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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


EXÍLIO FINANCEIRO / Carlos Cunha
EXÍLIO FINANCEIRO / Carlos Cunha

                                                                                                                                                    

                                                                                                                                       

 

 

Biblio VT

 

 

Os contos do livro mostram duas fases importantes da vida do autor.

A primeira é composta de histórias e estórias do tempo em que ele vivia no Brasil e trabalhava como Funcionário Público do Estado, seus problemas financeiros dessa época e tristes detalhes da vida social do país por ele vivenciados, que mostram a razão de seu autoexílio. A outra de contos que falam da sua vinda para o Japão, das alegrias, das pessoas maravilhosas que aqui encontrou e dos amigos que fez. Que relatam os pecados, percalços e dificuldades passadas na nova vida em uma terra estranha - de cultura, hábitos e costumes diferentes - que para ele, obviamente, foram também bastante estranhos.

São narrações cheias de saudosismos, melancolias, esperanças e alegrias inimagináveis, além de muita fé na capacidade do ser humano em se adaptar e conseguir ser feliz.

 

 

 

 

   Fase Um – BRASIL      

 

Festa na Repartição

 Eu era um funcionário da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e trabalhava na XXIII Delegacia de Ensino na cidade de Mogi das Cruzes.

Lembro-me com clareza das primeiras horas daquele dia de trabalho. Nelas o funcionário mais antigo da repartição debochava e fazia todos rirem com as suas tiradas irônicas sobre uma medida que tinha sido aprovada, há alguns dias, e naquela manhã estava sendo colocada em prática: O uso obrigatório de crachá por todos os funcionários.

 

 

Ele gargalhava e ridicularizava enquanto falava sobre o crachá que teria de usar, pela primeira vez, depois de trinta anos de trabalho. Estava claro que se sentia aviltado, mas não assumia o quanto estava ofendido. O seu nariz vermelho e grande tremia como se fosse um radar das suas mágoas. Sardônico e carregado de ironia em suas palavras comentava uma falha em seu nome impresso no crachá:

 

- Meu nome é João Cardoso de Souza Filho e aqui só colocaram JOÃO CARDOSO SOUZA FILHO. Cadê o "DE"... Cadê? Eu me nego a usar esta porcaria. Não vou usar isto assim.

 

E os companheiros deliravam com as caçoadas do pobre e velho João Cardoso.

 

- Oficialização, um outro funcionário disse essa palavra com ênfase e logo depois esboçou o sentido desse pensamento:

- Somos escachados já há bastante tempo. Vários governos passaram e sempre houve o escachamento. Agora nesse daqui temos que reconhecer a existência de trabalho e organização. Até que enfim surgiu um governante sério (*) que escacha, mas oficializa o escachamento.

 

Entre as gargalhadas que todos davam alguem falou sardonicamente e também em tom de caçoada:

 

- Se o crachá for usado na hora do almoço tem uma gratificação de 10% em nosso salário e se o colocarmos no pijama pra dormir ganhamos adicional noturno. Da direito de andar de trem pago, ônibus pago, bicicleta pago.

 

E a balburdia generalizou-se.

Aquele governo havia tentado facilitar o reconhecimento dos funcionários que trabalhavam para ele e era por isso ridicularizado. Estariam aquelas pessoas sendo injustas com os seus governantes em seus julgamentos?

A explicação é uma só:

 

"Toda medida tomada por um governo atuante - seja ela justa, interessante, sadia ou não – sempre é motivo para festa dos funcionários descontentes com o salário que percebem. Eles não conseguem ser profissionais e desconhecem método e funcionamento. São agrupamentos de servidores descontentes e desorganizados que em tudo encontram motivos para festejar e produzir ainda menos".

 

 

O Moço que Via os Anjos Chorarem

O dia tinha amanhecido escuro, coberto com nuvens negras e nele caia uma garoa muito forte que chegava a ser quase uma chuva fina. Em dias assim a alma daquele moço se enchia de depressão e se entristecia atingida por uma forte melancolia.

A sensação que ele tinha nos dias de chuva era a de ficar exposto e aberto para as coisas feias da vida e por isso neles sentia com clareza todas as dores da humanidade.

 

 

Esse moço éra dono de uma sensibilidade apurada e muito forte. Ele sentia necessidade da luz do sol, do calor dos seus raios, da energia que ele lhe proporcionava e da força que dele extraia para se sentir forte e cheio de vida.

Quando as gotas geladas de uma chuva o atingiam lhe causam ardência, ele tinha a sensação de ser queimado por elas e nessa hora sempre visualiza o céu e via nele milhares de anjos, todos possuidos de uma dor imensa. Tão grande como aquela que dominava a sua alma nessa hora.

O rosto dos anjos que ele via, que eram criaturas puras que lembravam crianças belas e inocentes, estavam marcados por um grande sofrimento.

Eles choravam porque tinham pena dos homens que largaram da mão de Deus e, por livre arbítrio, desprezaram a proteção da guarda deles.

Cada gota de chuva, que caia do céu, era para aquele moço uma lágrima que via escorrer pelo rosto de um dos anjos e cair sobre a terra.

Ele e sua alma viviam a angústia desse momento quando uma forte trovoada retumbou no céu e, como que ocasionado por ela, um grande aguaceiro caiu sobre o lugar que ele estava. Nessa hora ele se escondeu sob o beiral de uma casa, para evitar a torrente de água que caia, e ali permaneceu com a sua alma angustiada e amarga até a chuva passar.

Ela durou poucos minutos e assim que só algumas gotas esparsas ainda caiam, e ele ia seguir o seu caminho, a porta da casa em que sob o beiral dela ele tinha se escondido se abriu e duas crianças saíram por ela saltitando alegres e cheias de vida.

Uma delas trazia um barquinho de papel, que elas tinham feito enquanto a chuva caia, e foram brincar na água que corria no escoamento que beirava a calçada e formava um riacho caudaloso.

As crianças soltaram o braquinho na corrente d"água, que o levou, e com seus pés descalços correram atrás dele jogando água pra todo lado.

Dando gargalhadas sonoras elas o alcançaram, o pegaram e tornaram a soltá-lo para repetir a brincadeira.

O moço ficou olhando as crianças brincarem. Isso foi deixando a alma dele leve e ele foi ficando possuido de um grande encantamento enquanto via aquele menininho de cabelos curtos e espetados, que tinha o rosto cheio de sardas, junto da menininha possuidora de um sorriso encantador e engraçado, por causa da falta de um dos seus dentes da frente, saltando na água que tinha caído da chuva e gritando de prazer. Aquelas crianças estavam entregues a uma grande felicidade enquanto brincavam com o seu barquinho de papel.

As crianças espirraram água nele, mas quando foi atingida por ela a sensação que teve foi totalmente contrária daquela causada quando a água da chuva caia sobre ele. A água que as crianças salpicavam tinha calor e lavavam as dores que esteve sentindo.

Nesse momento um rasgão se abriu na couraça negra que cobria o céu e os raios do sol invadiram através dele, cortaram o ar cheio de umidade que envolvia a Terra e atingiram os rostos das crianças.

O moço ficou maravilhado e nessa hora olhou para o céu. Viu então que os anjos que a pouco choravam estavam sorrindo para ele. Estavam alegres com a felicidade que tinham de presenciar, como ele, a beleza daquelas crianças brincando.

Ouviu então um cantar mágico ecoar pelos céus e transpassar a sua alma.

Eram os anjos que cantavam e ele viu que nas crianças estavam as esperanças do mundo.

Que elas mantinham as suas mãozinhas agarradas à mão de Deus e que os seus anjos da guarda eram fortes, que olhariam por elas e que por causa delas o mundo ainda seria um mundo melhor.

O moço então caminhou até onde as crianças estavam brincando, deu um beijo no rosto de cada uma delas e se foi embora com o seu coração repleto de felicidade, sentindo a sua alma leve e cheia de esperança. Ele tinha certeza de que haveria um dia em que não veria mais os anjos chorarem.

 

 

...saudades da mãe de Saudade 

Foi explendorosa e hilariante a reação de seus amigos quando ele deu aquele nome de batismo à sua filha. Vários comentários foram feitos, todos em apôio e cobertos de admiração nas opiniões sobre a sua escolha, feita tão acertadamente.

Ele escolheu um nome singelo para se chamar aquela que era tudo o que ele ainda amava. Nome esse escolhido, por influência de Deus, para faze-lo feliz sempre que viesse a se lembrar daquela que tanto amou.

 

 

 

Conseguia ser feliz ao olhar naqueles olhos frescos que davam luz àquele sorriso deslumbrante que ela tinha; neles via refletido o sorriso que ele idolatrara no rosto de sua saudosa mulher.

Com certeza, havia sido iluminado na hora da escolha do nome que deu à sua filha. Deus, ao riscar as linhas de sua vida, foi incontestavelmente justo e magnânimo na escolha do risco que traçou para ele após a morte de sua mulher.

Teria uma vida feliz, mesmo chorando a memória daquela a quem os anjos receberam com tanta arrelia.

"Eu fiz a escolha certa", ele afirmava em seu pensamento enquanto olhava maravilhado para a filha. "Muito acertadamente agi quando escolhi esse nome que você tem. Eu amava muito sua mãe e você é igualzinha a ela. O que seria hoje de mim, sozinho em minha saudade de tua mãe, se não fosse a sua existência em minha vida, pequena e adorada Saudade".

 

 

As lágrimas do palhaço

"Ao publicar este texto eu quero homenagear não só aos palhaços, mas a todos os artistas de rua que mostram a sua diversificada arte nos parques, jardins públicos, avenidas ou qualquer outro lugar onde lhe dêem a oportunidade de mostrar o seu trabalho, que não pode se negar ser de grande valor e digno de maior respeito.

Parabéns pela grandeza maior de se apresentarem, com tanto amor e carinho por aquilo que fazem, mesmo mantendo o seu anonimato, sem nunca perderem a fibra do grande artista".

 

 

Um riso forte, puro e cheio de encantamento domina uma porção de rostinhos inocentes e faz com que as almas daquelas crianças se encham de fantasia.

Mantendo um equilibrio perfeito um palhaço pedala, sentado em um monociclo, por uma das avenidas do grande parque, enchendo de alegria aqueles que lá estão e o observam admirados.

Suas mãos dominam com segurança e presteza várias bolas coloridas que sobem e descem, num bailado cheio de cadência, seguindo o rítmo comandado por aquele maestro com o rosto pintado, que tem o nariz redondo e está vestindo roupas largas e coloridas.

Ele faz graças e micagens que obriga todas as pessoas, de todas as idades, a rirem. Diz galanteios para as moças bonitas em sua volta, que são dignos de um poeta e as crianças, a quem ele dedica a sua vida, deliram com as caretas engraçadas do seu rosto mascarado.

Quando desce do seu trono - o monociclo que tem mais de dois metros de altura - e fica no chão da avenida ao alcance das pessoas, elas se aglomeram em sua volta para ver as suas graças e ouvir o que ele vai dizer para alegra-las.

Delas tira risadas hilariantes com seus ditos cheios de humor e quando faz surgir do nada uma flor vermelha de papel, ou tira do ouvido um lenço de cor berrante, enche de admiração a todos os que o rodeiam.

Até lágrimas nos olhos das pessoas mais sensíveis ele coloca, quando elas o ouvem contar uma história triste, com aquela sua boca pintada de vermelho e percebem que se esconde uma tristeza atrás de toda aquela alegria que ele distribui e que as cores daquela fantasia que usa servem para disfarçar uma grande dor por ele sentida.

O final da tarde se aproxima e é chegada a hora dele terminar o seu espetáculo e ir descansar.

As famílias vão para as suas casas e o palhaço segue o seu caminho que, sem as crianças que são levadas por elas, para ele é difícil e árduo.

Ele também tem uma casa e quando chega nela tira a sua fantasia pra carregar os sofrimentos de um homem comum. Senta-se, ainda com o rosto pintado, e pensa com amargura em uma criança muito especial para ele.

Toda aquela pintura que o mascara não disfarça a dor dos seus olhos, quando neles surgem duas lágrimas que rolam manchando a tinta que cobre o seu rosto. Elas existem, e são tão amargas para aquele palhaço, porque ele sabe que a criança que mais ama, o seu filhinho adorado, está doente e não vai demorar pra ele ir para o céu e ser mais um anjo por lá.

 

 

Asilo Santa Carmela

"Existem milhões de órfãos desamparados, só que eu acredito ser muito maior o número de carentes.

Os desamparados são crianças encontradas pelas ruas sendo criadas pela vida, agora os carentes muitas vezes são adultos e de posse que perderam os seus amados pais e sofrem amargamente a saudade deles.

Adotar uma criança é agir com dignidade e amor socialmente. Isso ajudará a resolver parte do problema, mas se você adotar uma velhinha, que sofre a amargura da solidão largada em algum asilo, já resolverá e vai amainar a dor de órfão carente que tanto te machuca.

Adotem uma mãe. Sintam e dêem mais alegria as suas vidas".

 

 

 

- Olá, minha doce santinha. Como vai a minha velhinha, está tudo bem com a senhora por ai?

 

É sempre fazendo uso de tratamentos carinhosos, como esse que foi citado, que eu a comprimento toda manhã, quando passo a caminho do trabalho diário.

Está sempre apoiada na grade de ferro, gasto e corroído da varanda do velho casarão em que vive, sorridente a brincar com as pessoas que passam apressadas. Sempre a olhar feliz o dia que começa, ela mostra uma alma leve e suave através dos seus olhos cansados que testemunham mais um doce clarear.

Todas as vezes que a vejo é muito penoso testemunhar a canseira da vida que o seu rosto reflete. Uma velhinha tão delicada; uma pessoinha tão inocente e só.

Na velha placa descascada, que identifica o casarão, lê-se:

 

ASILO SANTA CARMELA

ABRIGO PARA VELHOS DESAMPARADOS

 

- Oi, tudo bem, ela responde alegremente com a sua voz baixinha e cansada. E as crianças "tão" boas?

 

Perguntas como essa ela me faz todos os dias quando eu passo sem me deter, pois a minha pressa me impede de parar e dar algum tempo para ela. Não há nada que ela me cobre. De nada é capaz além de se dar em sua amarga velhice; expande a exigüidade do seu corpo de mulher pequenininha, que é ainda mais mirrado pela velhice, através de uma aura de sabedoria criada por sua essência cansada.

Logo após, com os meus paços fugazes e na verdade fugidios, eu viro a esquina e os meus olhos procuram o chão como se eu, com esse gesto de covardia, protegesse o meu inconsciente envergonhado. A aparência da minha face se transfigura, e passa a ser uma imagem de desespero, ao me ver dominado por pensamentos que trazem sempre as mesmas indagações:

 

"Ela será dependente de alguém... De uma pessoa que não a ama e por isso com ela não se preocupa a largando ai?".

 

"Quem sabe não é só mais uma pessoa que chegou a velhice sozinha, em sua solidão calma e trágica, e o destino conduziu seus passos trôpegos e vacilantes para dentro das paredes de um asilo?".

 

"Que divindade cruel deixou isso acontecer com ela, viver o final de sua vida em um lugar tão amargo?".

 

"Quem transformou o seu ar carmelitano, retirando dele o brilho da vitória que acompanha o descanso sagrado de uma pessoa que tem o coração velho, sábio e bondoso?".

