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FREUD - Volume XV (1915-1916)
FREUD - Volume XV (1915-1916)

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OBRAS COMPLETAS DO DR. SIGMUND FREUD

Volume XV

 

Conferências introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II)

 

VORLESUNGEN ZUR EINFÜHRUNG IN DIEPSYCHOANALYSE

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1916 Parte I (em separado), Die Fehlleistungen. Leipzig e Viena: Heller.

1916 Parte II (em separado), Der Traum. Mesmos editores.

1917 Parte III (em separado), Allgemeine Neurosenlehre. Mesmos editores.

1917 Os títulos acima, as três partes em um só volume. Mesmos editores. viii + 545 págs.

1918 2ª ed. (Com índice e inserção de lista de 40 corrigendas.) Mesmos editores. viii + 553 págs.

1920 3ª ed. (Reimpressão corrigida da edição anterior.) Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. viii + 553 págs.

1922 4ª ed. (Reimpressão corrigida da edição anterior.) Mesmos editores. viii + 554 págs. (Também as Partes II e III em separado, sob os títulos de Vorlesungen über den Traum e Allgemeine Neurosenlehre.)

 

1922 Ed. de bolso. (Sem índice). Mesmos editores. iv + 495 págs.

1922 Ed. de bolso. (2ª ed., corrigida e com índice.) Mesmos editores. iv + 502 págs.

1924 G.S., 7. 483 págs.

1926 5ª ed. (Reimpressão das G.S.) I.P.V. 483 págs.

1926 Ed. de bolso. (3ª ed.) Mesmos editores.

1930 Ed. em 8 pequenos vols. I P.V. 501 págs.

1933 (Com autorização) Berlim: Kiepenheuer. 524 págs.

1940 G.W., 11, 495 págs.

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

A General Introduction to Psychoanalysis

1920 Nova Iorque: Boni & Liveright. x + 406 págs. (Tradutor não especificado; Prefácio de G. Stanley Hall.)

Introductory Lectures on Psycho-Analysis

1922 Londres: Allen & Unwin. 395 págs. (Trad. de Joan Riviere; sem prefácio de Freud; com prefácio de Ernest Jones.)

1929

2a. ed. (revista). Mesmos editores. 395 págs.

A General Introduction to Psychoanalysis

1935Nova Iorque: Liveright. 412 págs. (A ed. de Londres com o título da anterior de Nova Iorque. Trad. de Joan Riviere; com prefácios de Ernest Jones e G. Stanley Hall; incluído o prefácio de Freud).

A presente tradução inglesa é nova e da autoria de James Strachey.

Esta obra teve uma circulação maior do que qualquer outra obra de Freud, com exceção, talvez, de The Psychopathology of Everyday Life. Também se distingue pela quantidade de erros de impressão nela existentes. Como ficou assinalado acima, quarenta foram corrigidos na segunda edição; porém havia ainda muitos mais, e pode ser observado um número considerável de pequenas variações no texto das diversas edições. A presente tradução inglesa segue o texto dos Gesammelte Werke, que é, de fato, idêntico ao texto dos Gesammelte Schriften; e somente foram registradas as discordâncias mais importantes das primeiras versões.

A data real de publicação das três partes não está definida. A Parte I certamente surgiu antes do fim de julho de 1916, como se verifica por uma referência que a ela se faz em uma carta de Freud a Lou Andreas-Salomé, de 27 de julho de 1916 (cf. Freud, 1960a). Na mesma carta, ele também fala na Parte II como estando prestes a aparecer. Uma carta de 18 de dezembro de 1916, que Freud escreveu a Abraham, sugere que, com efeito, ela apenas apareceu no fim do ano (cf. Freud, 1965a). A Parte III parece ter sido publicada em maio de 1917.

O ano acadêmico da Universidade de Viena se dividia em dois períodos: um período (ou semestre) de inverno, que ia de outubro a março, e um período de verão, de abril a julho. As conferências publicadas neste livro foram proferidas por Freud em dois períodos de inverno sucessivos, durante a Primeira Guerra Mundial: 1915-16 e 1916-17. Os relatos mais completos das circunstâncias que conduziram à sua publicação serão encontrados no segundo volume da biografia escrita por Ernest Jones (1955, pág. 255 e seguintes).

Embora, como o próprio Freud observara em seu prefácio às New Introductory Lectures, sua qualidade de membro da Universidade de Viena tivesse sido apenas ‘periférica’, desde os tempos de sua indicação como Privatdozent (Livre Docente da Universidade), em 1885, e como Professor Extraordinarius (Professor Assistente), em 1902, havia realizado muitos ciclos de conferências na Universidade. Estes ficaram sem registro, embora alguns relatos dos mesmos possam ser encontrados — por exemplo, os de Hanns Sachs (1945, pág. 39 e segs.) e Theodor Reik (1942, pág. 19 e segs.), bem como os de Ernest Jones (1953, pág. 375 e segs.). Freud decidiu que a série que começava no outono de 1915 deveria ser a última, e foi por sugestão de Otto Rank que Freud concordou com sua publicação. Em seu prefácio às New Introductory Lectures, há pouco citado, Freud nos refere que a primeira metade da série atual, a série inicial, ‘foi improvisada e escrita logo depois’, e que ‘esboços da segunda metade foram feitos durante as férias do verão intermediário, em Salzburg, e passados para o papel, palavra por palavra, no inverno seguinte’. Acrescenta que, naquela época, ‘ainda possuía o dom de uma memória fotográfica’, pois, por mais cuidadosamente que suas conferências pudessem ter sido preparadas, na realidade, invariavelmente, as proferia de improviso, e geralmente sem anotações. Existe concordância geral no tocante à sua técnica de dar conferências: que ele nunca era retórico e que seu tom era sempre o de uma conversação tranqüila e mesmo íntima. Contudo, não se deve supor, por isso, que houvesse algo de desleixo ou desordem nessas conferências. Elas quase sempre tinham uma forma definida — início, meio e fim — e podiam, freqüentemente, dar ao ouvinte a impressão de possuírem uma unidade estética.

Foi mencionado (Reik, 1942, 19) que ele não gostava de dar conferências, no entanto é difícil conciliar essa afirmação não apenas com a quantidade de conferências que proferiu no decurso de sua vida, mas também com a quantidade notavelmente elevada de seus trabalhos efetivamente publicados que estão sob a forma de conferências. Existe, entretanto, uma possível explicação para essa discordância. Um exame mostra que, entre suas publicações, são predominantemente os trabalhos expositivos que aparecem como conferências: por exemplo, a conferência inicial sobre ‘The Aetiology of Hysteria’ (1896c), a que surgiu um pouco depois ‘Sobre a Psicoterapia’ (1905a), assim como, naturalmente, as Cinco Lições, proferidas na América (1910a), e a presente série. Contudo, além disso, quando empreendeu anos depois uma exposição das mais recentes evoluções de seus pontos de vista, ele, sem qualquer motivo evidente, mais uma vez as colocou na forma de conferências e publicou suas New Introductory Lectures (1933a), embora jamais houvesse qualquer possibilidade de serem dadas à luz como tais. Assim, Freud se socorreu evidentemente das conferências como método de expor suas opiniões, mas apenas sob uma condição particular: ele devia estar em vívido contato com seu auditório real ou suposto. Os leitores do presente volume descobrirão como é constante Freud manter esse contato — quão regularmente ele coloca objeções na boca de seus ouvintes, e quão freqüentemente existem debates imaginários entre ele e seus ouvintes. Na verdade, ele estendia esse método de formular suas exposições a alguns de seus trabalhos que absolutamente não são conferências: a totalidade de The Question of Lay Analysis (1926e) e a maior parte de O Futuro de uma Ilusão (1927c) tomaram a forma de diálogos entre o autor e um ouvinte que faz críticas. Contrariamente, talvez, a certas noções errôneas, Freud era inteiramente avesso à exposição de suas opiniões em forma autoritária e dogmática: ‘Não o direi aos senhores’, ele diz à sua audiência, em uma passagem adiante (pág. 433), ‘mas insistirei em que o descubram por si mesmos’. As objeções não eram para ser abafadas, mas esclarecidas e examinadas. E isso, afinal, não era mais que um prolongamento de um aspecto essencial da técnica da própria psicanálise.

As Conferências Introdutórias podem ser verdadeiramente consideradas como um inventário das conceituações de Freud e da posição da psicanálise na época da Primeira Guerra Mundial. As dissidências de Adler e Jung já eram história passada, o conceito de narcisismo já tinha alguns anos de vida, o caso clínico do ‘Wolf Man’, que marcou época, tinha sido escrito (com exceção de duas passagens) um ano antes do começo das conferências, embora não fosse publicado senão mais tarde. E, também, a grande série de artigos ‘metapsicológicos’ sobre a teoria fundamental tinha sido ultimada alguns meses antes, ainda que apenas três deles tivessem sido publicados. (Mais dois deles surgiram logo após as conferências, porém os sete restantes desapareceram sem deixar vestígio.) Essas últimas atividades e, sem dúvida, também a realização das conferências tinham sido facilitadas pela diminuição do trabalho clínico de Freud, imposta pelas condições da guerra. Parecia haver-se chegado a um divisor de águas, e era como se houvesse chegado a época para uma pausa. De fato, porém, estavam em preparação idéias novas que deviam vir à luz em Além do Princípio de Prazer (1920g), Psicologia de Grupo (1921c) e O Ego e o Id (1923b). Em verdade, a linha não deve ser traçada com tanta exatidão. Por exemplo, já podem ser detectados indícios da noção da ‘compulsão à repetição’ (págs. 292-3), e os começos da análise do ego estão bastante evidentes (págs. 423 e 428-9), ao passo que as dificuldades referentes aos múltiplos sentidos da palavra ‘inconsciente’ (ver em [1]) preparam o caminho para uma nova descrição estrutural da mente.

Em seu prefácio a estas conferências, Freud fala um pouco depreciativamente da falta de novidade em seu conteúdo. No entanto, ninguém, embora muito tenha lido de literatura psicanalítica, precisa sentir receio de se entediar com estas conferências, e ainda poderá achar nelas muitas coisas que não se encontrarão em outro lugar. As discussões sobre ansiedade (Conferência XV) e sobre fantasias primitivas (Conferência XXIV), que Freud mesmo, no prefácio, aponta como material recente, não são as únicas que ele podia ter mencionado. A revisão do simbolismo na Conferência X, é, provavelmente, a mais completa que fez. Em nenhuma outra parte fornece tão claro resumo da formação dos sonhos como nas últimas páginas da Conferência XIV. Sobre as perversões, não há comentários mais inteligíveis do que aqueles encontrados nas Conferências XX e XXI. Finalmente, não existe absolutamente qualquer tópico que se iguale à análise dos processos de terapia psicanalítica, feita na última conferência. E mesmo onde os assuntos pareceriam estar surrados, como o mecanismo das parapraxias e dos sonhos, a abordagem é feita a partir de direções inesperadas, lançando nova luz sobre o que poderia ter parecido terreno por demais conhecido. As Conferências Introdutórias seguramente merecem sua popularidade.

 

PREFÁCIO [1917]

 

O que ao público agora ofereço como uma ‘Introdução à Psicanálise’ não se destina a competir, de forma alguma, com determinadas descrições gerais desse campo de conhecimento, como aquelas já existentes, e dentre as quais citam-se, por exemplo: as de Hitschmann (1913), Pfister (1913), Kaplan (1914), Régis e Hesnard (1914) e Meijer (1915). Este volume é uma reprodução fiel das conferências que proferi [na Universidade], durante as duas temporadas de inverno de 1915/16 e 1916/17, perante um auditório de médicos e leigos de ambos os sexos.

Quaisquer peculiaridades deste livro que possam surpreender os leitores são devidas às condições em que ele se originou. Em minha apresentação não foi possível preservar a tranqüila serenidade de um tratado científico. Pelo contrário, o conferencista tinha de se empenhar em evitar que a atenção de seu auditório declinasse durante uma sessão de quase duas horas de duração. As necessidades do momento muitas vezes tornaram impossível evitar repetições ao tratar de um determinado assunto — poderiam emergir uma vez, por exemplo, em relação à interpretação de sonhos e, mais tarde, de novo, em relação aos problemas das neuroses. Também em conseqüência da maneira como o material foi ordenado, alguns tópicos importantes (o inconsciente, por exemplo) não puderam ser exaustivamente debatidos em um só ponto, mas tiveram de ser retomados repetidamente e outra vez abandonados, até que surgisse nova oportunidade para acrescentar alguma informação adicional a respeito.

Aqueles que estão familiarizados com a literatura psicanalítica encontrarão nesta ‘Introdução’ pouca coisa que não lhes seja conhecida já a partir de outras publicações muito mais detalhadas. Não obstante, a necessidade de completar e resumir algum tema compeliu o autor, em certos pontos (a etiologia da ansiedade e as fantasias histéricas), a apresentar material que até então havia retido.

FREUD.

VIENA, primavera de 1917.

 

PREFÁCIO DA TRADUÇÃO HEBRAICA [1930]

 

Estas conferências foram proferidas em 1916 e 1917; proporcionaram uma descrição muito pormenorizada da posição da jovem ciência naquela época, e continham mais do que seu título indicava. Proporcionaram não apenas uma introdução à psicanálise, mas abrangeram a maior parte de seu conteúdo temático. Isso, naturalmente, já não é mais verdade. Nesse meio tempo houve progressos em sua teoria e importantes acréscimos à mesma, como a divisão da personalidade em ego, superego e id, uma modificação radical na teoria dos instintos, bem como descobertas referentes à origem da consciência e do sentimento de culpa. Assim sendo, estas conferências se tornaram em grande parte incompletas; na verdade, somente agora é que se tornaram realmente ‘introdutórias’. Porém, em outro sentido, mesmo hoje elas não foram suplantadas, nem se tornaram obsoletas. O que contêm ainda é acreditado e pensado, afora algumas poucas modificações, nos institutos de formação psicanalítica.

Os leitores de hebraico e especialmente os jovens, ávidos de conhecimento, se defrontarão neste volume com a psicanálise vestida com o antigo idioma que tem sido despertado para uma vida nova pela vontade do povo judeu. O autor bem pode imaginar o problema que se propôs seu tradutor. E nem pode suprimir a dúvida quanto a saber se Moisés e os Profetas teriam julgado inteligíveis estas conferências em hebraico. Pede, entretanto, aos descendentes deles (entre os quais ele próprio se inclui), a quem este livro se destina, para que não reajam demasiado prontamente a seus primeiros impulsos de crítica e enfado, rejeitando-o. A psicanálise revela tantas coisas novas, e, em meio a tudo isso, tantas coisas que contraditam opiniões tradicionais, e tanto fere sentimentos profundamente arraigados, que não pode deixar de provocar contestação. O leitor, se deixar em suspenso seu julgamento e permitir que a psicanálise, como um todo, provoque nele sua impressão, talvez se torne receptivo à convicção de que mesmo essa indesejada novidade é digna de se conhecer e indispensável para todo aquele que deseja compreender a mente e a vida humana.

VIENA, dezembro de 1930

 

PARTE I - PARAPRAXIAS (1916 [1915])

 

CONFERÊNCIA I - INTRODUÇÃO

 

SENHORAS E SENHORES:

Não posso dizer quanto conhecimento sobre psicanálise cada um dos senhores já adquiriu pelas leituras que fez, ou por ouvir dizer. Mas o título de meu programa — ‘Introdução Elementar à Psicanálise’ — obriga-me a tratá-los como se nada soubessem e estivessem necessitados de algumas informações preliminares.

Posso, no entanto, seguramente supor que sabem ser a psicanálise uma forma de executar o tratamento médico de pacientes neuróticos. E aqui já lhes posso dar um exemplo de como, nessa atividade, numerosas coisas se passam de forma diferente — e muitas vezes, realmente, de forma oposta — de como ocorrem em outros campos da prática médica. Quando, em outra situação, apresentamos ao paciente uma técnica que lhe é nova, de hábito minimizamos os inconvenientes desta e lhe damos confiantes promessas de êxito do tratamento. Penso estarmos justificados de assim proceder, de vez que desse modo estamos aumentando a probabilidade de êxito. Quando, porém, tomamos em tratamento analítico um paciente neurótico, agimos diferentemente. Mostramos-lhe as dificuldades do método, sua longa duração, os esforços e os sacrifícios que exige; e, quanto a seu êxito, lhe dizemos não nos ser possível prometê-lo com certeza, que depende de sua própria conduta, de sua compreensão, de sua adaptabilidade e de sua perseverança. Temos boas razões, naturalmente, para manter essa conduta aparentemente obstinada no erro, como talvez os senhores virão a verificar mais adiante.

Não se aborreçam, então, se começo por tratá-los da mesma forma como a esses pacientes neuróticos. Seriamente eu os advirto de que não venham ouvir-me uma segunda vez. Para corroborar esta advertência, explicarei quão incompleto deve necessariamente ser qualquer conhecimento da psicanálise, e que dificuldades surgem no caminho dos senhores ao formarem um julgamento próprio a respeito dela. Mostrar-lhes-ei como toda a tendência de sua educação prévia e todos os seus hábitos de pensamento estão inevitavelmente propensos a fazer com que se oponham à psicanálise, e quanto teriam de superar, dentro de si mesmos, para obter o máximo de vantagem dessa natural oposição. Não posso, certamente, predizer quanto entendimento de psicanálise obterão das informações que lhes dou, contudo posso prometer-lhes isto: que, ouvindo-as atentamente, não terão aprendido como efetuar uma investigação psicanalítica ou como realizar um tratamento. No entanto, na hipótese de que um dos senhores não se sentisse satisfeito com um ligeiro conhecimento da psicanálise, mas estivesse inclinado a entrar em relação permanente com ela, não apenas eu o dissuadiria de agir assim, como ativamente também o admoestaria para não fazê-lo. Da maneira como estão as coisas, no momento, tal escolha de profissão arruinaria qualquer possibilidade de obter sucesso em uma universidade, e, se começou na vida como médico clínico, iria encontrar-se numa sociedade que não compreenderia seus esforços, que o veria com desconfiança e hostilidade e que despejaria sobre ele todos os maus espíritos que estão à espreita dentro dessa mesma sociedade. E os acontecimentos que acompanham a guerra, que agora assola a Europa, lhes darão talvez alguma noção de que legiões desses maus espíritos podem existir.

Não obstante, há bom número de pessoas para as quais, a despeito desses inconvenientes, algo que promete trazer-lhes uma nova parcela de conhecimento tem ainda seu atrativo. Se alguns dos senhores pertencerem a essa espécie de pessoas, e, malgrado minhas advertências, novamente aqui comparecerem para minha próxima conferência, serão bem-vindos. Todos, porém, têm o direito de saber da natureza das dificuldades da psicanálise, às quais aludi.

Iniciarei por aquelas dificuldades vinculadas ao ensino, à formação em psicanálise. Na formação médica os senhores estão acostumados a ver coisas. Vêem uma preparação anatômica, o precipitado de uma reação química, a contração de um músculo em conseqüência da estimulação de seus nervos. Depois, pacientes são demonstrados perante os sentidos dos senhores: os sintomas de suas doenças, as conseqüências dos processos patológicos e, mesmo, em muitos casos, o agente da doença isolado. Nos departamentos cirúrgicos, são testemunhas das medidas ativas tomadas para proporcionar socorro aos pacientes, e os senhores mesmos podem tentar pô-las em execução. Na própria psiquiatria, a demonstração de pacientes, com suas expressões faciais alteradas, com seu modo de falar e seu comportamento, propicia aos senhores numerosas observações que lhes deixam profunda impressão. Assim, um professor de curso médico desempenha em elevado grau o papel de guia e intérprete que os acompanha através de um museu, enquanto os senhores conseguem um contato direto com os objetos exibidos e se sentem convencidos da existência dos novos fatos mediante a própria percepção de cada um.

Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista. O paciente conversa, fala de suas experiências passadas e de suas impressões atuais, queixa-se, reconhece seus desejos e seus impulsos emocionais. O médico escuta, procura orientar os processos de pensamento do paciente, exorta, dirige sua atenção em certas direções, dá-lhe explicações e observa as reações de compreensão ou rejeição que ele, analista, suscita no paciente. Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se impressionam apenas com coisas visíveis e tangíveis — preferivelmente por ações tais como aquelas vistas no cinema —, jamais deixam de expressar suas dúvidas quanto a saber se ‘algo não pode ser feito pela doença, que não seja simplesmente falar’. Essa, naturalmente, é uma linha de pensamento ao mesmo tempo insensata e incoerente. Essas são as mesmas pessoas que se mostram assim tão seguras de que os pacientes estão ‘simplesmente imaginando’ seus sintomas. As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia, e nos agradará ouvir as palavras trocadas entre o analista e seu paciente.

Contudo, nem isso podemos fazer. A conversação em que consiste o tratamento psicanalítico não admite ouvinte algum; não pode ser demonstrada. Um paciente neurastênico ou histérico pode, naturalmente, como qualquer outro, ser apresentado a estudantes em uma conferência psiquiátrica. Ele fará uma descrição de suas queixas e de seus sintomas, porém apenas isso. As informações que uma análise requer serão dadas pelo paciente somente com a condição de que ele tenha uma ligação emocional especial com seu médico; ele silenciaria tão logo observasse uma só testemunha que ele percebesse estar alheia a essa relação. Isso porque essas informações dizem respeito àquilo que é mais íntimo em sua vida mental, a tudo aquilo que, como pessoa socialmente independente, deve ocultar de outras pessoas, e, ademais, a tudo o que, como personalidade homogênea, não admite para si próprio.

Portanto, os senhores não podem estar presentes, como ouvintes, a um tratamento psicanalítico. Este pode, apenas, ser-lhes relatado; e, no mais estrito sentido da palavra, é somente de ouvir dizer que chegarão a conhecer a psicanálise. Como conseqüência do fato de receberem seus conhecimentos em segunda mão, por assim dizer, os senhores estarão em condições bem incomuns para formar um julgamento. Isto obviamente dependerá, em grande parte, do quanto de crédito podem dar a seu informante.

Suponhamos, por um momento, que os senhores estivessem ouvindo uma conferência não sobre psiquiatria, mas sobre história, e que o conferencista lhes estivesse expondo a vida e os feitos militares de Alexandre Magno. Que fundamentos teriam para acreditar na verdade do que ele referisse? Num primeiro relance, a situação pareceria ser ainda mais desfavorável do que no caso da psicanálise, pois o professor de história teve tanta participação nas campanhas de Alexandre quanto os senhores. O psicanalista pelo menos reporta coisas nas quais ele próprio tomou parte. Porém, na devida oportunidade, chegamos aos elementos que confirmam aquilo que o historiador lhes disse. Ele poderia remetê-los aos relatos dos escritores da Antigüidade que, ou foram eles próprios contemporâneos dos eventos em questão, ou, de qualquer forma, estavam mais próximos dos mesmos — ele poderia remetê-los, digamos, às obras de Diodoro, Plutarco, Arriano e outros. Poderia colocar à frente dos senhores reproduções de moedas e estátuas do rei, que sobreviveram, e poderia passar às suas mãos uma fotografia do mosaico de Pompéia representando a batalha de Isso. Estritamente falando, contudo, todos esses documentos apenas provam que as gerações anteriores já acreditavam na existência de Alexandre e na realidade de seus feitos, e as críticas dos senhores poderiam começar novamente nesse ponto. Os senhores descobririam então que nem tudo aquilo que foi relatado sobre Alexandre merece crédito ou pode ser confirmado em seus detalhes; não obstante, não posso supor que os senhores viessem a deixar a sala de conferência com dúvidas sobre a realidade de Alexandre Magno. A decisão dos senhores seria determinada, essencialmente, por duas considerações: primeiro, que o conferencista não tem qualquer motivo imaginável para garantir-lhes a realidade de algo que ele próprio não julga ser real, e, em segundo lugar, que todos os livros de história disponíveis descrevem os acontecimentos em termos aproximadamente semelhantes. Se continuassem a examinar as fontes antigas, teriam em conta os mesmos fatores — os possíveis motivos dos informantes e a conformidade das testemunhas entre si. O resultado da pesquisa sem dúvida lhes traria uma confirmação, no caso de Alexandre; no entanto, provavelmente seria diferente quando se tratasse de personagens como Moisés ou Nemrod. Outras oportunidades revelarão muito claramente que dúvidas os senhores podem ter a respeito da credibilidade do seu informante psicanalítico.

Mas os senhores têm o direito de fazer outra pergunta. Se não há verificação objetiva da psicanálise nem possibilidade de demonstrá-la, como pode absolutamente alguém aprender psicanálise e convencer-se da veracidade de suas afirmações? É verdade que a psicanálise não pode ser aprendida facilmente, e que não são muitas as pessoas que a tenham aprendido corretamente. Naturalmente, porém, existe um método que se pode seguir, apesar de tudo. Aprende-se psicanálise em si mesmo, estudando-se a própria personalidade. Isso não é exatamente a mesma coisa que a chamada auto-observação, porém pode, se necessário, estar nela subentendido. Existe grande quantidade de fenômenos mentais, muito comuns e amplamente conhecidos, que, após conseguido um pouco de conhecimento da técnica, podem se tornar objeto de análise na própria pessoa. Dessa forma, adquire-se o desejado sentimento de convicção da realidade dos processos descritos pela análise e da correção dos pontos de vista da mesma. Não obstante, há limites definidos ao progresso por meio desse método. A pessoa progride muito mais se ela própria é analisada por um analista experiente e vivencia os efeitos da análise em seu próprio eu (self), fazendo uso da oportunidade de assimilar de seu analista a técnica mais sutil do processo. Esse excelente método é, naturalmente, aplicável apenas a uma única pessoa e jamais a todo um auditório de estudantes reunidos.

A psicanálise não deve ser acusada de uma segunda dificuldade na relação dos senhores com ela; devo fazê-los, aos senhores mesmos, responsáveis por isso, senhoras e senhores, pelo menos na medida em que foram estudantes de medicina. A educação que receberam previamente deu uma direção particular ao pensar dos senhores que conduz para longe da psicanálise. Foram formados para encontrar uma base anatômica para as funções do organismo e suas doenças, a fim de explicá-las química e fisicamente e encará-las do ponto de vista biológico. Nenhuma parte do interesse dos senhores, contudo, tem sido dirigida para a vida psíquica, onde, afinal, a realização desse organismo maravilhosamente complexo atinge seu ápice. Por essa razão, as formas psicológicas de pensamento têm permanecido estranhas aos senhores. Cresceram acostumados a encará-las com suspeita, a negar-lhes a qualidade científica, a abandoná-las em poder de leigos, poetas, filósofos naturalistas e místicos. Essa limitação é, sem dúvida, prejudicial à sua atividade médica, pois, como é a regra em todos os relacionamentos humanos, os pacientes dos senhores começam mostrando-lhes sua façade mental, e temo que sejam obrigados, como punição, a deixar parte da influência terapêutica que os senhores estão procurando aos praticantes leigos, aos curandeiros e aos místicos, que os senhores tanto desprezam.

Não ignoro a excusa de que devemos tolerar esse defeito em sua educação. Não existe nenhuma ciência filosófica auxiliar que possa servir às finalidades médicas dos senhores. Nem a filosofia especulativa, nem a psicologia descritiva, nem o que é chamado de psicologia experimental (que está estritamente aliada à fisiologia dos órgãos dos sentidos), tal como são ensinadas nas universidades, estão em condições de dizer-lhes algo de utilizável pertinente à relação entre corpo e mente, ou de lhes proporcionar uma chave para a compreensão dos possíveis distúrbios das funções mentais. É verdade que a psiquiatria, como parte da medicina, se empenha em descrever os distúrbios mentais que observa, e em agrupá-los em entidades clínicas; porém, em momentos favoráveis os próprios psiquiatras duvidam de que suas hipóteses puramente descritivas mereçam o nome de ciência. Nada se conhece da origem, do mecanismo ou das mútuas relações dos sintomas dos quais se compõem essas entidades clínicas; ou não há alterações observáveis, no órgão anatômico da mente, que correspondam a esses sintomas, ou há alterações nada esclarecedoras a respeito deles. Esses distúrbios mentais apenas são acessíveis à influência terapêutica quando podem ser reconhecidos como efeitos secundários daquilo que, de outro modo, constitui uma doença orgânica.

Essa é a lacuna que a psicanálise procura preencher. Procura dar à psiquiatria a base psicológica de que esta carece. Espera descobrir o terreno comum em cuja base se torne compreensível a conseqüência do distúrbio físico e mental. Com esse objetivo em vista, a psicanálise deve manter-se livre de toda hipótese que lhe é estranha, seja de tipo anatômico, químico ou fisiológico, e deve operar inteiramente com idéias auxiliares puramente psicológicas; e precisamente por essa razão temo que lhes parecerá estranha de início.

Não considerarei os senhores, ou sua educação, ou sua atitude mental, responsáveis pela próxima dificuldade. Duas das hipóteses da psicanálise são um insulto ao mundo inteiro e têm ganho sua antipatia. Uma delas encerra uma ofensa a um preconceito intelectual; a outra, a um preconceito estético e moral. Não devemos desprezar em demasia esses preconceitos; são coisas poderosas, são precipitados da evolução do homem que foram úteis e, na verdade, essenciais. Sua existência é mantida por forças emocionais, e a luta contra eles é árdua.

A primeira dessas assertivas impopulares feitas pela psicanálise declara que os processos mentais são, em si mesmos, inconscientes e que de toda a vida mental apenas determinados atos e partes isoladas são conscientes. Os senhores sabem que, pelo contrário, temos o hábito de identificar o que é psíquico com o que é consciente. Consideramos a consciência, sem mais nem menos, como a característica que define o psíquico, e a psicologia como o estudo dos conteúdos da consciência. Na verdade, parece-nos tão natural os igualar dessa forma, que qualquer contestação à idéia nos atinge como evidente absurdo. A psicanálise, porém, não pode evitar o surgimento dessa contradição; não pode aceitar a identidade do consciente com o mental. Ela define o que é mental, enquanto processos como o sentir, o pensar e o querer, e é obrigada a sustentar que existe o pensar inconsciente e o desejar não apreendido. Dizendo isso, de saída e inutilmente ela perde a simpatia de todos os amigos do pensamento científico solene, e incorre abertamente na suspeita de tratar-se de uma doutrina esotérica, fantástica, ávida de engendrar mistérios e de pescar em águas turvas. Contudo, as senhoras e os senhores naturalmente não podem compreender, por agora, que direito tenho eu de descrever como preconceito uma afirmação de natureza tão abstrata como ‘o que é mental é consciente’. E nem podem os senhores conjecturar que evolução seja essa, que chegou a levar a uma negação do inconsciente — se é que isso existe — e que vantagem pode ter havido em tal negação. A questão de saber se devemos fazer coincidir o psíquico com o consciente, ou aumentar a abrangência daquele, soa como uma discussão vazia em torno de palavras; mas posso assegurar-lhes que a hipótese de existirem processos mentais inconscientes abre o caminho para uma nova e decisiva orientação no mundo e na ciência.

Os senhores não podem sequer ter qualquer noção de quão íntima é a conexão entre essa primeira mostra de coragem por parte da psicanálise e a segunda, da qual devo agora falar-lhes. Essa segunda tese, que a psicanálise apresenta como uma de suas descobertas, é uma afirmação no sentido de que os impulsos instintuais que apenas podem ser descritos como sexuais, tanto no sentido estrito como no sentido mais amplo do termo, desempenham na causação das doenças nervosas e mentais um papel extremamente importante e nunca, até o momento, reconhecido. Ademais, afirma que esses mesmos impulsos sexuais também fornecem contribuições, que não podem ser subestimadas, às mais elevadas criações culturais, artísticas e sociais do espírito humano.

Em minha experiência, a antipatia que se volta contra esse resultado da pesquisa psicanalítica é a mais importante fonte de resistência que ela encontrou. Gostariam de ouvir como explicamos esse fato? Acreditamos que a civilização foi criada sob a pressão das exigências da vida, à custa da satisfação dos instintos; e acreditamos que a civilização, em grande parte, está sendo constantemente criada de novo, de vez que cada pessoa, assim que ingressa na sociedade humana, repete esse sacrifício da satisfação instintual em benefício de toda a comunidade. Entre as forças instintuais que têm esse destino, os impulsos sexuais desempenham uma parte importante, nesse processo eles são sublimados — isto é, são desviados de suas finalidades sexuais e dirigidos a outras, socialmente mais elevadas e não mais sexuais. Esse arranjo, contudo, é instável; os instintos sexuais são imperfeitamente subjugados e, no caso de cada indivíduo que se supõe juntar-se ao trabalho da civilização, há um risco de seus instintos sexuais se rebelarem contra essa destinação. A sociedade acredita não existir maior ameaça que se possa levantar contra sua civilização do que a possibilidade de os instintos sexuais serem liberados e retornarem às suas finalidades originais. Por esse motivo, a sociedade não quer ser lembrada dessa parte precária de seus alicerces. Não tem interesse em reconhecer a força dos instintos sexuais, nem interesse pela demonstração da importância da vida sexual para o indivíduo. Ao contrário, tendo em vista um fim educativo, tem-se empenhado em desviar a atenção de todo esse campo de idéias. É por isso que não tolerará esse resultado da pesquisa psicanalítica, e nitidamente prefere qualificá-lo como algo esteticamente repulsivo e moralmente repreensível, ou como algo perigoso. Entretanto, as objeções dessa espécie são ineficazes contra aquilo que se ergueu como produto objetivo de um exemplo de trabalho científico; se a contestação se fizer em público, então deve ser expressa novamente, em termos intelectuais. Ora, é inerente à natureza humana ter uma tendência a considerar como falsa uma coisa de que não gosta e, ademais, é fácil encontrar argumentos contra ela. Assim, a sociedade transforma o desagradável em falso. Rebate as verdades da psicanálise com argumentos lógicos e concretos; estes, porém, surgem de fontes emocionais, e ela mantém essas objeções na forma de preconceitos, opondo-se a toda tentativa de as contestar.

Nós, porém, senhoras e senhores, podemos afirmar que, ao expor esta controvertida tese, não temos em vista qualquer objetivo tendencioso. Desejamos simplesmente dar expressão a um assunto que acreditamos ter demonstrado mediante nossos conscienciosos trabalhos. Afirmamos também o direito de rejeitar sem restrição qualquer interferência motivada em considerações práticas, no trabalho científico, mesmo antes de nos termos perguntado se o medo, que procura impor-nos essas considerações, é justificado ou não.

Essas, pois, são algumas das dificuldades que se erguem contra o interesse dos senhores pela psicanálise. São, talvez, mais que suficientes para um começo. Porém, se puderem vencer a impressão que lhes causam, prosseguiremos.

 

CONFERÊNCIA II - PARAPRAXIAS

 

SENHORAS E SENHORES:

Não começaremos com postulados, e sim com uma investigação. Escolhamos como tema determinados fenômenos muito comuns e muito conhecidos, os quais, porém, têm sido muito pouco examinados e, de vez que podem ser observados em qualquer pessoa sadia, nada têm a ver com doenças. São o que se conhece como ‘parapraxias’, às quais todos estão sujeitos. Pode acontecer, por exemplo, que uma pessoa que tenciona dizer algo venha a usar, em vez de uma palavra, outra palavra (um lapso de língua [Versprechen]), ou possa fazer a mesma coisa escrevendo, podendo, ou não, perceber o que fez. Ou uma pessoa pode ler algo, seja impresso ou manuscrito, diferentemente do que na realidade está diante de seus olhos (um lapso de leitura [Verlesen]), ou ouvir errado algo que lhe foi dito (um lapso de audição [Verhören] ) — na hipótese, naturalmente, de não haver qualquer perturbação orgânica de sua capacidade auditiva. Outro grupo desses fenômenos tem como sua base o esquecimento [Vergessen] — não, no entanto, um esquecimento permanente, mas apenas um esquecimento temporário. Assim, uma pessoa pode ser incapaz de se lembrar de uma palavra que conhece, apesar de tudo, e que reconhece de imediato, ou pode esquecer de executar uma intenção, embora dela se lembre mais tarde, tendo-a esquecido apenas naquele determinado momento. Em um terceiro grupo o caráter temporário está ausente — por exemplo, no caso de extravio [Verlegen], quando a pessoa colocou uma coisa em algum lugar e não consegue encontrá-la novamente, ou no caso precisamente igual de perda [Verlieren]. Aqui temos um esquecimento que tratamos diferentemente de outras formas de esquecimento, um caso em que ficamos surpresos ou aborrecidos em vez de considerá-lo compreensível. Além de tudo isso, há determinadas espécies de erros [Irrtümer], nos quais o caráter temporário está presente mais uma vez: pois, no caso destes, por um certo espaço de tempo acreditamos saber algo que, antes ou depois desse período, na realidade não sabemos. E existem numerosos outros fenômenos semelhantes, conhecidos por diversos nomes.

Todas essas são ocorrências cuja afinidade interna recíproca é expressa pelo fato de [em alemão] sua designação começar com a sílaba ‘ver‘. Quase todas carecem de importância, na maioria são muito transitórias e são destituídas de muita importância na vida humana. Apenas raramente, como no caso da perda de um objeto, um fenômeno desses assume certo grau de importância prática. Também por esse motivo chamam pouco a atenção, fazem surgir nada mais que tênues emoções, e assim por diante.

É para esses fenômenos, também, que agora proponho chamar a atenção dos senhores. Porém, irão protestar com certo enfado: ‘Há tantos problemas ingentes no amplo universo, assim como dentro dos estreitos limites de nossas mentes, tantas maravilhas no campo dos distúrbios mentais, que exigem e merecem elucidação, que parece realmente injustificado investir trabalho e interesse em tais trivialidades. Se o senhor puder fazer-nos compreender por que uma pessoa com olhos e ouvidos sãos pode ver e ouvir, em plena luz do dia, coisas que não se encontram ali; por que outra pessoa subitamente pensa estar sendo perseguida pelas pessoas das quais foi, até então, muito amiga, ou apresenta os mais engenhosos argumentos em apoio de suas crenças delirantes, que qualquer criança poderia ver que são disparatadas, então deveríamos ter algum apreço pela psicanálise. Entretanto, se ela não pode fazer mais que nos pedir para considerarmos por que um orador, num banquete, emprega uma palavra em vez de outra, ou por que uma dona de casa extraviou suas chaves, e futilidades semelhantes, então saberemos como empregar melhor nosso tempo e interesse.’

Eu responderia: Paciência, senhoras e senhores! Penso que suas críticas perderam o rumo. É verdade que a psicanálise não pode vangloriar-se de jamais haver-se ocupado de trivialidades. Pelo contrário, o material para sua observação é geralmente proporcionado pelos acontecimentos banais, postos de lado pelas demais ciências como sendo bastante insignificantes — o refugo, poderíamos dizer, do mundo dos fenômenos. Porém, não estão os senhores fazendo confusão, em suas críticas, entre a vastidão dos problemas e a evidência que aponta para eles? Não existem coisas muito importantes que, sob determinadas condições e em determinadas épocas, só se podem revelar por indicações bastante débeis? Eu não encontraria dificuldade para fornecer-lhes diversos exemplos de tais situações. Se o senhor, por exemplo, é um homem jovem, não será a partir de pequenos indícios que concluirá haver conquistado os favores de uma jovem? Esperaria uma expressa declaração de amor, ou um abraço apaixonado? Ou não seria suficiente um olhar, que outras pessoas mal perceberiam, um ligeiro movimento, o prolongamento, por um segundo, da pressão de sua mão? E se fosse um detetive empenhado em localizar um assassino, esperaria achar que o assassino deixou para trás sua fotografia, no local do crime, com seu endereço assinalado? Ou não teria necessariamente de ficar satisfeito com vestígios fracos e obscuros da pessoa que estivesse procurando? Assim sendo, não subestimemos os pequenos indícios; com sua ajuda podemos obter êxito ao seguirmos a pista de algo maior. Ademais, penso, como os senhores, que os grandes problemas do universo e da ciência são aqueles que mais exigem nosso interesse. É, porém, muito raro alguém manter a expressa intenção de se devotar à pesquisa deste ou daquele grande problema. Fica-se então sem poder saber qual o primeiro passo a dar. É mais promissor, no trabalho científico, atacar o que quer que esteja imediatamente à nossa frente e ofereça uma oportunidade à pesquisa. Agindo dessa forma, realmente com afinco e sem preconceito ou sem prevenções, e tendo-se sorte, então, desde que tudo se relaciona com tudo, inclusive as pequenas coisas com as grandes, pode-se, mesmo partindo de um trabalho despretensioso, ter acesso ao estudo dos grandes problemas. É isso que eu devia dizer, a fim de manter o interesse dos senhores quando tratamos dessas trivialidades tão evidentes como o são as parapraxias de pessoas sãs.

Peçamos, agora, auxílio a alguém que nada saiba de psicanálise, e perguntemos-lhe como explica essas ocorrências. Sua primeira resposta certamente será: ‘Ora, não há o que explicar: não passam de pequenos acontecimentos ao acaso.’ O que o amigo quer dizer com isso? Estará afirmando existirem ocorrências, embora pequenas, que escapam à concatenação universal dos fatos — ocorrências que tanto poderia haver como não haver? Se alguém comete uma infração desse tipo no determinismo dos eventos naturais em um só ponto, significa que atirou fora toda a Weltanschauung da ciência. A própria Weltanschauung da religião, podemos lembrar-lhe, se comporta de maneira mais coerente, porque dá explícita garantia de que nenhum pardal cai do telhado sem a vontade de Deus. Penso que nosso amigo hesitará em tirar a conclusão lógica dessa primeira resposta; mudará de opinião e dirá que, afinal, quando vir a estudar essas coisas, poderá encontrar explicações para elas. O que está em questão são pequenas falhas no funcionamento, imperfeições na atividade mental, cujos determinantes podem ser especificados. Um homem que em geral consegue falar corretamente, pode cometer um lapso de língua (1) se está ligeiramente indisposto e cansado, (2) se está excitado e ( 3 ) se está excessivamente ocupado com outras coisas. É fácil comprovar essas afirmações. Os lapsos de língua realmente acontecem com especial freqüência quando se está cansado, quando se tem dor de cabeça ou quando se está ameaçado de enxaqueca. Nas mesmas circunstâncias, os nomes próprios são esquecidos com facilidade. Algumas pessoas estão acostumadas a reconhecer a aproximação de um ataque de enxaqueca quando nomes próprios lhes escapam dessa forma      . Quando estamos excitados, também, amiúde cometemos erros com palavras — assim como com coisas, e segue-se um ‘ato descuidado’. Intenções são esquecidas e numerosos outros atos não premeditados se tornam perceptíveis se estamos distraídos — isto é, propriamente falando, se estamos concentrados em alguma coisa. Um conhecido exemplo de tal distração é o professor em Fliegende Blätter, que perde seu guarda-chuva e pega o chapéu errado porque está pensando nos problemas que terá de abordar no livro seguinte. Todos nós podemos recordar, de nossa própria experiência, exemplos de como nos é possível esquecer intenções que tivemos e promessas que fizemos, por termos nesse entremeio passado por alguma experiência absorvente.

Tal coisa soa bastante razoável e parece não ser passível de contradição, embora possa afigurar-se não muito interessante, talvez, e não ser o que esperávamos. Vejamos mais de perto essas explicações sobre parapraxias. As supostas precondições para a ocorrência desses fenômenos não são todas da mesma espécie. Estar doente e ter distúrbios de circulação fornecem um motivo fisiológico de deterioração do funcionamento normal; a excitação, a fadiga e a distração são fatores de outra espécie que poderiam ser descritos como psicofisiológicos. Esses últimos comportam fácil tradução para a teoria. Tanto a fadiga como a distração e, talvez, também a excitação geral realizam uma divisão da atenção, que pode resultar em que seja dirigida atenção insuficiente para a função em apreço. Nesse caso, a função pode ser perturbada com especial facilidade ou executada com descuido. Uma ligeira doença ou mudanças no suprimento sangüíneo ao órgão nervoso central podem ter o mesmo efeito, influenciando de modo similar o fator determinante, a divisão da atenção. Em todos esses casos, portanto, seria uma questão de efeito de um distúrbio da atenção, de causas orgânicas ou físicas.

Isso parece não prometer muito ao nosso interesse psicanalítico. Poderíamos sentir-nos tentados a abandonar o tema. Se, no entanto, examinarmos as observações mais atentamente, o que vemos não se harmoniza inteiramente com essa teoria da atenção das parapraxias, ou, pelo menos, naturalmente não se regula por ela. Descobrimos que as parapraxias desse tipo e o esquecimento dessa espécie ocorrem em pessoas que não estão fatigadas ou distraídas ou excitadas, mas que estão, sob todos os aspectos, em seu estado normal — a menos que decidamos atribuir ex post facto às pessoas em questão, puramente por conta de suas parapraxias, uma excitação que, entretanto, elas mesmas não comportam. Nem pode, simplesmente, tratar-se do caso de uma função ser garantida através de um incremento da atenção dirigida a ela, e ser comprometida se essa atenção é reduzida. Há grande número de ações efetuadas de forma puramente automática, com muito pouca atenção, não obstante com total segurança. Um caminhante, que mal sabe aonde está indo, mantém-se no caminho certo, malgrado isso, e pára em seu destino sem se haver perdido [vergangen]. Ora, em todos os casos, isso é como uma regra. Um exímio pianista toca as teclas certas, sem pensar. Pode naturalmente cometer um erro ocasional; porém, se o tocar automático aumentasse o risco de errar, esse risco seria máximo para um virtuose, cuja forma de tocar, em conseqüência de prolongada prática, se tornou inteiramente automática. Sabemos, pelo contrário, que muitas ações são efetuadas com um grau de precisão muito especial se não são objeto de um nível especialmente elevado de atenção, e que o infortúnio de uma parapraxia está fadado a ocorrer precisamente quando se atribui importância especial ao funcionamento correto, portanto deveras sem que houvesse distração da atenção necessária. Poder-se-ia argüir que isso é o resultado da ‘excitação’, porém é difícil enxergar por que a excitação não deveria, inversamente, aumentar a atenção dirigida para aquilo que tão intensamente é desejado. Se, por um lapso de língua, alguém diz o oposto do que pretende, em um importante discurso ou comunicação oral, dificilmente isso pode ser explicado pela teoria psicofisiológica ou da atenção.

Existem, ademais, numerosos pequenos fenômenos secundários no caso das parapraxias, os quais não compreendemos e a cujo respeito as explicações dadas até agora não trouxeram nenhuma luz. Por exemplo, se temporariamente esquecemos um nome, aborrecemo-nos com isso, fazemos tudo para recordá-lo e não podemos nos resignar. Por que, nesses casos, é tão extremamente raro lograrmos orientar nossa atenção, pois enfim estamos ansiosos por fazê-lo, à palavra que (como dizemos) está ‘na ponta da língua’ e que reconhecemos de pronto quando é dita para nós? Ou ainda: há casos em que as parapraxias se multiplicam, formam cadeias e se substituem umas às outras. Numa primeira ocasião alguém perdeu um compromisso. Na ocasião seguinte, quando se decidiu firmemente não esquecer desta vez, verifica-se que se faz anotação da hora errada. Ou tenta-se chegar, por vias indiretas, a uma palavra esquecida, e nisso escapa uma segunda palavra que poderia ter ajudado a encontrar a primeira. Procurando-se por essa segunda palavra, uma terceira desaparece, e assim por diante. Como bem se sabe, o mesmo acontece com os erros de impressão, que devem ser considerados as parapraxias do compositor. Um teimoso erro de impressão dessa espécie, segundo se conta, certa vez esgueirou-se para dentro de um jornal social-democrata. A notícia que dava de uma cerimônia incluía as palavras: ‘Entre os que estavam presentes, podia-se notar Sua Alteza o Kornprinz.‘ No dia seguinte, fez-se uma tentativa de correção. O jornal pedia desculpas e dizia: ‘Devíamos, naturalmente, ter dito “o Knorprinz”.’ Em tais casos, as pessoas falam de um ‘demônio dos erros de impressão’ ou um ‘demônio da composição tipográfica’ — expressões que, pelo menos, vão além de qualquer teoria psicofisiológica dos erros de impressão.

Talvez lhes seja também conhecido o fato de ser possível provocar lapsos de língua, produzi-los, digamos assim, por sugestão. Uma anedota ilustra esse fato. Tinha sido confiado a um estreante dos palcos o importante papel, em Die Jungfrau von Orleans [de Schiller], do mensageiro que anuncia ao rei de ‘der Connétable schickt sein Schwert zurück [o Condestável devolve sua espada]’. Um primeiro ator divertia-se, durante os ensaios, com induzir repetidamente o nervoso jovem a dizer, em vez das palavras do texto: ‘der Komfortabel schickt sein Pferd zurück [o cocheiro devolve seu cavalo]’. Conseguiu seu intento: o desventurado principiante realmente fez sua estréia na representação com a versão corrompida, apesar de haver sido admoestado de não fazê-lo, ou, talvez, porque tenha sido admoestado.

Nenhuma luz é lançada sobre esses pequenos aspectos das parapraxias com a teoria da falta de atenção. Porém, não significa necessariamente que a teoria seja errônea, em face dessa explicação; ela simplesmente pode estar carecendo de algo, de algum acréscimo, para que venha a ser completamente satisfatória. Contudo, algumas das parapraxias também podem ser consideradas por outro prisma.

Tomemos os lapsos de língua como o tipo de parapraxia mais adequado a nossos propósitos — embora pudéssemos igualmente ter escolhido lapsos de escrita ou lapsos de leitura. Devemos ter em mente que, até aqui, apenas perguntamos quando — sob que condições — as pessoas cometem lapsos de língua, e apenas para essa pergunta tivemos uma resposta. Poderíamos, porém, dirigir nosso interesse para outro aspecto e indagar por que razão o erro ocorreu dessa determinada forma e não de outra; e poderíamos considerar o que é que emerge no lapso propriamente dito. Os senhores observarão que, enquanto essa pergunta não for respondida e nada for respondido e nada for elucidado sobre o lapso, o fenômeno permanece como evento casual, do ponto de vista psicológico, embora dele se tenha dado uma explicação fisiológica. Se eu cometesse um lapso de língua, poderia obviamente fazê-lo em número infinito de formas, a palavra certa poderia ser substituída por alguma palavra entre milhares de outras, ser distorcida em incontáveis direções diferentes. Existe, pois, algo que, no caso particular, me compele a cometer o lapso de uma determinada forma; ou isso continua sendo uma questão de acaso, de escolha arbitrária, e se trata, talvez, de uma pergunta a que não se pode dar qualquer resposta sensata?

Dois escritores, Meringer e Mayer (um, filólogo, o outro, psiquiatra), de fato tentaram, em 1895, atacar o problema das parapraxias por esse ângulo. Coligiram exemplos e começaram por abordá-los de maneira puramente descritiva. Isso, naturalmente, até aqui não oferece nenhuma explicação, embora possa preparar o caminho para alguma. Distinguem os diversos tipos de distorções que o lapso impõe ao discurso pretendido, como ‘transposições’, ‘pré-sonâncias [antecipações]’, ‘pós-sonâncias [perseverações]’, ‘fusões (contaminações)’ e ‘substituições’. Eu lhes darei alguns exemplos desses principais grupos propostos pelos autores. Um exemplo de transposição seria dizer ‘a Milo de Vênus‘ em vez de ‘a Vênus de Milo’ (transposição da ordem das palavras); um exemplo de pré-sonância [antecipação] seria: ‘es war mir auf der Schwest… auf der Brust so schwer’; e uma pós-sonância [perseveração] seria exemplificada pelo conhecido brinde que saiu errado: ‘Ich fordere Sie auf, auf das Wohl unseres Chefs aufzustossen’ [em vez de ‘anzustossen’]. Essas três formas de lapso de língua não são propriamente comuns. Os senhores encontrarão exemplos muito mais numerosos, nos quais o lapso resulta de contração ou fusão. Assim, por exemplo, um cavalheiro dirige-se a uma senhora na rua com as seguintes palavras: ‘Se me permite, senhora, gostaria de a begleit-digen.‘ A palavra composta que se juntou a ‘begleiten [acompanhar]’ evidentemente escondeu em si ‘beleidigen [insultar]’. (Diga-se de passagem, o jovem provavelmente não teve muito êxito com a senhora.) Como exemplo de substituição, Meringer e Mayer citam o caso de alguém que diz: ‘Ich gebe die Präparate in den Briefkasten’ em vez de ‘Brütkasten’.

A explicação em que esses autores tentaram basear sua coleção de exemplos, é especialmente inadequada. Acreditam que os sons e as sílabas de uma palavra têm uma ‘valência’ determinada, e que a inervação de um elemento de alta valência pode exercer uma influência perturbadora em outro de menor valência. Com isso, estão evidentemente se baseando nos raros casos de pré-sonância e pós-sonância; essas preferências de uns sons a outros (se é que de fato existem) podem não ter absolutamente qualquer relação com outros casos de lapsos de língua. Afinal, os lapsos de língua mais comuns ocorrem quando, em vez de dizermos uma palavra, dizemos uma outra muito semelhante; e essa semelhança é, para muitos, explicação suficiente de tais lapsos. Por exemplo, um professor declarou em sua aula inaugural: ‘Não estou ‘geneigt [inclinado]’ (em vez de ‘geeignet [qualificado]’) a valorizar os serviços de meu mui estimado predecessor.’ Ou então, outro professor observava: ‘No caso dos órgãos genitais femininos, apesar de muitas Versuchungen [tentações] — me desculpem, Versuche [tentativas] ….’

O tipo mais comum e, ao mesmo tempo, mais notável de lapsos de língua, no entanto, são aqueles em que se diz justamente o oposto do que se pretendia dizer. Aqui, naturalmente, estamos muito longe de relações entre sons e os efeitos de semelhança; e, em vez disso, podemos apelar para o fato de que os contrários têm um forte parentesco conceitual uns com os outros e mantêm entre si uma associação psicológica especialmente próxima. Há exemplos históricos de tais ocorrências. Um presidente da câmara dos deputados de nosso parlamento certa vez abriu a sessão com as palavras: ‘Senhores, observo que está presente a totalidade dos membros, e por isso declaro a sessão encerrada.’

Qualquer outra associação conhecida pode atuar da mesma forma insidiosa, como um contrário, e emergir em circunstâncias bastante inadequadas. Assim, conta-se que, por ocasião de uma celebração em honra do casamento de um filho de Hermann von Helmholtz com uma filha de Werner von Siemens, o conhecido inventor e industrial, a incumbência de saudar à felicidade do jovem par coube ao famoso fisiologista Du Bois-Reymond. Sem dúvida, este fez um discurso brilhante, porém encerrou com as palavras: ‘Portanto, longa vida à nova firma Siemens e Haeske!’ Essa era, naturalmente, a denominação da antiga firma. A justaposição dos dois nomes deve ter sido tão familiar a um berlinense como Fortnum e Mason o seria a um londrino.

Devemos, portanto, incluir entre as causas das parapraxias não apenas relações entre sons e semelhança verbal, como também a influência das associações de palavras. Isso, porém, não é tudo. Em numerosos casos, parece impossível explicar um lapso de língua, a não ser que levemos em conta algo que tinha sido dito, ou mesmo simplesmente pensado, em uma frase anterior. De novo temos aqui um caso de perseveração, como aqueles em que insistia Meringer, porém de origem mais remota. Devo confessar que sinto, na totalidade, como se estivéssemos mais longe do que nunca de compreender os lapsos de língua.

Não obstante, espero não estar equivocado ao dizer que, durante essa última pesquisa, todos nós tivemos uma nova impressão desses exemplos de lapsos de língua, e que pode valer a pena considerar um pouco mais detidamente essa impressão. Examinamos as condições sob as quais em geral os lapsos de língua ocorrem, e, depois, as influências que determinam o tipo de distorção produzida pelo lapso. Até agora, no entanto, não dedicamos nada de nossa atenção ao produto do lapso considerado em si mesmo, sem referência à sua origem. Se decidimos fazê-lo, não podemos deixar de encontrar, no final, coragem para dizer que, em alguns exemplos, aquilo que resulta do lapso de língua tem um sentido próprio. O que queremos dizer com ‘tem um sentido’? Que o produto do lapso de língua pode, talvez, ele próprio ter o direito de ser considerado como ato psíquico inteiramente válido, que persegue um objetivo próprio, como uma afirmação que tem seu conteúdo e seu significado. Até aqui temos sempre falado em ‘parapraxias [atos falhos]’, porém agora é como se às vezes o ato falho fosse, ele mesmo, um ato bastante normal, que simplesmente tomou o lugar de outro, que era o ato que se esperava ou desejava.

O fato de a parapraxia ter um sentido próprio parece, em determinados casos, evidente e inequívoco. Quando o presidente da câmara dos deputados, com suas primeiras palavras, encerrou a sessão em vez de abri-la, sentimo-nos inclinados, em vista de nosso conhecimento das circunstâncias em que o lapso de língua ocorreu, a reconhecer que a parapraxia tem um sentido. O presidente não esperava nada de bom da sessão e ficaria satisfeito se pudesse dar-lhe um fim imediato. Não temos qualquer dificuldade em chamar a atenção para o sentido desse lapso de língua, ou, por outras palavras, de interpretá-lo. Ou, então suponhamos que uma mulher diga a outra, em tom de aparente admiração: ‘Esse lindo chapéu novo, suponho que você mesma o aufgepatzt [palavra não existente, em lugar de aufgeputzt (enfeitou)], não?’ Ora, não existe decoro científico que possa impedir-nos de ver por trás desse lapso de língua as palavras: ‘Esse chapéu é uma Patzerei [droga].’ Ou, noutro caso, contam-nos que uma senhora, conhecida por seus modos enérgicos, certa ocasião observava: ‘Meu marido perguntou a seu médico qual dieta devia seguir; mas o médico lhe disse que não precisava de dieta: ele podia comer e beber o que eu quero.’ Também nesse caso o lapso de língua tem seu inconfundível outro lado: estava expressando um programa coerentemente planejado.

Se viesse a acontecer, senhoras e senhores, que tivessem um sentido não apenas alguns exemplos de lapsos de língua e de parapraxias em geral, mas considerável número deles, o sentido das parapraxias, do qual até agora nada ouvimos, se tornaria seu aspecto mais importante e deslocaria qualquer outra consideração para um plano secundário. Poderíamos, então, pôr de lado todos os fatores fisiológicos e psicofisiológicos e dedicar-nos à investigação exclusivamente psicológica do sentido — isto é, da significação ou do propósito — das parapraxias. Por conseguinte, nos ocuparemos em testar essa hipótese em grande número de observações.

Antes, porém, de levar a cabo essa intenção, gostaria de convidá-los a seguir-me ao longo de outra pista. Repetidamente tem acontecido haver um escritor criativo feito uso de um lapso de língua ou de alguma outra parapraxia como meio de produzir um efeito pleno de imaginação. Esse fato isoladamente deve demonstrar-nos que ele considera a parapraxia — o lapso de língua, por exemplo — como possuidora de um sentido, de vez que a produziu deliberadamente. Pois o que sucedeu não foi o autor ter cometido um lapso de escrita acidental e, assim, permitido o uso do mesmo por um de seus personagens, na qualidade de lapso de língua; ele tenciona trazer algo à nossa atenção mediante o lapso de língua, e podemos indagar sobre que algo é esse, se talvez queira sugerir que o personagem em questão esteja distraído e fatigado, ou esteja prestes a ter um ataque de enxaqueca. Se o autor emprega o lapso como se este tivesse um sentido, nós, naturalmente, não temos vontade de exagerar a importância disso. Afinal, um lapso poderia realmente não ter sentido, ser um evento psíquico casual ou poderia ter um sentido apenas em casos bastante raros; contudo, ainda assim o autor teria o direito de intelectualizá-lo fornecendo a ele um sentido, a fim de empregá-lo segundo suas finalidades próprias. E não seria de surpreender se tivéssemos mais a aprender sobre lapsos de língua com escritores criativos, do que com filólogos e psiquiatras.

Um exemplo desse tipo pode ser encontrado em Wallenstein (Piccolomini Ato I, Cena 5), [de Schiller]. Na cena anterior, Max Piccolomini esposou ardentemente a causa do Duque [de Wallenstein] e esteve descrevendo apaixonadamente os benefícios da paz, dos quais se tornou cônscio no decurso de uma viagem enquanto acompanhava a filha de Wallenstein ao campo. Quando ele deixa o palco, seu pai [Octavio] e Questenbergs, o emissário da Corte, estão mergulhados em consternação. A Cena 5 continua:

 

QUESTENBERG Ai de mim! e continua assim?Como, amigo! deixamo-lo partirNeste delírio — deixá-lo partir?Não chamá-lo de volta imediatamente,[não abrirSeus olhos, sem perda de tempo?

OCTAVIO (saindo de uma meditação profunda)

Ele vem de abrir meus olhos,E enxergo mais do que me apraz.

QUEST. Que é isso?

OCT. Amaldiçoem essa viagem!

QUEST. Mas, por quê? Que se passa?

OCT. Vem, vamos juntos, amigos! Preciso seguirA execrável rota, imediatamente. Meus olhosAgora estão abertos, e devo usá-los. Vem!(Atrai Q. e o leva consigo.)

QUEST. Que está havendo? Aonde vais, então!?

OCT. Até ela…

QUEST. Até —

OCT. (corrigindo-se.) Até o Duque. Vem, partamos.[Conforme a tradução inglesa de Coleridge.]

 

Otávio quis dizer ‘até ele’, ao Duque. Comete, porém, um lapso de língua e, dizendo ‘até lá’ ao menos revela a nós que reconheceu claramente a influência que o jovem guerreiro causou em um entusiasta da paz.

