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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FLOR DE SOMBRA / Charles Foley
FLOR DE SOMBRA / Charles Foley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FLOR DE SOMBRA

 

- Olha a Violeta Miroy! - exclamou alegremente Henriqueta Bonnaux, olhando através da janela de sacada do seu rés-do-chão, no momento em que uma rapariga empurrava a cancela para entrar no jardinzinho. - Ah! que surpresa! Que linda mocidade! E toda esbelta, garrida, fina, bela e perfumada! Parece que a primavera entrou em minha casa numa só baforada. Vamos, minha gazela, aproxima-te da velha mestra e venha de lá essa beijoca. Ah! que frescura de rosto... a nossa boca aflora-o como a um ramo de rosas!

Sempre a brincar, a boa Henriqueta depunha nas duas faces da sua jovem amiga grandes beijos sonoros e arrastava a visitante para o divã da sala sem fechar a cancela do seu jardinzinho - um jardinzinho verde e florido.

A rapariga deixava-se beijar, silenciosa porque este acolhimento a comovia, corando porque se sentia confusa com a censura que esta efusão encerrava. Havia realmente semanas, meses talvez, que Violeta não vinha ao pequeno rés-do-chão de Passy onde, no entanto, a sua velha amiga a acolhia sempre bem.

- Diz-me a que devo esta visita imprevista e tardia" minha querida esquecida?

E Violeta balbuciou, sem trair o mínimo embaraço:

- O desejo de trabalhar, minha senhora. Venho recomeçar as minhas lições de dicção.

A gorda criatura teve um sorriso irónico e replicou:

- Oh! as lições de dicção são um pretexto muito delicado, muito gentil. Mas para que me venhas procurar de manhã, antes do almoço, deve haver outra coisa... Vamos, coragem, Lolette: enceta as confidencias...

E Henriqueta tamborilou nas almofadas do divã, habituada, resignada às historiazinhas das suas alunas ou das suas amigas. Violeta hesitava.

- Não tenho segredos, querida senhora, asseguro-lhe...

Um fugitivo rubor reapareceu nas faces da rapariga ante o olhar benevolente da sua velha amiga. Depois de um silêncio, Violeta continuou, suspirando:

- Não, não tenho segredos... É precisamente isso que me desola!

E, subitamente, cedendo à necessidade de expansão que a tinha trazido, resumiu a sua infância, a sua mocidade feliz ao pé dos pais...

Sua mãe, depois de dois anos de Conservatório, tinha entrado para a Ópera e obtivera, nos papéis de ingénua, um êxito de mocidade e de beleza muito antes do verdadeiro êxito de artista. Oito meses depois da estreia e antes de conhecer as decepções das raparigas honestas perdidas no teatro, casou com um moço romancista, pouco conhecido mas possuidor de certa fortuna. Que lindo par de apaixonados, alegres, risonhos e descuidados de tudo, que lindo matrimónio, o dos Miroy! Gastaram, sem contar, amor e dinheiro, numa vida feliz e encantadora. Assim que nasceu, Violeta foi levada de praias para montanhas, da Cote d'Azur para Bruges, do Casino de Trouville para a casinha da floresta de cornpiègne, entre a mamã de génio tão jovem como o seu e o papá ainda mais criança do que ela. Essa felicidade, sem tornar seus pais mais sérios, sem quase os envelhecer, tinha durado dezanove anos. Miroy e sua mulher morreram quase ao mesmo tempo, ela de uma febre tifóide, ele de dor. E Violeta, emancipada por um supremo capricho de seu pai, ficou órfã aos dezanove anos, não conhecendo da existência senão as alegrias sãs, os prazeres honestos, mas não possuindo senão os restos de uma fortuna gasta em viagens pitorescas, em caprichos artísticos e dispendiosos. Mas, tão pouco cuidadosa com o dinheiro como seu pai e sua mãe, mais desculpável, no entanto, Violeta vivia ainda de alguns milhares de francos, que restavam da herança. Sentia a necessidade de tomar uma resolução, de orientar a vida. E era esse o motivo que a trazia a casa de M.me Bonnaux.

- Sabe tudo isto tão bem como eu! - exclamou a rapariga, interrompendo-se bruscamente. - Desculpe-me repetir-lho... mas não tenho ninguém junto de mim senão Solange, a minha boa e velha ama, e faz-me tão bem contar a minha vida a alguém!

- Sim, eu sei tudo isso - disse M.me Bonnaux. - Representava as criadas no Odéon, havia já doze anos quando sua mãe se estreou. Amiga de M.me Miroy, eu breve me tornei amiga do sr. Miroy. E quando eu também saí do teatro aumentando a minha modesta pensão com os proventos das lições, nunca seus pais passaram em Paris sem correr a casa da sua boa Henriqueta. Estimei-os muito a um e a outro, para a não estimar também, minha bela Lolette. Não receie confiar-me os seus cuidados, e se são preocupações de dinheiro, embora eu não seja rica...

- Resta-me pouco dinheiro - disse Violeta, vivamente - mas ainda tenho algum. Bem sabe que, cá na família, não somos práticos; por isso deve calcular que por causa deste meu génio alegre, entristece-me muito mais a minha solidão do que a minha pobreza.

- Vem muito elegantezinha, para uma pobretona! - notou M.me Bonnaux, envolvendo a elegante toilette de Violeta num olhar um pouco céptico.

- Chapéus, casacos, vestidos, sou eu que faço tudo - respondeu a rapariga, francamente e com simplicidade. - De resto, confesso-lhe como verdadeira parisiense, que os meus últimos centavos hei-de gastá-los em flores, plumas e em véus. Prevejo, no entanto, bem próxima! a hora em que não terei sequer esses últimos centavos e queria, antes dessa triste hora, tomar uma resolução para poder ganhar a minha vida. Sei o que sabem as raparigas da minha idade educadas por famílias ricas. Quer dizer: não muita coisa. Desenho, toco piano, canto, conheço um pouco de literatura e dicção - arranho tudo. Que devo fazer? Que me aconselha?

- Faça como sua mãe, vá para o teatro.

- Ora! - disse Violeta, num trejeito encantador. - Não tenho vocação. Se, como a minha pobre mamã, tivesse a certeza de encontrar ao fim de oito ou dez meses o melhor dos maridos, ainda me arriscava. Mas eu sei a que perigos, a que compromissos expõe essa profissão. Não tenho medo do amor - acrescentou a pequena, com um ar sério-cómico e no entanto com animação - mas desejava um amor honesto. Só quero amar meu marido, mas a esse

- hei-de amá-lo com toda a minha alma e para toda a vida!

Violeta tinha pronunciado estas últimas palavras com tanta convicção e tanta ingenuidade que Henriqueta, divertida, desatou a rir.

- Ah! Lolette, creio bem que é essa a sua verdadeira vocação.

- Imagino - disse Violeta, alegremente - que, com um marido não muito pobre e nada avarento, faria um excelente casamento. Mas onde encontrar essa fénix? Um homem disposto a casar com uma pessoa gentil e sem dote?

- Ignoro onde se aninha essa ave rara - respondeu M.me Bonnaux.

- E, à parte o teatro, não sabe de nada possível para mim

- Não! - disse a velhota, envolvendo a rapariga com um olhar admirativo. - E é pena Que linda princesa de comédia seria, que encantadora ingénua!

- - Gostaria mais de representar as ingénuas e principalmente as princesas cá fora, na vida real. No teatro há os bastidores... o que é horrível.

- Os bastidores da vida não são menos feios, Lolette

- Oh! espero que sim - disse a rapariga, com um grande suspiro. - Que pena não vivermos ainda no tempo das fadas! Aborrece-me e entristece-me esta vida sem finalidade.

- E as amigas, não são nada?

- Oh! sim, são qualquer coisa e a prova é que aqui estou, de manhã, em sua casa. No entanto, as amigas não são todas como eu, quase só no mundo. Elas têm as- suas mamãs, os papás, os maridos, os filhos, os primos... ou os discípulos, como no seu caso! Têm as suas ocupações, o trabalho... e depois receio incomodá-las, tomar na sua intimidade um lugar ao qual não tenho direito. Devo ser discreta e receando impor-me como intrusa, espaço as minhas visitas.

- Nunca nos incomodam os verdadeiros amigos e nunca somos intrusos em suas casas!

- com certeza?

- Absoluta.

- Bem, já que não a incomodo. tenho vontade, ao menos uma vez, de ser absolutamente indiscreta.

- Dou-lhe licença.

- Pois bem, convido-me para almoçar consigo.

- Ah! é que...

Henriqueta não acabou, mas atravessou-lhe a testa uma ruga de contrariedade.

- O meu desejo caiu mal - constatou Violeta, esforçando-se por conservar o seu à vontade. - Talvez vá almoçar fora? Peço-lhe desculpa. Como vê, as pessoas desocupadas como eu, mesmo a casa dos verdadeiros amigos, chegam às vezes pouco a propósito.

Henriqueta desculpou-se:

- É absolutamente por acaso que espero alguém hoje. Ora vamos, entristeceu? Ah! que pequena tão sensitiva, meu Deus! Olhe, Lolette, quer vir amanhã? Amanhã sem falta, sim? Hoje. realmente não posso" espero um aluno.

Os olhos muito abertos de Lolette pareciam perguntar em que podia a presença de um aluno impedi-la de ficar. M.me Bonnaux foi obrigada a acrescentar:

- Não é uma aluna... mas um aluno, um antigo aluno!

E a boa Henriqueta, tendo lançado um olhar para o relógio, levantou-se, mascarando o melhor que pôde a despedida com abraços e carícias.

- Que grande bebé!... Está então dito, pequenina? Volta amanhã... e falaremos de coração aberto.

Violeta tinha-se levantado por sua vez, tão elegante, tão esbelta, a despeito da sua estatura mediana, que até parecia maior. Pôs o chapéu, espetou os pregos na palha, metendo-os bem dentro dos seus cabelos de ouro fino.

M.me Bonnaux compreendeu que o convite para o dia seguinte não dava o mesmo prazer à sua amiga; que a sua mágoa precisava de uma diversão imediata e que, ao sentir-se despedida, Lolette sentia-se desiludida e humilhada.

- "No entanto, não a posso convidar ao mesmo tempo que a ele... - pensava Henriqueta. - Ele repetiu-me tanto que desejava almoçar só comigo! Foi mesmo com esta condição que acedeu a vir. Não o posso contrariar. Ele seria capaz de não tornar a aceitar."

A boa senhora parecia tão preocupada, que Violeta notou-o:

- Sou uma indiscreta, minha querida amiga, perdoe-me. Pensei que almoçasse só. Se eu pudesse adivinhar que tinha um aluno.

Henriqueta julgou perceber uma furtiva ironia, ou, pelo menos, uma ponta de curiosidade, nestas últimas palavras, e quis ir ao encontro da suspeita, por leve que ela fosse! Ao mesmo tempo que sentia desejo em se desculpar dessa refeição a dois, embaraçavam-na os termos a empregar para formular a justificação. O pior foi que este embaraço não escapou à pequena, maliciosamente atenta.

Aos olhos de Violeta, Henriqueta era uma velha. Além disso, ela sabia que M.me Bonnaux tivera, no teatro, uma grande paixão e que nunca mais pensara, desde que saíra do Odéon, noutra ligação de amor. A sua reputação continuava inatacável. O embaraço da antiga actriz não era pois de surpreender. M.me Bonnaux quebrou esse silêncio contrafeito, porque julgou dever explicar:

- Este aluno é um estrangeiro. Dei-lhe lições de francês, dantes, em Bruhm, quando passava todos os anos, dois meses, nas Grandes Ilhas, afim de iniciar nas belezas da nossa língua as meninas de além-mar. Este aluno é um tanto esquisito; quer passar sempre despercebido em toda a parte... oh! com o fim único de andar mais livre, mais independente! Deseja que as suas visitas a minha casa, sejam ignoradas. A menor indiscrição sobre a sua estadia em Paris trazia-lhe tantos aborrecimentos, tão graves complicações, que me vejo forçada a guardar o segredo que prometi.

E, vendo que as suas vagas explicações só serviam para aumentar a surpresa de Violeta e espicaçar-lhe a curiosidade, Henriqueta, aborrecida de ter tão desastradamente sublinhado a importância que dava a esta misteriosa visita, declarou bruscamente:

- Enfim, é-me impossível tê-la cá. Não se ofenda nem me queira mal, nada mais lhe posso explicar.

- Não lhe peço explicações - tornou Violeta, divertida agora e mesmo um tanto traquina, ao ver esta boa Henriqueta, ordinariamente tão desembaraçada, perturbar-se e enervar-se ante o olhar de uma rapariga. - Eu é que devo pedir-lhe desculpa de lhe ter tirado tanto tempo. Pronto, ponho o véu e vou-me embora. Não lhe conhecia amigos tão selvagens, querida senhora. Estas visitas têm um arzinho romanesco que cheira a complot ou a conjuração. Lerei eu amanhã nos jornais: Cumplicidade de M.me Henriqueta Bonnaux num caso tenebroso

E como a boa criatura se perturbasse ainda mais com esta conjectura, Violeta acrescentou precipitadamente:

- Não se aflija. Não quero encontrar o seu fantástico estrangeiro: a minha amiga não me perdoaria.

Para que ele tenha assim tanto medo de partilhar o pão e o sal com uma pessoa nova como eu, deve ser um velho alemão, cabeçudo, bisonho, inimigo do casamento e que vem furtivamente corrigir-se aqui do seu pesado acento germânico. Talvez um bravo soldado a quem as raparigas metem medo!

- Isso é que não, elas não me metem medo! - exclamou de repente no jardim, atrás das duas mulheres, uma voz jovem em cujas palavras vibrava um pouco de riso. - E se M.me Bonnaux me autoriza, menina, convido-a para almoçar connosco!

As duas mulheres, que estavam de costas voltadas para a sacada, viraram-se ao mesmo tempo. Enquanto que M.me Bonnaux, muito descontente, franzia as sobrancelhas, Violeta corava violentamente, cheia de uma inexplicável emoção, à vista do indiscreto que já transpunha o umbral da porta.

Este indiscreto era um jovem e bonito rapaz de vinte e sete a vinte e oito anos, muito loiro, muito alto, muito elegante. Continuava a rir, tanto da expressão desapontada de M.me Bonnaux, como da emoção de Violeta. Mas esta emoção tornava a jovem visitante tão deliciosamente bonita nesse momento, que o riso do estrangeiro adoçou-se insensivelmente, enquanto o seu olhar testemunhava a mais viva admiração. Por isso, foi com deferência e com a voz turvada por uma emoção igual à da rapariga que explicou num francês razoável:

- Acabo de proceder como um garoto mal educado. Peço desculpa. O portão do jardim estava aberto e eu empurrei-o. Ainda não tinha dado três passos quando vi que a minha velha amiga Bonnaux não estava só. Ia. voltar atrás para tocar e preveni-la da minha chegada, mas entrevi a graciosa figura desta menina e, embora só a pudesse contemplar de costas, foi o bastante para me reter um segundo. Durante esse segundo, ouvi que me chamava velho alemão cabeçudo e bisonho, e isso picou-me e decidiu-me a entrar bruscamente. Quis meter-lhe medo a fim de me vingar.

M.me Bonnaux, vendo o antigo discípulo levar o caso tão alegremente, aceitou a situação. Esforçando-se por dissimular a sua contrariedade, dirigiu-se primeiro a Lolette:

- Pois bem, diga lá então que tal acha o meu aluno? Confesso que não os escolho nem muito feios, nem muito velhos!

Depois, vendo que os dois jovens ficavam tão corados um como o outro e visivelmente perturbados com aquele encontro imprevisto, pareceu arrepender-se logo do familiar gracejo e continuou em tom mais frio, quase aborrecido:

- Mas preciso de os apresentar...

A estas palavras, o rapaz teve, para interromper M.me Bonnaux, um gesto imperioso e furtivo, Violeta reparou mesmo que o desconhecido passando o dedo pelo fino bigode louro como para o alisar, o deteve um instante sobre os lábios, a fim de recomendar silêncio à sua amiga. E esse aviso tácito foi sublinhado por um olhar autoritário, muito singular.

Embora de feitio independente, e por vezes muito severa com os seus alunos, Henriqueta pareceu imediatamente desejosa de obedecer a essa ordem muda. Fez um movimento de cabeça cheio de submissão, como para dizer:

- Compreendo, nada receie. Não o trairei.

E vendo Violeta atenta ao colóquio silencioso, precipitou a apresentação:

- A minha jovem amiga, M.lle Violeta Miroy. O sr. Jorge.

A pequena inclinou-se. A despeito da sua persistente emoção, observou o que havia de insólito nesta apresentação em que ela era apresentada em primeiro lugar a um rapaz - e a um rapaz que era apenas designado pelo seu nome próprio. Seria possível admitir que M.me Bonnaux, ordinariamente calma e com sangue frio para tudo, tivesse inconscientemente cometido semelhante inconveniência?

Embora estes minúsculos incidentes pudessem dar-se em toda a parte e com qualquer outro convidado, Violeta, de imaginação desperta pela conversa embaraçada que antecedera a entrada do sr. Jorge, não deixou de pressentir qualquer mistério em tudo isto. A ideia de que um sentimento ou mesmo uma recordação terna podia ligar Henriqueta ao jovem estrangeiro, pareceu-lhe uma conjectura louca. No entanto, a rapariga adivinhou que M.me Bonnaux, depois de reflectir, estava inquieta com aquele encontro. A própria Violeta sentiu um certo embaraço sem poder explicar porquê.

Em breve, o sr. Jorge, que parecia de resto muito à vontade, ocupou a atenção das duas mulheres.

Henriqueta falou-lhe do seu país, da sua família residente em Bruhm, e da sua permanência em Paris. Mas informou-se de tudo isto em perguntas indirectas e gerais. O jovem estrangeiro respondia veladamente, e tão bem, que era impossível a Violeta agarrar o mínimo pormenor, a mínima particularidade capaz de a esclarecer sobre a identidade e a situação social desse sr. Jorge. Pouco a pouco, ele respondia com mais indiferença a essas perguntas que o desviavam da contemplação da deliciosa rapariga.

Violeta que, à primeira vista, tinha achado o rapaz extremamente sedutor, não podia deixar de, após mais demorado exame, o achar muito senhor de si. É certo que ele agradava pela regularidade das feições, pela expressão enérgica, pelos seus olhos azuis e sinceros; mas o seu falar não era muito rico, muito breve, para um homem tão novo? E, para um homem tão novo, esta maneira de sublinhar as frases com um brusco gesto de mão não seria muito perentória e muito autoritária?

"E como se mostra importante! - pensava a rapariga. - É certo que é um bonito rapaz e que as suas maneiras são atraentes, mas devem ter-lho dito muitas vezes e por isso está cheio de vaidade. Pode ser que a sua fatuidade estrague um íntimo excelente. E seria pena! "

Outra reflexão lhe acudiu também:

"Porque será que esta boa Henriqueta que tem uma réplica tão viva, o falar tão franco e que ordinariamente não gosta de falar para surdos, aceita esta atitude indiferente do seu hóspede como a coisa mais natural do mundo? Qual poderá ser, finalmente, a espécie de segredo que os liga e que calam de mútuo acordo? "

O anúncio do almoço foi uma diversão. Passaram à pequena sala de jantar, o sr. Jorge ofereceu o braço a M.me Bonnaux.

Pratos de faiança e um relógio de cobre destacavam-se luminosamente na parede. E, em cima da mesa, hors-d'oeuvres, rabanetes, manteiga, tomates, pepinos de cor vermelha, amarela e verde, lançavam notas claras na brancura da toalha.

- Tem apetite, sr. Jorge?

- Muito, minha senhora.

- A minha ementa é modesta. Assim o exigiu.

- É com essa condição que aceito os convites dos meus amigos.

- O sr. Jorge é assim tão difícil - perguntou Violeta, deliberadamente, pois achava singular que Henriqueta se desculpasse de uma refeição que prometia ser excelente e que tinha sido preparada de acordo com os gostos do rapaz. - Na sua idade não há muito o direito de ser exigente. Não tem nem a cor nem o aspecto de um homem que sofre do estômago. Além disso, deve ter feito há pouco o serviço militar, A marmita não o ensinou a ser menos exigente?

- O sr. Jorge não fez o serviço militar. Ele não é francês. É do reino das Grandes Ilhas - interrompeu, Henriqueta, secamente.

- Os nossos vizinhos de além-mar não têm soldados

- Têm, mas o seu exército, pouco numeroso, é só composto de voluntários.

O sr. Jorge interveio por seu turno:

- Já tive um posto no exército, há alguns anos. Depois saí de Bruhm...

Não acabou. Violeta, pela inquietação de M.me Bonnaux, pensou imediatamente:

- Vamos, parece que fiz tolice!

Mas logo se tranquilizou: o sr. Jorge, divertido com as perguntas, sorria, deixando ver os dentes de brilhante alvura, sob o bigode loiro. Arriscou-se então a perguntar.

- O senhor é reformado? No entanto, não me parece míope, nem coxo, nem marreco, nem cambaio?

Henriqueta, muito contrariada, ia mais uma vez interpor-se, quando o rapaz começou a rir de tal maneira que a sua alegria contaminou a boa criatura.

- Que disse eu de extraordinário - perguntou Violeta, ingenuamente, mas não sem corar.

- Prefiro preveni-lo já, sr. Jorge - disse Henriqueta, desta vez muito alegremente - que não fui eu quem educou a Lolette. Seus pais mimaram-na demasiadamente e esta jovem desastrada, diz tudo quanto lhe vem à cabeça. Se isso o chocar, tanto pior. Lembre-se de que não fui eu, mas o senhor quem a convidou para almoçar.

Violeta não ocultou um gesto de despeito. Encorajada com o olhar sempre encantado do rapaz, com o sorriso cheio de indulgência, exprimiu o seu descontentamento:

- Não sou tão mal educada como isso, querida senhora. É assim que defende as suas amigas? Acho-a muito severa para comigo esta manhã: não se cansa de me repreender. Será em honra do sr. Jorge, um rapaz tão difícil que desejava uma outra Violeta à sua mesa? Deverei ir fazer a minha toilette de corpo e de alma para lhe aparecer engomada, empoada, encanudada e enfatuada?

- Oh! mudar-se fosse no que fosse seria muito lamentável - exclamou o sr. Jorge. - Acho-a tão alegre, tão natural e tão deliciosa assim...

- Ah! - constatou Violeta, num suspiro de satisfação. - Como vê, Henriqueta, mesmo um senhor difícil pode ainda assim acomodar-se às minhas maneiras. Repare que não segredei o cumprimento ao seu querido convidado. Já que ele me aceita tal como sou, não torne a fazer-me esses olhos feios, querida amiga, não me tire o apetite.

M.me Bonnaux, embora desejosa de moderar a tagarelice da pequena, não pôde deixar de sorrir ao mesmo tempo que o sr. Jorge. E Violeta disse:

- Ora até que está com boa cara, a nossa Henriqueta, ei-la outra vez indulgente e boa como eu gosto dela. Que tinha? Em que a podia contrariar a minha boa disposição e alegria? Há tanto tempo que não me acontecia ter vontade de rir! E a alegria, não é somente natural na minha idade mas também diz com o meu temperamento. Mas esta alegria nunca fez nem fará mal a ninguém.

- Como é palradora esta Lolette! - disse M.me Bonnaux, com uma pontinha de despeito. - Quando isto é agora, o que será com o Vouvray, porque me esqueci de lhe dizer, sr. Jorge: há Vouvray espumoso. Pensei que sempre seria uma variante do champagne. Esta menina estava melancólica, sonhadora e silenciosa. Bastou a sua chegada para lhe desatar a língua. Eu nunca consegui tão bom resultado mesmo depois de longos meses de lições. Cedo-lhe a minha aluna, sr. Jorge.

- Pego-lhe na palavra, minha senhora. Aceito! - disse o rapaz, com entusiasmo.

- Parece-lhes então que, sem mesmo lhe perguntarem a sua opinião, podem passar de professora para professor a discípula Violeta Miroy? Pois

- digo-lhes que Violeta Miroy, revoltada, recusa-se a esse emprego de pelo que se atira e se agarra ao capricho de quem quer. De resto, para falar com franqueza, o novo professor não me inspira grande confiança.

- Ah! Faz mal - replicou o rapaz, com um espontâneo impulso e pondo no olhar toda a meiguice que não ousava manifestar. - Seria um mestre terno e submisso, o melhor que a mais exigente das alunas podia imaginar.

E como, intimidada pelo tom profundo desta declaração, Lolette se calasse, perdendo subitamente a alegria, o sr. Jorge, para a pôr à vontade, continuou no seu tom de brincadeira:

- Realmente, julgo que precisava mais de receber lições do que de as dar. Os conselhos desta menina corrigir-me-iam em breve da minha pronúncia e creio que faria espantosos progressos.

Violeta, embora cada vez mais intimidada, apelou para o bom humor habitual para dissimular a sua perturbação. Conseguiu-o e excitada por se ver tão manifestamente admirada, por se sentir acariciada pelo olhar meigo do estrangeiro, respondeu, fingindo-se zangada:

- Ah! meu caro senhor, peço-lhe que me empreste o seu talismã. Não sei como o conseguiu, mas dominou, completamente a nossa Henriqueta. Que é o seu aluno preferido, isso salta aos olhos. Note bem que eu não sou ciumenta, mas lá que M.me Bonnaux é parcial, isso é. Ainda garotinha, eu já tinha percebido que ela era menos severa com os rapazes do que com as raparigas, mas a julgar pelo seu caso, essa parcialidade aumentou muito. Ela treme com receio de que eu o moleste! Ah! que guardião tem aqui! Vamos, não desmaie, M.me Bonnaux se quer que não fale com o sr. Jorge, não falarei, deixo-o todo para si.

- É tonta, esta pequena! - exclamou a boa criatura a quem a ironia de Violeta agitava e desconcertava visivelmente.

- Pelo contrário, acho-a muito engraçada - disse o convidado. - Deixe-a falar, querida senhora, deixe-a dizer tudo o que quiser.

- Então, minha linda, não se constranja - aconselhou a boa senhora, de lábios franzidos. - Seja indiscreta, leviana e faladora. Já que o seu à-vontade encanta o meu hóspede, divirta-o, minha filha.

- Ah! - disse Violeta. - Agora é uma ordem É preciso divertir o sr. Jorge. Só há um pequeno obstáculo à execução desse projecto: é que eu não sei ser alegre quando me mandam, querida senhora. Aborrece-me e fatiga-me assim que se torna obrigatório. No entanto, se for presa por desobediência, obedecerei custe o que custar. Calculem: se o sr. Jorge não ficasse contente, que horrível catástrofe!

O antigo discípulo de M.me Bonnaux parecia divertir-se imenso com os mínimos gracejos de Violeta. Embora lançando de vez em quando olhadelas ansiosas para o lado do seu hóspede e outros olhares não menos ansiosos mas mais severos para o lado de Violeta, M.me Bonnaux não podia às vezes conter o riso, pois, muito animada, com os lindos olhos maliciosos e nos lábios uma ironia fina e encantadora, a pequena estava, nessa manhã, verdadeiramente adorável.

- "Não porque diga coisas muito espirituosas - pensava M.me Bonnaux, enquanto os dois jovens gracejavam. - Mas que expressão encantadora a fisionomia desta Lolette dá a quanto pronuncia! É bem bonita, a demónica! Venham cá dizer-me que um olhar, um sorriso, um piscar de olhos assim, não valem a Frase mais humorística! Tem a resposta na ponta das pestanas, nos dentes, esta garota! Tem as covinhas do rosto cheias de espírito. Ah Se eu tivesse tido esta cara!"

O sr. Jorge estava incapaz de qualquer reflexão, Embora a garrafa de Vouvray mal estivesse encetada, ele sentia uma semi-embriaguês por se ver tão perto da deliciosa rapariga. Alheio a tudo quanto não fosse ela, a quanto não fosse a sua voz, sentia-se invadido por uma espécie de languidez encantadora; não somente a olhava sem a poder desfilar, mas parecia também ouvi-la com os olhos. Num certo momento, quando, silenciosa e olhando para o jardim, ela lhe ocultou o rosto com propositada garridice, ele sentiu essa súbita melancolia que nos constrange quando a sombra cinzenta de uma nuvem cai bruscamente num lugar que o sol iluminava. E, para que Violeta continuasse a falar, para que voltasse para ele o seu rosto colorido como uma flor, os seus olhos cor de céu, o seu sorriso de primavera, disse talvez por vaidade viril, talvez apenas para dizer qualquer coisa:

- Imagina então que deixei o exército por falta de saúde. enfim, por qualquer enfermidade?

- Que quer que imagine? Vejo perfeitamente que não é torto, nem marreco, nem surdo, nem cego, principalmente. Admitamos que é canhoto.

- Mas também não sou canhoto - negou o rapaz vivamente. - Deixei o serviço militar porque sou filho de viúva! - E teve uma hesitação na voz. Lolette atribuiu-a à recordação da dor recente.

- Desculpe-me - exclamou ela enquanto a sua fisionomia traía tristeza e pena ao despertar das suas próprias recordações. - Não queria que o meu gracejo revivesse a sua mágoa. estou desolada, desoladíssima com a minha leviandade.

E realmente parecia tão desolada, que o sr. Jorge sensibilizado, disse, enternecido:

- É uma dor muito distante. Há talvez dezassete anos que meu pai morreu; tinha eu dez.

- É filho único?

- Não, tenho um irmão mais velho. Eu sou o mais novo.

- Dois rapazes! Ah! Lamento a senhora sua mãe. Deve ter-lhe custado muito a educá-los.

- Sem me gabar, sou o mais cómodo dos filhos de minha mãe, não é verdade M.me Bonnaux?

- Oh! sim, certamente, embora seu irmão Harold tenha muitas qualidades - disse Henriqueta com circunspecção.

- Meu irmão é mais caprichoso do que eu. Minha mãe, efectivamente, teria muita dificuldade em nos criar, se, por acaso não se encontrasse no que se pode chamar uma boa situação.

Henriqueta começou a rir sem que Violeta pudesse explicar o motivo. Adivinhava que as palavras do rapaz eram muito ambíguas, mas não lhes apreendia o duplo sentido. E perguntou, num regresso de curiosidade:

- Então, é rica, a senhora sua mãe?

- É mais rica do que nós... e vive à sua vontade.

- Vive dos rendimentos?

- Oh! não. Tem muitas ocupações.

- Tem negócios?

- Negócios Sim... tem negócios.

- Naturalmente foi assim que fez fortuna?

- Precisamente não, já era rica antes. Mas, com os negócios, segundo a sua expressão, a fortuna frutificou. A nossa profissão já não vale, principalmente em França, o que dantes valia; é muito incerta. Mas com ordem, muito trabalho, cautela e inteligência, vai-se vivendo.

Violeta continuou com a mesma candura:

- Seu irmão mais velho está associado aos negócios de sua mãe?

- Sim, um pouco... muito pouco... Ele é, sendo minha mãe muito idosa para viajar bastante, o representante da nossa casa.

- E o senhor?

- Eu, se fosse seu representante teria que me ocupar do caso séria e conscienciosamente, mas, tendo a sorte de ser o mais novo, não trato de nada. De resto, tenho um temperamento muito independente. Vivo fora de tudo isso; viajo muito e cá me governo como quero.

- Como pode deixar sobre sua mãe todo o peso dos negócios? Nunca lhe veio à ideia ajudá-la um pouco?

- Não o desejo... e creio que minha mãe também não. Ela é muito ciosa de quanto diz respeito aos seus interesses e aos seus direitos. Suportaria mal uma vontade que contrabalançasse a sua. É a única representante do nosso ramo social e inspira uma geral confiança. Eu aproveito. De resto, isso diria mais respeito a meu irmão do que a mim.

- Porquê?

- Porque é o mais velho.

- Não é razão!

- Assim o querem, não somente o costume, mas a lei do nosso país. Os morgadios existem não só nos títulos de nobreza e nos grandes proprietários, mas também, nos negócios.

- E isso leva-o a não ter nada que fazer, a passear de manhã à noite e de noite até de manhã, a levar uma existência de lagarto ao sol?

Henriqueta teve um momento de protesto.

- Na verdade, querida amiga, eu não disse nada de ofensivo - afirmou Violeta. - Não posso sequer, permita-me esta espécie de censura para com o seu preferido, A minha pergunta não foi maldosa. Ser-me-á proibido dizer que lhe acho um ar um pouco vadio?

- Vadio, sim, sou um vadio... - confessou o rapaz.

- Também o foi no colégio?

- Nunca fui ao colégio.

- Nunca! Nem colégio, nem vida militar. Foi então criado em algodão, como um bicho de seda!

- Basta - disse M.me Bonnaux, com impaciência. - Basta de perguntas, Lolette, torna-se indiscreta!

- Indiscreta? - interrogou a rapariga no cúmulo da surpresa. - Em que podem estas perguntazinhas que se fazem, entre duas voltas de valsa, a qualquer par, serem indiscretas?

- Esta menina tem razão, minha querida Bonnaux - aprovou o rapaz. - Ela não cometeu nenhuma indiscrição...

- É certo - disse Henriqueta, lisonjeira, - que se sai às maravilhas desse ridículo interrogatório, sr. Jorge. Mas não receia que isso lhe acabe parecendo fastidioso?

- "Que medo ela tem de que aborreçam o seu Jorginho - pensou Violeta. - Se todas têm com ele os mesmos cuidados e atenções que esta boa Henriqueta, não me admiro que esteja tão satisfeito com a sua pessoa."

E no entanto, depois da observação, o aprumo e o à-vontade do rapaz não pareceram a Violeta nem estudados nem artificiais.

- "Parece que é a sua natural maneira de ser - pensou ela. - Deve ser muito lisonjeado, muito amimado; não é fatuidade nem mesmo hábito, deve ser assim." naturalmente." Como parisiense viva e traquina, resolveu espicaçar o jovem estrangeiro, abalar a sua fleumática e alegre tranquilidade.

- Pode dizer o que quiser, mas nem colégio nem serviço militar, nem qualquer ocupação séria, me parecem uma singular educação para um rapaz. Olhe, eu, que sou apenas uma mulher, e nem mesmo uma mulher, uma rapariga, não lhe posso dizer quanto me sinto infeliz por viver desocupada! Afirmo-lhe que, se tivesse a mãe negociante, havia de tomar parte nos seus negócios quer ela quisesse quer não.

- Há negócios e negócios - disse o sr. Jorge que se tornou pensativo. - De resto, eu não sou o indolente que supõe. Foi-me precisa muita decisão, muita energia para conseguir viver fora dos preconceitos e dos interesses da família. Não foi sem custo que consegui poder fazer uma vida de acordo com os meus gostos.

- Posso, sem incorrer na cólera da nossa querida Henriqueta, perguntar quais são os seus gostos? - disse a rapariga, lançando um olhar comicamente receoso para o lado de M.me Bonnaux.

- Adoro as artes. Sempre que tenho tempo.

- Quer dizer, em todos os minutos da sua vida.

- Se assim o quer. Pois, sempre que tenho tempo, ocupo-me de pintura, de música, de literatura. Aprendo tudo, cultivo tudo. arranho tudo!

- Ah! devia tê-lo adivinhado: é um amador.

Lançou esta palavra com desdém. Ele não se ofendeu. Riu, como ria de quanto ela dizia, não por um propósito, mas inconscientemente, num contínuo encanto de estar ao pé dela, de a ver, de a ouvir.

M.me Bonnaux, para o fim do almoço, impacientou-se mais com esta espécie de êxtase que enlanguescia o jovem visitante. Não ousando dizer-lhe nada, interpelou Lolette bruscamente quando, apresentando-lhe uma amêndoa dupla, o jovem estrangeiro ofereceu metade a M.lle Miroy, dizendo:

- Quer fazer uma filipina?

- Não aceite, Violeta, não pode aceitar! - exclamou Henriqueta tão comicamente aflita que os dois jovens trocaram um olhar trocista.

Mas já Lolette e o sr. Jorge tinham comido as amêndoas. M.me Bonnaux mordeu os lábios. E, assim que o sr. Jorge acabou o café, sem esperar que M.lle Miroy

acabasse o seu, a antiga actriz levantou-se da mesa. Passaram à sala.

 

O rapaz, afastou-se das duas mulheres para examinar os bibelots e as miniaturas das paredes. Henriqueta aproximou-se de Violeta, de rosto severo, quase zangado, e disse-lhe baixo, em voz um pouco irritada:

- Não faça garridices ao rapaz, Lolette, peço-lhe. é perigoso!

Lolette sorriu, incrédula e trocista. Então M.me Bonnaux vendo que Jorge, inquieto com o seu conciliábulo a meia voz, vinha para junto delas, acrescentou precipitadamente, numa surda cólera:

- Não lhe posso explicar porquê, mas asseguro-lhe que é extremamente perigoso. Aconselho-a a não se meter com ele. Proíbo-a.

Às primeiras palavras, a pequena olhou para M.me Bonnaux, com surpresa. Por fim, entristeceu:

- "Henriqueta tem ciúmes de mim - pensou. - Por mais surpreendente que seja, tem ciúmes. Porquê?"

Embora naturalmente honesta, Violeta tinha vivido num meio muito artista e muito livre para conhecer, bem as coisas da vida. Por isso acudiu-lhe o pensamento de que podia existir, ou pelo menos tinha existido qualquer ligação entre o rapaz e a comediante. Tal como uma nuvem, este pensamento obscureceu o olhar, apagou o sorriso e ensombrou o rosto da rapariga. Mas logo afastou esta ideia como pouco razoável.

No entanto, M.me Bonnaux, continuava a ralhar em tom autoritário. Violeta, por fim, não sentiu qualquer despeito. Independente de tudo e no entanto meiga, M.lle Miroy cedia ao mais pequeno pedido e a mínima brusquidão a revoltava. Àquela longa censura uma réplica mordaz

acudiu-lhe aos lábios, mas calou-se, por respeito, em recordação do afecto dos seus pais pela velha amiga.

- "Em que pude merecer que ela me falasse assim? - perguntava, a si própria, Violeta, logo que Henriqueta acabou de a censurar. - Cedi talvez muito depressa ao prazer de tagarelar com esse estrangeiro que me agradou logo e me pareceu jovem como eu, e, como eu, simples e alegre. Será isto um crime? E como é que M.me Bonnaux, que habitualmente é tão perspicaz e que durante a sua vida de professora tem tido tanta ocasião de observar as raparigas, não compreendeu que eu só usava a ironia para dissimular uma emoção nunca sentida, e que me perturba? Se alguém foi provocante, se alguém foi galanteador esse alguém foi o sr. Jorge. Só por isso trocei dele. Ora, em vez de repreender o jovem desconhecido de olhos tão expressivos, foi a mim que Henriqueta ralhou! Que revoltante injustiça! Tem bem vinte e sete a vinte e oito anos o seu rapaz, e uma soberba presença de espírito! É decerto mais experiente do que eu. Porque serão para ele todas as complacências e todas as repreensões para mim? Esta atitude só pode, na realidade, justificar-se por um acesso de ciúme."

Violeta estacou, de tal forma absorvida na sua meditação, que nem ouvia o que lhe diziam Jorge e M.me Bonnaux. Para lhe despertar a atenção foi preciso que O rapaz a interpelasse.

- A nossa amiga diz que não, mas eu receio que tenha aproveitado o meu afastamento momentâneo para sugerir um mau conselho à minha Filipina.

- Que entende por mau conselho? - perguntou Lolette, séria.

- Não a aconselhou ela, por exemplo, a ser menos, livre, menos expansiva, menos confiante diante de mim?

E antes que a pequena, embaraçada, encontrasse uma resposta, continuou com vivacidade:

- Oh! não diga que não! Basta a expressão do seu rosto para eu perceber que adivinhei. Ora lá ficou outra vez grave, sonhadora, quase nervosa... e eu guardaria um mortal rancor à nossa amiga se essa melancolia não a tornasse ainda mais bonita do que a alegria.

A este cumprimento que só um estrangeiro, talvez só o sr. Jorge podia permitir-se sem parecer grosseiro, Violeta tornou-se corada e M.me Bonnaux teve uma, tossezinha seca e nervosa.

- M.me Henriqueta é muito má pondo-a de sobreaviso contra mim - continuou o rapaz numa voz onde vibrava sincera emoção. - Era tão íntima, tão agradável a conversa de ainda agora!

Violeta, comovida, guardou silêncio.

O sr. Jorge contemplava-a sempre como se receasse não a tornar a ver. Ele adivinhava, via a emoção da pequena, e sentia-se lisonjeado,

enternecia-se, sentindo também uma doce e profunda impressão.

Violeta, por fim, impaciente com o mutismo de Henriqueta, com o mutismo de Jorge, com o seu próprio mutismo, para se dominar, pôs-se a desfolhar com os dedos nervosos a rosa que trazia à cinta. O rapaz estava diante dela, de costas voltadas para M.me Bonnaux. Baixou-se logo e apanhou as pétalas caídas. Depois ergueu-se, aspirando-lhes o perfume antes de as meter no bolso do casaco.

Ela afastou-se e abrindo a porta da sala que dava para fora, declarou:

- vou dar uma volta pelo seu jardim, querida senhora.

- Como quiser - respondeu friamente M.me Bonnaux que, visivelmente horripilada por ter assistido à cena da flor, se sentara no divã, mal humorada.

O sr. Jorge preparava-se para seguir Violeta. A pequena impediu-o com um gesto imperioso.

- Obrigada, senhor, mas não preciso de guia. O jardinzinho não é grande, não me perderei!

Violeta viu-o tão desconcertado com esta despedida, que, a despeito do seu descontentamento, acrescentou com um lindo sorriso:

- Peço-lhe... fique! De resto, M.me Bonnaux deve ter que lhe dizer. Comigo já ralhou, agora é a sua vez.

- Sim, é a sua vez - repetiu a boa criatura, aproveitando a ocasião para reter o rapaz. - Deixe essa pequena passear no jardim e venha cá; quero, realmente, permitir-me ralhar-lhe um pouco... oh! não muito.

Por delicadeza, mas sem a mínima contrição, Jorge foi sentar-se ao pé da sua amiga. Pareceu a Violeta que, logo às primeiras palavras, em vez de ouvir as reprimendas tão benevolamente como ela as tinha ouvido, o jovem estrangeiro as tomava muito de alto, e, antecipando-se ao sermão da boa Henriqueta, era ele que o pregava. O contrário teria sido tão lógico que, Lolette cada vez mais surpreendida, murmurou:

- Parece-me que sonho e que a Bonnaux já não é a Bonnaux!

Violeta não tinha vontade de escutar. Caminhou lentamente para o outro lado do jardim e ali, encostando-se à grade, parecia-lhe olhar através dos macissos de verdura sem ver nada, tanto se absorvia nas suas reflexões.

"A Henriqueta não se zanga, com ele - repetia. - Este Sr. Jorge

fascina-a, hipnotiza-a! O seu medo de o molestar é burlesco. E, para compensar, eu pago pelos dois... como se tivesse culpa. Se a minha alegria pareceu aborrecê-la durante o almoço, Henriqueta deveria ter reparado que na sala, por ordem sua, fui muito fria para com o rapaz. Valeu a pena! O que lhe deve ter desagradado mais foi ver o sr. Jorge apanhar e beijar as pétalas da minha rosa desfolhada. Talvez imaginasse que fiz isso intencionalmente e que o meu passeio pelo jardim não era mais do que uma artimanha para que o seu aluno viesse atrás de mim! Só agora percebo a inconsciente garridice da minha atitude. Palavra que não me importo com o que a Henriqueta possa pensar de mim, aborrece-me, com o seu ciúme intempestivo. Imaginará ela que tenho a mínima ilusão sobre os rapazes de hoje? Este tem maneiras mais resolutas e menos desconfiadas do que os teatros. Agradou-me logo e não soube ocultá-lo. Se M.me Bonnaux se ofendeu com a minha franqueza, tanto Que pior!

Depois destas reflexões, Violeta deu uma reviravolta e fez com os dedos um gesto para afastar de si esses pequenos aborrecimentos. Depois confessou, num regresso ao bom humor e à despreocupação:

- Sou bem tola em me afligir com isto. Que fique em tête-à-tête com o seu Jorge. O tom cada vez mais glacial com que M.me Bonnaux me falou, o seu olhar negro de ressentimento, tudo me fez compreender que fiquei cá contra a sua vontade. Mas ao menos não sou daquelas que precisam que lhe indiquem duas vezes a porta. Tenho o meu orgulho, não quero parecer uma intrusa. Não volto à casa de jantar. É só o tempo de pôr o chapéu, de entrar na sala, dar um beijo a M.me Bonnaux, fazer uma reverência ao belo senhor e... ir-me embora! Depois, não põem mais a vista em cima da Lolette! "

A pequena recolheu-se uns segundos ainda. Achou que não havia que hesitar. Atravessada a sala de jantar, aproximou-se do espelho da ante-câmara para pôr os pregos no chapéu. Teve um olharzinho satisfeito para o espelho. E, lembrando-se de um outro olhar, do olhar admirativo com que o sr. Jorge a tinha envolvido, constatou:

- "É verdade que não sou nada repugnante! Oh! bem o posso confessar: não me torno vaidosa por isso. Para uma rapariga que quer conservar-se honesta, custe o que custar, nos tempos que vão correndo, vale-lhe de pouco ter uma cara bonita!"

Depois, suspirou profundamente:

- "Ainda assim não tenho sorte: na primeira vez que encontro um rapaz que me agrada absolutamente e que não parece ter medo de mim, sou obrigada a fugir!"

- Postos os pregos no chapéu, sacudiu a cabeça para verificar se ele estava bem seguro. Depois, colocou a capa sobre os ombros e calçou as luvas:

- - "É estúpido da minha parte, confesso, mas faz-me um certo não sei quê, ir-me embora. É singular que se possa sentir uma simpatia súbita por um rapaz que não se conhece, de quem nada se sabe, nem sequer o seu nome de família! Naturalmente o sr. Jorge não se teria mostrado tão amável se adivinhasse a minha predilecção pelo casamento! Quando ele souber que o meu dote, se lhe caísse em cima de um pé não o magoaria, e que eu não compreendo a afeição senão com o consentimento da Igreja, perdia naturalmente o entusiasmo, como já o perderam outros. Tanto pior para mim e para ele também, talvez, pois sinto-me disposta a tornar-me uma mulherzinha fiel e ajuizada... e amante, oh! muito .amante! Mas em que sonho estou eu agora? Todos estes pensamentos só servem para aumentar a pena que sinto em me afastar quando o orgulho, a prudência e a razão exigem que ma vá embora imediatamente... Então, a caminho, Violeta! Ah! ainda _ assim esta resolução é mais heróica do que parece. À amizade eu sacrifico- quem sabe? - talvez o amor!"

No entanto, caminhando resolutamente, entrou na casa de jantar afim de atravessar o pequeno gabinete de trabalho de M.me Bonnaux e de voltar à sala. Avançava, com os passos abafados pelos tapetes, quando vozes altas a advertiram que Henriqueta e o seu antigo aluno passavam precisamente da sala para esse pequeno aposento.

- Venho para aqui - dizia M.me Bonnaux - ela do jardim não poderá ouvir-nos. Violeta é reservada e discreta, mas o senhor virou-lhe positivamente a cabeça! O horrível constrangimento a que me obrigou, convidando-a para almoçar, a obrigação de representar esta comédia, há uma ora que me tornam muito infeliz.

Uma pequena hesitação cortou o movimento que Lolette fizera afim de se retirar para a ante-câmara. Repugnava-lhe escutar. Mas por breve que fosse essa hesitação, os dois interlocutores tinham já trocado várias réplicas.

- De que constrangimento fala? - respondeu o sr. Jorge, num propósito de não dar às palavras da comediante a mínima importância. - Não notei que os meus cumprimentos tivessem embriagado essa menina. Eram tão sinceros! Meti-me com ela,

respondeu-me com espírito, sem abandonar uma reserva e uma graça modestas que me encantaram. Ela não é dissimulada, nem excessivamente reservada e essas qualidades, juntas a uma beleza fina e perfeita, a uma fisionomia maravilhosamente expressiva, fazem da sua jovem amiga a mais deliciosa rapariga que jamais vi em qualquer país do mundo.

- Muito bem! Então o entusiasmo é recíproco. Se julga a Lolette franca, sr. Jorge, eu a si, julgo-o mais franco ainda, e o senhor manifestou as suas impressões de uma forma tal, que não me atrevo a duvidar.

- É que as minhas impressões são tão vivas quanto profundas! E para que hei-de

escondê-las se a alegria de as sentir não desperta na minha alma um só pensamento reservado ? Não compreendo a sua inquietação, Bonnaux, e as suas desconfianças ofendem-me. Seria amável da sua parte ter-me impedido de conhecer esta criaturinha deliciosa? Se eu tivesse chegado um minuto mais tarde, tinha-a despedido e eu talvez nunca a tivesse visto na minha vida. Repito-lhe, era muito mal feito da sua parte!

- Mas muito bom para Violeta.

- E porquê ? Acha assim uma desgraça tão grande encontrar o sr. Jorge, e tê-lo por amigo?

- Foi uma sorte para mim, sr. Jorge, mas não será para Violeta.

- Essa agora! - disse o rapaz. - Que subtil distinção! Acha que sou um homem perigoso?

Henriqueta não protestou.

Houve uns momentos de silêncio. Violeta, espantada com tão estranha conversa, a despeito da sua resolução de não escutar, não avançava para o gabinete de trabalho. Compreendia que não podia, sem causar um extremo embaraço aos dois interlocutores, apresentar-se nesse momento diante deles.

Como podiam duvidar que ela os tivesse ouvido? Julgou que o melhor era voltar ao jardim, entrar na sala como se os julgasse ainda lá e fazer muito barulho para os advertir da sua chegada.

Recuou com precaução. No entanto, teve tempo de ouvir outras frases não menos surpreendentes e misteriosas.

- A sua afeição, sr. Jorge, não é perigosa para uma mulher como eu, muito pelo contrário, mas será extremamente perigosa para uma criança como Violeta. Bem o deve compreender.

- Não, não compreendo - disse o rapaz. - Sinto-me seduzido, entusiasmado! Abandono-me ao encanto pela primeira vez e com o ardor de um coração ingénuo e terno; é uma sensação, é mesmo um sentimento novo, tão imprevisto, tão inesperado para mim que nunca, terei a inútil coragem de o refrear.

- Se a sua impressão é essa, não a torne a ver! É um coração tão honesto! Amá-lo-ia e a sua vida ficaria destruída. O pai e a mãe de Violeta foram meus amigos. Facilitar a intimidade de sua filha consigo seria, de qualquer forma, trair a confiança que eles tinham em mim. Prometa-me que não procurará tornar a vê-la?

- Não lhe prometo nada de parecido. Que mal poderá oferecer-lhe a minha amizade? - E que importa, se M.lle Violeta julgar que eu? Que importa se só eu perceber que sinto um sentimento mais terno?

- Não o sentirá sozinho.

Aqui, a voz do sr. Jorge vibrou numa alegria que não soube reprimir:

- Não serei só, M.me Bonnaux? Quer dizer que essa encantadora criança, sem saber o meu nome, em/ plena ignorância da minha identidade, poderá amar-me Ah! se isso sucedesse, seria simplesmente a realização do sonho que embalo desde que sou homem: ser amado por mim mesmo. Ah! se ousasse esperá-lo, se imaginasse somente esse milagre possível. nada me conteria para o obter!

- Mas seria a demência! Não me desole, sr. Jorge. Já não sei que mais alegar para o desiludir, para acalmar a sua imaginação excitada.

- Uma só coisa me bastaria: a declaração que essa menina ama alguém.

- Por mais forte que seja o meu desejo de o afastar da sua vida, não lhe direi isso, pois não seria apenas mentir, mas caluniar Lolette... De resto, o senhor não me acreditaria.

- Juro-lhe que não acreditaria, Henriqueta, pois os seus olhares, o seu sorriso, as suas palavras, os seus mínimos gestos indicam uma alma que ainda se não deu!

- Peço-lhe, sr. Jorge, tranquilize-me. Prove-me que tenho boas razões para o julgar mais prudente, mais moderado que o senhor seu irmão.

- Ah! o que não é muito... - disse o rapaz, sorrindo - pois meu irmão Harold é um homem violento e apaixonado. Em compensação, bem sabe que lá em baixo troçam da minha frieza, da minha austeridade... Isso deve tranquilizá-la a respeito da sua jovem amiga.

- Não muito. É frequente, aquele que foge à tempestade, ser atingido pelo raio. E eu julgo-o atingido. Na sua situação, sendo quem é, seria mau não somente fazer-se amar pela pequena, como também amá-la. Pode dar a Violeta a felicidade tranquila com que ela sonha?

- Quem sabe!

- Não! Bem sabe que não pode. Pode, ao menos, dar-lhe o seu nome?

- Não sou livre neste momento, mas mais tarde...

- Nunca o será! E se eu lhe pedisse apenas para lhe revelar o seu nome, consentiria?

- Não! Oh! Minha querida senhora - disse o rapaz com um terror que lhe alterou a Voz. - Por nada do mundo lhe diga o meu verdadeiro nome. Só vim a sua casa sob a promessa de respeitar o meu segredo. Revelar quem eu sou, seria destruir o encanto deste encontro inesperado. Deixe-me esta hora de ilusão!

- Bem vê! - disse M.me Bonnaux, triunfante. - Violeta, por picada que sentisse a sua curiosidade...

recuou heroicamente até à ante-câmara, depois alcançou o jardim, com um suspiro de alívio. Estava ainda menos intrigada do que desolada por ter escutado, involuntariamente é certo, mas ainda assim escondida. Sentiu também uma grande decepção por não poder encontrar nenhuma forte razão para o sr. Jorge ocultar a sua identidade.

- Porque será a sua afeição tão temível - perguntava a si própria. - Porque não poderá ele dar a qualquer mulher uma calma felicidade? Finalmente, porque não ousa revelar o seu nome? Que homem será este sr. Jorge?

Mal formulada no seu espírito, esta pergunta fê-la estremecer. Sentiu um friozinho penetrar-lhe o coração, entristeceu-a subitamente o pressentimento de um desastre.

Para acabar finalmente com as conjecturas que a perturbavam, esfregou os pés na areia e no capacho da entrada, tão ruidosamente quanto julgou necessário para advertir os conversadores da sua aproximação, e, entrando na sala, gritou:

- Onde está, querida senhora?

Do pequeno gabinete de trabalho, duas vozes responderam ao mesmo tempo. Mas assim que a rapariga apareceu de chapéu, foi só o sr. Jorge quem exclamou:

- Como! Já se vai embora, minha Filipina?

- Assim é preciso - disse Violeta encobrindo a sua resolução com uma pequena mentira. - Espero a visita de uma amiga, Felícia Mouyard. Prometi-lhe estar em casa às três horas. vou atrasada. Terei que tomar um carro.

O sr. Jorge protestou contra a partida precipitada com uma energia que testemunhava a fraca impressão deixada pelo sermão da velhota. Quanto a M.me Bonnaux, a despeito dos gestos furtivos e das piscadelas de olhos do seu antigo aluno, limitou-se a dizer, no momento em que M.lle Miroy se inclinava para a beijar:

- Continua a dar- se com Felícia Mouyard Não se fie muito nessa amizade: a Mouyard é uma má-língua. Não aprovo a sua intimidade com essa artista falhada.

- Que quer, minha querida senhora - respondeu Lolette, numa censura discreta e velada - não se podem escolher sempre as amigas. As que nós amamos não são as que nos amam. Aceito aquelas a quem a minha intimidade não causa nem transtorno nem aborrecimento.

Penetrada por essa doce censura, consciente de a merecer, pelo menos em parte, a Bonnaux tentou atenuar a frieza do adeus com uma palavrinha consoladora, mas viu que o sr. Jorge a observava. A boa criatura contentou-se em encolher ligeiramente os ombros.

Violeta, voltada para o rapaz, fez-lhe um gentil cumprimento. Desejava deixar-lhe de si a mais graciosa imagem nos olhos, a mais doce lembrança no coração. E este cumprimento foi uma obra prima de graça irónica e garrida; a ligeira inclinação da sua cabeça encantadora, manifestava a melancolia de uma separação, o seu sorriso fresco rasgava-se até à covinha do rosto, com fina malícia; enquanto que, como contraste picante, as suas pálpebras semi-cerradas, velavam com languidez voluptuosa a mágoa do seu olhar azul.

- "Ah! - a maliciosa garota - pensou de novo M.me Bonnaux - porque não aprende ela a dizer tão bem como sabe olhar e sorrir! Lá se foram os meus conselhos por água abaixo: o rapaz já está apanhado!"

Efectivamente, o sr. Jorge tinha pegado na mão que acabava de largar a saia do vestido claro. Levou essa mãozita aos lábios com um tal fervor, que Violeta, confusa, a retirou vivamente, voltando-lhe as costas e chegando rapidamente ao jardim do qual fechou a cancela atrás de si.

Transpôs a porta da casa sem reparar num homem de chapéu de coco castanho, que parecia espreitá-la do passeio. Preparava-se ela para atravessar a rua quando um passo vivo soou atrás de si. Sem se voltar, continuou o seu caminho.

- Não fuja tão depressa, minha Filipina: não me recuse o prazer de a meter no carro.

Violeta, cuja bolsa não estava farta, tinha, depois de reflectir, renunciado à ideia de pagar um trem. Mas julgou que seria esse o único meio de cortar ao rapaz o desejo de a levar a casa e de o fazer voltar para junto de Henriqueta, que devia estar inquieta. Esta ideia fê-la sorrir. Maldosamente, perguntou:

- Como pôde deixar só a sua querida amiga? Isso foi muito mal feito de sua parte. Volte para lá depressa.

O rapaz bem via que Violeta não achava assim tão mal e que não estava zangada por ele ter vindo ao seu encontro. No entanto, desejosa de não desagradar absolutamente à sua amiga, M.lle Miroy cortou o que o sr. Jorge ia a dizer-lhe, apontando com a sombrinha para um trem aberto, que passava.

- Já que veio para me meter num carro, chame esse.

- O jovem estrangeiro, a esta ordem breve, reprimiu um pequeno sobressalto de espanto. Como se quisesse vingar-se de obedecer a Violeta e usando por sua vez de autoridade sobre outro, dirigiu-se ao cocheiro com um gesto tão imperioso, que o homem parou como que fascinado. - Que morada dou ao cocheiro?

Esta pergunta chamou-a à prudência conveniente.

Reparando, não sem surpresa, que o homem do coco castanho não a perdia de vista nem ao sr. Jorge, respondeu corajosamente:

- Diga ao cocheiro que pare no Louvre. Tenho umas compras a fazer antes de voltar para casa.

O sr. Jorge não pareceu muito vexado com a artimanha usada, pois tinha, sem dúvida, outros meios de investigação.

Trocados os cumprimentos, estando o carro em marcha, Violeta francamente curiosa agora que já não havia perigo nem inconveniente em o observar, olhou por baixo da capota do fiacre. Ficou extremamente admirada por ver, de longe, o sr. Jorge aproximar-se do homem do chapéu castanho. Ambos, parados em frente um do outro, pareciam conversar.

Pouco depois, o jovem estrangeiro foi encontrar M.me Bonnaux silenciosa e carrancuda. Levianamente, ou antes, como homem habituado a dizer as suas opiniões sem se importar muito com o efeito que possam fazer nos outros, começou o elogio de Violeta.

- - Seria muito amável - disse ele, terminando e com um imperceptível ar de superioridade - contar-me quanto sabe a respeito dessa rapariga.

- Há-de desculpar que nada lhe conte: não quero contribuir, por complacência para consigo, para a desgraça dessa criança.

- Não quer dizer-me nada do seu passado? Nada dos seus hábitos, das suas relações, dos seus gestos, da sua maneira de viver?

- Repito-lhe que é uma rapariga honesta e a quem estimo. Quero que ela se conserve honesta e quero estimá-la sempre. É por isso que não direi nada.

- Esperava mais da sua amizade, - M.me Bonnaux queixou-se o rapaz, muito desapontado com esta obstinação. - Além de que - acrescentou ironicamente - talvez tenha razão: nada me dizendo a respeito dela, aumenta-me o prazer de descobrir tudo sozinho. Este encontro não seria talvez mais do que um capricho passageiro, uma dessas fugitivas ligações de que me afasto sempre, instintivamente. Fácil, a aventura perderia o interesse. Agradeço-lhe ter-ma tornado difícil. Espicaçando-me neste jogo de amor, criando-me obstáculos, ajuda-me a transformar esta paixoneta numa verdadeira paixão, única e primeira paixão de que espero toda a felicidade da minha vida.

A pobre senhora mordia os lábios, sentindo que esta resposta sarcástica escondia a verdade. No entanto não tornaram a falar da pequena e separaram-se pouco tempo depois, friamente.

Mal se viu fora do jardinzinho, o rapaz chegou apressadamente à rua, e olhou à sua volta.

O homem de chapéu castanho, no passeio fronteiro continuava à espreita, mas, a um gesto imperioso do sr. Jorge, atravessou, aproximou-se, tirou o chapéu e esperou as perguntas:

- Tem a direcção, Jack?

- Se o sr. Jorge consentir em esperar uns minutos, terá a direcção. Gilberto, assim que o sr. me significou o seu desejo, saltou para um carro e seguiu o outro. Se o "trajecto não for longo, daqui a pouco o Gilberto estará aqui.

- Não posso esperar. Quando tiver a informação, leve-ma. Até já, Jack.

- Entendido, sr. Jorge.

E o sr. Jorge afastou-se, enquanto o homem do chapéu castanho cumprimentava militarmente.

Lolette habitava na rua Royale, num quinto andar; em uma pequena casa composta de quatro compartimentos estreitos e baixos, mas muito cheios de sol. Ali se guardava tudo quanto a rapariga pudera conservar do mobiliário de seus pais. O seu lar, arranjado com gosto, tinha um certo cunho de arte e de originalidade.

Solange, a velha ama que nunca a havia deixado, vivia com ela. A excelente criatura, depois de ter partilhado a boa fortuna do sr. e da srª. Miroy, partilhava, com o mesmo zelo e a mesma dedicação, a má fortuna da filha. Solange, fazia os trabalhos pesados. Violeta ajudava-a, limpando o pó, dispondo os bibelots.

Nessa tarde, o dia seguinte ao do almoço em casa de Henriqueta, Lolette, no seu quarto, pensava no sr. Jorge e censurava-se de o fazer constantemente.

- "Fiz mal em o julgar fátuo. Um fátuo não se mostraria tão amável como ele; um fátuo esperava que dessem os primeiros passos enquanto que ele procurava visivelmente agradar-me e não receava deixar transparecer o seu desejo. O que eu tomei por amor-próprio, era apenas uma altivez natural, uma atitude resoluta. Aprecio isso muito, num homem."

Nesse jovem estrangeiro muitas outras coisas agradavam a Violeta. Por isso, procurava nas suas recordações, mas surgiam muitas dúvidas no seu espírito:

- "Porque seria que M.me Bonnaux não queria que eu ficasse para almoçar? Porque me apresentou o seu convidado pelo nome próprio? Porque não disseram nada da sua situação e da sua família? Depois, a estranha atitude de Henriqueta, que estava sempre de mau humor para comigo e se mostrava diante do aluno lisonjeira e timorata? Quem poderá ser também aquele indivíduo de chapéu castanho, vulgar, com quem o sr. Jorge falava quando eu me voltei? Será a desgraça a ameaçar-me? Por que motivo um homem tão novo, de expressão tão sorridente, pode ser assim perigoso para mim? Como tudo isto me parece misterioso! E como este mistério é divertido! Mas para que me serve pensar no rapaz, se não o tornarei a ver?"

Lolette saiu do quarto, entrou na sala e ficou extremamente surpreendida ao encontrar o pequeno aposento cheio de flores. Correu à sala de jantar a interrogar Solange.

- De onde vieram aquelas flores?

- Ah! é verdade, esqueci-me de prevenir a menina. Ainda agora, enquanto foi à costureira, trouxeram isso.

- Não vinha nenhum cartão?

- Não, nenhum. Mas quem as trouxe entregou-me um subscrito lacrado. Está em cima do fogão.

Violeta voltou depressa à sala. Não ousava adivinhar de quem vinham as flores. Rasgado o envelope, encontrou dentro um cartão com estas linhas escritas: Respeitosos cumprimentos do Filipe de ontem.

- Ah! é do sr. Jorge! - disse Lolette alegremente, deixando cair o bilhete no tapete.

- Não é do sr. Jorge, menina, é do Filipe: está escrito com todas as letras - disse a ama depois de ter apanhado cuidadosamente o bilhete.

- "Tinha adivinhado de onde vinham as flores. São encantadoras - pensava Violeta. - Mas como pôde ele, tão depressa descobrir a minha morada? com certeza que a Henriqueta não lha deu. Tudo isto se passa de uma forma tão súbita e imprevista, como nos contos de fadas que eu tanto quis viver! Deverei aceitar estas flores? Não farei melhor devolvendo-as? Sim, mas para onde e a quem? Há talvez cem mil, duzentos mil srs. Jorges em Paris!"

Demorando o olhar sobre o ramo perfumado, decidiu:

- "Ora! Guardo-as: são tão lindas e cheiram tão bem! São a minha Filipina!"

E começou a dispor as flores em várias jarras.

 

Muito nova para frequentar a sociedade durante a vida de seus pais, Violeta tinha-se conservado afastada todo o tempo do luto. Nunca havia sido cortejada, nunca tinha podido ler no olhar ou ouvir na palavra de um homem quanto era bela. O sr. Jorge tinha sido o primeiro a dar-lhe a consciência da sua beleza. E ela estava encantada e assim, a recordação que dele guardava, era mais doce ainda.

Ainda Lolette não acabara de dispor as suas flores, quando Felícia Mouyard, sem que a campainha da ante-câmara tivesse tocado, entrou bruscamente na sala.

Felícia era uma rapariga alta, morena, de vinte e oito a vinte e nove anos, magra, desgraciosa e feia. Sobejando-lhe em ousadia o que lhe faltava em saber, professora de piano, de desenho, de inglês, de francês, conforme os raros alunos que apareciam, actriz sem contracto, cantora sem concertos, Felícia, como uma verdadeira falhada, sem as/compreender nem as sentir, falava de todas as artes. i Pelas suas maneiras e pela sua pretensão - verdadeira toilette de teatro de província - parecia que tinha, quanto ao moral e ao físico, a melhor opinião de si própria.

Nada justificava as suas pretensões. Todos quantos a viam com olhos de ver, todos quantos a julgavam imparcialmente, não tinham nenhuma razão para partilharem o entusiasmo de Felícia Mouyard por si própria. E resultava uma enorme desproporção entre quanto ela se julgava no direito de esperar dos outros e o pouco que os outros lhe concediam. A vida, por consequência, parecia-lhe uma constante injustiça. E por isso, o contentamento de si própria, em vez de a alegrar, azedava-a, aumentava mais a sua amargura.

- Ah! És tu? Quem te abriu?

- Solange.

- Não ouvi tocar.

- Não toquei. Arranhei à porta para prevenir a tua criada de que era eu.

Felícia parecia preocupada. A vista das flores acabou de a pôr de mau humor.

- Oh! Como a tua casa está florida! Quem te fez tal surpresa?