 

 

Essa senhora que todo dia eu vejo alegre na porta do asilo é tão tosca e humilde em sua velhice sadia e bela; é por isso que eu me envergonho em não assumir o que o meu coração manda, a sua adoção. Sim, é essa a verdade minha santinha.

Assim como eu há milhões de pessoas que não tem e sentem falta de uma mãe; não tem ninguém nessa vida para dar o amor que emana de si e por isso vivem sozinhos e tristes. Estão sempre macambúzios porque não confessam a si próprios que precisam dessa mãe.

Ficarão sozinhos e sentirão o peso da solidão e da saudade até o dia em que baterem na porta de um desses asilos – que geralmente tem o nome de uma santa – e pedirem em nome de Deus

 

 

Barlavento

 

"Noite de breu sem luar, lá vai saveiro indo pelo mar

Levando Bento e Chicão, a brisa ao lado leva uma oração

Se barlavento chegar não vai ter peixe pra vender

Filho sem pai pra criar, mulher viúva para sofrer

Salve mãe Iemanjá... Janaina, deixa o Chico voltar

Meu coração é teu barlavento, mas traga o Bento do mar"

 

  

 

Quando Maria Rosa se casou com Francisco, ela era ainda menina.

Como a sua mãe, a sua avó e toda mulher nascida e criada naquela vila de pescadores ela foi criança por muito pouco tempo. Logo deixou de brincar com a sua boneca de trapo - único brinquedo que teve - para assumir os deveres de uma filha de pescador.

Com a idade de doze anos já tinha as responsabilidades de uma pessoa adulta e além de tomar conta das outras crianças – nessa época ela era a filha mais velha e já tinha cinco irmãos mais pequenos do que ela – ajudava a mãe, todo dia, na escolha do pescado que o pai – mestre José Bento - trazia e na limpeza do barraco miserável em que viviam.

Francisco também era filho de pescador. Ainda era pequeno quando um dia seu pai não voltou do mar. Sua mãe morreu, logo depois, de tristeza. Ele foi criado pelo pai de Maria Rosa e se fez pescador ainda menino.

Maria Rosa viu quando ele saiu pro mar pela primeira vez e sentiu nessa hora um medo que não compreendeu. Não sabia, mas era o mesmo medo que fazia com que sua mãe fosse esperar pelo saveiro de seu pai todo dia quando estava amanhecendo.

Toda noite, fosse ela clara com uma lua enorme e luminosa no céu, refletindo seus raios no espelho que a água formava ou muito negra e sem estrelas alguma no firmamento, Francisco e Jose Bento iam mar adentro, num velho barco em busca de pescado, e só retornavam quando o dia clareava. Tinha dia que o barco vinha pesado e cheio de peixes. Os dois sorridentes o traziam até a areia e felizes beijavam suas mulheres.

Acontecia também - e isso muitas vezes - do barco voltar leve, trazendo nele alguns poucos peixes pequenos. Os dois pescadores vinham muito cansados de jogar a rede a noite inteira e puxa-la sempre vazia, trazendo em seus rostos uma expressão de desânimo. Suas mulheres sabiam que aquele dia não ia ter comida na mesa e suas crianças iam chorar porque tinham fome.

A mãe de Maria Rosa era uma velha, cansada e abatida pelo sofrimento causado pela vida que levava como mulher de um pobre pescador.

A filha sofria por ver a dor de sua mãe, pela miséria em que viviam e pela fome que via os seus filhos passarem. Era muita dor para uma mulher tão nova suportar, mas ela era valente e com seu amor e sua coragem amparavam a todos e lhes dava força para viverem.

Numa noite caiu uma forte tempestade. Maria Rosa e sua mãe passaram toda ela pedindo a Iemanjá pela volta dos seus homens.

Quando o dia amanheceu mãe e filha foram até a praia esperar por eles, só que dessa vez o barco não voltou.

Lágrimas grossas rolaram pelas faces de Maria Rosa e de sua mãe.

Elas rezaram a noite inteira pra mãe d’água, mas a santa não teve dó delas e ficou com os seus homens para ela.

 

 

Taxi Penico

( pequenas empresas grandes negocios )

 

 

Havia um sujeito que o grande sonho da sua vida era ter o seu próprio negócio e ser um empresário de sucesso. Ele vivia cheio de idéias mirabolantes e geniais, muitas delas bastantes inteligentes e que, com certeza, dariam certas se postas em prática, só que nunca tinha o capital suficiente para executa-las. Possuía muita confiança em si mesmo e sabia ser capaz de empreender um grande negócio, mas nunca tinha condições financeiras para começa-lo.

Já tinha pensado em montar uma franquia de uma loja de uma grande rede, como o Mac Donald’s, que sabia ser um negócio garantido e de retorno financeiro certo, só o dinheiro que ele tinha para aplicar era muito pouco e não bastava. Todos os empreendimentos que sua mente imaginava, com certeza de ser um grande negócio, ele não tinha como executa-los, pois sempre o seu dinheiro não dava.

 

Um dia esse sujeito estava observando um homem embriagado tentando pegar um táxi. O motorista se recusou a levar o passageiro, por saber que ia ter trabalho com ele, e o deixou ali mesmo.

Ele então se aproximou do bêbado e lhe falou:

 

- Olá amigo, você quer ir pra onde? Paga a gasolina pra mim que eu te levo.

 

- Eu vo... vou pro Jardim... dim Elena. Já tentei pegar quatro táxi, mas ningue... guem leva eu. Achoo que é... é porque to... to um puquinho beudo. Se você me... me leva eu pago a gás..lina e te do dez real.

 

- Tudo bem, negócio fechado.

 

Ele pegou o seu Karmanguia, que estava ali do lado, que tinha os quatro pneus lisos, era todo amassado, com a pintura judiada e o escapamento amarrado com um pedaço de arame. Colocou o bêbado dentro dele e o levou para onde ele ia.

No percurso aconteceu o inevitável. O bêbado vomitou no estofamento rasgado do carro e incomodou ele, com um monte de bobagens que dizia o tempo todo, até acabar dormindo (desmaiado) com a baba escorrendo de sua boca.

Quando chegou no endereço, que o bêbado havia lhe dado ao entrar no carro, ele teve de carrega-lo até dentro de sua casa, pois não conseguiu acorda-lo e só recebeu o dez real porque inteligentemente os cobrou antes de traze-lo.

Na volta, envolvido pelo cheiro azedo do vomito deixado pelo bêbado, ele vinha sorrindo e feliz, certo de ter encontrado a idéia certa e que agora poderia ter o seu sonho realizado.

Foi ao banco retirar todo o dinheiro que tinha para aplicar nessa sua grande idéia. Comprou com ele um Gordine e um Fusca, nas mesmas condições do Karmam Guia que já tinha, e com eles montou uma frota de táxis. O pouco que sobrou ele usou para fazer a publicidade de seu novo negócio nos classificados de vários jornais.

Os anúncios colocados por ele diziam:

 

TAXI PENICO

 

Transporte de bêbados em péssimas condições.

Serviço garantido, feito por motoristas especializados, com a entrega do passageiro em sua cama seja qual for o seu estado de embriagues.

O preço da corrida é variado com o estado do passageiro e pelo trabalho que ele der ao motorista, com o acréscimo marcado na tabela abaixo.

 

Dez reais cada vez que o passageiro vomitar dentro do carro

Quinze reais caso ele mije nas calças

Dois reais por cada mancha ocasionada pela sua baba no estofamento

 

Cobrança dobrada no caso do passageiro errar de endereço e mais um acréscimo de 100 reais se o motorista tiver de encontrar o endereço sozinho para fazer a entrega dele.

Finalmente ele tinha conseguido por em prática uma de suas idéias com o parco capital que possuía. Tornara-se um empresário bem sucedido e os bêbados de sua cidade, que eram em grande número, não teriam mais dificuldade para conseguir um táxi quando estivessem completamente embriagados.

 

 

Branca Flor de Camélia

(O homem só não carrega um sorriso eterno porque duvida de Mim)

 

 

 

Aquele entardecer estava levemente encoberto e fresco. Muito calmo e doce ele era maravilhoso naquele parque verdejante.

A primavera havia passado há tempos e era uma tarde no inicio do outono. O verde que me cercava estava mesclado por um amarelo-pálido nas folhas que começavam a secar.

Logo um tapete marrom-escuro cobriria o solo daquele parque em que eu estava; o colorido abundante das flores, que ele ainda tinha, deixaria de existir e os pássaros que ali ficassem passariam a ter um cantar triste. Aquelas árvores lindas e exóticas iam se transformar em troncos nus, como fantasmas a assombrar a natureza.

Nessa hora meu pensamento fez uma indagação:

 

"Deus, por que só alguns dias do ano as flores invadem a Terra e os homens não são sempre felizes? Por que Pai a primavera não é eterna, o sol não invade a noite e o homem não carrega em seus lábios um sorriso eterno?".

 

Eu estava sentado em um banco de madeira, à beira de uma pista de atletismo, e passei a meditar sobre a vida. Cabisbaixo com o meu olhar melancólico preso nas folhas secas, que já haviam caído espalhando-se pelo chão, eu divagava atingido por uma enorme tristeza quando Ele me respondeu.

Ouvi nessa hora um cantar sublime de um pássaro e para a direção de que ele vinha eu dirigi o meu olhar. Ele encontrou, sobre um emaranhado de folhas verdes e muito brilhantes, que contrastava com a palidez do verde-opaco que o cercava, um lindo pássaro. Eu fiquei maravilhado com a visão que tive.

Levantei-me do banco em que estava e acerquei aquele arvoredo diferente. Era um pé de camélias e quando eu o olhei de perto recebi através do que vi a resposta às perguntas que havia feito a Ele.

Estava vendo um amontoado de folhas muito verdes e cheias de vida, irmanadas com centenas de botões prontos a explodirem em belas flores. O pássaro que me chamara à atenção não estava mais ali e no lugar em que eu o tinha visto havia uma linda camélia branca, a única entre os inúmeros botões.

Através daquele arbusto Deus falava comigo:

 

Filho, o ciclo da vida é indestrutível. O calor o frio e a escuridão são somente fazes de uma vida intensa.

Se não vierdes a conhecer o frio não te deliciarás com o calor que te envolve e aquece; se desconhecerdes as trevas, jamais enxergará o que tiver de belo quando estiverdes sob a luz.

Precisas de descanso para serdes ativo. Descansa na penumbra da vida e sedes prestativo e amoroso aos homens sempre que o sol raiar.

As flores não invadem a Terra somente alguns dias no ano, na primavera. Elas estão presentes, todos os dias, no coração daquele que ama verdadeiramente.

Logo será inverno, pois daqui a pouco o outono vai chegar ao seu fim. Depois que todas as folhas caírem cairá à neve e o chão ficará branco e gelado.

Logo após um tapete verde cobrirá a Terra. A primavera renascerá e as flores novamente imperarão.

Faça do seu coração o mesmo que esse pé de camélias. De botões e floresça no outono, resista as suas flores durante o inverno e invada a primavera com a sua beleza e exuberância.

A vida é uma eterna primavera no coração do homem que ama verdadeiramente. “Ele só não carrega em seus lábios um sorriso eterno porque duvida de Mim."

 

 

Conversa entre Pai e Filha

 

 

- A Fabiana ta saindo com um garoto lá do colégio mãe.

 

- Ela ta namorando?!

 

- Sei lá. Eles tão sempre de mãos dadas e outro dia foram vistos se beijando atrás da escola.

 

- Sua tia precisa saber disso. Aquela menina ainda vai dar muita dor de cabeça pra coitada.

 

- Não fala pra ela não mãe. Se a senhora falar a Fabiana vai saber que eu te contei e ficar com raiva de mim. A qualquer hora a tia vai ficar mesmo sabendo, não precisa à senhora ir fofocar.

 

- Olha como me fala menina! Não vou fazer nenhuma fofoca. Sua tia precisa saber pra olhar melhor a filha. Cuidar pra Fabiana não ficar igual a ela, sozinha no mundo com filho sem pai pra criar.

 

- Merda, eu e esta minha boca, a Maira disse para si mesma enquanto via a mãe sair da sala.

No final de semana, quando chegou na casa do pai, a Fabiana deu um beijo nele e lhe perguntou:

 

- Oi pai, tudo bem?

 

- Tudo filha, e com você?

 

- Ta tudo ruim. A mãe me deu uma surra e me deixou presa em casa a semana inteira. Só me deixou sair pra ver você.

 

- Mas por que querida? O que você aprontou desta vez?

 

- A Maira falou pra mãe dela que me viu com um menino lá na escola e ela foi correndo contar pra minha mãe. O senhor conhece bem ela. Começou a me dizer que eu era muito nova pra namorar e foi logo me metendo a mão.

 

- E você ta namorando?

 

- To não pai, só to ficando com um garoto da minha classe.

 

- Ficando? Desculpa, mas acho que não entendo. Isso não é o mesmo que namoro?

 

- Não pai. Ficar significa o que a palavra quer dizer. Quando uma pessoa é legal a gente fica com ela, mas não existe compromisso. O carinha lá da escola me leva pra tomar lanche depois da aula, ao cinema, a gente passeia e eu o deixo me beijar, só isso. Enquanto tiver bom pros dois a gente fica, quando um achar que não ta legal cada um vai na sua.

 

- É, acho que compreendi como é a coisa, só que você precisa entender a sua mãe. Não posso tirar a razão dela por se preocupar com o seu futuro. Você ta ficando mocinha e é normal que ela sinta medo do que possa te acontecer.

 

- Eu a entendo pai, ela é que não me entende. Não é porque estou saindo com um rapaz que vou ficar grávida e desgraçar a minha vida, como ela pensa! Ela namorou o senhor, vocês se casaram e agora cada um vive para um lado e eu tenho que viver com um e só ver o outro de vez em quando. O senhor acha que é legal pra mim? Eu quero é primeiro estudar e ter certeza das coisas, antes de pensar em namorar e casar. Não vou deixar que o mesmo aconteça com meu filho, se um dia eu o tiver.

 

- E você já explicou isso pra sua mãe?

 

- E dá? Ela só vê as coisas do jeito dela e não me deixa falar. Sempre que eu abro a boca apanho. Ela precisa confiar em mim pai, será que não vê que eu tenho mais juízo que ela?

 

O pai olhou com amor para a filha e pensou:

 

"É minha querida, eu concordo com você. Não posso te falar isso, mas te dou toda a razão".

 

 

Fim de Uma Família

É certo dizer que ele era uma pessoa sem maldade, mas que era difícil ficar perto daquele velho era. Seus netos, não é que não gostavam dele, odiavam ficar perto do avô e seus pais ficavam tristes com a situação, mas nada podiam fazer.

A mãe de alguns deles, que era filha daquele velho, não podia dizer nada para as suas crianças, pois ela mesma evitava ter muito contato com o pai.

 

 

 

Aquela era uma família comum e na verdade bastante unida. Os irmãos eram muito próximos e nunca deixavam de passar o seu fim de semana na casa dos pais.

A mãe deles, dona Eufrásia, fazia do domingo um dia de festa e nele preparava a macarronada com carinho, assava a carnr, que temperava com antecedência, deixando ela no ponto e sempre deixava a geladeira cheia de cervejas para regalar o dia de folga dos seus filhos.

