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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FREUD - Volume XXIII (1937-1939)
FREUD - Volume XXIII (1937-1939)

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OBRAS COMPLETAS DO DR. SIGMUND FREUD

Volume XXIII  

 

Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos

 

MOISÉS E O MONOTEÍSMO TRÊS ENSAIOS (1939[1934-38])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

DER MANN MOSES UND DIE MONOTHEISTISCHE RELIGION:

DREI ABHANDLUNGEN

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1939   Amsterdan, Verlag Allert de Lange, 241 págs.

1950   G.W., 16, 101-246.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

Moses and Monotheism

1939   Londres, Hogarth Press e Instituto de Psicanálise, 223 págs. Nova Iorque, Knopf, viii + 218 págs. (Trad. de Katherine Jones.)

 

A presente tradução é da autoria de James Strachey.

 

Os dois primeiros dos três ensaios que constituem esta obra apareceram originalmente em 1937, em Imago, 23 (1), 5-13 e (4), 387-419; traduções inglesas de ambos apareceram na Int. J. Psycho-Anal., 19 (3) (1938), 291-8, e 20 (1) (1939), 1-32. A Seção C da Parte II do terceiro ensaio foi lida em nome do autor por Anna Freud no Congresso Psicanalítico Internacional de Paris, a 2 de agosto de 1938, e posteriormente publicada em separata no Int. Z. Psychoanal. Imago 24 (1/2) (1939), 6-9, sob o título de ‘Der Fortschritt in der Geistigkeit’ (‘O Avanço da Intelectualidade’). O primeiro ensaio e as três primeiras seções do segundo foram incluídos no Almanach 1938, 9-43. Apenas pouquíssimas modificações sem importância foram feitas nessas publicações primitivas, ao serem incluídas na obra completa. Elas são apontadas na presente edição.

Foi aparentemente durante o verão de 1934 que Freud completou seu primeiro rascunho deste livro, com o título: O Homem Moisés, um Romance Histórico (Jones, 1957, 206). Numa longa carta a Arnold Zweig, de 30 de setembro de 1934 (incluída em Freud, 1960a, Carta 276), forneceu uma descrição do livro, bem como de suas razões para não publicá-lo. Estas eram quase as mesmas que as que explica na primeira de suas notas preambulares ao terceiro ensaio adiante ver em ([1]), a saber: por um lado, dúvidas quanto a seu arrazoado ter sido suficientemente bem estabelecido, e, por outro, temores das reações à sua publicação por parte da hierarquia católico-romana que, na época, era dominante no governo austríaco. A partir da descrição que então forneceu da própria obra, parece que ela é essencialmente a mesma que agora possuímos; inclusive sua forma, em três seções independentes, permaneceu inalterada. Não obstante, mudanças devem ter sido feitas, pois Freud constantemente expressou sua insatisfação em relação a ela, particularmente com o terceiro ensaio. Parece que houve uma nova redação geral durante o verão de 1936, embora o que nos é contado sobre o assunto esteja longe de ser claro (Jones, 1957, 388). De todos os modos, o primeiro ensaio foi publicado no início do ano seguinte (1937), e o segundo, em seu final. Mas o terceiro ensaio foi ainda retido e só entregue finalmente à gráfica após a chegada de Freud à Inglaterra, na primavera de 1938. O livro foi impresso no outono desse ano na Holanda e a tradução inglesa publicada em março do ano seguinte.

O que talvez tenha probabilidade de impressionar em primeiro lugar o leitor, a respeito de Moisés e o Monoteísmo, é certa inortodoxia, ou mesmo excentricidade, em sua construção: três ensaios de tamanho bastante diferente, dois prefácios, ambos situados no início do terceiro ensaio, e um terceiro ensaio, e um terceiro prefácio localizado na metade deste último, recapitulações e repetições constantes. Essas irregularidades são desconhecidas nos outros trabalhos de Freud, ele próprio as aponta e por elas se desculpa mais de uma vez. Explicação? Indubitavelmente as circunstâncias da composição do livro: o longo período — quatro anos ou mais — durante o qual foi constantemente revisado, e as agudas dificuldades externas da fase final, com uma sucessão de distúrbios na Áustria que culminaram na ocupação nazista de Viena e a migração forçada de Freud para a Inglaterra. Que o resultado dessas influências deveria ser visto apenas no campo restrito e temporário deste volume isolado é coisa conclusivamente provada pelo trabalho que imediatamente o seguiu: o Esboço de Psicanálise, um dos mais concisos e bem organizados textos de Freud.