Violeta não tinha previsto nem a visita nem a pergunta. Corou, num pequeno acesso de pudor que não podia explicar, pois desagradava-lhe confessar logo a verdade:

- Eu é que fiz esta surpresa a mim própria.

- Ora, deixa-te disso! - disse a amiga, encolhendo os ombros. - Confessa que foi um presente. Seria uma loucura se, na tua situação, gastasses em flores os quatro vinténs que te restam!

- E se fosse um capricho supremo, antes da ruína?

- Nunca ousarias comprar tantas e tão belas flores. Foi oferta de alguém que conheceste recentemente, minha dissimulada! Podes bem dizer-me tudo, pois, se foi um flirt não to roubarei.

Para dizer a verdade. Violeta não receava muito esta rival. No entanto, calou-se, ocultando o seu embaraço, com um sorrisinho malicioso que desesperou Felícia.

- Adivinha!

- Ah! se imaginas que vou ter o trabalho de procurar, enganas-te minha querida! Em que podem interessar-me os teus segredos?

Mas, mal informada por Solange, loucamente curiosa a despeito da sua expressão de desdém, Felícia deu voltas para saber o que ainda ignorava.

- Não visitaste ninguém ontem?

- Visitei... Henriqueta Bonnaux - confessou Violeta que se sentia contrafeita, mesmo por coisas de nada.

- Viste-a de tarde?

- - Não, de manhã.

- De manhã? Almoçaste com ela?

- Almocei.

- Sozinhas as duas?

- Não, tinha lá alguém.

- Ah! Um homem, bem entendido!

- Sim, muito amável...

- Com a Bonnaux?

- Mais comigo.

- Ora aí está! Ela deve ter-te arreliado, essa boa Henriqueta!

- Sim, um pouco - confessou Violeta, sorridente.

- Quem era esse senhor?

- Um dos seus antigos alunos.

- E como se chama, o antigo aluno?

- Sr. Jorge.

- Apanhei-te, minha pequena - disse M.lle Mouyard numa gargalhada. - Apanhei-te em flagrante delito de mentira: esse senhor não se chama Jorge, chama-se Filipe!

O claro riso de Violeta explodiu e, adivinhando agora quem informara Felícia, disse:

- Sim, senhor, é bonito! Vais confessar a minha velha Solange antes de me vires dar os bons dias? Que delicado procedimento da parte de uma amiga! Agora compreendo porque arranhas em vez de tocar!

Esta perspicácia fez zangar Felícia, que resmungou:

- És tão taciturna em tudo quanto te diz respeito, que, se eu não fizesse perguntas à tua criada nem sequer sabia como passas de saúde.

- Coitada! Tenho pena da tua curiosidade. Esse senhor, chama-se realmente Jorge; mas, como comi uma amêndoa dupla com ele, mandou-me essas flores a título de meu Filipe. Solange confundiu tudo e tu laboraste no seu erro. Diz lá que não sou franca?

- Hum...

- E agora - disse Violeta, cortando a conversa a fim de evitar uma questão - não achas que está um dia muito lindo para ficarmos a discutir nesta salinha? Vamos dar um passeio ao Bosque.

- Ao Bosque? Tu imaginas que eu vou ao Bosque a pé? Não me levanto como tu, ao meio-dia. Se descesses de Montmartre à hora do calor. perdias toda a vontade de flanar.

- Iremos de trem.

- A esta hora? Tu foste acometida pelo delírio das grandezas.

- Creio que sim. A primavera embriaga-me e sinto-me em via de fazer muitas outras loucuras.

- E amanhã choramingarás encostada a mim, porque estás arruinada!

Diante do espelho, sem ouvir as recriminações da sua amiga, Lolette fazia-se o mais bela possível.

- Parece - observou Felícia - que esperas tornar a encontrar o teu sr. Jorge.

- Oh não - suspirou Violeta, entristecida. - Nunca mais o verei! Creio que M.me Bonnaux tomou providências para isso.

- Que não o encontres mais em casa de M.me Bonnaux, acredito. Mas em tua casa, por exemplo!

- Como podes julgar-me capaz de receber alguém que mal conheço?

- Primeiro recebem-se as flores, depois o cavalheiro - disse M.lle Mouyard espiando as mínimas impressões no rosto expressivo e encantador da rapariga.

Chegaram ao patamar. Felícia, céptica, descia a escada, rindo:

- Julgas que agradaste a esse senhor?

- Sim... francamente; creio que lhe agradei tanto quanto ele me agradou. Mas repito-te: a Henriqueta pôs tudo em ordem. Para te dizer a verdade, o almoço tinha um ar muito misterioso.

- O mistério não é assim tamanho! Um senhor que dá uma data de dinheiro por uma filipina, não tem intenções ocultas.

- Sim, não terão custado menos de quatro ou cinco luízes.

- Ora - disse a morena, desdenhosa. - As flores que ele te mandou estão murchas. Admito, para te dar prazer, que por ser estrangeiro se deixou roubar e deu o que dizes. Cavalheiros que larguem tanto dinheiro por uma filipina, devem ser raros na existência de Henriqueta Bonnaux, ela deve querê-los guardar só para ela!

- És má!

Nesse momento, chegavam à porta da rua. Voltando para a Praça da Concórdia e os Campos-Elísios, claros e alegres sob um tépido sol, Lolette disse:

- Quando está assim um lindo sol, não é verdade que a vida e as pessoas parecem mil vezes mais belas do que na realidade são? Toda esta luminosidade, Felícia, não nos dá a impressão que flutua no ar, a ilusão que tudo doira, a ilusão que respiramos a plenos pulmões?

Passava um trem e M.lle Miroy fez-lhe sinal com a sombrinha:

- Pisit! Cocheiro... Porte-Maiüot.

- À corrida?

- Sim.

- Não vou.

- Então, à hora.

Violeta, logo que o carro parou, saltou ligeiramente, chamou Felícia, que se atrasara a olhar para qualquer coisa. E assim que as duas mulheres se sentaram uma ao lado da outra, o cocheiro chicoteou os cavalos.

- Tu, minha filha - disse Felícia sentindo a necessidade ciumenta de ensombrar a bela despreocupação da sua amiga com mais caprichos como este, - hás-de morrer na enxerga de- um albergue noturno, com uma camisa emprestada.

- Ora! - respondeu Violeta com a bela confiança da sua mocidade e da sua beleza. - Tenho o coração cheio de esperança. Sinto a sorte chegar, pressinto-a. Parece-me que, desde a vinda daquelas flores, tudo me encanta. Nesta brisazinha tão fresca da primavera, é a alegria que passa, que me acaricia, que espalha esperança à minha volta!

Fez-se um silêncio. Felícia, que, ao longo da Avenida dos Campos-Elísios, se voltava com frequência, no carro, não pôde mais: presumida, pretensiosa e reprimindo a custo pequenos sobressaltos de excitação, disse com um riso de pessoa satisfeita:

- É singular! Desde que saímos de tua casa, da Rua Royale, assim que fizeste sinal ao cocheiro, um senhor que se dava ao prazer de passear e de olhar para as lojas não nos perdeu de vista.

- E depois?

- Quando falaste ao cocheiro, esse senhor aproximou-se e ouviu as tuas indicações. Desejava sem dúvida saber aonde íamos.

- E para que lhe servia isso?

- Para nos seguir, provavelmente.

- Ah! Tu julgas que os homens essencialmente práticos, de hoje, ainda perdem tempo a seguir mulheres?

- Isso depende das mulheres. Afirmo-te que aquele tinha essa intenção. A prova é que vem atrás de nós, também de carro. Se quiseres verificar, vira-te.

- Deus me livre - protestou Lolette. - Seria dar-lhe coragem. Não te voltes mais, Felícia! Parece mal.

- Parece mal porque não é a ti que seguem!

- Violeta, divertida desta vez, objectou:

- Que razão tens para crer, se realmente esse imbecil nos segue, que é a ti e não a mim?

- É a mim, asseguro-te - disse Felícia perentoriamente. - Tu não tens um tipo para despertar paixões.

- Se isso pode evitar-me esta espécie de aventura desagradável, - felicito-me.

- Oh! não te armes em menina ingénua, peço-te, não te fica bem. É agora a minha vez de receber cinco luízes de flores por uma filipina.

- Dizias ainda agora que não custaram tanto...

- Disse isso para que não te envergonhasses de as teres aceitado.

- Oh! como és delicada! - ironizou Violeta.

E como Felícia se voltasse outra vez, não pôde deixar de repetir, com maior impaciência:

- Está sossegada. Se olhas assim, esse senhor acaba por se convencer de que te metes com ele.

- Podia escolher pior - disse Felícia. - É um bonito rapaz, um pouco gordo mas com ar muito distinto...

- Elegante

- Ah! minha querida, extremamente elegante - afirmou Felícia, tão ousadamente que Violeta não se voltou, contentando-se com a sua afirmação.

- Veste um casaco preto e uma calça mescla.

M.lle Miroy fez um trejeito que significava que a calça mescla não lhe parecia muito chique. A outra acrescentou:

- E tem um chapéu de coco, castanho.

- Um chapéu castanho! - exclamou Violeta, não podendo reprimir um sobressalto. - Tens a certeza que o chapéu é castanho?

- Absoluta certeza. Ah! fez-te efeito o chapéu castanho... Ficaste pensativa!

- Acho um chapéu muito vulgar, mas esse lembra-me. nada, é uma estranha coincidência!

Violeta não disse mais nada. Evocava a recordação do jovem amigo de Henriqueta, e do homem com quem ele falou depois de a meter no carro.

- Não há nada de estranho - continuou Felícia, mais azeda. - Julgas que é a primeira vez que um homem me segue? Pois seguem-me por toda a parte. Se eu fosse tão garrida e provocante como tu, há muito tempo que faria figura em Paris... mas eu tenho princípios.

- Obrigadinha!

- Oh! Não te acuso. A culpa não é tua. Minha mãe pertencia a uma família burguesa, enquanto que a tua era uma mulher de teatro...

- Deixa em paz a mamã - exclamou M.lle Miroy, indignada. - Senão, faço-te apear! Quanto aos teus princípios não bastaram para te impedir de olhares para os cocos castanhos.

Felícia, vendo a amiga encolerizada, julgou prudente calar-se. Violeta, já calma, ficou pensativa e absorvida outra vez nas reflexões que lhe sugeriam o chapéu Castanho. Felícia voltou ao assunto para despejar o rancor que tinha no coração:

- Ficaste de mau humor porque eu agradei àquele senhor?

- Oh! Não é por isso - replicou Violeta, vivamente. - Pelo contrário, bem desejava que o chapéu castanho te seguisse simplesmente por te seguir. isso livrava-me de uma verdadeira inquietação.

- Então, não me acreditas? - perguntou Felícia, furiosa. - Sempre és de uma vaidade! A menina imagina que não há olhos senão para ela! Eu não te acho feia porque te conheço há muito tempo e à força de te ver, não te vejo como és; mas se fosse homem, não me agradarias.

- Meu Deus! Consolar-me-ia! Mas ainda assim é uma sorte que os homens não me vejam com os teus olhos.

Despeitada, Felícia emudeceu. E Violeta continuava a perguntar a si própria:

- "Será um simples acaso? Ou este homem que nos segue é realmente um emissário do misterioso sr. Jorge?"

Em breve, M.lle Miroy julgou-se tola, num dia tão lindo, absorver-se nesse ponto de interrogação e, levantando a cabeça, olhou à sua volta, divertiu-se com as belas equipagens cheias de toilettes leves e claras que, em pleno sol, numa fina toalha de ouro, iam a caminho do bosque. Violeta, divertida, gozava com tudo.

Passada a porta Delfina, o cocheiro hesitou.

- Damos a volta ao lago - decidiu Felícia. - Manda depois parar o carro e andamos um pouco.

- Julguei que estavas fatigada...

A rapariga não se dignou responder. Minutos depois, por ordem de Violeta, o carro parou na avenida, diante de uma pequena alameda sombreada e sinuosa que corria a par da água.

- Espera, espera! - exclamou Felícia. - Não vás tão depressa. E para que havemos de ir por esta pequena alameda deserta, velada pelas árvores Se vais por aí, não vou contigo.

- Vem, olha que, pelo contrário, é bem bonito.

- Não. Não se encontra aí ninguém. Espera... já não o vejo, ele perdeu-nos.

- Quem?

- O tal senhor...

- Ah! seria uma sorte! E isso decidiu-me... Eu...

- Vou por aqui. Se por desgraça o homenzinho nos alcançar, eu o obrigarei a voltar para trás. Eu, que não tenho princípios, começo a aborrecer-me com as calças de tom mescla!

- E se me agradasse a mim?

- Se te agradar, faz-te seguir quando fores só!

Resolutamente, sem se voltar, Lolette meteu pela alameda sombreada que ladeava o lago.

Próximo do carro, Felícia procurava com os olhos o homem do coco. Viu-o enfim. Conversava com outro senhor mais novo e muito mais elegante. com um pequeno gesto furtivo, o de chapéu castanho indicou ao desconhecido o caminho por onde Violeta acabava de desaparecer. Depois, os dois homens, sempre conversando, olharam para Felícia. Falavam a seu respeito, certamente.

Ela corou, esforçando-se por tomar uma atitude graciosa e cuidar o seu sorriso. Esta preocupação não a deixou observar que o jovem desconhecido se afastava, com rapidez, respeitosamente cumprimentado pelo homem do coco, que se aproximou da M.lle Mouyard no evidente desejo de meter conversa. com uma emoção real ou simulada, Felícia deixou cair a sua malinha, o que deu ao homem, ocasião de a apanhar. Agradecimentos da menina, protestos do indivíduo que dizia, de resto desastradamente, que esse incómodo fora um prazer. Algumas, reflexões sobre o bom tempo serviram de transição e depois de darem uns passos lado a lado, ambos se sentaram em cadeiras, à sombra das árvores. O homem mostrou-se logo muito mais curioso de recolher informações a respeito de M.lle/Miroy do que sobre M.lle Mouyard. A sua conversa tomou a forma de um interrogatório e, completamente indiferente aos sorrisos de Felícia, voltava com frequência a Cabeça, não sem inquietação, para o lado da pequena alameda sombreada.

 

Violeta caminhava apenas havia dez minutos à margem do lago quando, surpreendida por um ruído de passos, se voltou, dando de cara com o sr. Jorge.

- Ah! Como estou encantado com este encontro! Que extraordinário e feliz acaso!

- Não teria dado um jeito a este acaso? - respondeu Violeta, também contente, mas ainda assim um pouco desconfiada.

O rapaz simulou surpresa, sem grande convicção, "mas conservou, no entanto, o seu belo à vontade.

- Que quer dizer?

Na verdade, M.lle Miroy não o sabia ao certo, pois não compreendia que espécie de conivência podia existir entre este belo gentleman, de fisionomia inteligente, porte correcto, elegante, distinto, com o homenzinho gordo e vulgar a quem Felícia julgara agradar. Ela adivinhava que havia entre os dois um secreto entendimento, mas qual? Assim, foi sobretudo para não ficar calada, que Violeta replicou maliciosamente:

- Não se faça de ingénuo, sr. Jorge. Confesse que lhe acabam simplesmente de indicar o caminho que tomei.

- E quem mo poderia ter indicado - perguntou o rapaz, sem se desconcertar.

- Alguém do seu bando - lançou Lolette, estouvada e traquina.

- Que bando? - perguntou Jorge, desta vez surpreendido.

- O bando dos chapéus de coco!

Esta brincadeira, longe de divertir o rapaz, contrariou-o visivelmente. Violeta constatou que a sua mão enluvada tremia de impaciência no castão da bengala.

- Não a entendo - disse num tom frio, quase vexado.

- "Ah! se ele se zanga. - pensou Violeta, sentindo despertar a sua alegria natural - isto vai tornar-se não só muito mais divertido mas muito menos embaraçoso do que se me dissesse galanteios."

E, agarrando esta ocasião de dissimular um pequeno mal estar pudico que a despeito da sua atitude resoluta, ela sentia, assim que o rapaz a olhava ou lhe falava mais ternamente, continuou sem se deixar intimidar pela sua expressão autoritária e pelo acentuado franzir de sobrancelhas.

- Compreende muito bem o que eu quero dizer - respondeu, pondo-lhe bem diante dos olhos o seu olhar límpido, claro e franco. - No outro dia, depois de me ter deixado no carro, o senhor conversou com um cavalheiro de chapéu castanho, provavelmente para lhe pedir que me seguisse a fim de lhe dar a minha direcção. E foi ele quem agora lhe acabou de indicar o caminho que eu tomei.

- Mas...

- E de resto, se não tivesse a minha direcção, como podia ter-me mandado flores? Não alegue que foi Henriqueta Bonnaux quem o informou. Conheço-a muito bem para o poder acreditar. Não me vá dizer também que descobriu sozinho a minha morada. Isso ter-lhe-ia dado muito trabalho! Nessa corrida teria sujado os sapatos de polimento, manchado as luvas, desfeito o vinco das calças, molhado o colarinho e torcido o nó da gravata. E, ainda por cima, nada teria descoberto, porque não me parece nem muito esperto nem muito ágil para esse género de pesquisas. Mas não o felicito por ter achado mais cómodo e menos fatigante ter lançado na minha pista qualquer amigo complacente.

Lolette tinha dito isto de um fôlego, com alegria, o rosto animado, o narizinho arrebitado, o olhar malicioso sob as pálpebras garridamente semi-cerradas. Um fino sorriso acabou por a tornar irresistível.

O sr. Jorge perdeu logo toda a rigidez, vencido, encantado, e confessou:

- É verdade; usei desse meio. Não me julgue muito severamente M.lle Violeta.

Violeta não tinha a mínima intenção de ser severa, e aquela confissão desarmou-a.

Caminhavam lado a lado, à beira da água. Ela sentia-se alegre por ele se lembrar do seu nome, alegre principalmente por ouvir esse nome pronunciado pela sua voz grave. No entanto, respondeu:

- Devia aconselhar o seu amigo, o homem complacente que segue, por sua conta, as senhoras nos seus passeios e lhes faz sinal para tomar o seu lugar na ocasião própria, a escolher um outro chapéu. Aquela cor indica francamente o seu emprego.

Violeta dizia isto sem grande reflexão, vivamente, quase loucamente, para afastar a perturbação do diálogo. Ela própria sentia que esta brincadeira não era de bom gosto, mas, muito comovida para encontrar melhor, usava desta ironia fácil para retardar, ou mesmo para se esquivar, se possível fosse, à conversa sentimental que receava e ainda a perturbaria mais.

- Aquele homem não é meu amigo - rectificou o sr. Jorge com altivez e desdém. - É um subalterno, um empregado, se prefere: faz os meus recados.

- Tem feito muitos no género do de ontem e de hoje? - Violeta tinha atirado isto mais estouvadamente ainda. Compreendeu logo que a sua pergunta podia ser interpretada como curiosidade ciumenta e quis atenuar-lhe o efeito, mas era tarde.

Agarrando a ocasião de se esquivar ao diálogo trocista, em que não tinha a réplica tão viva como Lolette, o sr. Jorge que desejava uma conversa séria apressou-se a responder:

- Asseguro-lhe que seguir ou mandar seguir senhoras ou meninas na intenção de saber as suas moradas, foi até ao nosso encontro de ontem, o menor dos meus cuidados. A sua insinuação fere-me e humilha-me. Seria feliz, sim, muito feliz se a conhecesse mais, mas decerto só para lhe dar motivo para poder ter melhor impressão a meu respeito. Posso garantir-lhe, sem a mínima fatuidade, que tenho um feitio muito mais sério e ao mesmo tempo o coração muito mais jovem e ingénuo do que seria natural num homem da minha idade. Sou, quando se trata de amor e de sentimentalidade, de uma ingenuidade que pode dar vontade de rir. se permitisse que alguém se risse de mim. As minhas ideias e os meus gostos ficaram muito diferentes dos das outras pessoas do mundo a que fui chamado a viver e onde deverei viver. Ainda criança, já sonhava com uma vida independente, não isenta de deveres, mas liberta de todos os preconceitos mesquinhos. E nessa existência, mesmo quando me fiz homem, não pode conceber as lutas familiares que tive de travar, os obstáculos que tive de remover, os sacrifícios que tive de fazer para finalmente conseguir o que desejava! Não creio que a independência tenha custado, moral, e materialmente, mais caro a nenhum homem.

O seu olhar pensativo parecia procurar muito longe, para além do lago, para além do bosque, para além das colinas, esse lá em baixo de além-mar que era a sua pátria distante, prestigiosa, que a imaginação de Lolette evocava confusamente num mistério de brumas. E assim melancólico, mais pálido, ligeiramente inclinado sob o peso dos seus pensamentos e dos seus sonhos, pesados demais para uma cabeça tão jovem, ele agradava infinitamente à rapariga.

Ela teve de reagir contra o enternecimento comunicativo desta confidencia queixosa, cujo tom altivo velava uma tristeza profunda, e sentia que o rapaz se mortificaria se inspirasse a mínima compaixão. Por isso não achou nada para dizer, impressionada pelo sentido dessas palavras.

Ele continuou com voz mais cortante, mais imperiosa, à medida que a confissão se tornava mais sincera.

- Ignorei sempre isso a que se chama a vida íntima, a vida de família. Minha mãe foi sempre uma estranha para mim, pouco a conheço... Ao meu irmão mais velho, amo-o e respeito-o. Mas também dele, pouco sei. e tenho medo de saber mais! Sim, tenho medo de, aprofundando mais o seu carácter, o amar e respeitar menos! À minha volta, a minha família, sendo rica, só me rodeou de criados, criadas de quarto e criados de salão! Os seus lábios aduladores incitavam-me, em lisonjas servis, à iniciação de todos os pecados. Ampliando as tentações que as suas histórias complacentes detalhavam, esses criados espreitavam o menor clarão que se acendesse/nos meus olhos de criança. Contavam antecipadamente com o seu lucro. Senti desagrado e ódio por esses que me rodeavam, desprezei-os e fugi do seu meio perverso. E, longe da minha família, despojado da minha fortuna, pobre, mas tomado um homem comum aos outros, curei-me do meu desdém pela humanidade.

Calou-se um instante e exalou, num suspiro, o excesso das dolorosas efusões que, no entanto, dominava energicamente.

- Durante muito tempo desconfiado, defendi-me de qualquer ternura, até de toda a amizade de mulher. Queria ter uma alma impassível na qual aquilo que o universo apresentasse a meus olhos só despertasse ideias e nunca sentimentos. Sonhei esse sonho insensato de aniquilar o coração, de viver toda a vida apenas pela inteligência. Ainda que, consciente da inanidade de tal utopia, persisti por orgulho até ao instante.

Aqui, o rapaz deteve-se como se a confissão custasse muito ao seu orgulho e depois terminou de um fôlego:

- Até ao momento em que a encontrei em casa de Henriqueta Bonnaux!

Ao pé dessa rapariga, cuja presença o envolvia numa indefinível languidez, ele já não podia lutar contra si mesmo, A inevitável confissão veio-lhe aos lábios.

Resoluto agora, desviou os olhos das colinas azuladas, dos bosques, das águas do lago, de tudo quanto lhe evocava as suas Grandes Ilhas longínquas. Só queria contemplar Violeta e, nesse simples movimento de cabeça, parecia afastar as vagas imagens de uma miragem enganadora, para melhor ver toda a vida frente a frente. Fixou imperiosamente a rapariga. Uma extraordinária força de vontade tornou o seu olhar muito duro, depois, adoçou-o sensivelmente.

- Desde que a vi - continuou - senti jorrar do fundo do meu coração, há muito tempo fechado, as fontes vivas de uma ternura ignorada. Senti que os meus dolorosos esforços para atingir a impassibilidade não eram mais do que o sonho vão de um adolescente presunçoso. Compreendi que todo o meu mal vinha de não amar e que nada valia a felicidade de lhe pertencer inteiramente, simplesmente, profundamente.

Violeta teve de se dominar para conservar no rosto uma expressão de alegre ironia:

- "Se me enterneço - raciocinava ela - se lhe respondo no mesmo tom sentimental, estou perdida! Ele fica, no mais forte da sua expansão, ainda senhor de si, mas eu, à mínima palavra de ternura que me saísse dos lábios, já não saberia o que era feito de mim. Por isso, enquanto puder defender-me, defender-me-ei! Quero uma ternura certa, sincera e durável. Ora, o melhor meio de me assegurar de que a afeição do sr. Jorge será certa, sincera e durável, não é justamente sujeitá-la à prova do tempo?"

Mais calma com estas reflexões, M.lle Miroy replicou alegremente:

- Fala a linguagem dos dramas e dos romances, sr. Jorge, e eu sou suficientemente romântica e romanesca para gostar desse estilo. Mas, por muito nova e inexperiente que seja, tenho, no entanto, observado uma grande diferença entre o que leio nos livros e o que é a vida real.

- A vida não oferece com frequência mil circunstâncias mais inverosíveis do que todas as que um escritor possa conceber?

- Admito de bom grado que o seu caso não seja isento de mistério. Mas já que esta primeira página da nossa mútua existência nos encanta a ambos, não a viremos muito depressa... Voltemos a lê-la, tornando, se o consentir, a certos pequenos detalhes que nos escaparam na primeira leitura.

Nesse momento, o rapaz observava a linda rapariga de claro rosto, e fez o mesmo reparo que Henriqueta Bonnaux:

- "Ela não fala só com a voz - constatou - mas com todas as feições do seu delicioso rosto. E, na expressão dos sentimentos, continua deliciosa! As suas pupilas langorosas atenuam-lhe a malícia do olhar. Quando o nariz desafia, o seu queixo treme de enternecimento e se as finas sobrancelhas se franzem de cólera, os seus lábios adoráveis e as risonhas covinhas do rosto pedem perdão."

E sonhando sempre assim, Jorge aceitou maquinalmente a proposta.

- Pois bem, consinto: vamos reler a primeira página do nosso romance. Que pormenores do encontro lhe escaparam?

- Primeiro que tudo, o seu nome de família.

Aborrecido com uma pergunta que não previa, ou que, pelo menos, não previa em primeiro lugar, não respondeu imediatamente.

- Ser-me-ia muito fácil enganá-la e dizer-lhe o primeiro nome que me viesse à cabeça, como sendo o meu, - disse ele, por fim. - Mas esse ludibrio, que não teria meio algum de controlar o que, para o meu caso pessoal nada tinha de culpável, repugna-me. Por isso prefiro dizer-lhe francamente que quero ficar para si, ainda durante algum tempo, o sr. Jorge e apenas o sr. Jorge. Tenho mil boas razões para guardar silêncio a esse respeito.

- E eu - disse Violeta, não sem visível desapontamento - tenho mil outras boas razões para desejar o contrário. Não viremos hoje a página do nosso livro. Fiquemos por aqui, se assim o deseja. Mal iniciada no começo da sua história, corro o risco de não compreender claramente as peripécias seguintes. Depois, quando um romance é assim tão confuso, o desfecho raramente satisfaz o leitor...

- Ser-me-á provavelmente possível responder a qualquer outra pergunta... - disse o rapaz, visivelmente desolado pelo rumo que a conversa levava.

- Desta primeira pergunta derivam todas as outras que tinha a fazer - declarou Lolette, decidida.

- Se pudesse compreender - respondeu o rapaz, em tom frio, mas com uma prece ardente a iluminar-lhe os olhos - quanto a sua obstinação é cruel neste momento, havia de a lamentar.

- Não. Creio que não lamentaria. Em todo o caso, sinto-me feliz por ter uma consciência mais precisa da minha crueldade.

- Diz amar o romanesco, e recua diante do primeiro mistério que se lhe apresenta!

- É que há mistério e mistério. Adoro os romances, mas não sinto a mínima preferência pelos folhetins... E a nossa aventura, é muito menos um romance do que um folhetim. Ora pense...

Esta exclamação escapou-lhe no momento em que se dava um incidente bastante singular.

Os dois passeantes haviam afrouxado o passo, tinham mesmo acabado por parar afim de poderem conversar mais à vontade. Atrás deles, um ruído de folhagem chamou a atenção de Violeta. Por mais depressa que o curioso se retirasse, a rapariga pôde verificar que tinha um chapéu castanho. Não pôde deixar de notar:

- Decididamente, sr. Jorge, o seu amigo leva a vigilância até à indiscrição. Encarregado por si de seguir as pessoas que lhe agradam, estava também encarregado de escutar e de se recordar em seu lugar das coisas que lhe dizem? Não me sinto nada disposta a fazer-lhe confidencias, nem mesmo a recebê-las. Se quiser podemos despedir-nos aqui mesmo.

- É má, M.lle Lolette.

- Diga prudente.

- Dê-me apenas o meio de a ver mais vezes, permita-me ir a sua casa e o desagradável encontro com o coco castanho, não se repetirá.

- Não recebo pessoas de quem não sei o nome.

- Ele bateu violentamente com o pé na terra e a sua mão crispou-se no castão da bengala:

- Peço-lhe! não se afaste!... Oh! não, não se afaste depois dessa frase sem esperança. Acabemos o nosso passeio nesta pequena alameda sombreada. Tenho tantas coisas a dizer-lhe!

- E tantas outras a calar!

Lolette não teve coragem de pôr imediatamente a ameaça em execução. Deram ainda alguns passos e chegaram ao fim da alameda que, sob árvores copadas, se afastava do lago e subia até à avenida onde passavam os carros.

- Deixo-o aqui - disse desta vez Violeta, num tom firme e decidido.

- Diga-me ao menos como e quando a verei?

- Ela não respondeu.

Ele pegou-lhe na mão e, embora tivesse pegado nela meigamente, ela retirou-lha e afastou-se um pouco. Ele pareceu tão profundamente comovido com esse movimento receoso da rapariga também comovida, que ela esteve a ponto de se aproximar, arrependida do seu brusco recuo. Mas viu nesse instante e muito mais distintamente que da primeira vez, dois homens meio ocultos atrás dos ramos. Um deles, não vendo já o sr. Jorge ao pé da rapariga, avançou a cabeça, inquieto.

M.lle Miroy não reconheceu em nenhum desses homens aquele que tinha notado quando saiu da casa da Henriqueta Bonnaux. E esses dois desconhecidos, traziam também chapéus castanhos.

- "Na verdade - pensou a rapariga - vivo em plena intriga de melodrama. O sr. Jorge pertencerá realmente a qualquer bando."

Este pensamento imobilizou-a. O rapaz tinha-se a aproximado e viu também os dois homens que o espreitavam.

- É insuportável! - exclamou, colérico, - Nunca vi ninguém mais desastrado do que esses imbecis!

Esta exclamação, que confessava uma espécie de cumplicidade, acabou por desconcertar Violeta. Resolveu voltar para o carro o mais depressa possível. A passos rápidos mas regulares, sem se voltar uma única vez, dirigiu-se para a avenida.

Sentada perto do trem, Felícia esperava, aborrecidíssima.

M.lle Miroy encontrou-a de muito mau humor. O homenzinho gordo que ela tinha considerado tão distinto e que lhe agradava, tinha-a feito dizer quase tudo quanto desejava saber, e depois acabara com a conversa. Ao sinal de três outros colegas, igualmente de chapéus castanhos, levantara-se bruscamente e não tivera para com a sua interlocutora uma só palavra de desculpa. Felícia estava tão despeitada, que acolheu a jovem amiga com violentas censuras. Foi só quando o trem chegou à porta do Bosque, que Lolette, até então absorta nas suas meditações, deu ouvidos ao mau humor de Felícia.

- Não tenho grandes remorsos de te ter feito esperar; só tinhas que ir ao meu encontro, se quisesses. Mas parecias unicamente preocupada em não perder de vista o homem das calças pardas...

- De quem estás a falar?

- Do homem que te seguiu...

- Ah! esse homem... - disse Mouyard, com desprezo e afectando - recordar-se. - Mas quem te disse que ele me seguiu a mim e não a ti? Cedo-te a preferência.

- Ah! - exclamou Violeta, esquecendo a cena do lago para se divertir francamente com esta mudança de atitude. - Mas não reivindicaste a honra de ser seguida, com a mais viva eloquência?

- Por mera brincadeira. Não era nada o meu género. É uma criatura vulgar, pesadona, e a prova de que o homem do coco só se preocupa contigo é que durante os minutos que conversámos, só me falou de ti, só me fez perguntas a teu respeito.

- Como? Pois tu falaste-lhe? - exclamou Violeta, agarrando no ar esta desastrada confissão.

- Arma em envergonhada! Sabes por acaso o nome do homem que te dizia galanteios ao pé do lago? Imaginas que não te vi de longe? Adivinhei logo que era o que encontraste em casa de Henriqueta Bonnaux. Marcaste-lhe este encontro no Bosque e trouxeste-me, não direi como chaperon (a minha mocidade não tornaria isso verosímil) mas para teres um álibi. Ah! tu és esperta, mas eu percebo essas pequenas habilidades.

- Tens uma imaginação!

- Ah! Agora ris! Tornas-te incoerente!

E Lolette ria cada vez mais. A outra disse, maldosamente

- Foram os galanteios do teu polícia que te deram tanta alegria?

Violeta ficou primeiro espantada com a palavra, depois, aborrecida:

- Polícia? És estúpida. Se fosse polícia tê-lo-ia encontrado em casa de M.me Bonnaux? Teria ele tempo para palestrar comigo?

- Porque não? Os polícias são homens como os outros e qual é o homem que não põe esses negociozinhos do coração antes de tudo? Aquele que falou comigo, aquele com quem falaste e os outros que se lhes juntaram, devem ser todos polícias do Bosque. Vendo que o colega se demorava contigo, os outros, de conivência e como bons camaradas, foram naturalmente avisá-lo da aproximação de algum chefe ou de algum inspector. Isso deve ter-vos incomodado.

Violeta calou-se, desiludida e consternada, pois à primeira vista, a coisa parecia horrível. Felícia, sempre maldosa, continuou:

- E o que explica a insistência do sr. Jorge junto de ti...

- Vamos, diz lá. Não me zango por saber o que explica essa insistência.

- É a coisa mais natural. Ele espera ganhar um prémio, aliciando-te. A polícia deseja, e é compreensível, o concurso de raparigas... na... tua situação, quero dizer, destinadas a conviver um pouco em todas as sociedades. Essas raparigas tornam-se, mais tarde, preciosas auxiliares de informação.

Violeta mandou parar bruscamente o carro e, muito pálida, querendo dominar a sua cólera, ordenou:

- Desce! Desce imediatamente!

Vendo que, arrastada pela sua língua venenosa tinha feito zangar a amiga, Felícia, humilhou-se, um pouco por arrependimento, um pouco por interesse:

- Não te quis ofender... estava a brincar. E tu que, ordinariamente compreendes tão bem os gracejos.

- Mas há brincadeiras a que não acho graça.

- Não sejas criança! Duas velhas camaradas como nós, hão-de zangar-se por tais ninharias? Primeiro, seria uma crueldade abandonares-me; és a minha única amiga. E fazeres-me apear tão longe de minha casa, seria ainda maior maldade! Sabes muito bem que não tenho todos os dias o dinheiro para o eléctrico. Doem-me tanto os pés que, se tiver que ir a pé até casa, choro com certeza. Não me obrigues a descer, por caridade. Eu sou infeliz, bem o sabes... Ah! lá estão os teus olhos a tornarem-se amáveis!

E, muito alto, dirigindo-se ao cocheiro, Felícia ordenou:

- Siga, cocheiro! Quem lhe mandou parar?

Violeta era estruturalmente boa. Bastou-lhe pensar que Mouyard podia ter dito a verdade para se enternecer e perdoar. Mas repreendeu-a docemente:

- Fizeste-me muito mal.

- Que queres? - replicou Felícia, menos humilde depois que o carro passou dos Campos-Elísios para as Tulherias. - Às vezes sou esquisita; naturalmente é por causa dos meus aborrecimentos. As lições fatigam-me, a vida é dura... tudo isto me torna má. E depois, confesso-te, procuro em vão compreender o meu próprio carácter. Há momentos em que, sem perceber porquê, me julgo verdadeiramente execrável.

- Aceito a confissão! - disse Lolette, divertida com esta espécie de franqueza.

Assim chegaram à rua Royale e, conversando em bom entendimento. Em frente de casa, Violeta deu a Felícia o custo do carro e um pouco mais para que pudesse ir até sua casa. Certa de não ter de andar, agora que tinha dinheiro para o regresso, Felícia julgou que as suas desculpas tinham sido excessivas. Por isso vingou-se com uma última frase que reanimou a inquietação de M.lle Miroy:

- Quanto mais penso, menos compreendo a cena que me fizeste. Foi o teu aborrecimento com o polícia que te fez zangar tão facilmente?

 

No dia seguinte, Violeta, sentada na sua salinha toda perfumada, repetia maquinalmente:

- "ele, um polícia? É loucura!... E, no entanto, como explicar as suas relações com os chapéus castanhos? E a sua exclamação: "Desastrados! Imbecis!" pode realmente ser a expressão de impaciência e de cólera de um homem subitamente chamado a funções aborrecidas que tinha esquecido por momentos ao pé de mim! Sim, polícia, isso explica muitas coisas e explicaria mesmo tudo... mas ele é juiz de paz ou talvez um dos secretários do prefeito da polícia!"

A esta ideia Lolette fez um gesto contrariado:

- "Meu Deus! quem sou eu para desprezar um juiz de paz! Que rapariga, na minha situação, não se sentiria feliz casando com um rapaz assim, que seja ou não da prefeitura da polícia? É, de qualquer modo, uma profissão honrosa... para a qual é preciso ter coragem e inteligência. Essa gente presta grandes serviços, devemos-lhe a nossa segurança. Sim, certamente."

A despeito destes raciocínios, Violeta não podia dissimular a sua repugnância.

- "Se ele fosse um polícia, seria desolador. Não, o sr. Jorge não pode ser isso. Henriqueta Bonnaux apresentou-mo como sendo estrangeiro. O pouco que ele me disse a respeito da família, da mãe, está em completo desacordo com essa ridícula suposição."

Lolette reflectia e estava já de chapéu na cabeça, pronta para sair, quando Solange lhe entregou um cartão. A rapariga mandou-o abrir e os olhos percorreram-no até à assinatura: Henriqueta Bonnaux.

- Que terá ela a dizer-me? - perguntou a si própria M.lle Miroy.

E leu:

Querida filha:

"Garante-me que nada justifica as minhas inquietações de ante-ontem. Tenho razões para crer que o sr. Jorge, a despeito de tudo quanto lhe disse, tentará tornar a ver-te. Espero que, prevenida por mim, uses da tua prudência e do teu critério habitual para evitares qualquer novo encontro. Insisto, não apenas na inconveniência, mas no real perigo que seria para ti entrar em relações com esse rapaz. Todos os seus verdadeiros amigos deploraram a resolução que ele tomou de viver longe da sua família e do seu país. Encorajá-lo a lutar contra a vontade da mãe que deseja apaixonadamente o seu regresso às Grandes Ilhas, fazer voluntária, ou mesmo involuntariamente, seja o que for para o reter em França, seria não somente arruinar o futuro do sr. Jorge, mas expô-lo ainda aos piores inconvenientes.

"Na esperança de que sigas documente os meus conselhos, abraça-te.

Henriqueta Bonnaux"

Violeta ficou molestada:

- "Na verdade, que tem M.me Bonnaux? Que tem Felícia? Esta, por ciúme, chamou-lhe polícia. Aquela, por amizade, denuncia-o como temível. Uma e outra trabalham tão abertamente para nos separar que só isto nos espicaçaria o desejo de nos encontrarmos. Sou bastante crescida para saber conduzir-me e não tenho necessidade de conselhos para continuar honesta."

Afastando as suas preocupações, Lolette ia levantar-se para sair, quando tocaram.

Segundos depois, a ama entrou com um cartão, o cartão do sr. Jorge.

Ainda debaixo da impressão da carta de M.me Bonnaux, a rapariga esteve quase a negar-se; depois, cedendo ao seu desejo, deu a si própria esta excelente razão:

- "Seria injusto fazer recair sobre ele o desagrado que me causou a carta de M.me Bonnaux. Se não o receber, será ele o castigado e não o merece."

E a velha Solange recebeu ordem de introduzir o visitante na sala.

- Para que veio? - perguntou Violeta, numa doce censura. - Não Lho tinha proibido?

- É verdade. Mas esta proibição pareceu-me tão arbitrária! Juro-lhe, M.lle Violeta, que não tenho qualquer má intenção. pelo contrário.

- Juro-lhe, além disso, que sou uma pessoa que pode receber.

- Hum! Isso não é a opinião de toda a gente. Uma das minhas amigas...

- M.me Bonnaux?

- Não, M.me Bonnaux, não. Outra. Nem pode calcular que profissão lhe atribui.

- Qual?

- Polícia!

M.lle Miroy, ao dizer esta palavra, olhava o rapaz bem nos olhos. Ele, que ria em silêncio, desatou à gargalhada.

- E acreditou-a?

- Se acreditasse, tinha-lhe fechado a porta.

- Fechava-ma realmente? Deixaria de lhe agradar pelo simples facto de ser polícia?

- Agradava-me da mesma forma... apenas lhe pediria que mudasse de profissão.

Foi então que o rapaz notou que Violeta estava de chapéu na cabeça.

- Impeço-a de sair?

- Sairei daqui a bocado - respondeu, tirando o chapéu. - E já que forçou a entrada, o melhor é explicarmo-nos imediatamente.

- Compreendo bem que o mistério de que me rodeio deve ser irritante para si - disse o rapaz, com a sua voz grave e pausada. - No entanto, Lolette, suplico-lhe, e sabe que a súplica não está nos meus hábitos, pois suplico-lhe que se conforme ainda durante algum tempo com este mistério. Não poderá amar-me um pouco por mim mesmo?

- Mas isso é o que eu faço, sr. Jorge, só isso! - exclamou a rapariga. - Disseram-me que é polícia e isso não me impediu de passear ao seu lado, no Bosque, durante uma hora. Escreveram-me declarando-o perigoso e abro-lhe a porta. Ontem, tudo levava a crer que o senhor era o chefe de um bando de "bufos" e hoje digo-lhe: faça favor de se sentar. Se isto não é agradar-me por si só, não sei na verdade que prova lhe deva dar!

- Ah! Lolette, se pudesse saber como essa confidencia e essa simpatia, a despeito das piores insinuações, me causam uma alegria profunda e que embriaguez me enche a alma ao pensar que me quer por mim mesmo!

- Eu não falei de amar, mas de agradar, nem mais nem menos. Contudo, para se sentir tão alegre com essa confissão é preciso que o que tem de falso não seja grande coisa.

- Oh! não é tão mau como imagina - disse ele, sorrindo. - De resto, logo que eu seja bastante feliz para lhe fazer partilhar os meus sentimentos... espero que me será permitido revelar-lhe quem sou. Escrevi a minha mãe; pode ser que ela me dispense do segredo que lhe prometi.

- Sua mãe exige esse segredo?

- Foi só com essa condição que consentiu em que eu saísse do meu país e vivesse à minha vontade.

- Está então na inteira dependência de sua mãe?

- - Na sua inteira dependência - suspirou o rapaz. - Sem ela, nada posso, nada sou.

Violeta, depois de uma reflexão, perguntou:

- Só vive da pensão que sua mãe lhe dá?

Ele respondeu depois de uma espécie de hesitação:

- Tudo quanto tenho desde a minha saída das Grandes Ilhas, me vem dela. Minha mãe reprova a minha vida de independência, os meus desejos de viajar e os meus gostos artísticos. É esta a única mágoa da minha vida, pois, saindo do meu país, não magoei nenhum coração de mulher, não deixei, que eu saiba, nenhuma saudade de amor.

Estas palavras foram agradáveis de ouvir, a Lolette.

- Um conselho de família, para me castigar do meu gosto pelas aventuras, tomou conta dos meus bens, para, por todos os meios, até pela fome, me obrigar a voltar às Grandes Ilhas.

- E seu irmão?

- Meu irmão Harold é o mais velho. Pessoalmente, como lhe disse, ele é rico e será mais rico ainda quando se tornar o chefe da família. Ao pé dele sou apenas um mendigo. O que eu gasto há um ano em Paris, não chega para as suas despesas particulares de um dia.

- Pobre sr. Jorge! Lá, tinha uma vida mais fácil e luxuosa?

- Incomparavelmente.

- E priva-se dela?

- Sim - disse o rapaz, - de resto bastante inconscientemente privo-me de uma infinidade de coisas.

Fez-se um silêncio, depois Violeta disse:

- Pois bem, precisa de voltar para as Grandes Ilhas.

- Estive realmente quase a submeter-me. Cheguei mesmo a começar uma carta dirigida a minha mãe. Tinha ido fazer as minhas despedidas a M.me Bonnaux na manhã em que a encontrei lá.

- E então?

- Então, vi-a e já não quero partir.

- E a carta?

- Rasguei-a nessa mesma noite.

- E não o lamentará?

- De forma alguma. Agora estou resolvido a não sair de Paris.

- Durante quanto tempo?

- Durante o tempo que aqui viver, Lolette.

- É loucura, não pode sacrificar assim, por causa do capricho de uma hora, os seus afectos de família, a sua fortuna, o seu futuro.

- Ah! Lolette, se soubesse quantas coisas mais sacrifico e com que coração vazio de pezar e cheio de esperanças faço esses sacrifícios!

- Precisa de voltar a Bruhm, sr. Jorge. Ah! se eu tivesse qualquer meio de o fazer partir!

- Tem-no, Lolette. O meio é simples: consentir em partir comigo.

Violeta não respondeu. Achava que a conversa tomava um caminho escabroso. Levantou-se para voltar a pôr o chapéu. De pé, em frente do espelho, espetava um grande alfinete nos cabelos. À última frase do rapaz corou e, voltou-se tão bruscamente que torceu o alfinete.

- Ah! o senhor imagina que eu sou mulher para partir assim, de um dia para o outro, com um homem, e correr com ele as cidades da Europa?

- Amá-la-ei tanto, tanto, que me há-de amar um pouco! Saberei torná-la tão feliz que, por gratidão pelo menos, me dará também um pouco de felicidade. Não se moleste com a minha confissão, Lolette: asseguro-lhe, juro-lhe, que o sentimento que lhe dedico é puro... e que sempre a amarei fielmente.

Ele suplicava e, no entanto, havia mais autoridade do que súplica na sua voz. Os seus olhos azuis pareciam mais mandar do que pedir. E, aproximando-se dela, continuava de pé, sem juntar as mãos, numa atitude orgulhosa, quase altiva, como se, confuso por semelhante fraqueza igual à de todos os homens, tentasse ainda salvaguardar o seu orgulho pela altivez da sua atitude. E agradou infinitamente a Violeta que lhe falassem de amor assim, sem lhe cobrirem as mãos de beijos langorosos. Ambos estavam imóveis. O Sr. Jorge, consciente da perturbação e da emoção que a rapariga sentia, julgava indigno aumentar essa perturbação ou aproveitar essa emoção para lhe arrancar uma confissão ou mesmo obter uma promessa. Violeta compreendeu-o e achou isso leal e cavalheiresco. No entanto, ela não ousava falar. Não ousava mesmo tornar a olhar para o rapaz. Finalmente, para disfarçar, procurava com os dedos nervosos, endireitar o prego antes de o voltar a espetar no chapéu. e, subitamente, o prego partiu-se ao meio. A ponta espetou-se-lhe na mão e a cabeça caiu sobre o tapete.

Aproveitando esta diversão, M.lle Miroy soltou um gritinho de surpresa, em que aliviou uma grande opressão.

- Ah! como sou desastrada! - exclamou. - Tinha este prego há tanto tempo... e agora parti-o. Que pena!

O rapaz baixou-se, e apanhou a cabeça do prego.

- A culpa foi minha - disse. - Eu é que sou o desastrado. Já que gosta tanto dele, se me permite.

Prevendo a oferta, pensando no que o sr. Jorge lhe tinha dito sobre as suas dificuldades financeiras, Violeta interrompeu-o.

- O objecto não vale nada - disse vivamente. - É apenas uma haste de cobre com uma porção de vidrinhos, formando as asas da borboleta. A perda não é grande; é mais barato comprar outro novo do que concertar este.

- Pode-se consertar - disse o rapaz unindo as duas partes do prego. - Consente, já que fui eu o causador do estrago, que trate da reparação?

E, sem esperar o consentimento de M.lle Miroy, espetou o alfinete no lenço e meteu-o na algibeira do sobretudo. Depois, sério, continuou:

- Custa-me muito vê-la assim emocionada com as minhas palavras. No entanto, não me arrependo, pois a sua impressionabilidade prova-me toda a ingenuidade e delicadeza do seu coração. Consideraria uma falta de delicadeza da minha parte insistir mais, esta tarde. No entanto, ouso esperar que se lembrará das minhas palavras, para reflectir e dar-me uma resposta. Por grande que seja a minha impaciência, esperarei o tempo que entender.

Violeta, embora muito jovem, sabia suficientemente reflectir sobre a vida e o amor para saber de que forma queria viver e como queria ser amada.

- Compreendo o motivo que o faz adiar a minha resposta. É da sua parte um escrúpulo que muito lhe agradeço. Mas eu sou também escrupulosa e receio, confesso-lhe sinceramente - que se nos continuarmos a ver, o senhor me agrade mais dia a dia. E também me seria difícil não procurar eu própria agradar-lhe cada vez mais. Por isso prefiro dizer-lhe já hoje, afim de evitar mal entendidos entre nós, que, tendo sido uma rapariga honesta, quero continuar a ser uma mulher honesta. Para mim, há só um meio aceitável de amar e ser amada: o casamento.

Alvoroçado por estas palavras decisivas, o rapaz empalideceu como se visse surgir diante de si qualquer intransponível obstáculo ou entreabrir-se qualquer profundo abismo. Dominando-se rapidamente, não soube, no entanto, dissimular um sorriso triste e perguntou numa voz onde vibrava uma surda angústia:

- É inabalável a sua resolução?

- Sim, a minha resolução é inabalável.

- Só sinto mais estima por si, apesar da dor que me causa a sua decisão.

E continuou como para melhor se convencer:

- Ainda a estimo mais.

- Mas ama-me menos! - disse ela por sua vez, com um fraco sorriso e dolorosamente impressionada pela palidez, fisionomia grave e sobrolho franzido do rapaz.

- Oh não, Lolette, não julgue que a amarei menos. Amo-a mais e melhor... somente.

- Somente?

- O casamento será difícil, extremamente difícil.

- Eu sou uma rapariga com quem se pode casar - disse ela, doce e ternamente, com um sorriso que a tornava mais deliciosa ainda.

- Oh eu sei - replicou Jorge, vivamente. - Sei que qualquer homem devia sentir-se orgulhoso em lhe dar o seu nome. Oh! se a minha vontade bastasse para me assegurar a felicidade!

- O senhor é maior. Que vontade pode haver mais forte do que a sua?

- Oh! tantas outras, tantas outras... - suspirou ele, num regresso de tristeza. - Prevejo inúmeras oposições...

- Eu casaria consigo sem saber o seu nome de família, sem me importar com a sua fortuna, sem nada querer saber do seu passado. E o senhor que pretende amar-me muito mais, hesita em desposar uma mulher que não tem um só mistério na vida!

- Ah! Violeta, não me julgue mal! Se as aparências me condenam, não creia nas aparências. Amo-a, adoro-a! O que acaba de me dizer, essa promessa de casar comigo sem fortuna, sem nome de família, sem nada perguntar do meu passado...

- Sim, confiante no seu amor leal, faço essa promessa.

- E eu aceito-a - disse o rapaz, num grande entusiasmo de alegria - pois ela pode bem ajudar a realização das nossas esperanças. O casamento há-de ser difícil; mas, graças à sua promessa, não é impossível. A sua confiança em mim pode aplanar muitos obstáculos e, pelo meu lado, empregarei todo o meu ardor para vencer as vontades mais poderosas do que a minha.

- Tudo isso levará muito tempo?

- Não; pouco, se eu proceder habilmente e souber defender a minha causa com eloquência. Tentarei interessar meu irmão pelo nosso amor. Talvez ele obtenha o consentimento de minha mãe.

Violeta sacudiu a cabeça num assentimento e também para se assegurar de que o chapéu estava bem seguro. O rapaz compreendeu que devia retirar-se. M.lle Miroy estendeu-lhe a mão e, com uma voz alegre onde cantavam todas as suas esperanças, disse:

- Adeus, meu querido Filipe.

Jorge apertou-lhe ternamente a mão e respondeu:

- Até breve, minha linda noiva.

E esta palavra, que ele lhe dizia pela primeira vez, fez bater docemente o coração de Violeta.

 

Uma semana depois, a intimidade tornou-se mais estreita, mais encantadora.

Solange resmungou com as primeiras visitas mas simplesmente para parecer um pouco avozinha. O Jovem estrangeiro, com as suas maneiras cavalheirescas, inspirou-lhe de repente um afecto, mesclado de admiração. Depois, a ama tinha um fraco... - oh! bem inocente, pobre velha! - pelos bonitos rapazes!

Violeta, depois da promessa de nada repetir, confiou-lhe o papel de confidente e isso lisonjeou a excelente mulher. A rapariga, de resto, cortava qualquer censura da sua velha criada com esta simples frase justificativa: "É o meu noivo!" A esta exclamação mágica, a ama só falava da boda, de bailes e de festas. Depois, como as visitas do sr. Jorge, embora diárias, fossem curtas, como os jovens nunca se fechavam, como Solange podia entrar na sala a todo o momento sem parecer incomodá-los na sua terna conversa, a boa mulher concluiu que a sua garota tinha encontrado um noivo como devia ser.

M.lle Miroy escondia mal a sua alegria. A pequena casa parecia um viveiro de pássaros onde ela, passando de um aposento para o outro, sentando-se ora numa cadeira ora num canapé, saltitava à maneira de uma ave, de ramo para ramo, sussurrando a sua felicidade, de manhã à noite.

A rapariga ficava em casa com frequência, com receio de perder a visita de Jorge. Quando Jorge não vinha, ela não se inquietava, imaginava que ele se ocupava activamente em aplanar as famosas dificuldades, os misteriosos obstáculos.

Uma tarde em que Violeta esperava Felícia para sair com ela, o rapaz chegou.

Depois das primeiras efusões, ele apresentou-lhe, embrulhado num papel de seda, o prego do chapéu que a emoção de uma confissão mútua, tinha feito quebrar.

- Ah! Pensou nisso - admirou-se Violeta. - É muito amável da sua parte.

Ela reconheceu a borboleta multicor e o concerto estava tão bem feito que não se conhecia a soldadura.

- Devo-lhe uma moeda de prata - disse Lolette - pois sou supersticiosa. Como sabe, entre noivos, qualquer presente de um objecto cortante ou que pique, quebra a afeição quando não se dá qualquer pequena moeda. vou dar-lhe um velho sou de Luiz xvi que me deixou a minha avó. Guarde-o como lembrança minha.

Depois de ter dado a moedazita, Lolette espetou o prego no chapéu. Nesse momento, o sr. Jorge entregou-lhe um lindo estojo com as suas iniciais.

- Aqui tem o seu anel de noivado. Oh! não fui pródigo, é o mais simples possível!

Violeta abriu o estojo e viu um anel de prata com uma pedra azul.

Sentiu satisfação ao verificar a modéstia do presente. Depois de Jorge lhe ter confiado os seus embaraços pecuniários, ela receava sempre que ele gastasse mais do que lhe permitiam os seus actuais recursos.

- Não, não, asseguro-lhe - replicou ele com alegria - embora eu esteja pobre neste momento, posso fazer-lhe este pequeno presente sem pensar muito no meu orçamento.

E acrescentou, com ternura:

- Ah! Lolette, minha bela e doce amiguinha, para me poder arruinar à minha vontade, queria ser rico, muito rico! Então, a sua beleza, posta em plena luz, encontraria o quadro que lhe convém.

- Teria medo desse quadro brilhante, de toda essa luz! - disse Violeta, semi-cerrando os olhos. - Não somos bem mais felizes assim, ignorados de todos e só nos conhecendo um ao outro através do nosso mútuo amor?

- Sim, o seu noivo é o mais feliz dos homens, deliciosa Lolette. E no entanto, ele será bem mais feliz ainda quando se tornar seu marido! Ah! quem me dera já viver essa hora! Se soubesse quanto me custa acalmar a minha impaciência!

- Teve notícias de sua família?

- Tive. Soube que minha mãe tinha recebido a minha carta. Meu irmão prometeu-me intervir e pleitear a causa. Parece interessar-se pela minha felicidade. Mas, como estas tentativas me custam! Desejava tanto

- ocupar-me apenas do nosso amor!

- Pobre Jorge! São para si todos os aborrecimentos e para mim todo o prazer. Sinto-me confusa!

O rapaz olhava Lolette e desanuviou-se-lhe a expressão. As suas inquietações acalmaram.

- "Há na verdade nela - pensava - além da perfeição do rosto encantador, do seu espírito, da sua graça, um encanto penetrante e velado de candura, de modéstia e discrição."

Inclinado para a noiva, acabou o seu pensamento em voz alta:

- Ah! Lolette, talvez tivesse razão ainda agora receando a luz forte. A sua beleza, tal como a de certas flores muito delicadas e muito frágeis para desabrocharem ao sol ardente, parece feita para se desenvolver na sombra!

- Por isso me chamaram Violeta! - sorriu ela. - Conhece o provérbio: Esconde a tua vida e espalha o perfume da tua alma. São as flores da sombra que, muitas vezes, exalam mais doce aroma?

Enternecida e perturbada, M.lle Miroy estava tão bonita dizendo estas palavras, que o jovem estrangeiro pegou-lhe nas mãos e beijou-lhas com paixão. Mas um barulho de vozes na ante-câmara chamou-lhes a atenção.

- É Felícia que me vem buscar - disse Violeta. - Tinha-me esquecido dela.

Jorge, que não sentia nenhum desejo de conhecer M.lle Mouyard,

despediu-se à pressa e fugiu pela casa de jantar, enquanto Felícia fazia a sua entrada na sala.

Ao primeiro olhar, Felícia percebeu que havia qualquer novidade na vida de M.lle Miroy.

- Fiz fugir uma visita? Na ante-câmara ouvi duas vozes e a tua velha Solange queria demorar-me...

- Sabes que me aborreces com as tuas perguntas? - Estás-te a tornar muito metida contigo!

- E tu ordinariamente indiscreta!

- Se me julgas indiscreta... é porque tens um segredo.

Nesse momento, Felícia, alerta, descobriu o anel de pedra azul e disse:

- Oh! Um anel novo!

- Sim, um simples anel de prata, com uma pedra sem grande valor.

- Mostra!

A rapariga, de muito má vontade, tirou o anel e deu-o a M.lle Mouyard, que fez um trejeito:

- Oh! o clássico anel de prata! É como o dos noivos da província.

- É uma coisa sem valor para outra pessoa que não eu - disse a rapariga, pegando no anel e metendo-o apressadamente no dedo.

Então, veio a pergunta que ela receava:

- Quem te deu isso?

- Consentes que guarde segredo.

- Como quiseres, tanto mais que, tarde ou cedo, hei-de saber tudo por Solange ou por ti, sem fazer nada para isso. Vocês são tão faladoras! Vi no bengaleiro da entrada uma bengala de castão de ouro, provavelmente a desse famoso sr. Jorge. E não deve ter sido esta a sua primeira visita.

- O sr. Jorge é meu noivo!

- Eles começam sempre por serem noivos e assim ficam até ao fim da nossa vida. O difícil é o casamento

Violeta atalhou, agastada:

- Não me arrelies, estou hoje enervada. vou dar uma volta; queres acompanhar-me?

Felícia, descendo as escadas atrás de Violeta gozava tão ostensivamente com a irritação da amiga, que esta não quis dar-lhe por muito tempo o prazer de se mostrar sensível às suas maldades. - "Se ela percebe que me arrelia, não pára. Sou tola em me zangar. Rir, ainda é o melhor!"

E, uma vez na rua, distraída da sua mágoa pelo vaivém dos passeantes, replicou:

- Já disse ao sr. Jorge que tu o tinhas tomado por um agente da polícia. Ele pareceu muito divertido e isso deu-me um bom momento de riso.

- Ninguém me paga para divertir o teu sr. Jorge

- respondeu a Mouyard, agreste. - De resto nem sequer lhe dei a honra de o tomar por um agente da polícia, pois esses são homens como os outros e há alguns muito simpáticos.

- Aquele com quem conversaste no Bosque, por exemplo

- Esse mesmo. Tinha excelentes maneiras e eu prefiro conversar com ele do que com...

- com quem

- com quem ele estava encarregado de seguir e de prender.

- Queres dizer que o sr. Jorge anda vigiado pela polícia

- O homem do chapéu castanho confessou-me que o devia seguir e nunca o perder de vista. Três ou quatro dos seus colegas tinham a mesma missão.

- E que supões? - perguntou Lolette sufocada, parando bruscamente.

- Tudo que se pode supor de um homem seguido, pela polícia.

- Julga-lo um anarquista perigoso?

- Um crime político é o que se pode imaginar de mais honroso.

- Não quererás, no entanto, insinuar que esse infeliz rapaz é um escroc?

- Oh! eu não insinuo nada. De resto, tu não estás em estado de ouvir a verdade.

Desta vez ainda as palavras de Felícia pareceram exorbitantes a M.lle Miroy.

- Ah! minha pobre Felícia, domina a tua má língua. com outra que não eu, ela pregava-te sérias partidas.

Violeta ria, num riso nervoso.

- Parece-me que são mais os presentes do teu apaixonado do que os conselhos da tua amiga que te tornam tão alegre.

- Os pequenos presentes fizeram-se para manter a amizade.

- E é muito rico, o teu sr. Jorge?

- Não é preciso ser muito rico para comprar o anel que depreciaste. Podia desesperar-te, mentindo, dizendo que ele é milionário. Mas quero ser boa. E, no entanto, bem menos por caridade do que por amor à verdade, confesso-te: tenho todas as razões para o julgar tão pobre como eu.

- Onde vai então buscar dinheiro para flores e jóias?

- Gasta o seu último dinheiro, o pobrezinho!

- O anel tem uma pedra.

- Que não deve valer grande coisa.

- Seja! Mas o prego do chapéu?

- Não o comprou, era meu. Tinha-o partido e ele mandou-o consertar.

- Acho-o lindo.

- É falso. com alguns escudos podes ter um igual.

- Onde?

- Na primeira casa de jóias falsas que encontrarmos ! Olha, ali está uma. Queres entrar ? - perguntou Lolette, designando a loja.

- Não vale a pena. Bem sabes que detesto incomodar os lojistas e não comprar nada.

- Se encontrar um alfinete igual por pouco dinheiro, compro-o.

- Se calhar, não trazes dinheiro contigo...

- Ah! sim? Pois entremos.

Violeta pôs a mão no puxador da porta da loja. Felícia recuou, resistindo. Mas Lolette teimou e agarrando o braço da outra, empurrou-a para a loja.

- Hás-de entrar! Era o que faltava, pareceres duvidar da minha palavra.

- Deixa-me, é ridículo estarmos a discutir assim.

- O ridículo é-me absolutamente indiferente.

E Violeta, como verdadeira garota, sem pensar se dava ou não nas vistas, empurrou Felícia contra a porta da loja. A outra, corada, confusa por ver que olhavam para ela, teve que ceder. Quando o joalheiro viu que, depois de incertezas e discussões, as duas raparigas resolviam entrar, precipitou-se para abrir. Lançada por um empurrão de Violeta, a Mouyard caiu sobre o pobre homem que vacilou com o choque.

- És bruta! - disse Felícia, furiosa, enquanto que Violeta, não podendo resistir ao cómico da cena, ria. Peço-lhe perdão, senhor, foi a minha amiga que me empurrou.

- Eis do que se trata - explicou Violeta, resolutamente, entrando por sua vez na loja e tirando diante do espelho o prego do seu chapéu -- a minha amiga acha esta borboleta bonita. Se tem uma igual pelo mesmo preço, compro-a.

O joalheiro pegou no prego, examinou-o com uma minúcia que espantou Violeta e depois declarou, procurando a lente, numa gaveta:

- Eu não tenho disto, mas se me der tempo, posso encarregar-me da encomenda.

com a lente no olho, ele tornava-se cada vez mais atento.

- E não tem nada neste género ? - perguntou Violeta.

- Oh! aqui só vendo falso.

- Então ?

- Então, a montagem do seu alfinete é de ouro, e não posso fazê-la de um dia para o outro. Além disso, se deseja um alfinete semelhante a este, levará tempo, pois será preciso procurar pedras iguais às que formam o corpo e as asas da borboleta. Estas pedras são todas escolhidas e de muito boa água.

Felícia ficou tão sufocada como Violeta com esta declaração. Não podendo acreditar, M.lle Miroy insistiu.

- Deve estar enganado, senhor. Este alfinete é de cobre e as pedras são falsas: tenho a certeza que são falsas!

O joalheiro sorriu finamente. Julgando adivinhar de onde podia vir essa surpresa, insinuou:

- A pessoa que lhe fez este presente, menina, quis, sem dúvida, diminuir-lhe o valor para o fazer aceitar. Louvável delicadeza e na verdade rara, para não dizer única, nos dias que vão correndo. É mais vulgar oferecer falso fazendo acreditar que é verdadeiro. Neste caso posso afirmar-lhe que o alfinete é de ouro e as pedras são verdadeiras. E se quiser, veja-o à lente. Verá que o prego tem contraste.

Violeta debruçou-se para verificar. Depois levantou a cabeça. Estava rubra de emoção. A amiga, muito amarela, franzia os lábios num gesto de violento despeito.

- Como vês - disse M.lle Mouyard, em voz alta - as pedras eram verdadeiras, como eu dizia. Armaste em inocente para teres um pretexto de ouvir este senhor repetir que o teu alfinete tinha um grande valor.

Espantada com a descoberta, Violeta repetia:

- Então não é falso? Como pode isso ser? comprei este alfinete por dois francos!

- Arranje-me dez ou doze semelhantes por esse preço, menina - disse o joalheiro, agora céptico e desconfiado com as insinuações de Felícia. - Pago-lhe a dez francos a peça... faço fortuna e fecho a loja.

- Em quanto o avalia?

O joalheiro guardou silêncio por uns instantes supondo agora que esta cena não era senão uma comédia destinada a levá-lo a dizer o preço do alfinete.

- "Assim que eu disser o preço - pensou ele - esta linda menina que, sem dúvida está sem namorado e precisa de dinheiro, vai exclamar logo: - "Pois senhor, deixo-lhe o alfinete pela sua avaliação."

Por isso fingiu demorar-se num exame mais atento, calculando também que, comprar aquelas pedras por baixo preço, não seria um mau negócio. E julgou prudente não avaliar a jóia por mais de dois terços do seu valor.

- Não me seria possível fazer-lhe um prego igual por menos de cinco mil francos.

- Cinco mil francos - exclamou Violeta. - Está certo do que diz, senhor?

Desta vez, como havia muito mais espanto do que alegria na exclamação de Violeta, o joalheiro começou a não saber ao certo se a sua cliente queria vender ou comprar.

Julgando possível a encomenda, se não provável, e julgando sentir-se obrigado àquele preço, senão por Lolette, pelo menos por aquele a que já chamava o senhor da menina, acrescentou prudentemente, para Se defender:

- Quando digo que este alfinete vale cinco mil francos, refiro-me ao seu valor, feito. Mas não poderia procurar os topázios, os rubis, as esmeraldas, os diamantes das asas da borboleta e mandá-las- montar por menos de seis a sete mil francos.

