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FREUD - Volume XIV (1914-1016)
FREUD - Volume XIV (1914-1016)

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OBRAS COMPLETAS DO DR. SIGMUND FREUD

Volume XIV  

 

A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos

 

A HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO (1914)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

ZUR GESCHICHTE DER  PSYCHOANALYTUSCHEN BEWEGUNG

 

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1914 Jb. Psychoan., 6, 207-260.

1918 S.K.S.N., 4, 1-77. (1922, 2ª ed.)

1924 G.S., 4, 411-480.

1924 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. Pág. 72.

1946 G.W., 10, 44-113.

 

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

“The History of the Psychoanalytic Movement”

1916 Psychoan. Rev., 3, 406-454. (Trad. A. A. Brill.)

1917 Nova Iorque: Nervous & Mental Disease Publishing Co. (Série de  Monografias Nº 25). Pág. 58. (Mesmo tradutor.)

1938 Em The Basic Writings of Sigmund Freud. Nova Iorque: Modern     Librar. Págs. 933-977. (Mesmo tradutor.)

“On the History of the Psycho-Analytic Movement”

1924 C.P., 1, 287-359. (Trad. Joan Riviere.)

 

A presente tradução é uma versão modificada da publicada em 1924.

Nas edições alemãs anteriores a 1924 a data ‘fevereiro de 1914’ aparece no final da obra. Parece de fato ter sido escrita em janeiro e fevereiro daquele ano. Algumas alterações de menor importância foram feitas na edição de 1924, tendo-se acrescentado a longa nota de rodapé nas págs. 33-4. Esta somente agora está sendo publicada em inglês.

Um relato completo da situação que levou Freud a escrever esta obra é apresentado no Capítulo V do segundo volume de sua biografia escrita por Ernest Jones (1955, 142 e seg.) Aqui basta fazer um pequeno resumo da situação. As discordâncias de Adler quanto aos pontos de vista de Freud culminaram em 1910, e as de Jung uns três anos depois. Apesar das divergências que os afastaram de Freud, ambos persistiam, entretanto, em descrever suas teorias como “psicanálise”. A finalidade do presente artigo foi estabelecer claramente os postulados e hipóteses fundamentais da psicanálise, demonstrar que as teorias de Adler e Jung eram totalmente incompatíveis com eles, e inferir que só levaria à confusão conjuntos de pontos de vista contraditórios receberem todos a mesma designação. E embora por muitos anos a opinião popular continuasse a insistir em que havia “três escolas de psicanálise”, o argumento de Freud finalmente prevaleceu. Adler já escolhera a designação de “Psicologia Individual” para as suas teorias e logo depois Jung adotou a de “Psicologia Analítica” para as suas.

A fim de tornar os princípios essenciais da psicanálise perfeitamente simples, Freud traçou a história do seu desenvolvimento desde os primórdios pré-analíticos. A primeira seção do artigo abrange o período em que ele próprio foi a única pessoa interessada — isto é, até cerca de 1902. A segunda seção continua a história até mais ou menos 1910 —, época em que os pontos de vista psicanalíticos começaram a se estender a círculos mais amplos. Só na terceira seção é que Freud chega ao exame dos pontos de vista dissidentes, primeiro de Adler e a seguir Jung, e assinala os pontos fundamentais em que eles se afastam das descobertas da psicanálise. Nessa última seção e também de uma certa maneira no restante do artigo, encontramos Freud adotando um tom muito mais beligerante do que em qualquer outro dos seus trabalhos. E, tendo em vista suas experiências nos três ou quatro anos anteriores, esse estado de humor diferente não pode ser considerado surpreendente.

Debates sobre os pontos de vista de Adler e Jung encontram-se em duas outras obras de Freud contemporâneas à presente. No artigo sobre “Narcisismo” (1914c), que vinha sendo elaborado quase na mesma época que a “História”, alguns parágrafos de discordância de Jung aparecem no final da Seção I (S.E., 14, págs. 79 e segs.) e um trecho semelhante sobre Adler no início da Seção III (pág. 92). A anamnese do “Homem Lobo” (1918b), escrita sobretudo no fim de 1914, embora somente publicada (com trechos adicionais) em 1918, destinou-se em grande parte a uma refutação empírica de Adler e Jung, e encerra muitos ataques contra as suas teorias. Nas obras ulteriores de Freud existem muitas referências esparsas a essas controvérsias (principalmente em trabalhos expositivos ou semi-autobiográficos), mas estes são sempre em tom mais seco e nunca muito extensos. Menção especial, entretanto, deve ser feita a uma discussão rigorosamente argumentada dos pontos de vista de Adler sobre as forças motoras conducentes à repressão na seção final do artigo de Freud sobre as fantasias de espancamento (1919e), S. E., 17, págs. 201 segs.

Quanto aos aspectos puramente históricos e autobiográficos da obra, deve-se observar que Freud repetiu mais ou menos o que se encontra em seu Estudo Autobiográfico (1925d), embora o Estudo suplemente este trabalho em alguns pontos. Para uma abordagem bem mais ampla do assunto, o leitor deve procurar a biografia de Freud, em três volumes, escrita por Ernest Jones. Nas notas de rodapé à presente tradução não se tentou seguir o mesmo caminho trilhado por aquela obra.

 

FLUCTUAT NEC MERGITUR (NO BRASÃO DA CIDADE DE PARIS)

 

                                              I

Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribuição que me proponho trazer à história do movimento psicanalítico, nem deve causar surpresa o papel que nela desempenho, pois a psicanálise é criação minha; durante dez anos fui a única pessoa que se interessou por ela, e todo o desagrado que o novo fenômeno despertou em meus contemporâneos desabafou sobre a minha cabeça em forma de críticas. Embora de muito tempo para cá eu tenha deixado de ser o único psicanalista existente, acho justo continuar afirmando que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu o que é a psicanálise, em que ela difere de outras formas de investigação da vida mental, o que deve precisamente ser denominado de psicanálise e o que seria melhor chamar de outro nome qualquer. Ao repudiar assim o que me parece nada menos que uma usurpação, estou indiretamente levando ao conhecimento dos leitores deste Jahrbuch os fatos que provocaram modificações em sua editoria e formato.

Em 1909, no salão de conferências de uma universidade norte-americana, tive a primeira oportunidade de falar em público sobre a psicanálise. A ocasião foi de grande importância para a minha obra, e movido por este pensamento declarei então que não havia sido eu quem criara a psicanálise: o mérito cabia a Joseph Breuer, cuja obra tinha sido realizada numa época em que eu era apenas um aluno preocupado em passar nos exames (1880-2). Depois que fiz aquelas conferências, entretanto, alguns amigos bem intencionados suscitaram em mim uma dúvida: não teria eu, naquela oportunidade, manifestado minha gratidão de uma maneira exagerada? Na opinião deles, devia ter feito o que já estava acostumado a fazer: encarado o “método catártico” de Breuer como um estágio preliminar da psicanálise, e a psicanálise em si como tendo tido início quando deixei de usar a técnica hipnótica e introduzi as associações livres. Seja como for, não tem grande importância que a história da psicanálise seja considerada como tendo início com o método catártico ou com a modificação que nele introduzi; menciono esse detalhe pouco interessante simplesmente porque certos adversários de psicanálise têm o hábito de lembrar vez por outra que, afinal de contas, a arte da psicanálise não foi invenção minha e sim de Breuer. Isto só acontece, naturalmente, quando seus pontos de vista permitem que eles vejam na psicanálise algo merecedor de atenção, pois, quando há uma rejeição absoluta, nem se discute que a psicanálise é obra somente minha. Que eu saiba, a grande participação que teve Breuer na criação da psicanálise jamais fez cair sobre ele o equivalente em críticas e injúrias. Como há muito já reconheci que provocar oposição e despertar rancor é o destino inevitável da psicanálise, cheguei à conclusão de que devo ser eu o verdadeiro criador do que lhe é mais característico. Alegra-me poder acrescentar que nenhuma dessas tentativas de minimizar meu papel na criação desta tão difamada psicanálise jamais partiu de Breuer, nem contou sequer com seu apoio.

As descobertas de Breuer já foram descritas tantas vezes que posso dispensar um exame detalhado das mesmas aqui. O fundamental delas era o fato de que os sintomas de pacientes histéricos baseiam-se em cenas do seu passado que lhes causaram grande impressão mas foram esquecidas (traumas); a terapêutica, nisto apoiada, que consistia em fazê-los lembrar e reproduzir essas experiências num estado de hipnose (catarse); e o fragmento de teoria disto inferido, segundo o qual esses sintomas representavam um emprego anormal de doses de excitação que não haviam sido descarregadas (conversão). Sempre que Breuer, em sua contribuição teórica aos Estudos Sobre a Histeria (1895), referia-se a esse processo de conversão, acrescentava meu nome entre parênteses, como se coubesse a mim a prioridade desta primeira tentativa de avaliação teórica. Creio que, na realidade, esta distinção só se aplica ao termo, e que a concepção nos ocorreu simultaneamente e em conjunto.

É sabido também que depois de Breuer ter feito sua primeira descoberta do método catártico deixou-o de lado durante anos e só veio a retomá-lo por instigação minha, quando de volta dos meus estudos com Charcot. Breuer tinha uma grande clientela que exigia muito dele; quanto a mim, apenas assumira a contragosto a profissão médica, mas tinha naquela época um forte motivo para ajudar as pessoas que sofriam de afecções nervosas ou pelo menos para desejar compreender algo sobre o estado delas. Adotei a fisioterapia, e me senti completamente desanimado com os resultados desapontadores do meu estudo da Elektrotherapie de Erb [1882], que apresentava tantas indicações e recomendações. Se na época não cheguei por conta própria à conclusão que Moebius estabeleceu depois — de que os êxitos do tratamento elétrico em doentes nervosos são efeito de sugestão —, foi, sem dúvida alguma, apenas por causa da total ausência desses prometidos êxitos. O tratamento pela sugestão durante a hipnose profunda, que aprendi através das impressionantes demonstrações de Liébeault e Bernheim, pareciam então oferecer um substituto satisfatório para o malogrado tratamento elétrico. Mas a prática de investigar pacientes em estado hipnótico, com a qual me familiarizou Breuer — prática que combinava um modo de agir automático com a satisfação da curiosidade científica — era, sem dúvida, incomparavelmente mais atraente do que as proibições monótonas e forçadas usadas no tratamento pela sugestão, proibições que criavam um obstáculo a qualquer pesquisa.

Há pouco tempo nos foi dada uma sugestão — que se propunha representar um dos mais recentes desenvolvimentos da psicanálise —, no sentido de que o conflito do momento e o fator desencadeante da doença devem ser trazidos para o primeiro plano na análise. Ora, isto era exatamente o que Breuer e eu fazíamos quando começamos a trabalhar com o método catártico. Conduzíamos a atenção do paciente diretamente para a cena traumática na qual o sintoma surgira e nos esforçávamos por descobrir o conflito mental envolvido naquela cena, e por liberar a emoção nela reprimida. Ao longo deste trabalho, descobrimos o processo mental, característico das neuroses, que chamei depois de “regressão”. As associações do paciente retrocediam, a partir da cena que tentávamos elucidar, até as experiências mais antigas, e compeliam a análise, que tencionava corrigir o presente, a ocupar-se do passado. Esta regressão nos foi conduzindo cada vez mais para trás; a princípio parecia nos levar regularmente até a puberdade; em seguida, fracassos e pontos que continuavam inexplicáveis levaram o trabalho analítico ainda mais para trás, até os anos da infância que até então permaneciam inacessíveis a qualquer espécie de exploração. Essa direção regressiva tornou-se uma característica importante da análise. Era como se a psicanálise não pudesse explicar nenhum aspecto do presente sem se referir a algo do passado; mais ainda, que toda experiência patogênica implicava uma experiência prévia que, embora não patogênica em si, havia, não obstante, dotado esta última de sua qualidade patogênica. Entretanto, a tentação de limitar a atenção ao fator desencadeante conhecido, do momento, era tão forte que, mesmo em análises posteriores, cedi a ela. Na análise da paciente a quem dei o nome de “Dora” [1905e], realizada em 1899, tive conhecimento da cena que ocasionou a irrupção da doença daquele momento. Tentei inúmeras vezes submeter essa experiência à análise, mas nem mesmo exigências diretas conseguiram da paciente mais que a mesma descrição pobre e incompleta. Só depois de ter sido feito um longo desvio, que a levou de volta à mais tenra infância, surgiu um sonho que, ao ser analisado, lhe trouxe à mente detalhes daquela cena, até então esquecidos, e assim uma compreensão e solução do conflito do momento tornaram-se possíveis.

Este único exemplo mostra quanto desacerto havia na sugestão acima referida e que grau de regressão científica representaria o abandono, por ela proposto, da regressão na técnica analítica.

Minha primeira divergência com Breuer surgiu de uma questão relativa ao mecanismo psíquico mais apurado da histeria. Ele dava preferência a uma teoria que, se poderia dizer, ainda era até certo ponto fisiológica; tentava explicar a divisão mental nos pacientes histéricos pela ausência de comunicação entre vários estados mentais (“estados de consciência”, como os chamávamos naquela época), e construiu então a teoria dos “estados hipnóides” cujos produtos se supunham penetrar na “consciência desperta” como corpos estranhos não assimilados. Eu via a questão de forma menos científica; parecia discernir por toda parte tendências e motivos análogos aos da vida cotidiana, e encarava a própria divisão psíquica como o efeito de um processo de repulsão que naquela época denominei de “defesa”, e depois de “repressão”. Fiz uma tentativa efêmera de permitir que os dois mecanismos existissem lado a lado separados um do outro, mas como a observação me mostrava sempre uma única e mesma coisa, dentro de pouco tempo minha teoria da “defesa” passou a se opor à teoria “hipnóide” de Breuer.

Estou bem certo, contudo, de que esta oposição entre os nossos pontos de vista nada teve que ver com o rompimento de nossas relações que se seguiu pouco depois. Este teve causas mais profundas, mas ocorreu de forma tal que de início não o compreendi; só depois é que, através de claras indicações, pude interpretá-lo. Como se sabe, Breuer disse de sua primeira e famosa paciente que o elemento de sexualidade estava surpreendentemente não desenvolvido nela e que em nada contribuíra para o riquíssimo quadro clínico do caso. Sempre fiquei a imaginar por que os críticos não citam com mais freqüência esta afirmação de Breuer como argumento contra minha alegação referente à etiologia sexual das neuroses, e até hoje não sei se devo considerar a omissão como prova de tato ou de descuido da parte deles. Quem quer que leia agora a história do caso de Breuer à luz dos conhecimentos adquiridos nos últimos vinte anos, perceberá, de imediato, o simbolismo nele existente — as cobras, o enrijecimento, a paralisia do braço — e, levando em conta a situação da jovem à cabeceira do pai enfermo, facilmente chegará à verdadeira interpretação dos sintomas; a opinião do leitor sobre o papel desempenhado pela sexualidade na vida mental da paciente será, portanto, bem diferente daquela do seu médico. No tratamento desse caso, Breuer usou, para com a paciente, de um rapport sugestivo muito intenso, que nos poderá servir como um perfeito protótipo do que chamamos hoje de “transferência”. Tenho agora fortes razões para suspeitar que, depois de ter aliviado todos os sintomas de sua cliente, Breuer deve ter descoberto por outros indícios a motivação sexual dessa transferência, mas que a natureza universal deste fenômeno inesperado lhe escapou, resultando daí que, como se tivesse sido surpreendido por um “fato inconveniente”, ele tenha interrompido qualquer investigação subseqüente. Breuer nunca me falou isso assim, mas me disse o bastante em diferentes ocasiões para justificar esta minha reconstituição do acontecido. Quando depois comecei, cada vez com mais persistência, a chamar a atenção para a significação da sexualidade na etiologia das neuroses, ele foi o primeiro a manifestar a reação de desagrado e repúdio que posteriormente iria tornar-se tão familiar a mim, mas que naquela ocasião eu não tinha ainda aprendido a reconhecer como meu destino inexorável.

O surgimento da transferência sob forma francamente sexual — seja de afeição ou de hostilidade —, no tratamento das neuroses, apesar de não ser desejado ou induzido pelo médico nem pelo paciente, sempre me pareceu a prova mais irrefutável de que a origem das forças impulsionadoras da neurose está na vida sexual. A este argumento nunca foi dado o grau de atenção que ele merece, pois se isso tivesse acontecido, as pesquisas neste campo não deixariam nenhuma outra conclusão em aberto. No que me diz respeito, este argumento continua a ser decisivo, mas decisivo mesmo do que qualquer das descobertas mais específicas do trabalho analítico.

O consolo que tive em face da reação negativa provocada, mesmo no meu círculo de amigos mais íntimos, pelo meu ponto de vista de uma etiologia sexual nas neuroses — pois formou-se rapidamente um vácuo em torno de mim —, foi o pensamento de que estava assumindo a luta por uma idéia nova e original. Mas, um belo dia, vieram-me à mente certas lembranças que perturbaram esta idéia agradável, mas que, por outro lado, me proporcionaram uma percepção (insight) valiosa dos processos da atividade criativa humana e da natureza dos conhecimentos humanos. A idéia pela qual eu estava me tornando responsável de modo algum se originou em mim. Fora-me comunicada por três pessoas cujos pontos de vista tinham merecido meu mais profundo respeito — o próprio Breuer, Charcot e Chrobak, o ginecologista da universidade, talvez o mais eminente de todos os nossos médicos de Viena. Esses três homens me tinham transmitido um conhecimento que, rigorosamente falando, eles próprios não possuíam. Dois deles, mais tarde, negaram tê-lo feito quando lhes lembrei o fato; o terceiro (o grande Charcot) provavelmente teria feito o mesmo se me tivesse sido dado vê-lo novamente. Mas essas três opiniões idênticas, que ouvira sem compreender, tinham ficado adormecidas em minha mente durante anos, até que um dia despertaram sob a forma de uma descoberta aparentemente original.

Um dia, quando eu era ainda um jovem médico residente, passeava com Breuer pela cidade, quando se aproximou de nós um homem que evidentemente desejava falar-lhe com urgência. Deixei-me ficar para trás. Logo que Breuer ficou livre, contou-me com seu jeito amistoso e instrutivo que aquele homem era marido de uma paciente sua e que lhe trouxera algumas notícias a respeito dela. A esposa, acrescentou, comportava-se de maneira tão peculiar em sociedade que lhe fora levada para tratamento como um caso de doença nervosa. Concluiu ele: “Estas coisas são sempre “secrets d’alcôve!” Perguntei-lhe assombrado o que queria dizer e respondeu explicando-me o termo alcôve (“leito conjugal”), pois não se deu conta de quão extraordinário o assunto de sua declaração me parecia.

Alguns anos depois, numa recepção em casa de Charcot, aconteceu-me estar de pé perto do grande mestre no momento em que ele parecia estar contando a Brouardel uma história muito interessante sobre algo que me ocorrera durante o trabalho do dia. Mal ouvi o início, mas pouco a pouco minha atenção foi-se prendendo ao que ele dizia: um jovem casal de um país distante do Oriente — a mulher, um caso de doença grave, o homem impotente ou excessivamente desajeitado. “Tâchez donc”, ouvi Charcot repetindo, “jê vous assure, vous y arriverez”. Brouardel, que falava mais baixo, deve ter externado o seu espanto de que sintomas como os da esposa pudessem ter sido produzidos por tais circunstâncias, pois Charcot de súbito irrompeu com grande animação: “Mais, dans des cas pareils, c’est toujours la chose génitale, toujours… toujours… toujours”; e cruzou os braços sobre o estômago, abraçando-se a si mesmo e pulando para cima e para baixo na ponta dos pés várias vezes com a animação que lhe era característica. Sei que por um momento fiquei quase paralisado de assombro e disse para mim mesmo: “Mas se ele sabe disso, por que não diz nunca?”. Mas a impressão logo foi esquecida; a anatomia do cérebro e a indução experimental de paralisias histéricas absorviam todo o meu interesse.

Um ano depois, iniciara a minha carreira médica em Viena como professor-adjunto de doenças nervosas, e em relação a tudo o que dizia respeito à etiologia das neuroses ainda era tão ignorante e inocente quanto se poderia esperar de um aluno promissor recém-saído de uma universidade. Certo dia, recebi um recado simpático de Chrobak, pedindo-me que visse uma cliente sua a quem não podia dedicar o tempo necessário, por causa de sua recente nomeação para o cargo de professor universitário. Cheguei à casa da cliente antes dele e verifiquei que ela sofria de acessos de ansiedade sem sentido, e só conseguia se acalmar com informações precisas de onde se encontrava o seu médico a cada momento do dia. Quando Chrobak chegou, levou-me a um canto e me disse que a ansiedade da paciente era devida ao fato de que, embora estivesse casada há dezoito anos, ainda era virgo intacta. O marido era absolutamente impotente. Nesses casos, disse ele, o médico nada podia fazer a não ser resguardar esta infelicidade doméstica com sua própria reputação, e resignar-se quando as pessoas dessem de ombros e dissessem dele: “Não vale nada se não pode curá-la depois de tantos anos”. A única receita para essa doença acrescentou, nos é bastante familiar, mas não podemos prescrevê-la. É a seguinte:

                                   “R. Penis normalis dosim repetatur!”

Jamais ouvira tal receita, e tive vontade de fazer ver ao meu protetor que eu reprovava o seu cinismo.

Não revelei a paternidade ilustre desta idéia escandalosa com o intuito de atribuir a outros a responsabilidade dela. Dou-me conta muito bem de que uma coisa é externar uma idéia uma ou duas vezes sob a forma de um aperçu passageiro, e outra bem diferente é levá-la a sério, tomá-la ao pé da letra e persistir nela, apesar dos detalhes contraditórios, até conquistar-lhe um lugar entre as verdades aceitas.

É a diferença entre um flerte fortuito e um casamento legal com todos os seus deveres e dificuldades. “Épouser les idées de…” não é uma figura de linguagem pouco comum, pelo menos em francês.

Entre os outros novos fatores que foram acrescentados ao processo catártico como resultado de meu trabalho e que o transformou em psicanálise, posso mencionar em particular a teoria da repressão e da resistência, o reconhecimento da sexuaidade infantil e a interpretação e exploração de sonhos como fonte de conhecimento do inconsciente.

A teoria da repressão sem dúvida alguma ocorreu-me independentemente de qualquer outra fonte; não sei de nenhuma impressão externa que me pudesse tê-la sugerido, e por muito tempo imaginei que fosse inteiramente original, até que Otto Rank (1911a) nos mostrou um trecho da obra de Schopenhauer World as Will and Idea na qual o filósofo procura dar uma explicação da loucura. O que ele diz sobre a luta contra a aceitação da parte dolorosa da realidade coincide tão exatamente com o meu conceito de repressão que, mais uma vez, devo a chance de fazer uma descoberta ao fato de não ser uma pessoa muito lida. Entretanto, outros leram o trecho e passaram por ele sem fazer essa descoberta e talvez o mesmo tivesse acontecido a mim se na juventude tivesse tido mais gosto pela leitura de obras filosóficas. Em anos posteriores, neguei a mim mesmo o enorme prazer da leitura das obras de Nietzsche, com o propósito deliberado de não prejudicar, com qualquer espécie de idéias antecipatórias, a elaboração das impressões recebidas na psicanálise. Tive, portanto, de me preparar — e com satisfação — para renunciar a qualquer pretensão de prioridade nos muitos casos em que a investigação psicanalítica laboriosa pode apenas confirmar as verdades que o filósofo reconheceu por intuição.

A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e todavia nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um neurótico sem recorrer a hipnose. Em tais casos encontra-se uma resistência que se opõe ao trabalho da análise e, a fim de frustrá-lo, alega falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte, a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose. A consideração teórica, decorrente da coincidência dessa resistência com uma amnésia, conduz inevitavelmente ao princípio da atividade mental inconsciente, peculiar à psicanálise, e que também a distingue muito nitidamente das especulações filosóficas em torno do inconsciente. Assim talvez se possa dizer que a teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes no passado: a transferência e a resistência. Qualquer linha de investigação que reconheça esses dois fatos e os tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus. Mas quem quer que aborde outros aspectos do problema, evitando essas duas hipóteses, dificilmente poderá escapar à acusação de apropriação indébita por tentativa de imitação, se insistir em chamar-se a si próprio de psicanalista. Eu me oporia com maior ênfase a quem procurasse colocar a teoria da repressão e da resistência entre as premissas da psicanálise em vez de colocá-las entre as suas descobertas. Essas premissas, de natureza psicológica e biológica geral, na verdade existem e seria útil considerá-las em outra ocasião; mas a teoria da repressão é um produto do trabalho psicanalítico, uma inferência teórica legitimamente extraída de inúmeras observações.

Outro produto dessa espécie foi a hipótese da sexualidade infantil. Isto, porém, foi feito numa data muito ulterior. Nos primeiros dias da investigação experimental pela análise, não se pensou em tal coisa. De início, observou-se apenas que os efeitos das experiências presentes tinham de ser remontados a algo no passado. Mas os investigadores geralmente encontram mais do que procuram. Fomos puxados cada vez mais para o passado; esperávamos poder parar na puberdade, período ao qual se atribui tradicionalmente o despertar dos impulsos sexuais. Mas em vão; as pistas conduziam ainda mais para trás, à infância e aos seus primeiros anos. No caminho, tivemos de superar uma idéia errada que poderia ter sido quase fatal para a nova ciência. Influenciados pelo ponto de vista de Charcot quanto à origem traumática da histeria, estávamos de pronto inclinados a aceitar como verdadeiras e etiologicamente importantes as declarações dos pacientes em que atribuíam seus sintomas a experiências sexuais passivas nos primeiros anos da infância — em outras palavras, à sedução. Quando essa etiologia se desmoronou sob o peso de sua própria improbabilidade e contradição em circunstâncias definitivamente verificáveis, ficamos, de início, desnorteados. A análise nos tinha levado até esses traumas sexuais infantis pelo caminho certo e, no entanto, eles não eram verdadeiros. Deixamos de pisar em terra firme. Nessa época, estive a ponto de desistir por completo do trabalho, exatamente como meu estimado antecessor, Joseph Breuer, quando fez sua descoberta indesejável. Talvez tenha perseverado apenas porque já não tinha outra escolha e não podia então começar uma outra coisa. Por fim, veio a reflexão de que, afinal de contas, não se tem o direito de desesperar por não ver confirmadas as próprias expectativas; deve-se fazer uma revisão dessas expectativas. Se os pacientes histéricos remontam seus sintomas e traumas que são fictícios, então o fato novo que surge é precisamente que eles criam tais cenas na fantasia, e essa realidade psíquica precisa ser levada em conta ao lado da realidade prática. Essa reflexão foi logo seguida pela descoberta de que essas fantasias destinavam-se a encobrir a atividade auto-erótica dos primeiros anos de infância, embelezá-la e elevá-la a um plano mais alto. E agora, de detrás das fantasias, toda a gama da vida sexual da criança vinha à luz.

Com a atividade sexual dos primeiros anos de infância também foi reconhecida a constituição herdada do indivíduo. A disposição e a experiência estão aqui ligadas numa unidade etiológica indissolúvel, pois a disposição exagera impressões — que de outra forma teriam sido inteiramente comuns e não teriam nenhum efeito —, de modo a transformá-las em traumas que dão margem a estímulos e fixações; por outro lado, as experiências despertam fatores na disposição que, sem elas, poderiam ter ficado adormecidos por muito tempo e talvez nunca se desenvolvessem. Abraham (1907) deu a última palavra sobre a questão da etiologia traumática quando ressaltou que a constituição sexual peculiar às crianças é calculada precisamente para provocar experiências sexuais de uma natureza particular, ou seja, traumas.

No começo, minhas declarações sobre a sexualidade infantil basearam-se quase exclusivamente nos achados, da análise de adultos, que remontavam ao passado. Não tive nenhuma oportunidade de fazer observações diretas em crianças. Foi, portanto, uma grande vitória quando, anos depois, tornou-se possível confirmar quase todas as minhas deduções através da observação direta e da análise de crianças muito pequenas — vitória que foi perdendo a sua magnitude à medida que pouco a pouco compreendíamos que a natureza da descoberta era tal que na realidade deveríamos envergonhar-nos de ter tido de fazê-la. Quanto mais se levassem adiante as observações em crianças, mais evidentes os fatos se tornavam; porém o mais surpreendente de tudo era constatar que tivesse havido tanta preocupação em menosprezá-los.

Essa convicção da existência e da importância da sexualidade infantil, entretanto, só pode ser obtida, pelo método da análise, partindo-se dos sintomas e peculiaridades dos neuróticos e acompanhando-os até suas fontes últimas, cuja descoberta então explica o que há nelas de explicável e permite que se modifique o que há de modificável.

Compreendo que se possa chegar a resultados diferentes se, como fez recentemente C. G. Jung, se forma primeiro uma concepção teórica da natureza do instinto sexual e procura-se então explicar a vida das crianças a partir dessa base. Uma concepção dessa natureza será forçosamente uma escolha arbitrária ou dependente de considerações irrelevantes, e corre o risco de evidenciar-se inadequada ao campo a que se está procurando aplicá-la. É verdade que também o método analítico leva a certas dificuldades e obscuridades finais no tocante à sexualidade e à sua relação com a vida total do indivíduo. Mas esses problemas não podem ser eliminados pela especulação; devem aguardar solução através de outras observações ou mediante observações em outros campos.

Pouco preciso dizer sobre a interpretação de sonhos. Surgiu como os prenúncios da inovação técnica que eu adotara quando, após um vago pressentimento, resolvi substituir a hipnose pela livre associação. Minha busca de conhecimentos não se dirigira, de início, para a compreensão dos sonhos. Não sei de nenhuma influência externa que tivesse atraído meu interesse para esse assunto ou que me tivesse inspirado qualquer expectativa valiosa. Antes de Breuer e eu nos separarmos, apenas tinha tido tempo de comunicar-lhe, e numa única frase, que eu, àquela altura, estava sabendo como traduzir os sonhos. Visto ter sido assim a descoberta, conclui-se que o simbolismo na linguagem dos sonhos foi quase a última coisa a tornar-se acessível a mim, pois as associações da pessoa que sonha nos ajudam muito pouco a compreender símbolos. Como tenho o hábito de estudar sempre as próprias coisas antes de procurar informações sobre elas em livros, pude chegar eu mesmo ao simbolismo dos sonhos antes de ser a ele levado pela obra de Scherner sobre o assunto [1861]. Só depois é que vim a apreciar em sua plena extensão essa modalidade de expressão dos sonhos. Isso ocorreu em parte por influência das obras de Stekel, cujos primeiros trabalhos têm muito mérito, mas que depois se desencaminhou totalmente. A estreita ligação entre a interpretação psicanalítica dos sonhos e a arte de interpretá-los segundo a prática tida em tão alta conta na antigüidade, só tornou-se clara para mim muito depois. Mais tarde, descobri a característica essencial e a parte mais importante da minha teoria dos sonhos, ou seja, que a distorção dos sonhos é conseqüência de um conflito interno, uma espécie de desonestidade interna — num autor que embora ignorando a medicina, não ignorava a filosofia, o famoso engenheiro J. Popper, que publicou sua Phantasien einer Realisten [1899] sob o nome de Lynkeys.

A interpretação de sonhos foi para mim um alívio e um apoio naqueles árduos primeiros anos da análise, quando tive de dominar a técnica, os fenômenos clínicos e a terapêutica das neuroses, tudo ao mesmo tempo. Naquele período fiquei completamente isolado e, no emaranhado de problemas e acúmulo de dificuldades, muitas vezes tive medo de me desorientar e de perder a confiança em mim mesmo. A comprovação de minha hipótese de que uma neurose tinha de tornar-se inteligível através da análise se arrastava, em muitos pacientes, por um período de tempo desesperador; mas os sonhos desses pacientes, que poderiam ser considerados análogos aos seus sintomas, quase sempre confirmavam a hipótese.

Foi o meu êxito nessa direção que me permitiu perseverar. Vem dessa época o hábito que adquiri de aferir a medida da compreensão de um psicólogo pela sua atitude em face da interpretação de sonhos; e tenho observado com satisfação que a maior parte dos adversários da psicanálise evitam esse campo por completo, ou então, revelam uma flagrante inabilidade quando tentam lidar com ele. Além do mais; logo me dei conta da necessidade de levar a efeito uma auto-análise, e o fiz com a ajuda de uma série de meus próprios sonhos que me conduziram de volta a todos os fatos da minha infância, sendo ainda hoje de opinião que essa espécie de análise talvez seja o suficiente para uma pessoa que sonhe com freqüência e não seja muito anormal.

Com este relato da história do desenvolvimento da psicanálise creio ter mostrado, melhor do que com uma descrição sistemática, o que ela é. De início não percebi a natureza peculiar do que descobrira. Sem hesitar, sacrifiquei minha crescente popularidade como médico, e restringi o número de clientes nas minhas horas de consulta, para poder proceder a uma investigação sistemática dos fatores sexuais em jogo na causação das neuroses de meus pacientes; e isso me trouxe um grande número de fatos novos que finalmente confirmavam minha convicção quanto à importância prática do fator sexual. Ingenuamente dirigi-me a uma reunião da Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena, presidida então por Krafft-Ebing (cf. Freud, 1896c), na esperança de que as perdas materiais que voluntariamente sofri fossem compensadas pelo interesse e reconhecimento dos meus colegas. Considerava minhas descobertas contribuições normais à ciência e esperava que fossem recebidas com esse mesmo espírito. Mas o silêncio provocado pelas minhas comunicações, o vazio que se formou em torno de mim, as insinuações que me foram dirigidas, pouco a pouco me fizeram compreender que as afirmações sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses não podem contar com o mesmo tipo de tratamento dado ao comum das comunicações. Compreendi que daquele momento em diante eu passara a fazer parte do grupo daqueles que “perturbaram o sono do mundo”, como diz Hebbel e que não poderia contar com objetividade e tolerância. Entretanto, desde que minha convicção quanto à exatidão geral de minhas observações e conclusões era cada vez maior, e que a confiança no meu próprio julgamento e minha coragem moral não era exatamente o que se pode chamar de pequena, o resultado da situação não poderia ser posto em dúvida. Dispus-me a acreditar que tinha tido a sorte de descobrir fatos e ligações particularmente importantes, e resolvi aceitar o destino que às vezes acompanha essas descobertas.

Imaginei o futuro da seguinte forma: — o êxito terapêutico do novo método provavelmente garantiria a minha subsistência, mas a ciência me ignoraria por completo enquanto eu vivesse; décadas depois, alguém infalivelmente chegaria aos mesmos resultados — para os quais não era ainda chegada a hora —, conseguiria que eles fossem reconhecidos e me honraria como um precursor cujo fracasso fora inevitável. Enquanto isso, como Robinson Crusoé, eu me instalava com o maior conforto possível em minha ilha deserta. Quando lanço um olhar retrospectivo àqueles anos solitários, longe das pressões e confusões de hoje, parece-me uma gloriosa época de heroísmo. Meu “splendid isolation” não deixou de ter suas vantagens e encantos. Não tinha obrigação de ler publicações nem de ouvir adversários mal informados; não estava sujeito à influência de qualquer setor; não havia nada a me apressar. Aprendi a controlar as tendências especulativas e a seguir o conselho não esquecido de meu mestre, Charcot: olhar as mesmas coisas repetidas vezes até que elas comecem a falar por si mesmas. Minhas publicações, para as quais encontrei editor, não sem um pouco de dificuldade, sempre podiam não somente atrasar-me muito em relação aos meus conhecimentos mas também serem adiadas quando eu quisesse, desde que não havia nenhuma “prioridade” duvidosa a ser defendida. A Interpretação de Sonhos, por exemplo, foi concluída, no essencial, no início de 1896 mas só foi escrita em definitivo no verão de 1899. A análise de “Dora” terminou no fim de 1899 [1900]; a história clínica foi escrita nas duas semanas seguintes, mas só foi publicada em 1905. Enquanto isso, minhas obras não constavam das resenhas críticas das revistas médicas, ou, quando excepcionalmente constavam, era para serem rechaçadas com expressões desdenhosas ou de superioridade compassiva. Ocasionalmente, um colega fazia referência a mim em uma de suas publicações — sempre muito curta e nunca lisonjeira — em que eram usadas palavras como “excêntrico”, “extremista”, ou “muito estranho”. Uma vez, um assistente da clínica de Viena, em cuja Universidade eu dava ciclos de conferências pediu-me permissão para freqüentar o curso. Prestava muita atenção, mas não dizia nada; depois da última conferência, ofereceu-se para acompanhar-me. Enquanto caminhávamos, disse-me que, com o conhecimento de seu chefe, escrevera um livro combatendo os meus pontos de vista; lamentava muito, contudo, não haver antes se informado melhor acerca dos mesmos através de minhas conferências, pois nesse caso teria escrito o livro de maneira bem diferente. Chegara a perguntar na clínica se não seria melhor ler antes A Interpretação de Sonhos, mas aconselharam-no a não fazê-lo — não valia o esforço. Então ele próprio comparou a estrutura da minha teoria, até onde a compreendia, com a da Igreja Católica no tocante à consistência interna. No interesse da salvação de sua alma, acredito que essa observação implicava certa dose de simpatia. Mas ele concluiu dizendo que era tarde demais para alterar qualquer coisa no livro, visto que já se achava no prelo. Não julgou necessário fazer posteriormente nenhuma confissão pública da mudança de seus pontos de vista em relação à psicanálise; preferiu, na qualidade de crítico regular de uma revista médica, acompanhar o desenvolvimento desse assunto com comentários irreverentes.

Minha suscetibilidade pessoal tornou-se embotada, durante esses anos, para vantagem minha. Só não me tornei uma pessoa amargurada por uma circunstância que nem sempre está presente para ajudar os descobridores solitários. Eles são, em geral, atormentados pela necessidade de explicar a falta de simpatia ou a aversão de seus contemporâneos e sentem essa atitude como uma contradição angustiante à segurança de suas próprias convicções. Eu não precisava me sentir assim, pois a teoria psicanalítica me capacitava a compreender a atitude de meus contemporâneos e vê-la como uma conseqüência natural das premissas analíticas fundamentais. Se era verdade que o conjunto de fatos que eu descobri foram mantidos fora do conhecimento dos próprios pacientes por resistências internas de natureza emocional, então essas resistências forçosamente apareceriam também em pessoas sadias logo que alguma fonte externa as levasse a um confronto com o que fora reprimido. Não era de surpreender que fossem capazes de justificar essa rejeição de minhas idéias com razões intelectuais, embora a razão fosse, de fato, de origem emocional. A mesma coisa aconteceu seguidamente com pacientes; os argumentos que apresentavam eram os mesmos e não muito brilhantes. Nas palavras de Falstaff, os argumentos são “tão abundantes quanto as amoras silvestres.” A única diferença era que com pacientes estávamos em condições de pressioná-los a fim de induzi-los a perceber (insight) suas resistências e superá-las, ao passo que lidando com pessoas pretensamente sadias não contávamos com essa vantagem. Como compelir essas pessoas sadias a examinarem o assunto com espírito frio e cientificamente objetivo constituía um problema insolúvel que era melhor deixar que o tempo elucidasse. Na história da ciência, podemos ver claramente que, com freqüência, proposições que de início só provocam contradição, posteriormente vêm a ser aceitas, embora não tenham sido apresentadas novas provas das mesmas.

Entretanto, ninguém poderia esperar que, durante os anos em que eu sozinho representava a psicanálise, pudesse ter desenvolvido um respeito especial pela opinião do mundo ou qualquer tendência à acomodação intelectual.

 

                                             II

A partir do ano de 1902, certo número de jovens médicos reuniu-se em torno de mim com a intenção expressa de aprender, praticar e difundir o conhecimento da psicanálise. O estímulo proveio de um colega que experimentara, ele próprio, os efeitos benéficos da terapêutica analítica. Reuniões regulares realizavam-se à noite em minha casa, travavam-se debates de acordo com certas normas, e os participantes se esforçavam por encontrar sua orientação nesse novo e estranho campo de pesquisa, e de despertar em outros o interesse por ele. Um belo dia um jovem que fora aprovado numa escola de ensino técnico apresentou-se com um manuscrito que indicava compreensão fora do comum. Persuadimo-lo a cursar o Gymnasium [escola secundária] e a Universidade e a dedicar-se ao aspecto não-médico da psicanálise. A pequena sociedade adquiriu nele um secretário zeloso e digno de confiança e eu ganhei em Otto Rank um auxiliar e colaborador dos mais fiéis.

O pequeno círculo logo se ampliou e no transcorrer dos cinco anos seguintes muitas vezes mudou de composição. De um modo geral, podia dizer a mim mesmo que quase não era inferior, em riqueza e variedade de talento, à equipe de qualquer professor de clínica. Incluía, desde o início, os que mais tarde viriam a desempenhar papel considerável, embora nem sempre aceitável, na história do movimento psicanalítico. Naquela época, entretanto, não se poderia ainda prever esses desenvolvimentos. Eu tinha todos os motivos para estar satisfeito, e penso que fiz o possível para transmitir meu conhecimento e experiência aos outros. Houve apenas duas circunstâncias inauspiciosas que terminaram por me afastar internamente do grupo. Não consegui estabelecer entre os seus membros as relações amistosas que devem prevalecer entre homens que se acham empenhados no mesmo trabalho difícil, nem consegui evitar a competição pela prioridade a que dá margem, com tanta freqüência, esse tipo de trabalho em equipe. As dificuldades particularmente grandes ligadas ao ensino da prática da psicanálise — responsáveis por grande parte das dissenções havidas — eram patentes nessa Sociedade Psicanalítica de Viena, de caráter particular. Eu mesmo não me aventurei a expor uma técnica e teoria ainda inacabadas e em formação, com a autoridade que provavelmente teria capacitado os outros a evitar certos desvios e suas conseqüências desastrosas. A autoconfiança de trabalhadores intelectuais, sua independência prematura do mestre, é sempre gratificante de um ponto de vista psicológico, mas só traz vantagens para a ciência se esses trabalhadores preencherem certas condições pessoais que não são, de maneira nenhuma, comuns. Para a psicanálise, em particular, uma longa e severa disciplina, além de treinamento na autodisciplina, teria sido necessária. Em vista da coragem revelada pela devoção a um assunto olhado com tanta reserva, e tão pobre de perspectivas, estava disposto a tolerar dos membros do grupo muita coisa que não devia tolerar numa situação diferente. Além de médicos, o círculo incluía outras pessoas — homens instruídos que haviam reconhecido algo importante na psicanálise; escritores, pintores etc. Minha Interpretação de Sonhos e meu livro sobre chistes, entre outros, mostraram desde o início que as teorias da psicanálise não podem ficar restritas ao campo médico, mas são passíveis de aplicação a várias outras ciências mentais.

Em 1907, contra todas as expectativas, a situação mudou de repente. Parecia que a psicanálise havia discretamente despertado interesse e angariado adeptos e que havia até mesmo alguns cientistas que estavam prontos a reconhecê-la. Uma comunicação de Bleuler me informara antes disso que minhas obras tinham sido estudadas e aplicadas no Burghölzli. Em janeiro de 1907, pela primeira vez veio a Viena um membro da clínica de Zurique — o Dr. Eitingon. Outras visitas se seguiram, que levaram a uma animada troca de idéias. Finalmente, a convite de C.G.Jung, naquela época ainda médico assistente de Burghölzli, realizou-se uma primeira reunião em Salzburg na primavera de 1908, que congregou adeptos da psicanálise de Viena, Zurique e outros lugares. Um dos primeiros resultados desse primeiro Congresso Psicanalítico foi a fundação de um periódico intitulado Jahrbuch für psychoanalytische und psycho-pathologische Forschungen sob a direção de Bleuler e Freud e editado por Jung, que apareceu pela primeira vez em 1909. Essa publicação expressava a estreita cooperação entre Viena e Zurique.

Repetidas vezes reconheci com gratidão os grandes serviços prestados pela Escola de Psiquiatria de Zurique na difusão da psicanálise, em particular por Bleuler e Jung, e não hesito em fazê-lo ainda hoje, quando as circunstâncias mudaram tanto. Na verdade, não foi o apoio da Escola de Zurique que fez despertar a atenção do mundo científico para a psicanálise naquela época. O que acontecera foi que o período de latência tinha terminado e por toda parte a psicanálise se tornava objeto de interesse cada vez maior. Mas em todos os outros lugares, esse aumento de interesse de início não produziu senão um vivo repúdio, quase sempre apaixonado, ao passo que em Zurique, pelo contrário, um acordo em linhas gerais foi a nota dominante. Além disso, em nenhum outro lugar havia um grupo tão coeso de partidários, nem uma clínica pública posta a serviço das pesquisas psicanalíticas, nem um professor de clínica que incluísse as teorias psicanalíticas como parte integrante de seu curso de psiquiatria. O grupo de Zurique tornou-se assim o núcleo de pequena associação que lutava pelo reconhecimento da análise. A única oportunidade de aprender a nova arte e de nela trabalhar estava ali. A maior parte dos meus seguidores e colaboradores de hoje chegou a mim via Zurique, mesmo aqueles que se encontravam geograficamente muito mais perto de Viena do que da Suíça. Em relação à Europa ocidental, onde estão os grandes centros de nossa cultura, Viena ocupa uma posição marginal; e seu prestígio tem sido afetado, há muitos anos, por fortes preconceitos. Os representantes das nações mais importantes se reúnem na Suíça, onde a atividade intelectual é tão vívida; um foco de infecção ali estava destinado a ser de grande importância para a difusão da “epidemia psíquica”, como Hoche de Freiburg a denominou.

Segundo o testemunho de um colega que presenciou acontecimentos no Burghölzli, parece que a psicanálise despertou interesse ali muito cedo. Na obra de Jung sobre fenômenos ocultos, publicada em 1902, já havia alusão ao meu livro sobre a interpretação de sonhos. A partir de 1903 ou 1904, a psicanálise ocupava o primeiro plano de interesse. Depois de estabelecidas relações pessoais entre Viena e Zurique, uma sociedade informal foi também iniciada, em meados de 1907, no Burghölzli, onde os problemas da psicanálise eram debatidos em reuniões regulares. Na aliança entre as escolas de Viena e Zurique, os suíços não eram de modo algum meros recipientes. Já haviam produzido trabalhos científicos de grande mérito, cujos resultados foram úteis à psicanálise. As experiências de associação iniciadas pela Escola de Wundt tinham sido interpretadas por eles num sentido psicanalítico e revelaram possibilidades de aplicação inesperadas. Através delas, tornara-se possível chegar a uma rápida confirmação experimental das observações psicanalíticas e a demonstrar diretamente a estudantes conexões a respeito das quais um analista poderia apenas falhar-lhes. A primeira ponte ligando a psicologia experimental à psicanálise fora levantada.

No tratamento psicanalítico, os experimentos de associação permitem uma análise provisória qualitativa do caso, mas não proporcionam nenhuma contribuição essencial à técnica, podendo-se prescindir deles na prática analítica. Mais importante, contudo, foi outra realização da Escola de Zurique, ou de seus líderes, Bleuler e Jung. O primeiro mostrou que se poderia esclarecer grande número de casos, puramente psiquiátricos, reconhecendo neles os mesmos processos reconhecidos pela psicanálise como presentes nos sonhos e nas neuroses (mecanismos freudianos); e Jung [1907] aplicou com êxito o método analítico de interpretação às manifestações mais estranhas e obscuras da demência precoce (esquizofrenia), de modo a trazer à luz suas fontes presentes na história da vida e nos interesses do paciente. Depois disso, foi impossível aos psiquiatras ignorar por mais tempo a psicanálise. A grande obra de Bleuler sobre a esquizofrenia (1911), na qual o ponto de vista psicanalítico foi colocado em pé de igualdade com o clínico-sistemático, completou esse sucesso.

Não deixarei de ressaltar uma divergência que já se podia observar naquela época entre os rumos seguidos pelo trabalho das duas escolas. Já em 1897 eu publicara a análise de um caso de esquizofrenia, o qual, contudo, era de natureza paranóide, de modo que a solução do mesmo não podia ser influenciada pela impressão causada pelas análises de Jung. Mas para mim o ponto importante fora não tanto a possibilidade de interpretar os sintomas, mas o mecanismo psíquico da doença e, acima de tudo, a concordância desse mecanismo com o da histeria, que já fora descoberto. Naquela época, nenhuma luz fora lançada sobre as diferenças entre os dois mecanismos, pois eu ainda visava a uma teoria da libido nas neuroses, que iria explicar todos os fenômenos neuróticos e psicóticos como procedentes de vicissitudes anormais da libido, isto é, como desvios do seu emprego normal. Este ponto de vista escapou aos pesquisadores suíços. Que eu saiba, até hoje Bleuler defende o ponto de vista de que as várias formas de demência precoce têm uma causação orgânica; e no Congresso de Salzburg, em 1908, Jung, cujo livro sobre essa doença surgira em 1907, apoiou a teoria tóxica de sua causação, que não leva em conta a teoria da libido, embora, é verdade, não a exclua. Posteriormente (1912), foi desastrado nesse mesmo ponto, dando demasiada importância ao material que antes se recusara a utilizar.

Há uma terceira contribuição feita pela Escola Suíça, a ser talvez atribuída totalmente a Jung, à qual eu não dou tanto valor quanto outros, menos ligados a esses assuntos do que eu. Refiro-me à teoria dos “complexos” que decorreu dos Diagnostische Assoziationsstudien [Estudos sobre Associação de Palavras] (1906). Nem ela em si mesma produziu uma teoria psicológica, nem mostrou-se capaz de fácil incorporação ao contexto da teoria psicanalítica. O termo “complexo”, por outro lado, foi naturalizado, por assim dizer, pela linguagem psicanalítica; é um termo conveniente e muitas vezes indispensável para resumir um estado psicológico de maneira descritiva. Nenhuma das outras palavras inventadas pela psicanálise para atender às suas próprias necessidades alcançou uma popularidade tão generalizada ou foi tão mal aplicada em prejuízo da formação de conceitos mais claros. Os analistas começaram a falar entre si de “retorno de um complexo” quando queriam dizer um “retorno do reprimido”, ou adquiriram o hábito de dizer “tenho um complexo contra ele”, quando a expressão correta seria “uma resistência contra ele”.

A partir de 1907, quando as Escolas de Viena e Zurique se uniram, a psicanálise tomou o extraordinário impulso cujo ímpeto ainda hoje se sente; isto é indicado tanto pela difusão da literatura psicanalítica e pelo constante aumento do número de médicos que a praticam ou estudam, como pela freqüência com que é atacada em congressos e associações eruditas. Penetrou nas terras mais distantes e por toda a parte não somente deixou perplexos os psiquiatras, como dominou a atenção do público culto e de investigadores de outros campos da ciência. Havelock Ellis, que tem acompanhado seu desenvolvimento com simpatia, embora sem jamais se intitular um adepto, escreveu em 1911 num relatório para o Congresso Médico de Australásia: “A psicanálise de Freud é agora defendida e praticada não somente na Áustria e na Suíça, como também nos Estados Unidos, Inglaterra, Índia, Canadá, e, não duvido, na Australásia. Um médico do Chile (provavelmente alemão) falou no Congresso Internacional de Buenos Aires, em 1910, em favor da existência da sexualidade infantil e exaltou os efeitos da terapêutica psicanalítica sobre os sintomas obsessivos. Um neurologista inglês da Índia Central (Berkeley-Hill) informou-me, através de um ilustre colega que visitava a Europa, que as análises de indianos muçulmanos por ele feitas demonstraram que a etiologia de suas neuroses não era diferente das que encontramos em nossos pacientes europeus.

A introdução da psicanálise na América do Norte foi acompanhada de homenagens muito especiais. No outono de 1909, Stanley Hall, Presidente da Clark University, de Worcester, Massachusetts, convidou a Jung e a mim para participarmos das comemorações do vigésimo aniversário da fundação da Universidade, pronunciando uma série de conferências em alemão. Para nossa grande surpresa, verificamos que os membros daquela Universidade, especializada em educação e filosofia, pequena mas muito prestigiada, eram tão desprovidos de preconceitos, que estavam familiarizados com toda a literatura psicanalítica e a haviam incluído em suas aulas. Na América tão puritana foi possível, pelo menos nos círculos acadêmicos, debater livre e cientificamente tudo o que na vida comum é considerado censurável. As cinco conferências que improvisei em Worcester apareceram numa tradução inglesa no Americam Journal of Psychology [1910a], e foram pouco depois publicadas em alemão sob o título Uber Psychoanalyse. Jung leu um trabalho sobre experiências de associação no diagnóstico e outro sobre os conflitos da mente da criança. Fomos agraciados com o título honorário de Doutor em Leis. Durante aquela semana de comemorações em Worcester, a psicanálise foi representada por cinco pessoas: além de Jung e de mim, lá estava Ferenczi, que me acompanhou na viagem, Ernest Jones, então na Universidade de Toronto (Canadá) e agora em Londres, e A.A. Brill, que já exercia a psicanálise em Nova Iorque.

A relação pessoal mais importante que resultou da reunião em Worcester foi com James J. Putnam, Professor de Neuropatologia na Universidade de Harvard. Anos antes, revelara um ponto de vista desfavorável à psicanálise, mas tendo naquela ocasião se reconciliado rapidamente com ela passou a recomendá-la aos seus compatriotas e colegas numa série de conferências que eram tão ricas de conteúdo quanto brilhantes na forma. O prestígio que tinha em toda a América graças ao seu elevado caráter moral e inflexível amor à verdade, foi de grande valia para a psicanálise e a protegeu das denúncias, que muito provavelmente a teriam de outra forma aniquilado. Mais tarde, entregando-se demais à acentuada inclinação ética e filosófica de sua natureza, Putnam fez o que se me afigura uma exigência impossível — esperava que a psicanálise se colocasse a serviço de uma concepção filosófico-moral particular do Universo — mas continua a ser a coluna mestra da psicanálise em sua terra natal.

A difusão posterior do movimento deve muito a Brill e a Jones: em suas publicações chamaram a atenção de seus compatriotas, com incansável persistência, para os fatos fundamentais facilmente observáveis da vida cotidiana, dos sonhos e da neurose. Brill reforçou essa contribuição com sua atividade médica e com as traduções de minhas obras, e Jones com suas conferências instrutivas e seu talento para o debate nos congressos dos Estados Unidos. A ausência de uma tradição científica profundamente enraizada e a menor rigidez da autoridade oficial nos Estados Unidos foram uma vantagem decisiva para o impulso dado por Stanley Hall. Aquele país caracterizou-se, desde o início, pelo fato de diretores e superintendentes de hospitais de doentes mentais demonstrarem tanto interesse pela análise quanto os clínicos independentes. Mas, por isso mesmo, é evidente que teria de ser nos velhos centros de cultura, onde maior resistência foi revelada, que se iria travar a luta decisiva em favor da psicanálise.

Entre os países europeus, a França se tem mostrado até agora o menos receptivo à psicanálise, embora um trabalho de mérito em francês, de autoria de A. Maeder de Zurique, tenha facilitado o acesso às teorias psicanalíticas. Os primeiros sinais de simpatia partiram das províncias: Morichau-Beauchant (Pointers) foi o primeiro francês a aderir publicamente à psicanálise. Régis e Hesnard (Bordéus) recentemente [1914] tentaram diluir os preconceitos dos seus compatriotas contra as novas idéias com uma minuciosa exposição, a qual, entretanto, nem sempre denota compreensão, sobretudo no tocante ao simbolismo. Na própria Paris, ainda parece reinar a convicção (à qual o próprio Janet deu eloqüente expressão no Congresso de Londres em 1913) de que tudo de bom na psicanálise é repetição dos pontos de vista de Janet com insignificantes modificações, e o mais não presta. Nesse Congresso, na verdade, Janet teve de submeter-se a uma série de retificações feitas por Ernest Jones, que pôde assim fazê-lo ver seu conhecimento insuficiente do assunto . Mesmo discordando de suas pretensões, não podemos, entretanto, esquecer o valor de sua contribuição na psicologia das neuroses.

Na Itália, depois de inícios promissores, não surgiu nenhum interesse real. Quanto à Holanda, a análise logo teve ali o acesso facilitado pelas ligações pessoais com: Van Emden, Van Ophuijsen, Van Renterghem (Freud en zijn School) [1913] e os dois Stärckes que lá trabalham ativamente, ocupados tanto com a prática como com a teoria. Nos círculos científicos da Inglaterra o interesse pela psicanálise vem-se desenvolvendo muito lentamente, mas tudo leva a crer que o sentido prático dos ingleses e seu grande amor à justiça lhe assegurarão (à psicanálise) um brilhante futuro.

Na Suécia, P. Bjerre, sucessor da clínica de Wetterstrand, abandonou a sugestão hipnótica, pelo menos por algum tempo, em favor do tratamento analítico. R. Vogt (Cristânia) já havia demonstrado simpatia pela psicanálise em seu Psykiatriens grundtraek, publicado em 1907, de modo que o primeiro livro didático de psiquiatria a fazer referência à psicanálise foi escrito na Noruega. Na Rússia, a psicanálise tornou-se bastante conhecida e amplamente difundida; quase todas as minhas obras, assim como as de outros adeptos da análise, foram traduzidas para o russo. Mas uma compreensão verdadeiramente profunda das teorias analíticas ainda não se revelou na Rússia, de modo que as contribuicões de médicos russos até o momento não são muito importantes. O único médico com formação analítica naquele país é   M. Wulff, que exerce a clínica em Odessa. A introdução da psicanálise nos  círculos científicos e literários poloneses deve-se, sobretudo, a L. Jekels. Da Hungria, geograficamente tão perto da Áustria, e cientificamente tão distante, surgiu um único colaborador, S. Ferenczi, mas que, em compensação, vale por uma sociedade inteira.

Da posição da psicanálise na Alemanha, o que se pode dizer é que ela ocupa o ponto central dos debates científicos e provoca as mais enfáticas expressões de discordância tanto entre médicos como entre leigos; essas discussões ainda não terminaram, ao contrário, estão constantemente irrompendo de novo, por vezes, com intensidade ainda maior. Lá nenhuma instituição educacional reconheceu até agora a psicanálise. Clínicos bem-sucedidos que a empregam são poucos; só algumas instituições, como as de Binswanger em Kreuzlingen (solo suíço) e a de Marcinowski, no Holstein, lhe abriram as portas. Um dos mais ilustres representantes da análise, Karl Abraham, ex-assistente de Bleuler, afirma-se na atmosfera crítica de Berlim. Pode parecer estranho que esse estado de coisas continue inalterado por tantos anos se não se levar em conta que o relato aqui apresentado só representa os aspectos exteriores. Não se deve atribuir demasiada importância à rejeição dos representantes oficiais da ciência, e dos chefes de instituições e suas equipes de colaboradores. É natural que os adversários da psicanálise manifestem com veemência seus pontos de vista, enquanto seus adeptos intimidados mantêm silêncio. Alguns desses últimos, cujas primeiras contribuições à análise criaram expectativas favoráveis, ultimamente se retiraram do movimento sob a pressão das circunstâncias. O próprio movimento avança com segurança, embora em silêncio; vem constantemente ganhando novos adeptos entre psiquiatras e leigos, atrai um número cada vez maior de novos leitores para a literatura psicanalítica e, exatamente por esse motivo, obriga os adversários a esforços defensivos cada vez mais violentos. Pelo menos uma dúzia de vezes durante os últimos anos li em relatórios de congressos e de órgãos científicos, ou em resenhas críticas de certas publicações, que agora a psicanálise está morta, derrotada e eliminada de uma vez por todas. A melhor resposta a isso seria nos termos do telegrama de Mark Twain ao jornalista que publicou a notícia falsa de sua morte: “Informação sobre minha morte muito exagerada”. Depois de cada um desses obituários a psicanálise ganhava novos adeptos e colaboradores ou adquiria novos canais de publicidade. Afinal de contas, ser declarado morto é melhor do que ser enterrado em silêncio.

Passo a passo com a expansão da psicanálise no espaço processou-se uma expansão no seu conteúdo; estendeu-se do campo das neuroses e da psiquiatria a outros campos do conhecimento. Não vou entrar em detalhes sobre esse aspecto de seu desenvolvimento visto que isso já foi muito bem feito por Rank e Sachs [1913] num volume (um dos Grenzfragen de Löwenfeld) que aborda, em minúcias, precisamente esse aspecto da pesquisa analítica. Além do mais, esse desenvolvimento está ainda na infância; pouco trabalho foi feito e ele consiste, em sua maior parte, em experiências apenas iniciadas e, de resto, em nada mais que planos. Nenhuma pessoa sensata verá nisso motivo de censura. Uma enorme massa de trabalho se apresenta a um pequeno número de trabalhadores, a maioria dos quais tem como ocupação principal outro tipo de atividade e só pode apresentar as qualificações de um amador em relação aos problemas técnicos dessas áreas da ciência, que desconhecem. Esses trabalhadores, procedentes da psicanálise, não fazem nenhum segredo de ser amadorismo. Sua finalidade é aenas servir de sinaleiros e de substitutos provisórios dos especialistas e pôr à disposição deles a técnica e os princípios analíticos até a época em que possam, os próprios especialistas, tomar a si o trabalho. Que os resultados alcançados não tenham deixado, apesar de tudo, de ser consideráveis, deve-se em parte à fertilidade do método analítico e, em parte, à circunstância de que já existem alguns pesquisadores não-médicos que fizeram da aplicação da psicanálise às ciências mentais sua profissão na vida.

A maior parte dessas aplicações da análise remonta, sem dúvida, a uma sugestão feita em minhas primeiras obras analíticas. O exame analítico de pessoas neuróticas e os sintomas neuróticos de pessoas normais me levaram a supor a existência de condições psicológicas que haveriam de ultrapassar a área do conhecimento na qual tinham sido descobertos. Sendo assim, a análise nos proporcionou não somente a explicação de manifestações patológicas, como revelou sua conexão com a vida mental normal e desvendou relações insuspeitadas entre a psiquiatria e as demais ciências que lidam com as atividades da mente. Certos sonhos típicos, por exemplo, ofereceram a explicação de alguns mitos e contos de fada. Riklin [1908] e Abraham [1909] seguiram essa pista e iniciaram as pesquisas dos mitos, que foram completadas de forma a atender às exigências, mesmo de padrões técnicos, nas obras de Rank sobre mitologia [p. ex. 1909, 1911b]. Investigações posteriores sobre o simbolismo dos sonhos levaram ao âmago dos problemas da mitologia, do folclore (Jones [p. ex. 1910 e 1912] e Storfer [1914]) e às abstrações da religião. Causou profunda impressão à audiência de um dos Congressos psicanalíticos a demonstração feita por um discípulo de Jung, da correspondência entre as fantasias esquizofrênicas e as cosmogonias dos tempos e raças primitivos. O material mitológico recebeu depois ulterior elaboração (que, embora discutível, não deixou de ser muito interessante) por parte de Jung, em obras que tentavam correlacionar as neuroses com fantasias religiosas e mitológicas.

A partir da investigação dos sonhos, uma outra pista nos levou à análise de obras de imaginação e por fim à análise de seus criadores — os escritores e artistas. Ainda numa fase inicial, descobriu-se que os sonhos inventados por escritores muitas vezes prestam-se à análise da mesma forma que os sonhos verdadeiros (cf. Gradiva [1907a]). A concepção da atividade mental inconsciente possibilitou fazer-se uma idéia preliminar da natureza da atividade criadora na literatura de imaginação, e a compreensão, adquirida no estudo dos neuróticos, do papel desempenhado pelos impulsos instintivos nos permitiu descobrir as fontes da produção artística e nos colocou face a dois problemas: como o artista reage a essa instigação e quais os meios que ele emprega para disfarçar suas reações. A maioria dos analistas que têm interesses gerais já contribuíram com algo para a solução desses problemas, que são os mais fascinantes das aplicações possíveis da psicanálise. Naturalmente, aqui também não faltou a hostilidade da parte de pessoas que nada sabiam da psicanálise, apresentando as mesmas manifestações que ocorreram no campo original da pesquisa psicanalítica — as mesmas concepções errôneas e rejeições veementes. Era de esperar-se desde o início que, quaisquer que fossem as regiões em que a psicanálise penetrasse, ela teria inevitavelmente de enfrentar as mesmas lutas com os donos do campo. Alguns setores, entretanto, ainda não tiveram sua atenção despertada para essas tentativas de invasão que os aguardam no futuro. Entre as aplicações rigorosamente científicas da análise à literatura, o exaustivo trabalho de Rank sobre o tema do incesto [1912] é certamente o mais importante. O assunto está fadado a despertar a maior impopularidade. Até agora tem sido pouco o trabalho de aplicação da psicanálise às ciências da linguagem e da história. Eu próprio me aventurei a abordar pela primeira vez os problemas colocados pela psicologia da religião traçando um paralelo entre o ritual religioso e os cerimoniais dos neuróticos (1907b). O Dr. Pfister, pastor em Zurique, remontou a origem do fanatismo religioso às perversões eróticas, em seu livro sobre a devoção do Conde von Zinzendorf [1910], bem como em outras contribuições. Nas últimas obras da escola de Zurique, entretanto, constatamos a presença de idéias religiosas na análise em lugar do resultado oposto que estivera em vista.

Nos quatro ensaios intitulados Totem e Tabu [1912-13] tentei examinar os problemas de antropologia social à luz da psicanálise; esta linha de investigação leva diretamente às origens das instituições mais importantes de nossa civilização — da estrutura do Estado, da moralidade e da religião — e, além disso, da proibição contra o incesto e da consciência. Sem dúvida, ainda é muito cedo para saber até que ponto essas conclusões poderão resistir à crítica.

O primeiro exemplo de uma aplicação da modalidade analítica de pensamento aos problemas da estética estava contido em meu livro sobre chistes [1905c]. Afora isso, tudo está ainda aguardando trabalhadores, que podem esperar uma colheita particularmente rica neste campo. Ressentimo-nos da ausência absoluta de colaboradores especializados em todos esses ramos do conhecimento, e com o fim de atraí-los, Hanns Sachs fundou, em 1912, o periódico Imago editado por ele e Rank. Hitschmann e von Winterstein deram um primeiro passo, examinando sob o ângulo psicanalítico sistemas filosóficos e a personalidade de seus autores: nesse campo há grande necessidade de uma investigação mais ampla e profunda.

As descobertas revolucionárias da psicanálise no tocante à vida mental das crianças — o papel nela desempenhado pelos impulsos sexuais (von Hug-Hellmuth [1913]) e o destino daqueles componentes da sexualidade inúteis para a reprodução — necessariamente cedo fariam a atenção voltar-se para a educação e promoveriam tentativas de colocar os pontos de vista analíticos na vanguarda desse campo de trabalho. Deve-se ao Dr. Pfister ter iniciado, com verdadeiro entusiasmo, a aplicação da psicanálise nessa direção e ter chamado para ela as atenções de clérigos e de interessados em educação. (Cf. The Psycho-Analytic Method, 1913). Conseguiu granjear a simpatia e a participação de grande número de professores suíços. Diz-se que outros colegas de profissão compartilham de seus pontos de vista mas preferem manter-se cautelosamente em segundo plano. Uma parte dos psicanalistas de Viena que se afastaram da psicanálise parece ter chegado a uma espécie de combinação de medicina com educação.

Com este esboço incompleto tentei dar uma idéia da riqueza ainda incalculável de conexões que surgiram entre a psicanálise médica e outros campos da ciência. Existe aí material de trabalho para uma geração de pesquisadores, e não duvido de que ele será realizado tão logo as resistências contra a psicanálise sejam superadas em seu campo de origem.

Escrever a história dessas resistências seria, creio eu, infrutífero e inoportuno, no momento. A história não é muito lisonjeira para os homens de ciência dos nossos dias. Mas devo logo acrescentar que jamais me ocorreu menosprezar os adversários da psicanálise simplesmente por serem adversários — exceção feita aos poucos indivíduos indignos, aos aventureiros e aproveitadores, que sempre aparecem em ambos os lados nos tempos de guerra. Sabia muito bem como explicar o comportamento desses antagonistas e, além disso, aprendera que a psicanálise traz à tona o que há de pior nas pessoas. Mas resolvera não dar resposta aos meus adversários e, na medida de minha influência, evitar que outros se envolvessem em polêmicas. Tendo em vista a peculiaridade da controvérsia sobre a psicanálise, pareceu-me bem pouco provável que o debate público ou por escrito levasse a alguma coisa; já sabia o caminho a ser seguido pela maioria em congressos e reuniões e nunca fiz muita fé na razoabilidade e educação dos cavalheiros que a mim se opunham. A experiência demonstra que apenas pouquíssimas pessoas conseguem manter a linha — para não falar na objetividade — numa discussão científica, e a impressão que me causam essas brigas científicas sempre foi odiosa. Essa minha atitude talvez tenha sido mal interpretada; talvez me tenham julgado de tão boa natureza ou tão facilmente intimidável que não havia necessidade de se ter consideração por mim. Isso era um engano; posso insultar e me enfurecer tanto quanto qualquer um; mas não tenho a arte de expressar essas emoções subjacentes de forma publicável e, por isso, prefiro abster-me por completo.

Sob certos aspectos talvez tivesse sido melhor que eu houvesse dado livre curso a minhas próprias paixões e às dos que me cercavam. Todos já ouvimos falar da interessante tentativa de explicar a psicanálise como um produto do ambiente de Viena. Janet não se acanhou de utilizar esse argumento, já agora em 1913, embora ele próprio com certeza se orgulhe de ser parisiense, e Paris não possa ser considerada uma cidade de moral mais rigorosa que Viena. Segundo essa teoria, a psicanálise, e em particular a idéia de que as neuroses decorrem de perturbações da vida sexual, só poderia ter surgido numa cidade como Viena — de uma atmosfera de sensualidade e imoralidades estranhas a outras cidades — não passando de um reflexo, uma projeção teórica por assim dizer, dessas condições peculiares a Viena. Ora, não sou nenhum bairrista; mas essa teoria, me parece de um absurdo fora do comum — tão absurda mesmo, que às vezes me sinto inclinado a supor que me acusarem de ser vienense é apenas um substitutivo eufemístico de outra acusação que ninguém ousa fazer abertamente. Se as premissas nas quais se baseia o argumento fossem o oposto do que são, então talvez valesse a pena dar-lhes ouvido. Se houvesse uma cidade na qual os habitantes se impusessem restrições excepcionais no tocante à satisfação sexual, e ao mesmo tempo revelassem acentuada tendência a graves perturbações neuróticas, essa cidade poderia por certo dar margem, na mente de um observador, à idéia de que as duas circunstâncias tinham alguma relação entre si, e que uma dependia da outra. Mas nenhuma dessas duas circunstâncias se aplica a Viena. Os vienenses não são mais abstinentes nem mais neuróticos do que os habitantes de qualquer outra capital. Existe um pouco menos de constrangimento — menos pudicícia — em relação a sexo do que nas cidades do oeste e do norte que tanto se orgulham de sua castidade. Essas características peculiares de Viena serviriam mais provavelmente para desorientar o observador do que para esclarecê-lo quanto à acusação das neuroses.

No entanto, Viena tem feito o possível para negar sua participação na gênese da psicanálise. Em nenhum outro lugar, a indiferença hostil da parte erudita e educada da população para com o analista é tão evidente como em Viena.

Pode ser que minha política de evitar ampla publicidade seja, em parte, responsável por isso. Se eu tivesse incentivado ou permitido tempestuosos debates com as sociedades médicas de Viena sobre a psicanálise, talvez eles tivessem servido para descarregar todas as paixões e para dar livre curso a todas as injúrias e ofensas que estavam na língua ou no coração dos nossos adversários — daí, talvez, o anátema contra a psicanálise tivesse sido superado e ela agora não fosse mais uma estranha em sua cidade natal. Aliás, o poeta deve estar com a razão quando faz Wallestein dizer:

                      Doch das vergeben mir die Wiener nicht,

                        dass ich um ein Spektakel sie betrog.

A tarefa que estava acima da minha capacidade de fazer ver os adversários da psicanálise suaviter in modo sua injustiça e arbitrariedade — foi realizada com grande habilidade por Bleuler num artigo escrito em 1910, “A Psicanálise de Freud: Uma Defesa e Algumas Observações Críticas”. Seria mais do que natural meu elogio a esse trabalho (que faz críticas a ambos os lados); por isso apresso-me em apontar nele as coisas das quais discordo. Acho que ainda é parcial, ou seja, complacente demais com os defeitos dos inimigos da psicanálise e muito rigoroso com as falhas de seus partidários. Essa característica do artigo talvez explique por que o parecer público de um psiquiatra de tamanha reputação, de capacidade e independência tão indiscutíveis, não teve uma influência maior sobre seus colegas. Não deveria surpreender ao autor de Affectivit (Afetividade) (1906) que a influência de uma obra seja determinada não pelo peso dos argumentos, mas pelo tom emocional da obra. Outra parte de sua influência — esta sobre os seguidores da psicanálise — foi destruída posteriormente pelo próprio Bleuler, quando em 1913 mostrou o lado oposto de sua atitude para com a psicanálise no seu “Criticism of the Freudian Theory” (“Crítica da Teoria Freudiana”). Nesse artigo, ele abala tanto a estrutura da teoria psicanalítica que nossos adversários devem ter ficado satisfeitos com a ajuda que lhes foi dada por esse defensor da psicanálise. Esses julgamentos contrários de Bleuler, entretanto, não se baseiam em novos argumentos ou melhores observações e sim na insuficiência de seus próprios conhecimentos, a qual ele não mais admite, como o fez em suas primeiras obras. Parecia, portanto, que uma perda quase irreparável ameaçava a psicanálise. Mas em sua última publicação, “Criticisms of my Schizophrenia” (“Críticas ao meu livro Esquizofrenia”) (1914), Bleuler reúne suas forças em face dos ataques feitos contra ele por haver introduzido a psicanálise em seu livro sobre esquizofrenia, e faz o que ele próprio denomina de uma “afirmação pretensiosa”. “Mas agora farei uma afirmação pretensiosa: considero que até o momento as várias escolas de psicologia contribuíram muito pouco para a explicação da natureza das doenças e sintomas psicogênicos, mas que a psicologia profunda tem algo a oferecer a uma psicologia ainda por nascer, da qual precisam os médicos para poderem compreender seus pacientes e curá-los racionalmente; e creio mesmo que em minha Schizophrenia dei um passo, ainda que muito pequeno, no sentido dessa compreensão. As duas primeiras afirmações por certo são corretas; a última talvez esteja errada.”

