidido a manter-me na linha. Fez-me um ultimato: ou me casava com a rapariga ou ia para às colônias. Eu escolhi as colônias - Martin ficou pensativo por um momento, antes de acrescentar: - Talvez eu devesse estar agradecido a Serena. Sem os seus esforços, duvido que agora eu valesse tanto a pena.

Helen dedicou-lhe um sorriso suave. Hesitante, e só porque estava desesperada por saber, perguntou:

- O teu pai chegou a saber da verdade? Houve um momento de silêncio.

- Não. Eu não voltei a vê-lo. Morreu dois anos depois, enquanto eu estava na Jamaica.

Helen não duvidou que ele estivesse a dizer a verdade.

Nenhum homem, por muito bom actor que fosse, poderia fingir o vazio, a sensação de perda que transmitia o seu tom de voz. Ela ouvira boatos sobre aquele escândalo no passado e estava contente por ter sido ele a contar-lho. Assim, podia desprezar os boatos que viesse a ouvir.

Continuaram a passear em silêncio e, passados alguns minutos, Martin sorriu ao observar a expressão séria de Helen. Era tão fácil ler os seus pensamentos... Sentiu-se estranhamente honrado por ela se preocupar com o seu passado. Chegara a hora de ela voltar a sorrir.

- Posso tentar-te a afastarmo-nos um pouco do terraço, Juno? Prometo-te que não te raptarei.

Helen olhou para ele e sorriu perante o significado daquelas palavras. Esteve prestes a responder que não se opunha a que ele a raptasse, mas, horrorizada, conteve as palavras.

Tinha que admitir que desejava que ele a raptasse... ele, um sedutor! Não podia confiar no seu bom-senso quando estava com ele. Disfarçou a sua confusão com uma vénia.

- Claro, milorde. Uma volta à fonte vai ajudar-me a desanuviar.

Martin arqueou as sobrancelhas.

- Precisas de desanuviar? Porquê?

"Por tua causa", pensou ela. Contudo, ele estava a hipnotizá-la novamente com o olhar e ela não estava disposta a fazer nenhuma revelação. Por isso, ergueu o queixo e pôs-lhe a mão no antebraço.

- Para a fonte, milorde.

O seu riso suave pôs-lhe os nervos em franja.

- As tuas palavras são ordens, bela Juno.

 

À medida que a Little Season avançava, também avançava a campanha de Martin.

Ele não tinha nenhuma dúvida de que Helen Walford era sua e esperava que, àquela altura dos acontecimentos, o resto da sociedade também não duvidasse disso.

Enquanto observava a sua deusa, que conversava com lady Winchester, com as costas apoiadas na parede, Martin pensou durante um momento, entre o espantado e o divertido, que ela era a única pessoa que ainda não tinha a certeza de que o futuro que ele planeara se tornaria realidade.

Ela estava fascinada por ele, portanto Martin sabia que a sua insegurança só podia advir de um casamento infeliz. Arthur Walford devia ter mais quinze anos do que ela quando se tinham casado.

- Pergunto-me se... se é possível tentar-te a vir para a mesa de jogo.

Ao ouvir aquela voz familiar, Martin voltou-se, sorrindo, e deparou com o marquês de Hazelmere.

- Não é provável. Hazelmere suspirou.

- Eu sabia! Terei de ir procurar Tony - deu uma palmadinha no ombro de Martin e acrescentou: - Lembra-te de que o quanto antes resolveres este assunto, melhor, pois poderás unir-te a nós. Não é bom esquecer os amigos com um sorriso compreensivo, Hazelmere foi-se embora.

Martin virou-se a tempo de ver Helen a sorrir ao seu acompanhante, lorde Alvanley, que era inofensivo. Martin sorriu ironicamente. Ele acabava de chegar, mas o desejo de monopolizar todo o tempo de lady Walford era mais forte a cada minuto. Tinha que resistir, no entanto, porque tudo tinha limites, incluindo a indulgência da classe alta para com uma pessoa que, aquilo já era do domínio público, fora acusada injustamente.

O sorriso de Martin acentuou-se. Na verdade, o passado já não o perseguia. A sua única preocupação era o futuro. Porém, a aprovação geral seria importante para o futuro da condessa de Merton, portanto estava satisfeito por ter conseguido a aceitação da sociedade.

A música terminou e os convidados começaram a andar pela pista de dança. Juno estava com um grupo de jovens e, por cima das suas cabeças, Martin viu-a a sorrir. Trazia um vestido dourado que realçava os seus encantos.

Ela ainda não o vira. Enquanto Martin esperava que o fizesse, um homem com um casaco verde aproximou-se dela.

Martin começou a andar em direcção a Helen, cumprimentando e sorrindo às pessoas que conhecia, com a atenção fixa naquele homenzinho. Já reparara antes nele e no interesse que demonstrava por Helen. Fazendo perguntas discretas, soubera que aquele indivíduo era Hedley Swayne, dono de uma pequena mas próspera propriedade na Comualha. Apesar da falta de provas, era possível que tivesse sido ele a organizar o rapto de Helen. Martin vira-o em várias festas, mas era a primeira vez que se atrevia a aproximar-se de Helen.

Antes de chegar ao seu lado, Martin reparou que ela estava nervosa. O senhor Swayne escolhera bem o momento, porque Helen só contava com a companhia de dois ou três cavalheiros muito jovens. Ao parar para cumprimentar uma amiga da sua mãe, Martin viu que Helen franzia o sobrolho.

- Asseguro-lhe, senhor Swayne, que não sou tão fraca ao ponto de ter que ir para o terraço descansar logo depois da primeira dança

- declarou Helen com um tom paciente.

- Eu só queria explicar-lhe...

- Não desejo ouvir nenhuma explicação, senhor Swayne - interrompeu-o ela, cerrando os dentes para juntar forças e ouvir a proposta que ele ia fazer-lhe. Por que não a deixava em paz?

- O senhor Hedley Swayne?

Aquele tom calmo surpreendeu o senhor Swayne, fazendo com que parecesse um coelho assustado. Olhou para cima e ao reconhecer o cavalheiro que estava ao seu lado, começou a ficar nervoso.

Contendo a vontade de rir, Helen estendeu a mão a Martin. Ele pegou nela e colocou-a no seu braço, mas limitou-se a passar os olhos por cima dela antes de os fixar novamente no senhor Swayne.

Sob aquele olhar cinzento, Hedley Swayne pestanejava nervosamente.

- Não... não creio que tenhamos sido apresentados, milorde.

Martin sorriu com frieza.

- Não exactamente. A sua reputação precede-o. Penso que estivemos prestes a encontrar-nos há algumas semanas, em Somerset.

Hedley ficou boquiaberto e, depois, empalideceu perante o significado daquelas palavras.

- Eh... eu... mais ou menos.

Helen observou a cena, deduzindo que devia ter sido mesmo Hedley Swayne quem tentara raptá-la, a julgar pela sua reacção.

Então, os músicos começaram a tocar uma valsa.

Martin desviou o olhar do senhor Swayne e dirigiu-se a Helen:

- Penso que esta valsa é minha, lady Walford. Senhor Swayne - com uma inclinação de cabeça, Martin conduziu a sua futura esposa para a pista de dança, um pouco surpreendido por se sentir tão possessivo.

- Ele incomodou-te?

Helen olhou para cima e viu que Martin a observava com o sobrolho franzido. Se Hedley a incomodara? Que pergunta!

Ela encolheu os ombros.

- Na verdade, é totalmente inofensivo.

- Não tanto, se tentou raptar-te. Daquela vez, Helen suspirou.

- Não há necessidade de nos preocuparmos com ele.

- Garanto-te que não é com ele que eu estou preocupado.

Ela reparou que ele a percorria de cima a baixo com o olhar e ficou sem ar.

- Leva este assunto demasiado a sério, milorde - sussurrou ela, desviando o olhar.

Ao ouvir o seu tom de voz, Martin sentiu-se tentado a proibi-la de falar com Hedley Swayne, mas a sua influência ainda não chegava tão longe. Controlou o seu impulso de se assegurar de que Helen não corria nenhum perigo, pensando que em breve ele poderia fazer com que não voltasse ver aquele homem.

Apesar de ele não se ter expressado em voz alta, Helen entendeu perfeitamente a mensagem. Sentiu-se decepcionada quando a música terminou, porque a conversa sobre Hedley Swayne distraíra-a e não desfrutara da valsa, da sua última valsa da noite.

No entanto, apreciou o resto da noite e jantou ao lado do conde de Merton. Deixara de tentar convencer-se de que ele não tinha intenções sérias. Martin encarregara-se de deixar bem claro para toda a gente que assistia às festas para dançar com uma única mulher. E o facto de ser essa mulher punha-a mais nervosa do que qualquer outra coisa na sua vida.

Era a primeira vez que se apaixonava e a primeira vez que era amada, mas não podia acreditar que tudo aquilo fosse verdade. Estava muito além das suas expectativas. Helen Walford não podia ter tanta sorte.

Quando, naquela noite, se deitou na sua cama solitária, Helen fez uma prece:

- Deus queira que desta vez seja diferente, que desta vez o destino me seja propício. Que os meus sonhos não vão por água abaixo e que eu também possa desfrutar de uma felicidade como a de Dorothea.

com um estremecimento, Helen fechou os olhos, desejando com todas as suas forças que Deus atendesse a sua prece.

Damian Willesden voltou para a capital no dia seguinte. Após ter passado uma temporada no campo, enterrado em dívidas, abandonara a casa arrendada que partilhava com um amigo no dia do vencimento da renda trimestral e fora para Londres. Entrou na Manton's Shooting Gallery decidido a encontrar alguma companhia com quem passar o tempo. Em vez disso, porém, encontrou o seu irmão.

Os ombros largos, perfeitamente moldados pela labita de corte impecável, eram inconfundíveis.

Martin estava a praticar tiro ao alvo com os seus amigos.

Além de o informar de que Martin regressara e tomara posse da sua herança, a sua mãe fora reticente na hora de lhe dar mais informações sobre o novo conde.

Damian interpretara aquela atitude como mais uma mostra da indiferença da sua mãe para com Martin. Ele também esperava, ainda mais do que ela, que o seu irmão mais velho tivesse morrido e que o título ficasse para ele. Por isso, o regresso de Martin tivera conseqüências muito negativas... para ele e para os seus credores.

Damian ainda tivera mais uma surpresa ao pedir-lhe ajuda. A conversa que tivera com o novo conde, poucos dias depois de ele ter regressado, convencera-o de que ia ver muito pouco dos rendimentos do condado enquanto Martin vivesse.

Ele não se lembrava muito do seu irmão, porque entre eles havia dez anos de diferença e ainda era muito pequeno quando os seus pais o tinham mandado para as colônias. Assim, pensava que, depois de ter passado tanto tempo em lugares subdesenvolvidos, seria fácil desfazer-se dele. Contudo, o seu encontro fora muito incômodo. Ver-se submetido ao olhar frio de Martin não era uma experiência que quisesse repetir.

Consolou-se pensando que um homem com as tendências de mulherengo do seu irmão morreria jovem. Seria só uma questão de tempo.

No entanto, ao ver como ele disparava e acertava exactamente no centro do alvo, soube que não havia nenhuma possibilidade de Martin morrer nas mãos de um marido ultrajado.

Ao voltar-se para Fanshawe e Desborough para os deixar disparar, Martin viu Damian à porta.

Damian aproximou-se dele a contragosto.

Martin observou-o criticamente e sorriu, sabendo que tinham passado dois dias desde o dia de pagamento da renda. Reparou na sua atitude petulante, conjugada com a convicção de que a sua família tinha de o ajudar. Martin estava convencido de que o seu irmão ainda tinha muito que amadurecer, embora já tivesse vinte e quatro anos.

Arqueou as sobrancelhas quando Damian se deteve em frente a ele.

- Voltaste para as delícias da cidade?

- O campo é demasiado sossegado para o meu gosto - pensou em lhe pedir um adiantamento da sua mesada, mas ainda não estava assim tão desesperado. Apontou para o alvo com a cabeça. - bom tiro. Aprendeste a disparar nas colônias? Martin riu-se.

- Não. É uma habilidade que já tinha antes de partir - fez uma pausa e, depois, sugeriu-lhe: - Por que não experimentas?

Durante um instante, Damian hesitou, atraído pela possibilidade de se unir ao seu magnífico irmão e à sua augusta companhia. Então, viu o anel de ouro que Martin trazia na mão direita e o ressentimento nublou-lhe o bom-senso.

- Não, não é o meu estilo. Eu não corro o perigo de ofender nenhum marido.

Sem mais delongas, e um pouco surpreendido pelo seu atrevimento, Damian deu meia volta e foi-se embora.

Fanshawe, ao lado de Martin, comentou:

- Esse rapaz precisa que lhe dêem uma lição. Foi duplamente mal-educado por se ter ido embora assim depois de um convite como o que tu lhe fizeste.

Martin, com os olhos fixos nas costas do seu irmão, respondeu distraidamente:

- Receio que os modos do meu irmão deixem bastante a desejar. De facto, estão bastante abaixo do que seria de esperar.

Martin tomou nota de que devia fazer alguma coisa em relação a Damian e virou-se para continuar a jogar com os seus amigos.

Ele amava-a.

Aquela idéia não saía da cabeça de Helen, enquanto dançava nos braços de Martin na festa de lady Broxford. Não tinha nenhuma dúvida. O seu coração batia com força quando pensava que poderia passar a vida ao lado de Martin. Via um arco-íris ao fim do caminho.

Olhou para cima e sentiu o calor do seu olhar, que a acariciava.

- No que estás a pensar?

Contendo um calafrio de pura felicidade, Helen semicerrou os olhos como se estivesse a pensar.

- Não sei se é inteligente contar-te o que penso, Martin. Na verdade, as regras de etiqueta dizem que devo calar-me.

- Ah, sim? Não pode ser assim tão escandaloso.

- O que eu penso não é escandaloso, mas tu és - replicou Helen. - Tenho a certeza de que está escrito nalgum lugar... Talvez no livro de etiqueta das debutantes, sob a epígrafe de "Como tratar um Don Juan". Dizem que é uma imprudência encorajar esse tipo de homens.

Ele arregalou os olhos.

- Quer dizer que os teus pensamentos me encorajariam?

Helen tentou devolver-lhe o seu olhar penetrante, mas ele permaneceu impassível.

- Minha querida Helen, desconfio que a tua educação foi, de alguma forma, limitada. Parece que não acabaste de ler esse capítulo, porque não sabes que nada é mais imprudente do que estimular o apetite de um homem.

Perante a promessa que aquelas palavras continham, Helen arregalou os olhos. Sentia-se como um cordeiro prestes a ser devorado por um lobo e, apesar disso, a idéia agradava-lhe sobremaneira. Era evidente que o seu bom-senso tinha desaparecido. Lutou por recuperá-lo.

Martin observou a sua cara. O vestido que trazia moldava as suas curvas e deslizava pelo seu corpo até ao chão. com aquele tecido sensual para o distrair ainda mais, duvidava que ela conseguisse afastar o seu pensamento do rumo luxurioso que ele tomara.

Satisfeito com o seu estado, Martin desistiu de a fazer falar e concentrou-se na questão de quando devia pedir-lhe para se casar com ele.

Planeara fazê-lo assim que tivesse a certeza de que ela ultrapassara o seu aparente nervosismo perante a idéia de se casar uma segunda vez e a sua experiência dizia-lhe que isso já acontecera. Por conseguinte, não havia nenhuma razão para esperar mais. Aquele era o momento certo.

Contudo, aquele salão de baile estava a abarrotar, portanto teria que procurar outro lugar.

A música cessou e eles detiveram-se no meio da pista.

Sem fôlego, perguntando-se o que aconteceria em seguida, Helen olhou para ele nos olhos.

Porém, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, lorde Peterborough apareceu entre a multidão.

- Aqui estás tu, Helen! Tenho de te prevenir sobre esse teu novo hábito de deixar que este cavalheiro monopolize o teu tempo. Não é bom, querida.

- Gerry, há quanto tempo ninguém te diz que falas demasiado? - Martin soltou Helen para ela poder cumprimentar o seu velho amigo.

Peterborough olhou para o rosto radiante de Helen.

- Não parece que sirva de nada, no teu caso - comentou e, depois, dirigiu-se a ela. - Além de muitos outros perigos, tenho a certeza de que te pisou ao dançar. Esteve nas colônias muito tempo. Vem dançar uma valsa com alguém que sabe fazê-lo.

com uma vénia, ofereceu o seu braço a Helen e ela, rindo-se, aceitou. Dedicou um sorriso a Martin e foi dançar novamente.

Sozinho, Martin passeou pelas salas, procurando um lugar adequado para se declarar.

Helen estava contente por poder dançar com os seus amigos, para recuperar o bom-senso e acalmar os batimentos do seu coração. Vivera na expectativa de ouvir a declaração de Martin toda a semana anterior e, naquele momento, tinha um pressentimento muito agudo. Riu-se e sorriu, pressentindo a maior felicidade que sentira em toda a sua vida.

Depois de Peterborough, Helen dançou com Alvanley e com Hazelmere, cedido por uma Dorothea radiante. Mais tarde, viu a velha senhora Berry sozinha num sofá e sentou-se ao seu lado para responder a todas as perguntas que ela quisesse fazer-lhe, uma vez que a senhora estava um pouco surda e parecia estar a perder algumas coisas.

Do outro lado do salão de baile, Damian Willesden estava a observá-la. Fora ao baile sem convite, sabendo que nenhuma anfitriã o expulsaria da sua casa. E fizera-o porque o seu amigo Percy Witherspoon lhe dera os parabéns pelo casamento iminente do seu irmão.

Ele não quisera acreditar, mas depois do que acabava de ver, era inegável. Olhou para lady Walford. A desgraça estava prestes a abater-se sobre ele. Até ali, estava completamente convencido de que acabaria por herdar o condado de Merton e toda a sua riqueza, certo de que Martin não trocaria a sua liberdade por um casamento aborrecido. Por isso, pedira tanto dinheiro emprestado que já nem sequer sabia quanto devia.

Damian engoliu em seco. Era de admirar que os seus credores ainda não tivessem começado a persegui-lo.

Decerto, esperariam até saberem que ele já não era o herdeiro de Martin para fazerem um movimento. E mesmo então, começariam lentamente, com a esperança de que fosse capaz de persuadir o seu irmão a salvá-lo do rio Tick. Porém, quando descobrissem que Martin não tinha nenhuma intenção de o fazer... Damian não queria nem pensar no que lhe aconteceria.

Tentou encontrar forma de escapar do seu destino.

Sempre fértil na arte do engano, o seu cérebro apressou-se a identificar o objecto do settj desconforto. Era muito simples: só tinha de dizer o que pudesse para evitar aquele casamento.

Quando respondeu a todas as perguntas da senhora Berry, Helen levantou-se, deixando a velha toda contente, e procurou a cabeça morena de Martin entre os convidados.

Sabendo que ele a procuraria junto dos Hazelmere e dos Fanswahe, com quem fora ao baile, encaminhou-se para a cadeira em que vira Dorothea pela última vez.

Dera alguns passos quando sentiu que alguém a puxava pelo braço.

- Lady Walford?

Helen virou-se e viu um jovem. Tinha os olhos azuis muito claros e havia nele algo vagamente familiar, embora soubesse que não o conhecia.

- Senhor? Damian sorriu.

- Sou Damian Willesden, o irmão de Martin.

- Oh! - Helen devolveu-lhe o sorriso. Como está? Martin sabe que está aqui?

Damian fez-lhe uma vénia.

- Eu ainda não o vi. Ele está aqui? - perguntou, interessado. Sabia que era muito importante não deixar transparecer nenhum sinal do distanciamento que havia entre ele e Martin.

- Vi-o ao princípio do baile. Tenho a certeza de que ainda está por aí, nalgum lugar, mas é um pouco difícil encontrar alguém no meio desta multidão.

Damian aproveitou aquele comentário.

- Talvez devêssemos entrar naquela sala sugeriu. - Tenho muita curiosidade em saber como foi o regresso de Martin à sociedade londrina.

Helen aceitou o braço que ele lhe oferecia, perguntando-se por que não fazia aquelas perguntas ao seu irmão.

- Acabo de voltar do campo e ainda não tive oportunidade de falar com Martin, mas... mas ouvi certos boatos que relacionam o nome do meu irmão com o de uma certa dama...

Helen corou.

- Senhor Willesden, tenho de lhe dizer que esses boatos não têm fundamento e que seria inteligente da sua parte confirmá-los, antes de tirar alguma conclusão.

Damian fez uma expressão muito séria.

- Aprecio o seu conselho, lady Walford, e se o caso fosse fácil eu compartilharia as suas reservas. No entanto - fez uma pausa, franzindo o sobrolho, - tenho um grande apreço por Martin e detestaria vê-lo em dificuldades mais uma vez.

- Dificuldades? - Helen estava completamente perdida. A que dificuldades se referia o irmão de Martin? E por que estava ele a contar-lhe aquilo? - Senhor, terá de ser mais claro, porque não o entendo.

- Como com certeza já sabe, Martin regressou das colônias para tomar posse da sua herança. Naturalmente, a riqueza que ele possui agora procede do condado de Merton. Porém, devido à má gestão do passado, as propriedades mantêm-se à tona graças ao dinheiro da minha mãe.

Fez uma pausa para que Helen assimilasse o significado de tudo aquilo e agradeceu a incompetência do seu irmão George. Graças a ele, ia ter o motivo perfeito para afastar lady Walford de Martin. Que mulher se casaria com um homem que dependia da sua mãe? De uma mãe hostil, ainda por cima! Assim que lady Walford acabasse com aquela relação tão bem conhecida por todos, as restantes senhoras que pudessem estar interessadas também se retirariam.

- Infelizmente - continuou ele, - Martin e a nossa mãe nunca se deram bem. A minha mãe, logicamente, espera que Martin se case com a mulher escolhida por ela. Senão retirará o seu dinheiro das propriedades e o condado irá à falência. Martin será um indigente incapaz de manter o estilo de vida a que está habituado, o estilo de vida que se espera do conde de Merton.

E perderia todas as oportunidades de restaurar a sua casa... Helen recordou a cara entusiasmada de Martin ao descrever Hermitage e contar-lhe como seria quando tivesse terminado as obras. Seria como quando o seu pai era vivo, dissera. Durante as últimas semanas, ela ouvira mais coisas sobre os seus sonhos e dera-se conta de como eram importantes para ele. Eram como uma ponte que o uniria ao seu falecido pai. A destruição daqueles sonhos seria um golpe terrível e cruel que ele sofreria se se casasse contra os desejos da sua mãe.

Se se casasse com ela.

Ninguém melhor do que ela sabia que poucas mães aprovariam que um filho se casasse com a viúva de um renegado da classe alta, de um homem que passara das marcas e que depois se matara. Sabia que ela não era a esposa ideal.