Mas julgar que a Moisés e o Monoteísmo falta algo na forma da apresentação não se destina a acarretar uma crítica do interesse de seu conteúdo ou da força convincente de seus argumentos. Sua base histórica é sem dúvida questão para o debate dos peritos, mas a engenhosidade com que os desenvolvimentos psicológicos se ajustam às premissas, tem probabilidade de persuadir o leitor que não se mostre predisposto. Particularmente aqueles familiarizados com a psicanálise do indivíduo ficarão fascinados em ver a mesma sucessão de desenvolvimentos apresentada na análise de um grupo nacional. A totalidade da obra, naturalmente, deve ser encarada como continuação dos primeiros estudos de Freud sobre as origens da organização social humana em Totem e Tabu (1912-13) e Psicologia de Grupo (1921c). Um exame bem elaborado e informativo do livro poderá ser encontrado no Capítulo XIII do terceiro volume da biografia escrita por Ernest Jones (1957), 388-401.

 

NOTA SOBRE A TRANSCRIÇÃO DOS NOMES PRÓPRIOS

 

A ocorrência, em Moisés e o Monoteísmo, de grande número de nomes egípcios e hebraicos apresenta ao tradutor alguns problemas especiais.

A escrita egípcia em geral não registra as vogais, de modo que a pronúncia real dos nomes egípcios só pode ser adivinhada através de um incerto processo de inferências. Diversas interpretações convencionais, portanto, foram adotadas por várias autoridades. Examinando essa questão, Gardiner (1927, Apêndice B), por exemplo, cita quatro versões diferentes do nome do dono de uma tumba bem conhecida em Tebas: Tehutihetep, Thuthotep, Thothotpou e Dhuthotpe. Outras tantas variantes podem ser encontradas a partir do nome do ‘rei herético’ que figura tão proeminentemente aqui, na argumentação de Freud. A escolha parece ser bastante governada pela nacionalidade. Assim, no passado, os egiptólogos ingleses inclinavam-se por Akhnaton, os alemães preferiam Echnaton, os americanos (Breasted) escolheram Ikhnaton e o grande francês (Maspero) decidiu-se por Khouniatonou. Defrontado por essas alternativas sedutoras, o presente tradutor recaiu na versão trivial que por muitos anos tem sido adotada pelo Journal of Egyptian Archaelogy e agora parece ser a que se está tornando mais geralmente aceita, pelo menos nos países de fala inglesa: Akhenaten. Esta mesma autoridade foi geralmente seguida na transcrição de todos os outros nomes egípcios.

Com referência aos nomes do Antigo Testamento, a resposta foi mais simples, e empregaram-se as formas encontradas na Versão Autorizada Inglesa. Deve-se acrescentar, contudo, que o nome imencionável da Divindade recebeu aqui a transcrição normalmente encontrada nas obras dos estudiosos ingleses: Yahweh(Javé ou Iavé).*

 

I - MOISÉS, UM EGÍPCIO

 

Privar um povo do homem de quem se orgulha como o maior de seus filhos não é algo a ser alegre ou descuidadamente empreendido, e muito menos por alguém que, ele próprio, é um deles. Mas não podemos permitir que uma reflexão como esta nos induza a pôr de lado a verdade, em favor do que se supõe serem interesses nacionais; além disso, pode-se esperar que o esclarecimento de um conjunto de fatos nos traga um ganho em conhecimento.