Para os netos ela tinha um pote de vidro, sempre cheio de caramelos, puxa puxa e bombons, punha também na geladeira bastante refrigerante e nunca deixava de fazer o bolo de milho que todas elas adoravam.

Com os genros e as noras ela era delicada e carinhosa, tanto que todos eles a chamavam e tratavam como mãe.

Aquela seria uma família modelo não fosse o velho Assunção ali pra atrapalhar.

 

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Praga de velho irritante. Ele era cheio de manias e maus costumes que incomodavam,irritavam deixavam nervosa a pessoa que estvesse perto dele. Não tinha bons modos, falava o que não devia sempre na hora errada e o pior de tudo era o comportamento dele.

Quando estava na mesa, no meio de uma refeição, ele tirava a dentadura e coçava o céu da boca pra depois dar um sorriso com a boca banguela.

A família, que parava de comer, com os garfos suspensos no ar olhava incrédula. Ele via a censura no olhar de todos e dizia:

 

- Que é que tem gente? Se ta coçando o que é que vocês querem que eu faça?

 

Punha a dentadura de novo e voltava a comer como se nada tivesse acontecido.

O almoço havia terminado. Levantavam da mesa, um a um, dizendo estar satisfeito, que havia tomado café tarde e que estava sem fome ou dando qualquer outra desculpa para deixar a comida no prato.

Os pratos ficavam sempre quase cheio e grande parte da comida que dona Eufrásia preparava, com tanto carinho, era jogada fora.

As crianças iam pro quintal bricar e os pais para a sala conversar sobre a semana que tinham tido.

O velho se esticava no sofá, fazendo os filhos trazerem cadeiras da cozinha para terem onde sentar e quando a conversa deles começava a ficar animada ele pegava no sono. Logo estava roncando alto e atrapalhando a conversa. Os filhos iam se levantando e dizendo-se cansados iam ler um livro, dormir um pouco ou fazer qualquer outra coisa longe dali.

O velho dormia um longo sono e quando acordava ia pro quintal brincar com os netos.

Alguns minutos depois eles estavam todas na frente da televisão e tinham desistido de suas brincadeiras.

Se um dos filhos tinha de levar o velho até algum lugar, coisa que só faziam por obrigação e muito contra a vontade, com certeza ficaria contrariado com ele que o deixaria em situações constrangedoras.

Quando o velho chegava em um ponto de ônibus cheio de gente, sempre enfiava aa mão nas calças e começava a coçar o saco. Dentro de um elevador lotado dava um peido estrondoso e dizia:

 

- É a feijoada que comi. Ela sempre faz isso comigo. Não da pra segurar.

 

Nunca deixava, sempre que saia de casa, de fazer a pessoa que estava com ele passar por situações constrangedoras e por isso nunca o levavam a lugar nenhum.

 

# # #

 

Teve uma hora em que não dava mais. Os filhos se reuniram para discutir o que fazer com o pai, que a cada dia se tornava um problema maior, e foi unânime a decisão que tomaram. Ele foi colocado em um asilo.

Dona Eufrásia, mesmo sendo contra a idéia dos filhos, teve que aceita-la, pois sabia que eles não podiam mais aturar as manias do pai.

Ela foi viver com uma das filhas. Mesmo sendo muito bem tratada e tendo a companhia dos netos, que amenizava o seu sentimento de solidão, nada substituia a presença do seu velho marido. Sentia falta de sua companhia, que sempre teve durante muitos anos de sua vida, e poucos meses depois a pobre velha faleceu. Todos diziam que tinha morrido de velhice, mas na verdade o que a levou foi a grande tristeza com que foi atingida pela ausência do seu querido companheiro de toda uma vida.

O velho pai foi esquecido no asilo até que também chegou há sua hora. Seus filhos aos poucos foram se vendo cada vez menos e hoje já não existe aquela linda família.

As crianças cresceram afastadas, uma das outras, e agora que são adultas nem se conhecem mais.

 

 "Uma história triste, mas comum que sempre acontece quando os filhos se esquecem do amor e de tudo que seus pais lhe deram. Não tem amor o suficiente para agradecer por tudo o que receberam, aceitarem como são aqueles que deveriam ver como pessoas sagradas e colocam o pobre pai, ou mãe, em um asilo no fim de sua vida.

Não pode haver família que sobreviva, e continue unida, depois de uma prova tão grande de tanta falta de amor".

 

 

Medo de Avião

Até que dentro dos padrões de um homem comum, ele era um homem valente e corajoso, só que, como a todo ser humano, havia coisas que o enchiam de medo, de verdadeiro terror. Era nesses momentos que lhe acontecia uma coisa muito constrangedora e desagradável. Ele se mijava todo. Isso acontecia com ele desde que era pequeno.

Se seu pai ralhava e ele sentia medo de apanhar, acabava mijando na calça e era ai que levava mesmo uma surra.

Adorava desde menino a filmes de terror, mas não podia assisti-los, pois era certo que durante uma cena de horror ele sempre mijava nas calças.

 

 

Na escola, nas aulas de português, em que o professor era o seu Gumercindo (mestre que adorava causar medo em todos os seus alunos) ele invarariavelmente era motivo de gozação entre os colegas, pois dificilmente não urinava na sala.

Quando adolescente se apaixonou por uma linda menina, que era a mais cobiçada de todo o colégio. Tomou coragem e resolveu se declarar a ela. Só que quando começou a lhe falar de seus sentimentos, o nervoso e o medo de ser por ela rejeitado fez com que ele se mijasse todo na hora da declaração.

E assim foi durante toda a sua vida, bastava se apavorar com algo e ele literalmente se mijava todo. A urina se soltava, não importava o local ou a ocasião em que isso acontecia. Não havia o que fazer, ele não conseguia segurar.

No ano de 19.. ele precisou fazer a sua primeira viagem de avião.

Entrou no aparelho e estava se dirigindo para o seu a assento, quando notou que estava começando a sentir medo.

Desviou para o banheiro e ficou lá sentado até que o avião decolasse.

Após a decolagem, ele saiu de lá e foi para o seu assento.

Nele ele ficou por alguns minutos e novamente voltou ao banheiro.

Foi e voltou tantas vezes, a ponto de incomodar a passageira que estava sentada na poltrona ao lado da sua.

No banheiro do avião, ele passou mais de um terço do tempo da viagem.

Começou a sentir uma certa segurança com o passar do tempo de vôo.

O medo foi passando e ele já, na ultima etapa da viagem, conseguia ficar sentado e até certo ponto relaxado.

Foi na hora da aterrizagem do aparelho que a catástrofe aconteceu.

Quando o piloto a anunciou aos passageiros, e pediu para que eles apertassem os cintos de segurança, ele começou a ficar branco.

Uma aeromoça, que percebeu a palidez do passageiro, acercou-se do seu assento e perguntou:

 

- O senhor está passando bem. Está precisando de alg... Hóoooo, ela exclamou assustada com a cena que via.

Pelo assento, em que ele estava sentado, escorria uma cascata de urina que caia e se espalhava pelo corredor, formando uma poça.

O passageiro, todo mijado e tremendo desesperado, conseguiu dizer:

 

- Desculpa moça, é que esta é a minha primeira viagem. Eu não sabia que ia ter tanto medo. Não deu pra segurar.

- Da próxima vez eu prometo que trago dois pacotes de fraldão na bagagem de mão, ta?

 

Patético, né? Um mijão com medo de avião, há há há há.

 

 

O Acordar de Um Sonho

Aquela era uma cidade muito antiga e suas ruas estreitas e desertas estavam livres para ele percorrê-las naquela madrugada de lua cheia. Suas pernas bambas o faziam caminhar sem destino sempre pelo meio delas, pois era mais fácil de evitar um choque contra alguma parede de um velho casarão.

A cada dois ou três passos que dava ele avançava e retrocedia para manter o equilíbrio e não se esborrachar no chão. Caminhava sem destino, saboreando o ar da madrugada, e seus pensamentos confusos não paravam de pular de uma melodia para outra enquanto os seus lábios murmuravam melosamente pedaços entrecortados de canções que conhecia, mas que não conseguia delas se lembrar.

Quando ele chegou à esquina da praça, que ficava em frente à igreja da matriz, sentou-se na beira da calçada e colocou com carinho no chão, ao seu lado, o violão que trazia nas costas. Balbuciou algumas palavras sem nexo e acabou deitando-se, em posição fetal, ao lado dele.

 

 

Assim que o dia amanheceu novamente o encontrou ali ainda desmaiado, tamanho havia sido o porre que ele tinha tomado naquela noite. Abriu os olhos e demorou algum tempo para se lembrar quem era e o que estava fazendo ali deitado. Ao lembrar-se deu um sorriso gostoso, pegou o violão e se dirigiu para o barraco em que morava e quando chegou lá levou um susto.

Apesar da pobreza existente durante muito tempo nele ele estava limpo e arrumado quando lá chegou. A mulata que era a sua companheira era muito asseada e gostava de cuidar da casa mantendo tudo sempre limpinho e ajeitado. O feijão que ela fazia tinha um caldo grosso e era muito gostoso e o café cheirava lá na esquina quando ele vinha da boemia, só que ela não aguentou aquela vida que levava ao lado dele e tinha ido embora sem ele saber pra onde. Antes de ir ela fez tudo para que ele parasse de beber, só que ele não parou e ela não teve opção e acabou se indo.

Agora quando chegava da rua tinha de curtir sua ressaca no meio da bagunça que nunca arrumava, entre roupas jogadas pelos cantos, a pia da cozinha sempre cheia de louça suja com restos de comida e o chão sem ser varrido por vários dias, aguentando o mal cheiro que lá existia.

Ele nem ia ligava. Dormia o dia todo mesmo e depois tomava um gole de cachaça assim que acordava no fim da tarde e saia novamente para voltar quando fosse novamente de manhã cedo. Todo dia era a mesma coisa: cachaça, violão e horas perdidas na madrugada em uma vida sem objetivos ou direção.

 

Naquela manhã ele assim que chegou a frente ao barraco percebeu que a porta estava entre aberta e isso era normal, pois tinha mais uma vez quando saíra deixado de tranca-la. Assim que adentrou nele ele notou que tudo estava arrumado e colocado em seu lugar, que o chão tinha sido varrido e o ar cheirava limpeza.

Foi até a cozinha – o barraco tinha dois cômodos: o de entrada que tinha uma cama velha com uma das pernas quebradas e uma cômoda com as gavetas empenadas, onde ele guardava os seus trapos, dele se passando para uma cozinha pequena que só tinha uma janela e sem porta de saída - e lá ele encontrou também tudo muito limpo e arrumado. Será que a mulata tinha voltado?

 

 

E nessa hora ele abriu os olhos de verdade. Dessa vez não estava sonhando que acordava, mas tinha mesmo acordado e pela sutileza de um pombo que cagara bem em sua testa. Passou a mão por ela e arrancou dela aquela pasta fedorenta.

Sem limpar a mão ele a enfiou no bolso a procura de alguma moeda, se é que tinha, para tomar uma cachaça pra rebater e tirar aquele gosto amargo da boca.

É lógico que ele nem ia até o barraco que com certeza estaria todo sujo e solitário.

Pra que? Passou a mão no violão, que naquela hora estava desafinado e com uma das cordas quebradas, e se dirigiu cambaleante para um boteco ali perto, afinal sua vida era perambular pelas ruas e os bares da vida eram onde ele encontrava a cachaça que era o seu verdadeiro grande amor.

 

 

Ele não Acredita Mais em Papai Noel

 - Já faz dias que o Gilmar anda estranho.

 

- É, parece que ele sofre de algo, mas está sempre sorridente e de bom humor.

 

Assim eram os comentários feitos pelos funcionários que andavam pelo pátio, nas salas e por toda a repartição.

Em seu tradicional andar desconjuntado, o Gilmar ia de sala em sala, à cozinha tomar um cafezinho e conversar fiado com Dna. Ordália, a servente que fazia o café dos funcionários. Rodava por toda a repartição, distribuindo sorrisos e dono de um humor intocável.

Quando estava em sua sala ele firmava-se de lado ao sentar-se em sua mesa, detalhe que ninguém havia percebido.

"É, pelo jeito está tudo bem", era o pensamento de todos em sua volta. Mas eles sentiam a existência de algo, e esse algo preocupava os amigos que, por puro instinto, sabiam que alguma coisa não estava bem com ele.

 

  

 

Na sexta-feira dia 23, antevéspera do Natal, os funcionários se reuniram, no final do expediente, para brindar e trocar abraços antes de irem para casa. O Gilmar era o mais alegre entre todos. Sorridente e despachado, ele distribuia com euforia os seus votos de boas festas.

 

- Bom Natal Dna. Ordália, e beijava com carinho a velha servente que o adorava.

- Bom Natal Pedrinho, vê se não me enche a cara de cachaça, em. Segunda tem expediente e nós precisamos de você inteiro por aqui.

- Feliz Natal chefinho, tomara que Papai Noel te traga um presente bem bonito, pra que você fique feliz e venha trabalhar na segunda menos exigente com o pessoal, ele brincava jocosamente com o seu chefe, o Delegado de Ensino, Dr. José Luiz Freire de Almeida.

Depois de inumeros abraços, e muitos brindes feitos com champanhe barato, fomos todos para casa.

 

Ao voltarmos ao trabalho - na manhã de

segunda-feira, dia 26 - cada um de nós falou do seu porre de Natal. Comentamos as nossas atitudes rid´culas, quando bêbados, e as canções cantadas molemente pela madrugada em festa.

Naquela manhã pouco, ou quase nada, se trabalhou. Muito sim, se falou sobre o ocorrido nos Felizes Natais.

Após o almoço, apareceu o Gilmar dando a todos um sorriso sem graça. Só ai eu percebi que ele não trabalhou pela manhã.

Todos sentiram o peso do sorriso forçado em seu rosto. Intuiram que algo de ruim tinha acontecido em seu Natal, sem imaginar o que poderia ter sido.

Mais tarde, quando ficamos a sós, eu lhe indaguei:

 

- E então, companheiro, parece que você não está nada bem. Algum problema ocorreu no seu Natal?

 

Ele me disse, confidencialmente e com ironia, enquanto me mostrava uma nota de uma clínica médica, especificando uma cirurgia urgente, que trazia o seu nome e a data de 25 de dezembro.

 

- Merda cara. Não me aconteceu nada, o meu Natal foi maravilhoso. Na noite do dia 24 para o dia 25 me estourou a morróide e eu o passei em uma mesa de cirurgia.

- Hoje eu volto para o trabalho sem poder sentar e com uma mangueira enfiada no rabo.

- Sim eu tive um bom Natal, meu amigo, só que agora eu não acredito mais em Papai Noel.

- Já faz dias que o Gilmar anda estranho.

 

- É, parece que ele sofre de algo, mas está sempre sorridente e de bom humor.

 

Assim eram os comentários feitos pelos funcionários que andavam pelo pátio, nas salas e por toda a repartição.

Em seu tradicional andar desconjuntado, o Gilmar ia de sala em sala, à cozinha tomar um cafezinho e conversar fiado com Dna. Ordália, a servente que fazia o café dos funcionários. Rodava por toda a repartição, distribuindo sorrisos e dono de um humor intocável.

Quando estava em sua sala ele firmava-se de lado ao sentar-se em sua mesa, detalhe que ninguém havia percebido.

