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FREUD - Volume XXII (1932-1936)
FREUD - Volume XXII (1932-1936)

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OBRAS COMPLETAS DO DR. SIGMUND FREUD

Volume XXII

 

Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos

 

NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS SOBRE PSICANÁLISE (1933 [1932])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

NEUE FOLGE DER VORLESUNGEN ZUR EINFÜHRUNG IN DIE PSYCHOANALYSE

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

 

1933   Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 255 págs.

1934   G.S., 12, 149-345.

1940   G.W., 15, iv + 206 págs.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

 

New Introductory Lectures on Psycho-Analysis

 

1933   Londres: Hogarth Press e Institute of Psycho-Analysis.xi + 240 págs. (Tr. de W. J. H. Sprott)

1933   Nova Iorque: Norton. xi + 257 págs. (Reimpressão da anterior.)

 

A presente tradução inglesa é uma nova tradução feita por James Strachey.

 

Partes das Conferências XXX e XXXI do texto original foram incluídas em Almanach 1933 (9-30 e 35-58); e parte da Conferência XXXIV, em Psychoanal. Bewegung, 4 (novembro-dezembro, 1932), 481-97. A Conferência XXX, na tradução inglesa de 1933, foi incluída em Devereux, Psychoanalysis and the Occult (Nova Iorque, 1953), 91-109. Um resumo da parte inicial da Conferência XXX, escrito pelo próprio Freud, apareceu numa tradução húngara na edição de Magyar Hirlap, Budapeste, de 25 de dezembro de 1932 (Freud 1932d).

 

Sabemos, de Ernest Jones, (1957, 186-7), que, embora o volume levasse a data ‘1933’ no seu frontispício, ele foi realmente publicado em 6 de dezembro de 1932 — com isso repetindo a história de A Interpretação de Sonhos (ver [1]).

No início de 1932, a situação financeira do quadro editorial psicanalítico (a‘Verlag’) estava difícil, e Freud teve a idéia de vir em seu auxílio com uma nova série (‘Neue Folge’, no título em alemão) de Conferências Introdutórias. A primeira e a última conferências estavam prontas no fim de maio, e o livro todo estava completo em fins de agosto.

Estas conferências diferem da série original em diversos aspectos, e não apenas no fato de que jamais se cogitou em pronunciá-las. Conforme assinala Freud, no prefácio que ele mesmo escreveu, elas não possuem vida própria; são, na sua essência, suplementos. Aspecto especialmente digno de nota nestas conferências, porém, é a forma pela qual diferem, nas suas características, umas das outras. A primeira conferência, sobre sonhos, não é muito mais do que um resumo da seção sobre sonhos da série anterior. Por sua vez a terceira, a quarta e a quinta conferências (sobre a estrutura da mente, sobre a ansiedade e a teoria dos instintos, e sobre a psicologia feminina) introduzem material e teorias inteiramente novos e, ao menos no que respeita à terceira e à quarta conferências, aprofundam-se em discussões metapsicológicas e teóricas de uma dificuldade que havia sido diligentemente evitada, quinze anos antes. As três conferências restantes — a segunda e as duas últimas — abordam conjuntamente assuntos diversos, apenas indiretamente relacionados à psicanálise; e os abordam, acima de tudo, segundo o que se poderia quase descrever como uma forma popular. Isto não sugere que sejam destituídas de interesse — longe disso —, mas exigem espécie e grau de atenção muito diferentes, por parte do leitor, em comparação com as demais conferências. Se o leitor desejar ouvir o que Freud pensa sobre telepatia, educação, religião e comunismo, ou se deseja conhecer os últimos pontos de vista de Freud sobre o superego, sobre a ansiedade, sobre o instinto de morte e sobre a fase pré-edipiana das meninas, certamente encontrará abundante material com que se ocupar nestas conferências.

 

PREFÁCIO

 

Minhas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise foram proferidas durante os dois períodos de inverno de 1915-16 e 1916-17, em uma sala de conferências da Clínica Psiquiátrica de Viena, perante ouvintes provenientes de todas as faculdades da Universidade. As conferências da primeira metade foram improvisadas, sendo providenciada a sua redação logo após; as das segunda metade foram delineadas num esboço feito durante as férias do verão desse intervalo, em Salzburg, e lidas palavra por palavra no inverno seguinte. Naquela época eu ainda tinha o dom de uma memória fonográfica.

Estas novas conferências, diferentemente das anteriores, nunca foram proferidas. Minha idade, nesse ínterim, havia-me liberado da obrigação de expressar minha condição de membro da Universidade (que, de qualquer modo, era uma condição periférica) fazendo conferências; e uma operação cirúrgica havia-me impossibilitado de falar em público. Se, portanto, mais uma vez tomo o meu lugar na sala de conferências, durante os comentários que se seguem, é somente por um artifício de imaginação; isto pode ajudar-me a não me esquecer de levar em conta o leitor, à medida que me aprofundar mais em meu tema.

As novas conferências de modo algum pretendem ocupar o lugar das anteriores. Em nenhum sentido elas formam uma entidade independente, com a expectativa de encontrar um círculo de leitores apenas seus; são continuações e suplementos que, em relação à série anterior, se dividem em três grupos. Um primeiro grupo contém novas abordagens de assuntos que já haviam sido discutidos, há quinze anos, mas que, em conseqüência de um aprofundamento de nosso conhecimento e de uma modificação em nossos pontos de vista, requerem atualmente uma exposição diferente, ou seja, revisões críticas. Os dois outros grupos contêm o que na verdade são ampliações, pois tratam de coisas que não existiam na psicanálise à época das primeiras conferências, ou que estavam muito pouco em evidência para justificar que constituíssem título de capítulo. É inevitável, mas não é de se lamentar, que algumas das novas conferências reúnam características de mais de um desses grupos.

Também assinalei a dependência destas novas conferências em relação às Conferências Introdutórias, dando-lhes uma numeração contínua com a destas últimas. A primeira conferência deste volume, por conseguinte, tem o nº XXIX. Assim como as suas predecessoras, oferecem ao analista profissional pouca coisa nova; são endereçadas à multidão de pessoas instruídas às quais talvez possamos atribuir um interesse benévolo, ainda que cauteloso, pelas características e descobertas da jovem ciência. Também desta vez, meu objetivo principal foi o de não fazer concessões que visassem a dar uma aparência de que as coisas sejam simples, completas, acabadas, procurei não camuflar problemas e não negar a existência de lacunas e de incertezas. Em nenhum campo de trabalho científico seria necessário proclamar tais intenções modestas. São universalmente consideradas evidentes por si mesmas; o público não espera nada diferente. Nenhum leitor de um artigo sobre astronomia se sentirá desapontado e desdenhoso em relação à ciência quando lhe são mostradas aquelas fronteiras em que nosso conhecimento do universo se transforma em nebulosidade. Somente na psicologia isto é diferente. Nesta, a inabilidade constitucional da humanidade para a investigação científica surge inteiramente à mostra. O que as pessoas parecem exigir da psicologia não é o progresso no conhecimento, mas satisfações de algum outro tipo; todo problema não resolvido, toda incerteza reconhecida é transformada em vitupério contra ela.

Todo aquele que zela pela ciência da vida mental deve aceitar também essas injustiças que a acompanham.

 

FREUD

 

VIENA, verão de 1932.

 

CONFERÊNCIA XXIX

REVISÃO DA TEORIA DOS SONHOS

 

SENHORAS E SENHORES:

 

Depois de um intervalo de mais de quinze anos, se eu os reuni novamente para discutir com os senhores quais novidades, e quais melhoramentos, talvez, o tempo intercorrente possa ter introduzido na psicanálise, é correto e adequado, sob mais de um ponto de vista, que devamos voltar nossa atenção primeiramente para a posição que ocupa a teoria dos sonhos. Esta ocupa um lugar especial na história da psicanálise e assinala um ponto decisivo; foi com ela que a psicanálise progrediu de método psicoterapêutico para psicologia profunda. Também, desde aí, a teoria dos sonhos permaneceu o que é mais característico e peculiar na jovem ciência, algo em relação ao qual não há similar no restante de nosso conhecimento, uma área de território novo que foi reavido das crenças populares e do misticismo. O caráter exótico das asserções que ela foi obrigada a apresentar, fê-la desempenhar o papel de senha, cujo uso decidiu quem poderia tornar-se seguidor da psicanálise e a quem ela permaneceria para sempre incompreensível. Eu próprio considerei a teoria dos sonhos âncora de salvação durante aqueles tempos duros nos quais os fatos não-reconhecidos das neuroses costumavam confundir meu julgamento inexperiente. Sempre que eu começava a ter dúvidas com referência à correção de minhas conclusões hesitantes, a transformação exitosa de um sonho absurdo e intrincado em processo mental inteligível da pessoa que teve o sonho vinha renovar minha confiança de estar no caminho certo.

Portanto, é de especial interesse para nós, no caso particular da teoria dos sonhos, por um lado, seguir as vicissitudes por que passou a psicanálise durante este intervalo, e, por outro lado, verificar que progressos fez para ser compreendida e valorizada pelo mundo contemporâneo. Posso dizer-lhes desde logo que os senhores ficarão desapontados em ambos esses sentidos.

Examinemos os volumes da Internationale Zeitschrift für (ärztliche) Psychoanalyse [Revista Internacional de Psicanálise (Médica)], na qual, desde 1933, os escritos de peso em nossa área de trabalho têm sido reunidos. Nos volumes iniciais, os senhores encontrarão um título de seção que se repete, ‘Sobre a Interpretação de Sonhos’, contendo numerosas contribuições sobre diferentes pontos da teoria dos sonhos. No entanto, quanto mais prosseguirem cronologicamente nesse exame, mais raras se tornam essas contribuições e, por fim, o título de seção desaparece completamente. Os analistas fazem como se não tivessem nada mais a dizer acerca de sonhos, como se nada mais houvesse a ser acrescentado à teoria dos sonhos. Se os senhores, contudo, perguntarem quanto da interpretação de sonhos foi aceito pelos intrusos — pelos muitos psiquiatras e psicoterapeutas que aquecem sua panela de sopa em nosso fogo (aliás, sem serem muito agradecidos à nossa hospitalidade), por aqueles que são catalogados como pessoas cultas, que têm o hábito de assimilar os achados mais surpreendentes da ciência, pelos literatos e pelo público em geral —, a resposta dá poucos motivos para se ficar satisfeito. Algumas fórmulas passaram a ser do conhecimento geral, entre elas algumas que nós nunca apresentamos — tal como a tese de que todos os sonhos são de natureza sexual —, mas coisas realmente importantes, como a fundamental diferença entre o conteúdo manifesto dos sonhos e os pensamentos oníricos latentes, a percepção de que a função de realização de desejos dos sonhos não é contradita pelos sonhos de ansiedade, a impossibilidade de interpretar um sonho a menos que se tenha à disposição as respectivas associações do sonhador, acima de tudo a descoberta de que o essencial nos sonhos é o processo da elaboração onírica — tudo isso ainda parece quase tão alheio ao conhecimento da maioria das pessoas, como o era há trinta anos. Estou em condições de dizer isto, pois, no decorrer desse período, tenho recebido inumeráveis cartas cujos autores apresentam seus sonhos para interpretação, ou pedem informações acerca da natureza dos sonhos, e declaram que leram o meu trabalho A Interpretação de Sonhos, embora em cada frase revelem sua falta de compreensão de nossa teoria dos sonhos. Tudo isso, porém, não nos dissuadirá de mais uma vez dar uma descrição coerente daquilo que sabemos acerca dos sonhos. Os senhores haverão de lembrar-se de que, da última vez, dedicamos uma série inteira de conferências a mostrar como chegamos a compreender esse fenômeno mental até então inexplicado.

 

Suponhamos, pois, que alguém — um paciente em análise, por exemplo — nos conta um de seus sonhos. Haveremos de supor que, dessa maneira, ele nos estará fazendo uma das comunicações a que se obrigou pelo fato de haver iniciado um tratamento analítico. Por certo que é uma comunicação feita por meios inadequados, pois os sonhos não são, em si mesmos, uma forma de comunicação social, não são um meio de fornecer informação. Na verdade, nem nós compreendemos o que o sonhador tenta dizer-nos, e ele próprio igualmente o ignora. E, então, temos de tomar uma decisão rápida. Por um lado, o sonho pode ser, conforme no-lo asseguram os médicos não-analistas, um sinal de que o sonhador dormiu mal, de que nem todas as partes do seu cérebro repousaram por igual, de que algumas áreas do cérebro, sob a influência de estímulos desconhecidos, esforçaram-se por continuar funcionando, mas só foram capazes de fazê-lo de um modo muito incompleto. Se é este o caso, faremos bem em não mais nos interessar pelo produto de uma perturbação noturna destituída de valor psíquico: pois o que poderíamos esperar obter, da investigação dele, que fosse de utilidade para nossos propósitos? Ou, por outro lado — mas é claro que, desde o princípio, decidimos de outro modo. Temos — bastante arbitrariamente, forçoso é admiti-lo — feito a suposição, adotada como postulado, de que mesmo esse sonho ininteligível deve ser um ato psíquico inteiramente válido, com sentido e valor, que podemos utilizar na análise como qualquer outra comunicação. Somente o resultado de nosso experimento pode demonstrar se estamos certos. Se formos capazes de transformar o sonho em uma comunicação de valor desse tipo, evidentemente teremos a perspectiva de aprender algo novo e de receber comunicações de uma espécie que de outro modo seria inacessível para nós.

Agora, no entanto, as dificuldades de nossa tarefa e os enigmas de nosso tema surgem diante de nossos olhos. Como iremos propor a transformação do sonho em comunicação normal e como iremos explicar o fato de que algumas das comunicações do paciente assumiram uma forma que é ininteligível tanto para ele como para nós?

Como vêem senhoras e senhores, desta vez estou tomando o caminho não de uma exposição genética, mas de uma exposição dogmática. Nosso primeiro passo consiste em estabelecer nossa nova atitude para com o problema dos sonhos, introduzindo dois novos conceitos e nomes. O que tem sido chamado de sonho descrevemos como texto do sonho, ou sonho manifesto, e aquilo que estamos procurando, o que suspeitamos existir, por assim dizer, situado por trás do sonho, descreveremos como pensamentos oníricos latentes. Havendo feito isto, podemos expressar nossas duas tarefas conforme se segue. Temos de transformar o sonho manifesto em sonho latente, e explicar como, na mente do sonhador, o sonho latente se tornou sonho manifesto. A primeira parte é uma tarefa prática, pela qual é responsável a interpretação de sonho; exige uma técnica. A segunda parte é uma tarefa teórica, cuja atribuição é explicar a hipotética elaboração onírica; e só pode ser uma teoria. Ambas, a técnica de interpretação de sonhos e a teoria da elaboração onírica, têm de ser recriadas.

Por qual delas, pois, haveremos de começar? Pela técnica da interpretação de sonhos, penso eu; apresentará uma aparência mais concreta e causará uma impressão mais vívida nos senhores.

 

Pois bem, então o paciente nos contou um sonho, que nos caberá interpretar. Ouvimos passivamente, sem colocar em ação nossa capacidade de reflexão. Que fazemos, a seguir? Decidimos preocupar-nos o menos possível com aquilo que ouvimos, o sonho manifesto. Naturalmente, esse sonho manifesto mostra todos os tipos de características que não nos são propriamente indiferentes. Pode ser coerente, harmoniosamente construído como uma composição literária, ou pode apresentar-se confuso a ponto de ser ininteligível, quase como um delírio; pode conter elementos absurdos, ou anedotas, e conclusões aparentemente espirituosas; ao sonhador pode parecer claro e preciso, ou obscuro e nebuloso; suas imagens podem exibir uma intensidade de percepções sensoriais plenas, ou pode estar cheio de sombras como nevoeiro indistinto; as mais diversas características podem estar presentes no mesmo sonho, distribuídas por diferentes partes dele; o sonho, enfim, pode mostrar um tom afetivo indiferente, ou estar acompanhado de sentimentos da mais intensa alegria ou sofrimento. Os senhores não devem supor que não pensamos nada acerca dessa interminável diversidade encontrada nos sonhos manifestos. A ela retornaremos posteriormente, e nela encontraremos muita coisa de que podemos fazer uso em nossas interpretações. Mas, por agora, despreza-la-emos e seguiremos o caminho principal que leva à interpretação de sonhos. Ou seja, pedimos ao sonhador, também, para livrar-se da impressão que lhe causou o sonho manifesto, desviar sua atenção do sonho como um todo para as diferentes partes do seu conteúdo e nos referir sucessivamente tudo o que lhe ocorre à mente com relação a cada uma dessas partes — quais associações se lhe apresentam, se ele as focaliza uma por uma, separadamente.

É curiosa essa técnica, não? — não é a maneira habitual de lidar com uma comunicação ou expressão. E sem dúvida os senhores adivinham que, por trás desse procedimento, há hipóteses que ainda não foram explicitamente formuladas. Prossigamos, porém. Em que ordem havemos de fazer com que o paciente conte as partes do seu sonho? Aqui, várias possibilidades se nos abrem. Simplesmente podemos seguir a ordem cronológica na qual apareceram durante a narrativa do sonho. Isto é o que se pode chamar de o método mais estrito, clássico. Ou podemos dirigir o sonhador a fim de que inicie com a procura dos ‘resíduos diurnos’ no sonho; pois a experiência nos ensinou que quase todo sonho inclui remanescentes de uma recordação ou de uma alusão a algum evento (ou, freqüentemente, a diversos eventos) do dia anterior ao sonho, e, se seguimos essas conexões, muitas vezes, de modo imediato, chegamos à transição do mundo onírico, aparentemente muito remoto, para a vida real do paciente. Ou ainda, podemos dizer-lhe que comece por aqueles elementos do conteúdo do sonho que lhe chamaram a atenção por sua especial clareza e intensidade sensorial; pois sabemos que o paciente achará especialmente fácil produzir associações a eles. Não faz nenhuma diferença por qual desses métodos abordamos as associações que andamos buscando.

E a seguir obtemos essas associações. O que elas nos trazem é das mais variadas espécies: lembranças do dia anterior, o ‘dia do sonho’, e de épocas há muito transcorridas, reflexões, discussões, com argumentos pró e contra, confissões e indagações. Algumas dessas associações, o paciente as despeja; quando chega a outras, detém-se, por um momento. A maioria delas mostra nítida conexão com alguns elementos do sonho; não é para admirar, de vez que esses elementos eram o seu ponto de partida. Mas também acontece, às vezes, o paciente apresentá-las com estas palavras: ‘Isto me parece não ter absolutamente nenhuma relação com o sonho, mas conto-lhe porque me ocorre à mente.’

Se se ouvem essas abundantes associações, logo se observa que elas têm mais em comum com o conteúdo do sonho, do que seus pontos de partida sozinhos. Elas lançam surpreendente luz sobre todas as diferentes partes do sonho, preenchem lacunas entre as mesmas, e tornam inteligíveis suas estranhas justaposições. No final, é-se levado a entender a relação entre as associações e o conteúdo do sonho. Vê-se que o sonho é uma seleção resumida, feita a partir das associações, uma seleção feita, é verdade, consoante regras que ainda não temos compreendido: os elementos do sonho são como representantes escolhidos por eleição dentre uma massa de pessoas. Não pode haver dúvida de que, por meio de nossa técnica, apreendemos algo do qual o sonho é um substituto e no qual se situa o valor psíquico do sonho, mas que não mostra mais suas enigmáticas peculiaridades, sua aparência estranha e sua confusão.No entanto, não se façam confusões. As associações ao sonho ainda não são os pensamentos oníricos latentes. Estes estão contidos nas associações, assim como um álcali no líquido-mãe, mas ainda não muito inteiramente contidos nelas. Por um lado, as associações nos dão muito mais do que nos é necessário para formular os pensamentos oníricos latentes — ou seja, todas as explicações, transições e conexões que o intelecto do paciente há de produzir no decorrer de sua aproximação aos pensamentos oníricos. Por outro lado, uma associação freqüentemente sofre uma parada precisamente diante do pensamento onírico genuíno: ela somente chegou perto deste e apenas teve contato com ele através de alusões. Nesse ponto, nós próprios intervimos; completamos aquilo que são idéias vagas, tiramos conclusões inegáveis e damos expressão plena àquilo que o paciente apenas mencionou com suas associações. Isto soa como se permitíssemos ao nosso engenho e capricho brincarem com o material posto à nossa disposição pelo sonhador, e como se dele nós fizéssemos mau uso a fim de interpretar em suas comunicações aquilo que não pode ser interpretado a partir delas. E não é fácil mostrar a legitimidade de nosso procedimento numa descrição do mesmo. Basta, porém, que os senhores efetuem uma análise por si mesmos ou estudem um bom relato de uma análise em nossa bibliografia, e os senhores se certificarão da maneira convincente como atua um trabalho interpretativo como este.

Se, de modo geral, basicamente, ao interpretar sonhos, dependemos das associações do sonhador, já em relação a determinados elementos do conteúdo onírico adotamos uma atitude bastante independente, principalmente porque assim temos de fazê-lo, porque, via de regra, as associações deixam de se concretizar no caso desses mesmos elementos. Em um estágio inicial, verificamos que isto acontece sempre em relação ao mesmos elementos; não são muito numerosos, e a experiência repetida nos tem ensinado que eles devem ser considerados e interpretados como símbolos de alguma outra coisa. Em contraste com os outros elementos oníricos, pode ser-lhes atribuída uma significação fixa, a qual, no entanto, não precisa ser isenta de ambigüidade e cujo alcance é determinado por meio de regras especiais, desconhecidas para nós. De vez que nós sabemos como traduzir esses símbolos, e o sonhador não sabe, a despeito de se haver utilizado deles, pode acontecer que o sentido de um sonho possa, de imediato, se nos tornar claro tão logo tenhamos ouvido o texto do sonho, antes mesmo de havermos feito qualquer esforço de interpretá-lo, ao passo que ele ainda permanece um enigma para o sonhador. Contudo, falei-lhes tanto, em minhas conferências anteriores sobre simbolismo, sobre nossos conhecimentos acerca do mesmo e sobre os problemas que ele nos propõe, que não necessito repeti-lo hoje.

Este, pois, é o nosso método de interpretar sonhos. Uma primeira questão justificável é a seguinte: ‘Podemos interpretar todos os sonhos por meio desse método? E a resposta é: ‘Não, absolutamente não; mas são tantos os que podemos interpretar, que nos sentimos confiantes na utilidade e na correção do procedimento.’ ‘Mas por que não todos?’ A resposta a isto tem algo importante a nos ensinar, que de imediato nos conduz aos fatores determinantes psíquicos da formação dos sonhos: ‘Porque o trabalho de interpretar é efetuado contra uma resistência, que varia desde dimensões banais até a inexpugnabilidade (pelo menos até onde alcança a eficiência de nossos métodos atuais).’ É impossível, durante o nosso trabalho, desprezar as manifestações dessa resistência. Em determinados pontos, as associações são fornecidas sem hesitação e a primeira ou a segunda idéia que ocorrem ao paciente proporcionam uma explicação. Em outros pontos, há uma parada, o paciente hesita antes de nos fornecer uma associação e, com isso, muitas vezes temos de ouvir uma longa cadeia de idéias antes de receber algo que nos ajude a compreender o sonho. Certamente temos razão ao pensar que, quanto mais longa e cheia de rodeios for a cadeia de associações, tanto maior a resistência. Podemos detectar a mesma influência em ação no esquecimento de sonhos. Muito freqüentemente acontece que um paciente, apesar de todos os esforços, não consegue lembrar-se de um dos seus sonhos. Contudo, depois de termos sido capazes de, no decurso de uma certa quantidade de trabalho analítico, eliminar uma dificuldade que tinha estado perturbando sua relação com a análise, o sonho esquecido subitamente reemerge. Cabem aqui, também, duas outras observações. Freqüentemente sucede que, no início, uma parte do sonho é omitida, e, depois, acrescentada como adendo. Isto deve ser considerado como uma tentativa de esquecer essa parte. A experiência mostra que é essa determinada parte a mais importante: supomos ter havido uma resistência maior no caminho da comunicação desta, do que na das demais porções do sonho. Ademais, amiúde verificamos que uma pessoa que teve um sonho se esforça por evitar esquecer-se de seus sonhos, pondo-os por escrito imediatamente após acordar. Podemos dizer-lhe que isto não tem utilidade. Pois a resistência, contra a qual garantiu a preservação do texto do sonho, se deslocará, então, para as associações respectivas e tornará o sonho manifesto inacessível à interpretação. Tendo em vista esses fatos, não temos por que nos surpreender se um aumento adicional na resistência suprime as associações completamente e, por conseguinte, não leva a nada a interpretação do sonho.

De tudo isso concluímos que a resistência que encontramos no trabalho de interpretar os sonhos deve também ter compartilhado da origem destes. Realmente, podemos fazer uma distinção entre sonhos que surgiram sob leve e sob elevada pressão da resistência. Essa pressão, contudo, varia também de lugar para lugar, dentro de um mesmo sonho; é responsável pelas lacunas, obscuridades e confusões que podem interromper a continuidade até dos sonhos mais nítidos.

Mas, que coisa cria a resistência, e contra o que ela se dirige? Bem, a resistência é, para nós, o sinal mais seguro de um conflito. Deve haver aqui uma força que procura expressar algo e outra força que se esforça por evitar sua expressão. O que então resulta, em conseqüência, como sonho manifesto, pode combinar todas as decisões em que se condensou essa luta entre duas tendências. Num ponto, uma dessas forças pode ter conseguido efetuar o que quis dizer, ao passo que, em outro ponto, é a instância contrária que fez a comunicação pretendida eclipsar-se completamente, ou ser substituída por algo que não revela qualquer traço seu. Os casos mais comuns e mais característicos de construção onírica são aqueles nos quais o conflito terminou em uma conciliação, de forma tal que a instância com voz ativa certamente foi capaz de dizer o que quis, mas não da forma como quis — apenas numa forma acentuada, distorcida, irreconhecível. Assim, se os sonhos não fornecem um quadro fiel dos pensamentos oníricos, e se o trabalho de interpretação se faz necessário a fim de transpor o hiato entre estes, isto é resultado da instância oponente, inibidora e limitadora, que inferimos de nossa percepção da resistência enquanto estamos interpretando sonhos. Enquanto estudávamos os sonhos como fenômenos isolados, independentes das estruturas psíquicas que lhes são afins, denominávamos essa instância de o censor dos sonhos.Há muito os senhores estão cientes de que essa censura não é uma instituição exclusiva da vida onírica. Sabem que o conflito entre as duas instâncias psíquicas, que nós — impropriamente — descrevemos como o ‘reprimido inconsciente’ e o ‘consciente’, domina toda a nossa vida mental e que a resistência contra a interpretação dos sonhos, sinal de uma censura onírica, nada mais é que a resistência devida à repressão, pela qual as duas instâncias estão separadas. Os senhores também sabem que o conflito entre essas duas instâncias pode, sob determinadas condições, produzir outras estruturas psíquicas que, assim como os sonhos, são o resultado de conciliações; e os senhores não haverão de esperar que eu lhes repita aqui tudo o que estava contido em minha introdução à teoria das neuroses, a fim de lhes demonstrar o que sabemos acerca dos fatores determinantes da formação de tais conciliações. Os senhores perceberam que o sonho é um produto patológico, o primeiro membro da classe que inclui os sintomas histéricos, as obsessões e os delírios, sendo, contudo, diferenciado dos outros por sua transitoriedade e por sua ocorrência sob condições que fazem parte da vida normal. Pois levemos na devida conta que, conforme já foi assinalado por Aristóteles, a vida onírica é a forma como funciona nossa mente durante o estado de sono. O estado de sono implica um afastamento do mundo externo real, e aí temos a condição necessária para o desenvolvimento de uma psicose. O mais cuidadoso estudo das psicoses graves não nos revelará um único aspecto que seja mais característico desses estados patológicos. Nas psicoses, porém, o apartar-se da realidade é levado a cabo por duas espécies de vias: ou porque o reprimido inconsciente se tornou excessivamente forte, de modo a dominar o consciente, que se liga à realidade; ou porque a realidade se tornou tão intoleravelmente angustiante, que o ego ameaçado se lança nos braços das forças instintuais inconscientes, em uma revolta desesperada. A inofensiva psicose onírica é o resultado de uma retirada em relação ao mundo externo, retirada conscientemente desejada e apenas temporária, e desaparece quando são reassumidas as relações com o mundo externo. Durante o isolamento da pessoa em estado de sono, também se efetua uma modificação na distribuição de sua energia psíquica; uma parte do dispêndio em repressão, que normalmente é exigido a fim de submeter o inconsciente, pode sereconomizada, pois se o inconsciente faz uso de sua relativa liberação para propósitos ativos, encontra fechada a via que conduz à motilidade, e o único caminho aberto é um caminho inofensivo que leva à satisfação alucinatória. Agora, portanto, um sonho pode ser formado; mas o fato da censura mostra que, mesmo durante o sono, mantém-se muito da resistência devida à repressão.

Aqui se nos apresenta um meio de responder à pergunta que pretende saber se os sonhos também possuem uma função, se eles estão incumbidos de alguma realização útil. A condição de repouso livre de estímulo, que o estado de sono deseja estabelecer, é ameaçada desde três direções diferentes: de modo relativamente casual, por estímulos externos, durante o sono, e por interesses do dia anterior, que não podem ser interrompidos, e, de uma forma inevitável, pelos impulsos instintuais reprimidos insatisfeitos que estão à espera de uma oportunidade de se expressarem. Em conseqüência da diminuição das repressões, no sono, haveria o risco de que o repouso proporcionado pelo sono fosse interrompido sempre que uma estimulação de fora ou de dentro conseguisse vincular-se com uma fonte instintual inconsciente. O processo de sonhar permite ao produto de elementos confluentes desse tipo encontrar uma saída através de uma experiência alucinatória inofensiva, e desse modo assegura a continuação do sono. O fato de um sonho ocasionalmente acordar a pessoa que dorme, quando se desenvolve ansiedade, não contradiz essa função, mas antes, talvez, assinala que o guardião considera a situação por demais perigosa e não se sente mais em condições de controlá-la. E então, muito freqüentemente, enquanto ainda dormimos, ocorre-nos um consolo que busca impedir-nos o despertar: ‘Mas, afinal, é apenas um sonho!’

Isto era o que eu queria dizer-lhes, senhoras e senhores, acerca da interpretação de sonhos, cuja tarefa é abrir caminho do sonho manifesto para os pensamentos oníricos latentes. Quando isto foi conseguido, o interesse por um sonho, na medida em que diz respeito à análise prática, na sua maior parte chega ao fim. A comunicação que recebemos na forma de sonho, nós a acrescentamos ao restante das comunicações do paciente e prosseguimos com a análise. Entretanto, temos interesse em nos demorar um pouco mais no sonho. Somos tentados a estudar o processo pelo qual os pensamentos oníricos latentes são transformados em sonho manifesto. A isto denominamos ‘elaboração onírica’. Conforme os senhores se recordam, descrevi esse processo de modo tão detalhado em minhas conferências anteriores, que posso limitar minha atual revisão ao resumo mais conciso.O processo da elaboração onírica, portanto, é algo inteiramente novo e diferente, não se assemelhando a nada conhecido anteriormente. Ele nos deu a oportunidade de entrevermos, pela primeira vez, os processos que se realizam no sistema inconsciente, mostrando-nos que são bastante diferentes daquilo que conhecemos acerca de nosso pensar consciente, e a este forçosamente hão de parecer absurdos e incorretos. A importância dessa constatação foi ainda acrescida da descoberta de que, na construção dos sintomas neuróticos, estão em atividade os mesmos mecanismos (não nos aventuramos a dizer ‘processos de pensamento’) que aqueles que transformaram os pensamentos oníricos latentes em sonho manifesto.

Nisto que segue, não poderei evitar um método esquemático de exposição. Suponhamos que, num determinado caso, temos diante de nós todos os pensamentos latentes, carregados de uma quantidade maior ou menor de afeto, pelos quais o sonho manifesto foi substituído após sua interpretação ter sido completada. Então nos causará espécie uma diferença entre esses pensamentos latentes, e essa diferença nos assinala um ponto importante. Quase todos esses pensamentos oníricos são reconhecidos ou identificados pelo sonhador; ele admite haver pensado isto, agora ou em alguma outra época, ou admite que pudesse haver pensado. Há somente um único pensamento que recusa aceitar; é-lhe estranho ou até mesmo repulsivo; talvez possa rejeitá-lo com sentimentos veementes. Torna-se agora evidente para nós que os outros pensamentos são partes de uma cadeia de pensamentos conscientes ou, mais precisamente, pré-conscientes. Podem ter sido pensados na vida desperta, também, e, na verdade, foram formados provavelmente durante o dia precedente. Esse único pensamento, o pensamento repudiado, porém, ou, para dizer melhor, esse único impulso é filho da noite; pertence ao inconsciente do sonhador, e por esse motivo é repudiado e rejeitado por ele. Teve de esperar pelo relaxamento noturno da repressão, a fim de chegar a alguma forma de expressão. Ainda assim, é uma expressão acentuada, deformada e disfarçada; sem nosso trabalho de interpretação de sonhos não o teríamos encontrado. Esse impulso inconsciente tem de agradecer à sua vinculação com os demais pensamentos oníricos, os não-censuráveis, pela oportunidade de transpor furtivamente a barreira da censura em um disfarce não evidente. Por outro lado, os pensamentos oníricos pré-conscientes têm de agradecer a essa mesma vinculação pela possibilidade de ocupar a vida mental também durante o sono. Pois não há dúvida quanto a isto: esse impulso inconsciente é o verdadeiro criador do sonho; é o que produz a energia psíquica para a construção do sonho. Assim como qualquer outro impulso instintual, não pode tender a nenhuma outra coisa se não à sua própria satisfação; e nossaexperiência em interpretar sonhos nos mostra também que este é o sentido de todo o sonhar. Em todo sonho existe um impulso instintual que é apresentado como estando já satisfeito. Pelo fato de que, durante o sono, a vida mental está cerrada à realidade e se produz uma regressão a mecanismos primitivos, isto possibilita que a almejada satisfação seja experimentada numa forma alucinatória, como estando a ocorrer no presente. Em conseqüência dessa regressão que existe, no sonho, as idéias são transformadas em imagens visuais, ou seja, os pensamentos oníricos latentes são dramatizados e ilustrados.

Esse elemento da elaboração onírica dá-nos informações acerca de alguns dos mais surpreendentes e peculiares aspectos dos sonhos. Repetirá o curso dos eventos da formação onírica. Para começar: o desejo de dormir é o afastamento intencional do mundo externo. E depois, duas conseqüências disto para o aparelho mental: a primeira, a possibilidade de nele emergirem métodos de funcionamento mais antigos e mais primitivos — a regressão; a segunda, a diminuição da resistência devida à repressão que pesa sobre o inconsciente. Como resultado desse último fator, surge a possibilidade para a formação de um sonho, e disto tiram vantagem as causas precipitantes, os estímulos internos e externos que se tornaram ativos. O sonho que se origina dessa maneira já é uma estrutura fundada em conciliação. Tem uma dupla função: por um lado, é egossintônico, pois, eliminando os estímulos que estão interferindo com o sono, serve ao desejo de dormir; por outro lado, permite que um impulso instintual reprimido obtenha a satisfação que nessas circunstâncias é possível na forma da realização alucinada de um desejo. Todo o processo de formar um sonho, que é permitido pelo ego em estado de sono, é, entretanto, sujeito à condição da censura, exercida pelo resto de repressão ainda operante. Não posso apresentar de modo mais simples esse processo: ele não é mais simples. Posso, contudo, prosseguir, agora, com minha descrição da elaboração onírica.

Retornemos, uma vez mais, aos pensamentos oníricos latentes. Seu elemento mais poderoso é o impulso instintual reprimido, que neles criou uma expressão para si mesmo, com base na presença de estímulos casuais e pela transferência para os resíduos diurnos — embora uma expressão atenuada e disfarçada. Como todo impulso instintual, também ele pressiona no sentido da satisfação pela ação; mas o seu caminho à motilidade está bloqueado pelas regulações fisiológicas que o estado de sono implica; é compelido a tomar o caminho de retorno em direção à percepção e acontentar-se com uma satisfação alucinada. Os pensamentos oníricos latentes se transformam, pois, em um agrupamento de imagens sensoriais e de cenas visuais. O que nos parece tão novo e tão estranho é o modo como lhes ocorre fazer esse percurso. Todos os instrumentos lingüísticos pelos quais expressamos as relações mais sutis dos pensamentos — as conjunções e as preposições, as alterações devidas à declinação e à conjugação — são eliminados, porque não há meio de representá-los; assim como uma linguagem primitiva, sem nenhuma gramática, expressa-se apenas a matéria-prima do pensamento, e os termos abstratos são substituídos pelos termos concretos que estão na sua base. Depois disso, o que resta certamente pode parecer desconexo. O abundante emprego de símbolos, que se tornaram estranhos ao pensar consciente, para representar determinados objetos e processos, está em harmonia semelhante com a regressão arcaica do aparelho mental e com as exigências da censura.

Outras modificações feitas nos elementos dos pensamentos oníricos, contudo, vão muito além disto. Aqueles elementos que podem permitir que qualquer ponto de contato seja detectado entre eles, são condensados em novas unidades. No processo de transformar os pensamentos em imagens, dá-se inequívoca preferência àqueles que permitem esse agrupamento, essa condensação; é como se atuasse uma força que sujeitasse o material à compressão e concentração. Em conseqüência da condensação, um elemento do sonho manifesto pode corresponder a numerosos elementos dos pensamentos oníricos latentes; mas, também, inversamente, um elemento dos pensamentos oníricos pode estar representado por diversas imagens no sonho.

Ainda mais notável é o outro processo — deslocamento ou mudança do acento — que, no pensar consciente, encontramos somente como raciocínio falho ou como meio de construir uma anedota. As diversas idéias contidas nos pensamentos oníricos, na realidade, não possuem todas valor igual; são caracterizadas com quotas de afeto de magnitude variável e, por conseguinte, julgadas importantes e merecedoras de interesse em maior ou menor grau. Na elaboração onírica, essas idéias estão separadas dos afetos a elas vinculados. Os afetos são tratados independentemente; podem ser deslocados para alguma coisa diversa, podem ser mantidos, podem sofrer modificações, ou podem absolutamente não aparecer no sonho. A importância das idéias que foram despojadas de seu afeto retorna, no sonho, como intensidade sensorial das imagens oníricas; mas observamos que esse acento passou de elementos importantes para elementos indiferentes. Assim, algo que desempenhou apenas um papel secundário nos pensamentos oníricos, parece ter sidoempurrado para o primeiro plano, no sonho, como sendo a coisa principal; ao passo que, pelo contrário, o que era a essência dos pensamentos oníricos só encontra passagem e representação indistinta no sonho. Nenhuma outra parte da elaboração onírica é tão responsável por tornar o sonho estranho e incompreensível para o sonhador. O deslocamento é o meio principal usado na distorção onírica, à qual os pensamentos oníricos devem submeter-se sob a influência da censura.

Após haverem essas influências sido aplicadas sobre os pensamentos oníricos, o sonho está quase completo. Um fator adicional, um tanto variável, também entra em jogo — o fator conhecido como ‘elaboração secundária’ — depois de o sonho ter sido apresentado perante a consciência como objeto da percepção. Neste ponto, tratamo-lo como em geral estamos acostumados a tratar os conteúdos de nossa percepção: preenchemos as lacunas e introduzimos conexões, e, ao fazê-lo, freqüentemente somos culpados de grandes equívocos. Essa atividade, que poderia ser descrita como uma atividade racionalizadora e que, pelo menos, provê o sonho de uma aparência externa homogênea que não pode corresponder ao seu conteúdo verdadeiro, também pode, contudo, estar omitida ou apenas estar expressa em grau muito modesto — caso em que o sonho exibirá ostensivamente todas as suas fendas e rachaduras. Também não se deve esquecer, por outro lado, que a elaboração onírica nem sempre opera com igual energia; muitas vezes limita-se apenas a determinadas partes dos pensamentos oníricos, e a outras permite que apareçam inalteradas no sonho. Em tais casos, tem-se a impressão de o sonho ter efetuado as mais delicadas e complexas operações intelectuais, de haver meditado, feito chistes, chegado a decisões e resolvido problemas, enquanto tudo isso é produto de nossa atividade mental normal, pode ter sido executado igualmente durante o dia anterior ao sonho, assim como durante a noite, não tem nenhuma relação com a elaboração onírica e não esclarece nada de característico dos sonhos. E não é demais insistir, mais uma vez, no contraste existente, dentro dos próprios pensamentos oníricos, entre o impulso instintual inconsciente e os resíduos diurnos. Enquanto estes mostram toda a multiplicidade de nossos atos mentais, aquele, que se torna propriamente a força motriz da formação do sonho, encontra sua saída invariavelmente na realização de um desejo.

 

Eu poderia ter-lhes dito todas essas coisas há quinze anos atrás; e, na verdade, creio ter dito, de fato, naquela época. Agora, permitam-me reunir essas mudanças e descobertas novas tal como podem ter sido feitas durante o intervalo. Já expressei meu temor de que os senhores achem que istorepresenta muito pouco e deixem de compreender por que eu os obriguei a ouvir a mesma coisa duas vezes. No entanto, nesse período se passaram quinze anos, e espero ser este o meu mais fácil meio de restabelecer contato com os senhores. Ademais, estas são coisas tão fundamentais, de tão decisiva importância para compreender a psicanálise, que se pode sentir-se satisfeito ao ouvi-las uma segunda vez; e vale a pena saber que permaneceram exatamente as mesmas por quinze anos.

Na bibliografia desse período, os senhores, naturalmente, encontrarão uma grande quantidade de material que confirma os dados anteriores e que aduz novos detalhes, e disto pretendo dar-lhes algumas amostras. Aliás, também poderei dizer-lhes algumas coisas que, de fato, já eram conhecidas anteriormente. O que está em questão é principalmente o simbolismo nos sonhos e os outros métodos de representação dos mesmos. Agora ouçam isto. Faz só bem pouco tempo, a faculdade de medicina de uma universidade americana recusou-se a permitir à psicanálise o status de ciência, com base no fato de que ela não comporta nenhuma prova experimental. Poderiam ter levantado a mesma objeção com relação à astronomia; na realidade, a experimentação com corpos celestes é particularmente difícil. Aí, tem-se de buscar apoio na observação. Não obstante, alguns investigadores vienenses efetivamente deram um passo inicial com a confirmação experimental de nosso simbolismo onírico. Já em 1912, um certo Dr. Schrötter verificou que, se forem dadas instruções para sonhar sobre temas sexuais a pessoas profundamente hipnotizadas, então, no sonho que assim é provocado, o material sexual emerge, sendo o seu lugar ocupado por símbolos que nos são familiares. Por exemplo, foi dito a uma mulher que sonhasse com relação sexual com uma amiga. Em seu sonho, aparecia com um saco de viagem no qual estava colado o letreiro: ‘Só para Senhoras’. Experimentos ainda mais impressionantes foram efetuados por Betlheim e Hartmann, em 1924. Eles trabalharam com pacientes que sofriam daquilo que se conhece como psicose confusional de Korsakoff. A esses pacientes contaram histórias do tipo evidentemente sexual e observaram as distorções que apareciam quando os pacientes eram instruídos a reproduzir o que lhes havia sido contado. Também aí surgiram os símbolos de órgãos sexual e de relação sexual que conhecemos — entre eles, o símbolo da escada, o qual, conforme acertadamente observam os escritores, jamais poderia ter sido alcançado por um desejo consciente de deformar.Em uma série de experimentos muito interessante, Herbert Silberer [1909 e 1912] mostrou que se pode, por assim dizer, pegar em flagrante a elaboração onírica no ato de transformar pensamentos abstratos em imagens visuais. Se ele tentava forçar a si mesmo a executar trabalho intelectual enquanto estava em estado de fadiga e sonolência, o pensamento muitas vezes desaparecia e era substituído por uma visão, que obviamente era um substituto do pensamento.

Aqui está um exemplo simples. ‘Eu pensei’, diz Silberer, ‘em ter que revisar uma passagem imperfeita em um ensaio.’ A visão: ‘Vi-me aplainando um pedaço de madeira.’ Durante essas experiências, muitas vezes sucedeu que o conteúdo da visão não era o pensamento de que então se tratava, mas o próprio estado subjetivo do experimentador, enquanto este fazia o esforço — o estado em lugar do objeto. Isto é descrito por Silberer como um ‘fenômeno funcional’. Um exemplo mostrar-lhes-á prontamente o que se quer dizer com isso. O autor estava esforçando-se por comparar as opiniões de dois filósofos acerca de determinada questão. Em sua condição sonolenta, porém, uma dessas opiniões passou a escapar dele e, finalmente, ele teve uma visão de que estava pedindo informações a uma secretária descortês que estava inclinada sobre sua escrivaninha e que começou a não lhe dar atenção, e então ela lançou-lhe um olhar desagradável e inamistoso. As condições sob as quais os experimentos foram feitos provavelmente explicam por si mesmas por que a visão, que foi induzida, representava com tanta freqüência um evento de auto-observação.

Ainda não terminamos esse assunto dos símbolos. Existem alguns que acreditamos ter identificado, os quais, não obstante, nos preocuparam porque não pudemos explicar como esse determinado símbolo veio a ter essa determinada significação. Em tais casos, confirmações de outras fontes — da filologia, do folclore, da mitologia ou do ritual — tinham de ser especialmente bem-vindas. Um exemplo desse tipo é o símbolo de um sobretudo ou capote [em alemão ‘Mantel‘]. Temos afirmado que, num sonho de uma mulher, isto significa um homem. Suponho que os senhores ficarão impressionados ao ouvir que Theodor Reik (1920) nos dá esta informação: ‘Duranteas extremamente antigas cerimônias nupciais dos beduínos, o noivo cobre a noiva com um capote especial conhecido como “Aba” e diz as seguintes palavras rituais: “De hoje em diante, ninguém te cobrirá, exceto eu!”’ (Citado de Robert Eisler [1910, 2, 599 e seg.]). Também encontramos diversos símbolos novos; a respeito de pelo menos dois deles eu lhes falarei. Segundo Abraham (1922), uma aranha, em sonhos, é um símbolo da mãe, mas da mãe fálica, a qual tememos; assim, o medo de aranhas expressa temor do incesto materno e horror aos genitais femininos. Os senhores sabem, talvez, que a criação mitológica, a cabeça da Medusa, pode ser atribuída ao mesmo motif do medo de castração. O outro símbolo, sobre o qual quero falar-lhes, é o da ponte, que foi explicado por Ferenczi (1921 e 1922). Primeiro, ela significa o órgão masculino, que une os pais no coito; mas depois desenvolve outras significações que derivam desta primeira. Na medida em que é absolutamente graças a esse órgão que somos capazes de vir ao mundo, para fora do líquido amniótico, uma ponte se torna a travessia desde o outro mundo (o estado de não-nascido, o útero) até este mundo (a vida); e, como os homens também descrevem a morte como um retorno ao útero (a água), uma ponte também adquire o significado de algo que leva à morte, e finalmente, em mais uma mudança de seu sentido original, significa transições ou modificações de condição, genericamente. Está de acordo com isto o fato de que uma mulher, que ainda não sobrepujou seu desejo de ser homem, tenha freqüentes sonhos com pontes que são muito curtas para alcançar a outra margem.

No conteúdo manifesto dos sonhos, com muita freqüência encontramos quadros e situações que lembram temas familiares em contos de fadas, lendas e mitos. A interpretação de tais temas, portanto, elucida os interesses originais que criaram esses temas, embora, ao mesmo tempo, não devamos esquecer, naturalmente, a alteração de significado pela qual esse material foi atingido no decorrer do tempo. Nosso trabalho de interpretação traz à luz, por assim dizer, a matéria-prima, que deve, no mais das vezes, ser descrita como sexual no mais amplo sentido, mas que encontrou as mais variadas aplicações em adaptações posteriores. Derivações desse tipo são capazes de fazer despenhar sobre nós a fúria de todos os eruditos investigadores não-analíticos, como se nós estivéssemos procurando negar ou menosprezar tudo o que foi posteriormente erigido em sua base original. Não obstante, tais descobertas são instrutivas e interessantes. O mesmo fato procede, quando se situa a origem de determinados temas nas artes plásticas, como, por exemplo, quando M. J. Eisler (1919), seguindo indicações de sonhos de seus pacientes, deu umainterpretação analítica do jovem brincando com um menininho, representado no Hermes de Praxíteles. E, por fim, não posso resistir à vontade de assinalar quão freqüentemente a interpretação dos sonhos elucida, de modo especial, temas mitológicos. Assim por exemplo, a lenda do Labirinto pode ser reconhecida como uma representação do nascimento anal: as vias sinuosas são os intestinos e o fio de Ariadne é o cordão umbilical.

Os métodos de representação empregados pela elaboração onírica — material fascinante, dificilmente capaz de ser exaurido — têm-se tornado, através de estudo mais atento, cada vez mais familiares para nós. Dar-lhes-ei alguns exemplos deles. Assim, por exemplo, os sonhos representam uma relação de freqüência por meio da multiplicação de coisas semelhantes. Eis aqui um notável sonho de uma jovem. Sonhou que chegava a um grande saguão e encontrava nele alguém sentado numa cadeira; isto se repetia seis ou oito vezes, ou mais; porém, em cada uma das vezes, era seu pai. Compreende-se isto facilmente quando descobrimos, partindo de detalhes acessórios da interpretação, que tal sala significava o útero. O sonho então se torna equivalente à fantasia, habitualmente encontrada em meninas, de se haverem encontrado com o pai já durante sua vida intra-uterina, quando ele visitava o útero enquanto sua mãe estava grávida. Os senhores não devem confundir-se pelo fato de algo estar invertido no sonho — que o ‘entrar’ de seu pai é deslocado para ela; aliás, isto também tem um significado especial todo próprio. A multiplicação da figura do pai só pode expressar o fato de que o evento em questão ocorria repetidas vezes. Afinal, deve-se admitir que o sonho não se está excedendo muito ao expressar a freqüência através da multiplicidade. Foi necessário apenas remontar à significação original da primeira palavra; hoje ela significa para nós uma repetição no tempo, contudo deriva de uma acumulação no espaço. De modo geral, com efeito, onde é possível, a elaboração onírica muda as relações temporais em espaciais, e assim as representa. Em um sonho, por exemplo, pode-se ver uma cena entre duas pessoas que parecem muito pequenas e à grande distância, como se estivessem sendo olhadas pelo lado errado de um binóculo de ópera. Aqui, tanto a pequenez como o distanciamento no espaço têm o mesmo significado: o que significa é o distanciamento no tempo e devemos entender que a cena é de um passado remoto.

E, também, os senhores podem recordar que, em minhas conferências anteriores, já lhes disse (e ilustrei o fato com exemplos) que aprendemos afazer uso, em nossas interpretações, até mesmo dos aspectos puramente formais do sonho manifesto — isto é, transformá-los em material oriundo dos pensamentos oníricos latentes. Conforme os senhores já sabem, todos os sonhos que se passam numa noite só pertencem a um mesmo contexto. Não é, contudo, um fato destituído de importância se esses sonhos parecem, ao sonhador, um todo contínuo, ou se ele os divide em diversas partes, e em quantas partes. O número de tais partes, com freqüência, corresponde a igual número de pontos focais separados na formação estrutural dos pensamentos oníricos latentes, ou de tendências conflitantes na vida mental da pessoa que teve o sonho, cada um dos quais encontra uma expressão dominante, embora nunca exclusiva, em uma determinada parte do sonho. Um sonho introdutório breve e um sonho principal, mais longo, que àquele se segue, freqüentemente estão na relação de prótase e de apódose [cláusulas condicional e conseqüencial], da qual um exemplo claro será encontrado nas anteriores conferências. Um sonho que é descrito pelo sonhador como ‘um tanto interpolado’ realmente corresponderá a uma cláusula dependente nos pensamentos oníricos. Franz Alexander (1925) mostrou, em um estudo sobre pares de sonhos, que não raro acontece dois sonhos de uma mesma noite compartilharem do cumprimento da tarefa do sonho produzindo uma realização de desejos em dois estádios, se eles são tomados conjuntamente, embora cada sonho separadamente não atinja esse resultado. Suponha-se, por exemplo, que o desejo contido no sonho tenha como seu conteúdo alguma ação ilícita com relação a determinada pessoa. Então, no primeiro sonho, a pessoa aparecerá sem disfarce, mas a ação será apenas timidamente insinuada. O segundo sonho comportar-se-á de modo diferente. A ação será nomeada sem disfarce, mas a pessoa será tornada irreconhecível ou será substituída por alguém indiferente. Isto, os senhores haverão de recordar, dá uma impressão de efetiva astúcia. Outra relação semelhante entre dois membros de um par de sonhos se encontra onde um representa uma punição e o outro representa a realização de desejos condenáveis. Equivale ao seguinte: ‘se se aceita o castigo por isto, pode-se continuar a se permitir a coisa proibida.’

 

Não posso deter os senhores, por mais tempo, nessas descobertas de menor importância ou nas discussões relativas ao emprego da interpretação de sonhos no trabalho da análise. Sinto que seguramente os senhores estão impacientes por ouvir quais mudanças foram feitas em nossos pontos de vista fundamentais relativos à natureza e significação dos sonhos. Já os avisei de que, precisamente nisto, há pouco a relatar-lhes. O ponto mais controvertido em toda a teoria foi, sem dúvida, a afirmação de que todos os sonhos são realizações de desejos. A objeção inevitável e sempre recorrente, levantada pelos leigos, de que, não obstante, há tantos sonhos de ansiedade, foi, penso que posso dizê-lo, completamente eliminada em minhas conferências anteriores. Com a divisão em sonhos de realização de desejos, sonhos de ansiedade e sonhos de punição, mantivemos intacta nossa teoria.

Também os sonhos de punição constituem realizações de desejo, embora não de desejos dos impulsos instintuais, mas de desejos da instância crítica, censora e punidora da mente. Se temos diante de nós um sonho de punição puro, uma operação mental fácil nos possibilitará restaurar o sonho de realização de desejos ao qual o sonho de punição é a resposta correta, e que, devido a esse repúdio, foi substituído como sonho manifesto. Como sabem, senhoras e senhores, o estudo dos sonhos foi o que por primeiro nos auxiliou a compreender as neuroses, e os senhores julgarão natural que nosso conhecimento das neuroses, posteriormente, conseguiu influenciar nossa visão dos sonhos. Conforme os senhores haverão de ouvir, fomos obrigados a postular a existência, na mente, de uma especial instância crítica e proibidora, a qual denominamos de ‘superego’. Embora reconhecendo que a censura dos sonhos é também uma função dessa instância, fomos levados a examinar, com maior cuidado, a parte desempenhada pelo superego na construção dos sonhos.

Contra a teoria da realização de desejos dos sonhos surgiram apenas duas dificuldades sérias. Uma discussão a respeito destas afastar-nos-ia muito do caminho que seguimos e, na verdade, ainda não nos proporcionou qualquer conclusão inteiramente satisfatória.

A primeira dessas dificuldades apresenta-se no fato de que as pessoas que experimentaram um choque, um trauma psíquico grave — tal como acontecia, com tanta freqüência, durante a guerra, e tal como propicia a base para a histeria traumática —, são regularmente reconduzidas, em seus sonhos, à situação traumática. De acordo com nossas hipóteses referentes à função dos sonhos, isto não deveria ocorrer. Que impulso decorrente de desejospoderia satisfazer-se retornando, dessa maneira, a essa experiência traumática tão desagradável? É difícil imaginar.

Encontramos a segunda dificuldade quase diariamente no curso de nosso trabalho analítico; e não implica objeção tão importante quanto a outra. Uma das atribuições da psicanálise, como sabem, é erguer o véu da amnésia que oculta os anos iniciais da infância, e trazer à memória consciente as manifestações do início da vida sexual infantil que está contida neles. Ora, essas experiências sexuais iniciais de uma criança estão vinculadas a penosas vivências de ansiedade, proibição, desapontamento e punição. Podemos entender que tenham sido reprimidas; mas, sendo assim, não podemos compreender como têm elas acesso tão livre à vida onírica, como oferecem o padrão para tantas fantasias oníricas e como os sonhos se enchem de reproduções dessas cenas das infância e de alusões às mesmas. Deve-se admitir que seu caráter desagradável e o propósito realizador de desejos da elaboração onírica parecem estar longe de serem mutuamente compatíveis. Pode ser, contudo, que, nesse caso, estejamos exagerando a dificuldade. Afinal, essas mesmas experiências infantis têm ligadas a elas todos os desejos instintuais não satisfeitos, duradouros, os quais, através da vida, proporcionam a energia para a construção dos sonhos e a que podemos sem dúvida creditar a possibilidade de, em sua poderosa irrupção, forçar a vinda à superfície, junto com o restante, do material de eventos penosos. E, por outro lado, a maneira e a forma em que esse material é reproduzido mostra inequivocamente os esforços da elaboração onírica dirigidos a negar o desprazer, por meio da deformação, e a transformar a decepção em concessão.

Nas neuroses traumáticas as coisas são diferentes. No caso destas, os sonhos regularmente terminam em geração de ansiedade. Não teríamos receio de admitir, penso eu, que aqui a função do sonho falhou. Não invocarei o ditado segundo o qual a exceção comprova a regra: sua sabedoria me parece ser a mais questionável. Mas, sem dúvida, a exceção não subverte a regra. Se, no interesse de estudá-la, isolamos determinada função psíquica, como o sonhar, do mecanismo psíquico como um todo, possibilitamos a descoberta das leis que lhe são peculiares; quando, porém, a inserimos novamente no contexto geral, devemos estar preparados para descobrir que esses achados são obscurecidos e prejudicados por colidirem com outras forças. Dizemos que um sonho é a realização de um desejo; mas se os senhores querem levar em conta essas últimas objeções, os senhores podem dizer, ainda assim, que um sonho é uma tentativa de realização de um desejo. Ninguém que possa devidamente constatar a dinâmica da mente haverá de supor que os senhores tenham dito algo diferente disto. Em determinadas circunstâncias, um sonho só é capaz de levar a efeito a sua intenção de modo muito incompleto, ou, então, tem de abandoná-la por inteiro. A fixação inconsciente a um trauma parece estar, acima de tudo, entre esses obstáculos à função de sonhar. Enquanto a pessoa que dorme é obrigada a sonhar, porque o relaxamento da repressão, à noite, permite que se torne ativa a pressão ascendente da fixação traumática, há um fracasso no funcionamento da sua elaboração onírica, que gostaria de transformar os traços de memória do evento traumático em realização de um desejo. Nessas circunstâncias, acontecerá que a pessoa não pode dormir, que ela desiste de dormir por medo de que falhe a função do sonhar. As neuroses traumáticas oferecem-nos aqui um caso extremo; mas devemos admitir que as experiências da infância também são de natureza traumática, e não há por que nos surpreendermos se interferências relativamente banais na função dos sonhos podem surgir também sob outras condições.

 

CONFERÊNCIA XXX

SONHOS E OCULTISMO

 

SENHORAS E SENHORES:

 

Hoje, prosseguimos através de um caminho estreito, mas que nos pode conduzir a uma perspectiva ampla.

Dificilmente ficarão surpresos com a notícia de que vou falar-lhes sobre a relação entre sonhos e ocultismo. Os sonhos, na verdade, freqüentemente têm sido considerados como o portão de entrada para o mundo do misticismo, e, mesmo hoje em dia, são vistos por muitas pessoas como fenômeno oculto. Até nós próprios, que os transformamos em tema de estudo científico, não impugnamos o fato de que um ou mais fios os vinculam a essas matérias obscuras. Misticismo, ocultismo — que significam essas palavras? Os senhores não devem esperar que eu faça alguma tentativa de abarcar essa mal-circunscrita região com definições. Todos nós sabemos, de um modo genérico e indefinido, o que essas palavras significam para nós. Referem-se a alguma espécie de ‘outro mundo’, situado além deste mundo visível, governado por leis imutáveis, construído para nós pela ciência.

