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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHA DO FOGO / Quin Taylor Evans
FILHA DO FOGO / Quin Taylor Evans

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Primeiro livro da série O Legado de Merlim

FILHA DO FOGO

 

 

 

 

Elas são filhas do destino, ligadas por uma herança de magia e amor, envolta nas brumas da lenda...

Escócia, 1066

A chama e a espada

A magia flui através das eras no sangue de Vivian de Amesbury,   ] filha secreta de Merlin, perseguida por uma maldição que a         impede de conhecer o amor. Dotada de uma segunda visão, Vivian vislumbra um guerreiro normando cruzando um país       devastado por batalhas, fazendo-a tremer de medo... e de desejo!

Rorke FitzWarren vai a Amesbury procurar a célebre curandeira que tem poderes para salvar seu soberano, Guilherme, duque da Normandia, dos ferimentos adquiridos em combate. Embora o destino tenha feito de Rorke e Vivian inimigos, surge entre     ambos uma paixão tão intensa e frágil quanto uma chama       ardente à mercê do vento... e de forças misteriosas. Numa busca que o leva a um mundo além das brumas, Rorke parte à procura da lendária espada que lhe possibilita reivindicar o coração de Vivian para si... e para sempre!                          

Quinn Taylor Evans é o pseudônimo de Carla Simpson, que combina o estilo dos romances de época com personagens como dragões e feiticeiros, transportando o leitor à antiga Grã-Bretanha dos druidas, guerreiros e batalhas entre o bem e o mal...

 

                                           A LENDA

- Merlin está morto!

O rumor espalhou-se por entre o povo e nobres e plebeus choraram de dor.

— O mágico, o feiticeiro, o fazedor de reis está morto.

E, da remota fortaleza do castelo, dos campos em que cuidavam de seus rebanhos, dos barcos com linhas lançadas em águas escuras e das forjas incandescentes, os homens olharam para as colinas em busca do brilho da pira funerária do mago druida. Mas, em vez disso, viram apenas o brilho de uma estrela enorme cruzar o céu da meia-noite, como uma jóia reluzente suspensa entre o céu e a terra.

Um sinal, alguns disseram, conforme a estrela riscava o céu, um poderoso farol que ilumina o caminho, o olho de um dragão que enxerga além das brumas do tempo...

E, mesmo enquanto as notícias da morte de Merlin alcançavam as praias mais distantes do reino, outra história era murmurada em torno das fogueiras e à beira d'água, como uma promessa sussurrada ao vento frio da noite.

— Ele não está morto, mas apenas adormecido... adormecido na bruma.

 

 

                   Abadia de Amesbury

Elemento de fogo, espírito de luz, essência de vida,

acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade.

No alto da torre da abadia em ruínas, a invocação antiga ressoava como um murmúrio entre as frias e úmidas paredes de pedras.

Uma única vela queimava, a chama tornava-se mais forte a cada palavra proferida. Em seu poleiro no canto da torre, um pequeno falcão bateu as asas, os olhos dourados fixos na chama.

Vivian inclinou-se sobre a vela, a luz dourada banhando-lhe as feições pálidas, contraídas, as delicadas sobrancelhas levemente arqueadas, as maçãs do rosto salientes a luzir como fogo derretido na torrente flamejante de cabelos soltos, que caíam em uma suave cascata por suas costas. De olhos fechados, ela repetia a antiga invocação.

A brilhante luz azul mesclava-se ao ouro reluzente em mutantes padrões espiralados pelas paredes de pedra, conforme a chama refletia o grande cristal que ela segurava suspenso diante da vela, criando uma tapeçaria faiscante que cintilava e tremulava como se as paredes e teto, de repente, tivessem se tornado um céu noturno cheio de estrelas.

Então, de súbito, como se obedecesse a seu comando, a luz engoliu a si mesma, os desenhos no teto se concentraram num único ponto reluzente até que tudo que restava era a chama que agora queimava dentro do cristal.

— Revele a mim um tempo que ainda não é tempo, um dia que ainda não é dia — Vivian de Amesbury murmurou.

A chama tremulou mais e mais forte a cada palavra. Quinhentos anos tinham se passado desde que uma visão aparecera pela última vez no antigo cristal azul. Então, à medida que Vivian abriu os olhos, uma nova visão se revelou lentamente. Dois grandes exércitos empenhados numa feroz batalha de fogo, morte e destruição, e corpos espalhados por uma imensa planície escura.

Seu coração condoeu-se ao ver o Alce Saxão sucumbindo à força da Serpente. Soube, então, com certeza, que o exército do rei Harold cairia diante do exército de Guilherme da Nor-mandia. Compreendeu também que ela era impotente para evitar o inevitável, pois o que vira estava no futuro, mas já tinha sido escrito no grande livro da vida desde o princípio dos tempos.

Lágrimas de angústia deslizaram por suas faces. Ela não queria testemunhar mais morte e destruição e apertou os olhos, fechando-os, tentando bloquear as imagens trágicas e desoladoras.

Porém, um poder mais forte do que o seu próprio a compeliu a fitar mais uma vez o cristal. O dom com que nascera era ao mesmo tempo uma maldição e uma bênção, e ela teria de contemplar tudo, não importava o quão doloroso ou apavorante fosse. Viu que o destino de seu povo estava em suas mãos.

As chamas de morte e destruição pareceram queimar lentamente até que as cinzas e a fumaça da batalha se dissiparam e outra profecia se revelou. Do meio das chamas incandescentes, uma criatura magnífica ergueu a cabeça, um ser gerado no fogo e sangue da destruição.

Era esguia, forte, poderosa, e, ao mesmo tempo, feroz e aterradora. Um grande pássaro predador com penas chamejantes em tons de amarelo, laranja e vermelho, lentamente desdobrou as asas num esplendor de graça e majestade, em meio a uma escuridão crescente. E, do centro do cristal, ouviu-se um sussurro:

Cuidado com a fé que não tem coração e com a espada que não tem alma.

Como se a criatura soubesse que era observada, virou a cabeça. O sangue derramado na guerra manchava seu bico, os olhos queimavam como se estivessem em chamas. Então, uma nova emoção, muito diferente da primeira, envolveu Vivian.

A criatura que se erguia das cinzas e das chamas como a mítica Fênix tomou as feições de um homem.

 

                   Abadia de Amesbury, Outubro de 1066

- Guerreiros inimigos!

E o grito de alarme ecoou no ar frio da manhã e foi ouvido na torre da abadia.

Em seu poleiro, o crocitar aflito do falcão juntou-se ao alarme. O gato Nicodemos, que dormia ao lado do braseiro, saltou para o chão e correu para baixo da mesa de madeira.

Cuidado, Vivian!

O aviso ecoou como um murmúrio ao longo das paredes da estufa onde cultivavam vegetais e as ervas medicinais para suas poções. Com o coração aos saltos, Vivian de Amesbury correu para a janela estreita e avistou o jovem Tom, filho do ferreiro da vila, no pátio lá embaixo.

Tom já cruzava o riacho e descia pela estrada, espalhando o alarme.

A distância, Vivian viu os guerreiros montados emergindo da floresta pela antiga estrada romana. As armaduras de batalha eram de um tom acinzentado sob o céu de final de outono, e a bandeira que carregavam ostentava uma enorme serpente num campo negro.

O medo fez o coração dela contrair-se. Vira a serpente quando consultara o cristal. Agora, a profecia se concretizava. A Inglaterra saxã estava perdida.

Onde estariam seus protetores, o monge, Poladouras e sua velha ama Megwin? Precisava encontrá-los, afinal, poderiam não ter ouvido o alerta sobre os guerreiros inimigos que agora rumavam para a abadia.

Como se o cristal pudesse sentir-lhe o medo, cintilou e re-luziu em seu pescoço, emitindo uma luz repentina. Ela correu para os degraus de pedra que conduziam à capela, logo abaixo. Precisava avisar Poladouras e Meg.

O medo crescia em seu peito, o que fez com que descesse correndo a espiral íngreme dos degraus de pedra. Vivian, contudo, conhecia aqueles degraus desde que era um bebê, época em que ela e Meg passaram a viver com Poladouras.

Tinham chegado ali em meio a uma jornada incerta. Por sorte, tinham sido recebidas pelo bom monge no pior inverno de que se tinha notícia em Amesbury. Depois que o inverno findara, as duas continuaram na abadia.

Conforme ela crescia e aprendia as práticas de cura com a velha Meg, as manhãs eram passadas na enorme estufa de plantas, entretida com o preparo das antigas poções medicinais. As tardes transcorriam ao lado de Poladouras, aprendendo idiomas, matemática e ciências, conhecimentos que o monge adquirira em suas viagens pelos impérios do Leste.

A vida era tranqüila e pacata na abadia, as poucas necessidades preenchidas pela pequena horta que Meg e Vivian tinham plantado. A lã e as fibras de algodão eram fornecidas pelos aldeões por gratidão pela orientação espiritual de Poladouras e pelos tônicos curativos de Vivian.

Os aldeões eram pessoas simples, que mal proviam a própria subsistência, mas viviam em uma paz quase idílica. E, como não tinham nada de valor, Vivian estava segura de que não precisavam temer os invasores normandos. Já a abadia de Amesbury caíra em ruína desde que fora abandonada pelos monges. Somente Poladouras ficara.

Por que, então, pensou aflita, os guerreiros normandos rumavam para lá? O que queriam?

Cuidado, minha menina!

De novo ela ouviu as palavras urgentes, como se as pedras da torre lhe sussurrassem um aviso.

Vivian chegou ao patamar dos degraus e viu de imediato Poladouras que vinha em sua direção com passos trôpegos.

— O jovem Tom... — ela gemeu, ofegante.

— Guerreiros normandos — o monge aquiesceu, com um leve menear de cabeça. — Tal como você previu.

Não havia surpresa em sua voz.

— O exército do rei Harold sucumbiu — continuou ele com tristeza, a voz se alquebrando no final da sentença. — É um momento trágico para todos os saxões.

— Meg? — Vivian chamou, ansiosa.

— Estou aqui — a velha senhora respondeu.

O olhar de Meg voltou-se para os degraus. Ela cruzou a capela com surpreendente desenvoltura e sua mão magra, que muitas vezes confortara Vivian ao longo de toda sua existência, fechou-se sobre seu braço.

— Você precisa ir embora! — disse a velha ama, aflita. — Fuja agora, criança, pelas colinas, enquanto ainda há tempo.

— Sim, você precisa ir! — Poladouras exclamou, com firmeza. — Os dias adiante serão negros para todos nós. Mais que qualquer outra pessoa, deve saber que não deve cair nas mãos dos normandos. Estaremos seguros o bastante aqui. Agora vá, depressa! — insistiu. — Antes que seja tarde!

Contudo, já era tarde demais.

As portas de carvalho, que mal continham o vento e o frio, de repente estalaram contra a parede de pedra. O vento uivou pela abertura, apagando as velas.

O cheiro acre de fumaça inundou o santuário. Os guerreiros normandos entraram na abadia com as espadas em punho.

Meg puxou Vivian para as sombras atrás do altar.

— Não diga nada! — avisou, quando Poladouras voltou-se para encarar os invasores.

O monge postou-se diante do altar, inclinado e de ombros caídos, como se fosse bem mais velho do que era. Apoiou-se no cajado, como se o simples esforço de ficar em pé exigisse toda sua força. O crucifixo que sempre usava reluzia contra a lã rústica de seu hábito, à vista de todos, e a expressão em suas faces redondas e gentil era de total surpresa.

O coração de Vivian apertou-se de medo ao sentir o jogo perigoso que ele estava fazendo.

— Afastem-se! — Uma ordem foi dita com aspereza em francês, e os guerreiros se separaram para deixar um homem alto e musculoso passar.

— Não é necessário arrebentar as portas da capela! — exclamou o monge. — Qual é o significado disso? Quem são vocês? Por que trazem armas para a casa de Deus?

— Esta é agora a casa de Guilherme da Normandia — o soldado que se adiantara informou-o num inglês carregado de sotaque.

O normando vestia uma pesada armadura de cota de malha, com calças e manoplas de couro. As feições eram duras e frias.

— Viemos procurar a mulher cuja reputação é de ser uma grande curandeira.

A expressão de Poladouras foi de ligeira surpresa. E Vivian ficou espantada com a mentira que lhe saiu com facilidade dos lábios.

— Não sei de quem fala, milorde. Não há ninguém mais aqui. Apenas eu, um humilde monge.

Os olhos do soldado normando se estreitaram e Vivian pressentiu o perigo.

— Um saxão disse que a curandeira poderia ser encontrada aqui. A mão do homem fora profundamente queimada e estava quase curada quando o encontramos—ele continuou. Sua boca curvou-se numa careta cruel. — Não sei o nome do homem, mas ele falou da curandeira antes de morrer sob minha espada.

Na sombra do altar, Vivian arquejou, pois sabia que ele falava do pai do jovem Tom. O ferreiro sofrera uma queimadura feia na mão dias antes de ele e os outros homens partirem para Hastings.

Meg apertou o braço de Vivian.

— Não há nada que você possa fazer por ele agora, menina! — murmurou a velha ama.

— É engano — insistiu o monge —, pois não há nenhuma curandeira em Amesbury.

O soldado normando não estava convencido disso.

— Revistem a capela! Tragam a curandeira!

Poladouras avançou com passos trôpegos, como se para impedi-los.

— Isso é sacrilégio! Não podem entrar neste lugar sagrado com suas armas ainda pingando o sangue daqueles que mataram!

O normando sacou sua espada e empunhou-a ameaçadora-mente contra o peito de Poladouras.

— Pare com essa hipocrisia, velho, ou morrerá onde está. Vivian lutou para se desvencilhar, mas Meg segurou-a com força.

— Não diga nada! — avisou-a. — Você ouviu a Voz! Esses porcos normandos não podem encontrá-la!

Os guerreiros se espalharam rapidamente pela capela. Uma cadeira foi arrebentada sob a bota de um deles, a mesa foi cortada ao meio por um machado de guerra. Os preciosos manuscritos de Poladouras foram descobertos e se juntaram à pilha de detritos no chão.

— Por favor — o monge implorou, manquitolando com as pernas inchadas. — Os livros não têm importância para vocês. Não os destruam.

— Tem razão, monge, eles não são importantes. Mas você pode salvar seus preciosos livros — o chefe normando sugeriu, num tom insolente —, entregando-me a curandeira!

— Eu já lhe disse — insistiu Poladouras, mesmo que soubesse que era apenas uma questão de tempo antes que Vivian e Meg fossem descobertas. — Não sei de quem fala.

Um grito apavorado veio da passagem que levava à cozinha, e Vivian imediatamente percebeu que era de Mally. A garota a procurara, naquela manhã, em busca de um chá de ervas para aliviar o desconforto da mãe moribunda. Sem dúvida, fora pega pelos guerreiros na estrada da vila. Foi arrastada por um deles para dentro da capela. Soluçava histericamente.

— Olhe só, Vachel — o soldado exclamou em francês, com um sorriso malicioso. — Veja o que encontrei não muito longe da abadia. Uma pequena recompensa por nosso trabalho.

Arrastou-a para o meio da capela, onde a colocou em pé e puxou-a contra si, a lâmina de uma faca comprimida em sua garganta.

Os cabelos de Mally estavam emaranhados, os olhos cheios de medo. O lábio inferior estava partido e sangrando. Os seios à mostra, com hematomas escuros na carne delicada. O sangue manchava sua saia.

— Não posso suportar ver os outros sofrerem por minha causa. — O coração de Vivian confrangeu-se e um soluço fechou-lhe a garganta.

— Você precisa agüentar! — Meg murmurou, com veemência. — O destino da garota não deve ser o seu!

Lágrimas de raiva impotente queimavam nos olhos de Vivian. Suas mãos delicadas se fecharam nas dobras da saia, as unhas raspando pelo comprimento firme de algo esquecido até aquele momento, no bolso do vestido.

Enfiou a mão no bolso e sentiu a faca que usara naquela manhã para cortar ervas na horta.

Mas, naquele instante, Poladouras ergueu o cajado sobre a cabeça e, passando a brandi-lo como se fosse uma arma, arrastou-se na direção dos guerreiros normandos e enfrentou-os com coragem.

— Isto é chão consagrado, seus brutos! — esbravejou o monge. — A garota não é mais que uma criança. Como ousam trazer a morte e a destruição para este lugar santo?! Pelo bem de suas almas mortais, soltem a moça e vão embora de uma vez antes que sejam amaldiçoados por toda a eternidade!

Os gritos e os comentários maliciosos entre os guerreiros normandos cessaram de repente. Por algum tempo, ouviu-se apenas o som do fogo a estalar no braseiro. Vivian sentiu a inquietação entre os homens ao ouvirem a maldição de Deus clamada contra eles.

Sem dúvida, o líder normando, aquele a quem chamavam Vachel, também sentira, pois uma expressão de fúria contor-ceu-lhe as feições.

— Maldito seja, velho tolo! — praguejou ele, erguendo a espada e atingindo Poladouras do lado da cabeça com o cabo da arma.

O golpe jogou o monge de joelhos, e os olhos escuros de Vachel luziram de prazer ao erguer a espada para golpeá-lo novamente.

— Não! — Vivian gritou, com toda força, ao correr para proteger o monge de outro ataque.

Uma agonia imensurável encheu o coração da velha Meg. Precisava enganar aqueles tolos.

— Sou aquela que procuram — disse ela aos soldados normandos, ao surgir de detrás do altar e caminhar lentamente em direção aos inimigos. — Sou a curandeira.

— Não! — Vivian gritou, quando Meg foi imediatamente agarrada por dois dos homens de Vachel e lançada ao chão, aos pés dele.

Vachel se inclinou e segurou-a cruelmente pela garganta. Encarou-a, as feições contorcidas por uma raiva perigosa diante dos olhos opacos e sem vida que o fitavam de volta. Praguejou, furioso.

— A velha é cega! — Golpeou brutalmente Meg do lado da cabeça e empurrou-a para longe.

Meg caiu e gritou para Vivian.

— Fuja, minha querida. Salve-se! — Então, com incrível agilidade, lançou-se sobre Vachel, envolvendo os braços magros em torno de suas pernas.

Ele chutou-a brutalmente e a empurrou de lado.

— Não a machuque! — Vivian exclamou. Com um feroz instinto protetor, lançou-se à garganta de Vachel com a faca.

A um grito de aviso de um de seus homens, o normando desviou o ataque com o braço. Em vez da garganta, a faca abriu um rasgo em seu rosto. Ele uivou, como um dos cães vadios de Poladouras, os dedos tocando a face machucada. Seus olhos escuros luziram perigosamente.

— Maldita! — esbravejou, erguendo o punho. O golpe apanhou Vivian no ombro e a teria jogado ao chão se o outro punho não a prendesse pelos cabelos.

Uma sensação de amortecimento espalhou-se pela extensão do braço, do ombro ferido aos dedos delicados. A faca que segurava caiu no chão da capela.

Vachel puxou-a contra o corpo, os cabelos torcidos no pulso como uma fita grossa de cetim que ele lentamente enrolava. A cabeça de Vivian foi forçada para trás.

— Há maneiras de domar um gato com garras afiadas. — Ele sorriu, uma expressão fria, malévola, lábios puxados sobre dentes que se destacavam no meio da barba emaranhada. Ergueu a espada e comprimiu a lâmina contra a garganta de Vivian.

— Vou mostrar quem é seu novo senhor — prometeu. Inclinou a espada e, com um torcer do punho, cortou o corpete do vestido até a carne, descrevendo um crescente escuro na pele pálida dos seios. Gotas de sangue pingaram da ferida e o sorriso malévolo alargou-se quando seu olhar se cravou na marca reluzente.

— Minha marca em você não passa da primeira, demoiselle — exclamou e puxou-a contra o peito, a barba dura embebida em sangue pressionada contra a face de Vivian. Os elos da cota de malha que lhe cobriam o braço se enterravam na carne dos seios redondos e firmes. — Eu a domarei — ele jurou. — Quando acabar, você rastejará a meus pés! Irá implorar para me chamar de amo e cumprirá minhas ordens.

Vivian recusou-se a gritar ou a acovardar-se. Em vez disso, manteve-se rígida, o queixo erguido com orgulho, os olhos reluzentes de ódio.

Vachel a sacudia violentamente pela espessa massa de cabelos sedosos que enrolara na mão.

— Compreende o que estou dizendo? — exclamou furioso, num inglês carregado de sotaque. — Vocês, saxões, são ignorantes demais para entenderem a mais simples ordem dada por seus novos senhores?

— Je vous comprends — Vivian respondeu em francês perfeito, a voz cheia de desdém, e viu com satisfação a expressão de espanto nos olhos cruéis. Então, perguntou, desafiadora: — Me comprenez-vousl — As feições delicadas de Vivian estavam tensas e mostravam todo o desprezo e ódio que sentia ao dizer: — Confesse seus pecados, Vachel, e reze por perdão. Pois juro, pelos antigos, que é um homem morto.

As risadas dos guerreiros normandos somaram-se à de seu líder.

— Diga-me, demoiselle — prosseguiu Vachel, a barba áspera a raspar-lhe a face. — Como eu morri? Por acaso você me matou e sou um fantasma que agora a mantém prisioneira? — Deu uma sonora gargalhada. — Usou alguma espada mágica para me abater?

Mais uma vez ergueu a espada e colocou-a na garganta de Vivian.

— Se estou morto — ponderou, o hálito quente e desagradável a soprar-lhe na face —, como é possível que eu tenha a lâmina contra o seu adorável pescoço?

Vivian encolheu-se com repulsa, recusando-se a deixá-lo perceber o menor traço de medo.

— Por favor, eu lhe imploro — exclamou Poladouras, ao lutar penosamente para se pôr em pé. — Não a machuque. Ela não passa de uma moça sem juízo. Não pretendia ferir ninguém. Queria apenas proteger a velha como qualquer criança protegeria a mãe.

Vachel, contudo, pareceu não ouvir. Comprimiu a espada com mais firmeza contra a carne macia, os olhos luzindo de prazer cruel.

De repente, as portas da abadia se escancararam com um baque que fez todos estremecerem. Uma outra vintena de cavaleiros normandos e um igual número de soldados armados postaram-se ao lado da entrada da capela.

— Pare, Vachel ou morrerá!

A expressão de Vachel tingiu-se de incredulidade, e depois se contorceu de raiva quando ele se virou na direção da voz, arrastando Vivian consigo.

— Rorke FitzWarren! Seu filho de Lúcifer! — vociferou. Apesar das palavras iradas, Vivian sentiu a mão de Vachel vacilar em seus cabelos, viu o espasmo do músculo no queixo e farejou o indisfarçável odor de medo do normando.

O cavaleiro recém-chegado postara-se na entrada da capela, emoldurado por um céu cor de chumbo ao fundo. Então, lentamente, avançou, a espada já fora da bainha. Seus homens igualmente se insinuaram entre os de Vachel, e Vivian sentiu o ódio frio e ameaçador que os dois normandos e os grupos de guerreiros comandavam.

Rorke FitzWarren encheu a capela com sua presença poderosa; os músculos pesados, sem dúvida enrijecidos por muitas batalhas, eram moldados pela cota de malha como se a armadura fosse sua companhia de longo tempo.

O toucado de malha fora empurrado para trás e caía em dobras pesadas pelos ombros largos. Seus cabelos eram de uma rica coloração de negro profundo, reluzentes como a asa de um falcão, e longos até os ombros.

Sob a luz do braseiro, Vivian viu feições fortes e duras. Uma testa larga, o perfil aquilino, as maçãs do rosto salientes e o queixo quadrado, que poderia mostrar força de caráter ou teimosia, ou quem sabe ambos, sob a sombra da barba de vários dias.

Em contraste, sua boca era bem delineada, com uma sensualidade espantosa, mesmo agora, quando os lábios se afinavam e se apertavam com desprezo diante da destruição desnecessária, ele era indiscutivelmente belo. Olhos que refletiam o dia nublado em suas gélidas profundezas acinzentadas observaram a cena com desgosto.

À medida que Rorke FitzWarren ergueu a espada e colocou a ponta mortífera contra a garganta de Vachel, a luz oscilante do braseiro refletiu-se em sua túnica.

Os fios dourados luziram, captando a parca luz do fogo moribundo. Como se os fios se tornassem as próprias chamas, a esplêndida ave caçadora bordada no tecido pareceu erguer-se das labaredas como uma criatura magnífica nascida de fogo e sangue.

O medo aguçou-se e espiralou em torno de Vivian, mais forte do que qualquer temor que ela tivesse de Vachel. Aquela era a mesma criatura que vira no cristal, a Fênix mítica a se elevar das cinzas e das chamas da destruição.

Foi então que o homem, cujas feições ela vira pela primeira vez no cristal azul, a encarou, e uma nova chama se acendeu no fundo de sua alma. Pela primeira vez em sua vida, estava diante de um sentimento que nenhum ser humano era capaz de dominar, não importava se fosse mago ou mortal.

Naquele instante, Rorke FitzWarren reconheceu que se uma chama pudesse tomar a forma humana, esta seria a bela criatura em pé diante dele.

A pele acetinada tinha uma pálida luz dourada, a massa de cabelos sedoso deslizavam até a cintura delgada, exibindo todos os matizes de vermelho, como as cores do fogo que crepitava em uma lareira, indo do vermelho brilhante ao tom mais profundo de vinho, mesclado com delicado âmbar. Eram seus olhos, contudo, que lhe chamavam a atenção e o mantinham cativo. Pareciam ser o coração cintilante de uma chama em repouso, no qual o amarelo suave se torna completamente claro e depois magicamente se transforma em azul intenso.

Ele vira as fogueiras de incontáveis acampamentos de guerra em dezenas de lugares estrangeiros que preferiria esquecer, em campos de batalha onde bons homens lutavam por causas justas e morriam; e outros lutavam por simples e mera ganância e, por alguma razão misteriosa, viviam. Fazia tanto tempo que convivia com a guerra que, quando pensava em fogo, pensava em morte.

Até aquele momento, jamais imaginara o fogo como algo puro e vivo. A bela saxã exibia o lume de um indomável orgulho, desafio e ira apaixonada, como se o fogo encontrasse vida dentro dela, e qualquer um que a tocasse certamente morreria queimado. Contudo, fazê-lo seria uma deliciosa tortura.

Uma onda de desejo e fascinação o fez ansiar por tocar a pele pálida, sentir a seda fulgurante dos cabelos entre os dedos, perder-se nos olhos zangados, desafiadores.

Dentro daqueles olhos acinzentados da Fênix, Vivian sentiu como se olhasse para si mesma e vislumbrasse todas as formas soturnas e escuras que assombravam suas visões e sonhos.

Rorke FitzWarren era seu inimigo, uma criatura nascida em fogo e sangue.

E, contudo, ela não conseguia desviar os olhos, pois sabia que estava fitando o futuro que ainda não estava escrito e a aguardava, sombrio, desconhecido e terrível, como o ousado guerreiro normando que estava em pé, espada em punho, a fitá-la com olhos como a alvorada de inverno.

— Maldito! — Vachel praguejou para Rorke FitzWarren.

— Fui enviado para encontrar a curandeira. Por que está aqui? — perguntou.

A expressão de FitzWarren tornou-se ainda mais predatória, o olhar frio como um iceberg que flutuava no Mar Irlandês.

— Queria ter certeza de que você não encontraria nenhuma dificuldade — ironizou. Então, ordenou: — Solte-a, agora.

— Soltá-la? Essa maldita saxã me enfrentou com uma faca!

— Vachel esbravejou, sua mão ainda presa aos cabelos de Vivian.

— Eu poderia tê-la matado.

O olhar frio de FitzWarren desceu para frente do corpete de Vivian, onde a lâmina de Vachel a ferira.

— Sim, posso ver o grave perigo que correu — disse com ironia e, então, repetiu: — Solte-a.

Vivian sentiu a sutil mudança dos músculos conforme os ombros de Vachel comprimiram-se às suas costas, e percebeu que ele não tinha intenção de largá-la.

Ele mudou de posição e se moveu para erguer a espada. Mas foi imediatamente confrontado pela arma de FitzWarren, que a deslizou perigosamente abaixo do queixo de Vachel, contra a carne vulnerável do pescoço na abertura da armadura de cota de malha.

Os olhos de Vachel se arregalaram e ele empalideceu. Lentamente, o sangue voltou a subir por seu pescoço e faces, num acesso claro de raiva, enquanto ele respirava fundo e praguejava baixinho.

— Maldito seja!

No instante seguinte, Vivian sentiu-o enrijecer. Não demorou a saber o motivo de tal reação: um filete de sangue escorria por toda a extensão da espada de Rorke FitzWarren.

— Solte-a ou morrerá — FitzWarren murmurou, com uma calma tão brutal que Vivian estremeceu.

Vachel, de repente, ficou imóvel.

— Creio — disse FitzWarren —, que o melhor guerreiro é aquele que experimenta os dois lados de uma lâmina. — A ponta da espada estava a um fio da jugular do inimigo. — A experiência de um faz melhor a apreciação do outro. É prudente quem compreende isso. E tolo aquele que não entende... ou um homem morto. — Fez uma pausa. — Diga-me, Vachel, você é prudente? Ou tolo?

Desde que recebera o título de cavaleiro, Rorke conhecera incontáveis homens como aquele que estava sob o julgo de sua espada. Vachel era um mercenário, um guerreiro profissional como tantos outros que vendiam seus serviços pelo maior lance.

Já os motivos que o levavam à guerra eram bem diferentes. Ele era um bastardo por nascimento, cujo único destino possível fora a cavalaria. Escolhera tornar-se um guerreiro como um meio de ganhar o que lhe fora negado por nascimento, o ducado de Anjou, que ele jurara tomar do pai que odiava e desprezava.

Ele e Guilherme da Normandia partilhavam muitas coisas, o nascimento bastardo, a ambição e a guerra. Tinham se encontrado pela primeira vez no campo de batalha contra os Moors, que defendiam um imenso esconderijo de ouro em San Cristabol.

O exército de Guilherme fora rodeado por três lados e poderia ter sido dizimado se Rorke e seus homens não se juntassem à batalha. Tinham estado juntos desde então, mas muitas vezes era difícil saber quem servia a quem.

Quando Guilherme decidira tomar a Inglaterra e novamente necessitara de um exército poderoso, fizera uma barganha com Rorke pelo ducado de Anjou. Melhor ter um aliado às suas costas, quando enfrentasse o rei francês, que era uma ameaça constante, pois Anjou fazia fronteira com a Normandia.

Vachel, contudo, era diferente deles. Não tinha ambições por terra, honra ou poder. O dinheiro que lhe era pago pelo irmão de Guilherme, o bispo, significava pouco para ele. O que mais importava era a matança. Era um caçador nato, perigoso ao extremo, com uma luxúria sangüinária que não dava tréguas.

Acima da ponta da espada de FitzWarren, a face de Vachel contorceu-se de raiva. Ele praguejou e depois recuou quando mais sangue escorreu pela extensão da lâmina de Rorke FitzWarren. Então, baixou a espada, e Vivian sentiu o aperto dos dedos em seus cabelos afrouxar-se.

Quando se viu livre, ela rapidamente se afastou.

— É prudente o homem que conhece suas limitações. Agora você saberá exatamente o que se sente ao ter a carne rasgada pela espada e ver seu sangue escorrer pela ferida.

Para enfatizar as palavras que proferia, FitzWarren inclinou a ponta da espada primeiro numa direção e depois noutra, abrindo um pequeno crescente na base da garganta de Vachel, e Vivian ficou espantada ao perceber que aquilo se parecia muito com a marca que Vachel fizera nela com a própria lâmina.

A respiração de Vachel assobiava entre seus dentes. Sua face estava agora mortalmente pálida. Ele praguejou de novo, desta vez de dor, ofegando com o pescoço rígido.

— Não me esquecerei disto, FitzWarren! — prometeu. Então, engoliu em seco, o odor do medo podia ser sentido no ar. — Maldito seja no fogo do inferno!

FitzWarren deu de ombros, um movimento difícil sob o peso da pesada cota de malha.

— Há muitos outros que já desejaram isso — atalhou com ironia. Depois, na mesma entonação de voz, sem a emoção que parecia apenas aumentar a ameaça de perigo, como o sibilar da serpente antes do ataque derradeiro, ordenou a Vachel: — Entregue-me sua espada ou serei forçado a matá-lo.

Vachel hesitou. Então, lentamente, soltou o cabo da espada. Uma expressão perigosa nublou as feições grosseiras, à medida que a espada caía a seus pés com um baque surdo. Seus olhos duros e sombrios não mostravam rendição, mas, em vez disso, luziam com uma fria luz mortal, e Vivian não soube dizer qual dos dois era o mais perigoso.

— Por que está aqui? — Vachel sibilou por entre os dentes cerrados, mesmo enquanto a ponta da espada de FitzWarren ainda descansava na carne de sua garganta. — Fui mandado para encontrar a curandeira! Não havia necessidade de você ou desses malditos bárbaros que o seguem como uma sombra estarem aqui.

Houve uma mudança de movimentação entre os homens de FitzWarren, e Vivian viu um guerreiro com uma espada estranhamente curvada avançar silenciosamente para se postar ao lado dele. A única resposta de Rorke FitzWarren foi uma sutil inclinação de cabeça, como se ele sentisse mais do que visse o movimento do outro homem.

O guerreiro usava túnicas longas amarradas na cintura, que caíam sobre calças de couro abaixo de seus joelhos. Sua cabeça estava enrolada num pano branco que pendia por seus ombros, e fazia um agudo contraste contra a pele de um tom de dourado. Sobrancelhas tão negras como a noite desenhavam ângulos curvos acima das feições atraentes, visíveis apenas com dificuldade no aposento mal-iluminado, conferindo-lhe a aparência atenta e perigosa de uma pantera.

Vivian observou-o com fascinação, pois ele a fazia lembrar das histórias que Poladouras lhe contara sobre os persas e o Império Bizantino do Oriente. Os olhos dele, contudo, eram tão azuis quanto o céu de verão. Que homem impressionante!

Um segundo cavaleiro deu um passo à direita de FitzWarren, com a espada desembainhada. Tirou o elmo da cabeça, a massa de cabelos vermelhos a lhe cair até os ombros e o olhar ansioso a luzir como âmbar líquido.

Vivian notou que era mais jovem que FitzWarren e também que o guerreiro de vestes estranhas, mas não menos imponente. Mesmo sem conhecê-lo, ela sabia que o cavaleiro mais jovem atacaria primeiro e depois calcularia as conseqüências, como uma serpente veloz e mortal.

— Gostaria que eu separasse a cabeça do cão do bispo de seus ombros sarnentos? — ele perguntou, num tom que sugeria que seria um enorme prazer fazê-lo.

— Vejo que trouxe o jovem bastardo com você também — grunhiu Vachel com escárnio. A intensidade de seu ódio impregnou o ar, mesmo num lugar tão sagrado como a abadia. — Eu não imaginava que procurar uma curandeira do interior saxão exigisse a presença real.

Vivian viu com crescente curiosidade quando o jovem guerreiro reagiu violentamente e teria atacado Vachel com a espada se Rorke FitzWarren não interviesse.

— Não vale a pena, Stephen — disse ao cavaleiro mais jovem. — O dia virá, mas não aqui, nem agora. Existe assunto mais urgente a tratar.

O jovem abaixou a espada, mas não a embainhou.

FitzWarren observou a destruição na abadia. Seu olhar parou em Poladouras, com o ferimento na cabeça, seguiu para a figura igualmente ensangüentada e encolhida de Meg, para a criada histérica, em prantos, e, então, pousou em Vivian. De novo, ela se sentiu devassada por aqueles olhos penetrantes que pareciam ter o poder de ver-lhe a alma.

— Parece, Vachel — disse ele, num tom a princípio de desprezo e depois cínico —, que esses saxões são muito perigosos mesmo. Imagine só, um monge, uma velha, uma menina assustada e uma jovem. Sem dúvida, o monge jogou um livro em você. Este aqui, talvez - sugeriu, pegando um dos manuscritos do chão.

Com uma gentileza que era quase reverente, colocou o manuscrito sobre uma mesinha que escapara da destruição.

Vivian franziu o cenho diante do inesperado gesto do cavaleiro normando.

— Talvez — FitzWarren continuou —, a velha o tenha dominado e o feito temer por sua vida. — Postou-se junto a Meg, encolhida no chão a seus pés, e ordenou: — Olhe para mim, senhora. — A facilidade com que mudou para o idioma saxão surpreendeu a todos.

Meg endireitou os ombros magros.

— Você não me assusta, guerreiro — sibilou ela, recusando-se a obedecer enquanto olhava com teimosia para o chão.

Vivian conteve a respiração diante das pragas em antigo celta que Meg proferiu. Então, deixou de respirar de todo quando FitzWarren tirou as pesadas manoplas e ajoelhou-se ao lado de sua velha ama de leite, com uma facilidade de movimento quase graciosa, a despeito da armadura de batalha que usava. Naquele momento, ela teve a certeza de que o guerreiro normando entendera as coisas horríveis que Meg dissera. Logo, ficou espantada quando o viu forçar a cabeça de Meg para cima com um gesto gentil.

Meg berrou vários sacrilégios ao agarrar e arranhar a mão de FitzWarren que a segurava. Sem se intimidar, ele inclinou-lhe a cabeça para trás e observou a face enrugada marcada pelos hematomas que Vachel lhe infligira.

A velha senhora ergueu as mãos para o alto como se para se proteger de outro soco, fazendo gestos grotescos com os dedos.

Apenas Vivian compreendeu os antigos sinais que a mulher fazia com as mãos, convocando todas as criaturas más que pudesse chamar das Trevas, cada possível doença que já acometera a raça humana e horríveis mazelas que nem mesmo Vivian conhecia.

— Não pense em me amaldiçoar ou me conjurar algum feitiço, velha! — FitzWarren a avisou. — Pois não acredito em tais coisas.

— Vai acreditar! — Meg avisou, ameaçadoramente. — Quando seus olhos saltarem de sua cabeça e sua masculinidade se encolher e se tornar menor do que um verme!

Ele ignorou as ameaças e voltou-se para Mally. Deslizou os dedos sob o queixo trêmulo da garota e inclinou-lhe a face para cima para que ela também fosse forçada a encará-lo. A garota choramingou, as lágrimas escorrendo pelo rosto machucado e sujo, o olhar desviado.

— Não vou machucá-la — ele disse, com uma gentileza bastante surpreendente.

Mally o fitou por entre os cílios cerrados.

— Embora Deus saiba que você tem razões suficientes para me temer — FitzWarren emendou, em francês — e ainda mais razão para duvidar do que digo.

Vivian ficou surpresa por aquela preocupação inesperada pela garota e observou-o com uma renovada curiosidade. Então, ele disse a Mally, em inglês:

— Olhe para mim.

Finalmente a garota ergueu os olhos azuis que brilhavam apavorados num rosto muito machucado. Ela parecia mais um bichinho encurralado, que mal escapara com vida.

Ao vê-la, a raiva cruzou a expressão implacável de FitzWarren.

— Solte-a — ordenou ao soldado que a mantinha prisioneira. Apavorada e admirada, Mally esgueirou-se para as sombras na parede.

A voz de FitzWarren tornou-se fria, amarga e inclemente ao dizer a Vachel:

— Se fosse por você, teria matado todos os saxões, inclusive a curandeira!

O olhar de Vivian cravou-se em Vachel. Por que o homem haveria de querer matá-la?

Como se lhe ouvisse os pensamentos, Rorke FitzWarren voltou-se lentamente para Vivian. Seu olhar demorou-se no tecido rasgado do vestido e na marca ensangüentada na pele pálida. A boca carnuda curvou-se formando uma linha dura.

— Minhas desculpas, demoiselle. O rei ficaria ofendido se soubesse que foi tão maltratada.

Ela ergueu a sobrancelha ligeiramente ao responder, em francês, as palavras a destilarem toda a raiva, o ódio e o desprezo que sentia pelos normandos.

— Fala sem dúvida do rei Harold — disse, desafiadora. — E tem razão, milorde. Ele jamais toleraria tal abuso de seus súditos leais, tampouco permitiria tiranos estrangeiros em solo inglês.

— Falo de Guilherme da Normandia — Rorke retrucou com surpresa ao descobrir que ela falava um francês perfeito. — Seu novo rei, milady.

— Guilherme não é meu rei — Vivian argumentou, com desprezo. — A Inglaterra saxã jamais se curvará diante de um senhor feudal normando. A estrada do campo de batalha ao trono é longa e muitas vezes cheia de perigos. — Negava com todo o coração o que já sabia ser verdade, que toda a Inglaterra estava perdida. Porém, não poderia curvar-se diante daquele cavaleiro normando que trouxera morte e destruição a seu povo.

— Sim, a estrada é longa e perigosa — concordou ele. — Porém, eu lhe asseguro, Guilherme da Normandia será rei da Inglaterra.

Algo brilhou no chão e chamou a atenção de Rorke. Ele agachou-se e apanhou o objeto brilhante. A respiração de Vivian ficou presa na garganta quando os dedos longos se fecharam sobre a faca, antes de fitá-la com ar especulativo.

— Óleo de alecrim. Disseram-me que é muito eficiente para curar gota. — Aquele olhar acinzentado, como os longos dias de inverno recaíram então sobre Poladouras e suas pernas inchadas. — E também freqüentemente usado por curandeiros.

Os olhos arregalados de Vivian encontraram os dele.

Rorke percebeu de imediato a cautela que havia ali, a súbita tensão de cada músculo do corpo esguio. Estendeu o braço e afastou-lhe os cabelos avermelhados que caíam pelos ombros como um manto de fogo derretido. Sentiu o calor que exalava da pele clara e divisou-o na chama que tremulou nas profundezas daqueles olhos azuis. Ouviu o murmúrio súbito e espantado da respiração dela, o que o fez retirar a mão rapidamente.

O contato foi breve, aqueles dedos duros calejados a roçar-lhe a face fizeram Vivian estremecer, ao fecharem o que sobrara do corpete rasgado. Com ódio e temor no coração, disse a ele o que Rorke já adivinhara.

— Eu sou a curandeira que você procura.

Os olhos acinzentados cravaram-se nela. Ele então girou a faca e estendeu-a em sua direção. Vivian o encarou com uma cautela renovada, incapaz de lhe adivinhar as intenções.

— Não pense em usá-la contra mim — ele avisou. — Não precisa ter medo. Preciso de você sã e salva. — Em seguida, voltou-se para seus homens. — Perdemos tempo demais. — Encarou-a outra vez. — Apronte-se para partir de imediato, demoiselle. Reúna suas ervas e pós, pois o tempo é essencial se for para o duque da Normandia viver.

Vivian não julgara que aquela jornada fosse de tamanha importância. Então a raiva substituiu sua surpresa ao dizer a ele:

— Jamais empregarei minhas habilidades para curar o normando que é causa da dor e sofrimento das terras saxãs!

Rorke FitzWarren voltou-se lentamente, a luz do braseiro a brincar nas feições angulosas, ao mesmo tempo em que recaíam sobre a imagem da poderosa criatura bordada na frente de sua túnica. Por um momento, pareceu que homem e animal se tornavam um só. Tal como ela vira na chama no coração do cristal azul. Sua expressão era feroz, predatória, perigosa. Os olhos tão frios quanto as noites de inverno. No entanto, suas palavras foram lentas e cuidadosamente proferidas:

— Empregará sim, demoiselle — ele assegurou-lhe —, ou toda Amesbury pagará o preço. A escolha é sua.

Ela estava encurralada, sem qualquer opção, e FitzWarren sabia disso. Vira a lealdade que devotava ao monge e à velha senhora. A bela jovem de cabelos cor de fogo daria alegremente a vida por qualquer um deles. Porém, com as vidas de todos os aldeões em jogo, ele lhe oferecia uma escolha impossível.

A agonia daquela escolha era clara. Contudo, o espírito indomável não permitiria que Vivian mostrasse qualquer obediência ou concordância em se submeter a ele. Em vez disso, ela virou-se e caminhou lentamente para os degraus de pedra que, sem dúvida, conduziam à torre que ele vira quando tinham se aproximado da abadia. Com um gesto, ele mandou que Tarek ai Sharif a seguisse e se certificasse de que ela faria o que lhe ordenara.

O guerreiro de vestes estranhas e espada curva juntou-se a Vivian nos degraus da torre.

— Ele o mandou para me guardar ou para ter certeza de que não vou escapar? — perguntou Vivian, com um tom de sarcasmo, no próprio idioma, certa de que aquele bárbaro de pele bronzeada não poderia entender. Contudo, ele a compreendeu muito bem.

Sorriu ao se apresentar gentil e educadamente como Tarek ai Sharif, e ao ouvir seu nome ela soube ser verdadeira a sensação anterior que tivera em relação a ele. Era persa, do Império Bizantino. Ficou a imaginar como um homem assim viera lutar ao lado de Guilherme da Normandia.

— Permita-me ajudá-la, senhora — disse Tarek, num inglês quase perfeito. Estendeu-lhe a mão. E a guiou degraus acima, embora ela dificilmente precisasse de sua ajuda. Em seu toque, ela sentiu compaixão e respeito. — Veja para que nada seja esquecido — murmurou ele, ao chegarem à estufa de plantas.

Embora Tarek ai Sharif tivesse permanecido calado depois disso, Vivian sentiu sua silenciosa contemplação quando ela reuniu rapidamente tudo o que levaria consigo. Diante do olhar indagador que o guerreiro persa lhe dirigiu quando ela deixou uma porção de cada pó e erva nos frascos e potes de cerâmica, ela o informou:

— Os aldeões precisarão disso quando eu me for.

Vivian espantou-se outra vez quando o guerreiro não objetou, mas a ajudou a colocar cuidadosamente os pacotes e frascos preciosos num grande saco de tecido rústico.

Rorke FitzWarren e seus homens esperavam montados em seus cavalos no pátio do lado de fora da abadia. Vachel e seus comandados, também montados em seus cavalos, esperavam a distância.

Vivian sentiu o olhar raivoso de Vachel sobre si e novamente pensou se aquilo que Rorke FitzWarren dissera era verdade. Será que o irascível Vachel a teria matado se não tivesse sido interrompido?

Poladouras pousou a mão sobre o rosto de Vivian.

— Deus esteja consigo, minha menina. Ele a devolverá a nossos cuidados. — Não se atreveu a dizer ou fazer mais nada quando Rorke FitzWarren o encarou impaciente.

Mas a velha Meg não tinha medo dos guerreiros normandos e tampouco podia ver a impaciência do comandante.

— Está com o cristal? — perguntou, aflita.

— Sim — Vivian assegurou-lhe, a mão a comprimir-se instintivamente contra o cristal pendurado em seu pescoço e aninhado entre os seios redondos. Sentiu a reafirmação do poder da chama que queimava no coração da pedra.

— Seja forte, mo chroi — Meg disse a ela, falando no antigo idioma celta que partilhavam. — Lembre-se, você precisa fugir na primeira oportunidade.

— Não! Não posso arriscar a vida dos outros — murmurou, então abraçou Meg com força e trocaram despedidas.

Suspirando, Vivian puxou o xale grosso sobre a cabeça e em torno dos ombros para cobrir o corpete aberto do vestido, pois não houvera tempo para colocar outro. O saco com os frascos e as poções que preparara colocara debaixo do braço, pouco antes de sair para o frio do dia.

Ao cruzar o pátio, viu a plena extensão dos danos que os soldados tinham infligido à abadia de Amesbury. Um dos cachorros de Poladouras estava morto sobre o chão de pedras, havia ovelhas espalhadas por toda a parte e o jovem pastor do vilarejo encontrava-se estirado no chão. Com um grito de protesto, Vivian correu para ele.

— Conal!

Ele estava de lado, sangrando muito de um profundo corte na cabeça. Gemeu quando Vivian passou-lhe o braço sob o corpo e ergueu o ombro do chão para aninhar sua cabeça no colo.

— Guerreiros inimigos! — Conal murmurou em delírio. — Precisamos fugir!

— Sim, Conal. Não fale agora — Vivian pediu, ao conter o sangue do ferimento com o xale. Sentiu uma pontada de ódio diante da crueldade dos bárbaros normandos. Naquele instante, não teve dúvida de qual seria o destino dos aldeões se ela se recusasse a acompanhar o chefe normando.

De súbito, a chuva que ameaçara cair a manhã toda desabou sobre eles.

— Deixe-o — Rorke FitzWarren ordenou com aspereza. Seu enorme cavalo de batalha movia-se inquieto no aguaceiro, e a teria facilmente atropelado não fosse pela mão forte agarrada às rédeas.

— Ele está muito ferido — Vivian protestou. — Preciso fechar o ferimento. — Então, num tom que mesclava ironia e desdém, emendou: — Certamente, milorde, mesmo o senhor seria capaz de compreender isso.

Os olhos frios como gelo se estreitaram, e os lábios grossos se apertaram formando uma linha dura. A chuva ensopava os longos cabelos negros de Rorke FitzWarren, tornando-os mais escuros ainda e fazendo-o parecer aquilo de que Vachel o xingara: o filho de Lúcifer.

Ela estremeceu diante de tal pensamento.

— Compreendo muito bem, demoiselle — retrucou ele. — Deixe-o onde está ou pode ter certeza de sua morte iminente.

— Você não mataria um homem ferido! — Vivian exclamou, incrédula.

A espada de Rorke FitzWarren tiniu num som mortal ao sair da bainha.

— A escolha é sua, demoiselle,

— Perdoe-me, Conal — ela murmurou, acariciando a face do pastor com gentileza. — Meg cuidará de seus ferimentos.

A mão do homem se fechou sobre a dela com uma força incomum para um moribundo.

—- Eu a encontrarei — murmurou. — Os porcos normandos pagarão por tudo que fizeram. — Então, gemeu, e sua cabeça tombou de lado. Perdera a consciência.

Ela tirou o braço de sob os ombros largos quando Meg aproximou-se e se agachou ao lado.

— Cuidarei dos ferimentos de Conal. Vá agora, mo chroi. E lembre-se do que eu lhe disse.

Vivian levantou-se devagar e encarou Rorke FitzWarren com ar desafiador, o ódio a queimar em seus olhos ao sentir, no fundo do bolso, a força reconfortante da faca que ela recuperara.

— Odeie-me, se quiser, milady — Rorke FitzWarren disse a ela —, mas não iremos nos atrasar mais. — Estendeu a mão, o braço a circundá-la pela cintura quando se inclinou na sela.

Ela foi erguida facilmente e acomodada na sela diante dele, as pernas separadas, uma de cada lado. O saco de ervas e pós foi preso e pendurado ao alforje. O normando distribuiu ordens secas aos homens e o pátio tornou-se um mar de lama sob as patas dos animais.

Então, Vivian de Amesbury deixou a abadia, talvez para nunca mais voltar. Ainda não pudera desvendar o futuro, e seus olhos se encheram de lágrimas por aqueles que amava.

Gritos de lamento ecoaram no ar gelado, e o olhar de Vivian ergueu-se para o céu. Ao alto, o pequeno falcão pairava nos ventos da tempestade que se formava, crocitando dolorosamente à medida que os acompanhava.

 

A chuva que começara a cair assim que tinham deixado Amesbury tornara-se uma forte tempestade. Foram forçados a diminuir o passo quando a velha estrada romana começou a ficar escorregadia, com os animais deslizando perigosamente na lama.

A prisioneira sentava-se diante de Rorke FitzWarren com as mãos fechadas no ressalto da sela, queixo erguido e nariz empinado, mantendo-se tão longe dele quanto possível.

Ela não era exatamente quem Rorke esperava encontrar na abadia. A própria noção de que morava numa abadia sugeria uma vida enclausurada, reclusa, de humildade, obediência e subserviência natas. Curandeiras ou eram velhas bruxas enrugadas ou corpulentas parteiras camponesas que tinham adquirido conhecimentos sobre ervas e seus poderes medicinais.

Contudo, aquela jovem não era nem velha nem enrugada e tampouco corpulenta. Sob as vestes usadas e remendadas, era esguia e de ossatura delicada. A despeito dos maltratos de Vachel, sua pele era como o mais fino e pálido cetim, e os cabelos, agora protegidos pelo xale, pareciam uma cascata de fogo. Os olhos...

Ah, os olhos azuis pareciam ter vida própria e queimavam com um ódio feroz quando ela encarara Vachel, e depois refletiram o azul mais profundo ao deixar aqueles que amava. Agora, eram como chamas azuis em descanso.

Como uma donzela tão linda e incomum fora terminar enclausurada em uma abadia?, Rorke perguntou-se secretamente.

A sela de couro se tornara escorregadia, e ela tremia violentamente de frio. Movido por um impulso, Rorke a firmou, segurando-a pelo quadril.

Vivian se assustou com aquele toque quente através das vestes frias e molhadas. Enrijeceu o corpo e teria se afastado, mas a mão forte e calejada a impediu de fazê-lo.

— Fique quieta — ele disse, o braço musculoso apoiando-a contra si — ou vai nos fazer cair.

Mas ela não conseguiu parar de tremer.

— Você está com frio.

Vivian sentiu a súbita mudança de posição na sela atrás de si, o aperto de poderosos músculos das pernas em torno de seus quadris, o peito largo a suas costas quando ele acomodou o pesado manto ao redor dos dois, fechando-os num casulo forrado de pele.

Um medo selvagem cresceu dentro dela diante de tamanha proximidade. Sentia-se encurralada e vulnerável de um modo que nunca experimentara antes. O calor compartilhado por seus corpos era, ao mesmo tempo, delicioso e aterrador.

Rorke, por sua vez, descobriu que havia riscos mais graves do que se encontrar, de repente, fora da sela de seu cavalo, pois o perigo estava justamente nas coxas macias encostadas às suas e na curva das nádegas femininas comprimidas sedutoramente contra sua virilha.

O perfume suave de Vivian o embriagava. Ela cheirava a vento, chuva e à doce promessa de primavera conforme seu calor começava a mesclar-se ao dele. Seus cabelos eram como cetim, caindo lustrosos e macios pelos ombros. A pele pálida implorava pelo toque de um homem.

O desejo o estava traindo. Se não fosse por aquelas camadas de cota de malha e couro, sua reação ficaria evidente. Ele praguejou baixinho.

Não conseguia se lembrar da última vez em que ficara tão facilmente excitado ou que tivesse fantasiado em amar uma mulher livremente logo após ter acabado de conhecê-la. Isso o surpreendia, porque não era um homem que se deixava dominar pela compulsão sexual, como alguns de seus guerreiros, que procuravam qualquer carne macia e quente. Mesmo assim, aquela curandeira saxã, com olhos do tom azulado que arde no interior de uma chama e cabelos como o fogo derretido, o fazia sentir como se todo seu corpo estivesse pulsando de desejo.

— Não precisa partilhar seu manto comigo — disse ela, puxando a capa que os envolvia.

— Você está molhada e com frio — Rorke retrucou, recusando-se a soltá-la. Descobrira que era uma doce tortura da qual não queria se desvencilhar.

— Já estive molhada e passei frio antes — ela insistiu, tão perto que sua face emanava calor abaixo do queixo dele. — Não me importo.

— Eu me importo. E, se insistir, demoiselle, então a amarrarei diante de mim — ele assegurou-lhe. — A escolha é sua.

Vivian endireitou-se e se manteve teimosamente rígida na sela. À medida que as horas passavam, ele a sentiu vacilar quando a fadiga a dominou. Por fim, a exaustão a venceu. Seu queixo delicado caiu. Ela se aconchegou e não mais tentou se afastar.

A noite começou a descer no horizonte e tornou-se impossível avançar na escuridão que se fechou em torno deles. A beira de um bosque, Rorke ordenou que seus homens montassem acampamento para passarem a noite.

A prisioneira saxã acordou sobressaltada.

— Sa se bien, demoiselle.

A exaustão lentamente se dissipou e Vivian afastou-se dele, os olhos cautelosos e brilhantes.

— Que lugar é este?

— Acamparemos aqui esta noite e continuaremos ao amanhecer.

Rorke tirou o manto que os protegia e desmontou.

Vivian estremeceu com a perda súbita do calor que a mantivera aquecida. Suas costas doíam e as pernas contraíam-se de cãibras por estar na sela por tantas horas. Ela escorregou para o chão e teria se esparramado na lama se ele não a pegasse.

— Se vamos comer — disse Rorke, olhando para o bosque —, e não quisermos congelar durante a noite, precisaremos de lenha para fazer uma fogueira. Não quer recolher alguns gravetos?

Vivian o encarou surpresa. Julgava que ficaria amarrada.

— Não tem medo de que eu possa fugir? — perguntou, incrédula.

— É uma longa caminhada de volta à abadia — ele ponderou.

— Sim, mas eu poderia me esconder nos bosques. Você não saberia que caminho eu teria tomado.

— Tem toda razão, mas, de qualquer forma, seria encontrada.

E não posso assegurar que seriam meus homens que a localizariam primeiro. Vivian ergueu o queixo.

— Não tenho medo de Vachel.

— Não, mas os aldeões de Amesbury têm razões de sobra para temê-lo, e lá será o primeiro lugar que Vachel mandará seus homens se você desaparecer. Se for encontrada, ele queimará a vila. Se não for encontrada, mesmo assim ele queimará a vila. Vachel é como um animal — advertiu-a — e, tal qual um animal, torna-se ainda mais sangüinário na caçada.

Ela estremeceu de novo. Desta vez, não era de frio, mas sim por causa da lembrança de sua visão no coração da pedra. Teve a sensação crescente de estar sendo atraída em direção a algo que não conseguia compreender nem evitar.

— Não tentarei escapar — murmurou suavemente ao se voltar para as árvores. — Tem minha palavra.

— Não se afaste muito — Rorke avisou.

Quando retornou, Vivian descobriu que Rorke montara acampamento perto dos cavalos. Seu manto estava sobre um tronco de um enorme carvalho caído. Uma área havia sido limpa em frente à árvore, onde se apoiavam alguns rolos de peles espessas.

Vivian colocou folhas secas e pedaços de casca de árvore com pequenos brotos no pequeno fogo que ele armara ao abrigo do carvalho caído. Logo as chamas ganharam vida e as labaredas dançavam em torno da lenha que queimaria durante toda noite.

Tomada por um repentino calafrio, ela levantou-se abruptamente e virou-se, sabendo quem iria encontrar. Vachel se aproximara tão silenciosamente que ela não o ouvira, mas pressentira sua presença.

A raiva lampejou nos olhos negros de Vachel. Pensara em pegá-la de surpresa, mas tal esperança se desvanecera.

— É realmente habilidosa, senhora. Tem um fogo forte enquanto outros lutam para acender a primeira fagulha.

