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FREUD - Volume XIII (1913-1914)
FREUD - Volume XIII (1913-1914)

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OBRAS COMPLETAS DO DR. SIGMUND FREUD

Volume XIII  

 

 Totem e tabu e outros trabalhos

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS (JAMES STRACHEY)

 

TOTEM UND TABU

 

            (a)       EDIÇÕES ALEMÃES

            1912   Parte I, Imago, 1 (1), 17-33. (Sob o título ‘Über einige

                        Übereinstimmungen im Seelenleben der Wilden und der

                        Neurotiker’ [‘Alguns Pontos de Concordância entre a Vida Mental

                        dos Selvagens e dos Neuróticos’].)

            1912   Parte II. Imago, 1 (3), 213-27 e (4), 301-33. (Mesmo título.)

            1913   Parte III. Imago, 2 (1), 1-21. (Mesmo título.)

            1913   Parte IV, Imago, 2 (4), 357-408. (Mesmo título.)

            1913   Em um só volume, sob o título Totem und Tabu, Leipzig e Viena,

                        Heller, V + 149 p.

            1920   2ª ed., Leipzig, Viena e Zurique: Intenationaler Psychoanalytischer

                        Verlag, VII + 216 p

            1922   3ª ed. Leipzig, Viena e Zurique: I.P.V., VII + 216 p.

            1924   G.S.., 10, 3-194.

            1934   5ª ed., Viena: I.P.V., 194 p.

            1940   G.W.., 9, pp. 1-205.

            1934   ‘Vorred zur hebräischen Ausbage von Totem und Tabu‘, G.S.,12, 385.

            1948   G.W., 14, 569.

            (b)       TRADUÇÕES INGLESAS

Totem and Taboo

            1918   Nova Iorque Moffat, Yard, XI + 256 p. (Trad. de A. A. Brill.)

            1919   Londres: Routledge, XI + 265 p. (Trad. de A. A. Brill.)

            1938   Londres e Nova Iorque: Penguin Books, 159 p. (Trad. de A. A.

                        Brill.)

            1938   Em The Basic Writings of Sigmund Freud, Nova Iorque: Modern

                        Library, pp. 807-930. (Trad. de A. A. Brill.)

            1950   Londres: Routledge and Kegan Paul, XI + 172 p. (Trad. de

                        James Strachey.)

            1950   ‘Preface to the Hebrew Translation of Totem and Taboo‘

                        (‘Prefácio à Tradução Hebraica de Totem e Tabu’). Em Totem and

                        Taboo, Londres, 1950, p. XI. (Trad. de James Strachey.)

 

A presente tradução é uma versão ligeiramente corrigida da publicada em 1950.

 

No seu Prefácio, Freud conta que seu primeiro estímulo para escrever estes ensaios veio das obras de Wundt e Jung. Na realidade, seu interesse pela antropologia social vinha de muito tempo antes. Na correspondência com Fliess (1950a), além de alusões gerais ao gosto sempre presente pelo estudo da arqueologia e da pré-história, há um certo número de referências específicas a temas antropológicos e à luz que a psicanálise lança sobre eles. No Rascunho N (31 de maio de 1897), por exemplo, ao estudar o ‘horror ao incesto’, ele assinala a relação entre o desenvolvimento da civilização e a repressão dos instintos, assunto ao qual retornou no artigo sobre ‘“Civilized” Sexual Ethics’ (1908d) e, muito mais tarde, em Civilization and its Discontents (1930a). Novamente, na Carta 78 (12 de dezembro de 1897), escreve: ‘Pode imaginar o que são “mitos endopsíquicos”? São o fruto mais recente de meus trabalhos mentais. A obscura percepção interior de nosso próprio mecanismo psíquico estimula ilusões de pensamento, que são naturalmente projetadas para o exterior e, de modo característico, para o futuro e o além-mundo. Imortalidade, castigo, vida após a morte, todos constituem reflexos de nossa própria psique mais profunda (…) psicomitologia’. E, na Carta 144 (4 de julho 1901): ‘Já leu que os ingleses escavaram um velho palácio em Creta (Cnossos), o qual declaram ser o autêntico labirinto de Minos? Zeus parece ter sido originalmente um touro. Parece, também, que o nosso próprio velho Deus, antes de passar pela sublimação incentivada pelos persas, era também adorado como um touro. Isso suscita toda sorte de pensamentos, que ainda não estão em tempo de serem colocados no papel’. Finalmente, vale a pena mencionar uma breve passagem numa nota ao pé da página à primeira edição de A Interpretação de Sonhos (1900a), perto do fim da Seção B do Capítulo V, Edição Standard Brasileira, IV, 230n., Imago Editora, 1972, que deixa entrever a direção da monarquia da posição social do pai de família.

Mas os principais elementos da contribuição de Freud à antropologia social aparecem, pela primeira vez, nesta obra e mais especialmente  no quarto ensaio, que contém a hipótese da horda primeva e da morte do pai primevo, e elabora sua teoria fazendo remontar a isso a origem da quase totalidade das instituições sociais e culturais posteriores. O próprio Freud estimava muito este último ensaio, tanto no que diz respeito ao conteúdo como à forma. Contou a seu tradutor de então, provavelmente em 1921, que o considerava como sua obra mais bem escrita. Não obstante, o Dr. Ernest Jones informa-nos que mesmo em meados de junho de 1913, quando as provas do ensaio já se achavam prontas e após havê-lo apresentado à Sociedade Psicanalítica de Viena, Freud ainda expressava dúvidas e hesitações sobre sua publicação. Essas dúvidas foram prontamente afastadas, contudo, e o livro permaneceu sendo um de seus favoritos durante toda a vida, recorrendo constantemente ao mesmo. Assim, por exemplo, resumiu-o e discutiu-o com particular carinho no sexto capítulo de seu Autobiographical Study (1925d) e citou-o muita vezes no último livro que publicou, Moses and Monotheism (1939a).

Sobre a composição real destes ensaios, possuímos uma boa quantidade de informações, cujos pormenores podem ser encontrados no segundo volume da biografia de Freud, pelo Dr. Ernest Jones. Freud começara os preparativos para a obra e, em particular, a leitura de grande quantidade de literatura sobre o assunto, já em 1910. O título ‘Totem e Tabu’ evidentemente já se encontrava em seu espírito em agosto de 1911, embora só viesse a adotá-lo definitivamente quando os ensaios foram coligidos em forma de livro. O primeiro ensaio foi terminado em meados de janeiro de 1912, publicado em Imago em março seguinte e pouco após reimpresso, com algumas pequenas omissões, no semanário vienense Pan (11 e 18 de abril de 1912) e no diário Neues Wiener Journal, de Viena (18 de abril). O segundo ensaio foi lido na Sociedade Psicanalítica de Viena, em 15 de maio de 1912, numa palestra que durou três horas. O terceiro foi preparado durante o outono de 1912 e pronunciado perante a Sociedade de Viena em 15 de janeiro de 1913. O quarto foi terminado em 12 de maio de 1913 e lido para a mesma sociedade em 4 de junho de 1913.

Totem e Tabu foi traduzido em diversas línguas além do inglês, durante a vida de Freud: em húngaro (1919), espanhol (1923), português (s/data), francês (1924), japonês (duas vezes, 1930 e 1934) e hebraico (1939). Para a última dessas traduções, como veremos adiante (Ver em  [1]), Freud escreveu um prefácio especial.

 

PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO

 

Os quatro ensaios que se seguem foram originalmente publicados (sob um título que serve de subtítulo ao presente livro) nos dois primeiros volumes de Imago, periódico editado sob a minha direção. Representam uma primeira tentativa de minha parte de aplicar o ponto de vista e as descobertas da psicanálise a alguns problemas não solucionados da psicologia social [Völkerpsychologie]. Dessa maneira, apresentam, por um lado, um contraste metodológico com a obra de Wilhelm Wundt, que aplica as hipóteses e os métodos de trabalho da psicologia não-analítica aos mesmos objetivos, e, por outro, com os trabalhos da escola de psicanálise de Zurique, que se esforça, pelo contrário, por solucionar os problemas da psicologia individual com o auxílio de material derivado da psicologia social. (Cf. Jung, 1912 e 1913.) Apresso-me em confessar que foi dessas duas fontes que recebi o primeiro estímulo para os meus próprios ensaios.

Estou plenamente consciente das deficiências destes estudos. Não preciso mencionar aquelas que são necessariamente características das obras pioneiras, mas outras exigem uma palavra de explicação. Os quatro ensaios coligidos nestas páginas visam a despertar o interesse de um círculo bastante amplo de leitores instruídos, mas, na realidade, não podem ser compreendidos nem apreciados exceto por aqueles que já não sejam alheios à natureza essencial da psicanálise. Estes ensaios procuram diminuir a distância existente entre os estudiosos de assuntos como a antropologia social, a filologia e o folclore, por um lado, e os psicanalistas, por outro. No entanto, não podem oferecer a ambos os lados o que a cada um falta: ao primeiro, uma iniciação adequada na nova técnica psicológica; ao último, uma compreensão suficiente do material que se encontra à espera de tratamento. Devem assim contentar-se em atrair a atenção das duas partes e em incentivar a crença de que uma cooperação ocasional entre ambas não poderá deixar de ser proveitosa para a pesquisa.

Ver-se-á que os dois principais temas dos quais o título deste livro se origina — os totens e os tabus — não receberam o mesmo tratamento. A análise dos tabus é apresentada como um esforço seguro e exaustivo para a solução do problema. A investigação sobre o totemismo não faz mais que declarar que ‘isso é o que a psicanálise pode, no momento, oferecer para a elucidação do problema do totem’. A diferença está ligada ao fato de que os tabus ainda existem entre nós. Embora expressos sob uma forma negativa e dirigidos a um outro objeto, não diferem, em sua natureza psicológica, do ‘imperativo categórico’ de Kant, que opera de uma maneira compulsiva e rejeita quaisquer motivos conscientes. O totemismo, pelo contrário, é algo estranho aos nossos sentimentos contemporâneos — uma instituição social-religiosa que foi há muito tempo relegada como realidade e substituída por formas mais novas. Deixou atrás de si apenas levíssimos vestígios nas religiões, maneiras e costumes dos povos civilizados da atualidade e foi submetido a modificações de grande alcance mesmo entre as raças, sobre as quais ainda exerce influência. Os progressos sociais e técnicos da história humana afetaram os tabus muito menos que os totens.

Faz-se neste livro uma tentativa de deduzir o significado original do totemismo dos seus vestígios remanescentes na infância — das insinuações dele que emergem no decorrer do desenvolvimento de nossos próprios filhos. A estreita conexão entre totens e tabus nos leva um passo à frente no sentido da hipótese apresentada nestas páginas e se, no final, a hipótese parecer altamente improvável, essa falha não constituirá argumento contra a possibilidade de aproximá-la mais ou menos estreitamente da realidade tão difícil de reconstruir.

ROMA, setembro de 1913.

 

PREFÁCIO À TRADUÇÃO HEBRAICA

 

Nenhum leitor [da versão hebraica] deste livro achará fácil colocar-se na posição emocional de um autor que é ignorante da linguagem da sagrada escritura, completamente alheio à religião de seus pais — bem como a qualquer outra religião — e não pode partilhar de ideais nacionalistas, mas que, no entanto, nunca repudiou seu povo, que sente ser, em sua natureza essencial, um judeu e não tem nenhum desejo de alterar essa natureza. Se lhe fosse formulada a pergunta: ‘Desde que abandonou todas essas características comuns a seus compatriotas, o que resta em você de judeu?’, responderia: ‘Uma parte muito grande e, provavelmente a própria essência’. Não poderia hoje expressar claramente essa essência em palavras, mas algum dia, sem dúvida, ela se tornará acessível ao espírito científico.

Assim, constitui experiência de um tipo muito especial para esse autor um livro seu ser traduzido para a língua hebraica e colocado nas mãos de leitores para quem esse idioma histórico é uma língua viva; um livro, além disso, que trata da origem da religião e da moralidade, embora não adote um ponto de vista judaico e não faça exceções em favor do povo judeu. O autor espera, contudo, estar de acordo com seus leitores na convicção de que a ciência sem preconceitos não pode permanecer estranha ao espírito do novo judaísmo.

VIENA, dezembro de 1930.

 

I - O HORROR AO INCESTO

 

O homem pré-histórico, nas várias etapas de seu desenvolvimento, nos é conhecido através dos monumentos e implementos inanimados que restaram dele, através das informações sobre sua arte, religião e atitude para com a vida — que nos chegaram diretamente ou por meio de tradição transmitida pelas lendas, mitos e contos de fadas —, e através das relíquias de seu modo de pensar que sobrevivem em nossas maneiras e costumes. À parte disso, porém, num certo sentido, ele ainda é nosso contemporâneo. Há homens vivendo em nossa época que, acreditamos, estão muito próximos do homem primitivo, muito mais do que nós, e a quem, portanto, consideramos como seus herdeiros e representantes diretos. Esse é o nosso ponto de vista a respeito daqueles que descrevemos como selvagens ou semi-selvagens; e sua vida mental deve apresentar um interesse peculiar para nós, se estamos certos quando vemos nela um retrato bem conservado de um primitivo estágio de nosso próprio desenvolvimento.

Se essa suposição for correta, uma comparação entre a psicologia dos povos primitivos, como é vista pela antropologia social, e a psicologia dos neuróticos, como foi revelada pela psicanálise, está destinada a mostrar numerosos pontos de concordância e lançará nova luz sobre fatos familiares às duas ciências.

Tanto por razões externas como internas, escolherei como base dessa comparação as tribos que foram descritas pelos antropólogos como sendo dos selvagens mais atrasados e miseráveis, os aborígenes da Austrália, o continente mais jovem, em cuja fauna também podemos ainda observar muita coisa que é arcaica e já pereceu em outras regiões.

Os aborígenes australianos são considerados uma raça distinta, sem apresentar relação física nem lingüística com seus vizinhos mais próximos, os povos melanésio, polinésio e malaio. Eles não constroem casas, nem abrigos permanentes; não cultivam o solo; não criam animais domésticos, a exceção do cão; não conhecem nem mesmo a arte da cerâmica. Vivem inteiramente da carne dos animais que caçam e das raízes que arrancam. Reis e chefes são desconhecidos entre eles; os assuntos comuns são decididos`por um conselho de anciães. É altamente duvidoso que se lhes possa atribuir qualquer religião moldada na adoração de seres superiores. As tribos do interior do continente, que têm de lutar contra condições de existência mais árduas em virtude da escassez de água, parecem ser, sob todos os aspectos, mais primitivas do que as que vivem perto da costa.

Naturalmente não era de se esperar que a vida sexual desses canibais pobres e desnudos fosse moral no nosso sentido ou que seus instintos sexuais estivessem sujeitos a um elevado grau de qualquer restrição. Entretanto, verificamos que eles estabelecem para si próprios, com o maior escrúpulo e o mais severo rigor, o propósito de evitar relações sexuais incestuosas. Na verdade, toda a sua organização social parece servir a esse intuito ou estar relacionada com a sua consecução.

Entre os australianos, o lugar das instituições religiosas e sociais que eles não têm é ocupado pelo sistema do ‘totemismo’. As tribos australianas subdividem-se em grupos menores, ou clãs, cada um dos quais é denominado segundo o seu totem. O que é um totem? Via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo o clã. Em primeiro lugar, o totem é o antepassado comum do clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos. Em compensação, os integrantes do clã estão na obrigação sagrada (sujeita a sanções automáticas) de não matar nem destruir seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar proveito dele de outras maneiras). O caráter totêmico é inerente, não apenas a algum animal ou entidade individual, mas a todos os indivíduos de uma determinada classe. De tempos em tempos, celebram-se festivais em que os integrantes do clã representam ou imitam os movimentos e atributos de seu totem em danças cerimoniais.

O totem pode ser herdado tanto pela linha feminina quanto pela masculina. É possível que originalmente o primeiro método de descendência predominasse em toda parte e só subseqüentemente fosse substituído pelo último. A relação de um australiano com seu totem é a base de todas as suas obrigações sociais: sobrepõe-se à sua filiação tribal e às suas relações consangüíneas.

O totem não está vinculado a um determinado lugar. Os integrantes do clã distribuem-se por diferentes localidades e vivem pacificamente, lado a lado, com membros de outros clãs totêmicos.

E chegamos agora, por fim, à característica do sistema totêmico que atraiu o interesse dos psicanalistas. Em quase todos os lugares em que encontramos totens, encontramos também uma lei contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo totem e, conseqüentemente, contra o seu casamento. Trata-se então da ‘exogamia’, uma instituição relacionada com o totemismo.

Esta proibição é notável por sua severa obrigatoriedade. Não existia nada no conceito ou atributos do totem que até agora mencionei que nos levasse a prevê-la, de maneira que é difícil compreender como ela veio a se tornar parte do sistema totêmico. Não é de surpreender, portanto, que alguns investigadores suponham na realidade, que a exogamia originalmente — nos primeiros tempos e em seu verdadeiro significado — nada tivesse a ver com o totemismo, mas se tivesse vinculado a ele (sem existir qualquer conexão subjacente) em uma época em que as restrições matrimoniais tornaram-se necessárias. Se bem que isto seja possível, o fato é que a ligação entre totemismo e exogamia existe, sendo indiscutivelmente uma ligação muito firme.

Algumas outras considerações tornarão mais claro o significado desta proibição:

(a) A violação da proibição não é deixada ao que se poderia chamar de punição ‘automática’ das partes culpadas, como no caso de outras proibições totêmicas, tal como a existente contra a morte do animal totem. É vingada da maneira mais enérgica por todo o clã, como se fosse uma questão de impedir um perigo que ameaça toda a comunidade ou como se se tratasse de alguma culpa que a estivesse pressionando. Algumas citações de Frazer (1910, 1, 54) demonstrarão quão severamente essas transgressões são tratadas por selvagens que, sob outros aspectos, estão longe de serem morais segundo nossos padrões:

‘Na Austrália, a penalidade comum para as relações sexuais com uma pessoa de um clã proibido é a morte. Não importa se a mulher é do mesmo grupo local ou foi capturada de outra tribo, durante a guerra; o homem do clã impróprio que a usar como esposa é perseguido e morto por seus irmãos de clã, assim como a mulher; embora, em alguns casos, se os transgressores conseguem evitar a captura por um certo tempo, a ofensa possa ser perdoada. Na tribo Ta-ta-thi, da Nova Gales do Sul, nos raros casos em que ocorre, o homem é morto, mas a mulher é apenas espancada ou perfurada por lanças, ou ambas as coisas, até ficar quase morta; sendo a razão alegada para não chegar a matá-la o fato de, provavelmente, ter sido coagida. Mesmo em namoros ocasionais, as proibições do clã são estritamente observadas; todas as suas violações “são encaradas com a maior repulsa e punidas com a morte”.’ [Citado de Cameron 1885, 351.]

(b) Desde que o mesmo castigo severo é infligido a casos amorosos passageiros que não resultaram em filhos, parece improvável que as razões para a proibição sejam de natureza prática.

(c) Uma vez que os totens são hereditários não mutáveis pelo casamento, é fácil acompanhar as conseqüências da proibição. Por exemplo: onde a descendência se faz pela linha feminina, se um homem do totem canguru casar-se com uma mulher do totem emu, todos os filhos, tanto os rapazes como as meninas, pertencerão ao clã emu. Assim os regulamentos totêmicos tornarão impossível a um filho desse casamento manter relações sexuais incestuosas com sua mãe ou irmãs, que são emus como ele próprio.

(d) Um pouco mais de reflexão, porém, demonstrará que a exogamia vinculada ao totem realiza mais (e, assim, visa a mais) do que a prevenção do incesto com a própria mãe e irmãs. Torna impossível ao homem as relações sexuais com todas as mulheres de seu próprio clã (ou seja, com um certo número de mulheres que não são suas parentas consangüíneas), tratando-as como se fossem parentes pelo sangue. À primeira vista, é difícil perceber a justificativa psicológica desta restrição tão ampla, que vai muito além de qualquer comparação com os povos civilizados. Pode-se depreender dela, porém, que o papel desempenhado pelo totem como antepassado comum é tomado muito a sério. Todos os que descendem do mesmo totem são parentes consangüíneos. Formam uma família única e, dentro dela, mesmo o mais distante grau de parentesco é encarado como impedimento absoluto para as relações sexuais.

Vemos, então, que esses selvagens têm um horror excepcionalmente intenso ao incesto, ou são sensíveis ao assunto num grau fora do comum, e que aliam isso a uma peculiaridade que permanece obscura para nós: a de substituir o parentesco consangüíneo real pelo parentesco totêmico. Este último contraste, contudo, não deve ser exagerado em excesso e devemos nos lembrar que as proibições totêmicas incluem a proibição contra o incesto verdadeiro como um caso especial.

O enigma de como a família verdadeira veio a ser substituída pelo clã totêmico talvez deva permanecer insolúvel até que a natureza do próprio totem possa ser explicada. Ao mesmo tempo, é de se observar que se existisse um certo grau de liberdade de relações sexuais fora do casamento, o parentesco de sangue e, conseqüentemente, a proibição do incesto, tornar-se-iam tão incertos que a proibição teria necessidade de uma base mais ampla. Em conseqüência disso, é digno de nota que os costumes australianos, em certas situações sociais e durante certos festejos, permitam a quebra dos direitos conjugais exclusivos de um homem sobre a sua mulher.

A linguagem dessas tribos australianas apresenta uma peculiaridade que sem dúvida alguma tem relação com o que estamos tratando: os termos por elas empregados para expressar os diversos graus de parentesco não denotam uma relação entre dois indivíduos, mas sim entre um indivíduo e um grupo. Foi isto que L. H. Morgan [1877] denominou de sistema ‘classificatório’ de parentesco. Assim, um homem utiliza o termo ‘pai’ não apenas para o seu verdadeiro genitor, mas também para todos os outros homens com quem sua mãe poderia ter-se casado, de acordo com a lei tribal, e que, desse modo, poderiam tê-lo gerado. Emprega o termo ‘mãe’ não apenas para a mulher de quem na realidade nasceu, mas também para todas as outras mulheres que lhe poderiam ter dado à luz sem transgredir a lei da tribo; usa as expressões ‘irmão’ e ‘irmã’ não somente para os filhos de seus pais verdadeiros, mas também para os filhos de todas aquelas pessoas com quem mantém uma relação de pais, no sentido classificatório, e assim por diante. Desse modo, os termos de parentesco que dois australianos mutuamente se aplicam não indicam necessariamente qualquer consangüinidade, como os nossos indicariam: representam relacionamentos sociais mais do que físicos. Algo que se aproxima do sistema classificatório pode ser encontrado entre nós, quando as crianças são incentivadas a referir-se aos amigos dos pais como ‘tio’ ou ‘tia’ ou quando, falando num sentido metafórico, dizemos ‘irmãos em Apolo’ ou ‘irmãs em Cristo’.

Embora este uso de palavras nos surpreenda e pareça tão confuso, será facilmente compreendido se o encararmos como uma sobrevivência da instituição matrimonial que o Rev. L. Fison chamou de ‘casamento de grupo’ e que consiste num certo número de homens exercer direitos conjugais sobre um certo número de mulheres. Os filhos desse casamento grupal justificadamente considerar-se-iam então uns aos outros como irmãos e irmãs (embora não houvessem todos nascido da mesma mãe) e veriam todos os homens do grupo como pais.

Embora alguns autores, como Westermarck (1901) tenham discutido as conclusões que outros tiraram da existência do sistema classificatório de parentesco, os que têm maior familiaridade com os nativos australianos concordam em considerar esse sistema como uma sobrevivência dos dias do casamento grupal. Na verdade, de acordo com Spencer e Gillen (1899) [64], uma certa forma de casamento de grupo existe ainda hoje nas tribos arabuna e dieri. O matrimônio grupal precedeu, dessa maneira, o casamento individual entre esses povos e, depois do seu desaparecimento, restaram dele traços definidos tanto na linguagem quanto nos costumes.

Mas, uma vez que tenhamos colocado o matrimônio de grupo no lugar do casamento individual, o grau visivelmente excessivo de evitação de incesto com que nos deparamos entre esses mesmos povos se torna inteligível. A exogamia totêmica, ou seja, a proibição de relações sexuais entre os membros do mesmo clã, parece ter constituído o meio apropriado para impedir o incesto grupal; dessa maneira, estabeleceu-se e persistiu muito tempo após a sua raison d’être haver cessado.

Pode parecer que descobrimos assim os motivos que levaram os nativos australianos a estabelecer suas restrições matrimoniais, mas vamos agora saber que o estado de coisas real revela uma complexidade muito maior e, à primeira vista, desconcertante, porque existem poucas raças na Austrália em que a barreira totêmica constitua a única proibição. A maioria delas está organizada de maneira a incidir em duas divisões, conhecidas como classes matrimoniais ou ‘fratrias’. Cada uma destas fratrias é exógama e abrange um certo número de clãs totêmicos. Via de regra, cada fratria é ainda subdividida em duas ‘subfratrias’, com a tribo inteira achando-se assim dividida em quatro e as subfratrias sendo intermediárias entre as fratrias e os clãs totêmicos.

 

Aqui os doze clãs totêmicos estão divididos em quatro subfratrias e duas fratrias. Todas as divisões são exógamas. As subfratrias c e e formam uma unidade exógama e assim também as subfratrias d e f. O resultado (e, portanto, o objetivo) destas disposições não pode ser posto em dúvida: elas ocasionam uma restrição ainda maior sobre a escolha de casamento e a liberdade sexual. Suponhamos que cada clã possua um número igual de membros. Então, se apenas existissem os doze clãs totêmicos, cada membro de um clã teria de efetuar sua escolha entre 11/12 de todas as mulheres da tribo. A existência de duas fratrias reduz sua escolha a 6/12 ou 1/2, porque um homem do totem a só pode casar-se com uma mulher dos totens 1 a 6. Com a introdução das quatro subfratrias, sua escolha é ainda reduzida a 3/12 ou 1/4, porque, neste caso, um homem do totem fica restrito, em sua escolha de esposa, a uma mulher dos totens 4, 5 ou 6.

A relação histórica entre as classes matrimoniais (que, em algumas tribos, chegam a oito) e os clãs totêmicos é completamente obscura. É simplesmente evidente que estas disposições visam ao mesmo objetivo que a exogamia totêmica e o levam ainda mais longe. Entretanto, enquanto a exogamia totêmica dá a impressão de ser uma ordenação sagrada de origem desconhecida — em suma, de ser um costume — a complicada instituição das classes matrimoniais, com suas subdivisões e os regulamentos que a elas se vinculam, parece mais o resultado de uma legislação deliberada, que pode talvez ter-se encarregado de assumir a prevenção do incesto, em virtude do declínio da influência do totem. E, enquanto o sistema totêmico é, como sabemos, a base de todas as outras obrigações sociais e restrições morais da tribo, a significação das fratrias em geral parece não estender-se além da regulamentação da escolha matrimonial, que é seu objetivo.

O sistema de classes matrimoniais, em seus desenvolvimentos mais avançados, testemunha um empenho de ir além da prevenção do incesto natural e de grupo e de proibir o casamento entre grupos de parentes ainda mais distantes. Nisto assemelha-se à Igreja Católica, que estendeu a antiga proibição contra o matrimônio entre irmãos e irmãs ao casamento entre os que são meramente parentes espirituais [padrinhos, madrinhas e afilhados]. (Cf. Lang. 1910-11 [87].)

Foge ao objetivo do nosso estudo o exame pormenorizado das discussões extraordinariamente complexas e obscuras acerca da origem e significação das classes matrimoniais e sua relação com o totem. Para o fim que temos em vista, é suficiente chamar a atenção para a grande preocupação que têm os australianos, e outros povos selvagens, com a prevenção do incesto. Tem-se de admitir que esses selvagens são ainda mais sensíveis à questão do que nós. Estão provavelmente mais sujeitos à tentação de cometê-lo e, por essa razão, necessitam de maior proteção.

Mas o horror ao incesto demonstrado por esses povos não se satisfaz com a criação das instituições que descrevi e que parecem dirigir-se principalmente ao incesto grupal. Temos de acrescentar-lhes um certo número de ‘costumes’ que regulam as relações dos indivíduos com os seus parentes próximos, em nosso sentido do termo, costumes que são literalmente forçados com severidade religiosa e cujo intuito mal pode ser posto em dúvida. Esses costumes ou proibições costumeiras foram denominados de ‘evitações’. Estendem-se muito além das raças totêmicas da Austrália, porém mais uma vez devo pedir aos meus leitores para se contentarem com um extrato fragmentário, tirado do copioso material existente.

Na Melanésia, proibições restritivas desse tipo regulam as relações do menino com a mãe e irmãs. Assim, por exemplo, na Ilha dos Leprosos, uma das Novas Hébridas, quando um menino chega a uma certa idade, deixa de morar em casa e se aloja na ‘casa comum’, onde passa a comer e dormir regularmente. Pode ainda ir à casa do pai pedir comida, mas, se alguma irmã estiver em casa, terá de ir embora antes de comer. Se nenhuma irmã lá estiver, poderá sentar-se perto da porta e comer. Se, por acaso, um irmão e uma irmã, se encontrarem ao ar livre, ela terá de fugir correndo ou esconder-se. Se um menino souber que certas pegadas na estrada são de sua irmã, não as seguirá, como ela também não seguirá as dele. Na realidade, nem sequer pronuncia o nome dela e uma palavra comum, se fizer parte desse nome. Esta evitação começa com as cerimônias da puberdade e se mantém durante toda a vida. A reserva entre o filho e a mãe aumenta à medida que o menino cresce, sendo muito maior da parte dela que da dele. Se a mãe lhe traz comida, não a entrega diretamente, coloca-a no chão para que ele a apanhe. No diálogo não o trata por tu, usa as formas mais cerimoniosas do plural.

Costumes semelhantes predominam na Nova Caledônia. Se acontece um irmão e uma irmã encontrarem-se num caminho, a irmã esconde-se dentro do mato e o irmão passa sem virar a cabeça.

Entre os nativos da Península Gazelle, na Nova Bretanha, não é permitido que uma moça, depois de casada, converse com o irmão; ela nunca pronuncia o nome dele; designa-o por outra palavra.

Em New Mecklenburg, os primos de certos graus estão sujeitos a restrições semelhantes às estabelecidas para irmãos e irmãs. Não podem aproximar-se um do outro, apertar-se as mãos, nem presentear-se, sendo-lhes permitido porém falar-se a distância de alguns passos. A penalidade para o incesto com uma irmã é a morte por enforcamento.

Em Fiji, essas regras de evitação são particularmente rigorosas; atingem não somente as irmãs de sangue, mas também as irmãs tribais. É de espantar-nos como o mais misterioso de tudo que estes mesmos selvagens realizem orgias sagradas, nas quais precisamente os de graus de parentesco proibido procuram ter relações sexuais — isto é, misterioso a menos que vejamos o contraste como uma explicação da proibição.

Entre os batas da Sumatra, as regras de evitação aplicam-se a todos os parentes próximos. ‘Um bata, por exemplo, acharia chocante que um irmão acompanhasse a irmã a uma festa noturna. Mesmo na presença de terceiros, um irmão e uma irmã batas sentem-se pouco à vontade. Se um entra em casa, o outro sai. Além disso, o pai nunca pode ficar sozinho com a filha em casa, nem a mãe com o filho (…) O missionário holandês que narra esses costumes acrescenta que sente muito dizer, mas pelo que conhece dos batas, acha que a manutenção da maioria dessas regras é muito necessária.’ Para essas pessoas um encontro a sós entre um homem e uma mulher conduz naturalmente a uma intimidade imprópria entre eles. E, desde que acreditam que as relações sexuais entre parentes próximos acarretarão castigos e calamidades de todos os tipos, têm razão em evitar qualquer tentação de transgredir essas proibições.

Muito curioso é que entre os barongos de Delagoa Bay, na África do Sul, as regras mais estritas afetam as relações de um homem com sua cunhada, a esposa do irmão de sua mulher. Se encontra essa pessoa temível em alguma parte, cuidadosamente a evita. Não come no mesmo prato que ela, dirige-lhe a palavra com constrangimento, não se aventura a ir à sua choupana e a cumprimenta com voz trêmula.

Uma regra de evitação que era de se esperar fosse encontrada com mais freqüência funciona entre os a-kambas (ou wakambas), da África Oriental Inglesa. Uma moça tem de evitar o pai no período que vai da puberdade ao casamento. Se se encontram na estrada, esconde-se enquanto ele passa, e nunca pode sentar-se perto dele. Isso vigora até o noivado. Depois do casamento já não mais terá de evitar o pai.

Sem sombra de dúvida, a evitação mais difundida e rigorosa (e a mais interessante, do ponto de vista das raças civilizadas) é a que impede as relações de um homem com a sogra. É bastante generalizada na Austrália e estende-se também à Melanésia, Polinésia e às raças negras da África, onde quer que traços de totemismo e do sistema classificatório de parentesco sejam encontrados e provavelmente mais além ainda. Em alguns desses lugares existem proibições semelhantes quanto a relações inocentes entre uma mulher e o sogro, mas são muito menos comuns e severas. Em alguns casos isolados, ambos os sogros acham-se sujeitos à evitação. Desde que estamos menos interessados na extensão etnográfica dessa evitação do que em sua substância e objetivo, mais uma vez vou restringir-me a citar alguns exemplos.

Entre os melanésios das Ilhas Banks, ‘essas regras de evitação são muito severas e minuciosas. Um homem não deve chegar perto da mãe de sua esposa, nem ela dele. Se acontece os dois se encontrarem num caminho, a mulher se desvia e fica de costas até que ele tenha passado ou, talvez, se for mais conveniente, será ele que se afastará do caminho. Em Vanua Lava, em Port Patteson, um homem só pode seguir a sogra ao longo da praia depois que a maré crescente tenha lavado suas pegadas da areia. Não obstante, o genro e a sogra podem falar-se a uma certa distância, mas uma mulher em nenhuma circunstância menciona o nome do marido de sua filha, nem ele o dela’.

Nas Ilhas Salomão, após o casamento, o genro não pode ver nem conversar com a sogra. Se a encontrar, não deve reconhecê-la; deve fugir e esconder-se o mais depressa possível.

Entre os bantos orientais, ‘o costume exige que o homem “tenha vergonha” da mãe de sua esposa, isto é, que se esquive deliberadamente à sua companhia. Não deve entrar na mesma cabana que ela e se por acaso se encontrarem num caminho, um ou outro volta-se para o lado, ela talvez escondendo-se por trás de um arbusto, enquanto ele oculta o rosto com o escudo. Se não puderem evitar-se assim e a sogra não tiver nada com que se cobrir, amarra um talo de capim em volta da cabeça, como símbolo de evitação cerimonial. Toda comunicação entre os dois — seja através de terceiros, seja gritando um para o outro a uma certa distância —, tem de ter alguma barreira interposta entre eles, como p. ex., a cerca do kraal. Não podem nem mesmo pronunciar o nome próprio um do outro’. (Frazer, 1910, 2, 385.)

Entre os basogas, povo banto que vive na região das nascentes do Nilo, o homem só pode falar com a sogra quando ela se encontra noutra peça e fora de vista. Incidentalmente, esses povos têm um tal horror ao incesto que o punem mesmo quando ocorre entre os animais domésticos. (Frazer, 1910, 2, 461.)

Embora não possa haver dúvida quanto ao intuito e à significação das outras evitações entre parentes próximos e elas sejam universalmente consideradas como medidas protetoras contra o incesto, as proibições que afetam as relações entre genro e sogra receberam outra interpretação de certos grupos. Foi com justiça considerado incompreensível que todos esses diferentes povos sentissem um medo tão grande da tentação apresentada a um homem por uma mulher idosa, que poderia ser, mas de fato não era, sua mãe. (Crawley, 1902, 405.)

Essa objeção foi também levantada contra o ponto de vista apresentado por Fison [Fison e Howitt, 1880, 104]. Salientou ele que certos sistemas de classes matrimoniais apresentavam lacunas, em conseqüência das quais o casamento entre genro e sogra não era teoricamente impossível. Por essa razão, sugeriu, tornou-se necessária uma garantia especial contra essa possibilidade.

Sir John Lubbock (1870 [84 e seg.]) atribuiu a origem da atitude da sogra para com o genro à instituição do ‘casamento por captura’. ‘Quando a captura era uma realidade’, escreveu, ‘a indignação dos genitores também seria real; quando tornou-se um mero símbolo, a ira paterna seria também simbolizada e continuada mesmo após a sua origem ter sido esquecida.’ Crawley [1902, 406] não tem dificuldade em demonstrar quão insuficientemente essa tentativa de explicação abrange os pormenores dos fatos observados.

Tylor [1889, 246 e seg.] acredita que o tratamento dado ao genro pela sogra constitui simplesmente uma forma de ‘cortar relações’ ou de não-reconhecimento pela família da esposa: o homem é encarado como um ‘estranho’ até nascer o primeiro filho. Em primeiro lugar, contudo, a proibição nem sempre termina quando isto acontece. Porém, independentemente disso, pode-se objetar que esta explicação não lança luz sobre o fato de a proibição centralizar-se particularmente na figura da sogra, ou seja, que a explicação despreza o fator sexo. Ademais, não leva em conta a atitude de horror religioso expressa na proibição. (Crawley, 1902, 407.)

Uma mulher zulu, interrogada sobre o fundamento da proibição, deu a resposta sensata: ‘Não é direito que ele veja os seios que amamentaram sua esposa’.

Como sabemos, as relações entre genro e sogra são também um dos pontos delicados da organização familiar nas comunidades civilizadas. Essa relação não está mais sujeita a regras de evitação no sistema social dos povos brancos da Europa e da América, mas muitas discussões e desentendimentos poderiam freqüentemente ser eliminados se a evitação ainda existisse como um costume e não tivesse de ser recriada pelos indivíduos. Poderá ser encarado por alguns europeus como um ato de alta sabedoria por parte desses selvagens terem impedido inteiramente, através de suas regras de evitação, qualquer contato entre duas pessoas colocadas em relação tão chegada uma com a outra. Quase não comporta dúvida o fato de que alguma coisa na relação psicológica da sogra com o genro cria hostilidade entre eles e torna difícil a convivência. Mas o fato de que nas sociedades civilizadas as sogras sejam tema constante de piadas parece-me sugerir que a relação emocional em jogo inclui componentes nitidamente contrastantes, ou seja, acredito que esta relação seja na realidade uma relação ‘ambivalente’, composta de impulsos conflitantes afetuosos e hostis.

Alguns desses impulsos são bastante óbvios. Do lado da sogra, temos a relutância em abrir mão da posse da filha, a desconfiança do estranho a quem esta é entregue, um impulso de manter a posição dominante que ocupou em sua própria casa. Do lado do genro, há a determinação de não se submeter mais à vontade de outrem, o ciúme de alguém que possuiu a afeição de sua esposa antes dele e, por fim, mas não em último lugar, a resistência a algo que interfere na supervalorização ilusória originada de seus sentimentos sexuais. A figura da sogra geralmente causa essa interferência porque tem muitas características que lhe lembram a filha e, não obstante, carece de todos os encantos de juventude, beleza e frescor espiritual que fazem da sua esposa uma pessoa atraente para ele.

Mas podemos apresentar outros motivos que não estes, graças ao conhecimento dos impulsos mentais ocultos que adquirimos no exame psicanalítico dos seres humanos. Uma mulher cujas necessidades psicossexuais deveriam encontrar satisfação no casamento e na vida de família é muitas vezes ameaçada pelo perigo de ficar insatisfeita porque sua relação matrimonial chegou a um fim prematuro e por causa da monotonia de sua vida emocional. Uma mãe, à medida que envelhece, se salva disso colocando-se a si própria no lugar dos filhos, identificando-se com eles; e isso ela o faz tornando suas as experiências emocionais deles. Diz-se que os pais mantêm-se jovens através dos filhos e esse é, na verdade, um dos proveitos psicológicos mais preciosos que os pais tiram dos filhos. Quando um casamento é estéril, a mulher perde uma das coisas que mais lhe poderiam ajudar a suportar a resignação que o casamento exige dela. A identificação simpática da mãe com a filha pode facilmente ir tão longe que ela própria se apaixone pelo homem que a filha ama e, em exemplos extremos, isto pode levar a formas graves de doença neurótica, como resultado das violentas lutas mentais contra esta situação emocional. De qualquer modo, acontece muito freqüentemente uma sogra estar sujeita a um impulso para este tipo de paixão e este próprio impulso ou uma inclinação oposta são acrescidas ao tumulto das forças conflitantes em sua mente. E muitas vezes os componentes cruéis e sádicos de seu amor são dirigidos para o genro, a fim de que os afetuosos e proibidos possam ser mais severamente suprimidos.

A relação do homem com a sogra é complicada por impulsos similares, embora venham de outra fonte. Descobre-se geralmente que ele escolheu a mãe como objeto de amor, e talvez a irmã também, antes de chegar à escolha final. Por causa da barreira que existe contra o incesto, seu amor é desviado das duas figuras sobre quem sua afeição se centralizava na infância para um objeto externo modelado sobre elas. O lugar de sua própria mãe, que é também mãe de sua irmã, é assumido pela sogra. Ele tem um impulso a recair em sua escolha original, embora tudo nele lute contra isso. Seu horror ao incesto insiste em que a história genealógica da sua escolha de um objeto para amar não deve ser relembrada. Seu repúdio a este impulso é facilitado também pelo ato de ser a sogra apenas uma figura contemporânea; ele não a conheceu durante toda a vida, de modo que não existe uma representação imutável dela preservada em seu inconsciente. Um resquício de irritabilidade e malevolência que pode estar presente na miscelânea de seus sentimentos leva-nos a suspeitar que ela realmente lhe oferece uma tentação ao incesto e isto é confirmado pelo fato não muito raro do homem apaixonar-se abertamente pela mulher que virá posteriormente a ser sua sogra, antes de transferir seu amor para a filha dela.

Não vejo em que se possa ser contra a pressuposição de que é precisamente este fator incestuoso na relação que motiva os selvagens a estabelecer regras de evitação entre genro e sogra. Assim, a explicação que devemos adotar para essas evitações estritamente obrigatórias entre os povos primitivos é a apresentada por Fison (ver em [1]), que as encara simplesmente como uma proteção a mais contra o possível incesto. A mesma explicação é válida para todas as outras evitações, tanto entre relações consangüíneas como tribais. A única diferença seria que, no caso do parentesco de sangue, a possibilidade de incesto é imediata e a intenção de preveni-lo pode ser consciente. Nos outros casos, inclusive no das relações do genro com a sogra, a possibilidade de incesto parece ser uma tentação na fantasia, mobilizada pela ação de laços vinculantes inconscientes.

Nas páginas precedentes não houve muita oportunidade de demonstrar como uma nova luz pode ser lançada sobre os fatos da psicologia social pela adoção de um método psicanalítico de abordagem, pois o horror ao incesto apresentado pelos selvagens já foi há muito tempo identificado como tal e dispensa interpretações adicionais. Tudo o que pude acrescentar à nossa compreensão dele foi dar ênfase ao fato de que se trata fundamentalmente de uma característica infantil, e que revela uma notável concordância com a vida mental dos pacientes neuróticos. A psicanálise nos ensinou que a primeira escolha de objetos para amar feita por um menino é incestuosa e que esses são objetos proibidos: a mãe e a irmã. Estudamos também a maneira pela qual, à medida que cresce, ele se liberta dessa atração incestuosa. Um neurótico, por outro lado, apresenta invariavelmente um certo grau de infantilismo psíquico; ou falhou em libertar-se das condições psicossexuais que predominavam em sua infância ou a elas retornou; duas possibilidades que podem ser resumidas como inibição e regressão no desenvolvimento. Assim, as fixações incestuosas da libido continuam (ou novamente começam) a desempenhar o papel principal em sua vida mental inconsciente. Chegamos ao ponto de considerar a relação de uma criança com os pais, dominada como é por desejos incestuosos, como o complexo nuclear das neuroses. Esta revelação da importância do incesto na neurose é naturalmente recebida com ceticismo geral pelos adultos e pelas pessoas normais. Descrença semelhante verifica-se, por exemplo, inevitavelmente em relação às obras de Otto Rank [p. ex., 1907 e 1912], que ainda trouxeram mais provas para demonstrar até onde o interesse dos escritores criativos centraliza-se em torno do tema do incesto e como o mesmo assunto, em inúmeras variações e deformações, constitui o tema geral da poesia. Somos levados a acreditar que essa rejeição é, antes de tudo, um produto da aversão que os seres humanos sentem pelos seus primitivos desejos incestuosos, hoje dominados pela repressão. Por conseguinte, não é de pouca importância que possamos mostrar que esses mesmos desejos incestuosos, que estão destinados mais tarde a se tornarem inconscientes, sejam ainda encarados pelos povos selvagens como perigos imediatos, contra os quais as mais severas medidas de defesa devem ser aplicadas.

 

II - TABU E AMBIVALÊNCIA EMOCIONAL

 

(1)

 

‘Tabu’ é um termo polinésio. É difícil para nós encontrar uma tradução para ele, desde que não possuímos mais o conceito que ele conota. A palavra era ainda corrente entre os antigos romanos, cujo ‘sacer‘ era o mesmo que o ‘tabu’ polinésio. Também o ‘ayos’, dos gregos e o ‘kadesh’ dos hebreus devem ter tido o mesmo significado expressado em ‘tabu’ pelos polinésios e, em termos análogos, por muitas outras raças da América, África (madagascar) e da Ásia Setentrional e Central.

O significado de ‘tabu’, como vemos, diverge em dois sentidos contrários. Para nós significa, por um lado, ‘sagrado’, ‘consagrado’, e, por outro, ‘misterioso’, ‘perigoso’, ‘proibido’, ‘impuro’. O inverso de ‘tabu’ em polinésio é ‘noa’, que significa ‘comum’ ou ‘geralmente acessível’. Assim, ‘tabu’ traz em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições. Nossa acepção de ‘temor sagrado’ muitas vezes pode coincidir em significado com ‘tabu’.

As restrições do tabu são distintas das proibições religiosas ou morais. Não se baseiam em nenhuma ordem divina, mas pode-se dizer que se impõem por sua própria conta. Diferem das proibições morais por não se enquadrarem em nenhum sistema que declare de maneira bem geral que certas abstinências devem ser observadas e apresente motivos para essa necessidade. As proibições dos tabus não têm fundamento e são de origem desconhecida. Embora sejam ininteligíveis para nós, para aqueles que por elas são dominados são aceitas como coisa natural.

Wundt (1906, 308) descreve o tabu como o código de leis não escrito mais antigo do homem. É suposição geral que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta a um período anterior à existência de qualquer espécie de religião.

Desde que necessitamos de uma descrição imparcial de tabu para submetê-la ao exame psicanalítico, darei agora alguns extratos e resumos de trechos do artigo ‘Tabu’, da Encyplopaedia Britannica (1910-11),da autoria de Northcote W. Thomas, o antropólogo.

 

‘Propriamente falando, o tabu abrange apenas (a) o caráter sagrado (ou impuro) de pessoas ou coisas, (b) a espécie de proibição que resulta desse caráter, e (c) a santidade (ou impureza) que resulta de uma violação da proibição. O inverso de tabu na Polinésia é noa e formas correlatas, que significam “geral ou “comum” (…),

‘No sentido mais lato podem ser distinguidas várias classes de tabu: (i) naturais ou diretos, o resultado do mana (poder misterioso) inerente a uma pessoa ou coisa; (ii) comunicados ou indiretos, igualmente resultado do mana, mas (a) adquiridos ou (b) impostos por um sacerdote, chefe ou outras, pessoa; (iii) intermediários, em que ambos os fatores estão presentes, como na apropriação de uma esposa para o marido (…)’ O termo é também aplicado a outras restrições rituais, mas o que é mais bem descrito como ‘interdição religiosa’ não deve ser referido como tabu.

‘Os objetivos do tabu são numerosos: (i) os tabus diretos visam (a) à proteção de pessoas importantes — chefes, sacerdotes etc. — e coisas, contra o mal; (b) à salvaguarda dos fracos — mulheres, crianças e pessoas comuns em geral — do poderoso mana (influência mágica) de chefes e sacerdotes; (c) à precaução contra os perigos decorrentes do manuseio ou entrada em contato com cadáveres, ingestão de certos alimentos etc.; (d) à guarda dos principais atos da vida — nascimento, iniciação, casamento e funções sexuais etc. contra interferências; (e) à proteção dos seres humanos contra a cólera ou poder dos deuses e espíritos; (f) à proteção de crianças em gestação e de crianças pequenas que mantêm uma ligação especialmente forte com um ou ambos os pais, das conseqüências de certas ações e mais especialmente da comunicação de qualidades que se supõem derivar de certos alimentos. (ii) Os tabus são impostos a fim de prevenir contra ladrões a propriedade de um indivíduo, seus campos, ferramentas etc. (…)’

A punição pela violação de um tabu era, sem dúvida, originalmente deixada a um agente interno automático: o próprio tabu violado se vingava. Quando, numa fase posterior, surgiram as idéias de deuses e espíritos, com os quais os tabus se associaram, esperava-se que a penalidade proviesse automaticamente do poder divino. Em outros casos, provavelmente como resultado de uma ulterior evolução do conceito, a própria sociedade encarregava-se da punição dos transgressores, cuja conduta levara seus semelhantes ao perigo. Dessa forma, os primeiros sistemas penais humanos podem ser remontados ao tabu.

 

‘A violação de um tabu transforma o próprio transgressor em tabu (…).’ Certos perigos provocados pela violação podem ser evitados por atos de expiação e purificação.

A fonte do tabu é atribuída a um poder mágico peculiar que é inerente a pessoas e espíritos e pode ser por eles transmitido por intermédio de objetos inanimados. ‘Pessoas ou coisas consideradas como tabu podem ser comparadas a objetos carregados de eletricidade; são a sede de um imenso poder transmissível por contato e que pode ser liberado com efeito destrutivo se os organismos que provocam sua descarga são fracos demais para resistir a ele; o resultado da violação de um tabu depende em parte da força da influência mágica inerente ao objeto ou pessoa tabu, em parte da força do mana antagônico do violador do tabu. Assim reis e chefes se acham possuídos de grande poder, e dirigir-se a eles diretamente significa morte para os seus súditos; mas um ministro ou outra pessoa de maior mana que o comum podem aproximar-se deles ilesos e, por sua vez, podem ser abordados por seus inferiores sem risco (…) Do mesmo modo, os tabus indiretos dependem, quanto à sua força, do mana daquele que os impõe; se for um chefe ou um sacerdote, são mais poderosos que os impostos por uma pessoa comum (…).’

É sem dúvida a transmissibilidade do tabu que explica as tentativas de expulsá-lo por meio de cerimônias purificatórias adequadas.

Os tabus podem ser permanentes ou temporários. Entre os primeiros estão os ligados a sacerdotes e chefes, bem como a pessoas mortas e a qualquer coisa que lhes pertença. Os tabus temporários podem evitar estar vinculados a certos estados particulares, como a menstruação e o parto, a guerreiros antes e depois de uma expedição, ou a atividades especiais como a caça e a pesca. Um tabu geral pode ser lançado (como uma Interdição Papal) a toda uma região e poderá então durar muitos anos.

Se estou certo quanto aos sentimentos de meus leitores creio poder afirmar que apesar de tudo o que ouviram dizer até agora sobre tabu ainda têm uma idéia muito insatisfatória do significado do termo ou de onde situá-lo em seus pensamentos. Isto se deve, sem dúvida, à insuficiência das informações que lhes dei e ao fato de ter deixado de examinar a relação entre tabu e superstição, crença em espíritos e religião. Por outro lado, receio que uma explicação mais detalhada acerca do que se sabe sobre tabu poderia ter sido ainda mais confusa, e posso assegurar-lhes que, na verdade, o assunto como um todo é altamente obscuro.

O que nos interessa, portanto, é certo número de proibições às quais esses povos primitivos estão sujeitos. Tudo é proibido, e eles não têm nenhuma idéia por quê e não lhes ocorre levantar a questão. Pelo contrário, submetem-se às proibições como se fossem coisa natural e estão convencidos de que qualquer violação terá automaticamente a mais severa punição. Ouvimos histórias dignas de fé de como qualquer violação involuntária de uma dessas proibições é de fato automaticamente punida. Um transgressor inocente, que, por exemplo, tenha comido um animal proibido, cai em profunda depressão, prevê a morte e em seguida morre de verdade. Essas proibições dirigem-se principalmente contra a liberdade de prazer e contra a liberdade de movimento e comunicação. Em alguns casos têm um significado compreensível e visam claramente a abstinências e renúncias. Mas em outros casos o motivo central é inteiramente incompreensível; estão relacionadas com detalhes triviais e parecem ser de natureza puramente cerimonial.

Por trás de todas essas proibições parece haver algo como uma teoria de que elas são necessárias porque certas pessoas e coisas estão carregadas de um poder perigoso que pode ser transferido através do contato com elas, quase como uma infecção. A quantidade desse atributo perigoso também desempenha seu papel. Algumas pessoas ou coisas o têm mais do que outras e o perigo é na realidade proporcional à diferença de potencial das cargas. O fato mais estranho parece ser que qualquer um que tenha transgredido uma dessas proibições adquire, ele mesmo, a característica de ser proibido — como se toda a carga perigosa tivesse sido transferida para ele. Esse poder está ligado a todos os indivíduos especiais, como reis, sacerdotes, ou recém-nascidos, a todos os estados excepcionais, como os estados físicos da menstruação, puberdade ou nascimento, e a todas as coisas misteriosas, como a doença e a morte o que está associado a elas através do seu poder de infecção ou contágio.

A palavra ‘tabu’ denota tudo — seja uma pessoa, um lugar, uma coisa ou uma condição transitória — que é o veículo ou fonte desse misterioso atributo. Também denota as proibições advindas do mesmo atributo. E, finalmente, possui uma conotação que abrange igualmente ‘sagrado’ e ‘acima do comum’, bem como ‘perigoso’, ‘impuro’ e ‘misterioso’.

Essa palavra e o sistema por ela denotado dão expressão a um grupo de atitudes mentais e idéias que parecem realmente distantes de nossa compreensão. Em particular, parece não haver nenhuma possibilidade de entrarmos em contato mais íntimo com elas sem examinarmos a crença em fantasmas e espíritos que é característica desses baixos níveis de cultura.

Por que, pode-se perguntar a essa altura, devemo-nos preocupar a tal ponto com esse enigma do tabu? Penso que não somente porque vale a pena tentar solucionar qualquer problema psicológico por ele mesmo, mas por outras razões também. Uma delas é começarmos a ver que os tabus dos selvagens polinésios, afinal de contas, não se acham tão longe de nós como estivemos inclinados a pensar, a princípio; outra é que as proibições morais e as convenções pelas quais nos regemos podem ter uma relação fundamental com esses tabus primitivos e, finalmente, porque uma explicação do tabu pode lançar luz sobre a origem obscura de nosso próprio ‘imperativo categórico’.

Em conseqüência disso, temos um interesse especial em conhecer os pontos de vista de um pesquisador da fama de Wilhelm Wundt sobre o tema do tabu, sobretudo porque ele promete ‘ir buscar a origem do conceito de tabu em suas raízes mais remotas’ [1906, 301].

Wundt diz desse conceito que ‘ele abrange todos os costumes nos quais é manifestado um temor de certos objetos relacionados com idéias de culto ou de ações ligadas a elas. [Ibid., 237.] E, em outro trecho: ‘Se compreendermos por ele [tabu], de acordo com o significado geral da palavra, toda proibição (seja fundamentada no uso ou no costume, seja em leis explicitamente formuladas) de tocar em um objeto ou dele fazer uso para finalidades próprias ou de empregar certas palavras proscritas (…)’ então, continua ele, não pode haver nenhuma raça ou nível de cultura que tenha escapado aos maus efeitos do tabu. [Ibid., 301.]

Wundt passa então a explicar por que lhes parece aconselhável estudar antes a natureza do tabu nas condições primitivas dos selvagens australianos do que na cultura mais elevada dos povos polinésios. [Ibid., 302]. Divide as proibições do tabu entre os australianos em três classes, conforme afetem animais, seres humanos ou outros objetos. Os tabus sobre animais, que consistem fundamentalmente em proibições de matá-los e comê-los, constituem o núcleo do totemismo. [Ibid., 303.] A segunda classe de tabus, os dirigidos aos seres humanos, são de uma espécie inteiramente diferente. Restringem-se, em primeiro lugar, a circunstâncias nas quais a pessoa sobre a qual o tabu é imposto se encontra numa situação inusitada. Assim os rapazes são tabu em suas cerimônias de iniciação; as mulheres, durante a menstruação e imediatamente após o parto; assim como os recém-nascidos, as pessoas enfermas e, acima de tudo, os mortos. A propriedade de um homem que faz dela uso constante é um tabu permanente para todos os outros homens: seu vestuário, suas ferramentas e armas, por exemplo. Está incluído entre as propriedades mais pessoais de um homem, na Austrália, o novo nome que recebe quando menino, em sua iniciação. É tabu e deve ser mantido em  segredo. Os tabus da terceira classe, que são impostos a árvores, plantas, casas e localidades, são menos estáveis. Parecem seguir uma regra de que qualquer coisa que seja misteriosa ou provoque temor por qualquer motivo se torna sujeita a tabu. [Ibid., 304.]

As modificações apresentadas pelo tabu na cultura mais rica da Polinésia e do arquipélago malaio não são muito profundas, conforme o próprio Wundt é obrigado a admitir. As diferenças sociais mais marcantes entre esses povos encontram expressão no fato de que chefes, reis e sacerdotes exercem um tabu especialmente eficaz e estão, eles próprios, sujeitos a um tabu da maior força. [Ibid., 305-6.]

Mas, acrescenta Wundt, as verdadeiras fontes do tabu são de natureza mais profunda que os interesses das classes privilegiadas: ‘elas têm sua origem na fonte dos instintos humanos ao mesmo tempo mais primitivos e mais duradouros — no temor dos poderes “demoníacos”.’ [Ibid., 307.] ‘O tabu originariamente nada mais é que o temor objetivado do poder “demoníaco” que se acredita jazer oculto em um objeto-tabu. O tabu proíbe qualquer coisa que possa provocar esse poder e ordena que, se tive sido ferido, quer voluntária, quer involuntariamente, a vingança do demônio deve ser afastada.’ [Ibid., 308.]

Pouco a pouco, é o que tudo indica, o tabu vai-se transformando numa força com uma base própria, independente da crença em demônios. Desenvolve-se nas normas do costume e da tradição e finalmente da lei. ‘Mas a ordem não externada, subjacente a todas as proibições do tabu, com suas inúmeras variações de acordo com o tempo e o local, é originalmente uma e apenas uma: “Cuidado com a cólera dos demônios!”’ [Loc. cit.]