O ocultismo afirma que existem, de fato, ‘mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia’. Pois bem, não precisamos nos sentir amarrados pela estreiteza de vistas da filosofia acadêmica; estamos prontos a acreditar naquilo que nos é demonstrado de forma a merecer crédito.

Propomos lidar com essas coisas da mesma forma como o fazemos com qualquer outro material científico: antes de mais nada, estabelecer se se pode realmente demonstrar que tais eventos acontecem, e então, e somente então, quando sua natureza factual não pode ser posta em dúvida, dedicar-nos à sua explicação. Não se pode negar, entretanto, que mesmo o colocar em ação essa decisão se faz difícil para nós, devido a fatores intelectuais, psicológicos e históricos. O caso não é o mesmo quando abordamos outras investigações.

Em primeiro lugar, a dificuldade intelectual. Permitam-me que lhes dê uma explicação chã e óbvia do que tenho em mente. Suponhamos que a questão em referência seja a constituição do interior da Terra. Conforme os senhores estão cientes, não temos um conhecimento certo a respeito dele. Suspeitamos que consiste de metais pesados em estado incandescente. Imaginemos, pois, que alguém nos apresenta a assertiva de que o interior da Terra consiste de água saturada de ácido carbônico — ou seja, uma espécie de água de soda. Sem dúvida, diremos que isto é muito improvável, que contradiz todas as nossas expectativas e que não concede nenhuma atenção aos fatos conhecidos que nos levaram a adotar a hipótese dos metais. Ainda assim, não é inconcebível; se alguém viesse a nos mostrar uma forma de testar a hipótese da água de soda, nós a seguiríamos sem objeção. Mas suponham agora que vem uma outra pessoa e afirma com seriedade que o miolo da Terra consiste de geléia. Nossa reação a isto será bastante diferente. Diremos a nós mesmos que a geléia não ocorre na natureza, que ela é um produto da culinária do homem e que, ademais, a existência desse material pressupõe a existência de árvores frutíferas e de seus frutos, e que não podemos ver como localizar vegetação e culinária humana no interior da Terra. O resultado dessas objeções intelectuais será uma mudança em nosso interesse: em vez de começar a investigar se o centro da Terra de fato é feito de geléia, haveremos de nos perguntar que espécie de pessoa deve ser essa que consegue chegar a uma tal idéia, ou, quando muito, perguntar-lhe-emos de onde tirou essa idéia. O infeliz autor da teoria da geléia sentir-se-á muito insultado e se queixará de que nós nos recusamos a fazer uma investigação objetiva de sua afirmação com base num pretenso preconceito científico. Isto, porém, de nada lhe servirá. Percebemos que nem sempre se deve reprovar os preconceitos, mas que, às vezes, eles se justificam e têm utilidade de vez que nos poupam trabalho inútil. De fato, eles são apenas conclusões baseadas em uma analogia com outros juízos bem fundamentados.

Toda uma série de afirmações ocultistas têm o mesmo tipo de efeito que a hipótese da geléia, de modo que nos consideramos justificados ao rejeitá-las à primeira vista, sem outras investigações. Ainda assim, a situação não é tão simples. Uma comparação como a que escolhi, nada prova, ou prova tão pouco quanto as comparações em geral. Permanece duvidoso se ela é procedente, e é claro que sua escolha já foi determinada por nossa atitude de rejeição desdenhosa. Os preconceitos, às vezes, são convenientes e justificados; mas, às vezes, são errôneos e prejudiciais, e jamais se pode dizer quando são uma coisa ou outra. A própria história da ciência oferece abundantes exemplos que são uma advertência contra a condenação prematura. Durante muito tempo considerou-se absurda a hipótese que aventava que as pedras,que agora chamamos de meteoritos, pudessem ter chegado à Terra vindas do espaço exterior, ou que as rochas que formam as montanhas, nas quais estão incrustados os remanescentes de conchas, pudessem, em alguma época, ter formado o leito do mar. Aliás, coisa muito semelhante aconteceu com a nossa psicanálise, quando apresentou sua conclusão da existência de um inconsciente. Assim, nós, analistas, temos motivos especiais para sermos cautelosos no uso das considerações intelectuais para rejeitar hipóteses novas, e devemos admitir que elas não nos isentam de sentimentos de antipatia, dúvida e incerteza.

Falei do segundo fator [que complica nossa abordagem do tema] como sendo o fator psicológico. Com isto quero significar a tendência geral da humanidade à credulidade e à crença no miraculoso. Desde o início, quando a vida nos submete à sua rígida disciplina, dentro de nós se levanta uma resistência contra a inflexibilidade e monotonia das leis do pensamento e contra as exigências do teste de realidade. A razão se torna o inimigo que nos priva de tantas possibilidades de prazer. Descobrimos quanto prazer nos dá retrair-nos dela, temporariamente ao menos, e nos entregar aos atrativos do absurdo. Os escolares deliciam-se com deturpar palavras; quando um congresso científico termina, os especialistas se divertem com suas próprias atividades; até mesmo homens de mentalidade séria apreciam uma anedota. Uma hostilidade mais séria à ‘Razão e Ciência, o mais elevado poder que o homem possui’ aguarda sua oportunidade; apressa-se a preferir ao médico habilitado o médico milagroso ou praticante de curas pela natureza; é favorável às afirmações do ocultismo na medida em que esses pretensos fatos podem ser tomados como rupturas de leis e de regras; faz adormecerem as dúvidas, falsifica as percepções e força confirmações e concordâncias que não podem ser justificadas. Se se leva em conta essa tendência do homem, há toda razão em descontar muita coisa das informações apresentadas na literatura ocultista.

A terceira dúvida, denominei-a dúvida histórica; e com isto tenho a intenção de assinalar que, de fato, não há nada de novo no mundo do ocultismo. Nele emergem, mais uma vez, todos os sinais, milagres, profecias e aparições que nos foram relatados desde tempos antigos e em antigos livros,e que pensávamos terem sido, há muito tempo, colocados de lado como produto de imaginação desenfreada ou de fraude tendenciosa, ou produto de uma era na qual a ignorância do homem era muito grande e o espírito científico estava ainda no seu berço. Se aceitamos a verdade daquilo que, segundo as informações dos ocultistas, ainda acontece hoje em dia, também devemos acreditar na autenticidade dos relatos que nos foram transmitidos pela tradição desde épocas antigas. E então devemos raciocinar que a tradição e os livros sagrados de todos os povos estão repletos de semelhantes lendas maravilhosas justamente sobre tais acontecimentos miraculosos, e neles encontrar provas da atuação de poderes sobre-humanos. Sendo assim, ser-nos-á difícil evitar a suspeita de que o interesse pelo ocultismo é, de fato, um interesse religioso e que um dos motivos secretos do movimento ocultista é vir em auxílio da religião, ameaçada, como ela está, pelo avanço do pensamento científico. E, com a descoberta desse motivo, nossa desconfiança deve crescer e nossa aversão para nos dedicar ao exame desses supostos fenômenos ocultos deve aumentar.

Mais cedo ou mais tarde, porém, essa aversão deve ser superada. Defrontamo-nos com uma questão de fato: o que nos dizem os ocultistas é verdadeiro ou não? Deve ser possível, afinal de contas, esclarecer esse ponto. No fundo, temos motivos para sermos gratos aos ocultistas. As histórias miraculosas de épocas antigas estão além do alcance de nossas provas. Se, em nossa opinião, não podem ser comprovadas, devemos admitir que, estritamente falando, não podem ser refutadas. Mas, quanto a acontecimentos contemporâneos, aos quais podemos estar presentes, deve ser-nos possível chegar a um julgamento definido. Se chegamos à convicção de que tais milagres não ocorrem hoje em dia, não precisamos temer o contra-argumento de que, mesmo assim, eles podem ter acontecido em tempos antigos; nesse caso, outras explicações serão mais plausíveis. Assim, delineamos nossas dúvidas e estamos prontos para tomar parte em uma investigação dos fenômenos ocultos.

Infelizmente, porém, aqui deparamos com circunstâncias que são por demais desfavoráveis para nossas honestas intenções. As observações, das quais se supõe dependa o nosso julgamento, realizam-se sob condições que tornam incertas as nossas percepções sensoriais e que turvam a nossa capacidade de atenção; ocorrem na escuridão, ou sob luz vermelha mortiça, após longos períodos de vã expectativa. É-nos dito que, de fato, nossa atitude descrente — ou seja, nossa atitude crítica — pode evitar que os fenômenos esperados aconteçam. A situação assim criada não é senão uma caricatura das circunstâncias em que geralmente estamos acostumados a realizar pesquisas científicas. As observações são feitas no que se chama de ‘médiuns’ — indivíduos aos quais se atribuem faculdades especialmente ‘sensíveis’, mas que de modo algum se distinguem por qualidades excepcionais de inteligência ou de caráter, e que não são, como os fazedores de milagres do passado, inspirados por qualquer idéia grandiosa ou propósito sério. Pelo contrário, são considerados, até mesmo por aqueles que acreditam em seus poderes secretos, como particularmente indignos de confiança; a maior parte deles já foi desmascarada como sendo constituída de trapaceiros, e com razão podemos esperar que o mesmo destino aguarda os restantes. Suas práticas dão a impressão de travessuras maliciosas de crianças ou de truques de prestidigitação.1 Até hoje, nunca surgiu nada de importante das séances com esses médiuns — a revelação de uma nova fonte de poder, por exemplo. É verdade que não esperamos receber indicações sobre criação de pombos do mago que, através de mágica, faz sair pombos de sua cartola vazia. Facilmente posso me colocar no lugar de uma pessoa que tenta satisfazer as exigências de uma atitude objetiva e assim toma parte em séances ocultas, mas que se cansa logo após e se afasta, desgostosa com aquilo que dela é esperado, e volta sem ter esclarecidos os seus preconceitos anteriores. A uma tal pessoa pode ser feita a censura de que não é esta a maneira correta de se conduzir: que não se deve antecipadamente formular quais serão os fenômenos que se está procurando estudar e em que circunstâncias eles aparecerão. Ao contrário, deve-se perseverar e conferir importância às medidas acauteladoras e fiscalizadoras, pelas quais recentemente dispenderam-se esforços, para precaver-se contra a deslealdade dos médiuns. Infelizmente, essa moderna técnica de proteção acaba com a fácil acessibilidade das observações do oculto. O estudo do ocultismo torna-se uma profissão especializada e difícil — uma atividade que não se pode praticar paralelamente aos demais interesses que se tem. E até que aqueles que se dedicam a essas investigações tenham chegado às suas conclusões, nós ficamos com nossas dúvidas e com nossas conjecturas.

Dentre essas conjecturas, sem dúvida a mais provável é aquela segundo a qual existe um fundamento real nos fatos do ocultismo, até hoje não reconhecido e ao redor do qual o embuste e a fantasia teceram um véu que é difícil descerrar. Como, porém, haveremos de nos aproximar desse fundamento? Em que ponto podemos atacar o problema? Penso que aqui os sonhospodem vir em nosso auxílio, dando-nos uma indicação de que, de dentro desse caos, podemos tirar o tema da telepatia.

 

O que denominamos ‘telepatia’ é, conforme sabem, o fato suposto de que um evento, que ocorre em um determinado tempo, aproximadamente no mesmo momento chega à consciência de alguém distante no espaço, desprezando as vias de comunicação conhecidas. Pressupõe-se implicitamente que tal evento interessa a essa pessoa, por quem a outra pessoa (o recebedor da informação) tem um intenso interesse afetivo. Por exemplo, a Pessoa A pode ser vítima de um acidente, ou pode morrer, e a Pessoa B, que lhe tem uma ligação estreita — sua mãe, ou filha, ou noiva — sabe do fato, quase ao mesmo tempo, através de uma percepção visual ou auditiva. Nesse último caso, portanto, é como se tivesse sido informada por telefone, embora não seja este o caso; é um tipo de equivalente psíquico da telegrafia sem fio. Não preciso insistir com os senhores sobre a improbabilidade de tais fatos, e há bons motivos para desprezar a maior parte desses relatos. Restam alguns que não podem ser eliminados assim tão facilmente. Permitam-me, agora, em razão do propósito daquilo que tenho para dizer-lhes, que eu omita a cautelosa palavrinha ‘suposto’ e continue como se eu acreditasse na realidade objetiva do fenômeno da telepatia. Mas tenham claro em mente que não é este o caso e que não aderi a nenhuma convicção.

Tenho, realmente, pouco para contar-lhes — apenas um fato modesto. Também de pronto reduzirei ainda mais as suas expectativas dizendo que, no fundo, os sonhos têm escassa relação com a telepatia. A telepatia não lança nenhuma nova luz sobre a natureza dos sonhos, e nem recebem os sonhos qualquer evidência direta da realidade da telepatia. Ademais, o fenômeno da telepatia não está de modo algum vinculado aos sonhos; pode ocorrer também durante o estado de vigília. O único motivo pra discutir a relação entre sonhos e telepatia é que o estado de sono parece particularmente adequado para a recepção de mensagens telepáticas. Em tais casos, a pessoa tem o que se chama sonho telepático, e, quando analisado, adquire-se a convicção de que a notícia telepática desempenhou o mesmo papel que qualquer outra parte dos resíduos diurnos, e que foi modificada da mesma maneira pela elaboração onírica e transformada para servir ao propósito desta.

Durante a análise de um desses sonhos telepáticos, ocorreu algo que me parece ser de interesse suficiente, apesar de sua banalidade, para servir como ponto de partida para esta conferência. Quando, em 1922, dei minha primeira descrição desse assunto, tinha à minha disposição somente uma única observação. Desde então, fiz numerosas observações semelhantes, mas manterei o primeiro exemplo, porque é o mais fácil de descrever, e eu os levarei em seguida in medias res.

 

Um homem obviamente inteligente, que, por sua própria descrição, pelo menos, não era ‘inclinado ao ocultismo’, escreveu-me acerca de um sonho que tinha tido, e que lhe parecia digno de nota. Começou por informar-me que sua filha casada, distante dele, estava esperando seu primeiro parto para meados de dezembro. Essa filha significava muito para ele e ele também sabia que ela lhe era muito afeiçoada. Durante a noite de 16 para 17 de novembro, então, ele sonhou que sua mulher havia dado à luz gêmeos. Seguiam-se diversos detalhes, que aqui posso omitir, e nenhum destes realmente jamais foi explicado. A mulher, que no sonho se havia tornado mãe de gêmeos, era sua segunda esposa, madrasta de sua filha. Ele não desejava ter filhos dessa sua segunda esposa, que, dizia ele, não tinha aptidão para criar filhos sensatamente; além disso, à época do sonho, ele, há longo tempo, havia cessado de ter relações sexuais com ela. O que o levara a escrever-me fora, não a dúvida a respeito da teoria dos sonhos, já que o conteúdo manifesto de seu sonho a teria justificado, mas por que o sonho, em completa contradição com seus desejos, fez sua esposa dar à luz? E, segundo ele, não havia qualquer motivo para temer a ocorrência desse indesejado evento. O que o induziu a relatar-me esse sonho foi a circunstância de que, na manhã de 18 de novembro, recebeu um telegrama anunciando que sua filha havia dado à luz gêmeos. O telegrama havia sido expedido no dia anterior, e o nascimento havia ocorrido durante a noite de 16 para 17 de novembro, quase na mesma hora em que ele tinha tido o sonho do nascimento de gêmeos de sua esposa. Esse homem que teve o sonho perguntava-me se eu pensava ser acidental a coincidência entre o sonho e o ocorrido. Ele não se arriscou a chamar o sonho de telepático, de vez que a diferença entre seu conteúdo e o evento afetava justamente o que lhe parecia essencial no sonho — a identidade da pessoa que deu à luz as crianças. Um dos seus comentários, contudo, mostra que ele não se teria surpreendido com um sonho telepático real; acreditava que sua filha certamente teria ‘pensado especialmente nele’ durante o trabalho de parto.

Senhoras e senhores, estou certo de que já conseguiram explicar esse sonho e compreender, também, por que o contei para os senhores. Era esse um homem insatisfeito com sua segunda esposa, que preferiria que sua esposa fosse como a filha de seu primeiro casamento. Esse ‘como’ desapareceu, naturalmente, no que se referia ao inconsciente. E agora a mensagem telepática chegada durante a noite, para dizer que sua filha havia tido gêmeos. A elaboração onírica assumiu o controle da notícia, permitiu que o desejo inconsciente operasse sobre ela — o desejo de ele poder colocar a filha no lugar da segunda esposa — e assim surgiu o enigmático sonho manifesto, que disfarçou o desejo e deformou a mensagem. Devemos admitir que é só a interpretação do sonho que nos mostrou que era um sonho telepático: a psicanálise revelou um evento telepático que de outra forma não haveríamos de descobrir.

Mas, por favor, não se deixem equivocar! Apesar de tudo isso, a interpretação de sonhos não nos disse nada acerca da realidade objetiva do evento telepático. Pode ser igualmente uma ilusão explicável de outra maneira. Os pensamentos oníricos latentes do homem podem ter sido assim: ‘Hoje é o dia em que o parto se realizaria se minha filha estivesse mesmo enganada em seus cálculos em um mês, conforme suspeito. E quando a vi pela última vez, ela parecia justamente como se estivesse para ter gêmeos. Como se teria alegrado com gêmeos a minha falecida mulher, que tanto gostava de crianças!’ (Baseio esse último dado em algumas associações tidas por esse sonhador, as quais não mencionei.) Nesse caso, a origem do sonho teriam sido suspeitas bem fundamentadas, por parte do sonhador, e não uma mensagem telepática; mas o resultado teria sido o mesmo. Os senhores vêem, pois, que mesmo a interpretação desse sonho nada nos disse acerca da questão de saber se devemos admitir realidade objetiva à telepatia. Isto só poderia ser decidido por esmerada investigação de todas as circunstâncias do caso — o que, infelizmente, não foi mais possível nesse exemplo do que em qualquer outro de minha experiência. Posto que a hipótese da telepatia oferece, sem dúvida, a explicação mais simples, ainda assim não nos auxilia muito. A explicação mais simples nem sempre é a correta; a verdade, com freqüência, não é uma questão fácil, e antes de nos decidirmos a favor de uma hipótese de tão grande alcance, devemos preferentemente ter tomado todo cuidado.

 

Podemos agora abandonar o assunto dos sonhos e da telepatia: sobre isto, nada mais tenho a dizer-lhes. Mas observem cuidadosamente que aquilo que nos pareceu ensinar-nos algo a respeito da telepatia, não foi o sonho, mas a interpretação do sonho, a sua elaboração psicanalítica. Por conseguinte, nessas coisas que se seguem, podemos deixar inteiramente de lado os sonhos e podemos manter a expectativa de que o emprego da psicanálise possa clarear um pouco outros eventos descritos como ocultos. Existe, por exemplo, o fenômeno da transmissão de pensamento, que tem tão estreitas relações com a telepatia e pode, na verdade, sem deturpação demasiada, ser considerado a mesma coisa. Afirma que os processos mentais numa pessoa — idéias, estados emocionais, impulsos conativos — podem ser transferidos para uma outra pessoa através do espaço vazio, sem o emprego dos métodos conhecidos de comunicação que usam palavras e sinais. Os senhores perceberão quão notável, e talvez mesmo de que importância prática, isto seria, se algo desse teor realmente acontecesse. Pode-se notar aliás que, de maneira muito estranha, justamente esse fenômeno é mencionado muito menos freqüentemente nas histórias miraculosas do passado.

No decorrer do tratamento psicanalítico de pacientes, formei a concepção de que as atividades dos adivinhos profissionais escondem uma oportunidade de fazer observações especialmente irrefutáveis sobre transmissão de pensamento. Esses indivíduos são pessoas insignificantes, e mesmo inferiores, que se aprofundam em determinado tipo de representação — pôr as cartas, estudar a escrita ou as linhas da palma da mão, ou fazer cálculos astrológicos — e, ao mesmo tempo, após haverem-se mostrado conhecedores de partes do passado ou das circunstâncias presentes do visitante, continuam profetizando seu futuro. Via de regra, seus clientes mostram grande satisfação com esses efeitos e não sentem qualquer ressentimento se, depois, essas profecias não se cumprem. Encontrei diversos casos assim e pude estudá-los analiticamente; em seguida, contar-lhes-ei o mais notável desses exemplos. Sua força de convicção, infelizmente, é prejudicada por numerosas reticências a que sou compelido pela obrigação do segredo médico. No entanto, evitei rigorosamente distorções. Ouçam, pois, a história de uma de minhas pacientes, que teve uma experiência desse tipo com um adivinho. Ela era a mais velha de uma família numerosa e havia crescido com uma ligação extremamente intensa com seu pai. Tinha casado ainda jovem e encontrara inteira satisfação em seu casamento. Só uma coisa estava faltando em sua felicidade: havia permanecido sem filhos, não podendo, assim, colocar seu amado esposo inteiramente no lugar de seu pai. Quando, após longos anos de desapontamento, decidiu submeter-se a uma operação ginecológica, seu marido revelou-lhe que a culpa era dele: uma doença, anterior ao casamento, o incapacitara para procriar filhos. Ela suportou mal essa desilusão, tornou-se neurótica e sofreu muito com temores de ser tentada [a ser infiel ao marido]. Para alegrá-la, ele a levou consigo a Paris, em viagem de negócios. Certo dia, lá estavam eles sentados no saguão do seu hotel, quando ela percebeu alguma agitação entre os empregados do hotel. Perguntou o que é que estava acontecendo, e disseram-lhe que Monsieur le Professeur havia chegado e estava dando consultas numa salinha ali perto. Expressou o desejo de fazer uma tentativa. O marido rejeitou a idéia, mas enquanto ele não estava observando, ela se esgueirou para dentro da sala de consultas e encontrou-se à frente do adivinho. Ela estava com 27 anos, mas parecia muito mais jovem, e havia tirado sua aliança de casada. Monsieur le Professeur fê-la pousar a mão numa bandeja cheia de cinzas e estudou atentamente a marca deixada pela mão; então ele lhe disse todos os tipos de coisas a respeito de árduas lutas que a esperavam, e terminou com a confortadora promessa de que, apesar de tudo, ela ainda haveria de casar-se e ter dois filhos quando chegasse à idade de 32 anos. Quando me contou esta história, ela estava com 43 anos, estava gravemente doente e sem qualquer perspectiva de algum dia ter um filho. Assim, a profecia não se realizara; contudo, falou disso sem qualquer tipo de amargura, com uma inconfundível expressão de satisfação, como se estivesse recordando um ditoso evento. Foi fácil estabelecer que ela não tinha a mais leve noção do que poderiam significar os dois números na profecia [2 e 32] ou se eles, de algum modo, significavam alguma coisa.

Os senhores dirão que esta é uma história estúpida e incompreensível e perguntarão por que a contei aos senhores. Eu deveria ser inteiramente da opinião dos senhores — e este é o ponto saliente —, se a análise não tivesse tornado possível chegar a uma interpretação da profecia, que é convincente precisamente a partir da explicação, que ela permite, dos detalhes. Pois os dois números encontram seu lugar na vida da mãe de minha paciente. Elahavia casado tardiamente — não antes de ter mais de trinta anos, e na família haviam freqüentemente insistido no êxito com que ela se havia apressado para compensar o tempo perdido. Seus dois primeiros filhos (sendo nossa paciente a mais velha) haviam nascido com o mais curto intervalo possível entre si, em um só período de um ano; e tinha, de fato, dois filhos, ao chegar aos 32 anos de idade. Portanto, o que Monsieur le Professeur dissera à minha paciente significava: ‘Console-se com o fato de ser tão jovem. Terá o mesmo destino que sua mãe, que também teve de esperar longo tempo pelos filhos, e terá dois filhos quando tiver 32 anos.’ Ter o mesmo destino que sua mãe, colocar-se no lugar de sua mãe, tomar o lugar dela junto ao pai — fora este, contudo, o mais intenso desejo de sua mocidade, e precisamente em virtude da não-realização desse desejo é que ela estava começando a adoecer. A profecia prometia-lhe que o desejo ainda se cumpriria, apesar de tudo; como poderia ela deixar de sentir simpatia pelo profeta? Entretanto, consideram os senhores possível que Monsieur le Professeur fosse sabedor dos fatos da história íntima da família de sua cliente casual? Absolutamente não! Como, então, chegou ele ao conhecimento que lhe possibilitou expressar o desejo mais intenso e mais secreto de minha paciente incluindo os dois números em sua profecia? Posso ver apenas duas explicações possíveis. Ou a história, tal como me foi contada, é inverídica, e os fatos ocorreram de modo diverso, ou a transmissão de pensamento existe como fenômeno real. Pode-se supor, indubitavelmente, que, após um intervalo de 16 anos, a paciente houvesse introduzido os dois números em questão em sua lembrança, vindos do inconsciente. Não tenho base para essa suspeita, mas não posso excluí-la; e imagino que os senhores estarão mais prontos a acreditar numa solução dessa espécie, do que na realidade da transmissão de pensamento. Se os senhores se decidem mesmo pela segunda alternativa, não se esqueçam de que foi somente a análise que criou o fato oculto — descobriu-o quando estava distorcido a ponto de ser irreconhecível.

 

Se se tratasse apenas de um caso, como o dessa minha paciente, não se lhe daria maior importância. Ninguém sonharia erigir sobre uma única observação uma crença que implica tomar uma direção tão decisiva. Mas os senhores devem dar-me crédito quando lhes asseguro que este não é o único caso em minha experiência. Coligi toda uma série de tais profecias, e de todas elas ficou-me a impressão de que o adivinho simplesmente havia dado expressão aos pensamentos, e, mais especialmente, aos desejos secretos daqueles que vinham consultá-lo, e que, portanto, estávamos autorizados a analisar essas profecias como sendo produções subjetivas, fantasias ousonhos das pessoas em questão. Naturalmente, nem todo caso é igualmente convincente, e não é, em todos os casos, igualmente possível excluir explicações mais racionais; contudo, tomando esses casos em conjunto, permanece um forte saldo de probabilidades a favor da transmissão de pensamento como um fato. A importância do tema justificaria que eu relatasse aos senhores todos os meus casos; mas não posso fazê-lo, devido à prolixidade da descrição que se faria necessária e à inevitável quebra do dever do sigilo. Na medida do possível, tentarei tranqüilizar minha consciência dando-lhes mais alguns exemplos.

Um dia, procurou-me um homem jovem, muito inteligente, um estudante que se preparava para seus exames finais de doutorado, mas incapaz de fazê-los, de vez que, conforme se queixou, havia perdido todo o interesse e capacidade de concentração e até mesmo toda a faculdade de memorizar regularmente. A história prévia dessa condição de quase paralisia logo foi revelada: havia adoecido após ter realizado um grande ato de autodisciplina. Tinha uma irmã, a quem estava ligado por uma afeição intensa, porém sempre refreada, e o mesmo se passava nela, em relação a ele. ‘Que pena nós não podermos casar!’, diziam freqüentemente um ao outro. Um senhor respeitável apaixonou-se pela irmã; ela correspondeu a essa paixão, mas seus pais não consentiram na união. Em sua dificuldade, o jovem casal voltou-se para o irmão dela, e este não recusou sua ajuda. Fez o possível para que mantivessem correspondência, e sua influência finalmente persuadiu os pais a consentirem. No decorrer do noivado, entretanto, ocorreu um incidente cujo significado era fácil deduzir. Em companhia de seu futuro cunhado, ele empreendeu uma difícil escalada de montanha, sem guia; perderam o caminho e estiveram em perigo de não regressar sãos e salvos. Logo após o casamento de sua irmã, ele caiu nesse estado de exaustão mental.

A influência da psicanálise restaurou sua capacidade de trabalho, e ele deixou-me para prestar seus exames; mas após tê-los efetuado com êxito, voltou a mim por um curto período, no outono do mesmo ano. Foi então que me referiu uma experiência singular que tivera antes do verão. Na cidade de sua universidade, vivia uma adivinha que gozava de grande popularidade. Até mesmo os príncipes da Casa Real costumavam ir fazer-lhe consultas antes de empreendimentos importantes. O modo de trabalhar dela era muito simples. Pedia que lhe dissessem a data do nascimento da pessoa interessada; não exigia saber nada mais sobre a pessoa, nem sequer seu nome. Então elapassava a consultar seus livros de astrologia, fazia longos cálculos e, finalmente, formulava uma profecia referente à pessoa em questão. Meu paciente decidiu recorrer às artes místicas dessa mulher, com referência a seu cunhado. Foi visitá-la e disse-lhe a data pertinente. Depois de efetuar seus cálculos, ela fez sua profecia: ‘A pessoa em questão morrerá em julho ou agosto deste ano, de intoxicação causada por lagosta ou ostra.’ Meu paciente terminou sua história com as palavras: ‘Foi simplesmente maravilhoso!’

Desde o início, eu escutava com irritação. Depois dessa exclamação sua, cheguei a perguntar: ‘Que é que o senhor está vendo de tão maravilhoso nessa profecia? Agora estamos no fim do outono, e o seu cunhado não está morto, ou o senhor me teria contado isto há muito tempo. Então a profecia não se realizou.’ ‘Sem dúvida, é isto’, replicou, ‘mas é isto que é maravilhoso. Meu cunhado tem paixão por lagosta e ostras, e, no verão anterior — isto é, antes de minha visita à adivinha — ele teve um ataque de intoxicação por ostra do qual quase morreu.’ Que é que eu iria dizer em face disto? Apenas pude sentir-me aborrecido por esse homem altamente instruído (que, ademais, havia passado por uma análise bem-sucedida) não conseguir ter uma visão mais clara de sua situação. Quanto a mim, a acreditar que é possível calcular o início de um ataque de intoxicação por lagosta ou ostras, com base em tabelas astrológicas, prefiro supor que meu paciente ainda não vencera o ódio que sentia por seu rival, cuja repressão, anteriormente, o levara a adoecer, e que a adivinha simplesmente estava expressando a expectativa dele mesmo: ‘um gosto desse tipo, não é de se desistir, e um dia, de qualquer modo, vai chegar o fim dele.’ Devo admitir que não consigo pensar em nenhuma outra explicação para este caso, a não ser que, talvez, meu paciente estivesse fazendo uma brincadeira comigo. No entanto, nem naquela ocasião, nem em época posterior, ele me deu motivos para semelhante suspeita, e pareceu estar levando a sério o que disse.

Aqui está outro caso. Um senhor jovem, que ocupava uma posição de destaque, foi envolvido numa liaison com uma demi-mondaine, a qual se caracterizava por uma compulsão curiosa. De tempos em tempos, ele era obrigado a provocá-la com comentários irônicos e insultuosos até ela se sentir em completo desespero. Quando ele a levava até esse ponto, aliviava-se, reconciliava-se com ela e dava-lhe um presente. Mas, agora, queria ver-se livre da mulher: a compulsão parecia-lhe uma coisa muito estranha. Percebeu que a liaison estava prejudicando sua reputação; queria ter sua esposa e constituir sua família. Entretanto, como não podia livrar-se da demi-mondaine por suas próprias forças, procurou o auxílio da análise. Depois de uma dessas cenas injuriosas, quando a análise já havia iniciado, ele a fez escrever algo num pedaço de papel, a fim de mostrá-lo a um grafólogo. O informe que recebeu deste dizia que a escrita era de alguém em extremo desespero, que certamente cometeria suicídio nos próximos dias. É verdade que isto não ocorreu, e a mulher coninuou viva; mas a análise conseguiu afrouxar os laços dessa ligação. Abandonou a mulher e voltou-se para uma moça jovem, esperando poder vir a fazer dela uma boa esposa. Logo depois, surgiu um sonho que só podia insinuar uma incipiente dúvida quanto ao valor da moça. Conseguiu uma amostra de sua escrita, também, levou-a ao mesmo grafólogo e recebeu um veredicto da escrita dela que confirmava suas apreensões. Com isso, abandonou a idéia de tomá-la como esposa.

A fim de formar uma opinião a respeito dos informes do grafólogo, especialmente do primeiro, devemos conhecer algo da história de nosso personagem. No início de sua mocidade, ele (de acordo com sua natureza impetuosa) se apaixonara arrebatadamente por uma mulher casada, ainda jovem, mas mesmo assim mais velha do que ele. Quando ela o rejeitou, ele fez uma tentativa de suicídio que, não pode haver dúvidas, foi empreendida a sério. Foi apenas por um fio que escapou da morte, e só se recuperou depois de longo período de convalescença. Essa ação tresloucada, porém, causou profunda impressão na mulher que amava; ela lhe concedeu seus favores, ele se tornou amante dela e daí por diante permaneceu secretamente ligado a ela, servindo-a com dedicação verdadeiramente cavalheiresca. Mais de vinte anos depois, quando ambos haviam-se tornado mais velhos — mas a mulher, naturalmente, envelhecera mais do que ele —, despertou nele a necessidade de se desligar dela, de tornar-se livre, de levar a sua própria vida, de montar casa e constituir família. E ao lado dessa sensação de saciedade, surgiu nele a profunda ânsia, há muito tempo reprimida, de vingar-se de sua amante. Assim como uma vez ele havia tentado matar-se porque ela o desprezara, também desejava ele, agora, ter a satisfação de ela buscar a morte porque ele a abandonava. O amor que ele tinha, porém, era ainda muito forte para possibilitar que esse desejo se tornasse consciente nele; e não estava em condições de causar a ela dano suficiente para levá-la à morte. Dentro desse esquema mental, fez da demi-mondaine uma espécie de bode expiatório para satisfazer a sua sede de vingança in corpore vili; e ele passou a infligir-lhe todos os tormentos que podia esperar causassem nela o resultado que ele queria produzir em sua amante. Que a vingança se aplicava a esta revelava-se no fato de ele fazer desta, da amante, uma confidente e conselheira de sualiaison, em vez de ocultar dela a sua deserção. A desventurada senhora, que há muito tempo havia deixado de dar para receber favores, provavelmente sofreu muito mais com essas confidências do que a demi-mondaine com as brutalidades dele. A compulsão em relação a essa figura substitutiva, de que se queixava e que o levou à análise, naturalmente havia sido transferida a ela a partir de sua antiga amante; era dela que queria livrar-se, mas não podia. Não sou autoridade em assuntos de escrita e não tenho em alto conceito a arte de adivinhar o caráter a partir da escrita; tampouco acredito na possibilidade de assim predizer o futuro do autor da letra. Os senhores podem ver, no entanto, seja o que for que se pense do valor da grafologia, não haver engano no fato de o perito, quando prometeu que o autor da letra da amostra que lhe era apresentada, cometeria suicídio nos próximos dias, havia, mais uma vez, tão-somente manifestado um poderoso desejo secreto da pessoa que lhe vinha fazer a consulta. Algo do mesmo teor aconteceu posteriormente, no caso do segundo relato. Ali, o que estava em questão, porém, não era um desejo inconsciente; era a dúvida crescente e a apreensão do consulente que encontravam uma clara expressão na boca do grafólogo. Aliás, meu paciente conseguiu, com o auxílio da análise, encontrar um objeto para seu amor, fora do círculo mágico em que tinha sido enfeitiçado.

Senhoras e senhores, ouviram agora como a interpretação dos sonhos e a psicanálise em geral elucidam o ocultismo. Mostrei-lhes com exemplos que, por sua aplicação, têm sido trazido à luz fatos ocultos que de outro modo teriam permanecido desconhecidos. A psicanálise não pode dar uma resposta direta à pergunta que, sem dúvida, mais lhes interessa — se haveremos de acreditar na realidade objetiva desses achados. O material revelado com sua ajuda, contudo, produz uma impressão que, sob todos os aspectos, é favorável a uma resposta afirmativa. O interesse dos senhores não se deterá neste ponto, entretanto. Desejarão saber que conclusões se justificam pelo material incomparavelmente mais rico no qual a psicanálise não tem qualquer ingerência. Mas nisso não posso acompanhá-los; situa-se fora de meus domínios. A única coisa adicional que poderia fazer, seria relatar-lhes observações que pelo menos têm tanta relação com a psicanálise, por terem sido feitas durante tratamento psicanalítico e, até mesmo, talvez, se tornaram possíveis por influências desta. Contar-lhes-ei um desses exemplos — o exemplo que deixou em mim a impressão mais profunda. Relata-lo-ei extensamente e solicitarei a atenção dos senhores para um grande número de detalhes, embora, ainda assim, tenha de suprimir muita coisa que em muito haveria de aumentar a força de convicção da observação. É um exemplo no qual o fato veio claramente à luz e não necessitou ser desenvolvido pela análise. Aodiscuti-lo, entretanto, não poderemos prescindir da ajuda da análise. Contudo lhes direi antecipadamente que também este exemplo de aparente transmissão de pensamento na situação analítica não está isento de toda dúvida e não nos permite assumir uma posição de irrestrito apoio à realidade dos fenômenos ocultos.

 

Ouçam, pois: Num dia do outono do ano de 1919, cerca das 10h.45m. da manhã, o Dr. David Forsyth, que, havia pouco, chegara de Londres, enviou-me seu cartão de visita enquanto eu estava tendo uma sessão com um paciente. (Meu prezado colega da Universidade de Londres, estou certo, não considerará indiscrição se, dessa maneira, revelo o fato de que passou alguns meses sendo iniciado por mim na arte da técnica psicanalítica.) Apenas tive tempo de saudá-lo e marcar um encontro para vê-lo mais tarde. O Dr. Forsyth tinha direito ao meu interesse particular; foi o primeiro estrangeiro a vir ter comigo, após eu haver sido interrompido em minhas atividades pelos anos de guerra, e a trazer uma promessa de dias melhores. Logo depois, às onze horas, chegou Herr P., um dos meus pacientes, um homem inteligente e agradável, entre quarenta e cinqüenta anos de idade, que, inicialmente, me havia procurado por causa de dificuldades com mulheres. Seu caso não prometia qualquer êxito terapêutico; muito tempo antes, eu havia proposto que parássemos o tratamento, mas ele quisera continuá-lo, evidentemente porque se sentia à vontade em uma transferência paterna bem temperada em relação a mim. Nessa época, o dinheiro não tinha qualquer papel de importância: havia muito pouco em circulação. As sesões que eu tinha com ele eram estimulantes e também reconfortantes, e, por conseguinte, passando por cima de estritas regras da clínica médica, o trabalho analítico estava sendo levado adiante, até um limite de tempo previsto.

Aquele dia, P. retornava a seus intentos de ter relações eróticas com mulheres e, mais uma vez, mencionava uma jovem linda, provocante e muito pobre, com quem ele sentia que poderia ter êxito, se o fato de ela ser virgemnão amedrontasse alguma tentativa séria por parte dele. Freqüentemente, havia falado nela, antes; contudo, nesse dia, pela primeira vez, embora naturalmente ele não tivesse noção dos verdadeiros motivos do impedimento dele, disse-me que ela costumava chamá-lo ‘Herr von Vorsicht’ Sr. Cuidado. Surpreendi-me com essa informação; o cartão de visita do Dr. Forsyth estava junto a mim e mostrei-lho.

Estes são os fatos do caso. Suponho que aos senhores eles parecerão insignificantes; ouçam, porém, um pouco mais, há mais coisas por trás deles.

Quando era jovem, P. havia passado alguns anos na Inglaterra e desde então conservara um permanente interesse pela literatura inglesa. Possuía uma rica biblioteca inglesa e costumava trazer-me livros dela. Devo a ele um conhecimento de autores tais como Bennett e Galsworthy, dos quais até então havia lido pouca coisa. Um dia, emprestou-me um romance de Galsworthy intitulado The Man of Property, cuja ação se passa no seio de uma família, inventada pelo autor, de nome ‘Forsyte’. O próprio Galsworthy estava evidentemente fascinado com essa criação sua, pois, em livros subseqüentes, repetidamente retornou aos membros dessa família e, por fim, coletou todas as histórias referentes a eles sob o título The Forsyte Saga. Apenas alguns dias antes da ocorrência de que estou falando, ele me trouxera um volume recente dessa série. O nome ‘Forsyte’, e tudo o que de típico o autor havia procurado incorporar nele, tinha desempenhado um papel, também, em minhas conversações com P. e se tornara parte da linguagem secreta que tão facilmente se desenvolve entre duas pessoas que se vêem muito. Ora, o nome ‘Forsyte’ desses romances difere pouco do de meu visitante ‘Forsyth’ e, conforme é pronunciado por um alemão, os dois dificilmente podem ser distinguidos; e há uma palavra inglesa com uma significação — ‘foresight’ — que também teremos de pronunciar da mesma maneira e que seria traduzida como ‘Voraussicht’ ou ‘Vorsicht’. Assim, P. realmente selecionara de suas preocupações pessoais exatamente o nome que, ao mesmo tempo ocupava meus pensamentos, como resultado de uma ocorrência da qual ele não tinha conhecimento.

Isto parece tomar rumos melhores, concordarão os senhores. Mas penso que ficaremos mais impressionados com o surpreendente fenômeno e até mesmo obteremos uma compreensão interna (insight) dos seus fatores determinantes se lançarmos a luz da análise sobre duas outras associações apresentadas por P. durante a mesma sessão.Primeira associação: Um dia, na semana anterior, eu ficara esperando em vão por Herr P., às onze horas, e então saí para visitar o Dr. Anton von Freund em sua pension. Surpreendi-me ao verificar que Herr P. morava num outro andar do mesmo prédio em que se localizava a pension. Com relação a isso, mais tarde, eu disse a P. que, em certo sentido, eu lhe havia feito uma visita a sua casa; mas sei claramente que não lhe disse o nome da pessoa que visitei na pension. E agora, logo depois de mencionar ‘Herr von Vorsicht’, ele me perguntou se talvez a Freud-Ottorego, que estava dando um ciclo de conferências sobre inglês na Volksuniversität, era minha filha. E, pela primeira vez durante nosso longo período de relacionamento, ele dava a meu nome a forma distorcida, a que realmente eu me acostumei devido a autoridades, funcionários e tipógrafos: em vez de ‘Freud’ ele disse ‘Freund’.

Segunda associação: No fim da mesma sessão, contou-me um sonho do qual acordara com pavor — um verdadeiro ‘Alptraum’, disse ele. Acrescentou que, havia não muito tempo, tinha esquecido a palavra inglesa que significa isso, e quando alguém lhe perguntara, disse que a palavra inglesa para ‘Alptraum’ era ‘a mare’s nest.’ Isto era absurdo, naturalmente, prosseguia ele; ‘a mare’s nest’ significava algo incrível, um conto policial: a tradução de Alptraum era ‘nightmare’. O único elemento comum a essa associação e à anterior parecia ser o elemento ‘inglês’. Porém, eu me lembrava de um pequeno incidente, ocorrido cerca de um mês antes. P. estava sentado junto a mim, na sala, quando outro visitante, um querido amigo proveniente de Londres, o Dr. Ernest Jones, chegou inesperadamente, depois de uma longa separação. Fiz a este um sinal para que entrasse na sala contígua, enquanto eu terminava a entrevista com P. Este, porém, o reconhecera imediatamente, por causa de sua fotografia na sala de espera, e até expressara o desejo de ser-lhe apresentado. Ora, Jones é o autor de uma monografia sobre o Alptraum — o pesadelo. Eu não sabia que P. o conhecia; ele evitava ler literatura analítica. [Cf. Jones, 1912.]

Gostaria de, inicialmente, investigar com os senhores que compreensão analítica se obteve com os antecedentes das associações de P. e com os seus motivos. Em relação ao nome ‘Forsyte’ ou ‘Forsyth’, P. e eu nos situávamos de modo semelhante; para ele, o nome significava a mesma coisa, e era inteiramente a ele, P., que eu devia o conhecimento do nome. O fato digno de nota era que ele trouxe para a análise esse nome sem anunciá-lo, somentepouco tempo depois de ter-se tornado importante para mim, num outro sentido, devido a um evento novo, a chegada do médico de Londres. Mas a maneira pela qual o nome emergiu em sua sessão analítica é, talvez, não menos interessante do que o fato em si. Ele não disse, por exemplo: ‘O nome “Forsyte”, dos romances que o senhor conhece, acaba de me vir à mente.’ Ele conseguiu, sem qualquer relação consciente com essa fonte, a partir daí, juntar esse nome às suas próprias experiências e expressá-lo — coisa que poderia ter acontecido muito tempo antes, mas não acontecera até então. O que ele disse mesmo foi, pois: ‘Também eu sou um Forsyth: é como a namorada me chama!’ É difícil deixar de perceber a mistura de exigência ciumenta e de autodesvalorização melancólica que encontra expressão no seu comentário. Não haveremos de errar o rumo se o complementarmos de uma forma como esta: ‘Para mim é doloroso que os pensamentos do senhor se ocupem tão intensamente com essa nova chegada. Volte para mim; afinal, eu também sou um Forsyth — embora, é verdade, eu seja apenas um Herr von Vorsicht [cavalheiro do cuidado], conforme diz a namorada’. E, com isso, sua cadeia de pensamentos, passando pelas linhas associativas do elemento ‘inglês’, voltava a fatos anteriores, capazes de fazer despertar os mesmos sentimentos de ciúme. ‘Uns dias atrás o senhor fez uma visita a minha casa — que pena, não a mim, mas a Herr von Freund.’ Esse pensamento fê-lo distorcer o nome ‘Freud’ em ‘Freund’. O nome ‘Freud-Ottorego’, tirado do roteiro de conferências, deve entrar aqui porque, tratando-se de professora de inglês, proporcionou a associação manifesta. E agora veio a lembrança de um outro visitante, umas semanas antes, do qual, sem dúvida, estava com ciúmes, mas com este sentia que não podia competir, pois o Dr. Jones era capaz de escrever uma monografia sobre o pesadelo, ao passo que ele, quando muito, conseguia apenas ter tais sonhos. Sua menção do erro a respeito do significado de ‘a mare’s nest’ vem a se encaixar aqui, pois só pode querer dizer: ‘Afinal, não sou um verdadeiro inglês, assim como não sou um verdadeiro Forsyth.’

Não posso descrever agora seus sentimentos de ciúmes nem como estando fora de lugar, nem como ininteligíveis. Ele havia sido avisado de que sua análise, e ao mesmo tempo nossos contatos, terminariam tão logo os discípulos e os pacientes estrangeiros retornassem a Viena; e foi realmente isto o que aconteceu, pouco depois. O que realizamos, no entanto, foi determinada quantidade de trabalho analítico — a explicação das três associações apresentadas por ele na mesma sessão e originadas do mesmo motivo; e isto não tem muita relação com a outra questão, isto é, se essas associações podiam ter sido feitas sem transmissão de pensamento. Essa questão aplica-sea cada uma das três associações e, portanto, divide-se em três questões separadas: Poderia P. ter sabido que o Dr. Forsyth acabava de me fazer sua primeira visita? Poderia ele saber o nome da pessoa que eu havia visitado em sua casa? Sabia ele que o Dr. Jones escrevera uma monografia sobre o pesadelo? Ou foi apenas o meu conhecimento acerca dessas coisas que se revelou em suas associações? Dependerá da resposta a essas três diferentes questões a eventualidade de minha observação permitir uma conclusão favorável à transmissão de pensamento.

Deixemos de lado, por um momento, a primeira questão; as outras duas podem ser elaboradas mais facilmente. O caso de minha visita à sua pension causa uma impressão particularmente convincente, à primeira vista. Estou certo de que, em minha breve e jocosa referência à minha visita à sua casa, não mencionei qualquer nome. Penso ser muito improvável que P. tivesse feito perguntas na pension quanto ao nome da pessoa em referência; preferentemente acredito que a existência dessa pessoa tenha permanecido inteiramente desconhecida para ele. O valor probatório desse caso é, porém, totalmente desfeito por uma circunstância casual. O homem a quem fizera uma visita na pension não só se chamava ‘Freund’; era um verdadeiro amigo de todos nós. Era o Dr. Anton von Freund, cuja doação havia possibilitado a fundação de nossa casa editora. Sua morte prematura, junto com a de nosso colega Karl Abraham, alguns anos antes, são os mais graves infortúnios que atingiram o desenvolvimento da psicanálise. É possível, pois, que eu tivesse dito a P.: ‘Visitei um amigo [Freund] na sua casa’ e, com essa possibilidade, desaparece o interesse oculto de sua segunda associação.

A impressão causada pela terceira associação também se desfaz rapidamente. Podia P. saber que Jones publicara uma monografia sobre pesadelo, se ele nunca lia literatura analítica? Sim, podia. Possuía livros de nossa editora e poderia, de algum modo, ter visto os títulos das novas publicações anunciados nas capas. Isto não pode ser provado, mas também não pode ser refutado. Por essa via, portanto, não podemos chegar a conclusão alguma. Para infelicidade minha, essa observação que fiz padece da mesma debilidade de tantas outras: foi escrita muito depois e foi discutida numa época em que não estava mais em contato com Herr P., e não pude fazer-lhe mais perguntas.

Voltemos ao primeiro evento, que, mesmo tomado de per si, apóia o fato aparente de transmissão de pensamento. Poderia P. saber que o Dr. Forsyth estivera comigo um quarto de hora antes dele? Poderia ele ter absolutamentealgum conhecimento de sua existência ou de sua presença em Viena? Não devemos ceder à tendência a repelir sem exame ambas as perguntas. Posso entrever um caminho que leva a uma resposta parcialmente afirmativa. Afinal, eu podia ter dito a Herr P. que eu estava esperando um médico, vindo da Inglaterra, que vinha receber formação em análise, como uma primeira pomba após o dilúvio. Isto poderia ter acontecido no verão de 1919, pois o Dr. Forsyth havia mantido entendimentos comigo, por carta, alguns meses antes de sua chegada. Posso até mesmo haver mencionado seu nome, embora isto me pareça muito improvável. Em vista da outra conexão que o nome evocava a nós dois, uma discussão a respeito inevitavelmente deve ter tido lugar, e dela teria ficado algo em minha memória. Não obstante, tal discussão pode ter-se dado e posso tê-la esquecido totalmente, depois, de modo que isto possibilitou à emergência de ‘Herr von Vorsicht’, na sessão analítica, surpreender-me como se fosse milagre. Se alguém se considera um cético, é bom ter dúvidas, às vezes, também acerca do ceticismo próprio. Pode ser que também eu tenha uma secreta inclinação ao miraculoso, o que seria meio caminho andado para ir ao encontro da criação de fatos ocultos.

Se assim eliminarmos de nosso caminho uma das possibilidades miraculosas, há uma outra esperando-nos, e é de todas a mais difícil. Supondo que Herr P. soubesse que havia um Dr. Forsyth e que este era esperado em Viena no outono, como explicar que ele ficasse receptivo a sua presença justamente no dia de sua chegada e imediatamente após sua primeira visita? Poder-se-ia dizer que era uma casualidade — isto é, não há o que explicar. Mas foi justamente com a finalidade de excluir a casualidade que discuti as duas outras associações de P., a fim de mostrar-lhes que ele realmente estava ocupado com pensamentos ciumentos a respeito de pessoas que me visitavam. Ou se poderia, não desprezando a possibilidade mais extrema, aventar a hipótese de que P. havia observado um especial estado de excitação em mim (do que, para dizer a verdade, eu mesmo não sabia nada) e tirou sua conclusão a partir disto. Ou Herr P. (embora ele chegasse um quarto de hora depois de o inglês ter saído) encontrou-se com ele, no breve trecho de rua que tanto um como o outro tinham de percorrer, reconheceu-o por sua aparência caracteristicamente inglesa e, estando em permanente estado de expectativa ciumenta, pensou: ‘Ah, então é este o Dr. Forsyth, com cuja chegada minha análise vai chegar ao fim! E provavelmente ele acaba de vir agora mesmo do professor.’ Não posso levar mais adiante essas especulações de raciocínio. Mais uma vez, resta-nos um non liquet [não provado]; mas devo confessar que tenho a impressão de que também aqui os pratos da balança se inclinam a favor da transmissão de pensamento. Ademais, certamente não estou só ao ter-me decidido experimentar eventos ‘ocultos’ como este na situação analítica. Helene Deutsch publicou algumas observações semelhantes, em 1926, e estudou a questão de serem eles determinados pela relação transferencial entre paciente e analista.

 

Estou certo de que os senhores não se sentirão totalmente satisfeitos com minha atitude referente a esse problema — com o fato de eu não estar inteiramente convencido, mas predisposto a me convencer. Talvez os senhores possam dizer para si mesmos: ‘Está aí mais um caso de um homem que fez um trabalho honesto, como cientista, durante toda a vida, e, ao ficar idoso, tornou-se parvo, piedoso, ingênuo.’ Estou consciente de que alguns grandes nomes devem ser incluídos nessa categoria, mas não devem contar-me entre eles. Pelo menos piedoso não me tornei, e espero que ingênuo também não. Apenas o que acontece é que, se alguém, durante toda a vida, tratou de se abaixar a fim de evitar uma colisão dolorosa com os fatos, também na velhice ainda mantém as costas prontas a se dobrarem diante de novas realidades. Sem dúvida, os senhores gostariam que eu aderisse a um teísmo moderado e me mostrasse incansável em minha rejeição a tudo o que é oculto. Sou, contudo, incapaz de cortejar favores, e devo insistir em que tenham idéias mais gentis acerca da possibilidade objetiva da transmissão de pensamentos e, ao mesmo tempo, também da telepatia.

Os senhores não se esquecerão de que aqui estou apenas tratando esses problemas na medida em que é possível abordá-los do ponto de vista da psicanálise. Quando, pela primeira vez, eles ficaram ao alcance de minha visão, há mais de dez anos, também eu senti o receio de uma ameaça contra nossa Weltanschauung científica, que, eu temia, estava fadada a dar lugar ao espiritualismo e ao misticismo, se partes do ocultismo se comprovassem verdadeiras. Atualmente, penso de modo diverso. Em minha opinião, não mostra grande confiança na ciência quem não pensa ser possível assimilar e utilizar tudo aquilo que talvez venha a se revelar verdadeiro nas assertivas dos ocultistas. E especialmente no que diz respeito à transmissão de pensamento, ela parece realmente favorecer a extensão do modo científico — ou, como dizem nossos opositores, mecanicista — de pensamento aos fenômenos mentais que são tão difíceis de apreender. Supõe-se que o processo telepático consiste num ato mental que se realiza numa pessoa e que faz surgir o mesmo ato mental em uma outra pessoa. Aquilo que se situa entre essesdois atos mentais facilmente pode ser um processo físico, no qual o processo mental é transformado, em um dos extremos, e que é reconvertido, mais uma vez, no mesmo processo mental no outro extremo. A analogia com outras transformações, tal como ocorre no falar e no ouvir por telefone, seria então inequívoca. Imaginem só se alguém pudesse apreender esse equivalente físico do ato psíquico! A mim haveria de parecer que a psicanálise, ao inserir o inconsciente entre o que é físico e o que era previamente chamado ‘psíquico’, preparou o caminho para a hipótese de processos tais como a telepatia. Basta que a pessoa se habitue à idéia da telepatia, para que possa realizar muita coisa com ela — por enquanto, é verdade, apenas na imaginação. É um fato bastante conhecido que não sabemos como se realiza o propósito comum nas grandes comunidades de insetos: possivelmente se faz por meio de uma transmissão psíquica direta desse tipo. É-se levado à suspeita de que este é o método original, arcaico, de comunicação entre indivíduos e que, no decurso da evolução filogenética, foi substituído pelo método melhor de dar informações com o auxílio de sinais captados pelos órgãos dos sentidos. O método anterior, contudo, poderia ter persistido nos bastidores e ainda ser capaz de se pôr em ação sob determinadas condições — por exemplo, em multidões de pessoas apaixonadamente excitadas. Tudo isso ainda é incerto e pleno de enigmas não solucionados; não há, porém, razão para temê-lo.

Se existe telepatia como processo real, podemos suspeitar que, apesar de tão difícil de demonstrar, seja um fenômeno bastante comum. Ela concordaria com nossas expectativas se fôssemos capazes de demonstrá-la especialmente na vida mental das crianças. Aqui nos recordamos da freqüente ansiedade sentida pelas crianças ante a idéia de que seus pais conhecem todos os seus pensamentos, sem que estes tenham sido contados a eles — equivalente exato e talvez fonte da crença dos adultos na onisciência de Deus. Há pouco tempo, Dorothy Burlingham, uma testemunha fidedigna, em um artigo sobre a análise da criança e da mãe [1932], publicou algumas observações que, podendo ser confirmadas, viriam a terminar com as dúvidas remanescentes a respeito da realidade da transmissão de pensamento. Fez uso da situação, que já não é mais uma situação rara, em que uma mãe e seu filho estão simultaneamente em análise, e relatou alguns eventos notáveis, como o que se segue. Um dia, a mãe, durante sua sessão analítica, falou de uma moeda de ouro que tinha desempenhado um papel especial em uma das cenas de sua infância. Imediatamente depois, tendo retornado a casa, seu filhinho, de cerca de dez anos, veio até o quarto dela e lhe trouxe uma moeda de ouro e pediu-lhe que ela a guardasse para ele. Surpresa, ela lhe perguntou de ondeele a tinha obtido. Haviam-lhe dado a moeda no seu aniversário; mas o aniversário do menino tinha transcorrido diversos meses antes e não havia motivo para a criança dever lembrar-se da moeda de ouro justamente agora. A mãe referiu a ocorrência à analista do filho e pediu-lhe para descobrir junto à criança o motivo de sua ação. A análise da criança, contudo, não elucidou nada do assunto; a ação se havia intrometido, naquele dia, na vida da criança, como se fora um corpo estranho. Poucas semanas depois, a mãe estava sentada à sua escrivaninha, redigindo, como lhe havia sido dito que fizesse, um relato da experiência, quando entrou o menino e lhe pediu de volta a moeda de ouro, pois queria tê-la consigo para mostrar em sua sessão de análise. Mais uma vez, a análise da criança não pôde descobrir explicação alguma para esse desejo.

E isto nos faz retornar à psicanálise, que foi de onde partimos.

 

CONFERÊNCIA XXXI

A DISSECÇÃO DA PERSONALIDADE PSÍQUICA

 

SENHORAS E SENHORES:

 

Sei que estão conscientes, no que diz respeito aos seus próprios relacionamentos, seja com pessoas, seja com coisas, da importância do ponto de partida dos senhores. Também foi isto o que se passou com a psicanálise. Não foi uma coisa sem importância, para o curso do seu desenvolvimento ou para a acolhida que ela encontrou, o fato de ela ter começado seu trabalho sobre aquilo que é, dentre todos os conteúdos da mente, o mais estranho ao ego — sobre os sintomas. Os sintomas são derivados do reprimido, são, por assim dizer, seus representantes perante o ego; mas o reprimido é território estrangeiro para o ego — território estrangeiro interno — assim como a realidade (que me perdoem a expressão inusitada) é território estrangeiro externo. A trajetória conduziu dos sintomas ao inconsciente, à vida dos instintos, à sexualidade; e foi então que a psicanálise deparou com a brilhante objeção de que os seres humanos não são simplesmente criaturas sexuais, mas têm, também, impulsos mais nobres e mais elevados. Poder-se-ia acrescentar que, exaltados por sua consciência desses impulsos mais elevados, eles muitas vezes assumem o direito de pensar de modo absurdo e desprezar os fatos.

Os senhores estão bem informados. Já desde o início temos dito que os seres humanos adoecem de um conflito entre as exigências da vida instintual e a resistência que se ergue dentro deles contra esta; e nem por um momento nos esquecemos dessa instância que resiste, rechaça, reprime, que consideramos aparelhada com suas forças especiais, os instintos do ego, e que coincide com o ego da psicologia popular. A verdade foi simplesmente que, em vista da natureza laboriosa do progresso feito pelo trabalho científico, até mesmo a psicanálise não conseguiu estudar todas as áreas simultaneamente e expressar suas opiniões sobre todos os problemas de um fôlego só. Mas, por fim, atingiu-se o ponto em que nos foi possível desviar nossa atenção do reprimido para as forças repressoras, e encontramos esse ego que pareceratão evidente por si mesmo, com a segura expectativa de que aqui novamente haveríamos de encontrar coisas para as quais não podíamos estar preparados. Não foi fácil, porém, encontrar uma abordagem inicial; e é a respeito disto que pretendo falar-lhes hoje.