Nunca lhe passara pela cabeça questionar o direito de Martin a escolher a sua própria esposa. Parecera-lhe que ele tinha o controlo da sua vida e nunca tivera a sensação de que estivesse sob o domínio de outra pessoa. No entanto, o que o seu irmão lhe dissera fazia sentido.

Sentiu um vazio e o sabor amargo do desespero na garganta. Não ouvia o barulho que havia em seu redor.

- Obrigada por me ter dito isso - aquela voz não parecia a sua, era fria e distante, como se estivesse a falar de muito longe. - Pode ter a certeza de que não farei nada para encorajar Martin a destruir o seu futuro.

Parecia que ia ficar sem voz. Não conseguia falar mais. Despediu-se com uma inclinação de cabeça e voltou-se, andando por entre a multidão sem se aperceber dos olhares estranhos que as pessoas lhe dedicavam.

Quando encontrou Dorothea já conseguira recuperar a compostura. Se aparecesse à frente de Hazelmere ou da sua esposa com aquela cara, não poderia livrar-se de dar explicações.

No entanto, só de pensar em Martin, na sua esperança de felicidade, que agora fora por água abaixo, ficava com os olhos cheios de lágrimas. Decidida, afastou da sua mente aquela dor e obrigou-se a comportar-se normalmente.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Dorothea assim que a viu.

Helen sorriu.

- Dói-me a cabeça, decerto por causa do barulho - respondeu, deixando-se cair numa cadeira ao lado da sua amiga.

- bom - disse Dorothea, - eu estava a pensar em ir-me embora, portanto podemos ir juntas.

- Sim, é melhor - assentiu Helen, após um segundo de hesitação.

Martin devia estar à espera de a ver novamente, mas se se fosse embora com Dorothea, alegando uma dor de cabeça, ele não se preocuparia. Poderia visitá-la no dia seguinte e, então, ela explicar-se-ia.

Até lá, já se teria acalmado o suficiente para o enfrentar. Sim, porque para Helen havia uma coisa que estava bem clara: não podia casar-se com Martin Willesden. Não podia enfrentar a perspectiva de o ver perder os seus sonhos. O seu interesse por ela era real, não duvidava disso. Ele não tinha nenhum interesse em qualquer outra mulher do seu círculo. Assim, se ela estivesse fora do seu alcance, ele deixaria que a sua mãe lhe encontrasse uma noiva e poderia alqançar os seus objectivos.

Helen conteve um soluço e esboçou um sorriso forçado. Ficaria sentada com Dorothea até chegar a hora de se irem embora.

Infelizmente para os seus planos bem-intencionados, Martin apareceu ao seu lado passados alguns minutos.

O coração de Helen deu um salto ao vê-lo. Não pôde evitar sorrir. No entanto, ele reparou imediatamente que ela estava triste. Deu-lhe a mão para a ajudar a levantar-se e inclinou-se para perguntar:

- O que aconteceu?

com uma calma que não sentia, Helen repetiu a história da dor de cabeça.

Martin franziu o sobrolho ao sentir os empurrões das pessoas que os rodeavam.

- Não admira. Vem dar um passeio. Vai fazer-te bem apanhar um pouco de ar fresco.

Antes que ela tivesse tempo de protestar, embora também não tivesse servido de muito, Helen deu por si a percorrer um corredor estranhamente vazio ao lado de Martin. O seu coração começou a bater muito rápido.

As suas suspeitas viram-se confirmadas quando chegaram a uma porta ao fundo do corredor e Martin a abriu. Havia um pequeno jardim privado, completamente vazio.

Ele conduziu Helen para um banco de ferro entre canteiros de tomilho e fez com que se sentasse ao seu lado.

Ela olhou para ele. O luar dava um tom prateado às suas feições. Tinha os olhos verdes arregalados e os lábios entreabertos.

Pensando que era o melhor que podia fazer, Martin puxou-a e beijou-a.

Helen tentou resistir àquele beijo, ao convite de se derreter nos braços dele. Tinha de juntar forças para falar e impedir que ele se declarasse. No entanto, não conseguia e, por fim, rendeu-se perante o inevitável. Deixou-se beijar, sentindo que ele a abraçava com firmeza.

Era escandaloso estar ali sentada, beijando um homem com quem não ia casar. Especialmente, beijando-o daquele modo. O toque dos seus lábios era delicioso. Pôs as mãos nos ombros dele e desfrutou das sensações deliciosas que se apoderavam dela.

Teria de falar com ele mais tarde. Era improvável que aquilo fosse terminar rapidamente e pelo menos, enquanto ele estivesse ocupado a beijá-la, não se declararia. Além disso, talvez nem sequer fosse declarar-se, talvez só estivesse a tentar seduzi-la.

À medida que a pressão dos lábios de Martin se intensificava, Helen desistiu de pensar.

Quando finalmente ele levantou a cabeça, olhou para ela nos olhos. Helen parecia confusa. Era evidente que ela não conseguia falar e, se a experiência não o enganava, provavelmente teria problemas para pensar com clareza.

Martin sorriu. Na verdade, aquilo não tinha importância. Ela não precisava de pensar para responder à sua pergunta.

- Casas-te comigo, querida?

Helen recuperou o bom-senso num abrir e fechar de olhos. Lutou para pronunciar as palavras certas, mas não conseguiu. Quando viu aqueles olhos cinzentos a semicerrarem-se e a olharem para ela fixamente, engoliu em seco.

-Não.

Foi um som tão fraco que Martin pensou que ouvira mal. Contudo, a expressão dos seus olhos, a dor sem palavras, convenceram-no de que ouvira perfeitamente. Quando ela tirou as mãos dos seus ombros, ele sorriu e tentou não dar importância à situação, esperando descobrir qual era o problema.

- Minha querida Helen, tenho que te dizer que não é apropriado beijar um homem e depois recusar o seu pedido de casamento.

Ela baixou a cabeça.

- Eu sei.

Helen torceu as mãos no colo, algo que nunca fizera na sua vida.

- Para ser sincera, Martin, sinto-me muito honrada pela tua proposta, mas... - meu Deus, não sabia o que dizer! - Não tenho intenção de voltar a casar-me.

- bom, então é melhor reveres as tuas intenções - Martin lutou para não parecer zangado. Ele não esperara que aquela conversa decorresse daquela forma. De facto, tudo aquilo era muito estranho. O que teria acontecido?

- Martin, deves perceber...

- Não. Tu é que tens de perceber uma coisa. Eu amo-te e tu amas-me, Helen. O que mais importa?

Helen engoliu em seco e olhou para ele.

- Martin, tu sabes tão bem como eu que há outras coisas importantes.

Martin ficou tenso ao ouvir aquilo, mas, de repente, recordou que era imensamente rico. Ela devia estar a referir-se ao seu passado, apesar de ele já lhe ter explicado o que acontecera. Não teria ela acreditado nele?

- Penso, minha querida, que tens que ser mais específica. Não estou a perceber-te.

Helen estava a perder a coragem. Como dizer a um homem orgulhoso e arrogante que sabia que ele vivia às custas da sua mãe? com uma voz muito baixa, disse:

- Estava a pensar no que a tua mãe diria.

A reacção dele foi exactamente a que ela esperava.

- A minha mãe? - perguntou Martin, estupefacto. - O que tem a minha mãe a ver com tudo isto?

Ele esquecera-se dos planos da sua mãe. Teriam chegado notícias dos seus planos à cidade?

- Eu vou casar-me com quem me apetecer. A minha mãe não tem nada a dizer sobre esse assunto - a simples idéia de Helen pensar que ele era do tipo que permitia que outras pessoas se metessem nos seus assuntos irritava-o.

Quando terminou de falar, Helen estava alterada e nervosa. Não conseguia pensar. Claro que ele o negava! O que mais podia ela fazer? Como podia suavizar as coisas e fazer com que a compreendesse?

Martin reparou na sua agitação e tentou acalmá-la.

- Helen, querida, eu amo-te. Mesmo que todo o meu condado estivesse em jogo, quereria casar-me contigo.

Martin falou com simplicidade, com o coração nas mãos. Não estava preparado para a reacção dela.

Helen desviou o olhar, contendo a respiração. Então, os seus lábios tremeram e os seus olhos encheram-se de lágrimas.

- Oh, Martin! - as suas palavras saíram dos seus lábios juntamente com um soluço.

Helen inclinou a cabeça novamente. Nunca amara tanto alguém como o amava a ele e não podia permitir que fizesse aquele sacrifício por ela.

Cada vez mais preocupado e confuso, Martin observou a cabeça inclinada de Helen e pegou-lhe na mão.

De repente, a porta da casa abriu-se.

- Por aqui, minha querida.

Helen sobressaltou-se. Fez menção de se levantar, mas Martin deteve-a, mexendo-se para que o seu corpo a protegesse dos olhares dos intrusos. Ao ver que os dois convidados saíam para o jardim, Martin levantou-se e ajudou Helen a fazê-lo também.

- Oh! - exclamou Hedley Swayne. - Meu Deus! Não sabíamos que esta parte estava ocupada.

Martin arqueou as sobrancelhas e observou a jovem que tremia, agarrada ao braço do senhor Swayne.

- Não tem importância. Eu estava prestes a acompanhar lady Walford ao salão de baile.

Ofereceu o braço Helen e ela aceitou-o, tentando parecer calma.

- Oh, lady Walford! - exclamou a jovem, nervosa. - Importa-se que eu entre consigo? sem esperar pela sua resposta, virou-se para Hedley Swayne. - Realmente, não me apetece ver os jardins agora, senhor Swayne.

Fez-lhe uma vénia e correu para o lado de Helen.

Engolindo a sua frustração, Martin viu-se obrigado a acompanhar Helen e a sua inesperada acompanhante ao salão de baile.

Sob a luz dos castiçais, Martin percebeu que Helen estava muito afectada. Ele também se sentia como se o mundo tivesse parado, vendo-se obrigado a esperar por uma oportunidade melhor para falar com ela em privado.

Deixou-a com Dorothea, levantando-lhe a mão para a beijar.

- Irei visitar-te amanhã - murmurou antes de se afastar dela.

Dorothea olhou para a cara de Helen e, sem fazer nenhum comentário, pediu para trazerem a sua carruagem para a porta.

Helen não conseguiu adormecer senão de madrugada. Tinha as pálpebras inchadas, mas finalmente conseguira tomar todas as decisões que tinha que tomar. Não tinha nenhuma esperança de explicar as coisas a Martin, porque ele não aceitaria a sua resposta negativa. Não tinha outro remédio senão evitá-lo, deixar claro que a sua amizade terminara. Daria origem a boatos, mas nada sério. As pessoas perguntar-se-iam no que estava ela a pensar, mas havia demasiadas mulheres à espera de chamarem a atenção a Martin para que as alcoviteiras se entretivessem com os seus caprichos durante muito tempo.

Teria de o abandonar, apesar de isso lhe partir o coração. Teria de viver com aquela tristeza para sempre. O seu abandono magoá-lo-ia, bem como a sua falta de explicações, mas sabia que ele não aceitaria um não da sua parte. Não sabia até onde ele seria capaz de chegar para alcançar os seus objectivos. Não. Só havia um caminho.

Enterrando a cara na almofada, suspirou. Devia ter imaginado como aquilo ia terminar. Uma felicidade daquele tipo não era para ela. Nunca seria.

Estava fora do seu alcance.

 

- O que queres tomar?

- Se a memória não me falha - disse Hazelmere enquanto se sentava numa cadeira de couro da biblioteca de Martin, - o teu pai tinha um bom vinho da Madeira.

- Não falha, não. George não tinha bom gosto suficiente para o apreciar. Acho que ainda há três barris cheios na cave.

Martin serviu dois copos e entregou um ao seu convidado, antes de se sentar na cadeira ao lado.

Ambos ficaram em silêncio.

Hazelmere sabia que Martin o convidara com algum propósito, portanto esperou que o seu amigo confiasse nele.

Martin, sabendo que o seu amigo o compreendia, não tinha pressa de falar. O assunto era delicado. Visitara Helen na manhã seguinte à sua primeira declaração, há duas noites. Não conseguira, depois de reflectir muito, saber a razão da sua rejeição. No entanto, fora à sua pequena casa de Half Moon Street, esperando poder ultrapassar qualquer obstáculo. Então, compreendera que o problema, fosse qual fosse, era grave.

Ela recusara-se a recebê-lo e mandara a sua criada contar-lhe uma história sobre uma indisposição.

Pela primeira vez na sua vida, Martin sentia-se impotente.

Porquê?

Tinha que haver uma razão! Helen não era nenhuma cabeça-de-vento. Finalmente, Martin chegara à conclusão de que havia um segredo no seu passado que a sua declaração fizera vir à superfície.

E a única pessoa que sabia o suficiente do passado de Helen para lhe ser útil estava sentada ao seu lado, com um olhar enganosamente calmo.

Martin fez uma careta.

- É a respeito de Helen Walford.

- Ah, sim? - Hazelmere olhou para ele com os seus olhos penetrantes cheios de reserva.

- Sim - respondeu Martin, não fazendo caso dele. - Quero casar-me com ela.

As feições do seu amigo relaxaram e reflectiram alegria.

- Parabéns! - Hazelmere levantou o seu copo, brindando.

- Infelizmente, as tuas felicitações são prematuras. Ela não me aceitou - Martin bebeu um gole do seu conhaque.

Hazelmere olhou para ele, surpreendido.

- Porquê?

- Isso é o que quero que tu me expliques Martin apoiou-se no encosto da cadeira e observou o seu amigo com atenção.

- Ela gosta de ti, eu sei.

- Eu também. Não é isso.

- O que é, então?

- Quando eu lhe disse que a amava, ela quase desatou a chorar.

Hazelmere não estava a perceber nada. Franziu ainda mais o sobrolho, dizendo:

- Isso não é bom sinal. Helen nunca chora. Seria mais natural que discutisse do que chorasse.

- Sim. Pergunto-me se haverá algo no seu casamento anterior que possa explicar a sua reacção.

Hazelmere arqueou as sobrancelhas. Reflectiu sobre aquele assunto, fazendo girar o copo de conhaque entre os seus dedos compridos. Então, de repente, olhou para Martin.

- Como parece que estás decidido a casar-te com ela e, embora ela não saiba, isso significa que será a próxima condessa de Merton, vou dizer-te o que sei. Mas aviso-te que não é muito.

Martin esperou pacientemente que o seu amigo pusesse as idéias em ordem e se reconfortasse com o licor.

- Suponho que o melhor é começar pelo princípio. Os pais de Helen apresentaram-na à sociedade aos dezasseis anos, algo que, na minha opinião, foi um erro. Ela ainda era uma menina, mas os seus pais já tinham a sua vida planeada. Tinham-lhe arranjado um casamento com o filho de um velho amigo, lorde Alfred Walford... Tu conhecias o filho dele, Arthur Walford?

- Vimo-nos unia ou duas vezes antes de eu partir para as índias. Não era bem o tipo de homem que uns pais extremosos escolheriam para uma adolescente bonita e rica.

Um sorriso animou a cara de Hazelmere.

- Ah, mas tu não conhecias Helen nessa altura. Sei que é difícil de acreditar, vendo-a agora, mas aos dezasseis era uma maria-rapaz terrivelmente esquelética. De qualquer forma, as coisas não teriam sido diferentes mesmo que ela fosse a reencarnação de Cleópatra. O casamento tinha sido combinado há muitos anos. Os pais de Helen queriam casá-la com uma das famílias mais antigas do país e, embora muita gente tivesse tentado dissuadi-los, incluindo os meus pais, eles estavam completamente decididos. O velho Walford também queria o casamento, por causa do dote de Helen, e Arthur também, pela mesma razão. Assim, Helen casou-se com Arthur um mês depois da sua apresentação à sociedade.

- Um mês? - repetiu Martin, incrédulo.

- Exactamente. Os recém-casados viveram em Walford Hall durante um mês. Depois, Arthur reapareceu na cidade. Helen ficou em Oxfordshire. A situação continuou assim, aparentemente sem alterações, durante quase três anos. Durante esse tempo, todos os actores mais velhos deste drama morreram: o velho Walford e os pais de Helen. A hora da verdade chegou quando Walford liquidou todo o seu patrimônio e o de Helen. Só ficou Walford Hall. Ele voltou lá, não para ficar a viver, mas para ver o que poderia tirar da casa. Na época, Helen tinha dezanove anos. Ainda não era tão alta como agora, mas tinha melhorado consideravelmente.

Hazelmere fez uma pausa, estudando o conteúdo do seu copo.

- Eu não sei bem o que aconteceu, mas o resultado foi que Walford bateu a Helen, durante uma discussão. Ela, por sua vez, deu-lhe com um bule na cabeça e foi-se embora. Veio para a minha casa. Ela cresceu com a minha irmã Allison e nós considerámo-la sempre como alguém da família. Eu mandei-a para a minha quinta na Cúmbria para que ficasse longe do caminho de Walford, não fosse ele tentar encontrá-la. Entretanto, a história do que ele fez a Helen veio a público e, em conseqüência disso, Walford foi expulso da alta sociedade e ficou arruinado. Matou-se antes de entrar na prisão de Newgate.

Hazelmere fez uma pausa, reflectindo sobre o passado, e depois encolheu os ombros.

- Mais tarde, muitos dos que tinham ganhado propriedades a Walford doaram dinheiro para reunir um fundo para Helen. Sou eu que o administro. Dá para pagar a renda da sua casa em Half Moon Street, para ela levar o seu estilo de vida actual e pouco mais. Nenhuma das propriedades se salvou.

Martin franziu o sobrolho. Escolhendo cuidadosamente as palavras, perguntou:

- Há algo que te faça supor que Helen sente alguma aversão ao aspecto físico do casamento?

Hazelmere cerrou os dentes. com os olhos fixos no copo, abanou a cabeça.

- Não posso dize-lo com certeza, mas... mas não me surpreenderia muito. Tu sabes como Walford era.

Lentamente, Martin assentiu.

- Poderá ter-lhe feito mal, fazendo com que ela tenha dificuldade em pensar em casar-se novamente?

Hazelmere encolheu os ombros.

- Só Helen pode dize-lo, mas... não me parece improvável.

A expressão de Martin descontraiu-se um pouco. Semicerrou os olhos como se estivesse a pensar em alguma coisa.

- O que foi? - perguntou o seu amigo. A resposta foi um sorriso perverso.

- Estava a pensar... Quem melhor do que eu para curar essa doença? Sou o candidato perfeito para convencer Helen Walford das vantagens do casamento. Se, com a minha extensa experiência, não ultrapassar esse obstáculo, é porque não a mereço.

Durante um momento, os olhos castanhos de Hazelmere permaneceram sérios, enquanto ele reflectia sobre o que era, afinal de contas, a ameaça de um escândalo para uma mulher que estava sob a sua protecção. Contudo, pensando bem, a felicidade de Helen estava em jogo e ele confiava em Martin Willesden como se fosse seu irmão. Martin não faria mal a Helen.

Hazelmere sorriu e inclinou a cabeça para demonstrar que aprovava as intenções de Martin.

- Nem um Don Juan teria tido uma idéia melhor.

Helen alisou a saia do vestido e esperou que Martin se sentasse ao seu lado na carruagem. Então, a carruagem pôs-se em movimento.

Era curioso, reflectiu, que fossem capazes de estar juntos daquele modo depois do doloroso momento da declaração de Martin, uma semana antes. Ele pedira-lhe uma valsa no baile dos Havelock e Helen verificara que o seu comportamento não se alterara. Martin comportara-se como devia ser em todo o momento, limitando-se a sussurrar:

- Confia em mim. Descontrai-te, não há nada com que tenhas de te preocupar.

Parecia que ele entendia a situação e que a aceitava que, dadas as circunstâncias, não podiam casar-se. E, sendo um cavalheiro, estava decidido a esconder a sua situação às pessoas.

Ela só tinha de fazer o jogo dele e comportar-se como se não se tivesse produzido nenhuma ruptura entre eles. A medida que O tempo fosse passando, poderiam afastar-se! sem chamar a atenção das coscuvilheiras. Enquanto passeavam pelo parque, cumpri-l mentando os conhecidos da carruagem, encon-i traram-se com Ferdie Acheson-Smythe, o primo de Hazelmere, que se aproximou paral falar com Helen. Ela conhecia-o desde sempre! e tinham um grande carinho um pelo outro,

- Eu sei que isto se transformou num hábito - disse o seu amigo, franzindo o sobrolho, mas achas que é inteligente?

- Não te preocupes - respondeu ela em voz muito baixa, sorrindo perante a sua preocupação fraternal. - Estou perfeitamente segura.

Ferdie arqueou as sobrancelhas com o olhar fixo no perfil de Martin.

- Isso era o que eu pensava de Dorothea e vê o que aconteceu. A questão é que os bons vivants nunca mudam. São perigosos em todas as circunstâncias.

Helen riu-se.

- Asseguro-te que este está domesticado. Ferdie não acrescentou mais nada. Fez-lhe uma vénia elegante e virou-lhe as costas, dedicando-lhe um olhar de advertência.

Martin viu-o e, quando Ferdie se afastou, perguntou a Helen:

- Diz-me uma coisa, bela Juno, ainda me consideras "perigoso", apesar do meu comportamento exemplar dos últimos tempos?

- Eu acho, milorde, que há quem pense que o seu "comportamento exemplar" pode ser como o de um lobo em pele de cordeiro.

Martin deixou escapar um suspiro.

- E eu que pensava que ninguém se dava conta!

Helen arregalou os olhos. Não percebeu se ele estava a avisá-la de que Ferdie tinha razão ou se simplesmente estava a brincar para aliviar a tensão.

Insegura, Helen permaneceu pensativa durante o quarto de hora que demoraram a fazer o circuito social pelo parque.

Quando ficaram sozinhos, Martin tirou-a dos seus pensamentos, comentando:

- Ainda não decidi que móveis vou pôr na sala.

- Não? - Helen falara muitas vezes com ele sobre a decoração da sua casa de Londres, que já estava quase pronta. Ele costumava pedir a sua opinião com freqüência.

- Eu gostaria que me desses a tua opinião, especialmente sobre um dos móveis. Importavas-te de me conceder uns momentos do teu tempo, querida?

Helen engoliu a resposta de que era melhor perguntar à sua noiva e sorriu. Não tinha nenhuma intenção de mencionar o assunto do casamento.

- Penso que posso conceder-te alguns minutos.

Martin inclinou a cabeça cortesmente para lhe agradecer e conduziu a carruagem para as portas do parque. Estavam a caminho da sua casa quando Helen perguntou:

- Que móvel é?

- Um sofá.

Passado pouco tempo, Martin deteve os cavalos em frente a uma mansão imponente em Grosvenor Square, para surpresa de Helen. Então, virou-se para ela e sorriu.

- É aqui.

Martin saiu da carruagem e deu as rédeas a Joshua, que viera recebê-los. Seguidamente, contornou a carruagem para ajudar Helen a sair.