Wundt nos comunica a seguir que o tabu é uma expressão e um derivado da crença dos povos primitivos no poder ‘demoníaco’. Posteriormente, diz ele, libertou-se dessa raiz e continuou sendo um poder simplesmente porque era um poder — proveniente de uma espécie de conservantismo mental. E daí por diante ele próprio tornou-se a raiz de nossos preceitos morais e de nossas leis. Embora a primeira dessas afirmações provoque pouca contradição, creio que estarei externando os pensamentos de muitos leitores quando disser que a explicação de Wundt soa como um desapontamento. Isto acontece, certamente, por ele não remontar o conceito de tabu às suas fontes ou não revelar suas raízes mais primitivas. Nem o medo nem os demônios podem ser considerados pela psicologia como as coisas ‘mais primitivas’, impenetráveis a qualquer tentativa de descobrimento de seus antecedentes. A coisa seria diferente se os demônios realmente existissem. Mas sabemos que, como os deuses, eles são criações da mente humana; foram feitos por algo e de algo.

Wundt tem importantes pontos de vista sobre a dupla significação do tabu, embora não sejam expressos com muita clareza. Segundo ele, a distinção entre ‘sagrado’ e ‘impuro’ não existia nos primórdios do tabu. Por esse mesmo motivo, esses conceitos eram, nesse período, destituídos da significação peculiar que só poderiam adquirir quando se tornassem opostos um ao outro. Animais, seres humanos ou localidades sobre os quais se impunha um tabu eram ‘demoníacos’, não ‘sagrados’, nem, por conseguinte ‘impuros’, no sentido que foi posteriormente adquirido. É precisamente esse significado neutro e intermediário — ‘demoníaco’ ou o ‘que não pode se tocado’ — que é com propriedade expresso pela palavra ‘tabu’, desde que ela ressalta uma característica que permanece comum todo o tempo, tanto para o que é sagrado como para o que é impuro: o temor do contato com ele. A persistência, contudo, dessa importante característica comum é ao mesmo tempo prova de que o campo abrangido pelos dois era originariamente um só e que foi apenas como resultado de influências ulteriores que se tornou diferenciado e acabou por se desenvolver em opostos. [Ibid., 309.]

De acordo com Wundt, esta característica original do tabu — a crença num poder ‘demoníaco’ que jaz oculto num objeto e que, se este for tocado ou utilizado ilegalmente, vinga-se lançando um encantamento sobre o transgressor — ainda é inteira e unicamente ‘medo objetivado’. Esse temor, contudo, ainda não se cindiu nas duas formas nas quais posteriormente se desenvolve: veneração e horror. [Ibid., 310.]

Mas como ocorreu essa cisão? Através da transplantação, é o que nos diz Wundt, dos regulamentos do tabu, da esfera dos demônios para a esfera da crença em deuses. [Ibid., 311.] O contraste entre ‘sagrado’ e ‘impuro’ coincide com uma sucessão de dois períodos da mitologia. O mais antigo desses dois períodos não desapareceu completamente quando o segundo foi alcançado, mas persistiu no que foi considerado como uma forma inferior e finalmente desprezível. [Ibid., 312.] É uma lei geral da mitologia, afirma ele, que uma fase que tenha passado, pelo próprio motivo de ter sido superada e impelida para baixo por uma fase superior, perdura numa forma inferior ao lado da posterior, de modo que os objetos de sua veneração se transmudam em objetos de horror. [Ibid., 313.]

O resto do estudo de Wundt trata de relação do conceito de tabu com a purificação e o sacrifício.

 

(2)

 

Quem quer que aborde o problema do tabu pelo ângulo da psicanálise, isto é, da investigação da porção inconsciente da mente do indivíduo, reconhecerá, após um momento de reflexão, que esses fenômenos estão longe de lhe serem estranhos. Ele (Wundt) encontrou pessoas que criaram para si mesmas proibições de tabus individuais dessa mesma espécie e que obedecem a elas com tanto rigor quanto os selvagens obedecem aos tabus comuns a sua tribo ou sociedade. Se já não estivesse habituado a descrever essas pessoas como pacientes ‘obsessivos’, verificaria que a ‘doença do tabu’ seria a expressão mais apropriada para a condição deles. Tendo, entretanto, aprendido tanto sobre essa doença obsessiva através do estudo psicanalítico — sua etiologia clínica e a essência do seu mecanismo psíquico — não pôde escapar de aplicar o conhecimento assim adquirido ao fenômeno sociológico paralelo.

A essa altura uma advertência deve ser feita. A similaridade entre o tabu e a doença obsessiva talvez não seja mais que uma questão de circunstâncias exteriores; talvez se aplique apenas às formas pelas quais se manifestam e não se estenda ao seu caráter essencial. A natureza se compraz em fazer uso das mesmas formas nas mais variadas conexões biológicas, como o faz, por exemplo, na aparência das estruturas semelhantes a galhos tanto nos corais como nas plantas, e mesmo em certas formas de cristal e em certos precipitados químicos. Obviamente seria apressado e improfícuo inferir a existência de qualquer relação interna de pontos de concordância como estes, que simplesmente se originam do funcionamento das mesmas causas mecânicas. Teremos em mente essa advertência, mas não precisamos ser por ela impedidos de continuarmos com a nossa comparação.

O ponto de concordância mais evidente e marcante entre as proibições obsessivas dos neuróticos e os tabus é que essas proibições são igualmente destituídas de motivo, sendo do mesmo modo misteriosas em suas origens. Tendo surgido em certo momento não especificado, são forçosamente mantidas por um medo irresistível. Não se faz necessária nenhuma ameaça externa de punição, pois há uma certeza interna, uma convicção moral, de que qualquer violação conduzirá à desgraça insuportável. O máximo que um paciente obsessivo pode dizer sobre esse ponto é que tem uma sensação indefinida de que determinada pessoa do seu ambiente será atingida como resultado da violação. Nada se sabe sobre a natureza do mal e na realidade até mesmo essa dose insignificantemente pequena de informação é com mais freqüência obtida em conexão com as ações expiatórias e defensivas que mais adiante teremos de examinar do que com as próprias proibições.

Como no caso do tabu, a principal proibição, o núcleo da neurose, é contra o tocar e daí ser às vezes conhecida como ‘fobia do contato’, ou ‘délire du toucher‘. A proibição não se aplica meramente ao contato físico imediato mas tem uma extensão tão ampla quanto o emprego metafórico da expressão ‘entrar em contato com’. Qualquer coisa que dirija os pensamentos do paciente para o objeto proibido, qualquer coisa que o coloque em contato intelectual com ele, é tão proibida quanto o contato físico direto. Essa mesma extensão também ocorre no caso do tabu.

A finalidade de algumas das proibições é de imediato evidente. Outras, pelo contrário, nos surpreendem por serem incompreensíveis, destituídas de sentido e tolas, sendo as proibições desta última espécie descritas como ‘cerimoniais’. Essa distinção também é encontrada nas observâncias do tabu. [ver em [1]]

As proibições obsessivas estão extremamente sujeitas ao deslocamento. Estendem-se de um objeto a outro por quaisquer caminhos que o contexto possa proporcionar e esse novo objeto então se torna, para empregar a expressão apropriada de uma de minha pacientes: ‘impossível’ — até que finalmente o mundo inteiro jaz sob um embargo de ‘impossibilidade’. Os pacientes obsessivos comportam-se como se as pessoas e coisas ‘impossíveis‘ fossem portadores de uma perigosa infecção passível de disseminar-se pelo contato sobre todas as coisas em sua vizinhança. Já chamei a atenção [p. 40] para a mesma capacidade característica de contágio e transferência em minha descrição do tabu. Sabemos também que qualquer um que viole um tabu pela entrada em contato com algo que seja tabu se torna tabu ele próprio e que, então, ninguém poderá entrar em contato com ele.

Colocarei agora lado a lado dois exemplos da transferência (ou, como é melhor dizer, do deslocamento) de uma proibição. Um deles é extraído da vida dos maoris e o outro de uma observação minha sobre uma paciente obsessiva.

‘Um chefe maori não soprava o fogo com a boca, pois o seu hálito sagrado comunicaria sua santidade ao fogo, que o passaria para a panela sobre este, que o passaria adiante para a carne na panela, que o passaria para o homem que comesse a carne que estava na panela, que estava no fogo, que foi soprado pelo chefe, de modo que quem a comesse, infectada pelo sopro do chefe transmitido por esses veículos intermediários, com certeza morreria.’ O marido da minha paciente adquiriu um artigo doméstico de certa espécie e levou-o para casa. Ela insistiu em que o objeto deveria ser retirado de casa ou, caso contrário, tornaria o aposento em que vivia ‘impossível’, pois ouvira dizer que o artigo tinha sido comprado numa loja situada na, digamos, Rua ‘Smith’. ‘Smith’, contudo, era o nome de casada de uma amiga sua que vivia numa cidade distante e que a paciente conhecera na juventude com o nome de solteira. Esse sua amiga estava no momento ‘impossível’ ou tabu. Em conseqüência, o artigo que fora comprado aqui em Viena era tão tabu quanto a própria amiga com quem não devia entrar em contato.

As proibições obsessivas envolvem renúncias e restrições tão extensivas na vida dos que a elas estão sujeitos como as proibições do tabu, mas algumas podem ser suspensas se certas ações foram realizadas. A partir daí, essas ações devem se realizadas; elas se tornam atos compulsivos ou obsessivos, não podendo haver dúvida de que são da mesma natureza da expiação, da penitência, das medidas defensivas e da purificação. O mais comum desses atos obsessivos é lavar-se com água (‘mania de lavar-se’). Algumas proibições tabu podem ser substituídas da mesma maneira ou, antes, sua violação pode ser reparada por uma ‘cerimônia’ semelhante, e mais uma vez aqui a ilustração com água é o método preferido.

Sintetizemos agora os pontos em que a concordância entre as práticas do tabu e os sintomas obsessivos é mais claramente mostrada: (1) o ato de faltar às proibições qualquer motivo atribuível; (2) o fato de serem mantidas por uma necessidade interna; (3) o fato de serem facilmente deslocáveis e de haver um risco de infecção proveniente do proibido; e (4) o fato de criarem injunções para a realização de atos cerimoniais.

Agora, tanto a história clínica como os mecanismos psíquicos da neurose obsessiva se nos tornaram conhecidos pela psicanálise. A história clínica de um caso típico de ‘fobia de contato’ é a seguinte. Logo no começo, na mais tenra infância, o paciente revela um forte desejo de tocar, cuja finalidade é de tipo muito mais especializada do que se estaria inclinado a esperar. Esse desejo defronta-se prontamente com uma proibição externa contra a realização daquele tipo específico de contato. Aceita-se a proibição, visto encontrar apoio em poderosas forças internas, e ela comprova ser mais forte que o instinto que procura expressar-se pelo toque. Em conseqüência, entretanto, da constituição psíquica primitiva da criança, a proibição não consegue abolir o instinto. Seu único resultado é reprimi-lo (o desejo de tocar) e bani-lo para o inconsciente. Tanto a proibição como o instinto persistem: o instinto porque foi apenas reprimido e não abolido, e a proibição porque, se ela cessasse, o instinto forçaria o seu ingresso na consciência e na operação real. Cria-se uma situação que continua imanejada — uma fixação psíquica — e tudo o mais decorre do conflito continuado entre a proibição e o instinto.

A principal característica da constelação psicológica que dessa forma se torna fixa é algo que poderia ser descrito como a atitude ambivalente do sujeito para com um objeto determinado, ou melhor, para com um ato em conexão com esse objeto. Ele deseja constantemente realizar esse ato (o tocar) [e o considera seu gozo supremo, mas não deve realizá-lo] e também o detesta. O conflito entre essas duas tendências não pode ser prontamente solucionado porque — não há outra forma de expressá-lo — elas estão localizadas na mente do sujeito de tal maneira que não podem vir à tona uma contra a outra. A proibição é ruidosamente consciente, enquanto o desejo persistente de tocar é inconsciente e o sujeito nada sabe a respeito dele. Se não fosse esse fator psicológico, uma ambivalência como esta não poderia durar tanto tempo nem conduzir a tais conseqüências.

Em nossa história clínica de um caso insistimos que a imposição da proibição muito no início da infância é o ponto determinante; uma importância similar está ligada nos desenvolvimentos subseqüentes ao mecanismo de repressão na mesma idade precoce. Como resultado da repressão que foi forçada e que envolve uma perda de memória — uma amnésia — os motivos da proibição (que é consciente) permanecem desconhecidos e todos os esforços para eliminá-las por processos intelectuais têm de falhar, visto não poderem encontrar qualquer base de ataque. A proibição deve sua força e seu caráter obsessivo precisamente ao seu oponente inconsciente, o desejo oculto e não diminuído — isto é, a uma necessidade interna inacessível à inspeção consciente. A facilidade com que a proibição pode ser transferida e estendida reflete um processo que se enquadra no desejo inconsciente, sendo grandemente facilitada pelas condições psicológicas que predominam no inconsciente. O desejo instintivo se desloca constantemente, a fim de fugir ao impasse, e se esforça por encontrar substitutos — objetos substitutos e atos substitutos — para colocar em lugar dos proibidos. Como conseqüência disso, a própria proibição também se desloca de um lado para outro, estendendo-se a quaisquer novos objetivos que o impulso proibido possa adotar. Qualquer novo avanço feito pela libido reprimida é respondido por um novo aguçamento da proibição. A inibição mútua das duas forças conflitantes produz uma necessidade de descarga, a fim de reduzir a tensão predominante, e a isto ser atribuída a razão para a realização de atos obsessivos. No caso de uma neurose, estas são ações nitidamente de concessão, de um ponto de vista são provas de remorso, tentativas de expiação e assim por diante, enquanto, por outro lado, são ao mesmo tempo atos substitutivos destinados a compensar o instinto pelo que foi proibido. Constitui uma lei da doença neurótica que esses atos obsessivos se enquadrem cada vez mais no domínio do instinto e aproximem-se mais e mais da atividade originalmente proibida.

Façamos agora a experiência de tratar o tabu como se fosse da mesma natureza de uma proibição obsessiva em um dos nossos pacientes. Devemos esclarecer de antemão, contudo, que muitas das proibições tabus que chegam ao nosso conhecimento são de natureza secundária, deslocada e distorcida, e que devemos ficar satisfeitos se pudermos lançar apenas um pouco de luz sobre os tabus mais fundamentais e significativos. Além disso, as diferenças entre a situação de um selvagem e a de um neurótico são, sem dúvida, de importância suficiente para tornar impossível qualquer concordância rigorosa e impedir que levemos a comparação ao ponto de identidade em todos os detalhes.

Em primeiro lugar, portanto, deve-se dizer que não faz nenhum sentido pedir a selvagens que nos digam o motivo real de suas proibições — a origem do tabu. Decorre de nossos postulados que eles não podem responder, visto que seu verdadeiro motivo deve ser ‘inconsciente’. Podemos, entretanto, reconstruir a história do tabu, como se segue, sobre o modelo das proibições obsessivas. Os tabus, devemos supor, são proibições de antiguidade primeva que foram, em certa época, externamente impostas a uma geração de homens primitivos; devem ter sido calcadas sobre eles, sem a menor dúvida, de forma violenta pela geração anterior. Essas proibições devem ter estado relacionadas com atividades para as quais havia forte inclinação. Devem então ter persistido de geração para geração, talvez meramente como resultado da tradição transmitida através da autoridade parental e social. Possivelmente, contudo, em gerações posteriores devem ter-se tornado ‘organizadas’ como um dom psíquico herdado. Quem pode afirmar se coisas tais como ‘idéias inatas’ existem ou se no presente exemplo atuaram, isoladamente ou em conjunto com a educação, para ocasionar a fixação permanente de tabus? Mas uma coisa certamente decorreria da persistência do tabu, a saber, que o desejo original de fazer a coisa proibida deve persistir ainda entre as tribos em causa. Elas devem, portanto, ter uma atitude ambivalente para com os seus tabus. Em seu inconsciente não existe nada que mais gostassem de fazer do que violá-los, mas temem fazê-lo; temem precisamente porque gostariam, e o medo é mais forte que o desejo. O desejo está, inconsciente embora, em cada membro individual da tribo, do mesmo modo que está nos neuróticos.

As mais antigas e importantes proibições ligadas aos tabus são as duas leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com membros do clã totêmico do sexo oposto.

Estes devem ser, então, os mais antigos e poderosos dos desejos humanos. Não podemos esperar compreender isso nem testar nossa hipótese com esses dois exemplos, enquanto ignorarmos totalmente o significado e a origem do sistema totêmico. Mas a enunciação desses dois tabus e o fato de sua concomitância farão lembrar a qualquer pessoa familiarizada com os achados de pesquisas psicanalíticas em indivíduos algo bem definido, que os psicanalistas consideram como sendo o ponto central dos desejos da infância e o núcleo das neuroses.

A multiplicidade das manifestações do tabu, que levaram às tentativas de classificação que já tive ocasião de mencionar, ficam reduzidas pela nossa tese a uma única unidade: a base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte inclinação do inconsciente.

Já ouvimos dizer [ver em [1]], embora sem compreendê-lo, que qualquer um que faz o que é proibido, isto é, que viola o tabu, se torna ele próprio tabu. Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar não somente a uma pessoa que fez o que é proibido como também a pessoas em estados específicos, aos próprios estados, bem como objetos impessoais? Qual pode ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condições diferentes? Só pode ser uma coisa: a qualidade de excitar a ambivalência dos homens e de tentá-los a transgredir a proibição.

Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo: por que se lhe deve permitir fazer o que é proibido a outros? Assim, ele é verdadeiramente contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitação e, por esse motivo, ele próprio deve ser evitado.

Mas uma pessoa que não tenha violado nenhum tabu pode todavia ser permanente ou temporariamente tabu por se encontrar num estado que possui a qualidade de provocar desejos proibidos em outros e de despertar neles um conflito de ambivalência. A maioria das posições excepcionais e dos estados excepcionais [ver em [1]] são dessa espécie e possuem esse perigoso poder. O rei ou chefe desperta inveja por causa de seus privilégios: todos, talvez, gostariam de ser rei. Homens mortos, recém-nascidos e mulheres menstruadas ou nas dores do parto estimulam desejos pelo seu desamparo especial; um homem que acaba de atingir a maturidade os estimula pela promessa de novo prazer. Por essa razão, todas essas pessoas e todos esses estados são tabu, visto que se deve resistir à tentação.

Agora, também, podemos compreender por que as quantidades de mana de que são dotadas diferentes pessoas podem ser subtraídas umas das outras e podem, em certa medida, anularem-se [ver em [1]]. O tabu de um rei é forte demais para um dos seus súditos porque a diferença social entre eles é muito grande. Mas um ministro poderá servir, sem qualquer dano, de intermediário entre eles. Se traduzirmos isto da linguagem do tabu para a da psicologia normal, significa algo mais ou menos assim: um súdito, que teme a grande tentação que lhe é apresentada pelo contato com o rei, pode talvez suportar tratar com um alto funcionário do qual não precisa ter tanta inveja e cuja posição poderá até mesmo lhe parecer acessível. Um ministro pode atenuar sua inveja do rei pela reflexão sobre o poder que ele próprio exerce. Assim acontece que diferenças menores entre as quantidades da tentadora força mágica possuída por duas pessoas devem ser menos temidas do que as maiores.

É igualmente claro por que é que a violação de certas proibições tabus constitui um perigo social que deve ser punido ou expiado por todos os membros da comunidade se é que não desejam sofrer danos [ver em [1]]. Se substituirmos os desejos inconscientes por impulsos conscientes, veremos que o perigo é real. Reside no risco da imitação, que rapidamente levaria à dissolução da comunidade. Se a violação não fosse vingada pelos outros membros, eles se dariam conta de desejar agir da mesma maneira que o transgressor.

Não nos podemos surpreender com o fato de nas restrições do tabu, o tocar desempenha papel semelhante ao representado nas ‘fobias de contato’, embora o significado secreto da proibição não possa ser de uma natureza tão especializada no tabu como o é na neurose. O tocar é o primeiro passo no sentido de obter qualquer espécie de controle sobre uma pessoa ou objeto ou de tentar fazer uso dos mesmos.

Traduzimos o poder de contágio inerente ao tabu na posse de algum atributo capaz de produzir a tentação ou incentivar a imitação. Isso não parece entrar em acordo com o fato de que o caráter contagioso do tabu é revelado principalmente por sua transmissibilidade a objetos materiais, que então se tornam, eles próprios, portadores do tabu.

Esta transmissibilidade do tabu é um reflexo da tendência, já comentada por nós, de o instinto inconsciente da neurose deslocar-se constantemente por meios associativos para novos objetos. Nossa atenção é assim dirigida para o fato de que a perigosa força mágica do mana corresponde a dois poderes de uma espécie mais realista: o poder de fazer alguém lembrar-se de seus próprios desejos proibidos e o poder visivelmente mais importante de induzi-lo a transgredir a proibição em obediência àqueles desejos. Essas funções podem ser reduzidas a uma, entretanto, se supusermos que numa mente primitiva o despertar da lembrança de uma ação proibida acha-se naturalmente vinculado ao despertar de um impulso para efetuar essa ação. Dessa forma, a lembrança e a tentação se reúnem novamente. Deve-se admitir também que, na medida em que o exemplo de um homem que transgride uma proibição tenta outro a fazer o mesmo, a desobediência a proibições se propaga como um contágio, da mesma maneira que um tabu se transfere de uma pessoa para um objeto material e de um objeto material para outro.

Se a violação de um tabu pode ser corrigida por reparação ou expiação, que envolvem a renúncia a algum bem ou alguma liberdade, isso prova que a obediência à injunção do tabu significava em si mesma a renúncia a algo desejável. A emancipação de uma renúncia é compensada pela imposição de outra alhures. Isto nos leva a concluir que a expiação é um fator mais fundamental que a purificação no cerimonial do tabu.

Resumirei agora os aspectos da natureza do tabu que foram esclarecidos através da comparação deste com as proibições obsessivas dos neuróticos. O tabu é uma proibição primeva forçadamente imposta (por alguma autoridade) de fora, e dirigida contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos os seres humanos. O desejo de violá-lo persiste no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu têm uma atitude ambivalente quanto ao que o tabu proíbe. O poder mágico atribuído ao tabu baseia-se na capacidade de provocar a tentação e atua como um contágio porque os exemplos são contagiosos e porque o desejo proibido no inconsciente desloca-se de uma coisa para outra. O fato de a violação de um tabu poder ser expiada por uma renúncia mostra que esta renúncia se acha na base da obediência ao tabu.

(3)

O que desejamos descobrir agora é qual o grau de valor que deve ser atribuído ao paralelo por nós traçados entre o tabu e a neurose obsessiva e à visão do tabu em que nos baseamos nesse paralelo. O valor deles vai depender claramente de: se o ponto de vista que acabamos de apresentar oferece quaisquer vantagens sobre outros, e se nos dá do tabu uma compreensão mais clara do que a que poderíamos conseguir de outra maneira. Talvez estejamos inclinados a pensar que apresentamos provas suficientes da aplicabilidade do nosso ponto de vista no que já foi dito; todavia, devemos tentar fortalecer as provas entrando em maiores detalhes em nossa explicação das proibições e usos do tabu.

Há também outro caminho à nossa disposição. Podemos começar por nos perguntar se algumas das hipóteses que transferimos das neuroses para o tabu ou alguns dos resultados a que esse método nos conduziu não serão talvez impossíveis de serem diretamente verificáveis nos fenômenos do tabu. Mas temos de decidir o que estamos buscando. Nossa afirmação de que o tabu teve sua origem numa proibição primeva imposta numa ou noutra época por alguma autoridade externa evidentemente não é passível de demonstração. Em vez disso, o que nos esforçaremos por confirmar, portanto, são os determinantes psicológicos do tabu, que viemos a conhecer a partir da neurose obsessiva. Como chegamos ao conhecimento que temos desses fatores psicológicos no caso da neurose? Através do estudo analítico de seus sintomas, e particularmente de atos obsessivos, medidas defensivas e ordens obsessivas. Verificamos que eles apresentavam todos os sinais de serem derivados de impulsos ambivalentes, quer correspondendo simultaneamente tanto a um desejo como a um contradesejo, quer atuando de forma predominante em nome de uma das tendências opostas. Se agora conseguirmos demonstrar que a ambivalência, isto é, a dominância de tendências opostas, pode também ser encontrada nas observâncias do tabu, ou se pudermos apontar algumas delas que, como atos obsessivos, dão expressão simultânea a ambas as correntes, teremos estabelecido a concordância psicológica entre o tabu e a neurose obsessiva naquilo que talvez seja sua característica mais importante.

As duas proibições fundamentais do tabu são, como já tive ocasião de assinalar, inacessíveis à nossa análise devido à sua vinculação com o totemismo, enquanto que outras de suas injunções são de natureza secundária e, em conseqüência, inúteis para a nossa finalidade, pois o tabu tornou-se o método comum de legislação nas comunidades por ele afetadas e veio a servir objetivos sociais que por certo são mais recentes que o próprio tabu: tais, por exemplo, são os tabus impostos por chefes e sacerdotes para a proteção de seus próprios privilégios e propriedades. Não obstante, perdura um grande grupo de observâncias sobre as quais nossa pesquisa pode ser feita. Destas, escolherei os tabus que se vinculam (a) a inimigos, (b) a chefes e (c) aos mortos, e retirarei o material para estudo da excelente coletânea incluída por Frazer em Taboo end the Perils of the Soul (1911b), a segunda parte de sua grande obra The Golden Bough.

(a) O Tratamento dos Inimigos

Talvez tenhamos a inclinação de supor que os povos selvagens e semi-selvagens sejam culpados de crueldade desinibida e implacável para com os seus inimigos. Ficaremos muito surpreendidos de saber, então, que mesmo no caso deles, a morte de um homem é regida por grande número de observâncias que estão incluídas entre as práticas do tabu. Essas observâncias podem ser distribuídas facilmente em quatro grupos. Elas exigem: (1) o apaziguamento do inimigo assassinado, (2) restrições sobre o assassino, (3) atos de expiação e purificação por parte dele e (4) certas observâncias cerimoniais. Nossas informações incompletas sobre o assunto não nos permitem determinar com certeza quão geral ou modificada essas práticas podem ser encontradas entre os povos em questão, mas, para o objetivo do nosso estudo, isto não importa. Pode-se admitir com segurança, em todo caso, que o que temos diante de nós não são peculiaridades isoladas, mas costumes muito difundidos.

Os ritos de apaziguamento levados a efeito na ilha de Tímor, quando uma expedição de guerra retorna em triunfo, trazendo as cabeças do inimigo vencido, são particularmente notáveis, visto que, além deles, o chefe da expedição é submetido a severas restrições (ver mais adiante, em [1]). Por ocasião da volta da expedição, são oferecidos sacrifícios para apaziguar as almas dos homens cujas cabeças foram cortadas. ‘O povo pensa que algum infortúnio sobreviria ao vencedor se essas oferendas fossem omitidas. Além disso, parte da cerimônia consiste numa dança acompanhada por um cântico, no qual a morte do homem assassinado é lamentada e suplicado o seu perdão. “Não tenhais raiva”, dizem, “porque vossa cabeça está aqui conosco; se tivéssemos tido menos sorte, nossas cabeças poderiam estar agora expostas em vossa aldeia. Oferecemos o sacrifício para vos apaziguar. Vosso espírito pode agora descansar e deixar-nos em paz. Por que fostes nosso inimigo? Não teria sido melhor que tivéssemos permanecido amigos? Então vosso sangue não teria sido derramado e vossa cabeça não teria sido decepada.’ O mesmo se aplica aos povos de Paloo, nas Celebes. E do mesmo modo ‘os gallas [da África Oriental], de volta da guerra, oferecem sacrifícios aos djims ou espíritos protetores de seus inimigos mortos antes de entrarem em suas próprias casas’.

Outros povos encontraram meios de transformar seus ex-inimigos, após a morte, em protetores, amigos e benfeitores. Esse método consiste em tratar suas cabeças decepadas com afeição, como alguns dos povos selvagens de Bornéu se gabam de fazer. Quando os dyaks marítimos de Sarawak trazem para casa uma cabeça, de uma expedição em sucedida de caçadores de cabeça, durante meses após sua chegada ela é tratada com a maior consideração, sendo-lhe dirigidos todos os nomes carinhosos de que dispõe sua língua. As mais delicadas iguarias lhe são postas na boca, alimentos finos de todas as espécies e até mesmo charutos. Implora-se repetidamente à cabeça que odeie seus antigos amigos e ame seus novos anfitriões, visto que se tornou agora um deles. Seria um grande erro supor que esses costumes, que tanto nos chocam, são cumpridos com qualquer intenção de ridículo.

Em várias tribos selvagens da América do Norte observadores ficaram impressionados com as lamentações por inimigos que haviam sido mortos e escalpelados. Quando um choctaw matava um inimigo, ficava de luto por um mês, durante o qual era submetido a severas restrições; e os dacotas tinham práticas semelhantes. Quando os osages, informa uma testemunha, já prantearam bastante seus próprios mortos, ‘lamentarão o inimigo como se fosse um amigo’.

Antes de considerarmos as classes restantes de práticas tabus em relação a inimigos, devemos tratar de uma objeção óbvia. Argumentarão contra nós, juntamente com Frazer e outros, que os fundamentos desses ritos de apaziguamento são bastante simples e nada têm a ver com essa coisa chamada ‘ambivalência’. Esses povos são dominados por um temor supersticioso dos fantasmas dos assassinados — temor que não era desconhecido na antiguidade clássica e que foi levado à cena pelo grande dramaturgo inglês nas alucinações de Macbeth e Ricardo III. Todos os ritos de apaziguamento decorrem logicamente dessa superstição bem como as restrições e atos de expiação que serão examinados logo a seguir. Esse ponto de vista também é apoiado pelo quarto grupo dessas observâncias, que só podem ser explicadas como tentativas de afugentar os fantasmas das vítimas que estão perseguindo seus assassinos. Além disso, os selvagens admitem abertamente seu temor dos fantasmas dos inimigos mortos e eles próprios atribuem a esse medo as práticas do tabu que ora são objeto de nosso exame.

Esta objeção é realmente óbvia, e se abrangesse todo o terreno poderíamos poupar-nos o trabalho de qualquer outra tentativa de explicação. Deixarei para depois sua abordagem, e no momento simplesmente enunciarei o ponto de vista alternativo, que se origina da hipótese baseada em nossas apreciações anteriores do tabu. A conclusão que devemos inferir de todas essas observâncias é que os impulsos que expressam para com um inimigo não são unicamente hostis. São também manifestações de remorso, de admiração pelo inimigo e de consciência pesada por havê-lo matado. É difícil resistir à idéia de que, muito antes de uma tábua de leis ter sido legada por qualquer deus, esses selvagens estavam de posse de um mandamento vivo: ‘Não matarás’, cuja violação não passaria sem punição.

Voltemos agora aos outros três grupos da observância de tabus. As restrições a um assassino vitorioso são impostas com uma freqüência, e em geral uma severidade, fora do comum. Em Tímor (cf. os ritos de apaziguamento descritos em [1]), o chefe da expedição é proibido ‘de retornar imediatamente à sua própria casa. Uma cabana especial é preparada para ele, na qual terá de residir por dois meses, submetido a uma purificação corporal e espiritual. Durante esse tempo, não poderá encontrar-se com a esposa nem alimentar-se a si próprio; a comida deve ser colocada em sua boca por outra pessoa. Em algumas tribos diaks, os homens que retornam de uma expedição bem-sucedida são obrigados a viverem sós por vários dias e absterem-se de diversos tipos de alimento; não podem tocar em ferro nem ter qualquer relação com mulheres. Em Logea, uma ilha nas proximidades da Nova Guiné, os homens que mataram ou ajudaram a matar inimigos encerram-se por cerca de uma semana em suas casas. Devem evitar toda relação com as esposas e amigos e não podem tocar na comida com as mãos. Podem comer apenas alimentos vegetais, que lhes são trazidos cozidos em panelas especiais. A intenção destas restrições é proteger os homens contra o cheiro do sangue dos assassinados, porque se acredita que se o cheirarem, cairão doentes e morrerão. Na tribo toaripi ou motumotu do sudeste da Nova Guiné, um homem que matou outro não pode chegar perto da esposa, nem tocar na comida com os dedos. É alimentado por outros e somente com certos tipos de alimento. Estas observâncias duram até a lua nova.’ (Frazer, 1911b, 167.)

Não tentarei fornecer aqui um catálogo completo dos casos citados por  Frazer de restrições impostas aos vencedores que matam. Chamarei a atenção apenas para mais alguns desses casos em que seu caráter de tabu é particularmente acentuado ou em que as restrições se fazem acompanhar de expiação, purificação e outros cerimoniais.

‘Entre os monumbos da Nova Guiné alemã, quem quer que tenha matado um inimigo na guerra torna-se por isso “impuro”’ — sendo o mesmo termo aplicado às mulheres menstruadas ou no puerpério. Ele ‘tem de permanecer por longo tempo na casa comum dos homens, enquanto os aldeões se reúnem em torno dele e celebram sua vitória com danças e cantos. Não pode tocar em ninguém, nem mesmo em sua própria esposa e filhos; se os tocasse, acredita-se que os últimos ficariam cobertos de feridas. Torna-se novamente limpo ou puro pelo banho e pela utilização de outras modalidades de purificação.’ [Ibid., 169.]

‘Entre os natchez da América do Norte, os guerreiros que tiravam seus primeiros escalpos eram obrigados a observar certas regras de abstinência por seis meses. Não poderiam dormir com as esposas nem comer carne; seu único alimento era peixe e papa de milho. (…) Quando um choctaw matava um inimigo e tirava seu escalpo, ficava de luto por um mês, durante o qual não podia pentear o cabelo e, se a cabeça lhe comichasse, não poderia coçá-la, a não ser com uma varinha que usa presa ao pulso para esse fim.’ [Ibid., 181.]

‘Quando um índio pima matava um apache, tinha de passar por severas cerimônias de purificação e expiação. Durante um jejum de 16 dias não podia tocar em carne nem em sal, olhar para um fogo a arder ou falar com um ser humano. Morava sozinho na mata, assistido por uma velha, que lhe trazia sua escassa ração de comida. Banhava-se freqüentemente no rio e (em sinal de luto) mantinha a cabeça coberta por um emplastro de lama. No décimo sétimo dia havia uma cerimônia pública de purificação solene do homem e de suas armas. Uma vez que os índios pima levavam o tabu de matar muito mais a sério que os seus inimigos e, diferentemente deles, não adiavam a expiação e a purificação até o fim da expedição, sua eficiência guerreira era grandemente prejudicada por sua rigidez moral, ou piedade, se se preferir esse termo. Não obstante sua extrema coragem, os americanos encontraram neles aliados insatisfatórios em suas operações contra os apaches.’ [Ibid., 182-4.]

Por mais que os pormenores e as variações das cerimônias de expiação e purificação após a morte dos inimigos possam ser de interesse para uma pesquisa mais profunda do assunto, deter-me-ei neste ponto, pois, para nosso presente objetivo, elas nada mais têm a dizer-nos. Talvez possa sugerir que o isolamento temporário ou permanente dos carrascos profissionais, isolamento que persistiu até os dias presentes, tenha algo a ver com esse fato. A posição do carrasco público na sociedade medieval oferece uma representação do funcionamento do tabu entre os selvagens.

Na explicação aceita de todas estas observâncias de apaziguamento, restrição, expiação e purificação, dois princípios se combinam: a extensão do tabu do homem morto a tudo o que tenha entrado em contato com ele e o medo do seu fantasma. Como esses dois atores devem ser combinados um com o outro para explicar os cerimoniais, se devem ser encarados como de igual peso, se um deles é primário e o outro secundário e, nesse caso, qual deles — são perguntas que ficam sem resposta e, na verdade, seria difícil encontrar uma. Nós, por outro lado, podemos chamar a atenção para a unidade de nosso ponto de vista, que atribui a origem de todas essas observâncias à ambivalência emocional para com o inimigo.

 

(b) O Tabu Relativo aos Governantes

A atitude dos povos primitivos para com seus chefes, reis e sacerdotes rege-se por dois princípios básicos que parecem ser antes complementares do que contraditórios. Um governante ‘não deve apenas ser protegido, mas também se deve proteger-se contra ele’. (Frazer, 1911b, 132.) Ambos os fins são assegurados por inúmeras observâncias de tabus. Já sabemos por que se deve proteger-se dos governantes. Isso se deve ao fato de constituírem veículos do poder mágico misterioso e perigoso que se transmite por contato, como uma carga elétrica, e que causa a morte e a ruína a quem quer que não esteja protegido por uma carga semelhante. Qualquer contato imediato ou indireto com essa entidade sagrada e perigosa é assim evitado e, se não puder sê-lo, certa cerimônias são imaginadas para impedir as conseqüências temíveis. Os nubas da África Oriental, por exemplo, ‘acreditam que morreriam se entrassem na casa de seu rei-sacerdote; entretanto, podem escapar à pena por sua intrusão desnudando o ombro esquerdo e fazendo o rei pousar a mão nele’. [Loc. cit.] Aqui nos deparamos com o fato digno de nota de o contato com o rei constituir um remédio e uma proteção contra os perigos provocados por esse mesmo contato. Indubitavelmente, contudo, existe um contraste a ser assinalado entre o poder sanador de um contato efetuado deliberadamente pelo rei e o perigo que surge se ele é tocado — um contraste entre uma relação passiva e outra ativa para com o rei.

Para exemplos do poder curador do contato real não há necessidade de recorrer a selvagens. Os reis da Inglaterra, em épocas não tão remotas, desfrutavam do poder de curar a escrófula, que era em conseqüência conhecida como o ‘Mal do Rei’. A Rainha Elisabete I exerceu essa prerrogativa não menos que os seus sucessores. Diz-se que Carlos I curou uma centena de pacientes com um só toque, em 1633. Mas foi após a Restauração da monarquia sob o reinado de seu dissoluto filho, Carlos II, que as curas reais da escrofulose atingiram o ápice. No decorrer de seu reinado, calcula-se que ele tenha tocado perto de cem mil pessoas. A multidão dos que buscavam cura costumava ser tão grande que, em determinada ocasião, seis ou sete dos que tinham vindo para serem curados foram esmagados por ela até morrer. O cético Guilherme de Orange, que se tornou rei da Inglaterra após o afastamento dos Stuarts, recusou-se a prestar-se a essas práticas mágicas. Na única ocasião em que foi persuadido a colocar as mãos sobre um paciente, disse a este: ‘Deus te dê melhor saúde e mais senso’. (Frazer, 1911a, 1, 368-70.)

As estórias que se seguem são provas dos temíveis efeitos do contato estabelecido, mesmo sem intenção, com um rei ou algo que lhe pertença. ‘Aconteceu uma vez que um chefe neozelandês de alta categoria e grande santidade deixara os restos de seu jantar à beira da estrada. Um escravo, tipo resoluto e faminto, passando por ali após o chefe haver partido, viu o jantar inacabado e comeu-o sem fazer perguntas. Mal o havia terminado quando foi informado por um espectador tomado de horror que o alimento que comera pertencia ao chefe.’ Ele era um homem forte e corajoso, mas ‘mal acabara de escutar a notícia fatal foi acometido das mais extraordinárias convulsões e cãibras no estômago, que não cessaram até morrer, por volta do pôr do sol do mesmo dia.’ Tendo uma mulher maori comido certa fruta e sendo-lhe dito mais tarde que a fruta fora tirada de um local tabu, exclamou que o espírito do chefe, cuja santidade fora assim profanada, a mataria. Isto aconteceu à tarde e no dia seguinte, pelas doze horas, ela estava morta.’ A pedra-de-fogo de um chefe maori foi certa vez o instrumento de morte de muitas pessoas, porque, tendo sido por ele perdida e encontrada por alguns homens que a utilizaram para acender o cachimbo, estes morreram de susto ao descobrir a quem a caixa pertencera.’

Não é de admirar por isso que se tenha sentido a necessidade de isolar pessoas perigosas como chefes e sacerdotes do resto da comunidade, criando em torno deles uma barreira que os tornasse inacessíveis. Pode começar a surgir em nós o pensamento de que essa barreira, originalmente erguida para a observância do tabu, permanece até o dia de hoje sob a forma do cerimonial da corte.

Mas talvez a parte principal desse tabu sobre os governantes não provenha da necessidade de proteção contra eles. A segunda razão para o tratamento especial das pessoas privilegiadas — a necessidade de fornecer proteção para eles contra a ameaça de perigo — teve um papel evidente na criação de tabus e, assim, na origem da etiqueta cortesã.

A necessidade de proteger o rei contra toda forma possível de perigo decorre de sua imensa importância para os seus súditos, seja para o bem-estar, seja para a preocupação destes. É a sua pessoa que, estritamente falando, regula todo o curso da existência. ‘As pessoas têm de agradecer-lhe pela chuva e o sol que nutrem os frutos da terra, pelo vento que traz os navios às suas costas e até mesmo pela terra firme debaixo de seus pés.’ (Frazer, 1911b, 7.)

Esses governantes entre os povos selvagens possuem um grau de poder e uma capacidade de conferir benefícios que são atributo apenas dos deuses e com os quais, em etapas mais avançadas da civilização, apenas o mais servil dos cortesãos poderia fingir creditá-los.

Deve espantar-nos como autocontraditório que pessoas de um poder tão ilimitado assim precisem ser protegidas com tanto cuidado da ameaça de perigo, mas não é essa a única contradição apresentada pelo tratamento das personagens reais entre os povos selvagens, porque esses povos também julgam necessário manter vigia sobre os seus reis, a fim de ver se eles fazem um uso adequado de seus poderes. Não estão de modo algum convencidos de suas boas intenções ou conscienciosidade. Dessa maneira, um elemento de desconfiança pode ser encontrado entre as razões para a observância dos tabus que cercam o rei. ‘A idéia’, escreve Frazer (1911b, 7 e segs.), ‘de que os reinos primitivos são despotismos em que o povo existe apenas para o soberano, é inteiramente inaplicável às monarquias que estamos considerando. Pelo contrário, o soberano nelas existe apenas para os seus súditos, sua vida só é valiosa enquanto se desempenha dos deveres de sua posição ordenando o curso da natureza em benefício de seu povo. Assim que fracassa em consegui-lo, o cuidado, a devoção e as homenagens religiosas que até então lhe haviam prodigalizado cessam e se transformam em ódio e desprezo; ele é ignominiosamente posto de lado e pode considerar-se feliz se escapar com vida. Adorado como um deus num dia, é morto como um criminoso no seguinte. Mas nesse comportamento modificado do povo não existe nada de caprichoso ou inconstante. Pelo contrário, sua conduta é inteiramente íntegra. Se o seu rei é seu deus, ele é ou deveria ser também o seu protetor; se não os protege, deve ceder lugar a outro que o faça. Enquanto atender às suas expectativas, contudo, não existe limite para o cuidado que terão com ele e o compelirão a ter consigo mesmo. Um rei desse tipo vive confinado por uma etiqueta cerimoniosa, uma rede de proibições e observâncias, das quais a intenção não é contribuir para sua dignidade e muito menos para seu conforto, mas impedi-lo de condutas que, pela perturbação da harmonia da natureza, possam envolvê-lo, seu povo e o universo numa única catástrofe comum. Longe de aumentar seu conforto, estas observâncias, estorvando todos os seus atos, aniquilam sua liberdade, e muitas vezes tornam-lhe a própria vida, que é objetivo delas preservar, um fardo e uma preocupação para ele.’

Um dos exemplos mais notáveis de um governante sagrado sendo agrilhoado a paralisado desta maneira por cerimoniais tabus pode ser encontrado no modo de vida do Micado japonês nos primeiros séculos. Um relato escrito há mais de duzentos anos conta que o Micado ‘pensa que seria muito prejudicial para sua dignidade e santidade tocar o chão com os pés; por essa razão, quando pretende ir a alguma parte, tem de ser carregado até lá nos ombros de outros homens. Muito menos estes padecem do que sofreriam se ele expusesse sua sagrada pessoa ao ar livre, e o sol não é considerado digno de brilhar sobre sua cabeça. Existe uma tal santidade atribuída a todas as partes de seu corpo que ele não se atreve a cortar o cabelo, a barba ou as unhas. Contudo, para que não fique sujo demais, podem limpá-lo à noite, quando dorme, porque, dizem, o que é tirado de seu corpo nessa ocasião foi-lhe furtado e tal furto não prejudica sua santidade ou dignidade. Nos tempos antigos, ele era obrigado a sentar-se no trono por algumas horas a cada manhã, com a coroa imperial na cabeça, mas sentar-se literalmente como uma estátua, sem mexer pés nem mãos, cabeça ou olhos, nem, na verdade, parte alguma de seu corpo, porque, por esse meio, pensava-se poder ele conservar a paz e a tranqüilidade em seu império, pois se, por desgraça, voltava-se para um lado ou para outro, ou olhava por algum tempo para qualquer parte de seus domínios, entendia-se que a guerra, a fome, o fogo ou algum outro grande infortúnio estava próximo, para desolar o país’. Alguns dos tabus impostos aos reis bárbaros fazem lembrar vividamente as restrições impostas aos assassinos. Assim é que, na África Ocidental, ‘em Shark Point, perto do Cabo Padron, na Baixa Guiné, vive o rei-sacerdote Kukulu, sozinho numa floresta. Não pode tocar em mulheres nem sair de casa; na verdade, não pode nem mesmo livrar-se da cadeira, na qual é obrigado a dormir sentado, porque se se deitasse, nenhum vento se levantaria e a navegação seria interrompida. Ele regula as tempestades e em geral mantém um estado atmosférico favorável e uniforme’. O mesmo escritor diz com referência a Loango (na mesma parte do mundo) que quanto mais poderoso é um rei, mais tabus está obrigado a observar. O herdeiro do trono também está sujeito aos tabus desde a infância; seu número cresce à medida que ele avança na vida, até que, no momento em que ascende ao trono, está positivamente sufocado por eles.

Nosso espaço não permite nem nosso interesse exige que nos alonguemos numa descrição dos tabus associados à dignidade dos reis e sacerdotes. Acrescentarei apenas que neles a parte principal é representada por restrições impostas à liberdade de movimento e à dieta. Dois exemplos de cerimoniais tabus que ocorrem em comunidades civilizadas de um nível muito mais elevado de cultura servirão, entretanto, para mostrar que efeito conservador sobre as práticas antigas é exercido pelo contato com essas personagens privilegiadas.

O Dialis Flamen, o alto sacerdote de Júpiter na antiga Roma, era obrigado a observar um número extraordinário de tabus. ‘Não podia cavalgar e nem mesmo tocar num cavalo, nem ver um exército em armas, nem usar um anel que não fosse quebrado, nem ter um nó em qualquer parte de sua indumentária; (…) não podia tocar em farinha de trigo nem em pão fermentado; não podia tocar e nem mesmo nomear um bode, um cão, carne crua, feijões e hera; (…) seus cabelos podiam ser cortados apenas por um homem livre e com uma faca de bronze e, quando cortados, cabelos e unhas tinham de ser enterrados sob uma árvore venturosa; (…) não podia tocar num cadáver; (…) não podia descobrir-se ao ar livre’ etc. ‘Sua esposa, a Flamínica, tinha de observar quase que as mesmas regras e outras suas próprias, além delas. Não podia subir mais de três degraus do tipo de escadaria chamada grega; num certo festival, não podia pentear o cabelo; o couro de seus sapatos não podia provir de um animal que tivesse tido morte natural, mas apenas de um que houvesse sido morto ou sacrificado; se ouvisse trovões, ficava sendo tabu até que oferecesse um sacrifício expiatório.’ (Frazer, 1911b, 13 e seg.)

Os antigos reis da Irlanda estavam sujeitos a um certo número de restrições excepcionalmente estranhas. Se elas fossem obedecidas, todo tipo de bênçãos desceria sobre o país, mas se fossem violadas, desgraças de toda espécie o visitariam. Uma relação completa desses tabus está contida no Book of Rights, do qual as duas mais antigas cópias manuscritas datam de 1390 e 1418. As proibições são de caráter o mais pormenorizado e referem-se a ações específicas em lugares específicos em ocasiões específicas: o rei, por exemplo, não podia ficar numa certa cidade num dia determinado da semana; não podia atravessar um certo rio numa hora específica do dia; não podia acampar por nove dias numa determinada planície etc. (Frazer, 1911b, 11 e seg.)

Entre muitos povos selvagens a severidade dessas restrições de tabus sobre os reis-sacerdotes levou a conseqüências que foram historicamente importantes e são de particular interesse para o nosso ponto de vista. A dignidade de sua posição deixava de ser algo de invejável e aqueles a quem era oferecida com freqüência faziam todo o possível para dela escapar. Dessa maneira, no Cambódia, onde há reinos do Fogo e da Água, freqüentemente é necessário forçar os sucessores a aceitar essas distinções. Em Niue, ou Ilha Selvagem, uma ilha de coral ao Sul do Pacífico, a monarquia na realidade chegou a fim porque ninguém pôde ser induzido a assumir o responsável e perigoso ofício. ‘Em algumas partes da África Ocidental, quando o rei morre, um conselho de família se reúne secretamente para determinar seu sucessor. Aquele sobre quem a escolha recai é subitamente aprisionado, amarrado e atirado na casa-dos-fetiches, onde é mantido encarcerado até consentir em aceitar a coroa. Algumas vezes o herdeiro encontra meios de fugir à honra de que se pensa investi-lo; soube-se de um chefe feroz que andava constantemente armado, resolvido a resistir pela força a qualquer tentativa de fazê-lo sentar no trono.’ Entre os nativos da Serra Leoa, a resistência à aceitação da honra da realeza tornou-se tão grande que muitas tribos foram obrigadas a escolher forasteiros como reis.

Frazer (1911b, 17-25) atribuía a essas circunstâncias o fato de, no curso da história, ter acabado por surgir uma divisão da realeza sacerdotal original num poder espiritual e num poder temporal. Oprimidos pelo peso de seu ofício sagrado, os reis tornaram-se incapazes de exercer o domínio nos assuntos concretos e estes foram deixados nas mãos de pessoas inferiores mas práticas, que estavam prontas a renunciar às honras da realeza. Estas, então, tornaram-se os governantes temporais, enquanto que a supremacia espiritual, despida de qualquer significação prática, era deixada aos antigos reis tabus. É do conhecimento geral até onde esta hipótese encontra confirmação na história do antigo Japão.

Um levantamento geral das relações dos homens primitivos com os seus governantes, nos deixa esperançosos de que não há grande dificuldade em passar de uma descrição delas para a sua compreensão psicanalítica. Essas relações são de tipo complexo e não estão livres de contradições. São concedidos aos governantes grandes privilégios, os quais coincidem precisamente com as proibições tabus impostas a outras pessoas. Eles são pessoas privilegiadas; podem fazer ou gozar exatamente aquilo que aos outros é proibido pelo tabu. Contra esta liberdade, no entanto, verificamos que eles estão sujeitos a restrições por outros tabus dos quais as pessoas comuns estão isentas. Temos aqui um primeiro contraste — uma contradição quase — ou seja, o fato de o mesmo indivíduo ser tanto mais livre quanto mais restringido. São ainda encarados como possuidores de poderes extraordinários de magia, de maneira que a gente tem medo de entrar em contato com suas pessoas ou com suas propriedades, enquanto que, por outro lado, esperam-se as conseqüências mais benéficas desse mesmo contato. Aqui parece haver outra contradição, particularmente acentuada, mas, como já vimos, trata-se apenas de uma contradição aparente. Os contatos que se originam do próprio rei são curativos e protetores; os perigosos tão os efetuados por homens comuns sobre a pessoa do rei ou os seus pertences — provavelmente porque podem insinuar impulsos agressivos. Mais uma contradição, esta não tão facilmente solucionada, pode ser encontrada no fato de acreditar-se que o governante exerce uma grande autoridade sobre as forças da natureza, mas que tem de ser protegido com muito cuidado contra a ameaça de perigo, como se seu próprio poder, que pode fazer tanto, não pudesse realizar isso. A situação torna-se ainda mais difícil pelo fato de não se poder confiar que o governante faça uso de seus imensos poderes da maneira correta, ou seja, em beneficio de seus súditos e para sua própria proteção. Assim sendo, as pessoas desconfiam dele e encontram justificativas para mantê-lo vigiado. A etiqueta de tabus a que toda a vida do rei está submetida está à serviço de todos estes intuitos protetores ao mesmo tempo: sua própria proteção dos perigos e a proteção de seus súditos dos perigos com que os ameaça.

Parece plausível explicar a atitude complicada e contraditória dos povos primitivos para com seus governantes mais ou menos da seguinte maneira: por superstições e outros motivos, uma variedade de diferentes impulsos encontra expressão na relação como os reis; e cada um desses impulsos é desenvolvido a um ponto extremo sem considerar os outros. Isto dá origem a contradições — pelas quais, incidentalmente, um intelecto selvagem é tão pouco perturbado quanto um altamente civilizado quando se trata de assuntos como religião ou ‘lealdade’.

Até agora, tudo muito bem; mas a técnica da psicanálise permite ir mais adiante na questão e penetrar mais ainda nos pormenores desses diversos impulsos. Se submetermos os fatos registrados à análise, como se fizessem parte dos sintomas apresentados por uma neurose, nosso ponto de partida deve ser a excessiva apreensibilidade e solicitude que é apresentada como razão para os cerimoniais do tabu. A ocorrência de uma solicitude excessiva desta espécie é muito comum nas neuroses e especialmente nas neuroses obsessivas, com as quais a nossa comparação é principalmente traçada. Chegamos a compreender sua origem bastante claramente. Ela aparece onde quer que, além de um sentimento predominante de afeição, exista também uma corrente de hostilidade contrária, mas inconsciente — estado de coisas que representa um exemplo típico de uma atitude emocional ambivalente. A hostilidade é então feita calar no grito, por assim dizer, por uma intensificação excessiva da afeição, que se expressa em solicitude e se torna compulsiva, porque de outro modo seria inadequada para desempenhar a missão de manter sob repressão a corrente de sentimento contrária e inconsciente. Todo psicanalista sabe por experiência com que segurança esta explicação da superafeição solícita é aplicável mesmo nas circunstâncias mais improváveis — em casos, por exemplo, de ligações entre mãe e filho ou entre um casal devotado. Se agora aplicarmos ao caso das pessoas privilegiadas, compreenderemos que juntamente com a veneração e, na verdade, idolatrização sentidas por elas, existe no inconsciente uma corrente oposta de hostilidade intensa; que, na realidade, como esperávamos, defrontamo-nos com uma situação de ambivalência emocional. A desconfiança que fornece um dos elementos inequívocos dos tabus reais seria então outra expressão, mais direta, da mesma hostilidade inconsciente. Na verdade, diante da variedade de resultados de um conflito desta espécie que são encontrados entre os diferentes povos, não nos faltam exemplos em que a existência desta hostilidade é ainda mais obviamente mostrada. ‘Os selvagens timmes da Serra Leoa’, nos conta Frazer, ‘que elegem seu rei, reservam-se o direito de espancá-lo na véspera da coroação e valem-se desse privilégio constitucional com tão boa disposição que, às vezes, o infeliz monarca não sobrevive muito à sua elevação ao trono. Daí, quando acontece de os principais chefes terem rancor de um homem e desejarem livrar-se dele, elegerem-no rei.’ Mesmo em exemplos manifestos como este, entretanto, a hostilidade não é admitida como tal, mas disfarçada em cerimonial.

Outro aspecto da atitude dos povos primitivos para com seus governantes relembra um procedimento que é comum nas neuroses em geral, mas vem à luz naquilo que é conhecido como delírio persecutório. A importância de uma pessoa determinada é imensamente exagerada e seu poder absoluto é aumentado até o grau mais improvável, a fim de poder ser mais fácil torná-la responsável por tudo de desagradável que o paciente possa experimentar. Os selvagens estão-se comportando exatamente da mesma maneira com seus reis quando lhes atribuem poder sobre a chuva e o sol, o vento e o clima, e depois os depõem ou matam porque a natureza desaponta suas esperanças de uma caçada bem sucedida ou de uma rica colheita. O modelo no qual os paranóicos baseiam seus delírios de perseguição é a relação de uma criança com o pai. A imagem que um filho faz do pai é habitualmente investida de poderes excessivos desta espécie e descobre-se que a desconfiança do pai está intimamente ligada à admiração por ele. Quando um paranóico transforma a figura de um de seus associados num “perseguidor”, está elevando-o à categoria de pai; está colocando-o numa posição em que possa culpá-lo por todos os seus infortúnios. Assim esta segunda analogia entre selvagens e neuróticos nos dá um vislumbre de que grande parte da atitude de um selvagem para com seu governante provém da atitude infantil de uma criança para com o pai.

Porém o mais forte apoio para o nosso esforço no sentido de equiparar as proibições dos tabus aos sintomas neuróticos vai ser encontrado nas próprias cerimônias do tabu, cujo efeito sobre a posição da realeza já foi discutido. Esses cerimoniais revelam inequivocamente seu significado duplo e sua derivação de impulsos ambivalentes, logo que estivermos prontos a admitir que os resultados que ocasionam estavam premeditados desde o início. O tabu não somente escolhe o rei e o exalta acima do comum dos mortais mas também torna a sua existência um tormento e um fardo insuportável, reduzindo-o a uma servidão muito pior que a de seus súditos. Aqui, então, temos uma contrapartida exata do ato obsessivo na neurose, no qual o impulso suprimido e o impulso que o suprime encontram satisfação simultânea e comum. O ato obsessivo é ostensivamente uma proteção contra o ato proibido, mas, na realidade, a nosso ver, trata-se de uma repetição dele. A expressão ‘ostensivamente’ aplica-se à parte consciente da mente e ‘na realidade’ à parte inconsciente. Exatamente da mesma maneira, o tabu cerimonial dos reis constitui ostensivamente a mais alta honra e proteção para eles, enquanto que, na realidade, trata-se de um castigo pela sua exaltação, uma vingança sobre ele tirada pelos seus súditos. As experiências de Sancho Panza (descritas por Cervantes) quando governador de sua ilha convenceram-no de que esta visão do cerimonial da corte era a única que se aplicava ao caso. Se pudéssemos ouvir as opiniões de reis e governantes modernos sobre o assunto, descobriríamos que haveria muitos outros que concordariam com ele.

A questão do motivo por que a atitude emocional para com os governantes inclui um elemento inconsciente de hostilidade tão poderoso levanta um problema muito interessante, mas que se situa fora dos limites do presente estudo. Já chamei a atenção para o fato de que o complexo de emoções da criança para com o pai — o complexo paterno — tem relação com o assunto e posso acrescentar que mais informações sobre a história primitiva da realeza lançaria uma luz decisiva sobre ele. Frazer (1911a) apresentou razões impressionantes — embora, como ele próprio admitiu, não inteiramente conclusivas —, para supor que os primitivos reis eram estrangeiros que após um breve reinado eram sacrificados com solenes festividades como representantes da deidade. É possível que o curso tomado pela evolução dos reis também possa ter tido influência sobre os mitos da cristandade.