Devo, no entanto, transmitir-lhes a minha suspeita de que esta minha exposição sobre psicologia do ego os influenciará de forma diferente da introdução ao submundo psíquico, a qual a precedeu. Não posso dizer com certeza por que isto tem de ser assim. Pensei, antes, que os senhores descobririam que, enquanto anteriormente eu lhes relatei principalmente fatos, embora estranhos e característicos, os senhores, agora, estarão ouvindo principalmente opiniões — isto é, investigações teóricas. Isto, contudo, não contradiz a situação. Considerando melhor, devo afirmar que o montante da elaboração do material concreto de nossa psicologia do ego não é muito maior do que era na psicologia das neuroses. Fui obrigado a rejeitar também outras explicações do resultado que prevejo: agora acredito que é, de certo modo, uma decorrência da natureza do material em si, e de não estarmos acostumados a abordá-lo. Em todo caso, não me surpreenderei se os senhores se mostrarem ainda mais reservados e cautelosos no seu julgamento do que até agora.

 

Pode-se esperar que a própria situação em que nos encontramos no início de nossa investigação nos aponte o caminho. Queremos transformar o ego, o nosso próprio ego, em tema de investigação. Mas isto é possível? Afinal, o ego é, em sua própria essência, sujeito; como pode ser transformado em objeto? Bem, não há dúvida de que pode sê-lo. O ego pode tomar-se a si próprio como objeto, pode tratar-se como trata outros objetos, pode observar-se, criticar-se, sabe-se lá o que pode fazer consigo mesmo. Nisto, uma parte do ego se coloca contra a parte restante. Assim, o ego pode ser dividido; divide-se durante numerosas funções suas — pelo menos temporariamente. Depois, suas partes podem juntar-se novamente. Isto não é propriamente novidade, embora talvez seja conferir ênfase incomum àquilo que é do conhecimento geral. Por outro lado, bem conhecemos a noção de que a patologia, tornando as coisas maiores e mais toscas, pode atrair nossa atenção para condições normais que de outro modo nos escapariam. Onde ela mostra uma brecha ou uma rachadura, ali pode normalmente estar presente uma articulação. Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não em pedaços ao acaso. Ele se desfaz, segundo linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam predeterminados pela estrutura do cristal. Os doentes mentais são estruturas divididas e partidas do mesmotipo. Nem nós mesmos podemos esconder-lhes um pouco desse temor reverente que os povos do passado sentiam pelo insano. Eles, esses pacientes, afastaram-se da realidade externa, mas por essa mesma razão conhecem mais da realidade interna, psíquica, e podem revelar-nos muitas coisas que de outro modo nos seriam inacessíveis.

Um dos grupos dentre tais pacientes, nós o descrevemos como padecendo de delírios de estar sendo observado. Queixam-se a nós de que, permanentemente, e até em suas ações mais íntimas, estão sendo molestados pela observação de poderes desconhecidos — presumivelmente pessoas — e que, em alucinações, ouvem essas pessoas referindo o resultado de sua observação: ‘agora ele vai dizer isto, agora ele está se vestindo para sair’ e assim por diante. Uma observação dessa espécie ainda não é a mesma coisa que perseguição, mas não está longe disto; pressupõe que as pessoas desconfiam deles e esperam pilhá-los executando atos proibidos pelos quais seriam punidos. Como seria se essas pessoas insanas estivessem certas, se em cada um de nós estivesse presente no ego uma instância como essa que observa e ameaça punir, e que nos doentes mentais se tornou nitidamente separada de seu ego e erroneamente deslocada para a realidade externa?

Não posso dizer se com os senhores acontece a mesma coisa que a mim. Há longo tempo, sob a poderosa impressão deste quadro clínico, formei a idéia de que a separação da instância observadora, do restante do ego, poderia ser um aspecto regular da estrutura do ego; essa idéia nunca me abandonou, e fui levado a investigar as demais características e conexões da instância que assim estava separada. O passo seguinte é dado rapidamente. O conteúdo dos delírios de ser observado já sugere que o observar é apenas uma preparação do julgar e do punir e, por conseguinte, deduzimos que uma outra função dessa instância deve ser o que chamamos nossa consciência. Dificilmente existe em nós alguma outra coisa que tão regularmente separamos de nosso ego e a que facilmente nos opomos como justamente nossa consciência. Sinto-me inclinado a fazer algo que penso irá dar-me prazer, mas abandono-o pelo motivo de que minha consciência não o admite. Ou deixei-me persuadir por uma expectativa muito grande de prazer de fazer algo a que a voz da consciência fez objeções e, após o ato, minha consciência me pune com censuras dolorosas e me faz sentir remorsos pelo ato. Poderia dizer simplesmente que a instância especial que estou começando a diferenciar no ego é a consciência. É mais prudente, contudo, manter a instância como algo independente e supor que a consciência é uma de suas funções, e que a auto-observação, que é um preliminar essencial da atividade de julgar da consciência, é mais uma de tais funções. E desde que, reconhecendo que algo temexistência separada, lhe damos um nome que lhe seja seu, de ora em diante descreverei essa instância existente no ego como o ‘superego‘.

Estou preparado para ouvir agora os senhores perguntarem-me ironicamente se nossa psicologia do ego não está senão tomando literalmente abstrações de uso corrente, e num sentido primário, e transformando-as de conceitos em coisas — com o que não se teria muito a ganhar. A isto eu responderia que, na psicologia do ego, seria difícil evitar aquilo que é conhecido universalmente; antes, será mais uma questão de novas formas de ver as coisas e novas maneiras de situá-las, do que de novas descobertas. Assim, refreiem suas críticas irônicas, por agora, e aguardem mais explicações. Os fatos da patologia conferem ao nosso trabalho uma base de informações que os senhores procurariam inutilmente na psicologia popular. Portanto, prosseguirei.

Seria difícil familiarizarmo-nos com a idéia de um superego como este, que goza de um determinado grau de autonomia, que age segundo suas próprias intenções e que é independente do ego para a obtenção de sua energia; há, porém, um quadro clínico que se impõe à nossa observação e que mostra nitidamente a severidade dessa instância e até mesmo sua crueldade, bem como suas cambiantes relações com o ego. Estou-me referindo à situação da melancolia, ou, mais precisamente, dos surtos melancólicos, dos quais os senhores terão ouvido falar muito, ainda que não sejam psiquiatras. O aspecto mais evidente dessa doença, de cujas causas e de cujo mecanismo conhecemos quase nada, é o modo como o superego — ‘consciência’, podem denominá-la assim, tranqüilamente — trata o ego. Embora um melancólico possa, assim como outras pessoas, mostrar um grau maior ou menor de severidade para consigo mesmo nos seus períodos sadios, durante um surto melancólico seu superego se torna supersevero, insulta, humilha e maltrata o pobre ego, ameaça-o com os mais duros castigos, recrimina-o por atos do passado mais remoto, que haviam sido considerados, à época, insignificantes — como se tivesse passado todo o intervalo reunindo acusações e apenas tivesse estado esperando por seu atual acesso de severidade a fim de apresentá-las e proceder a um julgamento condenatório, com base nelas. O superego aplica o mais rígido padrão de moral ao ego indefeso que lhe fica à mercê; representa, em geral, as exigências da moralidade, e compreendemos imediatamente que nosso sentimento moral de culpa é expressão da tensão entre o ego e o superego. Constitui experiência muitíssimo marcante ver a moralidade, que se supõe ter-nos sido dada por Deus e, portanto,profundamente implantada em nós, funcionando nesses pacientes como fenômeno periódico. Pois, após determinado número de meses, todo o exagero moral passou, a crítica do superego silencia, o ego é reabilitado e novamente goza de todos os direitos do homem, até o surto seguinte. Em determinadas formas da doença, na verdade, passa-se algo de tipo contrário, nos intervalos; o ego encontra-se em um estado beatífico de exaltação, celebra um triunfo, como se o superego tivesse perdido toda a sua força ou estivesse fundido no ego; e esse ego liberado, maníaco, permite-se uma satisfação verdadeiramente desinibida de todos os seus apetites. Aqui estão acontecimentos ricos em enigmas não solucionados!

Sem dúvida, os senhores esperarão que eu lhes dê mais do que uma simples ilustração quando lhes informo havermos descoberto todo tipo de coisas acerca da formação do superego — isto é, sobre a origem da consciência. Seguindo um conhecido pronunciamento de Kant, que liga a consciência dentro de nós com o céu estrelado, um homem piedoso bem poderia ser tentado a venerar essas duas coisas como as obras-primas da criação. As estrelas são, na verdade, magníficas, porém, quanto à consciência, Deus executou um trabalho torto e negligente, pois da consciência a maior parte dos homens recebeu apenas uma quantia modesta, ou mal recebeu o suficiente para ser notado. Longe de nós desprezarmos a parcela de verdade psicológica da afirmação segundo a qual a consciência é de origem divina; contudo a tese requer interpretação. Conquanto a consciência seja algo ‘dentro de nós’, ela, mesmo assim, não o é desde o início. Nesse ponto, ela é um contraste real com a vida sexual, que existe de fato desde o início da vida e não é apenas um acréscimo posterior. Pois bem, como todos sabem, as crianças de tenra idade são amorais e não possuem inibições internas contra seus impulsos que buscam o prazer. O papel que mais tarde é assumido pelo superego é desempenhado, no início, por um poder externo, pela autoridade dos pais. A influência dos pais governa a criança, concedendo-lhe provas de amor e ameaçando com castigos, os quais, para a criança, são sinais de perda do amor e se farão temer por essa mesma causa. Essa ansiedade realística é o precursor da ansiedade moral subseqüente. Na medida em que ela é dominante, não há necessidade de falar em superego e consciência. Apenas posteriormente é que se desenvolve a situação secundária (que todos nós com demasiada rapidez havemos de considerar como sendo a situação normal), quando acoerção externa é internalizada, e o superego assume o lugar da instância parental e observa, dirige e ameaça o ego, exatamente da mesma forma como anteriormente os pais faziam com a criança.

O superego, que assim assume o poder, a função e até mesmo os métodos da instância parental, é, porém, não simplesmente seu sucessor, mas também, realmente, seu legítimo herdeiro. Procede diretamente dele, e verificaremos agora por que processo. Antes, porém, atentemos para uma discrepância entre os dois. O superego parece ter feito uma escolha unilateral e ter ficado apenas com a rigidez e severidade dos pais, com sua função proibidora e punitiva, ao passo que o cuidado carinhoso deles parece não ter sido assimilado e mantido. Se os pais realmente impuseram sua autoridade com severidade, facilmente podemos compreender que a criança desenvolva, em troca, um superego severo. Contrariando nossas expectativas, porém, a experiência mostra que o superego pode adquirir essas mesmas características de severidade inflexível, ainda que a criança tenha sido educada de forma branda e afetuosa, e se tenham evitado, na medida do possível, ameaças e punições. Mais adiante, retornaremos a essa contradição, quando tratarmos das transformações do instinto durante a formação do superego.

Não posso dizer-lhes tanto quanto gostaria a respeito da metamorfose do relacionamento parental em superego, em parte porque esse processo é tão complexo, que uma exposição dele não cabe dentro do esquema de trabalho de uma série de conferências de introdução, como a que tento dar-lhes, mas em parte, também, porque não nos sentimos seguros de que estejamos compreendendo-a por inteiro. Assim, devem satisfazer-se com o esboço que se segue.

A base do processo é o que se chama ‘identificação’ — isto é, a ação de assemelhar um ego a outro ego, em conseqüência do que o primeiro ego se comporta como o segundo em determinados aspectos, imita-o e, em certo sentido, assimila-o dentro de si. A identificação tem sido comparada, não inadequadamente, com a incorporação oral, canibalística, da outra pessoa. É uma forma muito importante de vinculação a uma outra pessoa, provavelmente a primeira forma, e não é o mesmo que escolha objetal. A diferença entre ambas pode ser expressa mais ou menos da seguinte maneira. Se um menino se identifica com seu pai, ele quer ser igual a seu pai; se fizer dele o objeto de sua escolha, o menino quer tê-lo, possuí-lo. No primeiro caso, seu ego modifica-se conforme o modelo de seu pai; no segundo caso, isso não énecessário. Identificação e escolha objetal são, em grande parte, independentes uma da outra; no entanto, é possível identificar-se com alguém que, por exemplo, foi tomado como objeto sexual, e modificar o ego segundo esse modelo. Diz-se que a influência sobre o ego, motivada pelo objeto sexual, ocorre com particular freqüência em mulheres e é característica da feminilidade. Devo ter-lhes falado, já, em minhas conferências anteriores, daquilo que é, sem dúvida, a relação mais esclarecedora entre identificação e escolha objetal. Pode ser observado com igual facilidade em crianças e em adultos, tanto em pessoas normais como em pessoas doentes. Se alguém perdeu um objeto, ou foi obrigado a se desfazer dele, muitas vezes se compensa disto identificando-se com ele e restabelecendo-o novamente no ego, de modo que, aqui, a escolha objetal regride, por assim dizer à identificação.

Eu próprio não estou, de modo algum, satisfeito com esses comentários sobre identificação; mas isto será suficiente se os senhores puderem assegurar-me de que a instalação do superego pode ser classificada como exemplo bem-sucedido de identificação com a instância parental. O fato que fala decisivamente a favor desse ponto de vista é que essa nova criação de uma instância superior dentro do ego está muito intimamente ligada ao destino do complexo de Édipo, de modo que o superego surge como o herdeiro dessa vinculação afetiva tão importante para a infância. Abandonando o complexo de Édipo, uma criança deve, conforme podemos ver, renunciar às intensas catexias objetais que depositou em seus pais, e é como compensação por essa perda de objetos que existe uma intensificação tão grande das identificações com seus pais, as quais provavelmente há muito estiveram presentes em seu ego. Identificações desse tipo, cristalização de catexias objetais a que se renunciou, repetir-se-ão muitas vezes, posteriormente, na vida da criança; contudo, está inteiramente de acordo com a importância afetiva desse primeiro caso de uma tal transformação o fato de que se deve encontrar no ego um lugar especial para seu resultado. Uma investigação atenta mostrou-nos, também, que o superego é tolhido em sua força e crescimento se a superação do complexo de Édipo tem êxito apenas parcial. No decurso do desenvolvimento, o superego também assimila as influências que tomaram o lugar dospais — educadores, professores, pessoas escolhidas como modelos ideais. Normalmente, o superego se afasta mais e mais das figuras parentais originais; torna-se, digamos assim, mais impessoal. E não se deve esquecer que uma criança tem conceitos diferentes sobre seus pais, em diferentes períodos de sua vida. À época em que o complexo de Édipo dá lugar ao superego, eles são algo de muito extraordinário; depois, porém, perdem muito desse atributo. Realizam-se, pois, identificações também com esses pais dessa fase ulterior, e, na verdade, regularmente fazem importantes contribuições à formação do caráter; nesse caso, porém, apenas atingem o ego, já não mais influenciam o superego que foi determinado pelas imagos parentais mais primitivas.

Espero que já tenham formado uma opinião de que a hipótese do superego realmente descreve uma relação estrutural, e não é meramente uma personificação de abstrações tais como a da consciência. Resta mencionar mais uma importante função que atribuímos a esse superego. É também o veículo do ideal do ego, pelo qual o ego se avalia, que o estimula e cuja exigência por uma perfeição sempre maior ele se esforça por cumprir. Não há dúvida de que esse ideal do ego é o precipitado da antiga imagem dos pais, a expressão de admiração pela perfeição que a criança então lhes atribuía.

 

Tenho como certo que os senhores já ouviram falar muito no sentimento de inferioridade, que se supõe caracterize especialmente os neuróticos. Ele freqüenta, em particular, as páginas do que se conhece como belles lettres. Um autor, ao usar a expressão ‘complexo de inferioridade’, pensa que com isto satisfez todas as exigências da psicanálise e elevou sua criação literária a um plano mais elevado. De fato, ‘complexo de inferioridade’ é um termo técnico quase nunca usado em psicanálise. Para nós, ele não comporta o significado de algo simples, nem, muito menos, de algo elementar. Atribuí-lo à autopercepção de possíveis defeitos orgânicos, como pretende fazê-lo a escola daqueles que são conhecidos como ‘psicólogos do indivíduo’, parece-nos um erro insensato. O sentimento de inferioridade possui fortes raízes eróticas. Uma criança sente-se inferior quando verifica que não é amada, e o mesmo se passa com o adulto. O único órgão corporal realmente considerado inferior é o pênis atrofiado, o clitóris da menina.A parte principal do sentimento de inferioridade, porém, deriva-se da relação do ego com o superego; assim como o sentimento de culpa, é expressão da tensão entre eles. Em conjunto, é difícil separar o sentimento de inferioridade do sentimento de culpa. Talvez seja correto considerar aquele como o complemento erótico do sentimento moral de inferioridade. Deu-se pouca atenção, na psicanálise, à questão referente à delimitação dos dois conceitos.

Justamente porque o complexo de inferioridade se tornou tão popular, arriscar-me-ei, aqui a entretê-los com uma breve digressão. Um personagem histórico dos nossos dias, que ainda vive, embora no momento se tenha retirado de cena, sofre de um defeito em um dos membros, devido a uma lesão no nascimento. Um conhecido escritor contemporâneo, especialmente dado a compilar biografias de celebridades, abordou, entre outras coisas, a vida do homem de quem estou falando. Ora, ao escrever uma biografia, talvez seja difícil suprimir uma necessidade de sondar as profundezas psicológicas. Por essa razão, nosso autor arriscou-se a uma tentativa de erigir todo o desenvolvimento do caráter de seu herói sobre o sentimento de inferioridade que devia ter sido provocado por seu defeito físico. Com isso, desprezou ele um fato diminuto, mas não insignificante. É comum as mães, a quem o destino presenteou com um filho doentio ou portador de alguma outra desvantagem, tentarem compensá-lo de sua injusta desvantagem com uma superabundância de amor. No exemplo em questão, a orgulhosa mãe portou-se de modo diferente; retirou do filho o seu amor, por causa da enfermidade dele. Quando chegou a ser um homem de grande poder, demonstrou inequivocamente, por seus atos, não se haver jamais esquecido de sua mãe. Quando os senhores considerarem a importância do amor de uma mãe para a vida mental de uma criança, sem dúvida efetuarão uma tácita correção da teoria da inferioridade proposta pelo biógrafo.

 

Retornemos, porém, ao superego. Atribuímos-lhe as funções de auto-observação, de consciência e de [manter] o ideal. Daquilo que dissemos sobre sua origem, segue-se que ele pressupõe um fato biológico extremamente importante e um fato psicológico decisivo; ou seja, a prolongada dependência da criança em relação a seus pais e o complexo de Édipo, ambos intimamente inter-relacionados. O superego é para nós o representante de todas as restrições morais, o advogado de um esforço tendente à perfeição — é, em resumo, tudo o que pudemos captar psicologicamente daquilo que é catalogado como o aspecto mais elevado da vida do homem. Como remonta à influência dos pais, educadores, etc., aprendemos mais sobre seu significado se nos voltamos para aqueles que são sua origem. Via de regra, os pais, e as autoridades análogas a eles, seguem os preceitos de seus próprios superegos ao educar as crianças. Seja qual for o entendimento a que possam ter chegado entre si o seu ego e o seu superego, são severos e exigentes ao educar os filhos. Esqueceram as dificuldades de sua própria infância e agora se sentem contentes com identificar-se eles próprios, inteiramente, com seus pais, que no passado impuseram sobre eles restrições tão severas. Assim, o superego de uma criança é, com efeito, construído segundo o modelo não de seus pais, mas do superego de seus pais; os conteúdos que ele encerra são os mesmos, e torna-se veículo da tradição e de todos os duradouros julgamentos de valores que dessa forma se transmitiram de geração em geração. Facilmente podem adivinhar que, quando levamos em conta o superego, estamos dando um passo importante para a nossa compreensão do comportamento social da humanidade — do problema da delinqüência, por exemplo — e, talvez, até mesmo estejamos dando indicações práticas referentes à educação. Parece provável que aquilo que se conhece como visão materialista da história peque por subestimar esse fator. Eles o põem de lado, com o comentário de que as ‘ideologias’ do homem nada mais são do que produto e superestrutura de suas condições econômicas contemporâneas. Isto é verdade, mas muito provavelmente não a verdade inteira. A humanidade nunca vive inteiramente no presente. O passado, a tradição da raça e do povo, vive nas ideologias do superego e só lentamente cede às influências do presente,no sentido de mudanças novas; e, enquanto opera através do superego, desempenha um poderoso papel na vida do homem, independentemente de condições econômicas. [Cf. [1]]

Em 1921, procurei utilizar a diferenciação entre o ego e o superego num estudo sobre psicologia de grupo. Cheguei a uma fórmula do seguinte teor: um grupo psicológico é uma coleção de indivíduos que introduziram a mesma pessoa em seu superego e, com base nesse elemento comum, identificaram-se entre si no seu ego. Isto se aplica, naturalmente, apenas a grupos que têm um líder. Se possuíssemos mais aplicações dessa espécie, a hipótese do superego perderia seus últimos resquícios de ser uma coisa estranha para nós, e nos livraríamos completamente da perplexidade de que somos tomados quando, acostumados como estamos à atmosfera do submundo, nos movemos nas camadas mais superficiais, mais elevadas, do aparelho mental. Não supomos, naturalmente, que, com o destaque dado ao superego, tenhamos dito a última palavra sobre a psicologia do ego. É, antes, um primeiro passo; porém, nesse caso, o difícil não é só o primeiro passo.

 

Agora, contudo, um outro problema nos aguarda — no lado oposto do ego, poderíamos dizer. No-lo apresenta um fato observado durante o trabalho da análise, uma observação que é realmente muito antiga. Como não raro acontece, levou muito tempo até se chegar ao ponto de ser avaliada sua importância. Toda a teoria da psicanálise, como sabem, é de fato construída sobre a percepção da resistência que o paciente nos oferece, quando tentamos tornar-lhe consciente o seu inconsciente. O sinal objetivo dessa resistência é suas associações deixarem de fluir livremente do assunto que está sendo tratado. Pode, também, o paciente reconhecer subjetivamente a resistência pelo fato de que tem sentimentos desagradáveis quando se aproxima do assunto. Esse último sinal, contudo, também pode estar ausente. Dizemos então ao paciente que inferimos de sua conduta que ele está, agora, num estado de resistência; e ele responde que nada sabe disso e só se apercebe de que suas associações se tornaram mais difíceis. Acontece que tínhamos razão; mas, nesse caso, sua resistência também era inconsciente, tão inconsciente quanto o reprimido, em cujo esclarecimento estamos trabalhando. Há muito deveríamos ter feito a pergunta: de que parte de sua mente surge uma resistência de tal ordem? O principiante em psicanálise está pronto para responder de imediato: é, naturalmente, a resistência do inconsciente. Resposta ambígua e inútil! Se significa que a resistência surge do reprimido, devemos acrescentar: certamente não! Devemos, antes, atribuir ao reprimido uma tendência ascendente, um impulso de irromper na consciência. A resistência só pode ser manifestação do ego, que originalmente forçou a repressão e agora deseja mantê-la. Ademais, esta é a opinião que sempre tivemos. Porque chegamos a supor uma instância especial no ego, o superego, o qual representa as exigências de caráter restritivo e objetável, podemos dizer que a repressão é o trabalho desse superego, e que é efetuada ou por este mesmo, ou pelo ego, em obediência a ordens dele. Se, pois, na análise, deparamos com o caso de a resistência não ser consciente para o paciente, isto significa que, em situações muito importantes, o superego e o ego podem operar inconscientemente, ou que — e isto seria ainda mais importante — partes de ambos, do ego e do superego, são inconscientes. Nos dois casos, temos de contar com a desagradável descoberta de que, por um lado, o (super)ego e o consciente e, por outro lado, o reprimido e o inconsciente não são de modo algum coincidentes.

 

E aqui, senhoras e senhores, sinto que devo fazer uma pausa para tomar fôlego — o que os senhores receberão com alívio — e, antes de prosseguir, pedir-lhes desculpas. Minha intenção é fornecer-lhes alguns acréscimos às conferências introdutórias sobre psicanálise, que iniciei há quinze anos, e sinto-me obrigado a conduzir-me como se, tanto os senhores como eu, nesse intervalo, não tivéssemos feito outra coisa senão exercer a psicanálise. Sei que uma tal suposição é descabida; não tenho, porém, outro recurso, não posso agir de modo diferente. Isto se relaciona, sem dúvida, ao fato de que, em geral, é tão difícil proporcionar a quem não é psicanalista uma compreensão interna (insight) da psicanálise. Os senhores podem acreditar em mim, quando lhes digo que não é de nosso agrado dar uma impressão de sermos membros de uma sociedade secreta e de praticarmos uma ciência mística. Mesmo assim, temos sido obrigados a reconhecer e a expressar nossa convicção de que ninguém tem o direito de participar de uma discussão sobre psicanálise, se não teve experiência própria, que só pode ser obtida ao ser analisado. Quando lhes proferi minhas conferências, há quinze anos, procurei poupar-lhes determinadas partes especulativas de nossa teoria; mas é justamente delas que derivam as novas aquisições de que devo falar-lhes, hoje.

Retorno, agora, ao nosso tema. Em face da dúvida quanto a saber se o ego e o superego são inconscientes, ou se simplesmente produzem efeitos inconscientes, decidimo-nos, por boas razões, a favor da primeira possibilidade. E é realmente este o caso: grande parte do ego e do superego pode permanecer inconsciente e é normalmente inconsciente. Isto é, a pessoa nada sabe dos conteúdos dos mesmos, e é necessário dispender esforços para torná-los conscientes. É um fato que o ego e o consciente, o reprimido e o inconsciente não coincidem. Sentimos necessidade de proceder a uma revisão fundamental de nossa atitude relativa a esse problema consciente-inconsciente. Em primeiro lugar, sentimo-nos muito inclinados a reduzir o valor do critério do ser consciente, de vez que se mostrou tão pouco digno de fé. Mas estaríamos fazendo-lhe uma injustiça. E como se pode dizer de nossa vida: não tem muito valor, mas é tudo o que temos. Sem a revelação proporcionada pela qualidade da consciência, estaríamos perdidos na obscuridade da psicologia profunda; devemos, contudo, encontrar nosso rumo.

Não há necessidade de discutir o que se deva denominar consciente: não pairam dúvidas sobre isto. O mais antigo e o melhor significado da palavra ‘inconsciente’ é o significado descritivo. Denominamos inconsciente um processo psíquico cuja existência somos obrigados a supor — devido a algum motivo tal que o inferimos a partir de seus efeitos —, mas do qual nada sabemos. Nesse caso, temos para tal processo a mesma relação que temos com um processo psíquico de uma outra pessoa, exceto que, de fato, se trata de um processo nosso, mesmo. Se quisermos ser ainda mais corretos, modificaremos nossa assertiva dizendo que denominamos inconsciente um processo se somos obrigados a supor que ele está sendo ativado no momento, embora no momento não saibamos nada a seu respeito. Essa restrição faz-nos raciocinar que a maioria dos processos conscientes são conscientes apenas num curto espaço de tempo; muito em breve se tornam latentes, podendo, contudo, facilmente tornar-se de novo conscientes. Também poderíamos dizer que se tornaram inconscientes, se fosse absolutamente certo que, na condição de latência, ainda constituem algo de psíquico. Até aí, não teríamos aprendido nada novo; e não teríamos adquirido o direito de introduzir o conceito de inconsciente na psicologia. Mas então surge a observação que já pudemos fazer com referência às parapraxias. A fim de explicar um lapso de língua, por exemplo, achamo-nos na obrigação de supor que a intenção de fazer um determinado comentário estava presente na pessoa. Concluímo-lo, com segurança, a partir da interferência dessa intenção no comentário que ocorreu; mas a intenção não foi levada a cabo e era, portanto, inconsciente. Quando, a seguir, nós a revelamos à pessoa que cometeu o lapso, se ela reconhece tal intenção como sendo-lhe já familiar, era-lhe esta, então, apenas temporariamente inconsciente; se, contudo, a repele como algo alheio, tal intenção foi, então, permanentemente inconsciente. Partindo dessa experiência, retrospectivamente adquirimos o direito de afirmar ser inconsciente também algo que tinha sido qualificado como latente. Uma reflexão sobre essa relação dinâmica permite-nos, agora, distinguir duas espécies de inconsciente — uma que é facilmente transformada, em circunstâncias de ocorrência freqüente, em algo consciente; e uma outra, na qual essa transformação é difícil e apenas se realiza quando sujeita a considerável dispêndio de esforços, ou, possivelmente, jamais se efetue, absolutamente. Com a finalidade de evitar a ambigüidade no sentido de estarmo-nos referindo, a um ou a outro inconsciente, de estarmos usando a palavra no sentido descritivo ou no sentido dinâmico, utilizamo-nos de um expediente permissível e simples. O inconsciente que está apenas latente, e portanto facilmente se torna consciente, denominamo-lo ‘pré-consciente’, e reservamos o termo ‘inconsciente’ para o outro. Temos, agora, três termos, ‘consciente’, ‘pré-consciente’ e ‘inconsciente’, com os quais podemos ser bem-sucedidos em nossa descrição dos fenômenos mentais. Repetindo: o pré-consciente também é inconsciente no sentido puramente descritivo, mas não lhe atribuímos esse nome, exceto quando falamos sem a preocupação de conferir-lhe precisão, ou quando temos de fazer a defesa da existência, na vida mental, de processos inconscientes em geral.

Os senhores admitirão, segundo espero, que até esse ponto isto não está totalmente mal e permite um manejo conveniente. Sim, mas infelizmente o trabalho da psicanálise viu-se compelido a empregar a palavra ‘inconsciente’ em mais um sentido, o terceiro, e isto, certamente, pode ter causado confusão. Sob o novo e poderoso impacto da existência de um extenso e importante campo da vida mental, normalmente afastado do conhecimento do ego, de modo que os processos que nele ocorrem têm de ser considerados como inconscientes, em sentido verdadeiramente dinâmico, vimos a entender o termo ‘inconsciente’ também num sentido topográfico ou sistemático; passamos a falar em ‘sistema’ do pré-consciente e em ‘sistema’ do inconsciente, em conflito entre o ego e o sistema Inc., e temos empregado cada vez mais freqüentemente essa palavra com a finalidade de assinalar, antes, uma região mental, do que para designar uma qualidade daquilo que é mental. A descoberta, realmente inconveniente, de que partes do ego e também do superego são inconscientes, no sentido dinâmico, atua, nesse ponto, como um alívio — possibilita a remoção de uma complicação. Percebemos não termos o direito de denominar ‘sistema Inc.’ a região mental alheia ao ego, de vez que a característica de ser inconsciente não lhe é exclusiva. Assim sendo, não usaremos mais o termo ‘inconsciente’ no sentido sistemático e daremos àquilo que até agora temos assim descrito um nome melhor, um nome que não seja mais passível de equívocos. Aceitando uma palavra empregada por Nietzsche e acolhendo uma sugestão de George Groddeck [1923], de ora em diante chama-lo-emos de ‘id’. Esse pronome impessoal parece especialmente bem talhado para expressar a principal característica dessa região da mente — o fato de ser alheia ao ego. O superego, o ego e o id — estes são, pois, os três reinos, regiões, províncias em que dividimos o aparelho mental de um indivíduo, e é das suas relações mútuas que nos ocuparemos a seguir.

Antes, porém, uma breve interpolação. Penso que os senhores se sentem insatisfeitos porque as três qualidades da consciência e as três regiões do aparelho mental não se agrupam em três pares harmônicos, e os senhores podem considerar esse fato, em certo sentido, obscurecedor de nossos achados. Não penso, todavia, que devamos lamentá-lo, e devemos dizer a nós mesmos que não tínhamos o direito de esperar nenhuma disposição homogênea nessas coisas. Permitam-me mostrar-lhes uma analogia; é verdade que as analogias nada decidem, mas podem fazer a pessoa sentir-se mais à vontade. Estou imaginando uma região com uma paisagem de configuração variada — montanhas, planícies e cadeias de lagos — e com uma população mista: é habitada por alemães, magiares e eslovacos, que se dedicam a atividades diferentes. Ora, poderiam as coisas estar repartidas de tal modo que os alemães, criadores de gado, habitam a região montanhosa, os magiares, que plantam cereais e videiras, moram nas planícies, e os eslovacos, que capturam peixes e tecem o junco, vivem junto aos lagos. Se a partilha pudesse ser tão simples e definida, um Woodrow Wilson ficaria feliz da vida com isso; também seria conveniente um tal arranjo para uma conferência numa aula de geografia. Entretanto, seria provável que os senhores encontrassem menos homogeneidade e mais mistura, se viajassem pela região. Alemães, magiares e eslovacos vivem disseminados por toda parte; na região montanhosa também há terras cultiváveis, e cria-se gado também nas planícies. Algumas coisas, naturalmente, são conforme os senhores esperavam, pois não se pode capturar peixes nas montanhas e os vinhedos não crescem na água. Realmente, o quadro da região, que os senhores se afiguravam, pode, na sua totalidade, ajustar-se aos fatos; os senhores, no entanto, terão de conformar-se com desvios nos detalhes.

 

Os senhores não haverão de esperar que eu tenha muita coisa nova a dizer-lhes acerca do id, exceto o seu nome novo. É a parte obscura, a parte inacessível de nossa personalidade; o pouco que sabemos a seu respeito, aprendemo-lo de nosso estudo da elaboração onírica e da formação dos sintomas neuróticos, e a maior parte disso é de caráter negativo e pode ser descrita somente como um contraste com o ego. Abordamos o id com analogias; denominamo-lo caos, caldeirão cheio de agitação fervilhante. Descrevemo-lo como estando aberto, no seu extremo, a influências somáticas e como contendo dentro de si necessidades instintuais que nele encontram expressão psíquica; não sabemos dizer, contudo, em que substrato. Está repleto de energias que a ele chegam dos instintos, porém não possui organização, não expressa uma vontade coletiva, mas somente uma luta pela consecução da satisfação das necessidades instintuais, sujeita à observância do princípio de prazer. As leis lógicas do pensamento não se aplicam ao id, e isto é verdadeiro, acima de tudo, quanto à lei da contradição. Impulsos contrários existem lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro: quando muito, podem convergir para formar conciliações, sob a pressão econômica dominante, com vistas à descarga da energia. No id não há nada que se possa comparar à negativa e é com surpresa que percebemos uma exceção ao teorema filosófico segundo o qual espaço e tempo são formas necessárias de nossos atos mentais. No id, não existe nada que corresponda à idéia de tempo; não há reconhecimento da passagem do tempo, e — coisa muito notável e merecedora de estudo no pensamento filosófico nenhuma alteração em seus processos mentais é produzida pela passagem do tempo. Impulsos plenos de desejos, que jamais passaram além do id, e também impressões, que foram mergulhadas no id pelas repressões, são virtualmente imortais; depois de se passarem décadas, comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco. Só podem ser reconhecidos como pertencentes ao passado, só podem perder sua importância e ser destituídos de sua catexia de energia, quando tornados conscientes pelo trabalho da análise, e é nisto que, em grande parte, se baseia o efeito terapêutico do tratamento analítico.

Muitíssimas vezes, tive a impressão de que temos feito muito pouco uso teórico desse fato, estabelecido além de qualquer dúvida, da inalterabilidade do reprimido com o passar do tempo. Isto parece oferecer um acesso às mais profundas descobertas. E, infelizmente, eu próprio não fiz qualquer progresso nessa parte.

Naturalmente, o id não conhece nenhum julgamento de valores: não conhece o bem, nem o mal, nem moralidade. Domina todos os seus processos o fator econômico ou, se preferirem, o fator quantitativo, que está intimamente vinculado ao princípio de prazer. Catexias instintuais que procuram a descarga — isto, em nossa opinião, é tudo o que existe no id. Parece mesmo que a energia desses impulsos instintuais se acha num estado diferente daquele encontrado em outras regiões da mente, muito mais móvel e capaz de descarga; de outro modo, não ocorreriam os deslocamentos e as condensações, que são tão característicos do id e que tão radicalmente desprezam a qualidade daquilo que é catexizado — aquilo que no ego chamaríamos de uma idéia. Daríamos muito para entender mais acerca dessas coisas! Aliás, os senhores podem verificar que estamos em condições de atribuir ao id características outras além dessa de ser inconsciente, e podem reconhecer a possibilidade de partes do ego e do superego serem inconscientes, sem possuírem as mesmas características primitivas e irracionais.—Podemos esclarecer melhor as características do ego real, na medida em que este pode ser diferenciado do id e do superego, examinando sua relação com a parte mais superficial do aparelho mental, que descrevemos como o sistema Pcpt.-Cs. Esse sistema está voltado para o mundo externo, é o meio de percepção daquilo que surge de fora, e durante o seu funcionamento surge nele o fenômeno da consciência. É o órgão sensorial de todo o aparelho; ademais, é receptivo não só às excitações provenientes de fora, mas também àquelas que emergem do interior da mente. Quase não necessitamos procurar uma justificativa para a opinião segundo a qual o ego é aquela parte do id que se modificou pela proximidade e influência do mundo externo, que está adaptada para a recepção de estímulos, e adaptada como escudo protetor contra os estímulos, comparável à camada cortical que circunda uma pequena massa de substância viva. A relação com o mundo externo tornou-se o fator decisivo para o ego; este assumiu a tarefa de representar o mundo externo perante o id — o que é uma sorte para o id, que não poderia escapar à destruição se, em seus cegos intentos que visam à satisfação de seus instintos, não atentasse para esse poder externo supremo. Ao cumprir com essa função, o ego deve observar o mundo externo, deve estabelecer um quadro preciso do mesmo nos traços de memória de suas percepções, e, pelo seu exercício da função de ‘teste de realidade’, deve excluir tudo o que nesse quadro do mundo externo é um acréscimo decorrente de fontes internas de excitação. O ego controla os acessos à motilidade, sob as ordens do id; mas, entre uma necessidade e uma ação, interpôs uma protelação sob forma de atividade do pensamento, durante a qual se utiliza dos resíduos mnêmicos da experiência. Dessa maneira, o ego destronou o princípio de prazer, que domina o curso dos eventos no id sem qualquer restrição, e o substituiu pelo princípio de realidade, que promete maior certeza e maior êxito.

A relação com o tempo, tão difícil de descrever, também é introduzida no ego pelo sistema perceptual; dificilmente pode-se duvidar de que o modo de atuação desse sistema é o que dá origem à idéia de tempo. O que, contudo,muito particularmente distingue o ego do id é uma tendência à síntese de seu conteúdo, à combinação e à unificação nos seus processos mentais, o que está totalmente ausente no id. Quando, agora, abordarmos os instintos na vida mental, conseguiremos, segundo espero, reconstituir essa característica essencial do ego em sua origem. Somente ela produz o alto grau de organização que o ego requer para suas melhores realizações. O ego evolui da percepção dos instintos para o controle destes; esse controle, porém, apenas é realizado pelo representante [psíquico] do instinto quando tal representante se situa no lugar que lhe é próprio, num amplo conjunto de elementos, quando tomado em um contexto coerente. Para adotar um modo popular de falar, poderíamos dizer que o ego significa razão e bom senso, ao passo que o id significa as paixões indomadas.

Até aqui, temo-nos deixado impressionar pelos méritos e capacidades do ego; é tempo, agora, de considerar também o outro lado. O ego, afinal, é apenas uma parte do id, uma parte que foi adequadamente modificada pela proximidade com o mundo externo, com sua ameaça de perigo. Do ponto de vista dinâmico, ele é fraco, tomou emprestadas ao id as suas forças, e em parte entendemos os métodos — poderíamos chamá-los subterfúgios — pelos quais extrai do id quantidades adicionais de energia. Um dentre tais métodos, por exemplo, consiste em identificar-se com objetos reais ou abandonados. As catexias objetais procedem das exigências instintuais do id. O ego tem de, em primeiro lugar, registrá-las. Mas, identificando-se com o objeto, o ego recomenda-se ao id em lugar do objeto e procura desviar a libido do id para si próprio. Já vimos [[1]] que, no decurso de sua vida, o ego assume dentro de si um grande número de precipitados, como este das mencionadas catexias objetais. O ego deve, no geral, executar as intenções do id, e cumpre sua atribuição descobrindo as circunstâncias em que essas intenções possam ser mais bem realizadas. A relação do ego para com o id poderia ser comparada com a de um cavaleiro para com seu cavalo. O cavaloprovê a energia de locomoção, enquanto o cavaleiro tem o privilégio de decidir o objetivo e de guiar o movimento do poderoso animal. Mas muito freqüentemente surge entre o ego e o id a situação, não propriamente ideal, de o cavaleiro só poder guiar o cavalo por onde este quer ir.

Há uma parte do id da qual o ego separou-se por meio de resistências devidas à repressão. A repressão, contudo, não se estende para dentro do id: o reprimido funde-se no restante do id.

Adverte-nos um provérbio de que não sirvamos a dois senhores ao mesmo tempo. O pobre do ego passa por coisas ainda piores: ele serve a três severos senhores e faz o que pode para harmonizar entre si seus reclamos e exigências. Esses reclamos são sempre divergentes e freqüentemente parecem incompatíveis. Não é para admirar se o ego tantas vezes falha em sua tarefa. Seus três tirânicos senhores são o mundo externo, o superego e o id. Quando acompanhamos os esforços do ego para satisfazê-los simultaneamente — ou antes, para obedecer-lhes simultaneamente —, não podemos nos arrepender por termo-lo personificado ou por termo-lo erigido em um organismo separado. Ele se sente cercado por três lados, ameaçado por três tipos de perigo, aos quais reage, quando duramente pressionado, gerando ansiedade. Devido à sua origem decorrente das experiências do sistema perceptual, ele é destinado a representar as exigências do mundo externo, contudo também se esforça por ser um servo leal do id, manter bom relacionamento com este, recomendar-se ao id como um objeto e atrair para si a libido do id. Em suas tentativas de exercer mediação entre o id e a realidade, freqüentemente é obrigado a encobrir as ordens Inc. do id mediante suas próprias racionalizações Pcs., a ocultar os conflitos do id com a realidade, a reconhecer, com diplomática dissimulação, que percebe a realidade mesmo quando o id permaneceu rígido e intolerante. Por outro lado, é observado a cada passo pelo superego severo, que estabelece padrões definidos para sua conduta, sem levar na mínima conta suas dificuldades relativas ao mundo externo e ao id, e que, se essas exigências não são obedecidas, pune-o com intensos sentimentos de inferioridade e de culpa. Assim, o ego, pressionado pelo id, confinado pelo superego, repelido pela realidade, luta por exercer eficientemente sua incumbência econômica de instituir a harmonia entre as forças e as influências que atuam nele e sobre ele; e podemos compreender como é que com tanta freqüência não podemos reprimir uma exclamação: ‘A vida não é fácil!’ Se o ego é obrigado a admitir sua fraqueza, ele irrompe em ansiedade — ansiedade realística referente ao mundo externo, ansiedade moral referente ao superego e ansiedade neurótica referente à força das paixões do id.Gostaria de configurar as relações estruturais da personalidade mental, segundo as descrevi para os senhores, neste despretensioso esquema com que os presenteio.

Como vêem, o superego se funde no id; na verdade, como herdeiro do complexo de Édipo, tem íntimas relações com o id; está mais distante do sistema perceptual do que o ego. O id relaciona-se com o mundo externo somente através do ego — ao menos de acordo com esse diagrama. Por certo é difícil dizer, atualmente, em que medida o esquema está correto. Em um aspecto, indubitavelmente não está. O espaço ocupado pelo id inconsciente devia ter sido incomparavelmente maior do que o do ego ou do pré-consciente. Devo pedir-lhes que o corrijam em seus pensamentos.

 

E aqui está outra advertência para completar essas observações, que certamente foram cansativas e talvez não muito esclarecedoras. Ao pensar nessa divisão da personalidade em um ego, um superego e um id, naturalmente, os senhores não terão imaginado fronteiras nítidas como as fronteirasartificiais delineadas na geografia política. Não podemos fazer justiça às características da mente por esquemas lineares como os de um desenho ou de uma pintura primitiva, mas de preferência por meio de áreas coloridas fundindo-se umas com as outras, segundo as apresentam artistas modernos. Depois de termos feito a separação, devemos permitir que novamente se misture, conjuntamente, o que havíamos separado. Os senhores não devem julgar com demasiado rigor uma primeira tentativa de proporcionar uma representação gráfica de algo tão intangível como os processos psíquicos. É altamente provável que o desenvolvimento dessas divisões esteja sujeito a grandes variações em diferentes indivíduos; é possível que, no decurso do funcionamento real, elas possam mudar e passar por uma fase temporária de involução. Particularmente no caso da que é filogeneticamente a última e a mais delicada dessas divisões — a diferenciação entre o ego e o superego — algo desse teor parece verdadeiro. Está fora de dúvida que a mesma coisa se produz através da doença psíquica. Também é fácil imaginar que determinadas práticas místicas possam conseguir perturbar as relações normais entre as diferentes regiões da mente, de modo que, por exemplo, a percepção pode ser capaz de captar acontecimentos, nas profundezas do ego e no id, os quais de outro modo lhe seriam inacessíveis. Pode-se, porém, com segurança, duvidar se a esse caminho nos levará às últimas verdades das quais é de se esperar a salvação. Não obstante, pode-se admitir que os intentos terapêuticos da psicanálise têm escolhido uma linha de abordagem semelhante. Seu propósito é, na verdade, fortalecer o ego, fazê-lo mais independente do superego, ampliar seu campo de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder assenhorear-se de novas partes do id. Onde estava o id, ali estará o ego. É uma obra de cultura — não diferente da drenagem do Zuider Zee.

 

CONFERÊNCIA XXXII

ANSIEDADE E VIDA INSTINTUAL

 

SENHORAS E SENHORES:

 

Não se surpreenderão se saberem que tenho muitas novidades a relatar-lhes a respeito de nossa concepção [Auffassung] da ansiedade e dos instintos básicos da vida mental; e não se surpreenderão ao verificar que nenhuma dessas novidades pode pretender oferecer uma solução definitiva para esses problemas não solucionados. Tenho um motivo especial para usar a palavra ‘concepção’, aqui. Estes são os problemas mais difíceis que se nos apresentam, mas sua dificuldade não está em alguma insuficiência de observações; o que nos propõem esses enigmas são realmente os fenômenos mais comuns e mais conhecidos. Nem a dificuldade se situa na natureza recôndita das especulações a que eles dão origem; a reflexão especulativa desempenha uma parte insignificante nessa esfera. É, contudo, verdadeiramente uma questão de concepções — isto é, de introduzir as idéias abstratas corretas, cuja aplicação ao material bruto da observação nele produzirá ordem e clareza.

 

Dediquei uma conferência (a vigésima quinta), em minha série anterior, à ansiedade; e preciso recapitular rapidamente o que ali disse. Descrevemos a ansiedade como um estado afetivo — isto é, uma combinação de determinados sentimentos da série prazer-desprazer, com as correspondentes inervações de descarga, e uma percepção dos mesmos, mas, provavelmente, também como um precipitado de um determinado evento importante, incorporado por herança — algo que pode, por conseguinte, ser assemelhado a um ataque histérico individualmente adquirido. O evento que consideramos como tendo deixado atrás de si uma marca dessa espécie é o processo do nascimento, ocasião em que os efeitos sobre a ação do coração e sobre a respiração, característicos da ansiedade, foram efeitos adequados. Assim, a primeira ansiedade teria sido uma ansiedade tóxica. Daí partimos para uma distinção entre ansiedade realística e ansiedade neurótica, sendo aquela uma reação, que nos parecia compreensível, face a um perigo — isto é, reação aum dano esperado, de fora —, ao passo que esta, a ansiedade neurótica, era completamente enigmática, e parecia despropositada.

Em uma análise da ansiedade realística, reduzimo-la ao estado de atenção sensorial e tensão motora aumentadas, que descrevemos como ‘estado de preparação para a ansiedade’. É disto que se desenvolve a reação de ansiedade. Aqui, dois resultados são possíveis. Ou a geração da ansiedade — repetição da antiga experiência traumática — limita-se a um sinal, caso em que o restante da reação pode adaptar-se à nova situação de perigo e pode resultar em fuga ou defesa; ou a antiga situação pode continuar mantendo o domínio, e a reação total pode consistir em nada mais que geração de ansiedade, caso em que o estado afetivo se torna paralisante e será inadequado para os propósitos atuais.

Passamos depois à ansiedade neurótica e assinalamos que a observamos sob três condições. Em primeiro lugar, encontramo-la na forma livremente flutuante, um estado de apreensão difusa, pronta a vincular-se temporariamente, sob a forma do que se conhece como ‘ansiedade expectante’, a qualquer possibilidade que de imediato possa surgir — como acontece, por exemplo, numa neurose de angústia típica. Em segundo lugar, encontramo-la firmemente vinculada a determinadas idéias, nas chamadas ‘fobias’, em que ainda é possível reconhecer uma relação com um perigo externo, nas quais, porém, devemos considerar que o medo é exagerado, desproporcionado. Em terceiro e último lugar, encontramos a ansiedade na histeria e em outras formas de neurose grave, onde ou ela acompanha os sintomas, ou surge independentemente como ataque, ou como estado mais persistente, mas sempre sem qualquer base visível em um perigo externo. Fazemo-nos, então, duas perguntas: ‘O que as pessoas temem na ansiedade neurótica?’ e ‘Como podemos relacioná-la com a ansiedade realística sentida em face de perigos externos?’

Nossas investigações de modo algum ficaram infrutíferas: chegamos a algumas conclusões importantes. Com referência à expectativa ansiosa, a experiência clínica revelou que ela possuía regularmente uma conexão com a economia libidinal da vida sexual. A causa mais comum da neurose de angústia é a excitação não consumada. A excitação libidinal é despertada mas não satisfeita, não utilizada; o estado de apreensão surge, então, no lugar dessa libido que foi desviada de sua utilização. Até pensei estar justificado ao dizer que essa libido insatisfeita era transformada diretamente em ansiedade. Essa opinião encontrou apoio em algumas fobias de crianças pequenas, de ocorrência bastante freqüente. Muitas dessas fobias são deveras enigmáticas para nós; contudo, outras, tais como o medo de estar só e o medo deestranhos, podem ser explicadas de forma convincente. A solidão, assim como um rosto estranho, despertam na criança um anelo por sua mãe, a quem conhece tão bem: a criança é incapaz de controlar sua excitação libidinal, não consegue mantê-la em suspenso e transforma-a em ansiedade. Essa ansiedade infantil deve, pois, ser considerada não como pertencente ao tipo realístico, e sim, neurótica. As fobias infantis e a expectativa ansiosa da neurose de angústia nos oferecem dois exemplos da maneira como se origina a ansiedade neurótica: transformação direta da libido. Logo viremos a conhecer um segundo mecanismo, que se revelará não muito diferente do primeiro.

Consideramos o processo de repressão responsável pela ansiedade na histeria e em outras neuroses. Acreditamos que é possível fornecer disto uma descrição mais completa do que anteriormente, se separarmos o que acontece à idéia, que tem de ser reprimida, daquilo que acontece à quota de libido vinculada a ela. É a idéia que é submetida à repressão, e que pode ser deformada a ponto de ficar irreconhecível; sua quota de afeto, porém, é regularmente transformada em ansiedade — e isto é assim, qualquer que possa ser a natureza do afeto, seja ele de agressividade ou de amor. Não faz, pois, nenhuma diferença essencial por que razão uma quota de libido se tornou não-utilizável: se é por causa da debilidade infantil do ego, como nas fobias de crianças, ou se é por causa de processos somáticos da vida sexual, como na neurose de angústia, ou se devido à repressão, como na histeria. Assim, na realidade, os dois mecanismos que produzem ansiedade neurótica coincidem.

No curso dessas investigações, nossa atenção foi atraída para uma relação altamente significativa entre a geração da ansiedade e a formação dos sintomas — ou seja, verificamos que essas duas se representam e se substituem uma à outra. Por exemplo, um paciente agorafóbico pode iniciar sua doença com um acesso de ansiedade na rua. Isto se repetiria cada vez que fosse à rua novamente. Desenvolverá então o sintoma da agorafobia: este também pode ser qualificado como inibição, como restrição do funcionamento do ego, e, por meio dele, o paciente se poupa dos ataques de ansiedade. Podemos evidenciar o inverso disto, se interferirmos na formação dos sintomas, como é possível, por exemplo, com as obsessões. Se impedimos um paciente de executar seu ritual de abluções, ele cai num estado de ansiedade que acha difícil suportar e do qual, evidentemente, se tinha protegido por meio de seu sintoma. E parece, com efeito, que a geração da ansiedade é o que surgiu primeiro, e a formação dos sintomas, o que veio depois, como se os sintomas fossem criados a fim de evitar a irrupção do estado de ansiedade. Isto é confirmado também pelo fato de que as primeiras neuroses da infânciasão as fobias — estados nos quais vemos tão claramente como uma geração inicial de ansiedade é substituída pela formação subseqüente de um sintoma; temos a impressão de que é dessas inter-relações que melhor obteremos acesso à compreensão da ansiedade neurótica. E, ao mesmo tempo, também conseguimos responder à questão de saber que coisa a pessoa teme na ansiedade neurótica, e assim estabelecer a conexão entre a ansiedade neurótica e a realística. Aquilo que ela teme é, evidentemente, a sua própria libido. A diferença entre essa situação e a da ansiedade realística reside em dois pontos: que o perigo é um perigo interno, ao invés de externo, e que esse perigo não é conscientemente reconhecido.

Nas fobias, é muito fácil verificar a forma como esse perigo interno é transformado num perigo externo — ou seja, como uma ansiedade neurótica é mudada em ansiedade aparentemente realística. Com vistas a simplificar o que muitas vezes constitui um assunto muito complicado, suponhamos que o paciente agorafóbico tema invariavelmente sentimentos de tentação que nele despertam ao encontrar pessoas na rua. Em sua fobia, realiza ele um deslocamento e daí em diante teme uma situação externa. Com isso, o que ele ganha é, obviamente, pensar que pode proteger-se melhor dessa forma. Uma pessoa pode proteger-se de um perigo externo pela fuga; fugir de um perigo interno é um empreendimento difícil.

No final de minha conferência anterior, sobre ansiedade, expressei a opinião de que, embora essas diferentes descobertas de nossa investigação não fossem mutuamente contraditórias, de alguma forma elas não se ajustavam umas às outras. Parece que a ansiedade, na medida em que constitui um estado afetivo, é a reprodução de um evento antigo que representou uma ameaça de perigo; a ansiedade serve ao propósito de autopreservação e é sinal de um novo perigo; surge da libido que se tornou de algum modo não-utilizável e também surge durante o processo de repressão; é substituída pela formação de um sintoma, é, digamos assim, psiquicamente vinculada — tem-se a impressão de que aqui está faltando algo que juntaria todas essas peças em um todo.

 

Senhoras e senhores, a dissecção da personalidade mental em um superego, um ego e um id, que lhes apresentei na minha última conferência, obrigou-nos a refazer nossa orientação também no problema da ansiedade. Com a tese de que o ego é a única sede da ansiedade — de que apenas o egopode produzir e sentir ansiedade — estabelecemos uma posição nova e estável, a partir da qual numerosas coisas assumem um novo aspecto. E, verdadeiramente, é difícil verificar que sentido haveria em falar em ‘ansiedade do id’ ou em atribuir ao superego capacidade para sentir um estado de apreensão. Por outro lado, temos verificado de bom grado um desejável elemento de correspondência no fato de que as três principais espécies de ansiedade, a realística, a neurótica e a moral, podem com tanta facilidade ser correlacionadas com as três relações dependentes que o ego mantém — com o mundo externo, com o id e com o superego,ver em [[1]].Ao mesmo tempo que essa nova visão, em especial a função da ansiedade como sinal que anuncia uma situação de perigo (uma noção, aliás, não desconhecida nossa), assume proeminência, perde interesse a questão de saber qual é o material de que é feita a ansiedade, e as relações entre ansiedade realística e neurótica se tornaram surpreendentemente claras e simples. Também é de observar que, agora, aqueles casos aparentemente complexos de geração de ansiedade, nós os compreendemos melhor do que aqueles que eram considerados simples.

Isto porque recentemente estivemos examinando a forma como a ansiedade é gerada em determinadas fobias, que classificamos como histeria de angústia, e escolhemos casos nos quais estávamos lidando com a típica repressão de impulsos plenos de desejos oriundos do complexo de Édipo. Era de se esperar que encontrássemos uma catexia libidinal referente à mãe do menino, escolhida esta como objeto, a qual, em conseqüência da repressão, se teria mudado em ansiedade e agora emergia expressa em termos de sintomas, vinculada a um substituto de seu pai. Não posso mostrar-lhes os passos detalhados de uma investigação como esta; será suficiente dizer que o resultado surpreendente foi o oposto daquilo que esperávamos. Não era a repressão que criava a ansiedade; a ansiedade já existia antes; era a ansiedade que causava a repressão. Entretanto, que tipo de ansiedade pode ter sido? Somente ansiedade em face de uma ameaça de perigo externo — ou seja, ansiedade realística. É verdade que o menino sentia ansiedade em face de uma exigência feita por sua libido — nesse caso, ansiedade por estar apaixonado por sua mãe, assim, era, de fato, um caso de ansiedade neurótica. Mas este estar apaixonado só lhe aparecia como um perigo interno, o qual devia evitar, renunciando ao objeto, porque este suscitava uma situação externa de perigo. E, em todos os casos que examinamos, obtemos o mesmo resultado. Deve ser confessado que não estávamos preparados para constatar que o perigo instintual interno se revelaria fator determinante e preparação para uma situação de perigo externo, real.

Até agora, contudo não fizemos absolutamente qualquer menção de qual o perigo real que o menino teme, como conseqüência de estar apaixonado por sua mãe. O perigo é a punição de ser castrado, de perder seu órgão genital. Os senhores objetarão que, afinal de contas, isso não é um perigo real. Nossos meninos não são castrados porque estão apaixonados por suas mães, durante a fase do complexo de Édipo. O problema não pode ser eliminado de forma tão simples. Antes de mais nada, não se trata de a castração ser ou não ser realmente efetuada; o que é decisivo é que o perigo ameaça de fora e a criança acredita nele. Tem alguns motivos para isso, pois as pessoas ameaçam, muito freqüentemente, cortar fora o pênis da criança durante a fase fálica, na época do início da masturbação, e insinuações desse castigo devem encontrar com regularidade um reforço filogenético no menino. Suspeitamos que, durante o período primevo da família humana, a castração costumava ser usada, realmente, por um pai ciumento e cruel, nos meninos em crescimento, e que a circuncisão, que tão freqüentemente desempenha um papel nos ritos da puberdade entre povos primitivos, é um vestígio claramente identificável desse fato. Estamos conscientes de que nisto divergimos amplamente da opinião geral; mas devemos reafirmar a opinião de que o temor de castração é um dos motivos mais comuns e mais fortes para a repressão e, portanto, para a formação das neuroses. A análise de casos em que a circuncisão, embora não a castração, na verdade foi executada em meninos como cura ou castigo para a masturbação (essa ocorrência não é nada rara na sociedade anglo-americana), conferiu à nossa convicção o máximo grau de certeza. Nesse ponto, sentimo-nos muito tentados a nos aprofundar no complexo de castração; porém, ater-me-ei ao nosso assunto.