Visto que por “psicologia profunda” ele não quer dizer outra coisa senão psicanálise, podemos por enquanto contentar-nos com esse reconhecimento.

 

                                                   lII

Mach es kurz!

Am Jüngsten Tag ist’s nur ein Furz!

GOETHE

Dois anos depois do primeiro Congresso privado de psicanálise, realizou-se o segundo, dessa vez em Nuremberg, em março de 1910. No intervalo entre os dois, influenciado em parte pela boa receptividade obtida nos Estados Unidos, pela hostilidade cada vez maior nos países de língua alemã e pelo inesperado apoio da escola de Zurique, fiz um projeto que, com a ajuda de meu amigo Ferenczi, realizei nesse segundo Congresso. O que tinha em mente era organizar o movimento psicanalítico, transferir o seu centro para Zurique e dotá-lo de um chefe que cuidasse de seu futuro. Como esse esquema encontrou muita oposição entre os partidários da psicanálise, apresentarei, em detalhes, os motivos que me levaram a formulá-lo. Espero que esses motivos me justifiquem, muito embora reconheça que o que fiz não foi, na verdade, muito prudente.

Achava que a localização do novo movimento em Viena longe de servir-lhe de recomendação, muito pelo contrário, o comprometia. Um lugar como Zurique, no coração da Europa, onde um professor universitário havia aberto as portas de sua instituição à psicanálise, parecia-me muito mais promissor. Via também uma segunda desvantagem em minha própria pessoa, sobre a qual era difícil formar uma opinião por causa das manifestações de admiração e de ódio provenientes das diferentes facções: ou era um comparado a Colombo Darwin e Kepler ou taxado de PGP (paralisia geral progressiva). Desejei, portanto, retirar para o segundo plano tanto a mim como à cidade onde nasceu a psicanálise. Além disso, eu já não era jovem; vi que havia uma longa estrada à frente, e me oprimia a idéia de que o dever de ser um líder tivesse recaído em mim tão tarde na vida. Sentia, porém, que deveria haver alguém na liderança. Conhecia muito bem as armadilhas que aguardam quem quer que comece a exercer a psicanálise e esperava poder evitá-las delegando poderes a uma autoridade que estivesse preparada para aconselhar e orientar. Essa posição, que fora de início ocupada por mim, dado o meu acerto de quinze anos de experiências, devia ser agora transferida para um homem mais jovem, que então, naturalmente, ocuparia meu lugar após a minha morte. Esse homem só poderia ser C. G. Jung, uma vez que Bleuler era de minha própria geração; tinha a seu favor dotes excepcionais, as contribuições que já prestara à psicanálise, sua posição independente e a impressão de firme energia que sua personalidade transmitia. Além disso, parecia estar disposto a entrar num bom relacionamento pessoal comigo e, em consideração a mim, a abrir mão de certos preconceitos raciais que alimentara anteriormente. Eu não tinha, na ocasião, a menor idéia de que apesar de todas essas vantagens a escolha era a mais infeliz possível, que eu havia escolhido uma pessoa incapaz de tolerar a autoridade de outra, mais incapaz ainda de exercê-la ele próprio, e cujas energias se voltavam inteiramente para a promoção de seus próprios interesses.

Julguei necessário formar uma associação oficial porque temia os abusos a que a psicanálise estaria sujeita logo que se tornasse popular. Deveria haver alguma sede cuja função seria declarar: “Todas essas tolices nada têm que ver com a análise; isto não é psicanálise”. Nas sessões dos grupos locais (que reunidos constituíram a associação internacional) seria ensinada a prática da psicanálise e seriam preparados médicos, cujas atividades recebiam assim uma espécie de garantia. Além disso, visto que a ciência oficial lançara um anátema solene contra a psicanálise e tinha declarado um boicote contra médicos e instituições que a praticassem, achei que seria conveniente os partidários da psicanálise se reunirem para uma troca de idéias amistosa, e para apoio mútuo.

Isso, e nada mais, foi o que esperava alcançar com a fundação da “Associação Psicanalítica Internacional”. Mas tudo leva a crer que era querer demais. Do mesmo modo que os meus adversários iriam descobrir que não era possível lutar contra a corrente do novo movimento, assim também eu acabaria percebendo que este não seguiria a direção que eu desejava vê-lo seguir. As propostas feitas por Ferenczi em Nuremberg foram adotadas, é verdade; Jung foi eleito presidente e escolheu Riklin para seu Secretário; concordou-se quanto à publicação de um boletim que devia ligar a Central Executiva com os grupos locais. Declarou-se que o objetivo da Associação era “promover e apoiar a ciência da psicanálise fundada por Freud, tanto como psicologia pura como em sua aplicação à medicina e às ciências mentais e cultivar o apoio mútuo entre os seus membros para que fossem desenvolvidos todos os esforços no sentido da aquisição e difusão de conhecimentos psicanalíticos”. Só o grupo de Viena opôs-se vivamente ao projeto. Adler afirmou, com grande agitação, temer que se pretendesse exercer a “censura e restrições sobre a liberdade científica”. Finalmente, os vienenses cederam, depois de se haverem assegurado de que a sede da Associação não seria sempre Zurique, e sim o local de residência do Presidente que seria eleito por dois anos.

Nesse Congresso, três grupos locais foram constituídos: um em Berlim, sob a presidência de Abraham; outro em Zurique, cujo chefe se tornara o Presidente de toda a Associação; e outro em Viena, cuja direção confiei a Adler. Um quarto grupo, em Budapeste, só pôde ser formado depois. Bleuler não participara do Congresso por motivo de doença, e depois mostrou certa hesitação em fazer parte da Associação, por motivos de ordem geral; deixou-se persuadir, depois de uma conversa pessoal comigo, mas logo afastou-se novamente em conseqüência de discordâncias havidas em Zurique. Isto cortou a ligação entre o grupo de Zurique e a Instituição de Burghölzli.

Um dos resultados do Congresso de Nuremberg foi a fundação da Zentralblatt für Psychoanalyse [Revista Central de Psicanálise], para a qual se uniram Adler e Stekel. O propósito original era, claramente, representar a Oposição: tinha como objetivo reconquistar para Viena a hegemonia ameaçada pela eleição de Jung. Mas quando os dois fundadores da revista, em meio às dificuldades de encontrar um editor, me garantiram suas intenções pacíficas, e como prova de sua sinceridade me deram o direito de veto, aceitei a direção da mesma e trabalhei com energia para o novo órgão, havendo o seu primeiro número aparecido em setembro de 1910.

Prosseguirei agora com a história dos Congressos Psicanalíticos. O terceiro Congresso realizou-se em setembro de 1911, em Weimar, e foi ainda mais bem-sucedido do que os anteriores quanto à atmosfera geral e ao interesse científico. J. J. Putnam, que estava presente nessa ocasião, declarou depois nos Estados Unidos o grande prazer que a reunião lhe proporcionou e externou seu respeito pela “atitude mental” dos participantes, citando algumas palavras que, disseram, eu havia empregado com referência a eles: “Aprenderam a suportar um pouco de verdade.” (Putnam 1912). De fato, ninguém que já houvesse comparecido a outros congressos científicos poderia deixar de levar a uma impressão favorável da Associação Psicanalítica. Eu próprio tinha presidido os dois primeiros Congressos e permitira a cada orador tempo suficiente para expor seu trabalho, deixando que os debates se processassem depois em caráter particular entre os membros. Jung, como Presidente, assumiu a direção em Weimar e voltou a adotar debates formais depois de cada trabalho, o que, entretanto, não trouxe nenhum problema.

Mas as coisas se passaram de forma bem diferente no quarto Congresso realizado em Munique dois anos depois, em setembro de 1913. Todos os que a ele estiveram presentes ainda o trazem bem vivo na memória. Foi dirigido por Jung de maneira desagradável e incorreta; os oradores tiveram seu tempo de exposição limitado e os debates sufocaram os trabalhos apresentados. Por uma infeliz coincidência aconteceu que aquele gênio do mau, Hoche, se instalara no mesmo prédio onde se realizavam as sessões. Diante do comportamento dos analistas, Hoche não deve ter tido dificuldade em perceber quanto se enganara ao descrevê-los como membros de uma seita fanática que obedeciam cegamente ao seu líder. Os debates cansativos e nada construtivos terminaram com a reeleição de Jung para a Presidência da Associação Psicanalítica Internacional, que ele aceitou, embora dois quintos dos presentes lhe negassem apoio. Dispersamo-nos sem nenhuma vontade de nos reunirmos outra vez.

Mais ou menos na época desse Congresso o estado da Associação Psicanalítica Internacional era o seguinte: os grupos locais de Viena, Berlim e Zurique já estavam formados desde o Congresso de Nuremberg, em 1910. Em maio de 1911, surgiu o grupo de Munique, sob a presidência do Dr. L. Seif. No mesmo ano, formou-se o primeiro grupo local norte-americano sob a presidência de A. A. Brill, com o nome de “The New York Psychoanalytic Society”. No Congresso de Weimar foi autorizada a fundação de um segundo grupo norte-americano que começou a funcionar no ano seguinte sob a denominação de “The American Psychoanalytic Association”, e compreendia membros do Canadá e de todos os Estados Unidos; Putnam foi eleito Presidente e Ernest Jones, Secretário. Pouco antes do Congresso de Munique, de 1913, formou-se o grupo local de Budapeste sob a presidência de Ferenczi. Logo depois, foi constituído o primeiro grupo inglês por Ernest Jones, que havia retornado a Londres. O quadro social desses grupos locais, oito ao todo, não pode, naturalmente, servir de base para calcular-se o número de estudantes e adeptos não organizados da psicanálise.

É necessário também dizer algumas palavras sobre o desenvolvimento dos periódicos a serviço da psicanálise. O primeiro deles foi uma série de monografias intitulada Schriften zur angewandsten Seelenkunde [“Artigos sobre Ciência Mental Aplicada”] que apareceram irregularmente desde 1907 e agora ai o número de quinze exemplares. (O editor pretendia começar com Heller em Viena e depois F. Deuticke.) Incluem obras de Freud (Nos. 1 e 7), Riklin, Jung, Abraham (Nos. 4 e 11), Rank (Nos. 5 e 13), Sadger, Pfister, Max Graf, Jones (Nos. 10 e 14), Storfer e von Hug-Hellmuth. Com a fundação da revista Imago, esse gênero de publicação perdeu parte de sua importância. Após a reunião de Salzburg, em 1908, fundou-se o Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen [Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas], o qual veio a lume durante cinco anos sob a diretoria de Jung e que agora ressurgiu, com dois novos redatores e com ligeira alteração no título — passou a chamar-se Jahrbuch der Psyuchoanalyse [Anuário da Psicanálise.] Não mais se destina a ser, como o foi em anos recentes, um simples repositório para publicação de obras autônomas. Em vez disso, seus editores se empenharão em cumprir a finalidade de registrar todos os trabalhos realizados e todos os progressos alcançados no campo da psicanálise. A Zentrablatt für Psychoanalyse, que, como já disse, foi lançada por Adler e Stekel após a fundação da Associação Psicanalítica Internacional em Nuremberg, 1910, teve uma existência breve e tumultuada. Já no décimo número do primeiro volume [julho de 1911] apareceu um aviso na página de frontispício comunicando que, por motivo de divergências científicas de opinião com o diretor, o Dr. Alfred Adler resolvera afastar-se voluntariamente da editoria. Depois disso, o Dr. Stekel continuou o único redator (a partir do verão de 1911). No Congresso de Weimar [setembro de 1911] a Zentralblatt foi elevada à posição de órgão oficial da Associação Internacional e passou a ser remetida a todos os sócios mediante um aumento da contribuição anual. A partir do terceiro número do segundo volume (inverno [dezembro], 1912), Stekel tornou-se o único responsável pelo seu conteúdo. Seu comportamento, do qual é impossível publicar um relato, me obrigou a exonerar-me de sua direção e a criar, às pressas, um novo órgão para a psicanálise — a Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse [Revista International de Psicanálise Médica]. Os esforços conjuntos de quase todos os nossos colaboradores e de Hugo Heller, o novo editor, resultaram no surgimento do primeiro número, em janeiro de 1913, havendo logo tomado o lugar da Zentralblatt como órgão oficial da Associação Psicanalítica Internacional.

Enquanto isso, no início de 1912, um novo periódico, Imago (publicado por Heller), destinado exclusivamente à aplicação da psicanálise às ciências mentais, foi fundado pelo Dr. Hanns Sachs e pelo Dr. Otto Rank. Imago encontra-se agora na metade de seu terceiro volume, sendo lida com interesse por um número sempre crescente de assinantes, alguns deles com pouca ligação com a análise médica.

Afora essas quatro publicações periódicas (Schriften zur angewandten Seelenkunde, Jahrbuch, Zeitschrift e Imago), outros periódicos alemães e estrangeiros publicam trabalhos que merecem um lugar na literatura psicanalítica. The Journal of Abnormal Psychology, dirigido por Morton Prince, costuma publicar tantas e tão boas contribuições analíticas que deve ser considerado como o principal representante da literatura analítica nos Estados Unidos. No inverno de 1913, White e Jellife em Nova Iorque lançaram um novo periódico (The Psychoanalytic Review) dedicado exclusivamente à psicanálise, sem dúvida levando em conta o fato de que para a maioria dos médicos americanos interessados na psicanálise, a língua alemã é um obstáculo.

Devo agora mencionar duas deserções que houve entre os partidários da psicanálise; a primeira ocorreu entre a fundação da Associação em 1910 e o Congresso de Weimar em 1911; a segunda verificou-se após esse Congresso e evidenciou-se em Munique em 1913. O desapontamento que me causaram talvez tivesse sido evitado se eu tivesse prestado mais atenção às reações de pacientes sob tratamento analítico. Sabia muito bem, naturalmente, que qualquer pessoa, ao primeiro contato com as realidades desagradáveis da análise, pode reagir fugindo; eu próprio sempre havia sustentado que na compreensão da análise, cada indivíduo é limitado por suas próprias repressões (ou antes, pelas resistências que as sustentam) de modo que não pode ir além de um certo ponto em sua relação com a análise. Mas eu não esperava que alguém que houvesse alcançado certa profundidade na compreensão da análise pudesse renunciar a essa compreensão e perdê-la. E, no entanto, a experiência cotidiana com pacientes havia demonstrado que a rejeição total do conhecimento analítico pode ocorrer sempre que surge uma resistência especialmente forte em qualquer profundidade da mente. Às vezes conseguimos, depois de muito trabalho, fazer com que um paciente aprenda algumas partes do conhecimento analítico e possa lidar com elas como posses suas, e mesmo assim podemos vê-lo, sob o domínio da própria resistência seguinte, lançar tudo o que aprendeu às urtigas e ficar na defensiva como o fez nos dias em que era um principiante despreocupado. Tive de aprender que a mesmíssima coisa pode acontecer tanto com psicanalistas como com pacientes em análise.

Não constitui tarefa fácil nem invejável escrever a história dessas duas deserções, em parte porque estou desprovido de qualquer motivo pessoal forte para fazê-lo — não esperava gratidão nem sou particularmente vingativo — e em parte porque sei que agindo assim ficarei ao sabor das ofensas de meus adversários, nada escrupulosos, e vou oferecer aos inimigos da psicanálise o espetáculo que eles tão ardentemente desejam — “os psicanalistas se degladiando entre si”. Depois de tanto autodomínio para não entrar em choque com adversários fora da análise, vejo-me agora forçado a pegar em armas contra os seus ex-seguidores ou pessoas que ainda denominam a si próprias de seguidores. Não tenho escolha, porém: se ficasse calado seria por indolência ou covardia, e o silêncio seria mais prejudicial à psicanálise do que uma exposição franca dos danos já causados. Quem quer que tenha acompanhado o desenvolvimento de outros movimentos científicos sabe que as mesmas convulsões e divergências ocorrem neles com freqüência. Pode ser que se tenham preocupado mais em ocultá-los; mas a psicanálise, que repudia tantas idéias convencionais, também nessa questão é mais honesta.

Outro problema muito sério é que não posso abster-me inteiramente de utilizar os conhecimentos psicanalíticos no exame desses dois movimentos de oposição. A análise, entretanto, não se presta a uso polêmico; pressupõe o consentimento da pessoa que está sendo analisada e uma situação na qual existam um superior e um subordinado. Daí, quem quer que empreenda uma análise com fins polêmicos pode esperar que a pessoa analisada utilize, por sua vez, a análise contra ela, de modo que a discussão atingirá um ponto que exclui inteiramente a possibilidade de convencer qualquer outra pessoa imparcial. Restringirei, portanto, a um mínimo o uso do conhecimento analítico, e, com ele, a indiscrição e a agressividade contra meus adversários; devo também ressaltar que não estou me baseando nesse terreno para nenhuma crítica de caráter científico. Não estou interessado na verdade que possa estar contida nas teorias que venho rejeitando, nem tentarei refutá-las. Deixarei essa tarefa a outros trabalhadores qualificados no campo da psicanálise, tendo sido ela, na verdade, já em parte realizada. Desejo apenas mostrar que essas teorias contrariam os princípios fundamentais da psicanálise (e em que pontos os contrariam) e que por essa razão não devem ser conhecidas pelo nome de psicanálise. Assim vou-me valer da psicanálise apenas para explicar como essas divergências dela podem surgir entre os analistas. Entretanto, quando toco os pontos nos quais as divergências ocorreram, não posso deixar de defender os justos direitos da psicanálise com algumas observações de natureza puramente crítica.

A primeira tarefa com que se defrontou a psicanálise foi a de explicar as neuroses; utilizou a resistência e a transferência como pontos de partida e, levando em consideração a amnésia, explicou os três fatos com as teorias da repressão, das forças sexuais motivadoras da neurose e do inconsciente. A psicanálise jamais pretendeu oferecer uma teoria completa da atividade mental humana em geral, mas esperava apenas que o que ela oferecia pudesse ser aplicado para suplementar e corrigir o conhecimento adquirido por outros meios. A teoria de Adler, entretanto, vai muito além disso, procurando de um só golpe explicar o comportamento e o caráter dos seres humanos bem como de suas doenças neuróticas e psicóticas. Na realidade, presta-se mais a qualquer outro campo do que ao da neurose, embora por motivos ligados à história do seu desenvolvimento ainda situe isso no primeiro plano. Por muitos anos, tive oportunidade de estudar o Dr. Adler e jamais me recusei a reconhecer sua rara capacidade, associada a uma inclinação particularmente especulativa. Como exemplo da “perseguição” a que, ele afirma, eu o submeti, posso lembrar do fato de ter-lhe passado a liderança do grupo de Viena após a fundação da Associação. Só depois de insistentes reclamações feitas por todos os membros da sociedade é que me deixei persuadir a ocupar novamente a presidência nas suas reuniões científicas. Quando percebi quão pouco dotado era Adler para o julgamento de material inconsciente, mudei minha opinião para uma esperança de que ele conseguisse descobrir as ligações da psicanálise com a psicologia e com os fundamentos biológicos dos processos instintivos — esperança justificada, em certo sentido, pelo seu valioso trabalho sobre “a inferioridade dos órgãos”. E ele, na verdade, realizou algo nesse gênero, mas seu trabalho transmite uma impressão “como se” — para empregar seu próprio “jargão” — destinada a provar que a psicanálise estava errada em tudo e que atribuíra tanta importância às forças sexuais motivadoras, por causa de sua facilidade em acreditar nas afirmações dos neuróticos. Posso até mesmo falar publicamente da motivação de ordem pessoal do seu trabalho, desde que ele próprio a anunciou na presença de um pequeno círculo de membros do grupo de Viena: — “O Senhor pensa que é um grande prazer para mim ficar a vida inteira à sua sombra?” Naturalmente, não acho nada condenável que um homem mais jovem admita francamente sua ambição — o que já era evidente ser um dos incentivos do seu trabalho. Mas mesmo uma pessoa dominada por um motivo desses, deve saber evitar ser o que os ingleses, com seu requintado tato social, chamam de “unfair” (desleal) — que em alemão só pode ser dito com uma palavra muito mais grosseira. Quão pouco Adler foi bem-sucedido nisso é indicado pela profusão de mesquinhas explosões de malevolência que desfiguram suas obras e pelos indícios que refletem um anseio desenfreado de prioridade. Na Sociedade Psicanalítica de Viena ouvimo-lo uma vez reivindicar para si a prioridade do conceito da “unidade das neuroses” e do “ponto de vista dinâmico” delas. Isso foi para mim uma grande surpresa, pois sempre pensei que esses dois princípios tivessem sido por mim enunciados antes de ter conhecido Adler.

Essa luta de Adler por um lugar ao sol teve, no entanto, um resultado que está destinado a ser benéfico à psicanálise. Quando divergências científicas inconciliáveis me obrigaram a fazer Adler demitir-se da direção de Zentralblatt, ele abandonou também a sociedade de Viena, e fundou uma nova que, de início, teve o nome curioso de “Sociedade de Psicanálise Livre” [“Verein für freie Psychoanalyse”]. Mas pessoas de fora, que não estão ligadas à psicanálise, são tão incapazes de perceber as diferenças entre os pontos de vista de dois psicanalistas quanto os europeus de fazer distinção entre as caras de dois chineses. A psicanálise “livre” permaneceu à sombra da psicanálise “oficial”, “ortodoxa”, e foi tratada simplesmente como um apêndice dela. Adler então tomou uma atitude pela qual lhe somos gratos; cortou todas as ligações com a psicanálise, e deu a sua teoria o nome de “Psicologia Individual”. Há bastante espaço nesse mundo de Deus, e todos têm o direito de perambular nele sem serem impedidos; mas não é conveniente que pessoas que deixaram de se compreender e que se tornaram incompatíveis permaneçam sob o mesmo teto. A “Psicologia Individual” de Adler é agora uma das numerosas escolas de psicologia contrárias à psicanálise e o seu ulterior desenvolvimento já não nos diz respeito.

A teoria adleriana foi desde o começo um “sistema” — que a psicanálise teve o cuidado de evitar vir a ser. É também um exemplo notável de “revisão secundária”, tal como ocorre, por exemplo, no processo ao qual o pensamento desperto submete o material dos sonhos. No caso de Adler, substitui-se o material dos sonhos pelo novo material obtido através de estudos psicanalíticos; este é então encarado puramente do ponto de vista do ego, reduzido a categorias com as quais o ego está familiarizado, traduzido, distorcido e — exatamente como acontece na formação dos sonhos — mal compreendido. Além disso, a teoria adleriana caracteriza-se menos pelo que afirma do que pelo que nega, de modo que consiste em três espécies de elementos de valor bem desigual: contribuições úteis à psicologia do ego, traduções supérfluas, porém admissíveis, dos fatos analíticos para o novo “jargão”, e distorções e inversões desses fatos quando não obedecem às exigências do ego.

Os elementos do primeiro tipo nunca foram ignorados pela psicanálise, embora não merecessem dela nenhuma atenção especial; estava mais interessada em demonstrar que toda tendência do ego encerra componentes libidinais. A teoria adleriana dá ênfase à contrapartida disso, ou seja, o constituinte egoístico dos impulsos instintivos da libido. Isso teria sido uma aquisição apreciável se Adler não tivesse utilizado essa observação em todas as ocasiões para negar os impulsos libidinais em favor de seus componentes instintivos egoísticos. Sua teoria se comporta como todo paciente e como nosso pensamento consciente, ou seja, faz uso de uma racionalização, como Jones [1908] a denominou, para ocultar o motivo inconsciente. Adler é tão coerente nisso que chega a considerar que a força motivadora mais poderosa no ato sexual é a intenção do homem de afirmar-se como senhor da mulher — de estar “por cima“. Não sei se ele expressou essas idéias monstruosas em suas obras.

A psicanálise cedo reconheceu que todo sintoma neurótico deve sua possibilidade de existência a uma transação. Todo sintoma deve, portanto, de alguma forma obedecer às exigências do ego, o qual manipula a repressão; deve oferecer alguma vantagem, ter alguma aplicação proveitosa, ou haveria de ter o mesmo destino que o próprio impulso instintivo original que foi desviado. A expressão “vantagem da doença” levou isso em conta; é até justificável que se queira fazer distinção entre a vantagem “primária” do ego, que deve estar atuante na ocasião da gênese do sintoma, e uma parte “secundária”, que sobrevém ligada a outras finalidades do ego, a fim de que o sintoma persista. De há muito se sabe que a eliminação dessa vantagem da doença, ou seu desaparecimento em conseqüência da modificação de circunstâncias externas reais, constitui um dos mecanismos da cura de um sintoma. Na doutrina adleriana, a ênfase principal recai sobre essas ligações facilmente verificáveis e claramente inteligíveis, enquanto se menospreza inteiramente o fato de que em inúmeras ocasiões o ego está apenas transformando em virtude a necessidade de submeter-se (por causa de sua utilidade) ao sintoma muito desagradável que lhe é imposto — por exemplo, ao aceitar a ansiedade como um meio de segurança. O ego está aí desempenhando o papel ridículo de um palhaço de circo que, pelos gestos, tenta convencer a platéia de que toda mudança no picadeiro está sendo executada por ordem sua. Mas só as crianças se deixam enganar por ele.

A psicanálise vê-se obrigada a apoiar o segundo constituinte da teoria de Adler como o faria a algo seu que aquele autor extraiu de fontes abertas a todos durante dez anos de trabalho em comum e que agora rotulou como descoberta sua, através de uma simples mudança de nomenclatura. Eu mesmo considero “reasseguramento [Sicherung]”, por exemplo, um termo melhor do que “medida protetora [schutzmassregel]”, empregado por mim, mas não posso descobrir nenhuma diferença no significado de ambos. Além disso, encontramos um grande número de características familiares nas proposições de Adler quando ele restaura termos mais antigos como “fantasiado” e “fantasia” no lugar de “fingido” [fingiert], “fictício” e “ficção”. A psicanálise insistiria que esses termos são idênticos, mesmo se o seu autor não houvesse tomado parte em nosso trabalho comum por um período de muitos anos.

A terceira parte da teoria adleriana, as interpretações deturpadas e as distorções dos fatos desagradáveis revelados pela análise, são o que separa definitivamente a “Psicologia Individual”, como agora deve ser denominada, da psicanálise. Como sabemos, o princípio do sistema de Adler é que o propósito de auto-afirmação do indivíduo, sua “vontade de poder”, é o que, sob a forma de um “protesto masculino”, desempenha papel dominante na sua conduta, na formação do caráter e na neurose. Entretanto, esse “protesto masculino”, a força motivadora adleriana, nada mais é senão a repressão desligada do seu mecanismo psicológico e, além do mais, sexualizada — o que está bem pouco de acordo com a tão apregoada expulsão da sexualidade do seu lugar na vida mental. O “protesto masculino” sem dúvida existe, mas se for transformado na [única] força motivadora da vida mental estamos menosprezando os fatos observados como se abandonássemos um trampolim depois de o havermos utilizado para o salto. Consideremos uma das situações fundamentais em que se sente desejo na infância: a de uma criança que observa o ato sexual entre adultos. A análise demonstra, no caso de pessoas cuja vida o médico estudará depois, que, nesses momentos, dois impulsos se apoderam do espectador imaturo. Nos meninos, um é o impulso de colocar-se no lugar do homem ativo, e o outro, a contracorrente, é o impulso de identificar-se com a mulher passiva. O conflito entre esses dois impulsos esgota as possibilidades de prazer da situação. Somente o primeiro pode ser classificado como protesto masculino, se quisermos dar um sentido a esse conceito. O segundo, entretanto, cujo curso ulterior Adler não leva na devida consideração ou desconhece inteiramente, é o que se tornará mais importante na neurose subseqüente. Adler foi absorvido de tal forma pela estreiteza ciumenta do ego que leva em conta apenas os impulsos instintivos agradáveis ao ego e por ele estimulados; a situação neurótica, na qual os impulsos se opõem ao ego, é precisamente aquela que fica além do horizonte de Adler.

É em relação à tentativa — que a psicanálise tornou necessária — de correlacionar o princípio fundamental de sua teoria com a vida mental das crianças, que Adler apresenta os desvios mais sérios da observação real e a confusão mais fundamental de seus conceitos. Os significados biológico, social e psicológico de “masculino” e “feminino” estão aqui irremediavelmente confundidos. É impossível, e negado pela observação, que uma criança, quer do sexo masculino, quer feminino, baseie seu plano de vida numa depreciação original do sexo feminino e faça do desejo de ser um homem verdadeiro sua “diretriz”. Para começar, as crianças não fazem nenhuma idéia da importância da distinção entre os sexos; pelo contrário, partem da suposição de que ambos possuem o mesmo órgão genital (o masculino); não iniciam suas pesquisas sexuais com o problema da distinção entre os sexos, e a depreciação social das mulheres lhes é completamente estranha. Há mulheres em cuja neurose o desejo de ser homem não desempenhou nenhum papel. O que houve de protesto masculino pode-se facilmente remontar a uma perturbação do narcisismo primário devido a ameaças de castração ou às primeiras coerções das atividades sexuais. Todas as controvérsias sobre a psicogênese das neuroses terminarão sempre por ser resolvidas no campo das neuroses da infância. A dissecção cuidadosa de uma neurose na mais tenra infância põe termo a todos os equívocos sobre a etiologia das neuroses e a todas as dúvidas sobre o papel que os instintos sexuais nela desempenham. Eis por que, em sua crítica ao trabalho de Jung, “Conflitos na Mente da Criança” [1910c], Adler [1911a] foi obrigado a recorrer ao argumento de que os fatos do caso haviam sido ordenados unilateralmente, “sem dúvida pelo pai” [da criança].

Não me estenderei mais sobre o aspecto biológico da teoria adleriana nem discutirei se é a “inferioridade do órgão” real [ver em [1]] ou o sentimento subjetivo do mesmo — não se sabe qual — que pode, na verdade, servir de fundamento ao sistema de Adler. Limitar-me-ei a comentar de passagem que, se fosse assim, a neurose seria um subproduto de toda espécie de decrepitude física, ao passo que a observação mostra que uma grande maioria de pessoas feias, deformadas, aleijadas e infelizes deixam de reagir a seus defeitos através da neurose. Tampouco abordarei a interessante afirmação segundo a qual a inferioridade deve ser remontada ao sentimento de ser um criança, que revela o disfarce sob o qual o fator do infantilismo, a que a psicanálise deu tanta ênfase, reaparece na “Psicologia Individual”. Por outro lado, devo frisar como todas as aquisições psicológicas da psicanálise foram jogadas fora por Adler. Em seu livro Über den nervösen Charakter [1912] o inconsciente ainda aparece como uma peculiaridade psicológica, sem, entretanto, qualquer relação com seu sistema. Posteriormente, ele declarou repetidas vezes que é uma questão indiferente para ele se uma idéia é consciente ou inconsciente. Para começar, Adler nunca deu o menor sinal de ter compreendido o que é a repressão. No resumo de um trabalho lido por ele na Sociedade de Viena (fevereiro de 1911) escreveu que se deve ressaltar que, num caso específico, ficou demonstrado que o paciente nunca havia reprimido sua libido, mas vinha continuamente “reassegurando-se” dela. Pouco depois, num debate na Sociedade de Viena, disse: “Se perguntarmos de onde vem a repressão, nos respondem, ‘da civilização’, mas se perguntarmos depois de onde vem a civilização, nos dizem, ‘da repressão’. Como vêem, é simplesmente um jogo de palavras.” Uma parte mínima da agudeza e engenhosidade que Adler usou para desmascarar os dispositivos defensivos do “caráter nervoso” teria sido suficiente para indicar-lhe a saída desse argumento capcioso. O que se quer dizer é simplesmente que a civilização se baseia nas repressões efetuadas por gerações anteriores, e que se exige de cada nova geração que mantenha essa civilização efetuando as mesmas repressões. Certa vez ouvi falar de uma criança que julgava que as pessoas zombavam dela, e começou a chorar, porque quando perguntou de onde vêm os ovos disseram-lhe que “das galinhas”, e quando perguntou novamente de onde vinham as galinhas responderam-lhe “dos ovos”. Mas não estavam fazendo um jogo de palavras; pelo contrário, estavam dizendo-lhe a verdade.

Tudo que Adler tem a dizer sobre sonhos, a pedra de toque da psicanálise, é igualmente vazio e destituído de sentido. Inicialmente, ele considerava os sonhos como um desvio da linha feminina para a masculina — o que é simplesmente uma tradução da teoria da realização de desejos dos sonhos para a linguagem do “protesto masculino”. Depois descobriu que a essência dos sonhos está em permitir que os homens realizem inconscientemente o que lhes é negado conscientemente. Cabe também a Adler [1911b, 215n.] o mérito da prioridade no confundir sonhos com pensamentos oníricos latentes — confusão na qual se baseia a descoberta de sua “tendência prospectiva”. Maeder [1912] seguiu-lhe o exemplo em relação a isso posteriormente. Aqui se menospreza totalmente o fato de que toda interpretação de um sonho que é incompreensível em sua forma manifesta se baseia precisamente no próprio método de interpretação de sonhos cujas premissas e conclusões são objeto de controvérsia. No tocante à resistência, Adler nos informa que ela serve à finalidade de pôr um vigor a oposição do paciente ao médico. Isso por certo é verdade; vale tanto quanto dizer que ela serve à finalidade da resistência. De onde provém, contudo, ou como acontece que suas manifestações fiquem à disposição do paciente, não é objeto de ulterior indagação, como sendo de nenhum interesse para o ego. O mecanismo pormenorizado dos sintomas e manifestações de doenças, a explicação da múltipla variedade dessas doenças e suas formas de expressão, são negligenciados in toto; pois tudo é igualmente posto a serviço do protesto masculino, da auto-afirmação e do enaltecimento da personalidade. O sistema está completo; produzi-lo custou enorme volume de trabalho de reformulação de interpretação, ao passo que ele próprio não forneceu uma única observação nova. Creio ter deixado claro que ele nada tem que ver com a psicanálise.

A visão da vida refletida no sistema adleriano fundamenta-se exclusivamente no instinto agressivo; nele não há lugar para o amor. Talvez nos surpreenda que essa Weltanschauung tão melancólica tenha merecido alguma atenção, mas não devemos esquecer que os seres humanos, vergados sob o fardo de suas necessidades sexuais, estão prontos a aceitar qualquer coisa se pelo menos a “superação da sexualidade” lhes for oferecida como isca.

A deserção de Adler ocorreu antes do Congresso de Weimar em 1911; depois dessa data teve início a dos suíços. Os primeiros sinais dela, o que é bastante curioso, foram certas observações de Riklin em uns artigos populares aparecidos em publicações suíças, de modo que o grande público soube, antes do que aqueles mais intimamente ligados ao assunto, que a psicanálise havia superado alguns erros lamentáveis que anteriormente a haviam desacreditado. Em 1912, Jung vangloriou-se, numa carta procedente dos Estados Unidos, de que suas modificações da psicanálise haviam vencido as resistências de muitas pessoas que até então não queriam nada com ela. Repliquei que aquilo não constituía nenhum motivo de vanglória, e que quanto mais ele sacrificasse as verdades da psicanálise conquistadas arduamente, mais veria as resistências desaparecendo. Essa modificação, da qual os suíços tanto se orgulharam, mais uma vez nada mais era do que impelir para o segundo plano o fator sexual na teoria psicanalítica. Confesso que desde o começo considerei esse “avanço” como um ajustamento muito exagerado às exigências da realidade.

Esses dois movimentos de afastamento da psicanálise, que eu agora devo comparar um com o outro, assinalam outro ponto em comum: ambos cortejam uma opinião favorável mediante a formulação de certas idéias elevadas, que encaram as coisas, por assim dizer, sub specie aeternitatis. Em Adler, esse papel é desempenhado pela relatividade de todo conhecimento e pelo direito da personalidade de basear uma interpretação artificial nos dados de conhecimento de acordo com o gosto individual; em Jung, faz-se apelo ao direito histórico da juventude de romper os grilhões com os quais a tirania dos mais velhos e seus pontos de vista tacanhos procuram aprisioná-la. Algumas palavras devem ser dedicadas ao esclarecimento da falácia dessas idéias.

A relatividade do nosso conhecimento é uma consideração que pode ser formulada contra todas as outras ciências, do mesmo modo que contra a psicanálise. Origina-se de conhecidas correntes reacionárias do pensamento atual hostis à ciência, e pretende o surgimento de uma superioridade a que ninguém pode aspirar. Nenhum de nós pode adivinhar qual será o julgamento final da humanidade sobre nossos esforços teóricos. Existem exemplos em que a rejeição das três primeiras gerações foi corrigida pela seguinte e transformada em reconhecimento. Depois de se ter ouvido com cuidado a voz da autocrítica e de haver prestado certa atenção às críticas dos adversários, não resta mais nada a fazer senão sustentar, com todas as forças, as próprias convicções baseadas na experiência. A pessoa deve contentar-se em agir com o máximo de honestidade, não devendo assumir o papel de juiz, reservado ao futuro remoto. Dar ênfase a opiniões pessoais arbitrárias, em assuntos científicos, é mau; constitui claramente uma tentativa de questionar o direito da psicanálise de ser considerada uma ciência — aliás, depois de já ter sido esse valor depreciado pelo que foi dito antes [sobre a natureza relativa de todo o conhecimento]. Quem quer que dê grande valor ao pensamento científico procurará, antes, todos os meios e métodos possíveis para limitar o fator predileções pessoais fantasiosas tanto quanto possível, onde quer que ele desempenhe papel grande demais. Além disso, vale a pena lembrar que não tem cabimento o excessivo zelo em defendermos a nós mesmos. Esses argumentos de Adler não têm intenção séria. Destinam-se apenas a ser utilizados contra seus adversários; não se referem às suas próprias teorias, nem impediram seus seguidores de aclamá-lo como o Messias, para cujo advento a humanidade ansiosa foi preparada por grande número de precursores. O Messias certamente não é nenhum fenômeno relativo.

O argumento ad captandam benevolentiam de Jung repousa na suposição demasiado otimista de que o progresso da raça humana, da civilização e do conhecimento sempre seguiu uma linha ininterrupta, como se não tivesse havido períodos de decadência, reações e restaurações após cada revolução, e gerações não tivessem dado um passo para trás e abandonado as vantagens de seus antecessores. Sua abordagem do ponto de vista das massas, sua renúncia a uma inovação que foi mal recebida, tornam a priori pouco provável que a versão jungiana da psicanálise possa com justiça pretender ser uma atitude jovem de liberação. Afinal de contas, não é a idade do autor que decide isso, mas o caráter da ação.

Dos dois movimentos em discussão, o de Adler é, sem dúvida alguma, o mais importante; embora radicalmente falso, apresenta consistência e coerência. Além disso, se baseia, apesar de tudo, numa teoria dos instintos. A modificação de Jung, por outro lado, afrouxa a conexão dos fenômenos com a vida instintiva; e além disso, conforme seus críticos (p. ex. Abraham, Ferenczi e Jones) ressaltaram, é tão obscura, ininteligível e confusa a ponto de se tornar difícil assumir uma posição em relação a ela. Quando se pensa que se entendeu alguma coisa, pode-se ficar preparado para ouvir dizer que não se entendeu e não se pode saber como tirar uma conclusão correta. Tudo é formulado de uma maneira particularmente vacilante, ora como “uma divergência sutil que não justifica o escarcéu que se fez em torno dela” (Jung), ora como uma nova mensagem de salvação que irá iniciar uma nova era para a psicanálise, e mais ainda, uma nova Weltanschauung para todos.

Quando se pensa nas várias incoerências reveladas em diversos pronunciamentos públicos e privados feitos pelo movimento jungiano, somos levados a perguntar quanto disso se deve à falta de clareza e quanto à falta de sinceridade. Deve-se admitir, contudo, que os expoentes da nova teoria se encontram numa posição difícil. Combatem agora coisas que anteriormente defendiam, e o fazem, além disso, não baseados em novas observações que lhes poderiam ter ensinado algo mais, mas em conseqüência de novas interpretações que fazem com que as coisas que vêem lhes pareçam diferentes do que viam antes. Por esse motivo não estão dispostos a abrir mão da ligação com a psicanálise, como representantes da qual se tornaram conhecidos perante o mundo, e preferem anunciar que a psicanálise mudou. No Congresso de Munique achei necessário esclarecer essa confusão, e o fiz declarando que não reconhecia as inovações dos suíços como continuações legítimas e desenvolvimentos ulteriores da psicanálise que se originou comigo. Críticos alheios ao movimento psicanalítico (como Furtmüller) já haviam observado isso antes, e Abraham tem razão em dizer que Jung se afastou inteiramente da psicanálise. É claro que sou perfeitamente capaz de admitir que cada um tem o direito de pensar e escrever o que quiser, mas não tem o direito de apresentá-lo como uma coisa que não é.

Da mesma forma que a investigação de Adler trouxe algo de novo à psicanálise — uma contribuição à psicologia do ego — e cobrou por esse presente um preço demasiado alto jogando fora todas as teorias fundamentais da análise, assim também Jung e seus seguidores prepararam o caminho para a sua luta contra a psicanálise presenteando-a com uma nova aquisição. Investigaram em detalhes (como Pfister fizera antes deles) o caminho através do qual o material das idéias sexuais pertencentes ao complexo de família e à escolha de objeto incestuoso é utilizado na representação dos interesses éticos e religiosos mais elevados do homem, isto é, aclarando assim um importante exemplo de sublimação das forças eróticas instintivas e de sua transformação em tendências que não podem mais ser chamadas de eróticas. Isso concordava perfeitamente com todas as expectativas da psicanálise e poderia harmonizar-se muito bem com a idéia segundo a qual nos sonhos e neuroses uma dissolução regressiva dessa sublimação, como de todas as outras, se torna visível. Mas o mundo inteiro teria protestado indignado contra a sexualização da ética e da religião. Pelo menos dessa vez não consigo deixar de pensar teologicamente e concluir que esses descobridores não tinham condições de enfrentar essa tormenta de indignação, talvez mesmo presente no íntimo deles próprios.

A pré-história teológica de tantos suíços não explica sua atitude para com a psicanálise mais do que a pré-história socialista de Adler explica o desenvolvimento de sua psicologia. Isso nos faz lembrar a famosa história de Mark Twain sobre as coisas que aconteceram a seu relógio, e suas palavras conclusivas: “E ele ficava imaginando que fim tinham levado os funileiros, e armeiros, e sapateiros, e ferreiros fracassados; mas ninguém sabia dizer.”

Suponhamos — para fazer uma comparação — que num determinado grupo social vive um parvenu (aventureiro) que se vangloria de ser descendente de uma família nobre que reside em outro lugar. Um dia se descobre que seus pais moram na vizinhança, e são pessoas muito modestas. Só há uma maneira de contornar essa dificuldade e ele se agarra a ela. Já não pode repudiar os pais, mas insiste em que são de linhagem nobre e que simplesmente perderam sua posição social  no mundo; e consegue uma árvore genealógica de alguma fonte oficial complacente. Parece-me que os suíços foram obrigados a se comportar da mesma maneira. Se não se permitiu que a ética e a religião fossem sexualizadas porque tinham de ser algo de origem mais “elevada” e se, não obstante, as idéias nelas contidas pareciam ter-se, inegavelmente, originado do complexo de Édipo e do complexo familiar, só podia haver uma saída; que esses complexos não tenham o sentido que aparentam, mas contenham um elevado sentido “anagógico” (como Silberer o denomina) que tenha tornado possível o seu emprego nas abstratas seqüências de pensamento da ética e do misticismo religioso.

Não será surpresa para mim ouvir dizer novamente que não compreendi a substância e objetivo da teoria neozuriquiana; mas o que me interessa é protestar antecipadamente contra pontos de vista contrários às minhas teorias que possam ser encontrados nas publicações daquela escola sendo atribuídos a mim e não a eles. Não vejo outro meio de tornar inteligível a mim próprio o conjunto de inovações de Jung, e de apreender todas as suas implicações. As modificações que Jung propôs que se fizessem na psicanálise decorrem todas de sua intenção de eliminar o lado reprovável dos complexos familiares para não voltar a encontrá-lo na religião e na ética. A libido sexual foi substituída por um conceito abstrato, sobre o qual se pode dizer com segurança que continua tão enigmático e incompreensível para os entendidos quanto para os leigos. O complexo de Édipo tem um significado meramente “simbólico”: a mãe, nele, representa o inacessível, a que se tem de renunciar no interesse da civilização; o pai que é assassinado no mito de Édipo é o pai “interior”, de quem nos devemos libertar a fim de nos tornarmos independentes. Outras partes do material das idéias sexuais serão, por certo, submetidas a reinterpretações semelhantes no decorrer do tempo. Em lugar de um conflito entre as tendências eróticas ego-distônicas e as autopreservadoras, surge um conflito entre as “tarefas da vida” e a “inércia psíquica”; o sentimento de culpa do neurótico corresponde a sua auto-recriminação por não cumprir adequadamente seu “trabalho de viver”. Dessa forma, criou-se um novo sistema ético-religioso, que, tal qual o sistema adleriano, estava destinado a reinterpretar, distorcer ou alijar os achados efetivos da análise. A verdade é que essas pessoas detectaram algumas nuanças culturais da sinfonia da vida e mais uma vez não deram ouvidos à poderosa e primordial melodia dos instintos.

A fim de preservar intacto esse sistema, foi necessário afastar-se inteiramente da observação e da técnica da psicanálise. Vez por outra, o entusiasmo pela causa deu margem até mesmo à inobservância da lógica científica — quando Jung acha, por exemplo, que o complexo de Édipo não é bastante “específico” para a etiologia das neuroses, e passa a atribuir essa qualidade específica à inércia, a característica mais universal de toda matéria, animada e inanimada! Deve-se notar, a propósito, que o “complexo de Édipo” representa apenas um tópico com o qual as forças mentais do indivíduo têm de lidar, e não é, em si próprio, uma força, como a “inércia psíquica”. O estudo dos indivíduos tinha demonstrado (e sempre demonstrará) que os complexos sexuais em seu sentido original estão vivos neles. Em conseqüência disso, a investigação de indivíduos foi relegada a segundo plano [nas novas teorias] e substituída por conclusões baseadas em provas oriundas da pesquisa antropológica. O maior risco de defrontar-se com o sentido original e sem disfarces desses complexos reinterpretados seria na tenra infância de cada indivíduo; em conseqüência, na terapia estabeleceu-se a injunção de que essa história passada deve ser resolvida o mínimo possível e a ênfase principal posta no conflito do presente, no qual, além do mais, a coisa essencial de modo algum deveria ser o que era acidental e pessoal, mas o que era geral — de fato, a não-realização das tarefas da vida. Como sabemos, no entanto, o conflito de um neurótico torna-se compreensível e admite solução somente quando é remontado à sua pré-história, quando uma pessoa volta atrás ao longo do caminho que sua libido seguiu quando ela adoeceu.

A forma assumida pela terapêutica neozuriquiana sob essas influências pode ser expressa nas palavras de um paciente que vivenciou isso pessoalmente: “Dessa vez nenhum vestígio de atenção foi dado ao passado ou à transferência. Onde quer que eu pensava haver apreendido esta última, diziam-me tratar-se de um puro símbolo libidinal. Os ensinamentos morais eram muito bonitos e eu os seguia fielmente, mas não avancei um passo. Isso era, naturalmente, muito mais incômodo para mim do que para ele, mas como poderia evitá-lo?… Em vez de libertar-me pela análise, cada dia fazia-me novas e tremendas exigências, que tinham de ser cumpridas se se quisesse que a neurose fosse dominada — por exemplo: concentração interior através da introversão, meditação religiosa, nova vida em comum com uma mulher com amor e dedicação etc. Isso estava quase além das forças de qualquer um; visava a uma radical transformação de toda a minha natureza interna. Deixei a análise como um pobre pecador, com intensos sentimentos de arrependimento e as melhores intenções, mas ao mesmo tempo totalmente desanimado. Qualquer sacerdote teria aconselhado o que ele recomendava, mas onde iria eu encontrar forças para isso?” O paciente chegou mesmo a lembrar ter ouvido falar que a análise do passado e da transferência deveria ser compreendida primeiramente, mas lhe haviam dito que disso ele já tivera o bastante. Desde que essa primeira espécie de análise não o havia ajudado mais, parece-me justificada a conclusão de que o paciente não tivera dela o bastante. Por certo, o tratamento subseqüente, que já não podia pretender chamar-se de psicanálise, não melhorou as coisas. É impressionante que os membros da escola de Zurique tivessem de fazer uma volta tão longa e passar por Viena para chegar à vizinha cidade de Berna, onde Dubois cura as neuroses por meio de incentivos morais, de uma maneira mais sensata.

A incompatibilidade total desse novo movimento com a psicanálise também se revela na maneira de Jung encarar a repressão, que quase já não é mencionada em suas obras, na má compreensão dos sonhos — como Adler [ver em [1]], Jung confunde sonhos com pensamentos oníricos latentes, sem levar em consideração a psicologia dos sonhos — e na perda de toda a compreensão do inconsciente; em suma, em todos os pontos que devo considerar como a essência da psicanálise. Quando Jung nos diz que o complexo de incesto é meramente “simbólico”, que apesar de tudo não possui existência “real”, que afinal de contas um selvagem não sente nenhum desejo por uma mulher velha, prefere uma jovem e bonita, somos tentados a concluir que “simbólico” e “sem existência real” simplesmente significam algo que, em virtude de suas manifestações e efeitos patogênicos, é descrito pela psicanálise como “existindo inconscientemente” — descrição que elimina a contradição aparente.

Se se tiver em mente que os sonhos são algo diferente dos pensamentos oníricos latentes que eles elaboram, não há nada de surpreendente em que os pacientes sonhem com coisas com as quais suas mentes tenham estado repletas durante o tratamento, sejam elas as “tarefas da vida”, “ficar por cima” ou “por baixo”. Não há a menor dúvidade que os sonhos de pessoas em análise podem ser dirigidos, da mesma maneira que o são por estímulos produzidos com fins experimentais. Pode-se determinar uma parte do material que aparece num sonho; nada da essência ou do mecanismo dos sonhos é alterado por isso. Também não acredito que os sonhos “biográficos”, como são chamados, ocorram fora da análise. Se, por outro lado, se analisam sonhos tidos antes do tratamento, ou se se consideram os próprios acréscimos do sonhador ao que lhe tem sido sugerido no tratamento, ou se se evita atribuir-lhe qualquer tarefa dessa natureza, então é fácil convencer-se como está longe da finalidade de um sonho produzir tentativas de solução para as tarefas da vida. Os sonhos são apenas uma forma de pensar; jamais se pode alcançar uma compreensão dessa forma tomando como ponto de referência o conteúdo dos pensamentos; somente uma apreciação do trabalho dos sonhos nos levará a essa compreensão.

Não é difícil refutar com argumentos concretos as concepções errôneas de Jung sobre a psicanálise e os desvios dela. Toda análise conduzida de maneira adequada, e em particular toda análise de criança, fortalece as convicções sobre as quais se fundamenta a teoria da psicanálise, negando as reinterpretações feitas tanto pelos sistemas de Jung como de Adler. Nos dias que antecederam sua iluminação, o próprio Jung [1910b, v. pág. 40] levou a efeito e publicou uma análise dessa espécie, de uma criança; resta ver se ele empreenderá uma nova interpretação dos resultados dessa análise com a ajuda de um diferente “arranjo unilateral dos fatos”, para utilizar a expressão empregada por Adler nesse sentido (ver em [1] e [2]).

O ponto de vista de que a representação sexual de pensamentos “mais elevados” nos sonhos e na neurose nada mais é senão uma modalidade arcaica de expressão, é, naturalmente, inconciliável com o fato de que na neurose esses complexos sexuais provam ser os portadores das quantidades de libido subtraídas à utilização na vida real. Se isso fosse apenas uma questão de “jargão” sexual, não alteraria de maneira nenhuma a economia da libido. O próprio Jung admite isso no seu Darstellung der psychoanalytischen Theorie [1913] e formula a tarefa da terapia como o desligamento das catexias libidinais desses complexos. Entranto, isso jamais pode ser realizado desviando-se o paciente delas e concitando-o a sublimar, e sim através do exame exaustivo das mesmas que as torne plena e completamente conscientes. O primeiro item de realidade com o qual o paciente deve lidar é a sua doença. Esforços no sentido de poupar-lhe essa tarefa indicam incapacidade do médico em ajudá-lo a superar suas resistências, ou então o medo que tem o médico dos resultados do seu trabalho.

Por último, pode-se dizer que com sua “modificação” da psicanálise Jung nos oferece um equivalente da famosa faca de Lichtenberg. Mudou o cabo e botou uma lâmina nova, e porque gravou nela o mesmo nome espera que seja considerada como o instrumento original.

Creio ter deixado claro que, pelo contrário, a nova teoria que visa a substituir a psicanálise significa um abandono da análise e uma deserção da mesma. Algumas pessoas podem ser inclinadas a temer que essa deserção esteja fadada a ter conseqüências mais graves para a análise do que outras, devido ao fato de ter sido iniciada por homens que desempenharam um papel tão grande no movimento e contribuíram tanto para o seu avanço. Eu não compartilho dessa apreensão.

Os homens são fortes enquanto representam uma idéia forte; se enfraquecem quando se opõem a ela. A psicanálise sobreviverá a essa perda e a compensará com a conquista de novos partidários. Para concluir, quero expressar o desejo de que a sorte proporcione um caminho de elevação muito agradável a todos aqueles que acharam a estada no submundo da psicanálise desagradável demais para o seu gosto. E possamos nós, os que ficamos, desenvolver até o fim, sem atropelos, nosso trabalho nas profundezas.

Fevereiro de 1914.

 

SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO (1914)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

ZUR EINFÜHRUNG DES NARIZSSMUS

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1914 Jb. Psychoan., 6, 1-24.

1918 S.K.S.N., 4, 78-112. (1922, 2ª ed.)

1924 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. Pág. 35.

1925 G.S. 6, 155-187.

1931 Theoretische Schriften, 25-57.

1946 G.W., 10, 138-170.

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

‘On Narcissism: an Introduction’

1925C.P., 4, 30-59. (Trad. C. M. Baines.)

 

A presente tradução inglesa baseia-se na que foi publicada em 1925.

A tradução mais literal do título deste artigo seria ‘Sobre a Introdução do Conceito de Narcisismo’. Freud já vinha empregando o termo há muitos anos. Sabemos por Ernest Jones (1955, 388) que numa reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena, a 10 de novembro de 1909, Freud havia declarado que o narcisismo era uma fase intermediária necessária entre o auto-erotismo e o amor objetal. Mais ou menos na mesma época, ele preparava a segunda edição dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d) para o prelo (o prefácio traz a data de ‘dezembro de 1909’), e parece provável que a primeira menção pública do novo termo se encontra numa nota de rodapé acrescentada àquela edição (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 144-5 n, IMAGO Editora, 1972), presumindo-se, vale dizer, que a nova edição tenha aparecido no início de 1910, pois no fim de maio do mesmo ano apareceu o livro de Freud sobre Leonardo (1910c), no qual se faz referência consideravelmente mais extensa ao narcisismo (Edição Standard Brasileira, Vol. XI, pág. 92, IMAGO Editora, 1970). Um artigo de Rank sobre o assunto, mencionado por Freud no início do presente estudo, foi publicado em 1911, e outras referências do próprio Freud logo se seguiram: por exemplo, na Seção III da análise de Schreber (1911c) e em Totem e Tabu (1912-13), Edição Standard Brasileira, Vol. XIII, págs. 111-13, IMAGO Editora, 1974.

A idéia de escrever o presente artigo surgiu nas cartas de Freud pela primeira vez em junho de 1913, tendo ele concluído uma primeira minuta do mesmo no correr de umas férias que passara em Roma na terceira semana de setembro do mesmo ano. Somente no fim de fevereiro de 1914 é que foi começada a versão final, concluída um mês depois.

Trata-se de um dos mais importantes trabalhos de Freud, podendo ser considerado como um dos fatores centrais na evolução de seus conceitos. Resume suas primeiras discussões sobre o tema do narcisismo e considera o lugar ocupado pelo narcisismo no desenvolvimento sexual, indo, porém, além disso, pois penetra nos problemas mais profundos das relações entre o ego e os objetos externos, traçando a nova distinção entre ‘libido do ego’ e ‘libido objetal’. Outrossim — e talvez seja este o ponto mais importante —, introduz os conceitos do ‘ideal do ego’ e do agente auto-observador a ele relacionado, que constituíram a base do que, finalmente, veio a ser descrito como o ‘superego’ em The Ego and the Id (1923b). E, além disso tudo, em duas passagens do artigo — no final da primeira seção e no início da terceira — aborda as controvérsias com Adler e Jung, que foram o principal tema da ‘História do Movimento Psicanalítico’, escrita mais ou menos simultaneamente ao presente trabalho durante os primeiros meses de 1914. Na realidade, um dos motivos de Freud para escrever esse artigo foi, sem dúvida, demonstrar que o conceito de narcisismo oferece uma alternativa à ‘libido’ não-sexual de Jung e ao ‘protesto masculino’ de Adler.

Estes estão longe de ser os únicos tópicos levantados no artigo, e por isso mesmo não causa surpresa sua aparência inusitada de ser supercondensado — sua estrutura prestes a estourar pela quantidade de material que contém. O próprio Freud parece ter sentido algo semelhante. Conta-nos Ernest Jones (1955-340) que ‘ele ficou muito insatisfeito com o resultado’ e escreveu a Abraham: ‘O “Narcisismo” teve um parto difícil e traz todas as marcas de uma deformação correspondente’.

Por mais que isso possa ser assim, o artigo exige e recompensa um estudo prolongado, tendo sido o ponto de partida de muitas linhas de raciocínio ulteriores. Algumas destas, por exemplo, foram desenvolvidas em ‘Luto e Melancolia’ (1917e [1915]), pág. 249 mais adiante, e nos Capítulos VIII e XI de Group Psychology (1921c). O tema do narcisismo, pode-se acrescentar, ocupa a maior parte da Conferência XXVI das Introductory Lectures (1916-17). O ulterior desenvolvimento dos novos conceitos sobre a estrutura da mente, que já começam a se tornar evidentes no presente artigo, levou Freud a reavaliar algumas das afirmações feitas aqui, mormente no tocante ao funcionamento do ego. Nesse sentido, deve-se ressaltar que o significado que Freud atribuiu a ‘das Ich‘ (quase invariavelmente traduzido por o ‘ego’ nesta edição) passou por gradativas modificações. De início, ele empregou a expressão sem grande precisão, tal como poderíamos falar de ‘o eu’; mas em seus últimos escritos deu-lhe um significado muito mais definido e restrito. O presente artigo ocupa um ponto de transição nesse desenvolvimento. O tópico, em sua totalidade, é examinado mais amplamente na Introdução do Editor Inglês a The Ego and the Id (1923b).

Trechos da tradução desse artigo publicados em 1925 foram incluídos em A General Selection from the Works of Sigmund Freud, de Rickman (1937, 118-41).

 

SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO

 

                                                I

O termo narcisismo deriva da descrição clínica e foi escolhido por Paul Näcke em 1899 para denotar a atitude de uma pessoa que trata seu próprio corpo da mesma forma pela qual o c.orpo de um objeto sexual é comumente tratado — que o contempla, vale dizer, o afaga e o acaricia até obter satisfação completa através dessas atividades. Desenvolvido até esse grau, o narcisismo passa a significar uma perversão que absorveu a totalidade da vida sexual do indivíduo, exibindo, conseqüentemente, as características que esperamos encontrar no estudo de todas as perversões.

Observadores psicanalíticos foram subseqüentemente surpreendidos pelo fato de que aspectos individuais da atitude narcisista são encontrados em muitas pessoas que sofrem de outras perturbações — por exemplo, conforme Sadger ressaltou, em homossexuais —, e finalmente afigurou-se provável que uma localização da libido que merecesse ser descrita como narcisismo talvez estivesse presente em muito maior extensão, podendo mesmo reivindicar um lugar no curso regular do desenvolvimento sexual humano. Dificuldades do trabalho psicanalítico em neuróticos conduziram à mesma suposição, pois parecia que, neles, essa espécie de atitude narcisista constituía um dos limites à sua susceptibilidade à influência. O narcisismo nesse sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva.

Um motivo premente para nos ocuparmos com a concepção de um narcisismo primário e normal surgiu quando se fez a tentativa de incluir o que conhecemos da demência precoce (Kraepelin) ou da esquizofrenia (Bleuler) na hipótese da teoria da libido. Esse tipo de pacientes, que eu propus fossem denominados de parafrênicos, exibem duas características fundamentais: megalomania e desvios de seu interesse do mundo externo — de pessoas e coisas. Em conseqüência da segunda modificação, tornam-se inacessíveis à influência da psicanálise e não podem ser curados por nossos esforços. Mas o afastamento do parafrênico do mundo externo necessita ser mais precisamente caracterizado. Um paciente que sofre de histeria ou de neurose obsessiva, enquanto sua doença persiste, também desiste de sua relação com a realidade. Mas a análise demonstra que ele de modo algum corta suas relações eróticas com as pessoas e as coisas. Ainda as retém na fantasia, isto é, ele substitui, por um lado, os objetos imaginários de sua memória por objetos reais, ou mistura os primeiros com os segundos, e, por outro, renuncia à iniciação das atividades motoras para a obtenção de seus objetivos relacionados àqueles objetos. Essa é a única condição da libido a que podemos legitimamente aplicar o termo ‘introversão’ da libido, empregado por Jung indiscriminadamente. Com o parafrênico a situação é diferente. Ele parece realmente ter retirado sua libido de pessoas e coisas do mundo externo, sem substituí-las por outras na fantasia. Quando realmente as substitui, o processo parece ser secundário e constituir parte de uma tentativa de recuperação, destinada a conduzir a libido de volta a objetos.

Surge a questão: Que acontece à libido que foi afastada dos objetos externos na esquizofrenia? A megalomania característica desses estados aponta o caminho. Essa megalomania, sem dúvida, surge a expensas da libido objetal. A libido afastada do mundo externo é dirigida para o ego e assim dá margem a uma atitude que pode ser denominada de narcisismo. Mas a própria megalomania não constitui uma criação nova; pelo contrário, é, como sabemos, ampliação e manifestação mais clara de uma condição que já existia previamente. Isso nos leva a considerar o narcisismo que surge através da indução de catexias objetais como sendo secundário, superposto a um narcisismo primário que é obscurecido por diversas influências diferentes.

Desejo ressaltar que não me proponho aqui explicar ou penetrar ainda mais no problema da esquizofrenia, limitando-me meramente a reunir o que já foi dito em outras ocasiões, a fim de justificar a introdução do conceito de narcisismo.

Essa extensão da teoria da libido — em minha opinião, legítima — recebe reforço de um terceiro setor, a saber, de nossas observações e conceitos sobre a vida mental das crianças e dos povos primitivos. Nos segundos, encontramos características que, se ocorressem isoladamente, poderiam ser atribuídas à megalomania: uma superestima do poder de seus desejos e atos mentais, a ‘onipotência de pensamentos’, uma crença na força taumatúrgica das palavras, e uma técnica para lidar com o mundo externo — ‘mágica’ — que parece ser uma aplicação lógica dessas premissas grandiosas. Nas crianças de hoje, cujo desenvolvimento é muito mais obscuro para nós, esperamos encontrar uma atitude exatamente análoga em relação ao mundo externo. Assim, formamos a idéia de que há uma catexia libidinal original do ego, parte da qual é posteriormente transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada com as catexias objetais, assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os pseudópodes que produz. Em nossas pesquisas, tomando, como se tomou, os sintomas neuróticos como ponto de partida, essa parte da localização da libido permaneceu necessariamente oculta para nós no início. Tudo que observamos foram emanações dessa libido — as catexias objetais, que podem ser transmitidas e retiradas novamente. Também vemos, em linhas gerais, um antítese entre a libido do ego e a libido objetal. Quanto mais uma é empregada, mais a outra se esvazia. A libido objetal atinge sua fase mais elevada de desenvolvimento no caso de uma pessoa apaixonada, quando o indivíduo parece desistir de sua própria personalidade em favor de uma catexia objetal, ao passo que temos a condição oposta na fantasia do paranóico (ou autopercepção) do ‘fim do mundo’. Finalmente, no tocante à diferenciação das energias psíquicas, somos levados à conclusão de que, para começar, durante o estado de narcisismo, elas existem em conjunto, sendo nossa análise demasiadamente tosca para estabelecer uma distinção entre elas. Somente quando há catexia objetal é que é possível discriminar uma energia sexual — a libido — de uma energia dos instintos do ego.

Antes de prosseguir, devo tocar em duas questões que nos levam ao âmago das dificuldades de nosso assunto. Em primeiro lugar, qual a relação entre o narcisismo de que tratamos e o auto-erotismo, que descrevemos como um estado inicial da libido? Em segundo, se concedemos ao ego uma catexia primária da libido, por que há necessidade de distinguir ainda uma libido sexual de uma energia não-sexual dos instintos do ego? A postulação de uma única espécie de energia psíquica não nos pouparia de todas as dificuldades que residem em diferenciar uma energia dos instintos do ego da libido do ego, e a libido do ego da libido objetal?

No tocante à primeira questão, posso ressaltar que estamos destinados a supor que uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos auto-eróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo — uma nova ação psíquica — a fim de provocar o narcisismo.

Provocaremos uma inquietação perceptível em qualquer analista de quem se exija uma resposta definitiva à segunda questão. Não é agradável a idéia de abandonar a observação pela controvérsia teórica estéril, mas nem por isso nos devemos esquivar de uma tentativa de elucidação. É verdade que noções tais como a de uma libido do ego, uma energia dos instintos do ego, e assim por diante, não são particularmente fáceis de apreender, nem suficientemente ricas de conteúdo; uma teoria especulativa das relações em questão deveria começar por buscar como base um conceito nitidamente definido. Mas sou da opinião de que é exatamente nisso que consiste a diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência erigida a partir da interpretação empírica. Esta última não invejará a especulação por seu privilégio de ter um fundamento suave, logicamente inatacável, contentando-se, de bom grado, com conceitos básicos nebulosos mal imagináveis, que espera apreender mais claramente no decorrer de seu desenvolvimento, ou que está até mesmo preparada para substituir por outros, pois essas idéias não são o fundamento da ciência, no qual tudo repousa: esse fundamento é tão- somente a observação. Não são a base, mas o topo de toda a estrutura, e podem ser substituídas e eliminadas sem prejudicá-la. Em nossos dias, a mesma coisa vem acontecendo na ciência da física, cujas noções básicas no tocante a matéria, centros de força, atração etc. são quase tão discutíveis quanto as noções correspondentes em psicanálise.

O valor dos conceitos ‘libido do ego’ e ‘libido do objeto’ reside no fato de que se originam do estudo das características íntimas dos processos neuróticos e psicóticos. A diferenciação da libido numa espécie que é adequada ao ego e numa outra que está ligada a objetos é o corolário inevitável de uma hipótese original que estabelecia distinção entre os instintos sexuais e os instintos do ego. Seja como for, a análise das neuroses de pura transferência (neurose de histeria e obsessiva) compeliu-me a fazer essa distinção, e sei apenas que todas as tentativas para explicar esses fenômenos por outros meios foram inteiramente infrutíferas.

Na ausência total de qualquer teoria dos instintos que nos ajude a encontrar nossa orientação, podemos permitir-nos, ou antes, cabe-nos começar por elaborar alguma hipótese para a sua conclusão lógica, até que ela ou se desintegre ou seja confirmada. Existem vários pontos a favor da hipótese de ter havido desde o início uma separação entre os instintos sexuais e os outros instintos do ego, além da utilidade de tal hipótese na análise das neuroses de transferência. Admito que somente essa segunda consideração não seria destituída de ambigüidade, porquanto poderia tratar-se de uma energia psíquica indiferente que só se torna libido através do ato de catexização de um objeto. Mas, em primeiro lugar, a distinção feita nesse conceito corresponde à distinção popular comum entre a fome e o amor. Em segundo lugar, há considerações biológicas a seu favor. O indivíduo leva realmente uma existência dúplice: uma para servir as suas próprias finalidades e a outra como um elo numa corrente, que ele serve contra sua vontade ou pelo menos involuntariamente. O indivíduo considera a sexualidade como um dos seus próprios fins, ao passo que, de outro ponto de vista, ele é um apêndice de seu germoplasma, a cuja disposição põe suas energias em troca de uma retribuição de prazer. Ele é o veículo mortal de uma substância (possivelmente) imortal — como o herdeiro de uma propriedade inalienável, que é o único dono temporário de um patrimônio que lhe sobrevive. A separação dos instintos sexuais dos instintos do ego simplesmente refletiria essa função dúplice do indivíduo. Em terceiro lugar, devemos recordar que todas as nossas idéias provisórias em psicologia presumivelmente algum dia se basearão numa subestrutura orgânica. Isso torna provável que as substâncias especiais e os processos químicos sejam os responsáveis pela realização das operações da sexualidade, garantindo a extensão da vida individual na da espécie. Estamos levando essa probabilidade em conta ao substituirmos as substâncias químicas especiais por forças psíquicas especiais.

Tento em geral manter a psicologia isenta de tudo que lhe seja diferente em natureza, inclusive das linhas biológicas de pensamento. Por essa mesma razão, gostaria, nessa altura, de admitir expressamente que a hipótese de instintos do ego e instintos sexuais separados (isto é, a teoria da libido) está longe de repousar, inteiramente, numa base psicológica, extraindo seu principal apoio da biologia. Mas serei suficientemente coerente [com minha norma geral] para abandonar essa hipótese, se o próprio trabalho psicanalítico vier a produzir alguma outra hipótese mais útil sobre os instintos. Até agora, isso não aconteceu. Pode ocorrer que, com mais fundamento e numa visão de maior alcance, a energia sexual — a libido — seja apenas o produto de uma diferenciação na energia que atua generalizadamente na mente. Mas tal assertiva não tem qualquer relevância. Relaciona-se com assuntos que se acham tão afastados dos problemas de nossa observação, e a respeito dos quais conhecemos tão pouco, que é igualmente ocioso contestá-la ou afirmá-la; essa identidade primordial talvez tenha tão pouco que ver com nossos interesses analíticos quanto o parentesco primordial de todas as raças da humanidade tem que ver com a prova de parentesco exigida a fim de se estabelecer um direito legal de herança. Todas essas especulações não nos levam a parte alguma. Visto não podermos esperar que outra ciência nos apresente as conclusões finais sobre a teoria dos instintos, é muito mais objetivo tentar ver que luz pode ser lançada sobre esse problema básico da biologia por uma síntese dos fenômenos psicológicos. Enfrentemos a possibilidade de erro, mas não nos deixemos dissuadir de buscar as implicações lógicas da hipótese, que em primeiro lugar adotamos, de uma antítese entre os instintos do ego e os instintos sexuais (hipótese à qual fomos forçosamente conduzidos pela análise das neuroses de transferência), e de verificar se ela se mostra destituída de contradições e se é profícua, e se pode ser aplicada também a outras perturbações, como a esquizofrenia.

Seria, naturalmente, uma questão diferente se se provasse que a teoria da libido já fracassou na tentativa de explicar essa segunda doença. Isso foi asseverado por C. G. Jung (1912) e é por causa disso que me vi obrigado a entrar nessa última discussão, da qual gostaria de ter sido poupado. Teria preferido seguir até o fim o caminho trilhado na análise do caso Schreber sem qualquer discussão de suas premissas. Mas a asserção de Jung é, para dizer o mínimo, prematura. Os fundamentos que apresenta para ela são deficientes. Em primeiro lugar, recorre a uma confissão, que eu teria feito, de que fora obrigado, devido às dificuldades da análise de Schreber, a estender o conceito de libido (isto é, a desistir de seu conteúdo sexual) e a identificar a libido com o interesse psíquico em geral. Ferenczi (1913b), numa crítica exaustiva à obra de Jung, já disse tudo o que é necessário a título de correção dessa interpretação errônea. Posso apenas corroborar sua crítica e repetir que jamais fiz tal retratação no tocante à teoria da libido. Outro argumento de Jung, a saber, que não podemos supor que a retirada da libido seja em si mesma suficiente para acarretar a perda da função normal da realidade, não é um argumento, mas um ditame. ‘Incorre em petição de princípio’ e poupa discussão, pois se e como isso é possível era precisamente o ponto que devia estar sob investigação. Em sua grande obra seguinte, Jung (1913 [339-40]) simplesmente falha na solução que eu havia indicado: ‘Ao mesmo tempo’, escreve, ‘ainda há o seguinte a ser levado em consideração (um ponto ao qual, incidentalmente, Freud se refere em sua obra sobre o caso Schreber [1911c]) — que a introversão da libido sexualis conduz a uma catexia do “ego”, e que possivelmente é isso que produz o resultado de uma perda da realidade. É realmente uma possibilidade tentadora explicar a psicologia da perda da realidade dessa maneira’. Mas Jung não vai muito além no exame dessa possibilidade. Algumas linhas adiante ele a põe de lado com a observação de que essa determinante ‘resultaria na psicologia de um anacoreta ascético, não em demência precoce’. Quão pouco essa analogia inadequada pode ajudar-nos a resolver a questão fica claro pela consideração de que um anacoreta dessa espécie, que ‘tenta erradicar todos os traços de interesse sexual’ (mas só no sentido popular da palavra ‘sexual’), nem sequer necessariamente exibe qualquer localização patogênica da libido. Ele pode ter desviado inteiramente seu interesse sexual dos seres humanos; contudo, pode tê-lo sublimado num interesse elevado pelo divino, pela natureza, ou pelo reino animal, sem que sua libido tenha sofrido introversão até suas fantasias ou retorno a seu ego. Essa analogia pareceria excluir por antecipação a possibilidade de se estabelecer uma diferenciação entre o interesse que emana de fontes eróticas e os outros. Recordemos, além disso, que as pesquisas da escola suíça, por mais valiosas que sejam, elucidaram apenas duas facetas do quadro da demência precoce — a presença nele de complexos que conhecemos tanto em indivíduos saudáveis como em neuróticos e a similaridade das fantasias que nele ocorrem com mitos populares —, mas não puderam lançar mais luz alguma sobre o mecanismo da doença. Podemos, então, repudiar a asserção de Jung, segundo a qual a teoria da libido não só malogrou na tentativa de explicar a demência precoce, como também, portanto, é eliminada em relação às outras neuroses.