Um exemplo ainda mais impressionante foi descoberto por Otto Rank [1910a] em Shakespeare. Está em O Mercador de Veneza, na famosa cena em que o venturoso amante escolhe entre os três cofres… e talvez o melhor é ler para os senhores a breve descrição de Rank:

‘Um lapso de língua ocorre em O Mercador de Veneza, de Shakespeare (Ato III, Cena 2) e é, do ponto de vista dramático, causado de maneira extremamente sutil e empregado com técnica brilhante. Semelhante ao lapso existente em Wallenstein, para o qual Freud chamou a atenção, mostra que os dramaturgos possuem uma clara compreensão do mecanismo e do significado desse tipo de parapraxia, e supõem que o mesmo seja verdadeiro para sua platéia. Pórcia, que, por vontade de seu pai, teve de escolher um marido por sorteio, escapou, até então, de todos os seus indesejados pretendentes por um feliz acaso. Tendo enfim encontrado em Bassanio o pretendente de sua preferência, tem motivos para temer que também ele venha a escolher o cofre errado. Ela desejaria muito dizer-lhe que, mesmo assim, ele poderia ter certeza de seu amor; porém isso lhe é vedado em virtude do juramento. Nesse conflito íntimo, o poeta faz com que ela diga ao pretendente preferido:

Por favor, não vos apresseis; esperai um ou dois dias antes de consultar a sorte, pois, se escolherdes mal, perco vossa companhia; assim, pois, aguardai um pouco. Alguma coisa me diz (mas não é o amor) que não quereria perder-vos… Eu poderia ensinar-vos como escolher bem; mas, então, seria perjura e não o serei jamais. Podeis, pois, fracassar; porém, se fracassardes, far-me-eis deplorar não haver cometido o pecado de perjúrio. Malditos sejam vossos olhos!Encantaram-me e partiram-me em duas partes: uma é vossa e outra é meia vossa; quero dizer, minha; mas, sendo minha, é vossa e, desse modo, sou toda vossa.

A coisa da qual ela desejava dar a ele apenas um indício muito sutil, porque devia escondê-la dele de qualquer maneira, ou seja, que ela, mesmo antes de ele fazer a escolha, era inteiramente dele e o amava — é precisamente isso que o poeta, com uma maravilhosa sensibilidade psicológica, faz irromper abertamente em seu lapso de língua; e, com essa solução artística, logra aliviar tanto a incerteza intolerável do amante como o suspense do compreensivo auditório diante do resultado de sua escolha.’

Observem também com que habilidade Pórcia, no fim, reconcilia as duas afirmações contidas em seu lapso de língua, como resolve a contradição entre elas e como, finalmente, mostra ser o lapso o que estava correto:

‘Mas, sendo minha, é vossae desse modo, sou toda vossa.’

Ocasionalmente tem acontecido que um pensador, cuja atividade se situa fora da medicina, haja revelado, por algo que falou, o sentido de uma parapraxia, e se tenha antecipado a nossos esforços de explicá-la. Os senhores, todos, ouviram falar no espirituoso satirista Lichtenberg (1742-99), de quem Goethe disse: ‘Onde ele faz uma pilhéria, se esconde um problema.’ Às vezes, a pilhéria também traz à luz a solução do problema. Nos Witzige und Satirische Einfälle [Witty and Satirical Thoughts, 1853], de Lichtenberg, encontramos o seguinte: ‘Ele tanto leu Homero, que sempre lia “Agamemnon” em vez de “angenommen [suposto]”.’ Aqui temos toda a teoria dos lapsos de leitura.

Na próxima vez precisamos ver se podemos concordar com esses escritores em suas opiniões.

 

CONFERÊNCIA III - PARAPRAXIAS (continuação)

 

SENHORAS E SENHORES:

Chegamos, na última vez, à idéia de considerar as parapraxias não em relação à desejada função que elas perturbavam, mas à sua própria descrição; e tivemos a impressão de que, em casos especiais, pareciam revelar um sentido próprio. Refletimos então que, se pudesse ser obtida a confirmação, em uma escala mais ampla, de que as parapraxias têm um sentido, seu sentido logo ficaria mais interessante que a investigação das circunstâncias em que ocorrem. Vamos, mais uma vez, chegar a um acordo sobre o que se deve entender por ‘sentido’ de processo psíquico. Queremos dizer com isso tão-somente a intenção à qual serve e sua posição em uma continuidade psíquica. Na maioria de nossas investigações podemos substituir ‘sentido’ por ‘intenção’ ou ‘propósito’. Tratava-se, então, simplesmente de uma ilusão enganadora ou de uma exaltação poética das parapraxias quando pensamos reconhecer nelas uma intenção?

Continuaremos a tomar lapsos de língua como nossos exemplos. Se agora examinarmos atentamente numerosas observações desse tipo, encontraremos categorias completas de casos em que a intenção, o sentido, do lapso é inteiramente visível. Antes de tudo existem aqueles nos quais o que se pretendia é substituído por seu contrário. O presidente da câmara dos deputados [ver em [1]] disse, em seu discurso de abertura: ‘Declaro a sessão encerrada.’ Isso não é nada ambíguo. O sentido e intenção de seu lapso era encerrar a sessão. ‘Er sagt es ja selbst” é o que estamos tentados a citar: é apenas uma questão de aceitar suas palavras. Não me interrompam neste ponto, objetando que isso é impossível, que sabemos que ele não queria encerrar a sessão e sim abri-la, e que ele mesmo, a quem nós reconhecemos como a única suprema corte de apelação, poderia confirmar o fato de que queria abri-la. Os senhores estão se esquecendo de que fizemos o acordo de começarmos considerando as parapraxias no que concerne à sua própria descrição; sua relação com a intenção, que elas perturbaram, não será discutida senão mais adiante. De outro modo, os senhores serão culpados de um erro de lógica, simplesmente por fugirem do problema ora em exame — por algo que é chamado em inglês ‘begging the question’.

Em outros casos, nos quais o lapso não expressa o exato contrário, não obstante um sentido oposto pode ser expresso por ele. ‘Não estou geneigt [inclinado] a valorizar os serviços de meu predecessor [ver em [1]]. Geneigt não é o contrário de geeignet [qualificado], mas exprime claramente algo que contrasta nitidamente com a situação na qual o discurso devia ser feito.

Já em outros casos o lapso de língua apenas acrescenta um segundo sentido àquele que se pretendia. A frase então soa como uma contração, uma abreviação ou condensação de diversas frases. Assim, quando a enérgica senhora dizia: ‘Ele pode comer e beber o que eu quero’ [ver em [1]], é bem como se ela tivesse dito: ‘Ele pode comer e beber o que ele quer; mas o que ele tem a ver com querer? Eu é que quero em vez dele.’ Um lapso de língua muitas vezes dá a impressão de ser uma abreviação desse tipo. Por exemplo, um professor de anatomia, ao fim de uma conferência sobre as cavidades nasais, perguntou se seu auditório havia compreendido o que ele disse, e após geral assentimento prosseguiu: ‘Dificilmente posso acreditar nisso, pois, mesmo em uma cidade com milhões de habitantes, aqueles que entendem das cavidades nasais podem ser contados em um dedo… desculpem-me, nos dedos de uma mão.’ A frase abreviada também possui um sentido — a saber, que existe apenas uma pessoa que delas entende.

Contrastando com esses grupos de casos, nos quais a parapraxia por si mesma revela seu sentido, existem outros em que a parapraxia não produz nada que tenha algum sentido próprio, e que, por conseguinte, contrariam nitidamente nossas expectativas. Se alguém deturpa um nome próprio através de um lapso de língua ou agrupa uma série anormal de sons, esses eventos muito comuns, isoladamente considerados, parecem dar uma resposta negativa à nossa pergunta sobre se todas as parapraxias têm alguma espécie de sentido. Um exame mais detido desses exemplos, porém, mostra que essas distorções são facilmente compreendidas e que absolutamente não existe diferença tão grande entre esses casos mais obscuros e os anteriores, mais claros.

Um homem, a quem se perguntou a respeito da saúde de seu cavalo, respondeu: ‘Bem, ele draut [uma palavra sem sentido] … ele dauert [vai durar] mais um mês, talvez.’ Quando lhe foi perguntando o que realmente quis dizer, explicou haver pensado que isso era uma ‘traurige [triste] história’. A combinação de ‘dauert‘ e ‘traurig‘ produziu ‘draut‘.

Outro homem, falando de uns acontecimentos que condenava, prosseguiu: ‘Mas então, os fatos vieram a Vorschwein [palavra não existente, em vez de Vorschein (luz)]….’ Respondendo a indagações, confirmou o fato de que havia considerado essas ocorrências ‘Schweinereien‘ [‘repugnantes’, literalmente ‘porcarias’]. ‘Vorschein‘ e ‘Schweinereien‘ combinaram-se para produzir a estranha palavra ‘Vorschwein‘.

Por certo recordam-se do caso do jovem senhor que perguntou à senhora desconhecida se ele a podia ‘begleitdigen‘ [ver em [1]]. Aventuramo-nos a dividir esta forma verbal em ‘begleiten [acompanhar]’ e ‘beleidigen [insultar]’ e nos sentimos muito certos dessa interpretação, sem precisarmos de qualquer confirmação. Os senhores verão, a partir desses exemplos, que mesmo esses casos mais obscuros de lapsos de língua podem ser explicados por uma convergência, uma ‘interferência‘ recíproca entre duas elocuções desejadas; as diferenças entre esses casos de lapsos surgem meramente do fato de, em algumas ocasiões, uma intenção tomar completamente o lugar da outra (uma substitui a outra), como nos lapsos de língua que exprimem o contrário; ao passo que, em outras ocasiões, uma intenção se satisfaz distorcendo ou modificando a outra, de modo que se produzem estruturas compostas, que fazem sentido, em maior ou menor grau, por sua própria conta.

Parecemos agora haver desvendado o segredo de grande número de lapsos de língua. Se retivermos na memória essa descoberta, seremos capazes de compreender também outros grupos que até agora se constituíram em enigma para nós. Nos casos de distorção de nomes, por exemplo, não podemos supor que se trate sempre de uma questão de competição entre dois nomes semelhantes, mas diferentes. Não é difícil, no entanto, entrever a segunda intenção. A distorção de um nome ocorre, muito freqüentemente, sem haver lapsos de língua; procura dar ao nome um tom ofensivo ou fazê-lo soar como algo inferior, e é um costume conhecido (ou mau costume) destinado a insultar, que as pessoas civilizadas cedo aprendem a abandonar, porém relutam em abandonar. Muitas vezes ainda é permitida como brincadeira, embora brincadeira pouco digna. Como exemplo notório e deselegante dessa forma de distorcer nomes, posso mencionar que, nos dias atuais [da Primeira Guerra Mundial], o nome do presidente da República Francesa, Poincaré, foi transformado em ‘Schweinskarré‘. Portanto, é plausível supor que a mesma intenção insultuosa esteja presente nesses lapsos de língua e procure encontrar expressão na distorção de um nome. Explicações semelhantes acodem ao espírito, na mesma ordem de coisas, quando se trata de certos exemplos de lapsos de língua com efeitos cômicos ou absurdos. ‘Eu os convido a arrotar [aufzustossen] à saúde de nosso Chefe [ver em [1]].’ Aqui, uma atmosfera de cerimônia é inesperadamente perturbada pela intromissão de uma palavra que evoca uma idéia condenável, e, à maneira de certas frases insultuosas e ofensivas, mal podemos evitar a suspeita de que uma intenção procurava encontrar expressão e estava em violenta contradição com as palavras ostensivamente respeitosas. O que o lapso de língua parece ter estado dizendo era mais ou menos isto: ‘Não acreditem! Isso não é a sério. Pouco me importa esse sujeito!’ Quase a mesma coisa se aplica a lapsos de língua que transformam palavras inocentes em outras, indecentes ou obscenas. Assim, ‘Apopos‘ em vez de ‘à propos‘, ou ‘Eischeissweibchen‘ por ‘Eiweissscheibchen‘.Muitas pessoas, como sabemos, tiram alguma satisfação de um costume como esse de distorcer deliberadamente palavras inocentes em obscenas; tais distorções são vistas como engraçadas, e ao ouvirmos uma delas devemos, de fato, primeiro indagar do interlocutor se a disse intencionalmente, como brincadeira, ou se ela ocorreu como lapso de língua.

Bem, está parecendo como se tivéssemos resolvido o problema das parapraxias, e com bem pouca dificuldade! Não são eventos casuais, porém atos mentais sérios; têm um sentido; surgem da ação concorrente — ou, talvez, da ação de mútua oposição — de duas intenções diferentes. Agora, contudo, vejo também que os senhores estão se preparando para apresentar-me uma avalanche de perguntas e de dúvidas, que terão de ser respondidas e abordadas antes de podermos apreciar esse primeiro resultado de nosso trabalho. Certamente não tenho qualquer desejo de forçar os senhores a decisões apressadas. Vamos tomá-las na devida ordem, uma após outra e dedicar-lhes uma tranqüila atenção.

O que é que os senhores desejam perguntar-me? Penso eu que essa explicação se aplica a todas as parapraxias ou apenas a determinado número delas? Pode este mesmo ponto de vista ser estendido aos muitos outros tipos de parapraxias, aos lapsos de leitura, aos lapsos de escrita, ao esquecimento, aos atos descuidados, aos extravios, e assim por diante? Em vista da natureza psíquica das parapraxias, que significação resta aos fatores de fadiga, excitação, distração e interferência na atenção? E mais, é claro que das duas intenções rivalizantes de uma parapraxia uma delas sempre está manifesta, porém a outra, nem sempre. Que fazemos, então, para descobrir essa outra? E, se pensamos tê-la descoberto, como provamos que se trata não apenas de uma intenção provável, mas da única que é a correta para o caso? Existe algo mais que desejam perguntar-me? Se não, vou prosseguir. Os senhores se lembrarão de que não damos muito valor às parapraxias em si mesmas e tudo o que queremos é aprender, partindo de seu estudo, algo que possa resultar em benefício da psicanálise. Por conseguinte, eu lhes apresento esta questão. Que intenções ou que propósitos são esses, capazes de perturbar outros dessa maneira? E quais são as relações entre as intenções que perturbam e as intenções que são perturbadas? Logo, o problema não é resolvido, a menos que recomecemos nosso trabalho.

Assim, pois, em primeiro lugar, é essa a explicação para todos os casos de lapsos de língua? Estou muito inclinado a pensar que sim e meu motivo é que, sempre ao se investigar um exemplo de lapso de língua, surge uma explicação desse tipo. No entanto, realmente também não há maneira de provar que um lapso de língua não possa ocorrer sem esse mecanismo. Pode ser assim; mas, teoricamente, é uma questão sem interesse para nós, de vez que permanecem as conclusões que desejamos tirar para nossa introdução à psicanálise, embora — este não é certamente o caso — nossa opinião seja válida apenas para uma minoria dos casos de lapsos de língua. À questão seguinte — saber se podemos estender a outros tipos de parapraxias nosso ponto de vista — responderei de antemão com um ‘sim’. Os senhores serão capazes de se convencer disso ao virmos examinar exemplos de lapsos de escrita, de atos descuidados, e outros mais. Por motivos técnicos, porém, sugiro que adiemos essa tarefa até havermos abordado os lapsos de língua de forma ainda mais completa.

Exige-se uma resposta mais detalhada à pergunta sobre que significação resta aos fatores postos em evidência pelos autores mencionados — distúrbios da circulação, fadiga, excitação, distração e a teoria da perturbação da atenção — se aceitamos o mecanismo psíquico dos lapsos de língua que descrevemos. Observem que não estamos negando esses fatores. Em geral não é muito comum a psicanálise negar algo que outras pessoas afirmam; via de regra, ela apenas acrescenta algo novo — embora, sem dúvida, vez e outra sucede esse algo, que até então foi negligenciado e é agora apresentado como um acréscimo novo, ser de fato a essência do assunto. A influência das condições fisiológicas sobre a produção dos lapsos de língua mediante uma ligeira doença, distúrbios da circulação ou estados de exaustão deve ser reconhecida de imediato; a experiência cotidiana e pessoal os convencerá disso. Mas, que pouca coisa elas explicam! Antes de tudo, elas não são precondições necessárias das parapraxias. Lapsos de língua ocorrem, com a mesma possibilidade, em perfeita saúde e em estado normal. Esses fatores somáticos, portanto, apenas servem para facilitar e favorecer o especial mecanismo mental dos lapsos de língua. Certa vez usei de uma analogia para descrever essa relação, e vou repeti-la aqui, porquanto posso supor não haver outra melhor que a substitua. Suponhamos que, numa noite escura, eu fosse a um local ermo e ali fosse atacado por um meliante, que carregasse com meu relógio e minha carteira. Como não visse claramente o rosto do ladrão, faria minha queixa no posto policial mais próximo, com as palavras: ‘Isolamento e escuridão roubaram meus pertences.’ O funcionário da polícia poderia então dizer-me: ‘Pelo que o senhor diz, parece estar adotando injustificadamente uma opinião extremamente esquemática. Seria melhor apresentar os fatos assim: “Valendo-se da escuridão e favorecido pelo isolamento do lugar, um ladrão desconhecido roubou os pertences do senhor.” Em seu caso, me parece que a tarefa principal é que devemos encontrar o ladrão. Talvez, então, sejamos capazes de recuperar o produto do roubo.’

Esses fatores psicofisiológicos como a excitação, a distração e os distúrbios da atenção muito pouco nos vão ajudar com vistas a uma explicação. Eles são apenas frases vazias, são biombos atrás dos quais não devemos nos sentir impedidos de lançar um olhar. A pergunta deveria ser: o que foi causado pela excitação, pela distração especial da atenção? Ademais, devemos reconhecer a importância da influência dos sons, da semelhança das palavras e das associações habituais suscitadas pelas palavras. Estas facilitam os lapsos de língua por apontarem os caminhos que esses lapsos podem tomar. Contudo, se tenho um caminho aberto diante de mim, esse fato automaticamente decide que eu o tomaria? Preciso de um motivo a mais, antes de me resolver por ele e, além disso, de uma força que me impulsione pelo caminho. Assim, essas relações de sons e palavras constituem também, do mesmo modo como as condições somáticas, exclusivamente coisas que favorecem os lapsos de língua e não podem proporcionar a verdadeira explicação para eles. Considerem apenas isso: em uma imensa quantidade de casos meu falar não é perturbado pela circunstância de as palavras, que estou usando, lembrarem outras com som semelhante, de serem intimamente vinculadas a seus contrários, ou de associações correntes delas derivarem. E talvez pudéssemos encontrar uma saída acompanhando o filósofo Wundt, quando diz que os lapsos de língua surgem se, em conseqüência de exaustão física, a tendência a associar prevalece sobre aquilo que a pessoa tenciona dizer. Seria muito convincente se não fosse contrariado pela experiência, que mostra que numa série de casos os fatores somáticos facilitadores dos lapsos de língua estão ausentes, e que em outra série de casos os fatores associativos, que os facilitam, estão igualmente ausentes.

Entretanto, estou particularmente interessado em sua pergunta seguinte: Como se descobrem as duas intenções que se interferem mutuamente? Os senhores provavelmente não percebem como é importante a pergunta. Uma das duas intenções, aquela que é perturbada, naturalmente é inequívoca: a pessoa que comete o lapso de língua conhece-a e a admite. É somente a outra, a intenção que perturba, que pode dar origem à dúvida e à hesitação. Ora, já temos visto, e sem dúvida os senhores não o esqueceram, que em numerosos casos essa outra intenção é igualmente evidente. É indicada pelo efeito do lapso, bastando que tenhamos a coragem de reconhecer nesse efeito uma validade própria. Seja o caso do presidente da câmara dos deputados, cujo lapso de língua disse o contrário do tencionado. E claro que desejava abrir a sessão, porém é igualmente claro que também desejava encerrá-la. Isso é tão óbvio que não nos deixa nada por interpretar. Nos outros casos, contudo, nos quais a intenção perturbadora apenas distorce a intenção original sem que ela mesma consiga completa expressão, como é que, partindo da distorção, chegamos à intenção perturbadora?

Em um primeiro grupo de casos, isso se faz de maneira bastante simples e segura — com efeito, da mesma maneira como se tem a intenção perturbada. Fazemos o interlocutor dar-nos a informação diretamente. Depois do lapso de língua, ele prontamente diz as palavras que originalmente pretendia: ‘Draut… não, dauert [vai durar] mais um mês, talvez.’ [ver em [1]]. Pois bem, exatamente da mesma forma o fazemos dizer qual a intenção que perturba. ‘Por que’, lhe perguntamos, ‘o senhor disse “draut”?’ Ele responde: ‘Eu queria dizer “É uma traurige [triste] história”.’ De maneira semelhante, em outro caso, em que o lapso de língua era ‘Vorschwein‘ [ver em [1]], a pessoa confirma o fato de que desejava inicialmente dizer ‘É uma Schweinerei [porcaria]’, porém se controlou e saiu-se com outro comentário. Aqui, pois, a intenção que distorce fica estabelecida tão seguramente como aquela que foi distorcida. Minha escolha desses exemplos não foi sem propósito, de vez que sua origem e sua solução não procedem nem de mim nem de meus seguidores. E em ambos esses casos medidas ativas de alguma espécie foram necessárias para se chegar à solução. Foi preciso perguntar ao orador por que cometera o lapso e o que poderia dizer sobre o mesmo. De outro modo, seu lapso poderia ter-lhe passado despercebido, sem desejar explicá-lo. Quando, porém, foi indagado a respeito, deu a explicação com a primeira coisa que lhe ocorreu. E agora, por favor, observem que esse pequeno passo positivo e seu resultado bem-sucedido já são uma psicanálise, e constituem um modelo para todas as investigações psicanalíticas que empreenderemos daqui por diante.

Serei demais desconfiado, porém, se suspeito que, exatamente no momento em que a psicanálise faz seu aparecimento perante os senhores, a resistência a ela desperta, simultaneamente? Não se sentem os senhores inclinados a objetar que a informação dada pela pessoa a quem foi feita a pergunta — a pessoa que cometeu o lapso de língua — não é totalmente conclusiva? Ela estava naturalmente desejosa, pensam os senhores, de atender à solicitação de explicar o lapso, e assim disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça e que parecia capaz de fornecer tal explicação. Isso, porém, não é nenhuma prova de que o lapso realmente ocorreu dessa maneira. Pode ter sido assim; contudo, também pode ter sucedido de outra forma. E poderia ter-lhe ocorrido mais alguma coisa, que seria também apropriada, ou talvez até mesmo mais bem ajustada.

É estranho quão pouco respeito os senhores, no fundo, têm por um ato psíquico. Imaginem que alguém tivesse empreendido a análise química de determinada substância e encontrado determinado peso para um de seus componentes: tantos e tantos miligramas. Determinadas inferências seriam deduzidas desse peso. Ora, supõem os senhores que alguma vez ocorreria a um químico criticar essas inferências com base no fato de que a substância isolada poderia igualmente ter tido algum outro peso? Todos se curvarão ante o fato de que o peso era esse e nenhum outro, e confiantemente tirarão daí suas ulteriores conclusões. No entanto, quando os senhores se defrontam com o fato psíquico de que determinada coisa ocorreu à mente da pessoa interrogada, não querem admitir a validade do fato: alguma outra coisa poderia ter-lhe ocorrido! Os senhores acalentam a ilusão de haver uma coisa como liberdade psíquica e não querem desistir dela. Lamento dizer que discordo categoricamente dos senhores a este respeito.

Perante isso irão interromper-se, porém apenas para retomar sua resistência em outro ponto. E prosseguirão: ‘Constitui técnica especial da psicanálise, segundo entendemos, tomarem análise as próprias pessoas a fim de obter a solução de seus problemas. [ver em [1], adiante.] Agora tomemos um novo exemplo: aquele em que um orador, convocando a um brinde de homenagem numa ocasião de cerimônia, convidou seus ouvintes a arrotar [aufzustossen] à saúde do chefe [ver em [1]].O senhor diz [ver em [1] e [2]] que a intenção perturbadora, nesse caso, era uma intenção de insultar: era essa que estava opondo-se à expressão de respeito do orador. É, contudo, mera interpretação da parte do senhor, baseada em observações não relacionadas com o lapso de língua. Se, nesse exemplo, o senhor interrogasse a pessoa responsável pelo lapso, ela não confirmaria a idéia do senhor, de que ela tencionava um insulto; ao contrário, ela repudiaria isso energicamente. Por que, em face desse claro desmentido, não abandona sua improvável interpretação?’

Sim. Os senhores encontraram um argumento poderoso desta vez. Posso imaginar o desconhecido proponente do brinde. Provavelmente é subordinado do chefe do departamento, a quem está sendo feita a homenagem — talvez ele mesmo já seja professor-assistente, um homem jovem, com excelentes projetos de vida. Procuro forçá-lo a admitir que ele pode, não obstante, ter tido uma sensação de que nele havia algo se opondo ao brinde em honra do chefe. Entretanto, isso me põe em maus lençóis. Ele fica impaciente e, de repente, irrompe: ‘Pare de querer me interrogar, se não, vou ficar grosseiro. O senhor vai arruinar toda a minha carreira com suas suspeitas. Apenas falei “aufstossen [arrotar]” em vez de “anstossen [brindar]”, porque antes disse “auf” duas vezes na mesma frase. É o que Meringer chama de perseveração e não há nada mais para ser interpretado nisso. Está entendendo? Basta!‘ — Hum! Que reação surpreendente — uma negação realmente enérgica. Vejo que não há nada mais a tratar com o homem. Porém, também constato que ele mostra intenso interesse pessoal em insistir em que sua parapraxia não tem um sentido. Os senhores também podem sentir que existe algo de errado em ele ser assim tão rude com uma indagação puramente teórica. Entretanto pensarão, depois de tudo dito e feito: ele deve saber o que quis e o que não quis dizer.

Mas, será que sabe mesmo? Talvez seja essa ainda a questão.

Agora, porém, julgam que me têm à mercê dos senhores. ‘Então essa é sua técnica’, ouço-os dizer. ‘Quando alguém que cometeu um lapso de língua diz alguma coisa a respeito, que satisfaz ao senhor, o senhor o declara autoridade decisiva e final no assunto. “É ele mesmo quem diz! [ver em [1]]”. Quando o que ele diz não se ajusta ao livro do senhor, então tudo quanto o senhor diz é que ele não tem importância — não há necessidade de acreditar nele.

Isso é bastante verdadeiro. Mas posso trazer-lhes um exemplo semelhante, no qual ocorre o mesmo espantoso evento. Quando alguém, acusado de um delito, confessa ao juiz sua ação, o juiz acredita em sua confissão; porém, se nega, o juiz não acredita nele. Se fosse de outra forma, não haveria aplicação de justiça, e apesar de erros ocasionais devemos convir em que o sistema funciona.

‘O senhor é um juiz, então? E uma pessoa que cometeu um lapso de língua é trazida à sua presença sob acusação? Quer dizer que cometer um lapso de língua é um delito, não é?’

 Talvez não precisemos rejeitar a comparação. Eu, contudo, pedir-lhes-ia observarem que profundas diferenças de opinião atingimos após uma pequena investigação do que pareciam ser esses inocentes problemas concernentes às parapraxias — diferenças que, no momento, não vemos como atenuar. Proponho uma conciliação provisória, com base na analogia entre juiz e réu. Penso que os senhores convirão comigo em que não pode haver dúvida de que a parapraxia tenha um sentido, se a própria pessoa o admite. Em troca, eu vou convir em que não podemos chegar a uma prova direta do suspeito sentido, se a pessoa nos recusa informações, e também, naturalmente, se não está em condições de nos fornecer as informações. Portanto, como no caso da aplicação da justiça, somos obrigados a voltar-nos para a prova circunstancial, que pode tornar uma decisão mais fundamentada em alguns casos, e menos, em outros. Nos tribunais de justiça pode ser necessário, por motivos práticos, considerar um réu culpado com base em provas circunstanciais. Não temos necessidade disso; nem estamos, contudo, também obrigados a prescindir de provas circunstanciais. Seria um erro supor que uma ciência consista inteiramente de teses estritamente comprovadas, e seria injusto exigir isso. Somente uma pessoa inclinada a uma paixão por autoridade fará essa exigência, alguém com um desejo insaciável de substituir seu catecismo religioso por outro, embora científico. A ciência tem apenas algumas poucas proposições apodícticas em seu catecismo: o resto são asserções promovidas por ela a um certo grau de probabilidade. Atualmente, constitui sinal de modo científico de pensamento contentar-se com essas aproximações da certeza e ser capaz de dedicar-se a um trabalho construtivo mais além, apesar da ausência de confirmação final.

No entanto, se a pessoa mesma não nos dá a explicação do sentido de uma parapraxia, onde iremos encontrar os pontos de partida para nossa interpretação — a prova circunstancial? Em diversas direções. Em primeiro lugar, a partir de analogias com fenômenos outros que não as parapraxias: quando, por exemplo, afirmamos que distorcer um nome, isso ocorrendo como lapso de língua, tem o mesmo sentido insultuoso que a deturpação deliberada de um nome. Ademais, também a partir da situação psíquica na qual ocorreu a parapraxia, do caráter da pessoa que comete a parapraxia e das impressões que a pessoa recebeu antes da parapraxia e às quais a parapraxia talvez seja uma reação. O que sucede, via de regra, é a interpretação ser efetuada segundo princípios gerais: começar por onde existe apenas uma suspeita, uma hipótese de interpretação; e então encontramos uma confirmação ao examinarmos a situação psíquica. Às vezes, temos de esperar também por eventos subseqüentes (que, de certa maneira, se anunciaram pela parapraxia) antes de nossa suspeita ser confirmada.

Não posso facilmente dar-lhes ilustrações desse aspecto se me limito ao campo dos lapsos de língua, embora nele mesmo se possa encontrar alguns bons exemplos. O jovem senhor que queria ‘begleitdigen‘ uma senhora [ver em [1]] certamente era uma personalidade tímida. A mulher, cujo marido podia comer e beber o que ela quisesse [ver em [1]], é o que eu conheço como uma dessas enérgicas senhoras que mandam em casa. Ou, então, tomemos o seguinte exemplo: Na assembléia geral do “Concordia” um jovem membro fez um discurso de violenta oposição, no decorrer do qual se referiu à diretoria como ‘Vorschussmitglieder [membros do empréstimo]’, uma palavra que parece ter sido formada de ‘Vorstand [diretoria]’ e ‘Ausschuss [comissão]’. Suspeitaremos de que alguma intenção perturbadora estivesse operando nele, trabalhando contra sua violenta oposição, baseada em algo referente a um empréstimo. E com efeito, soubemos de nosso informante que o orador estava constantemente em dificuldades financeiras, e justamente nessa época se havia inscrito para um empréstimo. A intenção perturbadora podia, por conseguinte, ser substituída pelo pensamento: ‘Modere sua posição, estas são as mesmas pessoas que irão aprovar seu empréstimo.’

Contudo, tenho condições de dar-lhes um extenso conjunto de provas circunstanciais desse tipo se me desloco para o vasto campo das outras parapraxias.

Se alguém esquece um nome próprio que lhe é normalmente familiar, ou se, malgrado todos os seus esforços, acha difícil lembrá-lo, é plausível supor que tenha algo contra a pessoa que usa o nome, de modo que prefere não pensar nela. Considerem, por exemplo, o que aprendemos sobre a situação psíquica em que ocorreu a parapraxia, nos casos que agora examinaremos:

‘Herr Y. apaixonou-se por uma senhora, porém não teve sucesso, e logo depois ela se casou com Herr X. Depois disso, Herr Y., apesar de ter conhecido Herr X. por muito tempo e mesmo ter assuntos de negócios com ele, esquecia seu nome repetidamente, de forma que por diversas vezes tinha de perguntar a outras pessoas qual era o nome, quando precisava corresponder-se com Herr X.’ Herr Y. evidentemente nada queria saber de seu rival mais afortunado: ‘jamais pensar sobre sua existência.’

Ou esse outro: Uma senhora indagou a seu médico sobre notícias de uma conhecida de ambos, porém mencionou-a por seu nome de solteira. Ela havia esquecido o nome de casada de sua amiga. Admitiu, depois, que ficara muito desgostosa com o casamento e se antipatizava com o marido de sua amiga.

Teremos muito a dizer sobre esquecimento de nomes em outros contextos [ver em  [1] e seg., adiante]; no momento interessa-nos principalmente a situação psíquica na qual ocorre o esquecimento.

O esquecimento de intenções pode geralmente ser atribuído a uma corrente oposta de pensamento, que reluta em executar a intenção. Essa opinião, porém, não é sustentada apenas por nós, psicanalistas; é opinião geral, aceita por todos em sua vida diária e negada somente quando se torna teoria. Um protetor que dá a seu protégé a desculpa de haver esquecido seu pedido, não precisa justificar-se. O protégé logo pensa: Não significa nada para ele; é verdade que prometeu, mas na realidade não quer fazê-lo. Por essa razão o esquecimento é interdito em certas circunstâncias da vida comum; a diferença entre a opinião popular e a opinião psicanalítica acerca dessas parapraxias parece haver desaparecido. Imaginem a dona da casa recebendo seu convidado com as palavras: ‘O quê? O senhor veio hoje? Esqueci-me totalmente de havê-lo convidado para hoje.’ Ou imaginem um jovem senhor confessando a sua noiva que ele se esqueceu de comparecer ao último encontro. Ele certamente não o confessará; preferirá inventar de improviso os mais improváveis obstáculos que o impediram de comparecer a tempo e que, depois, o impossibilitaram de avisá-la. Todos sabemos, também, que na vida militar a desculpa de se haver esquecido algo, em nada ajuda, e não constitui proteção contra punição; e certamente todos sentimos que essa conduta se justifica. Aqui de repente todos se unem no pensar que uma determinada parapraxia tem um sentido e no saber que sentido é esse. Por que não são suficientemente coerentes para estender seu conhecimento às outras parapraxias e admiti-las plenamente? Para essa pergunta existe, naturalmente, também uma resposta.

Visto como os leigos têm tão poucas dúvidas sobre o sentido do esquecimento de intenções, os senhores não ficarão nada surpresos ao encontrarem escritores empregando essa espécie de parapraxia no mesmo sentido. Qualquer um dos senhores que tenha visto ou lido Caesar and Cleopatra, de Bernard Shaw, se lembrará de que, na última cena, César, ao deixar o Egito, é perseguido pela idéia de que há alguma coisa mais que tencionara fazer, porém esqueceu. No fim, vem-se a saber o que era: esquecera-se de dizer adeus a Cleópatra. O dramaturgo, mediante esse pequeno expediente engenhoso, procura atribuir ao grande César a superioridade que, na realidade, ele não possui e que jamais desejou. Fontes históricas lhes contarão que César fez Cleópatra acompanhá-lo a Roma, que ela vivia lá com seu pequeno Caesarion quando César foi assassinado, e que ela logo depois fugiu da cidade.

Casos de esquecimento de uma intenção em geral são tão claros que não servem muito a nosso objetivo obter a partir da situação psíquica uma prova circunstancial do sentido de uma parapraxia. Voltemo-nos, portanto, para um tipo de parapraxia especialmente ambíguo e obscuro: a perda e o extravio. Os senhores não terão dúvida em achar inacreditável que nós próprios podemos desempenhar um papel intencional em coisa tão freqüente como o é o doloroso acidente de perder algo. Existem, contudo, numerosas observações semelhantes à que se segue. Um jovem senhor perdeu um lápis de grande valor estimativo para ele. No dia anterior recebera uma carta de seu cunhado, a qual terminava com estas palavras: ‘Não tenho atualmente nem disposição nem tempo para encorajá-lo em sua futilidade e preguiça.’ O lápis, de fato, lhe fora dado pelo mesmo cunhado. Sem essa coincidência não poderíamos, naturalmente, ter afirmado que, nessa perda, um papel foi desempenhado pela intenção de se desfazer do objeto. Casos semelhantes são muito comuns. Perdemos um objeto se nos desentendemos com a pessoa de quem o ganhamos e não queremos nos lembrar dela; ou, então, se não gostamos mais do objeto em si mesmo e queremos uma desculpa para conseguir um outro melhor em seu lugar. A mesma intenção dirigida contra um objeto também, naturalmente, pode ter um desempenho nos casos de deixar cair, de quebrar e de destruir coisas. Podemos considerar obra do acaso quando uma criança em idade escolar, imediatamente antes do aniversário, estraga ou despedaça algum de seus pertences pessoais como sua mochila ou seu relógio?

Sequer qualquer um que já tenha sofrido suficientes vezes o tormento de não poder encontrar algo guardado por ele mesmo, se sentirá inclinado a acreditar que existe um objetivo em extraviar coisas. Não são nada raros os casos em que as circunstâncias concomitantes do extravio indicam uma intenção de se desfazer, temporária ou permanentemente, do objeto.

O que se segue talvez seja o melhor exemplo de tal situação. Um homem ainda bem jovem contou-me o seguinte caso: ‘Há alguns anos havia desentendimentos entre mim e minha esposa. Achava-a muito fria, e embora de bom grado reconhecesse suas excelentes qualidades, convivíamos sem quaisquer sentimentos ternos. Um dia. voltando de uma caminhada, deu-me um livro que havia comprado porque pensou que me interessaria. Agradeci-lhe esse gesto de “atenção”, prometi ler o livro e o pus de parte. Depois disso jamais consegui encontrá-lo. Passaram-se meses, durante os quais casualmente eu me lembrava do livro perdido e fazia vãs tentativas de encontrá-lo. Uns seis meses mais tarde minha querida mãe, que não morava conosco, caiu doente. Minha esposa deixou a casa para ir cuidar de sua sogra. A condição da paciente agravou-se e deu à minha mulher uma oportunidade de revelar o melhor lado de si mesma. Uma noite, eu regressava a casa cheio de entusiasmo e gratidão pelo que minha esposa tinha realizado. Aproximei-me de minha escrivaninha, e, sem qualquer intenção definida, embora com uma espécie de certeza de sonâmbulo, abri uma das gavetas. Ali, bem à vista, encontrei o livro que há muito eu extraviara. Com a extinção do motivo o extravio do objeto também cessou.

Senhoras e senhores, poderia multiplicar indefinidamente essa coleção de exemplos; mas não o farei, aqui. De qualquer forma os senhores encontrarão uma profusão de material para estudo das parapraxias em Psychopathology of Everyday Life (publicado pela primeira vez em 1901). Todos esses exemplos conduzem ao mesmo resultado: indicam a probabilidade de as parapraxias terem um sentido, e mostram aos senhores como esse sentido é descoberto ou confirmado pelas circunstâncias concomitantes. Hoje serei mais breve, pois adotamos o objetivo limitado de usar o estudo desses fenômenos como auxílio para uma preparação à psicanálise. Há apenas dois grupos de observações nos quais preciso adentrar-me mais completamente neste ponto: as parapraxias acumuladas e combinadas e a confirmação de nossas interpretações por acontecimentos subseqüentes.

As parapraxias acumuladas e combinadas são, sem dúvida, a fina flor de sua espécie. Se estivéssemos apenas interessados em provar que as parapraxias têm um sentido, nos teríamos limitado a elas logo de saída, de vez que em seu caso o sentido é inconfundível até mesmo para um pobre de espírito e se impõe ao julgamento mais crítico. Um acúmulo desses fenômenos revela uma persistência que quase nunca constitui característica de eventos casuais, a qual, porém, se ajusta muito bem a algo intencional. Finalmente, a permutabilidade recíproca entre diferentes espécies de parapraxias demonstra que coisa na parapraxia é importante e característica: não é sua forma nem o método que empregam, mas sim o propósito a que servem, possível de se atingir das mais variadas formas. Por essa razão, fornecer-lhes-ei um exemplo de esquecimento repetido. Ernest Jones [1911, 483] conta-nos que, por motivo que ele desconhece, certa vez deixou por vários dias uma carta sobre sua escrivaninha. Por fim decidiu expedi-la; a carta, porém, retornou a ele pelo Dead Letter Office pois havia se esquecido de sobrescritá-la. Depois de colocado o endereço levou-a ao correio, mas desta vez ela não tinha selo. Então, por fim, foi obrigado a admitir sua completa relutância em enviar a carta.

Em outro caso um ato descuidado aparece combinado com um exemplo de extravio. Uma senhora viajou para Roma com seu cunhado, que era um artista famoso. O visitante foi recebido com grandes honras pela comunidade alemã de Roma e, entre outros presentes, deram-lhe uma antiga medalha de ouro. A senhora ficou agastada porque seu cunhado não apreciou suficientemente o valioso objeto. Quando regressava a sua casa (o lugar onde estava, em Roma, ficou ocupado por sua irmã), ao desfazer as malas ela descobriu que havia trazido a medalha consigo; como, ela não sabia. Imediatamente enviou a seu cunhado uma carta com a notícia informando que no dia seguinte devolveria para Roma o objeto que levara consigo. Porém no dia imediato a medalha foi extraviada de forma tão astuta que não pôde ser encontrada e remetida; e foi nesse ponto que a senhora começou a compreender o significado de sua distração: ela queria guardar o objeto para si mesma.

Já lhes dei um exemplo de combinação de um esquecimento com um erro, o caso de alguém que se esquece de um compromisso e, numa segunda ocasião, aparece na hora errada, tendo antes decidido firmemente não esquecê-lo desta vez [ver em [1]]. Um caso exatamente semelhante foi-me referido, de sua própria experiência, por um amigo que possui interesses literários e científicos. ‘Há alguns anos’, contou-me, ‘permiti que me elegessem para a diretoria de certa sociedade literária, pois pensava que a organização algum dia pudesse ser capaz de me ajudar a ter minha peça produzida; e embora sem muito interesse, participei regularmente das reuniões que se realizavam todas as sextas-feiras. Há poucos meses deram-me a promessa de uma produção no teatro de F.; e, desde então, tenho me esquecido regularmente das reuniões da sociedade. Ao ler seu livro sobre o assunto senti-me envergonhado de minha negligência. Reprovei-me com a idéia de que distanciar-me era uma conduta indigna de minha parte, de vez que agora eu não estava precisando mais dessas pessoas, e resolvi a qualquer custo não me esquecer da próxima sexta-feira. Persisti em lembrar-me dessa resolução até quando a pus em execução e parei diante da porta da sala onde as reuniões se realizavam. Para minha surpresa, estava fechada; a reunião havia terminado. Eu havia realmente cometido um engano quanto ao dia; era sábado!’

Seria adequado acrescentar outros exemplos semelhantes. Devo prosseguir, contudo, e mostrar-lhes num relance os casos em que nossa interpretação tem de esperar pelo futuro para ser confirmada. A condição dominante nesses casos, como se verificará, é que a situação psíquica presente nos é desconhecida ou inacessível a nossas pesquisas. Nossa interpretação, por conseguinte, não é mais que uma suspeita à qual nós próprios não atribuímos muita importância. Mais tarde, no entanto, sucede algo que nos revela quão acertada fora nossa interpretação. Certa vez fui hóspede de um jovem casal recém-casado e ouvi a jovem senhora descrever, com risos, sua última experiência. No dia após o regresso da lua-de-mel, convidara sua irmã solteira para acompanhá-la às compras, como costumava fazer, enquanto seu marido ia para o trabalho. De repente, reparou em um cavalheiro no outro lado da rua, e, cutucando sua irmã, exclamou: ‘Olha, aí vai Herr L.’ Ela se havia esquecido de que esse cavalheiro era seu marido há algumas semanas. Estremeci quando ouvi a história, contudo não ousei tirar uma conclusão. O pequeno incidente só acudiu à minha memória alguns anos depois, quando o casamento havia chegado a um triste fim.

Maeder conta-nos de uma senhora que, na véspera de suas núpcias, se esquecera de provar o vestido de casamento e, para desespero de seu costureiro, apenas se lembrou quando já era tarde, à noite. Correlaciona essa negligência com o fato de que ela em breve se divorciava de seu marido. Conheço uma senhora, atualmente divorciada de seu marido, a qual, ao tratar de assuntos de dinheiro, freqüentemente assinava documentos com seu nome de solteira, muitos anos antes de o reassumir de fato. — Sei de outras mulheres que perderam suas alianças de casamento durante a lua-de-mel, e também que a história de seus casamentos conferiu um sentido ao acidente. — E agora, eis mais um exemplo evidente, porém com um final mais feliz. Conta-se essa história de um famoso químico alemão, cujo casamento não se realizou porque ele se esqueceu da hora da cerimônia nupcial, tendo ido ao laboratório em vez de ir à igreja. Foi muito prudente por se haver contentado com uma só tentativa; morreu em avançada idade, solteiro.

Talvez possa ter ocorrido aos senhores a idéia de que, nesses exemplos, as parapraxias assumiram o lugar dos presságios ou dos augúrios dos antigos. E, com efeito, alguns presságios nada mais eram que parapraxias, como, por exemplo, quando alguém tropeçava ou caía. Outros, é verdade, tinham o caráter de acontecimentos objetivos e não de atos subjetivos. Os senhores, contudo, dificilmente acreditariam quão difícil, às vezes, é decidir se determinado evento pertence a um ou a outro grupo. Um ato muito amiúde sabe como se disfarçar como uma experiência passiva.

Aqueles dentre nós que podem recordar uma experiência de vida comparativamente longa, provavelmente admitirão que nos teríamos poupado muitos desapontamentos e surpresas dolorosas se tivéssemos encontrado coragem e determinação para interpretar como augúrios pequenas parapraxias experimentadas em nossos contatos humanos, e para fazer uso delas como indícios de intenções que ainda estavam ocultas. Via de regra, não ousamos fazê-lo; isso nos levaria a sentir-nos como se, após uma jornada através da ciência, estivéssemos ficando supersticiosos novamente. Nem todos os augúrios se realizam e os senhores compreenderão, a partir de nossas teorias, que nem todos precisam realizar-se.

 

CONFERÊNCIA IV - PARAPRAXIAS (conclusão)

 

SENHORAS E SENHORES:

Podemos considerar como resultado de nossos esforços até agora desenvolvidos e como base de nossas ulteriores investigações o fato de as parapraxias terem um sentido. Permitam-me mais uma vez insistir em que não estou afirmando — para nossos objetivos não há necessidade de fazê-lo — que toda parapraxia que ocorre individualmente tem um sentido, embora eu pense que provavelmente seja esse o caso. Já nos satisfaz mostrarmos esse sentido em um número relativamente freqüente de diferentes formas de parapraxias. Ademais, a esse respeito as diferentes formas aqui mencionadas se comportam de modo diverso. Casos de lapsos de língua e de lapsos de escrita, e outros, podem ocorrer mediante uma causa puramente fisiológica. Não posso acreditar que isso ocorra nos tipos que dependem de esquecimento (esquecimento de nomes ou de intenções, extravios, etc.). É muito provável haver casos de perda que podem ser considerados como não-intencionados. De um modo geral, é verdade que apenas uma parcela dos erros que ocorrem na vida comum, pode ser julgada segundo nosso ponto de vista. Os senhores devem ter em mente essas limitações quando, de ora em diante, dermos por estabelecido o fato de que as parapraxias são atos psíquicos e surgem de mútua interferência entre duas intenções.

Esse é o primeiro produto da psicanálise. A psicologia, até o momento atual, nada sabia da existência dessas interferências recíprocas ou da possibilidade de que pudessem resultar em tais fenômenos. Ampliamos consideravelmente o mundo dos fenômenos psíquicos e conquistamos para a psicologia fenômenos que anteriormente não eram nele incluídos.

Façamos uma pausa mais detida sobre a afirmação de que as parapraxias são ‘atos psíquicos’. Será que isso envolve uma coisa além daquilo que já dissemos: que elas possuem um sentido? Penso que não. Penso, antes, que a afirmação anterior [de que são atos psíquicos] é mais indefinida e mais facilmente passível de compreensão errônea. Tudo o que é observável na vida mental pode ocasionalmente ser descrito como fenômeno mental. A questão, nesse caso, é saber se o fenômeno mental específico teve origem imediata em influências somáticas, orgânicas e materiais — e, assim, sua investigação não fará parte da psicologia — ou se ele, em primeira instância, deriva de outros processos mentais, em alguma parte além daquela onde começa a série das influências orgânicas. É essa última situação que temos em vista quando descrevemos um fenômeno como processo mental, sendo por isso mais adequado encerrar nossa afirmação desta forma: ‘o fenômeno tem um sentido’. Por ‘sentido’ entendemos ‘significação’, ‘intenção’, ‘propósito’ e ‘posição em um contexto psíquico contínuo’. [ver em [1]]

Existem inúmeros outros fenômenos muito semelhantes às parapraxias; para eles, porém, esse nome não mais se ajusta. Nós os denominamos ações casuais e ações sintomáticas. Estas possuem igualmente a peculiaridade de não ter motivo, serem insignificantes e não importantes; contudo, têm um acréscimo, explicitamente o de serem desnecessárias. Distinguem-se das parapraxias porque lhes falta uma segunda intenção capaz de lhes fazer oposição e de ser perturbada por elas. Por outro lado, elas se confundem insensivelmente com os gestos e movimentos que consideramos expressões das emoções. Essas ações casuais incluem toda classe de manipulações com nossas roupas ou com partes de nosso corpo ou com objetos ao nosso alcance, executadas como que por brincadeira e aparentemente sem finalidade, e incluem, ademais, a omissão dessas manipulações; ou, além disso, melodias que murmuramos para nós mesmos. Penso que todos esses fenômenos têm um sentido e podem ser interpretados da mesma forma como as parapraxias, que eles são pequenas indicações de processos mentais mais importantes e atos psíquicos inteiramente válidos. Não me proponho, contudo, demorar-me sobre essa recente expansão do campo dos fenômenos mentais; voltarei às parapraxias, em relação às quais importantes problemas para a psicanálise podem ser equacionados com muito maior clareza.

Talvez sejam essas as questões mais interessantes que levantamos a respeito das parapraxias e que ainda não foram respondidas. Dissemos serem as parapraxias o produto de mútua interferência entre duas intenções diferentes, das quais uma pode ser chamada de intenção perturbada e a outra, intenção perturbadora. As intenções perturbadas não ensejam outras questões, porém no que se refere às intenções perturbadoras gostaríamos de saber: em primeiro lugar, que espécie de intenções são essas capazes de perturbar outras, e, em segundo lugar, qual é a relação das intenções perturbadoras com as perturbadas?

Se me permitem, mais uma vez tomarei lapsos de língua como representantes da classe inteira, e responderei à segunda questão antes de responder à primeira.

Em um lapso de língua a intenção perturbadora pode, em seu conteúdo, custar relacionada à intenção perturbada, caso em que ela a contradiz, corrige ou suplementa. Ou então — caso esse mais obscuro e mais interessante — o conteúdo da intenção perturbadora pode não ter nada a ver com o conteúdo da intenção perturbada.

Não teremos qualquer dificuldade em encontrar provas da relação citada em primeiro lugar, em exemplos que já conhecemos e em outros parecidos. Em quase todos os casos nos quais um lapso de língua inverte o sentido, a intenção perturbadora expressa o contrário da intenção perturbada, e a parapraxia representa um conflito entre duas tendências incompatíveis. ‘Declaro aberta a sessão, porém preferiria que já estivesse encerrada’ é o sentido do lapso de língua do presidente [ver em [1]]. Uma revista política, acusada de corrupção, se defende em um artigo cujo clímax deveria ter sido: ‘Nossos leitores serão testemunhas do fato de que sempre agimos da maneira mais desinteressada, pelo bem da comunidade.’ O editor a quem fora confiada a preparação do artigo, porém, escreveu ‘da maneira mais interesseira‘. Quer dizer, ele estava pensando: ‘Isso é o que estou obrigado a escrever; porém, tenho idéias diferentes.’ Um membro do parlamento [alemão], que insistia em que se devia dizer a verdade ao imperador ‘rückhaltlos [sem reservas]’, evidentemente ouviu uma voz interior, sobressaltada com sua ousadia e, por um lapso de língua, mudou a palavra para ‘rückgratlos [sem espinha dorsal, sem coragem]’.

Nos exemplos já conhecidos dos senhores, os quais dão uma impressão de serem contrações ou abreviações, o que temos diante de nós são correções, acréscimos ou continuações, por meio dos quais uma segunda intenção se faz sentir ao lado da primeira. ‘Os fatos vieram a Vorschein [a luz] — melhor dizer de uma vez: eram Schweinereien [porcarias]; pois bem, então os fatos vieram a Vorschwein [ver em [1]].’ ‘Os que entendem disso podem ser contados nos dedos de uma mão — não, existe realmente apenas uma pessoa que entende disso: portanto, pode ser contada em um só dedo [ver em [1]].’ Ou: ‘Meu marido pode comer e beber o que quer. Mas, como sabem, eu não me submeto à sua vontade em nada, absolutamente; então: ele pode comer e beber o que eu quero [ver em [1]].’ Em todos esses casos o lapso de língua surge, pois, do conteúdo da própria intenção perturbada ou está em conexão com ela.

A outra espécie de relação entre as duas intenções mutuamente interferentes parece enigmática. Se a intenção perturbadora não tem nada a ver com a intenção perturbada, de onde pode ter-se originado e por que se faz notar como uma perturbação nesse determinado ponto? A observação, que por si só é capaz de dar-nos a resposta para isso, mostra que a perturbação surge de uma seqüência de idéias que pouco antes se apossou da pessoa referida, e produz esse efeito subseqüente havendo ou não já sido expressa no discurso. Portanto, na realidade deve ser descrita como uma perseveração, embora não necessariamente como a perseveração das palavras faladas. Também nesse caso está presente um elo associativo entre as intenções perturbadora e perturbada, porém não é situado em seu conteúdo, e sim construído artificialmente, muitas vezes através de vias associativas extremamente tortuosas.Aqui está um exemplo simples desse aspecto, derivado de minha própria experiência. Certa vez encontrei nas aprazíveis Dolomitas duas senhoras vienenses vestidas em trajes de passeio. Acompanhei-as parte do caminho e conversamos sobre as delícias e, também, as atribulações de passar um feriado daquela maneira. Uma das senhoras admitiu que passar assim o dia tinha como conseqüência uma boa dose de desconforto. ‘Certamente, não é de todo agradável’, dizia, ‘quando se esteve o dia inteiro perambulando ao sol e transpirando até pela blusa e a camisa.’ Nesta frase, ela teve de vencer uma leve hesitação em determinado ponto. E prosseguiu: ‘Mas então, quando se vai “nach Hose” e se pode mudar….’ Esse lapso de língua não foi analisado, contudo espero que possam compreendê-lo facilmente. A intenção da senhora fora obviamente a de dar uma lista mais completa de suas roupas: blusa, camisa e Hose [calças]. Razões de decoro levaram-na a omitir qualquer menção às ‘Hose‘. Porém na frase seguinte, com seu conteúdo bastante independente, a palavra não dita emergiu como uma distorção da outra de som semelhante, ‘nach Hause [para casa]’.

Agora, porém, podemos voltar à questão principal, que por muito tempo adiamos: que espécie de intenções são essas, que encontram expressão nessa forma incomum como perturbadoras de outras intenções? Bem, evidentemente elas são de espécies muito diferentes, entre as quais devemos procurar o fator comum. Com isso em mente, se examinarmos determinado número de exemplos, esses logo se enquadrarão em três grupos. O primeiro grupo contém aqueles casos nos quais a intenção perturbadora é do conhecimento de quem fala e, além disso, foi por este percebida antes de cometer o lapso de língua. Assim, no lapso do ‘Vorschwein‘ [ver em [1]] a pessoa que falava admitiu não somente haver feito o julgamento ‘Schweinereien’/’ sobre os fatos em questão, mas também admitiu que tivera a intenção, da qual depois recuou, de expressar seu julgamento em palavras. Um segundo grupo é formado por outros casos nos quais a intenção perturbadora é igualmente reconhecida como tal pela pessoa que fala; porém, nestes casos, a pessoa não se apercebia de que a intenção estava atuando dentro dela tão logo acabou de cometer o lapso. Desse modo, ela aceita nossa interpretação de seu lapso; ainda assim, permanece surpresa com o mesmo. Exemplos desse tipo de atitude talvez possam ser encontrados em outras espécies de parapraxias, mais facilmente do que nos lapsos de língua. Em um terceiro grupo, a interpretação da intenção perturbadora é vigorosamente rejeitada por aquele que incorreu no lapso; não apenas nega que essa intenção estava atuante nele antes de cometer o lapso, mas procura sustentar a afirmação de que tal intenção lhe é inteiramente estranha. Recordam-se do exemplo do ‘arroto’ [ver em [1] e [2]] e da vigorosa contestação que me foi apresentada pelo orador, pelo fato de eu revelar sua intenção perturbadora. Como os senhores sabem, até agora, em nossas opiniões, ainda não chegamos a um acordo a respeito desses casos. Eu não daria maior importância à contestação formulada pelo proponente do brinde e persistiria serenamente em minha interpretação, ao passo que os senhores; suponho, ainda afetados pelo protesto daqueles, levantam a questão de saber se não deveríamos desistir de interpretar parapraxias dessa espécie e considerá-las como atos puramente fisiológicos, no sentido pré-analítico. Bem posso imaginar que coisa os intimida. Minha interpretação abriga a hipótese de que, quando uma pessoa fala, podem ser expressas intenções das quais ela própria nada sabe e que eu, contudo, posso inferir a partir de provas circunstanciais. Os senhores se detêm ao arrostar essa hipótese nova e momentosa. Posso entender isso e lhes dou razão nesse ponto. No entanto, uma coisa é certa. Se os senhores querem aplicar coerentemente a compreensão das parapraxias, confirmada por tantos exemplos, terão de se decidir a aceitar a estranha hipótese que mencionei. Caso não possam fazê-lo, mais uma vez precisarão abandonar o entendimento das parapraxias, que os senhores vêm de adquirir.

Consideremos, por um momento, que coisa é essa que une os três grupos, o que é aquilo que os três mecanismos dos lapsos de língua têm em comum. Isso, felizmente, é um fato inequívoco. Nos dois primeiros grupos, a intenção perturbadora é reconhecida pela pessoa que comete o lapso; ademais, no primeiro grupo essa intenção se revela imediatamente antes do lapso. Porém, em ambos os casos, ela é repelida. O orador decide não expressá-la verbalmente e, após isso, ocorre o lapso de língua: após isso, quer dizer, que a intenção, que foi repelida, é expressa em palavras, contra a vontade de quem fala, seja alterando a expressão da intenção permitida, seja confundindo-se com essa expressão, ou realmente tomando seu lugar. Este é, pois, o mecanismo do lapso de língua.

Em minha opinião, posso fazer com que aquilo que acontece no terceiro grupo se harmonize completamente com o mecanismo que descrevi. Apenas tenho de supor ser o diferente grau em que a intenção é repelida, aquilo que distingue esses três grupos um dos outros. No primeiro grupo a intenção existe e se faz notar antes de o orador expressá-la; só então é rejeitada; e faz sua desforra no lapso de língua. No segundo grupo a rejeição vai além: a intenção já deixou de ser perceptível antes de a pessoa expressá-la no lapso. De modo muito estranho, isso absolutamente não impede que ela tenha sua parte na causa do lapso. Essa conduta, porém, nos facilita a explicação do que acontece no terceiro grupo. Eu me aventuraria a supor que uma intenção também possa conseguir expressar-se em uma parapraxia quando foi repelida e não foi percebida durante um tempo considerável, talvez por um tempo muito longo: e pode, por essa razão, ser negada francamente pelo orador. Conquanto os senhores ponham de lado o problema do terceiro grupo, não podem deixar de concluir, a partir das observações que fizemos nos outros casos, que a supressão da intenção de alguém que fala, de dizer algo, é a condição indispensável para que ocorra um lapso de língua.

Agora podemos pretender havermos feito maiores progressos em nossa compreensão das parapraxias. Sabemos não apenas que elas são atos mentais nos quais podemos detectar sentido e intenção, sabemos não apenas que acontecem por mútua interferência entre duas intenções diferentes; porém, além disso, sabemos que uma dessas intenções deve ter sido, de alguma forma, coagida a não ser posta em execução antes de poder manifestar-se como uma perturbação da outra intenção. Deve ter sido perturbada, antes de poder ser um elemento perturbador. Isso não significa, naturalmente, que já tenhamos conseguido uma completa explicação dos fenômenos que denominamos parapraxias. Vemos aflorarem imediatamente novas interrogações, e geralmente suspeitamos que, quanto mais se estende nossa compreensão, mais ocasiões haverá para surgirem novas questões. Podemos perguntar, por exemplo, da razão por que as coisas não poderiam ser mais simples. Se o propósito é repelir determinada intenção, em vez de colocá-la em execução, o ato de repelir deveria ser bem-sucedido, de modo que a intenção absolutamente não se manifestasse; ou, por outro lado, a repulsa poderia falhar, de forma que a intenção que devia ter sido repelida se manifestaria completamente. As parapraxias, porém, são o resultado de um acordo: constituem um meio-êxito e um meio-fracasso para cada uma das duas intenções; a intenção que está sendo desafiada não é completamente suprimida, salvo em casos especiais, nem é levada a cabo em sua íntegra. Podemos concluir que determinadas condições especiais devem prevalecer para que uma interferência ou ajuste desse tipo aconteçam; no entanto, não podemos formar nenhuma idéia sobre que condições são essas. E não penso que poderíamos descobrir esses fatores desconhecidos penetrando mais a fundo no estudo das parapraxias. Será necessário, isto sim, examinar primeiramente outras regiões obscuras da vida mental: somente a partir das analogias que aí obtivermos, encontraremos a coragem de estabelecer as hipóteses necessárias para lançar uma luz mais penetrante sobre as parapraxias. E acrescento mais uma coisa. Trabalhar com base em pequenos indícios, como constantemente temos o hábito de fazer nessa área, tem seus próprios perigos. Existe uma doença mental, a ‘paranóia combinatória’, na qual a exploração de pequenos indícios como esses é levada a graus ilimitados; e, naturalmente, não pretendo afirmar que as conclusões construídas sobre tais fundamentos sejam invariavelmente corretas. Podemos tão-somente nos precaver desses riscos pela ampla base de nossas observações, pela repetição de impressões semelhantes originárias das mais variadas esferas da vida mental.