O temor de castração não é, naturalmente, o único motivo para repressão: na verdade, não sucede nas mulheres, pois, embora tenham elas um complexo de castração, não podem ter medo de serem castradas. Em seu sexo, o que sucede é o temor à perda do amor, o que é, evidentemente, um prolongamento posterior de ansiedade da criança quando constata a ausência da mãe. Os senhores perceberão quão real é a situação de perigo indicada por essa ansiedade. Se uma mãe está ausente ou retirou seu amor de seu filho, este não tem mais certeza de que suas necessidades serão satisfeitas e talvez seja exposto aos mais angustiantes sentimentos de tensão. Não rejeitem a idéia de que esses fatores determinantes de ansiedade possam, no fundo, repetir a situação de ansiedade original, ocorrida no nascimento, que, de fato, também representou uma separação da mãe. Realmente, se os senhores acompanharem uma seqüência de idéias sugeridas por Ferenczi [1925], podem acrescentar a essa série o temor de castração, pois a perda do órgão masculino resulta na incapacidade de unir-se novamente à mãe (ou a uma substituta dela) no ato sexual. Posso dizer-lhes, aliás, que a tão freqüente fantasia de retornar ao útero materno é um sucedâneo desse desejo de copular. Haveria, nesse ponto, muitas coisas interessantes e correlações surpreendentes para referir aos senhores; porém, não posso afastar-me do esquema de uma introdução à psicanálise. Apenas chamarei a atenção dos senhores para o fato de que, aqui, as pesquisas psicológicas invadem os fatos da biologia.

Otto Rank, a quem a psicanálise deve muitas contribuições excelentes, também tem o mérito de haver expressamente acentuado a importância do ato do nascimento e da separação da mãe [Rank, 1924]. Todavia, achamos de todo impossível aceitar as conclusões extremas que extraiu desse fator, com relação à teoria das neuroses e, mesmo, ao tratamento analítico. O cerne dessa teoria — de que a experiência de ansiedade no nascimento é o modelo de todas as subseqüentes situações de perigo —, ele já o encontrou pronto. Se nos detivermos um pouco nessas situações de perigo, podemos dizer que, de fato, para cada estádio do desenvolvimento está reservado, como sendo adequado para esse desenvolvimento, um especial fator determinante de ansiedade. O perigo de desamparo psíquico ajusta-se ao estádio da imaturidade inicial do ego; o perigo de perda de um objeto (ou perda do amor) ajusta-se à falta de auto-suficiência dos primeiros anos da infância; o perigo de ser castrado ajusta-se à fase fálica; e, finalmente, o temor ao superego, queassume uma posição especial, ajusta-se ao período de latência. No decorrer do desenvolvimento, os antigos fatores determinantes de ansiedade deveriam sumir, pois as situações de perigo correspondentes a eles perderam sua importância devido ao fortalecimento do ego. Isto, contudo, só ocorre de forma muito incompleta. Muitas pessoas são incapazes de superar o temor da perda do amor; nunca se tornam suficientemente independentes do amor de outras pessoas e, nesse aspecto, comportam-se como crianças. O temor ao superego normalmente jamais deve cessar, pois, sob a forma de ansiedade moral, é indispensável nas relações sociais, e somente em casos muito raros pode um indivíduo tornar-se independente da sociedade humana. Algumas das antigas situações de perigo também conseguem sobreviver em períodos posteriores, fazendo modificações concomitantes nos fatores determinantes de ansiedade. Assim, por exemplo, o perigo de castração persiste sob a marca da fobia à sífilis. É verdade que, como adulto, se sabe que a castração não mais faz parte do costume de punir excessos de desejos sexuais, mas, por outro lado, verifica-se que a liberdade instintual desse tipo é ameaçada por graves doenças. Não há dúvida de que as pessoas que qualificamos como neuróticas, permanecem infantis em sua atitude relativa ao perigo e não venceram as obsoletas causas determinantes de ansiedade. Podemos tomar isto como contribuição concreta para a caracterização dos neuróticos; não é muito fácil dizer por que isto tem de ser assim.

Espero que não tenham perdido a visão de conjunto disto que estou dizendo e se lembrem de que estamos investigando as relações entre ansiedade e repressão. E nisto aprendemos duas coisas novas: primeiro, que a ansiedade faz a repressão e não, conforme costumávamos pensar, o oposto; e [segundo], que a situação instintual temida remonta basicamente a uma situação de perigo externa. A questão seguinte será: como imaginamos agora o processo de uma repressão sob a influência da ansiedade? A resposta será, segundo penso, a que se segue. O ego percebe que a satisfação de uma exigência instintual emergente recriaria uma situação de perigo ainda viva na lembrança. Essa catexia instintual deve, portanto, ser de algum modo suprimida, paralisada, inativada. Sabemos que o ego consegue realizar tal tarefa, se é forte e se atraiu o impulso instintual em questão para a sua organização. Mas o que sucede no caso da repressão é o impulso instintual ainda pertencer ao id, e que o ego se sente fraco. Então o ego se serve de uma técnica no fundo idêntica ao pensar normal. O pensar é um ato experimental executado com pequenas quantidades de energia, do mesmo modo como um general muda pequenas figuras num mapa antes de colocar em movimento seus grandes corpos de tropas. Assim, o ego antecipa a satisfação do impulso instintual suspeito e permite efetuar-se a reprodução dos sentimentos desprazerosos no início da situação de perigo temida. Com isto, o automatismo do princípio de prazer-desprazer é posto em ação e agora executa a repressão do impulso instintual perigoso.

‘Um momento!’ os senhores exclamarão; ‘não podemos mais acompanhar o senhor nessas coisas!’ Têm toda a razão; devo acrescentar alguma coisa mais, antes de poder tornar-me inteligível para os senhores. Primeiro, devo admitir que tentei traduzir para a linguagem de nosso pensar normal aquilo que de fato deve ser um processo que não é consciente, nem pré-consciente, realizando-se entre quantidades de energia em algum substrato inimaginável. Esta, porém, não é uma objeção sólida, pois não se pode expressar essas coisas de outra maneira. Mais importante é que devíamos distinguir claramente o que acontece no ego e o que acontece no id, quando existe uma repressão. Acabamos de dizer o que faz o ego: faz uso de uma catexia experimental e desperta o automatismo do prazer-desprazer por meio de um sinal de ansiedade. Depois disso, diversas reações são possíveis, ou surge uma combinação delas, em proporções variáveis. Ou o ataque de ansiedade desenvolve-se completamente e o ego se afasta inteiramente da excitação censurável; ou, em lugar da catexia experimental, o ego opõe à excitação uma anticatexia, e esta se combina com a energia do impulso reprimido para formar um sintoma; ou a anticatexia é assimilada no ego como formação reativa, como intensificação de determinadas disposições do ego, como alteração permanente deste.Quanto mais a geração da ansiedade pode limitar-se a um mero sinal, tanto mais o ego gasta em ações defensivas que importam em vincular psiquicamente o [impulso] reprimido, e tanto mais o processo se aproxima de uma superelaboração normal, embora, por certo sem alcançá-la.

Aliás, aqui está um ponto em que podemos deter-nos por um momento. Os senhores mesmos sem dúvida supunham que aquilo que se conhece como ‘caráter’, coisa tão difícil de definir, deve ser atribuído inteiramente ao ego. Um pouco disso que cria o caráter já compreendemos. Primeiramente e acima de tudo, existe a incorporação, sob a forma de superego, da anterior instância parental, que é, indubitavelmente, a sua parte mais importante e decisiva; e, ademais, identificações com ambos os pais do período subseqüente e com outras figuras de influência, e as identificações semelhantes formadas como remanescente de relações objetais a que se renunciou [cf. [1]]. E podemos agora acrescentar como contribuições à construção do caráter, que nunca estão ausentes, as formações reativas que o ego adquire — no início, executando suas repressões e, depois, por um método mais normal, quando rejeita impulsos instintuais indesejáveis.

Retornemos, agora, e passemos ao id. Não é fácil saber o que ocorre, durante a repressão, em relação ao impulso instintual que está sendo combatido. A principal questão que nosso interesse levanta é saber o que acontece à energia, à carga libidinal dessa excitação — como é ela utilizada. Os senhores recordam-se de que a hipótese inicial era ser ela justamente aquilo que se transforma, pela repressão, em ansiedade. Não mais nos sentimos capazes de dizer isso. A modesta resposta será, antes, que aquilo que acontecea essa energia não é, provavelmente, sempre a mesma coisa. Provavelmente há uma correspondência íntima, a respeito da qual deveríamos obter conhecimento, entre o que então ocorre, no ego e no id, com relação ao impulso reprimido. Pois, desde que decidimos que o princípio de prazer-desprazer, posto em ação pelo sinal da ansiedade, desempenha um papel na repressão, devemos modificar nossa perspectiva. Esse princípio exerce um domínio inteiramente irrestrito sobre o que acontece no id. Podemos ter certeza de que efetua modificações bastante profundas no impulso instintual em questão. Estamos preparados para verificar que a repressão terá conseqüências muito diversas, de maior ou menor alcance. Em alguns casos, o impulso instintual reprimido pode conservar sua catexia libidinal, e pode persistir inalterado no id, embora sujeito a constante pressão do ego. Em outros casos, parece suceder que ele é totalmente destruído, enquanto sua libido é desviada, permanentemente, por outras vias. Expressei meu ponto de vista de que é isto que ocorre quando o complexo de Édipo é manejado normalmente — um caso como é de se desejar, portanto, não sendo simplesmente reprimido, mas destruído no id. A experiência clínica também nos mostrou que, em muitos casos, em lugar do habitual resultado da repressão, dá-se uma degradação da libido — uma regressão da organização libidinal a um estádio anterior. Isto, naturalmente, só pode ocorrer no id, e, se ocorrer, será sob a influência do mesmo conflito que se fez anunciar pelo sinal da ansiedade. O exemplo mais claro dessa espécie é dado pela neurose obsessiva, na qual atuam conjuntamente a regressão e a repressão.

Senhoras e senhores, receio que acharão essa exposição difícil de acompanhar, e sabem que ainda não está completa. Lamento ter provocado sua insatisfação. Não posso, contudo, propor-me nenhum outro objetivo além daquele de dar-lhes uma impressão referente à natureza de nossos achados e às dificuldades envolvidas na sua elucidação. Quanto mais nos aprofundamos no estudo dos processos mentais, mais reconhecemos sua abundância e complexidade. Muitas fórmulas simples, que, de início, pareciam preencher nossas necessidades, posteriormente vieram a se revelar inadequadas. Não nos cansamos de modificá-las e aperfeiçoá-las. Em minha conferência sobre a teoria dos sonhos [a primeira da presente série], mostrei-lhes uma região na qual, durante quinze anos, praticamente não houve uma descoberta nova. Aqui, onde estamos tratando da ansiedade, os senhores vêem tudo em um estado de fluidez e modificação. Essas inovações, ademais, ainda não foramelaboradas totalmente, e talvez isto também se some às dificuldades de demonstrá-las. Tenham paciência, no entanto! Em breve conseguiremos deixar o tema da ansiedade. Não posso prometer que terá sido resolvido a contento nosso, mas é de se esperar que teremos feito um pequeno progresso. E nesse ínterim, temos feito todo o tipo de descobertas novas. Agora, por exemplo, nosso estudo da ansiedade leva-nos a acrescentar um novo aspecto à nossa descrição do ego. Dissemos que o ego é fraco, se comparado com o id; que é um servo leal deste, pronto a executar suas ordens e cumprir suas exigências. Não tencionamos retirar essa afirmação. Mas, por outro lado, esse mesmo ego é a parte mais bem organizada do id, com sua face voltada para a realidade. Não devemos exagerar demasiadamente a separação entre os dois e não devemos nos surpreender se o ego, de seu lado, pode aplicar essa influência sobre os processos do id. Acredito que o ego exerce essa influência colocando em ação o quase todo-poderoso princípio de prazer-desprazer por meio do sinal da ansiedade. Por outro lado, mostra sua debilidade de novo, imediatamente após, de vez que, pelo ato da repressão, renuncia a parte de sua organização e tem de convir em que o impulso instintual reprimido se mantenha permanentemente afastado de sua influência.

Agora, apenas mais um comentário a respeito do problema da ansiedade. A ansiedade neurótica, em nossa forma de considerá-la, transformou-se em ansiedade realística, em temor a determinadas situações de perigo. Contudo não podemos parar aí, devemos dar mais um passo — embora seja um passo atrás. Perguntamo-nos o que é que realmente é perigoso e temido em uma situação de perigo desta espécie. Por certo que não é dano ao sujeito, objetivamente considerado, pois esse dano pode não ter nenhuma importância, psicologicamente, mas seria algo efetuado por ele na mente. Por exemplo, o nascimento, nosso modelo de estado de ansiedade, afinal, dificilmente pode ser considerado em si mesmo causa de dano, embora possa explicar um perigo de danos. O essencial no nascimento, assim como em toda situação de perigo, é que ele imprime à experiência mental um estado de excitação marcadamente intensa, que é sentida como desprazer e que não é possível dominar descarregando-a. Um estado desse tipo, ante o qual os esforços do princípio de prazer malogram, chamemo-lo de momento ‘traumático’. Então, se colocarmos numa série a ansiedade neurótica, a ansiedade realística e a situação de perigo, chegamos a essa proposição simples: o que é temido, o que é o objeto da ansiedade, é invariavelmente a emergência de um momentotraumático, que não pode ser arrostado com as regras normais do princípio de prazer. De imediato compreendemos que, dotados do princípio de prazer, não nos garantimos contra danos objetivos, mas sim apenas contra determinado dano à nossa economia psíquica. Vai uma grande distância desde o princípio de prazer ao instinto de autopreservação. As intenções de ambos estão longe de coincidir desde o início. Vemos, porém, ainda mais uma coisa; talvez seja a solução que estamos procurando. Ou seja, tudo isso é uma questão de quantidades relativas. É apenas a magnitude da soma de excitação que transforma uma impressão em momento traumático, paralisa a função do princípio de prazer e confere à situação de perigo a sua importância. E, sendo assim as coisas, podendo esses enigmas serem solucionados tão prosaicamente, pergunta-se por que não seria possível que momentos traumáticos semelhantes surjam na vida mental sem referência a hipotéticas situações de perigo — momentos traumáticos, pois, nos quais a ansiedade não é despertada como um sinal, mas sim gerada de novo, por um motivo novo. A experiência clínica evidencia abertamente que, de fato, é este o caso. São apenas as repressões posteriores que mostram o mecanismo que descrevemos, no qual a ansiedade é despertada como sinal de uma situação de perigo prévia. As repressões primeiras e originais surgem diretamente de momentos traumáticos, quando o ego enfrenta uma exigência libidinal excessivamente grande; elas formam de novo a sua ansiedade, embora, na verdade, a partir do modelo do nascimento. O mesmo pode aplicar-se à geração da ansiedade na neurose de angústia, devida a prejuízo somático causado à função sexual. Não mais sustentaremos ser a libido que é transformada em ansiedade, em tais casos. No entanto, não posso ver como objetar contra a existência de uma dupla origem da ansiedade — uma, como conseqüência direta do momento traumático, e a outra, como sinal que ameaça com uma repetição de um tal momento.

 

Sinto que, por certo, estão-se regozijando, senhoras e senhores, por não terem de ouvir nada mais sobre ansiedade. Mas não ganharam nada com isto: o que se segue não é certamente melhor. É meu intento mostrar-lhes, hoje, também a área da teoria da libido, ou teoria dos instintos, onde tem havido, igualmente, numerosos desenvolvimentos recentes. Não proclamarei quenela tenhamos feito grandes avanços, de modo que os senhores, tranqüilamente, podem poupar-se a qualquer preocupação de aprender acerca dessas teorias. Não. Esta é uma região na qual estamos lutando com afinco no sentido de encontrar nosso rumo e fazer descobertas; os senhores apenas serão testemunhas de nossos esforços. Aqui, também, devo retornar a algumas coisas de que lhes falei anteriormente.

A teoria dos instintos é, por assim dizer, nossa mitologia. Os instintos são entidades míticas, magníficos em sua imprecisão. Em nosso trabalho, não podemos desprezá-los, nem por um só momento, de vez que nunca estamos seguros de os estarmos vendo claramente. Os senhores sabem como o pensamento popular lida com os instintos. As pessoas supõem existirem tantos e tão diversos instintos quantos aqueles de que elas necessitam no momento — um instinto de auto-afirmação, um instinto de imitação, um instinto lúdico, um instinto gregário e muitos outros semelhantes. As pessoas os pegam, por assim dizer, fazem cada um deles desempenhar sua função particular, e, depois, os dispensam novamente. Sempre se nos impôs a suspeita de que, por trás de todos esses pequenos instintos ad hoc, escondia-se algo sério e poderoso, do qual gostaríamos de nos aproximar com cautela. Nosso primeiro passo foi muito modesto. Dissemos a nós mesmos que provavelmente não iríamos perder o rumo, se começássemos por separar dois principais instintos, ou duas classes de instintos, ou dois grupos de instintos, em consonância com as duas grandes necessidades — fome e amor. Por mais ciosamente que em geral defendamos a independência da psicologia, de toda outra ciência, aqui se nos impõe o fato biológico inamovível de que o organismo individual vivo está sob o domínio de duas intenções, a autopreservação e a preservação da espécie, que parecem ser independentes uma da outra, que, até onde por ora sabemos, não têm origem comum, e cujos interesses muitas vezes estão em conflito na vida animal. Realmente, aquilo a cujo respeito estamos falando agora é sobre a psicologia biológica; estamos estudando os concomitantes psíquicos dos processos biológicos. Foi representando esse aspecto da pessoa que os ‘instintos do ego’ e os ‘instintos sexuais’ foram introduzidos na psicanálise. Nos instintos do ego incluímos tudo o que tinha relação com autopreservação, afirmação e engrandecimento do indivíduo. Aos instintos sexuais tivemos de atribuir a diversidade necessária à vida sexual infantil e pervertida. No decorrer da investigação das neuroses, vimos a conhecer o ego como o poder limitante e repressor, e as tendências sexuais, como sendo o poder limitado e reprimido; acreditávamos, pois, que tínhamos claras provas não só da diferença entre os dois grupos de instintos, mas também do conflito entre eles. O primeiro objeto de nossoestudo era só os instintos sexuais, cuja energia denominávamos ‘libido’. Foi em relação a eles que procuramos clarear nossas idéias a respeito do que é um instinto e do que se devia atribuir-lhe. Aqui temos a teoria da libido.

Um instinto, por conseguinte, distingue-se de um estímulo pelo fato de surgir de fontes de estimulação situadas dentro do corpo, de atuar como força constante, e de a pessoa não poder evitá-lo pela fuga, como é possível fazer com um estímulo externo. Em um instinto podemos distinguir sua origem, seu objeto e sua finalidade. Sua origem é um estado de excitação do corpo, sua finalidade é a remoção dessa excitação; no caminho que vai desde sua origem até sua finalidade, o instinto torna-se atuante psiquicamente. Imaginamo-lo como uma determinada quantidade de energia que faz pressão em determinada direção. É dessa pressão que deriva seu nome ‘Trieb‘. Fala-se em instintos ‘ativos’ e ‘passivos’, mas seria mais correto falar em instintos com finalidades ativas e passivas: isso porque também se faz necessário um dispêndio de atividade para atingir uma finalidade passiva. A finalidade pode ser atingida no corpo da própria pessoa; via de regra, inclui-se um objeto externo, com relação ao qual o instinto atinge sua finalidade externa; sua finalidade interna permanece sendo a modificação corporal que é sentida como satisfação. Não ficou claro para nós se a relação do instinto para com sua origem somática confere-lhe uma qualidade específica, e, em caso afirmativo, qual seria esta. A evidência da experiência analítica mostra como fato indubitável que os impulsos instintuais provenientes de uma fonte ligam-se àqueles que provêm de outras fontes e compartilham de suas vicissitudes, e que, de modo geral, uma satisfação instintual pode ser substituída por outra. Deve-se admitir, contudo, que não entendemos isto muito bem. As relações de um instinto com a sua finalidade e com o seu objeto também são passíveis de modificações; ambos podem ser trocados por outros embora sua relação com seu objeto seja, não obstante, a que cede mais facilmente. Um determinado tipo de modificação da finalidade e de mudança do objeto, na qual se levam em conta nossos valores sociais, é descrito por nós como ‘sublimação’. Ademais, temos motivos para diferençar instintos que são ‘inibidos em sua finalidade’ — impulsos instintuais oriundos de fontes bem conhecidas nossas, com uma finalidade inequívoca, os quais, porém, sofrem uma parada no caminho rumo à satisfação, de maneira que se efetua uma duradoura catexia objetal e se estabelece uma permanente tendência [de sentimento].Tal, por exemplo, é a relação do sentimento de ternura que, sem dúvida, se origina das fontes da necessidade sexual e invariavelmente renuncia à sua satisfação.

Os senhores constatam quantas características e vicissitudes dos instintos ainda fogem à nossa compreensão. Aqui se deve mencionar mais uma diferença que aparece entre os instintos sexuais e os de autopreservação e que seria da maior importância teórica se se aplicasse aos grupos como um todo. Os instintos sexuais fazem-se notar por sua plasticidade, sua capacidade de alterar suas finalidades, sua capacidade de se substituírem, que permite uma satisfação instintual ser substituída por outra; e por sua possibilidade de se submeterem a adiamentos, do que acabamos de dar um exemplo adequado nos instintos inibidos em suas finalidades. Agradar-nos-ia negar essas características aos instintos de autopreservação, dizer que estes são inflexíveis, não admitem atrasos, são imperiosos num sentido muito diverso e têm uma relação bem diferente com a repressão e a ansiedade. Mas uma breve reflexão nos diz que essa posição excepcional se aplica não a todos os instintos do ego, mas apenas à fome e à sede, e evidentemente se baseia numa característica peculiar das fontes desses instintos. Uma boa parte da impressão de confusão causada por tudo isso se deve ao fato de que não consideramos em separado as alterações que a influência do ego organizado efetua nos impulsos instintuais que originalmente pertenciam ao id.

Encontramo-nos em solo mais firme quando investigamos a maneira como a vida dos instintos serve à função sexual. Nesse ponto, temos adquirido conhecimentos bem definidos, com os quais também os senhores já estão familiarizados. Não é que reconheçamos, pois, um instinto sexual que seja desde o início o veículo de uma corrente dirigida para a finalidade da função sexual — a união das duas células sexuais. O que vemos é um grande número de instintos componentes que surgem de diferentes áreas e regiões do corpo, que se empenham por obter satisfação muito independentemente uns dos outros e encontram essa satisfação em algo que podemos chamar de ‘prazer do órgão’. Os genitais constituem a última dessas ‘zonas erógenas’, e o nome prazer ‘sexual’ não pode ser abstraído do respectivo prazer do órgão. Esses impulsos que buscam o prazer não são todos agrupados na organização final da função sexual. Muitos deles são postos de lado como inservíveis, pelarepressão ou por outros meios; alguns deles são desviados de sua finalidade pela maneira extraordinária que mencionei ver em [[1]], e usados para reforçar outros impulsos; e ainda outros subsistem em papéis secundários e servem à execução de atos introdutórios, à produção de pré-prazer. Os senhores já sabem como, no decorrer desse desenvolvimento prolongado, podem ser reconhecidas diversas fases da organização primitiva, e também sabem como essa história da função sexual explica suas aberrações e atrofias. A primeira dessas fases ‘pré-genitais’ é conhecida como fase oral, porque, de conformidade com a maneira como um lactente é alimentado, a zona erógena da boca domina o que se pode denominar de atividade sexual desse período da vida. Numa etapa seguinte, passam a primeiro plano os impulsos sádicos e anais, sem dúvida em conexão com o aparecimento dos dentes, o fortalecimento do aparelho muscular e o controle das funções esfincterianas. Aprendemos numerosos detalhes interessantes a respeito desse estádio notável do desenvolvimento, em particular. Em terceiro lugar, vem a fase fálica na qual, em ambos os sexos, o órgão masculino (e o que corresponde a este nas meninas) assume uma importância que não pode mais ser negligenciada. Reservamos o nome de fase genital para a organização sexual definitiva, que se estabelece após a puberdade e na qual o órgão genital feminino, pela primeira vez, encontra o reconhecimento que o órgão masculino havia adquirido muito tempo antes.

Até aqui, tudo isso é repetição cediça. E não devem os senhores supor que as muitas coisas que não mencionei desta vez, não tenham mais validade. Essa repetição fez-se necessária, de modo que eu pudesse utilizá-la como ponto de partida para um relato dos progressos em nossos conhecimentos. Podemos orgulhar-nos de haver aprendido muita coisa nova, especialmente acerca das primeiras organizações da libido, e de havermos obtido uma compreensão mais nítida da importância daquilo que é antigo; e para demonstrar isto dar-lhes-ei pelo menos alguns exemplos. Abraham mostrou, em 1924, que se pode distinguir dois estádios na fase sádico-anal. O primeiro desses estádios é dominado pelas tendências destrutivas de destruir e de perder, e o segundo estádio, por tendências afetuosas para com os objetos — tendências de manter e de possuir. É no meio dessa fase, portanto, que aconsideração pelo objeto aparece, pela primeira vez, como precursora de uma catexia erótica ulterior. Da mesma forma estamos certos ao fazer uma subdivisão semelhante na primeira fase, a fase oral. No primeiro subestádio, o que está em questão é somente a incorporação oral, não há absolutamente ambivalência em relação ao objeto — o seio materno. O segundo estádio, caracterizado pelo surgimento da atividade de morder, pode ser descrito como estádio ‘oral-sádico’, este mostra, pela primeira vez, os fenômenos da ambivalência, que se tornam tão mais claros, posteriormente, na fase sádico-anal. O valor dessas novas distinções pode ser verificado especialmente se procurarmos os pontos disposicionais na evolução da libido em determinadas neuroses, tais como a neurose obsessiva ou a melancolia. Aqui os senhores devem recordar o que já temos apreendido acerca da correlação entre fixação da libido, disposição e regressão.

Nossa atitude para com as fases da organização da libido modificou-se um pouco, de um modo geral. Ao passo que, anteriormente, enfatizávamos principalmente a forma como cada fase transcorria antes da fase seguinte, nossa atenção, agora, dirige-se aos fatos que nos mostram quanto de cada fase anterior persiste junto a configurações subseqüentes, e depois delas, e obtém uma representação permanente na economia libidinal e no caráter da pessoa. Tornaram-se ainda mais interessantes os estudos que nos ensinaram com que freqüência, sob condições patológicas, ocorrem regressões a fases anteriores, e que determinadas regressões são características de determinadas formas de doença. Não posso, contudo, entrar nesse assunto, aqui; ele faz parte da psicologia especializada das neuroses.

Temos conseguido estudar as transformações do instinto e processos similares, especialmente no erotismo anal, as excitações que surgem das fontes da zona erógena anal; e causou-nos surpresa a multiplicidade de usos a que esses impulsos instintuais são destinados. Talvez não possa ser fácil livrar essa zona específica daquele menosprezo em que caiu no curso da evolução. Deixemos, pois, que Abraham nos lembre que, embriologicamente, o ânus corresponde à boca primitiva que migrou para baixo, para a parte terminal do intestino. Temos constatado, ainda, que, depois que as fezes, os excrementos de uma pessoa, perderam seu valor para essa pessoa, esseinteresse intestinal, derivado da origem anal, transfere-se para objetos que podem ser dados como dádivas. E isto é exatamente assim, pois as fezes foram a primeira dádiva que uma criança pôde dar, algo que ela pôde entregar por amor a quem estivesse cuidando dela. Depois disso, correspondendo exatamente a mudanças análogas de significado que ocorrem na evolução lingüística, esse antigo interesse pelas fezes transforma-se no grande valor concedido ao ouro e ao dinheiro, mas também contribui para a catexia afetiva de bebê e de pênis. Entre as crianças, as quais por longo tempo conservam a teoria da cloaca, constitui convicção universal que os bebês nascem do intestino como o excremento: a defecação é o modelo do ato do nascimento. No entanto, também o pênis tem o seu precursor na coluna fecal que enche e estimula a membrana mucosa do intestino. Quando uma criança, muito a contragosto, vem a perceber que há criaturas humanas que não possuem pênis, este aparece-lhe como algo destacável do corpo e se torna inequivocamente análogo ao excremento, que foi a primeira peça de material corporal a que teve de renunciar. Assim, uma grande parte do erotismo anal é transportada para a catexia do pênis. O interesse por essa parte do corpo tem, contudo, além de sua origem anal-erótica, uma origem oral, que talvez seja ainda mais poderosa: pois quando a sucção chega ao fim, o pênis também se torna herdeiro do mamilo do seio materno.

Se não se está cônscio dessas conexões profundas, é impossível orientar-se nas fantasias dos seres humanos, nas suas associações, que são tão influenciadas pelo inconsciente, e na sua linguagem sintomática. Fezes — dinheiro — dádiva — bebê — pênis são aí tratados como se significassem a mesma coisa, e representados, também, pelos mesmos símbolos. E não devem esquecer que apenas pude dar-lhes informações muito incompletas. Rapidamente posso acrescentar, talvez, que o interesse pela vagina, que desperta mais tarde, também é essencialmente de origem anal-erótica. Isto não é de causar admiração, de vez que a vagina, para tomar emprestada uma expressão adequada de Lou Andreas-Salomé [1916], é ‘alugada’ do reto: na vida dos homossexuais, que fracassaram na complementação duma parte do desenvolvimento sexual normal, a vagina é representada pelo reto. Nos sonhos, muitas vezes, aparece um local que era anteriormente um só compartimento, mas que agora está dividido em dois, por meio de uma parede, ouvice-versa. Isto sempre significa a relação entre vagina e intestino. Também é fácil compreender como, nas meninas, aquilo que é inteiramente um desejo nada feminino de possuir um pênis, normalmente se transforma no desejo de ter um bebê, e, portanto, no desejo de ter um homem, detentor do pênis e doador do bebê; de modo que nisto podemos ver, também, como uma parte do que originalmente era interesse anal-erótico obtém acesso à organização genital subseqüente.

Durante nossos estudos das fases pré-genitais da libido, também adquirimos novas compreensões internas (insights) da formação do caráter. Verificamos existir uma tríade de traços de caráter que se encontram juntos, com grande regularidade: ordem, parcimônia e obstinação; e da análise de pessoas que mostram esses traços, inferimos que estes se originam do seu erotismo anal, que foi absorvido e utilizado de maneira diferente. Por conseguinte, falamos de um ‘caráter anal’ no qual encontramos essa notável contribuição e assinalamos um determinado contraste entre o caráter anal e o erotismo anal inalterado. Descobrimos, ademais, uma vinculação semelhante, contudo talvez ainda mais definida, entre ambição e erotismo uretral. Uma notável alusão a essa correlação pode ser observada na lenda segundo a qual Alexandre Magno nasceu na mesma noite em que certo Heróstrato ateou fogo ao venerado Templo de Artêmis, em Éfeso, por simples desejo de obter fama. Assim pareceria que os antigos não desconheciam essa correlação. Os senhores naturalmente sabem quanto o urinar tem a ver com fogo e com extinguir fogo. Por certo esperamos que também outros traços de caráter venham a revelar-se, de modo semelhante, como cristalização ou formações reativas relacionadas a determinadas estruturas libidinais pré-genitais; mas ainda não conseguimos demonstrar esse fato.

 

É, agora, no entanto, a ocasião e eu voltar atrás, tanto na história, como no meu tema, e novamente abordar os problemas mais gerais da vidainstintual. No início, a oposição entre os instintos do ego e os instintos sexuais jazia na base de nossa teoria da libido. Quando, mais tarde, começamos a estudar mais detidamente o ego propriamente dito e chegamos à concepção do narcisismo, essa distinção como tal perdeu sua razão de ser. Em casos raros, pode-se observar que o ego se tomou a si mesmo como objeto e se comporta como se estivesse apaixonado por si próprio. Daí o termo narcisismo, tomado do mito grego. No entanto, isso é apenas um exagero extremo de uma situação normal. Chegamos a compreender que o ego é sempre o principal reservatório de libido, do qual emanam catexias libidinais de objeto e ao qual elas retornam, enquanto a maior parte dessa libido mantém-se permanentemente no ego. Assim, a libido do ego está sendo constantemente transformada em libido objetal, e a libido objetal, em libido do ego. Mas, nesse caso, elas não podiam ser diferentes em sua natureza, e não podia haver sentido em distinguir a energia de um da energia do outro; poderíamos ou eliminar o termo ‘libido’ ou deixar de empregá-lo como sinônimo de energia psíquica em geral.

Não mantivemos muito tempo essa posição. Nossa intuição de haver um antagonismo na vida instintual encontrou, em pouco tempo, uma outra expressão mais nítida. Não é meu desejo, todavia, expor aos senhores a origem dessa inovação na teoria dos instintos; também ela se baseia essencialmente em razões biológicas. Mostrá-la-ei aos senhores, como um produto acabado. Nossa hipótese reside em que existem essencialmente duas classes diferentes de instintos: os instintos sexuais, compreendidos no mais amplo sentido — Eros, se preferem esse nome —, e os instintos agressivos, cuja finalidade é a destruição. Quando isto é, assim, posto diante dos senhores, dificilmente o considerarão novidade. Parece uma tentativa de transfiguração teórica da comum oposição entre amar e odiar, que coincide, quem sabe, com a outra polaridade, atração e repulsão, que a física supõe existir no mundo inorgânico. Contudo, deve-se observar que essa hipótese, não obstante, é sentida por muitas pessoas como inovação e, na verdade, como inovação das mais indesejáveis, que deveria ser eliminada tão depressa quanto possível. Suponho que nessa rejeição está em jogo um poderoso fator afetivo. Por que necessitamos de tempo tão longo para nos decidirmos a reconhecer uminstinto agressivo? Por que hesitamos em utilizarmos, em benefício de nossa teoria, de fatos que eram óbvios e familiares a todos? Teríamos, provavelmente, encontrado pouco resistência, se quiséssemos atribuir a animais um instinto com uma tal finalidade. Todavia, parece sacrílego incluí-lo na constituição humana; contradiz muitíssimas suposições religiosas e convenções sociais. Não; naturalmente, o homem deve ser bom, ou, ao menos, de boa índole. Se, ocasionalmente, se mostra brutal, violento ou cruel, isto são apenas perturbações transitórias de sua vida emocional, na sua maior parte provocadas, ou, talvez, apenas conseqüências das regras sociais inadequadas que ele, até então, impôs a si mesmo.

Infelizmente, o que a História nos conta e o que nós mesmos temos experimentado, não fala nesse sentido, mas, antes, justifica a conclusão de que a crença na ‘bondade’ da natureza humana é uma dessas perniciosas ilusões com as quais a humanidade espera seja sua vida embelezada e facilitada, enquanto, na realidade, só causam prejuízo. Não temos por que prosseguir nessa controvérsia, pois temos argumentado a favor de um instinto agressivo e destrutivo nos homens, não por causa dos ensinamentos da história, ou da nossa experiência de vida, mas com base em razões gerais, às quais fomos levados ao examinar os fenômenos do sadismo e do masoquismo. Conforme sabem, denominamos sadismo àquela situação em que o sujeito, para obter satisfação sexual, depende da condição de o seu objeto sofrer dor, maus-tratos e humilhações; e masoquismo, a situação em que o sujeito sente necessidade de ser ele mesmo o objeto maltratado. Conforme todos sabem, uma determinada mistura dessas duas tendências está incluída nas relações sexuais normais, e falamos em perversões quando estas deslocam para o plano secundário os fins sexuais e os substituem por seus próprios fins. E dificilmente os senhores terão deixado de perceber que o sadismo está mais intimamente relacionado à masculinidade, e o masoquismo, à feminilidade, como se houvesse a presença de um parentesco secreto; todavia, devo acrescentar que não temos feito progresso nessa área. Ambos os fenômenos, tanto o sadismo como o masoquismo, contudo muito especialmente o masoquismo, apresentam um problema verdadeiramente enigmático para a teoria da libido, o qual será equacionado apenas se o que constituiu uma pedra no caminho de uma teoria, puder tornar-se a pedra angular da teoria que a substitui.

É nossa opinião, portanto, que no sadismo e no masoquismo temos diante de nós dois excelentes exemplos e uma mistura das duas classes de instinto, de Eros e de agressividade; e formulamos a hipótese de que essa relação é uma relação-modelo — que todo impulso instintual que pudermos examinar, consiste em fusões ou ligas parecidas das duas categorias de instintos. Naturalmente, essas fusões far-se-iam nas mais variadas proporções. Assim, os instintos eróticos introduziriam a multiplicidade de seus fins sexuais na fusão, enquanto os outros apenas admitiriam atenuações ou gradações em sua tendência uniforme. Essa hipótese abre-nos a perspectiva de investigações que um dia poderão ser de grande importância para a compreensão de processos patológicos. Isso porque as fusões também podem desfazer-se, e podemos supor que o funcionamento será afetado de forma muito grave por desfusões dessa espécie. Essas concepções, porém, ainda são demasiado novas; ninguém ainda tentou aplicá-las, em nosso trabalho.

Retornemos ao problema especial que o masoquismo nos apresentou. Se, por um momento, colocamos de lado seus componentes eróticos, ele nos dá a certeza da existência de uma tendência que tem como objetivo a autodestruição. Se também no que diz respeito ao instinto de destruição e à libido, corresponde à verdade que o ego — porém aqui queremos nos referir preferentemente ao id, à pessoa total — originalmente inclui todos os impulsos instintuais, somos levados a pensar que o masoquismo é mais antigo do que o sadismo e que este, o sadismo, é o instinto destrutivo dirigido para fora, adquirindo assim a característica de agressividade. Uma determinada quantidade do instinto destrutivo original pode ainda permanecer no seu interior. Parece que apenas podemos percebê-lo sob duas condições: se está combinado com instintos eróticos no masoquismo, ou se — com um acréscimo erótico maior ou menor — está dirigido contra o mundo externo, sob forma de agressividade. E, com isso, acode-nos ao pensamento a importância da possibilidade de que a agressividade pode não conseguir encontrar satisfação no mundo externo, porque se defronta com obstáculos reais. Se isto acontece, talvez ela se retraia e aumente a quantidade de autodestrutividade reinante no interior. Veremos como é que de fato isto ocorre, e como é importante esse processo. A agressividade tolhida parece implicar um grave dano. Realmente, parece necessário que destruamos alguma outra coisa ou pessoa, a fim de não nos destruirmos a nós mesmos, a fim de nos protegermos contra a impulsão de autodestruição. Realmente, uma triste descoberta para o moralista!  O moralista, contudo, se consolidará, por muito tempo, pensando na improbabilidade de nossas especulações. Realmente, estranho instinto é este, que se volta para a destruição de sua própria morada orgânica essencial! É verdade que os poetas falam dessas coisas; mas os poetas são pessoas irresponsáveis e gozam do privilégio da licença poética. Aliás, essas idéias não são estranhas nem à fisiologia; atentem para a idéia, por exemplo, da membrana mucosa do estômago digerindo a si própria. Deve-se admitir, contudo, que nosso instinto autodestrutivo exija apoio numa base mais ampla. Afinal, não se pode arriscar com uma hipótese de tão largo alcance, simplesmente porque uns pobres loucos uniram sua satisfação sexual a condições peculiares. Acredito que um estudo mais profundo dos instintos nos proporcionará aquilo de que necessitamos. Os instintos regem não só a vida mental, mas também a vida vegetativa, e esses instintos essenciais exibem uma característica que merece o nosso mais profundo interesse. (Não poderemos julgar, senão mais tarde, se se trata de uma característica geral dos instintos.) O fato é que eles revelam uma propensão a restaurar uma situação anterior. Podemos supor que, desde o momento em que uma situação, tendo sido uma vez alcançada, é desfeita, surge um instinto para criá-la novamente e ocasiona fenômenos que podemos descrever como uma ‘compulsão à repetição’. Assim, toda a embriologia é um exemplo da compulsão à repetição. Uma capacidade de regenerar órgãos perdidos estende-se amplamente ao reino animal, e o instinto de recuperação, ao qual, ao lado da ajuda terapêutica, devemos nossas curas, deve ser o remanescente dessa capacidade tão extraordinariamente desenvolvida em animais inferiores. Peixes que migram para a desova, pássaros que voam em migração, e possivelmente tudo o que qualificamos como manifestação de instinto em animais, realizam-se sob as ordens da compulsão à repetição, que exprime a natureza conservadora dos instintos. E não temos de procurar muito por suas manifestações na área mental. Chamou-nos a atenção o fato de que experiências reprimidas e esquecidas da infância são reproduzidas, durante o trabalho da análise, nos sonhos e nas reações, particularmente naquelas ocorrentes na transferência, embora seu revivescimento vá de encontro ao interesse do princípio de prazer. [Cf. [1]]; explicamos esse fato com a suposição de que, nesses casos, uma compulsão à repetição vence até mesmo o princípio de prazer. Fora da análise, também, pode-se observar algo semelhante. Há pessoas em cujas vidasse repetem indefinidamente as mesmas reações não-corrigidas, em prejuízo delas próprias, assim como há outras pessoas que parecem perseguidas por um destino implacável, embora uma investigação mais atenta nos mostre que tais pessoas, sem se aperceberem, causam a si mesmas esse destino. Em tais casos, atribuímos um caráter ‘demoníaco’ à compulsão à repetição.

Como essa característica conservadora dos instintos pode, contudo, auxiliar-nos a entender nossa autodestrutividade? Que situação anterior um instinto desses quer restaurar? Bem, a resposta, não é tão difícil encontrá-la, e ela abre amplas perspectivas. Se é verdade que — em alguma época incomensuravelmente remota e numa forma que não podemos imaginar — a vida se originou da matéria inorgânica, então, de acordo com nossa suposição, deve ter surgido um instinto que procurou eliminar a vida novamente e restabelecer o estado inorgânico. Se reconhecemos nesse instinto a autodestrutividade de nossa hipótese, podemos considerar a autodestrutividade expressão de um ‘instinto de morte’ que não pode deixar de estar presente em todo processo vital. Ora, os instintos, nos quais acreditamos, dividem-se em dois grupos — os instintos eróticos, que buscam combinar cada vez mais substância viva em unidades cada vez maiores, e os instintos de morte, que se opõem a essa tendência e levam o que está vivo de volta a um estado inorgânico. Da ação concorrente e antagônica desses dois procedem os fenômenos da vida que chegam ao seu fim com a morte.

Talvez os senhores venham a sacudir os ombros e dizer: ‘Isto não é ciência natural, é filosofia de Schopenhauer!’ Mas, senhoras e senhores, por que um pensador ousado não poderia ter entrevisto algo que depois se confirma por intermédio de uma pesquisa séria e laboriosa? Ademais, não há nada que já não tenha sido dito, e coisas parecidas tinham sido ditas por muitas pessoas, antes de Schopenhauer. E mais, o que estamos dizendo não é nem mesmo Schopenhauer autêntico. Não estamos afirmando que a morte é o único objetivo da vida; não estamos desprezando o fato de que existe vida, assim como existe morte. Reconhecemos dois instintos básicos, e atribuímos a cada um deles a sua própria finalidade. Como os dois se mesclam no processo de viver, como o instinto de morte é posto a serviço dos propósitos de Eros, especialmente sendo voltado para fora na forma de agressividade — estas são tarefas reservadas à investigação futura. Não fomos além do ponto em que essa perspectiva está aberta para nós. Também a questão de saber se o caráter conservador não poderia pertencer a todos os instintos, sem exceção; se também os instintoseróticos não poderiam estar buscando reconstituir uma situação prévia, ao se empenharem por efetuar uma síntese de coisas vivas em unidades sempre maiores — também essas questões devemos deixar sem resposta.

Desviamo-nos bastante de nossa base. Relatar-lhes-ei, num retrospecto, o ponto de partida dessas reflexões sobre a teoria dos instintos. Foi o mesmo que nos levou a rever a relação entre o ego e o inconsciente — a impressão, decorrente do trabalho analítico, de que o paciente, que opõe uma resistência, muitas vezes não se apercebe dessa resistência. Todavia, não só o fato da resistência lhe é inconsciente, como também o são os seus motivos. Fomos obrigados a investigar os motivos, ou o motivo, e, para nossa surpresa, encontramo-los numa profunda necessidade de punição, que só podíamos classificar como desejo masoquista. A importância prática dessa descoberta não é menor do que sua importância teórica, de vez que a necessidade de punição é o pior inimigo de nosso trabalho terapêutico. Ela obtém satisfação no sofrimento que está vinculado à neurose, e por essa razão aferra-se à condição de estar doente. Parece que esse fato, uma necessidade inconsciente de punição, faz parte de toda doença neurótica. E aqui são inteiramente convincentes aqueles casos nos quais o sofrimento neurótico pode ser substituído por sofrimento de outra espécie. Referirei uma experiência desse tipo.

Certa vez, consegui livrar uma senhora, ainda solteira, já não tão jovem, do complexo de sintomas que a tinham condenado, por uns quinze anos, a uma existência de tormento, havendo-a excluído de qualquer participação na vida. Sentindo, então, que estava bem, lançou-se a uma intensa atividade, a fim de desenvolver seu talento, que não era pequeno, e de obter um pouco de reconhecimento, prazer e êxito, embora o momento fosse um pouco tardio. Cada um dos seus intentos, porém, terminava quando as pessoas a faziam reconhecer, ou ela própria reconhecia, que já possuía demasiada idade para realizar alguma coisa naquela área. Depois de cada desfecho dessa espécie, uma recaída na doença teria sido a coisa evidente; porém, ela não conseguia mais efetuar esse fato. E, no lugar disso, em cada oportunidade, ela se envolvia num acidente, que a colocava fora de ação, por um tempo, e lhe causava sofrimento. Caía e sofria entorse do tornozelo, ou contundia o joelho, ou feria a mão em alguma coisa que estava fazendo. Quando tomou consciência de quão grande podia ser sua participação nesses aparentes acidentes, ela, por assim dizer, mudou de técnica. Em vez de acidentes, surgiramindisposições com as mesmas causas — resfriados, amigdalites, estados gripais, afecções reumáticas —, até que, por fim, resolveu renunciar às suas tentativas, e toda a agitação findou.

Pensamos não existir dúvidas quanto à origem dessa necessidade inconsciente de punição. Comporta-se como uma parcela de consciência, como um prolongamento de nossa consciência para dentro do inconsciente; e deve ter a mesma origem que a consciência e corresponde, pois, a uma parcela de agressividade que foi internalizada e assumida pelo superego. Aqui nos bastaria ordenar adequadamente as palavras para que se justificasse, para todos os fins práticos, chamá-la de ‘sentimento inconsciente de culpa’. Teoricamente, com efeito, temos dúvidas quanto a se devemos supor que toda a agressividade que retornou do mundo externo é ligada pelo superego e, por conseguinte, voltada contra o ego; ou se devemos supor que uma parte da mesma está exercendo sua atividade muda e sinistra, sob forma de instinto destrutivo livre, no ego e no id. Uma distribuição segundo a última forma citada é a mais provável; porém, não sabemos nada mais a esse respeito. Sem dúvida, quando o superego foi instituído pela primeira vez, para equipar essa instância, fez-se uso da parcela de agressividade infantil dirigida contra os pais, pelo que lhe foi impossível efetuar uma descarga para fora, devido à sua fixação erótica, bem como em virtude de dificuldades externas; e, por esse motivo, a severidade do superego não corresponde necessariamente à rigidez da criação da criança [ver [1]] É bem possível que, quando há, subseqüentemente, ocasião para suprimir a agressividade, o instinto possa tomar o mesmo caminho que lhe esteve aberto naquele momento decisivo.

As pessoas, nas quais esse sentimento inconsciente de culpa é excessivamente forte, manifestam-se no tratamento analítico pela reação terapêutica negativa, que é tão desagradável do ponto de vista prognóstico. Quando se lhes proporciona a solução de um sintoma, que pelo menos deveria acompanhar-se do desaparecimento deste, o que essas pessoas apresentam é, ao invés, uma exacerbação do sintoma e da doença. Muitas vezes, basta elogiar tais pacientes por sua conduta no tratamento, ou dizer-lhes umas palavras de esperança a respeito do progresso da análise, para causar uma inequívoca piora de sua condição. Um não-analista diria que a ‘vontade de se recuperar’ estava ausente. Se seguirem a maneira analítica de pensar, verão nesse comportamento uma manifestação do sentimento inconsciente de culpa, para o qual estar doente, com seus sofrimentos e limitações, é exatamente o quese deseja. Os problemas que o sentimento inconsciente de culpa desvendou, suas conexões com a moralidade, a educação, o ciúme e a delinqüência são, atualmente, o campo de trabalho preferido dos psicanalistas. E aqui, num ponto inesperado, emergimos do subterrâneo psíquico para a plena luz do dia. Não posso levá-los mais longe, mas, antes de despedir-me dos senhores, por hoje, devo retê-los com mais uma seqüência de idéias. Tornou-se hábito nosso dizer que nossa civilização foi construída à custa das tendências sexuais que, sendo inibidas pela sociedade, são, com efeito, em parte reprimidas, mas, em parte, tornaram-se utilizáveis em outros fins. Também temos admitido que, a despeito de todo o nosso orgulho por nossas conquistas culturais, não nos é fácil satisfazer os requisitos dessa civilização e sentir-nos à vontade nela, porque as restrições instintuais impostas a nós constituem uma pesada carga psíquica. Pois bem, o que vimos acerca dos instintos sexuais aplica-se igualmente, e talvez ainda mais, a outros instintos, os instintos agressivos. São estes, acima de tudo, que tornam difícil a vida do homem em comunidade e ameaçam sua sobrevivência. A restrição à agressividade do indivíduo é o primeiro e talvez o mais severo sacrifício que dele exige a sociedade. Temos verificado de que maneira simplista se conseguiu domar essa coisa indomável. A instituição do superego, que toma conta dos impulsos agressivos perigosos, introduz um destacamento armado, por assim dizer, nas regiões inclinadas à rebelião. Mas, por outro lado, se a encaramos exclusivamente do ponto de vista psicológico, devemos reconhecer que o ego não se sente feliz ao ser assim sacrificado às necessidades da sociedade, ao ter que se submeter às tendências destrutivas da agressividade, que ele teria tido a satisfação de empregar contra os outros. É como que um prolongamento, na esfera mental, do dilema ‘comer ou ser comido’ que domina o mundo orgânico animado. Felizmente, os instintos agressivos nunca estão sozinhos, mas sempre amalgamados aos eróticos. Estes, os instintos eróticos, têm muita coisa a atenuar e muita coisa a obviar sob as condições da civilização que a humanidade criou.

 

CONFERÊNCIA XXXIII

FEMINILIDADE

 

SENHORAS E SENHORES:

 

Durante todo esse tempo em que me estou preparando para falar-lhes, luto com uma dificuldade interna. Não tenho certeza, por assim dizer, da extensão daquilo que me é permitido. É verdade que, no decurso de quinze anos de trabalho, a psicanálise modificou-se e se tornou mais rica; apesar disso, uma introdução à psicanálise poderia ter ficado sem alteração ou suplemento. Está constantemente em meu pensamento que estas conferências não têm uma raison d’être. Para analistas estou dizendo muito pouca coisa e não estou absolutamente dizendo algo novo; mas, para os senhores, estou dizendo muitíssimo, dizendo coisas que os senhores não estão preparados para entender, coisas que não estão no seu campo de atividade. Procurei desculpas e tentei justificar cada conferência, isoladamente, com base em motivos diferentes. A primeira, sobre a teoria dos sonhos, assim se supôs, reconduziu-os, novamente e sem delongas, à atmosfera analítica e mostrou-lhes como nossos pontos de vista se revelaram duráveis. Passei, depois, à segunda conferência, que abrangeu desde os sonhos até o chamado ocultismo, aproveitando a oportunidade de, sem restrições, dizer o que penso acerca de uma área de trabalho, na qual, atualmente, expectativas preconceituosas lutam contra resistências acirradas, e eu podia esperar que o discernimento dos senhores, instruídos para serem tolerantes, tendo como exemplo a psicanálise, não se recusaria a acompanhar-me nessa empreitada. A terceira conferência, sobre a dissecção da personalidade, exigiu dos senhores o máximo, com seu tema desconhecido; mas para mim foi impossível sonegar-lhes esse primeiro começo de uma psicologia do ego, e, se a tivéssemos quinze anos atrás, te-la-ia mencionado para os senhores naquela época. Por fim, minha última conferência, que os senhores provavelmente só puderam acompanhar com grande esforço, apresentou correções necessárias — novastentativas de solucionar os mais importantes enigmas; e minha introdução te-los-ia deixado desorientados, se tivesse silenciado a respeito delas. Como vêem, quando alguém começa a desculpar-se, no final resulta que tudo foi inevitável, foi tudo obra do destino. Submeto-me a ele, e peço-lhes que façam o mesmo.

A conferência de hoje também não deveria caber numa introdução; pode, contudo, servir para ilustrar-lhes uma parte detalhada do trabalho analítico, e posso dizer duas coisas para recomendá-la. Ela não nos apresenta senão fatos observados, quase sem qualquer acréscimo teórico, e trata de um assunto que, quase mais do que qualquer outro, faz jus ao interesse dos senhores. Através da história, as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da feminilidade.

 

Häupter in Hieroglyphenmützen, Häupter in Turban und schwarzem Barett, Perückenhäupter und tausend andre Arme, schwitzende Menschenhäupter …

 

E nem os senhores escaparam de se preocupar com esse problema — aqueles dentre os senhores que são homens; a quem, dentre os senhores, é mulher, isto não se aplica — as senhoras mesmas constituem o problema. Quando encontram um ser humano, a primeira distinção que fazem é ‘homem ou mulher?’ e os senhores estão habituados a fazer essa distinção com certeza total. A ciência anatômica compartilha dessa certeza dos senhores num ponto, não mais que isto. O produto sexual masculino, o espermatozóide, e seu veículo são masculinos; o óvulo e o organismo que o abriga são femininos. Em ambos os sexos, formaram-se órgãos que servem exclusivamente às funções sexuais; provavelmente desenvolveram-se da mesma disposição [inata] em duas formas diferentes. Ademais disso, em ambos os sexos os outros órgãos, as formas e tecidos corporais mostram a influência do sexo do indivíduo, mas isto é inconstante, sua quantidade é variável; são aquilo que se conhece como características sexuais secundárias. Depois, a ciência diz-lhes algo que se opõe às expectativas dos senhores e por certo haverá de confundir os seus sentimentos. Chama a atenção dos senhores para o fato deque partes do aparelho sexual masculino também aparecem no corpo da mulher, ainda que em estado atrofiado, e vice-versa. Considera tais ocorrências como indicações de bissexualidade, como se um indivíduo não fosse homem ou mulher, mas sempre fosse ambos — simplesmente um pouco mais de um, do que de outro. E então se lhes pede familiarizarem-se com a idéia de que a proporção em que masculino e feminino se misturam num indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas. De vez que, excetuando casos muitíssimos raros, apenas uma espécie de produto sexual — óvulos ou sêmen — está presente numa pessoa, os senhores, contudo, não poderão senão ter dúvidas quanto à importância decisiva desses elementos e devem concluir que aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia.

 

Estaria, quem sabe, nos domínios da psicologia? Estamos habituados a empregar ‘masculino’ e ‘feminino’ também como qualidades mentais, e da mesma forma temos transferido a noção de bissexualidade para a vida mental. Assim, dizemos que uma pessoa, seja homem ou mulher, se comporta de modo masculino numa situação e de modo feminino, em outra. Os senhores, porém, logo percebem que isto é apenas ceder à anatomia ou às convenções. Os senhores não podem conferir aos conceitos de ‘masculino’ e ‘feminino’ nenhuma conotação nova. A distinção não é uma distinção psicológica; quando dizem ‘masculino’, os senhores geralmente querem significar ‘ativo’, e quando dizem ‘feminino’, geralmente querem dizer ‘passivo’. Ora, é verdade que existe uma relação desse tipo. A célula sexual masculina é ativamente móvel e sai em busca da célula feminina, e esta, o óvulo, é imóvel e espera passivamente. Essa conduta dos organismos sexuais elementares é, na verdade, um modelo da conduta sexual dos indivíduos durante o coito. O macho persegue a fêmea com o propósito de união sexual, agarra-a e penetra nela. Com isso, os senhores justamente reduziram as características de masculinidade ao fator agressividade, no que se refere à psicologia. Bem podem duvidar se auferiram daí alguma vantagem real, quando refletem que, em algumas classes de animais, as fêmeas são mais fortes e mais agressivas e o macho é ativo unicamente no ato da união sexual. Assim ocorre, por exemplo, nas aranhas. Mesmo as funções de criar e de cuidar do filhote, que temos na conta de papel feminino par excellence, não estão invariavelmenteligadas ao sexo feminino, nos animais. Em espécies animais bem superiores, verificamos que ambos os sexos dividem entre si o trabalho de cuidar do filhote, ou que o próprio macho, sozinho, dedica-se a essa tarefa. Até mesmo na esfera da vida sexual humana, os senhores logo verão como é inadequado fazer o comportamento masculino coincidir com atividade e o feminino, com passividade. Uma mãe é ativa para com seu filho, em todos os sentidos; a própria amamentação também pode ser descrita como a mãe dando o seio ao bebê, ou ela sendo sugada por este. Quanto mais se afastarem da estreita esfera sexual, mais óbvio se lhes tornará o ‘erro de superposição’.As mulheres podem demonstrar grande atividade, em diversos sentidos; os homens não conseguem viver em companhia dos de sua própria espécie, a menos que desenvolvam uma grande dose de adaptabilidade passiva. Se agora os senhores me disserem que esses fatos provam justamente que tanto os homens como as mulheres são bissexuais, no sentido psicológico, concluirei que decidiram, na sua mente, a fazer coincidir ‘ativo’ com ‘masculino’ e ‘passivo’ com ‘feminino’. Mas advirto-os de que não o façam. Parece-me que não serve a nenhum propósito útil e nada acrescenta aos nossos conhecimentos.

Poder-se-ia considerar característica psicológica da feminilidade dar preferência a fins passivos. Isto, naturalmente, não é o mesmo que passividade; para chegar a um fim passivo, pode ser necessária uma grande quantidade de atividade. Talvez seja o caso de que numa mulher, com base na sua participação na função sexual, a preferência pelo comportamento passivo e por fins passivos se estenda à sua vida, em grau maior ou menor, proporcionalmente aos limites, restritos ou amplos, dentro dos quais sua vida sexual serve, assim, de modelo. Devemos, contudo, nos acautelar nesse ponto, para não subestimar a influência dos costumes sociais que, de forma semelhante, compelem as mulheres a uma situação passiva. Tudo isso ainda está longe de uma elucidação. Existe uma relação particularmente constante entre feminilidade e vida instintual, que não devemos desprezar. A supressão da agressividade das mulheres, que lhes é instituída constitucionalmente e lhes é imposta socialmente, favorece o desenvolvimento de poderosos impulsosmasoquistas que conseguem, conforme sabemos, ligar eroticamente as tendências destrutivas que foram desviadas para dentro. Assim, o masoquismo, como dizem as pessoas, é verdadeiramente feminino. Mas, como acontece tantas vezes, se os senhores encontram masoquismo em homens, que lhes resta senão dizer que tais homens mostram traços femininos muito evidentes?