Violeta continuava de pé. Voltou-se para Felícia que se tinha encostado às costas duma cadeira.

- Passa-me essa cadeira, Felícia, preciso de me sentar.

Sentada, continuou muda, julgando sonhar, repetindo

- Seis ou sete mil francos! É espantoso, é espantoso

O joalheiro entregou-lhe o alfinete. Ela examinou as pedras, os topázios, as esmeraldas, os diamantes, os rubis e disse ingenuamente:

- Ah! como sou idiota! Esta borboleta brilha muito mais do que a outra! Não há comparação entre estas pedras e os antigos vidros. Foi quando dei o meu alfinete velho ao sr. Jorge que ele o trocou!

- O sr. Jorge fez-lhe uma bela surpresa! - sorriu o joalheiro, agora complacente, farejando uma boa cliente.

Lolette corou ainda mais, interdita. A Mouyard olhava fixamente a jóia com os seus olhos claros e maus. E sibilou por entre os dentes cerrados:

- Já agora mostra também o anel.

- Oh! com o anel não pode haver engano - disse a rapariga, tirando o anel da sua linda mão e apresentando-o apressadamente, como se devesse ser para si uma justificação. - Basta olhar para a cor do metal para se perceber que é prata.

- A senhora dava um mau joalheiro! - disse o negociante, pegando no anel.

- Esse anel não será de prata? Não me irá dizer, espero, que essa prata é ouro prateado?

- Não, mas também não é prata. O seu anel é de platina, metal muito em voga. Neste momento - disse o joalheiro, finalmente divertido com tanta candura e orgulhoso da sua importância - a platina vale quatro vezes e meia mais do que o ouro.

Violeta empalideceu, mais inquieta e perguntando a si própria, numa espécie de vertigem: - "Como pôde o Jorge arranjar tanto dinheiro?"

Felícia Mouyard, fascinada, com as pupilas incendiadas de ardente curiosidade, engolia dificilmente a saliva, de tal maneira sentia a garganta seca. E perguntou numa espécie de febre:

- E esta pedra tão sombria?

- - É uma safira rara!

- Em quanto avalia este anel - platina e pedra?

- Não lhe posso dizer ao certo, três mil... quatro mil francos... é um belo anel!

- Obrigada, senhor, obrigada - interrompeu Violeta, levantando-se subitamente. - Incomodámo-lo muito tempo com estas inúteis perguntas que só servem para lhe darem uma péssima opinião de nós.

- Distingamos - disse a Mouyard, vivamente. - As jóias são tuas e não minhas!

- Adeus, senhor, obrigada! - repetiu Violeta, que, sem ouvir a amiga e na sua impaciência de sair, tornava a espetar o prego no chapéu e a enfiar o anel no dedo. - O preço não tem importância, a lembrança é que é preciosa!

- O preço do objecto torna sempre a lembrança mais cara - notou o joalheiro, com um sorriso de convencional delicadeza.

M.lle Miroy dirigiu-se para a porta, replicando:

- Sim para si que é da profissão. Mas para mim Agora que sei serem verdadeiros, vou passar a ter medo de perder o alfinete e o anel. Eis o que eu ganhei: uma preocupação.

- Quando essa preocupação lhe pesar, venha cá e eu a desembaraçarei dela!

Violeta desculpou-se de ter incomodado o joalheiro para nada.

- É verdade - interveio a Mouyard, num malévolo gracejo. - Não compraste nada a este senhor. Porque esperas para encomendar um prego parecido com o teu?

Lolette respondeu:

- Oh! não vale a pena. Mando-te soldar o meu velho.

- Felícia, que só tinha espírito quando inspirada pelo despeito ou pela cólera, ficou de tal maneira sufocada com esta desenvoltura que teve de sair do armazém antes de encontrar a réplica conveniente. Cá fora, abriu logo hostilidades:

- Ah! Para alguma coisa te serve seres filha de comediante! Que rica cena de ingenuidade representaste com o joalheiro! Sim, porque não me vais dizer que imaginavas que o alfinete e o anel eram falsos!

- No entanto, é verdade, e eu falei com o joalheiro na melhor boa-fé do mundo. Quer te rias quer não, isso é-me indiferente!

- Apre! tens mais de dez mil francos na cabeça e no dedo: agora troças de tudo! Ao pensar nisso não podes deixar de sorrir.

- Sorrio à ideia de que nada me impede de restituir estas jóias ao sr. Jorge.

- Vais restituir-lhe os presentes?

- Certamente.

- Eu guardava-os!

- Guardá-los-ei se o sr. Jorge me provar, do que duvido, que estes gastos são proporcionais à sua fortuna. Senão, farei com que os restitua ao joalheiro. No entanto, lisonjeia-me que o meu noivo, para me agradar, tenha sido capaz de uma loucura.

- Mas, minha querida, não adivinhas que espécie de jóias te pode oferecer um homem que não pode dar um passo sem que a polícia lhe vá no encalço? Essas jóias são roubadas!

O primeiro movimento de Violeta foi o de arranhar Felícia. No entanto, dominou o gesto, envergonhada com essa cólera, e respondeu, trocista:

- Achas que as minhas jóias foram roubadas e aconselhas-me a que as guarde? Ah! Tens uma rica moral de receptadora!

E, achando-se na rua Royale, diante de sua casa, entrou e bateu com a porta na cara de Felícia Mouyard.

 

Entre Lolette e Jorge, a explicação deu-se no dia seguinte. A rapariga censurou o noivo:

"Fazer uma despesa assim quando mal tinham o bastante para pôr casa, era loucura! Desejava que ele tornasse a dar, sem demora, o anel de safira e a borboleta, ao joalheiro, e fizesse com que lhe restituíssem o dinheiro".

Jorge ouvia este sermão com a sua calma habitual. De vez em quando, furtivamente, um sorriso divertido vinha-lhe aos lábios, e os seus olhos azuis envolviam a deliciosa noiva com um olhar apaixonado que não revelava mágoa alguma pela despesa feita.

Sem a mínima promessa de se tornar mais razoável de futuro, ele colocou o alfinete em cima da pedra do fogão; depois, numa carícia lenta, pôs de novo o anel no dedo de Violeta. E, apertando amorosamente essa mãozinha branca, explicou tranquilamente que um resto de dinheiro que tinha deixado prudentemente no Crédit Lyonnais, lhe havia permitido comprar o anel e o alfinete sem nada pedir emprestado. Restavam-lhe mesmo quatro ou cinco mil francos. Não seria, mais tarde, boa ocasião de se tornarem económicos ?

Jorge justificava-se assim, mais mal do que bem. Omitia pormenores e as suas explicações eram muito sumárias. Mas, alguns beijos serviam de transição de um argumento medíocre para outro pior, e ainda mais beijos enchiam as loucuras de justificação e também que, quando Lolette, muito rosada, se surpreendeu para correr ao espelho e alisar com os dedos ágeis os seus belos cabelos ondulados, sentiu não só o coração aliviado de preocupações, mas estava convencida de que a compra das jóias fora a coisa mais razoável do mundo. Não acabava Jorge de lhe dar provas irrefutáveis?

Os dias passavam no mesmo encantamento. ÀS vezes, Jorge convidava-se para jantar, e esses jantares eram deliciosos desde a loiça às flores e aos finos vidros, à luz opalina dos abat-jours de seda e rendas, sob o olhar enternecido da boa Solange. Em volta dos dois, as idas e vindas da velha, indulgente para com o seu amor, defendia-os de efusões muito livres. De resto mesmo a rir, Lolette, muito ajuizada, sabia, somente com a ameaça de um dedo erguido ou de um franzir de testa descontente, tornar Jorge tão ajuizado como ela. E o serão passava agradavelmente, em lindas conversas nas quais se faziam os projectos de viagem, em silêncios saborosos retomando ambos os seus sonhos, felizes, com olhares eloquentes e beijos discretos.

Apenas havia todos os dias, uma pergunta de Violeta que punha uma passageira tristeza na sua conversa:

- Tem tido notícias de sua mãe?

É, muito sincera, mas invariavelmente, Jorge respondia

- De minha mãe, não tive notícias.

No entanto, uma tarde, ele anunciou, muito feliz:

- Minha mãe não mandou que me escrevessem, mas recebi duas cartas de meu irmão.

- Boas para nós?

- Muito boas. Garante-me que empregará toda a sua influência para obter o consentimento de minha mãe para a nossa união. Creio ter ganho completamente meu irmão para a nossa causa.

- É muito.

- E no dia em que Harold se tornar o chefe da família, será tudo. Apenas o seu consentimento bastará para a fazer reconhecer como minha mulher, não só legalmente, mas oficialmente.

- Que singulares leis têm nas Grandes Ilhas! E essas entabolações ainda demoram muito?

- Espero que não. pois já cedi a todas as condições que a minha família me impôs: comprometi-me a voltar para Inglaterra e ficar lá definitivamente, depois de gozar ainda alguns anos em viagem e liberdade, quatro ou cinco, quando muito. Terei então de retomar o meu serviço no exército e a minha participação, de resto inferior, nos negócios de família. Será mais um jugo, mas este ser-me-á leve, visto que a terei como companheira da minha vida.

- Ah! meu pobre amigo - suspirou Violeta. - Como os seus lhe fazem comprar cara a felicidade! Porque não é francês! Seria sua mulher bem facilmente!

- Ah Lolette, linda, deliciosa Lolette, que sacrifícios não faria eu para amá-la e ser amado por si!

As horas fugiam na embriaguez destas conversas, muitas vezes misturadas com suspiros, outras interrompidas com beijos. Jorge, aparentemente tão frio e reservado, tão altivo, revelava-se um outro homem neste tête-à-tête de noivado. A sua paixão, transparecendo através da atitude correcta e fleumática, traía-se em clarões de alegria ou em enternecimentos profundos. A sua voz grave tinha ternas inflexões. E esse belo rapaz tão sério, projectava, para depois de casado, mil novas loucuras. Era preciso que Violeta repetisse sem cessar:

- Mas nós seremos muito pobres, meu bom amigo. Essas belas viagens que me faz entrever, esses tules, essas sedas, essas rendas, essas jóias preciosas que me promete, são infinitamente caras para nós, meu querido Jorge. E depois, precisarei eu de tudo isso para ser bela? As mãos de uma parisiense são mãos de fada, não há outras como as dela para saber trabalhar a seda, tufar o tule, e fazer espumar a musselina! A minha mocidade e a minha alegria, serão a minha toilette. E verá que, enquanto gostar de mim, eu arranjarei maneira de ser sempre a mais linda!

Jorge esquecia tudo, entregue a estas douradas miragens. Violeta entristecia. Todo o mistério que ela tinha jurado não penetrar, inquietava-a por vezes ao ponto de lhe trazer lágrimas aos olhos. Mas, mesmo através do pranto, o seu olhar continuava tão terno, que o rapaz, sem se comover demasiadamente, cessava de perguntar com receio de que lhe fizessem perguntas.

- De momento, Lolette, falemos só do nosso amor!

E falavam tanto, tanto, que era preciso a lembrança da pobre velha Solange, velando, só, no quarto ao lado, sonolenta com a fadiga, de óculos nos olhos, e o tricot caído sobre os joelhos, para que Violeta desse o sinal da partida.

Quando Jorge saía, era o melhor momento para a velha. A sua pequenita tinha o coração ainda demasiadamente cheio para que pudesse deixar de se expandir novamente com a ama, em confidencias ternas, muitas vezes incoerentes.

- Ele é um amor, sabes, Solange é tão altivo, tão belo Não é verdade que veste bem? com que natural elegância! Já reparaste na sua voz e nos seus gestos? Ah! como deve saber mandar nos outros! Mas diz-me se o achas encantador? Eu não mereço ser adorada assim! Ele só me quis a mim, a mim só, jurou-mo Ah! Solange, se eu não o amasse, seria uma ingratidão horrível!

Solange sorria, sentindo reavivarem-se, no fundo do velho coração, as recordações da sua mocidade. E, num desejo de amor que se estendia a todos, Violeta, despida já, sem ter deixado de tagarelar, metia-se na sua caminha de rapariga, chamava a criada para a cabeceira, e repetia-lhe os seus projectos:

- O Jorge fala em viajar, o Jorge fala em comprar tudo quanto me agradar! Nunca pensa que somos pobres, o queridinho! Mas no meio de toda esta felicidade, não te esquecemos, minha velha Solange. Tu não nos deixarás: levamos-te para toda a parte, mesmo para as Grandes Ilhas. E se nós tivermos bebés, serás tu que tratarás deles, quem os embalará como me embalaste a mim. Agora é tarde; para não parecer ao meu querido Jorge menos fresca e bonita amanhã do que hoje, preciso repousar. Vai dormir, minha velha!

E Solange, embora se retirasse imediatamente, ia resmungando:

- Podia ter-me mandado dizer isso quando eu dormia em cima do meu tricot. era um sono só. Como quer, agora que me deu volta à cabeça e me pôs o coração em fogo com as suas histórias de noivado, que eu possa fechar os olhos?

 

Certa manhã, mal lhe abriram a porta, Jorge, atravessou a ante-câmara e precipitou-se na sala como um vendaval. Violeta sobressaltou-se. Sem lhe dar tempo a que o interrogasse, o rapaz anunciou em voz triunfante:

- Não foi sem custo, mas o assunto está liquidado. Podemos casar.

- Ah Que felicidade! - disse Violeta, trémula de emoção. - Tem o consentimento de sua mãe, o seu consentimento por escrito?

Esta simples pergunta atenuou a alegria do rapaz.

- Não, nem por escrito nem mesmo verbalmente tenho o consentimento de minha mãe; mas meu irmão deu-me a entender que ela, numa conversa particular, lhe significou a sua aprovação. A prova é que não encontrei nenhuma espécie de oposição no consulado das Grandes Ilhas, onde mandei levar os meus papéis e os seus, para que preparassem o acto do casamento. Mas ainda temos de nos submeter a certas condições a fim de que a união se realize aqui, sem dificuldades. Essas condições pareceram-me muito suaves e, espero, sim, eu espero, minha bela Lolette, que também lhe pareçam aceitáveis. Ah! desejei esta felicidade tão febrilmente, esperei-a com tanta impaciência!

O belo rosto de Jorge, havia pouco iluminado de confiança e de esperança, ensombrou-se de repente à ideia, de uma possível recusa. E o seu olhar implorava com tanto fervor que Violeta, perturbada de ternura e piedade, pressentiu o sofrimento que a incerteza causava ao noivo e não pôde deixar de exclamar espontaneamente:

- Tranquilize-se, meu querido Jorge. Se as condições são aceitáveis para si também o serão para mim.

- Não esperava menos da sua ternura, Lolette!

E, em voz firme, explicou claramente, pela carta de seu irmão em que condições sua mãe não se oporia àquela união. Jorge devia casar-se, não no Registo Civil, mas no consulado das Grandes Ilhas.

- Sim, isso já eu sabia.

- E casamo-nos também no Templo.

- Em que Templo?

- Na capela protestante da rua de Algés. Quatro oficiais, amigos de meu irmão e meus, farão de propósito a travessia para nos servirem de testemunhas. O conselho de família exige que tudo se realize sem o mínimo aparato e que não dê-mos nenhum carácter oficial a esta cerimónia íntima. Não me parece que isso a possa contrariar!

- com certeza que não me caso para assombrar as minhas amigas; essa simplicidade convém-me perfeitamente. Mas este casamento não deixa de ter a aparência de uma união clandestina que me magoa um pouco.

- O nosso casamento não terá o menor carácter clandestino, querida Lolette, pois não será feito nem contra a moral nem fora da lei. Apenas nas Grandes Ilhas terá um carácter secreto, o que é diferente. Dar-se-á o caso que uma felicidade legítima, mas secreta, lhe meta medo, Lolette?

- Oh não, pelo contrário - disse Violeta, ainda assim um pouco preocupada. - E se realmente a nossa união é legal...

- Absolutamente legal. Diante de Deus e dos homens lho juro.

- Então, que mais desejar?

Jorge, cheio de alegria, cingiu a rapariga nos braços, beijou-a ternamente nos lábios e nas pálpebras, repetindo em voz baixa e apaixonada:

- Ah minha Lolette querida, somos um do outro, teremos enfim o direito de nos amarmos livremente!

A rapariga desprendeu-se, enquanto o noivo continuava a falar com um fogo que provava o longo e doloroso domínio que se impusera. Violeta perguntou:

- é isso tudo quanto sua mãe exige, já não digo em troca do seu consentimento, mas em troca do seu silêncio e da sua passividade?

- Minha mãe pede ainda - oh isto é pouca coisa! - que, durante alguns anos, quando estabelecermos residência nas Grandes Ilhas ou em Bruhm, a capital, guardemos as aparências e ambos observemos os deveres que nos impõe a nossa situação social.

- Isso não me parece claro!

- E não é preciso que o compreenda, por agora - replicou Jorge. - Terei toda a vida para lhe explicar isto e tudo mais. De resto, se a minha mãe opõe certas dificuldades a ser ela própria a apresentá-la oficialmente na sua sociedade, meu irmão, de um dia para o outro, pode tornar-se o chefe da família. E nesse dia, prometeu-me solenemente, fazê-la receber em toda a parte como minha mulher.

- Não me interessa ser oficialmente sua mulher nem me caso para frequentar a sociedade! - fez notar Violeta, um pouco surpreendida. - O facto não me parece tão importante que valha uma solene promessa de seu irmão. Tudo isso é singular, misterioso e às vezes imagino que represento o papel de Elsa de Brabant e o Jorge o de cavaleiro de Lohengrin.

Jorge insinuou:

- Confesse que minha mãe, de quem receei uma recusa formal, não nos impõe condições muito duras e que nós lhe devemos um certo reconhecimento?

- Não sei - disse Lolette, pensativa. - Essa senhora distinta, rica, dominadora, poderosa, temida pelos filhos, de quem nada sei e que se mostra em tudo isto tão enigmática e silenciosa, faz-me medo!

Todas as vezes que evocava a mãe de Jorge, Violeta estremecia. Desta vez, ainda, um friozinho lhe penetrou o coração num inexplicável pressentimento de desgraça.

- Preciso de estar sempre a pensar que sua mãe é sua mãe... para a amar um pouco - acrescentou ela. - Prefiro seu irmão. E diz-me o instinto que é muito mais a ele do que a sua mãe que devemos a nossa felicidade.

- Também o creio - disse o rapaz, que, por sua vez, se tornou estranhamente pensativo.

Depois, sacudindo essa tristeza, terminou:

- Que importa quem nos deu a felicidade, uma vez que a temos?

Até ao dia do casamento, Violeta teve a sensação de ver fugir os dias numa espécie de vertigem. Respirava no encantamento de um sonho e só acordava com a voz de Solange:

- Veja lá, menina, precisa de tratar dos seus vestidos e dos seus chapéus. É necessário que se torne mais bela do que nunca para honrar esse bom sr. Jorge!

As toilettes eram a única coisa que interessava a Lolette além do seu amor.

Felícia Mouyard havia voltado, muito humilde, mas por pouco tempo. Encontrando Violeta, não somente sem rancor, mas sem sequer se lembrar da última questão, não reprimiu a inveja e o ciúme que lhe causava a felicidade da amiga. E multiplicava as perguntas desagradáveis a M.lle Miroy, indagando, por exemplo, a cada uma das suas visitas:

- Não irás de vestido branco, parece-me?

- Não! - respondeu Violeta, com indiferença. - O Jorge deseja que a cerimónia seja simples. vou com um vestido de rua, muito singelo.

- Para o Registo Civil, compreendo, mas para a Igreja?

- Para o templo ponho um vestido discreto, de cor, o mesmo que levo ao consulado.

- A que consulado?

- Ao das Grandes Ilhas. Já te expliquei. Bem sabes que Jorge não é francês.

- Como, pois tu não te casas no Registo Mas então ele não casa a sério? Esse casamento não é válido!

- É válido, sim, não te apoquentes.

- Eu, no teu lugar, exigia o Registo Se te julgas casada depois do consulado e do templo, és ingénua. ou estás resolvida a contentares-te com pouco.

- Mas é preciso que compreendas que é justamente por me casar no consulado que o meu casamento é válido e conforme a legislação das Grandes Ilhas. E o que mais me importa é justamente o que é regular e legal no país de meu marido.

Felícia fingia não compreender e teimava:

- Lá que não vás de branco, escapa! O branco não te deve ficar bem. Que não leves flor de laranjeira, também está bem; lá tens as tuas razões. Mas que nem sequer vás ao Registo, isso...

Violeta nem se deu ao trabalho de responder. E, para acabar a conversa, mostrou uma fotografia de Jorge que estava sobre o fogão, dizendo alegremente:

- Apresento-te o meu futuro marido. Confessa que, para um polícia, mesmo para um escroc, não é feio de todo! Esquecia-me também de te mostrar o nosso roubo mais recente.

M.lle Miroy abriu um estojo comprido e tirou de lá um bonito prego de chapéu, em ouro lavrado.

- Permite que te ofereça esta lembrança...

O casamento teve lugar poucos dias depois, ainda com mais simplicidade do que M.lle Miroy tinha anunciado.

Nenhum preparativo exterior: noivos e testemunhas entraram e saíram do consulado como quem vai pedir informações. No entanto, dentro do consulado, Violeta, embora extremamente comovida, notou que quase todas as pessoas estavam de pé. Cumprimentaram os noivos à passagem, com visível deferência e o sumptuoso salão para onde foram levados e que dava para o imenso jardim da avenida Gabriel, estava atapetado de plantas verdes e guarnecido de flores raras. Dois jauteiuls de veludo vermelho, que Lolette julgou bastante solenes, estavam colocados diante de uma mesa de pés dourados. Os dois recém-casados, sentaram-se, enquanto os assistentes ficavam de pé. O cônsul, estava em traje de cerimónia, e os quatro oficiais que serviam de testemunhas, ostentavam o grande uniforme, com as suas numerosas condecorações. Tudo se fez rapidamente; tudo se disse em língua estrangeira. O cônsul, com respeito e cortesia, deu em francês algumas breves explicações a M.lle Miroy. Ela não surpreendeu nem nessas palavras, nem no formulário tão rapidamente lido, qualquer nome que lhe parecesse, mais que outro qualquer: o nome de seu noivo.

À pergunta: "Deseja aceitar por mulher..." que lhe foi feita em francês, Jorge respondeu sim em voz enérgica e tão clara que o cônsul e as testemunhas, a custo reprimiram um sorriso.

Violeta corou e pronunciou o sim mais baixo, em voz comovida.

Quase a seguir, sem que os esposos tivessem tempo de se mexer, trouxeram-lhes o registo, aproximaram a mesa e, contra todos os usos, Violeta teve de assinar primeiro e assim não pôde ver a assinatura de Jorge. Tudo isto se passou como num sonho e a pobre Lolette estava tão perturbada que lhe era impossível pensar em nada com sangue frio.

As testemunhas assinaram por sua vez e os registos foram levados. O cônsul felicitou-os banalmente, respeitosamente, depois retirou-se mas não sem ter apertado a mão que Jorge lhe estendia. Entraram, no automóvel. No templo, sucedeu o mesmo.

Violeta não podia reflectir. Não se afligia com o que esta união tinha de insólito, pois, não tendo nenhuma amiga casada com um estrangeiro, não encontrava um ponto de comparação. Abandonava-se ao seu destino misterioso, quase feliz ao pensar que, entre esses desconhecidos, ela só conhecia Jorge e que ele seria, nessa vida nova, o seu único conselho, o seu único amigo e o seu único protector.

- Sente-se feliz? - perguntou a velha ama, a meia voz, ajudando Lolette a vestir o seu fato de viagem. - Sente-se realmente feliz, minha pequenina?

- Feliz a ponto de rir e chorar ao mesmo tempo! - respondeu a rapariga, abraçando-a.

E, efectivamente, os seus lábios sorriam de felicidade, enquanto os belos olhos se enchiam de lágrimas de enternecimento. E acrescentou:

- Quero que tu também sejas feliz, minha Solange. E, até que vás ter connosco, o que será breve, não te esquecerei e hei-de escrever-te sempre.

Uma campainhada interrompeu-os.

- É o Jorge. Vai abrir. Eu estou quase pronta, acabo de me arranjar sozinha.

Jorge voltava: Lolette sentiu-se outra vez presa do sonho, da vertigem. Não ouvia, nem via mais nada. Beijou Solange e desceu a escada, subiu para um coupé, e, quando a porta se fechou sobre eles, os cavalos levaram-nos à estação. Era ainda o sonho, a vertigem. Violeta limpou lágrimas discretas e silenciosas, pois, através da sua alegria, lembrava-se de Solange, dos pais, da sua feliz infância, de todo o seu passado. Jorge, inclinado para ela, enlaçava-lhe a cinta e, em voz apaixonada, dizia-lhe ao ouvido mil coisas ternas e consoladoras.

Na estação, diante do sleeping-car reservado, as quatro testemunhas, depois de terem saudado Jorge militarmente, aproximaram-se e beijaram a mão de Lolette. Um dos oficiais ofereceu-lhe um soberbo ramo de rosas, enquanto outro lhe entregava um estojo embrulhado em papel de seda.

- É uma lembrança do irmão do sr. Jorge.

- Violeta agradeceu, metendo o estojo na sua malinha

de viagem, não ousando vê-lo ali, na estação. Depois notou, atrás, alguns homens de chapéu castanho que ainda não tinha visto e que faziam círculo à sua volta. Felícia Mouyard esforçava-se por chegar junto deles. Lolette correu, apertando-lhe as duas mãos.

- Ah! como foi gentil da tua parte, Felícia, vires desejar-me boa viagem!

- E bem me custou! Toda esta gentalha que te rodeia não me queria deixar passar. Vocês estão guardados à vista? Se vais ter atrás de ti durante a viagem todos estes chapéus castanhos, lamento-te.

- Não me lamentes... porque não sou para lamentar.

Houve um movimento dos viajantes e depois fecharam-se as portas. Uma das testemunhas aproximou-se para avisar Lolette. Tudo indicava a partida. Felícia não pôde conter as maldades que, durante todo o dia, lhe tinham queimado os lábios sem que tivesse ocasião de as despejar.

- Ah! sim, lamento-te, minha pobre Lolette, pois, bem visto, o teu casamento é muito esquisito. Tens a certeza de estares casada?

- Absoluta. Jorge pediu e conseguiu hoje mesmo no consulado e no Templo, um duplicado da nossa certidão de casamento. Tenho esses dois papéis na carteira. A minha felicidade é legal e desejo-te uma semelhante.

Felícia não teve tempo de achar uma réplica malévola. O oficial que se tinha aproximado, acabava de oferecer o braço a Violeta e conduzia-a ao sleeping-car para onde Jorge já tinha subido.

- Queria deixar-me partir sozinho? - perguntou o marido, estendendo a mão à esposa para a ajudar a subir os degraus.

Mal ela chegou à janela ouviu-se o sinal e o comboio pôs-se em marcha.

As quatro testemunhas cumprimentaram militarmente e todos os chapéus castanhos se levantaram ao mesmo tempo. E Lolette, levada pelo expresso, encontrou-se, não num vulgar sleeping-car, mas numa linda sala-vagão cujos espelhos se reflectiam ramos de flores.

Estava agora só, em frente do marido. Ele atraiu-a a si e beijou-a longamente.

- Ah! minha deliciosa, minha encantadora Lolette - murmurou Jorge, num suspiro apaixonado - parece-me que respiro todo o céu azul, que aspiro todos os perfumes, que beijo todas as flores, neste abraço apaixonado!

Levou-a e os dois sentaram-se, um ao pé do outro, diante da grande janela do vagão, que já deixava ver as árvores de diáfana folhagem, as luminosas sinuosidades do rio onde o céu se mirava. A emoção de Violeta era tão grande que, sob as pálpebras baixas, duas lágrimas se soltaram dos belos olhos, duas lágrimas que rolaram pelas faces rosadas. A rapariga sentiu então que Jorge lhe metia no dedo, por cima do anel de noiva, um outro anel, um anel de esposa. Era um anel de ouro branco que encastoava um maravilhoso brilhante.

- Oh! não - disse. - É demais, todo este luxo faz-me medo. Para que me ocultou que era rico?

E, mais ternamente ainda, ele respondeu:

- Sentia tamanha alegria com a certeza de ser amado por mim próprio, que não tive a coragem de quebrar o encanto. De resto, a intervenção de meu irmão, a promessa que fiz de voltar às Grandes Ilhas, tiveram o efeito de levantar o sequestro feito aos meus bens. Agora disponho dos meus rendimentos. Quer-me mal por ter prolongado a mentira?

- Se com essa mentira tem mais certeza da sinceridade profunda do meu amor, querido Jorge, posso querer-lhe mal?

Ela voltou-se um pouco e o rapaz viu que acabava de abrir a malinha, tirando de lá o estojo que um dos quatro oficiais lhe tinha oferecido.

- Aqui está o presente de seu irmão Harold. - Premiu a mola e o estojo abriu-se sobre a suave brancura de um maravilhoso colar de pérolas.

- - Decididamente - disse ela - a minha vida torna-se semelhante à dos belos contos de fadas que tanto desejava viver! Há-de ralhar com seu irmão. Isto é muito belo, belo demais para mim!

E o seu rosto adorável teve então essa expressão que Henriqueta Bonnaux admirava e cujo efeito irresistível receava sobre o sr. Jorge. Ligeiramente inclinado, o rosto encantador de Violeta estava melancólico; o seu fino sorriso abria-se até à covinha do rosto, com fina malícia, enquanto que, como contraste picante, os seus belos olhos sonhadores se velavam sob as pálpebras semi-cerradas de languidez voluptuosa.

- Nada é demasiadamente belo para a minha linda Lolette - exclamou Jorge, que parecia bem menos perturbado pelo presente do irmão do que pela radiosa beleza da sua jovem mulher.

E acrescentou, envolvendo-a sempre com o seu olhar cheio de fervorosa admiração:

- Oh! a minha flor de sombra vai agora brilhar com todo o seu esplendor, vai agora cintilar em pleno sol!

Porque estas palavras cheias de promessas, vibrantes de adoração, fizeram estremecer Violeta? Porque, na súbita melancolia de um vago pressentimento, ela pensou na mãe de Jorge, nessa senhora de vontade poderosa sobre quem nada sabia e que, invisível, distante, misteriosa, continuava eternamente indiferente, inacessível, estranha à felicidade do filho? Porque sentia Violeta, de novo, essa evocação puramente imaginária, um friozinho maléfico passar-lhe no coração?

Foi sob esta impressão que respondeu:

- Oh! Jorge, é bem verdade. Na sombra é que me foi dado nascer e na sombra gostaria de viver! E a nossa felicidade, meu querido, não seria menor, pois, como sabe, as flores ocultas e ignorantes, do dia claro, são as que espalham mais doces perfumes. Eu sinto um poucochinho de medo dessa grande e luxuosa luz em que me quer fazer viver. Pense que, para nós, florzinhas de sombra, como diz, basta às vezes um grande raio de sol para nos secar e fazer morrer.

- Oh! minha doce Elsa - continuou o rapaz - sem nada temer, sem nada perguntar, submissa, silenciosa, com o coração contra o coração do cavaleiro de Lohengrin. - deixe-me fechar-lhe os olhos sob os meus beijos ardentes, adormeça docemente no mistério e no encanto do meu amor!

E Lolette, no perfume das flores, na fuga desesperada do comboio que corria através da primavera, no inebriante abraço do marido, que adorava, sentiu-se tranquilizada por essa sensação de sonho e de vertigem.

Longe, lá muito longe deles, na estação, seguindo os quatro oficiais estrangeiros e os oito ou dez chapéus castanhos que se dirigiam para a saída, Felícia Mouyard, perguntava, desiludida, curiosa e ciumenta:

- Afinal, quem é este rapaz?

 

Na sua rede, à sombra dos vidoeiros de casca de prata, Violeta baloiçava o seu sonho, ouvindo telintar alegremente as folhas argentinas e loucas. Numa semi-sonolência, gozava a solidão dos seus jardins encantados, solidão que podia ser tristeza para tantas almas ambiciosas e fúteis e que só era felicidade para a sua alma, agora serena, embora sonhadora. A rapariga saboreava essa calma em que os dias têm a duração de dias e as horas a duração de horas, em que esses dias e essas horas não são os fugitivos instantes de uma vida, não ardente, mas queimada. Que doçura viver longe das agitações fictícias, das febres e dos nervosismos da vida das cidades!

Embalada na sua rede, sob as pálpebras semi-cerradas, Violeta demorava o olhar grato sobre a casa, vasta construção de telhas avermelhadas, de madeira clara e de pedra encarnada, com terraços vastos, torres graciosas, fantásticos portais, varandas rendilhadas em arabescos lindos. Dum maciço de hortênsias e de fúchsias lançavam-se para adornar as paredes, aristolóquias, glicínias, vinhas virgens de cachos escuros, jasmins de flores brancas e folhas verdes, clematites trepadeiras de estrela cor de malva e, sobretudo, rosas de todas as cores. Em roda dessa pequena moradia de estilo intensamente moderno, várias árvores entrecruzavam os ramos, formando abóbadas e berços sobre os quais o capricho das ruas sinuosas, aumentava ainda mais o obscuro mistério.

O olhar de Lolette passou em seguida a pousar-se na relva de veludo espesso e tufado, de um verde brilhante sob a luz clara, de um verde mais profundo, à sombra. A rapariga desejaria ver, sobre essa relva de esmeralda, semeados aqui e ali, como estrelas num céu de safira, mal-me-queres ou botões de ouro. A frescura da folhagem e das ervas, avivava-se com regatos que se metiam por entre os fetos, corriam sobre o musgo, serpenteavam na erva, ou saltavam pedras em pequenas cataratas espumosas. Preparando artísticas abertas sobre o horizonte, dispostos harmoniosamente ou em montões, carvalhos românticos, faias vermelhas, salgueiros trémulos, tílias odoríferas cortavam as relvas ondulantes até à imensidade do lago. Ali, o olhar de Lolette seguia o deslizar dos cisnes, prestigiosas aves de neve, símbolos de felicidade, que passavam lentamente entre a glauca transparência da onda e a glauca opacidade dos ramos pendentes.

O seu olhar repousou enfim nas águas imóveis e dormentes que, somente de tarde, o sopro de uma brisa perdida agitava em rugas fugazes, pequeninas vagas que vinham quebrar-se na praia em espuma cinzenta, perolada. E, também de tarde, o vermelho das colinas onde o sol torrara as moitas, o verde das árvores e da erva, o azul do lago e do céu adoçavam e empalideciam, se apagavam e descoravam ao longe sob um véu de bruma que adormecia o parque, enchendo a casa de sonho e parecendo envolver em algodão o espaço de mistério e de silêncio. Mas a noite não cairia ainda, nem sequer o crepúsculo. Jorge prometera a Violeta vir cedo para darem um passeio no lago.

E era, enquanto o esperava, que Violeta aproveitava para sonhar.

No baloiçar lento da rede, ela evocava a Itália; a saída de Nápoles; a partida no seu yacht, um yacht com a ponte muito lavada, um yacht de paredes de mogno, envernizadas, um yacht brilhante todo em cobre e embutidos.

Ah! As lindas viagens por mar, as alegrias loucas das manhãs azuis, a languidez pensativa das tardes róseas e todos esses dias de ternura e deliciosa preguiça, aqui e acolá, na casa flutuante entre o frágil mobiliário de aço e de bambu! Ah! Aquela bela vida a dois, os constantes transportes de amor, nesse brinquedo de luxo, num ninho acariciado pela brisa e embalado pelas vagas!

Depois, a profunda alegria do nascimento do filho, o pequeno Lolet. Depois da plena independência de tantos meses passados em escalas maravilhosas, em viagens feéricas, Violeta lembrava-se da chamada de Jorge às Grandes Ilhas.

A mãe exigia o prometido regresso, o conselho de família, reclamava o preço da sua felicidade. O rapaz, embora não mostrasse o telegrama imperioso, tinha discutido com a sua mulher a oportunidade da submissão. E as mínimas palavras desta conversa ficaram gravadas na memória de Lolette, pois, através das breves e múltiplas réplicas, Jorge quase lhe tinha confessado, se bem que ela duvidasse um pouco, que sua mãe era dama de honor da Imperatriz-Rainha, e que ele era ajudante de campo do príncipe herdeiro.

Depois de uma tão longa licença, obtida por graça especial, era preciso que o rapaz reaparecesse na corte. e voltasse ao seu lugar no exército. Sem isso, seria o fim da sua carreira, a ruptura definitiva. A mãe; não se opondo ao casamento, tinha mantido a sua palavra, era a altura de Jorge cumprir a sua. Harold, o irmão mais velho, a instâncias de quem o mais novo devia a neutralidade da velha dama de honor, assegurava que uma ausência maior faria zangar sua mãe e a Rainha. E era muito importante para os jovens esposos não as tornarem hostis.

- Não peço a tua demissão, querido Jorge - tinha Violeta ingenuamente aconselhado. - O meu pequeno Lolet, tu e eu, temos agora uma boa provisão de sol para, sem inconveniente, podermos voltar às brumas das Grandes Ilhas. Vamos!

Depois, inquieta, acrescentou:

- Não serei posta de quarentena pela sociedade de Bruhm!

- Porquê?

- Porque, sendo nobre e tendo um emprego na corte, fizeste um casamento desigual, desposando-me.

- Podes chamar casamento desigual à aliança tão terna e tão fiel dos nossos corações De resto, nas Grandes Ilhas como aqui, viveremos só para nós. Oh! verdadeira felicidade, na felicidade secreta! Quando tiver acabado o meu serviço junto do príncipe, voltarei para junto de ti e de Lolet na casa que possuo nas margens do lago Névis. Além disso, mais dia menos dia, meu irmão arranja licença para a tua apresentação na corte. comprometeu-se a isso quando nós casamos.

- De não ser recebida na corte - disse Lolette, alegremente - já me sinto consolada! Sabes que sou uma flor de sombra e que tenho medo do sol...

E, dócil à vontade de sua mãe, Jorge, passados os cinco anos, tinha trazido a jovem esposa e o filhinho para o reino do Norte, nas Grandes Ilhas de Bruhm.

A despeito das suas corajosas resoluções, Violeta não havia deixado sem pena o lindo yacht, ninho flutuante de amor ao qual sorrira tanto céu, que tantas brisas haviam roçado, que tantos mares tinham embalado.

Jorge só ficou vinte e quatro horas na capital das Grandes Ilhas, a imensa Bruhm. Mas, dessa passagem furtiva, dessa cidade entrevista de noite, da horrível visão, Violeta estremecia ainda. Docas sinistras erguiam-se sobre o rio negro, semelhantes a muralhas de intermináveis baluartes. Os largos cais do carvão, os caminhos poeirentos, estendiam-se entre uma infinidade de casas, baixas, esborrachadas pelas ameaçadoras silhuetas de fábricas enormes. Dos navios saíam inumeráveis fardos. Fábricas abriam as suas entranhas de chama a regatos de ferro, serpenteando como lava. De túneis subterrâneos, saíam pesados fumos e fumos ainda mais pesados caíam de chaminés gigantes. Monstruosos reservatórios, cúbicos ou cilíndricos, surgiam, formidáveis e fantásticos, na nudez estéril dos terrenos vagos. Sobre toda a cidade, sobre todo o campo nu, pesava esse nevoeiro amarelo onde empalideciam e morriam os raios dos projectores eléctricos. E do próprio nevoeiro, caía uma chuva negra de fuligem, uma chuva oleosa, que se tornava lama e visco antes de chegar ao chão. Oh! a imensa cidade fantástica da negrura fuliginosa e das luzes lívidas, mais sinistras ainda do que as trevas! Ah! a imensa cidade de estrangulamento e pesadelo onde, pelos vidros embaciados do trem que os levava, os três, muito juntos uns de encontro aos outros, viam passar os clarões dos candeeiros, e magras, indecisas silhuetas, saindo das tabernas: bêbados mudos e embrutecidos na sua hipnótica rigidez de alcoólicos, mulheres e crianças esfarrapadas, mendigas duvidosas - gente miserável perseguida pela polícia. E, entre estes espectros e estes esqueletos, implacáveis à desgraça, passeando como grandes cais de ventre bem recheado entre os lobos famintos, circulavam os polícias vestidos de negro, de rosto vermelho como presunto, antipáticos e brutais, de capacete arrogante e botas agressivas.

Violeta, apertando na manta o filho que tremia de frio como um pássaro arrancado do ninho, pensava, invadida pela nostalgia:

- Ah minha querida França, com as suas ruas onde se passeia e se palestra, com os seus bons polícias que conversam, com os vendedores de jornais e com os porteiros, com os ziguezagues pitorescos dos seus beberolas tão alegres! Ah! país bem amado, de risos e de alegre preguiça, de céu azul e nuvens claras e tranquilas, país de franco sol, de vinhos purpúreos e dourados, de frutos saborosos e maduros.

E à noite, depois de jantar num gabinete reservado, Jorge havia levado Lolette e Lolet ao Circo Olímpico. O rapaz, no fundo do camarote, a criança e a mulher à frente, tinham visto na multicor cintilação das toalhas de luz eléctrica, projectados até cegar sobre a arena espaçosa, uma prodigiosa assembleia de elefantes que saltavam à corda, de focas que brincavam com bolas enquanto os esquimós excitavam os leões nas suas jaulas, e negros passavam em trenós puxados pelas renas que lutavam com ursos. Peles vermelhas dançavam o bolero. E através do vivo anacronismo, desta mistura de arca de Noé, nesta visão de caos, no borborinho de apocalipse, nesta exibição e confusão, subitamente lançados nas alturas da cúpula, corridas de bicicletas e vôos de ginástica. Em baixo, na arena, entre a velocidade dos carros e as caçadas a laço, entre esses grupos de animais e de homens fazendo habilidades estranhas, impróprias e contra a sua natureza, surgiam palhaços vestidos de preto, de cara empoada, olhos espantados e boca sangrenta como um rasgão. As suas máscaras de agonia, tornavam-se de repente convulsas, em crises de angústia - todos imitavam os transes da morte, num silêncio trágico, com gestos de crime. E esta alegria muda, excessiva, misteriosa e macabra que provocava as gargalhadas de dez mil espectadores, inspirava à mãe e ao filho, apenas espanto e medo.

- Estes espectáculos - notou a jovem senhora - só são suportáveis pela incredulidade cínica ou pela ferocidade que mostram.

- São principalmente a característica do poder das Grandes Ilhas - replicou Jorge - todo o poder que condiciona o nosso gosto pelo muito e autoriza o nosso amor pelo excesso. Eles testemunham também o nosso crescente frenesi insatisfeito, pela visão de tudo ao mesmo tempo, cativando mais os nossos sentidos do que os nossos corações. Assim, sob as aparências incoerentes, esta manifestação toma um sentido curioso de nacionalidade própria e de modernismo agudo. É por isso que vos faço assistir a este espectáculo.

No dia seguinte, de manhã, fora da cidade, Jorge mostrou um desconcertante aspecto de minas de hulha e de castelos românticos do gosto mais execrável, de abismos negros e parques floridos, cuidadosamente tratados, de túneis sobre os quais havia torres modernas, estações da idade-média em plenos campos incultos e ferozes e tubos de ferro saindo de altos maciços de árvores, uma arquitectura gótica e feudal, barroca modernizada, banalizada à moda higiénica e prática, no meio de uma natureza completamente selvagem.

Depois, foi enfim a chegada, após duas horas de automóvel através deste país de lagos, à casa encantadora onde, havia muitos meses, Jorge, Lolette e Lolet tinham recomeçado a sua existência de sonho e de amor.

Desde os primeiros dias, presságio de felicidade, um vôo de cisnes, iluminando de brancura o tom cinzento do céu, abateu-se miraculosamente sobre as ondas dos lagos, não deixando mais, em todo o verão, as verdes ribeiras do parque. E como se, mensageiros de belos dias, tivessem dissipado os nevoeiros com o seu ruflar de asas, e trazido através das nuvens uma réstia de sol, tépidos raios haviam dourado a casa, o calor abrira as flores, o azul tinha-se espelhado na transparência das águas...

Aqui, as recordações de Violeta foram docemente interrompidas.

Passos abafados pela relva, uma silhueta inclinou-se na sombra e o ruído de um beijo na testa da sonhadora soou.

Risonha, Lolette ergueu-se e virou-se:

- Jorge!

E, fazendo sinal ao belo rapazinho de quatro anos, muito louro e extraordinariamente parecido com a mãe, para que se aproximasse, o marido explicou:

- Como vês, cumprindo a minha promessa, cheguei cedo. Convidei o Lolet, levamo-lo no escaler, ele prometeu ter juízo. Vem depressa, querida, vai anoitecer rapidamente pois já estamos nos primeiros dias do outono.

A jovem saltou da rede e os três, através das relvas e das sombras, desceram para o lago. Jorge desprendeu a amarra e ajudou sua mulher e seu filho a entrar para a yole. E ei-los velejando sobre as límpidas águas. Os cisnes brancos, familiares, fizeram cortejo. O barco deslizava ligeira e silenciosamente por entre os lírios, os sedosos penachos dos caniços e as cúpulas brancas e amarelas dos nenúfares de largas folhas tombadas sobre a água. O crepúsculo parecia hesitar ainda, planava em fina bruma de prata. A hora era deliciosa e repousante.

Na margem, em seu ninho, as rolas já dobravam as asas brancas; nos portos distantes as barcas também encolhiam as brancas velas. Tudo adormecia. Nenhum outro barulho além do bater de remos de Jorge ou do sussurro do zéfiro que acordava nos ramos de um salgueiro, que hesitava um instante e depois se lançava sobre o lago. Na passagem, Lolette julgou sentir-se aflorada por esse vôo, esse vôo que lhe lançava, num sopro fresco, todo o odor das rosas tardias da margem. Então, a jovem mulher e Jorge, imóveis e graves, deixaram ir a barca para onde a corrente a arrastava ou a impelia o zéfiro. Sentiam-se embalar e adormecer na indefinível e suave languidez daquela hora. Estavam impressionados pela melancolia do dia que agonizava docemente na noite pálida ainda, juntos pelo reconhecimento daquela beleza já cansada do verão que declinava e acabava no desfolhar enternecido do outono... E, de repente, Lolette estremeceu sob o beijo que acabava de lhe tocar o braço e de fugir em seguida. Comovera-se ternamente, enquanto os seus olhos interrogavam os olhos de Lolet e os olhos de Jorge. Quem lhe dera o beijo - o filho ou o marido? Esposa e mãe feliz, o desejo de que fosse um ou outro era igual. E foram os dois, pois, cúmplices, traíram-se pelo mesmo sorriso.

Os três corações batiam em idêntica união de felicidade.

Então, Violeta sonhou alto:

- Não parece o lago e o parque encantador de um bosque adormecido? Eu sou a princesa a quem acordaste já há uns anos, Príncipe Encantador, e que, desperta, julga sonhar ainda.

- E eu sou o principezinho do Dia - disse Lolet, que se metia em todas as conversas. - Eu conheço o conto, mamã. A Solange contou-mo ontem enquanto me adormecia.

- Há quanto tempo somos felizes, Jorge?

- Quase há cinco anos.

- Ainda não são felizes há cinco anos - observou judiciosamente Lolet - porque eu só tenho quatro!

Muito longe, no lago, mais longe do que já tinham ido, a corrente levava-os docemente para a margem oposta, margem ainda desconhecida. Uma cortina de árvores parecia afastar-se diante do escaler. Descobriram subitamente, em larga clareira, em extenso e selvagem deserto de terra inculta, um infinito de moitas, de juncos negros, de fetos ferrugentos, de digitalis e de giestas desfloridas, entre rochas de granito. No fundo, cobertos de pinheiros negros, elevavam-se bruscamente as colinas. Por cima dessa obscura floresta, o sol acabava de mergulhar num braseiro de incêndio, que avermelhava ainda todo o céu. No meio do campo, entre a colina feroz e a charneca triste, elevava-se uma fortaleza gótica, maciça, formidável, toda de pedra cinzenta, coberta de torres que tornavam as nuvens baixas. Heras sombrias e azevinhos cruéis trepavam até às janelas, ogivais, agarravam-se às vidraças orladas de chumbo. Pesadas torres flanqueavam as muralhas, encostando-se a elas, esmagando-as, enquanto que os seus alicerces mergulhavam na água morta dos fossos. E esta cidadela antiga, em frente do ponto vermelho, sob a ferida do céu, parecia trágica, quase sangrenta!

- Nunca aqui viemos! - murmurou Violeta, impressionada e presa de uma espécie de mal-estar. - Que castelo é aquele de aspecto tão sinistro?

E Jorge, baixando instintivamente a voz, respondeu à mulher:

- É uma das residências da Rainha.

Violeta estremeceu. Sentiu, na sua inexplicável previsão de desgraça, um frio passar-lhe de novo pelo coração. E espontaneamente preso pelo mesmo mal-estar da mãe, o pequeno Lolet perguntou, pensando sempre num conto de fadas:

- Este é o castelo da bruxa, papá?

- Que bruxa? - exclamou Jorge, admirado.

- A que queria ver morrer a Bela Desconhecida do Bosque Adormecido e aos filhinhos, quando o príncipe lá não estava.

Gracejando desta vez, Jorge tranquilizou o lindo garoto, mas Lolette, pensativa, não teve vontade de rir e perguntou:

- A Rainha habita ali com frequência?

- Sim, muita vez.

- Está lá, neste momento?

- Está.

- No entanto, parece solitário, abandonado e selvagem.

- O castelo de Névis dá essa impressão, de longe. As ondulações das charnecas, impossíveis de arrotear, mascaram o jardim e o parque que se estende até à orla da floresta. Inúmeros servidores a custo conseguem dar um pouco de vida a essa imensa fortaleza. De resto, aqui como em qualquer outra parte, a Rainha, mesmo no meio de numerosa corte, gosta de se isolar.

- Tua mãe também ali mora?

- Sim, ao pé da Rainha.

- E tua mãe sabe que nós vivemos tão perto dela?

- Não confiei o segredo do nosso retiro a ninguém. Mas nunca se sabe aquilo que minha mãe conhece ou ignora. O castelo de Névis, embora de aspecto feroz, é uma das mais belas residências do mundo.

- Gosto mais da nossa casa!

- E eu também!

- Voltemos - pediu Violeta, de coração confrangido sem que soubesse porquê. - Parece que arrefeceu e anoiteceu subitamente. A lua esconde-se mais pálida, na bruma e, como se o castelo maléfico espalhasse a sua tristeza por toda a paisagem, as águas turvaram-se, o vento suspirou, numa queixa, e as estrelas não ousam mais brilhar no céu.

Sem sorrir demasiado dessas impressões supersticiosas, Jorge remou com mais vigor. Violeta, arrepiada, via sempre esse cenário feroz, a antiga fortaleza ensanguentada sob o céu fulgurante e evocou o horror de um drama romântico, enquanto o pequeno Lolet se metia, friorento, debaixo da manta da mãe, pensando na bruxa do conto. O nevoeiro velava agora tudo. Nesse claro-escuro de limbos, os passeantes não distinguiam, adivinhavam os contornos das árvores, as curvas da ribeira. Mas Jorge conhecia o lago, e imprimiu impulso à sua barca. Abordaram, enfim, com um grande suspiro de alívio e atravessaram o parque para chegarem à casa, toda iluminada.

Eis o vestíbulo guarnecido de troféus de caça das florestas de Névis. Eis o hall de estilo moderno, com lambris de madeira das ilhas, de abóbada sustida por colunas como hastes de onde jorram capiteis de folhagem. Em cima da grande mesa, livros, revistas e jornais. Na outra extremidade ficava o bilhar. Em dois altos fogões - as noites já eram húmidas - achas ardiam. Por toda a parte, poltronas, bergères profundos e largos divãs. Depois, de cada lado do hall, dois salões atapetados, forrados de seda japonesa onde se abriam, em bordados multicores, florações de primaveras. Vitrines, prateleiras delicadas cheias de lembranças de viagens, porcelanas da China, transparentes e frágeis, bibelots raros, marfins, cristais de Veneza. E, por toda a parte, imensas janelas abriam para o parque e faziam desta habitação feérica, tão florida por dentro como por fora, uma espécie de Palácio de Cristal, situado no meio de uma abundante verdura.

- É cheio de sombra e de perfume este nosso ninho de amor! - gostava Violeta de repetir.

No regresso, Jorge e sua mulher tinham-se separado no vestíbulo. Reapareceram daí a pouco no hall e, por um hábito de elegância querido nas Grandes Ilhas, o rapaz vinha de casaco e a mulher em toilette de tule claro. Fresco e gentil, Lolet, à marujo, de calça branca, saía das mãos de Solange lavado, penteado, escovado e perfumado como um botão de rosa.

E o jantar dos três, muito simples e frugal - sopa, geleia de truta, carne assada, legumes, cremes, doces e salada de fruta - foi como sempre, alegre e familiar.

No hall, sob a luz velada pelas mousselines, Jorge, sempre conversando com Lolette e brincando com o filho, acendia um cigarro. Mas o mais frequente era irem para o salão mais pequeno, mais íntimo. E, recolhido, na sua calma felicidade, Jorge sorria à graça adorável de Violeta, que, para lhe servir o café, passava diante dele no seu vulto esbelto e moço, bela, graciosa, jovem e encantadora. Estava realmente tão deliciosa com os seus tules diáfanos, que parecia uma beleza de sonho, uma forma nimbada de sedução ideal e sobrenatural.

- Tenho uma grande novidade a dar-te - declarou Jorge, pondo a chávena na bandeja. - O meu soberano, o Príncipe Herdeiro, vai casar.

- E é gentil o Príncipe Herdeiro?

- Que entendes tu por gentil?

- Ser afável e bom.

- Hum... precisamente, não. Mostra-se às vezes, rude, violento, de génio sombrio e caprichoso. Mas felizmente, tem muitas outras qualidades: é inteligente, generoso e corajoso.

- E com quem casa o teu grande patrão?

- O meu patrão, como lhe chamas, casa com uma princesa alemã. O noivado foi decidido já há doze anos, em 1892, no momento em que, a propósito da independência da África do Sul, esteve para haver guerra entre as Grandes Ilhas e a Alemanha. A Imperatriz Rainha, de quem essa jovem princesa é sobrinha e afilhada, teve a genial ideia de conjurar os temíveis perigos de um conflito europeu com uma espécie de pacto familiar. Mandaram vir para a corte essa filha do Kaiser, educaram-na junto da nossa Soberana e deram-lhe as honras reservadas de uma princesa real. E a promessa dum casamento onde seriam resolvidas as questões coloniais, onde se "planariam as rivalidades marítimas e as dificuldades políticas pendentes, até então, entre os dois estados, satisfizeram a ambição do soberano da Alemanha, sem todavia acalmar os rancores do seu povo. A guerra com o Império, no momento em que as revoltas na Ásia, a pacificação da África meridional e os progressos da Rússia na Manchúria imobilizavam as nossas forças, teria podido e pode ainda ser fatal para nós. O Kaiser, instigado pela impaciência dos alemães, que nos detestam e que nós detestamos, julga hoje a ocasião favorável para reclamar da Rainha o cumprimento da promessa. E esse casamento, imposto pelas necessidades da política, e há tanto tempo adiado, não deve tardar. É o que pode acontecer às Grandes Ilhas e a nós próprios, de mais feliz.

Violeta gostava pouco de política e ouvia distraída estas explicações. No entanto, perguntou:

- E à parte o interesse político, a vossa Rainha deseja esse casamento?

- Sei de fonte segura que o deseja apaixonadamente. A princesa Augusta, sua sobrinha e afilhada, cresceu na corte, debaixo dos seus olhos e da sua direcção. A nossa soberana, que geralmente manifesta pouca afeição pelos seus, mostra uma estranha ternura por essa pequena.

- E a princesa é gentil? - perguntou de novo a jovem senhora.

- Oh! não, absolutamente nada gentil no sentido a que te referes, Lolette. Augusta é muito bela, mas fria, altiva, ciosa das prerrogativas da sua classe. É preciso não esquecer isto: a princesa, a despeito da sua situação preponderante no palácio, foi, muito nova, tirada do seu país e trazida para uma corte estrangeira. Depois, o povo, por instinto e pela única razão de ela não ser das Grandes Ilhas e de lha imporem como futura Rainha, não a ama. Correntemente chama-lhe a alerta. Além disso, o Príncipe Herdeiro, apesar dos esforços do Grande Chanceler e das insistências da Rainha, sente uma verdadeira antipatia pela noiva. com os mais variados pretextos tem adiado sempre o casamento. Foi assim que a princesa, numa longa e mortificante espera, foi perdendo & mocidade. Já tem vinte seis ou vinte e sete anos.

- E essa união é agora coisa decidida?

- Decidida, mas não anunciada oficialmente. No entanto, o Príncipe compreende os terríveis perigos duma ruptura com a Alemanha. Aconselhado pelo Grande Chanceler, convencido pelo ministro e instigado pela Rainha, parece resignar-se. No último conselho, numa conversa que teve com o embaixador da Alemanha, em presença da mãe, o Príncipe Herdeiro soube sem dúvida render-se à razão de Estado porque não opôs, como de costume, argumentos para não receber as propostas respeitantes ao casamento. Ele, que não consentiu nunca em assistir a festas onde se encontrasse com a noiva, acaba de aceder em comandar, na presença da Rainha e da Princesa, a grande revista de Bruhm que deve, dentro de uns dias, terminar a inspecção geral do exército.

- E assistirás a essa revista, Jorge?

- Faço mais: figuro nela, a cavalo, entre os ajudantes de campo de Sua Alteza Real.

- Ah! quero ver-te!

- Talvez seja possível. Consultarei meu irmão e, se ele aprovar que tu apareças nessa revista, trarei um cartão de convite. De resto, o casamento do Príncipe, por razões que não pudeste compreender até agora, talvez me permita revelar-te uma parte do mistério que rodeia ainda a nossa vida e que tanto te magoa!

- Acabar-se o mistério! Que felicidade! Tu, Jorge, pessoalmente, gostas desse consórcio?

- Infinitamente. É, por várias razões que te explicarei, a segurança do nosso lar. Casado, o Príncipe compreenderá melhor a nossa situação, - dar-me-á mais liberdade e será, assim o espero, mais indulgente em muitas coisas. Talvez mesmo use de uma influência maior para conseguir que a Rainha e minha mãe nos sejam mais favoráveis. Depois, no que diz respeito ao próprio Príncipe, desejo esse casamento não menos ardentemente. O Príncipe tem um temperamento exaltado, febril e apaixonado. A sua saúde e o seu carácter acabarão por se ressentir da vida que leva. É tempo que ele repouse numa intimidade familiar. À sua volta, toda a gente se sente contente.

- Salvo ele, talvez - observou Lolette. - Não conheço nada de pior do que um casamento sem amor.

- Acabará por amar a mulher. A afilhada da Rainha tem sérias qualidades.

- Já viste a princesa?

- Muita vez. Presentemente vejo-a quase todos os dias no castelo de Névis.

- E ela digna-se dirigir-te a palavra?

- Sim, às vezes, e devo dizer-te que de uma forma muito benévola.

- Vês! Essa alta e virtuosa dama não é insensível ao respeito de um bonito rapaz! Felizmente que eu não sou ciumenta. No entanto, não te fies muito!

- És louca, Violeta!

- E essa altiva e fria alteza agrada-te?

- Não. Mas inspira-me, a despeito da sua grandeza, um pouco de compaixão. Apesar de a saber orgulhosa, lamento-a por causa da longa humilhação a que a tem sujeitado o desdém do Príncipe. Eu creio que ela dantes amou o seu real noivo, mas tanta ofensa alterou esse amor. Uma vez casada e com o trono assegurado, o seu carácter amargo há-de adoçar-se.

- Oh! eu não a lamento! - disse Violeta, espontaneamente. - Pode ser que ela seja orgulhosa, mas não é altiva; se não ama já o Príncipe e ele não a ama, devia renunciar ao enlace.

Nesse momento, Solange apareceu. Era a hora de Lolet ir dormir. A criança, nunca saía do hall sem pedir um quarto de hora de tolerância, mas nessa noite, beijou o papá e a mamã, sem protestar e, documente, deu a mão à velha Solange, que o levou aos seus' aposentos. À' saída, deu a explicação desta submissão suspeita com este insistente pedido:

- Solange, antes de adormecer, hás-de contar-me a história da Bela Adormecida. Agora hei-de compreendê-la melhor pois já conheço o castelo da bruxa.

Violeta ficou contrariada com esta recordação obcecante da criança e disse:

- Conta-lhe histórias alegres, Solange, peço-te.

- Assim que a velha e o pequeno saíram, Lolette aproximou-se de Jorge. com as cortinas descidas e as portas fechadas, era a hora deliciosa das conversas confidenciais.

Sentada no divã, encostada ao esposo, sentindo o momento propício para a pergunta premeditada interrogou meigamente:

- És realmente feliz, Jorge?

- Tão feliz, que desejo a todos os homens uma felicidade igual!

- Tu és bom...

O jovem, não podendo deixar de admirar esse delicioso rosto encostado ao seu ombro, com os olhos encantadores, ao mesmo tempo maliciosos, de riso e de ternura profunda, respondeu:

- Também tu és boa, Lolette. Exalas felicidade. Todos quantos vivem ao pé de ti, eu, Lolet, Solange, a nossa gente, tudo respira e reflecte a tua felicidade. Os teus olhos límpidos são como duas flores em que cada belo dia de ternura deixa, em lagrimazinhas ternas, um orvalho refrigerante. Adoro os teus lindos olhos.

- Tu nunca os farás chorar, promete-me, a estes teus olhos que amas?

- Prometo, meu amor.

- Ah! É um sonho tão belo este que me fazes viver, meu Jorge bem amado, um tão belo conto de fadas, que receio despertar bruscamente e ver o encantamento dissipar-se de repente. Ah! se a ilusão voasse, morria...

E, aproximando-se mais, muito pequenina e friorenta, para melhor se sentir envolvida pelas carícias do marido, acrescentou baixo, vagamente trémula:

- É de tal maneira maravilhoso o nosso romance de amor, que, para acreditar nele, preciso sempre dos teus beijos. A nossa felicidade, de Lolet e minha, é feita desses beijos, do meu marido querido, e no dia em que as tuas carícias nos faltarem, tudo nos faltará; no dia em que não te tiver, não terei nada no mundo. Ah! eu sei, sim, eu sei que, com a tua poderosa vontade, não desejas deixar-me nunca... mas não haverá no mundo vontade mais poderosa do que a tua?

- Diz ao menos os teus receios para que eu tos acalme.

- E sei eu por acaso do que tenho medo? O que Receio é indefinível, não sei porquê, mas debaixo do céu brumoso e triste das Grandes Ilhas, a segurança confiante que tinha debaixo do meu sol de França, desaparece. Quando vem o crepúsculo e tu não voltas, parece-me que uma desgraça distante, muito distante, do fundo da Sombra, nos ronda e espreita de noite, a Lolet e a mim. Sem ter ido nunca tão longe como hoje, no lago, sentia já uma espécie de mal estar e de opressão a vogar sobre as águas, na outra margem. Quando esta tarde, pela primeira vez, descobri esse castelo imenso, sombrio e silencioso, senti que todos os meus receios confusos se precisavam nessa casa fatal: a minha desgraça mora ali.

Pálida por esta incompreensível angústia, olhou para Jorge, espiando o efeito que lhe produzira esta confidencia. Via-o sorrir, mas pareceu-lhe que esse sorriso era fugitivo e contrafeito.

- Juro-te - afirmou o rapaz - que as tuas inquietações não têm fundamento. Tu és minha mulher diante de Deus e dos homens. Quem, neste mundo, por poderoso que seja, poderá qualquer coisa contra o nosso mútuo juramento?

Como ele envolvesse estas palavras em muitos e embriagadores beijos, Lolette acalmou-se. Menos preocupada, acrescentou:

- E depois, esses cisnes de neve, essas aves de felicidade, vindo de longe até nós, como presságio de casta ternura, então agora aclimatados ao céu, à sombra, às águas deste país. Nunca mais se irão embora... não deixarão mais as nossas margens... impedirão que a desgraça desça sobre o nosso parque encantado. E fiéis como nós, continuarão sempre no lago de Névis, como vigilantes guardas do nosso amor.

- Supersticiosa!

- Acreditas que sou bastante criança para todas as manhãs, abrir a gavetinha secreta do armário Renascença que me compraste, para contemplar a borboleta do alfinete que aí guardei e para ler e reler, desde a primeira à última letra, as nossas certidões de casamento do Consulado e do Templo. Preciso, assim que tu sais, de percorrer esses dois preciosos papéis para ter a certeza de que a nossa união não é um sonho. Achas que continua tola e pueril, a tua Lolette?

- Continua verdadeira, natural, encantadora e eu adoro-a por causa disso.

 

Na véspera da famosa revista, Violeta não deixou de perguntar a Jorge:

- Falaste com teu irmão? Ele vê qualquer inconveniente em que eu vá a Bruhm, ver-te desfilar a cavalo, entre os ajudantes de campo do Príncipe?

- Não vê nenhum inconveniente sério. Pretende que, a despeito das nossas precauções, há muita gente que não ignora a nossa felicidade. Fala-se dela na corte e até entre o povo. Ele acha que o segredo daqui a pouco é inútil e não terá outra significação de futuro senão uma última deferência para com a vontade de minha mãe. No dia do casamento do herdeiro do trono, a nossa união, segundo a opinião de meu irmão, poderá ser, senão oficializada, pelo menos declarada.

- Já gosto do teu irmão. Porque não mo apresentaste?

- Receio contrariar minha mãe se o trouxer. Mas em breve... ele virá...

- Já que posso ir, pensa em me arranjar um convite.

- Já pensei. Aqui tens o teu camarote nas tribunas. Juntei uma palavra ao convite, que te servirá de livre trânsito. A nossa soberana, apesar de não gostar de aparecer em público, desta vez abrirá uma excepção. Ela irá só, na sua caleche, como de costume, presidirá à revista. A princesa Augusta seguirá a Rainha num segundo carro e espero que, no regresso, o Príncipe consentirá em tomar lugar ao pé da noiva. Tudo isto desperta a curiosidade do público, espera-se grande afluência.

- E Lolet?

- Podes levá-lo.

- Que bom!

- Faz-te conduzir até à entrada das tribunas, em automóvel, e parte cedo para Bruhm - recomendou Jorge. - Assim evitarás a multidão e chegarás ao teu camarote sem obstáculo. Faz-te muito bonita, tenho excelentes razões para desejar que todos te admirem tanto como eu. Não vejo mesmo nenhum inconveniente em que te amem um pouco.

No dia seguinte, por uma bela e tépida tarde, tendo completamente esquecido os conselhos de Jorge e constatando que chegara cedo, a jovem mandou parar o automóvel no Parque Alberto e resolveu ir a pé, com Lolet, até ao campo de manobras onde se realizava a revista.

Violeta conhecia Bruhm muito mal; tinha-a atravessado de noite e com nevoeiro. Guardava dela uma sinistra impressão. Do Parque Alberto às tribunas tinha que atravessar um bairro rico e animado. Não era uma bela ocasião de fazer uma ideia da maior cidade do mundo.

Quase certa de encontrar o seu caminho, pois tinha aprendido a língua das Grandes Ilhas durante a viagem e já não a falava mal, a jovem, sem se preocupar de atrair os olhares para a sua toilette elegante de mousseline clara, apertou a mãozinha de Lolet e deu-se ao prazer de passear pelas ruas.