Ele se agachou diante do fogo com um movimento ágil que contradizia a robustez de seu corpo. Uma lâmina reluziu em sua mão, arma que não estava ali antes e espetou a ponta nos carvões que começavam a se formar no fogo.

Voltou-se para encarar Vivian. Passou a mão sobre o corte na face. Mas o olhar de Vivian estava cravado na faca em suas mãos.

Podia ouvir-lhe os pensamentos perigosos tão claramente como se ele os proferisse em alto e bom som. E sentiu também a humilhação que fervia dentro dele como uma ferida infectada.

Sim, ela o envergonhara diante de seus homens e Vachel viera em busca de vingança.

Saltou diante dela como um animal, uma das mãos a segurá-la pelos cabelos enquanto a faca se erguia na outra.

— A lâmina está quente. Vai queimar além de cortar. Antes que possa pensar, demoiselle, gritará por misericórdia. Vou domá-la! — ele jurou, ao levar a faca para o lado do rosto dela. — E acabarei com esse seu orgulho saxão quando você estiver debaixo de mim.

— Nunca!

Rorke ouviu o grito, como o de um animal ferido e praguejou. Atravessou o acampamento numa corrida. Avistou Vachel na clareira, parado a poucos passos de distância de Vivian de Amesbury, que jazia no chão.

Instintivamente, a mão de Rorke fechou-se sob o cabo do punhal, mas seus dedos se imobilizaram quando percebeu que não fora sua bela prisioneira que gritara.

Vachel gritava nas agonias da dor ao apertar uma mão sobre a outra. A carne de uma delas tinha uma faixa empolada como se ele a tivesse colocado no fogo.

— Saxã maldita, você me atacou! Olhem o que ela fez. Ela me queimou! — Vachel esbravejou e virou-se para que todos vissem. — Quero a cabeça desta mulher na ponta de uma lança!

— Chega, Vachel! — ordenou Rorke. — Quero saber o motivo disso pela boca da moça.

Vivian ergueu a cabeça lentamente e olhou para o círculo de guerreiros que se formara em questão de segundos. Nas faces dos homens de Vachel viu uma avidez animal por sangue. Já os que estavam sob o comando de Rorke pareciam menos convencidos de sua culpa.

O estranho guerreiro de olhos acinzentados a observava com uma intensidade constrangedora.

Justiça normanda, ela pensou. A mesma justiça com a qual Guilherme se apossara da coroa da Inglaterra.

— Ele se queimou sozinho com uma faca no fogo — respondeu, dizendo a simples verdade.

— A saxã mente! — Vachel acusou. — Ela me queimou com um espeto!

Rorke estendeu a mão a ela. Vivian colocou a mão vazia na dele.

— Sua outra mão também, demoiselle. Um lampejo de raiva brilhou nos olhos dela quando estendeu a outra mão e a abriu.

Rorke voltou-se para Vachel. — Não há arma alguma.

A fúria lhe retorcia as feições, conforme Vachel passou por ele e se dirigiu a seus próprios homens.

— Ela me atacou — insistiu. — E escondeu a arma. A saxã é perigosa e precisa ser punida.

Seus subordinados resmungaram, em concordância. Pareciam pensar da mesma forma.

— Talvez esta seja a arma de que fala — Tarek ai Sharif manifestou-se, ao se levantar de onde estava agachado diante da fogueira. Com movimentos lentos, entregou uma faca a Rorke.

Rorke virou-a nas mãos. Era uma lâmina diferente, com um cabo em forma de cabeça de javali.

— Creio que isto pertence a você, Vachel — disse. O olhar de Vachel se apertou ao observar a faca.

— Deve ter caído quando a maldita me atacou. Quando estendeu a mão para pegar a faca de volta, Rorke segurou-o pelo braço.

— Você reclamou que a moça o queimou com um espeto no fogo.

Vachel lutou para desvencilhar-se. Soltou um palavrão.

À luz da fogueira todos viram a imensa queimadura na palma da mão de Vachel, como se ele tivesse segurado uma faca em brasa idêntica a que dissera ter perdido.

Rorke empurrou Vachel para longe e ordenou:

— Voltem para suas fogueiras. A noite será longa e fria. Lentamente, todos se afastaram. Vachel, com uma violência mal controlada, colocou a faca na bainha do cinto e depois se virou e se afastou, sumindo na escuridão. Reapareceu brevemente perto da fogueira de um de seus homens. Era como um cão ferido que volta ao bando.

Não o viram mais naquela noite, mas isso não fez Vivian sentir-se mais aliviada. Ela sabia que ele estava ali fora na escuridão, à espera de uma oportunidade para se vingar.

Depois de comerem, Rorke colocou vários galhos na fogueira e apanhou as peles enroladas na clareira. Desamarrou um rolo grosso de pele e abriu-o no chão ao lado do fogo.

— Você dormirá aqui — disse a Vivian.

— Não posso privá-lo de sua coberta.

— Não era essa minha intenção, demoiselle. Iremos partilhá-la.

O olhar espantado de Vivian encontrou o dele do outro lado da clareira que, de repente, tornou-se pequena para a largura da pesada pele que estava estendida entre os dois.

— Não podemos! — ela protestou, com repentina aflição. — Mal há espaço para uma pessoa. — Aproximou-se mais do fogo. — Além do que, estou bastante acostumada ao frio.

— Já eu não posso dizer o mesmo, demoiselle. — Pegou o manto do tronco do carvalho caído e se achegou ao fogo. Sua voz tornou-se mais gentil. — A noite é longa e esfriará ainda mais com o passar das horas. Se meus homens não fazem objeção a partilhar o calor com um outro, certamente você também não. Fique tranqüila, pois não costumo me aproveitar de mulheres enquanto dormem.

Sentindo o frio congelante fechar suas garras inclementes sobre ela, Vivian aceitou com relutância o fato de que, se quisessem sobreviver àquela noite, teriam de passá-la juntos. Aproximou-se do leito de pele e ajeitou-se num pequeno espaço estreito na beirada.

Parecia estar dando tempo a ela para se acomodar e dormir ou talvez aguardasse alguma coisa. Mas o quê?

Seria possível que esperasse que Vachel voltasse a atacá-la durante a noite? Ela não se inquietou diante da possibilidade. Sabia que iria acontecer. Vachel atacaria de novo, pois tal era a natureza dos animais. Porém, não naquela noite.

O fogo lhe aquecia o rosto, o pesado manto e a pele a abrigavam num calor aconchegante. Seus olhos se tornaram pesados. Então, de repente, havia apenas a escuridão do sono.

Muito tempo depois, Rorke juntou-se a ela na cama de pele, puxando o manto sobre os dois. Ela estava de lado, os joelhos encolhidos, os pés enfiados sob a barra do vestido. Estremeceu ligeiramente com a súbita intrusão do ar frio, mas não acordou. Em vez disso, curvou-se ainda mais sobre si mesma.

A pele era apenas para uma pessoa e Rorke não tinha intenção de acordar de manhã com mãos, pés e costas enregeladas. Todavia, ele tinha certeza de que a proximidade do corpo de Vivian na cama não poderia ser mais desconcertante do que ter ficado sentado com ela diante de si, na sela.

O sono e a exaustão tinham acalmado a tensão rígida daquele corpo esbelto. Vivian dormia pesadamente, uma das mãos repousava sob a face e a outra sobre a beirada do manto de pele.

Ele pegou-lhe a mão para colocá-la sob o pesado manto e então sentiu os dedos longos e delicados se fecharem sobre os deles, puxando-lhe a mão para debaixo da pele para descansar aninhada contra o seio redondo e macio.

Rorke descobriu exatamente o que era pior do que se sentar na sela com aquele corpo esbelto acomodado contra a carne coberta pela cota de malha. Sim, sentir o corpo esbelto aninhado contra a carne sem a proteção da armadura, e com a mão comprimida sobre os seios macios, era a pior tortura que já sofrera.

— Senhor, tenha piedade de minha alma, porque meu corpo já está queimando no fogo do inferno! — ele gemeu, baixinho. Ah, aquela seria uma noite muito, muito longa.

O vale era rodeado por uma densa floresta. Conforme a encosta se aplainava e se abria, passaram por uma caravana de carros de boi. Um braço inanimado pendia de um deles. Vivian estremeceu. Todos os horrores que previra e receara começavam a desfilar diante de seus olhos, pois os carros transportavam corpos dos soldados do rei Harold. A seu lado, na sela, Rorke mantinha-se estoicamente calado.

Figuras encurvadas enfileiravam-se na beira de uma ravina, abaixando-se e se endireitando, num tipo de dança macabra conforme lançavam pás de terra na imensa vala.

Ao fundo, estavam os corpos de soldados da cavalaria e seus animais, alguns ainda na sela, empilhados uns sobre os outros como se uma mão gigante os tivesse jogado dentro da ravina. Horrorizada, Vivian percebeu que tinham caído para a morte num ataque colina abaixo.

— São normandos — explicou Rorke, a voz baixa e parecendo desprovida de qualquer emoção.

Para Vivian, o conhecimento premonitório da derrota de Harold em Hastings trouxera consigo uma sensação avassaladora de perda pelos incontáveis saxões que tinham morrido. Porém, aqueles corpos grotescamente retorcidos evidenciavam que muitos soldados normandos tinham morrido também.

Embora ela tentasse afastar as imagens aterradoras de sua mente, ela visualizou de novo a terrível.

Lágrimas quentes escorreram por suas faces geladas ao olhar pelo vale e ver as fogueiras distantes a brilhar com uma luz fantasmagórica através da neblina e da fumaça. Conforme os carros de boi rumavam para elas, Vivian percebeu que não eram fogueiras, mas piras funerárias para os mortos.

O pesado silêncio se prolongou durante algum tempo. Finalmente, pararam diante de uma das várias tendas no coração do acampamento normando.

Rorke desmontou, puxando Vivian para o chão. De imediato, vários soldados armados apareceram, deixando evidente que aquele era um acampamento de guerra.

— Traga seus remédios — Rorke ordenou.

Um calafrio a percorreu de alto a baixo e Vivian lembrou-se da voz que ouvira quando invocara a visão em seu cristal:

Cuidado, minha menina!

O aviso perpassou-lhe os sentidos à medida que soltava o saco de ervas da sela.

Uma lufada de vento frio perturbou o fogo no braseiro e apagou as chamas ao entrarem na tenda.

Havia vários cavaleiros armados dentro da tenda. Eles circundavam o catre parcialmente bloqueado da vista pela falange de espadas e armaduras.

— Chegamos a tempo, Gavin? — Rorke perguntou ao cavaleiro mais próximo.

Aquele que ele chamara de Gavin concordou, as feições tensas.

— Ele está vivo — disse, com voz solene.

Rorke olhou para os cavaleiros pesadamente armados. Seus olhos se estreitaram ao se cravar em alguém que se postava atrás de um deles, à cabeceira do catre.

— O que ela está fazendo aqui? — Sua voz era tão fria como o aço de uma lâmina. O cavaleiro afastou-se para o lado, revelando uma mulher à luz das lamparinas.

— Milorde FitzWarren — ela cumprimentou Rorke com voz aveludada. A bela loira de tez pálida deu um passo à frente, com um ar de distante superioridade. Falava em francês e seu vestido era do mais fino cetim.

Vivian julgou estranho encontrar uma mulher tão ricamente vestida no meio de um acampamento de guerra. Talvez fosse esposa do homem que jazia naquele catre.

— Dei ordens para que ninguém, além de meus homens, tivesse permissão para ficar aqui — esbravejou Rorke.

— Ele chamou por mim. Meu lugar é com ele.

Vivian sentiu a tensão no ar. Da mulher, captou muitas coisas: a frieza da ambição, o calor da raiva e paixão, e traços de uma lembrança sensual, quase erótica, que envolvia Rorke FitzWarren. De imediato, Vivian percebeu que, a despeito da raiva que parecia existir entre os dois, já tinham sido amantes um dia. Talvez ainda fossem.

— Parece estranho, milady, que alguém tão seriamente ferido e inconsciente tivesse forças para chamá-la — ele respondeu, com frieza. Olhou para Gavin. — Tíre-a daqui — ordenou.

— Você não pode me mandar sair — ela gritou. — Meu lugar é ao lado dele!

Rorke virou-se com uma lentidão deliberada, e novamente Vivian se lembrou daquela impressão anterior de uma criatura perigosa. Aquele olhar glacial era capaz de transformar alguém em uma estátua de gelo.

— A única mulher que pode reclamar tal privilégio é a esposa de Guilherme — disse ele, e, com um aceno de cabeça, fez sinal a Gavin para que a tirasse de lá.

— Tire suas mãos de mim — ela gritou, quando Gavin voltou-se para escoltá-la. Voltou-se para Rorke, com profundo desdém. — Sairei, milorde FitzWarren. Mas voltarei quando ele pedir.

Rorke arrancou as luvas cobertas de cotas de malha e empurrou o capuz para longe dos cabelos emaranhados. O círculo de cavaleiros abriu-se quando ele avançou para o catre.

— Pelo sangue de Cristo! — ele exclamou baixinho, porém com uma ferocidade que deixou Vivian gelada de apreensão. — Como é possível que ainda esteja vivo?

Ela viu de relance o homem no catre. Sua pele tinha uma cor acinzentada, exangue. As vestes de couro estavam ensangüentadas. A respiração arquejante que era rápida demais e muito curta. Não poderia ser outro, a não ser o duque Guilherme da Normandia.

Conforme caminhava devagar para o catre, Vivian teve a presciência do tempo a se mover em si mesmo, de acontecimentos a se desdobrarem para os quais se via atraída mas que ainda não conseguia visualizar, muito menos evitar.

— Vivian de Amesbury, sua habilidade é urgentemente necessária para aquele que jaz aqui, gravemente ferido.

Ela se aproximou do catre.

— Farei o que eu puder, milorde. O resto é com Deus.

— Deus já fez sua parte. O resto é com você, e não irá falhar. Vivian ajoelhou-se ao lado do catre e olhou com piedade para aquele que jazia ali, abatido pela febre e pela perda de sangue.

— Segure a vela mais perto — ela disse a Rorke. — Preciso ver o que deve ser feito.

Foi outro que avançou do lado oposto do catre, o jovem cavaleiro Stephen de Valois. Quando ela levou a mão para puxar o lado da túnica de couro que cobria o peito ferido do homem, a mão de Stephen fechou-se sobre seu pulso.

— Se ele morrer — ele avisou —, eu pessoalmente providenciarei que sua vida seja tirada como punição pela dele.

Embora o aperto doesse penosamente em seu pulso, ela sentiu o sofrimento ainda mais profundo do rapaz e as emoções violentas e desencontradas, uma raiva silenciosa, internalizada, uma necessidade angustiante por um pouco de amor longamente negado. E sentiu outra coisa mais, vislumbrada na sombra dos pensamentos que ele tentava manter escondidos de todos, inclusive de si mesmo. O homem que jazia no catre era pai de Stephen de Valois!

Vivian comunicou-se mentalmente com ele, permitindo que sentisse sua compaixão e preocupação. Confie em mim, murmurou silenciosamente para Stephen de Valois, desejando que ele sentisse a verdade de seus pensamentos. Eu não o deixarei morrer.

Ele afastou-se, mas permaneceu ali perto, a mão na espada num aviso silencioso.

Vivian rodeou o catre em passos lentos, tirando as ataduras rudimentares que haviam sido comprimidas contra os ferimentos para estancar o sangue.

Em muitos lugares a hemorragia cessara, deixando as bandagens grudadas na ferida com o sangue seco. Em outras, o ferimento ainda exsudava. Ela umedeceu as ataduras com a água de uma bacia, tirando-as com cuidado. Embora houvesse vários cortes profundos, inclusive um de lado, nenhum em si ameaçava-lhe a vida.

Deslizou as mãos ao longo de músculos, tendões e ossos, vendo com o olhar interno os ferimentos que não eram evidentes: duas costelas quebradas e várias contusões. Então, ergueu o lençol que cobria a metade inferior do corpo e descobriu o que havia na perna.

A perna estava esticada, mas o longo osso inferior se quebrara, os fragmentos a espetarem a carne. Uma atadura rústica fora colocada sobre o ferimento. Contudo, pouco mais havia sido feito e agora era preciso agir rapidamente para recuperar o tempo perdido.

Vivian estremeceu, o estômago a se revirar de náusea. Sua mão tremeu na bandagem com um misto de horror e raiva de que ele houvesse sido tratado tão descuidadamente.

A mão de Rorke FitzWarren fechou-se sobre a dela com surpreendente gentileza. A força cálida daqueles dedos marcados de cicatrizes fluiu através do contato de pele, aturdindo-a.

— Faça o que deve ser feito.

— Ele está à beira da morte — ela murmurou. — Perdeu sangue demais...

Aqueles dedos se apertaram em torno do pulso frágil.

— O que posso fazer para ajudá-la?

— Preciso de mais luz. Também teremos de aquecer o interior da tenda, porque depois de perder tanto sangue ele não consegue manter o corpo aquecido. Terá de me providenciar mais lençóis, água quente, ataduras limpas e uma faca muito afiada.

Ele hesitou diante do último pedido, porém logo se voltou e passou a dar ordens a seus homens.

Em questão de minutos, mais braseiros e lamparinas a óleo foram trazidos, além de outra bacia de água quente, mantas de peles e bandagens limpas. Rorke entregou seu próprio punhal a Vivian e logo a viu colocá-lo sobre os carvões que luziam no fundo de um fogareiro próximo. A túnica do rei moribundo foi removida.

Vivian espalhou folhas esmigalhadas sobre a bacia fumegante. Um aroma acridoce espiralou-se juntamente com a fumaça que subia dali. Mais três braseiros apareceram, o fogo foi mantido bem alto. Ela colocou duas pequenas tigelas sobre os braseiros. Adicionou água a uma, que logo fervia. Um pó branco foi colocado na outra e a mistura tornou-se de um tom de marrom-dourado com o calor. Ela tirou o punhal de Rorke das brasas.

— A carne apodrece rápido — explicou. — Para curar os ferimentos é preciso remover a carne morta. Ele dorme agora por causa da febre, mas ainda pode sentir dor. Há uma poção que posso usar para aliviar o sofrimento, mas o efeito passa rapidamente. Precisará ser poupada para a perna.

Rorke postou-se à cabeceira de Guilherme, preparado para segurá-lo, se preciso fosse. Com movimentos ágeis, gesticulou para que dois de seus homens se postassem um de cada lado, no caso de precisarem de mais ajuda para manter o rei imóvel. Vivian trabalhou com rapidez para remover a carne putrefata das feridas que tinham infeccionado.

Bárbaros sangüinários! Será que não têm bom senso ao tratar um ferimento?

Era um processo doloroso e demorado. Cada ferimento precisava ser limpo de resíduos e sujeira, a carne apodrecida retirada. Depois, ela espalhou sobre cada local o ungüento de uma das tigelas e envolveu-o com tiras de linho limpo. Guilherme foi enrolado com bandagens em torno da cintura para ajudar a cura das costelas quebradas.

Quando Vivian se curvou de exaustão, sentiu o apoio silencioso de Rorke FitzWarren num toque de mão ou em palavras gentis de encorajamento.

— Sa se bien, demoiselle. Sa se bien.

Finalmente ela se endireitou, com uma dor surda nas costas. Limpara e atara os ferimentos menores. O pior deixara para o final, a perna fraturada e seriamente ferida. Então, numa caneca, ela despejou uma porção do caldo de cheiro adocicado que estivera fervendo no braseiro.

— Ele está muito fraco, mas a perna precisa ser tratada. Terá de beber o quanto for possível deste remédio ou não suportará a dor.

Vivian viu a inquietude que passou de um homem para outro. Eles compreendiam a necessidade de enfaixar os ferimentos. Porém, beber poções desconhecidas era outro problema. Guilherme precisava viver. E ela era uma curandeira saxã que tinha todas as razões do mundo para odiá-lo e lhe desejar a morte.

Stephen de Valois estendeu a mão e pegou a caneca.

— Tomarei um pouco primeiro — declarou.

Se a poção estivesse envenenada, Stephen sofreria os efeitos e Vivian seria condenada à morte. Todos se postaram na expectativa de que ela o impedisse.

— Você irá experimentar uma sensação muito agradável de calor. Por fim, não será capaz de mover seus braços e pernas. A poção suprime as sensações; conseqüentemente, também bloqueia a dor.

Ele concordou e tomou vários goles do líquido levemente adocicado.

Depois de um momento, recostou-se sem firmeza no catre, mas sua expressão não era menos feroz que antes, suas palavras ou pensamentos não menos claros.

— Faça o que deve ser feito, curandeira.

Com o auxílio de Rorke, Vivian verteu o conteúdo da caneca pelos lábios pálidos de Guilherme e o persuadiu a engolir. Colocou a caneca de lado e voltou-se para Rorke.

— Precisa confiar em mim para aquilo que deve ser feito a seguir. Tenho de ficar sozinha com ele.

A reação de Stephen foi imediata.

— Acha que ganhou nossa confiança com o teste de sua poção?

Os efeitos do remédio já começavam a passar e ele levou a mão ao cabo da espada.

— Não pode permitir o que ela quer. Não confio nela. O que é isso que precisa ser feito que não podemos ver?

Vivian percebeu a dúvida no olhar frio de Rorke e ouviu o som de outras espadas sendo sacadas.

Lançou seus pensamentos a ele, como fizera com Stephen de Valois, desesperada para fazê-lo entender. Porém, descobriu que não conseguia. Ele não era como os outros que poderiam ser persuadidos por seus pensamentos.

— Por favor, milorde — ela implorou. — Seu rei está morrendo. É pouco o que peço. — Precisava fazê-lo entender de alguma forma, pois ninguém, nem mesmo Meg, presenciara o que ela deveria executar. Apelou para a honra de Rorke como cavaleiro ligado por um juramento ao próprio homem que jazia ali, tão gravemente ferido.

— Os procedimentos de cura são antigos e conhecidos por poucos — ela continuou a explicar. — Foram confiados a mim com um voto sagrado. Certamente, o senhor compreende que não posso quebrar um juramento de confiança. — Pousou a mão sobre a dele, num gesto de súplica. — Não pode me pedir isso.

Como uma curandeira, Vivian tocara pessoas centenas de vezes. O contato físico a acalmava e tranqüilizava. Porém, ar-quejou ao tocar Rorke FitzWarren e experimentar um poder sensual, bruto, que era espantoso no contraste do calor dos dedos que se fechavam sobre os seus. Como se por vontade própria, sua mão se abriu para o calor sensual daquele contato que liberou sensações estarrecedoras.

 

Não permitirei que fique sozinha com ele! — Stephen de Valois esbravejou, ao se postar diante de Vivian, suas feições contorcidas por um misto de raiva, sofrimento e medo. — Você fará o que deve ser feito, curandeira. E ninguém sairá daqui.

Ela não conseguia atingir Rorke FitzWarren, mas poderia persuadir aquele jovem cavaleiro inquieto e impulsivo, cujo pai, que ele amava e odiava ao mesmo tempo, jazia ali, morrendo.

Com voz baixa que apenas Stephen de Valois e os que estavam em pé em torno dele conseguiam ouvir, Vivian disse, com a certeza que os seus poderes lhe conferiam:

— Se deseja que seu pai viva, deve fazer o que eu peço. A decisão estará em suas mãos.

Uma surpresa brilhou no fundo dos olhos de Stephen, e ele se virou com expressão indagadora para Rorke FitzWarren.

— Eu não disse nada a ela — Rorke assegurou-lhe. Quando a fitou, a expressão de Stephen era atormentada.

— Que traição é essa, saxã? — indagou. — Eu poderia decapitá-la com minha espada por sua ousadia! — murmurou, com ferocidade.

— Sim — ela retrucou sem se alterar. — Mas se o fizer ele certamente morrerá. A escolha é sua. — Fez questão de que suas palavras fossem ouvidas por Rorke FitzWarren, pois ele lhe dera praticamente a mesma escolha sobre o povo de Amesbury.

Finalmente, Stephen esbravejou:

— Então, que seja! Mas, se ele morrer, você o seguirá imediatamente.

— Eu trouxe a curandeira — disse Rorke, para todos ouvirem. — A responsabilidade pelo que se passa aqui recai sobre mim. — Então, anunciou: — Dois de nós ficaremos aqui. O resto sairá. — Fez um gesto para Tarek ai Sharif.

Vivian sentiu a impotência dominá-la. Não conseguiria convencer aquele feroz guerreiro normando a sair. Não havia opção e nem mais tempo, pois mesmo agora ela sentia que a vida de Guilherme se esvaía.

— Está bem — ela concordou, com relutância. Não poderia impedir que ele ficasse, mas talvez pudesse impedir que se recordasse.

— Esperarei do lado de fora com o resto de seus homens, milorde — Stephen disse a Rorke. Seu olhar pousou brevemente sobre Vivian, e então ele e os outros se voltaram e saíram da tenda. A pesada tapeçaria que tinham colocado na entrada caiu no lugar.

Vivian voltou-se para o catre e estremeceu, pois o frio parecia se infiltrar pela tenda a despeito dos fogareiros acesos. Relanceando o olhar para Rorke, ela perguntou:

— No que acredita, milorde? É um homem de fé? Acredita em milagres?

— Creio serem as ilusões de mentes questionáveis. Acredito apenas naquilo que é real. A terra sob meus pés, a força que flui de minhas mãos.

Ela precisava que ele acreditasse em milagres, pois não havia nenhuma explicação lógica para o que estava prestes a fazer. Se ele não acreditasse, pensaria que era uma feiticeira, uma bruxa, e depois a condenaria à morte?

— E quanto ao vento, milorde? Não pode vê-lo ou segurá-lo em sua mão.

— Posso vê-lo mover as folhas das árvores ou sentir a força dele em meu corpo, beijando meu rosto e meus cabelos.

Vivian baixou os olhos para Guilherme.

— Então, assim também deverá aceitar o que verá, milorde, e não interferir. Pois a vida dele depende disso.

Rorke concordou, muito sério.

— Tem minha palavra de que não irei interferir, contanto que você não ponha em risco a vida dele.

Vivian encarou o homem cuja vida se esvaía lentamente. Nenhuma visão lhe veio a mente. Nenhuma voz se ergueu para guiá-la. Havia apenas a certeza de que Guilherme da Normandia não deveria morrer ou o reino seria consumido pelo caos. Consciente de que o destino de um soberano e de uma nação inteira estava em suas mãos, ela tirou o cristal azul do pescoço e o colocou sobre o coração de Guilherme. Lentamente, juntou as palmas das mãos e fechou os olhos. Então respirou fundo, fechando-se a tudo em torno de si: o brilho das velas e do fogo nos braseiros, o cheiro de cera, de couro, de suor, o calor do ambiente, o frio da incerteza. Voltou-se intimamente para aquele ponto em que tempo e lugar não mais existiam, onde havia apenas a força vital do poder.

Deixou ir embora a consciência de tudo mais acerca de si, à medida que o poder crescia e a pequena fagulha se tornava uma labareda, palavras antigas que lhe tinham sido ensinadas tempos atrás sussurravam através de seus sentidos, e ela as repetiu no velho idioma de seus ancestrais.

Falava baixinho, e as chamas que queimavam nos braseiros pareciam tremer a cada palavra pronunciada.

Rorke pouco sabia a respeito de fé e confiava nela menos ainda. Porém, aquela não era uma reza. Era como uma canção, ou encantamento, repetida continuamente.

Adiantou-se para pôr um fim naquilo, mas Tarek ai Sharif o impediu.

— Não! — o persa exclamou, numa advertência enfática. Com os braços estendidos, ela repetiu as antigas palavras:

— Elemento de fogo, espírito de luz, essência de vida, acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade.

As chamas das velas tremularam violentamente. Os carvões nos braseiros, que apenas fumegavam, de repente, explodiram em labaredas gigantescas, enchendo a tenda com um calor abrasador.

Não foram as chamas que ganhavam vida de carvões quase apagados, nem a mão do amigo que impediram Rorke de interromper Vivian. Foram os olhos dela, quando lentamente se abriram.

Havia um azul sobrenatural debruado por uma brilhante luz dourada, com uma chama no centro, da mesma cor que o cristal que luzia onde o colocara sobre o coração de Guilherme.

Ele tocou-lhe a mão e sentiu uma energia selvagem e violenta, um contato intenso, a luz incomum nos olhos dela se estendendo e o alcançando, inundando-o de calor.

Vivian então pousou uma das mãos no peito de Guilherme. A outra, ela colocou sobre o ferimento infeccionado na perna fraturada e deixou sua consciência fluir através dos dedos para dentro do guerreiro ferido.

Enquanto observava, Rorke viu o corpo de Guilherme relaxar visivelmente dos espasmos torturados e dolorosos que o dominavam. A pele perdeu aquela palidez mortal conforme a cor retornava e o guiso da morte se calava em seus pulmões.

A pesada tapeçaria na entrada da tenda foi jogada de lado. Poeira, fumaça e o vento frio irromperam pelo ambiente.

— Em nome de Deus! O que significa isso?

Diversas velas se apagaram. O fogo que queimava brilhante nos braseiros de repente esmoreceu e ameaçou extinguir-se. A luz que restava luziu de forma quase obscena no crucifixo de prata que pendia do pescoço do homem cuja silhueta se destacava na abertura da tenda, a fumaça cinzenta do acampamento a serpentear em torno dele.

— Deus do céu! — ele exclamou, com voz horrorizada, ao entrar na tenda, rodeado por meia dúzia de homens. Seu olhar correu ao redor e depois pousou sobre Rorke FitzWarren.

— Não existe limite para sua blasfêmia?

Vivian gritou de dor quando o elo frágil com o moribundo foi de repente ameaçado. Seus pulmões se congelaram, cada respiração uma agonia quando uma fraqueza avassaladora roubou-lhe a força.

Arrastada de volta para o mundo de sua própria consciência, seu olhar foi atraído para o homem que provocara a intrusão que agora ameaçava a vida do ferido.

Captou de relance emoções poderosas: desprezo, raiva mal controlada e outros sentimentos sombrios que não teria imaginado num homem da igreja.

Tarek deu um passo para bloquear o avanço do recém-chegado. Os homens sacaram as espadas de imediato, inclusive aquele que se postava à direita do bispo: Vachel.

— Por tudo que é sagrado, FitzWarren! — esbravejou o bispo — Quem é esta criatura? O que é esta ação herege? — Então, voltando-se para Vachel ordenou: — Tirem-na daqui!

— Não! — Vivian gritou. — Por favor, milorde — implorou a Rorke —, preciso de sua permissão para terminar ou ele morrerá.

O olhar de Rorke voltou-se para Guilherme. Tanta coisa fora posta em risco e poderia ser perdida agora se ele morresse. Olhando-o viu o arfar do peito largo e também as mãos esguias que possuíam algum estranho poder curativo que ele não conseguia compreender. A luz no cristal azul oscilou e tornou-se tênue.

Embora não tivesse explicação para aquilo que vira com os próprios olhos, percebeu que Guilherme morreria sem ela.

— Tire-os daqui! — ordenou a seus homens. — Inclusive o bispo! — Quando Vachel avançou, ele exclamou: — Vamos lá, saque a espada. Teria um enorme prazer em separar sua cabeça de seus ombros.

Vachel hesitou, o olhar cravado no bispo.

— Você está se excedendo — o bispo rosnou num tom gla-cial. — Interfere em assuntos do rei. Como ousa?

— O senhor também pode se encontrar carregando a própria cabeça nas mãos. Bispo ou não, não faz diferença, pois não temo por minha alma.

O bispo vacilou, a raiva temperada pela prudência.

— Irá temer por sua alma — jurou. Então, com uma ordem ríspida, saiu da tenda, seus homens a segui-lo.

Os comandados de Rorke saíram e formaram uma falange impenetrável para impedir qualquer outra intrusão em torno de todo o perímetro da tenda. — Faça o que deve ser feito, senhora. Como antes, ele observou, com espanto, as mudanças visíveis quando Vivian se inclinou sobre o moribundo. As mãos esguias estremeceram e ficaram rígidas. Ela arquejou como se, de repente, um grande sofrimento a dominasse. Os espasmos cessaram do corpo torturado de Guilherme. O cristal azul mais uma vez luziu, brilhante.

As batidas do coração de Guilherme ficaram mais fortes enquanto Vivian se tornava mortalmente pálida. Era como se tivesse dado toda a sua força a ele.

Finalmente, ela ergueu a cabeça, a respiração curta, a expressão transfigurada.

Rorke segurou-a quando Vivian desmaiou e depois a ergueu nos braços como se não passasse de uma criança adormecida.

Com o cálice apoiado nos lábios exangues, ele derramou o vinho aos poucos até que, por fim, ela despertou, os olhos de um castanho-escuro a se erguerem sobre os olhos agora da cor do pálido céu da manhã.

Lentamente, o tom rosado voltou ao rosto de Vivian. E o olhar imediatamente correu para o catre. A tensão dissipou-se. A pulsação do coração ficou outra vez forte e constante.

— Não encontro compreensão para aquilo que vi — disse Rorke, admirado. — Ele estava à beira da morte.

Vivian não tentou dar explicações, enquanto lutava para ficar em pé.

Ainda assim, ele se recusou a soltá-la. Forçou-a a encará-lo com os dedos sob a curva de seu queixo.

— Nega isso?

— Apenas Deus tem o poder de vida e morte, milorde. Certamente que acredita nisso.

— Deus não estava nesta tenda.

A cura deixara os sentidos e emoções de Vivian expostos. Talvez por isso o simples contato daqueles dedos em sua pele provocava um calor que nunca experimentara antes.

De repente, foi acometida pela lembrança de um dia quente de verão, quando ela estava com doze anos e fora até a floresta perto da abadia para colher ervas e raízes, e se deparara com um casal de namorados.

Ela os conhecia da vila. A jovem Bronwyn não era muito mais velha que Vivian. O rapaz, Ham, era o guardador de cabras.

Estavam deitados juntos na campina, o ar quente de verão cheio de seus sussurros, risadas e outros sons. Um gemido baixo na garganta de Ham foi acompanhado pelo arquejar assustado de Bronwyn e suspiros de prazer.

Palavras ecoaram na lembrança de Vivian. Sim, palavras de amor eram sussurradas à medida que as roupas eram tiradas. Seguiram-se então palavras de prazer quando a nudez do jovem casal os colocava em contato pleno, e depois palavras de urgência que combinavam com o frenesi da união dos corpos.

Ela ficara apavorada, com medo de ser descoberta, e, ao mesmo tempo, fascinada demais para desviar os olhos.

E, ao observá-los amando-se sem pudores, sentira uma opressão estranha, como um anseio. Mas anseio pelo que jamais soubera dizer.

Depois disso, querendo alguma explicação para as sensações estranhas, contara a Meg o que tinha visto.

— Tais coisas não são para você — Meg a avisara. — Bronwyn é uma moça simples, tola. Enquanto você é especial. Por acaso ela tem o dom da visão ou o poder de cura? Pode chamar os pássaros do céu? Não, menina! Você tem poderes muito especiais e um destino único. Tais coisas não são para você como são para outros mortais. Se algum dia sucumbir às tentações carnais perderá seus poderes. O amor de um homem poderia destruí-los.

Tanto tempo se passara que ela tinha quase se esquecido disso. Até que Rorke FitzWarren a tocara. E agora Vivian se recordava da inexplicável tristeza que as palavras de Meg tinham lhe trazido.

— Por favor, milorde — pediu, inquieta —, o osso deve ser colocado no lugar e a perna enfaixada.

Rorke a soltou.

— Conversaremos sobre isso em outra oportunidade. — Dirigiu-se para a entrada da tenda. — Mandarei comida e lençóis limpos — disse lacônico.

— Eu gostaria de partir tão logo tenha enfaixado a perna do duque da Normandia.

— Isso está fora de questão — ele retrucou, a voz fria e mais uma vez distante.

— Não há motivos para eu ficar — protestou Vivian. — Já lhe disse que ele viverá.

— Há razão suficiente para retê-la aqui. Não permitirei que se vá tão cedo.

— Fiz o que pediu — encarou-o indignada. — Não tem mais necessidade de mim.

— Sim, você fez o que pedi... E muito mais do que eu esperava. Mas não posso permitir que vá embora. — Não havia ameaça em sua voz, mas determinação.

— Não ficarei — retrucou, com ousadia.

O olhar de Rorke se estreitou, pensativo. Ela não se importava consigo mesma. Vira isso em Amesbury. Era com os outros que se importava.

— Teria coragem de colocar em risco as vidas das pessoas de Amesbury? — ele perguntou, com uma frieza que a paralisou. Mais uma vez não havia ameaça no tom de voz, fora apenas uma pergunta casual.

Naquele momento, ela o odiou.

— Usaria essas vidas para prender-me aqui?

— Sim, usaria — Rorke admitiu sem meias palavras.

— Com que finalidade? — indagou Vivian, a raiva assumindo um intenso crescendo em seu peito.

— Com a finalidade de garantir a recuperação segura de Guilherme. Já vi carne saudável supurar e apodrecer quando o ferimento parecia curado. Pelo que presenciei esta noite, senhora, você tem um poder extraordinário. Não colocarei em risco a vida de Guilherme permitindo que volte a seus aldeões.

As faces de Vivian queimaram de rubor. As chamas das velas refletiram-se em seus olhos.

— É essa sua palavra final?

— Como pode ter certeza de que não serei negligente em meus cuidados para com Guilherme da Normandia? -— ela o desafiou.

Rorke sorriu, convicto.

— Porque os aldeões de Amesbury significam muito para você.

Vivian estremeceu diante da ameaça direta.

— Pelo visto, o senhor não é diferente de Vachel.

— Sou muito diferente sim, demoiselle. Ele teria destruído a vila pelo simples prazer de fazê-lo. Eu a poupei com um propósito.

Ela estava presa pelo amor e lealdade aos aldeões de Amesbury e Rorke sabia disso.

— E seus homens permanecerão do lado de fora? — ela perguntou, a voz destilando desprezo.

— Sim.

— Para me guardar?

— Para protegê-la.

— Não preciso de sua proteção.

— Não. obstante, demoiselle, os guardas continuarão aqui. Ela recuou, zangada. A mesa, as chamas das velas tremularam.

Na entrada da tenda, ao sair, Rorke voltou-se para Tarek.

— Quero que olhe pelo duque da Normandia e pela curandeira — disse. — Não confio em ninguém mais.

Depois que ele saiu, Vivian exclamou, raivosa:

— Precisamos de mais lenha para os braseiros. E duas talas para prender a perna do doente.

Tarek foi até a abertura da tenda para dizer aos homens de Rorke o que era preciso.

Vivian tirou a pele que estava sobre a perna ferida do duque de Normandia e trabalhou depressa, cobrindo a ferida aberta com um ungüento misturado com uma cocção fumegante que apressaria a cura.

Quando o persa voltou, trazia várias achas de lenha e dois pedaços de madeira reta do mesmo tamanho. Dividiu a lenha entre os braseiros. Depois, entregou-lhe os pedaços de madeira que pareciam varais de carroça. Seu olhar estreitou-se ao encará-la.

Então, sentou-se num pequeno banco diante de um dos braseiros enquanto ela terminava de enfaixar a perna quebrada.

Tirou a cimitarra da cinta e começou a afiá-la, fazendo Vivian imaginar exatamente contra quem ele a protegeria.

O escudeiro de Guilherme, escoltado por um dos homens de Rorke, trouxe-lhes vinho, comida e várias peles.

— Você precisa se alimentar — Tarek disse a ela, quando Vivian certificou-se de que Guilherme descansava confor-tavelmente. Ele passou-lhe uma bandeja com carne fria e pão. Exausta pelo ritual de cura e pelo vinho que a entorpecia, Vivian mal beliscou a casca do pão.

— Quem foi o homem que me interrompeu? — perguntou com curiosidade.

Não houve qualquer tentativa de esconder o desprezo na voz, quando Tarek respondeu.

— O conde de Bayeaux, bispo da igreja de Roma, e irmão do duque da Normandia.

— Irmão? E Vachel o serve?

— Como o chacal serve à noite.

A comparação a assustou, pois ela também sentira algo sombrio acerca daquele homem. Intrigada, encarou-o.

— Ele mandou Vachel me encontrar, e contudo teria me impedido de ajudar seu irmão. Não vejo razão nisso.

— Ele tem suas próprias ambições, e não são inteiramente ligadas à igreja. — Tarek recusou-se a dizer mais e continuou a afiar a espada.

Vivian olhou para as chamas que ardiam no braseiro ao se deitar ao lado do fogo. Conforme observava, uma imagem tomou forma devagar nas cores mutantes. Era a imagem de uma mulher sentada diante de uma grande moldura aberta.

As chamas mudaram de novo e Vivian viu que a mulher se sentava diante de um tear, inclinada sobre o trabalho. Estava vestida de azul e o tear era um vácuo negro emoldurado em dourado. Não conseguiu ver quem era a tecelã, pois estava com o rosto virado para o lado.

A escuridão da tapeçaria pareceu se espalhar até a visão desaparecer, tão fugidia como fumaça.

Ela tentou encontrar algum significado no que vira, mas não conseguiu. Exausta, mergulhou num sono inquieto, cheio de sonhos perturbadores de guerra e morte. E neles havia uma criatura poderosa nascida em sangue e fogo, uma criatura com as feições de um homem.

A interpretação daquele sonho era clara: Rorke FitzWarren era a Fênix e ela a chama que pulsava como se tivesse vida própria; Rorke se erguia renascido do inferno depois que seus corpos se entrelaçavam com paixão, numa intensa conjunção carnal e espiritual.

A pesada pele que cobria a entrada da tenda foi afastada, revelando a silhueta de Tarek ai Sharif em meio à névoa da manhã. A expressão do persa era rígida, cheia de fúria.

Imediatamente em alerta, Rorke indagou:

— É Guilherme? Ele piorou?

— Não. O duque repousa até que tranqüilamente para um homem que esteve à beira da morte há poucas horas — Tarek assegurou-lhe, ao entrar na tenda. — A febre cedeu e o ferimento não purga mais.

O alívio de Rorke era visível nas linhas que se suavizavam em torno de sua boca. Ele sorriu para o amigo.

— O que é, então? — perguntou. — Por acaso o exército saxão apareceu no alto da colina e agora enxameia pelas encostas para cair sobre nós?

— A Jehara se foi.

— Como é possível que uma simples mulher faça aquilo que os mais bem treinados mercenários de todo o Império Bizantino não puderam fazer: passar por você sem ser vista? — indagou Rorke, a voz tensa.

— Também gostaria de saber.

— Falou com alguém mais a respeito disso? Tarek meneou a cabeça.

— Apenas com seus homens que guardavam a tenda. Foi necessário perguntar se a tinham visto.

Rorke pegou um punhal e o enfiou dentro da bota. Em seguida, apanhou as manoplas e calçou-as.

— Ninguém mais deve saber que ela sumiu. Não quero a interferência de Vachel. Cuide para que a tenda de Guilherme fique bem guardada.

— Isso já foi feito — Tarek afirmou.

— Os cavalos?

— Selados e à espera do lado de fora. Espalhei a notícia de que iríamos à procura de rebeldes saxões.

Os lábios de Rorke se estreitaram.

— Do que a chamou? — perguntou a Tarek, quando seguiram os rastros pela terra enlameada. — Jehara? Não conheço a palavra.

— São seres encantados que vivem entre os mundos que podemos e não podemos ver — explicou Tarek. — Dizem que têm grandes poderes, entre eles a habilidade de se mover entre o mundo real e o espiritual.

— Crê em tais coisas?

— Creio que existem coisas das quais pouco sabemos. Sei que ela estava na tenda num momento e, depois, sumiu.

— O que está insinuando?

— Dizem que um Jehara pode tomar muitas formas.

— Como o que, pode dizer? Um gnomo ou elfo? Talvez um troll, pequeno o bastante para que não se possa vê-lo?

— Existem muitas lendas assim entre os saxões — Tarek murmurou. — Tal como em minha própria cultura. A crença mais difundida sobre tais criaturas é aquela personificada pelo homem chamado Merlin.

Rorke franziu a testa.

— O feiticeiro que fez Arthur rei de toda a Bretanha? — Deu de ombros, com descaso. — Ouvi falar. Em todas as culturas existem lendas assim. Entre os antigos gregos havia mitos de deuses e criaturas lendárias com poderes extraordinários. Mas não passam disso, pois são apenas lendas e mitos.

— Pode ser — Tarek ponderou —, mas existem aqueles que crêem neles. O povo de minha mãe, por exemplo, acredita que tais criaturas também possuem grandes poderes de cura. Pode explicar de outra forma o que vimos na tenda de Guilherme na noite passada?

— Não posso explicar — admitiu Rorke, a voz baixa e pen-sativa. — Um antigo remédio saxão, talvez. A moça é abençoada com a arte da cura e eu preciso dessa habilidade. Não me importo com a fonte. — Impeliu o cavalo para frente. Sua voz ergueu-se, com raiva. — Ela será encontrada custe o que custar!

A bruma cobria o chão como um lençol que ondulava ao sabor da brisa. Vivian esgueirou-se pelos guardas normandos para dentro do acampamento saxão, na beira do campo de batalha.

Fora despertada por sonhos pavorosos e pelo cenário horrível de morte que vira ao entrar no vale. Estavam lá, deviam estar, os saxões que haviam sobrevivido à terrível batalha de Hastings e que agora jaziam feridos e necessitados de ajuda. Nem todas aquelas fogueiras que avistara eram piras funerárias. Havia formas agachadas em torno delas, em grupos de dois, três ou mais.

E, de madrugada, enquanto Guilherme repousava sob o efeito da tisana que lhe dera, ela agarrara o saco de remédios e partira. Depois, abriu a mente, alcançando Tarek ai Sharif onde dormia, na entrada da tenda. Fechou os pensamentos em torno dos dele como uma mortalha puxada sobre os sentidos para que o guerreiro persa não acordasse. Faltavam os guardas que rodeavam a tenda.

O cristal azul estava outra vez em seu pescoço e luziu intensamente quando ela fechou os olhos e voltou os pensamentos para o íntimo. Concentrando-se nos poderes dos antigos que viviam dentro de si, ela se imaginou atravessando a parede da tenda, continuou a se imaginar caminhando sem ser vista até um lugar afastado do acampamento.

Sentiu o tecido pesado da tenda envolvê-la e depois a súbita agulhada do vento gelado. Quando abriu os olhos, estava longe. Não houve nenhum grito de alarme. Com o saco de ervas e pós sob o braço, Vivian correra do acampamento normando para o campo de batalha onde os sobreviventes saxões jaziam esparramados, encolhidos sob o ar frio da manhã.

Alguns poucos tinham conseguido recolher lenha e fazer fogo que fumegava, aumentando a atmosfera opressiva que se abatia sobre o acampamento. Outros jaziam com olhos vazios, cheios de dor, à espera da morte.

Havia mulheres também, esposas, mães e namoradas que tinham seguido seus homens até Hastings e arriscado tudo para cuidar dos filhos e maridos.

— Água — uma voz febril chamou. — Tem água?

Vivian ajoelhou-se depressa ao lado do homem e deixou-o beber do cantil que trouxera consigo. Enfaixou-lhe o ferimento e depois seguiu em frente, pois havia muitos a ajudar. E sempre mais gritos por água e comida. Alguns, depois de dar uma descrição, perguntavam se ela vira um companheiro, um irmão ou um filho.

Caminhou entre eles, seguindo de um mísero fogo para outro, a manipular os pós e remédios de ervas para dor, hemorragia e febre. Murmúrios de gratidão a acompanhavam por onde passava.

Com um exército formado por camponeses sem treinamento, arrendatários de terra e criados domésticos, Harold fora derrotado antes que pusesse o pé no campo de batalha em Hastings.

A desoladora derrota e o sangue escarlate emergiam dos pontos sob a mão da tecelã no tear, tal como em sua visão.

Uma tapeçaria ainda não tecida, uma voz distante murmurou através de seus sentidos.

Vivian sabia, contudo, que os primeiros pontos tinham sido dados naquele campo de batalha. As meadas de um futuro distante jaziam na cesta de linhas aos pés da tecelã.

Ela seguiu em frente, oferecendo o conforto que podia. E a cada grupo que encontrava, procurava por uma face familiar da aldeia de Amesbury. Porém, não viu ninguém conhecido.

Sabia que precisava voltar à tenda de Guilherme. O céu clareava. Era apenas uma questão de tempo até que descobrissem que sumira. Já imaginava a raiva de Rorke ao tomar conhecimento disso. Por alguma estranha razão, não conseguia controlar os pensamentos dele como podia fazer com outros, e não seria capaz de persuadi-lo a não se zangar. Também não podia controlar os próprios pensamentos quando estava perto dele.

Uma onda súbita de calor a percorreu ao se lembrar do toque do charmoso normando. Estremeceu, puxando o xale em torno de si. Então, de repente, uma mão fechou-se sobre seu pulso. Antes que ela pudesse protestar, outra tapou-lhe a boca.

Lutou para libertar-se, mas seus pés perderam o chão e ela se viu erguida do solo. Chutou e debateu-se, mas foi arrastada para trás de uma carroça.

 

- Não grite!

Lentamente a mão se afastou de sua boca, a pressão afrouxou-se em sua cintura e ela se viu livre. Vivian virou-se.

— Conal! — Agora, compreendia porque não pressentira qualquer perigo.

O pastor de Amesbury olhou rapidamente ao redor. Então, satisfeito de que os guardas normandos não os vissem, sentou-se ao chão atrás da carroça.

Vivian estava espantada. Não conseguia imaginar como Conal chegara ali. O medo apertou-se em torno de seu coração ao pensar no que poderia acontecer se ele fosse encontrado.

— Por que está aqui? — perguntou, ansiosa.

— Parti assim que a tempestade amainou — explicou Conal, em voz baixa. — Poladouras me deu seu cavalo. — As feições magras se suavizaram, fazendo o ferimento do lado da cabeça parecer menos grave. Com os cuidados da velha Meg, ele dava a impressão de ter se recuperado bem do espancamento em Amesbury.

Tocada por aquela demonstração de lealdade, e sabendo do perigo que ele corria, Vivian protestou.

— Você não deveria ter vindo. É muito arriscado.

— Sim — ele retrucou —, mas é perigoso para você também. Está machucada?

— Não, estou bem. Mas como encontrou este lugar? A expressão de Conal se contorceu.

— Não foi difícil. Segui a trilha de mortos e feridos. — Sua voz estava cheia de desprezo e amargura.

O coração de Vivian confrangeu-se ao pensar nos mortos que vira.

— Sim, muitos perderam a vida aqui. Então a expressão de Conal se iluminou.

— Observei o acampamento normando durante toda noite e vi quando você saiu, esta manhã. Agora podemos partir juntos. — Tomou-lhe a mão, puxando-a para ficar em pé. — Precisamos ir — disse aflito, o olhar a esquadrinhar o campo aberto com a astúcia de pastor, conforme a neblina se dissipava e o sol se abria. — Deixei o cavalo na floresta não longe daqui. — Apontou para beira da mata.

Vivian puxou a mão.

— Não posso — disse ela, com pesar. — Terá de partir sem mim.

Conal encarou-a como se ela tivesse enlouquecido.

— Não voltarei sem você — protestou. — É a razão de eu ter vindo aqui. É perigoso ficar, viu como trataram o povo de Amesbury. — Ele olhou cautelosamente em volta. — Precisamos partir juntos, antes que sejamos descobertos.

Rorke FitzWarren dissera o que aconteceria se partisse, e não tinha dúvida de que ele manteria sua palavra.

— Não, Conal — ela retrucou, desesperada para fazê-lo entender. — Não irei com você. Precisa voltar sozinho.

— Não partirei sem você, Vivian. Nós nos esconderemos na floresta até o cair da noite e viajaremos no escuro. Quando amanhecer, estaremos a meio caminho de Amesbury. — Sua mão se estendeu e mais uma vez agarrou-a pelo pulso.

— Está me machucando — gemeu, quando ele começou a puxá-la para a floresta. Então, ouviu os gritos dos guardas nor-mandos atrás deles e o terror a dominou. — Precisa ir embora! Por favor, Conal — implorou. — Eu não poderia suportar sua morte.

O olhar de Conal estava cravado nos cavaleiros que se aproximavam. Quando ele hesitou, o aperto no braço de Vivian afrouxou-se, e ela se livrou da mão que a retinha.

Afastou-se, correndo de volta à carroça. Apesar de desejar de coração poder fugir para a floresta com o pastor e deixar aquele lugar que cheirava a morte e destruição, sabia que se o fizesse muitos pagariam por sua atitude egoísta.

Conal a fitou com um misto de desespero e impotência.

— Eu a amo, Vivian. Sempre amei. Encontrarei uma maneira. — Então, conforme os cavaleiros irrompiam pela neblina, as armas a captarem o brilho seco do sol, ele se virou e correu para a mata cerrada à beira da floresta.

Através das brumas que se espalhavam à altura do chão, o olhar de Rorke FitzWarren esquadrinhou os limites do acampamento saxão.

Os guardas tinham avistado uma mulher a andar entre os feridos.

À medida que a bruma da manhã se dissipava, ele viu de relance uma carroça à beira do campo e uma mulher ao lado dessa. Sob a borda do xale também vislumbrou cabelos avermelhados. Praguejou quando a neblina se fechou novamente diante deles e a perdeu de vista.

O sol apareceu quando cavalgavam em direção à carroça e Rorke viu de novo a mulher. Desta vez, do outro lado da carroça. Também avistou um homem correndo para a floresta, e a julgar pelas roupas simples era óbvio que se tratava de um camponês saxão

— Lá, na beira da floresta — Tarek ai Sharif o vira também. — Levarei alguns dos homens e veremos o que vamos encontrar.

— Está bem — concordou Rorke. — Tome cuidado.

Vivian viu os cavaleiros rumarem para a floresta e rezou para que Conal estivesse escondido em segurança. Se fosse encontrado, temia o que os homens de Rorke poderiam fazer com ele.

Respirou fundo, vendo Rorke cavalgar em sua direção. Ficou parada, de cabeça erguida, a enfrentar o olhar frio como a bruma da manhã, à medida que o poderoso cavalo de batalha e seu imponente cavaleiro se aproximavam.

— Bom dia, senhora — disse ele, ao puxar as rédeas do cavalo.

— Milorde — ela o saudou com naturalidade.

— Tive receio de que algum mal pudesse ter lhe acontecido. Vivian sentiu o toque de raiva a permear a voz de barítono.

— Como pode ver, milorde — retrucou ela impassível, ao sair caminhando —, estou bem. Não havia necessidade de sua preocupação.

Ele conduziu o cavalo, até que estivesse ao lado de Vivian.

— Tarek estava muito preocupado. Ele toma as responsabilidades com muita seriedade. E ficou perplexo que você pudesse ter saído sem que a visse fazê-lo.

— Então, terei de lhe pedir desculpas — disse ela, sem oferecer qualquer explicação de como precisamente acontecera.

Vivian de Amesbury era a criatura mais magnífica que Ror-ke já encontrara na vida. Ousada e orgulhosa, como uma bela chama desafiadora em meio à bruma que os circundava, ela o provocava e intrigava ao mesmo tempo.

Sem dizer nada, Vivian continuou caminhando, mas seus sapatos de tecido com solado de pele de animal eram uma pobre proteção contra a terra dura e gélida. Ainda assim, ela não se atrevia a parar, pois a cada passo arrastava o normando para mais longe da floresta e de Conal.

— Você me desobedeceu deliberadamente. Eu a proibi de deixar o acampamento. — A voz de barítono subiu de tom, enquanto as mãos enormes fechavam-se nas rédeas, e o garanhão que ele montava jogava a cabeça para trás, inquieto, diante das formas amontoadas em torno das fogueiras pelas quais passavam.

— Não o desobedeci — respondeu ela, com naturalidade. — Você disse apenas que eu não deveria retornar a Amesbury. E, como pode ver — apontou para o acampamento —, fiquei dentro do acampamento. Conseqüentemente, não contrariei sua vontade.

— Está distorcendo minhas palavras, Vivian. Sabe que não deveria sair da tenda de Guilherme. Tinha minhas razões para dar tais ordens.

— E eu tinha minhas razões para sair, milorde.

Ele inclinou-se e ergueu-a do chão, trazendo-a para a sela a sua frente. Com a armadura de batalha removida, os braços e pernas musculosos a envolveram, cada movimento da musculatura podia ser sentido naquele contato, através do vestido fino. O toque era desconcertante e ligeiramente possessivo.

Vivian estremeceu quando sensações estranhas a acometeram.

Rorke a perscrutou com o olhar e murmurou:

— Está com frio?

Instintivamente, suas mãos escorregaram até a cintura fina, puxando-a contra o corpo quente.

Será que aquele normando magnífico sabia como ela ardia de desejo diante de seu toque sedutor?

— Não, milorde. Estou bem — Vivian assegurou-lhe, e rezou para que pudesse resistir à onda de sensualidade que a acometia à medida que ele a puxava para si. Implorou para todos os poderes da Luz, tentando encontrar algum entendimento para as sensações intensas que aquele homem lhe despertava. O que haveria no toque do inimigo normando que a afetava como ninguém jamais o fizera?

Então, de repente, um grito quebrou a quietude do momento, e o medo a fez sentir um nó na garganta.

O que estaria acontecendo? Não previra a morte de Conal, pensou aturdida. Seria possível que seu dom a tivesse abandonado, desde que Rorke FitzWarren entrara em sua vida?

Alheio aos temores que a assolavam, Rorke obrigou o cavalo a dar meia-volta e juntar-se aos demais.

Quando os viu, Gavin de Marte apontou, não para a floresta, mas para o céu.

Seus homens tinham feito mira com os arcos para a barulhenta nuvem de corvos que varria o acampamento. Várias setas tinham abatido os corvos com precisão mortal. Mas agora os arqueiros apontavam para uma ave maior, que pairava pouco acima das demais.

Era uma ave de rica plumagem que se deixava levar pelas correntes de vento. A certa altura, ela desapareceu na floresta e depois emergiu para dar um mergulho arrojado, tão perto que o bronze e o dourado de suas penas eram visíveis nas asas esticadas, pouco antes de adejar ao céu.

— Não! — Vivian gritou. — Por favor, não o matem. Por favor! — implorou outra vez, quando várias flechas eram disparadas. Seus gritos e esforços para saltar assustaram o cavalo de Rorke.

— Pare com isso! — esbravejou ele, puxando-a contra si.