"É, pelo jeito está tudo bem", era o pensamento de todos em sua volta. Mas eles sentiam a existência de algo, e esse algo preocupava os amigos que, por puro instinto, sabiam que alguma coisa não estava bem com ele.

 

Na sexta-feira dia 23, antevéspera do Natal, os funcionários se reuniram, no final do expediente, para brindar e trocar abraços antes de irem para casa. O Gilmar era o mais alegre entre todos. Sorridente e despachado, ele distribuia com euforia os seus votos de boas festas.

 

- Bom Natal Dna. Ordália, e beijava com carinho a velha servente que o adorava.

- Bom Natal Pedrinho, vê se não me enche a cara de cachaça, em. Segunda tem expediente e nós precisamos de você inteiro por aqui.

- Feliz Natal chefinho, tomara que Papai Noel te traga um presente bem bonito, pra que você fique feliz e venha trabalhar na segunda menos exigente com o pessoal, ele brincava jocosamente com o seu chefe, o Delegado de Ensino, Dr. José Luiz Freire de Almeida.

Depois de inumeros abraços, e muitos brindes feitos com champanhe barato, fomos todos para casa.

 

Ao voltarmos ao trabalho - na manhã de

segunda-feira, dia 26 - cada um de nós falou do seu porre de Natal. Comentamos as nossas atitudes rid´culas, quando bêbados, e as canções cantadas molemente pela madrugada em festa.

Naquela manhã pouco, ou quase nada, se trabalhou. Muito sim, se falou sobre o ocorrido nos Felizes Natais.

Após o almoço, apareceu o Gilmar dando a todos um sorriso sem graça. Só ai eu percebi que ele não trabalhou pela manhã.

Todos sentiram o peso do sorriso forçado em seu rosto. Intuiram que algo de ruim tinha acontecido em seu Natal, sem imaginar o que poderia ter sido.

Mais tarde, quando ficamos a sós, eu lhe indaguei:

 

- E então, companheiro, parece que você não está nada bem. Algum problema ocorreu no seu Natal?

 

Ele me disse, confidencialmente e com ironia, enquanto me mostrava uma nota de uma clínica médica, especificando uma cirurgia urgente, que trazia o seu nome e a data de 25 de dezembro.

 

- Merda cara. Não me aconteceu nada, o meu Natal foi maravilhoso. Na noite do dia 24 para o dia 25 me estourou a morróide e eu o passei em uma mesa de cirurgia.

- Hoje eu volto para o trabalho sem poder sentar e com uma mangueira enfiada no rabo.

- Sim eu tive um bom Natal, meu amigo, só que agora eu não acredito mais em Papai Noel.

 

 

Rosa Negra

 

 

Fazia mais de seis meses que PTOLOMEU dividia comigo o mesmo barraco.

Eu já não me assustava mais quando recebia dele respostas às perguntas que eu não fazia e que não eram mais que indagações que passavam por meu pensamento.

Já me acostumara com suas palavras amigas, que elevavam o meu moral sempre que eu me sentia deprimido e cheio de dúvidas sobre a minha vida. Passou a ser natural tê-lo como confidente porque eu não precisava falar nada, ele sabia tudo o que eu pensava e sentia. Minha vida, em muitos pontos, tinha se tornado bem mais facil. Muitas vezes a sabedoria e a simplicidade, que ele mostrava na solução de um problema que eu tinha na vida, tornava o meu viver bem mais simples e gostoso de ser vivido.

Se eu estava triste comigo mesmo, por ter percebido alguma de minhas falhas ou fraquezas, ele sempre dizia palavras que mostravam o meu outro lado. Falava de momentos em que eu me mostrara forte, do quanto era normal e humano falhar e que o importante era nos preocuparmos em não deixar que nossas falhas se repetissem sem tentar corrigi-las.

 

Na mesma semana, em que o PTOLOMEU apareceu em minha vida, mudou-se para o barraco vizinho ao qual eu morava uma mulata linda e bastou que eu a olhasse uma vez para que me sentisse completamente apaixonado por ela. Fiz de tudo para conquista-la.

Escrevi poemas que contavam o grande amor que me atingira, que louvavam a sua beleza e que me colocavam na posição de seu escravo. De meu violão tirei acordes melodiosos e cantei canções apaixonadas que em suas letras falavam do grande amor que eu sentia por ela.

Tudo foi em vão. Os meses se passaram e ela permaneceu insensível as minhas declarações e a força dos meus sentimentos. Eu sofria por essa rejeição, sem saber que a mesma era obtida por todos que tentavam conquistar a doce mulata.

Flor, era esse o nome da mulata, rejeitava a todos, mas era uma mulher romantica.

Ela sabia que, um dia em sua vida, apareceria um homem apaixonado pelo qual ela também se apaixonaria, só que ainda não o tinha encontrado.

Muitos tinham lhe declarado o seu amor, mas ninguém havia atingido o seu coração.

 

Era um fim de tarde calmo e eu estava sentado em um canto de meu barraco, vivendo as minhas mágoas e pensando nela, quando ouvi o PTOLOMEU me dizer:

 

- Já está me dando nos nervos essa sua paixão pela mulata. Você fica ai curtindo uma puta fossa e a vida vai passando. Está na hora de você ir a luta, meu chapa, na vida e no amor sempre é preciso muito esforço para se ser bem sucedido.

 

- Mas o que mais posso fazer, eu lhe respondi cheio de desespero? Já declarei a ela o meu amor de mil maneiras. Fui gentil e apaixonado, mandei-lhe doces, flores e de nada adiantou.

 

- Continue tentando, ele me disse. Vá até o quintal e plante uma roseira. Quando ela florir apanhe a primeira rosa que nascer e a leve para ela. Quem sabe assim você consegue atingir o seu coração.

 

Um tanto desesperançado, mas já acostumado a seguir os seus sábios conselhos, eu fiz o que ele me falou. Plantei a roseira e todos os dias eu a molhava e passava horas perto dela sonhando com a mulata chamada Flor.

Finalmente, numa manhã em que o sol refulgia mais brilhante que o normal, vi que havia uma rosa na roseira que eu plantara, e tamanha foi a minha surpresa quando eu vi que não era uma rosa comum. Sua cor era negra, num tom um pouco mais acentuado do que a cor da pele da mulata Flor. Estava coberta com gotas de orvalho também incomum, pois ele tinha um tom avermelhado escuro, cor de sangue.

Deslumbrado, eu apanhei a rosa e levei-a para a minha amada.

Ela ao ver aquela linda rosa negra, que eu lhe oferecia, me olhou com os olhos cheios de lágrimas e falou:

 

- Eu tinha certeza que um dia alguém me amaria de verdade e sabia que quando essa hora me chegasse saberia quem era ele e que sentiria a força do seu amor.

 

Ela então se jogou em meus braços e me entregou o seu amor que eu recebi sentindo-me o mais feliz dos homens.

Quando eu agradeci ao PTOLOMEU, pela rosa negra e pela ajuda que ele me deu para conquistar a mulher que eu amava, ele me falou:

 

- Você não percebe que eu não fiz nada? Quem plantou a roseira foi você. Tratou dela com carinho, regou-a todos os dias e por isso ele floresceu uma linda rosa. Quanto a ela ter nascido negra não foi por causa dos meus poderes. Foi à força do seu amor que fez com que isso acontecesse. Quando sentimos dentro de nós um verdadeiro e grande amor os milagres acontecem, basta nos dedicarmos a esse amor e dele não desistirmos.

 

 

Segredo Trágico de Uma Criança

Lágrimas grossas e salgadas deslizavam pela pele delicada do rosto angelical daquela criança e rolavam até sua boca deixando ela com um gosto amargo, enquanto o mesmo amargor dolorido invadia a sua alma.

Uma dor forte e intensa atingia o seu peito e ela tinha a impressão de ter o seu coração fragmentado em partículas pequenas, se tornando insensível à outra coisa além do sofrimento pelo qual era atingido.

Outro sentimento que também dominava aquela criança, naquela hora, junto a essa dor que a enchia de desespero, era um medo enorme de enfrentar a vida e viver o dia de manhã.

Vergonha, ela sentia muita vergonha e isso aumentava o seu desespero fazendo-a ficar confusa e sem saber o que fazer.

 

 

Ela estava sentada em seu quarto, com os olhos cheios de lágrimas e vazios, olhando para o nada. Revivia em sua lembrança os momentos terríveis e humilhantes pelos quais passou naquele entardecer, triste e nebuloso, no caminho pelo qual voltava da escola.

Era uma menina bonita e inocente que vinha sempre da escola com suas amiguinhas, todas crianças como ela, brincando e cantando cantigas de roda ou colhendo flores do campo pelo caminho para levar pra sua mãe colocar no vaso que tinha na sala de sua casa humilde. Como morava mais longe da escola que todas as outras crianças, quando passava pela casa que a última amiga que a acompanhava morava, ela deixava ela ali e ainda tinha de caminhar por muito tempo através de um caminho solitário para chegar até a sua.

Naquela tarde ela caminhava depressa porque já era tarde, e ela queria chegar em casa antes que escurecesse, quando foi abordada por um homem magro e alto com a barba por fazer:

 

- Menininha, por favor.

 

- Sim senhor, ela respondeu com educação apesar do susto que sentiu ao ver aquele desconhecido surgir do nada naquele lugar ermo.

 

Ela não tinha terminado de responder, quando teve a sua boca tapada pela mão daquele desconhecido e foi arrastada por ele com violência para um bambuzal cerrado que havia na beira do caminho.Nele, ao som dos gritos lamurientos, dos pedidos por piedade e o choro convulsivo da pobre criança, ele a estuprou.

Quando aquele animal a largou, jogada entre os bambus, ela foi para casa abalada com o que lhe tinha acontecido e quando lá chegou escondeu de todos o que tinha acontecido. Trocou de roupa e depois sumiu com a que estava usando quando voltava da escola, que estava toda manchada de sangue, sem que ninguém visse.

Foram os mesmos sentimentos que agora a torturavam, o medo e a vergonha, que fizeram com que ela agisse assim e escondesse de seus pais e de todos a desgraça que lhe tinha acontecido. Só a sua boneca de louça ouviu seus lamentos e foi testemunha do desespero que a dominava e de seu sofrimento.

 

 

Ela sentiu naquele momento um pulsar de vida dentro dela e, apesar da sua inocência, seu instinto de mulher lhe deu a certeza da conseqüência maior da desgraça que tinha lhe acontecido. Ela teve certeza que estava grávida daquele desgraçado que a tinha estuprado.

Olhou e viu sua boneca velha e quebrada, que tinha só um olho de vidro. Sua primeira boneca, que ganhou quando ainda era bem pequenininha e ainda era seu brinquedo predileto.

Seu olhar correu até o material escolar que estava espalhado sobre sua mesa de estudos. Cadernos, lapiseiras,canetas, tintas, seu livro de matemática, os mapas que a faziam sonhar com viagens e com terras desconhecidas e encantadas.

Parou o olhar sobre um estilete de cor amarela que usava para cortar papéis quando fazia os seus trabalhos da escola. Agindo como se tivesse hipnotizado por ele, ela caminhou como uma sonâmbula até o estilete, pegou-o e passou sua lámina afiada em seu pulso.

Horas depois seus pais a encontraram, já sem vida em meio a uma poça de sangue, caída sobre o chão do quarto.

 

 

A boneca de louça toda desconjuntada, jogada em um canto do quarto, foi testemunha dessa tragédia cruel. Seu único olho via aqueles pais e o desespero deles quando viram sua filha, estendida sem vida no chão do quarto, sem entenderem o porque daquela desgraça.

A boneca era a única que compreendia tudo, pois tudo aquilo que a criança tinha escondido dos pais e de todos, ela tinha contado para a sua boneca querida.

 

 

O Passamento da Velha Contadora de Estórias

 A velha contadora de estórias partiu. Teve o seu passamento com seus já 104 anos completados e o entra e sai no final da tarde foi grande. A porta de madeira bruta rachada, da casa em que ela morava, ficou aberta. Seus batentes presos, na parede de taipa, estavam frouxos e fora de nivel, facilitando assim a sua permanência aberta sem que fosse preciso uma pedra para escorar.

Quem adentrava por ela, para se despedir da velha, encontrava a sala vazia de seus móveis rústicos - haviam sido retirados e amontoados em um canto no fundo da casa.

 

 

 

Feitos com caixotes de bacalhau e cobertos com almofadas tortas, alinhavadas a mão, feitas de retalhos coloridos e enchidas de palha de arroz, a sala era cercada de assentos improvisados para os caboclos e as carpideiras que passariam a noite velando à falecida.

No centro do chão de terra batida, sobre uma mesa de pau que tinha uma perna quebrada e por isso era escorada por um pedaço de bambu, estava o corpo da velha esticado sobre uma rede na qual seria enrolado e levado para o campo santo ao lado da igreja e jogado dentro de uma cova rasa.

O povo do lugarejo estava em peso a fazer sentinela. Gente crente e humilde. Os caboclos de pé no chão, com a casca grossa do calcanhar rachado, acompanhavam as cantadeiras na ladainha que varava a madrugada.

 

Dúzias de Pai Nosso: "Pai Nosso que estais no céu,

santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos aqueles que nos tem ofendido e não nos deixei cair em tentação mas livre-nos do mal. Amém".

Outras dúzias de Ave Maria: "Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as mulheres e bendito o fruto do vosso ventre Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai ppor nós pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém".

A madrugada passou e aquelas velhas crentes, e os seus homens respeitosos a Deus, a ele louvaram com Salve Rainhas. Rezaram várias vezes o Credo e pediram pela alma da velha aos santos, a Rainha mãe, ao Pai e ao Filho cruxificado.

 

Vez em sempre um caboclo ou outro saia para o terreiro esticar as pernas. Fumar o seu fumo de corda, enrolado na palha do milho, e tomar um trago da cachaça que seu Quinzinho do alambique trouxera para colaborar com o velório.

Então voltava à sala para fazer parte do coro de louvação:

 

- Salve mãe poderosa, rogai por nós. Salve a consoladora dos aflitos, rogai por nós. Salve o menino Deus, rogai por nós. Salve o Pai misericordioso, rogai por nós.

 

A reza também era interrompida por um ou outro para um bate queixo.

As carpideiras haviam preparado bolo de aipim, broa de milho, bolachão e garapa de cana para encher o bucho dos velantes e lhes dar força para varar a madrugada.

 

Quando o dia clareou o povo se aboletou no terreiro. O corpo da velha foi enrolado na rede mortuária. A rede foi presa em uma taquara forte e dois caboclos levaram o corpo, rijo e encarquilhado, da velha para a sua morada final.

Um cortejo de gente humilde e maltrapilha o seguiu. Na frente o padre da vila, vestido com uma batina negra, dizia em voz alta:

 

- Mãe louvável, rogue por nós. Virgem fiel, rogue por nós. Mãe da igreja, rogue por nós. Consoladora dos aflitos, rogue por nós.

 

E em um coro uníssono de vozes o cortejo respóndia:

 

- Mãe louvável, rogue por nós. Virgem fiel, rogue por nós. Mãe da igreja, rogue por nós. Consoladora dos aflitos, rogue por nós.

 

A velha contadora de estórias foi colocada em uma cova rasa e o seu corpo coberto de terra.