O varão Moisés, que libertou o povo judeu, que lhe deu suas leis e fundou sua religião, data de tempos tão remotos que não podemos fugir a uma indagação preliminar quanto a saber se foi ele personagem histórico ou criatura de lenda. Se viveu, foi no décimo terceiro — embora possa ter sido no décimo quarto — século antes de Cristo. Não possuímos informações sobre ele, exceto as oriundas dos livros sagrados dos judeus e de suas tradições, tal como registradas por escrito. Embora à decisão sobre o assunto falte certeza final, uma esmagadora maioria de historiadores pronunciou-se em favor da opinião de que Moisés foi uma pessoa real e que o Êxodo do Egito a ele associado realmente aconteceu. Argumenta-se que, se essa premissa não fosse aceita, a história posterior do povo de Israel seria incompreensível. Na verdade, a ciência hoje tornou-se em geral muito mais circunspecta, e trata as tradições de modo muito mais indulgente do que nos primeiros dias da crítica histórica.

A primeira coisa que atrai nossa atenção a respeito da figura de Moisés é seu nome, que em hebraico é ‘Mosheh’. ‘Qual é a sua origem’, podemos perguntar, ‘e o que significa?’ Como sabemos, a descrição contida no segundo capítulo do Êxodo já fornece uma resposta. É-nos dito aí que a princesa egípcia que salvou o menininho abandonado no Nilo deu-lhe esse nome, fornecendo-se um razão etimológica: ‘porque das águas o tenho tirado’. Essa explicação, contudo, é claramente inadequada. ‘A interpretação bíblica do nome como “o que foi tirado das águas”’, argumenta um autor no Jüdisches Lexikon, ‘constitui etimologia popular, com a qual, de início, é impossível harmonizar a forma ativa da palavra hebraica, pois “Mosheh” pode significar, no máximo, apenas “o que tira fora”. Podemos apoiar essa rejeição por dois outros argumentos: em primeiro lugar, é absurdo atribuir a uma princesa egípcia uma derivação do nome a partir do hebraico, e, em segundo, as águas de onde a criança foi tirada muito provavelmente não foram as do Nilo.

Por outro lado, há muito tempo foi expressa uma suspeita, em muitas direções diferentes, de que o nome ‘Moisés’ deriva-se do vocabulário egípcio. Em vez de enumerar todas as autoridades que argumentaram nesse sentido, citarei a pertinente passagem de um livro comparativamente recente, The Dawn of Conscience (1934), da autoria de J.H. Breasted, autor cuja History of Egypt (1906) é considerada obra padrão: ‘É importante notar que seu nome, Moisés, era egípcio. Ele é simplesmente a palavra egípcia “mose”, que significa “criança”, e constitui uma abreviação da forma mais completa de nomes tais como “Amon-mose’, significando “Amon-uma-criança”, ou “Ptah-mose’, significando “Ptah-uma-criança”, sendo essas próprias formas, semelhantemente, abreviações da forma completa “Amon-(deu)-uma-criança” ou “Ptah-(deu)-uma-criança’. A abreviação “criança” cedo tornou-se uma forma breve e conveniente para designar o complicado nome completo, e o nome Mós ou Més (Mose), “criança”, não é incomum nos monumentos egípcios. O pai de Moisés indubitavelmente prefixou ao nome do filho o de um deus egípcio como Amon ou Ptah, e esse nome divino perdeu-se gradatnivamente no uso corrente, até que o menino foi chamado “Mose”. (O s fial constitui um acréscimo tirado da tradução grega do Antigo Testamento. Ele não se acha no hebraico, que tem “Mosheh”)Repeti essa passagem palavra por palavra e de maneira alguma estou disposto a partilhar da responsabilidade por seus pormenores. Fico também bastante surpreso que Breasted tenha deixado de mencionar precisamente os nomes teóforos que figuram na relação dos reis egípcios, tais como Ahmose, Toth-mose e Ra-mose.