O mordomo abriu-lhes a porta com uma vénia.

- Milorde - disse, virando-se seguidamente para ela. - Milady - aproximou-se dela para pegar no seu casaco.

Insegura, Helen olhou para Martin. Ele assentiu e, então, ela entregou o seu casaco ao mordomo.

- Vamos para aquela sala - declarou Martin, apontando para uma porta do outro lado do hall.

Ao aproximar-se da porta da sala, Helen viu uma luz estranha que vinha do interior. Era como se as cortinas estivessem corridas e a lareira estivesse acesa. Espantada, Helen atravessou a soleira e entrou.

- Não queremos ser incomodados, Hillthorpe.

Helen conteve uma exclamação de surpresa. Acabava de confirmar a sua suspeita. Aquilo era a prova de que, no caso de Martin Willesden, um bon vivant declarado, Ferdie tinha razão. As cortinas de veludo estavam corridas, o lume devorava a lenha com voracidade na lareira e havia um balde de gelo com uma garrafa de vinho aberta numa das mesas.

Automaticamente, Helen procurou com o olhar o sofá que tinham ido ver. Ao princípio, não o viu. Então, arregalou os olhos ao ver que o móvel enorme que estava em frente ao fogo era um diva.

Fugir foi o seu primeiro pensamento. Mas como? Martin estava atrás dela. Se se virasse e tentasse sair, ele tapar-lhe-ia a passagem.

Respirou fundo e deu alguns passos para trás, mas ele agarrou-a pela cintura e levou-a outra vez para o centro da sala.

- Martin! - Helen virou-se para o encarar e viu-o fechar a porta à chave.

Só se sentiu um pouco aliviada ao ver que ele deixava a chave na fechadura. Era dele de quem teria de fugir. Em comparação com isso, sair da sala era uma brincadeira de crianças. Tentando fortalecer as suas defesas, refugiou-se na indignação. Endireitou-se tanto quanto pôde, mas, infelizmente, aquilo não era suficiente para intimidar o homem que tinha à sua frente. Olhou para ele fixamente e rezou para que a sua voz não a traísse.

-Enganaste-me!

- Receio que sim - disse Martin, sorrindo. O seu olhar ardente descansava, atento, no rosto de Helen. Lentamente, aproximou-se dela.

Não parecia arrependido do que fizera.

Helen tentou controlar o seu nervosismo e deixou que o seu aborrecimento se intensificasse.

- O teu comportamento desta semana era uma actuação, não era? - para seu horror, a sua voz soou tão aguda como um grito.

Quais seriam as intenções de Martin? Ele parou em frente a ela.

- Desmascaraste-me - com os olhos brilhantes, estendeu as mãos num gesto suplicante. - O que posso dizer em minha defesa?

Completamente absorta no seu olhar, Helen tentou pôr o cérebro a funcionar para pronunciar uma frase.

Suavemente, Martin estendeu a mão e soltou-lhe o carrapito, deixando que o cabelo caísse em cascata pelos seus ombros e pelas suas costas.

Helen soltou um grito e levou instintivamente as mãos à cabeça para tentar deter a cascata. Contudo, ele agarrou-lhe nas mãos. Tinha os olhos brilhantes.

- Não sabes quantas vezes pensei em fazer isto.

Então, soltou-lhe as mãos e acariciou os seus caracóis loiros. Emoldurou-lhe a cara com as mãos e fez com que olhasse para ele nos olhos.

Demasiado tarde, o instinto de preservação fez com que Helen voltasse à realidade. Pôs as mãos no peito de Martin.

- Milorde... Martin! - corrigiu-se. - Isto é escandaloso. Se queres remediar o teu comportamento, o teu erro, acompanha-me imediatamente à carruagem.

Tentou fazer com que a sua voz soasse firme, mas o seu tom foi baixo e trêmulo. O sorriso de Martin acentuava-se cada vez mais. Ele rodeou-lhe a cintura com os braços e abraçou-a com firmeza.

- Tenho uma idéia muito melhor para me redimir dos meus pecados.

Então, beijou-a e não parou enquanto não desapareceram todos os vestígios de resistência,

Invadida por um desejo doce que nunca experimentara, Helen rendeu-se. Sentiu que ele a abraçava com mais força e que passava as mãos pelas suas costas para a adaptar ao corpo dele.

Então, a parte racional de Helen lutou contra o convite insidioso do seu beijo, contra a tentação de perder a cabeça e mergulhar num mar de sensações, tentando conservar o bom-senso.

Martin levantou a cabeça para olhar para ela com os olhos muito brilhantes.

- Descontrai-te - sussurrou, acariciando-lhe a testa com os lábios. - Não te preocupes, vamos fazer tudo muito devagar.

Então, voltou a beijá-la.

Helen sabia que Martin preparara aquilo tudo para a comprometer, para a obrigar a aceitar o seu pedido de casamento. Contudo, ela estava decidida a deixá-lo concretizar o seu sonho e- nada, nem sequer ele próprio, poderia fazê-la mudar de idéias.

No entanto, teve que admitir, ao senti-lo a desabotoar os botões do vestido, que não haveria forma de escapar daquele mestre da sedução. O que ele tinha em mente era inegavelmente escandaloso, mas atraía-a. Se desse ouvidos ao seu coração teria de se deixar levar e descontrair-se, tal como ele lhe pedira.

Nunca vivera um momento como aquele. Aquela era a sua única oportunidade de saber o que se sentia envolta na felicidade e no amor.

Martin acariciou-lhe os ombros para lhe despir o vestido e ela, com um suspiro suave, deixou que as mangas deslizassem pelos seus braços. Olhando para ele com timidez, abraçou-se a ele, aceitando tacitamente o que estava para vir.

Martin respirou fundo e tentou controlar o seu desejo. Sabia que tinha de a seduzir lentamente, com ternura, como se fosse uma virgem tímida e nervosa. Dedicou-se à tarefa com devoção e, passado pouco tempo, Helen viu-se perdida num redemoinho de prazer.

Martin preenchera a sua mente e anestesiara os seus sentidos. Estava no controlo da situação.

Ela soube, naquele momento, que ele ia zangar-se muito quando voltasse a pedi-la em casamento, confiando que ela estivesse completamente convencida depois de fazer amor com ele. Ela ia recusá-lo novamente e ele não ia querer saber porquê. Tinha de se lembrar disso. Todavia, naquele momento, concentrou-se nos beijos e nas carícias do homem que a tinha entre os seus braços.

- Fecha os olhos.

Helen reparou que ele estava prestes a despir-se e sentiu vontade de o observar. -Mas...

- Nem mas nem meio mas! - exclamou ele, com a voz mais grave do que era normal. - Faz o que te peço. Deita-te, descontrai-te e aproveita.

O tom persuasivo da sua voz teve o efeito que ele desejava. Helen deitou-se, sentindo na pele o calor do fogo e a suavidade do cetim dos lençóis. Os seus lábios curvaram-se ligeiramente ao pensar no gosto exuberante de Martin para escolher o mobiliário. Entreabriu os olhos e umas costas musculadas apareceram no seu campo de visão. Olhou para ele com avidez até ele se virar e, então, voltou a fechar os olhos inocentemente.

- Linda menina - murmurou ele.

Não via nem sinal de pânico na expressão de Helen. Aproximou-se dela e beijou-a com todo o cuidado, atento a qualquer sintoma de retirada ou de estar a pressioná-la.

Seguidamente, afastou os lábios da sua boca e concentrou-se no resto do seu corpo, sussurrando-lhe palavras para a reconfortar e dar-lhe segurança.

Ela não conseguia perceber o que ele estava a dizer. Deixou-se levar por aquele momento sensual, pensando que gostaria que se calasse e satisfizesse as suas necessidades. Quase lhe doíam as mãos da necessidade de o acariciar. Por fim, impulsionada pelo desejo, tentou acariciar-lhe as costas. Contudo, Martin agarrou-lhe nas mãos e prendeu-as acima da cabeça.

- Ainda não, querida. Não apressemos as coisas.

"Por que não?", perguntou-se ela. Sentia-se como se quisesse devorá-lo e a única coisa que ele lhe dizia era "ainda não"... Tinha o corpo todo a arder e só queria queimar-se mais e mais.

-Martin...

- Chiu! - ele sossegou-a com um beijo. Confia em mim. Vais gostar. Desta vez será diferente, prometo-te.

Helen ficou estupefacta. É claro que daquela vez seria diferente do que fora com o seu marido. Daquela vez estava apaixonada. Nunca amara ninguém. Tinha a sensação de que havia algo que não entendia no meio daquilo tudo.

- Não tenhas medo. Faremos tudo devagar, suavemente. Não haverá dor, só prazer. Confia em mim. vou mostrar-te como pode ser maravilhoso.

Ao notar a ternura que havia na sua voz, Helen compreendeu o que estava a acontecer. Arregalou os olhos, mas Martin continuou a beijá-la, sem se dar conta de nada.

Rapidamente, Helen fechou os olhos, tentando que o seu corpo permanecesse imerso no desejo que ele despertara nela.

Martin pensava que ela tinha algum trauma sexual ou, pelo menos, uma aversão a fazer amor. Se ele não estivesse a beijá-la, ela teria abanado a cabeça.

Como teria chegado àquela conclusão tão disparatada? Arthur nunca lhe fizera mal, simplesmente fracassara por completo na hora de alimentar a sua paixão. No entanto, naquele momento estava a descobrir o que era a paixão entre um homem e uma mulher, estava descobrir a verdade. Não tinha nenhuma aversão a fazer amor com Martin Willesden, mas... por que teria ele pensado aquilo? born, não eram horas de fazer perguntas.

Martin aprofundou os seus beijos e ela sentiu que o bom-senso a abandonava. com alegria e abandono, rendeu-se ao desejo que a invadia.

Para satisfação de Martin, não notou o menor sinal de pânico, nem sequer um tremor, nada que estragasse a resposta da beldade que tinha nos seus braços. No entanto, continuou a controlar a sua paixão, impondo-se uma disciplina quase desumana perante aquela provocação extrema. Era um trabalho muito duro seduzir uma deusa. Intensificou a febre do desejo entre ambos, excitando-a até saber que ganhara a batalha. Quando, finalmente, a leyou ao êxtase, manteve-a ali durante um instante fugaz, sentindo a felicidade mais intensa, mesmo antes de se deixar levar pelo seu próprio gozo.

As badaladas do relógio penetraram na névoa de prazer que nublava o cérebro de Helen. Eram quatro horas.

Quatro horas!

Helen abriu os olhos e deparou com um peito masculino. Então, os seus sentidos detectaram um braço pesado e musculado que a rodeava com atrevimento.

Contendo um gemido, fechou os olhos. O que podia fazer? Seria fácil ficar ali, inebriada pela felicidade, mas quando Martin acordasse decerto que a pediria em casamento e ela teria de recusar, enquanto estava nua entre os seus braços.

Abriu os olhos novamente e começou a libertar-se dele com muito cuidado para não o acordar. Quando se levantou da cama, começou a vestir-se rapidamente, contendo um suspiro. Martin levara-a ao fim do arco-íris, dando-lhe um prazer muíftxmais intenso do que ela poderia ter imaginado. Guardaria a lembrança daquela tarde no seu coração, durante todos os anos solitários que tinha pela frente.

E quando ele a pedisse novamente em casamento, o que responderia? Não podia explicar-lhe as suas razões, porque Martin não aceitaria o seu sacrifício. Discutiria, ameaçá-la-ia, usaria todo o tipo de truques para alcançar o seu objectivo. No entanto, ela não cederia. Amava-o e estava completamente decidida a que ele tornasse os seus sonhos realidade.

Não. com calma, decidiu que não lhe daria explicações. Ele ficaria furioso, mas não poderia convencê-la.

Não ia gostar, mas era para o seu bem.

Helen começou a abotoar com dificuldade os minúsculos botões do vestido e, sem querer, distraiu-se a observar aquela cara maravilhosa. Sorriu ao recordar os seus esforços para a ajudar a superar o seu suposto trauma. De repente, porém, o seu sorriso desapareceu. Ao recusá-lo, ia provocar-lhe mais dor do que fúria. Ia dar-lhe um golpe forte. Além disso, a sua recusa a sucumbir ao amor de um cavalheiro seria um golpe duro para o seu orgulho.

Helen empalideceu, sentindo frio de repente. Não entendia por que o destino lhe proporcionava continuamente aquele tratamento tão duro. Porquê ela?

Decidida, afastou a depressão e continuou a abotoar os botões. Os seus dedos escorregavam e, praguejando baixinho, tentou segurar o botão. Impaciente, ergueu o olhar e deparou com uns olhos cinzentos que a observavam com calor, cheios de riso. Quando ela olhou fixamente para ele, o sorriso de Martin acentuou-se.

- Devias ter-me acordado - a sua voz era profunda, brincalhona, um convite aos prazeres ilícitos.

Helen pestanejou, tentando concentrar-se, Tinha que conservar a calma. Tentando usar um tom enérgico, disse:

- É muito tarde e tenho de ir para casa. Pensei que se tu acordasses antes de eu me vestir não o conseguiria.

Martin riu-se com atrevimento.

- Conheces-me bem, bela Juno. Chega aqui. Ela olhou para ele com desconfiança.

- Martin, tenho mesmo de me ir embora. Martin olhou para o relógio e suspirou, resignado.

- Suponho que sim. Nesse caso, é melhor deixares-me ajudar-te com o vestido - sentou-se na beira da cama, com o lençol pela cinturaejez-lhe sinal para se aproximar.

A contragosto, Helen obedeceu e ele agarrou-lhe na cintura com ambas as mãos. Durante um segundo, os seus olhares encontraram-se. Helen, hipnotizada, viu o sorriso que se desenhou nos seus lábios. Então, ele fez com que desse a volta.

Abotoou-lhe os botões rapidamente, mas antes que ela pudesse mexer-se, voltou a agarrá-la pela cintura e fez com que se sentasse num dos seus joelhos.

Ao sentir o calor do seu corpo, Martin desejou novamente que ela o tivesse acordado antes. Reflectiu seriamente sobre a possibilidade de a deitar na cama e despi-la novamente.

Quem se importava com o que as outras pessoas pensassem? com um sorriso irônico, reconheceu que tal coisa não podia acontecer, se quisesse assumir a sua posição social como conde de Merton com a condessa ao seu lado. Fez com que Juno se voltasse para poder olhar para ela na cara. Sorriu com perversidade.

- Gostaste? Helen corou.

Martin soltou uma gargalhada e acariciou-lhe a face.

- Diz que te casas comigo e poderás desfrutar destas delícias todos os dias. Ou pelo menos todas as noites - sorriu com confiança e esperou que Juno aceitasse a sua proposta.

Helen não pôde olhar para ele nos olhos.

Produziu-se um silêncio e ela reparou que Martin ficava tenso. Sentiu frio e tentou libertar-se das suas mãos. Ele deixou que se levantasse e ela aproximou-se da lareira. Fazendo das tripas coração, olhou para ele.

O granito seria certamente mais quente do que a expressão da sua cara. Martin tinha os punhos cerrados sobre as coxas. Parecia um ser poderoso, completamente furioso.

- Martin, eu não posso casar-me contigo Helen obrigou-se a pronunciar aquelas pala206

vras com calma e clareza. Por dentro sentia-se morta.

- Estou a ver. Não te importas de fazer amor comigo, mas não queres casar-te comigo disse ele.

Helen baixou a cabeça. Não queria ver a sua desilusão.

- Porquê?

- Lamento muito. JSÍão posso explicar mentiu.

- Como? - Martin pôs-se de pé bruscamente. - Esclarece-me só uma coisa. Antes estavas disposta a casar comigo, não estavas?

- Sim, mas isso não muda nada. Simplesmente, não é possível que me case contigo.

- Porquê?

Daquela vez, a pergunta era mais inquisitiva. Martin começou a caminhar de um lado para o outro, como uma fera ferida.

Helen teve de controlar o impulso de se aproximar e consolá-lo.

- Lamento muito, mas não posso explicar-te.

- Não podes explicar-me por que preferes ser uma prostituta da alta sociedade a casar-te comigo?

Tremendo por dentro, Helen manteve uma aparência impassível. Não queria hesitar sob o seu olhar brilhante. Sentia-se doente. Ele dera rédea solta ao seu orgulho. No entanto, Helen não podia sentir arrependimento por aquela tarde de prazer. Não queria sentir-se culpada pela maior alegria que tivera na sua vida.

Martin olhou para ela fixamente, desejando fazer com que cedesse. Quando viu que mantinha o olhar fixo, deixou escapar um queixume. Sentia-se violento, tinha vontade de a agarrar pelos braços e levá-la para a cama para a reduzir a um estado em que fizesse o que ele queria. Contudo, aquela não era a solução ideal. Dedicou-lhe um olhar furioso.

Helen ainda estava ali de pé, fingindo calma, diante da lareira onde ele queria vê-la. Poderia pressioná-la para que fosse a sua amante, mas queria-a como sua esposa.

com um gemido de frustração, Martin aproximou-se dela.

- Se a minha proposta honrada é tão repugnante para ti, Juno, sugiro-te que te vás embora antes que o meu instinto mais básico me leve a fazer-te uma oferta insultuosa.

Agarrou-a por um braço e levou-a para a porta.

Helen não ofereceu resistência. Era melhor assim. Se ele a tivesse deixado partir sem lhe dar uma explicação, deixando-o ferido e confuso, era possível que ela fraquejasse. No entanto, a sua reacção furiosa, apesar de lhe partir o coração, também a salvou dele.

Furioso, Martin chamou o mordomo.

-Hillthorpe!

Imediatamente, o homem apareceu por uma porta. Ao vê-los, a sua atitude sofreu uma alteração subtil.

Martin não fez caso da sua surpresa.

- Lady Walford vai-se embora. Pede-lhe uma charrete - soltou o braço de Helen e, com o mais seco dos cumprimentos, foi-se embora.

Quando a porta se fechou atrás dele com um estrondo, Helen esteve prestes a desatar a chorar, mas conteve-se. Tinha que chegar a sua casa o quanto antes.

com um olhar para o mordomo de Martin, soube que estava tão espantado como ela perante a falta de cortesia do seu amo, mas ele não fazia idéia do que podia ter acontecido.

- Por favor, poderia trazer-me o meu casaco e o meu chapéu?

- Claro, senhora! - exclamou Hillthorpe, reagindo finalmente. Nunca vira o seu senhor de tão mau humor, algo que, pensou, fazendo uma vénia a lady Walford, era uma pena. Todos os criados da sua casa, a maioria herdados dos seus pais, tinham ficado felizes ao saberem que o senhor escolhera lady Walford como condessa de Merton. Ela era uma dama conhecida pela sua bondade e amabilidade, uma verdadeira senhora.

Enquanto ia buscar o seu casaco, Hillthorpe franziu o sobrolho. Uma charrete? No que estava a pensar o seu amo? O melhor do que podia fazer era mandá-la numa carruagem fechada, sem brasão. Quando lhe levou o casaco, fez-lhe uma vénia e disse amavelmente:

- Se quiser sentar-se por um momento nó hall, senhora, farei que tragam uma carruagem imediatamente.

Agradecida pela forma como aquele homem estava a lidar com a situação, Helen seguiu-o, tentando controlar as suas emoções até estar livre para as deixar fluir.

Da escada, no andar de cima, Damian Willesden, o outro ocupante da casa, observou-os a desaparecerem pelo hall. Estava completamente surpreendido. Lentamente, desceu as escadas, enquanto reflectia sobre as implicações do que acabava de ver.

Então, Martin voltara a ser o Don Juan de sempre. Seduzira a bela lady Walford. Aquele pensamento proporcionou uma grande satisfação a Damian. Abençoou as tendências de mulherengo do seu irmão. Lady Walford podia vir a ser a sua amante, mas não a sua mulher. Aquela dama seria apagada da lista de candidatas a condessa de Merton.

Ou não?

Damian pensou melhor. Não podia imaginar por que um homem como o seu irmão se casaria com uma mulher que podia ter como amante, mas a verdade era que aquelas coisas podiam acontecer. De facto, aconteciam com freqüência.

A porta principal fechou-se. Lady Walford acabava de partir.

Contudo, ele ainda não estava a salvo.

Damian franziu o sobrolho. Não acreditava que Martin fosse casar-se com aquela mulher, sobretudo depois daquela despedida, mas não tinha como saber se ela tentaria caçá-lo mais tarde. A única coisa que assegurava que o casamento fosse impossível era pôr lady Walford numa posição em que não pudesse casar-se com ele.

Tinha que destruir a sua reputação. Assim, além de tudo o resto, a condessa viúva de Merton não consentiria naquele casamento.

Damian tinha muita confiança na sua mãe e... e no seu dinheiro.

Com um sorriso arrogante, desceu as escadas. Ia ser muito fácil conseguir que aquela casa, a casa dos seus pais, passasse a ser sua.

Pediu o chapéu e o casaco ao mordomo, saiu para a rua e dirigiu-se para Saint James.

 

Naquela noite, celebrava-se o baile de Barham House.

Helen reconheceu, cansada, que era impossível faltar. Os Barham eram seus amigos há anos. Esperava que Martin, que não tinha uma relação tão próxima com eles, não fosse.

Janet teria que lhe levar umas rodelas de pepino para fazer desaparecer o inchaço das pálpebras. Todas as lágrimas que derramara durante a noite ajudaram-na a aliviar a sua dor. No entanto, o seu sofrimento duraria muito mais tempo, sem possibilidade de alívio.

Fazendo um esforço, Helen levantou-se e atravessou o quarto para tocar à campainha. Então, aproximou-se do seu roupeiro.

Embora lhe apetecesse vestir-se de preto, teria de se conformar com o azul-escuro. com sorte, aquela cor disfarçaria a sua palidez.

Tomou banho e, com muita dificuldade e obrigada por Janet, comeu qualquer coisa.

Na carruagem, pensou no que faria se Martin assistisse ao baile. Helen respirou fundo e afastou aquela idéia da cabeça. No seu estado, aquilo era demasiado inquietante.

Os Barbam cumprimentaram-na carinhosamente. No salão de baile, Helen juntou-se a Dorothea e a lady Merion, que já tinham chegado. Assim, rodeada pelo seu círculo de amigos, descontraiu-se e disfarçou com uma expressão calma a depressão que sentia.

À meia-noite, porém, a sua máscara caiu. Ela estava a dançar com o visconde Alvanley quando viu Martin num lado do salão, apoiado numa parede. Tinha o olhar fixo nela.

Até Alvanley, que era um bom conversador, se deu conta da sua perturbação.

- O que aconteceu?

- Eh... nada. O que estavas a contar-me sobre lady Havelock?

Alvanley franziu o sobrolho.

- Não era sobre lady Havelock, mas sobre Hatcham - respondeu ele, pouco à vontade.