Nesse ponto, portanto, vamos abandonar a análise das parapraxias. Existe, contudo, mais um ponto para o qual chamaria a atenção dos senhores. Eu lhes pediria que fixassem na memória, como um modelo, a maneira como temos tratado esses fenômenos. Os senhores podem aprender desse exemplo quais os objetivos de nossa psicologia. Buscamos não apenas descrever e classificar fenômenos, mas entendê-los como sinais de uma ação recíproca de forças na mente, como manifestação de intenções com finalidade, trabalhando concorrentemente ou em oposição recíproca. Interessa-nos uma visão dinâmica dos fenômenos mentais. Em nossa opinião, os fenômenos que são percebidos devem ceder lugar, em importância, a tendências que são apenas hipotéticas.

Por conseguinte, não nos aprofundaremos mais nas parapraxias; contudo, ainda podemos realizar um rápido reconhecimento da extensão dessa área, no decorrer do qual mais uma vez encontramos coisas que já conhecemos, mas que também revelarão algumas novidades. Nesse reconhecimento, manterei a divisão em três grupos que propus inicialmente: lapsos de língua reunidos, com suas formas cognatas (lapsos de escrita, lapsos de leitura e lapsos de audição); esquecimento, subdividido segundo os objetos de esquecimento (nomes próprios, palavras estrangeiras, intenções e impressões); e atos descuidados, extravio e perda. Os erros, no aspecto que nos interessa, situam-se, em parte, entre os esquecimentos e, em parte, nos atos descuidados.

Já abordamos bastante detalhadamente os lapsos de língua, contudo existem mais alguns pontos a acrescentar. Os lapsos de língua são acompanhados por determinados fenômenos emocionais menores, não de todo destituídos de interesse. Ninguém aprecia cometer lapsos de língua e assiduamente deixamos de ouvir nossos próprios lapsos, embora jamais deixemos de ouvir os de outras pessoas. Os lapsos de língua também são, em certo sentido, contagiosos; absolutamente não é fácil falar sobre lapsos de língua sem cometer alguns lapsos de língua próprios. As formas mais triviais desses lapsos, precisamente aquelas não consignadas a projetar uma luz especial sobre os processos mentais ocultos, possuem razões que, não obstante, não são difíceis de discernir. Por exemplo, se alguém pronunciou com emissão breve uma vogal longa, em virtude de um distúrbio que afeta a palavra por uma ou outra razão, logo após pronunciará como longa uma vogal subseqüente breve, cometendo assim um novo lapso de língua para compensar o anterior. Da mesma forma, se a pessoa pronuncia um ditongo incorreta e descuidadamente (por exemplo, pronunciar um ‘eu‘ ou ‘i como ‘ei‘), procurará compensar isso trocando um ‘ei‘ subseqüente por um ‘eu‘ ou ‘oi‘. Aqui, o fator decisivo parece ser uma consideração para com a impressão causada nos ouvintes; estes não deveriam supor que, para o orador, é indiferente a maneira como trata sua língua-mãe. A segunda distorção, a que compensa a primeira, realmente tem o propósito de dirigir a atenção do ouvinte para a primeira e de lhe assegurar que o orador também a percebeu. Os lapsos de língua mais comuns, simples e triviais são contrações e antecipações [ver em [1] e [2]] ocorrentes em partes insignificantes do falar. Por exemplo, em uma frase um tanto longa pode-se cometer um lapso de língua que antecipa a última palavra do que se pretende dizer. Isso causa uma impressão de impaciência por ver terminada a frase, e em geral constitui evidência de uma certa antipatia contra o ato de comunicar a frase, ou contra o todo do comentário que se está fazendo. Chegamos, assim, a casos marginais em que as diferenças entre a opinião psicanalítica a respeito de lapsos de língua e a opinião fisiológica comum se fundem uma na outra. É de supor que, nestes casos, esteja presente um propósito de perturbar a intenção do discurso, porém tal propósito apenas consegue fazer notar sua presença e não aquilo a que ele próprio visa. A perturbação que ele produz se faz então segundo certas influências fonéticas ou atrações associativas; pode ser considerada resultado de a atenção ter sido desviada da intenção do discurso. Contudo, nem essa perturbação da atenção nem as tendências à associação que se tornaram atuantes, atingem a essência do processo. Este, apesar de tudo, se mantém como a indicação da existência de uma intenção que é perturbadora da intenção do discurso, embora a natureza dessa intenção perturbadora não possa ser avaliada a partir de suas conseqüências, conforme é possível fazê-lo em todos os casos de lapsos de língua mais bem definidos.

Os lapsos de escrita, aos quais passaremos agora, são tão afins dos lapsos de língua, que nada de novo podemos esperar deles. Talvez possamos acrescentar algum pequeno ponto adicional. Os pequenos lapsos de escrita, extremamente comuns, contrações e antecipações de palavras que deveriam vir depois (especialmente de palavras do fim de frases) indicam, mais uma vez, um desprazer geral de escrever e impaciência por ver o trabalho terminado. Determinados produtos mais marcantes de lapsos de escrita possibilitam reconhecer a natureza e o objetivo da intenção perturbadora. Ao encontrar um lapso de escrita em uma carta, sabe-se geralmente que havia algo de diferente com seu autor, porém não se pode sempre descobrir o que se passava com ele. Um lapso de escrita passa despercebido da pessoa responsável, com a mesma freqüência com que sucede com os lapsos de língua. A seguinte observação é digna de nota. Como sabemos, há pessoas que tem o hábito de reler todas as cartas que escrevem, antes de enviá-las. Outras, não, via de regra; porém, quando excepcionalmente o fazem, sempre encontram alguns lapsos de escrita que chamam a atenção e que elas podem corrigir, então. Como se explica isso? É como se essas pessoas soubessem que haviam cometido um erro ao escrever a carta. Podemos realmente acreditar nesse fato?

Um problema interessante diz respeito à importância prática dos lapsos de escrita. Os senhores certamente podem recordar o caso de um assassino, H., que encontrou os meios de obter de instituições científicas culturas de bactérias patogênicas altamente perigosas, apresentando-se como bacteriologista. Usou, então, essas culturas com a finalidade de se desfazer de suas ligações próximas através desse método moderníssimo. Ora, certa ocasião esse homem se queixou aos diretores de um desses institutos que as culturas a ele enviadas eram ineficazes; porém cometeu um lapso de escrita e, em vez de escrever ‘em meus experimentos com camundongos ou porquinhos-da-índia’, escreveu muito claramente‘em meus experimentos com homens’. Os cientistas do instituto ficaram chocados com o lapso, contudo, pelo que sei, daí não tiraram qualquer conclusão. Pois bem, o que pensam os senhores? Não deveriam os cientistas, pelo contrário, ter tomado o lapso de escrita como uma confissão e iniciado uma investigação que teria posto um fim imediato às atividades do assassino? Por ignorarem nossas opiniões sobre parapraxias, não foram responsáveis, nesse caso, por uma omissão de importância prática? Ora, penso que um lapso de escrita como esse deveras me pareceria muito suspeito; porém algo de grande importância se opõe a que seja qualificado como confissão. O assunto não é tão simples assim. O lapso certamente era uma prova circunstancial; mas não era suficiente, por si mesmo, para dar início a uma investigação. É verdade que o lapso de escrita disse que ele estava ocupado com idéias de infectar pessoas, entretanto não tornou possível decidir se essas idéias deveriam ser tomadas como clara intenção de causar dano ou como uma fantasia sem importância prática. É mesmo possível que um homem que tivesse cometido um lapso como esse, teria todas as justificativas objetivas para negar a fantasia, e a repudiaria como algo inteiramente estranho para ele. Os senhores compreenderão ainda melhor essas possibilidades quando, mais adiante, viermos a considerar a diferença entre realidade psíquica e material. Assim, esse é mais um exemplo de parapraxia que adquire importância a partir de eventos subseqüentes [ver em [1] e seg., acima.]

Com os lapsos de leitura chegamos a uma situação psíquica que difere sensivelmente daquela encontrada em lapsos de língua ou em lapsos de escrita. Aqui, uma das duas intenções em mútua competição é substituída por uma estimulação sensorial e, talvez por isso, resiste menos. O que a pessoa vai ler não é um derivado de sua própria vida mental, como algo que se propõe escrever. Em grande número de casos, portanto, um lapso de leitura consiste em uma substituição completa. Substitui-se por outra a palavra que deve ser lida, sem haver necessariamente qualquer conexão de conteúdo entre o texto e o produto do lapso de leitura, o qual depende, via de regra, de semelhança verbal. O melhor exemplo desse grupo é o de Lichtenberg, ‘Agamemnon‘ por ‘angenommen‘ [ver em [1], acima]. Se quisermos descobrir a intenção perturbadora que produziu o lapso de leitura, devemos deixar inteiramente de lado o texto que foi lido erroneamente, e podemos começar a investigação analítica com duas perguntas: qual é a primeira associação ao produto do lapso de leitura? e em que situação ocorreu o lapso de leitura? Às vezes o conhecimento dessa situação é, por si só, suficiente para explicar o lapso de leitura. Por exemplo, um homem, sob a pressão de uma necessidade urgente, vagava por uma cidade estranha quando viu a palavra ‘Closet-House‘ numa grande tabuleta, no primeiro andar de um prédio. Mal teve tempo suficiente para se surpreender com o fato de a tabuleta estar colocada tão alta, quando descobriu que, estritamente falando, o que devia ter lido era ‘Corset-House‘. Em outros casos, um lapso de leitura, precisamente do tipo que é muito independente do conteúdo do texto, requer uma análise detalhada, impossível de se efetuar sem a prática da técnica de psicanálise e sem seu apoio. Como regra, entretanto, não é tão árduo encontrar a explicação para um lapso de leitura: a palavra substituída imediatamente revela, como no exemplo Agamemnon, o círculo de idéias do qual surgiu a perturbação. Na atual época de guerra, por exemplo, é coisa muito comum os nomes de cidades e de generais, e de termos militares, que estão constantemente zumbindo à nossa volta, serem lidos onde quer que nossos olhos encontrem palavras semelhantes. Tudo aquilo que nos interessa e nos preocupa se põe no lugar do que é estranho e ainda destituído de interesse. Imagens residuais de pensamentos [anteriores] perturbam novas percepções.

Com os lapsos de leitura, também, não faltam os casos de outra espécie, nos quais o texto daquilo que se lê desperta por si mesmo a intenção perturbadora, a qual de imediato o transforma em seu contrário. O que devíamos ler era alguma coisa de indesejado, e a análise nos convencerá de que um intenso desejo de rejeitar o que estávamos lendo deve ter sido responsável por sua alteração.

Nos casos mais freqüentes de lapsos de leitura, que mencionamos no início, inexistiam os dois fatores aos quais consignamos um importante papel no mecanismo das parapraxias: o conflito entre dois propósitos, e a repulsa a um deles, que faz sua represália produzindo a parapraxia. Não que algo em contrário ocorra no lapso de leitura. A proeminência da idéia que leva ao lapso de leitura é, contudo, muito mais perceptível do que a repulsa que essa idéia pode ter percebido previamente.

São esses dois fatores os que encontramos com mais evidência nas diferentes situações em que ocorrem parapraxias de esquecimento. O esquecimento de intenções é bem livre de ambigüidades, como já vimos [ver em [1]], sua interpretação não é objeto de controvérsias, nem mesmo por parte de leigos. O propósito que perturba a intenção é, em todos os casos, uma contra-intenção, uma relutância; e tudo o que nos resta saber a seu respeito é por que ele não se expressou em alguma forma diversa e menos disfarçada. No entanto, a presença dessa contravontade é inquestionável. Vez e outra também conseguimos entrever algo dos motivos que compelem essa contravontade a ocultar-se; agindo subrepticiamente por intermédio da parapraxia, ela sempre atinge seu objetivo, ao passo que seria seguramente repudiada se emergisse como franca oposição. Se alguma importante modificação na situação psíquica se realiza entre a formação da intenção e sua execução, em conseqüência do que não mais existe a cogitação de executar a intenção, então o esquecimento da intenção se exclui da categoria das parapraxias. Já não parece mais estranho havê-la esquecido e nos apercebemos de que teria sido desnecessário lembrarmo-nos dessa intenção; depois disso ela se extingue em forma permanente ou temporária. O esquecimento de uma intenção somente pode ser denominado parapraxia quando não pudermos acreditar que a intenção tenha sido interrompida desse último modo.

Os casos de esquecimento de uma intenção geralmente são tão uniformes e tão evidentes que, por essa mesma razão não interessam à nossa investigação. Assim mesmo, existem dois pontos em que algo de novo podemos aprender a partir de um estudo dessas parapraxias O esquecimento de uma intenção — isto é a omissão de executá-la — revela, como dissemos, uma contravontade que lhe é hostil. Sem dúvida, esse fato procede; nossas investigações, porém, mostram que a contravontade pode ser de dois tipos: direto e indireto. O que dou a entender com este último é ilustrado mais adequadamente com um ou dois exemplos. Se um benfeitor se esquece de interceder junto a uma terceira pessoa em benefício de seu protégé, isso pode acontecer porque não está realmente muito interessado no protégé e, portanto, não tem grande desejo de falar em benefício deste. De qualquer forma, é esse o modo como o protégé entenderá o esquecimento de seu protetor [ver em [1]]. Contudo, as coisas podem ser mais complexas. No protetor a contravontade, opondo-se à execução da intenção, pode ter outra origem e pode ser voltada em direção a um ponto bem diferente. Pode não ter nada a ver com o protégé, mas, talvez, pode ser dirigida contra a terceira pessoa junto a quem a recomendação devia ter sido feita. Assim, a partir disso os senhores mais uma vez verificam [ver em [1]] as dúvidas que se erguem como obstáculo a uma aplicação prática de nossas interpretações. Apesar da interpretação correta do esquecimento, o protégé corre o risco de ser demasiado desconfiado e de fazer grave injustiça ao seu protetor. Ou, suponhamos que alguém se esqueça de um compromisso que prometeu manter com alguma outra pessoa; a razão mais freqüente para isso será, sem dúvida, uma franca rejeição ao encontro com essa pessoa. Contudo, em um caso assim a análise poderia demonstrar que a intenção perturbadora não se referiu a essa pessoa, mas estava dirigida contra o lugar planejado para o encontro, e foi evitado por conta de uma lembrança desagradável referente ao lugar. Ou, ainda, se alguém se esquece de pôr uma carta no correio, o contrapropósito pode basear-se no conteúdo da carta; de modo algum, porém, se exclui a hipótese de a carta poder ser inocente em si mesma e poder apenas estar sujeita ao contrapropósito, de vez que algo referente a ela faz lembrar uma outra carta, escrita em alguma ocasião anterior, que ofereceu à contravontade um ponto direto de ataque. Pode-se dizer, portanto, que aqui a contravontade foi transferida da carta anterior que a justificou, à carta atual, em relação à qual não havia motivos de preocupação. Os senhores verificam, então, que devemos ser moderados e previdentes ao aplicar nossas interpretações, e isso se justifica: as coisas que são psicologicamente equivalentes podem, na prática, ter grande variedade de significados.

Fenômenos como esses últimos podem parecer muito inusitados para os senhores, e, talvez, se inclinarão a supor que uma contravontade indireta já indica tratar-se de um processo patológico. Posso assegurar-lhes, contudo, que ela ocorre também dentro dos limites do que é normal e sadio. Ademais, não devem me interpretar mal. Estou longe de admitir que nossas interpretações analíticas sejam indignas de confiança. As ambigüidades no esquecimento de intenções, que venho mencionando, existem apenas enquanto não tenhamos feito uma análise do caso e apenas quando fazemos nossas interpretações com base em nossas hipóteses gerais. Se efetuarmos uma análise na pessoa em questão, invariavelmente descobrimos com suficiente certeza se a contravontade é direta ou que outra origem possa ter.

O segundo ponto que tenho em mente [ver em [1]] é o seguinte: Se em uma grande maioria de casos encontramos confirmação do fato de que o esquecimento de uma intenção remonta a uma contravontade, podemos ousar estender a solução a um outro grupo de casos nos quais a pessoa em análise não confirma, e sim nega, a contravontade que inferimos. Tomem como exemplo disso eventos tão extremamente comuns como esquecer de devolver livros que se tomaram emprestados, ou de pagar contas ou dívidas. Com a pessoa em questão nos aventuraremos a insistir em que nela existe uma intenção de conservar consigo os livros e de não pagar as dívidas; a pessoa negará essa situação, porém não será capaz de fornecer qualquer outra explicação para sua conduta. Com isso, prosseguiremos dizendo-lhe que tem essa intenção, mas sem nada saber da mesma, embora para nós isso seja suficiente, porquanto nos revela a presença da intenção que origina nela o esquecimento. A pessoa pode repetir-nos que deveras se esqueceu. Agora reconhecerão a situação como uma tal em que nós mesmos anteriormente nos encontramos [ver em [1] e [2]]. Se quisermos prosseguir com nossas interpretações das parapraxias — tão freqüentemente comprovadas como acertadas — até uma conclusão coerente, somos compelidos à inevitável hipótese de que nas pessoas existem propósitos capazes de se tornar atuantes sem que elas saibam da existência deles. Isto, contudo, nos leva a contrariarmos todas as opiniões dominantes tanto na vida comum como na psicologia.

O esquecimento de nomes próprios e de nomes estrangeiros, tanto como o de palavras estrangeiras, pode semelhantemente ser rastreado até uma contra-intenção, que se volta, direta ou indiretamente, contra o nome em questão. Já lhes apresentei diversos exemplos de aversão direta [ver em [1] e [2]]. A causação indireta é, contudo, particularmente freqüente nesses casos e em geral apenas pode ser estabelecida por meio de análises cuidadosas. Por exemplo, durante a guerra atual, que nos obrigou a abandonar tantos dos nossos divertimentos anteriores, nossa capacidade de recordar nomes sofreu muito em conseqüência das mais estranhas associações. Há pouco tempo atrás verifiquei que eu era incapaz de reproduzir o nome de Bisenz, pacata cidade da Morávia; e a análise demonstrou que aquilo que era responsável pelo fato não era nenhuma hostilidade direta contra ela, senão sua similitude, no som, com o nome do Palazzo Bisenzi, em Orvieto, que tive o prazer de visitar repetidas vezes no passado. Aqui, pela primeira vez, descobrimos nessa razão de se opor à recordação de um nome, um princípio que depois irá revelar sua enorme importância na causação dos sintomas neuróticos: a memória tem aversão por recordar tudo que está em conexão com sentimentos de desprazer e com a reprodução daquilo que renova o desprazer. Essa intenção de evitar o desprazer, emergente da lembrança ou de outros atos psíquicos, essa fuga psíquica do desprazer, pode ser reconhecida como a causa atuante fundamental não apenas do esquecimento de nomes, mas também de muitas outras parapraxias, como as omissões, os erros, e assim por diante.O esquecimento de nomes, entretanto, parece ser sobremodo facilitado psicofisiologicamente e, por esse motivo, há casos em que não se pode confirmar a interferência de um motivo de desprazer. Se alguém tem determinada tendência para esquecer nomes, a investigação analítica mostrará que os nomes lhe fogem não apenas porque em si não os aprecia ou porque lhe lembram algo desagradável; porém, também porque nesse caso o nome pertence a outro círculo de associações com as quais a pessoa está mais intimamente relacionada. O nome está, digamos, ali ancorado e se mantém fora de contato com outras associações que foram momentaneamente ativadas. Se os senhores se recordarem dos truques mnemotécnicos verificarão, com certa surpresa, que as mesmas cadeias associativas, deliberadamente estabelecidas para evitar que nomes sejam esquecidos, também podem nos levar a esquecê-los. O mais notável exemplo desse fato é o que se refere aos nomes próprios de pessoas, os quais naturalmente possuem importância psíquica bastante diferente para diferentes pessoas. Para ilustrá-lo, tomemos um primeiro nome, como Teodoro. Para alguns dos senhores ele não terá qualquer significação especial; para outro, será o nome de seu pai, do irmão ou de um amigo, ou seu próprio nome. Assim, a experiência analítica lhes mostrará que a primeira dessas pessoas não corre nenhum risco de se esquecer de que algum estranho usa esse nome, ao passo que as outras terão constantemente a tendência de negar a estranhos um nome que lhes parece reservado a ligações íntimas. Ora, se os senhores considerarem que essa inibição associativa pode coincidir com a atuação do princípio de desprazer e, ademais, com um mecanismo indireto, estarão em condições de formar uma idéia adequada das complexidades existentes na causação do esquecimento temporário de um nome. Uma análise apropriada irá, porém, desemaranhar-lhes uma dessas meadas.

O esquecimento de impressões e de experiências demonstra, de forma muito mais clara e exclusiva do que o esquecimento de nomes, a atuação da intenção de manter coisas desagradáveis fora da memória. Naturalmente nem toda a área desse tipo de esquecimento se situa dentro da categoria das parapraxias, mas apenas casos tais como aqueles que, medidos pelo padrão de nossa experiência habitual, nos parecem admiráveis e inexplicáveis: por exemplo, quando o esquecimento atinge impressões que são muito recentes ou importantes, ou quando a lembrança perdida abre uma brecha naquilo que é, por seu lado, uma bem-memorizada cadeia de acontecimentos. Por que e de que modo somos capazes de esquecer em geral, e entre outras coisas esquecer experiências que certamente deixaram em nós uma impressão mais profunda, tal como os acontecimentos dos anos mais remotos de nossa infância — isso constitui outro problema no qual querer evitar impulsos desagradáveis desempenha determinado papel, e, contudo, está longe de constituir a explicação completa. É fato inequívoco que as impressões desagradáveis são facilmente esquecidas. Diversos psicólogos o observaram, e o grande Darwin se impressionava tanto com isso, que tornou ‘regra de ouro’ anotar com cuidado especial quaisquer observações que parecessem desfavoráveis à sua teoria, de vez que se havia convencido de que precisamente elas não permaneceriam em sua memória.

Uma pessoa que pela primeira vez ouve falar nesse princípio do afastamento de lembranças desagradáveis por meio do esquecimento, raramente deixa de objetar que, pelo contrário, em sua experiência as coisas aflitivas são especialmente difíceis de esquecer e insistem em retornar, contra sua vontade, a fim de atormentá-la: lembranças, por exemplo, de insultos e humilhações. Isso também é um fato verídico, contudo a objeção não procede. É importante e oportuno começar a levar em conta o fato de que a vida mental é a arena e o campo de batalha de intenções que se opõem reciprocamente ou, para dizê-lo de modo não-dinâmico, que se constitui de contradições e de pares de contrários. A prova da existência de determinado propósito não é argumento contra a existência de um propósito oposto; há lugar para ambos. É apenas uma questão de saber como se colocam esses contrários, um em relação ao outro, e que efeitos são produzidos por um e por outro.

Perda e extravio são de particular interesse para nós devido aos vários significados que podem ter — isto é, devido à multiplicidade das intenções que podem se servir dessas parapraxias. Todos os casos têm em comum o fato de ter existido um desejo de perder algo; diferem quanto à origem e quanto ao objetivo desse desejo. Perdemos uma coisa quando está gasta, quando pretendemos substituí-la por outra melhor, quando não gostamos mais dela, quando ela procedeu de alguém com quem não estamos nos relacionando bem, ou quando a adquirimos em circunstâncias que não desejamos mais rememorar. [ver em [1] e [2].] Deixar cair, danificar ou quebrar um objeto podem servir à mesma finalidade. Na esfera da vida social, segundo se diz, a experiência demonstrou que as crianças indesejadas e ilegítimas são muito mais frágeis do que aquelas concebidas legitimamente. Não é necessário atingir a crua técnica das criadeiras profissionais de crianças; para chegar a tal resultado, determinada dose de negligência no trato com as crianças deve ser suficiente. A preservação de coisas pode estar sujeita às mesmas influências que o cuidado com as crianças.

No entanto, as coisas podem ser condenadas a serem perdidas sem que seu valor tenha sofrido qualquer diminuição — isto é, quando há uma intenção de sacrificar algo ao Destino, a fim de se proteger de uma outra perda que se teme. A análise nos revela que entre nós ainda é muito comum exorcizar o Destino dessa maneira; e, assim, nossa perda muitas vezes é um sacrifício voluntário. Da mesma forma, a perda também pode servir à intenção de desafio ou autopunição. Para resumir, são incontáveis as mais remotas razões para a intenção de se desfazer de uma coisa por meio de sua perda.

Os atos descuidados, assim como outros erros, muitas vezes são usados para satisfazer desejos que uma pessoa deveria negar existirem em si própria. Neles a intenção se dissimula em um auspicioso acidente. Por exemplo, como aconteceu a um de meus amigos, um homem pode ser obrigado, obviamente contra sua vontade, a viajar de trem para visitar alguém perto da cidade em que vive, e em uma estação onde deve fazer baldeação então pode, por engano, embarcar num trem que o leva de volta ao local de onde veio. Ou alguém, numa viagem, pode estar desejoso de fazer uma parada em uma estação intermediária, porém estar impedido de fazê-lo devido a outras obrigações, podendo, assim, negligenciar ou perder uma conexão de modo que, em última análise, é obrigado a interromper sua viagem da maneira como queria. Ou o que sucedeu a um de meus pacientes: eu lhe havia proibido telefonar à moça de quem estava apaixonado, e quando quis telefonar para mim, pediu o número errado ‘por engano’ ou ‘enquanto estava pensando em alguma outra coisa’, e de repente se viu com o número do telefone da moça. Um bom exemplo de descuido cabal com repercussão prática é proporcionado pela observação feita por um engenheiro em seu relato dos fatos que antecederam um caso de danos materiais:

‘Há algum tempo atrás eu trabalhava com diversos estudantes no laboratório da escola técnica, numa série de complexas experiências sobre elasticidade, um trabalho que tínhamos assumido voluntariamente e, contudo, começava a exigir mais tempo de que prevíramos. Um dia, quando retornava ao laboratório com meu amigo F., este comentou como o aborrecia perder tanto tempo justamente naquele dia, quando tinha tantas outras coisas para fazer em casa. Não pude deixar de concordar com ele e, com algum gracejo, referindo-me a um acidente na semana anterior, acrescentei: “Esperemos que a máquina falhe novamente, pois assim poderemos parar com o trabalho e ir para casa cedo.”

‘Ao distribuir o trabalho, sucedeu que a F. coube a regulagem da válvula da prensa; isto é, estava incumbido de abrir cuidadosamente a válvula para deixar o fluido sob pressão sair lentamente do acumulador para o cilindro da prensa hidráulica. O homem que conduzia a experiência colocou-se junto ao manômetro e, quando se atingiu a pressão correta, ordenou em voz alta: “Pare!” À palavra de comando, F. agarrou a válvula e torceu-a com toda a força — para a esquerda! (Todas as válvulas, sem exceção, fecham-se girando para a direita.) Isso fez com que a pressão total do acumulador passasse subitamente para a prensa, um esforço para o qual não estavam destinados os canos de ligação, de forma que um desses canos imediatamente explodiu — um acidente bastante inócuo para a máquina, porém suficiente para nos obrigar a suspender o trabalho por esse dia e irmos para casa.

‘O surpreendente, aliás, é que, quando estávamos discutindo o caso algum tempo depois, meu amigo F. não tinha a mínima recordação de meu comentário, que eu recordava fielmente.’

Isso pode levar os senhores a suspeitar de que não é apenas um inocente acaso que transforma as mãos de nossas empregadas domésticas em perigosos inimigos de nossos objetos de casa. E os senhores também podem se perguntar se é obra do acaso quando as pessoas se machucam e arriscam sua própria segurança. Essas são noções cuja validade os senhores, surgindo a ocasião, podem se dedicar a comprovar analisando suas próprias observações.

Senhoras e senhores, isso está longe de ser tudo quanto se poderia dizer a respeito de parapraxias. Muita coisa resta a examinar e discutir. Fico, contudo, satisfeito se nossa discussão do assunto, até aqui, de certa forma agitou suas opiniões anteriores e os deixou um tanto mais preparados para aceitar outras, novas. Contento-me, de resto, com deixá-los defrontando-se com uma situação não esclarecida. Não podemos estabelecer nossas doutrinas a partir de um estudo das parapraxias, e não estamos obrigados a extrair nossas provas a partir apenas desse material. O grande valor das parapraxias para os objetivos que almejamos, consiste no fato de serem fenômenos muito comuns que, além de tudo, podem ser observados com facilidade em cada um, e ocorrer sem absolutamente implicar em doença. Existe apenas uma das questões dos senhores, não respondida, a qual eu, antes de terminar, gostaria de verbalizar. Conforme verificamos em muitos exemplos, se as pessoas chegam tão próximo de uma compreensão das parapraxias e tão amiúde se comportam como se apreendessem seu sentido, de que modo lhes é possível, não obstante, classificar esses fenômenos como sendo em geral eventos casuais, sem sentido nem significado, e poder opor-se tão vigorosamente à elucidação psicanalítica dessas mesmas parapraxias?

Os senhores têm razão. Esse é um fato notável e exige uma explicação. No entanto, não lhes darei tal explicação. Em vez disso, eu os levarei gradualmente a áreas de conhecimento a partir das quais a explicação irá se impor aos senhores, sem qualquer contribuição de minha parte.

 

PARTE II - SONHOS(1916 [1915-16])

 

CONFERÊNCIA V - DIFICULDADES E ABORDAGENS INICIAIS

 

SENHORAS E SENHORES:

Um dia descobriu-se que os sintomas patológicos de determinados pacientes neuróticos têm um sentido. Nessa descoberta fundamentou-se o método psicanalítico de tratamento. Acontecia que no decurso desse tratamento os pacientes, em vez de apresentar seus sintomas, apresentavam sonhos. Com isso, surgiu a suspeita de que também os sonhos teriam um sentido.

Não seguiremos, contudo, esse caminho histórico, e sim prosseguiremos na direção oposta. Demonstraremos o sentido dos sonhos como forma de preparação para o estudo das neuroses. Essa inversão se justifica, de vez que o estudo dos sonhos não apenas é a melhor preparação para o estudo nas neuroses, como também porque os sonhos, por si mesmos, são um sintoma neurótico que nos oferece, ademais, a inestimável vantagem de ocorrer em todas as pessoas sadias. Na verdade, supondo-se que todos os seres humanos fossem normais contanto que sonhassem, nós, partindo de seus sonhos, poderíamos chegar a quase todas as descobertas a que nos levou a investigação das neuroses.

Os sonhos, portanto, se tornaram tema de pesquisa psicanalítica: mais uma vez fenômenos comuns aos quais se tem atribuído pouco valor, e aparentemente sem nenhum uso prático — como as parapraxias, com as quais na realidade têm em comum o fato de ocorrerem em pessoas sadias. Afora isso, porém, as condições para nosso trabalho são aqui bem menos favoráveis. As parapraxias simplesmente tinham sido negligenciadas pela ciência, pouca atenção lhes havia sido dada; contudo, pelo menos não havia nenhum prejuízo em alguém se interessar por elas. ‘Sem dúvida’, dir-se-ia, ‘há coisas mais importantes. Alguma coisa no entanto talvez possa resultar daí.’ Ademais, alguém se interessar por sonhos não é apenas pouco prático e desnecessário; é positivamente ignominioso. Traz consigo a reprovação geral de não ser científico e desperta a suspeita de uma inclinação pessoal pelo misticismo. Imaginem um profissional da medicina dedicando-se a sonhos, quando há tantas coisas mais sérias, mesmo na neuropatologia e na psiquiatria: tumores da dimensão de maçãs comprimindo o órgão da mente, hemorragias, inflamação crônica, onde, em todos, as alterações dos tecidos podem ser demonstrados ao microscópio! Não, os sonhos são excessivamente triviais e indignos de ser objeto de pesquisa.

E existe algo mais que, por sua própria natureza, frustra os requisitos da pesquisa exata. Ao investigar os sonhos, nem mesmo se está seguro do objeto da pesquisa que se faz. Um delírio, por exemplo, apresenta-se de forma inequívoca e com seus contornos definidos. ‘Eu sou o imperador da China’, diz o paciente, sem qualquer dissimulação. Mas, sonhos? Via de regra, não se pode fazer nenhum relato de sonhos. Se alguém faz um relato de um sonho, existe alguma garantia de que seu relato foi correto, ou, pelo contrário, não poderia ter alterado seu relato à medida que o fazia e ter sido compelido a inventar algum acréscimo para compensar a obscuridade de suas recordações? A maioria dos sonhos não pode absolutamente ser lembrada e é esquecida, salvo pequenos fragmentos. E de que modo a interpretação de material desse tipo pode servir como base de uma psicologia científica ou como método de tratar pacientes?

Um excesso de críticas pode despertar nossas suspeitas. Essas objeções aos sonhos como objeto de pesquisa obviamente foram longe demais. Já tratamos da questão da não-importância em relação às parapraxias [ver [1] e seg.]. Dissemos que as grandes coisas podem ser reveladas através de pequenos indícios. No que concerne à sua indefinição — esta é uma característica dos sonhos, como outra qualquer: não podemos estabelecer para as coisas quais as características que devem ter. Aliás, também existem sonhos claros e distintos. Ademais, há outros assuntos de pesquisa psiquiátrica que padecem da mesma característica de indefinição — em muitos casos, por exemplo, as obsessões, e estas têm, em última análise, sido abordadas por psiquiatras respeitáveis e conceituados. Recordo-me do último desses casos que encontrei em minha atividade médica. Era uma paciente que se apresentou com estas palavras: ‘Tenho uma espécie de sentimento como se eu tivesse ferido ou desejasse ferir uma criatura viva — uma criança? — não, mais como se fosse um cachorro —, como se a tivesse jogado de uma ponte, ou alguma outra coisa.’ Podemos conseguir superar a deficiência da incerteza ao relembrar sonhos, se decidimos que deve ser considerado como sonho seu tudo aquilo que nos relata a pessoa que sonhou, sem levar em conta o que possa ter esquecido ou tenha alterado ao recordá-lo. E, finalmente, nem mesmo se pode continuar afirmando tão indiscriminadamente que os sonhos são coisas sem importância. Sabemos, por nossa própria experiência, que o estado de ânimo em que uma pessoa acorda de um sonho pode perdurar o dia inteiro; os médicos têm observado casos nos quais uma doença mental começou com um sonho e nos quais persistiu um delírio originário de um sonho; têm sido relatados casos de personagens históricos que, em resposta a sonhos, se aventuraram a importantes empreendimentos. Podemos, pois, indagar qual deve ser a verdadeira origem do desprezo no qual são mantidos os sonhos nos círculos científicos.

Acredito que se trata de uma reação contra a supervalorização dos sonhos em épocas antigas. A reconstrução do passado, como sabemos, é tarefa nada fácil, contudo podemos supor com certeza (se é que posso expressá-lo como brincadeira) que há três mil anos ou mais nossos ancestrais já tinham sonhos como os nossos. Até onde sabemos, todos os povos da Antigüidade atribuíram grande importância aos sonhos e pensavam que estes podiam ser usados para fins práticos. Deduziram a partir deles sinais para ler o futuro e neles procuravam os augúrios. Para os gregos e para outros povos orientais pode ter havido época em que as campanhas militares sem interpretadores de sonhos pareciam tão impossíveis, como nos dias atuais pareceria impossível uma campanha sem reconhecimento aéreo. Quando Alexandre Magno iniciou suas conquistas, seu séquito incluía os mais famosos interpretadores de sonhos. A cidade de Tiro, que naquele tempo ainda se erguia sobre uma ilha, ofereceu ao rei tão dura resistência que ele pensou na possibilidade de levantar o cerco. Então, uma noite, ele teve um sonho em que um sábio parecia dançar em triunfo; e quando o relatou a seus interpretadores de sonhos, estes o informaram de que o sonho predizia sua conquista da cidade. Ordenou um assalto e capturou Tiro. Entre os etruscos e os romanos estavam em uso outros métodos de prever o futuro; porém, durante todo o período helênico-romano, a interpretação de sonhos era praticada e altamente conceituada. Da literatura que trata do assunto, o principal trabalho pelo menos sobreviveu: o livro de Artemidoro de Daldis, que provavelmente viveu durante o período do imperador Adriano. Não sei dizer-lhes como aconteceu que, depois disso, a arte de interpretar sonhos sofreu um declínio e os sonhos caíram em descrédito. A difusão da instrução não pode ter tido muita coisa a ver com isso, porquanto muitas coisas mais absurdas do que a interpretação de sonhos da Antigüidade foram ciosamente preservadas nas trevas da Idade Média. Resta o fato de que o interesse pelos sonhos caiu gradualmente ao nível de superstição e pôde sobreviver apenas entre as classes não instruídas. O abuso final da interpretação de sonhos foi atingido em nossos dias com tentativas de descobrir, a partir dos sonhos, os números destinados a serem premiados no jogo do loto. Por outro lado, a ciência exata de hoje repetidamente se ocupou de sonhos, mas sempre com o único objetivo de aplicar a eles suas teorias fisiológicas. Os médicos, naturalmente, consideraram os sonhos como atos não-psíquicos, como a expressão, na vida mental, de estímulos somáticos. Binz (1878, [35]) enunciou que os sonhos são ‘processos somáticos, que em todos os casos são inúteis e, em muitos casos, positivamente patológicos, em relação aos quais a alma do universo e a imortalidade são tão excelsamente superiores como o céu azul sobre um areal plano infestado de ervas’. Maury [1878, 50] compara os sonhos aos desordenados movimentos da dança de São Vito, em contraste com os movimentos coordenados de um homem sadio. Consoante velha analogia, os conteúdos de um sonho são semelhantes aos sons produzidos quando ‘os dez dedos de um homem que nada sabe de música vagueiam sobre as teclas de um piano’ [Strümpell, 1877, 84].

Interpretar significa achar um sentido oculto em algo; naturalmente, não haverá como fazê-lo, se adotarmos essa última opinião sobre a função dos sonhos. Reparem na descrição dos sonhos feita por Wundt [1874], Jodl [1896] e outros filósofos mais recentes. Eles se contentam com enumerar os aspectos em que a vida onírica difere do pensamento desperto, sempre num sentido que deprecia os sonhos — enfatizando o fato de que as associações se rompem, que a faculdade de criticar deixa de funcionar, que todo o conhecimento é eliminado, bem como outros sinais de diminuição do funcionamento. A única contribuição de valor aos conhecimentos sobre sonhos, que temos a agradecer às ciências exatas, refere-se ao efeito produzido no conteúdo dos sonhos pelo impacto de estímulos somáticos durante o sono. Um autor norueguês, recentemente falecido, J. Mourly Vold, publicou dois alentados volumes de pesquisas experimentais sobre sonhos (edição alemã, 1910 e 1912), que se dedicam quase que exclusivamente às conseqüências das alterações na postura dos membros. Foram-nos recomendados como modelos de pesquisa exata sobre sonhos. Os senhores podem imaginar o que diria a ciência exata, se soubesse que desejamos fazer uma tentativa de descobrir o sentido dos sonhos? Talvez ela já o tenha dito. Porém não nos deixaremos atemorizar com isso. Se foi possível às parapraxias ter um sentido, os sonhos podem ter algum, também; e, em muitos e muitos casos, as parapraxias têm um sentido que à ciência exata passou despercebido. Assim, abracemos o preconceito dos antigos e do povo e sigamos as pegadas dos interpretadores de sonhos da Antigüidade.

Devemos começar por encontrar nossos propósitos na tarefa à nossa frente e fazer um reconhecimento geral do campo dos sonhos. Então, o que é um sonho? É difícil responder em uma só frase. Porém não tentaremos uma definição, quando só basta que se chame a atenção para algo que é conhecido de todos. Devemos, entretanto, pôr em evidência o aspecto essencial dos sonhos. Este, onde é que se pode encontrá-lo, porém? São tão grandes as diferenças dentro do âmbito em que se inscreve nosso assunto — diferenças em todas as direções. O aspecto essencial provavelmente será algo que podemos apontar como sendo comum a todos os sonhos.

A primeira coisa que é comum a todos os sonhos pareceria ser, naturalmente, o fato de que estamos dormindo durante os sonhos. O sonhar é, evidentemente, vida mental durante o sono — algo que tem certas semelhanças com a vida mental desperta, mas que, por outro lado, se distingue dela por grandes diferenças. Essa era, há muito tempo, a definição de Aristóteles. Talvez existam ainda conexões mais estreitas entre sonhos e sono. Podemos ser acordados por um sonho; muito freqüentemente temos um sonho quando acordamos espontaneamente ou quando somos tirados, à força, do sono. Assim, os sonhos parecem ser um estado intermediário entre o sono e a vigília. De modo que nossa atenção se volta para o sono. Bem, então, o que é o sono?

Esse é um problema fisiológico sobre o qual ainda existe muita controvérsia. Quanto a esse respeito não podemos chegar a qualquer conclusão; penso, porém, que devemos tentar descrever as características psicológicas do sono. O sono é um estado no qual não desejo saber de nada do mundo externo, um estado no qual retirei do mundo externo meu interesse. Ponho-me a dormir retraindo-me do mundo externo e mantendo afastados de mim seus estímulos. Também vou dormir quando estou fatigado dele. De modo que, quando vou dormir, digo ao mundo externo: ‘Deixe-me em paz; quero dormir.’ As crianças, ao contrário, dizem: ‘Eu não vou dormir agora; não estou cansado e quero ter mais algumas experiências.’ A finalidade biológica do sono parece ser, portanto, a recuperação, e sua característica psicológica a suspensão do interesse pelo mundo. Nossa relação com o mundo, ao qual viemos tão a contragosto, parece incluir também nossa impossibilidade de tolerá-lo ininterruptamente. Assim, de tempos em tempos nos retiramos para o estado de pré-mundo, para a existência dentro do útero. A todo custo conseguimos para nós mesmos condições muito parecidas com aquelas que então possuímos: calor, escuridão e ausência de estímulos. Alguns de nós se embrulham formando densa bola e, para dormir, assumem uma postura muito parecida com a que ocupavam no útero. Parece que o mundo não possui completamente sequer mesmo aqueles dentre nós que são adultos, mas apenas até os dois terços; um terço de nós ainda é como se não fora nascido. Cada vez que acordamos, pela manhã, é como que um novo nascimento. Com efeito, ao falar em nosso estado, após o sono, dizemos que nos sentimos como se tivéssemos acabado de nascer. (Ao dizer isso, aliás, estamos demonstrando o que provavelmente é uma suposição muito falsa acerca das sensações gerais de uma criança recém-nascida, que parece, ao contrário, se sentir provavelmente muito sem conforto.) Falamos também do nascer como ‘ver pela primeira vez a luz do dia’.

Se é isso o sono, os sonhos possivelmente não fazem parte do seu programa, parecendo, ao contrário, ser um indesejável acréscimo ao sono. Também, ao nosso ver, um sono sem sonhos é o melhor, o único apropriado. Não deveria existir qualquer atividade mental no sono; se este começa a ficar inquieto, é por que não conseguimos atingir o estado fetal de repouso: não fomos inteiramente capazes de evitar os remanescentes da atividade mental. Os sonhos consistiriam nesses remanescentes. Contudo, se fosse assim, realmente pareceria não haver necessidade de os sonhos terem algum sentido. Com as parapraxias era diferente; elas, afinal, eram atividades durante a vida desperta. Se, porém, estou dormindo e cessei minha atividade mental completamente, e simplesmente não consegui suprimir alguns resíduos dessa atividade, então não há necessidade alguma de esses resíduos terem algum sentido. Nem sequer posso fazer uso de um tal sentido, de vez que o restante de minha vida mental está dormindo. Assim, realmente só pode tratar-se de uma questão de reações, à maneira de ‘repuxões’, dos fenômenos mentais como resultado direto de um estímulo somático. Por conseguinte, os sonhos seriam remanescentes da atividade mental desperta, perturbadores do sonho, e faríamos bem em decidir abandonar de vez o assunto, por ser inadequado à psicanálise.

No entanto, ainda que os sonhos fossem supérfluos, eles existem e podemos tentar explicar sua existência. Por que a vida mental não consegue dormir? Provavelmente porque existe algo que não quer conceder paz à mente. Os estímulos incidem sobre a mente e ela deve reagir a eles. Um sonho, pois, é a maneira como a mente reage aos estímulos que a atingem no estado de sono. E nisso vemos uma via de acesso à compreensão dos sonhos. Podemos tomar diferentes sonhos e tentar descobrir qual o estímulo que procurou perturbar o sono, e contra o qual a reação foi um sonho. Nosso exame da primeira coisa que é comum a todos os sonhos, parece ter-nos levado até esse ponto.

Existe algo mais que é comum a todos eles? Sim, algo que é inconfundível, porém muito mais difícil de apreender e descrever. Os processos mentais no sono têm um caráter bastante diferente daqueles que se realizam em vigília. Nos sonhos experimentamos toda sorte de coisas e acreditamos nelas, ao passo que, não obstante, nada experimentamos, exceto talvez o estímulo perturbador isolado. Nós o experimentamos predominantemente sob a forma de imagens visuais; sentimentos também podem estar presentes, assim como pensamentos que nisso se entrelaçam. Os outros sentidos também podem experimentar algo; porém, mesmo assim, se trata principalmente de uma questão de imagens. Parte da dificuldade de fornecer uma descrição dos sonhos se deve ao fato de termos de traduzir essas imagens em palavras. ‘Eu poderia desenhá-lo’, diz-nos muitas vezes uma pessoa que sonhou, ‘mas não sei como dizê-lo.’ Não se trata, porém, de uma atividade mental reduzida, como a de uma pessoa oligofrênica comparada com a de um gênio: é qualitativamente diferente, embora seja difícil dizer onde está a diferença. G. T. Fechner [1860] certa vez exprimiu a suspeita de que o cenário da ação dos sonhos (na mente) fosse diferente daquele da vida ideativa desperta. Conquanto não o compreendamos e não saibamos o que fazer disso, na verdade reproduz a impressão de estranheza que a maioria dos sonhos nos causa. A comparação entre a atividade do sonho e os efeitos de uma mão não-musical no piano [ver em [1]] não nos auxilia nesse ponto. O piano, afinal de contas, responde com as mesmas notas, embora não com melodias, quando suas teclas são tocadas ao acaso. Guardemos cuidadosamente na memória essa segunda coisa comum a todos os sonhos, embora possamos não tê-la compreendido.

Existem mais outras coisas comuns a eles? Não posso descobrir nenhuma; não posso ver senão diferenças, em todos os aspectos: em sua duração aparente, assim como em sua clareza; na quantidade de afeto que os acompanha, na possibilidade de retê-los na memória, e assim por diante. Essa variedade não é realmente o que poderíamos esperar encontrar em uma simples reação defensiva a um estímulo, algo mecanicamente imposto, uma coisa vazia, como os repuxões da dança de São Vito. No que concerne às dimensões dos sonhos, alguns são muito curtos e compreendem apenas uma única imagem, ou umas poucas imagens, um único pensamento, ou mesmo uma única palavra; outros são extraordinariamente ricos em seu conteúdo, apresentam novelas inteiras e parecem durar longo tempo. Há sonhos tão claros como a experiência vigil, tão claros que, bastante tempo após havermos acordado, não percebemos que eram sonhos; e outros existem que são indescritivelmente obscuros, vagos e borrados. Na realidade, em um mesmo sonho partes muito definidas podem se alternar com outras de uma vaguidade que mal se pode discernir. Há sonhos inteiramente plenos de sentido ou, pelo menos, coerentes, humorísticos mesmo, ou fantasticamente belos; outros, ademais, são confusos, imbecis por assim dizer, absurdos, muitas vezes positivamente loucos. Há sonhos que nos deixam praticamente frios e outros em que se manifestam afetos de todos os tipos — sofrimento a ponto de fazer chorar, ansiedade a ponto de nos acordar, surpresa, encantamento, etc. Os sonhos são, de hábito, esquecidos facilmente, após o despertar, ou podem perdurar através do dia, lembrados mais e mais indistintamente até o fim do dia; outros, ainda — por exemplo, sonhos da infância —, são tão bem preservados que, trinta anos após, permanecem na memória como se fossem experiência recente. Os sonhos, à semelhança de pessoas, podem aparecer somente em uma única ocasião para nunca mais, ou retornar na mesma aparência não modificada ou com pequenas dessemelhanças. Em suma, esse fragmento da vida mental durante a noite tem um imenso repertório à sua disposição; é capaz, de fato, de tudo aquilo que a mente cria no período diurno — e, contudo, jamais é a mesma coisa.

Poderíamos tentar explicar essas muitas variações dos sonhos supondo que correspondem a diferentes fases intermediárias entre o sono e a vigília, graus diferentes de sono incompleto. Está bem, mas se assim fosse, o valor, o conteúdo e a clareza de um produto onírico — e também a consciência de se tratar de um sonho — teriam de crescer naqueles sonhos em que a mente estava próxima do despertar; e não seria possível uma parte clara e racional de sonho ser seguida imediatamente de outra que é obscura e não tem sentido, e esta, por sua vez, ser acompanhada de outra parte de boa qualidade. A mente, por certo, não poderia modificar a profundidade de seu sono assim tão rapidamente. Logo, essa explicação não nos auxilia; não há como sair da dificuldade.

Por agora, deixaremos de lado o ‘sentido’ dos sonhos e tentaremos chegar a uma melhor compreensão dos mesmos a partir daquilo que verificamos terem eles em comum. Inferimos da relação entre os sonhos e o estado de sono que os sonhos são a reação a um estímulo que perturba o sono. Aprendemos que esse é também o único ponto no qual a psicologia experimental exata pode vir em nosso auxílio: fornece-nos provas de que os estímulos que incidem durante o sono fazem seu aparecimento nos sonhos. Muitas investigações desse tipo foram realizadas, sendo as mais recentes as de Mourly Vold, que já mencionei [ver em [1] e [2]]; e cada um de nós, sem dúvida, tem estado em condições de confirmar estes achados, a partir de observações pessoais. Selecionarei algumas das primeiras experiências. Maury [1878] realizou algumas experiências consigo próprio. Foi-lhe dado para cheirar um pouco de água de colônia, durante o sono. Sonhou que estava no Cairo, na loja de Johann Maria Farina, e houve mais algumas aventuras absurdas. Em outra ocasião, deram-lhe um leve beliscão no pescoço; sonhou que lhe era aplicado um cataplasma de mostarda e sonhou com um médico que o havia tratado quando era criança. Ou ainda, pingaram uma gota d’água em sua testa; estava na Itália, transpirava violentamente e bebia vinho branco de Orvieto.

O notável nesses sonhos produzidos experimentalmente será talvez mais visível ainda em outra série de sonhos produzidos por estímulos. São três sonhos relatados por um observador inteligente, Hildebrandt [1875], todos eles reações à campainha de um despertador:

‘Sonhei, então, que certa manhã de primavera eu saía a passeio e vagava pelos verdes campos até chegar a uma aldeia próxima, onde vi os aldeões, em suas melhores roupas, com seus livros de cânticos debaixo do braço, reunindo-se na igreja. Evidente! Era domingo e o culto do início da manhã logo estaria começando. Decidi assistir ao culto, mas, antes, eu estava um tanto acalorado de caminhar, entrei no cemitério que circundava a igreja, para refrescar. Enquanto lia algumas das lápides dos túmulos, ouvi o sineiro subindo a torre da igreja e, lá no alto, via agora o pequeno sino da aldeia, que logo daria o sinal para o início das devoções. Por um momento eu o vi pendente ali, sem movimento, depois começou a balançar, e subitamente seu repicar começou a soar claro e penetrante — tão claro e penetrante que pôs fim ao meu sono. Porém, o que estava soando era o despertador.

‘Aqui está outro exemplo. Era um dia claro de inverno e as ruas estavam cobertas de espessa camada de neve. Eu tinha decidido comparecer a uma festa, em viagem de trenó; contudo, tive de esperar por longo tempo até virem me dizer que o trenó estava à porta. E então se seguiram os preparativos para embarcar — a manta de pele estendida, o abrigo para os pés já colocado — e, por fim, estava sentado em meu lugar. Ainda assim, o momento da partida foi retardado, até que um puxão nas rédeas deu o sinal aos cavalos. De imediato partiram e, em sacudidas violentas, os cincerros do trenó romperam seu tilintar conhecido — deveras com tal violência que, num momento, a teia do meu sonho se havia rompido. E, uma vez mais, era apenas o som estridente do despertador.

‘E agora, um terceiro exemplo. Via uma empregada doméstica, com várias dúzias de pratos empilhados uns sobre os outros, andando pelo corredor que dava para a sala de jantar. A pilha de louça em seus braços me pareceu estar prestes a perder o equilíbrio. “Cuidado”, exclamei eu, “senão você vai deixar cair tudo.” Seguiu-se devidamente a inevitável resposta: ela estava acostumada àquela espécie de tarefa, e assim por diante. E, entrementes, meu olhar ansioso seguia a figura que avançava. Então — justamente como eu esperava — ela tropeçou na soleira e a frágil louça escapuliu e, numa verdadeira sinfonia de ruídos, espatifou-se em mil pedaços no chão. Mas, o barulho prosseguiu sem cessar, e logo não pareceu mais o ruído característico do espatifar de louças, transformando-se no som de uma campainha — e este som, como o meu eu (self) desperto agora percebia, era apenas o despertador desempenhando sua tarefa.’

Esses são sonhos muito bonitos, inteiramente plenos de sentido e pelo menos não tão incoerentes como costumam ser os sonhos. Não estou fazendo objeção a eles, a esse respeito. O que eles têm em comum é a situação, em cada caso, terminar com um barulho que, quando o sonhador acorda, é reconhecido como sendo causado pelo despertador. Assim, vemos aqui como se produz um sonho; aprendemos, porém, algo mais que isso. O sonho não reconhece o despertador — e sequer este aparece no sonho — mas substitui o ruído do despertador por outro; interpreta o estímulo que está pondo fim ao sono, contudo o interpreta de forma diferente em cada uma das vezes. Por que faz isso? Não há resposta; parece questão de capricho. Compreender o sonho significaria poder dizer por que esse determinado ruído, e não outro, foi escolhido para interpretar o estímulo proveniente do despertador. Objeção análoga podemos fazer às experiências de Maury: podemos verificar bem claramente que o estímulo incidente aparece no sonho: porém, por que teve de tomar essa forma particular, isso não nos é dito, e não parece em absoluto ser devido à natureza do estímulo que perturbou o sono. Nas experiências de Maury geralmente aparece também uma série de outros materiais dos sonhos, que se juntam ao efeito direto do estímulo — por exemplo, as aventuras absurdas no sonho da água de colônia —, que não podem encontrar explicação.

E agora considerem que os sonhos do despertar oferecem a melhor oportunidade de estabelecer a influência dos estímulos externos perturbadores do sono. Em muitos outros casos será mais difícil. Nem todos os sonhos nos levam a acordar, e se na manhã seguinte nos lembramos de um sonho da noite anterior, como iremos descobrir um estímulo perturbador que talvez possa ter-nos causado um impacto durante a noite? Certa vez consegui identificar um estímulo sonoro desse tipo, de modo retrospectivo, naturalmente, porém, apenas devido a circunstâncias especiais. Acordei, certa manhã, em uma localidade das montanhas do Tirol, sabendo que havia tido um sonho em que o papa havia morrido. Não pude explicar a mim mesmo o sonho; entretanto, mais tarde minha esposa me perguntou se eu tinha ouvido o tremendo barulho do repicar dos sinos, pela manhã, que irrompera de todas as igrejas e capelas. Não, eu nada tinha ouvido, meu sono é mais resistente que o dela; mas, graças à sua informação, eu compreendi meu sonho. Quantas vezes estímulos dessa espécie podem provocar sonhos em uma pessoa que dorme, sem que esta venha a saber deles depois? Talvez muito freqüentemente, mas talvez não. Se os estímulos não podem mais ser identificados, não podemos nos convencer de sua existência. E, em todo caso, mudamos nossa opinião com relação à importância dos estímulos externos que perturbam o sono, pois aprendemos que podem explicar apenas uma pequena parte do sonho e não o total da reação onírica.

Não há necessidade para, em virtude disso, abandonar de todo essa teoria. Ademais, ela pode ser ampliada. Obviamente não importa saber o que é que perturba o sono ou leva a mente a sonhar. Como não pode, invariavelmente, tratar-se de estímulo sensorial vindo de fora, pode haver, em substituição, o que se chama de estímulo somático, que surge dos órgãos internos. Essa é uma idéia muito plausível e concorda com a muito popular opinião sobre a origem dos sonhos: ‘os sonhos vêm da indigestão’, dizem as pessoas freqüentemente. Infelizmente, aqui também devemos suspeitar muitas vezes que existem casos em que um estímulo somático atuado sobre uma pessoa em sono, durante a noite, não mais se manifesta após o despertar e, portanto, não se pode provar que tenha ocorrido. Não desprezaremos, porém, o sem números de claras experiências que apóiam a origem dos sonhos em estímulos somáticos. Em geral, não pode haver dúvida de que as condições dos órgãos internos possam influenciar os sonhos. A relação entre o conteúdo de alguns sonhos e uma bexiga muito cheia ou um estado de excitação dos órgãos genitais é tão simples que não pode causar mal-entendidos. Esses casos evidentes levam a outros, nos quais o conteúdo dos sonhos dá origem à justificada suspeita de que houve um impacto causado por estímulos somáticos, porque no conteúdo existe algo que pode ser visto como uma superelaboração atuante, uma representação ou interpretação de tais estímulos. Scherner (1861), que realizou pesquisas com sonhos, argumentava com vigor especial a favor da derivação dos sonhos a partir de estímulos orgânicos e apresentava alguns bons exemplos pertinentes. Por exemplo, em um sonho ele viu ‘duas fileiras de rapazes elegantes, com lindos cabelos e pele delicada, enfrentando-se em formação de combate, fazendo uma investida, atacando uma à outra e, após, retirando-se e voltando novamente à posição anterior, em seguida começando toda a manobra mais uma vez’. Sua interpretação dessas duas fileiras de rapazes como sendo dentes é plausível em si mesma e parece inteiramente confirmada quando sabemos que, após essa cena do sonho, a pessoa arrancou de sua mandíbula um comprido dente. Identicamente a interpretação de ‘corredores longos, estreitos e ventosos’, como derivados de um estímulo intestinal, parece válida e confirma a asserção de Scherner de que os sonhos procuram sobretudo representar o órgão que emite o estímulo por objetos que se lhes assemelham.

Por conseguinte, devemos estar preparados para admitir que os estímulos internos podem desempenhar nos sonhos o mesmo papel que os externos. Qualquer estimativa acerca de sua importância infelizmente é passível das mesmas objeções. Em numerosos casos uma interpretação que aponte para um estímulo somático é incerta e improvável. Não são todos os sonhos, mas apenas determinado número deles, que dão lugar a uma suspeita de que os estímulos orgânicos internos tivessem parte na origem deles. E, por fim, os estímulos somáticos internos são, como os estímulos sensoriais externos, tão pouco capazes de explicar mais aspectos de um sonho do que aquilo que neste corresponde a uma reação direta ao estímulo. Continua obscuro saber de onde vem o restante do sonho.

Observemos, no entanto, uma peculiaridade da vida onírica que vem à luz neste estudo dos efeitos dos estímulos. Os sonhos não fazem simplesmente reproduzir o estímulo; eles o vertem, fazem alusões a ele, o incluem em algum contexto, o substituem por alguma outra coisa. Esse é um aspecto da elaboração onírica que não pode deixar de nos interessar, porque pode, talvez, nos aproximar mais da essência dos sonhos. Quando uma pessoa constrói algo em conseqüência de um estímulo, o estímulo não necessita, por isso, levar a cabo todo o trabalho. O Macbeth de Shakespeare, por exemplo, foi uma pièce d’occasion composta para celebrar a elevação ao trono do rei que foi o primeiro a unir as coroas dos três reinos. Essa ocasião histórica imediata, porém, abrangeria todo o conteúdo da tragédia? Explica todas as suas grandezas e os seus enigmas? Pode ser que os estímulos externos e internos, também, atingindo a pessoa em sono, sejam apenas provocadores do sonho e, por conseguinte, nada nos revelem de sua essência.

A segunda coisa comum aos sonhos, sua peculiaridade psíquica [ver em [1] e seg.], é, por um lado, difícil de compreender e, por outro, não nos oferece ponto de partida para ulterior investigação. Nos sonhos, via de regra, experimentamos coisas sob formas visuais. Podem os estímulos esclarecer algo a esse respeito? O que experimentamos é realmente o estímulo? Nesse caso, porém, por que a experiência é visual, se é apenas em casos muito raros que a estimulação óptica provoca o sonho? Ou, se sonhamos palavras faladas, poderá ser demonstrado que durante o sonho uma conversação, ou algum ruído que lhe seja semelhante, teve acesso aos nossos ouvidos? Eu me aventuraria a desprezar essa possibilidade, decisivamente.

Se não podemos progredir com aquilo que é comum aos sonhos, vejamos se nos é possível valer-nos das diferenças. Naturalmente os sonhos muitas vezes são sem sentido, confusos e absurdos; contudo, também existem os sonhos plenos de sentido, práticos e sensatos. Verifiquemos se os últimos, os que são plenos de sentido, podem elucidar aqueles carentes de sentido. Aqui está o último sonho sensato que me foi relatado. Foi sonhado por um jovem: ‘Fui dar um passeio pela Kärntnerstrasse, encontrei ali Herr X. e estive com ele por certo tempo. Depois, entrei num restaurante. Duas senhoras e um cavalheiro chegaram e se sentaram à minha mesa. Aborreci-me com isso, inicialmente, e não queria olhar para eles. Então, olhei realmente e constatei que eram muito amáveis.’ A pessoa que teve esse sonho comentou, a propósito, que na tarde anterior ao sonho de fato passara pela Kärntnerstrasse, que é o caminho que geralmente segue, e que ali encontrara Herr X. A outra parte do sonho não era uma recordação direta e apenas tinha alguma semelhança com determinada experiência de uma época consideravelmente anterior. E aqui está outro sonho trivial, desta vez o sonho de uma senhora: ‘O marido dela lhe perguntou: “Você não acha que devemos mandar afinar o piano?” E ela replicou: “Não vale a pena; de qualquer maneira, os martelos precisam de recondicionamento.” Este sonho repetia, sem muita modificação, uma conversação mantida entre ela e seu marido no dia anterior ao sonho. O que entendemos desses dois sonhos sensatos? Nada, senão que contêm repetições extraídas da vida diária, ou coisas a esta vinculadas. Já seria alguma coisa se dos sonhos em geral se pudesse dizer algo semelhante. Esse, porém, não é o caso; aplica-se apenas a uma minoria e, na maioria dos sonhos, não existe sinal de uma conexão com o dia anterior; com isso, se elucidam os sonhos sem sentido e absurdos. Apenas mostra que encontramos, sem esperar, uma nova tarefa. Desejamos não apenas saber o que um sonho diz, mas, se ele fala claramente, como o faz nesses exemplos, também queremos saber por que e com que finalidade esse material corriqueiro, experimentado tão recentemente, foi repetido no sonho.