 

                                                 II

Parece-me que certas dificuldades especiais perturbam o estudo direto do narcisismo. Nosso principal meio de acesso a ele continuará a ser provavelmente a análise das parafrenias. Assim como as neuroses de transferência nos permitiram traçar os impulsos instintuais libidinais, também a demência precoce e a paranóia nos fornecerão uma compreensão interna (insight) da psicologia do ego. Mais uma vez, a fim de chegar à compreensão do que parece tão simples em fenômenos normais, teremos de recorrer ao campo da patologia com suas distorções e exageros. Ao mesmo tempo, outros meios de abordagem nos permanecem acessíveis, e através deles podemos obter um conhecimento melhor do narcisismo. Passarei a examiná-los agora, na seguinte ordem: o estudo da doença orgânica, da hipocondria e da vida erótica dos sexos.

Ao avaliar a influência da doença orgânica sobre a distribuição da libido, sigo uma sugestão que me foi feita verbalmente por Sándor Ferenczi. É do conhecimento de todos, e eu o aceito como coisa natural, que uma pessoa atormentada por dor e mal-estar orgânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito a seu sofrimento. Uma observação mais detida nos ensina que ela também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos: enquanto sofre, deixa de amar. A banalidade desse fato não justifica que deixemos de traduzi-lo nos termos da teoria da libido. Devemos então dizer: o homem enfermo retira suas catexias libidinais de volta para seu próprio ego, e as põe para fora novamente quando se recupera. ‘Concentrada está a sua alma’, diz Wilhelm Busch a respeito do poeta que sofre de dor de dentes, ‘no estreito orifício do molar’.

Aqui a libido e o interesse do ego partilham do mesmo destino e são mais uma vez indistiguíveis entre si. O egoísmo familiar do enfermo abrange os dois. Achamos isso tão natural porque estamos certos de que, na mesma situação, nosso comportamento seria idêntico. A maneira pela qual os sentimentos de quem ama, por mais fortes que sejam, são banidos pelos males corpóreos, e de súbito substituídos por uma indiferença completa, constitui um tema que tem sido consideravelmente explorado por escritores humorísticos.

A condição do sono também se assemelha à doença, por acarretar uma retirada narcisista das posições da libido até o próprio eu do indivíduo, ou, mais precisamente, até o desejo único de dormir. O egoísmo dos sonhos ajusta-se muito bem nesse contexto. [ver em [1]]. Em ambos os estados temos, pelo menos, exemplos de alterações na distribuição da libido que são resultantes de uma modificação no ego.

A hipocondria, da mesma forma que a doença orgânica, manifesta-se em sensações corpóreas aflitivas e penosas, tendo sobre a distribuição da libido o mesmo efeito que a doença orgânica. O hipocondríaco retira tanto o interesse quanto a libido — a segunda de forma especialmente acentuada — dos objetos do mundo externo, concentrando ambos no órgão que lhe prende a atenção. Torna-se agora evidente uma diferença entre a hipocondria e a doença orgânica: na segunda, as sensações aflitivas baseiam-se em mudanças demonstráveis [orgânicas]; na primeira, isso não ocorre. Mas estaria inteiramente de acordo com nossa concepção geral dos processos de neurose, se resolvêssemos dizer que a hipocondria deve estar certa: deve-se supor que as modificações orgânicas também estão presentes nela.

Mas o que seriam essas mudanças? Deixar-nos-emos guiar, nessa altura, por nossa experiência, a qual mostra que as sensações corpóreas de natureza desagradável, comparáveis às da hipocondria, ocorrem também nas outras neuroses. Já tive ocasião de dizer que me inclino a classificar a hipocondria, juntamente com a neurastenia e a neurose de angústia, como uma terceira neurose ‘real’ Provavelmente não seria ir muito longe supor que, no caso das outras neuroses, uma pequena dose de hipocondria também se forma regularmente ao mesmo tempo. Temos o melhor exemplo disso, creio eu, na neurose de angústia com sua superestrutura de histeria. Ora, o protótipo familiar de um órgão que é dolorosamente delicado, que de alguma forma é alterado e que, contudo, não está doente no sentido comum do termo, é o órgão genital em seus estados de excitação. Nessa condição, ele fica congestionado de sangue, intumescido e umectado, sendo a sede de uma multiplicidade de sensações. Descrevamos agora, tomando qualquer parte do corpo, sua atividade de enviar estímulos sexualmente excitantes à mente, como sendo sua ‘erogenicidade’, e reflitamos, ainda, que as considerações nas quais se baseou nossa teoria da sexualidade de há muito nos habituou à idéia de que certas outras partes do corpo — as zonas ‘erógenas’ — podem atuar como substitutos dos órgãos genitais e se comportarem analogamente a eles. Temos então apenas mais um passo a dar. Podemos decidir considerar a erogenicidade como uma característica geral de todos os órgãos e, então, podemos falar de um aumento ou diminuição dela numa parte específica do corpo. Para cada uma das modificações na erogenicidade dos órgãos poderia, então, verificar-se uma modificação paralela da catexia libidinal no ego. Tais fatores constituíram aquilo que acreditamos estar subjacente à hipocondria e aquilo que pode exercer o mesmo efeito sobre a distribuição da libido tal como produzida por uma doença material dos órgãos.

Vemos que, se acompanharmos essa linha de raciocínio, nos defrontaremos não só com o problema da hipocondria, mas também com o das outras neuroses ‘reais’ — a neurastenia e a neurose de angústia. Paremos, portanto, nesse ponto. Não pertence ao âmbito de uma indagação puramente psicológica penetrar tanto nas fronteiras da pesquisa fisiológica. Mencionarei simplesmente que, a partir desse ponto de vista, podemos suspeitar que a relação da hipocondria com a parafrenia é semelhante à das outras neuroses ‘reais’ com a histeria e a neurose obsessiva: podemos desconfiar, vale dizer, que ela está na dependência da libido do ego, assim como as outras estão na da libido objetal, e que a ansiedade hipocondríaca é a contrapartida, enquanto provém da libido do ego, da ansiedade neurótica. Além disso, visto já estarmos familiarizados com a idéia de que o mecanismo do adoecer e da formação de sintomas nas neuroses de transferência — o caminho da introversão para a regressão — deve ficar vinculado a um represamento da libido objetal, podemos também ficar mais perto da idéia de um represamento da libido do ego, e podemos estabelecer uma relação dessa idéia com os fenômenos da hipocondria e da parafrenia.

Nesse ponto, nossa curiosidade naturalmente perguntará por que esse represamento da libido no ego teria de ser experimentado como desagradável. Contentar-me-ei com a reposta de que o desprazer é sempre a expressão de um grau mais elevado de tensão, e que, portanto, o que ocorre é que uma quantidade no campo dos acontecimentos materiais é transformada, aqui como em outros lugares, na qualidade psíquica do desprazer. Não obstante, talvez o fator decisivo para a geração do desprazer não seja a magnitude absoluta do acontecimento material, mas antes alguma função específica dessa magnitude absoluta. Aqui podemos até mesmo aventurar-nos a abordar a questão de saber o que torna absolutamente necessário para a nossa vida mental ultrapassar os limites do narcisismo e ligar a libido a objetos. A resposta decorrente de nossa linha de raciocínio mais uma vez seria a de que essa necessidade surge quando a catexia do ego com a libido excede certa quantidade. Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em conseqüência da frustração, formos incapazes de amar. Isso acompanha mais ou menos os versos do quadro que Heine traça sobre a psicogênese da Criação:

Krankheit ist wohl der letzte GrundDes ganzen Schöpferdrangs gewesen;Erschaffend konnte ich genesen,Erschaffend wurde ich gesund.

Reconhecemos nosso aparelho mental como sendo, acima de tudo, um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos patogênicos. Sua elaboração na mente auxilia de forma marcante um escoamento das excitações que são incapazes de descarga direta para fora, ou para as quais tal descarga é, no momento, indesejável. No primeiro caso, contudo, é indiferente que esse processo interno de elaboração seja efetuado em objetos reais ou imaginários. A diferença não surge senão depois — caso a transferência da libido para objetos irreais (introversão) tenha ocasionado seu represamento. Nos parafrênicos, a megalomania permite uma semelhante elaboração interna da libido que voltou ao ego; talvez apenas quando a megalomania falhe, o represamento da libido no ego se torne patogênico e inicie o processo de recuperação que nos dá a impressão de ser uma doença.

Tentarei aqui penetrar um pouco mais no mecanismo da parafrenia e reunirei os conceitos que já me pareçam merecedores de consideração. A diferença entre as afecções parafrênicas e as neuroses de transferência parecem-me estar na circunstância de que, nas primeiras, a libido liberada pela frustração não permanece ligada a objetos na fantasia, mas se retira para o ego. A megalomania corresponderia, por conseguinte, ao domínio psíquico dessa última quantidade de libido, e seria assim a contrapartida da introversão para as fantasias que é encontrada nas neuroses de transferência; uma falha dessa função psíquica dá margem à hipocondria da parafrenia, e isso é homólogo à ansiedade das neuroses de transferência. Sabemos que essa ansiedade pode ser transformada por uma elaboração psíquica ulterior, isto é, por conversão, formação de reação ou construção de proteções (fobias). O processo correspondente nos parafrênicos consiste numa tentativa de restauração, à qual se devem as surpreendentes manifestações da doença. De uma vez que a parafrenia com freqüência, se não geralmente, acarreta apenas um desligamento parcial da libido dos objetos, podemos distinguir três grupos de fenômenos no quadro clínico: (1) os que representam o que resta de um estado normal de neurose (fenômenos residuais); (2) os que representam o processo mórbido (afastamento da libido dos seus objetos e, além disso, megalomania, hipocondria, perturbações afetivas e todo tipo de regressão); (3) os que representam a restauração, nos quais a libido é mais uma vez ligada a objetos, como uma histeria (na demência precoce ou na parafrenia propriamente dita), ou como numa neurose obsessiva (na paranóia). Essa nova catexia libidinal difere da primária por partir de outro nível e sob outras condições. A diferença entre as neuroses de transferência que ocorrem no caso de nova espécie de catexia libidinal e as formações correspondentes onde o ego é normal devem ser capazes de nos proporcionar a compreensão interna (insight) mais profunda da estrutura de nosso aparelho mental.

Uma terceira maneira pela qual podemos abordar o estudo do narcisismo é através da observação da vida erótica dos seres humanos, com suas várias espécies de diferenciação no homem e na mulher. Assim como a libido objetal inicialmente ocultava de nossa observação a libido do ego, também em relação à escolha de objeto nas crianças de tenra idade (e nas crianças em crescimento) o que primeiro notamos foi que elas derivavam seus objetos sexuais de suas experiências de satisfação. As primeiras satisfações sexuais auto-eróticas são experimentadas em relação com funções vitais que servem à finalidade de autopreservação. Os instintos sexuais estão, de início, ligados à satisfação dos instintos do ego; somente depois é que eles se tornam independentes destes, e mesmo então encontramos uma indicação dessa vinculação original no fato de que os primeiros objetos sexuais de uma criança são as pessoas que se preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção: isto é, no primeiro caso, sua mãe ou quem quer que a substitua. Lado a lado, contudo, com esse tipo e fonte de escolha objetal, que pode ser denominado o tipo ‘anaclítico’, ou de ‘ligação’, a pesquisa da psicanálise revelou um segundo tipo, que não estávamos preparados para encontrar. Descobrimos, de modo especialmente claro, em pessoas cujo desenvolvimento libidinal sofreu alguma perturbação, tais como pervertidos e homossexuais, que em sua escolha ulterior dos objetos amorosos elas adotaram como modelo não sua mãe mas seus próprios eus. Procuram inequivocamente a si mesmas como um objeto amoroso, e exibem um tipo de escolha objetal que deve ser denominado ‘narcisista’. Nessa observação, temos o mais forte dos motivos que nos levaram a adotar a hipótese do narcisismo.

Não concluímos, contudo, que os seres humanos se acham divididos em dois grupos acentuadamente diferenciados, conforme sua escolha objetal se coadune com o tipo anaclítico ou o narcisista; pelo contrário, presumimos que ambos os tipos de escolha objetal estão abertos a cada indivíduo, embora ele possa mostrar preferência por um ou por outro. Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais — ele próprio e a mulher que cuida dele — e ao fazê-lo estamos postulando a existência de um narcisismo primário em todos, o qual, em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua escolha objetal.

Uma comparação entre os sexos masculino e feminino indica então que existem diferenças fundamentais entre eles no tocante a seu tipo de escolha objetal, embora essas diferenças naturalmente não sejam universais. O amor objetal completo do tipo de ligação é, propriamente falando, característico do indivíduo do sexo masculino. Ele exibe a acentuada supervalorização sexual que se origina, sem dúvida, do narcisismo original da criança, correspondendo assim a uma transferência desse narcisismo para o objeto sexual. Essa supervalorização sexual é a origem do estado peculiar de uma pessoa apaixonada, um estado que sugere uma compulsão neurótica, cuja origem pode, portanto, ser encontrada num empobrecimento do ego em relação à libido em favor do objeto amoroso. Já com o tipo feminino mais freqüentemente encontrado, provavelmente o mais puro e o mais verdadeiro, o mesmo não ocorre. Com o começo da puberdade, o amadurecimento dos órgãos sexuais femininos, até então em estado de latência, parece ocasionar a intensificação do narcisismo original, e isso é desfavorável para o desenvolvimento de uma verdadeira escolha objetal com a concomitante supervalorização sexual. As mulheres, especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo autocontentamento que as compensa pelas restrições sociais que lhes são impostas em sua escolha objetal. Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma intensidade comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas graças. A importância desse tipo de mulher para a vida erótica da humanidade deve ser levada em grande consideração. Tais mulheres exercem o maior fascínio sobre os homens, não apenas por motivos estéticos, visto que em geral são as mais belas, mas também por uma combinação de interessantes fatores psicológicos, pois parece muito evidente que o narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma parte de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal. O encanto de uma criança reside em grande medida em seu narcisismo, seu autocontentamento e inacessibilidade, assim como também o encanto de certos animais que parecem não se preocupar conosco, tais como os gatos e os grandes animais carniceiros. Realmente, mesmo os grandes criminosos e os humoristas, conforme representados na literatura, atraem nosso interesse pela coerência narcisista com que conseguem afastar do ego qualquer coisa que o diminua. É como se os invejássemos por manterem um bem-aventurado estado de espírito — uma posição libidinal inatacável que nós próprios já abandonamos. O grande encanto das mulheres narcisistas tem, contudo, o seu reverso; grande parte da insatisfação daquele que ama, de suas dúvidas quanto ao amor da mulher, de suas queixas quanto à natureza enigmática da mulher, tem suas raízes nessa incongruência entre os tipos de escolha de objeto.

Talvez não seja fora de propósito apresentar aqui a certeza de que essa descrição da forma feminina de vida erótica não se deve a qualquer desejo tendencioso de minha parte no sentido de depreciar as mulheres. Afora o fato de essa tendenciosidade ser inteiramente estranha a mim, sei que essas diferentes linhas de desenvolvimento correspondem à diferenciação de funções num todo biológico altamente complicado; além disso, estou pronto a admitir que existe um número bem grande de mulheres que amam de acordo com os moldes do tipo masculino e que também desenvolvem a supervalorização sexual própria àquele tipo.

Mesmo para as mulheres narcisistas, cuja atitude para com os homens permanece fria, há um caminho que eleva ao amor objetal completo. Na criança que geram, uma parte de seu próprio corpo as confronta como um objeto estranho, ao qual, partindo de seu próprio narcisismo, podem então dar um amor objetal completo. Existem ainda outras mulheres que não têm de esperar por um filho a fim de darem um passo no desenvolvimento do narcisismo (secundário) para o amor objetal. Antes da puberdade, sentem-se masculinas e se desenvolvem de alguma forma ao longo de linhas masculinas; depois de essa tendência ter sido interrompida de repente ao alcançarem a maturidade feminina, ainda retêm a capacidade de anseio por um ideal masculino — ideal que é de fato uma sobrevivência da natureza de menino que outrora possuíram.

O que eu disse até agora à guisa de indicação pode ser concluído por um breve sumário dos caminhos que levam à escolha de um objeto.

Uma pessoa pode amar:

(1)Em conformidade com o tipo narcisista:

(a) o que ela própria é (isto é, ela mesma),

(b) o que ela própria foi,

(c) o que ela própria gostaria de ser,

(d) alguém que foi uma vez parte dela mesma.

(2)Em conformidade com o tipo anaclítico (de ligação):

(a) a mulher que a alimenta,

(b) o homem que a protege,

e a sucessão de substitutos que tomam o seu lugar. A inclusão do caso (c) do primeiro tipo não pode ser justificada até uma etapa posterior deste exame. [ver em [1]]

A significância da escolha objetal narcisista para a homossexualidade nos homens deve ser considerada em relação a outra coisa.

O narcisismo primário das crianças por nós pressuposto e que forma um dos postulados de nossas teorias da libido é menos fácil de apreender pela observação direta do que de confirmar por alguma outra inferência. Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. O indicador digno de confiança constituído pela supervalorização, que já reconhecemos como um estigma narcisista no caso da escolha objetal, domina, como todos nós sabemos, sua atitude emocional. Assim eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho — o que uma observação sóbria não permitiria — e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele. (Incidentalmente, a negação da sexualidade nas crianças está relacionada a isso.) Além disso, sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e a renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios de há muito por eles próprios abandonados. A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação — ‘Sua Majestade o Bebê’, como outrora nós mesmos nos imaginávamos. A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram — o menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como compensação para sua mãe. No ponto mais sensível do sistema narcisista, a imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior.

 

                                                  III

Os distúrbios aos quais o narcisismo original de uma criança se acha exposto, as reações com que ela procura proteger-se deles e os caminhos aos quais fica sujeita ao fazê-lo — tais são os temas que proponho deixar de lado, como importante campo de trabalho ainda por explorar. Sua parte mais importante, contudo, pode ser isolada sob a forma do ‘complexo de castração’ (nos meninos, a ansiedade em relação ao pênis; nas meninas, a inveja do pênis) e tratada em conexão com o efeito da coerção inicial da atividade sexual. A pesquisa psicanalítica em geral nos permite reconstituir as vicissitudes sofridas pelos instintos libidinais quando estes, isolados dos instintos do ego, ficam em oposição a eles; mas no campo específico do complexo de castração, ela nos permite inferir a existência de uma época e de uma situação psíquica nas quais os dois grupos de instintos, ainda atuando em uníssono e inseparavelmente mesclados, surgem como interesses narcisistas. Foi desse contexto que Adler [1910] extraiu seu conceito de ‘protesto masculino’, quase elevando-o à posição de única força motora na formação tanto do caráter quanto da neurose, e baseando-o não numa tendência narcisista, e portanto ainda libidinal, mas numa valorização social. A pesquisa psicanalítica reconheceu, desde o início, a existência e a importância do ‘protesto masculino’ mas o tem considerado, contrariamente a Adler, como sendo narcisista em sua natureza e oriundo do complexo de castração. O ‘protesto masculino’ está relacionado à formação do caráter, em cuja gênese penetra juntamente com muitos outros fatores, sendo, contudo, inteiramente inadequado para explicar os problemas das neuroses, no tocante às quais Adler nada leva em conta, a não ser a maneira pela qual elas servem aos instintos do ego. Acho inteiramente impossível situar a gênese da neurose na estreita base do complexo de castração, por mais poderosamente que, nos homens, esse complexo ocupe o primeiro plano entre suas resistências à cura de uma neurose. Incidentalmente, conheço casos de neuroses em que o ‘protesto masculino’ ou, como o encaramos, o complexo de castração, não desempenha qualquer papel patogênico, nem sequer chegando a aparecer.

A observação de adultos normais revela que sua megalomania antiga foi arrefecida e que as características psíquicas a partir das quais inferimos seu narcisismo infantil foram apagadas. Que aconteceu à libido do ego? Devemos supor que toda ela se converteu em catexias objetais? Essa possibilidade é claramente contrária ao encaminhamento de nossa argumentação; podemos, porém, encontrar uma sugestão em outra resposta para a pergunta na psicologia da repressão.

Sabemos que os impulsos instintuais libidinais sofrem a vicissitude da repressão patogênica se entram em conflito com as idéias culturais e éticas do indivíduo. Com isso, nunca queremos dizer que o indivíduo em questão dispõe de um conhecimento meramente intelectual da existência de tais idéias; sempre queremos dizer que ele as reconhece como um padrão para si próprio, submetendo-se às exigências que elas lhe fazem. A repressão, como dissemos, provém do ego; poderíamos dizer com maior exatidão que provém do amor-próprio do ego. As mesmas impressões, experiências, impulsos e desejos aos quais um homem se entrega, ou que pelo menos elabora conscientemente, serão rejeitados com a maior indignação por outro, ou mesmo abafados antes que entrem na consciência. A diferença entre os dois, que encerra o fator condicionante da repressão, pode ser facilmente expressa em termos que permitem seja ela explicada pela teoria da libido. Podemos dizer que o primeiro homem fixou um ideal em si mesmo, pelo qual mede seu ego real, ao passo que o outro não formou qualquer ideal desse tipo. Para o ego, a formação de um ideal seria o fator condicionante da repressão.

Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (self-love) desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal.

Somos naturalmente levados a examinar a relação entre essa formação de um ideal e a sublimação. A sublimação é um processo que diz respeito à libido objetal e consiste no fato de o instinto se dirigir no sentido de uma finalidade diferente e afastada da finalidade da satisfação sexual; nesse processo, a tônica recai na deflexão da sexualidade. A idealização é um processo que diz respeito ao objeto; por ela, esse objeto, sem qualquer alteração em sua natureza, é engrandecido e exaltado na mente do indivíduo. A idealização é possível tanto na esfera da libido do ego quanto na da libido objetal. Por exemplo, a supervalorização sexual de um objeto é uma idealização do mesmo. Na medida em que a sublimação descreve algo que tem que ver com o instinto, e a idealização, algo que tem que ver com o objeto, os dois conceitos devem ser distinguidos um do outro.

A formação de um ideal do ego é muitas vezes confundida com a sublimação do instinto, em detrimento de nossa compreensão dos fatos. Um homem que tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal elevado do ego, nem por isso foi necessariamente bem-sucedido em sublimar seus instintos libidinais. É verdade que o ideal do ego exige tal sublimação, mas não pode fortalecê-la; a sublimação continua a ser um processo especial que pode ser estimulado pelo ideal, mas cuja execução é inteiramente independente de tal estímulo. É precisamente nos neuróticos que encontramos as mais acentuadas diferenças de potencial entre o desenvolvimento de seu ideal do ego e a dose de sublimação de seus instintos libidinais primitivos; e em geral é muito mais difícil convencer um idealista a respeito da localização inconveniente de sua libido do que um homem simples, cujas pretensões permaneceram mais moderadas. Além disso, a formação de um ideal do ego e a sublimação se acham relacionadas, de forma bem diferente, à causação da neurose. Como vimos, a formação de um ideal aumenta as exigências do ego, constituindo o fator mais poderoso a favor da repressão; a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver repressão.

Não nos surpreenderíamos se encontrássemos um agente psíquico especial que realizasse a tarefa de assegurar a satisfação narcisista proveniente do ideal do ego, e que, com essa finalidade em vista, observasse constantemente o ego real, medindo-o por aquele ideal. Admitindo-se que esse agente de fato exista, de forma alguma seria possível chegar a ele como se fosse uma descoberta — podemos tão-somente reconhecê-lo, pois podemos supor que aquilo que chamamos de nossa ‘consciência’ possui as características exigidas. O reconhecimento desse agente nos permite compreender os chamados ‘delírios de sermos notados’ ou, mais corretamente, de sermos vigiados, que constituem sintomas tão marcantes nas doenças paranóides, podendo também ocorrer como uma forma isolada de doença, ou intercalados numa neurose de transferência. Pacientes desse tipo queixam-se de que todos os seus pensamentos são conhecidos e suas ações vigiadas e supervisionadas; eles são informados sobre o funcionamento desse agente por vozes que caracteristicamente lhes falam na terceira pessoa (‘Agora ela está pensando nisso de novo’, ‘Agora ele está saindo’). Essa queixa é justificada; ela descreve a verdade. Um poder dessa espécie, que vigia, que descobre e que critica todas as nossas intenções, existe realmente. Na realidade, existe em cada um de nós em nossa vida normal.

Os delírios de estar sendo vigiado apresentam esse poder numa forma regressiva, revelando assim sua gênese e a razão por que o paciente fica revoltado contra ele, pois o que induziu o indivíduo a formar um ideal do ego, em nome do qual sua consciência atua como vigia, surgiu da influência crítica de seus pais (transmitida a ele por intermédio da voz), aos quais vieram juntar-se, à medida que o tempo passou, aqueles que o educaram e lhe ensinaram, a inumerável e indefinível coorte de todas as outras pessoas de seu ambiente — seus semelhantes — e a opinião pública.

Dessa forma, grandes quantidades de libido de natureza essencialmente homossexual são introduzidas na formação do ideal do ego narcisista, encontrando assim um escoadouro e satisfação em conservá-lo. A instituição da consciência foi, no fundo, uma personificação, primeiro da crítica dos pais, e, subseqüentemente, da sociedade — processo que se repete quando uma tendência à repressão se desenvolve de uma proibição ou obstáculo que proveio, no primeiro caso, de fora. As vozes, bem como a multidão indefinida, são reconduzidas ao primeiro plano pela doença, e assim a evolução da consciência se reproduz de forma regressiva. Mas a revolta contra esse ‘agente de censura’ brota não só do desejo, por parte do indivíduo (de acordo com o caráter fundamental de sua doença), de libertar-se de todas essas influências, a começar pela dos pais, mas também do fato de retirar sua libido homossexual delas. A consciência do paciente então se confronta com ele de maneira regressiva, como sendo uma influência hostil vinda de fora.

As queixas feitas pelos paranóicos também revelam que, no fundo, a autocrítica da consciência coincide com a auto-observação na qual ela se baseia. Assim, a atividade da mente que assumiu a função da consciência também se coloca a serviço da pesquisa interna, que proporciona à filosofia o material para as suas operações intelectuais. Isso pode ter certa relação com a tendência, característica dos paranóicos, de formar sistemas especulativos.

Por certo será de grande importância para nós encontrar provas da atividade desse agente criticamente observador — que se torna elevada na consciência e na introspecção filosófica — também em outros campos. Mencionarei aqui o que Herbert Silberer denominou de ‘fenômeno funcional’, um dos poucos acréscimos indiscutivelmente valiosos à teoria dos sonhos. Silberer, como sabemos, demonstrou que em estados entre o sono e a vigília podemos observar diretamente a tradução dos pensamentos em imagens visuais, mas que, nessas circunstâncias, com freqüência temos a representação, não de um conteúdo do pensamento, mas do estado real (disposição, fadiga etc.) da pessoa que luta contra o sono. De forma semelhante, revelou que as conclusões de alguns sonhos ou de algumas divisões de seu conteúdo significam meramente a própria percepção, por parte daquele que sonha, do seu estado de sono ou de vigília. Silberer demonstrou assim o papel desempenhado pela observação — no sentido dos delírios do paranóico quanto a estar sendo vigiado — na formação dos sonhos. Esse papel não é constante. Provavelmente, desprezei-o por não desempenhar um papel relevante em meus próprios sonhos; nas pessoas filosoficamente dotadas e habituadas à introspecção ele pode tornar-se bastante evidente.

Lembremo-nos aqui de já termos verificado que a formação de sonhos ocorre sob o domínio de uma censura que força a distorção dos pensamentos oníricos. Não figuramos, contudo, essa censura como tendo um poder especial, mas escolhemos o termo para designar uma faceta das tendências repressivas que regem o ego, a saber, a faceta que está voltada para os pensamentos oníricos. Se penetrarmos ainda mais na estrutura do ego, também poderemos reconhecer, no ideal do ego e nas expressões orais dinâmicas da consciência, o censor dos sonhos. Se esse censor estiver, até certo ponto, alerta, mesmo durante o sono, poderemos compreender como sua atividade sugerida de auto-observação e de autocrítica — com pensamentos tais como ‘agora ele está com muito sono para pensar’, ‘agora ele está despertando’ — presta uma contribuição ao conteúdo do sonho.

Nessa altura, podemos tentar um exame da atitude de auto-estima nas pessoas normais e nos neuróticos.

Em primeiro lugar, parece-nos que a auto-estima expressa o tamanho do ego; os vários elementos que irão determinar esse tamanho são aqui irrelevantes. Tudo o que uma pessoa possui ou realiza, todo remanescente do sentimento primitivo de onipotência que sua experiência tenha confirmado, ajuda-a a aumentar sua auto-estima.

Aplicando nossa distinção entre os instintos sexuais e os do ego, devemos reconhecer que a auto-estima depende intimamente da libido narcisista. Aqui somos apoiados por dois fatos fundamentais: o de que, nos parafrênicos, a auto-estima aumenta, enquanto que nas neuroses de transferência ela se reduz; e o de que, nas relações amorosas, o fato de não ser amado reduz os sentimentos de auto-estima, enquanto que o de ser amado os aumenta. Como já tivemos ocasião de assinalar, a finalid-ade e satisfação em uma escolha objetal narcisista consiste em ser amado.

Além disso, é fácil observar que a catexia objetal libidinal não eleva a auto-estima. A dependência ao objeto amado tem como efeito a redução daquele sentimento: uma pessoa apaixonada é humilde. Um indivíduo que ama priva-se, por assim dizer, de uma parte de seu narcisismo, que só pode ser substituída pelo amor de outra pessoa por ele. Sob todos esses aspectos, a auto-estima parece ficar relacionada com o elemento narcisista do amor.

A compreensão da impotência, da própria incapacidade de amar, em conseqüência de perturbação física ou mental, exerce um efeito extremamente diminuidor sobre a auto-estima. Aqui, em minha opinião, devemos procurar uma das fontes dos sentimentos de inferioridade experimentados por pacientes que sofrem de neuroses de transferência, sentimentos que esses pacientes estão prontos a relatar. A principal fonte desses sentimentos é, contudo, o empobrecimento do ego, por causa das enormes catexias libidinais dele retiradas — por causa, vale dizer, do dano sofrido pelo ego em função de tendências sexuais que já não estão sujeitas a controle.

Adler [1907] tem razão quando sustenta que, quando uma pessoa dotada de vida mental ativa reconhece uma inferioridade em um de seus órgãos, isso age como estímulo, provocando nessa pessoa um nível mais elevado de realização mediante supercompensação. Mas, definitivamente, incorreríamos em exagero se, seguindo o exemplo de Adler, procurássemos atribuir toda realização bem-sucedida a essa inferioridade original de um órgão. Nem todos os pintores são desfavorecidos por uma visão deficiente, e nem todos os oradores foram originariamente gagos. E existem numerosos exemplos de excelentes realizações que brotam de propriedades orgânicas superiores. Na etiologia das neuroses, a inferioridade orgânica e o desenvolvimento imperfeito desempenham papel insignificante — semelhante ao desempenhado por material perceptual geralmente ativo na formação dos sonhos. As neuroses fazem uso de tais inferioridades como um pretexto, assim como o fazem em relação a qualquer outro fator que se preste a isso. Somos tentados a acreditar numa paciente neurótica quando ela nos diz que era inevitável adoecer, visto que, por ser feia, deformada ou carente de encantos, ninguém poderia amá-la; logo, porém, outra neurótica nos prestará melhores esclarecimentos — pois persiste em sua neurose e em sua aversão à sexualidade, embora pareça mais desejável, e seja, de fato, mais desejada, do que a mulher comum. Em sua maioria, as mulheres histéricas são representantes atraentes e mesmo belas de seu sexo, ao passo que, por outro lado, a freqüência da fealdade, de defeitos orgânicos e de enfermidades nas classes inferiores da sociedade não aumenta a incidência da doença neurótica entre elas.

As relações entre auto-estima e erotismo — isto é, catexias objetais libidinais — podem ser expressas concisamente da seguinte forma. Devemos distinguir dois casos, conforme as catexias eróticas sejam ego-sintônicas, ou, pelo contrário, tenham sofrido repressão. No primeiro caso (onde o uso feito da libido é ego-sintônico), o amor é avaliado como qualquer outra atividade do ego. O amar em si, na medida em que envolva anelo e privação, reduz a auto-estima, ao passo que ser amado, ser correspondido no amor, e possuir o objeto amado, eleva-a mais uma vez. Quando a libido é reprimida, sente-se a catexia erótica como grave esgotamento do ego; a satisfação do amor é impossível e o reenriquecimento do ego só pode ser efetuado por uma retirada da libido de seus objetos. A volta da libido objetal ao ego e sua transformação no narcisismo representa, por assim dizer, um novo amor feliz; e, por outro lado, também é verdade que um verdadeiro amor feliz corresponde à condição primeira na qual a libido objetal e a libido do ego não podem ser distinguidas.

A importância e o grau de extensão dos tópicos constituem minha justificativa para acrescentar algumas poucas observações de concatenação algo desconexa.

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação desse estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em direção a um ideal do ego imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal.

Ao mesmo tempo, o ego emite as catexias objetais libidinais. Torna-se empobrecido em benefício dessas catexias, do mesmo modo que o faz em benefício do ideal do ego, e se enriquece mais uma vez a partir de suas satisfações no tocante ao objeto, do mesmo modo que o faz, realizando seu ideal.

Uma parte da auto-estima é primária — o resíduo do narcisismo infantil; outra parte decorre da onipotência que é corroborada pela experiência (a realização do ideal do ego), enquanto uma terceira parte provém da satisfação da libido-objetal.

O ideal do ego impõe severas condições à satisfação da libido por meio de objetos, pois ele faz com que alguns deles sejam rejeitados por seu censor como sendo incompatíveis onde não se formou tal ideal, a tendência sexual em questão aparece inalterada na personalidade sob a forma de uma perversão. Tornar a ser seu próprio ideal, como na infância, no que diz respeito às tendências sexuais não menos do que às outras — isso é o que as pessoas se esforçam por atingir como sendo sua felicidade.

O estar apaixonado consiste num fluir da libido do ego em direção ao objeto. Tem o poder de remover as repressões e de reinstalar as perversões. Exalta o objeto sexual transformando-o num ideal sexual. Visto que, com o tipo objetal (ou tipo de ligação), o estar apaixonado ocorre em virtude da realização das condições infantis para amar, podemos dizer que qualquer coisa que satisfaça essa condição é idealizada.

O ideal sexual pode fazer parte de uma interessante relação auxiliar com o ideal do ego. Ele pode ser empregado para satisfação substitutiva onde a satisfação narcisista encontra reais entraves. Nesse caso, uma pessoa amará segundo o tipo narcisista de escolha objetal: amará o que foi outrora e não é mais, ou então o que possui as excelências que ela jamais teve (cf. (c) [ver em [1]]). A fórmula paralela à que se acaba de mencionar diz o seguinte: o que possui a excelência que falta ao ego para torná-lo ideal é amado. Esse expediente é de especial importância para o neurótico, que, por causa de suas excessivas catexias objetais, é empobrecido em seu ego, sendo incapaz de realizar seu ideal do ego. Ele procura então retornar, de seu pródigo dispêndio da libido em objetos, ao narcisismo, escolhendo um ideal sexual segundo o tipo narcisista que possui as excelências que ele não pode atingir. Isso é a cura pelo amor, que ele geralmente prefere à cura pela análise. Na realidade, ele não pode crer em outro mecanismo de cura; em geral traz para o tratamento expectativas dessa espécie, dirigindo-as à pessoa do médico. A incapacidade de amar do paciente, resultante de suas repressões extensivas, naturalmente atrapalha um plano terapêutico dessa natureza. Muitas vezes, se nos depara um resultado não pretendido quando, por meio do tratamento, o paciente é parcialmente liberado de suas repressões: ele suspende o tratamento a fim de escolher um objeto amoroso, deixando que sua cura continue a se processar por uma vida em comum com quem ele ama. Poderíamos ficar satisfeitos com esse resultado, se ele não trouxesse consigo todos os perigos de uma dependência mutiladora em relação àquele que o ajuda.

O ideal do ego desvenda um importante panorama para a compreensão da psicologia de grupo. Além do seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família, uma classe ou uma nação. Ele vincula não somente a libido narcisista de uma pessoa, mas também uma quantidade considerável de sua libido homossexual,, que dessa forma retorna ao ego. A falta de satisfação que brota da não realização desse ideal libera a libido homossexual, sendo esta transformada em sentimento de culpa (ansiedade social). Originalmente esse sentimento de culpa era o temor de punição pelos pais, ou, mais corretamente, o medo de perder o seu amor; mais tarde, os pais são substituídos por um número indefinido de pessoas. A freqüente causação da paranóia por um dano ao ego, por uma frustração da satisfação dentro da esfera do ideal do ego, é tornada assim mais inteligível, bem como a convergência da formação do ideal e da sublimação no ideal do ego, e ainda a involução das sublimações e a possível transformação de ideais em perturbações parafrênicas.

 

ARTIGOS SOBRE METAPSICOLOGIA

 

INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS

 

Freud publicou o primeiro relato ampliado de seus conceitos sobre teoria psicológica no sétimo capítulo de A Interpretação de Sonhos (1900a) (Edição Standard Brasileira, Vols. IV-V, IMAGO Editora, 1972), que incorpora, de forma transmudada, parte da substância de seu ‘Projeto’ anterior e inédito (1950a [1895]). Afora breves apreciações ocasionais, como a do Capítulo VI de seu livro sobre chistes (1905c), dez anos se passaram antes que ele tornasse a penetrar profundamente nos problemas teóricos. A um artigo exploratório sobre ‘The Two Principles of Mental Functioning’ (1911b) seguiram-se outras abordagens mais ou menos experimentais — na Parte III de sua análise de Schreber (1911c), em seu artigo em inglês sobre o inconsciente (1912g), e na longa discussão sobre o narcisismo (1914c). Finalmente, na primavera e no verão de 1915, ele mais uma vez empreendeu uma exposição completa e sistemática de suas teorias psicológicas.

Os cinco artigos que se seguem formam uma série interligada. Conforme sabemos por uma nota de rodapé ao quarto desses artigos (ver em [1]), fazem parte de uma coletânea que Freud havia originalmente planejado publicar em forma de livro sob o título Zur Verbereitung einer Metapsychologie (Preliminares a uma Metapsicologia). Ele acrescenta que a intenção da série era proporcionar um fundamento teórico estável à psicanálise.

Embora os três primeiros desses artigos tivessem sido publicados em 1915 e os dois últimos em 1917, sabemos pelo Dr. Ernest Jones (1955, 208) que de fato todos foram escritos num período de cerca de sete semanas entre 15 de março e 4 de maio de 1915. Também sabemos pelo Dr. Jones (ibid., 209) que mais sete artigos foram acrescentados à série durante os três meses seguintes, tendo sido toda a coletânea de doze concluída em 9 de agosto. Esses outros sete artigos, contudo, nunca foram publicados por Freud, parecendo provável que numa data posterior ele os tenha destruído, uma vez que não se encontrou vestígio algum dos mesmos. Na realidade, sua própria existência permaneceu desconhecida ou esquecida até que o Dr. Jones veio a examinar as cartas de Freud. Na época em que escrevia, em 1915, manteve seus correspondentes (Abraham, Ferenczi e Jones) informados do seu andamento, mas parece existir apenas uma única referência aos mesmos depois, numa carta a Abraham, em novembro de 1917. Esta deve ter sido escrita mais ou menos na mesma época da publicação dos dois últimos artigos vindo a lume, e parece dar a entender que os sete outros ainda existiam e que ele ainda pretendia publicá-los, embora sentisse que o momento oportuno não havia chegado.

Temos conhecimento dos assuntos tratados por cinco dos últimos sete artigos: Consciência, Ansiedade, Histeria de Conversão, Neurose Obsessiva e as Neuroses de Transferência em Geral, e podemos descobrir possíveis referências aos mesmos nos artigos remanescentes. Podemos até mesmo adivinhar os assuntos que talvez tenham sido abordados pelos dois artigos não especificados — a saber, Sublimação e Projeção (ou Paranóia) —, pois há alusões mais ou menos claras a eles. A coletânea dos doze artigos teria sido assim abrangente, tratando dos processos subjacentes na maioria das principais neuroses e psicoses (histeria de conversão, histeria de angústia, neurose obsessiva, insanidade maníaco-depressiva e paranóia) bem como nos sonhos, com os mecanismos mentais de repressão, sublimação, introjeção e projeção, e com os dois sistemas mentais da consciência e o inconsciente.

É difícil exagerar o que perdemos com o desaparecimento desses artigos. Havia uma conjunção sui generis de fatores favoráveis na época em que Freud os escreveu. Seu principal trabalho teórico (o sétimo capítulo de A Interpretação de Sonhos) fora escrito quinze anos antes, numa etapa relativamente inicial de seus estudos psicológicos. Agora, contudo, ele contava com cerca de vinte e cinco anos de experiência psicanalítica em que basear suas construções teóricas, estando no ápice de sua capacidade intelectual. E foi nessa época que a circunstância acidental da redução de sua clínica, devida à irrupção da Primeira Guerra Mundial, lhe deu o necessário lazer durante cinco meses, nos quais pôde levar a cabo seu projeto. Uma tentativa de consolo reside, sem dúvida, na reflexão de que grande parte do conteúdo dos artigos desaparecidos deve ter chegado aos escritos ulteriores de Freud. Mas muito daríamos para possuir apreciações conexas sobre assuntos tais como consciência ou sublimação, em lugar das alusões dispersas e relativamente escassas com as quais temos, de fato, de nos contentar.

Em vista da importância especial dessa série de artigos, a fidelidade de seu raciocínio e a ocasional obscuridade dos tópicos de que tratam, foram enviados esforços extraordinários para exprimi-los com exatidão. A tradução em todos os seus pormenores (e especialmente onde há trechos duvidosos) acompanhou tão de perto o texto alemão quanto possível, mesmo correndo o risco de tornar árida a sua leitura. (Termos não-ingleses como, por exemplo, ‘o reprimido’ e ‘o mental’ foram empregados com o máximo de liberdade.) Embora a versão publicada em 1925 tenha servido de base, a que se segue é uma tradução inteiramente nova. Também se afigurou razoável incluir mais do que a quantidade comum de material introdutório, anotar o texto com o máximo de liberdade e, em particular, apresentar amplas referências a outras partes dos escritos de Freud que possam lançar luz sobre quaisquer obscuridades. Uma relação dos seus trabalhos teóricos mais importantes será encontrada num apêndice, no fim da série (ver em [1]).

Trechos das traduções publicadas em 1925 de ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’, ‘Repressão’ e ‘Luto e Melancolia’ foram incluídos em A General Selection from the Works of Sigmund Freud, de Rickman (1937, 79-98, 99-110 e 142-161).

 

OS INSTINTOS E SUAS VICISSITUDES (1915)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

TRIEBE UND TRIEBSCHICKSALE

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1915 Int. Z. Psychoanal., 3 (2), 84-100.

1918 S.K.S.N., 4, 252-278. (1922, 2.ª ed.)

1924 G.S., 5, 443-465.

1924 Techinik und Metapsychol., 165-187.

1931 Theoretische Schriften, 58-82.

1946 G.W., 10, 210-232.

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

‘Instincts and their Vicissitudes’

1925 C.P., 4, 69-83. (Trad. C.M. Baines.)

 

A presente tradução inglesa, embora baseada na de 1925, foi amplamente reescrita.

Freud começou a escrever o presente artigo em 15 de março de 1915; este e o seguinte (‘Repressão’) foram concluídos em 4 de abril.

Deve-se observar, à guisa de prefácio, que aqui (e através de toda a Standard Edition) o termo inglês ‘instinct‘ representa o alemão ‘Trieb‘. A escolha desse equivalente inglês de preferência a possíveis alternativas tais como drive (‘impulso’) ou urge (‘ânsia’) vem examinada na Introdução Geral ao primeiro volume da edição. A palavra ‘instinto’, de qualquer maneira, não é empregada aqui no sentido que parece no momento ser o mais corrente entre os biólogos. Mas Freud assinala, no decorrer desse artigo, o significado que atribui à palavra assim traduzida. Inicialmente, ver em [1] adiante, no artigo ‘O Inconsciente’, ele próprio utiliza o termo alemão ‘Instikt‘, embora possivelmente em sentido bem diferente.

Verifica-se, contudo, uma ambigüidade no uso, por Freud, do termo ‘Trieb‘ (‘instinto’) e ‘Triebrepräsentanz‘ (‘representante instintual’), para a qual se deve chamar a atenção, com o fito de assegurar uma melhor compreensão. Em [1] e [2] ele descreve instinto como sendo ‘um conceito situado na fronteira entre o material e o somático,… o representante psíquico dos estímulos que se origne dentro do organismo e alcançam a mente.’ Em duas ocasiões anteriores ele já havia apresentado descrições quase com as mesmas palavras. Alguns anos antes, perto do final da Seção III de seu exame do caso Schreber (1911c), descreveu o instinto como sendo ‘o conceito na fronteira entre o somático e o mental…, o representante psíquico das forças orgânicas’. E, novamente, num trecho provavelmente escrito alguns meses antes do presente artigo, e acrescentado à terceira edição (publicada em 1915, mas com prefácio datado de ‘Outubro de 1914’) de seus Três Ensaios (1905d), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 171, IMAGO Editora, 1972, descreveu o instinto como sendo ‘o representante psíquico de uma fonte de estímulo endossomática, continuamente a fluir… um conceito que se acha na fronteira entre o mental e o físico’. Essas três descrições parecem tornar claro que Freud não estabelecia qualquer distinção entre um instinto e seu ‘representante psíquico’. Aparentemente considerava o próprio instinto como sendo o representante psíquico de forças somáticas. Se agora, contudo, passarmos aos artigos ulteriores dessa série, teremos a impressão de que Freud traça uma distinção muito acentuada entre o instinto e seu representante psíquico. Isso talvez seja indicado com o máximo de clareza num trecho de ‘O Inconsciente’ (ver em [1]): ‘Um instinto jamais pode tornar-se um objeto da consciência — somente a idéia [Vorstellung] que representa o instinto é que pode. Mesmo no inconsciente, além disso, um instinto não pode ser representado de outra forma senão por uma idéia… Quando, não obstante, falamos de um impulso instintual inconsciente ou de um impulso instintual reprimido… referimo-nos apenas a um impulso instintual cujo representante ideacional é inconsciente’. Esse mesmo conceito aparece em muitos outros trechos. Por exemplo em ‘Repressão’ (ver em [1]) Freud refere-se ao ‘representante (ideacional) psíquico do instinto’ e prossegue: ‘…o representante em questão persiste inalterado e o instinto permanece ligado a ele’; e de novo, no mesmo artigo (ver em [1]), escreve sobre o representante instintual como sendo ‘uma idéia’, ou grupo de idéias, que é catexizada com uma quota definida de energia psíquica (libido, interesse) proveniente de um instinto’, e continua, dizendo que ‘além da idéia, algum outro elemento que representa o instinto tem de ser levado em conta’. Nesse segundo grupo de citações, portanto, o instinto não é mais considerado como sendo o representante psíquico de impulsos somáticos, mas antes como sendo ele próprio algo não-psíquico. Esses dois conceitos, aparentemente divergentes, da natureza de um instinto encontram-se em diversas passagens dos escritos subseqüentes de Freud, embora o segundo predomine. Pode ser, contudo, que a contradição seja mais aparente do que real, e que sua solução esteja precisamente na ambigüidade do próprio conceito — um conceito de fronteira entre o físico e o mental.

Num grande número de trechos, Freud expressou sua insatisfação diante do estado do conhecimento psicológico sobre os instintos. Não muito antes, por exemplo, em seu artigo sobre narcisismo (1914c, pág. 85 acima), ele se queixava da ausência total de qualquer teoria dos instintos que nos ajude ‘a encontrar nossa orientação’. Também depois, em Beyond the Pleasure Principle (1920g), Standard Ed., 18, 34, descreveu os instintos como ‘o elemento ao mesmo tempo mais importante e mais obscuro da pesquisa psicológica’; em seu artigo na Encyclopaedia Britannica (1926f ) confessou que ‘também para a psicanálise a teoria dos instintos é uma região obscura’. O presente artigo é uma tentativa relativamente antiga de lidar com o assunto de maneira abrangente. Seus muitos sucessores corrigiram-no e suplementaram-no em vários pontos; não obstante, esse artigo permanece invicto como o relato mais claro da visão que Freud tinha dos instintos e da forma segundo a qual ele pensava que atuavam. Uma reflexão subseqüente, é verdade, levou-o a alterar seus conceitos sobre a classificação dos instintos, bem como sobre suas determinantes mais profundas, mas esse artigo constitui base indispensável para a compreensão dos desenvolvimentos que se seguiriam.

O curso das alterações pelas quais passaram as opiniões de Freud sobre a classificação dos instintos talvez possa ser apropriadamente resumido aqui. É surpreendente que os instintos apareçam explicitamente num ponto relativamente tardio da seqüência de seus escritos. O termo ‘instinto’ quase não é encontrado nas obras do período de Breuer, ou na correspondência com Fliess, ou mesmo em A Interpretação de Sonhos (1900a). Só a partir dos Três Ensaios (1905d) é que o ‘instinto sexual’ é livremente mencionado como tal; os ‘impulsos instintuais’, que iriam tornar-se um dos termos mais comuns de Freud, parecem não ter aparecido antes do artigo sobre ‘Obsessive Actions and Religions Practices’ (1907b). Mas isso é primordialmente apenas um aspecto verbal: os instintos apareciam, naturalmente, sob outro nome. Empregavam-se amplamente em seu lugar expressões como ‘excitações’, ‘idéias afetivas’, ‘impulsos anelantes’, ‘estímulos endógenos’, e assim por diante. Por exemplo, traça-se adiante (ver em [1]) uma distinção entre um ‘estímulo’, que atua como uma força geradora de um impacto isolado, e um ‘instinto’, que sempre atua como constante. Essa distinção precisa fora traçada por Freud vinte anos antes com palavras quase idênticas, salvo que, em vez de ‘estímulo’ e ‘instinto’, ele se referiu a excitações ‘endógenas’ e ‘exógenas’. De forma semelhante, Freud ressalta adiante (ver em [1]) que o organismo primitivo não pode atuar de forma evasiva contra as necessidades instintuais como o faz contra estímulos externos. Também nesse caso ele previra a idéia vinte anos antes, embora mais uma vez a expressão empregada fosse ‘estímulos endógenos’. Esse segundo trecho, na Seção 1da Parte I do ‘Projeto’ (1950a [1895]), continua dizendo que esses estímulos endógenos ‘têm sua origem nas células do corpo e dão lugar às necessidades principais: fome, respiração e sexualidade’, mas em nenhuma parte aparece o termo ‘instinto’.

O conflito subjacente às psiconeuroses foi, nesse período inicial, às vezes descrito como situado entre ‘o ego’ e a ‘sexualidade’, e embora o termo ‘libido’ fosse com freqüência empregado, o conceito era o de uma manifestação de ‘tensão sexual somática’, que por sua vez era considerada como um evento químico. Somente nos Três Ensaios foi a libido explicitamente estabelecida como sendo uma expressão de instinto sexual. O outro elemento do conflito, ‘o ego’, permaneceu indefinido por muito tempo. Foi examinado principalmente em relação a suas funções — em particular a ‘repressão’, a ‘resistência’, e o ‘teste da realidade’ —, mas (à parte uma tentativa muito antiga na Seção 14 da Parte I do ‘Projeto’) pouco se disse quer da sua estrutura, quer da sua dinâmica. Quase nunca fez referência aos instintos ‘autopreservativos’, salvo indiretamente em relação à teoria de que a libido se ligara a eles nas fases iniciais de seu desenvolvimento; e parecia não haver razão óbvia para estabelecer uma conexão entre eles e o papel desempenhado pelo ego enquanto agente repressivo em conflitos neuróticos. Então, de modo aparentemente repentino, num breve artigo sobre perturbações psicogênicas da visão (1910i), Freud introduziu a expressão ‘instintos do ego’, identificando-os, por um lado, com os instintos autopreservativos, e, por outro, com a função repressiva. A partir dessa época, o conflito foi regularmente representado como estando entre dois conjuntos de instintos — os instintos da libido e os instintos do ego.

A introdução do conceito de ‘narcisismo’, contudo, originou uma complicação. Em seu artigo sobre aquela teoria (1914c), Freud apresentou a idéia da ‘libido do ego’ (ou ‘libido narcisista’) que catexiza o ego, em contraste com a ‘libido objetal’ que catexiza objetos (ver em [1] acima). Um trecho desse artigo (loc. cit.), bem como uma observação no presente artigo (ver em [1]), já revelam uma inquietação de sua parte quanto à possibilidade de sua classificação ‘dualista’ dos instintos perdurar. É verdade que na análise de Schreber (1911c) ele insistia na diferença entre ‘catexias do ego’ e ‘libido’, e entre ‘interesse que emana de fontes eróticas’ e ‘interesse em geral’ — distinção que reaparece na réplica a Jung no artigo sobre narcisismo (págs. 87-8) acima. O termo ‘interesse’ é empregado novamente no presente artigo (pág. 140); e na Conferência XXVI das Introductory Lectures (1916-17) ‘interesse do ego’ ou simplesmente ‘interesse’ é em geral posto em contraste com ‘libido’. Não obstante, a natureza exata desses instintos não libidinais era obscura. O ponto crucial da classificação dos instintos feita por Freud foi alcançado em Beyond the Pleasure Principle (1920g). No Capítulo VI daquela obra ele reconheceu francamente a dificuldade da posição que fora alcançada, declarando explicitamente que a ‘libido narcisista era, sem dúvida, uma manifestação da força do instinto sexual’ e que ‘tinha de ser identificada com os “instintos autopreservativos.”’ (Standard Ed., 18, pág. 50 e segs.) Ainda sustentava, contudo, que havia instintos do ego e instintos objetais que não eram libidinais; e foi aqui que, ainda vinculado a um ponto de vista dualista, introduziu sua hipótese do instinto de morte. Um relato do desenvolvimento de seus conceitos sobre a classificação dos instintos até aquele ponto foi apresentado na longa nota de rodapé no final do Capítulo VI de Beyond the Pleasure Principle, Standard Ed., 18, 60-1, e uma ulterior discussão do assunto, à luz de seu quadro recém-concluído da estrutura da mente, ocupou o Capítulo IV de The Ego and the Id (1923b). Percorreu todo o terreno mais uma vez com grandes detalhes no Capítulo VI de O Mal-Estar na Civilização (1930a) (Edição Standard Brasileira, Vol. XXI, IMAGO Editora, 1974), dispensando ali, pela primeira vez, especial consideração aos instintos agressivos e destrutivos. Antes prestara pouca atenção a eles, exceto onde (como no sadismo e no masoquismo) se achavam fundidos com elementos libidinais, mas agora os examinava em sua forma pura e os explicava como derivados do instinto de morte. Uma revisão ainda ulterior do assunto será encontrada na segunda metade da Conferência XXXII das New Introductory Lectures (1933a) e num resumo final, no Capítulo II, da obra póstuma Esboço de Psicanálise (1940a [1938]) (Edição Standard Brasileira, Vol. XXIII, IMAGO Editora, 1974.)

 

OS INSTINTOS E SUAS VICISSITUDES

 

Ouvimos com freqüência a afirmação de que as ciências devem ser estruturadas em conceitos básicos claros e bem definidos. De fato, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O verdadeiro início da atividade científica consiste antes na descrição dos fenômenos, passando então a seu agrupamento, sua classificação e sua correlação. Mesmo na fase de descrição não é possível evitar que se apliquem certas idéias abstratas ao material manipulado, idéias provenientes daqui e dali, mas por certo não apenas das novas observações. Tais idéias — que depois se tornarão os conceitos básicos da ciência — são ainda mais indispensáveis à medida que o material se torna mais elaborado. Devem, de início, possuir necessariamente certo grau de indefinição; não pode haver dúvida quanto a qualquer delimitação nítida de seu conteúdo. Enquanto permanecem nessa condição, chegamos a uma compreensão acerca de seu significado por meio de repetidas referências ao material de observação do qual parecem ter provindo, mas ao qual, de fato, foram impostas. Assim, rigorosamente falando, elas são da natureza das convenções — embora tudo dependa de não serem arbitrariamente escolhidas mas determinadas por terem relações significativas com o material empírico, relações que parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná-las claramente. Só depois de uma investigação mais completa do campo de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área. Então, na realidade, talvez tenha chegado o momento de confiná-los em definições. O avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições. A física proporciona excelente ilustração da forma pela qual mesmo ‘conceitos básicos’, que tenham sido estabelecidos sob a forma de definições, estão sendo constantemente alterados em seu conteúdo.

Um conceito básico convencional dessa espécie, que no momento ainda é algo obscuro, mas que nos é indispensável na psicologia, é o de um ‘instinto’. Tentemos dar-lhe um conteúdo, abordando-o de diferentes ângulos.

Em primeiro lugar, do ângulo da fisiologia. Isso nos forneceu o conceito de um ‘estímulo’ e o modelo do arco reflexo, segundo o qual um estímulo aplicado ao tecido vivo (substância nervosa) a partir de fora é descarregado por ação para fora. Essa ação é conveniente na medida em que, afastando a substância estimulada da influência do estímulo, remove-a de seu raio de atuação.

Qual a relação do ‘instinto’ com o ‘estímulo’? Nada existe que nos impeça de subordinar o conceito de ‘instinto’ ao de ‘estímulo’ e de afirmar que um instinto é um estímulo aplicado à mente. Mas de imediato ficamos prevenidos contra igualar instinto e estímulo mental. Existem evidentemente outros estímulos à mente, além daqueles de natureza instintual, estímulos que se comportam muito mais como fisiológicos. Por exemplo, a luz forte que incide sobre a vista não é um estímulo instintual; já a secura da membrana mucosa da faringe ou a irritação da membrana mucosa do estômago o são.

Obtivemos agora o material necessário para traçarmos uma distinção entre os estímulos instintuais e outros estímulos (fisiológicos) que atuam na mente. Em primeiro lugar, um estímulo instintual não surge do mundo exterior, mas de dentro do próprio organismo. Por esse motivo ele atua diferentemente sobre a mente, e diferentes ações se tornam necessárias para removê-lo. Além disso, tudo que é essencial num estímulo fica encoberto, se presumimos que ele atua com um impacto único, podendo ser removido por uma única ação conveniente. Um exemplo típico disso é a fuga motora proveniente da fonte de estimulação. Esses impactos podem, como é natural, ser repetidos e acrescidos, mas isso em nada modifica nossa noção a respeito do processo e as condições para a eliminação do estímulo. Um instinto, por outro lado, jamais atua como uma força que imprime um impacto momentâneo, mas sempre como um impacto constante. Além disso, visto que ele incide não a partir de fora mas de dentro do organismo, não há como fugir dele. O melhor termo para caracterizar um estímulo instintual seria ‘necessidade’. O que elimina uma necessidade é a ‘satisfação’. Isso pode ser alcançado apenas por uma alteração apropriada (‘adequada’) da fonte interna de estimulação.

Imaginemo-nos na situação de um organismo vivo quase inteiramente inerme, até então sem orientação no mundo, que esteja recebendo estímulos em sua substância nervosa. Esse organismo muito em breve estará em condições de fazer uma primeira distinção e uma primeira orientação. Por um lado, estará cônscio de estímulos que podem ser evitados pela ação muscular (fuga); estes, ele os atribui a um mundo externo. Por outro, também estará cônscio de estímulos contra os quais tal ação não tem qualquer valia e cujo caráter de constante pressão persiste apesar dela; esses estímulos são os sinais de um mundo interno, a prova de necessidadess instintuais. A substância perceptual do organismo vivo terá assim encontrado, na eficácia de sua atividade muscular, uma base para distinguir entre um ‘de fora’ e um ‘de dentro’.

Chegamos assim à natureza essencial dos instintos, considerando em primeiro lugar suas principais características — sua origem em fontes de estimulação dentro do organismo e seu aparecimento como uma força constante — e disso deduzimos uma de suas outras características, a saber, que nenhuma ação de fuga prevalece contra eles. No decorrer do presente exame, contudo, não podemos deixar de nos surpreender com alguma coisa que nos obriga a admitir algo mais. Para nossa orientação, ao lidarmos com o campo de fenômenos psicológicos não nos limitamos a aplicar ao nosso material empírico certas convenções à guisa de conceitos básicos; também empregamos um bom número de postulados complicados. Já fizemos alusão ao mais importante destes, bastando-nos agora enunciá-lo expressamente. Esse postulado é de natureza biológica e utiliza o conceito de ‘finalidade’ (ou talvez de conveniência), podendo ser enunciado da seguinte maneira: o sistema nervoso é um aparelho que tem por função livrar-se dos estímulos que lhe chegam, ou reduzi-los ao nível mais baixo possível; ou que, caso isso fosse viável, se manteria numa condição inteiramente não-estimulada. Não façamos objeção por enquanto à indefinição dessa idéia e atribuamos ao sistema nervoso a tarefa — falando em termos gerais — de dominar estímulos. Vemos então até que ponto o modelo simples do reflexo fisiológico se complica com a introdução dos instintos. Os estímulos externos impõem uma única tarefa: a de afastamento; isso é realizado por movimentos musculares, um dos quais finalmente atinge esse objetivo e, sendo o movimento conveniente, torna-se a partir daí uma disposição hereditária. Não podemos aplicar esse mecanismo ao estímulos instintuais, que se originam de dentro do organismo. Estes exigem muito mais do sistema nervoso, fazendo com que ele empreenda atividades complexas e interligadas, pelas quais o mundo externo se modifica de forma a proporcionar satisfação à fonte interna de estimulação. Acima de tudo, obrigam o sistema nervoso a renunciar à sua intenção ideal de afastar os estímulos, pois mantêm um fluxo incessante e inevitável de estimulação. Podemos, portanto, concluir que os instintos, e não os estímulos externos, constituem as verdadeiras forças motrizes por detrás dos progressos que conduziram o sistema nervoso, com sua capacidade ilimitada, a seu alto nível de desenvolvimento atual. Naturalmente, nada existe que nos impeça de supor que os próprios instintos sejam, pelo menos em parte, precipitados dos efeitos da estimulação externa, que no decorrer da filogênese ocasionaram modificações na substância viva.

Quando ainda verificamos que até mesmo a atividade do aparelho mental mais desenvolvido está sujeita ao princípio de prazer, isto é, que ela é automaticamente regulada por sentimentos pertencentes à série prazer-desprazer, quase não podemos rejeitar a hipótese ulterior, segundo a qual esses sentimentos refletem a maneira pela qual o processo de dominação de estímulos se verifica — certamente no sentido de que os sentimentos desagradáveis estão ligados a um aumento e os sentimentos agradáveis a uma diminuição do estímulo. Preservaremos cuidadosamente, contudo, essa suposição em sua atual forma altamente indefinida, até conseguirmos, caso possível, descobrir que espécie de relação existe entre o prazer e o desprazer, por um lado, e flutuações nas quantidades de estímulo que afetam a vida mental, por outro. É certo que grande número de várias relações dessa espécie, e relações não muito simples, são possíveis.

Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, um ‘instinto’ nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo.

Estamos agora em condições de examinar certos termos utilizados com referência ao conceito de instinto — por exemplo, sua ‘pressão’, sua ‘finalidade’, seu ‘objeto’ e sua ‘fonte’.

Por pressão [Drang] de um instinto compreendemos seu fator motor, a quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa. A característica de exercer pressão é comum a todos os instintos; é, de fato, sua própria essência. Todo instinto é uma parcela de atividade; se falarmos em termos gerais de instintos passivos, podemos apenas querer dizer instintos cuja finalidade é passiva.

A finalidade [Ziel] de um instinto é sempre satisfação, que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte do instinto. Mas, embora a finalidade última de cada instinto permaneça imutável, poderá ainda haver diferentes caminhos conducentes à mesma finalidade última, de modo que se pode verificar que um instinto possui várias finalidades mais próximas ou intermediárias, que são combinadas ou intercambiadas umas com as outras. A experiência nos permite também falar de instintos que são ‘inibidos em sua finalidade’, no caso de processos aos quais se permite progredir no sentido da satisfação instintual, sendo então inibidos ou defletidos. Podemos supor que mesmo processos dessa espécie envolvem uma satisfação parcial.

O objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou através da qual o instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. O objeto não é necessariamente algo estranho: poderá igualmente ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. Pode ser modificado quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes que o instinto sofre durante sua existência, sendo que esse deslocamento do instinto desempenha papéis altamente importantes. Pode acontecer que o mesmo objeto sirva para a satisfação de vários instintos simultaneamente, um fenômeno que Adler [1908] denominou de ‘confluência’ de instintos [Triebverschränkung]. Uma ligação particularmente estreita do instinto com seu objeto se distingue pelo termo ‘fixação’. Isso freqüentemente ocorre em períodos muito iniciais do desenvolvimento de um instinto, pondo fim à sua modalidade por meio de sua intensa oposição ao desligamento.

Por fonte [Quelle] de um instinto entendemos o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental por um instinto. Não sabemos se esse processo é invariavelmente de natureza química ou se pode também corresponder à liberação de outras forças, por exemplo, forças mecânicas. O estudo das fontes dos instintos está fora do âmbito da psicologia. Embora os instintos sejam inteiramente determinados por sua origem numa fonte somática, na vida mental nós os conhecemos apenas por suas finalidades. O conhecimento exato das fontes de um instinto não é invariavelmente necessário para fins de investigação psicológica; por vezes sua fonte pode ser inferida de sua finalidade.

Devemos supor que os diferentes instintos que se originam no corpo e atuam na mente são também distinguidos por qualidades diferentes, e que por isso se comportam de formas qualitativamente diferentes na vida mental? Essa suposição não parece ser justificada; é muito mais provável que achemos suficiente a suposição mais simples — a de que todos os instintos são qualitativamente semelhantes e devem o efeito que causam somente à quantidade de excitação que trazem em si, ou talvez, além disso, a certas funções dessa quantidade. O que distingue uns dos outros os efeitos mentais produzidos pelos vários instintos, pode ser encontrado a partir da diferença em suas fontes. Seja como for, só numa relação ulterior seremos capazes de esclarecer o que significa o problema da qualidade dos instintos.

Que instintos devemos supor que existem, e quantos? É óbvio que isso dá ampla margem a escolhas arbitrárias. Não se pode objetar a que qualquer pessoa empregue o conceito de um instinto lúdico ou de destruição ou de estado gregário, quando o assunto o exige e as limitações da análise psicológica o permitem. Não obstante, não devemos deixar de nos perguntar se motivos instintuais como esses, tão altamente especializados, por um lado, não permitem ulterior dissecação de acordo com as fontes do instinto, de modo que somente os instintos primordiais — os que não podem ser ulteriormente dissecados — podem reivindicar importância.

Propus que se distingam dois grupos de tais instintos primordiais: os instintos do ego, ou autopreservativos, e os instintos sexuais. Mas essa suposição não tem status de postulado necessário, como tem, por exemplo, nossa suposição sobre a finalidade biológica do aparelho mental (ver em [1] e [2]); ela não passa de uma hipótese de trabalho, a ser conservada apenas enquanto se mostrar útil, e pouca diferença fará aos resultados do nosso trabalho de descrição e classificação se for substituída por outra. A ocasião para essa hipótese surgiu no decurso da evolução da psicanálise, que foi empregada pela primeira vez nas psiconeuroses, ou, mais precisamente, no grupo descrito como ‘neuroses de transferência’ (histeria e neurose obsessiva); estas revelaram que, na raiz de todas as afecções desse tipo, se encontra um conflito entre as exigências da sexualidade e as do ego. É sempre possível que um estudo exaustivo das outras afecções neuróticas (em especial das psiconeuroses narcisistas, das esquizofrenias) possa obrigar-nos a alterar essa fórmula e proceder a uma diferente classificação dos instintos primordiais. Mas, por enquanto, não conhecemos essa fórmula, nem encontramos qualquer argumento desfavorável para traçar esse contraste entre os instintos sexuais e os do ego.

Tenho as maiores dúvidas de que se possa chegar a indicadores decisivos para a diferenciação e classificação dos instintos a partir da elaboração do material psicológico. Essa própria elaboração parece exigir, até certo ponto, a aplicação de suposições definidas, concernentes à vida instintual, àquele material, e seria desejável que essas suposições pudessem ser extraídas de algum outro ramo de conhecimento e levadas para a psicologia. Aqui, a contribuição da biologia por certo não vai de encontro à distinção entre os instintos sexuais e os do ego. A biologia ensina que a sexualidade não deve ser colocada em pé de igualdade com outras funções do indivíduo, pois suas finalidades ultrapassam o indivíduo e têm como seu conteúdo a produção de novos indivíduos — isto é, a preservação da espécie. Ela mostra, ainda, que dois conceitos, ao que tudo indica igualmente bem fundamentados, podem ser adotados quanto à relação entre o ego e a sexualidade. De um ponto de vista, o indivíduo é a coisa principal, sendo a sexualidade uma das suas atividades e a satisfação sexual uma de suas necessidades; ao passo que, de outro ponto de vista, o indivíduo é um apêndice temporário e passageiro do idioplasma quase imortal, que é confiado a ele pelo processo de geração. A hipótese de que a função sexual difere de outros processos corpóreos em virtude de uma química especial também é, creio eu, um postulado da escola de pesquisa biológica de Ehrlich.

Visto que um estudo da vida instintual a partir da direção da consciência apresenta dificuldades quase insuperáveis, a principal fonte de nossos conhecimentos continua a ser a investigação psicanalítica das perturbações mentais. A psicanálise, contudo, em conseqüência do curso tomado pelo seu desenvolvimento, até agora só tem sido capaz de nos proporcionar informações de natureza razoavelmente satisfatória acerca dos instintos sexuais, pois este é precisamente o único grupo que pode ser observado isoladamente, por assim dizer, nas psiconeuroses. Com a extensão da psicanálise às outras afecções neuróticas, sem dúvida, encontraremos também uma base para o nosso conhecimento dos instintos do ego, embora seja temerário esperar condições de observação igualmente favoráveis nesse outro campo de pesquisa.

Isso é tudo que pode ser dito à guisa de uma caracterização geral dos instintos sexuais. São numerosos, emanam de grande variedade de fontes orgânicas, atuam em princípio independentemente um do outro e só alcançam uma síntese mais ou menos completa numa etapa posterior. A finalidade pela qual cada um deles luta é a consecução do ‘prazer do órgão’, somente quando a síntese é alcançada é que eles entram a serviço da função reprodutora, tornando-se então identificáveis, de modo geral, como instintos sexuais. Logo que surgem, estão ligados aos instintos da autopreservação, dos quais só gradativamente se separam; também na sua escolha objetal, seguem os caminhos indicados pelos instintos do ego. Parte deles permanece associada aos instintos do ego pela vida inteira, fornecendo-lhes componentes libidinais, que, no funcionamento normal, escapam à observação com facilidade, só sendo revelados de maneira clara no início da doença. Distinguem-se por possuírem em ampla medida a capacidade de agir vicariamente uns pelos outros, e por serem capazes de mudar prontamente de objetos. Em conseqüência dessas últimas propriedades, são capazes de funções que se acham muito distantes de suas ações intencionais originais — isto é, capazes de ‘sublimação’. 

Nossa investigação sobre as várias vicissitudes pelas quais passam os instintos no processo de desenvolvimento e no decorrer da vida deve ficar confinada aos instintos sexuais, que nos são mais familiares. A observação nos mostra que um instinto pode passar pelas seguintes vicissitudes:

Reversão a seu oposto.

Retorno em direção ao próprio eu (self) do indivíduo.

Repressão.

Sublimação.

Visto que não pretendo tratar aqui da sublimação e que a repressão exige um capítulo especial [cf. o artigo seguinte,ver em [1]], resta-nos apenas descrever e examinar os dois primeiros pontos. Tendo em mente a existência de forças motoras que impedem que um instinto seja elevado até o fim de forma não modificada, também podemos considerar essas vicissitudes como modalidades de defesa contra os instintos.

A reversão de um instinto a seu oposto transforma-se, mediante um exame mais detido, em dois processos diferentes: uma mudança da atividade para a passividade e uma reversão de seu conteúdo. Os dois processos, sendo diferentes em sua natureza, devem ser tratados separadamente.

Encontram-se exemplos do primeiro processo nos dois pares de opostos: sadismo-masoquismo e escopofilia-exibicionismo. A reversão afeta apenas as finalidades dos instintos. A finalidade ativa (torturar, olhar), é substituída pela finalidade passiva (ser torturado, ser olhado). A reversão do conteúdo encontra-se no exemplo isolado da transformação do amor em ódio.

O retorno de um instinto em direção ao próprio eu (self) do indivíduo se torna plausível pela reflexão de que o masoquismo é, na realidade, o sadismo que retorna em direção ao próprio ego do indivíduo, e de que o exibicionismo abrange o olhar para o seu próprio corpo. A observação analítica, realmente, não nos deixa duvidar de que o masoquista partilha da fruição do assalto a que é submetido e de que o exibicionista partilha da fruição de [a visão de] sua exibição. A essência do processo é, assim, a mudança do objeto, ao passo que a finalidade permanece inalterada. Não podemos deixar de observar, contudo, que, nesses exemplos, o retorno em direção ao eu do indivíduo e a transformação da atividade em passividade convergem ou coincidem.