— Você não compreende! Ele é domesticado! — Lágrimas escorreram pelas faces de Vivian. Com todo o poder que possuía, tentou desesperadamente fazer Rorke entender o que estava tentando lhe dizer. — Por favor, impeça-os!

FitzWarren finalmente conseguiu controlar a montaria.

Vivian inclinou-se para frente na sela. Voltou o rosto para o céu, o olhar fixo no majestoso falcão, as faces molhadas de lágrimas de aflição.

Rorke não tinha explicação para aquela reação diante da caçada a um insignificante falcão. Mas isso afetara Vivian profundamente. Como era possível que alguém capaz de enfrentar o exército normando se sentisse abatido com a perda de um simples falcão? Quanto mais a conhecia, menos a compreendia. Só sabia de uma coisa, não conseguia vê-la chorar. Era como se uma flecha tivesse sido cravada impiedosamente em seu coração.

— Saiam e retornem ao acampamento — ele disse a Gavin. — Haverá outros dias para caçadas. Aquele pequeno falcão não vale suas flechas. Vocês podem muito bem precisar delas em outra ocasião.

Vivian estava tensa como um arco, o corpo afastado de Rorke, as lágrimas a lhe banharem as faces, a respiração rápida e intercalada.

Lentamente, ele soltou os braços que a prendiam.

— Vivian... — Era um guerreiro bem treinado para enfrentar desafios e batalhas difíceis, mas nada no mundo o preparara para lidar com as sutilezas da emoção. E, no entanto, tão instintivamente como sabia quando sacar a espada, ele sentiu a necessidade de confortá-la.

Tocou-lhe a face, afastando para trás os cabelos da cor de fogo.

— Nenhum dos meus homens machucará o falcão. Os olhos marejados de lágrimas encontraram os dele.

— Obrigado, milorde, pois valorizo muito esse falcão. É um amigo de verdade.

— Então, quer dizer que tem intimidade com aquela criatura?

— Sim, foi treinado em minha mão.

— Trouxe-o com você? — ele perguntou, pois não vira tal criatura na viagem desde a abadia.

Vivian franziu a testa ao olhar para cima.

— Ele estava caçando na manhã em que Vachel e seus homens chegaram à abadia — disse, hesitante, incapaz de esquecer a brutalidade de Vachel. — Deve ter nos seguido desde Amesbury.

Rorke a encarou com ar indagador. Nunca a vira assim, vulnerável e, no entanto, impetuosa na defesa de algo a que evidentemente amava. De repente, sentiu uma inesperada pontada de ciúme do falcão que lhe era tão querido.

— Chame-o — disse a ela. — Gostaria muito de ver esta criatura que vem de tão longe para encontrá-la.

— Não é preciso — Vivian assegurou-lhe.

Então, avistando o falcão, assobiou três notas familiares. Os movimentos do pássaro imediatamente se alteraram e ele iniciou num rápido mergulho em direção à terra firme.

A uma altura que mal tocava a copa das árvores da floresta próxima, o falcão peregrino interrompeu a descida com um gracioso planar e várias batidas das poderosas asas, diminuindo a velocidade.

Vivian estendeu o braço, mas em vez de acomodar-se ali o falcão passou por ela e, com um gracioso bater de asas, pousou no braço do guerreiro normando.

— Ele nunca fez isso antes — Vivian comentou, surpresa. — Minhas desculpas. Talvez estivesse distraído.

— Áquila nunca se distrai — disse ela.

— Áquila? — Rorke repetiu o nome da ave. A cabeça esguia voltou-se para ele. — Você o chamou pelo nome da constelação perto de Lira e Cisne?

Franzindo o cenho, Vivian comentou:

— Conhece astronomia?

— Sim, mas não pensei que uma moça criada numa abadia também conhecesse.

— Poladouras é um estudioso de astrologia. Ele me ensinou tudo sobre as constelações — explicou em voz baixa, para não assustar o falcão.

Sem medo daquelas garras poderosas, Vivian estendeu o braço ao longo do dele, afagando gentilmente a barriga do falcão. A ave moveu-se de um poleiro para outro.

— Ele também a ensinou a domesticar um falcão? — Rorke perguntou, arqueando as grossas sobrancelhas.

— Sim. — Vivian sorriu, como se de si mesma. — Aprende-se depressa o que fazer e não fazer com uma criatura selvagem, ainda que na verdade Áquila nunca tenha me machucado.

Rorke observou fascinado, conforme o falcão inclinava a cabeça de um lado para o outro para captar as suaves nuances das palavras de Vivian e percebeu que ele também prestava atenção às diferentes entonações da voz melodiosa.

— Você o ensinou a confiar no toque de um estranho? — quis saber com grande interesse.

Uma ruga leve vincou a tez acetinada.

— Ele nunca aceitou a mão de um estranho antes, tampouco tolerava o toque de outra pessoa.

— Julga-se sua dona? — Rorke indagou, afagando com a ponta de um dedo da mão sem luva a curva do lábio inferior de Vivian.

A voz de barítono soou baixa e profunda, como se ele procurasse acalmá-la com o toque e as palavras.

Vivian sentiu a carícia rude daquela mão áspera, inexplicavelmente gentil. Sensações estranhas, lembranças vagas de um dia de verão, muito tempo atrás, a percorreram de alto a baixo e se instalaram sob seus seios, como se o braço de Rorke ainda a enlaçasse, tornando difícil respirar. Como era possível que aquela mão tão dura e brutal pudesse ser gentil?

Alheio aos sentimentos que a dominavam, Rorke viu um desejo poderoso crescer em seu corpo e alma. Confuso, afastou-se bruscamente.

— Assustou-o, milorde — disse ela, baixinho, concentrando toda sua atenção na ave majestosa.

— Tem certeza? Está se referindo à ave ou a quem a segura? — ele perguntou, a voz ainda mais rouca.

Ela o encarou, os olhos tão brilhantes como chamas que ardem no calor de um fogo que acabava de ser aceso.

— O senhor não me assusta, milorde. Rorke sabia que era verdade.

— O falcão é de estimação, então? — perguntou. Não tinha certeza, mas julgou que Vivian parecia aliviada por terem mudado de assunto.

— Não. Afinal, bichos de estimação são criaturas domesticadas. Áquila é meu companheiro, mas é completamente livre. Também é meu professor. Aprendi muito com ele. Seria mais verdadeiro dizer que Áquila é meu dono do que o contrário.

Era uma comparação estranha. Sugeria laços firmes como o que se via pouco acima das garras do falcão.

— É livre, mas usa uma tira de couro — Rorke argumentou.

— Apenas para segurar os guizos para que eu possa distingui-lo dos outros. Nunca fica preso. Eu não poderia suportar vê-lo aprisionado.

Rorke entendeu muito bem a mensagem implícita no comentário.

— Você é tão livre quanto o falcão, Vivian de Amesbury. Não há nenhum laço a prendê-la.

— Promete que me deixará partir assim que o duque da Normandia estiver completamente curado? — ela perguntou.

Rorke entreabriu os lábios para dizer sim, pois na verdade fora esse seu intuito ao procurá-la em primeiro lugar. Porém, sabia que ao prometer seria obrigado a deixá-la ir e, por isso, alguma coisa dentro dele o impediu de fazê-lo.

— Não me peça mais do que posso prometer, Vivian de Amesbury — ele retrucou, num tom repentinamente duro.

Voltaram para o acampamento normando num silêncio constrangedor, com Áquila empoleirado no braço de Rorke.

Seus homens já tinham retornado na frente e, à medida que entravam, ela sentiu os olhos dos outros guerreiros normandos sobre eles, curiosidade mesclada à surpresa.

A imponente figura de Tarek ai Sharif estava do lado de fora da tenda de Rorke FitzWarren.

— Alguma notícia? — Rorke perguntou a Tarek.

— Sim. Um grande número de saxões foi visto pouco além das montanhas — Tarek o informou. — Sem dúvida, sobreviventes da batalha. Reuniram-se a meio dia de jornada daqui e estão pesadamente armados.

Rorke ajudou Vivian a descer da sela e depois saltou para o chão.

— Robert de Mortain sabe disso? — perguntou.

— Ele ordenou a seus homens que se aprontassem para partir imediatamente.

Percebendo que não deveria ficar ali para ouvi-los discutir estratégias de combate, Vivian voltou-se para se afastar.

Surpreendentemente, Rorke a impediu de fazê-lo. A mão enorme se fechou em torno do pulso delicado.

— Mande trazer minha armadura de batalha — ordenou ele. — Diga a Mortain para estar pronto para partir dentro de uma hora.

Vivian sentiu seu coração bater descompassado diante da notícia de que Rorke estava prestes a partir para mais uma batalha. Um forte tremor a percorreu de alto a baixo. Era óbvio que mais saxões morreriam. Tentou livrar-se da mão de Rorke, incapaz de suportar ficar ali, sabendo que a maior desgraça ainda estava por vir.

— Vivian, sinto muito. Pode guardar o falcão em minha tenda — disse a ela, tentando encontrar uma forma de abrandar-lhe o sofrimento. — Estará a salvo lá, e meu escudeiro está acostumado a lidar com falcões. Ficará bem aos cuidados dele.

Ela nada respondeu, o olhar ainda fixo no chão.

— Gavin ficará em meu lugar — murmurou ele. — Se algo acontecer... — Foi então que o olhar de Vivian se ergueu, marejado de lágrimas, e se cravou no dele, fazendo-o imaginar se a idéia de sua morte a afligia. — Ele cuidará de sua proteção e segurança até que Guilherme esteja recuperado — garantiu-lhe e logo emendou: — Eu confiaria minha própria vida a ele.

— Quanto tempo vai ficar longe?

— Estão a meio dia de distância. Se formos bem-sucedidos em encontrá-los antes que ataquem, então talvez possamos voltar ao meio-dia de amanhã.

Naquele instante, seu escudeiro surgiu junto deles, informando que a armadura de batalha estava pronta. Rorke estendeu o falcão a ele com instruções para cuidado e alimentação. Quando se virou para se afastar, Vivian pousou a mão em seu braço.

— Gostaria de lhe pedir um favor, milorde.

Ele a encarou, os olhos acinzentados pensativos.

— Gostaria de ter permissão para voltar ao acampamento saxão para tratar dos feridos. Precisam muito de mim e parece que o duque da Normandia se beneficiaria mais com saxões saudáveis do que tendo de abrir novas sepulturas para os inimigos mortos.

Ele a fitou, tentando ocultar o sorriso que teimava em insinuar-se em seus lábios. Deus o ajudasse, mas a julgava uma criatura fascinante. Estava inclinado a concordar com o pedido. Todavia, Vivian ainda não explicara como fugira de Tarek e de seus homens.

— Sugiro que façamos uma troca — ele falou com voz suave. — Se cuidar dos soldados normandos feridos, então permitirei que mande remédios e curativos ao acampamento saxão com um de meus homens e instruções de como devem ser tratados.

Quando Vivian ia novamente protestar, Rorke a impediu de fazê-lo.

— É a única concessão que farei, Vivian. A escolha é sua.

— Muito bem — ela retrucou, com relutância. — Eu aceito. Uma hora mais tarde, quando deixavam o acampamento, Vivian não conseguia evitar sentir uma sensação de perda ainda maior, como se algo tivesse sido colocado em ação e que ela não pudesse impedir.

Dirigiu-se à tenda de Guilherme da Normandia para verificar o ungüento que colocara na perna ferida na noite anterior. Recuou, com uma sensação de inquietação, ao ver o irmão dele, o bispo, ao lado do catre. Então, avistou Vachel postado nas sombras, um pouco mais atrás. Ambos a encararam e sua inquietação transformou-se em medo.

Por que estavam ali, quando Rorke dera ordens para que não fossem admitidos na tenda de Guilherme?

Teria se retirado se não fosse uma sensação compulsiva de que não deveria e de que algo estava muito errado.

— Não pretendia perturbá-lo, milorde — disse, constrangida, ciente do conflito de poderosas emoções no íntimo do bispo.

— Ah, a curandeira — murmurou o bispo, num tom irônico. — Não me perturbou. Apenas vim me assegurar de que meu irmão realmente está vivo.

Ela se aproximou hesitante.

— Ele está vivo. Querendo Deus, ficará forte e se recuperará.

— Eu lhe asseguro, senhora, Deus está querendo muito. Mas não me passa despercebido que você conjurou um pequeno milagre no que diz respeito à recuperação de meu irmão, uma vez que ele estava à beira da morte. — A cruz de prata reluziu em seu peito, contra o veludo negro da túnica.

Conjurou? Ela julgou aquela uma estranha escolha de palavra. Colocou a mão no braço de Guilherme, incerta da razão pela qual sentia a necessidade de confirmar se ele dormia tranqüilamente.

— O senhor contestou com firmeza minhas habilidades no dia de ontem — ela comentou, tomando cuidado ao escolher as palavras. — E, no entanto, mandou Vachel encontrar-me.

O bispo inclinou a cabeça e a encarou com um olhar oblíquo, como se a estudasse.

— Sou um homem de fé — explicou. — Certamente pode entender, demoiselle, métodos tais como testemunhei não são normalmente considerados aceitáveis pela igreja.

— Tais métodos, milorde? O que quer dizer?

Vivian sentiu que o bispo não era tolo. Sob a máscara de benevolência santificada havia uma inteligência apurada e uma ambição ainda mais marcante. Não era homem para ser tomado com leviandade.

— Minha preocupação — esclareceu ele, com expressão cautelosa — para com o bem-estar de meu irmão é secundada apenas por minha devoção a Deus e à igreja de Roma. Guilherme tem muitos inimigos. É meu dever protegê-lo de tais inimigos. Por muitos anos, tenho sido a espada a seu lado, embora também use a cruz. Enfrento os inimigos mortais com uma e os inimigos espirituais com a outra. — Encarou-a com um olhar penetrante. — Quando a vi parada ali, naquele transe estranho, só pude presumir que desejava fazer-lhe algum mal.

De novo, parecia que ele estava tentando agregar algum significado muito particular a seus métodos de cura, e Vivian sentiu que isso poderia se mostrar perigoso.

— Sim — concordou, escolhendo as palavras —, o ritual é bastante antigo, tem pelo menos mil anos. Sempre julgo recon-fortante rezar — continuou a explicar, contente com a expressão de surpresa que cruzou a face do bispo. — Imagino, mi-lorde, que também esteja familiarizado com o poder da prece. Certamente, não pensa que seu irmão corre perigo porque rezou por ele. Acredito que o senhor, em especial, compreende a necessidade disso.

Os olhos escuros brilharam ameaçadoramente e ela viu de relance algo assustador ali, uma escuridão difusa e maligna.

— Ah, sim, a prece... — A voz do bispo era como seda. — Tem uma poderosa influência, seguramente. Contudo, não pensaria que fosse comum a uma curandeira rezar.

— Fui criada numa abadia, milorde. Meu guardião desde a infância é um monge muito letrado, de enorme fé.

A surpresa do bispo foi instantânea. Ele sorriu para disfarçar, aquele sorriso falso que Vivian sabia que não lhe alcançava o coração.

— Fez-me recordar, demoiselle, de algo que experimentei o bastante no passado, mas que tinha esquecido no meio da guerra. Deus trabalha por caminhos misteriosos. Muitas vezes coloca tais assuntos nas mãos habilidosas de um homem. Ou, neste caso em particular, nas mãos habilidosas de uma mulher.

Então, em meio ao sussurrar das chamas nos braseiros e ao movimento das paredes da tenda que se mexiam a cada sopro do vento, Vivian ouviu a Voz, um aviso suavemente murmurado:

Há um grande perigo...

Embora ela tentasse ouvir mais, não conseguiu, ficou-lhe apenas a lembrança daquela breve advertência.

— Suas habilidades como curandeira e seu poder de prece são um dom pelo qual estou profundamente grato — o bispo continuou. — Estou perdoado pelas circunstâncias de nosso primeiro encontro?

— O perdão é uma dádiva que cabe a Deus conceder — disse ela, franzindo a testa. — A minha é curar.

Por fim, o bispo voltou o olhar frio para o irmão que dormia.

— Ele irá se recuperar dos ferimentos?

— Sim, milorde — Vivian assegurou-lhe, entrelaçando as mãos para aquecê-las, ao sentir um frio repentino. — Com o tempo e com descanso e cuidados. A perna precisa disso para sarar adequadamente.

— Notável — murmurou ele, e meneou a cabeça num gesto de despedida.

As chamas das velas e os braseiros bruxulearam quando o bispo saiu da tenda. Então, firmaram-se e mais uma vez brilharam com força.

Vivian estremeceu, como se uma presença maligna tivesse deixado o lugar juntamente com ele.

Ocupou-se em preparar um caldo nutritivo para quando Guilherme acordasse. Afinal, o líder normando estava deitado sem alimentação por vários dias, com febre, embora essa tivesse baixado com o chá forte de casca de salgueiro branco. Se fosse para se recuperar, precisaria comer.

Trabalhou em silêncio, alheia ao fato de que cantarolava uma antiga canção celta para si mesma, quando Guilherme remexeu-se no catre.

— Você é a curandeira saxã — ele resmungou e, com mais esforço, estreitou os olhos, a estudá-la. — Meu escudeiro falou-me a seu respeito esta manhã, ou talvez durante a noite. — Seus olhos se fecharam conforme ele reunia forças para prosseguir. — Acho que não consigo me lembrar.

— Sou Vivian de Amesbury — apresentou-se, pousando a mão em seu ombro.

Os olhos de um âmbar-escuro se abriram mais uma vez e lentamente focaram nela.

— Meu escudeiro também disse que eu devia minha vida a você.

Vivian sentiu a força vital forte e segura dentro dele, junto com uma sensação de frustração pela enfermidade.

— Deve sua vida a Deus. — falou. Então, sorriu, pois não julgava Guilherme da Normandia uma figura tão extraordinária como fora levada a crer. — Deve, contudo, sua perna a mim.

A surpresa do normando foi imediata.

— Não foi forçada a amputá-la?

— Achei que ficaria mais bem servido se a perna fosse salva.

Para confirmar, ela ergueu a ponta da manta de pele e revelou a prova de sua afirmação. O alívio de Guilherme foi visível, quando deixou a cabeça cair no travesseiro. Depois de um momento, ele voltou-se para o som borbulhante que vinha do braseiro.

— O que é esse cozido de cheiro horrível? — perguntou. Vivian sorriu. Parecia que normandos e saxões eram parecidos quando se tratava de poções curativas.

— Não é veneno — assegurou-lhe —, embora alguns digam que tem gosto mais horrível que a morte.

Passou o braço sob a cabeça de Guilherme e levou uma colher da poção a seus lábios. Ele estremeceu conforme engolia, e respirou fundo para se recobrar.

— De qualquer forma, você é saxã e não seria inesperado que tivesse um profundo ressentimento contra mim.

— Sim, é verdade — ela admitiu, sem hesitação, e em seguida acrescentou: — mas culpa igual deve ser atribuída a Harold, eu creio. Pois ele pôs a perder seu exército, as vidas de muitos saxões inocentes e seu trono. — Ao pensar nas visões que tivera do conflito iminente, murmurou, com tristeza. — Não poderia ter sido de outra forma. — Encheu uma caneca de chá de lavanda. — Beba isso, milorde. Irá tirar o gosto do outro.

Quando foi colocado mais uma vez de costas no catre, ele pediu:

— Sente-se um pouco, demoiselle, pois estou cansado de tanto dormir. — Sua respiração era calma e não havia mais expressão de dor em seu rosto. — Você enxerga as coisas de forma bastante diferente da maioria dos saxões — comentou. — Outros não seriam tão gentis ou generosos na maneira de pensar.

— Não é nem gentileza nem generosidade, milorde — ela respondeu, com franqueza —, mas vejo a verdade de coisas que os outros não querem enxergar.

— Dizem que realizou um milagre ao salvar minha vida. Isso é verdade?

— Deixo o assunto de milagres para Poladouras, o monge da abadia de Amesbury.

— Se não foi um milagre que salvou minha vida, sobra apenas a magia. É alguma espécie de bruxa ou feiticeira, Vivian de Amesbury?

Ela espantou-se e só pôde agradecer que Guilherme estivesse de olhos fechados. Com surpresa, respondeu:

— Não pensei que Guilherme da Normandia desse crédito a tais coisas. Não sou bruxa. Sou apenas uma pessoa que tem o dom da cura e conhece ervas.

— Suponho que vá exigir pagamento em troca de suas habilidades, não? Qual é seu preço, salvo o de sua liberdade? Essa eu não posso conceder enquanto tiver necessidade de sua perícia.

— Falaremos disso mais tarde, milorde. Preciso pensar muito para tirar plena vantagem de sua generosidade.

Ele riu diante do comentário espirituoso, um som débil que lhe trouxe um espasmo de dor.

—- Se não é uma bruxa, então é uma feiticeira. Como o novo rei da Inglaterra, eu teria um feiticeiro a meu lado, como Arthur teve o fabuloso Merlin. — Sua cabeça voltou-se no catre, aqueles olhos cor de âmbar a fitá-la, pensativos. — Acredita na lenda, Vivian de Amesbury?

— Muitos crêem que seja verdade — ela respondeu num tom enigmático.

Guilherme fechou os olhos como se analisasse a resposta.

— Mas, afinal — Vivian continuou, baixinho —, Merlin defendia os saxões.

Ele não se mexeu diante da resposta e Vivian percebeu que Guilherme adormecera.

Diante disso, ela saiu à procura de Gavin para ajudá-la a organizar os remédios que queria mandar para o acampamento saxão.

Encontrara baús de medicamentos, frascos de remédios e pacotes de condimentos esmagados que tinham pertencido ao médico pessoal de Guilherme, que infelizmente perecera durante a travessia do canal.

A maioria das coisas ela fora capaz de identificar e acrescentar a seu próprio suprimento de remédios. As demais foram destruídas, pois os relatórios do homem eram pobres em explicações e não davam indicação de como utilizar os vários medicamentos.

O escudeiro de Guilherme concordou em levar os remédios para o acampamento saxão, acompanhado por um dos homens de Gavin. Partiram no meio da tarde numa carroça cheia de curativos de ervas e remédios com instruções específicas para o tratamento dos ferimentos mais comuns.

Depois, Vivian se dedicou aos feridos entre os homens de Rorke, indo de fogueira em fogueira, de tenda em tenda, com Gavin sempre a seu lado.

Trabalhou até o entardecer. Seu corpo doía todo de ficar curvada durante longas horas sobre as fogueiras, a mexer os remédios, preparando ataduras e ungüentos. Eram tantos feridos que Gavin solicitara ajuda de seu próprio escudeiro e dois outros homens.

— É tarde, senhora, e a luz está findando — disse Gavin, com inesperada preocupação. — Deixe para amanhã.

— Sim — ela concordou, mas insistiu —, só esta última tenda.

Sentira uma presença dentro da tenda. Fez menção de entrar. Um dos outros homens a segurou pelo braço, para impedi-la. Gavin o agarrou pela túnica.

— Não interfira, Soren.

Soren recuou, relutante. Assim que entrou na tenda, Vivian percebeu o que tinha sentido.

— Mally! — Correu para o lado da garota. — Oh, Mally, o que aconteceu? — Mas mesmo enquanto perguntava, sabia a resposta. Contra as ordens de Rorke FitzWarren, Mally fora raptada pelos homens de Vachel e escondida ali para seu desfrute.

O coração de Vivian condoeu-se, pois sentia que a garota sofrera bem mais do que os maus-tratos que recebera em Ames-bury. Fora usada repetidamente e, sem dúvida, por mais de um homem. As manchas disso cobriam suas roupas rasgadas, e, junto com a dor no coração, Vivian sentiu ódio.

— Você vem comigo — disse a Mally e ajudou a jovem a se levantar, apoiando quase todo o seu peso ao saírem juntas da tenda.

Soren imediatamente se pôs em pé.

— Não pode levar a moça! Ordens de Vachel.

A espada de Gavin cortou-lhe o próximo protesto.

— Vamos levá-la—disse ele, com rispidez. — Caso Vachel queira discutir o assunto, pode tratar comigo ou com milorde FitzWarren. Leve-a a minha tenda e notifique meus homens de que ela está sob minha proteção.

Pouco depois, já na tenda de Gavin, Vivian apoiou a cabeça de Mally na curva do braço e lhe deu colheradas de chá de lavanda entre os lábios inchados.

Mally gemeu, num protesto e tentou se esquivar quando o líquido quente ardeu levemente.

— Quero morrer—a jovem reclamou. — A senhora deveria ter me deixado. Que bem pode me fazer agora? Nunca mais poderei voltar para minha família. Não sirvo para nenhum homem agora. O que vai ser de mim?

— Estou olhando para você e vejo contusões e ferimentos que irão sarar. Com o tempo, seu coração também ficará curado.

— Vai acontecer de novo. Os homens de Vachel virão atrás de mim. — Ela estremeceu violentamente.

— Jamais acontecerá de novo — Vivian afirmou com uma firmeza que trouxe um olhar de surpresa aos olhos da garota. Então, prometeu: — Cuidarei disso.

Mally curvou-se de lado, enterrando-se nas peles quentes como uma criança buscando conforto, fazendo lembrar a Vivian de como era jovem. Mas não mais inocente.

— Ela ficará bem, senhora? — o escudeiro de Gavin perguntou. Seu nome era Justin e ele ficara por perto desde que tinham trazido Mally para a tenda. Providenciara baldes de água quente, afastando-se enquanto Vivian a banhara e depois trazendo uma de suas próprias túnicas, larga o suficiente para um vestido, que ela poderia usar.

— As contusões irão sarar — disse Vivian, e acrescentou, com um vinco profundo na testa —, mas existem outras feridas que demorarão muito mais para serem curadas. Com o tempo também sumirão — prometeu, afagando o rosto da garota adormecida.

A não ser por uma, pensou ela, pois, com seu dom de visão, já pressentia o dano maior que fora feito e que Mally não poderia saber. Uma criança, concebida de uma das relações a que fora forçada desde o dia em que tinham partido de Amesbury. Sentiu uma pontada no coração, sabendo dos tempos difíceis que estavam adiante da garota.

O vento soprou, enchendo os lados de toda a tenda, e Vivian estremeceu. Pegou o saco de ervas medicinais, pois precisava ver Guilherme da Normandia.

Guilherme não despertara desde a última vez que o vira, e Vivian não encontrou razão para acordá-lo quando dormia tão tranqüilamente. Era melhor deixá-lo descansar. Enquanto descansava, o corpo se curava.

Guardas se alinhavam do lado de fora da tenda e o escudeiro de Guilherme já fizera sua cama ao lado do catre de seu senhor.

Vivian fez sua própria cama de peles onde dormira na noite anterior, mas o sono não veio logo. Estava preocupada, com o pensamento em Mally e também no encontro que tivera com o bispo.

Não podia fazer nada com relação a Mally naquela noite, mas quando Guilherme acordasse, ela pretendia pedir a proteção dele para a garota. Quanto ao bispo, não tinha respostas para a inquietação que sentia, uma inquietação que a seguiu nos sonhos tumultuados.

A tenda estava escura quando ela acordou, com uma aflição urgente a percorrer-lhe a pele como uma mão gelada. A princípio, pensou que todos os braseiros tinham se apagado, mas então viu que vários queimavam com força. Apenas ali, a seu redor, a luz não chegava.

A escuridão a rodeava e ela sentiu uma ameaça maligna, exatamente como o perigo que vira de relance em sua visão dentro do cristal azul. Algo estava errado.

Correu para o braseiro. Lentamente, estendeu a mão na direção da chama.

O calor a alcançou, banindo o frio e irradiando-se por ela. Então, conforme estendia lentamente a mão para dentro da labareda, o fogo a rodeou enquanto ela murmurava as palavras antigas:

— Fogo da alma, chama de vida, conforme a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade.

A chama tornou-se ainda mais alta, os matizes de dourado e azul a se mesclarem ao laranja reluzente e ao escarlate profundo.

A princípio, ela viu apenas um vácuo. Depois, as cores da visão mudaram gradualmente. A chama de brilhante amarelo e laranja foi banhada em escarlate que se espalhou, afogando as outras cores, até que tudo estivesse coberto de sangue.

Vivian teve então um prenuncio da morte de... Rorke Fitz-Warren.

Vivian gritou, como se experimentasse uma dor insuportável, e saiu correndo da tenda de Guilherme.

Só parou ao encontrar um dos homens de Rorke.

— Precisa me levar à tenda de milorde FitzWarren — ela pediu, e viu o alarme que despertava naquela expressão. — O falcão está lá. Preciso vê-lo.

O guarda finalmente concordou e seguiu ao lado dela até a tenda de Rorke.

Ao entrar na tenda, a cabeça da ave inclinou-se em sua direção, os olhos como poças brilhantes de luz. Vivian aproximou-se do poleiro.

— Você sentiu também, não foi? — murmurou, acariciando o peito brilhante do falcão para que ele se acalmasse. — Sim, está lá. Sinto, mas não consigo enxergar. — Então, tomando o falcão no braço, saiu da tenda. — Estique suas asas, mo chroi — pediu, deixando os pensamentos se unirem aos do falcão.

— Veja o que eu não posso ver, esteja onde eu não posso estar.

Falava no antigo idioma celta. Depois, estendendo o braço para o alto, ergueu o falcão. Quando o guarda de Rorke ia impedi-la, era muito tarde; o falcão já cortava o céu banhado pela luz da aurora.

— Agora você precisa me levar até sir Gavin—ela ordenou. O guarda hesitou.

— Leve-me, depressa — esbravejou Vivian —, ou o sangue de lorde FitzWarren estará em suas mãos.

E foi o que o rapaz fez.

Ao vê-la, Gavin levantou-se de imediato do leito, e o irmão Guy apontou na entrada da tenda com ele. Ambos traziam as espadas em punho.

— O que é? — ele perguntou, intrigado. — O que aconteceu?

— Há um grande perigo — Vivian explicou, apressada, o medo a lhe apertar a garganta. — Precisa levar seus homens até lorde FitzWarren. Pode salvar a vida dele!

Percebeu que Gavin não estava convencido.

— Por favor, sir Gavin — implorou. Então, conclamando seus poderes, estendeu a mão e a pousou no braço dele, os dedos a se fecharem suavemente sobre os músculos rijos, enquanto sentia a escuridão tornar-se ainda mais perigosa. — Não pode falhar com ele — rogou, transmitindo-lhe os pensamentos e passando-lhe as mesmas imagens que vira tão claramente nas chamas.

— Eu irei — Gavin exclamou, com urgência na voz.

— O falcão o guiará.

Quando a guarnição partiu, Vivian postou-se na abertura da tenda de Guilherme, a escuridão a invadir-lhe os pensamentos e a alma tomada por uma dor aguda e a certeza de que o futuro estava em risco.

Depressa! Transmitiu mentalmente os pensamentos aflitos a Gavin. Não se atrase.

Então, sua mente alçou vôo, subiu aos céus nas asas esticadas do falcão, enquanto ela rezava para que não fosse tarde demais.

Rorke e seus homens paravam à margem de um riacho para dar água aos cavalos e para um descanso breve. As duas vintenas de homens escolhidos a dedo cavalgavam em grupos de quatro, abrindo um leque ao penetrar na mata fechada.

O exército saxão do rei Harold poderia estar destroçado, mas ainda não estava derrotado. Fora por essa razão que ele mandara soldados campo afora para rastrear os líderes saxões que poderiam ter reunido outro pequeno exército para detonar uma rebelião de surpresa.

A bruma se esfumaçara na altura das copas das árvores, revelando um brilhante céu azul. As folhagens e ramos ralearam e se abriram numa clareira onde o sol do fim da tarde conseguia penetrar, aquecendo as armaduras.

Uma sombra esguia e graciosa cruzou a clareira iluminada, atraindo o olhar de Rorke para o céu. Ele reconheceu imediatamente o falcão pela tira de couro passada por uma fita azul.

— Áquila! — exclamou, surpreso. — Ele não nos seguiria por vontade própria — murmurou, muito sério. — Foi enviado para nos encontrar — disse, com certeza.

Então, um bando de aves voou em debandada, assustados por alguma criatura não vista... Ou criaturas.

— Em guarda! — Rorke disse a seus homens, o grito de guerra rompendo a paz da floresta.

Nem bem tinham empunhado as armas, o ataque estava sobre eles. Rebeldes saxões surgiram das árvores e da cobertura das rochas, enxameando pela clareira. Não houve tempo para mais nada. Os preciosos segundos que tinham conseguido com o alarme dado pelas aves assustadas tinham feito a diferença crítica entre a morte imediata e uma chance de se defenderem.

Tudo ao redor deles ressoava com os sons familiares e terríveis de uma batalha lutada com fúria: os gritos ferozes dos saxões que já tinham sido derrotados em Hastings e sem dúvida sentiam ter muito pouco a perder; um grito de agonia quando um saxão defrontou-se com a morte sob os cascos possantes de um cavalo de batalha normando; os urros agoniados dos feridos ao caírem de ambos os lados; o relincho de um animal moribundo ao tombar ao chão, levando o cavaleiro consigo.

Em seu campo de visão, Rorke viu o falcão voar mais alto no céu, em seguida, o som da batalha pareceu recrudescer por dez vezes quando soldados montados derramaram-se da floresta para dentro da clareira. Os saxões se descobriram encurralados entre os homens de Rorke no meio da clareira, e os homens de Gavin, que os rodeavam em todas as direções.

A batalha, que parecia perdida apenas momentos atrás, mudara de rumo e chegara a uma rápida e decisiva conclusão.

— Contenham suas armas! — Rorke gritou a ordem, que ecoou ao longo da linha normanda até que, um por um, seus homens deixaram de lutar. Os mortos saxões coalhavam a clareira. Poucos permaneciam em pé.

Rorke enxugou o sangue que ensopava sua túnica. A dor começou a queimar e acomodou-se num lugar familiar abaixo da lateral, onde a cota de malha se rasgara na batalha, dias antes.

— Você está ferido! — Tarek exclamou, ao ver o sangue.

— Parece que sim — Rorke retrucou, com um sorriso tenso.

— O bruto de meu cavalo foi um pouco lento em uma volta. O amigo postou-se imediatamente ao lado dele, examinando delicadamente o vão entre os elos quebrados.

— O bruto a que se refere provavelmente salvou-lhe a vida — Tarek informou. — O golpe veio por trás. Se o tivesse acertado, metade de você ficaria montado no cavalo e a outra metade cairia na clareira.

Rorke pestanejou e encarou-o com um olhar ameaçador, diante do exame doloroso.

— O aviso do falcão salvou nossas vidas.

— Tragam a curandeira! — o grito ecoou assim que Rorke e seus homens retornaram ao acampamento normando, pouco antes do pôr-do-sol.

Vivian estivera andando de um lado para outro na tenda de Guilherme. Quando o primeiro alerta de que os cavaleiros tinham sido vistos correu pelo acampamento, ela apressou-se a ir até a abertura da tenda. Uma prece emergiu-lhe dos lábios para que Rorke não morresse.

O irmão de Gavin, sir Galant, levou-a apressado até a tenda de Rorke. Gavin e Tarek ai Sharif estavam lá, junto com Ste-phen de Valois.

— Trouxe suas poções medicinais? — Tarek perguntou, as belas feições morenas vincadas de preocupação e cansaço.

Vivian concordou e a mão de Tarek fechou-se em seu braço, guiando-a por entre os homens aglomerados nos fundos da tenda.

Eles se afastaram quando ela chegou mais perto, o saco contendo suas preciosas ervas e pós sob o braço.

Rorke FitzWarren encontrava-se sentado num banco entre seus homens. Estava vivo! Ela quase gritou de alívio.

As feições de Rorke estavam tensas, a expressão cansada. Sua cor normalmente saudável sumira, exibindo agora nuances de cinza sob a sombra da barba escura. Havia um pequeno corte sobre a sobrancelha direita, feito muito provavelmente pelo elmo. O sangue estava seco numa crosta. Ele apoiou-se contra a mesa, suportando o peso com o braço direito, e passou o cálice para a mão esquerda. Sua boca estava apertada, os olhos fechados como se engolisse um grande gole de vinho para agüentar a dor do ferimento.

A cota de malha mostrava a evidência de uma violenta batalha, os elos de ferro curvados com os golpes. Havia um vão do lado esquerdo, no lugar onde tinham se rompido, revelando a túnica de couro de proteção, que também fora cortada, e o sangue fresco que brotava dali.

— A armadura terá de ser removida — disse ela, quase com medo, pois sabia que poderia lhe causar mais dor.

O escudeiro e sir Gavin tiraram com cuidado a túnica e o tocado de cota de malha. Com um gesto para que trouxessem velas para mais perto, ela se ajoelhou ao lado de Rorke. O escudeiro lhe deu um pano limpo e Vivian estancou o sangue para poder determinar a extensão do ferimento.

Sob a leve pressão de seu toque, Rorke abriu os olhos devagar. Frios com uma manhã de inverno, cinzentos como uma tempestade nórdica, aqueles olhos estavam opacos de dor.

Vivian começou a dar ordens como um general, pedindo as coisas de que precisaria para limpar o ferimento. Duas bacias de água quente, uma sobre um braseiro para ferver, ordenou ao escudeiro de Rorke e, depois, deu ordens semelhantes a Tarek e Stephen de Valois, como se eles estivessem lá a seu serviço. Sem hesitar, trouxeram panos limpos, mais velas e tiraram da tenda todos os outros soldados, prendendo as peles que protegiam a entrada para que a corrente de vento não entrasse.

Com a água quente ao alcance da mão, cortou a grossa camisa de lã, parecida com a que os saxões usavam. Comprimiu um pano limpo gentilmente no ferimento, na lateral do corpo de Rorke, onde a lã fora cortada. Concentrou toda a sua atenção e umedeceu gentilmente os fios do tecido rasgado e afastou-os do ferimento. Assim que terminou, o escudeiro tirou a túnica de lã de Rorke. Ela então se ajoelhou entre as pernas do normando, enfiadas em pesadas calças e botas de couro.

O ferimento era pior do que pensara. Rorke sofrera um golpe oblíquo, evidenciado pela depressão na cota de malha. A ponta de uma espada encontrara um lugar vulnerável onde os elos tinham cedido ante um golpe anterior, possivelmente na batalha de Hastings.

— Seria bem mais sério se não fôssemos avisados de antemão. O falcão nos alertou no bosque.

Vivian ergueu o rosto e seus olhares se encontraram. As chamas de uma dúzia de velas colocadas ali perto estremeceram como se sopradas por um golpe de vento. Era óbvio que Rorke esperava por uma explicação.

Ela sabia que sua decisão em mandar o falcão abriria uma porta que não poderia mais ser fechada outra vez. O que jazia além daquela porta era um grande enigma, pois a visão no cristal não revelara o futuro, nem sua parte nele. A única coisa certa era que, embora Rorke FitzWarren fosse um inimigo e houvesse tirado incontáveis vidas de saxões, ela não deveria deixá-lo morrer.

— Então, é muito afortunado, milorde.

— Sim, ou talvez isso nada tenha a ver com boa sorte, afinal. Procuramos pelo falcão depois. Mas não pudemos encontrá-lo. Receio que possa ter se perdido.

— Não há nada a temer. Áquila tem sentidos apurados. Vai voltar.

— Foi surpreendente como nos encontrou — disse, observando-lhe a reação.

— Nem tanto, senhor, pois já o conhecia. Rorke não se deixou enganar pela explicação.

— Acho que não — ele murmurou. — Não sairia de seu lado, a menos que recebesse ordem.

— Existe sempre uma primeira vez. Ele estava inquieto, desacostumado das novas imediações. Talvez tenha saído para caçar.

— Sim — Rorke retrucou, numa entonação cheia de significados —, caçou, e caçou bem.

Com um gesto para Tarek e Gavin, dispensou os dois homens. Ficaram sozinhos.

— Estávamos em menor número — explicou, observando como ela se concentrava em limpar o ferimento.

Cravou os olhos no brilho dos cabelos vermelhos como fogo líquido a lhe descer pelos ombros, e procurou esquecer a dor. Quando Vivian se recusou a fazer comentários, ele continuou a descrever o ataque em detalhes.

— Eram guerreiros experientes. Seríamos obrigados a nos defender com todas as forças caso não soubéssemos de sua presença antes que estivessem sobre nós.

Vivian continuou calada e pegou um novo pedaço limpo de pano. Rorke a segurou pelo queixo, forçando-a a erguer a cabeça e encará-lo.

— Você sabia que seríamos atacados. Mandou o falcão para nos avisar e Gavin seguiu o falcão, embora não conseguisse explicar a razão. — Estudou-a com os olhos apertados. — Quando perguntei por que estava convencido de que havia um grande perigo, ele não soube dizer.

Vivian sentiu um enorme alívio. Gavin não se lembrava de nada.

— Gavin é seu amigo e um guerreiro experiente. Sem dúvida, sentiu o perigo como o senhor sentiria, milorde. Certamente, não foi nada mais do que o instinto.

Ele observou a maneira que a luz do fogo do braseiro próximo parecia incendiar aqueles fios de cabelos e depois escorrer com lânguida graça como se realmente fosse uma chama.

— É uma coisa muito diferente. Ele não poderia saber precisamente onde e quando o ataque ocorreria. Você mandou o falcão, salvou minha vida. Por que faria uma coisa dessas?

— Eu... — Vivian calou-se sob o escrutínio daqueles olhos acinzentados.

O que poderia dizer a ele? Que era pela mesma razão pela qual sabia que devia acompanhá-lo ao acampamento normando naquele dia em Amesbury? Que tivera uma poderosa visão de um ser magnífico nascido em fogo e sangue, a mesma criatura que ele carregava no escudo? E que sabia que seu destino estava ligado ao dele inexoravelmente?

Como poderia explicar o dom que possuía? Como lhe dizer que via o íntimo dos outros, sentia-lhes as emoções, as tristezas e angústias que lhes afligiam os corações e pensamentos?

Finalmente, como poderia fazer aquele guerreiro inimigo compreender as forças que mesmo agora se reuniam em torno dos dois e formavam o desenho daquela tapeçaria ainda não tecida, daquilo que ainda haveria de acontecer, quando ela mesma não compreendia?

Ao perceber que não havia resposta convincente, voltou à tarefa de cuidar do ferimento.

A um movimento, uma brilhante luz azul reluziu e piscou por trás do véu de seus cabelos. Vivian assustou-se quando ele afastou a cascata sedosa e o brilho do braseiro refletiu-se no magnífico cristal que ela trazia pendurado no pescoço. Os dedos de Rorke se fecharam em torno do cristal como se fosse tomá-lo dela.

Vivian prendeu o fôlego, esperando pelo grito de dor assim que ele tocou o cristal. Ninguém o tocara antes sem se queimar. Era por essa razão que o mantinha escondido.

Só alguém além dela tocara o cristal e não ficara terrivelmente queimado: a velha Meg. O que estava acontecendo, então?

— Não devo — explicara, quando Vivian perguntara a razão. — Apenas uma vez foi possível a mim tocar o cristal e isso ao dá-lo a você. Se eu o tocasse agora, ficaria horrivelmente queimada, como acontecerá com qualquer um que tente tirá-lo de você. Essa é a proteção do cristal. Apenas aquela a quem pertence o cristal pode tocá-lo e não se ferir.

Contudo, agora, havia outra pessoa que tinha tocado o cristal e permanecia incólume, ao aninhar a pedra na palma da mão cheia de cicatrizes.

Rorke vira tais pedras raras de qualidade incomparável quando estivera no Oriente. Aquela era magnífica, uma safira oval de um azul profundo, perfeitamente polida, macia ao toque, que dava a ilusão de que se poderia ver através de sua transparência.

— É uma pedra bela e rara — ele comentou, em voz baixa, como se especulasse como uma simples saxã vestida como uma camponesa poderia ter uma gema tão preciosa. — Tem o mesmo azul de seus olhos, e parece guardar o fogo dentro, da mesma maneira que seus olhos exibem uma chama ardente.

— Esta pedra foi um presente de meu pai — contou, sem saber por que o fazia. — Foi tudo o que ele pôde me dar antes...

— Antes...?

— Antes que fosse obrigado a me mandar embora. É tudo que tenho dele. É chamada de Olho do Dragão.

Seus dedos se enfiaram entre os dele, tentando abri-los. Em vez disso, conforme se entrelaçavam sobre a safira, Vivian sentiu a gema vibrar com um repentino calor. Não tão violento a ponto de queimar, mas um calor lânguido que parecia fundir as mãos unidas, numa tepidez hipnótica, sensual, a ligá-las em torno do cristal.

 

Rorke soltou o cristal com relutância, e Vivian enfiou-o dentro do corpete do vestido.

— O Olho do Dragão. Acredita em dragões, Vivian? Ela deu de ombros num gesto de descaso.

— Algumas pessoas acreditam neles. Dizem que um dragão guarda o Santo Graal numa profunda caverna, no norte.

— Ah, lendas... Conhece a lenda de Excalibur?

— A espada do rei Arthur? — ela comentou, sem encará-lo. — Dizem que tem poderes extraordinários.

— A espada do feiticeiro presa na pedra e o único capaz de tirá-la de lá seria o menino-rei. Dizem também que o cabo tem uma magnífica pedra preciosa azul.

Ele ainda a observava, Vivian podia sentir o exame daqueles hibernais olhos acinzentados.

— No que acredita? — perguntou, baixinho.

— Acredito naquilo que posso ver e segurar com minha própria mão. A espada de um guerreiro é sua verdadeira força, não uma arma mítica surgida da lenda.

Ele ainda a examinava. Desamarrando o saco de medicamentos e ervas, ela espalhou o conteúdo sobre a mesa e procurou entre os pós e poções até que encontrou aqueles que queria. Aplicou o ungüento, segurando-o no lugar com um pedaço de pano que enrolara em torno da cintura de Rorke.

A pele do normando arrepiou-se ao toque delicado. Os músculos do ventre, acima das calças de couro, encolheram-se e ficaram rijos como pedra com a respiração contida. Conforme ela inclinou-se para passar a faixa de uma das mãos para a outra, às costas de Rorke, as madeixas cor de fogo roçaram-lhe o ombro e ele parou completamente de respirar.

— Por que mandou o falcão? — insistiu em saber, quando recuperou o fôlego. As mãos de Vivian se imobilizaram na tarefa de passar as faixas.

O medo, arma perigosa do desconhecido, perpassou-a. Ela nunca o sentira antes ou, pelo menos, não com aquela intensidade. Antigamente, todas as coisas lhe eram conhecidas. Via tudo em visões e sonhos, sentia com um simples toque que dissipava qualquer fingimento e disfarce. Aquele homem, porém, era um grande enigma. Não conseguia sentir nada do que lhe ia à alma.

Ela o temia. Sim, temia o que não podia ver, temia as outras sensações nas quais era forçada a confiar e, mais que tudo, temia suas próprias reações.

Recusou-se a encará-lo, e apressou-se em atar a bandagem para poder ir embora. Mas seus dedos, experientes e seguros, embaralhavam-se como se caçoassem dela.

Rorke, por sua vez, ansiava por sentir novamente o toque da pele acetinada de Vivian. Não o toque de uma curandeira, mas o toque da mulher que se escondia dentro dela. E com uma fome brutal, rara, ele ansiava em provar a plenitude de sua boca.

Vivian sentiu a mão do guerreiro em seus cabelos e a pressão gentil que empurrava sua cabeça para trás e a obrigava a fitá-lo.

As feições másculas estavam tensas e o cinza hibernal daqueles olhos assumiu um tom mais escuro e tempestuoso, deixando-a aturdida com a transformação do frio hostil para algo que ela sentiu ser ainda mais perigoso.

A mão do guerreiro fechou-se sobre a massa de cabelos que caía solta pelas costas de Vivian. Ele torceu-a gentilmente, formando uma espécie de corda sedosa e perfumada, ao mesmo tempo em que a trazia para junto de si.

— Jehara.

A palavra soou baixa e rouca. Ao mesmo tempo, pareceu um murmúrio soprado ao vento que se agitou pelas paredes da tenda e acariciou as chamas trêmulas das velas. Então, como estava escrito desde o princípio dos tempos, a boca de Rorke fechou-se sobre a dela. Seu hálito, quente e doce, a fez estremecer.

Aprisionada entre as pernas do normando, capturada pelos cabelos por aquela mão forte, e incapaz de escapar, um medo maior que qualquer outro que tivesse conhecido a percorreu de alto a baixo. A visão interna que sempre a guiara agora a abandonara, deixando-a nua, exposta, absolutamente vulnerável pela primeira vez em sua vida.

— Tocá-la é como tocar o sol — Rorke sussurrou.

Sua pele arrepiou-se quando a outra mão de Rorke subiu para empalmar sua face, os dedos calejados abrindo-se em leque por seu rosto, raspando levemente a tez com uma ternura surpreendente que a fez ansiar por mais.

— O seu gosto...

A ponta da língua de Rorke roçou pela curva de seus lábios, tão leve como a carícía de uma asa de borboleta.

— ...é como provar o fogo.

Ele gemeu, e as palavras se tornaram um repentino murmúrio quando o calor da boca carnuda apossou-se da sua, atur-dindo-a.

Vivian sentiu-se encurralada pela força daquela mão poderosa enrolada em seus cabelos. Não havia como fugir, nem qualquer esperança disso. Havia apenas a força daquele beijo a fazê-la soltar as ervas preciosas dos dedos trêmulos, disper-sando-lhe os pensamentos e depois invadindo-lhe os sentidos. Apavorada, tentou empurrar o normando.

Rorke tinha gosto de vento, aço e suor, sobrepujado pela doçura do vinho quente mesclado a um toque de especiarias exóticas. Uma explosão de calor a invadiu conforme sua boca abriu-se para receber a dele.

Extasiado por ver aquele contato retribuído, Rorke aprofundou o beijo. Vivian de Amesbury tinha gosto de calor ardente, sonhos antigos, perdidos na noite e uma inesperada inocência que lhe transpassou os desejos mais básicos para abrir uma brecha na muralha de gelo que erguera para proteger seu coração.

Ele sentiu o calor daquelas mãos delicadas e a pressão insistente quando tentou interromper o beijo. Então, vozes soaram irritadas, do lado de fora da tenda. A pele que protegia a entrada, de repente, foi puxada para o lado.

— Perdoe-me, milorde — o escudeiro resmungou uma desculpa, embaraçado. — Tentei impedi-la, mas ela não me deu ouvidos.

O beijo terminou abruptamente e Rorke experimentou uma sensação aguda de perda igualada apenas à fúria glacial que o invadiu.

— Dei ordens expressas para não ser perturbado!

— Vi quando voltou, milorde.

Judith de Marque forçou a passagem pelo escudeiro e parou diante da visão da jovem de cabelos vermelhos como fogo ajoelhada entre as pernas de Rorke.

Espantada, aturdida, humilhada e apavorada por aquilo que não poderia, não deveria sentir, Vivian lutou para se libertar. Mas aquela mão poderosa, torcida com gentil pressão em seus cabelos, a continha com tanta firmeza como a um falcão amarrado por tiras de couro ao punho do dono. Encarou Rorke com uma tal agonia que ele afrouxou os dedos, e as mechas sedosas de cabelos escorreram por sua mão como fogo líquido.

Como o falcão que procura o céu, Vivian levantou-se e recolheu depressa suas ervas e pós. Fugiu da tenda e, de repente, tudo pareceu mais frio, as sombras mais profundas, como se ela tivesse levado a luz consigo.

— Deve ter se divertido com a escrava saxã — escarneceu Judith. Encheu uma jarra com vinho quente de uma panela sobre um braseiro. Levou-a para a mesa onde ele se sentava. Parou entre as pernas esticadas do normando e pegou o cálice vazio.

Despejou o vinho com um leve som murmurante até à borda. O cheiro pungente, levemente apimentado, subiu pelo ar. Estendeu-lhe o cálice.

— Mas o passarinho fugiu.

Ajoelhou-se entre as pernas de Rorke, como Vivian fizera. Contudo, diferentemente de Vivian, não havia nada que pudesse ser confundido com inocência em Judith de Marque quando ela apanhou o pano da tigela sobre a mesa e o torceu.

— Ela é jovem demais e muito simples para compreender as necessidades de um guerreiro — ronronou, ao descer com o pano pela curva do peito.

— E você compreende tais necessidades perfeitamente — disse ele, sem o mínimo esforço para disfarçar o cinismo.

Judith molhou o pano outra vez na água quente.

— Muito bem, milorde. Quem sabe tenha esquecido. — Ela se inclinou para mais perto, e a frente de seu manto se abriu, revelando que não usava nada por baixo. Enquanto esfregava o pano pela barriga do guerreiro, fez um leve movimento de ombros e o manto escorregou e caiu no chão.

Seus seios eram grandes e pendiam, fartos, roçando o braço de Rorke quando ela se inclinou para frente. Os mamilos enrijeceram e saltaram ao contato.

— Eu, porém, não me esqueci — ela murmurou, com voz rouca, os dedos a deslizarem pelo ventre de Rorke e depois para baixo, até a virilha.

— E quanto à sua lealdade para com Guilherme? — ele perguntou, a frieza da voz combinando com o brilho gelado dos olhos cinzentos.

— Sou tão leal a ele como ele é a mim. Guilherme me trouxe para a Inglaterra para aquecer as noites frias porque sua duquesa está muito pesada, esperando um filho. Mandará buscá-la para se juntar a ele, em Londres, e quando ela der à luz, será de novo leal a ela.

Observou a reação de Rorke. Então, o agarrou pelo pescoço e o beijou com volúpia.

Abruptamente, ele a empurrou.

— Estou exausto, Judith, e o ferimento é como uma lança cravada na minha costela. — Sua expressão era destituída de qualquer emoção. — Talvez um dos homens do conde de Bayeaux aprecie sua lealdade esta noite. — As palavras eram cortantes como lascas de gelo.

Espantada com aquela rejeição, Judith afastou-se com um movimento brusco. Pegou o manto. Suas feições se endureceram, não mais sedutoras, porém uma máscara de ódio sem disfarce. Zangada, enrolou o manto em torno de si e saiu da tenda quando Tarek ai Sharif entrava.

Rorke virou o cálice de vinho na boca e o encheu de novo. Pegou um grande pergaminho enrolado em couro. Soltou a tira e abriu o rolo, espalhando-o pela superfície da mesa. Era o mapa de toda a Bretanha.

— É imperativo que Guilherme tome Londres. Apenas então o trono pode ser assegurado. Faremos nossos planos para tomar Canterbury a seguir.

Tarek conhecia o lugar chamado Canterbury, o coração espiritual da Inglaterra saxã, e viu a sagacidade do plano de Rorke.

— Reclame o coração da criatura e depois capture sua alma, quando e onde nunca se espera. — Era um plano excelente. — Haverá oposição — avisou. — Existem aqueles que dirão que você foi dominado pela ambição, meu amigo.

— E você o que diz? — perguntou Rorke.

Tarek sorriu com aprovação ao erguer o cálice. Os olhos azuis brilhando e iluminando as feições marcantes.

— Que mais poderia dizer, meu caro amigo? A Londres.

Sir Gavin de Marte chegou para acompanhar Vivian até a tenda do duque Guilherme. A única coisa que diferenciava a pequena e pouco evidente tenda das outras eram os guardas que a rodeavam. Os rebeldes saxões poderiam estar em qualquer lugar e, com o ataque dias antes, não podiam correr nenhum risco.

A pele que cobria a entrada da tenda foi puxada e Vivian entrou apressadamente. Estava atrasada.

Rorke já chegara e vários rolos de mapas estavam espalhados sobre o catre de Guilherme.

Como acontecera no último encontro dos dois, dias antes, todos os sentidos de Vivian pareceram ficar em total estado de alerta diante dele. O corte simples da túnica de couro, as calças e botas que envolviam os músculos rijos mais os destacavam que os disfarçavam. Sua face estava recém-barbeada. Fora-se a sombra da barba que dava a ele um ar rústico, substituindo-a por uma aparência ainda mais temível nos ângulos agudos das feições duras e frias.

Contudo, sob a frieza aparente, além do cinza hibernal dos olhos, havia uma luz predatória ali. Aquele era o olhar feroz de um caçador, deixando-a ciente de que havia um fogo intenso a queimar debaixo do gelo aparente.

O irmão do duque, o bispo, estava ali também, e a cumprimentou com um menear de cabeça. Embora fosse um bispo com votos feitos a Deus, era também um guerreiro com um juramento de lealdade prestado a Guilherme. O guerreiro-bispo. Uma estranha combinação, ela pensou, e imaginou o conflito que tais devoções poderiam despertar no âmago de uma pessoa.

— Bom dia, senhora — Guilherme a saudou. A despeito dos rigores da viagem com os ferimentos ainda tão recentes, ele parecia bem. Sentava-se ereto, usando uma túnica e calças limpas.

Vivian respondeu ao cumprimento, e o avaliou por sob as longas pestanas. Seus pensamentos estavam cheios de angústia por Mally, por tudo o que sofrera na mão dos normandos. Apressou-se a fazer seu trabalho, ansiosa por sair da tenda e da presença de Rorke FitzWarren.

— Eu lhe devo minha vida — Guilherme afirmou, com praticidade. — Isso tem passado por minha cabeça nos últimos dias. Devo-lhe um prêmio. Só precisa dizer o quê.

—É muito generoso, milorde. Há um prêmio que eu gostaria de pedir. — Ela respirou fundo, imaginando se a generosidade iria esbarrar nas objeções do irmão, pois Vachel era homem do bispo. -— Não peço por mim, mas para outra pessoa.

Guilherme ergueu as sobrancelhas, sem tentar esconder a surpresa.

— Pode pedir roupas. — Ele apontou para o vestido limpo, mas cheio de remendos, que Vivian usava. — Também pode pedir ouro, pois valorizo muito suas habilidades.

— Que bem me traria ouro se um soldado normando poderia tomá-lo de mim? — ela perguntou, com candura. — Que bem me fariam roupas quando terão o destino daquelas que eu uso? O de serem rasgadas e esfarrapadas. Tais coisas têm pouco valor para mim, milorde. O prêmio que peço é uma garota.

— Uma garota?

— Sim, milorde. Uma garota saxã tirada de Amesbury no mesmo dia em que fui obrigada a sair de lá sob ameaça de morte àqueles que amo e me são caros. Ela está aqui, neste acampamento agora, e foi terrivelmente abusada por alguns de seus homens.

— Isso é verdade? — Guilherme olhou para Rorke.

— A garota foi trazida contra minhas ordens. Foi bastante maltratada e está em recuperação aos cuidados de Gavin de Marte.

— Protesto contra tal pedido — o bispo interveio. — Vai conceder favores a uma escrava saxã? — apontou para Vivian.