Penso que, como eu, os senhores devem estar cansados de prosseguir com investigações como as que estivemos fazendo até aqui. Todo o interesse por um problema é evidentemente insuficiente, a menos que se conheça bem uma via de abordagem que leve à sua solução. Ainda não encontramos um tal caminho. A psicologia experimental nada nos proporciona, salvo algumas informações muito valiosas sobre a importância dos estímulos como incentivadores do sonhar. Da filosofia nada podemos esperar, exceto que uma vez mais nos salientará orgulhosamente a inferioridade intelectual do objeto de nosso estudo. Também não temos desejo algum de tomar qualquer coisa emprestada das ciências ocultas. A história e a opinião popular nos dizem que os sonhos têm um sentido e um significado: que eles perscrutam o futuro — o que é difícil de aceitar e certamente impossível de provar. Assim, nosso esforço inicial nos deixa em completa incerteza.

Inesperadamente nos chega a indicação de uma direção em que até agora não havíamos olhado: O uso idiomático, que não é algo casual, porém constitui o precipitado de antigas descobertas, embora, para estarmos seguros, não deva ser empregado descuidadamente — portanto nossa linguagem está familiarizada com coisas que levam o estranho nome de ‘devaneios’. Os devaneios são fantasias (produtos da imaginação): são fenômenos muito generalizados, observáveis mais uma vez tanto nas pessoas sadias como nas doentes, e são facilmente acessíveis ao estudo em nossa própria mente. A coisa mais notável a respeito dessas estruturas imaginárias é que lhes foi dado o nome de ‘devaneios’, de vez que nelas não há qualquer traço dos dois elementos comuns aos sonhos [ver em [1] e segs.]. Sua relação com o sono já é negada em seu próprio nome; e no concernente à segunda coisa comum aos sonhos, nelas não experimentamos nem alucinamos algo, mas imaginamos alguma coisa, sabemos que estamos tendo uma fantasia, não vemos, mas pensamos. Esses devaneios surgem no período pré-púbere, freqüentemente ainda na parte final da infância; persistem até a maturidade ser alcançada e, então, ou são abandonados ou mantidos até o fim da vida. O conteúdo dessas fantasias é dominado por um motivo muito inteligível. São cenas e eventos em que as necessidades egoísticas de ambição e poder da pessoa, ou seus desejos eróticos, encontram satisfação. Em homens jovens as fantasias ambiciosas são as mais proeminentes; nas mulheres, cuja ambição se dirige ao êxito no amor, as fantasias é que o são. Também nos homens, contudo, as necessidades eróticas estão muito freqüentemente presentes nos bastidores: todos os seus feitos heróicos e seus êxitos parecem ter como único alvo a admiração e o favor das mulheres. Em outros aspectos esses devaneios são de tipos muito diferentes e passam por vicissitudes modificadoras. Todos eles, cada qual por sua vez, ou são abandonados após pouco tempo e substituídos por outros novos, ou mantidos, tecidos em longas histórias e adaptados às modificações que surgem nas circunstâncias da vida da pessoa. Eles se acomodam aos tempos, por assim dizer, e recebem uma ‘marca da época’ que testemunha a influência da nova situação. São a matéria-prima da produção poética, pois o escritor criativo usa seus devaneios com determinadas remodelações, disfarces e omissões, para construir as situações que introduz em seus contos, novelas ou peças. O herói dos devaneios é sempre a própria pessoa, seja diretamente, seja por uma óbvia identificação com alguma outra pessoa.

Talvez os devaneios atribuam seu nome ao fato de terem a mesma relação com a realidade — para indicar que seu conteúdo é para ser considerado não menos irreal do que o dos sonhos. No entanto, talvez partilhem esse nome por causa de alguma característica psíquica dos sonhos que ainda nos é desconhecida, alguma característica que estamos investigando. Também é possível que estejamos laborando em considerável erro ao tentarmos fazer uso dessa semelhança de nome como algo significativo. Somente mais tarde será possível elucidar esse aspecto.

 

CONFERÊNCIA VI - PREMISSAS E TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO

 

SENHORAS E SENHORES:

Aquilo de que necessitamos, então, é um novo caminho, um método que nos possibilitará estabelecer um início na investigação dos sonhos. Apresento-lhes uma hipótese razoável. Consideremos como premissa, desse ponto em diante, que os sonhos não são fenômenos somáticos mas psíquicos. Os senhores sabem o que isso significa; contudo, o que justifica que façamos essa hipótese? Nada: mas também nada há a impedir-nos de fazê-lo. Esta é a situação: se os sonhos são fenômenos somáticos, não têm interesse para nós, podem apenas nos interessar na hipótese de serem fenômenos mentais. Trabalharemos com a hipótese de que realmente o são, para ver o que daí se origina. O resultado de nosso trabalho decidirá se devemos manter essa hipótese e se podemos tratá-la, por sua vez, como dado comprovado. Entretanto, a que realmente queremos chegar? Que objetivo nosso trabalho está buscando? Desejamos algo que é buscado em todo trabalho científico — compreender os fenômenos, estabelecer uma correlação entre os mesmos e, como fim último, aumentar, se possível, nosso poder sobre esses fenômenos.Nesse consenso, prosseguimos com nosso trabalho baseados na hipótese de que os sonhos são fenômenos psíquicos. Nesse caso, são produtos e comunicações da pessoa que sonha, porém comunicações que nada nos dizem, que não entendemos. Pois bem, o que fazem os senhores se Ihes comunico algo ininteligível? Os senhores me farão perguntas, não é mesmo? Por que não faríamos a mesma coisa com a pessoa que sonhou — questioná-la sobre o que seu sonho significa?

Como se recordam, certa vez nos encontramos na mesma situação, anteriormente. Quando estávamos investigando determinadas parapraxias — um caso de lapso de língua. Alguém havia dito [ver em [1]]: ‘Então os fatos vieram a Vorschwein‘ e logo lhe perguntamos — não, felizmente não éramos nós, e sim outras pessoas, que não tinham absolutamente qualquer conexão com a psicanálise — essas outras pessoas então lhe perguntaram o que quis dizer com esse comentário ininteligível. E ele prontamente replicou que tinha pretendido dizer ‘estes fatos eram Schweinereien [repugnantes]’, porém repelira essa intenção em troca da versão mais suave ‘então os fatos vieram a Vorschein [luz]’. Naquela ocasião [ver em [1] e [2]] assinalei aos senhores que essa amostra de informação constituía um modelo para toda investigação psicanalítica e agora compreenderão que a psicanálise segue a técnica de fazer com que as próprias pessoas que estão sendo examinadas, tanto quanto possível proporcionem a solução de seus enigmas [ver em [1]]. Assim, também é o próprio sonhador quem deve nos dizer o que seu sonho significa.

No entanto, como sabemos, com os sonhos as coisas não são tão simples. Com as parapraxias funcionou tudo bem, em numerosos casos; houve, porém, outros em que a pessoa, indagada, nada quis dizer e até mesmo recusou, indignada, a resposta que lhe propusemos. Com os sonhos os casos do primeiro tipo são muito escassos; o sonhador sempre diz que nada sabe. Não pode rejeitar nossa interpretação, de vez que não temos nenhuma para lhe apresentar. Devemos, então, desistir de nossa tentativa? Como ele nada sabe e nós nada sabemos, e uma terceira pessoa poderia saber menos ainda, parece não haver perspectiva de descobrir a solução. Nesse caso, se os senhores estão propensos a desistir, desistam da tentativa. Porém, se pensam de forma diferente, podem continuar acompanhando-me. Porque posso lhes assegurar ser completamente possível e, na realidade, altamente provável que o sonhador sabe, sim, o que seu sonho significa: apenas não sabe que sabe, e, por esse motivo, pensa que não sabe.

Os senhores me assinalarão que, mais uma vez, estou introduzindo uma suposição, já a segunda nesse breve raciocínio, e que, assim fazendo, estou reduzindo enormemente o direito à credibilidade de meu procedimento: ‘Devido à premissa de que os sonhos são fenômenos psíquicos, e devido a uma nova premissa de que há coisas mentais em uma pessoa que sabe sem saber que sabe da existência deles…’ e assim por diante. Sendo assim, basta que se considere a improbabilidade intrínseca de cada uma dessas duas premissas para se poder tranqüilamente desviar o interesse de qualquer conclusão que se possa basear nelas.

Eu não os trouxe até aqui, senhoras e senhores, para iludi-los ou para ocultar-lhes determinadas coisas. Em meu programa, é verdade, anunciei uma série de ‘Conferências Elementares para Servir como Introdução à Psicanálise’, contudo, aquilo que eu tinha em mente não era nada nos moldes de uma apresentação in usum Delphini, que lhes daria uma versão agradável, com todas as dificuldades cuidadosamente escamoteadas, com as lacunas preenchidas e as dúvidas explicadas favoravelmente, de forma que os senhores pudessem crer, com a mente despreocupada, que tinham aprendido algo novo. Não, justamente pelo motivo de os senhores serem principiantes, quis mostrar-lhes a nossa ciência como ela é, com suas asperezas e dificuldades, suas exigências e hesitações. Pois sei que o mesmo se passa com todas as ciências e possivelmente não pode ser de outra forma, especialmente em seus começos. Sei também que, em geral, o ensino se dá ao trabalho de se notabilizar pelo fato de encobrir, de quem aprende, essas dificuldades e imperfeições. Com a psicanálise, porém, isso não vai acontecer. De modo que formulei duas premissas, uma dentro da outra; e se alguém acha tudo isso muito laborioso e muito inseguro, ou se alguém está habituado a certezas mais garantidas e a deduções mais elegantes, não deve prosseguir conosco. Penso, no entanto, que absolutamente não deveria se meter com os problemas psicológicos, porquanto é de se temer que em breve achará intransitáveis os caminhos precisos e seguros que escolheu para seguir. E uma ciência que tem algo a oferecer, não tem necessidade de cortejar ouvintes e adeptos. Suas descobertas não podem deixar de angariar adesões; e ela pode esperar até que essas descobertas tenham feito com que as atenções se voltassem para ela.

Para aqueles que gostariam de prosseguir com esse tema, porém, posso afiançar que minhas duas hipóteses não são equivalentes. A primeira, a de que os sonhos são fenômenos psíquicos, é a premissa que procuramos demonstrar pelo resultado de nosso trabalho; a segunda já foi demonstrada em outra área de conhecimento, e eu simplesmente estou me aventurando a transportá-la dessa área para nossos próprios problemas.

Onde, pois, em que campo, se pôde encontrar a prova de que existe algum conhecimento do qual a pessoa interessada, apesar de tudo, nada sabe, conforme estamos propondo supor a respeito dos sonhos? Em última análise, este seria um fato estranho, surpreendente, um fato que viria alterar nossa visão da vida mental e que não teria por que se manter escondido: um fato, aliás, que se neutraliza na sua própria denominação e que, não obstante, pretende ser algo de real — uma contradição em termos. Pois bem, ele não se esconde. Não é falta sua se as pessoas nada sabem a seu respeito ou não lhe prestam suficiente atenção. Também não somos nós que devemos ser acusados de permitir que esses problemas psicológicos sejam deixados a cargo de pessoas que se mantêm distanciadas de todas as observações e experiências decisivas para a questão.

A comprovação foi encontrada no campo dos fenômenos hipnóticos. Quando, em 1889, tomei parte nas demonstrações extraordinariamente impressionantes feitas por Liébault e Bernheim, em Nancy,

testemunhei a seguinte experiência, entre outras. Quando um homem era colocado em estado de sonambulismo, era levado a experimentar toda espécie de coisas, em forma alucinatória, e, depois, era despertado; de início parecia nada saber do que acontecera durante seu sono hipnótico. Bernheim então lhe pedia, sem rodeios, para relatar o que lhe havia acontecido sob hipnose. O homem afirmava que não conseguia lembrar-se de nada. Bernheim, porém, se mantinha firme, pressionava-o para falar, insistia em que o homem sabia e devia recordar. E eis que o homem era tomado de incerteza, começava a refletir e recordava de forma indistinta uma das experiências que lhe tinham sido sugeridas, e depois outra parte, e a memória se tornava cada vez mais clara e mais completa e finalmente vinha à luz, sem falha. Como, no entanto, posteriormente o homem sabia o que lhe acontecera durante a experiência, e como ninguém lhe havia comunicado nada nesse meio tempo, achamos acertado concluir que ele também antes sabia. Simplesmente lhe era inacessível; ele não sabia que sabia, e pensava que não sabia. Ou seja, a situação era exatamente igual àquela que suspeitamos existir naquele nosso sonhador.

Suponho que os senhores se surpreendam com que esse fato tenha sido estabelecido, e me perguntarão: ‘Por que o senhor deixou de apresentar essa prova anteriormente, em conexão com as parapraxias, quando terminamos por atribuir a um homem que cometera um lapso de língua uma intenção de dizer coisas das quais nada sabia e que negava? Se uma pessoa pensa que não sabe nada sobre experiências cuja lembrança, ainda assim, está dentro dela, já não é mais tão improvável ela não saber nada de outros processos mentais dentro de si. Esse certamente seria para nós um argumento de peso, e nos teria auxiliado a compreender as parapraxias.’ Naturalmente eu poderia tê-lo apresentado antes, porém reservei-o para outro lugar onde é mais necessário. As parapraxias, em parte, se explicavam por si mesmas, e, em parte, nos deixavam a impressão de que, para preservar a continuidade dos fenômenos em questão, seria prudente supor a existência de processos mentais dos quais a pessoa nada sabe. No caso dos sonhos, somos compelidos a introduzir explicações provenientes de outro lugar e, ademais disso, espero que, no caso dos mesmos, os senhores acharão mais fácil aceitar que eu transporte para cá explicações provenientes da hipnose. O estado no qual uma parapraxia ocorre, não pode deixar de se lhes afigurar normal; não possui qualquer semelhança com o estado hipnótico. Por outro lado, existe um parentesco evidente entre o estado hipnótico e o estado de sonho, que constitui uma condição necessária do sonho. A hipnose, na verdade, é descrita como um sono artificial. À pessoa que estamos hipnotizando pedimos que durma, e as sugestões que fazemos são comparáveis aos sonhos do sono natural. As situações psíquicas nos dois casos são realmente análogas. No sono natural retiramos nosso interesse de todo o mundo externo; e no sono hipnótico também o retiramos do mundo inteiro, porém com exceção apenas da pessoa que nos hipnotizou e com a qual permanecemos em contato. Diga-se de passagem, o sono de uma mãe cuidando de seu filho, permanecendo em contato com o mesmo e podendo ser acordada apenas por ele, é um equivalente normal do sono hipnótico. Assim, não seria tão fora de propósito transpor a situação da hipnose para a do sono natural. Não é inteiramente absurda a suposição de que também no sonhador esteja presente algum conhecimento a respeito de seus sonhos, embora esse conhecimento lhe seja inacessível a ponto de não acreditar no mesmo. Observe-se que, nesse ponto, se abre uma terceira frente de abordagem ao estudo dos sonhos: vimos a dos estímulos que perturbam o sono, a dos devaneios e, agora, temos a dos sonhos sugeridos do estado hipnótico.

Talvez possamos agora retornar à nossa tarefa com renovada confiança. É, pois, provável que o sonhador tenha noção do que sonhou; a única questão é saber como tornar-lhe possível descobrir o conhecimento que tem e o comunicar a nós. Não lhe exigimos dizer-nos abertamente o sentido de seu sonho, porém será capaz de encontrar a origem, o círculo de pensamentos e de interesses do qual surgiu tal sonho. Os senhores se recordam de que, no caso das parapraxias, perguntou-se ao homem como ele havia chegado à palavra equivocada ‘Vorschwein‘, e a primeira coisa que lhe ocorreu deu-nos a explicação. Nossa técnica, no que se refere aos sonhos, portanto é muito simples e copiada desse exemplo. Também aqui perguntaremos a quem sonhou de que modo chegou ao sonho e, da mesma forma, seu primeiro comentário pode ser considerado uma explicação. Com isso deixamos de lado o problema da distinção entre o fato de o sonhador pensar e o de não pensar que sabe algo, e tratamos ambos os casos como um só e mesmo caso.

Essa técnica certamente é muito simples, porém temo que desencadeará a mais viva oposição dos senhores. Haverão de dizer: ‘Mais uma hipótese! a terceira! E a mais improvável de todas! Se pergunto à pessoa que sonhou o que é que lhe ocorre em relação ao sonho, de que modo precisamente a primeira coisa que lhe ocorre pode nos dar a explicação que esperamos? Ora, pode não lhe ocorrer absolutamente nada, ou sabe lá o que lhe pode ocorrer. Não consigo ver em que se baseia uma expectativa desse tipo. Isso realmente é mostrar demasiada confiança na divina providência, em um ponto em que seria apropriado, isto sim, um maior exercício da faculdade crítica. Ademais, um sonho não é somente uma palavra errada; consiste em numerosos elementos. Assim sendo, que associação de idéias devemos seguir?’Os senhores estão corretos em todos os pontos de menor importância. Um sonho difere de um lapso de língua, entre outras coisas, pela multiplicidade de seus elementos. Nossa técnica deve levar isso em consideração. Portanto lhes sugiro dividirmos o sonho em seus elementos e iniciarmos uma pesquisa à parte, de cada elemento; ao fazermos isso, a analogia com um lapso de língua se estabelece. Os senhores também têm razão ao pensar que aquele que sonhou, quando interrogado sobre os diversos elementos do sonho separados uns dos outros, pode responder que nada lhe ocorre. Há alguns exemplos nos quais deixamos passar essa resposta, e mais adiante os senhores saberão que exemplos são esses [ver em [1]]; coisa muito estranha, são exemplos nos quais idéias definidas podem ocorrer em nós mesmos. Porém, em geral, se quem sonhou afirma que nada lhe ocorre, contestamos; nós o pressionamos, insistimos em que algo deve ocorrer-lhe — e tornamos a ter razão. Produzirá uma idéia — qualquer idéia, é-nos indiferente qual seja. O sonhador nos dará determinadas informações, que podem ser descritas como ‘históricas’ com especial facilidade. Ele pode dizer: ‘Isso é algo que aconteceu ontem’ (como foi o caso em nossos dois sonhos ‘de verdade’ [ver em [1] e [2]], ou: ‘Isso me lembra algo que aconteceu há pouco tempo’ — e dessa maneira descobriremos que os sonhos se referem a impressões do dia anterior, ou dos dois últimos dias, muito mais freqüentemente do que de início imaginávamos [loc. cit.]. E, finalmente, também recordará, a partir do sonho, acontecimentos de épocas ainda mais anteriores, e até mesmo, talvez, de um passado muito remoto.

No seu ponto principal, contudo, os senhores se enganam. Se pensam ser arbitrário supor que a primeira coisa que ocorre ao sonhador forçosamente deva nos revelar aquilo que estamos procurando, nos levar até a meta de nossa procura; se pensam que aquilo que lhe vem à mente poderia ser qualquer outra coisa deste mundo e poderia não ter qualquer relação com o que procuramos; e que ao esperar alguma coisa diferente estou apenas exibindo minha confiança na providência divina — então os senhores estão cometendo um grande equívoco. Uma vez, anteriormente [ver em [1]], arrisquei-me a dizer-lhes que os senhores acalentam uma fé, profundamente arraigada, em acontecimentos psíquicos não-determinados e no livre-arbítrio; que isso, porém, é bastante anticientífico e deve ceder lugar à necessidade de um determinismo cujo princípio se estende à vida mental. Peço que respeitem o fato de que aquilo foi o que veio à mente do homem, e não outra coisa. No entanto, não estou opondo uma fé a outra. Pode-se demonstrar que a idéia referida pelo homem não era arbitrária, nem indeterminável, nem isenta de relação com aquilo que procurávamos. Na realidade, há não muito tempo constatei — posso dizer que sem atribuir muita importância ao fato — que a psicologia experimental também havia obtido provas nesse sentido.

Tendo em vista a importância do assunto, solicitarei dos senhores especial atenção. Ao pedir a alguém dizer-me o que lhe vem à mente em resposta a um determinado elemento do sonho, estou lhe pedindo que se entregue à associação livre, enquanto mantém na mente uma idéia como ponto de partida. Isso exige uma atitude especial da atenção, bastante diferente da reflexão, e que exclui esta. Algumas pessoas conseguem essa atitude com facilidade; outras, quando tentam consegui-la, mostram um grau de inabilidade incrivelmente elevado. Existe, no entanto, um grau maior de liberdade de associação: quer dizer, posso eliminar a exigência de manter na memória uma idéia inicial e tão-somente estabelecer a modalidade ou tipo de associação que quero — posso, por exemplo, exigir da pessoa em experiência que deixe vir à mente um nome próprio ou um número, livremente. Aquilo que então lhe ocorre presumivelmente seria ainda mais casual e mais imprevisível do que com nossa técnica anterior. Pode ser demonstrado, porém, que é sempre algo estritamente determinado por importantes atitudes internas da mente, desconhecidas de nós no momento em que atuam — tão pouco conhecidas como as intenções perturbadoras das parapraxias e as intenções causadoras das ações casuais [ver em [1]].

Eu e muitos outros depois de mim fizemos repetidamente essas experiências com nomes e com números pensados ao acaso, e alguns desses experimentos foram publicados. Nessas experiências o procedimento consiste em fornecer uma série de associações ao nome que emergiu; essas associações subseqüentes, em decorrência, não são mais inteiramente livres, porém possuem um vínculo, assim como existe vínculo entre as associações e os elementos dos sonhos. Continua-se com esse procedimento até que se considere esgotado o estímulo para associar. Entretanto, com isso já terá sido esclarecido tanto o motivo como o significado da escolha casual do nome. Essas experiências sempre conduzem ao mesmo resultado; relatos referentes a elas freqüentemente abrangem copioso material e exigem amplas elucidações. As associações com números escolhidos ao acaso são, talvez, as mais convincentes; elas fluem tão rapidamente e avançam com tão incrível certeza em direção a um objetivo oculto, que o efeito é realmente surpreendente. Apresentarei aos senhores um exemplo de uma dessas análises de um nome, de vez que lidar com isso exige uma quantidade de material convenientemente pequena.No decurso do tratamento de um jovem tive ocasião de discutir esse assunto e mencionei a tese de que, apesar de uma escolha aparentemente casual, é impossível pensar em um nome ao acaso que não venha a se revelar como rigorosamente determinado pelas circunstâncias imediatas, pelas características da pessoa em experiência e por sua situação no momento. De vez que ele se encontrava cético, sugeri-lhe que deveria fazer consigo mesmo uma experiência desse tipo, na hora. Eu sabia que ele mantinha relações particularmente numerosas, de todo tipo, com mulheres casadas e com moças, e assim pensei que ele teria à sua disposição uma escolha especialmente ampla se fosse o caso de lhe pedir que escolhesse o nome de uma mulher. Concordou em fazer a experiência. Para minha surpresa, ou melhor, talvez, para sua surpresa, não fui assoberbado por nenhuma avalanche de nomes femininos; permaneceu calado por um momento e então admitiu que apenas um nome lhe tinha vindo à cabeça e nenhum outro além deste: ‘Albina’. — Que coisa curiosa! Mas o que significa esse nome para o senhor? Quantas ‘Albinas’ o senhor conhece? — É estranho dizê-lo, ele não conhecia nenhuma mulher chamada ‘Albina’, e nada mais lhe ocorreu junto com o nome. Dessa forma, podia-se pensar que a análise havia fracassado. Mas não, absolutamente: já estava completa e outras associações não eram necessárias. O homem tinha uma pele excepcionalmente alva e, em conversação durante o tratamento, muitas vezes eu o chamara de albino, por brincadeira. Por essa época estávamos tratando de determinar os componentes femininos de sua constituição. Assim, era ele mesmo essa ‘Albina’, a mulher que mais lhe interessava no momento.

Do mesmo modo, pode-se constatar que as melodias que acodem à mente de uma pessoa de modo inesperado são determinadas por uma seqüência de idéias à qual pertencem, e têm o direito de atarefar a mente, sem que haja consciência de sua atividade. É fácil, nesses casos, demonstrar que a relação com a melodia é baseada em sua letra ou em sua origem. Contudo, devo ter o cuidado de não estender essa asserção a pessoas realmente ligadas à música; sucede que com elas não tive qualquer experiência. Pode ser que para essas pessoas o conteúdo musical da melodia é que decide seu surgimento. O primeiro caso é certamente o mais comum. Por exemplo, conheço um jovem que se sentiu durante algum tempo realmente perseguido pela melodia (aliás, uma melodia maravilhosa ) da canção de Páris [de Offenbach] La belle Hélène, até que, em sua análise, ele teve sua atenção voltada para uma rivalidade em torno de sua pessoa e em benefício seu, uma rivalidade entre uma ‘Ida’ e uma ‘Helena’.Se então as coisas que vêm à mente de uma pessoa assim tão livremente, são de tal maneira determinadas e formam parte de um todo inter-relacionado, sem dúvida estamos agindo acertadamente ao concluir que não podem ser menos determinadas aquelas coisas que Ihe acodem à mente com apenas um vínculo — ou seja, o vínculo delas com a idéia que serve como seu ponto de partida. A investigação realmente mostra que, afora o vínculo que lhe fornecemos com a idéia inicial, essas associações são dependentes também de grupos de idéias e de interesses intensamente emocionais, os ‘complexos’, cuja participação não é conhecida no momento — ou seja, é inconsciente.A ocorrência de idéias com vínculos dessa espécie tem sido objeto de pesquisas experimentais muito elucidativas que desempenharam um papel notável na história da psicanálise. A escola de Wundt introduziu o que conhecemos como experiências de associação, nas quais se diz à pessoa uma palavra-estímulo e a pessoa tem de responder a ela tão rapidamente quanto lhe é possível, com qualquer reação que lhe ocorra. Nesse caso, é possível estudar o intervalo de tempo que se passa entre o estímulo e a reação, a natureza das respostas dadas como reação, os possíveis erros quando a experiência é repetida mais tarde, e assim por diante. A escola de Zurique, liderada por Bleuler e Jung, encontrou explicação para as reações que se sucediam na experiência de associação, fazendo as pessoas em experiência elucidarem suas reações por meio de associações subseqüentes, no caso de essas reações terem mostrado aspectos marcantes. Constatou-se então que essas reações marcantes eram determinadas de forma muito definida pelos complexos da pessoa. Assim, Bleuler e Jung estabeleceram a primeira ponte entre a psicologia experimental e a psicanálise.Tendo aprendido tantas coisas, os senhores poderão dizer: ‘Agora reconhecemos que os pensamentos que livremente acodem à mente de uma pessoa são determinados, e não arbitrários, como supunhamos. Admitimos que isso seja verdadeiro também para os pensamentos que ocorrem como resposta aos elementos dos sonhos. Não é nisso, porém, que estamos interessados. O senhor assevera que aquilo que vem à mente do sonhador, como resposta ao elemento onírico, é determinado pelo fundamento psíquico (desconhecido para nós) daquele elemento em particular. Isso não nos parece estar provado. Esperamos, isto sim, que o que ocorre ao sonhador como resposta ao elemento onírico, venha a se revelar como sendo determinado por um dos complexos de quem sonhou; contudo, de que nos serve isso? Não nos leva a uma compreensão dos sonhos e sim, tal como a experiência de associação, ao conhecimento desses ditos complexos. Mas, o que têm eles a ver com os sonhos?’

Os senhores têm razão, porém estão negligenciando um fator. Ademais, é precisamente devido a esse fator que não escolhi a experiência de associação como ponto de partida desta exposição. Nessa experiência, o único determinante da reação, isto é, a palavra-estímulo, é arbitrariamente escolhida por nós. Aqui, a reação é intermediária entre a palavra-estímulo e o complexo despertado na pessoa. Nos sonhos, a palavra-estímulo é substituída por algo que propriamente deriva da vida mental da pessoa, de fontes que lhe são desconhecidas, podendo este algo, por conseguinte, ser facilmente um verdadeiro ‘derivado de um complexo’. Logo, não é exatamente fantástico supor que as demais associações vinculadas aos elementos oníricos serão determinadas pelo mesmo complexo que o do próprio elemento, e supor que conduzirão à sua descoberta.

Permitam-me mostrar-lhes com outro exemplo que os fatos são como esperamos. O esquecimento de nomes próprios é realmente um excelente modelo do que acontece na análise de sonhos; a diferença está apenas em que os eventos compartilhados entre duas pessoas na análise de sonhos estão combinados em uma só pessoa nas parapraxias. Se esqueço temporariamente um nome, mesmo assim sinto em mim alguma certeza de o saber — uma certeza a que, no caso da pessoa que sonhou, somente chegamos pelo caminho indireto da experiência de Bernheim [ver em [1]]. O nome que esqueci, embora o saiba, não é acessível para mim. A experiência em breve me ensina que nada adianta pensar nele, por mais que me esforce. Em lugar do nome esquecido, porém, sempre posso recordar um ou vários nomes substitutos. É somente depois de espontaneamente ter-me ocorrido um nome substituto desse tipo, que se torna óbvio a semelhança dessa situação com a da interpretação do sonho. Como esse nome substituto, também o elemento onírico não é a verdadeira coisa em si, porém tão-somente está em lugar de alguma outra coisa — da coisa original que desconheço e devo descobrir mediante a análise do sonho. Mais uma vez, a única diferença é que, no caso do esquecimento de um nome, reconheço sem hesitação o substituto como algo não-original, ao passo que, no caso do elemento onírico, chegamos a essa constatação com mais dificuldade. Pois bem, no caso do esquecimento de um nome existe também um método pelo qual podemos partir do substituto e chegar à coisa inconsciente original, o nome esquecido. Dirigindo minha atenção para os nomes substitutos e permitindo que, em resposta a estes, outras idéias me advenham, obtenho o nome esquecido através de rodeios mais ou menos longos; ao ocorrer isso, verifico que tanto o nome substituto espontâneo como os nomes que recordei, estão correlacionados com o nome esquecido e foram por ele determinados.Descreverei para os senhores uma análise desse tipo. Certo dia verifiquei que não conseguia recordar o nome do pequeno país da Riviera cuja capital é Monte Carlo. Foi muito cansativo, porém a coisa se passou assim. Concentrei tudo quanto sabia a respeito desse país. Pensei no Príncipe Alberto, da Casa de Lusignan, nos seus casamentos, em sua dedicação às pesquisas em alto-mar, e tudo o mais que pude reunir; mas foi inútil. Desisti, assim, da reflexão e deixei que me ocorressem nomes substitutos em vez do nome esquecido. Vieram rapidamente: a própria Monte Carlo, Piemonte, Albânia, Montevidéu, Colico. Nessa série chamou-me a atenção primeiramente Albânia, logo substituída por Montenegro, sem dúvida por causa do contraste entre branco e negro. Então constatei que quatro desses nomes substitutos continham a mesma sílaba ‘mon’ e com isso, subitamente, eu tinha a palavra esquecida e exclamei em voz alta: ‘Mônaco!’ Os nomes substitutos, assim, realmente haviam surgido do nome esquecido: os quatro primeiros provinham de sua primeira sílaba, ao passo que o último reproduzia sua estrutura silábica e sua última sílaba inteira. Ademais, consegui descobrir com bastante facilidade o que me privara temporariamente desse nome. Mônaco é também a palavra italiana para Munique; e foi essa cidade que exerceu a influência inibitória.

Não há dúvida de que esse é um bom exemplo, porém é simples demais. Em outros casos, teria sido necessário recordar extensas seqüências de idéias em resposta ao primeiro nome substituto, e então a analogia com a análise de sonhos teria sido mais clara. Tive experiências também desse tipo. Certa ocasião, um estrangeiro convidou-me para tomar vinho italiano em sua companhia; porém, quando estávamos no restaurante, sucedeu não lembrar-se ele do nome do vinho que desejava pedir em virtude das recordações muito agradáveis que tinha desse vinho. A partir de numerosas idéias substitutas de diferentes espécies que acudiam à sua memória, em lugar do nome esquecido, pude concluir que pensamentos a respeito de algo com o nome Hedwig o tinham feito esquecer o nome. E ele não apenas confirmou o fato de que provara desse vinho, pela primeira vez, quando estava em companhia de alguém com esse nome, como também, auxiliado pela descoberta, se lembrou do nome do vinho. Presentemente ele estava sendo feliz no casamento e aquele nome, Hedwig, pertencia a uma época anterior que não desejava recordar.

Sendo possível no caso de esquecimento de um nome, também na interpretação de sonhos deve ser possível prosseguir, a partir do substituto, ao longo da cadeia de associações ligada a ele e dessa forma obter acesso à coisa original que está sendo mantida oculta. Do exemplo do nome esquecido podemos concluir que as associações com o elemento onírico serão determinadas tanto pelo elemento onírico como pela coisa original inconsciente que está por trás deste. Sendo assim, parece que aduzimos alguma fundamentação para nossa técnica.

 

CONFERÊNCIA VII - O CONTEÚDO MANIFESTO DOS SONHOS E OSPENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES

 

SENHORAS E SENHORES:

Como vêem, nosso estudo das parapraxias não foi improfícuo. Graças a nossos esforços com elas, sujeitos a duas premissas que lhes expliquei, conseguimos duas coisas: uma concepção da natureza dos elementos oníricos e uma técnica para interpretar sonhos. A concepção dos elementos oníricos nos diz serem eles coisas não-originais [ver em [1]], substitutos de alguma outra coisa desconhecida do sonhador (como a intenção de uma parapraxia), substitutos de algo cujo conhecimento está presente em quem sonhou, que lhe é, porém, inacessível. Temos a esperança de que será possível aplicar a mesma concepção a sonhos inteiros constituídos de tais elementos. Nossa técnica baseia-se em usar a associação livre para esses elementos, a fim de suscitar a emergência de outras estruturas substitutivas que nos possibilitarão atingir aquilo que se oculta de nossos olhos.Proponho, agora, que devemos introduzir uma modificação em nossa nomenclatura, o que nos dará maior liberdade de movimentos. Em vez de falar em ‘oculto’, ‘inacessível’ ou ‘não-genuíno’, adotemos a descrição correta e digamos ‘inacessível para a consciência do sonhador’ ou ‘inconsciente‘. Com isso quero dizer tão-somente aquilo que pode acudir ao espírito dos senhores quando pensam em uma palavra que lhes escapou, ou na intenção perturbadora de uma parapraxia — ou seja, quero dizer apenas ‘inconsciente no momento‘. Contrastando com esse aspecto, naturalmente podemos referir como ‘conscientes‘ os elementos oníricos propriamente ditos e as idéias substitutivas que, através das associações com estes elementos, são de surgimento recente. Até aqui essa nomenclatura não envolve qualquer formulação teórica. Não se pode estabelecer objeção alguma ao uso da palavra ‘inconsciente’ como descrição adequada e de fácil compreensão.

Se estendemos ao sonho total nossa concepção a respeito de seus elementos isolados, procede que o sonho como um todo constitui um substituto deformado de alguma. outra coisa, algo inconsciente, e que a tarefa de interpretar um sonho é descobrir esse material inconsciente. Disso logo resultam, entretanto, três regras importantes que devemos observar durante o trabalho de interpretação de sonhos.

(1) Não devemos nos preocupar com aquilo que o sonho parece dizer-nos, seja compreensível ou absurdo, claro ou confuso, de vez que pode não ser o material inconsciente que estamos procurando. (Uma evidente limitação desta regra forçosamente irá impor-se à nossa consideração, mais adiante [ver em [1]].) (2) Devemos restringir nosso trabalho à recordação das idéias substitutivas de cada elemento, não devemos refletir sobre elas, nem considerar se contêm algo importante; e não devemos nos perturbar com o grau de divergência que elas apresentam em relação ao elemento onírico. (3) Precisamos aguardar até que o material inconsciente oculto, o qual procuramos, surja com espontaneidade, exatamente como a palavra esquecida ‘Mônaco’ adveio na experiência que descrevi [ver em [1]].

Agora, também, podemos compreender em que grau é indiferente o fato de muita ou pouca coisa do sonho ser lembrada, sobretudo se lembrada com precisão ou imprecisão. Pois o sonho recordado não é o material original e sim um seu substituto deformado, o qual, mediante a rememoração de outras imagens substitutivas, deve auxiliar-nos a nos aproximarmos do material original, a tornar consciente aquilo que no sonho é inconsciente. Se nossa lembrança foi imprecisa, portanto, causou simplesmente uma deformação a mais desse substituto — uma deformação que, porém, não se efetuou sem motivo.

O trabalho de interpretar pode ser executado nos sonhos de cada um, ou nos sonhos de outras pessoas. Na realidade, aprende-se mais consigo mesmo; o processo impõe maior convicção. Se então fizermos uma tentativa, observaremos que algo se opõe ao nosso trabalho. É verdade que as idéias nos ocorrem; porém, não permitimos que todas elas sejam levadas em consideração; influências de julgamentos e de escolhas se fazem sentir. No caso de uma idéia, podemos dizer a nós mesmos: ‘Não, isso não é importante, não tem cabimento aqui.’ No caso de outra idéia: ‘isso é demasiadamente sem sentido’; e no caso de uma terceira: ‘isso é totalmente sem importância’. E depois, somos capazes de observar como, com objeções dessa espécie, podemos encobrir idéias e finalmente rechaçá-las todas juntas, sem exceção, antes mesmo de se haverem tornado bastante claras. Assim, por um lado nos aferramos muito àquela idéia que constituiu nosso ponto de partida, o próprio elemento onírico; e, por outro lado, interferimos no resultado das associações livres ao fazer a escolha. Se não somos nós mesmos enquanto interpretamos o sonho, se tomamos outra pessoa para que o interprete, adquirimos consciência muito nítida de mais um motivo que alegamos ao fazer essa seleção indevida, porque às vezes dizemos para nós: ‘Não, essa idéia é excessivamente desagradável; não quero ou não posso referi-la.’

Essas objeções constituem evidente ameaça ao êxito de nosso trabalho. Delas devemos nos resguardar, e em nosso próprio caso o fazemos resolvendo não ceder a elas. Estando analisando o sonho de uma outra pessoa, estabelecemos como regra inviolável a pessoa não ocultar de nós idéia alguma, ainda que dê origem a uma das quatro objeções — de ser demasiado sem importância, ou sem sentido; ou de ser irrelevante, ou muito desagradável para ser referida. O sonhador promete obedecer à regra, e a seguir podemos ter o aborrecimento de verificar como ele cumpre mal o prometido, quando lhe surge a ocasião. Podemos explicar a nós mesmos o que se passa, de início, supondo que, malgrado a garantia peremptória, ele ainda não se compenetrou da razão de ser da associação livre; e talvez possamos ter a idéia de primeiro convencê-lo teoricamente, dando-lhe livros para que leia, ou enviando-o a conferências que o possam converter em adepto de nossos pontos de vista sobre a associação livre. Contudo, de um erro assim nos manteremos à distância, basta considerarmos nosso próprio caso; do vigor de nossas convicções dificilmente se pode duvidar, afinal de contas as mesmas objeções se apresentam a determinadas idéias, e são afastadas apenas posteriormente — digamos, em segunda instância.Em vez de nos aborrecermos com a desobediência do sonhador, podemos lucrar com essas experiências aprendendo algo novo a partir delas — algo tanto mais importante quanto menos esperamos. Percebemos que o trabalho de interpretar sonhos é executado em presença de uma resistência que a ele se opõe e da qual as objeções críticas constituem manifestações. A resistência independe da convicção teórica daquele que sonhou. Com efeito, aprendemos ainda mais. Descobrimos que uma objeção crítica desse tipo jamais chega a mostrar-se justificada. Ao contrário, as idéias que as pessoas tentam suprimir dessa maneira invariavelmente se revelam as mais importantes e decisivas em nossa busca de material inconsciente. Na realidade equivale a uma marca distintiva uma idéia acompanhar-se de uma objeção desse tipo.

A referida resistência é algo inteiramente novo: um fenômeno que encontramos calmamente em relação a nossas premissas [ver em [1] e seg.]; porém, um fenômeno que não se incluía entre as mesmas. O aparecimento desse novo fator em nossos cálculos nos alcança como determinada surpresa não de todo agradável. Logo suspeitamos que ela não irá tornar mais fácil nosso trabalho. Poderia desorientar-nos a ponto de abandonarmos nosso completo interesse pelos sonhos: algo tão sem importância como um sonho e, como se não bastasse, todas essas dificuldades, em lugar de uma única técnica simples, sem rodeios! Em compensação, porém, as dificuldades podem precisamente agir como estímulo e fazer-nos suspeitar que o trabalho valerá a pena. Regularmente deparamos com a resistência ao tentarmos abrir caminho desde o substituto, que é o elemento onírico, até o material inconsciente oculto por trás dele. Podemos, assim, concluir que deve haver algo importante escondido por trás do substituto. Se não, para que servem as dificuldades que tentam manter em vigor o ocultamento? Se uma criança recusa abrir sua mão fechada, para mostrar o que tem escondido, podemos nos sentir seguros de que se trata de algo equívoco — algo que ela não devia ter.

No momento em que introduzimos nos fatos em questão a idéia dinâmica de uma resistência, devemos simultaneamente refletir ser esse fator algo que varia em quantidade. Podem existir resistências maiores e menores, e estamos preparados para encontrar essas diferenças revelando-se também durante nosso trabalho. Talvez sejamos capazes de vincular essa experiência com outra que também encontramos durante o trabalho da interpretação de sonhos: às vezes, apenas uma única resposta, ou não mais do que algumas, são requeridas para nos conduzirem desde o elemento onírico até o material inconsciente que nele se oculta, ao passo que em outras ocasiões, para se realizar isso, são necessárias longas cadeias de associações e a superação de muitas objeções críticas. Concluiremos que essas diferenças correspondem à variável magnitude da resistência, e certamente se verá que temos razão. Se a resistência é pequena, o substituto não pode estar muito distante do material inconsciente; contudo, uma resistência maior significa que o material inconsciente está muito distorcido e que será longo o caminho que se estende desde o substituto ao material inconsciente.

Talvez, agora, seja o momento de tomarmos um sonho e tentar aplicar-lhe nossa técnica, a fim de verificar se nossas expectativas se confirmam. Sim; no entanto, que sonho devemos escolher para essa finalidade? Os senhores não podem imaginar como julgo difícil decidir; nem sequer posso esclarecer a natureza de minhas dificuldades. Evidentemente deve haver sonhos que, em seu conjunto, foram sujeitos apenas a uma pequena deformação, e o melhor plano seria começar por eles. Entretanto, que sonhos foram menos deformados? Os inteligíveis e não confusos, dos quais já lhes apresentei dois exemplos [ver em [1] e [2]]? Isso nos faria perder o rumo. A investigação mostra que tais sonhos foram sujeitos a um extraordinário grau de deformação. Se, entretanto, eu devesse não levar em conta exigências especiais e selecionasse um sonho a esmo, os senhores provavelmente ficariam muito desapontados. Talvez tivéssemos de observar ou gravar tamanha profusão de idéias, em resposta aos elementos oníricos isolados, que seríamos incapazes de estabelecer uma visão de conjunto do trabalho. Se tomamos nota por escrito de um sonho e então anotamos todas as idéias que emergem como resposta a ele, podemos verificar que essas idéias são muitas vezes mais longas do que o texto do sonho. O melhor plano, portanto, pareceria ser o de escolher alguns sonhos curtos para análise, quando cada um dos quais pelo menos nos dirá algo ou confirmará algum ponto. Decidiremos, assim, seguir esse rumo, a menos que a experiência talvez nos mostre onde realmente podemos encontrar sonhos que foram apenas ligeiramente deformados. No entanto, posso pensar em alguma outra coisa que nos tornará as coisas mais fáceis: algo, ademais, que está em nossa trajetória. Em vez de começarmos por interpretar sonhos completos, nos restringiremos a alguns elementos oníricos e descobriremos, em determinado número de exemplos, como esses podem ser explicados mediante aplicação de nossa técnica.

(a) Uma senhora referiu que, quando criança, sonhava muito freqüentemente que Deus usava na cabeça um chapéu de três bicos feito de papel. O que os senhores podem fazer com esse caso, sem o auxílio daquela que sonhou? Parece totalmente disparatado. Deixa, porém, de ser absurdo quando ouvirmos da senhora que ela costumava usar na cabeça um chapéu desse tipo, às refeições, quando era criança, porque nunca podia resistir ao desejo de dar olhadas furtivas aos pratos dos irmãos e irmãs para ver se eles não tinham ganho porções maiores que a sua. Assim, o chapéu se destinava a funcionar como um par de óculos de proteção. Isso, aliás, era uma parte das informações referentes à sua história [ver em [1] e [2] e seg.], e foi fornecida sem qualquer dificuldade. A interpretação desse elemento e, ao mesmo tempo, de todo esse breve sonho foi feita com o auxílio de mais uma idéia que lhe ocorreu: ‘Quando ouvi dizer que Deus era onisciente e via tudo’, disse, ‘o sonho só pode significar que eu sabia tudo e via tudo, mesmo que procurassem me impedir.’ Parece que este exemplo é simples demais.(b) Uma paciente, que se mostrava cética neste respeito, teve um longo sonho, no decorrer do qual algumas pessoas Ihe falavam acerca de meu livro sobre chistes [1905c] e o elogiavam muito. Então surgiu algo referente a um ‘canal’, talvez um outro livro que mencionava um canal, ou então alguma coisa com canal… ela não sabia … era tudo tão indistinto.Sem dúvida os senhores tenderão a esperar que o elemento ‘canal’, de vez que já era tão indistinto, seria inacessível à interpretação. Têm razão em suspeitar de uma dificuldade; porém a dificuldade não resulta da indistinção: tanto a dificuldade como a indistinção se originam de outra causa. Nada ocorreu a essa paciente em relação a ‘canal’, e eu obviamente não pude elucidá-lo. Pouco tempo depois — para dizer a verdade, no dia seguinte — disse-me que havia pensado em alguma coisa que podia ter algo a ver com o fato. Era, sim, um chiste — um chiste que tinha ouvido. No vapor entre Dover e Calais, um conhecido autor entabulou conversação com um inglês. Este aproveitou a ocasião para citar a frase: ‘Du sublime au ridicule il n’y a qu’un pas. [Do sublime ao ridículo não vai mais que um passo.]’ ‘Sim’, respondeu o autor, ‘le Pas de Calais‘ — querendo dizer que havia pensado que a França era sublime e a Inglaterra, ridícula. Porém o Pas de Calais é um canal — o Canal Inglês [Na verdade, os Estreitos de Dover.]. Os senhores me perguntarão se penso que isso tinha algo a ver com o sonho. Penso que sim, certamente; e dá a solução do elemento enigmático do sonho. Poderão duvidar de que esse chiste, já antes de ocorrer o sonho, estava presente na qualidade de pensamento inconsciente, oculto por trás do elemento ‘canal’? Podem os senhores supor que foi introduzido como invenção subseqüente? A associação revelou o ceticismo que jaz oculto na admiração ostensiva da paciente; e sua resistência contra a revelação desse fato era sem dúvida a causa comum tanto de sua demora em fornecer a associação, como da indistinção do elemento onírico em referência. Considerem a relação entre o elemento onírico e seu terreno inconsciente: era como se fosse um fragmento desse terreno, uma alusão ao mesmo, tendo-se tornado ininteligível ao ser isolado.(c) Como parte de um sonho um tanto longo, um paciente sonhou que diversos membros de sua família estavam sentados em volta de uma mesa de formato especial, etc. Ocorreu-lhe, em relação à mesa, que ele tinha visto um móvel desse tipo quando visitava determinada família. Seus pensamentos continuaram revelando que havia um relacionamento peculiar entre pai e filho, nessa família; e logo acrescentou que o mesmo se passava, de fato, nas relações entre ele próprio e seu pai. Assim, a mesa passou a fazer parte do sonho a fim de assinalar esse paralelo.O sonhador há muito se havia familiarizado com os requisitos da interpretação de sonhos. Outras pessoas talvez pudessem fazer objeções a que detalhes tão triviais, como o formato de uma mesa, se tornassem objeto de investigação. Na realidade, porém, não consideramos que algo seja casual ou indiferente em um sonho, e esperamos obter informações precisamente a partir da explicação desses detalhes triviais e despropositados. Os senhores talvez também se sintam surpresos com o fato de que o pensamento de que ‘a mesma coisa era verdadeira para nós e para eles’ deveria ter sido expresso, em especial, pela escolha da forma da mesa [Tisch]. Isso, contudo, também se aclara quando os senhores se dão conta de que o nome da família em questão era Tischler [literalmente, ‘marceneiro’]. Ao fazer seus parentes se sentarem a essa Tisch, ele estava dizendo que também eles eram Tischlers. Aliás, os senhores observarão quão inevitavelmente se é levado a ser indiscreto ao referir essas interpretações de sonhos. E perceberão que essa é uma das dificuldades a que aludi na escolha dos exemplos. Poderia facilmente ter escolhido um outro exemplo em lugar deste, provavelmente; porém, eu apenas teria evitado tal indiscrição e iria cometer uma outra.Parece haver chegado o momento para eu introduzir dois termos que poderíamos ter empregado há muito tempo. Descreveremos como conteúdo manifesto do sonho aquilo que a pessoa que sonhou realmente nos conta; e o material oculto, que esperamos encontrar acompanhando idéias que lhe acodem à mente, chamaremos de pensamentos oníricos latentes. Desse modo, consideramos aqui as relações entre o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos oníricos latentes conforme se mostrou nesses exemplos. Essas relações podem ser de muitas espécies diferentes. Nos exemplos (a) e (b) o elemento manifesto também é um constituinte dos pensamentos latentes, embora sendo apenas uma pequena parte deles. Uma pequena porção da grande e complexa estrutura psíquica dos pensamentos oníricos inconscientes também conseguiu ter acesso ao sonho manifesto — um fragmento desses pensamentos ou, em outros casos, uma alusão aos mesmos, uma manchete, por assim dizer, ou uma abreviação em estilo telegráfico. É atribuição do trabalho de interpretação reunir esses fragmentos ou essa alusão para completar um todo — o que foi conseguido de modo especialmente preciso no caso do exemplo (b). Assim, uma forma da deformação que constitui a elaboração onírica é a substituição por um fragmento ou uma alusão. No exemplo (c) pode-se observar outro tipo de relação, além deste; e a encontramos expressa em forma ainda mais pura e clara nos exemplos que se seguem.

(d) O sonhador estava puxando uma mulher (determinada mulher, conhecida sua) de detrás de uma cama. Ele mesmo encontrou o significado desse elemento onírico, partindo da primeira idéia que lhe ocorreu. Significava que estava manifestando sua preferência por essa mulher.(e) Outro homem sonhou que seu irmão estava numa caixa [Kasten]. Em sua primeira resposta, ‘Kasten‘ foi substituída por ‘Schrank‘ [armário], e a segunda deu a interpretação: seu irmão estava se restringindo [‘schränkt sich ein’].(f) O sonhador subia ao cume de uma montanha de onde se descortinava uma paisagem extraordinariamente ampla. Este sonho parece bastante racional e os senhores poderiam supor que não há o que interpretar nele, e que tudo quanto temos a fazer é interrogar sobre qual lembrança deu origem ao sonho e a razão de essa lembrança ter sido despertada. Enganar-se-iam porém. Verificou-se que este sonho estava carecendo de uma interpretação, tanto quanto qualquer outro mais confuso. Pois não foi de nenhuma escalada de montanha que o homem se recordou; na realidade, pensou em um conhecido seu, editor de uma ‘Rundschau‘. que tratava de nossas relações com as mais distantes regiões da Terra. Assim, o pensamento onírico latente era uma identificação desse homem com o ‘Rundschauer‘.Aqui temos um novo tipo de relação entre os elementos oníricos manifesto e latente. O primeiro não é bem uma deformação do último, e sim uma representação deste, um retrato plástico, e seu ponto de partida se localiza nas palavras. Contudo, precisamente por esse motivo ele é, mais uma vez, uma deformação, porquanto de há muito temos esquecido de que imagem concreta a palavra se originou e, por conseguinte, deixamos de reconhecê-la quando substituída pela imagem. Quando os senhores consideram que o sonho manifesto é constituído predominantemente de imagens visuais e, mais raramente, de pensamentos e palavras, podem imaginar que importância se atribui a esse tipo de relação na construção dos sonhos. Os senhores também verão que assim, em face de um grande número de pensamentos abstratos, se torna possível criar quadros que funcionem como substitutos desses pensamentos no sonho manifesto, ao passo que simultaneamente se ajustam à finalidade de ocultar. Essa é a técnica das conhecidas figuras enigmáticas. Por que possuem essas figuras aparência de serem brincadeiras, é um problema especial com o qual não precisamos nos envolver, por enquanto.Existe um quarto tipo de relação entre os elementos manifesto e latente, que devo continuar mantendo em segredo dos senhores até que cheguemos à sua palavra-chave ao tecermos considerações sobre a técnica. Mesmo assim não terei apresentado uma lista completa; porém, serve às nossas finalidades. Os senhores se sentem agora com coragem suficiente para se aventurarem a interpretar um sonho inteiro? Façamos a experiência, para verificar se estamos bem equipados para a tarefa. Naturalmente não selecionarei um dos mais obscuros; mesmo assim, será um sonho que fornecerá um quadro muito aproximado dos atributos de um sonho.Pois bem, vamos ao caso. Uma senhora que, embora ainda jovem, estava casada há muitos anos, teve o seguinte sonho: Ela estava no teatro com seu marido. Um lado da primeira fila de cadeiras estava completamente vazio. Seu marido lhe disse que Elise L. e seu noivo também tinham pretendido ir, porém só poderiam conseguir lugares ruins — três por 1 florim e 50 kreuzers — e naturalmente não poderiam adquiri-los. Ela pensou que não teria sido realmente nenhum prejuízo se tivessem conseguido.A primeira coisa que essa senhora nos referiu foi que a causa precipitante do sonho residia em uma alusão do seu conteúdo manifesto. Seu marido realmente lhe havia falado que Elise L., que era aproximadamente da mesma idade dela, há pouco havia contratado casamento. O sonho era uma resposta a essa informação. Já sabemos [ver em [1]] ser fácil, no caso de muitos sonhos, assinalar uma causa desencadeante como essa do dia anterior, e que a pessoa que sonhou muitas vezes é capaz de estabelecê-la para nós sem qualquer dificuldade. Essa senhora, no presente caso, colocou à nossa disposição informações semelhantes para outros elementos do sonho manifesto, também. — De onde veio o detalhe referente a estar vazio um dos lados das cadeiras? Era alusão a um evento real da semana anterior. Ela havia planejado ir assistir a determinada peça e por isso havia comprado seus ingressos com antecedência — com tanta antecedência, que teve de pagar uma taxa de reserva. Quando foram ao teatro, acabaram verificando que a pressa dela era bastante desnecessária, de vez que uma parte das cadeiras da primeira fila estava quase vazia. Teria sido suficiente a antecipação de comprar os ingressos se os tivesse adquirido no dia em que realmente se realizava a representação. Seu marido não deixou de gracejar com ela por ter tido tanta pressa. — Qual era a origem do 1 florim e 50 kreuzers? Surgiu de uma relação bem diferente, que nada tinha a ver com a anterior, mas que também aludia a algumas informações do dia anterior. Sua cunhada recebera de presente 150 florins de seu marido e tinha tido muita pressa — a tola — de correr a uma joalheria e trocar o dinheiro por uma peça de bijuteria. — De onde veio o ‘três’? Ela não conseguia pensar em nada referente a isso, até que levamos em conta a idéia de que Elise L., sua amiga, que noivara recentemente, era só três meses mais nova que ela, embora ela própria estivesse casada há dez anos, aproximadamente. — E a idéia absurda de adquirir três ingressos para apenas duas pessoas? Ela nada tinha a dizer quanto a isso, e não quis referir mais nenhuma idéia ou informação.

De qualquer modo, porém, ela nos havia fornecido tanto material nessas poucas associações, que foi possível, a partir destas, entrever os pensamentos oníricos latentes. Não pode deixar de chamar-nos a atenção o fato de ocorrerem períodos de tempo em diversos pontos das informações que nos deu sobre o sonho, e esses pontos proporcionam um denominador comum das diferentes partes do material. Ela adquiriu os ingressos para o teatro cedo demais, comprou-os superapressadamente, tendo de pagar mais do que o necessário; assim, também sua cunhada estivera com pressa de levar seu dinheiro à joalheria e com ele comprar bijuteria, como se, de outra maneira, fosse perdê-lo. Se, além do ‘cedo demais’ e do ‘com pressa’ que nos chamaram a atenção, tomamos em consideração a causa desencadeante do sonho — a notícia de que sua amiga, embora somente três meses mais nova do que ela, tinha, não obstante, conseguido um excelente marido — e a crítica a sua cunhada, expressa na idéia de que era absurdo ela estar com tanta pressa, então se nos apresenta quase espontaneamente a seguinte construção dos pensamentos oníricos latentes, dos quais o sonho manifesto é um substituto acentuadamente deformado:

‘Realmente, foi absurdo de minha parte ter tanta pressa de casar! Posso ver, pelo exemplo de Elise, que também eu podia arranjar um marido, mais tarde.’ (Estar com pressa demais foi representado por sua própria conduta de comprar os ingressos e pela conduta de sua cunhada, de comprar a bijuteria. Ir ver a peça pareceu um substituto de casar.) Pareceria ser esse o pensamento principal. Talvez possamos ir adiante, embora com menos certeza, pois a análise não deveria prescindir dos comentários da pessoa que sonhou, nos seguintes pontos: ‘E eu poderia ter conseguido um, cem vezes melhor, com o dinheiro!’ (150 florins é cem vezes mais do que 1,50 florim.) No caso de colocarmos seu dote em lugar do dinheiro, significaria que seu marido foi comprado com o dote dela: a peça de bijuteria, assim como os ingressos ruins, seriam substitutos de seu marido. Seria ainda mais satisfatório se o elemento real ‘três ingressos’ tivesse algo a ver com seu marido. [ver adiante, em [1] e [2].] No entanto, até esse ponto ainda não chegamos, por enquanto, em nossa compreensão do sonho. Descobrimos apenas que o sonho expressa o reduzido valor atribuído por ela a seu marido e seu pesar por ter casado tão cedo.

Imagino que ficaremos mais surpresos e confusos do que satisfeitos com o resultado dessa primeira interpretação de sonho. Foi-nos dado demais numa primeira dose — mais do que somos capazes de enfrentar. Já podemos ver que não esgotaremos as lições dessa interpretação de um sonho. Apressemo-nos a separar aquilo que podemos reconhecer como novas descobertas firmadas:

Em primeiro lugar, é algo notável a ênfase principal dos pensamentos latentes residir no elemento ‘estar com pressa demais’; nada disso se pode encontrar no sonho manifesto. Sem a análise, não suspeitaríamos de que esse fator desempenhasse algum papel. Parece, portanto, que no sonho manifesto é possível estar ausente aquilo que de fato constitui coisa principal, o centro dos pensamentos inconscientes. Isso significa que deve ser fundamentalmente modificada a concepção que tivemos do sonho inteiro. Em segundo lugar, no sonho existe uma combinação absurda: três por 1,50 florim. Detectamos nos pensamentos oníricos a afirmação de que ‘foi absurdo (casar tão cedo)’. Pode haver dúvida de que idéia ‘foi absurdo’ é representada pela inclusão de um elemento absurdo no sonho manifesto? E, em terceiro lugar, uma rápida comparação nos mostra que a relação entre os elementos manifesto e latente não é uma relação simples; está longe de ser o caso o fato de um elemento manifesto sempre estar no lugar de um elemento latente. Antes, o que existe é uma relação de conjunto entre as duas camadas, dentro da qual um elemento manifesto pode substituir diversos elementos latentes, ou um elemento latente pode ser substituído por diversos elementos manifestos. [ver adiante em [1].]

No que concerne ao significado do sonho e à atitude da sonhadora para com este, bem poderíamos classificá-lo de igualmente surpreendente. Realmente, ela concordou com a interpretação, porém estava assombrada com ela. Não tinha consciência de como era reduzido o valor que atribuía a seu marido; e nem sabia por que tinha de desvalorizá-lo tanto. Assim, a este respeito muita coisa ainda existe por compreender. Com efeito, parece-me que ainda não estamos aparelhados para interpretar um sonho, e que primeiro necessitamos receber mais alguns conhecimentos e preparação.