Para elucidar a situação, faz-se essencial uma investigação mais completa.

No caso do par de opostos sadismo-masoquismo, o processo pode ser representado da seguinte maneira:

(a) O sadismo consiste no exercício de violência ou poder sobre uma outra pessoa como objeto.

(b) Esse objeto é abandonado e substituído pelo eu do indivíduo. Com o retorno em direção ao eu, efetua-se também a mudança de uma finalidade instintual ativa para uma passiva.

(c) Uma pessoa estranha é mais uma vez procurada como objeto; essa pessoa, em conseqüência da alteração que ocorreu na finalidade instintual, tem de assumir o papel do sujeito.

O caso (c) é o que comumente se denomina de masoquismo. Também aqui a satisfação segue o caminho do sadismo original, voltando o ego passivo, em fantasia, ao seu papel inicial, que foi agora, de fato, assumido pelo sujeito estranho. Se existe, além disso, uma satisfação masoquista mais direta, é muito duvidoso. Um masoquismo primário, não derivado do sadismo na forma que descrevi, não parece ser encontrado. Veremos que não é supérfluo presumir a existência da fase (b) pelo comportamento do instinto sádico na neurose obsessiva. Ali existe um retorno em direção ao eu do sujeito sem uma atitude de passividade para com outra pessoa: a modificação só vai até a fase (b). O desejo de torturar transforma-se em autotortura e autopunição, não em masoquismo. A voz ativa muda, não para a passiva, mas para a voz reflexiva média.

Nosso conceito de sadismo fica ainda mais prejudicado pela circunstância de que esse instinto, lado a lado com sua finalidade geral (ou talvez, de preferência, dentro dela) parece esforçar-se pela realização de uma finalidade bem especial — não só humilhar e dominar, como também, além disso, infligir dor. A psicanálise pareceria demonstrar que infligir dor não desempenha um papel entre as ações intencionais originais do instinto. Uma criança sádica não se apercebe de que inflige dor ou não, nem pretende fazê-lo. Mas, uma vez ocorrida a transformação em masoquismo, a dor é muito apropriada para proporcionar uma finalidade masoquista passiva, pois temos todos os motivos para acreditar que as sensações de dor, assim como outras sensações desagradáveis, beiram a excitação sexual e produzem uma condição agradável, em nome da qual o sujeito, inclusive, experimentará de boa vontade o desprazer da dor. Uma vez que sentir dor se transforme numa finalidade masoquista, a finalidade sádica de causar dor também pode surgir, retrogressivamente, pois, enquanto essas dores estão sendo infligidas a outras pessoas, são fruídas masoquisticamente pelo sujeito através da identificação dele com o objeto sofredor. Em ambos os casos, naturalmente, não é a dor em si que é fruída, mas a excitação sexual concomitante — de modo que isso pode ser feito de uma maneira especialmente conveniente a partir da posição sádica. A fruição da dor seria, assim, uma finalidade originalmente masoquista, que só pôde tornar-se uma finalidade instintual em alguém que era originalmente sádico.

A bem da inteireza, posso acrescentar que os sentimentos de piedade não podem ser descritos como sendo o resultado de uma transformação do instinto que ocorre no sadismo, mas carecem da idéia de uma formação de reação contra esse instinto. (Quanto à diferença, ver adiante.)

Achados bem mais simples e diferentes são proporcionados pela investigação de outro par de opostos — os instintos cuja finalidade respectiva é olhar e exibir-se (escopofilia e exibicionismo, na linguagem das perversões). Aqui novamente podemos postular as mesmas fases como no exemplo anterior: — (a) O olhar como uma atividade dirigida para um objeto estranho. (b) O desistir do objeto e dirigir o instinto escopofílico para uma parte do próprio corpo do sujeito; com isso, transformação no sentido de passividade e o estabelecimento de uma nova finalidade — a de ser olhado. (c) Introdução de um novo sujeito diante do qual a pessoa se exibe a fim de ser olhada por ele. Também aqui dificilmente se pode duvidar de que a finalidade ativa surge antes da passiva, de que o olhar precede o ser olhado. Mas existe uma importante divergência com respeito ao que acontece no caso do sadismo, pelo fato de que podemos reconhecer no caso do instinto escopofílico uma fase ainda mais anterior à descrita em (a). Para o início de sua atividade, o instinto escopofílico é auto-erótico; ele possui na realidade um objeto, mas esse objeto é parte do próprio corpo do sujeito. Só mais tarde é que o instinto é levado, por um processo de comparação, a trocar esse objeto por uma parte análoga do corpo de outrem — fase (a). Essa fase preliminar é interessante porque constitui a fonte de ambas as situações representadas no par de opostos resultante, uma ou outra dependendo do elemento modificado na situação original. O que se segue poderia servir de quadro diagramático do instinto escopofílico:

 

() Alguém olhando para um órgão sexual

= Um órgão sexual sendo olhado por alguém

 

() Alguém olhando para um objeto estranho (escopofilia ativa)

 

() Um objeto que é alguém ou parte de alguém sendo olhado por uma pessoa estranha (exibicionismo)

 

Esse tipo de fase preliminar se acha ausente no sadismo, que desde o começo é dirigido para um objeto estranho, embora talvez não fosse inteiramente absurdo compor tal fase a partir dos esforços da criança para obter controle sobre seus próprios membros.

No tocante a ambos os instintos que acabamos de tomar como exemplos, deve-se observar que sua transformação por uma reversão da atividade para a passividade e por um retorno em direção ao sujeito nunca implica, de fato, toda a quota do impulso instintual. A direção ativa anterior do instinto persiste, em certa medida, lado a lado com sua direção passiva ulterior, mesmo quando o processo de sua transformação tenha sido muito extenso. A única afirmação correta a fazer sobre o instinto escopofílico seria a de que todas as fases de seu desenvolvimento, tanto sua fase preliminar auto-erótica quanto sua forma ativa ou passiva final, coexistem lado a lado; e a verdade disso se tornará evidente se basearmos nossa opinião, não nas ações às quais o instinto conduz, mas no mecanismo de sua satisfação. Talvez, contudo, seja admissível encarar o assunto e representá-lo ainda de outra forma. Podemos dividir a vida de cada instinto numa série de ondas sucessivas isoladas, cada uma delas homogênea durante o período de tempo que possa vir a durar, qualquer que seja ele, e cuja relação de umas com as outras é comparável à de sucessivas erupções de lava. Podemos então talvez figurar a primeira erupção original do instinto como se processando de forma inalterada, sem experimentar qualquer desenvolvimento. A onda seguinte seria modificada desde o início — sendo transformada, por exemplo, de ativa em passiva —, e seria então, com essa nova característica, acrescentada à onda anterior, e assim por diante. Se fôssemos então proceder a um levantamento do impulso instintual desde seu começo até um determinado ponto, a sucessão de ondas que descrevemos inevitavelmente apresentaria o quadro de um desenvolvimento definido do instinto.

O fato de que, nesse período ulterior de desenvolvimento de um impulso instintual, seu oposto (passivo) possa ser observado ao lado dele merece ser assinalado pelo termo bem adequado introduzido por Bleuler — ‘ambivalência’. Essa referência à história do desenvolvimento dos instintos e a permanência de suas fases intermediárias deve tornar o desenvolvimento dos instintos razoavelmente inteligível para nós. A experiência mostra que a quantidade de ambivalência demonstrável varia muito entre indivíduos, grupos e raças. A acentuada ambivalência instintual num ser humano que vive nos dias atuais pode ser considerada como uma herança arcaica, pois temos motivos para supor que o papel desempenhado na vida instintual pelos impulsos ativos em sua forma inalterada foi maior nos tempos primevos do que é em média hoje em dia.

Ficamos habituados a denominar a fase inicial do desenvolvimento do ego, durante a qual seus instintos sexuais encontram satisfação auto-erótica, de ‘narcisismo’, sem de imediato travarmos um debate sobre a relação entre o auto-erotismo e o narcisismo. Segue-se que a fase preliminar do instinto escopofílico, na qual o próprio corpo do sujeito é o objeto da escopofilia, deve ser classificada sob o narcisismo, e que devemos descrevê-la como uma formação narcisista. O instinto escopofílico ativo desenvolve-se a partir daí, deixando o narcisismo para trás. O instinto escopofílico passivo, pelo contrário, aferra-se ao objeto narcisista. De maneira semelhante, a transformação do sadismo em masoquismo acarreta um retorno ao objeto narcisista. E em ambos esses casos [isto é, na escopofilia passiva e no masoquismo] o sujeito narcisista é, através da identificação, substituído por outro ego, estranho. Se levarmos em conta a fase do sadismo preliminar e narcisista que construímos, estaremos aproximando-nos de uma compreensão mais geral — a saber, que as vicissitudes instintuais, que consistem no fato de o instinto retornar em direção ao próprio ego do sujeito e sofrer reversão da atividade para a passividade, se acham na dependência da organização narcisista do ego e trazem o cunho dessa fase. Correspondem talvez às tentativas de defesa que, em fases mais elevadas do desenvolvimento do ego, são efetuadas por outros meios. [Ver acima, em [1] e [2].]

Nesse ponto podemos recordar que até agora consideramos apenas dois pares de instintos opostos: sadismo-masoquismo e escopofilia-exibicionismo. Estes são os instintos sexuais mais conhecidos que aparecem de maneira ambivalente. Os outros componentes da função sexual ulterior não são ainda suficientemente acessíveis à análise para que possamos examiná-los de maneira semelhante. Em geral, podemos assegurar, em relação a eles, que suas atividades são auto-eróticas; isto é, seu objeto é insignificante em comparação com o órgão que lhes serve de fonte, via de regra coincidindo com esse órgão. O objeto do instinto escopofílico, contudo, embora também a princípio seja parte do próprio corpo do sujeito, não é o olho em si; e no sadismo a fonte orgânica, que é provavelmente o aparelho muscular com sua capacidade para a ação, aponta inequivocamente para outro objeto que não ele próprio, muito embora esse objeto seja parte do próprio corpo do sujeito. Nos instintos auto-eróticos, o papel desempenhado pela fonte orgânica é tão decisivo que, de acordo com uma sugestão plausível de Federn (1913) e Jekels (1913), a forma e a função do órgão determinam a atividade ou a passividade da finalidade instintual.

A mudança do conteúdo [ver em [1]] de um instinto em seu oposto só é observada num exemplo isolado — a transformação do amor em ódio. Visto ser particularmente comum encontrar ambos dirigidos simultaneamente para o mesmo objeto, sua coexistência oferece o exemplo mais importante de ambivalência de sentimento. [Ver em [1]]

O caso de amor e ódio adquire especial interesse pela circunstância de que se recusa a ajustar-se a nosso esquema dos instintos. É impossível duvidar de que exista a mais íntima das relações entre esses dois sentimentos opostos e a vida sexual, mas naturalmente relutamos em pensar no amor como sendo uma espécie de instinto componente específico da sexualidade, da mesma forma que os outros que vimos examinando. Preferiríamos considerar o amor como sendo a expressão de toda a corrente sexual de sentimento, mas essa idéia não elucida nossas dificuldades e não podemos ver que significado poderia ser atribuído a um conteúdo oposto dessa corrente.

O amor não admite apenas um, mas três opostos. Além da antítese ‘amar-odiar’, existe a outra de ‘amar-ser amado’; além destas, o amar e o odiar considerados em conjunto são o oposto da condição de desinteresse ou indiferença. A segunda dessas três antíteses, amar-ser amado, corresponde exatamente à transformação da atividade em passividade e pode remontar a uma situação subjacente, da mesma forma que no caso do instinto escopofílico. Essa situação é a de amar-se a si próprio, que consideramos como sendo o traço característico do narcisismo. Então, conforme o objeto ou o sujeito seja substituído por um estranho, o que resulta é a finalidade ativa de amar ou a passiva de ser amado — ficando a segunda perto do narcisismo.

Talvez cheguemos a uma melhor compreensão dos vários opostos do amar, se refletirmos que nossa vida mental como um todo se rege por três polaridades, as antíteses

Sujeito (ego) — Objeto (mundo externo),

Prazer — Desprazer, e

Ativo — Passivo.

A antítese ego-não-ego (externo), isto é, sujeito-objeto, é, como já tivemos oportunidade de dizer [ver em [1]], lançada sobre o organismo individual numa fase inicial, pela experiência de que pode silenciar os estímulos externos por meio de ação muscular, mas é inerme contra estímulos instintuais. Essa antítese permanece, acima de tudo, soberana em nossa atividade intelectual e cria para a pesquisa a situação básica que esforço algum pode alterar. A polaridade do prazer-desprazer está ligada a uma escala de sentimentos, cuja importância suprema na determinação de nossas ações (nossa vontade) já foi ressaltada [ver em [1] e [2]]. A antítese ativo-passivo não deve ser confundida com a antítese sujeito do ego-objeto do mundo externo. A relação do ego com o mundo externo é passiva na medida em que o primeiro recebe estímulos do segundo, e ativa quando reage a eles. Ela é forçada por seus instintos a um grau bem especial de atividade para com o mundo externo, de modo que talvez pudéssemos ressaltar o ponto essencial se disséssemos que o sujeito do ego é passivo no tocante aos estímulos externos, mas ativo através de seus próprios instintos. A antítese ativo-passivo funde-se depois com a antítese masculino-feminino, a qual, até que isso tenha ocorrido, não possui qualquer significado psicológico. A junção da atividade com a masculinidade e da passividade com a feminilidade nos defronta, na realidade, com um fato biológico, mas não é de forma alguma tão invariavelmente completa e exclusiva como tendemos a presumir.

As três polaridades da mente estão ligadas umas às outras de várias maneiras altamente significativas. Existe uma situação psíquica primordial na qual duas delas coincidem. Originalmente, no próprio começo da vida mental, o ego é catexizado com os instintos, sendo, até certo ponto, capaz de satisfazê-los em si mesmo. Denominamos essa condição de ‘narcisismo’, e essa forma de obter satisfação, de ‘auto-erótica’. Nessa ocasião, o mundo externo não é catexizado com interesse (num sentido geral), sendo indiferente aos propósitos de satisfação. Durante esse período, portanto, o sujeito do ego coincide com o que é agradável, e o mundo externo, com o que é indiferente (ou possivelmente desagradável, como sendo uma fonte de estimulação). Se por enquanto definimos o amar como a relação do ego com suas fontes de prazer, a situação na qual o ego ama somente a si próprio e é indiferente ao mundo externo, ilustra o primeiro dos opostos que encontramos para ‘o amor’.

Na medida em que o ego é auto-erótico, não necessita do mundo externo, mas, em conseqüência das experiências sofridas pelos instintos de autopreservação, ele adquire objetos daquele mundo, e, apesar de tudo, não pode evitar sentir como desagradáveis, por algum tempo, estímulos instintuais internos. Sob o domínio do princípio de prazer ocorre agora um desenvolvimento ulterior no ego. Na medida em que os objetos que lhe são apresentados constituem fontes de prazer, ele os toma para si próprio, os ‘introjeta’ (para empregar o termo de Ferenczi [1909]); e, por outro lado, expele o que quer que dentro de si mesmo se torne uma causa de desprazer. (Ver adiante [ver em [1] e [2]] o mecanismo da projeção).

Assim, o ‘ego da realidade’, original, que distinguiu o interno e o externo por meio de um sólido critério objetivo se transforma num ‘ego do prazer’ purificado, que coloca a característica do prazer acima de todas as outras. Para o ego do prazer, o mundo externo está dividido numa parte que é agradável, que ele incorporou a si mesmo, e num remanescente que lhe é estranho. Isolou uma parte do seu próprio eu, que projeta no mundo externo e sente como hostil. Após esse novo arranjo, as duas polaridades coincidem mais uma vez: o sujeito do ego coincide com o prazer, e o mundo externo com o desprazer (com o que anteriormente era indiferente).

Quando, durante a fase do narcisismo primário, o objeto faz a sua aparição, o segundo oposto ao amar, a saber, o odiar, atinge seu desenvolvimento.

Como já vimos, o objeto é levado do mundo externo para o ego, a princípio, pelos instintos de autopreservação; não se pode negar que também o odiar, originalmente, caracterizou a relação entre o ego e o mundo externo alheio com os estímulos que introduz. A indiferença se enquadra como um caso especial de ódio ou desagrado, após ter aparecido inicialmente como sendo seu precursor. Logo no começo, ao que parece, o mundo externo, objetos e o que é odiado são idênticos. Se depois um objeto b em a ser uma fonte de prazer, ele é amado, mas é também incorporado ao ego, de modo que para o ego do prazer purificado mais uma vez os objetos coincidem com o que é estranho e odiado.

Agora, contudo, podemos notar que da mesma forma que o par de opostos amor-indiferença reflete a polaridade ego-mundo externo, assim também a segunda antítese amor-ódio reproduz a polaridade prazer-desprazer, que está ligada à primeira polaridade. Quando a fase puramente narcisista cede lugar à fase objetal, o prazer e o desprazer significam relações entre o ego e o objeto. Se o objeto se torna uma fonte de sensações agradáveis, estabelece-se uma ânsia (urge) motora que procura trazer o objeto para mais perto do ego e incorporá-lo ao ego. Falamos da ‘atração’ exercida pelo objeto proporcionador de prazer, e dizemos que ‘amamos’ esse objeto. Inversamente, se o objeto for uma fonte de sensações desagradáveis, há uma ânsia (urge) que se esforça por aumentar a distância entre o objeto e o ego, e a repetir em relação ao objeto a tentativa original de fuga do mundo externo com sua emissão de estímulos. Sentimos a ‘repulsão’ do objeto, e o odiamos; esse ódio pode depois intensificar-se ao ponto de uma inclinação agressiva contra o objeto — uma intenção de destruí-lo.

Poderíamos, num caso de emergência, dizer que um instinto ‘ama’ o objeto no sentido do qual ele luta por propósitos de satisfação, mas dizer que um instinto ‘odeia’ um objeto, nos parece estranho. Assim, tornamo-nos cônscios de que as atitudes de amor e ódio não podem ser utilizadas para as relações entre os instintos e seus objetos, mas estão reservadas para as relações entre o ego total e os objetos. Mas, se considerarmos o uso lingüístico, que por certo não é destituído de significação, veremos que há outra limitação ao significado do amor e do ódio. Não costumamos dizer que amamos os objetos que servem aos interesses da autopreservação; ressaltamos o fato de que necessitamos deles, e talvez expressemos uma espécie de relação adicional diferente para com eles, utilizando-nos de palavras que detonam um grau muito reduzido de amor — tais como, por exemplo, ‘ser afeiçoado a’, ‘gostar’ ou ‘achar agradável’.

Assim, a palavra ‘amar’ desloca-se cada vez mais para a esfera da pura relação de prazer entre o ego e o objeto, e finalmente se fixa a objetos sexuais no sentido mais estrito e àqueles que satisfazem as necessidades dos instintos sexuais sublimados. A distinção entre os instintos do ego e os instintos sexuais que impusemos à nossa psicologia é dessa forma encarada como estando em conformidade com o espírito de nossa língua. O fato de não termos o hábito de dizer que um instinto sexual isolado ama o seu objeto, mas considerarmos a relação entre o ego e seu objeto sexual como o caso mais apropriado no qual empregar a palavra ‘amor’ — esse fato nos ensina que a palavra só pode começar a ser aplicada nesse sentido após ter havido uma síntese de todos os instintos componentes da sexualidade sob a primazia dos órgãos genitais e a serviço da função reprodutora.

É digno de nota que no uso da palavra ‘ódio’ não aparece essa conexão íntima com o prazer sexual e a função sexual. A relação de desprazer parece ser a única decisiva. O ego odeia, abomina e persegue, com intenção de destruir, todos os objetos que constituem uma fonte de sensação desagradável para ele, sem levar em conta que significam uma frustração quer da satisfação sexual, quer da satisfação das necessidades autopreservativas. Realmente, pode-se asseverar que os verdadeiros protótipos da relação de ódio se originam não da vida sexual, mas da luta do ego para preservar-se e manter-se.

Vemos, assim, que o amor e o ódio, que se nos apresentam como opostos completos em seu conteúdo, afinal de contas não mantêm entre si uma relação simples. Não surgiram da cisão de uma entidade originalmente comum, mas brotaram de fontes diferentes, tendo cada um deles se desenvolvido antes que a influência da relação prazer-desprazer os transformasse em opostos.

Resta-nos agora reunir o que sabemos da gênese do amor e do ódio. O amor deriva da capacidade do ego de satisfazer auto-eroticamente alguns dos seus impulsos instintuais pela obtenção do prazer do órgão. É originalmente narcisista, passando então para objetos, que foram incorporados ao ego ampliado, e expressando os esforços motores do ego em direção a esses objetos como fontes de prazer. Tornar-se intimamente vinculado à atividade dos instintos sexuais ulteriores e, quando estes são inteiramente sintetizados, coincide com o impulso sexual como um todo. As fases preliminares do amor surgem como finalidades sexuais provisórias enquanto os instintos sexuais passam por seu complicado desenvolvimento. Reconhecemos a fase de incorporação ou devoramento como sendo a primeira dessas finalidades — um tipo de amor que é compatível com a abolição da existência separada do objeto e que, portanto, pode ser descrito como ambivalente. Na fase mais elevada da organização sádico-anal pré-genital, a luta pelo objeto aparece sob a forma de uma ânsia (urge) de dominar, para a qual o dano ou o aniquilamento do objeto é indiferente. O amor nessa forma e nessa fase preliminar quase não se distingue do ódio em sua atitude para com o objeto. Só depois de estabelecida a organização genital é que o amor se torna o oposto do ódio.

O ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que o amor. Provém do repúdio primordial do ego narcisista ao mundo externo com seu extravasamento de estímulos. Enquanto expressão da reação do desprazer evocado por objetos, sempre permanece numa relação íntima com os instintos autopreservativos, de modo que os instintos sexuais e os do ego possam prontamente desenvolver uma antítese que repete a do amor e do ódio. Quando os instintos do ego dominam a função sexual, como é o caso na fase da organização anal-sádica, eles transmitem as qualidades de ódio também à finalidade instintual.

A história das origens e relações do amor nos permite compreender como é que o amor com tanta freqüência se manifesta como ‘ambivalente’ — isto é, acompanhado de impulsos de ódio contra o mesmo objeto. O ódio que se mescla ao amor provém em parte das fases preliminares do amar não inteiramente superadas; baseia-se também em parte nas reações de repúdio aos instintos do ego, os quais, em vista dos freqüentes conflitos entre os interesses do ego e os do amor, podem encontrar fundamentos em motivos reais e contemporâneos. Em ambos os casos, portanto, o ódio mesclado tem como sua fonte os instintos auto-preservativos. Se uma relação de amor com um dado objeto for rompida, freqüentemente o ódio surgirá em seu lugar, de modo que temos a impressão de uma transformação do amor em ódio. Esse relato do que acontece leva ao conceito de que o ódio, que tem seus motivos reais, é aqui reforçado por uma regressão do amor à fase preliminar sádica, de modo que o ódio adquire um caráter erótico, ficando assegurada a continuidade de uma relação de amor.

A terceira antítese do amar, a transformação do amar em ser amado, corresponde à atuação da polaridade da atividade e da passividade, devendo ser julgada da mesma maneira que os casos de escopofilia e sadismo.

Podemos resumir dizendo que o traço essencial das vicissitudes sofridas pelos instintos está na sujeição dos impulsos instintuais às influências das três grandes polaridades que dominam a vida mental. Dessas três polaridades podemos descrever a da atividade-passividade como a biológica, a do ego-mundo externo como a real, e finalmente a do prazer-desprazer como a polaridade econômica.

A vicissitude instintual da repressão constituirá assunto de uma indagação que se segue [no artigo seguinte].

 

REPRESSÃO (1915)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS DIE VERDRÏNGUNG

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1915 Int. Z. Psychoanal., 3 (3), 129-38.

1918 S.K.S.N., 4, 279-93. (1922, 2ª ed.)

1924 G.S., 5, 466-79.

1924 Techinik und Metapsychol., 188-201.

1931 Theoretische Schriften, 83-97.

1946 G.W., 10, 248-61.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

         ‘Repression’

1925 C.P., 4, 84-97. (Trad. C. M. Baines.)

 

A presente tradução inglesa, embora baseada na de 1925, foi amplamente reescrita.

Em sua ‘História do Movimento Psicanalítico’ (1914d), Freud declarou que ‘a teoria da repressão é pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise’ (ver em [1] acima); e no presente ensaio, juntamente com a Seção IV do artigo sobre ‘O Inconsciente’ que a ela se segue (ver em [1] e segs.), oferece-nos sua formulação mais elaborada dessa teoria.

O conceito de repressão remonta historicamente aos primórdios da psicanálise. A primeira referência a ele que foi publicada, consta da ‘Comunicação Preliminar’ de Breuer e Freud (Edição Standard Brasileira, Vol. II, pág. 51, IMAGO Editora, 1974). O termo ‘Verdrängung‘ fora empregado pelo psicólogo Herbart, no início do século XIX, e possivelmente chegou ao conhecimento de Freud através de seu mestre Meynert, que tinha sido admirador de Herbart. Mas, como o próprio Freud insistiu no trecho da ‘História’ já citado (pág. acima), ‘a teoria da repressão, sem dúvida alguma, ocorreu-me independentemente de qualquer outra fonte’. ‘Foi uma novidade’, escreveu em seu Autobiographical Study (1925d), ‘e nada semelhante havia sido reconhecido anteriormente na vida mental.’ Existem, nos escritos de Freud, vários relatos de como ocorreu a descoberta: por exemplo, nos Estudos sobre a Histeria (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, págs. 324-6, IMAGO Editora, 1974, e novamente na ‘História’, pág. 36 acima. Todos esses relatos são unânimes em ressaltar o fato de que o conceito de repressão foi inevitavelmente sugerido pelo fenômeno clínico da resistência, que por sua vez foi trazido à luz por uma inovação técnica — a saber, o abandono da hipnose no tratamento catártico da histeria.

Notar-se-á que no relato feito nos Estudos o termo realmente empregado para descrever o processo não é ‘repressão’ mas ‘defesa’. Nesse período inicial, os dois termos foram utilizados por Freud indiretamente, quase como equivalentes, embora ‘defesa’ fosse talvez o mais comum. Logo, contudo, como observou em seu artigo sobre a sexualidade nas neuroses (1960a), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 288, anamnese do ‘Homem dos Ratos’ (1909d) Freud examinou o mecanismo de ‘repressão’ na neurose obsessiva — isto é, o deslocamento da catexia emocional da idéia objetável, em contraste com a expulsão completa da idéia da consciência, na histeria — e referiu-se a ‘duas espécies de repressão’ (Standard Ed., 10, 196). De fato, é nesse sentido mais amplo que o termo é utilizado no presente artigo, como fica demonstrado pela discussão, que aparece quase no final, sobre os diferentes mecanismos de repressão nas várias formas da psiconeurose. Parece bastante claro, todavia, que a forma da repressão que Freud tinha em mente, aqui, era sobretudo a que ocorre na histeria; e muito mais adiante, no Capítulo XI, Seção A (c), de Inhibitions, Symptons and Anxiety (1926d), ele propôs restringir o termo ‘repressão’ a esse único mecanismo particular, e reviver ‘defesa’ como ‘uma designação geral para todas as técnicas empregadas pelo ego em conflitos que possam levar a uma neurose’. A importância de estabelecer essa distinção foi depois ilustrada por ele na Seção V de ‘Analysis Terminable and Interminable’ (1937c).

O problema especial da natureza da força motora, que permite à repressão operar, constitui uma fonte constante de preocupação para Freud, embora quase não seja abordado no presente artigo. Em particular, havia a questão da relação entre a repressão e o sexo, em relação à qual Freud, inicialmente, não tinha uma posição definida, como se pode ver em muitos pontos da correspondência de Fliess (1950a). Subseqüentemente, contudo, ele rejeitou com firmeza qualquer tentativa de ‘sexualizar’ a repressão. Um exame completo dessa questão (com particular referência aos conceitos de Adler) será encontrado na última seção de “A Child is Being Beaten”, (1919e), Standard Ed., 17, 200 e segs. Mais tarde ainda, em Inhibitions Symptons and Anxiety (1926d), especialmente no Capítulo IV, e na parte inicial da Conferência XXXII das New Introductory Lectures (1933a), ele lançou nova luz sobre o assunto argumentando que a ansiedade não era, como sustentara anteriormente e como afirma no artigo que se segue, por exemplo nas págs. 157 e 159, uma conseqüência da repressão, mas uma das principais forças motoras conducentes à mesma.

 

REPRESSÃO

 

Uma das vicissitudes que um impulso instintual pode sofrer é encontrar resistências que procuram torná-lo inoperante. Em certas condições, que logo investigaremos mais detidamente, o impulso passa então para o estado de ‘repressão’ [‘Verdrängung‘]. Se o que estava em questão era o funcionamento de um estímulo externo, obviamente se deveria adotar a fuga como método apropriado; para o instinto, a fuga não tem qualquer valia, pois o ego não pode escapar de si próprio. Em dado período ulterior, se verificará que a rejeição baseada no julgamento (condenação) constituirá um bom método a ser adotado contra um impulso instintual. A repressão é uma etapa preliminar da condenação, algo entre a fuga e a condenação; trata-se de um conceito que não poderia ter sido formulado antes da época dos estudos psicanalíticos.

Não é fácil deduzir em teoria a possibilidade de algo como a repressão. Por que deve um impulso instintual sofrer uma vicissitude como essa? Condição necessária para que ela ocorra deve ser, sem dúvida, que a consecução, pelo instinto, de sua finalidade produza desprazer em vez de prazer. Contudo, não podemos imaginar facilmente tal eventualidade. Não existem tais instintos: a satisfação de um instinto é sempre agradável. Teríamos de supor a existência de certas circunstâncias peculiares, alguma espécie de processo através do qual o prazer da satisfação se transforma em desprazer.

A fim de melhor determinar a repressão, examinemos algumas outras situações instintuais. Pode acontecer que um estímulo externo seja internalizado — corroendo e destruindo, por exemplo, algum órgão corpóreo —, de modo que surja uma nova fonte de excitação constante e de aumento de tensão. Assim, o estímulo adquire uma similaridade de longo alcance com um instinto. Sabemos que um caso desse tipo é experimentado por nós como dor. A finalidade desse pseudo-instinto, no entanto, consiste simplesmente na cessação da mudança no órgão e do desprazer que lhe é concomitante. Não há outro prazer direto a ser alcançado pela cessação da dor. Além disso, a dor é imperativa; as únicas coisas diante das quais ela pode ceder são a eliminação por algum agente tóxico ou a influência da distração mental.

O caso da dor é por demais obscuro para nos servir de ajuda em nossos propósitos. Tomemos o caso em que um estímulo instintual como a fome permanece insatisfeito. Ele se torna então imperativo e só pode ser aliviado pela ação que o satisfaz, mantendo uma constante tensão de necessidade. Nesse caso, nada da natureza de uma repressão, sequer remotamente, parece estar em questão.

Assim, por certo, a repressão não surge nos casos em que a tensão produzida pela falta de satisfação de um impulso instintual é elevada a um grau insuportável. Os métodos de defesa acessíveis ao organismo contra essa situação devem ser examinados em outra conexão.

Limitemo-nos, portanto, à experiência clínica, tal como encontrada na prática psicanalítica. Aprendemos então que a satisfação de um instinto que se acha sob repressão seria bastante possível, e, além disso, que tal satisfação seria invariavelmente agradável em si mesma, embora irreconciliável com outras reivindicações e intenções. Ela causaria, por conseguinte, prazer num lugar e desprazer em outro. Em conseqüência disso, torna-se condição para repressão que a força motora do desprazer adquira mais vigor do que o prazer obtido da satisfação. Ademais, a observação psicanalítica das neuroses de transferência leva-nos a concluir que a repressão não é um mecanismo defensivo que esteja presente desde o início; que ela só pode surgir quando tiver ocorrido uma cisão marcante entre a atividade mental consciente e a inconsciente; e que a essência da repressão consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a à distância. Esse conceito de repressão ficaria mais completo se supuséssemos que, antes de a organização mental alcançar essa fase, a tarefa de rechaçar os impulsos instintuais cabia às outras vicissitudes, às quais os instintos podem estar sujeitos — por exemplo, a reversão no oposto ou o retorno em direção ao próprio eu (self) do sujeito [ver em [1]].

Afigura-se-nos agora que, em vista da grande extensão da correlação entre repressão e o que é inconsciente, devemos adiar o exame mais aprofundado da natureza da repressão até que tenhamos aprendido mais sobre a estrutura da sucessão de agentes psíquicos e sobre a diferenciação entre o que é inconsciente e consciente. [Ver o artigo seguinte em [1] e segs.] Até então, tudo o que podemos fazer é reunir de maneira puramente descritiva algumas características da repressão que tenham sido observadas clinicamente, ainda que corramos o risco de ter de repetir, sem modificação, muito do que já foi dito em outros lugares.

Temos motivos suficientes para supor que existe uma repressão primeva, uma primeira fase de repressão, que consiste em negar entrada no consciente ao representante psíquico (ideacional) do instinto. Com isso, estabelece-se uma fixação; a partir de então, o representante em questão continua inalterado, e o instinto permanece ligado a ele. Isso se deve às propriedades dos processos inconscientes, de que falaremos depois [ver em [1]].

A segunda fase da repressão, a repressão propriamente dita, afeta os derivados mentais do representante reprimido, ou sucessões de pensamento que, originando-se em outra parte, tenham entrado em ligação associativa com ele. Por causa dessa associação, essas idéias sofrem o mesmo destino daquilo que foi primevamente reprimido. Na realidade, portanto, a repressão propriamente dita é uma pressão posterior Além disso, é errado dar ênfase apenas à repulsão que atua a partir da direção do consciente sobre o que deve ser reprimido; igualmente importante é a atração exercida por aquilo que foi primevamente repelido sobre tudo aquilo com que ele possa estabelecer uma ligação. Provavelmente, a tendência no sentido da repressão falharia em seu propósito, caso essas duas forças não cooperassem, caso não existisse algo previamente reprimido pronto para receber aquilo que é repelido pelo consciente.

Sob a influência do estudo das psiconeuroses, que coloca diante de nós os importantes efeitos da repressão, inclinamo-nos a supervalorizar sua dimensão psicológica e a esquecer, demasiado depressa, o fato de que a repressão não impede que o representante instintual continue a existir no inconsciente, se organize ainda mais, dê origem a derivados, e estabeleça ligações. Na verdade, a repressão só interfere na relação do representante instintual com um único sistema psíquico, a saber, o do consciente.

A psicanálise também é capaz de nos revelar outras coisas importantes para a compreensão dos efeitos da repressão nas psiconeuroses. Mostra-nos, por exemplo, que o representante instintual se desenvolverá com menos interferência e mais profusamente, se for retirado da influência consciente pela expressão. Ele prolifera no escuro, por assim dizer, e assume formas extremas de expressão, que uma vez traduzidas e apresentadas ao neurótico irão não só lhe parecer estranhas mas também assustá-lo, mostrando-lhe o quadro de uma extraordinária e perigosa força do instinto. Essa força falaz do instinto resulta de um desenvolvimento desinibido da fantasia e do represamento ocasionado pela satisfação frustrada. O fato de esse último resultado estar vinculado à repressão indica a direção em que a verdadeira importância da repressão deve ser procurada.

Voltando, porém, mais uma vez ao aspecto oposto da repressão, deixemos claro que tampouco é correto supor que a repressão retira do consciente todos os derivados daquilo que foi primevamente reprimido. Se esses derivados se tornarem suficientemente afastados do representante reprimido — quer devido à adoção de distorções, quer por causa do grande número de elos intermediários inseridos —, eles terão livre acesso ao consciente. Tudo se passa como se a resistência do consciente contra eles constituísse uma função da distância existente entre eles e aquilo que foi originalmente reprimido. Ao executarmos a técnica da psicanálise, continuamos exigindo que o paciente produza, de tal forma, derivados do reprimido, que, em conseqüência de sua distância no tempo, ou de sua distorção, eles possam passar pela censura do consciente. Na realidade, as associações que exigimos que o paciente faça sem sofrer a influência de qualquer idéia intencional consciente ou de qualquer crítica, e a partir das quais reconstituímos uma tradução consciente do representante reprimido — essas associações nada mais são do que derivados remotos e distorcidos desse tipo. No correr desse processo, observamos que o paciente pode continuar a desfiar sua meada de associações, até ser levado de encontro a um pensamento, cuja relação com o reprimido fique tão óbvia, que o force a repetir sua tentativa de repressão. Também os sintomas neuróticos devem satisfazer a essa mesma condição, já que são derivados do reprimido, o qual, por intermédio deles, finalmente teve acesso à consciência, acesso este que anteriormente lhe era negado.

Não podemos formular uma regra geral sobre o grau de distorção e de distância no tempo necessário para a eliminação da resistência por parte do consciente. Ocorre aqui um delicado equilíbrio, cujo jogo não nos é revelado; no entanto, sua modalidade de atuação nos permite inferir que se trata de pôr um paradeiro à catexia do inconsciente quando esta alcança certa intensidade — intensidade além da qual o inconsciente venceria as resistências, chegando à satisfação. A repressão atua, portanto, de uma forma altamente individual. Cada derivado isolado do reprimido pode ter sua própria vicissitude especial; um pouco mais ou um pouco menos de distorção altera totalmente o resultado. Nesse sentido, podemos compreender a razão por que os objetos mais preferidos pelos homens, isto é, seus ideais, procedem das mesmas percepções e experiências que os objetos mais abominados por eles, e porque, originalmente, eles só se distinguiam um dos outros através de ligeiras modificações. [ver em [1]] Realmente, tal como verificamos ao remontarmos à origem do fetiche, o representante instintual original pode ser dividido em duas partes: uma que sofre repressão, ao passo que a restante, precisamente por causa dessa ligação íntima, passa pela idealização.

O mesmo resultado oriundo de um aumento ou de uma diminuição do grau de distorção também pode ser alcançado na outra extremidade do aparelho, por assim dizer, por uma modificação da condição de produção de prazer e desprazer. Desenvolveram-se técnicas especiais, com o propósito de provocar tais mudanças no jogo das forças mentais, que aquilo que de outra forma daria lugar ao desprazer, pudesse, nessa ocasião, resultar em prazer; e, sempre que um dispositivo técnico desse tipo entra em funcionamento, elimina-se a repressão de um representante instintual que, de outro modo, seria repudiado. Até agora, apenas no que se refere aos chistes, essas técnicas foram estudadas com algum detalhe. Via de regra, a repressão só é removida temporariamente, reinstalando-se imediatamente.

Observações como esta, contudo, permitem-nos notar outras características da repressão. Ela é não só individual em seu funcionamento, conforme acabamos de assinalar, como também é extremamente móbil. O processo de repressão não deve ser encarado como um fato que acontece uma vez, produzindo resultados permanentes, tal como, por exemplo, se mata um ser vivo que, a partir de então, está morto; a repressão exige um dispêndio persistente de força, e se esta viesse a cessar, o êxito da repressão correria perigo, tornando necessário um novo ato de repressão. Podemos supor que o reprimido exerce uma pressão contínua em direção ao consciente, de forma que essa pressão pode ser equilibrada por uma contrapressão incessante. Assim, a manutenção de uma repressão acarreta ininterrupto dispêndio de força, ao passo que sua eliminação, encarada de um ponto de vista econômico, resulta numa poupança. Incidentalmente, a mobilidade da repressão também encontra expressão nas características psíquicas do estado do sono, o único a tornar possível a formação de sonhos. Com o retorno à vida de vigília, as catexias repressivas absorvidas são mais uma vez expulsas.

Finalmente, não nos devemos esquecer de que, na verdade, ao se estabelecer que um impulso instintual é reprimido, muito pouco se disse a respeito dele. Tal impulso pode ocorrer em estados amplamente diferentes, sem prejuízo para sua repressão. Pode ser inativo, isto é, só muito levemente catexizado com energia mental; ou pode ser catexizado em graus variáveis, permitindo-se-lhe, assim, que seja ativo. É verdade que sua ativação não resultará numa eliminação direta da repressão, mas porá em movimento todos os processos que terminam na penetração do impulso na consciência por caminhos indiretos. Com derivados não reprimidos do inconsciente, o destino de uma idéia específica é, com freqüência, decidido pelo grau de sua atividade ou catexia. Enquanto esse derivado representa apenas uma pequena quantidade de energia, quase sempre permanece não reprimido, embora pudesse calcular que seu conteúdo entrasse em conflito com o que é dominante na consciência. O fator quantitativo torna-se decisivo para esse conflito: tão logo a idéia basicamente detestável ultrapassa certo grau de força, o conflito se torna real, e é precisamente essa ativação que leva à repressão. Assim, no tocante à repressão, um aumento da catexia energética atua no mesmo sentido que uma abordagem ao inconsciente, ao passo que uma diminuição dessa catexia atua no mesmo sentido que o caráter remoto do inconsciente ou da distorção. Vemos que as tendências repressivas podem encontrar um substituto para a repressão num enfraquecimento do que é detestável.

Até esse momento, em nosso exame, tratamos da repressão de um representante instintual, entendendo por este último uma idéia, ou grupo de idéias, catexizadas com uma quota definida de energia psíquica (libido ou interesse) proveniente de um instinto. Agora, a observação clínica nos obriga a dividir aquilo que até o presente consideramos como sendo uma entidade única, de uma vez que essa observação nos indica que, além da idéia, outro elemento representativo do instinto tem de ser levado em consideração, e que esse outro elemento passa por vicissitudes de repressão que podem ser bem diferentes das experimentadas pela idéia. Geralmente, a expressão quota de afeto tem sido adotada para designar esse outro elemento do representante psíquico. Corresponde ao instinto na medida em que este se afasta da idéia e encontra expressão, proporcional à sua quantidade, em processos que são sentidos como afetos. A partir desse ponto, ao descrevermos um caso de repressão, teremos de acompanhar separadamente aquilo que acontece à idéia como resultado da repressão e aquilo que acontece à energia instintual vinculada a ela.

Gostaríamos de fazer algumas afirmações genéricas a respeito das vicissitudes de ambos, coisa que, depois de nos situarmos, será efetivamente possível. A idéia que representa o instinto passa por uma vicissitude geral que consiste em desaparecer do consciente, caso fosse previamente consciente, ou em ser afastada da consciência, caso estivesse prestes a se tornar consciente. Essa diferença não é importante, correspondendo à mesma coisa que a diferença entre ordenar a um hóspede indesejável que saia da minha sala de visitas (ou do meu hall de entrada), e impedir, após reconhecê-lo, que cruze a soleira de minha porta. O fator quantitativo do representante instintual possui três vicissitudes possíveis, tal como podemos verificar pelo breve exame das observações feitas pela psicanálise: ou o instinto é inteiramente suprimido, de modo que não se encontra qualquer vestígio dele, ou aparece como um afeto que de uma maneira ou de outra é qualitativamente colorido, ou transformado em ansiedade. As duas últimas possibilidades nos apontam a tarefa de levar em conta, como sendo uma vicissitude instintual ulterior, a transformação em afetos, e especialmente em ansiedade, das energias psíquicas dos instintos.

Recordamos o fato de que o motivo e o propósito da repressão nada mais eram do que a fuga ao desprazer. Depreende-se disso que a vicissitude da quota de afeto pertencente ao representante é muito mais importante do que a vicissitude da idéia, sendo esse fato decisivo para nossa avaliação do processo da repressão. Se uma repressão não conseguir impedir que surjam sentimentos de desprazer ou de ansiedade, podemos dizer que falhou, ainda que possa ter alcançado seu propósito no tocante à parcela ideacional. Evidentemente, as repressões que falharam exercerão maior influência sobre nosso interesse do que qualquer outra que possa ter sido bem-sucedida, já que esta, na maioria das vezes, escapará ao nosso exame.

Agora, devemos tentar obter uma compreensão interna (insight) do mecanismo do processo de repressão. Em particular, desejamos saber se existe apenas um mecanismo isolado, ou mais de um, e se cada uma das psiconeuroses se distingue por um mecanismo de repressão que lhe é peculiar. Contudo já no início dessa indagação nos defrontamos com complicações. O mecanismo de uma repressão só nos será acessível se deduzirmos esse mecanismo a partir do resultado da repressão. Limitando nossas observações ao efeito da repressão sobre a parcela ideacional do representante, descobrimos que, via de regra, ele cria uma formação substitutiva. Qual é o mecanismo através do qual esse substituto é formado? Ou será que devemos, também aqui, distinguir vários mecanismos? Além disso, sabemos que a repressão deixa sintomas em seu rastro. Podemos então supor que a formação de substitutos e a formação de sintomas coincidem, e, admitindo que isso aconteça de um modo geral, será o mecanismo formador de sintomas o mesmo que o da repressão? A probabilidade geral pareceria ser a de que os dois são amplamente diferentes, e a de que não é a própria repressão que produz formações substitutivas e sintomas, mas que estes últimos são indicações de um retorno do reprimido e devem sua existência a processos inteiramente outros. Seria também aconselhável examinar os mecanismos através dos quais se formam os substitutos e os sintomas, antes de considerarmos os mecanismos de repressão.

Obviamente não se trata de um assunto para especulação ulterior. O lugar dessa especulação deve ser assumido por uma análise cuidadosa dos resultados da repressão observáveis nas diferentes neuroses. Sugiro, porém, que também adiemos essa tarefa até que tenhamos formado concepções dignas de confiança a respeito da relação entre o consciente e o inconsciente. Mas, a fim de que o presente exame não seja de todo infrutífero, direi de antemão que (1) o mecanismo de repressão de fato não coincide com o mecanismo ou mecanismos da formação de substitutos, (2) existem numerosos e diferentes mecanismos de formação de substitutos e (3) os mecanismos de repressão têm pelo menos uma coisa em comum: uma retirada da catexia de energia (ou da libido, quando lidamos com os instintos sexuais).

Além disso, restringindo-me às três formas mais conhecidas da psiconeurose, mostrarei por meio de alguns exemplos como os conceitos aqui introduzidos se aplicam ao estudo da repressão.

No campo da histeria da ansiedade escolherei um exemplo bem analisado de uma fobia animal. Aqui, o impulso instintual sujeito à repressão é uma atitude libidinal para com o pai, aliado ao medo dele. Após a repressão, esse impulso desaparece da consciência: o pai não aparece nela como um objeto da libido. Substituindo o pai, encontramos num lugar correspondente um animal que se presta, de modo mais ou menos adequado, a ser um objeto de ansiedade. A formação do substituto para a parcela ideacional [do representante instintual] ocorreu por deslocamento ao longo de uma cadeia de conexões determinada de maneira particular. A parcela quantitativa não desapareceu, mas foi transformada em ansiedade. O resultado é o medo de um lobo, em vez de uma exigência, de amor feita aos pais. As categorias empregadas aqui não bastam, naturalmente, para explicar de forma adequada nem mesmo o caso mais simples de psiconeurose: há sempre outras considerações a levar em conta. Deve-se descrever uma repressão, tal como a que ocorre numa fobia animal, como sendo radicalmente destituída de êxito. Ela apenas remove e substitui a idéia, falhando inteiramente em poupar o desprazer. É também por esse motivo que o trabalho da neurose não cessa. Prossegue até uma segunda fase, a fim de atingir seu mais importante e imediato propósito. O que se segue é uma tentativa de fuga — a formação da fobia propriamente dita, de um grande número de evitações destinadas a impedir a liberação da ansiedade. Uma pesquisa mais especializada permite-nos compreender o mecanismo pelo qual a fobia alcança sua finalidade. [Ver em [1] e segs. adiante.]

Somos obrigados a adotar um conceito inteiramente distinto a respeito do processo de repressão, quando consideramos o quadro de uma verdadeira histeria de conversão. Aqui, o ponto relevante reside em que é possível provocar um desaparecimento total da quota de afeto. Quando isso ocorre, o paciente exibe, em relação a seus sintomas, aquilo que Charcot denominava de ‘la belle indifférence des hystériques‘. Em outros casos, essa supressão não se mostra tão bem-sucedida: sensações aflitivas podem ligar-se aos próprios sintomas, ou talvez venha a ser impossível impedir certa liberação de ansiedade, que por sua vez põe em ação o mecanismo de formação de uma fobia. O conteúdo ideacional do representante instintual é totalmente retirado da consciência; como um substituto — e ao mesmo tempo como um sintoma — temos uma inervação surperforte (em casos típicos, uma inervação somática), às vezes de natureza sensorial, às vezes, motora, quer como uma excitação, quer como uma inibição. Num exame mais detido, a área superinervada revela-se como sendo parte do próprio representante instintual reprimido, parte que — como se isso se verificasse através de um processo de condensação, atrai toda a catexia para si própria. Evidentemente, essas observações não trazem à luz o mecanismo completo de uma histeria de conversão; o fator regressão, em especial, a ser considerado em outra conexão, também tem de ser levado em conta. Na medida em que a repressão na histeria [de conversão] só se torna possível pela extensa formação de substitutos, ela pode ser julgada inteiramente destituída de êxito; contudo, ao lidar com a quota de afeto — a verdadeira tarefa da repressão —, ela geralmente significa um êxito total. Na histeria de conversão, o processo de repressão é completado pela formação do sintoma, e não precisa, como na histeria de ansiedade, continuar até uma segunda fase — ou antes, rigorosamente falando, continuar interminavelmente.

Um quadro totalmente diferente da repressão se revela, mais uma vez, na terceira perturbação, que consideraremos para os propósitos de nossa ilustração — na neurose obsessiva. Aqui ficamos inicialmente em dúvida quanto ao que devemos considerar como sendo o representante instintual sujeito à repressão — se se trata de uma tendência libidinal ou hostil. Essa incerteza surge porque a neurose obsessiva tem por base uma regressão devido à qual uma tendência sádica foi substituída por uma afetiva. É esse impulso hostil contra alguém que é amado, que se acha sujeito à repressão. O efeito, numa fase inicial, do trabalho da repressão é bem diferente do que se verifica numa posterior. De início, a repressão é inteiramente cercada de êxito; o conteúdo ideacional é rejeitado, fazendo com que o afeto desapareça. Como formação substitutiva, surge no ego uma alteração sob a forma de maior consciência, quase não se podendo dar a isso o nome de sintoma. Aqui, substituto e sintoma não coincidem. Com isso, aprendemos também alguma coisa sobre o mecanismo da repressão. Nesse exemplo, como em todos os outros, a repressão ocasionou um afastamento da libido; aqui, porém, ela fez uso da formação da reação para atingir esse propósito, intensificando um oposto. Assim, nesse caso, a formação de um substituto tem o mesmo mecanismo que a repressão e, no fundo, coincide com ela, ao passo que cronologicamente, tanto quanto conceptualmente, é diferente da formação de um sintoma. É bastante provável que todo esse processo se torne possível pela relação ambivalente na qual o impulso sádico a ser reprimido é introduzido. No entanto, a repressão, que foi de início bem-sucedida, não se firma; no decorrer dos acontecimentos, seu fracasso se torna cada vez mais acentuado. A ambivalência que permitiu que a repressão ocorresse através da formação de reação, constitui também o ponto em que o reprimido consegue retornar. A emoção desaparecida retorna, em sua forma transformada, como ansiedade social, ansiedade moral e autocensura ilimitadas; a idéia rejeitada é substituída por um substituto por deslocamento, freqüentemente um deslocamento para algo muito pequeno ou indiferente. Uma tendência no sentido de um restabelecimento completo da idéia reprimida acha-se, em geral, inegavelmente presente. O fracasso na repressão do fator quantitativo afetivo põe em jogo o mesmo mecanismo de fuga, por meio de evitação e proibições, tal como vimos em funcionamento na formação de fobias histéricas. A rejeição da idéia oriunda do consciente é, contudo, obstinadamente mantida, porque provoca a abstenção oriunda da ação, um aprisionamento motor do impulso. Assim, na neurose obsessiva, o trabalho da repressão se prolonga numa luta estéril e interminável.

A curta série de comparações apresentada aqui pode facilmente convencer-nos de que se fazem necessárias pesquisas mais abrangentes, antes que possamos esperar compreender inteiramente os processos ligados à repressão e à formação de sintomas neuróticos. A extraordinária complexidade de todos os fatores a serem levados em consideração nos permite apenas uma maneira de apresentá-los. Devemos selecionar primeiro um e, depois, outro ponto de vista, e acompanhá-lo através do material enquanto sua aplicação pareça proporcionar resultados. Cada abordagem isolada do assunto será incompleta em si mesma, não podendo deixar de haver obscuridades sempre que ela se defrontar com material ainda não examinado; no entanto, podemos esperar que uma síntese final conduza a uma compreensão adequada.

 

O INCONSCIENTE (1915)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS DAS UNBEWUSSTE

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1915 Int. Z. Psychoanal., 3 (4), 189-203 e (5), 257-69

1918 S.K.S.N., 4, 294-338. (1922, 2ª ed.)

1924 G.S., 5, 480-519.

1924 Techinik und Metapsychol., 202-41.

1931 Theoretische Schriften, 98-140.

1946 G.W., 10, 264-303.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

       ‘The Unconscious’

1925 C.P., 4, 98-136. (Trad. C.M. Baines.)

 

A presente tradução inglesa, embora baseada na de 1925, foi amplamente reescrita.

Parece que o presente artigo levou menos de três semanas para ser escrito — de 4 a 23 de abril de 1915. Posteriormente, no mesmo ano, foi publicado no Internationale Zeitschrift em duas partes, a primeira contendo as Seções I-IV e a segunda, as Seções V-VII. Nas edições anteriores a 1924, o artigo não foi dividido em seções, mas o que agora constitui os títulos foi impresso como subtítulos na margem. A única exceção a isso é que a expressão ‘O Ponto de Vista Topográfico’, que agora faz parte do título da Seção II, se encontra originalmente na margem, no início do segundo parágrafo da seção, à altura das palavras ‘Passando agora…’ (ver em [1]). Algumas pequenas alterações também foram feitas no texto da edição de 1924.

Se a série ‘Artigos Sobre Metapsicologia’ talvez seja considerada como o mais importante de todos os escritos teóricos de Freud, não há dúvida alguma de que este ensaio sobre ‘O Inconsciente’ constitui seu ponto culminante.

O conceito segundo o qual existem processos mentais inconscientes, é, naturalmente, fundamental para a teoria psicanalítica. Freud nunca se cansou de insistir nos argumentos que o apóiam e de combater as objeções levantadas contra ele. Na realidade, até mesmo a última parte não concluída de seus escritos teóricos, o fragmento escrito por ele em 1938, a que deu o título, em inglês, de ‘Some Elementary Lessons in Psycho-Analysis’ (1940b), constitui uma nova justificação daquele conceito.

Contudo, deve-se esclarecer de imediato que o interesse de Freud por essa suposição jamais foi de natureza filosófica — embora, sem dúvida, problemas filosóficos se encontrassem inevitavelmente próximos. Seu interesse era prático. Ele achava que, sem fazer essa suposição, era incapaz de explicar ou mesmo de descrever a grande variedade de fenômenos com que se defrontava. Por outro lado, procedendo assim, encontrou o caminho aberto para uma região imensamente fértil em novos conhecimentos.

Desde o início, e em seu ambiente mais próximo, não pode ter havido grande resistência a essa idéia. Seus professores diretos — Meynert, por exemplo —, na medida em que se interessavam pela psicologia, orientavam-se principalmente pelos conceitos de J. F. Herbart (1776-1841), e parece que um livro de texto contendo os princípios herbartianos era usado na escola secundária freqüentada por Freud (Jones, 1953, 409 e segs.). O reconhecimento da existência de processos mentais inconscientes desempenhou papel essencial no sistema de Herbart. Apesar disso, porém, Freud não adotou imediatamente essa hipótese nas primeiras fases de suas pesquisas psicopatológicas. É verdade que ele parece, desde o início, ter sentido a força do argumento a que dá tanta ênfase nas páginas iniciais do presente artigo — isto é, o argumento segundo o qual restringir os fatos mentais aos que são conscientes e entremeá-los de fatos puramente físicos e neurais, ‘rompe as continuidades psíquicas’ e introduz lacunas ininteligíveis na cadeia de fenômenos observados. Havia, no entanto, duas formas pelas quais essa dificuldade poderia ser superada. Poderíamos desprezar os fatos físicos e adotar a hipótese de que as lacunas são preenchidas com eventos mentais inconscientes; mas, por outro lado, poderíamos desprezar os fatos mentais conscientes e estruturar uma cadeia puramente física, ininterrupta, que abrangeria todos os eventos da observação. Para Freud, cuja carreira científica, no princípio, fora inteiramente voltada para a fisiologia, essa segunda possibilidade mostrou-se de início irresistivelmente atraente. Atração esta sem dúvida fortalecida pelos conceitos de Hughlings-Jackson, por cuja obra Freud revelou admiração em sua monografia sobre afasia (1891b), encontrando-se adiante, no Apêndice B (pág. 213), um trecho pertinente à mesma. Conseqüentemente, Freud começou por adotar o método neurológico de descrição dos fenômenos psicopatológicos, e todos os seus escritos do período de Breuer se baseiam confessadamente naquele método. Ele ficou intelectualmente fascinado pela possibilidade de construir uma ‘psicologia’ a partir de ingredientes puramente neurológicos, tendo dedicado vários meses do ano de 1895 à realização dessa tarefa. Assim, a 27 de abril daquele ano (Freud, 1950a, Carta 23), escrevia ele a Fliess: ‘Estou tão profundamente mergulhado na “Psicologia para Neurologistas”, que ela me consome inteiramente, a ponto de me ver obrigado a interromper minhas atividades por excesso de trabalho. Jamais estive tão intensamente preocupado com alguma coisa. E será que isso redundará em alguma coisa? Espero que sim, mas a caminhada é árdua e lenta.’ Isso redundou em alguma coisa muitos meses depois — a obra incompleta que conhecemos como o ‘Projeto para uma Psicologia Científica’, encaminhado a Fliess em setembro e outubro de 1895. Essa surpreendente produção visa a descrever e explicar toda a gama do comportamento humano, normal e patológico, por meio de uma manipulação complicada de duas entidades materiais — o neurônio e a ‘quantidade numa condição de fluxo’, uma energia física ou química não especificada. A necessidade de postular quaisquer processos mentais inconscientes foi, dessa forma, inteiramente evitada: a cadeia de eventos físicos era ininterrupta e completa.

Sem dúvida, muitas razões contribuíram para que o ‘Projeto’ jamais tenha sido concluído e para que toda a linha de raciocínio por detrás dele fosse logo abandonada. O motivo principal, porém, foi que Freud, o neurologista, estava sendo superado e deslocado por Freud, o psicólogo: tornava-se cada vez mais evidente que até mesmo o elaborado mecanismo dos sintomas neurônicos era canhestro e grosseiro demais para lidar com as sutilezas que estavam sendo trazidas à luz pela ‘análise psicológica’, sutilezas que só poderiam ser explicadas na linguagem dos processos mentais. De fato, vinha ocorrendo, muito gradativamente, um deslocamento do interesse de Freud. Na altura da publicação da Afasia, seu tratamento do caso de Frau Emmy von N. já datava de dois ou três anos, e sua anamnese foi escrita mais de um ano antes do ‘Projeto’. É numa nota de rodapé a essa anamnese (Edição Standard Brasileira, Vol. II, pág. 120, IMAGO Editora, 1974) que se encontra publicado pela primeira vez o termo ‘o inconsciente’; e, embora a teoria ostensiva subjacente à participação de Freud nos Estudos sobre a Histeria (1895d) pudesse ser neurológica, a psicologia — e com ela a necessidade de processos mentais inconscientes — já se insinuava firmemente. Na realidade, toda a base da teoria de repressão da histeria e a do método catártico de tratamento clamavam por uma explanação psicológica, e só através dos mais penosos esforços elas foram explicadas neurologicamente na Parte II do ‘Projeto’. Alguns anos depois, em A Interpretação de Sonhos (1900a), ocorrera uma estranha transformação: não só o relato neurológico da psicologia desaparecera completamente, como também grande parte do que Freud escrevera no ‘Projeto’ em termos de sistema nervoso se tornara agora válido, e muito mais inteligível, ao ser traduzido em termos mentais. Estabeleceu-se o inconsciente de uma vez por todas.

Deve-se, porém, repetir que Freud não estabeleceu uma mera entidade metafísica. O que ele fez no Capítulo VII de A Interpretação de Sonhos foi, por assim dizer, revestir a entidade metafísica de carne e sangue. Pela primeira vez, revelou o inconsciente, tal como era, como funcionava, como diferia de outras partes da mente, e quais eram suas relações recíprocas com elas. São essas as descobertas que ele retoma, ampliando-as e aprofundando-as, no artigo que se segue.

Numa fase anterior, todavia, tornara-se evidente que o termo ‘inconsciente’ era ambíguo. Três anos antes, no artigo que escreveu em inglês para a Sociedade de Pesquisas Psíquicas (1912g), e que, sob muitos aspectos, é preliminar ao presente artigo, Freud investigara cuidadosamente essas ambigüidades e estabelecera diferenças entre os empregos ‘descritivo’, ‘dinâmico’ e ‘sistemático’ da palavra. Ele repete as distin-ções na Seção II deste artigo (ver em, [1] e segs.), embora de forma ligeiramente diversa, tendo novamente voltado a elas no Capítulo I de The Ego and the Id (1923b) e, numa extensão ainda maior, na Conferência XXXI das New Introductory Lectures (1933a). A maneira desordenada pela qual o contraste entre ‘consciente’ e ‘inconsciente’ se ajusta às diferenças entre os vários sistemas da mente já é mencionada claramente adiante (ver em [1]); mas a posição em seu todo só foi posta em perspectiva quando, em The Ego and the Id, Freud introduziu um novo quadro estrutural da mente. Apesar, contudo, da atuação insatisfatória do critério ‘consciente ou inconsciente’, Freud sempre insistiu em dizer (como o faz em dois pontos aqui, (ver em [1] e [2] ), e novamente tanto em The Ego and the Id como nas New Introductory Lectures) que esse critério ‘é, em última instância, o nosso único farol nas trevas da psicologia profunda’.

 

O INCONSCIENTE

 

Aprendemos com a psicanálise que a essência do processo de repressão não está em pôr fim, em destruir a idéia que representa um instinto, mas em evitar que se torne consciente. Quando isso acontece, dizemos que a idéia se encontra num estado ‘inconsciente’, e podemos apresentar boas provas para mostrar que, inclusive quando inconsciente, ela pode produzir efeitos, incluindo até mesmo alguns que finalmente atingem a consciência. Tudo que é reprimido deve permanecer inconsciente; mas, logo de início, declaremos que o reprimido não abrange tudo que é inconsciente. O alcance do inconsciente é mais amplo: o reprimido não é apenas uma parte do inconsciente.

Como devemos chegar a um conhecimento do inconsciente? Certamente, só o conhecemos como algo consciente, depois que ele sofreu transformação ou tradução para algo consciente. A cada dia, o trabalho psicanalítico nos mostra que esse tipo de tradução é possível. A fim de que isso aconteça, a pessoa sob análise deve superar certas resistências — resistências como aquelas que, anteriormente, transformaram o material em questão em algo reprimido rejeitando-o do consciente.

 

I - JUSTIFICAÇÃO DO CONCEITO DE INCONSCIENTE

 

Nosso direito de supor a existência de algo mental inconsciente, e de empregar tal suposição visando às finalidades do trabalho científico, tem sido vastamente contestado. A isso podemos responder que nossa suposição a respeito do inconsciente é necessária e legítima, e que dispomos de numerosas provas de sua existência.

Ela é necessária porque os dados da consciência apresentam um número muito grande de lacunas; tanto nas pessoas sadias como nas doentes ocorrem com freqüência atos psíquicos que só podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais, não obstante, a consciência não oferece qualquer prova. Estes não só incluem parapraxias e sonhos em pessoas sadias, mas também tudo aquilo que é descrito como um sintoma psíquico ou uma obsessão nas doentes; nossa experiência diária mais pessoal nos tem familiarizado com idéias que assomam à nossa mente vindas não sabemos de onde, e com conclusões intelectuais que alcançamos não sabemos como. Todos esses atos conscientes permanecerão desligados e ininteligíveis, se insistirmos em sustentar que todo ato mental que ocorre conosco, necessariamente deve também ser experimentado por nós através da consciência; por outro lado, esses atos se enquadrarão numa ligação demonstrável, se interpolarmos entre eles os atos inconscientes sobre os quais estamos conjeturando. Uma apreensão maior do significado das coisas constitui motivo perfeitamente justificável para ir além dos limites da experiência direta. Quando, ademais, disso resultar que a suposição da existência de um inconsciente nos possibilita a construção de uma norma bem-sucedida, através da qual podemos exercer uma influência efetiva sobre o curso dos processos conscientes, esse sucesso nos terá fornecido uma prova indiscutível da existência daquilo que havíamos suposto. Assim sendo, devemos adotar a posição segundo a qual o fato de exigir que tudo quanto acontece na mente deve também ser conhecido pela consciência, significa fazer uma reivindicação insustentável.

Podemos ir além e afirmar, em apoio da existência de um estado psíquico inconsciente, que, em um dado momento qualquer, o conteúdo da consciência é muito pequeno, de modo que a maior parte do que chamamos conhecimento consciente deve permanecer, por consideráveis períodos de tempo, num estado de latência, isto é, deve estar psiquicamente inconsciente. Quando todas as nossas lembranças latentes são levadas em consideração, fica totalmente incompreensível que a existência do inconsciente possa ser negada. Aqui, porém, encontramos a objeção de que essas lembranças latentes já não podem ser descritas como psíquicas, pois correspondem a resíduos de processos somáticos a partir dos quais o psíquico pode mais uma vez aflorar. A resposta óbvia a isso é a de que uma lembrança latente é, pelo contrário, um resíduo inquestionável de um processo psíquico. Contudo, é mais importante conceber claramente que essa objeção se baseia na equivalência — que, na verdade, não é explicitamente declarada, embora considerada axiomática — entre o consciente e o mental. Essa equivalência ou é um petitio principii, que incorre em petição de princípio ao supor que tudo que é psíquico é também necessariamente consciente, ou é uma questão de convenção, de nomenclatura. Nesse último caso, como qualquer outra convenção, não está evidentemente sujeita à refutação. Permanece, contudo, a questão de saber se a convenção é suficientemente adequada para estarmos propensos a adotá-la. A isso podemos responder que a equivalência convencional entre o psíquico e o consciente é totalmente inadequada. Ela rompe as continuidades psíquicas, mergulha-nos nas dificuldades insolúveis do paralelismo psicofísico, está sujeita à censura de, sem um motivo óbvio, superestimar o papel desempenhado pela consciência, forçando-nos prematuramente a abandonar o campo da pesquisa psicológica sem ser capaz de nos oferecer qualquer compensação de outros campos.

Está claro, em todo caso, que essa questão — a de saber se os estados latentes da vida mental, cuja existência é inegável, devem ser concebidos como estados mentais conscientes ou como estados físicos — ameaça transformar-se numa controvérsia verbal. Portanto, é melhor focalizarmos nossa atenção naquilo que conhecemos com certeza a respeito da natureza desses estados controvertidos. No que se refere às suas características físicas, elas nos são totalmente inacessíveis: nenhum conceito psicológico ou processo químico pode dar-nos qualquer idéia a respeito de sua natureza. Por outro lado, sabemos com certeza que possuem abundantes pontos de contato com processos mentais conscientes; com o auxílio de um pouco de trabalho podem ser transformados em processos mentais conscientes ou substituídos por eles, e todas as categorias que empregamos para descrever os atos mentais conscientes, tais como idéias, propósitos, resoluções, e assim por diante, podem ser aplicadas a eles. Na verdade, somos forçados a dizer de alguns desses estados latentes que o único aspecto em que diferem dos estados conscientes é precisamente na ausência de consciência. Assim, não hesitaremos em tratá-los como objetos de pesquisa psicológica, e em manipulá-los na mais íntima conexão com atos mentais conscientes.

A obstinada recusa em atribuir um caráter psíquico aos atos mentais latentes se deve à circunstância de que a maioria dos fenômenos em foco não fora estudada fora da psicanálise. Basta que qualquer pessoa não familiarizada com os fatos patológicos, que considera as parapraxias de pessoas normais como acidentais, e que está satisfeita com o velho adágio de que os sonhos são futilidades [‘Träume sind Schäume‘], ignore mais alguns problemas da psicologia da consciência, para abster-se de qualquer necessidade de admitir uma atividade mental inconsciente. Incidentalmente, mesmo antes da época da psicanálise, as experiências com a hipnose, especialmente a sugestão pós-hipnótica, já tinham demonstrado tangivelmente a existência e o modo de operação do inconsciente mental.

A suposição de um inconsciente é, além disso, uma suposição perfeitamente legítima, visto que ao postulá-la não nos estamos afastando um só passo de nosso habitual e geralmente aceito modo de pensar. A consciência torna cada um de nós cônscio apenas de seus próprios estados mentais; que também outras pessoas possuam uma consciência é uma dedução que inferimos por analogia de suas declarações e ações observáveis, a fim de que sua conduta fique inteligível para nós. (Indubitavelmente, seria psicologicamente mais correto expressá-lo da seguinte maneira: que sem qualquer reflexão especial atribuímos a todos os demais a nossa própria constituição, e portanto também a nossa consciência, e que essa identificação é uma condição sine qua non para a nossa compreensão.) Essa inferência (ou essa identificação) foi anteriormente estendida pelo ego a outros seres humanos, a animais, a plantas, a objetos inanimados e ao mundo em geral, e revelou-se útil enquanto sua semelhança com o ego individual era esmagadora; contudo, tornou-se menos digna de confiança na medida em que a diferença entre o ego e esses ‘outros’ aumentou. Hoje em dia, nosso julgamento crítico já se põe em dúvida quanto à questão da existência de consciência nos animais; recusamo-nos a admiti-la nas plantas e encaramos como misticismo a suposição de sua existência nas coisas inanimadas. Mas, mesmo onde a inclinação original à identificação resistiu à crítica — isto é, quando os ‘outros’ são nossos semelhantes — a suposição da existência de uma consciência neles se apóia numa inferência, e não pode participar da certeza imediata que possuímos a respeito de nossa própria consciência.

A psicanálise exige apenas que também apliquemos esse processo de inferência a nós mesmos — procedimento a que, na verdade, não estamos por natureza inclinados. Se o fizermos, deveremos dizer: todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo, e que não sei como ligar ao resto de minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a outrem; devem ser explicados por uma vida mental atribuída a essa outra pessoa. Além disso, a experiência mostra que compreendemos muito bem como interpretar em outras pessoas (isto é, como encaixar em sua cadeia de eventos mentais) os mesmos atos que nos recusamos a aceitar como mentais em nós mesmos. Aqui, evidentemente, algum impedimento especial desvia nossas investigações de nosso próprio eu, impedindo que obtenhamos dele um conhecimento real.

Esse processo de inferência, quando aplicado ao próprio indivíduo, apesar da oposição interna, não leva, contudo, à revelação de um inconsciente; leva, logicamente, à suposição de uma outra segunda consciência que, no próprio eu do indivíduo, está unida à consciência que se conhece. Mas, a essa altura, certas críticas mostram-se cabíveis. Em primeiro lugar, uma consciência a respeito da qual seu próprio possuidor nada conhece é algo muito diferente de uma consciência pertencente a outra pessoa, e é discutível que tal consciência, carente, como está, de sua característica mais importante, mereça qualquer exame. Aqueles que resistiram à suposição de um elemento psíquico inconsciente provavelmente não estão dispostos a trocá-lo por uma consciência inconsciente. Em segundo lugar, a análise revela que os diferentes processos mentais latentes que inferimos desfrutam de alto grau de independência mútua, como se não tivessem ligação um com o outro, e nada soubessem um do outro. Nesse caso, devemos estar preparados para supor a existência em nós não apenas de uma segunda consciência, mas também de uma terceira, de uma quarta, talvez de um número ilimitado de estados de consciência, todos desconhecidos para nós e desconhecidos entre si. Em terceiro lugar — e este é o mais convincente de todos os argumentos —, devemos levar em conta o fato de que a investigação analítica revela alguns desses processos latentes como possuidores de características e peculiaridades que parecem estranhas a nós, ou mesmo incríveis, e que vão diretamente de encontro aos atributos da consciência que nos são familiares. Assim, temos motivos para modificar nossa inferência a respeito de nós mesmos e dizer que o que está provado não é a existência de uma segunda consciência em nós, mas a existência de atos psíquicos que carecem de consciência. Também estaremos certos em rejeitar o termo ‘subconsciência’ como incorreto e enganoso. Os casos notórios de ‘double cosncience‘ (divisão da consciência) nada provam contra nossa concepção. Podemos descrevê-los com o máximo de propriedade como casos de uma divisão das atividades mentais em dois grupos, e dizer que essa mesma consciência se volta, alternadamente, para um ou outro desses grupos.

Na psicanálise, não temos outra opção senão afirmar que os processos mentais são inconscientes em si mesmos, e assemelhar a percepção deles por meio da consciência à percepção do mundo externo por meio dos órgãos sensoriais. Podemos mesmo esperar que novos conhecimentos sejam adquiridos a partir dessa comparação. A suposição psicanalítica a respeito da atividade mental inconsciente nos aparece, por um lado, como uma nova expansão de animismo primitivo, que nos fez ver cópias de nossa própria consciência em tudo o que nos cerca, e, por outro, como uma extensão das correções efetuadas por Kant em nossos conceitos sobre percepção externa. Assim como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato de que as nossas percepções estão subjetivamente condicionadas, não devendo ser consideradas como idênticas ao que, embora incognoscível, é percebido, assim também a psicanálise nos adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções adquiridas por meio da consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu objeto. Assim como o físico, o psíquico, na realidade, não é necessariamente o que nos parece ser. Teremos satisfação em saber, contudo, que a correção da percepção interna não oferecerá dificuldades tão grandes como a correção da percepção externa — que os objetos internos são menos incognoscíveis do que o mundo externo.