Aquele povo não mais a ouviria contar estórias, mas muitas histórias seriam contadas falando dela.

Histórias que falariam de uma velha que contava estórias repletas de autenticidade em seus enredos. Que alegrava a sua gente, humilde e carente, com sonhos e fantasias que maravilhavam a todo o mundo.

 

 

Alegrias Falsas 

Não sobrava tempo para aquela mãe prestar atenção nas necessidades de seu filhinho porque ela era uma mulher muito atarefada, que passava grande parte do seu tempo no trabalho. No pouco que lhe sobrava tinha que tratar dela mesma, afinal era uma mulher elegante e era de vital importância se cuidar para preservar a sua imagem.

Ainda tinha que olhar se o serviço da casa era bem feito pelos empregados e comparecer a compromissos sociais e jantares importantes para o seu marido. Tinha o seu tempo todo tomado e não precisava se preocupar com a criança, afinal nada lhe faltava.

 

 

 

Ela sempre ganhava presente caro. No aniversário, no natal, na páscoa ou em qualquer data festiva e a babá que tomava conta dela era de confiança. Não, ela não tinha com o que se preocupar.

A criança cresceu nesse "ambiente perfeito" onde cada desejo seu era realizado, pois seus pais eram pessoas importantes e ele uma criança privilegiada. Só que se fez um jovem problemático que tinha tudo menos o que mais precisava e ansiava na vida, os seus pais perto dele e participando dela.

Quando se tornou adolescente passou a guiar um carro zero, mesmo sem ainda ter a sua carteira de motorista, com muita irresponsabilidade. Quando causava algum prejuízo no trânsito ou era parado por um policial, o dinheiro de seu pai sempre resolvia o problema. Se engravidasse uma pobre garota, iludida pela imagem que ele apresentava, para ela só restava arcar com as conseqüências. Ele nada assumia na vida.

Seus estudos iam de mal a pior. Se passava de ano era por que estudava em um colégio caríssimo, onde para a direção dele tudo o que importava era não perder a mensalidade exorbitante que era paga pelo seu pai.

Só conhecia o trabalho por ouvir falar nele, ignorando a importância e o valor que ele tem no desenvolvimento do ser humano.

Tinha tudo na vida e a imagem que apresentava nas festas fazia com que os seus amigos, e todas as pessoas com quem ele mantinha contato, sentissem dele uma pontinha de inveja, mas ele em seu íntimo era um jovem muito triste porque o que mais desejava e precisava na vida sempre lhe faltou. A atenção, o carinho, o afeto e a dedicação de seus pais.

Pra fugir dessa tristeza, e preencher um grande vazio que existia em sua alma, ele procurou fazer algo só que fez da maneira errada. Quis fugir da sua dura realidade com sonhos e ilusões e acabou se tornando um rapaz viciado em drogas. Sua vida estava terminantemente destruída.

 

 

"Muitas crianças que cresceram em ambientes humildes e carentes, que conheceram a miséria e a necessidade, quando ficaram adultas se tornaram grandes homens. Isso aconteceu porque tiveram o apoio das pessoas que amava e apesar da carência das coisas materiais, que tiveram em suas infâncias, receberam amor de seus pais.

A uma criança pode-se dar tudo e do melhor materialmente, mas se lhe faltar o verdadeiro amor, de que tanto precisa, o carinho, o apoio e a educação proporcionada com dedicação por sua família ela nada terá recebido. Só terá uma vida de alegrias falsas. Crescerá triste, vazia e carente. Sua vida estará fadada a não valer a pena de ser vivida".

 

 

Uma vida patética

Ainda não tinha completado os seus onze anos e ele já havia terminado o curso primário. Criança cordata, aluno dedicado e esforçado, era muito querido pelas professoras e pelas visinhas de sua mãe, Dna. Anita.

Ela ficara viuva cedo. Mãe prestimosa e mulher caseira, assim se mantiveram.

Para ganhar o seu sustento e o do filho, de seus cadernos e seus lápis, ela passava horas costurando em uma máquina SINGER, cansando as pernas e desenvolvendo nelas varizes com o esforço de pedalar para faze-la costurar.

Quando não estava costurando estava sempre a limpar, lavar, encerar e a tirar o pó da casa.

E sempre sobrava um tempo para se dedicar a Deus.

 

 

 

Todo dia ia a primeira missa, as seis da manhã. Quando ela terminava e os fiéis iam para casa, Dna. Anita era a única que ficava na igreja.

Ajudava o padre Eustáquio a dobrar as suas vestes sacerdotais, varria a igreja toda arrastando os pesados de madeira, limpava o pó dos altares e trocava as flores dos santos antes de ir para a rotina de sua casa e de sua costura.

Quando anoitecia, ela depois de dar o jantar para o filho e coloca-lo para dormir, com um rosário nas mãos se ajoelhava em frente ao oratório que tinha na sala e rezava.

Pedia a Deus sempre as mesmas coisas. Que não faltasse o alimento em sua casa, saúde e forças para criar o seu menino, pelo bom padre Eustáquio e pelo descanço da alma do seu falecido marido.

Nunca deixava de pedir pelo maior desejo de sua vida, que seu filho crescesse e se fizesse padre.

Ele se fez moço, concluiu o curso ginasial e as orações de sua mãe foram atendidas. Com a ajuda do bom padre Eustáquio, ele foi para o seminário onde estudou. Passou lá quatro anos de sua vida mas não se fez padre.

Aprimorou o seu saber, aprendeu latim e traduzia o francês muito bem. Aprendeu a gostar de ler os clássicos e se apaixonou por Homero, Vergílio, Garret e Herculano. Só que não havia nascido para a batina.Sentia desejos carnais sempre que via uma mulher bonita.

Logo que sua mãe morreu, antes de que lhe fosse aberta à tonsura, ele resolveu deixar o seminário.

A forte educação que lá recebera o ajudou a se reajustar e a se encontrar na vida. Prestou concurso público e se tornou funcionário de um departamento. Conheceu uma moça bonita com a qual casou, montou casa e teve uma linda filha que tinha os olhos, o sorriso e os cabelos negros iguais ao da mãe.

Os anos passaram e ele não tinha o que reclamar da vida.

Como tinha sido a sua falecida mãe ele também era uma pessoa caseira, dedicada à família e que com muito pouco se sentia feliz.

Trabalhava com afinco e era estimado pelos amigos. Passava horas em casa com a filha que adorava e com a mulher que muito amava.

Mas houve um dia em que tudo se tornou negro para ele. Descobriu que sua amada esposa lhe era infiel. Enquanto ele passava horas lendo, versejando e atirando ao papel alguns ritmos de sentimentos, sua mulher saia para passear ou fazer compras. Ela se encontrava com um amante e o traia se entregando a outro homem.

Lágrimas surgiram em seus olhos, sentiu-se aviltado e humilhado. Amava ardentemente aquela mulher vil que era a mãe de sua filha. Chorou e pela primeira vez na vida tomou uma cachaça. O seu caminho estava traçado.

 

# # #

 

As pessoas que formavam a assistência daquela missa eram todas iguais. Todas eram moças e crianças que tinham o mesmo rosto, o mesmo sorriso e todas tinham cabelos negros.

Elas sorriam para padre Eustáquio que rezava a missa, em uma igreja que ficava no centro de uma nuvem, e era nela ajudado por sua mãe.

Atrás do altar, na grande cruz de madeira no lugar do cristo crucificado, era ele que estava preso a cruz e de seus olhos escorriam duas lágrimas.

 

# # #

 

Ele abriu os olhos e as imagens se esvaeceram. Sentiu dores nas juntas e por todo o corpo, pois tinha passado a noite estendido em um duro banco de madeira de uma praça.

A muito tinha deixado a sua casa e saído a procura do esquecimento.

O pesadelo que tivera o fizera lembrar-se de seu passado há muito escondido pela bebida.

Chorou naquela manhã, chorou por ter pena de si próprio.

Pegou a sacola de lona sebenta que tinha lhe servido de travesseiro, e onde estava tudo o que ele tinha na vida, dela tirou uma garrafa de cachaça e tomou um grande trago, que foi o seu café da manhã.

Com as costas da mão ele enxugou as lágrimas e se dirigiu ao chafariz, no centro da praça. Nele lavou o rosto e com o dedo esfregou os dentes e as gengivas.

Voltou até o banco, que lhe servira de cama naquela noite, e pegou a sua sacola sebenta e remendada.

Com um andar cambaleante e arrastado, em seus trajes encardido e rasgado, ele saiu em direção ao posto de saúde pública. Precisava tratar da ferida que apodrecia a sua perna.

 

* Alguns contos da fase um foram criados no Japão, inspirados na saudade que o autor sentia das pessoas amigas e amadas, e também nas doces lembranças da sua adorada terra natal.

 

 

 

   Fase Dois – JAPÃO    

 

 

Exílio Financeiro

 "Brasil, terra tão amada e vergonhosamente mal governada. A dor da saudade machuca o pobre coração do Poeta, este saudoso exilado financeiro, que politicamente tem muita vergonha de ser brasileiro."

 

 

 

Todo brasileiro conhece, já foi ou costuma ir a uma feira livre uma vez ou outra.

Em uma rua de um bairro, num lugar específico criado pela prefeitura e as vezes até em uma praça de alguma cidade, são montadas barracas na madrugada e por toda a manhã acontece o comércio das mais variadas mercadorias.

Grandes feirantes apresentam em suas tendas frutas, legumes e verduras frescas. As pessoas que nelas trabalham apregoam a qualidade e a vantagem dos seus preços aos gritos, numa concorrência acirrada:

 

- Olha o tomate freguesa. Ta no ponto pra se faze uma gostoza salada. É só dois reais a caixa. Vamos levar que ta baratinho.

 

- Quiabo pra faze refogado gente. Só cinqüenta centavos a baciada. Ta barato dona, vamos leva.

Sobre um tabuleiro de uma pequena barraca tem um monte de abacaxi maduro, com a casca ficando dourada, e o moço da banca, com sua faca na mão, apregoa enquanto descasca um deles:

 

- Aqui tem abacaxi madurinho. Ta gostoso e melado. Vamos experimenta que não paga nada.

 

As pessoas param em frente a uma barraca, apalpam os legumes e experimentam as frutas. Vão de uma em uma a procura da mercadoria mais fresca e do preço mais barato.

Em uma feira livre você encontra de tudo. Sempre tem nela, além das grandes bancas, diversas pessoas que estendem um pano no chão para sobre ele apresentar as mais variadas bugigangas. Pimenta do reino, folhas de louro e os mais variados condimentos, carretéis de linha e agulhas, alpargatas e sandálias havaianas, papagaios de papel colorido, etc...

Nela você também nunca deixa de encontrar, além do passarinheiro que ali vende os animais que capturou e o fazedor de gaiolas com várias delas a disposição, sempre uma pessoa sentada em uma cadeira velha, que tem uma das pernas quebradas, com uma caneta na orelha e um bloco na mão.

Ele está ali para fazer o jogo do bicho para as pessoas que gostam de fazer uma fezinha.

O que não falta nessas feiras livres são os mendigos. Inúmeros pedintes vão a elas para implorar a caridade das pessoas e, em seu final, recolher os restos para matar a fome.

Quando eu morava no Brasil era um assíduo freqüentador delas. Todos os domingos pela manhã eu ia fazer a feira.

Ta certo que era uma desculpa para encontrar com os amigos e tomar uma cerveja, mas a minha mulher ficava contente de ver-se livre dessa obrigação e eu fazia o papel de bom marido.

Duas semanas antes de me mudar para o Japão, eu fui à feira acompanhado de minha filha.

Quando lá chegamos, a primeira coisa que ela fez foi me pedir o que toda criança pede quando vai a feira:

 

- Papai, eu quero pastel e guaraná, compra?

 

Fomos até uma barraca de salgados, em que eram vendidos uns saborosos pasteis fritos na hora, e pedimos dois deles. Eu pedi também uma cerveja gelada para tomar enquanto os comiamos.

Ao terminar de tomar uma segunda cerveja, e depois de ter comido vários pasteis, eu estava empanturrado. Peguei a metade de um pastel que ainda comia e o joguei no cesto de lixo.

Nessa hora eu me assustei, quando vi surgir um braço por trás de mim e apanhar o pedaço de pastel que eu tinha jogado fora.

Olhei para trás e o que eu vi me deixou chocado.

Era um homem ainda novo, mas que a vida havia envelhecido. De extrutura magérrima, ele tinha a aparência que só a fome e a miséria permitem que um ser humano venha a ter. Seu rosto encovado, com a barba há dias sem fazer, me olhava com dois olhos fundos e assustados, como se ele tivesse feito algo muito errado.

Ele falou com a voz cheia de pânico, parecendo que sentia medo de mim:

 

- Não fica brabo comigo não moço. Eu só peguei porque o senhor jogou fora. To com muita fome. Não acha ruim comigo não.

 

Meus olhos encheram-se de lágrimas.

Se eu tinha alguma dúvida quanto ao estar fazendo o certo ao deixar o meu país, para tentar uma vida melhor em outro lugar, naquele momento elas deixaram de existir. Eu tinha decidido ir embora do Brasil e tinha certeza de que não ia me arrepender.

Ninguém se arrepende de deixar a sua terra, se nela os seus filhos passam fome e ainda se sentem culpados por isso.

 

 

A Chegada

 Quando o vôo da KOREAN AIR LINES, no qual eu e minha esposa viemos para o Japão, aterrou no aeroporto de Narita, já era final de tarde. Como o nosso destino era a cidade de Isezaki - sabia lá eu onde é que ficava isso - um carro nos esperava no aeroporto para até lá nos levar.

Após três horas rodando por rodovias largas de primeiro mundo, cortando montanhas e parando em diversos pedágios o funcionário da empreiteira, que tinha a sua sede nessa cidade chamada Isezaki, nos levou para um apartamento provisório. Dois dias depois, após legalizarmos a nossa documentação, iríamos para outra cidade onde ficava a fábrica em que trabalhariamos.

 

 

Já era noite. Ele nos deu a chave do apartamento e disse para descansarmos que no outro dia, às nove horas da manhã, voltaria para nos acessorar.

A troca de fuso horário, a euforia de estarmos no início de uma grande aventura, o desejo compulsivo de viver aqueles momentos fez com que, mesmo cansados, nós nada descansássemos.

Quando o dia amanheceu nada tinhamos dormido. Passamos a noite conversando. Falando de nossos sonhos, de nossos projetos e de nossas esperanças.

Mal o dia clareou, eu cheio de curiosidade, abri a janela do apartamento para ver como era o local onde estávamos.

A primeira visão que eu tive foi a de um karaçu - pássaro negro conhecido no Brasil como corvo e tido como um animal de mau agouro - que estava em um fio da rede elétrica. Ele grasnou e eu me enchi de temor. Aquele pássaro negro grasnando agourento trouxe para mim lembranças de estórias criadas pelo preconceito de um povo antigo.

 

- Meu Deus, eu falei. - Será que desgraças estão marcadas em nosso caminho por esta terra?

 

Como o funcionário da empreiteira havia marcado conosco de vir às nove horas, e ainda eram quatro e meia da manhã, resolvemos dar uma volta pelos arredores.

O apartamento em que estávamos ficava ao lado da estação de trens da cidade. Usamos isso como ponto de referência e saimos de mão dada embevecidos pelo desconhecido. Andamos por dois ou três quarteirões e o medo de nos perdermos nos fez decidir voltar.