Ora, deveríamos esperar que uma das muitas pessoas que reconheceram ser ‘Moisés’ um nome egípcio, houvesse também tirado a conclusão, ou pelo menos considerado a possibilidade, de que a pessoa que portava esse nome egípcio fosse ela própria egípcia. Em relação aos tempos modernos, não hesitamos em tirar mais conclusões, embora atualmente as pessoas tenham não um nome, mas dois — um nome de família e um nome pessoal — e embora uma alteração de nome ou a adoção de um semelhante, em circunstâncias novas, não estejam além das possibilidades. Assim, de modo algum ficamos surpresos por vermos confirmado que o poeta Chamisso  era francês de nascimento, que Napoleão Bonaparte, por outro lado, era de origem italiana, e que Benjamim Disraeli era na verdade um judeu italiano, tal como esperaríamos de seu nome. Em relação a épocas antigas e primitivas, pensar-se-ia que uma conclusão como essa, quanto à nacionalidade de uma pessoa baseada em seu nome, pareceria muito mais fidedigna e, na verdade, inatacável. Não obstante, até onde sei, nenhum historiador tirou essa conclusão no caso de Moisés, nem mesmo aqueles que, mais uma vez como o próprio Brasted (1934, 354), estão prontos a supor que ‘Moisés foi instruído em toda a ciência dos egípcios’.

O que os impediu de proceder assim não pode ser ajuizado com certeza. Possivelmente, sua reverência pela tradição bíblica era invencível. Possivelmente, a idéia de que o homem Moisés pudesse ter sido outra coisa que não um hebreu pareceu monstruosa demais. Como quer que seja, surge que o reconhecimento de o nome de Moisés ser egípcio não foi considerado como fornecendo prova decisiva de sua origem, e que nenhuma outra conclusão foi disso tirada. Se a questão da nacionalidade desse grande homem é encarada como algo importante, pareceria desejável apresentar novos materiais que auxiliassem no sentido de sua resposta.

É a isso que meu breve artigo visa. Sua reivindicação a receber lugar nas páginas de Imago repousa no fato de que a substância do que ele tem a contribuir constitui uma aplicação da psicanálise. A demonstração a que dessa maneira se chegou sem dúvida impressionará apenas aquela minoria de leitores que se acha familiarizada com o pensamento analítico e está capacitada a apreciar suas descobertas. A essa minoria, contudo, espero eu, ela parecerá significativa.

Em 1909, Otto Rank, que, nessa época, ainda estava sob minha influência, publicou, seguindo sugestão minha, um livro com o título de Der Mythus von der Geburt des Helden. Ele trata do fato de que ‘quase todas as nações civilizadas proeminentes começaram, em fase precoce, a glorificar seus heróis, príncipes e reis legendários, fundadores de religiões, dinastias, impérios ou cidades, em suma, seus heróis nacionais, numa série de contos e lendas poéticas. A história do nascimento e da vida primitiva dessas personalidades veio a ser especialmente recoberta de características fantásticas, as quais, em povos diferentes, ainda que amplamente separados pelo espaço e totalmente independentes uns dos outros, apresentam uma semelhança desconcertante, e em parte, na verdade, uma conformidade literal. Não poucos investigadores se impressionaram com esse fato, de há muito reconhecido.’ [P. 1.] Se, acompanhando Rank, construirmos (por uma técnica um pouco semelhante à de Galton) uma ‘lenda média’ que coloque em realce as características essenciais de todas essas histórias, chegaremos ao quadro seguinte:

‘O herói é filho de pais muito aristocráticos; geralmente, filho de um rei.

‘Sua concepção é precedida por dificuldades, tal como a abstinência ou a esterilidade prolongada, ou seus pais têm de ter relações em segredo, por causa de proibições ou obstáculos externos. Durante a gravidez, ou mesmo antes, há uma profecia (sob a forma de sonho ou oráculo) que alerta contra seu nascimento, que geralmente ameaça perigo para o pai.

‘Como resultado disso, a criança recém-nascida é condenada à morte ou ao abandono, geralmente por ordem do pai ou de alguém que o representa; via de regra é abandonada às águas, num cesto.