- Oh, sim! - exclamou Helen, fixando os olhos na cara do visconde, que retomou a sua história de bom humor.

Helen tentou evitar o olhar de Martin. Ele poderia aproveitar-se da sua debilidade e obrigá-la a explicar-se ou, ainda pior, a aceitar o seu pedido de casamento.

Naquele momento, Helen recordou o aviso de Férdie. O seu velho amigo tinha razão, os bons vivants eram sempre perigosos.

Apesar das pessoas que os separavam, Martin percebeu a insegurança de Helen. Ainda sentia fúria, portanto sabia que não seria inteligente aproximar-se dela. Esteve tentado a não fazer caso dos seus desejos e pedir-lhe uma valsa. Só a sua incerteza perante o que poderia acontecer o impediu.

Nem sequer sabia por que estava ali, além de não haver outra coisa que quisesse fazer. Ver Helen todas as noites era um hábito do qual não estava disposto a abdicar. O que acontecera na tarde anterior deixara-o confuso e furioso, e sabia por experiência que a sua mente não funcionaria com clareza. Também não sabia como sair daquele estado emocional.

O que sabia era que se continuasse a olhar daquele modo para Helen, as pessoas começariam a murmurar. No entanto, não conseguia evitá-lo.

- Martin! Que prazer voltar a ver-te. Martin olhou para baixo e sentiu que uma mão lhe tocava no braço.

Era Serena Monckton, que sorria.

Martin conteve o desejo de sacudir a mão e inclinou a cabeça.

- Serena.

Lady Rochester pavoneou-se. Era a primeira vez, desde que ele tinha reaparecido como conde de Merton, que conseguira que a chamasse pelo seu nome. Talvez ainda houvesse alguma esperança para ela...

Martin viu a sua reacção e praguejou mentalmente.

Esforçara-se para manter lady Rochester à distância, sabendo como as suas atenções podiam ser perigosas. Não confiava nela, algo bastante compreensível, mas como estava concentrado em Helen, tinha as defesas em baixo. Teria que corrigir o mal causado.

- Eu adoro dançar a valsa - disse ela com sedução. - Há muito poucos homens que saibarn dançá-la, mas tu estiveste em Waterloo e em Wellington, não estiveste?

Contendo uma asneira, Martin pensou que Serena Monckton não mudara. Era uma desavergonhada. Não tinha nenhum reparo em se oferecer daquela maneira... a ele, nem mais nem menos. Abriu a boca para a pôr no seu lugar, mas de repente, pensou que talvez fosse uma boa oportunidade de demonstrar a outra desavergonhada como se sentia um homem quando era rejeitado. A mulher que passara a tarde na sua cama e depois não o aceitara.

Martin deu uma vista de olhos ao salão e localizou Helen sentada junto a Dorothea. Então, olhou para o rosto de Serena, que tinha um sorriso falso nos lábios.

- Penso que está prestes a começar uma valsa. Queres dançar?

Não teve de perguntar duas vezes. No entanto, assim que deu dois passos arrependeu-se. Serena não era a mulher que ele queria ter nos braços.

com um mau pressentimento, levantou a cabeça para olhar para Helen. Ela ainda não os vira, mas muitas outras pessoas já. Ele tinha por hábito dançar só com Helen Walford. A sua repentina aparição no baile com outra mulher, ainda por cima Serena Monckton, enquanto Helen estava sentada sem dançar, era um insulto evidente.

Infelizmente, Martin só se deu conta disso quando já era demasiado tarde. A enormidade do seu erro tornou-se patente quando olhou novamente para Helen. Ela já os vira e a expressão dos seus olhos verdes chegou à alma de Martin.

Bruscamente, ela baixou o olhar e disse qualquer coisa a Dorothea, que também estava a olhar para ele com uma fúria que não era indisfarçável.

Martin sentiu um arrepio. Dançava automaticamente, sem prestar atenção aos comentários de Serena. Quando passaram perto da cadeira onde Helen estivera sentada, ele viu que estava vazia. Da segunda vez que passaram por ali, Dorothea voltara sozinha e estava a atirar-lhe adagas com o olhar.

Helen fora-se embora.

Por causa dele. Ele fizera-lhe mal e ela fugira.

Aquilo era algo que ela nunca teria feito, sobretudo tendo em conta que não gostava nada de ser alvo de comentários maldosos.

Assim que a valsa terminou, Martin, com o coração ferido, fez uma vénia a Serena, deixando-a a um lado da pista, despediu-se dos seus anfitriões e foi-se embora.

Damian viu tudo do seu canto e ficou feliz. Aquilo estava cada vez melhor. Depois daquela cena, não havia nenhuma possibilidade de as coisas se arranjarem entre o seu irmão e lady Walford. Sobretudo depois de, naquela noite, ele semear a sua história em solo fértil.

Todo o salão de baile se deu conta do incidente.

Lady Rochester ainda estava a tentar aparentar que Martin mostrara um interesse real por ela. Ninguém acreditava, claro.

Damian aproximou-se dela e esperou que terminasse de falar com um libertino de idade avançada. Então, cumprimentou-a.

- Foi muito amável da sua parte dar uma mão a Martin.

Serena olhou para ele com altivez.

- O que quer dizer, senhor?

Aquele tom desagradável fez aflorar os piores defeitos de Damian.

- Oh, pensei que soubesse! - viu como lady Rochester corava. - Quem sabe? - prosseguiu, antes que ela explodisse. - Talvez Martin lhe agradeça de uma forma que a senhora aprecie, agora que terminou a sua relação com lady Walford e já não pode desfrutar dos seus encantos.

Serena arregalou os olhos perante o significado daquelas palavras.

- Quer dizer que... - a sua voz era um sussurro incrédulo.

Damian fingiu surpreender-se.

- Não sabia? Eu pensava que toda a gente sabia - encolheu os ombros. - bom, mais tarde ou mais cedo descobririam.

Sem mais delongas, Damian afastou-se, com a certeza de ter advertido lady Rochester também. Sim, porque se Martin era capaz de seduzir e arruinar uma mulher como lady Walford, com ela seria muito mais fácil.

Serena sorriu com frieza. Tinha a oportunidade de fazer mal a um homem que preferira ir para as colônias a casar-se com ela. Embora o tempo tivesse sarado o seu orgulho ferido, não via nenhuma razão para não espalhar aquele boato delicioso.

Animada por um agradável sentimento de maldade, misturou-se com a multidão, pensando como poderia fazê-lo.

Martin entrou na biblioteca, serviu-se de uma boa dose de conhaque e sentou-se à lareira.

Porquê? Como pudera ele cometer semelhante erro? Permitira que as suas emoções assumissem o controlo dos seus actos. Se aquilo era o que amor fazia a um homem, não tinha acerteza de querer senti-lo.

Com um gemido de frustração, pousou o copo na mesinha e cobriu a cara com as mãos. Raios! Magoara Helen quando a única coisa que queria era fazê-la feliz. Em vez disso, só conseguira entristecê-los a ambos. Cada vez sentia um desejo mais forte de a sua casa e bater à porta até ela o deixar entrar.

A contragosto, Martin controlou aquele impulso. Sabia perfeitamente que aquilo só pioraria as coisas.

O melhor que podia fazer, enquanto não ultrapassasse a fúria e a confusão, era afastar-se durante alguns dias.

O seu agente de Merton escrevera-lhe, pedindo-lhe que fosse a casa, e os decoradores estavam lá, tornando o seu sonho realidade. Tinha de ir ver como estavam a progredir as obras. Talvez a paz de Hermitage o ajudasse a resolver as coisas, a decidir como agir.

Após tomar aquela decisão, levantou-se da cadeira e esvaziou o copo. Então, com os dentes cerrados, saiu da sala.

Passados dois dias, Helen teve pela primeira vez a sensação de que algo não estava bem, no seu primeiro passeio pelo parque com Cecily Fanswahe.

Felizmente, Cecily não fora àquele baile, pois estava doente. Como sempre, ela tagarelava com entusiasmo, dando a Helen a possibilidade de descansar a sua mente esgotada.

Estava exausta e deprimida. Ver Martin a dançar com lady Rochester causara-lhe mais dor de que estava preparada para suportar. Pensara que seria capaz de agüentar uma visão como aquela. No entanto, naquela noite os seus nervos não tinham permitido que o fizesse. O comportamento de Martin e a sua própria reacção tinham provocado comentários, ela sabia. Como conseqüência, quando detectou os primeiros sussurros, não lhes deu muita importância.

Porém, quando Cecily e ela percorreram metade do circuito, Helen já sabia que havia algo mais grave. A frieza que havia no ambiente era quase palpável. Algumas das damas com filhas casadoiras não lhe sorriram.

Foi Ferdie quem confirmou as suas suspeitas.

Cumprimentou-as de um lado do caminho de carruagens, no ponto mais concorrido do parque. Quando a carruagem se deteve, ele abriu a porta.

- Tenho que falar contigo - disse a Helen. Acenou a Cecily e entrou na carruagem.

Acho melhor levar Helen a casa, Cecily. Preciso de falar com ela a sós. Cecily franziu o sobrolho.

- Mas... acabamos de chegar!

- Não importa - declarou Ferdie com um tom firme.

- Está bem - Cecily rendeu-se e deu ao cocheiro instruções para regressar.

Durante o caminho, Ferdie falou sobre trivialidades, mas, apesar disso, Helen sentia-se cada vez pior. Tinha um aperto no peito que tentou aliviar até, pelo menos, saber o que tinha Ferdie para lhe dizer.

Cecily deixou-os em Half Moon Street e despediu-se deles.

Quando entraram em casa, Helen encontrou uma visita à sua espera. Era Dorothea, que andava de um lado para o outro pela sala.

- Helen, ainda bem que chegaste! Esperava que não demorasses muito tempo.

Ferdie entrou atrás de Helen e Dorothea cumprimentou-o, aliviada.

- Tu és a pessoa de que precisamos. Helen, sentando-se numa cadeira, perguntou com um suspiro:

- Importavam-se de me dizer o que está a acontecer? - tinha um pressentimento muito desagradável, mas queria ouvi-lo claramente.

Ambos os visitantes ficaram calados, olhando para ela. Então, olharam um para o outro.

- É a respeito de Martin Willesden? Dorothea sentou-se numa cadeira.

- Sim - respondeu, esperando até Ferdie também se sentar para prosseguir: - Há rumores. Talvez seja natural, depois do baile dos Barham. Só que o que eu ouvi esta manhã parece mais do que pode desculpar-se - disse, olhando interrogativamente para a sua amiga.

Helen também olhou para ela durante alguns instantes e, depois, dirigiu-se a Ferdie.

- Tu também ouviste alguma coisa? Ferdie, extremamente sério, assentiu. -NoWhite's.

Helen fechou os olhos. No White's... aquilo significava que toda a cidade sabia.

- A história sugere que... que foste amante de Martin Willesden - Dorothea esperou, mas Helen não abriu os olhos. - É verdade? - perguntou com suavidade.

- Isso teria alguma importância? - perguntou Helen, por sua vez, com um tom de voz cansado, arregalando os olhos e arqueando as sobrancelhas com desprezo.

Foi Ferdie quem respondeu:

- Receio que não. O que precisamos de fazer agora é de decidir como pôr fim aos boatos.

- Sim - declarou Dorothea. - Helen, tens de enfrentar isto. Marc está furioso. Afinal de contas, tu conheceste Martin na nossa casa. Eu tive de o convencer a não fazer nada antes de eu vir falar contigo.

Helen ficou espantada. Hazelmer contra Martin? Na verdade, não sabia quem ganharia semelhante confronto. Ambos eram homens muito poderosos, mas Hazelmere tinha uma posição social segura, além de ter Dorothea ao seu lado.

Helen pôs uma mão no braço da sua amiga e suplicou:

- Tens de me prometer que o convencerás a não tomar nenhuma atitude enquanto não me ouvir. Prometes-me isso?

com um olhar de preocupação nos olhos, Dorothea sorriu.

- Prometo-te que vou tentar, mas tu sabes tão bem como eu que há certos aspectos em que Martin não se deixa influenciar.

Aquilo era indiscutivelmente verdade. Helen assentiu, aceitando a oferta de Dorothea.

- Preciso de pensar.

- É melhor comportares-te normalmente disse Ferdie. - Merton terá que fazer o seu papel. Se nenhum dos dois se alterar, o boato acabará por morrer de forma natural. Helen assentiu.

- Sim, acho que tens razão - com um esforço evidente, sorriu aos seus amigos. - com amigos como vocês, tenho a certeza de que vou conseguir.

Dorothea levantou-se, sacudindo a saia.

- Deixo-te sozinha para poderes pensar. Se precisares de alguma coisa, avisa-me. Entretanto, nós faremos todos os possíveis para diminuir o interesse das pessoas.

Helen agradeceu-lhes e Ferdie também se levantou.

- Eu vou contigo - disse ele a Dorothea. Talvez seja bom eu falar com Hazelmere.

Quando os seus dois amigos se foram embora, Helen pôs-se a pensar, tentando descobrir o que acontecera. Como era possível que a história da sua tarde com Martin tivesse vindo a público? Ninguém a vira a sair da casa de Martin, graças ao seu cuidadoso mordomo. Contra as ordens do seu amo, Hillthorpe enviara-a para casa numa das carruagens de Merton sem brasão nas portas, de modo que ninguém podia ter adivinhado nada.

Seria possível que Martin tivesse espalhado o boato para lhe fazer mal? Tendo em consideração que ele pisara os seus sentimentos publicamente, dançando com lady Rochester à sua frente, Helen pensou que seria capaz de tudo. Teria ele querido privá-la da única coisa que possuía, a sua posição na sociedade?

Helen mordeu o lábio. O sentimento de traição ameaçava engoli-la, mas com a determinação de ver as coisas claramente, reflectiu durante longo momento.

Não podia acreditar que ele tivesse feito aquilo. Era possível que ele estivesse furioso, mas não acreditava que quisesse destruí-la tornando público o que tinham compartilhado em sua casa naquela tarde. Aquilo não era próprio de um senhor e, apesar da sua aparência de libertino, Martin Willesden era um cavalheiro.

Bastava recordar para se dar conta disso. Ele tinha ajudando-a muito, entre outras coisas, na sua pouco ortodoxa viagem para Londres. Um mulherengo sem escrúpulos teria aproveitado a oportunidade.

Helen corou ao recordar a sua noite em Cholderton. Não havia dúvida de que ele tivera todo o tipo de oportunidades.

Não. Não fora ele quem espalhara aquele boato. No entanto, a incerteza infligiu mais um golpe ao seu coração partido.

Passada uma hora, Helen chegou à conclusão de que tinha que ver Martin e falar com ele sobre o que podiam fazer. Afinal, ele também devia ter ouvido os boatos.

A contragosto, Helen levantou-se e dirigiu-se para a sua secretária. Rapidamente, escreveu uma carta ao conde de Merton.

A resposta chegou duas horas mais tarde.

O conde, escrevera o seu secretário, estava naquele momento no campo. Não sabia quando regressaria, mas não receberia a sua carta senão quando regressasse.

Helen leu a carta várias vezes. Por fim, amarrotou-a e atirou-a para a lareira. Então, subiu para o seu quarto com passo lento.

Deitou-se na cama, olhando fixamente para o tecto. Estava sozinha. Aquilo não era algo fora do comum na sua vida, mas daquela vez era muito pior. Sem se dar conta, habituara-se a ter Martin ao seu lado desde o seu primeiro encontro no bosque. No entanto, ele desaparecera no momento em que ela mais precisava da sua força.

O que podia fazer? Na ausência de Martin, não seria capaz de enfrentar os boatos, não poderia calá-los pelo simples facto de os negar.

Sem Martin, não poderia manter a cabeça erguida e... quem sabia quando ele regressaria?

Quais eram as alternativas? Se se retirasse da cidade durante o resto da temporada de eventos sociais, era muito provável que qualquer outro escândalo eclipsasse o seu. Sabia que Hazelmere não o esqueceria, pois isso eqüivaleria a admitir tacitamente que o boato tinha algum tipo de fundamento. Porém, ela não era nenhuma menina. Era uma viúva de vinte e seis anos.

O seu círculo social tendia a fazer vista grossa perante aqueles assuntos, desde que fossem resolvidos com discrição. Assim, o melhor que podia fazer para que voltassem a aceitá-la no futuro era partir para o campo.

Não tinha nenhuma dúvida que no ano seguinte poderia voltar para a cidade e unir-se à temporada como se nada tivesse acontecido.

Estava decidido: ia para o campo! O melhor lugar era Heliotrope Cottage, a única quinta que lhe restava, na Comualha.

A casa era muito pequena, mas era mais do que suficiente para ela e para Janet. Hazelmere fora sempre contra ela ficar lá, alegando que não tinha protecção masculina. Contudo, a Comualha ficava muito longe de Londres. Além disso, se estivesse isolada no campo, talvez o seu coração se curasse mais rápido.

Com um suspiro, Helen levantou-se da cama e tocou o sino. Se Janet fizesse as malas naquela noite, poderiam partir na manhã seguinte e afastar-se dos olhos cinzentos que a tinham enfeitiçado.

Helen decidiu não contar a ninguém o que pretendia fazer, para não ter que discutir. Ninguém se preocuparia ao saber que partira com Janet, que fechara a casa e que tirara a aldraba. Os seus melhores amigos respeitariam o seu desejo de privacidade. Decerto que poderia fazer uma visita a Dorothea, quando a sua amiga tivesse deixado a capital e partisse para festejar o Natal em Hazelmere House.

Respirando fundo, Helen tentou descontrair-se, esperando que o sono viesse e perguntando-se quanto tempo teria que passar para que aqueles olhos cinzentos se apagassem do seu pensamento.

 

Em Hermitage, Martin passeava pela nova estufa que mandara construir atrás do salão de baile, admirando os seus novos domínios. Tudo estava a correr conforme ele planeara.

Os decoradores ainda demorariam mais uma semana a terminar o seu trabalho. Os carpinteiros partiriam no dia seguinte. Um exército de jardineiros transformara o matagal selvagem num paraíso ao qual acedia pelo caminho largo, através das velhas portas de ferro forjado, limpas e pintadas de preto. Perante aquela visão, Joshua, que não parará de resmungar desde Londres, ficou boquiaberto.

Martin apoiou as mãos no parapeito da janela e respirou fundo o aroma da madeira nova e da relva recém-cortada. Hermitage voltara a ser um lugar apropriado para receber convidados e ser ocupado por ele e pela sua família.

Perante aquele pensamento, o seu estado de espírito piorou.

O seu êxito não fora completo. Antes de conhecer Helen Walford, reformar Hermitage fora o seu principal objectivo. No entanto, naquele momento a sua ambição ia muito além de restaurar a sua casa. Precisava de uma família.

Contudo, só havia uma mulher que pudesse imaginar diante da sua lareira. Não podia tirar da cabeça a imagem de Helen, com as chamas reflectidas no seu cabelo maravilhoso, com o seu filho nos braços.

De um simples objectivo, casar-se com Helen Walford tornara-se uma obsessão. Sabia que, se não se casasse com ela, não se casaria com ninguém. Não poderia concretizar o seu sonho de ter uma família que habitasse o seu lar.

Helen ia apanhar uma boa surpresa. Ele não ia render-se.

Martin sorriu. A vida de um cavalheiro rico e de boa família não ensinava precisamente a fazer sacrifícios. Não estava disposto a abandonar o seu sonho. Todavia, por muito decidido que estivesse, ainda tinha de descobrir como convencer Helen.

De repente, deu-se conta de que começava a entardecer e dirigiu-se para o quarto da sua mãe. Subiu as escadas de dois em dois degraus e bateu à porta do seu quarto. Quando ela respondeu que entrasse, sorriu com uma impaciência perversa e obedeceu.

Catherine Willesden ficou muito surpreendida naquela tarde, quando Martin foi ao seu quarto não para discutir, mas para conversar. Ao princípio, ficou espantada e, depois, ficou sem reacção.

Marin tinha um humor apurado, muito parecido com o do seu pai. Ela gostou muito mais daquela conversa do que estava disposta a admitir.

- Tenho uma surpresa para ti - anunciou Martin, sorrindo.

- Ah, sim? O quê? - perguntou Lady Catherine, fazendo um esforço por se manter impassível.

- Não posso dizer senão não seria uma surpresa - respondeu Martin.

- Meu prezado senhor, se pensas que vou jogar às adivinhas contigo, estás muito enganado.

- Claro que não! - exclamou ele, considerando que a mordacidade da sua mãe era bom sinal e desfrutando da possibilidade de gozar com ela. - Eu nunca me atreveria a jogar contigo, mãe.

- Ora! - foi a resposta instantânea da sua mãe.

- Estás a distrair-me da surpresa. Tens de descer as escadas comigo.

Lady Catherine franziu o sobrolho.

- Há dez anos que não desço as escadas, como tu bem sabes.

- Eu não sei nada disso. Se estavas bem para descer há seis semanas, deves estar bem agora, para veres o que quero mostrar-te - Martin observou como a sua mãe agarrava com muita dificuldade o seu xaile com os dedos.

- Oh! - exclamou lady Catherine. - Contaram-te!

- Sim - disse Martin, com um tom muito mais amável. - Mas não havia necessidade de veres tudo naquele estado - ele soubera que, depois da sua primeira visita, ela insistira para que a levassem ao rés-do-chão, para verificar o estado em que a casa se encontrava.

- Foi horrível - declarou lady Catherine, tremendo. - Nem sequer consegui reconhecer algumas das divisões.

A sua pena pela perda dos seus sonhos e das lembranças que tinham permanecido com ela durante tantos anos afectou o seu tom de voz.

- Mas isso já passou - Martin aproximou-se dela e pegou-lhe ao colo.

Lady Catherine soltou um grito e agarrou-se a ele, olhando para ele fixamente quando Martin sorriu.

Pensando que Helen pesava pelo menos o dobro da sua mãe, ele dirigiu-se para a porta. Então, olhou para a cabeça inclinada de Melissa.

- Melissa, queres vir? Hoje jantaremos lá em baixo. Podes vir connosco agora, se quiseres ver os trabalhos, ou podes descer depois, às seis horas, para a sala de jantar.

Melissa ficou a olhar para ele, boquiaberta. Martin pôs-se a caminhar novamente.

- Vamos jantar lá em baixo? - lady Catherine recuperou, por fim, a fala. - Eu janto sempre aqui em cima, numa bandeja.

- Isso acabou. Agora que temos um sala de jantar óptima, enquanto eu estiver aqui, pelo menos, terás que ocupar o teu lugar à mesa fez com que a sua voz soasse severa, como se estivesse a dar-lhe uma ordem.

Então, olhou de esguelha para a sua mãe. Ela não sabia o que dizer. Por um lado, não gostava de aceitar o que poderia ser a sua caridade. Por outro, desejava jantar à sua mesa novamente.

Martin sorriu e continuou a caminhar pelo corredor em direcção às escadas.