Os senhores, agora, já estão preparados para saber que também a psicologia é incapaz de solucionar o enigma da feminilidade. Sem dúvida, a explicação deve provir de outras fontes e só pode vir quando houvermos aprendido de que modo, em geral, se efetuou a diferenciação dos organismos vivos em dois sexos. Disto nada sabemos, conquanto a existência de dois sexos seja uma característica muito surpreendente da vida orgânica, que a distingue nitidamente da natureza inanimada. Contudo, encontramos muito que estudar nesses indivíduos humanos que, mediante a posse de genitais femininos, são caracterizados como manifestamente ou predominantemente femininos. De acordo com sua natureza peculiar, a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher — seria esta uma tarefa difícil de cumprir —, mas se empenha em indagar como é que a mulher se forma, como a mulher se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual. Em épocas recentes, começamos a aprender um pouco acerca dessas coisas, graças à circunstância de várias de nossas excelentes colegas de análise terem começado a trabalhar a questão. A discussão desse aspecto adquiriu atração especial, a partir da distinção entre os sexos. Pois essas senhoras, sempre que alguma comparação parecia mostrar-se desfavorável ao seu sexo, conseguiram expressar a suspeita de que nós, analistas homens, não tínhamos conseguido superar determinados preconceitos profundamente arraigados contra aquilo que era feminino, e que esse fato estava sendo responsável pela parcialidade de nossas pesquisas. Nós, por nossa vez, com base na bissexualidade, não tínhamos dificuldade em evitar a indelicadeza. Apenas tínhamos de dizer: ‘Isto não se aplica às senhoras. As senhoras são a exceção; neste ponto, são mais masculinas do que femininas.’

Abordamos a investigação do desenvolvimento sexual da mulher com duas expectativas. A primeira é que, aqui, novamente, a constituição não se adaptará à sua função sem uma luta. A segunda reside em que os pontos críticos decisivos já terão sido preparados ou completados antes da puberdade. Ambas as expectativas confirmam-se de imediato. Ademais, a comparação com o que acontece com os meninos nos mostra ser o desenvolvimento de uma menininha em mulher normal mais difícil e mais complexo, de vez que inclui duas tarefas extras às quais não há nada de equivalente no desenvolvimento de um homem. Acompanhemos as linhas paralelas desde oseu começo. Indubitavelmente, o material é diferente, no início, em meninos e em meninas: não era necessário que a psicanálise estabelecesse isto. A diferença na estrutura dos genitais acompanha-se de outras diferenças corporais que são por demais conhecidas para requerer menção aqui. As diferenças sobressaem também na disposição instintual que permite entrever a natureza subseqüente das mulheres. Uma menininha é, em geral, menos agressiva, desafiadora e auto-suficiente; ela parece ter mais necessidade de obter carinho e, por esse motivo, de ser mais dependente e dócil. Provavelmente, é apenas como conseqüência dessa docilidade que ela pode ser ensinada mais facilmente e com maior rapidez a controlar suas excreções: urina e fezes são as primeiras dádivas que as crianças dão a quem cuida delas [ver [1]], e controlá-las é a primeira concessão a que pode ser induzida a vida instintual das crianças. Também fica-se com a impressão de que as menininhas são mais inteligentes e mais espertas do que os meninos da mesma idade; elas saem mais ao encontro do mundo externo e, ao mesmo tempo, formam catexias objetais mais intensas. Não sei dizer se essas sondagens no desenvolvimento foram confirmadas por observações exatas; mas, em todo caso, não há dúvida de que as meninas não podem ser classificadas como intelectualmente atrasadas. Essas diferenças sexuais não possuem conseqüência maior: podem ser sobrepujadas por variações individuais. Para nossos fins imediatos, podem ser negligenciadas.

Ambos os sexos parecem atravessar da mesma maneira as fases iniciais do desenvolvimento libidinal. Poder-se-ia esperar que, nas meninas, já teria havido algum abrandamento da agressividade na fase sádico-anal, mas não é este o caso. A análise do brinquedo de crianças mostrou às nossas analistas de crianças que os impulsos agressivos de menininhas não deixam nada a desejar em matéria de quantidade e de violência. Com seu ingresso na fase fálica, as diferenças entre os sexos são completamente eclipsadas pelas suas semelhanças. Nisto somos obrigados a reconhecer que a menininha é um homenzinho. Nos meninos, conforme sabemos, essa fase é marcada pelo fato de que aprenderam a obter sensações prazerosas do seu pequeno pênis, e relacionam seu estado de excitação às suas idéias de relação sexual. As menininhas fazem o mesmo com seu diminuto clitóris. Parece que em todas elas a atividade masturbatória é executada nesse equivalente do pênis e que a vagina verdadeiramente feminina, a essa época, ainda não foi descoberta por ambos os sexos. É verdade que há também alguns relatos isolados de sensações vaginais precoces, mas não poderia ser fácil distingui-las de sensações no ânus ou no vestíbulo; de qualquer maneira, não podem ter muita importância. Estamos autorizados a manter nossa opinião segundo a qual, nafase fálica das meninas, o clitóris é a principal zona erógena. Mas, naturalmente, não vai permanecer assim. Com a mudança para a feminilidade, o clitóris deve, total ou parcialmente, transferir sua sensibilidade, e ao mesmo tempo sua importância, para a vagina. Esta seria uma das duas tarefas que uma mulher tem de realizar no decorrer do seu desenvolvimento, ao passo que o homem, mais afortunado, só precisa continuar, na época de sua maturidade, a atividade que executara anteriormente, no período inicial do surgimento de sua sexualidade.

Retornaremos ao papel que desempenha o clitóris; passemos agora à segunda tarefa que sobrecarrega o desenvolvimento da menina. Para um menino, sua mãe é o primeiro objeto de seu amor, e ela assim permanece também durante a formação do complexo de Édipo e, em essência, por toda a vida dele. Para a menina, também, o seu primeiro objeto deve ser sua mãe (e as figuras da babá e da nutriz, que nela se fundem). As primeiras catexias objetais ocorrem em conexão com a satisfação de necessidades vitais importantes e simples, e as circunstâncias relativas à criação dos filhos são as mesmas para ambos os sexos. Na situação edipiana, porém, a menina tem seu pai como objeto amoroso, e espera-se que no curso normal do desenvolvimento ela haverá de passar desse objeto paterno para sua escolha objetal definitiva. Com o passar do tempo, portanto, uma menina tem de mudar de zona erógena e de objeto — e um menino mantém ambos. Surge então a questão de saber como isto ocorre: particularmente, como é que a menina passa da vinculação com sua mãe para a vinculação com seu pai? ou, em outros termos, como passa ela da fase masculina para a feminina, à qual biologicamente está destinada?

Seria uma solução idealmente simples, se pudéssemos supor que, a partir de determinada idade em diante, a influência fundamental da atração recíproca entre os sexos se faz sentir e impele a mulherzinha para o homem, enquanto a mesma lei permite ao menino continuar com sua mãe. Poderíamos supor, de resto, que nesse ponto os filhos estão seguindo a indicação que lhes foi dada pela preferência sexual de seus pais. Não haveremos de encontrar as coisas tão fáceis assim, contudo; mal sabemos se podemos acreditar com seriedade no poder do qual os poetas falam tanto e com tanto entusiasmo, o qual, porém, analiticamente não pode ser investigado em maior profundidade. Encontramos uma resposta de tipo bem diverso à custa de laboriosas investigações, e pelo menos foi fácil chegar ao material respectivo. Pois ossenhores devem saber que é muito grande o número de mulheres que continuam, ainda em idade madura, dependentes de um objeto paterno, ou, na verdade, de seu pai real. A respeito dessas mulheres com uma intensa vinculação de longa duração para com o pai, temos constatado alguns fatos surpreendentes. Sabíamos, naturalmente, que houvera um estádio preliminar de vinculação com a mãe, mas não sabíamos que pudesse ser tão rico e tão duradouro, e pudesse deixar atrás de si tantas oportunidades para fixações e disposições. Durante essa fase, o pai da menina é apenas um rival incômodo; em alguns casos, a vinculação à mãe perdura além do quarto ano de vida. Quase tudo o que posteriormente encontramos em sua relação com o pai, já estava presente em sua vinculação inicial e foi transferido, subseqüentemente, para seu pai, Em suma, fica-nos a impressão de que não conseguimos entender as mulheres, a menos que valorizemos essa fase de sua vinculação pré-edipiana à mãe.

Será então de nosso agrado conhecermos a natureza das relações libidinais da menina para com sua mãe. A resposta é que tais relações se apresentam sob muitas formas diferentes. De vez que persistem através de todas as três fases da sexualidade infantil, também assumem as características das diversas fases e se expressam por desejos orais, sádico-anais e fálicos. Esses desejos representam impulsos ativos e também passivos; se os relacionamos à diferenciação dos sexos que vai surgir depois — embora devamos evitar de fazê-lo, até onde for possível —, podemos chamá-los de masculino e feminino. A par disto, são completamente ambivalentes, possuindo tanto uma natureza carinhosa, como hostil e agressiva. Esta última muitas vezes só vem à luz depois de haver-se transformado em idéias angustiantes. Nem sempre é fácil precisar uma formulação desses desejos sexuais iniciais; o que mais claramente se expressa é um desejo da menina, de ter da mãe um filho, e o desejo correspondente de ela mesma ter um filho — ambos desejos pertencentes ao período fálico e certamente surpreendentes, porém estabelecidos, acima de qualquer dúvida, pela observação analítica. O aspecto atraente dessas investigações está nas detalhadas e surpreendentes descobertas que nos trazem. Assim, por exemplo, descobrimos o medo de ser assassinada ou envenenada, o qual posteriormente poderá formar o núcleo de uma doença paranóide, presente já nesse período pré-edipiano, em relação à mãe. Ou um outro caso: os senhores haverão de recordar-se de um interessante episódio da história da pesquisa analítica, que me causou muitas horas de dissabor. No período em que o principal interesse voltava-se para a descoberta de traumas sexuais infantis, quase todas as minhas pacientes contavam-me haverem sido seduzidas pelo pai. Fui forçado a reconhecer, por fim, que taisrelatos eram inverídicos, e assim cheguei a compreender que os sintomas histéricos derivam de fantasias, e não de ocorrências reais. Apenas mais tarde pude reconhecer nessa fantasia de ser seduzida pelo pai a expressão do típico complexo de Édipo nas mulheres. E agora encontramos mais uma vez a fantasia de sedução na pré-história pré-edipiana das meninas; contudo, o sedutor é regularmente a mãe. Aqui, a fantasia toca o chão da realidade, pois foi realmente a mãe quem, por suas atividades concernentes à higiene corporal da criança, inevitavelmente estimulou e, talvez, até mesmo despertou, pela primeira vez, sensações prazerosas nos genitais da menina.

Não tenho dúvidas de que os senhores estão dispostos a manifestar a suspeita de que esse quadro da quantidade e da intensidade do relacionamento sexual da menininha com sua mãe estaria exagerado. Afinal, tem-se ocasião de ver menininhas, e não se observa nada dessa espécie. A objeção não procede, entretanto. São muitas as coisas que se pode ver nas crianças, basta saber olhar. Ademais, deveriam considerar quão pouco dos seus desejos sexuais uma criança pode admitir em plano pré-consciente, ou, muito menos, pode comunicar. Por conseguinte, estamos simplesmente dentro dos nossos direitos quando estudamos, em retrospecto, os remanescentes e as conseqüências do mundo emocional de pessoas nas quais esses processos de desenvolvimento atingiram um grau de expansão especialmente evidente, e até mesmo excessivo. A patologia sempre nos serviu para tornar perceptíveis,ao isolar e exagerar, aquelas situações que permaneceriam ocultas em um estado normal. E como nossas investigações foram efetuadas em pessoas que não eram, de modo algum, gravemente anormais, penso que devemos considerar merecedores de crédito os seus resultados.

Orientaremos, agora, nosso interesse no sentido de saber unicamente que coisa põe fim a essa poderosa vinculação da menina à sua mãe. Conforme sabemos, este é o seu destino habitual: está determinado a dar lugar a uma vinculação a seu pai. Aqui, deparamos com um fato que constitui uma indicação para nosso esclarecimento subseqüente. Esse passo no desenvolvimento não envolve apenas uma simples troca de objeto. O afastar-se da mãe, na menina, é um passo que se acompanha de hostilidade; a vinculação à mãe termina em ódio. Um ódio dessa espécie pode tornar-se muito influente e durar toda a vida; pode ser muito cuidadosamente supercompensado, posteriormente; geralmente, uma parte dele é superada, ao passo que a parte restante persiste. Os eventos de anos subseqüentes naturalmente influenciam muito isto. Entretanto, limitar-nos-emos a estudá-lo na época em que a menina se volta para seu pai, e a pesquisar os motivos desse fato. Apresenta-se-nos, então, uma longa lista de acusações e queixas contra a mãe, as quais, supõe-se, justificam os sentimentos hostis da criança; sua validade é variável e não deixaremos de examiná-la. Muitas dentre elas são evidentes racionalizações e as verdadeiras origens da hostilidade restam por ser encontradas. Penso que os senhores ficarão interessados se lhes apresento agora todos os detalhes de uma investigação psicanalítica.

A censura contra a mãe, que remonta à época mais remota, é a de que esta deu à criança muito pouco leite — censura que lhe é feita como falta de amor. Ora, existe alguma justificação para essa acusação em nossas famílias. As mães, amiúde, têm leite insuficiente para dar a seus filhos e se contentam com dar-lhes de mamar por uns poucos meses, por meio ano ou três quartos de ano. Entre povos primitivos, as crianças são amamentadas ao seio materno por dois ou três anos. A figura de nutriz que amamenta a criança geralmente se funde com a figura da mãe; quando isso não acontece, a censura transforma-se numa outra — a de que a nutriz, que amamentou a criança com tanta vontade, foi mandada embora pela mãe muito precocemente. Mas, seja qual for a verdadeira situação ocorrida, é impossível que a acusação da criança possa ser justificada tantas vezes quantas surgir. Mais parece que a avidez da criança pelo primeiro alimento é completamente insaciável, que a criança nunca supera o sofrimento de perder o seio materno. Não me causaria surpresa se a análise de uma criança primitiva, que ainda pudesse ser amamentada ao seio materno quando já capaz de andar e de falar, viesse aapresentar a mesma queixa. O temor de ser envenenada provavelmente também está relacionado ao desmame. Veneno é comida que faz adoecer. Talvez as crianças atribuam suas primeiras doenças também a essa frustração. Uma grande soma de aprendizado intelectual é pré-requisito para se acreditar no acaso; os povos primitivos e os povos sem instrução, e certamente também as crianças, conseguem atribuir um motivo para tudo o que acontece. Talvez originalmente se tratasse de motivos de natureza animista. Ainda hoje em dia, em determinadas camadas da população, ninguém pode morrer sem ter sido morto por outrem — de preferência pelo médico. E a reação habitual de um neurótico à morte de alguém de suas relações próximas é colocar a culpa em si mesmo por haver causado a morte.

A acusação seguinte contra a mãe da criança explode quando surge o bebê seguinte. Se possível, a conexão com a frustração oral é mantida: a mãe não podia, ou não iria, dar mais leite à criança, porque necessitava do alimento para o recém-chegado. Nos casos em que duas crianças têm uma diferença de idade tão pequena, que a lactação é prejudicada pela segunda gravidez, essa censura adquire uma base real, sendo surpreendente que uma criança, até com uma diferença de idade de apenas 11 meses, já tenha suficiente capacidade para perceber o que está acontecendo. Contudo, o que a criança não perdoa ao indesejado intruso e rival não é apenas a amamentação, mas sim todos os outros sinais de cuidado materno. Sente que foi destronada, espoliada, prejudicada em seus direitos; nutre um ódio ciumento em relação ao novo bebê e desenvolve ressentimento contra a mãe infiel, o que muitas vezes se expressa em desagradável mudança na conduta. Torna-se ‘arteira’, talvez, irritável e desobediente, e sofre um retrocesso nos progressos que havia feito quanto ao controle das excreções. Tudo isso tem sido conhecido há muito tempo e aceito como evidente por si mesmo; mas, raramente formamos uma idéia correta da força desses impulsos ciumentos, da tenacidade com que persistem e da magnitude de sua influência no desenvolvimento ulterior. Especialmente porque esse ciúme recebe constantemente novos reforços nos anos seguintes da infância, e todo o abalo se repete com o nascimento de cada novo irmão ou irmã. Ademais não faz muita diferença se acontece a criança continuar sendo a preferida de sua mãe. As exigências de amor de uma criança são ilimitadas; exigem exclusividade e não toleram partilha.

Uma fonte abundante de hostilidade de uma criança para com sua mãe é o que proporcionam os desejos sexuais multiformes, que se modificam de acordo com a fase da libido e que, em sua maior parte, não podem ser satisfeitos. As mais intensas frustrações ocorrem no período fálico, se a mãeproíbe a atividade prazerosa com os genitais — muitas vezes com ameaças severas e todos os sinais de desagrado —, atividade em que, afinal de contas, ela mesma iniciara a criança. Daria para pensar que estas são razões bastantes para fazer com que a menina se afaste de sua mãe. Se assim for, seria de julgar que a desavença decorra inevitavelmente da natureza da sexualidade infantil, do caráter ilimitado de suas exigências de amor e da impossibilidade de realizar seus desejos sexuais. Na verdade, poder-se-ia pensar que essa primeira relação amorosa da criança está destinada à dissolução pelo próprio motivo de ser a primeira, pois essas primeiras catexias objetais são, habitualmente, em grau elevado ambivalentes. Uma poderosa tendência à agressividade está sempre presente ao lado de um amor intenso, e quanto mais profundamente uma criança ama seu objeto, mais sensível se torna aos desapontamentos e frustrações provenientes desse objeto; e, no final, o amor deve sucumbir à hostilidade acumulada. Ou então deve ser rejeitada a idéia de que haja uma ambivalência inicial básica como esta nas catexias objetais, podendo ser assinalado que é a natureza especial da relação mãe-filho que leva, com igual inevitabilidade, à destruição do amor da criança; a própria educação mais branda não pode evitar o uso da coerção e a introdução de restrições, e toda intervenção desse tipo na liberdade da criança deve provocar como reação uma inclinação à rebeldia e à agressividade. Penso que seria muito interessante uma discussão dessas possibilidades; no entanto, logo surge uma objeção que força o nosso interesse noutra direção. Todos esses fatores — as desfeitas, os desapontamentos no amor, o ciúme, a sedução seguida da proibição — afinal também estão atuantes na relação do menino com sua mãe e, ainda assim, não são capazes de afastá-lo do objeto materno. A menos que possamos encontrar algo que seja específico das meninas e não esteja presente, ou não esteja presente da mesma maneira, nos meninos, não teremos explicado o término da vinculação das meninas à sua mãe.

Acredito havermos encontrado esse fator específico, e, na verdade, no lugar onde esperávamos encontrá-lo, embora numa forma surpreendente. Eu disse onde esperávamos encontrá-lo, pois se situa no complexo de castração. Afinal, a distinção anatômica [entre os sexos] deve expressar-se em conseqüências psíquicas. Foi uma surpresa, no entanto, constatar, na análise, que as meninas responsabilizam sua mãe pela falta de pênis nelas e não perdoam por terem sido, desse modo, colocadas em desvantagem.

Como vêem, pois, atribuímos às mulheres um complexo de castração. E por boas razões o fazemos, embora seu conteúdo não possa ser o mesmo que o dos meninos. Nestes, o complexo de castração surge depois de haverem constatado, à vista dos genitais femininos, que o órgão, que tanto valorizam,não acompanha necessariamente o corpo. Nisto, acodem à lembrança do menino as ameaças que provocou contra si, ao brincar com esse órgão; começa a dar crédito a elas, e cai sob a influência do temor de castração, que será a mais poderosa força motriz do seu desenvolvimento subseqüente. O complexo de castração nas meninas também inicia ao verem elas os genitais do outro sexo. De imediato percebem a diferença e, deve-se admiti-lo, também a sua importância. Sentem-se injustiçadas, muitas vezes declaram que querem ‘ter uma coisa assim, também’, e se tornam vítimas da ‘inveja do pênis’; esta deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu caráter, não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um extremo dispêndio de energia psíquica. O fato de a menina reconhecer que lhe falta o pênis, não implica, absolutamente, que ela se submeta a tal fato com facilidade. Pelo contrário, continua a alimentar, por longo tempo, o desejo de possuir algo semelhante e acredita nessa possibilidade durante muitos anos; e a análise pode mostrar que, num período em que o conhecimento da realidade há muito rejeitou a realização do desejo, por sabê-lo inatingível, ele persiste no inconsciente e conserva uma considerável catexia de energia. O desejo de ter o pênis tão almejado pode, apesar de tudo finalmente contribuir para os motivos que levam uma mulher à análise, e o que ela racionalmente pode esperar da análise — capacidade de exercer uma profissão intelectual, por exemplo — amiúde pode ser identificado como uma modificação sublimada desse desejo reprimido.

É difícil duvidar da importância da inveja do pênis. Os senhores podem imaginar como sendo um exemplo de injustiça masculina eu afirmar que a inveja e o ciúme desempenham, mesmo, um papel de relevo maior na vida mental das mulheres, do que na dos homens. Não é que eu pense estarem essas características ausentes nos homens, ou julgue que elas não tenham nas mulheres outras raízes além da inveja do pênis; estou inclinado, no entanto, a atribuir sua quantidade maior nas mulheres a essa influência. Alguns analistas mostraram uma tendência a minimizar a importância dessa primeira instalação da inveja do pênis na fase fálica. Opinam que aquilo que encontramos dessa atitude em mulheres, é, principalmente, uma estrutura secundária surgida por ocasião de conflitos posteriores, mediante regressão a esse impulso infantil inicial. Isto, porém, é um problema geral de psicologia profunda. Em muitas atitudes instintuais patológicas — ou mesmo raras — (por exemplo, em todas as perversões sexuais) a questão que surge é: que parcela de sua força deve ser atribuída a fixações do início da infância e que parcela se atribuirá à influência de experiências e desenvolvimento posteriores. Em tais casos, quase sempre se trata de uma série complementar, talcomo aquela que apresentamos em nossa exposição sobre a etiologia das neuroses. Ambos os fatores desempenham um papel na causação, em proporções variáveis; a menor influência de uma parte é compensada por uma influência maior da outra parte. O fator infantil estabelece o padrão em todos os casos, mas nem sempre determina o resultado, embora freqüentemente o faça. Justamente no caso da inveja do pênis, argumento a favor da preponderância do fator infantil.

A descoberta de que é castrada representa um marco decisivo no crescimento da menina. Daí partem três linhas de desenvolvimento possíveis: uma conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal. Temos aprendido uma quantidade considerável, embora não tudo, a respeito das três.

O conteúdo essencial da primeira é o seguinte: a menininha viveu, até então, de modo masculino, conseguiu obter prazer da excitação do seu clitóris e manteve essa atividade em relação a seus desejos sexuais dirigidos à mãe, os quais, muitas vezes, são ativos; ora, devido à influência de sua inveja do pênis, ela perde o prazer que obtinha da sua sexualidade fálica. Seu amor próprio é modificado pela comparação com o equipamento muito superior do menino e, em conseqüência, renuncia à satisfação masturbatória derivada do clitóris, repudia seu amor pela mãe e, ao mesmo tempo, não raro reprime uma boa parte de suas inclinações sexuais em geral. Seu afastamento da mãe, sem dúvida, não se dá de uma só vez, pois, no início, a menina considera sua castração como um infortúnio individual, e somente aos poucos estende-a a outras mulheres e, por fim, também à sua mãe. Seu amor estava dirigido à sua mãe fálica; com a descoberta de que sua mãe é castrada, torna-se possível abandoná-la como objeto, de modo que os motivos de hostilidade, que há muito se vinham acumulando, assumem o domínio da situação. Isso significa, portanto, que, como resultado da descoberta da falta de pênis nas mulheres, estas são rebaixadas de valor pela menina, assim como depois o são pelos meninos, e posteriormente, talvez, pelos homens.

Os senhores todos conhecem a imensa importância etiológica atribuída por nossos pacientes neuróticos à sua masturbação. Fazem-na responsável por todos os seus problemas, e temos a maior dificuldade em persuadi-los de que estão equivocados. Na realidade, porém, devíamos admitir-lhes que têm razão, pois a masturbação é o agente executor da sexualidade infantil, de cujodesenvolvimento falho estão verdadeiramente sofrendo. O que os neuróticos mais censuram, porém, é a masturbação do período da puberdade; na sua maior parte, esqueceram-se da masturbação da infância, a qual, realmente, é o que está em questão. Desejaria ter, um dia, a oportunidade de explicar aos senhores, minuciosamente, quão importantes todos os detalhes concretos da masturbação inicial se tornam para a ulterior neurose ou caráter do indivíduo: se ela foi, ou não, descoberta, como os pais a combateram ou permitiram, ou se o indivíduo por si mesmo conseguiu suprimi-la. Tudo isso deixa marcas permanentes no seu desenvolvimento. De um modo geral estou satisfeito, contudo, porque não necessito fazê-lo. Seria tarefa difícil e enfadonha, e, no final, os senhores me colocariam em situação embaraçosa, porquanto muito provavelmente iriam pedir-me para dar-lhes alguns conselhos práticos sobre o modo como um pai ou educador deve lidar com a masturbação dos filhos pequenos. Do desenvolvimento das meninas, e é disso que se ocupa esta minha presente conferência, posso dar-lhes o exemplo de uma menina que tenta livrar-se da masturbação. Ela nem sempre o consegue. Se a inveja do pênis suscitou um poderoso impulso contra a masturbação clitoridiana, e esta, não obstante, se recusa a desaparecer, trava-se uma violenta luta pela liberação, na qual a própria menina assume, por assim dizer, o papel de sua mãe deposta e dá expressão a toda a sua insatisfação com seu clitóris inferior, em seus esforços contra a obtenção de satisfação a partir dele. Muitos anos depois, quando sua atividade masturbatória há muito já fora suprimida, ainda persiste algum interesse, o qual deve ser interpretado como defesa contra uma tentação ainda temida. Manifesta-se na emergência de simpatia por aqueles a quem são atribuídas dificuldades parecidas, desempenha o papel de motivo para contrair casamento e, realmente, pode determinar a escolha de um marido ou amante. Suprimir a masturbação infantil não é, verdadeiramente, uma tarefa fácil ou destituída de importância.

Paralelamente ao abandono da masturbação clitoridiana, renuncia-se a uma determinada soma de atividade. Predomina, agora, a passividade, e o voltar-se da menina para seu pai realiza-se com o auxílio de impulsos instintuais passivos. Os senhores podem verificar que semelhante sinuosidade no desenvolvimento, o qual remove a atividade fálica, prepara o caminho para a feminilidade. Se, no decurso desse desenvolvimento, não se perdem demasiados elementos através da repressão, essa feminilidade pode vir a sernormal. O desejo que leva a menina a voltar-se para seu pai é, sem dúvida, originalmente o desejo de possuir o pênis que a mãe lhe recusou e que agora espera obter de seu pai. No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis, consoante uma primitiva equivalência simbólica, ver em [[1]]. Não nos passou despercebido o fato de que a mesma desejou um bebê anteriormente, na fase fálica não perturbada: este era, naturalmente, o significado de ela brincar com bonecas. Todavia esse brinquedo não era, de fato, expressão de sua feminilidade: serviu como identificação com sua mãe, com a intenção de substituir a atividade pela passividade. Ela estava desempenhando o papel de sua mãe, e a boneca era ela própria, a menina: agora ela podia fazer com o bebê tudo o que sua mãe costumava fazer com ela. Não é senão com o surgimento do desejo de ter um pênis que a boneca-bebê se torna um bebê obtido de seu pai e, de acordo com isso, o objetivo do mais intenso desejo feminino. Sua felicidade é grande se, depois disso, esse desejo de ter um bebê se concretiza na realidade; e muito especialmente assim se dá, se o bebê é um menininho que traz consigo o pênis tão profundamente desejado. Com muita freqüência, em seu quadro combinado de ‘um bebê de seu pai’, a ênfase é colocada no bebê, e o pai fica em segundo plano. Assim, o antigo desejo masculino de posse de um pênis ainda está ligeiramente visível na feminilidade alcançada desse modo. Talvez devêssemos identificar esse desejo do pênis como sendo, par excellence, um desejo feminino.

Com a transferência, para o pai, do desejo de um pênis-bebê, a menina inicia a situação do complexo de Édipo. A hostilidade contra sua mãe, que não precisa ser novamente criada, agora se intensifica muito, de vez que esta se torna rival da menina, rival que recebe do pai tudo o que dele deseja. Por muito tempo, o complexo de Édipo da menina ocultou à nossa observação a sua vinculação pré-edipiana com sua mãe, embora seja tão importante e deixe atrás de si fixações tão duradouras. Para as meninas, a situação edipiana é o resultado de uma evolução longa e difícil; é uma espécie de solução preliminar, uma posição de repouso que não é logo abandonada, especialmente porque o início do período de latência não está muito distante. E então nos surpreende uma diferença entre os dois sexos, provavelmente transitória, no que diz respeito à relação do complexo de Édipo com o complexo de castração. Num menino, o complexo de Édipo, no qual ele deseja a mãe e gostaria de eliminar seu pai, por ser este um rival, evolui naturalmente da fase de sexualidade fálica. A ameaça de castração, porém, impele-o a abandonar essa atitude. Sob a impressão do perigo de perder o pênis, o complexo deÉdipo é abandonado, reprimido e, na maioria dos casos, inteiramente destruído [ver [1]],e um severo superego instala-se como seu herdeiro. O que acontece à menina é quase o oposto. O complexo de castração prepara para o complexo de Édipo, em vez de destruí-lo; a menina é forçada a abandonar a ligação com sua mãe através da influência de sua inveja do pênis, e entra na situação edipiana como se esta fora um refúgio. Na ausência do temor de castração, falta o motivo principal que leva o menino a superar o complexo de Édipo. As meninas permanecem nele por um tempo indeterminado; destroem-no tardiamente e, ainda assim, de modo incompleto. Nessas circunstâncias, a formação do superego deve sofrer um prejuízo; não consegue atingir a intensidade e a independência, as quais lhe conferem sua importância cultural, e as feministas não gostam quando lhes assinalamos os efeitos desse fator sobre o caráter feminino em geral.

Voltemos um pouco atrás. Mencionamos na [[1]], como segunda reação possível face à descoberta da castração feminina, o desenvolvimento de um intenso complexo de masculinidade. Com isto queremos dizer que a menina se recusa, digamos, a reconhecer o fato indesejado, e, desafiantemente rebelde, até exagera sua masculinidade prévia, apega-se à sua atividade clitoridiana e refugia-se numa identificação com sua mãe fálica ou com seu pai. Que será que decide em favor de um tal desfecho? Só podemos supor que é um fator constitucional, uma quantidade maior de atividade, tal como geralmente é característico do homem. Seja como for, a essência desse processo é que, nesse ponto do desenvolvimento, evita-se a afluência da passividade que abre caminho à mudança rumo à feminilidade. O máximo de realização de semelhante complexo de masculinidade pareceria ser a influência sobre a escolha de um objeto no sentido do homossexualismo manifesto. A experiência analítica realmente nos ensina que o homossexualismo feminino raramente, ou nunca, é continuação direta da masculinidade infantil. Mesmo para uma menina nessas condições, parece necessário que ela deva tomar seu pai como objeto, por algum tempo, e ingressar na situação edipiana. Depois, contudo, em conseqüência do inevitável desapontamento com o pai, é forçada a regressar a seu complexo de masculinidade anterior. A importância desses desapontamentos não deve ser exagerada; uma menina que está destinada a se tornar feminina, não é poupada deles, embora eles não tenham igual efeito. A predominância do fator constitucional parece indiscutível; mas as duas fases do desenvolvimento do homossexualismo feminino se espelham bem nas práticas das homossexuais, que desempenham entre si papéis de mãe e de bebê, com tanta freqüência e tão claramente como os de marido e mulher.Isto que estive mostrando-lhes, aqui, pode ser descrito como a pré-história da mulher. É o produto desses anos mais recentes e pode ter-lhes interessado como um exemplo de trabalho analítico detalhado. Como o seu tema é a mulher, proponho-me, nesta ocasião, mencionar o nome de algumas das mulheres que fizeram valiosas contribuições a esta investigação. A Dra. Ruth Mack Brunswick [1928] foi a primeira a descrever um caso de neurose que remontava a uma fixação na fase pré-edipiana e que jamais, absolutamente, atingira a situação edipiana. O caso assumia a forma de paranóia de ciúmes e mostrou-se acessível ao tratamento. A Dra. Jeanne Lampl-de Groot [1927] constatou, por meio de observações comprovadas, a incrível atividade fálica de meninas em relação à mãe, e a Dra. Helene Deutsch [1932] mostrou que os atos eróticos de mulheres homossexuais reproduzem as relações entre mãe e bebê.

Não é minha intenção seguir o comportamento ulterior da feminilidade através da puberdade até o período de maturidade. Nossos conhecimentos seriam, de resto, insuficientes pra tal propósito. No que se segue, porém, acrescentarei alguns esclarecimentos. Tomando sua pré-história como ponto de partida, apenas acentuarei, aqui, que o desenvolvimento da feminilidade permanece exposto a perturbações motivadas pelos fenômenos residuais do período masculino inicial. Muito freqüentemente ocorrem regressões às fixações das fases pré-edipianas; no transcorrer da vida de algumas mulheres existe uma repetida alternância entre períodos em que ora a masculinidade, ora a feminilidade, predominam. Determinada parte disso que nós, homens, chamamos de ‘o enigma da mulher’, pode, talvez, derivar-se dessa expressão da bissexualidade na vida da mulher. Uma outra questão parece madura para um julgamento no curso dessas pesquisas. Denominamos a força motriz da vida sexual de ‘libido’. A vida sexual é dominada pela polaridade masculino-feminino; assim, insinua-se a idéia de considerarmos a relação da libido com essa antítese. Não seria surpreendente se se verificasse ter cada sexualidade a sua libido especial, apropriada para si, de forma que um tipo de libido perseguiria as finalidades de uma vida sexual masculina e um outro tipo, as finalidades de uma vida sexual feminina. Mas nada disso procede. Existe apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo. Se, consoante a convencional equação ‘atividade e masculinidade’, nos inclinamos a qualificá-la como masculina, devemos não esquecer que ela também engloba tendências com uma finalidade passiva. Mesmo assim, a justaposição ‘libido feminina’ não tem qualquer justificação. Ademais, temos a impressão de que maior coerção foi aplicada à libido quando ela é moldada para servir à funçãofeminina, e de que — falando teleologicamente — a Natureza tem em menor conta as suas exigências referentes a essa função, do que às da masculinidade. E a razão disto pode estar — novamente pensando em termos teleológicos — no fato de que a realização do objetivo da biologia foi confiada à agressividade dos homens e se tornou, em certa medida, independente do consentimento das mulheres.

A frigidez sexual das mulheres, cuja freqüência parece confirmar esse descaso, é um fenômeno ainda insuficientemente compreendido. Às vezes, é psicogênica e, nesse caso, acessível a influência; em outros casos, porém, sugere a hipótese de ser constitucionalmente determinada e, até mesmo, de existir um fator anatômico coadjuvante.

Prometi referir-lhes mais algumas peculiaridades psíquicas da feminilidade madura, conforme as encontramos no trabalho analítico. Não pretendemos senão adjudicar a tais asserções uma validade média; e nem sempre é fácil distinguir o que se deveria atribuir à influência da função sexual e o que atribuir à educação social. Assim, atribuímos à feminilidade maior quantidade de narcisismo, que também afeta a escolha objetal da mulher, de modo que, para ela, ser amada é uma necessidade mais forte que amar. A inveja do pênis tem em parte, como efeito, também a vaidade física das mulheres, de vez que elas não podem fugir à necessidade de valorizar seus encantos, do modo mais evidente, como uma tardia compensação por sua inferioridade sexual original. A vergonha, considerada uma característica feminina par excellence, contudo, mais do que se poderia supor, sendo uma questão de convenção, tem, assim acreditamos, como finalidade a ocultação da deficiência genital. Não nos estamos esquecendo de que, em época posterior, a vergonha assume outras funções. Parece que as mulheres fizeram poucas contribuições para as descobertas e invenções na história da civilização; no entanto, há uma técnica que podem ter inventado — trançar e tecer. Sendo assim, sentir-nos-íamos tentados a imaginar o motivo inconsciente de tal realização. A própria natureza parece ter proporcionado o modelo que essa realização imita, causando o crescimento, na maturidade, dos pêlos pubianos que escondem os genitais. O passo que faltava dar era fazer os fios unirem-se uns aos outros, enquanto, no corpo, eles estão fixos à pele e só se emaranham. Se os senhores rejeitarem essa idéia como fantasiosa e considerarem idée fixe a minha crença na influência da falta de pênis na configuração da feminilidade, estarei, naturalmente, sem apoio.Os fatores determinantes da escolha objetal da mulher muitas vezes se tornam irreconhecíveis devido a condições sociais. Onde a escolha pode mostrar-se livremente, ela se faz, freqüentemente, em conformidade com o ideal narcisista do homem que a menina quisera tornar-se. Se a menina permaneceu vinculada a seu pai — isto é, no complexo de Édipo —, sua escolha se faz segundo o tipo paterno. De vez que, quando se afastou da mãe e se voltou para o pai, permaneceu a hostilidade de sua relação ambivalente com a mãe, uma escolha desse tipo asseguraria um casamento feliz. Muito freqüentemente, porém, o resultado é de molde a representar uma ameaça geral à solução do conflito devido à ambivalência. A hostilidade que ficou para trás segue na trilha da vinculação positiva e se alastra ao novo objeto. O marido da mulher, inicialmente herdado, por ela, do pai, após algum tempo se torna também o herdeiro da mãe. Assim, facilmente pode acontecer que a segunda metade da vida da mulher venha a ser preenchida pela luta contra seu marido, do mesmo modo como a primeira metade, mais breve, fora preenchida pela rebelião contra a mãe. Quando essa reação foi esgotada no decurso da vida, um segundo casamento pode facilmente vir a ser muito mais satisfatório. Uma outra modificação na natureza da mulher, para a qual o casal não está preparado, pode, num casamento, ocorrer após o nascimento do primeiro filho. Sob a influência da transformação da mulher em mãe, pode ser revivida uma identificação com sua própria mãe, contra a qual ela vinha batalhando até a época do casamento, e isto é capaz de atrair para si toda a libido disponível, de modo que a compulsão à repetição reproduz um casamento infeliz dos pais. A diferença na reação da mãe ao nascimento de um filho ou de uma filha mostra que o velho fator representado pela falta de pênis não perdeu, até agora, a sua força. A mãe somente obtém satisfação sem limites na sua relação com seu filho menino; este é, sem exceção, o mais perfeito, o mais livre de ambivalência de todos os relacionamentos humanos. Uma mãe pode transferir para o seu filho aquela ambição que teve de suprimir em si mesma, e dele esperar a satisfação de tudo aquilo que nela restou do seu complexo de masculinidade. Um casamento não se torna seguro enquantoa esposa não conseguir tornar seu marido também seu filho, e agir com relação a ele como mãe.

A identificação de uma mulher com sua mãe permite-nos distinguir duas camadas: a pré-edipiana, sobre a qual se apóia a vinculação afetuosa com a mãe e esta é tomada como modelo, e a camada subseqüente, advinda do complexo de Édipo, que procura eliminar a mãe e tomar-lhe o lugar junto ao pai. Sem dúvida justifica-se dizermos que muita coisa de ambas subsiste no futuro e que nenhuma das duas é adequadamente superada no curso do desenvolvimento. A fase da ligação afetuosa pré-edipiana, contudo, é decisiva para o futuro de uma mulher: durante essa fase são feitos os preparativos para a aquisição das características com que mais tarde exercerá seu papel na função sexual e realizará suas inestimáveis tarefas sociais. É também nessa identificação que ela adquire aquilo que constitui motivo de atração para um homem; a ligação edipiana deste à sua mãe transfigura a atração da mulher em paixão. No entanto, com quanta freqüência sucede que apenas o filho obtém aquilo a que o homem aspirava! Tem-se a impressão de que o amor do homem e o amor da mulher psicologicamente sofrem de uma diferença de fase.

O fato de que as mulheres devem ser consideradas possuidoras de pouco senso de justiça sem dúvida se relaciona à predominância da inveja em sua vida mental; isso porque a exigência de justiça é uma fixação da inveja e estabelece a condição sob a qual uma pessoa pode pôr de lado a inveja. Também consideramos as mulheres mais débeis em seus interesses sociais e possuidoras de menor capacidade de sublimar os instintos, do que os homens. O primeiro desses dois aspectos certamente deriva da qualidade dissocial que indiscutivelmente caracteriza todos os relacionamentos sexuais. O casal basta-se a si mesmo, e também as famílias resistem à inclusão em associações mais amplas. A capacidade de sublimação está sujeita às maiores variações individuais. Por outro lado, não posso deixar de mencionar uma impressão que estamos tendo constantemente durante a prática analítica. Um homem, nos seus trinta anos, parece-nos um adolescente, um indivíduo não formado, que esperamos faça pleno uso das possibilidades de desenvolvimento que se lhe abrem com a análise. Uma mulher da mesma idade, porém, muitas vezes nos atemoriza com sua rigidez psíquica e imutabilidade. Sua libido assumiu posições definitivas e parece incapaz de trocá-las por outras. Não há vias abertas para um novo desenvolvimento; é como se todo o processo já tivesseefetuado seu percurso e permanecesse, daí em diante, insuscetível de ser influenciado — como se, na verdade, o difícil desenvolvimento na direção da feminilidade tivesse exaurido as possibilidades da pessoa em questão. Como terapeutas, lamentamos tal estado de coisas, ainda quando conseguimos pôr um fim à doença da paciente eliminando o conflito neurótico.

 

Isto é tudo o que tinha a dizer-lhes a respeito da feminilidade. Certamente está incompleto e fragmentário, e nem sempre parece agradável. Mas não se esqueçam de que estive apenas descrevendo as mulheres na medida em que sua natureza é determinada por sua função sexual. É verdade que essa influência se estende muito longe; não desprezamos, todavia, o fato de que uma mulher possa ser uma criatura humana também em outros aspectos. Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerentes.

 

CONFERÊNCIA XXXIV

EXPLICAÇÕES, APLICAÇÕES E ORIENTAÇÕES

 

SENHORAS E SENHORES:

 

Talvez me permitiriam, por agora, a título de pausa no tom árido destas conferências, falar-lhes a respeito de algumas coisas que têm muito pouca importância teórica, mas que lhes interessam de perto, na medida em que os senhores demonstram uma atitude amistosa para com a psicanálise. Imaginemos, por exemplo, que, nas suas horas de lazer, os senhores tomam um romance alemão, inglês ou americano, no qual esperam encontrar um retrato das pessoas e da sociedade contemporâneas. Lidas algumas páginas, encontram um primeiro comentário sobre psicanálise e, logo depois, outros comentários mais, embora o contexto não pareça necessitar deles. Não devem os senhores imaginar tratar-se, aí, de aplicar psicologia, para um melhor entendimento dos personagens do livro ou das suas ações — conquanto, diga-se de passagem, haja outras obras, mais sérias, nas quais se faz realmente uma tentativa em tal sentido. Não, esses comentários são, na sua maior parte, comentários jocosos com que o autor tenciona exibir suas vastas leituras e sua superioridade intelectual. E nem sempre os senhores ficarão com a impressão de que realmente conhece aquilo de que está falando. Ou, então, os senhores podem ir a uma reunião social a fim de se divertirem, e isto não precisa ser necessariamente em Viena. Dentro de pouco tempo, a conversação gira em torno de psicanálise, e os senhores ouvirão as mais diferentes pessoas emitindo sua opinião a respeito dela, na sua maioria em tom de inabalável certeza. Muito freqüentemente, o julgamento é desdenhoso, ou, amiúde, difamatório, ou, no mínimo, jocoso. Se os senhores forem imprudentes ao ponto de revelarem o fato de que conhecem algo acerca do assunto, essas pessoas lhes cairão em cima, unanimemente, pedirão informações e explicações, e logo os convencerão de que todos esses julgamentos severos a que elas chegaram carecem de qualquer base de conhecimento, de que dificilmente algum desses críticos alguma vez abriu um livro referente à análise, ou, no caso de assim terem procedido, de que não devem ter ido além da primeira resistência despertada pelo contato com esse material novo.

Os senhores, talvez esperam que uma introdução à psicanálise também lhes dê instruções sobre quais os argumentos que deveriam usar para corrigiresses erros evidentes a respeito da análise, sobre que livros deveriam recomendar para informações mais precisas, ou mesmo que exemplos deveriam apresentar na discussão, extraídos de suas leituras ou de sua experiência, a fim de modificar a atitude dos circunstantes. Devo pedir-lhes que não façam nada disso. Seria inútil. A melhor conduta para os senhores seria ocultar completamente o conhecimento superior que possuem. Se isto já não é possível, limitem-se a dizer que, na medida dos seus conhecimentos, a psicanálise é um ramo especial do conhecimento, muito difícil de entender e de ter uma opinião formada a seu respeito, que se ocupa de coisas muito sérias, de modo que não serão algumas anedotas que farão com que uma pessoa consiga aproximar-se da análise, e, enfim, seria melhor encontrar algum outro brinquedo para entretenimento social. Ademais, naturalmente os senhores não participarão de tentativas de interpretação, se pessoas incautas referirem seus sonhos; e os senhores resistirão à tentação de cortejar favores para a análise através de relatos de suas curas.

Os senhores, todavia, podem perguntar-se por que essas pessoas — tanto aquelas que escrevem livros, como essas de uma reunião social — se conduzem de forma tão lamentável; e os senhores podem inclinar-se a pensar que a responsabilidade disto está não só nessas pessoas, mas também na psicanálise. Também penso assim. Aquilo que os senhores encontram como preconceito na literatura e na sociedade é efeito posterior de um julgamento precedente, ou seja, o julgamento que os representantes da ciência oficial fizeram a respeito da jovem análise. Uma vez, queixei-me disto num relato histórico que escrevi, e não o farei de novo — talvez aquela única vez já fosse demais —, porém o fato é que não houve violação da lógica, não houve violação da propriedade e do bom gosto a que não recorressem, então, os opositores científicos da psicanálise. A situação faz lembrar o que realmente era posto em prática na Idade Média, quando um malfeitor, ou mesmo um simples adversário político, era colocado no pelourinho e exposto aos maus-tratos da populaça. Talvez os senhores não possam se afigurar claramente a que ponto se estendem as características de ralé de nossa sociedade, e de que má conduta são capazes as pessoas, quando se sentem fazendo parte de uma turba e aliviadas da responsabilidade pessoal. No início daquela época, eu estava mais ou menos sozinho e logo vi que não havia futuro nas polêmicas, vi, contudo, que era igualmente absurdo lamentar-se e invocar a ajuda de espíritos mais benignos, de vez que não havia instâncias a que dirigir taisapelos. Assim sendo, tomei outro caminho. Fiz a primeira aplicação prática da psicanálise, explicando a mim mesmo que essa conduta da multidão era uma manifestação da mesma resistência contra a qual eu tinha de lutar nos pacientes em particular. Abstive-me de polêmicas e influenciei na mesma direção os meus seguidores, quando estes pouco a pouco surgiram. Esse procedimento foi correto. A proscrição que pesava sobre a psicanálise naqueles dias tem sido suspensa desde então. Contudo, da mesma forma como uma fé abandonada sobrevive como superstição, assim como uma teoria que foi posta de lado pela ciência continua a existir como crença popular, também o banimento inicial da psicanálise pelos círculos científicos persiste atualmente no desprezo das anedotas dos leigos, quando escrevem livros ou conversam. Logo, isto não mais surpreenderá os senhores.

Não devem esperar, no entanto, ouvir a boa notícia de que a luta contra a psicanálise terminou, e que esta, afinal, foi reconhecida como ciência e aceita como tema de ensino nas universidades. Não é nada disso. A luta continua, se bem que sob formas mais educadas. O que também é novo é o fato de se haver formado uma espécie de crosta isolante, na sociedade científica, entre a análise e os seus adversários. Essa crosta consiste em pessoas que admitem a validade de determinadas partes da análise, e admitem apenas esse tanto, sujeito às mais divertidas restrições, mas que, por outro lado, rejeitam outras partes dela, fato que não proclamam com muito alarde. Não é fácil adivinhar qual o fator determinante de tal escolha. Parece depender de simpatias pessoais. Uma pessoa fará objeções à sexualidade, uma outra ao inconsciente; o que parece especialmente impopular é o caso do simbolismo. Embora a estrutura da psicanálise esteja inacabada, ela apresenta, mesmo nos dias atuais, uma unidade da qual os elementos componentes não podem ser separados ao capricho de qualquer um: mas esses ecléticos parecem desprezar isto. Jamais me convenci de que esses meio-adeptos, ou adeptos pela quarta parte, baseassem sua rejeição num exame dos fatos. Também se incluem nessa categoria alguns homens de destaque. Na verdade, estes estão excusados pelo fato de que seu tempo e seu interesse pertencem a outras coisas, ou seja, àquelas coisas em cujo domínio tanto realizaram. Nesse caso, porém, não lhes ficaria melhor suspender seu julgamento, em lugar de tomar partido de forma tão decidida? Com um desses grandes homens, certa ocasião, pude realizar uma rápida conversão. Tratava-se de um crítico de renome internacional, que havia acompanhado com benévola compreensão e profética penetração as correntes espirituais da época. Somente vim a conhecê-lo quando ele já passava dos oitenta anos; todavia, ainda era um homem de conversação encantadora. Facilmenteadivinharão a quem me estou referindo. E não fui eu quem introduziu o assunto da psicanálise. Foi ele quem o fez, comparando-se a mim da maneira mais modesta. ‘Sou apenas um literato’, dizia ele, ‘mas o senhor é um cientista e descobridor da natureza. No entanto, há uma coisa que devo dizer-lhe: nunca tive sentimentos sexuais para com minha mãe’. ‘Mas absolutamente não há necessidade de o senhor tê-los reconhecido’, foi minha resposta; ‘nas pessoas adultas, estes são sentimentos inconscientes’. ‘Oh! então é isto o que o senhor pensa!’, disse ele, aliviado, e apertou minha mão. Continuamos a conversar, de maneira muito agradável, por mais algumas horas. Posteriormente, soube que, nos poucos anos de vida que ainda teve, muitas vezes falava na psicanálise de modo amistoso, e agradava-lhe poder usar uma palavra que era nova para ele — ‘repressão’.

 

Há um ditado corrente segundo o qual nós deveríamos aprender com os nossos inimigos. Confesso que nunca consegui fazer isso; mas pensei que, de qualquer modo, seria instrutivo para os senhores se eu empreendesse um estudo de todas as acusações e objeções que os adversários da psicanálise levantaram contra ela, e se também assinalasse as injustiças e ofensas contra a lógica que tão facilmente nelas poderiam ser reveladas. Mas, ‘depois de pensar bem’, disse a mim mesmo que absolutamente não seria interessante, antes, tornar-se-ia tedioso e desagradável, e seria justamente o que eu estivera evitando cuidadosamente todos esses anos. Assim sendo, devem perdoar-me se não continuo por esse caminho e se os poupo dos julgamentos dos nossos adversários ditos científicos. Afinal de contas, quase sempre se trata de pessoas cuja única prova de competência é a imparcialidade, que elas preservaram, mantendo-se à distância das experiências da psicanálise. Sei, contudo, que há outros casos nos quais os senhores não me deixarão escapar tão facilmente. ‘Não obstante’, me dirão os senhores, ‘existem tantas pessoas às quais não se aplica o seu último comentário. Elas não evitaram a experiência analítica, analisaram pacientes, e talvez elas mesmas tenham sido analisadas; durante algum tempo foram até colaboradores seus. No entanto, chegaram aoutras opiniões e teorias, e, com base nestas, separaram-se do senhor e fundaram escolas independentes de psicanálise. O senhor deveria esclarecer-nos sobre o significado e a importância desses movimentos separatistas, que foram tão freqüentes na história da análise’.

Bem, procurarei fazê-lo; só que com brevidade, pois contribuem menos para uma compreensão da análise do que os senhores poderiam esperar. Estou certo de que os senhores estarão pensando, em primeiro lugar, na ‘Individual Psychology’, de Adler, que, na América, por exemplo, é considerada uma linha de pensamento colateral com a nossa psicanálise e no mesmo nível desta, sendo regularmente mencionada ao lado da psicanálise. Na realidade, a psicologia do indivíduo muito pouco tem a ver com a psicanálise, mas, como decorrência de determinadas circunstâncias históricas, leva, em relação a esta e às suas custas, uma espécie de existência parasita. Os motivos que atribuímos a esse grupo de adversários aplicam-se ao fundador da psicologia do indivíduo apenas em um grau restrito. O seu próprio nome é inadequado e parece ter sido produto de confusão. Não podemos permitir que interfira no emprego legítimo do termo ‘psicologia de grupo’, como se fora uma antítese deste. Ademais, nossa atividade se ocupa, na sua maior parte e sobretudo, da psicologia dos indivíduos humanos. Não me adentrarei numa crítica objetiva à psicologia do indivíduo, de Adler; não há lugar para isto no plano destas conferências introdutórias. Aliás, já tentei fazê-lo uma vez, e não me sinto tentado a mudar nada daquilo que eu disse naquela ocasião. A impressão produzida pelos pontos de vista dele, ilustra-la-ei, porém, com um pequeno episódio datado de época anterior à análise.

Nos arredores da pequena cidade da Morávia em que nasci, e que deixei quando tinha três anos de idade, existe uma modesta estação de cura, magnificamente localizada na floresta. Durante o período escolar, estive lá, diversas vezes, nas férias. Cerca de vinte anos depois, a doença de um parente próximo ensejou que eu visitasse o lugar novamente. No decorrer da conversacom um médico ligado à estação de águas, o qual havia assistido meu parente, perguntei, entre outras coisas, acerca do seu relacionamento com os aldeões — eslovacos, me parece — que constituíam toda a sua clientèle durante o inverno. Contou-me que sua clínica médica se fazia da seguinte maneira. Em suas horas de atendimento, os pacientes entravam na sua sala e ficavam de pé numa fila. Um após o outro adiantava-se e descrevia suas queixas: dor lombar, dor de estômago, cansaço nas pernas, e assim por diante. O médico então o examinava e, após contentar-se com o que observara, fazia o diagnóstico, que era o mesmo para todos os casos. Ele me traduziu a palavra: significava mais ou menos ‘enfeitiçado’. Surpreso, perguntei se os aldeões não faziam objeção ao fato de esse veredicto ser o mesmo para cada paciente. ‘Não!’, replicou ele, ‘eles ficam muito contentes: é o que esperavam. Cada um deles, assim que volta a seu lugar na fila, mostra aos outros, pela fisionomia e pelos gestos, que eu sou um sujeito que entendo das coisas’. Mal adivinhava eu, naquele tempo, em que circunstâncias haveria de encontrar novamente uma situação análoga.

Explicando esses fatos, se um homem é um homossexual ou necrófilo, um histérico sofrendo de ansiedade, um neurótico obsessivo segregado da sociedade, ou um louco furioso, o ‘psicólogo do indivíduo’ da corrente adleriana afirmará que o motivo básico de sua condição é o desejo de auto-afirmar-se, de supercompensar sua inferioridade, de ficar ‘por cima’, de passar da linha feminina para a masculina. Nos meus anos de jovem estudante, costumávamos ouvir algo muito parecido no departamento de pacientes de ambulatório, quando um caso de histeria era apresentado: os pacientes histéricos, assim nos era dito, forjavam seus sintomas para se mostrarem interessantes, para chamar atenção sobre si mesmos. É notável como essas velhas mostras de sabedoria continuam a pulular. Mas, mesmo naquela época, esse arremedo de psicologia não parecia elucidar o enigma da histeria. Deixava por explicar, por exemplo, por que os pacientes não usavam outros métodos para satisfazerem seus propósitos. Naturalmente, deve haver alguma coisa correta nessa teoria dos ‘psicólogos do indivíduo’: uma partícula mínima é tomada pelo todo. O instinto de autopreservação tentará tirar proveito de todas as situações; o ego procurará transformar até mesmo a doença em vantagem sua. Na psicanálise isto se conhece como ‘ganho secundário proveniente da doença’. Deveras, quando pensamos no caso do masoquismo, na necessidade inconsciente de punição e de se autoprejudicar,do neurótico, que tornam plausível a hipótese de haver impulsos instintuais contrários à autopreservação, até nos sentimos abalados em nossa crença na validade geral da verdade banal sobre a qual se ergue a estrutura teórica da psicologia do indivíduo. Uma teoria como esta, contudo, está fadada a ser muito bem recebida pela grande massa do povo, uma teoria que não apresenta complicações, que não introduz conceitos novos, difíceis de compreender, que nada sabe do inconsciente, que com apenas um gesto elimina o problema universalmente opressivo da sexualidade, e que se limita à descoberta de artifícios pelos quais as pessoas tornam fácil a vida. Pois a massa do povo aceita as coisas facilmente: ela não exige mais do que um único motivo à maneira de explicação, não agradece à ciência por sua falta de limites, quer ter soluções simples e saber que os problemas estão solucionados. Ao considerarmos até que ponto vai a psicologia do indivíduo para satisfazer a tais exigências, não podemos evitar a lembrança de uma frase de Wallenstein:

 

Wär’ der Gedank’ nicht so verwünscht gescheidt,

Man wär’ versucht, ihn herzlich dumm zu nennen.

 

As críticas feitas por círculos de especialistas de forma tão incessante contra a psicanálise têm lidado com a psicologia do indivíduo, de modo geral, com luvas de pelica. É verdade que, na América, um dos mais respeitados psiquiatras publicou um artigo contra Adler intitulado ‘Enough’, no qual expressou energicamente seu fastio pela ‘compulsão à repetição’ da psicologia do indivíduo. Se outros a trataram muito mais amavelmente, por certo o seu antagonismo à análise tem muito a ver com isso.

Não tenho muita coisa a dizer a respeito de outras escolas que se desmembraram de nossa psicanálise. O fato de assim haverem procedido não pode ser usado a favor ou contra a validade das teorias psicanalíticas. Basta os senhores pensarem nos poderosos fatores emocionais que tornam difícil a muitas pessoas adaptar-se ou subordinar-se a outras, e na dificuldade ainda maior na qual justamente insiste o ditado ‘Quot capita tot sensus’. Quando as diferenças de opinião foram além de certo ponto, a coisa mais sensata consistiu em partir, e, daí em diante, prosseguir por vias diferentes — especialmente quando a divergência teórica envolvia uma modificação no procedimento prático. Suponham, por exemplo, que um analista atribui pouco valor à influência do passado pessoal do paciente e busca a causa das neuroses exclusivamente nos motivos atuais e em expectativas do futuro. Nesse caso, negligenciará a análise da infância; terá de adotar uma técnica inteiramente diferente e terá de compensar a omissão dos eventos advindos da análise da infância mediante um aumento em sua influência pedagógica e mediante a indicação direta de determinados objetivos particulares da vida. De nossa parte diremos, pois: ‘Isto pode ser uma escola de sabedoria; porém, já não é mais análise.’ Ou então outro pode chegar à conclusão de que a experiência de ansiedade no nascimento condiciona todos os distúrbios neuróticos subseqüentes. A partir daí pode achar-se no direito de limitar a análise às conseqüências dessa única impressão e de prometer êxito terapêutico em um tratamento de três ou quatro meses de duração. Conforme haverão de observar, escolhi dois exemplos que partem de premissas diametralmente opostas. É uma característica quase universal desses ‘movimentos de secessão’o fato de que cada um deles, de toda a variada riqueza de temas da psicanálise, apreende apenas um fragmento e se faz independente com base nessa apreensão — escolhendo o instinto de domínio, por exemplo, ou o conflito ético, ou a [importância da] mãe, ou a genitalidade, e assim por diante. Se lhes parece que as secessões desse tipo já são atualmente mais numerosas na história da psicanálise do que em outros movimentos intelectuais, não tenho certeza de que deva concordar com os senhores. Se é este o caso, a responsabilidade deve estar nas relações íntimas, existentes na psicanálise, entre os pontos de vista teóricos e o procedimento terapêutico. Simples diferenças de opinião seriam por muito tempo toleradas. As pessoas gostam de acusar-nos de intolerância, a nós, psicanalistas. A única manifestação dessa feia característica foi precisamente o fato de havermo-nos afastado daqueles que pensam diferentemente de nós. Nenhum outro dano lhes foi feito. Pelo contrário, caíram por sua própria causa, e estão melhor fora, do que anteriormente. Isto porque, com sua separação, geralmente se livraram de uma dessas cargas que nos oprimem — o ódio da sexualidade infantil, talvez, ou o absurdo do simbolismo — e em seu meio são considerados medianamente respeitáveis, o que ainda não se aplica àqueles dentre nós que ficaram para trás. Ademais, ressalvada uma exceção notável, foram eles que se excluíram a si mesmos.