 

CONFERÊNCIA VIII - SONHOS DE CRIANÇAS

 

SENHORAS E SENHORES:

Tenho a impressão de que progredimos depressa demais. Retrocedamos um pouco. Antes de empreendermos a anterior tentativa de vencer a dificuldade da deformação em sonhos com o auxílio de nossa técnica, dissemos [ver em [1]] que a melhor forma de proceder nesse caso seria contornar a dificuldade, atendo-nos a sonhos em que não havia deformação, ou apenas pouca deformação — caso existam tais sonhos. Uma vez mais isso significará um desvio em relação à evolução histórica de nossas descobertas [ver em [1]]; porque, na verdade, só após a técnica de interpretação ter sido coerentemente aplicada e os sonhos deformados terem sido completamente analisados, é que percebemos haver sonhos livres de deformação.Os sonhos que estamos buscando ocorrem em crianças. São breves, claros, coerentes, fáceis de entender, sem ambigüidade; não obstante, são sonhos indubitavelmente. Os senhores, porém, não devem supor que todos os sonhos de crianças sejam desse tipo. A deformação onírica já inicia bem no início da infância, e têm sido relatados sonhos sonhados por crianças entre 5 e 8 anos que possuem todas as características de sonhos de idade maior. Entretanto, se os senhores se limitarem à faixa etária entre o início da atividade mental observável e o quarto ou quinto ano, encontrarão numerosos sonhos portadores das características que se podem descrever como ‘infantis’, e alguns outros do mesmo tipo em anos posteriores da infância. Na verdade, sob certas condições, os próprios adultos têm sonhos que em muito se assemelham aos sonhos tipicamente infantis.Desses sonhos de crianças podemos tirar conclusões, com grande facilidade e certeza, a respeito do caráter essencial dos sonhos em geral, e podemos esperar que essas conclusões sejam comprovadas como decisivas e universalmente válidas.(1) Nenhuma análise, nenhuma aplicação de qualquer técnica é necessária para compreender esses sonhos. Não há necessidade de indagar a uma criança que nos conta seu sonho. No entanto, há que acrescentar ao sonho alguma parcela de informação proveniente de eventos da vida da criança. Invariavelmente existe alguma vivência do dia anterior que nos explica o sonho. O sonho é a reação, durante o sono, da vida mental da criança à experiência que teve no dia precedente.

Tomaremos alguns exemplos, nos quais basearemos nossas demais conclusões.

(a) Um menino de 2 anos foi solicitado a entregar a alguém uma cesta de cerejas como presente de aniversário Obviamente, ele estava muito relutante em fazê-lo, embora lhe houvessem prometido que ganharia algumas das cerejas. Na manhã seguinte, contou que havia sonhado: ‘O Hermann comeu todas as cerejas!’

(b) Uma menina de 3 anos e 3 meses fez a travessia de um lago, pela primeira vez. No local de desembarque, não queria deixar o barco e chorava desconsoladamente. A travessia tinha sido curta demais para ela. Na manhã seguinte anunciou: ‘Noite passada, eu andei no lago.‘ Seguramente podemos acrescentar que essa travessia tinha durado mais tempo.

(c) Um menino de 5 anos e 3 meses foi levado a uma excursão ao Echerntal, perto de Hallstatt. Tinha-lhe sido dito que Hallstatt ficava no sopé do Dachstein. Tinha mostrado grande interesse por essa montanha. De onde ele estava, em Aussee, havia uma linda vista da montanha e o Simony Hut, que a encimava, podia ser reconhecido através de um telescópio. A criança muitas vezes procurava vê-lo através do telescópio — se o conseguiu, não se sabe. A excursão começou em clima de alegre expectativa. Sempre que uma nova montanha surgia aos seus olhos, a criança perguntava: ‘É aquele o Dachstein?’ e foi ficando mais e mais deprimida cada vez que lhe diziam que não. Por fim, ficou completamente calado e se recusou a prosseguir com o resto do grupo na curta subida da cachoeira; acharam que devia estar exausto. Na manhã seguinte, porém, com a fisionomia radiante, falou assim: ‘Na noite passada sonhei que nós estávamos no Simony Hut.’ Assim, fora isso que esperava obter da excursão. Não deu outros detalhes, salvo algo que tinha ouvido antes: ‘Você tem que subir a pé, durante seis horas.’Estes três sonhos nos fornecerão todas as informações de que necessitamos.(2) Como podemos ver, esses sonhos de crianças não são absurdos. São atos mentais inteligíveis, completamente válidos. Os senhores recordarão o que eu lhes disse da opinião médica a respeito de sonhos e da analogia com dedos sem experiência musical passeando sobre as teclas de um piano [ver em [1]]. Não podem deixar de observar quão nitidamente esses sonhos de crianças contradizem tal opinião. De fato, seria por demais estranho se as crianças pudessem executar atos mentais completos, em seu sono, enquanto os adultos se contentassem, sob as mesmas condições, com reações que não fossem nada mais que ‘repuxões’. Ademais, temos toda a razão ao pensar que o sono das crianças é mais eficaz e profundo.

(3) Esses sonhos não apresentam qualquer deformação onírica e, por conseguinte, não exigem nenhuma atividade interpretativa. Neles, o sonho manifesto e o latente coincidem. Assim, a deformação onírica não faz parte das características essenciais do sonho. Espero que isso alivie os senhores. Porém, quando examinarmos esses sonhos mais detidamente, reconheceremos, mesmo neles, uma pequena parcela de deformação onírica, determinada diferença entre o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos oníricos latentes.

(4) Um sonho de uma criança é uma reação a uma experiência do dia precedente, a qual deixou atrás de si uma mágoa, um anelo, um desejo que não foi satisfeito. O sonho proporciona uma satisfação direta, indisfarçada, desse desejo. Recordemos, agora, nossas discussões sobre o papel que desempenham os estímulos somáticos de fora e de dentro como perturbadores do sono e provocadores dos sonhos [ver em [1] e segs.]. Nessa conexão vimos a conhecer alguns fatos incontestes, mas, por meio destes, apenas nos capacitamos a explicar um reduzido número de sonhos. Nesses sonhos de crianças, entretanto, não há nada que assinale a atuação de estímulos somáticos dessa espécie; nisso não poderíamos estar equivocados, pois os sonhos são completamente inteligíveis e fáceis de apreender. Porém, isso não significa que devemos abandonar a questão do estímulo na etiologia do sonho. Podemos apenas nos perguntar como pôde acontecer que, desde o início, esquecessemos que, além dos estímulos somáticos, existem estímulos mentais que perturbam o sono. Afinal de contas, sabemos que excitações dessa natureza são os principais responsáveis pela perturbação do sono em um adulto, impedindo-o de estabelecer o estado de espírito requerido para o adormecer — o interesse em ser retirado do mundo. Ele não deseja interromper a vida; de preferência, continuaria seu trabalho com as coisas nas quais está interessado, e por essa razão não adormece. No caso de crianças, portanto, o estímulo mental — o desejo que não foi satisfeito — e é a isso que reagem com o sonho.

(5) Isso nos abre o caminho mais direto para a compreensão da função do sonho. Na medida em que um sonho é uma reação a um estímulo psíquico, deve equivaler a um manejo do estímulo de maneira tal que este seja eliminado e o sono possa continuar. Ainda não sabemos como esse manejo do estímulo pelo sonho se torna possível, dinamicamente; porém, já estamos verificando que os sonhos não são perturbadores do sono, como erroneamente são denominados, mas guardiães do sono que eliminam as perturbações do sono. Pensamos que deveríamos dormir melhor se não houvesse sonho, porém nos equivocamos; de fato, sem o auxílio do sonho, não poderíamos, absolutamente, ter dormido. É devido a isso que dormimos bem ou mal. O sonho não pode evitar de nos perturbar um pouco, da mesma maneira como um vigia noturno muitas vezes não pode evitar de fazer um pequeno ruído quando persegue os perturbadores do sossego que procuram acordar-nos com seu barulho.

(6) O que origina um sonho é um desejo, e a satisfação deste desejo constitui o conteúdo do sonho — esta é uma das características principais dos sonhos. A outra, igualmente constante, é que um sonho não apenas confere expressão a um pensamento, mas também representa o desejo sendo satisfeito sob a forma de uma experiência alucinatória. ‘Gostaria de ir ao lago‘ é o desejo que origina o sonho. O conteúdo do sonho propriamente dito é: ‘Estou indo ao lago.‘ Portanto, mesmo nesses simples sonhos de crianças, há uma diferença entre o sonho latente e sonho manifesto, há uma distorção do pensamento onírico latente: a transformação de um pensamento em uma vivência. No processo de interpretar um sonho, essa alteração necessita, primeiro, ser desfeita. Se tal vier a revelar-se como a característica mais universal dos sonhos, a parte de sonho que lhes referi anteriormente [ver em [1]] ‘Vi meu irmão em uma caixa [Kasten]’ não deve ser traduzida como ‘meu irmão está se restringindo [schränkt sich ein]’, e sim como ‘Eu gostaria que meu irmão se restringisse: meu irmão deve restringir-se.‘ Das duas características gerais dos sonhos, que agora apresentei, a segunda tem melhor perspectiva de ser aceita sem oposição, do que a primeira. É apenas por meio de exaustivas investigações que podemos estabelecer o fato de que a origem dos sonhos deve ser sempre um desejo, não uma preocupação, uma intenção ou uma censura; isso, porém, não afetará a outra característica: a de que o sonho não faz simplesmente reproduzir esse estímulo, mas remove-o, elimina-o, maneja-o, através de um tipo de vivência.

(7) Com base nestas características dos sonhos podemos voltar, mais uma vez, a uma comparação entre sonho e parapraxia. Nesta, distinguimos entre uma intenção perturbadora e uma intenção perturbada [ver em [1] e segs.], sendo a parapraxia uma conciliação das duas. Um sonho pode se ajustar ao mesmo modelo. A intenção perturbada só pode ser a de dormir. Podemos substituir a intenção perturbadora pelo estímulo psíquico, quer dizer, pelo desejo que pressiona por ser manejado, de vez que até o momento não tomamos conhecimento de nenhum outro estímulo psíquico que perturbe o sono. Também aqui, o sonho é o resultado de uma conciliação. Dorme-se, e, não obstante, se vivencia a remoção de um desejo, satisfaz-se um desejo, porém, ao mesmo tempo, continua-se a dormir. Ambas as intenções são em parte realizadas e em parte abandonadas.

(8) Os senhores estarão lembrados de que, em certa passagem [ver em [1] e [2]], tínhamos a esperança de nos aproximarmos da compreensão dos problemas dos sonhos a partir de determinadas estruturas imaginativas, muito simples de examinar, conhecidas como ‘devaneios’. Ora, esses devaneios são, na realidade, satisfações de desejos, satisfações de ambições e de desejos eróticos que nos são bem conhecidos; porém constituem pensamento, ainda que vividamente imaginado, e jamais são experimentados sob a forma de alucinações. Das duas principais características dos sonhos, então, a menos constante é aqui preservada, ao passo que a outra está totalmente ausente, visto depender do estado de sono e não poder realizar-se no estado de vigília. O uso idiomático, por conseguinte, encerra uma noção do fato de que a satisfação de desejos é uma característica principal dos sonhos. Diga-se de passagem, se nossa vivência nos sonhos é apenas um tipo modificado de imaginação que se tornou possível devido às condições do estado de sono — isto é, um ‘devanear noturno’ — já podemos compreender como o processo de construção de um sonho pode utilizar o estímulo noturno e proporcionar satisfação, visto que o devaneio também é uma atividade vinculada à satisfação, e, na verdade, somente é exercido por esse motivo.

Outros usos idiomáticos, contudo, expressam o mesmo sentido. Existem provérbios conhecidos, como ‘Os porcos sonham com bolotas de carvalho e os gansos sonham com milho’ ou ‘Com que sonham as galinhas? — Com milho.’ Assim, os provérbios descem mais ainda do que nós — abaixo das crianças, até os animais — e afirmam que o conteúdo dos sonhos é a satisfação de uma necessidade. Numerosas expressões idiomáticas parecem apontar na mesma direção: ‘lindo como um sonho’, ‘eu nem sonharia uma coisa dessas’, ‘não imaginei isso nem nos meus sonhos mais ousados’. Neste ponto, o uso idiomático está tomando partido, evidentemente. Tanto que existem também sonhos de ansiedade, e sonhos de conteúdo penoso ou indiferente; porém o uso idiomático permaneceu indiferente a eles. É verdade que se conhece o que se chama de ‘sonhos maus’, mas um sonho é, pura e simplesmente, apenas a doce realização de um desejo. E não existe nenhum provérbio que nos afirme que os porcos e os gansos sonham com sua matança.

É naturalmente inconcebível que a realização de desejos, característica dos sonhos, não tivesse sido percebida por pessoas que escreveram sobre o assunto. Pelo contrário, muitas vezes foi percebida; contudo, a ninguém ocorreu a idéia de reconhecer esta característica como sendo universal e transformá-la em ponto capital da explicação dos sonhos. Bem podemos imaginar o que impediu de fazê-lo; entraremos no assunto mais adiante.

Mas vejam quantos esclarecimentos obtivemos ao examinarmos sonhos de crianças, e com tão pouco esforço o conseguimos: as funções dos sonhos, na qualidade de guardiães do sono; sua origem situada em duas intenções concorrentes, uma das quais, o desejo de dormir, permanece inalterada, ao passo que a outra luta por satisfazer um estímulo psíquico; a evidência de que os sonhos são atos psíquicos com um sentido; suas duas principais características: realização de desejos e vivência alucinatória. E, ao descobrir tudo isso, quase seríamos capazes de esquecer que estávamos comprometidos com a psicanálise. À parte a relação com as parapraxias, nosso trabalho não leva nenhum sinal especial. Qualquer psicólogo, nada conhecendo dos postulados da psicanálise, teria conseguido dar-nos essa explicação dos sonhos de crianças. Por que não o fez?

Se os sonhos do tipo infantil fossem os únicos, o problema estaria resolvido e nossa tarefa terminada; e isso sem termos de fazer perguntas àquele que sonhou, sem tocarmos no inconsciente ou recorrermos à associação livre. É aí, evidentemente, que se situa a continuação de nossa tarefa. Já verificamos repetidamente que as características que se afirmava serem de validade geral, terminaram aplicando-se apenas a um determinado tipo e a um determinado número de sonhos. A questão que se nos apresenta, portanto, é saber se as características gerais que inferimos dos sonhos de crianças possuem uma base mais firme, se elas são válidas também para sonhos que não são tão transparentemente nítidos e cujo conteúdo manifesto não apresenta qualquer sinal de estar relacionado a algum desejo, remanescente do dia anterior. É nossa opinião que esses outros sonhos sofreram uma deformação em profundidade e, por este motivo, não podem ser avaliados à primeira vista. Também suspeitamos que, para explicar essa deformação, necessitaremos da técnica psicanalítica, da qual pudemos prescindir quando tratávamos de entender, ainda há pouco, os sonhos de crianças.

Em todo caso, ainda há uma outra classe de sonhos que se apresentam não-deformados e que, como os sonhos de crianças, facilmente podem ser reconhecidos como realizações de desejos. Estes são os sonhos que, em qualquer época da vida, são suscitados por necessidades corporais imperiosas — fome, sede, necessidade sexual —, isto é, são realizações de desejos sob a forma de reações a estímulos somáticos internos. Assim, tenho anotado um sonho de uma menina de dezenove meses, que consistia em um cardápio ao qual se ligava seu próprio nome. ‘Anna F.‘ morangos, morangos silvestres, omelete, pudim!‘ Isso era uma reação a um dia sem comida, devido a um distúrbio digestivo; este realmente se tinha originado na ingestão da fruta que apareceu por duas vezes no sonho. A avó da criança — suas idades somadas perfaziam setenta anos — simultaneamente foi obrigada a privar-se de alimentos por um dia inteiro, devido um distúrbio ocasionado por um rim flutuante. Ela sonhou, na mesma noite, que havia sido ‘convidada para comer fora’ e que fora regalada com as mais apetitosas iguarias.

Observações levadas a cabo com prisioneiros que foram forçados a jejuar e com pessoas que estiveram sujeitas a privações em viagens e explorações, nos ensinam que, sob essas condições, os sonhos regularmente se centram na satisfação de tais necessidades. Assim, Otto Nordenskjöld (1904, 1, 336 e seg.) escreve, da seguinte maneira, a respeito dos membros de sua expedição, enquanto atravessavam o inverno na Antártida: ‘A direção tomada por nossos pensamentos mais íntimos mostrava-se claramente em nossos sonhos, que nunca foram mais vívidos nem mais numerosos do que nesta época. Mesmo aqueles de nós, que de outro modo sonhavam apenas de vez em quando, tinham longas histórias para contar, quando chegava a manhã, ocasião em que trocávamos experiências desse mundo da imaginação. Todos diziam respeito ao mundo exterior, agora tão distante de nós, embora todas elas muitas vezes estivessem adaptadas a nossas circunstâncias reais… No entanto, comer e beber eram o ponto central ao redor do qual giravam, no mais das vezes, os nossos sonhos. Um de nós, que tinha um dom especial para participar de grandes banquetes durante a noite, se sentia orgulhoso de poder contar, de manhã, que tinha “devorado um jantar de três pratos”. Um outro sonhava com fumo, com montanhas inteiras de fumo; enquanto isso, um terceiro sonhava com um navio que se aproximava, de velas enfunadas, em mar aberto. Mas, esse outro sonho, vale a pena repeti-lo. Um carteiro trazia a correspondência e dava uma longa explicação do motivo pelo qual tivéramos que esperar tanto tempo pela correspondência: ele a havia despachado para o endereço errado e só pudera recuperá-la com grande dificuldade. Naturalmente, sonhávamos com coisas ainda mais impossíveis. Mas havia uma falta muito grande de imaginação, evidenciada por quase todos os sonhos que eu próprio sonhei, ou de que ouvi falar. Certamente seria de grande interesse psicológico se todos esses sonhos pudessem ser registrados. E facilmente se pode compreender quanto desejávamos o sono, pois este podia oferecer a cada um de nós tudo o que mais ardentemente era desejado.’ Assim também, de acordo com Du Prel [1885, 231], ‘Mungo Park, quando estava a ponto de morrer de sede, em uma de suas viagens pela África, sonhava incessantemente com os vales ricamente irrigados e com as campinas de sua terra natal. Em forma semelhante, o barão Trenck, sofrendo os tormentos da fome, à época em que esteve encarcerado na fortaleza de Magdeburg, sonhava que se via rodeado de refeições abundantes; e George Back, que tomou parte na primeira expedição de Franklin, quando estava quase morrendo de inanição em conseqüência de suas terríveis privações, sonhava constante e regularmente com lautas refeições.’

Todo aquele que come algum prato altamente condimentado no jantar e sente sede durante a noite, provavelmente sonha que está bebendo. Naturalmente, é impossível desfazer-se de uma necessidade muito premente de comer e beber, por meio de um sonho. Acorda-se de um sonho dessa natureza ainda com a sensação de sede e tem-se de tomar água, realmente. O efeito produzido pelo sonho é insignificante, neste caso, sob o ponto de vista prático; não obstante, é evidente que ele aconteceu com o objetivo de despertar e fazer agir. Quando a necessidade não é tão intensa, os sonhos de satisfação de necessidades amiúde ajudam a superá-las.

Da mesma forma, proporcionam satisfação os sonhos sob a influência de estímulos sexuais; contudo, estes mostram particularidades que convém mencionar. Como constitui característica do instinto sexual ser um pouco menos dependente do seu objeto do que a fome e a sede, pode constituir uma satisfação real aquela que advém de sonhos de ejaculação; e, como conseqüência de determinadas dificuldades (que terei de mencionar mais adiante) em sua relação com o objeto, acontece, com especial freqüência, que a satisfação real é, ainda assim, vinculada a um obscuro ou distorcido conteúdo do sonho. Essa característica dos sonhos de ejaculação (como foi assinalado por Otto Rank [1912a]) faz deles assunto especialmente favorável ao estudo da deformação onírica. Ademais, todos os sonhos de adultos, originários em necessidades corporais, geralmente contêm junto com a satisfação um outro material; este deriva de fontes de estimulação puramente psíquicas e exige interpretação para que possa ser compreendido.Além disso, não desejo afirmar que os sonhos de realização de desejos, em adultos, construídos segundo padrões infantis, somente aparecem como reações a necessidades imperiosas, que mencionei. Conhecemos também sonhos breves, claros, do tipo que, sob a influência de alguma situação dominante, inquestionavelmente se originam em fontes psíquicas de estimulação. Existem, por exemplo, sonhos de impaciência: se alguém fez preparativos para uma viagem, para uma representação teatral importante para ele, para ir a uma conferência, ou fazer uma visita, pode sonhar com uma satisfação antecipada de sua expectativa; durante a noite anterior ao evento, poderá ver-se a si mesmo chegando ao seu destino, presente no teatro, em conversação com a pessoa que vai visitar. Existem, ainda, aqueles que são apropriadamente chamados de sonhos de conveniência, nos quais uma pessoa que deseja dormir mais, sonha que já está de pé e se lavando, ou que já está na escola, ao passo que, na realidade, ainda está dormindo e preferiria levantar-se num sonho a fazê-lo na realidade. O desejo de dormir, que temos reconhecido como um dos constantes componentes da construção dos sonhos, aparece abertamente nesses sonhos e se revela como o principal construtor onírico. Existem bons motivos para situar a necessidade de dormir em condições de igualdade com as outras grandes necessidades corporais.Aqui está uma reprodução de um quadro de Schwind, exposto na Galeria Schack, de Munique [ver frontispício], que mostra com que perfeição o artista captou a maneira como os sonhos surgem da situação dominante. Seu título é ‘O Sonho do Prisioneiro’, um sonho cujo conteúdo só pode ser sua fuga. Constitui uma solução feliz dar-se sua fuga através da janela, porque é o estímulo da luz entrando pela janela que põe fim ao sono do prisioneiro. Os gnomos, que estão subindo um em cima do outro, sem dúvida representam as posições sucessivas que ele próprio teria de tomar, à medida que subisse até o nível da janela. E, se não me engano, e se não estou atribuindo demasiada deliberação ao artista, o gnomo que se situa mais em cima, que está serrando as grades — isto é, que está fazendo o que o prisioneiro gostaria de fazer — tem semblante igual ao deste.Em todos os sonhos que não sejam os de crianças nem os de tipo infantil, nosso caminho, como disse, está obstruído pela deformação onírica. De início, não podemos dizer se esses outros sonhos também são realizações de desejos conforme suspeitamos, não podemos determinar, a partir do seu conteúdo manifesto, a que estímulo psíquico devem sua origem, e não podemos provar que também eles se esforçam por eliminar esse estímulo, ou, de algum modo, manejá-lo. Devem ser interpretados — isto é, traduzidos —, sua deformação deve ser desfeita, e seu conteúdo manifesto substituído pelo conteúdo latente antes de podermos julgar se aquilo que encontramos nos sonhos infantis pode ser considerado válido para todos os sonhos.

 

CONFERÊNCIA IX - A CENSURA DOS SONHOS

 

SENHORAS E SENHORES:

O estudo dos sonhos de crianças nos ensinou a origem, a natureza essencial e a função dos sonhos. Os sonhos são coisas que eliminam, pelo método da satisfação alucinatória, estímulos (psíquicos) perturbadores do sono. No entanto, conseguimos explicar apenas um grupo dos sonhos de adultos — aqueles que descrevemos como sonhos de tipo infantil. O que se passa com os demais, ainda não sabemos dizer, contudo também não os entendemos. Assim mesmo, chegamos a um dado provisório cuja importância não devemos subestimar. Sempre que um sonho se nos tornou inteiramente inteligível, veio a se revelar como realização de um desejo em forma alucinatória. Essa coincidência não pode ter surgido do acaso, deve ter um significado.Com base em considerações diversas e na analogia com nossa opinião acerca das parapraxias, supusemos, a propósito de sonhos de uma outra espécie [ver em [1] e seg.], que eles seriam um substituto deformado de um conteúdo desconhecido, e que a primeira coisa seria correlacioná-los com esse conteúdo. Nossa tarefa imediata, portanto, consiste em uma investigação que nos leva a compreender essa deformação nos sonhos.Deformação onírica é aquilo que faz com que um sonho nos pareça estranho e ininteligível. A respeito dela queremos saber diversas coisas: primeiro, de onde vem — sua dinâmica — ; segundo, o que faz; e, por último, como faz. Também podemos dizer que a deformação onírica é obra da elaboração onírica; é necessário descrevermos a elaboração onírica e explicarmos as forças que nela operam.E agora, ouçam este sonho. Foi registrado por uma senhora pertencente ao nosso grupo, e, conforme ela nos conta, provém de uma senhora de idade avançada, altamente conceituada e instruída. Não foi feita nenhuma análise do sonho; nossa informante observa que para um analista ele não requer interpretação. E a pessoa que o sonhou também não o interpretou, porém o julgou e o condenou como se compreendesse a maneira de interpretá-lo; pois, a respeito do mesmo, ela disse: ‘E uma coisa chocante e estúpida como esta foi sonhada por uma mulher de cinqüenta anos, que dia e noite não tem outros pensamentos senão os de se preocupar com seu filho!’Aqui, pois, está o sonho — que trata de ‘serviços de amor’ em época de guerra. ‘A paciente dirigiu-se ao Hospital da Guarnição N° 1 e informou ao sentinela do portão que precisava falar com o Chefe do Serviço Médico (mencionando um nome que lhe era desconhecido) visto desejar oferecer seus serviços como voluntária no hospital. Ela pronunciou a palavra “serviço” de tal forma, que o sub-oficial imediatamente compreendeu que ela queria dizer “serviço de amor”. Como se tratava de uma senhora idosa, após alguma hesitação, permitiu que ela passasse. Em vez de encontrar o Chefe do Serviço Médico, contudo, chegou ela a um aposento grande e sombrio no qual estava grande número de oficiais e médicos do exército, alguns de pé e outros sentados em torno de uma longa mesa. Aproximou-se de um cirurgião da equipe com o seu pedido, e ele compreendeu o que ela queria dizer depois de ter esta pronunciado apenas algumas palavras. O fraseado real de seu discurso no sonho foi: “Eu e muitas outras mulheres e moças de Viena estamos prontas para…” nesta altura do sonho, suas palavras se transformaram num sussurro ininteligível “…para as tropas — oficiais e outras patentes, sem distinção.” Ela pôde compreender pela expressão do rosto dos oficiais em parte com uma expressão de constrangimento e em parte de malícia que todos haviam compreendido suas palavras corretamente. Prosseguiu a senhora: “Estou cônscia de que nossa decisão pode parecer surpreendente, mas nossa intenção é realmente séria. Ninguém pergunta a um soldado no campo de batalha se ele deseja morrer ou não.” Seguiu-se um incômodo silêncio de alguns minutos. O médico pôs então um braço em torno de sua cintura e disse: ‘Suponha, madame, que isso realmente viesse a… (murmúrio).” Ela afastou-se dele dizendo com os seus botões: “Ele é como todos os demais”, e retrucou: “Deus do Céu, sou uma velha e nunca poderia chegar a esse ponto. Além disso, há uma condição que deve ser observada: idade deve ser respeitada. Jamais deve acontecer que uma mulher idosa… (murmúrio) … um mero garoto. Isso seria terrível.” “Compreendo perfeitamente”, respondeu o médico. Alguns dos oficiais, e entre eles um que tinha sido pretendente à sua mão quando ela era jovem, riram alto. A seguir, a senhora pediu para ser levada à presença do Chefe do Serviço Médico, pessoa do seu conhecimento, de modo que todo o assunto pudesse ser deslindado, mas verificou, para sua consternação que não podia recordar-lhe o nome. Não obstante, o médico, com o máximo de cortesia e respeito, indicou-lhe o caminho até o segundo andar por uma escada de ferro em caracol muito estreita, que conduzia diretamente da sala até aos andares superiores do edifício. Quando subia, ouviu um oficial dizer: “Essa é uma tremenda decisão a tomar — não importa que uma mulher seja moça ou velha! Belo gesto o dela!” Sentindo simplesmente que estava cumprindo com seu dever ela subiu por uma interminável escada.’‘O sonho se repetiu por duas vezes no decurso de poucas semanas, conforme comentou a senhora, com apenas algumas modificações sem importância e carentes de sentido.’Por sua continuidade, este sonho se assemelha a uma fantasia diurna: nele há poucas interrupções, e alguns dos detalhes de seu conteúdo poderiam ter sido explicados se tivessem sido investigados; porém, como sabem, isto não foi feito. Do nosso ponto de vista, contudo, o que é notável e interessante é que o sonho apresenta diversas lacunas — lacunas não na memória da mulher que o sonhou, mas no conteúdo do próprio sonho. Em três pontos o conteúdo do sonho foi, por assim dizer, extinto; onde ocorrerem essas lacunas o falar foi interrompido por um murmúrio. Como não foi realizada nenhuma análise, estritamente falando, não temos o direito de dizer algo sobre o sentido do sonho. Não obstante, há indícios nos quais podem se fundamentar determinadas conclusões (por exemplo, na expressão ‘serviço de amor’); porém, acima de tudo, as partes do discurso imediatamente anteriores aos murmúrios exigem que sejam preenchidas as lacunas, e de forma nada ambígua. Ao fazermos as inserções, o conteúdo da fantasia se revela como sendo o seguinte: a mulher que teve o sonho, atendendo a uma obrigação patriótica, está apta a colocar-se à disposição das tropas, tanto de oficiais como de outras categorias, para satisfação das necessidades eróticas dos mesmos. Naturalmente, isso é muito censurável, é o modelo de uma fantasia libidinal desavergonhada — tal, porém, absolutamente não aparece no sonho. Precisamente nos pontos onde o contexto exigiria que isso fosse admitido, o sonho manifesto contém um murmúrio indistinto: algo se perdeu ou foi suprimido.

Os senhores pensarão, assim espero, que seja plausível supor que foi justamente a natureza censurável dessas passagens que constituiu o motivo de sua supressão. Onde encontraremos um paralelo de tal evento? Nos dias atuais, não é preciso ir longe. Tomem qualquer jornal político e verificarão que aqui e ali o texto está ausente e, em seu lugar, não se vê nada mais que papel em branco. Isto, como sabem, é obra da censura da imprensa. Nos espaços vazios havia algo que só agradou às autoridades superiores da censura, e por este motivo foi removido — é uma pena, como vêem, pois sem dúvida era o que de mais interessante havia no jornal — o ‘melhor pedaço’.

Noutras ocasiões a censura não funcionou em uma passagem depois de esta já estar pronta. O autor viu com antecedência quais as passagens que se podia esperar suscitassem objeções da censura e, por esta causa, antecipadamente moderou o tom das mesmas, modificou-as ligeiramente ou se contentou com aproximações ou alusões àquilo que originalmente teria fluido de sua pena. Neste caso, não há espaços em branco no papel, contudo as circunlocuções e obscuridades de expressão que aparecem em certos pontos, possibilitarão aos senhores perceber onde houve prévio acatamento à censura.

Pois bem, podemos manter esta comparação. Pensamos que as partes omitidas do discurso do sonho, que foram ocultadas por um murmúrio, de forma semelhante foram sacrificadas a uma censura. Queremos nos referir a uma ‘censura de sonhos’, à qual se deve atribuir uma parcela da deformação onírica. Em qualquer parte onde existem lacunas no sonho manifesto, a censura é responsável por elas. Devemos ir mais adiante e considerar como manifestação da censura toda passagem em que um elemento onírico é recordado de maneira especialmente indistinta, indefinida, duvidosa, em meio a outros elementos construídos mais claramente. No entanto, apenas muito raramente essa censura se manifesta tão indisfarçadamente — tão ingenuamente, se poderia dizer — como nesse exemplo do sonho dos ‘serviços de amor’. A censura age muito mais freqüentemente de acordo com o segundo método, produzindo atenuações, aproximações e alusões, em vez da coisa original. Nas atuações da censura de imprensa não conheço nada semelhante à terceira forma de funcionamento da censura de sonhos; posso, porém, demonstrá-la justamente com o exemplo de um sonho que antes já analisamos. Os senhores se recordam do sonho dos ‘três bilhetes de entrada ruins por 1,50 florim’ [ver em [1]]. Nos pensamentos latentes desse sonho, o elemento ‘superapressadamente, cedo demais’ estava em primeiro plano. Portanto: foi absurdo casar tão cedo — também foi absurdo adquirir os bilhetes de ingresso tão cedo — foi ridículo a cunhada sair tão apressada com o dinheiro para comprar jóias. Nada desse elemento central dos pensamentos oníricos transpareceu no sonho manifesto; neste, a posição central é ocupada por ‘ir ao teatro’ e ‘comprar os ingressos’. Como conseqüência desse deslocamento da ênfase, com esse novo agrupamento dos elementos de conteúdo, o sonho manifesto ficou tão diferente dos pensamentos oníricos latentes, que ninguém suspeitaria da presença destes atrás daquele. Esse deslocamento da tônica é um dos principais instrumentos da deformação onírica e é o que confere ao sonho sua estranheza, que faz com que a própria pessoa que teve o sonho não se mostre inclinada a reconhecê-lo como obra sua.

Omissão, modificação, novo agrupamento do material — são estas, pois, as atividades da censura de sonhos e os instrumentos da deformação onírica. A censura de sonhos, por si mesma, é o agente ou um dos agentes da deformação onírica que agora estamos examinando. Estamos habituados a combinar os conceitos de modificação e reajuste sob o termo ‘deslocamento’.

Após estes comentários sobre as atividades da censura de sonhos, passemos agora à sua dinâmica. Espero que os senhores não tomem o termo antropomorficamente demais e não imaginem o ‘censor dos sonhos’ como um severo homúnculo; contudo, também espero que não assumam muito o termo num sentido de ‘localização’, e não pensem em um centro cerebral do qual proceda uma influência censora dessa ordem, uma influência que chegaria ao fim se esse ‘centro’ fosse lesado ou removido. Por agora, não é nada mais que um termo útil para descrever a relação dinâmica. A palavra não nos impede de perguntarmos por quais intenções é exercida essa influência censora e contra que intenções ela é exercida. E não nos surpreenderemos ao constatar que mais uma vez nos defrontamos com a censura de sonhos, embora, talvez, sem reconhecê-la.Pois é este realmente o caso. Os senhores se recordam de que, ao começarmos a usar nossa técnica de associação livre, fizemos uma descoberta surpreendente. Apercebemo-nos de que nossos esforços de abrir caminho desde o elemento onírico até o elemento inconsciente, do qual aquele é um substituto, encontravam uma resistência [ver em [1] e [2]]. Essa resistência, dissemos, poderia ser de diferentes magnitudes, às vezes enorme, às vezes quase insignificante. Nesse último caso, temos de passar através de apenas alguns elos intermediários em nosso trabalho de interpretação. No entanto, quando a resistência é grande, temos de percorrer longas cadeias de associações a partir do elemento onírico, somos conduzidos para longe deste, e, em nosso caminho, temos de vencer todas as dificuldades representadas pelas objeções críticas às idéias que ocorrem. O que encontramos sob a forma de resistência, em nosso trabalho de interpretação, deve agora ser introduzido na elaboração onírica como censura de sonhos. A resistência à interpretação é apenas a efetivação da censura do sonho. Também nos prova que a força da censura não se esgota com a deformação do sonho e nem se extingue depois disso; que a censura, contudo, persiste como instituição permanente que tem como seu objetivo manter a deformação. Ademais, assim como a força da resistência varia na interpretação de cada elemento do sonho, também a magnitude da deformação engendrada pela censura varia para cada elemento do mesmo sonho. Se compararmos o sonho manifesto com o latente, constataremos que determinados elementos latentes foram totalmente eliminados, outros, modificados em grau maior ou menor, enquanto outros, ainda, foram transportados para o conteúdo manifesto do sonho, inalterados, ou mesmo, talvez, reforçados.Desejávamos, no entanto, perguntar quais são os propósitos que exercem a censura e contra que propósitos ela é exercida. Ora, esta questão, fundamental para o entendimento dos sonhos e talvez, na realidade, da vida humana, é fácil de responder se examinarmos a série de sonhos que foram interpretados. Os propósitos que exercem a censura são aqueles reconhecidos pelo julgamento vigil da pessoa que sonhou, aqueles com o quais o sonhador está de acordo. Os senhores podem ter a certeza de que, se rejeitarem uma interpretação de um de seus próprios sonhos, que tenha sido efetuada corretamente, assim estarão agindo pelos mesmos motivos pelos quais a censura do sonho foi exercida, a deformação do sonho foi ocasionada e a interpretação do sonho se tornou necessária. Vejam o sonho da senhora de cinqüenta anos de idade [ver em [1] e [2]]. Ela achou seu sonho repugnante, sem tê-lo analisado, e se teria indignado mais ainda se Dr. von Hug-Hellmuth lhe houvesse dito algo acerca de sua inevitável interpretação; foi precisamente porque essa senhora condenou o sonho que as passagens censuráveis do mesmo foram substituídas por um murmúrio.As tendências contra as quais se dirige a censura de sonhos devem ser descritas, em primeiro lugar, do ponto de vista dessa instância mesma. Assim sendo, apenas pode-se dizer que invariavelmente são de natureza repreensível, repulsiva do ponto de vista ético, estético e social — assuntos nos quais a pessoa absolutamente não se aventura a pensar, ou somente pensa com aversão. Esses desejos, que são censurados e recebem uma expressão deformada nos sonhos, são, primeiro e acima de tudo, manifestações de um egoísmo desenfreado e impiedoso. E, vejam só, o próprio ego do sonhador surge e desempenha o papel principal no sonho, apesar de muito bem saber esconder-se, para o que muito contribui o conteúdo manifesto. Este ‘sacro egoísmo’ dos sonhos certamente não é desprovido de alguma relação com a atitude que adotamos quando dormimos, que consiste em retirarmos nosso interesse de todo o mundo externo.O ego, liberto de todos os compromissos éticos, também se sente à vontade com todas as exigências do sexo, mesmo aquelas que por muito tempo têm sido condenadas pela nossa educação estética e aquelas que contrariam todos os requisitos das barreiras morais. O desejo de prazer — a ‘libido’, conforme o denominamos — escolhe sem inibição seus objetos e, de preferência, os proibidos: não somente as mulheres de outros homens, mas, acima de tudo, objetos incestuosos, objetos sagrados segundo o consenso da humanidade, mãe e irmã de um homem, pai e irmão de uma mulher. (O sonho dessa senhora de cinqüenta anos também era incestuoso; sua libido estava inequivocamente voltada para seu filho. (ver em [1] e [2].) Desejos sensuais, que imaginamos distantes da natureza humana, mostram-se suficientemente fortes para provocar o surgimento de sonhos. Também surgem ódios rancorosos, sem constrangimento. Desejos de vingança e de morte, dirigidos contra aqueles que nos são mais próximos e mais caros na vida desperta, contra os pais, irmãos e irmãs, marido ou esposa, e contra os próprios filhos, não são nada raros. Esses desejos censurados parecem nascer de um verdadeiro inferno; depois que são interpretados, quando estamos acordados, nenhuma censura a eles nos parece tão rigorosa.

Porém, os senhores não devem acusar o próprio sonho por causa de seu conteúdo mau. Não se esqueçam de que ele executa a função inocente, e, na verdade, útil, de preservar o sono de qualquer perturbação. Essa ruindade não faz parte da natureza essencial dos sonhos. Com efeito, os senhores também sabem que há sonhos que podem ser reconhecidos como satisfação de desejos justificados e de necessidades corporais prementes. Estes, é verdade, não apresentam deformação; mas também não precisam de deformação, porque podem preencher sua função sem insultar os propósitos éticos e estéticos do ego. Atentem também para o fato de que a deformação do sonho é proporcional a dois fatores. Por um lado, ela é tão maior quanto pior é o desejo a ser censurado; mas, por outro lado, também se torna maior à medida que mais severas forem as exigências da censura no momento. Assim, uma moça, educada rigorosamente, pudica, com uma censura implacável, irá distorcer impulsos oníricos que nós, médicos, por exemplo, teríamos de considerar desejos libidinais permissíveis, inofensivos e acerca dos quais, dentro de dez anos, ela mesma fará julgamento igual.Ademais, ainda não fomos tão suficientemente longe a ponto de sentirmos indignação com esse resultado de nosso trabalho de interpretação. Penso que ainda não o compreendemos acertadamente; porém, nossa primeira obrigação é defendê-lo contra certas calúnias. Não há dificuldade em encontrar nele um ponto fraco. Nossas interpretações de sonhos são feitas com fundamento nas premissas que já aceitamos [ver em [1] e seg.]: que os sonhos em geral possuem um sentido, que é correto transportar do sono hipnótico para o normal o fato de existirem processos mentais que, na época considerada, são inconscientes, e que tudo o que ocorre à mente é determinado. Se, com base nessas premissas, tivéssemos chegado a achados plausíveis originados da interpretação de sonhos, deveríamos ter encontrado justificativa para concluir pela validade das premissas. Mas como conseguir isso, se esses achados parecem ser como lhes mostrei? Estaríamos, então, tentados a dizer: ‘Esses achados são impossíveis, carecem de sentido ou, pelo menos, são muito improváveis; portanto, havia algo de errado nas premissas. Ou os sonhos não são fenômenos psíquicos, ou não existe nada inconsciente no estado normal, ou nossa técnica apresenta em si uma falha. Não é mais simples e mais satisfatório supor assim, de preferência a aceitar todas as abominações que se supõe tenhamos descoberto baseados em nossas premissas?’Sim, com efeito! Mais simples e mais satisfatório, no entanto nem por isso necessariamente mais correto. Concedamo-nos tempo: o tema ainda não está maduro para julgamento. E em primeiro lugar, podemos reforçar ainda mais as críticas à nossa interpretação de sonhos. O fato de os achados provenientes dos sonhos serem tão desagradáveis e repulsivos talvez não devesse ter tanto peso. Um argumento mais forte é que as pessoas que têm os sonhos, a quem somos levados a atribuir essas intenções plenas de desejos mediante a interpretação de seus sonhos, as rejeitem muito enfaticamente, e por boas razões o fazem. ‘O quê?’ diz uma delas, ‘o senhor quer me convencer, com este sonho, de que eu lamento ter gasto dinheiro com o dote de minha irmã e com a instrução de meus irmãos? Mas não pode ser assim. Trabalho exclusivamente para meus irmãos e irmãs; não tenho nenhum outro interesse na vida senão cumprir minhas obrigações para com eles, o que, como o mais velho da família, prometera a minha falecida mãe fazer.’ Ou, então, uma mulher poderá dizer a propósito de seu sonho: ‘Pensa que eu desejaria ver meu marido morto? Isso é chocante disparate! É que não somente estamos vivendo um casamento muito feliz — o senhor provavelmente não acreditaria em mim se eu dissesse isso — mas a morte dele me roubaria tudo o que eu tenho neste mundo.’ Um outro homem nos respondeu: ‘O senhor diz que tenho desejos sensuais por minha irmã? Isso é ridículo! Ela não significa absolutamente nada para mim. Estamos brigados, e com ela não tenho trocado uma palavra há anos.’ Poderíamos, talvez, não dar maior importância se tais pessoas não confirmassem nem negassem as intenções que lhes atribuímos; poderíamos dizer que essas eram justamente coisas que elas desconheciam a respeito de si próprias. Porém, quando sentem em si mesmas justamente o contrário do desejo que lhes interpretamos, e quando conseguem provar-nos, através da vida que levaram, estarem dominadas por esse desejo contrário, seguramente somos tomados de surpresa. Não teria chegado a hora de abandonar todo o trabalho que executamos acerca da interpretação de sonhos, como algo cujos achados se reduziram ad absurdum?Não, ainda não. Até mesmo este argumento mais forte desmorona se o examinarmos criticamente. Tendo como certo que na vida mental existem intenções inconscientes, nada se prova ao mostrar que intenções opostas às intenções inconscientes dominam a vida consciente. Quem sabe, na mente há lugar para existirem lado a lado intenções opostas, contradições. Possivelmente, na verdade, a dominância de um impulso seja precisamente a condição necessária para que seu contrário seja inconsciente. Afinal, restam-nos então as primeiras objeções levantadas: as descobertas da interpretação de sonhos não são simples e são muito desagradáveis. À primeira delas podemos responder que toda a paixão dos senhores pelo que é simples não conseguirá solucionar um só dos problemas dos sonhos. Aqui, os senhores precisam se acostumar a enfrentar um complexo estado de coisas. E à segunda objeção podemos responder que os senhores se enganam redondamente quando usam um gostar ou não-gostar daquilo que sentem como fundamento de um julgamento científico. Que diferença faz se as descobertas da interpretação de sonhos lhes parecem desagradáveis ou, na realidade, embaraçosas e repulsivas? ‘Ça n’empêche pas d’exister‘, conforme ouvi meu mestre Charcot dizer, em situação semelhante, quando eu era um jovem médico. Deve-se ter humildade e refrear as simpatias e antipatias quando se deseja descobrir o que é real neste mundo. Se um físico pudesse provar-lhes que, em certo espaço de tempo, a vida orgânica neste planeta chegaria ao fim por meio do congelamento, os senhores se arriscariam a dar-lhe a mesma resposta: ‘Não pode ser assim, a perspectiva é tão desagradável assim?’ Penso que os senhores se calariam até que outro físico viesse e mostrasse ao primeiro um erro em suas premissas ou em seus cálculos. Quando os senhores rejeitam alguma coisa que lhes desagrada, o que fazem é repetir o mecanismo de construção dos sonhos, em vez de entendê-lo e superá-lo.Ora, os senhores poderão prometer não levar em conta o caráter desagradável dos sonhos de realização de desejo censurados, e se apoiarão no argumento de que, afinal, é improvável que seja dado espaço tão grande ao mal na constituição dos seres humanos. A experiência dos senhores, porém, ratifica o que dizem? Não irei discutir o que cada um possa aparentar a si mesmo; mas têm os senhores encontrado tanta benevolência entre os seus superiores e competidores, tanto cavalheirismo entre os seus inimigos e tão pouca inveja em seu meio social, que se sentem na obrigação de protestar contra o fato de a maldade egoísta fazer parte da natureza humana? Não têm os senhores plena consciência de como a média das pessoas tem descontroles e deslealdades em tudo o que diz respeito à vida sexual? Ou não sabem que todas as transgressões e excessos com que sonhamos durante a noite são diariamente cometidos, na vida real, pelas pessoas em sua vida desperta? O que faz aqui a psicanálise senão confirmar a velha sentença de Platão, de que os bons são aqueles que se contentam em sonhar com aquilo que os outros, os maus, realmente fazem?E agora, abstraiam-se dos indivíduos e considerem a grande guerra que ainda devasta a Europa. Pensem na avassaladora brutalidade, na crueldade e nas mentiras que conseguem se alastrar pelo mundo civilizado. Os senhores acreditam realmente que um punhado de homens ambiciosos, trapaceiros, sem consciência, poderiam ter tido êxito em desatrelar todos esses maus espíritos se seus milhões de seguidores não partilhassem de seu crime? Os senhores se arriscariam, nessas circunstâncias, a quebrar lanças em defesa da inexistência do mal na constituição mental da humanidade?Os senhores me farão ver que estou fazendo um julgamento unilateral da guerra: que esta também faz manifestar-se o que há de mais belo e nobre nos homens, seu heroísmo, seu auto-sacrifício, seu senso social. Sem dúvida; mas os senhores não se estarão revelando cúmplices da injustiça que tem sido feita à psicanálise, de reprová-la, negando uma coisa só porque ela afirmou outra? Não é nossa intenção questionar os nobres reforços da natureza humana, e nunca fitemos algo que lhe diminuísse o valor. Pelo contrário; estou mostrando aos senhores não apenas os maus sonhos de realização de desejo que são censurados, mas também a censura que os suprime e os torna irreconhecíveis. Damos ênfase maior àquilo que nos homens é mau tão-somente porque outras pessoas o rejeitam e, com isso, tornam a mente humana não melhor, mas incompreensível. Se agora deixamos de lado essa avaliação ética unilateral, sem dúvida encontraremos uma fórmula mais correta para a relação entre o bem e o mal na natureza humana.Aí está. Não temos por que abandonar as descobertas de nosso trabalho sobre interpretação dos sonhos, ainda que não consigamos vê-las senão como estranhas. Talvez mais adiante sejamos capazes de nos aproximarmos da compreensão delas a partir de outro enfoque. Por agora, fixemo-nos nisso: a deformação onírica é conseqüência da censura exercida por intenções reconhecidas do ego contra impulsos plenos de desejos de qualquer modo censuráveis, que perturbam nosso interior, à noite, durante nosso sono. Por que isso tem de acontecer especialmente à noite, e de onde procedem esses desejos repreensíveis — ambos constituem um assunto sobre o qual, sem dúvida, ainda há muito a questionar e pesquisar.

Seria injusto, porém, se a esta altura deixássemos de enfatizar suficientemente um outro resultado de nossas investigações. Os sonhos de realização de desejo que procuram nos perturbar o sono, nos são desconhecidos e, na verdade, deles somente tomamos conhecimento através da interpretação de sonhos. Portanto, eles devem ser descritos, segundo o sentido de nossa exposição, como inconscientes no momento atual. Devemos, contudo, refletir que são inconscientes também por duração mais longa do que no momento atual. O sonhador, como temos verificado em tantos casos, também os rejeita depois de chegar a conhecê-los pela interpretação do seu sonho. Aqui nos defrontamos novamente com a situação que, pela primeira vez, encontramos no lapso de língua do ‘arroto’ [ver em [1]], onde o proponente do brinde protestou, indignado, que nem naquela época, nem em qualquer outra época anterior, estivera cônscio de qualquer impulso desrespeitoso em relação a seu chefe. Já naquela ocasião nos assaltaram algumas dúvidas a respeito da validade de uma convicção dessa espécie, e, em vez disso, sugerimos a hipótese de que o orador tinha permanente desconhecimento da presença de semelhante impulso em si próprio. Essa situação se repete, agora, com toda interpretação de um sonho acentuadamente deformado e, conseqüentemente, adquire redobrada importância pelo apoio que confere à nossa opinião. Agora estamos preparados para supor existirem na mente processos e intenções dos quais a pessoa pode não saber absolutamente nada, nada soube durante longo tempo, e até mesmo, talvez, jamais tenha sabido de alguma coisa. Com isso, o inconsciente adquire um novo sentido para nós; a característica de ‘no momento atual’ ou ‘temporário’ desaparece de sua natureza essencial. Pode significar permanentemente inconsciente e não meramente ‘latente em certa época’. Naturalmente, haveremos de ouvir mais a este respeito, em outra ocasião.

 

CONFERÊNCIA X - SlMBOLISMO NOS SONHOS

 

SENHORAS E SENHORES:

Verificamos que a deformação que ocorre nos sonhos e interfere em nossa possibilidade de compreendê-los, resulta de uma atividade censora dirigida contra inaceitáveis impulsos plenos de desejo inconscientes. Não temos afirmado, naturalmente, ser a censura o único fator responsável pela deformação nos sonhos, e, de fato, ao estudá-los mais detidamente podemos descobrir que outros fatores desempenham sua parte na consecução desse resultado. Isso importa em dizermos que, mesmo estando fora de ação a censura onírica, ainda assim não estaríamos em condições de entender os sonhos, o sonho manifesto ainda não seria idêntico aos pensamentos oníricos latentes.Descobrimos esse outro fator que evita que os sonhos sejam nítidos, essa nova contribuição à deformação onírica, ao constatarmos uma lacuna em nossa técnica. Já fiz ver aos senhores [ver em [1]] que, às vezes, realmente acontece não ocorrer à pessoa em análise nenhuma idéia em resposta a determinados elementos de seus sonhos. É verdade que isso não acontece tão seguidamente como a pessoa afirma; em muitíssimos casos, com persistência, brota-lhe uma idéia. Não obstante, restam casos nos quais deixa de surgir uma associação, ou, se essa é obtida, não nos dá o que dela esperávamos. Acontecendo durante um tratamento analítico, isso tem um significado especial que não nos interessa aqui. Contudo, também acontece na interpretação de sonhos de pessoas normais e em nossos próprios sonhos. Se nos convencemos de que, em tais casos, não há pressão que possa nos ser de utilidade, terminamos por descobrir que esse evento indesejado ocorre regularmente em conexão com determinados elementos oníricos, e começamos a reconhecer que um novo princípio geral está em vigor ali onde começávamos a pensar que apenas se nos antepunha uma excepcional falha de técnica.

Assim sendo, somos tentados a interpretar esses elementos oníricos ‘mudos’ em si mesmos, a nos pôr a traduzi-los com nossos próprios recursos. Somos então compelidos a reconhecer que, sempre que nos aventuramos a efetuar uma substituição dessa espécie, encontramos um sentido adequado para o sonho, ao passo que este permanece carente de sentido; e a cadeia de pensamentos se mantém interrompida enquanto nos abstivermos de intervir dessa maneira. A acumulação de muitos casos semelhantes proporciona, por fim, a necessária certeza àquilo que começou como tímida experiência.

Estou expondo tudo isso de modo bastante esquemático. Tal, porém, afinal se permite por motivos didáticos, e nada foi adulterado, mas apenas simplificado. Conseguimos, assim, traduções uniformes para numerosos elementos oníricos — assim como os ‘livros de sonhos’ populares dão traduções para tudo o que aparece nos sonhos. Os senhores naturalmente não se terão esquecido de que, quando usamos técnica associativa, nunca se torna claro por que ocorrem determinadas substituições constantes de alguns elementos oníricos.

Os senhores prontamente farão a objeção de que esse método de interpretação lhes parece muito mais inseguro e passível de ataque do que o anterior, baseado na associação livre. Porém, existe algo mais. Pois, quando, com a experiência, tivermos coligido número suficiente de tais versões constantes, chega a hora em que percebemos que deveríamos ser capazes de lidar com essa parte da interpretação de sonhos por meio de nossos próprios conhecimentos, e que elas poderiam realmente ser compreendidas sem as associações do sonhador. O modo como devemos conhecer necessariamente seu significado se tornará claro na segunda metade desta nossa exposição.Uma relação constante desse tipo entre um elemento onírico e sua versão, nós a descrevemos como ‘relação simbólica’, e ao elemento onírico propriamente dito, como um ‘símbolo’ do pensamento onírico inconsciente. Os senhores estão lembrando de que, anteriormente, quando investigávamos as relações entre elementos oníricos e a coisa ‘original’ situada por trás deles, diferenciei três relações desse tipo — a da parte com o todo, a da alusão e a da representação plástica. Na ocasião eu os adverti de que havia uma quarta relação, porém não citei seu nome [ver em [1]]. Essa quarta relação é a relação simbólica que estou apresentando agora. Ela enseja oportunidade para algumas discussões interessantes, e eu passarei a estas antes de lhes demonstrar os resultados detalhados de nossas observações sobre o simbolismo.

O simbolismo é, talvez, o mais notável capítulo da teoria dos sonhos. Em primeiro lugar, como os símbolos são versões constantes, realizam até certo ponto o ideal da antiga, tanto como da popular, interpretação dos sonhos, do qual, com nossa técnica, nos afastamos muito. Permitem-nos em certas circunstâncias interpretar um sonho sem fazer perguntas ao sonhador que, de qualquer modo, realmente nada teria a nos dizer acerca do símbolo. Se estivermos familiarizados com os símbolos oníricos comuns, e, ademais disso, com a personalidade do sonhador, as circunstâncias em que ele vive e as impressões que precederam a ocorrência do sonho, freqüentemente estaremos em situação de interpretar um sonho com segurança — de traduzi-lo à vista, por assim dizer. Um virtuosismo dessa espécie lisonjeia a quem interpreta o sonho e impressiona aquele que teve o sonho; forma um agradável contraste com a laboriosa tarefa de interrogar o sonhador. Contudo, não se deixem perder-se com isso. Não é de nosso feitio executar atos de virtuosismo. A interpretação baseada no conhecimento dos símbolos não é uma técnica que possa substituir a técnica associativa, nem competir com esta. A técnica dos símbolos suplementa a técnica associativa e produz resultados que apenas possuem utilidade, quando subordinada a esta. E, no que concerne ao conhecimento que se tenha da situação psíquica da pessoa que nos relata seu sonho, devem ter em mente que os sonhos das pessoas que os senhores bem conhecem, não são os únicos que os senhores têm para analisar; ter em mente que, via de regra, os senhores não estão familiarizados com os eventos do dia anterior, que foram aqueles que provocaram o sonho, mas que as associações de idéias da pessoa que os senhores estão analisando lhes proporcionarão um conhecimento preciso daquilo que chamamos situação psíquica.

Ademais, constitui aspecto muito notável — tendo em conta, também, algumas considerações que mencionaremos mais adiante [cf. pág. 169-70] — o fato de se terem manifestado, mais uma vez, as mais violentas resistências contra uma relação simbólica entre os sonhos e o inconsciente. Mesmo pessoas de discernimento e reputação, que, afora isso, têm concordado em muito com a psicanálise, nesse ponto retiraram seu apoio. Esse comportamento se afigura muito estranho; primeiro, em vista do fato de que o simbolismo não constitui peculiaridade exclusiva dos sonhos e não é característico dos mesmos; e, em segundo lugar, o simbolismo nos sonhos não é, de forma alguma, descoberta da psicanálise, embora esta tenha feito muitas outras descobertas surpreendentes. O filósofo K. A. Scherner (1861) deve ser apontado como o descobridor do simbolismo onírico, se é que absolutamente se possam situar seus inícios nos tempos atuais. A psicanálise confirmou os achados de Scherner, embora tenha feito substanciais modificações nos mesmos.

Agora, certamente, os senhores desejam ouvir algo sobre a natureza do simbolismo dos sonhos e ter alguns exemplos. Com satisfação lhes direi o que sei, embora deva confessar que nossa compreensão deste tema não é tão completa como desejaríamos.

A essência desta relação simbólica constitui em ela ser uma comparação, embora não uma comparação de tipo qualquer. Limitações especiais parecem estar vinculadas à comparação, porém é difícil dizer quais sejam elas. Nem tudo aquilo com que podemos comparar um objeto ou um processo aparece nos sonhos como símbolo dessa comparação. E, por outro lado, um sonho não simboliza cada elemento possível dos pensamentos oníricos latentes, mas somente alguns pensamentos determinados. Assim, existem limitações em ambos os sentidos. Devemos admitir, também, que o conceito de símbolo, no momento atual, não pode ser definido com precisão: esse conceito se transfigura gradualmente em noções tais como as de substituição ou representação, e mesmo se aproxima do que entendemos por alusão. Em numerosos símbolos, a comparação que subjaz é óbvia. Entretanto, também aí existem outros símbolos em relação aos quais devemos nos perguntar onde buscaremos o elemento comum, o tertium comparationis, da suposta comparação. Com outras reflexões, podemos posteriormente descobri-lo, ou então ele pode permanecer definitivamente oculto. É ademais estranho que, sendo o símbolo uma comparação, não seja elucidado por uma associação, e que o sonhador não conheça, mas faça uso dele sem saber nada a seu respeito: mais ainda, na verdade, que o sonhador não se sinta disposto a reconhecer a comparação, mesmo depois de esta lhe ter sido mostrada. Os senhores observam, pois, que uma relação simbólica é uma comparação de tipo muito especial, cuja base até agora ainda não apreendemos, embora possamos, posteriormente, chegar a alguma indicação sobre a mesma.

A gama de coisas às quais se confere uma representação simbólica nos sonhos, não é ampla: o corpo humano como um todo, os pais, os filhos, irmãos e irmãs, nascimento, morte, nudez — e algumas outras coisas mais. A representação típica — isto é, regular — da figura humana como um todo é uma casa, conforme foi reconhecido por Scherner, que até mesmo quis atribuir a este símbolo uma importância transcendental que não tem. Em um sonho, pode acontecer alguém sentir-se descendo pela fachada de uma casa, num momento deliciando-se com isso, depois atemorizando-se. As casas com paredes lisas representam homens, e aquelas com saliências e sacadas, em que é possível segurar-se, representam mulheres (ver em [1], adiante). Os pais aparecem nos sonhos como imperador e imperatriz, rei e rainha [loc. cit.] ou outras personagens respeitadas; com isso, os sonhos evidenciam muito respeito filial. Tratam, porém, com muito menos ternura os filhos, os irmãos e as irmãs: estes são simbolizados como pequenos animais ou bichinhos. O nascimento é quase que invariavelmente representado por algo que tem uma conexão com água: ou a pessoa cai dentro da água ou sai da água, a pessoa salva alguém da água ou é resgatada da água por alguém — ou seja, é uma relação mãe-filho [ver em [1]]. Morrer é substituído, nos sonhos, por partir, por viajar de trem ver em [1] e [2]], estar morto é representado por indícios diversos, por assim dizer, obscuros; a nudez, por meio de roupas e uniformes. Os senhores vêem quão indistintos são os limites, aqui, entre a representação simbólica e a alusiva.

É surpreendente que, em comparação com essa reduzida numeração, existe uma outra área em que os objetos e assuntos são representados por um simbolismo extraordinariamente rico. Essa área é a da vida sexual — os genitais, os processos sexuais, a relação sexual. Nos sonhos, a grande maioria dos símbolos são símbolos sexuais. E aqui se revela uma estranha desproporção. Os temas que mencionei são poucos, os símbolos que os representam são, porém, extremamente numerosos, de forma que cada uma dessas coisas pode ser expressa por numerosos símbolos quase equivalentes. Quando interpretados, o resultado origina objeções generalizadas. Pois, em contraste com a multiplicidade das representações no sonho, as interpretações dos símbolos variam muito pouco, o que enfada qualquer pessoa que ouve falar nisso; mas, o que podemos fazer quanto a isto?