Vivian teve consciência do olhar sombrio e zangado que perpassou pelo rosto do bispo.

— Você não pede nada para si, mas para ela. Por que, Vivian de Amesbury?

— As razões são três, milorde. Preciso da garota. Ela me ajudava antes e aprendeu muitos métodos de cura.

Ele concordou ao que considerou um bom motivo.

— E a segunda?

— A garota, Mally, foi abusada horrivelmente, de maneira pior que o animal mais inferior que se arrasta pela terra. — Ela sentiu o olhar duro do bispo. — Gostaria que não fosse abusada outra vez, pois poderia facilmente sucumbir e seria de pouca utilidade para milorde.

— Vejo a sabedoria de seu pedido — Guilherme retrucou. — E, no entanto, se eu conceder esse prêmio pelas razões dadas, o daria para a própria garota, pois parece que ela sofreu em demasia e sem uma justa causa.

Foi igualmente franco ao continuar:

— Terei a Inglaterra na ponta de minha espada, mas não a terei sob minhas botas. Um reino assim não é um reino, mas o pior tipo de prisão e não valeria de nada para mim.

Vivian percebeu que Guilherme, duque da Normandia, não era homem de brincar com as palavras.

— Ah, e ainda resta um motivo. Disse, senhora, que as razões eram três.

— A terceira razão é que se eu pedir algo para mim o senhor deve concedê-lo, pois fez um juramento perante testemunhas, inclusive seu próprio irmão, o bispo.

Ele concordou com a cabeça enquanto estreitava os olhos, com ar especulativo.

— Continue, por favor. Vivian esboçou um sorriso.

— Conseqüentemente, não pedirei o prêmio para mim agora — prosseguiu. — Mas chegará o dia em que o reclamarei.

Sendo um estrategista sagaz, Guilherme da Normandia admirava a mesma qualidade nos outros, e sorriu com ar apre-ciativo.

— Por Deus, lady Vivian, se eu tivesse um negociador tão esperto quanto a senhora em minhas campanhas no Império Bizantino, o reino teria sido meu. Aceito sua decisão. Concederei o que me pede. A garota ficará consigo, sob minha proteção pessoal.

— Obrigada, milorde — ela murmurou, ao se acomodar para trocar as ataduras do duque, o que fez rapidamente. Então pediu licença para se retirar.

Em questão de horas estavam a caminho de Londres.

Guilherme decidira que não poderiam se atrasar mais. As tendas foram desarmadas e guardadas em grandes carroças que seguiram na retaguarda do exército principal.

Fraco demais para liderar seu exército, Guilherme delegara o comando a seus generais. Vivian descobrira que o exército de Guilherme era composto de generais, cavaleiros de confiança e nobres amigos que tinham se provado em batalha a seu lado durante os anos.

Soube que ele confiava no irmão, o bispo e conde de Bayeaux, em assuntos de fé. Porém, em assuntos de conquista, confiava seu exército a Rorke FitzWarren.

Fora na batalha em San Cristabol, nas províncias do Mediterrâneo, quando tinha apenas dezoito anos, que Rorke encontrara Guilherme da Normandia. A amizade de ambos fora forjada em sangue e ambição comum, e Rorke empenhara sua lealdade a Guilherme.

Agora, quatorze anos depois, Londres estava rodeada com legiões do exército de Guilherme, como os elos de uma enorme corrente. Canterbury caíra ante os normandos duas semanas antes. Então, com todo o exército circundando Londres, o magistrado de Londres finalmente capitulara e negociara a paz. Contudo, Rorke FitzWarren ainda não ordenara que os soldados normandos invadissem a cidade.

Nada aconteceu no dia seguinte, ou no próximo. Os nervos estavam à flor da pele conforme a espera continuava. Vivian sabia que devia ser muito mais difícil para os habitantes de Londres.

Outro emissário chegou a mando do chefe do condado de Londres, sob os cuidados de quem a defesa da cidade fora deixada, depois da morte de Harold. Nenhuma resposta foi dada. A espera continuou.

Finalmente, na manhã do terceiro dia depois da data marcada para a rendição da cidade, com a tensão a alcançar um ponto insustentável, Rorke FitzWarren deu a ordem para a marcha sobre Londres. Soldados montados e a pé, todos pesadamente armados, deveriam entrar na cidade de uma dúzia de pontos estrategicamente escolhidos.

O duque da Normandia não estaria entre os primeiros homens a lutar, uma decisão que não agradou ao comandante calejado de batalhas.

— Qual é então seu plano para minha campanha? — ele perguntou a Rorke, cheio de frustração.

— Protegeremos a cidade contra conflitos e rebeliões. Quanto ao que diz respeito a qualquer um, em Londres, será o duque da Normandia que irá liderar seu exército.

Guilherme ergueu a cabeça, surpreso.

— Explique-se.

— Com sua permissão, usarei sua armadura de batalha e carregarei seus estandartes. Somos do mesmo tamanho. Com o elmo no lugar certo, ninguém perceberá. E sua presença à frente do exército será um forte repressor de ataques e boatos que possam ter avançado até aqui, antes de nós.

— Posso também fazer de você um alvo para um assassino — Guilherme ponderou. — Sempre aceitei a plena responsabilidade por minhas ações. Não mandaria outro homem morrer em meu lugar.

— Com o duque da Normandia visto a liderar seu exército na tomada de Londres, não haverá necessidade da morte de qualquer homem.

Guilherme concordou.

— E o que acontecerá assim que tenha estabelecido o controle da cidade?

— Mandarei Tarek para acompanhá-lo a Londres. Para todos os efeitos, o duque da Normandia se encontrará com os condes e barões saxões e fará sua reivindicação de direito ao trono. Ninguém perceberá.

— Devo protestar! — o bispo objetou, os olhos negros estreitados. — Guilherme deve ser visto liderando seu exército em Londres. Crê que os saxões serão enganados? Tais estratagemas estabelecem um precedente perigoso.—Então, voltou os argumentos para Guilherme. — FitzWarren é seu comandante mais poderoso. Já comanda mais da metade de seu exército. E é ambicioso. Não permita isso, meu irmão. É muito perigoso.

— Tão perigoso como deixar o lado de Guilherme durante o recrudescer da batalha? — Rorke dirigiu-se ao bispo com raiva, as palavras proferidas em tom de acusação.

— O que está insinuando, FitzWarren? — a voz do bispo tornou-se, de repente, baixa e ameaçadora.

— Não insinuo nada, bispo — retrucou Rorke, os olhos a assumirem uma tonalidade glacial de cinza. — Direi francamente o que todos sabem ser verdade. O senhor não estava lá para defender o lado de Guilherme quando ele foi ferido!

— Parem! — ordenou Guilherme. — Não permitirei essa inimizade entre homens de quem preciso. — Apontou para Rorke. — Você tem minha confiança. Concordo com seu plano. Esperarei a escolta. — Voltou-se para o irmão. — Você acompanhará FitzWarren. Seria estranho se não estivesse ao lado do duque da Normandia.

A mensagem sutil era igualmente clara. O súbito desaparecimento do irmão na batalha de Hastings não fora esquecido. O bispo inclinou a cabeça em relutante obediência à decisão de Guilherme.

— Vá com Deus — Guilherme disse a Rorke. — É uma jornada difícil, meu amigo.

Rorke concordou e saiu da tenda.

Vivian deixou a tenda do duque da Normandia. O sopro do ar frio da manhã a surpreendeu. Apertou o xale nos ombros ao sair pelo acampamento atrás de Rorke.

Gavin o ajudava a envergar a desajeitada armadura de cota de malha de Guilherme. Rorke voltou-se ao toque da mão de Vivian. Os olhos que ela certa vez julgara tão frios como o gelo no inverno suavizaram-se ao vê-la.

— Veio para me dizer adeus, demoisellel

— Sim — ela retrucou, com franqueza. — E para lhe desejar uma jornada segura — emendou.

Ele parou de puxar as tiras de couro da armadura, e fitou-a com ar especulativo.

— Seria possível que sentisse algum tipo de pena por minha morte, caso eu sucumbisse nas ruas de Londres? — perguntou, o timbre profundo da voz a tocar-lhe a pele como uma mão quente.

— Naturalmente. Não! O que quero dizer é... Se alguma coisa acontecer...

Rorke sorriu.

— No curto espaço de tempo em que a conheço, Vivian de Amesbury, nunca lhe faltaram palavras. Diga o que quiser e seja rápida, antes que fique congelada.

— Muito bem — ela retrucou, a respiração se condensando com o frio. — Minha preocupação é com Mally.

— Mally? — ele exclamou, com leve irritação. Inclinou-se e puxou uma tira de couro no lugar, ajustando a túnica de malha sobre a coxa musculosa. — O que tem a garota a ver com a tomada de Londres?

— Ela está protegida contra Vachel e os outros por ordem de Guilherme e entregue a seu cuidado. Se alguma coisa acontecer em Londres...

— Tem medo que a garota possa sofrer algum mal — Rorke completou o que ela parecia ter alguma dificuldade em dizer. — Sempre implora pelos outros? A garota tem a proteção de Guilherme se algo me acontecer. Estará segura. Mas o que pediria para si mesma?

— Para mim? Por que eu pediria alguma coisa? — murmurou, surpresa. — Tenho tudo o que preciso. E você evidentemente deixou claro que não concederá aquilo que eu pediria, a segurança do povo de Amesbury.

— Mas e quanto a sua liberdade? — ele indagou, baixinho, a voz profunda. — Se algo me acontecer, o que será de você, então, Vivian de Amesbury?

Diante daquelas palavras, ela sentiu um frio repentino envolvê-la e dominá-la.

— Eu voltaria à abadia.

— E se Guilherme ou o bispo não permitissem? Ela respondeu com total honestidade.

— Não podem me impedir, se eu resolver partir. Os olhos de Rorke se estreitaram.

— Contudo, você continua dentro do acampamento de Guilherme quando não tem vontade alguma de ficar aqui. Onde reside a diferença?

Ela desviou o olhar, acometida por um calafrio violento e repentino.

— Não posso dizer.

O toque da mão de Rorke era tão quente como o sol de verão em sua pele, conforme ele a forçou a fitá-lo com os dedos a lhe empurrar a curva do queixo para cima.

— Ou não dirá? — indagou, trespassando-a com os olhos acinzentados.

— Dará sua palavra pela segurança de Mally? — ela evitou uma resposta direta.

— Sim, darei minha palavra quanto à segurança de Mally. E a sua — ele a surpreendeu, ao acrescentar, pouco antes de pegar o manto pesado que estava na sela. Era de uma lã escura como a meia-noite, belamente tecida, e contornada com pele branca e macia. Enrolou-o nos ombros de Vivian, aconchegando-a contra seu pescoço.

O manto, largo o suficiente para cobri-lo com a armadura de batalha, caía sobre o corpo esbelto com um peso recon-fortante.

— Não posso usar isto — ela protestou, sentindo a cálida carícia nos braços e pernas, o cheiro másculo, um toque de especiarias e de vento, que permeava o rico tecido e a pele grossa.

As mãos calejadas demoraram-se em seus ombros, os dedos a roçar-lhe o pescoço, provocando uma onda de excitação.

— Nem eu — ele murmurou, a voz gutural, como se houvesse algo por trás das palavras. — Pode devolvê-lo quando estivermos seguros na cidade.

Com uma facilidade que contrastava com o peso da armadura de cota de malha, ele se ergueu na sela, ajustando o manto de Guilherme com o leão de ouro do brasão facilmente reconhecível, para todos verem, para que soubessem que Guilherme da Normandia se apossara de Londres.

Enfiou as pesadas manoplas, e seguiu para o lado de fora da tenda. Olhou rapidamente para Vivian com uma expressão que era quase terna. Então, voltou-se para sir Gavin e disse, num tom significativo:

— Tem suas ordens, meu amigo. Não me falhe.

O comando foi dado e ecoou ao longo de toda a coluna de soldados, formada com seis fileiras, lado a lado.

Vivian deu um passo atrás, puxando as dobras do manto em torno de si para conter o frio insuportável que a transpassou. A pequena legião de soldados que invadira Amesbury algum tempo antes era apenas um mero simulacro do tamanho e força do corpo militar que agora marchava para Londres. E, infelizmente, não havia nada que ela pudesse fazer para impedir. Na verdade, ela era parte disso, parte daquela tapeçaria não-tecida que estava no futuro, os fios a se desmancharem, sacudidos pelo vento frio.

No meio da noite seguinte, Vivian acordou dos sonhos atribulados por uma sacudidela insistente no ombro. Era sir Gavin.

— Está na hora, milady. O sinal foi visto no coração da cidade e um mensageiro chegou não faz uma hora. Vamos seguir para Londres.

Por dois dias tinham esperado sem nenhuma notícia, a não ser o fulgor das fogueiras que apareciam pela cidade, brilhando em telhados e depois esmorecendo em carvões incandescentes.

Vivian acompanharia o duque de Normandia. Mally seguiria a seu lado. Sua experiência com cavalos limitava-se ao velho pangaré de Poladouras, uma criatura dócil que o monge dizia que cochilava a cada dezena de passos. Ela e Mally receberam pôneis de carroça para montar, em vez de animais maiores e mais inquietos. As duas estavam rodeadas pela guarda de sir Gavin.

O duque da Normandia apareceu na abertura da tenda. Usava a armadura de batalha. Isso escondia a fraqueza da febre e da infecção que devastara seu corpo, fazendo-o parecer formidável em altura e tamanho.

Chamou o escudeiro e lhe deu instruções.

— Mande um mensageiro aos navios que esperam na costa. É chegada a hora e quero que levem Matilda a Londres para que ela possa ser coroada rainha quando eu for coroado rei da Inglaterra. — Em seguida, voltou-se para sir Gavin. — Tem a rota pela qual entraremos na cidade?

— Sim, milorde — concordou Gavin. — Pela ponte do norte. Uma escolta estará esperando por nós.

O acampamento normando estava a menos de um quilômetro e meio da cidade. A ponte norte logo surgiu à vista, delineada pelas tochas colocadas ao longo de toda a extensão que ligava um lado do rio ao outro. Uma escolta armada atravessou para encontrá-los.

Seguiram por uma rota sinuosa até a cidade, cruzando ruas secundárias, alamedas calçadas e locais onde o pavimento cedia lugar à terra, atravessaram outra ponte e passaram por uma praça central com as torres da abadia de Westminster assomando sempre mais perto.

Ocasionalmente, passaram por ruínas enegrecidas e queimadas, tudo que restara de uma cabana ou loja onde houvera contendas e incêndios. Porém, a maior parte das construções de pedra estava intacta.

O destino era a torre real onde Harold instituíra sua corte. Era ali que Guilherme iria reclamar oficialmente o trono.

Então, um calafrio enregelou o sangue de Vivian, aguçou seus sentidos e a obrigou a puxar as rédeas do pônei e fazer um gesto para que Mally fizesse o mesmo.

— O que é? — a menina perguntou, ansiosa.

— Algo está errado. Há perigo, muito perto. — Sem ver claramente, ela sentia um perigo mortal fechar-se em torno deles. Gritou um alerta a sir Gavin.

Cavalgando logo à frente, Gavin de Marte puxou as rédeas e voltou-se ao som de sua voz. No mesmo instante, o luzir de machados e espadas explodiu das sombras de cada lado da rua estreita.

Ordens foram berradas, em rápida sucessão. Os cavalos foram empurrados uns contra os outros. Aço retinia contra aço. Ao lado de Vivian, Mally se pôs a gritar. Vivian agarrou as rédeas do pônei da garota para impedir que se separassem, no meio da confusão.

Estavam presos, encurralados pelos prédios erguidos juntos por paredes comuns, e sem esperança de escapar. Os soldados normandos eram bem treinados, porém estavam em menor número. Se não recebessem ajuda rapidamente, a morte era certa.

Vivian sabia que Guilherme era um homem bom e justo, e um líder forte e decidido. Não podia morrer.

— Escutai-me, poderoso ser — murmurou, e, com a cabeça inclinada, voltou os pensamentos para o íntimo, para aquele lugar de visões e sonhos antigos, convocando o poder da Luz.

Erguendo as mãos diante de si, murmurou as palavras antigas:

— Elemento de fogo, espírito de luz, essência de vida, abra-sem a noite!

 

A explosão encheu o céu noturno com uma luz flamejante. Rorke estremeceu. Parecia que os habitantes de Londres estavam determinados a queimar a cidade até o chão, se necessário fosse, para impedir a conquista da cidade pelos normandos.

A maioria dos incêndios fora controlada ou deixava para se apagar em prédios separados dos outros e que não constituíam maior ameaça. Mas aquele incêndio era uma bola de fogo que explodira. Recortava os telhados contra o céu noturno e vinha de uma parte da cidade que fez seu sangue enregelar nas veias. Era a rota pela qual Guilherme entraria em Londres.

Rorke gritou ordens a seus homens, e todos seguiram com as espadas e lanças empunhadas, arqueiros com flechas prontas nos arcos, temendo o pior.

Estacaram ao final da rua diante da carnificina com que seus olhos se deparavam.

O ataque fora no centro da rua, onde não havia nenhuma esperança de fuga.

Ele contou pelo menos uma dúzia de soldados normandos mortos e soube que haveria mais conforme averiguassem. Entre eles havia um igual número de saxões caídos, formando um anel de corpos em torno do núcleo da escolta de Guilherme. No círculo defensivo dos soldados normandos que ainda estavam em pé ou montados havia pequenas chamas que luziam como jóias penduradas em um colar.

Rorke disse a si mesmo que era Guilherme a quem procurava entre os soldados de espada em punho. Mas, em verdade, um pavor inesperado fechou-se em torno de seu coração e lhe comprimiu as vísceras conforme buscava por algum sinal de Vivian, determinado a encontrá-la e ao mesmo tempo temendo o que pudesse achar.

Quando ela se tornara tão importante para ele, assim? Desde o início, a resposta veio sem esforço, esgueirando-se por seus sentidos, relembrando-o de relance de todas as formas, o leve insinuar de um sorriso, o fogo que saltava tão facilmente aos olhos azuis quando defendia alguém a quem ela era leal, ou o doce tormento do sabor daquela boca delicada.

Sir Gavin avançou por entre o cortejo dos soldados que rodeavam Guilherme e saudou Rorke com um menear de cabeça.

— Fomos atacados. Vieram de todos os lados — Gavin apontou para as portas e janelas — dos edifícios e telhados.

— O duque da Normandia? — Rorke perguntou, ansioso. Houve novamente um aceno sério, desta vez com um toque de satisfação.

— Estou bem! — Guilherme gritou. — Mas fomos tristemente compelidos a nos defender e poderíamos ter perecido se não fosse aquele anel de fogo que você lançou sobre eles.

— Vivian? — Toda a raiva desesperada de Rorke brotou no som daquele nome proferido em alto e bom som.

Um pônei se destacou entre os enormes cavalos de batalha, e a figura esbelta que o montava estava envolta no pesado manto preto, a pele alva emoldurada pelo brilho flamejante dos cabelos vermelhos.

Num ato tão instintivo como o de respirar, Rorke estendeu o braço e puxou Vivian do lombo do pônei para a sela a sua frente.

Ela se agarrou a ele como se fosse o centro calmo no meio de uma tempestade, um esconderijo seguro, quando tudo a seu redor estava um caos. Recostou-se contra o peito do cavaleiro como se tomada por uma repentina fraqueza.

Num gesto que era ao mesmo tempo rude e terno, Rorke afastou o capuz da cabeça de Vivian, a mão a correr possessivamente por seus cabelos.

— Está ilesa? — perguntou.

— Sim, milorde — ela murmurou, enquanto sentimentos estranhos e inexplicáveis a queimavam ao simples toque daquela mão em seus cabelos.

— É melhor deixarmos este lugar tão logo seja possível. Os mais seriamente feridos serão carregados em liteiras — Tarek informou a Rorke conforme avançavam. — Devemos considerar que existe um traidor em nosso meio.

Rorke murmurou, em voz baixa:

— Tem razão, mas por enquanto é importante que Guilherme chegue à fortaleza em segurança. Por ora, não diga nada a ninguém.

Voltou-se para Guilherme.

— A fortaleza foi preparada, milorde.

Vivian estremeceu ao passarem pelo primeiro conjunto de portões e depois um segundo conjunto de portas de ferro, seus sentidos assaltados por miríades de imagens e impressões. O ataque nas ruas fora uma indicação do perigo que os rodeava, um perigo que ela sentia ainda mais intensamente dentro daquelas maciças paredes de pedra que tinham sido erigidas nos preparativos da chegada de Guilherme à cidade.

Dentro da residência real, Guilherme desmontou e caminhou até o centro do pátio interno com toda a autoridade de um rei.

— Seus aposentos particulares estão prontos. — Rorke adiantou-se depressa. — Talvez queira um pouco de comida e bebida?

— Sim, eu gostaria — retrucou Guilherme, com todo gosto de um homem que possuía um apetite ávido, e que sobrevivera com um caldo magro durante várias semanas. Sua mão larga comprimiu-se contra a frente da túnica de malha como se a fome o consumisse.

Gavin e sir Galant acompanharam Guilherme, um de cada lado, os braços a apoiarem o rei, ao seguirem para os aposentos reais.

Vivian sentiu a mão de Tarek tocá-la gentilmente no braço.

— Você será necessária — disse ele, em voz baixa, e acompanhou-a atrás dos outros.

Mally os seguiu de perto, carregando o saco de ervas medicinais.

Dentro do aposento real, tudo estava pronto para a chegada de Guilherme. Em lugar da guarda do novo rei, que ainda não chegara do acampamento normando, os guardas pessoais de Rorke se postavam fortemente armados de ambos os lados da entrada.

Assim que a porta se fechou atrás deles, barrando os olhares curiosos e qualquer intrusão inesperada, Guilherme cambaleou de exaustão e teria caído ao chão se os homens de Rorke não o segurassem.

— Tragam-no para a cama — Rorke ordenou. — E depois removam-lhe a armadura de batalha. — Voltou-se para Vivian, mas ela já estava ao lado da cama, os dedos eficientes a soltar com rapidez a túnica pesada.

Guilherme esbravejou.

— Estou bem! Pretende me curar ou me matar? — resmungou, quando ela abriu com rispidez a frente da camisa almo-fadada, para revelar que a ferida se abrira, sem dúvida durante o ataque na rua.

— Ficaria aliviada se não precisasse consertar constantemente seus estragos.

Guilherme limitou-se a rir.

Vivian deu ordens rápidas a todos, inclusive a Rorke, para que providenciassem um caldeirão fumegante, fogo para a lareira, panos limpos e um pouco do vinho francês de que Guilherme gostava.

— O senhor deveria descansar — disse ela, com firmeza.

— Há assuntos que precisam ser discutidos — o bispo interferiu, aproximando-se da cama.

— Serão de pequena importância se ele sucumbir aos ferimentos — Vivian ponderou.

O bispo a olhou enviesado, mas ela recusou-se a se sentir acovardada.

— Vários de seus homens foram feridos no ataque — explicou a Guilherme. — Com sua permissão, irei vê-los.

— Por favor, senhora — concordou Guilherme. — Não negaria a meus soldados e cavaleiros o que tem ajudado em minha recuperação. Enquanto isso, descansarei. Acho que estou bastante fraco com os acontecimentos do dia.

Quando o bispo obviamente pretendia insistir numa audiência, Rorke interferiu.

— Não há nada que não possa esperar até amanhã — disse ao zangado bispo. — É tarde. Para todos os efeitos, Guilherme apenas se retira para comer e descansar. Certamente que o senhor não lhe negaria um repouso muito necessário.

— Você ultrapassa seus limites, FitzWarren — o bispo esbravejou, furioso. — Alguém poderia pensar que aspira a ser rei de Inglaterra.

— E o senhor, mílorde bispo — contestou Rorke, os olhos tão frios como o gelo do inverno —, a que alturas aspira?

Vivian estremeceu diante da animosidade entre os dois homens, na postura de Rorke, subitamente tensa e no olhar furioso do bispo.

— Basta! — Guilherme interveio rispidamente. — Não quero ouvir mais nada! — Para Vivian, murmurou, com gentileza. — Por favor, veja os outros que precisam de seus cuidados.

Ela agradeceu, contente com a oportunidade de sair. Para os demais, Guilherme ordenou:

— Saiam!

Guilherme estendeu a mão e tocou o braço de Rorke.

— Gostaria de conversar com você, a sós.

Quando todos tinham deixado o quarto, ele abandonou qualquer esforço de disfarçar a dor que dominava cada músculo e articulação. Suas feições estavam marcadas pela fadiga, a pele pálida com a fraqueza e a dor que parecia arrancar a carne dos ossos.

— Pensou que haveria um ataque? — perguntou a Rorke.

— Temi que houvesse — retrucou Rorke. — Há perigo em toda parte. Existem bolsões de resistência continuamente desde que tomamos a cidade.

— Podemos manter a cidade cercada?

— Londres é sua — Rorke assegurou-lhe. — Nós a manteremos, não importa a resistência dos saxões.

— Quem conhecia a rota pela qual eu entraria na cidade?

— Apenas uns poucos. Eu mesmo, Tarek ai Sharif, Gavin, Montfort e seu irmão.

— É difícil guardar segredos quando as paredes têm olhos e ouvidos — Guilherme comentou, pensativo. — Quem são os saxões que continuam dentro da fortaleza real?

— Os do conselho, vários dos barões, o arcebispo, todos que procuram uma audiência.

Guilherme fez um gesto de concordância.

— O anel de fogo foi uma arma eficiente. Eu o cumprimento pela tática, pois se provou efetiva.

— Eu reclamaria o crédito se fosse minha obra — Rorke declarou e, então, esclareceu —, mas não foi. Com toda a verdade, não sei dizer como ocorreu.

Os olhos de Guilherme se estreitaram, pensativos.

— Talvez fosse de um de seus homens — sugeriu. — Lutaram bem. Devo minha vida a eles.

Rorke já questionara os homens sobre isso. Nada sabiam a respeito, e ele não tinha nenhuma resposta, pelo menos não uma plausível. Afinal, como poderia dizer ao novo rei que acreditava que uma mulher jovem e delicada fora capaz de salvá-lo do exército inimigo?

Vivian terminou finalmente de enfaixar o último ferido na batalha de rua. Ergueu os olhos quando dois dos escudeiros de Rorke apareceram. Estavam vestidos não com o usual traje de calças e túnica de couro, mas numa veste simples em que havia as cores vermelha e dourada de Rorke.

— Temos ordens de escoltá-la até seus aposentos, senhora

— um deles informou.

— Foram tomadas providências para que a garota tenha um cômodo fora da despensa da cozinha.

— Quando Vivian ia protestar, ele assegurou.

— Milorde Fitz-Warren pediu que deixássemos guardas ali. Depois que a comitiva chegar, amanhã, ela pode se transferir para a ala sob proteção de sir Gavin.

Mally concordou com relutância e acompanhou o escudeiro mais jovem a seu cômodo, perto da despensa. Vivian arrastava os pés de cansaço enquanto seguia o outro escudeiro de Rorke.

Reconheceu o corredor por onde ele a levava. Era o mesmo que conduzia ao aposento real onde Guilherme agora dormia. O escudeiro abriu a porta de um quarto à direita do aposento real.

O cômodo não era muito grande, mas bem mobiliado. Havia uma cama contra a parede do fundo. Peles grossas e mantas de lã a cobriam. Uma mesa e duas cadeiras ficavam diante da lareira que já tinha sido acesa. Tapeçarias pesadas recobriam as paredes para diminuir a umidade própria de todas as construções em pedra.

Seus olhos então recaíram sobre a mesa, onde havia uma bandeja de frutas frescas, queijo, pão e várias porções de carne fria de frango. Ouviu seu estômago roncar alto.

Os últimos três dias pareciam ter se misturado num borrão e não conseguiu se lembrar quando comera ou dormira pela última vez. Estava exausta, gelada e faminta.

— De quem é este quarto? — quis saber, desconfiada que era muito conforto para uma mera prisioneira como ela.

— É meu.

Vivian deu meia-volta ao som da voz de barítono. Não era do escudeiro, mas do próprio Rorke FitzWarren, que entrava logo atrás.

— Seu? Mas... — Olhou ao redor. — Seu escudeiro disse que eu deveria dormir aqui.

— Sim, estava seguindo minhas -ordens.

— Isso é impossível. Não posso — ela protestou. — Não ficarei aqui. Certamente deve haver outro lugar. A copa, a casa de armas ou a falcoaria.

Gavin lhe dissera que era para onde Áquila seria levado. Sim, claro. Era isso. Uma solução simples. Ela dormiria na falcoaria.

Rorke FitzWarren, contudo, meneou a cabeça com veemência.

— Está fora de questão. Guilherme ainda precisa de suas habilidades. Está muito mais fraco e em piores condições do que deixaria que alguém acreditasse. E ninguém deve saber de sua fraqueza — disse, com uma expressão séria que enfatizava suas feições cansadas. — Os barões continuam dentro destas muralhas. No momento adequado, Guilherme irá encontrá-los para providenciar a transferência de poder. Ninguém — ele repetiu, enfaticamente —, ninguém deve suspeitar de que ele goza de menos que a mais perfeita saúde e plena capacidade de desempenhar seus deveres como rei. Há uma passagem sob aquela tapeçaria que leva diretamente ao quarto de Guilherme. Posso entrar para discutir assuntos de importância sempre que seja necessário, sem requerer sua presença no salão, em armadura de batalha. Você poderá entrar sempre que for preciso administrar poções ou trocar ataduras. E ninguém será testemunha disso.

— Mas irá parecer como se... — sua voz falhou com o súbito nó na garganta.

— Como se fôssemos amantes? — ele perguntou, com frieza. — Já disseram que você é saxã e não poderia inspirar confiança, que faria mal ao duque e, no entanto, você não deu importância a essas coisas. A questão está resolvida, Vivian.

— Muito bem — murmurou ela, cansada demais para discutir. Atravessou o quarto até a lareira, e pegou as peles e os tapetes de lã grossa. Colocou-os diante do calor do fogo.

— Pode ficar com a cama — Rorke disse, ao perceber sua intenção. — Qualquer tempo de sono que eu puder ter esta noite será com meus homens.

— O assoalho está ótimo — ela o informou, determinada a estabelecer limites físicos entre os dois. — Não é tão duro ou frio como o chão.

Vivian voltou as costas para aquele olhar igualmente desconcertante e estendeu as peles diante da lareira, fazendo uma cama fofa.

— Há outro assunto que eu gostaria de conversar com você.

— Não pode esperar até amanhã? — ela perguntou, com um suspiro cansado.

— Não, não pode. Guilherme e eu conversamos sobre o ataque de hoje. Você cavalgava ao lado de Guilherme... Então, no meio da batalha, quanto tudo parecia perdido, meu rei se lembra distintamente que você começou a pronunciar estranhas palavras em celta. Logo em seguida surgiu um anel de fogo ao redor de todos. De onde veio o fogo, Vivian? — indagou.

— Havia incêndios por toda parte — ela gaguejou. — Foi uma explosão repentina, é tudo. Talvez um dos homens de Gavin... — emendou, procurando algo que pudesse satisfazer aquela aguda curiosidade.

— Eu perguntei. Todos estavam tão intrigados como Guilherme com a aparição daquele anel de fogo, embora extremamente agradecidos. Alterou o rumo da batalha. — Estudou-a com grande atenção. — De acordo com Tarek, a Jehara possui grandes poderes, os poderes da luz e da terra, do vento e do fogo... o poder de se transformar em qualquer coisa que deseje.

— Pensei que não acreditasse em tais coisas — murmurou Vivian, a voz permeada de medo.

— Creio que existem muitas coisas entre o céu e a terra que não podem ser explicadas. — Conforme falava, seus dedos fortes se apertaram em torno do pulso de Vivian. Ela riu baixinho, a despeito do medo que se retorcia dentro dela, medo da brutalidade do guerreiro, brutalidade que sabia de que ele era capaz, medo de alguma outra paixão igualmente terrível, e, finalmente, medo da própria vulnerabilidade a essa paixão.

— Se eu possuísse tais poderes, não seria uma coisa simples me transformar e fugir do perigo e depois escapar de seus homens e retornar a Amesbury a meu bel-prazer? — ela perguntou, obrigando-se a se acalmar.

— Realmente — Rorke retrucou, pensativo, a expressão por trás do olhar implacável se alterando, tornando-se mais sombria com algum pensamento.

— Como ainda sou sua prisioneira, parece, também, que Tarek está enganado. Não posso dizer de onde veio o fogo — ela continuou, com firmeza. — Talvez — sugeriu, algo desesperada — o que Guilherme tenha ouvido fossem minhas simples preces.

Rorke suspirou, com uma sensação de derrota. Soltou-lhe o pulso lentamente.

— Estou muito cansada — Vivian murmurou, sem encará-lo. Estava apavorada que ele visse que não lhe dissera toda a verdade, e mais receosa ainda de que pudesse divisar outra verdade: a das caóticas emoções ao mais simples toque dele. — Gostaria de dormir agora. Restam poucas horas na noite e Guilherme precisará de mim quando acordar.

— Não precisa dormir no chão. Fique na cama. Será muito tarde quando eu me recolher para dormir, caso me recolha.

— É muito generoso, milorde, mas não posso aceitar — protestou.

— Do que tem medo? — ele perguntou, parando diante dela, tão perto que Vivian podia sentir-lhe o cheiro como se o conhecesse por toda a vida, o toque de couro mesclado com a essência da bruma da noite, terra e vento com uma nuance de suor másculo.

— Não tenho medo de nada — retrucou, desafiadora.

— Você é como um falcão não-domesticado — disse ele, surpreendendo-a com a repentina gentileza da voz. Ela ergueu os olhos e cometeu o erro de encarar aquele olhar irresistível.

Os dedos de Rorke seguraram-lhe o queixo com suavidade. Vivian poderia ter se afastado, mas não o fez. Algo mais forte que o medo a imobilizou, como o falcão fascinado pelas sensações que a perpassavam.

— Inteligente, linda, sensata de tantas maneiras — ele murmurou, suavemente — e, no entanto, selvagem e indomada. — Deslizou a mão para a garganta onde uma veia pulsava. — Pronta para fugir da mão desconhecida.

Seus dedos acariciaram a leve depressão na base da garganta e a pele de Vivian eriçou-se a cada toque. Então, ele se afastou e saiu, deixando-a só.

Em questão de dias desde a chegada à Londres, Guilherme começara a presidir diariamente a corte para dissipar quaisquer possíveis boatos sobre sua saúde. Reunia-se a cada dia com os condes e barões saxões, os arcebispos ingleses e seus próprios líderes, enquanto dava passos para estabelecer a estrutura da transição rumo ao reino normando sobre a Inglaterra saxã. Discutia assuntos importantes agora, com seu irmão, Rorke, Tarek e outros cavaleiros.

Vivian quase sempre estava presente, a cuidar dos ferimentos que ainda custavam a sarar.

— O que me diz, senhora, das terras de posse dos condes e barões saxões? — Guilherme a surpreendeu ao perguntar.

Vivian olhou ao redor, incerta, e viu que todos a fitavam. Todos, exceto o bispo, que aparentemente meditava sobre o vinho, mas ela sentiu a verdadeira razão: seu crescente ressentimento para com ela.

— Sei pouco sobre tais questões, milorde — retrucou, em tom de desculpa.

— Mas certamente tem uma opinião a respeito. Todos têm. Ela relanceou os olhos para Rorke e ele lhe fez um gesto de encorajamento.

Guilherme a estudou atentamente.

— Prometi certas recompensas a meus próprios cavaleiros e barões. Promessas devem ser cumpridas, milady, ou não poderei manter a Inglaterra sob meu julgo.

Vivian gostaria que ele não tivesse perguntado, pois se falasse em favor daquele plano, isso seria visto como uma traição a seu povo. Se falasse contra ele, Guilherme poderia se ofender, pois não poderia voltar atrás com a palavra dada.

— Nem poderá mantê-la por longo tempo se houver rebelião constante — ela ponderou e ouviu uma exclamação de raiva diante de sua honestidade.

Guilherme ergueu a mão, pedindo silêncio.

— Continue. Gostaria de ouvir o que tem a dizer.

De novo, ela olhou para Rorke. Sua expressão era de admiração, a boca a se curvar num sorriso, que ele procurava esconder atrás do cálice que levara aos lábios. Seu olhar, contudo, encontrou o dela sobre a borda e, nele, era possível vislumbrar um certo orgulho.

— Centenas de homens morreram em Hastings — ela começou, escolhendo as palavras com cuidado. — Suas viúvas e filhos choram por eles. Mas, em vez de escorraçá-los para fora da terra de seus ancestrais, poderia ser mais lógico vinculá-los por laços de gratidão ao senhor, ao mesmo tempo em que permite que fiquem em suas terras. Já pensou, milorde, em casar aqueles de seus homens que sejam aceitáveis com as viúvas dos lordes saxões? Assim, garantiria o laço saxão com a terra, ao mesmo tempo em que criaria um laço com a nobreza normanda que não poderia ser rompido.

O olhar de Guilherme estreitou-se, pensativo, ao fitá-la.

— Sim — ele ponderou. — Conquistar pelo casamento e nascimento o que caso contrário seria conquistado somente pela morte.

— Seria um meio de aplacar a dor e a revolta de um povo. A mão de Guilherme estalou num tapa no braço da cadeira.

Soltou uma gargalhada.

— Por Deus, eu gostaria muito de encontrar este monge que a ensinou assim tão bem. Você tem uma lógica que vê o cerne de assuntos difíceis e oferece uma solução para qualquer argumento. — Sorriu para ela com efusividade. — Obrigado, Vivian de Amesbury.

— Não tem de que, milorde.

Ela reuniu as poções de ervas e saiu, pois sentira a animosidade do bispo, embora os outros a escutassem com atenção. Rumou para o salão e assustou-se quando Rorke a seguiu. Sua mão quente fechou-se sobre a dela, impedindo-a de entrar.

— Há alguma coisa que queira, milorde? — ela perguntou, hesitante, bem mais nervosa com o contato da mão gentil do que ficara com qualquer coisa que Guilherme perguntara, ou pelo duro escrutínio do bispo.

— Sim — ele retrucou, a voz baixa, quase um murmúrio, e tão perigosa para os sentidos de Vivian quanto aquele contato. — Há muita coisa que eu quero. Quero —- fez uma pausa — agradecer por sua honestidade. Outros teriam dito muitas coisas tolas. Por isso, eu lhe agradeço.

Abalada pelo contato, incapaz de dizer algo coerente, muito menos pensar, ela retrucou, ao se afastar:

— De nada, milorde.

— Lady Vivian!

Era a garota, Mally, que vinha apressada do grande salão. Ao ver Rorke, encolheu-se e gaguejou:

— Perdoe-me, eu não o vi aí, milorde. — Uma expressão de medo cruzou-lhe a face enquanto ela mordia o lábio inferior e torcia as mãos.

— O que foi, Mally? — perguntou Vivian, dizendo a si mesma que estava contente que a garota tivesse aparecido. Seus pensamentos começaram a clarear, lentamente.

Era estranho que Mally estivesse no salão. Ela procurava se manter afastada, já que havia sempre muitos soldados por lá, e se escondia na cozinha, onde ajudava a cozinheira, ou, como uma sombra silenciosa, seguia Vivian nas tarefas.

— Alguma coisa errada? Alguém ficou doente?

— Fale, garota! — ordenou Rorke.

Mally ainda hesitou, lançando olhares preocupados de Vivian para Rorke e vice-versa.

— É um assunto particular, senhora.

Vivian sentiu algo cheio de medo nos pensamentos caóticos da garota, e ficou a imaginar o que poderia ter acontecido que ela não fosse capaz de perceber.

— Seja o que for, pode me contar e não precisa ter medo, Mally — encorajou a garota, afagando-lhe o braço. Foi quando os pensamentos da jovem se juntaram aos dela no som de dois nomes, como se fossem pronunciados em voz alta.

Poladouras e Meg! Eles estavam ali, naquele exato momento, no grande salão da fortaleza de Guilherme, em Londres. Vivian voltou-se abruptamente para Rorke.

— Por favor, milorde— implorou. — É um assunto particular. — E, então, teve a idéia. — É coisa de mulher. — Não era inteiramente mentira.

Rorke viu a mudança nos modos de Vivian. O leve franzir das sobrancelhas e depois o olhar assustado que lampejou em seus olhos como se alguma comunicação muda tivesse se passado entre ela e a garota. Algo estava errado, mas percebeu instintivamente que se a pressionasse ela não falaria.

Depois de aquiescer, observou quando a garota conduziu Vivian pelos fundos do salão, onde diversos comerciantes saxões, camponeses e monges se reuniam.

Ao se aproximar do grupo, Vivian sentiu aquela presença de amor e carinho que a levara do longínquo oeste do país para uma abadia de pedras em ruínas, guiada por um falcão mágico.

— Meg — ela murmurou com doçura, ao se voltar para a pequena forma a seu lado, as feições ocultas no capuz de uma capa de monge.

— Mo chroi.

A beira do capuz se ergueu o suficiente para revelar aquele rosto querido e marcado que não tinha idade para Vivian. Imediatamente, a conexão de amor e medo passou entre elas, seguida pela constatação de que cada uma estava bem e segura, no momento.

Segurando a mão da velha ama, Vivian relanceou os olhos ao redor à procura de Poladouras, mas não viu seu rosto ou a forma arredondada envolta em nenhum daqueles hábitos de monges que rodeavam Meg.

— Seus sentidos a abandonaram, menina? — uma voz perguntou atrás dela. — As aparências podem enganar.

Ela fez meia-volta e se deparou com um mercador em roupas remendadas, com uma barrica de hidromel debaixo do braço. Seu rosto estava oculto por uma farta barba grisalha que se juntava aos cabelos desgrenhados, mal contidos por um capuz de lã.

— Meg se veste como um monge e o senhor se disfarça como um mercador do campo? — ela perguntou, incrédula, os olhos lacrimosos de alegria e aflição pelo perigo que os dois correram.

— Pareceu lógico. Quem se importaria com um simples mercador levando um presente de hidromel para Guilherme? — ele argumentou. A mão enorme e gentil agarrou a de Vivian.

— Ah, querida! Você está bem.

— Sim, bem e em segurança — ela assegurou a ambos. Então, correu o olhar preocupado pelo salão. — Por que vieram até aqui? É perigoso. Não podem ficar. Precisam partir agora antes que sejam vistos! — continuou, com crescente aflição.

Já era tarde. Uma voz familiar atrás dela comentou:

— Certamente que seus amigos não iriam partir tão cedo, demoiselle.

O medo fechou-se sobre o coração de Vivian quando ela reconheceu aquela voz. Voltou-se lentamente para se deparar com o olhar glacial de Rorke FitzWarren.

— Milorde — ela murmurou, o fôlego preso nos pulmões. Tentou disfarçar a agitação quando percebeu que ele reconhecera Meg e Poladouras.

— Guilherme ficará muito interessado em conhecê-los — Rorke disse a eles, mas seu olhar estava cravado em Vivian.

Ao ser informado sobre os recém-chegados, Guilherme convocou-os imediatamente para que fossem a seus aposentos.

— Então o senhor é o monge Poladouras — exclamou, quando os dois velhos foram levados à sua presença. — Ouvi falar muito a seu respeito. Por favor, aproxime-se para que possamos conversar. Pedirei seu conselho sobre certos assuntos. Quero que permaneça em Londres como meu hóspede.

Com admiração e um novo respeito, Vivian percebeu o propósito de Guilherme. Ao vincular o monge à corte, criava um laço com ela.

— E quanto à velha? Corre entre meus homens que ela tem jeito de feiticeira — exclamou o bispo.

Guilherme explodiu numa gargalhada.

— Ela tem conhecimentos da arte da cura — Rorke disse a seu soberano, atraindo um olhar curioso de Meg, que logo se lembrara de sua voz e o distinguira dos outros. — Suas habilidades seriam valiosas para nós.

— Sim — concordou Guilherme. — O assunto está decidido, então. — Levantou-se, pois havia assuntos que precisava atender, na corte. — Volte ao final da tarde e junte-se a mim para o jantar — disse a Poladouras. — Sei que é um homem de intelecto privilegiado e confesso que por enquanto tenho encontrado falta de preparo entre os barões saxões. — Então, voltou-se para Meg. — A garota, Mally, pode encontrar um lugar para você, com ela, perto da cozinha.

— Gostaria de ficar com minha senhora — Meg protestou.

— Para isso, deve pedir permissão a milorde FitzWarren — Guilherme a informou —, pois ela ocupa o quarto adjacente, para que possa cuidar dos ferimentos que sofri em Hastings, e o quarto é dele.

A resposta de Rorke foi veemente.

— Perto da cozinha será o suficiente. Tenho certeza de que a garota pode deixá-la confortável.

Vivian acompanhou Meg para a cozinha, onde encontrou conforto no pequeno aposento fora da despensa, que Mally ocupava.

— Ouvi murmúrios — Meg disse, pousando a mão no braço de Vivian, quando Mally saiu para procurar algo com que fazer um leito para a velha. — As paredes dizem que você é amante de milorde FitzWarren. — Seu rosto tinha rugas de preocupação.

— As paredes estão enganadas — Vivian negou, com veemência. — Murmuram a respeito do que vêem, mas não sabem de nada. Foi-me dado o quarto adjacente para que eu possa atender Guilherme sem que os outros saibam da real extensão de seus ferimentos, pois ele quase morreu em Hastings.

— E quanto à sua visão em Amesbury? — perguntou Meg, a voz trêmula.

— Não sei nada mais do que sabia então. Apenas que meu destino jaz ligado ao destino de Rorke. Não me pergunte mais nada, por favor. A senhora está aqui. Talvez juntas possamos descobrir.

— Não — Meg murmurou com tristeza, a mão a pousar na face de Vivian. — Receio que só você possa descobrir seu destino. Devo apenas esperar e talvez protegê-la o melhor que puder. Como sempre fiz, desde que você nasceu. Eis porque vim à Londres. Estive com você desde o primeiro momento em que respirou. Fui a primeira a segurá-la quando saiu do ventre de sua mãe. E desde então sou responsável por você. Não a abandonarei agora, minha menina, qualquer que seja a trilha pela qual seu destino a leve. Apenas imploro, cuidado com todos, pois sinto perigo neste lugar.

Era fim de tarde e quando Vivian voltou para o quarto de Rorke o encontrou em pé, diante de uma bacia de água fumegante, sem a túnica, usando apenas calças e as botas de couro. A luz reluzia nos músculos de seus ombros e peito; os desenhos de antigas cicatrizes destacavam-se contra a pele bronzeada.

Vivian gostaria de desviar os olhos, mas descobriu que não conseguia.

Como curandeira, sabia e sentia muita coisa através do toque. Queria tocá-lo, conhecer os contornos da musculatura rija e dos ossos fortes, deslizar os dedos pela pele dourada e todas as saliências das cicatrizes que definiam a vida daquele guerreiro, para que, de alguma forma, pudesse saber mais sobre ele. Seus dedos queimavam de desejo e ela os fechou em punhos tensos, tentando negar as sensações que apenas a visão dele despertava. Mas não conseguiu. Suas mãos se tornaram inquietas, os dedos a se flexionarem e se curvarem com o esforço de não tocá-lo.

Gotas de água espirravam nos cabelos de Rorke, reluzindo na massa escura e nos ângulos agudos de sua face. Havia uma jarra de vinho sobre a mesa, e dois cálices, como se alguém fosse esperado.

— Perdoe-me, milorde — ela murmurou, numa entonação assustada, e voltou-se para sair.

— Fique, Vivian — disse ele, com gentileza, mas num tom de comando. Enxugou a água dos cabelos e do rosto com uma toalha de linho, e também as gotas que luziam nos pêlos negros do peito. Sob eles, havia um padrão de uma colcha de retalhos de cicatrizes pálidas, antigas e novas. Vivian olhou, fascinada, para os caracóis escuros, para a tonalidade da pele, mais escura que a dela. Os mamilos estavam enrugados com o ar frio, e ela sentiu um formigamento nos próprios seios, ao imaginar o contraste daquela nudez contra a dele. Seria todo assim, moreno, poderoso, forte, rijo, como os músculos dos braços e do peito?

— Há algum assunto que queira discutir?

— Pode esperar, milorde — ela retrucou, ofegante, desesperada para desviar os olhos daquele corpo desnudo, e, ao mesmo tempo, desesperada para ver mais.

— Guilherme não está bem?

— Não, ele encontra-se muito bem para um homem que estava à beira da morte apenas poucas semanas atrás.

— Se não é a saúde de Guilherme, então que assunto de importância poderia fazê-la me procurar, já que tenho plena consciência de que faz todos os esforços para me evitar? — Ele sorriu, desarmando-a ainda mais.

— Não é verdade — ela protestou, julgando necessário respirar mais fundo diante do poder avassalador daquele sorriso, que transformava a reluzente Fênix num predador ainda mais formidável, um predador dos sentidos.

— Então fique um pouco e prove que é mentira. Ela gaguejou uma desculpa.

— Vim agradecer por sua gentileza hoje. Não era preciso que se incomodasse.

— Ah, Guilherme procurou vinculá-la a ele, como você certa vez explicou que poderia ser mais sábio, ao tratar com os barões saxões. — Estendeu a mão e pegou uma mecha de cabelos entre os dedos e afagou-os gentilmente.

— Eles não são barões e nada têm de valor — Vivian lembrou entre arquejos, ao ver os cabelos presos possessivamente entre os dedos longos e calosos, como peias que a prendiam à mão de Rorke.

Contudo, ela apenas precisava se afastar. Mas não o fez, e continuou onde estava, ao mesmo tempo aterrorizada e fascinada pelas sensações que nunca experimentara antes. Conteve ainda mais a respiração arquejante, quando ele enrolou lentamente a mecha de cabelos em torno dos dedos, puxando-a para mais perto de si.

— A velha é completamente cega? — Rorke perguntou, confundindo-a com a repentina mudança de assunto.

— Desde que nasceu — Vivian explicou. — Mas eu sempre julguei que ela enxerga bem mais que os outros. — Sua respiração saiu ofegante por entre os lábios entreabertos. A respiração era rápida, arquejante, e, ao mesmo tempo, impregnada de outra coisa que ela não compreendia.

— O que vê, Vivian de Amesbury? — A voz de Rorke soou rouca.

—- Como, milorde? — A pergunta a confundiu.

— Olhe para mim.

Vivian ergueu os olhos e sentiu que algo irrecuperável havia se libertado de seu controle e, em seu lugar, instalara-se algo novo, ainda não descoberto e, contudo, tão inevitável como o sol a percorrer o firmamento.

Viu naquele olhar cinzento o fogo oculto que jazia sob o manto glacial na miríade de luzes douradas que fulguravam ali.

— O que vê? — ele repetiu, as palavras mais baixas ainda, provocando um arrepio de prazer pela pele de Vivian.

Um mês, uma semana ou mesmo no dia anterior, ela teria respondido francamente que não via nada. Agora, via-se dominada por poderosas emoções. Não eram as visões de clara compreensão que percebia em outras pessoas, mas, em vez disso, explosões de pura emoção, lampejos de cor num vácuo de trevas, e uma luz tão intensa que podia senti-la ao longo de cada terminação nervosa.

Vivian se afastou, rompendo a tenra conexão da mão de Rorke em seus cabelos e, ao mesmo tempo, quebrando o vínculo sensual. Apressou-se a se desculpar, tropeçando nas palavras.

— Preciso preparar uma tisana.

— Por que foge de mim, Vivian? Do que tem medo? Receia o que faço você sentir?

Ela evitou-lhe o olhar.

— Não compreendo.

— Compreende muito bem, pois se sentiu da mesma maneira que eu me senti. — Tomou-lhe a mão na sua. Com o polegar, abriu-lhe os dedos e depois levou a mão até o peito e colocou a palma sobre a curva do músculo rijo.

— Por favor! Não! — ela implorou.

— O que sente?

— Não sinto nada!

— Sente o que eu sinto. Calor, o fogo a queimar através de mim a seu toque mais simples. Sei que sente.

— Não sinto nada! — Continuou a negar, mas a luta desesperada para livrar a mão a tornava uma mentirosa. — Por favor! — implorou. — Não posso suportar isso.

Encarou-o com uma expressão que mesclava terror e o anseio.

— Eu já lhe disse — ela repetiu, a voz não mais que um murmúrio. — Não sinto o que as outras sentem. É impossível.

Puxou a mão com força. A conexão quebrou-se. O frio en-regelou-lhe a pele como se alguma coisa bloqueasse toda luz.

Arquejou diante das emoções intensas: desejo, necessidade e depois desespero, como nunca antes experimentara. Emoções humanas, mortais, contra as quais ela sempre fora protegida pela certeza de seu destino. Sentia como se estivesse morrendo e certamente morreria se não se afastasse de Rorke.

Procurou o saco de ervas e poções. Estava ao lado da lareira, os cordões pendendo soltos. Pegou-o, sem perder tempo em fechá-lo.

Seguiu depressa para a porta quando ele a impediu, os dedos fortes a se afundarem na carne macia de seu braço.

— Vivian.

A voz soou rouca e ao mesmo tempo gentil, cheia de um conflito de emoções tão violentas como as dela própria.

— Por favor, não!

Então, recuando além do alcance, Vivian abriu a pesada porta do quarto.

A surpresa de Judith de Marque foi tão grande quanto a dela, porém a normanda foi mais rápida em se recobrar do fato de encontrar Vivian nos aposentos de FitzWarren. Uma expressão astuta lampejou em seus olhos, ao parar no limiar do quarto e depois se transformou em indiferença, quando passou por Vivian.

— Vim assim que recebi seu recado, milorde — ela disse a Rorke. — Vejo que serviu vinho para nós. — Sua voz era como mel quente quando ela fechou a pesada porta firmemente atrás de si.

Vivian recostou-se contra a parede de pedra do lado de fora do quarto, de olhos fechados, enquanto tentava colocar as emoções perigosamente caóticas sob controle pela firme força de vontade. Ciúme e anseio espiralavam dentro dela. Ciúme da mulher que tinha certeza que ainda era amante de Rorke, e anseio por partilhar o vinho com ele e muito mais. Sufocou um soluço de dor.

A visão que tivera tanto tempo voltou, vividamente. Uma criatura nascida em fogo e sangue que abria suas asas pela face da Inglaterra. Rorke FitzWarren. Seu destino estava inexoravelmente vinculado ao dele. Não era acidente ou mudança aleatória da sorte que o levara à abadia de Amesbury. Era o destino, visto numa visão.

Agarrou a brilhante pedra azul que pendia de seu pescoço e lançou os pensamentos para longe, além das muralhas de pedra, além de Londres, além do tempo e do espaço, para a bruma serpeante onde presente e passado se mesclaram num tempo de esperanças e sonhos, num lugar distante que existia apenas nas antigas colinas cavernosas. Palavras murmuravam em seus pensamentos atormentados.

Por favor, pai. Ajude-me.

Um baque surdo sacudiu o ar tranqüilo da manhã naquele reino envolto em bruma, suspenso entre os mundos conhecidos dos homens. Uma ladainha de furiosos xingamentos, numa meia dúzia de idiomas antigos e quase esquecidos se fez ouvir.

— Querido, amor — Ninian murmurou. — O que aconteceu?

Ele continuou parado ali por um longo instante e, então, lentamente voltou-se para fitá-la.

As belas feições tinham se tornado mais ainda marcantes com o tempo, as linhas em torno dos olhos e boca acrescentando força e caráter à face. Eram feições fortes, aquilinas, que sugeriam uma antiga linhagem real e, claramente, ancestrais celtas. Muito tempo atrás ele escolhera deixar crescer uma barba inteira.

O tempo não diminuíra o seu amor por ele. Na verdade, o aprofundara, dando a ele novas qualidades distintas como o vinho. Contudo, nunca antes Ninian presenciara tamanha ira.

Ela podia senti-la e vê-la nos punhos cerrados de raiva impotente até que os nós dos dedos branquearam; ouvi-la na ladainha de pragas que ainda pesavam no ar do quarto com uma energia selvagem e caótica; percebê-la no tremor sob a palma de sua mão.

— Querido, por favor — disse, gentilmente.

— Preciso encontrar uma maneira — ele exclamou, com crescente desamparo, as mãos lançadas ao alto.

— O que viu nas chamas? — ela perguntou.

Ele se recusou a responder, a princípio. Tinha a expressão torturada, com imensa tristeza e desamparo. Lágrimas luziam em seus ardentes olhos azuis.

— Fui incapaz de ver alguma coisa. Nem mesmo o menor vislumbre. Nada, a não ser uma treva crescente.

— Já aconteceu antes, meu amor — ela o consolou.

— Não! Não desse jeito! Sempre antes houve uma ligação. Eu conseguia alcançá-la, mas ultimamente, isso desapareceu. Julguei que talvez através da luz do fogo... Mas havia apenas treva!

— Já houve treva antes — ela o relembrou. — A escuridão sempre segue o dia. — Sua voz era tão calmante como seu toque, lírica, ligeiramente musical, balsâmica como seu mágico contato curativo.

— Você sempre cuida de mim, minha amada. Cura as feridas da carne e alivia as feridas do espírito. Trouxe-me esperança, fé e amor, e fez desta prisão que é minha existência um tesouro além de qualquer comparação. O que lhe dei que mereça tanto assim?

— Deu-me verdade, honra e uma rara paixão. Seu coração e sua alma. E me presenteou com filhos, lindos e bons, quando me desesperei ao pensar que não poderia desfrutar desses prazeres mortais. Sinto-me rica com a troca, meu amor.

— Mas eu pensei que poderia mantê-la em segurança e não pude. Tenho medo dessa escuridão, Ninian. Não é como a treva que se segue à luz do dia.

Ele se levantou e caminhou para a janela.

— É uma escuridão que consome a luz, que a destrói, obli-terando tudo que era antes e possa ter alguma vez esperança de ser.

Enterrou a cabeça entre as mãos.

— E, agora, não consigo alcançá-la. Não posso avisá-la disso!

Ninian envolveu-o nos braços, sentindo a dor do desespero que o dominava. Ocultou os sentimentos do coração para que ele não pudesse ver o medo que havia ali.

— Encontraremos um jeito, meu querido. Ela é parte de nós. É forte e boa e verdadeira. Encontraremos um jeito de alcançá-la.

Enquanto falava, ela voltou a face para o ombro do marido, apavorada que ele pudesse ver a dúvida em sua face ou as lágrimas de impotência que escorriam, por seus filhos que lhe tinham sido tirados, longo tempo atrás, para o próprio bem, para lugares onde poderiam estar seguros, e por aquele imortal que ela amava e por quem desistira da própria vida mortal para compartilhar a dele. Seu marido, seu amante, seu companheiro através de toda eternidade. Merlin, cuja dor ela não podia aliviar.