‘Posteriormente ele é salvo por animais ou por gente humilde (tais como pastores) e amamentado por uma fêmea de animal ou por uma mulher humilde.‘Após ter crescido, redescobre seus pais aristocráticos depois de experiências altamente variadas, vinga-se do pai, por um lado, é reconhecido, por outro, e alcança grandeza e fama.’Ver em [[1]].A mais antiga das figuras históricas a quem esse mito de nascimento está ligado é Sargão de Agade, fundador de Babilônia (por volta de 2800 a.C.) Para nós, em particular, não deixará de ter interesse citar a descrição desse mito, atribuída a ele próprio:

‘Sargão, o poderoso Rei, o Rei de Agade, sou eu. Minha mãe era uma vestal, a meu pai não conheci, ao passo que o irmão de meu pai morava nas montanhas. Em minha cidade, Azupirani, que fica à margem do Eufrates, minha mãe, a vestal, concebeu-me. Em segredo ela me teve. Depositou-me num caixote feito de caniços, tampou a abertura com piche, e abandonou-me ao rio, que não me afogou. O rio me conduziu até Akki, o tirador de água. Akki, o tirador de água, na bondade de seu coração, tirou-me para fora. Akki,  o tirador de água, criou-me como seu próprio filho. Akki, o tirador de água, fez-me seu jardineiro. Enquanto eu trabalhava como jardineiro, [a deusa] Istar ficou gostando de mim; tornei-me Rei e, por quarenta e cinco anos, governei regiamente.’Ver em [[1]]

Os nomes que nos são mais familiares na série que começa com Sargão de Agade são Moisés, Ciro e Rômulo. Mas, além destes, Rank reuniu grande número de outras figuras heróicas da poesia ou da lenda, de quem se conta a mesma história a respeito de sua juventude, quer em sua totalidade quer em fragmentos facilmente reconhecíveis, incluindo Édipo, Karna, Páris, Telefos, Perseu, Héracles, Gilgamesh, Anfion e Zetos, e outros.

As pesquisas de Rank familiarizaram-nos com a fonte e o propósito desse mito. Só preciso referir-me a elas por algumas breves indicações. O herói é alguém que teve a coragem de rebelar-se contra o pai e, ao final, sobrepujou-o vitoriosamente. Nosso mito faz essa luta remontar até a pré-história do indivíduo, já que o representa como nascendo contra a vontade do pai e salvo apesar das más intenções paternas. O abandono num cesto é uma representação simbólica inequívoca do nascimento: cesto é o útero, e a água, o líquido amniótico. O relacionamento genitor-criança é representado, em incontáveis sonhos, por tirar para fora das águas ou delas salvar. Quando a imaginação de um povo liga o mito de nascimento que estamos examinando a uma figura fora do comum, está pretendendo, dessa maneira, reconhecê-la como herói e anunciar que ela correspondeu ao modelo regular de uma vida de herói. Na verdade, contudo, a fonte de toda ficção poética é aquilo que é conhecido como o ‘romance familiar’ de uma criança, no qual o filho reage a uma modificação em sua relação emocional com os genitores e, em especial, com o pai. Os primeiros anos de uma criança são dominados por uma enorme supervalorização do pai; em consonância com isso, rei e rainha nos sonhos e nos contos de fadas invariavelmente representam os genitores. Mais tarde, sob a influência da rivalidade e do desapontamento na vida real, a criança começa a desligar-se deles e a adotar uma atitude crítica para com o pai. Assim, ambas as famílias do mito — a aristocrática e a humilde — são reflexos da própria família da criança, tal como lhe apareceram em períodos sucessivos de sua vida.

Podemos dizer com justiça que essas explicações tornam plenamente inteligível a natureza difundida e uniforme dos mitos de nascimento de heróis. Por essa razão, é algo ainda mais merecedor de interesse que a lenda do nascimento e abandono de Moisés ocupe uma posição especial e que, na verdade, sob um aspecto essencial, contradiga o restante.