Como esta é a primeira vez que falo no tema da vida sexual, em uma destas conferências, devo-lhes uma explanação sobre a maneira pela qual me proponho a tratar do assunto. A psicanálise não tem necessidade de ocultamentos nem de palpites, não pensa que seja necessário envergonhar-se de lidar com esse importante material, acredita que é correto e apropriado nomear cada coisa pelo seu nome certo e espera que esta seja a melhor maneira de manter à distância idéias inadequadas, de natureza desorientadora. O fato de estas conferências estarem sendo proferidas perante um auditório misto de ambos os sexos, não faz qualquer diferença com relação a esse aspecto. Assim como não pode haver ciência in usum Delphini, também não pode havê-la para meninas de colégio; e as senhoras aqui presentes já evidenciaram, por sua própria presença nesta sala de conferências, que desejam ser tratadas em condições de igualdade com os homens.Os genitais masculinos então são representados nos sonhos por numerosas formas que devem ser chamadas simbólicas, nas quais o elemento comum da comparação é em geral muito evidente. Primeiramente, para os genitais masculinos como um todo, o sagrado número 3 tem significação simbólica [ver em [1] e segs.]. O mais notável e, para ambos os sexos, mais interessante componente dos genitais, o órgão masculino, encontra substitutos simbólicos primordialmente em coisas que a ele se assemelham pela sua forma — coisas, portanto, que são alongadas e retas, tais como: bengalas, guarda-chuvas, postes, árvores, e assim por diante; e também objetos que compartilham, com a coisa que representam, da característica de penetrar no corpo e ferir — ou seja, armas pontiagudas de toda espécie, facas, punhais, lanças, sabres e também armas de fogo, rifles, pistolas e revólveres (especialmente adequados por causa de sua forma). Nos sonhos de ansiedade de uma menina, ser seguida por um homem com uma faca ou com arma de fogo desempenha importante papel. Esse talvez seja o caso mais comum de simbolismo onírico, e agora os senhores estão aptos a traduzi-lo com facilidade. E não é difícil compreender de que modo o órgão masculino pode ser substituído por objetos dos quais flui água — torneira, regador, chafariz —, ou, ainda, por outros objetos capazes de se distenderem, tais como lâmpadas suspensas, lápis extensíveis, etc. Um aspecto não menos óbvio do órgão explica o fato de que lápis, canetas, limas, martelos e outros instrumentos são indubitáveis símbolos sexuais masculinos.A extraordinária característica do órgão masculino de ser capaz de erguer-se em desafio às leis da gravidade, um dos fenômenos da ereção, faz com que seja representado simbolicamente por balões, máquinas voadoras e, mais recentemente, pelas aeronaves Zeppelin. Os sonhos, porém, podem simbolizar a ereção de outra maneira, muito mais expressiva. Podem tratar o órgão sexual como sendo a essência da pessoa inteira daquele que sonha e fazê-lo voar. Não se melindrem com a idéia de que os sonhos com voar, tão comuns e freqüentemente tão agradáveis, devam ser interpretados como sonhos de excitação sexual geral, como sonhos de ereção. Entre alunos de psicanálise, Paul Federn [1914] colocou essa interpretação fora de dúvida; contudo, através de suas investigações chegou à mesma conclusão Mourly Vold [1910-12, 2, 791], que tem sido tão elogiado por sua seriedade, quem levou a cabo as experiências com sonhos a que me referi [ver em [1] e [2]] com posições artificialmente assumidas dos braços e pernas, e estava muito distanciado da psicanálise e possivelmente nada sabia a respeito dela. E não façam, a partir daí, a objeção ao fato de as mulheres poderem ter os mesmos sonhos de voar, como os homens. Lembrem-se, antes, de que nossos sonhos objetivam ser realizações de desejos e que o desejo de ser homem com muita freqüência é encontrado, consciente ou inconscientemente, em mulheres. E ninguém que conheça anatomia se espantará com o fato de que é possível às mulheres realizar esse desejo através das mesmas sensações do homem. As mulheres possuem, como parte de seus genitais, um pequeno órgão semelhante ao órgão masculino; e esse pequeno órgão, o clitóris, realmente desempenha na infância e durante os anos anteriores às relações sexuais o mesmo papel que desempenha o grande órgão dos homens.Entre símbolos sexuais masculinos menos inteligíveis situam-se certos répteis e peixes e, acima de tudo, o famoso símbolo da cobra. Certamente não é fácil adivinhar por que chapéus e sobretudos ou capas são empregados da mesma maneira; contudo, seu significado simbólico é bastante inquestionável [ver em [1]]. Finalmente, podemos nos perguntar se a substituição do membro masculino por outro membro, o pé ou a mão, deveria ser descrita como simbólica. Penso que somos compelidos a também fazê-lo, em face ao contexto e aos equivalentes, no caso das mulheres.Os genitais femininos são simbolicamente representados por todos esses objetos que compartilham da característica de possuírem um espaço oco que pode conter algo dentro de si: buracos, cavidades e concavidades, por exemplo; vasos e garrafas, recipientes, caixas, malas, estojos, cofres, bolsas, e assim por diante. Barcos também se incluem nesta categoria. Alguns símbolos têm mais conexão com o útero do que com os genitais femininos: assim, armários, fogões e, mais especialmente, aposentos. Aqui o simbolismo de aposento se aproxima do simbolismo de casa. Portas e portões também são símbolos do orifício genital. Os materiais também são símbolos femininos [ver em [1]]: madeira, papel e objetos feitos desses materiais como mesas e livros. Dentre os animais, caramujos e conchas, pelo menos, são inegáveis símbolos femininos: entre as partes do corpo, a boca (como substituto do orifício genital); entre as construções, igrejas e capelas; como podem observar, nem todos os símbolos são igualmente inteligíveis.Os seios devem ser incluídos nos genitais; sendo hemisférios volumosos do corpo feminino, são representados por maçãs, pêras e frutas, em geral. Os pêlos pubianos de ambos os sexos são representados nos sonhos por florestas e moitas. A complexa topografia das partes genitais femininas torna compreensível o fato de elas serem freqüentemente representadas por paisagens com rochedos, floresta e água, ao passo que o imponente mecanismo do aparelho genital feminino explica por que todo tipo de máquinas, difíceis de descrever, lhe serve de símbolo.Outro símbolo dos genitais femininos, que merece ser mencionado, é o porta-jóias. Jóia e tesouro são usados nos sonhos, assim como na vida desperta, para mencionar alguém que é amado. Doces freqüentemente representam satisfação sexual. A satisfação que uma pessoa obtém com seus próprios genitais é indicada por toda espécie de tocar, inclusive tocar piano. Constituem representação simbólica par excellence da masturbação o deslizar ou escorregar, o arrancar um ramo [ver em [1]]. A queda de um dente, ou a extração de um dente são símbolos oníricos particularmente dignos de reparo. Sua significação primeira é indubitavelmente a castração como castigo pela masturbação [loc. cit.]. Encontramos representações especiais do ato sexual com menos freqüência do que se poderia esperar com base naquilo que se disse até aqui. Atividades rítmicas como dançar, cavalgar e subir devem ser mencionadas aqui, bem como ocorrências violentas, como ser atropelado; e ainda da mesma forma, certas atividades manuais e naturalmente ameaças com armas.Os senhores não devem imaginar que seja muito simples o emprego ou a tradução desses símbolos. No decurso deles, acontecem todos os tipos de coisas que são contrárias às nossas expectativas. Parece quase inacreditável, por exemplo, que nessas representações simbólicas as diferenças entre os sexos amiúde não são nitidamente observadas. Alguns símbolos significam em geral, independentemente de serem masculinos ou femininos, por exemplo: uma criança pequena, um filho pequeno, uma filha pequena. Ou ainda, um símbolo predominantemente masculino pode ser empregado para representar genitais femininos e vice-versa. Não podemos compreender esse fato enquanto não tivermos obtido determinada compreensão interna (insight) da evolução das idéias sexuais nos seres humanos. Em alguns casos, a ambigüidade dos símbolos pode ser apenas aparente; e os símbolos mais marcados, como armas, bolsas e cofres, se excluem desse uso bissexual.

Agora, partindo não da coisa representada, mas sim do símbolo, prosseguirei fazendo um exame de conjunto das áreas das quais geralmente derivam os símbolos sexuais, e farei algumas observações adicionais, com especial referência aos símbolos em que o elemento comum da comparação não está entendido. O chapéu é um símbolo obscuro deste tipo — talvez, também, tudo o que se usa para cobrir a cabeça, em geral — e tem, via de regra, significação masculina, mas é também capaz de ter significação feminina. Da mesma forma, um sobretudo ou uma capa significam um homem, talvez nem sempre se referindo ao aspecto genital; compete aos senhores perguntarem por quê. Gravatas, que são coisas que ficam pendentes e não são usadas por mulheres, são definitivamente um símbolo masculino. Roupa interior e roupa branca geralmente são símbolos femininos. Vestuário e uniformes, conforme já vimos, são substitutos da nudez ou das formas corporais. Sapatos e chinelos são símbolos de genitais femininos. Mesas e madeira já foram mencionadas como símbolos femininos enigmáticos, porém certos. Escadas, degraus, escadarias, ou, mais precisamente, subir ou descer pelos mesmos, são claros símbolos da relação sexual. Pensando melhor, ocorre-nos que aqui o elemento comum é o ritmo de galgá-los — talvez, também, a crescente excitação e a respiração ofegante à medida que se sobe [ver em [1]].Já nos referimos anteriormente a paisagens como representantes dos genitais femininos. Montes e rochedos são símbolos do órgão masculino. Jardins são símbolos comuns dos genitais femininos. Frutas representam não os filhos, mas os seios. Animais selvagens significam pessoas em estado de excitação sensual e, além disso, os maus instintos ou paixões. Botões e flores indicam os genitais femininos ou, em especial, a virgindade. Não se esqueçam de que realmente as flores constituem os genitais das plantas.Já conhecemos aposentos como símbolos. A representação pode ir além, as janelas e portas, com ou sem aposentos, assumindo o significado de orifícios do corpo. E a questão de um aposento estar aberto ou fechado se adapta a este simbolismo, e a chave que o abre é decididamente um símbolo masculino.Esse, pois, o material de que se serve o simbolismo nos sonhos. Não está completo e poderia ser aprofundado e ampliado ainda mais. Imagino, porém, que lhes parecerá mais que suficiente, e talvez até mesmo possa tê-los irritado. ‘Será que de fato vivo no meio de símbolos sexuais?’ — poderão perguntar. ‘São todos os objetos ao meu redor, todas as roupas que visto, todas as coisas que pego, todos símbolos sexuais, e nada mais?’ Existe, com efeito, fundamento suficiente para fazer perguntas atônitas, e, como primeira delas, podemos nos interrogar sobre como realmente chegamos a conhecer a significação desses símbolos oníricos, a respeito dos quais o sonhador nos dá informação insuficiente, ou absolutamente nenhuma informação.Minha resposta é que a aprendemos a partir de fontes muito diversas — de contos de fadas, de mitos, de bufonarias e anedotas, do folclore (isto é, do conhecimento dos usos populares e costumes, da maneira de falar e das canções) e de expressões idiomáticas, poéticas e coloquiais. Em todas essas direções encontramos o mesmo simbolismo e, em alguns deles, podemos entendê-lo sem maior erudição. Se penetrarmos nos detalhes dessas fontes, encontraremos tantas semelhanças do simbolismo onírico, que não podemos deixar de nos convencer de nossas interpretações.Segundo Scherner, como dissemos [ver em [1]], o corpo humano é com freqüência representado nos sonhos pelo símbolo de uma casa. Aprofundando esta representação, verificamos que janelas, portas e portões representavam as aberturas do corpo e que as fachadas das casas eram ou lisas ou providas de sacadas e saliências nas quais se podia encontrar apoio. Contudo, o mesmo simbolismo é encontrado em nossos usos idiomáticos — quando saudamos familiarmente um conhecido, como uma ‘altes Haus‘ [‘casa velha’], quando falamos em dar a alguém ‘eins aufs Dachl‘ [uma pancada na cabeça, literalmente, ‘uma no telhado’], ou quando dizemos de uma pessoa que ‘ela não está bem do sótão’. Na anatomia, os orifícios do corpo são muitas vezes chamados ‘Leibespforten‘ [literalmente, ‘portões do corpo’].

De início parece surpreendente encontrar os pais, nos sonhos, como casal imperial ou real. Isso, porém, tem seu similar nos contos de fadas. Começamos a compreender que as variadas histórias de fadas que começam com ‘Era uma vez um rei e uma rainha’ apenas querem dizer que certa vez havia um pai e uma mãe. Em uma família as crianças são, de brincadeira, chamadas de ‘príncipes’, e o mais velho, de ‘príncipe herdeiro’. O próprio rei se denomina o pai de seu país. Por brincadeira falamos nos filhos como ‘Würmer‘ [‘bichinhos’] e com simpatia nos referimos a uma criança como ‘der arme Wurm‘ [‘pobre bichinho’].

Retornemos ao simbolismo da casa. Quando, em um sonho, fazemos uso das saliências de uma casa para nelas nos segurarmos, podemos nos recordar de uma expressão vulgar comumente usada para designar seios bem desenvolvidos: ‘Ela tem coisa para agarrar.’ Existe outra expressão popular em tais casos: ‘Ela tem muita madeira em frente de casa’, o que parece confirmar nossa interpretação da madeira como símbolo feminino, materno.

E, por falar em madeira, é difícil compreender como esse material veio a representar o que é materno. No entanto, nisso a filologia comparada pode vir em nosso auxílio. Nossa palavra alemã ‘Holz‘ parece provir da mesma raiz da ‘ƒåƒÜƒØ [hulé]’ grega significando material, matéria-prima. Esse parece ser um exemplo da ocorrência não rara de um nome genérico de um material vir a ser, afinal, reservado a algum material determinado. Ora, existe no Atlântico uma ilha chamada ‘Madeira’ Este nome lhe foi dado pelos portugueses quando a descobriram, porque naquela época estava toda recoberta de florestas. Pois na língua portuguesa ‘madeira’ está relacionada a ‘floresta’. Os senhores observam, porém, que ‘madeira’ é apenas uma forma ligeiramente modificada da palavra latina ‘materia‘, que, mais uma vez, significa ‘material’ em geral. Contudo, ‘materia‘ é derivada de ‘mater‘, ‘mãe’: o material do qual tudo é feito, por assim dizer, a mãe de tudo. Esse conceito antigo da coisa sobrevive, portanto, no uso simbólico de madeira como ‘mulher’ ou ‘mãe’.

O nascimento é geralmente expresso nos sonhos por meio de alguma conexão com a água: a pessoa cai na água ou é tirada das águas — dá à luz ou nasce. Não devemos nos esquecer de que este símbolo consegue se utilizar, em dois sentidos, da verdade da evolução. Não apenas todos os mamíferos terrestres, inclusive os ancestrais do homem, descendem de seres aquáticos (este é o mais remoto dos dois fatos), mas também todo mamífero, todo ser humano, passou a primeira fase de sua existência na água — ou seja, na qualidade de embrião, no líquido amniótico do útero materno, e saiu dessa água ao nascer. Não digo que aquele que sonha sabe disso; por outro lado, afirmo que ele não necessita saber. Existe algo mais que o sonhador provavelmente sabe, por lhe haver sido dito em sua infância; assim mesmo, afirmo que, se soubesse, esse conhecimento em nada contribuiria para a construção do símbolo. Foi-lhe dito, quando criança, que é a cegonha que traz os bebês. Mas de onde os busca? Do lago, ou do rio — mais uma vez, pois, da água. Um de meus pacientes, após lhe haver sido dada esta informação — na época ele era um pequeno conde — desapareceu por uma tarde inteira. Por fim, foi encontrado de bruços junto à borda do lago do castelo, com seu rostinho pendido sobre a superfície da água, perscrutando atentamente, procurando ver os bebês no fundo da água.

Nos mitos sobre o nascimento de heróis — aos quais Otto Rank [1909] dedicou um estudo comparado, sendo o mais antigo o mito do rei Sargão, de Agade (cerca de 2.800 a.C.) —, uma parte predominante é desempenhada pelo abandono na água e o resgate da água. Rank constatou que isso são representações do nascimento, análogas às que comumente surgem nos sonhos. Quando uma pessoa salva alguém das águas, em um sonho, ela se transforma em sua mãe, ou, simplesmente, em mãe. Nos mitos uma pessoa que salva um bebê das águas admite ser a verdadeira mãe do bebê. Existe uma conhecida anedota cômica segundo a qual perguntaram a um inteligente menino judeu quem era a mãe de Moisés. Respondeu sem hesitação: ‘A princesa.’ ‘Não’, disseram-lhe, ‘ela somente o tirou da água’ ‘Isso é o que ela diz’, replicou, e assim provou que havia encontrado a interpretação correta do mito.Nos sonhos, partir significa morrer. Assim, quando uma criança pergunta onde está alguém que morreu, e de quem sente falta, é costume comum responder-lhe que esse alguém partiu de viagem. Mais uma vez gostaria de desmentir a crença de que o símbolo onírico deriva dessa evasiva. O dramaturgo [Shakespeare, em Hamlet, Ato III, Cena 1] usa a mesma conexão simbólica quando fala na morte como ‘país desconhecido de cujos limites nenhum viajante retorna’. Mesmo na vida comum é freqüente falar em ‘última jornada’. Todo aquele que conhece os rituais antigos se apercebe de como se levava a sério (na religião do antigo Egito, por exemplo) a idéia de uma viagem às regiões da morte. Sobreviveram muitas cópias do Livro dos Mortos, que era fornecido à múmia como um guia de viagem, para ser levado nessa jornada. Desde quando os locais funerários foram separados dos locais de moradia, a última viagem de uma pessoa morta se tornou verdadeiramente uma realidade.E não se pense que o simbolismo genital seja algo encontrado apenas em sonhos. Provavelmente todos os senhores, em uma ou outra ocasião, referiram-se indelicadamente a uma mulher como ‘alte Schachtel‘ [‘caixa velha’], talvez sem saber que estavam usando um símbolo genital. No Novo Testamento encontramos a mulher sendo mencionada como o ‘vaso mais frágil’. As escrituras hebraicas, escritas em um estilo que muito se aproxima da poesia, estão plenas de expressões sexualmente simbólicas, que nem sempre foram corretamente compreendidas e cuja exegese (por exemplo, no caso do Cântico de Salomão) tem causado alguns equívocos. Na literatura hebraica posterior é muito comum encontrar a mulher representada por uma casa, cuja porta representa o orifício sexual. Um homem se queixa, por exemplo, em um caso de perda da virgindade, de haver encontrado a porta aberta. Assim, também nesses escritos o símbolo da mesa representa a mulher. Por isso uma mulher diz de seu marido: ‘Eu lhe preparei a mesa, mas ele a virou.’ Diz-se que as crianças aleijadas surgem porque o homem ‘virou a mesa’. Estes exemplos, eu os tomei de um artigo do Dr. L. Levy de Brünn [1914].O fato de, nos sonhos, também os navios representarem mulheres merece crédito, pois os etimologistas nos dizem que ‘Schiff [navio]’ era originalmente o nome de um recipiente de barro e é a mesma palavra que ‘Schaff‘ [palavra dialetal que significa ‘tina’]. O fato de fogões representarem mulheres e útero, é confirmado pela lenda grega de Periandro de Corinto e sua esposa Melissa. O tirano, segundo Heródoto, faz aparecer o espírito de sua mulher, a quem amara apaixonadamente e, contudo, assassinara por ciúmes, a fim de obter dela algumas informações. A mulher morta provou sua identidade dizendo que ele, Periandro, havia ‘metido seu pão dentro de um forno frio‘, como forma de disfarçar um acontecimento que só era conhecido dos dois. Na revista Anthropophyteia, editada por F. S. Krauss, inestimável fonte de conhecimentos de antropologia sexual, ficamos sabendo que, em determinada região da Alemanha, de uma mulher que deu à luz uma criança se diz que ‘o forno dela se fez em pedaços‘. Pegar fogo, fazer fogo, e tudo o que com isso se relacione, está intimamente entretecido de simbolismo sexual. A chama é sempre um genital masculino e a lareira, o fogão, é seu equivalente feminino.Se os senhores puderem se surpreender com a freqüência com que as paisagens são empregadas nos sonhos para representar os genitais femininos, podem aprender da mitologia geral qual o papel desempenhado pela Mãe Terra nos conceitos e cultos dos povos da Antigüidade, e como sua visão da agricultura era determinada por esse simbolismo. O fato de, em sonhos, um quarto representar uma mulher, os senhores tenderão a atribuí-lo ao uso idiomático de nossa linguagem pelo qual ‘Frau‘ é substituído por ‘Frauenzimmer‘ — o ser humano sendo substituído pelo aposento destinado a ele. De forma semelhante, falamos em ‘Sublime Porte’ significando o sultão e seu governo. Assim, também o título do governante do Egito antigo, ‘Faraó’, significa simplesmente ‘Grande Saguão do Paço’. (No antigo oriente, os pátios entre os duplos portões de uma cidade eram locais de encontro públicos, assim como as praças do mercado do mundo clássico ) Essa derivação, entretanto, parece ser excessivamente superficial. Parece-me mais provável que um aposento se tornou símbolo de mulher por ser o espaço que encerra seres humanos. Já verificamos que ‘casa’ é usada em sentido semelhante; e a mitologia e a linguagem poética nos possibilitam acrescentar ‘cidade’, ‘cidadela’, ‘castelo’ e ‘fortaleza’ como outros símbolos para ‘mulher’. Poder-se-ia facilmente levantar a questão a respeito de sonhos de pessoas que não falam ou não entendem o idioma alemão. Durante esses últimos anos tenho tratado principalmente pacientes de idioma estrangeiro e parece-me que me lembro de que também em seus sonhos ‘Zimmer‘ [‘aposento’] significava ‘Frauenzimmer‘ embora em seus idiomas não tivessem uso semelhante. Existem outras indicações de que a relação simbólica pode ultrapassar os limites da linguagem — o que, aliás, foi afirmado

há muito tempo por um antigo pesquisador de sonhos, Schubert [1814]. No entanto, nenhum de meus pacientes ignorava completamente o alemão, de modo que a decisão deve ser deixada aos analistas que podem coligir dados das pessoas que usam um só idioma, em outros países.

Dificilmente alguma das representações simbólicas dos genitais masculinos não reaparece no uso anedótico, vulgar ou poético, especialmente junto aos dramaturgos clássicos antigos. Entretanto, aqui encontramos não apenas os símbolos que surgem nos sonhos, porém outros mais como, por exemplo, utensílios usados em diversas atividades, e especialmente o arado. Ademais, a representação simbólica da masculinidade nos leva a uma região muito extensa e muito controvertida, que por motivos de economia evitaremos. Gostaria, no entanto, de dedicar algumas palavras a um símbolo que, por assim dizer, se exclui dessa categoria: o número 3. Permanece obscuro o fato de saber se este número deve seu caráter sagrado a essa relação simbólica. O que no entanto parece certo é que numerosas coisas tripartidas existentes na natureza — a folha de trevo, por exemplo — devem seu uso em brasões e emblemas a esse significado simbólico. De maneira semelhante, o lírio tripartido — a chamada fleur-de-lis — e o notável desenho heráldico de duas ilhas tão distantes uma da outra, como a Sicília e a ilha de Man — o tríscele (três pernas meio fletidas irradiando-se de um centro) — parecem ser versões estilizadas dos genitais masculinos. As formas do órgão masculino eram consideradas na Antigüidade como o mais poderoso apotropaico (meio de defesa) contra más influências e, por conseguinte, os amuletos de nossos dias podem, todos eles, ser reconhecidos facilmente como símbolos genitais ou sexuais. Consideremos uma coleção dessas coisas — como são usadas, por exemplo, na forma de pequenos berloques de prata pendentes: trevo de quatro folhas, porco, cogumelo, ferraduras, escada, vassoura de chaminé. O trevo de quatro folhas tomou o lugar do de três folhas, que realmente se presta para ser um símbolo. O porco é um antigo símbolo da fertilidade. O cogumelo é sem dúvida um símbolo do pênis: existem cogumelos [fungos] que devem seu nome sistemático (Phallus impudicus) à sua inconfundível semelhança com o órgão masculino. A ferradura reproduz o contorno do orifício genital feminino, ao passo que a vassoura de chaminé, que se associa à escada, aparece em companhia desta em face de suas funções, às quais vulgarmente se compara o ato sexual. (Cf. Anthropophyteia.) Conhecemos essa escada, em sonhos, como símbolo sexual; aqui o uso idiomático alemão vem em nosso auxílio e nos mostra como a palavra ‘steigen‘ [‘subir’, ou ‘montar’] é usada no que é par excellence um sentido sexual. Dizemos ‘den Frauen nachsteigen‘ [‘perseguir’ (literalmente ‘trepar’) ‘mulheres’], e ‘ein alter Steiger‘ [‘um velho farrista’ (literalmente ‘trepador’)]. Em francês a palavra para degraus de uma escada é ‘marches‘, e encontramos um termo exatamente análogo ‘un vieux marcheur‘. O fato de que, em muitos animais de grande porte, subir ou ‘montar’ na fêmea é um preliminar necessário ao ato sexual, provavelmente se presta a este contexto.‘Arrancar um galho’, como representação simbólica da masturbação, não apenas se coaduna com as descrições vulgares do ato como também possui semelhanças mitológicas amplas. Mas que a masturbação, ou melhor, a punição correspondente — a castração — seja representada pela queda ou extração de dentes, é fato especialmente notável, pois existe na antropologia um seu equivalente, o qual pode ser do conhecimento de apenas um pequeno número das pessoas que sonham. Parece-me inequívoco que a circuncisão, praticada por tantos povos, é um equivalente e substituto da castração. E agora sabemos de determinadas tribos primitivas da Austrália que realizam a circuncisão como um rito da puberdade (na cerimônia em que se celebra o início da maturidade sexual de um menino), enquanto outras tribos, seus vizinhos próximos, substituíram esse ato pela quebra de um dente.A este ponto, encerro minha exposição desses exemplos. São apenas exemplos. A respeito deste assunto conhecemos muito mais; porém os senhores podem imaginar como seria mais rica e mais interessante uma coleção como essa, se fosse reunida não por amadores como nós, e sim por verdadeiros profissionais da mitologia, antropologia, filologia e do folclore.Algumas conseqüências se impõem à nossa atenção; não podem ser completas, porém nos oferecem material para reflexão.Em primeiro lugar, deparamos com o fato de que o sonhador tem à sua disposição uma forma simbólica de expressão que ele desconhece na vida desperta e não reconhece. Isso é tão extraordinário como se os senhores viessem a descobrir que sua empregada doméstica entendesse sânscrito, embora sabendo que ela nasceu numa aldeia da Boêmia e jamais o estudou. Não é fácil explicar tal fato com o auxílio de nossas concepções psicológicas. Apenas podemos dizer que o conhecimento do simbolismo é inconsciente naquele que sonha, que pertence à sua vida mental inconsciente. Contudo, mesmo com essa suposição, não chegamos ao cerne da questão. Até agora apenas nos tem sido necessário supor a existência de esforços inconscientes — isto é, esforços dos quais nada sabemos, temporária ou permanentemente. Agora, porém, trata-se de algo mais que isso simplesmente, de parcelas inconscientes de conhecimento, de conexões de pensamentos, de comparação entre diferentes objetos que resultam na possibilidade de estes serem regularmente colocados um em lugar do outro. Essas comparações não são recém-estabelecidas em cada ocasião; estão de antemão prontas para uso e são completas, de uma vez por todas. Isso está implícito no fato de serem concordantes, quando se trata de indivíduos diferentes — possivelmente, na verdade, concordantes, apesar das diferenças de idioma. Qual pode ser a origem dessas relações simbólicas? O uso idiomático cobre apenas uma parte delas. A multiplicidade de analogias em outras esferas de conhecimento é, na maioria das vezes, desconhecida da pessoa que tem o sonho; nós mesmos tivemos de laboriosamente colecioná-las.Em segundo lugar, tais relações simbólicas não constituem peculiaridade do sonhador ou da elaboração onírica, através da qual elas adquirem expressão. Esse mesmo simbolismo, como vimos, é empregado por mitos e contos de fadas, pelas pessoas em seus ditados e em sua canções, pelo uso idiomático coloquial e pela imaginação poética. O campo do simbolismo é imensamente amplo e o simbolismo onírico constitui apenas pequena parte dele: na verdade, não conduz a nenhum objetivo útil atacar o problema a partir dos sonhos. Muitos símbolos que são comumente usados em outros contextos aparecem no sonho muito raramente, ou absolutamente não aparecem. Alguns símbolos oníricos não podem ser encontrados em todas as áreas, porém, como os senhores viram, apenas num ou noutro lugar. Tem-se a impressão de que nos defrontamos aqui com um modo de expressão antigo, porém extinto, cujas diferentes partes sobreviveram em diferentes campos de fenômenos, uma parte somente aqui, outra somente ali, uma terceira parte, talvez, com suas formas ligeiramente modificadas, em diversas áreas. E nisso, recordo-me da fantasia de um interessante paciente psicótico que imaginou uma ‘linguagem básica’ da qual todas essas relações simbólicas seriam resíduos. Em terceiro lugar, deve ter-lhes causado surpresa que o simbolismo, nas outras áreas que mencionei, não é absolutamente apenas simbolismo sexual, ao passo que nos sonhos os símbolos são empregados quase exclusivamente para expressão de objetos e relações sexuais. Isso também não se explica facilmente. Deveríamos supor que os símbolos, que originalmente possuíam uma significação sexual, mais tarde tenham adquirido outra aplicação e que, ademais disso, a atenuação da representação por símbolos em outros tipos de representação pode estar em conexão com este aspecto? Essas questões evidentemente não podem ser respondidas enquanto não houvermos considerado o simbolismo onírico isoladamente. Podemos apenas manter firme a suspeita de que existe uma relação especialmente íntima entre símbolos,verdadeiros e sexualidade.

Com referência a esse aspecto descobrimos importantes indícios durante esses últimos anos. Um filólogo, Hans Sperber [1912], de Uppsala, que trabalha independentemente da psicanálise, apresentou o argumento de que as necessidades sexuais desempenharam o papel principal na origem e no desenvolvimento da linguagem. Segundo esse autor, os sons originais da linguagem se destinavam à comunicação e atraíam o parceiro sexual; a evolução ulterior das raízes lingüísticas acompanhou as atividades laborativas do homem primitivo. Essas atividades, prossegue ele, eram executadas em comum e acompanhadas por expressões ritmicamente repetidas. Assim, um interesse sexual permaneceu vinculado ao trabalho. O homem primitivo tornou o trabalho aceitável, por assim dizer, tratando-o como equivalente e substituto da atividade sexual. As palavras enunciadas durante o trabalho em comum tinham, pois, dois significados: designavam atos sexuais e também a atividade laborativa que a estes se equiparava. Com o decorrer do tempo as palavras se desvincularam da significação sexual e fixaram-se no trabalho. Em gerações posteriores a mesma coisa aconteceu com as palavras novas, que tinham significado sexual e eram aplicadas a novas formas de trabalho. Desse modo, numerosas raízes de palavras teriam sido formadas, todas elas de origem sexual, perdendo subseqüentemente sua significação sexual. Se é correta a hipótese que delineei aqui, ela nos possibilitaria compreender o simbolismo dos sonhos. Deveríamos entender por que os sonhos, que conservam algumas das condições mais primitivas, mantêm um número tão extraordinariamente grande de símbolos sexuais e por que geralmente armas e utensílios representam o que é masculino, ao passo que materiais e coisas, que se prestam para serem transformados pelo trabalho, representam o que é feminino. A relação simbólica seria o resíduo de uma antiga identidade verbal, coisas que numa época foram chamadas pelo mesmo nome, tanto que os genitais poderiam agora servir como símbolo para os mesmos, nos sonhos.Os aspectos correlatos que encontramos no simbolismo onírico também nos permitem formar uma estimativa dessa característica da psicanálise que lhe permite atrair interesse geral, de uma forma que nem a psicologia nem a psiquiatria conseguiram fazê-lo. No trabalho da psicanálise formam-se vínculos com numerosas outras ciências mentais, cuja investigação promete resultados do mais elevado valor: vínculos com a mitologia e a filosofia, com o folclore, com a psicologia social e com a teoria da religião. Os senhores não ficarão surpresos ao ouvir que uma revista cresceu em solo psicanalítico e seu único objetivo é fortificar esses vínculos. Essa revista é conhecida pelo nome de Imago, fundada em 1912 e editada por Hanns Sachs e Otto Rank. Em todos esses vínculos a participação da psicanálise é, em primeira instância, a de doador e, apenas em menor escala, a de receptor. É verdade que isso lhe traz a vantagem de seus estranhos achados se tornarem mais conhecidos quando constatados também em outras áreas da ciência; porém, em seu conjunto, é a psicanálise que provê os métodos técnicos e as concepções cuja aplicação nesses outros campos deve se mostrar proveitosa. A vida mental dos seres humanos, quando sujeita à investigação psicanalítica, oferece-nos explicações com cujo auxílio conseguimos resolver numerosos enigmas da vida das comunidades humanas ou, pelo menos, enquadrá-los num enfoque verdadeiro.A propósito, ainda não lhes disse absolutamente nada com respeito às circunstâncias em que podemos obter nossa mais profunda compreensão da hipotética ‘linguagem primitiva’, e ao campo em que a maior parte desta sobreviveu. Até virem a conhecê-la, os senhores não poderão formar uma opinião de sua total importância. Pois esse campo é o das neuroses e seu material são os sintomas e outras manifestações dos pacientes neuróticos, para cuja elucidação e tratamento a psicanálise foi, de fato, criada. A quarta de minhas reflexões nos leva de volta ao começo e nos conduz por nosso caminho previamente determinado. Eu disse [ver em [1]] que os sonhos, ainda que não houvesse censura de sonhos, não seriam facilmente inteligíveis para nós, de vez que ainda teríamos de nos defrontar com a tarefa de traduzir a linguagem simbólica dos sonhos para a de nosso pensamento desperto. Assim, o simbolismo é um segundo e independente fator de deformação de sonhos, ao lado da censura de sonhos. É plausível supor, porém, que a censura de sonhos julga conveniente fazer uso do simbolismo, porque isso conduz ao mesmo fim: o caráter estranho e incompreensível dos sonhos.Em breve ficará esclarecido se um estudo adicional dos sonhos não nos poderá colocar em face de um outro fator que contribui para a deformação dos sonhos. Contudo, eu não gostaria de abandonar o tema do simbolismo onírico sem mais uma vez [ver em [1] e [2]] tocar no problema sobre o modo como ele pode encontrar resistência tão acirrada em pessoas instruídas, quando a ampla difusão do simbolismo nos mitos, na religião, na arte e na linguagem é tão inquestionável. A responsável não será novamente sua conexão com a sexualidade?

 

CONFERÊNCIA XI - A ELABORAÇÃO ONÍRICA

 

SENHORAS E SENHORES:

Quando tiverem compreendido adequadamente a censura de sonhos e a representação por símbolos, verdade é que ainda não terão dominado o assunto sobre a deformação em sonhos, e, não obstante, estarão em condições de entender a maioria destes. E para isso os senhores usarão ambas as técnicas complementares: reunir as idéias que acodem à mente do sonhador, até haverem compreendido desde a coisa substituta até a coisa original e, fundados no próprio conhecimento dos senhores, substituir os símbolos por aquilo que representam. Mais adiante discutiremos algumas incertezas que surgem nessa correlação.Podemos agora dedicar-nos mais uma vez à tarefa que tentamos executar anteriormente com recursos inadequados, quando estudávamos as relações entre os elementos dos sonhos e as coisas originais que eles representam. Estabelecemos quatro principais relações, ou seja [ver em [1] e seg.]: relação da parte com o todo, aproximação ou alusão, relação simbólica e representação plástica das palavras. Agora nos propomos empreender a mesma coisa, em escala mais ampla, comparando o conteúdo manifesto de um sonho como um todo com o sonho latente, conforme este é revelado pela interpretação.Espero que os senhores nunca mais venham a confundir essas duas coisas uma com a outra. Se alcançarem esse ponto, terão conseguido compreender melhor os sonhos do que a maioria dos leitores de meu trabalho A Interpretação de Sonhos. E permitam-me lembrar-lhes novamente que o trabalho que transforma o sonho latente no sonho manifesto se chama elaboração onírica. O trabalho que opera em sentido oposto, que intenta chegar ao sonho latente a partir do manifesto, é nosso trabalho interpretativo. Esse trabalho interpretativo procura decifrar a elaboração onírica. Os sonhos de tipo infantil, que reconhecemos como evidente realizações de desejos, ainda assim sofreram determinado grau de elaboração onírica — sofreram uma transformação de desejo em experiência real e, também, via de regra, de pensamentos foram transformados em imagens visuais. No caso deles, não há necessidade de interpretação, porém apenas se requer sejam desfeitas essas duas transformações. A elaboração onírica adicional que ocorre em outros sonhos denomina-se ‘deformação onírica’, e é esta que deve ser decifrada através de nosso trabalho interpretativo.

Tendo comparado as interpretações de numerosos sonhos, estou em condições de lhes apresentar uma descrição sumária daquilo que a elaboração onírica executa com o material dos pensamentos oníricos latentes. Peço-lhes, entretanto, não procurarem entender demais acerca das coisas que lhes digo. Tratar-se-á de uma descrição que deve ser ouvida com serena atenção.A primeira realização da elaboração onírica é a condensação.

Entendemos, com isso, que o sonho manifesto possui um conteúdo menor do que o latente, e é deste uma tradução abreviada, portanto. Às vezes a condensação pode estar ausente; via de regra se faz presente e, muitíssimas vezes, é enorme. Jamais ocorre uma mudança em sentido inverso; ou seja, nunca encontramos um sonho manifesto com extensão ou com conteúdo maior do que o sonho latente. A condensação se realiza das seguintes maneiras: (1) determinados elementos latentes são totalmente omitidos, (2) apenas um fragmento de alguns complexos do sonho latente transparece no sonho manifesto e (3) determinados elementos latentes, que têm algo em comum, se combinam e se fundem em uma só unidade no sonho manifesto.Se preferirem, podemos reservar o termo ‘condensação’ apenas para o último desses processos. Seus resultados podem ser demonstrados com especial facilidade. Os senhores não terão dificuldade em relembrar exemplos de seus próprios sonhos, em que pessoas diferentes são condensadas em um a só. Um personagem composto, deste tipo, pode, talvez, assemelhar-se a A, mas pode, talvez, assemelhar-se a A, contudo pode estar vestida como B, executar algo que lembre C, e ao mesmo tempo podemos saber que é D. Essa estrutura composta naturalmente está dando ênfase àquilo que as quatro pessoas têm em comum. É possível, naturalmente, formar tal estrutura composta de coisas ou de lugares, do mesmo modo que de pessoas, contanto que as diferentes coisas e lugares tenham em comum algo que o sonho latente acentua. O processo se assemelha à construção de um conceito novo e transitório que tem nesse elemento comum o seu núcleo. O resultado dessa superposição de elementos separados, que foram condensados conjuntamente, é, via de regra, uma imagem difusa e vaga, à semelhança daquilo que sucede quando se batem diversas fotografias sobre uma mesma chapa.A produção de estruturas compostas, como essas referidas, deve ser de grande importância para a elaboração onírica, porquanto podemos demonstrar que ali onde inicialmente faltam os elementos comuns para formá-las, estes são introduzidos deliberadamente — por exemplo, através da escolha da palavra pelas quais um pensamento é expresso. Já encontramos condensações e estruturas compostas dessa espécie. Desempenharam seu papel na produção de determinados lapsos de língua. Os senhores se recordam do jovem senhor que se prontificou a ‘begleitdigen‘ [‘begleiten (acompanhar)’ + ‘beleidigen (insultar)’, ver em [1]] uma senhora. E, também, existem anedotas cuja técnica se baseia em uma condensação desse tipo. Salvo esses casos, porém, pode-se dizer que o processo é muito raro e estranho. É verdade que as partes componentes destinadas a essa construção devem situar-se em algumas criações de nossa imaginação, que está pronta para combinar em uma unidade componentes de coisas que não formam conjunto em nossa experiência corrente — nos centauros, por exemplo, e nos animais fabulosos que aparecem na mitologia antiga ou nos quadros de Böcklin. A imaginação ‘criativa’ realmente é bastante incapaz de inventar qualquer coisa; ela pode apenas combinar entre si componentes que são estranhos. O notável no que se refere ao processo da elaboração onírica, contudo, reside no que vem a seguir. O material disponível à elaboração onírica consiste de pensamentos — alguns deles podem ser censurados ou inaceitáveis, porém são corretamente construídos e expressos. A elaboração onírica dá a esses pensamentos uma outra forma, e constitui fato singular e incompreensível que, sendo feita tal tradução (transmitindo essa mensagem, digamos assim, através de um outro texto da linguagem), esses métodos de mistura e combinação se realizam. Afinal, uma tradução se esforça por preservar as diferenças constantes do texto original e especialmente por manter separadas as coisas que são apenas semelhantes. A elaboração onírica, muito ao contrário, procura condensar dois pensamentos diferentes buscando (como um chiste) uma palavra ambígua na qual os dois pensamentos se possam juntar. Não preisamos tentar compreender esse aspecto de uma só vez; no entanto, ele pode ser importante em nosso estudo crítico da elaboração onírica.

Embora a condensação torne os sonhos obscuros, não parece dar-nos a impressão de ela ser efeito da censura. Antes, parece ser devida a um fator automático ou econômico, mas, em todo caso, a censura lucra com ela.Aquilo que a condensação consegue realizar pode ser bastante extraordinário. Às vezes é possível, com seu auxílio, combinar duas seqüências de pensamentos latentes muito diferentes, em um único sonho manifesto, de modo que se pode chegar a algo que parece ser uma interpretação suficiente de sonho, e no entanto, procedendo assim, pode-se deixar de perceber uma possível ‘superinterpretação’.No que concerne à relação entre o sonho latente e o manifesto, a condensação tem como conseqüência o estabelecimento de uma relação não-simples entre os elementos de um e de outro. Um elemento manifesto pode corresponder simultaneamente a diversos elementos latentes e, em sentido inverso, um elemento latente pode desempenhar seu papel em diversos elementos manifestos — existe, por assim dizer, um relacionamento entrecruzado (ver em [1]). Ademais, ao interpretar um sonho verificamos que as associações com um único elemento manifesto nem sempre emergem em seqüência ordenada: muitas vezes devemos esperar até todo o sonho ter sido interpretado.A elaboração onírica assim efetua uma espécie muito inusitada de transcrição dos pensamentos oníricos: não se trata de uma tradução palavra-por-palavra ou sinal-por-sinal; e nem se trata de uma solução feita segundo normas fixas — como seria no caso de se reproduzir apenas as consoantes de uma palavra e eliminar as vogais; e também não é aquilo que se poderia descrever como solução representativa — um elemento sendo invariavelmente escolhido para tomar o lugar de vários elementos; trata-se de algo diferente e muito mais complexo.A segunda realização da elaboração onírica é o deslocamento. Felizmente já procedemos a um exame preliminar do mesmo: pois já sabemos que é inteiramente obra da censura dos sonhos. Manifesta-se de duas maneiras: na primeira, um elemento latente é substituído não por uma parte componente de si mesmo, mas por alguma coisa mais remota, isto é, por uma alusão; e, na segunda, o acento psíquico é mudado de um elemento importante para outros sem importância, de forma que sonho parece descentrado e estranho.A substituição de algo por meio de uma alusão constitui processo corrente também em nosso pensamento desperto, porém existe uma diferença. No pensamento desperto, a alusão deve ser inteiramente inteligível, e o substituto deve estar relacionado, no seu tema, com a coisa original que representa. Também os chistes fazem uso da alusão. Eles prescindem da precondição de haver uma associação no tema e a substituem por associações externas incomuns, tais como semelhança de sons, ambigüidade verbal, e assim por diante. Conservam, contudo, a precondição de inteligibilidade: um chiste perderia toda a sua eficiência se o caminho retroativo que vai da alusão à coisa original não pudesse ser percorrido com facilidade. As alusões usadas para fins de deslocamento nos sonhos estão livres de ambas essas restrições. Elas estão em conexão com o elemento que substituem através das relações mais externas e remotas e são, pois, ininteligíveis; e, quando são desfeitas, sua interpretação dá a impressão de serem um mau chiste ou de constituírem uma explicação aleatória e forçada, tirada não se sabe de onde. Pois a censura de sonhos só consegue seu objetivo quando consegue tornar impossível que se encontre o caminho desde a alusão até a coisa original.O deslocamento do acento é um método sem igual de expressar pensamentos. Algumas vezes o utilizamos no pensamento desperto, a fim de conseguir um efeito cômico. Talvez eu possa recriar aqui a impressão de alheamento causada por esse método recordando uma anedota. Numa aldeia havia um ferreiro que cometera um crime capital. O júri decidiu que o crime devia ser punido; porém, como o ferreiro era o único na aldeia e era indispensável, e como, por outro lado, lá viviam três alfaiates, um destes foi enforcado em seu lugar.

A terceira realização da elaboração onírica é psicologicamente a mais interessante. Consiste em transformar pensamentos em imagens visuais. Deixemos claro que essa transformação não afeta tudo nos pensamentos oníricos; alguns deles conservam sua forma e aparecem no sonho manifesto também como pensamentos ou conhecimentos; e nem são as imagens visuais a única forma na qual os pensamentos se transformam. Ainda assim, eles enfeixam a essência da formação dos sonhos; essa parte da elaboração onírica, como já sabemos, é a segunda parte mais constante [ver em [1] e [2]] e já nos familiarizamos com a representação gráfica das palavras no caso dos elementos oníricos isolados [ver em [1] e [2]].Claro que essa realização não é fácil. Para termos uma idéia de suas dificuldades, suponhamos que os senhores tivessem assumido a tarefa de substituir um editorial político, em um jornal, por uma série de ilustrações. Os senhores teriam de retroceder da escrita alfabética para a escrita pictográfica. Em um tal artigo mencionando pessoas e objetos concretos, os senhores os substituiriam com facilidade e talvez até mesmo com vantagem, por meio de figuras; contudo, as dificuldades começariam quando se tratasse da representação de palavras abstratas e de todos aqueles componentes do discurso que indicam relações entre pensamentos — tal como partículas, conjunções, e assim por diante. No caso de palavras abstratas os senhores conseguirão recorrer a uma variedade de soluções. Por exemplo, os senhores se esforçariam por dar ao texto um enunciado diferente, que talvez pudesse parecer menos usual, porém com mais componentes concretos e possíveis de ser representados. Então os senhores se lembrariam de que a maioria das palavras abstratas são palavras concretas ‘diluídas’, e, por essa razão, teríamos que retroceder, sempre que possível, à significação concreta original de tais palavras. Assim, os senhores teriam o prazer de constatar que podem representar ‘a possessão’ de um objeto pela ação real, física, de estar sentado sobre o mesmo. E a elaboração onírica executa justamente a mesma coisa. Em tais circunstâncias, dificilmente poderiam esperar uma grande precisão daquilo que os senhores representassem: de forma semelhante perdoariam a elaboração onírica por substituir um elemento tão difícil de traduzir em imagens, como, por exemplo, ‘adultério’ [‘Ehebruch‘, literalmente ‘quebra do casamento’] por outra quebra: a fratura de uma perna [‘Beinbruch‘]. E dessa forma os senhores conseguiriam, até certo ponto, compensar a falta de habilidade expressiva da escrita pictórica que estaria supostamente substituindo a escrita alfabética.Para representar aquelas partes do discurso que indicam relações entre pensamentos — ‘porque’, ‘portanto’, ‘entretanto’, etc. — os senhores não poderiam contar com semelhante ajuda à sua disposição; esses constituintes do texto se perderiam à medida que a tradução os transformasse em imagens. Da mesma forma, a elaboração onírica reduz o conteúdo dos pensamentos oníricos à sua matéria-prima de objetos e de atividade. Os senhores se dariam por satisfeitos com haver uma possibilidade de, por alguma forma, deixar entrever, através de sutis detalhes das figuras, determinadas relações não em si capazes de ser representadas. E é precisamente assim que a elaboração onírica consegue expressar algo do conteúdo dos pensamentos oníricos latentes por meio de peculiaridades na forma do sonho manifesto: por sua clareza ou obscuridade, por sua divisão em diversas partes, e assim por diante. O número de partes oníricas em que se divide um sonho geralmente corresponde ao número dos temas principais dos pensamentos no sonho latente. Um sonho introdutório curto freqüentemente faz as vezes de prelúdio a um sonho seguinte mais detalhado, o sonho principal, ou pode proporcionar o motivo para o mesmo; uma oração subordinada nos pensamentos oníricos será substituída pela interpolação de uma mudança de cena no sonho manifesto, e assim por diante. Logo, a forma dos sonhos está longe de não ter alguma importância, e essa mesma forma exige interpretação. Quando diversos sonhos ocorrem durante a mesma noite, têm freqüentemente a mesma significação e indicam que está sendo feita uma tentativa de manejar cada vez mais eficazmente um estímulo de crescente insistência. Em sonhos separados, um elemento especialmente difícil pode estar representado por diversos símbolos — por ‘dobletes’.Se fizermos uma série de comparações entre os pensamentos oníricos e os sonhos manifestos que os substituem, encontraremos toda sorte de coisas para as quais estamos despreparados: por exemplo, que o disparate e o absurdo dos sonhos possuem seu significado. Neste aspecto, com efeito o contraste entre a visão médica e a psicanalítica dos sonhos apresenta uma discordância que não se encontra em qualquer outra área. Segundo o ponto de vista médico, os sonhos são desprovidos de sentido porque a atividade mental nos sonhos abandonou todas as suas faculdades de crítica; segundo nosso ponto de vista, pelo contrário, os sonhos se tornam carentes de sentido quando uma parcela de crítica, incluída nos pensamentos oníricos — um julgamento de que ‘isso é absurdo’ —, tem de ser representada. O sonho que os senhores conhecem, aquele da ida ao teatro (‘três ingressos por 1,50 florim’) [ver em [1]], é um bom exemplo disso. O julgamento que expressou era: ‘foi absurdo casar tão cedo.’De forma semelhante, no decurso de nosso trabalho interpretativo, percebemos o que é que corresponde às dúvidas e incertezas, que tantas vezes se expressam nos sonhos, dúvidas sobre saber se determinado elemento ocorreu em um sonho, se foi isso ou se, pelo contrário, foi alguma outra coisa. Via de regra, nos pensamentos oníricos latentes não há nada correspondente a essas dúvidas e incertezas; estas se devem à atividade da censura de sonhos e devem ser identificadas como tentativas de eliminação que não tiveram muito êxito.Entre os achados mais surpreendentes encontra-se a maneira como a elaboração onírica trata os contrários que ocorrem nos sonhos latentes. Já sabemos [ver em [1] e [2]] que as semelhanças no material latente são substituídas por condensações no sonho manifesto. Pois bem, os contrários são tratados da mesma forma que as semelhanças, e existe uma especial preferência por expressá-los pelo mesmo elemento manifesto. Assim, um elemento no sonho manifesto, capaz de ter o seu contrário, com igual facilidade pode estar se expressando a si próprio, ou seu contrário, ou ambos conjuntamente: apenas o sentido pode decidir qual a versão que se deve escolher. Isto se vincula com o fato adicional de que, nos sonhos, não se encontrará uma representação para ‘não’ — ou, de qualquer modo, uma representação isenta de ambigüidade.Uma oportuna analogia com esse estranho comportamento da elaboração onírica nos é proporcionada com a evolução da linguagem. Alguns filólogos têm afirmado que, nos idiomas mais antigos, os contrários, tais como ‘forte-fraco’, ‘claro-escuro’, ‘grande-pequeno’, são expressos pelas mesmas raízes verbais. (É o que denominamos ‘significação antitética de palavras primitivas’.) Assim, no idioma egípcio antigo, ‘ken‘ originalmente significava ‘forte’ e ‘fraco’. No falar, evitam-se os equívocos, provenientes do uso dessas palavras ambivalentes, através de diferenças de entonação e de gestos concomitantes, e, no escrever, pelo acréscimo de algo chamado ‘determinativo’— uma figura que não se destina a ser falada. Por exemplo, ‘ken‘ com a significação de ‘forte’ era escrito com a figura de um homenzinho na vertical, após os sinais alfabéticos; quando ‘ken‘ representava ‘fraco’, o que se seguia era a figura de um homem instavelmente agachado. Foi somente mais tarde, por meio de ligeiras modificações da palavra homóloga original, que se chegou a duas representações distintas para expressar os contrários nela incluídos. Foi assim que de ‘ken‘ ‘forte-fraco’ derivaram ‘ken‘ ‘forte’ e ‘kan‘ ‘fraco’. Os remanescentes dessa significação antitética antiga parecem ter sido conservados não somente nas mais recentes evoluções dos idiomas mais primitivos como também nos idiomas mais novos e até mesmo em algumas línguas ainda vivas. Aqui estão algumas provas disso, retiradas de K. Abel (1884).No latim, palavras que permaneceram ambivalentes são ‘altus‘ (‘alto’ e ‘profundo’) e ‘sacer‘ (‘sagrado’ e ‘maldito’).Como exemplos de modificações da mesma raiz, posso mencionar ‘clamare‘ (‘chorar’), ‘clam‘ (‘macio’, ‘sossegado’, ‘secreto’); ‘siccus‘ (‘seco’), ‘succus‘ (‘suco’). E em alemão: ‘Stimme‘ [‘voz’], ‘stumm‘ [‘mudo’].Se compararmos línguas afins, encontraremos numerosos exemplos. Em inglês ‘to lock’ (‘fechar’), em alemão ‘Loch‘ [‘buraco’] e ‘Lücke‘ [‘fresta’]. Em inglês, ‘to cleave’; em alemão ‘kleben‘ [‘aderir‘].A palavra inglesa ‘without’ (que é realmente ‘withwithout’, ‘com — sem’) é empregada atualmente apenas como ‘without’ (‘sem’). O ‘with’, além de seu sentido de combinar, originalmente tinha também o de remover; isso ainda se percebe nos compostos ‘withdraw’ (‘remover’) e ‘withhold’ (‘reter’). De maneira semelhante, em alemão ‘wieder‘ [‘junto com’] e ‘wider‘ [‘contra’].Outra característica da elaboração onírica também tem seu correspondente na evolução da linguagem. No antigo idioma egípcio, assim como em outras línguas menos primitivas, a ordem dos sons numa palavra pode ser invertida, ao mesmo tempo conservando a mesma significação. Constituem exemplos disso, no inglês e no alemão. ‘Topf‘ — [‘pot’] (‘panela’); ‘boat‘ (‘barco’) — ‘tub’ (‘banheira’, ‘barco para prática de remo’); ‘hurry’ (‘pressa’) — ‘Ruhe‘ [‘rest’] (‘descanso’); ‘Balken‘ [‘beam’] (‘viga’) — ‘Kloben‘ [‘log’] (‘tora’, ‘madeira’) e ‘club’ (‘clava’); ‘wait‘ (‘esperar’) — ‘täuwen‘ [‘tarry‘] (‘esperar’, ‘demorar-se’). De maneira semelhante, encontramos no latim e no alemão: ‘capere‘ — ‘packen‘ [‘pegar’]; ‘ren‘ — ‘Niere‘ [‘rim’].Inversões, como essas que ocorrem aqui, em palavras isoladas, efetuam-se de várias maneiras na elaboração onírica. Já conhecemos a inversão de significado, a substituição de algo pelo seu oposto [ver em [1] e [2]]. Ademais disso, nos sonhos encontramos diversões de situações, da relação entre duas pessoas — um mundo ‘virado de pernas para o ar’. Muito freqüentemente, em sonhos é a caça que atira no caçador. Ou então encontramos uma inversão na ordem dos eventos, de modo que aquilo que precede causalmente um evento ocorre depois do mesmo, no sonho — como uma produção teatral realizada por uma companhia de terceira categoria, na qual o herói cai morto e o tiro que o matou não é detonado nos bastidores senão bem depois. E também há sonhos nos quais a ordem total dos elementos se encontra invertida de forma que, para se obter sentido, quando de sua interpretação, devemos tomar o último elemento em primeiro lugar e o primeiro, em último. Os senhores também recordam, de quando estudamos o simbolismo dos sonhos, que entrar ou cair na água significa o mesmo que sair dela — -isto é, dar à luz ou nascer [ver em [1]], e que subir uma escadaria ou uma escada é a mesma coisa que descê-la [ver em [1]]. Não é difícil ver qual a vantagem que a deformação onírica pode auferir desta liberdade de representação.Estes aspectos da elaboração onírica podem ser descritos como arcaicos. São igualmente característicos dos sistemas antigos de expressão falada e escrita e importam nas mesmas dificuldades que teremos de abordar, mais adiante, em um sentido crítico.Agora, mais algumas considerações. No caso da elaboração onírica, trata-se claramente da questão de transformar os pensamentos latentes, que são expressos em palavras, em imagens sensoriais, a maioria na forma de imagens visuais. Ora, nossos pensamentos originalmente surgiram de imagens sensoriais desta espécie: seu primeiro material e seus estádios preliminares foram impressões dos sentidos, ou, mais propriamente, imagens mnêmicas dessas impressões. Somente mais tarde as palavras foram vinculadas a essas impressões e as palavras, por sua vez, vincularam-se a pensamentos. Assim, a elaboração onírica submete os pensamentos a um tratamento regressivo e desfaz a sua evolução; e, no decorrer da regressão, tem de ser eliminado tudo o que foi acrescido como aquisição nova no decorrer da evolução das imagens mnêmicas para pensamentos.Tal parece ser, pois, a elaboração onírica. Em comparação com os processos que nela vimos a conhecer, o interesse pelo sonho manifesto deve perder muito de sua importância. Mas dedicarei alguns comentários a este último, pois é dele, somente, que temos conhecimento imediato.É natural devermos perder algo do interesse pelo sonho manifesto. Para nós será indiferente se ele está bem composto, ou se está fracionado em uma série de quadros separados e desconexos. Mesmo quando possui um exterior aparentemente inteligível, sabemos que isso somente se fez pela deformação onírica, e pode ter tão pouca relação orgânica com o conteúdo interno do sonho, como a fachada de uma igreja italiana com uma estrutura e sua planta. Outras ocasiões há em que esta fachada do sonho tem sua significação, e reproduz um importante componente dos pensamentos oníricos latentes com pouca ou nenhuma deformação. Mas isso não podemos saber sem primeiro termos submetido o sonho à interpretação e podermos formar um julgamento, a partir dessa interpretação, do grau de deformação que se realizou. Dúvida semelhante surge quando dois elementos em um sonho parecem ter entrado em relação íntima um com o outro. Isso talvez nos forneça um valioso indício de que podemos juntar também no sonho latente aquilo que corresponde a esses elementos. Em outras ocasiões, porém, podemos nos convencer de que aquilo que é da mesma classe, nos pensamentos oníricos, foi disposto separadamente no sonho.Em geral, deve-se evitar a tentativa de explicar uma parte do sonho manifesto por outra, como se o sonho tivesse sido concebido coerentemente e fosse uma narrativa com ordenação lógica. Pelo contrário, via de regra, é como um pedaço de brecha, composto de diversos fragmentos de rocha unidos por um cimento, de modo que os desenhos que nele aparecem não pertencem às rochas originais inclusas. E há realmente uma parte da elaboração onírica, conhecida como ‘elaboração secundária’, cuja função é conferir um aspecto de unidade e maior ou menor coerência aos produtos primários da elaboração onírica. No transcorrer desta, o material é arranjado segundo o que amiúde é um sentido totalmente confuso, e, onde parece necessário, são feitas interpolações.

Por outro lado, não devemos superestimar a elaboração onírica e atribuir-lhe demasiada importância. As suas realizações, que citei, resumem toda a sua atividade; ela não pode fazer mais que condensar, deslocar, representar em forma plástica e submeter o todo a uma elaboração secundária. O que no sonho aparece como expressão de julgamento, crítica, surpresa ou interferência — nada disso são realizações da elaboração onírica e muito raramente são expressões de pensamentos subseqüentes referentes ao sonho; na sua maioria, são parcelas de pensamentos oníricos que passaram para o sonho manifesto com maior ou menor grau de modificação e adaptação ao contexto. E a elaboração onírica não consegue formar discursos. Com algumas exceções destacadas, os discursos nos sonhos são cópias e combinações de discursos que alguém ouviu ou enunciou para si próprio no dia anterior ao sonho e que foram incluídos nos pensamentos latentes, ou como material ou como instigadores dos sonhos. A elaboração onírica também é incapaz de efetuar cálculos. Estes, quando surgem no sonho manifesto, são, na maioria, combinações de números, cálculos simulados, muito desprovidos de sentido enquanto cálculos e, mais uma vez, apenas cópias de cálculos dos pensamentos oníricos latentes. Nessas circunstâncias, não é de admirar se o interesse, que se havia voltado para a elaboração onírica, logo tende a se deslocar desta para os pensamentos oníricos latentes, que se revelam, deformados em grau maior ou menor, através do sonho manifesto. Mas não existe justificativa para levar tão longe essa mudança de interesse a ponto de, considerando o assunto teoricamente, substituir o sonho, completamente, pelos pensamentos oníricos latentes e afirmar sobre aquele alguma coisa que se aplica exclusivamente a estes. É estranho que os achados da psicanálise possam prestar-se a um mau uso que possibilite confusões. Não se pode dar o nome de ‘sonho’ a nenhuma outra coisa que não seja produto da elaboração onírica — isto é, a forma em que os pensamentos latentes foram transmutados pela elaboração onírica. [ver em [1] e segs.]A elaboração onírica é um processo de tipo muito singular, do qual ainda não se tem conhecido similar na vida mental. Condensações, deslocamentos, transformações regressivas de pensamentos em imagens: eis os novos fatos cuja descoberta premiou abundantemente os esforços da psicanálise. E os senhores podem constatar, uma vez mais, a partir das comparações com a elaboração onírica, as conexões que se revelaram entre os estudos psicanalíticos e outros campos do conhecimento — especialmente os referentes à evolução da linguagem e do pensamento. Somente poderão formar uma idéia da transcendente importância destas descobertas quando aprenderem que o mecanismo da construção onírica é o modelo segundo o qual se formam os sintomas neuróticos.Também estou cônscio de que ainda não estamos em condições de fazer um apanhado geral do total das novas aquisições com que estes estudos contribuíram para a psicologia. Apenas quero assinalar as recentes provas que eles proporcionaram da existência de atos mentais inconscientes — pois é isto que são os pensamentos oníricos latentes — e assinalar quão inimaginável e amplo acesso a um conhecimento da vida mental inconsciente nos promete a interpretação de sonhos.Agora, contudo, sem dúvida chegou a minha ocasião de demonstrar-lhes, dentre uma variedade de pequenos exemplos de sonhos, para que fim estive preparando os senhores no decorrer destes comentários.