Lolet, de nariz no ar, maravilhava-se ante os inúmeros fios telegráficos que se cruzavam sobre as casas de oito e dez andares.

- Parece uma teia de aranha - notou o garoto. - Como é que fazem para os balões encarnados subirem ao ar?

Mas a sua mãezinha entretinha-se a ver os caos cortando sem medo a fila das carruagens, pequenos ómnibus, cujos condutores desciam para convidar os viajantes. Divertia-a, sobretudo, ver cada um correr para os seus negócios, o busto inclinado para a frente, os cotovelos para fora, com grandes pernadas de autómatos rígidos.

Os homens vestiam fatos cinzentos, de riscas excêntricas, luvas vermelhas e longos sapatos amarelos. Mangas estreitas e calças justas. As senhoras, de cabelo ao alto, achatado nas fontes, arregaçavam desgraciosamente saias multicores, embaraçadas com o guarda-chuva, o saco, a capa de borracha e as galochas. Rapariguitas pálidas, de cabelos curtos, de olhos claros e fugidios, espreitando os polícias, vendiam furtivamente avelãs picadas de bicho, maçãs verdes e cachos de uvas, engelhadas e ácidas que embotavam os dentes. Depois eram mulheres do povo, miseráveis, derreadas por cestos muito pesados, que punham o fardo em terra, para abotoar as luvas, ou criados com as mangas arregaçadas sobre os braços vermelhos e o busto vergado, lavando as lojas, trazendo na cabeça chapéus de plumas, de flores e de fitas. Passaram soldados com botas até à cintura, boinas vermelhas postas ao lado, tocando de passagem, com a ponta do chicote, o nariz da bonita rapariga que chegou à porta da loja e que era talvez a sua noiva desse dia.

Lolette e Lolet pararam em frente de imensos cartazes amarelos, verdes, vermelhos, azuis e cor de malva, nos quais Julieta, na sacada, e Romeu, com um pé na escada de corda e o outro a cavalo na balaustrada, bebiam na mesma taça. Noutros cartazes não mais pequenos, o rei Lear, demente, desgrenhado, afrontava o temporal espantoso sob um guarda-chuva aperfeiçoado e de preço excepcional.

Depois, foi ainda em misturada, metais sonoros, grandes tambores rufando, uma galopada do Exército da Salvação sob os flocos de neve de pequenas brochuras, atiradas para salvação das almas.

Violeta recuou, aproximou-se das montras das lojas, demorou-se nas livrarias, nas papelarias, nos vendedores de fotografias. Fixava os olhos nos retratos das pessoas célebres, romancistas, ministros, cantoras, médicos, exploradores e autores trágicos, quando Lolet, puxando-a pela manga, e apontando com o dedito uma das fotografias, exclamou, de repente:

- Olha, mamã, o retrato do papá!

Os olhos de Violeta depressa encontraram a fotografia que a criança lhe mostrava. Abafou um gritinho de surpresa:

- Sim, é verdade. é o Jorge!

O rapaz vestia uniforme de oficial, sem condecorações. Na fotografia não havia qualquer menção. E, no entanto, estava exposta em bom lugar, como se fosse um retrato de venda certa.

O coração da jovem bateu. Durante segundos, um escrúpulo fê-la hesitar; depois, lembrou-se das palavras do marido, da sua promessa de tudo lhe revelar em breve.

- Não há perigo na minha curiosidade, a prova é que o Jorge consentiu que eu viesse a Bruhm. Não quer dizer-me ainda o seu segredo, mas até ficará contente se eu o adivinhar.

Arrastou Lolet para a loja onde estavam outros compradores. E, com a voz estrangulada pela emoção, perguntou ao lojista:

- De quem é a fotografia que tem ali na montra?

- O negociante designou um a um os escritores, os ministros, as actrizes e os exploradores perguntando: - "Este, minha senhora, este" - mas nunca indicou a fotografia que se parecia com o Jorge.

Violeta saiu da loja e, apontando com o dedo trémulo o vidro, disse:

- Não, aquele... O rapaz de bigode, em uniforme simples.

- Ah! - disse o negociante. - Também o temos à paisana, em oficial de marinha, a cavalo, em busto, a pé, e em formato maior: a três quartos, de perfil e de frente. Se quer entrar, minha senhora, mostro-lhe todo o sortido.

Parecendo de propósito, o negociante tinha dito tudo, excepto o nome do oficial.

- Desejo saber o nome desse oficial! - disse Violeta, fremente de impaciência.

À palavra oficial, o negociante teve um ar vexado e, desconfiado, replicou:

- Julguei que a senhora não estava a fazer essa pergunta a sério. Toda a gente aqui conhece o conde de Belfast!

- Ah! é o conde de Belfast! - disse Violeta, comovida, embora esse nome nada lhe dissesse. - Quererá ter a gentileza de me dizer quem é o conde de Belfast? Tem algum alto emprego na corte? Não é um dos ajudantes de campo do príncipe herdeiro?

- A senhora está a troçar de mim! A senhora conhece o conde de Belfast tão bem como eu!

- Pois conheço, o que não me impede de ignorar quem ele é.

O negociante não duvidou mais que esta linda senhora troçava dele.

- Oh! a senhora brinca! É francesa, e por conseguinte, trocista! Mas nós, em Bruhm, não temos génio para suportar mistificações de estrangeiros, por mais espirituosos que sejam. A senhora quer comprar ou não?

- Quero comprar.

- Então, enquanto atendo os outros clientes, escolha e, quando resolver, diga.

- Já decidi. Compro esta fotografia - disse Violeta, apontando um retrato de Jorge, no qual estava escrito: Conde de Belfast.

Pôs meia coroa no balcão, recusou o troco e, julgando ter domesticado o negociante pagando a fotografia pelo dobro ou o triplo do seu valor, arriscou outra pergunta:

- Seriamente, senhor, o conde de Belfast é pessoa importante no exército? É pessoa célebre ou foi por acaso que expôs o seu retrato na montra?

- Oh! que engraçado! - retorquiu o negociante, cada vez mais vexado. - A senhora é muito espirituosa para nós. Aqui tem o troco. Nós só aceitamos o preço da mercadoria e nada mais.

Descontente, embora a custo dominasse a sua vontade de rir, Violeta guardou a fotografia na algibeira, deu a mão ao filhinho e dirigiu-se para o campo de manobras.

- Já sei o nome de família de Jorge - pensava. - Eu sou a condessa de Belfast. Mas não avancei mais do que isto. Como hei-de convencer as pessoas que eu, sua mulher, vivo num isolamento de felicidade tão profunda, que, conhecendo a alma do conde de Belfast, ignoro a sua posição social?

Já tinha andado muito, pensativa, absorta nas suas reflexões, dando pouca atenção às perguntas de Lolet.

- Ainda falta muito para chegarmos ao campo de manobras? É que eu já estou cansado, mamã!

Uma exclamação mais viva da criança fez estremecer Violeta.

- Oh! mamã, tanta gente Por ali é que se deve entrar para ver a revista.

Violeta levantou os olhos e viu efectivamente uma multidão imensa que se comprimia a uma porta monumental que dava acesso ao imenso campo de corridas. Ela apressou-se, lamentando ter andado a passear. Esquecendo as prudentes recomendações de Jorge, não se arriscaria agora a encontrar as tribunas cheias?

À medida que Violeta avançava, a multidão tornava-se mais compacta fazendo desesperar de se poder abrir caminho. Lolet, abafado entre pessoas maiores do que ele, arranjava valentemente lugar com os pés e com as mãos.

Desolada à ideia de perder a parada, Violeta decidiu dirigir-se a um oficial da polícia que estava no meio do grupo dos guardas, a cavalo.

- Senhor - disse ela, amável - eu queria entrar para as tribunas com o meu filhinho... e não consigo! Não me podia facilitar o acesso?

O polícia comoveu-se ao contemplar o lindo rosto e a deliciosa toilette clara e vaporosa. No entanto, objectou:

- Impossível, minha senhora. Não se entra sem convite.

- Mas eu tenho convite, e mostro-lho. Espere.

- A jovem senhora apresentou o cartão.

- Sim, é verdade, minha senhora - disse o oficial, de repente, infinitamente mais respeitoso. - É um convite da corte. Mas o cartão indica que é preciso chegar antes da uma hora e já é quase uma e meia. É tarde para passar. As manobras vão começar.

- Oh! senhor, que pena! Se pudesse saber que importância tem para mim assistir a esta revista! Veja o meu convite, tem no inverso qualquer coisa escrita à mão, que talvez reconheça.

- Sim, tem realmente qualquer coisa escrita. Quem escreveu essa ordem?

Violeta sorriu:

- Quem me deu o convite.

E, corajosamente, disse ao acaso:

- O conde de Belfast!

A atitude benévola do polícia tornou-se imediatamente obsequiosa.

- Isso é diferente! Queira ter a bondade de vir por aqui, minha senhora; chamo uma brigada de agentes e faço-lhe abrir caminho entre a multidão.

- Oh! como é amável, senhor.

Tudo se fez rapidamente; dez sólidos polícias foram reunidos. O oficial disse a Lolette:

- Não se canse a segurar esse lindo menino, minha senhora. Um dos meus homens leva-o. tom, pega no pequeno lord. A senhora é uma convidada do conde Jorge.

Os polícias apressaram-se ao ouvirem esse nome. E, logo conquistados pela afabilidade dessa jovem e linda senhora, caminharam em redor dela repetindo a meia voz as palavras do chefe e meneando a cabeça com um sorriso.

- O conde de Belfast costuma convidar muitas vezes senhoras para assistirem a revistas? - perguntou Violeta.

- - Oh! não É a primeira vez que nos chega uma senhora convidada por ele. Por isso estamos encantados por nos pormos às suas ordens. O conde Jorge não é orgulhoso, minha senhora. Quando se apresenta ocasião, digna-se conversar connosco. Por isso o amamos e a ele somos extremamente dedicados. Se tiver ocasião de lho dizer, minha senhora, não se esqueça. Ficaríamos muito contentes.

- Dir-lho-ei esta mesma noite - respondeu Violeta, levianamente na alegria de saber seu marido assim tão amado e popular.

Os sorrisos acentuaram-se.

- Ele é lindo, o pequeno lord - murmurou tom, que levava a criança nos braços e parecia orgulhoso do seu fardo. - E nada carrancudo, mesmo nada!

E baixo, segredou a um dos homens:

- Já reparaste que se parece com o conde Jorge, este pequeno gentleman, Parece-se muito!

O reparo de tom impressionou toda a escolta.

Assim, a jovem pôde atravessar a multidão. Lolet entristeceu por ver as pessoas empurrarem-se à sua volta. Violeta intercedia: "Tome cautela! Não magoe ninguém!"

tom, afirmava-lhe, com o aprumo devido ao seu lugar.

- Pode-se empurrar a multidão, minha senhora, não faz mal. Quem se junta à porta, neste momento, é a ralé.

Violeta teve por isso ainda mais compaixão. Confusa e desolada, pôde enfim penetrar no recinto. Um grupo de oficiais superiores estava à entrada, ao pé da passagem para os camarotes da tribuna.

Tom exibiu o cartão de convite de Jorge, sublinhando com o seu dedo grosso a palavra escrita no cartão. Logo, a um sinal do seu chefe, muitos oficiais avançaram, oferecendo o braço a Violeta para a conduzirem ao camarote. Mas notando a expressão desolada de tom e dos outros, ao verem-se suplantados, ela recusou:

- Obrigado, senhores. Se me permitem, continuarei acompanhada apenas por estes bons rapazes que já me prestaram um grande serviço.

- Como desejar, minha senhora. Lamento que não nos deixe ser-lhe útil - disse um dos oficiais, que tinha feito sinal aos outros para se aproximarem.

Muitos, dentre eles, tinham lido a palavra escrita no bilhete. A notícia espalhou-se rapidamente. Os oficiais falavam em segredo. O círculo cerrou-se e, vendo-se objecto de todas as curiosidades, Violeta teve ainda mais pressa em se escapar. Um desses militares deu explicações aos agentes de polícia:

- O camarote desta senhora é o primeiro, um pouca à esquerda de Sua Alteza Real, a princesa Augusta. Se tiverem a mínima dificuldade em lá chegar, venham-me buscar.

Violeta, outra vez guiada por tom, afastou-se, enquanto os oficiais, depois de a terem saudado respeitosamente, continuavam a conversar a meia voz, sorrindo furtivamente:

- Deliciosa! Encantadora! Uma verdadeira beleza! E o garoto também é lindo!

- O verdadeiro retrato do conde de Belfast, não é verdade? - murmurou um dos oficiais, baixando instintivamente a voz.

Lolette estava já no seu camarote.

- Entre, minha senhora, depressa, e deixe a passagem livre - disse tom, precipitadamente. - A revista vai começar, os tambores já anunciam a chegada da carruagem real.

Violeta entrou rapidamente no camarote descoberto que lhe estava reservado. Admirou-se de ver o parapeito engalanado com uma colcha e também de encontrar duas poltronas de veludo, uma delas com almofadas, para Lolet.

- Quem cuidaria tanto de nós? - pensou. Sentou-se com o filho. Depois olhou à sua volta para os degraus cheios de gente, para o imenso prado onde se agitava a massa confusa dos regimentos, homens e cavalos, onde cintilavam ao sol as baionetas, os sabres nus, os capacetes e as inúmeras couraças. Perante estes milhares de espectadores imóveis, as trombetas cobrindo o rufar dos tambores, soltaram toques claros e vitoriosos.

Toda a gente se levantou espontaneamente. Violeta, emocionada em frente deste espectáculo grandioso, que a imensa multidão também sentia, vendo todos de pé, levantou-se e fez Lolet pôr-se em pé, na cadeira.

A Imperatriz-Rainha, numa carruagem puxada a quatro cavalos, acabava de passar diante das tribunas. Violeta, mal teve tempo de aperceber um vulto negro, um rosto pálido, pesado, impassível, uns olhos inexpressivos e como que vazios de olhar. Mal apareceu, a Soberana foi para debaixo das pesadas guarnições do seu camarote, invisível e misteriosa. Lolette tinha sentido a impressão de ver uma máscara enigmática e um rosto coberto de gordura esverdeada e de indiferença, de uma cara de cera que já não parecia humana, nem sequer viva, que já nada mostrava de uma alma estranha e longínqua, talvez de uma alma morta.

A jovem senhora guardou desta rápida visão uma dolorosa lembrança. Assim como diante do castelo de Névis, um frio lhe passou no coração, agora também estremeceu num inexplicável pressentimento de desgraça.

A voz de Lolet tirou-a desta espécie de tristeza:

- É a Rainha, não é, mamã, aquela senhora velha e tão pálida?

- Sim, meu amor, é a Rainha.

- Parece que está a dormir, com aqueles olhos que olham para tudo e não vêem nada.

E acrescentou sob a mesma influência obcecante de sua mãe:

- Parece que a Rainha quer fingir que dorme ou que está morta! Parece a bruxa quando comeu muito.

- Lembra-te que é a soberana do teu papá, a nossa soberana: devemos respeitá-la.

- Oh! eu respeito-a, mamã! Não viste que quando ela passou tirei o chapéu para a saudar como todos os senhores mais crescidos do que eu? Ia mesmo a gritar: "Viva a Rainha". Mas pareceu-me que, sem mexer a sua grande cabeça mole ela voltou os olhos para o nosso lado. Eu não sou medroso, mas aquele olhar agarrou-me e não pude gritar, a voz estrangulou-se-me na garganta. Porque tem ela um olhar assim, mamã? Não é cega, pois não?

- Não, não é cega - disse Violeta. - Mas não fales agora. Ouve a música, admira a manobra, vê como os soldados fazem todos ao mesmo tempo os movimentos que lhe comandam.

E Lolette procurou também esquecer os olhos desse rosto impassível, imóvel, esses olhos turvos e vítreos, que a tinham envolvido e ao filho, num olhar vazio, num olhar que parecia tudo observar sem nada reflectir. A Rainha desapareceu sob os pesados reposteiros do seu camarote de honra. Violeta, liberta de um mal de hipnotismo, pôde gozar o soberbo espectáculo que tinha diante dos olhos. Lolet impacientou-se:

- Mas aonde está o papá? Queria vê-lo! Tu disseste-me que ele passaria a cavalo com um lindo uniforme! Porque não passa?

E, sem notar que a esta exclamação da criança as pessoas se voltavam para ela, Violeta sorria, na plenitude da alegria. E essa alegria tornava-a tão linda que os olhos que a fitavam um momento, voltavam a olhá-la demoradamente.

Entretanto, a manobra, muito pequena, acabou sem aplausos por respeito pela Rainha.

Em breve um murmúrio correu entre a multidão:

- O Príncipe Real vem à frente dos regimentos, o desfile vai começar!

E o desfile começou.

Sobre um cavalo branco, o Príncipe-Herdeiro marchava à frente, parecendo muito alto, à distância. Mas o seu aspecto era pesado; a sua longa barba ruiva, cobria a correia do seu capacete. Vestia uniforme vermelho de alamares e galões de ouro.

Imediatamente atrás do Príncipe Real, levando um boné semelhante e separado do estado-maior pelo porta-bandeira, Violeta viu então avançar, montando um cavalo negro, saudado por um murmúrio de simpatia da multidão, um esbelto, um elegante e ágil cavaleiro, de uniforme azul, bordado a prata. Trémula, pálida, a respiração cortada pela emoção, a mais pungente da sua vida, a jovem julgou reconhecer... e no entanto não ousou reconhecer o seu Jorge!

Não seria vitima de uma miragem, joguete de uma ilusão?

A sua perturbação era tão grande que se lhe enevoaram os olhos. Agora já não reconhecia Jorge nesse altivo cavaleiro, não reconhecia nada; pensava ter-se enganado. Mas ao pé dela, Lolet que tinha bons olhitos, que a alegria tornava ainda mais penetrantes, levantou-se de repente, trepidante de entusiasmo, como um verdadeiro diabito, e bateu com todas as forças as suas mãozinhas:

- Papá! Olha, mamã, olha, é o papá! É o segundo, no cavalo preto! Oh! como ele vai bonito! Viva o papá! Viva o papá!

O Príncipe e Jorge passavam diante das tribunas, ao alcance da voz. Um e depois o outro, baixaram o sabre diante do camarote de honra para saudar a Rainha. Mas, feita a sua saudação, Jorge, que talvez tivesse ouvido a exclamação de Lolet, não pôde deixar de sorrir. E o rapazinho, virando-se para a mãe, disse, encantado:

- O papá sorriu! Viste mamã! O papá sorriu!

- Muitas pessoas olharam para a jovem senhora e para a criança. Admiraram a mamã; mas, olhando para o belo garoto não despregaram os olhos dele, dizendo segredinhos.

Violeta não pôde dominar a sua perturbação. Não distinguia nada, os seus pensamentos eram confusos, as perguntas multiplicavam-se-lhe no espírito. "Porque irá o Jorge logo a seguir ao Príncipe Real, separado do Estado Maior pelos porta-bandeiras? Será ele um próximo parente do herdeiro da coroa?

Esta ideia, na qual não ousou deter-se, causou-lhe uma vertigem. Mas, em vez de sentir orgulho, sentiu de repente uma imensa inquietação.

Lembrou-se do estranho olhar da Rainha e teve medo desse olhar, teve medo de todos os olhares fitos sobre ela. Não pôde conter as lágrimas que lhe vieram aos olhos. E, numa irreprimível emoção, num receio, insensato mas instintivo, de perder Lolet, sentou a criança nos joelhos, apertou-a nos braços, beijou-a com a efusão espontânea da sua alma amante.

Olhavam-na cada vez com mais atenção. Adivinhariam todos o segredo que só ela não ousava adivinhar?

Acabado o desfile, a Rainha tinha ido logo para o seu carro. A polícia impedia a saída dos camarotes, parando o trânsito para arranjar passagem à carruagem da Soberana. Os espectadores, em pé, não tinham mais nada interessante a contemplar no campo de corridas. Formavam-se numerosos grupos diante do camarote da jovem. Um murmúrio de curiosidade e admiração elevava-se de vez em quando. Lolette estava confusa. A sua atitude graciosa, o seu olhar doce e encantador, ainda húmido de lágrimas, os seus ternos sorrisos, dirigidos a quantos examinavam com benevolência o seu filhinho, contrastavam tão lindamente com o aprumo forçado e os olhares de desprezo das outras senhoras que ocupavam os camarotes reservados para a corte, que a simpatia da multidão foi unânime e súbita.

- Ela é linda - segredavam - e o garoto é exactamente o nosso conde Jorge.

O rumor corria, espalhando-se de grupo em grupo. Em volta da jovem, a multidão, cada vez mais curiosa, tornava-se compacta, tão compacta que Violeta teve um grande desejo de sair daquele camarote como de um pedestal exposto a todos os olhares.

Tom e alguns polícias, em observação a pequena distância, adivinharam o desejo da jovem e aproximaram-se.

- A carruagem da Rainha acaba de passar - disse Tom. - Mas esperam ainda porque a carruagem da princesa Augusta está parada diante da tribuna real. A princesa deve regressar com os príncipes, que naturalmente estão a apear-se dos cavalos. No entanto, enquanto o segundo carro não parte, creio que temos tempo de atravessar. Quer tentar, minha senhora?

- Sim, sim, quero - respondeu Violeta. - É muito embaraçoso para nós sermos olhados assim. Tenho pressa de entrar na multidão.

Saiu do camarote, dando a mão a Lolet e chegou até onde estavam os soldados que esperavam o carro da corte. tom quis que abrissem passagem, mas os soldados resistiram. Um capitão aproximou-se, recomendando aos seus homens:

- A princesa já está na carruagem e os príncipes sobem agora. Não deixem passar ninguém!

A pobre Violeta, nesse momento, esmagada pela multidão e receando que lhe asfixiassem o filho, meteu-se, com Lolet, entre dois soldados. Respirava já, quando o capitão avançou para ela, furioso e brutal:

- Ninguém pode ficar na passagem das carruagens reais; a ordem é formal. Entre na multidão senhora.

- Para que me esmaguem? Isso nunca! - exclamou Violeta.

- Ou vai de boa vontade ou mando quatro homens fazê-la entrar à força.

O tom do oficial vexava-a:

- Seria engraçado ver isso!

E como ele abrisse a mão para lhe pegar no braço, muito excitada, muito corajosa, Violeta olhou-o bem de frente e disse resolutamente:

- Se me toca, dou-lhe com a luva na cara.

E, pronta a executar a ameaça, deixou inconscientemente a mão de Lolet. No mesmo instante, o carro de gala avançou. Violeta quis tornar a pegar na mão do filho mas a criança acabara de lhe fugir. Ela soltou um grito de terror e correu. O seu filhinho estava ao pé dos cavalos, quase debaixo das rodas. O carro parou bruscamente. Nesse carro uma mulher de luto, sem mesmo se inclinar para ver quem passava, ordenou em voz imperiosa ao capitão que estava ao pé da portinhola:

- Como se encontra aqui esta mulher? Porque gritou? Como a deixaram passar? Diga aos picadores que avancem. A multidão é capaz de forçar a fila dos soldados e eu tenho medo de me encontrar no meio de todo esse povo.

- Lolet, meu Lolet! - gritou Violeta. - Ele vai cair! Parem! Oh! a má mulher que vai esmagá-lo!

Pôde enfim agarrar a criança, antes que a roda a tocasse. Levantou-o com uma força extraordinária, apertou-o nos braços, beijou-o convulsivamente e rompeu em soluços.

- Afaste essa mulher, capitão! - ordenou a Princesa.

- Agora, pode passar - disse Violeta, ainda trémula de horror. - Já tenho o meu filho, quero lá saber dela!

Atrás dos soldados, ouviram-se aprovações entre a multidão. A jovem senhora, sem pensar em recuar muito, apertando sempre Lolet apaixonadamente, ria de felicidade através das lágrimas.

- Prenda essa mulher! - ordenou ao capitão a voz imperiosa.

Mas Jorge que se encontrava sentado atrás da caleche e que não tinha primeiro podido ver nada, inclinou-se e reconheceu Violeta e Lolet. Tornou-se horrivelmente pálido, depois de compreender o perigo que a criança correra, querendo ir ao seu encontro. O pequenito não duvidara um instante que o seu papá o faria subir para a carruagem.

E a criança, obstinada no seu desejo, mesmo nos braços da mãe ia a gritar:

- Papá, leva-me contigo!

Instintivamente, prevendo o perigo, Violeta apertou a cabeça da criança contra o peito, abafando-lhe o ingénuo grito contra o coração.

- Mas para onde olham todos? Porque esperam? Prendam essa mulher e que o carro passe! - disse a princesa, desesperada.

O capitão, depois de uma última hesitação, aproximou-se de Violeta para executar a ordem, quando Jorge, voltando-se para o oficial, lhe ordenou em tom que não admitia réplica:

- Proíbo-o de fazer semelhante coisa!

Depois, tendo-se assegurado por um último olhar que Lolet e Lolette estavam sãos e salvos, gritou:

- Agora, vamos!

Violeta teve tempo de ver o rosto da princesa alemã enquadrado em bandos castanhos, um rosto regular, mas fanado. À intervenção de Jorge, esse rosto tomou uma expressão altiva e rígida e os lábios cerraram-se-lhe de cólera.

Quando o carro partiu, numa reviravolta de emoção, Violeta rompeu num riso nervoso, dizendo em voz alta:

- Oh que má mulher! Ela queria esmagar o meu lindo Lolet! E se o conde Jorge não está ali, mandava-me prender. Mandava-me prender porque eu queria salvar o meu filho, compreende-se isso?

Indignada, vibrante, a jovem tomava por testemunha quantos a rodeavam.

- É uma má mulher... uma alemã!

A multidão, indignada com a cena, fez ouvir atrás, da carruagem de gala um murmúrio de ameaça:

- Hou... A alemã!

E, de súbito, alguns assobios partiram de vários lados. O capitão, amavelmente agora, avançou para Violeta e disse:

- Tenho o maior desejo de obedecer à ordem que acabo de receber, minha senhora, mas não me torne a execução dessa ordem impossível: não amotine a multidão. vou restabelecer a circulação, queira seguir...

Violeta não desejava outra coisa. Nesse momento os polícias foram ao seu encontro e ela pôde, entregando ao bravo tom o seu Lolet, atravessar a passagem reservada aos convidados da corte.

E, entre a multidão, alcançou a saída.

Chegada à rua, no meio de gente indiferente, despediu o polícia e os seus ajudantes.

- O meu automóvel está a dois passos da porta do Parque Alberto. Já não tenho medo. Obrigado, muito obrigado, senhores.

- Fez-se o que se pôde - disse tom, pondo o pequeno lord no chão.

- Não o esquecerei.

- Seremos com isso muito felizes - disse tom, limpando a testa um pouco mais do que o necessário.

- Conte comigo - disse Violeta, outra vez de bom humor.

Só, apertando bem a mão de Lolet, a jovem atravessou a praça cheia de gente para chegar à entrada do parque. Perdida entre a multidão, ignorada, desconhecida de todos, pareceu-lhe que voltava a ser a verdadeira, a humilde e simples Lolette de antigamente, parecia-lhe, pequena flor já cansada e fanada pelo brilho muito vivo do sol, que entrava na sombra para reencontrar a felicidade.

Subindo para o automóvel, Violeta instalou Lolet ao pé de si, e dando o sinal de partida, só respirou quando saiu da nuvem de poeira e de fumo daqueles bairros.

Já o automóvel ia numa larga avenida de plátanos ao longo da margem de um rio. Subiam agora uma colina e Violeta, quando chegou lá acima, olhou para baixo e viu ao longe, a imensa cidade envolvida, afogada em bruma e nos vapores fuliginosos das fábricas.

Numa lúcida recordação, a jovem julgou ver ainda, nesse momento, o olhar duro da princesa alemã, julgou ouvir a sua voz seca e imperiosa. E sentiu passar por ela a sombra fria da desgraça. E para aquecer o coração numa súbita necessidade de ternura, apertou contra si o seu Lolet silencioso.

- Gostas muito da tua mamãzinha, Lolet querido?

- Oh! sim, gosto - disse Lolet, confrangido - mas não gosto da senhora de preto que estava no carro com o papá. Ela tomou o nosso lugar.

Violeta sabia o filho muito sensível. Ficou no entanto, admirada ao ver que, a essa lembrança, os olhos do pequenito se molharam de lágrimas.

E, enquanto o automóvel os levava de novo, vertiginosamente, ela perguntou:

- Porque choras, Lolet?

- E Lolet confessou:

- Tenho pena, mãezinha, muita pena, porque o papá também não foi gentil, fingiu que não reconheceu!

 

Nessa noite, Jorge voltou mais tarde para casa. Encontrou Violeta ao pé do hall num dos salões forrados de seda japonesa. A mulher ofereceu a testa ao beijo do marido, com uma expressão preocupada.

- Então, Lolette, estás contente com o teu dia?

- Sim e não.

- Devias ter ficado muito aflita, pobrezinha, quando viste o Lolet correr para debaixo dos cavalos. Eu, quando percebi o que se passava, até fiquei sufocado. Mas também para que se meteram na passagem dos carros da corte?

- Porque asfixiávamos entre a multidão.

- E porque se meteram no meio da multidão, em vez de ficarem tranquilamente no camarote até que tudo serenasse?

- Porque toda a gente dizia segredinhos à nossa volta, porque nos aborrecia ser objecto de todos os olhares. Sem um polícia chamado tom, teríamos sido pisados por toda aquela gente. Hás-de fazer com que recompensem o tom, não é verdade?

- com muito prazer.

- Agora que está saldada a minha dívida de gratidão, diz-me quem era aquela má mulher de luto que queria esmagar o Lolet!

- Não adivinhaste, vendo-a ao lado do Príncipe Herdeiro? Era a Princesa alemã. Anda sempre vestida de preto porque o seu parentesco com todas as famílias reinantes a faz vestir constantemente luto por qualquer imperador ou rainha. Ela não tinha a mínima intenção de esmagar o nosso Lolet.

 

- Então porque gritou aos picadores: "Avancem! Avancem!" Não via melhor do que eu o que se passava em frente da carruagem?

- Sim, porque a Princesa estava à frente e tu atrás... Em todo o caso, ela quis mandar-me prender. E tudo isso porque tinha medo do povo! É vergonhoso!

- Não tem sabido fazer-se amar: acolhem-na muito mal.

- E com razão. A primeira ameaça de desgraça que nos aconteceu nas Grandes Ilhas, foi devida a ela: detesto essa mulher!

- Como és impulsiva! Fazes mal em a detestar, Lolette. Ela é talvez mais bem intencionada do que imaginas.

- Talvez para ti, mas nem para Lolet nem para mim. Oh! ainda tremo quando recordo a sua voz tão dura, quando recordo o olhar que a Rainha me lançou.

- A Rainha é míope, quase não vê nada.

- E eu digo-te que vê, que vê tudo, com aqueles olhos que não exprimem nem reflecte em nada!

- Vamos, não sejas imaginativa, minha Lolette. Se se te mete na cabeça que a Rainha e a Princesa estão mal dispostas a teu respeito, será o diabo para te tirar essa ideia do espírito. Ora é importante... entendes, muito importante para a nossa felicidade, atrair a benevolência da Rainha e da Princesa.

- A benevolência da Rainha, ainda compreendo, se bem que pouco confie nela, mas a da Princesa, porquê?

- Ela poderá proteger-nos.

Violeta olhou-o bem de frente e, resolvida a provocar a explicação definitiva, replicou altivamente:

- Tu não precisas de protecção.

Jorge hesitou, depois sorriu e, pressentindo que a mulher tinha adivinhado o segredo, quis assegurar-se:

- Viste-me desfilar atrás do Príncipe, à frente dos porta-bandeiras. É um lugar de honra.

- Aquele a que tens direito.

- Sim, porque sou ajudante de campo de Sua Alteza.

- Só seu ajudante de campo?

- Já é uma situação muito invejável.

Traquina, divertiu-se por sua vez deixando-o na dúvida.

- Para ti não é uma situação invejável. Rico e nobre como és, sendo tua mãe poderosa, gozando de tão grande influência junto da Rainha, não és muito favorecido. Imaginava que, na tua situação, se era coronel à nascença, general ao primeiro dente e marechal à primeira acorda!

- Esqueces que a minha permanência no estrangeiro impediu o meu avanço. Ainda não ganhei o tempo perdido.

- Espero que Lolet faça carreira mais depressa do que tu. - Reclamo para ele um regimento. Obtém-no sem demora se lhe queres continuar nas boas graças. Está muito mal disposto contigo.

- Sim, julguei reparar nisso, não veio ao meu encontro como de costume.

- Não te oculto que ele te censurou. Tu esclarecerás o caso com ele. Eu já tenho bastante com a solução dos meus negócios.

E, colocando-se diante do rapaz, Violeta perguntou à queima-roupa:

- Que grau de parentesco é o teu com a Rainha?

- Eu...

Vivamente, ela tirou a fotografia do corpete e meteu-a em frente do nariz de Jorge.

- O meu retrato!

- Sim, meu doce amigo, o teu retrato. És capaz de ler o que está impresso debaixo desta bela imagem?

- Conde de Belfast.

- Nem mais nem menos.

Jorge sorriu e confessou, num beijo:

- Já não há mistérios para ti, minha Lolette.

- Diante desta gentileza, Violeta perguntou escrupulosa,

numa ingenuidade enternecida:

- E não te contraria que eu tenha sido tão esperta?

- Não, de maneira nenhuma - disse ele, depois de um segundo de hesitação. - Teria talvez feito melhor guardando o segredo umas semanas mais, mas não pude resistir ao prazer de te deixar assistir à revista. Espero que não tenhamos cometido com isso nenhuma grave imprudência.

- Mas, diz-me, és primo da Rainha?

- Como! Tu ainda não sabes o nosso grau de parentesco? Ah! Lolette, que não és tão esperta como imaginas.

- És seu sobrinho - arriscou Violeta, agitada.

- Mais do que isso.

- Seu filho?

- Enfim. É isso mesmo.

- Seu filho Tu és filho da Rainha Tu és Príncipe Real? Isso causa-me uma emoção... é belo ouvir semelhante novidade...

Depois, tendo recobrado a respiração, continuou:

- Isso explica tudo. Mas como conheceste Henriqueta Bonnaux?

- Durante a sua permanência em Bruhm, onde foi chamada para me dar lições de francês. E depois...

- Tu honraste-a com a tua amizade, não é assim que diriam no castelo?

- É assim mesmo.

- Diz-me ainda: porque é que, em Paris, aqueles homens de chapéu castanho te seguiam por toda a parte?

- Minha mãe, fosse com receio dos anarquistas ou para estar ao facto de quanto eu fazia, obteve do governo francês que uma brigada de polícia estivesse sempre à minha disposição. Incomodaram-me muito.

Violeta, saltando para outra ideia, perguntou:

- E o príncipe Harold era aquele rapaz alto, de barba ruiva que, no regresso, estava sentado na frente da caleche?

- Era esse mesmo. Foi a primeira vez que passeou em público, ao lado da noiva. Isso foi muito significativo e deve ter sido comentado pelo povo.

- Isso não sei. O que sei é que ele não é como tu, um bonito rapaz.

- No entanto, todos o acham muito belo...

- Oh porque será rei. Eu olhei muito para ele. Ao princípio fez-me medo, depois atraiu-me.

E sem acabar o seu pensamento, ficou pensativa.

- Em que sonhas, Violeta? Julguei que esta revelação te causasse uma grande alegria e afinal ficaste triste!

Como ela continuasse com a cabeça apoiada ao ombro de Jorge, este notou:

- O quê! Lágrimas nos teus olhos Porque choras, minha Lolette adorada?

- Porque, se sinto uma grande alegria e um grande orgulho, sinto também um certo medo. Nós não precisávamos, para sermos felizes, do cetro e da coroa. Bastava-nos sermos novos, amarmo-nos e dizê-lo com os nossos beijos. A condessa de Belfast saberá salvaguardar a felicidade de Lolette? Tornaremos a viver os belos dias que já vivemos? Ah! Jorge, se os cisnes brancos voassem das nossas margens! Tens a certeza que eles ainda lá estão, os fiéis e vigilantes guardas do nosso amor?

Enlaçou o jovem príncipe nos seus braços ágeis e graciosos e, sentindo um friozinho passar-lhe no coração, aconchegou-se contra ele, mais friorenta, mais terna e mais frágil.

Jorge levou-a para uma das grandes janelas envidraçadas que davam sobre o parque e mostrou-lhe, ao encanto do luar, os cisnes que passeavam na noite em vagas brancas de neve.

- Olha, meu querido amor, contempla-os - murmurou ele, amorosamente. - Ali estão eles, vigilantes e fiéis, os guardas do nosso amor.

Violeta assegurou-se e os dois voltaram a sentar-se lado a lado no divã.

- vou dizer que nos tragam Lolet antes que Solange o adormeça - disse ela. - Quero que ele tenha a sua parte na nossa felicidade.

Tendo dado as suas ordens, voltou para junto do marido.

- Ah! como agora vou ter medo de te perder!

- E porquê?

- Porque é muito presunçoso para uma simples mulher como eu, por mais amante que seja, imaginar que guardará só para si um tão grande príncipe. Depois será preciso, talvez muito depressa, sair da nossa doce e querida solidão, para afrontar o pleno sol. Quem sabe se ele irá matar-me de repente ou murchar-me para sempre, a mim, pobre flor de sombra!

Jorge não lhe respondeu senão com novos beijos, mas Violeta continuou pensativa.

- Porque motivo saíste das Grandes Ilhas?

- Obedeci ao instinto do meu coração. Não vivia senão no meio de intrigas, de ambições e de perversidades. Fui buscar o esquecimento e o repouso longe da corte, e encontrei a felicidade e o amor. Tê-lo-ia acaso encontrado nas Grandes Ilhas?

- É verdade...

- Não imagines que me afastei das Grandes Ilhas porque me insurgi contra o meu nascimento ou que quis libertar-me das tradições e dos deveres da minha estirpe. Respeito todos os sacrifícios, todas as abnegações que o poder absoluto impõe. Fora eu herdeiro do trono e teria ficado escravo da minha própria grandeza. Mas graças a Deus, sou o mais novo. E, se voltei às Grandes Ilhas, se retomei sem a menor hesitação o meu lugar na corte, foi porque te trouxe, oh minha Lolette querida e porque a tua casta ternura, o teu amor tão puro, serão o meu talismã contra toda a embriaguez, todas as tentações e todos os perigos da grandeza. E quando faço muito seriamente de príncipe, na corte, quando me arrisco a perder pé sobre a terra, basta-me a tua voz para me tornar humano e os teus beijos para me tornarem apenas um homem.

- E a esse homem, Jorge, eu amo-o não como um rei, mas como um deus.

- Tu és a minha consolação, a única alegria que tenho no mundo, a minha esperança e a minha razão de viver.

Calaram-se um instante, opressos pelo seu amor. Depois, Violeta continuou:

- Embora sejas príncipe, meu querido Jorge, posso continuar a tratar-te por tu?

- com certeza que pode, minha senhora - replicou o rapaz, divertido - pois sendo minha esposa, tu és, diante dos homens e de Deus, Alteza Real como eu!

- Então explica-me porque desejam tanto o casamento de teu irmão com a princesa e porque o imaginam tão favorável à salvação do Reino?

- Porque esse famoso casamento, enfim decidido, nos livra a todos das apreensões de uma guerra que perturbaria não somente a Europa, mas o Universo inteiro.

- Isso, isso compreendo eu. Era um mal para todos... naturalmente excepto para o Príncipe Herdeiro!

- Há sacrifícios aos quais, para a segurança de um reino, um rei deve submeter-se.

- Pobre Harold! Agora resta explicares-me porque é que esse casamento nos tira as últimas preocupações.

- Então não compreendes, Lolette, que este acontecimento assegura a nossa felicidade? Casado meu irmão, minha mãe, quase certa de ter dele herdeiros directos da coroa, não fará mais dificuldades em reconhecer o nosso casamento. Representando o ramo mais novo, fico lançado para longe do trono com a união de meu irmão com a princesa Augusta e com o provável nascimento de seus filhos. Deixarei de ter importância política. Não sou um exemplo único nas famílias reais. O segundo filho do rei da Suécia, o filho do rei da Dinamarca, o arquiduque Otto, o arquiduque Leopoldo Fernando, e mesmo entre as mulheres, a condessa de Lonyay... e tantas outras se encontram no meu caso.

- Mas se fosses o herdeiro?

- Oh! se fosse o herdeiro, a minha vida seria uma vida de deveres. Teria feito o meu povo feliz e teria sido eu também tão feliz. que não o lamentaria!

- Ainda assim foi pena! Tinhas dado um belo e bom rei. Por mim, não o lamento - disse Lolette. - Assim eu não seria tua mulher, e Lolet não seria teu filho. É verdade, porque não vem ele Mandei-o chamar. Que farás tu do nosso homenzinho?

- Mas ele está legitimado com o nosso casamento Obterei de minha mãe que lhe dê o meu título e o meu nome. Ele terá tudo quanto eu possuo. Não será infeliz.

- Parece-me que sonho. Morde-me um dedo, Jorge, para eu ter a certeza que estou acordada. Tudo isto é muito belo! Se não tivesse assistido à revista, não acreditaria. A multidão reconheceu-te em Lolet. Foi muito simpática para nós.

- Sou muito popular. A minha Lolette e o meu Lolet hão-de tornar-me mais ainda.

- Assim o creio. Mas tua mãe?

- Ela deve saber. Leu com certeza as minhas cartas, embora nunca fizesse a mínima alusão. Não paguei o seu tácito consentimento com o meu regresso às Grandes Ilhas?

- Que diz ela?

- Nada. Uma vez, estando só com ela, arrisquei-me a mostrar-lhe o retrato de Lolet. Olhou-o durante muito tempo mas não pude apanhar qualquer expressão nos seus olhos, nenhum sorriso nos seus lábios. Nem sequer disse: "é uma linda criança".

- E percebeu que era teu filho?

- Provavelmente. Ela sabe tudo... mas não lhe convém dizer a mínima palavra, fazer a menor alusão, enquanto não julgue poder fazê-lo sem o menor inconveniente político. E embora ela, como lhe censuras, viva realmente afastada, invisível, misteriosa, cumpre todos os seus deveres de rainha antes de cumprir os de mãe. O povo sabe-o. O seu respeito e a sua confiança nela, são infinitos. É o que faz a grandeza e a segurança do seu reino.

Lolette reflectia.

- Parece-te, no entanto, que a Rainha reconhecerá oficialmente o nosso casamento?

- Parece-me que sim. Assim que Harold tenha um filho... ou mesmo antes; assim que ela saiba o meu casamento admissível e aceite pela opinião pública não receará sancioná-lo. Todo um partido político, ligado a meu irmão e ciumento da minha popularidade, ficou encantado com a minha união contigo. Consideram isso como um voluntário afastamento meu, do trono, qualquer coisa como uma abdicação. À cabeça desse partido está o grande chanceler do Império, lord Evendal. Tudo favoreceu tanto a nossa felicidade até agora, que tenho confiança no futuro.

- E teu irmão Harold também ajudou à nossa união para te distanciar do trono?

- Talvez... Creio, no entanto, a sua afeição é mais desinteressada.

- A princesa Augusta não tem ar de amar muito a teu irmão. Voltava-se com mais frequência para ti do que para ele.

- - És louca Augusta é ambiciosa, tem sido criada, como já te disse, com a esperança de vir a ser Rainha, E ela quer o ser. Meu irmão, que será rei, é tudo para ela; eu, nada.

- Sob o ponto de vista da satisfação do seu orgulho, talvez, mas de outra forma, os seus olhos dizem bem que tu lhe agradas mais do que teu irmão. Infelizmente eu estou aqui... e muito decidida a servir de obstáculo ao seu flirt. Sou ciumenta, sabes...

- Fica descansada. Aprecio o carácter recto, embora altivo e autoritário da princesa, mas não sinto por ela mais do que um pálido afecto, uma amizade de infância. E depois, ela será Rainha e, como sabes, Lolette, não se toca na Rainha!

- E teu irmão?

- Não teve como eu a sorte de se subtrair por viagens e por uma existência independente, a um meio pernicioso de baixos cortesãos e de vis lisonjeiros. Isso desenvolveu todos os seus maus instintos. Foi preciso ter uma natureza realmente boa para não ser pior do que é. Se algum dia meu irmão me der a honra de vir a nossa casa.

- É pouco provável.

- Ah! Lolette, que fizeste da tua esperteza? O príncipe viu-te, querido amor, e assim que ficámos sós não deixou de me fazer perguntas a teu respeito.

- Ele adivinhou que a mulher que se meteu debaixo dos cavalos para salvar o filho era a tua esposa?

- Sim, adivinhou pela minha perturbação e pela minha palidez. A despeito da minha reserva, o Príncipe exprimiu o seu vivo desejo de vir cá a casa. A sua insistência em te querer conhecer pareceu-me...

- Muito lisonjeira.

- Sim, para ti. Mas, em compensação, eu sinto-me bem pouco lisonjeada. Pois bem, para te fazer também ciumento, vou tentar seduzir o príncipe Harold. Que demónio, não é apenas meu cunhado, é o meu rei!

- Pois prepara-te para isso, Lolette. Teu cunhado e rei virá incógnito jantar contigo uma tarde destas, no regresso da caçada.

- É possível?

- Nada mais certo. Aqui tens a surpresa de que te falava. Ora vejam como esta mulherzinha, à simples ideia de receber o príncipe, está perturbada, trémula...

- Anunciaste-me a coisa assim tão bruscamente! Mas já passou. vou tomar precauções, quero que teu irmão fique contente com o meu acolhimento.

- Não sejas muito garrida nem muito familiar, Lolette.

- Vossa Alteza não faz a mínima ideia de quanto pode permitir-se uma mulher bonita! E além disso, aprende para teu governo, meu querido Jorge, que uma parisiense nunca se embaraça seja com que for.

Nesse momento, inquieta por ver que Lolet não vinha à sua chamada, Violeta levantava-se para o mandar buscar quando a porta se abriu, empurrada por Solange e o garoto deu, embora de má vontade, uns passos no hall. com o dedito na boca, parou, carrancudo e distante do príncipe.

- Porque vens tão tarde? Não vês o teu papá desde a revista, corre a abraçá-lo.

Mas Lolet continuou imóvel e silencioso com o dedito cada vez mais metido na boca cor-de-rosa.

- Que aconteceu, minha boa Solange?

- Não sei, minha senhora. Quando me disse que o trouxesse ao papá, Lolet não quis vir.

- Porquê?

- Não disse.

- Extraordinária criança! - estranhou Jorge. - Que ideia lhe passou pela cabeça?

- Não queres beijar o teu papá? - perguntou Lolette.

- Primeiro, diga-me onde está o meu papá - interrogou o garoto, fingindo procurar com o olhar à sua volta.

- Mas, parece-me que sou eu, seu mauzão? - disse Jorge.

- Tu, és o meu papá Não sei.

- Essa é boa Então não me conheces?

- Não.

- An? Que tens tu, Lolet?

- E tu, que tinhas no carro da princesa Também não me conheceste. Para que queres que te reconheça agora?

O príncipe e Violeta começaram a rir.

- Ele é orgulhoso - disse Lolette. - Não dará um coronel lá muito cómodo. Mas deve obedecer-te.

E a jovem senhora, com os seus lindos dedos que não faziam mal, pegou na orelhinha rosada do bebé e levou-o docemente para junto do pai.

- Agora, sr. Lolet, faça imediatamente as pazes com o seu papá. É a sua mamã que assim o quer.

No fundo, Lolet não desejava outra coisa. Quando o pai e o filho se abraçaram, Violeta concluiu:

- Não deve nunca censurar, senhor, é muito feio. Vá e não recomece.

E Lolet, malicioso, fingiu julgar que a reprimenda se dirigia ao pai e, levantando o dedinho, repetiu, no mesmo tom que a mãe:

- Ouves, papá Não recomeces.

 

Poucos dias depois, o Príncipe Real mandou prevenir seu irmão que jantaria em casa dele no regresso do seu pavilhão de caça, na floresta de Névis.

- A honra que Harold nos faz, vindo sentar-se à nossa mesa, pode ter felizes consequências para nós dizia Jorge a Violeta, no hall iluminado, onde esperavam a chegada do seu hóspede. - É uma espécie de sanção dada ao nosso casamento. Bastou a tua beleza sedutora, querida Violeta, para realizar o milagre.

- A Rainha terá conhecimento desta visita?

- Não sei. Mais uma vez é difícil saber o que minha mãe conhece ou ignora. De resto, meu irmão sempre que pode, age livremente sem se importar em contrariar a Rainha. Ele tem sofrido muito mais do que eu com o carácter imperioso de Sua Majestade. Creio que nunca lhe perdoará o seu noivado com a princesa Augusta. Faz, no entanto, mal, porque esse casamento é um acto de alta, prudente e sábia política. Harold vinga-se como pode, com pequenas maldades. É-me impossível declinar a honra que ele quer fazer-nos mesmo que esta visita desagrade a minha mãe.

- Achas que estou bonita, Jorge? - interrompeu Lolette. - Queria seduzir o teu irmão. De resto esta noite é o ensaio geral da minha apresentação na corte. Até me bate o coração!

Jorge olhou-a, enquanto ela dava uma reviravolta, garrida e risonha. Vestia uma toilette de musselina branca com folhos bordados, tão leve que parecia envolta em espuma. Nenhuma jóia mais além do colar de pérolas que o príncipe Harold lhe tinha oferecido.

- Estás linda, linda, envolta nessa branca nuvem - disse Jorge. - Só tenho uma censura a fazer-te: acho-te decolada de mais.

- Monsenhor, lembre-se que não recebe sua mãe, senão teria posto uma gola até às orelhas. Mas não creio que umas costas e uns braços possam meter medo a seu irmão.

A chegada do príncipe foi daí a pouco assinalada ao som de trompa, ao fundo do parque.

- Que fanfarra - exclamou Lolette. - Oxalá todo este barulho não assuste os cisnes e não os faça voar.

Jorge sorriu, perguntando por sua vez:

- Pensaste em tudo?

- Em tudo. Sou uma boa dona de casa, vais ver. Aproveitando as tuas confidencias, mandei fazer aquilo de que teu irmão gosta. Já ouço o galopar de cavalos na avenida, são os caçadores que se aproximam.

O barulho da galopada cessou à entrada de casa.

Violeta tocou a campainha e a porta do hall foi aberta de par em par, descobrindo o vestíbulo florido e cheio de altas palmeiras. Os oficiais e os picadores do Príncipe pararam à entrada da casa e, assim que sua alteza entrou, afastaram-se.

Vestindo libré azul, trazendo cada qual um candelabro de muitas velas, seis criados desceram a escada, inclinaram-se diante do príncipe Harold e acompanharam-no até ao vestíbulo onde Jorge esperava seu irmão. O marido de Violeta inclinou-se por sua vez, mas Harold pegou-lhe na mão que apertou efusivamente deixando-se guiar para o hall onde estava Violeta. A apresentação foi feita muito simplesmente, muito burguesmente!

- Meu irmão - disse Jorge - tenho a honra, o prazer, há tanto desejados, de lhe apresentar minha mulher, Violeta Miroy, condessa de Belfast.

E o príncipe, visivelmente impressionado, saudou a jovem parisiense, sorridente e bela.

Violeta sentiu-se, por segundos, perturbada diante desse homem de olhos de um azul tão vago, que o olhar parecia sempre fatigado, sob as pesadas pálpebras. O nariz um pouco forte, os lábios vermelhos, farto bigode, uma barba fulva, davam-lhe uma fisionomia feroz e rude que um sorriso ao mesmo tempo amargo, irónico e sensual, acentuavam. O real visitante ficou primeiro um pouco altivo e frio, mas a jovem mulher, com a fisionomia animada pela sua dupla expressão de malícia e de súplica, falou com o seu encantador e natural à vontade:

- Queira assegurar-me com uma palavra, Monsenhor, e concordar sem excesso de indulgência, que a recepção que lhe faço não é tão insignificante como seu irmão julga. Fui prevenida da sua visita, esta manhã, não tem o direito de ser exigente. E depois digne-se considerar, Monsenhor, que não está entre reis!

Um pouco acanhado ao princípio com esta inocente familiaridade, Harold envolveu a jovem com o seu olhar de um azul quase extinto onde luzia uma certa desconfiança. Mas o claro e o belo rosto de Violeta mostrava tão alegre franqueza que o Príncipe, imediatamente seduzido e encantado, abriu os olhos. As suas pupilas tornaram-se mais azuis, sorriu e estendeu à jovem duas largas mãos onde imediatamente ela colocou as suas mãositas brancas.

- Ah I encantadora condessa - disse a Alteza Real - agrada-me muito para que eu não me sinta agradado em sua casa. E, de hoje em diante, reclamo um lugarzinho no vosso meio familiar.

Violeta corou de prazer e o Príncipe sentiu-se lisonjeado por as suas palavras comoverem tão linda criatura. Esta voltou-se graciosamente para o marido:

- Vês, Jorge, Monsenhor está contente, é menos difícil do que tu!

E o príncipe Harold, segurava-lhe ainda as mãos. Então, ela aproveitou para o encaminhar para junto de um fogão onde se soltou para lhe oferecer um maple.

- Estas noites de outono já estão húmidas - disse ela. - Sente-se um pouco ao pé do fogão.

O príncipe Jorge, encantado por ver a conversa tomar tão rapidamente um tom familiar, aproximou-se do irmão e meteu-se na conversa.

- Já o tinha prevenido, Harold, que Violeta é a mais.

- a mais linda mulher de França - interrompeu o irmão. - Sim, Jorge, já mo tinha dito, mas eu só acreditei metade. Agora, que posso julgar com os meus próprios olhos, creio inteiramente.

- Eu queria dizer, Harold, que Lolette é uma criança amimada, uma terrível criança amimada e que tem por costume dizer francamente quanto lhe vem à cabeça. Peço-lhe que seja bom e que lhe perdoe.

- De todo o coração.

- Um pouco de sinceridade será para si uma variante da corte - disse Violeta.

Lançou esta brincadeira ingenuamente e com um sorriso adorável para se fazer perdoar. E, na familiaridade doce, mas propositada, dos seus gestos e da sua voz, Lolette deixava adivinhar as intenções de uma dona de casa inteligente que, desde o primeiro momento e sem que o parecesse, adoptava a forma simples, cordial e franca, como entendia receber os seus hóspedes, quer fossem reis ou não.

Fosse ou não fosse contrário à etiqueta, a jovem puxou para si uma outra poltrona e sentou-se. Jorge acabou por fazer o mesmo e a conversa tornou-se íntima. O Príncipe Herdeiro, recebido com confiança, pareceu divertir-se. O seu rosto animava-se, brilhava-lhe o olhar.

- Talvez Sua Alteza tenha fome - perguntou Violeta, depois de um momento de conversa. - Saiba, Monsenhor, que o jantar está pronto e só aguardamos as suas ordens.

Harold, cujo olhar agora cheio de vida não podia desprender-se do rosto radioso de Violeta, confessou que jantaria de boa vontade. A jovem levantou-se rapidamente e tocou de novo à campainha. Quase imediatamente o chefe de mesa abriu a porta e anunciou que Sua Alteza estava servida.

Harold ofereceu o braço a Violeta. À mesa, ela ficou em frente dele, Jorge à direita e Lolet à esquerda. O rapazinho, ensinado pela mamã, ia elegantemente beijar a mão ao Príncipe Harold, mas este levantou a criança nos braços e beijou-o no rosto chamando-lhe seu lindo sobrinho, com o que Lolet se sentiu extremamente orgulhoso.

Uma vez no seu lugar, lembrando-se das recomendações repetidas por Solange durante todo o dia, ficou muito ajuizado e não falou.

Sobre a mesa, no meio dos cristais, entre flores, Violeta tinha disposto tudo de que o Príncipe gostava. Ao princípio, a conversa esmoreceu um pouco. Violeta que, ingenuamente, esperava ouvir os dois irmãos tratarem de questões sociais ou discutir problemas de alta política, ficou surpreendida e um pouco desiludida ao ser interrogada sobre as modas e os teatros de Paris. Depois, Harold e Jorge falaram o mais prosaicamente possível da saúde da Rainha, de pequenos escândalos da corte e de simples negócios de família e de dinheiro. O Príncipe Real voltou-se enfim para Lolette e perguntou-lhe:

- Porque não me diz nada, condessa?

- Olhe que não perde por esperar, Monsenhor - disse ela, alegremente. - De resto, se me calei enquanto falava com o Jorge, foi por deferência, pois receio parecer-lhe demasiadamente terra-a-terra.

- E agora que já nos ouviu falar?

- Oh agora já não receio ser banal! - replicou Violeta, estouvadamente.

O conde de Belfast estremeceu imperceptivelmente. Harold riu-se:

- Jorge, lá começa a sua mulher a ser sincera!

- "Até onde irá ela?" - pensava o rapaz, um pouco aflito, pois sabia seu irmão de génio variável e caprichoso.

Mas depois de outras réplicas alegres da rapariga, o Príncipe Herdeiro começou a rir ruidosamente.

O jantar acabou no meio da maior alegria. Depois da sobremesa, preparavam-se para sair da mesa quando Lolet levantou o braço para chamar a atenção.

- Que quer o meu lindo sobrinho? - perguntou Harold.

- Proibi-lhe que interrompesse a conversa das pessoas crescidas - explicou Violeta. - Quando o silêncio se lhe torna muito custoso, ele tem licença de levantar a mão, é a sua maneira de pedir a palavra.

- Que fale então - disse o Príncipe.

- Ouves - acrescentou o pai. - Monsenhor autoriza-te, Lolet; diz lá o que queres, exprime os teus sentimentos.

E o garotinho, confuso e corado, confessou:

- Não é para sentimentos, papá, é para pedir mais creme e doce.

O pedido divertiu-os.

No hall, depois da familiar palestra do jantar, Lolette sentiu-se muito mais à vontade. Harold, de pé, de costas para o fogo, tomando o café que a jovem lhe oferecera, perguntou:

- Que efeito lhe fiz, condessa, a primeira vez que me viu?

- Um pouco de medo - confessou ela. - Mas foi no dia da revista e vi-o muito ao longe.

- E agora que me vê ao pé?

Ela teve um olhar confiante e um nadinha garrido:

- Oh agora, ao pé, já não me mete medo nenhum...

- Lolet tinha-se ido deitar depois do beijo de boa-noite e não sem que a velha Solange tivesse espreitado pela porta o futuro rei das Grandes Ilhas. A conversa continuou no meio da maior afabilidade. Depois, tendo a jovem por árbitro, os dois príncipes jogaram uma partida de bilhar.

Mas aconteceu que o Príncipe Real, quando jogava uma carambola difícil com a sua bola, tocou na do irmão.

Violeta, as duas primeiras vezes, julgou que fora falta de atenção, mas o erro renovou-se pela terceira vez e ela interveio fogosamente esquecendo tudo nesta exclamação:

- Ah! Monsenhor, não faça batota! Deve jogar sempre com a mesma bola e não escolher uma ou outra, conforme lhe for mais fácil. Isso seria muito cómodo!

O príncipe Harold parou, interdito.

- E é verdade, faço batota! No entanto, jogo todas as noites assim e nunca ninguém me disse que era contrário às regras do jogo!

Jorge inquietou-se um pouco. Passado o primeiro momento de surpresa, num bom impulso de gratidão, o Príncipe estendeu a mão à jovem.

- Ah! Monsenhor, desculpe-me não ter contido esta exclamação, mas que mulher, por mais prudente que fosse, não perderia a cabeça e não julgaria que tudo lhe era permitido ao ver-se tratada tão benevolamente pelo filho de um rei?

- Não se desculpe, Violeta, eu é que devo agradecer-lhe a sua franqueza. Ah! bem precisava de me pôr em regime de verdade! Tenho bem necessidade de entrar para a sua escola, quanto mais não seja, senão para conhecer os meus pequenos e grandes defeitos. Há tanto tempo que ninguém tem coragem de me dizer a verdade!

E, num desses caprichos que tão frequentemente desconcertavam os que o rodeavam, o Príncipe, aborrecido do jogo, largou as bolas e pegando na mão de Violeta levou-a a sentar-se ao pé dele no divã.

Jorge sentiu uma nova inquietação; mas Lolette, com o olhar malicioso sob as pálpebras semi-cerradas, saiu-se bem, propondo com um irresistível sorriso:

- Eu, dizer-lhe as verdades, Monsenhor? Não! Naturalmente teria que ser tão lisonjeira que não me acreditaria. Mas se quer, deixe-me ler-lhe a sina na palma da mão. Prometo dizer-lhe a verdade, mas a verdade não é sempre agradável.

Harold consentiu e Violeta, que tinha umas vagas noções de quiromância, adquiridas aqui e além em soirées divertidas, examinou com muita seriedade a palma da mão e disse em tom solene tudo quanto imaginava e sabia a respeito do carácter do Príncipe.

- Vejo nas linhas da sua mão, a fadiga, a desocupação e o aborrecimento.

- Deve também ler na minha mão - interrompeu o Príncipe, em voz subitamente rude - este constante pensamento Quando acabará a longa cruz da minha real existência? "

- Não interrompa o seguimento das minhas predições - disse Lolette, comicamente - ou faz-me perder o fio à minha visão. Vejo aspirações de viagem, o sonho de coisas impossíveis atravessado de um grande desejo, natural em todos os príncipes, de ser amado por si próprio.

- Lúcida quiromante - interrompeu ainda Harold, em tom cada vez mais sardónico - ouse também dizer que esse desejo me tem levado às vezes, num completo esquecimento da minha grandeza, a namoriscar actrizes nos seus camarins e amazonas no circo!

Violeta, um pouco vexada pelo tom confidencial que tomavam estas interrupções, aproveitou para repelir docemente a mão de Harold.

- Renuncio, Monsenhor! Se não está sério. como quer que eu possa continuar o meu consciencioso exame... se ri das minhas palavras?

- Para lhe dizer a verdade - respondeu Harold - parece-me um pouco noviça na profissão, minha bela adivinha. Por isso é que eu sinto desejo de a ajudar.

Depois, fingindo olhar para a palma da sua mão, disse:

- O senhor a quem pertence esta mão dissimula, com o seu feitio estranho e paradoxal, o seu grande desprezo pelos homens e o seu grande desgosto de viver. Este senhor nunca pôde descobrir se é realmente bom, inteligente e belo como lho dizem de manhã à noite, porque todo o ser humano, em se aproximando dele, por feitiço de uma fada malfazeja se transforma imediatamente em vil cortesão. Este senhor não conheceu nunca nem amizade, nem amor, pois nunca o deixaram escolher um só dos seus amigos. Mesmo se algumas mulheres conservam ao pé dele uma aparência independente, fazem-no menos por uma verdadeira liberdade do que por libertinagem. com uma alma nem pior nem melhor que a dos outros homens, com os mesmos desejos de a manifestar, o destino reduziu-o a viver como um manequim sem alma! Todo o seu mérito consiste, a horas regulamentares, em se exibir em público a pé e a cavalo; a estar em contacto com a multidão, por um cumprimento automático e frio, de fantoche; a não ter opinião senão na cor do seu uniforme do dia. Este senhor é um lamentável actor, sempre em cena, umas vezes em qualquer romântico drama fora de moda, com o diadema na testa, o cetro na mão, o pesado manto forrado de arminho nos ombros; outras em qualquer opereta com o seu uniforme de magnate húngaro, com um dólman ridículo. Ah! o pobre cabotino, que depois de entrar nos bastidores e já com o pano em baixo, representa um papel... mesmo no seu camarim, não tem ainda o direito de vestir um roupão, calçar umas pantufas e dizer outra coisa que não sejam réplicas aprendidas de cor. O último dos actores ainda tem papéis variados; eu, o meu eterno emprego é ser um figurante! Três ou quatro frases banais bastam para exprimirem os pensamentos que devo conceder em toda a minha vida, um só gesto chega para as acções que devo realizar em toda a minha existência! Ah! a torturante abdicação da minha personalidade! Ah! o sofrimento atroz de não poder nunca ser eu mesmo! Tudo quanto, por inclinação própria da sua natureza, é a honra ou o prazer dos outros homens, me é defendido a mim! Não posso dizer-me poeta sem obter, antes de ter escrito uma linha, todos os prémios da Academia. Não posso manifestar o menor gosto pela ciência sem ser, antes de ter aberto um livro, um laureado de todos os Institutos. Acontece-me falar de um exército, fazem-me general e enchem-me de condecorações antes mesmo de ter tirado o sabre da bainha. Não creio que tenham inventado nada de mais cruel no mundo do que este obstáculo constante ao menor esforço, do que esta condenação à inércia, à perpétua impotência! Não será todo este horror físico, intelectual e moral, o suplício do enterramento?

Calou-se. Nem Violeta nem Jorge, impressionados e surpreendidos por este lamento de amarga ironia e de veemência selvagem, tiveram nada a objectar. Harold levantou-se, dirigiu-se à mesa onde estavam os frascos de licor e as caixas de cigarros. Encheu um copo de whisky, engoliu-o de um trago e depois pôs-se a rir surdamente, - "quase com um riso de papão" - pensou Lolette.

- Aqui está o que se chama a extra-lucidez! - exclamou o Príncipe Real.

Violeta já se tinha dominado. E, não querendo deter-se nas amarguras que a confissão do Príncipe revelavam, disse alegremente:

- Sim, a predição não está mal... mas faltam-lhe as mulheres...

- É que eu não quis levar o horror aos limites extremos - explicou Harold, entre risonho e sombrio.

E, voltando a abrir a larga mão como para continuar a ler, acrescentou:

- Sabe que desastrosa influência tem sobre o seu destino a dama de espadas, a dama de luto. Pois bem uma dama pálida e morena, uma mulher de negro, não deixou de, perante os meus antepassados, lançar a sua sombra fria sobre as suas vidas. E o espírito do castelo de Névis, a intrusa temida que ronda pelas galerias do palácio, erra na mata e voga no lago anunciando desgraça. Em criança, julguei que evitaria ver a dama de negro, mas tinha apenas vinte anos quando ela me apareceu como aos meus antepassados. E depois, voltou a aparecer-me todos os dias, sim, todos os dias agora, pois ela pensa que a hora fatal soou e que se vai tornar enfim senhora da minha vida. Ora, antes de sofrer um só dia o seu beijo glacial, dar-me-ei a outra amante, também de luto, mas mais pálida, mais bela, e em cujos braços gozarei um repouso e um esquecimento mais duráveis.