 

II - VÁRIOS SIGNIFICADOS DE ‘O INCONSCIENTE’  O PONTO DE VISTA TOPOGRÁFICO

 

Antes de prosseguirmos, enunciemos o fato importante, embora inconveniente, de que o atributo de ser inconsciente é apenas um dos aspectos do elemento psíquico, de modo algum bastando para caracterizá-lo. Há atos psíquicos de valor muito variável que, no entanto, concordam em possuir a característica de ser inconsciente. O inconsciente abrange, por um lado, atos que são meramente latentes, temporariamente inconscientes, mas que em nenhum outro aspecto diferem dos atos conscientes, e, por outro lado, abrange processos tais como os reprimidos, que, caso se tornassem conscientes, estariam propensos a sobressair num contraste mais grosseiro com o restante dos processos conscientes. Acabaríamos com todos os mal-entendidos se, doravante, ao descrevermos os vários tipos de atos psíquicos, desprezássemos a questão de saber se são conscientes ou inconscientes, e os classificássemos e correlacionássemos apenas em função de sua relação com instintos e finalidades, de sua composição e da hierarquia dos sistemas psíquicos a que pertencem. Isso, contudo, e por várias razões, é impraticável, de modo que não podemos escapar à ambigüidade de empregar as palavras ‘consciente’ e ‘inconsciente’ algumas vezes num sentido descritivo, algumas vezes num sentido sistemático, sendo que, neste último, elas significam a inclusão em sistemas particulares e a posse de certas características. Podemos tentar evitar a confusão, atribuindo aos sistemas psíquicos que distinguimos certos nomes arbitrariamente escolhidos, sem qualquer referência ao atributo de ser consciente. Apenas, temos que primeiro especificar os motivos pelos quais distinguimos os sistemas, e, ao fazê-lo, talvez não sejamos capazes de fugir ao atributo de sermos conscientes, visto que ele constitui o ponto de partida de todas as nossas investigações. Talvez nos possamos valer da proposta para empregar, pelo menos por escrito, a abreviação Cs. para consciência e Ics., para o que é inconsciente, quando estivermos usando as duas palavras em seu sentido sistemático.

Passando agora para um relato das descobertas positivas da psicanálise, podemos dizer que, em geral, um ato psíquico passa por duas fases quanto a seu estado, entre as quais se interpõe uma espécie de teste (censura). Na primeira fase, o ato psíquico é inconsciente e pertence ao sistema Ics; se, no teste, for rejeitado pela censura, não terá permissão para passar à segunda fase; diz-se então que foi ‘reprimido’, devendo permanecer inconsciente. Se, porém, passar por esse teste, entrará na segunda fase e, subseqüentemente, pertencerá ao segundo sistema, que chamaremos de sistema Cs. Mas o fato de pertencer a esse sistema ainda não determina de modo inequívoco sua relação com a consciência. Ainda não é consciente, embora, certamente, seja capaz de se tornar consciente (para usar a expressão de Breuer) — isto é, pode agora, sob certas condições, tornar-se um objeto da consciência sem qualquer resistência especial. Em vista dessa capacidade de se tornar consciente, também denominamos o sistema Cs. de ‘pré-consciente’. Se ocorrer que uma certa censura também desempenhe um papel em determinar se o pré-consciente se torna consciente, procederemos a uma discriminação mais acentuada entre os sistemas Pcs. e Cs. [ver em [1] e segs.]. Por ora contentemo-nos em ter em mente que o sistema Pcs. participa das características do sistema Cs., e que a censura rigorosa exerce sua função no ponto de transição do Ics. para o Pcs. (ou Cs.).

Aceitando a existência desses dois (ou três) sistemas psíquicos, a psicanálise desviou-se mais um passo da ‘psicologia da consciência’ descritiva e levantou novos problemas, adquirindo um novo conteúdo. Até o momento, tem diferido daquela psicologia devido principalmente a seu conceito dinâmico dos processos mentais; agora, além disso, parece levar em conta também a topografia psíquica, e indicar, em relação a determinado ato mental, dentro de que sistema ou entre que sistemas ela se verifica. Ainda por causa dessa tentativa, recebeu a designação de ‘psicologia profunda’. Viremos a saber que ela poderá ser bem mais enriquecida se ainda se levar em conta um outro ponto de vista. [ver em [1].]

Se vamos considerar seriamente a topografia dos atos mentais, devemos dirigir nosso interesse para uma dúvida que surge nesse ponto. Quando um ato psíquico (limitemo-nos aqui a um ato que seja da natureza de uma idéia) é transposto do sistema Ics. para o sistema Cs. (ou Pcs.), devemos nós supor que essa transição acarreta um registro novo — por assim dizer, um segundo registro — da idéia em questão, que, assim, pode também ser situada numa nova localidade psíquica, paralelamente à qual o registro inconsciente original continua a existir? Ou, antes, devemos acreditar que a transposição consiste numa mudança no estado da idéia, mudança que envolve o mesmo material e ocorre na mesma localidade? Essa questão pode parecer obscura, mas deve ser levantada, caso desejemos formar um conceito mais definido a respeito da topografia psíquica, da dimensão da profundidade na mente. Isso é difícil, porque vai além da psicologia pura e aborda as relações entre o mecanismo mental e a anatomia. Sabemos que, mesmo no sentido mais grosseiro, tais relações existem. A pesquisa nos tem fornecido provas irrefutáveis de que a atividade mental está vinculada à função do cérebro como a nenhum outro órgão. Avançamos — não sabemos até que ponto — com a descoberta da importância desigual das diferentes partes do cérebro e de suas relações especiais com partes específicas do corpo e com atividades mentais específicas. Mas todas as tentativas para, a partir disso, descobrir uma localização dos processos mentais, todos os esforços para conceber idéias armazenadas em células nervosas e excitações que percorrem as fibras nervosas, têm fracassado redondamente. O mesmo fim aguardaria qualquer teoria que tentasse reconhecer, digamos, a posição anatômica do sistema Cs. — atividade mental consciente — como estando situada no córtex, e localizar os processos inconscientes nas partes subcorticais do cérebro. Verifica-se aqui um hiato que, por enquanto, não pode ser preenchido, e não constitui tarefa da psicologia preenchê-lo. Nossa topografia psíquica, no momento, nada tem que ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do mecanismo mental, onde quer que estejam situadas no corpo.

A esse respeito, então, nosso trabalho está desembaraçado, podendo prosseguir em função de suas próprias necessidades. Contudo, será útil lembrar que, no pé em que as coisas estão, nossas hipóteses nada mais exprimem do que ilustrações gráficas. A primeira das duas possibilidades que consideramos — isto é, que a fase Cs. de uma idéia acarreta um novo registro dessa idéia, situado em outro lugar —, é sem dúvida a mais grosseira, embora também mais conveniente. A segunda hipótese — a de uma mudança de estado meramente funcional — é à priori mais provável, embora menos plástica, menos fácil de manipular. À primeira hipótese, a topográfica, está estreitamente vinculada a de uma separação topográfica dos sistemas Ics. e Cs., e também a possibilidade de que uma idéia possa existir simultaneamente em dois lugares no mecanismo mental — na realidade, a possibilidade de que, se não estiver inibida pela censura, ela avançará regularmente de uma posição para outra, sem perder talvez sua primeira localização ou registro.

Essa concepção talvez pareça estranha, mas pode ser apoiada por observações da prática psicanalítica. Se comunicamos a um paciente uma idéia reprimida por ele em certa ocasião, mas que conseguimos descobrir, o fato de lhe dizermos isso não provoca de início qualquer mudança em sua condição mental. Acima de tudo, não remove a repressão nem anula seus efeitos, como talvez se pudesse esperar do fato de a idéia previamente inconsciente ter-se tornado agora consciente. Pelo contrário, tudo o que de início conseguiremos será uma nova rejeição da idéia reprimida. No entanto, agora, o paciente tem de modo concreto a mesma idéia, sob duas formas, em diferentes lugares em seu mecanismo mental: primeiro, ele possui a lembrança consciente do traço auditivo da idéia, transmitido no que lhe dissemos; segundo, também possui — como temos certeza — a lembrança inconsciente de sua experiência — em sua forma primitiva. Realmente, não há supressão de repressão até que a idéia consciente, após as resistências terem sido vencidas, entre em ligação com o traço de lembrança inconsciente. Só quando este último se torna consciente é que se alcança o êxito. Numa consideração superficial, isso pareceria revelar que as idéias conscientes e inconscientes constituem registros distintos, topograficamente separados, do mesmo teor. Mas basta uma reflexão momentânea para mostrar que a identidade entre a informação dada ao paciente e sua lembrança reprimida é apenas aparente. Ouvir algo e experimentar algo são, em sua natureza psicológica, duas coisas bem diferentes, ainda que o conteúdo de ambas seja o mesmo.

Assim, por ora não estamos em condições de decidir entre as duas possibilidades que acabamos de examinar. Talvez mais tarde venhamos a nos deparar com fatores que possam fazer a balança pender a favor de uma ou de outra. Talvez façamos a descoberta de que nossa pergunta foi inadequadamente articulada e de que a diferença entre uma idéia inconsciente e outra consciente deve ser definida de maneira totalmente diferente.

 

III - EMOÇÕES INCONSCIENTES

 

Limitamos a apreciação anterior a idéias; agora podemos levantar uma nova questão, cuja resposta se destina a contribuir para a elucidação de nossos conceitos teóricos. Dissemos que há idéias conscientes e inconscientes; contudo, haverá também impulsos instintuais, emoções e sentimentos inconscientes, ou, nesse caso, não terá sentido formar combinações desse tipo?

De fato, sou de opinião que a antítese entre consciente e inconsciente não se aplica aos instintos. Um instinto nunca pode tornar-se objeto da consciência — só a idéia que o representa pode. Além disso, mesmo no inconsciente, um instinto não pode ser representado de outra forma a não ser por uma idéia. Se o instinto não se prendeu a uma idéia ou não se manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ele. Não obstante, quando falamos de um impulso instintual inconsciente ou de um impulso instintual reprimido, a imprecisão da fraseologia é inofensiva. Podemos apenas referir-nos a um impulso instintual cuja representação ideacional é inconsciente, pois nada mais entra em consideração.

Devemos esperar que a resposta à questão dos sentimentos, emoções e afetos inconscientes seja dada com igual facilidade. Por certo, faz parte da natureza de uma emoção que estejamos cônscios dela, isto é, que ela se torne conhecida pela consciência. Assim, a possibilidade do atributo da inconsciência seria completamente excluída no tocante às emoções, sentimentos e afetos. Na prática psicanalítica, porém, estamos habituados a falar de amor, ódio, ira etc. inconscientes, e achamos impossível evitar até mesmo a estranha conjunção ‘consciência inconsciente de culpa’, ou uma ‘ansiedade inconsciente’ paradoxal. Haverá mais sentido em empregar esses termos do que em falar de ‘instintos inconscientes’?

De fato, os dois casos não são idênticos. Em primeiro lugar, pode ocorrer que um impulso afetivo ou emocional seja sentido mas mal interpretado. Devido à repressão de seu representante adequado, é forçado a ligar-se a outra idéia, sendo então considerado pela consciência como manifestação dessa idéia. Se restaurarmos a verdadeira conexão, chamaremos o impulso afetivo original de ‘inconsciente’. Contudo, seu afeto nunca foi inconsciente; o que aconteceu foi que sua idéia sofreu repressão. Em geral, o emprego das expressões ‘afeto inconsciente’ e ‘emoção inconsciente’ refere-se a vicissitudes sofridas, em conseqüência da repressão, pelo fator quantitativo no impulso instintual. Sabemos que três dessas vicissitudes são possíveis: ou o afeto permanece, no todo ou em parte, como é; ou é transformado numa quota de afeto qualitativamente diferente, sobretudo em ansiedade; ou é suprimido, isto é, impedido de se desenvolver. (Essas possibilidades talvez possam ser estudadas mais facilmente na elaboração dos sonhos do que nas neuroses.) Sabemos, também, que suprimir o desenvolvimento do afeto constitui a verdadeira finalidade da repressão, e que seu trabalho ficará incompleto se essa finalidade não for alcançada. Em todos os casos em que a repressão consegue inibir o desenvolvimento de afetos, denominamos esses afetos (que restauramos quando desfazemos o trabalho da repressão) de ‘inconscientes’. Assim, não se pode negar que o emprego das expressões em causa é coerente, embora, em comparação com idéias inconscientes, se verifique a importante diferença de que, após a repressão, idéias inconscientes continuam a existir como estruturas reais no sistema Ics., ao passo que tudo o que naquele sistema corresponde aos afetos inconscientes é um início potencial impedido de se desenvolver. A rigor, então, e ainda que não se possa criticar o uso lingüístico, não existem afetos inconscientes da mesma forma que existem idéias inconscientes. Pode, porém, muito bem haver estruturas afetivas no sistema Ics., que, como outras, se tornam conscientes. A diferença toda decorre do fato de que idéias são catexias — basicamente de traços de memória —, enquanto que os afetos e as emoções correspondem a processos de descarga, cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos. No presente estado de nosso conhecimento a respeito dos afetos e das emoções, não podemos exprimir essa diferença mais claramente.

É de especial interesse para nós o estabelecimento do fato de que a repressão pode conseguir inibir um impulso instintual, impedindo-o de se transformar numa manifestação de afeto. Isso mostra que o sistema Cs. normalmente controla não só a afetividade como também o acesso à motilidade, e realça a importância da repressão, mostrando que ela resulta não apenas em reter coisas provenientes da consciência, mas igualmente em cercear o desenvolvimento do afeto e o desencadeamento da atividade muscular. Inversamente, também, podemos dizer que, enquanto o sistema Cs. controla a afetividade e a motilidade, a condição mental da pessoa em questão é considerada como normal. Não obstante, há uma diferença inconfundível na relação entre o sistema de controle e os dois processos contíguos de descarga. Enquanto que o controle do Cs. sobre a motilidade voluntária se acha firmemente enraizado, suporta regularmente a investida da neurose e só cessa na psicose, o controle do Cs. sobre o desenvolvimento dos afetos é menos seguro. Mesmo dentro dos limites da vida normal podemos reconhecer que uma luta constante pela primazia sobre a afetividade prossegue entre os sistemas Cs. e Ics., que certas camadas de influência são eliminadas de cada um deles e que ocorrem misturas entre as forças operativas.

A importância do sistema Cs. (Pcs.) no que se refere ao acesso à liberação do afeto e à ação, permite-nos também compreender o papel desempenhado pelas idéias substitutivas na determinação da forma assumida pela doença. É possível ao desenvolvimento do afeto proceder diretamente do sistema Ics.; nesse caso, o afeto sempre tem a natureza de ansiedade, pela qual são trocados todos os afetos ‘reprimidos’. Com freqüência, contudo, o impulso instintual tem de esperar até que encontre uma idéia substitutiva no sistema Cs. O desenvolvimento do afeto pode então provir desse substituto consciente e a natureza desse substituto determina o caráter qualitativo do afeto. Afirmamos [ver em [1]] que na repressão ocorre uma ruptura entre o afeto e a idéia à qual ele pertence, e que cada um deles então passa por vicissitudes isoladas. Descritivamente, isso é incontestável; na realidade, porém, o afeto, de modo geral, não se apresenta até que o irromper de uma nova apresentação no sistema Cs. tenha sido alcançado com êxito.

 

IV - TOPOGRAFIA E DINÂMICA DA REPRESSÃO

 

Chegamos à conclusão de que a repressão constitui essencialmente um processo que afeta as idéias na fronteira entre os sistemas Ics. e Pcs. (Cs.). Podemos fazer agora uma nova tentativa de descrever o processo com maiores detalhes.

Deve tratar-se de uma retirada da catexia; mas a questão é: em que sistema ocorre a retirada e a que sistema pertence a catexia retirada? A idéia reprimida permanece capaz de agir no Ics., e deve, portanto, ter conservado sua catexia. O que foi retirado deve ter sido outra coisa. [ver em [1] e [2], adiante.] Tomemos o caso da repressão propriamente dita (‘pressão posterior’) [ver em [1]], quando afeta uma idéia pré-consciente ou mesmo consciente. Aqui, a repressão só pode consistir em retirar da idéia da catexia (pré)-consciente que pertence ao sistema Pcs. A idéia, portanto, ou permanece não catexizada, ou recebe a catexia do Ics., ou retém a catexia do Ics. que já possuía. Assim, há uma retirada da catexia pré-consciente, uma retenção de catexia inconsciente, ou uma substituição da catexia pré-inconsciente por uma inconsciente. Notemos, além disso, que baseamos essas reflexões (por assim dizer, intencionalmente) na suposição de que a transição do sistema Ics. para o sistema seguinte não se processa pela efetuação de um novo registro, mas por uma modificação em seu estado, uma alteração em sua catexia. Aqui, a hipótese funcional anulou facilmente a topográfica. [Ver, acima, em [1] e [2].]

Mas esse processo de retirada da libido não é suficiente para tornar compreensível uma outra característica da repressão. Não está clara a razão por que a idéia que permaneceu catexizada ou que recebeu a catexia do Ics., não deve, em virtude de sua catexia, renovar a tentativa de penetrar no sistema Pcs. Se pudesse fazê-lo, a retirada da libido dessa idéia teria de ser repetida e o mesmo desempenho se processaria interminavelmente; o resultado, porém, não seria a repressão. Da mesma forma, quando se trata de descrever a repressão primeva, o mecanismo da retirada da catexia pré-consciente, que acabamos de examinar, deixaria de atender ao caso, pois aqui estamos lidando com uma idéia inconsciente que ainda não recebeu qualquer catexia do Pcs. e, portanto, não pode ter essa catexia retirada dela.

Necessitamos, por conseguinte, de outro processo que, no primeiro caso, mantenha a repressão [isto é, o caso da pressão posterior] e, no segundo [isto é, o da repressão primeva], assegure o seu estabelecimento e continuidade. Esse outro processo só pode ser encontrado mediante a suposição de uma anticatexia, por meio da qual o sistema Pcs. se protege da pressão que sofre por parte da idéia inconsciente. Veremos, por meio de exemplos clínicos, como tal anticatexia, atuando no sistema Pcs., se manifesta. É isso que representa o permanente dispêndio [de energia] de uma repressão primeva, garantindo, igualmente, a permanência dessa repressão. A anticatexia é o único mecanismo da repressão primeva; no caso da repressão propriamente dita (‘pressão posterior’) verifica-se, além disso, a retirada da catexia do Pcs. É bem possível que seja precisamente a catexia retirada da idéia a utilizada para a anticatexia.

Vemos como gradativamente fomos levados a adotar um terceiro ponto de vista em nosso relato dos fenômenos psíquicos. Além dos pontos de vista dinâmico e topográfico [ver em [1]], adotamos o econômico. Este se esforça por levar até as últimas conseqüências as vicissitudes de quantidades de excitação e chegar pelo menos a uma estimativa relativa de sua magnitude.

Não será descabido dar uma denominação especial a essa maneira global de considerar nosso tema, pois ela é a consumação da pesquisa psicanalítica. Proponho que, quando tivermos conseguido descrever um processo psíquico em seus aspectos dinâmico, topográfico e econômico, passemos a nos referir a isso como uma apresentação metapsicológica. Devemos afirmar, de imediato, que no presente estado de nosso conhecimento há apenas alguns pontos nos quais essa tarefa terá êxito.

Esforcemo-nos tentativamente por apresentar uma descrição metapsicológica do processo de repressão nas três neuroses de transferência que nos são familiares. Aqui podemos substituir ‘catexia’ por ‘libido’, porque, como sabemos, estaremos lidando com as vicissitudes dos impulsos sexuais.

Na histeria da ansiedade, uma primeira fase do processo é comumente desprezada e talvez, de fato, passe despercebida; mediante detida observação, contudo, ela pode ser claramente discernida. Consiste no surgimento da ansiedade sem que o indivíduo saiba o que teme. Devemos supor que determinado impulso amoroso se encontrava presente no Ics., exigindo ser transposto para o sistema Pcs.; mas a catexia a ele dirigida a partir desse último sistema retrai-se do impulso (como se se tratasse de uma tentativa de fuga) e a catexia libidinal inconsciente da idéia rejeitada é descarregada sob a forma de ansiedade.

Por ocasião de uma repetição (caso haja repetição) desse processo, dá-se o primeiro passo no sentido de dominar o desenvolvimento importuno da ansiedade. A catexia [do Pcs.] que entrou em fuga se apega a uma idéia substitutiva — que, por um lado, se relaciona por associação à idéia rejeitada e, por outro, escapa à repressão em vista de sua distância daquela idéia. Essa idéia substitutiva um ‘substituto por deslocamento’ [ver em [1]] — permite que o desenvolvimento, até então desinibido, da ansiedade seja racionalizado. Ela passa a desempenhar o papel de uma anticatexia para o sistema Cs. (Pcs.), protegendo-o contra uma emergência da idéia reprimida no Cs. Por outro lado, é, ou age como se fosse, o ponto de partida para a liberação do afeto revestido de ansiedade, que agora se tornou inteiramente desinibida. A observação clínica revela, por exemplo, que uma criança que sofre de uma fobia animal experimenta ansiedade sob duas condições: em primeiro lugar, quando seu impulso amoroso reprimido se intensifica e, em segundo, quando percebe o animal que teme. A idéia substitutiva atua, no primeiro caso, como um ponto em que há uma passagem através do sistema Ics. para o sistema Cs., e, no outro, como uma fonte auto-suficiente para liberação da ansiedade. A extensa preponderância do sistema Cs. em geral se manifesta no fato de que a primeira dessas duas modalidades de excitação da idéia substitutiva dá cada vez mais lugar à segunda. A criança talvez possa vir a se comportar como se não tivesse absolutamente qualquer predileção pelo pai, tornando-se inteiramente livre dele, e como se seu medo do animal fosse um temor real — exceto, porém, se esse medo do animal, alimentado, como é, a partir de uma fonte instintual inconsciente, mostre ser inexorável e exagerado em face de todas as influências oriundas do sistema Cs. postas em ação, denunciando com isso sua derivação do sistema Ics. — Na segunda fase da histeria de ansiedade, portanto, a anticatexia proveniente do sistema Cs. leva à formação do substituto.

Em breve o mesmo mecanismo encontra nova aplicação. O processo de repressão, como sabemos, ainda não está completo, encontrando uma finalidade posterior na tarefa de inibir o desenvolvimento da ansiedade proveniente do substituto. Isto é alcançado pelo fato de que todo o ambiente associado da idéia substitutiva é catexizado com intensidade especial, exibindo, assim, um elevado grau de sensibilidade à excitação. A excitação de qualquer ponto dessa estrutura externa, dada sua ligação com a idéia substitutiva, deve, inevitavelmente, dar lugar a um ligeiro desenvolvimento da ansiedade; isso passa a ser utilizado como um sinal para inibir, por meio de uma nova fuga da catexia [do Pcs.], o progresso posterior do desenvolvimento da ansiedade. Quanto mais distantes do substituto temido as sensíveis e vigilantes anticatexias estiverem situadas, com maior precisão poderá funcionar o mecanismo destinado a isolar a idéia substitutiva e a protegê-la de novas excitações. Essas precauções, naturalmente, limitam-se a resguardar a idéia substitutiva de excitações que vêm de fora, através da percepção; nunca a protegem da excitação instintual, que alcança a idéia substitutiva a partir da direção de seu elo com a idéia reprimida. Assim, as preocupações não começam a atuar até que o substituto tenha assumido satisfatoriamente a representação do reprimido, e jamais podem atuar de maneira inteiramente fidedigna. A cada aumento da excitação instintual, a muralha protetora em torno da idéia substitutiva deve ser deslocada um pouco mais para fora. À totalidade dessa construção, que é erigida de forma análoga nas demais neuroses, denominamos fobia. A fuga de uma catexia consciente da idéia substitutiva se manifesta nas evitações, nas renúncias e nas proibições, por meio das quais reconhecemos a histeria de ansiedade.

Fazendo um levantamento de todo o processo, podemos dizer que a terceira fase repete o trabalho da segunda numa escala mais ampla. O sistema Cs. se defende agora da ativação da idéia substitutiva por meio de uma anticatexia do seu ambiente, da mesma maneira pela qual, anteriormente, se defendia da emergência da idéia reprimida por meio de uma catexia da idéia substitutiva. Desse modo, prossegue a formação de substitutos por deslocamento. Devemos também acrescentar que, embora o sistema Cs. só disponha, de início, de uma pequena área na qual o impulso instintual reprimido pode irromper, a saber, a idéia substitutiva, em última instância esse enclave da influência inconsciente se estende a toda a estrutura externa fóbica. Além disso, podemos dar ênfase à interessante consideração de que, pondo-se assim em ação todo o mecanismo defensivo, consegue-se projetar para fora o perigo instintual. O ego comporta-se como se o perigo de um desenvolvimento da ansiedade o ameaçasse, não a partir da direção de um impulso instintual, mas da direção de uma percepção, tornando-se assim capaz de reagir contra esse perigo externo através das tentativas de fuga representadas por evitações fóbicas. Nesse processo, a repressão é bem-sucedida num ponto particular: a liberação da ansiedade pode, até certo ponto, ser represada, mas somente à custa de um pesado sacrifício da liberdade pessoal. Via de regra, porém, as tentativas de fuga às exigências do instinto são inúteis, e, apesar de tudo, o resultado da fuga fóbica permanece insatisfatório.

Grande parte daquilo que verificamos na histeria de ansiedade também é válido para as duas outras neuroses, de modo que podemos limitar nosso exame a seus pontos de diferença e ao papel desempenhado pela anticatexia. Na histeria de conversão, a catexia instintual da idéia reprimida converte-se na inervação do sintoma. Até que ponto e em que circunstâncias a idéia inconsciente é esvaziada por essa descarga na inervação, de modo a suspender a pressão que exerce sobre o sistema Cs. — essas e outras perguntas semelhantes devem ser reservadas para uma investigação especial da histeria. Na histeria de conversão o papel desempenhado pela anticatexia proveniente do sistemas Cs. (Pcs.) é nítido e se torna manifesto na formação do sintoma. É a anticatexia que decide em que porção do representante instintual pode concentrar-se toda a catexia do último. A porção assim escolhida para ser um sintoma atende à condição de expressar a finalidade impregnada de desejo do impulso instintual, bem como os esforços defensivos ou punitivos do sistema Cs. na repressão não precisa ser tão grande quanto a mantida, de ambas as direções, como a idéia substitutiva na histeria de ansiedade. Dessa circunstância podemos concluir sem hesitação que a quantidade de energia despendida pelo sistema Cs. na repressão não precisa ser tão grande quanto a energia catexial do sintoma, pois a força da repressão é medida pela quantidade de anticatexia despendida, ao passo que o sintoma é sustentado não somente por essa anticatexia, como também pela catexia instintual oriunda do sistema Ics. que se acha condensada no sintoma.

Quanto à neurose obsessiva, só precisamos acrescentar às observações formuladas no artigo anterior [ver em [1] e segs.] que é aqui que a anticatexia proveniente do sistema Cs. se coloca da forma mais conspícua no primeiro plano. É isso que, organizado como uma formação de reação, provoca a primeira repressão, constituindo depois o ponto no qual a idéia reprimida irrompe. Podemos aventurar a suposição de que é devido à predominância da anticatexia e à ausência de descarga que o trabalho de repressão parece muito menos bem-sucedido na histeria de ansiedade e na neurose obsessiva do que na histeria de conversão.

 

V - AS CARACTERÍSTICAS ESPECIAIS DO SISTEMA Ics.

 

A distinção que estabelecemos entre os dois sistemas psíquicos ganha novo significado quando observamos que os processos em um dos sistemas, o Ics., apresentam características que não tornamos a encontrar no sistema imediatamente acima dele.

O núcleo do Ics. consiste em representantes instintuais que procuram descarregar sua catexia; isto é, consiste em impulsos carregados de desejo. Esses impulsos instintuais são coordenados entre si, existem lado a lado sem se influenciarem mutuamente, e estão isentos de contradição mútua. Quando dois impulsos carregados de desejo, cujas finalidades são aparentemente incompatíveis, se tornam simultaneamente ativos, um dos impulsos não reduz ou cancela o outro, mas os dois se combinam para formar uma finalidade intermediária, um meio-termo.

Não há nesse sistema lugar para negação, dúvida ou quaisquer graus de certeza: tudo isso só é introduzido pelo trabalho da censura entre o Ics. e o Pcs. A negação é um substituto, em grau mais elevado, da repressão. No Ics. só existem conteúdos catexizados com maior ou menor força.

As intensidades catexiais [no Ics.] são muito mais móveis. Pelo processo de deslocamento uma idéia pode ceder a outra toda a sua quota de catexia; pelo processo de condensação pode apropriar-se de toda a catexia de várias outras idéias. Propus que esses dois processos fossem considerados como marcos distintivos do assim denominado processo psíquico primário. No sistema Pcs. o processo secundário é dominante. Quando se permite que um processo primário siga seu curso em conexão com elementos que pertencem ao sistema Pcs., ele parece ‘cômico’ e provoca o riso.

 

Os processos do sistema Ics. são intemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema Cs.

Do mesmo modo os processos Ics. dispensam pouca atenção à realidade. Estão sujeitos ao princípio do prazer; seu destino depende apenas do grau de sua força e do atendimento às exigências da regulação prazer-desprazer.

Resumindo: a isenção de contradição mútua, o processo primário (mobilidade das catexias), a intemporalidade e a substituição da realidade externa pela psíquica — tais são as características que podemos esperar encontrar nos processos pertencentes ao sistema Ics.

Os processos inconscientes se tornam cognoscíveis por nós sob as condições de sonho e neurose — vale dizer, quando os processos do sistema Pcs., mais elevado, são levados de volta a uma fase anterior, a um nível mais baixo (pela regressão). Por si sós não são percebidos; na realidade, são até mesmo incapazes de conduzir sua existência, pois o sistema Ics. se acha muito prematuramente sobrecarregado pelo Pcs. que ganhou acesso à consciência e à motilidade. A descarga do sistema Ics. passa a inervação somática, que leva ao desenvolvimento do afeto; mas mesmo esse caminho da descarga é, conforme já vimos [ver em [1] e segs.], contestado pelo Pcs. Por si só, o sistema Ics. não seria capaz, em condições normais, de provocar quaisquer atos musculares adequados, à exceção dos já organizados como reflexos.

Só poderíamos apreciar a importância total das características do sistema Ics. acima descritas contrastando-as e comparando-as com as do sistema Pcs. Mas isso nos levaria para tão longe, que proponho que paremos mais uma vez e só empreendamos a comparação dos dois quando pudermos fazê-lo em relação com nossa apreciação do sistema mais elevado. Apenas os pontos mais prementes serão mencionados nessa fase.

Os processos do sistema Pcs. exibem — não importando se já são conscientes ou somente capazes de se tornarem conscientes — uma inibição da tendência de idéias catexizadas à descarga. Quando um processo passa de uma idéia para outra, a primeira idéia conserva uma parte de sua catexia e apenas uma pequena parcela é submetida a deslocamento. Os deslocamentos e as condensações, tais como ocorrem no processo primário, são excluídos ou bastante restringidos. Essa circunstância levou Breuer a presumir a existência de dois estados diferentes de energia catexial na vida mental: um em que a energia se acha tonicamente ‘vinculada’ e outro no qual é livremente móvel e pressiona no sentido da descarga. Em minha opinião, essa distinção representa a compreensão interna (insight) mais profunda que alcançamos até agora a respeito da natureza da energia nervosa, e não vejo como podemos evitar fazê-la. Uma apresentação metapsicológica exigiria com a máxima urgência um exame ulterior desse ponto, embora, talvez, isso fosse ainda um empreendimento muito ousado.

Além disso, cabe ao sistema Pcs. efetuar a comunicação possível entre os diferentes conteúdos ideacionais de modo que possam influenciar uns aos outros, a fim de dar-lhes uma ordem no tempo e estabelecer uma censura ou várias censuras; também o ‘teste da realidade’, bem como o princípio de realidade, se encontram em seu domínio. A lembrança consciente, outrossim, parece depender inteiramente do Pcs. Isso deve ser claramente distinguido dos traços de memória nos quais se fixam as experiências do Ics., correspondendo provavelmente a um registro especial como o que propusemos (e depois rejeitamos) para explicar a relação entre as idéias conscientes e as inconscientes [ver em [1] e segs.]. Nesse sentido, também, encontramos meios para pôr termo a nossas oscilações quanto à designação do sistema mais elevado — sobre o qual até agora nos referimos de maneira indiferente, às vezes como Pcs., às vezes como Cs.

A essa altura, também não será fora de propósito fazer uma advertência contra qualquer generalização apressada a respeito do que trouxemos à luz no tocante à distribuição das várias funções mentais entre os dois sistemas. Estamos descrevendo o estado de coisas tal como aparece no ser humano adulto, no qual o sistema Ics. só atua, rigorosamente falando, como uma fase preliminar da organização mais elevada. Qual é o conteúdo e quais são as ligações desse sistema durante o desenvolvimento do indivíduo, e, ainda, qual a importância que possui nos animais — são questões sobre as quais não se pode deduzir qualquer conclusão a partir de nossa descrição: devem ser investigadas independentemente. Além disso, devemos estar preparados para encontrar nos seres humanos possíveis condições patológicas sob as quais os dois sistemas alteram, ou mesmo permutam, tanto seu conteúdo como suas características. 

 

VI - COMUNICAÇÃO ENTRE OS DOIS SISTEMAS

 

Seria não obstante errôneo imaginar que o Ics. permanece em repouso enquanto todo o trabalho da mente é realizado pelo Pcs. — que o Ics. é algo liquidado, um órgão vestigial, um resíduo do processo de desenvolvimento. Também é errôneo supor que a comunicação entre os dois sistemas se acha confinada ao ato de repressão, com o Pcs. lançando tudo que lhe parece perturbador no abismo do Ics. Pelo contrário, o Ics. permanece vivo e capaz de desenvolvimento, mantendo grande número de outras relações com o Pcs., entre as quais a da cooperação. Em suma, deve-se dizer que o Ics. continua naquilo que conhecemos como derivados, que é acessível às impressões da vida, que influencia constantemente o Pcs., e que, por sua vez, está inclusive sujeito à influência do Pcs.

O estudo dos derivados do Ics. desapontará inteiramente nossas expectativas quanto a uma distinção esquematicamente nítida entre os dois sistemas psíquicos. Isso, sem dúvida, provocará insatisfação no que diz respeito a nossos resultados e, provavelmente, será utilizado para lançar dúvidas sobre o valor do modo pelo qual dividimos os processos psíquicos. Respondemos, porém, que não temos outra finalidade senão a de traduzir em teoria os resultados da observação, e negamos que haja qualquer obrigação de nossa parte de alcançar em nossa primeira tentativa uma teoria completa que se recomende por sua simplicidade. Defenderemos as complicações de nossa teoria enquanto verificarmos que atendem aos resultados da observação, e não abandonaremos nossas expectativas quanto a chegarmos, no final, por meio dessas próprias complicações, à descoberta de um estado de coisas que, embora simples em si, possa explicar todas as complicações da realidade.

Entre os derivados dos impulsos instintuais do Ics., do tipo que descrevemos, existem alguns que reúnem em si características de uma espécie oposta. Por um lado, são altamente organizados, livres de autocontradição, tendo usado todas as aquisições do sistema Cs., dificilmente distinguindo-se, a nosso ver, das formações daquele sistema. Por outro, são inconscientes e incapazes de se tornarem conscientes. Assim, qualitativamente pertencem ao sistema Pcs., mas factualmente, ao Ics. É sua origem que decide seu destino. Podemos compará-los a indivíduos de raça mestiça que, num apanhado geral, se assemelham a brancos, mas que traem sua ascendência de cor por uma ou outra característica marcante, sendo, por causa disso, excluídos da sociedade, deixando de gozar dos privilégios dos brancos. Essa é a natureza das fantasias de pessoas normais, bem como de neuróticas, fantasias que reconhecemos como sendo etapas preliminares da formação tanto dos sonhos como dos sintomas e que, apesar de seu alto grau de organização, permanecem reprimidas, não podendo, portanto, tornar-se conscientes. Aproximam-se da consciência e permanecem imperturbadas enquanto não dispõem de uma catexia intensa, mas, tão longo excedem certo grau de catexia, são lançadas para trás. As formações substitutivas também são derivados altamente organizados do Ics. desse tipo; mas, em circunstâncias favoráveis, conseguem irromper até a consciência — por exemplo, caso unam suas forças com uma anticatexia proveniente do Pcs.

Quando, em outro lugar, examinarmos mais detidamente as precondições para se tornarem conscientes, seremos capazes de encontrar uma solução para algumas das dificuldades que surgem nesse ponto. No presente momento, parece um bom plano olhar as coisas sob o ângulo da consciência, em contraste com nossa abordagem prévia, que ascendia a partir do Ics. Para a consciência, toda a soma dos processos psíquicos se apresenta como o domínio do pré-consciente. Grande parte desse pré-consciente origina-se no inconsciente, tem a natureza dos seus derivados e está sujeita a censura antes de poder tornar-se consciente. Outra parte do Pcs. é capaz de se tornar consciente sem qualquer censura. Aqui, chegamos a uma contradição de uma suposição anterior. Ao ventilarmos o assunto da repressão fomos obrigados a situar a censura, que é decisiva para o processo de conscientização, entre os sistemas Ics. e Pcs. [ver em [1]]. Agora, passa a ser provável que haja uma censura entre o Pcs. e o Cs. Não obstante, faremos bem em não considerarmos essa complicação como uma dificuldade, mas em presumirmos que, a cada transição de um sistema para o que se encontra imediatamente acima dele (isto é, cada passo no sentido de uma etapa mais elevada da organização psíquica), corresponde uma nova censura. Isso, pode-se observar, elimina a suposição de uma armazenagem contínua de novos registros [ver em [1]].

A razão de ser de todas essas dificuldades reside na circunstância de que o atributo de ser consciente, única característica dos processos psíquicos que nos é diretamente apresentada, de forma alguma se presta a servir de critério para a diferenciação de sistemas. [ver em [1], acima.] Independentemente do fato de o consciente nem sempre ser consciente, mas também às vezes latente, a observação tem demonstrado que grande parte daquilo que partilha das características do sistema Pcs. não se torna consciente; além disso, sabemos que o ato de se tornar consciente depende de que a atenção do Pcs. esteja voltada para certas direções. Por isso a consciência não se situa numa relação simples, quer com os diferentes sistemas, quer com a repressão. A verdade é que não é apenas o psiquicamente reprimido que permanece alheio à consciência, mas também alguns dos impulsos que dominam nosso ego — algo, portanto, que forma a mais forte das antíteses funcionais ao reprimido. Quanto mais procuramos encontrar nosso caminho para uma concepção metapsicológica da vida mental, mais devemos aprender a nos emancipar da importância do sistema de ‘ser consciente’.

Enquanto ainda nos apegarmos a essa crença, veremos nossas generalizações regularmente desfeitas por exceções. Por um lado, verificamos que derivados do Ics. se tornam conscientes na qualidade de formações e sintomas substitutivos — em geral, é verdade, depois de terem sofrido grande distorção em confronto com o inconsciente, embora conservando freqüentemente muitas características que exigem repressão. Por outro lado, verificamos que numerosas formações pré-conscientes permanecem inconscientes, embora devêssemos esperar que, por sua natureza, pudessem muito bem ter-se tornado conscientes. Provavelmente, no último caso a atração mais forte do Ics. está-se afirmando. Somos levados a procurar a distinção mais importante como estando situada, não entre o consciente e o pré-consciente, mas entre o pré-consciente e o inconsciente. O Ics. é rechaçado, na fronteira do Pcs., pela censura, mas os derivados do Ics. podem contornar essa censura, atingir um alto grau de organização e alcançar certa intensidade de catexia no Pcs. Quando, contudo, essa intensidade é ultrapassada e eles tentam forçar sua passagem para a consciência, são reconhecidos como derivados do Ics. e outra vez reprimidos na fronteira da censura, entre o Pcs. e o Cs. Assim, a primeira dessas censuras é exercida contra o próprio Ics., e a segunda, contra os seus derivados do Pcs. Poder-se-ia supor que no decorrer do desenvolvimento individual a censura deu um passo à frente.

No tratamento psicanalítico fica provada, sem sombra de dúvida, a existência da segunda censura, localizada entre os sistemas Pcs. e Cs. Pedimos ao paciente que forme numerosos derivados do Ics., fazemos com que ele se comprometa a superar as objeções da censura a essas formações pré-conscientes que se tornam conscientes, e, pondo abaixo essa censura, desbravamos o caminho para ab-rogação da repressão realizada pela anterior. A isso acrescentemos que a existência da censura entre o Pcs e o Cs. nos ensina que o tornar-se consciente não constitui um mero ato de percepção, sendo provavelmente também uma hipercatexia, um avanço ulterior na organização psíquica.

Voltemos às comunicações entre o Ics. e os outros sistemas, menos para estabelecer algo de novo do que para evitar a omissão daquilo que é mais proeminente. Nas raízes da atividade instintual, os sistemas se comunicam entre si mais extensivamente. Uma parcela dos processos que lá são excitados passa através do Ics., como que por uma etapa preparatória e atinge o desenvolvimento psíquico mais elevado no Cs.; outra parcela é retida como Ics. Mas o Ics. é também afetado por experiências oriundas da percepção externa. Normalmente, todos os caminhos desde a percepção até o Ics. permanecem abertos e só os que partem do Ics. estão sujeitos ao bloqueio pela repressão.

Constitui fato marcante que o Ics. de um ser humano possa reagir ao de outro, sem passar através do Cs. Isso merece uma investigação mais detida, principalmente com o fim de descobrir se podemos excluir a atividade pré-consciente do desempenho de um papel nesse caso; descritivamente falando, porém, o fato é incontestável. [Cf. um exemplo disso em Freud, 1913i.]

O conteúdo do sistema Pcs. (ou Cs.) deriva em parte da vida instintual (por intermédio do Ics.) e em parte da percepção. Desconhecemos até que ponto os processos desse sistema podem exercer influência direta sobre o Ics.; o exame de casos patológicos muitas vezes revela uma incrível independência e uma falta de suscetibilidade à influência por parte do Ics. Uma completa divergência de suas tendências, uma total separação dos dois sistemas, é o que acima de tudo caracteriza uma condição de doença. Não obstante, o tratamento psicanalítico se baseia numa influência do Ics. a partir da direção do Cs., e pelo menos demonstra que, embora se trate de uma tarefa laboriosa, não é impossível. Os derivados do Ics. que agem como intermediários entre os dois sistemas desvendam o caminho, conforme já dissemos [ver em [1]], para que isso se realize. Contudo, podemos presumir com segurança que uma alteração espontaneamente efetuada no Ics. a partir da direção do Cs. constitui um processo difícil e lento.

A cooperação entre um impulso pré-consciente e um inconsciente, mesmo quando o segundo é intensamente reprimido, pode ocorrer caso haja uma situação na qual o impulso inconsciente possa atuar no mesmo sentido que um impulso de uma das tendências dominantes. Nessa circunstância, a repressão é removida e a atividade reprimida é admitida como reforço da atividade pretendida pelo ego. O inconsciente torna-se ego-sintônico no tocante a essa conjunção isolada, sem que ocorra qualquer outra modificação em sua repressão. Nessa cooperação, a influência do Ics.é inconfundível: as tendências reforçadas se revelam como sendo, não obstante, diferente do normal; possibilitam um funcionamento especial mente perfeito e manifestam, em face da oposição, uma resistência semelhante à oferecida por exemplo, pelos sintomas obsessivos.

O conteúdo do Ics, pode ser comparado à presença de uma população aborígine na mente. Se existem no ser humano formações mentais herdadas — algo análogo ao instinto nos animais —, elas constituem o núcleo do Ics. Depois, junta-se a elas o que foi descartado durante o desenvolvimento da infância como sendo inútil; e isso não precisa diferir, em sua natureza, daquilo que é herdado. Em geral, uma divisão acentuada e final entre o conteúdo dos dois sistemas não ocorre até a puberdade.

 

VII - AVALIAÇÃO DO INCONSCIENTE

 

O que reunimos nas apreciações precedentes é provavelmente tudo que podemos dizer sobre o Ics., enquanto nos limitamos a extrair nossos conhecimentos da vida onírica das neuroses de transferência. Por certo não é muito e em alguns pontos dá a impressão de obscuridade e confusão, sendo que, acima de tudo, não nos oferece qualquer possibilidade de coordenar ou de fundir o Ics. em um contexto com o qual já estejamos familiarizados. Só a análise de uma das afecções que denominamos de psiconeurose narcisista promete proporcionar-nos concepções através das quais o enigmático Ics. ficará mais ao nosso alcance, tornando-se, por assim dizer, tangível.

Desde a publicação de uma obra de Abraham (1908) — atribuída por esse consciencioso escritor à minha instigação —, tentamos basear nossa caracterização da ‘dementia praecox‘ de Kraepelin (‘esquizofrenia’ de Bleuler) em sua posição relativa à antítese entre ego e objeto. Nas neuroses de transferência (histeria de ansiedade, histeria de conversão e neurose obsessiva) nada havia que desse especial proeminência a essa antítese. Sabíamos, realmente, que a frustração quanto ao objeto acarreta a irrupção da neurose e que esta envolve uma renúncia ao objeto real; sabíamos também que a libido que é retirada do objeto real reverte primeiro a um objeto fantasiado e então a um objeto reprimido (introversão). Mas nessas perturbações a catexia objetal geralmente é retida com grande energia, e um exame mais pormenorizado do processo de repressão nos obrigou a presumir que a catexia objetal persiste no sistema Ics. apesar da repressão — ou antes, em conseqüência desta. [ver em [1]] Na realidade, a capacidade de transferência, que usamos com propósitos terapêuticos nessas afecções, pressupõe uma catexia objetal inalterada.

No caso da esquizofrenia, por outro lado, fomos levados à suposição de que, após o processo de repressão, a libido que foi retirada não procura um novo objeto e refugia-se no ego; isto é, que aqui as catexias objetais são abandonadas, restabelecendo-se uma primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto. A incapacidade de transferência desses pacientes (até onde o processo patológico se estende), sua conseqüente inacessibilidade aos esforços terapêuticos, seu repúdio característico ao mundo externo, o surgimento de sinais de uma hipercatexia do seu próprio ego, o resultado final de completa apatia — todas essas características clínicas parecem concordar plenamente com a suposição de que suas catexias objetais foram abandonadas. Quanto à relação dos dois sistemas psíquicos entre si, todos os observadores se surpreendem com o fato de que muito do que é expresso na esquizofrenia como sendo consciente, nas neuroses de transferência só pode revelar sua presença no Ics. através da psicanálise. De início, porém, não fomos capazes de estabelecer qualquer conexão inteligível entre a relação do objeto do ego e as relações da consciência.

O que procuramos parece apresentar-se da seguinte, e inesperada, maneira. Nos esquizofrênicos observamos — especialmente nas etapas iniciais, tão instrutivas — grande número de modificações na fala, algumas das quais merecem ser consideradas de um ponto de vista particular. Freqüentemente, o paciente devota especial cuidado a sua maneira de se expressar, que se torna ‘ afetada ‘ e ‘ preciosa ‘. A construção de suas frases passa por uma desorganização peculiar, que as torna incompreensíveis para nós, a ponto de suas observações parecerem disparatadas. Referências a órgãos corporais ou a inervações quase sempre ganham proeminência no conteúdo dessas observações. A isso pode-se acrescentar o fato de que, em tais sintomas da esquizofrenia, em comparação com as formações substitutivas de histeria ou de neurose obsessiva, a relação entre o substituto e o material reprimido, não obstante, exibe peculiaridades que nos surpreenderiam nessas duas formas de neuroses.

O Dr. Victor Tausk, de Viena, pôs à minha disposição algumas observações que fez nas etapas iniciais da esquizofrenia de um paciente, particularmente valiosas, visto que a própria paciente se prontificava a explicar suas manifestações orais. Lançarei mão de dois dos seus exemplos para ilustrar o conceito que desejo formular, e não tenho dúvida de que todo observador poderia apresentar material abundante dessa natureza.

Uma paciente de Tausk, uma moça levada à clínica após uma discussão com o amante, queixou-se de que seus olhos não estavam direitos, estavam tortos. Ela mesma explicou o fato, apresentando, em linguagem coerente, uma série de acusações contra o amante. ‘De forma alguma ela conseguia compreendê-lo, a cada vez ele parecia diferente; era hipócrita, um entortador de olhos, ele tinha entortado os olhos dela; agora ela tinha olhos tortos; não eram mais os olhos dela; agora via o mundo com olhos diferentes.’

Os comentários da paciente sobre sua observação ininteligível têm o valor de uma análise, pois contêm o equivalente à observação expressa numa forma geralmente compreensível. Lançam luz ao mesmo tempo sobre o significado e sobre a gênese da formação de palavras esquizofrênicas. Concordo com Tausk quando ressalta nesse exemplo que a relação da paciente com o órgão corporal (o olho) arrogou-se a si a representação de todo o conteúdo [dos pensamentos dela]. Aqui a manifestação oral esquizofrênica exibe uma característica hipocondríaca: tornou-se ‘fala do órgão‘.

A mesma paciente fez uma segunda comunicação: ‘Ela estava de pé na igreja. De súbito sentiu um solavanco: teve de mudar de posição, como se alguém a estivesse pondo numa posição, como se ela estivesse sendo posta numa certa posição.’

Veio então a análise disso através de uma nova série de acusações contra o amante. ‘Ele era vulgar, ele a tornara vulgar também, embora ela fosse naturalmente requintada. Ele a fizera igual a ele, levando-a a pensar que era superior a ela; agora ela se tornara igual a ele, porque ela pensava que seria melhor para ela se fosse igual a ele. Ele dera uma falsa impressão da posição dele; agora ela era igual a ele’ (por identificação), ‘ele a pusera numa falsa posição‘.

O movimento físico de ‘mudar-lhe a posição’, observa Tausk, retratava as palavras ‘pondo-a numa falsa posição’ e sua identificação com o amante. Gostaria de chamar a atenção mais uma vez para o fato de que todo encadeamento de pensamento é dominado pelo elemento que possui como conteúdo uma inervação do corpo (ou, antes, a sensação dela). Além disso, no primeiro exemplo, uma histérica teria, de fato, entortado convulsivamente os olhos, e, no segundo, dado solavancos, em vez de ter o impulso para agir dessa forma ou a sensação de agir dessa forma; e em nenhum dos dois casos ela teria tido quaisquer pensamentos conscientes concomitantes, nem teria sido capaz de expressar quaisquer pensamentos depois.

Essas duas observações, então, atuam a favor do que denominamos de fala hipocondríaca ou de ‘fala do órgão’. Mas, e isso nos parece mais importante, também apontam para outra coisa, da qual conhecemos inúmeros casos (por exemplo, os casos coligidos na monografia de Bleuler [1911]), que podem ser reduzidos a uma fórmula definida. Na esquizofrenia, as palavras estão sujeitas a um processo igual ao que interpreta as imagensoníricas dos pensamentos oníricos latentes — que chamamos de processo psíquico primário. Passam por uma condensação, e por meio de deslocamento transferem integralmente suas catexias de umas para as outras. O processo pode ir tão longe, que uma única palavra, se for especialmente adequada devido a suas numerosas conexões, assume a representação de todo um encadeamento de pensamento. As obras de Bleuler, de Jung e de seus discípulos oferecem grande quantidade de material que apóia particularmente essa assertiva.

Antes de tirarmos qualquer conclusão de impressões como essas, consideremos ainda as distinções entre a formação de substitutos na esquizofrenia, por um lado, e na histeria e neurose obsessiva, por outro — distinções sutis que, não obstante, causam uma estranha impressão. Um paciente, que no momento tenho sob observação, permitiu-se ficar afastado de todos os interesses da vida em virtude do mau estado da pele de seu rosto. Afirma ter cravos e profundos orifícios no rosto que todo mundo nota. A análise demonstra que ele faz da pele o palco de seu complexo de castração. De início, atacava esses cravos sem piedade e ficava muito satisfeito ao espremê-los, porque, como dizia, algo esguichava quando o fazia. Começou então a pensar que surgia uma profunda cavidade cada vez que se livrava de um cravo, e se censurava com a maior veemência por ter arruinado a pele para sempre ‘por não saber deixar as mãos sossegadas’. Espremer o conteúdo dos cravos é para ele, nitidamente, um substituto da masturbação. A cavidade que então surge por sua culpa é o órgão genital feminino, isto é, a realização da ameaça de castração (ou a fantasia que representa essa ameaça) provocada pela sua masturbação. Essa formação substitutiva, apesar de seu caráter hipocondríaco, assemelha-se consideravelmente a uma conversão histérica; contudo, temos a sensação de que algo diferente deve estar ocorrendo aqui, que uma formação substitutiva como essa não pode ser atribuída à histeria, mesmo antes que possamos dizer em que consiste a diferença. Uma cavidade tão minúscula como um poro de pele dificilmente seria utilizada por um histérico como símbolo da vagina, símbolo este que, de outra forma, ele está pronto para comparar com todo objeto imaginável que encerre um espaço oco. Além disso, devemos esperar que a multiplicidade dessas pequenas cavidades o impeça de empregá-las como substituto do órgão genital feminino. A mesma coisa se aplica ao caso de um paciente jovem encaminhado por Tausk há alguns anos à Sociedade Psicanalítica de Viena. Esse paciente se comportava, sob outros aspectos, exatamente como se sofresse de uma neurose obsessiva; levava horas para tomar banho e se vestir, e assim por diante. Tornou-se observável, contudo, que ele era capaz de fornecer o significado de suas inibições sem qualquer resistência. Ao calçar as meias, por exemplo, ficava perturbado pela idéia de que ia separar os pontos da malha, isto é, os furos, e para ele cada furo era um símbolo do orifício genital feminino. Isso, mais uma vez, é algo que não podemos atribuir a um neurótico obsessivo. Reitler observou um paciente desse último tipo, que também sofria por ter de levar muito tempo para calçar as meias; esse homem, após superar suas resistências, encontrou a explicação de que seu pé simbolizava um pênis, que calçar a meia representava um ato masturbatório, e que ele tinha de ficar a botar e tirar a meia, em parte para completar o quadro da masturbação, em parte para desfazer esse ato.

Se perguntarmos o que é que empresta o caráter de estranheza à formação substitutiva e ao sintoma na esquizofrenia, compreenderemos finalmente que é a predominância do que tem a ver com as palavras sobre o que tem que ver com as coisas. Até onde se pode perceber, existe apenas uma similaridade muito pequena entre o espremer um cravo e uma emissão do pênis, e ela é ainda menor entre os inúmeros poros rasos da pele e a vagina; mas no primeiro caso há, em ambos os exemplos, um ‘esguicho’, enquanto que, no último, o cínico ditado ‘um buraco é um buraco’ é verdadeiro em seu sentido verbal. O que dita a substituição não é a semelhança entre as coisas denotadas, mas a uniformidade das palavras empregadas para expressá-las. Onde as duas — palavras e coisas — não coincidem, a formação de substitutos na esquizofrenia diverge do que ocorre nas neuroses de transferência.

Se agora pusermos essa descoberta ao lado da hipótese de que na esquizofrenia as catexiais objetais são abandonadas, seremos obrigados a modificar a hipótese, acrescentando que a catexia das apresentações da palavra de objetos é retida. O que livremente denominamos de apresentação consciente do objeto pode agora ser dividido na apresentação da palavra e na apresentação da coisa; a última consiste na catexia, se não das imagens diretas da memória da coisa, pelo menos de traços de memória mais remotos derivados delas. Agora parece que sabemos de imediato qual a diferença entre uma apresentação consciente e uma inconsciente [ver em [1]]. As duas não são, como supúnhamos, registros diferentes do mesmo conteúdo em diferentes localidades psíquicas, nem tampouco diferentes estados funcionais de catexias na mesma localidade; mas a apresentação consciente abrange a apresentação da coisa mais a apresentação da palavra que pertence a ela, ao passo que a apresentação inconsciente é a apresentação da coisa apenas. O sistema Ics. contém as catexias da coisa dos objetos, as primeiras e verdadeiras catexias objetais; o sistema Pcs. ocorre quando essa apresentação da coisa é hipercatexizada através da ligação com as apresentações da palavra que lhe correspondem. São essas hipercatexias, podemos supor, que provocam uma organização psíquica mais elevada, possibilitando que o processo primário seja sucedido pelo processo secundário, dominante no Pcs. Ora, também estamos em condições de declarar precisamente o que é que a repressão nega à apresentação rejeitada nas neuroses de transferência [ver em [1]]: o que ele nega à apresentação é a tradução em palavras que permanecerá ligada ao objeto. Uma apresentação que não seja posta em palavras, ou um ato psíquico que não seja hipercatexizado, permanece a partir de então no Ics. em estado de repressão.

Gostaríamos de ressaltar que já dispomos há algum tempo da compreensão interna (insight) que hoje nos permite entender uma das características mais impressionantes da esquizofrenia. Nas últimas páginas de A Interpretação de Sonhos, publicada em 1900, foi desenvolvido o conceito de que os processos do pensamento, isto é, os atos de catexia que se acham relativamente distantes da percepção, são em si mesmos destituídos de qualidade e inconscientes, e só atingem sua capacidade para se tornarem conscientes através de ligação com os resíduos de percepções de palavras. Mas as apresentações da palavra, também, por seu lado, se originam das percepções sensoriais, da mesma forma que as apresentações da coisa; poder-se-ia, portanto, perguntar por que as apresentações de objetos não podem tornar-se conscientes por intermédio de seus próprios resíduos perceptivos. Provavelmente, contudo, o pensamento prossegue em sistemas tão distantes dos resíduos perceptivos originais, que já não retêm coisa alguma das qualidades desses resíduos, e, para se tornarem conscientes, precisam ser reforçados por novas qualidades. Além disso, estando ligadas a palavras, as catexias podem ser dotadas de qualidade mesmo quando representem apenas relações entre apresentações de objetos, sendo assim incapazes de extrair qualquer qualidade das percepções. Tais relações, que só se tornam compreensíveis através de palavras, constituem uma das principais partes dos nossos processos do pensamento. Como podemos ver, estar ligado às apresentações da palavra ainda não é a mesma coisa que tornar-se consciente, mas limita-se a possibilitar que isso aconteça; é, portanto, algo característico do sistema Pcs., e somente desse sistema. Com essas apreciações, contudo, evidentemente nos afastamos de nosso assunto propriamente dito e mergulhamos em problemas concernentes ao pré-consciente e ao consciente, que por boas razões estamos reservando para uma apreciação isolada.

Quanto à esquizofrenia, que apenas abordamos na medida em que parece indispensável a uma compreensão geral do Ics., devemos indagar se o processo denominado aqui de repressão tem alguma coisa em comum com a repressão que se verifica nas neuroses de transferência. A fórmula segundo a qual a repressão é um processo que ocorre entre os sistemas Ics. e Pcs. (ou Cs.), resultando em manter-se algo à distância da consciência [ver em [1]], deve, de qualquer maneira, ser modificada, a fim de também poder incluir o caso da demência precoce e outras afecções narcisistas. Mas a tentativa de fuga do ego, que se expressa na retirada da catexia consciente, permanece, não obstante, um fator comum [às duas classes de neurose]. A mais superficial das reflexões nos revela quão mais radical e profundamente essa tentativa de fuga, essa fuga do ego, é posta em funcionamento nas neuroses narcisistas.

Se, na esquizofrenia, essa fuga consiste na retirada da catexia instintual dos pontos que representam a apresentação inconsciente do objeto, pode parecer estranho que a parte da apresentação desse objeto pertencente ao sistema Pcs. — a saber, as apresentações da palavra que lhe correspondem — deva, pelo contrário, receber uma catexia mais intensa. Deveríamos antes esperar que a apresentação da palavra, sendo a parte pré-consciente, tivesse de suportar o primeiro impacto da repressão e fosse totalmente incatexizável depois que a repressão tivesse chegado às apresentações inconscientes da coisa. Isso, é verdade, é algo difícil de compreender. Acontece que a catexia da apresentação da palavra não faz parte do ato de repressão, mas representa a primeira das tentativas de recuperação ou de cura que tão manifestamente dominam o quadro clínico da esquizofrenia. Essas tentativas são dirigidas para a recuperação do objeto perdido, e pode ser que, para alcançar esse propósito, enveredem por um caminho que conduz ao objeto através de sua parte verbal, vendo-se então obrigadas a se contentar com palavras em vez de coisas. É uma verdade geral que nossa atividade mental se movimenta em duas direções opostas: ou parte dos instintos e passa através do sistema Ics. até a atividade de pensamento consciente, ou, começando com uma instigação de fora, passa através do sistema Cs. e do Pcs. até alcançar as catexias do Ics. do ego e dos objetos. Esse segundo caminho deve, apesar da repressão que ocorre, continuar percorrível, e permanece, até certo ponto, aberto aos esforços envidados pela neurose para recuperar seus objetos. Quando pensamos em abstrações, há o perigo de que possamos negligenciar as relações de palavras com as apresentações inconscientes da coisa, devendo-se externar que a expressão e o conteúdo do nosso filosofar começam então a adquirir uma semelhança desagradável com a modalidade de operação dos esquizofrênicos. Podemos, por outro lado, tentar uma caracterização da modalidade de pensamento do esquizofrênico dizendo que ele trata as coisas concretas como se fossem abstratas.

Se é que fizemos uma verdadeira apreciação da natureza do Ics. e se definimos corretamente a diferença entre uma apresentação pré-consciente e uma inconsciente, então, inevitavelmente, nossas pesquisas nos trarão, de numerosos outros pontos, de volta para essa mesma compreensão interna (insight).

 

APÊNDICE A: FREUD E EWALD HERING

 

Dentre os professores de Freud em Viena figurava o fisiólogo Ewald Hering (1834-1918), que, conforme sabemos pelo Dr. Jones (1953-244), ofereceu ao jovem um cargo como seu assistente em Praga em 1884. Um episódio ocorrido cerca de quarenta anos depois parece sugerir, como Ernst Kris (1956) ressaltou, que a influência de Hering pode ter contribuído para a formação dos conceitos de Freud sobre o inconsciente. (ver acima em [1].) Em 1880, Samuel Butler publicou Unconscious Memory. Esse trabalho abrangia a tradução de uma conferência pronunciada por Hering em 1870. ‘Uber das Gedächtnis als eine allgemeine Funktion der organisierten Materie’ (‘Sobre a Memória como uma Função Universal da Matéria Organizada’), com a qual Butler concordou de maneira geral. Um livro intitulado The Unconscious, de Israel Levine, veio a lume na Inglaterra em 1923; e uma tradução alemã do mesmo, feita por Anna Freud, apareceu em 1926. Uma seção dessa obra, contudo (Parte I, Seção 13), que trata de Samuel Butler, foi traduzida pelo próprio Freud. O autor, Levine, embora mencionasse a conferência de Hering, estava mais preocupado com Butler do que com Hering, e, em relação a isso (na pág. 34 da tradução alemã), Freud acrescentou uma nota de rodapé do seguinte teor:

‘Os leitores alemães, familiarizados com essa conferência de Hering e considerando-a uma obra-prima, não estariam, naturalmente, inclinados a colocar em primeiro plano as considerações de Butler, que nela se basearam. Além disso, encontramos em Hering algumas observações pertinentes, que concedem à psicologia o direito de presumir a existência da atividade mental inconsciente: “Quem poderia esperar desemaranhar a tessitura de nossa vida interior, com suas complexidades multifárias, se estivéssemos dispostos a acompanhar seus fios somente até o ponto em que atravessam a consciência?… Cadeias como essas, de processos nervosos de material inconsciente, que terminam num elo acompanhado de uma percepção consciente, foram descritas como ‘encadeamentos inconscientes de idéias’ e ‘inferências inconscientes’; e, do ponto de vista da psicologia, isso pode ser justificado, pois a mente quase sempre escaparia por entre os dedos da psicologia, se esta se recusasse a manter uma garra sobre os estados inconscientes da mente.” [Hering, 1870, 11 e 13.]’

 

APÊNDICE B: PARALELISMO PSICOFÍSICO

 

[Ressaltou-se acima (ver em [1]) que os conceitos emitidos anteriormente sobre a relação entre a mente e o sistema nervoso foram grandemente influenciados por Hughlings-Jackson. Isso é indicado de maneira específica pelo trecho que se segue, extraído de sua monografia sobre afasia (1891b, 56-8). É especialmente instrutivo comparar as últimas frases sobre o tema de lembranças latentes com a posição ulterior de Freud. A fim de preservar a uniformidade da terminologia, fez-se nova tradução.]

Após essa digressão retornamos à consideração da afasia. Podemos recordar que, à base dos ensinamentos de Meynert, se desenvolveu a teoria de que o aparelho fonador consiste em centros corticais distintos, em cujas células se encontram as apresentações da palavra, estando esses centros separados por uma região cortical desprovida de função, ligados por fibras brancas (fascíolos associativos). De imediato, pode-se levantar a questão de saber se uma hipótese dessa natureza, que abarca apresentações em células nervosas, pode de algum modo ser correta e permissível. Penso que não.

A tendência da medicina em períodos anteriores era a de localizar faculdades mentais inteiras, conforme definidas pela nomenclatura psicológica, em certas regiões do cérebro. Em contraste, portanto, não podia deixar de parecer um grande avanço o fato de Wernick ter declarado que somente os elementos psíquicos mais simples, as diferentes apresentações sensoriais, poderiam legitimamente ser localizadas — localizadas na terminação central do nervo periférico que recebeu a impressão. Contudo, não estaremos, em princípio, cometendo o mesmo erro, tentando localizar ou um conceito complicado, ou toda uma atividade mental, ou um elemento psíquico? Será que se justifica tomar uma fibra nervosa — que em toda a extensão de seu curso é uma estrutura puramente fisiológica, sujeita a modificações puramente fisiológicas —, mergulhar-lhe a extremidade na esfera da mente, e ajustar essa extremidade a uma apresentação ou a uma imagem mnêmica? Se a ‘vontade’, a ‘inteligência’, e assim por diante, foram reconhecidas como termos técnicos psicológicos aos quais correspondem estados de coisas muito complicados no mundo fisiológico, será que nos podemos sentir um pouco mais seguros quanto ao fato de que uma ‘simples apresentação sensorial’ não passa de uma expressão técnica do mesmo tipo?

 

É provável que a cadeia de eventos fisiológicos do sistema nervoso não esteja numa ligação causal com os eventos psíquicos. Os eventos fisiológicos não cessam tão logo se iniciam os psíquicos; ao contrário, a cadeia fisiológica continua. O que acontece é simplesmente que, após certo tempo, cada um (ou alguns) de seus elos tem um fenômeno fisiológico que lhe corresponde. Em conseqüência, o psíquico é um processo paralelo ao fisiológico — ‘um concomitante dependente’.

Sei muito bem que não posso acusar as pessoas, cujos conceitos estou discutindo aqui, de terem dado esse salto e alterado, sem maiores considerações, seu ângulo científico de abordagem [isto é, do fisiológico para o psicológico]. Obviamente, elas não querem dizer outra coisa senão que a modificação fisiológica das fibras nervosas que acompanha a excitação sensorial produz outra modificação na célula nervosa central, e que essa última modificação se torna o correlato fisiológico da ‘apresentação’. Já que podem dizer muito mais sobre apresentações do que sobre modificações, das quais absolutamente nenhuma caracterização fisiológica foi ainda alcançada, permanecendo desconhecidas, elas fazem uso da declaração elíptica segundo a qual a apresentação está localizada na célula nervosa. Essa maneira de apresentar as coisas, contudo, leva de imediato a uma confusão entre as duas coisas, que não precisam ser semelhantes entre si. Na psicologia, uma apresentação simples é algo elementar, que podemos distinguir bem nitidamente de suas ligações com outras apresentações. Isso nos leva a supor que o correlato fisiológico da apresentação — isto é, a modificação que se origina na fibra nervosa excitada com sua terminação no centro — também é algo simples, que pode ser localizado num ponto particular. Traçar um paralelo dessa espécie é, naturalmente, totalmente injustificável; as características da modificação devem ser estabelecidas por sua própria conta e independentemente de seu equivalente psicológico.

O que é, então, o correlato fisiológico de uma apresentação simples ou da mesma apresentação quando se repete? Claramente, nada de estático, mas algo da natureza de um processo. Esse processo admite localização. Parte de um ponto particular do córtex e se espalha a partir daí por todo o córtex ou por certos tratos. Quando esse processo é incluído, deixa para trás uma modificação no córtex que foi afetado por ele — a possibilidade de recordar. É também altamente duvidoso que exista algo psíquico que corresponda a essa modificação. Nossa consciência nada revela que justifique, do ponto de vista psíquico, o nome de uma ‘imagem mnêmica latente’. Mas sempre que o mesmo estado do córtex é novamente provocado, o aspecto psíquico passa outra vez a existir como uma imagem mnêmica…

 

APÊNDICE C: PALAVRAS E COISAS

 

[A seção final do artigo de Freud sobre ‘O Inconsciente’ parece ter raízes em sua antiga monografia sobre afasia (1891b). Por conseguinte, talvez seja de interesse reproduzir aqui um trecho daquele trabalho que, embora não particularmente fácil de acompanhar, lança luz sobre as suposições subjacentes a alguns dos conceitos ulteriores de Freud. O trecho possui ainda o interesse incidental de apresentar Freud na posição bastante inusitada de se expressar na linguagem técnica da psicologia ‘acadêmica’ do fim do século XIX. A passagem aqui reproduzida vem depois de uma sucessão de argumentos anatômicos e fisiológicos destrutivos e construtivos, a qual conduziu Freud a um esquema hipotético a respeito do funcionamento neurológico por ele descrito como o ‘aparelho da fala’. Deve-se observar, contudo, que há uma diferença importante, e talvez perturbadora, entre a terminologia que Freud emprega aqui e a que emprega em ‘O Inconsciente’. Aqui, o que ele denomina de ‘apresentação do objeto’ é o que em ‘O Inconsciente’, chama de ‘apresentação da coisa’; ao passo que o que em ‘O Inconsciente’ ele denomina de a ‘apresentação do objeto’denota um complexo formado pela ‘apresentação da coisa’ e pela ‘apresentação do objeto’ combinadas — um complexo que não recebeu nome algum no trecho da Afasia. A tradução foi feita especialmente para esta ocasião, já que, por motivos de terminologia, a que foi publicada não se adapta inteiramente à finalidade presente. Da mesma forma que na última seção de ‘O Inconsciente’, aqui empregamos sempre a palavra ‘apresentação’ para traduzir o alemão ‘Vorstellung‘, enquanto ‘imagem’ traduz o alemão ‘Bild‘. O trecho vai da pág. 74 à pág. 81 da edição alemã original.]

Proponho agora considerar quais as hipóteses necessárias para explicar as perturbações da fala à base de um aparelho fonador construído dessa maneira — em outras palavras, considerar o que o estudo da perturbação da fala nos ensina sobre a função desse aparelho. Ao fazê-lo, manterei os aspectos psicológico e anatômico da questão tão isolados quanto possível.

Do ponto de vista da psicologia, a unidade da função da fala é a “palavra”, uma apresentação complexa, que vem a ser uma combinação de elementos auditivos, visuais e cinestésicos. Devemos nosso conhecimento dessa combinação à patologia, que nos mostra que, nas lesões orgânicas do aparelho da fala, ocorre uma desintegração da fala nos moldes em que a combinação é feita. Esperamos assim verificar que a ausência de um desses elementos da apresentação da palavra venha a ser a indicação mais importante para que cheguemos a uma localização da doença. Distinguem-se, em geral, quatro componentes da apresentação da palavra: a ‘imagem sonora’, a ‘imagem visual da letra’, a ‘imagem motora da fala’ e a ‘imagem motora da escrita’. Essa combinação, porém, se torna mais complicada quando se entra no processo provável da associação que se verifica em cada uma das várias atividades da fala: —

(1) Aprendemos a falar associando uma ‘imagem sonora de uma palavra’ com um ‘sentido da inervação de uma palavra’. Após termos falado, ficamos também de posse de uma ‘apresentação motora da fala’ (sensações centrípetas provenientes dos órgãos da fala); de modo que, sob um aspecto motor, a ‘palavra’ é duplamente determinada para nós. Dos dois elementos determinantes, o primeiro — a apresentação da palavra inervatória — parece ter menor valor do ponto de vista psicológico; na realidade, seu aparecimento, se é que ele ocorre, como fator psíquico pode ser contestado. Além disso, depois de falarmos, recebemos uma ‘imagem sonora’ da palavra falada. Enquanto não tivermos desenvolvido muito nossa capacidade de fala, essa segunda imagem sonora não precisa ser a mesma que a primeira, mas apenas associada a ela. Nessa fase do desenvolvimento da fala — a da primeira infância —, usamos uma linguagem que nós mesmos construímos. Comportamo-nos como os afásicos motores, pois associamos diversos sons verbais exteriores a um único som produzido por nós mesmos.

(2) Aprendemos a falar a língua de outras pessoas esforçando-nos por tornar a imagem sonora produzida por nós tão igual quanto possível à que deu lugar à nossa inervação da fala. Aprendemos dessa forma a ‘repetir’ — ‘dizer à imitação de’ outra pessoa. Quando justapomos as palavras no discurso encadeado, retemos a inervação da palavra seguinte até que a imagem sonora ou a apresentação motora da fala (ou ambas) da palavra precedente nos tenha alcançado. A segurança de nossa fala é assim superdeterminada, podendo facilmente suportar a perda de um ou outro dos fatores determinantes. Por outro lado, uma perda da correção exercida pela segunda imagem sonora e pela imagem motora da fala explica algumas das peculiaridades, tanto fisiológicas como patológicas, da parafasia.

(3) Aprendemos a soletrar ligando as imagens visuais das letras a novas imagens sonoras, as quais, por seu lado, devem nos lembrar os sons verbais que já conhecemos. Imediatamente ‘repetimos’ a imagem sonora que denota a letra, de modo que também se observa que as letras são determinadas por duas imagens sonoras que coincidem, e duas apresentações motoras que se correspondem.