Ao voltarmos, grande foi a surpresa quando, vimos uma placa em um estabelecimento comercial. Entre tantas placas e anúncios escritos com caracteres que nos eram desconhecidos nós lemos claramente em uma delas:

 

CANTINA DA TIA

 

- Que porra é aquela ali?

- Sei lá eu! Vamos até lá pra ver.

 

Fomos.

A placa ficava sobre uma porta corrediça, muito comum aqui no Japão, de vidro opáco e não transparente. Era pequena e gasta e as intempéries do tempo fez com que ela perdesse o seu viço e as letras fossem falhas.

Como a porta estava encostada a curiosidade fez com que eu a empurrasse.

Que enorme surpresa.

Atrás daquela porta tinha um boteco. Sim, um bar igual aos das cidades pequenas no Brasil. Espaço pequeno e balcão de madeira gasta. Atrás dele uma prateleira contendo garrafas de cachaça, Martini, cinzano e inúmeras bebidas típicas e fabricadas no Brasil.

Em um fio de arame, esticado sobre o balcão, tinha pendurado carne seca e lingüiça defumada.

 

- Eu não acredito, eu disse. O que é isso aqui?

 

Não tinha ninguém ali mas a curiosidade nos levou a nele entrar.

Caminhamos adentro, olhando tudo abismados. Quando chegamos no fundo do bar - ele era pequeno e três mesas, onde eram servidas as refeições, faziam dele um corredor - vimos que ali era um banheiro e que ele estava sendo lavado por uma senhora.

 

- Que susto, ela disse quando nos viu. Que é que voces querem, ainda não está aberto?

 

Nós não sabiamos mas o horário comercial aqui no Japão abre às dez horas da manhã e fecha às vinte horas.

 

- Desculpe dona, eu disse. A gente chegou hoje do Brasil e quando vimos a placa ai fora ficamos curiosos.

 

- Chegaram hoje? - Tudo bem. Querem alguma coisa, já tomaram café?

 

- Não dona. A gente não tem dinheiro. Chegamos ontem à noite e estamos só querendo conhecer. O moço da empreiteira vem buscar a gente às nove horas e saimos pra passear até lá.

 

- Ta legal, ela disse. Então se sentem aqui que eu vou preparar um café bem gostoso pra nós. É por conta da casa.

 

Fez com que sentassemos em uma das mesas e foi para trás do balcão. Eu e minha mulher sentamos. Calados e acanhados, naquela situação, ouvimos ela perguntar enquanto preparava o café:

 

- E vocês são de onde lá no Brasil?

 

- De São Paulo dona. De Mogi das Cruzes.

 

- Mogi das Cruzes?! - Você conhece lá a farmácia DROGA D`OURO?

 

 

"DROGA D`OURO, meu Deus”. Isso são lembranças de minha infância, eu pensei, de trinta anos atrás.

Mogi das Cruzes, hoje uma cidade universitária, uma grande cidade do estado de São Paulo. Asfalto, calçadão em seu centro - onde o tráfego de veículos é proibido e as ruas do comércio são de uso exclusivo das centenas de pedestres que por elas transitam. Duas universidades cada qual contendo inúmeras faculdades. Grande poder político. Gente de todo o país nela morando em suas repúblicas estudantis.

Na minha infância não era assim. Cidade pequena no subúrbio da capital. Tinha uma padaria, vários botequins e pequenas lojas para suprirem o comércio local. Duas ou três escolas primárias, uma velha igreja - a de Nossa Senhora do Carmo,

construção centenária erguida com paredes de pau a pique, barro batido com taquaras cruzadas em seu centro, com mais de um metro de largura cada uma - e a catedral.

As ruas principais tinham o seu calçamento feitos de macacos - pedras retangulares que eram encaixadas e revestiam a rua de forma uniforme - ao invés do asfalto de hoje. As da periferia eram ruas de terra batida onde os moleques furavam o chão e jogavam bola de gude.

Só havia uma farmácia nessa epoca e essa tinha uma grande placa amarela com o seu centro escrito com letras vermelhas: DROGA D`OURO".

 

 

- Conheço sim. Era a única farmácia na cidade quando eu era moleque.

 

- Pois ela era de meu falecido marido. Ele era o farmacêutico e eu ajudava no balcão. - Quando ele morreu eu vivi mais algum tempo no Brasil. As coisas apertaram e eu e minha irmã viemos para cá. Estamos a já quase dezoito anos vivendo aqui.

 

 

Essa foi a minha primeira amiga aqui no Japão.

Ainda hoje, nos momentos de folga, costumo pegar um trem e me deslocar até a cidade de Isezaki para visitá-la.

É gostoso ir até lá, sentir o carinho da doce velhinha e comer aquele arroz, feijão, bife e ovos acompanhado de salada que ela prepara. O chamado comercial, prato do dia a dia do trabalhador brasileiro.

 

 

Percalços dos Primeiros Tempos

 

 

 

Impulsionado por um pedalar calmo e compassado, eu cortava o asfalto à beira de ruas estreitas. Passava por casas comuns construídas com madeira fina e zinco. Todas erguidas com material leve.

Neste lugar as pessoas não as constroem pensando na durabilidade. A preocupação maior é que as casas sejam as mais seguras possíveis no caso de ocorrer um terremoto, acidente natural que é muito comum por aqui.

Margeando o caminho que eu percorria também havia muitos espaços abertos. A maioria deles alagados, onde o arroz brotava da água.

Neste país é muito comum a gente passar por arrozais quando se vai para o trabalho, se está passeando ou mesmo quando nos deslocamos da região onde moramos para conhecer novos locais. Arroz... Por todo o Japão há sempre, seja qual for a região ou província, muitos pedaços de terra em que o arroz é plantado.

Quando cheguei aqui tudo era novidade que me deixava admirado, confuso e assustado. Saia para o trabalho sempre com alguém para me conduzir até ele, pois não sabia como me dirigir até lá.

As ruas não são como é comum no Brasil, reta em sua maioria, se cruzando e formando quadras quase sempre retangulares. Normalmente são tortuosas e quando não conhecemos a região em que caminhamos é comum se tomar uma direção e irmos parar em outro local, não aquele para qual nos dirigíamos.

As placas nas avenidas, nos restaurantes, nas lojas. Tudo escrito em kanji, hiragana e katakana, o que aqui me tornava em um analfabeto. Além de analfabeto, pela falta total de conhecimento da escrita, eu me senti mudo e surdo.

Não adiantava falar que as pessoas não entendiam o que eu dizia e muito menos ouvir, o que me causava desespereo e irritação por não entender uma palavra do que era dito.

No terceiro ou quarto dia, não me lembro bem, aconteceu a primeira trapalhada.

Minha esposa, depois de abrir a geladeira e se certificar de que nela havia óvos, pediu para que eu fosse a um supermercado japonês, há alguns metros do apartamento onde estávamos morando, e comprasse óleo para fritá-los.

Eu fui. Lá, bastou nele entrar para a minha cabeça entrar em parafuso.

Aquele monte de produtos marcados com caracteres estranhos, comidas exóticas e de aparência nauseante - NATO: caixinhas de papelão contendo feijão azedo coberto por uma calda branca e gosmenta, TOFU: queijo de soja que depois eu descobri ter gosto de palha molhada - era impossível saber o que era o que.

Comecei a andar entre as prateleiras, olhando tudo com muita curiosidade, a procura do que a minha mulher pedira. Depois de vinte minutos de procura encontrei o que eu achei que seriam vidros de óleo comestível.

Havia frascos que eu imaginei serem de diversas marcas, pois seus rótulos eram diferentes. Alguns além dos kanjis neles impressos tinham também desenhos de girassóis, de folhas de oliva.

"É, isso deve ser óleo", eu pensei.

Comparando os valores impressos nas etiquetas de preço eu optei pelo mais barato. Peguei um dos frascos que não tinha nele desenho algum, só aquelas letras estranhas, e levei para casa.

Quando eu lá cheguei disse para a minha mulher que deixasse que eu fritasse os ovos.

Peguei a frigideira, nela eu coloquei o óleo que havia comprado e acendi uma boca do pequeno fogão.

Assim que começou a esquentar o conteúdo da frigideira começou a espumar.

Minha mulher olhou então, pela primeira vez, para o frasco de óleo que eu havia comprado e me disse, caçoando e dando gargalhadas:

 

- Bem, esse vidro que você comprou não é de óleo não. Você comprou detergente!

 

Passado uns quinze dias a trapalhada foi muito, mas muito maior.

Há dias que esperava por uma folga no trabalho para ir pescar em um rio que eu vivia namorando da janela de nosso quarto.

Em frente ao prédio de apartamentos em que morávamos passava uma longa avenida e atrás, corria paralelo, um grande rio.

Naquele dia eu peguei uma vara, algumas tralhas de pesca, uma garrafa de wisque e fui para a beira do rio. Caminhei por sua margem, em direção contrária a força da água, por uns quatro ou cinco quilômetros.

Quando encontrei um lugar, calmo e limpo a beira d"água, ali eu me sentei.

Uma hora depois - eu nada havia pescado e há muito que já desistira da vara e passara a contemplar embevecido o vôo de uma enorme águia -

resolvi voltar para casa. Juntei os objetos de pesca e com a vara nas costas, de chinelos, calção e camiseta eu empreendi o meu retorno.

Resolvi que não voltaria pelo caminho que viera.

Eu iria pela avenida que era paralela ao rio e aproveitaria para conhecer um pouco por ali - eu não sabia que a avenida que passava em frente de casa, um pouco à frente, se cruzava com o rio e tomava uma direção diversa.

Sai da beira do rio e me dirigi para a avenida que passava ao seu lado. Nela eu peguei a direção contrária a qual eu tinha vindo e comecei a caminhar.

Depois de andar mais de uma hora, percebi que alguma coisa estava errada. Ou eu já tinha passado por perto de onde morava, e não percebera, ou aquela não era a avenida que eu imaginava.

A noite se aproximava e com ela o frio que ela traria. Eu estava perdido. Não tinha nenhum documento e não levava comigo nem ao menos um papel que marcasse o meu endereço.

Após caminhar mais uma meia hora eu vi um posto de gasolina e resolvi ir lá pedir ajuda. Dois japoneses que lá trabalhavam não entenderam nada do que eu falava e eu muito menos o que eles diziam. Acabei acenando com a mão e indo embora.

Andei, andei...

Muito tempo depois percebi que eu tinha andado em círculo e que estava novamente em frente ao posto em que já havia em vão procurado ajuda.

Os funcionários do posto, assim que me viram, tentaram falar comigo. Não havia entendimento na tentativa de comunicação, quanto mais eles falavam mais confuso eu ficava.

De repente, eu percebi que só um deles falava comigo e que o outro estava dentro do posto com um telefone na mão. Tive certeza de que ele chamava a polícia.

Ao invés de esperar e receber ajuda eu me apavorei. Dei as costas e me afastei dali.

Ao chegar na esquina uma viatura surgiu e foi em direção ao posto.

Apavorei-me, virei a esquina, entrei em uma rua estreita e tortuosa e por ela eu caminhei com pressa. Fugi dali, ao invés de esperarar e receber ajuda, meu medo do desconhecido me levou a continuar perdido.

Passaram-se as horas. Escureceu e eu devia parecer um louco. Caminhava com pressa, suado e cansado, pela noite fria. Todo mundo com quem eu me encontrava me olhava e eu a cada momento me sentia mais apavorado.

De repente, o milagre aconteceu. Eu vi aquelas lindas bandeiras amarelas, tremulando ao vento da noite e iluminadas pelo clarão daquela avenida em que eu me encontrava perdido.

Todos os dias pela manhã a condução, que eu pegava para ir ao trabalho, passava em frente a um pachinco - casa de jogos muito comum por todo o Japão - que estava com os seus jogos em promoção. Essa promoção era anunciada em várias bandeiras amarelas com grandes kanjis vermelhos.

Eu estava salvo. Aquelas eram as bandeiras que eu via todas as manhãs. Naquela avenida, ali perto, ficava a minha casa.

Quando cheguei em frente ao prédio em que morava, cheio de euforia e contentamento, deparei com a minha esposa junto a dois funcionários da empreiteira que era a nossa contratante.

Ela chorava desesperadamente. Eles a consolavam e todos traziam estampado no rosto muita preocupação.

Quando me viram vieram em minha direção, todos falando ao mesmo tempo:

 

- Carlos! Onde você estava?

 

- Ô cara, puta susto que você nos deu.

 

Minha esposa, chorando copiosamente, se jogou em meus braços e balbuciou entre os soluços:

 

- Você está bem?

- Meu Deus, que susto você deu na gente.

 

Um dos funcionários falou para o outro:

 

- Vá até lá e avise o pessoal que ele está aqui.

 

Ele foi até perto do rio e gritou:

 

- Ei, podem parar de procurar. O filho da puta está aqui e está bem.

 

Alguns momentos depois quando surgiram, vindos da beira do rio, meia dúzia de amigos da fábrica, munidos de lanternas, foi que eu entendi o que havia acontecido.

Quando eu não voltei para casa a minha mulher havia se apavorado e telefonado para a empreiteira. Eles, não imaginando o que havia acontecido, buscaram os funcionários na fábrica e organizaram uma busca pensando no pior. Que alguma desgraça tivesse acontecido comigo.

No outro dia e por toda aquela semana, eu fui alvo de chacota no trabalho. Até os japoneses da fábrica ficaram sabendo da história e deram gargalhadas e caçoaram comigo.

 

 

Pedalando, na volta de meu passeio matinal dos domingos, eu me recordo desses momentos com humor, mas quando os vivi foram difíceis e aterrorizantes.

Hoje eu vou a um shoping e é natural tanto tomar um sorvete com as crianças como ser atendido por uma balconista japonesa quando estou a procura de uma jóia para presentear a minha mulher. Participo de uma comemoração na escola japonesa que os meus filhos freqüentam, pego um trem e vou passear na cidade vizinha, conheço muita gente e tenho muitos amigos japoneses.

No início quando aqui cheguei, há cinco anos atrás, as coisas eram diferentes e eram muito difíceis.

Muitas lágrimas eu derramei. Tive de ter muita força e lutar muito para enfrentar e vencer o preconceito e as barreiras que aqui encontrei.

 

 

Situação Desesperadora

 "Deixo bem claro que, em cada ponto ou em cada vírgula deste conto, há total veracidade. Se nele eu teço elogios e chego quase a santificar uma pessoa é por sentir gratidão, viver em eterna dívida com ela e não ter como pagar. Todo o dinheiro do mundo não compra certas coisas, mas às vezes, em total miséria e completamente necessitados, nós a recebemos".

 

 

 

Setembro de 1997. Para ser preciso a viagem foi marcada para o dia vinte e três.

Não houve planos e preparativos demorados. Foi uma decisão repentina levada, pelas necessidades que eu e minha mulher passávamos.

Tinhamos um filho de alguns meses. Nosso trabalho, como funcionários do estado, era de parca remuneração e estavamos sempre no vermelho.

Optamos por uma mudança radical. Pedimos a nossa exoneração. Alugamos a nossa casa, nos livramos de todos os nossos pertences, passamos a guarda do nosso filho, para que a avó tomasse conta, e marcamos a data da viagem.