Ele inclinou a cabeça sobre a dela, sobre os cabelos que caíam numa cascata dourada, como o sol a se infiltrar pela bruma.

Ninian, a dama do lago que lhe roubara o coração, curare sua alma e lhe dera o doce e precioso dom da vida. Ele a abraçou, extraindo forças dela.

— Acharei um jeito de alcançá-la — jurou.

A estreita passagem que conduzia à cozinha era fria e úmida aos pés de Vivian. Ela procurava por Meg e a encontrou mexendo uma panela sobre um braseiro.

A velha sorriu quando ela se aproximou.

— Minha querida menina, fiquei aflita para ter uma oportunidade de conversar com você.

— Senti seus pensamentos e vim assim que pude.

— Você está bem? — Puxou Vivian de lado para os sacos de farinha alinhados na parede. Sentaram-se sobre eles. — A visão revelou alguma coisa a mais a você? — perguntou, com preocupação na voz.

Vivian meneou a cabeça, negando.

— Não vi mais nada na pedra. Mas senti uma presença. Olhou para trás, por sobre o ombro, para ter certeza de que ninguém a ouvia. Sentia uma presença atenta. E assim procurou comunicar-se com Meg da maneira antiga, passando-lhe os pensamentos. Segurou a mão da velha ama contra a face e abriu a mente, como se dissesse as palavras em voz alta.

— Na visão, vi uma treva fria e maligna diferente de qualquer coisa que eu tenha conhecido, mas não sei o que significa. A visão não me revelou. Desde então, não a vi de novo, mas sinto sua presença. Está aqui, nas sombras, logo além de minha habilidade para vê-la. Como se estivesse esperando por alguma coisa, ou alguém. Diga-me o que a senhora sabe sobre isso.

Sob a mão, ela sentiu o tremor de Meg. E, antes que qualquer pensamento fosse compartilhado, Vivian sentiu a angústia do medo da velha ama.

— Por quinhentos anos não se falou da Treva. Quando eu era criança havia murmúrios sobre isso, era um conto para assustar os pequenos, eu acho. Nada mais. Diziam que surgira sobre a terra no tempo dos antigos reis. Contavam também que a Treva destruiu o antigo reino.

— Ninguém tentou impedir?

— Sim — retrucou Meg, agora com uma clareza de compreensão da visão de Vivian que não tivera antes. — Alguém tentou impedi-la.

Vivian captou o próximo pensamento.

— E foi destruído por causa disso? — perguntou, receosa.

— Sim, banido do reino para sempre.

Lágrimas encheram os olhos cegos de Meg, conforme ela mais uma vez respondeu em voz alta.

— Receio por você, minha menina. Deixe este lugar. Volte para Amesbury. Podemos partir agora. Poladouras nos levará.

Vivian meneou a cabeça com tristeza.

— Sabe que não posso. Vi a treva em minha visão. Sou parte disso. Se tiver de partir, ela me encontraria de novo. A senhora sabe da verdade das visões, depois de vistas não podem ser alteradas. É aquilo que não foi revelado que ainda pode ser mudado.

— O futuro — Meg murmurou, com voz trêmula.

— Como uma tapeçaria — Vivian respondeu. — Os fios ainda não foram tecidos. — Sentiu uma pequena chama de esperança. — O futuro ainda não está definido e jaz nas mãos de uma criatura nascida em fogo e sangue, e...

— E tudo está em suas mãos — disse Meg, com uma tristeza ainda maior na voz. — Seus destinos estão entrelaçados. Vejo agora que você tem razão, embora eu rezasse para que não tivesse. Ele é normando. Traz sangue e morte aos saxões.

Todas as emoções que ela sentira durante as semanas transcorridas derramavam-se sobre Vivian. Seu medo de Rorke, seu temor dos próprios sentimentos e a profecia que os vinculava.

—Esse destino já estava certo antes que ele e seus cavaleiros chegassem a Amesbury — Vivian constatou, tristemente —, pois vi claramente na pedra, assim como eu sabia que devia vir com ele.

Uma das ajudantes da cozinheira entrou na despensa e relan-ceou o olhar para elas com curiosidade enquanto pegava um saco de farinha. Vivian levantou-se para sair, pois tinha outros afazeres a cumprir quando parara para ver Meg.

A mão da ama era surpreendentemente forte e quente, repleta da força vital que ainda a percorria, a despeito dos olhos frágeis.

— Embora seu destino esteja ligado ao dele, cuidado — advertiu-a, em voz baixa. — Conheci os sentimentos que tem por você. São perigosos. Você é uma filha da Luz. Não deve esquecer o aviso da profecia, pois se seus poderes forem perdidos tudo estará perdido.

E quanto aos meus sentimentos para com ele? Vivian pensou, embora assegurasse a Meg que não precisava se preocupar. Por que aquelas emoções e necessidades mortais se remexiam dentro dela como nunca acontecera antes, a um simples toque de Rorke?

— Tomarei cuidado — prometeu, mas seus pensamentos estavam cheios de dúvidas e incertezas, ao sair da cozinha.

Precisava ir ao mercado comprar as ervas e pós para seus remédios e sir Gavin fora encarregado de levá-la. Vivian aproximou-se.

— Bom dia, sir Gavin. Peço desculpas por fazê-lo esperar.

— Bom dia, milady — o cavaleiro retrucou, ao se voltar para revelar que não era Gavin que a esperava, mas Rorke FitzWarren.

— Onde está sir Gavin? — ela indagou, espantada com a presença inesperada daquele a quem vinha evitando nos últimos dias, desde o infeliz encontro no quarto dele.

— Foi chamado para resolver outro assunto. Você falou da necessidade de ir ao mercado. Portanto, irá ao mercado acompanhada de meus homens. E, para sua segurança, cavalgará comigo.

Uma estranha calma estabelecera-se na cidade. Os comerciantes reabriram suas lojas. Os mercados fervilhavam de atividade. Hospedarias e tavernas, fechadas dias antes, estavam lotadas e empenhadas em negociações ruidosas, providenciando alimentação e alojamento para os mesmos invasores contra quem tinham lutado.

Comércio significava lucro e lucro significava sobrevivência.

O mercado mais diversificado ficava perto do rio, onde as barcaças e chatas traziam as cargas dos navios que enchiam o porto. Carros de boi se somavam à aglomeração de pessoas nas ruas.

Os cavaleiros normandos em seus cavalos de batalha destacavam-se na multidão. Recebiam uma variedade de olhares, de indiferentes a furiosos, e provocações ostensivas conforme passavam pelas bancas. Vivian conteve o fôlego na expectativa de problemas, mas, por sorte, nada aconteceu. Finalmente, ela encontrou a banca que procurava.

— Preciso descer — pediu.

— É muito perigoso — avisou Rorke. — Faça sua escolha e mandarei um de meus homens pagá-la.

— Não pode ser assim. Preciso ter certeza daquilo que estou comprando.

— Está bem — ele concordou, com relutância. Com um gesto, Rorke desmontou, tirando Vivian da sela e colocando-a gentilmente no chão. A pressão das mãos enluvadas demorou-se na curva de sua cintura. — Faça as compras necessárias e eu pagarei. É perigoso para você, aqui.

— Por favor, milorde. Não gostaria de tirar seus homens de seus deveres.

— São meus homens. Eu digo quais devem ser seus deveres. Mesmo que seja escoltar moças bonitas pelo mercado.

O olhar espantado de Vivian encontrou o dele. Ninguém nunca dissera isso sobre ela, que era bonita. Pela primeira vez na vida, Vivian experimentou a incerteza, no significado da palavra, na maneira peculiar que ele as pronunciara, como se fosse uma expressão de afeto entre pessoas enamoradas. Um anseio intenso e repentino a invadiu, trazendo consigo uma onda de emoções indesejadas.

Queria ao mesmo tempo gritar, chorar e rir, sem qualquer idéia da causa de tamanha emotividade, a não ser que a deixava emocionada e ao mesmo tempo apavorada.

O sorriso de Rorke aliviou a incerteza, ao começar num canto da boca e se estender até aqueles olhos acinzentados. Sentindo a confusão e o embaraço de Vivian, ele se afastou, e ela fugiu até a primeira banca e se pôs a examinar as mercadorias.

— Fiquem por perto — Rorke instruiu a seus homens. — Não quero surpresas. — Entregou as rédeas ao cavaleiro mais próximo e seguiu até onde Vivian estava.

Ao fazerem as compras, Rorke descobriu que Vivian tinha um olhar arguto, um extraordinário domínio dos números e sabia negociar como poucos. Contudo, os mercadores a tratavam com um ressentimento disfarçado. Ela falava o idioma local com uma fluência que revelava que era realmente saxã. E havia só uma conclusão a ser tirada de sua presença entre os cavaleiros e o fato de ser escoltada por um nobre normando sem a restrição de correntes. Se não era prisioneira, então era uma prostituta.

Contudo, ela tratava cada pessoa que encontrava com gentileza, parecendo não notar a hostilidade. As cabeças se voltavam conforme ela passava pelas bancas. Expressões hostis se suavizavam quando ela parava para fazer uma pergunta sobre um artigo ou outro.

Ela nunca deixava de atrair um comerciante para uma conversa, os comentários rudes esquecidos quando olhavam para aqueles luminosos olhos azuis; a suavidade musical de sua voz tinha um estranho efeito calmante, assim como o toque gentil de sua mão na cabeça ou rosto de uma criança suja de rua.

Sinto-me como essas crianças, Rorke pensou, fascinado por aqueles olhos azuis incomuns, atraído pelo som daquela voz, ansioso pelo toque daquela mão. Sua própria mão brincou com um corte de lã de qualidade particularmente fina, de um tom de malva pálido e ele imaginou como pareceria perto da pele de Vivian.

Alheia ao sentimento que o assolava, ela seguiu em frente, rodeada pela guarda bem armada. Rorke pagou o comerciante pelo corte de lã e enfiou o embrulho debaixo da túnica de cota de malha. Alcançou Vivian numa banca onde o feirante vendia velas de sebo, sabões e ervas perfumadas. Ela apanhava um punhado de ervas, de olhos fechados, e inalava o aroma com prazer.

— Outra planta curativa? — ele indagou.

— Hum, curativa contra o fedor de soda e sebo.

A experiência anterior com algumas das cocções, para não mencionar as histórias que ela lhe contara, o deixaram cauteloso. Tomou delicadamente o punho delgado e ergueu a mão da jovem até o nariz, a fragrância suave quase tão agradável a seus sentidos como o toque daquela pele macia. Sorriu de prazer ao notar o aroma de lavanda.

— Isso certamente não cura muito — brincou. — Porém, não cheira a ovos podres, não arde nos olhos ou trava a garganta.

Ela riu, um som mágico e quente, um bálsamo curativo, fazendo-o ansiar por ouvir mais e mais aquele riso.

— Não, mas tranqüiliza o espírito e faz a gente se recordar da primavera no meio do inverno.

Os homens começavam a ficar com fome e sedentos, e olhavam ansiosos para a comida e bebida oferecidas nas bancas. Na próxima barraca, compraram canecas cheias de cerveja.

Acostumados ao vinho francês, olharam o líquido escuro e espumante com certa desconfiança. Então, com um brinde resmungado, viraram a bebida.

Vivian riu conforme seguia adiante. Não pensara em desfrutar a manhã quando descobrira que Rorke a esperava. Mas a primeira impressão de desconforto passara. Parecia que não havia nenhuma ameaça de perigo no mercado, e Rorke não a interrogara sobre o ataque a Guilherme nas ruas de Londres, nem falara do anel de fogo.

De repente, Vivian sentiu uma presença familiar a seu lado, a mesma que sentira no campo de batalha em Hastings. Um braço fechou-se em torno de sua cintura e uma mão cobriu-lhe a boca. Ela foi puxada para trás de uma cortina pendurada entre duas bancas de venda. A mão afastou-se de sua boca e ela encarou, com surpresa, um rosto conhecido.

—- Conal — murmurou. — Não devia estar aqui. É muito perigoso.

Ele puxou-a para trás da carroça que estava ao lado da banca do vendedor.

— Eu a segui. Juntei-me aos outros, aqui em Londres. Vim por sua causa — Conal exclamou. — Prometo que a tirarei de Londres antes de atacarmos esses bastardos normandos!

— Não! — Vivian exclamou, com veemência. — Não deve! — Tentou desesperadamente fazê-lo entender. — Não posso voltar para Amesbury. Poladouras e Meg estão aqui — ela exclamou, certa de que isso ele entenderia. — Haveria conseqüências pavorosas contra eles se eu fosse embora; portanto, não posso.

— É mais que isso. Ouvi conversas por aí — Conal insistiu, os dedos a lhe machucarem o braço. — Dizem que você e o bastardo FitzWarren são amantes. Ouvi quando ria com ele. Vi como ele a tocou. Sabe quantos saxões ele matou? Como pôde se entregar a ele? — Sua expressão retorceu-se numa agonia de emoções.

Vivian pestanejou diante da acusação.

— Conal, por favor, você não compreende. Eu lhe peço, vá agora, antes que seja tarde.

Já era tarde, porém. Da rua vieram gritos, ordens ríspidas e berros quando Rorke e seus soldados começaram a revirar as bancas dos vendedores, em busca de Vivian.

A atmosfera festiva do mercado transformou-se em terror e pragas quando os vendedores tentavam proteger suas mercadorias e mães agarravam seus filhos para não serem pisoteados pelos cavalos.

— Por favor, Conal! — Vivian gritou. — É a mim que eles procuram.

Quando ele se recusou a soltá-la, ela aumentou a pressão da mão, usando da força de seu poder, e dobrando a vontade de Conal à sua própria. Contra o desejo dele, os dedos do pastor se afrouxaram de seu braço, libertando-a. Ele a encarou, incrédulo.

— Vá agora, antes que eles o encontrem — disse-lhe, antes que Conal pudesse fazer qualquer pergunta. — Não podem encontrá-lo aqui. Volte para Amesbury enquanto é possível.

Ela sentiu a aproximação dos soldados antes de vê-los. Mas não eram os cavaleiros de Rorke FitzWarren. Eram os homens de Vachel!

Com o muro de pedra por trás da fila onde se alinhavam as barracas dos vendedores, Conal estava encurralado, sem esperança de fugir. Lembranças dos corpos que coalhavam o campo de batalha em Hastings vieram à mente de Vivian.

Conforme os soldados avançavam entre as barracas em torno deles, fechando o caminho, Vivian segurou-o pelo braço e empurrou-o de costas para o muro de pedra.

— Terá de confiar em mim. É o único jeito. Tome minhas mãos e, não importa o que aconteça, não as solte. — Hesitante, Conal segurou-lhe as mãos. — Feche os olhos — ela ordenou. — Não importa o que aconteça, não os abra.

O que ela pretendia fazer consumiria todas as suas forças e exigiria todos os seus poderes.

Os gritos estavam muito mais próximos agora. Suas mãos agarravam com força as do amigo, e Vivian deu um passo atrás. Então outro, e mais outro, puxando-o consigo conforme ela e Conal passavam juntos através da sólida muralha de pedra.

 

- Vivian... Vivian...

Seu nome soou muito distante, a chamá-la, em-purrando-a para trás, mais perto agora.

— Vivian?

Era Rorke. Sua voz não tinha mais a entonação ríspida de antes, mas estava cheia de uma gentileza inesperada e preocupação. Suas mãos fortes se fecharam sobre os braços de Vivian como se ele a puxasse de volta para o mundo físico onde ele e seus homens existiam.

Ela se recostou contra o muro de pedra onde apenas momentos antes estivera com Conal. Vivian sabia que ele continuava escondido como o aconselhara, antes de se afastar.

— Está tudo bem — murmurou, em resposta ao olhar de Rorke.

— Você está gelada como uma pedra. Tem certeza de que não foi ferida?

Uma risada brotou na garganta de Vivian diante da comparação que ele escolhera. Ah, se ele soubesse... Meneou a cabeça.

— Só assustada, é tudo. — Uma resposta certa no meio de tantas incertas.

Dois dos homens de Rorke voltaram sem encontrar qualquer traço dos rebeldes que procuravam. Vivian ocultou um suspiro de alívio ao perceber que Conal ainda estava escondido em segurança no lugar onde o deixara.

Fraco e desorientado pela passagem pela pedra, ele a fitara com uma incredulidade muda.

De além do muro, ela ouvira os gritos urgentes dos soldados e soubera que, se não fosse encontrada logo, a busca iria se espalhar do mercado para aquela outra rua do outro lado do muro.

— Viu a direção em que fugiram? — Rorke perguntou, insistente.

Ela meneou a cabeça.

— Havia tanta confusão no mercado... Eles sumiram. Por favor, Rorke! — ela implorou, desesperada para impedir que Conal fosse descoberto. — Podemos voltar agora? Não houve nenhum mal. Não há por que continuar com essa caçada. Você pode nunca encontrá-los.

O som de cavaleiros que se aproximavam atraiu-lhe a atenção e um novo frio de pavor invadiu-a quando o bispo surgiu e, ao lado dele, estava Vachel.

O bispo saltou da montaria e aproximou-se com um ar de autoridade.

— Não pensei vê-lo pelas ruas de Londres, milorde bispo — comentou Rorke. — Ultimamente, parece extremamente ocupado com assuntos de estado.

— Disseram-me que havia alguma dificuldade no mercado. Que vocês foram atacados por rebeldes saxões — o bispo retrucou, com altivez.

— É incrível a rapidez com que o senhor toma conhecimento dessas coisas — disse Rorke, numa entonação fria e sarcástica. — Parece ter o ouvido do divino em tais questões que o fazem ser capaz de atender tão prontamente.

Os olhos do bispo faiscaram de raiva.

— As notícias se espalham rapidamente nas ruas.

Seu olhar recaiu sobre Vivian. Ergueu o sobrolho num mudo questionamento que era tão evidente como se tivesse feito a pergunta em voz alta.

— Meu irmão ficaria muito aborrecido se soubesse que sua curandeira talvez conspire com os rebeldes saxões. Um de meus homens disse que a viu com um homem.

Vachel, é claro! Ela ia retrucar, mas antes que pudesse falar, os dedos de Rorke apertaram-se num aviso em seu braço.

— Ela já me falou disso — ele assegurou ao bispo.

— Ah, então os rebeldes foram pegos. — O bispo olhou com ceticismo de um para outro dos soldados, a dúvida expressa em suas feições.

— Não — Rorke retrucou. — Sumiram.

— Está dizendo que eles desvaneceram? Talvez desapareceram pelas paredes?

— Estou dizendo que é simples desaparecer em ruas desconhecidas dos outros.

Como uma força viva, malévola, o ódio entre os dois podia ser ouvido e sentido. Vivian estremeceu diante da mal controlada violência que sentiu pairando entre eles.

Rorke acompanhou Vivian até o cavalo, enquanto seus homens se fechavam num círculo protetor às suas costas. Ele ergueu-a para a sela e em seguida montou atrás.

— Tome cuidado — avisou ao bispo, na partida. — As ruas de Londres podem ser perigosas.

Conforme cavalgavam de volta para a fortaleza, Vivian sentiu a tensão da raiva em cada músculo duro do corpo do guerreiro, e viu os nós dos dedos brancos pela força com que ele segurava as rédeas diante dela.

O clima descontraído que tinham partilhado anteriormente sumira.

— Vai me contar o que houve agora, Vivian? — ele a assustou com a pergunta.

— Como eu disse, milorde, não posso esclarecer mais nada.

— Não pode, Vivian? Ou não quer? — ele indagou, a voz baixa na garganta, sugerindo perigosas emoções.

Vivian fechou os olhos, aflita. Contudo, se contasse a verdade, arriscaria a vida de Conal, e isso ela não poderia fazer.

— Não posso, milorde.

Preocupada e desassossegada pelo que acontecera no mercado e pelo caos de sentimentos que nem entendia nem desejava, Vivian ansiava por alguns momentos de privacidade.

Meg estava esperando por sua volta e mesmo sem ver sentiu a preocupação de Vivian.

— Algo aconteceu — Meg exclamou, quando teve certeza de que não seriam ouvidas. — Posso sentir em você. Suas mãos estão frias como a morte.

Vivian contou-lhe rapidamente seu encontro com Conal e o modo como tinham escapado. Meg meneou a cabeça.

— Tive medo de que pudesse acontecer isso. Ele ficou desesperado quando você foi levada de Amesbury. Sabe dos sentimentos do rapaz por você? Vivian aquiesceu com tristeza.

— Sim, ele me falou. Tentei dissuadi-lo, mas receio que isso não tenha terminado.

— Não — retrucou Meg, com certeza. — E receio que nenhum bem venha disso. O que você vai fazer?

— Tentei convencê-lo a partir de Londres, mas ele não me ouviu. — Olhou para as feições tensas de Meg. — Poladouras falou de visitar amigos em Londres. Se pudesse encontrar com Conal e convencê-lo de que deve ir embora...

Meg concordou.

— Falarei com ele. Certamente o bispo dará permissão. Poladouras me disse que o homem se ressente com o tempo que ele passa com Guilherme. — Sua voz tremeu ao ter um outro pensamento. — Tenho medo do bispo. Precisa ter cuidado, mo chroi.

Vivian beijou a face enrugada da ama adorada.

— E tome cuidado também, minha cara. — Não poderia permitir que Meg soubesse que ela também tinha medo do bispo.

Durante a tarde, tratou de vários ferimentos. Os cavaleiros de Guilherme exercitavam-se no pátio e a procuravam com várias contusões, cortes e arranhões das práticas de guerra.

Mais tarde, as tisanas de Meg esfriavam na cozinha. Os pós agora enchiam os frascos e jarras e a velha ama fora procurar Poladouras para conversar com ele.

Mally recolhia as roupas lavadas do varal.

A lavanderia ficava atrás da cozinha e o fogo aquecia a água, usada para lavar roupa e para o banho.

Vivian pegou um punhado de lavanda e espalhou-a pela água. Abriu um frasco de extrato de raízes que comprara naquele dia. Quando esfregado entre as mãos, o extrato formava uma espuma.

Tinha um cheiro agradável, perfumado com a essência das campinas na primavera. Ela o usou com parcimônia para se esfregar e depois ensaboou os cabelos, certa de que não teria outra oportunidade para ir ao mercado em breve.

Algum tempo depois, seguiu para o quarto, os cabelos molhados caídos pelas costas, as dobras do manto apertadas contra o corpo para afastar o frio dos corredores.

Quando ela atravessava uma passagem, vazia a não ser pelos guardas postados de cada lado da entrada, viu de relance uma mulher.

Judith de Marque fora brevemente iluminada por uma tocha ao final da passagem. Não viu Vivian, tão fixa estava sua atenção no guerreiro alto cuja identidade se acobertava nas sombras. Vivian ouviu o murmúrio de palavras trocadas seguidas pela risada lasciva de Judith. Naquele instante, Vivian pensou outra vez em Rorke FitzWarren e nos rumores que corriam entre os cavaleiros. Uma pontada de dor retorceu-se em algum lugar sob seus seios. Tentou livrar-se dos sentimentos indese-jados. Ansiava pela privacidade do quarto.

Aturdida, Vivian puxou a pesada tapeçaria de lado e fez menção de entrar no aposento. Estacou logo depois da soleira, espantada.

Com um olhar inocente de desculpas, Rorke FitzWarren voltou-se de onde estava, à beira da lareira.

— Por favor, perdoe-me, demoiselle. Quando cheguei, não havia ninguém. Não pretendia assustá-la.

—Não assustou — disse Vivian, recuperando o fôlego. Sentia uma sensação de alarme por não ter percebido a presença do normando antes de entrar no quarto. Para disfarçar o constrangimento, assegurou-lhe: — Apenas pensei que todos estivessem no salão. Não esperava encontrá-lo aqui.

— Nem eu — ele retrucou com voz séria, a expressão im-perscrutável. Era impossível saber seu humor. Bebeu o vinho como se precisasse se fortificar para algo que viria.

— O duque Guilherme julgou necessário que eu procurasse seus dons de curandeira — ele explicou. — Sofri um pequeno corte no pátio de exercícios.

Ela ergueu a sobrancelha com a onda de medo que a surpreendeu.

— Tem algum ferimento?

Quando ele se virou e levou a mão para o cálice de vinho, Vivian viu então a grande mancha de sangue na manga da camisa.

Ela atravessou o quarto com uma pressa que fez as chamas das velas bruxulearem. Rapidamente pegou a cesta de medicamentos de um nicho na parede.

— A camisa precisa ser tirada — disse a ele. Quando se virou, descobriu que Rorke já estava com o peito desnudo.

Havia uma grande quantidade de sangue em seu ombro, a maioria seco. Ela franziu a testa ao molhar um pano limpo. Embora o ferimento tivesse sangrado muito, era pequeno. Havia cicatrizes em seu corpo de ferimentos bem mais severos e perigosos.

— Deve ter sido muito doloroso — ela murmurou, ao examiná-lo com o olhar estreitado. — Mais provavelmente um ferimento em seu ego — emendou, a voz seca e cheia de um súbito cinismo.

Ele a encarou com um olhar divertido.

— Mas, mesmo assim, a menor ferida pode infeccionar e provocar febre — Rorke ponderou, insistente. Decidira fazer uma nova investida se quisesse saber a verdade sobre o que acontecera naquela manhã. — Passe uma bandagem no ferimento. Por favor.

Vivian não fazia idéia do jogo que ele jogava, ou com que finalidade, mas não estava disposta a seguir suas ordens.

— Não posso — retrucou, o azul de seus olhos luzindo como uma chama derretida. — A ferida precisa ser fechada adequadamente — continuou, a luz incidindo nos utensílios quando ela abriu a caixa de agulhas.

Vivian pegou uma e passou um fio grosso que poderia ser usado para remendar arreios de couro.

— Preciso de mais luz — disse com um olhar para a vela sobre a mesa. — Para não dar um ponto errado e ter de começar outra vez.

Ela viu a mudança sutil naquele olhar, do cinza frio e hibernal para alguma outra emoção que vira de relance antes mas que agora reconhecia muito tarde.

Antes que pudesse escapar, Rorke circundou-lhe a cintura com o braço forte e saudável, puxando-a para perto e imediatamente deixando claro que mesmo com o uso de apenas um braço, era ainda um homem formidável e perigoso.

— Você, demoiselle — disse ele, o rosto tão próximo que Vivian foi forçada a inclinar a cabeça para trás — é uma feiticeira encantadora.

— Não, milorde. — O olhar assustado de Vivian encontrou o dele. Sua respiração ofegante apenas intensificava a sensação atordoante que espiralava dentro de suas entranhas e formigava em seus seios. Os mamilos enrijeceram e saltaram tanto que teve medo que, quando ele a soltasse, pudesse vê-los através do vestido. Com palavras medidas que exigiam um mínimo de fôlego, ela assegurou-lhe: — Não sou feiticeira. Rorke pareceu pensar na possibilidade.

— Se não é feiticeira, Vivian, no mínimo é fascinante. — Em seguida, repetiu. — Nada de pontos. Uma atadura limpa será suficiente. Se sua intenção é provocar mais dor, a retaliação será rápida. — Como se para comprovar a ameaça, seu braço se fechou mais uma vez em torno dela.

— Não precisava de meus cuidados. Poderia ter enfaixado o ferimento sozinho — comentou Vivian, ao pegar o ungüento.

— Talvez eu tenha vindo lhe dar um aviso.

— Um aviso?

— O que aconteceu esta manhã no mercado foi perigoso. Então, pensou Vivian, Rorke tinha intenção de continuar a insistir naquele assunto. Que fosse.

— Sim — ela concordou, com ar solene. — Muito perigoso.

— Falo do bispo. Ele é o irmão de Guilherme e conseqüentemente um homem muito poderoso. Não deve ser tratado com leviandade.

— Tem medo dele?

— Não tenho medo de homem algum, seja bispo, duque ou rei. Mas suas ambições o tornam perigoso. Ele está determinado a provar que você é uma traidora. Talvez, por isso, seja mais verdadeiro eu dizer que vim em busca da verdade. Se houver algo mais que eu deva saber a respeito de hoje, precisa me dizer agora.

Vivian o encarou com cautela.

— Eu lhe disse a verdade, milorde — atalhou, numa voz que mesmo para si própria era pouco convincente.

— Você não viu mais nada.

Ela esperava por mais perguntas. Quando Rorke não as fez, Vivian voltou à tarefa de limpar o ferimento.

Rorke percebera o olhar inquieto que lhe cruzara a face, a sombra da apreensão naqueles olhos vividos e preferiu ficar calado. Iria observá-la. E ela era uma criatura deliciosa de se observar.

Os cabelos estavam úmidos e cheiravam a uma fragrância suave que o recordava das campinas luxuriantes de Anjou, na primavera.

— O que é então, senhora? — especulou, voltando à conversa anterior. — Se não é uma feiticeira que encantos usa?

A mão delicada, sempre tão segura e firme naquela tarefa familiar, de repente hesitou. Sem erguer os olhos, como se isso exigisse uma grande concentração de atenção, ela espalhou o ungüento em torno do ferimento.

— Talvez eu seja uma bruxa — ela sugeriu, mantendo o olhar longe do dele.

— Uma bruxa? Uma Jehara, como Tarek acredita? Criaturas que lançam feitiços, uma criança roubada pelas fadas, um ser mágico que controla os poderes místicos do universo e existe apenas entre a bruma e a realidade? — Fitou-a com ar especulativo. — Talvez... um troll do pântano?

Ela ergueu a cabeça num ímpeto, os olhos faiscantes de raiva.

— Está dizendo que cheiro mal?

Rorke afagou o rosto de Vivian para depois afundar os dedos no cetim da trança quase solta.

— Você, demoiselle — ele aspirou o perfume dos cabelos, ainda úmidos, com um sorriso a lhe curvar os lábios diante daquela expressão ofendida —, cheira ao vento da madrugada e à chuva quente da primavera. — Seus dedos se afundaram no manto espesso dos cabelos, lentamente se apossando deles. — E ao sol de verão. Cheira a coisas vivas, a pinheiro da floresta e às suaves campinas. A sonhos doces da meia-noite e segredos ainda mais doces. — A carícia estendeu-se até o rosto de Vivian para roçar seus lábios. — Você não é nenhum troll — continuou, acariciando-lhe a curva do lábio inferior, a pele rude a raspar a carne tenra.

— Talvez uma fada — ela murmurou, num arquejo assustado.

— Você não é nenhuma criatura sobrenatural, etérea — ele murmurou, os lábios a roçarem os dela, aturdindo-a com a ternura que prometia todas aquelas coisas e muito mais. Então ele a provou, o veludo rústico da língua a deslizar pela curva de sua boca, de um canto a outro e depois lentamente de volta, para então se insinuar pelo centro entreaberto.

Pela primeira vez na vida, incapaz de ver com a visão interna, Vivian fechou os olhos e experimentou aquele prazer maravilhoso com todos os seus outros sentidos.

— Você tem gosto de vinho doce — disse Rorke, num murmúrio arquejante, quando lhe mordiscou o lábio inferior, provocando em Vivian uma inesperada pontada de desejo, que ela não saberia definir, mas que precisava provar de novo.

Abriu a boca para ele e sugou o veludo daquela língua numa conjunção elemental, primeva.

— A velha Meg me avisou em Amesbury naquele primeiro dia — Rorke resmungou, com voz rouca, enquanto sua mão deslizava pela curva da garganta de Vivian até o lugar sedoso onde o sangue latejava sob a pele. —- Disse que não tinha noção de seu poder. Ah, mas tenho, demoiselle — garantiu-lhe, conforme inclinava a cabeça e seus lábios seguiam a mão até aquele lugar vulnerável acima da renda do vestido. Sua língua acariciou a macia depressão de carne, perturbando-a ainda mais. Ela ergueu as mãos para impedi-lo, e os dedos se curvaram sobre o contorno rijo dos músculos do peito de Rorke, as unhas a se enterrarem na carne.

— Você tem o poder de enfeitiçar e enganar.

Os toques suaves da língua quente eram como o bater de asas de borboleta na pele de Vivian, fazendo-a arquejar, e a respiração tremer nos pulmões. Uma lembrança de longo tempo atrás relanceou por entre seus pensamentos tumultuados: de Bronwyn e Ham naquele dia na clareira... dos beijos apressados e afobados... das roupas arrancadas com gestos frenéticos... e depois a conjunção ainda mais frenética dos corpos ao se unirem um ao outro.

Não havia pressa nem afobação nos beijos de Rorke. Era como se cada um fosse deliberado, demorado e saboreado completamente antes que o próximo começasse, enchendo-a de uma loucura sensual que ela não queria nem compreender nem terminar, mesmo que sentisse o puxar suave dos laços do corpete e depois a jornada descendente daqueles lábios para outros pontos que formigavam de ansiedade.

— Meu Deus — ele murmurou. — Sua pele é tão quente e macia. — Sua língua correu sobre um mamilo rosado. — É como fogo envolvente.

Vivian ofegou diante da reação de seu corpo. Sentia que pulsava por inteiro, e abandonou-se aos sentidos recém-descobertos.

Deixou a cabeça pender para trás até que tinha o pescoço arqueado, e enterrava as unhas nos ombros de Rorke, a respiração presa nos pulmões. Então, um pavor que vinha do mais profundo de seu ser a fez exclamar:

— Rorke, não posso... não devo... Por favor... Ele acariciou-lhe o seio e inclinou-se para sugá-lo.

— Não precisa ter medo...

— Por favor! — Lágrimas de desejo, incerteza e angústia travaram a garganta de Vivian enquanto suas mãos agarravam os cabelos de Rorke, puxando as longas mechas. — Você não compreende... eu não posso — As palavras fraquejaram num soluço. — Eu não sei como... agradar a um homem.

Ele esperava pela recusa, certo de que viria. E aquela honestidade da inocência aguçou o desejo ainda mais profundamente dentro de Rorke, enrijecendo ainda mais a carne que já ansiava por ela.

— Não tenha medo. — Beijou-a, os dedos a acariciar o rosto, a voz baixa e rouca —, pois me agrada muito...

Os olhos sem malícia, como chamas gêmeas que refletiam o brilho da pedra azul que pendia entre os seios de Vivian, o fitaram de volta com um desejo franco e aberto.

— Sua honestidade me agrada.

Seus dedos escorregaram pela extensão dos ombros, acari-ciando-lhe a nuca, provocando sensações inteiramente novas. Ela não podia ver, apenas sentir e imaginar com uma expectativa ofegante que devia haver muito mais.

— Sua suavidade me agrada — ele murmurou, ao soltar a trança e enterrar as mãos nos cabelos perfumados, a agonia do desejo a invadi-lo.

Vivian tinha consciência da boca de Rorke em seu ombro, da língua a escorregar por sua pele. Seus mamilos formigaram ao se enrijecerem, na ânsia de serem cativos mais uma vez do calor possessivo daquela boca.

Aquelas mãos duras, marcadas de cicatrizes, capazes de impor morte e destruição, mantinham seu corpo inteiro tenso com gestos ternos ao afastar a massa pesada de cabelos por sobre um ombro, expondo a nuca, empurrando os braços para baixo, tirando as mangas e depois o corpo do vestido até a cintura.

O vestido caiu a seus pés.

Outras lembranças daquele dia na clareira relancearam por seus atordoados pensamentos. Mas não havia o arrancar de roupas ou a ansiedade que parecia quase um frenesi animal para se unirem. Em vez disso, ele a desnudava lenta e delicadamente, excitando-a ainda mais a cada carícia que lhe roçava a pele.

Vivian arquejou, envergonhada pela nudez repentina e depois ofegou quando as mãos de Rorke se fecharam sobre seus seios. A barba dura raspou-lhe a pele quando ele mordiscou o lado de seu pescoço, provocando deliciosos arrepios a cada pressão gentil.

— Sua inocência me agrada — ele sussurrou, com tanto ardor que a fez estremecer.

— Por favor... — Vivian suplicou, sem saber o que fazer.

— Seu gosto doce me agrada.

Ele se ajoelhou e Vivian sentiu o calor daquela boca deslizar em beijos suaves por sua coluna até o final da espinha. Visões daquele dia na clareira a invadiram. Quando observara aquela união ardente, soubera que tal coisa lhe era proibida, mesmo que experimentasse uma estranha percepção de desejos sensuais de sua porção mortal de carne e osso.

Rorke FitzWarren despertara esses desejos, acordando dentro dela um anseio por coisas proibidas. Porém, não importava o que custasse, ela queria experimentar o que provocara em Bronwyn tanto prazer.

Queria sentir o despertar de seus outros sentidos numa volúpia de preenchimento que unira sua mãe e seu pai, e a criara de carne e osso mortais.

— E seu calor me agrada... — A mão de Rorke deslizou pelo ventre liso, os dedos acariciando a carne acetinada.

Quando ele a fitou, assustou-se com o olhar ardente e apaixonado em Vivian. Dissera que ela não era uma criatura etérea, sobrenatural, mas, naquele momento, com o desejo a queimar como uma chama azul na profundeza de seus olhos, a combinar com o cristal reluzente que era tudo que ela usava, Vivian parecia de certa forma de outro mundo. Era como se, com a brilhante coroa de seus cabelos, fosse- uma criatura nascida do fogo.

Por uma noite, pensou Vivian, ao pousar as mãos no peito de Rorke, eu o terei por uma noite.

Ele beijou-a com paixão, as mãos enterradas na cascata espessa de seus cabelos.

— Você é como fogo, a me incendiar.

Livrou-se das calças e botas e envolveu-a nos braços, sentindo que o autocontrole o abandonava. Não teve paciência para carregá-la para a cama e deitou-a sobre o espesso tapete de peles diante da lareira.

Era como se o fogo a tratasse como uma divindade, banhando sua pele nua, luzindo em todas as depressões acetinadas para destacar o monte sedoso que brilhava de umidade e nos cabelos espalhados como um manto sobre as peles.

— Deixe-me agradá-la — ele murmurou.

Um incêndio pareceu irromper dentro de Vivian e espalhou-se, fora de controle. E ela se abandonou à pura sensação física do supremo prazer.

Uma noite.

A profecia a avisara que nunca poderia amar como uma mulher mortal. Qual seria o preço por aquela noite de prazer? Ela não sabia. Sabia apenas que não poderia voltar atrás à sua existência solitária, confortada apenas pelo fogo mágico que queimava dentro de si. Não depois de ter experimentado a magia do fogo da paixão de Rorke. Lágrimas de tristeza e alegria marejaram seus olhos.

Apenas por uma vez seria uma mortal, mesmo se isso significasse a perda de seus poderes. Saberia o que era ser amada e se unir fisicamente a um homem. Uma noite. Para durar por toda eternidade. Qualquer que fosse a perda, valeria a pena.

A imagem dos namorados na clareira tornou-se uma lembrança distante quando o fogo banhou-lhe a alma em flamejante calor conforme seu ousado guerreiro a banhava de amor. E Vivian deixou escapar um grito semelhante ao de um falcão recém-nascido quando Rorke a possuiu.

— Perdoe-me — ele murmurou —, não queria fazê-la sofrer. Ia se afastar, mas ela o impediu, as mãos a agarrá-lo pelas costas.

— Não, milorde — ela ofegou —, você é magnífico, uma bela criatura nascida em fogo e sangue.

Rorke estremeceu. Nunca ele, marcado de cicatrizes, enrijecido pela tortura e crueldades de sua vida de bastardo e pela dura realidade das guerras, fora chamado de belo.

— Então, queime comigo, meu doce fogo — ele gemeu, quando seus corpos começaram a se mover no mesmo compasso, num só ritmo, até se tornarem um só.

Cabeça jogada para trás, os olhos de Vivian luziram conforme seu ser se ligava à terra, seduzida pelo homem cujo amor a preenchia completamente. E sua parte imortal buscou o céu, voou e pairou nas asas daquela paixão, como a criatura cuja imagem poderosa se estampava na tapeçaria da parede, uma criatura nascida em fogo e sangue.

Rorke teve a sensação de que o próprio tecido de sua vida fora rasgado, consumido pelo fogo ardente daquele corpo de mulher, até que, como a mística criatura que salta das chamas da desolação, com um grito ríspido, feroz, viu-se renascido, renovado pela paixão.

O quarto estava frio, o fogo há tempo estava quase apagado na lareira. Vivian levantou-se, enrolando uma pele em torno de si.

Rorke remexeu-se com a repentina ausência daquele corpo quente e, meio adormecido, levou um braço para o lugar vazio como se para puxá-la para mais perto.

Ela queria voltar para aquele lugar, sentir os braços fortes a envolvê-la, aquele corpo a lhe roubar o calor para depois devolvê-lo à paixão ardente da união. Mas não podia.

Sentiu as pedras do chão geladas sob os pés descalços. Pegou algumas achas de lenha para colocá-las na lareira. As brasas ainda luziam em meio às cinzas, emitindo um débil calor quando Vivian esticou a mão sobre elas. Então os carvões de repente estalaram quando as labaredas ganharam vida, desdobrando-se como as pétalas de uma flor a se abrir.

— Você está aí, sei que está — ela murmurou, uma das mãos a se fechar em torno do cristal azul, a outra a se estender para o fogo que agora brilhava fulgurante na lareira.

Vivian fitou as chamas, lançando os pensamentos muito além das muralhas de pedra e da fortaleza do bosque. Além de hospedarias, tavernas e mercados de Londres. Além do véu da noite e das fronteiras do tempo e espaço, para outro lugar, de esperança, sonhos e antigas lendas, encontrado apenas naquele momento hesitante logo antes da alvorada. Naqueles poucos e breves instantes em que a noite não é mais noite e o dia ainda não é dia, havia um lugar encontrado apenas na bruma.

— Por favor, venha a mim — implorou, ao estender a mão diante do fogo. — Precisa me ajudar a compreender.

Um braço estendeu-se das chamas. Uma mão fez um sinal, a chamá-la.

Vivian estendeu os dedos para as chamas. Pousou a mão naquela que se esticava. Uma visão apareceu, de uma clareira na floresta coberta com neve recém-caída e uma única pedra em pé.

Então os dedos escorregaram dos dela, desaparecendo nas chamas. Tudo que restou foi a visão da pedra postada na beira da clareira na floresta. Depois, lentamente também desapareceu, até que tudo que restava era o fogo queimando na lareira.

Tochas queimavam ao longo das paredes da passagem quando Vivian saiu do quarto de Rorke.

No salão principal, ela pôde divisar as formas amontoadas dos homens de Guilherme debruçados pelas longas mesas ou deitados pelo chão. O ar recendia a cerveja e comida.

Sair pela passagem secreta teria sido mais discreto, mas também tomaria muito mais tempo, pois ficava além da cozinha, nos fundos do complexo. A entrada da frente era mais bem guardada, porém mais próxima da pequena floresta que bor-dejava a fortaleza.

Projetou os pensamentos e envolveu a mente do guarda à porta.

— Você destrancará a porta e irá me deixar passar sem tentar me impedir. Não contará a ninguém que me viu — ela insistiu.

— E não se lembrará de nada que aconteceu.

— Não me lembrarei de nada.

— Ficará em seu posto como antes.

Então, enquanto ele soltava o mecanismo que erguia a pesada barra de ferro, ela murmurou:

— Bom dia, Sevien.

Esgueirou-se pela porta, desceu os degraus e saiu para o pátio interno.

Logo depois dos canis havia as falcoarias onde estavam as aves de caça trazidas da Normandia. Ela se esgueirou para dentro.

Os sons no interior da falcoaria eram docemente familiares. O pequeno falcão, Áquila, estava num poleiro separado das aves maiores, ao fundo. Captou o cheiro e a presença de Vivian, e chamou-a com um piado curto e agudo.

A ave passou com cuidado para o braço desprotegido de Vivian. Assim que estavam fora da falcoaria, ela tirou-lhe o capuz.

— Precisa voar por mim. Preciso de seus olhos, meu amigo.

— Abrindo o braço, ela mandou o falcão para o alto. Áquila subiu rapidamente pelo céu cinzento que antecedia a alvorada, escapando facilmente das altas muralhas de pedra. Circulou ao alto e depois pareceu desaparecer, mas Vivian não se alarmou. O falcão iria procurar o bosque, a imagem que Vivian vira.

Pela primeira vez desde que conhecera a verdadeira extensão e a finalidade de seus poderes, Vivian se sentia incerta, a profecia que a velha Meg lhe revelara a enchê-la de dúvida.

Ela não era como as outras mulheres e, no entanto, por umas poucas e preciosas horas, ela se voltara contra seus poderes para se tornar uma mulher. E agora, se seus poderes se voltassem contra ela?

Suas mãos tremiam ligeiramente quando as espalmou sobre as pedras da muralha. Mentalizou o fogo. Teve uma visão, e até mesmo sentiu a poderosa presença de alguém que procurava alcançá-la. Certamente nem todo os seus poderes estavam perdidos por causa do que acontecera entre ela e Rorke.

Inspirou fundo e soltou o ar, liberando toda a dúvida e todo o medo. Fechou os olhos e se comprimiu contra as pedras da muralha. Visualizou cada grão duro que compunha a pedra, cada fissura, emenda e junta, e a espessa massa entre elas.

Então se permitiu sentir o frio e a umidade, vendo-a também na superfície plana e no gelo que reluzia em cada borda aguda. Depois, ainda voltada para o íntimo, imaginou-se passando através da muralha.

Primeiro as mãos, depois os braços, um passo, dois, e, conforme o poder se congregava e se focalizava, ela passou pela parede como se não fosse mais substancial que a bruma, ou uma simples gota d'água que escorria pelas pedras. Com um arquejo ofegante, emergiu do outro lado.

Sua primeira percepção foi do frio de doer os ossos, como se naqueles breves instantes ela houvesse se tornado de pedra e barro, coberta de gelo, ensopada de umidade. Sentiu-se fraca, como se a vida tivesse sido drenada de si e somente agora retornasse. Gradualmente, percebeu que pelo menos aquela habilidade não lhe fora tomada.

Um grito suave, agudo, ouviu-se ao alto. Áquila estava em-poleirado no baluarte do oeste, a esperar por ela. Lançou-se do topo do baluarte, descrevendo círculos e espirais contra o céu de chumbo.

Com um pensamento, Vivian mandou-o para o bosque. Não havia tempo a perder conforme o céu se tornava mais claro naquele tempo entre a escuridão e a luz, quando a noite não é mais noite e o dia ainda não é dia...

Vivian atravessou o leito seco do fosso e entrou pelo bosque, lançando seus pensamentos a distância para se unirem aos do falcão, procurando com o dom especial por uma clareira na qual se erguia uma antiga pedra.

A neve se estendia como um manto alvo pelo chão, refletindo a luminosidade crescente. Uma sensação de urgência tomou conta de Vivian. Precisava encontrar a clareira antes que o sol se levantasse. Então, ouviu o grito do falcão, o mesmo grito de quando avistava uma presa.

Ela seguiu o som, até que emergiu numa pequena clareira. Uma débil luz dourada rompeu o mar espesso de nuvens no horizonte e penetrou pela clareira. A bruma começou a se erguer com o calor dos raios solares. Foi então que Vivian viu a pedra.

Era alta, um grande obelisco que parecia marcado pelas eras. Erguia-se do chão e da neve como uma mão estendida, ou possivelmente a lâmina de uma antiga espada de pedra. Vivian caminhou lentamente em sua direção.

O monólito não se assentava no chão, mas pairava logo acima dele, rodeado por uma suave luz brilhante. Aquela era a pedra de sua visão, suspensa no tempo, a fonte de seu poder extraído da luz brilhante que se irradiava da rocha. Com uma repentina calma interna, Vivian pousou as mãos na face da pedra, como fizera na muralha.

Desta vez não houve nenhum frio de enregelar os ossos nem a sensação de ser fragmentada ou dilacerada ao passar através da matéria dura. Nem dor ou fraqueza. Era como uma cortina se abrindo, passar da treva para a luz.

Ao emergir do outro lado, Vivian sentiu que uma mão tocava a sua, e depois se fechava com firmeza, transmitindo um amor tão incondicional e uma força tamanha que era como se ela renascesse, deslizando do útero do mundo mortal para dentro do mundo espiritual da alma.

Abriu os olhos devagar para olhar dentro dos olhos daquele cuja mão segurava a sua, aquele que a esperava.

— Papai! — gritou, atirando-se àquele abraço protetor.

— Minha filha! — ele exclamou, apertando-a com força.

Por um longo momento ele simplesmente a abraçou a murmurar palavras doces, tão ternas e calmantes como a mão que lhe afagava os cabelos. Lágrimas marejaram os olhos de Vivian.

— Pensei que tivesse me abandonado — ela murmurou com o rosto comprimido contra o ombro largo.

— Jamais, minha filha. — A voz estava cheia de inesperada emoção. Seus braços se apertaram em torno dela como se ele tivesse medo de deixá-la ir embora. Finalmente, a soltou. Só o bastante para fitá-la, a mão a lhe afagar a face. — Está tudo bem, minha menina. Está segura aqui.

O sol incidia quente às costas de Vivian. Uma brisa suave beijou-lhe o rosto. Ali havia apenas claridade e sol. A fortaleza e toda Londres desaparecera. Apenas a pedra permanecia em pé, o monólito a reluzir sob a luz. Então ela também lentamente se desvaneceu até que Vivian não conseguia vê-lo claramente se o olhasse diretamente, mas apenas enxergá-lo na beirada da visão.

— Venha, filha — disse ele, puxando-a de lado com o braço em torno de seu ombro. — Sua mãe a espera.

— O pomar e o jardim estão tão deslumbrantes — ela exclamou, admirada, conforme se aproximavam de um simples chalé, Nunca deixava de surpreendê-la a abundância com que tudo crescia ali.

Sua mãe corria pela trilha do jardim em direção a eles.

— Mamãe.

A voz de Vivian fraquejou quando os braços delicados a enlaçaram. Ninian afastou-a ligeiramente, estudando-a com olhos de mulher, precisando apenas da percepção feminina que alguém que amava profundamente para ver isso em outra.

Afagou a face da filha.

— Venha, meu coração. Preparei um chá especial. Abraçada aos pais, Vivian seguiu com eles para o chalé onde aromas maravilhosos exalavam pelas janelas abertas.

Conversaram como todas as famílias quando se reúnem depois de uma longa ausência. E, contudo, sua mãe e seu pai dificilmente pareciam mais velhos do que quando ela os visitara pela primeira vez, depois de descobrir o dom da visão nas chamas. Tudo ali permanecia constante, imutável. Ali, Vivian sentia-se renovada. Ali, ganhava força. Sabia que, do outro lado, além do portal, o tempo mal teria passado, afinal. Uns poucos segundos, minutos talvez.

E Vivian sentiu outra vez uma urgência de algo que assomava no horizonte. Aquela mesma urgência que a levara a cruzar o portal.

— Papai, preciso conversar com o senhor.

Ambos se entreolharam e Vivian captou uma tristeza na face do pai que ela vira de relance quando atravessara o portal. Ele suspirou fundo.

— Venha caminhar comigo, filha.

Saíram juntos do chalé, subindo a trilha da antiga colina verdejante. Vivian parou para olhar para trás e avistou de relance a mãe, no jardim. Sentiu o amor de Ninian como se lhe dissesse algo e as palavras fossem carregadas pelo vento.

Sei que você deve seguir seu destino, filha de minha paixão, minha filha do fogo. Saiba que eu sempre estarei com você.

A lenda dizia que depois do grande conflito, Merlin fora enterrado nas colinas cavernosas, numa câmara com luminosas paredes douradas que luziam com a luz de uma única vela colocada num nicho na parede. Também diziam que uma linda jovem por vontade própria unira-se a ele, deixando o mundo mortal por aquele local imortal. Enquanto Merlin jazia em sua laje fúnebre feita de mármore branco, ela lhe dera o dom de si mesma. E uma espada certa vez poderosa, danificada e marcada, que ela trouxera de um lugar chamado de Maré do Tempo. A espada era chamada de Excalibur.

— Papai?

Ele se voltou do nicho e lhe sorriu, sem disfarçar aquela impressão de tristeza.

— Vi uma coisa, pai. Algo poderoso e terrível. Uma grande escuridão no mundo. O que é? Precisa me dizer. O que é essa treva que vi? O que significa?

—Minha doce criança, esperei que isso nunca a encontrasse. Rezei para que não acontecesse.

Vivian sentiu a súbita tensão, como se o pai fosse tomado por uma raiva impotente.

— Eu as protegi contra isso! Esta é a razão pela qual mandei você e suas irmãs para o mundo mortal. Esperei que pudessem ficar a salvo. E agora... — A raiva permaneceu, mas temperada mais uma vez por uma sensação crescente de desamparo. — Agora — ele repetiu, como se reunisse forças —, receio que a tenha encontrado. Perdoe-me, filha, por não ter podido evitar.

Ela nunca o vira assim. Seu pai, sempre onisciente e Todo-Poderoso, sempre tão forte e seguro de si, o sábio conselheiro, o professor, o mentor que ela e as irmãs sempre procuravam em busca de guia, estava consumido por uma avassaladora tristeza que ela não conseguia imaginar qual seria.

— Precisa me contar tudo, papai. Desde o início, para que eu possa entender.

E foi ali, na câmara dourada, com a escuridão a cair, e uma abóbada de estrelas ao alto, que Merlin contou a Vivian sobre a terrível Treva.

Em todas as grandes configurações das galáxias havia um equilíbrio de forças que mantinha os planetas alinhados. Criava ordem no caos. Mas sempre havia a ameaça de que o caos sobrepujasse a ordem, com guerras, fome, pestilência e morte.

A grande Treva que existia no mundo do Além era o governante do caos, mantido ao largo apenas pelo poder da Luz. Mas havia sempre o embate pela dominação.

Com Merlin para guiá-lo, um jovem rei poderoso desafiara a Treva e, por algum tempo, reinou sobre os domínios. Esse rei era Arthur, e o reino prosperara. Mas Arthur foi traído por aqueles que amava e confiava. Nem mesmo Merlin pudera protegê-lo. Arthur fora abatido em batalha e morreu.

A grande Treva se espalhara sobre a terra, trazendo quinhentos anos de guerra, fome e morte na forma de um usurpador após outro, que invadiam, conquistavam e despojavam a Inglaterra.

Não havia ninguém para se opor ou impedir. Merlin se fora. E assim a Treva descansou, recuando para os longínquos recessos da memória, confiante de seu poder sobre o reino.

Então, conforme a lenda crescia de que o feiticeiro não morrera, também despertaram aquelas forças malévolas, pois a Treva sentiu que seu domínio sobre o reino destruído poderia não estar seguro.

— Sou a causa disso — Merlin disse, baixinho, as mãos a lhe empalmar a face. — Eu deveria ter previsto que aconteceria. Mas não pude. Desde o momento em que você nasceu, senti a presença da Treva se reunindo mais uma vez. Observando. Esperando, como antes. Não foi o bastante que eu fosse banido, aprisionado nas brumas do tempo. Não foi suficiente que sua mãe fosse forçada a desistir de tudo para viver comigo aqui, porque eu não poderia ser parte do mundo dela. Agora, a Treva quer minhas filhas!

Com um medo súbito, Vivian abraçou o pai e sentiu seu tormento. Era como se tudo tivesse de repente mudado e ela fosse o pai e ele a criança que precisava de conforto.

— E quanto a Guilherme da Normandia? — ela perguntou. — Vi uma grande mudança que iria envolver toda a Inglaterra em minha visão e soube que ele derrotaria o rei Harold. É ele o rei que a Inglaterra esperou por todo esse tempo?

— Não é Guilherme — ele respondeu, hesitante. — Ele será rei por algum tempo, mas, como antes, haverá muito conflito.

— Se não é Guilherme, quem então? Um filho talvez, pelo direito de sucessão? É isso que a Treva veio impedir? — Ela sentia que Merlin sabia, mas se recusava a lhe contar a verdade.

— Papai, precisa me dizer! O que isso tem a ver comigo? Por que eu a vejo em minhas visões?

— Não tem nada a ver com você!

— Tive outras visões, pai.

Falou-lhe então da criatura nascida em fogo e sangue; a imagem do escudo de batalha de Rorke FitzWarren; do aviso sobre uma fé que não tinha coração, e da espada que não tinha alma; e, finalmente, de sua visão recorrente da tapeçaria.

— A tapeçaria é uma profecia — disse ele com uma grande debilidade de espírito. — O que vê no desenho são as coisas que irão se passar.

— Profecia de quem? Da força da Luz? Ou da força da Treva?

— Você é uma filha da Luz. A visão é sua; portanto, é uma profecia da Luz.

— Mas ainda não está terminada. Como posso conhecer a profecia se partes dela ainda não estão tecidas?

— Não pode saber — Merlin retrucou, desviando o olhar aflito do rosto da filha.

Vivian soube que ele mentia.

— Eu me vi na tapeçaria — murmurou, sentindo muitas outras coisas que antes lhe estavam ocultas. — Sou parte disso.

Ela era a tecelã. De repente, Vivian soube além de qualquer dúvida, que era isso que atormentava Merlin, e o que ele tentara impedir que ela visse.

— A tapeçaria ainda não está tecida — ela disse, baixinho.

— O futuro ainda não está decidido. Sou a tecelã no tear. Determinarei o desenho. Eu, e eu sozinha, devo enfrentar a Treva.

— Tentei afastar tudo isso de você.

— Sei disso, meu pai. Mas também sei agora que talvez eu possa mudar o desenho da tapeçaria. Está em minhas mãos. Devo enfrentar a Treva.

— Não precisa — ele murmurou, com doçura. — Não volte. Fique aqui, conosco.

— O senhor sabe muito bem que não posso ficar.

Com uma tristeza profunda no coração, ele respondeu:

— Sim. — Abraçou-a. — Eu sabia que essa seria sua resposta, mas tinha esperança de que pudesse mudar de idéia.

— E quanto a meus poderes, pai? Sabe que amei um homem mortal.

— A resposta, minha filha, deve ser encontrada no coração desse homem. Se o coração dele for verdadeiro, então seus poderes serão mais fortes por isso. Mas se o coração for falso...

— Não consigo ver o verdadeiro coração de Rorke, pai.

— Não pode porque precisa abri-lo para você. Só saberá quando ele entregar em rendição tanto o coração como a alma a você.

O céu da noite tingiu-se de prata com o anúncio da alvorada.

— Tem o cristal? Enquanto o possuir, estaremos juntos. Sejam quais forem os poderes que eu tenha, eles se juntarão aos seus nesta jornada. — Fitou-a nos olhos. — Não há nada que eu possa dizer para impedi-la?