Comecemos com as duas famílias entre as quais, segundo a lenda, o destino da criança é lançado. Segundo a interpretação analítica, como sabemos, as famílias são uma só e a mesma, apenas cronologicamente diferenciadas. Na forma típica da lenda, a primeira família, aquela em que a criança nasceu, é a aristocrática, freqüentemente de categoria real; a segunda família, aquela em que a criança cresceu, é humilde ou passa por maus dias. Isso concorda, ademais, com as circunstâncias [do ‘romance familiar’] a que a interpretação faz a lenda remontar. Apenas na lenda de Édipo essa diferença se torna indistinta: a criança que foi exposta por uma família real é recebida por outro casal real. Sente-se que dificilmente pode ser acaso que exatamente nesse exemplo de identidade original das duas famílias possa ser vagamente percebida na própria lenda. O contraste social entre duas famílias proporciona ao mito — que, como sabemos, se destina a acentuar a natureza heróica de um grande homem — uma segunda função, que adquire significação especial quando ele é aplicado a personagens históricas, uma vez que o mito também pode ser utilizado para criar uma patente de nobreza para o herói, para elevar a sua posição social. Para os medos, Ciro foi um conquistador estrangeiro, mas, mediante uma lenda de abandono, tornou-se neto de seu rei. A mesma coisa se aplica a Rômulo. Se tal pessoa existiu, deve ter sido um aventureiro de origem desconhecida, um adventício; a lenda, contudo, fê-lo descendente e herdeiro da casa real de Alba Longa.

Com Moisés, as coisas foram inteiramente diferentes. Em seu caso, a primeira família; em outros casos, a aristocrática, foi suficientemente modesta. Ele era filho de levitas judeus. Contudo, o lugar da segunda família, em outros casos a humilde, foi tomado pela casa real do Egito; a princesa o criou como se fosse seu próprio filho. Esse afastamento do tipo intrigou a muitas pessoas. Eduard Meyer, e outros que o seguiram, presumiram que, originalmente, a lenda foi diferente. O faraó, segundo eles, fora advertido por um sonho profético de que um filho nascido de sua filha traria perigo para ele e para seu reino. Dessa maneira, fez com que a criança fosse abandonada no Nilo, depois do nascimento, mas ela foi salva por judeus e criada como filho deles. Por ‘motivos nacionalistas’ (como diz Rank), a lenda teria então recebido a forma modificada segundo a qual a conhecemos.

Basta a reflexão de um momento, porém, para dizer-nos que uma lenda original de Moisés como essa, uma lenda que não mais se desvie das outras, não pode ter existido, pois seria de origem egípcia ou judaica. A primeira alternativa está afastada: os egípcios não tinham motivo para glorificar Moisés, visto este não ser um herói para eles. Temos de supor, então, que a lenda foi criada entre os judeus, o que equivale a dizer que foi ligada, em sua forma familiar [isto é, na forma típica de uma lenda de nascimento], à figura de seu líder. Mas ela era totalmente inapropriada para esse fim, pois que utilidade poderia ter para um povo uma lenda que transformava seu grande homem em estrangeiro?

A lenda de Moisés, sob a forma em que hoje a possuímos, deixa de alcançar, de modo notável, sua intenção secreta. Se o nascimento de Moisés não era real, a lenda não poderia cunhá-lo como herói; se o deixava como uma criança judia, nada teria feito para elevar sua posição social. Apenas um pequeno fragmento de todo o mito permanece eficaz: a certeza de que a criança sobreviveu perante poderosas forças externas. (Essa característica reaparece na história da infância de Jesus, na qual o rei Herodes assume o papel do faraó.) Assim, na verdade, estamos livres para presumir que algum posterior e canhestro adaptador do material da lenda teve oportunidade para introduzir na história de seu herói, Moisés, algo que se assemelhava às clássicas lendas de abandono que assinalam um herói, mas que, devido às circunstâncias especiais do caso, não era aplicável a Moisés.