Japão, ai vamos nós!!!

 

 

Sem trabalho, casa onde morar e com a data da viagem marcada, aconteceu um imprevisto. Minha esposa sentiu-se mal e foi ao médico.

Ele diagnosticou nela uma gravidez de alguns dias.

O que fazer, meu Deus?

Passei noites sem dormir pensando em uma solução: Abortar a criança, foi esse o meu primeiro pensamento. Mas se nós fizéssemos isso, tenho certeza que o nosso casamento estaria destruido.

Conversei com a minha mulher:

 

- Meu bem, a nossa situação é desesperadora. - Você acredita em Deus?

 

- Sim, eu acredito!!!

 

- Então, eu acho que só temos uma coisa a fazer. Irmos para o Japão e nos entregarmos nas mãos Dele. Se aqui ficarmos, seremos um peso para a família e estaremos na merda. Se formos, com a ajuda Dele, talvez à gente de à volta por cima e consigamos vencer.

- Só tem uma coisa. Se formos, nós estaremos indo para uma terra estranha onde estaremos sozinhos. Sem amigos, parentes e sem amparo. Só você e eu, dependendo um do outro.

- Você está disposta a enfrentar tudo isso. Acha que tem forças para estar ao meu lado na hora de um aperto verdadeiro?

 

- Sim amor. Não há como voltar atrás. - Vamos viajar e seja o que Deus quizer. Eu estarei sempre ao seu lado.

 

 

Chegamos no Japão e ficamos como ciganos.

Trabalhamos quase um mês na primeira fábrica. Assim que perceberam a gravidez de minha mulher, estávamos desempregados.

Um novo emprego em uma nova cidade. Vários empregos e novas cidades em um pequeno espaço de tempo.

No terceiro mês estavamos em uma cidade chamada Isezaki. Fui trabalhar em uma fábrica de alimentos. Ali eu sofri um acidente e quebrei o meu joelho.

Começou, então, as nossas agruras.

 

 

A empreiteira para qual eu trabalhava não nos podia tirar do apartamento, onde morávamos, mas para conseguir dinheiro para comprar um pacote de arroz, era necessário implorar.

Passei quase cinco meses com a minha perna engessada. Nesse tempo a gravidez de minha mulher adiantou e, quando finalmente recebi alta médica e poderia trabalhar, ela já estava em seu oitavo mês.

Ai então, o caldo entornou.

 

 

No mesmo dia a empreiteira que me contratara comunicou que não tinha trabalho para mim e que nós teriamos de deixar o apartamento em oito dias.

Imaginem. Eu estava desempregado e sem ter onde morar. Vivendo em uma terra estranha, sem amigos e com a minha mulher no oitavo mês de gravidez.

A criança ia nascer e nós não tinhamos dinheiro para o parto. Não tinhamos comida e em oito dias estariamos na rua.

O que fazer. A quem pedir ajuda?

Era desesperador.

 

 

Naquele dia eu dei centenas de telefonemas para empreiteiras tentando arrumar trabalho.

As respostas a esses telefonemas eram sempre as mesmas. Que não havia vaga ou então pediam o meu telefone para entrar em contacto caso algo aparecesse.

Nessa noite não conseguimos dormir. Minha mulher chorava o tempo todo e tudo o que eu podia fazer era pedir a Deus por nós. Eu tinha muito medo de que ela perdesse a criança.

O que seria de nós, meu Deus?

O segundo dia foi igual. Inúmeros telefonemas e só resposta negativa.

Em um deles - para uma agencia governamental que contrata trabalhadores diretos, sem a interferencia de empreiteiras - eu falei com uma pessoa que me pareceu atenciosa.

Contei a ela os meus problemas. Passei através da linha telefônica todo o meu desespero, mas tudo o que eu consegui foi um resultado igual. No final da conversa a pessoa me disse que o país estava em crise, estava difícil conseguir trabalho e pediu o meu endereço e o telefone para contacto.

Eu os dei pensando: "Merda, nada da certo. O que será de nós?".

 

 

Esse dia anoiteceu e a noite ao chegar trouxe com ela uma grande surpresa.

Eu e minha mulher estávamos calados dentro do apartamento, cada um curtindo a sua dor, e de repente o telefone tocou:

 

- Alô. Eu queria falar com o Sr. Carlos.

 

- Sim, sou eu mesmo.

 

- Eu sou a Helena da agencia governamental de empregos. O senhor me telefonou hoje à tarde. Estou procurando o seu apartamento.

 

- Dna. Helena?

 

Eu não sabia quem era. Haviam sido tantos os telefonemas que eu não me lembrava de nome algum.

 

- Sim. Helena da agencia de empregos de Ota, ela disse. - Sei que estou perto do endereço que o senhor me deu. Só que não consigo acha-lo.

 

Olhei pela janela de meu apartamento e vi um carro parado bem em baixo dele, com uma mulher dentro. Eu disse:

 

- Sra. Helena. A senhora por acaso não está dentro de um carro assim, assim, assim?

 

- Sim. Eu estou procurando o seu endereço e não encontro.

 

- Eu a estou vendo. Aguarde um pouco que vou até ai.

 

Desci a escada em desabalada carreira. Fui até o carro que eu tinha visto pela janela e nele eu vi, pela primeira vez um anjo. A pessoa que salvaria a vida da minha filha que estava para nascer e que mudaria tudo na minha.

 

- Sr. Carlos. Muito prazer. O senhor me telefonou hoje à tarde

e eu vim até aqui para ver se posso ajuda-lo.

 

Eu não sabia mas Deus atendera as minhas preces. Tinha enviado um anjo para me socorrer.

 

 

Ela foi comigo até o meu apartamento e lá ficou conosco mais de uma hora. Ouviu atentamente a minha mulher. Falou muito de Deus e conseguiu aliviar o nosso desespero.

Quando se foi nada prometeu. Só disse que tentaria nos ajudar. Que falaria com alguns amigos e veria se poderiam fazer algo por nós.

Naquela noite nós conseguimos dormir. Aquela senhora se foi mas nos deixou aliviados. Só a sua presença, naquela hora em que esteve conosco, nos deu paz e nos encheu de esperança.

Eu e minha mulher não acreditávamos que havia tanta bondade e que tinhamos recebido tanta atenção de uma pessoa totalmente desconhecida.

 

 

Tornou a voltar no outro dia e disse que fossemos com ela que queria nos apresentar a alguns amigos. Nos colocou em seu carro e nos levou até sua casa, na cidade de Oizumi.

Lá ela vivia com o seu marido e dois filhos adolescentes. Fomos recebidos por todos com muito carinho e consideração.

Isso foi em um sábado. Fez com que lá nós ficássemos para passar a noite e no domingo dedicou o seu dia para nós. Conseguiu fazer com que não pensássemos em nossas dificuldades, por todo o tempo, e nos tratou com carinho e amor.

Quando anoiteceu, ela nos convenceu a de novo dormirmos em sua casa. Disse que na segunda de manhã iria me levar para ver um trabalho e que seria mais fácil para ela se nós dormíssemos ali. Assim não precisaria ir me buscar pela manhã.

 

 

Na segunda-feira, ao invés de ir trabalhar, se dedicou a encaminhar a minha vida.

Levou-me a várias imobiliárias e quando encontramos um apartamento, que me convinha, ela foi minha avalista e tirou da bolsa o dinheiro necessário para pagar a luva - adiantamento pago na hora em que se faz um contrato imobiliário aqui no Japão, geralmente no valor de três meses do aluguel. Não me pediu para que eu assinasse recibo ou que lhe fornecesse alguma garantia por aquele empréstimo. Só me disse:

 

- Sr. Carlos. Quando estiver trabalhando o senhor me devolve esse dinheiro. Não tem pressa, me devolva como e quando puder.

- Por favor, agora o senhor se preocupe somente com a sua mulher e com a criança que ela vai ter. Tudo vai dar certo. Deus nunca deixa de estender as mãos para os necessitados, basta Nele acreditarmos.

 

Nesse mesmo dia ela me arrumou um trabalho, no qual eu permaneci por vários anos.

Alguns dias depois a minha filha nasceu. Eu estava no trabalho e a minha mulher foi levada para o hospital por essa senhora.

Ela esteve o tempo todo com a minha mulher. Foi quem lhe deu assistência como tradutora, apoio moral e muito amor.

 

 

Hoje, muitos anos depois, eu ainda estou em dívida com essa senhora. Muitos anos se passarão, a minha vida chegará ao fim, e eu nunca conseguirei pagar o que ela fez por nós. Agora eu pergunto:

 

- Quem, além de Deus, colocou essa doce alma em meu caminho em uma hora tão difícil?

 

 

Canja de Galinha no Japão

 

 

Eu estava de folga, coisa muito rara por aqui no Japão, e senti fome. Deu vontade de fazer alguma coisa, ou um prato diferente dos sushis, yakisobas, sukiachis, ou qualquer outro bentô que é comum aqui no dia a dia.

Fui até um mercado brasileiro, existente aqui perto, e comprei uma porção de coxinhas de asas de frango. Voltei para casa e as coloquei pra cozinhar.

Fui a outro mercado, dessa vez um japonês, e comprei tomates, batatas, salsinha e cebolinha, e todos os outros ingredientes para deixar uma canja saborosa. Não me esqueci, é óbvio, das duas caixas de cerveja que precisaria para a preparação do prato e para minha manutenção diária de nível alcoólico.

Quando estava quase tudo pronto eu peguei minha bicicleta e voltei correndo ao mercado brasileiro, pois não podiam faltar as fatias de pão fresco em acompanhamento a essa canja tão bem preparada.

Tomei uma, duas, três e outras. Preparei um lauto almoço para a minha velha, que tinha ido a prefeitura resolver um problema fiscal, e para as crianças quando chegaram da escola. Eu mesmo só comi um arroz frio e tomei a última cerveja, que havia na geladeira, quando acordei depois do porre daquele dia, e já estava anoitecendo.

 

 

Cerveja com Mandioca Frita

 - Regina, frita uma mandioca pra mim. Cozinha primeiro e depois joga no óleo pra deixar ela bem torrada que eu quero saborear com uma cerveja gelada.

 

- Essa hora amor! To cheia de trabalho preparando a ceia. Pega ai um pedacinho do pernil ou um pouco de frango frito. Ta dando o maior trabalho isso aqui e você ainda quer que eu frite mandioca! Para com isso homem.

 

- Frita vai amorzinho, eu to com vontade. – eu falei e engoli o ultimo gole de cerveja gelada do copo.

 

 

 

- Porra homem, você e suas vontades! Daqui a pouco seus amigos vão estar todos por aqui e eu ainda tenho um monte de coisas pra fazer. Se toca cara. Se quiser mesmo comer mandioca, frita você mesmo.

 

- Ta legal amor, não precisa ficar brava! Deixa eu pegar então um pedacinho dessa carne de porco com farofa que você acabou de assar. Apanha mais uma cerveja lá na geladeira pra mim.

 

- Você já tomou mais de dez cervejas senhor Carlos Cunha! Vai devagar que eu te quero inteiro e nesse ritmo você vai estar tombado quando pessoal chegar.

 

- Vou não queridinha, só vou tomar mais uma e depois descansar. Quando o pessoal estiver por aqui eu prometo que vou ser o marido mais amoroso do mundo e um anfitrião exemplar.

 

- Te conhecendo como eu te conheço duvido, mas toma lá a sua cerveja. Agora não enche mais o saco e me deixa acabar de preparar a ceia. Vai, toma essa porcaria e vê se dorme um pouco que você está precisando.

 

Apesar de ser uma conversa do cotidiano havia na Regina certa preocupação. Tinham inventado de receber os amigos em casa, na noite de Natal, e com o marido que tinha sabia que não ia ser mole não!

Poucos minutos depois o filho do Poeta falou pro pai, com a boca toda lambuzado de gordura de um pedaço de carne que tinha roubado escondido da mãe:

 

- Pai, o tio Miguel ta ai.

 

- Manda ele entrar que to terminando um texto. Já vou.

 

O Poeta digitou mais algumas palavras e se levantou do computador. Foi até a sala, onde estava o amigo que tinha chegado e contente o cumprimentou:

 

- E ai, como está essa força?

 

- Tudo bem. E por aqui, ta tudo em ordem?

 

- Tudo. Tava preparando uma página pra USINA, mas já que você chegou acho que vou é tomar mais uma. Quer uma cerveja ou prefere uma cachaça.

 

- Uma cerveja, mas vamos tomar lá no quintal que eu quero conversar com você.

Já sentados em um toco, sob uma figueira carregada de frutos, o poeta perguntou ao seu amigo Miguel curioso. Tudo que discutiam era na frente da família. Amigos á muitos anos ele era chegado a ela e muito considerado por todos.

 

- Fala Miguel, que conversa é essa que você me traz pra longe da velha e das crianças pra ter ela comigo? Deve ser algo bastante sério.

 

- É por causa das crianças e também uma desculpa pra gente ficar aqui. Vamos "fumar um"?

 

- Você sabe que eu não gosto "desse bagulho" aqui do Japão. É muita mistura, sem gosto e que o barato que me da não me satisfaz!

 

- Eu sei, mas trouxe algo especial de presente pra você. Da uma olhada.

 

O Poeta pegou o pequeno pacote que o amigo tirou do bolso e lhe estendeu, abriu e viu que nele tinha um caroçinho prensado. Mesmo sem aproximá-lo do nariz sentiu o cheiro forte da maconha pura.

 

- O meu, de onde veio isso! É coisa que não existe aqui no Japão!

 

- Eu sei. Tenho reclamado pro meu irmão da qualidade "da coisa" aqui e ele me mandou uma cara. É bem pequena, mas vai dar pra gente ter um Natal bem especial.

 

- Só mesmo você Miguel, só mesmo você! Enrola e acende pra gente fazer a cabeça logo.

 

Fumaram um enorme "baseado", guardaram a "bagana" sob o toco de pau em que estiveram sentados, e o Miguel se foi com sua bicicleta velha. Tinha que comprar algumas coisas ainda, mas logo estaria de volta para se juntar aos amigos que iriam se reunir ali. O Poeta ficou ainda um bom tempo sentado ali com a alma leve, olhando maravilhados os figos verdes e pensando no quanto a vida era boa para ele! Por fim entrou em casa, apanhou mais uma cerveja na geladeira e foi pro computador, cheio de inspiração, para trabalhar até a chegada do pessoal.

 

 

Flor Oriental

Minha mulher, toda sem jeito e envergonhada, achava ruim comigo por causa do estardalhaço que eu fazia com as minhas gargalhadas. Toda raiva que eu sentira ainda a pouco passara e eu não conseguia mais parar de rir.

Era um dia de semana de tarde e eu tinha ido com ela em um supermercado passear. Sim passear, pois para nós que éramos brasileiros e havíamos chegado no Japão há poucos dias tudo era novidade e passeio.

Achávamos estranhos os produtos que lá tinha e as pessoas que se encontravam nele. Senhoras elegantes, e muito bem produzidas, usavam aventais em cima das roupas caras que trajavam, jovens vestidas com calça comprida vestiam minissaias sobre elas e usavam sandálias com quinze centímetros de altura que deixava o seu andares tortos e desengonçados.