Ela o abraçou com força.

— Nada, papai.

Depois de um instante, ela se afastou, sabendo que se o pai pudesse retê-la fisicamente a seu mundo, ele o faria.

— É tarde, papai. Preciso ir.

Merlin não discutiu. Havia lágrimas em seus olhos.

— Irei com você.

Voltaram juntos pela trilha, descendo as colinas, deixando para trás o antigo lugar lendário onde a vida de Vivian começara.

Na borda do pomar, Ninian os esperava. Havia embrulhado muitas das antigas ervas que cresciam em profusão em seu jardim e entregou-as a Vivian, junto com um pacote especial para Meg.

Vivian colocou os embrulhos dentro do manto que Merlin lhe enrolara nos ombros. Os três voltaram para a pequena clareira no meio do pomar.

— Possam os poderes da Luz estar com você, minha filha — Ninian disse, em despedida.

E Vivian percebeu que ela sabia do que se passara entre pai e filha.

— Eu a amo, mamãe — retrucou.

Merlin atravessou com ela a clareira até o obelisco que era quase visível agora naquele lugar entre a noite e o dia, em que o tempo se imobiliza em meio à bruma.

Vivian fez um gesto de despedida aos dois. Voltou-se e seguiu devagar rumo ao obelisco que parecia como se suspenso na bruma, pairando acima do chão.

Com a mão apertada em torno do cristal, voltou todos os pensamentos para o íntimo. Focou todos os poderes e a força da Luz e, em seguida, entrou pelo portal.

Imagens cruéis e dolorosas bombardearam seus pensamentos, tentando quebrar sua concentração numa imensidade de visões fantasmagóricas que pareciam controladas por alguma outra força, como se uma força maléfica estivesse tentando impedi-la de entrar no mundo real.

Podia sentir essa força rasgando-lhe a carne, queimando em sua alma, tentando destruí-la, e soube que era a Treva.

Viu-a, como já vira antes. Pairava logo além das fronteiras da percepção, numa forma vaga, escura, que se assemelhava a um homem envolto em sombras, cuja imagem vinha até ela, empurrando, bloqueando, negando-lhe entrada. Um porteiro cuja horrível risada ressoava em seus ouvidos.

Vivian agarrou a pedra. Absorveu seu antigo poder buscando, através da ardente Luz da pedra, extrair a força que seu pai prometera, somando-a a sua própria. Esta queimou brilhante como a luz de um bilhão de estrelas a lhe escapar pelos dedos, perfurando a escuridão. As sombras se dobraram e se retorceram. E recuaram mais uma vez para as fronteiras da realidade, não mais capazes de impedi-la.

Vivian foi lançada pelo portal para o outro lado, caindo sobre a neve na clareira do bosque.

Ficou ali, completamente imóvel, inanimada, quase como se estivesse morta.

 

As chamas nas tochas bruxulearam violentamente, lançando imagens distorcidas e ferozes ao longo das paredes da entrada do salão real quando Rorke confrontou o guarda, tomado de ira.

— Ela deve ter passado por este caminho!

— Não, milorde — o guarda, Sevian, retrucou com absoluta certeza. — Eu estava em meu posto durante toda noite. A senhora não passou por aqui, nem ninguém mais.

Como era possível, Rorke pensou, que Vivian saísse e não fosse vista, num lugar onde as pessoas se amontoavam nos salões e pelos corredores o tempo todo, fosse dia ou noite?! Junto à raiva, sentia a incerteza de que o motivo do sumiço fosse o que havia acontecido entre os dois.

Pelo céu! Ele nunca conhecera uma mulher com tamanha paixão. Nada que tinham partilhado indicava algum pesar ou infelicidade ou preocupação da parte dela, embora ele houvesse pensado nisso, já que pressentira, por sua inocência, que Vivian nunca se deitara com nenhum homem. Depois, quando descobrira que aquilo que suspeitara era verdade, tivera o cuidado de não machucá-la ou assustá-la. Mas fora ele que se espantara e se surpreendera com a extensão de sua paixão e a maneira desinibida como correspondera. E, agora, ela se fora. Sevian insistiu.

— Milorde, ninguém passou por aqui.

A frustração aumentou. Era quase alvorada. Logo todos saberiam que ela sumira, inclusive o bispo, que já andava atrás de motivos para desacreditá-la junto a Guilherme.

Tarek aproximou-se, pois Rorke o havia informado do desaparecimento de Vivian. Com um silencioso gesto de cabeça, Tarek indicou que a minuciosa procura pela casa real resultara em nada.

Rorke verificou os estábulos. Depois, a falcoaria. No fundo, onde o pequeno falcão ficava usualmente preso, ele encontrou a velha ama, Meg.

— Ela se foi — disse Meg, sem surpresa, ao voltar os olhos cegos para ele, embora Rorke não tivesse feito qualquer ruído ao entrar. — E levou o falcão consigo.

— O que sabe sobre isso? — indagou, suspeitando que ela soubesse de algo mais. Porém a expressão da velha era tão vazia como os olhos opacos. Ou talvez fingisse.

— Ela não confiou em mim. Estava com o senhor, milorde — Seu tom se exasperou. — Sabia que não deveria ficar com o senhor. Você fez sua conquista — ela continuou, com desprezo. — Deitou-se com ela. Sonhei com isso a noite passada. Vi o sangue virgem de Vivian em seu corpo. — Então as feições enrugadas se iluminaram de compreensão. — Será que o conquistador agora descobre que foi conquistado? — Riu, uma risada caçoísta.

Rorke sacudiu-a.

— Não tenho tempo para seus enigmas nem seus sonhos. Ela disse que você vê muitas coisas, a despeito de sua cegueira. Pode ver para onde ela foi?

— Vivian foi procurar a verdade. Foi para o bosque e levou Áquila consigo. Precisa encontrá-la. — Meg estremeceu como se tomada por um repentino calafrio. — Há muito perigo. — A mão ossuda fechou-se sobre o braço de Rorke com força surpreendente. — Não está mais aqui, mas espera por ela. Precisa encontrá-la!

Do lado de fora da falcoaria, o olhar de Rorke esquadrinhou o céu até a copa das árvores no bosque, além das muralhas da fortaleza.

A dúvida o corroía. Será que ela fugira deliberadamente?

Ela fora apaixonada, muito além de seus sonhos mais ardentes. Responsiva, curiosa, inventiva. Doce e terna num momento, cheia de ardente abandono no outro. Tinham feito amor repetidas vezes até que finalmente haviam adonnecido de exaustão. Pelo menos ele julgara que ambos dormiam.

Agora, Vivian se fora. E que perigo era esse de que a velha falara? Seriam os devaneios irracionais de uma louca, como a bruxa queria que todos acreditassem? Ou havia algo mais?

Ao encontrar seu escudeiro, Rorke berrou uma ordem:

— Sele meu cavalo. Apenas sela e brida. Sem armadura de batalha.

Tarek se aproximou.

— Soube notícias?

— Sim, pela velha bruxa. Vivian foi para o bosque.

— Vou com você — Tarek anunciou.

Em questão de instantes ambas as montarias estavam seladas e os dois deixaram o pátio pelo portão mais próximo do bosque.

Seguiram depressa pela muralha externa da fortaleza. Não demorou muito até que Rorke descobriu o que estava procurando: pequenas pegadas, conduzindo ao bosque.

Fazia quanto tempo que Vivian sumira, Rorke se perguntou. Uma hora? Duas? Mais? E como ela saíra sem ninguém ver?

Naquele momento, não importava. O importante era encontrá-la. Havia muitos perigos para uma mulher sozinha e desprotegida.

Se perdesse terras, lutaria para recuperá-las e as reivindicaria em triplo como recompensa. Se perdesse dinheiro, caçaria os ladrões e os faria pagar dez vezes mais.

Mas, e quanto a uma bela saxã de olhos como fogo azulado, cabelos da cor da chama e o poder de fazê-lo querer rir, de enchê-lo de raiva e de levá-lo a fazer amor até que ambos se incendiassem?

Que preço poderia aliviar aquela perda?

Logo se tornou impossível seguir as pegadas no bosque.

— Aqui nos separamos e cada um procurará numa parte do bosque — Rorke anunciou, sentindo urgência em encontrá-la.

Tarek concordou e seguiu pelas árvores.

Rorke fez o cavalo dar meia-volta e seguiu na direção oposta. Seguiu pelo mato espesso e por entre árvores caídas, procurando algum sinal de que ela passara por aquele caminho. Estava prestes a voltar e redobrar os esforços em outra direção quando ouviu o grito de um falcão.

A ave mergulhava sobre as copas das árvores e emitia o crocitar de quatro notas que Vivian lhe ensinara. Era o pequeno peregrino, Áquila. E se o falcão estava por perto, ela também estava.

Então o grito do falcão soou de novo, um único pio de alarme, agudo e vibrante. Rorke incitou o cavalo na direção do chamado.

Vivian tentou se mexer. Não tinha idéia do que a despertara. Tampouco sabia onde estava ou o que acontecera. Então, gradualmente, teve consciência do frio sob o corpo e do céu cinzento acima das copas das árvores. Tudo voltou, num fluxo repentino de memória e percepção física: a visão nas chamas, a ida ao bosque e a jornada através do portal de pedra.

Seu corpo doía como se tivesse sido espancada. E ela se deu conta da enorme diferença entre a jornada para o outro mundo e a volta. Era como se tivesse lutado até as últimas forças com algo que a impedia de voltar.

Tentou se mover ao ouvir um ruído. Não conseguiu discernir o que era. Julgou que o tivesse imaginado. Fechou os olhos e caiu de costas de exaustão. O alerta aflito de um falcão ao alto atravessou a muralha de dor e a letargia que lhe entorpecia a mente.

Fora o grito repetido de alarme de Áquila que a arrancara do estupor. Algo estava errado. Havia perigo, e muito perto.

Então, o silêncio foi de repente sacudido por um estourar de galhos e farfalhar de folhas, seguido pelo baque compassado de patas e o bufo de um animal que investia para a clareira. Vivian sentiu o perigo tão bem como ouvira o crocitar de alarme do falcão.

Ergueu-se sobre um cotovelo. Conforme seus sentidos continuavam a clarear e entrar em foco, ela soube da ameaça antes mesmo de vê-la.

Um enorme javali entrara na clareira do outro lado da floresta. Não era fácil vê-lo com seus pêlos eriçados a se mesclarem aos matizes ocres da mata. Mas era visível a fumaça da respiração condensada pelo ar frio da manhã, e seu grunhido era assustador.

Vivian ficou absolutamente imóvel.

O animal escavava a neve, impaciente, as presas curvas, amarelas como chifres a estalarem na queixada. A cabeça larga voltou-se na direção de Vivian, o focinho chato a se torcer conforme captava seu cheiro.

A criatura a fitava como se a contemplasse. E um tremor de inquietação tomou conta de Vivian, diante da vaga lembrança da jornada de volta através do portal.

A memória expandiu-se e aguçou-se. Sombras serpenteavam e tomavam formas. Primeiro, a de um homem. Depois, de alguma criatura sobrenatural a investir, obrigando-a a recuar, como se tentasse impedi-la de voltar para o mundo real, encurralando-a em meio à bruma.

Parecia impossível e, no entanto, conforme encarava o animal, Vivian percebeu que a criatura viera terminar o que fracassara em fazer no portal.

Ao alto, o grito do falcão cortou o ar da manhã, urgente e sombrio como a tempestade que se avizinhava.

Rorke avistou o peregrino, mergulhando entre as copas das árvores. Incitou o cavalo à frente, seguindo o vôo rasante até uma clareira. Os piados aflitos faziam seu sangue enregelar nas veias.

Em meio ao branco desnudo, ao cinza frio e a ausência de verde da floresta, ele avistou a ardente coroa de cabelos avermelhados de Vivian. Ela estava deitada na base do que parecia ser uma enorme pedra. Então, Rorke viu o javali.

O bicho rosnava e escavava o chão, o bufo a se condenser no ar frio, os fios de muco congelado a luzir no focinho torcido conforme se preparava para investir.

Com um agudo grito de guerra, ele incitou o cavalo para a clareira. Saltou para o chão com a espada larga e o punhal na mão.

Ao sentir o cheiro do javali, o garanhão disparou pela clareira, os olhos a se revirarem. Estacou, a alguma distância do porco selvagem, e empinou, as patas ameaçadoras no ar. Por mais incrível que parecesse, o javali mostrou-se apenas ligeiramente perturbado. E, como se fizesse pouco da ameaça, voltou a cabeça mais uma vez na direção de Vivian.

O vento mudou, carregando o cheiro de Rorke até o animal. O javali virou a cabeça e, por um momento, pareceu que avaliava aquele novo alvo com uma percepção aguda.

—Não! — Vivian murmurou, desesperada, pois ela também vira a sutil mudança na postura do animal.

Ela quase conseguia ouvir os pensamentos da criatura, e sabia que era de outro mundo. Sabia também que mataria Rorke. Havia apenas uma remota chance de que ele pudesse sobreviver.

Vivian levantou-se com dificuldade e deu um passo na direção do animal, atraindo-lhe a atenção. A cabeça horrível e deformada virou-se para ela.

O bicho bufou, expelindo um jato de baba ao escavar a neve. Os olhos tão negros como a Treva luziram com uma luz malévola, e algo muito próximo de um sorriso mortal curvou o beiço do animal.

Com um guincho de enregelar o sangue, a besta investiu pela clareira, cabeça baixa, os olhos fixos nela.

O golpe a lançou ao chão. Em meio aos grunhidos do animal e aos roncos sedentos de sangue, ela sentiu aquelas presas mortais lhe rasgarem a carne.

Como se saísse fora do corpo, ela viu o ataque à distância e, ao mesmo tempo, de dentro do corpo. Olhou para a cena pela extensão branca de neve e então voltou os pensamentos para o íntimo, rumo à sobrevivência.

Desligou-se da dor física do mundo mortal como se alguma outra pessoa sofresse o ataque. Concentrou-se na Treva encarnada no animal que tentava destruí-la. Sua mão agarrou o cristal azul com força enquanto sua alma chegava ao coração da pedra para alcançar o poder da mão que se estendia para ela.

— Viva, filha! — as palavras ultrapassaram a dor que lhe dilacerava a alma. — Precisa lutar contra a Treva! Extraia o poder da Luz!

Pontos brilhantes de cor a circundaram, e depois gradualmente se separaram e se aglutinaram de modo que os tons se entrelaçaram e se tornaram fios de cor verde-escuro da floresta, branco reluzente da neve, cinza prateado do céu de chumbo ao alto, ocres amadeirados, e brilhante sangue escarlate, tudo tecido na visão da tapeçaria.

Viu, de relance, um vislumbre fugidio das imagens que começavam a emergir conforme as meadas se juntavam a outras. Era como se alguma mão invisível as tecesse, cuidadosamente, um homem e uma mulher cujos corpos lentamente se uniam numa explosão de ardente e abrasadora cor que mudava a cada instante, sensual e eroticamente, numa junção intensa e íntima, conforme os fios do destino eram trançados.

Então ela ouviu o grito de Rorke e não sentiu nem viu mais nada.

Ele atacou, cravando o punhal dezenas de vezes no animal, até que por fim o javali virou aquela cabeça repugnante na direção dele. O sangue escorria daquelas presas letais, o sangue de Vivian, para se misturar ao sangue da criatura.

— Venha, prole sedenta de sangue de Satã!

As imprecações encheram a clareira conforme Rorke postou-se em posição de combate, a espada empunhada com ambas as mãos.

Então, ele viu aquilo que parecia um sorriso malicioso no focinho horrível do animal, como se zombasse dele e da espada reluzente que já arrancara sangue da criatura.

— Venha enfrentar sua morte! — ele desafiou.

Como se compreendesse, o animal fez um giro, baixou a cabeça deformada, grunhindo e escavando o chão coberto de neve com as presas ensangüentadas. Balançou o focinho para frente e para trás. Recuou, soltou um guincho atroz, e investiu. Arrojou-se com uma força incrível, mirando as pernas de Rorke, com a intenção de aleijá-lo com aquelas presas mortais e depois arrastá-lo para o chão, para a morte.

A espada era uma arma desajeitada para a situação. Ele teria apenas uma chance de incapacitar o animal. Quando o javali estava a alguns passos de distância, Rorke lançou-se de joelhos, apoiando a ponta do cabo da espada no chão duro à sua frente, a lâmina erguida num ângulo na direção do peito da fera.

A força do choque quase lançou Rorke ao chão. Mas ele colocou todo o peso por trás da lâmina conforme a ponta mortal finalmente atravessava o couro rústico e a musculatura pesada, deslizava ao longo dos ossos e depois se afundava na carne macia dos órgãos vulneráveis do animal.

Com guinchos de dor e fúria, aturdido pelo golpe, o javali recuou e enterrou os cascos no chão para recuperar o equilíbrio.

Naqueles poucos segundos, Rorke recuperou o punhal do chão, onde o deixara cair. E enterrou-o naquele ponto vulnerável entre as espáduas, seccionando a espinha da fera. Depois, pôs um fim aos guinchos frenéticos do animal com um golpe rápido nas veias da garganta.

O bicho foi sacudido por um último espasmo de agonia enquanto o sangue vital era bombeado pela ferida, jorrando sobre a neve, tingindo-a de escarlate.

Com um grito feroz de angústia, Rorke lançou-se pela clareira na direção da jovem que jazia amontoada no chão ensangüentado.

A frieza do corpo de Vivian, quando ele a tocou, o deixou aturdido. Pareceu penetrar por seus dedos, derramar-se por dentro até se enroscar em torno de seu coração. Ele a virou para cima, aninhando-a nos braços, enquanto tocava-lhe os ferimentos.

Um arquejo escapou dos lábios dela. As pálpebras estremeceram e se abriram, mostrando os olhos assustados, de um azul profundo, um olhar vago que o fez recordar-se dos olhos sem visão dos mortos nas batalhas. A pele parecia exangue, mortalmente pálida.

— Rorke? — ela murmurou, por entre os lábios roxos, congelados.

— Não tente se mexer! — ele ordenou, aterrorizado.

— A criatura...?

— Morta! — ele exclamou, brandindo a palavra como uma arma.

Ela estremeceu violentamente.

— Tive medo...

— Não há nada a temer. — Ele suavizou o tom de voz. — Acabou, ma chère. — O tratamento era quase uma carícia. Ele a puxou para mais perto. — Preciso levá-la de volta para a fortaleza, se julgar que está forte o bastante para cavalgar.

Ela concordou com um gesto débil de cabeça.

Ao alto, o falcão crocitava freneticamente. Muito perto dali, alguém se aproximava sorrateira e silenciosamente, como se uno com o vento.

A figura imponente de Tarek emergiu dentre as árvores, a cimitarra empunhada nas duas mãos. Correu o olhar pela clareira e viu o corpo inanimado do javali e o amigo inclinado sobre a bela mulher.

Rorke gritou:

— Traga meu cavalo!

Momentos depois, enquanto Rorke montava, Tarek erguia Vivian gentilmente até a sela.

Ela estava pálida, o corpo frágil enrolado nas dobras de seu manto.

Um ferimento longo e denteado cortava a extensão de sua perna do tornozelo até acima do joelho. Como guerreiro, Tarek sabia que uma única lesão como aquela poderia ser fatal com a perda de sangue. Se a pessoa sobrevivesse, o membro ficaria horrivelmente aleijado. Tarek ficou mudo, o rosto sério, ao enrolar as beiradas do manto em torno das pernas e dos pés de Vivian, o tecido escuro tingido de sangue.

Rorke aninhou-a contra o calor do próprio corpo. Com o cheiro do sangue do javali a se mesclar ao sangue humano, o garanhão remexeu-se, nervoso. Mas Rorke o conteve com a mão forte nas rédeas.

— Levarei suas armas — Tarek disse ao amigo, quando

Rorke girou o animal e rumou para a beira da clareira, na direção da fortaleza.

O olhar vago de Vivian cravou-se pela última vez na clareira. O portal de pedra se fora, desvanecido em meio à bruma. Seu sangue e o do javali morto se mesclavam num padrão perfeito, manchando a neve.

A criatura estava morta. Fora abatida pela espada de Rorke, e seu corpo jazia imóvel.

Contudo, conforme os olhos de Vivian se fecharam e ela voltou seus poderes para o íntimo, direcionando-os para a fragilidade da carne destroçada, sentiu algo mais terrível que a dor lancinante. A criatura da Treva ainda vivia. Movia-se com constância pela floresta, espreitando-os por detrás de cada árvore e rocha e da cobertura de cada moita.

Um grito ressoou no topo da muralha quando se aproximaram da fortaleza. Rorke e Tarek foram reconhecidos e os guardas apressaram-se a abrir os enormes portões. Sem diminuir o passo, Rorke incitou o cavalo pelo fosso seco, para a margem oposta e através dos portões.

No pátio, Rorke escorregou para o chão, segurando Vivian com firmeza. Seu escudeiro apareceu correndo.

— Procure a velha bruxa e a traga até mim! — Passou pelo escudeiro assustado, que saiu correndo para fazer o que ele lhe ordenara.

Rorke carregou Vivian pela entrada, atravessou o grande salão e seguiu pelo corredor até seu quarto. Chutou a porta e levou-a para dentro. Deitou-a gentilmente sobre a cama e então avistou o escudeiro.

— Onde está a velha?! — gritou.

— Estou aqui — Meg o informou, passando por Tarek e o escudeiro e se postando ao lado da cama.

— Tem o mesmo poder de emendar ossos quebrados e fechar a carne com o toque da mão? — ele perguntou.

Embora sem visão, o olhar de Meg cravou-se nele. Ela não se dera conta até aquele momento que sua senhora revelara o dom muito especial que tinha a ele. Contudo, mesmo sabendo disso, não havia desprezo nem dúvida em sua voz, mas uma aceitação do que vira obviamente com os próprios olhos, embora tais coisas estivessem além das crenças aceitas no mundo real.

— Infelizmente, milorde, esse dom pertence apenas a ela — Meg admitiu, com um peso no coração. — Mas farei o que eu puder.

— Fará tudo que puder e mais — ele ordenou, a voz falhando. — Vivian não pode morrer!

Diante do desespero naquela voz, Meg voltou-se para o normando com uma nova percepção. Seria possível que aquele ousado guerreiro fosse aquele mencionado na antiga lenda?

— Farei o que eu puder — repetiu. — O resto é com ela. Aproximou-se da cama e debruçou-se sobre Vivian, vendo-a com a sensibilidade dos dedos. Tocou a face da sua senhora, os braços, as mãos e a extensão do corpo até a barra rasgada e ensopada de sangue de seu vestido.

Um suspiro fundo e triste escapou dos lábios finos e os ombros frágeis vergaram como se ela descobrisse mais do que poderia suportar.

— Eis le, mo chroi — murmurou em celta antigo, conforme acariciava a face de Vivian, como se confortasse uma filha adorada. Sua voz tremia de incerteza quando falou novamente. — Farei tudo que eu puder.

Rorke distribuiu ordens a seu escudeiro.

— Mandarei Mally ajudá-la — disse a Meg.

— Não! — a velha retrucou, rispidamente. — Ninguém deverá ficar perto dela. Eu farei isso. Tenho tudo que preciso. Mande os outros embora.

Ela sentiu a força do olhar incisivo do guerreiro sobre si e, nele, a desconfiança. Sentiu algo mais também, uma poderosa emoção tão crua e angustiada como a que ele sentiria em qualquer batalha.

Seria possível, pensou outra vez, que aquele cavaleiro normando, um homem mortal com fragilidades humanas, pudesse amar sua senhora?

Ela ouvira os murmúrios quando ele voltara. Uma grande batalha fora travada na floresta. Com apenas uma espada na mão, Rorke FitzWarren enfrentara um javali, uma fera enorme e feroz. Mesmo agora, ele tinha o cheiro da morte da criatura sobre si.

Seria possível? Seria ele a criatura nascida em fogo e sangue que abriria suas asas pela terra, como sua senhora vira em sua visão?

Com uma nova consciência, Meg murmurou, suavizando a voz:

— Quando Vivian deslizou para este mundo, foram minhas mãos que primeiro a seguraram. Ela é como minha própria filha. Se quiser que ela viva, precisa deixar-me com ela. É a única maneira.

Rorke ordenou a todos que saíssem do quarto. Então seu olhar cravou-se em Vivian, estendida na cama que tinham partilhado apenas poucas horas antes. Pela primeira vez, sentiu medo.

Medo de que pudesse perder a luz e o brilho. Medo natural que emanavam dela.

— Eu a entrego a seus cuidados, senhora — ele concordou. — Mas ficarei aqui. Seja o que for que precisa fazer para salvá-la, faça! Mas eu não sairei.

Meg ouviu a firmeza de aço naquela voz.

— Está bem, guerreiro. Sinto que tem coragem o suficiente para confrontar qualquer inimigo em batalha, inclusive a morte. Mas tem coragem para confrontar a verdade? Não importa o que essa verdade possa ser?

Com determinação, Rorke exclamou.

— Já sabe minha resposta.

— Que assim seja, então. Peço apenas uma coisa.

— E o que é?

— Não importa o que aconteça, não importa o que veja, não deve dizer ou fazer nada.

— De acordo.

— Então passe as barras nas portas para que ninguém possa entrar—instruiu Meg. — Assim que tiver começado, não pode haver distrações ou interrupções. Faça fogo na lareira e acenda cada vela, colocando várias perto da cama. Eu farei o resto.

Meg aproximou-se da cama. Tirou o manto rasgado e o vestido de Vivian. A respiração agoniada de Rorke a informou da gravidade dos ferimentos antes mesmo de tocá-los. Ele se recusara a ficar em algum canto do quarto. Ela aceitara, porque não havia tempo para discutir.

Dentro das dobras do manto, Meg encontrou o pacote de ervas antigas. Aquela essência estranha, pungente, não encontrada por centenas de anos neste mundo, a fez descobrir quem a tinha enviado.

Ah, Ninian, pensou, a primeira criança que eu trouxe para este mundo e mãe desta menina que agora jaz tão perto da morte.

Sentiu de alguma forma que as poções especiais que recebera pudessem ser usadas para impedir que Vivian morresse.

— Talvez haja esperança — murmurou, parando apenas uma vez mais quando os dedos tocaram a carne dilacerada.

Tomou coragem e começou a cantarolar a antiga cantiga celta de encantamento enquanto banhava a sua senhora com água perfumada com ervas, limpando o sangue da ferida. Sua voz tremeu ligeiramente, e então ficou mais forte quando ela ergueu o cristal diante de uma vela e entoou as antigas palavras celtas:

— Elemento de fogo, espírito de luz, essência de vida, acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade.

Houve apenas silêncio. Sentindo a impotência de sua cegueira que a impedia de ver o cristal conforme o segurava diante da chama da vela, ela começou outra vez.

— Elemento de fogo, espírito de luz, essência de vida, acordem a noite! — Sua voz quebrou-se num soluço.

— Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade...

Mas foi outra voz que murmurou as últimas palavras do encantamento, conforme Vivian balbuciou:

— Queimem no brilhante dourado da eternidade.

O rosto de Meg iluminou-se de impressionante alegria. E ela apertou as mãos juntas sobre o cristal.

— Minha filha querida! Pensei que a tivesse perdido. Vivian suspirou. Custara quase toda a força que lhe restara, mas ela conseguira se concentrar no cristal que Meg segurava nas mãos, e as palavras antigas a tinham despertado.

— Meg querida — ela murmurou, como se não tivesse visto Rorke. — Traga a vela para mais perto.

Meg fez o que ela pediu das sombras ao lado da cama. Rorke observou quando Vivian focalizou o olhar na chama da vela, refletida nas profundezas do cristal azul. E, na expressão da velha ama, ele viu o aviso silencioso de que não devia dizer ou fazer nada.

Então, a jovem levou uma das mãos ao pescoço e segurou a pedra, sentindo seu calor ardente queimar como fogo, reacendendo a chama que vivia dentro dela tal como aquela que habitava o coração do cristal. Estendeu a outra para a chama da vela. Depois, fechou os olhos. E murmurou as palavras antigas na mesma cadência ritualística que Meg entoara, momentos antes.

— Elemento de fogo, espírito de luz, essência de vida, acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade.

Rorke viu, fascinado, quando a chama da vela se expandiu e cresceu. Uma corrente de ar. Nada mais. Então observou, aturdido, quando Vivian estendeu a mão para a chama.

Meg sentiu que ele iria tentar impedi-la e sua mão ossuda, forte como aço, agarrou-o pelo braço.

— Queria a verdade, guerreiro — ela sibilou. — Agora a terá. Mas não deve fazer nada. Ou isso significará a morte de Vivian!

Rorke controlou-se, cheio de aflição como se uma faca fosse cravada dentro dele, quando as labaredas envolveram Vivian. Continuou a olhar, em muda agonia, como se fosse a própria morte quando o fogo pareceu consumi-la, até que teve a certeza de que não poderia mais olhar.

Ia se afastar quando Meg se recusou a permitir.

— Você é parte disso agora — ela murmurou, pois embora não enxergasse, podia sentir tudo que se passava. — Esta é a verdade de Vivian. Ela se arrisca muito em revelá-la. Se você se afastar agora, será causa de sua morte, tão certamente como se enterrasse uma espada em seu peito.

Rorke continuou a olhar, certo de que enlouquecia. Não havia lógica no que presenciava; nenhuma lógica que existisse no mundo real. Então, forçou-se a ir além da loucura.

Sentiu o calor do fogo que queimava em torno dela. Com a cabeça jogada para trás, uma expressão radiante na bela face, a cascata deslumbrante de cabelos a se tornar o próprio fogo, era como se Vivian fosse uma criatura feita de labaredas. Não destruída pelas chamas, mas extraindo vida delas. E descobriu que ela não era deste mundo.

Ao se levantar da cama, Vivian pousou a mão sobre o braço de Rorke, postado ao lado da cama, completamente aturdido. Através da camisa em seu braço, ela sentiu seu sangue vital pulsar pelas veias, rápido e forte como se tivesse acabado de travar uma dura batalha. E sentiu algo mais sob os dedos, uma angústia tão grande que mal conseguiu suportar. Porém, com uma nova percepção, captou muito mais. Uma união mais profunda do que a junção física de seus corpos, quando tinham feito amor.

Ele arriscara a vida pela dela e matara a fera, uma criatura da Treva que ainda não compreendera. Na mistura de seu sangue de guerreiro com o de Vivian, houvera uma união bem mais profunda que a da carne. Houvera uma união de almas. O mortal se unira ao imortal.

Ele agora era parte dela e ela era parte dele. Mas Rorke também não tinha compreensão disso.

Vira apenas o que poucos mortais tinham presenciado, e Vivian percebeu que parte daquela angústia provinha da luta para compreender o que acontecera. Descobriu isso no olhar ardente com que a fitava.

Tentou sentir seus outros pensamentos, mas o elo entre eles ainda era muito novo e frágil. Descobriu que não queria apossar-se deles como poderia fazer facilmente com os outros. Rorke não era como os outros. O que quer que partilhassem, deveria ser porque ele permitira de bom grado e se abrira para ela.

Sentiu os nervos de seu braço tensos sob a mão e, por um momento, experimentou uma dúvida tão penosa que julgou que não suportaria se ele pudesse recusar-se a aceitar o que vira. Se Rorke se recusasse, a recusaria também.

Então deu-se conta da batalha silenciosa que ele travava sem saber o que poderia encontrar sob a mão, depois daquilo que presenciara.

— Não está queimada?

— Não, milorde.

— E os ferimentos?

— Curados. Pode ver por si mesmo.

— E você é real? Não é nenhum espírito que não posso tocar?

Como se apenas tocá-la pudesse convencê-lo, seus dedos apertaram o pulso de Vivian numa pressão desesperada que teria sido dolorosa para qualquer outra pessoa. Ela sorriu com doçura.

— Pode me tocar.

Atrás de si, ela ouviu o ferrolho correr, e soube que estavam sozinhos.

Como se ainda não tivesse se convencido, Rorke puxou-a bruscamente para dentro dos braços. Sentiu a carne cálida e o sangue a pulsar sob as mãos, e viu-a corporificada à sua frente.

Apertou-a com força contra si, as mãos a se afundarem na cascata dos cabelos, abraçando-a como se julgasse que Vivian pudesse se transformar em fumaça e desaparecer no ar. Então, sua boca pousou sobre a dela num beijo que era ao mesmo tempo terno e desesperado, gentil e ardente, com o desejo a banir qualquer dúvida que restasse.

Ele invadiu-lhe os sentidos, o calor de sua boca a criar um novo fogo que se juntou ao dela e queimou mais forte.

— Sim — ele murmurou, deslumbrado. — Você é muito real.

Logo após Vivian ter escapado da morte, tinham se unido com uma urgência e um desejo incendiário que os consumira. E depois, afastados os últimos traços de dúvida, o ato de amor despertara uma nova ternura dentro de Rorke, ao acariciar e afagar cada pedaço do corpo macio e feminino, com a necessidade de tocar a carne dilacerada que agora se mostrava mais uma vez inteira e flexível sob seus dedos.

Finalmente, rendera-se à necessidade de ser capaz de aceitar o que vira. Era uma mulher real e verdadeira a que se deitara com ele, enchendo-o de paixão.

— Conte-me tudo — pediu, quando ela aproximou-se com um cálice na mão.

Uma perna muito branca e torneada mostrou-se na abertura do manto de pele, livre até da menor cicatriz. O toque mágico de cura que fechara os ferimentos de Vivian e lhe salvara a vida trabalhava bem.

As portas estavam fechadas. A velha ama se fora. Era meio-dia ou talvez meia-noite. Não importava. Nem mesmo Guilherme da Normandia teria recebido uma resposta, caso convocasse seu cavaleiro.

Ela estendeu-lhe o cálice de vinho, os dedos de ambos a se roçarem numa redescoberta do calor ardente que saltava tão facilmente entre os dois. Com uma graça fluida e sensual como uma labareda, que ele agora percebia que era uma parte inerente dela, Vivian ajoelhou-se e depois se sentou nas peles espessas em frente à lareira.

Imaginando o quanto ele sabia sobre as antigas lendas, contou-lhe sobre Ninian e Merlin e a descoberta de seus poderes muito especiais, um legado dos guardiões da Luz. Falou das Trevas que conspiravam contra as forças da luz pelo domínio do reino. Contou-lhe dos outros poderes que descobrira aos poucos e que aprendera gradualmente a usar, inclusive o poder incomum de curar que salvara a vida de Guilherme, e a dela própria, horas antes: o poder do fogo.

— O fogo é um dos elementos da natureza. Minha mãe me chama de filha da paixão, filha do fogo. É como se o fogo queimasse dentro de mim.

— Sim — Rorke confirmou, o olhar cravado nela, a voz mais rouca na garganta, cheia de paixão. — Provei o seu fogo. É, creio, a única maneira que eu gostaria de morrer.

— Não! — ela exclamou, num tom apaixonado. — Não morrer, mas viver! O fogo é o poder da vida dentro de mim. Portanto, também está com você agora que nós nos unimos. Aconteceu naquele momento em que seu sangue se juntou ao meu na clareira, quando você enfrentou a criatura.

— Uma fera violenta — ele comentou, os pensamentos tumultuados com tudo o que Vivian contara. — Eu não tinha certeza de que morreria.

— Não morreu — ela retrucou, muito séria. Seu olhar encontrou o dele, cheio de preocupação. — Ainda está viva. A Treva pode assumir muitas formas. Para Arthur, apresentou-se na forma do amigo, cuja traição trouxe a derrocada do reino. Eu a vi na forma de um homem que tentou me atacar quando eu passava pelo portal. Quando escapei, ele se tornou um javali. Constatei isso nos olhos da fera.

— Que forma assumiu com Merlin?

— Foi uma batalha de poder. Primeiro, destruiu Arthur, pois Arthur era como um filho para Merlin e possuía o coração verdadeiro para ser um rei poderoso que teria destruído a Treva de uma vez por todas. Quando a Treva não conseguiu destruir Merlin, aprisionou-o, impedindo que voltasse ao mundo mortal e usasse os poderes da Luz.

— Mas a Treva não sabia que havia outros com os poderes de Merlin — ponderou Rorke — A filha.

Como o grande guerreiro e tático que era, Rorke via lógica em tudo que ela lhe contara, o que explicava muita coisa a respeito daquilo que sabia sobre lenda, mito e fato.

— Então a lenda de Arthur e Merlin é verdadeira — disse, em tom de aceitação.

— Sim — ela retrucou. — É verdadeira.

Contou-lhe então de seu poder de visão interna, e das visões que lhe apareciam, a começar com a primeira, em Amesbury. De uma criatura nascida em fogo e sangue, a Fênix a se erguer de um leito de chamas, e do aviso da profecia: Cuidado com a fé que não tem coração, com a espada que não tem alma.

Rorke a fitou com uma nova compreensão.

— Você sabia que Guilherme seria vitorioso em Hastings. Ela aquiesceu.

— Vi isso... e outras coisas mais.

-— Que outras coisas viu?

— Vi uma tecelã tecendo uma tapeçaria. Mas o desenho ainda não está terminado. Não sei o que significa.

— Pode ver meus pensamentos? — ele perguntou.

Ela confessou:

— Diferentemente dos outros, seus pensamentos estão fechados para mim.

— E isso a perturba. Pode acreditar que eu seja uma criatura da Treva?

— Não — ela exclamou, com a voz rouca quando ele acariciou-lhe um seio. — Eu saberia. A criatura de minha visão, a Fênix que se ergue das chamas, é uma criatura de fogo e luz, não uma criatura da Treva.

— E, no entanto, você não pode ter certeza.

— Existe um meio.

— Diga e eu provarei.

— Não é assim tão simples. Para que eu possa conhecer verdadeiramente seu coração, você precisa abrir seus pensamentos para mim. Não são apenas seus pensamentos que conhecerei, mas suas esperanças, lembranças e emoções. Sua própria alma estará desnudada para mim.

— Eu não a desnudaria para ninguém mais, minha querida. Pode roubar meus pensamentos, na verdade já os roubou. E já tem meu coração. Descobri isso esta manhã, quando vi que você tinha sumido.

— Não! É perigoso. Se uma pessoa não for forte, pode ser destruída.

— Acha que não sou forte o bastante para suportar?

— Não é isso. Você é forte, mas a dor é intensa. Cada parte de você será abrirá para mim, como uma ferida. Seu instinto natural será lutar e, na luta, haverá mais sofrimento, tão forte e profundo que você pode não sobreviver. Não o colocarei em risco assim. Eu não suportaria ser a causa de sua morte.

— Devo aceitar tudo que você me contou. Vi seu poder com meus próprios olhos e não existe outra explicação. Vi o portal na bruma. Vi seu método de cura, diferente de qualquer um no mundo mortal. E conheci seu fogo, até tive certeza de que iria perecer nele. Agora você me fala de uma grande Treva que procura devastar tudo diante de si sem que reste nada, a não ser uma esperança. Disse que, com esse conhecimento acerca de mim, saberá tudo a meu respeito e verá meu verdadeiro coração. Mas não é verdade que eu também aprenderei tudo acerca de você? E não poderia haver nesse conhecimento algo a ser adquirido para derrotar essa Treva?

Rorke agachou-se no chão diante dela, em toda a sua gloriosa nudez viril, com tanta confiança como se envergasse uma armadura de batalha.

— Tem medo que eu perca minha alma, Vivian. Mas, na verdade, já a reclamou para si. Eu morreria por sua causa em qualquer campo de batalha. Não está em suas mãos dizer sim ou não. Está em meu poder arriscar, se eu quiser — falou e assegurou: — Será feito!

Vivian percebeu que não havia nada que pudesse dizer ou fazer para dissuadi-lo. Nem todos eram fortes o bastante para sobreviver àquilo que deveria fazer. E se ele não suportasse a dor que era tanto física como mental? E se fosse a causa de sua morte?

Como se sentisse o medo e a dúvida que a invadiam ele pousou a boca sobre a dela e beijou-a suavemente.

— Deve ser feito, minha adorável Jehara. Não há outro jeito.

Ela concordou com tristeza, os olhos fechados ao respirar fundo, tragando para dentro de si o calor apaixonado de Rorke, unindo sua força à dele.

— Sim — murmurou. Então, com mais uma respiração profunda, afastou-se. — Preciso atrair os poderes da Luz. O fogo deve ser alimentado para que queime com força. Todas as velas e tochas precisam ser acesas.

Ele concordou. Quando tudo estava feito, voltou e se postou diante dela.

— Você precisa ficar completamente relaxado — ela lhe disse, puxando-o para a cadeira diante da lareira. Quando ele se sentou reclinado na cadeira, o manto de pele enrolado em torno de si, ela o encorajou a tomar mais um pouco de vinho. — Misturei um pó que o ajudará a relaxar. Não deve lutar. Deve entregar-se por inteiro.

Ele olhou para o cálice e então, abruptamente, entornou o conteúdo todo de uma só vez.

— Posso pensar em outras maneiras de relaxar, pois você tem esse poder bem maior do que qualquer vinho ou poção, minha cara.

— Talvez, mas na verdade exerço pouco controle sobre eles quando você me toca.

— Uma feiticeira enfeitiçada?

Ele a puxou para mais perto. O calor de seu hálito mesclou-se ao dela. Sua boca roçou a de Vivian com uma ternura agoniada. Mas suas palavras soaram duras.

— Eu me rendo a você, senhora do fogo.

Por favor, ela pensou, murmurando uma prece silenciosa ao Deus de Poladouras, permita que o coração de Rorke seja verdadeiro. Pois eu não poderia suportar ser a causa de sua morte.

Trouxe uma vela para mais perto e colocou-a entre os dois.

— Olhe para a chama — instruiu, baixando a voz para que as palavras fossem envoltas em suave entonação musical, ao dar início ao encantamento que uniria seus pensamentos. — Concentre-se na chama e nada mais. Veja sua forma, o jeito como gentilmente se agita e se move, todas as cores, o amarelo pálido na ponta, pelo qual você pode quase ver através dela, depois o amarelo brilhante, o ouro suave, e finalmente o azul, no coração da chama.

Rorke suspirou.

— Olhe para a chama — disse, suavemente, concentrando o próprio olhar no centro da labareda. — Veja as cores. Sinta seu calor. Ouça o som que faz ao derreter.

— Pense apenas na chama, feche seus olhos e a veja.

Ele obedeceu, fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para frente e descansou os braços no apoio da cadeira. Seu corpo relaxou, os músculos poderosos ficaram à vontade.

Suas feições entraram em repouso, aliviadas das fortes emoções e da máscara igualmente forte que ele mantinha afivelada ao rosto.

Rorke se rendera à vontade de Vivian. Ela poderia encerrar tudo ali, trazê-lo de volta do lugar de doce repouso onde seus pensamentos agora jaziam. Mas ele exigiria a verdade. E ela seria forçada a dizer. Não havia outra escolha a não ser encontrar a verdade maior que habitava seu coração e sua alma.

Ainda segurando a vela entre os dois, o frágil elo da chama agora a conectá-los um ao outro, ela passou os dedos da mão direita pela ponta da labareda, fortalecendo o vínculo, avançando, abrindo um portal para a alma de Rorke.

Sentiu a força da chama queimar através das veias, procurar e encontrar a chama da vida. Colocou a vela de lado.

Voltou-se para Rorke, o fogo a queimar agora internamente, e pousou a mão ao lado de sua cabeça, a pressionar gentilmente até que sentiu o duro contorno dos ossos sob as pontas dos dedos. Pousou a outra mão sobre seu coração, e depois fechou os olhos. Murmurou as palavras antigas.

— Elemento de fogo, espírito de luz, essência de vida, acordem a noite. Fogo da alma, chama de vida, enquanto a luz revela a verdade, queimem no brilhante dourado da eternidade.

Sua consciência juntou-se à dele numa explosão de violentas cores. Ela sentiu a luta dentro dele para afastá-la, as muralhas de proteção erguidas durante anos como um escudo sobre o coração e alma, encerrando tudo do lado de fora.

Enviou-lhe um pensamento, uma lembrança do momento partilhado no passado recente, a imagem de seus corpos unidos; o terno assalto com que Rorke tomara seu corpo; a entrega física a ele, como agora o persuadia a se abrir e entregar-se, o ardente poder de seus corpos se tornando unos conforme seus pensamentos procuravam se unir aos dele.

Então, sentiu a última das resistências ceder quando o corpo poderoso parou de lutar fisicamente; e a completa rendição, quando a alma de Rorke abriu-se para ela.

Viu-se lançada num vórtice de visão, som e cor, em meio a cada experiência, pensamento e emoção que ele já tivera ou possuíra. Era avassalador. As imagens se infiltraram por sua consciência num borrão ofuscante, fora de controle, com o tormento das emoções, conforme ele desvendava a alma e o coração.

Imagens de rostos passavam de relance diante de Vivian. Tarek ai Sharif, o duque Guilherme, Stephen de Valois, a rainha Matilda, o conde, e outras mais que ela reconhecia vagamente e incontáveis que não sabiam quem eram.

Então, as imagens diminuíram seu caótico bombardeio e se acomodaram numa ordem. Havia imagens de uma batalha feroz e Vivian soube que era a batalha de Hastíngs.

Então, foi catapultada para o passado na Normandia; o conselho da nobreza em que Guilherme tomara a decisão de tomar o trono da Inglaterra; os incontáveis encontros com os homens, o sentimento para com Stephen de Valois. como o de um irmão, a falta de qualquer afeto por Judith de Marque ao levá-la para a cama.

Voltou bem mais para trás, através de incontáveis campanhas militares; a longa amizade com Guilherme da Normandia; a campanha no Império Bizantino; mais batalhas; a amizade especial com Tarek ai Sharif e o encontro que os unira, uma vida poupada por uma vida salva e um juramento de sangue e de lealdade.

Viu um homem que sabia através das lembranças de Rorke ser seu pai, o conde de Anjou. Viu também Rorke com um rapaz que soube ser seu irmão mais novo, Philip. Experimentou sua vergonha e sofrimento pelo nascimento bastardo, seu anseio por ser amado como seu meio-irmão e herdeiro do pai era amado.

Vivenciou incontáveis outras experiências de infância. Sentiu seu amor incondicional ao irmão, amor que nunca vacilou ou se transformou em amargura com as crueldades do destino que o fizera nascer um bastardo.

Depois, experimentou a dor devastadora da separação, os anos duros que tinham se seguido, as incontáveis campanhas conforme ele crescia em estatura e valentia. Depois, a batalha em Antioquia, onde irmão se reunira a irmão no campo de batalha. Reviveu a proteção que dera ao irmão, mal acostumado aos rigores da guerra. Os horrores da batalha, a superioridade numérica do inimigo, a posição conquistada, a luta feroz.

Vira Philip enterrar a própria adaga, bem fundo no peito, tirando a própria vida.

Philip morrera nos braços de Rorke. Mas a tragédia maior jazia no fim da longa jornada, quando Rorke levara o corpo do irmão para casa, em Anjou, com a acusação cruel de seu pai de que fora Rorke que tirara a vida do próprio irmão para que Anjou pudesse ser sua. As palavras duras, cruéis, que jamais poderiam ser retiradas, as acusações, o desprezo e o ódio do conde que eram como uma espada de batalha a lhe desferir golpes e, finalmente, o banimento.

— Saia de minha presença! — seu pai vociferara. — Que destino maldito é esse que faz com que o bastardo viva enquanto meu filho verdadeiro jaz morto e frio? Saia de Anjou e nunca mais volte, pois não é nenhum filho meu!

A dor fora intensa, maior que qualquer faca enterrada fundo. Vivian sentiu as lágrimas que escorriam pelas faces ao mesmo tempo em que experimentava a dor e a sensação de perda de Rorke, todas as esperanças e sonhos de um rapazinho destroçados e congelados no coração de um poderoso guerreiro cuja única falta fora amar demais seu irmão.

Rorke partira de Anjou, jurando que um dia voltaria e a reclamaria como sua, mesmo que o único meio fosse mais derramamento de sangue.

Vivian não julgou que pudesse prosseguir. E, no entanto, sabia que interromper a conexão entre os dois agora significaria a morte certa de Rorke. Teria de suportar tudo, até que soubesse de cada coisa do passado e pudesse então fazer a jornada para o futuro daquilo que ainda estava por vir.

Vivenciou tudo que se seguiu depois da morte de seu irmão, ao voltar mais uma vez aos acontecimentos em Hastings. Desfrutou a jornada de Amesbury para Londres, das experiências sensuais da descoberta um do outro, a ardente paixão de seu ato de amor. E, finalmente, chegou ao javali que fora morto na floresta.

Lágrimas lhe escorreram pela face diante da dor que ele suportara. Ela lhe pedira que abrisse a alma e Rorke o fizera. Seu coração e alma eram verdadeiros. Agora, ela se sentia arrojada irrevogavelmente do passado do que fora para o futuro do que ainda seria.

Visões apareceram. Imagens encheram sua consciência, uma criatura nascida em fogo e sangue, a Fênix a se erguer das chamas; um grande perigo e rivalidade; a Treva emergente, uma batalha cataclísmica na qual o futuro do reino estava em jogo; a queda dos antigos reinos; a coroação de um rei todo poderoso; os ferozes leões gêmeos na insígnia de um soldado.

E, finalmente, os ecos das antigas verdades que Rorke nunca soubera e que ela podia ver somente agora que desvendava todas as coisas que tinham modelado a vida dele.

Soltou um grito de espanto quando a verdade se desdobrou.

Rorke nascera como primogênito, com todos os direitos e herdeiro legítimo do conde de Anjou e de sua jovem condessa. Mas aquele fora um casamento sem amor. A jovem condessa, ardente e voluntariosa, odiava o marido. Em seu leito de morte com a febre pós-parto, ela arquitetara a morte do próprio filho preferivelmente a tê-lo criado por um pai frio e despótico.

A criança foi trocada pelo corpo do próprio filho bastardo do conde, que morrera naquela mesma noite, ao nascer. O conde de Anjou enterrou a esposa e o filho, sem saber da verdade até muitos anos depois, quando banira o primogênito para sempre e perdera o filho mais novo nascido de seu segundo casamento.

Rorke dera seu coração e sua alma a Vivian. Agora, ela os devolvia, fundindo seus pensamentos mais uma vez aos dele para que ele visse o que ela vira em suas visões. Sentiu o quanto ele sofria pela pressão forte do queixo sob a palma de sua mão e pelo bater desenfreado do coração sob a outra. Então, viu as lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Gentilmente, muito delicadamente, ela o soltou, retirando-se de suas lembranças e pensamentos. Ele abriu os olhos devagar.

Fitou-a, atormentado pelas antigas tristezas e novas revelações. Ela sentiu seus sentimentos conturbados e a angústia, como nunca fora capaz de sentir antes. Cada emoção abria-se para ela como uma ferida que precisava se curar.

— Eu jamais soube! — ele murmurou, o corpo de repente tenso e rígido como se tentasse fisicamente combater a dor. — Sou filho legítimo de meu pai!

E, por um momento, Vivian sentiu que não deveria ter entrado em seus pensamentos nem em seu passado. Que qualquer mentira era melhor que a dor daquela triste verdade.

— Perdoe-me! — ela murmurou, os olhos marejados de lágrimas. — Eu não deveria ter partilhado isso com você. Não queria fazê-lo sofrer.

Ele pousou um dedo sobre seus lábios, silenciando-a.

— Não! — exclamou. — A verdade é a mais suave das dores. Pelo menos agora sei que não fui a causa da morte de meu irmão. Ele próprio a quis. E quanto a meu pai... — Seu olhar mergulhou no dela, iluminado com um fogo dourado que lhe era próprio. — A verdade não o teria mudado. Mesmo minha mãe preferiu o suave alívio da morte a continuar a viver com ele. Seus poderes me deram este consolo, quando tudo o que eu tinha antes eram mentiras.

Acariciou-lhe a face, o polegar a secar-lhe as lágrimas.

Rorke levantou-se e ergueu-a como se ela não pesasse mais que o ar e carregou-a para a cama. Entre abraços e beijos, uniram-se mais uma vez, e o quarto reluziu com o fogo da paixão renovada.

Tão grande era a necessidade um do outro que nenhum dos dois viu as chamas oscilarem e estremecerem. Nem a sombra que espreitava os amantes enrodilhados antes de recuar para os cantos mais distantes, onde continuou a observar e esperar.

 

Para qualquer um além de Rorke ou Meg, a recuperação de Vivian foi lenta e trabalhosa, como deveria ser depois de um ataque tão terrível. Quando ela saiu finalmente do quarto foi para caminhar devagar e com cuidado, com ajuda da velha ama. Só o bispo parecia não estar convencido pelo jogo que jogavam, a observar Vivian constantemente, como se soubesse que os ferimentos não mais a incomodavam. Porém como ele poderia saber?

Agora, depois de três meses, Rorke se postara atrás da cadeira onde ela se sentara, nos aposentos de Guilherme, a mão pousada sobre seu ombro.

— A coroação será no dia de Natal! — Guilherme insistiu, ao se encontrar com Rorke e seus cavaleiros de confiança nos aposentos privativos. — Não retardarei mais a cerimônia e ela será realizada na abadia de Westminster!

— Londres já é sua — disse o bispo. — Você não precisa de nenhuma proclamação oficial para isso. Nosso exército está espalhado por toda a Inglaterra. Por que essa impaciência de se ver coroado tão depressa? Espere até o verão — sugeriu.

Havia rumores constantes de escaramuças na distante região norte, que se somavam aos boatos de que os dinamarqueses pretendiam desferir um ataque ofensivo contra a Inglaterra com a intenção de reclamar o trono inglês.

Em função desses rumores, logo depois da chegada em Londres, Guilherme mandara seu filho, Stephen de Valois, e seus cavaleiros, juntamente com sir Galant e seus homens, para garantir a segurança da região norte contra a ameaça de invasão.

— São argumentos convincentes — Guilherme disse ao irmão com um meio sorriso nos lábios. — Mas há outra pessoa a quem eu gostaria de consultar. Lady Vivian.

— Devo aconselhá-lo, irmão — interveio o bispo —, a não procurar ouvir essa mulher. É saxã e sua lealdade é óbvia. Ela não faz segredo disso. Certamente você está brincando com assunto sério.

— Eu não brinco — retrucou Guilherme, de uma maneira que insinuava que o irmão talvez tivesse ultrapassado os limites. — Justamente porque ela é saxã, pode talvez ter uma perspectiva diferente. Lady Vivian?

Ela sentiu o conforto de Rorke no calor da mão pousada em seu ombro e naquela percepção física que parecia se estabelecer tão facilmente entre os dois. Também sentiu uma advertência sutil. Compreendeu-a muito bem, o sangue falava mais alto, e embora Guilherme reprovasse a intemperança do bispo, este ainda era seu irmão e havia uma lealdade de raízes fundas.

— O povo da Inglaterra servirá mais prontamente a um rei se estiver ligado a ele por um juramento — disse. — Seu juramento de assumir as responsabilidades da realeza perante o povo, milorde, também marcaria sua intenção de pôr fim ao caos. Os saxões estão cansados de tanta desgraça e com o tempo rejeitariam quem fosse a causa disso. É evidente que preferem a garantia de que suas famílias, seus lares e a Inglaterra mais uma vez haverá de prosperar.

Guilherme concordou.

— E a cerimônia?

De novo, Vivian sentiu o aviso mudo de Rorke.

— Não deveria ser inferior à coroação de Harold aos olhos de todos os saxões — ela ponderou, para depois acrescentar —, e normandos e quaisquer usurpadores estrangeiros como um claro sinal de sua intenção de governar bem e com firmeza.

— Há perigos — Guilherme a relembrou. — Se eu for assassinado, dificilmente governarei, afinal.

- Se milorde FitzWarren pôde defendê-lo nas ruas de Londres — ela sugeriu —, então certamente poderá protegê-lo dentro da abadia.

— Cavaleiros armados na abadia — ponderou Guilherme. — Seria extremamente incomum.

— Eu protesto! — exclamou o bispo. — Soldados armados na abadia? É sacrilégio! O papa ficaria horrorizado com tais medidas. Pode até mesmo retirar seu apoio a você diante dessa atitude. É ultrajante. Não posso tolerar!

— Pode ser feito?

A expressão de espanto de Rorke era evidente. Encarou o comandante e viu sua perspicácia.

— Sim, milorde — disse, hesitante. — Os guardas esconderiam suas espadas para que ninguém tivesse ciência de que estariam armados. Mas isso pode abrir a porta para a censura do papa.

— O papa está em Roma — Guilherme ponderou, com frieza. — Vai funcionar. A coroação acontecerá na abadia de Westminster no dia de Natal! Você tomará todas as precauções para que não haja derramamento de sangue.

— Sim, milorde.

— Que comecem os preparativos. Mande chamar o arcebispo de York. Diga àquele sapo hipócrita que serei coroado na abadia de Westminster.

— Ele pode se recusar — o bispo avisou. — Já disse isso.

— Então, certifique-se de que ele não recuse!

Logo depois, Vivian retornou ao quarto que partilhava com Rorke. Sentia-se inquieta e apreensiva. Algo estava prestes a acontecer. Ela podia sentir.

Quando as labaredas cresceram, olhou para o fogo e entoou as palavras antigas. A visão veio lentamente, a se remexer no coração das chamas.

Ela viu uma terra estranha e fria, montanhosa e varrida pelo vento, e percebeu que era o norte distante. Viu cavaleiros e soldados sob a bandeira de Guilherme, e outros soldados que não reconheceu. Viu uma batalha com Stephen de Valois e sir Galant na vanguarda. Então viu sangue e morte, um cavaleiro corajoso que caía do cavalo, trespassado por uma lança.

O cavaleiro amontoou-se no chão, a bandeira do duque Guilherme agarrada nos dedos quase sem vida. Enquanto a batalha continuava ao redor, seus companheiros correram para seu lado, pegaram a bandeira e procuraram erguê-la ao alto mais uma vez. O cavaleiro que portava a bandeira era Stephen de Valois.

Rorke encontrou-a de joelhos, diante da lareira, as lágrimas a escorrer pelo rosto, os punhos fechados numa raiva impotente diante do dom que lhe permitia ver mas não impedir o que visualizava.

— O que foi? — Rorke estava de imediato ao lado dela, seus braços a envolvê-la com aflição. — O que aconteceu? Não está bem?