Nossas investigações poderiam ter sido obrigadas a contentar-se com esse inconclusivo e, ademais, incerto resultado, e poderiam nada ter feito no sentido de responder a questão de saber se Moisés era egípcio. Há, contudo, outra linha de abordagem, talvez mais esperançosa, para a avaliação da lenda de abandono.

Retornemos às duas famílias do mito. No nível da interpretação analítica, elas são, como sabemos, idênticas, ao passo que no nível do mito são diferenciadas em uma família aristocrática e em outra humilde. Onde, porém, a figura a quem o mito é ligado é histórica, existe um terceiro nível: o da realidade. Uma das famílias é a real, na qual a pessoa em apreço (o grande homem) nasceu e cresceu realmente; a outra é fictícia, fabricada pelo mito, na perseguição de suas próprias intenções. Via de regra, a família humilde é a real, e a aristocrática, a fabricada. A situação, no caso de Moisés, pareceu um tanto diferente. E aqui a nova linha de abordagem talvez conduza a um esclarecimento: em todos os casos em que foi possível verificá-la, a primeira família, aquela por quem a criança foi exposta, era a inventada, e a segunda, na qual ela foi recebida e cresceu, a real. Se tivermos a coragem de reconhecer essa asserção como universalmente verídica e como aplicável também à lenda de Moisés, então, imediatamente, veremos as coisas de modo claro: Moisés era um egípcio — provavelmente um aristocrata — sobre quem a lenda foi inventada para transformá-lo num judeu. E esta seria a nossa conclusão. O abandono às águas estava em seu lugar correto na história, mas, a fim de ajustar-se à nova intenção, seu objetivo teve de ser um tanto violentamente deformado. De maneira de sacrificar a criança, transformou-se em meio de salvá-la.

O desvio da lenda de Moisés em relação a todas as outras de sua espécie pode ser remontado a uma característica especial de sua história. Ao passo que normalmente um herói, no correr de sua vida, se eleva acima de seu começo humilde, a vida heróica do homem Moisés começou com ele descendo de sua posição elevada e baixando ao nível dos Filhos de Israel.

Começamos essa breve investigação na expectativa de dela derivar um novo argumento em apoio da suspeita de que Moisés era egípcio. Vimos que o primeiro argumento, baseado em seu nome, levou muitas pessoas a falharem em produzir convicção. Devemos estar preparados para descobrir que esse novo argumento, baseado numa análise da lenda do abandono, pode não ter melhor sucesso. Sem dúvida, objetar-se-á que as circunstâncias de construção e transformação das lendas são, afinal de contas, obscuras demais para justificar uma conclusão como a nossa, e que as tradições que rodeiam a figura heróica de Moisés — com toda sua confusão e contradições, e seus inequívocos sinais de séculos de revisões e superposições contínuas e tendenciosas — estão fadadas a baldar todo esforço de trazer à luz o núcleo de verdade histórica que jaz por trás delas. Não partilho dessa atitude discordante, mas tampouco me acho em posição de refutá-la.

Se certeza maior do que essa não podia ser alcançada, por que, poder-se-á perguntar, trouxe eu essa investigação a público? Lamento dizer que mesmo minha justificação para fazê-lo não pode ir além de sugestões, pois, se permitirmos ser levados pelos dois argumentos que apresentei aqui, e se nos dispusermos a tomar a sério a hipótese de que Moisés era um egípcio aristocrata, perspectivas muito interessantes e de grande alcance se abrirão. Com o auxílio de algumas suposições não muito remotas, poderemos, acredito, compreender os motivos que levaram Moisés ao passo fora do comum que deu, e, intimamente relacionado a isso, poderemos conseguir um domínio da possível base de uma série de características e peculiaridades das leis e da religião que ele forneceu ao povo judeu, e, ainda, seremos levados a importantes considerações relativas à origem das religiões monoteístas em geral. Tais conclusões ponderáveis não podem, contudo, fundar-se apenas em probabilidades psicológicas. Mesmo que aceitemos o fato de que Moisés era egípcio como primeira base histórica, precisaremos dispor pelo menos de um segundo fato firme, a fim de defender a riqueza de possibilidades emergentes contra a crítica de que elas não passam de um produto da imaginação e são afastadas demais da realidade. Provas objetivas do período ao qual a vida de Moisés e, com ela, o Êxodo do Egito devem ser referidos, teriam atendido, talvez, a esse requisito. Mas elas não foram obtidas; portanto, será melhor deixar sem menção quaisquer outras implicações da descoberta de que Moisés era egípcio.