Que outras exigências os senhores fazem em nome da tolerância? Que,quando alguém expressa uma opinião que consideramos totalmente errônea, nós lhe digamos: ‘Muito obrigado por ter expressado essa contradição. O senhor nos está defendendo do perigo da complacência e nos está dando uma oportunidade de mostrar aos americanos que nós somos realmente tão “liberais” como eles sempre desejam ser. A bem da verdade, não acreditamos numa só palavra do que o senhor esteve dizendo, mas isto não faz qualquer diferença. Provavelmente o senhor tem tanta razão como nós. Afinal quem pode, talvez, saber quem está certo? Apesar de nosso antagonismo, permita-nos, por favor, que apresentemos seu ponto de vista em nossas publicações. Esperamos que o senhor seja suficientemente gentil, em troca, para encontrar um lugar para nossos pontos de vista que o senhor contesta.’ No futuro, quando tiver sido atingido plenamente o mau uso da relatividade de Einstein, isto se tornará obviamente o costume regular nos assuntos científicos. Por enquanto, é verdade, ainda não chegamos a tal ponto. À moda antiga, limitamo-nos a apresentar somente as nossas convicções, expomo-nos ao risco de errar porque não há como evitá-lo, e rejeitamos aquilo que está em contradição conosco. Na psicanálise temos usado muito o direito de modificar nossas opiniões, se pensamos ter encontrado algo melhor.

 

Uma das primeiras aplicações da psicanálise consistiu em nos ensinar a compreender a oposição que os nossos contemporâneos nos movem pelo fato de exercermos a psicanálise. Outras aplicações, de natureza objetiva, podem reivindicar um interesse mais geral. Nosso primeiro propósito, naturalmente, foi o de compreender os distúrbios da mente humana, porque uma notável experiência mostrara que, aqui, a compreensão e a cura quase coincidem, que existe reciprocidade entre uma e outra. E por muito tempo este foi nosso único propósito. Depois, no entanto, percebemos as estreitas relações, a própria identidade interna entre processos patológicos e aquilo que se conhece como processos normais. A psicanálise tornou-se psicologia profunda; e, de vez que nada daquilo que o homem cria ou faz, é compreensível sem a cooperação da psicologia, as aplicações da psicanálise a numerosas áreas do conhecimento, em especial àquelas das ciências mentais, ocorreram espontaneamente, entraram em cena e requereram debate. Essas tarefas, infelizmente, encontraram obstáculos que, arraigados como estavam nas circunstâncias, ainda atualmente não foram superados. Uma aplicação desse tipo pressupõe conhecimento especializado, que um analista não possui, ao passo que aqueles que o possuem, os especialistas, nada conhecem da análise, e talvez nada queiram conhecer. Como resultado, os analistas, como amadores lidando com um equipamento dotado de maiores ou menores recursos, muitas vezes reunidos às pressas, fizeram incursões em áreas de conhecimentos tais como mitologia, história da civilização, etnologia, ciência da religião, etc. Foram tratados pelos peritos dessas áreas de forma não melhor do que o são os infratores em geral: seus métodos e descobertas, na medida em que chamavam atenção, foram liminarmente rejeitados. Essas situações estão melhorando constantemente, e em toda parte há um crescente número de pessoas que estudam psicanálise a fim de utilizá-la em seus setores especializados e a fim de, como se fossem colonizadores, assumir o lugar dos pioneiros. Aqui podemos esperar uma abundante colheita de novos descobrimentos. As aplicações da análise são, também, sempre confirmações dela. Ademais disso, ali onde o trabalho científico está de algum modo distanciado da atividade prática, as inevitáveis diferenças de opinião assumem, por certo, um tom menos extremado.

Sinto-me fortemente atraído a mostrar-lhes todas as aplicações da psicanálise às ciências mentais. São coisas que merecem ser conhecidas por toda pessoa que tenha interesses intelectuais; e não ouvir falar em anormalidade e doença durante determinado tempo seria uma pausa bem merecida. Devo, contudo, abandonar tal idéia: ela também nos afastaria do esquema destas conferências e, para admiti-lo francamente, eu não estaria à altura da tarefa. É verdade que, em algumas dessas regiões, eu próprio dei o primeiro passo; hoje, no entanto, já não abarco mais o mundo inteiro e teria de empreender um amplo estudo, a fim de dominar aquilo que foi realizado desde quando comecei. Qualquer um dos senhores que se tenha desapontado com minha recusa, pode obter compensação nas páginas de nossa revista Imago, que se destina a cobrir as aplicações não-médicas da análise.

 

Existe um tema, todavia, que não posso deixar passar tão facilmente — assim mesmo, não porque eu entenda muito a respeito dele, e nem tenha contribuído muito para ele. Muito pelo contrário: aliás, desse assunto ocupei-me muito pouco. Devo mencioná-lo porque é da maior importância, é tão pleno de esperanças para o futuro, talvez seja a mais importante de todas as atividades da análise. Estou pensando nas aplicações da psicanálise à educação, à criação da nova geração. Sinto-me contente com o fato de pelo menos poder dizer que minha filha, Anna Freud, fez desse estudo a obra de sua vida e, dessa forma, compensou a minha falha.

É fácil traçar o caminho que levou a essa aplicação. Quando, no tratamento de um neurótico adulto, estabelecíamos a seqüência dos fatores determinantes de seus sintomas, éramos, com regularidade, reconduzidos ao início de sua infância. O conhecimento dos fatores etiológicos subseqüentes não era suficiente nem para compreender o caso, nem para produzir um efeito terapêutico. Portanto, víamo-nos compelidos a conhecer as peculiaridades da infância; aprendemos uma grande quantidade de coisas, que não poderíamos aprender senão por meio da análise, e pudemos corrigir muitas opiniões, geralmente aceitas, acerca da infância. Reconhecemos que os primeiros anos da infância possuíam uma importância especial — até a idade de cinco anos, possivelmente — por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque esses anos incluíam o primeiro surgimento da sexualidade, que deixa após si fatores causais decisivos para a vida sexual da maturidade. Em segundo lugar, porque as impressões desse período incidem sobre um ego imaturo e débil e atuam sobre este como traumas. O ego não consegue desviar as tempestades emocionais que esses traumas de algum modo provocam, exceto por meio da repressão, e assim adquire na infância todas as disposições para uma doença ulterior e para distúrbios funcionais. Percebemos que a dificuldade da infância reside no fato de que, num curto espaço de tempo, uma criança tem de assimilar os resultados de uma evolução cultural que se estende por milhares de anos, incluindo-se aí a aquisição do controle de seus instintos e a adaptação à sociedade — ou, pelo menos, um começo dessas duas coisas. Só pode efetuar uma parte dessa modificação através do seu desenvolvimento; muitas coisas devem ser impostas à criança pela educação. Não nos surpreendemos se muitas vezes as crianças executam essa tarefa de modo muito imperfeito.Durante esses primeiros anos, muitas delas passam por estados que podem ser equiparados a neuroses — e isto se dá certamente assim em todas aquelas que posteriormente apresentam uma doença manifesta. Em algumas crianças, a doença neurótica não espera até a puberdade, mas irrompe já na infância e dá muito trabalho aos pais e aos médicos.

Não receamos aplicar tratamento analítico a crianças que, ou mostraram inequívocos sintomas neuróticos, ou estavam a caminho de um desenvolvimento desfavorável do caráter. A apreensão, expressa pelos adversários da análise, de que a criança seria prejudicada, mostrou-se infundada. O que ganhamos com esses tratamentos foi havermos conseguido confirmar num ser vivo aquilo que havíamos inferido (de documentos históricos, por assim dizer) no caso dos adultos. No entanto, também para as crianças o ganho foi muito satisfatório. Verificou-se que a criança é muito propícia para tratamento analítico; os resultados são seguros e duradouros. A técnica de tratamento usada em adultos deve, naturalmente, ser muito modificada para sua aplicação em crianças. Uma criança é um objeto psicologicamente diferente de um adulto. De vez que não possui superego, o método da associação livre não tem muita razão de ser, a transferência (porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempenha um papel diferente. As resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, nas crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em veículos da resistência, o objetivo da análise — e a análise como tal — muitas vezes corre perigo. Daí se deduz que muitas vezes é necessária determinada dose de influência analítica junto aos pais. Por outro lado, as inevitáveis variantes das análises de crianças, diferentes da análise de adultos, são diminuídas pela circunstância de que alguns dos nossos pacientes conservaram tantas características infantis, que o analista (também aqui adaptando-se ao caso) não pode evitar o emprego, em tais pacientes, de determinadas técnicas da análise infantil. Aconteceu automaticamente que a análise de crianças se tornou domínio das analistas mulheres, e sem dúvida isto continuará assim.

O reconhecimento de que a maioria das nossas crianças atravessa uma fase neurótica no curso desenvolvimental impõe medidas de profilaxia. Pode-se levantar a questão de saber se não seria adequado vir em auxílio de uma criança com a análise, embora não mostre sinais de algum distúrbio, como forma de salvaguardar sua saúde, do mesmo modo como atualmente vacinamos as crianças contra a difteria, sem esperar para ver se contraíram a doença. No momento atual, essa discussão tem apenas interesse acadêmico, contudo me disponho a considerá-la aqui. À grande massa de nossos contemporâneos a simples sugestão de tal medida pareceria uma ofensa monstruosa, e, em vista da atitude para com a análise, manifestada pela maioria das pessoas na condição de pais, qualquer esperança de colocar em prática tal idéia deve ser abandonada, na época atual. Semelhante profilaxia contra a doença neurótica, que provavelmente seria muito eficaz, também pressupõe uma constituição bem diversa da sociedade. A iniciativa para a aplicação da psicanálise à educação deve, hoje, ser buscada em outra área. Vamos tornar claro para nós mesmos qual a tarefa primeira da educação. A criança deve aprender a controlar seus instintos. É impossível conceder-lhe liberdade de pôr em prática todos os seus impulsos sem restrição. Fazê-lo seria um experimento muito instrutivo para os psicólogos de crianças; mas a vida seria impossível para os pais, e as próprias crianças sofreriam grave prejuízo, que se exteriorizaria, em parte, imediatamente, e, em parte, nos anos subseqüentes. Por conseguinte, a educação deve inibir, proibir e suprimir, e isto ela procurou fazer em todos os períodos da história. Na análise, porém, temos verificado que precisamente essa supressão dos instintos envolve o risco de doença neurótica. Conforme os senhores haverão de se lembrar, examinamos detalhadamente como isto ocorre. Assim, a educação tem de escolher seu caminho entre o Sila da não-interferência e o Caríbdis da frustração. A menos que o problema seja inteiramente insolúvel, deve-se descobrir um ponto ótimo que possibilite à educação atingir o máximo com o mínimo de dano. Será, portanto, uma questão de decidir quanto proibir, em que hora e por que meios. E, ademais, devemos levar em conta o fato de que os objetos de nossa influência educacional têm disposições constitucionais inatas muito diferentes, de modo que é quase impossível que o mesmo método educativo possa ser uniformemente bom para todas as crianças. Uma simples reflexão nos diz que até agora a educação cumpriu muito mal sua tarefa e causou às crianças grandes prejuízos. Se ela descobrir o ponto ótimo e executar suas tarefas de maneira ideal, ela pode esperar eliminar um dos fatores da etiologia do adoecer — a influência dos traumas acidentais da infância. Ela não pode, em caso nenhum, suprimir o outro fator — o poder de uma constituição instintual rebelde. Se considerarmos agora os difíceis problemas com que se defronta o educador — como ele tem de reconhecer a individualidade constitucional da criança, de inferir, a partir de pequenos indícios, o que é que está se passando na mente imatura desta, de dar-lhe a quantidade exata de amor e, ao mesmo tempo, manter um grau eficaz de autoridade —, haveremos de dizer a nós mesmos que a única preparação adequada para a profissão de educador é uma sólida formação psicanalítica. Seria melhor que o educador tivesse sido, ele próprio, analisado, de vez que o certo é ser impossível assimilar a análise sem experimentá-la pessoalmente. A análise de professores e educadores parece ser uma medida profilática mais eficiente do que a análise das próprias crianças, e são menores as dificuldades para pô-la em prática.

Podemos mencionar, conquanto apenas como consideração incidental, um meio indireto de a educação das crianças poder ser ajudada pela análise, um modo que, com o tempo, pode adquirir maior influência. Os pais que tiverem em si a experiência da análise, e devem muito a ela, além de lhe deverem compreensão interna (insight) das falhas havidas na sua própria educação, tratarão seus filhos com melhor compreensão e lhes pouparão muitas coisas de que não foram poupados.

Paralelamente ao trabalho dos analistas no sentido de influenciar a educação, estão sendo feitas outras investigações quanto à origem e prevenção da delinqüência e do crime. Também aqui estou apenas abrindo a porta para os senhores e mostrando-lhes os compartimentos que se situam detrás dela, sem conduzi-los para dentro. Estou certo de que, se os senhores permanecerem leais ao seu interesse pela psicanálise, poderão aprender muita coisa nova e valiosa a respeito desses temas. Entretanto, não devo abandonar o assunto da educação sem me referir a um seu aspecto especial. Tem-se afirmado — e certamente com razão — que toda educação possui um objetivo tendencioso, que ela se esforça por fazer a criança alinhar-se conforme a ordem estabelecida da sociedade, sem considerar qual o valor ou qual o fundamento dessa ordem como tal. Se [pergunta-se] uma pessoa está convencida dos defeitos das nossas atuais instituições sociais, a educação segundo uma linha psicanalítica também não pode justificadamente se colocar a serviço dessas instituições: a tal educação deve-se dar finalidades outras e mais elevadas, isentas das exigências reinantes na sociedade. Contudo, em minha opinião, esse argumento não cabe aqui. Tal pretensão está além da função legítima da análise. Da mesma forma, não compete ao médico, que é chamado para tratar um caso de pneumonia, preocupar-se com coisas tais como, por exemplo, se o paciente é um homem honesto, um suicida, ou um criminoso, se merece continuar vivo ou se se deveria querer mantê-lo com vida. Esse outro objetivo que se deseja dar à educação também será um objetivo tendencioso, e não é da competência do analista decidir entre as partes. Estou abandonando totalmente o fato de que a psicanálise deveria recusar qualquer influência na educação, no caso de esta se propor objetivos incompatíveis com a ordem social estabelecida. A educação psicanalítica estará assumindo uma responsabilidade para a qual não foi convidada, se ela tencionar transformar seus discípulos em rebeldes. Ela terá desempenhado seu papel se os tornar tão sadios e eficientes quanto é possível. A psicanálise já encerra em si mesma fatores revolucionários suficientes para garantir que todo aquele que nela se educou jamais tomará em sua vida posterior o partido da reação e da repressão. Penso até mesmo que as crianças revolucionárias não são desejáveis, sob nenhum ponto de vista.

 

Proponho-me, ainda, senhoras e senhores, dizer-lhes algumas palavras a respeito da psicanálise como forma de terapia. Discuti o lado teórico da questão, há quinze anos atrás, e não consigo formulá-lo de nenhuma outra maneira, hoje; agora, tenho de contar-lhes a nossa experiência durante esse intervalo. Como sabem, a psicanálise originou-se como método de tratamento; ela o desenvolveu muito, mas não abandonou seu chão de origem e ainda está vinculada ao seu contato com os pacientes para aumentar sua profundidade e se desenvolver mais. As informações acumuladas, de que derivamos nossas teorias, não poderiam ser obtidas de outra maneira. As falhas que nós, na qualidade de terapeutas, encontramos, constantemente nos propõem novas tarefas, e as exigências da vida real estão efetivamente em guarda contra um exagero da especulação, da qual não podemos, afinal, prescindir em nosso trabalho. Já faz muito tempo, debati os meios usados pela psicanálise para auxiliar os pacientes, quando os auxilia, e o método pelo qual o faz; hoje perguntarei sobre quanto ela realiza.

Talvez os senhores saibam que nunca fui um terapeuta entusiasta; não há o perigo de eu fazer mau uso desta conferência excedendo-me em elogios. De preferência, diria antes pouco do que muito. Durante o período em que eu era o único analista, as pessoas ostensivamente amáveis para com minhas idéias costumavam dizer-me: ‘Tudo isto é muito bonito e inteligente, mas me mostre um caso que o senhor tenha curado pela análise.’ Esta era uma das muitas fórmulas que no decorrer do tempo se sucederam na função de afastar do caminho a incômoda inovação. Hoje em dia, está tão em desuso como tantas outras: o analista também tem em seus escaninhos uma pilha de cartas de pacientes agradecidos que foram curados. A analogia não pára aí. A psicanálise é realmente um método terapêutico como os demais. Tem seus triunfos e suas derrotas, suas dificuldades, suas limitações, suas indicações. Em certa época, fazia-se contra a análise a queixa de que não podia ser tomada a sério, na qualidade de tratamento, de vez que não se atrevia a publicar estatísticas de seus êxitos. Partindo disto, o Instituto Psicanalítico de Berlim, que foi fundado por Max Eitingon, publicou um documento sobre seus resultados durante os seus primeiros dez anos. Os seus sucessos terapêuticos não constituem motivo, nem de orgulho, nem de vergonha. Estatísticas dessa espécie não são, porém, em geral, instrutivas. O material com que lidam é tão heterogêneo, que apenas números muito elevados mostrariam algo. É mais correto examinar as próprias experiências do indivíduo. E aqui gostaria de acrescentar que não penso poderem as nossas curas competir com as que se verificam em Lourdes. São muito mais numerosas as pessoas que crêem nos milagres da Santa Virgem, do que aquelas que acreditam na existência do inconsciente. Se nos voltarmos para os competidores deste mundo, devemos comparar o tratamento psicanalítico com outros tipos de psicoterapia. Mal se pode mencionar, aqui, os atuais métodos orgânicos de tratamento dos estados neuróticos. A análise, enquanto método psicoterapêutico, não se situa em oposição a outros métodos usados nesse ramo especializado da medicina; não lhes diminui o valor e nem os exclui. Não há nenhuma incoerência teórica se um médico, que gosta de se dizer psicoterapeuta, usa a análise em seus pacientes paralelamente a algum outro método de tratamento, segundo as peculiaridades do caso e as circunstâncias externas favoráveis ou desfavoráveis. É realmente a técnica que obriga à especialização na prática da medicina. Assim, a cirurgia e a ortopedia, do mesmo modo, foram obrigadas a separar-se. A atividade psicanalítica é árdua e exigente; não pode ser manejada como um par de óculos que se põe para ler e se tira para sair a caminhar. Via de regra, a psicanálise possui um médico inteiramente, ou não o possui em absoluto. Aqueles psicoterapeutas que empregam a psicanálise, entre outros métodos, ocasionalmente pelo que sei, não se situam em chão analítico firme; não aceitaram toda a análise, tornaram-na aguada — mudaram-lhe a essência, quem sabe; não podem ser incluídos entre os analistas. Penso que isto é lamentável. Na prática médica, a cooperação entre um analista e um psicoterapeuta que se limita a outras técnicas, serviria a propósitos muito úteis.

Comparada com outros procedimentos psicoterapêuticos, a psicanálise é, fora de dúvida, o mais eficiente. Também, é justo e correto que seja assim, de vez que também é o mais laborioso e demorado; não seria usado em casos leves. Nos casos apropriados, é possível, através dela, suprimir os distúrbios e promover modificações que, em épocas pré-analíticas, não se ousaria esperar obter. Tem, contudo, os seus limites bem definidos. A ambição terapêutica de alguns de meus adeptos fez os maiores esforços no sentido de superar tais obstáculos, de modo que todo tipo de doença neurótica pudesse ser curável por meio da psicanálise. Tentaram comprimir o trabalho analítico num tempo mais curto, intensificar a transferência de modo a poder vencer qualquer resistência, juntar-lhe outras formas de influência a fim de forçar uma cura. Esses esforços são certamente dignos de elogios, mas, segundo penso, são vãos. Ademais, trazem consigo o risco de a pessoa ser arrastada para fora da análise e atraída para uma série de experiências sem limites. A expectativa de que todo fenômeno neurótico possa ser curado, pode ser, conforme suspeito, derivada da crença do leigo de que as neuroses são algo muito desnecessário, que não têm qualquer razão de existir. E, no entanto, elas são, com efeito, doenças graves, fixadas na constituição, que raramente se limitam apenas a alguns ataques, mas persistem geralmente por longos períodos, ou por toda a vida. Nossa experiência analítica, segundo a qual elas podem ser extensamente influenciadas se as causas precipitantes históricas e os fatores acidentais acessórios da doença puderem ser abordados, levou-nos a negligenciar o fator constitucional em nosso procedimento terapêutico, e em todo caso não podemos fazer nada quanto a esse fator; mas, em teoria, devemos tê-lo sempre em mente. A radical inacessibilidade das psicoses ao tratamento analítico, tendo em vista a estreita relação delas com as neuroses, deveria limitar nossas pretensões com referência às últimas. A eficácia terapêutica da psicanálise permanece tolhida por numerosos fatores de peso e dificilmente abordáveis. Quanto ao caso das crianças, em que se pode contar com os maiores êxitos, as dificuldades são externas, influenciadas pelo relacionamento com os pais, embora tais dificuldades, afinal, necessariamente façam parte da condição da criança. Quanto aos adultos, as dificuldades surgem, em primeiro lugar, de dois fatores: o montante da rigidez psíquica presente e a forma da doença, com tudo o que isto abrange em termos de fatores determinantes mais profundos.

O primeiro desses fatores amiúde é negligenciado sem razão. Por maiores que sejam a elasticidade da vida mental e a possibilidade de reviver antigas situações, nem tudo pode ser trazido à luz novamente. Determinadas modificações parecem ser definitivas e correspondem a cicatrizes que se formaram quando um processo completou seu curso. Em outras ocasiões, tem-se a impressão de um enrijecimento geral na vida psíquica; os processos mentais, aos quais se poderia muito bem indicar outros caminhos, parecem incapazes de abandonar os antigos rumos. Mas, talvez isto seja equivalente àquilo que acabei de mencionar, só que visto de forma diferente. Muitas vezes, parece que se verifica que aquilo que está faltando ao tratamento é apenas a necessária força motriz, e que essa falta impede efetuar-se a modificação. Determinada relação de dependência ou um componente instintual especial podem ser demasiado poderosos em comparação com as forças opostas que somos capazes de mobilizar. É quase sempre isto o que ocorre com as psicoses. Nós as conhecemos o suficiente para sabermos em que ponto devem ser aplicadas as alavancas; estas, contudo, não seriam capazes de mover o peso. Realmente, é aqui o lugar onde está a esperança no futuro: na possibilidade de que nosso conhecimento da atuação dos hormônios (os senhores sabem o que eles são) nos possa fornecer os meios de combater com êxito os fatores quantitativos das doenças: mas estamos longe disto, atualmente. Apercebo-me de que, em todos esses assuntos, a incerteza é um estímulo constante para aperfeiçoar a análise e especialmente a transferência. Os iniciantes em análise, principalmente, ficam em dúvida, em caso de insucesso, se devem atribuí-lo a peculiaridades do caso ou à sua própria inabilidade de manejar o procedimento terapêutico. Mas, conforme já disse anteriormente, não creio que se possa conseguir muito com intentos nessa direção.

A segunda limitação aos êxitos da análise é causada pela forma da doença. Já sabem os senhores que o campo de aplicação da terapia analítica se situa nas neuroses de transferência — fobias, histeria, neurose obsessiva — e, além disso, anormalidades de caráter que se desenvolveram em lugar dessas doenças. Tudo o que difere destas, as condições narcísicas e psicóticas, é inevitável em grau maior ou menor. Seria inteiramente legítimo acautelar-nos dos insucessos, excluindo cuidadosamente esses casos. Tal precaução levaria a uma grande melhora nas estatísticas da análise. Todavia, aqui há uma armadilha. Nossos diagnósticos são feitos após os eventos. Assemelham-se à prova do rei escocês para identificar feiticeiras, que li em Victor Hugo. Esse rei declarava que possuía um método infalível de reconhecer uma feiticeira. Mandava cozer lentamente as mulheres num caldeirão de água fervendo, e então provava o caldo. Depois disso era capaz de dizer: ‘Esta era feiticeira’ ou ‘Não, esta não era’. Conosco se passa o mesmo, exceto que nós somos os que sofremos. Não podemos julgar o paciente que vem para tratamento (ou, igualmente, o candidato que vem para formação), senão depois de havê-lo estudado analiticamente por algumas semanas ou meses. De fato, estamos comprando nabos em saco. O paciente traz consigo aspectos doentios indefinidos e gerais que não comportam um diagnóstico conclusivo. Depois desse período de prova, pode acontecer que o caso se revele inviável. Com isto, mandamo-lo embora, se for um candidato, ou prolongamos a tentativa um pouco mais, se for um paciente, na expectativa de ainda podermos ver as coisas sob uma luz mais favorável. O paciente vinga-se acrescentando-se à nossa lista de fracassos, e vinga-se o candidato rejeitado, se for um paranóide, escrevendo livros sobre psicanálise. Como vêem, nossas precauções foram inúteis.

Receio que essas discussões detalhadas estejam exaurindo o interesse dos senhores. Contudo me sentiria ainda mais pesaroso se os senhores dessem para pensar que minha intenção é diminuir o conceito que os senhores têm da psicanálise como terapia. Talvez eu realmente haja feito um começo desajeitado. Pois eu quis fazer o contrário; excusar as limitações terapêuticas da análise mostrando a inevitabilidade delas. Com o mesmo propósito em vista, passo a outro ponto: a acusação, feita contra o tratamento analítico, de que ele leva um tempo exageradamente longo. Quanto a isto, deve-se dizer que as modificações psíquicas de fato só se fazem lentamente; se ocorrem rápida, subitamente, isto é mau sinal. É verdade que o tratamento de uma neurose muito grave pode, com facilidade, estender-se por vários anos; mas pensem, no caso de haver êxito, quanto tempo a doença teria durado. Uma década, provavelmente, por ano de tratamento, ou seja, a doença (como vemos tantas vezes, em casos não tratados) absolutamente não teria findado. Em alguns casos, justifica-se que retomemos uma análise, muitos anos depois. A vida desenvolveu novas reações patológicas a novas causas precipitantes; mas, nesse ínterim, nosso paciente tinha estado bem. A primeira análise realmente não tinha trazido à luz todas as suas disposições patológicas, e era natural que a análise houvesse parado, uma vez obtido o êxito. Existem também pessoas gravemente prejudicadas que são mantidas sob supervisão analítica por toda a vida e retornam à análise de tempos em tempos. Essas pessoas, não fosse dessa maneira, seriam, porém, totalmente incapazes de viver, e devemo-nos contentar com o fato de poderem manter-se sobrevivendo às suas próprias custas, por meio desse tratamento parcelado e recorrente. A análise dos distúrbios de caráter também exige longos períodos de tratamento; mas, muitas vezes, obtém êxito; conhecem os senhores alguma outra terapia com a qual se poderia empreender semelhante tarefa? A ambição terapêutica pode sentir-se insatisfeita com esses resultados: mas, tendo como exemplos a tuberculose e o lupo, aprendemos que o sucesso só pode ser obtido quando o tratamento se adapta às características da doença

Disse-lhes que a psicanálise começou como um método de tratamento; mas não quis recomendá-lo ao interesse dos senhores como método de tratamento e sim por causa das verdades que ela contém, por causa das informações que nos dá a respeito daquilo que mais interessa aos seres humanos — sua própria natureza — e por causa das conexões que ela desvenda entre as mais diversas atividades. Como método de tratamento, é um método entre muitos, embora seja, para dizer a verdade, primus inter pares. Se não tivesse valor terapêutico não teria sido descoberto, como o foi, em relação a pessoas doentes, e não teria continuado desenvolvendo-se por mais de trinta anos.

 

CONFERÊNCIA XXXV

A QUESTÃO DE UMA WELTANSCHAUUNG

 

SENHORAS E SENHORES:

 

Em nosso encontro anterior, ocupamo-nos com pequenos assuntos cotidianos; colocando nossa modesta casa em ordem, digamos assim. Proponho que demos um salto ousado e nos arrisquemos a responder à pergunta que constantemente se faz em outros setores: a psicanálise conduz a uma determinada Weltanschauung e, em caso afirmativo, a qual?

Suponho que Weltanschauung seja um conceito especificamente alemão, cuja tradução para línguas estrangeiras certamente apresenta dificuldades. Se eu tentar uma definição sua, minha definição estará fadada a ser incompleta. Em minha opinião, a Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo. Facilmente se compreenderá que a posse de uma Weltanschauung desse tipo situa-se entre os desejos ideais dos seres humanos. Acreditando-se nela, pode-se sentir segurança na vida, pode-se saber o que se procura alcançar e como se pode lidar com as emoções e interesses próprios da maneira mais apropriada.

Sendo esta a natureza da Weltanschauung, torna-se fácil a resposta, no que respeita à psicanálise. Na qualidade de ciência especializada, ramo da psicologia — psicologia profunda, ou psicologia do inconsciente —, ela é praticamente incapaz de construir por si mesma uma Weltanschauung: tem de aceitar uma Weltanschauung científica. A Weltanschauung da ciência, porém, já diverge muito de nossa definição. É verdade que também supõe a uniformidade da explicação do universo; mas, o faz apenas na qualidade de projeto, cuja realização é relegada ao futuro. Ademais, marcam-na características negativas, como o fato de se limitar àquilo que no momento presente é cognoscível e de rejeitar completamente determinados elementos que lhe são estranhos. Afirma que não há outras fontes de conhecimento do universo além da elaboração intelectual de observações cuidadosamente escolhidas — em outras palavras, o que podemos chamar de pesquisa — e, a par disso, que não existe nenhuma forma de conhecimento derivada da revelação, da intuição ou da adivinhação. Parece que esse ponto de vista chegou muito perto de obter reconhecimento geral, no curso dos últimos séculos; e coube ao nosso século manifestar a atrevida objeção segundo a qual uma Weltanschauung como esta é simultaneamente muito pobre, sem esperança, e despreza as reivindicações do intelecto humano e as necessidades da mente do homem.

Essa objeção não pode ser repelida com demasiada energia. Praticamente carece de fundamento, pois o intelecto e a mente são objetos de pesquisa científica exatamente da mesma forma como o são as coisas não-humanas. A psicanálise tem um direito especial de falar de uma Weltanschauung científica nesse ponto, de vez que não pode ser acusada de ter negligenciado aquilo que é mental no quadro do universo. Sua contribuição à ciência consiste justamente em ter estendido a pesquisa à área mental. E, aliás, sem tal psicologia, a ciência estaria muito incompleta. Se, no entanto, a investigação das funções intelectuais e emocionais do homem (e do animal) é incluída na ciência, então se verá que nada é modificado na atitude da ciência como um todo, que nenhuma nova fonte de conhecimento ou novo método de pesquisa resultou daí. A intuição e a adivinhação seriam as mesmas, se existissem; porém, seguramente, podem ser tidas na conta de ilusões, de realização de impulsos plenos de desejos. Também é fácil verificar que essas exigências feitas a uma Weltanschauung somente se baseiam na emoção. A ciência apercebe-se do fato de que a mente do homem cria tais exigências e está pronta a examinar suas origens, mas não tem o mais leve motivo para considerá-las justificadas. Pelo contrário, vê isto como advertência no sentido de cuidadosamente separar do conhecimento tudo o que é ilusão e o que é resultado de exigências emocionais como estas.

Isto absolutamente não significa que se deva repelir com desprezo esses desejos, ou subestimar seu valor para a vida humana. Estamos em condições de destacar as realizações que esses desejos criaram para si mesmos, nos produtos da arte e nos sistemas de religião e de filosofia; porém, não podemos desprezar o fato de que seria ilícito e muito impróprio permitir fossem essas exigências transferidas para a esfera do conhecimento. Pois isto equivaleria a deixar abertos os caminhos que levam à psicose, seja psicose individual, seja grupal, e retiraria valiosas somas de energia de empreendimentos voltados para a realidade, com a finalidade de, na medida do possível, nela encontrar satisfação para os desejos e para as necessidades.

Do ponto de vista da ciência, não se pode evitar exercer, aqui, a faculdade de crítica e apresentar objeções e rejeições. Não é lícito declarar que a ciência é um campo da atividade mental humana, e que a religião e a filosofia são outros campos, de valor pelo menos igual, e que a ciência não tem por que interferir nelas: que todas elas têm iguais pretensões de serem verdadeiras e que toda pessoa tem a liberdade de escolher de qual delas irá derivar suas convicções e em qual delas depositará sua crença. Uma opinião como esta é vista como especialmente superior, tolerante, emancipada e livre de preconceitos incultos. Infelizmente, não é sustentável e compartilha de todos os aspectos perniciosos de uma Weltanschauung não-científica, e a esta equivale, na prática. É que a verdade simplesmente não pode ser tolerante, não admite conciliações ou limitações, e o fato é que a pesquisa considera como propriedade sua todas as esferas da atividade humana, e deve exercer uma crítica incessante se algum outro poder tenta arrebatar-lhe alguma parte.

 

Dos três poderes que podem disputar a posição básica da ciência, apenas a religião deve ser considerada seriamente como adversária. A arte quase sempre é inócua e benéfica; não procura ser nada mais do que uma ilusão. Excetuando algumas pessoas que se diz serem ‘possessas’ pela arte, esta não tenta invadir o reino da realidade. A filosofia não se opõe à ciência, comporta-se como uma ciência e, em parte, trabalha com os mesmos métodos; diverge, porém, da ciência, apegando-se à ilusão de ser capaz de apresentar um quadro do universo que seja sem falhas e coerente, embora tal quadro esteja fadado a ruir ante cada novo avanço em nosso conhecimento. Perde o rumo com seu método de superestimar o valor epistemológico de nossas operações lógicas e ao aceitar outras fontes de conhecimento, como a intuição. E muitas vezes parece que não é injustificado o mordaz comentário do poeta quando diz do filósofo:

 

Mit seinen Nachtmützen und Schlafrockfetzen Stopft er die Lücken des Weltenbaus.A filosofia, no entanto, não exerce influência direta na grande massa da humanidade; é objeto do interesse de apenas um pequeno número de pessoas da camada superior de intelectuais, e dificilmente é compreensível para alguém mais. Por outro lado, a religião é um poder imenso que tem a seu serviço as mais fortes emoções dos seres humanos. Sabe-se muito bem que, em períodos anteriores, abrangia tudo o que desempenhava um papel intelectual na vida do homem, que ela assumia o lugar da ciência ali onde mal havia algo que se assemelhasse à ciência, e que ela construía uma Weltanschauung coerente e auto-suficiente num grau sem paralelo e que, embora profundamente abalada, persiste na atualidade.

Se quisermos dar uma noção da natureza grandiosa da religião, devemos ter em mente o que ela se propõe fazer pelos seres humanos. Dá-lhes informações a respeito da origem e da existência do universo, assegura-lhes proteção e felicidade definitiva nos altos e baixos da vida e dirige seus pensamentos e ações mediante preceitos, os quais estabelece com toda a sua autoridade. Com isto ela preenche três funções. Com a primeira delas satisfaz a sede de conhecimento do homem; faz a mesma coisa que a ciência tenta fazer, com os seus próprios meios, e nesse ponto entra em choque com ela. É à segunda das suas funções que a religião deve certamente a maior parte de sua influência. A ciência não pode competir com a religião quando esta acalma o medo que o homem sente em relação aos perigos e vicissitudes da vida, quando lhe garante um fim feliz e lhe oferece conforto na desventura. É verdade que a ciência nos pode ensinar como evitar determinados perigos e mostrar-nos existirem determinados sofrimentos que ela é capaz de combater com êxito; seria muito injusto negar que ela ela é um poderoso auxiliar do homem; há, contudo, muitas situações em que se vê obrigada a deixar o homem entregue ao sofrimento e apenas pode aconselhá-lo a resignar-se. Em sua terceira função, mediante a qual estabelece preceitos, proibições e restrições, a religião vai muito além da ciência. Isso porque a ciência se contenta com investigar e estabelecer fatos, embora seja verdade que de suas aplicações se derivam normas e orientações quanto à conduta de vida. Em algumas circunstâncias, estas coincidem com aquelas que a religião oferece, mas, quando tal fato se verifica, os motivos de uma e de outra são diferentes.

A convergência desses três aspectos da religião não está inteiramente clara. Qual a inter-relação entre a explicação da origem do universo e a inculcação de determinados preceitos éticos especiais? As garantias de proteção e felicidade estão mais intimamente ligadas aos requisitos éticos. São a recompensa pela observância desses mandamentos; somente aqueles que obedecem a esses últimos podem contar com esses benefícios; a punição espera o desobediente. Aliás, algo parecido se verifica com a ciência. Aqueles que desprezam suas lições, assim ela nos diz, expõem-se a dano.

A notável combinação de ensino, consolo e exigências, que se verifica na religião, pode ser compreendida apenas quando submetida a uma análise genética. Esta pode ser abordada desde o ponto mais surpreendente do conjunto, ou seja, do seu ensino acerca da origem do universo; pois podemos perguntar por que uma cosmogonia faz parte, regularmente dos sistemas religiosos? Assim, a doutrina afirma que o universo foi criado por um ser semelhante ao homem, contudo magnificado em todos os aspectos, em poder, sabedoria e força de suas paixões — um super-homem idealizado. Animais, na qualidade de criadores do universo, assinalam a influência do totemismo, sobre o qual teremos pelo menos algumas palavras a dizer, no momento. É interessante constatar que esse criador quase sempre é um único ser, mesmo nos casos em que se acredita existirem muitos deuses. Também é interessante o fato de que o criador geralmente é um homem, embora não sejam nada raras as indicações referentes a deidades femininas; e algumas mitologias realmente fazem a criação começar com um deus masculino eliminando uma divindade feminina, que é degradada em monstro. Aqui se nos apresentam os mais interessantes problemas de detalhes; mas não podemos determos aí. Nosso caminho torna-se mais fácil de reconhecer, de vez que esse criador-deus é abertamente chamado de ‘pai’. A psicanálise infere que realmente é o pai, com toda a magnificência em que, durante determinada época, ele aparecia para a criancinha. Um homem religioso imagina a criação do universo assim como imagina sua própria origem.

Vistas essas coisas, é fácil explicar o modo como garantias do consolo e rígidas normas éticas se combinam com uma cosmogonia. A mesma pessoa, à qual a criança deveu sua existência, o pai (ou, mais corretamente, sem dúvida, a instância parental composta do pai e da mãe), também protegeu e cuidou da criança em sua debilidade e desamparo, exposta como estava a todos os perigos que a esperavam no mundo externo; sob a proteção do pai, a criança sentiu-se segura. Quando um ser humano se torna adulto, ele sabe, na verdade, que possui uma força maior, mas sua compreensão interna (insight) dos perigos da vida também se tornou maior, e com razão conclui que fundamentalmente ainda permanece tão desamparado e desprotegido como era na infância; ele sabe que, na sua confrontação com o mundo, ainda é uma criança. Mesmo agora, portanto, não pode prescindir da proteção que usufruía na infância. Também reconheceu, desde então, que seu pai é um ser que possui um poder muito limitado e não está dotado de todas as virtudes. Por esse motivo, retorna à imagem mnêmica do pai, a quem, na infância, tanto supervalorizava. Exalta a imagem transformando-a em divindade, e torna-a contemporânea e real. A força afetiva dessa imagem mnêmica e a persistência de sua necessidade de proteção conjuntamente sustentam sua crença em Deus.

O terceiro item principal do programa religioso, a exigência ética, também se adapta facilmente a essa situação de infância. Posso lembrar aos senhores o famoso pronunciamento de Kant, no qual ele cita, de um fôlego só, os céus estrelados e as leis morais dentro de nós [ver [1]]. Por mais estranha que possa soar essa justaposição — pois que têm a ver os corpos celestes com a questão de saber se uma criatura humana mata ou ama a outra? — ela toca numa grande verdade psicológica. O mesmo pai (ou instância parental) que deu a vida à criança e a protegeu contra os perigos, ensinou-lhe também o que podia fazer e o que devia deixar de fazer, instruiu-a no sentido de adaptar-se a determinadas restrições em seus desejos instintuais e fê-la compreender o respeito que devia ter para com os pais e os irmãos, se quisesse tornar-se um membro tolerado e benquisto do círculo familiar e, posteriormente, de associações mais amplas. A criança é educada no sentido de conhecer os seus deveres sociais mediante um sistema de recompensas carinhosas e de punições; é-lhe ensinado que sua segurança na vida depende de que seus pais (e, depois, de que outras pessoas) a amem e de que eles possam acreditar que a criança os ama. Todas essas relações são posteriormente introduzidas, inalteradas, pelo homem, na religião. A quantidade de proteção e de satisfação destinada a uma pessoa depende do seu cumprimento das exigências éticas; seu amor a Deus e sua consciência de ser amado por Deus são os fundamentos da segurança que adquire contra os perigos do mundo externo e do seu ambiente humano. Finalmente, pela prece assegura para si uma influência direta sobre a vontade divina, e com isto compartilha da onipotência divina.Estou seguro de que, enquanto os senhores estavam me ouvindo, foram molestados por numerosas questões que os senhores gostariam de ter ouvido já com respostas. Não posso empreender essa tarefa aqui e agora, mas confio em que nenhuma dessas indagações detalhadas viria a perturbar nossa tese segundo a qual a Weltanschauung religiosa é determinada pela situação de nossa infância. Com tudo isso, ainda se torna mais notável o fato de que, a despeito de sua natureza infantil, ela teve um precursor. Não cabem dúvidas de que houve uma época sem religião, sem deuses. Tal época se conhece como a fase do animismo. Nessa época, o mundo era povoado de seres espirituais semelhantes ao homem — nós os denominamos de demônios. Todos os objetos do mundo externo eram sua habitação, ou talvez fossem idênticos a tais demônios; contudo, não havia um poder superior que os tivesse criado a todos eles, e, depois, os regesse, e ao qual a pessoa pudesse voltar-se para pedir proteção e auxílio. Os demônios do animismo eram na sua maioria hostis em sua atitude para com os seres humanos, mas parece que, então, os seres humanos tinham mais autoconfiança do que posteriormente. Por certo se encontravam num constante estado do mais agudo medo em relação a esses maus espíritos; mas deles se defendiam por meio de determinados atos, aos quais atribuíam o poder de afastá-los. Ademais disso, não se consideravam indefesos. Se desejavam algo da Natureza — se desejavam chuva, por exemplo —, não faziam uma oração diretamente ao deus do tempo, mas executavam um ato mágico que esperavam influenciasse diretamente a Natureza: eles mesmos faziam algo que se semelhava à chuva. Em sua luta contra os poderes do mundo que os circundava, sua primeira arma foi a magia, o mais antigo precursor da tecnologia de hoje. Sua confiança na magia, conforme supomos, derivou da supervalorização de suas operações intelectuais, de sua crença na ‘onipotência dos pensamentos’ que, aliás, encontramos revivida em nossos pacientes neuróticos obsessivos. Podemos supor que os seres humanos, naquela época, orgulhavam-se particularmente de suas aquisições em termos de linguagem, que devem ter sido acompanhadas de grande facilitação do pensamento. Atribuíam poderes mágicos às palavras. Esse aspecto, mais tarde, foi assumido pela religião. ‘E Deus disse “Faça-se a luz!”, e a luz foi feita.’ O caso dos atos mágicos ademais nos mostra que o homem animista não se apoiava apenas no poder de seus desejos. Preferentemente, esperava resultados da execução de um ato que induziria a Natureza a imitar esse mesmo ato. Se desejava chuva, ele mesmo derramava água; se queria exortar a terra a ser dadivosa, mostrava à terra, nos campos, uma vívida execução do ato sexual.

Os senhores sabem como é difícil algo desaparecer após haver alguma vez conseguido expressão psíquica. Assim, não se supreenderão ao ouvir dizer que muitas das expressões do animismo persistiram até hoje, na maior parte segundo o que chamamos superstição, paralelamente e por trás da religião. E, mais ainda, dificilmente os senhores poderão rejeitar o raciocínio de que a filosofia de hoje conservou alguns aspectos essenciais do modo animista de pensamento — a supervalorização da magia das palavras e a crença segundo a qual os fatos reais do mundo tomam o rumo que nosso pensamento deseja impor-lhes. Com efeito, ela pareceria ser um animismo sem atos mágicos. Por outro lado, podemos supor que, mesmo naqueles tempos, havia ética de alguma espécie, havia preceitos sobre as relações mútuas dos homens; mas nada sugere que tivessem uma conexão íntima com as crenças animistas. Eram, provavelmente, expressão direta dos poderes relativos do homem e de suas necessidades práticas.

Por certo valeria a pena conhecer o que causou a transição do animismo para a religião; todavia, os senhores podem imaginar a obscuridade que, ainda nos dias atuais, encobre esses tempos primitivos da evolução do espírito humano. Parece que a primeira forma assumida pela religião foi o notável fenômeno do totemismo, a adoração dos animais, em cuja seqüência apareceram os primeiros mandamentos éticos, os tabus. Em um volume intitulado Totem e Tabu [1912-13], desenvolvi a idéia que situava a origem dessa transformação numa revolução das circunstâncias da família humana. A principal realização da religião, quando comparada com o animismo, está na vinculação psíquica do temor aos demônios. Não obstante, um vestígio dessa era primeva, o Espírito do Mal, manteve um lugar no sistema religioso.

 

Sendo esta a pré-história da Weltanschauung religiosa, retornemos, agora, àquilo que aconteceu desde então e àquilo que ainda está acontecendo diante de nossos olhos. O espírito científico, reforçado pela observação dos processos naturais, começou no decorrer do tempo, a tratar a religião como um assunto humano e a submetê-la a exame crítico. A religião não podia suportar isto. O que primeiro deu origem à suspeita e ao ceticismo foram suas lendas de milagres, pois contradiziam tudo o que tinha sido constatado mediante acurada observação, e traíam muito nitidamente a influência da atividade da imaginação humana. Depois disto, as suas doutrinas que explicavam a origem do universo se defrontaram com a contestação, pois evidenciavam uma ignorância que trazia a marca de épocas antigas, e em relação às quais as pessoas, graças à sua maior familiaridade com as leis da natureza, sabiam que estas eram superiores. A idéia de que o universo passou a existir por meio de atos de cópula ou criação, análogos à origem das pessoas individualmente, havia deixado de ser a hipótese mais óbvia e evidente por si mesma desde quando a distinção entre as criaturas animadas com uma mente e a Natureza inanimada se havia imposto ao pensamento do ser humano, distinção esta que tornou impossível manter a crença no animismo original. Nem devemos desprezar a influência do estudo comparativo dos diferentes sistemas religiosos e a impressão causada por sua recíproca exclusividade e intolerância.

Fortalecido por esses exercícios preliminares, o espírito científico adquiriu coragem suficiente para, afinal, arriscar-se a examinar os elementos mais importantes e emocionalmente valiosos da Weltanschauung religiosa. As pessoas muitas vezes verificaram — e isto foi muito antes de ousarem dizer assim tão abertamente — que os pronunciamentos da religião, prometendo aos homens proteção e felicidade, bastando que estes cumprissem determinados requisitos éticos, também se haviam mostrado indignos de crédito. Parece não ser verdade que existe um Poder no universo que vela pelo bem-estar dos indivíduos com desvelo parental e conduz todas as coisas a um desfecho feliz. Pelo contrário, o destino dos homens não pode ser harmonizado, nem pela hipótese de uma Benevolência Universal, nem pela hipótese parcialmente contraditória de uma Justiça Universal. Terremotos, maremotos, conflagrações não fazem nenhuma distinção entre o virtuoso, o piedoso e o patife, o descrente. Mesmo ali onde o que está em questão não é a natureza inanimada, mas onde um destino individual depende de suas relações com outras pessoas, de modo algum se verifica a regra segundo a qual a virtude é recompensada e o mal é punido. No mais das vezes, o homem violento, ardiloso, implacável agarra as coisas boas que o mundo cobiça, e o homem piedoso fica de mãos vazias. Poderes obscuros, insensíveis, cruéis determinam o destino do homem; o sistema de recompensas e punições que a religião atribui ao governo do universo parece não existir. Aqui está mais uma razão para abandonar uma parte da teoria animista que fora salva do animismo pela religião.

A última contribuição à crítica da Weltanschauung religiosa foi feita pela psicanálise, ao mostrar como a religião se originou a partir do desamparo da criança, e ao atribuir seu conteúdo à sobrevivência, na idade madura, de desejos e necessidades da infância. Isto não significou necessariamente uma contestação à religião; não obstante, representou um ajustamento de nosso conhecimento a seu respeito e, pelo menos em um aspecto, foi uma impugnação, de vez que a própria religião se arroga uma origem divina. E, na realidade, nisto parece estar correta, desde que seja aceita nossa interpretação de Deus.

Em suma, portanto, o julgamento da ciência sobre a Weltanschauung religiosa é este. Enquanto as diferentes religiões altercam entre si pela posse da verdade, nossa opinião reside em que a questão da verdade das crenças religiosas pode ser totalmente colocada à parte. A religião é uma tentativa de obter domínio do mundo perceptível no qual nos situamos, através do mundo dos desejos que desenvolvemos dentro de nós em conseqüência de necessidades biológicas e psicológicas. Mas a religião não pode conseguir isso. Suas doutrinas conservam a marca dos tempos em que surgiram, dos tempos de ignorância da infância da humanidade. Seu consolo não merece fé. A experiência nos ensina que o mundo não é um aposento de crianças. As exigências éticas, sobre as quais a religião procura apoiar-se, acentuam, antes, a necessidade de lhe serem dadas outras bases; pois são elas indispensáveis à sociedade humana, e é perigoso vincular à fé religiosa a obediência aos princípios éticos. Se tentarmos situar o lugar da religião na evolução da humanidade, ela aparece não como uma aquisição permanente, mas sim como um equivalente da neurose pela qual o homem civilizado, individualmente, teve de passar, em sua transição da infância à maturidadeNaturalmente, os senhores têm a liberdade de criticar essa minha exposição; até mesmo os ajudarei, em parte. O que lhes disse a respeito do desmoronamento gradual da Weltanschauung religiosa ficou muito incompleto na sua forma abreviada. A ordem dos diferentes processos não foi exposta com toda a correção; as diversas forças que concorreram para o despertar do espírito científico não foram rastreadas. Também não foram levadas em conta as modificações que se fizeram na própria Weltanschauung religiosa durante o período de seu domínio irrestrito e, posteriormente, sob a influência de críticas crescentes. Finalmente, devo assinalar que restringi meus comentários, para dizer a verdade, a uma única forma assumida pela religião, a religião dos povos ocidentais. Construí, digamos assim, um modelo anatômico com a finalidade de uma demonstração apressada que fosse tão marcante quanto possível. Deixemos de lado a questão de saber se meu conhecimento de algum modo teria sido suficiente para tornar a coisa melhor e mais completa. Estou consciente de que tudo isso que lhes disse os senhores poderão encontrar descrito de modo mais adequado em algum outro lugar. Nisto não há nada de novo. Permitam-me, porém, expressar a convicção de que a mais cuidadosa elaboração do material dos problemas da religião não abalará nossas conclusões.

A luta do espírito científico contra a Weltanschauung religiosa, como sabem, ainda não chegou ao fim: ainda está-se desenvolvendo atualmente, diante de nossos olhos. Embora, de modo geral, a psicanálise empregue pouco a arma da controvérsia, não me absterei de examinar tal disputa. Com isso, talvez posso elucidar melhor nossa atitude referente às Weltanschauungen. Os senhores verão com que facilidade alguns dos argumentos apresentados pelos adeptos da religião podem ser respondidos, embora outros realmente possam escapar à refutação.

A primeira objeção que encontramos é no sentido de ser uma impertinência, da parte da ciência, fazer da religião um objeto de suas investigações, pois a religião é algo sublime, superior a qualquer operação do intelecto do homem, algo que não deve ser abordado mediante críticas excessivamente sutis. Em outras palavras, a ciência não tem competência para julgar a religião: é muito útil e respeitável em outros aspectos, desde que se mantenha dentro de sua própria esfera. Mas a religião não é sua esfera, nela a ciência não tem o que fazer. Se não nos deixarmos desarmar por essa repulsa brusca e se, ademais, indagarmos qual é a base dessa pretensão a uma posição excepcional entre todos os assuntos humanos, a resposta que recebemos (se formos julgados dignos de alguma resposta) é que a religião não pode ser medida por critérios humanos, visto ter origem divina e haver-nos sido dada como uma revelação por um Espírito que o espírito humano não consegue compreender. Poder-se-ia pensar que não houvesse nada mais fácil do que a refutação desse argumento: é um caso claro de petitio principii, de ‘tomar como confirmada a questão’ — não conheço nenhuma expressão alemã equivalente que seja boa. A questão real que surge é saber se existe um espírito divino e uma revelação a atribuir-lhe; e a matéria, por certo, não encontra uma decisão, dizendo-se que essa questão não pode ser respondida, uma vez que a divindade não pode ser colocada em questão. Aqui a situação é a mesma observável, por vezes, durante o trabalho da análise. Se um paciente, geralmente inteligente, rejeita uma determinada sugestão, com base em motivos especialmente tolos, essa debilidade da lógica é prova da existência de um motivo especialmente forte para ele fazer a rejeição — um motivo que só pode ser de natureza afetiva, um nexo emocional.

Também nos pode ser dada uma outra resposta na qual se admite francamente um motivo dessa ordem: a religião não pode ser examinada criticamente, porque é a coisa mais elevada, mais preciosa e mais sublime que o espírito humano produziu, porque dá expressão aos sentimentos mais profundos, e porque apenas ela torna o mundo tolerável e a vida digna do homem. Não devemos responder pondo em dúvida esse valor da religião, mas dirigindo a atenção para outro tema. O que fazemos é enfatizar o fato de que, de modo algum, está sendo cogitada uma invasão da área da religião pelo espírito científico; pelo contrário, sim uma invasão, pela religião, na esfera do pensamento científico. Qualquer que seja seu valor e importância, ela não tem o direito, em nenhum sentido, de limitar o pensamento — não tem o direito, portanto, de se furtar à eventualidade de o pensamento tentar investigá-la.

O pensar científico não difere, em sua natureza, da atividade normal do pensamento que todos nós, crentes ou incréus, empregamos ao cuidar de nossos assuntos na vida corrente. Ele apenas desenvolveu determinados aspectos: interessa-se por determinadas coisas, conquanto estas não tenham uso imediato, tangível; procura evitar, cuidadosamente, fatores individuais e influências afetivas; examina mais rigorosamente a credibilidade dos sensos de percepção nos quais baseia suas conclusões; equipa-se com novas percepções que não se podem obter pelos meios habituais, e isola os fatores determinantes dessas novas experiências em experimentações modificadas deliberadamente. Seu esforço é no sentido de chegar à correspondência com a realidade — ou seja, com aquilo que existe fora de nós e independentemente de nós, e, segundo nos ensinou a experiência, é decisivo para a satisfação ou a decepção de nossos desejos. A essa correspondência com o mundo externo real chamamos de ‘verdade’. Permanece este o objetivo do trabalho científico, ainda que deixemos de considerar o valor prático desse trabalho. Quando, portanto, a religião afirma poder tomar o lugar da ciência, que, por ser benéfica e porque dignifica, também deve ser verdadeira, isto realmente é uma intromissão que deve ser repelida em nome dos mais elevados interesses. É pedir demais a uma pessoa que aprendeu a conduzir seus assuntos comuns de acordo com as regras da experiência e, respeitando a realidade, sugerir-lhe que ceda o cuidado daquilo que constitui precisamente seus mais íntimos interesses a uma instância que se arroga o privilégio de estar isenta das regras do pensar racional. E, relativamente à proteção prometida pela religião a seus crentes, penso que nenhum de nós estaria disposto a entrar num automóvel se o motorista nos anuncia que ele, desdenhando as regras do trânsito, dirige segundo os arroubos de sua imaginação desenfreada.

A proibição do pensamento, estabelecida pela religião para assegurar sua autopreservação, também está longe de ser isenta de perigos, seja para o indivíduo, seja para a sociedade humana. A experiência analítica nos ensinou que uma proibição como esta, embora originalmente limitada a apenas uma determinada área, tende a alastrar-se e, daí, a se tornar causa de graves inibições na conduta de vida da pessoa. Pode-se observar esse resultado também no sexo feminino, conseqüente à proibição que lhe é feita de relacionar-se com qualquer coisa concernente à sua sexualidade, ainda que em pensamento. As biografias podem mostrar os danos causados pela inibição religiosa do pensamento, na história da vida de quase todas as pessoas célebres do passado. Por outro lado, o intelecto — ou chamemo-lo pelo nome que nos é familiar, a razão — está entre os poderes que mais esperamos vir a exercer uma influência unificadora sobre os homens — sobre os homens que são tão difíceis de manter unidos e tão difíceis de governar. Pode-se imaginar como seria impossível existir a sociedade humana, se cada pessoa simplesmente tivesse a sua tabuada particular para multiplicar e suas próprias medidas para aferir comprimento e peso. Nossa maior esperança para o futuro é que o intelecto — o espírito científico, a razão — possa, com o decorrer do tempo, estabelecer seu domínio sobre a vida mental do homem. A natureza da razão é uma garantia de que, depois, ela não deixará de dar aos impulsos emocionais do homem, e àquilo que estes determinam, a posição que merecem. A compulsão comum exercida por um tal domínio da razão, contudo, provará ser o mais forte elo de união entre os homens e mostrará o caminho para uniões subseqüentes. Tudo aquilo que, à semelhança das proibições da religião contra o pensamento, se opõe a uma evolução nesse sentido, é um perigo para o futuro da humanidade.

Pode-se, então, perguntar por que a religião não põe um fim a essa controvérsia, que é tão sem esperança para ela, declarando francamente: ‘Realmente não posso dar-lhes o que comumente é chamado de “verdade”; se a querem, apeguem-se à ciência. Mas o que tenho a oferecer-lhes é algo incomparavelmente mais belo, mais consolador e mais elevado do que tudo o que podem conseguir da ciência. E, por causa disso, digo-lhes que é verdadeiro, num outro sentido, mais elevado.’ É fácil encontrar a resposta para isto. A religião não pode admitir tal coisa, porque senão implicaria a perda de toda a sua influência sobre a massa da humanidade. O homem comum conhece apenas uma espécie de verdade, no sentido corrente da palavra. Não consegue imaginar o que possa ser uma verdade, assim como a morte, não admite graus de comparação; e não consegue acompanhar o salto que vai do belo ao verdadeiro. Talvez os senhores pensem, como eu, que ele está com a razão, a esse respeito.