 

CONFERÊNCIA XII - ALGUMAS ANÁLISES DE AMOSTRAS DE SONHOS

 

SENHORAS E SENHORES:

Não devem ficar desapontados se, mais uma vez, apresento-lhes fragmentos de interpretações de sonhos, em vez de convidá-los a tomar parte na interpretação de um lindo e grande sonho. Os senhores argumentarão que, após tantos preparativos, têm esse direito, e expressarão sua convicção de que, depois de tantos milhares de sonhos terem sido exitosamente interpretados, já há muito tempo deveria ter sido possível haver juntado uma coleção de excelentes amostras de sonhos sobre as quais todas as nossas assertivas referentes à elaboração onírica e aos pensamentos oníricos pudessem ser demonstradas. Certo. As dificuldades que se opõem à realização do desejo dos senhores, todavia, são muitas.

Em primeiro lugar, devo admitir que ninguém efetua interpretação de sonhos como sua atividade principal. Como ocorre, então, que as pessoas os interpretam? Ocasionalmente, sem nenhum objetivo em vista, alguém pode se interessar por sonhos de um conhecido seu, ou alguém pode esquadrinhar seus próprios sonhos durante algum tempo a fim de preparar-se para o trabalho psicanalítico; mas, na maior parte das vezes, aquilo com que se tem de lidar são os sonhos de pacientes neuróticos que estão em tratamento psicanalítico. Esses sonhos constituem excelente material e de modo algum são inferiores aos de pessoas sadias; a técnica do tratamento, porém, requer que subordinemos a interpretação de sonhos aos objetivos terapêuticos, e temos de permitir que bom número de sonhos tenha sido examinado até havermos extraído dos mesmos alguma coisa de utilidade para o tratamento. Alguns sonhos que ocorrem durante o tratamento escapam inteiramente a uma análise completa: de vez que se originam de um grande acervo de material que ainda nos é desconhecido, é impossível entendê-los antes de o tratamento chegar ao término. Se eu fosse relatar sonhos deste tipo, seria obrigado a desvendar também todos os segredos de uma neurose; e isto não nos servirá, pois foi precisamente a fim de preparar-nos para o estudo das neuroses que enfrentamos o problema dos sonhos.

Os senhores, entretanto, gostariam de dispensar essa parte e prefeririam que lhes fosse dada uma explanação dos sonhos de pessoas sadias ou de sonhos dos senhores mesmos. Isto, contudo, não pode ser feito por causa de seu conteúdo. É impossível submeter seja a si mesmo, seja qualquer outra pessoa de cuja confiança se desfruta, a uma exposição impiedosa que adviria a da análise detalhada de seus sonhos, os quais, como os senhores já sabem, referem-se à parte mais íntima da personalidade. Mas existe ainda outra dificuldade que se opõe, afora a de fornecer material. Os senhores sabem que os sonhos apresentam uma aparência estranha para o próprio sonhador, e ainda mais estranha para quem quer que não o conheça pessoalmente. Nossa bibliografia não é pobre de boas e detalhadas análises de sonhos. Eu mesmo publiquei algumas, dentro do quadro referencial dos casos clínicos. Talvez o melhor exemplo de interpretação de um sonho seja o que foi relatado por Otto Rank [1910b], consistindo em dois sonhos inter-relacionados, tidos por uma jovem, que ocupam cerca de duas páginas impressas: mas sua análise vai a setenta e seis páginas. Assim, eu deveria necessitar de cerca de um semestre inteiro para conduzi-los através de um único trabalho dessa espécie. Se se tomar qualquer sonho relativamente longo e muito deformado, há que fornecer tantas explicações do mesmo, levantar tanto material que surge no curso das associações e das recordações, seguir tantas vias secundárias, que uma conferência a respeito dele seria muito confusa e insatisfatória. Devo, portanto, pedir-lhes que se contentem com o que se pode ter com mais facilidade: uma descrição de pequenas parcelas de sonhos de pacientes neuróticos, em que é possível reconhecer este ou aquele ponto isoladamente. O que é mais fácil de demonstrar são os símbolos oníricos e, depois destes, algumas características da representação regressiva nos sonhos. No caso de cada um dos sonhos que se seguem, indicarei o motivo por que penso valer a pena relatá-lo.

(1) Este sonho consiste em apenas dois quadros breves: O tio dele estava fumando um cigarro, embora fosse sábado. — Uma mulher o acariciava e o acarinhava [ao sonhador] como se fosse seu filho.

Com referência ao primeiro quadro, a pessoa que sonhou (um judeu) comentou que seu tio era um homem piedoso, que nunca fizera e jamais poderia fazer algo assim pecaminoso. No que concerne à mulher, no segundo quadro, não lhe ocorreu nada à mente, exceto sua mãe. Esses dois quadros ou pensamentos devem evidentemente ser vistos um em relação ao outro. Mas, como? Visto que ele negou expressamente a realidade da ação de seu tio, é plausível inserir um ‘se’. ‘Se meu tio, este homem piedoso, viesse a fumar um cigarro em dia de sábado, então eu também poderia permitir-me ser acarinhado pela minha mãe.’ Isto significa, evidentemente, que trocar carícias com sua mãe se constituía em algo não permissível como não seria permissível a um judeu piedoso fumar no sábado. Os senhores se lembram de que eu lhes disse [ver em [1] e [2]] que no decurso da elaboração onírica todas as relações entre os pensamentos oníricos são eliminadas; elas se dissipam dentro da matéria-prima destes e compete à interpretação reinserir as relações omitidas.

(2) Em conseqüência de minhas publicações sobre sonhos, tornei-me, em certo sentido, consultor público sobre assuntos referentes a eles, e, por muitos anos, venho recebendo comunicações das mais variadas origens, em que sonhos me são relatados ou submetidos a meu julgamento. Naturalmente, sou grato a todo aquele que acrescenta ao sonho material suficiente para possibilitar uma interpretação, ou que dá, ele próprio, uma interpretação. O sonho que se segue, sonhado por um estudante de medicina de Munique, e datando do ano de 1910, enquadra-se nesta categoria. Apresento-o para lhes mostrar como, em geral, é impossível compreender um sonho enquanto o sonhador não nos der as informações pertinentes. Pois suspeito que, no fundo, os senhores pensam que o método ideal de interpretação de sonhos consistiria em preencher a significação dos símbolos e que gostariam de prescindir da técnica de obter associações com os sonhos; e estou desejoso de dissuadi-los desse equívoco nocivo.‘13 de julho de 1910. Pela manhã, tive este sonho: Eu estava andando de bicicleta por uma rua de Tübingen, quando um cão rasteiro, de cor marrom, se lançou ao meu encalço e me atacou no calcanhar. Logo desci da bicicleta, sentei num degrau e comecei a espancar o animal que me mordia com firmeza. (Não tive qualquer sentimento desagradável nem pela mordida nem pela cena como um todo.) Algumas senhoras mais idosas estavam sentadas no outro lado da rua, em frente, e riam de mim, mostrando os dentes. Então acordei e, como tantas vezes me aconteceu, no momento da transição para o despertar, o sonho todo se me tornou claro.’

Aqui os símbolos são de pouca ajuda. O mesmo estudante, porém, relatou: ‘Recentemente, me apaixonei por uma jovem, mas apenas pude vê-la na rua e não tive meios de falar-lhe. O cão rasteiro poderia ser o meio mais agradável de conseguir isso, especialmente porque tenho grande afeição por animais e gostei dessa mesma característica na jovem.’ Acrescentou que ele repetidamente havia intervindo em furiosas brigas de cães, com grande habilidade, e muitas vezes para surpresa dos circunstantes. Sabemos também que a jovem, pela qual ele se sentia atraído, sempre era vista na companhia de seu cão de estimação. No que tange o sonho manifesto, porém, a jovem foi omitida e somente restou o cão, que ele associava a ela. As senhoras de idade, que se riam dele, talvez possam estar em lugar da jovem. Seus outros comentários não esclareceram adequadamente este ponto. O fato de, no sonho, ele estar andando de bicicleta, é uma repetição direta da situação recordada. Ele nunca encontrou a jovem com o cão, a não ser quando ele estava andando de bicicleta.

(3) Quando se perde alguém que é de nossas relações e nos é caro, surgem sonhos de um tipo especial, durante algum tempo após, nos quais o conhecimento da morte chega às mais estranhas conciliações com a necessidade de trazer novamente à vida a pessoa morta. Em alguns desses sonhos, a pessoa que morreu está morta e ao mesmo tempo permanece viva porque não sabe que está morta; somente se soubesse, morreria completamente. Em outros, a pessoa está meio morta e meio viva, e cada um desses estados vem indicado por uma forma particular. Não devemos descrever esses sonhos como simplesmente absurdos; pois ser devolvido novamente à vida não é mais inconcebível nos sonhos do que o é, por exemplo, em contos de fadas, nos quais isso ocorre como fato muito rotineiro. Sempre que pude avaliar tais sonhos, constatei que eles são passíveis de uma solução racional; contudo, o piedoso desejo de fazer retornar à vida a pessoa morta conseguiu operar pelos mais estranhos meios. Apresentar-lhes-ei agora um sonho desse tipo, que parece tão esquisito e absurdo, e, no entanto, sua análise lhes mostrará muitas coisas para as quais nossas explicações teóricas os terão preparado. É o sonho de um homem que havia perdido seu pai, vários anos antes:

Seu pai estava morto, mas havia sido exumado e parecia estar mal. Tinha estado vivendo desde então e o homem, no sonho, fazia todo o possível para evitar que o pai percebesse. (O sonho continuava com outros assuntos, aparentemente muito diferentes.)

Seu pai estava morto; sabemos disso. O ter sido exumado não corresponde à realidade; e não havia nada de realidade em tudo o que se seguia. O sonhador, porém, relatou que, após ter voltado dos funerais do pai, um de seus dentes começou a doer. Ele queria tratar o dente segundo o preceito da doutrina judaica: ‘Se teu dente incomoda, arranca-o!’ E ele foi ao dentista. Mas o dentista disse: ‘Não se arranca um dente. Deve-se ter paciência com ele. Porei dentro dele algo que o mate; volte em três dias e eu o extrairei.’

‘Esse “extrair”’, disse o homem que teve o sonho, ‘é exumar!’

Será que o homem estava certo do que dizia? Isso apenas se adapta mais ou menos, não completamente; pois não foi extraído o dente, foi extraído apenas algo nele que morrera. No entanto, imprecisões deste tipo podem, com prova em outras experiências, ser atribuídas à elaboração onírica. Sendo assim, o homem que teve este sonho condensara seu pai morto e o dente que havia sido morto, porém conservado; ele os fundiu numa unidade. Não é de causar admiração, portanto, que algo de absurdo emergisse no sonho manifesto, de vez que, afinal, nem tudo que se disse do dente poderia ajustar-se a seu pai. Onde pode haver, talvez, um tertium comparationis [ver em [1], anterior] entre o dente e seu pai, para que se tornasse possível a condensação?

Entretanto, sem dúvida ele deve ter tido razão, pois prosseguiu dizendo que sabia que sonhar com a queda de um dente significa que se vai perder um membro da família.

Essa interpretação popular, como sabemos, é incorreta, ou, pelo menos, correta somente em sentido grosseiro. Todos ficaremos muito surpresos por encontrar, pois, o assunto assim abordado reaparecendo agora em outras partes do conteúdo do sonho.Este sonhador, sem nenhum outro encorajamento, começou a falar na doença e na morte de seu pai, bem como a respeito de suas próprias relações com ele. Seu pai esteve doente durante longo tempo, e os cuidados e o tratamento tinham-lhe custado (ao filho) grande soma de dinheiro. Não obstante, nunca era demais, ele jamais se impacientou, jamais desejou que, afinal, tudo pudesse logo chegar ao fim. Orgulhava-se de sua verdadeira dedicação filial judaica para com o pai, de sua estrita obediência à lei judaica. E aqui nos surpreendemos com uma contradição existente nos pensamentos pertinentes ao sonho. Ele havia identificado o dente com seu pai. Devia proceder com o dente segundo a lei judaica que lhe ordenava arrancá-lo se lhe causasse dor ou incômodo. Desejava também proceder do mesmo modo com seu pai, segundo os preceitos da lei; neste caso, porém, ela lhe ordenava não poupar gastos nem atribulações, assumir todo o encargo sobre si mesmo e não permitir que alguma intenção hostil emergisse contra o objeto que lhe estava causando sofrimento. Será que as duas atitudes não teriam sido conciliadas muito mais convincentemente, se ele tivesse realmente desenvolvido sentimentos para com seu pai doente semelhantes àqueles com relação a seu dente doente — isto é, se tivesse desejado que a morte se antecipasse e pusesse fim à sua existência desnecessária dolorosa e custosa?

Não duvido de que era esta, realmente, sua atitude para com seu pai durante a fatigante doença, e que suas altivas afirmações de amor filial se destinavam a desviá-lo dessas lembranças. Sob essas condições, o desejo de morte contra um pai está pronto a entrar em atividade e esconder-se sob o disfarce dessas reflexões caridosas tais como ‘seria um feliz alívio para ele’. Mas, por favor, observem que, nisso, ultrapassamos uma barreira existente nos próprios pensamentos oníricos latentes. Sem dúvida, a primeira parte dos mesmos esteve inconsciente apenas temporariamente, isto é, durante a construção do sonho; seus impulsos hostis contra o pai, contudo, devem ter sido permanentemente inconscientes. Podem ter-se originado de cenas de sua infância e, ocasionalmente, emergiram como conscientes, tímida e disfarçadamente, durante a doença do pai. Isto podemos afirmar, com grande certeza; acerca de outros pensamentos latentes que contribuíram inequivocamente para o conteúdo do sonho. Nada, realmente, deve ser descoberto, no sonho, sobre seus impulsos hostis para com seu pai. Se, porém, procurarmos na infância as raízes dessa hostilidade contra um pai, nos recordaremos de que o medo ao pai tem início nos primeiros anos de vida, porque este se opõe às atividades sexuais do menino, exatamente como terá de acontecer mais uma vez, por motivos sociais, após a idade púbere. Essa relação com o pai aplica-se também a esse nosso sonhador: o amor pelo pai incluía uma estranha mescla de reverência e temor, que tinha sua origem no fato de, quando menino, por meio de ameaças, ter sido tolhido em sua atividade sexual.As frases restantes do sonho manifesto podem ser explicadas, agora, em relação ao complexo da masturbação. ‘Ele parecia estar mal‘ é realmente uma alusão a uma outra observação do dentista no sentido de que parece mau alguém perder um dente nessa parte da boca; mas refere-se, ao mesmo tempo, ao ‘parecer estar mal’ pelo qual um jovem, na puberdade, revela, ou receia revelar, sua atividade sexual excessiva. Não foi sem alívio para seus próprios sentimentos que, no conteúdo manifesto, este que sonhou deslocou o ‘parecer estar mal’ de si mesmo para seu pai — um dos tipos de inversão feitos pela elaboração onírica, que os senhores já conhecem [ver em [1]]. ‘Tinha estado com vida desde então‘ coincide com o desejo de trazer de volta à vida, assim como coincide com a promessa do dentista de que o dente sobreviveria. A frase ‘o sonhador fazia todo o possível para evitar que ele (o pai) percebesse‘ é muito sutilmente arquitetada para nos desorientar, fazendo-nos pensar que ela deveria ser completada com as palavras ‘que ele estava morto’. A única completação, entretanto, que faz sentido, provém, uma vez mais, do complexo de masturbação; em relação a isto, é evidente que o jovem fez tudo quanto pôde para ocultar de seu pai sua vida sexual. E, finalmente, lembrem-se de que sempre devemos interpretar os chamados ‘sonhos com um estímulo dental’ como sendo relacionados com masturbação e com o temido castigo correspondente. [ver em [1].]

Agora podem ver como esse sonho incompreensível se efetuou. Fez-se produzindo uma condensação estranha e desorientadora, desprezando todos os pensamentos que estavam no centro do processo de pensamentos latentes e criando substitutos ambíguos para os mais profundos e cronologicamente mais remotos desses pensamentos.(4) Já tentamos, repetidamente, chegar a compreender os sonhos triviais e comuns, que nada têm de absurdo ou estranho em sua aparência, mas nos fazem perguntar por que alguém iria sonhar com matéria tão indiferente assim. [ver em [1], [2] e [3].] Por isso lhes ofereço outro exemplo deste tipo, três sonhos em interconexão, tidos por uma jovem senhora em uma só noite.(a) Ela estava caminhando pelo salão de sua casa e bateu com a cabeça num lustre que pendia a baixa altura, e começou a sangrar. Nenhuma reminiscência, nada que lhe houvesse realmente acontecido. As informações que deu, em resposta ao sonho, conduziram a direções bem diferentes. ‘O senhor sabe como meu cabelo está caindo. “Minha filha”, disse-me, ontem, minha mãe, ‘use isso continua desse jeito você vai ficar com a cabeça tão lisa como um traseiro.” ‘Dessa forma, aqui a cabeça está em lugar da outra extremidade do corpo. Podemos entender o lustre, sem qualquer ajuda, como sendo um símbolo: todos os objetos capazes de serem encompridados são símbolos do órgão masculino [ver em [1]]. Tratava-se, portanto, da questão do sangramento na extremidade inferior do corpo, decorrência de contato com o pênis. Isto ainda poderia ser ambíguo. Suas posteriores associações mostraram que estava em questão algo referente à crença de que o sangramento menstrual se origina da relação sexual com um homem — um fragmento de teoria sexual que conta com muitas crentes fiéis entre jovens imaturas.

(b) Ela via, no parreiral, um buraco fundo que ela sabia ter sido causado pelo arrancamento de uma árvore. Acrescentou um comentário de que a árvore estava faltando. Ela quis dizer que não tinha visto a árvore, no sonho; mas as mesmas palavras serviram para exprimir um outro pensamento que tornou a interpretação de símbolos muito certa. O sonho se referia a uma outra parte da teoria sexual — a crença de que as meninas originalmente tinham os mesmos genitais que os meninos, e que sua forma ulterior foi conseqüência da castração (o arrancamento de uma árvore).

(c) Ela estava de pé, em frente à gaveta de sua escrivaninha, que ela conhecia tão bem a ponto de poder dizer imediatamente se alguém ali havia penetrado. Como todas as gavetas, cofres e caixas, a gaveta da escrivaninha significava os genitais femininos [ver em [1]]. Ela sabia que os sinais de relação sexual (e, segundo pensava, de tocar) podiam ser observados nos genitais, e por muito tempo havia temido tal descoberta. Em todos estes três sonhos, penso que a ênfase deve ser posta no conhecimento. Ela estava recordando o período de suas investigações sexuais, quando era criança, de cujo resultado, naqueles tempos, muito se orgulhava.(5) Aqui se apresenta mais um pouco de simbolismo. Desta vez, porém, devo começar com um breve preâmbulo da situação psíquica. Um cavalheiro, que havia passado a noite mantendo relações sexuais com uma mulher, descreveu-a como uma dessas personagens maternas em quem o desejo por um filho irrompe irresistivelmente na relação com um homem. As circunstâncias desse encontro, no entanto, exigiam uma precaução que impedisse o sêmen fertilizante de atingir o útero da mulher. Ao acordar, após essa noite, a mulher relatou o seguinte sonho:

Um oficial, com uma capa vermelha, corria atrás dela na rua. Ela fugia dele, e subiu correndo os degraus, e ele sempre atrás. Ofegante, chegou a sua casa, bateu a porta atrás de si e trancou-a. Ele permaneceu do lado de fora e, quando ela olhou através da vigia da porta, ele estava sentado num banco e chorava.

Sem dúvida, os senhores reconhecerão a perseguição pelo oficial com a capa vermelha e a subida ofegante dos degraus da escada como representação do ato sexual [ver em [1]]. O fato de ter sido a própria mulher do sonho que se trancou a si mesma para se livrar de seu perseguidor servirá como exemplo das inversões tão comumente utilizadas nos sonhos [ver em [1]], pois foi o homem quem evitara a consumação do ato sexual. Da mesma maneira, a tristeza dela tinha sido deslocada para o homem, pois era este quem chorava no sonho — e isto era simultaneamente uma representação da emissão de sêmen.

Estou certo de que os senhores ouviram, uma vez ou outra, a psicanálise afirmar que todo sonho tem uma significação sexual. Pois bem, os senhores mesmos estão em condições de formar um julgamento da incorreção dessa acusação. Os senhores vieram a conhecer sonhos plenos de desejos que lidam com a satisfação das necessidades mais óbvias — fome e sede, e ânsia de liberdade —, sonhos de conveniência e de impaciência, e também sonhos puramente gananciosos e egoístas. Mas, ao mesmo tempo, os senhores deveriam ter em mente, como um dos resultados da investigação psicanalítica, que sonhos grandemente deformados proporcionam expressão principalmente (embora, também, não exclusivamente) a desejos sexuais.

(6) Tenho um motivo especial para colecionar exemplos do uso dos símbolos nos sonhos. Em nossa primeira conferência [ver em [1] e segs.], eu lamentava a dificuldade de proporcionar demonstrações e, assim, de conferir convicção ao dar ensinamentos sobre psicanálise. E não tenho dúvidas de que os senhores, desde então, tenham concordado comigo. As diversas teses da psicanálise estão, contudo, em tão íntima conexão, que as provas podem com facilidade ser estendidas de um único ponto até um ponto maior do todo. Da psicanálise poder-se-ia dizer que, se alguém lhe mostra um só dedo mínimo, ela imediatamente lhe agarra a mão inteira. E, mesmo, ninguém que tenha aceito a explicação das parapraxias pode logicamente refrear sua crença em tudo o mais. Uma segunda situação, igualmente acessível, é oferecida pelo simbolismo onírico. Aqui está o sonho de uma mulher sem instrução, cujo marido era um policial, e que, certamente, jamais tinha ouvido falar qualquer coisa sobre simbolismo onírico ou psicanálise. Depois julguem por si mesmos se a explicação do sonho, com auxílio dos simbolismos sexuais, pode ser chamada de arbitrária e forçada:

‘…Então alguém penetrou na casa e ela assustou-se e chamou um policial. Mas ele entrara tranqüilamente numa igreja à qual se chegava por certo número de degraus acompanhado de dois vagabundos. Atrás da igreja havia uma colina e, acima, um cerrado bosque. O policial usava um capacete, gola com placa de bronze e capote. Tinha a barba castanha. Os dois vagabundos, que acompanhavam pacificamente o policial, tinham aventais semelhantes a sacos atados em torno da cintura. Em frente da igreja um caminho conduzia até a colina; em ambos os lados, cresciam relva e mato rasteiro, que se tornavam cada vez mais espessos e, no alto da colina, se transformavam num bosque comum.’Os senhores não terão problemas em reconhecer os símbolos utilizados. Os genitais masculinos são representados por uma tríade de personagens e os genitais femininos por um cenário com uma capela, um monte e uma floresta. Mais uma vez, os senhores encontram degraus como símbolo do ato sexual. O que no sonho é chamado de monte é também chamado de monte, na anatomia — o Mons Veneris [o monte de Vênus].(7) E aqui está mais um sonho que deve ser solucionado pela inserção de símbolos. É notável e convincente pelo fato de a própria pessoa que o sonhou haver traduzido todos os símbolos, embora não tivesse qualquer espécie de conhecimento teórico prévio da interpretação de sonhos. Tal atitude é bastante incomum, e suas causas determinantes não foram precisamente compreendidas:‘Ele estava passeando a pé, com seu pai, num lugar que certamente deve ter sido o Prater, pois viu a Rotunda, com um pequeno anexo em frente, à qual estava amarrado um balão cativo, embora este parecesse flácido. Seu pai perguntou-lhe para que servia tudo isso; ele ficou surpreso com a pergunta, mas explicou-lhe. Então entraram num pátio em que havia uma grande folha de flandres estendida. Seu pai quis arrancar um pedaço grande da mesma, porém, primeiro olhou em volta para ver se havia alguém observando. Ele lhe disse que ele apenas precisava falar ao capataz e poderia levar uma parte da folha, sem qualquer problema. Uma escada descia desse pátio para um poço de mina, cujas paredes estavam almofadadas com um material macio, bem semelhante a uma poltrona de couro. No fim do poço de mina havia uma comprida plataforma e, depois, mais outro poço de mina começava….’

O próprio sonhador interpretou-o: ‘A Rotunda eram os meus genitais e o balão cativo em frente da mesma era meu pênis, de cuja flacidez tenho motivos para me queixar.’ Entrando em maiores detalhes, portanto, podemos traduzir a Rotunda como o traseiro (habitualmente considerado pelas crianças como fazendo parte dos genitais) e o pequeno anexo em frente da mesma, como o escroto. Seu pai perguntou-lhe, no sonho, para que servia tudo isso — ou seja, qual a finalidade e função dos genitais. Pareceu plausível inverter a situação e transformar a pessoa que sonhou na pessoa que pergunta. Visto como ele nunca havia feito perguntas a seu pai neste sentido, temos de considerar o pensamento onírico como um desejo, ou torná-lo como oração condicional, tal como: ‘Se eu tivesse perguntado a meu pai sobre explicações sexuais….’ Logo mais encontraremos a continuação deste pensamento em outra parte do sonho.

O pátio, onde estava estendida a folha de flandres, não deve ser tomado simbolicamente à primeira vista. Derivava dos locais de negócios do pai desse sonhador. Por motivos de discrição, substituí ‘folha de flandres’ por outro material com que seu pai realmente lidava; mas não fiz nenhuma outra alteração no sonho. Ele havia entrado no negócio de seu pai e tinha feito sérias objeções às práticas, um tanto duvidosas, das quais dependiam, em parte, os lucros da firma. Conseqüentemente, o pensamento onírico que acabei de interpretar pode ser retomado desta maneira: ‘(Se eu lhe tivesse perguntado), ele me teria logrado da mesma forma como logra seus fregueses.’ Com relação ao ‘arrancar’, que serviu para representar a desonestidade de seu pai no negócio, o sonhador deu uma segunda explicação — ou seja, que representava a masturbação. Não somente há muito tempo estávamos familiarizados com essa interpretação como também havia algo para confirmá-la no fato de que a natureza secreta da masturbação estava representada pelo seu inverso: podia ser efetuada em público. Tal como era de se esperar, a atividade masturbatória mais uma vez se deslocou para o pai do sonhador, assim como sucedera com o aspecto de fazer perguntas, na primeira cena do sonho. Ele prontamente interpretou o poço de mina como sendo uma vagina, tendo em conta o revestimento macio de suas paredes. Acrescentei, com base na minha autoridade [ver em [1]], que descer, assim como subir, em outros casos, descrevia o coito na vagina.

O próprio personagem desta história deu uma explicação biográfica dos demais detalhes — de o primeiro poço de mina ser seguido de uma plataforma comprida e de mais outro poço de mina. Ele vinha mantendo relações sexuais, durante certo tempo, mas depois abandonou-as por causa de inibições, e agora esperava conseguir reencetá-las com o auxílio do tratamento.(8) Os dois sonhos seguintes foram sonhados por um estrangeiro, que vivia numa situação altamente polígama. Reproduzo-os para os senhores como prova de minha afirmação [ver em [1]] de que o próprio ego de quem o sonhou aparece em cada um de seus sonhos, ainda que escondido no conteúdo manifesto. As malas, nestes sonhos, eram símbolos de mulheres:(a) Ele estava iniciando uma viagem; sua bagagem era levada à estação numa carruagem, numerosas malas empilhadas, e entre elas, duas malas pretas, semelhantes a malas de amostras. Ele disse a alguém, em tom de consolo: ‘Bem, elas só vão comigo até a estação.’Ele realmente viajava com grande quantidade de bagagem; mas também trazia consigo para o tratamento muitíssimas histórias referentes a mulheres. As duas malas pretas correspondiam a duas mulheres negras que nessa época estavam desempenhando o principal papel na sua vida. Uma delas quis acompanhá-lo a Viena; e, por orientação minha, ele havia telegrafado para ela não vir.(b) Uma cena que se passa na alfândega: Um outro viajante abriu seu baú e, fumando indiferentemente um cigarro, disse: ‘Não há nada aí dentro.’ O funcionário aduaneiro pareceu acreditar nele, mas voltou a apalpar o interior do baú e encontrou algo muito especialmente proibido. O viajante disse, com voz resignada: ‘O que é que se vai fazer….’Ele próprio era o viajante: eu era o funcionário da alfândega. Via de regra, ele era muito franco em admitir determinadas coisas; mas tencionava, comigo, manter silêncio a respeito de uma ligação recente que havia iniciado com uma senhora porque, com razão, supunha que ela não me fosse desconhecida. Ele deslocou para um estranho a desagradável situação de ser descoberto, de modo que ele próprio parecia não surgir no sonho.

(9) Aqui está um exemplo de um símbolo que ainda não mencionei:

Ele encontrou sua irmã em companhia de duas amigas que eram, também elas, irmãs. Cumprimentou com um aperto de mão a ambas, mas não a sua irmã.

Nenhuma conexão com alguma ocorrência real. Seus pensamentos, porém, o levaram de volta, isto sim, a um período no qual suas observações fizeram-no refletir quão tardiamente se desenvolviam os seios das meninas. Assim, as duas irmãs eram seios; ele teria desejado agarrá-los com sua mão — desde que não se tratasse de sua irmã.

(10) E agora, um exemplo de simbolismo da morte num sonho:

Ele estava caminhando com duas pessoas, cujos nomes sabia mas esquecera ao acordar, por uma ponte de ferro muito alta e íngreme. De repente, elas desapareceram e ele viu um homem parecido com um fantasma, envolto numa capa e numa roupagem de linho. Perguntou-lhe se ele era o mensageiro do telégrafo. Não. Era ele o cocheiro? Não. Então continuou andando…. Enquanto ainda estava sonhando, sentia uma aguda ansiedade e, após haver acordado, continuou o sonho com uma fantasia de que a ponte de ferro se rompia de repente e ele caía no espaço.

Pessoas de quem se insiste em dizer que são desconhecidas, ou cujos nomes não são lembrados, são, na sua maioria, pessoas próximas. Este sonhador tinha um irmão e uma irmã; e se ele desejasse que estes dois estivessem mortos, não seria mais que justo que, em troca, ele devesse ser vítima do medo da morte. Sobre o mensageiro do telégrafo, comentou que uma pessoa assim sempre traz más notícias. Pelo seu uniforme poderia igualmente ter sido o acendedor de lampião; entretanto ele também os apaga, da mesma forma como o Espírito da Morte apaga a chama da vida. O cocheiro fê-lo pensar no poema de Uhland sobre a Viagem do Rei Carlos, e fê-lo recordar-se de uma perigosa viagem por mar, com dois companheiros, durante a qual ele tinha feito a parte do rei no poema. A ponte de ferro levou-o a pensar num recente desastre e no tolo ditado: ‘A vida é uma ponte pênsil.’

 (11) O sonho seguinte pode contar-se como mais uma entre as representações da morte:Um cavalheiro desconhecido entregou-lhe um cartão de visitas tarjado de negro.(12) Os senhores estarão interessados no seguinte sonho, por diversos motivos, embora um estado neurótico na pessoa que o sonhou tenha sido uma de suas precondições:Ele estava viajando de trem. O trem fez uma parada em campo aberto. Pensou que estava por suceder um desastre e que devia tratar de fugir. Percorreu todos os carros do trem e matou a todos que encontrou: o guarda, o maquinista, e assim por diante.Com relação a isto, ele pensou em uma história que lhe contara um amigo. Um louco estava sendo conduzido em um vagão de trem, na Itália; contudo, por descuido, deixou-se que um viajante ficasse com ele no mesmo compartimento. O louco matou o viajante. Assim, ele estava identificando-se com o louco, e seu motivo de agir assim, ele o baseou em uma obsessão, que o atormentava de tempos em tempos, de que ele devia ‘livrar-se de todas as testemunhas cúmplices’. Ele próprio, porém, então encontrou um motivo melhor e isso foi o que levou à causa desencadeante do sonho. A noite anterior, no teatro, mais uma vez viu a jovem com quem desejara casar, mas havia desistido porque ela lhe dera motivos para ciúme. Em face da intensidade atingida por seu ciúme, pensou, ele estaria realmente louco para querer casar com ela. Isto significava que ele a considerava tão indigna de confiança que, em seu ciúme, ele teria de matar todos os que estivessem no seu caminho. Já encontramos o caminhar através de uma série de quartos (aqui, carros do trem) como símbolo de casamento (uma inversão de ‘monogamia’).Com relação à parada do trem em campo aberto e ao medo de acidente, disse que, certa vez, quando se encontrava numa viagem de trem, tinha havido uma súbita parada nessas circunstâncias, quando não estavam na estação. Uma jovem senhora que viajava com ele dissera que podia ser iminente uma colisão e que o mais seguro era manter as pernas levantadas. Este ‘manter as pernas levantadas’ tinha tido, contudo, seu papel nos muitos passeios a pé e excursões pelo campo, que ele tinha feito com a outra jovem, nos primeiros dias felizes de seu amor. Este era um novo argumento para pensar que ele estava louco para casar com ela, agora. Meu conhecimento da situação deu-me a certeza de que, não obstante, ele desejava estar suficientemente louco para casar com ela.

 

CONFERÊNCIA XIII - ASPECTOS ARCAICOS E INFANTILISMO DOS SONHOS

 

SENHORAS E SENHORES:

Comecemos mais uma vez partindo da conclusão a que chegamos de que a elaboração onírica, sob a influência da censura dos sonhos, transpõe a ordem dos pensamentos oníricos latentes para um modo de expressão diferente. Os pensamentos latentes não diferem dos nossos conhecidos pensamentos conscientes da vida desperta. O novo modo de expressão nos é incompreensível devido a muitos de seus aspectos. Temos dito que ele retorna a estados de nossa evolução intelectual que há muito foram suplantados: à linguagem por imagens, às conexões simbólicas, a condições que, talvez, existiram antes de se desenvolver nossa linguagem de pensamento. Temos descrito, por essa razão, o modo de expressão da elaboração onírica como arcaico ou regressivo [ver em [1] e seg.].

Os senhores podem concluir, com isto, que, se estudarmos mais a elaboração onírica, deveremos conseguir lograr valioso esclarecimento dos poucos conhecidos inícios de nosso desenvolvimento intelectual. Espero que assim seja; contudo, este trabalho até agora não foi iniciado. A pré-história à qual a elaboração onírica nos faz retroceder é de duas espécies — de um lado, à pré-história do indivíduo, sua infância; e, de outro lado, até onde cada indivíduo de alguma maneira recapitula, em forma abreviada, todo o desenvolvimento da espécie humana, também à pré-história filogenética. Conseguiremos distinguir qual parte dos processos mentais latentes deriva do período pré-histórico do indivíduo, e qual a parte proveniente da pré-história filogenética? Penso não ser impossível consegui-lo. A mim, por exemplo, parece-me que as conexões simbólicas que o indivíduo jamais adquiriu por aprendizado, podem, com razão, exigir serem consideradas como herança filogenética.

Esta, porém, não é a única característica arcaica do sonho. Naturalmente, os senhores todos conhecem bem a extraordinária amnésia da infância. Quero dizer com isso que os primeiros anos de vida, até a idade de cinco, seis ou oito anos não deixaram atrás de si, em nossa memória, marcas como as das experiências posteriores. Aqui e ali, é verdade, encontramos pessoas que se podem gabar de uma memória contínua, desde os primeiros começos até o dia de hoje; mas a outra alternativa, de lacunas na memória, é, de longe, a mais freqüente. Em minha opinião, não tem havido suficiente surpresa com referência a esse fato. Na época em que uma criança tem dois anos de idade, ela consegue falar bem, e logo mostra que está à vontade em situações mentais complicadas; e faz comentários que, se lhe forem referidos muitos anos mais tarde, ela mesma terá esquecido. Ademais disso, a memória é mais eficiente, em tenra idade, pois está menos sobrecarregada do que estará mais tarde. E não existe qualquer motivo para considerar a função da memória uma atividade mental especialmente elevada ou difícil; pelo contrário, podemos encontrar uma boa memória em pessoas de nível intelectual muito baixo.Um segundo fato notável, para o qual devo chamar sua atenção, e que se aflora do primeiro, é que, de permeio ao vazio de memórias que abrange os primeiros anos da infância, sobressaem algumas recordações bem preservadas, na maioria percebidas em forma plástica, que não podem explicar sua sobrevivência. Nossa memória lida com o conteúdo das impressões, que nos atingem posteriormente na vida, fazendo uma seleção das mesmas. Ela retém o que possui alguma importância e elimina o que carece de importância. Isto, porém, não procede para as lembranças da infância que foram conservadas. Elas não correspondem necessariamente às experiências importantes dos anos da infância, nem mesmo àquelas experiências que devem ter parecido importantes do ponto de vista da criança. Freqüentemente, são tão banais e insignificantes que apenas podemos nos perguntar, surpresos, por que esse detalhe especial escapou ao esquecimento. Há muito tempo, com auxílio da análise, procurei enfrentar o enigma da amnésia infantil e das memórias residuais que a interrompem, e cheguei à conclusão de que, mesmo no caso de crianças, malgrado tudo, é verdade que somente permanece na memória aquilo que é importante. Pelos processos, que os senhores já conhecem, de condensação e, mais especialmente, de deslocamento, aquilo que é importante é, contudo, substituído na memória por alguma outra coisa que parece sem importância. Por essa razão denominei a essas lembranças da infância ‘lembranças encobridoras’ e, com uma análise minuciosa, pode ser extraído delas tudo o que foi esquecido.

Nos tratamentos psicanalíticos, invariavelmente nos defrontamos com a tarefa de preencher essas lacunas na memória da infância; e, na medida em que o tratamento de alguma forma tem êxito — ou seja, muito freqüentemente — também temos êxito em trazer à luz o conteúdo desses anos da infância esquecidos. Tais impressões realmente jamais foram esquecidas, eram apenas inacessíveis, latentes, e tinham formado parte do inconsciente. Pode suceder, porém, elas emergirem do inconsciente espontaneamente, e isto sucede em relação aos sonhos. Parece que a vida onírica sabe como obter acesso a essas experiências latentes, infantis. Excelentes exemplos disto foram relatados na literatura, e eu mesmo pude trazer uma contribuição desse teor. Uma vez, sonhei, em certa circunstância, com uma pessoa que devia ter-me prestado um serviço e que vi claramente à minha frente. Era um homem com um olho só, de baixa estatura, forte, e com a cabeça profundamente enterrada nos ombros. Pelo contexto, concluí que se tratava de um médico. Felizmente pude perguntar a minha mãe, que ainda vivia, com quem se parecia o médico da minha terra natal (que eu deixara quando tinha três anos de idade); e eu soube, por ela, que ele tinha um olho só, era baixo, forte e tinha a cabeça enterrada fundo nos ombros; e também soube qual o acidente em decorrência do qual ele viera em meu auxílio e que eu mesmo havia esquecido. Esse fato de os sonhos terem à sua disposição o material esquecido dos primeiros anos da infância é, pois, mais um aspecto arcaico.Essa mesma parcela de informação pode, ademais, ser aplicada a um outro enigma com que nos temos defrontado. Os senhores se recordam do assombro causado pela nossa descoberta de que os sonhos são provocados por desejos ativamente maus e extravagantemente sexuais que tornaram necessária a censura e a deformação dos sonhos [ver em [1] e segs.]. Ao interpretarmos um sonho desse tipo àquele que o sonhou, e se, na melhor das hipóteses, o sonhador não atacar realmente a interpretação, ele, ainda assim, regularmente levanta a questão da proveniência desses desejos, de vez que estes lhe parecem alheios, e aquilo de que está cônscio é o oposto desses desejos. Não devemos hesitar em assinalar a origem dos mesmos. Esses impulsos de desejos maus são originários do passado, e, freqüentemente, de um passado não tão remoto. Pode-se demonstrar que houve uma época em que eles eram corriqueiros e conscientes, embora atualmente não o sejam mais. Uma mulher, cujo sonho significava que desejava ver sua filha única, agora com dezessete anos de idade, morta em sua presença, verificou, com nosso auxílio, que ela realmente, em certa época, abrigava esse desejo de morte. A filha era fruto de um casamento infeliz que logo se dissolvera. De certa feita, quando ainda trazia essa filha em seu ventre, num acesso de raiva, e após uma cena violenta com seu marido, ela golpeara com seus próprios punhos seu corpo, a fim de matar a criança que estava dentro. Quantas mães, que amam seus filhos ternamente, hoje em dia talvez com excessiva ternura, conceberam-nos contra a vontade e, à época, desejaram que o ser vivo dentro delas não mais se desenvolvesse! Podem até mesmo ter expresso esse desejo em ações diversas, felizmente inofensivas. Assim, seu desejo de morte contra alguém que amam, desejo que, depois, é tão misterioso, origina-se dos primeiros dias de seu relacionamento com essa pessoa.Da mesma forma, um pai teve um sonho que legitimou a interpretação de que ele desejava a morte de seu filho predileto, o mais velho. Ele também foi levado a recordar que houvera uma época em que tal desejo não lhe era estranho. Quando o filho era ainda uma criança de colo, este pai, descontente com a esposa que escolhera, amiúde pensava que, se a pequena criatura, que nada significava para ele, viesse a morrer, mais uma vez ficaria livre e faria melhor uso de sua liberdade. A mesma origem pode ser demonstrada no caso de grande número de impulsos de ódio semelhantes; são recordações de algo pertencente ao passado, que, numa época, foi consciente e desempenhou seu papel na vida mental. Os senhores tenderão a, disso, concluir que esses desejos e esses sonhos não deveriam aparecer naqueles casos em que nunca ocorreram transformações desse tipo nas relações com alguém, em que o relacionamento foi do mesmo tipo desde o início. Estou disposto a admitir esse fato; devo, porém, lembrar-lhes que precisam ter em consideração não o enunciado do sonho, mas seu sentido após o sonho haver sido interpretado. É possível que um sonho manifesto com a morte de alguma pessoa amada simplesmente tenha assumido uma máscara aterradora e possa significar algo muito diferente, ou que a pessoa amada sirva como substituto destinado a confundir a identidade de alguma outra pessoa.

Este mesmo tema pode, contudo, sugerir uma outra questão muito mais séria. ‘Ainda que’, os senhores dirão, ‘este desejo de morte se encontrasse presente em determinada época, e seja confirmado pela lembrança, isso ainda não constitui explicação. Afinal, há muito que foi ultrapassado, e atualmente só pode estar presente no inconsciente como alguma outra recordação qualquer desprovida de conteúdo emocional, e não como um impulso poderoso. Nada fala em favor desta última possibilidade. Por que, então, foi recordado no sonho?’ Esta pergunta pode surgir, e com razão. Uma tentativa de respondê-la nos levaria demasiado longe, e exigiria que assumíssemos uma posição em um dos pontos mais importantes da teoria dos sonhos. Vejo-me, no entanto, obrigado a manter-me dentro do quadro de referências de nossa exposição, e usar de moderação. Assim, preparem-se para uma desistência provisória. Contentemo-nos com a evidência efetiva de esse desejo, que ficou para trás, poder ser demonstrado como sendo o causador do sonho, e prossigamos com nossa investigação para saber se outros desejos maus podem, de modo semelhante, ser remontados ao passado.Deter-nos-emos nesses desejos de eliminar alguém, os quais, em sua maioria, podem ser atribuídos ao desenfreado egoísmo do sonhador. Um desejo desse tipo muito amiúde pode ser apontado como o maquinador de um sonho. Sempre que alguém, no decurso da vida, se interpõe no caminho de uma pessoa — e como é freqüente isso acontecer, face à complexidade dos relacionamentos de uma pessoa! —, um sonho logo se prontifica a matar esse alguém, mesmo que se trate do pai ou da mãe, do irmão ou da irmã, do marido ou da esposa. Essa maldade da natureza humana surgiu-nos para grande surpresa nossa, e, decididamente, não estávamos propensos a aceitar, sem indagações, esse resultado da interpretação de sonhos. No entanto, assim que fomos levados a procurar a origem desses desejos no passado, descobrimos o período do passado do indivíduo quando não havia ainda nada de estranho em tal egoísmo e em tais impulsos plenos de desejos dirigidos até mesmo contra os parentes mais próximos. São as crianças, e precisamente nesses primeiros anos, mais tarde velados pela amnésia, que freqüentemente manifestam um tal egoísmo em grau extremamente marcado e, invariavelmente, mostram evidentes rudimentos ou, expressando-se com maior correção, resíduos dele. As crianças amam em primeiro lugar a si próprias, e apenas mais tarde é que aprendem a amar os outros e a sacrificar algo de seu ego aos outros. As próprias pessoas a quem uma criança parece amar desde o início, no começo são amadas pela criança porque esta necessita delas e não pode dispensá-las — por motivos egoístas, mais uma vez. Somente mais tarde o impulso de amar se torna independente do egoísmo. É literalmente verdadeiro que seu egoísmo ensinou a amar.

Neste consenso, será interessante comparar a atitude da criança com relação a seu irmãos e irmãs com sua atitude para com seus pais. Uma criança pequena não ama necessariamente seus irmãos e irmãs; muitas vezes, obviamente não os ama. Sem dúvida ela os odeia como rivais seus, e é fato sabido que esta atitude freqüentemente persiste por muitos anos, até ser atingida a maturidade ou mesmo até mais tarde, sem interrupção. Com efeito, muito amiúde esta atitude é substituída, ou melhor, digamos, é encoberta por outra, mais cordial. Mas, a que é hostil em geral parece ser a que surge primeiro. Essa atitude hostil pode ser observada com muita facilidade em crianças com idade entre dois e meio e quatro ou cinco anos, quando um novo irmãozinho ou irmãzinha aparece. Geralmente encontra uma recepção muito inamistosa. São muito comuns os comentários como ‘não gosto dele; a cegonha pode levar embora de novo!’ Depois, aproveitam-se de todas as oportunidades para rebaixar o recém-chegado, e se fazem tentativas de machucá-lo; e até mesmo se conhecem casos de ataques mortíferos. Se a diferença de idade é menor, na época em que a atividade mental da criança se aviva em determinado grau de intensidade, ela já encontra aí seu competidor e a ele se adapta. Sendo maior a diferença, o novo bebê pode, desde o início, despertar alguma simpatia, como um objeto interessante, uma espécie de boneca viva; e quando a diferença de idade é de oito ou mais anos, já podem manifestar-se impulsos solícitos, maternais, especialmente em meninas. Contudo, falando honestamente, se alguém encontrar, em sonho, um desejo de morte contra um seu irmão ou irmã, raramente há que considerá-lo um enigma e, sem dificuldades, pode situar seu protótipo no início da infância e, vezes mais seguidas, também nos anos subseqüentes do companheirismo fraterno.Provavelmente não há quarto de crianças sem violentos conflitos entre seus ocupantes. Os motivos de tais desavenças são a rivalidade pelo amor dos pais, pelas posses comuns, pelo espaço vital. Os impulsos hostis são dirigidos contra membros da família mais velhos e também mais novos. Foi Bernard Shaw, segundo penso, quem comentou: ‘Via de regra, só existe uma pessoa que uma menina inglesa odeia mais do que a sua mãe; é a sua irmã mais velha. Neste comentário existe, porém, algo que nos parece estranho. Poderíamos, quando muito, achar compreensíveis o ódio e a competição entre irmãos e irmãs. Mas como podemos supor que sentimentos de ódio venham a surgir nas relações entre filha e mãe, entre pais e filhos?Esta relação é, sem dúvida, uma relação mais favorável também do ponto de vista dos filhos. É o que exigem as nossas expectativas; achamos que uma ausência de amor é muito mais censurável entre pais e filhos do que entre irmãos e irmãs. No primeiro caso, teríamos tornado esta relação sagrada, ao passo que, no segundo, isso teria permanecido profano. Já a observação corrente pode nos mostrar quão freqüentemente as relações afetivas entre os pais e seus filhos adultos deixam de atingir o ideal estabelecido pela sociedade, quanta hostilidade está pronta para manifestar-se, e se manifestaria se não fosse contida por um misto de devoção filial e impulsos afetuosos. Os motivos dessa hostilidade geralmente são conhecidos e sua tendência é separar os do mesmo sexo — a filha, de sua mãe, e o pai, de seu filho. A filha encontra em sua mãe a autoridade que restringe sua vontade e que está incumbida da tarefa de impor-lhe a renúncia à liberdade sexual, renúncia que também a sociedade exige; em alguns casos, a filha encontra em sua mãe até mesmo uma competidora que luta por não ser suplantada. A mesma coisa se repete entre filho e pai, e de forma ainda mais flagrante. Aos olhos do filho, o pai representa todas as restrições sociais relutantemente toleradas; o pai lhe impede o exercício da vontade, o prazer sexual incipiente e, nas famílias em que existe propriedade comum, o desfrute desta. No caso de um herdeiro do trono, essa espera da morte do pai atinge as raias do trágico. Parece haver perigo menor para a relação entre pai e filha ou mãe e filho. Esta última proporciona os mais puros exemplos de uma afeição imutável, não prejudicada por quaisquer considerações egoístas.Por que estou eu falando nestas coisas, que, afinal, são banais e conhecidas universalmente? Porque há uma inequívoca tendência a negar-lhes a importância que têm na vida, e a fazer crer que o ideal imposto pela sociedade é atingido muito mais freqüentemente do que o é na realidade. É melhor, pois, que a verdade deva ser dita pelos psicólogos, de preferência a deixar tal tarefa a cargo de cínicos. E, aliás, essa negação se aplica somente à vida real. As obras narrativas e dramáticas da imaginação podem livremente jogar com os temas que surgem de um distúrbio deste ideal.

Portanto, não há motivos para surpresas se, em muitas pessoas, os sonhos revelam seu desejo de eliminar seus pais e, especialmente, o genitor do mesmo sexo. Podemos supor que esse desejo também esteja presente na vida desperta, e até mesmo seja consciente, às vezes, quando pode estar mascarado por algum outro motivo, como foi o caso do sonhador do Exemplo 3 [ver em [1], acima] em que foi substituído pela compaixão pelos inúteis sofrimentos do pai. É raro que apenas a hostilidade domine o relacionamento; muito mais freqüentemente ela se encontra nos bastidores de impulsos mais afetuosos, pelos quais é suprimida, e pode, por assim dizer, esperar até que um sonho venha a isolá-la. O que parece-nos ter uma dimensão enorme em um sonho, por ter sido isolado, reduz-se mais uma vez, quando nossa interpretação o situa no contexto da vida real (Hanns Sachs). Contudo, encontramos este desejo onírico também na vida real, onde não adquire qualquer relevância e onde o adulto jamais deseja admiti-lo na vida desperta. A razão disso é que os motivos mais profundos e mais invariáveis de desavenças, especialmente entre duas pessoas do mesmo sexo, já se fizeram sentir no início da infância.O que tenho em mente é a rivalidade no amor, com nítida ênfase no sexo do indivíduo. Quando é ainda uma criança, um filho já começa a desenvolver afeição particular por sua mãe, a quem considera como pertencente a ele; começa a sentir o pai como rival que disputa sua única posse. E da mesma forma uma menininha considera sua mãe como uma pessoa que interfere na sua relação afetuosa com o pai e que ocupa uma posição que ela mesma poderia muito bem ocupar. A observação nos mostra a quão precoces anos essas atitudes remontam. A essas atitudes chamamos de ‘complexo de Édipo’, visto que a lenda de Édipo materializa, com apenas uma leve atenuação, os dois desejos extremos originários na situação do filho — matar o pai e tomar a mãe como esposa. Não pretendo afirmar que o complexo de Édipo engloba toda a relação dos filhos com os pais: esta pode ser muito mais complexa. O complexo de Édipo, ademais disso, pode estar desenvolvido em maior ou menor intensidade, pode até mesmo estar invertido; mas constitui fator constante e importante na vida mental de uma criança, e existe maior risco de, antes, subestimarmos, do que superestimarmos sua influência e a dos desenvolvimentos que nele se originam. Aliás, as crianças freqüentemente reagem, em sua atitude edipiana, a um estímulo proveniente de seus pais, que amiúde se deixam levar, nas suas preferências, pela diferença do sexo, de modo que o pai escolherá a filha e a mãe escolherá o filho como favorito ou, no caso de um esfriamento conjugal, como um substituto de um objeto de amor que perdeu seu valor.Não se pode dizer que o mundo tenha demonstrado muita gratidão à investigação psicanalítica por sua revelação do complexo de Édipo. Ao contrário, a descoberta provocou a mais violenta oposição entre adultos; e aqueles que não se interessaram por tomar parte no repúdio a este relacionamento emocional proscrito e tabu, compensaram seu débito mais tarde, subtraindo a este complexo o seu valor, por meio de reinterpretações tortuosas. Permanece inalterada minha convicção de que não há o que negar ou encobrir. Devemos nos congratular com o fato de ter sido reconhecido pela própria lenda grega como destino inevitável. Mais uma vez é interessante o fato de o complexo de Édipo, que tem sido repudiado na vida real, ter sido deixado a cargo dos escritos imaginativos, ter sido colocado, por assim dizer, livremente à sua disposição. Otto Rank [1912b] demonstrou, em cuidadoso estudo, como o complexo de Édipo proporcionou aos autores dramáticos uma riqueza de temas com infindáveis modificações, atenuações e disfarces — isto é, com distorções do tipo que já conhecemos como obra de uma censura. Portanto, podemos também atribuir este complexo de Édipo às pessoas que sonham e foram suficientemente felizes para escapar a conflitos com seus pais em sua vida posterior. E, em íntima conexão com o mesmo, encontramos aquilo a que chamamos de ‘complexo de castração’, a reação às ameaças contra a criança, destinadas a pôr um fim a suas primeiras atividades sexuais, ameaças atribuídas a seu pai.O que já aprendemos de nosso estudo da vida mental das crianças fará com que esperemos encontrar uma explicação semelhante para o outro grupo de desejos oníricos proibidos: os impulsos sexuais excessivos. Assim, encorajamo-nos a realizar um estudo da evolução da vida sexual das crianças e, com base em muitas informações, chegamos ao que se segue. Primeiro e acima de tudo, é um erro injustificável negar que as crianças têm uma vida sexual e supor que a sexualidade somente inicia na puberdade, com a maturação dos genitais. Pelo contrário, bem desde o início as crianças têm uma intensa vida sexual, que difere em muitos pontos daquilo que mais tarde é considerado normal. Aquilo que na vida adulta é descrito como ‘perverso’ difere do normal por estes aspectos: primeiro, porque despreza a barreira da espécie (o abismo entre o homem e o animal); segundo, por transpor a barreira contra a repugnância; terceiro, a barreira contra o incesto (proibição contra a busca da satisfação sexual em relações consangüíneas próximas); quarto, a barreira contra pessoas do mesmo sexo; e quinto, por transferir a outros órgãos e áreas do corpo o papel desempenhado pelos genitais. Nenhuma destas barreiras existia desde o começo; foram estabelecidas apenas gradualmente, no decorrer do desenvolvimento e da educação. Crianças de tenra idade são livres delas. Não reconhecem qualquer abismo assustador entre seres humanos e animais; a soberba com que os homens se distanciam dos animais não emerge senão mais tarde. Inicialmente, as crianças não mostram qualquer repugnância pelas excreções; porém, adquirem-na lentamente, sob a pressão da educação. Não dão importância especial à distinção entre os sexos, mas atribuem a ambos a mesma conformação dos genitais; dirigem seus primeiros desejos sexuais e sua curiosidade àqueles que lhes são mais próximos e, por outras razões, mais caros — os pais, irmãos e irmãs, ou babás; e, finalmente, demonstram (e isto mais tarde irrompe novamente no clímax de uma relação amorosa) que esperam obter prazer não somente a partir de seus órgãos sexuais, mas que muitas outras partes do corpo exibem a mesma sensibilidade, proporcionam-lhes sensações análogas de prazer e, em decorrência, podem desempenhar o papel de genitais. Assim, pode-se descrever as crianças como ‘perversos polimorfos’ e, se estes impulsos apenas mostram traços de atividade, isso ocorre, por um lado, porque eles têm intensidade menor quando comparados com os da vida posterior e, por outro lado, porque todas as manifestações sexuais de uma criança são prontamente, energicamente suprimidas pela educação. Esta supressão, por assim dizer, se estende à teoria; pois os adultos se esforçam por não ver uma parte das manifestações sexuais das crianças e por disfarçar uma outra parte, interpretando-lhes erroneamente a natureza sexual, conseguindo assim negá-la em sua totalidade. Freqüentemente, são estas exatamente as mesmas pessoas que, no trato com as crianças, se enfurecem com qualquer traquinagem sexual sua e, depois, em seus escritos, defendem a pureza sexual das mesmas crianças. Quando abandonadas a si próprias, ou sob a influência de sedução, amiúde as crianças realizam proezas consideráveis na área da atividade sexual perversa. Os adultos, naturalmente, têm razão ao não levar isto muito a sério e considerá-lo como ‘criancice’ ou ‘brincadeira’, de vez que as crianças não podem ser condenadas como inteiramente capazes ou inteiramente responsáveis, seja perante o tribunal da moralidade, seja perante a lei; não obstante, essas coisas existem. Têm sua importância não apenas como indicações da constituição inata de uma criança e como causas e encorajamentos para desenvolvimentos ulteriores; também nos proporcionam informações acerca da vida sexual das crianças e, assim, acerca da vida sexual humana em geral. Se, portanto, mais uma vez encontramos todos estes impulsos plenos de desejos perversos por trás de nossos sonhos deformados, isto somente significa que, também neste campo, os sonhos deram um passo atrás, ao estado de infância.

Entre esses desejos proibidos, merecem especial ênfase os desejos incestuosos — isto é, aqueles que objetivam a relação sexual com pais, irmãos e irmãs. Os senhores conhecem o horror que se sente, ou ao menos se manifesta, na sociedade humana, diante de tal relação, e o acento com que se tonificam as proibições contra a mesma. Esforços tremendos têm sido dispendidos para explicar esse horror ao incesto. Algumas pessoas supuseram que considerações referentes à reprodução, por parte da natureza, tivessem encontrado representação psíquica nesta proibição, pois os acasalamentos consangüíneos prejudicariam as características raciais. Outros afirmaram que, como conseqüência da vida em comum, do início da infância em diante, o desejo sexual desviou-se das pessoas em questão. Em ambos estes casos, pode-se observar, um evitar do incesto estaria assegurado automaticamente, e não se esclareceria por que se exigem essas proibições severas, as quais indicariam, antes, a presença de um intenso desejo incestuoso. As pesquisas psicanalíticas têm demonstrado inequivocamente que a escolha incestuosa de um objeto de amor é, pelo contrário, a primeira e a invariável escolha, e senão mais tarde é que a resistência contra ela se manifesta; sem dúvida, não é impossível descobrir a origem desta resistência na psicologia individual.

Reunamos agora tudo aquilo com que nossas pesquisas acerca da psicologia da criança têm contribuído para nossa compreensão dos sonhos. Não somente constatamos que o material das vivências esquecidas da infância tem acesso aos sonhos, como também vimos que a vida mental das crianças, com todas as suas características, seu egoísmo, sua escolha incestuosa de objetos de amor, e assim por diante, ainda persiste nos sonhos — isto é, no inconsciente; e que os sonhos nos levam de volta, todas as noites, a esse nível infantil. Confirma-se assim o fato de que, na vida mental, o que é inconsciente é também o que é infantil. A estranha impressão de haver tanta maldade nas pessoas começa a reduzir-se. Esta maldade temida é simplesmente a inicial e primitiva parte infantil da vida mental, que podemos encontrar em real atuação nas crianças, à qual, contudo, em parte não damos importância, nas crianças, devido ao pequeno tamanho delas, e, em parte, não a levamos a sério porque das crianças não esperamos elevado padrão ético algum. Visto os sonhos regredirem a esse nível, eles dão a impressão de terem revelado o mal que existe em nós. Esta, todavia, é uma aparência enganadora, pela qual nos temos deixado atemorizar. Não somos tão maus como tenderíamos a supor a partir da interpretação dos sonhos.Se esses impulsos maus nos sonhos são meros fenômenos infantis, um retorno aos inícios de nossa evolução ética (de vez que os sonhos simplesmente nos transformam novamente em crianças, em nossos pensamentos e sentimentos), não temos, se formos racionais, necessidade de nos envergonhar desses sonhos de maldade. Aquilo que é racional, porém, constitui apenas uma parte da vida mental, inúmeras outras coisas se passam na vida mental e não são racionais; e assim sucede irracionalmente estarmos envergonhados desses sonhos. Sujeitamo-los à censura dos sonhos, envergonhamo-nos e nos irritamos se, por exceção, um desses desejos consegue irromper na consciência em forma tão indisfarçada, que somos obrigados a reconhecê-lo; com efeito, às vezes nos envergonhamos tanto de um sonho deformado como se o compreendêssemos. Basta pensar no indignado julgamento que aquela excelente senhora de meia-idade emitiu a propósito de seu sonho, não interpretado, sobre os ‘serviços de amor’ [ver em [1]]. O problema, assim, ainda não está esclarecido, e ainda é possível que outras considerações sobre a perversidade nos sonhos possam nos levar a formar outro julgamento e chegar a uma outra avaliação da natureza humana.