Violeta estremeceu ao escutar estas palavras enigmáticas. Instintivamente, deu-lhe um sentido lúgubre. No entanto, não quis, não ousou aprofundar esse sentido e esforçou-se por levar a conversa para assuntos menos fúnebres. Mas Harold voltava sempre às ideias que o perturbavam:

- Se tiver que figurar na corte, Violeta, que seja o mais tarde possível. A etiqueta e a intriga, uma tola frivolidade, as baixas competições, as rivalidades surdas mas encarniçadas, as mútuas espionagens, tornam aquela atmosfera irrespirável. Os homens gastam o pouco de energia e de honra que lhes resta em mesquinhas competições de classe. As festas são apenas velhas pantominas lentas, solenes, fastidiosas, inexplicáveis e que seriam assobiadas em qualquer parte que não num palácio real. Foi, no entanto, aí, que recebi a minha triste educação de Príncipe-Herdeiro. Ainda muito novo, à força de ver diante de mim gente de joelhos ou de espinha curvada, julguei ser o maior dos homens. À força de me ouvir exaltar, julguei-me superior. Mas foi apenas uma breve ilusão de adolescente. Pude, em contacto com alguns livros que li, às escondidas, tomar consciência da minha fraqueza intelectual e moral. E agora, que atingi a maturidade, sinto-me cheio de terror ante a plena consciência da minha ignorância e da minha inutilidade. Esse vazio da minha alma inculta, essa inanidade da minha existência sem finalidade, dão-me às vezes uma vertigem em que julgo vacilar para a escuridão do nada. E lanço-me, para esquecer o meu mal, nos mais violentos e rudes prazeres: as mulheres, os cavalos, a caça e a embriaguez.

O rosto de Harold estava sombrio. As rugas da boca exprimiam amargura e desgosto. O seu olhar tinha-se tornado morto sob as pálpebras pesadas e a sua atitude traía um grande acabrunhamento.

Violeta e Jorge calaram-se, tristemente afectados pela confissão que parecia exalar-se sob a influência de uma opressão súbita e dolorosa. Era como que uma pequena abertura por onde o príncipe deixava entrever as angústias que ocultavam as trevas da sua alma.

Jorge tentou dizer quaisquer palavras de conforto. Harold interrompeu, tratando-o bruscamente por tu, coisa que só fazia nas grandes emoções da sua vida.

- Ah! tu és feliz, Jorge, em ter podido viver longe da corte, em ter podido retemperar a alma e o corpo na corrente de uma vivificante humanidade! Tu és feliz, longe dos fantoches dos nossos palácios, alijando toda a etiqueta e podendo viver uma vida burguesa e livre, ao pé de um filho que é o mais lindo garoto de França e das Grandes Ilhas, ao pé de uma companheira honesta e terna, graciosa e cheia de espírito, e além disso adoravelmente linda. Ah! Jorge, não tens mérito nenhum em seres o mais fiel dos esposos, visto possuíres a felicidade familiar que em vão tenho procurado na minha fastidiosa permanência em casa de reis, meus primos - pálidos companheiros de silêncio, de tristeza e de aborrecimento! Tu tens a felicidade íntima à qual inutilmente aspirei do fundo dos sombrios aposentos dos nossos antigos castelos onde, no seu mobiliário secular, imutável e maciço, nas suas pinturas amarelecidas agarradas às paredes, nas suas tapeçarias desbotadas, me assaltavam horríveis pesadelos, horríveis recordações trágicas e o inquietante mistério do nosso passado. Nossa mãe, com o seu olhar que não reflecte nada do que viu durante o seu longo reinado, nossa mãe que parece, de olhos abertos, dormir um sono letárgico, só a nossa mãe, tão distante e silenciosa, pode respirar bem nesta atmosfera de asfixia. Ainda tem nas faces a palidez dos fantasmas!

- Ah! meu irmão, meu querido irmão - disse Jorge, com veemência, para desviar o espírito de Harold desses sombrios pensamentos - há-de gozar, junto de sua mulher, duma felicidade igual à minha.

O príncipe encolheu os ombros:

- A princesa Augusta - respondeu friamente - vive na estreita devoção, não de Deus, mas da etiqueta. Não viu nada e nada sabe da vida. A sua conversa é apenas a exposição dos seus preconceitos e das suas prevenções. Ignora tudo, até a arte de se vestir. Receio bem que o nosso casamento seja um triste casamento.

- Pois bem - disse Jorge, com uma espécie de entusiasmo que dava à sua expressão uma certa grandeza - se a felicidade simples dos homens, lhe for recusada, tem as alegrias mais altas, as de um rei! Saberá criar missões sublimes e deveres sobre-humanos de um verdadeiro pastor de povos.

O irmão mais velho olhou para o mais novo com surpresa e franziu o sobrolho, descontente:

- Que entende por dever humano quando o simples dever não tem um sentido absoluto? O nosso dever é o pior engano se, pela felicidade dos outros, nos ordenar que sejamos infelizes. Sempre queria saber porque tenho eu menos direito à felicidade do que qualquer dos meus súbditos? Sou atingido pelas mesmas dores morais, pelas mesmas misérias; como eles sofri a vida e hei-de sofrer a morte. Porque hei-de privar-me dos raros prazeres deste mundo em proveito dos seus próprios prazeres? Porque

- hei-de preferir as concepções totalmente abstractas, todas as utopias, a essa tão moderna lei do individualismo que aconselha cada um subordinar tudo à sua própria felicidade?

A estas palavras rudemente bruscas, Jorge ficou interdito como se seu irmão tivesse, de repente, falado uma língua que ele não compreendia.

Lolette julgou o cunhado seriamente preocupado, pois continuava de expressão sombria. Talvez imaginasse que Jorge se metia a querer dar-lhe conselhos sobre a sua conduta de rei.

A jovem, perturbada com esta ideia, tentou dissipar esse princípio de mal entendido.

- Jorge toma sempre tudo muito a sério - interveio; - por isso dá às vezes às suas palavras mais significação do que elas realmente têm.

- Adivinho que frases eloquentes te pulam nos lábios, Jorge! - continuou Harold, com esse sorriso irónico que dava uma expressão inquietante à sua fisionomia. - Vais falar ainda no amor do meu povo, no progresso e no bem estar de todos, de fraternidade, de igualdade e de liberdade! Mas se essas palavras deixassem de ser palavras, não concebes que seria uma miséria, uma desordem horrível no mundo?

- Concebo-o tão bem, Monsenhor, que o dever dos reis me parece mais urgente do que nunca. É a nós que cumpre evitar a anarquia, dirigir os espíritos, comprimir brandamente as aspirações fogosas da massa e levar os povos ao progresso, sem grandes convulsões.

- Tens ainda muitas ilusões, Jorge. Julgava que as tuas excursões através da humanidade te tinham feito perdê-las.

- Deram-mas, meu irmão. Vi de perto o mal e a dor dos humildes. Estou convencido de que, mesmo no meio das perturbações sociais da nossa época, um bom rei, que não tivesse a ambição de ser um grande rei, tudo podia remediar.

- E está ainda convencido de que um soberano pode, quase paralisado pelo parlamento, pôr em prática a mais pequena das suas concepções, quando, para os seus próprios negócios, tem menos liberdade de acção do que o último dos seus criados?

- Creio que um rei não possui, de facto, liberdade: no que respeita aos seus interesses, se tem plena consciência da sua missão; mas creio-o por isso mais livre de agir quando se trata do interesse dos outros homens.

- E acha que um rei deve sacrificar a sua própria felicidade à dos seus súbditos?

- Sim; quando essas duas felicidades são opostas, um rei deve - sacrificar-se pela simples razão de ser rei - afirmou o príncipe Jorge, com os olhos iluminados por uma fé ardente.

Harold não deixava de o fitar, com uma curiosidade céptica, como se também ele descobrisse no irmão um homem desconhecido até àquele dia.

Jorge continuou em tom firme, testemunhando apenas a sua exaltação com o olhar:

- A missão de guiar e de proteger é uma missão, providencial, uma missão de apóstolos, mas uma missão tão alta e tão sagrada que nos devemos preparar para todas as Denúncias. Penso que se deve subir ao trono como se sobe ao calvário. O Rei dos reis subiu a encosta da dor até ao cume da tortura e da morte. Um simples rei deve subir o seu calvário disposto a ser crucificado. A missão parece-me sublime, principalmente neste tempo de anarquia em que pagamos muita vez com o sangue, a nossa dedicação!

Jorge falava com fogo, numa espécie de entusiasmo místico que Violeta tinha muitas vezes pressentido, sem todavia lhe ter notado expressão tão viva e tão sincera. Harold ouvia sempre com um extraordinário esforço da atenção como se quisesse gravar na memória as palavras de Jorge. Sob as suas pesadas pálpebras, uma estranha malícia se acendia, vacilante às vezes, num clarão fugitivo, nas suas pupilas mortiças. E, subitamente, teve um sorriso sarcástico e amargo em que o seu desagrado pela vida parecia subir-lhe aos lábios.

- Será talvez uma missão sublime - replicou com nervosismo - mas é principalmente uma missão tão ingrata como cruel. Tu falas assim, Jorge, porque és o mais novo e pudeste escapar-te cedo a todos os entraves da grandeza. Ah! se eu tivesse podido, como tu, fugir da sombra asfixiante do castelo de Névis para o imprevisto alegre de Paris ou de Roma, se tivesse podido viver como tu, em plena mocidade, alguns anos de amor e de liberdade, teria talvez voltado às Grandes Ilhas com uma alma bastante repousada ou bastante renovada para enfrentar sem terror todo o resto da existência. Se eu pudesse, todas as noites, na efusão sincera e nos beijos verdadeiros da companheira adorada, encontrar o contra-veneno da mentira e da lisonja, se eu tivesse, ao menos, mesmo sem essa companheira, a lembrança de uma ternura feliz e desinteressada, encontraria forças para cumprir a minha missão, sem fraquejar. Mas eu não tenho nem tive nunca um só dia de inteira independência! Se eu nunca tive o beijo de uns lábios de mulher sem que o pedido de qualquer favor ou de dinheiro dissipassem logo o perfume desse beijo! E como a dúvida me tornou desconfiado do amor, nunca senti senão a sensualidade. Pensa, Jorge, que ainda não sou Rei e já paguei centuplicadamente essa coroa com a violação de todos os meus gostos, pela incessante tortura do meu carácter, pela compressão da minha verdadeira natureza. Por isso estou esgotado de forças e de paciência e tenho medo, sim, tenho medo, no desregramento súbito dos meus instintos muito refreados, no despedaçar de todos os desejos tornados frenéticos e monstruosos sob este colete de forças a que se chama a púrpura, de não poder já ser o rei-apóstolo, nem o rei-mártir que tu preconizas.

Violeta escutava-o triste e muda, presa pelo tom doloroso e selvagem do príncipe Harold, presa por esse duelo de ideias em que dois carácteres tão diferentes se revelavam bruscamente, face a face.

- Não se conhece a si próprio - disse Jorge, numa soberba confiança. - Tem vivido até hoje na contradição de todos os seus sentimentos e reprimindo todas as suas aspirações. Daí, a sua passageira falta de coragem. Mas, quando for o Senhor, quando tiver o direito de exprimir e de impor a sua vontade, reaverá, com as responsabilidades que lhe incumbem, a plena consciência de si e dos seus deveres.

- Não creio - disse o Príncipe Herdeiro, numa dúvida obstinada e contemplando sempre Jorge com extraordinária curiosidade. - Terás por acaso a presunção de pensares que serias capaz de ter força para realizar semelhante missão, sem fraquejar?

- De qualquer forma, tentaria. Não transigiria e não hesitaria em sacrificar as minhas alegrias de homem aos meus deveres de soberano.

- Gostaria de ver isso!

As pálpebras pesadas do Príncipe bateram febril" mente sobre as suas pupilas e replicou num estranho tom de sarcasmo:

- Palavra que gostava de te ver, Jorge. Imagina que o meu noivado se quebrava.

- Oh! Monsenhor - disse Violeta - não se pode pensar numa coisa tão desoladora!

- Pois bem, imagina então que, casado, a princesa e eu não tínhamos filhos. Depois de mim, tu serias rei, meu irmão. Confessa que a preocupação com a felicidade dos outros destruiria um tanto a tua felicidade íntima que encaminhaste tão sábia e prudentemente? E agora pergunto como combinarias os teus pequenos deveres de esposo com os teus grandes deveres de rei!

- Não sei, Monsenhor, e não devo nem quero pensar nisso!

- Pensa nem que seja por um instante e concorda que o destino te pregaria uma detestável partida. Tremes, Jorge, empalideces Confessa então francamente, sem fanfarronada, que essa ideia te mete tanto medo como a mim.

Jorge sentiu uma espécie de repugnância íntima em fixar o seu pensamento sobre tal conjectura. A esta pergunta, bastante importuna, respondeu primeiro evasivamente:

- É chamar a desgraça exprimir um receio.

- Harold não quis compreender e, batendo o pé, continuou com impaciência e cólera:

- Mas responde, anda! Confessa que, como a mim, a realeza te mete medo!

E, levantando os olhos, enfrentando o irmão numa inconsciente bravata, Jorge replicou em voz branda mas resoluta:

- A ideia de poder vir a ser rei comove-me, entristece-me profundamente, mas não me mete medo.

Os dois príncipes olharam-se como se quisessem penetrar-se até ao fundo da alma. Nenhum baixou os olhos. Pareciam medir-se.

Jorge, muito direito, parecia maior que seu irmão, cansado e um tanto curvado.

Lolette observava-os cheia de indizível terror, como se realmente assistisse, entre esses dois homens imóveis e mudos, ao duelo que a sua imaginação evocava, ao duelo terrível em que nenhum dos adversários pouparia o outro. Foi apenas a impressão pungente e angustiosa de um segundo. Sob um inexplicável pressentimento de desgraça, o friozinho tornou a passar no coração da jovem.

Mas já numa espécie de calma, o príncipe Jorge retomava o seu tom conciliatório de amenidade habitual.

- Para que hei-de eu discutir, Monsenhor, quando a minha única intenção é afirmar-lhe que há-de, não apenas preencher, mas ultrapassar todas as expectativas, O exemplo de nossa mãe o inspirará.

- Oh! não fale da nossa mãe - exclamou Harold, numa voz carregada de todas as censuras que não se atrevia a fazer.

E Jorge continuou:

- Não é precisamente porque podemos censurar a Rainha de ter sacrificado os seus deveres de mãe aos outros deveres, que a devemos admirar plenamente na sua missão de soberana? Pense que, sem ter que dar contas das suas acções a ninguém, dispõe de todo o poder, de todos os recursos do maior Império do Mundo, pois, no entanto, nunca sentiu a vertigem das grandezas e a própria idade parece não ter atingido a sua incomparável inteligência. Continua, para o que diz respeito aos interesses das Grandes Ilhas, lúcida, clarividente, de uma rectidão e de uma justiça que nenhuma vontade jamais pode desviar.

- Creio que nossa mãe foi sempre mantida e inspirada pela sua paixão pelo poder. A Rainha soube e saberá sempre reinar só de que forma zelosa bem o sabe!

- até à sua última hora.

Seguiu-se um novo silêncio, bastante embaraçoso. Depois, Harold

levantou-se e voltou-se para a mesa onde estavam os frascos. Encheu um segundo copo de whisky, engoliu-o de um trago, escolheu em seguida um charuto numa das caixas e, voltando-se para Lolette, continuou, com a mesma diabólica malícia:

- Jorge já lhe contou que eu, quando era mais novo, tinha muitos ciúmes dele?

- Nunca me falou de uma coisa tão inverosímil, Monsenhor - disse Violeta, espantada, e não sem sentir um certo receio.

- É porque ele é generoso, e mais que generoso, mas em muitos pontos, melhor do que eu. O povo, com o seu instinto seguro, adivinhou-o. E todos têm razão de o preferir.

Aqui, o príncipe Harold cortou a ponta do charuto com os dentes fortes e, fazendo uma careta como se o gosto do tabaco lhe parecesse muito amargo, continuou:

- Sim, tive ciúmes, é a verdade pura.

Envolveu a jovem senhora com o seu olhar sombrio e Lolette julgou ver, sob as pálpebras pesadas, a pequena chama reacender-se nas pupilas vítreas enquanto ele acrescentava entre dentes num riso que o seu bigode quase abafava:

- Não digas que não, Jorge. Por muito vergonhoso que seja, tive ciúmes... e ainda os tenho. Sim, quando penso no vosso amor, quando vejo a tua mulher, o vosso filho, a vossa casa cheia de felicidade... tenho ciúmes.

Violeta tentou mais uma vez desviar a conversa e disse a rir:

- Que brincadeira, Monsenhor! Jorge é que poderia invejá-lo. Tem tantas coisas mais do que ele!

- Que coisas?

- Todas, visto que será rei!

- Ah! que rica vantagem! E quem sabe se seu esposo não será um dia rei?

Com um prazer maldoso em insistir nesta ideia que punha Lolette e Jorge pouco à vontade, continuou com a teimosia de um homem levemente embriagado:

- Ah! nesse dia, Jorge, havemos de te ver meter mãos à obra. Tenho curiosidade em observar de que forma te arranjarás para satisfazer ao mesmo tempo a tua consciência de homem e a tua consciência de rei.

- Isso não acontecerá nunca, Monsenhor, graças a Deus! - disse Violeta, vivamente. - O seu casamento afasta Jorge do trono para sempre e nós alegramo-nos com isso do fundo da alma.

A jovem lamentou esta nova alusão ao casamento real, pois o Príncipe franziu as sobrancelhas e o seu rosto tomou uma expressão dura:

- Quem sabe lá? Qual, de entre nós, conhece o futuro?

Depois, preso do seu feitio instável, levantou-se e mal tendo tempo de apertar a mão a Jorge, mandou chamar a sua gente. Mas houve uma espera nesta pressa febril de partir, que foi o tempo de beijar a mão de Violeta.

- Até breve, minha linda irmãzinha!

- Atravessou o vestíbulo e desceu no passo vacilante

de um ébrio. Mal montou, como que retemperado pelo ar frio da noite, esporeou o cavalo. Os oficiais e os picadores seguiram-no. Ao clarão dos archotes que os criados levavam, o cortejo de fantásticas sombras apagou-se, perdeu-se na avenida, numa enorme galopada.

 

Apesar de tudo, Violeta podia felicitar-se pela impressão produzida nesta primeira visita. O Príncipe Real tinha-lhe manifestado logo uma viva simpatia. Dera-lhe mesmo provas de uma confiança súbita e sincera. Isso é que Jorge e a sua mulher não tinham ousado esperar. E, no entanto, a lembrança dessa noite ficara para a jovem condessa cheia de inquietações.

Vários dias depois, Jorge, retido no castelo de Névis pelos preparativos da festa de esponsais do Príncipe Harold com a princesa Augusta, chegou tarde a casa. A data do casamento, antecipada pelas instâncias quase ameaçadoras da Alemanha, acabara de ser definitivamente fixada. E era por isso que Lolette, muitas vezes só em casa, teve ocasião de pensar na visita do seu real cunhado.

No hall, nos salões tão iluminados, no parque, em toda a parte onde a jovem passava, via sem cessar o rosto do Príncipe ora selvagem e apaixonado, ora irónico e doloroso. Revia esse rosto pálido de lábios vermelhos, de barba e bigode ruivos, revia enfim, sob as suas pálpebras pesadas, uns olhos de água morta onde às vezes se acendiam chamas furtivas.

Por incompreensíveis que então lhe parecessem as atitudes do Príncipe, Violeta sentia menos medo do que tristeza e piedade.

Na tarde da celebração do casamento, Jorge preveniu sua mulher de que só voltaria de noite, e tarde. Na residência Real devia realizar-se um faustoso festim. Antes desse festim, na presença do corpo diplomático, da corte e dos principais membros do parlamento, o Príncipe Real devia pôr o anel de noivado no dedo da princesa Augusta.

Nesse dia, Violeta foi atraída para o parque pelo inexplicável calor de um pálido sol, supremo sorriso do outono.

Tinha-se dirigido para o rio. Acompanhada de Solange e de Lolet, demorara-se junto do lago. Enquanto a ama e o garoto atiravam pão aos cisnes que acorriam prontamente, a jovem condessa tinha-se sentado num banco de mármore. Numa languidez de bem estar deixava-se docemente acariciar pelos últimos raios que rompiam a bruma. Lolette sonhava, contaminada pelo ambiente das águas cinzentas, do céu pálido e das florestas já orvalhadas pelo beijo da noite. Sonhava, vagamente adormecida pela inexplicável melancolia que se desprendia das folhas que caíam, do fino nevoeiro condensado sobre as ervas murchas, sobre as ramadas nuas cujo pesar parecia ser chorado por todas as lágrimas da natureza em luto.

Durante um instante ainda, Violeta divertiu-se com os brinquedos da criança de rosto rosado, a rir por entre a flotilha dos cisnes brancos cujas asas batiam o ar e a água numa alegria familiar. Depois, o sonho levou-a a. pensar no seu futuro, no futuro do filho, nesse destino de romance e de conto de fadas que apesar de tantos mistérios já esclarecidos, estava ainda velado por tanta interrogação!

Lolet veio para junto da mãe. Depois de uma semana de reclusão por causa das chuvas incessantes, fatigado do passeio e desse dia ao ar livre, sentou-se nos joelhos de Lolette, deitou-se no seu braço e, vencido pelo sono, abriu a boquinha rosada para pedir num bocejo:

- Mamã, deixas-me esta noite ficar ao pé de ti e só me deitar quando o papá chegar?

- Não, meu querido filho. Teu pai virá tarde de mais para que tu fiques comigo. No entanto, prometo-te que ele irá beijar-te quando chegar.

- Mas, mamã, o papá beija tão devagarinho que o seu beijo não me acordará e eu não darei por ele ter voltado!

- Sentirás o beijo mesmo adormecido e compreenderás, através dos teus sonhos, que o papá chegou.

- A onde foi ele para vir tão tarde?

- Ao castelo de Névis.

- A casa da Rainha? Ah, sim, já me lembro, no meio da mata selvagem, aquela grande casa que fica vermelha como o sangue, ao pôr do sol. Não te aflige, mama, que o papá se demore todos os dias tanto no castelo da bruxa?

Violeta estremeceu. Para dissipar a apreensão que as palavras da criança acabavam de lhe avivar, pôs-se a embalá-la nos braços. Mas Lolet, fechando os olhos, continuava:

- Há sempre nevoeiro sobre o lago, do lado do castelo. Os cisnes nunca vão para essa margem, parece que têm medo. Deve ser muito má a bruxa. Não tens medo, mamã, que, enquanto o papá está no castelo, ela nos venha fazer mal?

- Oh Não! A Rainha raramente sai do seu castelo.

- E se mandar a outra senhora, pálida e de negro, a nova?

- Os cisnes não a deixarão abordar, tu bem sabes que eles são os nossos guardas fiéis. E depois, não estás aqui tu para nos defenderes? Quando se tem um papá valente como o teu, é preciso ser valente também!

- Oh! Embora ainda seja pequeno, eu sou valente, mamã, quando vejo e compreendo o perigo. Mas não é verdade que os homens, mesmo os maiores, têm medo também dos perigos que não podem ver nem compreender?

- Sonha lindos sonhos doirados em vez de pensares em coisas tristes, meu filho!

À força de o embalar e de cantar, Violeta adormeceu a criança. Solange estendeu a capa sobre a relva e as duas mulheres, como ainda estava quente, deitaram a criança nesse leito improvisado.

Profundamente impressionada pela solidão dessa paisagem outonal, em que o silêncio só era perturbado pelo ligeiro ruído das folhas que se desprendiam dos ramos e caíam, moribundas, sobre as folhas mortas, a condessinha esforçava-se por afugentar a imagem maléfica da fachada vermelha, imensa, romântica e fatal do castelo de Névis. Preferia imaginar, numa sala maravilhosamente iluminada, deslumbrante com o reflexo dos cristais e dos espelhos, o sumptuoso festim de noivado. E, na sua contínua necessidade de expansão, Lolette divertia-se, pelas confidencias de Jorge, a descrever todos os esplendores da festa a Solange. A certa altura interrompeu-se e suspirou:

- A cerimónia deve ter começado. Ah! Solange, como eu desejo que esse casamento se realize!

- Porque o deseja tão ardentemente?

- Porque essa união deve assegurar para sempre a minha felicidade. Casado, Harold terá com certeza filhos e isso afastará definitivamente o meu marido do trono. A nossa situação será muito diferente e a presença de Jorge na Corte já não será obrigatória. Será muito mais meu. A nossa felicidade, ainda mais ignorada, será mais completa. É certo que lamento o Príncipe Herdeiro por se casar sem amor, mas já que esse casamento é inevitável e se Harold está resolvido, que se faça e, quanto mais depressa, melhor. Estou a pensar, Solange, que neste momento o Príncipe mete no dedo da noiva o anel de noivado.

- Talvez, sim... - disse Solange. - No entanto, dizem na aldeia de Névis que o Príncipe anda cada vez pior, mais selvagem e solitário. Contam também que a senhora de preto, aquela cuja aparição anuncia sempre desgraça à família real, já vagueia de dia em pleno parque, atravessando a mata, ou nas margens do lago e que também erra de noite nas galerias do castelo.

- Que conto de fadas! Essa senhora de negro não é senão a princesa Augusta que anda sempre de luto e que passeia no parque e no castelo. Como pode ela trazer desgraça a uma família que vai ser a sua?

- Sabe-se lá como a desgraça chega!

- Tu sonhas, minha boa Solange, exactamente como o Lolet. Não achas que o pequenino pode ter frio O sol já declina e empalidece cada vez mais. Como o crepúsculo cai depressa!

- Oh! O garoto não tem frio. Está bem coberto. E faz-lhe bem, mesmo a dormir, respirar o ar livre! Não esteve ele fechado demais durante o inverno?

- É verdade. Olha, lá em baixo, mesmo ao lado da residência real, vê como o nevoeiro se torna cada vez mais espesso. Embora o poente dê a ilusão de ensanguentar o castelo, parece sempre que, desaparecido o sol, toda a treva e todo o frio da noite nos vêm daquela soturna fortaleza. E aqueles pálidos clarões, ao longe, que se reflectem na água, são talvez as iluminações das torres do castelo.

- Sim, talvez.

- Jorge deve estar satisfeito. Até ao último momento, ele temia que um obstáculo surgisse para a celebração do noivado tão desejado e esperado, e que defende as Grandes Ilhas da Alemanha, talvez até o mundo inteiro, de uma guerra horrorosa.

- Todas as luzes acabam de se apagar bruscamente. É sem dúvida o efeito da bruma que se adensou - constatou Solange. - Talvez fizéssemos agora bem em voltar para casa, minha senhora. Nada nos retém aqui agora que já estamos tranquilizadas sobre o resultado deste famoso dia.

- Pobre Harold! - suspirou Violeta. - É a sua desgraça de hoje que assegura a nossa felicidade de amanhã. Apesar de o lamentar, Solange, não deixo de me sentir feliz por Jorge e por mim.

A jovem tinha-se levantado sorridente, com as suas apreensões dissipadas.

Nesse instante, os cisnes que estavam em frente de Lolette, calmos, silenciosos e languidamente embalados pelas águas, ergueram de repente, com inquietação, os seus longos pescoços finos e depois aproximaram-se uns dos outros, trémulos, agitando as brancas asas no crepúsculo cinzento.

- Que têm eles? - perguntou Violeta, surpreendida.

- Parece que pressentiram a vinda de qualquer passeante invisível! Já se afastam da margem... fogem... eles que nunca daqui saem... É extraordinário!

- Escute - disse Solange, atenta e inclinada para o lago. - Parece-me ouvir um barulho de remos.

- Deve ser ilusão tua.

- Não, é uma barca que se aproxima, tenho a certeza.

A senhora tem melhores olhos do que eu, olhe lá ao longe, entre as árvores, na direcção do castelo. Talvez veja qualquer coisa no lago. O barulho vem do lado do castelo de Névis!

Violeta olhou. O dia fugia. Depois de alguns minutos de espera, a jovem condessa viu distintamente uma barca que parecia de facto vir do castelo de Névis e que se dirigia directamente para o parque.

- Não há dúvida possível - confirmou Lolette. - A aproximação da barca assustou os cisnes. Quem será que atravessa o lago a esta hora? Jorge nunca veio de Névis pelo lago e de resto não voltaria só nem tão cedo. Apesar do nevoeiro, vejo agora bem que só há um passageiro no barco. Se fosse o Jorge, os cisnes não teriam fugido; sempre que passeamos eles rodeiam o nosso yole como um cortejo. Quem poderá ser?

- Se eu pegasse no menino ao colo e fôssemos para casa minha senhora? - propôs Solange, que não parecia muito tranquila.

Mas Violeta, corajosa, fixou o olhar sobre a embarcação que avançava rapidamente.

- O remador vem de costas, não lhe posso ver o rosto... mas conheço o barco por o ter visto duas ou três vezes ao largo; é um barco do castelo.

- Vamos para casa, minha senhora.

- Ainda não. E se for alguém mandado pelo sr. conde? Sabendo quanto me interesso pelo que se passa em Névis, talvez quisesse mandar-me uma palavra anunciando que a cerimónia se realizou.

O barco, com um último golpe de remos vigoroso, deslizou e o homem que o dirigia voltou-se para ver onde devia abordar.

- Conheço este vulto, conheço este rosto! - exclamou Violeta, num movimento de surpresa.

E, antes que a embarcação abordasse, quando o homem saltou em terra, a jovem murmurou:

- É o príncipe Harold, Solange! Porque virá ele sozinho, pelo lago, à hora precisa em que se prepara em sua honra uma festa solene? É uma coisa estranha...

O príncipe tinha certamente reconhecido Violeta. Sem se dar ao trabalho de amarrar o barco, saltou, avançando precipitadamente para a jovem condessa.

- Venho visitá-la - disse com a sua voz rude e um singular sorriso. - Foi um feliz acaso que a trouxe precisamente a este lado do parque. Isso evita-me que para lhe dizer o que quero, tenha de ir até casa.

E sorria sempre, mas não sem esforço. Os seus olhos brilhavam de febre no rosto pálido. Os seus movimentos traiam uma agitação nervosa. O uniforme verde com o dólman desabotoado, um boné de peles, posto ao contrário, a visível desordem da sua indumentária provavam pressa e negligência.

- Porque está aqui, Monsenhor? Como pode estar aqui? - exclamou Violeta.

Ele impôs-lhe silêncio com um gesto imperioso.

- Explicar-lhe-ei quando tiver mandado embora esta mulher. Para falar do que me traz aqui, estaremos muito bem, sentados neste banco de mármore.

Depois de ter lançado um olhar inquieto para o lado do castelo, exclamou:

- Mas é preciso andar depressa, senão arriscamo-nos a ser incomodados de um momento para o outro.

- Leva o Lolet - disse Violeta a Solange - e vai para casa. Monsenhor deseja falar-me.

Solange inclinou-se para o pequenito que, embrulhado na sua capa, continuava a dormir profundamente. O príncipe Harold, aproximando-se de Solange, disse vivamente:

- Como? Lolet também aqui está? Ah! Deixe-mo ver, deixe-me ver esse lindo sobrinho.

Solange afastou a capa para que o Príncipe pudesse ver melhor o rosto da criança.

- É encantador! - murmurou Harold, em voz subitamente calma e baixa, num tocante receio de despertar Lolet. - Parece-se consigo, Violeta e também... também se parece com o Jorge. Ah! Se eu tivesse um filho como este! Mas só os filhos do amor podem ser belos como o Lolet.

Solange dispunha-se a pegar no pequeno adormecido quando o príncipe lhe fez sinal para que esperasse um pouco. Silencioso e melancólico, continuou a olhar para a criança com profundo enternecimento, num recolhimento extraordinário, como se essa contemplação fosse um súbito alívio para o tormento da sua alma. Depois, grave e pensativo, murmurou:

- Porque havemos de recear que a morte nos seja dolorosa, quando o sono, a sua imagem, parece tão calmo?

Esta reflexão, embora formulada num tom sossegado, inquietou Violeta. Fez sinal a Solange para levar Lolet. E a velha afastou-se sem despertar o pequeno, enquanto o príncipe Harold recomendava:

- Vele por ele, não o deixe... não o deixe nunca...

- - Para que o aconselha, Monsenhor? Que tem meu filho a recear? Confessa que nos ameaça um perigo?

- Não soube de nada - disse o príncipe, que parecia novamente preso da febre nervosa que a vista da criança tinha acalmado subitamente. - Nada ameaça por enquanto a vossa felicidade.

E como a jovem, aflita, indagasse:

- A nossa felicidade pode um dia ser ameaçada?

- Harold pareceu perturbar-se mais e, esforçando-se por tranquilizar a condessa, deixou escapar estas palavras nada tranquilizadoras.

- Não se inquiete, tudo se há-de arranjar sem grande mágoa para si... pelo menos assim o espero. Sim, sim, espero... senão, teria muitos remorsos.

Tinha-se voltado para se certificar de que ninguém os podia ouvir, nem mesmo espiar, no parque invadido pela noite. Pôs a mão gelada de Violeta na sua mão ardente e levou-a para o banco de mármore onde se sentou ao pé dela.

- Explique-se enfim, Monsenhor, por que razão está aqui? É justamente no momento em que no castelo de Névis se prepara em sua honra uma grande cerimónia, que aqui vem? Não devia, antes do festim, enfiar no dedo da princesa Augusta o anel de noivado?

A estas perguntas, de repente, no silêncio do parque, estalou o riso do Príncipe, um verdadeiro riso de louco. Depois, quase imediatamente, inquieto pelo barulho que acabava de fazer, Harold olhou de novo à sua volta. Tranquilizado pela imensidade nua das relvas e das águas, continuou em voz baixa e surda:

- Sim, a festa está pronta. A Rainha, o Jorge, a Princesa, lord E vendai, grande chanceler do Império, o Parlamento, os ministros, os embaixadores, a Corte, todos esperam em Névis, em traje de gala. Ninguém pensa em faltar a esta cerimónia quase nupcial, ninguém... excepto o marido!

Violeta julgou que ele ia de novo soltar um grito de demência. No entanto, reteve-se a tempo e esse riso abafado, subitamente comprimido, estrangulou-se-lhe estranhamente na garganta, em pequenos soluços. Depois, com os olhos esgazeados, sem notar a alteração do rosto da jovem senhora, continuou em tom misterioso:

- Eles esperam-me. procuram-me... e não me encontrarão. O noivo desapareceu. É uma excelente brincadeira, não acha? Uma brincadeira excessiva, enorme, digna de mim!

Lolette, muito pálida, perguntava a si própria se o homem que falava assim, não estaria louco ou ébrio?

Mas Harold, a despeito da sua respiração ofegante, explicou-se em breve de uma forma clara, precisa e o seu olhar, tão mortiço, de costume, brilhou de inteligência e de vida.

- Não posso mais, Violeta, é superior às minhas forças.

- Que quer dizer, Monsenhor? Não o compreendo... não ouso

- compreendê-lo...

- Não compreende que é superior às minhas forças, não apenas amar, mas casar com a Princesa Augusta? Esse tráfico de títulos e de fortunas, essa solução de questões políticas sem a mínima preocupação com as nossas repugnâncias físicas e morais, esse simulacro de amor onde o amor está ausente, é uma coisa monstruosa e sacrílega! Como conceber do casamento uma ideia mais baixa e degradante? Como não nos havemos de indignar por aquela mãe preferir seu filho infeliz, pervertido, debochado, a vê-lo fazer uma aliança desigual? Efectivamente, que importa a minha mãe que a minha alma estale, se o meu rosto plácido puder esconder da multidão as angústias íntimas? É então a este ódio de dois entes, mascarado de indiferença, a que chamam razão, o equilíbrio social e religioso dos reis? Ah! É quando a vejo ao pé do Jorge, querida Lolette, constatando a vossa imensa felicidade, que eu sinto a imensidade da minha desdita. Aborreço as maneiras altivas e secas dessa Princesa. Desde a sua chegada à corte compreendi que essa alemã seria a dama negra, fatal à nossa raça, a dama negra que vagueia pelo palácio anunciando desgraça! Ah! Simular hipocritamente o amor quando dois corações hostis estão em constante rebelião, separados por insondáveis abismos, não poderei nunca consegui-lo, Odeio essa mulher, toda a minha alma sente repulsa pela sua alma, toda a minha carne ardente sente repulsa pela sua carne gelada.

Violeta tremia, pressentindo qualquer terrível confissão. A noite caíra completamente e, na obscuridade do parque,, nas brumas impenetráveis que flutuavam sobre o lago, essas confidencias ardentes e ditas em tom apaixonado, tomavam um sentido profético e trágico.

- Não posso mais - continuou o Príncipe - não! Não posso mais! Também eu, Lolette, sonho, também eu me revolto! Ganha-me o contágio, sinto o mal dos reis: os príncipes estão em greve e fazem-se anarquistas. É por isso que eu fujo desse palácio de sombra, dessa prisão asfixiante onde as portas e as janelas estão fechadas para que nada se veja nem nada se ouça da vida, da vida eterna que muda, que se transforma e se renova infinitamente! Ah! Como o Jorge e como tantos outros príncipes, porque não quebrei eu mais cedo as minhas cadeias?

- Cadeias de oiro, Monsenhor!

- As cadeias de oiro dos reis, são mais pesadas que as correntes de ferro dos escravos! - replicou o Príncipe. - Mas hesitei muito, demorei-me. Não tive bastante força nem bastante esperança para refazer a minha vida. E assim, eterno prisioneiro, para tudo esquecer, para não pensar, quis forjar uma alma estúpida e brutal, uma alma de caserna. Mas até na própria luxúria só encontrei aborrecimento! Faltou-me, para o vício, a imaginação criminosa de um Bórgia! O escrúpulo vacinou-me muito cedo, o escrúpulo de me tornar um monstro em escandalosas orgias. Recuei. sim, recuei também porque tinha a consciência de que o meu coração, estava há muito tempo aberto à morte para que qualquer bafejo de vida lhe pudesse reanimar as palpitações! Desde então, não fui mais do que uma alma que vai ao sabor da fatalidade. E quando um rei sabe que tem essa alma, é porque está maduro para as grandes catástrofes, é porque o seu reino prepara todas as vergonhas com todas as misérias. Ah! Lolette, sinto passar por mim o grande vento da fatalidade!

Violeta, trémula de emoção, objectou francamente:

- Monsenhor está debaixo da impressão da febre e a sua imaginação alucina-o. Acalme-se Vossa Alteza! Sente-se doente?

- Doente, eu? Sim, talvez seja doença! Tenho medo, à força de ter abusado de todos os prazeres, de ter sido contaminado por esse nervosismo que leva aos piores excessos. Sofrendo moral e fisicamente, tenho conseguido manter até agora uma aparência de força e de energia, mas sinto-me prematuramente gasto. Tenho de dia e de noite terríveis obsessões, sonhos sangrentos, horríveis pesadelos em que julgo ver avalanches de lama, rios de esgotos, tudo de mistura com cetros, coroas, pedaços de tronos, com imundícies e cadáveres putrefactos. E sinto que essa torrente de esgotos me atrai, me fascina e que, numa vertigem, vou a cair e a afogar-me...

O Príncipe, com os olhos fixos em terra, o rosto sombrio, as feições alteradas, a boca crispada de amargura, estava vacilante, como se se abrisse diante dele um abismo de pântano e de infecção de que sentisse já náusea.

- Não exagere o seu estado, Monsenhor - continuou Lolette, cada vez mais perturbada e inconsciente das suas contradições. - É apenas uma excitação causada pelos excessos da sua vida. Uns dias de repouso e...

Harold entusiasmou-se mais violentamente:

- Já não há repouso para mim, repito-lhe: é tarde demais! Parece-lhe que os anti-espasmódicos podem curar uma alma devastada pelo aborrecimento e envenenada pela desconfiança? Ah! Se só os meus nervos vibrassem e me fizessem sofrer! Mas às vezes o meu cérebro abrasa-se de demência. Sou filho de muitas rainhas e de muitos reis! Os homens são impotentes para me aliviar e a própria natureza não oferece nenhum remédio ao mal que vem de Deus. Sou mais miserável do que o mais miserável dos meus cem milhões de súbditos. Se volto a entrar nesse palácio de opressão, se me deixo sequestrar pela Corte, se me sinto agarrado pela torturante engrenagem da etiqueta e do cerimonial, se me presto, nem que seja por uma hora, à realização desse casamento odioso, sou um homem perdido... perdido, perdido.

Repetia a palavra com uma espécie de desesperado frenesim. Contaminada por aquela inquietação, Violeta só podia repetir fracamente:

- Tranquilize o seu espirito, Monsenhor, reflita!

- Já reflecti, já reflecti profundamente, e foi à força de reflectir que compreendi todo o horror desta detestável ligação. Ousará Lolette, cuja imensa felicidade é fundada num casamento de amor, ousará, do fundo do seu coração cheio de ternura, de franqueza e de piedade, aconselhar-me essa monstruosa união?

Este apelo venceu as últimas hesitações de Lolette:

- Não, não lha aconselho - confessou num grande impulso de sinceridade. - Mas suplico-lhe, Monsenhor, que não tome qualquer resolução brusca e violenta. Acalme, consulte os seus amigos e principalmente, sim, principalmente, converse com o Jorge. Juntos encontrarão um meio de demorar esse casamento e até mesmo de o desmanchar sem afrontar muito a vontade da Rainha e sem fazer à Princesa uma ofensa irreparável. A vingança atrairia sobre a sua pátria e talvez sobre o mundo inteiro horríveis calamidades.

- Já encontrei esse meio - disse o Príncipe, que pareceu subitamente readquirir o seu sangue frio - e é a esse meio que recorrerei esta noite. A minha revolta contra a vontade da Rainha, a afronta que faço à Princesa faltando à cerimónia de noivado, terão a sua explicação amanhã e a minha ausência não poderá então ser alcunhada de revolta nem de afronta. Há muito que penso nisto, mas agora estou irrevogavelmente resolvido. A excitação em que me vê não é senão o resultado de uma febre e de uma embriaguez necessárias à realização do meu projecto. A minha decisão explicará tudo e da forma mais simples, de tal maneira indiscutível que era preciso estar louco para não ter pensado nisto mais cedo.

Embora a voz brusca do Príncipe se acalmasse e o seu olhar brilhante se velasse de melancolia, Violeta estremeceu instintivamente e perguntou em voz cortada de apreensão:

- E que meio é esse? Diga-me: que meio é esse?

- Sabê-lo-á amanhã.

- Violeta julgou compreender:

- Ah! Monsenhor, a história do arquiduque Salvador atravessou-lhe o espírito? Quer fugir da corte, partir para longe das Grandes Ilhas, para muito longe? E essa liberdade de pensar e sentir como homem, quer ir procurá-la na imensidade do mar?

O Príncipe estremeceu. Teria Violeta adivinhado?

- Sim - disse ele, com o seu sorriso sarcástico e os olhos esgazeados ante a visão que a jovem lhe sugeria.

- Parto para longe das Grandes Ilhas, para muito longe. A travessia será longa. não sei mesmo onde abordarei... não sei mesmo se chegarei a abordar... Mas, tal como imagina, será na imensidade, na insondável imensidade!

- Nada o pode desviar de semelhante resolução?

- Nada no mundo. Demorei até tempo de mais.

- Será então uma longa viagem?

- Sim, longa... muito longa... não sei quando voltarei... talvez não volte nunca!

- Digna-se dizer-me onde pensa ir, Monsenhor?

- Ninguém o saberá... eu mesmo não sei.

- E parte amanhã? Parte esta noite? Oxalá possa voltar em breve, depois de ter encontrado, como seu irmão Jorge, a companheira cujo amor lhe dará força e amor à vida!

Depois, vencendo o acabrunhamento que lhe causava uma notícia de tal maneira imprevista, Violeta pensou, de repente:

- Já que não quer voltar ao castelo de Névis, passe ao menos a noite em nossa casa. Jorge prometeu-me voltar assim que estivesse livre. Vamos esperá-lo juntos. Ele ficará muito contente de o ver antes de uma tão longa ausência! E talvez também encontre, para combater o seu funesto projecto, razões fortes, palavras convincentes, súplicas que, na perturbação e com o desgosto que me causa a sua partida, eu não sei exprimir!

- São cenas dolorosas que desejo evitar - disse o Príncipe. - Elas fariam renascer em mim angústias que me torturariam como o adiamento da realização dos meus desígnios, sem, no entanto, os alterar. Antes de partir, quero confiar-me a si, porque foi a única pessoa na minha vida, que me fez entrever o que era a felicidade. Sem si, eu ignoraria que alegrias honestas nos pode dar uma vida de amor! Ao vê-la, ao ouvir a sua voz, senti, pela primeira vez, uma sincera impressão de repouso nascer na minha alma e, embora essa impressão fosse misturada de pesar, eu tinha tanto fel e tanta amargura na alma que essa pena foi ainda assim de uma infinita doçura...

A sua voz tornara-se lenta, quase cariciosa nesta última frase. E, sob as pálpebras sombrias, Violeta julgou ver as suas pupilas mortas mergulharem na limpidez das lágrimas.

Harold tinha pegado na mão da rapariga e, num estremecimento extraordinário, contemplava-a como tinha contemplado Lolet. Quereria também, para sempre, gravar esta radiosa imagem no fundo dos olhos?

De repente, esse grande recolhimento de emoção foi perturbado. Violeta estremeceu. Diante dela, para lá do lago, do lado de Névis, um clarão vermelho acabava de se acender nas trevas. O Príncipe, advertido por um gesto assustado da jovem, voltou-se e, por sua vez, viu o clarão.

- É o clarão dos archotes - disse, estremecendo; - naturalmente deram pela minha desaparição e procuram-me inutilmente no castelo. Agora procuram-me no parque, através da mata e nas margens do lago. Naturalmente vêm até aqui. É tempo de partir...

- Monsenhor, suplico-lhe ainda - gemia Lolette, pressentindo nessa separação qualquer coisa de irreparável - espere o regresso de Jorge. Ele tudo arranjará.

Mas este pedido teve por efeito imediato e contrário, precipitar a partida do Príncipe, aumentando a excitação que lhe causara a luz dos archotes.

- Não posso demorar-me. Se a gente da Rainha me vê, leva-me para o castelo, e o que será feito então, ainda durante anos, da minha independência e liberdade?

- Acha que se limitarão a procurá-lo no castelo de Névis, na mata e nas margens do lago? Hão-de procurá-lo por toda a parte, Monsenhor, por toda a parte! Sua Majestade e o Jorge não descansarão enquanto não o tiverem encontrado e com tanta gente lançada em sua perseguição, acabarão por encontrá-lo um dia.

- Naturalmente vão encontrar-me esta mesma noite! daqui a horas, e não lhes será sem dúvida muito difícil, É... mas a essa hora já terei tomado tão bem as minhas precauções que será tarde para impedir a minha partida.

- Vossa Alteza fala por enigmas. Digne-se explicar-se mais claramente. Queria ainda pedir-lhe mil coisas, mas os pensamentos baralham-se na minha cabeça desvairada.

O Príncipe lançou um olhar inquieto para as brumas do céu que os archotes penetravam com um clarão mais largo e mais intenso.

- Não me pergunte nada, não me demore, Lolette. Já disse de mais.

- Está a tremer de frio! Quem sabe até se tem fome Deixe-me ir a casa buscar-lhe...

- Não. Pararei, à passagem, no meu pavilhão de caça, na floresta de Névis e aí encontrarei tudo quanto necessito para a viagem. Adeus!

- Oh! Adeus não, Monsenhor; até à vista!

- Harold tinha atraído Violeta a si. Ela viu nos olhos do rapaz duas lágrimas iluminarem o seu olhar morto com uma luz terna e doce. Num movimento caricioso, o Príncipe apertou-a mais contra si.

A rapariga resistiu um pouco, receando, sem bem saber porquê, um abraço mais violento e mais apaixonado. Ele adivinhou sem dúvida tal receio. Nos seus olhos, uma tristeza extinguiu a luz límpida das lágrimas. E, numa súplica, murmurou:

- Ah! Lolette, doce Lolette, peço-lhe que me beije pela primeira e última vez. Tenha a ideia de que o seu beijo tão puro me trará felicidade na minha longa viagem. Por isso, nesse beijo, mostre o que o seu coração tem de clemência e de piedade para aquele que parte!

Pôs nesta palavra uma gravidade simples e, no entanto, solene. Pareceu, ao fazer esse simples pedido, tão humilde, tão diferente do príncipe orgulhoso e fantástico, que Violeta, sentiu, espontaneamente, toda a clemência e toda a piedade que ele reclamava. Perturbada, com o coração confrangido por invisível emoção, estendeu-lhe o rosto num impulso de compaixão.

Harold pousou os seus lábios ardentes sobre os lábios frescos de Lolette. As suas bocas afloraram-se apenas uma vez e por pouco tempo, mas foi nesse beijo que ele implorou numa voz que não era mais do que um sopro:

- Perdoe-me, Lolette!

- Perdoo-lhe o quê, Monsenhor?

- O mal que lhe faço, o mal que vou fazer-lhe.

- Mal, Monsenhor! Que mal pode fazer-me, quem só me tem feito bem?

- Perdoe-me ainda assim, Lolette... não sei ao certo, não posso saber que mal lhe farei... mas não quero partir sem o seu perdão!

- Oh! Perdoo-lhe antecipadamente, querido Príncipe e de todo o meu coração!

- Obrigado, Lolette, obrigado!

Ele teve um grande suspiro de alívio e murmurou, como se quisesse afastar do espírito da jovem toda a má suspeita da sua carícia, como se quisesse antecipadamente purificar a recordação do seu beijo:

- Obrigada, irmãzinha... e agora, adeus!

- Afastou-a, primeiro docemente, depois separou-se dela com rapidez. E envolvendo-a sempre com o seu olhar velado de lágrimas, recuou, desaparecendo lentamente na sombra do parque. Então, quando parecia inteiramente confundido com a bruma, ela julgou distinguir ainda a palidez do seu rosto, na escuridão do bosque. Depois, até esse clarão se apagou e desapareceu.

Violeta ficou ali, imóvel, muda, ainda presa da dor, perguntando a si própria se esse rosto fantástico não iria de novo surgir em confusa brancura, através do nevoeiro Cinzento.

Uma última vez, no silêncio fundo, um eco fraco e distante pareceu trazer-lhe a voz de Harold:

- Perdão, Lolette, perdão!

Depois não ouviu mais do que as folhas moribundas caindo sobre as folhas mortas.

Tudo quanto Violeta acabava de ver não teria sido a fugitiva visão de um sonho? Mas, quer evocasse essa estranha aparição, quer se lembrasse das palavras ainda mais estranhas de Harold, a rapariga não podia reprimir um estremecimento. E, no entanto, ao pensar que esse Príncipe, cumulado de riquezas e de honras, fugia sem escolta, de roupa em desalinho, mais só, mais miserável e mais receoso do que um forçado evadido ou um soldado desertor, ela não podia resolver-se a sair da margem. Um rumor cada vez mais distinto, clarões mais vivos nos vapores do lago chamaram-lhe a atenção, dissipando-lhe o torpor. Viu ao longe, ainda muito ao longe, pequenas claridades dispersas que pareciam correr à superfície das ondas e cruzar-se no nevoeiro.

- A gente do castelo, em barcos, lança-se à procura do Príncipe - pensou Violeta. - Naturalmente vêm até aqui, mas eu já cá não estarei. Não quero dizer-lhes que caminho seu amo tomou. Seria trair a confiança que depositou em mim.

Entristecida, Violeta, foi enfim para casa, julgando ainda ver o Príncipe contemplar Lolet, com enternecimento. Imaginou ainda sentir o beijo que ele purificara como suspiro: "Adeus, minha irmã!" Parecia-lhe ouvir o eco dessa voz humilde pedindo-lhe perdão. E, caminhando mais depressa, repetia numa obsessão:

- Porque me disse ele adeus e não até à vista? Porque, por duas vezes, sendo tão altivo e tão rude, me pediu perdão numa voz que implorava? Porquê, perdão. Porquê?

Chegou assim, ao portão da casa. À entrada, Solange esperava-a, inquieta cem a demora.

- Que é feito do Príncipe Harold? - perguntou a velha.

Lolette pôs um dedo nos lábios para lhe impor silêncio.

- Procuram-no - disse - mas não o encontram... e é preciso que o não encontrem!

E, com a mão trémula, mostrou, para além da relva, no nevoeiro cinzento do lago imenso, sombras de homens e de barcos que passavam, destacando-se em contornos mais negros nos clarões mais vivos e mais vermelhos dos archotes.

 

Com o espírito perturbado por visões lúgubres e o coração confrangido de indizível ansiedade, Violeta esperava o regresso de Jorge. Sentada ao pé de uma das grandes janelas que davam à casa o seu aspecto de palácio de cristal, a jovem senhora procurava penetrar com o olhar inquieto, as espessas brumas e as profundezas obscuras do parque. Não ouvia nenhum ruído, mas, incessantes, os clarões dos archotes passavam e tornavam a passar sobre o lago, mais amarelados à medida que se afastavam. E, entre os vapores da água, esses clarões errantes, imprecisos, flutuantes, tinham um aspecto fantástico e sugeriam ideias cada vez mais supersticiosas.

- Pobres cisnes! - pensou Violeta. - Devem fugir horrorizados diante de tantos barcos. Oxalá que, cheios de terror, os belos cisnes de neve não voem para sempre para a sua pátria misteriosa!

Depois, em bruscos saltos de angústia, Lolette punha a si própria a obsidiante pergunta:

- De que quereria o Príncipe pedir-me perdão?

E, à medida que as horas passavam, uma inquietação dominava todas as outras.

- Porque será que Jorge não vem?

Dava meia-noite quando Violeta se levantou; pareceu-lhe ouvir o galope de um cavalo na avenida. A jovem atravessou a galeria a correr, desceu rapidamente a escada e chegou ao portão, justamente no momento em que Jorge, rodeado de oito cavaleiros, saltava em terra. Só teve tempo de dizer aos oficiais que formavam a escolta:

- Continuem montados, senhores, venho ter convosco daqui a momentos.

E, sem dizer mais uma palavra, pegou na mão da jovem e levou-a para o hall.

Fechada a porta, disse em voz aflita:

- Passa-se qualquer coisa de inexplicável, Lolette. Na sala do trono, a corte, a assembleia, rodeava a Rainha e a Princesa Augusta, esperando apenas o Príncipe Harold. Admirado com a demora, lord Evendal, o Grande Chanceler do Império, mandou procurar o Príncipe aos seus aposentos, mas vieram anunciar que ele tinha desaparecido. Causou espanto o facto de as primeiras buscas serem infrutíferas, mas em breve o espanto se transformou em inquietação. A corte dispersou-se. O pessoal civil e militar do palácio organizou batidas no parque, atravessou a mata e a floresta, procurou até no lago. Telefonaram imediatamente para Bruhm. Já chegaram dez brigadas da polícia. As guarnições estão avisadas e também os portos. Minha mãe, segundo o seu costume, não pronunciou palavra, nem deixou transparecer qualquer emoção, mas retirou-se para os seus aposentos. Não recebe ninguém, não se sabe dela. Calculo bem o estado horrível em que deve estar. Eu esperei em Névis até quase à meia-noite, pronto a ir ao encontro de Harold à menor indicação, mas não nos chegou qualquer notícia. Nenhum ajudante de campo, nenhum oficial, nenhum criado, nenhum guarda, nenhum funcionário, ninguém viu o Príncipe. Todos se entregam às piores suposições. Terão raptado Harold? Terá saído voluntariamente do palácio? Para onde, quando e como. Depois de algumas horas de espera, a inacção tornou-se-me muito dolorosa & pedi o meu cavalo. Seguido pelos meus oficiais mais dedicados, tomei a iniciativa de uma busca pessoal. Passando por aqui, entrei para te explicar a causa da minha demora e para te anunciar o aborrecido incidente que esta noite alvoroça a corte e que alvoroçará amanhã todo o reino. Esta desaparição é incompreensível e terrível.

Lolette tinha ouvido, muito pálida, mas sem um grito, sem um gesto de espanto. A sua atitude surpreendeu o príncipe Jorge.

- Porque me olhas dessa maneira, querida Lolette? Esta notícia não te perturba como a nós todos? Pela minha parte, não sei o que deva supor. Pergunto a mim mesmo se não terá acontecido qualquer desgraça a meu irmão, se não terá sido vítima de uma vingança pessoal ou de qualquer conspiração anarquista.

E parecia tão angustiado, que Violeta não sem hesitação, acabou por confessar:

- Suplico-te, Jorge, que não te atormentes assim! Talvez não devesse dizer-te nada, mas perante a tua dor não posso calar-me. Garanto-te que Monsenhor não foi vítima de nenhuma vingança pessoal nem de qualquer atentado anarquista.

- Como sabes? Como podes saber isso? - perguntou o príncipe, pegando nas mãos da jovem e atraindo-a bruscamente a si para lhe ler no fundo dos olhos.

- Já sabia da fuga do Príncipe antes da tua chegada - continuou Violeta - e posso assegurar-te que essa fuga foi premeditada e voluntária. Numa hora de loucura desesperada, teu irmão quis subtrair-se a um casamento que lhe era odioso, a uma existência que detesta.

- Quem te disse isso? Porque dizes que Harold partiu voluntariamente?

- Vi o Príncipe esta tarde. Falei-lhe; tudo quanto te digo, querido Jorge, foi dele que o ouvi.

O rosto do rapaz, dolorosamente contraído, serenou numa expressão de extraordinária surpresa e, deixando-se cair no divã, perguntou com febril impaciência:

- Viste-o? Falaste-lhe? Como pode isso ser e o que significa, meu Deus? Fala... Mas fala, querida Lolette! Confia-me tudo o que sabes. Não vês que morro de ansiedade?

Tão simplesmente quanto possível, Violeta contou a cena da margem do lago. Sentia-se tão perturbada e comovia-a ainda tanto evocar essa cena, que esqueceu vários pormenores. Mas o príncipe Jorge tinha compreendido e, antes que ela acabasse, disse:

- Graças a Deus! Foi uma brincadeira! É preciso providenciar antes que o escândalo tome proporções de uma definitiva ruptura. Por grave que seja este último capricho, por escandalosas que possam ser as consequências, temos de nos dar por felizes por nada haver de irreparável. Corro ao encontro de Harold e espero mais uma vez chamá-lo à razão.

- Ah! o infeliz Príncipe! - gemeu Violeta. - Tem piedade dele, Jorge! Finge ignorar tudo o que acabo de dizer-te com o único fim de acalmar a tua inquietação. Dá-lhe tempo de fugir: para ele, a liberdade... é talvez a vida.

- A razão de estado deve falar mais alto do que a nossa ternura e a nossa piedade, Lolette. Esta fuga atrairia sobre nós as piores calamidades. Creio que meu irmão me estima e tem confiança no meu critério: o meu dever é tentar tudo para o chamar aos seus deveres. Mas tranquiliza-te, meu amor, eu não tenho nenhum direito de empregar a violência sobre ele e esse direito não quero pedi-lo nem recebê-lo da Rainha. É por isso que tentarei encontrar Harold sem avisar minha mãe do que acabas de me dizer. Agirei com a minha própria autoridade e dir-lhe-ei, para o acalmar, tudo quanto me inspirar a devoção pela nossa honra real, o meu amor da pátria e a minha profunda afeição por ele. Mas onde encontrá-lo?

Violeta não respondeu. O príncipe insistiu:

- Harold não te fez nenhuma confidencia a respeito dos seus projectos?

Violeta hesitou pela segunda vez:

- Faço talvez mal em falar, mas o Príncipe não mo proibiu. De resto, não me é possível ter segredos para ti, Jorge querido!

E confessou:

- Harold garantiu-me que não valia a pena tentarem encontrá-lo... pois bem depressa o encontrariam. Mas que ele já tinha tomado precauções e que, mesmo assim, ninguém no mundo o impediria de partir.

- Que palavras ambíguas!

- Foram as suas. Supliquei-lhe que entrasse e que te esperasse, mas ele recusou.

- É tudo quanto sabes? Se crês não ter esquecido nada de importante, partirei imediatamente. Cada minuto que passa aumenta o seu avanço sobre nós. O meu fim é correr pela estrada de Bruhm; aí é que ele deve ter ido acabar os seus preparativos.

- Não, não o procures em Bruhm - disse Violeta. - Lembro-me que ele me falou do pavilhão de caça, na floresta de Névis. Aí é que foi preparar quanto lhe é necessário para a viagem.

- Por pouco que Harold se demore nesse pavilhão ou se tiver repousado uns instantes da sua corrida através do bosque, chegaremos a tempo. Adeus, Lolette querida, até logo, amor. Espero ver-te breve, talvez mesmo antes de romper o dia e espero também não vir só. Trarei Harold e tu hás-de ajudar-me a curá-lo dos seus perigosos caprichos.

Jorge abraçou ternamente sua mulher, depois abriu a porta do hall e alcançou o portão antes mesmo de ouvir o pobre Lolet que, acordado pela sua ideia fixa de criança, acabava de saltar da cama e corria, descalço, em camisa de noite, gritando na escada, em voz desolada:

- Então, papá, tu entraste e já tornas a sair sem me teres beijado? É a primeira vez que te esqueces...

Saltando na sela, o príncipe ordenou aos oficiais que o esperavam:

- Meus senhores: ao pavilhão de caça de Monsenhor, na floresta de Névis, o mais rapidamente possível.

O caminho atravessava a floresta cujas altas faias cingiam o lago.

Os cavaleiros avançavam, através do nevoeiro, a grande trote. Embora o jovem príncipe e os oficiais tivessem muitas vezes seguido ou dirigido caçadas, eram ainda assim obrigados, de vez em quando, a afrouxar o passo para não se enganarem no caminho. Nenhuma claridade lunar, nem mesmo pálida, iluminava essas clareiras desertas e silenciosas. A paisagem oferecia-se morna e triste, em longas perspectivas de avenidas infinitas e todas cinzentas de nevoeiro, entre duas massas negras de altas faias. Mas, por muito triste que fosse a paisagem, o estado de alma do príncipe era mais triste ainda.

Jorge não deixava de imaginar, depois do que a condessa lhe contara, a estranha entrevista de Harold com Violeta.

"Porque teria Harold o desejo de tornar a ver, antes de partir, sua cunhada e seu sobrinho? Porque essa estranha necessidade de lhes dizer as únicas palavras de doçura e de bondade que pronunciara na vida? Porque esta súbita efusão de ternura por Lolet, quando nunca foi senão indiferente e frio para mim, seu irmão, e até para nossa mãe? "

E não fora só com palavras boas e ternas que ele quisera acalmar o coração antes de partir, fora quase um perdão que viera pedir à mãe e ao filho.

Este enigma que, durante longas horas, preocupou o pensamento de Violeta, preocupava agora o príncipe.

"Quanto às razões que decidiram Harold a fugir da residência real - raciocinava ainda Jorge - são fáceis de adivinhar. Meu irmão sempre detestou a princesa alemã, deve por isso ter aproveitado esta ocasião única de manifestar a sua repugnância e o seu rancor ofendendo publicamente a pobre Augusta e revoltando-se abertamente contra a vontade da Rainha. Este escândalo deve ao mesmo tempo satisfazê-lo, nos seus sentimentos de revolta, e seduzir o seu amor pela ironia e pela malícia. O concurso simultâneo de todas essas impressões deve-o ter exaltado até à cegueira, mesmo até à demência. De facto, é preciso que tenha sido vítima de uma espécie de alienação mental para faltar tão bruscamente ao respeito devido a duas mulheres, uma sua noiva, a outra sua mãe e soberana. É preciso que estivesse ébrio do desejo de se vingar para não se deter um segundo nas consequências horríveis de semelhante acto. Mas a corrida que fez através do bosque deve ter acalmado a sua febre, o seu desespero. Custar-me-á menos trazê-lo, senão até Névis, pelo menos até à minha residência."

Havia já muito tempo que, sob o peso dos seus pensamentos, Jorge cavalgava de cabeça baixa. Uma exclamação fez estremecer o príncipe. Levantou a cabeça. Atrás dele, entre os oficiais, lord Stanhope, seu ajudante de campo, acabava de ver, no fim da avenida, uma ténue claridade. Bem pálida entre o nevoeiro, mas fixa, essa luz não podia senão ser proveniente de um candeeiro ou de um archote colocado numa das janelas do pavilhão de caça.

Uma grande esperança entrou no peito do príncipe Jorge:

- Harold deve estar ali...

O rapaz esporeou o cavalo e todos, num galope furioso, chegaram à encruzilhada onde se elevava o pavilhão, simples rotunda flanqueada de dois anexos ao rés do chão.

Em redor, nenhum barulho de vozes ou de passos. Nenhuma outra luz além da que brilhava atrás do vidro da pequena janela. Sem ela, poderia julgar-se o pavilhão abandonado.

O príncipe Jorge e lord Stanhope apearam-se sem que ninguém aparecesse à porta. Por medida de precaução, Jorge pediu a quatro oficiais que o tinham acompanhado, para se conservarem a cavalo e vigiarem as avenidas que iam dar à encruzilhada e à saída do pavilhão. Além disso, o príncipe recomendou-lhes para o prevenirem da entrada ou da saída de quem quer que fosse. Depois, fazendo sinal a lord Stanhope e aos três outros oficiais para o seguirem, entrou no pavilhão.

A porta cedeu à primeira pressão. Jorge encontrou-se num vestíbulo obscuro. Sem dar tempo aos que o seguiam de acenderem luz, entrou na grande sala de jantar, meio iluminada pelo clarão da casa do fundo.

Ao primeiro olhar, Jorge reconheceu, embalsamadas e penduradas na parede como troféus, as águias, as cabeças de veados, os javalis que Harold tinha morto na floresta de Névis. Em panóplias, brilhavam também, na penumbra, as armas preferidas por seu irmão. Mas ainda o príncipe não tinha dado três passos, quando o ruído de um vidro quebrado se elevou debaixo dos seus pés. Distinguiu então, no sobrado, uma taça de cristal e duas garrafas de champagne, partidas.

O rapaz passou por cima desses destroços, e, alarmado, com o coração penetrado de uma amargura pungente, chamou:

- Monsenhor? Está aí, Monsenhor?

Parou um segundo e comprimiu as pancadas do seu coração para melhor escutar se alguma voz lhe respondia. Não ouvindo nada, foi precipitadamente até à entrada do aposento iluminado. E aí, parou, petrificado de horror.

Harold estava caído, de bruços, sobre um leno de repouso. Jazia imóvel e hirto, com os olhos desmedidamente abertos. Na imensidade, de onde os náufragos nunca saem vivos, ele tinha partido para a travessia sem fim, para a interminável e misteriosa viagem.

Jorge, numa dor atroz, compreendia agora o sentido cruel das enigmáticas palavras do irmão "Hão-de encontrar-me sem custo... amanhã hão-de encontrar-me... mas que me importa que me encontrem! As minhas precauções estarão bem tomadas para que ninguém no mundo me possa impedir de partir!"

E, logo a seguir, quantas outras palavras de Harold, não menos enigmáticas, Jorge ia poder ainda explicar nas garras de um sofrimento atroz!

O ajudante de campo e os três oficiais vieram ao encontro do príncipe. Atrás dele, por cima do seu ombro, contemplavam em silêncio o trágico espectáculo.

Extremamente pálido, com os olhos cheios de lágrimas que retinha num supremo esforço de vontade, Jorge descobriu-se num gesto lento e respeitoso. Depois, numa atitude de dignidade simples e natural, voltou-se para os seus companheiros que estavam descobertos como ele e disse em voz baixa e grave, em voz que parecia de repente extraordinariamente solene naquele quarto de morte:

- Chegámos tarde, meus senhores. O Príncipe já não existe. Peço-lhes aqui, sobre a vossa honra e diante do corpo sem vida daquele que devia ser nosso rei, de não revelar a ninguém, excepto à Rainha, o que acabaram de ver e o que ainda possam ver.