 (c) O Tabu em Relação aos Mortos

Sabemos que os mortos são poderosos soberanos, mas talvez fiquemos surpresos de saber que podem ser tratados como inimigos.

O tabu sobre os mortos é — voltando à analogia da infecção — especialmente virulento entre a maioria dos povos primitivos. Manifesta-se, em primeiro lugar, nas conseqüências decorrentes do contato com os mortos e no tratamento dos que os pranteiam.

Entre os maoris, qualquer pessoa que tivesse manuseado um cadáver ou participado de alguma forma de enterro ficava no mais alto grau de impureza e era quase cortada das relações com os seus semelhantes ou, como podemos dizer, era boicotada. Não podia penetrar em nenhuma casa ou entrar em contato com nenhuma pessoa ou coisa sem infectá-las. Não podia nem mesmo tocar na comida com as mãos, que, devido à sua impureza, haviam-se tornado inteiramente inúteis. ‘A comida era posta no chão e ele então se sentava ou ajoelhava e, com as mãos cuidadosamente seguras por trás das costas, abocanhava-a como podia. Em alguns casos era alimentado por outra pessoa, que, com o braço estendido, esforçava-se por fazê-lo sem tocar no homem tabu, mas a própria pessoa que dava o alimento era sujeita a muitas e severas restrições, pouco menos pesadas que as impostas ao outro. Em quase toda aldeia populosa vivia uma criatura degradada, a mais baixa das baixas, que ganhava uma miserável gorjeta para assim atender ao conspurcado.’ Somente a ela se permitia ‘relacionar-se, à distância de um braço, com aquele que havia prestado os últimos ofícios (…) aos mortos. E quando, passado o período sombrio de sua reclusão, o pranteador em condições de misturar-se mais uma vez com os companheiros, todos os pratos que havia utilizado em seu isolamento eram imediatamente quebrados e todas as vestes que havia usado eram cuidadosamente jogadas fora.’ [Frazer, 1911b, 138 e seg.]

As observâncias de tabus após o contato corporal com mortos são as mesmas em toda a Polinésia, Melanésia e parte da África. Sua característica mais comum é a proibição de que os que tiveram tal contato toquem em comida e a conseqüente necessidade de serem alimentados por outras pessoas. É um fato digno de nota que na Polinésia (embora o relato possa talvez referir-se apenas ao Havaí), os reis-sacerdotes estavam sujeitos às mesmas restrições enquanto desempenhavam suas funções sagradas. O caso do tabu sobre os mortos em Tonga oferece um exemplo especialmente claro da maneira como o grau de proibição varia de acordo com o poder do tabu da pessoa a quem o tabu é imposto. Assim, quem toca num chefe morto fica impuro por dez meses, mas se ele próprio é um chefe, torna-se tabu apenas por três, quatro ou cinco meses, de acordo com a categoria do morto; entretanto, se este for o ‘grande e divino chefe’, mesmo o maior dos chefes será tabu por dez meses. Esses selvagens acreditam firmemente que qualquer um que viole as ordenanças do tabu esta fadado a cair doente e morrer; na verdade, acreditam nisso tão firmemente que, na opinião de um observador, ‘nenhum nativo chegou a fazer uma experiência para provar o contrário’.

Em essência, as mesmas proibições (embora, de nosso ponto de vista, sejam mais interessantes) aplicam-se àqueles que estiveram em contato com os mortos apenas no sentido metafórico; os parentes enlutados da pessoa morta, viúvos e viúvas. As observâncias que até aqui mencionamos podem parecer dar simplesmente uma expressão característica à virulência do tabu e seu poder de contágio. Mas as que se seguem nos dão uma pista para as razões do tabu — tanto as ostensivas quanto as que devemos encarar como as verdadeiras razões profundas subjacentes. ‘Entre os shuswap da Colúmbia Britânica, as viúvas e viúvos enlutados são isolados e proibidos de tocar na própria cabeça e no próprio corpo; as canecas e panelas que utilizam não podem ser usadas por ninguém mais (…) Nenhum caçador chega perto dessas pessoas enlutadas, porque a presença delas dá azar. Se sua sombra caísse sobre alguém, este ficaria doente em seguida. Usam espinheiros como cama e travesseiro (…) e espinheiros também são colocados em volta de suas camas.’ Esta última medida destina-se a manter o espírito da pessoa morta a uma certa distância. O mesmo propósito é mostrado ainda mais claramente no costume observado em outra tribo norte-americana, que estabelece que, após a morte do marido, ‘a viúva use por vários dias uma tanga feita de capim seco, a fim de impedir que o fantasma do marido tenha relações sexuais com ela’. Isto sugere que o contato ‘num sentido metafórico’ é, em última análise, entendido como sendo contato corporal, porque o espírito do morto não abandona os seus parentes e não deixa de ‘pairar’ sobre estes durante o tempo do luto.

Entre os agutainos, que habitam Palawan, uma das ilhas das Filipinas, a viúva não pode deixar a cabana durante sete ou oito dias após a morte do marido e mesmo então só pode sair numa hora em que não é provável encontrar alguém, pois quem quer que a olhe morrerá de morte súbita. Para impedir esta catástrofe fatal, a viúva bate com um tarugo de madeira nas árvores à medida que avança, advertindo assim as pessoas de sua perigosa proximidade, e as próprias árvores em que ela bate em breve morrerão. A natureza do perigo que se teme de uma viúva nessas condições torna-se evidente noutro exemplo. ‘No distrito mekeo da Nova Guiné Britânica, o viúvo perde todos os direitos civis e se torna um pária social, um objeto de medo e horror, evitado por todos. Não pode cultivar um jardim, nem aparecer em público, nem andar pelas estradas e caminhos. Como um animal selvagem, tem de esconder-se por entre o capinzal e os arbustos e, se vê ou escuta que vem alguém, especialmente se for uma mulher, deve ocultar-se por trás de uma árvore ou de uma moita.’ A última alusão torna fácil remontar a origem do caráter perigoso dos viúvos e viúvas ao perigo da tentação. Um homem que perdeu a esposa tem de resistir ao desejo de descobrir uma substituta; a viúva tem de lutar com o mesmo desejo e além disso, está sujeita a despertar os desejos de outros homens, desde que está sem amo e senhor. Satisfações substitutas desse tipo vão de encontro ao sentido do luto e despertariam inevitavelmente a ira do fantasma.

Um dos costumes mais estranhos, e ao mesmo tempo mais instrutivos, que estão ligados ao luto é a proibição de pronunciar o nome da pessoa morta.

Esse costume é extremamente disseminado, manifesta-se de variadas formas, e tem conseqüências importantes. É encontrado não apenas entre os australianos e polinésios (que geralmente nos apresentam as observâncias de tabus em melhor estado de conservação), mas também entre povos separados uns dos outros por grandes distâncias como os samoiedos da Sibéria e os todos da Índia meridional; os mongóis da Tartária e os tuaregues do Saara; os ainos do Japão e os akamba e os nadi da África central; os tinguianos das Filipinas e os habitantes das Ilhas Nicobar, de Bornéu, de Madagascar e da Tasmânia.’ (Frazer, 1911b, 353.) Em alguns dos casos, a proibição e suas conseqüências duram apenas o período do luto; noutros, são permanentes, mas parecem invariavelmente diminuir de rigidez com a passagem do tempo.

A evitação do nome de uma pessoa morta é uma regra que se faz respeitar com extrema severidade. Desse modo, em algumas tribos sul-americanas é considerado um insulto mortal aos sobreviventes mencionar em sua presença o nome de um parente morto e o castigo para isso não é menor que o estabelecido para o assassinato. [Ibid., 352.] A princípio, não é fácil perceber por que a menção do nome deva ser encarada com tal horror, mas os perigos nisso envolvidos deram origem a um grande número de métodos de evasão que são interessantes e importantes sob diversos aspectos. Assim, os masai da África Oriental valem-se do artifício de mudar o nome do morto imediatamente após a sua morte; pode então ser livremente mencionado pelo seu novo nome, enquanto todas as restrições continuam ligadas ao antigo. Isto parece pressupor que o espírito do morto não sabe e não virá a saber seu novo nome. [Ibid., 354.] As tribos de Adelaide e Encounter Bay, na Austrália do Sul, são coerentes nessa preocupação que, após uma morte, todos os que têm o mesmo nome do defunto, ou muito semelhante a ele, trocam-no por outro. [Ibid., 355.] Em alguns casos, como por exemplo, entre certas tribos de Victoria e do noroeste da América, isto é levado ainda mais além e, depois da morte, todos os parentes do morto mudam de nome, independentemente de qualquer semelhança de som. [Ibid., 357.] Na verdade, entre os guaicurus do Paraguai, quando uma morte ocorria, o chefe costumava mudar o nome de todos os membros da tribo e, ‘a partir daquele momento, todos lembravam-se de seus novos nomes como se os houvessem usado toda a vida’.

Além disso, se acontecer de o nome do morto ser o mesmo que o de um animal ou objeto comum, algumas tribos acham necessário dar a esses animais ou objetos novas denominações, de maneira que o emprego dos nomes anteriores não faça lembrar o defunto. Essa prática conduz a uma mudança perpétua de vocabulário, o que causa muitas dificuldades aos missionários, especialmente quando tais modificações são permanentes. Nos sete anos que o missionário Dobrizhoffer passou entre os abipones do Paraguai, ‘a palavra nativa para designar jaguar mudou três vezes, e as palavras para crocodilo, espinho e a matança de gado sofreram vicissitudes semelhantes, embora menos variadas’. O pavor de enunciar o nome de um defunto leva, na verdade, a evitar a menção de qualquer coisa na qual o morto tenha participado; e uma conseqüência importante desse processo de supressão é que esses povos não possuem tradições nem lembrança histórica, de maneira que qualquer pesquisa de sua história primitiva se defronta com as maiores dificuldades. [Ibid., 362 e seg.] Entretanto, um certo número desses povos primitivos adotou práticas compensatórias que revivem os nomes dos mortos após um longo período de luto, dando-os aos filhos, que são assim encarados como reencarnações dos falecidos. [Ibid., 364 e seg.]

O tabu sobre nomes parecerá menos misterioso se tivermos em mente o ato de que os selvagens encaram o nome como uma parte essencial da personalidade de um homem e como uma posse importante: eles tratam as palavras, em todos os sentidos, como coisas. Como já salientei em outro trabalho [Freud, 1905c, Cap. IV], nossos próprios filhos fazem o mesmo. Nunca estão dispostos a aceitar uma semelhança entre duas palavras como desprovida de sentido; coerentemente presumem que se duas coisas são chamadas por nomes de som semelhante, isto deve implicar na existência de algum ponto profundo de concordância entre elas. Mesmo um adulto civilizado pode ser capaz de inferir, de certas peculiaridades de seu próprio comportamento, que não se acha tão distante quanto poderia pensar de atribuir importância aos nomes próprios e que seu próprio nome tornou-se, de uma maneira muito marcante, ligado à sua personalidade. Também a prática psicanalítica se depara com freqüentes confirmações disto nas provas que encontra da importância dos nomes nas atividades mentais inconscientes. Como era de se esperar, os neuróticos obsessivos comportam-se exatamente como os selvagens em relação aos nomes. Como os outros neuróticos, apresentam um alto grau de ‘sensibilidade complexiva com relação a proferir ou escutar palavras e nomes específicos e sua atitude para com os próprios nomes impõe-lhes numerosas e, freqüentemente, sérias inibições.

Uma dessas pacientes tabu minha conhecida adotara como regra não escrever seu próprio nome, com medo de que ele pudesse vir a cair nas mãos de alguém, que então ficaria de posse de uma parte de sua personalidade. Era obrigada a lutar com uma lealdade convulsiva contra as tentações a que sua imaginação a submetia e assim proibia-se a si mesma de ‘entregar qualquer parte de sua pessoa’. Esta atitude incluía a princípio o seu nome e depois estendeu-se ao que escrevia, até finalmente deixar de escrever por completo.

Não mais nos surpreenderá, portanto, que os selvagens considerem o nome de uma pessoa morta como parte de sua personalidade e o tornem sujeito a um tabu pertinente. Assim, também, pronunciar o nome de uma pessoa morta é claramente um derivado de manter contato com ela. Podemos, então, voltar-nos para o problema mais amplo da razão pela qual esse contato está sujeito a um tabu tão rígido.

A explicação mais óbvia indicaria ser o horror despertado pelos cadáveres e pelas mudanças que rapidamente se tornam visíveis neles. Alguma parte, nessa questão, deve caber também à tristeza pela morte da pessoa, uma vez que deve ser uma força motivadora em tudo relacionado com ela. Mas o horror pelo cadáver evidentemente não explica todos os pormenores das observâncias de tabus e a tristeza não pode explicar por que a enunciação do nome do defunto constitui um insulto aos seus sobreviventes. Pelo contrário, ela tende a preocupar-se com o morto, a prolongar sua lembrança e preservá-la tanto quanto possível. Algo mais que o luto deve ser considerado responsável pelas peculiaridades das práticas de tabu, algo que tem em vista propósitos muito diferentes. É precisamente o tabu sobre os nomes que nos dá a pista desse motivo ignorado e se não fosse possível sabê-lo apenas pelas práticas, poderíamos chegar a ele através do que os próprios selvagens enlutados nos contam, porque não disfarçam o fato de terem medo da presença ou do retorno do espírito do morto e de realizarem um grande número de cerimônias para mantê-lo à distância ou expulsá-lo de vez. Sentem que pronunciar seu nome equivale a invocá-lo, o que seria rapidamente seguido de sua presença. Por conseguinte, fazem tudo o que podem para evitar essa invocação. Disfarçam-se de maneira que o fantasma não os reconheça, mudam seu nome ou o deles próprios; ficam furiosos com estrangeiros descuidados que, pela pronúncia do nome do espírito, incitam-no  contra os sobreviventes. É impossível fugir à conclusão de que, nas palavras de Wundt (1906, 49), são vítimas de um temor da ‘alma do morto, que se transformou num demônio’. Aqui, então, parece que encontramos uma confirmação da opinião de Wundt, que, como já vimos em [1], considera que a essência do tabu é o medo dos demônios.

Esta teoria baseia-se numa suposição tão extraordinária que à primeira vista parece inacreditável, ou seja, a suposição de que um parente ternamente amado, no momento de sua morte, transforme-se num demônio, de quem os sobreviventes nada podem esperar a não ser hostilidade e contra cujos desejos perversos devem proteger-se por todos os meios possíveis. Não obstante, quase todas as autoridades concordam em atribuir esse modo de ver aos povos primitivos. Westermarck, que, a meu ver, dá muito pouca importância ao tabu em seu livro The Origin and Development of the Moral Ideas, chega mesmo a escrever no capítulo ‘Consideração pelos Mortos’: ‘Falando de modo geral, minha coletânea de fatos levou-me à conclusão de que os mortos são mais comumente encarados como inimigos que como amigos e que o Professor Jevons e o Sr. Grant Allen estão equivocados ao afirmarem que, segundo as crenças primitivas, a maior parte da malevolência dos mortos é dirigida apenas contra os estrangeiros, enquanto que exercem um cuidado paternal sobre as vidas e a sorte de seus descendentes e companheiros de clã.

Num interessante trabalho, Rudolf Kleinpaul (1898) utilizou os resquícios da antiga crença nos espíritos entre os povos civilizados para lançar luz sobre a relação entre os vivos e os mortos. Também ele chega à conclusão final de que os mortos, cheios de desejos de morte, buscam arrastar os vivos atrás de si. Os mortos mataram e o esqueleto que atualmente utilizamos para representá-los simboliza o fato de que eles próprios foram matadores. Os vivos não se sentiam a salvo dos ataques dos mortos sem que houvesse um lençol d’água entre eles. É por isso que os homens gostavam de enterrar os mortos em ilhas ou no outro lado dos rios e essa, por sua vez, é a origem de expressões como ‘Aqui e no Além’. Mais tarde, a malignidade dos mortos diminuía e ficava restrita a categorias especiais que possuíam um direito específico de se sentirem ressentidas — tais como os homens assassinados, por exemplo, que sob a forma de espíritos maus iam em perseguição de seus assassinos, ou noivas que tinham morrido com seus desejos insatisfeitos. Originalmente, porém, diz Kleinpaul, todos os mortos eram vampiros, todos tinham um rancor contra os vivos e procuravam prejudicá-los e roubar-lhes a vida. Foi dos cadáveres que o conceito de espíritos maus surgiu pela primeira vez.

A hipótese de que após a morte os que tinham sido mais queridos se transformavam em demônios suscita claramente novas questões. O que foi que induziu os homens primitivos a atribuir tal mudança de sentimentos àqueles que lhes haviam sido caros? Por que os transformaram em demônios? Westermarck (1906-8, 2, 534 e seg.) é de opinião que estas perguntas podem ser facilmente respondidas. ‘A morte é em geral encarada como o mais grave de todos os infortúnios; daí acreditar-se que os mortos estejam extraordinariamente insatisfeitos com a sua sorte. De acordo com as idéias primitivas, uma pessoa só morre se for morta — pela magia, quando não pela força — e uma morte assim tende naturalmente a tornar a alma vingativa e mal-humorada. Tem inveja dos vivos e anseia pela companhia dos velhos amigos; não é de admirar, portanto, que envie doenças para causar a morte deles (…) Mas a noção de que a alma desencarnada é, em geral, um ser maldoso (…) tem também, indubitavelmente, uma estreita relação com o medo instintivo dos mortos, o qual, por sua vez, é resultado do medo da morte.’

O estudo das perturbações psiconeuróticas sugere uma explicação mais ampla, que ao mesmo tempo abrange a apresentada por Westermarck.

Quando uma esposa perde o marido ou uma filha a mãe, não é raro acontecer que a sobrevivente fique atormentada por dúvidas atrozes (às quais damos o nome de ‘autocensuras obsessivas’) quanto a se ela própria não poderia ter sido a responsável pela morte desse ente querido através de algum ato de descuido ou negligência. Nenhuma quantidade de lembranças do cuidado que prodigalizou ao sofredor e nenhuma quantidade de reputações objetivas da acusação servem para dar fim ao tormento. Essa atitude pode ser encarada como uma forma patológica de luto e, com a passagem do tempo, pouco a pouco se desvanece. A investigação psicanalítica desses casos revelou os motivos secretos da perturbação. Descobrimos que, num certo sentido, essas auto-acusações objetivas são justificadas, e é esta a razão de constituírem prova contra contradições e protestos. Não é que a pessoa enlutada seja realmente responsável pela morte ou na realidade culpada de negligência, como as auto-acusações declaram ser o caso. Não obstante, havia algo nela — desejo que lhe era inconsciente — que não ficaria insatisfeito com a ocorrência da morte e que poderia realmente tê-la ocasionado, se tivesse poder para isso. E após a morte haver ocorrido, é contra esse desejo inconsciente que as censuras são uma reação. Em quase todos os casos em que existe uma intensa ligação emocional com uma pessoa em particular, descobrimos que por trás do terno amor há uma hostilidade oculta no inconsciente. Esse é o exemplo clássico, o protótipo, da ambivalência das emoções humanas. Essa ambivalência está presente em maior ou menor grau na disposição inata de cada um; normalmente não é tanta que dê para produzir as autocensuras obsessivas que estamos considerando. No entanto, quando existe em abundância na disposição, manifestar-se-á precisamente na relação da pessoa com aqueles de quem mais gosta, ou seja, exatamente ali onde, na realidade, menos esperaríamos encontrá-la. Deve-se supor que a presença de um grau particularmente elevado dessa ambivalência emocional original é característica da disposição dos neuróticos obsessivos — a quem tão freqüentemente trouxe para comparação nesse exame do tabu.

Descobrimos agora um motivo que pode explicar a idéia de que as almas dos que morreram são transformadas em demônios e a necessidade sentida pelos sobreviventes de proteger-se de sua hostilidade através de tabus. Suponhamos que a vida emocional dos povos primitivos se caracterize por um grau de ambivalência tão elevado quanto o que, pelas descobertas da psicanálise, somos levados a atribuir aos pacientes obsessivos. Torna-se fácil então compreender como, após uma penosa aflição, os selvagens são obrigados a produzir uma reação contra a hostilidade latente no seu inconsciente semelhante à que é expressa como autocensura obsessiva no caso dos neuróticos. Mas essa hostilidade, aflitivamente sentida no inconsciente como satisfação pela morte, é tratada de forma diferente pelos povos primitivos. A defesa contra ela assume a forma de deslocá-la para o objeto da hostilidade, ou seja, para os próprios mortos. Esse procedimento defensivo, comum tanto na vida mental normal quanto na patológica, é conhecido como ‘projeção‘. O sobrevivente nega assim que tenha algum dia alimentado quaisquer senti mentos hostis contra o morto querido; em vez disso, é a alma do defunto que os alimenta e procura pô-los em ação durante todo o período de luto. Apesar da defesa bem-sucedida que o sobrevivente consegue através da projeção, sua reação emocional apresenta as características de castigo e remorso, porque é o sujeito dos temores, e submete-se a renúncias e restrições, embora estas sejam em parte disfarçadas como medida de proteção contra o demônio hostil. Mais uma vez, então, descobrimos que o tabu desenvolveu-se com base numa atitude emocional ambivalente. O tabu sobre os mortos surge, como os outros, do contraste existente entre o sofrimento consciente e a satisfação inconsciente pela morte que ocorreu. Uma vez que essa é a origem do ressentimento da alma do morto, segue-se naturalmente que os sobreviventes que mais terão a temer serão aqueles que eram anteriormente os seus mais chegados e queridos.

A esse respeito, as observâncias dos tabus, assim como os sintomas neuróticos, têm um sentido duplo. Por um lado, em seu caráter restritivo, são expressões de pesar, mas, pelo outro, traem claramente coisa que procuram ocultar — uma hostilidade contra o morto disfarçada em autodefesa. Já sabemos que certos tabus surgem do medo da tentação. O fato de um homem morto achar-se em desamparo está fadado a atuar como um incentivo a que o sobrevivente dê rédea livre às suas paixões hostis e essa tentação tem de ser contraditada por uma proibição.

Westermarck está certo quando insiste em que os selvagens não fazem distinção entre a morte violenta e a morte natural. Na opinião do pensamento inconsciente, um homem que morreu de morte natural é um homem assassinado; desejos maus o mataram. Qualquer pessoa que investigue a origem e a significação dos sonhos de morte de parentes amados (pais, irmãos ou irmãs) poderá convencer-se de que as pessoas que sonham, as crianças e os selvagens estão de acordo em sua atitude para com os mortos — uma atitude baseada na ambivalência emocional.

No começo deste ensaio [ver em [1]] coloquei-me em desacordo com a opinião de Wundt de que a essência do tabu era o medo dos demônios. No entanto, concordamos agora com uma explicação que faz derivar o tabu relativo aos mortos do medo da alma da pessoa morta, transformada num demônio. A aparente contradição pode ser facilmente resolvida. É verdade que aceitamos a presença de demônios, mas não como algo definitivo e psicologicamente impossível de analisar. Conseguimos ir além dos demônios, por assim dizer, porque os explicamos como sendo projeções de sentimentos hostis, alimentados pelos sobreviventes contra os mortos.

Ambos os conjuntos de sentimentos (os afetuosos e os hostis) que, como temos boas razões para acreditar, existem para com a pessoa morta, procuram atuar por ocasião do luto, como desolação e como satisfação. Não pode deixar de haver um conflito entre esses dois sentimentos contrários e, uma vez que um deles, a hostilidade, é inteiramente ou em grande parte inconsciente, o resultado do conflito não pode ser subtrair, por assim dizer, o sentimento de menor intensidade do de intensidade maior e estabelecer a diferença na consciência — como acontece, por exemplo, quando se perdoa uma desfeita que se recebeu de alguém de quem se gosta. Em vez disso, o processo é conduzido pelo mecanismo psíquico especial conhecido em psicanálise, como já disse, pelo nome de ‘projeção’. A hostilidade, da qual os sobreviventes nada sabem e, além disso, nada desejam saber, é expelida da percepção interna para o mundo externo, sendo assim desligada deles e empurrada para outrem. Não se pode dizer que estejam alegres por se haverem livrado do morto pelo contrário, estão de luto por ele, mas, é estranho dizê-lo, ele transformou-se num demônio perverso, pronto a tripudiar sobre os seus infortúnios e ansioso por matá-los. Torna-se-lhes então necessário aos sobreviventes defender-se contra o inimigo malvado; aliviaram-se da pressão provinda de dentro, mas apenas a trocaram pela opressão vinda de fora.

Está fora de discussão que esse processo de projeção, que transforma um morto num inimigo maligno, pode encontrar apoio em quaisquer atos reais de hostilidade de sua parte, os quais podem ser relembrados e sentidos como rancor contra ele: sua severidade, seu amor ao poder, sua injustiça ou qualquer outra coisa que possa estar por trás até mesmo das relações humanas mais ternas. Mas não pode tratar-se de algo simples assim. Somente esse fator não pode explicar a criação de demônios por projeção. Os defeitos dos mortos sem dúvida alguma fornecem uma parte da explicação da hostilidade dos sobreviventes, mas não influiriam dessa maneira a menos que os últimos tivessem desenvolvido antes uma hostilidade por sua própria conta. O momento da morte, além disso, parece certamente uma ocasião muito inapropriada para a recordação de qualquer motivo justificável que possa existir para queixas. É impossível fugir ao fato de que o verdadeiro fator determinante é, invariavelmente, a hostilidade inconsciente. Uma corrente hostil de sentimento como esta contra os parentes mais chegados e queridos de uma pessoa pode permanecer latente durante toda a vida, ou seja, sua existência pode não ser revelada à consciência, diretamente, ou através de algum substituto. Entretanto, quando eles morrem, isso não é mais possível e o conflito torna-se agudo. O luto que se origina de uma intensificação dos sentimentos afetuosos torna-se, por um lado, mais impaciente em relação à hostilidade latente e, por outro, não lhe permite fazer irromper qualquer sentimento de satisfação. Por conseguinte, segue-se a repressão da hostilidade inconsciente pelo método da projeção e a criação do cerimonial, que expressa o medo de ser punido pelos demônios. Quando, com o decorrer do tempo, o luto passa, o conflito torna-se menos agudo, de maneira que o tabu sobre os mortos pode diminuir de severidade ou cair no esquecimento.

 

(4)

 

Tendo assim explicado a base do tabu extremamente instrutivo sobre os mortos, não devemos deixar de acrescentar algumas observações que podem ajudar a aumentar nossa compreensão do tabu em geral.

A projeção da hostilidade inconsciente sobre os demônios, no caso do tabu relativo aos mortos, é apenas um exemplo de um certo número de processos aos quais se deve atribuir a maior importância na formação da mente primitiva. No caso de que estivemos tratando, a projeção serviu ao objetivo de manejar um conflito emocional, sendo empregada da mesma maneira num grande número de situações psíquicas que conduzem às neuroses. Mas a projeção não foi criada com o propósito de defesa; ela também ocorre onde não há conflito. A projeção de percepções internas para fora é um mecanismo primitivo, ao qual, por exemplo, estão sujeitas nossas percepções sensoriais, e que, assim, normalmente desempenha um papel muito grande na determinação da forma que toma nosso mundo exterior. Sob condições cuja natureza não foi ainda suficientemente estabelecida, as percepções internas de processos emocionais e de pensamento podem ser projetadas para o exterior da mesma maneira que as percepções sensoriais. São assim empregadas para construir o mundo externo, embora devam, por direito, permanecer sendo parte do mundo interno. Isto pode ter alguma vinculação genética com o fato de que a função da atenção dirigia-se originalmente não no sentido do mundo interno, mas no dos estímulos que afluem do mundo externo e que as únicas informações dessa função sobre os processos endopsíquicos era recebida a partir de sentimentos de prazer e desprazer. Foi somente após uma linguagem de pensamento abstrato ter sido desenvolvida, ou seja, somente após os resíduos sensoriais das apresentações verbais terem sido ligados aos processos internos, que os últimos pouco a pouco foram se tornando capazes de serem percebidos. Antes disso, em virtude da projeção das percepções internas para fora, os homens primitivos chegaram a uma representação do mundo externo que nós, com nossa percepção consciente intensificada, temos hoje de traduzir novamente para a psicologia. [Cf. p. 86 n.]

A projeção de seus próprios impulsos maus sobre os demônios é apenas uma das partes de um sistema que constituía a Weltanschauung [visão do universo] dos povos primitivos e que viremos a conhecer como ‘animismo’ no ensaio seguinte. Nele, teremos de examinar as características psicológicas desse sistema e mais uma vez o faremos referindo-nos aos sistemas semelhantes que descobrimos, construídos pelos neuróticos. No momento, direi apenas que o protótipo de todos esses sistemas é aquilo que denominamos de ‘revisão secundária’ do conteúdo dos sonhos. E não devemos esquecer que, durante e após a fase em que os sistemas são construídos, dois conjuntos de razões podem ser atribuídos a cada acontecimento psíquico que é conscientemente julgado — um deles pertencente ao sistema e o outro, real, mas inconsciente.

Wundt (1906, 129) observa que ‘entre as atividades atribuídas pelos mitos de todo o mundo aos demônios, as prejudiciais predominam, de maneira que, na crença popular, os gênios maus são evidentemente mais antigos que os bons’. É muito possível que todo o conceito de demônios se tenha derivado da importante relação dos vivos com os mortos. A ambivalência inerente a essa relação expressou-se no curso subseqüente do desenvolvimento humano pelo fato de, da mesma raiz, surgirem duas estruturas psíquicas completamente opostas: de um lado, o medo dos demônios e dos fantasmas; do outro, a veneração dos ancestrais. O fato de os demônios serem sempre encarados como os espíritos daqueles que tinham morrido recentemente mostra, melhor que qualquer outra coisa, a influência do luto na origem da crença nos demônios. O luto tem uma missão psíquica muito específica a efetuar; sua função é desligar dos mortos as lembranças e as esperanças dos sobreviventes. Quando isto é conseguido, o sofrimento diminui e, com ele, o remorso e as autocensuras e, conseqüentemente, também o medo dos demônios. E os mesmos espíritos que inicialmente foram temidos como demônios podem agora esperar encontrar um tratamento mais amistoso; são reverenciados como ancestrais e lhes são dirigidos apelos em busca de ajuda.

Se acompanharmos a mudança das relações entre os sobreviventes e os mortos através das épocas, torna-se claro que houve uma extraordinária diminuição da ambivalência. Agora é bastante fácil dominar a hostilidade inconsciente contra os mortos (embora sua existência ainda possa ser reconhecida), sem qualquer dispêndio específico de energia psíquica. Onde, em tempos anteriores, o ódio satisfeito e a afeição sentida lutavam um contra a outra, encontramos agora uma espécie de cicatriz que se formou sob o modelo da piedade, a qual declara: de mortuis nil nisi bonum.’ Somente nos neuróticos o luto pela perda dos que lhes eram caros é ainda perturbado por autocensuras obsessivas, cujo segredo é revelado pela psicanálise como sendo a velha ambivalência emocional. Não precisamos discutir aqui como foi que esta alteração ocorreu, que parte dela é devida a uma modificação constitucional e qual a parte que se deve a uma melhoria real nas relações familiares. Mas este exemplo sugere a probabilidade de que os impulsos psíquicos dos povos primitivos fossem caracterizados por uma quantidade maior de ambivalência que a que se pode encontrar no homem moderno civilizado. É de supor-se que como essa ambivalência diminuiu, o tabu (sintoma da ambivalência e um acordo entre os dois impulsos conflitantes) lentamente desapareceu. Dos neuróticos, que são obrigados a reproduzir o conflito e o tabu dela resultante, pode-se dizer que herdaram uma constituição arcaica como vestígio atavístico; a necessidade de compensar isso, por força da civilização, é que os leva a um imenso dispêndio de energia mental.

E aqui poderemos relembrar a obscura e enigmática afirmação de Wundt sobre o significado duplo da palavra tabu: ‘sagrado’ e ‘impuro’. (Ver atrás em [1] e [2].) Originalmente, de acordo com ele, a palavra não possuía esses dois significados, mas descrevia ‘o que é demoníaco’, ‘o que não pode ser tocado’, acentuando assim uma importante característica comum a ambos os conceitos extremos. A persistência, contudo (acrescenta ele), dessa característica comum constituiu uma prova de que o campo abrangido por ambos — o sagrado e o impuro — era originalmente um só e não se tornou diferenciado senão posteriormente.

Nossos estudos, pelo contrário, conduziram-nos à simples conclusão de que a palavra ‘tabu’ possuiu um sentido duplo desde o início e foi usada para designar um tipo específico de ambivalência e tudo o que dela surgia. ‘Tabu’, em si própria, é uma palavra ambivalente e, olhando-se para trás, sente-se que só o significado bem comprovado da palavra teria tornado possível inferir — coisa a que na realidade se chegou como resultado de amplas pesquisas — que as proibições do tabu devem ser compreendidas como conseqüências de uma ambivalência emocional. O estudo das línguas mais primitivas nos revelou que existiram outrora muitas dessas palavras, que expressavam idéias contrárias e, num certo sentido (embora não exatamente no mesmo sentido que a palavra ‘tabu’), eram ambivalentes. Ligeiras modificações na pronúncia da ‘palavra primordial’ antitética tornaram subseqüentemente possível dar expressão verbal independente às duas idéias contrárias que nele se achavam originalmente combinadas.

A palavra ‘tabu’ teve uma sorte diferente. À medida que a importância da ambivalência por ela denotada declinava, a própria palavra, ou melhor, as palavras que lhe eram análogas, caíram no desuso. Espero poder provar, numa conexão posterior, que uma cadeia definida de acontecimentos históricos está oculta por trás da sorte deste conceito: que a palavra foi a princípio ligada a certas relações humanas bastante específicas, que se caracterizavam por grande ambivalência emocional, e que seu uso depois ampliou-se para outras relações análogas. [Ver em [1] e segs.]

Se não estou enganado, a explicação de tabu também lança luz sobre a natureza e a origem da consciência. É possível, sem qualquer distensão do sentido dos termos, falar de uma consciência tabu ou, após um tabu ter sido violado, de um senso de culpa tabu. A consciência tabu é provavelmente a forma mais remota em que o fenômeno da consciência é encontrado.

Sim, porque o que é a consciência? Segundo as provas da linguagem, ela está relacionada com aquilo de que se está ‘consciente com mais certeza’. Na verdade, em algumas línguas, as palavras para designar ‘consciência’ (no sentido moral, conscience, N. do Trad.) e ‘consciência’ (no sentido de percepção do que se passa em nós ou ao redor de nós, consciousness, N. do Trad.) mal podem ser distinguidas.

A consciência (conscience, N. do Trad.) é a percepção interna da rejeição de um deteminado desejo a influir dentro de nós. A ênfase, contudo, é dada ao fato de esta rejeição não precisar apelar para nada mais em busca de apoio, de achar-se inteiramente ‘certa de si própria’. Isto é ainda mais claro no caso da consciência de culpa — a percepção da condenação interna de um ato pelo qual realizamos um determinado desejo. Apresentar qualquer razão para isto pareceria supérfluo: quem quer que tenha uma consciência deve sentir dentro de si a justificação pela condenação, sentir a autocensura pelo ato que foi realizado. Essa mesma característica pode ser observada na atitude do selvagem para com o tabu. Trata-se de uma ordem emitida pela consciência; qualquer violação dela produz um temível senso de culpa que vem como coisa natural e do qual a origem é desconhecida.

Dessa maneira parece provável que também a consciência tenha surgido, numa base de ambivalência emocional, de relações humanas bastante específicas, às quais essa ambivalência estava ligada e que surgiu sob as condições que demonstramos se aplicarem ao caso do tabu e da neurose obsessiva, a saber: que um dos sentimentos opostos envolvidos seja inconsciente e mantido sob repressão pela dominação compulsiva do outro. Esta conclusão é apoiada por várias coisas que aprendemos da análise das neuroses.

Em primeiro lugar, descobrimos que um dos aspectos do caráter dos neuróticos obsessivos é uma escrupulosa conscienciosidade que é um sintoma reagindo contra a tentação a espreitar no inconsciente. Se a doença se torna mais aguda, desenvolvem um senso de culpa do mais intenso grau. Na realidade, poderíamos arriscar-nos a dizer que se não pudemos descobrir a origem do senso de culpa nos neuróticos obsessivos, não há esperanças de que venhamos a descobri-lo nunca. Esse trabalho pode ser realizado diretamente no caso dos pacientes neuróticos e pode nos servir de apoio para chegar, por inferência, a uma solução semelhante no caso dos povos primitivos.

Em segundo lugar, não podemos deixar de nos impressionar com o fato de uma sensação de culpa ter em si muito da natureza da ansiedade; podemos descrevê-la, sem nenhum receio, como um ‘pavor da consciência’. Mas a ansiedade aponta para fontes inconscientes. A psicologia das neuroses nos fez ver que, se impulsos cheios de desejo forem reprimidos, sua libido se transformará em ansiedade. E isto nos faz lembrar que há algo de desconhecido e inconsciente em conexão com a sensação de culpa, a saber, as razões para o ato de repúdio. O caráter de ansiedade que é inerente à sensação de culpa corresponde ao fator desconhecido.

Visto que os tabus se expressam principalmente em proibições, a presença subjacente de uma corrente positiva de desejo pode ocorrer-nos como algo de bastante óbvio e que não exige provas exaustivas baseadas na analogia das neuroses, porque, afinal de contas, não há necessidade de se proibir algo que ninguém deseja fazer e uma coisa que é proibida com a maior ênfase deve ser algo que é desejado. Se aplicarmos essa tese plausível aos nossos povos primitivos, seremos levados à conclusão de que algumas de suas mais fortes tentações eram matar seus reis e sacerdotes, cometer incesto, tratar mal os mortos e assim por diante — o que dificilmente parece provável. E nos defrontaremos com a mais positiva contradição se aplicarmos a mesma tese aos casos em que nós mesmos parecemos ouvir com a maior clareza a voz da consciência. Sustentaríamos com a mais absoluta certeza que não sentimos a mais leve tentação de violar nenhuma dessas proibições — o mandamento ‘Não matarás’, por exemplo — e que não sentimos senão horror à idéia de violá-las.

Se, contudo, devêssemos admitir as alegações assim defendidas por nossa consciência, seguir-se-ia, por um lado, que essas proibições seriam supérfluas — tanto aos tabus quanto às nossas próprias proibições morais — e, por outro, que a consciência ficaria inexplicada e não restaria lugar para as relações existentes entre ela, o tabu e a neurose. Em outras palavras, voltaríamos ao estado de conhecimento em que nos encontrávamos antes de abordarmos o problema segundo o ângulo psicanalítico.

Suponhamos, por outro lado, que devêssemos levar em consideração a descoberta a que se chegou, através da psicanálise, sobre os sonhos das pessoas normais, segundo a qual nós próprios achamo-nos sujeitos, mais intensa e freqüentemente do que suspeitamos, à tentação de matar alguém e que essa tentação produz efeitos psíquicos, ainda que permaneça fora da visão da nossa consciência. Suponhamos ainda que devêssemos reconhecer as observâncias compulsivas de certos neuróticos como sendo cautelas contra um impulso intensificado de matar ou autopunições por causa desse impulso. Nesse caso, deveríamos dar ainda mais importância à nossa tese de que onde existe uma proibição tem de haver um desejo subjacente. Teríamos de supor  que o impulso a matar acha-se realmente presente no inconsciente e que nem os tabus e nem as proibições morais são psicologicamente supérfluos, mas, pelo contrário, explicam-se e justificam-se pela existência de uma atitude ambivalente para com o impulso de matar.

Uma das características dessa relação ambivalente que ressaltei repetidamente como fundamental — o fato de a corrente positiva de desejo ser inconsciente — abre caminho a outras considerações e a outras explicações possíveis. Os processos psíquicos do inconsciente não são, em todos os aspectos, idênticos àqueles com que a nossa mente consciente se acha familiarizada; desfrutam de certas liberdades excepcionais que são proibidas a esta. Um impulso inconsciente não precisa ter surgido no ponto em que faz seu aparecimento; pode surgir de uma outra região inteiramente diferente e haver aplicado originalmente a outras pessoas e conexões completamente diferentes; pode ter atingido o local em que chama a nossa atenção através do mecanismo do ‘deslocamento’. Além disso, devido à indestrutibilidade e insusceptibilidade à correção que constituem atributos dos processos inconscientes, pode ter sobrevivido desde épocas bem anteriores, nas quais era apropriado, até épocas e circunstâncias posteriores, nas quais suas manifestações estão destinadas a parecer estranhas. Estas observações não constituem mais que sugestões, mas, se forem atentamente desenvolvidas, sua importância para nossa compreensão do progresso da civilização se tornará evidente.

Antes de concluir este estudo, há outro ponto que não deve ser desprezado, pois vai preparar o caminho para indagações posteriores. Ao sustentar a semelhança essencial entre as proibições dos tabus e as proibições morais, não procurei discutir o fato de que deve haver uma diferença psicológica entre elas. A única razão possível para que as proibições não mais assumam a forma de tabus deve ser alguma alteração ocorrida nas circunstâncias que regem a ambivalência a elas subjacente.

Em nosso exame analítico dos problemas do tabu, consideramos até aqui os pontos de concordância que podemos demonstrar existir entre ele e a neurose obsessiva. Mas, em última análise, o tabu não é uma neurose e sim uma instituição social. Por conseguinte, devemos explicar que diferença existe, em princípio, entre uma neurose e uma criação cultural como é o tabu.

Mais uma vez tomarei um fato isolado como ponto de partida. Existe, entre os povos primitivos, o temor de que a violação de um tabu seja seguida de uma punição, em geral alguma doença grave ou a morte. A punição ameaça cair sobre quem quer que tenha sido responsável pela violação do tabu. Nas neuroses obsessivas, o caso é diferente. O que o paciente teme, se efetuar alguma ação proibida, é que o castigo caia não sobre si próprio, mas sobre alguma outra pessoa. A identidade da pessoa, via de regra, não é enunciada, mas em geral pode-se demonstrar sem dificuldade, através da análise, que se trata de uma pessoa das mais próximas e queridas do paciente. Aqui, então, o neurótico parece estar comportando-se altruisticamente e o homem primitivo, egoisticamente. Somente quando a violação de um tabu não é automaticamente vingada na pessoa do transgressor é que surge entre os selvagens um sentimento coletivo de que todos eles estão ameaçados pelo ultraje; e em seguida, apressam-se em efetuar eles próprios a punição omitida. Não há dificuldade em explicar o mecanismo desta solidariedade. O que está em questão é o medo do exemplo infeccioso, da tentação a imitar, ou seja, do caráter contagioso do tabu. Se uma só pessoa consegue gratificar o desejo reprimido, o mesmo desejo está fadado a ser despertado em todos os outros membros da comunidade. A fim de sofrear a tentação o transgressor invejado tem de ser despojado dos frutos de seu empreendimento e o castigo, não raramente, proporcionará àqueles que o executam uma oportunidade de cometer o mesmo ultraje, sob a aparência de um ato de expiação. Na verdade, este é um dos fundamentos do sistema penal humano e baseia-se, sem dúvida corretamente, na pressuposição de que os impulsos proibidos encontram-se presentes tanto no criminoso como na comunidade que se vinga. Nisto, a psicanálise apenas confirma o costumeiro pronunciamento dos piedosos: todos nós não passamos de miseráveis pecadores.

A que atribuir então a inesperada nobreza da mente do neurótico, que nada teme para si, mas tudo teme para alguém que ama? A investigação analítica demonstra que esta atitude não é primária. Originalmente, isto é, no começo da doença, a ameaça do castigo aplicava-se, como no caso dos selvagens, ao próprio paciente; ele temia invariavelmente pela sua própria vida; somente depois foi que o medo mortal deslocou-se para outrem, para uma pessoa amada. O processo é um pouco complicado, mas podemos acompanhá-lo perfeitamente. Na raiz da proibição existe sempre um impulso hostil contra alguém que o paciente ama — um desejo de que essa pessoa morra. Esse impulso é reprimido por uma proibição e esta se liga a algum ato específico, que, por deslocamento, represente talvez um ato hostil contra a pessoa amada. Existe uma ameaça de morte se o ato for realizado. Mas o processo vai além e o desejo original de que a pessoa morra é substituído pelo medo de que ela possa morrer. Assim é que, quando a neurose parece ser tão compassivamente altruísta, está simplesmente compensando uma atitude subjacente contrária de brutal egoísmo. Podemos descrever como ‘sociais’ as emoções que são determinadas pelas demonstrações de consideração por outra pessoa, sem tomá-la como objeto sexual. O recuo ao que está por trás desses fatores sociais pode ser ressaltado como uma característica fundamental da neurose, embora se trate de uma característica que é posteriormente disfarçada pela supercompensação.

Não pretendo alongar-me sobre a origem desses impulsos sociais e suas relações com os outros instintos humanos básicos. Prosseguirei com a ilustração da segunda característica principal da neurose através de outro exemplo. Nas formas que assume, o tabu assemelha-se muito estreitamente ao medo de contato do neurótico, com a sua ‘fobia de contato’. Ora, no caso da neurose, a proibição invariavelmente se relaciona com o contato de tipo sexual e a psicanálise já demonstrou que, em regra geral, as força instintivas que são desviadas e deslocadas para as neuroses têm uma origem sexual. No caso do tabu, o contato proibido obviamente não deve ser entendido num sentido exclusivamente sexual, mas sim no sentido mais geral de atacar, de obter o controle, de afirmar-se. Se existe a proibição de tocar num chefe ou em qualquer coisa que tenha estado em contato com ele, isto significa que uma proibição deve ser imposta ao mesmo impulso que noutras ocasiões se expressa através de uma atitude de suspeita em relação ao chefe ou até mesmo através do mau tratamento físico que lhe é dado antes da coroação. (Ver atrás em [1].) Assim o fato que é característico da neurose é a preponderância dos elementos sexuais sobre os elementos instintivos sociais. Os instintos sociais, contudo, derivam-se eles próprios de uma combinação de componentes egoísticos e eróticos em totalidades de um tipo especial.

Esta simples comparação entre o tabu e a neurose obsessiva é suficiente para fazer-nos compreender a natureza da relação entre as diferentes formas de neuroses e instituições culturais e perceber como o estudo da psicologia das neuroses é importante para a compreensão do desenvolvimento da civilização.

As neuroses, por um lado, apresentam pontos de concordância notáveis e de longo alcance com as grandes instituições sociais, a arte, a religião e a filosofia. Mas, por outro lado, parecem como se fossem distorções delas. Poder-se-ia sustentar que um caso de histeria é a caricatura de uma obra de arte, que uma neurose obsessiva é a caricatura de uma religião e que um delírio paranóico é a caricatura de um sistema filosófico. A divergência reduz-se, em última análise, ao fato de as neuroses serem estruturas associais; esforçam-se por conseguir, por meios particulares, o que na sociedade se efetua através do esforço coletivo. Se analisarmos os instintos em ação nas neuroses, descobriremos que a influência nelas determinante é exercida por forças instintivas de origem sexual; as formações culturais correspondentes, por outro lado, baseiam-se em instintos sociais, originados da combinação de elementos egoístas e eróticos. As necessidades sexuais não são capazes de unir os homens da mesma maneira que as exigências da autopreservação. A satisfação sexual é, essencialmente, assunto privado de cada indivíduo.

A natureza associal das neuroses tem sua origem genética em seu propósito mais fundamental, que é fugir de uma realidade insatisfatória para um mundo mais agradável de fantasia. O mundo real, que é assim evitado pelos neuróticos, acha-se sob a influência da sociedade humana e das instituições coletivamente criadas por ela. Voltar as costas à realidade é, ao mesmo tempo, afastar-se da comunidade dos homens.

 

III - ANIMISMO, MAGIA E A ONIPOTÊNCIA DE PENSAMENTOS

 

(1)

 

Os trabalhos que procuram aplicar as descobertas da psicanálise a temas do campo das ciências mentais ressentem-se do inevitável defeito de oferecer muito pouco aos leitores de ambas as classes. Esses trabalhos só podem ter a natureza de uma instigação: colocam perante o especialista certas sugestões, para que as leve em consideração em seu próprio trabalho. Esse defeito está fadado a ser extremamente evidente num ensino que tentará tratar do imenso domínio daquilo que é conhecido como ‘animismo‘.

O animismo, em seu sentido mais estrito, é a doutrina de almas e, no mais amplo, a doutrina de seres espirituais em real. O termo ‘animatismo’ também foi usado para indicar a teoria do caráter vivo daquelas coisas que nos parecem ser objetos inanimados [ver adiante em [1]] e as expressões ‘animalismo’ e ‘hominismo’ também são empregadas em relação a isto. A palavra ‘animismo’, originalmente utilizada para descrever um sistema filosófico específico, parece ter recebido de Tylor o seu atual significado.

O que conduziu à introdução desses termos foi uma compreensão da visão da natureza e do universo altamente notável adotada pelos povos primitivos de que temos conhecimento, seja na história passada, seja na época atual. Eles povoam o mundo com inumeráveis seres espirituais, benevolentes e malignos; e consideram esses espíritos e demônios como as causas dos fenômenos naturais acreditando que não apenas os animais e os vegetais, mas todos os objetos inanimados do mundo são animados por eles. Um terceiro, talvez o mais importante, item desta primitiva ‘filosofia da natureza’ causa-nos uma impressão menos estranha, uma vez que, embora tenhamos mantido apenas uma crença muito limitada na existência de espíritos e expliquemos os fenômenos naturais pela influência de forças físicas impessoais, nós próprios não estamos muito longe dessa terceira crença, pois os povos primitivos acreditam que os seres humanos são habitados por espíritos semelhantes. Essas almas que vivem nos homens podem deixar suas habitações e emigrar para outros seres humanos; são o veículo das atividades mentais e são até certo ponto independentes de seus corpos. Originalmente, as almas eram representadas como muito semelhantes às pessoas e foi somente no decorrer de um longo desenvolvimento que elas perderam suas características materiais e se tornaram ‘espiritualizadas’ em alto grau.

A maioria das autoridades inclina-se a pensar que estas idéias de alma constituem o núcleo original do sistema animista, que os espíritos são apenas almas que se tornaram independentes e que as almas de animais, vegetais e objetos foram construídas por analogia com almas humanas.

Como os homens primitivos chegaram às específicas visões dualistas sobre as quais o sistema animista se baseia? Supõe-se que assim o fizeram observando os fenômenos do sono (inclusive os sonhos) e da morte, que tanto se lhe assemelha, e tentando explicar esses estados, que têm interesse tão próximo para todo mundo. O principal ponto de partida desta teorização deve ter sido o problema da morte. O que o homem primitivo encarava como coisa natural era o prolongamento indefinido da vida — a imortalidade. Somente depois a idéia da morte foi aceita, e com hesitação. Mesmo para nós, ela é falha de conteúdo e não tem uma conotação clara. Têm havido discussões muito vivas mas inconclusivas sobre o papel que pode ter sido desempenhado na formação das doutrinas básicas do animismo por outros fatos observados ou experimentados, tais como as representações oníricas, as sombras, as imagens no espelho etc.

Foi encarado como perfeitamente natural e de modo algum estranho que o homem primitivo tivesse reagido aos fenômenos que despertavam suas especulações através da formação da idéia da alma, e depois, de sua extensão aos objetos do mundo exterior. Ao examinar o fato de as mesmas idéias animistas haverem surgido entre os povos mais variados e em todos os períodos, Wundt (1906, 154) declara que ‘elas constituem o produto psicológico necessário de uma consciência mitocriadora (…) e assim, neste sentido, o animismo primitivo deve ser encarado como a expressão espiritual do estado natural do homem, até onde é acessível à nossa observação’. A justificativa para a atribuição de vida aos objetos inanimados já fora enunciada por Hume em sua Natural History of Religion [Seção III]: ‘Existe uma tendência universal entre humanos para conceber todos os seres à sua semelhança e transferir a todos os objetos as qualidades que lhes são familiares e das quais se achem intimamente conscientes.

O animismo é um sistema de pensamento. Ele não fornece simplesmente uma explicação de um fenômeno específico, mas permite-me apreender todo o universo como uma unidade isolada de um ponto de vista único. A raça humana, se seguirmos as autoridades no assunto, desenvolveu, no decurso das eras, três desses sistemas de pensamento — três grandes representações do universo: animista (ou mitológica), religiosa e científica. Destas, o animismo, o primeiro a ser criado, é talvez o mais coerente e completo e o que dá uma explicação verdadeiramente total da natureza do universo. A primeira Weltanschauung humana é uma teoria psicológica. Iria mais além de nossos atuais objetivos demonstrar como grande parte dela persiste na vida moderna, seja sob a forma degradada da superstição, seja como a base viva de nossa fala, nossas crenças e nossas filosofias.

Com esses três estágios em mente, pode-se dizer que o animismo em si mesmo não é ainda uma religião, mas contém os fundamentos sobre os quais as religiões posteriormente foram criadas. É evidente também que os mitos se baseiam em premissas animistas, embora os pormenores da relação entre os mitos e o animismo pareçam estar inexplicados em alguns aspectos essenciais.

 

(2)

 

Nossa abordagem psicanalítica do tema, entretanto, é feita de outro ângulo. Não é de se supor que os homens foram inspirados a criar seu primeiro sistema do universo por pura curiosidade especulativa. A necessidade prática de controlar o mundo que os rodeava deve ter desempenhado seu papel. Assim, não ficamos surpresos em descobrir que, de mãos dadas com o sistema animista, existia um conjunto de instruções a respeito de como obter domínio sobre os homens, os animais e as coisas — ou melhor, sobre os seus espíritos. Estas instruções são conhecidas com o nome de ‘feitiçaria’ e ‘magia’. Reinach (1905-12, 2, XV) descreve-as como sendo a ‘estratégia do animismo’; eu prefiro, seguindo Hubert e Mauss (1904 [142 e segs.]), considerá-las a sua técnica.

 

Pode-se fazer distinção entre os conceitos de feitiçaria e magia? Talvez — se estivermos dispostos a mostrar um desprezo um tanto arbitrário pelas flutuações do uso lingüístico. A feitiçaria seria, então, a arte de influenciar espíritos tratando-os da mesma maneira como se tratariam seres humanos em circunstâncias semelhantes: apaziguando-os, corrigindo-os, tornando-os propícios, intimidando-os, roubando-lhes o poder, submetendo-os à nossa vontade — através dos mesmos métodos que se têm mostrado eficazes com homens vivos. A magia, por outro lado, é algo diferente: fundamentalmente, ela despreza os espíritos e faz uso de procedimentos especiais e não dos métodos psicológicos do dia-a-dia. É fácil imaginar que a magia é o ramo mais primitivo e mais importante da técnica animista, porque, entre outros, os métodos mágicos podem ser utilizados para tratar com os espíritos e a magia pode ser aplicada também a casos onde, segundo nos parece, o processo de espiritualização da natureza ainda não foi realizado.

A magia tem de servir aos mais variados propósitos — ela deve submeter os fenômenos naturais à vontade do homem, proteger o indivíduo de seus inimigos e de perigo, bem como conceder-lhe poderes para prejudicar os primeiros. Mas o princípio em cuja pressuposição a ação mágica se baseia — ou, mais propriamente, o princípio da magia — é tão notável que nenhuma das autoridades deixou de identificá-lo. Tylor [1891, 1, 116], se deixarmos de lado o juízo moral acessório, afirma que, em sua forma mais sucinta, esse princípio consiste em tomar equivocadamente uma conexão ideal por uma real. Ilustrarei esta característica com dois grupos de atos mágicos.

Um dos procedimentos mágicos mais difundidos para prejudicar um inimigo é fazer uma efígie dele com qualquer material adequado. Que a efígie se lhe assemelhe tem pouca importância: qualquer objeto pode ‘ser transformado’ numa efígie sua. O que se fizer então à efígie acontecerá também ao original detestado; se alguma parte do corpo da primeira for danificada, a mesma parte do corpo do último ficará enferma. A mesma técnica mágica pode ser utilizada, não apenas com intuitos de inimizade pessoal, mas também com fins piedosos e para auxiliar os deuses contra os demônios malignos. Citarei Frazer (1911a, 1, 67). ‘Todas as noites, quando o deus-sol Ra mergulhava para sua casa no oeste fulgente, era atacado por hostes de demônios dirigidos por seu arquinimigo Apepi. Durante toda a noite ele os combatia e às vezes também de dia os poderes das trevas enviavam nuvens mesmo para o céu azul do Egito, a fim de obscurecer sua luz e enfraquecer-lhe o poder. Para ajudar o deus-sol nesta luta cotidiana, uma cerimônia era diariamente realizada em seu templo de Tebas. Uma figura de seu inimigo Apepi, representado como um crocodilo com uma face odienta ou uma serpente de muitas espirais, era feita de cera e sobre ela se escrevia o nome do demônio com tinta verde. Enrolada num envoltório de papiro, sobre o qual outra imagem de Apepi fora desenhada em tinta verde, a figura era então amarrada com fios negros de cabelos, cuspia-se-lhe em cima, era retalhada com uma faca de pedra e arremessada ao chão. Aí o sacerdote pisava-lhe em cima com o pé esquerdo repetidas vezes e depois queimava-a numa fogueira feita com uma certa planta ou erva. Quando o próprio Apepi tinha sido então efetivamente eliminado, efígies de cera de cada um de seus principais demônios e de seus pais, mães e filhos, eram feitas e queimadas da mesma maneira. O serviço, acompanhado da recitação de certos encantamentos prescritos, era repetido não apenas pela manhã, ao meio-dia e à noite, mas sempre que uma tempestade estrondeava, chuva forte caía ou nuvens negras se deslocavam furtivamente pelo céu, a fim de ocultar o disco brilhante do sol. Os demônios da trevas, das nuvens e das chuvas, sentiam os danos infligidos a suas imagens como se tivessem sido causados a eles próprios; sumiam, pelo menos durante algum tempo, e o benéfico deus-sol mais uma vez brilhava triunfante.

Do grande número de atos mágicos que possuem uma base semelhante, chamarei a atenção para mais dois, que desempenharam um grande papel entre os povos primitivos de todas a épocas e que persistem, em certo grau, nos mitos e cultos de fases mais elevadas de civilização — os rituais para produção de chuva e fertilidade. A chuva é magicamente produzida pela imitação dela ou das nuvens e tempestades que lhe dão origem, através de uma ‘brincadeira de chuva’, como quase se poderia dizer. No Japão, por exemplo, ‘uma turma de ainos espalha chuva por meio de peneiras, enquanto outros tomam uma tigela, enfeitam-na com velas e remos, como se fosse um barco, e depois a empurram ou puxam pela aldeia afora pelos jardins’. Da mesma maneira, a fertilidade da terra é magicamente promovida através de uma representação dramática da relação sexual humana. Assim, para tomar apenas um só de um número incontável de exemplos, ‘em algumas partes de Java, na estação em que o arroz logo começará a florescer, o lavrador e sua esposa visitarão seus campos à noite e lá efetuarão a relação sexual’, a fim de incentivar a fertilidade do arroz com o seu exemplo. Existe o temor, contudo, de que relações sexuais proibidas e incestuosas possam provocar o fracasso das colheitas e tornar a terra estéril.