Catherine Willesden quase não pôde ver o novo mobiliário, porque tinha os olhos cheios de lágrimas. Nunca valorizara Martin como ele merecia. Sabia muito bem que nunca fora tão dócil como com os seus irmãos. Contudo, George arruinara a casa, ao passo que Martin lhe tinha devolvido todo o seu esplendor. Ela ficara com o coração partido quando, finalmente, descobrira tudo o que acontecera realmente. O senhor Matthews fora completamente sincero ao responder a todas as perguntas que ela lhe fizera. O seu filho agitara a sua varinha de condão e a casa estava quase melhor do que inicialmente.

Claro que não podia dizer-lho, pois o grande patife ficaria insuportável.

Quando chegaram ao fundo das escadas, ela pestanejou rapidamente. Martin sentou-a numa cadeira e ela aproveitou para alisar as saias, enquanto ele a contornava. De repente, a cadeira começou a mexer-se.

- Martin! - a condessa agarrou-se como pôde à cadeira.

O descarado do seu filho riu-se. Riu-se muito.

- Está tudo bem, mãe - Martin empurrou a cadeira suavemente. - É uma cadeira de rodas. Tem rodas para que possas deslocar-te, vês? parou e mostrou-lhas. - Vi-a em Londres e pensei que poderia ser-te útil.

- É possível - respondeu a sua mãe, tentando em vão que o seu tom de voz fosse tão sério como sempre.

Contudo, fracassou.

Martin levou-a para a sala de jantar com um grande sorriso de satisfação.

Passeou-a pelas divisões, explicando-lhe como iam ficar aquelas que ainda estavam por terminar. Para sua surpresa, ela não se opôs a nada do que ele decidira e até lhe deu algumas sugestões.

Às cinco horas, completamente satisfeitos um com o outro, foram vestir-se para o jantar.

Aquele jantar foi o primeiro que partilharam em treze anos. No entanto, não houve nenhuma tensão, além da criada por Melissa, que permaneceu calada durante toda a noite. Martin tentou inclui-la na conversa até que, por fim, a sua mãe lhe fez um gesto e abanou a cabeça.

Ao fim do jantar, lady Catherine pediu ao seu filho para a levar à biblioteca.

- Tenho de falar contigo.

Quando chegaram à divisão da casa onde o seu pai costumava sentar-se depois do jantar, Martin pôs a cadeira da sua mãe perto da lareira. Ela suspirou suavemente e começou a falar:

- Como já sabes, Martin, os meus amigos da cidade mantêm-me a par das novidades por carta.

Martin conteve o impulso de terminar rapidamente aquela conversa. Em vez disso, arqueou as sobrancelhas com frieza.

- A sério?

A condessa ficou rígida.

- Não precisas de te pôr na defensiva disse. - Só queria dizer-te que soube que tens grande interesse por Helen Walford. Toda a gente espera que lhe peças para se casar contigo. Como nunca foste tolo, suponho que isso significa que queres casar-te com ela. Não mencionei o assunto para te fazer nenhuma objecção, embora saiba que, se a fizesse, não me prestarias atenção. Eu lembro-me da história de lady Walford e conheci um pouco os seus pais. Pelo que ouvi dizer, é apropriada para ser a tua condessa.

Para espanto de Martin, lady Catherine fez uma pausa, com o sobrolho franzido, e acrescentou:

- Devo dizer que não te imagino casado com uma debutante. Provavelmente, estrangulava-la durante a lua-de-mel. Ou, mais provavelmente, deixava-a ao meu cuidado - condessa viúva olhou para o seu filho e viu nos seus olhos que estava a divertir-se. Semicerrou os olhos e prosseguiu: - O que me leva ao que queria dizer-te. Não sei em que estado se encontra Dower House, mas ficava-te muito agradecida se tratasses de tudo para que a empresa que restaurou Hermitage também a restaurasse.

Ao ver que Martin não fazia nenhum comentário, acrescentou:

- Eu pagaria as despesas, naturalmente.

- Naturalmente uma ova! - Martin pousou o seu copo de licor na mesa e inclinou-se para a frente, para que a sua mãe pudesse ver-lhe a cara. - Tu vives nesta casa há cinqüenta anos. Nem eu nem a minha esposa desejaríamos que te fosses embora daqui.

Durante um momento, a sua mãe ficou a olhar para ele fixamente, desejando aceitar a sua oferta. Porém, era demasiado orgulhosa para a aceitar por compaixão.

- Não sejas tolo. A tua mulher não quererá que eu e Melissa estejamos aqui em casa.

Martin riu-se e apoiou-se na cadeira.

- Tinha-me esquecido de Melissa - admitiu ele com os olhos brilhantes. - Quem sabe? Talvez Juno possa fazer com que fale mais.

- Quem? com um sorriso perante a confusão da sua mãe, Martin ignorou a pergunta.

- Asseguro-te de que Helen quererá que fiques. Suspeito que se darão às mil maravilhas e que eu terei que agüentar uma aliança vossa cada vez que quiser fazer algo pouco convencional. Nunca se sabe, talvez ela precise do teu apoio - ao ver que a sua mãe ainda não estava convencida, acrescentou, pensativo: - Além disso, terás de cuidar dos nossos filhos.

- Filhos? - a expressão surpreendida da sua mãe sugeriu-lhe que a sua imaginação ia mais longe do que ele queria.

- Ainda não. Por muito moderno que eu seja, acho melhor esperarmos até depois do casamento.

A sua mãe ficou muito aliviada.

- Agora, se já acabei com todas as tuas preocupações, vou levar-te ao teu quarto - Martin levantou-se e pegou na sua mãe ao colo.

Já estava a subir as escadas quando ela perguntou:

- Então, vais casar-te com Helen Walford? -Claro!

Mais tarde, quando já estava na biblioteca a tomar o seu vinho do Porto, as suas palavras repetiram-se na sua mente. Ele dissera a verdade. Só faltava convencer a noiva.

Acomodou-se na poltrona e esticou as pernas.

Não sabia por que ela recusara a sua proposta. Pelo menos, já sabia que a razão não era física. Devia ser algo muito mais simples, provavelmente, desconfiança dos homens. Depois do seu primeiro casamento era compreensível. bom, qualquer que fosse o problema, ele ia resolvê-lo.

Cada dia que passava sentia mais saudades dela, porque não havia nada mais importante para ele do que Helen Walford.

No dia seguinte voltaria para a cidade para falar com ela. Ia cortejá-la e conquistá-la. Seguidamente, trá-la-ia para casa.

Passados dois dias, ao meio-dia, Martin parava a carruagem diante da casa de Half Moon Street. Joshua saiu da parte de trás e pegou nas rédeas, enquanto ele caminhava para a porta.

- Não sei quanto tempo vou demorar. Leva os cavalos a dar um passeio, se for necessário.

Martin subiu os degraus.

Ela ia dizer que sim daquela vez. Ele não sairia dali enquanto não o fizesse.

Levantou a mão para agarrar na aldraba e ficou petrificado.

A aldraba não estava ali!

Helen saíra da cidade.

Bruscamente, Martin deu meia volta e caminhou para a carruagem novamente.

Surpreendido pelo regresso do seu amo, Joshua abriu a boca para falar, mas voltou a fechá-la. Em silêncio, entregou-lhe as rédeas dos cavalos e foi para a parte de trás da carruagem. Pela experiência que tinha, sabia que era melhor não perguntar nada ao conde quando estava furioso.

Martin conduziu a carruagem para casa e, quando chegou, fechou-se na biblioteca.

Porquê? Por que é que Helen se fora embora?

Os boatos depois do baile dos Barham não podiam ter sido assim tão maus. Era possível que ele tivesse cometido um grande erro, mas sabia que em Londres os boatos sobre aquele tipo de coisas duravam um ou dois dias, no máximo.

Então, por que se teria ido embora? Para o evitar?

Teria pensado que ia repetir a sua actuação com Serena, ou com qualquer outra mulher, e fazer com da sua vida um inferno? com um gemido de frustração, Martin abanou a cabeça. Não. Ela não podia acreditar que ele ia magoá-la novamente. Dado o grau de entendimento a que tinham chegado durante todas as horas que tinham estado juntos, ela saberia que se acalmaria depois daquilo, depois de ter visto o seu desgosto. Raios, ele queria casar-se com ela! Helen não podia acreditar que queria fazer-lhe mal. Ou podia?

Sentindo-se culpado, Martin passeou pelo quarto, pensando.

Não. Não podia ter fugido dele, dado que ele saíra da cidade. Ela devia ter sabido disso um ou dois dias depois, e duvidava que os seus amigos a tivessem deixado partir, portanto...

Por que se fora embora? Talvez a razão não tivesse nada a ver com a sua relação. Ela não tinha família directa e os seus amigos viviam em Londres. Talvez Dorothea estivesse doente e se tivessem retiraram para o campo. No entanto, ao recordar a encantadora mulher de Hazelmere da última vez que a vira, aquilo não lhe pareceu provável.

Ter-se-ia Helen visto obrigada a partir por alguma outra razão? Aquele pensamento fez com que Martin ficasse ainda mais nervoso. Passados alguns instantes, tocou o sininho.

Quando Hillthorpe apareceu, Martin pediu-lhe para chamar Joshua.

Alguns minutos mais tarde, uma voz tirou Martin dos seus pensamentos.

- Queria ver-me, milorde?

Martin levantou-se e aproximou-se de Joshua.

- Lembras-te do homem que te pedi para vigiares, Hedley Swayne? Uma vez mencionaste que te tornaste amigo do seu cocheiro, não?

Joshua encolheu os ombros.

- bom, amigos para beber nas tabernas, se me faço entender...

Martin sorriu.

- Isso é óptimo. Quero que vás vê-lo e que descubras o que puderes sobre as últimas façanhas do senhor Hedley. Sobretudo, se teve visitas ou se foi a algum lugar muito bem vestido... O seu cocheiro pode ter reparado nisso.

- Está bem, milorde.

- Quero saber o que Hedley Swayne fez durante esta semana e quero sabê-lo o quanto antes.

- Muito bem, milorde.

com uma vénia, Joshua foi-se embora.

O cocheiro voltou muito antes do que Martin esperava.

- Desapareceu. Fugiu.

- O quê? - Martin saltou da cadeira em que estava sentado. - Quando?

- Parece que partiu juntamente com os seus homens para a sua quinta, conforme me disse a sua governanta. Foram-se embora há dois dias.

- Dois dias? E ela disse-te porquê? Joshua abanou a cabeça, enquanto o seu

amo percorria a sala freneticamente. - Quer que me mantenha alerta para o caso de voltar?

Martin deteve-se, olhou para Joshua e abanou a cabeça.

- Tenho o desagradável pressentimento de que se esperarmos que volte, será demasiado tarde - dispensou Joshua e recomeçou a andar de um lado para o outro. Ajudava-o a pensar.

Não tinha por que haver nenhuma relação entre a partida de Helen e a de Hedley Swayne. Contudo, também não tinha por que não haver.

Martin amaldiçoou-se por não ter investigado a tentativa de seqüestro do senhor Swayne. A sua preocupação por conseguir que Helen aceitasse ser a sua esposa apagara aquele incidente da sua cabeça.

De repente, a lembrança do que acontecera foi eclipsada por outras lembranças de Helen durante a sua viagem de regresso.

Então, Martin percebeu que a única forma de esclarecer todas as suas dúvidas era ir perguntar a Hazelmere.

Rapidamente, dirigiu-se para a casa do seu amigo.

Para sua surpresa, embora Mytton fosse tão amável como sempre e fosse chamar imediatamente o seu amo à biblioteca, teve que esperar durante bastante tempo no hall. Finalmente, a porta da biblioteca abriu-se e Dorothea apareceu, com o bebê ao colo.

Se no baile dos Barbam ela lhe atirara adagas, naquela tarde atingiu-o com flechas e lanças.

Confuso, Martin pensou que devia estar morto.

com uma inclinação de cabeça e expressão fria, Dorothea deu a volta e começou a subir as escadas. A rigidez das suas costas demonstrava a sua desaprovação.

Martin não estava totalmente surpreendido pela sua atitude. Ao fim e ao cabo, ela era muito amiga de Helen. No entanto, sentiu-se como quando as senhoras tinham olhado para ele há treze anos.

Mytton aproximou-se dele.

- Sua senhoria vai recebê-lo agora, milorde.

Quando entrou na biblioteca, Martin encontrou Hazelmere ao pé da janela aberta à brisa fresca da manhã. A sua expressão tensa e austera advertiu-o de que estava a acontecer algo grave. Martin parou ao lado de uma cadeira e apoiou uma mão no encosto. Dedicou ao seu amigo um olhar frustrado e suspirou.

- O que foi que eu fiz agora?

Fez-se silêncio, enquanto Hazelmere assimilava a informação contida naquelas palavras. Então, as suas feições relaxaram.

- Não sabes? - perguntou.

- Além de perder a cabeça no baile dos Barham na outra noite, não penso ter infringido nenhuma das leis mais sagradas.

- Nem sequer antes do baile dos Barham? Martin rodeou a cadeira e sentou-se nela. -Oh!

- Exactamente - devagar, Hazelmere sentou-se em frente a ele. - Estou a ver que é verdade.

- Eu disse-te que ia curá-la, não? Hazelmere assentiu com uma expressão resignada.

- No entanto, não me passou pela cabeça que deixasses que se tornasse do domínio público.

- Do domínio público? - Martin levantou-se de um salto. - Raios partam! - gritou. Como é possível que se tenha sabido?

Hazelmere foi testemunha da agitação do seu amigo com satisfação evidente.

- Não acreditava que tu soubesses nada do assunto.

Ele falou com suavidade, mas Martin compreendeu tudo à primeira.

- É claro que não! Que raio... - Martin calou-se, estupefacto e pálido.

Lentamente, voltou a afundar-se na cadeira.

- Dorothea e todos os outros pensam que contei a alguém?

Hazelmere assentiu.

- A lady Rochester - especificou. - Foi ela quem pôs a circular o boato depois de dançar contigo em casa dos Barbam.

Martin resmungou e enterrou a cabeça entre as mãos. Como era possível que Serena tivesse descoberto? Então, lembrou-se de algo muito mais preocupante.

- Helen também pensa isso? Hazelmere franziu o sobrolho.

- Para ser sincero, não sei o que ela pensa. Não tive oportunidade de falar com ela. Desapareceu, saiu da cidade. Eu tinha a esperança de que tu soubesses onde está, mas é evidente que não sabes.

- Vim perguntar-te se tu sabias. Eu saí da cidade na manhã seguinte ao baile. O que aconteceu exactamente?

Hazelmere contou-lhe tudo.

- Então, Dorothea e Ferdie deixaram-na sozinha para pensar com clareza. Na manhã seguinte, tinha-se ido embora.

- Raios partam! - Martin levantou-se e começou a caminhar de um lado para o outro em frente à lareira. Obrigou-se a avaliar a situação com frieza. - com sorte, a situação não será irreversível. Quando nos casarmos, os boatos pararão.

- Sim - disse Hazelmere. - Peço desculpa pela minha curiosidade, mas quando é o casamento, Martin?

O olhar que Martin lhe dedicou estava carregado de impaciência e frustração.

- A grande desavergonhada disse-me que não queria casar comigo.

Os olhos castanhos do seu amigo arregalaram-se de surpresa.

- O que pretende ela? - perguntou finalmente.

- Não faço a menor idéia - murmurou Martin. - Mas quando lhe puser as mãos em cima, não a largarei enquanto não conseguir meter-lhe algum bom-senso na cabeça - cansado

de passear, voltou a sentar-se. - Sabes de ai- gum sítio aonde tenha podido ir?

- Estive a pensar... Não acredito que tenha ido para uma estalagem e sei que não foi para nenhuma das minhas propriedades. Penso que está em Heliotrope Cottage. Martin olhou para ele, confuso.

- Acho que te expliquei que nenhuma das suas propriedades se salvou das mãos do seu marido, mas Heliotrope Cottage foi considerado algo sagrado. É a única parte do patrimônio de Helen que continua a ser dela. É uma quinta muito pequena, na Comualha.

-NaComualha?

Ao ouvir a exclamação incrédula de Martin, Hazelmere pestanejou,

- Sim, na Comualha. Tu sabes, ao lado de Devon.

- Eu sei onde é a Comualha. O problema é que Hedley Swayne também sabe. Ele tem uma quinta lá.

Hazelmere estava confuso.

- Muita gente tem quintas na Comualha.

- Mas ninguém tentou raptar Helen, excepto ele.

-O quê?

- Da primeira vez que eu vi Helen - explicou Martin, - não foi na tua casa, mas num bosque de Somerset. Dois rufiões tinham-na raptado e estavam à espera que o seu cliente chegasse. Esse cliente era Hedley Swayne. Pelo menos, Helen pensava que era.

Hazelmere não entendia.

- Não faz sentido.

- Eu sei que não faz sentido - resmungou Martin.

- Todos vimos Swayne a rondar Helen, mas nunca me passou pela cabeça que ele tivesse esse tipo de intenções.

Martin abanou a cabeça.

- É evidente que tem algum motivo oculto, algo que não vemos. Seja o que for, prefiro que Helen esteja a salvo antes de ter de bater em Hedley Swayne para lhe sacar a resposta.

Hazelmere estava completamente de acordo com aquilo.

- Vais lá tu ou vou eu?

- Oh, eu you, se tu me deres a direcção. Estou decidido a ter uma longa conversa com a amiga da tua esposa. Depois disso, acho que vamos para Merton - Martin descontraiu-se um pouco, pela primeira vez naquela noite, perante a idéia de levar Helen para Hermitage.

Hazelmere levantou-se.

- Eu vou fazer-te um croqui. Não é fácil.

com o croqui no bolso, Martin pôs-se a caminho, depois de pedir ao seu amigo para falar com Dorothea sobre os seus olhares assassinos.

Assim que entrou em casa, Martin começou a dar instruções e ordens para que se preparasse tudo, enquanto ele metia algumas coisas numa mala de viagem. Não sabia que situação ia encontrar na Comualha, nem o que teria que fazer para convencer Helen a dizer "sim". Era melhor jogar pelo seguro assim que ela acedesse a casar-se com ele e fazer com que a cerimônia se celebrasse rapidamente.

Um sorriso irônico desenhou-se nos lábios de Martin. Terminou de fazer a mala e ensaiou mentalmente o seu pedido ao bispo de Winchester, um amigo do seu pai que teria muito gosto em envolver um bon vivant como ele nas redes do sagrado casamento.

A cama do Four Swams não era confortável. Martin esticou-se e fechou os olhos. Aquele dia fora muito atribulado.

Primeiro, a sua chegada a Londres, cheio de planos para Juno, que tinham ido por água abaixo perante a sua ausência. Em seguida, a sua conversa com Hazelmere e os preparativos para a viagem.

Como era o dia de folga do seu secretário, ele tratara da correspondência e, entre as cartas, encontrara a de Helen, bem como a resposta sucinta do seu secretário. Ao princípio, ficara abatido ao pensar que ela lhe pedira ajuda e que ele não estava ali. Contudo, também pensara que, apesar de ele ter ferido os seus sentimentos, ela não hesitara em chamar por ele.

Era evidente que pensara que, entre os dois, podiam ocultar a sua relação. Na verdade, não teria sido difícil. Bastaria terem continuado a comportar-se como se nada tivesse acontecido entre eles para que as pessoas perdessem o interesse. O mais importante era que se lhe pedira ajuda, era porque estava preparada para o ver, para falar novamente com ele. E aquilo era muito animador.

Martin suspirou e endireitou os ombros. Parecia que as coisas estavam a melhorar, embora ainda faltassem dois dias para chegar a Heliotrope Cottage.

Tinha dois dias para preparar as suas desculpas e aperfeiçoar o seu novo pedido de casamento, enquanto conduzia a carruagem.

Ainda não conseguira compreender como se soubera que os dois tinham passado a tarde juntos. No entanto, reconhecia que o escândalo lhe proporcionava uma arma adicional. Teria de a usar com cuidado, claro, e só se Helen ainda se mostrasse reticente. Nenhuma mulher gostava que a obrigassem a decidir-se e ninguém sabia disso melhor do que ele, mas, fosse como fosse, teria de transmitir ao seu amor a idéia de que o casamento era a melhor solução, a mais aceitável pela sociedade.

Também ainda não sabia por que ela o rejeitara. Se era simplesmente por receio de se casar novamente, o único modo de a convencer que lhe ocorria era casar-se com ela para lhe demonstrar como estava enganada. Um pouco de persuasão seria desculpável naquelas circunstâncias, com certeza.

Ele queria casar-se com Helen Walford e ia fazê-lo. Afinal de contas, também era o melhor para ela.

O luar entrava pela janela aberta e uma brisa suave refrescava o quarto. Por fim, Martin adormeceu. Sonhou com a última cama de estalagem em que dormira e com a sua acompanhante.

 

Helen estava a amassar pão, enquanto Janet voltava do mercado da aldeia, a um quilômetro da casa.

Nunca cozinhara, além das tortas que fizera com a ajuda de Martin num palheiro, há alguns meses.

Ao pensar nele, os seus olhos encheram-se de lágrimas. Zangada, pestanejou rapidamente. Desde que chegara de Londres que passava os dias a chorar. Tentara controlar as suas emoções, mas não conseguira.

Cerrou os dentes e enterrou as duas mãos na massa. Não entendia por que estava tão pegajosa. Devia ter-lhe deitado demasiada água.

Estava a acrescentar-lhe um pouco mais de farinha quando ouviu o relincho de cavalos. Ficou petrificada e com o coração acelerado.

A sua casa ficava ao fundo de um caminho. Por ali não passavam carruagens. Quem teria ido visitá-la? Então, ouviu uma voz a dar ordens e soube que não era o conde de Merton.

A desilusão intensificou a sua falta de esperança. Quando alguém bateu à porta, Helen nem sequer tirou as mãos da massa, dizendo "entre" no tom mais agradável que pôde.

Para sua surpresa, era Hedley Swayne.

-LaífyWalford?

Helen conteve um suspiro. A hospitalidade do campo requeria que pelo menos lhe oferecesse um refresco.

- Entre, senhor Hedley. Não esperava ver ninguém de Londres por aqui. A que devo o prazer da sua visita?

- Querida senhora - Hedley Swayne fez uma vénia efusiva. - É só uma visita de vizinhos quando Helen olhou para ele, confusa, acrescentou: - Eu sou o dono de Creachley Manor.

Creachley Manor? Helen pestanejou. Se aquilo era verdade, aquele homem era o seu vizinho mais próximo! As suas terras faziam fronteira com as de Heliotrope Cottage.

- Ah! - exclamou ela. - Que atencioso da sua parte - apontou para uma cadeira com as mãos sujas de massa e observou como Hedley se sentava, com muito cuidado para não enrugar a sua labita. Ela estava preocupada com aquela visita, pois não confiava na desculpa que ele lhe dera. - Como soube que eu estava aqui?