- Juramos sobre a nossa honra, Monsenhor, juramos sobre o corpo sem vida daquele que devia ser nosso rei.

- Obrigado, senhores - respondeu o príncipe em voz trémula de soluços. - Agora podem entrar comigo. Recolham-se um instante, depois procedam às vossas tristes verificações.

Jorge ajoelhou-se diante do morto e beijou-lhe a mão. Essa mão estava já rígida e gelada.

Atrás do príncipe, os oficiais constataram que o herdeiro do trono tinha dado um tiro na cabeça. A arma, ainda carregada, estava caída no chão: a primeira bala havia bastado.

O uniforme sombrio de Harold estava despedaçado em vários lados e tinha as botas cheias de lama. Devia ter cortado caminho para chegar ao pavilhão. E lord Stanhope compreendeu depressa porque, tendo querido morrer só, longe de todos os olhos, nesta casa silenciosa, deserta, perdida no fundo da floresta, o Príncipe Herdeiro havia, no entanto, deixado a luz acesa. Diante do archote posto em frente da janela estava um sobrescrito lacrado a negro com as armas do Príncipe. Parecia conter várias cartas e estava endereçado à Rainha. O anel que servira para timbrar, estava em cima da mesa, entre a pena e o tinteiro. Sobre uma folha solta mais à vista, com a letra larga de Harold, via-se este aviso de uma suprema ironia:

"Que o primeiro que me encontrar, em vez de se demorar ao pé de mim com cuidados inúteis, queira ir imediatamente prevenir a muito graciosa Majestade, a Rainha das Grandes Ilhas que eu não posso aceitar o seu convite pela mais natural e mais frequente das indisposições humanas: Acabo de morrer!"

Jorge continuou ajoelhado, de cabeça baixa, unindo contra os lábios a mão fria de Harold. Nesta meditação de dor, o seu corpo jovem e vigoroso não mostrava nenhuma prostração de acabrunhamento. Sustinha-o uma vontade dominante.

Seriam pensamentos de clemência e de compaixão que lhe sugeriam o conservar-se ajoelhado diante do morto? Ou seria o pungente vácuo de alma de que Harold sofria, a confusa sensação de vertigem, a cruciante certeza de vacilar na escuridão, de se abismar no nada? Em que horror e em que inanidade de todas as grandezas mergulhava o seu pensamento nesse momento? Ou, em que exaltação de dedicação humanitária e de fé, para que cimos de sacrifícios e sublimes renúncias se elevava?

Ninguém o soube nunca e o próprio Jorge não o saberia dizer instantes depois.

Segundo o seu funesto desejo, Harold fugira ao frio beijo da noiva pálida e morena, da noiva vestida de negro. Agora dormia nos braços de uma amante mais morena, mais pálida, mais bela, dormia sob o beijo glacial da outra mulher vestida de luto eterno.

Stanhope e os outros oficiais tinham, há muito tempo, acabado as suas buscas, quando o príncipe Jorge se levantou. Em pé, contemplou o rosto do irmão.

As feições de Harold, convulsionadas em vida, tinham-se distendido na morte. O seu rosto pálido aparecia mais calmo, o vermelho dos seus lábios já não contrastava com a sua tez mate, numa expressão feroz. Mas nada, nos grandes olhos vítreos, dizia se ele via agora, no além da vida, os clarões de uma mais bela aurora. A sua boca, embora aberta, conservava em frente de Jorge e no sono eterno a sua expressão de sarcasmo e de suprema ironia. O enigma inquietante persistia no rosto de cera e não permitia pressentir se o morto, na imensidade do além onde vogava a sua alma, podia enfim gozar o repouso e o esquecimento duradouros.

Jorge, respeitosamente, fechou os olhos de seu irmão. Depois, pensando na Rainha que deveria ser a primeira pessoa a conhecer a terrível notícia e as últimas vontades de seu filho, pegou no grande sobrescrito lacrado a negro. Depois de ter dado as suas últimas ordens aos três oficiais encarregados de velarem o corpo, enquanto ele não viesse também velá-lo, Jorge, seguido de lord Stanhope saiu do pavilhão de caça.

Um fraco e pálido clarão de aurora, penetrava a bruma. O príncipe, voltando-se pela última vez, sentiu-se angustiado, perante o aspecto deste humilde e pequeno pavilhão de caça, mudo e como que perdido no meio da solidão imensa e do imenso silêncio desta floresta. Era do fundo deste túmulo ignorado, que a morte de Harold, tão simplesmente, tão rapidamente trágica, ia, a partir do dia seguinte, emocionar o universo inteiro!

Jorge meditava ainda, Jorge meditava sempre. Junto do cavalo, ao qual segurava maquinalmente a rédea, quis sacudir a sua desoladora angústia de morte. Pôs o pé no estribo. Os olhos fixaram então a escassa relva da encruzilhada. Os charcos, toda a lama onde já ninguém no mundo teria podido encontrar o passageiro rasto de Harold, os passos apressados do real fugitivo. Assim, o maior Príncipe da terra tinha vindo de noite, como um desertor, um evadido da vida, esconder-se ali para morrer!

E Jorge, a este pensamento sentia-se novamente preso de vertigem, tornava a mergulhar na sua ideia fixa, onde lhe parecia que toda a lama da encruzilhada se aprofundava, se alargava, subia em redor dele e que os seus próprios passos, os passos do seu ajudante de campo, os passos de todos os homens, humildes ou grandes, miseráveis ou reis, iam aí enterrar-se, iam aí desaparecer! A lama, era então tudo que restava de tantas aspirações, de tantos esforços, de tantos sofrimentos e de tantas vidas!

De repente a voz de lord Stanhope fê-lo estremecer. Arrancou-o à sua visão enervante. O jovem ajudante de campo, descoberto, acabava de se inclinar profundamente. Segurava o estribo com uma das mãos e com a outra, pegando respeitosamente na mão de Jorge, levava-a aos lábios, murmurando:

- Que Vossa Alteza Real não me recuse a imensa honra de ser o primeiro, ao beijar-lhe a mão, a prestar homenagem ao Príncipe-Herdeiro das Grandes Ilhas, aquele que será o nosso bem amado soberano, o rei Jorge V!

O Príncipe estremeceu. Este pensamento de que era agora herdeiro presuntivo da coroa, este pensamento de que seria rei, precisou-se, de súbito, brutalmente, violentamente, no seu espírito ainda cheio da imagem do morto. Foi agitado por um grande calafrio e, sem compreender ainda o sentido, a importância desta homenagem, sentiu-se penetrado por toda a solidão imensa dos bosques, por toda a humidade chorosa das brumas, por toda a pungente tristeza desta madrugada soturna.

No entanto, não tinha a coragem insolente de retirar a mão dos lábios do jovem oficial que ele sabia fiel e cheio de confiança no seu Príncipe; não lhe tinha recusado a imensa honra que lhe solicitara em primeiro lugar. Mas, sem poder explicar todas as inquietações e todas as ocupações de que sentia já a alma invadida, Jorge murmurou em dolorosa reprimenda:

- Oh! Ainda não, Stanhope, ainda não... e não aqui, principalmente! Estamos muito perto do morto, talvez ele nos ouça. Nunca desejei que o destino me chamasse ao poder supremo... e muito menos desejei lá chegar pela morte de meu irmão!

- Mas, meu senhor - disse o jovem oficial, num sincero espanto - não seria a morte de vossa mãe que faria o vosso irmão rei? Não foi a morte do vosso avô que fez a vossa mãe rainha?... Não é sempre a morte que faz e desfaz os reis?

O Príncipe, sem responder, montou. Foi pedir aos oficiais de vigia à entrada das avenidas para esperarem ainda em volta do pavilhão, que os viessem render. Um só de entre eles se destacou e colocou-se a cavalo, de espada desembainhada, diante da janela da câmara mortuária, onde numerosas luzes rodeavam agora a cama de campanha improvisada para o Príncipe Harold.

E, seguido somente do seu ajudante de campo, o Príncipe, agora sem hesitação, sem se deter na encruzilhada, pois a aurora fendia o nevoeiro, lançou-se para o castelo de Névis. Sentia, na algibeira do seu dólman, o atrito da carta destinada a sua mãe. Que continha essa carta?

Só a Rainha o saberia e talvez que a Rainha o não dissesse jamais.

Jorge repetia com imenso desgosto:

- Havia, na vida de Harold. por curta e perturbada que ela fosse, a esperança de uma melhor morte!

Por fim, o jovem Príncipe pensou em sua mulher, no seu filho. Veio-lhe um grande desejo de os tornar a ver, de os apertar nos seus braços. Pressentia como lhe seria consolador, após estas concessões fúnebres, poder apoiar a cabeça no peito de Lolette e de poder chorar todas as lágrimas que havia muitas horas sustinha. Depois, a última frase de lord Stanhope veio-lhe novamente à lembrança, preocupou-o, lançou-o na nostalgia desolada do passado:

- Sim, é a morte que faz os soberanos, nasce-se pela dor, mas é pela morte que se é rei! Eis porque talvez, se é triste viver, é ainda mais triste reinar! E, esta tristeza, contudo, conhecê-la-ei toda... sim, toda, pois que um dia serei rei!

E, neste mesmo vago pressentimento de medo que tantas vezes tinha perturbado Violeta, pareceu-lhe que um grande frio lhe passava pelo coração, o confrangeu tão cruelmente, que duas lágrimas de sofrimento lhe brotaram dos olhos - lágrimas imediatamente engolidas, lágrimas imediatamente tornadas ao coração - as únicas lágrimas que os reis podem chorar!

 

Na residência, as horas de espera pareciam longas e angustiosas. Durante todo o dia, a despeito da sua promessa, o Príncipe Jorge não pudera vir nem mandar nenhuma carta explicando a sua ausência. Lolette só à noite voltou a ver o marido.

Retido em Névis, o Príncipe teve que enganar a vigilância do Chanceler para correr até junto de sua mulher. Lord Stanhope e os que estavam de serviço no castelo tinham recebido ordem de o ir buscar assim que a Rainha o reclamasse. Sua Majestade, depois de lhe ser anunciada a morte do filho e de lhe ser entregue a carta lacrada a preto, não havia tornado a sair dos seus aposentos.

Violeta estava no hall quando Jorge entrou. Perguntou, logo ao primeiro beijo do marido:

- E o Príncipe Harold?

Jorge, pálido, anunciou-lhe a horrível nova.

- Morto? Suicidou-se? - repetia a jovem, trémula. - Ah! como não o adivinhei pelos seus olhos, pela sua voz quando me falava dessa viagem misteriosa e sem fim!

O Príncipe, numa irresistível necessidade de expansão, contou-lhe quanto sabia.

Os jornais das Grandes Ilhas, obedecendo à ordem mandada pela corte, não tinham, de manhã, feito senão uma leve alusão a um acidente de caça. Nenhum repórter pronunciou a palavra suicídio. A Rainha queria, tanto quanto possível, atenuar a penosa impressão do público, desejava além disso que a Igreja não fizesse qualquer objecção às exéquias religiosas. Mas, de tarde, um telegrama partido da embaixada das Grandes Ilhas, em Berlim, resumia as insinuações ameaçadoras da imprensa alemã. Os jornais do Império pretendiam saber, por telegramas dos seus correspondentes, que o Príncipe se tornara louco e furioso em resultado dos seus excessos. As versões mais folhetinescas e malévolas, circulavam. A mais espalhada era esta:

Uma orgia tivera lugar, secretamente, no pavilhão de caça. Aí, os convivas, feridos por Harold, embriagado e raivoso, ter-se-iam atirado uns contra os outros aos tiros e às pauladas; a corte teria feito desaparecer todas as provas do drama e, segundo o feroz desejo do Príncipe Herdeiro tinha havido menos vinho do que sangue na sua última orgia.

Toda a imprensa alemã pedia o regresso da princesa Augusta e felicitava-se por essa brusca ruptura de casamento permitir enfim ao Império reclamar altivamente, sem concessões de qualquer espécie, sem atenções para com a Rainha, sem considerações por alianças de família, o regulamento definitivo e rápido de todas as questões políticas, em litígio.

- Oh! Estas ameaças - interrompeu Violeta - não as julgo sérias. A única coisa que me interessa e me comove é a morte de Harold. Tens a certeza que ele se suicidou?

- Sobre o suicídio - explicou o príncipe Jorge - não podiam existir dúvidas. Pelos depoimentos que haviam recolhido depois do minucioso inquérito, a morte aparecia clara e premeditada. Os dois guardas do pavilhão de caça, tinham recebido ordem de preparar, não o que era preciso para uma longa viagem, mas simplesmente uma copiosa ceia. O Príncipe havia chegado de noite, só, extremamente fatigado, com a roupa rasgada e muito excitado. Entrando no pavilhão, atravessara a sala onde estava posta a mesa. Sem mesmo se sentar, tinha desarrolhado as duas garrafas de champagne e bebido taça sobre taça, quebrado depois garrafas e taças de cristal. Fechado no quarto do fundo, onde passava a noite sempre que queria caçar de manhã cedo, tinha-se posto a escrever, depois de pedir aos dois guardas que esperassem as suas ordens. No momento de lacrar as cartas, Harold chamara-os um após outro e dera-lhes separadamente uma mensagem para a aldeia, recomendando-lhes discrição. Assim, tinha ficado só no pavilhão. Os dois guardas, não tendo podido descobrir os destinatários das cartas, voltaram muito alarmados. Mas, por grande que tivesse sido a sua pressa, o Príncipe tivera tempo de se matar.

Era impossível pôr em dúvida a sinceridade desses dois homens. A dor que sentiam era profunda e verdadeira. As cartas que o Príncipe lhes tinha confiado eram apenas folhas brancas. Tudo quanto Harold escrevera nos seus últimos momentos, estava no envelope destinado à Rainha.

Os dois homens, primeiro guardados à vista, foram em breve postos em liberdade - não os podiam castigar por terem obedecido a seu amo.

O Príncipe Herdeiro, velado todo o dia no pavilhão hermeticamente fechado, tinha sido transportado, não menos secretamente, para o castelo, através do grande bosque deserto. Jorge viera buscar o corpo. Envolto em peles, estendido numa carruagem da corte, o morto tinha sido reconduzido a Névis, seguido de seu irmão, dos oficiais que entraram no pavilhão e dos dois guardas.

Julgava ver-se ainda nessa floresta sombria e silenciosa, caminhando de cabeça descoberta atrás do coche improvisado onde jaziam mergulhados no sono eterno de um cadáver, todos os sofrimentos e todas as misérias da grandeza.

Acabando as suas tristes confidencias, Jorge tinha feito sentar Violeta perto dele, no divã do hall. Só com ela, ousava enfim abandonar-se à sua dor. Em plena desdita, como um náufrago que se agarra a uma tábua de salvação, apertava a encantadora esposa nos braços, encostando docemente a cabeça no ombro de Lolette e, mais docemente ainda, deixou deslizar o rosto sobre o peito da jovem parando ao pé do coração tão terno, que batia com a mesma emoção dolorosa do seu.

- É aqui - suspirou ele - aqui somente, com a minha pobre cabeça carregada de pensamentos, repousada sobre o teu coração, que me julgo no direito de exalar o meu sofrimento e de chorar as minhas verdadeiras lágrimas.

Premente de piedade, Lolette beijava-o, deixando correr, também o seu pranto.

- Chora - suspirou ela - chora meu Jorge adorado, assim aliviarás a dor. E não receies encostar a tua cabeça ao coração da tua Lolette: o temor torna-o bastante forte para suster sem fraquejar todos os pensamentos, por mais pesados que sejam.

Ficaram assim, e o palpitar do coração de Violeta era para o Príncipe uma espécie de doce embalar. Ele olhava a jovem profundamente. O claro e delicioso rosto de Lolette, por muito pálido que estivesse agora, apagava pouco a pouco das pupilas do Príncipe a trágica visão do pavilhão de caça. Ele sentia todo o frio da floresta, toda a humidade penetrante da bruma dissipar-se sob um calor reconfortante. Sentia, depois do travo da morte, sob o beijo triste mas consolador daqueles lábios, renascer insensivelmente o seu desejo de viver, o desejo de amar ainda. E foi debaixo desta benéfica impressão que murmurou:

- Ah! Lolette, nunca, como nesta cruel dor, eu senti quanto a tua ternura me era salutar!

Não tinha ainda acabado a frase, quando bateram à porta do hall. Levantaram-se ao mesmo tempo, inquietos. Quem podia permitir-se vir interrompê-los?

Um oficial vinha buscar Jorge. Sua Majestade chamava-o ao palácio, sem demora, o grande chanceler esperava-o para lhe dar parte das vontades reais a respeito dos funerais de Harold.

- Sigo-o daqui a segundos - disse Jorge. - Veio a cavalo ou de carro?

- Vim de barco, meu senhor, atravessei o lago que é o caminho mais curto - respondeu o oficial. - O barco espera Vossa Alteza Real.

Fechada a porta, Violeta lançou-se nos braços do marido.

- Já a Rainha te manda buscar! Nem sequer nos deu tempo de chorarmos juntos! Chorará ela, ao menos? Sofrerá? Compreenderá que o excesso do seu rigor e do seu despotismo levou o filho ao desespero e à morte?

- Não pude ver minha mãe - respondeu o Príncipe Jorge. - Ninguém a pôde ver. Ela fechou-se nos seus aposentos, na parte mais antiga e mais retirada do castelo. E lá está às escuras, por causa dos seus olhos. Parece morta, mas, do fundo da sombra e do silêncio, pensa em tudo, dirige tudo, ordena tudo. E a sua vontade misteriosa, oculta, dá vida, espalha actividade, faz mover cem milhões- de homens.

Recolheu-se um instante, depois dissimulando uma inquietação, com a voz o mais calma que pôde, perguntou:

- Tens ainda o duplicado da nossa certidão de casamento, Violeta?

- Tenho... guardo-o fechado à chave no armário Renascença, que me deste. Mas porque me fazes essa pergunta? - perguntou, alarmada. - Achas que seremos obrigados a provar a validade do nosso casamento?

- Oh! Não... espero que não. - E acrescentou, preocupado: - No entanto, guarda esse papel... preciosamente. E agora, adeus, a minha demora indisporia a Rainha... e nós temos muitas razões para o não desejarmos!

- Mas voltas ao menos?

- Que pergunta, Violeta! Voltarei ainda esta noite, como de costume.

- Oh! sim, volta, mesmo mais cedo, se puderes. vou ficar tão inquieta! Ah! Jorge, tens a certeza de que ela te ama e de que nos possa amar um pouco ao Lolet e a mim, essa soberana invisível e distante, sempre alheia às nossas alegrias? Tu agora és o herdeiro da coroa, serás rei! Eu, a pequena flor da sombra, em que me posso tornar em todo esse esplendor, no meio dessa luz ofuscante? É talvez o sol da tua glória que me vai matar!

É possível que o mesmo pensamento tornasse Jorge silencioso. Violeta continuou:

- Agora, já não é um friozinho fugitivo que me passa no coração, é um frio persistente que me gela toda. Tenho medo... tenho tanto medo! Lembra-te do que me juraste: eu sou tua mulher diante de Deus e dos homens. Nós não temos senão o teu amor, Lolet e eu. Se o teu amor nos falta, tudo nos faltará! Quando eu não tiver já o teu amor, não terei nada no mundo.

Jorge abraçou-a apaixonadamente.

- Hei-de amar-te sempre, amo-te infinitamente, minha Lolette adorada. Não sentes que, do fundo da minha alma cheia de tristeza, tudo o que me resta de ilusão, de esperança e de vida, ilumina o meu olhar, vibra nas minhas carícias, queima-te nos meus beijos?

- Esta felicidade era muito grande: não podia durar, nós teríamos, à sombra de um trono, vivido calma e simplesmente felizes. Para que foi que esse suicídio juntou ao teu sofrimento de irmão, todas as amarguras de um rei Que fatalidade!

Depois, voltando à sua ideia fixa, Violeta perguntou:

- Não adivinhas as verdadeiras razões do suicídio de Harold? Que diz ele na carta lacrada a preto?

- Só a Rainha a leu.

- Então, ninguém saberá nunca o que esse sobrescrito continha!

- Continha várias cartas. E deve haver uma para mim.

- Não ta deram?

- A Rainha não julga ainda o momento oportuno.

- Não duvido que nas suas últimas vontades o príncipe confesse as razões da sua morte. Não achas que entraria nisso um pouco de ciúme? Lembro-me da sua atenção tão singular, da expressão tão inquieta da sua fisionomia, enquanto vocês discutiam. E a malícia diabólica do seu olhar sob as pálpebras pesadas! Não teria ele pensado com certo prazer, ao suicidar-se, na má partida que te pregava? Não terá sentido certa alegria sádica e requintada à ideia de que te ia pôr na obrigação de conciliares os teus deveres de homem com os teus deveres de rei.

- Sim, talvez - respondeu Jorge, mais sério a esta ideia e prevendo, com mais perspicácia do que a própria Violeta, as consequências desta suprema malícia.

Entretanto o tempo urgia e Solange trouxe Lolet. O Príncipe beijou o filho e a mulher. E, em novos beijos, sem que desta vez pudessem aquecer os corações gelados por um triste pressentimento, Jorge suspirou:

- Só a ti amei, Violeta, nunca amarei senão a ti. Ah! Sem o teu olhar, sem os teus grandes olhos tão doces, a minha vida não teria mais luz!

E Violeta, desprendendo-se-lhe dos braços, respondeu numa velada censura:

- Não me prometeste que nunca farias chorar, estes grandes olhos que tu amas No entanto, olha para eles!

E mostrava as faces pálidas, molhadas de pranto, constatando dolorosamente:

- É a primeira vez que o nosso amor está cheio de lágrimas.

Assim se deixaram.

A noite foi bem triste naquela casa.

- Jorge não é o meu belo príncipe Encantador, descuidado e alegre! - suspirava Violeta. - Parece que a coroa real, tão pesada, já lhe marcou na fronte uma profunda ruga!

Só, entregue aos seus pensamentos, às suas recordações, a jovem julgava compreender agora porque o Príncipe Harold tinha querido, antes de morrer, pedir-lhe perdão. Conceberia ele antecipadamente o alcance do seu acto? Teria compreendido todo o mal que a sua morte ia fazer a esta mulher inocente, a esta criança encantadora? Não teria sido por ele previsto que o seu suicídio ao fazer um rei, afastaria insensivelmente o pai do filho, o esposo da esposa? Não seria por isso que, orgulhoso com todos, trocista e sarcástico com Jorge, apenas para Lolette e Lolet se mostrara meigo, humilde e cheio de remorsos? Não seria porque tinha pressentido todo o mal que faria a sua morte, que contemplara a criança adormecida com tanta emoção e que implorara a Lolette, para a sua viagem até à eternidade, um supremo beijo de clemência e de perdão?...

O Príncipe não voltou nem à noite, nem na manhã seguinte. Do castelo de Névis não vinha qualquer notícia. Quando a inquietação a atormentava mais, Violeta repetia:

- Preciso de ter paciência e ser forte, é preciso que mostre a todos que não sou apenas uma criatura de felicidade e de amor, mas também uma mulher corajosa nos desgostos e na adversidade.

E, para enganar a sua ansiedade, dava a Lolet toda a sua ternura tirando-o à velha ama, consagrando-lhe o tempo que o Príncipe já não reclamava. Nesse redobrar de carícias, Lolet compreendia bem que era o desgosto que o aproximava mais da sua linda mamã e percebia que tantas carícias não eram só para ele: no seu pensamento, ele representava o ausente.

E perguntava então, cada vez mais timidamente:

- O papá virá hoje, mamã?

- Não creio.

- E amanhã?

- Amanhã também não, provavelmente.

- E depois de amanhã?

- Talvez...

- Falta muito para depois de amanhã, não falta?

- E como o depois de amanhã passasse sem que o Príncipe aparecesse, Lolet perguntava:

- Nunca mais vemos o papá?. Então o papá já não gosta de mim, nem de ti, mamã?

Depois, calava-se, de repente consciente, ao ver a mãe voltar-se vivamente para esconder as lágrimas, de que perguntara uma coisa que não devia ter perguntado.

Daí a pouco não perguntou mais nada. Mas cada vez se tornava também mais pálido e mais triste, o pobrezinho! E confiava à sua boa velhota:

- Gostava bem de saber se o papá ainda gosta da gente, mas não quero perguntar... porque faz pena à mamã.

Mas não eram precisas perguntas para reavivarem a mágoa de Lolette. Andava desolada, tudo lhe recordando a sua felicidade prestes a fugir.

E a melancolia do parque aumentava a melancolia dos pensamentos. As árvores desfolhavam-se, as relvas, as alamedas, estavam juncadas de folhas secas. As folhas mortas voavam no ar, vogavam sobre as águas do lago, entravam folhas mortas por toda a parte, pelas janelas e pelas portas entreabertas, encontravam-se pelo vestíbulo, nos corredores, nas almofadas, no divã do hall e sobre os tapetes dos dois salões.

Violeta, supersticiosa, afligia-se também com a estranha atitude dos cisnes. Depois da visita de Harold mostravam-se inquietos e às vezes bravos. Eles, dantes tão familiares, afastavam-se agora para o largo quando pressentiam alguém na margem. Às vezes, a jovem observava-os. Voltados para o horizonte acinzentado, pareciam escutar apelos imperceptíveis, de pescoço estendido, batendo as asas ansiosas de espaço, depois, voltavam ainda, cansados, presos pelo poder de um enfraquecido encanto.

A solidão é má conselheira. No entanto, Violeta, nesses dias de provação, não acusava o Príncipe. Ela bem sabia que se ele não vinha era porque não podia vir. Mas, ao acabrunhamento, sucedia a fase de agitação. Sem guia, sem amigo, a jovem, sem transição, às vezes sem motivo consciente, passava da esperança mais louca ao pior desalento. Pouco a pouco, tornava-se mais febril. Acusava-se do seu silêncio e da sua inércia, julgando-se culpada.

- No entanto, não posso deixar fugir a minha felicidade, cair lentamente no esquecimento sem nada tentar para me defender. Não tenho eu plenos direitos de esposa e de mãe? Que tenho a censurar-me?

Veio-lhe a ideia de ir ter com a Rainha com o seu Lolet tão gentil, de se pôr na passagem de Sua Majestade, de se ajoelhar, de falar, de tentar enternecê-la.

- Não seria humilhar-me muito? - perguntava a si própria. - Sim, seria, eu sou a mulher do filho... devo falar-lhe de pé e de frente. No entanto, nada haveria de servir, nesta atitude de mulher dolorida que implora notícias do marido. E depois, se eu sou muito nova, ela é muito velha... Não me ajoelharia eu diante de minha mãe?

Eram pensamentos um tanto loucos. Mas Lolette já não raciocinava com calma. Desde a ausência de Jorge que este projecto dominava todos os outros pensamentos.

Uma noite, no grande hall, onde agora sentia sempre frio, mesmo quando sentada diante do fogão onde ardiam grossas achas de lenha, tinha mandado chamar Solange para não estar só com Lolet, a fim de que o imenso aposento lhe parecesse menos vazio. A velha, procurando distrair a senhora, contou-lhe:

- Parece que, segundo um velho costume, a Rainha que nunca sai do parque de Névis, vai ouvir missa no domingo ao templo da aldeia. É uma bela ocasião para os camponeses poderem pedir-lhe qualquer coisa, à passagem.

Lolette fez um movimento, depois acalmou-se, reflectindo:

- Não seria um providencial aviso as palavras inconscientes de Solange? Porque, como os outros, não aproveitaria a ocasião para fazer um pedido e formular uma queixa? Parecia mal que uma nora, injustamente abandonada, tentasse acalmar os rigores de uma sogra poderosa?

- Nós também vamos - decidiu finalmente Lolette. - Se puder pôr-me no caminho da Rainha, tentarei esta última probabilidade. Talvez se digne parar e interrogar-me. Será possível que a mãe de Jorge seja insensível às minhas lágrimas e principalmente às de Lolet? Quando ela vir o neto a seus pés, quando o vir juntar as mãozinhas numa súplica suprema, o seu coração não se enternecerá, não será melhor para nós? A Providência que me avisou esta noite, me inspirará amanhã a palavra que me deve abrir o coração da Rainha.

- Se Sua Majestade for ao Templo, como dizem - continuou Solange - o príncipe Jorge, com certeza, irá também. A senhora poderá vê-lo.

Esta esperança fez bater o coração de Violeta com tal alegria que nem teve mais força para falar.

Pouco depois, como a ama trouxesse Lolet nos braços para o ir deitar, Violeta, sorridente pela primeira vez desde há muito tempo, recomendou em voz quase alegre:

- É preciso que o Lolet esteja lindo amanhã, Solange, o mais lindo possível; iremos ver a Rainha à saída da missa.

E no dia seguinte, Lolette vestida de preto, Lolet de branco com um ramo de rosas na mão, as últimas rosas do outono, ambos felizes por respirarem o ar livre, foram à aldeia. A fim de evitar reparos, a jovem deu, de automóvel, uma grande volta pela floresta.

Numa acalmia da chuva e do vento, sob uma fraca claridade de sol, os cisnes tinham voltado à margem. Desta vez não fugiram, deslizaram sobre a água, como nos belos dias. Lolette quis ver nisso um presságio de esperança.

Quando a aldeia estava à vista, ela mandou parar o carro e recomendou ao mecânico que esperasse à distância, atrás de um pequeno maciço. E pegando na mão do filho, ensinando-lhe a lição a meia voz, avançou vivamente.

Em trajos de festa, os camponeses esperavam, agrupados ao pé do Templo, defendido por alguns polícias. A Rainha já tinha chegado. Ninguém mais podia entrar, Violeta desesperou-se quando viu que um dos polícias a cumprimentara. Quase a seguir reconheceu aquele que tinha sido amável com ela no dia da revista, lembrou-se de seu nome e, tomando coragem, aproximou-se dele. Vendo o movimento da jovem senhora" ele apressou-se a vir ao seu encontro.

- Não haverá meio de entrar no Templo, sr. tom?

- Desejoso de agradar, lisonjeado por esta linda senhora se lembrar do seu nome, disse com pena:

- A Rainha deu-nos ordens formais para não deixarmos entrar ninguém no Templo depois de começar o ofício.

- O príncipe Jorge está lá dentro?

- Não; o Príncipe não veio, ficou no castelo.

- Mas não está doente, ao menos?

- Creio que depois da desgraça que aconteceu ao filho mais velho, Sua Majestade receia pelo seu segundo filho, pelo seu único filho, agora. É muito natural que lhe peça para ficar ao pé dela.

Violeta não achava isso assim tão natural.

- Se o príncipe Jorge não está no Templo, não desejo entrar, mas o meu filho é que queria ver a Rainha, na passagem. Não podia pô-lo à frente dessa gente, à entrada da porta? Lolet é muito pequenino e mesmo estando diante dos outros não os impedirá de ver.

O polícia hesitou:

- Varros, um pouco de complacência, Tom! - disse a jovem, sorridente. - O Príncipe lembrar-se-á de si se me for agradável.

- Isso sei eu - disse tom. - Graças à senhora é que eu fui nomeado brigadeiro e estou agora em posto fixo no castelo de Névis; foi um belo avanço.

Decidido por esta recordação, acrescentou sem mais hesitações:

- Vou colocar o pequeno lord bem à vista e a si também se o desejar, minha senhora.

- Eu não, só o menino.

- Debruçada para Lolet, recomendou-lhe:

- Oferece o teu ramo à Rainha, não te enganes.

- Oh! não, mamã, eu reconheço-a bem: é a senhora mais velha, com uma coroa de ouro na cabeça, não é?

Violeta, apesar de perturbada, não pôde deixar de sorrir. E descreveu melhor a Rainha, à criança.

Lolet interrompeu-a:

- Eu sei, mamã, já te disse que sei. Já vi a Rainha e reconhecê-la-ei. Como queres que me engane se ela se parece com o papá?

Ficando a criança colocada à entrada e Lolette não muito longe, o polícia voltou para o seu serviço.

A jovem esperou pacientemente a saída, vigiando a atitude de Lolet.

Pareceu-lhe, em certo momento, pelo portão aberto do Templo, ver passar o rosto pálido e frio, o rosto de cera da princesa Augusta. Lolette viu o olhar duro da noiva do morto deter-se no garotinho e estremeceu, perguntando, trémula, a uma mulher que estava perto dela, entre a multidão dos curiosos:

- Esta senhora que acaba de passar diante da poria, quem é?

- A princesa alemã que anda a pedir para os pobres.

O coração de Lolette confrangeu-se e a espera tornou-se angustiosa. Encontrava esta mulher em toda a parte! Era o seu génio do mal, a sua dama negra. Em que olhar glacial acabava de envolver o pequeno Lolet! Esse olhar agudo, penetrante, desconcertou a criança ao ponto de a fazer baixar o ramo de rosas que segurava tão orgulhosamente. A princesa, sem se dignar transpor o portal para pedir entre a multidão, tinha-se metido vivamente na sombra do Templo.

Passaram dez minutos. O pobre Lolet devia estar bem cansado, o ramo era pesado.

A Rainha não saía.

Violeta detinha-se em pensamentos absorventes. De repente, apurou o ouvido. Só ouvia salmos e mais nada. Porque se fechariam bruscamente as portas da igreja? Que aconteceria? Porque dispersaria a multidão? Lolet estava agora sozinho, na ponta do tapete, com o seu ramo na mão. Alguns grupos separados olhavam para ele... O pequeno voltou-se para a mãe com os seus grandes olhos surpreendidos e tristes para lhe perguntar por que motivo a Rainha não aparecia e o que queria tudo aquilo dizer. A multidão precipitou-se em massa para o lado do Templo. Violeta, por sua vez, ia a desencostar-se do pilar a que se apoiara, quando um polícia se aproximou saudando militarmente:

- O brigadeiro Tom pede desculpa à senhora mas acaba de acontecer uma coisa que não podíamos prever. A princesa Augusta, quando acabou a quete, mandou-nos dizer que sua Majestade a Rainha estava muito fatigada e que, em vez de sair pela porta grande do Templo e de atravessar a aldeia onde a multidão a esperava, saía pela porta pequena, do lado. Recebemos então ordem de mandar avançar o carro até lá o mais discretamente possível. A Rainha e a Princesa acabam de partir na caleche.

Ouviu-se ainda o barulho das rodas coberto pelas aclamações. Violeta corou, subiram-lhe lágrimas aos olhos. Compreendeu tudo: a princesa alemã reconhecera Lolet, adivinhara o que a linda criança ali ia fazer, de pé, nos degraus do Templo, com um ramo de flores na mão. E não quis que a Rainha reconhecesse a criança, nem sequer que a visse.

A mamã chamou o seu desiludido garotinho e pegou-lhe na mão. E ambos, muito tristes, muito humilhados, afastaram-se a passos lentos. Violeta pensou, numa cólera nascente:

- Sempre, sempre essa mulher a erguer-se entre mim e a felicidade, entre o marido e a mulher, entre o pai e o filho!

De repente, ao pé dela, muito baixo, entre as pregas da sua saia, ouviu um soluço abafado. Era Lolet que chorava silenciosamente.

- Que tens tu, meu Lolo?

- Queria dizer bom dia à Rainha, mamã! Será assim sempre, nunca a poderemos ver?

- Uma ocasião virá.

- Oh Não, nunca mais... tenho a certeza. Ela não me deixará ver, a dama negra de olhar mau.

- Porque pensas que seja por culpa dessa senhora?

- É por causa dela, sim. Eu sei. Lembro-me que, no dia da revista, ela quis esmagar-me e fazia-o se o papá não a tivesse proibido. Ela é má e detesta-me. Mas eu também a detesto!

E Lolet, que não sabia da morte do príncipe Harold, acrescentou, suspirando:

- Ah! Oxalá ela nunca seja Rainha.

- "Rainha? - repetiu ela, andando sempre. - A princesa Augusta tornar-se Rainha? Como podia isso ser, agora que Harold tinha morrido?"

Eram loucas as palavras da criança; era uma frase dita ao acaso, por ignorância. E, no entanto, esta frase perturbou a jovem, transtornou-a. Mais clarividente do que todas as reflexões, o instinto dessa criança não lhe teria feito encontrar a palavra justa, a palavra que resumia as suas inquietações, as angústias e os ciúmes ainda vagos de Violeta?

E, saltando sem transição de uma ideia para outra, Lolet acrescentou, desolado:

- Oh! mamã... olha para o meu ramo! Está todo murcho. Chorei-lhe em cima. Mas a Solange diz que a água refresca as rosas e as lágrimas são água! Então porque foi que as minhas lágrimas murcharam as flores?

 

No desespero em que a mergulhava a incompreensível ausência de Jorge e na ignorância completa em que a deixara, Violeta adivinhava uma parte da verdade. Imaginava o Príncipe retido no castelo sob mil pretextos: ordens a dar, assinaturas, trabalhos fúteis mas absorventes.

- com certeza que ele me escreveu, - dizia dolorosamente a jovem - mas sua mãe não terá tido escrúpulo em lhe interceptar a correspondência. A razão de Estado é, aos seus olhos de soberana, uma desculpa sempre válida para mil pequenas vilanias que não são permitidas a um simples particular.

Estas ideias alimentavam a indignação de Violeta. Mas, quando se acalmava, via que não devia ceder à cólera nem revoltar-se antes de ter usado todos os meios conciliatórios.

- Não seria desculpável censurar a mãe de meu marido - dizia ela - senão depois de ter tentado em vão apiedá-la.

A dúvida horrível em que estava levou-a a realizar de novo o projecto que tinha falhado tão lamentavelmente no dia da ida da Rainha ao Templo. Não era prudente esperar que a soberana fortificasse as suas prevenções. Além disso, repugnava a Violeta meter seu filho nesta segunda tentativa. A cena do Templo tinha ferido a imaginação da criança. Pensava nela, sem cessar. Uma nova decepção poderia causar uma impressão demasiado duradoura e demasiado viva no espírito já perturbado do pobre Lolet.

O que, pelo contrário, pareceu uma sorte inesperada à rapariga, foi o encontro, na aldeia, com o polícia tom. Que feliz acaso! A única pessoa com quem ela pudera ter sido amável nas Grandes Ilhas fazia precisamente parte da brigada de defesa do castelo de Névis. Por tom, Violeta esperava, pelo menos, entrar no parque. À parte alguns oficiais às ordens de Jorge que talvez não ousassem tomar a responsabilidade de os introduzir, ninguém os conhecia na corte. Pensou que isso, em vez de prejudicar, podia auxiliar o seu desígnio. Era possível que tivessem dado ordem de não deixar entrar a condessa de Belfast, rio palácio, mas quem recusaria o ingresso nos jardins a uma desconhecida que desejava dizer duas palavras a um brigadeiro da polícia?

- Logo que entre - convencia-se Lolette - encontrarei maneira de chegar até à Rainha ou de a esperar à passagem para me lançar a seus pés.

- Dir-lhe-ei todas as minhas mágoas, todas as minhas humilhações e as palavras comovedoras hão-de vir-me naturalmente aos lábios, as lágrimas hão-de subir-me tão rapidamente aos olhos, que a Soberana, num impulso de clemência e de generosidade, há-de permitir-me certamente tornar a ver meu marido.

Reconfortada com esta vaga esperança, simplesmente vestida como uma modesta burguesa, Violeta dirigiu-se ao castelo de Névis.

Primeiro teve a ideia de atravessar o lago, mas soube que depois da morte do Príncipe Harold tinham sido postas sentinelas nas margens. Além disso, desse lado, arriscava-se a chamar mais facilmente a atenção e a despertar a desconfiança, do que apresentando-se ao portão que dava para a rua e onde inúmeros desconhecidos passavam.

Violeta não estava muito segura da sua gente, todos naturais das Grandes Ilhas, todos timoratos assim que se pronunciava o nome da Rainha, todos desconfiados desde que o Príncipe Jorge deixara de vir à residência.

Por isso só confiou a Solange o seu projecto. Depois de lhe ter recomendado Lolet, a jovem fez-se conduzir, sempre de automóvel, e apenas acompanhada pelo chauffeur, não até ao portão de Névis, mas até à aldeia. Aí, depois de ter despedido o criado e de lhe haver dado ordem de voltar antes do escurecer ao mesmo lugar, Lolette entrou no Templo, ajoelhou, improvisou, no impulso da sua alma desolada, uma curta evocação e saiu por uma porta lateral depois de se ter assegurado que ninguém a seguia. Caminhou então em passo firme e regular.

O castelo ficava a pequena distância. A estrada seguia através da floresta e Violeta viu, em breve, sobre as grandes árvores do parque, a massa alta, larga e pesada, da fortaleza feudal.

Sem se deter perante a objecção da sentinela que garantia não se poder visitar o castelo quando Sua Majestade o habitava, Lolette protestou que tinha umas palavras a dizer ao brigadeiro tom e deixou supor que vinha da parte da sua família. O chefe do posto foi consultado e depois de algumas formalidades mandaram chamar tom.

- Se não estiver de serviço, ele vem.

Violeta não pôde obter qualquer outro esclarecimento.

Durante esses minutos de espera a jovem só sentiu o receio de não poder ousar o que queria. Só quando tom apareceu, quando ela entreviu a possibilidade de realizar o seu desejo, é que compreendeu todo o alcance do que ia tentar. No entanto, ao pensar que podia ver Jorge, o pensamento de Jorge, livre ou não, mas habitando Névis, vivendo lá, deu-lhe coragem para empreender tudo. Assim que o portão foi aberto, ela avançou para o polícia, com muita calma e naturalidade. Lado a lado, eles afastaram-se do posto, falando a meia voz.

- Preciso que me preste esse serviço, tom - disse a jovem.

- Se me fosse possível, minha senhora, fazia-o de boa vontade.

- Não lhe é apenas possível, mas até fácil.

E lançando um olhar sobre o galão de prata que, ainda novo, ornava a manga do novo brigadeiro, acrescentou

- Não deve estar arrependido de me ter sido agradável no dia da revista.

- com certeza, minha senhora. Mas fui bem menos feliz, outro dia, na aldeia.

- Pois aproveite a ver se o será mais agora.

Tinham passado além dos prédios anexos e encontravam-se agora à entrada da grande alameda, areada e sinuosa, que contornava os relvados e os maciços de árvores. Esta alameda devia ir dar ao castelo e metia-se por um bosque de pinheiros seculares. As torres de pedra desapareciam sobre os cimos de verdura sombria.

Violeta constatou que, acompanhada pelo polícia e nesta parte do parque atravessada pela gente de serviço, a sua presença não despertaria nenhuma desconfiança. Constatou igualmente, pelo tom deferente do brigadeiro, que ele ignorava os desígnios da família real. Tomou, pois, coragem e começou pelo mais importante.

- O Príncipe Jorge ainda habita Névis?

- Sim, minha senhora: ainda o vi esta manhã dentro do palácio.

- Não sai?

- Nunca o vi sair nem uma vez.

- E porquê?

- Não saberei explicar-lhe bem. A Rainha, assustada com o incidente que aconteceu ao Príncipe Harold, fez jurar ao Príncipe Jorge que não transporia o portão do castelo sem sua autorização.

- O Príncipe deve sofrer muito com esta reclusão!

- Oh! isso com certeza. Eu mal o vi esta manhã quando ele dava os cem passos na galeria dos Marechais, mas pareceu-me muito pálido, muito triste e bem mudado! A morte do irmão afligiu-o muito.

- E tem com certeza outra causa para estar desgostoso.

- Isso compreende-se, minha senhora - disse tom, pronunciando as palavras que Violeta queria ouvir. - Se ele está momentaneamente separado da senhora e do pequeno lord, Sua Alteza não tem razão para estar satisfeito.

O brigadeiro teve, nesse instante, um bom sorriso que fez nascer no espírito de Violeta uma louca esperança.

- Sim, ele sofre certamente por não nos ver. E o serviço que espero de si, tom, é o de levar-me ao pé dele.

A fisionomia subitamente aflita do bom rapaz provou à rapariga que esse novo projecto era irrealizável. tom deu-lhe as melhores razões.

- Não posso, sob nenhum pretexto, entrar no castelo senão às minhas horas de serviço e só. Fora disso não devo voltar ao Palácio senão com uma requisição assinada pelo governador. Se o próprio Príncipe Jorge me tivesse ordenado que a introduzisse nos seus aposentos, eu não podia fazê-lo sem ordem da Rainha.

- E no parque?

- No parque é diferente. O acesso é franco a todas as pessoas ligadas à corte ou de serviço no palácio.

Violeta julgou prudente não insistir e voltar ao primeiro projecto. A réplica de tom forneceu-lhe uma transição fácil.

- É precisamente licença para ver o Príncipe que eu venho pedir à Rainha - disse ela. - E desejo pedir-lha directamente.

- Faça o pedido ao governador do Palácio; eu levo-o e...

- Tudo isso levaria muito tempo. A Rainha sai, visto que foi ao Templo. Sei, além disso, que ela passeia todas as tardes no parque e muitas vezes só. Esperarei as horas que forem precisas e apresentar-me-ei na sua passagem. Só lhe peço que me diga em que momento e em que lugar terei a sorte de a encontrar.

Violeta tentava em vão falar com o sorriso de pessoa que solicita uma coisa de pouca importância. O bom tom ficou perplexo.

- Leve-me à alameda onde a Rainha passeia - continuou a jovem senhora, impacientando-se por não obter resposta - e dispenso-o do resto. Ninguém saberá quem me serviu de guia.

- Os soldados viram-nos falar - disse tom. - Serão testemunhas se forem interrogados.

- Acha-me assim uma pessoa perigosa?

- Se o julgasse, não teria deixado que lhe abrissem o portão.

- Só procedo no interesse do Príncipe, e mais uma vez, asseguro-lhe que Sua Alteza lhe ficará infinitamente grato se me facilitar esta entrevista com sua mãe.

- Sem dúvida - disse tom, agora mais desconfiado e farejando uma parte da verdade. - O Príncipe ficar-me-á agradecido, mas sempre gostava de ter a certeza de que a Rainha não ficará zangada!

- Pense bem nisto: se a Rainha é hoje vossa Rainha, um dia o Príncipe Jorge será vosso Rei. Prefere o seu interesse de hoje à sua fortuna de amanhã? E depois, tom, apelo para o seu bom coração. Já cumpri uma vez a promessa que lhe fiz, mesmo um pouco mais do que a minha promessa. Se não é um ingrato há-de ajudar-me, custe o que custar...

Desta vez ainda, a força da franqueza e da emoção de Lolette a serviram melhor que todas as manhas. Tocado, o brigadeiro decidiu-se:

- Ah! se quer levar tom pelo sentimento, fará dele o que quiser, minha senhora. É o meu ponto fraco. Comove-me tanto ver uma linda e nobre pessoa como a senhora pedir isto a um pobre rapaz como eu!... Não sou um ingrato. Além disso, sei que é muitas vezes prudente sacrificar o presente ao futuro. Custe o que custar, vou levá-la ao sítio onde a Rainha, à tarde, gosta de passear só, contemplando os últimos raios do sol poente. Depois de dar uns passos no terraço, Sua Majestade vai quase sempre sentar-se num bosquezinho de que também gostava muito o pai dos Príncipes Harold e Jorge. A nossa Soberana vai a esse bosque, em recordação, talvez também para repousar os olhos da luz que, mesmo no crepúsculo, lhe fatiga a vista. Ela gosta de sombra e, sem que se possa explicar o fenómeno, vê assim melhor do que em pleno dia. Não tenho a certeza de que Sua Majestade passeie hoje, pois o sol não conseguiu afastar o nevoeiro. No entanto, penso que o tempo, relativamente bom depois de tanta chuva a decidirá. Em todo o caso, ainda não são horas do passeio e por isso terá tempo de pensar no que quer dizer à Rainha.

Depois de se ter assegurado de que ninguém os observava, tom levou Violeta para uma alameda deserta e segredou-lhe em voz muito baixa:

- Agora trate de ser um pouco mais prudente. Siga-me, a ver se alcançamos o bosque sem sermos notados.

Chegaram a uma espécie de bosquezinho onde se encontrava um banco de mármore. Aí, mesmo de dia, parecia noite. Era preciso que a Rainha tivesse realmente uma alma melancólica e a vista fatigada para gostar desta parte do parque.

tom, depois de mil recomendações, afastou-se e Violeta esperou, oculta atrás da verdura sombria, a aproximação da Rainha.

Toda a excitação que lhe permitira discutir com tom e convencê-lo, acabava de cair à ideia de se encontrar diante da mãe de Jorge, diante dessa dama distante, estrangeira, há tanto tempo invisível, diante dessa Rainha silenciosa, que parecia não ver nada, nada ouvir e cujo rosto de neve nada exprimia.

- Saberei comovê-la? - repetia Violeta, ansiosamente. - Terei a ventura de cair a seus pés no próprio momento em que um doce sonho, uma terna recordação lhe tenha tocado o coração tornando-o mais clemente para com a minha dor?

Estas perguntas emocionavam-na ainda mais. Não queria nada imaginar para poder melhor entregar-se, quando chegasse o momento, à inspiração da sua dor. Sem se afastar do seu esconderijo, para mudar o curso aos pensamentos, examinou o lugar em que se encontrava.

Não podia ver o castelo, pois estava escondido por maciços de pinheiros, mas cheia de superstição, pensava, nesta muda solidão:

- A imensa fortaleza deve estar próxima, creio sentir já o nevoeiro húmido e frio que das suas muralhas cinzentas e fantásticas se espalha sobre todo o parque, sobre todo o lago, sobre toda a floresta de Névis.

Adivinhava também próximo o terraço cuja vista dava sobre as matas, sobre o lago e sobre o bosque. Mas o sítio em que Violeta se encontrava, no crepúsculo que tombava sobre a verdura, parecia abandonado, deserto e triste. Faltando-lhes ar e sol, as flores e os relvados estiolavam-se, morriam. E Lolette sonhava:

- São, na verdade, a hora e o lugar feitos para agradar a essa Rainha misteriosa, que não vê e não respira bem senão numa sombra impenetrável.

O bosque era formado por buxos e ciprestes talhados- "arbustos de cemitérios " - notava Violeta. Os pinheiros sombreavam o bosque com as suas largas ramadas espaçosas e mergulhavam-no na obscuridade em que apenas o banco de mármore se destacava numa confusa brancura.

Em breve a jovem condessa apurou o ouvido a um ruído de passos lentos. Da sombra, Violeta viu avançar uma mulher vestida de negro, com o rosto e o busto cobertos por longos véus.

Lolette ocultou-se mais até que o vulto se sentou no banco de mármore. Em passos leves e cautelosos, para não assustar a Rainha na sua meditação, Violeta, trémula de emoção, acabava de se ajoelhar. Erguendo, na sombra, as mãos pálidas para o seu rosto mais pálido ainda, ela tremia tão visivelmente que a rainha mais medrosa não poderia sentir qualquer receio diante desta espécie de suplicante.

A jovem, cheia de respeito e de timidez de quanto essa dama de luto representava de grandeza e de poder no presente e mesmo no passado, já não sentia amargura nem cólera.

Foi sem o mínimo esforço que falou com deferência e resignação:

- Ah! minha senhora! Digne-se baixar os olhos benévolos sobre quem a suplica. Não deixe por mais tempo na inquietação e na dor a infeliz mulher a quem só uma palavra sua pode restituir a esperança!

A soberana permaneceu imóvel, sob os seus crepes. Nenhum gesto provava que tivesse ouvido. Violeta não podia mesmo adivinhar, de tal modo o rosto estava velado, que a tivesse visto. O silêncio foi doloroso e longo. Sem uma única palavra ou um sinal que lhe desse coragem, Lolette continuou:

- Sou bem digna da sua compaixão, minha senhora, e na minha própria angústia, esperava encontrar as palavras que a enterneceriam. Mas na perturbação que a sua presença me causa, falta-me a voz, baralham-se-me as ideias, as recordações apagam-se e eu não sei mais do que chorar e tremer, esperando a palavra misericordiosa que me dê a coragem de continuar:

- Não a conheço, ignoro quem é! - respondeu, por fim, uma voz altiva e dura.

- Sou a infeliz condessa de Belfast, a esposa do Príncipe Jorge - continuou Violeta, sem atentar no desdenhoso recuo da soberana, e um pouco mais corajosa por lhe ter ouvido a voz, por mais severa que fosse.

- Não insisto nos meus direitos, apelo apenas para a generosidade de Vossa Majestade. Não pode ficar insensível ao que sofro devido ao silêncio e à ausência do ente que amo. Em que pude eu desagradar para assim ser precipitada do cume da felicidade no abismo do infortúnio

- Ousou lutar connosco, cara a cara. Não esqueceremos nunca que nos ofendeu!

- Mas eu nunca lutei! - exclamou Violeta, surpreendida com o acento vingativo da voz. - E nunca vos ofendi. Eu só pedia que me deixassem gozar na sombra uma ventura escondida e se, alguma parcela dessa felicidade foi divulgada, foi porque o Príncipe Jorge assim o quis...

Vendo-a retrair-se outra vez, Lolette compreendeu que, de novo, ferira a soberana. A infeliz senhora gemeu então:

- Ah! Que palavras hei-de empregar para a comover em vez de a magoar? Perdoe a incoerência da minha súplica, minha senhora. Pense que todo o meu futuro e o do meu filho dependem das palavras que eu pronunciar neste momento. Qual seria a mulher que, pensando nisto, não estaria transtornada como eu estou? Ah! se bastasse chorar para que abrisse o seu coração, então conseguia-o eu plenamente... o meu desgosto é tão grande que as lágrimas não deixam de correr!.

E Lolette soluçava.

A soberana, imóvel, sob os seus crepes, não parecia vê-la nem ouvi-la. Violeta estremeceu. Embora não distinguisse os olhos desta Rainha surda, imóvel e muda, parecia-lhe que esse olhar era de gelo. Uma tal sensação de fria indiferença, emanava desse vulto ainda mais negro no nevoeiro da tarde, o silêncio tornava-se de tal forma implacável, que Violeta sentiu o coração fechar-se e as suas lágrimas cessaram de correr. Primeiro, uma espécie de receio, depois, uma repulsa diante de tanta impassibilidade trouxeram instintivamente aos seus lábios as frases menos convenientes:

- Suplico-lhe, senhora... e, no entanto, tinha mais o direito de me queixar que de suplicar... pois procederam injustamente para meu filho e para comigo. Sou esposa de seu filho e nunca deixei de ser uma esposa fiel e dedicada. Jorge deve ter-lhe dito. Jorge lho dirá. Quando me tornei mulher do Príncipe, foi na completa ignorância da sua fortuna e da sua situação. Ele escolheu-me livremente e amei-o por si próprio, loucamente, perdidamente. É disso que querem castigar-me? Se tem outras razões, minha senhora, diga-as, tenho a certeza que me poderei desculpar.

- Não se desculpará - respondeu sob os seus véus a voz, num tom áspero que aumentou o doloroso espanto de Violeta. - Se foi repelida, não somente pela família real mas pela corte, foi porque não quisemos acolher uma insolente aventureira no nosso palácio. Não foi o acaso, foi a nossa vontade que a proibiu de aparecer diante de nós, nós não quisemos conhecê-la. E se tanto desprezo a acabrunha, acuse apenas as suas ambições e as suas intrigas. Forte com uma passageira fraqueza de Jorge, julgou poder impunemente usurpar uma situação, uma dignidade, um título, mesmo um nome de que é indigna tanto pelo seu nascimento como pela sua conduta!

Violeta estremeceu, esteve quase a levantar-se. Teve de lembrar-se que falava à mãe de seu marido para conservar uma atitude respeitosa. Mas nem a indulgência que esperava, nem a clemência com a qual contava, vinham acalmar a cruel recordação das recentes noites passadas em mortais angústias. Então, a consciência de um desprezo imerecido inspirou-lhe palavras ousadas, mais perigosas ainda:

- Se bastasse - disse - renunciar a pueris vaidades de títulos e de classe para reencontrar as doces alegrias do amor, com que boa vontade teria feito o sacrifício e como o faria ainda! As grandezas, as riquezas, nunca me seduziram... Afligiam-me mesmo antes de as conhecer; agora que as conheço, causam-me horror! E o Príncipe bem sabe que repugnâncias teve de vencer em mim para me trazer assim para junto da corte. Só a ele amo, só a ele quero! Levem o resto e dêem-me o meu marido! A dor matou-me todo o orgulho, nem sequer reclamo um nome que é meu... só peço para ver o Jorge, o meu Jorge querido

- Como ousa falar num nome que não lhe pertence E se essa fosse a sua única culpa! Mas, exibindo-se em público, exibindo o seu filho, fruto da vergonha, quis audaciosamente tentar sublevar o povo e extorquir uma infame popularidade. Pelos seus pérfidos conselhos, conseguiu afastar o Príncipe Real de sua mãe e sua noiva, com as suas vergonhosas sugestões conseguiu levá-lo à revolta e ao suicídio. E tem de responder por tudo isto. Depois de ter perturbado a família real, perturbou o Estado. Depois de um crime moral, o crime político!

Violeta sentia-se presa de uma estupefacção cada vez mais dolorosa. Venceu, no entanto, esse desânimo e replicou com veemência:

- Que injustas palavras É isso o que uma poderosa Rainha encontra para dizer à mulher impotente que chora a seus pés Ah! minha senhora, a grandeza tornou-a insensível aos sofrimentos humanos Foi esposa e é mãe. Não encontrará, se não no presente, pelo menos no passado, uma só recordação terna de seu esposo, uma só recordação terna de seus filhos que a possa ajudar a compreender a minha dor? Digne lembrar-se que sou mulher de seu filho e que o seu sangue real corre nas veias do meu!

- Nas minhas recordações, distantes ou recentes, só encontro rancor e cólera para si.

- Em vez de me tratar como estranha, como inimiga, minha senhora, fale-me com uma piedade sincera pela minha desgraça. Porque me separou daquele a quem amo? Porque, não o deixa ir ver-me? Ele era feliz ao pé de mim. É isso que merece a sua raiva? Usará dos seus rigores de muito poderosa contra uma mulher sem defesa, contra uma criancinha?

- Nós devemos castigar, sempre que o castigo é justo.

Violeta levantou-se bruscamente.

- Não só não fala como mulher nem como mãe, mas também não fala como deve falar uma Rainha!

No impulso e no desvairo do seu sofrimento, Violeta correu para a soberana. A dama negra, aflita, quis retirar-se, mas antes que pudesse dar um passo atrás, Violeta tinha-lhe levantado o longo véu de crepe, descobrindo o rosto da princesa Augusta.

- Não é a Rainha! - disse a jovem, numa exclamação de alegria quase feroz. - Ah! eu bem sabia que a Rainha não podia falar assim!

Vendo-se descoberta, a princesa recuou mais. Envolveu Lolette com um mau olhar e acrescentou com um sorriso de desprezo:

- Disse-lhe o que a Rainha lhe teria dito. Os meus sentimentos são inspirados nos seus, apenas Sua Majestade não se teria certamente rebaixado a escutá-la durante tanto tempo.

O coração de Violeta encheu-se de indignação e todo o pensamento de submissão e respeito fugiu-lhe da alma. Revoltada, exclamou:

- Diante doutra que não fosse a soberana, eu não me teria rebaixado a suplicar tanto. A mulher do Príncipe Jorge podia solicitar a piedade da Rainha, mas não suplica a mais ninguém!

Diante desta nova bravata, os olhares, os gestos da princesa Augusta tornaram-se cada vez mais agitados.

- De joelhos diante de mim - replicou ela - estava no único lugar que lhe compete, pérfida criatura! Ainda não sofreu bastante, a sua humilhação não foi bastante dura, visto que o orgulho a faz ainda erguer-se diante de mim. Mas acabaram-se as suas audácias e as suas imprudências. O Príncipe foi seduzido muito tempo pelas suas artificiosas carícias. Chegou a hora da expiação. Não compreende que, entre si e o Príncipe, uma grandeza nova cava um fundo abismo? Não espere o perdão nem mesmo o esquecimento. Se tem amor à vida e à de seu filho, saia das Grandes Ilhas, volte à sua pátria, volte à sua vergonha: é o seu destino! Nunca mais verá o Príncipe!

Violeta pensou que estas últimas palavras eram apenas uma mentira inspirada pela cólera. No entanto, feriu-a no coração. Escondeu o rosto com as mãos. A princesa, triunfante, continuou numa ironia sibilante:

- Olhem para este rosto radioso que os Príncipes não podem ver impunemente! Que pena não estarem aqui para contemplarem essa beleza desfeada pelas lágrimas da vergonha, por uma raiva de impotente!

- Sou ainda bastante bela para merecer a injuriosa inveja de uma princesa! - replicou Violeta. - Mas a minha sedução não vem de uma beleza que as lágrimas podem fanar, vem de um sentimento que a senhora nunca conheceu e não conhecerá jamais: amo e sou amada!

A princesa estremeceu a esta alusão, O desdém do Príncipe Harold tinha sido a única, mas a perpétua humilhação da sua vida. Ferida em pleno orgulho, perdeu todo o sangue frio e exclamou por seu turno, numa espécie de delírio:

- Lembre-se com quem fala, miserável criatura!

- Não o esqueço; mas a senhora é que esquece que esta mulher que lhe fala é a esposa daquele que será seu Rei.

Esta resposta acabou de pôr a princesa fora de si. Ela não foi mais do que uma princesa ambiciosa, uma mulher desvairada. O desdém, a cólera, um ciúme horrível, levaram-na à convicção do que devia acabrunhar a sua rival:

- Nunca foi senão a amante de Jorge... a sua mulher, serei eu!

Violeta cambaleou, numa vertigem. A Princesa continuou num encarniçamento extraordinariamente cruel:

- Sim, sua mulher, a Princesa Real, a Rainha... serei eu! Que o futuro soberano das Grandes Ilhas se chame Harold ou Jorge, eu sou a sua noiva, serei a mulher do rei das Grandes Ilhas. Tenho a promessa da minha parente, que é a Rainha. E a vontade de meu pai, que é Imperador! Ousaria, com a vergonha de um casamento clandestino, erguer-se entre mim e o trono?

Violeta, embora ainda fremente, encontrou força para responder:

- Sim, erguer-me-ei entre si e o Príncipe Jorge, erguer-me-ei entre vós com toda a força dos meus direitos, com todo impulso do meu coração. Nunca será sua mulher Se existem neste país legisladores bastante cobardes para violarem as leis, não se encontrarão padres bastante sacrílegos para sancionarem semelhante perjúrio. O Príncipe nunca amou senão a mim, não amará senão a mim! Se a Rainha tentar quebrar uma união sagrada pelos homens e por Deus, e se vós ousardes, vós a quem o Príncipe não amará nunca, tentar satisfazer a vossa funesta ambição por um acto monstruosamente iníquo, não queria por todas as riquezas e todas as grandezas da realeza, ser a mulher horrível que seria a Rainha, ser a mulher horrível que vós serieis.

Lívida, tão trémula, tão quebrada como Violeta, por esta cena de violência, a princesa recuou, esbatendo-se na sombra obscura dos pinheiros. E, os seus véus de crepe, as suas vestes de luto, confundiram-se em breve com a verdura negra dos buxos e dos ciprestes...

tom, inquieto com a demora da entrevista, aproximou-se do bosquezinho no momento em que a princesa alemã saía de entre as árvores e voltava precipitadamente para o castelo. Apostrofou o polícia em voz ainda ofegante:

- Acabo de ser abordada, acabo de ser insultada por uma mulher que não conheço. Como pôde ela entrar no parque?

- Ignoro absolutamente - disse tom, saudando militarmente e tomando uma expressão de pasmo ingénuo. - Não estou de serviço; passei no parque, por acaso. Vi Vossa Alteza e julguei compreender, pelo seu gesto de apelo, que tinha necessidade de mim.

- Efectivamente. Ordeno-lhe que pegue nesta mulher por um braço e que a ponha lá fora. Não quero que ela fique em Névis nem um momento mais. - Prendê-la, interrogá-la, prevenir fosse quem fosse da sua presença, seria dar-lhe ocasião a uma escandalosa confrontação com o Príncipe. - Deve ser esse sem dúvida o seu fim. Escorrace-a. E se ela tornar a entrar aqui, torno-o responsável!

Tom não se alarmou. A gente ao serviço do castelo estava habituada aos caprichos da princesa. De resto, o bom polícia contava com a protecção do Príncipe Jorge. No entanto, apressou o passo, pensando que, tanto por sua segurança, como por segurança da mulher do Príncipe, importava que a mamã do pequeno lord saísse de Névis antes que pudessem contar o facto à Rainha.

Violeta tinha ficado no mesmo sítio, desfalecida, com a cabeça vazia, o coração cheio de soluços, parecendo estalar. E, como no dia em que, debaixo das patas dos cavalos, ela tinha arrancado Lolet para que não fosse esmagado, o mesmo grito de instintiva indignação acudiu-lhe aos lábios assim que tom se aproximou dela:

- Oh! Que vil mulher! Que má mulher!

- É preciso afastar-se, minha senhora, o mais depressa possível - aconselhou o brigadeiro. - vou levá-la pelo bosque até uma porta secreta que dá para a estrada, perto da aldeia.

Violeta seguiu-o sem fazer nenhuma objecção. Deixava-se conduzir numa submissão passiva julgando que todos os recursos da sua vontade acabavam de ser quebrados.

- As coisas preparam-se mal para si, minha senhora - murmurou o brigadeiro, com sentida compaixão. - A culpa não foi minha. Sua Majestade não gosta nunca que se saiba antecipadamente se sai ou não. Quem poderia adivinhar que a princesa sairia e viria ao bosque, em vez da Rainha?

- E, na sombra desse bosque de pinheiros - acrescentou Lolette, obcecada pela visão da cena fantástica, enganada pelo seu traje de luto, tomei-a pela Rainha. Implorei, como teria implorado diante da mãe de Jorge. com que ávida curiosidade me escutava! com que odiosa satisfação me contemplava a seus pés!

- Creio - notou tom - que, ainda assim, lhe falou menos respeitosamente do que à Rainha, pois ela parecia bem desesperada.

- Suportei tudo que uma mulher pode suportar.

O que eu disse tinha o direito de o dizer. Porque me escutou ela senão porque me reconheceu e quis gozar com a minha humilhação? Porque me deixou acreditar que era a Rainha senão para melhor se assegurar, por essa manha, dos meus pensamentos e dos meus sentimentos, para melhor gozar com a minha imensa dor? Tanto melhor, sim, tanto melhor se essa mulher sentir todo o desprezo que me inspira!

- O mais grave é que a princesa se conta o caso à Rainha, conta-o à sua maneira, desculpando-se e acusando-a a si.

- Ai! Porque não pude eu falar à própria Soberana? Ah! tom, imagino às vezes que essa Rainha que eu nunca pude ouvir nem ver, é uma ficção, um mito prestigioso e que esse inacessível fantasma do poder não é senão o vácuo no fundo da sombra de um palácio!

Tom não respondeu a essa suposição que julgou pouco razoável. Atravessaram o bosque e alcançaram uma portinha baixa praticada numa muralha do parque. O polícia abriu-a com uma chave de que estava munido, na qualidade de guarda da Residência e para facilitar a ronda da noite. Uma espécie de ponte levadiça foi transposta e chegaram à estrada.

- De facto - concluiu ele, depois de reflectir - foi um aborrecimento ter encontrado a Princesa em vez de encontrar a Rainha, mas a verdade é que a culpa não foi minha. São destes acasos que ultrapassam o entendimento das pobres pessoas como nós.