Ela contou a Rorke a sua visão, da batalha e das mortes. As próprias emoções de Rorke se uniram as suas, daquela maneira única que agora os ligava e vinculava tão profundamente. Sentiu-lhe a tristeza, experimentou todas as lembranças partilhadas com o irmão, e percebeu que a dor era profunda. E, junto com a tristeza, sentiu a enorme preocupação para com Stephen de Valois, de quem gostava como de um irmão mais novo.

— Stephen está bem — ela lhe assegurou.

Um medo crescente começou a dominá-la quando sentiu a Treva muito perto, e se recordou do aviso de Merlin de que o mal tentaria destruí-la a qualquer momento. Mas onde ou quando, ela não sabia.

Mais tarde, ao se encontrar com Guilherme, Rorke lhe contou que havia boatos de um confronto na região norte do país. Mais que isso ele não poderia dizer, pois embora o duque tivesse passado a confiar aos conselhos de Vivian, tinha que se acautelar contra o bispo e, conseqüentemente, ele preferiu não falar das visões.

Matilda, duquesa da Normandía e esposa de Guilherme, chegou três dias antes da coroação. Estava pesada, no final da gravidez, e a travessia do Canal fora difícil. Mesmo assim, era uma mulher cativante e de vontade forte e, no momento em que Vivian viu os dois juntos, compreendeu porque Guilherme banira Judith de Marque de seus aposentos.

Como muitos de nascimento real, ela era uma mulher para quem houvera poucas opções. Bem-educada, voluntariosa, havia apenas dois caminhos a tomar, a Igreja ou um casamento vantajoso.

O dia de Natal amanheceu brilhante e claro. A coroação fora anunciada com bastante antecedência e a notícia se espalhara por toda a Inglaterra. A nave da abadia de Westminster estava superlotada de saxões e normandos.

Guilherme e Matilda ajoelharam-se diante do imenso altar. Centenas de velas estavam acesas, a luz pálida a brilhar profusamente pelas paredes de pedra que Eduardo construíra em seu reinado, anos antes do infeliz Harold, que morrera em Hastings.

Para o observador casual, a cerimônia sem dúvida parecia grandiosa e auspiciosa, com toda a nobreza em suas melhores túnicas e insígnias, os normandos todos adornados com os mais belos mantos, a despeito do calor dentro da nave.

Mas os normandos sabiam, e talvez uns outros poucos sentiam, que os mantos escondiam bem mais que a mera elegância. Ocasionalmente se via de relance um luzir de aço das espadas e machados de guerra carregados de lado, desembainhados e prontos, caso houvesse qualquer sinal de problema por parte dos barões saxões e seus cavaleiros.

Na abadia de Westminster, as palavras da cerimônia de coroação foram pronunciadas duas vezes, uma em inglês saxão e outra em francês, diante da congregação reunida.

— Abençoado por Deus, em concordância com seu pacto Sagrado, e em nome de Seu Filho, Jesus Cristo — a voz do arcebispo de York entoou os antigos ritos ingleses com os quais Guilherme insistira, a ressoar alta e clara, embora um pouco perpassada de nervosismo, pela nave da abadia, em Westminster.

A voz do dignitário da Igreja tremeu visivelmente, e Vivian sentiu sua recusa em pronunciar as palavras cruciais que deveriam se seguir. Rorke postou-se ao lado dele e, depois de um leve cutucão, o arcebispo apressou-se a proclamar:

— Corôo a Guilherme I, rei de Inglaterra, em nome do papa, pela graça de Deus e sua lei sagrada.

Sua mão tremia tanto quanto a voz ao abaixar a coroa de ouro sobre a cabeça de Guilherme.

Vivian sentiu como se um calafrio percorresse a nave, a despeito das centenas de pessoas comprimidas juntas. As velas no altar oscilaram violentamente, ameaçando se extinguirem e deixar a nave em completa escuridão.

Mais uma vez ela ouviu as palavras da antiga cerimônia, ao serem pronunciadas para Matilda, e uma coroa menor foi colocada na cabeça da nova rainha.

O arcebispo de York então declarou, com imensa relutância na voz.

— Levante-se, Guilherme I, rei de Inglaterra.

Brados de vivas se ergueram entre a congregação normanda. Acima de tudo, o alívio inundou a abadia. Guilherme era agora rei de Inglaterra.

A um sinal, os homens de Rorke e Guilherme formaram uma falange armada em torno do rei e da rainha, para todas as aparências uma escolta real elegantemente vestida que apenas abria caminho para seu monarca. Mais soldados se enfileiraram nos degraus do lado de fora da igreja.

Vivian pousou a mão sobre o braço de Rorke.

— O que é? — Rorke sentiu a aflição que a perpassava. — Sentiu alguma coisa? Há perigo?

— Sim. Mas não aqui. — Seu olhar triste encontrou o dele. — Stephen de Valois voltou a Londres.

Rorke deu ordens a seus homens para escoltarem Guilherme de volta à fortaleza sem demora. Mesmo assim, a procissão tomou quase uma hora para chegar à fortaleza. As pessoas enchiam as ruas numa atmosfera de celebração contida que parecia mal controlada e ameaçava se tornar violenta a qualquer momento.

Tal como Vivian previra, Stephen de Valois esperava por Rorke nos portões da muralha da fortaleza.

— Não houve nenhum indício — explicou Stephen. — Meus homens não viram nenhum sinal da presença inimiga. Então estavam sobre nós. Surgiram do nada.

Guilherme ouviu com uma expressão muito séria.

— E a bandeira que levavam?

— Nenhuma foi vista.

— Por Deus, rapaz! Sabe alguma coisa desses ataques, além de que teve quase duzentos homens ou aleijados ou mortos?

— Tenho isto, milorde! Não portavam nenhuma bandeira — Stephen vociferou, zangado. — Meus homens confirmarão. Todos os que podiam se locomover fugiram. Deixaram para trás este machado de guerra. Tem a marca do dinamarquês, Canuto.

— Canuto da Dinamarca — Rorke disse, pensativo. — A arma é dinamarquesa. — Virou o machado de um lado para outro, examinando-o cuidadosamente. — E nova da forja. A arma de um jovem guerreiro, talvez.

Voltou-se para Stephen.

— Lembra-se de algo mais sobre o ataque? Como caíram sobre vocês? De várias direções ou apenas em uma? Estavam montados ou a pé? Foram recuperadas outras armas? — E continuou com incontáveis perguntas mais que tinham o poder de tornar a situação menos tensa e, ao mesmo tempo, trazer informações valiosas sobre o ataque.

Os escudeiros trouxeram comida e bebida, pois nem Stephen nem os que tinham voltado com ele tinham comido alguma coisa a não ser pão seco e água durante a longa viagem de volta.

— Gostaria de seu conselho, senhora — disse Guilherme, quando Vivian pediu permissão para sair, pois já era tarde.

- Aprendi a valorizar suas palavras. O que me diz desses invasores dinamarqueses?

— O machado que Stephen de Valois trouxe com risco da própria vida parece confirmar o fato. Não precisa de meu conselho, milorde, pois creio que já tomou sua decisão.

Ele concordou.

— Obrigado, senhora. Faz-me recordar que posso ser des-comedido em alguns assuntos.

— Sim, milorde — ela respondeu com absoluta diplomacia e um breve olhar de soslaio para Stephen. — Assim como todos podemos ser, às vezes.

— Quando encontrar minha rainha, transmita-lhe minhas mais gentis preocupações, pois receio que se passarão muitas horas antes que eu possa mesmo fazer isso.

Era quase dia claro quando Rorke finalmente retornou ao quarto. O fogo na lareira fazia longo tempo morrera. Ele se moveu em meio às sombras, silencioso, ajoelhou-se diante da lareira e alimentou o fogo com lenha nova.

Vivian aproximou-se, segurando um manto de pele em torno de si para se proteger do frio do quarto, um frio que doía em seus ossos com a premonição daquilo que estava por vir e de coisas desconhecidas que não conseguia divisar.

— Guilherme ordenou que partíssemos para a região norte às primeiras luzes — disse ele, com extrema seriedade e sem erguer os olhos. Então, voltou-se para fitá-la. — Você previu isso. Viu mais alguma coisa nas chamas, Jehara?

— Vejo uma criatura nascida em fogo e sangue. Receio que haja mais morte, mas de quem, não consigo enxergar. E esse é o receio maior.

Seu olhar torturado procurou o dele e ela pousou a mão na face de Rorke, onde os músculos do queixo saltavam sob a marca de uma cicatriz que o deixava ainda mais belo.

— Cuidado com a fé que não tem coração, com a espada que não tem alma—repetiu as palavras proféticas murmuradas naquele dia, em Amesbury, quando vira pela primeira vez a criatura nas chamas.

Ao pousar a mão sobre a dela, Rorke voltou a cabeça, os lábios a roçarem a palma de Vivian.

— Você é minha fé e meu coração, senhora. Com sua visão a guiar-me, não falharei.

As lágrimas queimaram seus olhos quando ela se atirou nos braços do guerreiro com uma aflição descontrolada, o manto de pele a resvalar para o chão conforme ela o envolvia pela nuca, sua boca a procurar a dele com uma avidez desesperada, uma ânsia infinita de provar e sentir a força e o calor do amado.

Deitaram-se nas peles e se uniram numa violenta conjunção que deixava evidente toda a incerteza que jazia logo além do amanhecer.

Os cavaleiros e soldados de Guilherme enchiam o pátio em meio ao ruído de ordens gritadas, o tinido de arreios e o lampejo fosco de espadas e lanças sob um céu plúmbeo. Centenas mais aguardavam além das muralhas, tendo os preparativos sido feitos durante toda noite, nos acampamentos armados que se en-fileiravam ao longo do rio Tâmisa.

O rei estava determinado a liderar seu exército. Nenhum argumento de Rorke ou qualquer de seus cavaleiros pudera dissuadi-lo. Alguns cavaleiros já estavam montados, fazendo os ajustes finais nas armaduras. Escudeiros corriam ao redor, entregando sacos de provisões para a jornada, uma cavalgada de quatro dias para o norte.

Stephen de Valois aproximou-se de Rorke, as feições tensas de raiva e frustração.

— Eu gostaria de cavalgar com o senhor, milorde — pediu, quando Rorke montou o cavalo. — Para os diabos com o que meu pai diz! Ele me julga um covarde!

Rorke inclinou-se para pousar a mão no ombro do jovem cavaleiro.

— Ele também é seu rei — relembrou a Stephen. — E nunca se falou em covardia.

— Mas ele pensa — Stephen esbravejou. — É pior. Se tivesse falado com franqueza, eu o desafiaria por causa disso.

— Ele pensa em sua segurança, Stephen — Rorke explicou, gentilmente. — Você foi ferido na batalha — Apontou para a faixa na abertura do pescoço da armadura de Stephen. Vivian cuidara de um profundo corte de espada que quase seccionara o braço do ombro. Ele cavalgara durante três dias com o braço quase inútil preso do lado com uma tira de arreio.

— Tenho outra mão boa — Stephen argumentou com a impetuosidade da juventude. — Posso empunhar um machado de guerra.

— Enquanto segura as rédeas do cavalo com os dentes? — perguntou Rorke, e continuou, antes que Stephen pudesse discutir. — Você precisa se recuperar e manter a fortaleza para seu rei.

— Ele deixa meu tio para proteger o trono — Stephen bufou, com desprezo.

— O bispo se julga um guerreiro capaz — Rorke se atreveu a dizer em voz alta. — Mas usa o medo da santa cruz com mais eficiência. Se houver problema em Londres, é preciso que haja alguém que fique para enfrentar o desafio — continuou, com uma alusão oculta e, depois, emendou — e há um favor que eu não gostaria de pedir a ninguém mais.

— Qualquer coisa, milorde — Stephen retrucou, sem hesitação.

— Gostaria de pedir que proteja a sra. Vivian. Eu não confiaria a segurança dela a ninguém mais.

— Sim, milorde — concordou Stephen. — Eu a protegerei com minha vida.

— Rezo para que não chegue a tanto.

Ela e Stephen se entreolharam. Vivian sentiu o turbilhão interno do rapaz, e percebeu no entanto que ele manteria a palavra dada a Rorke, mesmo ante a obediência ao rei.

A ordem de partida correu entre as colunas de cavaleiros montados e soldados, parecendo aquele dia em Amesbury, um momento pesado sob a chuva ligeira que começava a cair. Rorke inclinou-se na sela, a mão a deslizar pelos cabelos de Vivian, e desatou-lhe a fita de cetim malva da trança.

— Eu a levarei como uma parte sua comigo, senhora. Ela tirou a fina corrente de prata do pescoço e colocou-a

nele, o cristal azul a reluzir com a luz interna naquele dia tenebroso.

— Perigos desconhecidos o aguardam — disse, a voz a falhar, — Mantenha a pedra consigo o tempo todo. Enquanto a usar, haverá um elo entre nós, minha Fênix, que não pode ser quebrado.

Os dedos de Rorke se fecharam sobre o cristal como se fosse a jóia mais preciosa da terra.

— Até eu voltar, manterei esta pedra perto de meu coração, senhora, como a guardo dentro dele.

Vivian correu para dentro da fortaleza real e subiu as escadas até a torre de vigia mais alta. De lá, com a chuva a escorrer por seu rosto e a se misturar às lágrimas, ela ficou a observar aquela coluna escura, como uma longa fita, a serpentear e se afastar pelas estradas de Londres. Estendeu-se por todo o caminho através da cidade, até que a escuridão da tempestade fechou-se em torno e ela não os pôde ver mais.

— Possa todo o poder da Luz ir com você, meu amor — murmurou.

Cavalgaram para o norte durante quatro dias, seguindo uma rota diferente porém paralela a que Stephen e seus homens tinham percorrido, como precaução contra um ataque dos invasores. Batedores avançaram para procurar sinal dos dinamarqueses.

À noite, faziam acampamentos frios sem fogueiras que pudessem indicar sua posição. Durante o dia, cavalgavam duro para chegar à costa norte, ao local do ataque. Na manhã seguinte ao quarto dia, levantaram acampamento antes das primeiras luzes surgirem no horizonte.

Embora parecesse impossível, o dia amanheceu ainda mais sombrio que o anterior, com uma imensidão de neve pelas charnecas escocesas. Pelos cálculos, deveriam encontrar o acampamento de Stephen pelo meio-dia. Ele fora forçado a abandonar ali duas dezenas de homens seriamente feridos. O escudeiro de Rorke levava sacos de remédios que Vivian preparara.

Encontraram o que restava do acampamento menos de duas horas mais tarde.

Não havia fogueiras, apenas os restos enegrecidos de carvões de vários dias e várias formas amontoadas sob o manto de neve.

Tarek foi um dos primeiros a desmontar. Cutucou gentilmente uma das formas curvadas com a ponta da bota. Um empurrão mais firme, virou-a para revelar o corpo de um soldado. As outras foram viradas também e mostraram que todos os soldados que Stephen deixara para trás estavam mortos.

— Esta fogueira está apagada faz dias — Tarek disse, enfurecido. — Devem ter sido atacados logo que Stephen partiu.

Guilherme olhou para o acampamento com desgosto, suas feições torcidas de fúria.

— Quero a região costeira vasculhada, cada aldeão, camponês e fazendeiro interrogado. Os homens que fizeram isso irão pagar.

Resolvido a não se arriscar a ser pego como Stephen fora com seus homens todos sob um comando, Guilherme dividiu seu exército em três guarnições e cada uma seguiu um curso determinado que os levaria ao longo da linha costeira, uma ao norte, outra ao sul, e a terceira ao interior no caso de os invasores dinamarqueses terem ingressado naquela direção. Cavaleiros deveriam manter os três contingentes em constante comunicação no caso de um ataque.

Rorke e Tarek sentaram-se ao redor da fogueira naquela noite. O acampamento estava fortemente guardado, com os homens de Rorke posicionados ao longo do perímetro, e ainda outro perímetro de guardas. Era algo que aprendera com Tarek ai Sharif: sempre esperar o inesperado.

— Está pensativo, meu amigo — disse Tarek. — Algo o preocupa.

— Os cavalos. Quatro vintenas completas seguiram para o norte. Metade desse número voltou para Londres. Os traços que vimos eram de pelo menos duas vezes esse tanto e feitos depois daqueles dos homens de Stephen.

O olhar de Tarek se estreitou ao começar a compreender o rumo dos pensamentos de Rorke.

— Os atacantes estavam montados.

— Cavalos trazidos em navios?

— Guilherme trouxe cavalos da Normandia — Tarek apontou para as próprias montarias amarradas ali perto.

— Pelo canal estreito. Aqueles invasores tinham de cruzar centenas de milhas de mar aberto. No entanto, nenhum bote foi visto pelos homens de Stephen. Os atacantes estavam a cavalo, e, no entanto, os dinamarqueses não são conhecidos por sua condição de cavaleiros nem por soldados montados. E depois há isto aqui. — Pegou a faca do cinto e lançou-a no chão perto de onde Tarek se sentava.

Ela enterrou-se no chão, o cabo esculpido a luzir sob a luz do fogo. Tarek pegou-a e revirou-a entre os dedos.

— Que soldado deixaria para trás esta arma? Especialmente uma tão bem-feita? E o machado de guerra que Stephen encontrou?

— Nenhum soldado deixa suas armas enquanto tiver um último fôlego, pois podem significar a diferença entre a vida e a morte um outro dia. O que quer que eu faça?

— Um exército deste tamanho é visto facilmente. Parta antes das primeiras luzes do dia. Terá de viajar com trajes bem mais simples que não sejam notados com facilidade. Leve apenas sir Guy com você. Ele estava aqui com Stephen; conhece esta terra hostil.

— Minha sensação é que estamos sendo observados. Você precisa encontrar os vigias. Só então poderemos saber a verdade dos dinamarqueses com cavalos, dinamarqueses que não cavalgam e que são tão descuidados com suas armas que deixam para trás como um rastro de guia.

Tarek sorriu, os dentes faiscando nas feições bronzeadas.

— Farei qualquer coisa se isso significar deixar este lugar gelado e pouco acolhedor o mais rapidamente possível. Eu os encontrarei antes que me encontrem.

Partiu bem antes do primeiro clarão da alvorada, seguindo sir Guy.

Rorke nada disse a Guilherme. A ausência de dois homens, um dos quais viajava segundo a própria vontade, provavelmente não levantasse questões que, por enquanto, Rorke não queria que fossem feitas entre o resto dos homens, ou pelo rei Guilherme.

Tarek descobriu que aquela terra fria e hostil era como o deserto e também tinha seus segredos verdejantes. Na manhã do segundo dia, descobriu um lugar assim, depois que ele e sir Guy se separaram, cada um a seguir um caminho pela trilha da montanha.

Parou para dar água à égua numa pequena lagoa.

O vale era abrigado do vento ao alto, entre colinas. Tarek esperou até que a égua tivesse saciado a sede e se sentou à beira d'água.

Era fim de tarde e o sol irrompia por entre as nuvens. A água era lisa como vidro, quebrada apenas pelas ondulações feitas pela égua, ao beber. O calor do sol na superfície fria provocava uma névoa que começou a subir e a espalhar-se pela água e pela margem.

A jovem surgiu do nada, esguia e graciosa como uma corça, e tão assustada quanto uma, ao encontrá-lo ali. Se tivesse brotado de uma abertura da terra, Tarek não poderia ter ficado mais surpreso.

Seu primeiro instinto foi pegar o punhal. O segundo foi pensar que a égua não a sentira. Mesmo agora as orelhas do animal simplesmente se agitavam para trás e para frente como se ela reconhecesse um ser que não representava nenhuma ameaça iminente. Tarek saltou em pé, o cabo do punhal fechado com firmeza na mão e apontado para aquela adorável intrusa. E ela era, realmente, adorável.

Tinha o rosto em formato de coração e a pele rosada. O nariz era pequeno e delicado acima do "O" surpreso de uma boca deliciosamente cheia, de lábios cor de rubi. O queixo era também pequeno, firme. E havia o verde intenso daqueles olhos, tão verdes como o musgo aveludado que se agarrava às pedras lavadas pela água.

A princípio parecia não mais que uma criança, miúda, pálida e esguia. Mas ela se voltou, e Tarek viu o contorno alto dos seios fartos debaixo das dobras do fino manto de lã.

O capuz do manto caíra para trás, por sobre os ombros, revelando um forro de cetim verde tão requintado como a lã e tão espantoso como a cor daqueles olhos, e também deixando à mostra uma rica cascata de cabelos da cor da luz do sol através da bruma.

Pensamentos loucos, improváveis, encheram a mente de Tarek, enquanto ele imaginava se o restante daquele ser era tão luminoso, pálido e perfeito como as feições e as mãos delicadas que agarravam as dobras do manto. E, mais improvável ainda, como seria possuir tal criatura, que parecia não ser deste mundo, mas feita de raios de sol e de bruma, e da própria natureza verdejante em si.

A mão esguia ergueu-se, num aviso. E ela olhou outra vez por sobre o ombro.

— Precisa deixar este lugar imediatamente. Não é seguro. A voz era tão delicada como a bruma, quase sem fôlego.

As palavras tinham um sotaque estranho, embora fossem em inglês.

— Não há tempo. Eles logo estarão aqui.

— Quem estará aqui?

Aquele olhar de esmeralda voltou-se para ele.

— Os homens que procura. Estão muito perto e há um grave perigo. Precisa avisar os outros ou serão todos mortos.

Ele a fitou, estupefato.

— Como sabe disso?

— Eles estão na trilha ao alto. Estavam esperando por você. Se não for embora agora, ficará encurralado e impossibilitado de escapar.

— Se esperam ao alto, não posso seguir pela trilha.

— Há um outro caminho por trás da água e através das rochas. Não pode cavalgar por ele, mas pode seguir andando.

Com um outro olhar para cima, Tarek perguntou:

— O que sabe a respeito desses homens?

— São aqueles que atacaram e mataram os soldados. — O olhar da jovem cravou-se nas colinas. — Precisa ir depressa.

— E quanto a você?

— Estas colinas são meu lar. Conheço-as bem. Não me encontrarão.

— Se aqueles homens são como você diz, não gostaria que você ficasse para trás.

— Teme pela minha segurança?

— Como temeria por uma jóia rara sem preço.

Os olhos verdes se escureceram até assumir o azul-esver-deado da água.

— Você tem algo diferente e suas palavras são estranhas. Não é um homem como os outros.

— Eu me chamo Tarek ai Sharif. Meu lar fica muito distante daqui. E você, qual é seu nome?

Ela pareceu prestes a contar-lhe quando se ouviu um som no alto da colina. Os inimigos, cansados de esperar pela volta de Tarek, tinham decidido mudar de estratégia.

— Por favor, guerreiro moreno, você precisa ir depressa. Tarek saltou para a sela da égua árabe. Inclinou-se e pegou a mão delicada da jovem. Como sabia que seria, a pele era como o mais fino cetim contra a sua.

Ela fitou a mão bronzeada que se fechava possessivamente sobre a sua. E pareceu aturdida.

— Vá! Agora! — Arrancou a mão do aperto e apontou para a lagoa. — Atrás da cascata, e pelas pedras — repetiu, dando um tapa nos flancos da égua.

A montaria saltou para dentro da lagoa rasa e estacou quando Tarek puxou as rédeas. Porém, quando ele se virou na sela, a jovem sumira.

Não havia traço dela na beira d'água, na margem, nem na ladeira da colina. Ela se fora, a bruma a se revolver no lugar onde ela estivera apenas momentos antes, e nada além de raios de sol e névoa.

Tarek incitou a égua pela lagoa na direção da cascata. A passagem estava justamente onde ela dissera que estaria, uma abertura entre as pedras com espaço suficiente para um homem passar puxando seu cavalo. Através do véu prateado da queda d'água, Tarek olhou para trás mais uma vez. A cascata caía num poço que, por sua vez, alimentava a lagoa, abaixo.

A superfície da lagoa estava novamente calma, a não ser por uma ondulação que parecia afastar-se das pedras. Então ele viu um gracioso pássaro a deslizar lentamente pela água. Era esguio, de pescoço longo e de penas de um pálido prateado. Parecia flutuar em meio à bruma. Virou a cabeça em sua direção e, por um momento, ele poderia jurar pelos livros do Profeta que o fitava como se soubesse que ele estava ali.

Tarek ergueu os olhos novamente para a colina. Os cavaleiros desciam rapidamente para a lagoa. E quando ele olhou para a água outra vez, o pássaro sumira. Também não levantara vôo. Com uma sensação de urgência a dominá-lo, Tarek puxou a égua através do vão entre as rochas.

Havia uma subida íngreme a escalar, escorregadia de água, mas ele por fim chegou ao fim, para descobrir que estava agora acima da lagoa e dos cavaleiros que pretendiam encurralá-lo.

Montou a égua e pensou na bela moça que vira e desejou que estivesse a salvo.

Estava atrasado para o encontro no local combinado, mas sir Guy o aguardava.

— Há cavaleiros a não mais que um quilômetro daqui — Tarek informou. — E mais deles para atacar a coluna de Guilherme.

— Como sabe disso?

— Encontrei um morador das Terras Altas que falou sobre isso. — Sir Guy não iria acreditar se Tarek lhe contasse a verdade. — Uma velha que mora nas montanhas. Avisou-me dos cavaleiros e falou do ataque. Viu a emboscada aos homens de Stephen. Guilherme e seus homens vão cair numa armadilha.

— Então precisamos encontrá-los com toda a pressa.

Rorke incitou o cavalo com pressa ao rumar de encontro a um de seus homens que tinha acabado de chegar. Ainda não havia notícias de Tarek ou sir Guy. Quatro outros tinham deixado de voltar. E Guilherme dividira seus homens em três colunas afastadas demais para obter um bom resultado no caso de um ataque de surpresa por uma grande força. Tudo isso o deixava com uma sensação de profunda inquietação.

— O que tem a informar? — perguntou, com secura.

A expressão do soldado era séria. Estava com Rorke fazia muitos anos e era um veterano de várias campanhas.

— Champlain e Dulonges.

Rorke conhecia bem aqueles homens. Eram dois dos quatro que ele enviara como batedores na tarde do dia anterior.

— Estão mortos, milorde. Logo adiante do acampamento de ontem. Nós os encontramos no mato, com as gargantas cortadas.

Rorke praguejou.

— Nem foram além do acampamento! Por Deus, preciso ter respostas e nenhum homem morto a mais! Você ficará conosco.

— E quanto a Tarek ai Sharif e sir Guy?

— Terão de nos encontrar. Não podemos ficar aqui.

Tarek encontrou-os na borda da mata. O amigo estava perto da coluna de Guilherme.

— O inimigo espera logo adiante, num lugar chamado Bre-con. São os mesmos que atacaram os homens de Stephen.

— Tem certeza disso?

— Absoluta, meu amigo. Encontrei os soldados muito perto daqui.

O aviso fora dado com tempo suficiente para se prepararem. Os homens de Guilherme se juntaram aos de Rorke, e a batalha foi desfechada numa baixada logo depois da floresta. As forças divididas rodearam e fecharam os invasores num círculo.

Foi uma luta sangrenta. O aço tinia contra aço. Cavalos relinchavam e caíam, levando junto os cavaleiros. Por duas vezes os invasores investiram contra o contingente armado que lutava ao lado de Guilherme. Por duas vezes foram rechaçados, bastante enfraquecidos, até que o último homem caiu sob a espada de Rorke.

Rorke saltou do lombo do cavalo e empurrou o capuz de lã que escondia as feições do inimigo.

Não queria acreditar no que via. O soldado morto não era um dinamarquês afinal. Era Vachel.

— Por Deus! O que significa isso? — exclamou Guilherme.

— Significa — disse Rorke, o coração a se transformar numa pedra de gelo — que alguém planejou a sua morte, mi-lorde. E receio que isso possa não ser o pior. Significa traição. Este homem devotava lealdade a apenas uma pessoa.

— Meu irmão — a voz de Guilherme estrangulou-se na garganta. — A rainha! E meu filho não nascido!

Rorke, contudo, sentiu que o perigo era ainda bem maior. Vivian falara de seus receios com relação à Treva. Por duas vezes antes, tentara destruí-la. E ela lhe dera o cristal para proteção, o que a deixara perigosamente vulnerável.

Era ela quem precisava de proteção agora. E urgentemente. Mas mesmo se cavalgassem sem parar e os cavalos resistissem à jornada, ainda assim levaria dois dias inteiros para chegarem a Londres.

 

Vivian atiçou o fogo na lareira contra um frio penetrante que nenhuma quantidade de lenha parecia capaz de dissipar. Estremeceu ao puxar as beiras do xale em torno dos ombros.

Deixara o quarto da rainha um pouco antes, depois de lhe dar um chá calmante para que pudesse descansar após uma noite insone com o filho muito grande no ventre.

Durante os últimos dias, desde que Rorke partira com o rei para o norte do país, Vivian experimentava uma profunda inquietude, de uma natureza estranha.

— Não gosto deste frio — Meg exclamou da cadeira diante da lareira. — Fica pior a cada dia. — Virou a cabeça na direção do movimento de Vivian. Baixou o tom de voz como se não quisesse ser ouvida por outras pessoas. — Não é natural. Eles voltarão logo?—perguntou, quando Vivian ajoelhou-se diante do fogo.

— Ora, Meg, não vá dizer que está com saudades de milorde FifzWarren!

— Tenha paciência! — bufou Meg. — Garanto que não estava tão frio quando ele estava por perto. Não gosto disso!

— Não, não há notícias, mas receio que algo esteja errado. Com esforço, ele se ergueu dos joelhos e caminhou até a jovem. Estava muito sério.

— Você sentiu alguma coisa?

— Sim... Não... Não está claro. Sei apenas que algo muito grave aconteceu. — Pousou a mão na-manga do hábito do monge. — Os guardas não estão em parte alguma.

O monge arqueou as sobrancelhas brancas com estranheza.

— Isso não é usual. O jovem Stephen de Valois foi deixado responsável pela família. Ele não dispensaria os guardas, com tanta intranqüilidade a reinar em Londres.

— Há mais coisas. Algo que vi de relance nas chamas. Saíram do complexo real pela passagem da cozinha. Com algum alívio, encontraram um guarda do lado de fora da porta de emergência. E Vivian percebeu que ele não era o guarda habitual.

Havia soldados no pátio de exercício, e alguns podiam ser vistos na armaria. Muitos outros, armados, caminhavam pelas muralhas e montavam guarda na entrada principal.

— Há guardas por toda parte — Poladouras comentou, ao atravessarem o pátio na direção dos canis e da falcoaria.

— Sim — retrucou Vivian, com a sensação de apreensão crescendo —, mas não são guardas de Guilherme. Foram todos substituídos. — Conforme passaram pelos canis, os cães de Guilherme se puseram a latir furiosamente. — E os cães estão todos presos.

Ela apertou o passo ao se dirigir à falcoaria. Não precisou de nenhum sentido especial para confirmar o que temia. Ouviu-o no silêncio incomum das aves de Guilherme. E captou no ar pesado que normalmente cheirava palha fresca. Tinha o odor da morte.

Embora pressentisse, mesmo assim gritou de horror quando encontrou o pequeno falcão. A cabeça dourada não mais se voltaria para ela com um pio de saudação familiar.

O corpo inanimado do peregrino pendia das correias de couro que o prendiam ao poleiro. As penas, certa vez lustrosas daquela cor dourada, estavam agora opacas com a morte e o sangue que minava de seu corpo esmagado por um objeto pesado.

Vivian sentiu a mão gentil de Poladouras no ombro.

— Estou tão triste, menina — ele murmurou. Sabia do elo especial que existia entre ambos. Olhou ao redor pela falcoaria e chegou à conclusão que lhe pareceu natural. — Os outros pássaros sem dúvida não o aceitaram.

— Não! — Vivian balbuciou, o coração sangrando de dor. — Ele foi golpeado até a morte enquanto estava preso e enca-puzado, incapaz de se defender ou fugir. — As lágrimas lhe escorreram pelas faces com a perda do amigo fiel.

Ela cortou as cordas de couro com a faca que sempre trazia consigo e aninhou o falcão sem vida nos braços. Com Poladouras a segui-la, saiu da falcoaria com Áquila.

Subiu até o mais alto baluarte até que encontrou um lugar onde nenhum soldado se postava. Ofegante e aos bufos, Poladouras a alcançou. Sua expressão era séria diante dos modos de Vivian.

Ela fechou os olhos, concentrando-se no poder antigo da Luz em seu íntimo, e pronunciou as palavras sacramentais que se estendiam além do tempo e da lembrança para a bruma do mundo transcendente. Quando o eco das palavras se apagou, ela abriu os olhos e, com um simples pensamento lançado ao céu, estendeu os braços.

Um cristão, preso entre os poderes imortais que ele sabia existirem e a fé em que acreditava, Poladouras ficara a observar a cerimônia antiga num misto de tristeza e inspiração. Não tinha qualquer explicação para os poderes da jovem que criara. Aceitava-os porque aprendera, longo tempo atrás, que havia mais coisas no mundo e além dele que nenhum homem poderia explicar simplesmente pela fé em Deus.

Houve uma repentina vibração de movimento, um distúrbio no ar. Dos braços de Vivian, o falcão despertou aparentemente vivo mais uma vez. Desdobrou as asas que captaram uma súbita luz, como se o sol tivesse aparecido entre nuvens, e, num único movimento, lançou-se ao vôo. Circulou uma vez, a asas majestosas a se inclinarem levemente. Então, num lento arco, afastou-se, desaparecendo na bruma que se levantava além das muralhas da fortaleza.

Nenhuma soma dos poderes de Vivian poderia trazer a ave de volta para a vida terrena. E, assim, ela liberara seu espírito para os céus a que pertencia.

— Precisamos voltar depressa — disse Vivian, passando por Poladouras com uma nova aflição. — A morte de Áquila é parte de algo mais.

Ao descer do baluarte, passaram pelos guardas, mais uma vez. Vivian parou e aproximou-se daquele por quem tinham passado momentos antes. Só que não era o mesmo guarda.

— Onde está o homem que estava aqui apenas uns poucos minutos atrás?

O guarda a encarou, indeciso.

— Perdoe-me, senhora. Não compreendo. Não havia nenhum outro guarda aqui desde que assumi o posto ao meio-dia.

— O que está dizendo? — Poladouras indagou. — Ainda não é meio-dia.

— Está enganado, monge — o guarda retrucou. — Já se passaram duas horas do meio-dia. Estou aqui todo esse tempo.

— Mas é impossível! Mentir é pecado! É melhor se arrepender pelo bem de sua alma!

— Por favor, Poladouras, não há tempo a perder

— Vivian o interrompeu, puxando o monge. — Ele não estava mentindo. Está no posto faz duas horas. Mas, para nós, foram apenas alguns instantes.

— Isso não faz sentido, menina.

— Não — ela concordou. — Não no mundo mortal. Mas o que aconteceu não é do mundo mortal.

— O que está dizendo?

Ela empurrou a porta e correu degraus acima para a passagem. Poladouras a seguiu com dificuldade.

— A visão de Áquila que vi nas chamas foi um despiste.

— Mas o falcão está morto — ele protestou e depois perguntou —, não está?

— Sim, está morto. Sua morte foi um engodo para me afastar. Assim que saí da torre real, o tempo foi alterado. O que julgamos que fosse apenas uns poucos minutos foram de fato mais de duas horas.

— Mas por quê? Quem fez isso? Com que propósito?

— Para ter tempo suficiente de conseguir o que não poderia ser conseguido em poucos minutos, mas exigiria mais tempo e habilidade — ela lhe disse. — Não é o caso de saber quem fez isso, mas o que foi feito. — Seu olhar sombrio encontrou o do monge brevemente.

Vivian apressou o passo e seguiu para o quarto da rainha. Na passagem, tropeçou e quase caiu com um corpo amontoado.

— Stephen! — exclamou, ao reconhecer o jovem cavaleiro. Ajoelhou-se ao lado dele. O sangue cobria a lateral de sua face e grudava em seus cabelos com o golpe mortal. Mas ele não estava morto. Ela sentiu a pulsação de vida a bater sob os dedos em seu pescoço. Sem tempo a perder, canalizou os poderes através do toque até a força vital dentro dele.

Os olhos do cavaleiro se abriram lentamente. O reconhecimento veio um pouco depois, e ele lutou para se sentar.

— Tentei impedi-la — ele exclamou. — Disse a ela que ninguém devia entrar no quarto do rei, a não ser você e a velha. Ela, em especial, não poderia entrar. Mas ela não quis me ouvir. Quando tentei impedi-la... — ele estremeceu ao recordar — foi terrível. Nunca vi uma criatura tão... — Então, gritou, alarmado. — A rainha corre perigo!

— Fique com ele — Vivian disse a Poladouras, ao passar por Stephen e seguir para a porta do quarto da rainha, que estava entreaberta. Empurrou-a devagar. Por um momento, ficou surpresa com o que viu.

— Mally? — Não conseguiu entender por que Stephen ficara tão horrorizado com o fato de a garota estar no quarto, pois muitas vezes cuidava de Matilda. Então Mally voltou-se de onde estava, na beira da cama.

Uma onda de medo perpassou através de Vivian. Seu olhar fixou-se em Mally, e ela então viu num vislumbre daquilo que Stephen presenciara.

Não eram os olhos de Mally que a fitavam de volta, mas os olhos vazios, escuros, de alguém, ou algo diferente. Vivian olhou para o frasco nas mãos da jovem e percebeu que o que restava nele continha veneno.

Um breve lampejo de desafio perpassou por aqueles olhos sombrios e inexpressivos quando Vivian lentamente caminhou em direção à jovem. Segurou a garota pelo pulso e mentalizou o poder da Luz.

Mally se debateu e entrou em convulsões, gritando de dor. Como por um passe de mágica, as feições de Mally desapareceram para revelar o rosto de Judith de Marque.

— Você não pode impedir. Não pode vencer! — ela exclamou, irada. — Perderá tudo, inclusive Rorke FitzWarren, pois você não é páreo para ele.

— Para quem, Judith? — perguntou Vivian. — A quem você vendeu sua alma? E onde está Mally? O que fez com ela?

— Não vendi minha alma a ninguém. Ele me ama. Ele me jurou. Deu-me algum de seus poderes. Ele levou a garota.

— Levou-a para onde?

— Para as antigas catacumbas onde ela morrerá.

— Sua idiota! — Vivian exclamou. — O poder não pode ser dado. O que ele lhe deu é morte! Agora, diga-me, quem é que lhe prometeu tanto?!

— O que está acontecendo? — Judith exclamou.

Vivian a soltou, pois não era o seu poder que afetava a mulher, mas o poder de outra pessoa. Judith arquejou, o rosto de repente contorcido de dor. Olhou para as mãos. Ambas estavam repentinamente se tornando enrugadas e retorcidas pela idade. Quando Vivian a fitou na face, viu o mesmo.

— O que está acontecendo? — Judith gritou, a voz já al-quebrada, quase um esgar de agonia de uma velha moribunda.

Foi brutal observar conforme ela se esvaiu e morreu, o corpo irreconhecível com a passagem de décadas em apenas instantes, até que jazia curvada no chão, nada mais que um fiapo seco de si mesma, horrivelmente sem forma e retorcida com a cruel punição que pagara pelas próprias ambições. E então, desfez-se em pó, espalhada entre as fendas do chão.

A porta adjacente se abriu e Meg apareceu na soleira.

— Depressa — Vivian exclamou —, traga minhas poções. Judith está morta e eu receio que a rainha possa estar perto da morte também.

Trabalhou rapidamente, arrancando as cobertas da cama, dando instruções a Poladouras para alimentar o fogo na lareira e acender todas as velas. Quando ele havia terminado, Meg aproximou-se com os remédios.

— Ela tomou um veneno. A criança em seu ventre está morrendo e ela certamente morrerá também, se eu não puder impedir.

Não havia tempo a perder. Sentou-se ao lado de Matilda na cama. Voltando os pensamentos para o íntimo mais uma vez, concentrou-se no poder da Luz enquanto colocava uma das mãos sobre o coração da rainha e a outra no ventre inchado.

Ao absorver as forças da Luz, encontrou o veneno sombrio que fluía através da rainha para a criança por nascer. Como se fosse uma coisa tangível, Vivian o pegou, fechando os pensamentos em torno dele. Puxou o veneno para dentro de si mesma.

Com um arquejo de dor, rompeu a conexão com Matilda. Sentia o veneno, cujo poder mortal desaparecera, mas deixara apenas uma letargia que ela lutou para controlar. Não poderia entregar-se, pois Mally estava em grave perigo.

— Precisa dar a ela um chá purificador — instruiu Meg. — Depois, ela dormirá.

— E a criança?

— Viverá, assim como a mãe. — Mas seus pensamentos eram menos confiantes. Nenhum dos dois sobreviveria se ela não fosse capaz de impedir a Treva maligna que causara tudo aquilo.

— O que vai fazer agora? — perguntou Meg, preocupada.

— A rainha deve ser protegida contra qualquer mal a mais. Vivian foi até o fogo da lareira que agora queimava com força e vigor e passou a mão por sobre as chamas, recuperando a energia drenada pelo elo de purificação que removera o veneno do corpo da rainha.

Pronunciou as palavras no antigo idioma celta de seus ancestrais, extraindo os poderes do Fogo para se juntarem aos seus. Então, quando os sentiu mais uma vez vibrantes em seu íntimo, voltou para a cama onde jazia a rainha.

A maneira dos antigos, passada através de gerações de feiticeiras e suas filhas, tocou os dedos em cinco pontos, formando uma estrela de proteção ao redor de Matilda e envolvendo-a num manto invisível que nenhuma treva poderia alcançar. Enquanto Vivian vivesse, a rainha estaria a salvo.

— Precisam ficar aqui — disse a Meg e a Poladouras. — Necessito de sua força para proteger a rainha.

Poladouras meneou a cabeça.

— Não deixaremos que você vá sozinha.

Vivian pousou a mão gentilmente no ombro do monge.

— Meu querido mestre, para onde eu vou o senhor não pode ir. Pois existem coisas que se passarão que não são deste mundo nem de seu Deus. Preciso fazer isso. É por mim que a Treva espera. Se o senhor estiver aqui, então eu saberei que a rainha estará a salvo, pois nem mesmo os poderes da Treva podem se comparar ao meu poder combinado com sua verdadeira fé.

— Não, minha menina! — Meg gritou, os olhos cegos cheios de lágrima.—Mande-me em seu lugar. Você pode fazer isso. Transformar-me como a Treva transformou aquela criatura miserável.

— Não traria bem algum. O disfarce seria descoberto e as conseqüências impensáveis. Preciso que fique com Poladouras, pois confio também em sua força.

Meg sabia que não havia como convencê-la e, quando Vivian se foi, chorou amargamente. Nenhum tipo de conforto que Poladouras pudesse lhe oferecer iria lhe aliviar a dor.

— Você não compreende — ela gritou. — Vivian não pode se proteger e proteger a rainha ao mesmo tempo. Será destruída. Vai ao encontro da morte para nos salvar.

As catacumbas eram as ruínas da fortaleza romana que se erguera em Londres cerca de quinhentos anos antes. Gerações sucessivas de invasores e seus reis tinham levantado construções sobre as catacumbas, até que agora a abertura ficava debaixo da capela real, nos fundos do pátio.

Os soldados de Guilherme tinham falado sobre isso. Alguns pensavam que talvez os outros soldados do rei Arthur tivessem sido enterrados ali, pois durante os séculos seguintes as catacumbas haviam se tornado criptas funerárias. Vivian tomou uma tocha ao começar a descer os degraus que saíam detrás do altar da capela para dentro das antigas ruínas romanas.

A tocha lançava dedos de luz pelas paredes escuras e úmidas como fios de ouro num fundo negro, tal como na visão da tapeçaria.

Ela era a tecelã que visualizara nos sonhos. Os fios ainda não estavam tecidos, o futuro ainda não decidido. Apenas ela poderia alterar o que viria a ser. O reino e o destino de todos aqueles que considerava caros dependiam de seus atos.

Outras tochas haviam sido colocadas nos suportes nas paredes, iluminando o caminho.

Vivian encontrou Mally numa cela escura e desmantelada, as mãos atadas à frente do corpo numa argola na parede ainda em pé. Com um rápido olhar em torno, Vivian sentiu as almas dos mortos que as rodeavam e descobriu que aquele lugar fora usado como cripta funerária e muito mais.

— Ele está morto, senhora! — Mally gritou. — Ele está morto.

Voltando-se, Vivian viu uma forma amontoada. Era Conal.

Fora horrivelmente espancado, sem dúvida capturado naquele dia no mercado, pelos homens do bispo. Mas por quê? Com tristeza, sentiu a razão de sua morte. O bispo estava atrás da verdade a respeito de Vivian e Conal morrera ao protegê-la.

— Meu querido amigo — ela murmurou. — Sinto muito.

Desamarrou Mally, sem que nada a impedisse. Não se surpreendeu. Mally servira a seu propósito, o de ser a isca para trazê-la até ali. Assim que isso fosse alcançado, a garota já não era mais necessária. Mally agarrou-se a Vivian.

— Ele me trouxe aqui embaixo. Disse que você mandara me buscar. Que suas habilidades de cura eram necessárias neste lugar pavoroso. — A garota estremeceu. — Então, me deixou aqui, depois de amarrar minhas mãos. O que está acontecendo, senhora?

Mentiras entrelaçadas em mais mentiras ainda. Trapaça e morte. Servas da Treva. Não havia necessidade de perguntar de quem Mally falava.

Como se num prenúncio da batalha que estava por vir, Vi-vian sentiu o veneno mover-se dentro de si e provocar um peso aumentado nos braços e pernas, seus pensamentos a se tornarem menos velozes e percebeu que aquilo, também, fora parte do plano maior.

— Precisa ir agora — disse a Mally. — Siga as escadas, as tochas iluminarão o caminho. O que quer que aconteça, não olhe para trás.

Mally a encarou, incrédula.

— A senhora não pode ficar aqui. Deve ir comigo.

— Eu a seguirei — Vivian assegurou. Sentiu que ela estava bem, assim como o filho que carregava. Empurrou-a gentilmente para a entrada do cômodo, captando também que a Treva esperava além, mas não por Mally. — Vá, agora! — ordenou. — E não volte. Concentre-se apenas nas chamas das tochas até chegar ao alto. Depois, procure por Meg.

Mally hesitou, olhando receosa ao redor.

— Vá! — Vivian repetiu, com veemência, Mally virou-se e saiu correndo. Vivian podia ouvir os chinelos da garota a estalar nos degraus de pedra e percebeu que ela ficaria a salvo.

Assim que Mally se afastou, Vivian sentiu a Treva se fechar em torno de si, brotando dos cantos da câmara, infiltrando-se pela porta. Mesmo que tentasse, ela sabia que não poderia escapar. E, quando Mally passou pela entrada da catacumba Vivian sentiu um portal invisível se fechar.

— Eu sabia que você viria.

Vivian voltou-se lentamente, reconhecendo aquela voz.

— Senhor bispo — constatou o que já sabia. — Milorde tinha razão. Eu precisava vir, é claro. Para impedi-lo.

Ele postou-se diante dela, vestido da cabeça aos pés de preto, a escuridão sobre a treva de sua maldade corporificada. Mesmos seus olhos eram tão sombrios como a noite, com a negrura de sua alma. Não mais usava a cruz de prata, pois o teria queimado com um simples contato. Em vez disso, sua túnica e o manto reluziam com miríades de pedras negras que pareciam absorver e drenar a luz da tocha.

— Não pode me impedir — disse a ela, a Treva agora incorporada nas ambições do bispo, o conde de Bayeaux. O irmão de Guilherme. — Merlin tentou faz quinhentos anos e eu o destruí. Agora eu a destruirei e o reino será meu.

— Não posso permitir.

Mesmo enquanto falava, Vivian sentiu o veneno funcionar dentro de si, roubando-lhe a força e a concentração. Sentiu também que qualquer fraqueza daria a ele o acesso a seus pensamentos. E, portanto, fechou-se, concentrando a mente consciente nas emoções e imagens que a Treva não poderia penetrar: nas lembranças de Rorke.

A expressão do bispo se crispou.

— Muito esperta, senhora. Mais esperta que seu pai. Por não ter nunca experimentado os prazeres mortais dos quais você compartilhou, ele não poderia blindar as intenções com imagens de felicidade e amor como você faz. Mas não resultará em nenhum bem. Com o tempo, o veneno debilitará sua vontade. E é chegada a hora no norte do país, enquanto conversamos aqui.

Com uma repentina clareza, Vivian percebeu a plena extensão da traição perpetrada. Tudo fora planejado. E, sem sombra de dúvida, ela sabia que a traição ao norte não seria dos invasores dinamarqueses, mas dos próprios homens do conde, certamente liderados por Vachel.

— Ah, você compreende a amplitude de meus planos. Ótimo. Então sabe que não há nada que possa fazer para impedi-los. Está tudo acabado.

Não estava. Ela não conseguia acreditar, recusava-se a crer, pois não sentira a morte de Rorke. E isso certamente haveria de perceber. Concentrou sua habilidade para fechar os pensamentos à Treva.

O Mal alterara o tempo para servir a seus próprios propósitos. Era também possível que pudesse servir aos dela. Mas somente se Rorke estivesse vivo.

— Você não pode impedir a Treva — o conde exclamou, ao erguer a mão negra, enluvada, e agitá-la diante de si.

A parca luz na câmara pareceu ser engolida pelo gesto do bispo. Vivian hesitou quando ia se contrapor ao movimento.

A Treva conhecia seus poderes e, naturalmente, iria antecipá-los. E isso não deveria acontecer. Em vez de contra-atacar, focalizando seu poder nas chamas da tocha, ela empurrou a poderosa luz para bem fundo, para dentro de si, canalizando-a para a própria alma, e mergulhando a câmara na completa escuridão. Então, voltou-se e correu para a parede dos fundos do cômodo.

Não havia nenhuma porta pela qual pudesse escapar. Mas ela usou de seus poderes para passar através da pedra, mais para dentro das catacumbas. Enfraquecida como estava pelo veneno, se seus poderes não eram páreo para os poderes da Treva, então ela se tornaria como a escuridão.

Desabou do outro lado da antiga parede de pedra, dentro de outra câmara onde minava água. Guiada pela visão interna, viu o projeto da construção como as células de uma colméia. Lutou para recuperar as forças mais uma vez, mas sentiu a Treva a se fechar em torno de si.

— Você não é páreo para mim, senhora da Luz. Não pode me impedir, pois para fazer isso deve liberar o encantamento que protege a rainha.

Ela ouviu os pensamentos sussurrarem pelas pedras conforme a Treva a perseguia.

— E isso você não fará, pois não pode suportar arriscar a vida de outrem pela sua própria. Sua compaixão mortal pelas pessoas é sua fraqueza. Eu não sofro a interferência de tais fragilidades humanas sem sentido. Você será destruída como foi seu pai.

Com as forças que lhe restavam, Vivian enviou um único pensamento para a escuridão condensada que se reunia em torno de si.

— Jamais!

Rorke levou consigo seus cavaleiros mais confiáveis. Livraram-se de todas as armaduras de batalha e dos pesados escudos que poderiam sobrecarregá-los, carregando apenas as espadas e lanças. Embora Guilherme estivesse resolvido a cavalgar com eles, estava fraco demais da jornada até o norte para viajar no passo que Rorke pretendia imprimir. Com a expressão fechada, o rei se despediu de seus cavaleiros, deixando-os para seguir com o restante de seu exército.

— Meu irmão me traiu — Guilherme dissera a Rorke. —-Teria me matado para satisfazer suas ambições. Eu deveria ter visto. Deveria ter sabido que ele não ficaria contente com o que tinha. Queria a Inglaterra. E isso pode me custar minha rainha e meu filho.

Rorke sabia, mas não dissera, que isso poderia ter um custo muito mais alto.

— Rezo para que cheguemos em tempo — respondera, muito sério.

— Se chegar a tempo e a rainha ainda estiver viva, então eu lidarei com meu irmão — Guilherme lhe dissera num tom que não admitia discussão. — Não me negará isso!

— Sim, milorde — Rorke concordara, grato que Guilherme não o vinculasse a quaisquer promessas, caso a rainha não sobrevivesse aos planos do bispo.

Se Matilda sucumbisse, isso somente poderia significar que Vivian estava morta também, pois ele sabia, no fundo do coração, que ela faria tudo para proteger a rainha. E, nesse caso, nem o Deus do bispo nem sua astúcia traiçoeira o salvariam.

Com uma ordem berrada aos homens, partiram num passo forçado. Levavam montarias extras tomadas dos homens de Vachel.

Pararam apenas o tempo suficiente para trocar os animais exaustos pelos descansados que tinham levado e prosseguiram num ritmo de arrebentar os ossos. Nas últimas horas antes da alvorada da manhã do terceiro dia, as fogueiras de Londres podiam ser vistas no horizonte. Embora à beira da exaustão, aumentaram o passo.

As notícias corriam conforme eles entravam pela cidade. Seus próprios soldados se reuniram de modo que, ao chegarem à fortaleza, trezentos deles cavalgavam com Rorke. Ele viu a surpresa na expressão dos guardas nos portões e percebeu que aqueles leais ao bispo estavam espantados de vê-lo e a seus homens com vida.

Um conflito nos portões logo terminou com os soldados de Rorke a enxamear para dentro da fortaleza e a subjugar quaisquer outros leais ao bispo. Rorke saltou do lombo da montaria exausta. Com a espada na mão e flanqueado por Tarek e Gavin, chutou e abriu as portas do salão.

Na passagem do lado de fora dos aposentos reais, encontrou um soldado armado. Era Stephen de Valois. Empunhava uma espada de batalha em uma das mãos, o braço ferido pendurado e inútil do outro lado.

Tinha um novo ferimento do lado da cabeça, mas estava enfaixado. De costas para a porta do quarto, assumiu uma postura defensiva, como se estivesse preparado para enfrentar qualquer inimigo.

— Pare! — ele exclamou e, quando Rorke se aproximou do jovem cavaleiro, finalmente foi reconhecido pela luz das tochas. Stephen recostou-se contra a parede. -— Tentei impedi-lo.

— Sim, eu sei. Fique tranqüilo, pois serviu a seu pai muito bem.

— A rainha está a salvo no quarto. O monge e a velha ama a protegem.

— E Vivian? — Rorke perguntou, ansioso, quando Stephen não a mencionou.

— Salvou minha vida. A morte estava sobre mim, eu a senti, e sua dama me deu a vida de volta.

— Onde está ela?

— Foi atrás dele. —? Tentou erguer a espada, mas não conseguiu. Praguejou, zangado. — Dê-me uma espada menor e lutarei a seu lado, milorde. E, quando pegarmos o traidor, eu lhe cortarei a garganta.

Rorke empurrou Stephen para o lado de Gavin.

— Você fez tudo que alguém poderia pedir, meu jovem amigo. O irmão de Guilherme o traiu, o que o abalou profundamente. Vai precisar do filho. Não é preciso que dê novamente seu sangue por ele. Já deu o bastante por hoje.

Rorke voltou e bateu à porta com o cabo da espada, chamando. A velha Meg correu o pesado ferrolho para espiar pela fresta com aqueles olhos opacos que ainda tinham o poder de enxergar a verdade.

— Tive medo que não retornasse, milorde — disse, com voz trêmula.

— Onde está a rainha?

Meg afastou-se de lado para deixá-lo entrar. A rainha estava sentada, recostada contra os travesseiros. Ao pé da cama, entre ela e quem quer que pudesse tentar entrar estava o monge, com um grande crucifixo de prata a reluzir na mão. A garota, Mally, estava acocorada ao lado da cama.

— Milorde — suspirou o monge, com alívio. — Eu não tinha certeza de qual seria o fim disso, e o que eu poderia ser forçado a fazer. Deus me perdoe, mas eu transpassaria o bastardo se ele entrasse pela porta.

— Para onde Vivian foi?

— Foi atraída para as catacumbas para libertar a garota — Meg explicou. — Ele sabia que ela a seguiria.

Um ódio glacial tomou conta de Rorke, fechando-se em torno de seu coração.

— Quanto tempo faz? — perguntou.

— Não muito — retrucou Meg, torcendo as mãos. — nos fez jurar que não deixaríamos a rainha. O poder do bispo é inútil contra o encanto protetor enquanto minha senhora viver.

— Ele ameaça mulheres e crianças para alimentar suas ambições — Rorke exclamou, os olhos luzindo como punhais de gelo — Agora, o bispo terá de se ver comigo.

— Não! — Meg gritou, correndo e o agarrando pelo braço.

— Você é mortal. Não pode impedi-lo, pois não é real. Não é o bispo que faz isso, mas a Treva que reclamou sua aalma.

Dando meia-volta, Rorke exclamou:

— Que bobagem é essa?

— O corpo é o do bispo, mas a alma não é! — ela repetiu.

— É da grande Treva e procura o poder da Luz. Assim que as forças da luz e da escuridão se juntarem como fizeram há quinhentos anos atrás, a Treva governará o reino.

— É verdade, meu filho — Poladouras também assegurou-lhe. — Meg disse que você sabe a verdade sobre os poderes de Vivian. Sabe também que ela é uma filha da Luz. É filha verdadeira do próprio Merlin, que possui grande poder. O bispo não passa de um vaso para a Treva. Abraçou-a em sua busca por poder. Mas ela o governa para seus próprios objetivos. E seu objetivo é destruir os guardiões da Luz. — Com uma imensa tristeza, murmurou: — Ele a destruirá.

— Deve existir um meio de impedir — Rorke insistiu. — Não aceitarei que Vivian esteja perdida para mim. — Agarrou a velha Meg pelos ombros. — Por Deus, deve haver um jeito!

— Existe apenas uma pessoa que deve saber como poderia livrá-la da Treva — disse Meg, com voz trêmula.

O pai dela. — Seus olhos sem vida luziram com uma repentina vivacidade. — Quão grande é sua coragem, guerreiro? — ela perguntou. — É suficiente para confrontar o poder da Luz e desafiar a Treva pelo amor da filha de um feiticeiro?

Sem hesitação, ele disse.

— Diga-me como pode ser feito.

Meg o encarou com os olhos cegos e finalmente concordou

— Merlin não pode entrar neste mundo. Tal foi o seu destino nas mãos da Treva nos dias de Arthur. Você não possui o dom da visão interna, de modo que só ele poderá esclarecê-lo. É o único caminho, guerreiro. Precisa passar pelo portal de pedra até o mundo suspenso entre os mundos.

Era quase alvorada quando Rorke parou na clareira da floresta. A neve caíra, cobrindo o chão com um manto imaculado sob o céu cinzento naqueles últimos momentos antes que o sol nascesse.