Durante um instante, Hedley ficou sem saber o que dizer.

- Eh... eh... ouvi dizer na aldeia. Sabe a que me refiro.

Helen inclinou a cabeça com cortesia. Ela vivera numa aldeia durante toda a sua vida e sabia perfeitamente o que ele queria dizer, mas, embora com freqüência as notícias se espalhassem depressa, daquela vez era impossível que isso tivesse acontecido.

Janet e ela tinham chegado tarde, na noite anterior. Os cavalariços e o cocheiro tinham regressado a Londres imediatamente. Aquele dia era o primeiro que passavam ali, portanto ninguém podia saber da sua presença na aldeia, a menos que tivesse visto Janet no mercado. Hedley Swayne estava a mentir, mas com que propósito?

- Gostaria de tomar um chá, senhor? Hedley pareceu um pouco desconfortável

perante a sua oferta. Pousou o olhar num pequeno decanter que estava em cima da bancada da cozinha e Helen reparou que a idéia de tomar um chá não lhe agradava.

- Talvez prefira um pouco de vinho fresco.

Swayne aceitou de boa vontade. Agradecendo em silêncio à sua cozinheira de Londres, que incluíra uma garrafa de vinho nas provisões, Helen levantou as mãos do alguidar onde estava a trabalhar a massa e olhou para elas, transtornada.

- Eh... Quer dizer-me onde estão os copos?

Espantada por aquela mostra de boa disposição, Helen indicou um armário a Swayne. Enquanto observava o seu visitante, tentava compreender o que teria ido fazer ali. Qual seria o seu objectivo? O seu fato era tão formal e pomposo como sempre. Ou talvez mais, como se tivesse querido impressioná-la, reflectiu Helen. Infelizmente, naquele cenário campestre, a única coisa que conseguia era estar deslocado.

Ele serviu-se de uma generosa quantidade de vinho e voltou para a sua cadeira.

- Tenho que dizer, lady Walford, que é um prazer ver uma mulher como a senhora a fazer tarefas tão femininas.

Helen olhou para ele com cautela. A sua atitude era a de um homem satisfeito, presunçoso, como se tivesse resolvido algum problema insolúvel e estivesse desejoso de cobrar o preço. A insegurança de Helen aumentou, mas limitou-se a assentír sem saber o que dizer.

Por sorte, Hedley falava pelos cotovelos. Ao princípio, ela pensou que a sua conversa não tinha fim, mas à medida que ele prosseguia com os seus mexericos sobre a alta sociedade, começou a perceber as suas intenções. Todos os comentários estavam relacionados com algum escândalo recente e com o facto de terem afectado negativamente as possibilidades de se casarem as mulheres que se tinham visto envolvidas neles.

Ela fez os comentários oportunos no momento oportuno. Hedley Swayne não precisava de mais nada para prosseguir, enquanto Helen se perguntava se estaria certa em relação a onde ele queria chegar. Era o que ela suspeitava.

- Na verdade - disse ele, fazendo uma pausa para tomar um gole de vinho, - eu saí da capital há seis dias. A Little Season é muito cansativa, não acha?

Helen murmurou algo apropriado.

- Além disso - acrescentou Hedley, examinando as unhas, - corria um boato muito penoso.

"Aquilo", pensou Helen, "era suficiente".

- A sério? - perguntou com toda a frieza que pôde, mas para seu desgosto teve o efeito contrário.

- Minha querida lady Walford - Hedley Swayne levantou-se e aproximou-se dela.

Helen arregalou os olhos quando o viu a pousar o seu copo em cima da mesa. Ficou paralisada ao ver que ele se aproximava com os braços abertos, como se quisesse abraça-la. Quando reparou que lhe tocava, Helen voltou a si.

- Senhor Swayne! - exclamou, levantando as mãos para o afastar.

Para sua surpresa, ele deu um salto para trás, como se estivesse a ameaçá-lo com urna tocha acesa. Então, deu-se conta de que tinha as mãos cobertas de massa. Ao ver como Swayne olhava para o seu fato impecável, Helen teve que conter uma gargalhada. com determinação, voltou a enterrar as mãos na massa. Desde que os seus dedos funcionassem como umas armas mortais, podia considerar-se a salvo.

- Senhor Swayne - disse ela, tentando acalmar-se, - não faço idéia dos boatos que ouviu, mas garanto-lhe que não tenho intenção de falar sobre eles.

Hedley Swayne franziu o sobrolho, claramente picado ao ver que a sua tentativa não fora bem-sucedida.

- Parece-me muito bem, querida senhora respondeu com irritação, - mas as pessoas falarão.

- Acredito -respondeu ela, desanimando-o.

- Mas digam o que disserem, não me diz respeito. Os boatos não são mais que simples boatos.

- Oh, sim! Mas este rumor é mais concreto do que outros - afirmou Hedley, olhando para a sua anfitriã. Ao ver a ira reflectida nos seus olhos, apressou-se a explicar: - Só que não foi isto que eu vim dizer-lhe, minha querida.

- Senhor Swayne - replicou Helen, cansada da sua companhia, - não acredito que queira ouvir nada do que tenha para me dizer sobre esse assunto ou sobre qualquer outro.

- Não se precipite, querida senhora. Sugiro-lhe que ouça o meu raciocínio antes de fazer julgamentos pouco acertados.

Helen cerrou os lábios e preparou-se para o ouvir.

Animado pelo seu silêncio, Hedley Swayne respirou fundo.

- Lamento ter que falar com clareza, senhora, mas a sua indiscrição recente com um nobre é do domínio público em Londres. Todos entendemos, é claro, que essa relação terminou - deu alguns passos para a porta da co261

zinha e depois voltou, olhando severamente para Helen. - Naturalmente, o que aconteceu deixou-a numa situação nada invejável. Assim, deve agradecer qualquer oferta que a reintegre na sociedade.

Helen, reprimindo o riso, não teve dificuldade em compreender a lógica daqueles comentários.

- Assim, minha querida lady Walford, aqui me vê, convertido no seu cavaleiro andante. Venho oferecer-lhe a protecção do meu nome.

Helen não tinha outro remédio senão recusar a sua oferta o mais amavelmente possível. Helen suspeitava que a motivação do senhor Swayne não era tão pura como ele pretendia, mas não tinha vontade de o enfrentar desnecessariamente. Ao fim e ao cabo, era seu vizinho.

- Senhor Swayne, valorizo muito sincera. mente a sua oferta, mas não tenho intenção de voltar a casar-me.

- Oh, não deve temer que eu faça valer os meus direitos conjugais, querida senhora. O que eu lhe ofereço é um casamento de conveniência. A senhora é viúva e eu... eu sou um homem da cidade. Tenho a certeza de que nos daremos optimamente. Não tem de se preocupar nesse sentido.

Sem saber, a sua declaração fizera aumentar a tristeza de Helen. Martin oferecera-lhe muitíssimo mais do que aquilo e ela tivera de o recusar. Que cruel era o destino, que lhe enviava o senhor Hedley Swayne com a sua proposta horrível, em vez do conde de Merton!

- Senhor Swayne, a sério...

- Não, não! Não se apresse. Pense nas vantagens. O nosso casamento poria fim a todos os boatos e a senhora poderia voltar para Londres imediatamente, antes de adoecer neste lugar.

- Eu gosto do campo.

- Ah, bem... Nesse caso, pode fixar a sua residência em Creachley. Não há nenhum problema. Eu não suporto este lugar, mas não há nenhuma necessidade de a senhora vir para a cidade se não o desejar.

Helen ergueu-se altivamente.

- Senhor Swayne, não posso nem quero aceitar a sua proposta. Por favor - disse, preparada para levantar as mãos e proteger-se da sua possível reacção, - não diga mais nada. Não tenho intenção de voltar a casar-me. A minha decisão é definitiva.

O mau humor reflectiu-se no rosto de Swayne.

- Mas... tem de se casar comigo! É uma questão de bom-senso. Merton não se casará, consigo. Arruinou a sua reputação e não lhe deixou outra opção senão casar-se. Devia casar-se comigo, devia!

A pouca contenção que Helen ainda tinha evaporou-se ao ouvir o seu tom petulante.

- Senhor Swayne, eu não sou obrigada a casar-me com ninguém!

Swayne correspondeu ao seu olhar beligerante.

De repente, ouviu-se o barulho de outra carruagem. Helen ficou sem ar, com os olhos fixos na porta.

Quando viu uma figura alta de ombros largos, não soube se devia sentir-se aliviada ou assustada. Deveria ter sabido que Martin iria procurá-la.

Ao passear o olhar pelo quarto, Martin deu-se conta de que interrompera uma discussão. Helen olhava para ele fixamente do outro lado da mesa de trabalho, com as mãos metidas num alguidar e com os caracóis despenteados a caírem na testa. Só de olhar para ela, Martin deu-se conta de que estava cansada e que não se cuidava como devia. Voltou a sentir a irritação que a sua fuga precipitada de Londres lhe causara. Porém, a sua preocupação mais imediata era libertá-la da presença de Helen Swayne.

Martin cumprimentou Helen inclinando a cabeça com frieza e entrou na cozinha. Seguidamente, voltou-se para Hedley Swayne.

- Swayne - respondeu com unia saudação seca à vénia nervosa que o homem lhe fez.

Pela expressão da sua cara, Martin percebeu que ouvira o boato. Teria tido a ousadia de o mencionar a Helen? Martin pensou que quanto antes Hedley Swayne saísse dali, melhor. Sobretudo para Hedley Swayne.

- Estava prestes a partir, não, senhor Swayne? Swayne engoliu em seco e olhou nervosamente para Helen.

Helen reparou que olhava para ela, mas não lhe devolveu o olhar. Estava muito concentrada em memorizar a imagem que acreditava que nunca mais veria. A presença de Martin ali significava que teria que discutir com ele novamente, mas naquele preciso instante não lhe importava.

Só o som da sua voz profunda e grave fazia com que estremecesse. Percorreu com os olhos o seu corpo alto, os seus ombros e as suas pernas. Um caracol de cabelo preto caía-lhe na testa. Helen esquecera-se da excitação que a sua simples presença lhe produzia. Resolveu desfrutar do seu calor nem que só fosse por um momento.

- Realmente, não.

Aquela resposta chamou a atenção de Martin para o homem confuso que tinha à sua frente.

- O que quer dizer com isso?

O tom de voz de Martin prometia uma agressão e Helen deu-se conta do perigo. Santíssimo Sacramento, a última coisa de que ela precisava era de ter que salvar Hedley Swayne da fúria de Martin.

- O que quero dizer, milorde, é que antes de o senhor chegar, a senhora e eu estávamos no meio de uma negociação delicada, e não acho que seja educado da minha parte ir-me embora antes de chegarmos a um acordo.

Martin fez uma careta de desprezo e caminhou para o outro lado da mesa.

- Que tipo de "delicada negociação"? Helen desejou poder dar um pontapé a Swayne, mas estava muito longe. Como era de prever, o parvo ergueu o queixo e declarou:

- De facto, estávamos a falar sobre um assunto que não é do seu interesse, senhor. Sobre o casamento.

Martin arqueou as sobrancelhas.

- Estou a ver. O casamento de quem? Helen fechou os olhos.

- O... o nosso, claro! - exclamou Swayne, imensamente incomodado.

Todavia, antes que pudesse continuar, Martin, com a voz controlada, disse:

- Contrariamente ao que o senhor supõe, eu sou especialista em pedidos de casamento. Já pedi a lady Walford para se casar comigo e vim pedir-lho novamente, esperando obter uma... uma resposta definitiva.

Hedley Swayne ficou boquiaberto. Helen controlou o impulso de fechar os olhos e fingir que desmaiava. A ênfase subtil daquelas duas palavras não lhe escapou. Martin estava a dizer-lhe que aquela era a última vez, a sua última oportunidade de alcançar a felicidade. Ele olhava para ela com atenção e, quando ela olhou para ele, sorriu.

- Então, querida? - o seu olhar cinzento tornou-se brincalhão. - Agora que a nossa relação é do domínio público, parece que a única solução respeitável para ti é o casamento. A escolha é tua: ou condessa de Merton ou senhora Swayne.

Helen engoliu a sua exclamação. Aquilo era revoltante! Martin pusera-a entre a espada e a parede, dando-lhe a escolher entre aceitar um dos dois ou tornar-se uma desavergonhada e uma imprudente que estava disposta a infringir todas as regras da sociedade.

A sua resposta instintiva àquela manipulação foi recusar os dois. Martin, pelo menos, sabia que ela não tinha de se casar. Simplesmente, estava a manipular a situação para conseguir o seu objectivo. Abriu a boca para falar, mas outra voz mais grave adiantou-se:

- Antes de escolheres, querida, pensa bem. O olhar que Martin lhe dedicou deu-lhe a entender que não aceitaria que os recusasse a ambos.

Helen respirou fundo e tentou pensar. Hedley Swayne olhava para ela, fascinado. O facto de ela não ter aceitado imediatamente a proposta de Merton dava-lhe esperanças.

Se ela os recusasse teria que continuar a agüentar a pressão de ambos. Martin dissera que aquela era a sua última oportunidade, mas ela não acreditava. Ele estava decidido a tê-la como esposa. Por outro lado, Hedley ver-se-ia fortalecido se ela recusasse Martin e continuaria a insistir, tal como fizera durante o último ano.

- Preciso de pensar - murmurou.

O seu tom de voz atravessou Martin. Franziu o sobrolho. Por que tinha de pensar? Ele amava-a, ela amava-o, não havia nada que pensar!

Helen parecia tão cansada que Martin se sentiu tentado a pegar nela ao colo e a levá-la para a cama, para dormir... O que dizia bastante sobre o que o amor estava a fazer-lhe. Ela só tinha que dizer que sim e ele passaria o resto da sua vida a assegurar-se de que desfrutasse tanto do seu segundo casamento como sofrerá com o primeiro.

Esperou pela sua resposta, convencido de que seria a correcta.

Helen desejou que a terra se abrisse e a engolisse ou que Janet chegasse do mercado e pusesse fim àquele ponto morto, qualquer coisa para ela não ter que escolher. Não queria casar-se com Hedley Swayne, mas a cada minuto que passava, o destino parecia mais firme.

Não tinha a esperança de voltar a ver Martin, sobretudo depois da sua despedida brutal na sua casa e da bofetada sem mão que ele lhe dera no baile dos Barham. Tinham sido reacções normais num homem do seu temperamento. Contudo, ela acreditara que estava tudo acabado entre eles. Por que fora ele ali, então? Ele acabava de lhe dar a resposta com as suas palavras. Helen sentiu um aperto no coração. Ele fora ali por causa do escândalo.

Como pudera ela esquecer-se disso? Angustiada ao imaginar os seus sentimentos ao ver-se obrigado a renovar a sua oferta pela pressão da sociedade, enterrou as mãos na massa. Ele era o conde de Merton e esperava-se que agisse de acordo com as regras da sociedade. Assim, esperava-se que a pedisse em casamento. Todavia, se ela aceitasse, a mãe dele deserdá-lo-ia e ele ver-se-ia privado do seu sonho. Ela podia salvá-lo de ambas as coisas, tanto da ignomínia social como do castigo da sua mãe. Bastava casar-se com Hedley Swayne. Se já estivesse comprometida com ele, Martin não se veria obrigado a oferecer-lhe o seu nome para proteger a sua reputação. Seria livre de se casar com uma dama que a sua mãe aprovasse e alcançaria o seu objectivo mais prezado.

Martin mexeu-se e Helen deu-se conta de que estava a ficar sem tempo. A sua decisão deve ter-se reflectido nos seus olhos, porque, quando olhou para ele, viu que franzia o sobrolho e que o seu olhar se tornava tempestuoso.

- Já tomei a minha decisão - anunciou. Manteve os olhos fixos no rosto de Martin

por um instante e, depois, olhou para o senhor Swayne.

- Senhor Swayne, aceito a sua proposta. Hedley Swayne olhou para ela, espantado.

- Oh! Quero dizer... sim, claro! Ainda bem, querida.

O silêncio do outro lado da mesa era horrível.

Helen obrigou-se a olhar para lá. Martin estava estupefacto e imóvel. Durante um segundo, a dor atravessou o seu rosto e, depois, uma máscara de impassibilidade pôs fim a todas as revelações. com uma cortesia terrível, ele inclinou-se.

- Fizeste a tua escolha. Desejo-te felicidades, minha querida - olhou para ela, prosseguindo. - Espero que não te arrependas do que fizeste hoje.

Sem mais delongas, deu meia volta e foi-se embora.

Helen ficou ao lado da mesa, livrando-se lentamente da massa que tinha agarrada aos dedos. Não ouvia as exclamações de felicidade de Swayne, porque os seus ouvidos estavam concentrados em ouvir os últimos sons da carruagem de Martin. Quando o barulho desapareceu definitivamente à distância, sentou-se lentamente numa cadeira da cozinha.

Então, ao tomar consciência do que acabava de perder, apoiou os braços na mesa, enterrou a cabeça nas mãos e começou a chorar.

O crepitar das chamas chegava de trás, mas, embora estivesse gelado, Martin não fez menção de voltar a cadeira para o lume. Se o fizesse, veria a lareira e recordaria a mulher que deixara na Comualha.

Não podia acreditar que tivesse aceitado Hedley Swayne em vez de o aceitar a ele. Contudo, o pensamento que mais o magoava era saber que a empurrara a fazê-lo com o seu ultimato. Aquilo torturava-o. Queria gritar de raiva. Em vez disso, serviu-se de outra dose de brandy.

Perdera-a irremediavelmente. Nada mais lhe importava no mundo.

As portas da biblioteca abriram-se.

Martin olhou para lá, preparando um comentário mordaz para quem se atrevera a incomodá-lo no seu desespero. Os seus olhos, habituados à escuridão, não detectaram ninguém senão passados alguns segundos, quando uma cadeira de rodas entrou na biblioteca. A sua mãe fechou as portas e depois avançou para ele.

Contendo uma asneira, Martin levantou-se. A sua mãe descera para o ver. Quem lhe teria dito que ele chegara?

Martin atravessou a sala para se aproximar dela. Deu-lhe um beijo na mão e outro na face.

- Mama, não precisavas de descer. Eu ia visitar-te amanhã, a uma hora mais decente.

- Sim, tenho a certeza de que preferias que eu te deixasse beber em paz até ficares inconsciente. Só que antes que o faças, tenho de te dizer uma coisa.

Na escuridão, Martin franziu o sobrolho.

- Mama, não estou com disposição para ouvir sermões de nenhum tipo.

Catherine Willesden cerrou os dentes.

- É importante que ouças o quanto antes aquilo que eu tenho para te dizer - respondeu. Quando viu que o seu insuportável filho não fazia menção de se mexer, lady Catherine acrescentou:

- Vá lá, Martin! Não é possível que sejas tão tolo! E acende uma vela, por amor de Deus! Eu não gosto da escuridão. E, se não te importas, aproxima-me da lareira.

com um suspiro, Martin aceitou o inevitável e obedeceu. Não fazia idéia do que a sua mãe queria dizer-lhe, mas no seu estado, não queria discutir com ela. Acendeu a vela e empurrou a cadeira da sua mãe até estar perto da lareira.

Então, enquanto voltava a sentar-se na poltrona, reparou que a sua mãe estava pálida.

- Estás bem?

com um pequeno sobressalto, ela olhou para ele.

- Oh! Sim, estou muito bem, mas... Tenho muitas coisas na cabeça, ultimamente.

- Como por exemplo?

- Para começar, suponho que devia dizer-te que, no que se refere ao assunto de Serena Monckton, sei há muito tempo que a sua acusação era falsa.

Houve um silêncio.

- O meu pai sabia?

Catherine Willesden abanou a cabeça.

- Não, eu só soube a verdade porque Damian ma contou, depois de John morrer. Imagino que a maioria das pessoas já saiba a verdade.

Durante um longo momento, ela manteve o olhar fixo nos seus dedos cruzados. Então, quando viu que ele não fazia nenhum comentário, deixou que os seus olhos se perdessem entre as sombras.

Martin encolheu os ombros.

- Já não tem importância. É história. Lentamente, a sua mãe assentiu.

- Pensei em mandar buscar-te, mas, por tudo o que ouvia de ti, parecia que estavas a apreciar a vida que levavas e era provável que fizesses caso omisso da minha vontade, de qualquer forma.

Um riso irônico foi a resposta.

- Sim, é verdade - disse Martin, voltando a pegar no seu copo.

A condessa observou as chamas e decidiu prosseguir:

- Desde que voltaste e que te reintegraste na sociedade, os meus amigos contaram-me muitas coisas sobre ti, por carta. O que me preocupa é que, apesar de Damian viver em Grovesnor há quatro anos, nunca me contaram nada sobre ele. Isso levou-me a fazer algumas perguntas aos meus amigos mais próximos. As respostas não foram exactamente tranquilizadoras para uma mãe - calou-se e observou o seu filho entre as sombras. - É verdade que Damian é um dos patifes que freqüenta sítios pouco recomendáveis, bebendo e participando em todo o tipo de façanhas estúpidas que lhe propuserem?

Houve uma pausa muito longa antes de Martin responder:

- Tanto quanto eu sei, é.

Catherine Willesden voltou a olhar para as mãos e suspirou.

- Suponho que isso explique parte do que aconteceu. Não podia acreditar que um filho meu estivesse a comportar-se dessa forma, mas é evidente que o faz há bastante tempo.

- Em defesa do meu estimado irmão, sinto-me obrigado a dizer que não teve quem lhe servisse de exemplo. Mas, o que fez ele agora?

A pergunta fez com que a condessa ficasse um pouco envergonhada.

- Eu... eu penso que foi algo que eu disse o que lhe deu a idéia. Não deves culpá-lo inteiramente.

Lentamente, Martin endireitou-se no assento.

- Culpá-lo do quê?

A condessa pestanejou ao ouvir o seu tom de voz, mas resolveu explicar-lhe tudo da melhor forma possível. Se Martin quisesse renegá-los, que o fizesse.

- Como tu sabes - começou a dizer, - Damian foi sempre o meu filho preferido, principalmente porque era o mais novo de todos. E também - acrescentou, decidida a ser sincera,

- porque era mais meigo do que todos os outros, sobretudo tu.

- Eu sei.

- Sim, mas decerto não sabes que Damian pensou durante muito tempo que herdaria o título. Senão do George, pelo menos de ti. A lista das tuas aventuras passadas é como um desafio à morte. Além disso, nunca demonstraste o menor desejo de te casar. Naturalmente, Damian pensou que, com o tempo, Hermitage seria dele. Só que há algo ainda mais importante: Damian teve sempre o costume de me fazer visitas muito breves e, cada vez que faz algo que considera muito inteligente, conta-mo.

- Para se vangloriar, imagino.

- Sim. E eu devo confessar que lhe mencionei os planos que tinha para ti, antes de tu chegares - fez uma pausa e olhou para ele fixamente. - Lembras-te de quais eram?