Lolette, numa desolação que já não tinha força de dissimular, agradeceu a tom e prometeu escrever ao Príncipe Jorge para atenuar o efeito das denúncias da Princesa.

Depois, fechada a porta, sozinha na estrada, chegou à aldeia em passo mal seguro, cansada, tão desiludida que nem podia conceber, no seu espírito alterado por tantos desgostos sucessivos, senão imagens funestas e ideias supersticiosas:

- Ah! A maldita casa! - murmurou Lolette. - Bem dizia que a desgraça habitava ali, que a desgraça viria dali! E esta princesa é bem a temida intrusa, e mensageira do luto, a mulher de negro que surgiu, inexorável, entre mim e a felicidade. Quis matar o meu pobre Lolet, matou o príncipe Harold e, se disse a verdade, vai matar a minha felicidade!

 

Ou fosse a lassidão do sequestro, ou a tristeza dessa luz cinzenta e pesada que davam o spleen, ou fosse o pressentimento da aparição daquela a quem amava, o Príncipe Jorge, na sala que lhe servia de gabinete de trabalho, empurrou a mesa diante da qual se sentara e foi até uma janela da qual levantou a cortina.

O nevoeiro invadia já não só o lago, a floresta e a mata, mas todo o parque. Não se distinguia nada, nesse espesso nevoeiro, com esse vapor de água que saía dos fossos, senão as massas sombrias dos pinheiros seculares que cercavam o castelo do lado da estrada e da aldeia. Desde que, na grande efusão da dor causada pela morte de Harold, Jorge tinha prometido a sua mãe ficar um tempo junto dela, respirava numa espécie de opressão. O Príncipe tinha, às vezes, a sensação de estar emparedado vivo, outras vezes sentia essa prisão atroz que Harold lhe descrevia e de que podia agora compreender a angústia. Esses vapores crepusculares que envolviam a velha fortaleza e velavam a vista do lago, tiravam ao rapaz a única alegria que lhe restava: a ilusão, o sonho de poder voar sobre as águas além das quais abordaria nas margens do parque, correr a casa e tornar a ver a sua jovem mulher e seu filho.

Nos primeiros dias, com o fim de provar a necessidade da sua presença em Névis, tinham submetido o Príncipe a um trabalho absorvente. Desde que obtiveram a sua promessa de não abandonar Névis, deixaram-no cair numa completa desocupação. Jorge irritava-se com essas longas horas inúteis. Irritava-o principalmente não ver Lolette e Lolet. Habituado havia seis anos à vida íntima da família, habituado às carícias, aos beijos da jovem esposa e do filhinho, sentia, longe deles, nessa brusca mudança de vida, uma imensa impressão de solidão. E no entanto, não tinha a mais leve inquietação a respeito daqueles que deixara em casa.

Desde a sua reclusão, ao princípio voluntária e agora forçada, todas as manhãs, e às vezes de tarde, escrevia a Lolette. Admirar-se-ia de sua mulher não responder às suas cartas se não recebesse, todos os dias, notícias por intermédio de um oficial que ele julgava dedicado e que mandava regularmente a casa. O oficial, pelas duas horas, apresentava-se ao Príncipe e falava-lhe da bela disposição da condessa e da boa cara do pequeno lord. Algumas variantes, agradáveis e tranquilizadoras, davam verosimilhança à história. "A senhora suportava com paciência a ausência do Príncipe. Desculpava-se de não responder às suas cartas diárias pelo seu desejo de não desagradar à Rainha: uma correspondência secreta podia indispô-la contra ela. Aconselhava o Príncipe a submeter-se inteiramente, tal como ela, às vontades da Soberana. Esta forma de sequestro duraria ainda uns dias mais, o tempo de acalmar os receios e deixar atenuar a lembrança trágica da morte do Príncipe Harold. E então, desaparecida toda a apreensão, Jorge teria a liberdade de recomeçar a sua vida antiga entre a sua casa e o castelo. Era apenas um estágio, uma prova de paciência, pois era urgente provar respeito e submissão às vontades da Rainha."

O Príncipe admirava-se um pouco com as prudentes resoluções de Violeta. Mas assim que interrompia estes relatos com qualquer pergunta mais directa, as suas perguntas eram interrompidas pela entrada de qualquer secretário do Conselho ou por qualquer comunicação do Grande Chanceler.

Jorge acreditava no que lhe contava o oficial e continuava a mandar cartas a sua esposa. Mal saía, este oficial, por passagens e corredores secretos, chegava à parte mais antiga do castelo, aos aposentos secretos da Rainha. E as cartas interceptadas, não chegavam nunca ao seu destino. Talvez mesmo o infiel mensageiro não tivesse ido nunca até à residência de Jorge. As informações destinadas a tranquilizar o Príncipe, eram redigidas, não pelas confidências de Lolette, mas pelas dos espiões e dos polícias que as obtinham dos criados da jovem senhora. Estes, subornados ou intimidados forneciam alguns pormenores íntimos que aumentavam a verosimilhança. Este relato era ainda submetido à Rainha antes de chegar às mãos do oficial.

Embora mentirosamente tranquilizado todos os dias, o Príncipe Jorge lamentava amargamente ter jurado a sua mãe não sair sem sua autorização.

Tinha-lhe parecido cruel recusar-lhe o seu primeiro pedido, imaginando a Soberana aterrorizada pela morte de Harold e terrivelmente inquieta pela vida do único filho que lhe restava. Ele julgava ver então uma pobre mulher doente, chorosa, acabrunhada pela dor. E era Príncipe Real: não devia o exemplo da obediência? Mas supunha que esta detenção voluntária duraria, quando muito, dois ou três dias.

E já durava havia duas semanas! A Rainha não só não falava em levantar a seu filho o juramento mas continuava a conservar-se invisível.

No entanto, Jorge não desesperava de ver sua mãe. Solicitava todos os dias a entrevista onde contaria reaver a sua liberdade de acção. Mas quando não era o pretexto de uma discussão política com o Chanceler, os ministros ou o Parlamento, impunham-lhe uma razão de saúde. Fadiga, indisposição, tudo servia de pretexto para a demora.

E os dias passavam. Jorge continuava cativo na sua sombria fortaleza.

Nessa noite, melancolicamente apoiado à janela, levantando a cortina com a mão nervosa, o Príncipe teve a sensação de estar duplamente prisioneiro, emparedado vivo pela pedra e pelo nevoeiro. E nessa angústia pungente, física e moral, acudiu-lhe a ideia de que a Rainha tinha representado e representava ainda, que só havia simulado medo e dor para lhe arrancar o juramento de não sair de Névis. Não continuava ela a tratar de assuntos urgentes? Enganado no seu acesso de sentimentalidade, não se teria ele próprio deixado cair numa armadilha?

Jorge sentia-se também vigiado, espreitado, espiado por não sabia que espiões invisíveis. Nesse momento, nesse crepúsculo triste, afigurava-se-lhe ser o pobre mosquito que, depois de se ter debatido inutilmente na teia pérfida, se imobiliza, à espera da morte, sob a fascinação dos olhos da aranha que, do fundo do seu obscuro buraco, espera calmamente a fome para vir comer a sua presa. Ele imaginava-se também preso, enlaçado, nesse emaranhado de intrigas ainda misteriosas; parecia-lhe respirar a mentira e a traição na atmosfera pesada da residência feudal. E, eram bem menos os pensamentos do que as impressões e as imagens muito vagas. Chegava mesmo, nesse momento, a lembrar os receios supersticiosos de Violeta e os medos mais infantis ainda que Lolet tinha da Bruxa. Para não duvidar demasiado da boa fé de sua mãe, para não suspeitar da Rainha, para não pensar em tantas tristezas, fechou os olhos e, num recolhimento de todo o seu ser, num grande esforço de vontade, de memória e de imaginação, tentou evocar, nalgumas cenas íntimas de casa, o claro sorriso de Lolette, a carinha alegre e fresca do seu filho. Num instante, talvez mesmo no instante em que Lolette, a tão pequena distância, se encontrava ainda no obscuro bosque, Jorge julgou realmente contemplá-la. Ele teve a sensação, depressa desaparecida, de uma presença amiga. Julgou ver sorrir os dois rostos tão amados.

Nesse momento, a ilusão foi tão precisa que abriu as pálpebras maquinalmente, julgando, na verdade, que a miragem persistia. Mas, abertos, os seus olhos foram dolorosamente impressionados pelas espessas e fantásticas brumas, que choravam sobre a vidraça. Depois, de súbito, debaixo da janela, no parque, caminhando precipitadamente para o portão uma sombra desenhou-se cada vez mais clara no nevoeiro. E o Príncipe reconheceu a figura da princesa Augusta. Estremeceu, deixou cair a cortina e recuou. Esta aparição de luto era um tal contraste com os dois rostos claros que a sua ternura acabava de evocar que não pôde reprimir o instintivo balbuciar:

- A mulher de negro... a mulher que traz a desgraça!

E, como se a princesa fosse realmente a mensageira da dor, o pensamento de Lolette e de Lolet apagou-se, submergiu-se na maré alta das inquietações e apreensões. A despeito da tensão de toda a sua vontade, Jorge não pôde fazer reviver nos seus olhos a miragem encantadora. Foi a imagem da aranha manhosa, espreitando, não vendo mas pressentindo tudo no mais escuro do seu buraco, que se gravou nas suas pupilas. E, durante as horas que se seguiram, a dúvida e a suspeita apagaram todas as recordações de felicidade.

A grande sala tinha-se tornado sombria e Jorge estava ainda mergulhado em sonhos nostálgicos, quando, atrás da porta, um ruído de passos, abafados pelo tapete, despertou a sua atenção. Bateram quase a seguir. Sem razão, o Príncipe estremeceu, perguntando a si próprio, tão supersticiosamente como Violeta:

- Será a desgraça que a fatal mensageira me anunciou?

E, sob esse pressentimento, um grande frio passou-lhe no coração apertando-lho dolorosamente.

Um porteiro vestido de negro, de colar de prata ao pescoço, apresentou-lhe uma carta, numa bandeja. Jorge abriu-a vivamente. A sua deprimente solidão, um silêncio angustioso, uma espera desmoralizadora, davam uma extraordinária importância a esse fútil acontecimento. A entrega dessa carta de algumas linhas banais, pareceu imediatamente cheia de consequências para o rapaz, que empalideceu.

Sem a mínima alusão aos recentes pedidos de audiência, sem mesmo lhe dar a entender que lhe concedia a entrevista há tanto desejada, lord Evendal pedia ao Príncipe para ir imediatamente ao gabinete do Conselho Secreto. O Grande Chanceler, desculpava-se de não ir ele mesmo ter com Sua Alteza, mas a Rainha, embora doente, esperava poder assistir à conversa, razão porque se julgava na obrigação de incomodar o Príncipe.

Jorge não se deteve nestas fórmulas de etiqueta. Compreendeu, a despeito das reticências, que sua mãe estaria lá e que, pelo próprio desejo de não dar importância a essa entrevista, ela seria, no entanto, definitiva. O que lho provava, era a precaução de o avisar no último momento, de imprevisto, não lhe deixando tempo nem de pedir conselho a um amigo, nem de tomar o seu próprio conselho. Não teriam premeditado fazê-lo comparecer, desiludido e desencorajado por uma interminável espera, perturbando-o com a realização súbita de uma explicação de que já desesperava? Não seria essa a causa das dissimulações, das manhas tão queridas à Rainha e que tinham tantas vezes desesperado o Príncipe Harold?

Jorge serenou o mais que pôde e foi com passo firme que seguiu o criado. Atravessou assim as longas enfiadas de salões e de ante-câmaras. Os oficiais de serviço, levantaram-se à sua passagem. De escadaria em escadaria, de aposentos em aposentos, entrou na parte mais antiga da fortaleza, nessas profundezas do palácio que nunca tinha visitado. As salas, à medida que avançava, tornavam-se mais sombrias. Jorge reconheceu, semelhantes a fantasmas imobilizados nas obscuridades húmidas e frias, as brancuras informes das estátuas, as pinturas esmaecidas e pegadas às paredes, as tapeçarias de forros desbotados. Nesse silêncio, perguntava a si próprio se não seria também um fantasma.

Embora adivinhasse que tão longo percurso tivesse por fim reavivar nele a recordação do poder e da grandeza da sua raça, de o impressionar e de o intimidar ao mesmo tempo, cedeu a essa espécie de sugestão.

A sua memória evocava os factos históricos que se ligavam à antiga casa, as lendas que lhe tinham contado na sua infância. Não podia deixar de pensar, em todos os príncipes e em todas as princesas que se tinham consumido de tristeza, que haviam expiado, numa longa agonia, entre as espessas paredes da implacável fortaleza.

Evocava a palidez sofredora, o langor doentio de sua tia-avó a princesa d'Evis, as raivas abafadas, as loucuras do velho conde de Bruhm. Evocava Edith, a louca, a rainha desgrenhada, de mãos vermelhas, cujo retrato o olhava com espanto. Afigurava-se-lhe o assassinato dos dois filhos de Cédric, apunhalados entre duas portas. Revia a rainha Maria, com a cabeça no cutelo e o velho rei Ricardo estrangulado na cama.

Então, só então, Jorge, habituado à vida simples, tão familiar, tão livre, compreendia o ódio de Harold por esse palácio cheio de mistério e de dramas, por essas salas cheias de tão trágicas recordações. Perguntava a si próprio se não haveria sangue nos velhos estuques, sangue no sobrado, sangue nos degraus das escadas. Pareceu-lhe ouvir, no silêncio, lamentos abafados, estertores prolongados. Hesitava ainda como se qualquer espectro fosse surgir nalgum corredor, em cada esquina da parede, por cada porta aberta. Sentia-se tremer, agitar-se, cerrar-se à sua volta um invólucro de maquinações de espionagens, de traições. Mais pesadamente ainda que nos seus aposentos, ele respirava uma atmosfera opressora, como que carregada de todas as angústias e de todas as tristezas sofridas havia séculos!

Foi nesse estado de espírito, que o Príncipe chegou, depois de mil voltas, a uma pequena porta disfarçada por um reposteiro e diante da qual estava um oficial de guarda. O oficial cumprimentou-o; o criado que lhe servira de guia retirou-se. Assim que a pequena e maciça porta se fechou, Jorge atravessou uma galeria deserta, levantou uma tapeçaria e encontrou-se num imenso aposento iluminado por um só candeeiro com o abat-jour, posto em cima de uma mesa, diante do Grande Chanceler do Império.

O rapaz estendeu a mão a lord Evendal, mas este designou-lhe uma forma sentada na sombra:

- Que Vossa Alteza Real saúde primeiro Sua Majestade a Rainha.

O Príncipe precipitou-se para a dama negra, sentada, metida em almofadas. O abat-jour do único candeeiro encontrava-se muito baixo, por causa da vista da soberana e o rapaz estava impossibilitado de reconhecer sua mãe. Apercebeu entre as roupagens negras, uma sombria massa de onde se destacava a vaga palidez de um rosto e duas outras manchas pálidas mais longas as das mãos.

Jorge pegou nos dedos da Rainha e levou-os aos lábios. Estremeceu. Esta mão, húmida e mole, pareceu-lhe inerte, tão fria, tão gelada e tão morta como a de Harold, no pavilhão de caça. Depois, o jovem Príncipe ergueu o olhar para contemplar as feições da Soberana.

A Rainha continuava silenciosa, como que inerte, com as pálpebras meio cerradas. Quando Jorge voltou a pôr a mão branca e mole sobre o crepe do vestido, as pálpebras da dama estranha e distante, abriram-se um momento. Mas esses olhos vazios não exprimiam nada.

E Jorge pensou:

- Harold dizia a verdade: minha mãe nunca deve ter sentido qualquer emoção. Todos os espectros da família passaram na sua vida sem que lhe formassem uma só ruga na sua impassível face de esfinge.

Entretanto, o Chanceler chamava já o rapaz para junto da mesa. E, em voz muito lenta, muito solene, recomendou-lhe:

- É preciso que Vossa Alteza me prometa que, durante a nossa conversa, reprimirá os seus gestos e conterá a sua voz, pois Sua Majestade está muito fatigada e muito doente. Ela dignou-se confiar-me as suas intenções e as suas vontades Monsenhor, e exprimir-Lhos-ei fielmente, ler-lhos-ei mesmo. Falarei pois em lugar da Rainha e não é a mim que terá de responder. Sua Majestade sente-se muito fraca para tomar parte directamente na nossa conversa. Ouvir, eis tudo quanto as forças lhe permitem hoje, e nestas condições, repito-lhe que tenha a bondade de se impor uma atitude contida e discreta, assim como uma grande moderação de palavras.

No fundo obscuro, sem que entre os véus e as vestes de luto o rosto pálido se movesse, a mão mole e branca da Rainha esboçou vagamente um gesto de assentimento.

- Reprimirei os meus gestos e conterei a minha voz - disse Jorge. - Prometo-o de boa vontade. Espero, no entanto, que nada na nossa conversa, me torne difícil o que prometo e me faça lamentar a promessa.

O Chanceler não respondeu, pareceu muito ocupado a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. A Rainha não fez nenhum movimento para convidar os dois homens a sentarem-se diante dela. Eles continuaram de pé.

- Antes de mais nada - começou lord Evendal. - Sua Majestade deseja ser esclarecida por Vossa Alteza Real em pessoa, sobre certos boatos aborrecidos e certamente falsos que circulam no público. A vossa sucessão ao trono, Monsenhor, ocasiona-vos muitos inimigos. Certos jornais ousaram reproduzir odiosas calúnias contra vós. Antes que os correspondentes dos jornais estrangeiros se apoderem dessas notícias tendenciosas, importa que nós as cortemos cerce.

Aqui, o Chanceler fez uma pausa. O coração do Príncipe pôs-se a bater com violência.

- Pretendem - e não é sem repugnância que me faço aqui intérprete dessas maledicências - que Vossa Alteza Real, há seis anos, quando teve uma longa permanência em Paris, tinha, contra a vontade da Rainha, e esquecendo os seus deveres de filho, de Príncipe da família real, contraído um casamento clandestino com uma rapariga de baixa condição.

O Príncipe quis interrompê-lo, mas o Chanceler continuou com autoridade:

- Lamento que Vossa Alteza me obrigue, logo às primeiras palavras, a lembrar-lhe que não sou aqui mais do que o porta-voz de Sua Majestade e que, portanto, deve ouvir-me, não me interrompendo e esperando que eu termine.

Muito pálido, o Príncipe calou-se. O Chanceler continuou, na mesma voz fria e comedida:

- Acrescentam, não menos infamemente, que Vossa Alteza Real, desprezando o respeito devido a sua mãe, às leis e à religião, trouxe essa mulher para as Grandes Ilhas e continua aqui a viver com ela. Repugna a Sua Majestade, repugna à sua dignidade de mãe e de soberana, entrar em mais amplos detalhes. Nós não lhe faremos, Monsenhor, a afronta de lhe pedir que se justifique. Bastará que, no impulso de uma indignação sincera e espontânea, nos dê um formal desmentido. Forte com esse desmentido em que Vossa Alteza porá a sua assinatura, Sua Majestade agirá segundo as necessidades da causa real, para impor silêncio a esses boatos infames e para fazer respeitar a vossa honra.

com uma imperturbável serenidade, sem mesmo consultar o Príncipe com o olhar, como se fosse uma coisa antecipadamente estabelecida e não pudesse sofrer a mínima dificuldade, o Chanceler pôs uma folha de papel escrito em cima da mesa e estendeu ao rapaz uma pena para que ele lhe pusesse a sua assinatura.

Jorge não pegou na pena. Aparentemente calmo, embora muito perturbado, prevendo o debate cada vez mais encarniçado, respondeu em voz baixa, mas firme:

- Não me é possível assinar esse papel. É-me impossível desmentir a notícia de que fala porque é absolutamente verdadeira. Não há maledicência nem calúnia, na asserção do casamento clandestino, pois o meu casamento foi um contrato legal. E, segundo a lei e a religião do meu país, perante Deus e perante os homens, sou legítimo esposo de Violeta Miroy, condessa de Belfast!

- Vossa Alteza Real vê-nos extremamente contrariados por termos que o contradizer, mas em nome da Rainha, protesto abertamente contra a alegação que nada justifica.

- O meu casamento realizou-se em Paris - disse o Príncipe - há seis anos, primeiro no Consulado das Grandes Ilhas, depois no Templo, na rua de Alger. Minha mulher possui um duplicado desse certificado de casamento. Eu escrevi à Rainha a esse respeito. É certo que ela nunca se dignou responder-me, mas, com meu irmão, pelo menos, troquei numerosa correspondência a esse respeito. Ele garantiu-me que Sua Majestade, em troca da minha promessa de voltar às Grandes Ilhas, não se oporia ao casamento. E, de facto, nenhuma oposição, em nome de minha mãe foi feita nem no Consulado, nem no Templo. De resto, eu casei-me diante de quatro testemunhas cujos nomes posso citar. Elas confirmarão a validade do acto civil e religioso.

- Sua Majestade nunca vos escreveu a esse respeito pela excelente razão de Sua Majestade nunca ter sabido de semelhante projecto. Se o Príncipe Harold respondeu em nome da Rainha, com a sua própria autoridade, era useiro nesse facto. Obedecia, procedendo assim, ao seu génio irónico, malicioso, ao gosto pelos perigos e mistificações de que nós tivemos, mais de uma vez, de atenuar as consequências. Recentemente informados da intriga em questão, não esperámos a vossa comparência diante de nós para procedermos a minuciosos inquéritos. O exame dos papéis do Príncipe Harold não nos revelou um traço de correspondência respeitante a essa francesa. No consulado de Paris, no Templo da rua de Alger, no ano que Vossa Alteza indica, não existe menção de acto de casamento com o seu nome. Folheámos, em pessoa, os registos. Quanto aos quatro oficiais, as pretensas testemunhas, de uma união de que não existe nenhuma prova, já sabemos quem são. Três são das Grandes Ilhas e o quarto do Transvaal. Todos, chamados à presença do consulado, afirmaram sobre sua honra não se terem nunca prestado a representar um papel, mesmo apagado, nesta indigna intriga.

- Não quero saber - interrompeu o Príncipe, com fogo - porque forma fizeram desaparecer as cartas escritas a meu irmão, nem que mão criminosa apagou ou rasgou a folha dos registos. Também não quero saber por meio de que horríveis ameaças obtiveram uma mentirosa retratação dos quatro oficiais caídos em desgraça e mandados para as colónias, mas afirmo-lhe...

O Príncipe tinha elevado a voz: ia reforçar o protesto com um gesto enérgico quando o Grande Chanceler, com a mesma fria indiferença, interrompeu:

- Não me obrigue a lembrar-lhe a nossa convenção, Monsenhor. Sua Majestade fez-me sinal que, devido ao seu precário estado de saúde, o som da sua voz a fatiga e os seus gestos a impressionam. Ela vai retirar-se e todo o entendimento acabará- talvez por muito tempo - se não se dominar imediatamente numa atitude respeitosa e se não moderar o tom que tinha jurado não elevar em presença da Rainha.

O Príncipe, numa brusca sensação de asfixia, quase de estrangulamento, conseguiu ainda dominar-se. A ideia de que a entrevista podia terminar e que teria de viver ainda numa espera indefinida nessa imensa e tenebrosa prisão, fez-lhe baixar a voz e reprimir os gestos. Mas esta obrigação de dizer calmamente, a meia voz, o que sentia tão violentamente, era para ele um verdadeiro sofrimento.

- Juro-lhe, milord, que diante dos homens e de Deus me considero casado.

- Nós não o podemos considerar como casado, nem diante de Deus nem diante dos homens. Não existe desse facto uma única prova no mundo. E mesmo se uma prova existisse, a única, seria impossível Sua Majestade considerá-lo casado. Não ignora a lei que, nas Grandes Ilhas como na Áustria, concede ao soberano, há muitos séculos, um direito de autoridade absoluta sobre todos os membros da família real. Sua Majestade pode, consigo, tomar todas as medidas que lhe pareçam necessárias para manter a ordem, a prosperidade e a honra da família. O casamento de um Príncipe de sangue, fosse ele um segundo primo da Rainha, era nulo e ilegal religiosamente se não tivesse sido levado ao conhecimento da soberana e por ela reconhecido. Além disso esse casamento exige uma acta assinada pela Rainha e depositada nos arquivos reais. Vossa Alteza afirma-nos que essas formalidades estão cumpridas?

Jorge teve um segundo de hesitação; depois continuou com energia:

- Ignorava a existência dessa lei e meu irmão devia, como eu, ignorá-la também. Não era a si, lord Evendal, que competia advertir-nos na maioridade?

- Só podemos proceder por ordem da Rainha. A sua censura, Monsenhor, não pode atingir-nos. E nós supomos que não será vossa intenção elevar essa censura até Sua Majestade.

- Deixemos isso, milord. O que está feito, está feito. Se faltam ao meu casamento quaisquer formalidades, minha mãe não será bastante inflexível para me impedir de as preencher.

- Não falta alguma formalidade, Monsenhor, faltam todas.

O Príncipe fixou os olhos em sua mãe.

- Volte-se para mim, Monsenhor - disse o chanceler. - É só comigo que fala, é para mim que deve olhar.

Perturbado por tudo que tinha ainda a dizer e com o pensamento de que, se acabasse a entrevista, nunca mais teria ocasião de se explicar, o jovem recomeçou em voz alterada:

- Tenho mulher e um filho. Não posso nem quero abandoná-los. Amo-os de toda a minha alma. Há seis anos que não nos separamos nem um instante. O pensamento deles é o meu pensamento, a sua vontade é a minha vontade. A nossa mútua e constante ternura nunca foi desmentida um só dia, uma só hora. Levem-me tudo, mas não me privem do seu amor. Exijam o que quiserem, obedecerei como filho respeitoso, como príncipe consciente dos seus deveres e das pesadas responsabilidades da sua grandeza. Mas não me separem de minha mulher e do meu filho! É possível que os espíritos acintosos possam contestar o meu casamento, mas quem o contestará quando eu declarar que é para mim válido para sempre? O meu juramento

- sancionou-o: jurei conservar-me fiel na morte e além da Eternidade!

- Essa francesa, restituir-lhe-á a sua palavra, Monsenhor. Nós obteremos isso.

- Talvez o obtenham pela astúcia, pela intimidação, ou pelo excesso de desespero, milord. Mas nunca o obterão pela minha confissão.

- Se essa mulher ama realmente Vossa Alteza, sacrificará sem custo a sua insensata ambição à vossa própria glória.

- Ah! as poucas ambições da minha querida Violeta, fui eu que lhas inspirei. Para mim, milord, que glória compensará uma vida começada por uma cobardia? E que espécie de glória compensaria a desonra e as lágrimas dessa infeliz criança? Era livre de escolher entre as grandes princesas da terra a companheira da minha vida. Preferi o amor desta humilde rapariga. Fui eu próprio procurá-la à sombra em que vivia honesta, modesta e feliz. Julgou casar com um homem simples, leal e fiel com ela. E eu, Príncipe Real, não teria arrancado essa menina à sua vida de inocência e de felicidade para a atirar, em plena luz, para todas as afrontas e todas as vergonhas! Nem o senhor nem minha mãe podem exigir isso de mim! Não podem mesmo aconselhar-mo!

O Príncipe voltara-se para o docel, ao fundo da sala, onde, na obscuridade, mal se distinguia a brancura que era o rosto da Rainha. O Príncipe tinha posto as mãos. A sua voz, tão grave e tão viril, soçobrava numa prece. E ele, tão altivo, suplicou.

- Não deve dirigir-se directamente a Sua Majestade, Monsenhor - continuou severamente o Chanceler. - Estou aqui para perguntar e responder em vez da Rainha. Se violar pela segunda vez a sua promessa, a Rainha far-me-á sinal de que se retira imediatamente.

Jorge, num apelo desesperado, lançou um último olhar para o docel de veludo negro. A Rainha continuava imóvel e muda, os olhos vazios sob as pálpebras pesadas, as pupilas vítreas, como veladas por um sonho interior. E, nessa letargia eterna, ela parecia sempre olhar sem ver, escutar sem ouvir.

Jorge compreendeu que não devia esperar nenhuma intervenção de sua mãe e preparou-se para combater até ao último suspiro. Continuou com firmeza:

- Acabo de lhe dizer, milord, que laços insolúveis, que amor e que gratidão me ligam a minha mulher. Que opõe a isto? Espero a sua resposta.

- Eis a resposta da Rainha: vou ler-lhe, Monsenhor, uma nota que sua Majestade se dignou escrever por sua própria mão: "Vossa Alteza Real, tem grandes ilusões sobre essa jovem francesa. Para um espírito imparcial, não parece de maneira alguma que essa menina tenha agido, já não diremos com tacto, mas segundo as mais elementares conveniências. Agora, que a sua própria situação lhe aconselhava a mais estrita reserva e o silêncio mais absoluto, ela, manifestamente, não procura senão provocar um escândalo. Na revista, num camarote da corte arrancado à fraqueza de Vossa Alteza, essa pessoa não deixou, aproveitando de uma fortuita semelhança, de apresentar descaradamente o filho à multidão e de atrair as atenções pelos seus gestos e palavras. Não receou insultar, na passagem, os carros reais e de provocar os mais violentos assobios da populaça. Soube atrair pelas suas manhas o Príncipe Harold a sua casa, tomando imediatamente com as suas seduções, um grande ascendente sobre esse espírito perturbado. Aconselhou-lhe a resistência, mesmo a revolta às ordens da Rainha, e teve uma grande parte na horrível resolução de seu desgraçado irmão. Forte com o vosso apoio, sem recear um castigo que só retardamos por atenção para com Vossa Alteza, essa mulher ousou penetrar no palácio ainda hoje e, escondida no parque, enganada pelas vestes de luto, julgando falar a Sua Majestade, cobriu a princesa Augusta das maiores injúrias. Indignados com esse escândalo intolerável, resolvemos intervir".

Jorge não se mostrou emocionado. E replicou:

- Minha mulher, enquanto eu estive livre, procedeu sempre segundo a minha vontade. O que se passou entre ela e meu irmão, sei o que foi e di-lo-ei: não foi minha mulher, fui eu que me recusei a avisar Sua Majestade do esconderijo de Harold, queria evitar à Rainha uma dor inútil, pois pensava ainda encontrar meu irmão, acalmá-lo e trazê-lo a Névis. Se há cumplicidade no suicídio do Príncipe, o culpado sou eu. Serei testemunha da condessa de Belfast diante da Rainha e diante do Parlamento e a sua inocência brilhará.

- Uma causa dessas, Monsenhor, nada teria que ver com o Parlamento. M.lle Miroy não tem nenhuma espécie de parentesco com a família real, será simplesmente mandada ao Conselho Secreto da Rainha, como acusada do crime de lesa-majestade e cumplicidade na morte do Príncipe Harold. Vossa Alteza, não será, sob qualquer pretexto, admitido como testemunha. E a culpada deve considerar-se bem feliz se não morrer esquecida em qualquer fortaleza das Ilhas, depois de vinte ou trinta anos de hard-labour.

O Príncipe tremeu, embora imperceptivelmente. Imaginou a sua pobre flor de sombra, a sua doce e encantadora Violeta, submetida a essa atroz tortura. O rosto do infeliz tornou-se quase tão branco como o da Rainha.

Vencendo esse desfalecimento, replicou:

- Sei, milord, como meu irmão sabia, que assassinam ainda secretamente, sem barulho, nas prisões deste país. Se ousarem atentar contra a vida ou apenas contra a liberdade da minha esposa inocente, sou eu que proclamarei publicamente a verdade e farei o maior barulho e todo escândalo possível!

- O escândalo só atingiria essa mulher, Monsenhor. De resto, também não sois livre, sem incorrer na reprovação pública, de tomardes a defesa da vossa amante, pois estareis noivo ou talvez casado antes do julgamento.

- Eu Noivo! Casado com quem?

- Sois noivo da princesa alemã desde que o Príncipe Harold deu o último suspiro.

- É impossível! A princesa Augusta devia ser mulher de meu irmão.

- Ela devia ser mulher do Príncipe Herdeiro das Grandes Ilhas... Será vossa mulher!

- Repito-lhe, milord, que sou casado. com todas as minhas forças, com toda a minha vontade, oponho-me a qualquer outra união que seria um sacrilégio.

- No entanto, essa união realizar-se-á. Sua Majestade não quer que ofenda a sua parente. Ora, uma segunda humilhação, seria pior do que a primeira. Pelo contrário, Sua Majestade entende que esse casamento será uma brilhante reparação à afronta do Príncipe Harold. Sua Majestade deu a sua palavra ao Imperador.

- Apelarei para o povo. E o povo, indignado, tomará o meu partido.

- O povo nunca respondeu às provocações do Príncipe Harold contra Sua Majestade. Será surdo às vossas. O povo compreende instintivamente que a Rainha sacrifica mais uma vez a felicidade de seus filhos à felicidade do povo. E a multidão passará ao pé de vós como passou ao pé do túmulo de vosso irmão, triste, mas sem desejo de penetrar o mistério. Ela sabe que esse trono, de onde lhe vem a luz, mascara um abismo de trevas onde, profana, a multidão por sua própria felicidade e segurança, nunca deve lançar os olhos.

- Pois bem, afastar-me-ei.

- Não pode deixar os territórios das Grandes Ilhas sem consentimento de Sua Majestade. Esse consentimento, a Rainha não o dará.

- E se, desesperado, fizer como meu irmão, se me matar?

- Seria como ele, Monsenhor, apenas um desertor!

- O Príncipe Jorge, a esta palavra, teve um grande sobressalto, caiu numa cadeira, com os cotovelos apoiados à mesa e a cabeça entre as mãos.

- Mas Monsenhor não desertará - continuou o chanceler, com voz penetrante - pois não está atacado pelo mal de seu irmão mais velho. Um pernicioso contágio de individualismo levou o Príncipe Harold a cometer erros. Depois, levado por essa noção dos seus direitos pessoais, cometeu faltas mais graves ainda. A sua consciência alterou-se a tal ponto que, para esquecer, recorreu a prazeres funestos. Sacrificou os seus deveres de Príncipe. Daí, essa decadência física e moral que o fez acabar no suicídio. Esse louco orgulho do seu eu, perdeu-o. Consigo, Monsenhor, a Rainha apela para um orgulho mais alto. Vossa Alteza é são de corpo e de espírito, por isso lhe falamos uma linguagem mais severa, mas mais elevada. São as desordens das famílias reais que dão coragem e sancionam as desordens de todas as outras famílias. Quanto de mais alto parte o exemplo, mais alcance tem.

- E é, no entanto, a pior desordem, milord, a que introduziu na minha família. Não lha consentirei. Se me afastarem de minha mulher e de meu filho, renunciarei ao trono, aos meus direitos, a todas as prerrogativas da minha estirpe.

- Seria uma traição para com a Rainha! E agora, pergunto-lhe, Monsenhor, em que mereceram seus avós, sua mãe, serem desprezados por seus filhos? E que pior desprezo pode testemunhar-lhes, que pior insulto pode fazer-lhes do que recusar um cetro que eles ergueram durante séculos, firme e direito nas suas mãos?

Aproveitando a meditação desolada em que o Príncipe estava mergulhado, lord Evendal, como se tivesse acabado a parte mais dura e mais ingrata da sua missão, continuou com mais força ainda, mas em tom mais conciliador:

- Temos discutido demais, Monsenhor, sobre o vosso caso íntimo e muito particular. Conversaremos pois sobre coisas mais altas e mais dignas de nós. Sois o herdeiro de um Império imenso que, pela sua própria imensidade, está sujeito a inúmeros perigos e a inúmeras ameaças inimigas. A Rainha pede-vos para não vos tornardes o pior desses perigos, o pior desses inimigos. Para manter o trono, nós precisamos, Monsenhor, de toda a vossa energia, de toda a vossa inteligência, de toda a vossa coragem. Tendes a vosso cargo cem milhões de almas. Não lhes devereis o sacrifício de gostos, inclinações e desejos? Tendes uma alma demasiado generosa para ceder por muito tempo ao passageiro desvairo dos sentidos ou do coração. - Lembrai-vos, Monsenhor, o que tiveram de fatal os romances passionais dos arquiduques da Áustria e de todos os filhos de reis! Evocai o drama de Mayerling e tantos outros dramas! Não compreendais que são esses escandalosos exemplos, que são a repulsa e o desprezo dos reis pela sua própria grandeza, que abatem o seu prestígio e mancham a honra real? Os soberanos sentem os degraus do trono abaterem-se-lhes debaixo dos pés; não precipiteis a sua queda. Vossa Alteza imagina que sua mãe não aspirou muita vez a uma vida modesta, a uma felicidade simples e tranquila? Já viu alguma vez a nossa Soberana alegre, Monsenhor? Já a julgou alguma vez feliz? Não lhe disse que Sua Majestade tem assegurado a felicidade do seu povo à custa da sua própria felicidade? Quem lhe diz que Ela não sonhou com o mesmo amor com que Vossa Alteza sonha? Quem lhe diz, enfim, que os seus olhos não choraram, que o seu coração não sangrou? E, no entanto, com o preço de todos os sofrimentos, ela julgou dever renunciar à herança da glória e do martírio legada pelos seus avós. Imolou todas as suas aspirações de mulher ao seu orgulho de Soberana. Sacrificou todas as alegrias íntimas ao interesse do seu povo, à prosperidade da sua pátria, à honra da sua raça e da sua dinastia!

Entre os dedos frios que se molhavam de lágrimas ardentes, o Príncipe olhava para a Rainha. Perguntava a si próprio se, efectivamente, era apenas a atmosfera abafada do palácio que tornara sua mãe tão pálida. Não seriam as feridas, as feridas sempre sangrentas do fundo do seu coração que tiravam todo o sangue daquele rosto de mármore? E, apesar de toda a sua dor, ouvia lord Evendal. O que dizia agora o Chanceler parecia-se tanto com o que ele próprio dissera ao Príncipe Harold! Reconhecia os seus próprios pensamentos nos que exprimia agora este homem impenetrável! E, este homem seria o sincero intérprete de pensamentos sinceros? Sentiria realmente a grandeza das suas palavras? Sua mãe teria, na verdade, a sublime abnegação que reclamavam dele?

Por momentos, Jorge acreditou-o e toda a sua alma generosa se exaltou. Depois, arrependeu-se. E, desconfiado, lembrando-se de mil manhas e duplicidades de que Harold muitas vezes tinha sido vítima, o rapaz duvidou. Porquê, se era esse o verdadeiro sentimento do seu coração, o Chanceler o formulava em voz tão lenta, solene, onde nunca vibrava nenhuma emoção humana? E o Príncipe imaginava também que a Rainha e o seu conselheiro tinham podido surpreender o sentido da sua última conversa com seu irmão e que se serviam das suas próprias palavras e pensamentos, adaptando-os momentaneamente só para mais depressa o levarem a vergar-se à sua poderosa vontade. E essa dúvida aumentou a dor do rapaz: sua mãe e o Chanceler estariam a mostrar-lhe as suas verdadeiras almas, as suas almas nuas Ou velariam as suas intenções pérfidas com palavras insidiosamente eloquentes, falsamente humanitárias, assim como se cobre a fealdade do corpo com vestes sumptuosas?

O Chanceler continuou em voz lenta e distinta que não poupava a mínima sílaba, esforçando-se bem para que cada palavra entrasse impiedosamente nos ouvidos do paciente:

- Hoje, Monsenhor, sois a única esperança da coroa. A vossa nova grandeza criou-vos novos deveres. Sois mais amado pelo povo do que vosso irmão, o que é de inteira justiça. Vós tendes uma alma mais alta dentro de um corpo mais robusto. Felizmente sois chamados a reinar. Creio que fareis a felicidade dos vossos súbditos. E a lembrança do vosso reinado deve assegurar o trono à vossa posteridade. Não seria horrivelmente cruel e triste, pergunto ainda, ver-vos sacrificar o vosso destino real, o destino secular de vossos filhos e netos, ao momentâneo prazer dos vossos sentidos e do vosso coração Acima do amor à mulher e ao filho? há, em qualquer homem, o amor da pátria! É um dever imperioso para o mais humilde dos vossos súbditos. Como não seria um dever mais imperioso ainda, para vós, que sois rei! A vontade de um rei não deve aniquilar-se numa sentimentalidade cândida, mas perigosa. Um rei não tem o direito de dar aos sentimentos e aos instintos vulgares do seu coração, a importância que lhe dá qualquer outro homem. É preciso que penseis em tudo, antes de pensardes em vós!

O Príncipe permanecia silencioso; lord Evendal continuou com mais vivacidade:

- O sonho não vos é permitido, agora impõe-se a acção, é ela que se impõe dolorosamente, terrível e urgente. A Alemanha por ameaças que, há muito, já não são vãs, obrigou-nos a apressar as bodas da princesa Augusta. A morte do Príncipe acabou de desesperar o povo inimigo e de fazer perder a cabeça ao Kaiser. O seu embaixador mandou-nos antes de ontem, o seu ultimato. Será preciso comprar a paz pelo preço de condições tão humilhantes que, discuti-las, somente, seria perder toda a popularidade, sublevar o povo e declarar a guerra civil. A guerra exterior não nos será menos funesta pois não estamos preparados para ela. Confiamos-vos isto como segredo de Estado: os nossos recursos estão exaustos, todas as forças de terra e mar foram disseminadas em África e na Ásia - a derrota era certa. E seria uma derrota vergonhosa. Só temos um meio de salvação: a união de Vossa Alteza com a princesa alemã. E esta manhã a Rainha fez, não uma nova promessa, mas confirmou o juramento de aliança familiar feita há mais de dez anos. Vai objectar, Monsenhor, o vosso juramento de homem, mas a Rainha objecta-vos com o seu juramento de Soberana.

E acabou mais depressa, quase brutalmente:

- Não será melhor tornar-se Vossa Alteza prejuro, não para com essa francesa a quem o não liga nenhum laço real, mas para convosco próprio, do que tornar a Rainha prejura para com milhões e milhões de homens Que serão os cuidados e as saudades que vos perturbam a alma demasiado terna ao pé da desordem, da ruína, da anarquia, das misérias, dos massacres de uma guerra horrorosa entre dois dos maiores Estados da terra?

O Príncipe mantinha-se sempre silencioso, acabrunhado. Parecia-lhe que sentia a cabeça a arder, congestionada de pensamentos, pesando-lhe entre as mãos geladas. Uma luta violenta se travava na sua alma quando o Chanceler acrescentou em voz mais doce, mais insinuante:

- Sua Majestade far-lhe-á comunicar o ultimato do Kaiser e

- arranjar-lhe-á uma conferência particular com o embaixador da Alemanha. Será então, Monsenhor, que a única esperança das Grandes Ilhas residirá em Vossa Alteza. Por estardes acima de todos os homens é que esperamos de vós um sacrifício sobre-humano. Vossa mãe desculpa-se de vos ter falado tão severamente como o fez, Monsenhor,. mas a Rainha, essa não podia falar de outro modo.

O Príncipe Jorge deixou escapar um gemido surdo:

- E minha mulher. e meu filho?

- A jovem francesa deve ser considerada como vossa viúva, Monsenhor. Restituindo-vos a vossa liberdade, ela compensará a vossa mútua falta e reencontrará estima. A Rainha perdoar-lhe-á e promete-vos assegurar o futuro de vosso filho. Podereis hesitar um segundo em salvar a vossa pátria da ruína e ao mesmo tempo a vossa amante da vergonha, da prisão e talvez da morte?

- Despedaça-me o coração! - disse o desgraçado Príncipe, numa revolta de dor. - Despedaça-me o coração!

O Chanceler levantou-se:

- A vista do seu desgosto, Monsenhor, causa a sua Majestade uma viva impressão. Ela não a pode suportar e retira-se.

- Restituam-me o meu juramento - bradou o Príncipe, num impulso de desespero. - Deixem-me sair do palácio, deixem-me ver minha mulher! Quero falar-lhe, quero tornar a ver o meu filho!

- Vossa Alteza Real esquece que as nossas confidencias são um segredo de Estado que ninguém mais no mundo deve saber? Quanto a autorizar a vossa saída do palácio, Sua Majestade fá-lo-á assim que vos tenhais submetido às vontades que acabamos de exprimir.

O Príncipe, com os dedos nos olhos para os impedir de chorar, para esconder a sua última fraqueza de homem, só podia repetir em voz estrangulada como se mão de ferro lhe apertasse o pescoço:

- Como é cruel, milord! Ah! Minha mãe, como é cruel! Quero tornar a ver minha mulher e meu filho! Quebrara-me, despedaçam-me o coração!

Mas a Rainha tinha levantado a mão mole e branca. A esse sinal, os reposteiros negros caíram imediatamente sobre ela, velando a sua face de fantasma, o seu olhar vazio, o seu olhar que absorvia tudo sem nada reflectir.

O Chanceler disse então:

- Tal como receava, esta cena emocionou muito a Rainha. Não pode conservar-se aqui mais tempo. Oxalá a sua saúde não se ressinta. Lamento, Monsenhor, que não tenha sabido manter a sua palavra. Deixo-vos entregue às vossas meditações.

E, como o Príncipe se levantasse, lord Evendal permitiu-se sorrir, agora que não estava na presença da Rainha, acrescentando, enquanto estendia a Jorge uma carta lacrada a negro com as armas do Príncipe Harold.

- Sua Majestade encarregou-me de lhe entregar esta carta de vosso irmão. Estava no sobrescrito que lhe foi dirigido.

Assim que o Chanceler saiu, sacudindo a sua prostração de dor, Jorge quebrou o lacre ainda intacto e leu avidamente: A despedida de Harold era breve e de uma ironia suprema:

"As palavras que pronunciou na nossa última entrevista, meu irmão, feriram-me vivamente. No próprio momento em que as pronunciou, elas gravaram-se profundamente na minha memória. E, do fundo do túmulo, creio chegado o momento de lhas repetir:

Quando a felicidade dos súbditos e a nossa própria felicidade estão em oposição, um rei deve sacrificar-se, por isso mesmo é rei. A missão de guiar e proteger os homens é uma missão de apóstolo, uma missão providencial, uma missão tão alta e tão sagrada que nos devemos preparar para todas as renúncias.

Eis chegado o momento de sacrificar os seus deveres de homem aos deveres mais elevados de soberano. A sua missão é uma missão ingrata, embora seja uma missão sublime. Eu não me senti com forças de a empreender, por isso ela é agora a sua. Não lhe causará medo,

garantiu-me. E não duvido que a realize mais dignamente do que eu: os seus princípios o ajudarão.

Para o mais, siga os ensinamentos de nossa mãe. Ela lhe dirá que a sensibilidade é um estado intelectual e moral muito inferior à minha loucura, que um coração apaixonado é uma inesgotável fonte de fraqueza e que a piedade, nociva aos pequenos, se torna fatal aos grandes.

Que a grandeza lhe dê a indiferença glacial de um verdadeiro soberano. De outro modo, todas as suas lágrimas não lavariam jamais o sangue e a lama que cobrem os degraus do nosso trono e o túmulo dos nossos reis.

Sobre a minha campa quis, ao menos, que houvesse menos lama do que sangue e que o sangue que houvesse apenas fosse o meu.

Se todas as alegrias dos homens lhe são proibidas, restam-lhe as alegrias mais altas de um Rei!

Desejo-lhe, meu irmão, a felicidade que me desejava."

Jorge amarrotou a carta. O coração confrangeu-se-lhe. Assim, no próprio momento em que, com a alma cheia de sofrimento e desespero, esperava um terno adeus, palavras de compaixão... só lhe vinham sarcasmos cruéis!

Que trágica angústia ulcerava a alma do Príncipe Jorge Renegado da sua raça, desertor, traidor à realeza, iria ele, numa revolta suprema, demitir-se da sua grandeza, abdicar e precipitar a sua pátria no perigo de uma invasão, nos horrores de uma guerra? Confessar-se-ia cobardemente vencido antes de combater ou levantaria altivamente, mesmo sobre as ruínas da sua felicidade, o impiedoso desafio que lhe vinha de além-túmulo?

Jorge não sabia, não queria saber.

Chegou aos seus aposentos com a impressão de ser um sonâmbulo caminhando num pesadelo. Quando entrou, maquinalmente, os seus olhos caíram sobre o espelho que estava em frente da mesa. Não se reconheceu; teve medo do fantasma que se erguia diante de si. O Príncipe estava tão pálido como a própria Rainha, pálido de uma palidez de asfixia. E sob as pálpebras inchadas, pesadas de lágrimas contidas, ele tinha também agora o olhar dos reis - esse olhar vítreo, morno e vazio, esse olhar morto que têm os olhos que não devem mais, que não podem nunca mais verter lágrimas.

 

Lolette tinha entrado muito tarde em casa. A despeito das suas recomendações, o automóvel não estava na aldeia de Névis. A jovem perdera muito tempo a conseguir que um camponês quisesse levá-la a casa, de caleche. E depois, esse homem recusou-se a entrar no parque.

Solange, que esperava a sua senhora ao portão, correu para ela e anunciou-lhe que o oficial da polícia de Névis pedia para lhe falar em particular. Dizia chegar do castelo, encarregado de uma missão confidencial, e esperava havia muitas horas.

Lolette, quebrada de fadiga e no entanto agitada, febril, entrou no hall. O oficial da polícia inclinou-se, e, sem outro preliminar, começou num tom baixo e misterioso, próprio para impressionar a jovem senhora:

- Eu fui, minha senhora, oficialmente encarregado de lhe anunciar que a ameaça um grande perigo. Foi denunciada ao conselho secreto da Rainha por crime de lesa-majestade. Instauraram-lhe um processo; pode ser presa de um momento para o outro. Foi a instâncias do Príncipe Herdeiro, que se interessa muito pela sua sorte, que eu vim avisá-la. Aconselho-a a fugir.

- Tem uma carta, senhor, uma simples palavra assinada por meu marido?

- Não, minha senhora, mas...

- Então não partirei. Só a ele devo obediência. Estou decidida a continuar aqui, à espera de instruções do Príncipe, a despeito de todas as intrigas da corte. Essa prisão, esse julgamento, fornecer-me-ão enfim meio de me justificar ruidosamente. Tratam-me de uma forma de tal maneira indigna que acabaram por provocar a minha indignação. Ficarei.

O visitante mudou de tom. E continuou mais bruscamente - Creio, minha senhora, que se arrependerá. O conselho secreto está, hoje ainda, disposto a fechar os olhos sobre muitas culpas cometidas por si. Amanhã será menos indulgente. Não espere o escândalo de um debate público: o seu processo será instituído e julgado secretamente, e secretamente será condenada e punida. Em vez de cansar a paciência de Sua Majestade, aproveite o mais depressa possível as suas últimas indulgências. Facilita-se-lhe a sua passagem para França, se consentir em partir esta mesma noite. Estou encarregado de lhe oferecer inapreciáveis compensações. Assim que chegar a Paris, ser-lhe-ão fornecidos meios de viver ricamente, agradavelmente e de educar seu filho à sua vontade. Assim que tenha desistido disso que julga serem os seus direitos, assim que tenha tomado o compromisso de não voltar às Grandes Ilhas, receberá uma renda mensal suficiente. A Rainha não se oporá a que, de longe, o Príncipe a proteja. Não a abandonarão. Tenho, a menos que as suas pretensões sejam excessivas, tudo previsto para resolver esse caso do dinheiro. Considere nas extraordinárias vantagens desta transacção.

Violeta a custo conteve lágrimas de humilhação.

- Não tenho o direito de discutir tudo isso, senhor. Dirija-se a meu marido, Sua Alteza Real, o conde de Belfast. A ele é que compete responder-lhe. Conheço demasiadamente as perfidias da corte para receber outro conselho que não seja o dele. Uma palavra escrita pela sua mão me bastará mesmo... Mas quero vê-lo, falar-lhe.

E enquanto não tiver recebido da sua própria boca ordem para partir, ficarei!

- Reflita, minha senhora. Obrigá-la-ão a afastar-se. Insisto mais uma vez e apenas no seu interesse. Não faria melhor deixando honrosamente esta habitação e de forma a não permitir nenhum comentário malévolo do que esperando que a escorracem vergonhosamente, que a façam pôr fora pela polícia?

- Qualquer que seja o despotismo da Rainha - replicou Violeta, fremente - duvido que ela recorra a semelhantes processos contra a mulher e o filho de seu filho. De resto, eu estou em casa de meu marido, em minha casa!

A despeito do seu orgulho, a pobre Lolette, tinha a cruel impressão que o sonho encantador da sua mocidade acabara de repente. Mas a cena do castelo exasperara-a. Sentia-se ainda enérgica, vibrante. Agarrava-se desesperadamente ao seu amor; mesmo depois de uma tão longa e vã espera. Queria acreditar que o seu Jorge poderia escapar-se de Névis e vir ter com ela de imprevisto e que a vontade da mãe acabaria por ceder diante da vontade do filho. Resolvida à luta, replicou altivamente:

- Consciente dos meus deveres e da minha inocência, não cederei nem à intimidação, nem à ameaça, nem mesmo aos maus tratos Se querem

- expulsar-me à força da minha própria casa, esperarei essa expulsão. E quanto mais me fizerem sofrer, mais o Príncipe me vingará. O senhor terá que responder diante dele pela forma humilhante, irónica e brutal com que acaba de tratar-me.

- Sinceramente, minha senhora, a sua teimosia desola-me. É demência resistir àquela que me envia. Só tem uma forma de fazer esquecer as suas culpas: é submeter-se às ordens que vêm de tão alto. Por uma resignação imediata conseguiria ainda, não só a indulgência, mas a simpatia de toda a gente. A sua desgraça, pacientemente sofrida, aceite com generosidade, valia-lhe uma estima que não conheceu, nem mesmo na felicidade.

- Estou pronta a sofrer tudo.

- Por mais forte e corajosa que seja, minha senhora, usarão de meios que nem pode prever, meios que vencerão toda a sua coragem e quebrarão todas as suas forças.

A jovem reprimiu um estremecimento de horror.

- É a sua última palavra, minha senhora?

- Sim, a última.

Violeta levantou-se. O oficial da polícia cumprimentou-a, lançando-lhe à saída um último conselho:

- Tome cuidado, minha senhora, tome cuidado!

- Mal ele saiu do hall, a jovem deixou-se cair no divã.

A energia que a tinha mantido nesse dia terrível, abandonava-a subitamente. Uma depressão moral e física sucedeu bruscamente a esse acesso de revolta. Soluçou, com o rosto entre as almofadas.

Violeta estava ainda nesta atitude desesperada quando Solange, trazendo Lolet pela mão, entrou no hall sombrio. A jovem ergueu-se, enxugando as lágrimas para sorrir a seu filho.

A velha serva, inquieta, perturbada, não ousava confessar o que acabava de a alvoroçar. A obscuridade, de resto, não deixava ver a alteração do seu rosto.

- Dá-nos luz - disse Violeta, maquinalmente.

A velha encaminhou-se lentamente para a chaminé onde estava o comutador eléctrico. Mas voltou-o e tornou-o a voltar sem que a luz surgisse.

- Deve haver desarranjo! - notou, dissimulando a voz. - Se a senhora não vê inconveniente, até que a corrente se restabeleça, servimo-nos de um candeeiro.

Violeta não prestou a mínima atenção ao incidente. O candeeiro foi aceso e posto sobre a mesa. A jovem, vendo Lolet absorvido por um livro de estampas, contou em voz baixa a Solange, primeiro o que acontecera no parque de Névis e depois a visita do polícia.

- Querem convencer-me de que nunca mais serei feliz, que nunca mais verei o meu pobre Jorge Mas eu sei que ele voltará assim que estiver livre... Eis porque, a despeito de todas as ameaças, quero esperar pelo Jorge.

- Ah! minha senhora - gemeu Solange, também baixo, com medo de assustar Lolet que, sentado no tapete e singularmente taciturno, folheava o seu livro de estampas. -

Afastemo-nos. Será prudente. A Rainha, enquanto morarmos ao pé dela, não deixará seu filho sair do castelo. A nossa partida restituirá talvez a liberdade ao Príncipe.

- Não, não recuarei. Não serei a primeira a sair de casa, a casa da felicidade! Essa felicidade foi muito grande para que a paguemos agora com algumas humilhações e alguns sofrimentos.

- Ah! minha senhora - murmurou a velha, mais baixo ainda - é que não sabe tudo... é que se passam coisas...

- Que coisas?

Solange apontou para a criança.

- Tenho medo que o Lolet me ouça. Não quero afligir o pequeno. Ele anda já tão perturbado! A senhora não repara como esta criança anda pálida?

- Sim, pobre pequenino! Mas ele não ouve: responde à minha pergunta: que coisas espantosas se passam aqui? Adivinho o que não ousas contar-me! desconhecidos, de rosto curioso e de atitudes estranhas, rondam a casa? É isso que hesitas em dizer-me? Então eu não sei que nos espiam?

- A senhora não devia ter falado assim ao Comandante da Polícia de Névis - disse Solange, não podendo decidir-se ainda a responder directamente. - com essa gente manhosa, é preciso ser manhoso. A senhora teria feito melhor parecendo hesitar e pedindo tempo para reflectir. Tenho medo que a sua recusa clara, categórica, irrevogável, leve a Rainha e os ministros a qualquer má acção...

- Mas a que má acção?

- Não sei ao certo, mas, enquanto a senhora chorava no hall, esse polícia, em vez de sair da residência e voltar para Névis, entrou na cozinha e até nos quartos. Falou a todos os criados e deu-lhes dinheiro.

- com que fim?

- Para que eles saíssem de casa. E os criados, que pareciam estar de conivência, escutaram-no documente.

- Estás a sonhar?

- Não! Tenho a certeza. Ele também me falou a mim; ofereceu-me uma importante quantia para deixar a senhora esta mesma noite. Eu virei-lhe as costas, mas os outros criados partem... creio mesmo que já partiram!

- Estás louca?

- Mais valia: ao menos não reparava em quanto se passa de estranho e não teria tanto medo. Se o automóvel não estava em Névis, à hora marcada pela senhora, se o mecânico não voltou a aparecer, não acha que foi por ordem da polícia ou dos espiões do castelo?

Violeta tinha-se levantado.

- Porque não me disseste isso imediatamente?

- A senhora já tinha tantos desgostos! Quando a vi a chorar não quis inquietá-la mais... depois Lolet ouvia-nos. E, afinal, para que servia? Tudo quanto se podia dizer aos criados para os reter, disse-lhes eu... e creio que a senhora não seria melhor sucedida! Não sei, na verdade, o que esse polícia pôde insinuar-lhes, mas pareciam aterrorizados. Não me respondiam senão com evasivas: "A Rainha quer... é por ordem da Rainha! "

Violeta reflectia, com a imaginação ferida por este incidente, não menos imprevisto do que todos os outros.

- Querem, afastando essa gente, obrigar-nos a afastarmo-nos também: é a ideia fixa da Rainha. Mas não sairei de casa, não, não sairei. Jorge tem que voltar, ele me encontrará. Quem sabe se é porque ele deve voltar esta mesma noite, que a Rainha insiste assim em nos fazer partir?

- Queria poder partilhar a confiança da senhora, mas tenho o pressentimento que meditam qualquer coisa contra nós e, como a senhora diz que a desgraça há-de chegar do outro lado do lago... Os pobres cisnes parecem aflitos e, depois, a dama de negro...

- Ah! essa já eu a vi - disse Violeta, num riso nervoso - e até já lhe falei: não me meteu medo nenhum!

- Garanto-lhe, minha senhora, que seria prudente, antes da noite, chegarmos à aldeia e não ficarmos as duas sozinhas com Lolet, nesta casa abandonada, no meio deste imenso parque onde passam figuras sinistras.

- Não insistas, Solange, estou decidida. Quem sabe, de resto, se alguns dos criados, para quem eu sempre fui boa não ficaram, apesar das ordens do oficial? Vela por Lolet, eu vou ver.

Solange resmungou entre dentes, julgando inútil, já que Violeta estava resolvida, a aumentar os receios da sua ama com os seus próprios receios.

A jovem, com um archote na mão, pois a luz não voltara, visitou a casa de alto a baixo.

Todos os criados tinham partido à pressa, a maior parte deles deixando as suas roupas em cima das cadeiras e as malas meio feitas. Dir-se-ia que um sopro de pânico e de horror tinha passado sobre a casa e que as pessoas haviam fugido diante de qualquer formidável invasão.

Violeta ficou impressionada com esta deserção. Obstinava-se, no entanto, com a ideia de que Jorge teria talvez conhecimento da sua visita a Névis e que podia chegar de noite. Quando desceu, fechou as portas que estavam abertas, trancando as que davam para o parque.

Quando atravessou a sala de jantar para ir ter ao hall, constatou, com certa satisfação, que os criados, sem dúvida com remorsos de abandonarem assim tão bruscamente uma patroa tão bondosa, tinham ao menos posto a mesa e preparado uma refeição fria.

- Não morreremos de fome - segredou Violeta, ao ouvido de Solange à entrada do hall e querendo com esta afectada despreocupação, afogar a impressão dolorosa que sentira ao percorrer tantos aposentos silenciosos e vazios. - O criado de mesa teve a atenção de nos preparar a ceia. Ficaremos de vela aqui no hall, ao pé do lume. Mesmo, admitindo que aquele que espero não venha, a noite passará depressa. E tenho a certeza que, amanhã de manhã o meu pessoal, envergonhado da sua baixa ingratidão, virá retomar o serviço.

Solange abanou a cabeça mas guardou silêncio; pareceu-lhe cruel tirar a Lolette a sua última ilusão.

Lolet, pálido, triste e mudo, virava as folhas do seu livro, Distraidamente, sem olhar para as imagens, prestando atenção ao segredar da conversa de Solange.

Pouco depois a velha ama pegou no candeeiro e levou-o para a sala de jantar.

- Senta-te ao pé de Lolet - disse Violeta à velha - e partilha a nossa refeição. A mesa parecer-nos-á menos grande.

Lolette não tinha fome. Provou uns bolos secos e bebeu dois ou três golos de água. Em compensação exigiu que Lolet comesse um pouco e que Solange que, de costume, tinha bom apetite, se servisse duma fatia de carne fria e bebesse um copo de vinho de Espanha que enchia a garrafa de cristal.

Quando regressou do hall, Violeta, ao pé de uma mesinha na qual puseram o candeeiro, instalou-se numa poltrona diante do lume, sentou a criança nos joelhos, enquanto que, com o pretexto de levantar a mesa, Solange, por sua vez, com uma lanterna na mão, a despeito das afirmações da ama, ia assegurar-se de que as portas estavam bem fechadas.

A inspecção do vestíbulo e da grande porta envidraçada satisfê-la. Mas, na galeria, tendo ainda em vão dado volta a numerosos comutadores, constatou, num rasgão da tapeçaria, que os fios eléctricos tinham sido cortados.

- Cortados por quem?

O pensamento de Solange perdeu-se em conjecturas.

Descendo à cave em passo pesado e numa espécie de estranha fadiga, a velha serva viu a chama da sua lanterna vacilar e sentiu o ar húmido da noite soprar-lhe no rosto. Notou que a porta da cozinha que dava para o parque estava aberta. Teria ela realmente sido fechada antes da ceia, como o garantira Violeta? Ter-se-ia a jovem senhora esquecido de visitar esta parte da casa? Ou teriam aberto essa porta depois?

E aberta por quem?

Estas perguntas inquietantes precipitavam-se na cabeça de Solange, mas sentia uma singular lassidão de pensamento. Quis fechar à chave a porta da cozinha mas a chave havia desaparecido. Passando pela porta do celeiro viu-a baloiçando ao vento e, levantando a lanterna à altura do fecho, observou que ele tinha sido tirado. A velha serva teve um sobressalto. Apesar da sua crescente fadiga, começou a calçar as duas portas, mas em breve notou que as da cozinha também estavam abertas assim como as que davam para as caves!

A velha compreendeu que os fechos haviam sido tirados e que nunca poderia fechar as portas: a noite inteira não bastaria para esse trabalho. E Violeta já devia estar inquieta com a sua ausência.

- O melhor é aferrolharmo-nos num só aposento e esperar o dia - pensou Solange, num arrepio.

E subiu a custo, com as pernas lassas, o espírito perturbado. No entanto encontrou o sangue frio preciso para não dar parte a Violeta das suas descobertas. Antes de ir ter com a mãe e o filho ao pé do fogão, aferrolhou a porta do hall que dava para o vestíbulo e as dos dois salões forrados de seda japonesa. Eram três portas bastante resistentes. Um pouco mais tranquilizada, a velha aproximou-se da chaminé. Lolet adormecera nos joelhos da mãe. Solange pegou-lhe e deitou-o no divã, entre as duas. Depois, a convite de Lolette, sentou-se numa poltrona.

- Lolet está muito nervoso esta noite; - disse a jovem senhora, nervosa também - parece-me que está doente. Ainda agora, antes de fechar os olhos, disse-me coisas extraordinárias. E vês, Solange, como a dormir, continua triste, tão triste como Jorge, tão triste como Harold nos seus últimos beijos, triste como um verdadeiro filho de rei! A sua pele tão branca, está gelada, o seu sono é agitado, passa o braço diante da fronte como para afastar uma visão de pesadelo. Parece que um anjo mau, batendo as negras asas, arrefece a sua almazinha.

- A senhora aflige-se demais: o menino tem sempre o primeiro sono agitado, mas no resto da noite repousa calmamente.

- Não o deixaste em todo o dia?

- Não, minha senhora. Passeei-o uma boa hora pelo parque. Jogámos à bola. Houve um momento em que o perdi de vista, tinha entrado num talude para onde a bola caíra, mas apareceu assim que o chamei. Apenas, sem me explicar porquê, não quis brincar mais e não tornou a largar-me a mão.

A jovem senhora dirigiu-se até uma das grandes janelas envidraçadas que davam para o parque. com a testa apoiada ao vidro, procurava, com os seus olhos fatigados pelas lágrimas, penetrar as trevas já profundas, as brumas espessas que envolviam os bosques, os relvados e o lago. Quis reter as suas palavras, mas impressões muito vivas abafavam-na e a necessidade de se expandir agitava-lhe os lábios:

- Oh! maldita noite! Ouço tombarem grossas gotas de chuva através do nevoeiro! Parece que todo o parque tem medo, parece que se ouvem as ondas do lago estremecerem, as árvores tremerem, as últimas folhas esvoaçarem. Tudo toma um fantástico vulto de espanto! Quem poderá dizer que esta habitação tão risonha, de verão, ainda tão cheia de encanto nos primeiros dias do outono, se tornaria lúgubre antes do inverno? Tudo está silencioso e, no entanto, eu creio ouvir soprar ao longe, o vento da desgraça.

- A senhora está ainda mais supersticiosa do que eu.

- - Tens razão, Solange, não julgava que a noite fosse tão sombria e tão longa. Sim, devia ter saído de casa e ir refugiar-me na aldeia. Sentindo gente à nossa volta, a vigia seria menos dolorosa. Ah! se não fosse o medo de estar ausente no regresso do Jorge!... Mas esse regresso, eu espero-o, Solange e, nessa esperança, a minha alma é mais poderosa do que o medo. Depois, os cisnes ainda ali estão, essas aves simbólicas, esses guardas fiéis da nossa felicidade!

Solange, procurando também reconfortar-se com as superstições da sua ama, afirmou:

- Sim, eu vi-os indo de uma margem para a outra, mas ainda lá estão.