— Você tem os meios de entrar no outro mundo — Meg lhe disse, a mão agarrada a seu antebraço. — Mas tem fé? Acredita com força suficiente que ele existe? Pois somente se acreditar realmente, você poderá passar pelo portal como poucos mortais fizeram. — Enquanto falava, os primeiros raios de sol iluminaram a clareira.

Uma bruma estranha, etérea, formou-se lentamente conforme o sol aquecia o manto de neve e, naquela névoa acinzentada, sutil, vacilante, se ele olhasse com cuidado, veria uma imagem imprecisa de um obelisco de pedra. O portal deste mundo para o outro.

— O cristal azul — Meg exclamou.

Vivian dera a pedra a Rorke quando ele partira de Londres, para sua proteção. Sabia dos perigos da Treva e mesmo assim lhe dera o amuleto. E era ela quem precisava de proteção agora.

— O cristal possui a chama da Luz — Meg explicou. — Assim como protege pode também guiá-lo pela escuridão gelada da pedra. Mas — avisou — apenas se você acreditar.

— O que há do outro lado?

— A verdade.

— Merlin estará lá? Meg fez que sim.

— Mas pode se recusar a recebê-lo.

— Iria se recusar sabendo que quero apenas salvar sua filha? — A raiva o perpassou. Ele era um guerreiro, que vira de tudo no contexto das batalhas que lutara e vencera. Nenhuma perda era aceitável. Principalmente aquela.

— Não é suficiente querer — Meg avisou. — Precisa provar que você merece o que procura. — Cravou os olhos opacos na pedra. — O tempo escasseia. Precisa ir agora.

Conforme ela falava, a luz tornou-se mais brilhante na clareira. Assim que o sol surgisse nas copas das árvores e iluminasse o local, o portal se fecharia mais uma vez.

Com a mão na espada que pendia a seu lado, Rorke avançou para a imagem imprecisa do obelisco de pedra.

Tarek postou-se imediatamente ao lado dele.

— Pense apenas na Jehara, pois um amor assim é raro — disse-lhe, relembrando da bela criatura que o avisara do ataque e salvara a vida de todos. Se encontrasse o amor como o amigo encontrara, iria se agarrar a ele até seu último suspiro.

— Obrigado, meu amigo.

— Esperarei por você do lado de cá.

— Precisa crer, guerreiro.

As últimas palavras de Meg o avisaram quando Rorke fechou a mão em torno do cristal azul, segurando-o como se segurasse Vivian. Avançou para a pedra. Fechou os olhos e pensou apenas nela ao dar o próximo passo.

Foi como ser lançado para dentro de um profundo buraco escuro. Ele se sentiu tombar e rolar, jogado contra superfícies duras que imaginava serem da pedra e, depois, dilacerado e rasgado pela rocha fria. Então sentiu a friagem penetrá-lo, invadindo seus pensamentos e rompendo sua concentração.

Ele não tinha idéia se ainda tinha ou não a espada ou mesmo se continuava vivo. Sua única percepção era o cristal apertado em sua mão e os pensamentos em Vivian.

À medida que continuava a cair no poço escuro, tomou consciência de um ponto de luz penetrar vagamente sua percepção. Parecia que caía naquela direção, pois se tornava rapidamente maior, como uma abertura no fim de um túnel. Então, numa súbita explosão de dor e luz, como se tudo estourasse a seu redor, Rorke se viu liberto da escuridão e deitado na relva de uma clareira.

Aturdido e abalado, estupefato pela experiência, seus sentidos lentamente se aclararam conforme ele se recordava de ter avançado para o portal de pedra. Contudo, não havia sinais exteriores da terrível jornada que acabara de realizar.

Não havia sangue nem tinha as roupas rasgadas. A espada ainda estava em uma das mãos, a outra fechada em torno do cristal azul como se ele tivesse dado apenas um passo de um ambiente para outro.

Levantou-se devagar e ficou acocorado. A clareira era a mesma, só que agora livre do frio e da neve. Parecia primavera, com uma ligeira bruma a se erguer da terra enquanto o sol se punha. Pouco além, a uns passos de distância, ele mal conseguia distinguir a forma do obelisco de pedra.

— Levante-se e lute, guerreiro!

Rorke saltou de imediato nos pés, as mãos agarradas ao cabo da espada, ao se virar para enfrentar aquele novo desafio.

O homem com que se defrontou era alto e de ombros largos, com uma força impressionante nos músculos duros dos braços conforme empunhava a espada à frente. Não havia engano; era um guerreiro. Estava em sua postura, na maneira como segurava a arma e na expressão feroz em suas feições.

Não era jovem, nem velho, mas no apogeu dos anos e com uma argúcia que podia ser vista no olhar nivelado ao de Rorke. Mas foi seu traje de guerra que fez Rorke parar. Aquele homem não era o pai de Vivian.

Ele não usava cota de malha, mas uma espessa couraça de ouro no peito, reforçada por retângulos de metal polido. Ele a usava sobre um saiote que terminava logo acima dos joelhos, em vez de calças, e o traje era ricamente debruado com uma trança dourada. Botas recobertas de placas de armadura, entalhadas em ouro, protegiam as pernas musculosas.

Um manto pendia de seus ombros, preso no lugar por medalhões gêmeos de ouro, na couraça de peito. Sobre a cabeça, usava um elmo de aço de forma arredondada, com um magnífico penacho de ema tingido de um brilhante escarlate para combinar com a cor de sangue de seu manto. Em contraste, a espada de batalha que carregava era livre de ornamentos embora parecesse ser de resistência extraordinária e de um corte extremo.

Sua vestimenta era mais elegante do que a de qualquer soldado comum e seu porte mostrava isso também. Aquele homem não era um guerreiro comum, mas um líder.

— Lute ou morra! — o guerreiro o desafiou, avançando rumo a Rorke em posição de ataque.

Rorke confrontou o golpe e desviou-o para o lado e depois girou ao redor para se defrontar com uma nova investida.

— Não procuro um confronto, estranho. Vim procurar uma pessoa chamada Merlin.

Sua resposta foi outro choque de aço contra aço.

O guerreiro era forte, um oponente formidável em qualquer mundo. Custou toda a força e sagacidade de Rorke para defletir cada investida e bloquear cada golpe, e depois se afastar e assumir uma nova postura. E, durante o tempo todo, estava ciente dos minutos que se escoavam. Um tempo valioso que poderia significar a diferença entre a vida e a morte para Vivian.

Queria acabar com aquilo. Onde estava Merlin, se é que realmente existia?

— Não tenho tempo a perder! — esbravejou, furioso.

— Não tem tempo para mais nada, guerreiro — seu adversário o provocou. Outro golpe retiniu na clareira.

A raiva dominou Rorke. Estudou o oponente e voltou os pensamentos para o resultado. Notou cada falha menor de movimento, uma hesitação momentânea, a fragilidade de um flanco desprotegido.

Lentamente, começou a tomar a ofensiva, investindo com golpes incessantes, aproveitando cada vantagem aprendida em incontáveis outras batalhas. Só o resultado o interessava. Um resultado do qual tinha certeza, pois não aceitaria nenhum outro. Mostrou-se incansável, até sentir que o adversário vacilava sob a barragem de golpes e percebeu que a vitória estava a seu alcance. Mesmo assim, encheu-o com uma chuva de investidas, impulsionado por uma luxúria sangrenta de ver tudo terminado.

Você deve se mostrar digno e merecedor. As palavras da velha Meg sussurraram pela clareira no calor da batalha. Não basta querer. Você deve acreditar.

Um golpe aturdiu-o quando o apanhou com a concentração rompida, e ele investiu com mais fúria.

Como deveria ser posto à prova? Por um teste? Que teste poderia um feiticeiro pedir de um mortal?

A cada golpe que recebia Rorke respondia instintivamente com dois.

Qual poderia ser o verdadeiro teste de um guerreiro?

Sentiu o adversário fraquejar e, quando hesitou, Rorke desferiu outro golpe. E mais outro. Até que levara o inimigo a cair de joelhos. Mais um arrancou a espada das mãos do adversário. Então se postou sobre ele com a lâmina pronta para desferir o golpe mortal.

Haveria morte no mundo imortal?

Ele hesitou. Alguma coisa era real? Aquele guerreiro orgulhoso e valente seria de verdade?

Um teste de valor. Um guerreiro era tão valoroso quanto sua espada. No mundo mortal.

Você deve acreditar.

— Eu não o matarei!

Com um grito feroz de guerra, Rorke jogou sua espada de batalha para longe. Naquele instante, viu o lampejo de satisfação nos olhos do outro guerreiro. Se tivesse causado a própria morte pela escolha, Rorke pensou com uma pontada de pesar, não por si mesmo mas por Vivian, então, que assim fosse. O guerreiro se pôs em pé, destemido, ainda orgulhoso e sem se dar por vencido. Pegou um pequeno punhal da bainha no cinto.

— Já vi o bastante — uma voz exclamou.

Um homem saiu da cobertura das árvores que rodeavam a clareira e lentamente caminhou na direção deles.

Era mais velho que o guerreiro, as mechas prateadas a esfriar os cabelos nas têmporas. Era alto e tão régio como o guerreiro, porém com uma leve fragilidade no porte que poderia advir de algum antigo ferimento ou das enfermidades da idade. Era um belo homem, com feições enxutas e um ar pensativo. Uma barba branca cortada rente cobria-lhe a face.

Quando chegou mais perto, seu olhar ergueu-se e encontrou o de Rorke. Os olhos que o fitavam de volta, embora marcados pela passagem dos anos e muita tristeza na vida, eram tão azuis como o coração de uma chama. Eram os mesmos olhos de Vivian.

Aquele era seu pai.

O guerreiro o saudou, não com a obediência de um servo a seu mestre, mas de amigo para amigo, o que aludia a um vínculo profundo e inquebrantável.

— Ele lutou bem — o guerreiro comentou com um leve divertimento. — Pensei me ver derrotado até que ele jogou a espada de lado.

Merlin não disse nada, mas continuou a observar Rorke com cuidado. Rorke sentiu a sagacidade da mente que jazia por trás daquele olhar contemplativo e um poder poderoso que ainda queimava dentro do feiticeiro. Vira tal fogo da Luz que vibrava dentro da filha do mago.

Ele se unira a ela de um jeito que transcendia uma junção física. Tinham se tornado unos na partilha das almas. Ele tocara o fogo dentro dela e reconhecia aquele mesmo poder que ainda reluzia dentro do feiticeiro, embora ele estivesse preso naquele lugar imortal.

— Por que lançou longe sua espada, guerreiro? — Merlin perguntou, os olhos se estreitando, não com curiosidade, mas num exame minucioso. — É sua força. Com ela você mata, domina seus inimigos e conquista reinos. Poderia facilmente ser morto por tal tolice.

Rorke sentiu aquele escrutínio e percebeu que aquele era o teste do qual a velha Meg falara. Merlin não procurava respostas, procurava sabedoria.

— Porque — Rorke retrucou — é precisamente o que o senhor esperava de mim.

A expressão de Merlin abrandou-se assim como a tensão que se irradiava dele. Concordou como se algo o agradasse.

— Ela disse que você tinha o coração sincero. Eu precisava saber se possuía uma grande sabedoria. Pois somente com sabedoria você pode ter alguma esperança de conseguir o que procura. — Olhou para o guerreiro postado ao lado de Rorke. — Ainda pode haver esperança.

Um olhar passou entre os dois e depois o guerreiro deu um passo para trás. Inclinou a cabeça ligeiramente. Novamente, não era obediência, mas uma saudação ao feiticeiro.

— Esperamos quinhentos anos pelo guerreiro que pudesse levar a espada de volta para o mundo mortal. — Abaixou-se e pegou a espada, colocando-a na bainha. Então, antes que Rorke pudesse responder ou perguntar qual o significado daquela frase estranha, ele desapareceu como se nunca tivesse existido.

Truque ou sortilégio? Rorke se perguntou com uma raiva repentina, ao se voltar para Merlin, a quem esperava que se diluísse no ar como o guerreiro.

— Não vim aqui para isso. Enfrentei seu teste. Agora, quero respostas. Como posso lutar contra a Treva?

A única resposta de Merlin foi um sorriso contemplativo, ao dizer:

— Caminhe comigo.

Voltou-se, sem esperar por Rorke, e começou a subir a trilha para as colinas.

Ele não passara para o outro mundo para dar passeios matinais pelas colinas. Viera até ali em busca de respostas. Rorke hesitou, zangado e frustrado por aquilo que não conseguia entender e pessoas que não se faziam compreender. Enquanto isso, o tempo corria e Vivian estava em perigo.

— Vá com ele — uma voz gentil pediu.

Ele se virou e viu uma mulher parada na beira da clareira. Era linda, com doces olhos verdes. Usava um vestido azul-pálido, e os cabelos vermelhos e reluzente caíam em cascata sobre seus ombros.

Rorke não precisava saber seu nome para adivinhar quem era. A semelhança estava lá, nos ângulos perfeitos da face, suavizados agora pela idade, mas não obstante belos. Na lenda, ela era chamada de a Dama do Lago.

— Por favor — ela implorou. — Ele esperou muito tempo por você e sua alma está pesada. Porém, ele não irá pedir. Você precisa ir de livre vontade por causa do que sente no coração.

Rorke olhou para a trilha. Merlin continuava a subir lentamente e com firmeza. Não havia nada mais a fazer a não ser segui-lo.

— Eu a encontrarei, minha cara senhora.

— Precisa, pois você é nossa única esperança.

Rorke virou-se e seguiu pela trilha até as colinas. Era uma subida fácil e não muito longa, mas enquanto isso, ele se preocupava com a passagem do tempo. Não era o mesmo ali, sabia disso, pois Vivian falara de ter passado um dia e uma noite com Merlin quando parecera que se ausentara por menos de uma hora.

Contudo, quanto tempo tinha se passado nas catacumbas da fortaleza? Estaria ela ainda viva?

Sim! A resposta brotou de seu coração, pois ele não poderia acreditar que fosse diferente.

Seguiu Merlin até um nicho que fora cortado no topo da colina. Dentro do nicho havia uma câmara feita de mármore branco. Parecia um tipo de observatório, com uma parte do teto aberta para o céu. Uma parede inteira abria-se para o pequeno vale, abaixo. Dava a sensação de ser um lugar acima do mundo, como se de certa forma integrasse tanto o mundo mortal como o imortal.

— Não seja impaciente — disse Merlin, sentindo os pensamentos do visitante. — Por enquanto, ela está viva. Existe algo que devo mostrar a você.

Dirigiu-se ao fundo da câmara e tocou a parede abaixo, num canto. Ela se abriu, as pedras se separando e se movendo sobre si mesmas para revelar uma câmara interna. Merlin fez um sinal para que Rorke o seguisse.

No centro da câmara interna havia uma pequena lagoa. Embora o local estivesse escuro, a não ser pela luz que passava pela entrada, a lagoa luzia com uma luz iridescente como se brotasse de dentro dela. De novo Merlin fez um sinal para que ele se postasse ao lado da água.

— Diga-me o que vê.

— Que jogo é esse?

— Não é jogo.

— Um teste então? — Sua paciência se esgotava. Merlin concordou.

— Um teste dos antigos. Apenas um guerreiro que seja sincero de coração pode ficar à beira d'água e ver sob a superfície o tesouro que há lá dentro.

— Não vim procurar tesouros, velho.

— Veio procurar os meios para salvar minha filha. Não é um tesouro pelo qual vale a pena morrer?

— Sim, realmente é.

—Então, olhe para a água e diga-me o que vê, pois apenas um guerreiro sincero de coração verá o tesouro.

Rorke fitou a lagoa. A água tremulava levemente, era de um branco leitoso e impossível de se enxergar além da superfície. Então, como se alguém a tocasse com a mão e afastasse a nebulosidade, a água clareou. E, no fundo das profundezas bru-xuleantes, viu uma espada magnífica.

Conhecendo-lhe os pensamentos, Merlin disse:

— Você viu a espada. É um guerreiro de coração verdadeiro e de sabedoria. Um guerreiro assim deve ter uma espada à sua altura. Pegue a espada da água, guerreiro. Você tem o poder.

Quando Rorke encarou Merlin, incerto, o feiticeiro explicou:

— Você sempre o teve, pois está na pedra azul. A jóia do cabo da espada Excalibur.

Ao som daquele nome, falado e proclamado em incontáveis lendas, as águas da lagoa começaram a borbulhar e se agitar.

Os dedos de Rorke se fecharam na pedra que Vivian colocara em seu pescoço.

Sentiu de imediato o calor da pedra, o fogo em suas profundezas azuis que queimavam com o poder da Luz. Então, olhou para a lagoa. A espada lentamente começou a se erguer da água.

Era uma arma magnífica, uma espada lendária, a espada de Arthur: Excalibur.

Foi então que Rorke descobriu quem era o guerreiro que o desafiara, quando saíra do portal.

— Sim — Merlin confirmou, ao lhe sentir os pensamentos. — Arthur.

A espada alçou-se acima da água revolta, voltou-se lentamente e depois se deslocou na direção de Rorke. Ao se aproximar, pairou, suspensa no ar como se segura por algum fio invisível.

— Pegue-a —- Merlin exclamou. — Pois apenas com a espada da Luz você pode libertar Vivian.

Rorke estendeu a mão e a espada moveu-se por conta própria, o cabo a deslizar para dentro de sua palma como se fosse precisamente entalhado para ele. Merlin aproximou-se lentamente.

— A pedra.

Rorke aquiesceu, embora relutante em se separar da última ligação com Vivian. O feiticeiro tirou-lhe a pedra azul do pescoço e depois a encaixou no cabo da espada. Tal como a espada, a pedra ajustou-se perfeitamente, como se fosse aquele o seu lugar.

— Dei a pedra da espada para minha primeira filha, para protegê-la quando a mandei para longe deste lugar. Sempre esperei que pudesse ser devolvida um dia, quando um guerreiro precisasse dela. — Fechou as mãos sobre a de Rorke, apertada no cabo da espada.

— Por quinhentos anos a espada foi julgada perdida. A mãe de Vivian a trouxe para mim, e eu a mantenho escondida desde então. A espada tem o poder da Luz, o poder de ver e saber, mas o verdadeiro poder jaz no homem que a empunha. Apenas com grande sabedoria e um coração sincero, é que se pode realmente fazer uso dela.

— Mas Arthur era um grande guerreiro — Rorke protestou, precisando de algo mais para lhe dizer como isso deveria ser feito se ele tivesse alguma chance de derrotar a Treva.

— O coração de Arthur estava cheio da amargura por causa da traição. A amargura tornou-se uma arma que se voltou contra ele. Você deve fechar os olhos e enxergar com o coração, guerreiro. Então, será vitorioso.

Voltaram juntos para a clareira no pomar. A Dama do Lago os esperava. Lágrimas inundaram-lhe os olhos quando viu a espada nas mãos de Rorke. Mas não disse nada. Não era necessário. Tudo que ela sentia era evidente no olhar, cheio de amor pela filha.

— Precisa voltar agora — Merlin disse a ele. — O tempo passa e a Treva se torna ainda mais ousada na busca para destruir Vivian.

Era como se o tempo na clareira não tivesse passado. Contudo, na lembrança de Rorke, parecia que perdera horas preciosas. Avançou para a pedra, que reluzia debilmente sob a luz da manhã. Pela primeira vez, as feições de Merlin fraquejaram. E ele pousou as mãos nos ombros de Rorke.

— Não a deixe perecer. Você é a única esperança de Vivian.

Rorke relanceou os olhos mais uma vez para a dama que os observava e então se voltou e passou pelo portal de pedra.

Desta vez não houve o dilacerante tormento de dor, nem o calvário de uma queda por uma longa e sombria passagem. E ele percebeu que, também, aquilo fora um teste.

Não sentiu raiva ou ressentimento por isso. Tinha apenas um pensamento ao pisar na clareira coberta de neve com a lendária espada Excalibur presa nas mãos.

Vivian.

 

- Tive medo que pudesse não voltar, meu amigo — Tarek o saudou, com ar de preocupação. — Encontrou o que procurava?

— Encontrei Merlin — Rorke disse, com secura.

— Então a lenda é verdadeira?

Rorke ergueu a espada diante de si e os olhos de Tarek luziram, tão azuis como a pedra no cabo da arma.

Mas foi a velha Meg que murmurou o nome lendário com uma mistura de devoção e incredulidade, como se a tivesse nas mãos.

— Excalibur! Ele lhe deu a espada de Arthur — disse, admirada. — Rezei para que seu coração pudesse ser verdadeiro, milorde.

— Céus! — Poladouras exclamou, com reverência. — Por Deus, eu sempre acreditei, pois os poderes de Vivian eram inegáveis. E a lenda vive no coração de todo inglês. Mas ver a espada e saber que é real, que Arthur era real... isso restaura a fé de um homem de que existe mais neste mundo do que podemos ver. Dá esperança.

— Ele não a cedeu facilmente — Rorke admitiu. — Merlin é tão sagaz como diz a lenda. Tive de conquistar a espada.

— Uma disputa? — Tarek exclamou com voz de espanto e seu olhar percorreu o amigo em busca de sinais de ferimento.

— Sim — Rorke retrucou, sem se vangloriar. — Fui forçado a lutar com um rei pelo direito à espada. Arthur vive naquele mundo entre os mundos. Rezo para que eu seja merecedor da confiança de todos.

Seu olhar era tão sombrio como o céu plúmbeo. O portal desvaneceu-se com a alvorada que se abriu, tímida, entre as nuvens, como um prenúncio de uma grande escuridão que se assomava.

— Quanto tempo se passou? — ele perguntou com uma nova urgência, ao colocar a espada na bainha e deixar a clareira.

— Não mais que alguns instantes, meu amigo — Tarek assegurou-lhe, ao voltarem para os cavalos a fim de seguirem para a fortaleza.

Os portões estavam novamente controlados pelos homens de Rorke. A armaria também, com os aliados do conde aprisionados dentro, até o retorno de Guilherme.

Não havia tempo a perder nem ele poderia esperar pelo retorno de Guilherme. Rorke saltou do cavalo e rumou para o canto do pátio onde as pedras antigas indicavam a entrada das catacumbas que um dia tinham abrigado um exército romano.

Talvez até mesmo Arthur e seus homens tivessem vivido dentro daquelas paredes antigas quinhentos anos atrás, antes de Tintagel, antes que a Treva traísse um jovem rei, antes da Batalha de Camlann, onde Arthur fora mortalmente ferido e depois levado para um lugar chamado Avalon, e a mítica espada com o poder da Luz lançada dentro de um lago.

Tarek apressou-se a segui-lo, mas Rorke o impediu com a mão em seu ombro.

— Esta batalha devo lutar sozinho.

— Tenho lutado a seu lado desde Antioquia — protestou o persa. — Devo-lhe a vida. Por tudo que é sagrado perante seu Deus e o meu, eu tenho o direito.

— Sim, meu amigo, você tem o direito. Por isso eu lhe peço que fique de lado desta vez. — Viu a recusa nos olhos azuis de Tarek e procurou dissuadi-lo. — O que eu procuro não é desta terra, meu amigo. Posso falhar. Não temo a morte, mas não gostaria de ser a causa da sua, contra as forças da Treva. Se eu falhar e morrer, Stephen precisará de você. — Não pedia por Guilherme, pois o futuro do duque da Normandia já estava escrito, mas pelo jovem que era como um irmão, e cujo destino ainda estava em aberto. — Não posso proibi-lo de ir. Mas peço como amigo a quem me julgo ligado pelo sangue partilhado nos campos de batalha.

— Acredita que essa espada o protegerá? — Tarek perguntou.

— Creio que a Jehara me protegerá, pois ela é minha vida. Tarek concordou, por fim.

— Por isso ficará me devendo um grande favor, que pretendo pedir para que retribua, e que você não poderá me negar.

— De acordo.

Poladouras adiantou-se e pousou a mão no ombro de Rorke.

— Leve isto — disse, e deu a Rorke o crucifixo que normalmente pendia de sua cintura. — Tenho grande fé nele. Tem um poder só seu. — A voz do monge vacilou e seus olhos reluziram de lágrimas. — Traga Vivian de volta e farei a união de vocês dois neste mundo ou em qualquer um de sua escolha.

Meg foi a última a se aproximar, depois que todos tinham se despedido. Ele a fitou, os olhos sem vida cheio daquela sabedoria de uma vida dedicada aos mestres da Luz.

— Não há nenhuma magia que eu possa lhe dar, guerreiro — disse. — Só posso lhe dar conselhos e rezar para que as forças da Luz o protejam. — Então, entoou a profecia da visão de Vivian naquele dia em Amesbury: — Cuidado com a fé que não tem coração, milorde. E a espada que não tem alma. — Por fim, o relembrou: — A Treva pode assumir várias formas. Tentará enganá-lo. Não confie naquilo que verá ou ouvirá. Como Merlin o testou, assim fará a Treva, pois tudo está em jogo. — Aproximou-se e estendeu a mão frágil, pousando-a no coração de Rorke. — Seja honesto de coração, guerreiro. Creia no poder da Luz. — Então, recuou.

— Eu a trarei de volta, senhora.

— Deus queira que possa.

Rorke seguiu para a entrada das catacumbas. Com apenas uma coisa em mente, tirou Excalibur da bainha de couro.

— Ouça-me, doce filha do fogo. Capte os meus pensamentos, saiba o que existe em meu coração e descubra o meu amor por você.

Não ouviu nenhuma resposta, nem esperava por uma. Era Vivian que possuía o poder de conhecer os pensamentos dos outros. Mandou os seus para ela e rezou para que ainda estivesse viva para ouvi-los. Então, segurando a espada em uma das mãos e uma tocha na outra, começou a descer os degraus das antigas ruínas.

Queria apressar os passos, mas as palavras de Meg e sua Própria cautela o refrearam. Poderia pôr tudo a perder ao agir com pressa ou imprudência.

Paciência e cautela, pensou, seguindo com cuidado pelos degraus desgastados pelo tempo.

O caminho estava iluminado por tochas colocadas nos suportes, ao mesmo tempo uma isca e um aviso de que havia alguém a esperar por ele. Rorke seguia silenciosamente, o olhar à frente de um halo de luz para o seguinte, alerta para as sombras traiçoeiras nos limites da visão e atento ao outro aviso de Meg: a Treva poderia tomar qualquer forma.

Então, acalmou os pensamentos, protegendo-os para não pensar em nada que pudesse traí-lo. Pois se Vivian poderia ter acesso a seus pensamentos, então a Treva também os conheceria. Como Arthur fora traído, ele também poderia ser.

No momento em que pisou na câmara, soube que Vivian estivera ali. Sentiu a essência de sua presença, um resquício de calor dentro das paredes de pedra. Rorke fechou os olhos e pôde senti-lo ainda mais forte, uma lembrança daquele mesmo calor que os rodeara quando seus corpos tinham se unido e ele se sentira completo de uma forma que não conseguira nem entender nem explicar.

Ali, nas sombras mudas da câmara, capaz de ver apenas dentro da poça de luz da tocha, seus outros sentidos se tornaram mais fortes e compensaram o que ele não conseguia enxergar.

Ouviu o sutil fluir de água conforme escorria das pedras, sentiu a umidade de séculos no ar que o envolvia e penetrava por sua pele em correntes invisíveis de movimento. Abriu os olhos devagar mais uma vez e procurou perceber de que forma ela havia fugido dali. Descobriu no fundo da câmara, onde a parede desabara, que se abria para outro espaço.

Pedras e entulho bloqueavam qualquer passagem, mas ele viu que Vivian passara por aquele caminho, escapando através da parede, deixando um rastro de uma débil luz em várias pedras.

Ele saiu correndo da câmara, desceu pelo corredor e entrou num cômodo seguinte, e no outro, até que encontrou uma passagem de ligação. Lá dentro descobriu o que estava procurando, as pedras desabadas na parede do fundo da primeira cela e mais pontos de luz nas paredes. Ela passara por aquele caminho. Era um labirinto, uma confusão de tocas que um dia haviam sido um posto militar que abrigara o antigo exército de Roma.

Os sons de água e o ar estagnado enchiam as celas como vozes sussurradas, conforme ele corria de uma passagem para a outra com a sensação de que estava sendo atraído para o fundo dos subterrâneos da fortaleza, guiado por um lampejo de luz bruxuleante, de uma pedra aqui para outra ali. Até que dobrou uma esquina e descobriu outra parede.

Ele recuou, procurando outros sinais de que Vivian passara por aquele caminho. Ela também fora atraída mais para dentro das catacumbas com uma finalidade que se tornara de repente clara para Rorke. Ali havia apenas a luz da tocha que ele carregava.

A Luz era a fonte da força e do poder de Vivian. O fluido vital que a renovava e reabastecia de energias. Sem ela... Vivian poderia morrer.

Se a Luz era vida, então a Treva, privada de toda luz, seria como a morte para ela. Rorke continuou a procurar por um sinal de que ela passara por algum outro caminho, mas nada encontrou. Com uma frustração crescente percebeu-se a retornar para a parede de pedra que bloqueava a passagem depois da curva.

Os traços iridescentes luziam na lateral e depois sumiam de repente. Talvez ela tivesse passado através da parede do fundo como fizera na primeira cela. Com a espada na mão, Rorke procurou, primeiro numa parede, depois na seguinte. A luz da tocha incidiu na pedra azul do cabo de Excalibur e refletiu-se em milhares de pontos pelas paredes, a não ser na parede que bloqueava a passagem.

Rorke passou o cabo da espada diante da parede várias vezes, inclinando-o para que captasse a luz da tocha. Não havia reflexo de luz. Com um pensamento súbito, ele enfiou a mão pela parede. Para seu espanto, a mão passou como se as pedras não existissem.

Vivian possuía o poder de atravessar as pedras. Fora assim que fugira da fortaleza naquela manhã em que escapara para a floresta. Ele porém não possuía tais poderes. Mesmo assim, sua mão achara um espaço além. Incerto daquilo que poderia encontrar do outro lado ou mesmo se poderia chegar lá, Rorke respirou fundo e caminhou para a parede.

Diferentemente de sua jornada através do portal, não experimentou qualquer sensação. Era como se tivesse simplesmente dado um passo a mais pela passagem. Era uma ilusão!

A Treva tentará enganá-lo.

As palavras da velha Meg voltaram-lhe à mente. Na parede ele viu traços débeis de luz, um sinal que Vivian passara por ali. A ilusão da parede tinha o intuito de enganá-lo para que voltasse atrás. A Treva sabia que ele a seguia. Empunhando Excalibur adiante de si, Rorke continuou a descer a passagem, sem ouvir qualquer ruído, a não ser das correntes de ar e da água.

— Você nunca a encontrará, guerreiro — as paredes pareciam murmurar conforme ele passava. — Ela está além de suas míseras emoções mortais. Vivian será encerrada numa tumba na escuridão, seus poderes banidos para sempre.

As palavras pareciam escorrer das paredes, assombrando-o, tentando minar sua confiança. Fechou a mente e lutou para ocultar as emoções ao avançar para dentro das catacumbas. Então ouviu outras vozes muito perto, misturadas ao som de uma risada feminina, que ele reconheceu.

O som acariciava as paredes da passagem, atraindo-o e o fazendo recordar da paixão que tinham compartilhado. Fez a volta numa passagem e estacou de repente. Então a viu, tão bela como nunca vira.

Ela estava num leito, a cabeça jogada para trás, o corpo nu sob o de um homem, enquanto se uniam com uma violência lasciva tão urgente que aquilo o transpassou como uma faca. Uma onda de ciúme e ódio o invadiu. Suas mãos se fecharam no cabo da espada, ao erguê-la sobre a cabeça para atacar.

Então o homem virou a cabeça na direção de Rorke e a face que ele viu era a sua. E, com uma repentina percepção, ele se deu conta de que se tivesse baixado a espada teria causado a própria morte.

Vivian também virara a cabeça para encará-lo. Mas, a despeito da perfeição nua de seu corpo, os olhos que o fitavam não eram cheios do brilhante fogo azul, mas sombrios e negros como a morte.

Ele soltou uma praga e baixou Excalibur abruptamente ao perceber a armadilha da mortal ilusão. A luz de uma tocha na parede cintilou na pedra do cabo e a ilusão desapareceu numa explosão de retinir nos ouvidos que só poderia ser uma explosão de raiva.

As sombras escuras rastejaram pelas paredes e se dispersaram para os cantos distantes, procurando fugir da cela conforme a luz da pedra no cabo da espada brincava pelas paredes como se as caçasse.

— A Luz da espada! — Rorke murmurou, com uma nova percepção, ao se dar conta de que a Treva fugira diante da Luz de Excalibur. — Você não é invencível.

Saiu da cela com uma nova confiança. Havia um meio de enfrentar a Treva. Porém, para encontrar Vivian antes que fosse tarde demais, ele precisava ser tão esperto como a Treva.

Continuou a procurar incansavelmente até que a chama da tocha começou a falhar e morreu. Mesmo assim, ele continuou andando, seguindo os vestígios nas paredes, sabendo que a Treva não poderia enganá-lo com traços de luz. Só Vivian poderia deixá-los.

— Rorke, estou aqui!

O som daquela voz o fez parar. Rorke voltou-se e a viu numa passagem apenas uns poucos passos de distância. Cauteloso a princípio, olhou para a parede e viu os rastros de luz.

— Acabou — disse ela, enquanto caminhava lentamente em sua direção. — Ele não foi páreo para mim.

— Onde está o bispo? — Rorke perguntou, cético, duvidando que tudo tivesse terminado tão facilmente depois dos avisos de Merlin e de Meg, e, mesmo assim, com um enorme e quase avassalador alívio ao ver que Vivian estava a salvo.

— Aqui perto — ela respondeu, ao estender a mão para ele. — Percebeu que não podia competir comigo. Acabou. A Treva se foi. — Aconchegou-se aos braços dele, o corpo macio e cheio de desejos. — Estou com medo — murmurou, compri-mindo-se e roçando os seios no peito de Rorke.

O simples gesto o fez franzir a testa. Nunca soubera que Vivian tivesse medo de alguma coisa. E, no entanto, sentia aquele corpo contra o seu, os próprios temores a se mesclarem a um desejo crescente. Deixou os dedos escorregarem pelos cabelos dela, enquanto ela lhe acariciava o braço da espada. Então ergueu a face, os lábios entreabertos à espera de um beijo.

Sua mão fechou-se sobre a cabeleira que lhe pendia pelas costas, e ele inclinou-lhe a cabeça para trás, para tomar-lhe a boca. Então ela o segurou pelo punho, os dedos a se fecharem em torno do cabo da espada.

— Está acabado — ela murmurou outra vez, a boca tão perto da dele que ele podia sentir a excitação sensual. Mas... onde estava aquele doce fogo da inocência?, imaginou, desconfiado.

— Você não precisa mais da espada. — Os dedos da jovem tentaram soltar os dele do cabo de Excalibur.

Assim que aqueles lábios tocaram os seus, Rorke torceu brutalmente os cabelos que tinha entre os dedos, aprisionando a jovem, ao mesmo tempo em que sua outra mão se fechava sobre o cabo de Excalibur e afastava a espada para longe. Os olhos que o encararam então eram negros e sombrios.

— Quer a espada? — ele perguntou, com um rosnado feroz, empurrando a criatura para longe. Ela caiu no chão, pareceu estremecer e depois desapareceu como as outras ilusões tinham desaparecido.

— Você não pode tê-la — gritou para a Treva. — Pois eu não me deixarei trair por suas ilusões. Eu encontrarei Vivian, não importa que forma você assuma. Eu a encontrarei!

Mais uma vez as trevas correram pelas paredes da passagem, como figuras sombrias, fantasmagóricas, a fugir diante da luz.

Desta vez, Rorke as perseguiu, sentindo que o atraíam para um confronto final.

A passagem terminou, abrindo-se para o que poderia ter sido algum tipo de arena. Ali, havia várias tochas colocadas nos suportes ao longo das paredes de pedra, revelando as aberturas sombrias de outros corredores, que confluíam para lá como os eixos de uma roda.

A arena era grande, com degraus de pedra se abrindo em leque do centro, entre aquelas aberturas de passagem, como as ondulações concêntricas num lago, para os espectadores sentarem e assistirem às lutas e festas.

Ele sabia que fora atraído deliberadamente para aquele lugar. Quando a Treva descobrira que não o enganaria facilmente, o trouxera ali.

— Vamos começar — Rorke disse a si mesmo. Preferia o confronto aberto para o qual fora treinado a vida inteira. Seus dedos se fecharam no cabo da espada enquanto seu olhar esquadrinhava cada entrada.

— Então que comece e termine, guerreiro — veio a voz em resposta. E, conforme Rorke fez meia-volta na direção do som, seu olhar caiu sobre o adversário.

Era um oponente formidável, tão alto quanto Rorke e vestido num traje do mais fino trabalho de cota de malha. Sua túnica era negra, assim como as calças. Mesmo a armadura era preta, como também eram a espada que empunhava, as mãos enluvadas fechadas sobre o cabo, e o elmo com visor que lhe escondia as feições.

Investiu num primeiro golpe, dirigido à cabeça de Rorke.

Rorke desviou e saltou fora do alcance do segundo, que

sabia que se seguiria, investindo contra um braço protegido por cota de malha.

Esquiva, investida, estocada. Os golpes choviam conforme ambos atacavam, para depois rapidamente se reposicionarem e em seguida investirem novamente. O som de aço em aço retinia pela arena.

Rorke devolveu golpe após golpe, o aço de Excalibur tão sólido em suas mãos como a firmeza de propósitos que o impulsionava, até que suas investidas começaram a fazer seu dano. Um contra-ataque veio segundos mais lento, a postura do oponente não mais ajustada para aparar o próximo ataque, até que o adversário começou a ceder terreno, lutando na defensiva. Mesmo assim, Rorke o fez recuar ainda mais.

Avançou até ultrapassar o ponto da exaustão, superar os músculos que travavam e queimavam de fadiga, e desferiu um ataque após o outro, o senso de finalidade a impulsioná-lo dando-lhe forças para mais um golpe até ter certeza de não encontrar mais resistência.

Em breve, não haveria mais investidas em resposta. Seu oponente podia apenas sustentar a força para bloquear Excalibur. Então, mesmo esses fracos esforços começaram a falhar, e o braço de espada mal conseguia se erguer enquanto Excalibur cintilava cada vez mais perto do elmo do guerreiro a cada ataque.

A espada do adversário despencou dos dedos entorpecidos. O guerreiro negro caiu de costas contra o muro que cercava a arena, sem a arma, vulnerável, o visor do elmo caído para trás. Rorke ergueu Excalibur para o golpe fatal.

Mate! O pensamento despontou como um espectro sombrio, cegando-o para tudo a não ser a ânsia de destruir.

Naquele momento, contudo, Rorke olhou para o oponente. Queria ver a morte na face do guerreiro. Queria senti-la cair sobre ele e perceber o instante exato em que sua vida findasse.

Mas o olhar que o fitou de volta não era negro e sombrio como o da Treva que vira antes. Era de um azul brilhante, da cor do coração da chama. Não o negrume da Treva, mas o olhar iluminado de uma filha da Luz.

Ele podia sentir a Treva em volta de si, invadindo seus pensamentos, enroscando-se em seu coração, murmurando em seu ombro, fechando-se sobre suas mãos como se estivesse postada atrás, impelindo-o a desferir o golpe. Podia sentir o Mal, tão real como carne e osso vivente.

— Nunca! — ele gritou, com um feroz grito de batalha. Livrou-se daquele envolvimento maligno, virou ao redor e embora não pudesse ver claramente sua forma, percebeu que ela estava ali. Com toda a força, Rorke desferiu um golpe descendente através das sombras mutantes que pairavam onde ele estivera apenas instantes atrás.

Um grito de agonia encheu o ar.

Rorke sentiu a lâmina escorregar por vestimentas grossas, e depois deslizar para dentro da maciez da carne, chocar-se com um baque cego no osso e finalmente pender com o peso que puxava a ponta para baixo.

Apoiando-se com força sobre a espada, ele esforçou-se por ficar em pé. Ao fitar o corpo que jazia a sua frente, o sangue a escorrer pelos trajes elegantes do bispo, Rorke endireitou-se e puxou a arma para trás. O bispo gemeu, mas não se levantou. Rorke cambaleou de exaustão e se voltou.

A Treva invasiva desaparecera. Desaparecera também a ilusão do guerreiro com quem Rorke se confrontara. Em seu lugar, Vivian estava amontoada no chão, contra a parede. Seus longos cabelos caíam sobre os ombros e a face quando ela lentamente se ergueu, apoiada nas mãos. Encarou-o, a luz de uma tocha a incidir nas feições pálidas, a rutilar nos cabelos vermelhos e a resplandecer como uma chama azulada em seus olhos.

Ele correu até ela e puxou-a para os braços fortes enquanto caía de joelhos.

— Rorke! — ela exclamou, os braços a se fecharem em seu pescoço. — Você veio me buscar.

Suas mãos lhe empalmaram a face, e Rorke fitou as profundezas azuis daqueles olhos. Acariciou-lhe os cabelos e depois o rosto, como se quisesse confirmar que ela era de carne e osso, e não uma ilusão.

— Como não viria? — ele perguntou, as lágrimas a derreterem o cinza gélido de seus olhos.

As sombras fugiram diante da luz radiante do bravo guerreiro e de sua dama do fogo, protegidos por uma espada lendária.

Seus lábios se fecharam sobre os dela quando ele a beijou com ardor.

— Eu morreria por você, Vivian de Amesbury.

— Waes hael!

O brinde ecoou pelo grande salão da corte real de Guilherme. Era a última noite do ano, e logo um novo ano se iniciaria. Novos tempos.

Pelo menos por aquela noite, a corte estava animada com risadas e celebrações, em meio à música de flautas, tambores e oboés.

Um fogo forte tremulava na lareira. Chamas das tochas ao longo das paredes brilhavam com vigor. Centenas de velas estavam sobre as longas mesas preparadas para a festa. Acrobata se apresentavam no centro do salão, diante da plataforma e da mesa de Guilherme.

Os cavaleiros do rei sentavam-se em torno dele, os cálices erguidos em incontáveis outros brindes por boa saúde, um longo reinado e outro, mais sóbrio, em cumprimento por sir Galan e todos que tinham sucumbido diante da traição do bispo no norte do país.

Rorke FitzWarren se sentava do lado direito de Guilherme com Vivian do outro lado, e Tarek depois dela. Os outros cavaleiros, uma dúzia de leais seguidores de Guilherme, sentavam-se de ambos os lados da longa mesa.

A rainha descansava em seus aposentos com o filho recém nascido. Em seu lugar, um lugar de honra e reconhecimento por ter arriscado a vida pela rainha, sentava-se Stephen de Valois. Ao ver pai e filho juntos, Vivian pensou que a semelhança era impressionante e desejou que pudesse se criar, depois de tudo que acontecera, um elo entre os dois homens.

Poladouras tinha um lugar de destaque na posição anteriormente ocupada pelo irmão de Guilherme, o bispo, conde de Bayeaux.

O bispo sobrevivera, embora fosse carregar o aleijão de um ombro ferido pelo resto da vida. Guilherme não ordenara sua morte, mas o banira da corte, em desgraça. Tão logo os ferimentos estavam suficientemente curados, ele tivera de retornar à Normandia, onde deveria permanecer em reclusão monástica pelo resto da vida, um destino pior que a morte para aqueles que sabiam de suas ambições.

Os poderes da Treva, que usara as ambições do bispo para se apossar do reino, tinham desaparecido por ora. Enquanto isso, existia um frágil equilíbrio no universo. Mas a sensação de Vivian era de que ainda não tinha acabado.

Com a espada Excalibur, Rorke enfrentara a Treva, mas não a destruíra. E, nesse aspecto, jazia o temor de Vivian, pois Merlin a advertira de que seria preciso destruir o mal para que o reino ficasse a salvo.

Porém, naquela noite, Guilherme sentia-se benevolente. Um novo ano assomava, distante apenas uns poucos minutos. Seu trono e sua rainha estavam em segurança. Ele dera ao filho recém-nascido um nome saxão para destacar o significado do laço entre a Inglaterra e seu rei normando.

Os conflitos civis continuavam. Vivian sabia que muitos distúrbios pairavam adiante, como indicara sua visão. Guilherme não governaria a Inglaterra facilmente, mas, como Rorke certa vez dissera, seu legado já estava tecido na tapeçaria da História. Havia outros fios ainda não tecidos e, enquanto ela se sentava ao lado de Rorke, sabia que apenas o tempo mostraria o desenho ainda não desenrolado dos fios por tecer. Quanto àqueles de seu próprio futuro, não tinham se revelado ainda.

Vinho, trazido da Normandia, fluía em abundância, e Guilherme chamou seu senescal e o escriba para documentarem suas palavras e fazer um registro oficial de seu pronunciamento. Prometera terra e títulos a seus cavaleiros e nobres em troca de homens, armas e cavalos para seu exército. Agora era hora de cumprir sua promessa.

A voz de Guilherme ressoou ao chamar seus cavaleiros, para lhes conceder vários títulos e domínios, de acordo com a posição e a importância da lealdade que representavam. A uns poucos favorecidos ele permitiu escolherem os domínios que desejavam, sempre cioso dos barões e viúvas saxões que se sentavam à corte. Um por um, esses poucos fizeram seus pedidos, atentos também em não ultrapassarem os limites da generosidade de Guilherme, a menos que quisessem ser publicamente censurados diante de seus companheiros.

Vivian estava fascinada pela maneira que Guilherme assegurava tanto a lealdade de normandos como a de saxões, deixando claro que aceitara seu conselho sobre o assunto, ao mesmo tempo, profundamente triste pelas mudanças cataclísmicas que se antecipavam para toda a Inglaterra.

A seu lado, Rorke ouvia em silenciosa contemplação. Quando ele a encontrara nas catacumbas e se defrontara com a Treva, tendo nas mãos a espada Excalibur, Vivian soubera que dentro dele havia um coração verdadeiro. E se permitira acreditar que seu amor por ela era tão grande como o dela por ele. Porém, depois do retorno de Guilherme, tinham tido pouco tempo para conversar.

Assim que Londres ficara mais uma vez segura sob o controle de Guilherme, incontáveis reuniões tinham se realizado, e Rorke passara longas horas com o rei. Ela o vira poucas vezes e apenas quando ele voltava para o quarto, à noite.

Por algumas horas então, era possível encerrar do lado de fora as perturbações e rivalidades, e fingir que o mundo existia apenas dentro daquelas quatro paredes. O amor que os unia assumira um significado mais profundo, com uma percepção aguda do quanto necessitavam um do outro. No entanto, não tinham falado do futuro.

Agora, sentada ali, ouvia os cavaleiros falarem do futuro, inclusive Tarek ai Sharif.

— Que recompensa gostaria de ter, Tarek ai Sharif, por sua lealdade ao rei Guilherme? — a voz do senescal soou em meio aos risos de celebração.

Tarek sentava-se à ponta da mesa. E Vivian surpreendeu-se mais uma vez pela beleza incomum daquele guerreiro moreno que tinha voltado do norte mudado, de alguma forma. Conversara com ela logo depois do desenlace da traição do bispo, sobre um encontro com uma jovem que o avisara do ataque dos traidores.

— Ela era como a bruma, os cabelos de um ouro pálido e olhos em que um homem poderia se perder dentro. E então, desaparecera, como se jamais tivesse estado ali. — Tarek fitara Vivian então, com uma expressão pensativa. — Ela me recordou alguém, embora eu não saiba dizer quem.

— Talvez tenha sido um sonho — Vivian sugerira, guardando para si suas intuições, pois já ouvira falar daquele lugar chamado Brecon.

— Sim, um sonho, mas de carne e osso. Juro que a encontrarei.

Naquele momento, seus amigos cavaleiros mal se calaram quando ele apresentou o seu pedido, pois os desejos do persa eram bem conhecidos. Uma recompensa em ouro para continuar a procura pelo pai, e o desejo de estar em qualquer lugar do mundo, a não ser naquele lugar hostil e frio chamado Inglaterra.

— A região norte não está segura — disse Tarek, enquanto as lembranças de uma criatura etérea e loira lhe enchiam os pensamentos.—Gostaria de um domínio lá e homens de minha confiança para defendê-lo em seu nome — pediu a Guilherme.

De repente, o silêncio caiu em torno da mesa pelo salão

conforme se espalhava a notícia de seu pedido. Cavaleiros e soldados o encararam, incrédulos.

— E — emendou, com um sorriso súbito — calças forradas de pele.

O salão explodiu em risadas, os comentários a fervilharem.

— Concedido! — Guilherme bateu o punho na mesa com satisfação. — Não sei o que o fez mudar de idéia, Tarek ai Sharif, mas eu o saúdo como um leal guerreiro. Terá suas terras, com homens e armas e meu nome para carregar ao norte. Que domínio deseja?

— Fica perto de um lugar chamado Brecon, onde seus cavaleiros morreram.

— Sim — exclamou Guilherme, num tom sombrio. — Defenderam as terras com o sangue. Rezo para que você não seja forçado a dar o seu para mantê-las.

Então, em vez de perguntar a Rorke qual era seu pedido, o olhar de Guilherme cravou-se em Vivian.

— Lady Vivian — disse, animado —, não tenho o hábito de conceder recompensas a damas, mas acho que estou em débito para com a senhora, tanto por meu reino como pela vida de minha rainha. Certa vez, pedi-lhe para dizer que prêmio queria por ter salvado minha vida — ele a relembrou. — Quero que diga qual é agora, pois a vincularia a mim como vinculei os outros. Descobri que tenho grande necessidade de sua sabedoria.

Vivian ficou espantada. Em torno da mesa, viu os olhares especulativos dos cavaleiros de Guilherme, alguns deles agora noivos de jovens saxãs.

Desde aquele dia em Amesbury, havia apenas uma coisa que Vivian queria: que os aldeões não sofressem nenhum mal por sua causa. Agora, ela pensou, a oportunidade estava à mão, se Guilherme cumprisse com a palavra dada. E certamente cumpriria.

— Gostaria de ter a vila de Amesbury, a abadia e os campos e florestas das redondezas — disse e, diante da surpresa que cruzou a expressão de Guilherme, apressou-se em explicar — Não é grande coisa, milorde. Os aldeões são pobres, a abadia está quase em ruínas. Eu não o privaria de grandes riquezas, mas, para mim, é de grande valor, pois é meu povo.

Guilherme franziu a testa, a boca repuxada nos cantos ao fitar o copo de vinho. Então seu olhar procurou o dela.

— Não posso conceder o que me pede, senhora — disse, com pesar na voz. — Deve escolher outro prêmio.

— Não quero nenhum outro, milorde — ela insistiu.

— Pode voltar a Amesbury, é claro — Guilherme assegurou-lhe. — A qualquer tempo que desejar. Mas acho que eu gostaria de ter minha sábia conselheira por perto, pois há muitas coisas que pode me ajudar a compreender. Escolha outro prêmio enquanto me sinto generoso.

Ela não se atreveu a recusar.

— Obrigada, milorde.

Vivian não queria ouvir mais nada. Estava desapontada demais por ter o pedido recusado. Ouviu apenas vagamente quando o rei pediu a Rorke que dissesse qual seria a recompensa que desejava.

Anjou, ela pensou com crescente tristeza, pois vira o que estava no coração e na alma de Rorke na visão que tinham compartilhado.

— Já falamos sobre isso, milorde — Rorke disse a Guilherme.

— Ah, realmente, falamos — concordou Guilherme. — Não mudou de idéia, então.

— Não.

Vivian levantou-se abruptamente da mesa, assustando Meg, que se sentara uma mesa atrás da de Guilherme.

Mally estava com a velha ama e, ao lado, Justin, o escudeiro. Os dois estavam noivos, depois de terem a autorização de sir Gavin.

— Não está se sentindo bem? — a velha perguntou, preocupada, ao estender a mão para Vivian.

— Não é nada ?— ela apressou-se a assegurar, enquanto pousava a mão na cintura e sentia uma luz frágil de uma nova vida luzir em seu ventre. Não estava doente, estava grávida. Do filho de Rorke. Tinha de arranjar uma desculpa, pois não queria que Meg soubesse disso agora, embora fosse impossível esconder o fato dela. — Está muito abafado aqui dentro. Preciso de ar fresco.

— Irei com você — Meg disse, levantando-se.

— Não — Vivian retrucou. — Está muito frio para você. Queria ficar sozinha. Não poderia suportar ficar ali e ouvir Rorke pedir aquilo que guardava no coração. Com a desculpa de ver a rainha, Vivian saiu do salão. Assim que passou pelas portas principais, seguiu para as escadas que levavam às ameias mais altas, de onde vira Rorke e seus homens partirem para o norte, sem saber se ele voltaria ou não.

Naquele instante, Rorke a observou sair e viu a direção que tomava. Não para os aposentos da rainha, mas do lado oposto. Dando uma desculpa a Guilherme, deixou para Tarek a função de explicar sua escolha, pois todos julgavam que ele enlouquecera.

Ao se levantar da cadeira, pousou a mão no ombro de Meg.

— Fique sentada, senhora, beba um pouco de vinho e não nos siga, pois quero falar com sua senhora a sós. Onde ela foi? E não me olhe assim, ou lhe negarei o prazer de cuidar do nascimento de meu primogênito. Onde foi Vivian? — repetiu.

Meg pensou por uns instantes e então se decidiu.

— Disse que precisava de ar fresco. Estava muito, abalada porque Guilherme lhe negou Amesbury.

— Ela falou para onde ia?

— Não. Ela não pensa em atravessar as muralhas de pedra, embora eu não poderia culpá-la se quisesse. Vivian deveria ir embora deste lugar.

— Isso é precisamente o que eu tenho em mente, senhora. — Então, ele indagou, irritado. — Para onde ela foi?

— Quando o senhor partiu para o norte, ela passava muitas horas nas ameias — Meg finalmente disse.

Foi onde Rorke a encontrou. No alto do parapeito do baluarte da nova torre do rei, ela estava na ponta dos pés e estendia os braços pela borda como se quisesse pegar as estrelas do céu.

Vivian ofegou quando um braço forte a envolveu pela cintura, puxando-a contra o corpo musculoso. Outro braço fechou-se, segurando-a com firmeza.

— Pensa talvez em voar para o céu, minha doce feiticeira? Ele ainda tinha o poder de enchê-la de anseios e de uma paixão tão forte que ela gostaria de fitá-lo e implorar para que não partisse da Inglaterra. Mas não podia. Vivian recostou-se contra o peito de Rorke e fechou os olhos, deixando que os sentidos se enchessem com a essência máscula do amado, como se pudesse absorvê-lo na própria alma.

— Nunca aprendi a voar — ela confessou e, em seguida, emendou. — Nunca foi necessário. — Ouviu a tensão na própria voz, sufocada pelas lágrimas, e calou-se.

— Talvez não — ele concordou. — Para quem tem o poder de atravessar muralhas, ver o pensamento dos outros e extrair o poder da chama, suponho que voar seja um problema trivial.

Ele continuou a abraçá-la, recusando-se a soltá-la quando Vivian tentou dar um passo atrás. Ergueu-lhe o queixo, franzindo a testa diante das lágrimas que escorriam pelo belo rosto.

— Esta é uma noite para celebração e no entanto você está chorando. Por quê? Deveria estar contente. Guilherme a honrou com um belo título, lady Vivian.

— Ele foi muito generoso — ela murmurou, desviando o olhar. — Estou contente.

— Está tão contente que suas lágrimas vão nos afogar. E, para alguém que nunca mente, você é uma péssima mentirosa. — Fitou-a dentro dos olhos. — Pensei que quisesse voltar a Amesbury.

Então todos os arranjos já tinham sido feitos. Ela seria mandada para Amesbury. Talvez seu filho nascesse lá.

— Sim, é claro.

— Mas terá de esperar, naturalmente, até que seja construído um castelo adequado, pois eu não gostaria de viver num casebre de pedras ou numa abadia arruinada, embora seja duvidoso que qualquer invasor pudesse querer cercar um monte de pedras. Além disso, não quero que meu filho nasça lá.

O olhar espantado de Vivian procurou o dele. Seu filho? Como era possível que soubesse?

Como se sentisse seus pensamentos, ou talvez os adivinhasse, ele sorriu.

— Acha que poderia esconder isso de mim por muito tempo? Uma velha senhora me falou a respeito.

Meg, pensou Vivian, percebendo que a velha ama soubera quase ao mesmo tempo em que ela.

— Mas... o que quer dizer com um castelo adequado? — ela perguntou, sem compreender.

— Ora, para o senhor e a sra. de Amesbury. — Diante da confusão de Vivian, Rorke sorriu com ternura e meneou a cabeça. — Para alguém tão cheio de dons, minha cara, é bastante cega. Guilherme não pôde lhe dar Amesbury porque eu a reivindiquei para mim. E o rei precisa de castelos fortificados para abrigar seus cavaleiros e soldados.

— Mas... não pode ser! — ela exclamou, incrédula. — E quanto a Anjou? É tudo o que você quis todos esses anos, desde a infância. Eu vi dentro de você.

— Viu a raiva dos sonhos perdidos e a vingança, minha doce Vivian. — Acariciou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. — Você me libertou da raiva do passado com a dádiva de sua visão.

— Eu não o prenderia com magia ou sortilégio, ou com o fardo de um filho — ela murmurou, a garganta fechada por um nó de emoção. — Somente por aquilo que existe em seu coração.

Rorke tomou-lhe a mão na sua e colocou-a sobre o peito.

— Então, conheça o meu coração, Vivian de Amesbury. Vivian abriu seus sentidos para ele e divisou o sentimento forte e poderoso que pulsava ali, um amor puro e verdadeiro que desafiara a Treva e a repelira.

A mão de Rorke deslizou até seu ventre, e ele murmurou, com uma ternura infinita:

— Meu futuro está aqui.

Vivian experimentou uma sensação de plenitude, como se ele pudesse acalentar o filho ainda em seu ventre.

Rorke beijou-a, extraindo dela o ardente calor e depois o devolvendo no deslumbramento da descoberta, enquanto seus sentidos se abriam para ela e os dois se tornavam um só.

Da remota fortaleza do castelo, dos campos em que cuidavam de seus rebanhos, dos barcos com linhas lançadas em águas escuras e das forjas incandescentes, os homens olharam para o alto e viram uma brilhante estrela azul no céu da meia-noite, como uma jóia reluzente suspensa entre o céu e a Terra.

Um sinal, alguns disseram, conforme a estrela riscou o céu, um poderoso farol que ilumina o caminho, o olho de um dragão que enxerga além das brumas do tempo...

 

                                                                                Quinn Taylor Evans  

 

                      

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