Certas observâncias negativas, isto é, precauções mágicas, devem ser incluídas neste primeiro grupo. ‘Quando uma aldeia diak sai para caçar porcos selvagens na selva, as pessoas que ficam em casa não podem tocar em óleo nem em água com as mãos durante a ausência de seus amigos, porque, se os fizerem, os caçadores ficarão todos “com os dedos escorregadios” e a presa se lhes escapará das mãos.’ Ou ainda, ‘enquanto um caçador gilyak está perseguindo a caça na floresta, seus filhos que ficaram em casa são proibidos de fazer desenhos sobre madeira ou areia, porque temem que se os filhos assim procederem, os caminhos da floresta ficarão tão confusos quanto as linhas dos desenhos e assim o caçador poderia perder-se e nunca retornar’.

Nestes últimos exemplos, como em tantos outros do funcionamento da magia, o elemento da distância é desprezado; em outras palavras, a telepatia é admitida como certa. Não teremos dificuldade, por conseguinte, em compreender esta característica da magia.

Não pode haver dúvida quanto ao que deve ser encarado como fator operativo em todos esses exemplos. Trata-se da semelhança entre o ato executado e o resultado esperado. Por esta razão, Frazer descreve esse tipo de magia como ‘imitativo’ ou ‘homeopático’. Se desejo que chova, tenho apenas de efetuar algo que se assemelhe à chuva ou faça lembrá-la. Numa fase posterior da civilização, em vez dessa chuva mágica, serão feitas procissões até um templo e preces pedindo chuva serão dirigidas à divindade que nele habita. Finalmente, esta técnica religiosa será por sua vez abandonada e serão feitas tentativas de produzir na atmosfera efeitos que conduzam à chuva.

Num segundo grupo de atos mágicos, o princípio da semelhança não desempenha qualquer papel e seu lugar é assumido por outro princípio, cuja natureza imediatamente se tornará clara pelos exemplos seguintes.

Existe um outro processo pelo qual um inimigo pode ser prejudicado. Entra-se de posse de um pouco de seus cabelos ou unhas ou outros produtos de excreção ou mesmo de um pedaço de suas roupas, e se os trata de maneira hostil. Então, é exatamente como se se tivesse apossado do próprio homem; e este experimenta o que quer que tenha sido feito aos objetos que dele se originaram. Segundo a visão do homem primitivo, uma das partes mais importantes de uma pessoa é o seu nome. Assim; se se souber o nome de um homem ou de um espírito, obtém-se uma certa quantidade de poder sobre o seu possuidor. Está é a origem das extraordinárias precauções e restrições sobre o uso de nomes, às quais já nos referimos no ensaio sobre o tabu. (Ver em [1] e segs.) Nesses exemplos, o lugar da semelhança é evidentemente tomado pela afinidade.

Os motivos mais elevados para o canibalismo entre os povos primitivos têm uma origem semelhante. Incorporando partes do corpo de uma pessoa pelo ato de comer, adquire-se ao mesmo tempo as qualidades por ela possuídas. Isto, em certas circunstâncias, conduz a precauções e restrições relacionadas com a dieta. Uma mulher com filho pequeno evitará comer a carne de certos animais, por temor de que algumas qualidades indesejáveis que possam ter (a covardia, por exemplo) sejam transmitidas ao filho que está sendo nutrido por ela. O poder mágico não é afetado mesmo que a conexão entre os dois objetos já tenha sido rompida ou mesmo que o contato tenha ocorrido apenas numa única ocasião de importância. Por exemplo, a crença de que existe uma ligação mágica entre um ferimento e a arma que a causou pode ser percebida, inalterada, através de milhares de anos. Se um melanésio puder entrar de posse do arco que provocou seu ferimento, guarda-lo-á cuidadosamente num lugar frio, a fim de diminuir a inflamação da ferida. Mas se o arco for deixado na posse do inimigo, ele será sem dúvida dependurado perto do fogo, de maneira a que a ferida se torne febril e inflamada. Plínio (em sua História Natural, Livro XXVIII [Capítulo 7]) conta-nos que ‘se ferirmos um homem e ficarmos sentidos por isso, teremos apenas de cuspir na mão que causou o ferimento e a dor do sofredor será instantaneamente mitigada’. [Frazer, 1911a, 1, 201.] Francis Bacon (em seu Sylva Silvarum [X, § 998]) menciona que ‘é constantemente ouvido e afirmado que o untamento da arma que causou o ferimento curará a própria ferida’. Diz-se que a gente inglesa do campo ainda hoje segue esta prescrição e se se cortam com uma foice mantêm o instrumento cuidadosamente limpo, a fim de impedir que a ferida inflame. ‘Em Norwich, em junho de 1902, uma mulher chamada Matilda Henry cravou acidentalmente um prego no pé. Sem examinar a ferida ou mesmo retirar a meia, fez com que sua filha untasse o  prego, dizendo que se isso fosse feito, nenhum dano sobreviria da machucadura. Poucos dias após, morria de trismo’ — (uma forma de tétano, N. do T. Bras.) — em conseqüência dessa antissepsia deslocada. (Frazer, ibid., 203).

O último grupo de casos exemplifica o que Frazer distingue na magia ‘imitativa’ com o nome de magia ‘contagiosa’. O que se acredita ser o princípio eficaz não é mais a semelhança, mas a conexão espacial, a contigüidade ou, pelo menos, a contigüidade imaginada — a lembrança dela. Desde que, contudo, a semelhança e a contigüidade são os dois princípios essenciais dos processos de associação, parece que a verdadeira explicação de toda a insensatez dessas observâncias mágicas é a dominância da associação de idéias. A propriedade da descrição de magia feita por Tylor, a qual já citei (ver em [1]), torna-se agora evidente: tomar equivocadamente uma conexão ideal por uma real. Frazer (1911a, 1, 420) expressou-se quase com as mesmas palavras: ‘Os homens tomaram equivocadamente a ordem de suas idéias pela ordem da natureza e daí imaginaram que o controle que têm ou parecem ter sobre seus pensamentos permite-lhes exercer um controle correspondente sobre as coisas.’

A princípio ficaremos surpresos em descobrir que esta esclarecedora explicação da magia foi rejeitada por alguns escritores como insatisfatória (p. ex., Thomas, 1910-11a). Pensando bem, contudo, ver-se-á que a crítica é justificada. A teoria associativa da magia explica simplesmente os caminhos pelos quais a magia avança; não explica sua verdadeira essência, a saber, o equívoco que a leva a substituir as leis da natureza por leis psicológicas. Algum fator dinâmico está faltando, evidentemente. Mas, considerando que os críticos da teoria de Frazer se desviaram na procura desse fator, será fácil chegar a uma explicação satisfatória da magia simplesmente aprofundando e levando mais adiante a teoria associativa.

Consideremos primeiramente o caso mais simples e mais importante da magia imitativa. De acordo com Frazer (1911a, 1, 54), ela pode ser praticada por si própria, enquanto que a magia contagiosa via de regra pressupõe outrem. É fácil perceber os motivos que conduziram os homens a praticar a magia: são os desejos humanos. Tudo o que precisamos admitir é que o homem primitivo tinha uma crença imensa no poder de seus desejos. A razão básica por que o que ele começa a fazer por meios mágicos vem a acontecer é, em última análise, simplesmente que o deseja. De início, portanto, a ênfase é colocada apenas no seu desejo.

As crianças se encontram numa situação psíquica análoga, embora sua eficiência motora não esteja ainda desenvolvida. Já expus em outra oportunidade (1911b) a hipótese de que, primeiramente, elas satisfazem seus desejos de uma maneira alucinatória, isto é, criam uma situação satisfatória por meio de excitações centrífugas dos órgãos sensoriais. Um homem adulto primitivo tem à sua disposição um método alternativo. Seus desejos são acompanhados de um impulso motor, a vontade, que está destinado, mais tarde, a alterar toda a face da terra para satisfazer seus desejos. Esse impulso motor é a princípio empregado para dar uma representação da situação satisfatória, de maneira tal que se torna possível experimentar a satisfação por meio do que poderia ser descrito como alucinações motoras. Esse tipo de representação de um desejo satisfeito é bastante comparável à brincadeira das crianças, que dá prosseguimento à técnica primitiva e puramente sensorial de satisfação. Se as crianças e os homens primitivos acham o brinquedo e a representação imitativa suficiente para eles, isto não constitui um sinal de que sejam despretensiosos, em nosso sentido, ou de que aceitem resignadamente sua impotência real. É o resultado, facilmente compreensível, da virtude suprema que atribuem aos seus desejos, da vontade que está associada a esses desejos e dos métodos pelos quais os desejos operam. À medida que o tempo passa, o acento psicológico se desloca dos motivos do ato mágico para as medidas através das quais ele é executado — isto é, para o próprio ato. (Seria talvez mais correto dizer que são apenas estas medidas que revelam ao sujeito a valorização excessiva que ele atribui aos seus atos físicos.) Chega a parecer, assim, como se fosse o próprio ato mágico sozinho que, devido à sua semelhança com o resultado desejado, determina a ocorrência desse resultado. Não há oportunidade, na fase do pensamento animista, de apresentar qualquer prova objetiva do verdadeiro estado de coisas. Mas uma possibilidade de fazer isso aparece realmente numa época posterior, quando, apesar de todos esses procedimentos ainda estarem sendo realizados, o fenômeno psíquico da dúvida começou a surgir, como expressão de uma tendência à repressão. Nesse ponto, os homens estarão prontos para admitir que conjurar espíritos não dá resultado, a menos que a conjuração seja acompanhada de fé, e que o poder mágico da prece falha se não houver, por trás dele, piedade em ação.

O fato de ter sido possível construir um sistema de magia contagiosa sobre associações de contigüidade mostra que a importância atribuída aos desejos e à vontade foi estendida desses dois fatores a todos os atos psíquicos que estão sujeitos à vontade. Uma supervalorização geral ocorreu assim com todos os processos mentais — isto é, uma atitude para com o mundo que, em vista de nosso conhecimento da relação entre a realidade e o pensamento, não pode deixar de impressionar-nos como uma supervalorização do pensamento. As coisas se tornam menos importantes do que as idéias das coisas: tudo o que for feito às idéias das coisas inevitavelmente acontecerá também com as coisas. As relações mantidas entre as idéias de coisas manter-se-ão também igualmente entre as próprias coisas. Desde que a distância näo tem importância para o pensamento — desde que o que fica mais afastado tanto no tempo quanto no espaço pode sem dificuldade ser abrangido num único ato de consciência — assim também o mundo da magia tem um desprezo telepático pela distância espacial e trata as situações passadas como se fossem atuais. Na época animista, o reflexo do mundo interno está fadado a obscurecer a outra representação do mundo, aquela que nós parecemos perceber.

É de se notar ainda que os dois princípios de associação — semelhança e contigüidade — estão incluídos no conceito mais amplo de ‘contato’. A associação por contigüidade é contato no sentido literal; a associação por semelhança o é no sentido metafórico. O emprego da mesma palavra para os dois tipos de relação é, sem dúvida, explicado por alguma identidade nos processos psíquicos em causa, identidade que ainda não foi por nós apreendida. Temos aqui o mesmo alcance de significado da idéia de ‘contato’ que encontramos em nossa análise do tabu. (Cf. ver em [1])

Para resumir, pode-se dizer, então, que o princípio que dirige a magia, a técnica da modalidade animista de pensamento, é o princípio da ‘onipotência de pensamentos’.

 

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Adotei a expressão ‘onipotência de pensamentos’ de um homem altamente inteligente que sofria de idéias obsessivas e que depois de curado pelo tratamento psicanalítico, pôde dar provas de sua eficiência e bom senso. (Cf. Freud, 1909d). Ele criou a expressão como explicação para todos os estranhos e misteriosos acontecimentos pelos quais, como outras vítimas da mesma doença, parecia ser perseguido. Se pensava em alguém, tinha certeza de encontrar essa pessoa logo depois, como se fosse por mágica. Se de repente perguntava pela saúde de um conhecido a quem há muito tempo não via, escutava que este tinha acabado de morrer, de maneira a parecer que uma linguagem telepática lhe houvesse chegado dele. Se, sem nenhuma intenção realmente séria, praguejava contra um estranho, podia estar certo de que este morreria pouco depois, de modo que se sentiria responsável pela sua morte. No decurso do tratamento, ele próprio pôde contar-me como a aparência enganadora surgia na maioria dos casos, e por meio de que artifícios ele mesmo ajudara a fortalecer suas próprias crenças supersticiosas. Todos os neuróticos obsessivos são assim supersticiosos, geralmente contra o seu melhor juízo.

É nas neuroses obsessivas que a sobrevivência da onipotência dos pensamentos é mais claramente visível e que as conseqüências desse modo primitivo de pensar mais se aproximam da consciência. Mas não devemos nos iludir supondo que se trata de uma característica distintiva dessa neurose específica, porque a investigação analítica revela a mesma coisa também nas outras neuroses. Em todas elas, o que determina a formação dos sintomas é a realidade, não da experiência, mas do pensamento. Os neuróticos vivem um mundo à parte, onde, como já disse antes [1911b, perto do final do artigo], somente a ‘moeda neurótica’ é moeda corrente, isto é, eles são afetados apenas pelo que é pensado com intensidade e imaginado com emoção, ao passo que a concordância com a realidade externa não tem importância. O que os histéricos repetem em suas crises e fixam através dos sintomas são experiências que ocorreram daquela forma apenas em sua imaginação — embora seja verdade que, em última instância, essas experiências imaginadas remontem a acontecimentos reais ou sejam neles baseadas. Atribuir a sensação neurótica de culpa a malfeitos reais demonstraria um mal-entendido equivalente. Um neurótico obsessivo pode ser oprimido por uma sensação de culpa que seria adequada para um grande assassino, embora, na realidade, de sua infância em diante, tenha-se comportado para com os seus concidadãos como o mais escrupuloso e respeitável membro da sociedade. Não obstante, sua sensação de culpa tem uma justificativa: está fundada nos intensos e freqüentes desejos de morte contra os seus semelhantes que estão inconscientemente em ação dentro dele. Tem uma justificativa se levarmos em consideração os pensamentos inconscientes e não os atos intencionais. Assim, vê-se que a onipotência de pensamentos, a supervalorização dos processos mentais em comparação com a realidade, desempenha um papel irrestrito na vida emocional dos pacientes neuróticos e em tudo que dela se deriva. Se um deles submeter-se ao tratamento psicanalítico, que torna consciente o que nele era inconsciente, será incapaz de acreditar que os pensamentos são livres e constantemente terá medo de expressar desejos malignos, como se sua expressão conduzisse inevitavelmente à sua realização. Essa conduta, bem como as superstições que pratica na vida comum, revela a semelhança dele com os selvagens que acreditam poderem alterar o mundo externo pelo simples pensamento.

Os atos obsessivos primários desses neuróticos são de um caráter inteiramente mágico. Se não são encantamentos, são, no mínimo, contra-encantamentos, destinados a manter afastadas as expectativas de desgraça com que a neurose geralmente começa. Sempre que consegui penetrar o mistério, descobri que a desgraça esperada era a morte. Schopenhauer disse que o problema da morte se encontra no começo de toda filosofia e já vimos [ver em [1]] que a origem da crença em almas e demônios, que constitui a essência do animismo, remonta à impressão que é causada nos homens pela morte. É difícil ajuizar se os atos obsessivos ou protetores executados pelos neuróticos seguem a lei da similaridade (ou, segundo seja o caso, do contraste); porque, via de regra, devido às condições predominantes da neurose, foram deformados pelo seu deslocamento para algo muito insignificante, alguma ação que, em si própria, é da maior trivialidade. Também as fórmulas protetoras das neuroses obsessivas encontram sua contrapartida nas fórmulas da magia. É possível, contudo, descrever o curso de desenvolvimento dos atos obsessivos: podemos mostrar como eles começam por serem tão afastados quanto possível de qualquer coisa sexual — defesas mágicas contra desejos malignos — e como terminam por serem substitutos do ato sexual proibido e das imitações mais próximas possíveis dele.

Se estivermos dispostos a aceitar a explicação acima oferecida da evolução da maneira do homem visualizar o universo — uma fase animista seguida de uma fase religiosa e esta, por sua vez, de uma fase científica — não será difícil acompanhar as vicissitudes da ‘onipotência de pensamentos’ através dessas diferentes fases. Na fase animista, os homens atribuem a onipotência a si mesmos. Na fase religiosa, transferem-na para os deuses, mas eles próprios não desistem dela totalmente, porque se reservam o poder de influenciar os deuses através de uma variedade de maneiras, de acordo com os seus desejos. A visão científica do universo já não dá lugar à onipotência humana; os homens reconheceram a sua pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras necessidades na natureza. Não obstante, um pouco da crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em luta com as leis da realidade.

Se acompanharmos retrospectivamente o desenvolvimento das tendências libidinais, tal como as encontramos no indivíduo, desde suas formas adultas até o seus começos na infância, surge uma importante distinção, que descrevi em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1950d). Manifestações dos instintos sexuais podem ser observadas desde os começos, mas, de saída, elas ainda não são dirigidas para qualquer objeto externo. Os componentes instintivos separados da sexualidade atuam independentemente uns dos outros, a fim de obter prazer e encontrar satisfação no próprio corpo do sujeito. Essa fase é conhecida como a do auto-erotismo, sendo sucedida por outra, na qual um objeto é escolhido.

Estudos ulteriores demonstraram que é conveniente e verdadeiramente indispensável inserir uma terceira fase entre aquelas duas, ou, em outras palavras, dividir a primeira fase, a do auto-erotismo, em duas. Nessa fase intermediária, cuja importância a pesquisa tem evidenciado cada vez mais, os instintos sexuais até então isolados já se reuniram num todo único e encontraram também um objeto. Este objeto, porém, não é um objeto externo, estranho ao sujeito, mas se trata de seu próprio ego, que se constituiu aproximadamente nessa mesma época. Tendo em mente as fixações patológicas dessa nova fase, que se tornam observáveis mais tarde, demos-lhe o nome de ‘narcisismo’. O sujeito comporta-se como se estivesse amoroso de si próprio; seus instintos egoístas e seus desejos libidinais ainda não são separáveis pela nossa análise.

Embora ainda não estejamos em posição de descrever com exatidão suficiente as características dessa fase narcisista, na qual os instintos sexuais até então dissociados se reúnem numa unidade isolada e catexizam o ego como objeto, já temos motivos para suspeitar que essa organização narcisista nunca é totalmente abandonada. Um ser humano permanece até certo ponto narcisista, mesmo depois de ter encontrado objetos externos para a sua libido. As catexias de objetos que efetua são, por assim dizer, emanações da libido que ainda permanece no ego e pode ser novamente arrastada para ele. A condição de apaixonado, que é psicologicamente tão notável e é o protótipo normal das psicoses, mostra essas emanações em seu máximo, comparadas com o nível do amor a si mesmo.

Os homens primitivos e os neuróticos, como já vimos, atribuem uma alta valorização — a nossos olhos, uma supervalorização — aos atos psíquicos. Essa atitude pode perfeitamente ser relacionada com o narcisismo e encarada como um componente essencial deste. Pode-se dizer que, no homem primitivo, o processo de pensar ainda é, em grande parte, sexualizado. Esta é a origem de sua fé na onipotência dos pensamentos, de sua inabalável confiança na possibilidade de controlar o mundo e de sua inacessibilidade às experiências, tão facilmente obteníveis, que poderiam ensinar-lhe a verdadeira posição do homem no universo. Com relação aos neuróticos, encontramos que, por um lado, uma parte considerável desta atitude primitiva sobreviveu em sua constituição e, por outro, que a repressão sexual que neles ocorreu ocasionou uma maior sexualização de seus processos de pensamento. Os resultados psicológicos devem ser os mesmos em ambos os casos, quer a hipercatexia libidinal do pensamento seja original, quer tenha sido produzida pela regressão: narcisismo intelectual e onipotência de pensamentos.

Se podemos considerar a existência da onipotência de pensamentos entre os povos primitivos como uma prova em favor do narcisismo, somos incentivados a fazer uma comparação entre as fases do desenvolvimento da visão humana do universo e as fases do desenvolvimento libidinal do indivíduo. A fase animista corresponderia à narcisista, tanto cronologicamente quanto em seu conteúdo; a fase religiosa corresponderia à fase da escolha de objeto, cuja característica é a ligação da criança com os pais; enquanto que a fase científica encontraria uma contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a maturidade, renuncia ao princípio de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o mundo externo em busca do objeto de seus desejos.

Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de pensamentos e esse campo é o da arte. Somente na arte acontece ainda que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e o que faça com um sentido lúdico produza efeitos emocionais — graças à ilusão artística — como se fosse algo real. As pessoas falam com justiça da ‘magia da arte’ e comparam os artistas aos mágicos. Mas a comparação talvez seja mais significativa do que pretende ser. Não pode haver dúvida de que a arte não começou como arte por amor à arte. Ela funcionou originalmente a serviço de impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles podemos suspeitar da presença de muitos intuitos mágicos.

 

(4)

 

Assim, a primeira imagem que o homem formou do mundo — o animismo — foi psicológica. Não precisou então de base científica, uma vez que a ciência só começa depois de ter-se dado contra de que o mundo é desconhecido e que, por conseguinte, tem-se de procurar meios para conseguir conhecê-lo. O animismo surgiu no homem primitivo naturalmente e como coisa normal. Ele sabia que as coisas eram semelhantes no mundo, ou seja, exatamente como ele próprio se sentia ser. Estamos então preparados para descobrir que o homem primitivo transpunha as condições estruturais de sua própria mente para o mundo externo; e podemos tentar inverter o processo e colocar de volta na mente humana aquilo que o animismo acredita ser a natureza das coisas.

A técnica do animismo, da magia, revela, da maneira mais clara e inequívoca, uma intenção de impor as leis que regem a vida mental às coisas reais; nisto, os espíritos não precisam ainda desempenhar nenhum papel, embora possam ser tomados como objetos de tratamento mágico. Assim, as suposições da magia são mais fundamentais e mais antigas que a doutrina dos espíritos, que constitui o centro do animismo. Nosso ponto de vista psicanalítico coincide aqui com uma teoria apresentada por R. R. Marett (1900), a qual postula uma fase pré-animista antes do animismo, fase cujo caráter é mais bem indicado pelo termo ‘animatismo’, a doutrina da universalidade da vida. A experiência tem pouca luz a lançar sobre o pré-animismo, uma vez que ainda não se descobriu nenhuma raça que não possua o conceito de espíritos. (Cf. Wundt, 1906, 171 e segs.)

Enquanto a magia ainda reserva a onipotência apenas para os pensamentos, o animismo transmite um pouco dela para os espíritos, preparando assim o caminho para a criação de uma religião. O que, podemos perguntar, pode ter induzido o homem primitivo a efetuar esse primeiro ato de renúncia? Dificilmente pode ter sido o reconhecimento da falsidade de suas premissas, porque continuou a praticar a técnica mágica.

Os espíritos e os demônios, como demonstrei no último ensaio, são apenas projeções dos próprios impulsos emocionais do homem. Ele transforma as suas catexias emocionais em pessoas, povoa o mundo com elas e enfrenta os seus processos mentais internos novamente fora de si próprio — exatamente da mesma maneira como aquele inteligente paranóico, Schreber, descobriu um reflexo das ligações e dos desligamentos de sua libido nas vicissitudes de seus confabulados ‘raios de Deus’. 

Proponho evitar (como já fiz anteriormente) entrar no problema geral da origem da tendência a projetar os processos mentais para o exterior. No entanto, pode-se supor com segurança que essa tendência se intensifica quando a projeção promete trazer consigo a vantagem. Tal vantagem pode ser esperada com certeza quando surge conflito entre diferentes impulsos, todos eles lutando no sentido da onipotência — porque, evidentemente, eles não podem tornar-se todos onipotentes. Na realidade, o processo patológico na paranóia faz uso do mecanismo de projeção a fim de lidar com conflitos mentais dessa espécie. Caso típico de um conflito assim é que o que se dá entre dois membros de um par de opostos — o caso de uma atitude ambivalente, que examinamos em pormenores, no caso da pessoa que chora a morte de um parente amado. [Cf. ver em [1] e segs.] Esse tipo de caso parece ser particularmente passível de fornecer um motivo para a criação de projeções. Aqui, mais uma vez, estamos de acordo com os autores que sustentam que os primeiros espíritos a nascer foram os espíritos maus. Esses autores acham que a idéia de alma derivou-se da impressão causada pela morte sobre os sobreviventes. A única diferença é que nós não damos ênfase ao problema intelectual que a morte traz ao confronto dos vivos; a nosso ver, a força que dá ímpeto à pesquisa deve ser atribuída de preferência ao conflito emocional em que os sobreviventes se acham mergulhados.

Assim sendo, a primeira realização teórica do homem — a criação dos espíritos — parece ter surgido da mesma fonte que as primeiras restrições morais a que se achava sujeito — as observâncias do tabu. O fato de possuírem a mesma origem não precisa implicar, contudo, que tenham surgido simultaneamente. Se a posição dos sobreviventes em relação aos mortos foi realmente o que primeiro levou o homem primitivo a refletir e compeliu-o a abrir mão de um pouco de sua onipotência em favor dos espíritos e a sacrificar um pouco de sua liberdade de ação, então esses produtos culturais constituiriam um primeiro reconhecimento da AƒÞƒÑƒ×ƒÛƒØ [Necessidade], que se opõe ao narcisimo humano. O homem primitivo estaria assim submetendo-se à supremacia da morte pelo mesmo gesto com que pareceria estar negando-a.

Se nos aventurarmos a levar nossa hipótese ainda mais longe, poderemos perguntar que parte essencial de nossa estrutura psicológica se reflete e reproduz na criação projetiva das almas e dos espíritos. Dificilmente se poderia negar que a concepção primitiva de uma alma, por muito que pudesse diferir da alma posterior, puramente imaterial, seria, não obstante, intrinsecamente a mesma; ou seja, presumiria que tanto as pessoas quanto as coisas são de uma natureza dúplice e que seus atributos e modificações conhecidos acham-se distribuídos entre as duas partes componentes. Essa ‘dualidade’ original, para usar uma expressão de Herbert Spencer (1893) é idêntica ao dualismo revelado pela distinção comum que fazemos entre corpo e alma e às expressões lingüísticas nela enraizadas, sejam como o emprego de frases como ‘fora de si’ ou ‘voltando a si’ em relação a crises de raiva ou a desmaios. [ibid., p. 124.]

Quando nós, não menos que o homem primitivo, projetamos algo para a realidade externa, o que acontece certamente deve ser o seguinte: estamos reconhecendo a existência de dois estados — um em que algo é diretamente fornecido aos sentidos e à consciência (ou seja, está presente neles) e, ao lado deste, outro, em que a mesma coisa é latente mas capaz de reaparecer. Em resumo, estamos reconhecendo a coexistência da percepção e da memória, ou, em termos mais gerais, a existência de processos mentais inconscientes ao lado dos conscientes. Poder-se-ia dizer que, em última análise, o ‘espírito’ das pessoas ou das coisas reduz-se à sua capacidade de serem lembradas e imaginadas após a percepção delas haver cessado.

Naturalmente, não é de se esperar que tanto o conceito primitivo de ‘alma’ quanto o atual se separem do da outra parte da personalidade pela mesma linha de demarcação que a nossa moderna ciência traça entre a atividade mental consciente e inconsciente. A alma animista reúne propriedades de ambos os lados. Sua qualidade móvel e volátil, seu poder de abandonar o corpo e tomar posse, temporária ou permanentemente, de outro corpo — são características que nos fazem lembrar de maneira inequívoca a natureza da consciência. Mas a maneira como ela permanece oculta por trás da personalidade manifesta faz lembrar o inconsciente; a imutabilidade e a indestrutibilidade são qualidades que já não atribuímos aos processos conscientes, e sim aos inconscientes, e encaramos estes como o verdadeiro veículo da atividade mental.

Já disse [ver em [1] e seg.] que o animismo é um sistema de pensamento, a primeira teoria completa do universo e passarei agora a tirar certas conclusões a partir da visão psicanalítica desse tipo sistema. A cada dia de nossa vida, a experiência pode nos mostrar as características principais de um ‘sistema’. Temos sonhos durante a noite e aprendemos a maneira de interpretá-los durante o dia. Os sonhos podem, sem contradizer sua natureza, parecer confusos e desconexos. Mas podem também, pelo contrário, simular as impressões ordenadas de uma experiência real, podem fazer um fato decorrer de outro e uma parte de seu conteúdo referir-se a outra. Esse resultado pode ser conseguido com mais ou menos êxito, mas dificilmente será tão completamente bem sucedido a ponto de não deixar visível nenhum absurdo, nenhuma falha em sua contextura. Quando submetemos um sonho à interpretação, descobrimos que a disposição errática e irregular de suas partes constituintes não tem importância alguma do ponto de vista de nossa compreensão dele. Os elementos essenciais num sonho são os pensamentos oníricos e estes têm significado, conexão e ordem. Mas sua ordem é inteiramente diferente da que é lembrada por nós como presente no sonho manifesto. Neste, a conexão entre os pensamentos do sonho foi abandonada e pode ou permanecer completamente perdida ou ser substituída pela nova conexão apresentada no conteúdo manifesto. Os elementos do sonho, à parte de serem condensados, são quase sempre arranjados numa nova ordem, mais ou menos independente de sua disposição primitiva. Finalmente, deve-se acrescentar que tudo aquilo em que o material original dos pensamentos oníricos foi transformado pela elaboração onírica é então submetido a uma outra influência, que é conhecida como ‘revisão secundária’, e sua finalidade é evidentemente livrar-se da desconexão e ininteligibilidade produzidas pela elaboração onírica e substituí-las por um novo ‘significado’. Mas esse novo significado, a que se chega pela revisão secundária, não é mais o significado dos pensamentos oníricos.

A revisão secundária do produto da elaboração onírica constitui um exemplo admirável da natureza e das pretensões de um sistema. Existe em nós uma função intelectual que exige unidade, conexão e inteligibilidade de qualquer material, seja da percepção ou do pensamento, que cai sob o seu domínio e se, em conseqüência de circunstâncias especiais, não pode estabelecer uma conexão verdadeira, não hesita em fabricar uma falsa. Os sistemas construídos desta maneira chegam ao nosso conhecimento não apenas através dos sonhos, mas também das fobias, do pensamento obsessivo e dos delírios. A construção de sistemas é percebida de modo mais notável nas perturbações delirantes (na paranóia), onde domina o quadro sintomático; mas sua ocorrência em outras formas de neuropsicoses não deve ser subestimada. Em todos esse casos pode-se demonstrar que uma nova arrumação do material psíquico foi feita com um novo objetivo em vista, e muitas vezes essa redisposição tem de ser radical, se é que se quer que o resultado pareça inteligível do ponto de vista do sistema. Assim, um sistema é mais bem caracterizado pelo fato de pelo menos duas razões poderem ser descobertas para cada um de seus produtos: uma razão baseada nas premissas do sistema (uma razão, que pode ser, então, delirante) e uma razão oculta, que devemos julgar como sendo a verdadeiramente operante e real.

Isto pode ser ilustrado por um exemplo tirado de uma neurose. Em meu ensaio sobre o tabu mencionei uma paciente minha cujas proibições obsessivas mostravam a mais perfeita concordância com um tabu maori (ver em [1]). A neurose dessa mulher visava ao marido e culminou com a defesa contra um desejo inconsciente de que ele morresse. Sua fobia manifesta e sistemática, contudo, relacionava-se com a menção da morte em geral, enquanto o marido era inteiramente excluído dela e nunca constituía objeto de sua preocupação consciente. Certo dia, ouviu o marido dando instruções para que suas navalhas, que haviam perdido o fio, fossem levadas a uma certa loja para serem reamoladas. Impulsionada por um estranho mal-estar, ela própria pôs-se a caminho da loja. Depois de inspecionar o local, voltou e insistiu para que o marido se livrasse definitivamente das navalhas, uma vez que tinha descoberto que na porta pegada à da loja que ele havia indicado existia uma casa funerária: por causa do plano que ele havia feito, disse ela, as navalhas tinham-se tornado inextricavelmente envolvidas com pensamentos de morte. Era esta, então, a razão sistemática para a sua proibição. Podemos estar plenamente certos de que, mesmo sem a descoberta da loja ao lado, a paciente teria voltado para casa com uma proibição contra as navalhas. Bastaria ter encontrado um cortejo fúnebre no seu caminho até a loja, ou alguém vestido de luto ou conduzindo uma coroa funerária. A rede de determinantes possíveis para a proibição espalhara-se de modo suficientemente amplo para apanhar a caça de qualquer jeito; unir ou deixar de unir essa rede, dependia simplesmente da decisão dela. Poderia ser demonstrado que, em outras ocasiões, ela não colocaria os determinantes em funcionamento e explicaria isso dizendo que tinha passado ‘um dia melhor’. A causa real de sua proibição quanto às navalhas era, naturalmente, como é fácil de descobrir, sua aversão a ligar qualquer sentimento agradável à idéia de que o marido pudesse cortar o pescoço com as navalhas acabadas de afiar.

Exatamente da mesma maneira, uma inibição do movimento (uma abasia ou uma agorafobia) gradualmente tornar-se-á mais completa e mais particularizada, quando esse sistema conseguir instalar-se como representante de um desejo inconsciente e da defesa contra o desejo. Quaisquer outras fantasias inconscientes e reminiscências operativas que possam estar presentes no paciente forçam caminho à expressão como sintomas ao longo dessa mesma trilha, uma vez tenha sido aberta, e agrupam-se numa nova disposição apropriada dentro da estrutura da inibição quanto ao movimento. Desse modo, seria tarefa vã, e na verdade tola, tentar compreender as complexidades e pormenores dos sintomas de (por exemplo) uma agorafobia, com base em suas premissas subjacentes; pois toda a harmonia e precisão da combinação são apenas aparentes. Tal como acontece com as fachadas dos sonhos, se procurarmos mais atentamente, encontraremos a mais gritante incoerência e arbitrariedade na estrutura dos sintomas. A razão real para os pormenores de uma fobia sistemática desse tipo reside em determinantes ocultos, que não precisam ter nada a ver com uma inibição de movimentos; e é por isso, também, que tais fobias assumem formas tão variadas e contraditórias nas diferentes pessoas.

Retornemos agora ao sistema animista de que estamos tratando. A percepção interna (insight) que adquirimos de outros sistemas psicológicos permite-nos concluir que também no homem primitivo a ‘superstição’ não é necessariamente a razão única ou real para um costume ou observância em particular e não nos dispensa do dever de procurar os motivos ocultos deles. Sob o domínio de um sistema animista, é inevitável que toda observância e toda atividade possuam uma base sistemática, que atualmente descrevemos como ‘supersticiosa’. A ‘superstição’ — como a ‘ansiedade’, os ‘sonhos’ e os ‘demônios’ — é um daqueles conceitos psicológicos provisórios que teriam sob o impacto da pesquisa psicanalítica. Uma vez tenhamos penetrado além dessas construções, que se assemelham a biombos erguidos como defesas contra a compreensão correta, começamos a nos dar conta de que a vida mental e o nível cultural dos selvagens não obtiveram até agora todo o reconhecimento que merecem.

Se tomarmos a repressão dos instintos como medida do nível de civilização que foi alcançado, teremos de admitir que mesmo sob o sistema animista efetuaram-se progressos e desenvolvimentos que são injustamente desprezados por conta de sua base supersticiosa. Quando sabemos que os guerreiros de uma tribo selvagem praticam a maior continência e limpeza quando estão a caminho da guerra, a explicação apresentada é que o motivo é ‘o medo de que o inimigo possa conseguir os desejos de sua pessoa e fique assim capacitado a efetuar sua destruição através da magia’ (Frazer, 1911b, 157); e uma razão supersticiosa análoga poderia ser sugerida para a continência. Não obstante, permanece o fato de que realizaram uma renúncia aos instintos e poderemos compreender melhor a posição deles se supusermos que o guerreiro selvagem submete-se a essas restrições como uma contramedida, porque se acha a ponto de entregar-se completamente à satisfação de impulsos cruéis e hostis que via de regra lhe são proibidos. O mesmo acontece com os numerosos casos de restrições sexuais que são impostas a alguém que esteja empenhado num trabalho difícil ou de responsabilidade. [Ibid., p. 169 e segs.] Embora os fundamentos alegados para essas proibições possam pertencer a um contexto mágico, a idéia fundamental de obter maior vigor pela renúncia a algumas satisfações instintivas permanece, entretanto, inequívoca; e a raiz higiênica da proibição que acompanha sua racionalização mágica não deve ser subestimada. Quando os homens de uma tribo selvagem saem em expedição para caçar, pescar, combater ou colher plantas raras, suas esposas ficam em casa sujeitas a muitas restrições opressivas às quais os próprios selvagens atribuem uma influência favorável, a operar à distância, sobre o sucesso da expedição. Mas não é preciso muito pouca penetração para perceber que esse fator que opera à distância nada mais é que os pensamentos saudosos dos homens ausentes do lar e que por trás desses disfarces se encontra um saudável discernimento psicológico de que os homens só darão o melhor de si se estiverem completamente seguros quanto às mulheres que deixaram atrás de si, desprotegidas. Às vezes, eles mesmos declaram, sem alegar quaisquer razões mágicas, que a infidelidade de uma esposa ao matrimônio levará a nada os esforços de um marido ausente, empenhado em alguma trabalho de responsabilidade.

Diz-se que os incontáveis regulamentos de tabu a que as mulheres das comunidades selvagens estão sujeitas durante a menstruação são devidos a um horror supersticioso ao sangue e, sem dúvida, isto constitui um de seus determinantes. Mas seria errado menosprezar a possibilidade de que neste caso o horror ao sangue sirva também a propósitos estéticos e higiênicos, que, em todo caso, são obrigados a ocultar-se atrás de motivos mágicos.

Não tenho a menor ilusão de que apresentando essas tentativas de explicação me esteja expondo ao ataque de selvagens modernos e talentosos, com uma sutileza de atividade mental que excede todas as probabilidades. Parece-me inteiramente possível, no entanto, que o mesmo que acontece com nossa atitude para com a psicologia daqueles povos que permaneceram no nível animista, aconteça com nossa atitude em relação à vida mental das crianças, que, nós, adultos, não mais compreendemos, e cuja plenitude e delicadeza de sentimentos, em conseqüência, tão grandemente subestimamos.

Um outro grupo de observâncias de tabu, que até agora não foi explicado, merece menção, desde que admitem uma explicação familiar aos psicanalistas. Entre muitos povos selvagens existe uma proibição contra a guarda em casa de armas aguçadas ou instrumentos de corte. Frazer (1911b, 238) cita uma superstição alemã segundo a qual uma faca não deve ser deixada com o fio para cima, por temor que Deus e os anjos possam se machucar nela. Não poderemos identificar nesse tabu uma advertência premonitória contra possíveis ‘atos sintomáticos’ em cuja execução uma arma afiada poderia ser empregada por impulsos maldosos e inconscientes?

 

IV - O RETORNO DO TOTEMISMO NA INFÂNCIA

 

Não tem fundamento o receio de que a psicanálise, primeira a descobrir que os atos e estruturas psíquicas são invariavelmente supradeterminados, fique tentada a atribuir a uma fonte única a origem de algo tão complicado como a religião. Se a psicanálise é compelida — e é na realidade, obrigada — a colocar toda a ênfase numa determinada fonte, isto não significa que esteja alegando ser essa fonte a única ou que ela ocupe o primeiro lugar entre os numerosos fatores contribuintes. Somente quando pudermos sintetizar as descobertas dos diferentes campos de pesquisa é que se tornará possível chegar à importância relativa do papel desempenhado na gênese das religiões pelo mecanismo estudado nessas páginas. Essa tarefa está acima dos meios de que dispõe um psicanalista, assim como de seus objetivos.

 

(1)

 

No primeiro desta série de ensaios, familiarizamo-nos com o conceito de totemismo. Aprendemos que o totemismo é um sistema que ocupa o lugar da religião entre certos povos primitivos da Austrália, da América e da África e provê a base de sua organização social. Como ficamos sabendo, foi um escocês, McLennan, que em 1869 pela primeira vez chamou a atenção geral para o fenômeno do totemismo (que até então tinha sido encarado como simples curiosidade), dando expressão à suspeita de que um grande número de costumes e práticas comuns em várias sociedades antigas e modernas deveriam ser explicados como remanescentes de uma época totêmica. A partir daí a ciência aceitou inteiramente essa avaliação do totemismo. Permitam-me citar, como uma das mais recentes afirmações sobre o assunto, uma passagem dos Elemente der Völkerpsychologie, de Wundt (1912, 139): ‘À luz de todos esses fatos, parece altamente provável a conclusão de que, em alguma ocasião, a cultura totêmica em toda parte preparou o caminho para uma civilização mais adiantada e, assim, que ela representa uma fase de transição entre a era dos homens primitivos e a era dos heróis e deuses’. [Tradução inglesa, 139.]

O objetivo destes ensaios nos obriga a penetrar mais profundamente na natureza do totemismo. Por razões que dentro em pouco se tornarão claras, começarei por uma descrição fornecida por Reinach, que, em 1900, esboçou um ‘Code du totémisme’ em doze artigos — um catecismo, por assim dizer, da religião totêmica:

(1) Certos animais não podem ser mortos nem comidos e exemplares de sua espécie são criados e cuidados por seres humanos.

(2) Um animal que tenha morrido de morte acidental é pranteado e enterrado com as mesmas honras que um membro do clã.

(3) Em alguns casos, a proibição de comer estende-se apenas a uma determinada parte do corpo do animal.

(4) Quando um dos animais que são geralmente poupados tem de ser morto por força da necessidade, se lhe pedem desculpas e, por meio de diversos artifícios e subterfúgios, faz-se uma tentativa de mitigar a violação do tabu, isto é, a morte.

(5) Quando o animal é vítima de um sacrifício ritual, é solenemente pranteado.

(6) Em determinadas ocasiões solenes e em cerimônias religiosas, usam-se as peles de certos animais. Onde o totemismo ainda se encontra em vigor, são os animais totêmicos.

(7) Clãs e indivíduos adotam nomes de animais — ou seja, dos animais totêmicos.

(8) Muitos clãs utilizam representações de animais em suas insígnias e armas; os homens costumam pintar ou tatuar figuras de animais no corpo.

(9) Se o totem for um animal temível ou perigoso, imagina-se que poupe os membros do clã que recebeu seu nome.

(10) O animal totêmico protege e dá aviso aos membros de seu clã.

(11) O animal totêmico prevê o futuro dos membros leais de seu clã e lhes serve de guia.

(12) Os membros do clã totêmico acreditam, com freqüência, serem aparentados com o animal totêmico pelo laço de uma ascendência comum.

Este catecismo da religião totêmica só pode ser apreciado no seu devido valor se levarmos em consideração o fato de Reinach haver incluído nele todas as indicações e traços de que se pode inferir a existência primitiva de um sistema totêmico. A atitude peculiar do autor para com o problema é demonstrada pela negligência parcial no que se refere aos aspectos essenciais do totemismo. Como veremos, relegou a um plano secundário um dos dois principais artigos do catecismo totêmico e menosprezou inteiramente o outro.

Para conseguir uma imagem correta da natureza do totemismo, temos de voltar-nos para outro autor, que dedicou ao assunto uma obra em quatro volumes, a qual combina a mais ampla compilação das observações pertinentes com o mais pormenorizado estudo dos problemas que levantam. Continuaremos em dívida com J. G. Fraze, autor de Totemism and Exogamy (1910), tanto pelo deleite quanto pela instrução, mesmo que a pesquisa psicanalítica possa conduzir-nos a conclusões que diferem amplamente das suas.

‘Um totem’, escreve Frazer em seu primeiro ensaio sobre o assunto, ‘é uma classe de objetos materiais que um selvagem encara com supersticioso respeito, acreditando existir entre ele e todos os membros da classe uma relação íntima e inteiramente especial (…) A vinculação entre um homem e seu totem é mutuamente benéfica; o totem protege o homem e este mostra seu respeito por aquele de diversas maneiras, não o matando, se for um animal; não o cortando, nem colhendo, se for um vegetal. Distintamente de um fetiche, um totem nunca é um indivíduo isolado, mas sempre uma classe de objetos, em geral uma espécie de animais ou vegetais, mais raramente uma classe de objetos naturais inanimados, muito menos ainda uma classe de objetos artificiais (…)

‘Os totens são, pelo menos, de três espécies: (1) o totem do clã, comum a todo um clã, passando por herança de geração a geração: (2) o totem do sexo, comum seja a todos os homens ou a todas as mulheres de uma tribo, com exclusão, em cada caso, do sexo oposto: (3) o totem individual, pertencente a um indivíduo isolado, sem passar aos seus descendentes (…)’

Os dois últimos tipos de totem não se comparam, em significação, ao totem do clã. A menos que estejamos inteiramente enganados, constituem desenvolvimentos posteriores e são de pouca importância para a natureza essencial do totem.

‘O totem do clã é reverenciado por uma corporação de homens e mulheres que se chamam a si próprios pelo nome do totem, acreditam possuírem um só sangue, descendentes que são de um ancestral comum, e estão ligados por obrigações mútuas e comuns e por uma fé comum no totem. O totemismo, assim, constitui tanto uma religião como um sistema social. Em seu aspecto religioso, consiste nas relações de respeito e proteção mútua entre um homem e o seu totem. No seu aspecto social, consiste nas relações dos integrantes do clã uns com os outros e com os homens de outros clãs. Na história posterior do totemismo, esses dois lados, o religioso e o social, tendem a separar-se; o sistema social às vezes sobrevive ao religioso e, por outro lado, a religião algumas vezes apresenta traços de totemismo em países onde o sistema social baseado no totemismo desapareceu. Em nossa ignorância de sua origem, é impossível dizer com certeza como, nessa origem, os dois lados se achavam relacionados um com o outro. Em geral, porém, as provas apontam fortemente para a conclusão de que ambos eram originalmente inseparáveis, ou, noutras palavras, que quanto mais retrocedermos, mais descobriremos que o integrante do clã encarava a si próprio e ao seu totem como seres da mesma espécie e menos distinguia entre a conduta para com seu totem e para com os companheiros de clã.’

Ao expor particularidades do totemismo como sistema religioso, Frazer começa por afirmar que os membros de clã totêmico chamam-se a si mesmos pelo nome do totem e geralmente acreditam serem realmente descendentes dele. Decorre dessa crença que não caçarão, não matarão e não comerão o animal totêmico e, se este for outra coisa que não um animal, abster-se-ão de fazer uso dela sob outras modalidades. As normas contra matar ou comer o totem não são os únicos tabus; às vezes, são proibidos de tocá-lo ou até mesmo de olhá-lo; num certo número de casos, não se pode mencionar o totem pelo próprio nome. Qualquer violação dos tabus que protegem o totem é automaticamente punida por doença grave ou morte.

Espécimes do animal totêmico são ocasionalmente criados pelo clã e por este cuidados em cativeiro. Um animal totêmico encontrado morto é pranteado e enterrado como um membro do clã que tivesse morrido. Se for necessário matar um animal totêmico, isso é feito de acordo com um ritual de excusas prescrito e cerimônias de expiação.

O clã espera receber proteção e cuidados da parte de seu totem. Se se tratar de um animal perigoso (como um animal de presa ou uma cobra venenosa), há a pressuposição de que não causará mal aos seus protegidos; e, se essa expectativa não se cumprir, o homem ferido é expulso do clã. Os juramentos, na opinião de Frazer, foram originalmente provações; assim, muitas verificações de descendência e legitimidade eram submetidas à decisão do totem. O totem presta auxílio na doença e transmite augúrios e advertências ao seu clã. O aparecimento do totem numa casa ou perto dela é freqüentemente encarado como um presságio de morte; o totem veio buscar o seu parente.

Em certas circunstâncias importantes, o integrante do clã procura ressaltar seu parentesco com o totem fazendo-se assemelhar a ele externamente, envergando a pele do animal, talhando a sua figura sobre o próprio corpo etc. Essa identificação com o totem é efetivada em ações e palavras nas ocasiões cerimoniais do nascimento, da iniciação e do enterro. Danças em que todos os integrantes do clã se disfarçam como o totem e imitam o seu comportamento servem a vários propósitos mágicos e religiosos. Por fim, há cerimônias em que o animal totêmico é morto de acordo com o cerimonial.

O aspecto social do totemismo se expressa principalmente por uma injunção feita respeitar severamente e uma ampla restrição.

Os membros de um clã totêmico são irmãos e irmãs e estão obrigados a ajudar-se e proteger-se mutuamente. Se o membro de um clã é morto por alguém não pertencente a ele, todo o clã do assassinado se une no pedido de satisfações pelo sangue que foi derramado. O laço totêmico é mais forte que  o de família, em nosso sentido. Os dois não coincidem, uma vez que o totem, via de regra, é herdado através da linhagem feminina, sendo possível que a descendência paterna fosse deixada, originalmente, inteiramente fora de consideração.

A restrição de tabu correspondente proíbe aos membros do mesmo clã totêmico de casar-se ou de ter relações sexuais uns com os outros. Temos aí o notório e misterioso correlato do totemismo: a exogamia. Dediquei todo o primeiro ensaio da presente obra a esse assunto, de maneira que aqui preciso apenas repetir que ele se origina da intensificação entre os selvagens do horror ao incesto, a qual seria plenamente explicada como uma garantia contra este último sob condições de casamento grupal, visando primariamente a afastar do incesto a geração mais jovem e interferindo com a geração mais velha apenas com um desenvolvimento posterior. [Ver atrás,em [1] e rodapé.]

À descrição do totemismo feita por Frazer — uma das primeiras na literatura sobre o assunto — acrescentarei alguns extratos de uma descrição das mais recentes. Em seus Elemente der Völrkerpsychologie, Wundt (1912, 116 e segs.) escreve o seguinte: ‘O animal totêmico é também geralmente considerado o animal ancestral do grupo em questão. “Totem” é, por um lado, um nome de grupo e, por outro, um nome indicativo de ancestralidade. Sob o último aspecto, possui também uma significação mitológica. Essas várias idéias, entretanto, interatuam de numerosas maneiras. Alguns dos significados podem entrar em recesso, de maneira que o totem freqüentemente se torna uma mera nomenclatura de divisões tribais, enquanto que, noutras ocasiões, a idéia de ancestralidade ou, talvez também, a significação do culto, predomina (…)’ O conceito de totem possui uma influência decisiva sobre a divisão e a organização tribais, as quais se acham sujeitas a certas normas costumeiras. ‘Estas normas, e o lugar que lhes é fixado nas crenças e sentimentos dos membros da tribo, estão ligadas ao fato de originalmente, em todos os casos, o animal totêmico ter sido encarado, em sua maior parte, não como simplesmente dando o nome a um grupo de membros tribais, mas sendo realmente seu antepassado (…) Ligado a isso encontra-se o fato de esses animais ancestrais terem possuído um culto (…) À parte as cerimônias e os festivais cerimoniais específicos, esse culto animal em sua origem encontrava expressão primariamente nas relações mantidas com o animal totêmico. Não se tratava de um animal determinado que, até certo ponto, era considerado sagrado, mas de todos os representantes da espécie. Os membros do totem eram proibidos de comer a sua carne e só lhes era permitido fazê-lo sob condições específicas. Um contrafenômeno significativo, não irreconciliável com este, é o fato de, em certas condições, a ingestão da carne do totem constituir uma espécie de cerimônia (…)

‘(…) O aspecto social mais importante dessa manifestação tribal totêmica, contudo, consiste no fato de envolver certas normas de costume regulando as relações mútuas dos grupos independentes. Dessas normas, as que regiam as relações matrimoniais eram de primeira importância. A organização tribal desse período achava-se ligada a uma instituição importante, a exogamia que se originou na época totêmica.’ [Tradução inglesa, 116 e seg.]

Se procurarmos penetrar até a natureza original do totemismo, sem considerar os acréscimos ou atenuações subseqüentes, descobriremos que suas características essenciais são as seguintes: Originalmente, todos os totens eram animais e eram considerados como ancestrais dos diferentes clãs. Os totens eram herdados apenas através da linha feminina. Havia uma proibição contra matar o totem (ou — o que em condições primitivas, constitui a mesma coisa — comê-lo). Os membros de um clã totêmico estavam proibidos de ter relações sexuais uns com os outros.

Talvez fiquemos espantados pelo fato de no Code du totémisme, de Reinach, um dos dois principais tabus, o da exogamia, não ser de modo algum mencionado, enquanto que a crença sobre a qual o segundo se funda, ou seja, a descendência do animal totêmico, ser apenas referida de passagem. Minhas razões, contudo, para escolher a descrição feita por Reinach (escritor, incidentalmente, que trouxe contribuições muito valiosas ao assunto) foram preparar-nos para as diferenças de opinião entre as autoridades — diferenças nas quais agora temos de entrar.

 

                                                     (2)

Quanto mais incontestável se torna a conclusão de que o totemismo constitui uma fase regular em todas as culturas, mais urgente se torna a necessidade de chegar-se a uma compreensão dele e lançar luz sobre o enigma de sua natureza essencial. Tudo o que se relaciona com o totemismo parece misterioso: os problemas decisivos relacionam-se com a origem da idéia da descendência do totem e com as razões para a exogamia (ou melhor, para o tabu sobre o incesto de que a exogamia é expressão), bem como a relação entre estas duas instituições, a organização totêmica e a proibição do incesto. Qualquer explicação satisfatória deverá ser, ao mesmo tempo, histórica e psicológica. Deverá dizer-nos sob que condições essa instituição peculiar se desenvolveu e a quais necessidades psíquicas do homem dá expressão.

Meus leitores, estou seguro, ficarão espantados ao tomar conhecimento da variedade de ângulos de que se fizeram tentativas para responder a estas questões e das amplas divergências de opinião sobre ela apresentadas pelos peritos. Quase toda generalização que se possa fazer sobre o assunto do totemismo e da exogamia parece aberta à discussão. Mesmo a descrição que acabei de dar, tirada do livro publicado por Frazer em 1887, está sujeita à crítica de expressar as preferências arbitrárias do presente autor e, na verdade, seria contestada hoje pelo próprio Frazer, que repetidamente modificou suas opiniões sobre o assunto.

É plausível supor que melhor se chegaria a uma compreensão da natureza essencial do totemismo e da exogamia se fosse possível aproximar-se da origens das duas instituições. Mas, em relação a isto, devemos manter no espírito a advertência de Andrew Lang de que mesmo os povos primitivos não mantiveram as formas originais dessas instituições, nem tampouco as condições que lhes deram origem; de maneira que nada temos senão hipóteses para nelas apoiar-nos, como um substituto das observações de que estamos privados. Algumas das explicações tentadas parecem, ao juízo de um psicólogo, inadequadas desde o início mesmo: são racionais demais e não levam em consideração o caráter emocional dos assuntos a serem explicados. Outras se baseiam em pressuposições que não são confirmadas pela observação. Outras ainda apóiam-se em materiais que seriam mais bem interpretados de outra maneira. Geralmente, não é difícil refutar as diversas opiniões apresentadas: as autoridades, como de costume, são mais eficientes em suas críticas das obras dos outros do que em sua própria produção. A conclusão sobre a maioria dos argumentos levantados deve ser um non liquet. Não é de surpreender, assim, que na literatura mais recente sobre o tema (que, em sua maior parte, não é considerada nesta obra) surja uma tendência inequívoca a rejeitar qualquer solução geral dos problemas totêmicos como impraticável. (Ver, por exemplo, Goldenweiser, 1910). No exame que se segue dessas hipóteses conflitantes, atrevi-me a não considerar a seqüência cronológica.

 

(a) A ORIGEM DO TOTEMISMO

 

A questão da origem do totemismo pode ser apresentada da seguinte maneira: como foi que os homens primitivos vieram a chamar-se a si mesmos (e a seus clãs) com nomes de animais, vegetais e objetos inanimados?

McLennan (1865 e 1869-70), o escocês que descobriu o totemismo e a exogamia para o mundo da ciência, absteve-se de publicar qualquer opinião sobre a origem do totemismo. De acordo com Andrew Lang (1905, 34), achou-se, em certa ocasião, inclinado a pensar que se originava do costume de tatuar-se. Proponho dividir as teorias sobre a origem do totemismo em três grupos: — (a) o nominalista, (b) o sociológico, e (g) o psicológico.

 

 (ƒÑ) Teorias Nominalistas

 

Minhas descrições dessas teorias justificarão havê-las reunido sob o título que adotei.

Garcilasso de la Vega, descendente dos incas peruanos, que escreveu uma história de seu povo no século XVII, já parece haver atribuído a origem do que conhecia dos fenômenos totêmicos à necessidade sentida pelos clãs de distinguirem-se uns dos outros pelo uso de nomes. (Lang, 1905, 34.) Centenas de anos mais tarde, a mesma idéia foi novamente proposta. Keane [1899, 396]  encara os totens como ‘insígnias heráldicas’ por meio das quais os indivíduos, famílias e clãs procuravam distinguir-se uns dos outros. A mesma idéia é mais uma vez expressa por Max-Müller (1897 [1, 201]): ‘O totem é uma marca de clã, depois um nome de clã, depois o nome do ancestral do clã e, finalmente, o nome de algo adorado por um clã.’ Julius Pikler, escrevendo mais tarde, declara: ‘A humanidade exigiu, tanto das comunidades quanto dos indivíduos, um nome permanente que pudesse ser fixado pela escrita (…) Assim, o totemismo não surgiu das necessidades religiosas dos homens, mas de suas necessidades práticas e cotidianas. O âmago do totemismo, a nomenclatura, é o resultado da técnica primitiva de escrita. Em sua natureza, um totem assemelha-se a um pictograma facilmente desenhável. Entretanto, uma vez portadores do nome de um animal, os selvagens passaram a formar a idéia de um parentesco com ela.’

Da mesma maneira, Herbert Spencer (1870 e 1893, 331-46) considera a aplicação de nomes como o fator decisivo na origem do totemismo. As características pessoais dos indivíduos, argumenta, induziram à idéia de chamá-los por nomes de animais e, por esse modo, adquiriram nomes laudatórios ou apelidos que foram transmitidos a seus descendentes. Em conseqüência da imprecisão e da ininteligibilidade da fala primitiva, as gerações posteriores interpretaram esses nomes como prova de descendência dos animais verdadeiros. Pode-se assim demonstrar que o totemismo constitui uma forma mais interpretada da veneração dos ancestrais.

Lorde Avebury (mais conhecido por seu nome anterior de Sir John Lubbock) nos dá uma descrição muito semelhante da origem do totemismo, embora sem insistir no elemento da má interpretação. Se quisermos explicar a adoração de animais, diz ele, não devemos esquecer quão freqüentemente os nomes humanos são tirados deles. Os filhos e seguidores de um homem que era chamado de ‘Urso’ ou ‘Leão’ naturalmente transformaram o nome dele num nome de clã. Daí acontecer que o próprio animal viesse a ser encarado ‘primeiro com interesse, depois com respeito e, a longo prazo, com uma espécie de temor religioso’. [Lubbock, 1870, 171.]