- E eu, através da noite e do nevoeiro, julgo vê-los - disse Violeta. - Sim, vejo-os deslizando silenciosamente sobre as águas.

- É impossível, minha senhora - replicou a velha, levantando-se e afastando a custo o seu torpor crescente. - Mesmo em pleno dia, dificilmente se podem ver.

- No entanto, distingo furtivas brancuras. São os cisnes... Vês, Solange

A velha serva apoiou o rosto ao vidro, olhando na noite.

- É verdade - disse, baixo, em voz alterada - vejo-os também... apenas não nadam em cima do lago... juntam-se, arrastam-se na relva num vôo pesado como se não pudessem bater as asas no nevoeiro tão denso... Aproximam-se cada vez mais... parecem fugir diante de uma coisa invisível que avança no parque. Ah! minha senhora, vê-os ali todos sete, batendo desesperadamente as asas na noite Parece que vão voar!

Violeta tinha pegado na mão da velha criada e, olhando sempre para o parque, numa espécie de fascinação, constatou em voz extinta:

- Voam silenciosamente... elevam-se sobre a casa... perdem-se no nevoeiro... voltam para a sua pátria distante e misteriosa. Ah! Solange, que é feito da minha felicidade? Os cisnes não voltam mais! Jorge também não voltará mais!

Violeta tremia e grossas lágrimas caíam dos seus belos olhos, não a deixando agora ver na imensidade negra onde, de resto, não surgia já nenhuma brancura.

As duas mulheres ficaram imóveis como se o vôo dessas sete aves de neve tivesse realmente redobrado o perigo, adensado as trevas, alargado o vácuo à sua volta.

Nesse momento, um queixume de Lolet chamou-as precipitadamente para dentro. A criança, de olhos brilhantes, estava sentada no divã. Balbuciava em voz cheia de ansiedade:

- Que estão a ver na noite? Nunca se deve olhar para a noite, vêem-se coisas que fazem medo! E depois, não me deixem! mesmo diante do lume tenho frio logo que aqui não estão! Senta-me no teu colo, mamã, quero aquecer!

Lolette sentou-se na poltrona, pegou na criança e embalou-a. Mas não voltou a adormecer. As mãos ardiam-lhe. Doente, continuava a falar numa extraordinária excitação.

- Tenta dormir, Lolet.

- Não posso, mãezinha, e não quero. Nos sonhos é como na noite; vêem-se coisas horríveis! Tenho medo de adormecer. Parece-me que a tua voz e os teus beijos afastarão os maus sonhos.

- Que pode entristecer-te assim e fazer-te medo, meu querido? - perguntou Lolette, inclinada para a criança.

- Não sei, mamã. Oh! se eu pudesse adivinhar, não estaria tão triste e não teria medo. E tu, mamã, também estás triste e tens medo!

- Não vês que sorrio?

- Vejo, tu, que sorris tão bem, como sorris mal esta noite! E os teus olhos! Se visses como os teus olhos têm medo! Bem percebi que os teus braços tremiam quando me embalavam; com a cara contra o teu coração, bem o ouço bater e sinto que está gelado! É a primeira vez que não sinto calor ao pé do teu coração, mãezinha.

Depois, a criança voltou-se para se assegurar que Solange estava ali. E perguntou então:

- Estamos só os três em casa? Ainda esta manhã estava cá tanta gente e agora estamos sozinhos... Porquê?

- Não tinha mais dinheiro, disse a todos os criados que se fossem embora.

- Oh! não foste tu que os mandaste - disse Lolet. - Foi o senhor vestido de preto que veio da parte da Rainha, o mesmo que falava com os outros dois, no talude.

- De que homens falas tu, Lolet?

- Dos dois que eu vi no parque quando passeava com Solange. A minha bola caiu e quando fui buscá-la vi esses três homens, que conversavam atrás de um grande pinheiro.

- E que diziam esses homens?

- Não ouvi bem. Eles falavam a língua do país e eu conheço-a mal. Apenas percebi que queriam levar uma criancinha.

Violeta estremeceu e empalideceu horrivelmente. A confissão de Lolet precisava, de repente, o perigo de que até ali só vagamente pressentira a ameaça. Ela perguntou, angustiada:

- Que criança?

- Não tenho a certeza, mamã, mas creio que... que sou eu! Não há outra criança cá em casa.

A despeito da agitação que estas perguntas causavam à criança, Violeta não podia deixar de interrogar:

- E para que te levavam?

- Os homens diziam que era ordem da Rainha.

- E que mais diziam?

- Não ouvi bem... falavam muito baixo... depois Solange chamou-me e os três, ao ouvirem-lhe a voz, embrenharam-se no bosque.

- E não te viram?

- Oh! não; eu sou pequenino e a ramada que me escondia era grossa! Só tive medo que eles me ouvissem bater o coração.

- Não tenhas medo. Partiremos amanhã - disse a jovem, voltando-se para dar parte também desta resolução a Solange que já, a despeito dos seus terrores, caíra numa sonolência. - Amanhã, assim que amanhecer, custe o que custar, sairemos desta casa!

Deteve-se ao pensar na partida, E encontrou um derivativo para os seus terrores.

Reflectiu longamente, combinando tudo. Chegariam a Bruhm pelo caminho de ferro, caso o motorista não aparecesse. Não possuía muito dinheiro, pois nem ela nem Jorge, ao separarem-se, previam uma tão longa ausência. Mas o que lhe restava era talvez suficiente para pagar a viagem até à cidade. Em Bruhm, pediria emprestado sobre as suas jóias. Oh! mas não sobre a borboleta com asas de pedrarias, porque isso e o anel de noivado eram preciosas recordações de amor a que Lolette muito queria. Usava dia e noite o anel no dedo e a borboleta, mesmo nessa noite de inquietação, estava espetada nos seus cabelos, como um talismã. Mas não possuía muitas outras jóias?

Vendê-las-ia. Isso havia de fornecer-lhe com que viver convenientemente durante anos. Não valia a pena obstinar-se: tudo valia mais do " que esta solidão deprimente em que Solange, a criança e ela se desesperavam. Na cidade, onde o movimento seria uma diversão, esperaria menos ansiosamente a libertação de Jorge. Esta solução acabaria por dar-se: era impossível admitir que o Príncipe Herdeiro pudesse continuar infinitamente sequestrado por sua mãe. Uma nova esperança acabava de a reconfortar: em Bruhm poderia consultar algum advogado, fazer valer os seus direitos, interessar o público pela sua causa.

Sim! sim, a acção, a luta, tudo em vez desta inércia horrível!

Por uma associação de ideias, Violeta pensou, não somente no certificado de casamento do Consulado e do Templo de que podia ter necessidade diante dos magistrados, mas também no valor das pérolas do Príncipe Harold e em todas as outras jóias que representavam agora os seus últimos recursos. Tudo isso se encontrava, no andar de cima, no seu quarto, no pequeno bufete Renascença que o Príncipe Jorge lhe oferecera. E enquanto embalava nos seus joelhos Lolet, silencioso mas rebelde ao sono, um receio lhe atravessou o espírito:

- Fugindo de casa, os criados não teriam roubado alguma coisa?

Na sua revista apressada nem tinha pensado em examinar os móveis do seu quarto. Veio-lhe um irresistível desejo de se assegurar que as suas jóias e papéis ainda estavam no esconderijo. Todas as suas esperanças renascidas se fundavam tão exclusivamente na posse desses valores que quis verificar imediatamente se ninguém tinha entrado nos seus aposentos.

Esta resolução reconfortou-a, a sua imaginação seguiu um curso menos sombrio, os seus outros medos ficaram momentaneamente acalmados.

- Olha, Solange, pega no Lolet um instante, acaba de o adormecer. Tudo está calmo e a noite vai acabar tranquilamente. Eu vou num instante ao meu quarto. Não estarei ausente mais de dez minutos. Põe lenha no fogão que está a apagar-se e olha bem pelo Lolet.

Muito surpreendida por não ter resposta, Violeta aproximou-se da velha e viu, pondo-lhe a criança nos joelhos, que ela dormia.

- Quê? Já dormes? - disse, um pouco tranquilizada pela aparente segurança da sua companheira de vigília.

Solange reabriu um pouco as pálpebras pesadas e pareceu não perceber bem o que lhe pediam. A velha desculpou-se:

- Não sei o que tenho... é fadiga... ou talvez o vinho de Espanha... tinha um gosto tão esquisito!...

Mas assim que Solange percebeu a intenção da sua jovem ama, o medo voltou-lhe e acordou-a.

- Não suba agora, minha senhora! - balbuciou a velha, alarmada por a ver abrir a porta do hall, quando ela sabia que todas as outras portas que davam para o parque estavam abertas.

E acrescentou, em voz serena, afim de não inquietar a criança cujos olhos brilhantes não desfilavam os seus.

- Daqui a umas horas será dia e então iremos todos juntos ao seu quarto. Creia, minha senhora, espere que amanheça, peço-lhe... espere!

- Sentindo um singular torpor, a pobre mulher tinha dificilmente reunido as suas ideias e mais ainda lhe custara a formulá-las. Lutava energicamente contra o sono, mas já Violeta acendia a luz e sem se voltar, corria os ferrolhos para poder sair.

- Já venho - disse ela - é um instante. O tempo de dar uma olhadela ao meu quarto e volto já.

A velha, vendo a ama desaparecer pela porta que nem sequer fechou, esteve a ponto de pôr a criança no divã e de correr atrás de Violeta, trazê-la para o hall e fechar vivamente a porta. Mas Lolet, empurrando o divã com o pé, passou-lhe os braços à volta do pescoço, retendo-a e, chegando-se muito a ela, suplicou:

- Não me deixes só, Solange! Se sobes com a mamã, leva-me, leva-me...

Solange fez um esforço para levantar a criança nos braços, mas o garoto pareceu-lhe extraordinariamente pesado. Teve um súbito desfalecimento e recaiu na poltrona, com Lolet agarrado a ela. E não teve mais forças para se levantar.

- Para que se foi a mamã embora? - perguntou o pequenito, desolado. - Ela não vai fazer como os outros, diz, Solange? Ela ao menos há-de voltar?

- Sim, daqui a um segundo - respondeu a velha, com a cabeça vazia, falando a custo, apesar do seu desejo de tranquilizar a criança. - Estamos aqui os dois sozinhos mas não tenhas medo, eu guardo-te.

- Eu não sou medroso, Solange - continuou Lolet, apertando-se mais contra a velha. - No entanto, tenho muito medo da Rainha. A Rainha é tão velha como o seu castelo, não é verdade?

- Oh! Não - disse ela, tentando resistir ao sono. - Muitas outras Rainhas, antes dela, habitaram o castelo.

- Se essas Rainhas viviam metidas na sombra como esta, como podem saber que não tem sido sempre a mesma? No entanto, é preciso que ela seja muito má e meta muito medo às pessoas para ser obrigada a viver invisível e escondida no fundo do seu palácio. Não pode ser uma mulher como as outras, pois toda a gente morria se vivesse sem luz. Só ela pode viver e respirar na noite.

- A Rainha não deve ser má, Lolet - disse Solange - mas é obrigada a fazer-se temer.

- Sim - continuou Lolet, cujos olhos dilatados se abriam à crescente alucinação e cuja febre parecia excitar a sua inteligência. - A Rainha sabe fazer com que a temam. É uma mulher velha e, no entanto, todos os homens lhe obedecem. Eu, obedecendo à mamã, mostro que a amo. Ninguém ama a Rainha e apesar disso todos lhe obedecem. Os criados contaram-me que lhe falavam muito baixo, de joelhos e ela não respondia nunca. Ninguém a pode olhar nem aproximar-se dela sem sentir um arrepio, sem sentir como que uma paralisia.

- Cala-te - disse Solange, assustada, pois sentia precisamente os mesmos frémitos dessa paralisia. - Não fales mais da Rainha.

- Achas que ela pode ouvir-me, de tão longe?

- Não, mas no entanto ela sabe tudo - disse a velha, contaminada, a despeito do seu quebranto, pelo medo da criança - ela sabe tudo o que os outros pensam e ninguém sabe o que ela pensa.

- Não compreendo...

- Nem procures compreender - disse a velha, exausta pelo esforço que tinha feito e deixando-se cair sobre as costas da poltrona. - Não é preciso compreender: isso traz desgraça. Nada se pode contra a Rainha, tudo quanto ela quer se faz sem se saber como.

- Oh! sim, eu sei como - explicou Lolet, cada vez mais excitado. - Ela tem espiões, que se escondem por toda a parte para escutarem, em todos os lados há olhos que vêem, ouvidos que escutam por ela... e todo o mal que faz, são eles que o fazem na sombra, secretamente. Quando se faz mal, Solange, não é muito pior ainda que esse mal seja feito às escondidas, silenciosamente, e de noite? Eu não quis dizer isto diante da mamã - acrescentou ele, com os olhos prodigiosamente brilhantes - mas tenho a certeza que os três homens que falavam atrás do pinheiro e que se ocultaram no bosque, não saíram do parque. Só esperam que tudo esteja escuro para voltarem. Nós não os podemos ver, mas tenho a certeza que eles vêem a gente... bem sinto que nos espreitam na noite, através das vidraças.

- Estás louco! - balbuciou a mulher, envolvida por esse terror e sentindo a cabeça pender, os pensamentos a fugirem-lhe assim como as palavras.

- Já te disse, Solange, tenho a certeza que os homens andam no parque - continuou a criança, agora de pé nos joelhos da velha serva, e como presa de uma visão de delírio. - Andam com cautela, andam sobre a erva e sobre a lama para não perturbarem o silêncio, mas eu bem os ouço...

- aproximam-se... giram à volta da casa... Procuram entrar e a porta está aberta. Avançam... Ah! Solange, chama, grita! Ouço os seus passos de lobos nos degraus da escada e nas lajes do vestíbulo.

O que acabava de aterrorizar a criança era a atitude inexplicável de Solange. Estava estendida na poltrona. As pálpebras ainda batiam, mas as pupilas pouco se moviam. Inertes e flácidos, os braços, que a vontade de segurar a criança, que acordara já em sobressaltos nervosos, abriram-se por si. Ela não podia mais lutar contra o sono letárgico, contra o sono horrível. As contracções da sua boca exprimiam todo o horror que sentia no que lhe restava de fugitiva lucidez. Parecia à desgraçada mulher que, pela porta entreaberta, todo o nevoeiro lhe entrava pelos olhos para a cegar, nos ouvidos para a ensurdecer, na boca para lhe abafar a voz. Nunca, no pior dos pesadelos, Solange tinha sonhado semelhante tortura de impotência.

E a criança, cheia de febre e de terror, continuava a balbuciar:

- Metes-me medo, Solange: porque não falas? Porque me olhas sem me ver, com esses olhos tão brancos? Ah! não durmas, Solange, suplico-te que não durmas Não te tenho senão a ti... que vai ser de mim se tu dormes? Agarra-me! Aperta-me nos teus braços, já te disse que os homens aproximam-se, sinto-os atrás da porta, vejo os seus rostos pálidos na escuridão...

E, sem mais ousar olhar para o lado da porta, entreaberta sobre a obscuridade do vestíbulo, sem se voltar ao som abafado dos passos que faziam gemer o sobrado, Lolet, apertando freneticamente os braços em volta do pescoço da velha Solange, ocultando a linda carinha nos cabelos da velha, continuava a balbuciar surdamente:

- Solange, defende-me, não durmas. Ata-me a ti. Chama, grita, defende-me. Se dormes, estou perdido Eles levam-me... Eles abafam-me... arrancam-me a ti... levam-me...

E sentindo mãos que o agarravam, puxando-o para trás para o amordaçar e lhe tapar os olhos, Lolet só pôde murmurar:

- Mamã! Socorro, mamã!

Violeta, no seu quarto, com a pequena chave na mão, tinha corrido para o bufete Renascença que abriu precipitadamente. Todas as gavetas estavam vazias e tinham roubado os papéis e as jóias, até o colar de pérolas oferecido pelo Príncipe Harold! Tudo roubado! E nenhum vestígio de arrombamento! A jovem senhora ficou aterrada diante do pequeno móvel aberto. Não sonharia? Ainda, nessa manhã, em casa, tudo parecia natural e, de repente, à noite, tudo se tornava misterioso, fantástico, extraordinário. Eram só dramas e catástrofes.

Diante das gavetas vazias, Violeta não sentia outra impressão senão a de uma desgraça inevitável, fatal, que espreitava, rodando em volta da casa. Sentia a alma pesada de desconfianças e terrores confusos. Sofria com a noite e com o nevoeiro, como se pesassem sobre ela numa pressão asfixiante.

A chuva cessara. O vento calara-se, não se ouvia nenhum vôo de ave nocturna, nem uma folha cair.

E, nesta imobilidade, neste silêncio sobrenatural do parque e da casa, estalou, de repente, imediatamente estrangulado, o grito desgarrador de Lolet:

- Mamã! Socorro, mamã!

Aflita, sem mesmo pensar em pegar no archote, Violeta correu para o patamar.

Nas escadas, ninguém! Desceu, saltando os degraus. Ninguém também no vestíbulo. Já longe, nos corredores que iam dar à cozinha, aos celeiros, ela julgou ouvir abafado cochichar, o tatear de fugitivos roçando as paredes e procurando as saídas. Mas a jovem só pensou em Lolet. Correu para o hall e parou, aterrorizada, à entrada da grande porta aberta. O lume só lançava um agonizante clarão. O candeeiro tinha-se apagado. Nenhuma cadeira estava caída, só as almofadas do divã, numa luta muda, haviam rolado para o chão. E Solange dormia. Solange dormia, hirta, deixando ver o branco dos olhos, com a boca escancarada, numa atitude de morte. No regaço da velha, entre os braços estendidos, inertes, incapazes de nada segurar, caindo moles ao longo da poltrona, já não estava o Lolet!

Lolet tinha desaparecido!

A infeliz Violeta soltou um grito de horror. Julgou enlouquecer e, no seu assombro, compreendeu:

- Envenenaram Solange para roubar o meu filho!

- Procurou acordar a velha, sacudindo-a em vão.

Lembrou-se então dos murmúrios, das apalpadelas pelos corredores e correu outra vez, procurando, numa angústia que a escuridão aumentava, por toda a casa abandonada. Atravessou as salas desertas, seguiu os longos corredores, desceu as escadas. E, por toda a parte, as suas mãos sentiam a humidade de nevoeiro que penetrava, suando pelas paredes. As portas que ela havia aberto continuavam inexoravelmente fechadas, outras que tinha aferrolhado estavam abertas sobre as trevas insondáveis. Passando diante das vidraças, julgou ver vultos negros fugirem nas sombras da avenida; julgou ver faces lívidas que se colavam por um segundo contra os vidros, apagando-se depois. Violeta precipitou-se para fora. E, estremecendo na noite, toda molhada, soluçava em silêncio:

- Dêem-me o Lolet, suplico-lhes, dêem-mo! Dou-lhes quanto possuo.

- Submeto-me, farei o que a Rainha quiser. Partirei, não tornarei a ver o Príncipe, nunca mais direi que fui sua mulher... mas dêem-me o meu pobre filhinho!

E num desespero de dor, não vendo nem ouvindo nada nesta solidão, soluçou cada vez com maior violência:

- Ah! Levarem-me o meu filho, é horrível... é cruel, é cobarde... Sim, é cobarde para uma Rainha!

Nenhuma voz lhe respondeu. Muito longe, no bosque, ouviu-se um pequeno ruído de folhas secas roçadas à passagem de alguém ou caindo com um sopro de vento.

Depois, mais nada.

E Lolette via sempre, procurava sempre, com loucura, na alucinação do pior desespero. Louca, com as mãos trémulas, tateou inconscientemente as folhas que restavam sobre os arbustos como para encontrar os cabelos de seu filho, ou então, de cabeça baixa, tentava ver na noite se não havia gotas de sangue na lama das alamedas...

 

A noite de horror tinha passado. Um dia longo e triste seguiu-a.

Agora, Violeta e Solange estavam sentadas no comboio, uma em frente da outra. O comboio rolava através das Grandes Ilhas, mais nuas, mais desoladas no dia que fugia.

Ainda fremente, a velha serva recordava o seu horrível despertar. De novo julgou abrir a custo os olhos num frémito, Já a sua carne gelada, reunir os pensamentos numa vertigem lentamente dissipada. Assim que a memória lhe voltou, ela quisera tornar a dormir ou morrer. Confusamente, lembrava-se que a criança se agarrara a ela. Parecia-lhe que duas sombras entraram sem barulho. Mudas, com gestos comedidos e decisivos, essas sombras apagaram o candeeiro antes de tirarem Lolet do colo de Solange. Esta quis defendê-lo mas sentia-se paralisada, queria gritar mas

sentia-se sem voz.

O sono aniquilou-a nessa terrível impressão de não ter nos joelhos o precioso fardo e sentir os braços vazios, E diante da jovem ama, pálida, com o rosto convulsionado de dor, a infeliz velha, assim que começou a viagem, não deixava de se lamentar a meia voz:

- Ah! minha senhora, foi o que deitaram no vinho de Espanha, que me fez dormir contra vontade! Assim que me comecei a sentir esquisita, quis agarrar bem no Lolet, queria atar os meus cabelos aos seus para que não pudessem arrancar-mo. Não me consolarei, nunca me perdoarei a mim mesma!

Violeta escutava estas censuras que Solange fazia a si própria, sem ter forças de acrescentar uma única. Também se censurava cruelmente de, não estando sob a influência de um narcótico, ter abandonado a criança! Os espiões só deviam esperar a sua saída do hall para roubarem Lolet. Que importavam as jóias, a certidão de casamento, quando se tratava da vida do filho? compreendia agora porque o Príncipe Harold, na sua suprema visita, lhe tinha recomendado que fizesse vigiar o filho, que nunca o deixasse.

A' evocação terrível da hora pungente, ela, que julgava já ter chorado todas as lágrimas, sentiu novas lágrimas ardentes rolarem pelas faces frias. Não as retinha. E esta emoção, melhor para ela do que o desespero horrível e silencioso de toda a tarde, tranquilizou um pouco Solange e deu-lhe coragem para interrogar, o que ainda não se tinha atrevido a fazer.

- O oficial da polícia, que voltou lá a casa de manhã, pouco depois de eu acordar, é que a decidiu a partir para Paris, minha senhora?

- Sim - disse Lolette, baixando a voz, pois não ignorava que as vigiavam e que muitos agentes de polícia iam no mesmo comboio. - Esse homem resolveu-me sem custo e só com uma frase: "Roubaram-lhe o seu filho para a obrigar a sair das Grandes Ilhas e embarcar para França; assim que chegar a Paris, dir-lhe-ão onde está e como o poderá encontrar."

- Foi tudo quanto lhe disse?

- Não; mas eu só ouvi isto. Para mim, era tudo. Não resisti mais, não me revoltei mais. Eles tinham arranjado o meio de me submeter a todas as exigências. Separada do meu pobre Lolet, estava vencida. O chefe da polícia disse que tinham resolvido, em caso de resistência, fecharem-me numa casa de alienados e fazerem desaparecer o meu filho. Não é o mais monstruoso atentado cometido contra a liberdade individual? Esse homem anunciou-me muitas outras coisas terríveis. Apesar das suas ameaças - ter-lhe-ia beijado de boa vontade as mãos porque, através de tudo quanto dizia, eu adivinhava que o meu filho ainda estava vivo e pressentia que Lolet me iria ser restituído. Por isso, nem discuti. O meu orgulho estava morto. E, para tornar a ver Lolet, para reaver o meu pobre filho, vivo, escrevi quanto quiseram, assinei sem ler os papéis que me puseram diante dos olhos. Feito isso, neste comboio que nos há-de levar a França, não sinto senão um receio: que esse homem me tenha mentido e que, uma vez em Paris, os polícias que me seguem se recusem a dizer-me onde está meu filho.

- Esperemos que ele tenha dito a verdade, minha senhora.

- Ah! Solange, se o não esperasse, estaria morta de desespero. Depois pedi, supliquei de joelhos que me deixassem ver o Príncipe, pela última vez. Mas, inflexíveis, recusaram...

Insensivelmente, Violeta tinha levantado a voz. Calou-se, de súbito. A sombra de um polícia acabava de passar no corredor, lançando o olhar para o compartimento, sem dúvida para se assegurar que as pessoas que vigiava, estavam no mesmo lugar.

Violeta não falou mais. Acabavam de atravessar Bruhm, imenso, sombrio e fumarento sob o céu tenebroso, sob a sua eterna chuva de neblina e de neve. À' noite, acendiam-se e apagavam-se subitamente os grandes olhos verdes e vermelhos dos sinais. Tudo se apagava nas trevas.

Em plena obscuridade, numa ventania de rajada, as duas mulheres tiveram de saltar do comboio para a ponte do paquete. E Violeta pôs o pé sobre a ponte com o auxílio brutal dos polícias que a apertavam, a empurravam como a uma ave cativa que receiam ver voar no último minuto, pela porta aberta da gaiola.

Ah! No porto sinistro, como lhe pareceu longa a largada do paquete! Como lhe pareceu doloroso o guinchar dos cabos e sinistro o ruído das correntes! Depois, a hélice bateu na água e, numa aspiração, o monstro tomou impulso sobre o mar. E, na imensidade desconhecida das vagas e da bruma, o ruído das sereias elevou-se, lamento formidável e lúgubre apelo de piedade ao temível infinito.

E este lamento, que despedaçou o coração de Violeta, serviu pelo menos para encobrir os seus soluços.

A jovem senhora, tremendo, quis no entanto ficar na ponte.

Solange embrulhara-a numa velha manta alugada, pois não lhes haviam dado tempo a trazer nada. Mas a bofetada das ondas, desfazendo-se em espuma, no temporal desfeito, era quase uma carícia em face das humilhações sofridas em Névis e do desespero que lhe apunhalava o coração.

Enquanto que os outros passageiros, embrulhados nas suas mantas de viagem, bebiam leite quente cortado com rhum ou comiam sandwichs, Lolette, quebrada, inerte, continuava a ouvir as sereias avisando sinistramente e as pesadas ondas quebrando-se contra os flancos do navio. As Grandes Ilhas esbatiam-se na bruma. Um a um, os pequenos clarões de terra morriam ao longe. Só restava um, talvez de algum farol. Tal como uma estrela de persistente esperança, brilhou muito tempo, cintilou, parecendo que viveria sempre. E, no entanto, morreu de repente, mais bruscamente do que os outros. Surgiu então, no ar, sob os olhos de Violeta, a angústia do céu e do mar confundidos na escuridão.

Despojada de tudo, humilhada, ultrajada, escorraçada como uma aventureira, Lolette perguntava se realmente tinha sido algum dia a mulher do Príncipe Jorge. Não saberia ele, ainda, nada do que se passava Tê-la-ia esquecido e abandonado? Que teria sido dele, do seu encantador apaixonado, do seu esposo muito querido? Choraria como ela, desesperar-se-ia também? Que horrível contraste entre a chegada e a partida! Ah! a chegada triunfal, entre seu filho e seu marido, na alegria íntima e na segurança de ser adorada! E esta fuga, sozinha, perdida, confundida com uma multidão desconhecida, tão longe do marido como do filho!

Por isso foi para Violeta um alívio esta escuridão onde, sem ser notada, podia esconder o rosto lívido nas mãos e soluçar à vontade porque os seus soluços confundiam-se com os gemidos lúgubres das sereias - chorar lágrimas que o vento levava com a chuva.

Do desembarque, da reinstalação num compartimento do comboio francês, dos primeiros clarões de aurora sem nuvens, Violeta já não podia lembrar-se. Quando Solange lhe disse: "Levante-se minha senhora, e venha!" ela tinha-se posto em pé e caminhara como uma verdadeira sonâmbula. Quando Solange lhe disse: "Sente-se, minha senhora e trate de repousar até chegarmos a Paris", ela tinha-se sentado e fechado documente os olhos.

Impossível dormir. Era uma sonolência cheia de pesadelos, uma letargia de fadiga e de dor.

Algumas horas depois, foi o verdadeiro despertar.

Solange tocou-lhe no braço e anunciou-lhe:

- Estaremos em Paris daqui a um quarto de hora, minha senhora e o chefe da polícia que nos acompanha deseja dar-lhe uma palavra, sem dúvida a respeito de Lolet.

Lolet!

Violeta, desta vez, abriu os grandes olhos e sentiu-se repentinamente lúcida. Solange recebeu ordem de se afastar. A jovem ouviu com atenção o polícia, que ficara só com ela no compartimento. Este homem falava gravemente, severamente: recomendou-lhe que nunca mais pensasse em ir a Névis, nem mesmo a Bruhm. Assim que tentasse pôr pé no solo das Grandes Ilhas, seria presa e, impiedosa, desta vez a Rainha não a deixaria voltar para França e ninguém no mundo voltaria a saber dela. Acrescentou, sob a forma de ameaça, mil outras recomendações. Violeta não duvidou um momento que representavam a verdade. Julgava a dama invisível e distante capaz de tudo. Mas que lhe importava? O que queria, era seu filho! E, dissimulando mal a sua impaciência, interrompeu o oficial da polícia para perguntar:

- Está tudo combinado: prometi-o. Mas diga-me o que jurou dizer-me e que unicamente me interessa: onde está o meu filho?

Então, solenemente, o polícia tirou uma carta da carteira e estendeu-a à jovem. Ela abriu-a e leu:

"O filho de M.lle Miroy foi confiado à sua amiga M.me Henriqueta Bonnaux."

Violeta soltou um grito de alegria. Em casa de Henriqueta! Tinham confiado Lolet a Henriqueta! Ia vê-lo Henriqueta ia restituir-lho!

Um leve colorido carminou as faces pálidas da jovem senhora. Duas lágrimas de alegria refrescaram os seus olhos; um fugitivo sorriso entreabriu-lhe os lábios. Despediu vivamente o polícia. Já não precisava dele: sabia o que desejava saber.

A pequena bagagem das duas mulheres reuniu-se facilmente e, reanimada pela esperança, Lolette estava agora no corredor, fremente a cada afrouxamento do comboio. A paisagem tornou-se-lhe familiar; reconhecia esse rio e esses castelos. Um pouco de alegria iluminou o seu belo rosto tão entristecido. Respirou melhor sob o céu sem nevoeiro, nesta linda manhã de inverno, fria mas já dourada pelo sol.

- Ah! este clima de França, como é claro e franco - notou.

E o seu gesto traía impaciências de criança: "Nunca mais chegamos!"

O comboio parou enfim. Violeta saltou no cais, empurrando todos, atirando-se para um trem e chamando a velha Solange que a seguia já sem fôlego:

- Vem, pobre Solange, vem... fazes-me morrer de impaciência!

Já tinha dado a direcção de Henriqueta Bonnaux ao cocheiro

recomendando-lhe que fosse o mais depressa possível. E. assim que a velha subiu, a rapariga fechou a porta.

Mas o carro era vagaroso e Violeta exclamou:

- Ah! Solange, esse cavalo não anda! Diz ao cocheiro para ir mais depressa! Pensa que vou tornar a ver Lolet, que vou beijar o meu pequeno Lolet! Oxalá não esteja doente! Oxalá também o polícia não me tenha mentido! Ah! se não fosse verdade, se não encontrasse o meu filhinho em casa de Henriqueta... endoidecia!

O carro parou. Violeta desceu e correu pela porta dentro. Reconhecia o portão de Henriqueta Bonnaux: atravessou o jardinzinho e ei-la à entrada do rés-do-chão. Não perdeu tempo a bater, entrou e parou no limiar com a respiração cortada pela emoção.

Lolet estava ali!...

Estava sentado diante do fogão, mais friorento do que uma avezinha que a tempestade tivesse arrancado ao seu ninho. Como empalidecera e emagrecera em dois dias, o pobrezinho! Que carinha sofredora! Que olhar inquieto e infinitamente triste!

Violeta e a criança contemplaram-se, tão contentes de se verem, que ficaram imóveis e mudos como se entre os dois se erguesse a visão da horrível noite. Depois, a jovem, rompendo em soluços, caiu bruscamente aos pés da criança, aqueceu-a com carícias e beijos, apertou-a contra ela, parecendo querer metê-la toda no coração.

Henriqueta Bonnaux acabava de chegar e Solange, ao mesmo tempo, entrava também na sala. Levantaram Lolette, sentaram-na num canapé e puseram-lhe Lolet nos joelhos. As duas velhas tentaram acalmar a mãe e o filho que ainda se abraçavam nervosamente.

Quando ambos já choravam mais docemente, quase em silêncio, Solange contou a M.me Bonnaux o rapto da criança e a sua viagem precipitada. E, assim que ela acabou, Henriqueta disse então como, na véspera, a criança lhe tinha batido à porta a tiritar de frio, com uma carta na mão. Depois interrompeu-se para se dirigir a Lolet:

- Conta à tua mamã, meu amiguinho, tu sabes melhor do que eu.

E Lolet, mais receoso, mais pálido com esta recordação, lembrou como o arrancaram dos braços de Solange. Uma grande mão rude tinha-lhe fechado os olhos, uma outra mão brutal tapara-lhe a boca. Não podia ver nem podia chamar e sentiu então que o levavam, na noite, como tinha sentido os passos deslizarem nos corredores e na terra húmida e mole do parque. Asfixiado pela mão brutal que lhe tapava a boca, Lolet tinha provavelmente perdido os sentidos.

- Creio que dormi e que dormi muito tempo. Quando acordei,

- encontrei-me embrulhado numa feia manta, num banco de comboio, entre dois homens que fumavam e jogavam às cartas, dois dos homens que conversavam atrás do pinheiro e que eu tinha visto quando procurava a minha bola.

- Perguntei-lhes logo: "Posso ver a minha mamãzinha?" Sem me responderem, tornaram-me a deitar e puseram-me as grossas mãos brutais na boca e nos olhos. Então, para que me deixassem respirar, não fiz mais perguntas nem falei mais. Um pouco depois deixaram de jogar e de fumar para comerem e beberem. Quiseram que eu engolisse qualquer coisa. Apertei os dentes, eles então apertaram-me o nariz e abriram-me a boca à força. O que me deitaram na garganta

- aqueceu-me e adormeci. Quando acordei pela segunda vez, descíamos de um automóvel, os dois e eu. Sentia a cabeça pesada, como Solange; não me lembrava de nada. Eles meteram-me uma carta na mão, empurraram-me para este jardim e disseram-me que batesse à porta da casa. Depois fecharam o portão e fugiram, deixando-me só. Não chorei, mamã, mas garanto-te que vontade não me faltou. Bati. Esta "senhora abriu. Depois de ter lido a carta, sentou-me ao pé do fogão e deu-me de comer. Mas eu estava muito triste para ter apetite, sentia o coração muito frio para que o lume o aquecesse.

- Ele foi dócil e ajuizado, o pobre pequenino! - disse Henriqueta. - Mas eu bem quis dar-lhe brinquedos, ele virava a cara a tudo. A sua tristeza nunca foi desmentida por um sorriso. Não queria mexer-se nem falar. Quando me dirigia a ele, mesmo meigamente, o som da minha voz fazia-o estremecer e, naturalmente lembrando-se de si, começava a chorar silenciosamente. Esteve sempre aí nessa pequena poltrona que uma vizinha me emprestou, imóvel e mudo, os olhos fixos, obcecado por um sonho e de ouvido à escuta como se esperasse ouvir uma voz mais familiar do que a minha, sem dúvida a sua voz, Lolette.

Solange e Bonnaux, vendo a mãe e o filho agora reunidos, diligenciavam dissipar a sua persistente tristeza. Violeta explicava:

- Tive muitos desgostos. Mesmo voltando a encontrar meu filho, não posso ter vontade de sorrir!

No entanto, ambos se acalmaram pouco a pouco e a jovem perguntou:

- De quem era a carta que Lolet tinha na mão?

- Era de lord Evendal - respondeu Henriqueta, numa atitude de embaraço. - Conheci-o durante a minha permanência em Bruhm, quando dei lições de francês aos dois Príncipes. O Grande Chanceler pedia-me nessa carta, para tomar conta da criança até à sua chegada. Anunciava-me o seu provável regresso. Mostrava-lhe de boa vontade a carta se ela não tivesse duas ou três frases confidenciais.

Violeta compreendeu que o Grande Chanceler devia falar dela em termos chocantes. Pouco lhe importava. No entanto, não pôde deixar de perguntar:

- Falava do Príncipe Jorge, nessa carta?

- Nunca.

- Então, não tenho pena de não a ler. A Rainha e a Princesa destruíram a minha felicidade, entristeceram todo o resto da minha vida... Por isso só tenho um desejo: não tornar a ouvir falar delas!

Assim que Violeta se sentiu melhor, teve apenas uma ideia: estar só com o filho. Por insistentes que fossem as ofertas de hospitalidade de Henriqueta, ela recusou-as. Receava as perguntas da boa velha e mais ainda os seus conselhos retrospectivos e esses: "Eu bem avisei! Devia ter-me acreditado! eu bem previa o que

se havia de passar!"

Lolette bem sabia que, mesmo através das frases de uma sincera compaixão, Henriqueta deixaria transparecer uma pequenina satisfação de ter sido tão perspicaz. Ora a rapariga estava ainda muito magoada para suportar isso pacientemente.

Não queria nem censuras nem piedade.

Despediu-se de Henriqueta depois de lhe ter agradecido e, pegando na mão de Lolet, voltou para o trem que esperava à porta.

Horas depois, Violeta, Solange e a criança, instalaram-se em Neuilly num modesto aposento de pensão de família.

Nos primeiros dias, a jovem sentiu-se profundamente desencorajada. A sua única consolação era o filho.

- De futuro, será ele toda a minha vida - pensava. - Ah! como preciso cuidar do meu adorado menino, amimá-lo e amá-lo para lhe restituir, pelo menos, a sua bela frescura, a sua alegria e a despreocupação de antigamente.

Consagrava todas as suas horas à criança e nisso encontrava uma distracção, um alívio à sua dor. Mas, à medida que Lolet recuperava o seu parecer fresco e o seu riso soava mais francamente, a lembrança de Jorge, a saudade da felicidade perdida, retomavam todo o seu império na alma de Violeta.

- Quem me havia de dizer que tantos beijos se apagariam com tantas lágrimas! - suspirava ela.

E abismava-se nos seus sonhos sem fim.

A criança, mais ousada agora que esquecera os seus sofrimentos e readquirira a sua bela saúde, atrevia-se a perturbar os sonhos da mãe, perguntando:

- Mamã, o papá nunca mais virá ter com a gente?

- Não me parece, Lolet.

- Porquê? Tu já não gostas do papá?

- Ainda o amo.

- Então é ele que já não gosta?

- Oh! creio. creio que ainda me quer!

- Então, mãezinha, se ainda se amam porque estás tão triste e choras tanta vez? Agora os teus lindos olhos estão sempre cheios de lágrimas! Garantes-me que não está ninguém morto entre aqueles que amamos?

- Ninguém, meu filhinho.

E, tranquilizada a criança, Lolette dizia para si:

- A felicidade é que está morta!

Tinha poucas diversões nesta vida de reclusa. No entanto, Lolette foi obrigada a arranjar dinheiro. Embora lhe custasse, tinha que se desfazer do anel de noivado e da borboleta de pedrarias. com nevoeiro, chuva e venda vais, ela tinha atravessado o mar com a brilhante borboleta metida nos cabelos, escondida debaixo do chapéu, para que os homens da polícia não lhe tirassem o resto da sua fortuna, o seu supremo recurso, a sua última recordação de amor.

E Violeta entrou no joalheiro da rua Rivoli.

- Antes este que outro qualquer! - pensou. - E depois, talvez não me reconheça. Talvez nem já seja o mesmo.

E era o mesmo joalheiro e reconheceu, não Violeta, mas a borboleta.

A jovem recordava-se da sua humilhação passada, das insinuações do joalheiro. Que humilhação maior a de hoje!

O olhar do comprador parecia perguntar:

- Já chegaram os dias maus?

E o olhar da vendedora confessava:

- Já chegaram.

O joalheiro fez saltar seis pedras preciosas da cravação de ouro.

O preço de uma esmeralda, de dois rubis e três safiras, chegou para pagar a pensão das duas mulheres e da criança e roupas para os três, que haviam chegado a Paris completamente desprevenidos.

Fora preciso voltar à rua Rivoli e fazer descravar ainda mais quatro pedras, das mais belas. E agora a jóia, como uma verdadeira borboleta que deixasse as asas brilhantes na mão do seu carrasco, tinha perdido todo o brilho, parecia tão pálida como o amor de Lolette!

Um dia, emoção mais pungente! Percorrendo o jornal, Violeta leu estas linhas:

"O casamento do Príncipe Herdeiro das Grandes Ilhas e da Princesa Augusta, filha mais velha do Imperador da Alemanha, realizou-se no castelo de Névis, sem o mínimo aparato e na mais estrita intimidade, por efeito da morte recente do Príncipe Harold, que enlutou a família real."

O coração de Violeta apertou-se; fechou os olhos de dor. Assim, sem o mínimo obstáculo, o perjúrio e o sacrilégio estavam realizados!

Lolette chorou toda a manhã.

Depois, de tarde, num impulso de cólera e de indignação, foi a casa do velho advogado do seu pai e, contando-lhe o seu romance de amor, pediu-lhe conselho.

Não haveria realmente nada a fazer?

Dois dias depois, após um exame minucioso do caso, depois de um inquérito no Templo e no Consulado, o velho conselheiro da família Miroy respondeu a Lolette:

- Estudei conscienciosamente o seu caso, querida senhora, e estou absolutamente convencido que, mesmo em França, nada conseguiria judicialmente. Uma certa condessa Hercolani, tentou, em vão, processo sobre processo, porque tinha um filho do rei Humberto. Os filhos do arquiduque Ernesto da Áustria também inutilmente apelaram para a justiça de Viena. E eles tinham provas, ao passo que a senhora não tem nenhuma. Ou seja porque no próprio dia do seu casamento substituíssem por um registo especial o verdadeiro registo, ou porque a acta fosse lavrada numa folha solta, é impossível encontrar-lhe sequer os vestígios. O cônsul e o pastor que os casaram, saíram de Paris para destinos desconhecidos. Quanto às quatro testemunhas cujos nomes ignora, tenha a certeza que o primeiro cuidado do Conselho Secreto da Rainha foi, pela persuasão ou pela força, obter delas um desmentido. Não tem nenhuma carta do Príncipe Harold ou do Príncipe Jorge, que fale no assunto?

- Oh! Jorge deve ter-me escrito, mas a Rainha interceptou as suas cartas. Ele ainda é menos livre do que eu, o meu pobre Príncipe! Aterrorizaram-me e tenho a certeza que exercem sobre ele uma pressão bem mais terrível ainda.

- Não imagine - acrescentou o advogado, prático e cortando as divagações sentimentais - que lhe tenham roubado o duplicado da sua certidão de casamento para lho restituírem mais tarde, não: destruíram-no. Para mais, no desespero de se ver separada de seu filho, assinou, segundo me disse.

- Sim, e sem mesmo ler, tudo que eles quiseram!

- Já vê que, mesmo sem esperanças de êxito, não há maneira de instaurar um processo. Digo-lho como amigo.

Violeta agradeceu e retirou-se.

A despeito da sua ausência, a despeito do seu silêncio, apesar do seu novo casamento, apesar de tudo, Violeta desculpava o Príncipe Jorge.

- Ele ama-me! - repetia. - Tenho a certeza que me ama e que sofre tanto como eu, talvez mais. porque eu tenho o nosso filho, tenho Lolet! E Jorge já não tem mulher nem filho. Em Névis, para o levarem a esta odiosa união, devem tê-lo enchido de mentiras e ameaças, recorrido aos piores subterfúgios! E com que direito condenaria eu Jorge, eu, que fui a primeira, no desespero do medo, a desistir de todos os meus direitos, a renegar meu marido para salvar meu filho?

Foram reflexões desta espécie que a visita de Felícia Mouyard veio perturbar. Ela soubera do regresso de Violeta por Henriqueta Bonnaux. Correu, imaginando uma Violeta miserável e sentia-se disposta a qualquer compaixão. Mas, diante de Solange, vestida como de costume e abrindo-lhe a porta que dava para uma antecâmara clara e convenientemente mobilada, em face de uma Violeta triste e pálida, mas elegante e altivamente discreta, a rapariga sentiu renascer o seu antigo ciúme.

Depois de uma breve conversa em que Lolette não teve queixas nem recriminações, Mouyard impacientou-se, e fez ela então alusão às desgraças da sua amiga.

E, comicamente pedante, concluiu:

- Em suma, o teu romance de amor não é único: encontram-se muitos exemplares na História, quando não fosse outro, o de Agnès de Méranie! "

Nos lábios de Violeta brilhou, embora pálido, o antigo sorriso.

- Oferece-me consolações um pouco retrospectivas! - disse ela. - Mas eis aqui uma bem moderna.

Efectivamente, nesse momento, pronto para dar o seu passeio pelo bosque com Solange, Lolet apareceu, fresco e lindo como um botão de rosa. Violeta apresentou-o.

- É galante! - confessou Mouyard. - É um belo rapazinho; parece-se menos contigo do que com o pai... Tem os olhos azuis do Senhor Jorge. Mas, sendo tão pequenino, como já tem as pálpebras pesadas!

Esta crítica não magoou Violeta. Mesmo depois de tantas decepções, não lhe desagradava que Lolet se parecesse com o Príncipe das Grandes Ilhas, com Jorge, ou mesmo com Harold!

A conversa esmorecia, quando Solange entrou como um vendaval.

- Ah! Minha senhora, uma grande notícia... - Depois, vendo a Mouyard, a velha calou-se de repente.

- Vejo que as incomodo - disse a rapariga, vexada. - Vou-me embora.

Violeta não a reteve e Solange acompanhou-a à porta.

- Achou a senhora muito triste, não é verdade, menina?

- Sim, um pouco - respondeu Felícia, rancorosa por não ter satisfeito a sua curiosidade. - Que demónio, é um bocado duro, quando se julgou tão perto de um trono cair do último degrau!

A velha não levantou a maldosa alusão. Fechada a porta, - correu ao encontro de Violeta e disse:

- Minha senhora: a grande novidade é que o Príncipe Jorge chega a Paris na próxima semana e que passará aqui vinte e quatro horas!

Lolette sobressaltou-se. Depois, dominando-se, replicou:

- Vem com certeza tratar de assuntos diplomáticos. Que nos importa? Agora não nos conhecemos!...

- Quem sabe? - disse Solange. - Quem sabe se os assuntos diplomáticos não são apenas um pretexto?

 

O Príncipe Jorge tinha chegado a Paris, no sábado, bastante tarde.

Violeta, na calma pensão de família, não teve qualquer informação nem procurou tê-la; não fez a menor alusão a essa viagem e não quis mudar os seus hábitos.

No dia seguinte, como todos os domingos de manhã, por causa da saúde de Lolet, ela ia ao bosque, acompanhada pela criança e por Solange.

Estava frio, mas havia sol. Caminhavam em passo vivo.

Embora a jovem se esforçasse por parecer descuidosa, a velha bem a via pálida, com os olhos muitas vezes molhados de lágrimas, sempre que a sua ama pensava no Príncipe Jorge. Efectivamente, se bem que Violeta tivesse prometido a si própria afastar do seu espírito quanto pudesse avivar as suas recordações, não pôde deixar de encaminhar o passeio para os lados do lago. As avenidas ainda estavam desertas a esta hora tão matinal. Instintivamente, nessa espécie de sugestão do passado, a jovem meteu-se pela alameda que contornava as sinuosidades do rio e, imediatamente, evocou o encontro com Jorge.

Como era ainda feliz, alegre e risonho, esse tempo! Ah! o momento encantador, o lindo dueto de esperanças e de amor! Como tudo isso lhe parecia longe, agora! Seria bem a mesma Violeta que ali passeava agora, vestida de luto? Uma Violeta ainda jovem e bela, mas tão triste!

- Ah! mamã - disse Lolet, que dava a mão à melancólica passeante - vem ver que lindo, este parque e este lago; faz-me lembrar.

A criança deteve-se, consciente que a lembrança da sua casa abandonada, entristeceria ainda mais a mãe. E, abandonando a primeira ideia, continuou:

- Mas aqui é muito mais alegre! Não há fumo e pode ver-se o sol. Lá em baixo era muito perto dessa antiga fortaleza que lançava nevoeiro sobre todo o país. Não respirava tão livremente como em França.

Lolette não respondeu; Lolet foi ter com Solange que caminhava diante deles. A jovem senhora atrasou-se. E, diante dessas águas, sob o belo céu de inverno, o seu olhar pensativo parecia ainda procurar muito longe, além do lago, além dos bosques, das colinas, e lá em baixo, no além-mar que ela conhecia agora, essas Grandes Ilhas prestigiosas e distantes que se envolviam ainda na sua memória, num mistério de bruma...

De repente, a passeante estremeceu. Perto dela, entre o arvoredo, um ruído fez-lhe voltar a cabeça. Por rapidamente que os indiscretos se retirassem, ela teve tempo de ver quatro cocos castanhos que se escondiam atrás das árvores. À' evocação do encontro de outro tempo, Violeta sentiu o coração bater-lhe desesperadamente quando, diante dela, apareceu o Príncipe Jorge, um Príncipe Jorge sempre elegante, esbelto e fino, mas quanto mais pálido e mudado!

Lolet, que também tinha visto o pai, veio a correr.

- Papá! Mamã, é o papá!

Com o seu olhar surpreendido e inquieto, a criança parecia perguntar a Violeta se podia aproximar-se do pai e, entretanto, a sua alegria estalava nestes gritos repetidos: "Papá! é o papá!"

Num instintivo movimento, no momento em que o Príncipe Jorge se encontrava ao pé dela, Lolette pôs a mão enluvada na boca da criança e disse-lhe com dolorosa expressão:

- Cala-te, Lolet, já não tens papá! Não pronuncies essa palavra... bem sabes que ela traz desgraça.

O rosto do Príncipe alterou-se, o seu olhar que brilhava de felicidade, apagou-se subitamente. E Lolet, agarrando-se às saias da mãe, exclamou:

- Sim, é verdade! Nós já não temos papá. Lá não quis reconhecer-me... é agora a minha vez de não o reconhecer aqui.

E quando o Príncipe estendeu a mão para atrair a si a criança, ela recuou, lançando-se nos braços de Solange.

- E a Violeta - disse o Príncipe, num desesperado apelo - também se afasta de mim? Também me repele?

Lolette fez sinal a Solange para passar à frente com a criança. Ela não tinha força para falar, nem mesmo a Jorge. Ele disse:

- Ah! Violeta, que triste acolhimento! No entanto, se soubesse como sou feliz, que alegria imensa é para mim tornar a vê-la! Há muitos dias que só vivo para esta hora. Soube a sua morada por Henriqueta e fui ao seu hotel. Quando me disseram que tinha vindo ao Bosque, só pensei em vir logo aqui, no impulso de um pressentimento igual ao seu! Ah! mas como tinha medo de não a encontrar! Não está também contente por me ver? Um bocadinho contente, Lolette, diga, ao menos um bocadinho!

Ainda muito perturbada com o encontro, Violeta não quis responder à pergunta. E disse em voz trémula:

- Lolet esteve muito doente... depois da nossa desgraça! Roubaram-mo para me obrigar a sair das Grandes Ilhas. Só o encontrei aqui, pálido, gelado, desfigurado, Esteve ainda triste durante muito tempo! Mesmo ao meu colo, mesmo com a sua carinha contra o meu coração de mãe, o pobrezinho esteve durante muitos dias friorento, receoso e sofredor. Só à força de carícias e de beijos é que conseguimos aquecer-lhe o coração!

- E a Lolette?

Ela contou o que se passara depois da sua separação, em poucas palavras, para não o entristecer. Depois, concluiu:

- Vi-me então, de repente, sem o ter merecido, sofrendo indignos tratamentos, escorraçada de minha casa e privada do meu filho. E eis-me agora como que exilada, humilhada, desonrada, perdida!

- Ah! Lolette, no fundo da minha solidão, num frenesi de raiva e de dor impotente, não deixei de chorar por ambos.

- Se chorou - disse Violeta - é que estávamos já mortos no seu coração. Só se chora pelos mortos.

A esta censura injusta, o Príncipe gemeu, mas não se justificou, por fácil que lhe fosse. Repugnava-lhe acusar sua mãe. Violeta continuou, incapaz agora de dominar a emoção:

- O mais cruel, foi deixar-me sem notícias.

- Escrevi todos os dias, Lolette, mas confiava as minhas cartas a um homem que me traiu baixamente. Só soube isto há poucos dias. Ah! tudo quanto soube, não mo pergunte... não posso, não quero dizer-lho!

- Quiseram castigar-nos pelo excesso da nossa felicidade. No entanto, embora me quisesse enquanto fui sua mulher, essa felicidade que me encantava não fazia sofrer ninguém. mesmo, mais tarde, a recordação dessa felicidade só a mim fez sofrer.

Calou-se por momentos. Depois continuou, numa censura mais discreta:

- Estive muito tempo sem poder ouvir pronunciar o seu nome, tanto sofria ao sabê-lo usado agora por outra pessoa.

- Oh! minha querida Lolette, se soubesse como esse casamento foi triste, se pudesse ver-me ao pé da Princesa, não teria ciúmes e seria de mim que teria piedade.

- Não sou ciumenta, Jorge, pelo menos não sinto cólera contra si. Tenho a certeza que os remorsos dessa Princesa me vingarão em breve. A consciência que ela terá de não ser amada por si, talvez já me tenha vingado. Mas, ainda assim, nós choramos muito: Lolet, Solange e eu!

A jovem senhora não teve coragem de acrescentar mais nenhuma censura. Tinha falado durante muito tempo com ternura, ao Príncipe, para poder falar-lhe agora duramente.

- Peço-lhe perdão de não lhe falar senão dos meus sofrimentos. - disse ela, olhando com mais atenção o belo rosto que tanto tinha amado.

E notava, enternecida, como o Príncipe estava envelhecido.

- Vejo que também sofreu! - continuou docemente. Ao vê-lo tão pálido, com os cabelos embranquecidos, as pálpebras e os cantos dos olhos como que arranhados pela dor, ao contemplá-lo inclinado, curvado ao peso de pensamentos muito graves para a juventude, Violeta sentia renascer o seu amor, numa imensa piedade.

E com todas as rugas acentuadas numa tensão de energia, os lábios altivamente cerrados para abafar o grito de revolta da sua alma ulcerada, o Príncipe respondeu num tom tão profundo, que Violeta estremeceu:

- Harold, nas piores cenas de desespero, nunca sentiu a intolerável tortura que eu sofri longe de si, pois meu irmão não amava como eu a amava, Lolette, como eu a amo! Quando a sua morte matou a minha felicidade, quando a sua morte me arrancou minha mulher e meu filho, só, sim, sozinho em Névis, sofri tudo quanto um homem pode sofrer, tudo que pode sofrer um Rei! Ainda sofro atrozmente... mas eu, não faz mal, porque fui a causa involuntária da sua desgraça. Falemos de si, minha Lolette muito amada.

Tinha-lhe pegado na mão e, não ousando mais, beijava-lha apaixonadamente. Esta discrição, esta súbita timidez da parte de um tão grande Príncipe, da parte do esposo apaixonado que lhe havia prodigalizado todos os beijos da sua mocidade, pareceu a Violeta tão comovedor, que as lágrimas lhe vieram aos olhos no instante em que Jorge se voltara para esconder as suas próprias.

- Ah! eu bem sabia - disse a jovem senhora, sentindo os rancores desaparecerem no seu amor mais forte do que a dor - eu bem sabia que nós nos tínhamos amado muito um ao outro, para que pudéssemos esquecer! Ah! Jorge, lembra-se do yacht, das manhãs azuis, das tardes cor-de-rosa, das noites estreladas?

- São essas recordações, meu querido amor, que me dão forças para viver ainda!

Ela tremia imperceptivelmente com a doce recordação desses belos dias.

- E os cisnes - suspirou - os belos cisnes alvos de brancura, entre o azul do lago e o imenso azul dos céus infinitos! Parece-me agora, que todo esse encantamento de amor e de felicidade, teve apenas a duração de um sonho!

Dizendo estas palavras, Violeta transfigurou-se. O seu sorriso acordava, o lindo narizito parecia aspirar no ar um perfume de rosas e o seu olhar enlouquecia de volúpia sob as pálpebras semi-cerradas. A ilusão do seu coração dava uma eterna mocidade à sua beleza.

- Havemos de voltar para a nossa casa, minha Lolette adorada - murmurou Jorge, em voz grave e apaixonada. - Voltaremos os três...

A estas palavras, Violeta empalideceu e toda a alegria se apagou no seu radioso rosto.

- Oh! não - disse, num frémito. - Não quero mais lá voltar. Aquela casa parecer-me-ia sempre muito sombria, muito cheia de angústia. No sopro do vento, no lamento da água, no barulho das folhas, caindo, julgaria sempre ouvir o desesperado apelo de Lolet. Ah! Jorge, foi nessa noite que a esperança morreu no fundo do meu coração!

- Volta a abrir-me o teu coração ferido, minha Lolette adorada e o meu amor cicatrizará todas as feridas e os meus beijos ressuscitarão as esperanças que julgas mortas.

- Então, fica comigo, fica com Lolet. Não voltes mais para as Grandes Ilhas.

- Não pode ser. Seria desertar e eu não desertarei, não quero subtrair-me ao meu destino real nem pela morte, nem pelo amor. Sou o último da minha raça; lutarei com toda a minha força, até ao meu último alento, pela honra dessa raça; lutarei contra a derrocada dos tronos e a derrocada dos Reis!

Uma espécie de entusiasmo apagava a alteração do seu rosto, dando-lhe uma expressão de energia e de grandeza.

- Não quero que dez séculos de glória, mantida pelos meus antepassados, caiam com o desfalecimento de um neto degenerado. Como eles, quero morrer como verdadeiro soberano, no meu posto perigoso de sentinela avançada que se oferece aos golpes inimigos para salvação dos outros. Não! Não - repetia. - Não faltarei ao meu dever de rei: Não desertarei!

Violeta tinha recuperado todo o seu sangue frio. Replicou ao Príncipe brandamente. Depois de uma certa hesitação, ela confessou, por seu turno, a suprema revolta do seu orgulho:

- Eu não quero uma felicidade de passagem! Tendo tido durante tanto tempo a tua ternura, não quero agora um amor partilhado. Fui tua esposa, não quero tornar-me tua amante! Esses não seriam mais os teus lábios e os teus beijos. encontraria os lábios frios e os frios beijos da outra! Bem sinto, bem compreendo que não podemos mais viver, que não podemos mais amarmo-nos como vivíamos e como nos amávamos. E assim haveria muitos remorsos no nosso amor, muitas lágrimas nos nossos beijos!

E, como sufocado de dor, Jorge não pôde responder logo, ela continuou:

- Se o nosso passado foi o mesmo, Jorge, o nosso futuro será diferente. Compreendo hoje que nunca mais serás senhor da tua vida. O teu destino de rei, é muito cheio de tradições e de mistérios para se unir a um destino modesto e simples como o meu. Guarda para sempre o segredo daquilo que te obrigou a quebrar a nossa ventura. E eu não falarei mais das violências que me fizeram renunciar ao teu amor. Para que remexer nesse fel, se é é... passado!

O Príncipe quis falar. Ela interrompeu-o:

- Jorge, queria pedir-te uma derradeira graça.

- Fala, Lolette. Seria muito feliz se pudesse causar-te prazer!

- Desejo que tom, o brigadeiro da polícia, tão serviçal no dia da revista e que me facilitou o acesso ao castelo de Névis, não seja incomodado por minha causa.

- Ninguém o incomodou. Tomei as minhas precauções e ele acaba de ser nomeado oficial em Bruhm. Quero por minha vez, Violeta, pedir também uma graça. Consente que assegure a tua sorte e a de...

- Não quero nada da tua fortuna, Jorge, porque já não sou tua mulher, já não te sou coisa nenhuma.

- Ninguém no mundo fará com que Lolet não seja meu filho e o teu - disse o Príncipe, num tom triste, mas firme. - E falo de uma fortuna que não recusarás, que não tens o direito de recusar, porque não vem de mim! O Príncipe Harold, consciente do mal horrível que nos faria a sua morte e pensando, sem dúvida, no futuro do nosso filho, legou-te uma grande parte da sua fortuna. Meu irmão tomou tais precauções, que o Conselho da Rainha não pôde fazer oposição ao legado. Não podes, Violeta, recusar o desejo de um morto. Aceitar é talvez conceder o perdão de que a sua alma precisa para o repouso eterno.

Violeta ficou silenciosa.

O Príncipe acrescentou, só falando em Lolet para não ferir a delicadeza da jovem senhora.

- Pela minha parte pus os interesses do meu filho, nas mãos de um notário de Paris. O que lhe assegurei, está já empregado em fundos franceses. O nosso Lolet, principalmente graças a meu irmão, está rico, fabulosamente rico. Eu também queria reparar o mal que involuntariamente causei a ambos. Ah! Violeta, não me negues o único meio que me resta de te fazer bem, de fazer bem a essa criança! Será preciso dizer que obtive o reconhecimento de meu filho? Na maioridade, Lolet será o duque de Montmouth.

Jorge e Violeta olharam-se pela última vez com a calma de uma grande resignação.

- Adeus - disse a jovem.

- Não, até à vista - decidiu o Príncipe, resoluto. - Escreverei muitas vezes e juro-te que, agora, as minhas cartas chegarão ao seu destino. Consentes que venha cá de vez em quando?

Pálida, a jovem disse:

- Oh! não, não voltes... não voltes nunca mais se tornas a partir...

- far-me-ia muito mal.

- Violeta, não me recuses a felicidade de te tornar a ver, a alegria de tornar a ver Lolet. Consente, ao menos, que dê a meu filho os beijos... que não queres mais!

- Pois bem, se é pelo teu filho, volta.

Ela retirou a mão que ele levava de novo aos lábios e, para não prolongar aquele adeus desgarrador, afastou-se sem se voltar, sem limpar as lágrimas para que ele, pelo gesto, não percebesse que chorava.

Jorge demorou-se a conversar com Lolet e com Solange.

O ruído de um automóvel, uma nuvem de chapéus castanhos surgindo e desaparecendo, mostraram a Violeta que o Príncipe tinha partido.

A criança e Solange foram ter logo com Violeta. O garotinho exultava:

- Ah! mamã, se soubesses como o papá me beijou bem do coração, agora! Ele é muito bom garanto-te! Não lhe ralhes, ele prometeu voltar... voltar depressa... e muitas vezes, todas as vezes que puder! Ele explicou tudo, não é verdade, Solange? Bem percebi que não tem culpa dos nossos desgostos. Agora que o obrigaram a fazer o que a Rainha queria, não o atormentam mais e deixam-no livre. Ele prometeu-me que nos escreveria todos os dias. Não o proíbes de me ver, pois não, mamã? Ninguém pode impedir que um papá e seu filho se vejam!

A pobre Lolette estava triste e, no entanto, a sua tristeza adoçava-se de melancolia. Depois, Solange, contaminada também pelas efusões do Príncipe, enquanto andava ao lado da jovem e numa espécie de instintiva conivência, apoiava as instâncias da criança com tanta mais eloquência, quanto se sentia melhor escutada.

- O senhor ama-a mais do que nunca, garanto-lhe, minha senhora. O mais castigado de todos foi, sem dúvida, o pobre Príncipe. Em Névis - ameaçaram-no, aterrorizaram-no; comprou a sua vida e a do filho, submetendo-se a todas as vontades. E depois quem cedeu primeiro? Não foi a senhora a primeira a renunciar antes dele? A Rainha e o Grande Chanceler nunca teriam podido forçar o Príncipe a casar com essa Princesa sem que a senhora não tivesse assinado aqueles papéis mesmo sem os ler!

Lolette comoveu-se com esta ideia:

- Talvez... mas eu estava aflita. Voltaria a assinar, Solange, se julgasse poder salvar assim a vida de meu filho. Achas que a minha desistência paralisou realmente a resistência do Príncipe?

- Compreendi-o claramente pelas palavras que ele me disse.

- Porque não me falou nisso a mim?

- Por escrúpulo. A senhora bem sabia que, mesmo na Residência, Monsenhor guardava todas as preocupações só para ele, para a poder deixar inteiramente feliz!

Violeta, recolhida, prestava uma atenção cada vez maior às palavras de Solange.

- O Príncipe comprou, em Neuilly, uma linda vivenda para si e para Lolet. O notário deve vir amanhã trazer os títulos da propriedade. É aí que o sr. Jorge irá. E será... E será... como durante o noivado.

- Ah! Não, será a mesma coisa!

- Vamos, coragem, minha senhora! A vida não lhe será difícil. Monsenhor só me disse três palavras, mas eu compreendi que a nossa casa será opulenta. Vai ter cavalos e carruagem. Além disso, minha senhora, sendo tão nova e tão bonita, poderá comprar lindas toilettes...

- Ah! Solange, achas que tenho coração para essas futilidades?

- Agora não, certamente, mas... mais tarde? O tempo há-de curá-la... e as visitas do Príncipe apressarão a cura. Se o dinheiro consola os pequenos desgostos, uma pessoa saber-se adorada, consola os grandes!

- Não, não poderei nunca mais conhecer a felicidade.

- Já a conheceu!

- Oh! Isso sim!

- Já é qualquer coisa... E depois, deste Paris tão alegre, vista de longe, a nossa desgraça não me parece já tão triste! Será realmente assim tão deplorável ter sido, nova e bela, amada por um futuro rei?

A um movimento de Violeta, Solange acrescentou vivamente:

- Oh! decerto que há mais felizes do que a senhora. mas mais desgraçadas, quantas há também! Convenho em que viveu horas muito cruéis... mas quantos romances de amor acabam pior do que o seu!

- Achas que sou feliz de, aos vinte e seis anos, só ter ternura no passado? Não é quase tão triste como ser viúva?

- A senhora mesma disse quase! Ah! Depois de tantas catástrofes e de tantas perseguições, estarem os três vivos, amarem-se, o pai, a mãe e o filho, olhe que, a bem dizer, minha senhora, já é sorte! E depois, se a senhora, como diz tantas vezes, ama o Príncipe por ele mesmo, sem nenhuma ambição, ser sempre adorada não será o principal para si?

- Tens uma forma de arranjar as coisas! Achas que as visitas do Príncipe não renovarão as minhas penas?

- Mas sempre será melhor do que a ausência.

- As suas partidas vão despedaçar-me o coração!

- Os seus regressos o consertarão.

- Ah! Solange, a tua inconsciência e a tua alegria, ferem-me e causam-me mágoa.

- Já chorámos tanto, minha senhora, que me parece que podemos - não rir - mas sorrir um pouco!

E Lolette, mesmo sem querer, não pôde deixar de sorrir, ainda que tristemente. A velhota, tomando coragem, fazendo alusão às confidencias de amor que Violeta lhe fizera dantes, disse maliciosa:

- E depois, segundo diz o senhor, se a senhora é uma flor de sombra, não seria bem para si viver muito tempo em plena luz, ao pé de um Príncipe Real. Quando Monsenhor chegar à nossa casinha de Neuilly, será um dia de sol. Ora, um poucochinho de sol, apenas de vez em quando, será talvez suficiente... talvez mesmo melhor para uma pequenina flor de sombra!

 

                                                                                Charles Foley  

 

                      

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