- Querias casar-me com uma jovenzinha chata, acho.

- Sim, e pretendia obrigar-te a fazê-lo com a ameaça de te deserdar.

Martin assentiu.

- Sim, e depois?

Lady Catherine respirou fundo.

- Quando Damian viu que tu estavas muito afeiçoado a Helen Walford, repetiu-lhe a ameaça que eu te fiz. Ele não sabia que não era verdade - olhou para ele e engoliu em seco.

Martin já não estava enterrado no assento. A sua figura estava tensa e alerta.

- Estás a dizer que Damian fez com que Helen acreditasse que se se casasse comigo eu perderia toda a minha fortuna?

A energia que vibrava sob aquelas palavras fez com que a viúva ficasse imóvel. Só pôde assentir.

- Ah! - Martin saltou da poltrona e caminhou freneticamente pela biblioteca, sentindo que toda a sua indolência desaparecia. A meio caminho, voltou-se e aproximou-se da sua mãe. - Também foi Damian quem espalhou o rumor de que Helen passou uma tarde em Merton House?

A condessa viu que os seus olhos brilhavam perigosamente. Assentiu, fazendo uma última tentativa de defender o seu quarto filho:

- Sim, ele também admitiu isso. No entanto, acredito que ele pensava que estava a fazer-te um favor.

Martin dedicou-lhe um olhar incrédulo.

- Um favor?

- Acho que acreditou que tinhas acabado com lady Walford e quis proteger-te, destruindo a sua reputação, para que não pudesse aproximar-se mais de ti - ao ver que Martin ficava a olhar para ela, distraído, assentiu. Sim, eu sei, não é muito esperto. Além disso, não parece que saiba como deve comportar-se.

Martin resmungou:

- Onde está ele?

- Em casa dos Bascombe, perto de Dunster. Disse que voltaria dentro de alguns dias.

Martin assentiu.

- Eu falo com ele mais tarde.

Durante cinco minutos, Martin percorreu a sala com o sobrolho franzido, enquanto tentava resolver o quebra-cabeças das negativas de Helen. A bendita mulher fizera da sua vida um inferno, acreditando que estava a salvá-lo da ruína! com um gemido, recordou que lhe dissera que não se importava com a sua fortuna, só com ela. Passara uma rasteira a si próprio ao confessar-lhe aquilo com tanta paixão. Porém, por fim, conseguira esclarecer tudo.

Tinha que pôr Damian na linha, claro, mas primeiro tinha de tirar Helen da confusão em que se metera ao sacrificar-se por ele.

Naquele momento, Martin entendia perfeitamente as suas respostas negativas. Ela decidira salvá-lo e nada do que ele lhe dissera conseguira fazê-la mudar de idéias. Era gratificante, apesar de também ser frustrante.

Impaciente, Martin deteve-se em frente à lareira. Os seus desvarios sobre Hermitage e Merton House também tinham algo a ver com aquele assunto. Ele quisera compartilhar os seus sonhos com ela para que se desse conta que também fazia parte da sua vida. Será que ela não percebera que todos aqueles sonhos não estariam completos sem ela ali, no seu lugar, em frente à sua lareira? Como podia ter ela pensado que ele dava mais valor a uma casa do que a ela?

Evidentemente, a bela Juno precisava de uma lição sobre o significado do amor.

Martin olhou para os olhos cinzentos da sua mãe, que o observava com preocupação, e sorriu pela primeira vez naquele dia.

- Obrigado pela informação, mama. vou levar-te para o teu quarto.

- E depois?

- E depois vou para a cama. Assim que amanhecer, partirei para a Comualha.

- Comualha?

- Sim. Tenho que salvar uma deusa de um destino pior do que a morte.

A sua mãe olhou para ele sem perceber e Martin acrescentou:

- Casar-se com um dandi.

 

De madrugada, a névoa formava redemoinhos ao lado das janelas do quarto de Helen. Ela estava de pé em frente aos vidros, escovando o cabelo com relutância. Se fosse sensata, teria voltado para a cama, mas não conseguia dormir. Não fazia sentido estar ali deitada, imaginando como poderiam ter sido as coisas, tentando deter o futuro.

Não tinha escapatória. Por escolha própria, lançara os dados. No entanto, não esperara que lhe pedissem contas tão rapidamente.

Hedley era um modelo de contradições, mas aparentemente sabia organizar-se bem quando queria. E, decerto, na noite anterior quisera.

Helen mordeu o lábio com os olhos fixos na escuridão.

Ela permitira-se chorar depois de Martin se ir embora. Chorara durante horas até Janet voltar e abraçá-la, consolando-a e ajudando-a a acalmar-se. Só então se dera conta que Hedley Swayne continuava ali.

Quando ele lhe explicara todos os planos que fizera, ela dera-se conta de que ele se fora embora, mas que voltara para lhe contar os pormenores do seu casamento. Seria no dia seguinte.

Naquele dia. Naquela manhã, de facto.

com um suspiro, Helen aproximou-se do parapeito da janela e sentou-se no banco. Passara meia hora a discutir com Hedley, mas não recordava porquê. Martin fora-se embora, portanto não fazia diferença quando se casasse com Hedley. Na verdade, para os seus propósitos, talvez fosse melhor fazê-lo o quanto antes, tal como ele dissera. Uma vez que o nó estivesse feito, Martin estaria seguro para sempre.

Mais uma vez, Helen suspirou. Quase não tinha forças para se manter em pé e muito menos para pensar. Pensar era muito doloroso, porque a sua mente mostrava uma tendência deprimente a comparar o que poderia ter tido com Martin com aquilo que Hedley lhe oferecera. Ele deixara bem claro, com uma mostra de sinceridade notável, que considerava o seu casamento um acordo de conveniência e mais nada. Helen compreendera que só sentia indiferença por ela, mas que, por alguma razão que não conseguia compreender, estava empenhado em se casar com ela.

Assim, dentro de poucas horas, Helen teria de pronunciar as palavras que a condenariam ao purgatório pela segunda vez na vida.

Como uma grande capa cinzenta, sentiu o desespero a pesar nos ombros. Teria de ser corajosa na igreja, embora duvidasse que houvesse muita gente presente. Janet estaria lá, claro, bem como os criados de Hedley, mas ela não conhecia ninguém na aldeia. Nem sequer conhecia o padre.

Os seus olhos encheram-se de lágrimas que escorreram lentamente pelas suas faces e caíram no colo.

Enquanto os minutos passavam e o nevoeiro se dissipava, a nuvem de tristeza que lhe rodeava o coração tornava-se cada vez mais densa.

Finalmente, Janet apareceu em sua ajuda. A criada animou-a e ajudou-a a preparar-se. Helen só trouxera um vestido de seda dourado, com o decote um pouco baixo, mais apropriado para uma festa do que para um casamento. Também não tinha ramo, portanto decidiu que levaria uma pequena mala para ter algo nas mãos.

Hedley enviou-lhe uma carruagem.

Resignada ao seu destino, Helen deixou que a ajudassem a entrar. A viagem até à aldeia foi muito rápida.

Ao sair da carruagem em frente à porta da igreja, Helen ficou surpreendida por encontrar uma pequena multidão ansiosa por acontecimentos fora do comum.

Helen obrigou-se a sorrir. Aquelas pessoas podiam ser suas vizinhas para o resto da sua vida.

De repente, uma menina sardenta saiu do meio do grupo e aproximou-se dela com os olhos brilhantes para lhe oferecer um pequeno ramo de margaridas e lilases.

Por um instante, a determinação de Helen fraquejou. Cambaleou ligeiramente, mas a necessidade de aceitar o ramo e de agradecer à menina fez com que ultrapassasse o momento de perigo. Não ia pensar mais no que estava a perder. Não podia dar-se ao luxo de sonhar.

Sentiu-se aliviada quando entrou na igreja escura. Respirou fundo, vendo que a igreja minúscula estava cheia de gente. Provavelmente eram os criados de Hedley de Creachley Manor, pois não tinham ar de ser gente da aldeia, ao contrário das pessoas que estavam lá fora. Toda a gente se apercebeu de que ela entrara e voltou-se lentamente para olhar.

Com um suspiro, Helen levantou a cabeça e caminhou para o altar.

Martin fez estalar o chicote por cima das cabeças dos cavalos, mais para aliviar a sua frustração do que para obrigar os animais a correrem mais depressa. Iam a todo o galope e a carruagem balançava perigosamente. Joshua mantivera-se em silêncio desde que tinham atravessado os portões de Hermitage, antes do nascer do sol.

Semicerrando os olhos para se proteger da luz do sol, Martin fez uma curva a toda a velocidade. Dormira seis horas e a sua mente desanuviara-se bastante, pois o conhaque que bebera na noite anterior permitira-lhe dormir livre de preocupações. No entanto, ao acordar naquele dia, dera-se conta de que podia acontecer uma desgraça. O facto de saber as razões que Helen tivera para o rejeitar não significava que pudesse sentar-se comodamente e planear a forma de lhe garantir que era muito rico e que o seu sacrifício não era necessário.

Se não tivesse tanta experiência, acreditaria que, tendo a palavra de Helen de que se casaria com ele, Hedley Swayne não se apressaria a levá-la ao altar. No entanto, Martin Willesden não construíra a sua fortuna correndo riscos desnecessários. Por que se arriscaria, então, no que se referia ao seu futuro?

Além de tudo, sentia terror. O que aconteceria se tivesse subestimado Hedley Swayne? O que aconteceria se aquele indivíduo desejasse mesmo Helen? O que aconteceria se a obrigasse a casar-se rapidamente? E se, aproveitando-se do facto de ela estar comprometida com ele, exigisse o cumprimento dos seus deveres conjugais?

O chicote estalou novamente.

Martin cerrou os dentes. Tinha que encontrar Helen o quanto antes. Enquanto conduzia a carruagem para Saint Agnes, Martin reviu as possibilidades de se desfazer do senhor Swayne. Se fosse necessário, pagar-lhe-ia. Ao pensar nisso, Martin torceu o nariz, sorrindo com desaprovação. O seu pai pagara uma pequena fortuna para o livrar de Serena Monckton. Ele, por sua vez, estava a pensar em pagar uma fortuna ainda maior para livrar Helen da sua promessa ao senhor Swayne. Não havia dúvida de que aquela história devia ter uma função moralizante.

Era dia de mercado em Saint Agnes, algo que pôs à prova os nervos de Martin. com cuidado, conduziu a carruagem por entre a multidão, balbuciando asneiras. Quando, por fim, saíram da aldeia, dirigiram-se para Kelporth, que ficava perto da casa de Helen.

Joshua nunca pensara que ficasse feliz por voltar a ver aquele lugar. Porém, quando chegaram à entrada, soltou um suspiro de alívio. Olhou para as casinhas que havia de ambos os lados da estrada, com os jardins coloridos pelas cores do Outono. Um pouco mais à frente, à esquerda, havia um grupo de crianças a brincar ao lado de uma carruagem parada à porta do que parecia ser uma igreja.

Joshua empalideceu e avisou o seu amo:

- Senhor, não sei se isto será importante, mas é melhor olhar para a esquerda.

- O que foi? - perguntou Martin, olhando. Bruscamente, puxou as rédeas e deteve os

cavalos. Joshua quase caiu do seu assento. Assim que recuperou o equilíbrio, saltou e contornou a carruagem para ir segurar os cavalos.

Martin atirou-lhe as rédeas, mas, ao ver as crianças a brincarem ao lado da porta da igreja, ficou petrificado.

E se Helen já se tivesse casado?

Aquele pensamento fez com que se pusesse a correr e entrasse na igreja. Deteve-se à porta e algumas pessoas voltaram-se para olharem para ele.

Teria chegado demasiado tarde? O seu coração batia com tanta força que não conseguia ouvir. Cerrou os punhos, tentando acalmar-se. A pouco e pouco, recuperou a audição e franziu o sobrolho. Como não estava familiarizado com a linguagem das cerimônias matrimoniais, passou três minutos de desespero até se dar conta que ainda tinha uma oportunidade ao ouvir as palavras do padre:

- Se alguém conhecer algum impedimento para que este casamento se realize, que fale agora ou que se cale para sempre.

Martin não esperou mais.

- Eu conheço um impedimento! - exclamou, em voz alta, começando a andar pela nave central com os olhos fixos no objecto do seu desejo.

Ao ouvir o som da sua voz, totalmente inesperado, Helen ficou gelada. Bruscamente, perdeu a noção do espaço e do tempo. Ficou sem ar, mesmo antes de dar a volta e ver Martin, com os olhos brilhantes e ardentes.

Para seu espanto, ele agarrou-lhe no braço com força.

- Quero falar contigo.

Tê-la-ia puxado para fora da igreja, não fossem as objecções do padre e do noivo.

- Merton, ela acedeu a casar-se comigo!

- O que significa isto, senhor?

Martin olhou para o padre, franzindo o sobrolho, mas ele não se deixou intimidar.

- Isto é uma cerimônia matrimonial. Como se atreve a interrompê-la?

Observando a maravilhosa cara de Martin, Helen viu um brilho de cinismo nos seus olhos. Sentiu um aperto no coração. Oh, Santíssimo Sacramento! Ia comportar-se de uma forma horrível.

- O senhor disse que se alguém conhecesse algum impedimento devia falar. Simplesmente, estou a obedecer.

Imediatamente, o pastor assimilou a verdade daquilo e ficou estupefacto.

- Tem algum impedimento? - perguntou, com o olhar severo fixo no seu rosto. Então, virou-se para Hedley Swayne. - Eu sabia que não devia ter acedido a realizar um casamento tão precipitado - disse, fechando com força a sua pequena Bíblia.

- Não é precipitado! - Hedley estava vermelho e completamente agitado. - Pergunte-lhe qual é o impedimento. Isto não é mais do que uma palhaçada, porque ele sabe que ela acedeu a casar-se comigo!

Hedley olhou para Martin fixamente. Helen pensou que ia desmaiar, mas a mão que lhe aprisionava o braço não a soltou.

O padre olhou com insegurança para Hedley e, depois, para Martin.

- Importa-se de me dizer quais são as suas objecções?

Sem hesitar, Martin respondeu:

- Lady Walford aceitou o meu pedido de casamento.

Hedley ficou boquiaberto perante aquela mentira descarada. Helen decidiu que eram horas de fazer alguma coisa. Não podia permitir que Martin prescindisse dos seus sonhos, sobretudo depois da agonia pela qual ela passara para o salvar.

- Eu nunca acedi a casar-me consigo, milorde.

Martin olhou para ela, que pôde ver o brilho do amor nos seus olhos. Porém, no segundo seguinte, a sua expressão transformou-se noutra que só podia ser descrita como profana.

- Acedeste, sim, e sabes - declarou com um lento. - Quando estavas na cama comigo, naquela tarde.

Helen ficou boquiaberta.

Tinha as faces a arder. Como se atrevia ele a dizer aquilo, na igreja, com toda a paróquia como testemunha?

O padre deitou as mãos à cabeça, horrorizado.

- Eu devia saber que é melhor não ter nada a ver com as pessoas de Londres! - exclamou, acrescentando, furioso, com os olhos fixos em Hedley: - Nestas circunstâncias, tenho de vos pedir aos três para abandonarem a igreja imediatamente. E aconselho-vos a cuidarem das vossas almas - com um olhar assassino, voltou-se e entrou na sacristia.

A multidão entrou em erupção. Sob a tempestade de conversas e murmúrios, Martin arrastou Helen por uma das portas laterais e levou-a para o pequeno cemitério.

Por fim, Helen teve forças para puxar o braço e fazer com que ele se detivesse.

- Milorde! Isto é um dispa...

O resto da palavra foi sufocado por um beijo de Martin.

Helen lutou, tentando escapar da paixão, tentando negar a fome que devorava o seu pom-senso. Em resposta à sua luta inútil, Martin abraçou-a com mais força, apertando-a contra o seu peito até que ela, por fim, admitiu a derrota e derreteu-se contra ele.

Só quando sentiu que a sua resistência se esgotara é que Martin parou de a beijar. A sua Juno era uma deusa teimosa, como ele bem sabia.

- Não fales - disse, cobrindo-lhe os lábios com um dedo. - Ouve-me. A minha fortuna é minha. Não dependo da minha mãe, nem dos seus caprichos. Sou muito rico e tenho intenção de escolher a minha esposa. Percebido?

Helen estava boquiaberta. Quase não conseguia respirar.

- O teu irmão disse-me...

- Felizmente - interrompeu-a Martin, cerrando os dentes, - Damian estava enganado.

Helen detectou a sua ira, mas soube que não se dirigia a ela.

- Oh! - exclamou, tentando compreender o que acontecera.

- O que significa que vou casar-me contigo.

Aquela afirmação fez com que Helen erguesse o olhar para os olhos cinzentos de Martin. A sua expressão severa fez com que ela se limitasse a repetir:

-Oh!

- Sim, "oh! ". Já te pedi em casamento três vezes, o que é mais do que suficiente. Não há mais propostas. Tu vais casar-te comigo, ponto final!

Helen ficou a olhar para ele, contemplando ao mesmo tempo a luz ao fundo do túnel.

Ao ver que ela não dizia nada, Martin prosseguiu, muito sério:

- Se for necessário, fecho-te em Hermitage até aceitares - fez uma pausa e arqueou as sobrancelhas. - De facto, é uma idéia muito mais aliciante do que voltar a pedir-te para te casares comigo.

Helen corou e olhou para baixo. Estava a acontecer tudo muito depressa. Tinha a cabeça a andar à roda e o coração acelerado. Quase não conseguia pensar, porque a sua mente estava ocupada com a promessa de felicidade que aquelas palavras continham. Poderia ser verdade?

Martin examinou o seu rosto corado, consciente das emoções que estava a sentir. O alívio de a ter novamente nos seus braços foi dando lugar ao orgulho de saber que ela o amava tanto que aceitara casar-se com outro homem para salvaguardar os seus sonhos. Estava impaciente por a ter ao seu lado como sua esposa.

Martin estava prestes a dizer-lhe que entendia o seu comportamento estranho e que o respeitava, quando, pelo canto do olho, viu Hedley Swayne a sair pela porta lateral da igreja.

O dândi também os viu e virou-se, com o descontentamento reflectido na cara, enquanto caminhava entre as lápides.

A contragosto, Martin libertou Helen.

- Espera aqui. E não te mexas! - reforçou a sua ordem com um olhar e, depois, afastou-se dela para ir ter com Hedley Swayne.

Aquele homem tentara casar-se com Helen por todos os meios. Porquê? Martin não receava pela sua futura esposa, porque pretendia mantê-la afastada de qualquer perigo. No entanto, aquele interesse de Hedley Swayne era demasiado intrigante para não o investigar.

Hedley viu-o a aproximar-se e parou, mal-humorado e decepcionado.

- O que quer agora? - perguntou.

- Uma resposta. Por que queria casar-se com lady Walford?

Hedley fez uma cara de poucos amigos e, depois de uma pausa, encolheu os ombros.

- Oh, está bem! com as suas relações no mundo dos negócios, acabará por descobrir disse, olhando para Martin com resignação. A quinta dela está nos limites da minha propriedade. Eu sou o dono da maioria das minas de estanho que há nesta região, mas o filão mais puro que o meu pessoal encontrou está mesmo por baixo do seu terreno e não há outra forma de chegar até ele.

Durante um momento, Martin estudou-o. De repente, teve uma idéia.

- Tome - disse, tirando um cartão do bolso.

- Venha ver-me quando voltarmos à cidade. Poderemos falar sobre a renda da propriedade:

- A renda? - Hedley pegou no cartão com os olhos brilhantes de especulação.

Martin encolheu os ombros e sorriu perversamente.

- Aviso-o que terá de esperar alguns meses, mas, até lá, acho que é muito provável que Helen e eu tenhamos uma dívida consigo.

Despediu-se com uma inclinação de cabeça e voltou-se.

Helen estava sentada numa lápide de mármore, tentando visualizar o seu futuro. Podia acreditar naquilo que Martin lhe dissera ou ele estaria a dourar a pílula?

Ele queria casar-se com ela, disso não havia dúvida. Era um homem decidido que estava habituado a conseguir aquilo que queria. Seria realmente benéfico para ele casar-se com ela? E, ainda mais importante, como poderia ela saber?

Olhou para cima com o sobrolho franzido, quando ele se aproximou dela.

Martin não lhe fez caso. Estendeu as mãos para ela e ajudou-a a pôr-se de pé.

- Agora, bela Juno, são horas de nos irmos embora.

- Mas, Martin...

- vou deixar Joshua aqui para levar a tua criada e a bagagem... depois mando-lhes uma carruagem de Hermitage - Martin calou-se ao ver o seu vestido. - Onde está o teu casaco?

- Na carruagem. Martin...

- bom. Se partirmos agora, podemos estar em casa antes de anoitecer - conduziu-a para o portão do cemitério e foi buscar o seu casaco à carruagem de Swayne.

Seguidamente, pôs-lhe a mão no braço e levou-a para a sua carruagem.

Ao lado dele, Helen pensou que se ele continuasse a comportar-se assim, ela nunca conseguiria descobrir nada. Cada vez mais decidida a saber tudo, pôs-lhe as mãos nos braços quando ele a agarrou pela cintura para a acomodar no assento.

- Martin, não posso ir contigo desta forma. Martin suspirou.

- Podes, sim. É muito simples, mas se não te importas, querida, embora esteja disposto a falar sobre o nosso futuro juntos com todos os pormenores, preferiria não o fazer diante de tanta gente.

Então, chegou-se para trás, para deixar que Helen visse o pátio da igreja, cheio de caras curiosas.

Ela arregalou os olhos.

-Oh! -exclamou.

Então, ficou calada, enquanto Martin a acomodava no assento, e deslizou para o lado para fazer espaço para ele.

Martin deu instruções ao seu cocheiro e, passados dois minutos, já tinham saído de Kelporth e tinham deixado o passado para trás.

Helen respirou fundo, desfrutando do sentimento de ter escapado a um futuro de tristeza. Agora, tinha à sua frente um futuro excitante e sedutor, mas também desconhecido. Respirou fundo e olhou para o homem que estava ao seu lado, segurando as rédeas com as suas mãos fortes e o sobrolho ligeiramente franzido, talvez devido à concentração.

- Milorde... - começou a dizer.

- Martin - respondeu ele automaticamente. Apesar de decidida, ela cedeu:

- Martin, é verdade que o facto de te casares comigo não alterará o teu estado?

Ele dedicou-lhe um sorriso radiante.

- Espero que altere - respondeu ele e, perante a sua confusão, sorriu de orelha a orelha.

- Se te referes ao meu estatuto financeiro, não. Além de chegar a um acordo adequado e benéfico para ti, não afectará a minha fortuna - ao ver que ela ficava calada, acrescentou: - Eu já te tinha dito isto, lembras-te?