O que pareceu ser uma objeção incontestável a essa derivação dos nomes totêmicos de nomes de indivíduos foi apresentada por Fison. Demonstrou ele, a partir de condições existentes na Austrália, que o totem é invariavelmente ‘a insígnia de um grupo, não de um indivíduo’. Mas mesmo que assim não fosse e o totem constituísse originalmente o nome de um indivíduo, ele nunca poderia — visto que os totens são herdados através da linha feminina — ser transmitido aos filhos.

Além disso, as teorias que até aqui examinei são obviamente inapropriadas. Poderiam talvez explicar o fato de que os povos primitivos adotam nomes de animais para os seus clãs, mas nunca explicariam a importância que se tornou ligada a essa nomenclatura — a saber, o sistema totêmico. A teoria pertencente a esse grupo que mais merece atenção é a proposta por Andrew Lang (1903 e 1905). Ele também considera a atribuição de nomes como o âmago do problema, mas introduz dois interessantes fatores psicológicos e pode assim pretender ter liderado o caminho para a solução final do enigma do totemismo.

Andrew Lang encara como questão, em princípio, indiferente a maneira pela qual os clãs obtiveram seus nomes de animais. É necessário apenas pressupor que despertaram um dia para a consciência de que levavam esses nomes e não podiam explicar como isso tinha acontecido. A origem dos nomes tinha sido esquecida. Tentaram então chegar a uma explicação especulando sobre o assunto e, em vista da crença na importância dos nomes, estavam destinados a chegar a todas as idéias contidas no sistema totêmico. Diferentemente de nós, os povos primitivos (bem como os selvagens modernos e até mesmo nossos próprios filhos) não encaram os nomes como algo de indiferente e convencional, mas sim como significativos e essenciais. O nome de um homem é um componente principal de sua personalidade, talvez mesmo uma parte de sua alma. O fato de um homem primitivo portar o mesmo nome de um animal deve tê-lo levado a presumir a existência de um vínculo misterioso e significativo entre si próprio e essa determinada espécie de animal. Que outro vínculo poderia ser esse senão o de parentesco de sangue? Uma vez a semelhança de nomes tivesse levado a essa conclusão, o tabu de sangue imediatamente envolveria todas as ordenanças totêmicas, inclusive a exogamia. ‘Não mais que três coisas — um nome animal grupal de origem desconhecida; a crença numa vinculação transcendental entre todos os portadores, humanos e animais, do mesmo nome e a crença nas superstições de sangue — foram necessárias para dar origem a todos os credos e práticas totêmicas, inclusive a exogamia.’ (Lang, 1905, 125 e segs.)

A explicação de Lang divide-se em duas partes. Uma faz remontar o sistema totêmico, como questão de necessidade psicológica, ao fato de, os totens possuírem nomes de animais — sempre pressupondo que a origem desse nomes tivesse sido esquecida. A outra tenta explicar como os nomes de fato se originaram; como veremos, é de caráter muito diferente da primeira.

Essa segunda parte da teoria de Lang não difere, em nenhum aspecto essencial, das outras teorias que denominei de ‘nominalistas’. A necessidade prática de diferenciação compeliu os diversos clãs a adotar nomes e assim concordaram com os nomes pelos quais cada um deles era chamado por outro clã. Essa ‘denominação provinda de fora’ constitui a característica principal da teoria de Lang. O fato de os nomes assim adotados terem sido tirados de animais dispensa comentário especial e não há razão para que tenham sido encarados, em épocas primitivas, como insultantes ou como motivo de escárnio. Além disso, Lang acrescentou não poucos exemplos de épocas históricas posteriores em que nomes que haviam sido originalmente aplicados por derrisão, por parte de estrangeiros, foram aceitos e de boa vontade adotados (p. ex., ‘Les Gueux‘, ‘Whigs’ e ‘Tories’). A hipótese de que, com o decorrer do tempo, a origem desses nomes foi esquecida vincula essa parte da teoria de Lang à outra, que já examinamos.

 

(ƒÒ) Teorias Sociológicas

 

Reinach, que foi bem-sucedido em descobrir reminiscências do sistema totêmico nos cultos e práticas de períodos posteriores, mas que sempre atribuiu pouca importância ao fator da descendência do totem, observa confidencialmente em determinada passagem que, em sua opinião, o totemismo nada mais é que ‘une hiperthrophie de l’instinct social‘. (Reinach, 1905-12, 1, 41.) Ponto de vista semelhante transparece no recente livro de autoria de Durkheim (1912). O totem, argumenta ele, é o representante visível da religião social entre os povos relacionados com ele: corporifica a comunidade, que é o verdadeiro objeto de sua adoração.

Outros autores procuraram encontrar uma base mais precisa para a participação dos instintos sociais na formação das instituições totêmicas. Assim, Haddon (1902 [745]) supõe que cada clã primitivo subsistiu originalmente por meio de uma determinada espécie de animal ou vegetal e talvez tenha comerciado com esse artigo alimentício específico e o tenha permutado com outros clãs. Disso inevitavelmente decorreria que esse clã seria conhecido dos outros pelo nome do animal que era de tanta importância para ele. Ao mesmo tempo, o clã estaria destinado a tornar-se especialmente familiarizado com o animal e a desenvolver um interesse especial por ele, embora isto não se baseasse em nenhum motivo psíquico que não fosse a mais elementar e premente das necessidades humanas, ou seja, a fome.

Contra essa teoria, a mais ‘racional’ de todas as teorias sobre o totemismo, objetou-se que condições de alimentação desse tipo nunca foram encontradas entre os povos primitivos e provavelmente nunca existiram. Os selvagens são onívoros e tanto mais o são quanto mais baixa é a sua condição. Também não é fácil admitir como uma dieta exclusiva como esta poderia ter evoluído para uma atitude quase religiosa em relação ao totem, culminando com a abstenção absoluta da comida favorita. [Cf. Frazer, 1910, 4, 51.]

A primeira das três teorias sobre a origem do totemismo que o próprio Frazer apoiou em diferentes ocasiões foi uma teoria psicológica e dela tratarei posteriormente. Sua segunda teoria, na qual estamos aqui interessados, tomou forma sob a influência de uma momentosa publicação assinada por dois homens que haviam feito pesquisas entre os nativos da Austrália Central.

Spencer e Gillen (1899) descreveram um certo número de observâncias, práticas e crenças peculiares, encontradas num grupo de tribos conhecidas como a nação arunta; e Frazer concordou com sua opinião de que essas peculiaridades deveriam ser consideradas características de um primitivo estado de coisas e que poderiam lançar luz sobre o verdadeiro e original significado do totemismo.

As peculiaridades descobertas na tribo arunta (parte da nação arunta) são as seguintes:

(1) Os aruntas estão divididos em clãs totêmicos, mas o totem não é hereditário e sim determinado para cada indivíduo, de uma maneira que será descrita logo mais.

(2) Os clãs totêmicos não são exógamos e as restrições ao casamento baseiam-se numa divisão altamente desenvolvida em classes matrimoniais, divisão que não tem ligação com o totem.

(3) A função dos clãs totêmicos reside na realização de uma cerimônia que tem por objetivo a multiplicação do objeto totêmico comestível através de um método caracteristicamente mágico. (Essa cerimônia é conhecida como intichiuma.)

(4) Os aruntas têm uma teoria peculiar de concepção e reencarnação. Acreditam existirem, espalhados pela região, lugares [‘centros totêmicos’] em que os espíritos dos mortos de um determinado totem aguardam a reencarnação e penetram no corpo de qualquer mulher que passe pelo local. Quando uma criança nasce, a mãe comunica em qual desses lugares acha que ela foi concebida e o totem da criança é determinado de acordo com isso. Acredita-se ainda que os espíritos (tanto dos mortos quanto dos renascidos) estão intimamente associados com certos amuletos de pedra peculiares, conhecidos como churinga, que são encontrados nesses mesmos centros.

Dois fatores parecem ter levado Frazer a supor que as observâncias descobertas entre os aruntas constituem a forma mais antiga do totemismo. O primeiro foi a existência de certos mitos afirmando que os ancestrais dos aruntas comiam regularmente o seu totem e sempre se casavam com mulheres do próprio totem. O segundo foi o visível descaso pelo ato sexual em sua teoria da concepção. Povos que ainda não descobriram ser a concepção o resultado das relações sexuais podem certamente ser encarados como os mais atrasados e primitivos dos homens vivos.

Focalizando o seu juízo do totemismo na cerimônia intichiuma, Frazer passou de repente a ver o sistema totêmico sob uma luz inteiramente nova, ou seja, como uma organização puramente prática, destinada a atender à mais natural das necessidades humanas. (Cf. a teoria de Haddon, atrás.) O sistema era simplesmente um exemplo em grande escala de ‘magia cooperativa’. Os homens primitivos criaram o que poderia ser descrito como uma reunião mágica de produtores e consumidores. Cada clã totêmico encarregava-se da parte de garantir um abastecimento copioso de determinado artigo alimentar. No que se referia a totens não comestíveis (tais como animais perigosos, o vento, a chuva etc.), o dever do clã totêmico consistia em controlar a força natural em foco e contra-influenciar suas possibilidades prejudiciais. As realizações de cada clã traziam vantagens para todos os outros. Uma vez que cada um deles não podia comer nada ou apenas muito pouco de seu próprio totem, fornecia esse material valioso para os outros clãs e, em troca, era abastecido com o que eles produziam como dever social totêmico. À luz da compreensão (insight) que assim conseguiu da cerimônia intichiuma, Frazer veio a acreditar que a proibição de comer o próprio totem fizera com que as pessoas não vissem o elemento mais importante da situação, a saber, a injunção a produzir tanto quanto possível de um totem comestível, a fim de atender as necessidades de outras pessoas.

Frazer aceitou a tradição arunta de que cada clã totêmico comera originalmente o seu próprio totem, sem restrições. Mas então tornou-se difícil compreender a fase seguinte do desenvolvimento, em que todos os integrantes do clã se contentam em garantir um suprimento do totem para outros, enquanto eles próprios renunciam quase completamente ao seu desfrute. Imaginou que essa restrição tinha surgido, não de qualquer tipo de deferência religiosa, mas talvez da observação dos animais, que nunca se alimentavam dos de sua própria espécie: proceder assim poderia implicar uma ruptura na identificação com o totem e, conseqüentemente, reduzir o poder de controlá-lo. Ou poderia ser que, poupando as criaturas, esperassem conciliá-las. Frazer, contudo, não disfarça as dificuldades envolvidas nessas explicações (1910, 1, 121 e segs.), nem tampouco se aventura a sugerir por que meios o costume descrito nos mitos aruntas de casar-se dentro do totem transformou-se em exogamia.

A teoria de Frazer baseada na cerimônia intichiuma fica abalada com a afirmação do caráter primitivo das instituições aruntas. Mas em face das objeções levantadas por Durkheim e Lang (1903 e 1905), essa afirmação parece insustentável. Pelo contrário, os aruntas parecem ser a mais altamente desenvolvida das tribos australianas e representarem uma fase de totemismo em dissolução, em vez de seus primórdios. Os mitos que impressionaram Frazer tão profundamente porque, em contraste com as condições que hoje prevalecem, dão ênfase à liberdade de comer o totem e casar-se dentro dele, são muito facilmente explicáveis como fantasias plenas de desejo que, como o mito de uma idade de ouro, foram projetados de volta para o passado.

 

(ƒ×) Teorias Psicológicas

 

A primeira teoria psicológica de Frazer, formulada antes de familiarizar-se com as observações de Spencer e Gillen, baseava-se na crença numa ‘alma externa’. O totem, de acordo com esse ponto de vista, representava um lugar seguro de refúgio em que alma podia ser depositada, fugindo assim aos perigos que a ameaçavam. Quando um homem primitivo depositava sua alma no totem, ele próprio tornava-se invulnerável e, naturalmente, evitava causar qualquer dano ao receptáculo daquela. No entanto, visto não saber em que determinado exemplar da espécie animal em causa estaria alojada sua própria alma, era razoável que poupasse a espécie inteira.

O próprio Frazer posteriormente abandonou essa teoria de que o totemismo se deriva de uma crença em almas e, depois de conhecer as observações de Spencer e Gillen, adotou a teoria sociológica que já examinou. Mas ele mesmo chegou a ver que o motivo ao qual essa segunda teoria atribuía o totemismo era ‘racional’ demais e implicava uma organização social demasiadamente complicada para ser descrita como primitiva. As sociedades cooperativas mágicas pareciam-lhe agora ser mais o fruto que a semente do totemismo. Procurou algum fator mais simples, alguma superstição primitiva por trás dessas estruturas, à qual se pudesse atribuir a origem do totemismo. Por fim, descobriu esse fator original na notável história arunta da concepção.

Os aruntas, como já expliquei, eliminam a vinculação entre o ato sexual e a concepção. No momento em que uma mulher sente que vai ser mãe, um espírito, que estivera aguardando a reencarnação no mais próximo centro totêmico em que os espíritos dos mortos se reúnem, ingressa no corpo dela. Dará à luz esse espírito como uma criança e esta possuirá o mesmo totem, como todos os espíritos que esperam naquele centro determinado. Essa teoria da concepção não pode explicar o totemismo, visto pressupor a existência dos totens. Mas vamos dar um passo atrás e suponhamos que originalmente a mulher acreditasse que o animal, planta, pedra ou outro objeto que estivesse ocupando sua imaginação no momento em que pela primeira vez sentiu que ia ser mãe, tivesse realmente ingressado nela e posteriormente nascesse sob a forma humana. Nesse caso, a identidade entre um homem e seu totem teria uma base real na crença de sua mãe e todas as ordenanças totêmicas restantes (com a exceção da exogamia) disso decorreriam. Um homem recusar-se-ia a comer esse animal ou planta porque assim proceder equivaleria a comer a si próprio. Teria contudo uma razão para ocasionalmente partilhar de seu totem de forma cerimonial, porque, desse modo, poderia fortalecer sua identificação com o totem, o que constitui a essência do totemismo. Algumas observações de Rivers [1909, 173 e segs.] sobre os nativos das ilhas Banks pareceram provar uma identificação direta dos seres humanos com o totem, baseada numa teoria semelhante da concepção.

Por conseguinte, a fonte suprema do totemismo seria a ignorância dos selvagens a respeito dos processos pelos quais os homens e os animais reproduzem suas espécies e, em particular, a ignorância do papel desempenhado pelo indivíduo do sexo masculino na fertilização. Essa ignorância deve ter sido facilitada pelo longo intervalo decorrente entre o ato de fertilização e o nascimento da criança (ou a primeira percepção de seus movimentos). Assim, o totemismo seria uma criação da mente feminina, antes que da masculina: suas raízes estariam nos ‘doentios caprichos das mulheres grávidas’. Realmente, qualquer coisa que impressione uma mãe naquele misterioso momento de sua vida em que pela primeira vez sente que vai ser mãe, facilmente poderia ser por ela identificado com a criança em seu ventre. Tais fantasias maternas, tão naturais e, ao que parece, tão universais parecem constituir a raiz do totemismo. (Frazer, 1910, 4, 63.)

A principal objeção a esta terceira das teorias de Frazer é a mesma que já foi apresentada contra a segunda, ou teoria sociológica. Os aruntas parecem estar muito afastados dos primórdios do totemismo. Sua negação da paternidade não parece basear-se na ignorância primitiva; sob alguns aspectos, eles próprios fazem uso da descendência através do pai. Parecem haver sacrificado a paternidade em benefício de um certo tipo de especulação destinada a honrar as almas de seus antepassados. Ampliaram o mito da impregnação de uma virgem pelo espírito ao ponto de uma teoria geral da concepção, mas isso não é razão para que a ignorância das condições que regem a fertilização lhes seja imputada, mais do que aos povos da antiguidade à época da origem dos mitos cristãos

Outra teoria psicológica da origem do totemismo foi apresentada por um holandês, G.A. Wilken [1884, 997]. Ela vincula o totemismo à crença na transmigração das almas. ‘O animal em que se pensa que as almas dos mortos tenham preferentemente se encarnado torna-se um membro do clã, um ancestral e, como tal, é reverenciado.’ Parece, entretanto, mais provável, que a crença na transmigração provenha do totemismo, do que este daquela.

Ainda outra teoria do totemismo é sustentada por alguns eminentes etnólogos americanos, como Franz Boas, C. Hill-Tout e outros. Baseia-se em observações verificadas nos clãs totêmicos dos índios norte-americanos e sustenta que o totem foi originalmente o espírito guardião de um antepassado, que o adquiriu num sonho e o transmitiu aos seus descendentes. Já sabemos das dificuldades que se antepõem ao ponto de vista de que os totens são herdados de indivíduos isolados [Ver em [1]], mas, independentemente disso, as provas australianas não dão apoio à teoria de que os totens provenham de espíritos guardiões. (Frazer, 1910, 4, 48 e segs.)

 

A última das teorias psicológicas, apresentada por Wundt (1912,190) baseia-se em dois fatos: ‘Em primeiro lugar, o totem original e o que continua sendo o mais comum é o animal; em segundo, os animais totêmicos mais antigos são idênticos aos animais com alma.’ [Tradução inglesa, 192.] Os animais com alma (tais como os pássaros, as serpentes, os lagartos e os camundongos) são receptáculos apropriados de almas que abandonaram o corpo, por causa de seus movimentos rápidos, do vôo através do ar ou de outras qualidades capazes de produzir surpresa ou alarma. Os animais totênicos derivam-se das transformações da ‘alma-hálito’ em animais. Assim, de acordo com Wundt, o totemismo está diretamente ligado à crença em espírito, ou seja, ao animismo.

 

(b) e (c) A ORIGEM DA EXOGAMIA E SUA RELAÇÃO COM O TOTEMISMO

 

Apresentei as diferentes teorias sobre o totemismo com alguns detalhes, mas, mesmo assim, a compressão foi inevitável e temo que, em conseqüência disso, minha exposição tenha sido prejudicada. No que se segue, entretanto, me arriscarei, em benefício dos leitores, a ser ainda mais condensado. As discussões sobre a exogamia praticada pelos povos totêmicos são, devido à natureza do material de que tratam, particularmente complicadas e difusas [—] se poderia mesmo dizer confusas. Os objetivos deste trabalho me permitem limitar-me a traçar alguma das principais linhas de debate. Aos que desejarem aprofundar-se mais no assunto recomendo os trabalhos especializados que tantas vezes citei.

A atitude assumida por um autor quanto aos problemas da exogamia deve, naturalmente, depender até certo ponto da posição que adotou em relação às diversas teorias sobre o totemismo. Algumas das explicações deste último excluem qualquer conexão com a exogamia, de maneira que as duas instituições são classificadas completamente à parte. Desse modo, encontramos dois pontos de vista opostos: um que procura manter a pressuposição original de que a exogamia constitui parte inerente do sistema totêmico e outro que nega existir tal vinculação, sustentando que a convergência entre esses dois aspectos das culturas mais antigas é uma convergência fortuita. Esta segunda opinião foi adotada sem restrições por Frazer em suas últimas obras: ‘Devo pedir ao leitor que tenha sempre em mente’, escreve, ‘que as duas instituições do totemismo e da exogamia são fundamentalmente distintas em origem e natureza, embora se tenha acidentalmente cruzado e misturado em muitas tribos.’ (Frazer, 1910, 1, XII.) Faz uma advertência explícita no sentido de que o ponto de vista oposto só pode ser causa de infindáveis dificuldades e más interpretações.

 Outros autores, ao contrário, descobriram um meio de encarar a exogamia como conseqüência inevitável dos princípios básicos do totemismo. Durkheim (1898, 1902 e 1905) apresentou a opinião de que o tabu ligado aos totens estava fadado a envolver a proibição contra a manutenção de relações sexuais com uma mulher do mesmo totem. O totem é do mesmo sangue que o homem e, conseqüentemente, a proibição contra o derramamento de sangue (em conexão com a defloração e a menstruação) proíbe-o de ter relações sexuais com uma mulher que pertença ao seu totem. Andrew Lang (1905, 125), que concorda com Durkheim quanto a este ponto, acredita que a proibição contra as mulheres do mesmo clã pudesse funcionar mesmo sem nenhum tabu sangüíneo. O tabu geral do totem (que, por exemplo, proíbe ao homem sentar-se sob sua própria árvore totêmica) seria suficiente, na opinião de Lang. Incidentalmente, ele complica isto com outra explicação da exogamia (ver adiante em [1]) e deixa de demonstrar como as duas explicações estão relacionadas uma com a outra.

Com referência às relações cronológicas entre as duas instituições, a maioria das autoridades concorda em que o totemismo é mais antiga e que a exogamia surgiu depois.

Das teorias que procuram demonstrar que a exogamia é independente do totemismo, chamarei a atenção apenas para algumas que lançam luz sobre a atitude dos diferentes autores quanto aos problemas do incesto.

McLennan (1865) engenhosamente deduziu a existência da exogamia de vestígios de costumes que pareciam indicar a prática primitiva do casamento por captura. Formulou a hipótese de que, nos tempos primitivos, constituíra prática geral para os homens conseguir as esposas em outro grupo e que o matrimônio com uma mulher do próprio grupo pouco a pouco ‘veio a ser considerado impróprio, por ser fora do comum’ [Ibid., 289]. Explicou a predominância da exogamia supondo que a prática de matar a maioria das crianças do sexo feminino ao nascer conduziria a uma escassez de mulheres nas sociedades primitivas. Não nos interessa aqui até que ponto essas suposições de McLennan se apóiam em descobertas reais. O que nos interessa muito mais é o fato de suas hipóteses deixarem de explicar por que os membros masculinos de um grupo se recusariam acesso às poucas mulheres de seu próprio sangue, ou seja, o fato de McLennan passar inteiramente por cima do problema do incesto. (Frazer, 1910, 4, 71-92.)

Outros estudiosos da exogamia, ao contrário, e evidentemente com a maior justiça, viram na exogamia uma instituição destinada à prevenção do incesto. Quando se consideram as complicações gradativamente crescentes das restrições australianas ao casamento, é impossível deixar de aceitar as opiniões de Morgan (1877), Frazer (1910, 4, 105 e segs.), Howitt [1904, 143] e Baldwin Spencer de que esses regulamentos trazem (nas palavras de Frazer) ‘a marca de um desígnio deliberado’ e que visam a alcançar o resultado que na realidade alcançaram. ‘De nenhuma outra maneira parece possível explicar em todos os seus pormenores um sistema ao mesmo tempo tão regular.’ (Frazer, ibid., 106.)

É interessante observar que as primeiras restrições produzidas pela introdução das classes matrimoniais afetaram a liberdade sexual da geração mais jovem (isto é, o incesto entre irmãos e irmãs e entre filhos e mães), enquanto que o incesto entre pais e filhas só foi impedido por uma extensão ulterior dos regulamentos.

Mas o fato de as restrições sexuais exógamas terem sido impostas intencionalmente não esclarece o motivo que levou à sua imposição. Qual é a fonte suprema do horror ao incesto que tem de ser identificada como sendo a raiz da exogamia? Explicá-lo pela existência de uma antipatia instintiva pelas relações sexuais com os parentes consangüíneos — ou seja, apelando para o fato de que existe um horror ao incesto — é claramente insatisfatório, porque a experiência social mostra que, a despeito desse suposto instinto, o incesto não é um fato fora do comum mesmo em nossa sociedade atual e a história nos fala de casos em que o casamento incestuoso entre pessoas privilegiadas era na realidade a regra.

Westermarck (1906-8 2, 368) explicou o horror ao incesto baseando-se em que ‘há uma aversão inata às relações sexuais entre pessoas que vivem juntas com muita intimidade desde a infância e que, como essas pessoas são, na maioria dos casos, aparentadas pelo sangue, esse sentimento naturalmente apareceria no costume e na lei como um horror à relação sexual entre parentes próximos’. Havelock Ellis [1914, 205 e seg.], embora discutisse a instintividade da aversão, endossou em geral esta explicação: ‘A falha normal da manifestação do instinto de acasalamento no caso de irmãos e irmãs ou de meninos e meninas criados juntos desde a infância é um fenômeno meramente negativo, devido à ausência inevitável, nessas circunstâncias, das condições que evocam o instinto de acasalamento (…) Entre aqueles que foram criados juntos desde a infância, todos os estímulos sensoriais da visão, audição e tato foram amortecidos pelo uso, levados ao nível calmo da afeição e privados de sua potência de despertar a excitação eretística que produz a tumescência sexual.’

Parece-me muito notável que Westermarck considere que esta aversão inata às relações sexuais com alguém de quem se foi íntimo na infância seja também o equivalente, em termos psíquicos, do fato biológico de ser a endogamia prejudicial à espécie. Um instinto biológico do tipo sugerido dificilmente se desviaria tanto em sua expressão psicológica que, em vez de aplicar-se aos parentes consangüíneos (com quem as relações sexuais poderiam ser prejudiciais à reprodução), afetasse pessoas totalmente inócuas a esse respeito, simplesmente por partilharem de um lar comum. Não posso deixar de referir-me também à admirável crítica feita por Frazer à teoria de Westermarck. Frazer acha inexplicável que hoje mal haja qualquer aversão sexual às relações com companheiros de casa, enquanto que o horror ao incesto, que, na teoria de Westermarck, constitui apenas um derivativo dessa aversão, tenha crescido tão enormemente. Mas alguns outros comentários de Frazer vão mais fundo e estes reproduzirei na íntegra, visto que se acham essencialmente de acordo com os argumentos que apresentei em meu ensaio sobre o tabu:

‘Não é fácil perceber porque qualquer instinto humano profundo deva necessitar ser reforçado pela lei. Não há lei que ordene aos homens comer e beber ou os proíba de colocar as mãos no fogo. Os homens comem e bebem e mantém as mãos afastadas do fogo instintivamente por temor a penalidades naturais, não legais, que seriam acarretadas pela violência aplicada a esses instintos. A lei apenas proíbe os homens de fazer aquilo a que seus instintos os inclinam; o que a própria natureza proíbe e pune, seria supérfluo para a lei proibir e punir. Por conseguinte, podemos sempre com segurança pressupor que os crimes proibidos pela lei são crimes que muitos homens têm uma propensão natural a cometer. Se não existisse tal propensão, não haveriam tais crimes e se esses crimes não fossem cometidos, que necessidade haveria de proíbi-los? Desse modo, em vez de presumir da proibição legal do incesto que existe uma aversão natural a ele, deveríamos antes pressupor haver um instinto natural em seu favor e que se a lei o reprime, como reprime outros instintos naturais, assim o faz porque os homens civilizados chegaram à conclusão de que a satisfação desses instintos naturais é prejudicial aos interesses gerais da sociedade.’ (Frazer, 1910, 4, 97 e seg.)

Posso acrescentar a estes excelentes argumentos de Frazer que as descobertas da psicanálise torna a hipótese de uma aversão inata à relação sexual incestuosa totalmente insustentável. Demonstram, pelo contrário, que as mais precoces excitações sexuais dos seres humanos muito novos são invariavelmente de caráter incestuoso e que tais impulsos, quando reprimidos, desempenham um papel que pode ser seguramente considerado — sem que isso implique uma superestima — como forças motivadoras de neuroses, na vida posterior.

Dessa maneira, o ponto de vista que explica o horror ao incesto como sendo um instinto inato deve ser abandonado. Tampouco pode-se dizer algo mais favorável sobre outra explicação da lei contra o incesto, amplamente defendida, segundo a qual os povos primitivos desde cedo notaram os perigos com que a endogamia ameaçava a raça e, devido a essa razão, deliberadamente adotaram a proibição. Há uma infinidade de objeções a esta teoria. (Cf. Durkheim, 1898 [33 e segs.].) Não somente a proibição contra o incesto deve ser mais antiga que a domesticação de animais — a qual poderia ter capacitado os homens a observar os efeitos prejudiciais da endogamia sobre os caráteres raciais —, mas ainda hoje os efeitos prejudiciais da endogamia não se acham estabelecidos com certeza e não podem ser facilmente demonstrados no homem. Ademais, tudo o que sabemos sobre os selvagens contemporâneos torna altamente improvável que seus ancestrais mais remotos já estivessem preocupados em preservar de danos a progênie. Na verdade, é quase absurdo atribuir a criaturas tão imprevidentes razões de higiene e de eugenia que mal são consideradas em nossa própria civilização de hoje.

Por último, deve-se levar em conta o fato de que uma proibição contra a endogamia, baseada em motivos práticos de higiene, com fundamento na sua tendência à debilitação racial, parece inteiramente inadequada para explicar a profunda aversão de nossa sociedade pelo incesto. Como já demonstrei anteriormente, esse sentimento parece ser ainda mais ativo e intenso entre os povos primitivos contemporâneos que entre os civilizados.

Poder-se-ia esperar que aqui, mais uma vez, tivéssemos diante de nós uma escolha entre explicações sociológicas, biológicas e psicológicas. (Com relação a isto, os motivos psicológicos talvez devam ser considerados como representando forças biológicas.) Não obstante, ao fim de nossa investigação, pode mos apenas endossar a conclusão resignada de Frazer. Ignoramos a origem do horror ao incesto e nem mesmo podemos informar em que direção procurá-la. Nenhuma das soluções que foram propostas ao enigma parece satisfatória.

Tenho, entretanto, de mencionar uma outra tentativa de solucioná-lo. É de um tipo inteiramente diferente de qualquer uma que até aqui consideramos e poderia ser descrita como ‘histórica’.

Essa tentativa baseia-se numa hipótese de Charles Darwin sobre o estado social dos homens primitivos. Deduziu ele dos hábitos dos símios superiores, que também o homem vivia originalmente em grupos ou hordas relativamente pequenos, dentro dos quais o ciúme do macho mais velho e mais forte impedia a promiscuidade sexual. ‘Podemos na verdade concluir, do que sabemos do ciúme de todos os quadrúpedes masculinos, armados, como muitos se acham, de armas especiais para bater-se com os rivais, que as relações sexuais promíscuas em um estado natural são extremamente improváveis (…) Dessa maneira, se olharmos bastante para trás na corrente do tempo (…) a julgar pelos hábitos sociais do homem, tal como ele hoje existe (…) a visão mais provável é que o homem primevo vivia originalmente em pequenas comunidades, cada um com tantas esposas quantas podia sustentar e obter, as quais zelosamente guardava contra todos os outros homens. Ou pode ter vivido sozinho com diversas esposas, como o gorila, pois todos os antigos “concordam que apenas um macho adulto é visto num grupo; quando o macho novo cresce, há uma disputa pelo domínio, e o mais forte, matando ou expulsando os outros, estabelece-se como chefe da comunidade”. (Dr. Savage, no Boston Journal of Nat. Hist., vol. V, 1845-7, p. 423.) Os machos mais novos, sendo assim expulsos e forçados a vaguear por outros lugares, quando por fim conseguiam encontrar uma companheira, preveniram também uma endogamia muito estreita dentro dos limites da mesma família.’ (Darwin, 1871, 2, 362 e seg.)

Atkinson parece ter sido o primeiro a perceber que a conseqüência prática das condições reinantes na horda primeva de Darwin deve ter sido a exogamia para os jovens do sexo masculino. Cada um deles poderia, depois de ter sido expulso, estabelecer uma horda semelhante, na qual a mesma proibição sobre as relações sexuais imperaria, por causa do ciúme do líder. Com o decorrer do tempo, isto produziria o que se tornaria uma lei consciente: ‘Nenhuma relação sexual entre os que partilham de um lar comum’. Após o estabelecimento do totemismo, a regra assumiria outra forma e diria: ‘Nenhuma relação sexual dentro do totem’.

Andrew Lang (1905, 114 e 143) aceitou esta explicação da exogamia. No mesmo livro, contudo, defende outra teoria (sustentada por Durkheim), de acordo com a qual a exogamia foi uma resultante das leis totêmicas. [Cf. p. 126.] É um pouco difícil conciliar esses dois pontos de vista: de acordo com o primeiro, a exogamia se teria originado antes do totemismo, enquanto que, segundo o último, dele se derivaria.

 

(3)

 

Nessa obscuridade, um raio de luz isolado é lançado pela observação psicanalítica.

Há uma grande semelhança entre as relações das crianças e dos homens primitivos com os animais. As crianças não demonstram sinais da arrogância que faz com que os homens civilizados adultos tracem uma linha rígida entre a sua própria natureza e a de todos os outros animais. As crianças não têm escrúpulos em permitir que os animais se classifiquem como seu plenos iguais. Desinibidas como são na admissão de suas necessidades corporais, sem dúvida sentem-se mais aparentadas com os animais do que com seus semelhantes mais velhos, que bem podem constituir um mistério para elas.

Não raramente, porém, uma estranha lenda ocorre nas excelentes relações existentes entre as crianças e os animais. Uma criança de repente começa a ter medo de uma determinada espécie de animal e a evitar tocar ou ver qualquer exemplar daquela espécie. Surge o quadro clínico de uma fobia de animal — uma forma muito comum, talvez a mais antiga, das doenças psiconeuróticas que ocorrem na infância. Via de regra, a fobia está ligada a animais pelos quais a criança até então tinha mostrado um interesse particularmente vivo e nada tem a ver com qualquer animal em particular. Não existe uma grande escolha de animais que possam tornar-se objetos de fobia para crianças que vivem em cidades: cavalos, cães, gatos, com menos freqüência pássaros, e, com notável freqüência, bichos muito pequenos, como besouros e borboletas. O medo insensato e imoderado mostrado nessas fobias está às vezes ligado a animais que a criança só conhece de livros de figuras e contos de fadas. Em algumas raras ocasiões, é possível descobrir o que levou a uma escolha desse tipo tão fora do comum e sou grato a Karl Abraham por me ter contado um caso em que a própria criança explicou que seu medo de vespas era porque a cor e as listras faziam-na lembrar-se de tigres, que, segundo todos os relatos, constituíam animais a serem temidos.

Ainda não se fez nenhum exame analítico pormenorizado das fobias de animais em crianças, embora esse estudo fosse grandemente compensador. Essa negligência, deve-se, sem dúvida, à dificuldade de analisar crianças de tão tenra idade. Assim, não se pode dizer que conheçamos o significado geral dessas perturbações, e eu mesmo sou de opinião que estas podem mostrar não ser de natureza uniforme. Mas alguns casos de fobias desse tipo dirigidas no sentido de animais maiores mostraram-se acessíveis à análise e revelaram assim seu segredo ao investigador. Era a mesma coisa em todos os casos: quando as crianças em causa eram meninos, o medo, no fundo, estava relacionado com o pai e havia simplesmente sido deslocado para o animal.

Qualquer pessoa com experiência psicanalítica sem dúvida alguma já encontrou casos desse tipo e teve deles a mesma impressão. Entretanto, posso citar apenas umas poucas publicações pormenorizadas sobre o assunto. Esta pobreza de literatura é uma circunstância acidental e não se deve supor que nossas conclusões se fundamentem em umas poucas observações esparsas. Posso citar, por exemplo, um autor que estudou as neuroses da infância com grande compreensão, o Dr. M. Wulff, de Odessa. No relato da história clínica de um menino de nove anos, ele conta que, aos quatro anos, o paciente sofrera de uma cinofobia. ‘Quando via passar um cão correndo na rua, chorava e gritava: “Cachorrinho querido, não me morda! Eu vou ser bonzinho!”. Por “ser bonzinho” queria dizer “não mexer no pipi”, ou seja, não se masturbar. (Wulff, 1912, 15.) ‘A fobia de cachorro do menino’, explica o autor, ‘era na realidade o medo do pai deslocado para os cães; pois sua curiosa exclamação “Cachorrinho, eu vou ser bonzinho!” — isto é, “não me masturbarei” — dirigia-se ao pai, que o havia proibido de ser masturbar.’ Wulff acrescenta uma nota de rodapé que está totalmente de acordo com minhas opiniões e, ao mesmo tempo, dá testemunho da freqüente ocorrência de tais experiências: ‘Fobias desse tipo (fobias de cavalos, cães, gatos, aves e outros animais domésticos) são, em minha opinião, pelo menos tão comuns na infância quanto o pavor nocturnus e, na análise, quase invariavelmente mostram ser um deslocamento para os animais do medo que a criança tem de um dos genitores. Não estou preparado para afirmar que o mesmo mecanismo se aplica às disseminadas fobias de ratos e camundongos.’ [Ibid., 15.]

Publiquei recentemente (1909b), uma ‘Análise de uma Fobia num Menino de Cinco Anos’, cujo material me foi fornecido pelo pai do pequeno paciente. O menino tinha uma fobia de cavalos e, como conseqüência disso, recusava-se a sair à rua. Expressava o temor de que o cavalo entrasse no quarto e o mordesse e viu-se que isso seria o castigo por um desejo de que o cavalo caísse (isto é, morresse). Depois de ter sido removido o medo do menino pelo pai através de uma confiança renovada, tornou-se evidente que ele estava lutando contra desejos que tinham como tema a idéia de o pai estar ausente (partindo para uma viagem, morrendo). Encarava o pai (como deixou bem claro) como um competidor nos favores da mãe, para quem eram dirigidos os obscuros prenúncios de seus desejos sexuais nascentes. Desse modo, estava situado na atitude típica de uma criança do sexo masculino para com os pais a que demos o nome do ‘complexo de Édipo’ e que em geral consideramos como o complexo nuclear das neuroses. O fato novo que aprendemos com a análise do ‘pequeno Hans’ — fato com uma importante relação com o totemismo — foi que, em tais circunstâncias, as crianças deslocam alguns de seus sentimentos do pai para um animal.

A análise pode reconstituir os caminhos associativos ao longo dos quais esse deslocamento se passa — tanto os fortuitos como os possuidores de um conteúdo significativo. A análise também nos permite descobrir os motivos do deslocamento. O ódio pelo pai que surge num menino por causa da rivalidade em relação à mãe não é capaz de adquirir uma soberania absoluta sobre a mente da criança; tem de lutar contra a afeição e admiração de longa data pela mesma pessoa. A criança se alivia do conflito que surge dessa atitude emocional de duplo aspecto, ambivalente, para com o pai deslocando seus sentimentos hostis e temerosos para um substituto daquele. O deslocamento, no entanto, não pode dar cabo do conflito, não pode efetuar uma nítida separação entre os sentimentos afetuosos e os hostis. Pelo contrário, o conflito é retomado em relação ao objeto para o qual foi feito o deslocamento: a ambivalência é estendida a ele. Não pode haver dúvida de que o pequeno Hans não apenas tinha medo de cavalos, mas também se aproximava deles com admiração e interesse. Assim que sua ansiedade começou a diminuir, identificou-se com a criatura temida: começou a pinotear como um cavalo e, por sua vez, mordeu o pai. Em outra etapa da resolução de sua fobia, não hesitou em identificar os pais com alguns outros animais de grande porte.

Pode-se com justiça dizer que nessas fobias de crianças reaparecem algumas das características do totemismo, mas invertidas para o negativo. Devemos, entretanto, a Ferenczi (1913a) uma interessante história de um caso isolado que só pode ser descrito como um exemplo de totemismo positivo numa criança. É verdade que no caso do pequeno Árpád (sujeito da comunicação de Ferenczi), seus interesses totêmicos não surgiram em relação direta com o complexo de Édipo, e sim baseados em sua pré-condição narcisista, o temor da castração. Mas qualquer leitor atento da história do pequeno Hans encontrará provas abundantes de que ele também admirava o pai por possuir um pênis grande e temia-o por ameaçar o seu. O mesmo papel é desempenhado pelo pai tanto no complexo de Édipo quanto no complexo de castração, ou seja, o papel de um inimigo temível dos interesses sexuais da infância. O castigo com que ele ameaça é a castração, ou o seu substituto, a cegueira.

Quando o pequeno Árpád tinha dois anos e meio de idade, tentara certa vez, nas férias de verão, urinar no galinheiro e uma galinha: bicara ou dera uma bicada na direção de seu pênis. Um ano depois, quando de volta ao mesmo lugar, ele próprio transformou-se numa galinha: seu único interesse era o galinheiro e o que lá se passava, tendo trocado o falar humano por cacarejos e cocoricós. Na ocasião em que a observação foi feita (quando estava com cinco anos), tinha recobrado a fala, mas seus interesses e sua conversa relacionavam-se totalmente com galinhas e outros tipos de aves domésticas. Eram os seus únicos brinquedos e somente entoava cantigas que fizessem menção a aves de quintal. Sua atitude para com o animal totêmico era superativamente ambivalente: mostrava tanto ódio quanto amor num grau exorbitante. Seu jogo favorito era brincar de matar galinhas. ‘A matança de aves domésticas constituía para ele um festival regular. Dançava em volta dos corpos dos animais por horas a fio, num estado de intensa excitação.’ A seguir, porém, beijava e alisava o animal morto ou limpava e acariciava as aves de brinquedo que ele mesmo tinha maltratado.

O próprio pequeno Árpád cuidou para que o significado de seu estranho comportamento não permanecesse oculto. De tempos em tempos, traduzia seus desejos, da linguagem totêmica para a da vida cotidiana. ‘Meu pai é galo’, disse em certa ocasião, e, noutra: ‘Agora sou pequeno, sou um frango. Quando ficar maior, serei uma galinha e quando for maior ainda, serei um galo.’ Em outra ocasião, disse subitamente que gostaria de comer um pouco de ‘fricassée de mãe’ (por analogia com o fricassée de frango). [Ibid., 249.] Era muito generoso em ameaçar outras pessoas com a castração, tal como ele próprio fora por ela ameaçado, por causa das atividades masturbatórias.

Não há dúvida ,segundo Ferenczi, quanto às fontes do interesse de Árpád nos acontecimentos do galinheiro: ‘a contínua atividade sexual entre galos e galinhas, a postura de ovos e o nascimento da nova ninhada’ gratificavam a sua curiosidade sexual, cujo objeto real era a vida familiar humana. [Ibid. 250.] Mostrou ter formado sua própria escolha de objetos sexuais segundo o modelo da vida no galinheiro, porque certo dia disse à esposa do vizinho: ‘Vou me casar com você, com sua irmã, minhas três primas e com a cozinheira; não, com a cozinheira, não; em vez dela, casarei com minha mãe.’ [Ibid., 252.]

Mais tarde poderemos apreciar mais completamente o valor desta observação. De momento, enfatizarei apenas dois aspectos dela que oferecem valiosos pontos de concordância com o totemismo: a completa identificação do menino com seu animal totêmico e sua atitude emocional ambivalente para com este. Essas observações, em minha opinião, justificam nossa substituição desse animal pelo pai na fórmula do totemismo (no caso de indivíduos do sexo masculino). Vai-se observar que não há nada de novo ou particularmente ousado nesse passo à frente. Na verdade, os homens primitivos dizem a mesma coisa e, onde o sistema totêmico ainda se acha em vigor atualmente, descrevem o totem como sendo seu ancestral comum e pai primevo. Tudo o que fizemos foi tomar no sentido literal uma expressão utilizada por essas pessoas, da qual os antropólogos muito pouco souberam extrair e, por essa razão, contentaram-se em manter em segundo plano. A psicanálise, pelo contrário, leva-nos a dar uma ênfase especial ao mesmo ponto e tomá-lo como ponto de partida de nossa tentativa de explicar o totemismo.

A primeira conseqüência de nossa substituição é notabilíssima. Se o animal totêmico é o pai, então as duas principais ordenanças do totemismo, as duas proibições de tabu que constituem seu âmago — não matar o totem e não ter relações sexuais com os dois crimes de Édipo, que matou o pai e casou com a mãe, assim como os dois desejos primários das crianças, cuja repressão insuficiente ou redespertar formam talvez o núcleo de todas as psiconeuroses. Se essa equação for algo mais que um enganador truque de sorte, deverá capacitar-nos a lançar luz sobre a origem do totemismo num passado inconcebivelmente remoto. Em outras palavras, nos permitirá provar que o sistema totêmico — como a fobia de animal do pequeno Hans e a perversão galinácea do pequeno Árpád — é um produto das condições em jogo no complexo de Édipo. A fim de verificar esta possibilidade, teremos, nas páginas seguintes de estudar uma característica do sistema totêmico (ou, como poderíamos dizer, da religião totêmica) que até aqui mal tive oportunidade de mencionar.

 

(4)

 

William Robertson Smith, falecido em 1894 — físico, filólogo, crítico da Bíblia e arqueólogo — era um homem de muitos interesses, de visão clara e espírito liberal. Em seu livro sobre a Religion of Semites (publicado pela primeira vez em 1889), apresentou a hipótese de que uma cerimônia peculiar conhecida como ‘refeição totêmica’ fizera, desde o princípio, parte integrante do sistema totêmico. Naquela ocasião, possuía apenas uma prova para apoiar sua teoria: um relato de um procedimento da espécie datado do século V. Mas através de uma análise da natureza do sacrifício entre os antigos semitas pôde emprestar à sua hipótese um alto grau de probabilidade. Desde que o sacrifício implica uma divindade, era uma questão apenas de argumentar a partir de uma fase relativamente elevada do ritual religioso para a mais baixa delas, ou seja, o totemismo.

Tentarei agora extrair da admirável obra de Robertson Smith aquelas suas afirmações sobre a origem e o significado do ritual de sacrifício que são de interesse decisivo para nós. Assim procedendo, tenho de omitir todos os pormenores, muitas vezes fascinantes, e deixar de lado todos os desenvolvimentos posteriores. É inteiramente impossível num resumo como este dar aos leitores uma idéia que seja da lucidez e força convincente do original.

Robertson Smith [1894, 213] explica o sacrifício no altar como a característica essencial do ritual das antigas religiões. Ele desempenha o mesmo papel em todas as religiões, de maneira que sua origem deve ser remontada a causas muito gerais, operando em toda a parte da mesma maneira. O sacrifício entretanto — o ato sagrado par excellence (sacrificium, ƒÙƒÕƒâƒßƒåƒâƒ×ƒÙƒÑ) — tinha originalmente um significado um tanto diferente do posterior, que é fazer uma oferenda à deidade, a fim de propiciá-la ou ganhar o seu favor. (O emprego não religioso da palavra decorreu desse sentido subsidiário de ‘renúncia’. [Ver adiante, em [1]) Pode-se demonstrar que, inicialmente, o sacrifício nada mais era que ‘um ato de companheirismo entre a divindade e seus adoradores’. [Ibid., 224.]

Os produtos oferecidos em sacrifício eram coisas que podiam ser comidas ou bebidas; os homens sacrificavam às suas divindades as coisas de que eles próprios viviam: carne, cereais, frutas, vinho e óleo. Somente no caso da carne havia limitações e exceções. O deus partilhava os sacrifícios animais com os seus adoradores, mas as oferendas vegetais eram apenas dele. Não há dúvida de que os sacrifícios animais foram os mais antigos e, originalmente, os únicos. Os sacrifícios vegetais surgiram da oferenda das primeiras frutas e sua natureza era um tributo ao senhor da terra e dos campos; mas os sacrifícios animais são mais antigos que a agricultura. [Ibid., 222.]

Reminiscência lingüísticas comprovam que a parte do sacrifício atribuída ao deus era a princípio considerada como sendo, literalmente, o seu alimento. À medida que a natureza dos deuses tornava-se progressivamente menos material, essa concepção transformou-se num empecilho e foi evitada, atribuindo-se à deidade apenas a parte líquida da refeição. Posteriormente, o uso do fogo, que fez com que a carne do sacrifício sobre os altares se elevasse em fumaça, forneceu um método de lidar com o alimento humano mais apropriado à natureza divina. [Ibid., 224, 229.] A oferenda de bebida consistia originalmente no sangue da vítima animal, substituído mais tarde por vinho. Nos tempos antigos, o vinho era considerado ‘o sangue da uva’ e foi assim descrito por poetas modernos. [Ibid., 230.]

A forma mais antiga de sacrifício, mais do que o uso do fogo ou o conhecimento da agricultura, foi então o sacrifício de animais, cuja carne e sangue eram desfrutados em comum pelo deus e por seus adoradores. Era essencial que cada um dos participantes tivesse a sua parte da refeição.

Um sacrifício dessa espécie era uma cerimônia pública, um festival celebrado por todo o clã. A religião em geral era assunto da comunidade e o dever religioso fazia parte das obrigações sociais. Em todos os lugares o sacrifício envolvia um festim e um festim não podia ser celebrado sem um sacrifício. O festim sacrificatório era uma ocasião em que os indivíduos passavam alegremente por cima dos seus próprios interesses e acentuavam a dependência mútua existente entre eles e o seu deus. [Ibid., 255.]

A força ética da refeição sacrificatória pública repousava em idéias muito antigas da significação de comer e beber juntos. Comer e beber com um homem constituía um símbolo e uma confirmação de companheirismo e obrigações sociais mútuas. O que era diretamente expressado pela refeição sacrificatória era apenas o fato de o deus e seus adoradores serem ‘comensais’, mas todos os outros pontos de suas relações mútuas estavam incluídos nisto. Costumes ainda em vigor entre os árabes do deserto demonstram que o vínculo numa refeição comum não é um fator religioso, mas o próprio ato de comer. Qualquer pessoa que tenha comido o menor pedaço de alimento com um desses beduínos ou tomado um gole de leite não mais precisa temê-lo como inimigo, mas pode sentir-se seguro de sua proteção e auxílio, porém, não por um tempo ilimitado; estritamente falando, apenas enquanto a comida que ingeriram em comum permaneça no corpo. Essa era a visão realista do laço de união. Precisava de repetição para ser confirmado e se tornar permanente. [Ibid., 269-70.]

Mas por que essa força de união é atribuída ao comer e beber juntos? Nas sociedades primitivas havia apenas uma espécie de laço que era absoluto e inviolável: o do parentesco. A solidariedade desse companheirismo era completa. ‘Um parentesco era um grupo de pessoas cujas vidas se achavam tão ligadas, no que deve ser chamado de unidades físicas, que podiam ser tratadas como partes de uma vida comum (…) Num caso de homicídio, os homens das tribos árabes não dizem “O sangue de A ou B foi derramado”, nomeando a pessoa; mas sim “Nosso sangue foi derramado”. Em hebraico, a expressão pela qual se alega o parentesco é: “Sou seus ossos e sua carne”.’ Assim, o parentesco implica a participação numa substância comum. Desse modo, é natural que não se baseie simplesmente no ato de um homem ser uma parte da substância de sua mãe, tendo nascido dela e sido nutrido com o seu leite, mas que possa ser adquirido e fortalecido pela comida que um homem ingere mais tarde e com a qual seu corpo se renova. Se um homem partilhava uma refeição com seu deus, estava expressando a convicção de que eram feitos de uma só substância; e nunca a partilharia com quem considerasse um estranho. [Ibid., 273-5.]

A refeição sacrificatória, então, foi em princípio um festim de parentes, de acordo com a lei de que apenas parentes comem juntos. Em nossa própria sociedade, os membros de uma família fazem suas refeições em comum, mas a refeição sacrificatória não tem relação com a família. O parentesco é algo mais antigo que a vida familiar e, na maioria da sociedades primitivas que nos são conhecidas, a família continha membros de mais de um parentesco. O homem casava-se com uma mulher de outro clã e os filhos herdavam o clã da mãe, de maneira que não havia comunhão de parentesco entre o homem e os outros membros da família. Numa família desse tipo, não havia refeição comum. Até os dias de hoje, os selvagens comem isolados e a sós e as proibições religiosas de comida do totemismo freqüentemente tornam-lhes impossível comer em comum com a esposa e os filhos. [Ibid., 277-8.]

Voltemo-nos agora para o animal sacrificatório. Como soubemos, não há reunião de um clã sem um sacrifício animal, nem — e isto agora se torna significativo — nenhuma matança de animal exceto nessas ocasiões cerimoniais. Embora a caça e o leite dos animais domésticos possam ser consumidos sem quaisquer receios, os escrúpulos religiosos tornam impossível matar um animal doméstico para fins privados. [Ibid. 280, 281.] Não pode haver a mais leve dúvida, diz Robertson Smith, de que a matança de uma vítima se achava originalmente entre os atos que ‘são ilegais para um indivíduo e só podem ser justificados quando todo o clã partilha a responsabilidade do ato. Até onde sei, há apenas uma classe de ações reconhecidas pelas nações primitivas a que essa descrição se aplica, a saber, as ações que envolvem a invasão da santidade no sangue tribal. Na verdade, uma vida que nenhum integrante isolado da tribo se permite invadir e que só pode ser sacrificada pelo consentimento e ação comum dos parentes, está em pé de igualdade com a vida dos companheiros de tribo’. A regra de que todo participante na refeição sacrificatória tenha de comer uma parte da carne da vítima tem o mesmo significado da determinação de que a execução de um membro culpado da tribo deve ser efetuada pela tribo como um todo. [Ibid., 284-5.] Noutras palavras, o animal sacrificado era tratado como um membro da tribo; a comunidade sacrificante, o deus e o animal sacrificado eram do mesmo sangue e membros de um só clã.

 

Robertson Smith apresenta provas abundantes para identificar o animal sacrificatório com o primitivo animal totêmico. Na antiguidade mais remota, havia duas classes de sacrifício: uma em que as vítimas eram animais domésticos das espécies habitualmente utilizadas para a alimentação e a outra, sacrifícios extraordinários de animais impuros e cujo consumo era proibido. A investigação mostra que esses animais impuros eram animais sagrados, que eles eram oferecidos como sacrifício aos deuses a quem eram consagrados, que originalmente eram idênticos aos próprios deuses e que, por meio do sacrifício, os adoradores de certa maneira enfatizavam seu parentesco consangüíneo com o animal e o deus. [Ibid., 290-5.] Mas em épocas ainda mais antigas, essa distinção entre sacrifícios comuns e ‘místicos’ desaparece. Originalmente, todos os animais [sacrificatórios] eram sagrados, sua carne era proibida e só podia ser consumida em ocasiões cerimoniais e com a participação de todo o clã. A matança de um animal [desse tipo] equivalia ao derramamento do sangue tribal e só podia ocorrer sujeita às mesmas precauções e às mesmas garantias contra a incorrência em censuras. [Ibid., 312, 313.]

A domesticação dos animais e a introdução da criação de gado parece ter dado fim em toda parte ao totemismo estrito e inadulterado dos dias primevos. Mas esse caráter sagrado, tal como continuou sendo para os animais domésticos sob o que então se tornou uma religião ‘pastoral’ é suficientemente óbvio para permitir-nos deduzir sua natureza totêmica original. Mesmo em fins da época clássica, o ritual prescrevia em muitos lugares que o sacerdote sacrificante devia fugir depois de efetuar o sacrifício, como se para escapar à represália. A idéia de que matar bois constituía um crime deve, em determinada época, ter predominado na Grécia em geral. No festival ateniense da Bufônia [‘morte do boi’], um processo regular era instituído após o sacrifício e todos os participantes eram convocados como testemunhas. Ao final, concordava-se que a responsabilidade pelo crime deveria ser atribuída à faca e, por conseguinte, esta era jogada ao mar. [Smith, 1894, 304.]

A despeito da proibição que protegia a vida dos animais sagrados na qualidade de companheiros de clã, surgiu a necessidade de matar um deles de tempos em tempos, em comunhão solene, e de dividir sua carne e sangue entre os membros do clã. Os motivos que levaram a esse ato revelam o significado mais profundo da natureza do sacrifício. Já sabemos como, em épocas posteriores, sempre que o alimento é comido em comum, a participação na mesma substância estabelece um laço sagrado entre aqueles que a consomem quando o alimento penetrou em seus corpos. Nos tempos antigos, esse resultado parece só ter sido efetivado pela participação na substância de uma vítima sacrossanta. O sagrado mistério da morte sacrificatória‘é justificado pela consideração de que apenas desta maneira pode ser conseguido o vínculo sagrado que cria e mantém ativo um elo vivo de união entre os adoradores e seu deus.’. (Ibid., 313.)

Este elo ou vínculo nada mais é que a vida do animal sacrificatório, a qual reside em sua carne e seu sangue, sendo distribuída entre todos os participantes na refeição sacrificatória. Uma idéia desse tipo jaz na raiz de todos os pactos de sangue por meio dos quais os homens fizeram convênios uns com os outros, mesmo em períodos posteriores da história. [Loc. cit.] Essa maneira completamente literal de encarar o parentesco de sangue como identidade de substância torna fácil compreender a necessidade de renová-lo de tempos em tempos pelo processo físico da refeição sacrificatória. [Ibid., 319.]

Aqui interrompo o seguimento da linha de pensamento de Robertson Smith e passo a renunciar o essencial dela em termos mais concisos. Com o estabelecimento da idéia de propriedade privada, o sacrifício veio a ser considerado uma doação à divindade, uma transferência da propriedade dos homens para o deus. Mas essa interpretação deixa inexplicada todas as peculiaridades do ritual do sacrifício. Nos tempos mais remotos, o próprio animal sacrificatório fora sagrado e sua vida intocável; só podia ser morto se todos os membros do clã participassem da morte e partilhassem da culpa na presença do deus de maneira que a substância sagrada pudesse ser produzida e consumida pelos membros do clã, garantindo assim sua identidade uns com os outros e com a divindade. O sacrifício constituía um sacramento e o próprio animal sacrificado era membro do clã. Era de fato o antigo animal totêmico, o próprio deus primitivo, através de cuja morte e consumo os integrantes do clã renovavam e asseguravam sua semelhança com ele.

Dessa análise da natureza do sacrifício, Robertson Smith tira a conclusão de que a morte e a ingestão periódicas do totem em tempos anteriores à adoração de deidades antropomórficas constituiu um elemento importante da religião totêmica. [Ibid., 295.] O cerimonial de uma refeição totêmica dessa espécie, sugere ele, pode ser encontrado na descrição de um sacrifício de data comparativamente posterior. São Nilo registra um ritual sacrificatório corrente entre os beduínos do deserto do Sinai em fins do século IV. A vítima do sacrifício, um camelo, ‘é amarrado a um grosseiro altar de pedras empilhadas e o líder do grupo, depois de conduzir por três vezes os adoradores em volta do altar numa solene procissão acompanhada de cantos, inflige o primeiro ferimento (…) e, com toda a pressa, bebe o sangue que jorra. Imediatamente, todos os acompanhantes caem sobre a vítima com suas espadas recortando pedaços da carne palpitante e devorando-os crus com pressa tão selvagem que, no curto intervalo que vai do nascer da estrela matutina o qual assinalou a hora para o serviço começar — ao desaparecimento de seus raios ante o sol nascente, todo o camelo, corpo e ossos, pele, sangue e entranhas, é inteiramente devorado.’ [Ibid., 338.] Todas as provas tendem a mostrar que esse ritual bárbaro, que apresenta todos os sinais de extrema antiguidade, não era um caso isolado, e sim, em toda parte, a forma original assumida pelo sacrifício totêmico embora mais tarde atenuada em muitos sentidos diferentes.