A luta, pois, não chegou ao fim. Os adeptos da Weltanschauung religiosa agem segundo o velho ditado: a melhor defesa é o ataque. Dizem eles: ‘O que é essa ciência que se atreve a desacreditar nossa religião — nossa religião que trouxe a salvação e o consolo a milhões de pessoas durante muitos milhares de anos? O que a ciência realizou até agora? Que podemos esperar dela, no futuro? Ela própria admite ser incapaz de proporcionar consolo e alegria. Mas deixemos isto de lado, embora não constitua uma renúncia fácil. Agora, de suas teorias, o que dizer? Pode a ciência dizer-nos como se fez o universo e que destino nos espera? Pode, ao menos, dar-nos um quadro coerente do universo, ou mostrar-nos onde haveremos de procurar os fenômenos inexplicados da vida, ou como as forças da mente são capazes de agir sobre a matéria inerte? Se ela pudesse fazer isto, não lhe recusaríamos o nosso respeito. No entanto, pelo contrário, nenhum problema desse tipo foi solucionado por ela, até hoje. Dá-nos fragmentos de supostas descobertas, as quais não consegue tornar coerentes entre si; coleciona observações de constâncias no curso dos eventos que dignifica com o nome de leis e as submete a suas perigosas interpretações. E pensem no reduzido grau de certeza que ela confere a seus achados! Tudo o que ela ensina é provisoriamente verdadeiro: o que hoje é valorizado como a mais alta sabedoria, amanhã será rejeitado e substituído por alguma outra coisa, embora também esta seja apenas uma tentativa. O último erro é, então, qualificado como a verdade. E é por essa verdade que devemos sacrificar nosso bem máximo!’

Senhoras e senhores, espero que, na medida em que os senhores mesmos são adeptos da Weltanschauung científica, que é atacada nessas palavras, não se deixarão abalar tão profundamente por essas críticas. E aqui eu gostaria de lhes recordar o comentário que certa vez circulou pela Áustria imperial. O idoso cavalheiro, de certa feita, gritou na comissão de um partido do parlamento que lhe causava embaraços: ‘Isto não é jamais uma oposição verdadeira! É oposição facciosa!’ De modo parecido, conforme os senhores reconhecerão, as acusações contra a ciência, de ainda não ter resolvido os problemas do universo, são exageradas de forma injusta e maliciosa; de fato,ela ainda não teve tempo suficiente para essas grandes realizações. A ciência é muito nova — é uma atividade humana que se desenvolveu tardiamente. Recordemos, escolhendo apenas algumas datas, que se passaram apenas uns trezentos anos desde que Kepler descobriu as leis do movimento dos planetas, que a vida de Newton, que decompôs a luz nas cores do espectro e estabeleceu a teoria da gravitação, findou em 1727 — isto é, há pouco mais de duzentos anos —, e que Lavoisier descobriu o oxigênio um pouco antes da Revolução Francesa. A vida de um indivíduo é muito curta em comparação com a duração da evolução humana; eu posso ser um homem muito velho, atualmente, não obstante, já era nascido quando Darwin publicou seu livro sobre a origem das espécies. Naquele mesmo ano, 1859, nasceu Pierre Curie, o descobridor do rádio. E se os senhores retrocederem ainda mais, no tempo, para os começos da ciência exata entre os gregos, para Arquimedes, para Aristarco de Samos (cerca de 250 a.C.), que foi o precursor de Copérnico, ou até para os primórdios da astronomia entre os babilônios, terão apenas percorrido uma diminuta fração da extensão de tempo que os antropólogos requerem para a evolução do homem, desde a forma semelhante à do macaco, e que certamente abrange mais de cem mil anos. E não devemos esquecer que o último século trouxe tal quantidade de descobertas novas, tão grande aceleração do progresso científico, que temos toda a razão ao olhar com confiança o futuro da ciência.

Em certa medida, devemos admitir serem corretas as outras críticas. A marcha da ciência é realmente lenta, hesitante, laboriosa. Esse fato não pode ser negado, nem modificado. Não admira, pois, que os cavaleiros do outro lado estejam insatisfeitos. Eles estão espoliados: a revelação facilitava-lhes as coisas. O progresso no trabalho científico é o mesmo que se dá numa análise. Trazemos para o trabalho as nossas esperanças, mas estas necessariamente devem ser contidas. Mediante a observação, ora num ponto, ora noutro, encontramos alguma coisa nova; mas, no início, as peças não se completam. Fazemos conjecturas, formulamos hipóteses, as quais retiramos quando não se confirmam, necessitamos de muita paciência e vivacidade em qualquer eventualidade, renunciamos às convicções precoces, de modo a não sermos levados a negligenciar fatores inesperados, e, no final, todo o nosso dispêndio de esforços é recompensado, os achados dispersos se encaixam mutuamente, obtemos uma compreensão interna (insight) de toda uma parte dos eventos mentais, temos completado o nosso trabalho e, então, estamos livres para o próximo trabalho. Na análise, porém, temos de prescindir da ajuda fornecida à pesquisa, mediante a experimentação.

Existe, ademais, uma boa dose de exagero nessas críticas à ciência. Não é fato procedente que ela cambaleia, cega, de um a outro experimento, que substitui um erro por outro. Via de regra, trabalha como um escultor no seu modelo de argila, o qual, incansável, modifica o esboço primitivo, remove, acrescenta, até chegar àquilo que sente ser um satisfatório grau de semelhança com o objeto que vê ou imagina. Além do mais, ao menos nas ciências mais antigas e maduras, existe, ainda hoje em dia, um sólido fundamento que é somente modificado e aperfeiçoado, não mais demolido, contudo. As coisas não vão tão mal assim nos domínios da ciência.

E, afinal, qual é o objetivo dessas apaixonadas depreciações cometidas à ciência? Apesar de ser atualmente incompleta, apesar das dificuldades que isto representa, ela continua indispensável para nós, e nada pode tomar o seu lugar. É capaz de melhoramentos jamais sonhados, ao passo que a Weltanschauung religiosa não o é. Esta está completa em todas as suas partes essenciais; se ela foi um erro, assim deve ser, para sempre. Nenhum menosprezo à ciência pode de algum modo alterar o fato de que ela está procurando levar em conta nossa dependência do mundo externo real, ao passo que a religião é uma ilusão e deriva sua força da sua presteza em ajustar-se aos nossos impulsos instintuais plenos de desejos.

 

Sinto-me na obrigação de prosseguir e tratar de outras Weltanschauungen que estão em oposição à científica; faço-o, porém, com relutância, pois sei que não tenho competência suficiente para julgá-las. Assim, lembrem-se dessa cláusula minha ao ouvirem os comentários que se seguem e, se o seu interesse foi despertado, devem procurar melhores informações em outras obras.

Devo mencionar, aqui, primeiramente, os diversos sistemas filosóficos que se aventuraram a traçar um quadro do universo, tal como se reflete na mente dos pensadores que, na sua maior parte, já se foram deste mundo. Já procurei dar uma descrição geral das características da filosofia,ver em [[1]], e de seus métodos, e, para fazer uma avaliação dos diferentes sistemas, provavelmente estou tão despreparado como poucas pessoas estiveram. Assim, convida-los-ei a que me acompanhem ao passarmos a considerar dois outros fenômenos que, mormente em nossos dias, é impossível negligenciar.

 

A primeira dessas Weltanschauungen é como se fosse um equivalente do anarquismo político, e talvez seja um derivado deste. Por certo houve niilistas intelectuais dessa espécie, no passado; mas, justamente agora, a teoria da relatividade da física moderna parece ter-lhes subido à cabeça. Eles partem da ciência, é um fato, mas se empenham em forçá-la à auto-anulação, ao suicídio; propõem-lhe a tarefa de ela própria abandonar o seu caminho refutando, ela própria, as suas reivindicações. Tem-se, amiúde, a impressão de que, a esse respeito, o niilismo é apenas uma atitude temporária, a ser mantida até que essa tarefa se tenha concretizado. Uma vez eliminada a ciência, o espaço vago pode ser preenchido por algum tipo de misticismo ou, de algum modo, pela antiga Weltanschauung religiosa. Segundo a teoria anarquista, a verdade não existe, não há conhecimento seguro do mundo externo. O que proclamamos como verdade científica é apenas produto de nossas próprias necessidades, tal como estas hão de se expressar sob condições externas mutáveis; ou seja, também são ilusões. Fundamentalmente, encontramos somente aquilo de que necessitamos e vemos apenas o que queremos ver. Não temos outra possibilidade. De vez que está ausente o critério de verdade — correspondência com o mundo externo —, não importa, em absoluto, que opiniões adotamos. Todas elas são igualmente verdadeiras e igualmente falsas. E ninguém tem o direito de acusar outrem de erro.

Uma pessoa inclinada à epistemologia poderia sentir-se tentada a seguir os caminhos — os sofismas — pelos quais os anarquistas conseguem arrancar à ciência semelhantes conclusões. Sem dúvida, devemos encontrar situações similares àquelas derivadas do conhecido paradoxo do cretense, que diz que todos os cretenses são mentirosos. Não tenho, todavia, o desejo nem a capacidade de me aprofundar mais nisto. Tudo quanto posso dizer é que a teoria anarquista soa como sendo maravilhosamente superior enquanto se refere a opiniões sobre coisas abstratas: desmorona ao primeiro passo que dá na vida prática. Ora, as ações do homem são governadas por suas opiniões, por seu conhecimento; e é o mesmo espírito científico que especula acerca da estrutura dos átomos, ou acerca da origem do homem, e que planeja a construção de uma ponte capaz de suportar uma carga. Se isso em que acreditamos fosse realmente coisa sem importância, se não houvesse aquilo que se chama conhecimento, e que se diferencia dentre nossas opiniões por corresponder à realidade, poderíamos construir pontes tanto com papelão, como com pedras, poderíamos injetar em nossos pacientes um decagrama de morfina, em vez de um centigrama, e poderíamos usar gás lacrimogêneo como anestésico, em lugar de éter. Mas os próprios anarquistas intelectuais rejeitariam tais aplicações práticas de sua teoria.

 

Já essa outra oposição deve ser levada mais a sério, e, nesse caso, sinto o mais vivo pesar pela insuficiência das minhas informações. Penso que a respeito desse assunto os senhores sabem mais do que eu; penso que há muito tempo os senhores assumiram sua posição em relação ao marxismo, a favor ou contra. As investigações de Karl Marx sobre a estrutura econômica da sociedade e sobre a influência de diferentes sistemas econômicos em todos os setores da vida humana adquiriram inegável autoridade nos dias atuais. Em que medida os seus pontos de vista, em seus detalhes, estão corretos ou são errôneos, não posso dizer, naturalmente. Compreendo que esse assunto não é fácil sequer para outros mais bem instruídos do que eu. Existem assertivas nas teorias de Marx que me pareceram estranhas: como a afirmação de que o desenvolvimento de formas de sociedade é um processo histórico natural, que as mudanças na estratificação social surgem umas das outras segundo um processo dialético. Não estou nada seguro de estar compreendendo corretamente essas assertivas; e não me parecem ‘materialistas’ mas, antes, semelhantes ao precipitado da obscura filosofia hegeliana, em cuja escola Marx se formou. Não sei como posso desembaraçar-me da minha opinião leiga segundo a qual a estrutura de classes da sociedade remonta às lutas que, desde o começo da história, se desenrolaram entre hordas humanas muito pouco diferentes umas das outras. As diferenças sociais, assim pensava eu, foram originalmente diferenças entre clãs ou raças. A vitória era decidida por fatores psicológicos, como a quantidade de agressividade constitucional, contudo também pela firmeza da organização dentro da horda e por fatores materiais, como a posse de armas superiores. Vivendo juntos na mesma área, os vitoriosos tornavam-se os senhores e os vencidos se tornavam os escravos. Não há como ver nisto sinais de uma lei natural ou de uma evolução conceitual [dialética]. Por outro lado, é inequívoca a influência exercida sobre as relações sociais da humanidade pelo progressivo controle das forças da natureza. Pois os homens sempre colocam seus instrumentos de poder recentemente adquiridos a serviço de sua agressividade e usam-nos contra os outros homens. A descoberta dos metais — bronze e ferro — pôs fim a épocas inteiras de civilização e às respectivas instituições sociais. Realmente acredito que foram a pólvora e as armas de fogo que aboliram a cavalaria e o governo aristocrático, e que o despotismo russo já fora condenado antes de perder a guerra, porque não havia casamentos entre famílias reais da Europa que pudessem produzir uma raça de czares capaz de fazer frente à força explosiva da dinamite.

Com efeito, é possível que com a nossa atual crise econômica, que sucedeu a grande guerra, estejamos apenas pagando o preço de nossa última e extraordinária vitória sobre a natureza, a conquista do ar. Isso não parece muito esclarecedor, mas pelo menos os primeiros elos da cadeia são claramente reconhecíveis. A política inglesa baseava-se na segurança que lhe era garantida pelos mares que banham as costas da Inglaterra. No momento em que Blériot, no seu aeroplano, transpôs o Canal da Mancha, esse isolamento protetor foi rompido; e na noite durante a qual (em época de paz e em exercício) um zepelim alemão cruzou sobre Londres, a guerra contra a Alemanha sem dúvida era uma conclusão antecipada. E não se deve esquecer, em relação a isto, a ameaça dos submarinos alemães.

Tenho alguma vergonha de comentar para os senhores um assunto de tamanha importância e complexidade, com essas poucas observações inadequadas, e também sei que não lhes disse nada novo. Simplesmente quero chamar-lhes a atenção para o fato de que a relação da humanidade para com o seu controle da natureza, do qual os homens derivam suas armas para lutar contra seus semelhantes, deve também, necessariamente, afetar suas instituições econômicas. Parece que nos afastamos muito do problema de uma Weltanschauung, mas haveremos de retornar a ele, muito em breve. A força do marxismo está, evidentemente, não em sua visão da história, ou nas profecias do futuro baseadas nela, mas sim na arguta indicação da influência decisiva que as circunstâncias econômicas dos homens têm sobre as suas atitudes intelectuais, éticas e artísticas. Com isso foram descobertas numerosas correlações e implicações, que anteriormente haviam sido quase totalmente negligenciadas. Não se pode, contudo, supor que os motivos econômicos sejam os únicos que determinam o comportamento dos seres humanos em sociedade. O fato inquestionável de que indivíduos, raças e nações diferentes se conduzem de forma diferente, sob as mesmas condições econômicas, por si só é bastante para mostrar que os motivos econômicos não são os únicos fatores dominantes. É completamente incompreensível como os fatores psicológicos podem ser desprezados, ali onde o que está em questão são as reações dos seres humanos vivos; pois não só essas reações concorreram para o estabelecimento das condições econômicas, mas até mesmo apenas sob o domínio dessas condições é que os homens conseguem pôr em execução seus impulsos instintuais originais — seu instinto de autopreservação, sua agressividade, sua necessidade de serem amados, sua tendência a obter prazer e evitar desprazer. Em uma pesquisa anterior, também assinalei as importantes reivindicações feitas pelo superego, que representa a tradição e os ideais do passado e que, por certo tempo, resistirá aos estímulos de uma situação econômica nova. E, finalmente, não devemos esquecer que a massa de seres humanos sujeitos às necessidades econômicas também sofre o processo de desenvolvimento cultural — de civilização, como diriam outras pessoas — o qual, embora sem dúvida influenciado por todos os outros fatores, é, por certo, independente deles em sua origem, sendo comparável a um processo orgânico e provavelmente capaz de, por seu lado, exercer uma influência sobre os outros fatores.Ele desloca os objetivos instintuais e faz com que as pessoas se tornem adversárias daquilo que anteriormente tinham tolerado. O fortalecimento progressivo do espírito científico, ademais, parece formar parte essencial desse processo. Estivesse alguém em condições de mostrar detalhadamente a maneira como esses diferentes fatores — a disposição humana geral, herdada, suas variações raciais e suas transformações culturais — se inibem e se estimulam uns aos outros sob as condições de categoria social, profissão e capacidade de realização; se alguém fosse capaz de fazê-lo, teria suplementado o marxismo de modo que este se teria tornado autêntica ciência social. Pois também a sociologia, lidando, como é de seu ofício, com o comportamento das pessoas em sociedade, não pode ser senão psicologia aplicada. Estritamente falando, só há duas ciências: psicologia pura ou aplicada, e ciência natural.

A recente descoberta da importância extraordinária das relações econômicas trouxe consigo a tentação de não deixar que as alterações nelas ficassem entregues ao curso do desenvolvimento histórico, mas sim, de pô-las em execução pela ação revolucionária. O marxismo teórico, tal como foi concebido no bolchevismo russo, adquiriu a energia e o caráter auto-suficiente de uma Weltanschauung; contudo, adquiriu, ao mesmo tempo, uma sinistra semelhança com aquilo contra o que está lutando. Embora sendo originalmente uma parcela da ciência, e construído, em sua implementação, sobre a ciência e a tecnologia, criou uma proibição para o pensamento que é exatamente tão intolerante como o era a religião, no passado. Qualquer exame crítico do marxismo está proibido, dúvidas referentes à sua correção são punidas, do mesmo modo que uma heresia, em outras épocas, era punida pela Igreja Católica. Os escritos de Marx assumiram o lugar da Bíblia e do Alcorão, como fonte de revelação, embora não parecessem estar mais isentos de contradições e obscuridades do que esses antigos livros sagrados.

Embora o marxismo prático tenha varrido impiedosamente todos os sistemas idealísticos e as ilusões, ele próprio desenvolveu ilusões que não são menos questionáveis e merecedoras de desaprovação do que as anteriores. Ele espera, no curso de algumas gerações, de tal modo alterar a natureza humana, que as pessoas viverão juntas quase sem atrito na nova ordem da sociedade e que elas assumirão as tarefas do trabalho sem qualquer coerção. Nesse meio-tempo, ele muda para algum outro setor as restrições instintuais que são essenciais na sociedade; desvia para o exterior as tendências agressivas que ameaçam todas as comunidades humanas e apóia-se na hostilidade do pobre contra o rico e na hostilidade daquele que até então esteve impotente contra os governantes anteriores. Mas uma transformação da natureza humana, como esta que pretende, é altamente improvável. O entusiasmo com que a massa do povo segue a instigação bolchevista, atualmente, enquanto a nova ordem está incompleta e ameaçada de fora, não oferece nenhuma certeza para um futuro no qual estaria completamente construída e isenta de perigos. Exatamente da mesma forma como a religião, o bolchevismo deve também oferecer aos seus crentes determinadas compensações pelos sofrimentos e privações de sua vida atual, mediante promessas de um futuro melhor, em que não haverá mais qualquer necessidade insatisfeita. Esse paraíso, no entanto, tem de ser nesta vida, ser instituído sobre a terra e ser descerrado num tempo previsível. Convém lembrar, contudo, que também os judeus, cuja religião nada sabe de uma vida após a morte, esperavam a chegada de um Messias sobre a terra, e que a Idade Média cristã, muitas vezes, acreditava que o Reino de Deus estava próximo.

Não há dúvida quanto à maneira como o bolchevismo responderá a essas objeções. Dirá que, como por enquanto a natureza dos homens ainda não se transformou, é necessário empregar os meios que os atingem, hoje em dia. É impossível prescindir da coerção para que se eduquem, ou prescindir da proibição contra o pensamento, ou prescindir do emprego da força, ao ponto de derramar sangue; e se não fossem despertadas neles as ilusões, não se poderia levá-los a concordar com essa coerção. E seríamos educadamente solicitados a dizer como é que as coisas poderiam ser manejadas de outra maneira. Isto nos derrotaria. Eu não poderia pensar em conselho algum a dar. Eu admitiria que as condições desse experimento haveriam dissuadido a mim e aos meus semelhantes de empreendê-lo; não somos, porém, as únicas pessoas a considerar. Existem homens de ação, inabaláveis em suas convicções, inacessíveis à dúvida, destituídos de sentimentos pelo sofrer dos outros que se opõem às suas intenções. É a homens dessa espécie que temos de agradecer o fato de que o terrível experimento de produzir uma nova ordem desse tipo esteja sendo posto em prática, atualmente, na Rússia. Numa época em que as grandes nações anunciam que esperam a salvação apenas da manutenção da fé cristã, a revolução na Rússia — apesar de todos os seus detalhes desagradáveis — assemelha-se, não obstante, com uma mensagem de futuro melhor. Infelizmente nem o nosso ceticismo, nem a fé fanática do outro lado fornecem uma indicação de como será o desfecho desse experimento. O futuro no-lo dirá; talvez venha a mostrar-nos que o experimento foi empreendido prematuramente, que uma modificação radical da ordem social tem escassas perspectivas de êxito até o momento em que novas descobertas tiverem aumentado nosso controle sobre as forças da natureza e, dessa forma, tiverem tornado mais fácil a satisfação de nossas necessidades. Talvez somente então se tornaria possível que uma nova ordem social não só dê um fim às necessidades materiais das massas, como também se disponha a ouvir as exigências culturais do indivíduo. Mesmo então, na realidade ainda teremos de lutar, durante um tempo incalculável, com as dificuldades que o caráter indomável da natureza humana apresenta a qualquer espécie de comunidade social.

 

Senhoras e senhores: permitam-me que, para concluir, eu resuma o que tinha a dizer sobre a relação da psicanálise com a questão de uma Weltanschauung. Em minha opinião, a psicanálise é incapaz de criar uma Weltanschauung por si mesma. A psicanálise não precisa de uma Weltanschauung; faz parte da ciência e pode aderir à Weltanschauung científica. Esta, porém, dificilmente merece um nome tão grandiloqüente, pois não é capaz de abranger tudo, é muito incompleta e não pretende ser auto-suficiente e construir sistemas. O pensamento científico ainda é muito novo entre os seres humanos; ainda são muitos os grandes problemas que até agora não conseguiu solucionar. Uma Weltanschauung erigida sobre a ciência possui, excetuada a sua ênfase no mundo externo real, principalmente traços negativos, tais como a submissão à verdade e a rejeição às ilusões. Todo semelhante nosso que está insatisfeito com essa situação, que exige mais do que isso para seu consolo momentâneo, haverá de procurá-lo onde o possa encontrar. Não o levaremos a mal, não podemos ajudá-lo, mas nem podemos, por causa disso, pensar de modo diferente.

 

A AQUISIÇÃO E O CONTROLE DO FOGO (1932 [1931])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

ZUR GEWINNUNG DES FEUERS

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1932   Imago, 18 (1), 8-13.

1932   Almanach 1933, 28-35.

1934   G. S., 12, 141-7.

1950   G. W., 16, 3-9.

 

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

 

                        ‘The Acquisition of Fire’

 

1932   Psychoan. Quart., 1 (2), 210-15. (Trad. de E. B. Jackson.)

 

                        “The Acquisition of Power over Fire’

1932   Int. J. Psycho-Anal., 13, (4) 405-10. (Trad. de Joan Riviere)

1950   C. P., 5, 288-94. (Reimpressão revista da anterior.)

 

A presente tradução inglesa, com título alterado, é uma versão modificada da publicada em 1950.

 

Este artigo parece ter sido escrito no último mês de 1931 (Jones, 1957, 177).

A correlação entre fogo e micção, que é o aspecto central deste estudo sobre o mito de Prometeu, há muito tempo era assunto familiar a Freud. Proporciona a chave para a análise do primeiro sonho no caso clínico de ‘Dora’ (1905e [1901]), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 61 e segs., IMAGO Editora, 1972, e reaparece, mais uma vez, na análise bem posterior do ‘Homem dos Lobos’ (1918b) [1914]), ibid., Vol. XVII, pág. 116, IMAGO Editora, 1976. Em ambos esses casos, o tópico enurese está envolvido, e este se liga a uma linha principal do presente artigo — a estreita associação, fisiológica e psicológica, entre as duas funções do pênis,ver em ([1]). Esse aspecto também possui uma longa história, que se encontra nos escritos anteriores de Freud, de vez que igualmente está comentado, de forma explícita, na análise de ‘Dora’ (ibid., Vol. VII, pág. 29). E já anteriormente, em uma carta a Fliess, em 27 de setembro de 1898, Freud declarara que ‘uma criança que regularmente urina na cama até os sete anos…, deve ter experimentado excitação sexual na infância’ (Freud, 1950a, Carta 97). Repetidamente insistiu, em diversas ocasiões, na equivalência entre enurese e masturbação, assim por exemplo: no caso ‘Dora’, Edição Standard Brasileira, Vol. VII, págs. 76-7, IMAGO Editora, 1972; nos Três Ensaios (1905d), ibid., pág. 195; no artigo sobre os ataques histéricos (1909a), Standard Ed., 9, 233, e, bem posteriormente, em ‘A Dissolução do Complexo de Édipo’ (1924d), Edição Standard Brasileira, Vol. XIX, pág. 219, IMAGO Editora, 1976, e no artigo sobre a diferença anatômica entre os sexos (1925j), ibid., Vol. XIX, pág. 311.

Outra correlação referente ao erotismo uretral, na área da formação do caráter, não é mencionada neste artigo, embora apareça em uma nota de rodapé, em O Mal-Estar na Civilização (1930a), ibid., Vol. XXI, págs. 109-10, IMAGO Editora, 1974, de que este artigo é uma ampliação. A relação entre erotismo uretral e ambição foi assinalada explicitamente, pela primeira vez, em ‘Character and Anal Erotism’ (1908b), Standard Ed., 9, 175; contudo, algo muito semelhante, sua conexão com sentimentos de grandeza e megalomania, tinha sido abordada em duas passagens de A Interpretação de Sonhos — (1900a), Edição Standard Brasileira, Vol. IV, pág. 231, e Vol. V, pág. 501, IMAGO Editora, 1972, na última das quais aparece casualmente o assunto referente à extinção do fogo. A conexão com a ambição foi objeto de uma alusão, feita de passagem, uma ou duas vezes, posteriormente, e foi mencionada bem mais extensamente, logo após o surgimento do presente artigo, na Conferência XXXII das Novas Conferências Introdutórias (1933a),ver em [1].

 

A AQUISIÇÃO E O CONTROLE DO FOGO

 

Em meu trabalho O Mal-Estar na Civilização [1930a], em nota de rodapé, mencionei, embora apenas de passagem, uma conjetura que se poderia formular, com base em material psicanalítico, a respeito da fundamental aquisição humana do controle sobre o fogo. Sou levado a mais uma vez retomar o tema em virtude da contestação feita por Albrecht Schaeffer (1930) e da surpreendente referência de Erlenmeyer, no artigo precedente, à lei mongol contra ‘mijar nas cinzas’.

Pois eu penso que a minha hipótese — de que, com a finalidade de conseguir controle sobre o fogo, os homens tiveram de renunciar ao desejo, mesclado de homossexualismo, de apagá-lo com um jato de urina — pode ser confirmada mediante uma interpretação do mito grego de Prometeu, contanto que tenhamos em mente as distorções que se deve esperar ocorram na transição dos fatos ao conteúdo de um mito. Essas distorções são da mesma espécie, e não piores, que aquelas que reconhecemos diariamente, quando reconstruímos a partir dos sonhos dos pacientes as experiências de sua infância reprimidas, porém extremamente importantes. Os mecanismos utilizados nas distorções a que me refiro são a representação simbólica e a transformação no oposto. Não me arriscaria a explicar dessa forma todos os aspectos de nosso mito; excetuando o conjunto de fatos originais, outras ocorrências subseqüentes podem ter contribuído para o seu conteúdo. Os elementos que comportam interpretação analítica, contudo, são, afinal, os mais surpreendentes e importantes, ou seja: a maneira pela qual Prometeu transportou o fogo, as características desse ato (um ultraje, um roubo, um logro contra os deuses) e a significação do seu castigo.

 O mito conta-nos que Prometeu, o titã, herói cultural que era ainda um deus e que originalmente talvez fosse mesmo um demiurgo e criador de homens, trouxe o fogo aos homens, tendo-o roubado aos deuses e escondendo-o num pau oco, um caule de funcho. Se estivéssemos interpretando um sonho, tenderíamos a considerar esse objeto como um símbolo do pênis, embora o acento incomum que se coloca no fato de ser oco nos faça hesitar. Mas, como podemos correlacionar tal tubo-pênis com a preservação do fogo? Parece difícil fazer essa correlação, até que nos lembramos do uso da inversão, da transformação no contrário, da inversão da relação, que é tão comum nos sonhos e que tantas vezes nos oculta o seu significado. O que um homem contém no seu tubo-pênis não é o fogo. Pelo contrário, é o meio de apagar o fogo; é a água do seu jato de urina. Essa relação entre fogo e água então entra em conexão com uma grande quantidade de material analítico conhecido.

Em segundo lugar, a aquisição do fogo constituiu um crime; foi realizada mediante roubo ou furto. Esse aspecto é constante em todas as lendas sobre a aquisição do controle do fogo. É encontrado entre os povos mais diversos e espalhados pelas mais distantes regiões, e não apenas no mito grego de Prometeu, o Portador do Fogo. Aqui deve estar, por conseguinte, um conteúdo essencial das lembranças distorcidas da humanidade. Logo, por que a aquisição do fogo está em conexão inseparável com a idéia de crime? Quem é que foi insultado ou defraudado com isto? O mito de Prometeu, em Hesíodo, dá-nos uma resposta direta; pois, numa outra história, não diretamente relacionada ao fogo, Prometeu dispôs os sacrifícios aos deuses de tal forma que os homens levavam vantagem sobre Zeus. São os deuses, portanto, que são defraudados. Sabemos que, nos mitos, aos deuses é garantida a satisfação de todos os desejos a que as criaturas humanas têm de renunciar, tal como constatamos no caso do incesto. Falando em termos analíticos, diríamos que a vida instintual — o id — é o deus que é defraudado quando se renuncia à extinção do fogo: na lenda, o desejo humano transforma-se em privilégiodivino. No entanto, na lenda, a divindade não possui nada das características do superego, ainda representa a vida soberana dos instintos.

A transformação no oposto está mais radicalmente representada num terceiro aspecto da lenda, na punição do Portador do Fogo. Prometeu foi acorrentado a um rochedo, e todos os dias um abutre vinha comer-lhe uma parte do fígado. Também nas lendas referentes ao fogo, em outros povos, entra em cena um pássaro, que deve ter algo a ver com o assunto; mas, por enquanto, não tentarei uma interpretação. Por outro lado, sentimo-nos em chão firme quando se trata de explicar por que o fígado foi escolhido como o local do castigo. Em épocas primitivas, o fígado era considerado a sede de todas as paixões e desejos; daí, uma punição como a de Prometeu ter sido a correta para um criminoso que se deixara arrastar pelo instinto, que havia cometido uma ofensa sob a instigação de maus desejos. Contudo, justamente o oposto é o que se verifica com o Portador do Fogo: ele renunciara a um instinto e tinha mostrado quão benéfica e, ao mesmo tempo, quão indispensável era essa renúncia, para os propósitos da civilização. E por que a lenda haveria de retratar um efeito que era um benefício para a civilização como sendo um crime que merecia castigo? Ora, se, malgrado todas as distorções, transparece o fato de que a aquisição do controle do fogo pressupõe uma renúncia instintual, a lenda pelo menos não mantém em segredo o ressentimento que o herói cultural não deixaria de suscitar nos homens movidos pelos instintos. E isto está de acordo com o que sabemos e esperamos. Sabemos que a exigência de renunciar ao instinto e a coerção dessa exigência despertam hostilidade e agressividade, que só se transformam em sentimento de culpa em uma fase posterior do desenvolvimento psíquico.

A obscuridade da lenda de Prometeu, bem como a de outros mitos do fogo, aumenta com o fato de que o homem primitivo estava fadado a considerar o fogo como algo análogo à paixão do amor — ou, conforme diríamos nós, um símbolo da libido. O calor que se irradia do fogo evoca a mesma sensação que acompanha um estado de excitação sexual, e a forma e os movimentos de uma chama sugerem um falo em atividade. Não pode haver dúvida a respeito da significação mitológica da chama como um falo; temos mais uma prova disto na lenda que refere a origem de Sérvio Túlio, o rei romano. Quando falamos do ‘fogo devorador’ do amor ou das chamas que‘lambem’ — comparando assim o fogo a uma língua — não nos distanciamos do modo de pensar de nossos ancestrais primitivos. Uma das suposições em que baseamos nossa descrição do mito da aquisição do fogo foi, com efeito, a de que o homem primitivo tentou apagar o fogo com sua própria água, e isto teve o significado de uma luta prazerosa com um outro falo.

Provavelmente, através dessa analogia de símbolos, outros elementos de natureza puramente imaginativa se incorporaram ao mito e se mesclaram a seus elementos históricos. É difícil resistir à idéia de que, se o fígado é a sede da paixão, sua importância, simbolicamente, é a mesma que a do fogo; e que, com isso, o caso de ser diariamente devorado e renovado dá um quadro apropriado do comportamento dos desejos eróticos que, embora satisfeitos todos os dias, também revivem todos os dias. A ave que se alimenta do figado teria, pois, a significação de pênis — significação que não lhe é estranha em outras correlações, de vez que a conhecemos de lendas, sonhos, expressões de linguagem e representações plásticas em tempos primitivos.Um pequeno passo adiante leva-nos à fênix, a ave que, tão logo é consumida pelo fogo, surge rejuvenescida mais uma vez, e que, de preferência e antes de ser uma alusão ao sol que se põe no crepúsculo vespertino a fim de novamente erguer-se, é, muito provavelmente, uma alusão ao pênis que surge revivescido, depois de haver relaxado.

Aqui se pode perguntar se nos é permitido atribuir à atividade mitopoética uma tentativa de dar (ludicamente, digamos assim) uma representação disfarçada para os processos mentais universalmente conhecidos, embora também extremamente interessantes, que se acompanham de manifestações físicas, sem outro motivo que o de um simples prazer de representá-lo. Certamente não podemos dar uma resposta definitiva a essa questão sem havermos apreendido inteiramente a natureza dos mitos: contudo, nos dois exemplos que estamos examinando [o do fígado de Prometeu e o da fênix], é fácil reconhecer o mesmo conteúdo e, com ele, um propósito definido. Cada um deles descreve o revivescimento de desejos libidinais depois de estes terem sido extintos pela saciedade. Ou seja, cada um deles se refere à indestrutibilidade desses desejos; e essa ênfase é particularmente apropriada como consolo, ali, onde o cerne histórico do mito aborda a derrota da vida instintual, com uma renúncia ao instinto que se tornou necessária. É, porassim dizer, a segunda parte de uma reação compreensível do homem primitivo quando este sofreu um golpe em sua vida instintual: após a punição do delinqüente, vem a garantia de que, enfim, no fundo, ele não causou nenhum prejuízo.

Uma inversão ao oposto é inesperadamente encontrada num outro mito que, aparentemente, tem pouca relação com o mito do fogo. A hidra de Lerna, com suas inúmeras cabeças de serpente oscilantes — uma das quais imortal — era, conforme nos diz seu nome, um dragão das águas. Hércules, o herói cultural, lutou com a hidra decepando-lhe as cabeças; estas, porém, sempre cresciam novamente, e só venceu ao monstro depois de ele ter queimado a fogo a sua cabeça imortal. Um dragão aquático vencido pelo fogo — isto por certo não faz sentido. Mas, como sucede em tantos sonhos, o sentido vem à tona se invertermos o conteúdo manifesto. Nesse caso, a hidra é uma fogueira e as cabeças de serpente com seus movimentos sinuosos são as chamas; e estas, como prova de sua natureza libidinal, também aqui mostram, tal como o fígado de Prometeu, o fenômeno do crescimento renovado, do ressurgimento após tentada a sua destruição. Hércules, portanto, extingue essa fogueira com — água. (A cabeça imortal, sem dúvida, é o próprio falo, e sua destruição significa a castração.) Hércules, todavia, também foi o libertador de Prometeu e matou a ave que devorava seu fígado. Não suspeitaríamos de uma correlação mais profunda entre os dois mitos? É como se o feito de um herói fosse compensado pelo feito do outro. Prometeu, assim como a lei mongol, havia proibido a extinção do fogo; Hércules permitiu-a, no caso em que a fogueira ameaçou provocar um desastre. O segundo mito parece corresponder à reação de uma época posterior da civilização aos eventos da aquisição do poder sobre o fogo. Parece que essa linha de abordagem nos possibilita uma maior penetração nos mistérios do mito; mas reconhecidamente essa certeza nos acompanharia por pouco tempo.

Na antítese entre fogo e água, que domina toda a área desses mitos, pode ser demonstrado ainda um terceiro fator, além do fator histórico e do fator da fantasia simbólica. Esse terceiro fator é um fato fisiológico, que o poeta Heine descreve nos seguintes versos:

Was dem Menschen dient zum Seichen Damit schafft er Seinesgleichen.

O órgão sexual masculino tem duas funções; e existem pessoas para as quais essa duplicidade constitui motivo de desagrado. Serve para o esvaziamento da bexiga e realiza o ato de amor que satisfaz o desejo da libido genital. A criança ainda acredita que pode unir as duas funções. Segundo uma teoria infantil, as crianças são feitas quando o homem urina dentro do corpo da mulher. Entretanto, o adulto sabe que, na realidade, esses atos são mutuamente inconciliáveis — como são incompatíveis o fogo e a água. Quando o pênis se encontra no estado de excitação, que o levou a ser comparado a um pássaro, e enquanto estão sendo experimentadas sensações que sugerem o calor do fogo, a micção é impossível; e, ao contrário, quando o órgão está servindo para eliminar urina (a água do corpo), toda as suas conexões com a função genital parecem ter-se extinguido. A antítese entre as duas funções poderia levar-nos a dizer que o homem apaga o seu próprio fogo com sua própria água. E o homem primitivo, que tinha de compreender o mundo externo com ajuda de suas próprias sensações e estados corporais, certamente não teria deixado de perceber e utilizar as analogias que lhe foram mostradas mediante o comportamento do fogo.

 

POR QUE A GUERRA? (EINSTEIN E FREUD) (1933 [1932])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

WARUM KRIEG?

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

 

1933   Paris: Internationales Institut für Geistige Zusammenarbeit (Völkerbund). 62 págs.

1934   G. S., 12, 349-63. (Apenas com um resumo muito breve da carta de Einstein.)

1950   G. W., 16, 13-27. (Reimpressão da anterior.)

 

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

 

Why War?

 

1933   Paris: Instituto Internacional para Cooperação Intelectual (Liga das Nações). 57 págs. (Trad. de Stuart Gilbert.)

1939   Londres: Peace Pledge Union. 24 págs. (Reimpressão da anterior.)

1950   C. P., 5, 273-87. (Omite a carta de Einstein.) (Trad. de James Strachey.)

 

A presente tradução inglesa da carta de Freud é uma versão corrigida publicada em 1950. A carta de Einstein é incluída aqui com autorização de seus testamenteiros e, por solicitação destes, é apresentada na versão original inglesa de Stuart Gilbert. Parte do texto alemão da carta de Freud foi publicada em Psychoanal. Bewegung, 5 (1933), 207-16. Parte da tradução inglesa de 1933 foi incluída na obra de Rickman, Civilization, War and Death: Selections from Three Works by Sigmund Freud (1939), 82-97.

 

Foi em 1931 que o Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual foi instruído pelo Comitê Permanente para a Literatura e as Artes da Liga das Nações a promover trocas de correspondência entre intelectuais de renome ‘a respeito de assuntos destinados a servir aos interesses comuns à Liga das Nações e à vida intelectual’, e a publicar essas cartas periodicamente. Entre os primeiros que o Instituto abordou estava Einstein, e foi ele quem sugeriu o nome de Freud. Assim sendo, em junho de 1932, o secretário do Institutoescreveu a Freud, convidando-o a participar, ao que ele prontamente acedeu. A carta de Einstein chegou-lhe no início de agosto, e sua resposta estava concluída um mês depois. A correspondência foi publicada em Paris, pelo Instituto, em março de 1933, em alemão, francês e inglês, simultaneamente. No entanto, sua circulação foi proibida na Alemanha.

Freud não ficou propriamente entusiasmado com o trabalho e qualificou-o como discussão enfadonha e estéril (Jones, 1957, 187). Einstein e Freud absolutamente nunca foram íntimos um do outro e apenas tiveram um encontro no início de 1927, na casa do filho mais novo de Freud, em Berlim. Em carta a Ferenczi, dando conta do ocorrido, Freud escreveu: ‘Ele entende tanto de psicologia quanto eu entendo de física, de modo que tivemos uma conversa muito agradável.’(Ibid., 139). Algumas cartas muito amistosas foram trocadas entre os dois, em 1936 e 1939. (Ibid., 217-18 e 259.)

Já anteriormente Freud escrevera sobre o tema da guerra: na primeira seção (‘The Disillusionment of War’) de seu artigo ‘Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte’ (1915b), escrito logo após o início da primeira guerra mundial. Embora algumas das idéias expressas no presente artigo apareçam no anterior, elas estão mais estreitamente relacionadas às idéias contidas em seus escritos recentes sobre temas sociológicos — O Futuro de uma Ilusão (1927c) e O Mal-Estar na Civilização (1930a). Um interesse especial surge aqui em relação a um desenvolvimento maior de pontos de vista de Freud sobre civilização como ‘processo’, que tinham sido apresentados por ele em diversos tópicos do último desses trabalhos mencionados (por exemplo, no final do Capítulo III, Edição Standard Brasileira, Vol. XXI, págs. 117-18, IMAGO Editora, 1974, e na última parte do Capítulo VIII, ibid., pág. 164 e segs.). Também retoma, uma vez mais, o tema do instinto destrutivo, sobre o qual discorrera extensamente nos Capítulos V e VI do mesmo livro, e ao qual haveria de retornar em escritos posteriores. (Cf. a Introdução do Editor Inglês a O Mal-Estar na Civilização, ibid., págs. 78-80.)

 

CARTA DE EINSTEIN

 

Caputh junto a Potsdam, 30 de julho de 1932

 

Prezado Professor Freud

 

A proposta da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, em Paris, de que eu convidasse uma pessoa, de minha própria escolha, para um franco intercâmbio de pontos de vista sobre algum problema que eu poderia selecionar, oferece-me excelente oportunidade de conferenciar com o senhor a respeito de uma questão que, da maneira como as coisas estão, parece ser o mais urgente de todos os problemas que a civilização tem de enfrentar. Este é o problema: Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema adquiriu significação de assunto de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos; não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.

Ademais, acredito que aqueles cuja atribuição é atacar o problema de forma profissional e prática, estão apenas adquirindo crescente consciência de sua impotência para abordá-lo, e agora possuem um vivo desejo de conhecer os pontos de vistas de homens que, absorvidos na busca da ciência, podem mirar os problemas do mundo na perspectiva que a distância permite. Quanto a mim, o objetivo habitual de meu pensamento não me permite uma compreensão interna das obscuras regiões da vontade e do sentimento humano. Assim, na indagação ora proposta, posso fazer pouco mais do que procurar esclarecer a questão em referência e, preparando o terreno das soluções mais óbvias, possibilitar que o senhor proporcione a elucidação do problema mediante o auxílio do seu profundo conhecimento da vida instintiva do homem. Existem determinados obstáculos psicológicos cuja existência um leigo em ciências mentais pode obscuramente entrever, cujas inter-relações e filigranas ele, contudo, é incompetente para compreender; estou convencido de que o senhor será capaz de sugerir métodos educacionais situados mais ou menos fora dos objetivos da política, os quais eliminarão esses obstáculos.

Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abordar o aspecto superficial (isto é, administrativo) do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanadas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos. Já de início, todavia, defronto-me com uma dificuldade; um tribunal é uma instituição humana que, em relação ao poder de que dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais. Este é um fato com que temos de contar; a lei e o poder inevitavelmente andam de mãos dadas, e as decisões jurídicas se aproximam mais da justiça ideal exigida pela comunidade (em cujo nome e em cujos interesses esses veredictos são pronunciados), na medida em que a comunidade tem efetivamente o poder de impor o respeito ao seu ideal jurídico. Atualmente, porém, estamos longe de possuir qualquer organização supranacional competente para emitir julgamentos de autoridade incontestável e garantir absoluto acatamento à execução de seus veredictos. Assim, sou levado ao meu primeiro princípio; a busca da segurança internacional envolve a renúncia incondicional, por todas as nações, em determinada medida, à sua liberdade de ação, ou seja, à sua soberania, e é absolutamente evidente que nenhum outro caminho pode conduzir a essa segurança.

O insucesso, malgrado sua evidente sinceridade, de todos os esforços, durante a última década, no sentido de alcançar essa meta, não deixa lugar à dúvida de que estão em jogo fatores psicológicos de peso que paralisam tais esforços. Alguns desses fatores são mais fáceis de detectar. O intenso desejo de poder, que caracteriza a classe governante em cada nação, é hostil a qualquer limitação de sua soberania nacional. Essa fome de poder político está acostumada a medrar nas atividades, de um outro grupo, cujas aspirações são de caráter econômico, puramente mercenário. Refiro-me especialmente a esse grupo reduzido, porém decidido, existente em cada nação, composto de indivíduos que, indiferentes às condições e aos controles sociais, consideram a guerra, a fabricação e venda de armas simplesmente como uma oportunidade de expandir seus interesses pessoais e ampliar a sua autoridade pessoal.

O reconhecimento desse fato, no entanto, é simplesmente o primeiro passo para uma avaliação da situação atual. Logo surge uma outra questão: como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos? (Ao falar em maioria, não excluo os soldados, de todas asgraduações, que escolheram a guerra como profissão, na crença de que estejam servindo à defesa dos mais altos interesses de sua raça e de que o ataque seja, muitas vezes, o melhor meio de defesa.) Parece que uma resposta óbvia a essa pergunta seria que a minoria, a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geralmente, também a Igreja, sob seu poderio. Isto possibilita organizar e dominar as emoções das massas e torná-las instrumento da mesma minoria.

Ainda assim, nem sequer essa resposta proporciona uma solução completa. Daí surge uma nova questão: como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver.

Com isso, chegamos à nossa última questão. É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade? Aqui não me estou referindo tão-somente às chamadas massas incultas. A experiência prova que é, antes, a chamada ‘Intelligentzia’ a mais inclinada a ceder a essas desastrosas sugestões coletivas, de vez que o intelectual não tem contato direto com o lado rude da vida, mas a encontra em sua forma sintética mais fácil — na página impressa.

Para concluir: Até aqui somente falei das guerras entre nações, aquelas que se conhecem como conflitos internacionais. Estou, porém, bem consciente de que o instinto agressivo opera sob outras formas e em outras circunstâncias. (Penso nas guerras civis, por exemplo, devidas à intolerância religiosa, em tempos precedentes, hoje em dia, contudo, devidas a fatores sociais; ademais, também nas perseguições a minorias raciais.) Foi deliberada a minha insistência naquilo que é a mais típica, mais cruel e extravagante forma de conflito entre homem e homem, pois aqui temos a melhor ocasião de descobrir maneiras e meios de tornar impossíveis qualquer conflito armado.

Sei que nos escritos do senhor podemos encontrar respostas, explícitas ou implícitas, a todos os aspectos desse problema urgente e absorvente. Mas seria da maior utilidade para nós todos que o senhor apresentasse o problema da paz mundial sob o enfoque das suas mais recentes descobertas, pois umatal apresentação bem poderia demarcar o caminho para novos e frutíferos métodos de ação.

Muito cordialmente,

A. EINSTEIN. Viena, setembro de 1932.

 

CARTA DE FREUD

 

Prezado Professor Einstein,

Quando soube que o senhor intencionava convidar-me para um intercâmbio de pontos de vista sobre um assunto que lhe interessava e que parecia merecer o interesse de outros além do senhor, aceitei prontamente. Esperava que o senhor escolhesse um problema situado nas fronteiras daquilo que é atualmente cognoscível, um problema em relação ao qual cada um de nós, físico e psicólogo, pudesse ter o seu ângulo de abordagem especial, e no qual pudéssemos nos encontrar, sobre o mesmo terreno, embora partindo de direções diferentes. O senhor apanhou-me de surpresa, no entanto, ao perguntar o que pode ser feito para proteger a humanidade da maldição da guerra. Inicialmente me assustei com o pensamento de minha — quase escrevi ‘nossa’ — incapacidade de lidar com o que parecia ser um problema prático, um assunto para estadistas. Depois, no entanto, percebi que o senhor havia proposto a questão, não na condição de cientista da natureza e físico, mas como filantropo: o senhor estava seguindo a sugestão da Liga das Nações, assim como FridtjofNansen, o explorador polar, assumiu a tarefa de auxiliar as vítimas famintas e sem teto da guerra mundial. Além do mais, considerei que não me pediam para propor medidas práticas, mas sim apenas que eu delimitasse o problema da evitação da guerra tal como ele se configura aos olhos de um cientista da psicologia. Também nesse ponto, o senhor disse quase tudo o que há a dizer sobre o assunto. Embora o senhor se tenha antecipado a mim, ficarei satisfeito em seguir no seu rasto e me contentarei com confirmar tudo o que o senhor disse, ampliando-o com o melhor do meu conhecimento — ou das minhas conjecturas.

O senhor começou com a relação entre o direito e o poder. Não se pode duvidar de que seja este o ponto de partida correto de nossa investigação. Mas, permita-me substituir a palavra ‘poder’ pela palavra mais nua e cruaviolência’? Atualmente, direito e violência se nos afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se desenvolveu da outra e, se nos reportarmos às origens primeiras e examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema facilmente. Perdoe-me se, nessas considerações que se seguem, eu trilhar chão familiar e comumente aceito, como se isto fosse novidade; o fio de minhas argumentações o exige.

É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir. No caso do homem, sem dúvida ocorrem também conflitos de opinião que podem chegar a atingir a mais raras nuanças da abstração e que parecem exigir alguma outra técnica para sua solução. Esta é, contudo, uma complicação a mais. No início, numa pequena horda humana, era a superioridade da força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas ou quem fazia prevalecer sua vontade. A força muscular logo foi suplementada e substituída pelo uso de instrumentos: o vencedor era aquele que tinha as melhores armas ou aquele que tinha a maior habilidade no seu manejo. A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo — uma ou outra facção tinha de ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força. Conseguia-se esse objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para sempre o adversário, ou seja, se o matasse. Isto tinha duas vantagens: o vencido não podia restabelecer sua oposição, e o seu destino dissuadiria outros de seguirem seu exemplo. Ademais disso, matar um inimigo satisfazia uma inclinação instintual, que mencionarei posteriormente. À intenção de matar opor-se-ia a reflexão de que o inimigo podia ser utilizado na realização de serviços úteis, se fosse deixado vivo e num estado de intimidação. Nesse caso, a violência do vencedor contentava-se com subjugar, em vez de matar, o vencido. Foi este o início da idéia de poupar a vida de um inimigo, mas a partir daí o vencedor teve de contar com a oculta sede de vingança do adversário vencido e sacrificou uma parte de sua própria segurança.

Esta foi, por conseguinte, a situação inicial dos fatos: a dominação por parte de qualquer um que tivesse poder maior — a dominação pela violência bruta ou pela violência apoiada no intelecto. Como sabemos, esse regime foi modificado no transcurso da evolução. Havia um caminho que se estendia daviolência ao direito ou à lei. Que caminho era este? Penso ter sido apenas um: o caminho que levava ao reconhecimento do fato de que à força superior de um único indivíduo, podia-se contrapor a união de diversos indivíduos fracos. ‘L’union fait la force.’ A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que se lhe oponha; funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. A única diferença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade. A fim de que a transição da violência a esse novo direito ou justiça pudesse ser efetuada, contudo, uma condição psicológica teve de ser preenchida. A união da maioria devia ser estável e duradoura. Se apenas fosse posta em prática com o propósito de combater um indivíduo isolado e dominante, e fosse dissolvida depois da derrota deste, nada se teria realizado. A pessoa, a seguir, que se julgasse superior em força, haveria de mais uma vez tentar estabelecer o domínio através da violência, e o jogo se repetiria ad infinitum. A comunidade deve manter-se permanentemente, deve organizar-se, deve estabelecer regulamentos para antecipar-se ao risco de rebelião e deve instituir autoridades para fazer com que esses regulamentos — as leis — sejam respeitadas, e para superintender a execução dos atos legais de violência. O reconhecimento de uma entidade de interesses como estes levou ao surgimento de vínculos emocionais entre os membros de um grupo de pessoas unidas — sentimentos comuns, que são a verdadeira fonte de sua força.

 

Acredito que, com isso, já tenhamos todos os elementos essenciais: a violência suplantada pela transferência do poder a uma unidade maior, que se mantém unida por laços emocionais entre os seus membros. O que resta dizer não é senão uma ampliação e uma repetição desse fato.

A situação é simples enquanto a comunidade consiste em apenas poucos indivíduos igualmente fortes. As leis de uma tal associação irão determinar o grau em que, se a segurança da vida comunal deve ser garantida, cada indivíduo deve abrir mão de sua liberdade pessoal de utilizar a sua força para fins violentos. Um estado de equilíbrio dessa espécie, porém, só é concebível teoricamente. Na realidade, a situação complica-se pelo fato de que, desde os seus primórdios, a comunidade abrange elementos de força desigual — homens e mulheres, pais e filhos — e logo, como conseqüência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos. A justiça da comunidade então passa a exprimir graus desiguais de poder nela vigentes. As leis são feitas por e para os membros governantes e deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição. Dessa época em diante, existem na comunidade dois fatores em atividade que são fonte de inquietação relativamente a assuntos da lei, mas que tendem, ao mesmo tempo, a um maior crescimento da lei. Primeiramente, são feitas, por certos detentores do poder, tentativas, no sentido de se colocarem acima das proibições que se aplicam a todos — isto é, procuram escapar do domínio pela lei para o domínio pela violência. Em segundo lugar, os membros oprimidos do grupo fazem constantes esforços para obter mais poder e ver reconhecidas na lei algumas modificações efetuadas nesse sentido — isto é, fazem pressão para passar da justiça desigual para a justiça igual para todos. Essa segunda tendência torna-se especialmente importante se uma mudança real de poder ocorre dentro da comunidade, como pode ocorrer em conseqüência de diversos fatores históricos. Nesse caso, o direito pode gradualmente adaptar-se à nova distribuição do poder; ou, como sucede com maior freqüência, a classe dominante se recusa a admitir a mudança e a rebelião e a guerra civil se seguem, com uma suspensão temporária da lei e com novas tentativas de solução mediante a violência, terminando pelo estabelecimento de um novo sistema de leis. Ainda há uma terceira fonte da qual podem surgir modificações da lei, e que invariavelmente se exprime por meios pacíficos: consiste na transformação cultural dos membros da comunidade. Isto, porém, propriamente faz parte de uma outra correlação e deve ser considerado posteriormente.Ver em [[1]].

Vemos, pois, que a solução violenta de conflitos de interesses não é evitada sequer dentro de uma comunidade. As necessidades cotidianas e os interesses comuns, inevitáveis ali onde pessoas vivem juntas num lugar, tendem, contudo, a proporcionar a essas lutas uma conclusão rápida, e, sob tais condições, existe uma crescente probabilidade de se encontrar uma solução pacífica. Outrossim, um rápido olhar pela história da raça humana revela uma série infindável de conflitos entre uma comunidade e outra, ou diversas outras, entre unidades maiores e menores — entre cidades, províncias, raças, nações, impérios —, que quase sempre se formaram pela força das armas. Guerras dessa espécie terminam ou pelo saque ou pelo completo aniquilamento e conquista de uma das partes. É impossível estabelecer qualquer julgamento geral das guerras de conquista. Algumas, como as empreendidas pelos mongóis e pelos turcos, não trouxeram senão malefícios. Outras, pelo contrário, contribuíram para a transformação da violência em lei, ao estabelecerem unidades maiores, dentro das quais o uso da violência se tornou impossível e nas quais um novo sistema de leis solucionou osconflitos. Desse modo, as conquistas dos romanos deram aos países próximos ao Mediterrâneo a inestimável pax romana, e a ambição dos reis franceses de ampliar os seus domínios criou uma França pacificamente unida e florescente. Por paradoxal que possa parecer, deve-se admitir que a guerra poderia ser um meio nada inadequado de estabelecer o reino ansiosamente desejado de paz ‘perene’, pois está em condições de criar as grandes unidades dentro das quais um poderoso governo central torna impossíveis outras guerras. Contudo, ela falha quanto a esse propósito, pois os resultados da conquista são geralmente de curta duração: as unidades recentemente criadas esfacelam-se novamente, no mais das vezes devido a uma falta de coesão entre as partes que foram unidas pela violência. Ademais, até hoje as unificações criadas pela conquista, embora de extensão considerável, foram apenas parciais, e os conflitos entre elas ensejaram, mais do que nunca, soluções violentas. O resultado de todos esses esforços bélicos consistiu, assim, apenas em a raça humana haver trocado as numerosas e realmente infindáveis guerras menores por guerras em grande escala, que são raras, contudo muito mais destrutivas.

Se nos voltamos para os nossos próprios tempos, chegamos a mesma conclusão a que o senhor chegou por um caminho mais curto. As guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil. A Liga das Nações é destinada a ser uma instância dessa espécie, mas a segunda condição não foi preenchida: a Liga das Nações não possui poder próprio, e só pode adquiri-lo se os membros da nova união, os diferentes estados, se dispuserem a cedê-lo. E, no momento, parecem escassas as perspectivas nesse sentido. A instituição da Liga das Nações seria totalmente ininteligível se se ignorasse o fato de que houve uma tentativa corajosa, como raramente (talvez jamais em tal escala) se fez antes. Ela é uma tentativa de fundamentar a autoridade sobre um apelo a determinadas atitudes idealistas da mente (isto é, a influência coercitiva), que de outro modo se baseia na posse da força. Já vimos [[1]] que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos emocionais (identificações é o nome técnico) entre seus membros. Se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator. As idéias a que se faz o apelo só podem, naturalmente, ter importância se exprimirem afinidades importantes entre os membros, e pode-se perguntar quanta força essas idéias podem exercer. A história nosensina que, em certa medida, elas foram eficazes. Por exemplo, a idéia do pan-helenismo, o sentido de ser superior aos bárbaros de além-fronteiras — idéia que foi expressa com tanto vigor no conselho anfictiônico, nos oráculos e nos jogos —, foi forte a ponto de mitigar os costumes guerreiros entre os gregos, embora, é claro, não suficientemente forte para evitar dissensões bélicas entre as diferentes partes da nação grega, ou mesmo para impedir uma cidade ou confederação de cidades de se aliar com o inimigo persa, a fim de obter vantagem contra algum rival. A identidade de sentimentos entre os cristãos, embora fosse poderosa, não conseguiu, à época do Renascimento, impedir os Estados Cristãos, tanto os grandes como os pequenos, de buscar o auxílio do sultão em suas guerras de uns contra os outros. E atualmente não existe idéia alguma que, espera-se, venha a exercer uma autoridade unificadora dessa espécie. Na realidade, é por demais evidente que os ideais nacionais, pelos quais as nações se regem nos dias de hoje, atuam em sentido oposto. Algumas pessoas tendem a profetizar que não será possível pôr um fim à guerra, enquanto a forma comunista de pensar não tenha encontrado aceitação universal. Mas esse objetivo, em todo caso, está muito remoto, atualmente, e talvez só pudesse ser alcançado após as mais terríveis guerras civis. Assim sendo, presentemente, parece estar condenada ao fracasso a tentativa de substituir a força real pela força das idéias. Estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o fato de que a lei, originalmente, era força bruta e que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência.

 

Passo agora, a acrescentar algumas observações aos seus comentários. O senhor expressa surpresa ante o fato de ser tão fácil inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra, e insere a suspeita, ver em[[1]], de que neles exige em atividade alguma coisa — um instinto de ódio e de destruição — que coopera com os esforços dos mercadores da guerra. Também nisto apenas posso exprimir meu inteiro acordo. Acreditamos na existência de um instinto dessa natureza, e durante os últimos anos temo-nos ocupado realmente em estudar suas manifestações. Permita-me que me sirva dessa oportunidade para apresentar-lhe uma parte da teoria dos instintos que, depois de muitas tentativas hesitantes e muitas vacilações de opinião, foi formulada pelos que trabalham na área da psicanálise?

De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir — que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium, ou ‘sexuais’, com uma deliberada ampliação da concepção popular de ‘sexualidade’ —; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. Como o senhor vê, isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado — ou, como dizemos, amalgamado — por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. Dessa forma, também o instinto de amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto. A dificuldade de isolar as duas espécies de instinto em suas manifestações reais, é, na verdade, o que até agora nos impedia de reconhecê-los.