Como resultado de nossas pesquisas, atenhamo-nos a duas descobertas, embora apenas signifiquem o começo de novos enigmas e de novas dúvidas. Em primeiro lugar, a regressão da elaboração onírica não é apenas formal, mas também material. Não só traduz nossos pensamentos em uma forma primitiva de expressão; revive, também, as características de nossa vida mental primitiva — a antiga dominância do ego, os primeiros impulsos de nossa vida sexual e, realmente, até mesmo, nossa antiga propriedade intelectual, caso assim possam ser consideradas as conexões simbólicas. E, em segundo lugar, tudo isso que é antigo e infantil e que em certa época foi dominante, e dominante sozinho, hoje deve ser atribuído ao inconsciente, acerca do qual nossas idéias agora se estão modificando e ampliando. ‘Inconsciente’ já não é mais o nome daquilo que é latente no momento; o inconsciente é um dos reinos da mente com seus próprios impulsos plenos de desejos, seu modo de expressão próprio, e com seus mecanismos mentais específicos que não vigoram em outros setores. No entanto, os pensamentos oníricos latentes, que descobrimos ao interpretar sonhos, não pertencem a este reino; são, ao contrário, pensamentos iguais àqueles que poderíamos ter pensado na vida desperta. Não obstante, são inconscientes. Como, então, se pode solucionar esta contradição? Começamos a suspeitar que aqui deve ser estabelecida uma distinção. Alguma coisa que deriva de nossa vida consciente e compartilha de suas características — nós a denominamos ‘resíduos diurnos’ — combina-se com alguma outra coisa proveniente dos domínios do inconsciente, a fim de se construir um sonho. A elaboração onírica se realiza entre estes dois componentes. A influência exercida sobre os resíduos diurnos pela adição do inconsciente está, sem dúvida, entre os determinantes da regressão. Esta é a mais profunda compreensão que podemos obter, aqui, da natureza essencial dos sonhos — até havermos investigado outras regiões da mente. Logo, contudo, advirá a época de dar outro nome ao caráter inconsciente dos pensamentos oníricos latentes, a fim de diferenciá-lo do inconsciente oriundo dos domínios do infantil.Podemos, naturalmente, levantar uma outra questão paralela: ‘Que coisa força a atividade psíquica, durante o sono, a fazer esta regressão? Por que não remove os estímulos mentais, que perturbam o sono, sem causar esta regressão? E se, para fins de censura de sonhos, tem de fazer uso de disfarce, utilizando-se do modo de expressão antigo, agora ininteligível, qual o motivo de reviver também os impulsos, desejos e traços de caráter mentais antigos que hoje em dia estão superados — de fazer uso da regressão material, além da regressão formal?’ A única resposta que poderia nos satisfazer é que apenas desta forma pode um sonho ser construído, e que não seria dinamicamente possível o estímulo do sonho ser eliminado de outra maneira. Por enquanto, não temos o direito de dar tal resposta, contudo.

 

CONFERÊNCIA XIV - REALIZAÇÃO DE DESEJO

 

SENHORAS E SENHORES:

Deverei fazê-los lembrarem-se, mais uma vez, dos assuntos sobre os quais discorremos até aqui? De como, quando começamos a aplicar nossa técnica, defrontamo-nos com a deformação dos sonhos, de como pensávamos a respeito da natureza essencial dos sonhos a partir dos sonhos de crianças? De como, após, munidos daquilo que aprendêramos dessa pesquisa, acometemos diretamente a deformação onírica e, segundo espero, vencemo-la passo a passo? Somos levados a admitir, entretanto, que as coisas que descobrimos, por uma e por outra via, não se harmonizam inteiramente. Será nossa tarefa juntar as duas séries de descobertas e ajustá-las entre si.

Verificamos, partindo de ambas as fontes de informação, que a elaboração onírica consiste, essencialmente, na transformação dos pensamentos em uma experiência alucinatória. É por demais misterioso o modo pelo qual isso pode acontecer, é, contudo, um problema de psicologia geral, que propriamente não nos interessa aqui. Ficamos sabendo, pelos sonhos de crianças, que a intenção da elaboração onírica é eliminar o estímulo mental, perturbador do sono, por meio da realização de um desejo. Dos sonhos deformados não podíamos dizer nada semelhante, até descobrirmos como interpretá-los. Desde o início, porém, nossa expectativa era a de podermos considerar os sonhos deformados sob o mesmo prisma que os sonhos de crianças. A primeira confirmação desta expectativa nos foi dada pela descoberta de que, na realidade, todos os sonhos são sonhos de crianças, que eles operam com o mesmo material infantil, com os impulsos e mecanismos mentais da infância. Agora que acreditamos haver superado a deformação onírica, devemos prosseguir e investigar se nossa visão a respeito dos sonhos como realização de desejos também é válida para os sonhos deformados.Há pouco tempo, submetemos uma série de sonhos à interpretação, porém deixamos completamente fora de cogitação a realização de desejos. Estou certo de que os senhores repetidamente devem ter sido levados a se perguntarem, de si para si: ‘Onde, porém, está a realização de desejos, que se supõe ser o objetivo da elaboração onírica?’ A pergunta é importante, porque é aquela levantada por nossos críticos leigos. Os seres humanos, como os senhores sabem, possuem uma tendência natural a repelir inovações intelectuais. Uma das formas pelas quais se manifesta esta tendência é a imediata redução da novidade às suas menores proporções, comprimindo-a, se possível, em um simples verbete. ‘Realização de desejo’ tornou-se o verbete para a nova teoria dos sonhos. O leigo pergunta: ‘Onde está a realização de desejo?’ Instantaneamente, tendo ouvido falar que se supõe serem os sonhos realizações de desejos, no próprio ato de emitir a pergunta, ele a responde com uma rejeição. Imediatamente pensa em inumeráveis experiências suas com sonhos, nas quais o sonho foi acompanhado por sentimentos que vão desde o desagradável até uma acentuada ansiedade, de modo que a afirmação feita pela teoria psicanalítica dos sonhos parece-lhe muitíssimo improvável. Não temos dificuldade em responder que, nos sonhos deformados, a realização de desejo pode não estar evidente, porém deve ser buscada, de modo que é impossível evidenciar-se depois que o sonho for interpretado. Sabemos, também, que os desejos, nesses sonhos deformados, são desejos proibidos — rejeitados pela censura — e a existência desses desejos justamente foi a causa da deformação onírica, o motivo da intervenção da censura dos sonhos. Contudo, é difícil fazer o crítico leigo entender que, antes de um sonho ser interpretado, não se pode investigar a respeito da realização do desejo desse sonho. Ele continuará esquecendo este aspecto. Sua rejeição da teoria da realização de desejo realmente não é mais que uma conseqüência de censura dos sonhos, um substituto da rejeição dos desejos oníricos censurados e uma decorrência da mesma.

Naturalmente, também sentimos a necessidade de explicar a nós próprios por que existem tantos sonhos de conteúdo aflitivo e, especialmente, por que existem sonhos de ansiedade. Aqui, pela primeira vez, encontramos o problema dos afetos nos sonhos; mereceria uma monografia à parte, porém, infelizmente, não o adentraremos. Se os sonhos são realizações de desejos, deveria ser impossível surgirem neles os sentimentos desagradáveis: então pareceria que as críticas leigas teriam razão. Deve-se, contudo, levar em conta três tipos de complicações de que ainda não se havia cogitado.

[1] Em primeiro lugar, pode ser que a elaboração onírica não tenha conseguido criar uma realização de desejo; assim, parte do afeto aflitivo dos pensamentos oníricos ficou excedente no sonho manifesto. Nesse caso, a análise teria de demonstrar que estes pensamentos oníricos eram muito mais desagradáveis do que o sonho que foi construído a partir deles. Que sempre se pode provar muita coisa. Sendo assim, devemos admitir que a elaboração onírica atingiu seu objetivo em grau não maior do que o sonho com beber, o qual, formado em resposta ao estímulo da sede, não conseguiu aplacar a sede [ver em [1] e seg.]. Aquele que tem um tal sonho permanece com sede e tem de acordar para tomar algo. Não obstante, era um sonho verdadeiro e não perdera nada da natureza essencial de um sonho. Podemos apenas dizer: ‘Ut desint vires, tamen est laudanda voluntas.’ A intenção, pelo menos, que pode ser definidamente reconhecida, merece ser valorizada. Tais casos de fracasso não são eventos raros. Concorre para isto o fato de que é muito mais difícil a elaboração onírica alterar o sentido dos afetos de um sonho do que o seu conteúdo; os afetos, às vezes, são altamente resistentes. O que então acontece é a elaboração onírica transformar o conteúdo aflitivo dos pensamentos oníricos na realização de um desejo, ao passo que o afeto desagradável persiste inalterado. Em sonhos dessa espécie, o afeto é bastante inadequado ao conteúdo, e nossos críticos podem dizer que os sonhos tão distante estão de serem realizações de desejos que, mesmo mantendo um conteúdo inócuo, podem ser sentidos como aflitivos. Podemos responder a este comentário superficial assinalando que é precisamente em sonhos dessa natureza que o propósito realizador de desejos da elaboração onírica aparece mais claramente, por ter sido isolado. O erro surge porque àqueles que não estão familiarizados com as neuroses, se lhes afigura demasiado íntimo o vínculo entre conteúdo e afeto, e, portanto, não podem imaginar que o conteúdo seja alterado sem uma alteração simultânea da expressão do afeto ligado a ele.[2] Um segundo fator, muito mais importante e de grande alcance, contudo igualmente negligenciado pelos leigos, apresenta-se a seguir. Não há dúvida de que uma realização de desejo deve proporcionar prazer; mas então surge a pergunta: ‘A quem?’ À pessoa que tem o desejo, naturalmente. Mas, como sabemos, a relação do sonhador para com seus desejos é uma relação muito especial. Ele os repudia e os censura — não tem nenhuma simpatia por eles, em suma. De modo que sua realização não lhe dará prazer, e sim o oposto; e a experiência mostra que este oposto aparece sob a forma de ansiedade, um fato ainda a explicar. Assim, aquele que sonha, em sua relação com seus desejos oníricos, só pode ser comparado à amálgama de duas pessoas separadas, que estão ligadas por algum forte elemento em comum. Em vez de estender-me sobre isto, recordarei para os senhores um conhecido conto de fadas, no qual encontrarão a mesma situação repetida. Uma fada boa prometeu a um casal pobre assegurar-lhe a realização dos seus três primeiros desejos. Eles ficaram jubilosos e puseram-se a pensar em como escolher cuidadosamente seus três desejos. Mas um cheiro de lingüiça frita, proveniente da casa próxima, tentou a mulher a desejar algumas lingüiças. Num relâmpago, ali estavam as lingüiças; e esta foi a primeira realização de desejo. Mas o marido se enfureceu, e, em sua raiva, desejou que as lingüiças ficassem dependuradas no nariz da mulher. E foi isto o que também aconteceu; e não havia como retirá-las dessa nova posição. Esta foi a segunda realização de desejo; mas o desejo era do homem, e a sua realização foi muito desagradável para sua mulher. Os senhores sabem o restante da história. Visto que, afinal, eles eram, de fato, um — marido e mulher — o terceiro desejo não podia ser senão o de que as lingüiças se desprendessem do nariz da mulher. Este conto de fadas poderia ser usado em relação a muitas outras coisas; mas aqui serve apenas para ilustrar a possibilidade de que, se duas pessoas não estão de acordo uma com a outra, a realização de um desejo de uma delas não pode senão causar desprazer à outra.

Agora não nos será difícil conseguir compreender melhor ainda os sonhos de ansiedade. Apresentaremos uma nova observação, e então nos decidiremos a adotar a hipótese a favor da qual há muito que dizer. A observação consiste em que os sonhos de ansiedade freqüentemente possuem um conteúdo, por assim dizer, que escapou à censura. Um sonho de ansiedade, muitas vezes, é a realização indisfarçada de um desejo — não, naturalmente, de um desejo inaceitável, mas de um desejo repudiado. A geração da ansiedade assumiu o lugar da censura. Ao passo que de um sonho infantil podemos dizer ser ele a realização franca de um desejo permitido, e de um sonho deformado como sendo a realização disfarçada de um desejo reprimido, a única fórmula adequada a um sonho de ansiedade consiste em que este é a realização franca de um desejo reprimido. A ansiedade é um sinal de que o desejo reprimido se mostrou mais forte que a censura, que ele levou a cabo, ou está a ponto de levar a cabo, sua realização de desejo, apesar da censura. Percebemos que aquilo que para o desejo é uma realização de desejo, para nós só pode ser, de vez que estamos do lado da censura, motivo de sentimentos angustiantes e de repulsa ao desejo. A ansiedade que emerge nos sonhos é, se preferem, ansiedade face à força destes desejos que normalmente estão sob controle. A razão por que esta repulsa aparece na forma da ansiedade não pode ser descoberta apenas a partir do estudo dos sonhos; a ansiedade deve ser estudada, evidentemente, em outro contexto.Podemos supor que aquilo que é verdadeiro para os sonhos de ansiedade não-deformados também se aplica àqueles parcialmente deformados, assim como a outros sonhos desprazíveis, nos quais os sentimentos desagradáveis provavelmente correspondem a uma aproximação da ansiedade. Sonhos de ansiedade, via de regra, são também sonhos que fazem despertar; habitualmente interrompemos nosso sono antes que o desejo reprimido, no sonho, tenha executado a realização completa, apesar da censura. Nesse caso, a função do sonho fracassou, mas sua natureza essencial não foi modificada com isto. Temos comparado os sonhos com o vigia noturno ou guardião do sono, que procura proteger nosso sono contra perturbações [ver em [1]]. O vigia noturno, também, pode chegar ao ponto de acordar a pessoa que dorme, se sente que é por demais fraco para, sozinho, afugentar a perturbação ou o perigo. Ainda assim, às vezes conseguimos continuar nosso sono, mesmo quando o sonho começa a ficar inseguro e a transformar-se em ansiedade. Dizemos a nós mesmos, em nosso sono, ‘afinal é apenas um sonho’, e continuamos dormindo.Quando ocorre que um desejo onírico consegue sobrepujar a censura? A condição necessária para isto pode ser preenchida tanto pelo desejo onírico como pela censura do sonho. O desejo, devido a uma causa desconhecida, pode ser excessivamente forte em uma ocasião; mas tem-se a impressão de que, com mais freqüência, a conduta da censura do sonho é a responsável por este deslocamento de suas forças relativas. Já vimos [ver em [1]] que a censura atua com intensidade variável em cada caso particular, que ela trata cada elemento de um sonho com um grau diferente de severidade. Agora podemos acrescentar mais uma hipótese no sentido de que, em geral, a censura é muito variável e não emprega igual severidade para com cada elemento censurável. Caso suceda, em dada ocasião, sentir-se sem forças contra um desejo onírico que ameaça tomá-la de surpresa, em vez da deformação ela se utiliza de seu último recurso restante e abandona o estado de sono, ao mesmo tempo gerando ansiedade.Nessa conexão, surpreende-nos o fato de ainda ignorarmos, tanto, por que esses desejos maus, repudiados, se tornam ativos justamente à noite, e nos perturbam durante o sono. A resposta, praticamente, não pode deixar de se fundamentar em alguma hipótese relativa à natureza do estado de sono. Durante o dia uma pesada censura os oprime, e, via de regra, lhes torna impossível manifestar-se em qualquer atividade. À noite, esta censura, assim como todos os demais interesses da vida mental, provavelmente, está afastada ou, pelo menos, muito reduzida, em benefício apenas do desejo de dormir. É a essa diminuição da censura, à noite, que os desejos proibidos devem agradecer por poderem se tornar novamente ativos. Há alguns pacientes neuróticos que são incapazes de dormir, e admitem que sua insônia foi, inicialmente, intencional. Não ousavam dormir porque temiam os seus sonhos — isto é, temiam os resultados do enfraquecimento da censura. Os senhores constatarão com facilidade, entretanto, que, a despeito disto, o afastamento da censura não importa em grande desorganização. O estado de sono paralisa nossa capacidade motora. Se nossas intenções más começam a perturbar, elas podem, afinal, causar nada mais do que simplesmente um sonho, que é inócuo, do ponto de vista prático. É esta consideração apaziguadora a base de comentário altamente inteligente feito por aquele que está sonhando — à noite, é verdade, mas não formando parte da vida onírica: ‘Afinal, é apenas um sonho. Deixemos que ele siga seu caminho, continuemos dormindo.’[3] Em terceiro lugar, se os senhores se recordarem de nossa idéia de que o sonhador, lutando contra seus próprios desejos, pode ser comparado à soma de duas pessoas separadas, embora de algum modo em íntima conexão uma com a outra, compreenderão mais uma possibilidade. Porque existe uma possibilidade de que a realização de um desejo venha a causar algo nada prazeroso — ou seja, uma punição. Aqui, novamente, podemos utilizar como ilustração o conto de fadas dos três desejos. As lingüiças fritas, em um prato, eram realização direta do desejo da primeira pessoa, a mulher. As lingüiças grudadas em seu nariz eram a realização do desejo da segunda pessoa, o marido; contudo eram, ao mesmo tempo, uma punição pelo desejo tolo da mulher. (Nas neuroses descobriremos o motivo do terceiro desejo, o último que restava, no conto de fadas.) Existem várias dessas tendências punitivas na vida mental dos seres humanos; são muito poderosas e podemos atribuir-lhes a responsabilidade de alguns dos sonhos aflitivos. Agora, talvez, os senhores dirão que com isto resta muito pouco da famosa realização de desejo. Ao considerarem a questão mais detidamente, porém, admitirão que se enganaram. Comparada com a multiplicidade (que mencionarei mais adiante) de coisas que os sonhos podem ser, e, segundo muitas autoridades, realmente são, nossa solução — realização de desejo, realização de ansiedade, realização de punição — é muito restrita. Podemos acrescentar que a ansiedade é o oposto direto do desejo, que os opostos se encontram muito próximos um do outro nas associações e que, no inconsciente, eles se unem [ver em [1] e segs.]; e, ademais, que a punição também é a realização de um desejo: do desejo da outra pessoa, a que censura.

No conjunto, portanto, não fiz concessão à objeção dos senhores contra a teoria da realização de desejo. Compete-nos, porém, sermos capazes de indicar a realização de desejo em todo sonho deformado que pudermos encontrar, e, por certo, não fugiremos à tarefa. Retornemos ao sonho que já interpretamos, o sonho dos três ingressos ruins por 1 florim e meio [ver em [1] e [2] ], do qual já aprendemos tanto. Espero que se recordem dele. Uma senhora, cujo marido lhe havia dito, durante o dia, que sua amiga Elise, que era só três meses mais nova que ela, havia noivado, sonhou que estava no teatro, com seu marido. Um dos lados da primeira fila de cadeiras estava quase vazio. Seu marido dizia-lhe que Elise e seu noivo também tinham desejado ir ao teatro, mas não puderam, pois apenas tinham conseguido lugares ruins — três por 1 florim e meio. Ela pensou que não teria havido nenhum prejuízo se tivessem ido. Verificamos que os pensamentos oníricos estavam relacionados à sua irritação por haver casado tão cedo e à sua insatisfação com seu marido. Talvez tenhamos a curiosidade de descobrir como estes pensamentos sombrios se transformaram numa realização de desejo e onde se pode encontrar algum vestígio do mesmo no conteúdo manifesto do sonho. Já sabemos que o elemento ‘muito cedo, apressadamente’ foi eliminado do sonho pela censura [ver em [1] e [2]]. As cadeiras vazias eram uma alusão a esse elemento. O misterioso ‘três por 1,50 florim’ agora se nos torna mais inteligível com a ajuda do simbolismo, com o qual, nesse meio tempo, nos familiarizamos. O ‘3’ realmente significa um homem [ou marido] e o elemento manifesto é fácil de traduzir: comprar um marido com o dote dela. (‘Eu poderia ter conseguido um dez vezes melhor com meu dote.’) ‘Casar’ está claramente substituído por ‘ir ao teatro’. ‘Comprar os ingressos cedo demais’ é, realmente, um substituto imediato de ‘casar cedo demais’. Esta substituição é, porém, obra da realização de um desejo. Essa mulher nem sempre estava tão insatisfeita com seu casamento precoce como estava no dia em que recebeu a notícia do noivado de sua amiga. Em certa época, tinha estado orgulhosa do seu casamento e considerava-se em vantagem sobre sua amiga. Como se sabe, moças ingênuas, depois de haverem noivado, freqüentemente expressam seu contentamento por poderem, em breve, ir ao teatro, a todas as peças que até então foram proibidas, e terem permissão de ver tudo. O prazer de olhar, ou a curiosidade, que nisto se revela, era sem dúvida, originalmente, um desejo sexual de olhar [escopofilia], dirigido para os eventos sexuais e especialmente para os pais das moças; daí haver-se tornado poderoso motivo para induzi-las a um casamento precoce. Assim sendo, freqüentar o teatro tornou-se, mediante uma alusão, um substituto óbvio de estar casada. Por tanto, essa senhora que sonhou, em sua atual irritação com seu casamento precoce, retrocedeu ao tempo em que o casamento precoce constituía a realização de um desejo, porque satisfazia a sua escopofilia, e, levada por esse antigo impulso pleno de desejo, substituiu casamento por ir ao teatro.Não posso ser acusado de ter selecionado especialmente o exemplo mais conveniente para provar uma oculta realização de desejo. O procedimento haveria de ter sido o mesmo no caso de outros sonhos deformados. Não posso demonstrar-lhes isto agora, e apenas expressarei minha convicção de que sempre poderia ser executado com êxito. Entretanto, deter-me-ei um pouco mais neste ponto teórico. A experiência ensinou-me que este é um dos pontos mais expostos a ataque em toda a teoria dos sonhos, e que muitas contradições e equívocos se originam nele. Ademais disso, os senhores talvez ainda se encontrem sob a impressão de que já retirei parte da minha afirmação ao dizer que um sonho é um desejo realizado, ou o oposto de um desejo realizado, ou uma ansiedade, ou uma punição realizada; e os senhores podem pensar que esta é uma oportunidade para me forçarem a outras restrições. Também tenho sido censurado por apresentar coisas que me parecem óbvias sob forma por demais concisa e, em conseqüência, não-convincente.

Quando alguém nos acompanhou até aqui na interpretação dos sonhos e aceitou tudo que foi apresentado até este ponto, amiúde sucede que faz uma pausa na realização de desejo e diz: ‘Já que os sonhos sempre tem um sentido e este sentido pode ser descoberto pela técnica da psicanálise, por que deve este sentido, com todas as evidências em contrário, ser enquadrado à força dentro da fórmula da realização de desejo? Por que não deveria o sentido deste pensar noturno ser de tantas espécies quantas são o do pensar diurno? Ou seja, por que não deveria um sonho muitas vezes corresponder a um desejo realizado, às vezes, como o senhor mesmo o diz, ao oposto desse desejo ou a um medo realizado, mas, às vezes, exprimir uma intenção, uma advertência, uma reflexão com os seus prós e contras, ou uma reprovação, um escrúpulo de consciência, uma tentativa de se preparar para uma tarefa urgente, e assim por diante? Por que deve ser sempre apenas um desejo, ou, quando muito, o oposto do desejo?’

Poder-se-ia pensar que uma diferença de opinião neste ponto não tem importância, se se concorda no restante. Poder-se-ia dizer que basta havermos descoberto o sentido dos sonhos e a maneira de reconhecê-lo; é de somenos importância se parecemos definir de maneira muito restrita esse sentido. Não é isso, porém. Um equívoco neste ponto afeta a essência de nossas descobertas sobre os sonhos e põe em perigo o valor das mesmas para a compreensão das neuroses. Além disso, um acordo dessa espécie — que é muito cogitado na vida comercial como sendo uma ‘cortesia’ — não tem acolhida em assuntos científicos, por ser prejudicial.

Minha primeira resposta à pergunta de saber por que os sonhos não possuem numerosas significações no sentido indicado, é a que costumo dar em tais casos: ‘Não sei por que não possuem. Não teria o que objetar. Na parte que me interessa, poderia ser assim. Existe apenas um detalhe nessa questão de um conceito mais vasto e mais cômodo dos sonhos — é que na realidade não é assim.’ Minha segunda resposta seria que a hipótese de que os sonhos correspondem a uma variedade de formas de pensar e de operações intelectuais, não me é estranha, a mim próprio. Já certa vez relatei um sonho, em um de meus casos clínicos, o qual apareceu por três noites sucessivas, e depois nunca mais; e expliquei essa conduta com o fato de que o sonho correspondia a uma intenção e não necessitava repetir-se depois de a intenção ter sido realizada. Mais tarde publiquei um sonho que corresponde a uma  aprovação. Portanto, como poderei contradizer-me e afirmar que os sonhos jamais são outra coisa senão um desejo realizado?Faço-o, porque não deixarei passar um equívoco tolo que pode nos roubar o fruto de nossos esforços com os sonhos — um equívoco que confunde o sonho com os pensamentos oníricos latentes e afirma, acerca daquele, algo que se aplica somente a este. Pois é bastante correto dizer que o sonho pode representar, e ser substituído por, tudo aquilo que os senhores há pouco enumeraram — uma intenção, uma advertência, uma reflexão, uma preparação, uma tentativa de solucionar um problema, e assim por diante. Se examinarem atentamente, verão, todavia, que tudo isso se aplica somente aos pensamentos oníricos latentes que foram transformados em sonho. Os senhores sabem, das interpretações de sonhos, que o pensar inconsciente das pessoas centra-se nessas intenções, preparações, reflexões, e assim por diante, a partir das quais a elaboração onírica então forma os sonhos. Se, no momento, os senhores não estão interessados na elaboração onírica, estiverem, contudo, muito interessados na atividade ideativa inconsciente das pessoas, então os senhores eliminam a elaboração onírica e dizem do sonho o que na prática é bastante correto — que ele corresponde a uma advertência, uma intenção, e assim por diante. O que freqüentemente acontece na atividade psicanalítica é que nossos esforços se dirigem principalmente para a eliminação da forma onírica e visam a inserir no contexto, em vez da forma onírica, os pensamentos latentes com os quais o sonho foi feito.Assim, bastante incidentalmente, constatamos, de nosso exame dos pensamentos oníricos latentes, que todos estes atos mentais altamente complexos que citamos podem realizar-se inconscientemente — uma descoberta tão grandiosa quanto surpreendente!Mas, voltando atrás, os senhores somente estarão corretos enquanto tiverem plena consciência de haver usado uma forma abreviada de expressão e enquanto não acreditarem que a multiplicidade que descreveram deve estar relacionada à natureza essencial dos sonhos. Quando falam de ‘sonho’, devem querer significar ou o sonho manifesto — isto é, o produto da elaboração onírica — ou, no máximo, também a própria elaboração onírica, isto é, o processo psíquico que forma o sonho manifesto a partir dos pensamentos oníricos latentes. Qualquer outro uso da palavra significa confusão de idéias, e só pode levar a maus resultados. Quando estiverem fazendo afirmações acerca dos pensamentos latentes por trás do sonho, façam-no diretamente, e não obscureçam o problema dos sonhos com uma forma negligente de falar. Os pensamentos oníricos latentes são o material que a elaboração onírica transforma em sonho manifesto. Por que teriam de confundir o material com a atividade que o forma? Com isto, que vantagem os senhores teriam sobre aqueles que apenas conheceram o produto dessa atividade, e não puderam explicar de onde veio ou como foi feito?A única coisa essencial a respeito de sonhos é a elaboração onírica que modificou o material ideativo. Não temos o direito de ignorá-la, em nossa teoria, ainda que a negligenciemos em algumas situações práticas. A observação analítica demonstra, também, que a elaboração onírica nunca se limita a traduzir esses pensamentos em um modo de expressão arcaico ou regressivo que os senhores conhecem. Ademais, regularmente se apossa de mais alguma coisa, que não faz parte dos pensamentos latentes do dia anterior, mas que é a verdadeira força propulsora da construção do sonho. Este acréscimo indispensável é o desejo igualmente inconsciente, para cuja realização o conteúdo do sonho recebe sua nova forma. Portanto, um sonho pode ser qualquer espécie de coisas desde que os senhores estejam apenas tomando em consideração os pensamentos que representa — uma advertência, uma intenção, uma preparação, e assim por diante; mas também é sempre a realização de um desejo inconsciente e, se os senhores o considerarem produto da elaboração onírica, ele é isto, somente. Assim sendo, um sonho nunca é simplesmente uma intenção, ou uma advertência, mas sempre uma intenção, etc. traduzida para o modo arcaico de pensamento, mediante o auxílio de um desejo inconsciente, e transformada para realizar esse desejo. [Ver em [1]] Esta característica, a de realização de desejo, é a característica invariável; as demais podem variar. Pode, por seu turno, mais uma vez, ser um desejo, e neste caso o sonho, com auxílio de um desejo inconsciente, representará como realizado um desejo latente do dia anterior.Eu consigo compreender tudo isto muito claramente; mas não posso dizer se consegui torná-lo inteligível também para os senhores. E também tenho dificuldade em lho demonstrar. Isso não pode ser feito sem cuidadosamente analisar muitíssimos sonhos e, por outro lado, esse aspecto tão importante e tão crítico de nosso conceito dos sonhos não pode ser convincentemente apresentado sem nos referirmos àquilo que vem depois. É impossível supor, de vez que tudo é intimamente inter-relacionado, que se possa penetrar profundamente na natureza de uma coisa sem que se tenha levado em conta coisas de natureza semelhante. Como ainda não sabemos nada dos parentes mais próximos dos sonhos, os sintomas neuróticos, mais uma vez devemos contentar-nos, neste ponto, com o que temos conseguido. Quero apenas dar-lhes só mais um exemplo ilustrativo e expor-lhes uma nova idéia.

Retomemos o sonho ao qual retornamos tantas vezes: o sonho dos três ingressos de teatro por 1 florim e meio. (Posso assegurar-lhes que inicialmente escolhi este exemplo sem qualquer propósito especial em vista.) Os senhores conhecem os pensamentos oníricos latentes: irritação por ter tido tanta pressa de casar, o que surgiu quando ela ouviu a notícia de que sua amiga só então acabava de noivar, atribuindo pouco valor a seu marido; e a idéia de que poderia ter conseguido um marido melhor, se ela ao menos tivesse esperado. Já conhecemos o desejo que fez desses pensamentos um sonho: era o desejo de olhar, de poder ir ao teatro, muito provavelmente uma derivação de sua antiga curiosidade de descobrir, afinal, o que realmente acontece quando uma pessoa casa. Esta curiosidade, conforme sabemos, as crianças dirigem-na regularmente à vida sexual dos pais; trata-se de curiosidade infantil e, na medida em que ainda persiste, mais tarde, de um impulso instintual com raízes que remontam à infância. A notícia que a sonhadora recebeu durante o dia não proporcionou a ocasião de despertar este desejo de olhar, mas apenas despertou irritação e desgosto. Este impulso pleno de desejo não se encontrava, à primeira vista, em conexão com os pensamentos oníricos latentes; e poderíamos incluir o resultado da interpretação do sonho na análise sem levar em conta esse impulso. A irritação, de per se, contudo não era capaz de criar um sonho. Um sonho não poderia surgir a partir dos pensamentos de que ‘foi absurdo casar tão cedo’, a não ser quando estes despertaram o antigo desejo de ver, até que enfim, o que acontece no casamento. Este desejo, então, deu ao conteúdo do sonho a sua forma, substituindo casamento por ir ao teatro, e a forma foi a de uma anterior realização de desejo: ‘Toma! agora eu posso ir ao teatro e vez tudo o que é proibido, e tu não podes! Estou casada e tu tens que esperar!’ Desse modo, sua presente situação foi transformada em seu oposto, um velho triunfo se colocou no lugar de sua recente frustração. E, aliás, a satisfação de sua escopofilia misturou-se à satisfação de sua tendência competitiva egoística. Esta satisfação determinou, então, o conteúdo manifesto do sonho, no qual a situação real consistia em que ela estava no teatro, ao passo que a amiga não conseguia obter ingresso ao mesmo. As partes do conteúdo do sonho, atrás das quais os pensamentos oníricos latentes ainda permanecem escondidos, foram superpostas a essa situação de satisfação, como modificação equívoca e ininteligível da mesma. A interpretação do sonho teve de desprezar tudo quanto serviu para representar a realização de desejos e de restabelecer os pensamentos oníricos latentes aflitivos, diferenciando-os desses obscuros indícios remanescentes.A nova idéia que desejo apresentar-lhes é atrair sua atenção para os pensamentos oníricos latentes que agora se colocaram em primeiro plano. Peço-lhes que não se esqueçam de que, em primeiro lugar, eles são inconscientes para o sonhador e, em segundo lugar, de que ele são completamente racionais e coerentes, de modo que podem ser compreendidos como reações naturais à causa precipitante do sonho; e, em terceiro lugar, de que eles podem ser o equivalente de qualquer impulso mental ou operação intelectual. Agora descreverei estes pensamentos, mais estritamente do que antes, como resíduos diurnos, admita-os ou não a pessoa que teve o sonho. E farei a distinção entre os resíduos diurnos e os pensamentos oníricos latentes e, de conformidade com o uso que fizermos anteriormente, designarei como pensamentos oníricos latentes tudo o que constatamos na interpretação do sonho, enquanto os resíduos diurnos constituem apenas uma parte dos pensamentos oníricos latentes. Pensamos, pois, que alguma coisa se acrescenta aos resíduos diurnos, algo que também fazia parte do inconsciente, um impulso pleno de desejos, poderoso, porém reprimido; e é este, somente, que torna possível a construção do sonho. A influência deste impulso pleno de desejos sobre os resíduos diurnos cria a outra parte dos pensamentos oníricos latentes — essa parte que já não necessita parecer racional e inteligível como se fosse derivada da vida desperta.Tenho usado de uma analogia para ilustrar a relação entre os resíduos diurnos e o desejo inconsciente, e aqui posso apenas repeti-la. Em todo empreendimento, é preciso haver um capitalista que cobre as despesas e um entrepreneur que tem a idéia e sabe como pô-la em prática. Na construção dos sonhos, o papel do capitalista é sempre desempenhado apenas pelo desejo inconsciente; este prove a energia psíquica para a construção do sonho. O entrepreneur é o resíduo diurno que decide como deve ser usado este dispêndio de energia. Naturalmente, é possível o próprio capitalista ter a idéia e o conhecimento técnico, ou o próprio entrepreneur ter o capital. Isto simplifica a situação prática, porém dificulta a compreensão teórica. Em economia, a mesma pessoa se encontra constantemente dividida em seus dois aspectos de capitalista e de entrepreneur, e isto restabelece a situação fundamental em que se baseou nossa analogia. Na construção onírica, as mesmas flutuações acontecem, e deixo que os senhores as complementem.Neste ponto não podemos progredir mais, pois os senhores provavelmente há muito têm sido perturbados por uma dúvida, e esta merece atenção. ‘Os resíduos diurnos’, os senhores me perguntarão, ‘são realmente inconscientes no mesmo sentido que o desejo inconsciente que deve ser acrescentado a eles, a fim de torná-los capazes de produzir um sonho?’ A suposição dos senhores está correta. Este é o ponto saliente em todo este assunto. Não são inconscientes no mesmo sentido. O desejo onírico pertence a um inconsciente diferente — àquele inconsciente que já reconhecemos como tendo uma origem infantil e mecanismos peculiares [ver em [1] e [2]]. Seria muito oportuno distinguir essas duas espécies de inconscientes por meio de nomes diferentes. Preferiríamos, porém, esperar até nos familiarizarmos com a área dos fenômenos das neuroses. As pessoas consideram um tanto fantástico haver um só inconsciente. Que dirão quando confessarmos que temos de nos haver com dois?Vamos interromper neste ponto. Mais uma vez, os senhores ouviram somente algo incompleto. No entanto, não é promissor pensar que este conhecimento tem uma continuação, que ou nós mesmos ou outras pessoas iremos elucidar? E nós mesmos já não aprendemos tantas coisas novas e surpreendentes?

 

CONFERÊNCIA XV - INCERTEZAS E CRÍTICAS

 

SENHORAS E SENHORES:

Não deixaremos o tema dos sonhos sem abordarmos as dúvidas e incertezas mais comuns que nossas inovações e nossas teorias originaram até aqui. Os senhores mesmos, ouvintes atentos, terão coligido algumas junto ao material de que tratamos.

(1) Os senhores podem ter tido a impressão de que, embora a técnica seja corretamente executada, as descobertas de nosso trabalho interpretativo de sonhos admitem tantas incertezas, que chegam a invalidar qualquer tradução segura do sonho manifesto para os pensamentos oníricos latentes. Em apoio a isso, os senhores argumentarão que, em primeiro lugar, nunca se sabe se um determinado elemento do sonho deve ser entendido no seu sentido realçou na qualidade de símbolo, pois as coisas empregadas como símbolos não deixam de, por este motivo, ser elas mesmas. Se, no entanto, não se dispõe de indício objetivo para resolver isto, a interpretação, nesse ponto, deve ser deixada à escolha arbitrária do interpretador. Ademais, em conseqüência do fato de que, na elaboração onírica, os contrários se fundem, sempre permanece indeterminado se certo elemento deve ser compreendido em sentido positivo ou negativo como sendo ele próprio ou como sendo o seu contrário [ver em [1]]. Aqui está uma nova oportunidade de o interpretador exercer uma escolha arbitrária. Em terceiro lugar, em conseqüência de inversões de toda espécie, tão ao gosto dos sonhos [ver em [1]], é facultado ao interpretador efetuar uma inversão dessas em relação a qualquer passagem do sonho que venha a escolher. E, por fim, comentarão que ouviram dizer que jamais se tem certeza de que a interpretação que se encontrou para um sonho é a única possível. Corremos o risco de passar por alto uma ‘superinterpretação’ perfeitamente admissível do mesmo sonho [ver em [1]]. Nestas circunstâncias, concluirão os senhores, deixa-se tanta margem para a decisão arbitrária do interpretador, que esta se torna incompatível com a certeza objetiva dos dados. Ou, alternativamente, podem supor que a falha não se situa nos sonhos, mas que as inexatidões de nossa interpretação de sonhos devem ser atribuídas a erros em nossos pontos de vista e em nossas premissas.Todos os elementos que os senhores apresentam são indiscutíveis; porém, segundo penso, não justificam suas conclusões, em dois aspectos, ou seja: que a interpretação de sonhos, como insistem os senhores, esteja à mercê da escolha arbitrária, e que a falta de resultados lance dúvidas sobre a correção de nosso método. Se, em lugar da escolha arbitrária feita pelo interpretador, os senhores se referissem à sua habilidade, à sua experiência e à sua compreensão, eu concordaria com os senhores. Naturalmente, não podemos dispensar um fator pessoal como este, especialmente nos problemas mais difíceis da interpretação de sonhos. A situação não é, porém, nada diferente em outras áreas científicas. Não há como evitar que uma pessoa faça melhor uso de uma técnica, que de outra. Em outros termos, aquilo que dá a impressão de casualidade — na interpretação de sonhos, por exemplo — é desfeito pelo fato de, via de regra, a interconexão entre pensamentos oníricos, ou a conexão entre o sonho e a vida de quem sonha, ou a situação psíquica global em que ocorre o sonho, selecionar uma só entre as soluções possíveis apresentadas, dispensando as demais, como inservíveis. A conclusão de que, por causa das imperfeições na interpretação de sonhos, nossas hipóteses seriam incorretas, é invalidada assinalando-se que, ao contrário, a ambigüidade ou a indefinição é uma característica dos sonhos que era de se prever, necessariamente.Recordemos haver dito que a elaboração onírica executa uma versão dos pensamentos oníricos segundo um modo de expressão primitivo, semelhante à escrita pictográfica [ver em [1] e segs.]. No entanto, todos esses sistemas primitivos de expressão se caracterizam por indefinição e ambigüidade semelhante, não justificando que lancemos dúvidas sobre sua serventia. A fusão dos contrários, na elaboração onírica, é, como sabem, análoga à chamada ‘significação antitética das palavras primitivas’ nos idiomas mais antigos. Realmente, Abel (1884), o filólogo ao qual devemos essa linha de pensamento, nos pede não supormos que as comunicações feitas por uma pessoa a outra, com a ajuda de tais palavras ambivalentes, sejam, por essa razão, ambíguas. Pelo contrário, entonação e gestos devem tê-las feito muito precisas, no contexto do discurso, indicando qual dos dois contrários o interlocutor tencionava comunicar. Na escrita, onde o gesto está ausente, seu lugar era ocupado por um sinal pictográfico que não se destinava a ser falado — por exemplo, pela figura de um homenzinho, agachado e cambaleando ou firmemente ereto, conforme o hieróglifo ‘ken‘ devesse significar ‘fraco’ ou ‘forte’. Assim, apesar da ambigüidade dos sons e sinais, evitava-se o equívoco. [Ver em [1] e [2], anteriores.]

Os antigos sistemas de expressão — por exemplo, a escrita dos idiomas mais antigos — revelam vaguidade em uma variedade de formas tal que não toleraríamos em nossa escrita atual. Assim, em algumas escritas semíticas, somente estão indicadas as consoantes das palavras. O leitor deve inserir as vogais omitidas, segundo seus conhecimentos e o contexto. A escrita hieroglífica se comporta de forma similar, embora não precisamente da mesma maneira; e por este motivo permanece desconhecida para nós a pronúncia do antigo idioma egípcio. A escrita sagrada dos egípcios é importante também em outros aspectos. Por exemplo, compete à decisão arbitrária do escriba dispor as figuras da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita. A fim de proceder à sua leitura, deve-se seguir a regra de ler em direção aos rostos das figuras, pássaros, e assim por diante. Porém o escriba também podia ordenar os sinais pictográficos em colunas verticais, e, ao fazer inscrições em objetos comparativamente pequenos, permitia que considerações de decoração e espaço o influenciassem no sentido de alterar a seqüência dos sinais de outras maneiras. O que mais perturba na escrita hieroglífica é, sem dúvida, o fato de não haver separação entre as palavras. As figuras são dispostas na página separadas por distâncias iguais; em geral, é impossível dizer se um sinal ainda faz parte da palavra precedente ou se forma o começo de uma nova palavra. Na escrita cuneiforme persa, por outro lado, uma cunha oblíqua serve para separar as palavras.

Idioma e escrita extremamente antigos, o chinês ainda é usado por quatrocentos milhões de pessoas. Os senhores não devem supor que eu absolutamente o entenda; somente obtive algumas informações sobre o mesmo porque esperava encontrar nele analogias com a imprecisão dos sonhos. E minha expectativa não sofreu desapontamento. O idioma chinês está cheio de exemplos de imprecisão que poderiam nos deixar muito alarmados. Como se sabe, compõe-se de numerosos sons silábicos que são falados isolados ou combinados aos pares. Um dos principais dialetos possui uns quatrocentos destes sons. Como o vocabulário deste dialeto é calculado em cerca de quatro mil palavras, porém, conclui-se que cada som tem, em média, dez significados diferentes — alguns menos, mas outros, em troca, têm mais. Existem numerosos métodos de evitar a ambigüidade, pois não se pode inferir, apenas a partir do contexto, qual dos dez significados do som silábico a pessoa tenciona transmitir ao ouvinte. Entre esses métodos estão aqueles que consistem em combinar dois sons em uma palavra composta e em utilizar quatro diferentes ‘tons’ na pronúncia das sílabas. Do ponto de vista de nossa comparação, é ainda mais interessante verificar que este idioma praticamente não tem gramática. É impossível dizer se uma das palavras monossilábicas é um substantivo, ou um verbo, ou um adjetivo; e não há flexões verbais, pelas quais se possa reconhecer gênero, número, desinência, tempo e modo. Assim, a linguagem consta, poderia dizer-se, apenas de matéria-prima, assim como nossa linguagem-pensamento fica reduzida, através da elaboração onírica, à sua matéria-prima, e se omite qualquer expressão de relação. No idioma chinês, a solução do sentido, em todos os casos, cabe ao entendimento de quem ouve, e nisto a pessoa se guia pelo contexto. Tomei nota de um exemplo de um provérbio chinês que, traduzido literalmente, reza assim:‘Pouca visão, muita maravilha.Não é difícil compreender isto. Pode significar: ‘Quanto menos alguém viu, mais tem com que se maravilhar’; ou: ‘De muita coisa se admira aquele que viu pouco.’ Naturalmente, não há maneira de diferenciar entre estas duas versões que diferem apenas gramaticalmente. Apesar desta imprecisão, foi-nos assegurado que o idioma chinês é um veículo bastante eficiente de expressão do pensamento. Assim, a imprecisão não deve necessariamente produzir ambigüidade.Naturalmente, deve-se admitir que o sistema de expressão por meio de sonhos ocupa uma posição muito mais desfavorável do que qualquer desses idiomas e escritas antigos. Pois, afinal, destinam-se estes, fundamentalmente, à comunicação; ou seja, por qualquer método e com qualquer recurso, destinam-se a serem compreendidos. Precisamente esta característica, porém, está ausente nos sonhos. Um sonho não pretende dizer nada a ninguém. Não é um veículo de comunicação; pelo contrário, destina-se a permanecer não-compreendido. Por essa razão, não devemos nos surpreender ou ficar perplexos ao verificarmos que permanecem sem solução numerosas ambigüidades e obscuridades dos sonhos. O único lucro certo que auferimos de nossa comparação é a descoberta de que esses pontos de incerteza que as pessoas tentaram usar como objeções à solidez de nossas interpretações de sonhos são, ao contrário, características constantes de todos os sistemas primitivos de expressão.A questão de saber até onde alcança a inteligibilidade dos sonhos somente pode ser respondida pela prática e pela experiência. Muito longe, creio; e minha opinião é confirmada ao compararmos os resultados produzidos por analistas de formação correta. O público leigo, inclusive o público leigo científico, como se sabe, gosta de promover uma demonstração de ceticismo quando se defronta com as dificuldades e incertezas de uma realização científica. Penso que nisto não têm razão. Talvez nem todos os senhores estejam cientes de que uma situação semelhante surgiu na história da decifração das inscrições assírio-babilônicas. Houve época em que a opinião pública esteve muito inclinada a considerar visionários os decifradores da escrita cuneiforme, e a totalidade de suas pesquisas, uma ‘impostura’. Mas, em 1857, a Royal Asiatic Society fez uma experiência decisiva. Solicitou a quatro dos peritos mais altamente respeitados em escrita cuneiforme, Rawlinson, Hincks, Fox Talbot e Oppert para remeterem, em envelopes lacrados, traduções independentes de uma inscrição recentemente descoberta; e, após uma comparação entre os quatro trabalhos, pôde anunciar que a concordância entre estes peritos era suficiente para justificar o crédito que até então se havia dado e a confiança em posteriores realizações. A zombaria por parte do mundo leigo culto diminuiu gradualmente, após isto, e desde então tem aumentado enormemente a certeza na leitura dos documentos cuneiformes.(2) Um segundo grupo de dúvidas está em conexão íntima com a impressão, à qual certamente nem os senhores escaparam, de que determinadas soluções, em direção às quais nos sentimos compelidos ao interpretar sonhos, parecem ser forçadas, artificiais, arranjadas por imposição — isto é, arbitrárias, ou até mesmo cômicas, anedóticas. Comentários nesse sentido são tão freqüentes, que escolherei ao acaso o último que me foi relatado. Ouçam, pois. Na Suíça livre, o diretor de uma instituição de ensino recentemente foi afastado do cargo por causa de seu interesse pela psicanálise. Ele entrou com um protesto, e um jornal de Berna publicou a versão das autoridades da escola sobre sua apelação. Selecionarei algumas frases desse documento, referentes à psicanálise: ‘Além de tudo, estamos surpresos com o aspecto forçado e artificial de muitos dos exemplos, que também podem ser encontrados na obra do Dr. Pfister, de Zurique, a qual é citada…. Por conseguinte, é realmente surpreendente que o diretor de uma instituição de ensino aceite sem críticas todas essas assertivas e provas forjadas.’ Estas frases são expostas como uma decisão a que chegou uma pessoa ‘após um julgamento sereno’. Penso que esta serenidade, isto sim, é que é ‘artificial’. Examinemos essas observações mais detidamente, na expectativa de que uma leve reflexão e um pouco de conhecimento especializado não constituirão nenhuma desvantagem, mesmo para um julgamento sereno.

É verdadeiramente reconfortante verificar com que rapidez e infalibilidade uma pessoa pode chegar a julgar determinados problemas delicados de psicologia profunda após ter sua primeira impressão sobre a mesma. As interpretações lhe parecem artificiais e forçadas, elas não lhe agradam; assim, elas são falsas e todo esse assunto de interpretação não tem valor. E nem dedica à outra possibilidade uma idéia passageira — de que existem bons motivos para essas interpretações só poderem ter esta aparência; e daí a outra questão, ou seja, quais são esses bons motivos.O assunto em questão refere-se essencialmente aos resultados do deslocamento, que os senhores já conhecem como o mais poderoso instrumento da censura de sonhos. Com auxílio do deslocamento, a censura de sonhos cria estruturas substitutivas que temos descrito como alusões. Mas trata-se de alusões que não são facilmente reconhecíveis como tais, cujo caminho inverso até a coisa original não é fácil de estabelecer, e que se correlacionam com a coisa original por meio das associações mais estranhas, incomuns e superficiais. Em todos estes casos, no entanto, trata-se de coisas que interessa sejam mantidas ocultas, condenadas ao ocultamento, pois é isto que objetiva a censura de sonhos. Não devemos, contudo, esperar que uma coisa que foi mantida escondida venha a ser encontrada em seu lugar próprio, em sua localização adequada. As comissões de controle de fronteira, que funcionam atualmente, são mais habilidosas neste aspecto do que as autoridades escolares suíças. Em sua busca de documentos e anotações, não se contentam com examinar carteiras e pastas de documentos, mas admitem a possibilidade de que os espiões e contrabandistas possam ter essas coisas proibidas nas partes mais secretas do vestuário, onde sua presença seria totalmente imprópria — por exemplo, entre as solas duplas das botas. Se as coisas ocultas estão aí, certamente será possível dizer que são ‘artificiais’, mas também é verdade que, com isso, muito se terá achado.Ao reconhecermos que as conexões entre um elemento onírico latente e o seu substituto manifesto podem ser da natureza mais remota e especial, às vezes parecendo cômicas e às vezes assemelhando-se a um chiste, estamos nos fundamentando em abundante experiência de exemplos que, via de regra, nós mesmos não solucionamos. Amiúde, é impossível dar tais interpretações por nossa própria conta: nenhuma pessoa sensata poderia adivinhar qual a conexão. Aquele que teve o sonho nos dá a tradução, toda de uma vez, por meio de uma associação direta — ele é capaz disso, pois foi ele quem produziu o substituto — ou então fornece tanto material, que a solução não exige mais nenhuma sagacidade, mas se apresenta, por assim dizer, como algo muito natural no contexto. Se o sonhador deixa de prestar esta ajuda numa ou noutra destas duas formas, o elemento manifesto, que pretendemos examinar, permanecerá para sempre ininteligível para nós. Permitam-me dar-lhos um exemplo que me ocorreu há pouco. Uma de minhas pacientes perdeu seu pai, durante o tratamento. Desde então, ela aproveitou todas as ocasiões para trazê-lo à vida, em seus sonhos. Num destes, seu pai apareceu (em conexão com algo sem maior importância) e disse: ‘São onze e quinze, são onze e meia, são quinze para as doze.’ Ao tentar a interpretação desta singularidade, tudo o que lhe acudiu à mente foi que seu pai gostava que seus filhos adultos chegassem pontualmente às refeições da família. Sem dúvida, isto se relacionava ao elemento onírico, mas não elucidou nada de sua origem. Havia uma suspeita, baseada na situação imediata do tratamento, de que uma revolta crítica, cuidadosamente suprimida, contra seu pai querido e honrado, desempenhava um papel no sonho. No decorrer das associações seguintes, aparentemente distantes do sonho, ela contou como, no dia anterior, tinha havido um bocado de conversa sobre psicologia, em sua presença, e um seu parente havia comentado: ‘O Urmensch [homem primitivo] sobrevive em todos nós.’ Isto pareceu dar-nos a explicação. Fora para ela uma excelente oportunidade para trazer à vida o pai falecido. No sonho, ela o transformou no ‘Uhrmensch‘ [‘homem do relógio’] fazendo-o anunciar os quartos de hora do meio-dia.Não há como evitar a semelhança deste exemplo com um chiste; e freqüentemente tem acontecido um chiste do sonhador ser considerado como chiste de quem interpreta. Há outros casos em que não tem sido nada fácil decidir se aquilo que estamos abordando é um chiste ou um sonho. Os senhores se lembrarão, contudo, de que a mesma dúvida surgiu no caso de algumas parapraxias — lapsos de língua [ver em [1] e seg.]. Um homem referiu, como sonho seu, que um seu tio lhe havia dado um beijo enquanto estavam sentados no seu auto (móvel). Ele mesmo, muito rapidamente, acrescentou a interpretação: significava ‘auto-erotismo‘ (um termo da teoria da libido, indicando satisfação obtida sem qualquer objeto externo). Estava o homem querendo fazer uma brincadeira conosco e estaria ele transmitindo um chiste de que se lembrava como um sonho? Penso que não; creio que ele realmente teve o sonho. Mas qual é a origem dessa enigmática semelhança? Esta questão, em certa época, desviou-me temporariamente do meu caminho, forçando-me a fazer dos chistes mesmos o tema de uma investigação detalhada. Aí ficou demonstrado como se originam os chistes: uma seqüência de pensamentos pré-consciente é abandonada por um momento para ser trabalhada no inconsciente, e deste ela emerge como chiste. Sob a influência do inconsciente, é sujeita aos efeitos dos mecanismos que ali imperam — condensação e deslocamento —, os mesmos processos que vimos em ação na elaboração onírica; e é a este aspecto comum que se deve atribuir a semelhança, quando ocorre, entre chistes e sonhos. O ‘chiste onírico’ involuntário não tem nada da graça de uma verdadeira anedota. Os senhores podem vir a saber por quê, se se aprofundarem no estudo dos chistes. Um ‘chiste onírico’ se nos apresenta como anedota sem graça; não nos faz rir, deixa-nos frios.Nisso, entretanto, estamos palmilhando os caminhos da interpretação de sonhos da Antigüidade, que, ao lado de muita coisa imprestável, deixou-nos alguns bons exemplos de interpretação de sonhos que nós mesmos não poderíamos superar. Repetirei para os senhores um sonho que teve importância histórica, e que Plutarco e Artemidoro de Daldis [ver em [1], anterior], com ligeiras variações, referiram acerca de Alexandre Magno. Quando o rei estava sitiando a obstinadamente defendida cidade de Tiro (322 a. C.), sonhou que via um sátiro dançando. Aristandro, o interpretador de sonhos, que se encontrava presente junto com o exército, interpretou o sonho dividindo a palavra ‘Satyros‘ em ƒãƒÑƒnƒÄƒåƒâƒßƒÆ [sa Turos] (tua é Tiro) e, portanto, prometeu que ele iria triunfar sobre a cidade. Por esta interpretação, Alexandre foi levado a continuar o cerco e finalmente capturou Tiro. A interpretação, que possui uma aparência bastante artificial, indubitavelmente era a correta.(3) Bem posso imaginar que os senhores ficarão especialmente impressionados quando ouvirem dizer que as objeções aos nossos pontos de vista dos sonhos têm sido feitas até mesmo por pessoas que estiveram, elas próprias, como psicanalistas, dedicando-se por tempo considerável a interpretar sonhos. Seria demais esperar que este tão forte encorajamento a novos erros, como o que oferece esta teoria, tivesse sido negligenciado; e assim, em conseqüência de confusões conceituais e generalizações injustificadas, foram feitas afirmações que não estão muito longe da visão médica acerca dos sonhos, no que esta tem de incorreta. Os senhores já conhecem uma delas. Diz-nos que os sonhos constituem tentativas de adaptação atuais e tentativas de solucionar problemas futuros — que eles têm um ‘propósito prospectivo’ (Maeder [1912]). Já temos demonstrado [ver em [1]] que esta asserção se baseia numa confusão entre sonho e pensamentos oníricos latentes e, por conseguinte, se baseia no fato de se omitir a elaboração onírica. Esta, como caracterização da atividade intelectual inconsciente, da qual os pensamentos oníricos latentes fazem parte, não constitui novidade, por um lado, e, por outro, não esgota o assunto, de vez que a atividade mental inconsciente está ocupada com muitas outras coisas além da preparação para o futuro. Uma confusão muito pior parece estar subjacente à afirmação de que a idéia de morte pode ser encontrada por trás de todo sonho [Stekel, 1911, 34]. Não tenho uma noção clara acerca do que se pretende dizer com esta fórmula. Suspeito, porém, que ela esconde uma confusão entre o sonho e a personalidade global daquele que sonhou. [Cf. I. de S., Vol. V, pág. 424.]Uma generalização injustificável, baseada em alguns poucos exemplos, está contida na afirmação de que todo sonho admite duas interpretações — uma que concorda com nossa descrição, ‘psicanalítica’, e outra, ‘anagógica’, que não leva em conta os impulsos instintuais e objetiva representar as funções superiores da mente (Silberer [1914]). Existem sonhos deste tipo, porém os senhores tentarão inutilmente estender esta concepção à maioria dos sonhos. E mais, após tudo o que eu lhes disse, os senhores acharão bastante incompreensível uma afirmação de que todos os sonhos devem ser interpretados bissexualmente, como confluência de duas correntes, descritas como masculina e feminina (Adler [1910]). [Cf. I. de S., Vol. V, págs. 423-4.] podem constatar posteriormente que eles se constróem como alguns dos sintomas histéricos. A razão por que mencionei todas essas descobertas de novas características universais dos sonhos é para que os senhores estejam prevenidos quanto às mesmas ou, ao menos, para que não tenham dúvidas a respeito do que penso delas.(4) Um dia o valor objetivo da investigação sobre sonhos pareceu ser posto em xeque por uma observação de que os pacientes em tratamento analítico ordenam o conteúdo dos sonhos conforme as teorias prediletas de seu médicos — alguns sonhando predominantemente com impulsos instintuais sexuais, outros, com a luta pelo poder, e ainda outros, até mesmo, com renascimento (Stekel). O peso destas observações, entretanto, diminuiu com a reflexão de que os seres humanos tinham sonhos antes que houvesse qualquer tratamento psicanalítico que pudesse dar a esses sonhos uma direção, e que as pessoas que agora se encontram em tratamento costumavam sonhar também durante o período anterior ao início do tratamento. O que havia de verdade nesta inovação logo se podia ver que era evidente por si mesmo e sem importância para a teoria dos sonhos. Os resíduos diurnos que suscitam os sonhos são elementos postos de lado devido a poderosos interesses durante a vida desperta. Quando as observações feitas pelo médico e os indícios que este fornece adquirem importância para o paciente, eles entram para o círculo dos resíduos diurnos e podem prover estímulos psíquicos para a construção dos sonhos, como quaisquer outros interesses emocionalmente significativos do dia precedente, que não foram atendidos; e podem atuar como os estímulos somáticos que incidem sobre o sono de uma pessoa que venha a sonhar. As seqüências de pensamentos postas em marcha pelo médico, assim como esses outros instigadores dos sonhos, surgem no conteúdo manifesto de um sonho ou se revelam em seu conteúdo latente. Na verdade, sabemos que um sonho pode ser produzido experimentalmente, ou, expressando-nos em termos mais corretos, uma parte do material onírico pode ser introduzida no sonho. Ao produzir esses efeitos em seus pacientes, um analista está executando um papel não diferente de um experimentador que, como Mourly Vold, coloca em determinadas posturas os membros de pessoas, em suas experiências. [ver em [1], anteriores.]Freqüentemente, é possível influenciar uma pessoa acerca do que ela vai sonhar, mas nunca aquilo que sonhará. O mecanismo da elaboração onírica e o desejo onírico inconsciente estão isentos de qualquer influência externa. Ao tratar dos sonhos com estímulo somático, já verificamos [ver em [1] e seg.] que a natureza característica e a independência da vida onírica são mostradas na reação com que os sonhos respondem aos estímulos somáticos ou mentais que são postos em ação. A tese que estivemos discutindo, e que procura lançar dúvidas sobre a objetividade da pesquisa referente aos sonhos, mais uma vez está baseada numa confusão — desta vez, entre o sonho e o material dos sonhos.Isto, pois, era o que tinha a dizer-lhes, senhoras e senhores, a respeito dos problemas dos sonhos. Como poderão perceber, há muitas coisas que tive de omitir, e verificarão que, em quase todos os pontos, o que disse ficou necessariamente incompleto. Isso, naturalmente, se deve à conexão entre os fenômenos dos sonhos e os das neuroses. Temos estudado os sonhos como introdução à teoria das neuroses, e isso foi, certamente, um procedimento mais correto do que se tivéssemos feito o oposto. Mas, assim como os sonhos preparam o caminho para uma compreensão das neuroses, também, por outro lado, uma verdadeira apreciação dos sonhos só pode ser realizada depois de se conhecer os fenômenos neuróticos.Não sei dizer o que os senhores pensarão, porém devo assegurar-lhes que não lamento ter-lhes exigido tanto do seu interesse e do tempo de que dispusemos para os problemas dos sonhos. Não existe nenhuma outra coisa mais, a partir da qual se possa tão rapidamente obter certeza da correção da tese pela qual a psicanálise resiste ou perece. Trabalho muito sério, por meses e até mesmo por anos, é o que se exige para demonstrar que os sintomas de um caso de doença neurótica têm um sentido, servem a um propósito e se originam das experiências de vida do paciente. Por outro lado, um esforço de apenas umas poucas horas pode ser suficiente para provar que o mesmo procede para um sonho que e, de início, confuso a ponto de ser ininteligível, e para, dessa maneira, confirmar todas as premissas da psicanálise — a natureza inconsciente dos processos mentais, os mecanismos especiais a que estes obedecem e as forças instintuais que neles se expressam. E quando temos em mente a extraordinária analogia entre a estrutura dos sonhos e a dos sintomas neuróticos e, ao mesmo tempo, consideramos a rapidez com que uma pessoa que tem um sonho se transforma em um homem vigil e racional, adquirimos a certeza de que também as neuroses se baseiam apenas em uma modificação do jogo de forças entre os poderes da vida mental.

 

                                                                              

                      

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