Muitas autoridades recusaram-se a atribuir importância ao conceito da refeição totêmica, porque não era apoiado por nenhuma observação direta ao nível do totemismo. O próprio Robertson Smith apontou casos em que a significação sacramental do sacrifício aparecia assegurada: por exemplo, os sacrifícios humanos dos aztecas e outros, que lembram as circunstâncias da refeição totêmica — o sacrifício dos ursos pelo clã urso dos ouataouak [Otawa] da América e o festim do urso de Ainos, no Japão. [Ibid., 295n.] Esses casos e outros semelhantes foram relatados em pormenores por Frazer na Quinta Parte de sua grande obra (1912, 2 [Caps. X, XIII, XIV]). Uma tribo índia americana da Califórnia, que venera uma grande ave de rapina (um abutre), mata-a uma vez por ano num festival solene, após o qual é pranteado e sua pele e penas são preservadas. [Ibid., 2, 170.]. Os índios zunis do Novo México comportam-se de maneira semelhante em relação às suas tartarugas sagradas. [Ibid. 2, 175.]

Foi observada nas cerimônias intichiuma das tribos centro-australianas uma característica que concorda admiravelmente com as conjeturas de Robertson Smith. Cada clã, quando está realizando mágicas para a multiplicação do totem (o qual normalmente é proibido de ser consumido), é obrigado, durante a cerimônia, a comer uma pequena parte do próprio totem, antes de torná-lo acessível aos outros clãs. [Frazer, 1910, 1, 110 e segs.]. De acordo com Frazer (ibid., 2, 590) o exemplo mais claro do consumo sacramental de um totem, proibido em outras circunstâncias, pode ser encontrado entre os binis da África Ocidental, em conexão com suas cerimônias fúnebres.

Por conseguinte, proponho que adotemos a hipótese de Robertson Smith de que a matança sacramental e a ingestão comunal do totem animal, cujo consumo era proibido em todas as outras ocasiões, constituía uma característica importante da religião totêmica.

 

(5)

 

Vamos agora evocar o espetáculo de uma refeição totêmica do tipo que estivemos estudando, ampliada por alguns prováveis aspectos que ainda não pudemos considerar. O clã se acha celebrando a ocasião cerimonial pela matança cruel de seu animal totêmico e está devorando-o cru — sangue, carne e ossos. Os membros do clã lá se encontram vestidos à semelhança do totem e imitando-o em sons e movimentos, como se procurassem acentuar sua identidade com ele. Cada homem se acha consciente de que está executando um ato proibido ao indivíduo e justificável apenas pela participação de todo o clã, não podendo ninguém ausentar-se da matança e da refeição. Quando termina, o animal morto é lamentado e pranteado. O luto é obrigatório, imposto pelo temor de uma desforra ameaçada. Como Robertson Smith (1894, 412) observa em relação a uma ocasião análoga, seu objetivo principal é renegar a responsabilidade pela matança.

Mas o luto é seguido por demonstrações de regozijo festivo: todos os instintos são liberados e há permissão para qualquer tipo de gratificação. Encontramos aqui um fácil acesso à compreensão da natureza dos festivais em geral. Um festival é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma proibição. Não é que os homens cometam os excessos porque se sentem felizes em conseqüência de alguma injunção que receberam. O caso é que o excesso faz parte da essência do festival; o sentimento festivo é produzido pela liberdade de fazer o que via de regra é proibido.

Que dizer, todavia, do prelúdio desta alegria festiva — a luta pela morte do animal? Se os membros do clã se alegram pela morte do totem — ato normalmente proibido — por que o pranteiam também?

Como vimos, os integrantes do clã, consumindo o totem, adquirem santidade; reforçam sua identificação com ele e uns com os outros. Seus sentimentos festivos e tudo que deles decorre bem poderia ser explicado pelo fato de terem incorporado a si próprios a vida sagrada de que a substância do totem constitui o veículo.

A psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai e isto entra em acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do animal seja em regra proibida, sua matança, no entanto, é uma ocasião festiva — com o fato de que ele é morto e, entretanto, pranteado. A atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos e com tanta freqüência persiste na vida adulta, parece estender-se ao animal totêmico em sua capacidade de substituto do pai.

Se, agora, reunirmos a interpretação psicanalítica do totem com o fato da refeição totêmica e com as teorias darwinianas do estado primitivo da sociedade humana, surge a possibilidade de uma compreensão mais profunda — um vislumbre de uma hipótese que pode parecer fantástica, mas que oferece a vantagem de estabelecer uma correlação insuspeita entre grupos de fenômenos que até aqui estiveram desligados.

Naturalmente, não há lugar para os primórdios do totemismo na horda primeva de Darwin. Tudo o que aí encontramos é um pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem. Esse estado primitivo da sociedade nunca foi objeto de observação. O tipo mais primitivo de organização que realmente encontramos — que ainda se acha em vigor, até os dias de hoje, em certas tribos — consiste em grupos de machos; esses grupos são compostos de membros com direitos iguais e estão sujeitos às restrições do sistema totêmico, inclusive a herança através da mãe. Poderia essa forma de organização ter-se desenvolvido a partir da outra? E, se assim foi, ao longo de que linhas?

Se chamarmos a celebração da refeição totêmica em nosso auxílio, poderemos encontrar uma resposta. Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. (Algum avanço cultural, talvez o domínio de uma nova arma, proporcionou-lhes um senso de força superior.) Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição, e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião.

A fim de que estas últimas conseqüências possam parecer plausíveis, deixando suas premissas de lado, precisamos apenas supor que a tumultuosa malta de irmãos estava cheia dos mesmos sentimentos contraditórios que podemos perceber em ação nos complexos-pai ambivalentes de nossos filhos e de nossos pacientes neuróticos. Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo — pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de ‘obediência adiada’. Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esse tabus tornava-se culpado dos dois únicos crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava.

 

Os dois tabus do totemismo com que a moralidade humana teve o seu começo não estão psicologicamente no mesmo nível. O primeiro deles, a lei que protege o animal totêmico, fundamenta-se inteiramente em motivos emocionais: o pai fora realmente eliminado e, em nenhum sentido real, o ato podia ser desfeito. Mas a segunda norma, a proibição do incesto, tem também uma poderosa base prática. Os desejos sexuais não unem os homens, mas os dividem. Embora os irmãos se tivessem reunido em grupo para derrotar o pai, todos eram rivais uns dos outros em relação às mulheres. Cada um quereria, como o pai, ter todas as mulheres para si. A nova organização terminaria numa luta de todos contra todos, pois nenhum deles tinha força tão predominante a ponto de ser capaz de assumir o lugar do pai com êxito. Assim, os irmãos não tiveram outra alternativa, se queriam viver juntos — talvez somente depois de terem passado por muitas crises perigosas —, do que instituir a lei contra o incesto, pela qual todos, de igual modo, renunciavam às mulheres que desejavam e que tinham sido o motivo principal para se livrarem do pai. Dessa maneira, salvaram a organização que os tornara fortes — e que pode ter-se baseado em sentimentos e atos homossexuais, originados talvez durante o período da expulsão da horda. Aqui também pode ser encontrado o germe da instituição do matriarcado, descrita por Bachofen [1861] que foi, por sua vez, substituída pela organização patriarcal da família.

Por outro lado, a pretensão de ser o totemismo considerado como uma primeira tentativa de religião baseia-se no primeiro desses dois tabus: o referente a tirar a vida do animal totêmico. O animal impressionou os filhos como um substituto natural e óbvio do pai; mas o tratamento que se impuseram dar a ele expressava mais do que a necessidade de exibir o remorso. Podiam tentar, na relação com esse pai substituto, apaziguar o causticante sentimento de culpa, provocar uma espécie de reconciliação com o pai. O sistema totêmico foi, por assim dizer, um pacto com o pai, no qual este prometia-lhes tudo o que uma imaginação infantil pode esperar de um pai — proteção, cuidado e indulgência — enquanto que, por seu lado, comprometiam-se a respeitar-lhe a vida, isto é, não repetir o ato que causara a destruição do pai real. O totemismo, além disso, continha uma tentativa de autojustificação: ‘Se nosso pai nos houvesse tratado da maneira que o totem nos trata, nunca nos teríamos sentido tentados a matá-lo.’ Desta maneira, o totemismo ajudou a amenizar a situação e tornou possível esquecer o acontecimento a que devia sua origem.

Foram assim criadas características que daí por diante continuaram a ter uma influência determinante sobre a natureza da religião. A religião totêmica surgiu do sentimento filial de culpa, num esforço para mitigar esse sentimento e apaziguar o pai por uma obediência a ele que fora adiada. Todas as religiões posteriores são vistas como tentativas de solucionar o mesmo problema. Variam de acordo com o estágio de civilização em que surgiram e com os métodos que adotam; mas todas têm o mesmo fim em vista e constituem reações ao mesmo grande acontecimento com que a civilização começou e que, desde que ocorreu, não mais concedeu à humanidade um momento de descanso.

Há outra característica que já se encontrava presente no totemismo e que foi preservada inalterada na religião. A tensão da ambivalência era evidentemente grande demais para qualquer artifício poder neutralizá-la; ou é possível que as condições psicológicas em geral sejam desfavoráveis aos indivíduos se verem livres dessas emoções antitéticas. Seja o que for, descobrimos que a ambivalência implícita no complexo-pai persiste geralmente no totemismo e nas religiões. A religião totêmica não apenas compreendia expressões de remorso e tentativas de expiação, mas também servia como recordação do triunfo sobre o pai. A satisfação por esse triunfo levou à instituição do festival rememorativo da refeição totêmica, no qual as restrições da obediência adiada não mais se mantêm. Assim, tornou-se um dever repetir o crime de parricídio muitas vezes, através do sacrifício do animal totêmico, sempre que, em conseqüência das condições mutantes da vida, o fruto acalentado do crime — a apropriação dos atributos paternos — ameaçava desaparecer. Não nos surpreenderá descobrir que o elemento da rebeldia filial também surge nos produtos posteriores da religião, freqüentemente sob os mais estranhos disfarces e transformações.

Até aqui acompanhamos os desenvolvimentos da corrente afetuosa de sentimentos para com o pai, transformada em remorso, tal como os encontramos na religião e nas ordenações morais (que, no totemismo, não se distinguem nitidamente). Mas não devemos subestimar o fato de que, em geral, a vitória ficou foi com os impulsos que levaram ao parricídio. Por muito tempo depois, os sentimentos fraternais sociais, que constituíram a base de toda a transformação, continuaram a exercer uma profunda influência no desenvolvimento da sociedade. Encontraram expressão na santificação do laço de sangue, na ênfase dada à solidariedade por toda a vida dentro do mesmo clã. Garantindo assim a vida uns dos outros, os irmãos estavam declarando que nenhum deles devia ser tratado por outro como o pai fora tratado por todos em conjunto. Estavam evitando a possibilidade de uma repetição do destino do pai. À proibição, baseada na religião, contra a morte do totem juntou-se então a proibição socialmente fundamentada contra o fratricídio. Foi somente muito depois que a proibição deixou de limitar-se aos membros do clã e assumiu a forma simples: ‘Não matarás.’ A horda patriarcal foi substituída, em primeira instância, pela horda fraterna, cuja existência era assegurada pelo laço consangüíneo. A sociedade estava agora baseada na cumplicidade do crime comum; a religião baseava-se no sentimento de culpa e no remorso a ele ligado; enquanto que a moralidade fundamentava-se parte nas exigências dessa sociedade e parte na penitência exigida pelo sentimento de culpa.

Assim a psicanálise, em contradição com as opiniões mais recentes sobre o sistema totêmico, mas em concordância com as mais antigas, exige de nós admitir que o totemismo e a exogamia estavam intimamente ligados e tiveram uma origem simultânea.

 

(6)

 

Grande número de poderosos motivos impede-me de qualquer tentativa de esboçar o desenvolvimento ulterior das religiões, desde a origem no totemismo até a condição atual. Seguirei apenas duas linhas cujo curso posso traçar com especial clareza enquanto correm em meio ao desenho; o tema do sacrifício totêmico e a relação de filho para pai.

Robertson Smith mostrou-nos que a antiga refeição totêmica repete-se sob a forma original de sacrifício. O significado do ato é o mesmo: santificação por meio da participação numa refeição comum. O sentimento de culpa, que só pode ser aliviado pela solidariedade de todos os participantes, persiste também. O que é novo é a divindade do clã, em cuja suposta presença o sacrifício é executado, que participa da refeição como se fosse um membro do clã e com quem aqueles que consomem se tornam identificados. Como veio o deus a colocar-se numa situação à qual era originalmente estranho?

A resposta poderia ser que, nesse meio tempo, surgiu — de alguma fonte desconhecida — o conceito de Deus assumindo o controle de toda a vida religiosa; e que, como tudo o mais que quisesse sobreviver, a refeição totêmica foi obrigada a encontrar um ponto de contato com o novo sistema. A psicanálise dos seres humanos de per si, contudo, ensina-nos com insistência muito especial que o deus de cada um deles é formado à semelhança do pai, que a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai em carne e osso e oscila e se modifica de acordo com essa relação e que, no fundo, Deus nada mais é que um pai glorificado. Como no caso do totemismo, a psicanálise recomenda-nos ter fé nos crentes que chamam Deus de seu pai, tal como o totem era chamado de ancestral tribal. Se a psicanálise merece alguma atenção, então — sem prejuízo de quaisquer outras fontes ou significados do conceito de Deus, sobre os quais não pode lançar luz — o elemento paterno nesse conceito deve ser um elemento muito importante. Mas, nesse caso, o pai é representado duas vezes na situação do sacrifício primitivo: uma vez como Deus e outra como a vítima animal totêmica. E, mesmo pressupondo o número restrito de explicações aberto à psicanálise, tem-se de perguntar se isto é possível e que sentido pode ter.

Sabemos existir uma multiplicidade de relações entre o deus e o animal sagrado (o totem ou a vítima sacrificatória). (1) Cada deus geralmente possui um animal (e muito freqüentemente diversos animais) que lhe é consagrado. (2) No caso de certos sacrifícios especialmente sagrados — os sacrifícios ‘místicos’ — a vítima era exatamente o animal consagrado ao deus (Smith, 1894 [290]). (3) O deus era freqüentemente adorado sob a forma de um animal (ou, encarando o fato de outra maneira, os animais eram adorados como deuses), muito tempo após a época do totemismo. (4) Nos mitos, o deus muitas vezes se transforma em animal e, com freqüência, no animal que lhe é consagrado.

Dessa maneira, parece plausível supor que o próprio deus era o animal totêmico, e que deste se desenvolveu numa fase posterior do sentimento religioso. Mas somos liberados da necessidade de novos exames pela consideração de que o totem nada mais é que um representante do pai. Assim, embora o totem possa ser a primeira forma de representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai reconquistou sua aparência humana. Uma nova criação como esta, derivada do que constitui a raiz de toda forma de religião — a saudade do pai — poderia ocorrer se, no decurso do tempo, alguma mudança fundamental se houvesse efetuado na relação do homem com o pai e, talvez, também na sua relação com os animais.

Sinais da ocorrência de modificações dessa espécie podem ser facilmente percebidos, mesmo se deixarmos de lado o começo de um afastamento afetivo dos animais e a desagregação do totemismo devida à domesticação. (Ver atrás, em [1] e segs.) Houve, no estado de coisas, um fator produzido pela eliminação do pai que estava destinado, com o decorrer do tempo, a provocar um enorme aumento na saudade que dele sentiam. Cada um dos irmãos que se tinham agrupado com o propósito de matar o pai estava inspirado pelo desejo de tornar-se semelhante a ele e dera expressão ao mesmo incorporando partes do representante paterno na refeição totêmica. Entretanto, em conseqüência da pressão exercida sobre cada participante pelo clã fraterno como um todo, esse desejo não pôde ser realizado. De futuro, ninguém poderia nem tentaria atingir o poder supremo do pai, ainda que isso fosse o objetivo pelo qual todos tinham-se empenhado. Assim, após um longo lapso de tempo, o azedume contra o pai, que os havia impulsionado à ação, tornou-se menor e a saudade dele aumentou, tornando-se possível surgir um ideal que corporificava o poder ilimitado do pai primevo contra quem haviam lutado, assim como a disposição de submeter-se a ele. Em conseqüência de mudanças culturais decisivas, a igualdade democrática original que havia predominado entre os membros do clã tornou-se insustentável e desenvolveu-se ao mesmo tempo uma inclinação, baseada na veneração sentida por determinados seres humanos, a reviver o antigo ideal através da criação de deuses. A noção de um homem que se torna deus ou de um deus que morre nos impressiona hoje como chocantemente presunçosa, mas, mesmo na antiguidade clássica, nada havia de revoltante nela. A elevação do pai que fora outrora assassinado à condição de um deus de quem o clã alegava descender constituía uma tentativa de expiação muito mais séria do que fora o antigo pacto com o totem.

Não posso sugerir em que ponto deste processo de evolução é possível encontrar lugar para as grandes deusas-mães, que podem talvez em geral ter precedido os deuses-pais. Parece certo, contudo, que a mudança na atitude para com o pai não se restringiu à esfera da religião, mas se estendeu de maneira harmônica àquele outro lado da vida humana que fora afetado pela eliminação do pai — à organização social. Com a introdução das divindades paternas, uma sociedade sem pai gradualmente transformou-se numa sociedade organizada em base patriarcal. A família constituiu uma restauração da antiga horda primeva e devolveu aos pais uma grande parte de seus antigos direitos. Mais uma vez apareceram pais, mas as conquistas sociais do clã fraterno não foram abandonadas; e a distância existente entre os novos pais de uma família e o irrefreado pai primevo da horda era suficientemente grande para garantir a continuidade do anseio religioso, a persistência de uma saudade não apaziguada do pai.

Vemos então que, na cena do sacrifício perante o deus do clã, pai é, na realidade duas vezes — como o deus e como a vítima animal totêmica. Entretanto, em nossas tentativas de compreensão dessa situação, devemos ter cuidado com as interpretações que procuram traduzi-la de maneira bidimensional, como se fosse uma alegoria, e para que, assim procedendo, não nos esquecemos de sua estratificação histórica. A dupla presença do pai corresponde aos dois significados cronologicamente sucessivos da cena. A atitude ambivalente para com o pai encontrou nela uma expressão plástica e assim também a vitória das emoções afetuosas do filho sobre as hostis. A cena da sujeição do pai, de sua maior derrota, tornou-se o estofo da representação de seu triunfo supremo. A importância que em toda parte, sem exceção, é atribuída ao sacrifício reside no fato de ele oferecer satisfações ao pai pelo ultraje que lhe foi infligido no mesmo ato em que aquele feito é comemorado.

À medida que o tempo foi passando, o animal perdeu seu caráter sagrado e o sacrifício, sua vinculação com o festim totêmico; tornou-se uma simples oferenda à divindade, um ato de renúncia em favor do deus. O próprio Deus foi sendo exaltado tão acima da humanidade que as pessoas só podiam aproximar-se dele através de um intermediário — o sacerdote. Ao mesmo tempo, os reis divinos fizeram seu aparecimento na estrutura social e introduziram o sistema patriarcal no Estado. Devemos reconhecer que a vingança tomada pelo pai deposto e restaurado foi rude: o domínio da autoridade chegou ao seu clímax. Os filhos subjugados utilizaram-se da nova situação para aliviar-se ainda mais de seu sentimento de culpa. Não eram mais, de maneira alguma, responsáveis pelo sacrifício, tal como agora se fazia. Era o próprio Deus que o exigia e regulamentava. Esta é a fase em que encontramos mitos apresentando o próprio deus matando o animal que lhe é consagrado e que, na realidade, é ele próprio. Temos aqui a negação mais extrema do grande crime que constituiu o começo da sociedade e do sentimento de culpa. Mas há, nesta última representação do sacrifício, um significado que é inequívoco. Ele expressa a satisfação pelo primitivo representante paterno ter sido abandonado em favor do conceito superior de Deus. Neste ponto, a interpretação psicanalítica da cena coincide aproximadamente com a tradução alegórica e superficial dela, que representa o deus a vencer o lado animal de sua própria natureza.

 

Não obstante, seria um equívoco supor que os impulsos hostis inerentes ao complexo-pai foram completamente silenciados durante esse período de autoridade paterna revivida. Pelo contrário, as primeiras fases da dominância dos dois novos representantes paternos [—] deuses e reis [—] apresentam os mais vigorosos sinais da ambivalência que continua sendo uma das características da religião.

Em sua grande obra, The Golden Bough, Frazer [1911a, 2, Cap. XVIII] apresenta o ponto de vista de que os primeiros reis das tribos latinas foram estrangeiros que desempenhavam o papel de um deus e eram solenemente executados num determinado festival. O sacrifício anual (ou, como variante, o auto-sacrifício) de um deus parece ter sido um elemento essencial das religiões semíticas. Os cerimonias de sacrifício humano, realizados nas mais diferentes partes doglobo habitado, deixam pouca dúvida de que as vítimas encontram seu fim como representantes da divindade e esses ritos sacrificatórios podem ser remontados a épocas antigas, com uma efígie ou boneco inanimado tomando o lugar do ser humano vivo. O sacrifício teantrópico do deus, no qual, infelizmente, me é impossível aqui deter-me de modo tão completo quanto no sacrifício animal, lança uma luz retrospectiva sabre o significado das formas mais antigas de sacrifício. [Smith, 1894, 410 e seg.] Ele reconhece, com uma franqueza que dificilmente pode ser excedida, o fato de que o objeto do ato de sacrifício sempre foi o mesmo, a saber, aquilo que é hoje adorado como Deus, ou seja, o pai. O problema da relação entre o sacrifício animal e o sacrifício humano admite assim uma solução simples. O sacrifício animal original já constituía um substituto de um sacrifício humano [—] a morte cerimonial do pai; assim sendo, quando o representante paterno mais uma vez reassumiu sua figura humana, o sacrifício animal também podia ser retransformado num sacrifício humano.

A lembrança do primeiro grande ato de sacrifício mostrava-se assim indestrutível, não obstante todos os esforços para esquecê-lo; e, no próprio ponto em que os homens procuravam colocar-se a maior distância dos motivos que os levaram a ele, sua reprodução indeformada surgiu na forma do sacrifício do deus. Não é necessário estender-se aqui sobre os desenvolvimentos do pensamento religioso que, sob a forma de racionalizações, tornaram possível esta recorrência. Robertson Smith, que nada sabia de nossa interpretação que atribui a origem do sacrifício a esse grande acontecimento da pré-história humana, declara que as cerimônias dos festivais em que os antigos semitas celebravam a morte de uma divindade ‘eram correntemente interpretadas como a comemoração de uma tragédia mítica’ [Ibid., 413.]. ‘O luto’, declara, ‘não é uma expressão espontânea de pesar pela tragédia divina, mas obrigatória e forçada pelo temor da ira sobrenatural. E um dos principais objetivos dos enlutados é rejeitar a responsabilidade pela morte do deus [—] ponto que já foi examinado em conexão com os sacrifícios teantrópicos, tais como a “morte do boi em Atenas”.’ (Ibid., 412.) Parece mais provável que essas ‘interpretações correntes’ fossem corretas e que os sentimentos dos celebrantes fossem integralmente explicados pela situação subjacente.

Vamos presumir ser um fato, então, que no decurso do desenvolvimento posterior das religiões, os dois fatores propulsores, o sentimento de culpa do filho e sua rebeldia, nunca se tenham extinguido. Todas as tentativas feitas para solucionar os problemas religiosos, todos os tipos de reconciliação efetuados entre essas duas forças mentais opostas mais cedo ou mais tarde ruíam sob a influência combinada, sem dúvida, dos fatos históricos, das mudanças culturais e das modificações psíquicas internas.

Os esforços do filho para colocar-se no lugar do deus-pai tornaram-se ainda mais óbvios. A introdução da agricultura aumentou sua família patriarcal. Ele aventurou-se a novas demonstrações de sua libido incestuosa, que encontraram satisfação simbólica no cultivo da Terra-Mãe. Surgiram figuras divinas como Átis, Adônis e Tamuz, espíritos da vegetação e, ao mesmo tempo, divindades cheias de juventude, a desfrutar dos favores das deusas-mães e a cometer incesto com a mãe, em desafio ao pai. Mas o sentimento de culpa, que não fora aliviado por essas criações, encontrou expressão em mitos que conferiam apenas vidas breves a esses favoritos juvenis das deusas-mães e decretavam sua punição pela emasculação ou pela ira do pai manifestada sob a forma de um animal. Adônis foi morto por um javali, o animal sagrado de Afrodite; Átis, amado de Cibele, pereceu por castração. O luto por esses deuses e o júbilo por sua ressurreição foram transferidos para o ritual de outra divindade-filho que estava destinada a alcançar um sucesso permanente.

Quando o cristianismo pela primeira vez penetrou no mundo antigo, defrontou-se com a competição da religião de Mitras e, durante algum tempo, houve dúvida em relação a qual das duas divindades alcançaria a vitória. Não obstante o halo de luz que rodeia a sua forma, o jovem deus persa continua a ser obscuro para nós. Podemos talvez deduzir das esculturas de Mitras matando um touro que ele representava um filho sozinho no sacrifício do pai, redimindo assim os irmãos do ônus de cumplicidade no ato. Havia um método alternativo de mitigar a culpa e ele foi adotado pela primeira vez por Cristo. Sacrificou a própria vida e assim redimiu do pecado original o conjunto de irmãos. A doutrina do pecado original era de origem órfica. Constituía parte dos mistérios e deles propagou-se para as escolas de filosofia da antiga Grécia. (Reinach, 1905-12, 2, 75 e segs.) A humanidade, dizia-se, descendia dos Titãs, que haviam matado o jovem Dioniso-Zagreus e o despedaçado. A carga desse crime pesava sobre eles. Um fragmento de Anaximandro conta como a unidade do mundo foi rompida por um pecado primevo e que tudo dele surgido devia sofrer o castigo. A malta tumultuosa, a matança e o despedaçamento pelos Titãs fazem-nos recordar com bastante clareza o sacrifício totêmico descrito por São Nilo [Ibid., 2, 93] — bem como, a propósito, também muitos outros mitos antigos, inclusive, por exemplo, o da morte do próprio Orfeu. Não obstante, existe uma diferença perturbadora no fato de o assassinato ter sido cometido contra um deus jovem.

Não pode haver dúvida de que no mito cristão o pecado original foi um pecado cometido contra o Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a humanidade do peso do pecado original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a concluir que o pecado foi um homicídio. A lei de talião, que se acha tão profundamente enraizada nos sentimentos humanos, estabelece que um homicídio só pode ser expiado pelo sacrifício de outra vida: o auto-sacrifício aponta para a culpa sanguínea. E se este sacrifício de uma vida ocasionou uma expiação para com o Deus-Pai, o crime a ser expiado só pode ter sido o homicídio do pai.

Na doutrina cristã, assim, os homens estavam reconhecendo da maneira mais indisfarçada o ato primevo culpado, uma vez que encontraram a mais plena expiação para ele no sacrifício desse filho único. A expiação para o pai foi ainda mais completa visto que o sacrifício se fez acompanhar de uma renúncia total às mulheres, por causa de quem a rebelião contra aquele fora iniciada. Mas, neste ponto, a inexorável lei psicológica da ambivalência apareceu. O próprio ato pelo qual o filho oferecia a maior expiação possível ao pai conduzia-o, ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o pai. Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai. Uma religião filial deslocava a religião paterna. Como sinal dessa substituição, a antiga refeição totêmica era revivida sob a forma da comunhão, em que a associação de irmãos consumia a carne e o sangue do filho — não mais do pai — obtinha santidade por esse e identificava-se com ele. Assim podemos acompanhar, atráves das idades, a identidade da refeição totêmica com o sacrifício animal, com o sacrifício humano teantrópico e com a eucaristia cristã, podendo identificar em todos esses rituais o efeito do crime pelo qual os homens se encontravam tão profundamente abatidos, mas do qual, não obstante, devem sentir-se tão orgulhosos. A comunhão cristã, no entanto, constitui essencialmente uma nova eliminação do pai, uma repetição do ato culposo. Podemos perceber a inteira justiça da declaração de Frazer de que ‘a comunhão cristã absorveu um sacramento que é sem dúvida muito mais antigo que o cristianismo’.

 

(7)

 

Um acontecimento como a eliminação do pai primevo pelo grupo de filhos deve inevitavelmente ter deixado traços inerradicáveis na história da humanidade e, quanto menos ele próprio tenha sido relembrado, mais numerosos devem ter sido os substitutos a que deu origem. Resistirei à tentação de apontar esses traços na mitologia, onde não são difíceis de encontrar, e voltar-me-ei noutra direção, aceitando a sugestão feita por Salomon Reinach num ensaio muito instrutivo sobre a morte de Orfeu.

Na história da arte grega deparamo-nos com uma situação que apresenta notáveis semelhanças com a cena da refeição totêmica, tal como identificada por Robertson Smith, bem como com diferenças não menos profundas dela. Tenho em mente a situação da mais antiga tragédia grega. Um conjunto de indivíduos, com nomes e vestimentas iguais, cercavam uma figura isolada, todos eles dependendo de suas palavras e atos: eram o Coro e o personificador do Herói. Este era originalmente o único ator. Posteriormente, um segundo e terceiro atores foram incluídos, para atuar como contrapartes do Herói, representar aspectos característicos dele; mas o caráter do próprio Herói e sua relação com o Coro permaneceram inalterados. O Herói da tragédia deve sofrer; até hoje isso continua sendo a essência da tragédia. Tem de conduzir o fardo daquilo que era conhecido como ‘culpa trágica’; o fundamento dessa culpa é fácil de descobrir, porque, à luz de nossa vida cotidiana, muitas vezes não há culpa alguma. Via de regra, reside na rebelião contra alguma autoridade divina ou humana e o Coro acompanhava o Herói com sentimentos de comiseração, procurava retê-lo, adverti-lo e moderá-lo, pranteando-o quando encontrara o que se sentia ser a punição merecida por seu ousado empreendimento.

Mas por que tinha de sofrer o Herói da tragédia? E qual era o significado de sua ‘culpa trágica’? Abreviarei a discussão e darei uma resposta rápida. Tinha de sofrer porque era o pai primevo, o Herói da grande tragédia primitiva que estava sendo reencenada com uma distorção tendenciosa, e a culpa trágica era a que tinha sobre si próprio, a fim de aliviar da sua o Coro. A cena no palco provinha da cena histórica através de um processo de deformação sistemática — um produto de refinada hipocrisia, poder-se-ia mesmo dizer. Na realidade remota, haviam sido verdadeiramente os membros do Coro que tinham causado o sofrimento do Herói; agora, entretanto, desmanchavam-se em comiseração e lamentações e era o próprio Herói o responsável por seus próprios sofrimentos. O crime que fora jogado sobre seus ombros, a presunção e a rebeldia contra uma grande autoridade era precisamente o crime pelo qual os membros do Coro, o conjunto de irmãos, eram responsáveis. E assim o Herói trágico tornou-se, ainda que talvez contra a sua vontade, o redentor do Coro.

Na tragédia grega, o tema especial da representação eram os sofrimentos do bode divino, Dionísio, e a lamentação dos bodes seus seguidores, que se identificavam com ele. Assim, sendo fácil compreender como o drama, que tinha se extinguido, voltou a brilhar com nova vida na Idade Média, em torno da Paixão de Cristo.

Ao concluir, então, esta investigação excepcionalmente condensada, gostaria de insistir em que o resultado dela mostra que os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo. Isso entra em completo acordo com a descoberta psicanalítica de que o mesmo complexo constitui o núcleo de todas as neuroses, pelo menos até onde vai nosso conhecimento atual. Parece-me ser uma descoberta muito supreendente que também os problemas da psicologia social se mostrem solúveis com base num único ponto concreto: — a relação do homem com o pai. É mesmo possível que ainda outro problema psicológico se encaixe nesta mesma conexão. Muitas vezes tive ocasião de assinalar que a ambivalência emocional, no sentido próprio da expressão — ou seja, a existência simultânea de amor e ódio para os mesmos objetos — jaz na raiz de muitas instituições culturais importantes. Não sabemos nada da origem dessa ambivalência. Uma das pressuposições possíveis é que ela seja um fenômeno fundamental de nossa vida emocional. Mas parece-me bastante válido considerar outra possibilidade, ou seja, que originalmente ela não fazia parte de nossa vida emocional, mas foi adquirida pela raça humana em conexão com o complexo-pai, precisamente onde o exame psicanalítico de indivíduos modernos ainda a encontra revelada em toda a sua força.

Antes de concluir minhas observações, porém, não devo deixar de salientar que, embora meus argumentos tenham conduzido a um alto grau de convergência para um único e abrangente nexo de idéias, esse fato não deve fazer-nos deixar de ver as incertezas de minhas premissas ou as dificuldades envolvidas em minhas conclusões. Mencionarei apenas duas das últimas, que podem também ter chamado a atenção de um certo número de leitores.

Ninguém pode ter deixado de observar, em primeiro lugar, que tomei como base de toda minha posição a existência de uma mente coletiva, em que ocorrem processos mentais exatamente como acontece na mente de um indivíduo. Em particular, supus que o sentimento de culpa por uma determinada ação persistiu por muitos milhares de anos e tem permanecido operativo em gerações que não poderiam ter tido conhecimento dela. Supus que um processo emocional, tal como se poderia ter desenvolvido em gerações de filhos que foram maltratados pelos pais, estendeu-se a gerações novas livres de tal tratamento, pela própria razão de o pai ter sido eliminado. Devo admitir que estas são dificuldades graves e qualquer explicação que pudesse evitar pressuposições dessa espécie seria preferível.

Uma reflexão mais demorada, contudo, demonstrará que não estou só na responsabilidade por esse audacioso procedimento. Sem a pressuposição de uma mente coletiva, que torna possível negligenciar as interrupções dos atos mentais causadas pela extinção do indivíduo, a psicologia social em geral não poderia existir. A menos que os processos psíquicos sejam continuados de uma geração para outra, ou seja, se cada geração fosse obrigada a adquirir novamente sua atitude para com a vida, não existiria progresso neste campo e quase nenhuma evolução. Isso dá origem a duas outras questões: quanto podemos atribuir à continuidade psíquica na seqüência das gerações? Quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte? Não vou fingir acreditar que estes problemas estão suficientemente explicados ou que a comunicação direta e a tradição — as primeiras coisas que nos ocorrem — são suficientes para explicar o processo. A psicologia social em geral mostra muito pouco interesse pela maneira através da qual se estabelece a continuidade exigida pela vida mental de sucessivas gerações. Uma parte do problema parece ser respondida pela herança de disposições psíquicas que, no entanto, necessitam receber alguma espécie de ímpeto na vida do indivíduo antes de poderem ser despertadas para o funcionamento real. Pode ser este o significado das palavras do poeta:

 

                         Was du ererbt von deinen Vätern hast,

                             Erwib es, um es zu besitzen.

 

O problema pareceria ainda mais difícil se tivéssemos de admitir que os impulsos mentais podem ser tão completamente reprimidos que deles não reste nenhum vestígio. Mas não é este o caso. Mesmo a mais implacável repressão tem de deixar lugar para impulsos substitutos deformados e para as reações que deles resultem. Se assim for, portanto, podemos presumir com segurança que nenhuma geração pode ocultar, à geração que a sucede, nada de seus processos mentais mais importantes, pois a psicanálise nos mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um apparatus que os capacita a interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformações que os outros impuseram à expressão de seus próprios sentimentos. Uma tal compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimônias e dogmas que restaram da relação original com o pai pode ter possibilitado às gerações posteriores receberem sua herança de emoção.

Uma outra dificuldade poderia, na realidade, surgir dos círculos psicanalíticos. Os preceitos e restrições morais mais antigos da sociedade primitiva foram por nós explicados como reações a um ato que deu àqueles que o cometeram o conceito de ‘crime’. Sentiram remorso por ele e decidiram que não se deveria repetir e que sua execução não traria vantagens. Este sentimento de culpa criativo ainda persiste entre nós. Encontramo-lo operando de uma maneira não social nos neuróticos e produzindo novos preceitos morais e restrições persistentes, como expiação por crimes que foram cometidos e precaução contra a prática de novos. Se, contudo, pesquisarmos entre esses neuróticos para descobrir quais foram os atos que provocaram tais reações, ficaremos desapontados. Não encontraremos atos, mas apenas impulsos e emoções, pretendendo fins malignos, mas impedidos de realizar-se. O que jaz por trás do sentimento de culpa dos neuróticos são sempre realidades psíquicas, nunca realidades concretas. O que caracteriza os neuróticos é preferirem a realidade psíquica à concreta, reagindo tão seriamente a pensamentos como as pessoas normais às realidades.

Não poderá o mesmo ser verdade quanto aos homens primitivos? Temos justificativas para acreditar que, como um dos fenômenos de sua organização narcisista, eles supervalorizam seus atos psíquicos a um grau extraordinário. Conseqüentemente, o simples impulso hostil contra o pai, a mera existência de uma fantasia — plena de desejo de matá-lo e devorá-lo, teriam sido suficientes para produzir a reação moral que criou o totemismo e o tabu. Desta maneira, evitaríamos a necessidade de atribuir a origem de nosso legado cultural, de que com justiça nos orgulhamos, a um crime odioso, revoltante para todos os nossos sentimentos. Nenhum dano seria assim feito à cadeia causal que se estende desde os começos aos dias atuais, pois a realidade psíquica seria suficientemente forte para suportar o peso dessas conseqüências. A isto se poderá objetar que realmente efetuou-se uma alteração na forma da sociedade, de uma horda patriarcal para um clã fraterno. Trata-se de um argumento poderoso, mas não conclusivo. A alteração poderia ter sido efetuada de uma maneira menos violenta e, não obstante, capaz de determinar o aparecimento da reação moral. Enquanto a pressão exercida pelo pai primevo podia ser sentida, os sentimentos hostis para com ele eram justificados e o remorso por sua causa teria de esperar por seu dia. E se se argumentar ainda que tudo que tem sua origem na relação ambivalente com o pai — o tabu e a ordenação sacrificatória — se caracteriza pela mais profunda seriedade e a mais completa realidade, essa nova objeção tem tão pouco peso quanto a outra, porque os cerimoniais e as inibições dos neuróticos obsessivos apresentam essas mesmas características e, não obstante, têm sua origem apenas na realidade psíquica — provêm de intenções e não da execução delas. Temos de evitar transplantar para o mundo dos homens primitivos e dos neuróticos, cuja riqueza reside apenas no interior deles próprios, o desprezo de nosso mundo corriqueiro — com sua riqueza de valores materiais — pelo que é simplesmente pensado ou desejado.

Aqui nos defrontamos com uma decisão que, na verdade, não é fácil. Em primeiro lugar, porém, devo confessar que a distinção, que pode parecer fundamental para outras pessoas, a nosso ver não afeta o âmago da questão. Se desejos e impulsos possuem o pleno valor de fatos para os homens primitivos, compete a nós conceder à sua atitude uma atenção compreensiva, em vez de corrigi-la de acordo com nossos próprios padrões. Examinemos, então, mais de perto o caso da neurose — a comparação com a qual nos conduziu à nossa presente incerteza. Não é exato dizer que os neuróticos obsessivos, curvados sob o peso de uma moralidade excessiva, estão-se defendendo apenas da realidade psíquica e se punindo através de impulsos que foram simplesmente sentidos. A realidade histórica também tem a sua parte na questão. Na infância, eles tiveram esses impulsos malignos de modo puro e simples e transformaram-nos em atos até onde a impotência da infância permitia. Cada um desses indivíduos excessivamente virtuosos passou por um período de maldade na infância — uma fase de perversão que foi precursora e pré-condição do período posterior de moralidade excessiva. A analogia entre os homens primitivos e os neuróticos será estabelecida assim de modo muito mais completo, se supusermos que também no primeiro caso a realidade psíquica — a respeito da qual não temos dúvida quanto à forma que tomou — coincidiu no princípio com a realidade concreta, ou seja, que os homens primitivos realmente fizeram aquilo que todas as provas mostram que pretendiam fazer.

Tampouco devemos deixar-nos influenciar demais em nosso julgamento dos homens primitivos pela analogia com os neuróticos. Há distinções, também, que devem ser levadas em conta. Sem dúvida alguma, é verdade que o contraste nítido que nós traçamos entre o pensar e o fazer acha-se ausente em ambos. Mas os neuróticos são, acima de tudo, inibidos em suas ações: neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato. Os homens primitivos, por outro lado, são desinibidos: o pensamento transforma-se diretamente em ação. Neles, é antes o ato que constitui um substituto do pensamento, sendo por isso que, sem pretender qualquer finalidade de julgamento, penso que no caso que se nos apresenta pode-se presumir com segurança que ‘no princípio foi Ato’.

 

APÊNDICE: RELAÇÃO DAS OBRAS DE FREUD QUE TRATAM DE ANTROPOLOGIA SOCIAL, MITOLOGIA E HISTÓRIA DAS RELIGIÕES

 

1907b.           ‘Atos Obsessivos e Práticas Religiosas.’

1908d.           ‘Ética Sexual “Civilizada” e as Modernas Doenças Nervosas.’

1910e.           ‘O Sentido Antitético de Palavras Primevas.’

1910f. ‘Carta ao Dr. Friedrich S. Krauss.’

1911d.           ‘A Significação de uma Seqüência de Vogais.’

1911f. ‘Grande é Diana dos Efesos.’

1912a.           ‘Postcript’ ao Caso Schreber.

1912-13.        Totem e Tabu.

1913d ‘A Ocorrência nos Sonhos de Material Proveniente de Contos

            de Fadas.’

1913f. ‘O Tema dos Três Escrínios.’

1913j. ‘As Pretensões da Psicanálise no Tocante ao Interesse Científico’,

            Parte II, Seções E, F e G.

1913k.            ‘Prefácio do livro Scatologic Rites of All Nations, de Bourke.’

1915b.           ‘Pensamentos para os Tempos de Guerra e de Morte.’

1916b.           ‘Um Paralelo Mitológico a uma Obsessão Visual.’

1918a.           ‘O Tabu da Virgindade.’

1919g.           ‘Prefácio do livro Ritual: Psycho-Analytic Studies, de Reik.’

1919h.           ‘O “Misterioso”.’

1921c.            Group Psychology and the Analysis of the Ego (Psicologia de

            Grupo e a Análise do Ego).

1923d.           ‘Uma Neurose Demonológica do Século XVII’, Seção III.

1927c.            The Future of an Illusion (O Futuro de uma Ilusão).

1930a.           Civilization and its Discontents (O Mal-Estar na Civilização).

1932a.           ‘A Aquisição e o Controle do Fogo.’

1933a.           New Introductory Lectures on Psycho-Analysis (Novas Lições

            Introdutórias à Psicanálise), conferência XXXV.

1933b.           Why War? (Por que a Guerra?)

1938a.           ‘Uma Nota sobre o Anti-Semitismo.’

1939a.           Moses and Monotheism (Moisés e o Monoteísmo)

1940c.            [1922]. ‘A Cabeça da Medusa.’

 

O INTERESSE CIENTÍFICO DA PSICANÁLISE (1913)

 

PARTE I - O INTERESSE PSICOLÓGICO DA PSICANÁLISE

 

A psicanálise é um procedimento médico que visa à cura de certas formas de doenças nervosas (as neuroses) através de uma técnica psicológica. Num pequeno volume publicado em 1910, descrevi a evolução da psicanálise a partir do procedimento catártico de Josef Breuer e de sua relação com as teorias de Charcot e Pierre Janet.

Podemos citar como exemplos de distúrbios que são acessíveis ao tratamento psicanalítico as convulsões histéricas e as paralisias, bem como os diversos sintomas da neurose obsessiva (idéias e ações obsessivas). Todas elas são condições que estão ocasionalmente sujeitas a recuperação espontânea e dependem da influência pessoal do médico, de uma maneira fortuita que ainda não foi explicada. A psicanálise não tem efeito terapêutico sobre as formas mais graves da perturbação mental propriamente dita. Mas possibilitou — pela primeira vez na história da medicina — uma certa compreensão (insight) da origem e do mecanismo das neuroses e das psicoses.

Esta importância da psicanálise para a medicina, entretanto, não justificaria que a trouxesse à apreciação de um círculo de savants interessados na síntese das ciências e isso poderia parecer particularmente prematuro na medida em que grande número de psiquiatras e neurologistas se opõem ao novo método terapêutico e rejeitam tanto os seus postulados quanto as suas descobertas. Se, não obstante, considero a experiência legítima, é porque a psicanálise pode também pretender o interesse de outras pessoas além dos psiquiatras, desde que ela toca em várias outras esferas do conhecimento e revela inesperadas relações entre estas e a patologia da vida mental.

Conseqüentemente, neste artigo deixarei de lado o interesse médico da psicanálise e ilustrarei com uma série de exemplos o que acabei de afirmar sobre a jovem ciência.

Há muitos fenômenos envolvendo as relações dos movimentos faciais — e outros movimentos expressivos — com a fala, bem como com muitos processos intelectuais (tanto em pessoas normais, como nas doentes), que até o momento escaparam à atenção da psicologia por terem sido considerados simples resultados de distúrbios orgânicos ou de uma falha no funcionamento do aparelho mental. Refiro-me às ‘parapraxias’ (lapsos de linguagem ou da escrita, esquecimentos etc.), às ações casuais e aos sonhos das pessoas normais assim como às crises convulsivas, delírios, visões e idéias ou atos obsessivos dos pacientes neuróticos. Esses fenômenos, quando não foram inteiramente negligenciados (como no caso das parapraxias), foram relegados à patologia e foi feita uma tentativa de encontrar-lhes explicações ‘fisiológicas’, embora estas fossem invariavelmente insatisfatórias. A psicanálise, pelo contrário, foi capaz de demonstrar que todos esses fenômenos podem ser explicados por meio de hipóteses de natureza puramente psicológica e encaixados na cadeia de fatos psíquicos que já conhecemos. Assim, se por um lado a psicanálise restringiu a área submetida ao ponto de vista fisiológico, por outro trouxe uma grande parte da patologia para a esfera da psicologia. Nesse caso, os fenômenos normais oferecem as provas mais convincentes. A psicanálise não pode se acusada de ter aplicado a casos normais descobertas a que chegou partindo de material patológico. As provas, nestes como naqueles, foram atingidas independentemente e demonstram que os processos normais e os descritos como patológicos seguem as mesmas regras.

Examinarei agora mais pormenorizadamente dois dos fenômenos normais (isto é, fenômenos que podem ser observados em pessoas normais) em que estamos aqui interessados — a saber, as parapraxias e os sonhos.

Entendo por parapraxias a ocorrência em pessoas sadias e normais de fatos como esquecimento de palavras e nomes que nos são normalmente familiares; esquecimento do que pretendíamos fazer; incursão em lapsos de linguagem e escrita; erros de leitura, colocação de coisas em lugares errados e incapacidade de encontrá-las; perda de objetos; enganos em assuntos que conhecemos muito bem e certos gestos e movimentos habituais. Todos esses fatos têm recebido pouca atenção na psicologia; foram classificados como exemplos de ‘distração’, sendo atribuídos à fadiga, à falta de atenção ou aos efeitos colaterais de certas doenças leves. A indagação analítica, contudo, demonstra com certeza suficiente para satisfazer a todos os requisitos, que estes últimos fatores operam simplesmente como facilitadores e podem achar-se ausentes. As parapraxias são fenômenos psíquicos plenamente desenvolvidos e sempre possuem um significado e uma intenção. Servem a propósitos definidos que, devido à situação psicológica predominante, não podem ser expressos de nenhuma outra maneira. Essas situações, via de regra, envolvem um conflito psíquico que impede a intenção subjacente de encontrar expressão direta e a desvia ao longo de caminhos indiretos. A pessoa quecomete uma parapraxia pode notá-la ou menosprezá-la; a intenção reprimida subjacente à parapraxia pode-lhe ser até familiar, mas geralmente não se dá conta, sem o auxílio da análise, de que essa intenção é a responsável pela parapraxia em questão. As análises das parapraxias são geralmente muito fáceis e rápidas. Se se chama a atenção da pessoa para um engano, o pensamento que lhe ocorre em seguida lhe fornecerá sua explicação.

As parapraxias constituem o material mais conveniente para quem desejar convencer-se da fidedignidade das explicações psicanalíticas. Numa pequena obra, publicada pela primeira vez sob a forma de livro em 1904, apresentei um grande número de exemplos desse tipo e desde então pude acrescentar à minha coleção muitas contribuições de outros observadores.

O motivo mais comum para reprimir uma intenção, que daí em diante tem de contentar-se em encontrar expressão numa parapraxia, resulta ser a necessidade de evitar o desprazer. Assim, esquecemos obstinadamente um nome próprio se nutrimos um rancor secreto contra o seu possuidor; esquecemos de levar adiante uma intenção se, na realidade, formulamo-la contra a vontade — apenas pressionados por alguma convenção, para dar um exemplo; perdemos um objeto se ele faz lembrar alguém com quem tivemos uma briga — a pessoa que nos deu o objeto, por exemplo; tomamos o trem errado se estivermos fazendo uma viagem contra a vontade e preferíssemos estar noutro lugar. Esta necessidade de evitar o desprazer é percebida mais claramente no que se refere ao esquecimento de impressões e experiências — fato que já fora observado por muitos escritores antes que a psicanálise existisse. A memória revela sua parcialidade mostrando-se pronta a impedir a reprodução de impressões comprometidas com uma emoção angustiante, se bem que este propósito não possa ser alcançado em todos os casos.

Noutros casos, a analise de uma parapraxia é menos simples e exige explicações menos óbvias, devido à entrada em ação de um processo que descrevemos como ‘deslocamento’. Podemos, por exemplo, esquecer o nome de uma pessoa contra quem não temos nenhuma objeção; a análise mostrará, contudo, que o nome despertou a lembrança de outra pessoa, que tem o mesmo nome ou cujo som é semelhante, com a qual temos boas razões para antipatizar. Essa conexão levou ao esquecimento do nome da pessoa inocente; a intenção de esquecer foi, por assim dizer, deslocada ao longo de certa linha de associação.

A intenção de evitar o desprazer não é a única que pode encontrar seu escoadouro nas parapraxias. Em muitos casos a análise revela outros propósitos que foram reprimidos numa situação específica e que só se podem fazer sentir, por assim dizer, como perturbações secundárias. Assim, um lapso de linguagem freqüentemente servirá para trair as opiniões que a pessoa que fala deseja ocultar de seu interlocutor. Os lapsos de linguagem foram entendidos nesse sentido por vários grandes escritores e com esse intuito empregados em suas obras. A perda de objetos preciosos com freqüência mostra ser um ato de sacrifício destinado a impedir algum mal esperado; muitas outras superstições também sobrevivem sob a forma de parapraxias em pessoas instruídas. A colocação de objetos em lugares errados via de regra significa a intenção de livrar-se deles; os estragos que uma pessoa causa aos seus próprios objetos (ostensivamente por acidentes) podem ter o sentido de tornar necessário a aquisição de algo melhor — e assim por diante.

Não obstante, a despeito da aparente trivialidade destes fenômenos, a explicação psicanalítica das parapraxias implica algumas ligeiras modificações em nossa visão do mundo. Descobrimos que mesmo pessoas normais são movidas por motivos contraditórios com muito mais freqüência do que era de se esperar. O número de ocorrências que podem ser descritas como ‘acidentais’ é consideravelmente pequeno. É quase uma consolação poder excluir a perda de objetos dos acontecimentos fortuitos da vida; nossos enganos com freqüência resultam ser um disfarce para nossas intenções secretas. Mas — o que é mais importante muitos — acidentes sérios que de outro modo teríamos atribuído inteiramente ao acaso revelam, quando analisados, a participação da própria volição do sujeito, embora sem ser claramente admitida por ele. A distinção entre um acidente casual e autodestruição deliberada, que na prática muitas vezes é tão difícil de precisar, torna-se ainda mais dúbia quando examinada de um ponto de vista psicanalítico.

A explicação das parapraxias deve o seu valor teórico à facilidade com que podem ser solucionadas e à sua freqüência nas pessoas normais. Entretanto, o sucesso da psicanálise em explicá-las é ultrapassado de muito, em importância, por outra conquista realizada pela própria psicanálise relacionada com outro fenômeno da vida mental normal. Trata-se de interpretação de sonhos, que causou o primeiro conflito da psicanálise com a ciência oficial, o que passou a ser seu destino. A pesquisa médica explica os sonhos como sendo fenômenos puramente somáticos, sem sentido ou significação, e considera-os como a reação de um órgão mental, mergulhado em estado de sono, aos estímulos físicos que o mantêm parcialmente desperto. A psicanálise eleva a condição dos sonhos à de atos psíquicos possuidores de sentido e intenção e com um lugar na vida mental do indivíduo, apesar de sua estranheza, incoerência e absurdo. Segundo esse ponto de vista, os estímulos somáticos simplesmente desempenham o papel de material que é elaborado no decurso da construção do sonho. Não existe um meio termo entre essa duas opiniões sobre o sonhos. O argumento usado contra a hipótese fisiológica é a sua esterilidade, e o que pode ser argumentado em favor da hipótese psicanalítica é o fato de ter traduzido e dado um sentido a milhares de sonhos, usando esse sentido para iluminar os pormenores mais íntimos da mente humana.

Dediquei um volume publicado em 1900 ao importante tema da interpretação de sonhos e tive a satisfação de ver as teorias nele apresentadas serem confirmadas e ampliadas por contribuições de quase todos os estudiosos do campo da psicanálise. Há uma concordância geral no sentido de que a interpretação de sonhos é a pedra fundamental da obra psicanalítica e que suas descobertas constituem a mais importante contribuição da psicanálise à psicologia.

Não posso me deter aqui na técnica por meio da qual se chega a uma interpretação dos sonhos, nem tampouco apresentar as bases das conclusões a que a investigação psicanalítica conduziu. Tenho de restringir-me a enunciar alguns novos conceitos, comunicando minhas descobertas e ressaltando sua importância para a psicologia normal.

A psicanálise, portanto, demonstrou os fatos que se seguem. Todos os sonhos têm um significado. Sua estranheza é devida a distorções que foram feitas na expressão desse significado. Sua aparência absurda é deliberada e exprime zombaria, ridículo e contradição. Sua incoerência é uma questão de indiferença para com a interpretação. O sonho, tal como o recordamos depois de acordar, é descrito por nós através de seu ‘conteúdo manifesto’. No processo de interpretação deste, somos conduzidos aos ‘pensamentos oníricos latentes’, que jazem ocultos por trás do conteúdo manifesto, e são por este representados. Estes pensamentos oníricos latentes já não são estranhos, incoerentes ou absurdos, são constituintes completamente válidos de nosso pensamento quando despertos. Damos o nome de ‘elaboração onírica’ ao processo que transforma os pensamentos oníricos latentes no conteúdo manifesto do sonho; é essa elaboração a responsável pela deformação que torna os pensamentos oníricos irreconhecíveis no conteúdo manifesto do sonho.

A elaboração onírica é um processo psicológico que até hoje não encontrou similar na psicologia, reclamando o nosso interesse em dois sentidos principais. Em primeiro lugar, traz ao nosso conhecimento processos novos como a ‘condensação’ (de idéias) e o ‘deslocamento’ (da ênfase psíquica de uma idéia para outra), processos com os quais nunca, de forma nenhuma, nos deparamos em nossa vida desperta, a não ser como base daquilo que é conhecido como ‘erros de pensamento’. Em segundo lugar, nos permite detectar no funcionamento da mente um jogo de forças que estava escondido de nossa percepção consciente. Descobrimos que há uma ‘censura’, um órgão de verificação a funcionar em nós, que decide se uma idéia que surge na mente deve ter ou não permissão de chegar à consciência e que, até onde está em seu poder, exclui implacavelmente qualquer coisa que possa produzir ou reviver um desprazer. Aqui lembramos que na análise das parapraxias encontramos traços dessa mesma intenção de evitar desprazer na recordação de coisas, e de conflitos similares entre os impulsos mentais.

Um estudo da elaboração onírica nos força, de uma maneira irresistível, a uma visão da vida mental que parece decidir os mais controversos problemas da psicologia. A elaboração onírica nos compele a pressupor a existência de uma atividade psíquica inconsciente que é mais abrangente e mais importante do que a familiar atividade ligada à consciência. (Terei mais a dizer sobre este ponto quando vier a debater o interesse filosófico da psicanálise [ver em [1]].) Ela nos permite dissecar o aparelho psíquico num certo número de diferentes atividades ou sistemas, mostrando-nos que, no sistema de atividade mental inconsciente, operam-se processos de tipo inteiramente diferente dos percebidos na consciência.

A elaboração onírica tem apenas uma função — a saber, a de manter o sono. ‘Os sonhos são os guardiães do sono.’ Os próprios pensamentos oníricos podem servir aos fins das mais variadas funções mentais. A elaboração onírica realiza sua tarefa representando um desejo proveniente dos pensamentos oníricos como realizado de uma maneira alucinatória.

Pode-se afirmar com segurança que o estudo psicanalítico dos sonhos nos deu nossa primeira compreensão (insight) de uma ‘psicologia profunda’, cuja existência até então não fora suspeitada. Modificações fundamentais terão de ser introduzidas na psicologia normal, se esta quiser colocar-se em harmonia com as novas descobertas.

É inteiramente impossível esgotar o interesse psicológico da interpretação onírica dentro dos limites deste trabalho. Tenhamos em mente que o que fiz até agora foi apenas ressaltar que os sonhos têm um sentido e são assunto para estudo psicológico, e vamos prosseguir com nossas considerações acerca do novo território que foi anexado pela psicologia ao campo da patologia.

As novidades psicológicas deduzidas dos sonhos e das parapraxias devem ser aplicáveis como explicação de outros fenômenos, se quisermos acreditar no valor dessas novidades ou, na verdade, em sua própria existência. E descobrimos de fato que a psicanálise demonstrou que as hipóteses da atividade mental inconsciente da censura e repressão e da deformação e substituição, às quais chegamos a partir do estudo dos fenômenos normais, também nos permitem uma primeira compreensão de um certo número de fenômenos patológicos e, se poderia dizer, nos dão a chave de todos os enigmas da psicologia das neuroses. Assim, os sonhos devem ser encarados como os protótipos normais de todas as estruturas psicopatológicas. Quem compreender os sonhos pode também apreender o mecanismo psíquico das neuroses e psicoses.

Partindo dos sonhos, as investigações psicanalíticas nos permitiram uma psicologia das neuroses que está sendo construída, continuamente, peça por peça. Mas o que está sendo tratado aqui — o interesse psicológico da psicanálise — obriga-nos a penetrar mais profundamente em apenas dois aspectos deste vasto tema: a demonstração de que muitos fenômenos patológicos que até aqui se acreditou exigirem explicações fisiológicas são na realidade atos psíquicos, e a demonstração de que os processos que conduzem a conseqüências anormais podem se atribuídos a forças motivadoras de origem psíquica.