Se o senhor quiser acompanhar-me um pouco mais, verá que as ações humanas estão sujeitas a uma outra complicação de natureza diferente. Muito raramente uma ação é obra de um impulso instintual único (que deve estar composto de Eros e destrutividade). A fim de tornar possível uma ação, há que haver, via de regra, uma combinação desses motivos compostos. Isto, há muito tempo, havia sido percebido por um especialista na sua matéria, o professor G. C. Lichtenberg, que ensinava física em Göttingen, durante o nosso classicismo, embora, talvez, ele fosse ainda mais notável como psicólogo do que como físico. Ele inventou uma ‘bússola de motivos’, pois escreveu: ‘Os motivos que nos levam a fazer algo poderiam ser dispostos à maneira da rosa-dos-ventos e receber nomes de uma forma parecida: por exemplo, “pão — pão — fama” ou “fama — fama — pão”.’ De forma que, quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar — uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que enumerá-los todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e a sua força. A satisfação desses impulsosdestrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza erótica e idealista. Quando lemos sobre as atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas de excusa para os desejos destrutivos; e, às vezes — por exemplo, no caso das crueldades da Inquisição — é como se os motivos idealistas tivessem assomado a um primeiro plano na consciência, enquanto os destrutivos lhes emprestassem um reforço inconsciente. Ambos podem ser verdadeiros.

Receio que eu possa estar abusando do seu interesse, que, afinal, se volta para a prevenção da guerra e não para nossas teorias. Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Como conseqüência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição. Foi-nos até mesmo imputada a culpa pela heresia de atribuir a origem da consciência a esse desvio da agressividade para dentro. O senhor perceberá que não é absolutamente irrelevante se esse processo vai longe demais: é positivamente insano. Por outro lado, se essas forças se voltam para a destruição no mundo externo, o organismo se aliviará e o efeito deve ser benéfico. Isto serviria de justificação biológica para todos os impulsos condenáveis e perigosos contra os quais lutamos. Deve-se admitir que eles se situam mais perto da Natureza do que a nossa resistência, para a qual também é necessário encontrar uma explicação. Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física?

 

Para nosso propósito imediato, portanto, isto é tudo o que resulta daquilo que ficou dito: de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens. Segundo se nos conta, em determinadas regiões privilegiadas da Terra, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário ao homem, existem povos cuja vida transcorre em meio à tranqüilidade, povosque não conhecem nem a coerção nem a agressão. Dificilmente posso acreditar nisso, e me agradaria saber mais a respeito de coisas tão afortunadas. Também os bolchevistas esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade, em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão. Eles próprios, hoje em dia, estão armados da maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além das suas fronteiras. Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.

Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos. Em primeiro lugar, podem ser relações semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora não tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem motivo porque se envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras: ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo.’ Isto, todavia, é mais facilmente dito do que praticado. O segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala.

Uma queixa que o senhor formulou acerca do abuso de autoridade,ver em [[1]] leva-me a uma outra sugestão para o combate indireto à propensão à guerra. Um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos seguidores. Esses últimos constituem a vasta maioria; têm necessidade de uma autoridade que tome decisões por eles e à qual, na sua maioria devotam uma submissão ilimitada. Isto sugere que se deva dar mais atenção, do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não passível de intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes. É desnecessário dizer que as usurpações cometidas pelo poder executivo do Estado e a proibição estabelecida pela Igreja contra a liberdade de pensamento não são nada favoráveis à formação de uma classe desse tipo. A situação ideal, naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica. Não há dúvida de que os outros métodos indiretos de evitar a guerra são mais exeqüíveis, embora não prometam êxito imediato. Vale lembrar aquela imagem inquietante do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha.

 

O resultado, como o senhor vê, não é muito frutífero quando um teórico desinteressado é chamado a opinar sobre um problema prático urgente. É melhor a pessoa, em qualquer caso especial, dedicar-se a enfrentar o perigo com todos os meios à mão. Eu gostaria, porém, de discutir mais uma questão que o senhor não menciona em sua carta, a qual me interessa em especial. Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? Afinal, parece ser coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática. Não há motivo para se surpreender com o fato de eu levantar essa questão. Para o propósito de uma investigação como esta, poder-se-ia, talvez, permitir-se usar uma máscara de suposto alheamento. A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade. Outras razões mais poderiam ser apresentadas, como a de que, na sua forma atual, a guerra já não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideais de heroísmo, e a de que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonistas ou, quem sabe, de ambos. Tudo isso é verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir perplexidade ante o fato de a guerra ainda não ter sido unanimemente repudiada. Sem dúvida, é possível o debate em tornode alguns desses pontos. Pode-se indagar se uma comunidade não deveria ter o direito de dispor da vida dos indivíduos; nem toda guerra é passível de condenação em igual medida; de vez que existem países e nações que estão preparados para a destruição impiedosa de outros, esses outros devem ser armados para a guerra. Mas não me deterei em nenhum desses aspectos; não constituem aquilo que o senhor deseja examinar comigo, e tenho em mente algo diverso. Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.

Sem dúvida, isto exige alguma explicação. Creio que se trata do seguinte. Durante períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural. (Sei que alguns preferem empregar o termo ‘civilização’). É a esse processo que devemos o melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo de que padecemos. Embora suas causas e seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado, algumas de suas características são de fácil percepção. Talvez esse processo esteja levando à extinção a raça humana, pois em mais de um sentido ele prejudica a função sexual; povos incultos e camadas atrasadas da população já se multiplicam mais rapidamente do que as camadas superiormente instruídas. Talvez se possa comparar o processo à domesticação de determinadas espécies animais, e ele se acompanha, indubitavelmente, de modificações físicas; mas ainda não nos familiarizamos com a idéia de que a evolução da civilização é um processo orgânico dessa ordem. As modificações psíquicas que acompanham o processo de civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais. Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos. Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas conseqüentes vantagens e perigos. Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau. Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades.

E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das conseqüências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra. Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.

Espero que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou, e com a expressão de toda estima, subscrevo-me,

Cordialmente,

SIGM. FREUD

 

MEU CONTATO COM JOSEF POPPER- LYNKEUS (1932)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

MEINE BERÜHRUNG MIT JOSEF POPPER-LYNKEUS

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

 

1932   Allgemeine Nährpflicht (Viena), 15.

1932   Psychoanal. Bewegung, 4, 113-18.

1934   G.S., 12, 415-20.

1950   G.W., 16, 261-6.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

 

‘My Contact with Josef Popper-Lynkeus’

 

1942   Int. J. Psycho-Anal., 23 (2), 85-7. (Trad. de James Strachey.)

1950   C.P., 5, 295-301. (Reimpressão da anterior.)

 

A presente tradução inglesa é uma versão corrigida da de 1950.

 

Este artigo apareceu, pela primeira vez, numa revista fundada sob a influência de Josef Popper (1838-1921), em número especial editado para comemorar o décimo aniversário de sua morte. Freud havia escrito um artigo mais curto, em moldes semelhantes, dez anos antes, na própria ocasião da morte de Popper (1923f). Pode-se encontrar uma explicação sobre o homenageado na Nota do Editor Inglês que apresenta aquele artigo (Edição Standard Brasileira, Vol. XIX, pág. 323, IMAGO Editora, 1976). As primeiras páginas do presente artigo proporcionam uma verdadeira sinopse de toda a essência da teoria psicológica de Freud, escrita com clareza e precisão características.

 

MEU CONTATO COM JOSEF POPPER- LYNKEUS

 

No inverno de 1899, meu livro sobre A Interpretação de Sonhos (embora a página de rosto tivesse recebido a pós-data do novo século) encontrava-se diante de mim, finalmente pronto. Essa obra foi produto de quatro ou cinco anos de trabalho e sua origem não foi comum. Ocupando o cargo de professor conferencista de doenças nervosas, na Universidade, eu vinha tentando sustentar-me e a minha família, que crescia rapidamente, exercendo a clínica médica entre os chamados ‘neuróticos’, tão numerosos em nossa sociedade. Mas a tarefa se mostrou mais difícil do que eu imaginara. Os métodos usuais de tratamento evidentemente ofereciam pouco ou nenhum auxílio: outros caminhos deviam ser seguidos. E como haveria de ser possível ajudar de algum modo os pacientes, quando não se conhecia nada de sua doença, nada das causas de seus sofrimentos ou do significado de suas queixas? Assim sendo, procurei sequiosamente orientação e ensino junto ao grande Charcot, em Paris, e junto a Bernheim, em Nancy; por fim, uma observação feita por meu mestre e amigo Josef Breuer, de Viena, pareceu abrir uma nova perspectiva para a compreensão e o êxito terapêutico.

O fato é que essas novas experiências tornaram claro que os pacientes que qualificávamos como neuróticos, em certa medida sofriam de distúrbios mentais e deviam, por conseguinte, ser tratados por métodos psicológicos. Nosso interesse, portanto, voltou-se necessariamente para a psicologia. A psicologia que vigorava naqueles tempos, nos cursos acadêmicos de filosofia, tinha muito pouco a oferecer e absolutamente nada que servisse aos nossos propósitos: tínhamos de descobrir, desde o início, tanto os métodos como as hipóteses teóricas que os sustentassem. Assim, pus-me a trabalhar nesse sentido, primeiramente em colaboração com Breuer e, depois, independentemente dele. No final, transformei em parte inseparável da minha técnica solicitar a meus pacientes que me falassem, sem se criticarem, tudo o que lhes viesse à mente, conquanto se tratasse de idéias que não pareciam fazer sentido ou que eram difíceis de referir.

Quando concordaram com minhas instruções, os pacientes contavam-me seus sonhos, entre outras coisas, como se fossem coisa da mesma espécie que os seus demais pensamentos. Isto era evidente indicação de que eu devia atribuir tanta importância a esses sonhos quanto a outros fenômenos inteligíveis. Não eram, porém, compreensíveis, e sim estranhos, confusos, absurdos: tais como os sonhos, de fato, os quais, por essa mesma razão, eram condenados pela ciência como uma espécie de repuxões fortuitos e absurdos do órgão da mente. Se meus pacientes tinham razão — e pareciam estar apenas repetindo antigas crenças mantidas, durante milhares de anos, por pessoas sem bases científicas —, eu me encontrava perante a tarefa de interpretar sonhos numa forma que pudesse resistir às críticas científicas.

No início, eu, a respeito dos sonhos dos meus pacientes, naturalmente entendia não mais do que esses mesmos sonhadores. Contudo, aplicando a esses sonhos, e, mais especialmente a meus próprios sonhos, o método que eu já utilizara para o estudo de outras construções psicológicas anormais, consegui responder à maior parte das questões que se podia levantar numa interpretação de sonhos. Havia muitas questões: Com que sonhamos? Por que sonhamos? Qual a origem de todas as características estranhas que diferenciam os sonhos da vida desperta? — e muitas outras questões mais. Algumas das respostas puderam ser dadas com facilidade e vieram a confirmar pontos de vista que já haviam sido apresentados; outras, porém, envolviam hipóteses completamente novas, referentes à estrutura e ao funcionamento do aparelho da mente. As pessoas sonham com as coisas de que a mente se ocupou durante as horas da vida desperta. As pessoas sonham a fim de apaziguar impulsos que ameaçam perturbar o sono e a fim de poderem dormir. No entanto, por que se tornou possível aos sonhos apresentarem aparência tão estranha, tão confusamente absurda, em contraste tão evidente com o conteúdo do pensamento desperto, apesar de tratarem do mesmo material? Não podia haver dúvida de que os sonhos eram apenas um subtítulo de um processo racional de pensamento e podiam ser interpretados, isto é, traduzidos para um processo racional. O que precisava ser explicado era, contudo, a distorção que a elaboração onírica efetuara sobre o material racional e inteligível.

A distorção onírica era o mais profundo, o mais difícil problema da vida onírica. E o que a esclareceu foi a noção segundo a qual os sonhos formavam uma classe em pé de igualdade com outras formações psicopatológicas e se revelavam, por assim dizer, como psicoses normais dos seres humanos. Isso porque nossa mente, esse precioso instrumento por intermédio do qual nos mantemos vivos, não constitui uma unidade pacificamente independente. Antes, pode ser comparada a um Estado moderno no qual uma plebe, sedenta de prazer e de destruição, tem de ser reprimida à força por uma classe superior mais prudente. Todo o fluxo de nossa vida mental e tudo o que se expressa em nossos pensamentos são derivações e representações dos instintos multiformes que são inatos em nossa constituição física. Mas nem todos esses instintos são igualmente suscetíveis de serem orientados e educados e nem todos eles têm igual facilidade para se ajustarem às exigências do mundo externo e da sociedade humana. Diversos deles conservam sua natureza primitiva, ingovernável, irrefreável; se os deixássemos à solta, infalivelmente nos levariam à ruína. Conseqüentemente, aprendendo pela experiência, desenvolvemos em nossa mente organizações que, sob a forma de inibições, se opõem às manifestações diretas dos instintos. Todo impulso com caráter de desejo, que surge das fontes de energia instintual, deve ser submetido ao exame das mais altas instâncias de nossa mente e, não sendo aprovado, é rejeitado e impedido de exercer influência sobre nossos movimentos — isto é, de ser posto em execução. Realmente são muitas as vezes em que esses desejos são proibidos até mesmo de ingressar na consciência, que, habitualmente, não chega a tomar conhecimento da existência dessas fontes instintuais perigosas. Descrevemos esses impulsos como estando reprimidos, do ponto de vista da consciência, sobrevivendo apenas no inconsciente. Se aquilo que está reprimido empenha-se, de alguma forma, por obter ingresso à consciência ou ao movimento, ou a ambos, já não estamos mais normais: nesse ponto, emerge toda a gama de sintomas neuróticos e psicóticos. A manutenção das inibições e repressões necessárias exige de nossa mente um grande dispêndio de energia, do qual ela se alivia com satisfação. Uma boa oportunidade para isso parece surgir à noite, através do estado de sono, pois o sono implica uma cessação de nossas funções motoras. A situação parece segura e a severidade de nossa força policial interna pode, portanto, ser relaxada. Como não se pode ter certeza, ela não é retirada por completo: possivelmente o inconsciente jamais dorme, em absoluto. E, então, a redução da pressão sobre o inconsciente reprimido produz seu efeito. Dele originam-se desejos que durante o sono poderiam encontrar aberta a porta de entrada para a consciência. Se chegássemos a conhecê-los, ficaríamos aterrorizados tanto por seus temas como por sua falta de freios e, na verdade, pela mera possibilidade de sua existência. No entanto, isto só acontece raramente, e, quando acontece, acordamos o mais depressa possível, em estado de medo. Mas, via de regra, nossa consciência não experimenta o sonho como ele realmente se passou. É verdade que as forças inibidoras (a censura de sonhos, conforme as denominamos) não estão inteiramente despertas, outrossim não dormem por completo. Elas exerceram uma influência sobre o sonho enquanto este lutava para encontrar expressão mediante palavras e imagens, eliminaram aquilo que era mais censurável, modificaram outras partes do sonho, até se tornarem irreconhecíveis, desfizeram conexões reais enquanto introduziam conexões falsas, até que a fantasia plena de desejos, franca porém brutal, que estava por trás do sonho, transformou-se no sonho manifesto, tal como dele nos lembramos: mais ou menos confuso, quase sempre estranho e incompreensível. Assim, o sonho (ou a distorção que o caracteriza) é a expressão de uma conciliação, é a evidência de um conflito entre impulsos e tendências reciprocamente incompatíveis de nossa vida mental. E não nos esqueçamos de que o mesmo processo, a mesma influência mútua de forças, que explica os sonhos de uma pessoa normal, nos possibilita compreender todos os fenômenos da neurose e da psicose.

Devo pedir desculpas se até aqui falei tanto a respeito de mim mesmo e de meu trabalho relativo aos problemas do sonho; mas isto foi um preliminar necessário para o que vem a seguir. Minha explicação da distorção onírica parecia-me nova: em parte alguma eu encontrara qualquer coisa parecida. Anos depois (já não consigo lembrar quando), encontrei o livro de Josef Popper-Lynkeus Phantasien eines Realisten. Uma das histórias deste livro tinha como título ‘Träumen wie Wachen’ [‘Sonhar Acordado’], e não podia deixar de suscitar meu mais profundo interesse. Havia nele a descrição de um homem que podia gabar-se de jamais ter sonhado qualquer coisa absurda. Seus sonhos podiam ser fantásticos, como contos de fadas, mas não eram tão desprovidos de concordância com o mundo desperto, que fosse possível dizer terminantemente que ‘eram impossíveis ou absurdos em si mesmos’. Traduzindo para a minha forma de expressar, isto significa que, no caso desse homem, não ocorria distorção onírica; o motivo apresentado para a ausência desta explicava ao mesmo tempo o motivo de sua ocorrência. Popper deu ao homem uma compreensão interna (insight) completa dos motivos de sua peculiaridade. Fê-lo dizer: ‘A ordem e a harmonia reinam tanto em meus pensamentos como em meus sentimentos, e esses dois não lutam entre si… Eu sou um só e indiviso. Outras pessoas estão divididas e suas duas partes — vigília e sonho — estão quase permanentemente em guerra uma com a outra.’ E ainda, quanto à interpretação dos sonhos: ‘Certamente que essa não é uma fácil tarefa; mas com um pouco de atenção por parte daquele que sonha, deve sem dúvida alcançar êxito. — Você pergunta por que é que na sua maioria não alcança êxito? Em outros como você, sempre parece haver algo que jaz oculto em seus sonhos, algo de impuro num sentido especial e mais elevado, uma certa qualidade secreta em seu ser que é difícil de acompanhar. E eis por que seus sonhos, tão amiúde, parecem estar destituídos de significado ou mesmo ser absurdos. Mas no sentido mais profundo não é isso de modo algum o que ocorre; realmente, não pode ser assim absolutamente — pois é sempre o mesmo homem, quer esteja acordado, quer sonhando.’

Ora, se deixarmos de lado a terminologia psicológica, era esta a mesma explicação da formação onírica a que eu chegara com meu estudo dos sonhos. A distorção era uma conciliação, algo de dissimulado havia na sua própria natureza, era um conflito entre pensamento e sentimento, ou, como eu o formulara, um conflito entre o consciente e o reprimido. Onde não houvesse um conflito desse tipo e não fosse necessária a repressão, os sonhos não poderiam ser estranhos nem absurdos. O homem que sonhasse de modo não diverso do modo como pensa quando acordado, teria garantido para si, segundo Popper, a própria condição de harmonia interna que, na qualidade de reformador social, almejava na formação do corpo político. E se a ciência nos informa que um homem assim, inteiramente isento de maldade e falsidade, isento de repressões, não existe e não poderia sobreviver, podemos, não obstante, suspeitar que, na medida em que é possível uma aproximação a semelhante ideal, este encontrou sua concretização na pessoa do mesmo Popper.

Dominado pela emoção de encontrar tamanha sabedoria, comecei a ler todas as suas obras — seus livros sobre Voltaire, sobre religião, sobre guerra, sobre a provisão universal da subsistência, etc. — até haver-se formado nitidamente diante de meus olhos uma imagem desse grande homem sincero, que foi um pensador e crítico, e, ao mesmo tempo, um afetuoso humanitário e reformador. Refleti muito a respeito dos direitos do indivíduo, que ele advogava, e a que com satisfação teria dado meu apoio, não estivesse eu sido refreado pela idéia de que nem o processo da Natureza nem os fins da sociedade humana justificavam muito essas reivindicações. Um especial sentimento de simpatia atraía-me a ele, de vez que também ele, evidentemente, tivera uma experiência dolorosa da amargura da vida de um judeu e do vazio de ideais da civilização de nossos dias. No entanto, nunca o vi pessoalmente.Ele sabia de mim através de conhecidos comuns e, certa vez, tive oportunidade de responder a uma carta sua, na qual me pedia algumas informações. Mas nunca o procurei. Minhas inovações em psicologia tinham-me separado de seus contemporâneos, e especialmente daqueles mais idosos: muitíssimas vezes, quando me aproximava de um homem que eu tinha venerado a distância, via-me repelido, digamos assim, por sua falta de compreensão daquilo que se tornara toda a minha vida para mim. E, afinal, Josef Popper tinha sido um físico: fora amigo de Ernst Mach. Eu desejava ardentemente que a feliz impressão de nossa concordância quanto ao problema da distorção onírica não viesse a ser desfeita. Assim aconteceu que adiei a ocasião de visitá-lo, até que se tornou tarde demais, e agora o que posso fazer é saudar seu busto nos jardins em frente ao nosso Rathaus.

 

SÁNDOR FERENCZI (1933)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

SÁNDOR FERENCZI

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

 

1933   Int. Z. Psychoanal., 19 (3), 301-4.

1934   G.S., 12, 397-9.

1950   G.W., 16, 267-9.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

 

‘Sándor Ferenczi’

 

1933   Int. J. Psycho-Anal., 14, (3) 297-9. (Tradutor não especificado.)

 

A presente tradução inglesa é nova e de autoria de James Strachey.

 

Sándor Ferenczi nasceu em 16 julho de 1873 e faleceu em 23 de maio de 1933. A homenagem anterior que lhe fez Freud, e que este menciona aqui (Freud, 1923i), encontra-se em Edição Standard Brasileira, Vol. XIX, pág. 333, IMAGO Editora, 1976.

 

SÁNDOR FERENCZI

 

Temos aprendido com a experiência que felicitar custa pouco; assim, apresentamo-nos uns aos outros generosamente com os melhores e mais calorosos votos de felicidades. E, entre estes, a maioria é no sentido de uma vida longa. Uma conhecida lenda oriental nos revela justamente a duplicidade desse desejo. O sultão ordenou que dois sábios lhe revelassem seu horóscopo. ‘Vossa sorte é propícia, senhor!, disse um deles. ‘Está escrito nas estrelas que havereis de ver todos os vossos parentes morrerem antes de vós.’ Esse profeta foi executado. ‘Vossa sorte é propícia!’, disse também o outro, ‘pois li nas estrelas que havereis de sobreviver a todos os vossos parentes’. Este foi ricamente recompensado. Ambos tinham expressado a realização do mesmo desejo.

Em janeiro de 1926, coube-me escrever um obtuário de nosso inesquecível amigo Karl Abraham. Alguns anos antes, em 1923, eu podia cumprimentar Sándor Ferenczi quando este completava seus cinqüenta anos. Hoje, mal passada uma década, constrita-me ter eu sobrevivido também a ele. Naquilo que escrevi para seu aniversário, pude homenagear francamente sua versatilidade, sua originalidade e a riqueza de seu talento; mas a discrição que se exige de um amigo proibia-me de falar de sua personalidade afável e afetuosa, sempre disposta a receber bem tudo o que tivesse importância.

Desde os dias em que o levou até mim o seu interesse pela psicanálise, então ainda nos seus primórdios, compartilhamos, juntos, de muitas coisas. Convidei-o a ir comigo a Worcester, Massachusetts, quando, em 1909, ali fui convidado a dar conferências durante uma semana de comemorações. Pela manhã, antes de chegar a hora de começar minha conferência, caminhava junto com ele, em frente ao edifício da Universidade, e pedia-lhe que me sugerisse o que eu deveria abordar naquele dia. Ele me dava então um esboço daquilo que, meia hora depois, eu improvisava na minha conferência. Dessa maneira, ele participou da origem das Cinco Lições. Logo depois disto, no Congresso de Nuremberg de 1910, dispus as coisas de modo tal que ele devesse propor a organização dos analistas numa associação internacional — esquema que elaboramos juntos. Com pequenas modificações, ela foi aceita e vigora até hoje. Por muitos anos seguidos, passamos as férias de outono, juntos, na Itália, e numerosos artigos que posteriormente surgiram na bibliografia, com o seu nome ou com o meu nome, derivavam sua forma inicial de nossas conversas naqueles locais onde estivemos. Quando a irrupção da guerra mundial pôs fim à nossa liberdade de movimentos, e também paralisounossa atividade analítica, ele utilizou o intervalo para começar sua análise comigo. Esta foi interrompida quando de sua convocação para o serviço militar, mas conseguiu retomá-la posteriormente. O sentimento de um vínculo comum seguro que se desenvolveu entre nós, a partir de tantas experiências compartilhadas, não foi interrompido quando, em época já infelizmente tardia, uniu-se à ilustre mulher que hoje o pranteia como viúva.

Há dez anos, quando a Internationale Zeitschrift [e o International Journal] dedicou um número especial a Ferenczi por seu qüinquagésimo aniversário, ele já havia publicado a maior parte de seus trabalhos, que tornaram todos os analistas seus discípulos. Ele, contudo, estava retendo sua realização mais brilhante e mais fértil. Eu a conhecia, e, na fase final de minha contribuição, instei com ele para que no-la desse. Então, em 1924, surgiu a sua Versuch einer Genitaltheorie. Esse pequeno livro constitui, antes, um estudo biológico do que psicanalítico; é uma aplicação das atitudes e das compreensões internas (insight) associadas à psicanálise em relação à biologia dos processos sexuais e, além destes, à vida orgânica em geral. Foi talvez a mais ousada aplicação da psicanálise que já se tentou. Em suas linhas-mestras, acentua a natureza conservadora dos instintos, que procura restabelecer toda situação interrompida em virtude de alguma interferência externa. Os símbolos são reconhecidos como prova de primitivas correlações. São apresentados exemplos impressionantes, para mostrar como as características daquilo que é psíquico conservam vestígios de antigas modificações na substância corporal. Depois de se ler esse livro, parece que se compreende muitas particularidades da vida sexual, das quais antes nunca se pôde obter uma visão abrangente, e sente-se enriquecido pelas sugestões que prometem uma profunda compreensão interna (insight) de amplas áreas da biologia. É tarefa inútil tentar, já hoje em dia, diferenciar aquilo que pode ser aceito como descoberta autêntica, daquilo que busca, à maneira de fantasia científica, adivinhar os conhecimentos do futuro. Colocamos o livro de lado com este sentimento: ‘Isto é quase demais para ser apreendido numa primeira leitura; vou lê-lo novamente, em breve.’ Mas não sou eu, apenas, que sinto assim. É provável que um dia, no futuro, haverá realmente uma ‘bio-análise’, conforme profetizou Ferenczi, e ele terá de remeter-se à Versuch einer Genitaltheorie.

Depois desse apogeu de realização, sucedeu que nosso amigo lentamente se afastou de nós. Quando de seu regresso de um período de trabalho na América, pareceu retrair-se cada vez mais para um trabalho solitário, embora anteriormente participasse muito ativamente de tudo o que acontecia nos círculos analíticos. Sabíamos que um só problema vinha monopolizando seuinteresse. Nele, a necessidade de curar e de ajudar havia-se tornado soberana. Provavelmente ele se havia proposto objetivos que, mediante nossos meios terapêuticos, estão, atualmente, totalmente fora do nosso alcance. De fontes inesgotáveis de emoção, brotara nele a convicção de que se podia efetuar muito mais com os pacientes, se se lhes desse todo aquele amor que tinham desejado profundamente quando crianças. Ele queria descobrir o modo como isto podia ser realizado, dentro do quadro referencial da situação psicanalítica; e como não o conseguisse, mantinha-se afastado, talvez já não mais seguro de que pudesse haver concordância com seus amigos. Fosse qual fosse a direção a que pudesse levá-lo a estrada por que havia enveredado, não pôde prosseguir nela até o fim. Lentamente, revelaram-se nele sinais de um processo orgânico destrutivo grave, que provavelmente já tivesse entristecido sua vida por muitos anos. Um pouco antes de completar sessenta anos, sucumbiu à anemia perniciosa. É impossível imaginar que a história de nossa ciência algum dia venha a esquecê-lo.

Maio de 1933

 

AS SUTILEZAS DE UM ATO FALHO (1935)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

 

1935   Almanach, 1936, 15-17.

1950   G.W., 16, 37-9.

 

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

 

                        ‘The Fineness of Parapraxia’

 

1939   Psychoan. Rev., 26 (2), 153-4. (Trad. de A. N. Foxe.)

 

                        ‘The Subleties of a Parapraxis’

 

1950   C.P., 5, 313-15. (Trad. de James Strachey.)

 

A presente tradução inglesa, com título modificado, é uma versão corrigida da que foi publicada em 1950.

 

Esta foi uma contribuição posterior, contudo não a última, de Freud, ao seu tema predileto, a psicopatologia da vida cotidiana. (Freud, 1901b.) Retornou ao assunto, mais uma vez, em suas inacabadas ‘Lições Elementares’ (1940b [1938]).

 

AS SUTILEZAS DE UM ATO FALHO

 

Eu estava preparando para uma amiga um presente de aniversário — uma pequena pedra preciosa trabalhada, para ser engastada num anel. Ela estava fixa no centro de um recorte de cartolina resistente, e neste escrevi as seguintes palavras: ‘Comprovante para entrega, à firma L., joalheiros, de um anel de ouro … para a pedra anexa, na qual está gravado um barco, com vela e remos.’ Contudo, no ponto em que ali deixei uma lacuna, entre ‘ouro’ e ‘para’ havia uma palavra que eu fora obrigado a riscar por ser inteiramente desnecessária. Era a pequena palavra ‘bis‘ [‘até’, em alemão]. Mas por que eu a teria escrito?

Ao ler toda a breve inscrição que havia feito, surpreendeu-me o fato de que continha a palavra ‘für‘ [‘para’] duas vezes, em rápida sucessão: ‘para entrega’ — ‘para a pedra anexa’. Isto pareceu feio, devia ser evitado. Então me ocorreu que ‘bis‘ tinha sido substituído por ‘für’, numa tentativa de evitar a deselegância estilística. Certamente era isto; era, porém, uma tentativa que se utilizava de meios extremamente inadequados. A preposição ‘bis‘ estava muito fora de lugar nesse contexto e não tinha como ser substituída pelo necessário ‘für‘. Assim sendo, por que justamente ‘bis‘?

Talvez a palavra ‘bis‘ não fosse a preposição indicativa de tempo-limite. Pode ter sido algo totalmente diferente — a palavra latina ‘bis‘ — ‘uma segunda vez’, que conservou seu significado em francês. ‘Ne bis in idem‘ é uma máxima da lei romana. ‘Bis! bis!‘ é o que grita o francês, quando deseja ver repetida uma apresentação. Assim, esta deve ser a explicação de meu absurdo lapso de escrita. Eu estava sendo advertido contra o segundo ‘für‘, contra uma repetição da mesma palavra. Alguma outra devia ser colocada em seu lugar. A fortuita identidade de som entre a palavra estrangeira ‘bis‘, que incorporava a crítica à fraseologia original, e a preposição alemã possibilitou a inserção de ‘bis‘ em lugar de ‘für‘ na forma de lapso de escrita. Esse engano, todavia, atingiu seu objetivo, não ao ser efetuado, mas somente depois de ter sido corrigido. Tive de riscar o ‘bis‘, e com isto, por assim dizer, eliminei a repetição que me perturbava. Realmente digna de interesse essa variante do mecanismo de uma parapraxia!

Senti-me muito satisfeito com essa solução.Na auto-análise, porém, o perigo de fazer coisas incompletas é muito grande. Pode-se, com muita facilidade, ficar satisfeito com uma explicação parcial, atrás da qual a resistência facilmente pode estar ocultando algo que talvez seja mais importante. Contei esta pequena análise a minha filha, e ela imediatamente viu como a coisa acontecera:

‘Mas o senhor já deu a ela uma pedra igual a essa, para um anel, anteriormente. Esta é provavelmente a repetição que o senhor quer evitar. As pessoas não gostam de dar sempre o mesmo presente.’ Isto me convenceu; havia realmente a objeção contra uma repetição do mesmo presente, não da mesma palavra. Tinha havido um deslocamento para algo banal com a finalidade de desviar a atenção de algo mais importante: uma dificuldade estética, talvez, em lugar de um conflito instintual.

Pois foi fácil descobrir a outra seqüência. Eu estava procurando um motivo para não dar de presente a pedra, e esse motivo foi providenciado pela reflexão de que eu já havia dado o mesmo presente (ou um muito parecido). Por que essa objeção devia ser ocultada, ou disfarçada? Logo vi por quê. Não tinha nenhuma vontade de me desfazer da pedra. Gostava muito dela e a queria para mim.

A explicação para essa parapraxia foi encontrada sem maiores dificuldade. Na realidade, logo me ocorreu uma idéia consoladora: pesares desse tipo só aumentam o valor de um presente. Que espécie de presente seria este, se não se lamentasse um pouco dá-lo? Não obstante, o episódio possibilita que se perceba, mais uma vez, como podem ser compilados os processos mentais mais modestos e aparentemente mais simples. Cometi um lapso ao redigir umas anotações — coloquei ‘bis‘ onde devia escrever ‘für‘ —, percebi-o e o corrigi: um pequeno erro, ou antes, uma tentativa de erro, e assim mesmo encerrava tão grande número de premissas e de fatores dinâmicos. Com efeito, o erro não podia ter ocorrido se o material não fosse especialmente favorável.

 

UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE (1936)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

BRIEF AN ROMAIN ROLLAND (EINE ERINNERUNGSSTORUNG AUF DER AKROPOLIS)

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1936   Almanach 1937, 9-21.

1950   G.W., 16, 250-7.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

‘A Disturbance of Memory on the Acropolis’

 

1941   Int. J. Psycho-Anal., 22 (2), 93-101. (Trad. de James Strachey.)

 

1950   C.P., 5, 302-12. (Reimpressão da anterior.)

 

A presente tradução inglesa baseou-se na versão corrigida da que foi publicada em 1950.

 

Romain Rolland nasceu a 29 de janeiro de 1866, e este trabalho foi-lhe dedicado por ocasião de seu setuagésimo aniversário. Freud tinha por ele a maior admiração, conforme comprovou não só pelo presente trabalho, mas também pela mensagem a Rolland quando este completou sessenta anos (Freud, 1926a), e pelas seis ou sete cartas que lhe escreveu e que foram publicadas (Freud, 1960a), bem como por uma passagem no começo de O Mal-Estar na Civilização (1930a), Edição Standard Brasileira, Vol. XXI, págs. 81-2, IMAGO Editora, 1974. Freud correspondera-se com ele, pela primeira vez, em 1923, e uma única vez, parece, em 1924, teve um encontro com ele.

Foi impossível localizar qualquer publicação anterior deste artigo em alemão, a não ser a do Almanach, assinalada acima. Deve-se ter em mente que todas as publicações relacionadas a Romain Rolland, como as de muitos outros autores, inclusive Thomas Mann e, naturalmente, todos os escritores judeus, foram suprimidas, durante aquele período, pelos nazistas.

 

UM DISTÚRBIO DE MEMÓRIA NA ACRÓPOLE

CARTA ABERTA A ROMAIN ROLLAND POR OCASIÃO DE SEU SETUAGÉSIMO ANIVERSÁRIO

 

Meu caro Amigo,

Vi-me na emergência de contribuir, com algo escrito, para a comemoração do seu setuagésimo aniversário, e fiz grandes esforços por encontrar algo que pudesse, de algum modo, ser digno do senhor e pudesse expressar minha admiração pelo seu amor à verdade, pela sua coragem nas suas crenças e por seu carinho e boa vontade para com a humanidade; ou, então, algo que pudesse testemunhar-lhe minha gratidão, como escritor que me tem proporcionado tantos momentos de enlevo e prazer. Mas foi em vão. Sou dez anos mais velho que o senhor, e minha capacidade de produção está no fim. Tudo o que posso encontrar para oferecer-lhe é o dom de uma criatura empobrecida que ‘viu dias melhores’.

O senhor sabe que meu trabalho científico consistiu em elucidar manifestações incomuns, anormais ou patológicas da mente, isto é, atribuir sua origem às forças psíquicas que operam por trás delas e indicar os mecanismos em ação. Comecei tentando isto em mim próprio e então passei a aplicá-lo a outras pessoas e, finalmente, fazendo uma extensão ousada, a toda a raça humana. Durante os últimos anos, um fenômeno destes, que eu mesmo havia experimentado há uma geração atrás em 1904, e que eu jamais compreendera, passou a assediar minha mente. De início, não vi o motivo desse fato; porém, afinal resolvi analisar o incidente — e agora presenteio o senhor com os resultados dessa investigação. No transcurso do que se segue, naturalmente terei de solicitar-lhe que dispense a alguns eventos de minha vida particular uma atenção maior do que eles de outro modo mereceriam.

 

Todos os anos, naquela época, em fins de agosto ou no começo de setembro, eu costumava, em companhia de meu irmão mais novo, partirem viagem de férias, que durava algumas semanas e nos levava a Roma, ou a alguma outra região da Itália, ou a alguma parte da costa do Mediterrâneo. Meu irmão é dez anos mais novo que eu, de modo que tem a mesma idade que o senhor — uma coincidência que só agora me ocorreu. Naquele ano, em particular, meu irmão me disse que seus negócios não lhe permitiriam manter-se afastado por muito tempo: uma semana seria o máximo que ele podia conseguir, e devíamos abreviar nossa viagem. Assim sendo, decidimos viajar via Trieste até a ilha de Corfu e passar ali os poucos dias de nossas férias. Em Trieste, ele visitou uma pessoa que conhecia dos seus negócios e que morava nessa cidade, e o acompanhei. Nosso anfitrião, no seu modo afável, perguntou a respeito de nossos planos e, ao saber que era nossa intenção ir a Corfu, advertiu-nos com veemência que não o fizéssemos: ‘Que é que os leva a pensar em ir lá, nesta época do ano? Seria quente demais para que pudessem fazer alguma coisa. Melhor seria se, em vez disso, fossem a Atenas. O navio do Lloyd parte hoje à tarde; lá os senhores terão três dias para ver a cidade, e, na viagem de volta, o navio os apanha novamente. Isto seria mais agradável e valeria mais a pena.’

Enquanto voltávamos dessa visita, estávamos ambos em um estado de espírito muito deprimido. Discutimos o plano que fora proposto, concordamos em que era quase impraticável e não víamos senão dificuldades na sua realização; supúnhamos, ademais, que não nos permitiriam desembarcar na Grécia sem passaportes. As horas que antecederam à abertura do escritório do Lloyd, passamo-las vagando pela cidade, num estado de ânimo aborrecido e indeciso. Mas, quando chegou a hora, dirigimo-nos ao guichê e compramos nossas passagens para Atenas, como se fosse tudo muito natural, sem nos preocuparmos em absoluto com as supostas dificuldades, e realmente sem havermos trocado idéias um com o outro acerca dos motivos de nossa decisão. Esse comportamento, deve ser dito, foi muito estranho. Posteriormente, reconhecemos que instantaneamente, muito rápido, aceitáramos a sugestão de irmos a Atenas em vez de Corfu. Não obstante, por que passamos o intervalo de tempo anterior à abertura dos escritórios num estado tão sombrio e não prevíamos senão obstáculos e dificuldades?

Quando, por fim, na tarde após nossa chegada eu me encontrava na Acrópole e pousava meus olhos sobre o cenário; um pensamento surpreendente passou rápido em minha mente: ‘Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!’ Para descrever a situação de modo mais preciso, em mim essa pessoa que expressou essecomentário estava dividida, muito mais nitidamente dividida do que em geral seria perceptível, de uma outra pessoa que tomava conhecimento do comentário; e ambas as pessoas estavam surpresas, se bem que não com relação à mesma coisa. A primeira comportava-se como se estivesse obrigada, sob o impacto de uma observação inequívoca, a acreditar em algo cuja realidade parecia, até então, duvidosa. Se me permito um pequeno exagero, era como se alguém, caminhando na margem do Loch Ness, subitamente enxergasse a forma do famoso monstro encalhado na praia e se visse compelido a admitir: ‘Então realmente existe mesmo — a serpente marinha, na qual nunca acreditávamos!’ A segunda pessoa, por outro lado, com razão estava surpresa, pois desconhecia a possibilidade de que a existência real de Atenas, da Acrópole e do cenário em torno, alguma vez tivesse sido objeto de dúvida. O que essa pessoa estivera esperando era, preferentemente, alguma expressão de alegria ou admiração.

Ora, seria fácil argumentar que esse estranho pensamento que me ocorreu na Acrópole só serve para acentuar o fato de que ver algo com os próprios olhos é, afinal, coisa muito diferente de ouvir contar ou de ler a respeito. Mas continuaria sendo uma forma muito estranha de explicar um lugar-comum sem interesse. Ou então, seria possível afirmar que era verdade que, quando eu era um colegial, pensara estar convencido da realidade histórica da cidade de Atenas e de sua história, mas que a ocorrência dessa idéia na Acrópole justamente mostrara que, em meu inconsciente, eu não tinha acreditado, e que só agora estava adquirindo uma convicção que ‘atingia o fundo do inconsciente’. Semelhante explicação parece muito profunda, contudo é mais fácil de afirmar do que de provar; ademais, é muito mais passível de ataque em bases teóricas. Não. Creio que os dois fenômenos, a depressão em Trieste e a idéia na Acrópole, relacionavam-se intimamente. E a primeira, a depressão, é mais facilmente compreensível e pode ajudar-nos no sentido de explicar a segunda, a idéia.

A experiência em Trieste foi, também, como se pode notar, simplesmente uma expressão de incredulidade. ‘Vamos ver Atenas? Impossível! — vai ser difícil demais!’ A depressão concomitante correspondia a um lamento de que era impossível: teria sido tão lindo. E agora, sabemos onde estamos. Este é mais um caso de ‘bom demais para ser verdade’ que encontramos com tanta freqüência. É um exemplo da incredulidadeque surge tantas vezes quando nos surpreendemos com uma boa notícia, quando sabemos que ganhamos um prêmio, por exemplo, ou que saímos vencedor, ou quando uma jovem vem a saber que o homem que ela amava em segredo pediu aos pais dela permissão para fazer-lhe a corte.

Quando estabelecemos a existência de um fenômeno, o passo seguinte é, naturalmente, conhecer sua causa. A incredulidade, como essa que se verificou, é evidentemente uma tentativa de repelir uma parte da realidade; há, porém, algo de estranho nesse fato. Não ficaríamos nem um pouco surpresos se uma tentativa dessa espécie tivesse como objetivo uma parte da realidade que ameaçasse causar desprazer: o mecanismo de nossa mente é, por assim dizer, planificado para funcionar segundo essas diretrizes. No entanto, por que haveria de surgir essa incredulidade com relação a algo que, pelo contrário, promete trazer um elevado grau de prazer? Conduta realmente paradoxal! Lembro-me de que, em uma ocasião anterior, tratei do caso parecido de pessoas que, conforme expressei, são ‘arrasadas pelo sucesso’. Geralmente as pessoas adoecem de frustração, da não-realização de alguma necessidade vital ou de um desejo. A estas pessoas, contudo, sucede o contrário; adoecem, ou, até mesmo, ficam aniquiladas, porque um desejo seu, excepcionalmente intenso, realizou-se. O contraste entre as duas situações não é tão grande como parece à primeira vista. O que acontece no caso paradoxal é simplesmente que o lugar da frustração externa é assumido por uma frustração interna. O sofredor não se permite a felicidade: a frustração interna ordena-lhe que se aferre à frustração externa. Mas por quê? Porque — esta é a resposta, em muitos casos — a pessoa não pode esperar que o Destino lhe proporcione algo tão bom. De fato, é outro exemplo de ‘bom demais para ser verdade’, é a expressão de um pessimismo do qual uma grande parte parece estar presente em muitos dentre nós. Em um outro grupo de casos, como naqueles que se arruinam com o êxito, encontramos um sentimento de culpa ou de inferioridade que pode ser traduzido assim: ‘Não mereço tanta felicidade, não mereço.’ Mas esses dois motivos são, em essência, o mesmo, por ser um apenas uma projeção do outro. Conforme há muito já se sabe, o Destino, que esperamos nos trate tão mal, é materialização de nossa consciência, do severo superego que há dentro de nós, sendo ele próprio um remanescente da instância primitiva de nossa infância.Isto, segundo penso, explica nosso comportamento em Trieste. Não podíamos acreditar que nos seria dada a alegria de ver Atenas. O fato de que a realidade que estávamos tentando repelir era, no início, apenas uma possibilidade, determinava o caráter de nossas reações imediatas. Quando, porém, estávamos na Acrópole, a possibilidade se tornara realidade, e a mesma descrença encontrou uma expressão diferente, todavia muito mais clara. Numa forma isenta de distorção, isto poderia ter sido expresso assim: ‘Realmente, eu não poderia ter imaginado ser possível que me fosse dado ver Atenas com meus próprios olhos — como indubitavelmente agora está ocorrendo!’ Quando relembro meu vivo desejo de viajar e ver o mundo, que me dominava nos tempos de colégio e posteriormente, e quanto tempo se passara até que meu desejo se concretizasse, não me surpreendo com esse efeito retardado na Acrópole; eu tinha, então, quarenta e oito anos. Não perguntei a meu irmão mais novo se ele sentia algo dessa mesma natureza. Determinada dose de reserva envolveu todo o episódio; e foi isto que já interferira em nossa troca de idéias em Trieste.

Supondo que eu tenha adivinhado corretamente o significado do pensamento que me veio na Acrópole, e que realmente expressei minha alegre surpresa por me encontrar naquele lugar, a outra questão emergente é saber por que esse significado teve de estar sujeito, no pensamento, a um disfarce tão dissimulado e desorientador.

O tema essencial do pensamento — isto é, a incredulidade — realmente estava contido na própria distorção: ‘Pela evidência dos meus sentidos, estou agora na Acrópole, mas não consigo acreditar nisto.’ Essa incredulidade, essa dúvida quanto a um aspecto da realidade, estava, contudo, duplamente deslocada em sua expressão real: primeiro, estava atribuída ao passado e, segundo, estava transportada de minha relação para com a Acrópole, para a própria existência da Acrópole. E assim ocorreu algo que equivalia a uma afirmação de que, em certa época do passado, eu duvidara da real existência da Acrópole —, um fato que, no entanto, minha memória rejeitava como incorreto e, com efeito, impossível.

As duas distorções envolvem dois problemas independentes. Podemos tentar penetrar mais fundo no processo de transformação. Sem especificar, no momento, como foi que cheguei à idéia, partirei da suposição de que o fator original deve ter sido o sentimento do inacreditável e do irreal na situação daquele momento. A situação incluía a mim próprio, a Acrópole e a minha percepção dela. Eu não podia explicaressa dúvida; evidentemente, não podia ligar a dúvida às minhas impressões sensoriais referentes à Acrópole. Lembrei-me, contudo, de que, no passado, tivera uma dúvida a respeito de algo relacionado precisamente a esse local e, assim, encontrei o meio de deslocar a dúvida para o passado. Nesse processo, entretanto, o tema da dúvida foi modificado. Não só me recordei de que, em meus anos de jovem, duvidara se um dia haveria de ver a Acrópole, mas também afirmei que naquele tempo eu desacreditara da realidade da própria Acrópole. É justamente esse efeito do deslocamento que me leva a pensar que a situação atual na Acrópole encerrava um elemento de dúvida acerca da realidade. Certamente ainda não consegui tornar claro o processo; assim, concluirei dizendo, em sinopse, que toda essa situação psíquica, de aparência tão confusa e tão difícil de descrever, pode ser elucidada satisfatoriamente supondo-se que, no momento, tive (ou poderia ter tido) um sentimento instantâneo: ‘O que estou vendo aqui não é real.‘ Tal sentimento é conhecido como ‘sentimento de desrealização’ [‘Entfremdungsgefühl‘]. Fiz um intento de afastar esse sentimento, e o consegui à custa de uma falsa afirmação acerca do passado.

Essas desrealizações são fenômenos notáveis, ainda pouco compreendidos. Diz-se serem ‘sensações’, mas, evidentemente, são processos complexos, vinculados a conteúdos mentais peculiares e vinculados a operações feitas a respeito desses conteúdos. Surgem com muita freqüência em determinadas doenças mentais, não sendo, contudo, desconhecidos entre pessoas sadias. Não obstante, são falhas do funcionamento e são estruturas anormais, como os sonhos, os quais, apesar de ocorrerem normalmente em pessoas sadias, nos servem como modelo de distúrbio psicológico. Esses fenômenos podem ser observados sob duas formas: a pessoa sente que uma parte da realidade, ou que uma parte do seu próprio eu, lhe é estranha. Nesse último caso, falamos em ‘despersonalização’; existe uma íntima relação entre desrealizações e despersonalizações. Existe mais um outro grupo de fenômenos que podem ser considerados como suas contrapartidas positivas — é o que se conhece como ‘fausse reconnaissance‘, ‘déjà vu’, ‘déjà raconté’, etc. ilusões em que procuramos aceitar algo como pertencente ao nosso ego, do mesmo modo como, nas desrealizações, nos empenhamos em manter algo fora de nós. Uma tentativa ingênua e não-psicológica de explicar o fenômeno do ‘déjà vu‘ procura encontrar nele a prova de uma existência anterior de nosso eu (self) mental. A despersonalização leva-nos à extraordinária situação de ‘double conscience‘que se descreve mais corretamente como ‘personalidade dividida’. Tudo isso, contudo, é tão obscuro e tem sido tão mal dominado cientificamente, que tenho de me abster de lhe falar mais a respeito dessas coisas.

Para os meus propósitos, ser-me-á suficiente retornar às características gerais dos fenômenos da desrealização. A primeira característica consiste em que todos eles servem ao objetivo de defesa; visam a manter algo distanciado do ego, visam a rechaçá-lo. Ora, novos elementos capazes de ensejar medidas defensivas acercam-se do ego oriundos de duas direções — do mundo externo real e do mundo interno dos pensamentos e impulsos que emergem no ego. É possível que essa opção coincida com a escolha entre desrealizações propriamente ditas e despersonalizações. Há um número extraordinariamente grande de métodos (ou, conforme dizemos, de mecanismos) utilizados por nosso ego na descarga de suas funções defensivas. Neste momento está sendo desenvolvida uma investigação, muito próxima de mim, dedicada ao estudo desses métodos de defesa: minha filha, analista de crianças, está escrevendo um livro a respeito deles. O mais primitivo e mais verdadeiro representante desses métodos, a ‘repressão’, foi o ponto de partida de toda a nossa compreensão mais profunda da psicopatologia. Entre a repressão e aquilo que se pode chamar de método normal de afastar o que é aflitivo ou insuportável, reconhecendo, considerando, ajuizando e passando a uma ação adequada a respeito dessa mesma coisa, existe toda uma série de métodos de comportamento, mais ou menos claramente patológicos, por parte do ego. Posso fazer uma pausa momentânea, a fim de lembrar-lhe um caso relacionado a esse tipo de defesa? O senhor recorda-se do famoso lamento dos mouros de Espanha ‘Ay de mi Alhama‘ [‘Minha pobre Alhama’], que refere como o rei Boabdil recebeu a notícia de que sua cidade Alhama tinha sido tomada. Ele sente que sua perda significa o fim de seu reinado. Contudo, não permitirá ‘que seja verdade’, determina que se trate a notícia como ‘non arrivée‘. Diz o poema:

 

‘Cartas le fueron venidas

que Alhama era ganada:

las cartas echó en el fuego,

y al mensajero matara.’

É fácil perceber que um outro motivo para essa conduta do rei era sua necessidade de combater um sentimento de impotência ante a situação. Queimando as cartas e mandando matar o mensageiro, ele ainda tentava mostrar seu poder absoluto.

A segunda característica geral das desrealizações — sua dependência do passado, do repertório de recordações e de experiências angustiantes da infância, que talvez tenham sucumbido à repressão — não é aceita sem controvérsia. Mas justamente minha própria experiência na Acrópole, que realmente culminou num distúrbio de memória e numa falsificação do passado, ajuda-nos a demonstrar essa conexão. Não é procedente o fato de que, em meus tempos de colegial, eu, alguma vez, duvidasse da existência real de Atenas. Apenas duvidava se algum dia chegaria a ver Atenas. Parecia-me além dos limites do possível, eu, algum dia, viajar tão longe — eu ‘percorrer um caminho tão longo’. Isto se ligava às limitações e à pobreza de nossas condições de vida em minha adolescência. Minha ânsia de viajar, sem dúvida, era também expressão de um desejo de escapar daquela pressão, como a força que impele tantos adolescentes a fugirem de casa. Há muito tempo, compreendera claramente que uma grande parte do prazer de viajar se baseia na realização desses antigos desejos — isto é, tem suas origens na insatisfação com a casa e com a família. Quando, pela primeira vez, uma pessoa enxerga o mar, cruza o oceano e sente como realidades as cidades e os países que por tanto tempo tinham sido distantes, inatingíveis coisas desejadas, então a pessoa se sente como um herói que realizou feitos de inimaginável grandeza. Naquele dia, na Acrópole, eu podia ter dito a meu irmão: ‘Ainda se lembra, quando éramos jovens, como costumávamos caminhar, dia após dia, pelas mesmas ruas, em nosso caminho para a escola, e como todos os domingos costumávamos ir ao Prater, ou a alguma excursão, que conhecíamos tão bem? E agora, aqui, estamos nós, em Atenas, na Acrópole! Realmente, realizamos muitas coisas!’ Se me for facultado comparar esse pequeno evento com um outro, maior, também Napoleão, durante sua coroação como imperador em Notre Dame,voltou-se para um de seus irmãos — deve ter sido, sem dúvida, o irmão mais velho, José — e observou: ‘O que Monsieur notre Père teria dito disto, se ele pudesse ter estado aqui, no dia de hoje?’

Nesse ponto, porém, deparamos com a solução do pequeno problema da causa pela qual, já em Trieste, interferíamos em nosso regozijo pela viagem a Atenas. Pode ser que um sentimento de culpa estivesse vinculado à satisfação de havermos realizado tanto: havia nessa conexão algo de errado, que desde os primeiros tempos tinha sido proibido. Era alguma coisa relacionada com as críticas da criança ao pai, com a desvalorização que tomou o lugar da supervalorização do início da infância. Parece como se a essência do êxito consistisse em ter realizado mais do que o pai realizou, e como se ainda fosse proibido ultrapassar o pai.

Como acréscimo a esse motivo, cuja validade é geral, estava presente um fator especial, em nosso caso particular. O próprio tema referente a Atenas e à Acrópole continha provas da superioridade do filho. Nosso pai se dedicara ao comércio, não tinha tido instrução secundária, e Atenas podia não ter significado muito para ele. Assim, o que interferia em nossa satisfação de viajar a Atenas era um sentimento de respeito filial. E agora o senhor não mais haverá de se admirar de que a lembrança desse incidente na Acrópole me tenha perturbado tantas vezes, depois que envelheci, agora que tenho de ter paciência e não posso mais viajar.

Com a estima de sempre,

SIGM. FREUD

Janeiro de 1936

 

BREVES ESCRITOS (1931-1936)

 

CARTA A GEORG FUCHS(1931)

 

Depois de ler sua carta, senti uma onda da mais profunda simpatia, mas logo duas reflexões me detiveram — uma dificuldade interna e um obstáculo externo. Uma frase do seu próprio prefácio oferece-me uma expressão adequada para a primeira: ‘Sem dúvida, porém, há pessoas que têm uma opinião tão desfavorável da humanidade civilizada de hoje, que negam a existência de uma consciência do mundo.’ Acredito que sou uma dessas pessoas. Por exemplo, eu não poderia subscrever a afirmativa de que o tratamento dispensado aos presos condenados é uma desgraça de nossa civilização. Pelo contrário, uma voz haveria de me dizer, isto está em perfeita harmonia com nossa civilização, expressão necessária da brutalidade e falta de compreensão que dominam a humanidade civilizada da época atual. E se, por algum milagre, as pessoas de repente se convencessem de que a reforma do sistema penal é a primeira e mais urgente tarefa de nossa civilização, o que mais haveria de surgir senão o fato de que essa sociedade capitalista não possui agora os meios de fazer frente aos gastos que tal reforma exigiria? A segunda reflexão se refere à dificuldade externa e é esclarecida naquelas passagens de sua carta nas quais o senhor me exalta como sendo eu um líder intelectual reconhecido e um inovador cultural, e me atribui o privilégio de gozar das boas graças do mundo civilizado. Meu caro senhor, muito gostaria de que isto fosse assim: em tal caso, eu não recusaria o seu pedido. Parece, contudo, que sou persona ingrata, se não ingratissima, para o povo alemão — e, além do mais, para as pessoas cultas, bem como para as incultas.Decididamente faço votos para que o senhor não pense que me sinto gravemente contristado por esses sinais de desaprovação. Já faz algumas dezenas de anos que tenho sido tão tolo; de resto, comparado com o seu exemplo, seria por demais ridículo. Menciono essas trivialidades apenas para confirmar o fato de que não sou o advogado apropriado para um livro que procura despertar as simpatias dos seus leitores em benefício de uma causa boa. Permita-me acrescentar que o seu livro é comovente, nobre, sábio e bom.

 

PREFÁCIO AO DICIONÁRIO DE PSICANÁLISE, DE RICHARD STERBA (1936 [1932])

 

3 de julho de 1932.

 

CARO DR. STERBA,

Seu Dicionário me dá a impressão de constituir valioso auxílio para os estudiosos e de ser em si mesmo uma realização brilhante. A precisão e a correção de cada verbete realmente são de uma qualidade elogiável. As traduções dos títulos para o inglês e o francês não são indispensáveis, mas se somariam ao valor que essa obra possui.2 Não desconheço ser longo o caminho desde a letra A até o fim do alfabeto, e que segui-lo significaria uma carga enorme de trabalho para o senhor. Por isso, não o faça, a não ser que sinta uma obrigação interna — obedecer apenas a uma compulsão dessa natureza, e certamente não a uma pressão externa.

Cordialmente,

FREUD

 

PREFÁCIO A A VIDA E AS OBRAS DE EDGAR ALLAN POE: UMA INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA, DE MARIE BONAPARTE (1933)

 

Neste livro, Marie Bonaparte, minha amiga e discípula, dirigiu a luz da psicanálise sobre a vida e a obra de um grande escritor de tipo patológico. Graças ao trabalho de interpretação realizado pela autora, podemos compreender agora em que medida as características da obra desse escritor foram determinadas pela natureza especial do mesmo. Contudo, também verificamos que isto foi conseqüência de poderosos laços afetivos e de experiências dolorosas do início de sua adolescência. Investigaçòes como esta não se destinam a explicar o caráter de um autor, porém mostram quais as forças motrizes que o moldaram e qual o material que lhe foi oferecido pelo destino. Existe um fascínio especial no estudo das leis da mente humana, tal como o exemplificam pessoas notáveis.

 

A THOMAS MANN, NO SEU SEXAGÉSIMO ANIVERSÁRIO (1935)

 

MEU CARO THOMAS MANN,

Aceite como amigo minhas cordiais felicitações por seu sexagésimo aniversário. Eu sou um dos seus ‘mais velhos’ leitores e admiradores e poderia desejar-lhe uma vida muito longa e feliz, conforme é costume em tais ocasiões. Mas não farei isso. Felicitar é barato, parece-me uma recaída nos velhos tempos em que as pessoas acreditavam na onipotência mágica dos pensamentos. Penso, ademais, baseado na minha experiência muito pessoal, que está tudo bem se um destino compassivo põe oportuno fim à duração de nossa vida.

Além disso, penso que não é digno de ser imitado o costume segundo o qual, em tais ocasiões festivas, a afeição menospreza o respeito, e pelo qual a pessoa homenageada é compelida a ver-se, como ser humano, cumulada de elogios, e, como artista, analisada e criticada. Não me farei culpado de semelhante excesso. Posso permitir-me, no entanto, algo diverso. Em nome de um número incontável de contemporâneos seus, posso expressar-lhe a nossa confiança em que o senhor jamais fará ou dirá — pois as palavras de um escritor são ações — alguma coisa covarde ou indigna. Mesmo em épocas e em circunstâncias que confundem o raciocínio, o senhor seguirá o caminho correto e o assinalará aos demais.

Muito cordialmente,

FREUD

Junho de 1935

                                                                                             

 

                      

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