(4) Aprendemos a ler ligando, de acordo com certas regras, a sucessão de apresentações inervatórias e motoras da palavra que recebemos quando enunciamos letras isoladas, de modo a fazer surgir novas apresentações motoras da palavra. Assim que dizemos em voz alta essas novas apresentações da palavra, descobrimos por suas imagens sonoras que as duas imagens motoras e imagens sonoras que recebemos dessa forma, de há muito nos são familiares e idênticas às imagens empregadas no falar. Associamos então o significado ligado aos sons verbais primários às imagens sonoras adquiridas pela soletração. Agora lemos com compreensão. Se o que foi falado primariamente foi um dialeto e não uma língua literária, as imagens motoras e sonoras das palavras adquiridas pela soletração têm de ser superassociadas às imagens antigas; assim, temos de aprender uma nova língua — tarefa facilitada pela semelhança entre o dialeto e a língua literária.

Ver-se-á, por essa descrição da aprendizagem da leitura, que se trata de um processo muito complicado, no qual o curso das associações deve repetidamente mover-se para frente e para trás. Estaremos também preparados para verificar que perturbações da leitura na afasia tendem a ocorrer numa grande variedade de formas. A única coisa que decisivamente indica uma lesão no elemento visual da leitura é uma perturbação na leitura de letras separadas. A combinação de letras numa palavra ocorre durante a transmissão ao trato da palavra e conseqüentemente será abolida na afasia motora. Só se chega a uma compreensão do que é lido por intermédio das imagens sonoras produzidas pelas palavras que foram enunciadas, ou através das imagens motoras de palavras que surgiram ao falarmos. Vê-se, portanto, que se trata de uma função que é extinta não somente onde há lesões motoras, mas também onde há lesões acústicas. Verifica-se, ainda, que compreender o que é lido é uma função independente do desempenho da leitura. Qualquer um pode descobrir pela auto-observação que existem várias espécies de leitura, em algumas das quais não chegamos a compreender o que é lido. Quando estou lendo provas com a intenção de prestar atenção especial às imagens visuais das letras e de outros sinais tipográficos, o sentido do que leio me escapa tão inteiramente, que tenho de ler todas as provas novamente de maneira especial, se quiser corrigir o estilo. Quando, por outro lado, leio um livro que me interessa, um romance, por exemplo, desprezo todos os erros de impressão; e pode acontecer que os nomes das personagens deixem apenas uma impressão confusa em minha mente — uma recordação, talvez, de que são longos ou curtos, ou contêm alguma letra inusitada, como um ‘x’ ou um ‘z’. Quando tenho de ler em voz alta, e tenho de prestar particular atenção às imagens sonoras de minhas palavras e aos intervalos entre elas mais uma vez corro o perigo de me preocupar muito pouco com o significado das palavras e logo que me fatigo leio de tal maneira que, embora outras pessoas ainda possam compreender o que estou lendo, eu próprio não sei mais o que leio. Esses são fenômenos de atenção dividida, que surgem precisamente aqui porque uma compreensão do que é lido só ocorre de forma muito indireta. Se o processo da própria leitura oferece dificuldades, não há mais dúvida quanto à compreensão. Isso fica claro pela analogia com o nosso comportamento quando estamos aprendendo a ler; devemos ter o cuidado de não considerar a ausência de compreensão como prova de interrupção de um trato. A leitura em voz alta não deve ser considerada como um processo de algum modo diferente da leitura silenciosa, a não ser pelo fato de que ela ajuda a atenção da parte sensorial do processo de leitura.

(5) Aprendemos a escrever reproduzindo as imagens visuais das letras por meio de imagens inervatórias da mão, até que essas mesmas imagens visuais ou outras semelhantes apareçam. Em geral, as imagens da escrita são apenas semelhantes às imagens da leitura e superassociadas a elas, visto que o que aprendemos a ler é impresso e o que aprendemos a escrever é manuscrito. Escrever vem a ser um processo comparativamente simples e que não está tão sujeito à perturbação quanto a leitura.

(6) É de se presumir que posteriormente também realizemos essas diferentes funções da fala nos mesmos moldes associativos em que as aprendemos. Nessa fase ulterior, podem ocorrer abreviaturas e substituições, mas nem sempre é fácil dizer qual a sua natureza. Sua importância é diminuída pela consideração de que em casos de lesão orgânica o aparelho da fala provavelmente será, até certo ponto, danificado em seu todo e compelido a voltar às modalidades de associação primárias, bem estabelecidas e mais extensas. Quanto à leitura, a ‘imagem visual da palavra’ indubitavelmente faz sentir sua influência em leitores dotados de prática, de modo que as palavras individuais (particularmente os nomes próprios) podem ser lidas sem que sejam soletradas.

Uma palavra é, portanto, uma apresentação complexa que consiste nas imagens acima enumeradas; ou, dizendo-o de outra forma, corresponde à palavra um complicado processo associativo no qual se reúnem os elementos de origem visual, acústica e cenestésica enumerados acima.

Uma palavra, contudo, adquire seu significado ligando-se a uma ‘apresentação do objeto’, pelo menos se nos restringirmos a uma consideração de substantivos. A própria apresentação do objeto é, mais uma vez, um complexo de associações formado por uma grande variedade de apresentações visuais, acústicas, táteis, cenestésicas e outras. A filosofia nos diz que uma apresentação do objeto consiste simplesmente nisso — que a aparência de haver uma ‘coisa’ de cujos vários ‘atributos’ essas impressões dos sentidos dão testemunho, deve-se meramente ao fato de que, ao enumerarmos as impressões sensoriais que recebemos de um objeto, pressupomos a possibilidade de haver grande número de outras impressões na mesma cadeia de associações (J.S. Mill). Assim, a apresentação do objeto é vista como uma apresentação que não é fechada e quase como uma que não pode ser fechada, enquanto que a apresentação da palavra é vista como algo fechado, muito embora capaz de extensão.

A patologia das perturbações da fala leva-nos a asseverar que a apresentação da palavra está ligada em sua extremidade sensorial (por suas imagens sonoras) à apresentação do objeto. Chegamos, assim, a duas espécies de perturbação da fala: (1) uma afasia de primeira ordem, afasia verbal, na qual somente são perturbadas as associações entre os elementos separados da apresentação da palavra; e (2) uma afasia de segunda ordem, afasia assimbólica, na qual é perturbada a associação entre a apresentação da palavra e a apresentação do objeto.

Emprego o termo ‘assimbolia’ num sentido diverso do que lhe tem sido comumente atribuído desde Finkelnburg, porque me parece que a relação entre a [apresentação da] palavra e a apresentação do objeto merece muito mais ser descrita como ‘simbólica’ do que a relação entre o objeto e a apresentação do objeto. Para as perturbações no reconhecimento de objetos que Finkelnburg classifica como assimbolia, gostaria de propor o termo ‘agnosia’. É possível que perturbações ‘agnósticas’ (que só podem ocorrer em casos de lesões corticais bilaterais e extensas) possam também acarretar uma perturbação da fala, visto que todos os incitamentos ao falar espontâneo provêm do campo das associações de objeto. Eu chamaria essas perturbações da fala de afasias de terceira ordem ou afasias agnósticas. A observação clínica trouxe de fato ao nosso conhecimento alguns casos que devem ser encarados dessa forma…

 

SUPLEMENTO METAPSICOLÓGICO À TEORIA DOS SONHOS (1916 [1915])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS - METAPSYCHOLOGISCHE ERGÄNZUNGZUR TRAUMLEHRE

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1917 Int. Z. Psychoanal., 4 (6), 277-87.

1918 S.K.S.N., 4, 339-55. (1922, 2ª ed.)

1924 G.S., 5, 520-34.

1924 Technik und Metapsychol., 242-56.

1931 Theoretische Schriften, 141-56.

1946 G.W., 10, 412-26.

 

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

    ‘Metapsychological Supplement to the Theory of Dreams’

1925 C.P., 4, 137-151. (Trad. C. M. Baines.)

 

A presente tradução inglesa, embora baseada na de 1925, foi amplamente reescrita.

Este artigo, juntamente com o seguinte (‘Luto e Melancolia’), parece ter sido escrito num período de onze dias, entre 23 de abril e 4 de maio de 1915, só tendo sido publicado dois anos depois. Como transparece em seu título, é essencialmente uma aplicação do esquema teórico recém-formulado de Freud às hipóteses apresentadas no Capítulo VII de A Interpretação de Sonhos. Termina, porém, por se transformar num exame dos efeitos produzidos pelo estado de sono sobre os diferentes ‘sistemas’ da mente. E esse exame, por sua vez, se concentra principalmente no problema da alucinação e numa investigação do modo como, em nosso estado normal, somos capazes de distinguir entre a fantasia e a realidade.

Freud se ocupou desse problema desde os primeiros tempos. Muito espaço foi dedicado a ele em seu ‘Projeto’ de 1895 (Freud, 1950a, especialmente na Parte I, Seções 15 e 16, e na Parte III, Seção 1). E a solução por ele proposta, embora enunciada numa terminologia diferente, se assemelha visivelmente à formulada no presente artigo. Abrangia duas linhas principais de pensamento. Freud argumentava que por si mesmos os ‘processos psíquicos primários’ não estabelecem qualquer distinção entre uma idéia e uma percepção; precisam, em primeiro lugar, ser inibidos pelos ‘processos psíquicos secundários’, que, por sua vez, só podem entrar em ação onde há um ‘ego’ com reserva suficientemente grande de catexia capaz de suprir a energia necessária para acionar a inibição. A finalidade da inibição consiste em dar tempo para que ‘indicações de realidade’ cheguem do aparelho perceptual. Mas, em segundo lugar, além dessa função inibidora e retardadora, o ego é também responsável por dirigir as catexias da ‘atenção’ (ver acima, em [1] e nota de rodapé) para o mundo externo, sem as quais as indicações da realidade não poderiam ser observadas.

Em A Interpretação de Sonhos (1900a), Edição Standard Brasileira, vol. V, págs. 603 e segs. e 636 e segs., IMAGO Editora, 1972, a função da inibição e da demora voltou a ser objeto de insistência como um fator essencial no processo de julgar se as coisas são ou não reais, tendo sido novamente atribuída ao ‘processo secundário’, embora o ego já não fosse mencionado como tal. A outra importante apreciação do assunto por parte de Freud está em seu artigo sobre ‘The Two Principles of Mental Functioning’ (1911b), onde pela primeira vez empregou a expressão ‘teste da realidade’. Mais uma vez aqui a característica de delonga do processo foi ressaltada, embora a função da atenção tenha passado a merecer maior consideração. Foi descrita como sendo um exame periódico do mundo externo e relacionada particularmente aos órgãos dos sentidos à consciência. É essa última faceta do problema, o papel desempenhado pelos sistemas Pcpt e Cs., que é principalmente examinada no artigo a seguir.

Contudo, o interesse de Freud pelo assunto de modo algum se esgotou com a presente apreciação. Em Group Psychology (1921c), por exemplo, atribuiu o trabalho de teste da realidade ao ideal do ego (Standard Ed., 18, 114) — uma atribuição que, no entanto, retirou logo depois, numa nota de rodapé no início do Capítulo III de The Ego and the Id (1923b). E agora, pela primeira vez desde o início de ‘Projeto’, o teste da realidade foi definitivamente atribuído ao ego. Num exame mais posterior ainda e particularmente interessante do assunto no artigo sobre ‘Negation’ (1925h), demonstrou-se que o teste da realidade depende da estreita relação genética do ego com os instrumentos da percepção sensorial. Naquele artigo, também (bem como no final do trabalho quase contemporâneo sobre o ‘Mystic Writing Pad‘ (1925a), havia outras referências ao hábito do ego de emitir catexias exploratórias periódicas para o mundo exterior — evidentemente uma alusão, em termos diferentes, ao que fora originalmente descrito como ‘atenção’. Mas em ‘Negation’ Freud levou ainda mais adiante a análise do teste da realidade, e rastreou todo o decorrer do seu desenvolvimento até chegar às relações objetais mais antigas do indivíduo.

O crescente interesse de Freud pela psicologia do ego em anos ulteriores levou-o a um exame mais detalhado das relações do ego com o mundo externo. Em dois breves artigos (1924b e 1924e), publicados logo após a The Ego and the Id, examinou a distinção entre a relação do ego com a realidade em neuroses e psicoses. E no artigo sobre ‘Fetishism’ (1927e) apresentou seu primeiro relato pormenorizado de um método de defesa do ego — ‘Verleugnung‘ (‘repúdio’ ou ‘negação’) — que anteriormente não fora claramente diferenciado da repressão, e que descrevia a reação do ego a uma realidade externa intolerável. Esse tema foi mais desenvolvido ainda em alguns dos últimos escritos de Freud, particularmente no Capítulo VII da obra póstuma Esboço de Psicanálise (1940a [1938] ).

 

SUPLEMENTO METAPSICOLÓGICO À TEORIA DOS SONHOS

 

Descobriremos em várias conexões até que ponto se beneficiarão nossas indagações, se certos estados e manifestações, que podem ser considerados como protótipos normais das afecções patológicas, forem evocados para fins comparativos. Entre estes podemos incluir tanto estados afetivos, como o pesar e o estar apaixonado, quanto o estado de sono e o fenômeno do sonhos.

Não estamos habituados a pensar muito no fato de que todas as noites os seres humanos põem de lado os invólucros com que envolvem sua pele, e qualquer coisa que possam usar como suplemento aos órgãos de seu corpo (na medida em que tenham conseguido compensar as deficiências desses órgãos por substitutos), por exemplo, os óculos, os cabelos e os dentes postiços, e assim por diante. Podemos acrescentar que, quando vão dormir, despem de modo inteiramente análogo suas mentes, pondo de lado a maioria de suas aquisições psíquicas. Assim, sob ambos os aspectos, aproximam-se consideravelmente da situação na qual começaram a vida. Somaticamente, o sono é uma reativação da existência intra-uterina, na medida em que atende às condições de repouso, calor e exclusão do estímulo; na realidade, durante o sono muitas pessoas retomam a posição fetal. O estado psíquico de uma pessoa adormecida se caracteriza por uma retirada quase completa do mundo circundante e de uma cessação de todo interesse por ele.

Na investigação dos estados psiconeuróticos, somos levados a ressaltar em cada um deles o que se conhece por regressões temporais, isto é, a quantidade de recessão de desenvolvimento que lhe é peculiar. Distinguimos duas dessas regressões — uma que afeta o desenvolvimento do ego, e outra, o da libido. No estado de sono, a última é levada ao ponto de restauração do narcisismo primitivo, enquanto a primeira remonta à etapa da satisfação alucinatória dos desejos. [ver em [1] adiante]

É, sem dúvida, o estudo dos sonhos que nos ensina o que sabemos das características psíquicas do estado de sono. É verdade que os sonhos só nos revelam aquele que sonha na medida em que ele não está dormindo; não obstante, estão fadados a revelar ao mesmo tempo características do próprio sono. Viemos a conhecer pela observação algumas peculiaridades dos sonhos que de início não pudemos compreender, mas que agora podemos encaixar no quadro sem dificuldade. Desse modo, sabemos que os sonhos são inteiramente egoístas e que a pessoa que desempenha o principal papel em suas cenas deve sempre ser reconhecida como aquela que sonha. Isso é agora facilmente explicado pelo narcisismo do estado de sono. O narcisismo e o egoísmo, na realidade, coincidem; a palavra narcisismo destina-se apenas a ressaltar o fato de que o egoísmo é também um fenômeno libidinal; ou, expressando-o de outra maneira, o narcisismo pode ser descrito como o complemento libidinal do egoísmo. A capacidade de ‘diagnóstico’ dos sonhos — um fenômeno geralmente reconhecido, mas considerado enigmático — se torna igualmente compreensível. Nos sonhos, a doença física incipiente é com freqüência detectada mais cedo e mais claramente do que na vida de vigília, e todas as sensações costumeiras do corpo assumem proporções gigantescas. Essa amplificação é por natureza hipocondríaca; depende da retirada de todas as catexias psíquicas do mundo externo para o ego, tornando possível o reconhecimento precoce das modificações corporais que, na vida de vigília, permaneceriam inobservadas ainda por algum tempo.

Um sonho nos diz que estava acontecendo alguma coisa que tendia a interromper o sono, e nos permite compreender de que maneira foi possível desviar essa interrupção. O resultado final é aquele que dorme, sonha e é capaz de continuar dormindo; a exigência interna que lutava por ocupá-lo foi substituída por uma experiência externa, cuja exigência foi eliminada. Um sonho é, portanto, entre outras coisas, uma projeção: uma externalização de um processo interno. Podemos recordar que já encontramos a projeção em outra parte, entre os meios adotados para defesa. Também o mecanismo de uma fobia histérica culmina no fato de que o indivíduo é capaz de se proteger mediante tentativas de fuga contra um perigo externo que ocupa o lugar de uma reivindicação instintual interna. Adiaremos, contudo, o estudo mais detalhado da projeção até que cheguemos a analisar a desordem narcisista na qual esse mecanismo desempenha um papel muito marcante.

De que forma, porém, pode surgir um caso em que a intenção de dormir se choca com uma interrupção? A interrupção pode provir de uma excitação interna ou de um estímulo externo. Consideremos primeiro o caso mais obscuro e mais interessante da interrupção que parte de dentro. A observação revela que os sonhos são instigados por resíduos do dia anterior — catexias do pensamento que não foram submetidas à retirada geral das catexias, mas retiveram, apesar disso, certa quantidade de interesse libidinal ou de outra natureza. Assim, o narcisismo do sono, desde o início, teve de abrir uma exceção nesse ponto, e é aqui que começa a formação de sonhos. Na análise, tomamos conhecimento desses ‘resíduos do dia’ sob a forma de pensamentos oníricos latentes e, por causa tanto de sua natureza quanto de toda a situação, devemos considerá-los como idéias pré-conscientes, pertencentes ao sistema Pcs.

Não podemos prosseguir com a explicação da formação dos sonhos até que certas dificuldades tenham sido superadas. O narcisismo do estado de sono implica uma retirada da catexia de todas as idéias de objetos, das parcelas tanto inconscientes quanto pré-conscientes dessas idéias. Então, se certos resíduos do dia retêm sua catexia, hesitamos em supor que, durante a noite, adquiram energia suficiente para exigir a atenção da consciência; ficaríamos mais inclinados a supor que a catexia retida é muito mais fraca do que a que possuíam durante o dia. Aqui a análise nos poupa ulteriores especulações, porquanto revela que, se esses resíduos do dia quiserem figurar como construtores de sonhos, devem receber um esforço que tem sua fonte nos impulsos instintuais inconscientes. Essa hipótese não apresenta dificuldades imediatas, pois temos todos os motivos para supor que, no sono, a censura entre o Pcs. e o Ics. fica grandemente reduzida, o que faz com que a comunicação entre os dois sistemas se torne mais fácil.

Mas há outra dúvida, sobre a qual não devemos silenciar. Se o estado narcisista do sono tiver resultado numa retração de todas as catexias dos sistemas Ics. e Pcs., então já não haverá qualquer possibilidade de que os resíduos pré-conscientes do dia venham a ser reforçados por impulsos instintuais inconscientes, visto que estes cederam suas catexias ao ego. Aqui, a teoria da formação dos sonhos termina numa contradição, a menos que possamos salvá-la mediante uma modificação em nossa suposição sobre o narcisismo do sono.

Uma modificação restritiva dessa natureza, como veremos posteriormente, também é necessária na teoria da demência precoce. Presumivelmente isso se deve ao fato de que a parcela reprimida do sistema Ics. não atende ao desejo de dormir proveniente do ego, de que retém sua catexia no todo ou em parte, e de que, em geral, em conseqüência da repressão, adquire certa independência do ego. Em conseqüência, também, parte do que é dispendido na repressão (anticatexia) — teria de ser mantida durante a noite inteira, a fim de fazer face ao perigo instintual — embora a inacessibilidade de todos os caminhos que levam a uma liberação do afeto e à motilidade possa reduzir consideravelmente a altura da anticatexia necessária. Assim, deveríamos configurar a situação que conduz à formação de sonhos da seguinte maneira. O desejo de dormir esforça-se por absorver todas as catexias transmitidas pelo ego e por estabelecer um narcisismo absoluto. Isso só pode ter um sucesso parcial, pois o que é reprimido no sistema Ics. não obedece ao desejo de dormir. Portanto, uma parte das anticatexias tem de ser mantida, e a censura entre o Ics. e o Pcs. deve permanecer, mesmo que não seja com toda a sua força. Até onde se estende o domínio do ego, todos os sistemas ficam esvaziados de catexias. Quanto mais fortes forem as catexias instintuais do Ics., mais instável será o sono. Estamos familiarizados também com o caso extremo em que o ego desiste do desejo de dormir, porque se sente incapaz de inibir os impulsos reprimidos liberados durante o sono — em outras palavras, em que renuncia ao sono por temer seus sonhos.

Adiante, aprenderemos a reconhecer a portentosa natureza dessa hipótese referente à rebeldia dos impulsos reprimidos. No momento, acompanhemos a situação que ocorre na formação de sonhos.

A possibilidade mencionada acima [ver em [1]] — de que alguns dos pensamentos pré-conscientes do dia também podem revelar-se resistentes e reter uma parte de sua catexia — deve ser reconhecida como uma segunda brecha no narcisismo. No fundo, os dois casos podem ser idênticos. A resistência dos resíduos do dia pode originar-se num elo com impulsos inconscientes, já existente durante a vida de vigília; ou o processo pode ser menos simples, e os resíduos do dia que não tenham sido inteiramente esvaziados de catexia só podem estabelecer uma conexão com o material reprimido depois da ocorrência do estado de sono, graças à facilitação da comunicação entre o Pcs. e o Ics. Em ambos os casos, segue-se o mesmo passo decisivo na formação de sonhos: forma-se o desejo onírico pré-consciente, e isso dá expressão ao impulso inconsciente no material dos resíduos pré-conscientes do dia.

Deve-se distinguir acentuadamente esse desejo onírico dos resíduos do dia; ele não precisa ter existido na vida de vigília e já pode exibir o caráter irracional possuído por tudo que é inconsciente quando o traduzimos para o consciente. Além disso, o desejo onírico não deve ser confundido com os impulsos carregados de desejo que podem estar presentes — embora, certamente, não precisem necessariamente estar presentes — entre os pensamentos oníricos pré-conscientes (latentes). Se, contudo, houvesse tais desejos pré-conscientes, o desejo onírico se associara a eles, como um reforço muito eficaz dos mesmos.

Temos agora de considerar as outras vicissitudes sofridas por esse impulso carregado de desejo, que em sua essência representa uma exigência instintual inconsciente e que se formou no Pcs. como um desejo onírico (uma fantasia que satisfaz o desejo). A reflexão nos diz que esse impulso carregado de desejo pode seguir três caminhos diferentes. Pode seguir o caminho que seria normal na vida de vigília, exercendo pressão do Pcs. para a consciência; pode desviar-se do Cs. e achar uma descarga motora direta; ou pode tomar o caminho inesperado que a observação nos permite de fato traçar. No primeiro caso, transformar-se-ia num delírio, tendo como conteúdo a satisfação do desejo; no estado do sono, porém, isso jamais acontece. Com nossos parcos conhecimentos das condições metapsicológicas dos processos mentais, talvez possamos aceitar esse fato como uma indicação de que um esvaziamento completo de um sistema o torna pouco suscetível à instigação. O segundo caso, o da descarga motora direta, deve ser excluído pelo mesmo princípio, pois geralmente o acesso à motilidade ainda fica outro passo além da censura da consciência. Mas não deixamos de encontrar casos excepcionais em que isso acontece, sob a forma de sonambulismo. Não conhecemos as condições que tornam isso possível, nem sabemos por que não ocorre com mais freqüência. O que de fato acontece na formação de sonhos é uma marcante e imprevista sucessão de eventos. O processo, iniciado no Pcs., e reforçado pelo Ics., segue um curso às avessas, através do Ics. até a percepção, que exerce pressão sobre a consciência. Essa regressão é a terceira fase da formação de sonhos. A bem da clareza, repetiremos as duas primeiras: o reforço dos resíduos do dia do Pcs. pelo Ics. e a formação do desejo onírico.

Chamaremos essa espécie de regressão de topografia, para distingui-la da regressão temporal ou de desenvolvimento mencionada previamente ver em [1]]. As duas nem sempre coincidem necessariamente, mas o fazem no exemplo específico diante de nós. A reversão do curso da excitação proveniente do Pcs., através do Ics. até a percepção, é ao mesmo tempo um retorno à etapa inicial da satisfação do desejo que ocorre na alucinação.

Já descrevemos em A Interpretação de Sonhos [Edição Standard Brasileira, Vol. V, pág. 578 e segs. IMAGO Editora, 1972] a forma pela qual a regressão dos resíduos pré-conscientes do dia ocorre na formação de sonhos. Nesse processo, os pensamentos são transformados em imagens, principalmente de natureza visual; isto é, as apresentações da palavra são levadas de volta às apresentações da coisa que lhes correspondem, como se, em geral, o processo fosse dominado por considerações de representabilidade [ibid., Vol. V, ver na pág. 548]. Quando a regressão é concluída, resta grande número de catexias no sistema Ics. — catexias de lembranças de coisas. Leva-se o processo psíquico primário a relacionar-se com essas lembranças, até que, pela condensação destas e pelo deslocamento entre suas respectivas catexias, tenha plasmado o conteúdo onírico manifesto. Somente quando as apresentações da palavra que ocorrem nos resíduos do dia são resíduos recentes e costumeiros de percepções, e não a expressão de pensamentos, é que são tratadas como apresentações da coisa, e sujeitas à influência da condensação e do deslocamento. Daí, a regra formulada em A Interpretação de Sonhos [ibid., Vol. V, ver na pág. 446 e segs.], e desde então confirmada, acima de qualquer dúvida, de que as palavras e as falas no conteúdo onírico não constituem novas formações, mas seguem o modelo de falas do dia que precedeu o sonho (ou de outras impressões recentes, tal como algo que se leu). É notável quão pouco a elaboração do sonho obedece às apresentações da palavra; ela está sempre pronta a trocar uma palavra por outra até encontrar a expressão mais conveniente para representação plástica.

É nesse sentido que a diferença essencial entre a elaboração de sonhos e a esquizofrenia se torna clara. Na última, o que se torna objeto de modificação pelo processo primário são as próprias palavras nas quais o pensamento pré-consciente foi expresso; nos sonhos, o que está sujeito a essa modificação não são as palavras, mas a apresentação da coisa à qual as palavras foram levadas de volta. Nos sonhos há uma regressão topográfica; na esquizofrenia, não. Nos sonhos existe livre comunicação entre catexias da palavra (Pcs.) e catexias da coisa (Ics.), enquanto é uma característica da esquizofrenia que essa comunicação seja interrompida. A impressão que essa diferença causa sobre alguém é diminuída precisamente pelas interpretações de sonho que realizamos na prática psicanalítica. Com efeito, devido ao fato de a interpretação de sonhos seguir o curso tomado pela elaboração de sonhos, ela segue os caminhos que vão dos pensamentos latentes aos elementos oníricos, revela a maneira pela qual as ambigüidades verbais são exploradas e ressalta as pontes verbais entre os diferentes grupos de material — devido a tudo isso, recebemos a impressão ora de um chiste, ora de esquizofrenia, e somos capazes de esquecer que para um sonho todas as operações com palavras não passam de preparação para uma regressão a coisas.

A conclusão do processo onírico consiste no conteúdo do pensamento — regressivamente transformado e elaborado numa fantasia carregada de desejo —, tornando-se consciente como uma percepção sensorial; enquanto isso ocorre, ele passa por uma revisão secundária, à qual todo conceito perceptual está sujeito. O desejo onírico, como dizemos, é alucinado, e, como uma alucinação, encontra-se com a crença na realidade de sua satisfação. É precisamente em torno dessa peça concludente na formação de sonhos que se centralizam as mais graves incertezas, e é com o propósito de elucidá-las que nos propomos comparar os sonhos com estados patológicos que lhes são afins.

A formação da fantasia carregada de desejo e a sua regressão à alucinação constituem as partes mais essenciais do trabalho onírico, mas não pertencem exclusivamente aos sonhos. São também encontradas em dois estados mórbidos: na confusão alucinatória aguda (‘amência’ de Meynert) e na fase alucinatória da esquizofrenia. O delírio alucinatório da amência é uma fantasia carregada de desejo claramente reconhecível, com freqüência inteiramente bem ordenada como um perfeito devaneio. Poder-se-ia falar de maneira bastante geral de uma ‘psicose alucinatória carregada de desejo’ e atribuí-la igualmente aos sonhos e à amência. Existem até sonhos que não passam de fantasias carregadas de desejo não distorcidas, com um conteúdo muito rico. A fase alucinatória da esquizofrenia tem sido estudada com menor aprofundamento; parece ser, em geral, de natureza composta, mas em sua essência poderia corresponder a uma nova tentativa de restituição, destinada a restaurar uma catexia libidinal às idéias de objetos. Não posso estender a comparação a outros estados alucinatórios em várias desordens patológicas, porque não tenho experiência própria nesses casos da qual me possa valer, e não posso utilizar a de outros observadores.

Queremos esclarecer que a psicose alucinatória carregada de desejo — nos sonhos ou em outras situações — alcança dois resultados que de modo algum são idênticos. Ela não só traz desejos ocultos ou reprimidos para a consciência, como também os representa, com toda a crença do indivíduo, como satisfeitos. A concomitância desses dois resultados exige explicação. É de todo impossível sustentar que os desejos inconscientes devem necessariamente ser considerados como realidades tão logo se tenham tornado conscientes, pois, como sabemos, somos capazes de distinguir as realidades de idéias e desejos, por mais intensos que possam ser. Por outro lado, parece justificável presumir que a crença na realidade está vinculada à percepção através dos sentidos. Uma vez que um pensamento tenha enveredado pela regressão até chegar aos traços de memória inconscientes dos objetos e daí à percepção, aceitamos essa percepção como real. Assim, a alucinação traz consigo a crença na realidade. Agora temos de nos perguntar o que é que determina a formação de uma alucinação. A primeira resposta seria a regressão, e isso substituiria o problema da origem da alucinação pelo do mecanismo da regressão. No tocante aos sonhos, esse último problema não precisa permanecer por muito tempo sem resposta. A regressão dos pensamentos oníricos do Pcs. às imagens mnêmicas das coisas constitui claramente o resultado da atração que os representantes instintuais do Ics. — por exemplo, lembranças reprimidas de experiências — exercem sobre os pensamentos postos em palavras. Mas logo percebemos que estamos numa pista falsa. Se o segredo da alucinação nada mais é que o da regressão, toda regressão com intensidade suficiente produziria alucinação com crença em sua realidade. Estamos, no entanto, bem familiarizados com situações nas quais em processo de reflexão regressiva traz à consciência imagens visuais mnêmicas muito claras, embora nem por isso as consideremos, por um momento que seja, como percepções reais. Além disso, poderíamos muito bem imaginar a elaboração de sonhos penetrando em imagens mnêmicas dessa natureza, tornando consciente para nós o que era previamente incon sciente, e nos expondo uma fantasia carregada de desejo que desperte nosso anseio, mas que não devemos considerar como uma real satisfação do desejo. A alucinação, portanto, deve ser algo mais que a revivescência regressiva de imagens mnêmicas que em si mesmas são Ics.

Além disso, tenhamos ainda em mente a grande importância prática de distinguir as percepções das idéias, por mais intensamente que sejam recordadas. Toda a nossa relação com o mundo externo, com a realidade, depende de nossa capacidade nesse sentido. Formulamos a ficção de que nem sempre possuímos essa capacidade e de que, no começo de nossa vida mental, de fato alucinamos o objeto que nos satisfaria quando sentimos necessidade disso. Mas em tal situação a satisfação não ocorreu, e essa falha deve ter feito com que logo criássemos algum dispositivo com a ajuda do qual fosse possível distinguir tais percepções carregadas de desejo de uma real satisfação e evitá-las no futuro. Em outras palavras, desistimos da satisfação alucinatória de nossos desejos ainda muito cedo e estabelecemos uma espécie de ‘teste da realidade’. Precisamos saber agora em que é que consistia esse teste da realidade e como a psicose alucinatória carregada de desejo que aparece nos sonhos, na amência e em condições semelhantes, consegue aboli-lo e restabelecer a antiga modalidade de satisfação.

A resposta poderá ser dada se agora passarmos a definir mais precisamente o terceiro de nossos sistemas psíquicos, o sistema Cs., que até o momento não distinguimos nitidamente do Pcs. Em A Interpretação de Sonhos já tínhamos sido levados a considerar a percepção consciente como a função de um sistema especial, ao qual atribuímos certas propriedades curiosas, e ao qual teremos agora bons motivos para atribuir também outras características. Podemos considerar esse sistema, lá denominado Pcpt., como coincidindo com o sistema Cs., de cuja atividade o tornar-se consciente em geral depende. Não obstante, mesmo assim, o fato de uma coisa se tornar consciente ainda não coincide inteiramente com o fato de ela pertencer a um sistema, pois aprendemos que é possível estarmos cônscios de imagens sensoriais mnêmicas às quais de forma alguma podemos permitir uma localização psíquica nos sistemas Cs. ou Pcpt.

Devemos, contudo, adiar o exame dessa dificuldade até que possamos focalizar nosso interesse no próprio sistema Cs. Por ora podemos presumir que a alucinação consiste numa catexia do sistema Cs. (Pcpt)., a qual, contudo, não se origina — como normalmente — do exterior, mas do interior, e que uma condição necessária para a ocorrência da alucinação é que a regressão seja levada longe o suficiente para alcançar esse próprio sistema, sendo, assim, capaz de passar pelo teste da realidade.

Num trecho anterior atribuímos ao organismo ainda inerme a capacidade de efetuar uma primeira orientação no mundo por meio de esas percepções, distinguindo ‘externo’ e ‘interno’ de acordo com a relação entre essas percepções e a ação muscular do organismo. Uma percepção que desaparece por meio de uma ação é reconhecida como externa, como realidade; nos casos em que tal ação tem influência, a percepção se origina dentro do próprio corpo do indivíduo — não é real. É valioso para o indivíduo possuir um meio como esse, que lhe permita reconhecer a realidade, que ao mesmo tempo o ajude a lidar com ela, e ele bem gostaria de estar equipado com um poder semelhante contra as reivindicações muitas vezes implacáveis de seus instintos. Eis por que se dá ao trabalho de transpor para fora o que se torna problemático dentro dele — isto é, a projetá-lo.

Essa função de orientar o indivíduo no mundo pela discriminação entre o que é interno e o que é externo deve agora, após pormenorizada dissecção do aparelho mental, ser exclusivamente atribuída ao sistema Cs. (Pcpt.). O Cs. deve ter à sua disposição uma inervação motora que determina se se pode fazer com que a percepção desapareça, ou se ela oferece resistência. O teste da realidade nada mais precisa ser do que esse dispositivo. Não podemos ser mais precisos sobre esse ponto, de uma vez que ainda sabemos muito pouco a respeito da natureza e da modalidade de funcionamento do sistema Cs. Situaremos o teste da realidade entre as principais instituições do ego, ao lado das censuras que viemos a reconhecer entre os sistemas psíquicos, e esperaremos que a análise das desordens narcisistas nos ajude a trazer à luz outras instituições semelhantes. [ver em [1].]

Por outro lado, já podemos aprender com a patologia a maneira pela qual o teste da realidade pode ser eliminado ou posto fora de ação. Veremos isso mais claramente na psicose carregada de desejo da amência do que na de sonhos. A amência é a reação a uma perda que a realidade afirma, mas que o ego tem de negar, por achá-la insuportável. Portanto, o ego rompe sua relação com a realidade; retira a catexia do sistema de percepções, Cs. — ou antes, talvez, retira uma catexia, cuja natureza especial pode ser objeto de indagação ulterior. Com esse desvio da realidade, o teste da realidade é posto de lado, as fantasias carregadas de desejo (irreprimidas, inteiramente conscientes) são capazes de exercer pressão avançando para dentro do sistema, sendo por ali consideradas como uma realidade melhor. Tal retirada pode ser equiparada aos processos de repressão. A amência apresenta o interessante espetáculo de um rompimento entre o ego e um dos seus órgãos — talvez o que tivesse sido o seu servidor mais fiel e estivesse mais intimamente vinculado a ele.

O que na amência é realizado por essa ‘repressão’, nos sonhos é realizado pela renúncia voluntária. O estado de sono não deseja conhecer coisa alguma do mundo externo; não se interessa pela realidade, ou só se interessa na medida em que o abandono do estado de sono — o despertar — se acha em causa. Por conseguinte, retira a catexia do sistema CS., bem como dos outros sistemas, do Pcs., e do Ics., na medida em que as catexias neles obedecem ao desejo de dormir. Com o sistema Cs. assim não-catexizado, a possibilidade do teste da realidade é abandonada, e as excitações que, independentemente do estado de sono, entraram no caminho da regressão, encontrarão esse caminho desimpedido até o sistema Cs., onde elas valerão como realidade indiscutida.

Quanto à psicose alucinatória da demência precoce, inferiremos de nosso exame que essa psicose não pode estar entre os sintomas iniciais da afecção. Só se torna possível quando o ego do paciente se acha de tal forma desintegrado, que o teste da realidade não atrapalha mais a alucinação.

No que diz respeito à psicologia dos processos oníricos chegamos ao resultado segundo o qual todas as características essenciais dos sonhos são determinadas pelo fator condicionante do sono. Aristóteles, há muito tempo, estava inteiramente certo ao afirmar, em seu modesto pronunciamento, que os sonhos constituem a atividade mental daquele que dorme. Podemos ampliar esse conceito e afirmar: os sonhos são um resíduo da atividade mental, tornado possível pelo fato de que o estado narcisista de sono não pôde ser completamente estabelecido. Isso não parece diferir muito daquilo que psicólogos e filósofos sempre afirmaram, mas se baseia em concepções bem diferentes sobre a estrutura e função do aparelho mental. Essas concepções têm uma vantagem sobre as anteriores: a de nos terem permitido compreender, também, todas as características pormenorizadas dos sonhos.

Finalmente, consideremos mais uma vez o significativo esclarecimento que a topografia do processo de repressão nos dá sobre o mecanismo das perturbações mentais. Nos sonhos, a retirada da catexia (libido ou interesse) afeta igualmente todos os sistemas; nas neuroses de transferência, a catexia do Pcs. é retirada; na esquizofrenia, a catexia do Ics.; na amência, a do Cs.

 

LUTO E MELANCOLIA (1917[1915])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS - TRAUER UND MELANCOLIE

 

 (a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1917 Int. Z. Psychoanal., 4 (6) 288-301.

1918 S.K.S.N., 4, 356-77. (1922, 2ª ed.)

1924 G.S., 5, 535-53.

1924 Technik und Metapsychol., 257-75.

1931 Theoretische Schriften, 157-77.

1946 G.W., 10, 428-46.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

     ‘Mourning and Melancholia’

1925 C.P., 4, 152-70. (Trad. Joan Riviere.)

 

A presente tradução inglesa, embora baseada na de 1925, foi amplamente reescrita.

Como sabemos pelo Dr. Ernest Jones (1955, 367-8), Freud lhe expusera o tema do presente artigo em janeiro de 1914, e falou sobre ele perante a Sociedade Psicanalítica de Viena em 30 de dezembro daquele ano. Escreveu um primeiro rascunho do artigo em fevereiro de 1915, tendo-o submetido à apreciação de Abraham, que lhe enviou extensos comentários, entre os quais a importante sugestão de que havia uma ligação entre a melancolia e a fase oral do desenvolvimento libidinal (pág. 255). O rascunho final do artigo foi concluído em 4 de maio de 1915, mas, como o anterior, só foi publicado dois anos depois.

Bem no início (provavelmente em janeiro de 1895), Freud enviara a Fliess uma elaborada tentativa de explicar a melancolia (sob cuja designação ele regularmente incluía o que agora em geral se descreve como estados de depressão) em termos puramente neurológicos (Freud, 1950a, Rascunho G).

Essa tentativa não se mostrou particularmente profícua, mas foi logo substituída por uma abordagem psicológica do assunto. Só dois anos depois encontramos um dos exemplos mais notáveis de previsão de Freud. Esta ocorre num manuscrito, também endereçado a Fliess, e trazendo o título ‘Notas (III)’. Esse manuscrito, datado de 31 de maio de 1897, é incidentalmente aquele no qual Freud, pela primeira vez, antecipa o complexo de Édipo (Freud, 1950a, Rascunho N.). O trecho em questão, cujo significado é tão condensado a ponto de ser obscuro em certas passagens, merece ser citado na íntegra:

‘Os impulsos hostis contra os pais (o desejo de que morram) são também um constituinte integrante das neuroses. Vêm à luz conscientemente como idéias obsessivas. Na paranóia, o que há de pior nos delírios de perseguição (desconfiança patológica de governantes e monarcas) corresponde a esses impulsos. São reprimidos quando a compaixão pelos pais é ativa — nas ocasiões de sua doença ou morte. Em tais ocasiões, é uma manifestação de luto recriminar-se a si próprio pela morte deles (o que se conhece como melancolia) ou punir-se a si mesmo de uma maneira histérica (por intermédio da idéia de retribuição) com os mesmos estados [de doença] que tenham tido. A identificação que ocorre aqui, como podemos ver, não passa de uma modalidade de pensar e não nos exime da necessidade de procurar o motivo.’

A aplicação à melancolia da linha de pensamento delineada neste trecho parece ter sido deixada completamente de lado por Freud. Realmente, ele raramente tornou a mencionar essa condição antes do presente artigo, salvo algumas observações num debate sobre suicídio na Sociedade Psicanalítica de Viena em 1910 (Edição Standard Brasileira, Vol. XI, pág. 218, IMAGO Editora, 1970), quando ressaltou a importância de traçar uma comparação entre a melancolia e os estados normais de luto, declarando, contudo, que o problema psicológico em jogo ainda era insolúvel.

O que permitiu a Freud reabrir o assunto foi, naturalmente, a introdução dos conceitos de narcisismo e de ideal do ego. O presente artigo poderá, talvez, ser considerado como um prolongamento do trabalho sobre narcisismo que Freud escrevera um ano antes (1914c). Do mesmo modo que aquele artigo havia descrito as atividades do ‘agente crítico’ em casos de paranóia (ver acima, em [1] e segs.), este vê o mesmo agente em atuação na melancolia.

Mas as implicações desse artigo estavam destinadas a ser mais importantes do que a explanação do mecanismo de um estado patológico específico, embora essas implicações não se tornassem imediatamente óbvias. O material contido aqui levou à consideração ulterior do ‘agente crítico’ que se encontra no Capítulo XI de Group Psychology (1921c), Standard Ed., 18, 129 e segs.; e isso por sua vez levou à hipótese do superego em The Ego and the Id (1923b) e a uma nova avaliação do sentimento de culpa.

Sob um outro aspecto, esse artigo exigia um exame de toda a questão da natureza da identificação. Parece que Freud se mostrou inclinado, de início, a considerá-la intimamente associada e, talvez, dependente da fase oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal. Assim, em Totem e Tabu (1912-13), Edição Standard Brasileira, Vol. XIII, pág. 170, IMAGO Editora, 1974, ele havia escrito, sobre a relação entre os filhos e o pai da horda primeva, que ‘no ato de devorá-lo realizavam sua identificação com ele’. E, mais uma vez, num trecho acrescentado à terceira edição dos Três Ensaios, publicado em 1915 mas escrito alguns meses antes do presente artigo, descreveu a fase oral canibalista como ‘o protótipo de um processo que, sob a forma de identificação, irá depois desempenhar um papel psicológico tão importante’. No presente artigo (ver em [1]), fala da identificação como ‘uma etapa preliminar da escolha objetal… a primeira forma pela qual o ego escolhe um “objeto”’, acrescentando que ‘o ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o’. E na realidade, embora Abraham possa ter sugerido a relevância da fase oral para a melancolia, o próprio Freud já começara a se interessar por ela, como se demonstra pelo exame disso na anamnese do ‘Homem dos Lobos’ (1918b), escrita durante o outono de 1914, na qual aquela fase desempenhou um papel proeminente. (Ver Standard Ed., 17, 106.) Alguns anos depois, em Group Psychology (1921c), Standard Ed., 18. 105 e segs., onde o tema da identificação é retomado, explicitamente em continuação ao presente exame, uma modificação do conceito anterior — ou talvez apenas um esclarecimento do mesmo — parece surgir. A identificação, aprendemos ali, é algo que precede a catexia objetal, sendo distinta dela, embora ele ainda diga que ‘ela se comporta como um derivado da primeira fase, a oral’. Esse conceito de identificação é reiteradamente ressaltado em muitos dos escritos ulteriores de Freud, como, por exemplo, no Capítulo III de The Ego and the Id (1923b), onde ele escreve que a identificação com os pais ‘aparentemente não é, inicialmente, a conseqüência ou resultado de uma catexia objetal; é uma identificação direta e imediata, e se verifica mais cedo do que qualquer catexia objetal’.

O que mais tarde Freud parece ter considerado a característica mais significante deste artigo foi, contudo, o relato do processo pelo qual, na melancolia, uma catexia objetal é substituída por uma identificação. No Cap. III de The Ego and the Id, argumentou que esse processo não se restringe à melancolia, mas é de ocorrência bastante geral. Essas identificações regressivas, ressaltou ele, são, em grande medida, a base do que descrevemos como o ‘caráter’ de uma pessoa. Mas, e isso era muito mais importante, ele sugeriu que as mais antigas dessas identificações regressivas — as derivadas da dissolução do complexo de Édipo — vêm ocupar uma posição muito especial, e formam, de fato, o núcleo do superego.

 

LUTO E MELANCOLIA

 

Tendo os sonhos nos servido de protótipo das perturbações mentais narcisistas na vida normal, tentaremos agora lançar alguma luz sobre a natureza da melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto. Dessa vez, porém, devemos começar por fazer uma confissão, como advertência contra qualquer superestimação do valor de nossas conclusões. A melancolia, cuja definição varia inclusive na psiquiatria descritiva, assume várias formas clínicas, cujo agrupamento numa única unidade não parece ter sido estabelecido com certeza, sendo que algumas dessas formas sugerem afecções antes somáticas do que psicogênicas. Nosso material, independentemente de tais impressões acessíveis a todo observador, limita-se a um pequeno número de casos de natureza psicogênica indiscutível. Desde o início, portanto abandonaremos toda e qualquer reivindicação à validade geral de nossas conclusões, e nos consolaremos com a reflexão de que, com os meios de pesquisa à nossa disposição hoje em dia, dificilmente descobriríamos alguma coisa que não fosse típica, se não de toda uma classe de perturbações, pelo menos de um pequeno grupo delas.

A correlação entre a melancolia e o luto parece ser justificada pelo quadro geral dessas duas condições. Além disso, as causas excitantes devidas a influências ambientais são, na medida em que podemos discerni-las, as mesmas para ambas as condições. O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por conseguinte, suspeitamos de que essas pessoas possuem uma disposição patológica. Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele.

Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-se um pouco mais inteligível quando consideramos que, com uma única exceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação da auto-estima está ausente no luto; afora isso, porém, as características são as mesmas. O luto profundo, a reação à perda de alguém que se ama, encerra o mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda de interesse pelo mundo externo — na medida em que este não evoca esse alguém —, a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele. É fácil constatar que essa inibição e circunscrisão do ego é expressão de uma exclusiva devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses. E, realmente, só porque sabemos explicá-la tão bem é que essa atitude não nos parece patológica.

Parece-nos também uma comparação adequada chamar a disposição para o luto de ‘dolorosa’. É bem provável que vejamos a justificação disso quando estivermos em condições de apresentar uma caracterização da economia da dor.

Em que consiste, portanto, o trabalho que o luto realiza? Não me parece forçado apresentá-lo da forma que se segue. O teste da realidade revelou que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Essa exigência provoca uma oposição compreensível — é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena. Esta oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo. Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. Por que essa transigência, pela qual o domínio da realidade se faz fragmentariamente, deve ser tão extraordinariamente penosa, de forma alguma é coisa fácil de explicar em termos de economia. É notável que esse penoso desprazer seja aceito por nós como algo natural. Contudo, o fato é que, quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido.

Apliquemos agora à melancolia o que aprendemos sobre o luto. Num conjunto de casos é evidente que a melancolia também pode constituir reação à perda de um objeto amado. Onde as causas excitantes se mostram diferentes, pode-se reconhecer que existe uma perda de natureza mais ideal. O objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor (como no caso, por exemplo, de uma noiva que tenha levado o fora). Ainda em outros casos nos sentimos justificados em sustentar a crença de que uma perda dessa espécie ocorreu; não podemos, porém, ver claramente o que foi perdido, sendo de todo razoável supor que também o paciente não pode conscientemente receber o que perdeu. Isso, realmente, talvez ocorra dessa forma, mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso sugeriria que a melancolia está de alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da perda.

No luto, verificamos que a inibição e a perda de interesse são plenamente explicadas pelo trabalho do luto no qual o ego é absorvido. Na melancolia, a perda desconhecida resultará num trabalho interno semelhante, e será, portanto, responsável pela inibição melancólica. A diferença consiste em que a inibição do melancólico nos parece enigmática porque não podemos ver o que é que o está absorvendo tão completamente. O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no luto — uma diminuição extraordinária de sua auto-estima, um empobrecimento de seu ego em grande escala. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego. O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível. Não acha que uma mudança se tenha processado nele, mas estende sua autocrítica até o passado, declarando que nunca foi melhor. Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) é completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e — o que é psicologicamente notável — por uma superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida.

Seria igualmente infrutífero, de um ponto de vista científico e terapêutico, contradizer um paciente que faz tais acusações contra seu ego. Certamente, de alguma forma ele deve estar com a razão, e descreve algo que é como lhe parece ser. Devemos, portanto, confirmar de imediato, e sem reservas, algumas de suas declarações. Ele se encontra, de fato, tão desinteressado e tão incapaz de amor e de realização quanto afirma. Mas isso, como sabemos, é secundário; trata-se do efeito do trabalho interno que lhe consome o ego — trabalho que, nos sendo desconhecido, é, porém, comparável ao do luto. O paciente também nos parece justificado em fazer outras auto-acusações; apenas, ele dispõe de uma visão mais penetrante da verdade do que outras pessoas que não são melancólicas. Quando, em sua exacerbada autocrítica, ele se descreve como mesquinho, egoísta, desonesto, carente de independência, alguém cujo único objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza, pode ser, até onde sabemos, que tenha chegado bem perto de se compreender a si mesmo; ficamos imaginando, tão-somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie. Com efeito, não pode haver dúvida de que todo aquele que sustenta e comunica a outros uma opinião de si mesmo como esta (opinião que Hamlet tinha a respeito tanto de si quanto de todo mundo), está doente, quer fale a verdade, quer se mostre mais ou menos injusto para consigo mesmo. Tampouco é difícil ver que, até onde podemos julgar, não há correspondência entre o grau de autodegradação e sua real justificação. Uma mulher boa, capaz e conscienciosa, não terá palavras mais elogiosas para si mesma, durante a melancolia, do que uma que de fato seja desprovida de valor; realmente, talvez a primeira tenha mais probabilidades de contrair a doença do que a segunda, a cujo respeito também nós nada teríamos a dizer de bom. Por fim, deve ocorrer-nos que, afinal de contas, o melancólico não se comporta da mesma maneira que uma pessoa esmagada, de uma forma normal, pelo remorso e pela auto-recriminação. Sentimentos de vergonha diante de outras pessoas, que, mais do qualquer outra coisa, caracterizariam essa última condição, faltam ao melancólico, ou pelo menos não são proeminentes nele. Poder-se-ia ressaltar a presença nele de um traço quase oposto, de uma insistente comunicabilidade, que encontra satisfação no desmascaramento de si mesmo.

O ponto essencial, portanto, não consiste em saber se a autodifamação aflitiva do melancólico é correta, no sentido de que sua autocrítica esteja de acordo com a opinião de outras pessoas. O ponto consiste, antes, em saber se ele está apresentando uma descrição correta de sua situação psicológica. Ele perdeu seu amor-próprio e deve ter tido boas razões para tanto. É verdade que então nos deparamos com uma contradição que coloca um problema de difícil solução. A analogia com o luto nos levou a concluir que ele sofrera uma perda relativa a um objeto; o que o paciente nos diz aponta para uma perda relativa a seu ego.

Antes de passarmos a essa contradição, detenhamo-nos um pouco no conceito que a perturbação do melancólico oferece a respeito da constituição do ego humano. Vemos como nele uma parte do ego se coloca contra a outra, julga-a criticamente, e, por assim dizer, toma-a como seu objeto. Nossa desconfiança de que o agente crítico, que aqui se separa do ego, talvez também revele sua independência em outras circunstâncias, será confirmada ao longo de toda a observação ulterior. Realmente, encontraremos fundamentos para distinguir esse agente do restante do ego. Aqui, estamo-nos familiarizando com o agente comumente denominado ‘consciência’; vamos incluí-lo, juntamente com a censura da consciência e do teste da realidade, entre as principais instituições do ego, e poderemos provar que ela pode ficar doente por sua própria causa. No quadro clínico da melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por motivos de ordem moral, a característica mais marcante. Freqüentemente, a auto-avaliação do paciente se preocupa muito menos com a enfermidade do corpo, a feiúra ou a fraqueza, ou com a inferioridade social; quanto a essa categoria, somente seu temor da pobreza e as afirmações de que vai ficar pobre ocupam posição proeminente.

Há uma observação, de modo algum difícil de ser feita, que leva à explicação da contradição mencionada acima [no fim do penúltimo parágrafo]. Se se ouvir pacientemente as muitas e variadas auto-acusações de um melancólico, não se poderá evitar, no fim, a impressão de que freqüentemente as mais violentas delas dificilmente se aplicam ao próprio paciente, mas que, com ligeiras modificações, se ajustam realmente a outrem, a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar. Toda vez que se examinam os fatos, essa conjectura é confirmada. É assim que encontramos a chave do quadro clínico: percebemos que as auto-recriminações são recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para o ego do próprio paciente.

A mulher que lamenta em altos brados o fato de o marido estar preso a uma esposa incapaz como ela, na verdade está acusando o marido de ser incapaz, não importando o sentido que ela possa atribuir a isso. Não há por que se surpreender com o fato de haver algumas auto-recriminações autênticas difundidas entre as que foram transpostas. Permite-se que estas se intrometam, de uma vez que ajudam a mascarar as outras e a tornar impossível o reconhecimento do verdadeiro estado de coisas. Além disso, elas derivam dos prós e dos contras do conflito amoroso que levou à perda do amor. Também o comportamento dos pacientes, agora, se torna bem mais inteligível. Suas queixas são realmente ‘queixumes’, no sentido antigo da palavra. Eles não se envergonham nem se ocultam, já que tudo de desairoso que dizem sobre eles próprios refere-se, no fundo, à outra pessoa. Além disso, estão longe de demonstrar perante aqueles que o cercam uma atitude de humildade e submissão, única que caberia a pessoas tão desprezíveis. Pelo contrário, tornam-se as pessoas mais maçantes, dando sempre a impressão de que se sentem desconsideradas e de que foram tratadas com grande injustiça. Tudo isso só é possível porque as reações expressas em seu comportamento ainda procedem de uma constelação mental de revolta, que, por um certo processo, passou então para o estado esmagado de melancolia.

Não é difícil reconstruir esse processo. Existem, num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular; então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal — uma retirada da libido desse objeto e um deslocamento da mesma para um novo —, mas algo diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação.

Uma ou duas coisas podem ser diretamente inferidas no tocante às precondições e aos efeitos de um processo como este. Por um lado, uma forte fixação no objeto amado deve ter estado presente; por outro, em contradição a isso, a catexia objetal deve ter tido pouco poder de resistência. Conforme Otto Rank observou com propriedade, essa contradição parece implicar que a escolha objetal é efetuada numa base narcisista, de modo que a catexia objetal, ao se defrontar com obstáculos, pode retroceder para o narcisismo. A identificação narcisista com o objeto se torna, então, um substituto da catexia erótica, e, em conseqüência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso renunciar à relação amorosa. Essa substituição da identificação pelo amor objetal constitui importante mecanismo nas afecções narcisistas; Karl Laudauer (1914), recentemente, teve ocasião de indicá-lo no processo de recuperação num caso de esquizofrenia. Ele representa, naturalmente, uma regressão de um tipo de escolha objetal para o narcisismo original. Mostramos em outro ponto que a identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal, que é a primeira forma — e uma forma expressa de maneira ambivalente — pela qual o ego escolhe um objeto. O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o. Abraham, sem dúvida, tem razão em atribuir a essa conexão a recusa de alimento encontrada em formas graves de melancolia.

A conclusão que nossa teoria exigiria — a saber, que a tendência a adoecer de melancolia (ou parte dessa tendência) reside na predominância do tipo narcisista da escolha objetal — infelizmente ainda não foi confirmada pela observação. Nas observações introdutórias deste artigo, admiti que o material empírico em que se fundamentou este estudo é insuficiente para as nossas necessidades. Se pudéssemos presumir um acordo entre os resultados da observação e o que inferimos, não hesitaríamos em incluir em nossa caracterização da melancolia essa regressão da catexia objetal para a fase oral ainda narcisista da libido. Também nas neuroses de transferência as identificações com o objeto de modo algum são raras; na realidade, constituem um conhecido mecanismo de formação de sintomas, especialmente na histeria. Contudo, a diferença entre a identificação narcisista e a histérica pode residir no seguinte: ao passo que na primeira a catexia objetal é abandonada, na segunda persiste e manifesta sua influência, embora isso em geral esteja confinado a certas ações e inervações isoladas. Seja como for, também nas neuroses de transferência a identificação é a expressão da existência de algo em comum, que pode significar amor. A identificação narcisista é a mais antiga das duas e prepara o caminho para uma compreensão da identificação histérica, que tem sido estudada menos profundamente.

A melancolia, portanto, toma emprestado do luto alguns dos seus traços e, do processo de regressão, desde a escolha objetal narcisista para o narcisismo, os outros. É por um lado, como o luto, uma reação à perda real de um objeto amado; mas, acima de tudo isso, é assinalada por uma determinante que se acha ausente no luto normal ou que, se estiver presente, transforma este em luto patológico. A perda de um objeto amoroso constitui excelente oportunidade para que a ambivalência nas relações amorosas se faça efetiva e manifesta. Onde existe uma disposição para a neurose obsessiva, o conflito devido à ambivalência empresta um cunho patológico ao luto, forçando-o a expressar-se sob forma de auto-recriminação, no sentido de que a própria pessoa enlutada é culpada pela perda do objeto amado, isto é, que ela a desejou. Esses estados obsessivos de depressão que se seguem à morte de uma pessoa amada revelam-nos o que o conflito devido à ambivalência pode alcançar por si mesmo quando também não há uma retração regressiva da libido. Na melancolia, as ocasiões que dão margem à doença vão, em sua maior parte, além do caso nítido de uma perda por morte, incluindo as situações de desconsideração, desprezo ou desapontamento, que podem trazer para a relação sentimentos opostos de amor e ódio, ou reforçar uma ambivalência já existente. Esse conflito devido à ambivalência, que por vezes surge mais de experiências reais, por vezes mais de fatores constitucionais, não deve ser desprezado entre as precondições da melancolia. Se o amor pelo objeto — um amor que não pode ser renunciado, embora o próprio objeto o seja — se refugiar na identificação narcisista, então o ódio entra em ação nesse objeto substitutivo, dele abusando, degradando-o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento. A autotortura na melancolia, sem dúvida agradável, significa, do mesmo modo que o fenômeno correspondente na neurose obsessiva, uma satisfação das tendências do sadismo e do ódio relacionadas a um objeto, que retornaram ao próprio eu do indivíduo nas formas que vimos examinando. Via de regra, em ambas as desordens, os pacientes ainda conseguem, pelo caminho indireto da autopunição, vingar-se do objeto original e torturar o ente amado através de sua doença, à qual recorrem a fim de evitar a necessidade de expressar abertamente sua hostilidade para com ele. Afinal de contas, a pessoa que ocasionou a desordem emocional do paciente, e na qual na doença se centraliza, em geral se encontra eu seu ambiente imediato. A catexia erótica do melancólico no tocante a seu objeto sofreu assim uma dupla vicissitude: parte dela retrocedeu à identificação, mas a outra parte, sob a influência do conflito devido à ‘ambivalência’, foi levada de volta à etapa de sadismo que se acha mais próxima do conflito.

É exclusivamente esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante — e tão perigosa. Tão imenso é o amor de si mesmo do ego (self-love), que chegamos a reconhecer como sendo o estado primevo do qual provém a vida instintual, e tão vasta é a quantidade de libido narcisista que vemos liberada no medo surgido de uma ameaça à vida, que não podemos conceber como esse ego consente em sua própria destruição. De há muito, é verdade, sabemos que nenhum neurótico abriga pensamentos de suicídio que não consistam em impulsos assassinos contra outros, que ele volta contra si mesmo, mas jamais fomos capazes de explicar que forças interagem para levar a cabo esse propósito. A análise da melancolia mostra agora que o ego só pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal, puder tratar a si mesmo como um objeto — se for capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto, e que representa a reação original do ego para com objetos do mundo externo. Assim, na regressão desde a escolha objetal narcisista, é verdade que nos livramos do objeto; ele, não obstante, se revelou mais poderoso do que o próprio ego. Nas duas situações opostas, de paixão intensa e de suicídio, o ego é dominado pelo objeto, embora de maneiras totalmente diferentes.

 

Quanto ao marcante traço particular da melancolia que mencionamos [ver em[1]], a proeminência do medo de ficar pobre, parece plausível supor que se origina do erotismo anal que foi arrancado de seu contexto e alterado num sentido regressivo.

A melancolia ainda nos confronta com outros problemas, cuja resposta em parte nos escapa. O fato de desaparecer após certo tempo, sem deixar quaisquer vestígios de grandes alterações, é uma característica que ela compartilha com o luto. Verificamos, à guisa de explanação [ver em [1] e [2]], que, no luto, se necessita de tempo para que o domínio do teste da realidade seja levado a efeito em detalhe, e que, uma vez realizado esse trabalho, o ego consegue libertar sua libido do objeto perdido. Podemos imaginar que o ego se ocupa com um trabalho análogo no decorrer de uma melancolia; em nenhum dos dois casos dispomos de qualquer compreensão interna (insight) da economia do curso dos eventos. Na melancolia, a insônia atesta a rigidez da condição, a impossibilidade de se efetuar o retraimento geral das catexias necessário ao sono. O complexo de melancolia se comporta como uma ferida aberta, atraindo a si as energias catexiais — que nas neuroses de transferência denominamos de ‘anticatexias’ — provenientes de todas as direções, e esvaziando o ego até este ficar totalmente empobrecido. Facilmente, esse complexo pode provar ser resistente ao desejo, por parte do ego, de dormir.

O que provavelmente é um fator somático, fator este que não pode ser explicado psicologicamente, torna-se visível na melhoria regular da condição, que se verifica por volta do anoitecer. Essas considerações nos levam a perguntar se uma perda no ego, independentemente do objeto — um golpe puramente narcisista contra o ego —, não bastará para produzir o quadro de melancolia, e se um empobrecimento da libido do ego, diretamente por causa de toxinas, não será capaz de produzir certas formas da doença.

A característica mais notável da melancolia, e aquela que mais precisa de explicação, é sua tendência a se transformar em mania — estado este que é o oposto dela em seus sintomas. Como sabemos, isso não acontece a toda melancolia. Alguns casos seguem seu curso em recaídas periódicas, entre cujos intervalos sinais de mania talvez estejam inteiramente ausentes ou sejam apenas muito leves. Outros revelam a alteração regular de fases melancólicas e maníacas que leva à hipótese de uma insanidade circular. Veríamo-nos tentados a considerar esses casos como não sendo psicogênicos, se não fosse o fato de que o método psicanalítico conseguiu chegar a uma solução e efetuar uma melhoria terapêutica em vários casos precisamente dessa espécie. Não é apenas permissível, portanto, mas imperioso, estender uma explanação analítica da melancolia também à mania.

Não posso prometer que essa tentativa venha a ser inteiramente satisfatória. Mal nos leva além da possibilidade de tomarmos nossa orientação inicial. Temos duas coisas a empreender: a primeira é uma impressão psicanalítica; a segunda, o que talvez possamos chamar de um tema de experiência econômica geral. A impressão que vários investigadores psicanalíticos já puseram em palavras é que o conteúdo da mania em nada difere do da melancolia, que ambas as desordens lutam com o mesmo ‘complexo’, mas que provavelmente, na melancolia, o ego sucumbe ao complexo, ao passo que, na mania, domina-o ou o põe de lado. Nosso segundo indicador é proporcionado pela observação de que todos os estados, tais como a alegria, a exultação ou o triunfo, que nos fornecem o modelo normal para a mania, dependem das mesmas condições econômicas. Aqui, aconteceu que, como resultado de alguma influência, um grande dispêndio de energia psíquica, de há muito mantido ou que ocorre habitualmente, finalmente se torna desnecessário, de modo que se encontra disponível para numerosas aplicações e possibilidades de descarga — quando, por exemplo, algum pobre miserável, ganhando uma grande soma de dinheiro, fica subitamente aliviado da preocupação crônica com seu pão de cada dia, ou quando uma longa e árdua luta se vê afinal coroada de êxito, ou quando um homem se encontra em condições de se desfazer, de um só golpe, de alguma compulsão opressiva, alguma posição falsa que teve de manter por muito tempo, e assim por diante. Todas essas situações se caracterizam pela animação, pelos sinais de descarga de uma emoção jubilosa e por maior disposição para todas as espécies de ação — da mesma maneira que na mania, e em completo contraste com a depressão e a inibição da melancolia. Podemos aventurar-nos a afirmar que a mania nada mais é do que um triunfo desse tipo; só que aqui, mais uma vez, aquilo que o ego dominou e aquilo sobre o qual está triunfando permanecem ocultos dele. A embriaguez alcoólica, que pertence à mesma classe de estados, pode (na medida em que é de exaltação) ser explicada da mesma maneira; aqui, provavelmente, ocorre uma suspensão, produzida por toxinas, de dispêndios de energia na repressão. A opinião popular gosta de presumir que uma pessoa num estado maníaco desse tipo se deleita no movimento e na ação porque ela é muito ‘alegre’. Naturalmente, essa falsa conexão deve ser corrigida. O fato é que a condição econômica na mente do indivíduo, mencionada acima, foi atendida, sendo essa a razão por que ele se acha tão animado, por um lado, e tão desinibido em sua ação, por outro.

Se reunirmos essas duas indicações, encontraremos o seguinte. Na mania, o ego deve ter superado a perda do objeto (ou seu luto pela perda, ou talvez o próprio objeto), e, conseqüentemente, toda a quota de anticatexia que o penoso sofrimento da melancolia tinha atraído para si vinda do ego e ‘vinculado’ se terá tornado disponível [ver em [1]]. Além disso, o indivíduo maníaco demonstra claramente sua liberação do objeto que causou seu sofrimento, procurando, como um homem vorazmente faminto, novas catexias objetais.

Essa explicação certamente parece plausível, mas, em primeiro lugar, é por demais idefinida, e, em segundo, dá margem a mais novos problemas e dúvidas do que podemos responder. Não fugiremos a um exame dos mesmos, embora não possamos esperar que esse exame nos leve a uma compreensão nítida.

Em primeiro lugar, também o luto normal supera a perda de objeto, e também, enquanto persiste, absorve todas as energias do ego. Por que, então, depois de seguir seu curso, não há, em seu caso, qualquer indício da condição econômica necessária a uma fase de triunfo? Acho impossível responder a essa objeção diretamente. Também chama a nossa atenção para o fato de que nem sequer conhecemos os meios econômicos pelos quais o luto executa sua tarefa [ver em [1]]. Possivelmente, contudo, uma conjectura nos ajudará aqui. Cada uma das lembranças e situações de expectativa que demonstram a ligação da libido ao objeto perdido se defrontam com o veredicto da realidade segundo o qual o objeto não mais existe; e o ego, confrontado, por assim dizer, com a questão de saber se partilhará desse destino, é persuadido, pela soma das satisfações narcisistas que deriva de estar vivo, a romper sua ligação com o objeto abolido. Talvez possamos supor que esse trabalho de rompimento seja tão lento e gradual, que, na ocasião em que tiver sido concluído, o dispêndio de energia necessária a ele também se tenha dissipado.

É tentador continuar a partir dessa conjectura sobre o trabalho do luto e tentar apresentar um relato do trabalho da melancolia. Aqui, de início, nos defrontamos com uma incerteza. Até agora, quase não consideramos a melancolia do ponto de vista topográfico, nem perguntamos a nós mesmos, nesse meio tempo, em que ou entre que sistemas psíquicos o trabalho de melancolia se processa. Que parte dos processos mentais da doença ainda se verifica em conexão com as catexias objetais inconscientes abandonadas, e que parte em conexão com seu substituto, por identificação, no ego?

A resposta rápida e fácil é que ‘a apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido’. Na realidade, contudo, essa apresentação é composta de inumeráveis impressões isoladas (ou traços inconscientes delas) e essa retirada da libido não é um processo que possa ser realizado num momento, mas deve, por certo, como no luto, ser um processo extremamente prolongado e gradual. Se ele começa simultaneamente em vários pontos ou se segue alguma espécie de seqüência fixa não é fácil decidir; nas análises, torna-se freqüentemente evidente que primeiro uma lembrança, e depois outra, é ativada, e que os lamentos que soam sempre como os mesmos, e são tediosos em sua monotonia, procedem, não obstante, cada vez de uma fonte inconsciente diferente. Se o objeto não possui uma tão grande importância para o ego — importância reforçada por mil elos —, então também sua perda não será suficiente para provocar quer o luto, quer a melancolia. Essa característica de separar pouco a pouco a libido deve, portanto, ser atribuída de igual modo ao luto e à melancolia, sendo provavelmente apoiada pela mesma situação econômica e servindo aos mesmos propósitos em ambos.

Como já vimos, contudo [ver em [1] e segs.], a melancolia contém algo mais que o luto normal. Na melancolia, a relação com o objeto não é simples; ela é complicada pelo conflito devido a uma ambivalência. Esta ou é constitucional, isto é, um elemento de toda relação amorosa formada por esse ego particular, ou provém precisamente daquelas experiências que envolveram a ameaça da perda do objeto. Por esse motivo, as causas excitantes da melancolia têm uma amplitude muito maior do que as do luto, que é, na maioria das vezes, ocasionado por uma perda real do objeto, por sua morte. Na melancolia, em conseqüência, travam-se inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se digladiam; um procura separar a libido do objeto, o outro, defender essa posição da libido contra o assédio. A localização dessas lutas isoladas só pode ser atribuída ao sistema Ics., a região dos traços de memória de coisas (em contraste com as catexias da palavra). No luto, também, os esforços para separar a libido são envidados nesse mesmo sistema; mas nele nada impede que esses processos sigam o caminho normal através do Pcs. até a consciência. Esse caminho, devido talvez a um certo número de causas ou a uma combinação delas, está bloqueado para o trabalho da melancolia. A ambivalência constitucional pertence por natureza ao reprimido; as experiências traumáticas em relação ao objeto podem ter ativado outro material reprimido. Assim, tudo que tem que ver com essas lutas devidas à ambivalência permanece retirado da consciência, até que o resultado característico da melancolia se fixe. Isso, como sabemos, consiste no abandono, por fim, do objeto pela catexia libidinal ameaçada, só que, porém, para recuar ao local do ego de onde tinha provindo. Dessa forma, refugiando-se no ego, o amor escapa à extinção. Após essa regressão da libido, o processo pode tornar-se consciente, sendo representado à consciência como um conflito entre uma parte do ego e o agente crítico.

No trabalho da melancolia, portanto, a consciência está cônscia de uma parte que não é essencial, e nem sequer é uma parte à qual possamos atribuir o mérito de ter contribuído para o término da doença. Vemos que o ego se degrada e se enfurece contra si mesmo, e compreendemos tão pouco quanto o paciente a que é que isso pode levar e como pode modificar-se. De forma mais imediata, podemos atribuir tal função à parte inconsciente do trabalho, pois não é difícil perceber uma analogia essencial entre o trabalho da melancolia e o do luto. Do mesmo modo que o luto compele o ego a desistir do objeto, declarando-o morto e oferecendo ao ego o incentivo de continuar a viver [ver em [1]], assim também cada luta isolada da ambivalência distende a fixação da libido ao objeto, depreciando-o, denegrindo-o e mesmo, por assim dizer, matando-o. É possível que o processo no Ics. chegue a um fim, quer após a fúria ter-se dissipado, quer após o objeto ter sido abandonado como destituído de valor. Não podemos dizer qual dessas duas possibilidades é a regular ou a mais usual para levar a melancolia a um fim, nem que influência esse término exerce sobre o futuro curso do caso. O ego pode derivar daí a satisfação de saber que é o melhor dos dois, que é superior ao objeto.