Ilustrarei a primeira dessas teses com alguns exemplos. Há muito tempo as crises histéricas foram reconhecidas como sinais de aumento de excitação emocional e equiparadas a irrupções de afeto. Charcot tentou reduzir a multiplicidade de suas modalidades de manifestação por meio de fórmulas descritivas; Pierre Janet identificou as idéias inconscientes em ação por trás de tais crises, enquanto que a psicanálise demonstrou que elas são representações miméticas de cenas (realmente vivenciadas ou apenas inventadas) com que a imaginação do paciente se ocupa, sem que se torne consciente delas. O sentido dessas pantomimas é ocultado dos espectadores por meio de condenações de deformações dos atos que elas representam. E isso se aplica igualmente àqueles atos que são descritos como sintomas ‘crônicos’ de pacientes histéricos. Todos são representações miméticas ou alucinatórias de fantasias que dominam inconscientemente a vida emocional do indivíduo e que têm o sentido de realizações de desejos secretos e reprimidos. O caráter atormentador desses sintomas se deve ao conflito interno a que a mente do paciente é levada, pela necessidade de combater esses desejos inconscientes.

Noutro distúrbio neurótico, a neurose obsessiva, os pacientes se tornam vítimas de cerimoniais aflitivos e aparentemente insensatos, que assumem a forma de uma repetição rítmica dos atos mais triviais (tais como lavar-se ou vestir-se) ou de executar injunções sem sentido ou obedecer a proibições misteriosas. Foi nada menos que um triunfo da pesquisa psicanalítica conseguir demonstrar que todos esses atos obsessivos, mesmo os mais insignificantes e triviais, têm um sentido e são reflexos, traduzidos em termos indiferenciados, dos conflitos da vida dos pacientes, da luta entre tentações e restrições morais — reflexos do próprio desejo proscrito e da punição e expiação em que esse desejo incorre. Noutra forma da mesma perturbação, a vítima sofre de idéias atormentadoras (obsessões) que a ela se impõem, sendo acompanhadas por emoções cujo caráter e intensidade são muitas vezes explicados apenas de maneira muito inadequada pelos termos das próprias idéias obsessivas. A investigação analítica demonstrou, nesse caso, que as emoções são plenamente justificadas, visto corresponderem a autocensuras que se baseiam em algo que é, pelo menos, psiquicamente real. Mas as idéias a que essas emoções estão ligadas não são as originais, tendo chegado à posição presente por um processo de deslocamento — substituindo algo que foi reprimido. Se esses deslocamentos puderem ser invertidos, estará aberto o caminho para a descoberta das idéias reprimidas, e se descobrirá que a relação entre a emoção e a idéia é perfeitamente apropriada.

Noutra perturbação neurótica, a demência precoce (parafrenia ou esquizofrenia), condição na realidade incurável, o paciente fica, nos casos mais graves, num estado evidente de completa apatia. Com freqüência as únicas ações que lhe restam são certos movimentos e gestos monotonamente repetidos e que têm o nome de ‘estereotipias’. Uma investigação analítica desse tipo de resíduos, feita por Jung, demonstrou constituírem os remanescentes de ações miméticas perfeitamente significativas, as quais, em certa época, expressaram os desejos dominantes do indivíduo. Os discursos mais loucos e as mais estranhas posturas e atitudes adotadas por esses pacientes tornam-se inteligíveis e podem ser encaixadas na cadeia de seus processos mentais, se forem abordados com base em hipóteses psicanalíticas.

Considerações similares aplicam-se aos delírios e às alucinações, bem como aos sistemas delirantes, apresentados por diversos pacientes psicóticos. Onde até então parecia prevalecer apenas o mais aberrante capricho a pesquisa psicanalítica introduziu regras, ordem e conexão, ou pelo menos nos permitiu suspeitar de sua presença nas investigações que ainda se acham incompletas. As formas mais heterogêneas de distúrbio mental se revelam como sendo resultado de processos basicamente idênticos e que podem ser compreendidos e descritos através de conceitos psicológicos. O que já foi descoberto sobre a formação dos sonhos funciona onde quer que seja — no conflito psíquico; na repressão de certos impulsos instintivos enviados de volta para o inconsciente por outras forças mentais, nas formações reativas estabelecidas pelas forças repressoras, e nos substitutos construídos pelos instintos reprimidos, mas não despojados de toda a sua energia. Os processos acessórios de condensação e de deslocamento, tão familiares a nós nos sonhos, podem também ser encontrados em toda parte. A multiplicidade de quadros clínicos observada pelos psiquiatras depende de duas outras coisas: da multiplicidade dos mecanismos psíquicos à disposição dos processos repressivos e da multiplicidade de disposições desenvolvimentais, que dão aos impulsos reprimidos oportunidade de irromperem através de estruturas substitutivas.

A psicanálise mostra à psicologia a solução de metade dos problemas da psiquiatria. Não obstante, seria um erro grave supor que a análise favorece ou pretende uma visão puramente psicológica das perturbações mentais. Não se pode menosprezar o fato de que a outra metade dos problemas da psiquiatria relaciona-se com a influência de fatores orgânicos (mecânicos, tóxicos ou infecciosos) sobre o mecanismo mental. Mesmo no caso da mais leve dessas perturbações, a neurose, não se pretende que sua origem seja puramente psicogênica, mas remonta-se sua etiologia à influência sobre a vida mental de um fator indiscutivelmente orgânico, ao qual me referirei posteriormente [ver em [1]].

O número de descobertas psicanalíticas pormenorizadas que não podem deixar de ser importantes para a psicologia geral é grande demais para que as enumere aqui. Farei referência apenas a dois outros pontos: a psicanálise não hesita em atribuir aos processos emocionais a primazia na vida mental, e revela nas pessoas normais uma inesperada quantidade de perturbações afetivas e de ofuscamento do intelecto numa freqüência que não é inferior à verificada em pessoas doentes.

 

PARTE II - O INTERESSE DA PSICANÁLISE PARA AS CIÊNCIAS NÃO-PSICOLÓGICAS

 

(A) O INTERESSE FILOLÓGICO DA PSICANÁLISE

 

Estarei sem dúvida infringindo o uso lingüístico comum ao postular um interesse na psicanálise por parte dos filólogos, isto é, dos peritos na fala, porque, no que se segue, a expressão ‘fala’ deve ser entendida não apenas como significando a expressão do pensamento por palavras, mas incluindo a linguagem dos gestos e todos os outros métodos, por exemplo a escrita, através dos quais a atividade mental pode ser expressa. Assim sendo, pode-se salientar que as interpretações feitas por psicanalistas s

ão, antes de tudo, traduções de um método estranho de expressão para outro que nos é familiar. Quando interpretamos um sonho estamos apenas traduzindo um determinado conteúdo de pensamento (os pensamentos oníricos latentes) da ‘linguagem de sonhos’ para a nossa fala de vigília. À medida que fazemos isso, aprendemos as peculiaridades dessa linguagem onírica e nos convencemos de quem ela faz parte de um sistema altamente arcaico de expressão. Assim, para dar um exemplo, não existe uma indicação especial para o negativo na linguagem dos sonhos. Os contrários podem se representar uns aos outros no conteúdo do sonho e serem representados pelo mesmo elemento. Ou, noutras palavras: na linguagem onírica, os conceitos são ainda ambivalentes e unem dentro de si significados contrários — como é o caso, de acordo com as hipóteses dos filólogos, das mais antigas raízes das línguas históricas. Outra característica notável de nossa linguagem onírica é seu emprego extremamente freqüente de símbolos, o que nos possibilita, até certo ponto, traduzir o conteúdo dos sonhos sem referência às associações de quem sonhou. Nossas pesquisas ainda não elucidaram suficientemente a natureza essencial desses símbolos. São em parte analogias e sucedâneos baseados em semelhanças óbvias; mas, em alguns deles, o tertium comparationis presumivelmente presente foge ao nosso entendimento consciente. É precisamente essa última classe de símbolos que deve provavelmente originar-se das primeiras fases de evolução lingüística e construção conceitual. Nos sonhos, são acima de tudo os órgãos e as atividades sexuais que são representados simbolicamente, em vez de sê-lo de modo direto. Um filólogo de Upsala, Hans Sperber, apenas recentemente (1912) tentou provar que as palavras que originalmente representavam atividades sexuais, sofreram, com base em analogias dessa espécie, uma modificação de grandes e extraordinárias conseqüências em seu significado.

Se pensarmos que os meios de representação nos sonhos são principalmente imagens visuais e não palavras, veremos que é ainda mais apropriado comparar os sonhos a um sistema de escrita do que a uma linguagem. Na realidade, a interpretação dos sonhos é totalmente análoga ao deciframento de uma antiga escrita pictográfica, como os hieróglifos egípcios. Em ambos os casos há certos elementos que não se destinam a ser interpretados (ou lidos, segundo for o caso), mas têm por intenção servir de ‘determinativos’, ou seja, estabelecer o significado de algum outro elemento. A ambigüidade dos diversos elementos dos sonhos encontra paralelo nesses antigos sistemas de escrita, bem como a omissão de várias relações, que em ambos os casos tem de ser suprida pelo contexto. Se esta concepção do método de representação nos sonhos ainda não foi levada avante, isto, como facilmente se compreenderá, deve ser atribuído ao fato de os psicanalistas ignorarem completamente a atitude e o conhecimento com que um filólogo abordaria um problema como o apresentado pelos sonhos.

A linguagem dos sonhos pode ser encarada como o método pelo qual a atividade mental inconsciente se expressa. Mas o inconsciente fala mais de um dialeto. De acordo com as diferentes condições psicológicas que orientam e distinguem as diversas formas de neurose, encontramos modificações regulares na maneira pela qual os impulsos mentais inconscientes se expressam. Enquanto a linguagem de gestos da histeria concorda em geral com a representação pictórica dos sonhos e das visões etc., a linguagem de pensamento das neuroses obsessivas e das parafrenias (demência precoce e paranóia) apresenta peculiaridades idiomáticas especiais, que, num certo número de casos, fomos capazes de compreender e inter-relacionar. Por exemplo, o que um histérico expressa através de vômitos, um obsessivo expressará por meio de penosas medidas de proteção contra infecções, enquanto um parafrênico será levado a queixas ou suspeitas de estar sendo envenenado. Todas essas são representações diferentes do desejo de engravidar do paciente que foi reprimido para o inconsciente, ou de sua reação defensiva contra esse desejo.

 

(B) O INTERESSE FILOSÓFICO DA PSICANÁLISE

 

A filosofia, até onde se apóia na psicologia, não poderá deixar de levar integralmente em conta as contribuições psicanalíticas à psicologia e de reagir a esse novo enriquecimento de nossos conhecimentos, tal como o fez em relação a todo progresso digno de consideração nas ciências especializadas. Em particular, o estabelecimento da hipótese de atividades mentais inconscientes deve compelir a filosofia a decidir por um lado ou outro e, se aceitar a idéia, modificar suas próprias opiniões sobre a relação da mente com o corpo, de maneira a se poderem conformar ao novo conhecimento. É verdade que a filosofia repetidamente tratou do problema do inconsciente, mas, com poucas exceções, os filósofos assumiram uma ou outra das duas posições seguintes: ou o seu inconsciente foi algo de místico, intangível e indemonstrável, cuja relação com a mente permaneceu obscura, ou identificaram o mental com o consciente e passaram a deduzir dessa definição que aquilo que é inconsciente não pode ser mental nem assunto da psicologia. Essas opiniões devem ser atribuídas ao fato de os filósofos terem formado seu julgamento sobre o inconsciente sem estarem familiarizados com os fenômenos da atividade mental inconsciente e, assim, sem qualquer suspeita de até onde esses fenômenos se assemelham aos conscientes ou em que aspectos deles diferem. Se alguém, tendo esse conhecimento, não obstante se aferrar à convicção que iguala o consciente ao psíquico e, conseqüentemente, nega ao inconsciente o atributo de ser psíquico, nenhuma objeção, naturalmente, pode ser feita, a exceção de que essa distinção resulta ser altamente impraticável, pois é fácil descrever o inconsciente e acompanhar seus desenvolvimentos, se o abordarmos pelo lado de sua relação com o consciente, com o qual tem tanto em comum. Por outro lado, parece não haver ainda possibilidade de abordá-lo pelo lado dos acontecimentos ou fatos físicos, de maneira que se acha destinado a continuar sendo assunto de estudo psicológico.

Existe ainda outra maneira pela qual a filosofia pode estimular-se na psicanálise, e essa é tornando-se ela própria tema da pesquisa psicalítica. As teorias e sistemas filosóficos foram obra de um pequeno número de homens de notável individualidade. Em nenhuma outra ciência a personalidade de cientista desempenha um papel tão grande quanto na filosofia. E hoje, pela primeira vez, a psicanálise nos permite elaborar uma psicografia de uma personalidade. (Ver adiante a seção sociológica, ver em [1].) Ela nos ensina a identificar as unidades afetivas — os complexos dependentes de instintos — cuja presença é presumida em cada indivíduo e possibilita o estudo das transformações e produtos finais que surgem dessas forças instintivas. Revela as relações da disposição constitucional de uma pessoa e dos acontecimentos de sua vida com as realizações abertas a ela, em virtude de seus dons peculiares. Pode fazer conjeturas, com mais ou menos certeza, através da obra de um artista, sobre a personalidade íntima que reside por trás dela. Da mesma maneira, a psicanálise pode indicar os motivos subjetivos e individuais existentes por trás das teorias filosóficas que surgiram aparentemente de um trabalho lógico imparcial e chamar a atenção do crítico para os pontos fracos do sistema. Não é atribuição da psicanálise, entretanto, empreender tal crítica ela mesma, porque, como se pode imaginar, o fato de uma teoria ser psicologicamente determinada não invalida em nada sua verdade científica.

 

(C) O INTERESSE BIOLÓGICO DA PSICANÁLISE

 

A psicanálise não teve a sorte de ser acolhida (como outras ciências novas) com o incentivo simpático daqueles que se acham interessados no progresso do saber. Por longo tempo foi desprezada e, quando por fim não mais podia ser negligenciada, tornou-se, por razões emocionais, objeto dos mais violentos ataques por parte de pessoas que não se deram ao trabalho de conhecê-la bem. Essa recepção inamistosa deve-se a uma única circunstância: numa primeira fase de suas pesquisas, a psicanálise foi levada à conclusão de que as doenças nervosas constituíam a expressão de um distúrbio da função sexual, sendo assim conduzida a dedicar sua atenção à investigação dessa função — que tinha sido negligenciada por tempo demasiado. Mas qualquer pessoa que respeite a regra de que o julgamento científico não deve ser influenciado por atitudes emocionais atribuirá um alto grau de interesse biológico à psicanálise, por causa dessas próprias investigações, e há de encarar as resistências a ela como uma prova real em favor da correção de suas afirmações.

A psicanálise fez justiça à função sexual no homem fazendo um exame pormenorizado de sua importância na vida prática e mental — importância que foi enfatizada por tantos escritores criativos e por alguns filósofos, mas nunca fora reconhecida pela ciência. De início, no entanto, foi necessário ampliar o conceito indevidamente restrito de sexualidade, ampliação justificada pela conexão com as extensões da sexualidade que ocorrem nas chamadas perversões e com o comportamento das crianças. Resultou ser impossível sustentar por mais tempo que a infância era assexual, sendo invadida pela primeira vez por uma súbita incursão de impulsos sexuais na época da puberdade. Pelo contrário, quando os artifícios protetores da parcialidade e do preconceito foram afastados, a observação não encontrou dificuldade em revelar que interesses e atividades sexuais se acham presentes na criança, em quase todas as idades desde o começo da vida mesmo. A importância dessa sexualidade normal dos adultos surge da sexualidade infantil não é prejudicada pelo fato de não podermos em todos os pontos traçar uma linha clara entre ela e a atividade assexual de uma criança. Difere, entretanto, daquilo que é descrito como a sexualidade ‘normal’ dos adultos. Inclui os germes de todas aquelas atividades sexuais que, na vida posterior, apresentam agudo contraste com a vida sexual normal sendo tidas como perversões e, assim, fadadas a parecerem incompreensíveis e viciadas. A sexualidade normal dos adultos surge da sexualidade infantil através de uma série de desenvolvimentos, combinações divisões e repressões que dificilmente se completam com perfeição ideal, deixando conseqüentemente em seu rastro predisposições a uma regressão da função, sob a forma de doença.

A sexualidade infantil apresenta duas outras características que são importantes do ponto de vista biológico. Mostra ser formada de certo número de instintos componentes que parecem estar ligados a certas regiões do corpo (‘zonas erógenas’), surgindo alguns deles desde o início em pares opostos — instintos com um objetivo ativo e outro passivo. Assim como na vida posterior o que é amado não são simplesmente os órgãos sexuais do objeto, mas todo o seu corpo, também desde o começo não são simplesmente os órgãos genitais mas muitas outras partes do corpo que constituem sede da excitação sexual e reagem a estímulos apropriados com prazer sexual. Esse fato tem estreita relação com a segunda característica da sexualidade infantil — ou seja, com o fato de que no início, ela se acha ligada às funções autopreservativas da nutrição e da excreção e, com toda a probabilidade, da excitação muscular e da atividade sensorial.

Se examinarmos a sexualidade do adulto com o auxílio da psicanálise e considerarmos a vida das crianças à luz dos conhecimentos que assim obtivermos, perceberemos que a sexualidade não é simplesmente uma função que serve aos fins da reprodução, no mesmo nível que a digestão, a respiração etc. Trata-se de algo muito mais independente, que se coloca em contraste com todas as outras atividades do indivíduo e só é forçado a uma aliança com a economia individual após um complicado curso de desenvolvimento que envolve a imposição de numerosas restrições. Casos — em teoria inteiramente concebíveis — em que os interesses desses impulsos sexuais deixam de coincidir com a autopreservação do indivíduo parecem realmente ser apresentados pelo grupo das doenças neuróticas, porque a fórmula final a que a psicanálise chegou quanto à natureza das neuroses é a seguinte: o conflito primário que leva às neuroses é um conflito entre os instintos sexuais e os instintos que sustentam o ego. As neuroses representam uma dominação mais ou menos parcial do ego pela sexualidade, depois de terem falhado os esforços do ego para reprimi-la.

Julgamos necessário nos manter afastados de considerações biológicas durante nosso trabalho psicanalítico e abster-nos de utilizá-las para propósitos heurísticos, de maneira a não nos afastarmos de um julgamento imparcial dos fatos psicanalíticos que nos apresentam. Mas, depois de completar nosso trabalho psicanalítico, teremos de encontrar um ponto de contato com a biologia e será justa a nossa satisfação se constatarmos que esse contato já está assegurado num ou noutro ponto importante. O contraste entre os instintos do ego e o instinto sexual, ao qual fomos obrigados a atribuir a origem das neuroses, é transposto para a esfera da biologia pelo contraste entre os instintos que servem à preservação do indivíduo e os que servem à sobrevivência da espécie. Na biologia encontramos a mais abrangente concepção de um plasma germinal imoral ao qual os diferentes indivíduos transitórios se ligam como órgãos que se desenvolvem sucessivamente. É somente essa concepção que nos permite compreender corretamente o papel desempenhado pelas forças instintivas sexuais na filosofia e na psicologia.

Apesar de todos os nossos esforços para que a terminologia e as considerações biológicas não dominassem o trabalho psicanalítico, não pudemos evitar o seu emprego mesmo na descrição dos fenômenos que estudamos. Não podemos deixar de considerar o termo ‘instinto’ como um conceito fronteiriço entre as esferas da psicologia e da biologia. Falamos também de atributos e impulsos mentais ‘masculinos’ e ‘femininos’, embora, estritamente falando, as diferenças entre os sexos não possam pretender nenhuma característica psíquica especial. Aquilo de que falamos na vida comum como ‘masculino’ e ‘feminino’ reduz-se, do ponto de vista da psicologia, às qualidades de ‘atividade’ e ‘passividade’ — isto é, a qualidades determinadas não pelos próprios instintos, mas por seus objetivos. A associação regular destes ‘ativos’ e ‘passivos’ na vida mental reflete a bissexualidade dos indivíduos, que está entre os postulados clínicos da psicanálise.

Ficarei satisfeito se estas poucas observações chamarem a atenção para muitos aspectos em que a psicanálise atua como intermediária entre a biologia e a psicologia.

 

(D) O INTERESSE DA PSICANÁLISE DE UM PONTO DE VISTA DE DESENVOLVIMENTO

 

Nem toda análise de fenômenos psicológicos merece o nome de psicanálise, pois esta implica mais que a simples análise de fenômenos compostos em outros mais simples. Consiste em remontar uma determinada estrutura psíquica a outra que a precedeu no tempo e da qual se desenvolveu. O procedimento médico psicanalítico não pode eliminar um sintoma até haver traçado a origem e a evolução desse sintoma. Assim, desde o início, a psicanálise dirigiu-se no sentido de delinear processos de desenvolvimento. Começou por descobrir a gênese dos sintomas neuróticos e foi levada, à medida que o tempo passava, a voltar sua atenção para outras estruturas psíquicas e a construir uma psicologia genética que também se lhe aplicasse.

A psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida das crianças e teve de levar a sério o velho ditado que diz que a criança é o pai do homem. Delineou a continuidade entre a mente infantil e a mente adulta e observou também as transformações e os remanejamentos que ocorrem no processo. Na maioria de nós existe, em nossas lembranças, uma lacuna que abrange os primeiros anos da infância dos quais apenas algumas recordações fragmentárias sobrevivem. Pode-se dizer que a psicanálise preencheu essa lacuna e aboliu a amnésia infantil do homem. (Ver adiante a seção sobre ‘Interesse Educacional’ [ver em [1]].)

Algumas descobertas notáveis foram efetuadas no curso dessa investigação da mente infantil. Assim foi possível confirmar — o que já fora muitas vezes suspeitado — a influência extraordinariamente importante exercida pelas impressões da infância (e particularmente pelos seus primeiros anos) sobre todo o curso da evolução posterior. Isso nos conduz ao paradoxo psicológico — que somente para a psicanálise não é paradoxo — de serem precisamente estas, as mais importantes de todas as impressões, as que não são recordadas em anos posteriores. A psicanálise pôde estabelecer o caráter decisivo e indestrutível dessas primeiras experiências da maneira mais clara possível, no caso da vida sexual. ‘On revient toujours à ses premiers amours‘ é pura verdade. Os muitos enigmas da vida sexual dos adultos só podem ser solucionados se forem ressaltados os fatores infantis existentes no amor. Uma luz teórica é lançada sobre a influência deles depois de considerarmos que as primeiras experiências de um indivíduo na infância não ocorrem somente por acaso, mas correspondem também às primeiras atividades de suas disposições instintivas inatas ou constitucionais.

Outra descoberta muito mais surpreendente foi que, a despeito de toda a evolução posterior que ocorre no adulto, nenhuma das formações mentais infantis perece. Todos os desejos, impulsos instintivos, modalidades de reação e atitudes da infância acham-se ainda demonstravelmente presentes na maturidade e, em circunstância apropriada, podem mais uma vez surgir. Elas não são destruídas, mas simplesmente se sobrepõem — para empregar o modo espacial de descrição que a psicologia psicanalítica foi obrigada a adotar. Assim, faz parte da natureza do passado mental diferentemente do passado histórico, não ser absorvido pelos seus derivados; persiste (seja na realidade ou apenas potencialmente) juntamente com o que se originou dele. A prova desta afirmação reside no fato de os sonhos das pessoas normais reviverem seus caracteres de infância a cada noite e reduzirem toda a sua vida mental a um nível infantil. Esse mesmo retorno ao infantilismo psíquico (‘regressão’) ocorre nas neuroses e psicoses, cujas peculiaridades podem, em grande parte, ser descritas como arcaísmos psíquicos. A intensidade com que os resíduos da infância ainda se acham presentes na mente nos é mostrada pelo grau de disposição para a doença; essa disposição pode, por conseguinte, ser encarada como expressão de uma inibição do desenvolvimento. A parte do material psíquico de uma pessoa que permaneceu infantil e foi reprimida como imprestável constitui o cerne de seu inconsciente. E acreditamos que podemos seguir nas histórias de nossos pacientes a maneira pela qual esse inconsciente subjugado como é pelas forças de repressão, fica à espera de uma possibilidade de tornar-se ativo e fazer uso de suas oportunidades, se as estruturas psíquicas posteriores e mais elevadas fracassarem no domínio das dificuldades da vida real.

Nos últimos anos, escritores psicanalíticos deram-se conta de que o princípio ‘a ontogenia é uma repetição da filogenia’ deve ser aplicado à vida mental e isso resultou numa nova ampliação do interesse da psicanálise.

 

(E) O INTERESSE DA PSICANÁLISE DO PONTO DE VISTA DA HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO

 

A comparação entre a infância dos homens e a primitiva história das sociedades já provou sua fecundidade em diversos sentidos, ainda que seu estudo esteja apenas começando. Nesta conexão o modo de pensar psicanalítico atua como um novo instrumento de pesquisa. A aplicação de suas hipóteses à psicologia social torna possível tanto o levantamento de novos problemas como a visão dos antigos sob nova luz e nos capacita a contribuir para a sua solução.

Em primeiro lugar, parece inteiramente possível aplicar os pontos de vista psicanalíticos deduzidos dos sonhos a produtos da imaginação étnica, como os mitos e os contos de fadas. Há muito tempo se sentia a necessidade de interpretar essas produções; suspeitava-se existir algum ‘sentido secreto’ por trás delas e presumiu-se que esse sentido se mantivesse oculto através de mudanças e transformações. O estudo dos sonhos e das neuroses feito pela psicanálise lhe trouxe a experiência necessária para capacitá-la a adivinhar os procedimentos técnicos que orientaram essas deformações. Num certo número de casos, porém, ela pode também revelar os motivos que levaram a essa modificação do sentido original dos mitos. Não se pode aceitar como primeiro impulso para a construção de mitos um anseio teórico por encontrar uma explicação para os fenômenos naturais ou para elucidar observâncias e práticas de culto que se tornaram ininteligíveis. A psicanálise procura esse impulso nos mesmos ‘complexos’ psíquicos, nas mesmas inclinações emocionais que descobriu como sendo a base dos sonhos e dos sintomas.

Uma aplicação semelhante de seus pontos de vista, suas hipóteses e suas descobertas permitiu à psicanálise lançar luz sobre as origens de nossas grandes instituições culturais: a religião, a moralidade, a justiça e a filosofia. Examinando as primitivas situações psicológicas que poderiam fornecer o motivo para criações desse tipo, ficou em posição de rejeitar certas tentativas de explicação que se baseavam numa psicologia demasiado superficial e substituí-las por uma compreensão (insight) mais penetrante.

A psicanálise estabeleceu uma estreita conexão entre essas realizações psíquicas de indivíduos, por um lado, e de sociedades, por outro, postulando uma mesma e única fonte dinâmica para ambas. Ela parte da idéia básica de que a principal função do mecanismo mental é aliviar o indivíduo das tensões nele criadas por suas necessidades. Uma parte desta tarefa pode ser realizada extraindo-se satisfação do mundo externo e, para esse fim, é essencial possuir controle sobre o mundo real. Mas a satisfação de outra parte dessas necessidades — entre elas, certos impulsos afetivos — é regularmente frustrada pela realidade. Isto conduz a uma nova tarefa de encontrar algum outro meio de manejar os impulsos insatisfeitos. Todo o curso da história da civilização nada mais é que um relato dos diversos métodos adotados pela humanidade para ‘sujeitar’ seus desejos insatisfeitos, que, de acordo com as condições cambiantes (modificadas, ademais, pelos progressos tecnológicos) defrontaram-se com a realidade, às vezes favoravelmente e outras com frustração.

Uma investigação dos povos primitivos mostra a humanidade de inicialmente aprisionada pela crença infantil em sua própria onipotência. Toda uma gama de estruturas mentais pode ser então compreendida como tentativas de negar tudo o que pudesse perturbar esse sentimento de onipotência e impedir assim que a vida emocional fosse afetada pela realidade, até que esta pôde ser mais bem controlada e utilizada para propósitos de satisfação. O princípio de evitar o desprazer domina as ações humanas até ser substituído pelo princípio melhor de adaptação ao mundo externo. Pari passu com o controle progressivo dos homens sobre o mundo segue uma evolução de sua Weltanschauung, sua visão do universo como um todo. Cada vez eles se afastam mais de sua crença original na própria onipotência, elevando-se da fase animista para a religiosa e desta para a científica. Os mitos, a religião e a moralidade podem ser situados nesse esquema como tentativas de busca de compensação da falta de satisfação dos desejos humanos.

Nosso conhecimento das doenças neuróticas dos indivíduos foi de grande auxílio para a compreensão das grandes instituições sociais, porque as neuroses mostraram ser tentativas de encontrar soluções individuais para o problema de compensar os desejos insatisfeitos, enquanto que as instituições buscam proporcionar soluções sociais para esses mesmos problemas. A recessão do fator social e a predominância do sexual transforma essas soluções neuróticas do problema psicológico em caricaturas que de nada servem, a não ser para ajudar-nos a explicar essas importantes questões.

 

(F) O INTERESSE DA PSICANÁLISE DO PONTODE VISTA DA CIÊNCIA DA ESTÉTICA

 

A psicanálise esclarece satisfatoriamente alguns dos problemas referentes às artes e aos artistas, embora outros lhe escapem inteiramente. No exercício de uma arte vê-se mais uma vez uma atividade destinada a apaziguar desejos não gratificados — em primeiro lugar, do próprio artista e, subseqüentemente, de sua assistência ou espectadores. As forças motivadoras dos artistas são os mesmos conflitos que impulsionam outras pessoas à neurose e incentivaram a sociedade a construir suas instituições. De onde o artista retira sua capacidade criadora não constitui questão para a psicologia. O objetivo primário do artista é libertar-se e, através da comunicação de sua obra a outras pessoas que sofram dos mesmos desejos sofreados, oferecer-lhes a mesma libertação. Ele representa suas fantasias mais pessoais plenas de desejo como realizadas; mas elas só se tornam obra de arte quando passaram por uma transformação que atenua o que nelas é ofensivo, oculta sua origem pessoal e, obedecendo às leis da beleza, seduz outras pessoas com uma gratificação prazerosa. A psicanálise não tem dificuldade em ressaltar, juntamente com a parte manifesta do prazer artístico, uma outra que é latente, embora muito mais poderosa, derivada das fontes ocultas da libertação instintiva. A conexão entre as impressões da infância do artista e a história de sua vida, por um lado, e suas obras como reações a essas impressões, por outro, constitui um dos temas mais atraentes de estudo analítico.

 

Quanto ao resto, a maioria dos problemas de criação e apreciação artística esperam novos estudos, que lançarão a luz do conhecimento analítico sobre eles, designando-lhes um lugar na complexa estrutura apresentada pela compensação dos desejos humanos. A arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graças à ilusão artística, os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte constitui um meio-caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o mundo de desejos realizados da imaginação — uma região em que, por assim dizer, os esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor.

 

(G) O INTERESSE SOCIOLÓGICO DA PSICANÁLISE

 

É verdade que a psicanálise tomou como tema a mente individual, mas, ao fazer investigações sobre o indivíduo, não podia deixar de tratar da base emocional da relação dele com a sociedade. Foi descoberto que os sentimentos sociais contêm invariavelmente um elemento erótico — elemento que, se for superenfatizado e depois reprimido, tornar-se-á um dos sinais distintivos de um grupo particular de distúrbios mentais. A psicanálise reconheceu que, em geral, as neuroses são associais em sua natureza e visam sempre a impulsionar o indivíduo para fora da sociedade e a substituir a segura reclusão monástica dos primeiros dias pelo isolamento da doença. Demonstrou-se que o intenso sentimento de culpa que domina tantas neuroses constitui uma modificação social da ansiedade neurótica.

Por outro lado, a psicanálise demonstrou plenamente o papel desempenhado pelas condições e exigências sociais como causadores de neurose. As forças que, operando desde o ego, ocasionam a restrição e a repressão do instinto devem fundamentalmente sua origem à submissão às exigências da civilização. Uma constituição e um conjunto de experiências de infância que, noutros casos, conduziriam inevitavelmente a uma neurose não produz tal resultado onde essa submissão esteja ausente ou onde tais exigências não sejam feitas pelo círculo social em que esse indivíduo se situa. A antiga afirmativa de que o aumento de distúrbios nervosos constitui um produto da civilização é pelo menos uma meia-verdade. As pessoas jovens são postas em contato com as exigências da civilização pela criação e pelo exemplo e, se a repressão instintiva ocorre independentemente desses dois fatores, é uma hipótese plausível supor que uma exigência primeva e pré-histórica passou finalmente a fazer parte da dotação organizada e herdada da humanidade. Uma criança que produza repressões instintivas espontaneamente está assim simplesmente repetindo uma parte da história da civilização. O que hoje é um ato de coibição interna foi outrora externo, imposto, talvez pelas necessidades do momento. Da mesma maneira, o que hoje se aplica a todo indivíduo em crescimento como uma exigência externa da civilização, poderá um dia tornar-se uma disposição interna à repressão.

 

(H) O INTERESSE EDUCACIONAL DA PSICANÁLISE

 

 O interesse dominante que tem a psicanálise para a teoria da educação baseia-se num ato que se tornou evidente. Somente alguém que possa sondar as mentes das crianças será capaz de educá-las e nós, pessoas adultas, não podemos entender as crianças porque não mais entendemos a nossa própria infância. Nossa amnésia infantil prova que nos tornamos estranhos à nossa infância. A psicanálise trouxe à luz os desejos, as estruturas de pensamento e os processos de desenvolvimento da infância. Todos os esforços anteriores nesse sentido foram, no mais alto grau, incompletos e enganadores por menosprezarem inteiramente o fator inestimavelmente importante da sexualidade em suas manifestações físicas e mentais. O espanto incrédulo com que se defrontam as descobertas estabelecidas com maior grau de certeza pela psicanálise sobre o tema da infância — o complexo de Édipo, o amor a si próprio (ou ‘narcisismo’), a disposição para as perversões, o erotismo anal, a curiosidade sexual — é uma medida do abismo que separa nossa vida mental, nossos juízos de valor e, na verdade, nossos processos de pensamento daqueles encontrados mesmo em crianças normais.

Quando os educadores se familiarizarem com as descobertas da psicanálise, será mais fácil se reconciliarem com certas fases do desenvolvimento infantil e, entre outras coisas, não correrão o risco de superestimar a importância dos impulsos instintivos socialmente imprestáveis ou perversos que surgem nas crianças. Pelo contrário, vão se abster de qualquer tentativa de suprimir esses impulsos pela força, quando aprenderem que esforços desse tipo com freqüência produzem resultados não menos indesejáveis que a alternativa, tão temida pelos educadores, de dar livre trânsito às travessuras das crianças. A supressão forçada de fortes instintos por meios externos nunca produz, numa criança, o efeito de esses instintos se extinguirem ou ficarem sob controle; conduz à repressão, que cria uma predisposição a doenças nervosas no futuro. A psicanálise tem freqüentes oportunidades de observar o papel desempenhado pela severidade inoportuna e sem discernimento da educação na produção de neuroses, ou o preço, em perda de eficiência e capacidade de prazer, que tem de ser pago pela normalidade na qual o educador insiste. E a psicanálise pode também demonstrar que preciosas contribuições para a formação do caráter são realizadas por esses instintos associais e perversos na criança, se não forem submetidos à repressão, e sim desviados de seus objetivos originais para outros mais valiosos, através do processo conhecido como ‘sublimação’. Nossas mais elevadas virtudes desenvolveram-se, como formações reativas e sublimações, de nossas piores disposições. A educação deve escrupulosamente abster-se de soterrar essas preciosas fontes de ação e restringir-se a incentivar os processos pelos quais essas energias são conduzidas ao longo de trilhas seguras. Tudo o que podemos esperar a título de profilaxia das neuroses no indivíduo se encontra nas mãos de uma educação psicanaliticamente esclarecida.

Não foi meu objetivo neste artigo colocar ante um público cientificamente orientado uma descrição do alcance e do conteúdo da psicanálise ou de suas hipóteses, problemas e descobertas. Meu objetivo terá sido atingido se eu tiver deixado claras as muitas esferas de conhecimento em que a psicanálise é de interesse e os numerosos vínculos que começou a forjar entre elas.

 

OBSERVAÇÕES E EXEMPLOS DA PRÁTICA ANALÍTICA

 

A coleção de pequenas contribuições, de que aqui apresentamos uma primeira parte, exige algumas palavras e introdução. Os casos de doença que chegam à observação de um psicanalista são, naturalmente, de valor desigual no que se refere ao aumento de seus conhecimentos. Há aqueles em que tem de aplicar tudo o que sabe e dos quais nada aprende; e outros que lhe mostram o que já conhece de uma maneira particularmente bem marcada e num isolamento excepcionalmente revelador, de modo que o psicanalista fica em dívida para com eles não apenas apenas pela confirmação, mas também pela ampliação de seus conhecimentos. Temos razões para supor que os processos psíquicos que desejamos estudar não são diferentes na primeira e na segunda espécie de casos, mas decidimos descrevê-los tal como ocorreram nos exemplos favoráveis e claros. De modo semelhante, a teoria da evolução pressupõe que no reino animal a segmentação do ovo se processa da mesma maneira tanto nos casos em que um alto grau de pigmentação está presente — casos desfavoráveis portanto para a observação — como naqueles em que o objeto de estudo é transparente e pouco pigmentado, sendo, por essa razão, escolhidos para observação.

Mas os numerosos exemplos que, durante o dia de trabalho de um analista, trazem-lhe uma confirmação do que já sabe, são, na maioria, perdidos de vista, pois reuni-los num todo quase sempre envolve longa demora. Há, portanto, uma certa vantagem em fornecer uma estrutura dentro da qual observações e exemplos desse tipo possam ser publicados e tornados conhecidos de modo geral, sem se esperar que sejam elaborados a partir de um ponto de vista mais generalizado.

Sob o título que é aqui introduzido, será oferecido espaço para material dessa espécie. As comunicações serão tão concisas quanto possível. As diferentes contribuições não estão dispostas em qualquer ordem particular.

 

(1)

 

SONHOS COM UMA CAUSA

PRECIPITANTE NÃO-IDENTIFICADA

 

Uma pessoa que dormia bem acordou certa manhã numa estação de veraneio no Tirol, sabendo que tivera um sonho de que o Papa morrera. Não pôde encontrar explicação para ele. Durante a manhã do mesmo dia, sua esposa lhe disse: ‘Ouviu o barulho terrível que os sinos fizeram esta manhã?’ Não tinha ouvido, mas, evidentemente, sonhara a respeito. A interpretação que seu sonho deu aos sinos foi a sua vingança dos piedosos tiroleses. Segundo os jornais, o Papa achava-se ligeiramente indispostos naquela ocasião.

 

(2)

 

HORA DO DIA EM SONHOS

 

Isso com muita freqüência representa a idade da pessoa que sonha em algum período específico de sua infância. Em certos sonhos, cinco e um quarto da manhã significavam a idade de cinco anos e três meses, o que era significativo, visto ser a idade do sonhador na ocasião do nascimento de seu irmão mais moço. — Muitos exemplos semelhantes.

 

(3)

 

A REPRESENTAÇÃO DE IDADES NOS 

SONHOS

 

Uma mulher sonhou que estava caminhando com duas garotinhas que tinham uma diferença de idade de 15 meses. Foi incapaz de lembrar-se de qualquer família de suas relações que tivesse duas filhas nessa situação. Ocorreu-lhe que ambas as crianças representavam ela própria, e que o sonho estava lembrando-lhe que os dois acontecimentos traumáticos de sua infância achavam-se separados um do outro por 15 meses (3 1/2 e 4 3/4 anos de idade).

 

(4)

 

POSIÇÃO AO DESPERTAR DE UM SONHO

 

Uma mulher sonhou que estava deitada de costas e apertando as solas dos pés contra os de outra mulher. Pela análise parecia possível que ela estivesse pensando em cenas de travessuras, que substituíram a lembrança de uma observação de relações sexuais. Quando acordou reparou que, pelo contrário, estivera deitada sobre o estômago, com os braços cruzados, imitando assim a posição de um homem dando um abraço.

 

(9)

 

DOIS QUARTOS E UM QUARTO

 

Ele teve um sonho em que viu dois quartos familiares que haviam sido transformados num só.

Nada de concreto. O sonho dizia respeito aos órgãos genitais femininos e o ânus, que, em criança, ele havia considerado como uma só região, o ‘fundo’ (de acordo com a ‘teoria da cloaca’ infantil) enquanto agora sabia existirem duas cavidades e orifícios separados. Uma representação invertida.

 

(10)

 

SOBRETUDO COMO SÍMBOLO

 

Em sonhos femininos, um sobretudo [‘Mantel‘, em alemão] é indiscutivelmente o símbolo de um homem. A assonância lingüística pode talvez desempenhar algum papel.

 

(13)

 

PÉS (SAPATOS) VERGONHOSOS

 

Após vários dias de resistência, a paciente relatou que se sentira muito humilhada porque um jovem que encontrava regularmente perto da casa do médico, e que geralmente a olhava com admiração, na última ocasião olhara desdenhosamente para os seus pés. Na realidade, não tinha razão para sentir-se envergonhada deles. Ela própria deu a explicação, após admitir que havia considerado o jovem como filho do médico, que portanto (por via de transferência) representava o irmão mais velho dela. Seguiu-se então a lembrança de ter tido o hábito de acompanhar o irmão ao banheiro, quando ela tinha aproximadamente cinco anos de idade, e de olhá-lo urinar. Ficava com inveja por não ser capaz de fazê-lo da mesma maneira e certo dia tentaria imitá-lo (inveja do pênis). Ao fazê-lo, no entanto, molhara os sapatos e ficara muito zangada quando o irmão, por causa disso, zombara dela. Durante muito tempo depois, sua ira retornava sempre que o irmão olhava desdenhosamente para os sapatos dela, a fim de lembrar-lhe sua desventura. Acrescentou que essa experiência havia determinado seu comportamento posterior na escola. Se era malsucedida em alguma coisa à primeira tentativa, nunca podia forçar-se a tentar de novo, de maneira que em muitas matérias fracassou completamente. — Esse é um bom exemplo da maneira pela qual a vida sexual atua como um modelo e influencia o caráter.

 

 (15)

 

AUTOCRÍTICA NOS NEURÓTICOS

 

É sempre notável e merece uma atenção especial, quando um neurótico tem o hábito de falar mal de si próprio, expressando uma opinião baixa sobre si mesmo etc. Como no caso das autocensuras, muitas vezes é possível explicar isso supondo que ele está se identificando com outra pessoa. Em certa paciente, porém, as circunstâncias durante a sessão tornaram necessária uma outra explicação para tal comportamento. Uma jovem senhora, que nunca se cansava de declarar que tinha muito pouca inteligência, não era bem dotada etc., estava apenas tentando indicar com isso que possuía uma grande beleza física, escondendo essa jactância por trás de sua autocrítica. Tampouco se achava ausente neste caso — o que é sempre de se esperar em tais casos — uma referência aos efeitos prejudiciais da masturbação.

 

(19)

 

CONSIDERAÇÕES DE REPRESENTABILIDADE

 

Um homem sonhou que estava puxando um mulher de detrás de uma cama; ou seja, estava lhe dando preferência. — Ele (um oficial) estava sentado a uma mesa, em frente ao Imperador: isto é, estava se colocando em oposição ao Imperador (seu pai). Em ambos os casos o sonhador deu ele mesmo a tradução.

 

(20)

 

SONHOS COM PESSOAS MORTAS

 

Se alguém sonha que está falando com pessoas mortas, se reunindo com elas etc., isso freqüentemente representa a sua própria morte. No entanto, se lembrar durante o sonho de que a pessoa em questão se acha morta, o sonhador está repudiando o fato de o sonho representar a sua própria morte.

 

(21)

 

SONHOS FRAGMENTÁRIOS

 

Esses sonhos freqüentemente contêm apenas os símbolos relacionados com o seu tema. Por exemplo, aqui temos um sonho que ocorreu num contexto de impulsos homossexuais: estava saindo para passear com um amigo… (indistinto)… balões.

 

(22)

 

APARECIMENTO NO SONHO DOS SINTOMAS DA DOENÇA

 

Os sintomas da doença (ansiedade etc.), quando aparecem num sonho, parecem de modo geral significar: “Estou doente por causa disto (isto é, em conexão com os elementos anteriores do sonho)”. Tais sonhos, por conseguinte, correspondem a uma continuação da análise no sonho.

 

FAUSSE RECONNAISSANCE (DÉJÀ RACONTÉ)

NO TRATAMENTO PSICANALÍTICO

 

Acontece com freqüência durante o tratamento analítico que o paciente, após relatar algum fato de que se lembrou, prossiga dizendo: ‘Mas eu já lhe contei isso’ — enquanto o analista tem certeza de ser essa a primeira vez que escutou a história. Se o dissermos o paciente muitas vezes protestará com energia, dirá que tem certeza de estar com a razão, que é capaz de jurar, e assim por diante: enquanto que a própria convicção do analista de que o que ouviu é novo torna-se correspondentemente mais forte. Tentar resolver o impasse silenciando o paciente a gritos ou sobrepujando-o em protestos, seria um procedimento muito pouco psicológico. É sabido que o senso de convicção da exatidão da própria memória não tem valor objetivo; e, visto que uma das duas pessoas interessadas deve necessariamente estar enganada, a vítima de uma paramnésia pode ser tanto o médico como o paciente. O analista dirá isso ao paciente, interromperá a discussão e adiará a solução do assunto para uma ocasião posterior.

Numa minoria de casos, o próprio analista recordará depois já ter ouvido a informação durante uma discussão e ao mesmo tempo descobrirá a razão subjetiva, e freqüentemente forçada, que conduziu a esse esquecimento temporário. Na grande maioria dos casos, porém, é o paciente quem está equivocado e poderá ser levado a reconhecer o fato. A explicação dessa ocorrência freqüente parece ser que o paciente realmente teve a intenção de dar essa informação, que por uma ou diversas vezes fez, na realidade, alguma observação que conduzia a ela, mas foi então impedido, pela resistência, de realizar seu propósito e, mais tarde, confundiu a lembrança de sua intenção com a lembrança de sua atuação.

Deixando de lado os casos em que ainda possa existir algum elemento de dúvida, apresentarei agora outros que são de especial interesse teórico. A certas pessoas acontece, e pode mesmo acontecer repetidamente, aferrarem-se com particular teimosia à afirmação de que já contaram ao analista isso ou aquilo, quando a natureza das circunstâncias e da informação em foco torna inteiramente impossível que possam estar com a razão, porque o que alegam já haver contado ao analista e que pretendem seja reconhecido como velho e já familiar ao analista também, mostram ser lembranças da maior importância para a análise — fatos confirmatórios pelos quais o analista há muito tempo esperava ou soluções que rematam toda uma parte do trabalho e que certamente teriam sido assunto de um exame exaustivo. Diante dessas considerações, o próprio paciente logo admite que sua lembrança deve tê-lo enganado, embora seja incapaz de explicar seu caráter definido.

 

 O fenômeno apresentado pelo paciente em casos como esses merece ser chamado de ‘fausse reconnaissance’, sendo inteiramente análogo ao que acontece em alguns outros casos e que já foi descrito como ‘déjà vú’. Nestes, o sujeito tem uma sensação espontânea, do tipo ‘Já estive antes nesta situação’ ou ‘Já passei por tudo isto’, sem nunca ter condição de confirmar sua convicção pela descoberta de uma lembrança real da ocasião anterior. Esse fenômeno, como é bem sabido, provocou grande número de tentativas de explicação, as quais podem, grosso modo, ser divididas em dois grupos. Um tipo de explicação encara a sensação que constitui o fenômeno como merecedora de crédito e presume que algo realmente foi lembrado — restando saber o quê. A segunda explicação, muito mais concorrida, sustenta, pelo contrário, que estamos lidando com uma lembrança ilusória, o problema estando em descobrir como esse erro paramnésico pode ter surgido. Esse último grupo abrange muitas hipóteses amplamente diferentes. Há, por exemplo, a opinião antiga, atribuída a Pitágoras, de que o fenômeno do déjà vu prova que o sujeito já teve uma vida anterior; há ainda a hipótese baseada na anatomia (apresentada por Wigan em 1860), segundo a qual o fenômeno se baseia na falta de simultaneidade no funcionamento dos dois hemisférios cerebrais e, finalmente, existem as teorias puramente psicológicas, apoiadas pela maioria das autoridades mais recentes, que encaram o déjà vu como indicação de uma debilidade aperceptiva e atribuem a responsabilidade de ocorrência a causas como a fadiga, a exaustão e a distração.

Em 1904, Grasset apresentou uma explicação do déjà vu que deve ser computada ao grupo que ‘acredita’ no fenômeno. Sua opinião era que, em alguma época anterior, houvera uma percepção inconsciente, que somente naquele momento tinha aberto caminho até a consciência, sob a influência de uma impressão nova e semelhante. Diversas outras autoridades concordaram com essa opinião e sustentaram ser a base do fenômeno a recordação de algo que foi sonhado e depois esquecido. Em ambos os casos, tratar-se-ia da ativação de uma impressão inconsciente.

 

Em 1907, na segunda edição do meu livro Psychopathology of Everyday Life [1901b, Capítulo XII (D)], propus uma explicação exatamente similar para essa forma de paramnésia aparente, sem mencionar o artigo de Grasset por desconhecer a sua existência. A título de excusa, posso observar que cheguei à minha conclusão em conseqüência da investigação psicanalítica que pude fazer de um exemplo de déjà vu numa paciente, o qual era extremamente claro, embora houvesse ocorrido cerca de 28 anos antes. Não reproduzirei aqui a pequena análise. Demonstrou-se que a situação em que o déjà vu ocorrera fora realmente calculada para reviver a lembrança de uma experiência anterior da paciente. Esta, que era na ocasião uma criança de 12 anos, estava visitando uma família na qual havia um irmão que estava seriamente doente, prestes a morrer, enquanto o próprio irmão da paciente estivera numa situação igualmente perigosa alguns meses antes. Entretanto, achava-se associada ao primeiro desses dois acontecimentos similares uma fantasia incapaz de penetrar na consciência — a saber, um desejo de que o irmão morresse. Conseqüentemente, a analogia entre os dois casos não podia torna-se consciente e sua percepção foi substituída pelo fenômeno de ‘ter passado por aquilo tudo antes’, com a identidade sendo deslocada do elemento realmente comum para a localidade. O nome déjà vu é, como sabemos, aplicado a toda uma classe de fenômenos análogos tais como o ‘déjà entendu’, o ‘déjà éprouvé’ e o ‘déjà senti’. O caso que irei agora relatar, como exemplo isolado de muitos outros semelhantes, consiste num ‘déjà raconté’ e pode ter sua origem remontada a uma resolução inconsciente que nunca foi executada.

Um paciente me disse, no decorrer de suas associações: ‘Quando me achava brincando no jardim com um canivete (isso se deu quando eu tinha cinco anos de idade) e cortei fora meu dedo mindinho — oh, eu só pensei que ele fora cortado — mas já lhe falei sobre isso.’

Garanti-lhe que não tinha lembrança de nada sobre o assunto. Ele insistiu com uma convicção crescente ser impossível que estivesse enganado. Acabei por dar fim à discussão da maneira que descrevi acima e lhe pedi para, de qualquer modo, repetir a estória pois então veríamos em que ponto nos achávamos.

‘Quando eu tinha cinco anos, estava brincando no jardim perto da babá, fazendo cortes com o meu canivete na casca de uma das nogueiras que aparecem em meu sonho também. De repente, para meu inexprimível terror, notei ter cortado fora o dedo mindinho da mão (direita ou esquerda?), de modo que ele se achava dependurado, preso apenas pela pele. Não senti dor, mas um grande medo. Não me atrevi a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas alguns passos de distância, mas deixei-me cair sobre o assento mais próximo e lá fiquei sentado, incapaz de dirigir outro olhar ao meu dedo. Por fim, me acalmei, olhei para ele e vi que estava inteiramente ileso.’

Concordamos logo que, a despeito do que havia pensado, não poderia ter-me contado a história dessa visão ou alucinação. Estava bem ciente de que eu não teria deixado de explorar uma prova como de ele ter tido um temor à castração na idade de cinco anos. O episódio destruiu a resistência em assumir a existência de um complexo de castração, mas ele levantou a questão: ‘Por que estava tão certo de ter-lhe contado antes esta lembrança?’

Ocorreu-nos então que, repetidas vezes e em relação à várias coisas, ele tinha tido a seguinte lembrança trivial, sem nunca retirar dela nenhum proveito:

‘Certa vez, quando meu tio partiu em viagem, perguntou a mim e à minha irmã o que gostaríamos que ele nos trouxesse, ao voltar. Minha irmã pediu um livro e eu, um canivete.’ Compreendemos então que essa associação que surgira meses antes fora na realidade uma lembrança encobridora da recordação reprimida e constituíra uma tentativa (abortada pela resistência) de contar a história da perda imaginária do dedinho — equivalente inequívoco de seu pênis. O canivete que seu tio realmente lhe trouxera ao voltar era, como claramente se lembrava, o mesmo que aparecera no episódio que por tanto tempo fora suprimido.

Parece desnecessário acrescentar algo, a título de interpretação dessa pequena ocorrência, ao esclarecimento que ela oferece ao fenômeno da ‘fausse reconnaissance’. Com referência ao tema geral da visão do paciente, posso observar que, particularmente em relação ao complexo da castração, falsificações alucinatórias semelhantes não são raras e podem facilmente servir ao propósito de corrigir percepções incômodas.

Em 1911, um homem de instrução superior, residente numa cidade universitária da Alemanha, não pertencente às minhas relações e cuja idade me é desconhecida, colocou-me à disposição as seguintes notas sobre a sua infância:

‘No decurso da leitura de seu estudo sobre Leonardo da Vinci [1910c] fui levado a uma discordância interna pelas observações feitas no início do Capítulo III. Sua afirmação de que as crianças do sexo masculino são dominadas por um interesse em seus próprios órgãos genitais provocou-me uma contra-afirmação de que “Se é essa a regra geral, sou, sob todos os aspectos, uma exceção a ela”. Prossegui então lendo a passagem que se segue com o máximo espanto, o espanto que se sente ao encontrar-se um fato de caráter inteiramente novo. Em meio ao meu espanto, ocorreu-me uma lembrança que me demonstrou, para minha própria surpresa, que o fato, de maneira alguma, poderia ser tão novo quanto parecia, porque, à época em que estava atravessando o período das “pesquisas sexuais infantis”, um acaso feliz proporcionou-me a oportunidade de inspecionar os órgãos genitais femininos de uma menina da minha própria idade e, ao assim proceder, observei muito claramente um pênis do mesmo tipo que o meu. Pouco depois fui mergulhado em nova confusão pela visão de algumas estátuas e nus artísticos femininos e, a fim de anular esta discrepância “científica”, engendrei a seguinte experiência: Apertando as coxas uma contra a outra, consegui fazer que meus órgãos genitais desaparecessem entre elas; e fiquei contente em descobrir que, dessa maneira, conseguia livrar-me de todas as diferenças entre minha própria aparência e a de um nu feminino. Evidente, pensei comigo mesmo, fizeram os órgãos genitais desaparecer de modo semelhante nos nus femininos.’

‘Nesse ponto, uma outra lembrança me ocorreu, lembrança que sempre fora da maior importância para mim, pelo fato de constituir uma das três recordações que representam tudo o que posso lembrar de minha mãe, morta quando eu ainda era muito pequeno. Lembro-me de vê-la parada em frente ao lavatório, limpando os vidros e a bacia, enquanto me achava brincando na mesma peça e cometendo alguma travessura. Como castigo, levei um sonoro tapa na mão e então, para meu grande terror, vi meu dedo mínimo cair, não me atrevi a dizer nada, mas meu terror tornou-se ainda mais intenso quando vi o balde ser pouco depois carregado para fora pela empregada. Por muito tempo fiquei convencido de que perdera um dedo — até a época, segundo creio, em que aprendi a contar.’

‘Muitas vezes tentei interpretar esta recordação, que, como já disse, sempre foi da maior importância para mim, por causa de sua conexão com minha mãe; mas nenhuma das interpretações me satisfez. Somente agora, depois de ter lido seu livro, foi que comecei a suspeitar de uma resposta simples e satisfatória ao enigma.’

Há um outro tipo de fausse reconnaissance que não raramente aparece ao final de um tratamento, para satisfação do médico. Depois de ter sido bem-sucedido em forçar o fato reprimido (seja este de natureza real ou psíquica) à aceitação do paciente, a despeito de todas as resistências, e conseguido, por assim dizer, reabilitá-lo — o paciente poderá dizer: ‘Sinto-me agora como se o houvesse sabido todo o tempo’. Com isto, o trabalho da análise se completa.

 

O MOISÉS DE MICHELANGELO

 

Posso dizer de saída que não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo. Tenho observado que o assunto obras de arte tem para mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora, para o artista, o valor delas esteja, antes de tudo, nestas. Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte. Confesso isto a fim de me assegurar da indulgência do leitor para a tentativa que aqui me propus.

Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta.

Isto me levou a reconhecer o ato — um paradoxo evidente — de que precisamente algumas das maiores e mais poderosas criações da arte constituem enigmas ainda não resolvidos pela nossa compreensão. Sentimo-nos cheios de admiração reverente por elas e as admiramos, mas somos incapazes de dizer o que representam para nós. Não tenho leitura suficiente do assunto para saber se esse fato já foi constatado; possivelmente, na verdade, alguém que escreva sobre estética já descobriu ser esse estado de perplexidade intelectual condição necessária para que uma obra de arte atinja seus maiores efeitos. Tenho a maior relutância em acreditar na necessidade dessa condição.

Não quero dizer que os conhecedores e aficionados da arte não encontrem palavras para exaltar esses objetos. Eles são bastante eloqüentes, segundo me parece. Mas, geralmente, diante de uma grande obra de arte, cada um diz algo diferente do outro e nenhum diz nada que resolva o problema para o admirador despretensioso. A meu ver, o que nos prende tão poderosamente só pode ser a intenção do artista, até onde ele conseguiu expressá-la em sua obra e fazer-nos compreendê-la. Entendo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão intelectual; o que ele visa é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produziu o ímpeto de criar. Mas por que a intenção do artista não poderia ser comunicada e compreendida em palavras, como qualquer outro fato da vida mental? Talvez, no que concerne às grandes obras de arte, isso nunca seja possível sem a aplicação da psicanálise. O próprio produto, no final de contas, tem de admitir uma tal análise, se é que realmente constitui uma expressão efetiva das intenções e das atividades emocionais do artista. Para descobrir sua intenção, contudo, tenho primeiro de descobrir o significado e o conteúdo do que se acha representado em sua obra; devo, em outras palavras, ser capaz de interpretá-la. É possível, portanto, que uma obra de arte desse tipo necessite de interpretação e que somente depois de tê-la interpretado poderei vir a saber por que fui tão fortemente afetado. Arrisco-me mesmo a esperar que o efeito da obra não sofrerá qualquer diminuição após termos conseguido analisá-la.