- Mas também disseste que eu tinha de aceitar casar-me contigo! - replicou Helen, um pouco indignada.

Ele sorriu sem sinal de arrependimento.

-Ah! bom, fi-lo por necessidade.

Helen conteve uma gargalhada maliciosa e olhou para o outro lado. Aquele homem era impossível e ela tinha a certeza de que ia continuar a sê-lo.

Portar-se-ia mal sempre que lhe conviesse. reparando os estragos causados com um sorriso perverso, certo de que o perdoariam.

Durante alguns quilômetros, ela deixou que o balanço rítmico da carruagem acalmasse a sua sensibilidade.

- Não queria que perdesses a tua casa disse, por fim, em voz muito baixa. Sem aquela informação, não tinha a certeza de que ele entendesse o seu comportamento.

- A minha casa e os meus sonhos de a restaurar? - perguntou Martin suavemente.

Helen assentiu.

- Apesar da venda que tu e o destino me puseram nos olhos, eu soube o que aconteceu. Vais ficar feliz por saber que os meus sonhos para Hermitage se tornaram realidade. No entanto, tenho um sonho muito mais importante que quero concretizar. Um sonho em que tu podes ajudar-me.

- Sim? - Helen olhou para ele sem saber se estava a falar a sério ou se estava a tentar animá-la. No entanto, os seus olhos cinzentos tinham um olhar claro e atento e a expressão da sua cara cortava-lhe a respiração.

- Sim - afirmou Martin, sorrindo antes de voltar a sua atenção para a estrada. - vou demorar algum tempo a consegui-lo, mas estou mais do que pronto para me dedicar por completo a ele.

- E qual é esse sonho?

Martin reflectiu por alguns instantes e, depois, abanou a cabeça.

- Acho melhor não te dizer, para já. Não enquanto não nos casarmos. De facto, é possível que nem depois te diga.

- Como queres que te ajude a concretizá-lo se não souber o que é?

- Se eu te disser do que se trata, propensa como tu és a dar-me aquilo que eu quero sem teres em conta os teus sentimentos, como saberei se estás a ajudar-me porque também o desejas ou por sacrifício?

Helen olhou para ele, confusa.

- Que sonho é esse, afinal?

Martin riu-se.

- Prometo-te que te direi se precisar da tua... da tua ajuda activa - com um esforço, manteve a expressão séria, apesar das imagens que a sua imaginação estava a conjurar. Felizmente, os cavalos deram-lhe a desculpa perfeita para manter os olhos fixos na estrada.

Enquanto avançavam, Helen pensou no que Martin lhe contara, mas não conseguiu descobrir nada. O que ele dissera sobre a sua casa livrara-a da sua maior preocupação, mas ainda, havia uma nuvem no horizonte.

- Fala-me da tua mãe - perguntou. - Vive em Hermitage, não é?

Martin contou-lhe muitas coisas sobre lady Catherine, fazendo com que Helen sentisse simpatia pela condessa viúva.

- E, apesar do que Damian te disse sobre o assunto, ela aprova firmemente o meu casamento contigo. De facto, foi ela quem me falou da interferência de Damian. Embora não me tenha dito nada, penso que ficou decepcionada quando viu que eu não saía de casa a correr para te ir buscar no momento em que ela me explicou tudo.

Helen considerou aquela uma reacção razoável.

Os seus pensamentos devem ter-se reflectido nos seus olhos, porque quando olhou para Martin, ele sorriu e acrescentou:

- Não o fiz porque, além do estado das estradas, estava um pouco... bêbedo. Por tua causa, poderia acrescentar.

Ao saber que ele bebera mais do que era normal por sua causa, Helen sentiu um calor na alma.

Embora Martin mantivesse os cavalos a galope e só parassem durante o tempo estritamente necessário para descansarem e comerem, ao chegarem a South Molton, o sol estava a pôr-se e Martin compreendeu que não conseguiriam chegar a Hermitage antes de anoitecer.

Então, pensou que havia algo que tinha de dizer à sua deusa.

- A propósito, Juno, nós casamo-nos ama- nhã.

Aquela afirmação fez com que Helen se só- bressaltasse. Amanhã? Ao olhar para Martin, viu-o completamente sério, com as sobrancelhas arqueadas com arrogância.

- Tenho uma licença especial, passada pelo próprio bispo de Winchester.

Helen endireitou-se no assento.

-Não achas que...

- Não - interrompeu-a ele. - Quero casar-me contigo o quanto antes, ou seja, amanhã.

Ao ver o seu queixo firme e a linha dos seus lábios, Helen conformou-se com a idéia de ter de caminhar de novo para o altar de manhã cedo. Porém, como começava a sentir que o seu pretendente estava a levar a sua avante em todos os aspectos, tentou aparentar calma e replicou:

- Talvez. No entanto, por muitos escândalos que tu tenhas feito para o conseguir, eu ainda não te disse que aceito casar-me contigo, Martin.

Durante um momento, ele não disse nada.

- Só tens de dizer "sim".

- Eu estaria muito mais sossegada se esperássemos até conhecer a tua mãe.

- Eu vou apresentar-vos esta noite e, se quiseres, podes passar a manhã com ela. Podemos casar-nos à tarde.

- Ainda não tenho vestido de noiva - comentou Helen, espantada ao dar-se conta de que era verdade. Para casar com Hedley Swayne qualquer roupa servia, mas não ia transformar-se na condessa de Merton com um vestido usado. - Não, Martin - disse, com um tom de voz firme. - Receio que tenhas de esperar pelo menos até eu ter um vestido decente. Senão, não me casarei contigo.

Então, ouviu um gemido de frustração.

Os cavalos pararam de repente e Martin abraçou-a e beijou-a com paixão.

- Mulher! - resmungou, quando levantou a cabeça. - Que outras torturas planeias para mim?

com um esforço enorme, Helen recuperou as suas faculdades. Que Deus a ajudasse se ia perder o bom-senso cada vez que Martin a beijasse! Ia ter problemas graves.

- Isto é uma tortura? - perguntou, fascinada. Aquela pergunta fez com que ele a beijasse novamente.

- Raios partam! Eu desejo-te, não vês? Via, sim, mas também queria recordar o seu

casamento. Passara muitos anos a tentar esquecer o primeiro. Além disso, um casamento apressado daria origem a boatos.

Assim, Helen empenhou-se em o convencer com um encanto irresistível.

- Só serão alguns dias. Uma semana, quanto muito - murmurou.

Martin suspirou, aborrecido, e soltou-a.

Helen viu como voltava a pegar nas rédeas e fazia com que os cavalos andassem. Então, ao ver a sua cara de desilusão, pensou em algo que pudesse tornar a espera mais atraente para ele. Recordou a sua casa e as suas esperanças de a reabrir aos amigos.

- Tu disseste-me que o teu pai recebia muitos convidados em Hermitage e que tu gostarias de fazer o mesmo.

Martin olhou para ela com o sobrolho franzido. -E?

- Então, por que não fazemos do nosso casamento um pretexto para abrires a casa aos amigos?

Durante um momento, Helen observou-o a pensar com os lábios franzidos.

- Não é má idéia - admitiu ele, olhando para ela. - Podemos convidar os Hazelmere, os Fanshawe, Acheson-Smythe e mais alguns.

Helen sorriu e agarrou-lhe no braço.

- Tenho a certeza de que virão.

Os olhos cinzentos brilharam ao olharem para ela. Então, Martin suspirou novamente e voltou a concentrar-se na estrada.

- Desde que tu digas "sim" no momento apropriado...

 

Hermitage era muito maior do que Helen esperava. Aproximaram-se da casa pela parte de trás e Martin deixou a carruagem no estábulo. A impressionante fachada principal, de janelas grandes, estava rodeada de relva, flores e castanheiros centenários de um lado. A parte traseira era ainda mais bonita, com uma estufa ao lado do salão de baile, cujos degraus conduziam a uma pequena fonte e a um jardim. Mais à frente havia um bosque.

De braço dado, Martin e Helen dirigiram-se para uma das portas laterais.

- Eu sei que devia levar-te pela porta principal, mas temos de andar muito - disse ele.

Ao observar a sua cara, Martin dera-se conta de que ela parecia cansada, algo que não era surpreendente, depois do dia que tivera.

Contudo, estava a sorrir e tinha os olhos brilhantes.

Martin deu-lhe uma palmadinha na mão.

- Deves querer descansar e arranjar-te para o jantar, não?

Helen deteve-se bruscamente ao dar-se conta de uma coisa. Olhou para o vestido, completamente enrugado.

- Oh, Martin! - exclamou com uma voz triste.

Rapidamente, Martin puxou-a e beijou-a. - A minha mãe dava-te as boas-vindas nem que estivesses enrolada em farrapos. Acalma-te - sorriu. - vou enviar-te Bender, a minha governanta. Tenho a certeza de que te ajudará.

Vinte minutos mais tarde, Helen agradeceu a Bender. A mulher, alta e com uma cara redonda, compreendera imediatamente o seu pedido silencioso. Enquanto ela lavava a cara e as mãos e escovava o cabelo para tirar o pó do caminho, o seu vestido fora sacudido e engomado. Nunca mais seria o mesmo, claro, mas pelo menos parecia respeitável.

Quando Martin bateu à porta do quarto para onde Bender a levara, Helen estava pronta para enfrentar o que, no fundo, considerava o obstáculo final para alcançar a felicidade.

A presença de Martin ao seu lado, imensamente reconfortante, ajudou-a a manter a cabeça erguida, enquanto atravessavam a soleira da sala.

Ao dar-se conta de que em breve seria a senhora daquilo tudo, a sua confiança diminuiu um pouco. No entanto, naquele momento, Martin já estava a falar, apresentando-a. Helen observou os olhos cinzentos que olhavam para ela, surpreendida.

O seu primeiro pensamento foi que mãe e filho eram muito parecidos, mas não demorou a dar-se conta de que também havia algumas diferenças. As sobrancelhas da mãe de Martin eram muito mais finas, embora as suas feições fossem igualmente arrogantes. Tinha o queixo e os lábios muito mais suaves, e os seus olhos cinzentos, surpreendentemente parecidos com os de Martin, careciam do brilho perverso dos dele.

Helen deu-se conta de que estava a olhar para ela fixamente. Fez uma vénia.

- É uma honra conhecê-la, senhora.

Catherine Willesden olhou para aquela beldade de cabelo dourado e o que viu não lhe desagradou. Helen era uma mulher mais alta do que era normal, de corpo bem proporcionado. A condessa compreendeu imediatamente por que chamara a atenção do seu filho. Além disso, parecia uma mulher capaz de criar bem os seus filhos e de gostar de o fazer, o que era ainda mais importante. Porém, o que conquistou definitivamente a condessa viúva foi o orgulho com que o seu filho olhava para ela. Aquilo, pensou, era a única coisa que contava.

- Acredita em mim quando digo que a honra é minha, querida - lady Catherine dedicou um olhar significativo ao seu filho antes de, com um esforço, levantar as mãos para pegar nos dedos frios de Helen.

Ao dar-se conta do problema da condessa, Helen agarrou-lhe com suavidade nas mãos e inclinou-se para lhe dar um beijo na face.

Não havia dúvida de que a futura condessa de Merton e a condessa viúva iam dar-se às mil maravilhas.

Satisfeito com a sua aceitação mútua, Martin retirou-se, deixando as duas mulheres à vontade para se conhecerem.

No entanto, depois de passar todo o jantar a ouvi-las a falar sobre os pormenores do casamento e do banquete, não agüentou mais.

- Mama, é tarde. vou levar-te para cima.

A sua mãe arregalou os olhos e abriu a boca para protestar, mas, quando viu o seu filho, fechou-a novamente.

- Está bem - acedeu, virando-se para Helen.

- Dorme bem, minha filha.

Martin levou a sua mãe para o quarto, e quando regressou, encontrou Helen a passear pelo hall, examinando os quadros pendurados nas paredes.

- Vamos dar um passeio. Ainda há luz. Helen sorriu e deu-lhe o braço. Por dentro, só sentia calma. A condessa não era nenhum monstro e era evidente que tinha um bom caracter. A casa de Martin estava além de todos os seus sonhos. Já se sentia apegada àquele lugar, embora não soubesse dizer se aquele sentimento era provocado pela casa ou se era um reflexo do seu amor por Martin.

Enquanto desciam do terraço para o caminho de cascalho, para irem para o jardim, Helen sentia-se mais feliz do que nunca.

- Podemos escrever aos Hazelmere e aos outros amanhã.

O hálito de Martin fez esvoaçar os cabelos de uma das suas têmporas. Helen sorriu e apoiou suavemente a face no seu ombro. Sem necessidade de palavras, ambos pararam ao lado da fonte. com delicadeza, Martin fez com que ela desse a volta, de modo que apoiasse os ombros no seu peito. Então, inclinou a cabeça e beijou-lhe um ombro.

Helen riu-se. Só um bon vivant muito experiente escolheria um jardim labiríntico para uma sedução. No entanto, não estava com disposição para o rejeitar, portanto deixou cair a cabeça para trás, oferecendo-lhe o pescoço. Nem sequer tentou conter o calafrio de prazer que a percorreu.

Um gemido fez com que Martin levantasse a cabeça. Examinou os arbustos com o olhar e, na escuridão, distinguiu a figura imóvel de um homem. Praguejando, soltou Helen e correu para os arbustos, atrás do indivíduo.

As pernas altas de Martin deram-lhe vantagem. Alcançou Damian antes que chegasse ao bosque, agarrando-o por um ombro. O seu irmão caiu no chão.

Durante um instante, Damian ficou imóvel, com os olhos fechados. Então, gemeu.

Completamente certo de que não lhe fizera mal, Martin ficou de pé ao lado dele, com as mãos nas ancas, e esperou que se levantasse. Quando se tornou evidente que Damian não ia levantar-se sem ajuda, Martin cerrou os dentes. Estava a inclinar-se quando Helen chegou a correr entre a escuridão e agarrou-o pelo braço.

Um só olhar para Damian confirmou as suspeitas de Helen.

- Não o mates! - exclamou.

Quando ficara sozinha ao pé da fonte, não conseguira reagir durante uns momentos, mas depois seguira-os, levantando as saias para saltar os arbustos e as sebes. Finalmente, encontrara Martin prestes a dar uma surra ao seu irmão e a única coisa que pensara era que devia detê-lo.

Para seu alívio, Martin endireitou-se e pegou-lhe nas mãos, observando-a com um olhar curioso.

- Não ia fazê-lo - respondeu suavemente. Mas nunca pensei que, dadas as circunstâncias, isso te incomodasse.

Quase sem respiração, Helen abanou a cabeça. Soubera da maldade de Damian pela sua própria mãe.

- Se fosse assim tão simples, eu dava-te a minha aprovação. Mas se o matasses serias julgado por assassinato e onde iria parar a minha felicidade?

- O quê? - perguntou Martin, sorrindo. Ela corou. - bom, não tem importância. Podes explicar-me isso depois - disse, ainda sorridente. Então, virou-se para o seu irmão. - Por amor de Deus, levanta-te! Eu não vou bater-te, embora mereças uma boa surra.

Damian sentou-se no chão. Martin olhou para ele, impaciente.

- Podes agradecer à mulher que vai ser a tua cunhada por te livrar do castigo que eu queria dar-te - ao ver que Damian não dizia nada, simplesmente os observava fixamente, acrescentou: - Vai para o teu quarto. Vemo-nos amanhã.

Martin puxou Helen para o seu lado e começou a andar para a casa. No entanto, voltou-se para fazer uma última advertência ao seu irmão:

- Se estás a planear uma partida repentina, tenho que te dizer que dei ordens para não te deixarem sair. Não até amanhã, quando partirás para Plymouth.

- Plymouth? - perguntou Damian, tremendo. - Não irei - declarou, mas Helen reparou que o seu tom de voz era fraco.

- Eu acho que vais - o tom de Martin, pelo contrário, era firme. - Eu e a mama decidimos que uma viagem às índias te faria tão bem como a mim - fez uma pausa antes de prosseguir com um tom muito mais pensativo: Acho que te será difícil viveres em Londres, quando se souber que te tirámos a mesada.

Apesar da escuridão, Helen viu Damian a empalidecer. Era evidente que a ameaça de Martin surtira efeito.

Martin não esperou para ver a reacção do seu irmão. Colocou a mão de Helen no antebraço e ambos se encaminharam para a casa.

Ouviram-se trovões ao longe, prenunciando uma tempestade.

Passados alguns minutos, Helen observou que a expressão severa de Martin dera lugar a outra mais pensativa.

- E agora, onde estávamos nós? - murmurou ele, antes de sorrir com atrevimento. Fosse onde fosse, acho que devíamos continuar dentro de casa. Está a arrefecer e tu não podes continuar aqui fora sem um xaile.

Ignorando o facto de que se não tinha xaile era por culpa dele, Helen deixou-o acompanhá-la para dentro de casa. Subiram as escadas com um castiçal na mão e Martin mostrou-lhe os retratos dos seus antepassados, pendurados nos corredores do andar de cima.

Escolheu os episódios mais escandalosos da família, os mais úteis para o seu propósito de manter Helen a arder por dentro, enquanto percorriam o longo corredor que levava à ala oeste. Acrescentando alguns detalhes, assegurou-se de que ela não se desse conta que chegavam à porta que havia ao fundo do corredor.

Só então Helen, avisada pelo brilho dos olhos de Martin, olhou em redor e percebeu que estava perdida e na companhia de um cavalheiro em quem não podia confiar. No entanto, longe de se sentir ameaçada, desfrutou da impaciência deliciosa que aquilo lhe provocou. Observou a porta que havia à sua frente e, depois, olhou para Martin, com as sobrancelhas arqueadas interrogati vãmente.

A única coisa que ele fez foi sorrir e abrir a porta. Ela deu um passo em frente e atravessou a soleira. O quarto era muito grande e tinha uma cama com dossel. As janelas estavam abertas e a brisa da noite refrescava o quarto.

Helen observou como ele fechava as venezianas. A única luz que ficou no quarto foi a do castiçal.

Martin aproximou-se dela e abraçou-a. Porém, antes que ele pudesse beijá-la e deixá-la embevecida novamente, Helen pôs-lhe as mãos nos ombros e perguntou, sorrindo:

- É agora que eu tenho que dizer "sim"? Martin sorriu.

- De facto, dada a dificuldade que tu tens para pronunciar essa palavra, decidi que não te faria nenhum mal praticar um pouco.

- Praticar? - perguntou Helen, com um tom de voz tão ingênuo quanto pôde.

- Hum, hum... - murmurou Martin, inclinando a cabeça para lhe roçar os lábios.

Acho que vou fazer com que o digas muitas vezes - declarou, beijando-a suavemente.

- E como vais conseguir isso?

Martin não respondeu.

Muito tempo depois, Martin estendeu um braço para apagar as velas da mesa-de-cabeceira. O seu outro braço estava ocupado a abraçar Helen, que dormia ao seu lado, completamente exausta depois de ter dito muitas vezes a palavra que ele queria ouvir. Martin sorriu. Ela ainda precisava de praticar mais, mas ele tinha a certeza de que poderia convencê-la disso mais tarde. com a sua cabeça no ombro e os seus cabelos a fazerem-lhe cócegas na garganta, ouviu o ribombar dos trovões.

Helen nem sequer se deu conta de que estava a trovejar, demasiado absorta na tempestade que eles próprios tinham criado no quarto.

com um suspiro, Martin fechou os olhos. A satisfação percorria-lhe as veias como uma droga, proporcionando-lhe paz. A sua casa estava em ordem, Juno estava ao seu lado sã e salva. Naquela noite, com sorte, ele poderia dormir. E, ao contrário da outra noite que passara ao seu lado, acordaria de uma forma muito mais agradável.

Fechou uma mão sobre o peito de Helen e adormeceu.

Helen acordou para cocar o nariz e deu-se conta de que o que lhe fazia cócegas eram os pêlos do peito de Martin. Deixou escapar uma gargalhada e olhou para cima. Deparou com ele a observá-la com um brilho suspeito no olhar.

com um sorriso, Helen esticou-se como um gato e reparou que ele a abraçava com mais força. Pôs-lhe as mãos no peito. Meu Deus! Pelo menos, precisava de dois minutos para pensar.

- Qual é o seu sonho, milorde? - murmurou, com a esperança de o distrair e satisfazer a sua curiosidade de uma vez por todas.

Martin descontraiu-se e riu-se, deixando que o calor do seu olhar se espalhasse pelo corpo de Helen como uma língua de fogo.

- Não sei se devo dizer-te... bom, talvez sim - disse com malícia. - Não acredito que seja muito difícil para ti - o seu sorriso acentuou-se. - com as tuas capacidades, quero dizer.

Ao sentir que o seu peito estremecia de riso, Helen exclamou: -Martin!

- Ah, sim! bom, uma vez que tive oportunidade de verificar as tuas habilidades, meu amor, e tendo confirmado que realmente desfrutas das nossas actívidades conjuntas, tenho a certeza de que, quando souberes qual é o meu sonho, não te verás obrigada a sacrificar nenhum sentimento para me ajudares a consegui-lo. Helen olhou para ele fixamente.

- Martin! O que é?

Martin observou-a com certa cautela.

- Prometes-me que não te ris?

- Por que ia rir-me? - perguntou, espantada. Ao ver que ele não dizia nada, prometeu: Está bem, eu não me rio. Qual é o teu sonho?

- Tenho uma visão de ti, diante da lareira da biblioteca de Merton House... - Martin calou-se e, depois, apressou-se a completar: com o meu filho nos braços.

Helen pestanejou.

- Oh! - exclamou, como se não lhe desse importância. Contudo, não conseguiu conter o sorriso que se desenhou nos seus lábios e que lhe alcançou os olhos.

Olhando fixamente para os olhos cinzentos e vendo a expressão dúbia do seu rosto, Helen soube que ela também concretizara os seus sonhos. Pestanejou para desembaciar olhos das lágrimas de felicidade que ameaçavam derramar-se, engoliu em seco e disse:

- Oh, Martin! - antes de lhe rodear o pescoço com os braços e esconder a cara no seu pescoço.

Ele devolveu-lhe o abraço.

- Isto quer dizer que concordas?

Um murmúrio, que era claramente de assentimento, foi a única coisa que obteve como resposta.

Martin sorriu e abraçou-a ainda com mais força ao sentir lágrimas no seu ombro.

Quando recuperou a compostura, ela não pôde deixar de lhe perguntar:

- Esse é o sonho típico de um Don Juan?

- Asseguro-te de que é o sonho deste Don Juan - Martin olhou para ela e sorriu. - Agora, chega aqui e contribui para o tornar realidade.

Helen também sorriu.

- com prazer, milorde.

Ela levantou a cabeça para o beijar. Na verdade, não tinha mais sonhos na cabeça do que ajudá-lo a concretizar os dele.

 

                                                                                Stephanie Laurens  

 

                      

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