Mesmo que aceitemos esse conceito a respeito do trabalho da melancolia, ele ainda não proporciona uma explanação do único ponto que nos interessa esclarecer. Esperávamos que a condição econômica para o surgimento da mania, após a melancolia ter seguido o seu curso, fosse encontrada na ambivalência que domina essa afecção, e nisso encontramos um apoio proveniente de analogias em vários outros campos. Mas existe um fato diante do qual essa expectativa tem de se render. Das três precondições da melancolia — perda do objeto, ambivalência e regressão da libido ao ego —, as duas primeiras também se encontram nas auto-recriminações obsessivas que surgem depois da ocorrência de uma morte. Indubitavelmente, nesses caso é a ambivalência que constitui a força motora do conflito, revelando-nos a observação que, depois de determinado o conflito, nada mais resta que se assemelhe ao triunfo de um estado de mente maníaco. Somos levados assim a considerar o terceiro fator como o único responsável pelo resultado. O acúmulo de catexia que, de início, fica vinculado e, terminado o trabalho da melancolia, se torna livre, fazendo com que a mania seja possível, deve ser ligado à regressão da libido ao narcisismo. O conflito dentro do ego, que a melancolia substitui pela luta pelo objeto, deve atuar como uma ferida dolorosa que exige uma anticatexia extraordinariamente elevada. — Aqui, porém, mais uma vez, será bom parar e adiar qualquer outra explicação da mania até que tenhamos obtido certa compreensão interna (insight) da natureza econômica, primeiro da dor física, depois da dor mental análoga a ela. Conforme já sabemos, a interdependência dos complicados problemas da mente nos força a interromper qualquer indagação antes que esta esteja concluída — até que o resultado de uma outra indagação possa vir em sua ajuda.

 

APÊNDICE: RELAÇÃO DOS TRABALHOS DE FREUD QUE TRATAM PRINCIPALMENTE DA TEORIA PSICOLÓGICA GERAL

 

[Cada título vem precedido de uma data que corresponde ao ano durante o qual o trabalho em questão provavelmente foi escrito. A data da publicação aparece no final e essa data servirá de referência para informações mais detalhadas sobre o trabalho na Bibliografia e no Índice Remissivo de Autores. Os itens entre colchetes foram publicados postumamente.]

[1895‘Um Projeto para uma Psicologia Científica’ (1950a).]

[1896Cartas a Fliess de 1º de janeiro e 6 de dezembro (1950a).]

1899 A Interpretação de Sonhos, Capítulo VII (1900a).

1910-11Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental’(1911b).

1911‘Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso deParanóia (Dementia Paranoides)’, Seção III (1911c).

1912‘Uma Nota sobre o Inconsciente na Psicanálise (1912g).

1914‘Sobre o Narcisismo: Uma Introdução’ (1914c).

1915‘Os Instintos e suas Vicissitudes’ (1915c).

1915‘Repressão’ (1915d).

1915‘O Inconsciente’ (1915e).

1915‘Um Suplemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos’ (1917d).

1915‘Luto e Melancolia’ (1917e).

1916-17Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise, ConferênciasXXII e XXVI (1916-17).

1920 Mais Além do Princípio do Prazer (1920g).

1921 Psicologia de Grupo e a Análise do Ego, Capítulos VII e XI (1921c).

1922‘Dois Artigos de Enciclopédia: (B) A Teoria da Libido’ (1923a).

1923O Ego e o Id (1923b).

1924‘Neurose e Psicose’ (1924b).

1924‘O Problema Econômico do Masoquismo’ (1924c).

1924‘A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose’ (1924e).

1925‘Uma Nota sobre o “Bloco de Escrever Mágico”’, (1925a).

1925‘Negação’ (1925h).

1929O Mal-Estar na Civilização, Capítulos VI, VII e VIII (1930a).

1932 Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, ConferênciasXXXI e XXXII (1933a).

[1938 Esboço de Psicanálise, Capítulos I, II, IV, VIII e IX (1940a).

[1938‘Algumas Lições Elementares de Psicanálise’ (1940b).]

 

UM CASO DE PARANÓIA QUE CONTRARIA A

TEORIA PSICANALÍTICA DA DOENÇA (1915)

 

MITTEILUNG EINES DER PSYCHOANALYTISCHEN - THEORIE WINDERSPRECHENDENFALLES VON PARANOIA

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1915 Int. Z. Psychoanal., 3 (6), 321-9.

1918 S.K.S.N., 4, 125-138. (1922, 2ª ed.)

1924 G.S., 5, 288-300.

1926 Psychoanalyse der Neurosen, 23-37.

1931 Neurosenlehre und Techinik, 23-36.

1946 G.W., 10, 234-246.

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

‘A Case of Paranoia Running Counter to the Psycho-Analytical Theory of the Disease’

1924 C.P., 2, 151-161. (Trad. E. Glover.)

A presente tradução inglesa se baseia na que foi publicada em 1924.

A anamnese apresentada neste artigo serve como confirmação ao conceito formulado por Freud em sua análise de Schreber (1911c), segundo o qual existe estreita ligação entre a paranóia e o homossexualismo. Constitui, incidentalmente, uma lição objetiva para clínicos quanto ao perigo de fundamentarem uma opinião apressada sobre um caso num conhecimento superficial dos fatos. As últimas páginas contêm algumas observações interessantes de natureza mais geral sobre os processos em ação durante um conflito neurótico.

 

UM CASO DE PARANÓIA QUE CONTRARIA A TEORIA PSICANALÍTICA DA DOENÇA

 

Há alguns anos um advogado bastante conhecido consultou-me a respeito de um caso que havia despertado certas dúvidas em seu espírito. Uma jovem pedira-lhe que a protegesse das investidas de um homem que a arrastava para uma aventura amorosa. Declarou que esse homem abusara de sua confiança, pois conseguira que testemunhas ocultas os fotografassem enquanto faziam amor; agora, com a exibição das fotografias, ele estava em condições de desonrá-la e forçá-la a pedir demissão do emprego. Seu advogado era bastante experiente para reconhecer o cunho patológico dessa acusação; observou, contudo, que, como aquilo que parece incrível muitas vezes na realidade acontece, gostaria de ouvir a opinião de um psiquiatra sobre o assunto. Prometeu visitar-me novamente na companhia da queixosa.

(Antes de prosseguir o relato, devo confessar que modifiquei o milieu do caso a fim de manter incógnitas as pessoas interessadas, mas não alterei mais nada. Considero prática errônea, por excelente que seja o motivo, alterar qualquer detalhe na apresentação de um caso. Jamais se pode dizer qual aspecto de um caso pode ser escolhido por um leitor capaz de julgamento independente, correndo-se o risco de induzi-lo a erro.)

Logo depois ,travei conhecimento pessoal com a paciente. Muito atraente e bela, contava trinta anos de idade e parecia muito mais jovem do que na verdade era, possuindo um tipo marcantemente feminino. Era evidente que se ressentia da interferência de um médico, e não se deu ao trabalho de ocultar sua desconfiança. Estava claro que só a influência de seu advogado, que se achava presente, a induziu a narrar-me a história que se segue e que me trouxe um problema que será mencionado depois. Nem por sua atitude, nem por qualquer espécie de expressão de emoção, traía ela a menor vergonha ou acanhamento, como era de esperar que sentisse na presença de um estranho. Mostrou-se inteiramente dominada pela apreensão provocada por sua experiência.

Por muitos anos ela fizera parte do quadro de uma grande firma comercial, onde ocupava um cargo de responsabilidade. Seu trabalho lhe proporcionara satisfação e tinha sido apreciado por seus superiores. Jamais procurara casos amorosos com homens, tendo vivido tranqüilamente com sua velha mãe, de quem era o único arrimo. Não tinha irmãos nem irmãs, e o pai morrera havia já muitos anos. Recentemente, um empregado da mesma firma, homem bastante culto e atraente, lhe dispensara atenções, e ela, por sua vez, se sentira atraída por ele. Por motivos externos, o casamento estava fora de cogitação, embora o homem não quisesse ouvir falar de desistir de sua relação por causa disso. Suplicara que não fazia sentido sacrificar às convenções sociais tudo aquilo que ambos tinham desejado ardentemente e que tinham o direito indiscutível de desfrutar, algo que, como nenhuma outra coisa, poderia enriquecer-lhes a vida. Como prometera não expô-la a qualquer risco, ela por fim consentira em visitá-lo em seus aposentos de solteiro durante o dia. Ali, deitados um ao lado do outro, beijaram-se e abraçaram-se, e ele começou a admirar os encantos então parcialmente revelados. De repente, no meio dessa cena idílica, ela se assustou com um ruído, uma espécie de pancada ou estalido, vindo da escrivaninha, junto à janela; o espaço entre a escrivaninha e a janela era parcialmente ocupado por uma pesada cortina. Imediatamente ela perguntou ao amigo o que significava aquele barulho, tendo sido informada, pelo menos foi o que ela disse, que provavelmente viera do pequeno relógio sobre a escrivaninha. Aventurar-me-ei, contudo, a comentar em seguida essa parte da narrativa.

Ao sair da casa, ela se encontrou com dois indivíduos na escada, que murmuraram algo entre si quando a viram. Um dos estranhos carregava um embrulho que parecia uma pequena caixa. Ela ficou muito preocupada com esse encontro e, a caminho de sua casa, já havia concatenado as seguintes idéias: a caixa poderia muito bem ter sido uma máquina fotográfica e o homem, um fotógrafo que ficara escondido por detrás da cortina enquanto ela se encontrava no quarto; o estalido fora o ruído do obturador; a fotografia fora tirada tão logo ele a viu numa posição particularmente comprometedora, que desejava registrar. A partir daquele momento, nada pôde diminuir sua suspeita em relação ao amante. Ela passou a persegui-lo com recriminações e a atormentá-lo com pedidos de explicações e garantias, não apenas quando se encontravam, como também por correspondência. Em vão, porém, ele tentou convencê-la de que seus sentimentos eram sinceros e de que as desconfianças dela eram inteiramente destituídas de fundamento. Por fim, ela visitou o advogado, narrou-lhe sua experiência e entregou-lhe as cartas que o suspeito lhe havia escrito sobre o incidente. Depois, tive oportunidade de ver algumas dessas cartas. Causaram-me impressão bastante favorável; consistiam, principalmente, em expressões de pesar pelo fato de que uma relação tão bela e terna tivesse sido destruída por uma ‘infeliz idéia mórbida.’

Quase não preciso justificar minha concordância com esse julgamento. Mas o caso tinha um interesse especial para mim, além de um mero diagnóstico. Já se expressara, na literatura psicanalítica, o conceito de que os pacientes que sofrem de paranóia lutam contra uma intensificação de suas tendências homossexuais — fato que aponta para uma escolha objetal narcisista. E posteriormente já se fizera uma outra interpretação: que o perseguidor é, no fundo, alguém que o paciente ama ou já amou no passado. Uma síntese das duas proposições nos levaria à conclusão necessária de que o perseguidor deve ser do mesmo sexo que a pessoa perseguida. Não sustentamos, é verdade, como universalmente válida e sem exceção, a tese de que a paranóia é determinada pelo homossexualismo, mas isso apenas porque nossas observações não eram suficientemente numerosas; tratava-se de uma dessas teses que, em vista de certas considerações, só se tornam importantes quando se pode reivindicar para elas uma aplicação universal. Na literatura psiquiátrica, por certo, não faltam casos em que o paciente se imagina perseguido por uma pessoa de sexo oposto. Uma coisa, contudo, é ler a respeito de tais casos, e outra bem diversa é entrar em contato pessoal com um deles. Minhas próprias observações e análises, e as dos meus amigos, haviam até então confirmado a relação entre a paranóia e o homossexualismo sem qualquer dificuldade. Mas o presente caso contradizia isso com toda ênfase. A moça parecia estar-se defendendo contra o amor por um homem, transformando diretamente o amante num perseguidor: não havia sinais da influência de uma mulher, nenhum vestígio de luta contra uma ligação homossexual.

Nessas circunstâncias, a coisa mais simples teria sido abandonar a teoria de que o delírio de perseguição invariavelmente depende do homossexualismo, abandonando ao mesmo tempo tudo o que decorria dessa teoria. Ou abandonamos a teoria, ou, em vista desse afastamento de nossas expectativas, devemos tomar o partido do advogado e presumir que não se tratavam de uma combinação paranóica, mas de uma experiência real que fora corretamente interpretada. Contudo, vi outra saída, pela qual um veredicto final poderia ser momentaneamente adiado. Recordei-me de quantas vezes são adotados conceitos errôneos sobre pessoas psiquicamente doentes, simplesmente porque o médico não as estudou suficientemente e, assim, não aprendeu o bastante a seu respeito. Por conseguinte, disse que não podia formar uma opinião imediata, e pedi à paciente que me fizesse outra visita, quando então poderia relatar-me sua história mais uma vez, com maior amplitude, e acrescentar quaisquer detalhes subsidiários que talvez tivessem sido omitidos. Graças à influência do advogado, consegui essa promessa da relutante paciente; ele ainda me ajudou de outra maneira, dizendo que em nosso segundo encontro sua presença seria desnecessária.

A história que me foi narrada pela paciente nessa segunda ocasião não entrou em choque com a anterior, mas os detalhes adicionais que ela forneceu dissiparam todas as dúvidas e dificuldades. Para começar, ela visitara o jovem em seus aposentos não uma, mas duas vezes. Foi na segunda ocasião que ela ficou perturbada com o ruído suspeito: em sua história original ela suprimiu, ou deixou de mencionar, a primeira visita porque não lhe parecera importante. Nessa primeira visita, não aconteceu nada digno de nota, mas no dia seguinte aconteceu. Seu departamento na firma era dirigido por uma senhora idosa, por ela descrita da seguinte forma: ‘Ela tem cabelos brancos como minha mãe’. Essa chefe idosa tinha grande apreço por ela e a tratava com afeição, embora algumas vezes implicasse com ela: a moça se considerava como de sua predileção especial. No dia subseqüente à sua primeira visita aos aposentos do jovem, ele apareceu no escritório para discutir um assunto de natureza comercial com essa senhora idosa. Enquanto conversavam em voz baixa, a paciente de súbito se convenceu de que ele falava de sua aventura do dia anterior — na realidade, de que os dois vinham tendo há algum tempo um caso amoroso, do qual, até então, ela não se tinha apercebido. A maternal e idosa senhora de cabelos brancos agora sabia de tudo, e sua conversa e conduta no decorrer do dia confirmaram a suspeita da paciente. Na primeira oportunidade, ela recriminou o amante por sua traição. Ele, como é natural, protestou veementemente contra o que denominou de uma acusação sem sentido. Por algum tempo, de fato, conseguiu libertá-la de seu delírio, tendo ela recuperado bastante confiança para repetir sua visita aos aposentos do jovem pouco tempo — creio que algumas semanas — depois. O restante já sabemos pela sua primeira narrativa.

Em primeiro lugar, essa nova informação elimina quaisquer dúvidas quanto à natureza patológica de sua suspeita. É fácil ver que a idosa chefe de cabelos brancos era uma substituta da mãe; que, apesar da sua juventude, o amante fora posto no lugar do pai dela; e que fora a força do seu complexo materno que impelira a paciente a suspeitar de uma relação amorosa entre esses parceiros mal ajustados, por mais improvável que tal relação pudesse ser. Além do mais, isso remove a aparente contradição com a expectativa, baseada na teoria psicanalítica, de que o desenvolvimento de um delírio de perseguição virá a ser determinado por uma ligação homossexual muito poderosa. Aqui, o perseguidor original — o agente de cuja influência a paciente deseja escapar — é mais uma vez não um homem mas uma mulher. A chefe soube da relação amorosa da moça, desaprovou-a, e demonstrou sua desaprovação mediante insinuações misteriosas. O apreço da paciente a seu próprio sexo se opunha a suas tentativas de adotar uma pessoa do outro sexo como objeto amoroso. Seu amor pela mãe se tornara o porta-voz de todas as tendências que, desempenhando o papel de uma ‘consciência’, procuram embargar o primeiro passo de uma moça na nova estrada que leva à satisfação sexual normal — sob muitos aspectos perigosa —, e na realidade conseguiu perturbar sua relação com homens.

Quando uma mãe obsta ou detém a atividade sexual de uma filha, está realizando uma função normal cujos fundamentos são estabelecidos pelos eventos na infância, cujos motivos são perigosos e inconscientes, e que recebeu a sanção da sociedade. Constitui tarefa da filha emancipar-se dessa influência e resolver por si mesma, num terreno amplo e racional, qual deverá ser sua parcela de fruição ou negação do prazer sexual. Se, na tentativa de emancipar-se, vier a ser vítima de uma neurose, isso implica a presença de um complexo materno que, em geral, é superpoderoso e por certo não dominado. O conflito entre esse complexo e a nova direção tomada pela libido é tratado sob a forma de uma ou outra neurose, segundo a disposição do indivíduo. A manifestação da reação neurótica será sempre determinada, contudo, não por sua relação atual com o que sua mãe é hoje, mas pelas relações infantis com sua imagem mais antiga da mãe.

Sabemos que nossa paciente era órfã de pai havia muitos anos: também podemos supor que ela não deveria ter-se conservado afastada de homens até a idade de trinta anos, se não tivesse sido apoiada por uma poderosa ligação emocional com sua mãe. Esse apoio tornou-se um pesado jugo quando sua libido começou a se voltar para um homem em resposta a seus insistentes galanteios. Ela tentou libertar-se, desfazer-se de sua ligação homossexual; e sua disposição, que não precisa ser examinada aqui, permitiu que isso ocorresse sob a forma de um delírio paranóico. A mãe tornou-se assim a observadora e a perseguidora hostil e malévola. Como tal, ela poderia ter sido dominada, se o complexo materno não tivesse conservado bastante força para levar a cabo seu propósito de manter a paciente à distância dos homens. Assim, no fim da primeira fase do conflito, a paciente se tinha afastado da mãe sem se ter passado definitivamente para o homem. Na realidade, ambos tramavam contra ela. Em seguida, os vigorosos esforços do homem conseguiram atraí-la decisivamente para ele. Ela superou a oposição da mãe em sua mente e estava disposta a conceder ao amante um segundo encontro. No desenrolar ulterior dos acontecimentos, a mãe não reapareceu, mas podemos insistir com segurança que, nessa [primeira] fase, o amante não se convertera diretamente no perseguidor, mas através da mãe e em virtude da relação dele com a mãe, que desempenhara o papel principal no primeiro delírio.

Pensaríamos que agora a resistência estava definitivamente superada, que a moça, até então vinculada à mãe, conseguira chegar a amar um homem. Mas, após a segunda visita, surgiu um novo delírio, que, fazendo uso engenhoso de algumas circunstâncias acidentais, destruiu esse amor e assim atingiu com êxito o propósito do complexo materno. Ainda parece estranho que uma mulher tenha de se proteger de amar um homem por meio de um delírio paranóico; antes, porém, de examinarmos mais detidamente esse estado de coisas, lancemos um olhar às circunstâncias acidentais que formaram a base desse segundo delírio, exclusivamente dirigido contra o homem.

Deitada parcialmente despida no sofá ao lado do amante, ela ouviu um ruído semelhante a um estalido ou batida. Não conhecia a sua causa, mas atinou com uma interpretação após ter-se encontrado com dois homens na escada, um dos quais carregava algo que parecia uma caixa tampada. Convenceu-se de que alguém, agindo segundo instruções do amante, a observara e fotografara durante seu íntimo tête-à-tête. Nem por um momento imaginou, naturalmente, que, se o malfadado ruído não tivesse ocorrido, o delírio não se teria formado; pelo contrário, deve-se ver algo de inevitável por trás dessa circunstância acidental, algo destinado a afirmar-se compulsivamente na paciente, assim como sua suposição de que havia uma liaison entre o amante e a chefe idosa, a substituta de sua mãe. Entre o acervo de fantasias inconscientes de todos os neuróticos, e provavelmente de todos os seres humanos, existe uma que raramente se acha ausente e que pode ser revelada pela análise: é a fantasia de observar as relações sexuais dos pais. Chamo tais fantasias — da observação do ato sexual dos pais, da sedução, da castração e outras — de ‘fantasias primevas’; examinarei, em outro lugar, com detalhes, sua origem e sua relação com a experiência individual. O ruído acidental, assim, desempenhou meramente o papel de um fator provocador que ativou a fantasia típica de estar sendo ouvida sem saber, o que consistiu um componente do complexo parental. Na realidade, é duvidoso que corretamente possamos dominar o ruído de ‘acidental’. Conforme Otto Rank teve ocasião de observar para mim, tais ruídos constituem, pelo contrário, parte indispensável da fantasia de escutar, e reproduzem ou os sons que traem o coito parental ou aqueles pelos quais a criança que escuta teme trair-se. Agora, porém, sabemos de imediato onde nos encontramos. O amante da paciente ainda era o pai dela, e ela própria havia tomado o lugar da mãe. O papel de ouvinte tinha de ser atribuído a uma terceira pessoa. Podemos ver por que meio a moça se libertou de sua dependência homossexual em relação à mãe. Foi por meio de uma pequena regressão: em vez de escolher sua mãe como objeto amoroso, identificou-se com ela — ela própria se tornou a mãe. A possibilidade dessa regressão aponta para a origem narcisista de sua escolha objetal homossexual e assim para sua disposição paranóica. Poder-se-ia esboçar um encadeamento de pensamentos que provocaria o mesmo resultado que essa identificação: ‘Se minha mãe o faz, eu também posso fazê-lo; tenho o mesmo direito que ela.’

Pode-se dar um passo além ao se negar a natureza acidental do ruído. Não pedimos, contudo, a nossos leitores que nos sigam, já que a ausência de qualquer investigação analítica mais profunda torna impossível, nesse caso, ir além de certo grau de possibilidade. Em sua primeira entrevista comigo, a paciente mencionou que exigira imediatamente uma explicação a respeito do ruído, tendo recebido a resposta de que, provavelmente, era o tique-taque do pequeno relógio sobre a escrivaninha. Aventuro-me, porém, a explicar o que ela me disse sendo uma lembrança errada. Afigura-se-me muito mais provável que, a princípio, ela não tenha reagido absolutamente ao ruído, que só se tornou importante depois de seu encontro com os dois homens na escada. Seu amante, que provavelmente nem sequer ouvira o ruído, pode ter tentado, talvez numa ocasião posterior, quando ela o assediou com suspeitas, explicá-lo dessa forma: ‘Não sei que ruído você pode ter ouvido. Talvez fosse o pequeno relógio; algumas vezes ele faz esse barulho’. Esse uso retardado de impressões e esse deslocamento de lembranças com freqüência ocorrem precisamente na paranóia e são característicos dela. Como, no entanto, nunca pude encontrar o homem, nem pude continuar com a análise da mulher, minha hipótese não pôde ser provada.

Ainda poderia ir mais adiante na análise desse ‘acidente’ ostensivamente real. Não creio que o relógio jamais tivesse feito barulho ou que tivesse havido qualquer outro tipo de ruído. A situação da mulher justificava uma sensação de pancada ou batida em seu clitóris. E foi isso que, subseqüentemente, ela projetou como sendo uma percepção de um objeto externo. A mesma espécie de coisa pode ocorrer nos sonhos. Uma de minhas pacientes histéricas certa vez relatou-me um curto sonho do tipo que leva a acordar, ao qual não podia trazer qualquer associação espontânea. Ela simplesmente sonhara que alguém estava batendo e então acordara. Ninguém batera à porta, mas durante as noites anteriores ela fora despertada por aflitivas sensações de poluções: dispunha assim de um motivo para despertar logo que sentia o primeiro sinal de excitação genital. Tinha havido uma ‘pancada’ em seu clitóris. No caso de nossa paciente paranóica, devo substituir o ruído acidental por um processo semelhante de projeção. Por certo não posso garantir que, no curso de nosso breve conhecimento, a paciente, que relutantemente cedia à compulsão, me tenha feito um relato fiel de tudo que ocorrera durante os dois encontros dos amantes. Mas uma contração isolada do clitóris combinava com sua declaração de que não se verificara qualquer contato dos órgãos genitais. Em sua subseqüente rejeição do homem, a falta de satisfação indubitavelmente desempenhou um papel, bem como a ‘consciência’.

Consideremos mais uma vez o fato relevante de que a paciente se protegia contra seu amor por um homem por meio de um delírio paranóico. A chave da compreensão disso deve ser encontrada no histórico do desenvolvimento do delírio. Como poderíamos ter esperado, este visava, a princípio, à mulher. Agora, porém, nessa base paranóica, realizava-se o avanço de um objeto feminino para um masculino. Tal avanço é inusitado na paranóia; em geral, verificamos que a vítima da perseguição permanece fixada nas mesmas pessoas e, portanto, no mesmo sexo ao qual pertenciam seus objetos amorosos antes que se verificasse a transformação paranóica. Entretanto, a desordem neurótica não impede um avanço dessa espécie, e nossa observação pode ser típica em relação a muitos outros. Muitos processos semelhantes, que ocorrem fora da paranóia, ainda não foram encarados por esse ângulo, encontrando-se entre eles alguns muito familiares. Por exemplo, a assim chamada ligação inconsciente do neurastênico a objetos amorosos incestuosos impede-o de escolher uma mulher estranha como seu objeto e restringe sua atividade sexual à fantasia. Mas, dentro dos limites da fantasia, ele alcança o progresso que lhe é negado e consegue substituir a mãe e a irmã por objetos estranhos. De uma vez que o veto da censura não entra em ação no que diz respeito a esses objetos, ele pode tornar-se consciente, em suas fantasias, da escolha dessas figuras substitutas.

Esses, portanto, são fenômenos de um avanço tentado a partir do terreno novo que foi, em geral, regressivamente adquirido; e podemos colocar ao lado deles os esforços envidados em algumas neuroses para recuperar uma posição da libido que certa vez foi mantida e subseqüentemente perdida. Na realidade, dificilmente podemos traçar qualquer distinção conceptual entre essas duas classes de fenômenos. Vemo-nos por demais inclinados a pensar que o conflito subjacente a uma neurose chega ao fim quando se forma o sintoma. Na realidade, depois disso a luta pode continuar de diversas maneiras. De ambos os lados surgem novos componentes instintuais que a prolongam. O próprio sintoma se torna um objeto dessa luta; certas tendências, ansiosas por preservá-la, entram em conflito com outras que se esforçam por removê-la e restabelecer o statu quo ante. Freqüentemente, procuram-se métodos para tornar o sintoma insignificante, tentando-se recuperar por outras linhas de abordagem o que se perdeu e é agora retido pelo sintoma. Esses fatos esclarecem bastante uma declaração feita por C.G. Jung no sentido de que uma ‘inércia psíquica’ peculiar, que se opõe à modificação e ao progresso, é a precondição fundamental da neurose. Essa inércia é realmente muito peculiar; não é geral, e sim altamente especializada; não é sequer todo-poderosa dentro de seu próprio campo, mas luta contra tendências no sentido do progresso e da recuperação, que permanecem ativas mesmo depois da formação de sintomas neuróticos. Se procurarmos o ponto de partida dessa inércia especial, descobriremos que é a manifestação de vínculos muito antigos — vínculos difíceis de serem desfeitos — entre instintos e impressões e os objetos envolvidos nessas impressões. Esses vínculos têm o efeito de paralisar o desenvolvimento dos instintos em causa. Ou, em outras palavras, essa ‘inércia psíquica’ especializada é apenas uma expressão diferente, embora dificilmente melhor, daquilo que em psicanálise estamos habituamos a denominar de ‘fixação’.

 

REFLEXÕES PARA OS TEMPOS DE GUERRA E MORTE

 

ZEITGEMÄSSES ÜBER KRIEG UND TOD

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1915 Imago, 4 (1), 1-21.

1918 S.K.S.N., 4, 486-520. (1922, 2ª ed.)

1924 G.S., 10, 315-346.

1924 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, Pág. 35.

1946 G.W., 10, 324-355.

 

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

      Reflections on War and Death

1918 Nova Iorque: Moffat, Yard. Págs. iii + 72. (Trad. A. A. Brill e A. B. Kuttner.)

‘Thoughts for the Times on War and Death’

1925 C.P., 4, 288-317. (Trad. E. C. Mayne.)

A presente tradução inglesa baseia-se na que foi publicada em 1925.

Estes dois ensaios foram escritos por volta de março e abril de 1915, cerca de seis meses após o deflagrar da Primeira Guerra Mundial, e expressam algumas das abalizadas considerações de Freud sobre a mesma. A descrição de suas reações mais pessoais será encontrada no Capítulo VII do segundo volume do livro de Ernest Jones (1955). Uma carta escrita por ele a um seu conhecido holandês, o Dr. Frederik van Eeden, foi publicada pouco antes do presente trabalho: aparece, como apêndice, adiante, ver em [1]. Em fins do mesmo ano, 1915, Freud escreveu outro ensaio acerca de um tema análogo, ‘Sobre a Transitoriedade’, que também será encontrado adiante (ver em [1]). Muitos anos depois, mais uma vez voltou ao tema, em sua carta aberta a Einstein, Why War? (1935b). O segundo destes dois ensaios — sobre a morte — parece ter sido lido pela primeira vez por Freud numa reunião, no início de abril de 1915, do B’nai B’rith, o clube judaico de Viena a que pertenceu durante grande parte de sua vida. (Cf. 1941e.) Este ensaio, naturalmente, se baseia em grande medida no mesmo material que a Seção II de Totem e Tabu (1912-13).

Excertos da tradução desta obra publicados em 1925 foram incluídos em Civilizations, War and Death, Selections from Three Works by Sigmund Freud (1939, 1-25).

 

I - A DESILUSÃO DA GUERRA

 

Na confusão dos tempos de guerra em que nos encontramos, confiando, como somos obrigados a, em informações unilaterais, demasiadamente próximos das grandes mudanças que já se verificaram ou que começam a se verificar, e sem um vislumbre do futuro que está sendo plasmado, nós próprios ficamos perplexos diante da importância das impressões que nos pressionam e diante do valor dos julgamentos que formamos. Não podemos deixar de sentir que jamais um evento destruiu tanto de precioso nos bens comuns da humanidade, confundiu tantas das inteligências mais lúcidas, ou degradou de forma tão completa o que existe de mais elevado. A própria ciência perdeu sua imparcialidade desapaixonada; seus servidores, profundamente amargurados, procuram nela as armas com que contribuir para a luta contra o inimigo. Os antropólogos sentem-se impelidos a declará-lo inferior e degenerado, os psiquiatras dão um diagnóstico da sua doença da mente do espírito. Provavemente, contudo , nosso sentimento quanto a esses males imediatos é desproporcionalmente forte e não temos o direito de compará-los com os males de outros tempos que não experimentamos.

O indivíduo que não é ele um combatente — e dessa forma um dente da gigantesca engrenagem da guerra — sente-se atônito em sua orientação e inibido em seus poderes e atividades. Creio que receberá de bom grado qualquer indício, por mais leve que seja, que lhe torne mais fácil encontrar seu rumo pelo menos dentro de si. Proponho escolher dois dentre os fatores responsáveis pela aflição mental sentida pelos não-combatentes, fatores contra os quais constitui tarefa tão pesada lutar, e abordá-los aqui: a desilusão que essa guerra provocou, e a modificação da atitude diante da morte a que essa — como qualquer outra guerra — nos forçou.

Quando me refiro à desilusão, de imediato todos saberão o que quero dizer. Não é necessário ser sentimentalista; pode-se perceber a necessidade biológica e psicológica do sofrimento na economia da vida humana e, contudo, condenar a guerra, tanto em seus meios quanto em seus fins, e ansiar pela cessação de todas as guerras. Já dissemos a nós mesmos, sem dúvida, que as guerras jamais podem cessar enquanto as nações viverem sob condições tão amplamente diferentes, enquanto o valor da vida individual for tão diversamente apreciado entre elas, e enquanto as animosidades que as dividem representarem forças motrizes tão poderosas na mente. Estávamos preparados para verificar que as guerras entre os povos primitivos e civilizados, entre as raças que se acham divididas pela cor da pele — as guerras até mesmo contra e entre as nacionalidades da Europa cuja civilização se acha pouco desenvolvida ou se perdeu — ocupariam a humanidade ainda por algum tempo. Mas nos permitimos ter outras esperanças. Esperávamos que as grandes nações de raça branca, dominadoras do mundo, às quais cabe a liderança da espécie humana, que sabíamos possuírem como preocupação interesses de âmbito mundial, a cujos poderes criadores se deviam não só nossos progressos técnicos no sentido do controle da natureza, como também os padrões artísticos e científicos da civilização — esperávamos que esses povos conseguissem descobrir outra maneira de solucionar incompreensões e conflitos de interesse. Dentro de cada uma dessas nações, elevadas normas de conduta moral foram formuladas para o indivíduo, às quais sua maneira de vida devia conformar-se, se ele desejasse participar de uma comunidade civilizada. Esses ditames, não raro demasiado rigorosos, exigiam muito dele — uma grande dose de autodomínio, de renúncia à satisfação dos instintos. Acima de tudo, via-se proibido de fazer uso das imensas vantagens auferidas pela prática da mentira e da fraude na competição com seus semelhantes. Os Estados civilizados consideravam esses padrões morais como sendo a base de sua existência. Adotavam medidas sérias se qualquer um se aventurasse a violá-los, e freqüentemente declaravam impróprio até mesmo submetê-los ao exame de uma inteligência crítica. Devia-se supor, portanto, que o próprio Estado os respeitaria e não pensaria em empreender contra eles qualquer coisa que viesse a contradizer a base de sua própria existência. A observação demonstrou, por certo, que enraizados nesses Estados civilizados havia remanescentes de certos outros povos, universalmente impopulares e que, portanto, apenas de maneira relutante, e assim mesmo não integralmente, haviam sido admitidos à participação no trabalho comum da civilização, trabalho para o qual se tinham revelado bastante adequados. Poder-se-ia supor, porém, que as próprias grandes nações adquiriam tanta compreensão do que possuíam em comum, e tanta tolerância quanto a suas divergências, que ‘estrangeiro’ e ‘inimigo’ já não podiam fundir-se, tal como na Antiguidade clássica, num conceito único.

Confiando nessa unidade entre os povos civilizados, inúmeros homens e mulheres trocaram sua terra natal por uma estrangeira, e fizeram com que sua experiência dependesse das intercomunicações entre nações amigas. Além disso, qualquer um que não estivesse, por força das circunstâncias, confinado a um único ponto, poderia criar para si mesmo, a partir de todas as vantagens e atrações desses países civilizados, uma pátria nova e mais ampla, na qual poderia movimentar-se sem entraves ou suspeitas. Dessa forma, ele desfrutara o mar azul e o cinzento; a beleza de montanhas cobertas de neve e a de campinas verdejantes; a magia das florestas setentrionais e o esplendor da vegetação do sul; o estado de espírito evocado pelas paisagens que relembram grandes eventos históricos, e o silêncio da natureza intocada. Para ele, essa nova pátria era também um museu, repleto de todos os tesouros que os artistas da humanidade civilizada haviam criado durante séculos sucessivos e deixado atrás de si. Ao caminhar despreocupadamente de uma galeria para outra desse museu, podia reconhecer com apreciação imparcial os mais variados tipos de perfeição que uma mescla de sangue, o curso da história e a qualidade especial da sua terra natal produziram entre seus compatriotas nesse sentido mais amplo. Aqui, encontrava a energia fria e inflexível desenvolvida até o mais alto grau; ali, a graciosa arte de embelezar a existência; mais adiante, o sentimento da ordem e da lei, ou outras das qualidades que fizeram da humanidade os senhores da Terra.

Tampouco devemos esquecer que cada um desses cidadãos do mundo civilizado criou para si mesmo o seu próprio ‘Parnaso’ e a sua própria ‘Escola de Atenas’. Dentre os grandes pensadores, escritores e artistas de todas as nações, escolheu aqueles a quem considerou dever o melhor do que ele fora capaz de alcançar em deleite e compreensão da vida, e os venerou juntamente com os antigos imortais e os mestres familiares de sua própria língua. Nenhum desses grandes homens lhe pareceu estrangeiro por falar outra língua — nem o incomparável explorador das paixões humanas, nem o embriagado cultor da beleza, nem o profeta poderoso e ameaçador, nem o sutil satirista; e jamais teve razões para repreender a si próprio por ser um renegado para com sua própria nação e sua amada língua materna.

A fruição dessa civilização comum era perturbada de tempos em tempos por vozes de advertência, que declararam que antigas divergências tradicionais tornavam as guerras inevitáveis, inclusive entre os membros de uma comunidade como essa. Recusávamo-nos a crer nisso; mas se essa guerra tinha de ocorrer, como é que a imaginávamos? Nós a víamos como uma oportunidade de demonstrar o progresso da civilidade entre os homens, desde a era em que o Conselho Anfictiônico Grego proclamou que nenhuma cidade da liga poderia ser destruída, nem os seus olivais derrubados, nem o seu abastecimento de água interrompido; nós a imaginávamos como um embate de armas cavalheiresco, que se limitaria a estabelecer a superioridade de uma facção na luta, enquanto evitaria, tanto quanto possível, graves sofrimentos, que em nada pudessem contribuir para a decisão, concedendo completa imunidade aos feridos que tivessem de retirar-se da contenda, bem como aos médicos e enfermeiras que se dedicassem à recuperação deles. Haveria, naturalmente, o máximo de consideração pelas camadas não-combatentes da população — pelas mulheres que não tomam parte nas atividades guerreiras, e pelas crianças de ambas as facções que, quando crescerem, devem tornar-se amigos e auxiliares mútuos. E mais uma vez, todos os empreendimentos e instituições internacionais, nos quais a civilização comum da época de paz se encarnou, seriam mantidos.

Mesmo uma guerra como essa teria produzido bastante terror e sofrimentos, mas não interrompido o desenvolvimento das relações éticas entre os componentes coletivos da humanidade — os povos e os Estados.

Então, a guerra na qual nos recusávamos a acreditar irrompeu, e trouxe desilusão. Não é apenas mais sanguinária e mais destrutiva do que qualquer guerra de outras eras, devido à perfeição enormemente aumentada das armas de ataque e defesa; é, pelo menos, tão cruel, tão encarniçada, tão implacável quanto qualquer outra que a tenha precedido. Despreza todas as restrições conhecidas como direito internacional, que na época de paz os Estados se comprometeram a observar; ignora as prerrogativas dos feridos e do serviço médico, a distinção entre os setores civil e militar da população, os direitos da propriedade privada. Esmaga com fúria cega tudo que surge em seu caminho, como se, após seu término, não mais fosse haver nem futuro nem paz entre os homens. Corta todos os laços comuns entre os povos contendores, e ameaça deixar um legado de exacerbação que tornará impossível, durante muito tempo, qualquer renovação desse laços.

Além disso, trouxe à luz um fenômeno quase incrível: as nações civilizadas se conhecem e se compreendem tão pouco, que uma pode voltar-se contra a outra com ódio e asco. Na verdade, uma das grandes nações civilizadas é tão universalmente impopular, que realmente se pode tentar excluí-la da comunidade civilizada como sendo ‘bárbara’, embora de há muito tenha provado sua adequação pelas magníficas contribuições que prestou a essa comunidade. Vivemos na esperança de que as páginas de uma história imparcial venham provar que essa nação, em cuja língua escrevemos e para cuja vitória nossos entes queridos estão combatendo, foi precisamente aquela que menos transgrediu as leis da civilização. Mas numa época como essa quem ousará erigir-se como juiz em causa própria?

Os povos são mais ou menos representados pelos Estados que formam, e esses Estados, pelos governos que os dirigem. Nessa guerra, o cidadão individual pode, com horror, convencer-se do que ocasionalmente lhe cruzaria o pensamento em tempos de paz — que o Estado proíbe ao indivíduo a prática do mal, não porque deseja aboli-la, mas porque deseja monopolizá-la, tal como o sal e o fumo. Um estado beligerante permite-se todos os malefícios, todos os atos de violência que desgraçariam o indivíduo. Emprega contra o inimigo não apenas as ruses de guerre aceitas, como também a mentira deliberada e a fraude — e isso a um ponto que parece ultrapassar esse emprego em guerras anteriores. O Estado exige o grau máximo de obediência e de sacrifício de seus cidadãos; ao mesmo tempo, porém, trata-os como crianças, mediante um excesso de sigilo e uma censura quanto a notícias e expressões de opinião, que deixa os espíritos daqueles, cujos intelectos ele assim suprime, sem defesa contra toda mudança desfavorável dos eventos e todo boato sinistro. Exime-se das garantias e tratados que o vinculavam a outros Estados, e confessa desavergonhadamente sua própria rapacidade e sede de poder, que o cidadão tem então de sancionar em nome do patriotismo.

Não se deve objetar que o Estado não pode abster-se de praticar o mal, de uma vez que isso o colocaria em desvantagem . Não é menos desvantajoso, em geral, para o indivíduo, conformar-se aos padrões de moralidade e abster-se de uma conduta brutal e arbitrária; e poucas vezes o Estado prova ser capaz de indenizá-lo pelos sacrifícios que exige. Nem deve constituir surpresa que esse relaxamento de todos os laços morais entre os indivíduos coletivos da humanidade deva ter repercussões sobre a moralidade dos indivíduos, pois nossa consciência não é o juiz inflexível que os professores de ética declaram, mas é, em sua origem, ‘ansiedade social’ e nada mais. Quando a comunidade não levanta mais objeções, verifica-se também um fim à supressão das paixões más, e os homens perpetram atos de crueldade, fraude, traição e barbárie tão incompatíveis com seu nível de civilização, que qualquer um os julgaria impossíveis.

É compreensível que o cidadão do mundo civilizado a quem me referi possa permanecer desamparado num mundo que se lhe tornou estranho — sua grande pátria desintegrada, suas propriedades comuns devastadas, seus concidadãos divididos e vilipendiados!

Há, contudo, algo a ser dito como crítica a seu desapontamento. Rigorosamente falando, este não se justifica, pois consiste na destruição de uma ilusão. Acolhemos as ilusões porque nos poupam sentimentos desagradáveis, permitindo-nos em troca gozar de satisfações. Portanto, não devemos reclamar se, repetidas vezes, essas ilusões entrarem em choque com alguma parcela da realidade e se despedaçarem contra ela.

Duas coisas nessa guerra despertaram nosso sentimento de desilusão: a baixa moralidade revelada externamente por Estados que, em suas relações internas, se intitulam guardiães dos padrões morais, e a brutalidade demonstrada por indivíduos que, enquanto participantes da mais alta civilização humana, não julgaríamos capazes de tal comportamento.

Comecemos pelo segundo ponto e tentemos formular, em poucas palavras, o ponto de vista que desejamos criticar. De fato, como é que imaginamos o processo pelo qual um indivíduo se alça a um plano comparativamente alto de moralidade? A primeira resposta será, sem dúvida, simplesmente que ele é virtuoso e nobre desde o seu nascimento — desde o começo mesmo de sua vida. Não consideraremos mais esse ponto de vista aqui. Uma segunda resposta sugerirá que estamos preocupados com um processo de desenvolvimento, e provavelmente presumirá que o desenvolvimento consiste em erradicar as tendências humanas más desse indivíduo e, sob a influência da educação e de um ambiente civilizado, em substituí-las por boas. Caso isso seja assim, é, não obstante, surpreendente que o mal ressurja com tamanha força em qualquer um que tenha sido educado dessa forma.

No entanto, essa resposta também encerra a tese que nos propomos contradizer. Na realidade, não existe essa ‘erradicação’ do mal. A pesquisa psicológica — ou, falando mais rigorosamente, psicanalítica — revela, ao contrário, que a essência mais profunda da natureza humana consiste em impulsos instintuais de natureza elementar, semelhantes em todos os homens e que visam à satisfação de certas necessidades primevas. Em si mesmos, esses impulsos não são nem bons e nem maus. Classificamos esses impulsos, bem como suas expressões, dessa maneira, segundo sua relação com as necessidades e as exigências da comunidade humana. Deve-se admitir que todos os impulsos que a sociedade condena como maus — tomemos como representativos os egoísticos e cruéis — são de natureza primitiva.

Esses impulsos primitivos passam por um longo processo de desenvolvimento antes que se lhes permita tornarem-se ativos no adulto. São inibidos, dirigidos no sentido de outras finalidades e outros campos, mesclam-se, alteram seus objetos e revertem, até certo ponto, a seu possuidor. Formações de reação contra certos instintos assumem a forma enganadora de uma mudança em seu conteúdo, como se o egoísmo se tivesse transmudado em altruísmo ou a crueldade em piedade. Essas formações de reação são facilitadas pela circunstância de que alguns impulsos instintuais surgem, quase que desde o início, em pares de opostos — um fenômeno muito marcante, e estranho ao público leigo, denominado ‘ambivalência de sentimento’. O exemplo mais facilmente observado e compreensível disso reside no fato de que o amor intenso e o ódio intenso são, com tanta freqüência, encontrados juntos na mesma pessoa. A psicanálise acrescenta que esses dois sentimentos opostos, não raramente, têm como objeto a mesma pessoa.

Só quando todas essas ‘vicissitudes instintuais’ foram superadas é que se forma aquilo que denominamos de caráter de uma pessoa, e este, como sabemos, só de forma inadequada pode ser classificado como ‘bom’ ou ‘mau’. Raramente um ser humano é totalmente bom ou mau; via de regra ele é ‘bom’ em relação a determinada coisa e ‘mau’ em relação a outra, ou ‘bom’ em certas circunstâncias externas e em outras indiscutivelmente ‘mau’. É interessante verificar que, na primeira infância, a preexistência de fortes impulsos ‘maus’ constitui muitas vezes a condição para uma inequívoca inclinação no sentido do ‘bom’ no adulto. Aqueles que, enquanto crianças, foram os mais pronunciados egoístas, podem muito bem tornar-se os mais prestimosos e abnegados membros da comunidade; a maioria dos sentimentalistas, amigos da humanidade e protetores de animais, evoluíram de pequenos sádicos e atormentadores de animais.

A transformação dos ‘maus’ instintos é ocasionada por dois fatores, um interno e outro externo, que atuam na mesma direção. O fator interno consiste na influência exercida sobre os instintos maus (digamos, egoístas) pelo erotismo — isto é, pela necessidade humana de amor, tomada em seu sentido mais amplo. Pela mistura dos componentes eróticos, os instintos egoístas são transformados em sociais. Aprendemos a valorizar o fato de sermos amados como uma vantagem em função da qual estamos dispostos a sacrificar outras vantagens. O fator externo é a força exercida pela educação, que representa as reivindicações de nosso ambiente cultural, posteriormente continuadas pela pressão direta desse ambiente. A civilização foi alcançada através da renúncia à satisfação instintual, exigindo ela, por sua vez, a mesma renúncia de cada recém-chegado. No decorrer da vida de um indivíduo, há uma substituição constante da compulsão externa pela interna. As influências da civilização provocam, por uma mescla de elementos eróticos, uma sempre crescente formação das tendências egoístas em tendências altruístas e sociais. Em última infância, pode-se supor que toda compulsão interna que se faz sentir no desenvolvimento dos seres humanos foi originalmente — isto é, na história da humanidade — apenas uma compulsão externa. Os que nascem hoje trazem comigo, como organização herdada, certo grau de tendência (disposição) para a formação dos instintos egoístas em sociais, sendo essa disposição facilmente estimulada a provocar esse resultado. Outra parte dessa transformação instintual tem de ser realizada durante a vida do próprio indivíduo. Assim, o ser humano está sujeito não só à pressão de seu ambiente cultural imediato, mas também à influência da história cultural de seus ancestrais.

Se dermos a denominação de ‘suscetibilidade à cultura’ à capacidade pessoal de um homem para transformar os impulsos egoístas sob a influência do erotismo, poderemos ainda afirmar que essa suscetibilidade se compõe de duas partes, uma inata e outra adquirida no curso da vida, e que a relação das duas, tanto entre si quanto com a parte da vida instintual que permanece inalterada, é muito variável.

Falando de forma mais geral, inclinamo-nos a atribuir demasiada importância à parte inata; além disso, corremos o risco de superestimar a suscetibilidade total à cultura em comparação com a parte da vida instintual que permaneceu primitiva — isto é, somos levados enganosamente a considerar os homens como ‘melhores’ do que de fato são, de uma vez que existe ainda outro elemento que obscurece nosso julgamento e falseia o problema num sentido favorável.

Os impulsos instintuais de outras pessoas estão, naturalmente, ocultos à nossa observação. Inferimo-los de suas ações e de seu comportamento, remontando a motivos provenientes de sua vida instintual. Em muitos casos, essa inferência está fadada a ser errônea. Esta ou aquela ação, ‘boa’ do ponto de vista cultural, pode, num determinado caso, originar-se de um motivo ‘nobre’, e em outro, não. Os teóricos da ética classificam como ‘boas’ ações apenas as que resultam de bons impulsos; quanto às outras, recusam reconhecimento. No cômputo geral, porém, a sociedade, muito prática em suas finalidades, não fica perturbada por essa distinção; dá-se por satisfeita se um homem regula seu comportamento e suas ações pelos preceitos da civilização, pouco se preocupando com os seus motivos.

Aprendemos que a compulsão externa exercida sobre um ser humano por sua educação e por seu ambiente produz ulterior transformação no sentido do bem em sua vida instintual — um afastamento ulterior do egoísmo para o altruísmo. Esse, porém, não é o efeito regular ou necessário da compulsão externa. A educação e o ambiente não só oferecem benefícios no tocante ao amor, como também empregam outros tipos de incentivo, a saber, recompensas e punições. Dessa maneira, seu efeito pode vir a ser que uma pessoa sujeita à sua influência escolha comportar-se bem, no sentido cultural dessa expressão, embora nenhum enobrecimento do instinto, nenhuma transformação de inclinações egoístas em altruístas se tenham operado nela. O resultado será, grosso modo, o mesmo; só uma específica concatenação de circunstâncias revelará que um homem sempre age bem porque suas inclinações instintuais o compelem a isso, e que outro só é bom na medida em que, e enquanto, esse comportamento cultural for vantajoso para seus propósitos egoístas. Contudo, o conhecimento superficial de um indivíduo não nos permitirá distinguir entre esses dois casos, e decerto somos enganosamente levados por nosso otimismo a exagerar grosseiramente o número de seres humanos que têm sido transformados num sentido cultural.

A sociedade civilizada, que exige boa conduta e não se preocupa com a base instintual dessa conduta, conquistou assim a obediência de muitas pessoas que, para tanto, deixam de seguir suas próprias naturezas. Estimulada por esse êxito, a sociedade se permitiu o engano de tornar maximamente rigoroso o padrão moral, e assim forçou os seus membros a um alheamento ainda maior de sua disposição instintual. Conseqüentemente, eles estão sujeitos a uma incessante supressão do instinto, e a tensão resultante disso se trai nos mais notáveis fenômenos de reação e compensação. No domínio da sexualidade, onde é mais difícil realizar essa supressão, o resultado se manifesta nos fenômenos reativos das desordens neuróticas. Em outros lugares, é verdade que a pressão da civilização não traz em seu rastro quaisquer resultados patológicos, mas se revela em deformações do caráter e na perpétua presteza dos instintos inibidos em irromper, em qualquer oportunidade adequada, em proveito da satisfação. Qualquer um, compelido dessa forma a agir continuamente em conformidade com preceitos que não são a expressão de suas inclinações instintuais, está, psicologicamente falando, vivendo acima de seus meios, e pode objetivamente ser descrito como um hipócrita, esteja ou não claramente cônscio dessa incongruência. É inegável que nossa civilização contemporânea favorece, num grau extraordinário, a produção dessa forma de hipocrisia. Poder-se-ia dizer que ela está alicerçada nessa hipocrisia, e que teria de se submeter a modificações de grande alcance, caso as pessoas se comprometessem a viver em conformidade com a verdade psicológica. Assim, existem muito mais hipócritas culturais do que homens verdadeiramente civilizados — na realidade, trata-se de um ponto discutível saber se certo grau de hipocrisia cultural não é indispensável à manutenção da civilização, uma vez que a suscetibilidade à cultura, que até agora se organizou nas mentes dos homens dos nossos dias, talvez não se revele suficiente para essa tarefa. Por outro lado, a manutenção da civilização, mesmo numa base tão dúbia, fornece a perspectiva de, a cada nova geração, preparar o caminho para uma transformação de maior alcance do instinto, a qual será o veículo de uma civilização melhor.

Já podemos extrair um consolo desse exame: nossa mortificação e nossa penosa desilusão em virtude do comportamento incivilizado de nossos concidadãos do mundo durante a presente guerra foram injustificadas. Basearam-se numa ilusão a que havíamos cedido. Na realidade, nossos concidadãos não decaíram tanto quanto temíamos porque nunca subiram tanto quanto acreditávamos. O fato de a coletividade de indivíduos da humanidade, os povos e os Estados, terem mutuamente ab-rogado de suas restrições morais, naturalmente estimulou esses cidadãos individuais a se afastarem momentaneamente da constante pressão da civilização e a concederem uma satisfação temporária aos instintos que vinham mantendo sob pressão. Isso provavelmente não envolveu qualquer violação de sua moralidade relativa dentro de suas próprias nações.

Podemos, contudo, obter uma compreensão interna (insight) mais profunda na mudança acarretada pela guerra em nossos antigos compatriotas, e, ao mesmo tempo, ser advertidos a não cometer uma injustiça contra eles, pois o desenvolvimento da mente revela uma peculiaridade que não se acha presente em qualquer outro processo de desenvolvimento. Quando uma aldeia se transforma numa cidade, ou uma criança num homem, a aldeia e a criança ficam perdidas na cidade e no homem. Só a memória pode descobrir as antigas feições nesse novo quadro; e, de fato, os antigos materiais ou formas foram abandonados e substituídos por novos. O mesmo não ocorre com o desenvolvimento da mente. Aqui, pode-se descrever o estado de coisas, que não encontra termo algum de comparação, com a mera afirmativa de que, nesse caso, cada etapa anterior de desenvolvimento persiste ao lado da etapa posterior dela derivada; aqui, a sucessão também envolve a coexistência, embora toda a série de transformações tenha sido aplicada aos mesmos materiais. O estado mental anterior pode não ter-se manifestado durante anos; não obstante, está presente há tanto tempo, que poderá, em qualquer época, tornar-se novamente a modalidade de expressão das forças da mente, e na realidade a única, como se todos os desenvolvimentos posteriores tivessem sido anulados ou desfeitos. Essa extraordinária plasticidade dos desenvolvimentos mentais não se restringe ao que diz respeito à direção; pode ser descrita como uma capacidade especial para a involução — para a regressão —, de uma vez que pode muito bem acontecer que uma etapa posterior e mais elevada de desenvolvimento, tão logo abandonada, talvez não seja alcançada de novo. Contudo, as etapas primitivas sempre podem ser restabelecidas; a mente primitiva é, no sentido mais pleno desse termo, imperecível.

O que chamamos de doenças mentais inevitavelmente produz a impressão, no leigo, de que a vida intelectual e mental foi destruída. Na realidade, a destruição só se aplica a aquisições e desenvolvimentos ulteriores. A essência da doença mental reside num retorno a estados anteriores de vida afetiva e de funcionamento. Um excelente exemplo da plasticidade da vida mental é proporcionado pelo estado do sono, que todas as noites constitui a nossa meta. Desde que aprendemos a interpretar os sonhos, inclusive os mais absurdos e confusos, sabemos que sempre que vamos dormir nos despojamos de nossa moralidade arduamente conquistada como se fosse uma peça de vestuário, tornando a envergá-la na manhã seguinte. Esse desnudamento de nós mesmos, naturalmente, não é perigoso, já que ficamos paralisados, condenados à inatividade, pelo estado de sono. Apenas os sonhos nos podem informar a respeito da regressão de nossa vida emocional a uma das primeiras etapas de desenvolvimento. Por exemplo, é digno de nota que todos os nossos sonhos sejam regidos por motivos puramente egoísticos. Um de meus amigos ingleses apresentou essa tese numa reunião científica nos Estados Unidos da América, ao que uma senhora ali pressente observou que aquilo talvez fosse o caso na Áustria, mais podia asseverar, quanto a ela própria e a suas amigas, que elas eram altruístas inclusive em seus sonhos. Embora de raça inglesa, meu amigo, com base em sua própria experiência na análise de sonhos, foi obrigado a contradizer enfaticamente a senhora, declarando que, em seus sonhos, as magnânimas senhoras norte-americanas eram tão egoístas quanto as austríacas.

Assim, a transformação do instinto, em que se baseia nossa suscetibilidade à cultura, também poderá ser permanente ou temporariamente desfeita pelos impactos da vida. Sem dúvida, as influências da guerra se encontram entre as forças que podem provocar tal involução; dessa forma, não precisamos negar a suscetibilidade à cultura a todos que no momento se comportam de maneira incivilizada, e podemos prever que o enobrecimento dos seus instintos será restaurado em tempos mais pacíficos.

Existe, porém, em nossos concidadãos outro sintoma do mundo que talvez nos tenha deixado tão atônitos e chocados quanto a queda de suas alturas éticas que nos provocou tanta dor. O que tenho em mente é a falta de compreensão interna (insight) demonstrada pelos melhores intelectos, sua obstinação, sua inacessibilidade aos mais convincentes argumentos, e sua credulidade destituída de senso crítico para com as asserções mais discutíveis. Isso realmente apresenta um quadro lamentável e desejo dizer com toda ênfase que, quanto a esse aspecto, não sou de modo algum um partidário cego que só encontra todas as deficiências intelectuais apenas de um lado. Esse fenômeno é, no entanto, muito mais fácil de explicar e muito menos inquietador do que aquele que acabamos de considerar. Os estudiosos da natureza humana e os filósofos de há muito nos ensinaram que nos enganamos ao considerar nossa inteligência uma força independente e ao negligenciar sua dependência em relação à vida emocional. Nosso intelecto, segundo nos ensinam, só pode funcionar de maneira digna de confiança quando afastado das influências de fortes impulsos emocionais; do contrário, comporta-se simplesmente como um instrumento da vontade e fornece a inferência que a vontade exige. Assim, na opinião deles, os argumentos lógicos são impotentes contra os interesses afetivos; por isso, os debates apoiados por razões, na frase de Falstaff ‘tão abundantes quanto as amoras silvestres’, mostram-se tão infrutíferos no mundo dos interesses. A experiência psicanalítica, na medida do possível, tem confirmado ainda mais essa declaração. Diariamente, ela pode indicar que de repente as pessoas mais sagazes se comportam sem compreensão interna (insight), como se fossem imbecis, tão logo a compreensão interna (insight) necessária se defronta com uma resistência emocional, recuperando, porém, inteiramente a compreensão uma vez superada essa resistência. O aturdimento lógico que a presente guerra provocou em nossos concidadãos, não poucos dentre eles sendo o que há de melhor em sua espécie, constitui, portanto, um fenômeno secundário, uma conseqüência da excitação emocional, e está fadado, conforme esperamos, a desaparecer com ela.

Tendo assim, mais uma vez, chegado a compreender nossos concidadãos que agora se acham alienados de nós, suportaremos com muito maior facilidade o desapontamento que as nações, a coletividade de indivíduos da humanidade, nos causaram, pois nossas exigências em relação a eles devem ser muito mais modestas. Talvez estejam recapitulando o curso do desenvolvimento individual e, ainda hoje, representem etapas muito primitivas da organização e da formação de unidades mais elevadas. Corrobora isso o fato de, até agora, o fator educativo de uma compulsão externa no sentido da moralidade, cuja eficácia nos indivíduos foi por nós verificada, ser muito pouco discernível neles. Decerto, nutríramos a esperança de que a ampla comunidade de interesses estabelecida pelo comércio e pela produção constituiria o germe de tal compulsão, mas, aparentemente, as nações ainda obedecem a suas paixões muito mais prontamente do que a seus interesses. Estes lhes servem, na melhor das hipóteses, como racionalizações de suas paixões; elas exprimem seus interesses a fim de poderem apresentar razões para satisfazerem suas paixões. Sem dúvida, constituem mistério os motivos pelos quais, na coletividade de indivíduos, estes devem de fato desprezar-se, odiar-se e detestar-se mutuamente — cada nação contra outra nação —, inclusive em épocas de paz. Não posso dizer po7r que isso é assim. É algo como se, quando se trata de um grande número de pessoas, para não dizer milhões, todas as conquistas morais individuais fossem obliteradas, e só restassem as atitudes mentais mais primitivas, mais antigas e mais toscas. Talvez só etapas posteriores do desenvolvimento sejam capazes de efetuar alguma mudança nesse lamentável estado de coisas. Contudo, um pouco mais de veracidade e de honestidade por parte de todas as facções — nas relações dos homens uns com os outros, e entre eles e seus governantes — deve também aplainar o caminho para essa transformação.

 

II - NOSSA ATITUDE PARA COM A MORTE

 

O segundo fator ao qual atribuo nosso atual sentimento de alheamento deste mundo outrora belo e conveniente é a perturbação que ocorreu na atitude que, até o momento, adotamos em relação à morte.

Essa atitude estava longe de ser direta. A qualquer um que nos desse ouvidos nos mostrávamos, naturalmente, preparados para sustentar que a morte era o resultado necessário da vida, que cada um deve à natureza uma morte e deve esperar pagar a dívida — em suma, que a morte era natural, inegável e inevitável. Na realidade, contudo, estávamos habituados a nos comportar como se fosse diferente. Revelávamos uma tendência inegável para pôr a morte de lado, para eliminá-la da vida. Tentávamos silenciá-la; na realidade, dispomos até mesmo de um provérbio [em alemão]: ‘pensar em alguma coisa como se fosse a morte’. Isto é, como se fosse nossa própria morte, naturalmente. De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade.

Quando se trata da morte de outrem, o homem civilizado cuidadosamente evita falar de tal possibilidade no campo auditivo da pessoa condenada. Apenas as crianças desprezam essa restrição e desembaraçadamente se ameaçam uma às outras com a possibilidade de morrer, chegando inclusive ao ponto de fazer a mesma coisa com alguém que amam, como, por exemplo: ‘Querida mãezinha, quando você morrer eu farei isso ou aquilo’. Dificilmente o adulto civilizado sequer pode alimentar o pensamento da morte de outra pessoa, sem parecer diante de seus próprios olhos empedernido ou malvado; a menos que, naturalmente, como médico ou advogado ou algo assim, tenha de lidar com a morte em caráter profissional. Menos ainda ele se permitirá pensar na morte de outra pessoa se algum proveito em termos de liberdade, propriedade ou posição estiver ligado a ela. Essa nossa sensibilidade não impede, naturalmente, a ocorrência de mortes; quando uma de fato acontece, ficamos sempre profundamente atingidos e é como se fôssemos muito abalados em nossas expectativas. Nosso hábito é dar ênfase à causação fortuita da morte — acidente, doença, infecção, idade avançada; dessa forma, traímos um esforço para reduzir a morte de uma necessidade para um fato fortuito. Grande número de mortes simultâneas nos atinge como algo extremamente terrível. Para com a pessoa que morreu, adotamos uma atitude especial — algo próximo da admiração por alguém que realizou uma tarefa muito difícil. Deixamos de criticá-la, negligenciamos suas possíveis más ações, declaramos que ‘de mortuis nil nisi bonum‘, e julgamos justificável realçar tudo o que seja de mais favorável à sua lembrança na oração fúnebre e sobre a lápide tumular. A consideração pelos mortos, que, afinal de contas, não mais necessitam dela, é mais importante para nós do que a verdade, e certamente, para a maioria de nós, do que a consideração pelos vivos.

O complemento a essa atitude cultural e convencional para com a morte é proporcionado por nosso completo colapso quando a morte abate alguém que amamos — um progenitor ou um cônjuge, um irmão ou irmã, um filho ou um amigo íntimo. Nossas esperanças, nossos desejos e nossos prazeres jazem no túmulo com essa pessoa, nada nos consola, nada preenche o vazio deixado pelo ente perdido. Comportamo-nos como se fôssemos um dos Asra, que morrem quando aqueles que eles amam também morrem. Mas essa nossa atitude para com a morte exerce poderoso efeito sobre nossas vidas. A vida empobrece, perde em interesse, quando a mais alta aposta no jogo da vida, a própria vida, não pode ser arriscada. Torna-se tão chã e vazia como, digamos, um flerte nos Estados Unidos da América, no qual desde o início fica compreendido que nada irá acontecer, em contraste com um caso amoroso na Europa, no qual ambas as partes constantemente devem ter em mente suas sérias conseqüências. Nossos laços emocionais, a insuportável intensidade de nosso pesar, nos desestimulam a cortejar o perigo para nós mesmos e para aqueles que nos pertencem. Inúmeros empreendimentos, perigosos mas de fato indispensáveis, tais como tentativas de vôo artificial, expedições a países distantes ou experiências com substâncias explosivas, nem sequer chegam a ser considerados. Ficamos paralisados pelo pensamento de quem irá substituir o filho junto à mãe, o marido junto à esposa, o pai junto aos filhos, se sobrevier um desastre. Assim, a tendência de excluir a morte de nossos projetos de vida traz em seu rastro muitas outras renúncias e exclusões. No entanto, o lema da Liga Hanseática dizia: ‘Navigare necesse est, vivere, non necesse’ (‘Navegar é preciso, viver não é preciso.’)

Constitui resultado inevitável de tudo isso que passamos a procurar no mundo da ficção, na literatura e no teatro a compensação pelo que se perdeu na vida. Ali encontraremos pessoas que sabem morrer — que conseguem inclusive matar alguém. Também só ali pode ser preenchida a condição que possibilita nossa reconciliação com a morte: a saber, que por detrás de todas as vicissitudes da vida devemos ainda ser capazes de preservar intacta uma vida, pois é realmente muito triste que tudo na vida deva ser como num jogo de xadrez, onde um movimento em falso pode forçar-nos a desistir dele, com a diferença, porém, de que não podemos começar uma segunda partida, uma revanche. No domínio da ficção, encontramos a pluralidade de vidas de que necessitamos. Morremos com o herói com o qual nos identificamos; contudo, sobrevivemos a ele, e estamos prontos a morrer novamente, desde que com a mesma segurança, com outro herói.

É evidente que a guerra está fadada a varrer esse tratamento convencional da morte. Esta não mais será negada; somos forçados a acreditar nela. As pessoas realmente morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, freqüentemente dezenas de milhares, num único dia. E a morte não é mais um acontecimento fortuito. Certamente, ainda parece uma questão de acaso o fato de uma bala atingir esse ou aquele homem, mas uma segunda bala pode muito bem atingir o sobrevivente; e o acúmulo de mortes põe um termo à impressão de acaso. A vida, na realidade, tornou-se interessante novamente; recuperou seu pleno conteúdo.

Deve-se estabelecer aqui uma distinção entre dois grupos — os que arriscam suas vidas no campo de batalha e os que permanecem em casa, tendo apenas de esperar pela perda de seus entes queridos por ferimentos, moléstia ou infecção. Seria muito interessante, sem dúvida, estudar as modificações na psicologia dos combatentes, mas sei muito pouco a esse respeito. Devemos restringir-nos ao segundo grupo, ao qual nós próprios pertencemos. Já tive ocasião de dizer que em minha opinião o aturdimento e a paralisia de capacidade de que sofremos são essencialmente determinados, entre outras coisas, pela circunstância de que somos incapazes de manter nossa atitude anterior em relação à morte, não tendo encontrado, ainda, uma nova. Talvez nos sirva de ajuda proceder dessa forma, se dirigirmos nossa indagação psicológica no sentido de duas outras relações com a morte — a que podemos atribuir aos homens primevos, pré-históricos, e a que ainda existe em cada um de nós, mas que se oculta, invisível à consciência, nas camadas mais profundas de nossa vida mental.

Naturalmente, só podemos saber qual era a atitude do homem pré-histórico para com a morte por meio de inferências e interpretações; creio, porém, que esses métodos nos têm proporcionado conclusões mais ou menos dignas de confiança.

O homem primevo assumia uma atitude notável em relação à morte. Longe de ser coerente, era, na realidade, altamente contraditória. Por um lado, encarava a morte seriamente, reconhecia-a como o término da vida, utilizando-a nesse sentido; por outro, também negava a morte e a reduzia a nada. Essa contradição surgia do fato de que ele assumia atitudes radicalmente diferentes para com a morte de outras pessoas, de estranhos, de inimigos, e para com sua própria morte. Não fazia qualquer objeção à morte de outrem; ela significava o aniquilamento de alguém que ele odiava, e o homem primitivo não tinha quaisquer escrúpulos em ocasioná-lo. Era, sem dúvida, uma criatura muito impulsiva e mais cruel e maligna do que outros animais. Gostava de matar, e fazia isso como uma coisa natural. O instinto que, segundo se diz, refreia outros animais de matar e de devorar sua própria espécie, não precisa ser atribuído a ele.

Por isso, a história primeva da humanidade está repleta de assassinatos. Mesmo hoje, a história do mundo que nossos filhos aprendem na escola é essencialmente uma série de assassinatos de povos. O obscuro sentimento de culpa ao qual a humanidade tem estado sujeita desde épocas pré-históricas e que, em algumas religiões, foi condensado na doutrina da culpa primeva, do pecado original, é provavelmente o resultado de uma culpa de homicídio em que teria incorrido o homem pré-histórico. Em meu livro Totem e Tabu (1912-13) tentei, seguindo pistas fornecidas por Robertson Smith, Atkinson e Charles Darwin, adivinhar a natureza dessa culpa primeva, e creio, também, que a doutrina cristã de nossos dias nos permite deduzi-la. Se o Filho de Deus foi obrigado a sacrificar sua vida para redimir a humanidade do pecado original, então, pela lei de talião, dente por dente, olho por olho, aquele pecado deve ter sido uma morte, um assassinato. Nada mais poderia exigir o sacrifício de uma vida para a sua expiação. E, se o pecado original foi uma ofensa contra Deus Pai, o crime primevo da humanidade deve ter sido um parricídio, a morte do pai primevo da horda humana primitiva, cuja imagem mnêmica foi depois transfigurada numa deidade.

Para o homem primevo, sua própria morte era certamente tão inimaginável e irreal quanto o é para qualquer um de nós hoje em dia. No entanto, no seu caso, uma circunstância fez com que as duas atitudes opostas para com a morte colidissem e entrassem em conflito uma com a outra, circunstância essa que se tornou altamente importante, produzindo conseqüências de longo alcance. Ocorreu quando o homem primevo viu morrer alguém que lhe pertencia — a esposa, o filho, o amigo — a quem indubitavelmente ele amava como amamos os nossos, já que o amor não pode ser muito mais jovem do que a volúpia de matar. Então, em sua dor, foi forçado a aprender que cada um de nós pode morrer, e todo o seu ser revoltou-se contra a admissão desse fato, pois cada um desses antes amados era, afinal de contas, uma parte de seu próprio eu amado. Por outro lado, porém, mortes como essas também o agradavam, de uma vez que em cada uma das pessoas amadas havia também alguma coisa de estranho. A lei de ambivalência do sentimento, que até hoje rege nossas relações emocionais com aqueles a quem mais amamos, por certo tinha uma validade muito mais ampla nos tempos primevos. Assim, esses mortos amados também tinham sido inimigos e estranhos que haviam despertado nele certo grau de sentimento hostil.

Os filósofos declararam que o enigma intelectual apresentado ao homem primevo pelo quadro da morte forçou-o à reflexão, tornando-se assim o ponto de partida de toda especulação. Acho que aqui os filósofos estão pensando filosoficamente demais e concedendo pouquíssima consideração aos motivos que eram primordialmente operativos. Gostaria, portanto, de limitar e corrigir sua asserção. Em minha opinião, o homem primevo deve ter exultado ao lado do corpo de seu inimigo assassinado, sem ser levado a dar tratos à bola sobre o enigma da vida e da morte. O que liberou o espírito de indagação no homem não foi o enigma intelectual, e nem qualquer morte, mas o conflito de sentimento quando da morte de pessoas amadas e, contudo, estranhas e odiadas. A psicologia foi o primeiro rebento desse conflito de sentimento. O homem já não podia manter a morte à distância, pois a havia provado em sua dor pelos mortos; não obstante, não estava disposto a reconhecê-la, porquanto não podia conceber-se a si próprio como morto. Assim, idealizou um meio-termo; admitiu também o fato de sua própria morte, negando-lhe porém, o significado de aniquilamento — significado que ele não tivera motivo para negar no que dizia respeito à morte de seu inimigo. Foi ao lado do cadáver de alguém amado por ele que inventou os espíritos, e seu sentimento de culpa pela satisfação mesclado à sua tristeza transformou esses espíritos recém-nascidos em demônios maus que tinham de ser temidos. As modificações [físicas] acarretadas pela morte lhe sugeriram a divisão do indivíduo em corpo e alma — originalmente várias almas. Dessa maneira, seu encadeamento de pensamento corria paralelo ao processo de desintegração que sobrevém com a morte. Sua persistente lembrança dos mortos tornou-se a base para a suposição de outras formas de existência, fornecendo-lhe a concepção de uma vida que continua após morte aparente.

De início, essas existências subseqüentes não passavam de apêndices à existência à qual a morte pusera termo — sombrias, vazias de conteúdo e de pouca valia até épocas ulteriores; traziam, ainda, o caráter de desventurados artifícios. Podemos relembrar a resposta dada a Ulisses pela alma de Aquiles:

‘Pois desde outrora, quando estavas vivo, nós os argivos te honrávamos mesmo como a um deus, e agora que estás aqui, governas soberanamente sobre os mortos. Portanto, não lamentes absolutamente estares morto, Aquiles.’

Assim falei, e ele imediatamente respondeu, dizendo: ‘Não, não procures falar-me brandamente da morte, glorioso Ulisses. Eu escolheria, para que pudesse viver na terra, antes ser o servo de outrem, de algum homem sem fortuna cujos recursos fossem os mais parcos, do que ser o senhor de todos os mortos que pereceram.’

 

Ou na poderosa e amarga paródia de Heine:

Der Kleinste lebendige PhilisterZu Stuckert am NeckarViel glücklicher ist erAls ich, der Pelide, der tote Held,Der Schattenfürst in der Unterwelt.

Só mais tarde as religiões conseguiram representar essa vida futura como a mais desejável, a única verdadeiramente válida, a reduzir a vida que termina com a morte a uma mera preparação. Depois disso, passou a ser apenas coerente estender a vida para trás até o passado, elaborar a noção de existências pretéritas, da transmigração das almas e da reencarnação, tudo com a finalidade de despojar a morte do seu significado de término da vida. Assim, a origem da negação da morte, que descrevemos [ver em [1]] como uma ‘atitude convencional e cultural’, remonta aos tempos mais antigos.