Consideremos a obra-prima de Shakespeare, Hamlet, peça hoje com mais de três séculos. Tenho acompanhado de perto a literatura psicanalítica e aceito sua pretensão de que somente depois de ter tido o material da tragédia sua origem remontada pela psicanálise ao tema edipiano é que o mistério de seu efeito foi por fim explicado. [Cf. A Interpretação de Sonhos, Ed. Standard Bras., vol. IV, 280-2.] Mas antes que isso fosse feito, que volume de esforços interpretativos diferentes e contraditórios, que variedade de opiniões sobre o caráter do herói e as intenções do dramaturgo! Pede Shakespeare a nossa simpatia para um homem doente, um alfenim fracassado ou um idealista que simplesmente é bom demais para o mundo real? E como muitas dessas interpretações nos deixam frios! — tão frios que em nada contribuem para explicar o efeito da peça, nos levando a pensar antes que o seu apelo mágico está apenas nos pensamentos impressionantes que expressa e no esplendor de sua linguagem. E no entanto esses próprios esforços não revelam a necessidade que sentimos de descobrir nela alguma fonte de poder além desses?

Outras dessas inescrutáveis e maravilhosas obras de arte é a estátua de mármore de Moisés, da autoria de Michelangelo, situada na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma. Como sabemos, ela constitui apenas um fragmento da tumba gigantesca que o artista deveria ter erigido para o poderoso Papa Júlio II. Sempre me deleita ler uma frase apreciativa sobre essa estátua, tal como ser ela ‘a coroa da escultura moderna’ (Grim [1900, 189]), porque nunca uma peça de estatuária me causou impressão mais forte do que ela. Quantas vezes subi os íngremes degraus que levam do desgracioso Corso Cavour à solitária piazza em que se ergue a igreja abandonada e tentei suportar o irado desprezo do olhar do herói! Às vezes saí tímida e cuidadosamente da semi-obscuridade do interior como se eu próprio pertencesse à turba sobre a qual seus olhos estão voltados — a turba que não pode prender-se a nenhuma convicção, que não tem nem fé nem paciência e que se rejubila ao reconquistar seus ilusórios ídolos.

Mas por que chamo de inescrutável essa estátua? Não há mais leve dúvida de que representa Moisés, o Legislador dos Judeus, segurando as Tábuas dos Dez Mandamentos. Até aí, tudo certo, mas é tudo. Ainda em 1912 um crítico de arte, Max Sauerlandt, disse: ‘Nenhuma obra de arte no mundo foi julgada de modo tão diverso quanto o Moisés com a cabeça de Pan. A simples interpretação da figura deu origem a pontos de vista completamente opostos (…)’ Baseando-me num ensaio publicado há apenas cinco anos, estabelecerei primeiro as dúvidas que se acham associadas a essa figura de Moisés; e não será difícil demonstrar que por detrás delas jaz oculto tudo o que é mais essencial e valioso para a compreensão dessa obra de arte.

 

                                                  I

 

O Moisés de Michelangelo é representado sentado; o corpo volta-se para frente, a cabeça com a pujante barba olha para a esquerda, o pé direito repousa sobre o solo e a perna esquerda acha-se levantada de maneira que apenas os artelhos tocam o chão. O braço direito une as Tábuas da Lei a uma parte da barba e o esquerdo repousa sobre o colo. Se fosse dar uma descrição mais pormenorizada de sua atitude, teria de antecipar o que desejo dizer mais tarde. As descrições da figura fornecidas por diversos escritores são, a propósito, curiosamente inadequadas. Aquilo que não se compreendeu foi imprecisamente percebido ou reproduzido. Grimm [1990, 189] diz que a mão direita, ‘sob cujo braço as Tábuas repousam, agarra a barba’. Assim também Lübke [1863, 666]: ‘Profundamente abalado, agarra com a mão direita sua magnífica barba a derramar-se (…)’; e Springer [1895, 33]: ‘Moisés aperta uma das mãos (a esquerda) contra o corpo e enfia a outra, como inconsciente, nos pujantes anéis de sua barba.’ Justi [1900, 326] pensa que os dedos da mão (direita) estão brincando com a barba, ‘como um homem agitado atualmente brincaria com a corrente do relógio’. Müntz [1895, 391n] também acentua esse brincar com a barba. Thode [1908, 205] fala da ‘calma e firme postura da mão direita sobre as Tábuas que repousam contra o flanco’. Não identifica nenhum sinal de excitação mesmo na mão direita, como fazem Justi e também Boito [1883]. ‘A mão permanece agarrando a barba, na posição em que se achava antes que o Titã voltasse a cabeça para um dos lados.’ Jakob Burckhardt [1927, 634] queixa-se de que ‘o celebrado braço esquerdo não tem na realidade outra função que apertar a barba contra o corpo’.

Se não há concordância em simples descrições, não é de surpreender uma divergência de opiniões quanto ao significado de diversas características da estátua. A meu ver, não podemos caracterizar melhor a expressão facial de Moisés que nas palavras de Thode [1908, 205], que lê nelas ‘uma mescla de ira, dor e desprezo’ — ‘ira em suas sobrancelhas ameaçadoramente contraídas, dor no olhar e desprezo no lábio inferior saliente e nos cantos da boca, voltados para baixo’. Mas outros admiradores devem tê-lo visto com outros olhos. Assim, Dupaty diz: ‘Sua majestosa fronte parece ser apenas um véu transparente, a semi-ocultar a grande mente’. Lübke [1863, 666-7], por outro lado, afirma que ‘procurar-se-ia em vão nessa cabeça uma expressão de inteligência superior; suas sobrancelhas voltadas para baixo de nada falam, a não ser de uma capacidade de ira infinita e de uma energia completamente submissa’. Guillaume (1876 [96]) difere ainda mais amplamente em sua interpretação da expressão do rosto. Nele não encontra emoção, mas ‘apenas uma orgulhosa simplicidade, uma dignidade inspirada, uma fé viva. Os olhos de Moisés encaram o futuro, ele prevê a sobrevivência duradoura de seu povo, a imutabilidade de sua lei’. De modo semelhante, para Müntz [1895, 391] ‘os olhos de Moisés fitam muito além da raça dos homens. Estão voltados para aqueles mistérios que somente ele divisou’. Para Steinmann [1899, 169], na realidade, este Moisés ‘não é mais o severo legislador, o terrível inimigo do pecado, armado da ira de Jeová, mas o sacerdote real, de quem o tempo não pode aproximar-se, beneficente e profético, com o reflexo da eternidade no semblante, recebendo o último adeus do seu povo’.

Houve mesmo alguns a quem o Moisés de Michelangelo nada teve a dizer e que foram suficientemente honestos para admiti-lo. Assim, disse um crítico da Quarterly Review de 1858 [103, 469]: ‘Há uma ausência de significado na concepção geral, que exclui a idéia de um todo auto-suficiente (…)’ E ficamos estupefactos ao saber que existem ainda outros que nada encontram a admirar no Moisés, mas se revoltam contra ele e queixam-se da brutalidade da figura e do molde animalesco da cabeça.

Teria então a mão do mestre realmente traçado na pedra uma mensagem tão vaga que torna possível tantas leituras diferentes dela?

Surge outra questão, contudo, que abrange a primeira. Pretendeu Michelangelo criar um ‘estudo eterno de caráter e estado de ânimo neste Moisés ou retratou-o num determinado momento de sua vida e, se assim foi, num momento altamente significativo? A maioria dos juízes decidiu pelo último sentido e pôde dizer-nos qual foi o episódio da vida de Moisés que o artista imortalizou na pedra. Foi a descida do Monte Sinai, onde Moisés recebera de Deus as Tábuas, o momento em que percebe que o povo havia naquele meio-tempo feito para si um Bezerro de Ouro e estava dançando em torno dele e rejubilando-se. Esse é o espetáculo que evoca os sentimentos representados em seu semblante — sentimentos que no instante seguinte colocarão sua grande compleição em ação violenta. Michelangelo escolheu esse último momento de hesitação, de calma antes da tempestade, para sua representação dele. No instante seguinte, Moisés se erguerá — seu pé esquerdo já se alçou do solo —, arremessará as Tábuas por terra e desencadeará sua cólera sobre o povo infiel.

Mais uma vez, muitas diferenças de opinião existem entre os que apóiam essa interpretação.

Burckhardt [1927, 634] escreve: ‘Moisés parece ser mostrado naquele momento em que avista a adoração do Bezerro de Ouro e está pondo-se repentinamente de pé. Sua forma se acha animada pelo começo de um poderoso movimento e a força física de que é dotado faz-nos esperá-lo com medo e tremor.’

Lübke [1863, 666] diz: ‘É como se nesse momento seus olhos faiscantes estivessem percebendo o pecado da adoração do Bezerro de Ouro e um poderoso movimento interno percorresse toda a sua estrutura. Profundamente abalado, agarra com a mão direita sua magnífica barba, como para dominar suas ações um instante ainda, apenas para que a explosão de sua ira se faça com força mais devastadora no momento seguinte.’

Springer [1885, 33] concorda com essa opinião, mas não sem mencionar uma suspeita, que posteriormente será objeto de nossa atenção neste artigo. Diz ele: ‘Inflamado de energia e zelo, é com dificuldade que o herói domina a emoção interior (…) Uma situação dramática nos vem assim involuntariamente à lembrança e somos levados a acreditar que Moisés é representado no momento em que vê o povo de Israel adorando o Bezerro de Ouro e sua ira está prestes a irromper. Não é fácil, na verdade, conciliar essa impressão com a intenção real do artista, desde que a figura de Moisés, como as outras cinco figuras sentadas da parte superior do túmulo do papa, fora concebida primariamente para ter um efeito decorativo. Mas ela testemunha muito convincentemente a vitalidade e a individualidade retratadas na figura de Moisés.

Um ou dois autores, sem na realidade aceitar a teoria do Bezerro de Ouro, concordam entretanto quanto ao ponto principal, ou seja, que Moisés está prestes a levantar-se e agir.

De acordo com Grimm [1900, 189], ‘a forma’ (de Moisés) ‘está cheia de uma majestade, uma autoconfiança, um sentimento de que todos os raios do céu estão sob seu comando, e todavia está se contendo antes de desencadeá-los, esperando ver se os inimigos a quem pretende aniquilar se atreverão a atacá-lo. Está sentado como se estivesse a ponto de levantar-se, a orgulhosa cabeça erguida; a mão, sob cujo braço as Tábuas repousam, agarra a barba, que lhe cai em pesadas ondas sobre o peito, as narinas distendidas e os lábios modelados como se neles tremessem palavras’.

Heath Wilson [1876, 450] acha que a atenção de Moisés foi despertada e que ele está a ponto de levantar-se de um salto, mas hesita ainda; e que seu olhar, mescla de desprezo e indignação, ainda é capaz de transformar-se num olhar de compaixão.

Wölfflin [1899, 72] fala de um ‘movimento inibido’. A causa dessa inibição, diz ele, reside na vontade do próprio homem; é seu último momento de autocontrole, antes de perdê-lo e levantar-se de um salto.

Justi [1900, 326-7] foi mais longe que todos os outros na interpretação da estátua de Moisés no ato de perceber o Bezerro de Ouro, apontando detalhes até então inobservados nela e incorporando-os à sua hipótese. Chama nossa atenção para a posição das duas Tábuas — posição fora do comum, porque estão a ponto de escorregar sobre o assento de pedra. ‘Ele’ (Moisés) ‘poderia estar assim olhando na direção donde provinha o alarido com uma expressão de mau presságio ou poderia ser a visão concreta da abominação que lhe aplicara um golpe estonteante. Trêmulo de horror e pesar, ele deixou-se cair. Passara na montanha quarenta dias e quarenta noites e estava cansado. Um horror, uma grande virada da sorte, um crime, até mesmo a felicidade podem ser percebidos num só momento, mas não apreendidos em sua essência, sua profundidade ou suas conseqüências. Por um instante, parece a Moisés que sua obra está destruída e perde toda a esperança no seu povo. Nesses momentos, as emoções interiores traem-se involuntariamente em pequenos movimentos. Deixa as Tábuas escorregarem da mão direita sobre o assento de pedra; elas caem sobre a quina e são pressionadas pelo antebraço contra o lado do corpo. A mão, entretanto, entra em contato com o peito e a barba, e assim, pelo voltar da cabeça para a direita do espectador, traz a barba para a esquerda, rompendo a simetria desse adorno masculino. Parece como se os dedos estivessem brincando com a barba, tal como um homem agitado atualmente brincaria com a corrente do relógio. A mão esquerda acha-se mergulhada nas vestes sobre a parte inferior do corpo — no Antigo Testamento, as vísceras são a sede das emoções — mas a perna esquerda já está retraída e a direita, posta à frente; no instante seguinte, se levantará de um salto, sua energia será transposta do pensamento para a ação, o braço direito se moverá, as Tábuas cairão ao solo e a transgressão vergonhosa será expiada em torrentes de sangue (…)’ ‘Este não é ainda o momento da tensão de um ato. O sofrimento da mente ainda o domina e quase o paralisa.’

Knapp [1906, XXXII] adota o mesmo ponto de vista, mas sem introduzir o ponto duvidoso no início da descrição nem levar mais adiante a idéia das Tábuas a escorregar. ‘Ele que até aquele momento se achava a sós com seu Deus é distraído por sons terrenos. Escuta um rumor; o ruído de cantos e danças desperta-o de seu sonho e volta os olhos e a cabeça na direção do alarido. Num só instante, medo, cólera e paixão desenfreada percorrem sua enorme estrutura. As Tábuas começar a escorregar e cairão ao solo e se quebrarão quando ele levantar-se de um salto e lançar o trovão irado de sua voz no meio de seu povo apóstata (…)’ Knapp, assim, enfatiza o elemento de preparação para ação, discordando da opinião de que o que se representa seja uma inibição inicial devida a uma agitação dominante.

Não se pode negar que há algo de extraordinariamente atraente em tentativas de interpretação do tipo efetuado por Justi e Knapp. Isto porque elas não se detêm no efeito geral da figura, mas se baseiam em características isoladas, as quais geralmente deixamos de notar, esmagados pela impressão total da estátua e, por assim dizer, paralisados por ela. A cabeça e os olhos visivelmente voltados para a esquerda, enquanto o corpo está voltado para a frente, apóiam a idéia de que Moisés em repouso subitamente viu naquele lado algo que prendeu sua atenção. Seu pé levantado dificilmente pode significar outra coisa que não seja estar se preparando para levantar-se de repente; e a maneira muito pouco comum de segurar as Tábuas (trata-se de objetos muito sagrados e não devem ter sido colocadas na composição como um acessório comum) fica inteiramente explicada se supusermos que elas escorregaram em conseqüência da agitação de seu portador e cairão ao solo. De acordo com essa opinião, devemos acreditar que a estátua representa um momento especial e importante na vida de Moisés e não teremos dúvida de que o momento seja este.

Mas duas observações de Thode nos privam do conhecimento que pensávamos ter adquirido. Esse crítico diz que para ele as Tábuas não estão escorregando, mas se acham ‘firmemente guardadas’. Chama a atenção para a ‘calma e firme postura da mão direita sobre as Tábuas em repouso’. Se nós próprios olharmos, não poderemos deixar de admitir sem reservas que Thode tem razão. As Tábuas acham-se firmemente alojadas e sem perigo de deslizar. A mão direita de Moisés as sustenta ou é sustentada por elas. Isso não explica a posição em que são mantidas, é verdade, mas essa posição não pode ser utilizada em favor da interpretação de Justi e de outros [Thode (1908), 205.]

A segunda observação é ainda mais definitiva. Thode nos lembra que ‘essa estátua foi planejada como uma entre seis e a intenção era fazê-la sentada. Ambos os fatos contradizem o ponto de vista de que Michelangelo pretende registrar um momento histórico particular, porque, com referência à primeira consideração, o plano de representar uma fileira de figuras sentadas como tipos de seres humanos — como a vita activa e a vita contemplativa — excluía a representação de um episódio histórico determinado e, em relação à segunda, a representação de uma postura sentada — postura necessária à concepção artística de todo o monumento — contradiz a natureza desse episódio, a saber, a descida de Moisés do Monte Sinai para o acampamento’.

Se aceitarmos a objeção de Thode, descobriremos que podemos acrescentar outros argumentos à sua ponderação. A figura de Moisés deveria ter decorado a base do túmulo juntamente com outras cinco estátuas (ou, segundo um esboço posterior, três). Sua contrapartida imediata deveria ser uma figura de Paulo. Um outro par, representando a vita activa  e a vita contemplativa sob a forma de Lia e Raquel — de pé, é verdade — foi executado na tumba, tal como ainda existe em sua forma infelizmente inacabada. O Moisés, assim, faz parte de um todo e não podemos imaginar que a figura se destinasse a despertar no espectador a expectativa de que estivesse prestes a pular de seu assento e atirar-se para criar um tumulto por sua própria conta. Se as outras figuras não fossem também representadas como estando prestes a empreender uma ação violenta — e parece muito pouco provável que o tivessem sido — então criaria uma impressão muito má uma delas dar-nos a ilusão de que iria deixar seu lugar e os companheiros ou, na verdade, abandonar seu papel no esquema geral. Tal intenção produziria um efeito caótico e não podemos atribuí-la a um grande artista, a menos que os fatos nos obriguem a fazê-lo. A figura no ato de urgente partida estaria em completo desacordo com o estado de espírito a que o túmulo pretende nos induzir.

A figura de Moisés não deve, por conseguinte, ser imaginada como estando prestes a levantar-se; deve-se-lhe permitir que permaneça como está, em sublime repouso, como as outras figuras e como a estátua proposta do Papa (a qual, entretanto, não foi executada pelo próprio Michelangelo). Mas então a estátua que vemos diante de nós não pode ser a de um homem cheio de ira, de Moisés quando desceu do Monte Sinai e encontrando seu povo sem fé, jogou por terra as Tábuas da Lei, quebrando-as. E, na verdade, posso relembrar minha própria desilusão quando, durante minhas primeiras visitas a San Pietro in Vincoli, costumava sentar-me em frente à estátua, na esperança de que então a visse levantar-se sobre o pé alçado, atirar ao chão as Tábuas da Lei e dar vazão a sua ira. Nada disso aconteceu. A imagem de pedra tornava-se cada vez mais imobilizada, uma calma quase opressivamente solene dela emanava e eu era obrigado a compreender que ali estava representado algo que permaneceria imutável; que aquele Moisés ficaria sentado assim, em sua cólera, para sempre.

Mas se desistimos da interpretação da estátua que a vê como Moisés exatamente antes da explosão de cólera provocada pela visão do Bezerro de Ouro, não teremos alternativa senão aceitar uma das hipóteses que a consideram como sendo um estudo de caráter. A opinião de Thode parece ser a menos arbitrária e a que tem mais estreita ligação com o significado dos movimentos. Diz ele: ‘Aqui, como sempre, [Michelangelo] está interessado em representar um certo tipo de caráter. Cria a imagem de um líder apaixonado da humanidade que, consciente de sua divina missão de legislador, defronta-se com a oposição incompreensiva dos homens. O único meio de representar um homem de ação desse tipo era acentuar a força de sua vontade, o que foi feito através de uma representação artística de movimento que impregna toda a sua aparente tranqüilidade, como percebemos no gesto da cabeça, na tensão dos músculos e na posição do pé esquerdo. São os mesmos sinais característicos que encontramos novamente no vir activus da Capela Médici em Florença. Esse caráter geral da figura é ainda acentuado pela enfatização do conflito que não pode deixar de surgir entre esse gênio reformador e o resto da humanidade. Emoções de ira, desprezo e sofrimento estão nele representadas. Sem elas, não teria sido possível retratar a natureza de um super-homem deste tipo. Michelangelo criou, não uma figura histórica, mas um tipo de caráter corporificando uma inesgotável força interior capaz de domar o mundo recalcitrante; e deu forma não apenas à narrativa bíblica de Moisés, mas às suas próprias experiências internas, às suas impressões tanto da individualidade do próprio Júlio como também, acredito, às fontes subjacentes dos perpétuos conflitos da Savonarola.’ [1908, 206.]

Pode-se estabelecer uma conexão entre esse ponto de vista e a observação de Knackfuss [1900, 69] de que o grande segredo do impacto produzido pelo Moisés está no contraste artístico entre a flama interior e a calma exterior de sua postura.

Quanto a mim, nada tenho a objetar à explicação de Thode; mas sinto falta de alguma coisa nela. Talvez seja a necessidade de descobrir um paralelo mais estreito entre o estado de espírito do herói, tal como se expressa em sua atitude, e o contraste acima mencionado entre a calma ‘exterior’ e a emoção ‘interior’.

 

                                                  II

 

Muito antes de ter tido qualquer oportunidade de ouvir falar em psicanálise, soube que um conhecedor de arte russo, Ivan Lermolieff, provocara uma revolução nas galerias de arte da Europa colocando em dúvida a autoria de muitos quadros, mostrando como distinguir com certeza as cópias dos originais e criando artistas hipotéticos para obras cuja suposição anterior de autoria fora desacreditada. Conseguiu isso insistindo em que a atenção deveria ser desviada da impressão geral e das características principais de um quadro, dando-se ênfase à significação de detalhes de menor importância, como o desenho das unhas, do lóbulo de uma orelha, de auréolas e de outras trivialidades não consideradas que o copista desdenha imitar e que, no entanto, cada artista executa à sua maneira própria e característica. Fiquei então extremamente interessado ao descobrir que o pseudônimo russo ocultava a identidade de um médico italiano chamado Morelli, que morrera em 1891 como Senador do Reino da Itália. Parece-me que seu método de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise que também está acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados ou inobservados, do monte de lixo, por assim dizer, de nossas observações.

Ora, em dois lugares da figura de Moisés há pormenores que até aqui não apenas escaparam à observação mas, na realidade, nem mesmo foram corretamente descritos. São a postura da mão direita e a posição das duas Tábuas da Lei. Podemos dizer que essa mão forma uma ligação muito singular e pouco natural, a pedir uma explicação, entre as Tábuas e a barba do herói cheio de cólera. Ele foi descrito como passando os dedos através da barba e brincando com seus anéis, enquanto a borda exterior da mão repousa sobre as Tábuas. Mas evidentemente não se trata disso. Vale a pena examinar mais de perto o que esses dedos da mão direita estão fazendo e descrever mais minuciosamente a pujante barba com a qual se acham em contato.

Percebemos agora muito claramente o seguinte: o polegar da mão está escondido e somente o dedo indicador se acha em contato efetivo com a barba. Está tão profundamente premido contra a massa de cabelos que esta se sobressai acima e abaixo dele, isto é, tanto no sentido da cabeça como do abdome. Os outros três dedos estão apoiados contra a caixa torácica e curvados nas juntas superiores, mal sendo tocados pela madeixa direita extrema da barba, que cai por trás deles. Por assim dizer, eles se afastaram da barba, de maneira que não é correto afirmar que a mão direita está brincando com ela ou nela mergulhada; a simples verdade é que o dedo indicador está pousado sobre uma parte da barba, provocando nesta uma profunda cava. Não se pode negar que apertar a própria barba com um só dedo é um gesto fora do comum, um gesto que não é fácil de entender.

A barba muito admirada de Moisés lhe cai das maçãs do rosto, queixo e lábio superior num certo número de madeixas onduladas que se mantêm distintas uma da outra até embaixo. Uma das madeixas à extrema direita, nascida no rosto, sofre a pressão do dedo indicador que a pressiona para dentro, retendo-a. Podemos presumir que ela retoma o seu curso entre esse dedo e o polegar oculto. A madeixa correspondente, do lado esquerdo, cai praticamente sem obstáculo até muito abaixo, sobre o peito. O que recebeu o tratamento mais estranho foi a espessa massa de cabelos no interior dessa última madeixa, a parte entre ela e a linha intermediária. Não se lhe deixou seguir o movimento da cabeça para a esquerda; foi forçada a enrolar-se frouxamente e formar parte de uma espécie de voluta colocada de través e por cima das madeixas do lado interior direito da barba. Isto se deu por ser ela mantida presa pela pressão do dedo indicador direito, embora nasça do lado esquerdo do rosto e seja, na realidade, a parte principal de todo o lado esquerdo da barba. Assim, a massa principal da barba é jogada para a direita da figura, enquanto a cabeça se acha acentuadamente voltada para a esquerda. No local em que o dedo indicador direito exerce a pressão, formou-se uma espécie de torvelinho de cabelos; madeixas de cabelos vindas da esquerda repousam sobre anéis vindos da direita, ambos apanhados por esse despótico dedo. Somente mais além desse local é que as massas de cabelos, desviadas de seu curso, fluem de novo livremente a passam a cair verticalmente até as extremidades se reunirem na mão esquerda de Moisés, aberta sobre o colo.

Não tenho ilusões quanto à clareza de minha descrição e não me aventuro a opinar se o escultor realmente nos convida a resolver o enigma desse nó na barba de sua estátua. Independentemente disso, porém, permanece o fato de que a pressão do indicador direito afeta principalmente as madeixas vindas do lado esquerdo; e que essa apreensão oblíqua impede a barba de acompanhar o movimento da cabeça e dos olhos para a esquerda. Ora, podemos nos perguntar o que significa essa disposição e a que motivos ela deve sua existência. Se foram realmente considerações de desenho linear e espacial que levaram o escultor a traçar a opulenta cascata de cabelos para a direita da figura que olha para a esquerda, que meio tão estranhamente inapropriado parece ser a pressão de um único dedo! E qual o homem que, por uma ou outra razão, puxando a barba para o outro lado poria na cabeça segurar uma das metades sobre a outra pela pressão de um só dedo? Todavia, terão essas minúcias alguma significação na realidade ou estaremos quebrando a cabeça com coisas que não foram de importância para o seu criador?

Mas prossigamos na suposição de que mesmo esses pormenores possuem significação. Há uma solução que removerá nossas dificuldades e permitirá o vislumbre de um novo significado. Se o lado esquerdo da barba de Moisés jaz sob a pressão de seu dedo direito, poderemos talvez tomar esse gesto como a última etapa de alguma conexão entre a mão direita e o lado esquerdo da barba, conexão que foi muito mais íntima, em algum momento antes do escolhido para a representação. Talvez sua mão houvesse segurado a barba com muito mais energia, atravessasse até o lado esquerdo desta e, ao retornar à posição em que a estátua a mostra, fosse seguida por uma parte da barba, que agora dá testemunho do movimento que acabou de realizar-se. A curva da barba seria então uma indicação do trajeto seguido por essa mão.

Desse modo teremos deduzido que houve um movimento de retorno da mão direita. Esta suposição necessariamente levanta outras. Em imaginação, completemos a cena de que este movimento, estabelecido pela prova da barba, é uma parte; e somos levados, muito naturalmente, à hipótese segundo a qual o Moisés em repouso foi subitamente despertado pelo clamor do povo e pelo espetáculo do Bezerro de Ouro. Estava lá sentado calmamente, vamos supor, a cabeça com a barba a fluir voltada para a frente e a mão, com toda probabilidade, nem estaria perto ela. De repente, o alarido chega aos seus ouvidos; volta a cabeça e os olhos na direção de onde provém o tumulto, vê a cena e a compreende. Então a cólera e a indignação tomam conta dele e tem vontade de se erguer e punir os transgressores, aniquilá-los. Sua ira, distante ainda de seu objetivo, é nesse meio tempo dirigida num gesto contra o próprio corpo. Sua mão impaciente, pronta para agir, aferra-se à barba que se moveu com o gesto da cabeça e a aperta entre o polegar e a palma no punho de ferro dos dedos a se fecharem. É um gesto cuja força e veemência fazem-nos lembrar outras criações de Michelangelo. Mas então uma alteração se efetua, se bem que ainda não saibamos como nem por quê. A mão que tinha sido levada à frente e mergulhara na barba é apressadamente retirada e aberta, e os dedos deixam sua presa; entretanto, tão profundamente eles tinham estado mergulhados que, na retirada, carregam consigo grande parte do lado esquerdo da barba para a direita, permanecendo esses cabelos colocados sobre os da direita, sob o peso de um só dedo, o principal e mais longo da mão. E essa nova posição, que só pode ser compreendida e relacionada com a anterior, é então mantida.

É tempo agora de parar e refletir. Presumimos que a mão direita se achava, de início, afastada da barba; que depois ela se estendeu para a esquerda da figura num momento de grande tensão emocional, agarrou a barba, e que finalmente foi retirada de novo, levando consigo uma parte da barba. Dispusemos desta mão direita como se tivéssemos o livre uso dela. Mas podemos fazer isso? É a mão na verdade tão livre? Não tem de agarrar ou sustentar as Tábuas? Não são evoluções miméticas como essas proibidas por sua importante função? E, além disso, o que poderia ter ocasionado sua retirada, se o motivo que a fez abandonar a posição original era tão forte?

Estamos, na verdade, diante de novas dificuldades. É inegável que a mão direita é responsável pelas Tábuas; e também que não temos nenhum motivo para explicar a retirada que lhe atribuímos. Mas se ambas as dificuldades pudessem ser solucionadas juntas e se então, e só então, apresentassem uma seqüência de acontecimentos clara e inter-relacionada? E se for precisamente algo que está acontecendo às Tábuas o que explica os movimentos da mão?

Se olharmos para o desenho da Fig. 4, veremos que as Tábuas apresentam uma ou duas notáveis características que até agora não foram consideradas dignas de menção. Foi dito que a mão direita repousa sobre as Tábuas ou, então, que as sustenta. E podemos perceber em seguida que as duas pequenas placas justapostas e retangulares se apóiam sobre uma quina. Se olharmos mais atentamente, notaremos que a borda inferior é de formato diferente da superior, que se acha inclinada obliquamente para frente. A borda superior é reta, enquanto que a inferior possui uma protuberância semelhante a um chifre na parte mais próxima de nós e que as Tábuas tocam o assento de pedra exatamente com essa protuberância. Qual pode ser o significado desse pormenor? É bastante evidente que a saliência se destine a assinalar o verdadeiro lado de cima das Tábuas, com referência à escrita. Somente a borda superior das placas retangulares deste tipo é curva ou entalhada. Assim, vemos que as Tábuas estão de cabeça para baixo, o que é uma maneira singular de tratar esses objetos sacros. Estão apoiadas sobre a parte superior e praticamente equilibradas sobre uma quina. Que consideração formal teria levado Michelangelo a colocá-las em tal posição? Ou esse pormenor também não foi importante para o artista?

Começamos a suspeitar que também as Tábuas chegaram à sua atual posição em conseqüência de um movimento anterior; que esse movimento resultou da mudança de posição da mão direita, por nós postulada, e que, por sua vez, obrigou essa mão a fazer sua retirada subseqüente. Os movimentos da mão e das Tábuas podem ser coordenados da seguinte maneira: a princípio a figura de Moisés, que ainda estava sentada tranqüilamente, carregava as Tábuas perpendicularmente sob o braço direito. Sua mão direita agarrava a borda inferior delas e encontrava um apoio na saliência existente em sua parte dianteira. (O fato de isso torná-las mais fáceis de carregar explica suficientemente a posição invertida como as Tábuas eram seguradas.) Chegou então o momento em que a calma de Moisés foi rompida pelo tumulto. Voltou a cabeça na direção deste e, ao ver o espetáculo, levantou o pé num movimento preparatório para levantar-se, a mão abandonou as Tábuas precipitando-se para a esquerda e para cima, barba a dentro, como para voltar sua violência contra o próprio corpo. As Tábuas ficaram então entregues à pressão do braço, que teve de apertá-las contra o lado do corpo. Mas esse apoio não foi suficiente e elas começaram a deslizar para a frente e para baixo. A borda superior, que fora segurada horizontalmente, começou então a voltar-se para a frente e para baixo; e a borda inferior, privada de seu apoio, aproximou-se do assento de pedra com sua quina frontal. Mais um instante e as Tábuas teriam girado sobre esse novo ponto de apoio, atingido o solo com a borda de cima em primeiro lugar e se despedaçado. Foi para impedir isto que a mão direita retornou, deixou escapar a barba, uma parte da qual foi com ela trazida de volta sem intenção, encontrou a borda superior das Tábuas a tempo e segurou-as perto da quina traseira, que agora se havia tornado a mais elevada.

Dessa maneira, o ar singularmente forçado do conjunto — barba, mão e Tábuas inclinadas — pode ser atribuído àquele apaixonado movimento da mão e suas naturais conseqüências. Se quisermos inverter os efeitos desses movimentos tempestuosos, teremos de levantar a quina superior frontal das Tábuas e empurrá-la de volta, levantando assim sua quina frontal inferior (a da protuberância) do assento de pedra; e, depois, abaixar a mão direita e trazê-la para baixo da, agora horizontal, borda inferior das Tábuas.

Encomendei a um artista três desenhos para ilustrar o que quero dizer. A Fig. 3 reproduz a estátua como realmente é; as Figs. 1 e 2 representam as fases anteriores, de acordo com minha hipótese: a primeira, de calma, a segunda, da mais alta tensão, na qual a figura se prepara para levantar-se repentinamente e despreocupou-se das Tábuas que segurava, de modo que estas estão começando a escorregar para baixo. Ora, é notável como as duas posturas nos desenhos imaginários justificam as descrições incorretas dos primeiros escritores. Condivi, contemporâneo de Michelangelo, diz: ‘Moisés, o capitão e líder dos hebreus, está sentado na atitude de um sábio contemplativo, segundo as Tábuas da Lei sob o braço direito e apoiando o queixo na mão esquerda (!), como alguém cansado e cheio de preocupações’. Tal atitude não pode ser discernida na estátua de Michelangelo, mas descreve quase exatamente a visão em que o primeiro desenho se baseia. Lübke escreve, juntamente com outros críticos: ‘Profundamente abalado, agarra com a mão direita sua magnífica barba a derramar-se’. Isso é incorreto se olharmos para a reprodução da estátua real, mas é verdadeiro quanto ao segundo esboço. (Fig. 2). Justi e Knapp observaram, como já vimos, que as Tábuas estão a ponto de escorregar e acham-se em perigo de se quebrarem. Thode corrigiu-os e demonstrou que as Tábuas encontram-se seguramente retidas pela mão direita; contudo, estariam com a razão se estivessem descrevendo, não a própria estátua, mas o estágio intermediário da reconstrução. É como se tivessem se emancipado da imagem visual da estátua e começado inconscientemente uma análise das forças motivadoras existentes por trás dela, tendo sido conduzidos por essa análise às mesmas conclusões que nós expressamos de modo mais consciente e explícito.

 

                                                  III

 

Podemos agora, creio eu, começar a colher os frutos de nossos esforços. Vimos como muitos daqueles que sentiram a influência da estátua foram impelidos a interpretá-los como representando Moisés perturbado pelo espetáculo de seu povo desviado do estado de graça, a dançar em torno de um ídolo. Mas essa interpretação teve de ser abandonada, porque nos fazia esperar vê-lo levantar-se no momento seguinte, quebrar as Tábuas e realizar sua vingança. Tal concepção, no entanto, não se harmonizaria com a intenção de fazer dessa figura, juntamente com mais três (ou cinco) figuras sentadas, uma parte do túmulo de Júlio II. Podemos agora retomar a interpretação abandonada, porque o Moisés que reconstruímos não vai se levantar nem jogar fora as Tábuas. O que vemos diante de nós não é o início de uma ação violenta, mas os restos de um movimento já efetuado. Em seu primeiro transporte de fúria, Moisés desejou agir, levantar-se, vingar-se e esquecer as Tábuas; mas dominou a tentação e permanecerá sentado e quieto, com sua ira congelada e seu sofrimento mesclado de desprezo. Tampouco atira fora as Tábuas, de maneira a que se quebrem sobre as pedras, pois foi por sua causa especial que controlou a ira; foi para preservá-las que manteve contida sua paixão. Ao dar expressão à sua cólera e indignação, teve de abandonar as Tábuas e a mão que as retinha foi afastada. Elas começaram a deslizar e ficaram em perigo de se quebrarem. Isso o trouxe a si. Lembrou-se de sua missão e, por causa dela, renunciou à satisfação de seus sentimentos. Sua mão retornou e salvou as Tábuas desapoiadas antes que caíssem realmente ao solo. Nessa atitude permaneceu imobilizada e foi nela que Michelangelo o retratou como guardião do túmulo.

À medida que nossos olhos percorrem a estátua de cima para baixo, a figura apresenta três estados emocionais distintos. As linhas do rosto refletem os sentimentos que predominaram; o meio da figura mostra os traços do movimento reprimido; e o pé ainda permanece na atitude da ação projetada. É como se a influência controladora houvesse avançado de cima para baixo. Nenhuma menção se faz até agora ao braço esquerdo e ele parece solicitar uma parte em nossa interpretação. A mão repousa no colo num gesto suave e segura como numa carícia a extremidade da barba que flui. É como se ela quisesse neutralizar a violência com que a outra mão havia maltratado a barba alguns instantes antes.

Mas aqui se objetará que, em última análise, este não é o Moisés da Bíblia, porque este realmente teve uma crise de ira, jogou longe as Tábuas e quebrou-as. Este Moisés deve se um homem inteiramente diferente, um novo Moisés da concepção do artista, sendo assim, Michelangelo deve ter tido a presunção de emendar o texto sacro e falsificar o caráter daquele santo homem. Poderemos imaginá-lo capaz de uma audácia que, quase se poderia dizer, aproxima-se de um ato de blasfêmia?

A passagem das Sagradas Escrituras que descreve a ação de Moisés na cena do Bezerro de Ouro é assim: (Êxodo, XXXII, 7) ‘Então disse o Senhor a Moisés: Vai, desce; porque o teu povo, que fizeste subir do Egito, se tem corrompido; (8) E depressa se tem desviado do caminho que eu lhes tinha ordenado: fizeram para si um bezerro de fundição, e perante ele se inclinaram, e sacrificaram-lhe, e disseram: Estes são os teus deuses, ó Israel, que te tiraram da terra do Egito. (9) Disse mais o Senhor a Moisés: Tenho visto a este povo e eis que é povo obstinado. (10) Agora pois deixa-me, que o meu furor se acenda contra eles, e os consuma, e eu farei de ti uma grande nação. (11) Porém Moisés suplicou ao Senhor seu Deus, e disse: Oh, Senhor, por que se acende o teu furor contra o teu povo, que tu tiraste da terra do Egito com grande força e com forte mão? (…)’

‘(14) Então o Senhor arrependeu-se do mal que dissera que havia de fazer ao seu povo. (15) E voltou Moisés, e desceu do monte com as duas tábuas do testemunho na sua mão, tábuas escritas de ambas as bandas; de uma e de outra banda escritas estavam. (16) E aquelas tábuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida nas tábuas. (17) E, ouvindo Josué a voz do povo que jubilava, disse a Moisés: Alarido de guerra há no arraial. (18) Porém ele disse: Não é alarido dos vitoriosos, nem alarido dos vencidos, mas o alarido dos que cantam eu ouço. (19) E aconteceu que, chegando ele ao arraial, e vendo o bezerro e as danças, acendeu-se o furor de Moisés, e arremessou as tábuas de suas mãos, e quebrou-as ao pé do monte; (20) E tomou o bezerro que tinham feito, e queimou-o no fogo, moendo-o até que se tornou em pó; e o espargiu sobre as águas, e deu-o a beber aos filhos de Israel.(…)’

‘(30) E aconteceu que no dia seguinte Moisés disse ao povo: vós pecastes grande pecado: agora porém subirei ao Senhor; porventura farei propiciação por vosso pecado. (31) E assim tornou Moisés ao Senhor, e disse: Ora, este povo pecou pecado grande, fazendo para si deuses de ouro. (32) Agora pois perdoa o seu pecado, senão risca-me, peço-te, do teu Livro, que tens escrito. (33) Então disse o Senhor a Moisés: Aquele que pecar contra mim, a este riscarei eu do meu livro. (34) Vai pois agora, conduze este povo para onde te tenho dito: eis que o meu anjo irá adiante de ti; porém no dia de minha visitação, visitarei neles o seu pecado. (35) Assim feriu o Senhor o povo, porquanto fizeram o bezerro que Aarão tinha feito.’

É impossível ler a passagem acima à luz da crítica moderna da Bíblia sem encontrar provas de que ela é uma reunião canhestra de diversas fontes. No versículo 8 o próprio Senhor diz a Moisés que seu povo se arruinou e fez para si um ídolo; e Moisés intercede pelos transgressores. Entretanto, ele fala a Josué como se nada soubesse disso (18) e tem subitamente a ira despertada quando vê a cena da adoração do Bezerro de Ouro (19). No versículo 14, já obteve um perdão de Deus para o seu povo transviado, mas, no entanto, no versículo 31 retorna à montanha para implorar esse perdão e conta a Deus do pecado de seu povo, sendo-lhe assegurado o adiamento do castigo. O versículo 35 fala de uma visitação do seu povo pelo Senhor, sobre a qual nada mais nos é informado, enquanto que os versículos 20-30 descrevem a punição que o próprio Moisés aplicou. É do conhecimento geral que as partes históricas da Bíblia, que tratam do Êxodo, estão cheias de incongruências e contradições ainda mais gritantes.

A Renascença naturalmente não tinha tal atitude crítica para com o texto da Bíblia, mas tinha de aceitá-la como um todo harmônico, resultando daí não ser a passagem em questão um tema muito bom para representação. De acordo com as Escrituras, Moisés já se achava informado da idolatria de seu povo e ficara do lado da suavidade e do perdão; não obstante, quando viu o Bezerro de Ouro e a multidão a dançar, foi tomado de um súbito frenesi de raiva. Dessa maneira, não seria surpreendente para nós descobrir que o artista, ao retratar a reação do herói a essa dolorosa surpresa, se houvesse se desviado do texto por motivos internos. Ademais, esses desvios do texto das escrituras sob pretextos muito mais leves não eram de maneira alguma fora do comum ou proibidos aos artistas. Um famoso quadro de Parmigiano, propriedade de sua cidade natal, representa Moisés sentado no alto de uma montanha e arremessando as Tábuas ao solo, embora a Bíblia diga expressamente que ele as quebrou ‘ao pé do monte’. Mesmo a representação de um Moisés sentado não encontra apoio no texto e parece antes corroborar aqueles críticos que sustentam que a estátua de Michelangelo não pretende registrar nenhum momento particular da vida do profeta.

Mais importante que sua infidelidade ao texto das Escrituras é a alteração que, em nossa suposição, Michelangelo fez no caráter de Moisés. O Moisés da lenda e da tradição tinha um temperamento impetuoso e era sujeito a crises de paixão. Foi num transporte de ira divina desse tipo que matou um egípcio que estava maltratando um israelita, e teve de fugir do país para o deserto; sendo numa explosão semelhante que quebrou as Tábuas da Lei, escritas pelo próprio Deus. A tradição, ao registrar tal característica, é imparcial e preserva a impressão de uma grande personalidade que outrora viveu. Mas Michelangelo colocou um Moisés diferente na tumba do Papa, um Moisés superior ao histórico ou tradicional. Modificou o tema das Tábuas quebradas; não permite que Moisés as quebre em sua ira, mas faz que ele seja influenciado pelo perigo de que se quebrem e o faz acalmar essa ira, ou, pelo menos, impedi-la de transformar-se em ato. Dessa maneira, acrescentou algo de novo e mais humano à figura de Moisés; de modo que a estrutura gigantesca, com a sua tremenda força física, torna-se apenas uma expressão concreta da mais alta realização mental que é possível a um homem, ou seja, combater com êxito uma paixão interior pelo amor de uma causa a que se devotou.

Completamos agora a nossa interpretação da estátua de Michelangelo, embora ainda se possa perguntar que motivos induziram o escultor a escolher a figura de Moisés, e de um Moisés tão grandemente alterado, para decoração do túmulo de Júlio II. Na opinião de muitos, esses motivos podem ser encontrados no caráter do Papa e nas relações de Michelangelo com ele. Júlio II tinha afinidades com Michelangelo no que se referia haver tentado realizar objetivos grandes e formidáveis e, especialmente, projetos em grande escala. Era um homem de ação e tinha um propósito definido, o de unir a Itália sob a supremacia papal. Desejou realizar sozinho o que deveria levar ainda vários séculos para ser realizado e, mesmo então, somente através da conjunção de forças estranhas; trabalhou só, com impaciência, no curto período de soberania que lhe foi concedido, e utilizou meios violentos. Podia apreciar Michelangelo como um homem de sua própria espécie, mas muitas vezes o fez sofrer com sua ira repentina e sua completa falta de consideração pelos outros. O artista sentia em si próprio a mesma violenta força de vontade e, como pensador mais introspectivo, pode ter tido uma premonição do fracasso a que ambos se achavam condenados. Assim, esculpiu seu Moisés na tumba do Papa, não sem uma censura ao pontífice morto, mas também como uma advertência a si próprio, elevando-se, pois, através da autocrítica, a um nível superior à sua própria natureza.

 

                                                  IV

 

Em 1863, um inglês, Watkiss Lloyd, dedicou um livrinho ao Moisés de Michelangelo. Consegui encontrar esse pequeno ensaio de 46 páginas e li-o com uma mistura de sentimentos. Mais uma vez tive oportunidade de verificar em mim próprio que motivos indignos e pueris entram em nossos pensamentos e atuam mesmo numa causa séria. Meu primeiro sentimento foi de pesar por haver o autor antecipado uma parte tão grande de meus pensamentos, a qual me parecia preciosa por ser o resultado de meus próprios esforços; e só depois disso é que pude extrair prazer de sua inesperada confirmação de minha opinião. Nossos pontos de vista, contudo, divergem num ponto muito importante.

Lloyd observa em primeiro lugar que as descrições costumeiras da figura são incorretas e que Moisés não se encontra no ato de levantar-se que a mão direita não está agarrando a barba, mas que apenas o dedo indicador repousa sobre ela. Lloyd também reconhece, e isso é muito mais importante, que a atitude retratada só pode ser explicada pela postulação de uma outra anterior, que não se acha representada, e que o desenho da madeixa esquerda da barba puxada para a direita significa que a mão direita e o lado esquerdo da barba, num estágio anterior, estiveram em contato mais estreito e natural. Mas sugere outra maneira de reconstruir o contato anterior que deve necessariamente ser presumido. De acordo com ele, não fora a mão que estivera mergulhada na barba, mais sim esta que se achara onde a mão agora se encontra. Devemos, diz ele, imaginar que exatamente antes da interrupção súbita a cabeça da estátua estava voltada bem para a direita, sobre a mão que, então como agora, se achava segurando as Tábuas da Lei. A pressão (das Tábuas) sobre a palma da mão fez com que os dedos se abrissem naturalmente sob as fluentes madeixas da barba e o repentino movimento da cabeça para o outro lado resultou em que parte da barba ficou detida por um instante pela mão imóvel, formando a curva de cabelos que deve ser encarada como um sinal do curso que aquela tomou — o ‘seu rastro’, para empregar a própria palavra utilizada por Lloyd.

Rejeitando a outra possibilidade, a da mão direita ter estado anteriormente em contato com o lado esquerdo da barba, Lloyd permitiu-se influenciar por uma consideração que mostra quão próximo chegou de nossa interpretação. Diz que não era possível ao profeta, mesmo em muito grande agitação, estender a mão para puxar a barba até a direita, porque, nesse caso, os dedos se encontrariam numa posição completamente diferente e, além disso, tal movimento teria permitido que as Tábuas escorregassem, uma vez que se achariam sustentadas apenas pela pressão do braço direito — a menos que, no esforço de Moisés para salvá-las no último momento, nós a concebêssemos como ‘agarradas por um gesto tão desajeitado que imaginá-lo é uma profanação’.

É fácil perceber o que o escritor passou por cima. Interpretou corretamente as anomalias da barba como indicadoras de um movimento anterior, mas deixou de aplicar a mesma explicação aos pormenores, tão pouco naturais quanto aquelas, da posição das Tábuas. Examina apenas os dados relacionados com a barba e não os ligados às Tábuas, cuja posição presume ser a original. Dessa maneira, fecha a porta a uma concepção como a nossa que, pelo exame de certos pormenores insignificantes, chegou a uma interpretação inesperada do significado e do objetivo da figura como um todo.

Mas, e se ambos nos tivermos extraviado por um caminho errado? Se houvermos tomado de maneira demasiado séria e profunda uma visão de detalhes que nada são para o artista, detalhes que introduziu de modo inteiramente arbitrário ou por razões puramente formais, sem nenhuma intenção oculta por trás deles? Se houvermos partilhado o destino de tantos intérpretes que pensaram perceber muito claramente coisas que o artista não pretendeu, nem consciente, nem inconscientemente? Não posso dizer. Não posso dizer se é razoável creditar Michelangelo — artista em cujas obras existem tantos pensamentos lutando por expressão — com uma falta de precisão tão elementar e, especialmente, se isso pode ser presumido em relação às notáveis e singulares características da estátua que estamos examinando. E, finalmente, nos será permitido ressaltar, com toda a modéstia, que o artista não é menos responsável que os intérpretes pela obscuridade que circunda sua obra. Em suas criações, com bastante freqüência, Michelangelo foi até o limite máximo do que é exprimível em arte; e talvez na estátua de Moisés não tenha alcançado um êxito completo, se é que sua intenção era tornar visível a passagem de uma violenta rajada de paixão através dos sinais deixados por ela na calma que se seguiu.

 

POSTSCRIPT (1927)

 

Vários anos depois da publicação de meu artigo sobre o Moisés de Michelangelo, que apareceu anonimamente em Imago, em 1914, o Dr. Ernest Jones muito gentilmente enviou-me um exemplar do número de abril do Burlington Magazine de 1921 (Vol. XXXVIII) que não podia deixar de renovar mais uma vez, meu interesse pela interpretação da estátua que originalmente sugeri. O número contém (ver em [1] e [2]) um breve artigo da autoria de H. P. Mitchel sobre dois bronzes do século XII, atualmente no Ashomolean Museum, de Oxford, atribuídos a um notável artista daquela época, Nicolau de Verdun. Possuímos outras obras da mesma mão em Tournay, Arras e Klosterneuburg, perto de Viena; sua obra-prima é considerada o Santuário dos Três Reis, em Colônia.

Uma das duas estatuetas descritas por Mitchell, de pouco mais de 9 polegadas de altura, é identificável, além de qualquer dúvida, como um Moisés, por causa das duas Tábuas da Lei que segura na mão. Também este Moisés é representado sentado, envolto num manto ondulado. Seu rosto expressa uma forte paixão, mesclada, talvez, de pesar; e a mão agarra a longa barba e aperta suas madeixas entre a palma e o polegar, como se fosse um vício. Ela está portanto, fazendo o mesmo gesto que postulei na Fig. 2 de meu artigo anterior como um estágio preliminar da atitude em que Michelangelo o esculpiu.

Uma olhada à ilustração anexa mostrará a principal diferença entre as duas composições, separadas uma da outra por um intervalo de mais de três séculos. O Moisés do artista da Lorena está segurando as Tábuas por sua borda superior, com a mão esquerda, apoiando-as no joelho. Se as transferíssemos para o outro lado do corpo e as colocássemos sob o braço direito, teríamos estabelecido a postura preliminar do Moisés de Michelangelo. Se minha opinião sobre o gesto de segurar a barba é correto, então o Moisés do ano de 1180 mostra-nos um instante durante sua tempestade de sentimentos, enquanto que a estátua de San Pietro in Vincoli retrata a calma sobrevinda após a tempestade.

Em minha opinião, essa nova prova aumenta a probabilidade de que a interpretação que tentei em 1914 seja correta. Talvez algum conhecedor de arte possa preencher o hiato existente, no tempo, entre o Moisés de Nicolau de Verdun e o Moisés do Mestre da Renascença Italiana, dizendo-nos onde podem ser encontrados exemplos de representações de Moisés pertencentes ao período intermediário.

 

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PSICOLOGIA ESCOLAR

 

Temos uma sensação esquisita, quando, já na idade madura, mais uma vez recebemos ordem de fazer uma redação escolar. Mas obedecemos automaticamente, como o velho soldado que, à voz de ‘Sentido!’, deixa cair o que tiver nas mãos e se surpreende com os dedos mínimos apertados de encontro às costuras das calças. É estranho como obedecemos às ordens prontamente, como se nada de particular houvesse acontecido no último meio-século. Mas, na realidade, ficamos velhos nesse intervalo, estamos às vésperas de nosso sexagésimo aniversário e as nossas sensações físicas, bem como o espelho, mostram inequivocamente quanto a vela de nossa vida já se queimou.

Talvez há dez anos atrás, pudéssemos ter tido ainda momentos em que, de repente, nos sentíamos novamente jovens. Caminhando pelas ruas de Viena — já de barbas grisalhas e vergados por todas as preocupações da vida familiar — podíamos encontrar inesperadamente algum cavalheiro idoso e bem conservado, ao qual saudávamos quase humildemente, porque o reconhecêramos como um de nossos antigos professores. Mas depois parávamos e refletíamos: ‘Seria realmente ele? Ou apenas alguém muito semelhante? Como parece jovem! E como estamos velhos! Que idade poderá ter hoje? Será possível que os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos, sejam realmente tão pouco mais velhos que nós?’

Em momentos como esse, costumava achar que o tempo presente parecia mergulhar na obscuridade e os anos entre os dez e os dezoito surgiam dos escaninhos da memória, com todas as suas conjeturas e ilusões, suas deformações dolorosas e seus incentivadores sucessos — meus primeiros vislumbres de uma civilização extinta (que, no meu caso, deveria trazer-me tanta compensação quanto tudo o mais nas lutas da vida), meus primeiros contatos com as ciências, entre as quais me parecia aberta a escolha daquela à qual dedicaria os meus indubitavelmente inestimáveis serviços. E pareço relembrar que, durante todo esse tempo, tinha a premonição de uma tarefa futura, até que esta encontrou expressão manifesta na minha redação de despedida da escola, como um desejo de que pudesse, no decurso de minha vida, contribuir com algo para o nosso conhecimento humano.

Mais tarde tornei-me médico — ou antes, psicólogo — e pude criar uma nova disciplina psicológica, conhecida como ‘psicanálise’, que desperta atualmente um interesse excitado e é acolhida com louvores e ataques por médicos e investigadores de países vizinhos e terras distantes e estrangeiras — menos, naturalmente, em nosso próprio país.

 

Como psicanalista, estou destinado a me interessar mais pelos processos emocionais que pelos intelectuais, mais pela vida mental inconsciente que pela consciente. Minha emoção ao encontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores. Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos — porque não admitir outros tantos? — ela foi por causa disso definitivamente bloqueada.

Nós os cortejávamos ou lhes virávamos as costas; imaginávamos neles simpatias e antipatias que provavelmente não existiam; estudávamos seus caráteres e sobre estes formávamos ou deformávamos os nossos. Eles provocavam nossa mais enérgica oposição e forçavam-nos a uma submissão completa; bisbilhotávamos suas pequenas fraquezas e orgulhávamos-nos de sua excelência, seu conhecimento e sua justiça. No fundo, sentíamos grande afeição por eles, se nos davam algum fundamento para ela, embora não possa dizer quantos se davam conta disso. Mas não se pode negar que nossa posição em relação a eles era notável, uma posição que bem pode ter tido suas inconveniências para os interessados. Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinados a amá-los e a odiá-los, a criticá-los e a respeitá-los. A psicanálise deu nome de ‘ambivalência’ a essa facilidade para atitudes contraditórias e não tem dificuldade em indicar a fonte de sentimentos ambivalentes desse tipo.

A psicanálise nos mostrou que as atitudes emocionais dos indivíduos para com outras pessoas que são de tão extrema importância para seu comportamento posterior, já estão estabelecidas numa idade surpreendentemente precoce. A natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo e do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de sua vida. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções mas não pode mais livrar-se delas. As pessoas a quem se acha assim ligada são os pais e irmãos e irmãs. Todos que vem a conhecer mais tarde tornam-se figuras substitutas desses primeiros objetos de seus sentimentos. (Deveríamos talvez acrescentar aos pais algumas outras pessoas como babás, que dela cuidaram na infância.) Essas figuras substitutas podem classificar-se, do ponto de vista da criança, segundo provenham do que chamamos as ‘imagos’, do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, e assim por diante. Seus relacionamentos posteriores são assim obrigados a arcar com uma espécie de herança emocional, defrontam-se com simpatias e antipatias para cuja produção esses próprios relacionamentos pouco contribuíram. Todas as escolhas posteriores de amizade e amor seguem a base das lembranças deixadas por esses primeiros protótipos.

De toda as imagens (imagos)) de uma infância que, via de regra, não é mais recordada, nenhuma é mais importante para um jovem ou um homem que a do pai. A necessidade orgânica introduz na relação de um homem com o pai uma ambivalência emocional que encontramos expressa de forma mais notável no mito grego do rei Édipo. Um rapazinho está fadado a amar e a admirar o pai, que lhe parece ser a mais poderosa, bondosa e sábia criatura do mundo. O próprio Deus, em última análise, é apenas uma exaltação dessa imagem do pai, tal como é representado na mente durante a mais tenra infância. Cedo, porém, surge o outro lado da relação emocional. O pai é identificado como o perturbador máximo da nossa vida instintiva; torna-se um modelo não apenas a ser imitado, mas também a ser eliminado para que possamos tomar o seu lugar. Daí em diante, os impulsos afetuosos e hostis para com ele persistem lado a lado, muitas vezes, até o fim da vida, sem que nenhum deles seja capaz de anular o outro. É nessa existência concomitante de sentimentos contrários que reside o caráter essencial daquilo que chamamos de ambivalência emocional.

Na segunda metade da infância, dá-se uma mudança na relação do menino com o pai — mudança cuja importância não pode ser exagerada. De seu quarto de criança, o menino começa a vislumbrar o mundo exterior e não pode deixar de fazer descobertas que solapam a alta opinião original que tinha sobre o pai e que apressam o desligamento de seu primeiro ideal. Descobre que o pai não é o mais poderoso, sábio e rico dos seres; fica insatisfeito com ele, aprende a criticá-lo, a avaliar o seu lugar na sociedade; e então, em regra, faz com que ele pague pesadamente pelo desapontamento que lhe causou. Tudo que há de admirável, e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai.

É nessa fase do desenvolvimento de um jovem que ele entra em contato com os professores, de maneira que agora podemos entender a nossa relação com eles. Estes homens, nem todos pais na realidade, tornaram-se nossos pais substitutos. Foi por isso que, embora ainda bastante jovens, impressionaram-nos como tão maduros e tão inatingivelmente adultos. Transferimos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos nossos pais em casa. Confrontamo-los com a ambivalência que tínhamos adquirido em nossas próprias famílias, e, ajudados por ela, lutamos como tínhamos o hábito de lutar com nossos pais em carne e osso. A menos que levemos em consideração nossos quartos de crianças e nossos lares, nosso comportamento para com os professores seria não apenas incompreensível, mas também indesculpável.

Como escolares, tivemos outras e um pouco menos importantes experiências com os sucessores de nossos irmãos e irmãs — nossos colegas de escola — mas estas devem ser descritas em outra oportunidade. Numa comemoração do jubileu de nossa escola, é aos professores que nossos pensamentos devem ser dirigidos.

                                                                                            

 

                      

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