 

 

 

Era normal ver dois senhores, cheios de distinção conversando, cada um segurando a sua pasta de executivo. Enquanto um vestia um terno de fino corte e tinha os sapatos muitos bem engraxados o outro usava um pijama florido e se comportava como se fosse a coisa mais natural do mundo estar ali vestido daquela maneira naquela hora. Eu nunca tinha visto tanto mau gosto na maneira de se vestir e excentricidade no comportamento como no povo japonês.

Assim que entramos no supermercado uma voz feminina falou algo pelos alto falantes e tudo o que eu entendi foi à palavra "gaijim" que eu sabia significar estrangeiro. Caminhando pelos corredores formados pelas mercadorias expostas notei que em todos eles sempre tinha algum funcionário uniformizado olhando para nós e comentei:

 

- Que saco amor. Esses japoneses ficam olhando pra gente com se fossemos algum bicho raro.

 

- Não liga não. Você não ouviu o que a moça falou nos alto falantes quando a gente entrou? Aqui é assim mesmo, eles são muito desconfiados.

 

- Ouvi uma voz de galinha choca falar alguma coisa, mas não entendi nada.

 

- Ela disse que tinha entrado estrangeiros na loja e que era para os funcionários ficarem alertas.

 

- Puta que pariu, eu falei indignado e cheio de raiva. Esses putos estão pensando o que? Só por que somos de uma outra raça eles já pensam que somos ladrões?

 

Extrapolava a minha raiva quando vi um casal vindo em direção a nós no mesmo corredor em que estávamos. Fiquei de boca aberta.

A moça era uma japonesa linda, vestida com muita elegância, cheia de classe na maneira que andava e no modo de se comportar. O rapaz ao lado dela foi que me deixou abismado.

Ele era muito alto e magro, seu nariz era aquilino e nele tinha pendurada uma enorme argola de prata. Seu topete alto e cheio de brilhantina. Usava vários brincos escandalosos nas orelhas e vestia uma camisa de seda branca com abotoaduras que como o relógio Rolex e as grossas pulseiras que usava no pulso eram de ouro. Para completar sua elegância irrepreensível vestia também um paletó creme que lhe caia muito bem.

Contrastando sua calça era de jeans desbotada e ensebada com vários rasgos nas pernas e tinha as bainhas desfiadas arrastando no chão que imitava a mármore branco. Ele a amarrava na cintura com um pedaço de corda e estava descalço.

Reparei em seu modo de mexer o pescoço, os braços, de andar e percebi que era uma "bicha" das mais escandalosas que já tinha visto.

Eles iam passando nessa hora do nosso lado, sorriram para nós e eu perguntei em português, como se ele entendesse o que eu falava:

 

- O meu você é "viado" não é?

 

- Nani. Akaranai. (Como? Não entendo!)

 

- Perguntei se você é puto cara? Marica, flor oriental, florzinha? Sei lá, cara! Só tenho certeza que é o "viado" mais esquisito que já vi na minha vida, falei gargalhando e alugando o coitado que nada entendia e devia estar me achando completamente maluco.

 

Minha mulher me empurrou pra fora do supermercado, puta da vida comigo, e quanto mais ela me xingava, mais eu gargalhava. Arcava o corpo e segurava a barriga que chegava a doer tamanha era a minha hilaridade, enquanto dizia:

 

- O povinho estranho esse aqui mulher, é esquisito demais.

 

 

O Boneco de Neve

 

 

 

Foi logo nos primeiros dias de dezembro, ainda no começo do inverno.

Aquela semana tinha sido puxada para mim. Eu fizera três ou quatro horas de zangio (hora extra)todos os dias.

Na sexta feira cheguei do trabalho quebrado, tomei um banho, jantei e fui para a cama descansar. Não tinha forças para nada. Tudo o que eu queria era estender-me em minha cama e dormir um sono pesado para me recuperar do cansaço que me atingia.

No outro dia pela manhã eu fui o primeiro a acordar. Lavei o rosto, tomei o meu café e resolvi dar um passeio.

Quando fui abrir a porta eu senti que alguma coisa, do lado de fora, a obstruia. Forcei e, quando consegui abri-la, fiquei maravilhado com o que vi.

Os telhados, as copas das árvores, os arrozais, tudo estava branco. A rua estava coberta por um tapete de quase vinte centímetros de neve.

Havia nevado durante a noite toda e a manhã estava linda. Todo aquele branco dava a sensação de pureza e paz sobre a terra.

Ouvi nesse momento um ruido atrás de mim. Era a minha filha caçula que acabava de levantar.

Com os olhos ainda cheios de remela, os cabelos espalhados e a carinha cheia de sono, ela me falou:

 

- Bom dia papai, hóóó...

 

Ela ficou encantada com o que viu através da porta aberta. Todo aquele branco a deixou imediatamente desperta, e cheia de euforia começou a gritar:

 

- Olha quana neve. Que lindo. Vamos brincar lá fora. Vamos papai, vamos?

 

Eu olhei encantado para ela. Era emocionante ver tanta alegria nos olhos de minha filha. Fui até ela, peguei-a no colo e lhe falei:

 

- Vamos sim. Só que primeiro você vai escovar os dentes e tomar um café bem gostoso. Assim que teu irmão acordar nós vamos lá brincar.

 

- Então eu vou chamar ele, ela disse e saiu correndo até o quarto para chamá-lo.

 

- Crianças... Eu falei para mim mesmo, deslumbrado pelo comportamento dela.

 

Ela logo voltou acompanhada de seu irmão. Preparei uma refeição matinal e servi para os dois. Tive até de ralhar com eles pela pressa com que comeram.

Assim que acabaram de engolir o lanche, que eu havia preparado para eles, sairam correndo para a porta.

Antes de lá chegarem foram interrompidos pela mãe que tinha acabado de se levantar:

 

- Ei, aonde é que vocês vão desse jeito?

 

- Lá fora mãe. Ta cheio de neve e a gente quer brincar,

 

- Vão sair na neve assim, sem se agasalhar?

- Vistam mais uma blusa, calcem as botas e coloquem luvas. Vamos, assim ninguém vai lá fora. Não quero criança nenhuma resfriada nesta casa.

 

- Ta bom mamãe, ta bom... E foram, contra a vontade, fazer o que a mãe tinha mandado.

 

Quando voltaram saimos todos.

As crianças da rua estavam todas fora de casa brincando na neve. Meus filhos logo ficaram entre elas que tentavam acertar, uma nas outras, bolas de neve que se espatifavam contra os corpinhos cheios de roupa, quando uma delas era acertada.

Seus pais conversavam animadamente ou tiravam, com uma pá, a neve que obstruia a frente das casas.

Seus corpos estavam gelados, mas os seus corações não. Ardiam com o calor humano que era distribuido por todos em meio a toda aquela neve.

Eu olhava encantado a felicidade das pessoas, naquela manhã tão bonita, quando a minha mulher me falou:

 

- Bem, por que você não faz um boneco de neve pras crianças? Elas vão adorar.

 

Achei que era uma ótima idéia.

Peguei emprestado, com o vizinho do lado, uma pá e começei a amontoar a neve para fazer o boneco. Depois de feito o corpo eu coloquei, sobre ele, mais uma porção de neve e dei a ela o formato de uma cabeça.

As crianças tinham parado de brincar e estavam todas, em volta de mim, olhando curiosas e admiradas o que eu fazia.

Todas falavam ao mesmo tempo e faziam comentários que me deixavam alegres e aos meus filhos muito orgulhosos de seu pai:

 

- Puxa, que boneco legal ta ficando, dizia um!

 

- É mesmo, o pai do Carlinhos sabe mesmo faze boneco!

 

- É, meu pai sabe faze um montão de coisas, o Carlinhos dizia todo cheio.

 

Fui de novo até em casa. Peguei, na cozinha, uma cenoura e algumas uvas que usei para fazer o nariz e os olhos do boneco.

Com um galho seco, que eu quebrei ao meio, eu fiz os seus braços. Pus nele o gorro de lã, que eu tinha na cabeça, e estava pronto o boneco de neve

Olhei para ele e tive a impressão de que me sorria e que em seu sorriso me dizia:

 

- Viu só paizão. Valeu ou não valeu a pena ter trabalhado tanto esta semana? Ai esta a sua recompensa, a sua família está em festa. Pra eles não tem tempo ruim. Veja a felicidade deles nesta manhã de inverno rigoroso!

 

 

O Casal Vargas

 "Aproveitando a publicação deste texto vou falar sobre um problema bastante delicado, principalmente para os casais que o vivem e evitam terminantemente de tocar nele, mas que é interessante, bastante curioso e deve ser estudado.

Espero que esta leitura, um tanto irônica, sirva de ajuda aos milhares de casais anônimos que vivem o problema que vou citar. O do casal quando o marido é um peidorreiro inveterado.

Para facilitar vou contar fatos da vida, algumas experiências e esperanças de duas pessoas muito originais. O casal Vargas".

 

 

 

O detalhe esdrúxulo dessa estória da vida intima do casal Catharina e Jurandir Vargas, amigos que conhecemos pouco depois da nossa chegada ao Japão – ela descendente como minha mulher, e que por ser casada com um brasileiro nato, maluco o suficiente para ser digno da minha amizade, tinha o nome de Catharina Vargas – foram contadas a minha mulher numa conversa entre amigas, que é sempre cheia de fofocas e intimidades conjugais.

Ela é uma mulher gentil, apaixonada pelo marido e dedicada ao lar. Capaz de tudo para fazer o marido feliz e no que se refere ao crescimento de sua família.

Ele um homem muito trabalhador, honesto, sincero em seus atos e que por isso realizado ao sentir-se e portar-se como um peidorreiro assumido.

Um casal comum de classe média. Dois seres humanos que se conheceram e se completaram em sua felicidade, ao unirem-se cheio de carinho um pelo outro, e alicerçaram-na ao apoiarem os potenciais que possuíam.

O Jurandir conseguiu isso valorizando a beleza dela e a sua delicadeza. Reconhecendo os seus dotes de boa esposa e ótima dona de casa. Conseguiu assim faze-la crescer nessa beleza e tornar-se ainda mais gentil e delicada, esmerando-se em aprimorar seus dotes naturais e fazendo tudo para estruturar aquela perfeita relação conjugal que haviam conseguido.

A Catharina, por sua vez, ao mostrar que o amor pelo marido era verdadeiro, puro, cheio de dignidade e sem restrições garantiu a felicidade plena do relacionamento entre eles. Fez com que ele crescesse cada vez mais e junto o amor que sentia por ela.

Exemplo crucial de tanta dedicação e aceitação desse amor ela deu, ao fazer o comentário que fez, quando ele deu o primeiro peido com clareza perto dela. Foi justamente na primeira noite de amor que tiveram.

Eles estavam deitados, um ao lado do outro, exaustos e com os corpos suados depois de se entregarem por muito tempo as delicia prazerosas do sexo quando o Jurandir soltou um estridente e poderoso peido:

 

                    BRUMMMM...

 

Ela virou calmamente o olhar, refletor de uma luz que mostrava surpresa e admiração, para ele e comentou:

 

- Amor, mas que peido

sublime! Quanta energia e vigor você transmite ao peidar meu querido.

 

E então disse, cheia de desejo:

 

- Vem, me possua novamente que o cheiro desse peido maravilhoso que você deu é um afrodisíaco inigualável. Vem, vamos transar de novo.

 

E aquela foi uma noite inesquecível. A primeira de uma série em que o prazer, o gozo e a realização total fluíram entre gemidos, suspiros e peidos.

 

 

Muitos leitores podem achar um tanto grosseiro o que acabaram de ler, mas analisem e vejam se isso não pode ajuda-los. Se estiverem dentro da categoria dos casais que vivem o problema citado, talvez essa leitura facilite para que esse pormenor deixe de ser um grande problema.

É só aceitar o peidorreiro ao seu lado e ama-lo de verdade. Ver em cada peido por ele dado um motivo a mais para respeita-lo. Aprender a sentir e a olhar como uma coisa boa à energia que é solta junto a cada peido da pessoa amada. Entregar-se espiritualmente, aos sons dos peidos dados por ela, e enlevar a sua alma como você se entrega quando ouve uma obra de música clássica.

Enfim... Aceitar e aprender a gostar dos peidos da pessoa amada é a maneira de uma mulher garantir e eternizar o seu grande amor, caso ele venha a ser um peidorreiro inveterado.

Aos casais anônimos citados no texto: Caso queiram ajuda, ou somente conversar sobre o assunto, entre em contato com o autor. Ele não é especialista em peidos e muito menos em maridos peidorreiros, mas talvez possa ajudar enviando alguma nova besteira para que a leiam e se esqueçam dos seus problemas.

 

 

Reinado da Mulata Brasileira no Japão

 A avenida SAN GO ION - 354 - estava iluminada com lâmpadas coloridas e nela resplandecia um clima de festa, o que na verdade ocorria. Era noite de matsuri – festival em que são montadas barracas e onde toda a população da cidade comparece para participar da festa - e ela tinha, pendurado em suas árvores e postes, lanternas exóticas que a enfeitam.

Os japoneses vestidos de maneira típica – trajando kimonos elegantes e suas mulheres em suas vestimentas originais e coloridas - em cima de carros alegóricos tocavam tambores e flautas para acompanhar ao povo que cantava canções tradicionais japonesas. Era uma noite muito especial e festiva para eles e os estrangeiros que moravam na cidade também participam. Os brasileiros que moravam naquela cidade aproveitavam aquele festival de verão que acontecia na avenida para nele festejar o seu carnaval, do qual tanto sentiam falta, mesmo fora de época.

 

 

Alguns deles, que viviam lá há anos, tinham se reunido e fundado uma escola de samba. Ela tinha poucos componentes, mas o samba acontecia e dominava onde a cultura e os costumes eram tão diferentes.

Mulheres belas vestidas com muito pouca roupa - algumas delas japonesas que participam da festa brasileira - e homens cobertos com fantasias cheias de cores mostravam aos japoneses a alegria do brasileiro quando samba numa avenida, deixando-os encantados.

A mulata, uma trabalhadora dekassegui - trabalhador estrangeiro contratado para trabalhar no Japão - que durante o ano inteiro tinha dado o seu sangue em trabalhos sujos e pesados em fábricas, onde foi tratada pelos japoneses como máquina e não como um ser humano, era ali naquela avenida vista por todos eles como uma rainha. Rainha da beleza, do gingado, da alegria e do amor. Sim, do amor, pois seminua como se apresentava mostrava com clareza toda a perfeição da sensualidade na mulher ao requebrar o seu corpo. Deixava aqueles homens, de olhos puxados, sedentos e fazia com que um sentimento forte de admiração surgisse neles.

No outro dia pela manhã uma equipe da prefeitura limparia a avenida e recolheriam as garrafas e latas de cervejas vazias jogadas por ela. Não deixariam vestígios da festa que havia acontecido e os trabalhadores brasileiros iriam bem cedinho para as fábricas em que trabalhavam. A mulata voltaria a sua luta árdua para ganhar o seu sustento e tentaria economizar um pouco do que ganharia para poder um dia voltar um dia a sua terra. Mesmo que isso demorasse anos ela não deixaria de ser brasileira, de amar o samba e enquanto permanecesse naquela terra longínqua seria vista e tratada como rainha todo verão, ao menos por uma noite.

 

                                         Carlos Cunha /o Poeta sem limites

 

 

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