Ao lado do corpo sem vida do ente amado, passou a existir não só a doutrina da alma, a crença na imortalidade e uma poderosa fonte de sentimento de culpa do homem, mas também os primeiros mandamentos éticos. A primeira e mais importante proibição feita pela consciência que despertava foi: ‘Não matarás’. Surgiu em relação a pessoas mortas que eram amadas, como uma reação contra a satisfação do ódio que se ocultava sob o pesar, estendendo-se gradativamente a estranhos que não eram amados e, finalmente, até mesmo a inimigos.

Essa extensão final do mandamento já não é experimentada pelo homem civilizado. Quando a furiosa luta da guerra atual for decidida, cada um dos combatentes vitoriosos retornará alegremente à pátria, para sua esposa e seus filhos, sem ser questionado nem perturbado por pensamentos sobre os inimigos que, quer de perto, quer de longe, matou. É digno de nota que as raças primitivas que ainda sobrevivem no mundo, e que indubitavelmente se acham mais próximas do que nós do homem primevo, agem de modo diferente em relação a isso, ou pelo menos agiam até ficarem sob a influência de nossa civilização. Selvagens — australianos, boximanes, fueguinos — estão longe de ser assassinos implacáveis; quando voltam vitoriosos da guerra não pisam em suas aldeias nem tocam em suas esposas até que tenham expiado os assassinatos que perpetraram na guerra por penitências, quase sempre longas e tediosas. É fácil, naturalmente, atribuir isso à sua superstição: o selvagem ainda teme os espíritos vingativos dos assassinados. Mas os espíritos de seus inimigos mortos nada mais são do que a expressão de sua consciência pesada por causa de sua culpa de homicídio; por detrás dessa superstição jaz oculta uma veia de sensibilidade ética que foi perdida por nós, homens civilizados.

Sem dúvida, as almas piedosas, que gostariam de crer que nossa natureza está distanciada de qualquer contato com o que é mau e degradante, não deixarão de utilizar o aparecimento e a premência iniciais da proibição contra o assassinato como a base para conclusões gratificantes quanto à força dos impulsos éticos que devem ter sido implantados em nós. Infelizmente, esse argumento fortalece ainda mais o ponto de vista oposto. Uma proibição tão poderosa só pode ser dirigida contra um impulso igualmente poderoso. O que nenhuma alma humana deseja não precisa de proibição; é excluído automaticamente. A própria ênfase dada ao mandamento ‘Não matarás’ nos assegura que brotamos de uma série interminável de gerações de assassinos, que tinham a sede de matar em seu sangue, como, talvez, nós próprios tenhamos hoje. Os esforços éticos da humanidade, cuja força e significância não precisamos absolutamente depreciar, foram adquiridos no curso da história do homem; desde então se tornaram, embora infelizmente apenas em grau variável, o patrimônio herdado pelos homens contemporâneos.

Deixemos agora o homem primevo, e passemos para o inconsciente em nossa própria vida mental. Aqui dependemos inteiramente do método psicanalítico de investigação, o único que atinge tais profundezas. Qual, perguntamos, é a atitude do nosso inconsciente para com o problema da morte? A resposta deve ser: quase exatamente a mesma que a do homem primevo. Nesse ponto, como em muitos outros, o homem das épocas pré-históricas sobrevive inalterado em nosso inconsciente. Nosso inconsciente, portanto, não crê em sua própria morte; comporta-se como se fosse imortal. O que chamamos de nosso ‘inconsciente’ — as camadas mais profundas de nossas mentes, compostas de impulsos instintuais — desconhece tudo o que é negativo e toda e qualquer negação; nele as contradições coincidem. Por esse motivo, não conhece sua própria morte, pois a isso só podemos dar um conteúdo negativo. Assim, não existe nada de instintual em nós que reaja a uma crença na morte. Talvez, inclusive, isso seja o segredo do heroísmo. Os fundamentos racionais do heroísmo repousam num juízo segundo o qual a própria vida do indivíduo não pode ser tão preciosa quanto certos bens abstratos e gerais. Em minha opinião, porém, é muito mais freqüente o heroísmo instintivo e impulsivo que desconhece tais razões e zomba do perigo, no mesmo espírito do Steinklopferhans de Anzengruber: ‘Nada pode acontecer a mim.’ Ou então, aquelas razões servem apenas para dissipar as hesitações que poderiam tolher a reação heróica que corresponde ao inconsciente. O medo da morte, que nos domina com mais freqüência do que pensamos, é, por outro lado, algo secundário e, via de regra, o resultado de um sentimento de culpa.

Por outro lado, admitimos a morte para estranhos e inimigos, destinando-os a ela tão prontamente e tão sem hesitação quanto o homem primitivo. Aqui, é verdade, há uma distinção que será declarada decisiva no que diz respeito à vida real. Nosso inconsciente não executa o ato de matar; ele simplesmente o pensa e o deseja. Mas seria completamente errado subestimar essa realidade psíquica quando posta em confronto com a realidade factual. Ela é bastante importante e grave. Em nossos impulsos inconscientes, diariamente e a todas as horas, nos livramos de alguém que nos atrapalha, de alguém que nos ofendeu ou nos prejudicou. A expressão ‘Que o Diabo o carregue!’, que tantas vezes o aflora aos lábios das pessoas em tom de brincadeira e que, na realidade, significa ‘Que a morte o carregue!’, é em nosso inconsciente um sério e poderoso desejo de morte. De fato, nosso inconsciente assassinará até mesmo por motivos insignificantes; como o antigo ateniense de Drácon, ele não conhece outra punição para o crime a não ser a morte. E isso mostra certa coerência, já que cada agravo a nosso ego todo-poderoso e autocrático é, no fundo, um crime de lesa-majestade.

Destarte, caso sejamos julgados por nossos impulsos inconscientes impregnados de desejo, nós próprios seremos, como o homem primevo, uma malta de assassinos. Ainda bem que nem todos esses desejos possuem a potência que lhes era atribuída nos tempos primevos; no fogo cruzado dos vitupérios mútuos, a humanidade de há muito teria peredido, e com ela os melhores e mais sábios homens, e as mais formosas e belas mulheres.

Em geral, a psicanálise não encontra crédito entre os leigos para afirmações como essas. Rejeitam-nas como calúnias que são refutadas pela experiência consciente, e prontamente desprezam os fracos indícios pelos quais até mesmo o inconsciente está inclinado a trair-se à consciência. É, portanto, pertinente ressaltar que muitos pensadores, que não poderiam ter sido influenciados pela psicanálise, acusaram de modo muito bem definido nossos pensamentos não-expressos de estarem prontos, não obstante a proibição contra o assassinato, para livrar-se de qualquer coisa que nos atrapalha. Dentre os muitos exemplos desse tipo escolherei um que se tornou famoso:

Em Le Père Gariot, Balzac faz alusão a um trecho das obras de J. J. Rousseau onde o escritor pergunta ao leitor o que ele faria se — sem deixar Paris e, obviamente, sem ser descoberto — pudesse matar, com grande lucro para si, um velho mandarim em Pequim por um mero ato de vontade. Rousseau dá a entender que não daria grande coisa pela vida daquele dignitário. ‘Tuer son mandarim‘ tornou-se uma frase proverbial para essa disposição secreta, presente inclusive no homem moderno.

Existe também grande número de chistes e anedotas cínicas que revelam a mesma tendência — como, por exemplo, as palavras atribuídas a um marido: ‘Se um de nós dois morrer, eu me mudarei para Paris.’ Esses chistes cínicos não seriam possíveis a menos que encerrassem uma verdade não reconhecida que não poderia ser admitida se fosse expressa seriamente e sem disfarce. Até mesmo na brincadeira — coisa bem sabida — pode-se dizer a verdade.

Da mesma forma que para o homem primevo, também para nosso inconsciente há um caso em que as duas atitudes opostas para com a morte, aquela que a reconhece como sendo a extinção da vida, e aquela que a nega porque irreal, se chocam e entram em conflito. Esse caso é idêntico ao das eras primevas: a morte, ou o risco de morte, de alguém que amamos, pai ou mãe, esposo ou esposa, irmão ou irmã, filho ou amigo dileto. Esses seres amados constituem, por um lado, uma posse interna, componentes de nosso próprio ego; por outro, contudo, são parcialmente estranhos, até mesmo inimigos. À exceção de apenas pouquíssimas situações, adere à mais terna e à mais íntima de nossas relações amorosas uma pequena parcela de hostilidade que pode excitar um desejo de morte inconsciente. No entanto, esse conflito devido à ambivalência não conduz agora, como o fazia então, à doutrina da alma e à ética, mas à neurose, que nos proporciona uma profunda compreensão interna (insight) também da vida mental normal. Não poucas vezes médicos que praticam a psicanálise tiveram de lidar com o sintoma de uma preocupação exagerada pelo bem-estar de parentes, ou com auto-recriminações inteiramente infundadas após a morte de uma pessoa amada. O estudo de tais fenômenos não deixou qualquer dúvida quanto à extensão e à importância dos desejos de morte inconscientes.

O leigo sente um horror extraordinário diante da possibilidade de tais sentimentos e toma essa aversão como legítimo fundamento para descrer das asserções da psicanálise. Erroneamente, penso eu. Não se pretende aqui uma depreciação dos sentimentos de amor, depreciação que de fato não existe. Realmente, é estranho tanto à nossa inteligência quanto a nossos sentimentos aliar assim o amor ao ódio; mas a Natureza, fazendo uso desse par de opostos, consegue manter o amor sempre vigilante e renovado, a fim de protegê-lo contra o ódio que jaz, à espreita, por detrás dele. Poder-se-ia dizer que devemos as mais belas florações de nosso amor à reação contra o impulso hostil que sentimos dentro de nós.

Em suma: nosso inconsciente é tão inacessível à idéia de nossa própria morte, tão inclinado ao assassinato em relação a estranhos, tão dividido (isto é, ambivalente) para com aqueles que amamos, como era o homem primevo. Contudo, como nos distanciamos desse estado primevo em nossa atitude convencional e cultural para com a morte!

É fácil ver como a guerra se choca com essa dicotomia. Ela nos despoja dos acréscimos ulteriores da civilização e põe a nu o homem primevo que existe em cada um de nós. Compele-nos mais uma vez a sermos heróis que não podem crer em sua própria morte; estigmatiza os estranhos como inimigos, cuja morte deve ser provocada ou desejada; diz-nos que desprezemos a morte daqueles que amamos. A guerra, porém, não pode ser abolida; enquanto as condições de existência entre as nações continuarem tão diferentes e sua repulsa mútua tão violenta, sempre haverá guerras. É então que surge a pergunta: Não somos nós que devemos ceder, que nos devemos adaptar à guerra? Não devemos confessar que em nossa atitude civilizada para com a morte estamos mais uma vez vivendo psicologicamente acima de nossos meios, e não devemos, antes, voltar atrás e reconhecer a verdade? Não seria melhor dar à morte o lugar na realidade e em nossos pensamentos que lhe é devido, e dar um pouco mais de proeminência à atitude inconsciente para com a morte, que, até agora, tão cuidadosamente suprimimos? Isso dificilmente parece um progresso no sentido de uma realização mais elevada, mas antes, sob certos aspectos, um passo atrás — uma regressão; mas tem a vantagem de levar mais em conta a verdade e de novamente tornar a vida mais tolerável para nós. Tolerar a vida continua a ser, afinal de contas, o primeiro dever de todos os seres vivos. A ilusão perderá todo o seu valor, se tornar isso mais difícil para nós.

Lembramo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para bellum. Se queres preservar a paz, prepara-te para a guerra.

Estaria de acordo com o tempo em que vivemos alterá-lo para: Si vis vitam, para mortem. Se queres suportar a vida, preparar-te para a morte.

 

APÊNDICE: CARTA A FREDERIK VAN EEDEN

 

[Esta carta foi escrita por Freud no fim de 1914, alguns meses depois de deflagrada a Primeira Guerra Mundial e alguns meses antes da elaboração de suas ‘Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte.’ Van Eeden, a quem a carta foi endereçada, era um psicopatologista holandês, mais conhecido, contudo, como homem de letras. Embora velho conhecido de Freud, nunca aceitou seus conceitos. A carta foi publicada pela primeira vez em alemão por Van Eeden num semanário de Amsterdam, De Amsterdammer, a 17 de janeiro de 1915 (Nº 1960, pág. 3). Parece que até agora não foi reimpressa em alemão. Uma tradução para o inglês está incluída no segundo volume da vida de Freud escrita pelo Dr. Ernest Jones (1955, 413), e a versão que se segue é a mesma, exceto algumas mudanças verbais.]

Viena, 28 de dezembro de 1914.

Prezado Dr. Van Eeden,

Aventuro-me, sob o impacto da guerra, a lembrar-lhe duas teses formuladas pela psicanálise e que, sem dúvida, contribuíram para sua impopularidade.

A psicanálise inferiu dos sonhos e das parapraxias das pessoas saudáveis, bem como dos sintomas dos neuróticos, que os impulsos primitivos, selvagens e maus da humanidade não desapareceram em qualquer de seus membros individuais, mas persistem, embora num estado reprimido, no inconsciente (para empregar nossos termos técnicos) e aguardam as oportunidades para se tornarem ativos mais uma vez. Ela nos ensinou, ainda, que nosso intelecto é algo débil e dependente, um joguete e um instrumento de nossos instintos e afetos, e que todos nós somos compelidos a nos comportar inteligente ou estupidamente, de acordo com as ordens de nossas atitudes [emocionais] e resistências internas.

Se, agora, o senhor observar o que está acontecendo na presente guerra — as crueldades e as injustiças pelas quais as nações mais civilizadas são responsáveis, a maneira distinta pela qual julgam suas próprias mentiras e maldades e as de seus inimigos, e a falta geral de compreensão interna (insight) que predomina —, terá de admitir que a psicanálise tem estado certa em ambas as suas teses.

Talvez ela não tenha sido inteiramente original nisso; não poucos pensadores e estudiosos da humanidade fizeram afirmações semelhantes. Nossa ciência, porém, as elaborou detalhadamente e as empregou a fim de lançar luz sobre muitos enigmas psicológicos.

Espero que venhamos a nos encontrar em tempos mais felizes.

Seu, sinceramente,

Sigm. Freud

 

SOBRE A TRANSITORIEDADE (1916 [1915])

 

VERGÄNGLICHKEIT

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1916 Em Das Land Goethes 1914-1916. Stuttgart: Deutsche Verlagsanstalt. Pág. 37-8.

1926 Almlanach 1927, 39-42.

1928 G.S., 11, 291-4.

1946 G.W., 10, 358-61.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

      ‘On Transience’

1942 Int. J. Psycho-Anal., 23 (2), 84-5. (Trad. de James Strachey.)

1950 C.P., 5, 79-82. (Mesmo tradutor.)

A presente tradução inglesa é uma reimpressão ligeiramente alterada da que foi publicada em 1950.

Este ensaio foi escrito em novembro de 1915, a convite da Berliner Goetherbund (Sociedade Goethe de Berlim) para um volume comemorativo lançado no ano seguinte sob o título de Das Land Goethes (O País de Goethe). Esse volume, produzido com esmero, enfeixava grande número de contribuições de autores e artistas conhecidos, passados e atuais, como von Bülow, von Brentano, Ricardo Huch, Hauptmann e Liebermann. O original alemão (exceto o quadro que apresenta dos sentimetnos de Freud sobre a guerra, que estava então em seu segundo ano) constitui excelente prova de seus poderes literários. É interessante notar que o ensaio abrange um enunciado da teoria do luto contido em ‘Luto e Melancolia’ (1971e), que Freud escrevera alguns meses antes, mas que só foi publicado dois anos depois.

 

SOBRE A TRANSITORIEDADE

 

Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.

Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.

O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor — que denominamos de libido — que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.

Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.

Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.

 

ALGUNS TIPOS DE CARÁTER ENCONTRADOS NO TRABALHO PSICANALÍTICO

 

EINIGE CHARAKTERTYPEN AUS DERPSYCHOANALYTISCHEN ARBEIT

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1916 Imago, 4 (6), 317-336.

1918 S.K.S.N., 4, 521-552. (1922. 2ª ed.)

1924 G.S., 10, 287-314.

1924 Dichtung und Kunst, 59-86.

1925 Almanach 1926, 21-6. (Somente a Seção I.)

1936 Psychoan. Pädagog., 9, 193-4. (Somente a Seção III.)

1946 G.W., 10, 364-391.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

[Some Character-Types Met with in Psycho-Analytic Work]

1925  C.P., 4, 318-344. (Trad. E. C. Mayne.)

A presente tradução inglesa baseia-se na que foi publicada em 1925.

Estes três ensaios foram publicados no último número de Imago referente ao ano de 1916. O terceiro deles, embora o mais curto, provocou tantas repercussões quanto qualquer dos escritos não médicos de Freud, pois lançou uma luz inteiramente nova sobre os problemas da psicologia do crime.

Trechos da tradução deste trabalho publicados em 1925 foram incluídos em A General Selection from the Works of Sigmund Freud, de Rickman (1937, 111-17).

 

ALGUNS TIPOS DE CARÁTER ENCONTRADOS NO TRABALHO PSICANALÍTICO

 

Quando um médico empreende o tratamento psicanalítico de um neurótico, seu interesse não se dirige de modo algum em primeiro lugar para o caráter do paciente. Prefere saber o que significam os sintomas, quais os impulsos instintuais ocultos por detrás deles e por eles satisfeitos, e qual o curso seguido pelo caminho misterioso que conduziu dos desejos instintuais aos sintomas. Contudo, a técnica que ele é obrigado a seguir logo o compele a dirigir sua curiosidade imediata para outros objetivos. Observa que sua investigação se acha ameaçada por resistências erguidas contra ele pelo paciente, podendo o médico, com razão, encarar essas resistências como parte do caráter do paciente. Isso passa a adquirir a prioridade de seu interesse.

O que se opõe aos esforços do médico nem sempre são os traços de caráter que o paciente reconhece em si mesmo e que lhe são atribuídos por pessoas que o cercam. As peculiaridades que parecera possuir apenas em grau modesto são com freqüência trazidas à luz com intensidade surpreendentemente maior, ou então nele se revelam atitudes que não tinham sido denunciadas em outras relações da vida. As páginas que se seguem serão dedicadas a descrever e a rastrear alguns desses surpreendentes traços de caráter.

 

I - AS EXCEÇÕES

 

O trabalho psicanalítico continuamente se defronta com a tarefa de induzir o paciente a renunciar a uma dose imediata e diretamente atingível de prazer. Não se pede a ele que renuncie a todo prazer; talvez não se possa esperar isso de nenhum ser humano, e até mesmo a religião é obrigada a apoiar sua exigência de que o prazer terreno seja posto de lado prometendo proporcionar em seu lugar uma quantidade incomparavelmente maior de um prazer superior no outro mundo. Não, apenas se pede ao paciente que renuncie às satisfações que inevitavelmente trarão conseqüências prejudiciais. Sua privação deve ser apenas temporária; ele só tem de aprender a trocar uma dose imediata de prazer por uma mais segura, ainda que adiada. Ou, em outras palavras, sob a orientação do médico, pede-se a ele que avance do princípio do prazer para o princípio da realidade pelo qual o ser humano maduro se distingue de uma criança. Nesse processo educativo, dificilmente se pode dizer que a compreensão interna (insight) mais nítida do médico desempenha um papel decisivo; via de regra, ele só poderia dizer a seu paciente o que a própria razão deste pode dizer-lhe. Mas saber uma coisa em nossa própria mente não é o mesmo que ouvi-la de alguém de fora. O médico desempenha o papel eficaz estranho; faz uso da influência que um ser humano exerce sobre outro. Ou — recordando que é hábito da psicanálise substituir o que é derivado e estiolado pelo que é original e básico — digamos que o médico, em seu trabalho educativo, faz uso de um dos componentes do amor. Nesse trabalho de educação posterior, provavelmente nada mais faz do que repetir o processo que, de início, tornou possível qualquer espécie de educação. Lado a lado com as exigências da vida, o amor é o grande educador, e é pelo amor daqueles que se encontram mais próximos dele que o ser humano incompleto é induzido a respeitar os ditames da necessidade e a poupar-se do castigo que sobrevém a qualquer infração dos mesmos.

Quando, dessa maneira, pedimos ao paciente que renuncie provisoriamente a alguma satisfação agradável, que faça um sacrifício, que se mostre disposto a aceitar um sofrimento temporário a fim de chegar a um resultado melhor, ou mesmo, simplesmente, que se decida a se submeter a uma necessidade que se aplica a todos, encontramos indivíduos que resistem a esse apelo por um motivo especial. Dizem que já renunciaram bastante e já sofreram bastante e têm direito de ser poupados de quaisquer outras exigências; não se submeterão mais a qualquer necessidade desagradável, pois são exceções e, além disso, pretendem continuar assim. Nesse tipo de paciente essa reivindicação se transforma na convicção de que uma providência especial vela por ele, protegendo-o de quaisquer sacrifícios penosos dessa natureza. Os argumentos do médico nada conseguem contra uma confiança interna que se expressa de forma tão vigorosa quanto esta; mesmo a influência dele, na realidade, é inicialmente impotente, ficando evidente para ele que deve descobrir as fontes das quais essa prevenção prejudicial se alimenta.

Ora, sem dúvida é verdade que cada um gostaria de se considerar uma ‘exceção’ e reivindicar privilégios em relação aos demais. Mas, precisamente por causa disso, deve haver uma razão específica, e não universalmente presente, para que alguém realmente se proclame uma exceção e se comporte como tal. Essa razão pode ser de mais de uma natureza; nos casos que investiguei, consegui descobrir uma peculiaridade comum às experiências mais antigas das vidas desses pacientes. Suas neuroses se ligavam a alguma experiência ou sofrimento a que estiveram sujeitos em sua primeira infância, e em relação aos quais eles próprios sabiam não ter culpa, podendo encará-los como sendo uma desvantagem injusta a eles imposta. Os privilégios que reclamavam como resultado dessa injustiça, e a rebeldia que ela engendrava, contribuíram, e não em pequena dose, para intensificar os conflitos que levaram à irrupção de sua neurose. Num desses pacientes, uma mulher, a atitude para com a vida, ora objeto de seu exame, chegou ao máximo quando ela soube que uma perturbação dolorosa, de ordem orgânica, que a havia impedido de alcançar seus objetivos na vida, era de origem congênita. Enquanto considerou esse mal como uma aquisição acidental e tardia, suportou-o pacientemente; tão logo, porém, verificou ser ele parte de uma herança inata, tornou-se rebelde. Um jovem que se acreditava velado por uma providência especial, em sua infância fora vítima de uma infecção acidental provocada por sua ama-de-leite, e depois passou toda a sua vida fazendo reivindicações de compensação, uma pensão por acidente, por assim dizer, sem ter qualquer idéia que servisse de base para essas alegações. Nesse caso, a análise que construiu esse fato a partir de resíduos mnêmicos obscuros e de interpretações dos sintomas, foi confirmada objetivamente por informações prestadas pela família.

Por motivos que serão facilmente compreendidos, não posso alongar-me muito sobre essas e outras anamneses, nem me proponho penetrar na evidente analogia entre deformações de caráter resultantes de uma prolongada doença na infância e o comportamento de nações inteiras cuja história passada foi cheia de sofrimentos. Em vez disso, contudo, aproveitarei a oportunidade para chamar a atenção para uma figura criada pelo maior dos poetas — uma figura em cujo caráter a reivindicação à exceção se mostra estreitamente vinculada à circunstância de uma desvantagem congênita, sendo por ela motivada.

No monólogo inicial de Ricardo III, de Shakespeare, Gloucester, que depois vem a ser Rei, diz

Mas eu, que não fui talhado para habilidades esportivas, nem para cortejar um espelho amoroso; que, grosseiramente feito e sem a majestade do amor para pavonear-me diante de uma ninfa de lascivos meneios; eu, privado dessa bela proporção, desprovido de todo encanto pela pérfida natureza; disforme, inacabado, enviado por ela antes do tempo para este mundo dos vivos; terminado pela metade e isso tão imperfeitamente e fora de moda que os cães ladram para mim quando paro perto deles;

 

E assim, já que não posso mostrar-me como amante, para entreter estes belos dias da galanteria, resolvi portar-me como vilão e odiar os frívolos prazeres deste tempo.

À primeira vista, essa investida talvez dê a impressão de não estar relacionada a nosso presente tema. Ricardo parece nada dizer além de: ‘Considero tediosos esses tempos frívolos, e quero divertir-me. Como não posso desempenhar o papel de amante por causa da minha deformidade, serei o vilão; conspirarei, assassinarei e farei tudo o que quiser. Essa motivação frívola só sufocaria qualquer sentimento de simpatia no auditório, se não fosse um pano de fundo para algo mais grave. Do contrário, a peça seria psicologicamente impossível, pois o escritor deve saber como nos fornecer antecedentes secretos que despertem simpatia pelo seu herói, a fim de que possamos admirar sua ousadia e desembaraço sem protesto interior; e essa simpatia só pode basear-se na compreensão ou no sentimento de uma possível solidariedade interior em relação a ele.

Penso, portanto, que o monólogo de Ricardo não diz tudo, dando meramente uma sugestão, e deixando que preenchamos o que ele sugere. Quando o fazemos, contudo, a aparência de frivolidade desaparece, a amargura e a minudência com que Ricardo retratou sua deformidade exercem todo o seu efeito, e percebemos claramente o sentimento de solidariedade que compele nossa simpatia mesmo para com um vilão como ele. Assim, o que o monólogo significa é: ‘A Natureza me causou um doloroso mal ao negar-me a beleza das formas que conquista o amor humano. A vida me deve uma reparação por isso, e farei tudo para consegui-la. Tenho o direito de ser uma exceção, de desprezar os escrúpulos pelos quais os outros se deixam tolher. Posso fazer o mal, já que a mim foi feito mal.’ Agora, sentimos que nós mesmos poderíamos ficar como Ricardo; que em pequena escala, realmente, já somos como ele. Ricardo é uma enorme ampliação de algo que encontramos em nós mesmos. Todos nós pensamos que temos motivo para repreender a Natureza e o nosso destino por desvantagens congênitas e infantis; todos exigimos reparação por antigos ferimentos ao nosso narcisismo, ao nosso amor-próprio. Por que a Natureza não nos deu os cachos dourados de Balder ou a força de Siegfried, ou a expressão altaneira do gênio, ou o nobre perfil de aristocracia? Por que nascemos num lar de classe média e não num palácio real? Poderíamos exibir beleza e distinção tão bem quanto qualquer um daqueles em quem agora somos obrigados a invejar essas qualidades.

Constitui, contudo, uma sutil economia de arte no poeta não permitir a seu herói exprimir franca e completamente todos os seus motivos secretos. Por esse meio, obriga-nos a suplementá-los; ele ocupa nossa atividade intelectual, desvia-a da reflexão crítica e nos mantém firmemente identificados com seu herói. Um indivíduo canhestro, em seu lugar, daria expressão consciente a tudo que desejasse revelar-nos, e então se depararia com nossa inteligência fria e sem entraves, que impediria qualquer aprofundamento da ilusão.

Antes de deixarmos as ‘exceções’, contudo, podemos ressaltar que a reivindicação das mulheres a privilégios e à isenção de tantas das importunidades da vida repousa na mesma base. Conforme aprendemos pelo trabalho psicanalítico, as mulheres se consideram como tendo sido prejudicadas na infância, como tendo sido imerecidamente privadas de algo e injustamente tratadas; e a amargura de tantas filhas contra suas mães provém, em última análise, da censura contra estas por as terem trazido ao mundo como mulheres e não como homens.

 

II - OS ARRUINADOS PELO ÊXITO

 

O trabalho psicanalítico proporcionou-nos a tese segundo a qual as pessoas adoecem de neurose como resultado de frustração. Referimo-nos à frustração da satisfação de seus desejos libidinais, fazendo-se necessária uma digressão a fim de tornarmos a tese inteligível. Para que uma neurose seja gerada, deve haver um conflito entre os desejos libidinais de uma pessoa e a parte de sua personalidade que denominamos de ego, que é a expressão do seu instinto de autopreservação e que também abrange os ideais de sua personalidade. Um conflito patogênico dessa espécie só ocorre quando a libido tenta seguir caminhos e objetivos que o ego de há muito superou e condenou e, portanto, proibiu para sempre, e isso a libido só faz se for privada da possibilidade de uma satisfação ego-sintônica ideal. Por isso, a privação, a frustração de uma satisfação real, é a primeira condição para a geração de uma neurose, embora, na verdade, esteja longe de ser a única.

Parece ainda mais surpreendente, e na realidade atordoante, quando, na qualidade de médico, se faz a descoberta de que as pessoas ocasionalmente adoecem precisamente no momento em que um desejo profundamente enraizado e de há muito alimentado atinge a realização. Então, é como se elas não fossem capazes de tolerar sua felicidade, pois não pode haver dúvida de que existe uma ligação causal entre seu êxito e o fato de adoecerem.

Tive oportunidade de obter uma compreensão interna (insight) da anamnese de uma mulher, que me proponho descrever como algo típico dessas ocorrências trágicas. Era bem nascida e bem educada; no entanto, ainda muito jovem, não pôde conter seu gosto de viver; fugiu de casa e perambulou pelo mundo em busca de aventuras, até travar conhecimento com um pintor, que não só pôde apreciar seus encantos femininos mas também captar, apesar de sua degradação, as qualidades mais requintadas que ela possuía. Levou-a para viver com ele e ela provou ser uma companheira fiel, parecendo apenas carecer de reabilitação social para alcançar uma felicidade completa. Após muitos anos de vida em comum, o pintor conseguiu fazer com que a família dele se reconciliasse com ela; estava então preparado para torná-la sua esposa legítima. Foi nesse momento que ela começou a desmoronar. Descuidou da casa da qual agora estava prestes a tornar-se dona por direito; imaginou-se perseguida pelos parentes dele, que desejavam fazê-la parte da família; proibiu ao amante, com seu ciúme insensato, todo contato social; prejudicou-o em seu trabalho artístico, e logo sucumbiu a uma doença mental incurável.

Em outra ocasião, defrontei-me com o caso de um respeitável senhor, professor universitário, que nutria havia muitos anos o desejo natural de ser o sucessor do mestre que o iniciara nos estudos. Quando esse professor mais antigo se aposentou e os colegas informaram ao pretendente que ele fora escolhido para substituí-lo, começou a hesitar, depreciou seus méritos, declarou-se indigno de preencher o cargo para o qual fora designado, e caiu numa melancolia que o deixou incapaz de toda e qualquer atividade durante vários anos.

Não obstante esses dois casos serem diferentes sob outros aspectos, existe uma concordância no seguinte ponto: a doença seguiu de perto a realização de um desejo e pôs termo a toda fruição do mesmo.

A contradição entre tais experiências e a norma segundo a qual aquilo que induz à doença é a frustração não é insolúvel. Desaparecerá se estabelecermos uma distinção entre uma frustração externa e uma interna. Se o objeto no qual a libido pode encontrar sua satisfação está contido na realidade, isso constitui uma frustração externa. Em si, ela é inoperante, não patogênica, até que uma frustração interna se junte a ela. Esta última deve provir do ego, e deve disputar o acesso da libido a outros objetos, objetos estes que agora a libido procura apreender. Só então surgem um conflito e a possibilidade de uma doença neurótica, isto é, de uma satisfação substitutiva alcançada indiretamente por meio do inconsciente reprimido. Por conseguinte, a frustração interna está potencialmente presente em todos os casos, só que não entra em ação até que a frustração externa real tenha preparado o terreno para ela. Nos casos excepcionais em que as pessoas adoecem por causa do êxito, a frustração interna atua por si mesma; na realidade, só surge depois que uma frustração externa foi substituída por realização de um desejo. À primeira vista, há algo de estranho nisso, mas, por ocasião de um exame mais detido, refletiremos que não é absolutamente incomum para o ego tolerar um desejo tão inofensivo na medida em que ele só existe na fantasia e cuja realização parece distante; pelo contrário, porém, o ego se defenderá ardentemente contra esse desejo tão logo este se aproxime da realização e ameace tornar-se uma realidade. A distinção entre isso e as situações comuns na formação da neurose consiste meramente em que, via de regra, são as intensificações internas da catexia libidinal que transformam a fantasia, até então merecedora de pouca consideração e tolerada, num oponente temido, ao passo que nesses casos o sinal para a irrupção do conflito é dado por uma mudança externa real.

O trabalho analítico não encontra dificuldade alguma em demonstrar que são as forças da consciência que proíbem ao indivíduo obter a tão almejada vantagem proveniente da feliz mudança da realidade. Constitui tarefa difícil, contudo, descobrir a essência e a origem dessas tendências julgadoras e punitivas, cuja existência, onde não esperamos encontrá-las, tantas vezes nos surpreende. Pelas razões habituais, não examinarei o que sabemos ou conjecturamos em relação a casos de observação clínica, mas em relação a figuras que grandes autores criaram a partir de seu rico conhecimento da mente.

Podemos tomar como exemplo de pessoa que sucumbe ao atingir o êxito, após lutar exclusivamente por ele com todas as suas forças, a figura de Lady Macbeth, criada por Shakespeare. De início, não há qualquer hesitação, qualquer sinal de conflito interno nela, qualquer esforço senão o de vencer os escrúpulos de seu ambicioso, embora compassivo, marido. Ela se mostra pronta a sacrificar até mesmo sua feminilidade à sua intenção assassina, sem refletir no papel decisivo que esta feminilidade deverá desempenhar quando, posteriormente, surgir a questão de preservar a finalidade de sua ambição, alcançada através de um crime.

Vinde, espíritos sinistros

Que servis aos desígnios assassinos!Dessexuai-me, enchei-me, da cabeçaAos pés, da mais horrível crueldade!

(Ato I, Cena 5.)

 

…Bem conheçoAs delícias de amar um tenro filhoQue se amamenta: embora! eu lhe arrancaraÀs gengivas sem dente, ainda quandoVendo-o sorrir-se para mim, o bicoDe meu seio, e faria sem piedadeSaltaram-lhe os miolos, se tivesse Jurado assim fazer, como jurasteCumprir esta empreitada. (Ato I, Cena 7.)

Apenas um leve e isolado frêmito de relutância dela se apossa antes do feito:

…Se no seu sono não lembrasse tantoMeu pai, tê-lo-ia eu mesma apunhalado!

(Ato II, Cena 2.)

Então, quando se torna Rainha pelo assassinato de Duncan, ela trai por um momento algo como um desapontamento, algo como uma desilusão. Não podemos dizer por que razão.

…Tudo perdemos quando o que queríamos,Obtemos sem nenhum contentamento:Mais vale ser a vítima destruídaDo que, por a destruir, destruir com elaO gosto de viver.

(Ato III, Cena 2.)

Não obstante, ela se mantém firme. Na cena do banquete que se segue a essas palavras, somente ela se conserva serena, encobre o estado de confusão do marido e encontra um pretexto para dispensar os convivas. E então desaparece de vista. A seguir, vêmo-la na casa de sonambulismo do último Ato, fixada nas impressões da noite do assassinato. Mais uma vez, como antes, procura incutir coragem ao marido:

Por quem sois, meu senhor, que vergonha!Um soldado com medo?Por que havemos de recear que alguém o saiba,se ninguém nos pode pedir contas?

(Ato V, Cena 1.)

Ela ouve a pancada na porta, que apavorou o marido depois do feito. Mas ao mesmo tempo luta por ‘desfazer a ação que não pode ser desfeita’. Lava as mãos, manchadas de sangue e que cheiram a sangue, e fica cônscia da futilidade da tentativa. Ela que parecia tão sem remorsos, parece ter sido abatida pelo remorso. Quando morre, Macbeth, que nesse meio tempo se tornou tão inexorável quanto ela no começo, encontra apenas um breve epitáfio para ela: É morta… Não devia ser agora.Sempre seria tempo para ouvir-seEssas palavras.

(Ato V, Cena 5.)

E agora nos perguntamos: o que foi que quebrantou esse caráter que parecia ter sido forjado do metal mais rijo? Terá sido somente a desilusão — o aspecto diferente revelado pelo fato consumado —, e devemos inferir que, mesmo em Lady Macbeth, uma natureza originalmente dócil e feminina foi levada a um ponto de concentração e de alta tensão que não pôde suportar por muito tempo, ou devemos procurar indícios de uma motivação mais profunda, que tornará essa derrocada mais humanamente inteligível para nós?

Parece-me impossível chegar a uma decisão. Macbeth, de Shakespeare, é uma pièce d’occasion, escrita para a ascensão de Jaime, até então Rei da Escócia. O enredo foi feito de encomenda e já fora trabalhado por outros escritores contemporâneos, de cuja obra Shakespeare provavelmente se utilizou, como costumava fazer. Apresentava notáveis analogias com a situação real. A ‘virginal’ Elisabeth, de quem se dizia que jamais fora capaz de ter filhos e que certa vez se descrevera a si própria como um ‘tronco estéril’, numa angustiosa exclamação pela notícia do nascimento de Jaime, foi obrigada por essa mesma esterilidade a fazer do rei escocês seu sucessor. E ele era o filho de Maria Stuart, cuja execução ela, embora relutantemente, ordenara, e que, apesar do toldamento de suas relações por causa de preocupações políticas, era não obstante do seu sangue e podia ser chamada de sua hóspede.

A ascensão de Jaime I foi como uma demonstração da maldição da esterilidade e das bênçãos da geração contínua. E a ação do Macbeth de Shakespeare baseia-se nesse mesmo contraste.

As Bruxas asseguram a Macbeth que seria rei, mas a Banquo prometeram que seus filhos herdariam a coroa. Macbeth se enfurece com esse ditame do destino. Não fica contente com a satisfação de sua própria ambição. Deseja fundar uma dinastia — e não ter cometido assassinato em benefício de estranhos. Esse ponto será negligenciado se a peça de Shakespeare for considerada apenas como uma tragédia de ambição. É claro que Macbeth não pode viver para sempre, e assim existe apenas uma forma para que ele invalide a parte da profecia que lhe é desfavorável — a saber, ter ele mesmo filhos que possam sucedê-lo. E ele parece esperá-los de sua indomável esposa:

Não concebas nuncaSenão filhos varões; tua alma indomávelO pede assim.

(Ato I, Cena 7.)

E é igualmente claro que, se for desapontado nessa expectativa, deverá submeter-se ao destino; do contrário, suas ações perdem toda finalidade e são transformadas na fúria cega de alguém condenado à destruição, que está resolvido a destruir de antemão tudo o que pode alcançar. Vemos Macbeth passar por esse processo, e no clímax da tragédia ouvimos o grito lancinante de Macduff, que com tanta freqüência é considerado ambíguo e que talvez possa conter a chave da mudança em Macbeth:

Ele não tem filhos!

(Ato IV, Cena 3.)

Não há dúvida de que isso significa: ‘Somente porque ele próprio não tem filhos é que pôde assassinar meus filhos.’ No entanto, algo mais pode estar implícito nisso e, acima de tudo, poderia pôr a nu o motivo mais profundo que não apenas força Macbeth a ir muito além de sua própria natureza, como também toca no único ponto fraco do caráter insensível de sua esposa. Se se examinar toda a peça, a partir do clímax assinalado pelas palavras de Macduff, ver-se-á que ela está repleta de referências à relação pai-filhos. O assassinato do bondoso Duncan não passa de parricídio; no caso de Banquo, Macbeth mata o pai, enquanto o filho se lhe escapa; e no de Macduff, ele mata os filhos porque o pai fugira dele. Uma criança ensangüentada e a seguir uma coroada lhe são mostradas pelas Bruxas na cena da aparição; a cabeça armada que é vista antes sem dúvida é o próprio Macbeth. Mas no segundo plano ergue-se a forma sinistra do vingador, Macduff, ele próprio uma exceção às leis da geração, visto que não nasceu de sua mãe mas foi arrancado de seu ventre.

Seria um exemplo perfeito de justiça poética à maneira de talião se a ausência de filhos de Macbeth e a infecundidade de sua Lady fossem o castigo pelos seus crimes contra a santidade da geração — se Macbeth não pudesse tornar-se pai porque roubara de um pai os filhos, e dos filhos um pai, e se Lady Macbeth sofresse o assexuamento que exigira dos espíritos do assassinato. Creio que a doença de Lady Macbeth, a transformação de sua impiedade em penitência, poderia ser explicada diretamente como uma reação à sua infecundidade, pela qual ela se convence de sua impotência contra os ditames da natureza, sendo ao mesmo tempo lembrada de que foi através de sua própria falta que seu crime foi roubado da melhor parte dos seus frutos.

Na Chronicle (1577), de Holinshed, da qual Shakespeare extraiu o argumento de Macbeth, Lady Macbeth é mencionada apenas uma vez como a esposa ambiciosa que instiga o marido ao assassinato para que ela possa tornar-se rainha. Não há menção a seu destino subseqüente nem ao desenvolvimento de seu caráter. Por outro lado, afigurar-se-ia que a transformação de Macbeth num tirano sanguinário é atribuída aos mesmos motivos que sugerimos aqui, pois em Holinshed decorrem dez anos entre o assassinato de Duncan, através do qual Macbeth se torna rei, e suas más ações ulteriores; e nesses dez anos ele é mostrado como um governante severo porém justo. Só depois desse lapso de tempo é que se inicia nele a mudança, sob a influência do medo atormentador de que a profecia a Banquo possa realizar-se, assim como aconteceu com a profecia de seu próprio destino. Só então é que ele engendra o assassinato de Banquo, e, como em Shakespeare, é impelido de um crime a outro. Não é expressamente mencionado em Holinshed que foi a ausência de filhos que o impeliu a esses caminhos, mas se dá bastante tempo e espaço para esse motivo plausível. Isso não ocorre em Shakespeare. Os eventos nos chegam de roldão na tragédia, com pressa ofegante, de modo que, a julgar pelas declarações de suas personagens, o curso de sua ação abrange cerca de uma semana. Essa aceleração retira a base de todas as nossas interpretações dos motivos da mudança no caráter de Macbeth e no de sua esosa. Não há tempo para que um longo desapontamento quanto às suas esperanças de nascimento de filhos faça a mulher sucumbir e leve o homem a uma fúria desafiadora, e permanece a contradição de que, apesar de tantas inter-relações sutis no enredo, e entre este e a sua ocasião, apontarem para uma origem comum no tema da infecundidade, a economia de tempo na tragédia, não obstante, impede expressamente um desenvolvimento de caráter oriundo de quaisquer motivos que não sejam aqueles inerentes à própria ação.

Quais, contudo, teriam sido os motivos que, num tão curto espaço de tempo, puderam transformar o homem hesitante e ambicioso num desabrido tirano, e sua instigadora de coração empedernido numa mulher doente corroída pelo remorso, é, na minha opinião, impossível adivinhar. Devemos, penso eu, abandonar toda e qualquer esperança de penetrar na tríplice camada de obscuridade em que se condensaram a má preservação do texto, a intenção desconhecida do dramaturgo e o propósito oculto da lenda. Mas eu não aprovaria a objeção de que investigações como estas são vãs, em face do poderoso efeito que a tragédia exerce sobre o espectador. O dramaturgo pode realmente, durante a representação, dominar-nos pela sua arte e paralisar nossos poderes de reflexão; mas não nos pode impedir de que, subseqüentemente, tentemos aprender seu efeito mediante o estudo de seu mecanismo psicológico. Nem o argumento de que um dramaturgo tem a liberdade de encurtar à vontade a cronologia natural dos fatos que ele apresenta diante de nós, se pelo sacrifício da probabilidde comum ele puder realçar o efeito dramático, me parece pertinente nesse caso, pois tal sacrifício só se justifica quando meramente interfere na probabilidade, e não quando rompe a relação causal; além disso, o efeito dramático dificilmente teria sido afetado se se tivesse deixado a passagem do tempo indeterminada, em vez de ficar expressamente limitada a poucos dias.

Fica-se tão pouco inclinado a abandonar um problema como o de Macbeth por considerá-lo insolúvel, que me aventurarei a apresentar um novo ponto, que talvez ofereça outra saída para a dificuldade. Ludwig Jekels, num recente estudo shakesperiano, pensa ter descoberto uma técnica particular do poeta, e isso poderia aplicar-se a Macbeth. Ele crê que Shakespeare muitas vezes divide um tipo em duas personagens, as quais, tomadas isoladamente, não são inteiramente compreensíveis e somente vêm a sê-lo quando reunidas mais uma vez numa unidade. Macbeth e Lady Macbeth poderiam estar nesse caso. Ainda sendo, seria destituído de fundamento considerá-la como um tipo independente e procurar os motivos de sua modificação, sem considerar o Macbeth que a completa. Não seguirei mais essa pista; não obstante, gostaria de ressaltar algo que confirma esse ponto de vista de maneira impressionante: os germes do medo que irrompem em Macbeth na noite do assassinato já não se desenvolvem nele, mas nela. É ele quem tem a alucinação do punhal antes do crime; mas é ela quem depois adoece de uma perturbação mental. É ele que após o assassinato ouve o grito na casa: ‘Não durmas mais! Macbeth de fato trucida o sono…’ e assim ‘Macbeth não mais dormirá’, contudo, mais! ouvimos dizer que ele dormiu mais, ao passo que a Rainha, como vemos, ergue-se de seu leito e, falando enquanto dorme, trai sua culpa. É ele que fica desamparado com as mãos cobertas de sangue, lamentando que ‘todo o grande oceano de Netuno’ não as limpará, enquanto ela o consola: ‘Um pouco de água nos limpa desta ação’; mas depois é ela que lava as mãos durante um quarto de hora e não consegue livrar-se das manchas de sangue: ‘Todas as essências da Arábia não purificarão esta mãozinha.’ Assim, o que ele temia em seus tormentos de consciência, se realiza nela; ela se torna toda remorso e ele, todo desafio. Juntos esgotam as possibilidades de reação ao crime, como duas partes desunidas de uma individualidade psíquica, sendo possível que ambos tenham sido copiados de um protótipo único.

Se fomos incapazes de responder por que Lady Macbeth sucumbiu após seu êxito, talvez tenhamos uma oportunidade melhor, passando à criação de outro grande dramaturgo, que muito parecia acompanhar, com inflexível rigor, problemas de responsabilidade psicológica.

Rebecca Gamvik, filha de uma parteira, foi educada por seu pai adotivo, o Dr. West, para ser uma livre-pensadora e para desprezar as restrições que uma moral fundamentada na crença religiosa procura impor aos desejos da vida. Após a morte do médico, ela encontra um emprego em Rosmersholm, o lar, por muitas gerações, de uma antiga família cujos membros desconhecem o riso e que sacrificaram a alegria ao rígido cumprimento do dever. Seus ocupantes são Johannes Rosmer, ex-pastor, e sua esposa inválida, a infecunda Beata. Dominada por ‘uma paixão selvagem e incontrolável’ pelo amor de Rosmer, de alta linhagem, Rebecca resolve eliminar a esposa, que constitui um obstáculo para seus planos; para tanto, faz uso da sua vontade ‘impávida e livre’, não restringida por quaisquer escrúpulos. Arquiteta um plano para que Beata leia um livro de medicina, no qual a finalidade do casamento é representada como sendo a procriação, de modo que a pobre mulher começa a duvidar da razão de ser de seu próprio casamento. Rebecca então dá a entender que Rosmer, de cujos estudos e idéias ela partilha, está prestes a abandonar a velha fé e aliar-se ao ‘grupo dos esclarecidos’; e após ter assim abalado a confiança da esposa na integridade moral do marido, finalmente lhe dá a entender que ela, Rebecca, logo abandonará a casa, a fim de ocultar as conseqüências de suas relações ilícitas com Rosmer. A trama criminosa é coroada de êxito. A pobre esposa, que passa por deprimida e irresponsável, atira-se da estrada ao lado do moinho no açude, dominada pelo sentimento de sua própria inutilidade e não mais desejando antepor-se entre seu amado marido e a felicidade dele.

Por mais de um ano, Rebecca e Rosmer vivem sozinhos em Rosmesholm, mantendo uma relação que ele deseja considerar como uma amizade puramente intelectual e ideal. Mas, quando essa relação começa a ser obscurecida de fora pela primeira sombra de bisbilhotice e quando, ao mesmo tempo, surgem em Rosmer dúvidas atormentadoras sobre os motivos que levaram a esposa a pôr termo à existência, ele suplica a Rebecca que seja sua segunda esposa, de modo a poder contrabalançar o passado infeliz com uma nova realidade viva (Ato II). Por um momento, ela solta uma exclamação de alegria diante de sua proposta, mas logo depois declara que isso nunca poderá acontecer, e que, se ele continuar a insistir, ela ‘seguirá o mesmo caminho que Beata’. Rosmer não consegue compreender essa rejeição e muito menos nós, que conhecemos as ações e desígnios de Rebecca. Só podemos ter certeza de uma coisa: de que seu ‘não’ é veemente.

Como veio a acontecer que a aventureira dotada de vontade ‘impávida e livre’, que forjou implacavelmente seu caminho para a meta desejada, agora se recuse a colher o fruto do êxito, quando este lhe é oferecido? Ela própria nos dá a explicação no quarto Ato: ‘Esta é a parte terrível de tudo isso: que agora, quando toda a felicidade da vida se acha ao meu alcance … meu coração esteja mudado e meu próprio passado dela me exclua. Isto é, nesse meio tempo, ela se tornou um ser diferente; sua consciência despertou, ela adquiriu um sentimento de culpa que a priva de fruição.

E o que lhe despertou a consciência? Ouçamos o que ela mesma tem a dizer, e consideremos depois se podemos acreditar nela inteiramente. ‘Foi a visão rosmeriana da vida — ou, seja como for, sua visão da vida — que contaminou minha vontade. E a tornou doente. Escravizou-a a leis que antes não tinham qualquer poder sobre mim. Você — a vida com você — enobreceu minha mente.’

Essa influência, devemos ainda compreender, só se tornou efetiva a partir do momento em que ela pôde viver sozinha com Rosmer. ‘Na quietude…na solidão…quando sem reservas você me revelou todos os seus pensamentos…todos os sentimentos ternos e delicados, exatamente como lhe vinham…então se operou a grande mudança em mim.’

Pouco antes disso, ela havia lamentado o outro aspecto da mudança: ‘Porque Rosmersholm minou minhas forças. Aqui, minha antiga vontade indômita teve suas asas cortadas. Ficou aleijada! Já se foi a época em que eu tinha coragem para tudo no mundo. Perdi o poder de ação, Rosmer.’

Rebecca faz essa declaração após ter-se revelado uma criminosa, numa confissão voluntária a Rosmer e ao Prior Kroll, irmão da mulher de quem se descarta. Ibsen deixa claro, por pequenos toques de magistral sutileza, que Rebecca na realidade não está dizendo mentiras, mas nunca é inteiramente honesta. Do mesmo modo que, apesar de toda a sua liberdade quanto a preconceitos, ela diminui sua idade de um ano, assim também sua confissão aos dois homens é incompleta, e em decorrência de insistência de Kroll é suplementada em alguns pontos importantes. Por isso, é-nos permitido supor que sua explicação de sua renúncia expõe um motivo apenas para ocultar outro.

Por certo, não temos motivos para não acreditar nela quando declara que a atmosfera de Rosmersholm e sua ligação com o brioso Rosmer a enobreceram — e a aleijaram. Aqui, ela expressa o que sabe e o que sentiu. Mas isso não é necessariamente tudo o que aconteceu dentro dela, nem é preciso que ela tenha compreendido tudo o que ocorreu. A influência de Rosmer pode ter sido apenas um véu, que ocultou outra influência atuante, e um notável indício aponta nessa outra direção.

Mesmo após a confissão dela, Rosmer, na última conversa entre os dois que encerra a peça, mais uma vez lhe suplica que seja sua esposa. Perdoa-lhe o crime que ela cometeu em nome do amor que sentia por ele. E agora ela não responde, como devia, perdão algum pode livrá-la do sentimento de culpa em que incorreu por ter maldosamente enganado a pobre Beata; mas se recrimina por outra coisa que nos atinge por originar-se estranhamente dessa livre-pensadora, e está longe de merecer a importância que Rebecca lhe atribui: ‘Querido — nunca mais fale nisso! É impossível! Pois você deve saber, Rosmer, que eu tenho um… um passado.’ Ela quer dizer, naturalmente, que teve relação sexuais com outro homem, e não deixamos de observar que essas relações, que ocorreram numa época em que ela era livre e não tinha de dar contas a ninguém, lhe parecem um empecilho maior à união com Rosmer do que seu verdadeiro comportamento criminoso para com a esposa dele.

Rosmer recusa-se a ouvir o que quer que seja sobre esse passado. Podemos adivinhar o que foi, embora tudo que se refira a ele na peça seja, por assim dizer, subterrâneo e tenha de ser construído a partir de indícios e fragmentos. Não obstante, trata-se de indícios inseridos com tal arte que é impossível não compreendê-los.

Entre a primeira recusa de Rebecca e sua confissão ocorre algo que exerce influência decisiva sobre seu futuro destino. O Prior Kroll chega um belo dia à casa com o fito de humilhar Rebecca, dizendo-lhe que ele sabe que ela é uma criança ilegítima, filha do próprio Dr. West que a adotou após a morte da mãe dela. O ódio lhe aguçou as percepções, mas mesmo assim ele não supõe que isso seja novidade para ela. ‘Realmente não supunha que ignorasse isso, caso contrário teria sido muito estranho que você tivesse deixado o Dr. West adotá-la…’ ‘E então ele a leva para a casa dele — logo que sua mãe morre. Ele a trata asperamente. Mas você fica com ele. Você sabe que ele não lhe deixará um vintém — na verdade, só lhe coube uma estante com livros —, mas você continua; você o atura; você cuida dele até o fim.’… ‘Atribuo seu cuidado por ele ao natural instinto filial de uma filha. Realmente, creio que toda a sua conduta é um resultado natural da sua origem.’

Mas Kroll está enganado. Rebecca não tinha a menor idéia de que pudesse ser filha do Dr. West. Quando Kroll começou com as sombrias alusões a seu passado, ela deve ter pensado que se referia a uma outra coisa. Depois de ter compreendido o que ele queria dizer, pôde ainda conservar sua compostura por algum tempo, pois foi-lhe possível supor que seu inimigo baseava seus cálculos na idade dela, sobre a qual ela mentira, quando de uma visita anterior. Kroll, porém, arrasa essa objeção dizendo: ‘Bem, que seja assim, mas, apesar disso, meu cálculo pode estar certo, pois o Dr. West esteve lá numa breve visita um ano antes de obter o cargo’. Depois dessa nova informação, ela perde a presença de espírito. ‘Não é verdade!’ Anda de um lado para o outro retorcendo as mãos. ‘É impossível. O senhor quer induzir-me a acreditar nisso. Isso nunca, nunca pode ser verdade. Não pode ser verdade. Jamais neste mundo!…’ A agitação dela é tão extrema, que Kroll não pode atribuí-la apenas à informação dele.

‘KROLL: Mas, minha cara Senhorita West… por que, em nome dos céus, está tão terrivelmente agitada? Você me deixa assustado. Em que devo pensar… acreditar…?

‘REBECCA: Em nada. O senhor não deve pensar nem acreditar em nada.

‘KROLL: Então, você deve realmente dizer-me como pode levar esse caso… essa possibilidade… tão terrivelmente a sério.

‘REBECCA (dominando-se): É perfeitamente simples, Prior Kroll. De forma alguma desejo ser tomada por uma filha ilegítima.’

O enigma do comportamento de Rebecca é suscetível de uma única solução. A notícia de que o Dr. West era seu pai é o golpe mais rude que lhe pode sobrevir, pois não só era sua filha adotiva, como também fora sua amante. Quando Kroll começou a falar, ela pensou que estivesse fazendo alusão a essas relações, cuja verdade ela teria provavelmente admitido e justificado por causa de suas idéias emancipadas. Isso, porém, estava longe da intenção do Prior; ele nada sabia da ligação amorosa com o Dr. West, assim como ela nada sabia a respeito de o Dr. West ser pai dela. Ela não pode ter tido outra coisa em sua mente a não ser essa ligação amorosa, quando justificou sua rejeição final de Rosmer sobre o fundamento de que tinha um passado que a tornava indigna de ser sua esposa. E, provavelmente, se Rosmer tivesse consentido em ouvir falar desse passado, ela teria só confessado metade de seu segredo e teria silenciado sobre a parte mais grave.

Agora, porém, compreendemos, naturalmente, que esse passado lhe deve ter parecido o obstáculo mais grave à união dos dois — o crime mais grave.Depois de saber que fora amante de seu próprio pai, ela se entrega inteiramente a seu já então superdominador sentimento de culpa. Faz a Rosmer e a Kroll a confissão que a estigmatiza como assassina; rejeita para sempre a felicidade para a qual preparou o caminho pelo crime, e se prepara para partir. Mas o verdadeiro motivo de seu sentimento de culpa, que faz com que ela seja destroçada pelo êxito, permanece um segredo. Como vimos, é algo bem diverso da atmosfera de Romersholm e da aprimoradora influência de Rosmer.

Nessa altura, qualquer um que nos tenha acompanhado não deixará de formular uma objeção passível de justificar algumas dúvidas. A primeira recusa de Rosmer por Rebecca ocorre antes da segunda visita de Kroll e, portanto, antes da revelação feita por ele quanto à sua origem ilegítima, e numa ocasião em que ela nada sabe ainda sobre seu incesto — se é que compreendemos bem o dramaturgo. Todavia, essa primeira recusa é enérgica para valer. O sentimento de culpa que a convida a renunciar ao fruto de suas ações é assim efetivo antes que ela saiba de qualquer coisa sobre seu crime fundamental; e se admitimos isso, devemos talvez pôr inteiramente de lado seu incesto como uma fonte desse sentimento de culpa.

Até agora tratamos Rebecca West como se ela fosse uma pessoa viva e não uma criação da imaginação de Ibsen, sempre dirigida pela mais crítica inteligência. Podemos, portanto, tentar manter a mesma posição ao lidarmos com a objeção levantada. A objeção é válida: antes do conhecimento de seu incesto, a consciência já havia despertado parcialmente em Rebecca, nada impedindo que responsabilizemos por essa mudança a influência admitida e acusada pela própria Rebecca. Mas isso não nos isenta de reconhecermos o segundo motivo. O comportamento de Rebecca quando ouve o que Kroll tem a lhe dizer, a confissão que é sua reação imediata, não deixa dúvida de que só então o motivo mais forte e decisivo de renúncia começa a fazer efeito. Trata-se de fato de um caso de motivação múltipla, no qual um motivo mais profundo aparece por detrás do mais superficial. As leis de economia poética exigem que seja esta a maneira de apresentar a situação, pois esse motivo mais profundo não podia ser explicitamente enunciado. Tinha de permanecer oculto, afastado da fácil percepção do espectador ou do leitor; do contrário, teriam surgido sérias resistências, baseadas nas emoções mais aflitivas, as quais talvez pusessem em perigo o efeito do drama.

Temos, contudo, o direito de exigir que o motivo explícito não fique desprovido de uma ligação interna com o oculto, mas apareça como uma atenuação e uma derivação deste último. E, se pudermos confiar no fato de que a combinação criadora consciente do dramaturgo surgiu logicamente de premissas inconscientes, poderemos agora tentar mostrar que ele atendeu a essa exigência. O sentimento de culpa de Rebecca tem sua fonte na exprobração do incesto, mesmo antes de Kroll, com perspicácia analítica, tê-la tornado consciente disso. Se reconstruirmos o passado dela, ampliando e preenchendo os indícios fornecidos pelo escritor, poderemos sentir-nos seguros de que ela não pode ter deixado de suspeitar da existência de uma relação íntima entre sua mãe e o Dr. West. Deve ter ficado fortemente impressionada ao se tornar a sucessora da mãe junto a esse homem. Ficou sob o domínio do complexo de Édipo, embora não soubesse que, em seu caso, essa fantasia universal se convertera em realidade. Quando chegou a Rosmersholm, a força interna dessa primeira experiência impeliu-a a provocar, por uma ação vigorosa, a mesma situação que já se realizara no exemplo original devido à sua inação — a livrar-se da esposa e da mãe, de modo a poder ocupar o lugar desta junto ao marido e ao pai. Ela descreve com insistência convincente como, contra vontade, foi obrigada a avançar, passo a passo, até a eliminação de Beata.

‘O senhor pensa então que eu era fria, calculista e serena o tempo todo! Não era então a mesma mulher que sou agora, quando estou aqui a lhe contar tudo. Além disso, existem duas espécies de vontade em nós, creio eu! Queria Beata afastada, de uma maneira ou de outra, mas nunca realmente acreditei que isso viesse a acontecer. À medida que avançava cautelosamente, a cada passo que eu aventurava, parecia ouvir alguma coisa dentro de mim que exclamava: Não vá adiante! Nem mais um passo à frente! E contudo eu não podia parar. Tinha de aventurar só mais um pouquinho. E somente mais um milímetro. E logo depois mais um — e sempre mais um. E então aconteceu. — É assim que essas coisas acontecem.’

Não se trata de uma versão enfeitada das coisas, mas de uma descrição autêntica. Tudo que lhe aconteceu em Rosmersholm, sua paixão por Rosmer e sua hostilidade para com a esposa dele, foi, desde o começo, uma conseqüência do complexo de Édipo — uma réplica inevitável de suas relações com sua mãe e com o Dr. West.

Assim, o sentimento de culpa, que inicialmente faz com que ela rejeite a proposta de Rosmer, no fundo não difere do sentimento de culpa maior que a impele à confissão, depois que Kroll lhe abriu os olhos. Da mesma forma, porém, que sob a influência do Dr. West ela se tornara uma livre-pensadora e passara a menosprezar a moral religiosa, assim também ela se transforma, por seu amor a Rosmer, num ser de consciência e nobreza. Ela chega a compreender esse aspecto dos processos mentais dentro de si, justificando-se assim ao descrever a influência de Rosmer como o motivo de sua mudança — o motivo que se tornara acessível a ela.

O clínico psicanalista sabe quão freqüentemente, ou quão invariavelmente, uma moça que entra para o serviço de uma casa como criada, dama de companhia ou governanta, consciente ou inconscientemente tece um devaneio, oriundo do complexo de Édipo, no qual a dona da casa desaparece, vindo o dono a receber a recém-chegada como sua esposa no lugar da outra. Rosmersholm é a maior obra de arte desse tipo que aborda essa fantasia comum em moças. O que a transforma num drama trágico é a circunstância extra de que o devaneio da heroína tenha sido precedido na sua infância por uma realidade precisamente correspondente.

Após essa longa digressão pela literatura, retornemos à experiência clínica — mas apenas para estabelecermos em poucas palavras a inteira concordância entre elas. O trabalho psicanalítico nos ensina que as forças da consciência que induzem à doença, em conseqüência do êxito, em vez de, como normalmente, em conseqüência da frustração, se acham intimamente relacionadas com o complexo de Édipo, a relação com o pai e a mãe — como talvez, na realidade, se ache o nosso sentimento de culpa em geral.

 

III - CRIMINOSOS EM CONSEQÜÊNCIA DE UM SENTIMENTO DE CULPA

 

Ao me terem falado sobre sua juventude, mormente antes da puberdade, pessoas que, mais tarde, freqüentemente se tonaram muito respeitáveis, me informaram sobre ações proibidas que praticam naquele período — tais como furtos, fraudes e até mesmo incêndio voluntário. Eu tinha o hábito de me descartar dessas declarações com o comentário de que estamos familiarizados com a fraqueza das inibições morais daquele período de vida e não fazia qualquer tentativa para localizá-las em um contexto mais importante. Mas eventualmente fui levado a proceder a um estudo mais completo de tais incidentes por alguns casos gritantes e mais acessíveis, nos quais as más ações eram cometidas enquanto os pacientes se encontravam sob meus cuidados, e já não eram tão jovens. O trabalho analítico trouxe então a surpreendente descoberta de que tais ações eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental. Este sofria de um opressivo sentimento de culpa, cuja origem não conhecia, e, após praticar uma ação má, essa opressão se atenuava. Seu sentimento de culpa estava pelo menos ligado a algo.Por mais paradoxal que isso possa parecer, devo sustentar que o sentimento de culpa se encontrava presente antes da ação má, não tendo surgido a partir dela, mas, inversamente — a iniqüidade decorreu do sentimento de culpa. Essas pessoas podem ser apropriadamente descritas como criminosas em conseqüência do sentimento de culpa. A preexistência do sentimento de culpa fora, naturalmente, demonstrada por todo um conjunto de outras manifestações e efeitos.

O trabalho científico, porém, não se satisfaz com o estabelecimento de um fato curioso. Existem ainda duas outras perguntas a responder: qual a origem desse obscuro sentimento de culpa antes da ação; é provável que essa espécie de causação desempenhe um papel considerável no crime humano?

Um exame da primeira questão mantinha a promessa de nos trazer informações sobre a fonte do sentimento de culpa da humanidade em geral. O resultado invariável do trabalho analítico era demonstrar que esse obscuro sentimento de culpa provinha do complexo de Édipo e constituía uma reação às duas grandes intenções criminosas de matar o pai e de ter relações sexuais com a mãe. Em comparação com esses dois, os crimes perpetrados com o propósito de fixar o sentimento de culpa em alguma coisa vinham como um alívio para os sofredores. Nesse sentido, devemos lembrar que o parricídio e o incesto com a mãe são os dois grandes crimes humanos, os únicos que, como tais, são perseguidos e execrados nas comunidades primitivas. Também devemos lembrar como outras investigações nos aproximaram da hipótese segundo a qual a consciência da humanidade, que agora aparece como uma força mental herdada, foi adquirida em relação ao complexo de Édipo.Para responder à segunda pergunta, devemos ir além do âmbito do trabalho psicanalítico. No tocante às crianças, é fácil observar que muitas vezes são propositadamente ‘travessas’ para provarem o castigo, e ficam quietas e contentes depois de terem sido punidas. Freqüentemente, a investigação analítica posterior pode situar-nos na trilha do sentimento de culpa que as induziu a procurarem punição. Entre criminosos adultos devemos, sem dúvida, excetuar aqueles que praticam crimes sem qualquer sentimento de culpa; que, ou não desenvolveram quaisquer inibições morais, ou, em seu conflito com a sociedade, consideram sua ação justificada. Contudo, no tocante à maioria dos outros criminosos, aqueles para os quais medidas punitivas são realmente criadas, tal motivação para o crime poderia muito bem ser levada em consideração; ela poderia lançar luz sobre alguns pontos obscuros da psicologia do criminoso e oferecer punição com uma nova base psicológica.

Um amigo chamou minha atenção para o fato de que o ‘criminoso em conseqüência de um sentimento de culpa’ também já era do conhecimento de Nietzsche. A preexistência do sentimento de culpa e a utilização de uma ação a fim de racionalizar esse sentimento cintilam diante de nós nas máximas de Zaratustra ‘Sobre o Criminoso Pálido’. Deixemos para uma futura pesquisa a decisão quanto ao número de criminosos que devem ser incluídos entre esses ‘pálidos’.

 

BREVES ESCRITOS (1915-1916)

 

UM PARALELO MITOLÓGICO COM UMA OBSESSÃO VISUAL (1916)

 

Num paciente com cerca de vinte e um anos de idade, os produtos da atividade mental inconsciente tornavam-se conscientes não apenas em pensamentos obsessivos, mas também em imagens obsessivas. Ambos podiam acompanhar-se mutuamente ou aparecerem independentemente. Numa ocasião específica, sempre que via o pai entrar no quarto, vinha-lhe à mente, em estreita relação, uma palavra obsessiva e uma imagem obsessiva. A palavra era ‘Vaterarsch‘ [‘father-arse‘ (ânus do pai)]; a imagem concomitante representava o pai com a parte inferior de um corpo despida, provida de braços e pernas, mas sem a cabeça ou qualquer outra parte superior. Não havia indicação dos órgãos genitais e as feições do rosto apareciam pintadas no abdome.

Ajudará à explicação desse sintoma, mais absurdo do que o comum, a menção de que o paciente, homem de intelecto plenamente desenvolvido e elevados ideais morais, manifestou um erotismo anal muito vívido, das mais variadas formas, até os dez anos de idade. Superado isso, sua vida sexual foi mais uma vez forçada a voltar à fase anal preliminar devido à sua luta ulterior contra o erotismo genital. Ele amava e respeitava muito o pai, e também o temia bastante; contudo, a julgar por seus próprios altos padrões no tocante ao ascetismo e à supressão dos instintos, o pai lhe parecia uma pessoa inclinada à devassidão e à busca do prazer em coisas materiais.

A palavra ‘Vaterarsch’ logo foi explicada como uma germanização jocosa do título honorífico de ‘Patriarch‘ (patriarca). A imagem obsessiva é uma caricatura evidente. Lembra outras representações que, tendo em vista um fim depreciativo, substituem toda uma pessoa por um de seus órgãos, por exemplo, os órgãos genitais; também nos faz recordar fantasias inconscientes que levam à identificação dos órgãos genitais com a pessoa toda, e também jocosas figuras de linguagem, como ‘Sou todo ouvidos’.

De início, a colocação das feições do rosto no abdome da criatura me pareceu algo muito estranho. Mas logo me lembrei de ter visto a mesma coisa em caricaturas francesas. O acaso me levou então a uma representação antiga, que coincidia exatamente com a imagem obsessiva do meu paciente.

De acordo com a lenda grega, Deméter dirigiu-se a Elêusis em busca da filha raptada, tendo sido recebida como hóspede por Dysaules e sua esposa Baubo; mas em sua grande dor recusou-se a tocar em qualquer alimento. Logo depois, sua anfitrioa Baubo fê-la rir levantando subitamente o vestido e expondo seu corpo. Um exame dessa anedota, que provavelmente se destinava a explicar um cerimonial mágico que já não era compreendido, encontra-se no quarto volume da obra de Salomon Reinach, Cultes, Mythes, et Religions, 1912 [115]. No mesmo trecho, o autor menciona que, no correr das escavações em Priene, na Ásia Menor, foram encontradas algumas terracotas que representavam Baubo. Mostram o corpo de uma mulher sem a cabeça ou o peito, com o rosto desenhado no abdome: o vestido erguido emoldura esse rosto como uma coroa de cabelos (ibid., 117).

 

UMA LIGAÇÃO ENTRE UM SÍMBOLO E UM SINTOMA (1916)

 

A experiência na análise dos sonhos estabeleceu suficientemente bem o chapéu como um símbolo do órgão genital, mais freqüentemente do órgão masculino. Não se pode dizer, contudo, que o símbolo seja inteligível. Nas fantasias e em numerosos sintomas, também a cabeça aparece como um símbolo dos órgãos genitais masculinos, ou, se assim se prefere dizer, como algo que os representa. Algumas vezes, ter-se-á observado que pacientes que sofrem de obsessões expressam uma dose muito maior de abominação e de indignação contra pena pela decapitação do que por qualquer outra forma de morte; em tais casos o analista pode ser levado a lhes explicar que estão considerando a decapitação como um substituto da castração. Já foram analisados e publicados numerosos casos de sonhos de pacientes jovens ou relatados como tendo ocorrido na juventude, que diziam respeito ao assunto da castração, nos quais era mencionada uma bola redonda que só poderia ser interpretada como a cabeça do pai daquele que sonhou. Recentemente, fui capaz de solucionar um cerimonial realizado por uma paciente antes de ir dormir, no qual ela tinha de colocar o pequeno travesseiro superior disposto em forma de losango sobre os outros, e de repousar a cabeça exatamente no sentido da diagonal maior. O losango tinha o significado que os desenhos nas paredes [grafitos] nos tornou familiar; a cabeça supostamente representava um órgão masculino.

Pode ser que o significado simbólico do chapéu provenha do da cabeça, na medida em que um chapéu possa ser considerado como um prolongamento da cabeça, embora destacável. Com relação a isso, recordo-me de um sintoma por meio do qual neuróticos obsessivos conseguem causar a si próprios tormentos contínuos. Quando estão na rua, ficam constantemente de sobreaviso para ver se algum conhecido os cumprimenta primeiro tirando o chapéu, ou se parece estar esperando pelo cumprimento deles; e cortam relações com grande número de seus conhecidos após descobrirem que não os saúdam mais ou não retribuem sua própria saudação de maneira apropriada. No que diz respeito a isso, suas dificuldades não têm fim; encontram-nas por toda parte conforme seu estado de ânimo e sua fantasia. Não alteram seu comportamento quando lhes dizemos, o que todos eles já sabem, que uma saudação mediante o ato de retirar o chapéu tem o significado de uma humilhação perante a pessoa cumprimentada — que um grande do reino de Espanha, por exemplo, gozava do privilégio de permanecer com a cabeça coberta na presença do rei —, e que sua própria sensibilidade no tocante à saudação significa, portanto, que estão pouco dispostos a demonstrar que são menos importantes do que a outra pessoa julgar ser. A resistência de sua sensibilidade a explicações como essa sugere que um motivo menos familiar à consciência está em ação; e a fonte desse sentimento exagerado pode ser facilmente encontrada em sua relação com o complexo de castração.

 

CARTA À DRA. HERMINE VON HUG-HELLMUTH (1919-[1915])

 

O diário é uma pequena jóia. Realmente acredito que jamais foi possível obter uma visão tão nítida e verdadeira dos impulsos mentais que caracterizam o desenvolvimento de uma jovem em nosso meio social e cultural durante os anos que precedem a puberdade. Temos a indicação de como seus sentimentos desabrocham de um egoísmo infantil até alcançarem a maturidade social; aprendemos que forma assumem inicialmente suas relações com os pais e com os irmãos e irmãs, e como gradativamente ganham em seriedade e sentimento interior; como as amizades são feitas e desfeitas; como sua afeição vai tateando no sentido de seus primeiros objetos; e, acima de tudo, como o segredo da vida sexual começa a despontar indistintamente, adquirindo então plena posse da mente da criança; como, na consciência de seu conhecimento secreto, ela inicialmente sofre, mas pouco a pouco supera isso. Tudo é expresso de modo tão encantador, tão natural e tão sério nessas notas despretensiosas, que elas não podem deixar de despertar o maior interesse em educadores e psicólogos… É seu dever, julgo eu, publicar o diário. Meus leitores lhe ficarão gratos por isso.

                                                                                             

 

                      

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