 

II - SE MOISÉS FOSSE EGÍPCIO…

 

Numa contribuição anterior a esse periódico, tentei trazer à baila um novo argumento em apoio à hipótese de que o homem Moisés, o libertador e legislador do povo judaico, não era judeu, mas egípcio. Há muito tempo observou-se que seu nome derivava do vocabulário egípcio, embora o fato não tenha sido devidamente apreciado. O que acrescentei foi que a interpretação do mito do abandono vinculado a Moisés conduzia necessariamente à inferência de que ele fora um egípcio a quem as necessidades de um povo procuraram transformar em judeu. Observei, no final de meu artigo, que implicações importantes e de grande alcance decorriam da hipótese de Moisés ser egípcio, mas que não estava preparado para argüir publicamente em favor dessas implicações, já que elas se baseavam apenas em probabilidades psicológicas e lhes faltava qualquer prova objetiva. Quanto maior for a importância das opiniões a que se chega dessa maneira, mais fortemente se sente a necessidade de eximir-se de expô-las sem base segura contra os ataques críticos do mundo que nos cerca — como uma estátua de bronze com os pés de barro. Sequer a probabilidade mais tentadora constitui proteção contra o erro; mesmo que todas as partes de um problema pareçam ajustar-se como peças de um quebra-cabeça, há que refletir que aquilo que é provável não é necessariamente a verdade, e que a verdade nem sempre é provável. E, por fim, não parece atraente alguém encontrar-se classificado com os eruditos e talmudistas que se deliciam em exibir sua engenhosidade, sem considerar quão afastada da realidade sua tese pode estar.

Apesar dessas hesitações, que para mim pesam hoje tanto quanto antes, o resultado de meus motivos conflitantes é a decisão de produzir a presente seqüência à minha primeira comunicação. Mas, ainda uma vez, esta não é toda a história, nem tampouco a parte mais importante dela.

(1)

Se, então, Moisés foi egípcio, nosso primeiro proveito dessa hipótese é um novo enigma, um enigma difícil de decifrar. Se um povo ou uma tribo se dispõe a um grande empreendimento, é de esperar que um de seus membros assuma o lugar de líder ou seja escolhido para esse posto. Mas não é fácil imaginar o que poderia ter induzido um egípcio aristocrata — um príncipe, talvez, ou então um sacerdote ou alto funcionário — a colocar-se à testa de uma multidão de estrangeiros imigrantes, num nível atrasado de civilização, e abandonar seu país com eles. O bem conhecido desprezo que os egípcios sentiam pelos estrangeiros torna particularmente improvável tal procedimento. Na verdade, eu bem poderia acreditar que foi precisamente por isso que mesmo naqueles historiadores que reconheceram ser egípcio o nome do homem, e que lhe atribuíram toda a sabedoria dos egípcios, ver em [[1]], não se dispuseram a aceitar a possibilidade óbvia de que Moisés era egípcio.

Essa primeira dificuldade é seguida de imediato por outra. Não devemos esquecer que Moisés foi não apenas o líder político dos judeus estabelecidos no Egito, mas também seu legislador e educador, forçando-os a se porem a serviço de uma nova religião, que até o dia de hoje é conhecida, por sua causa, como a religião mosaica. Mas, é tão fácil a um homem isolado criar uma nova religião? E se alguém quisesse influenciar a religião de outra pessoa, mais naturalmente não a converteria ele à sua própria? Decerto, de uma forma ou de outra, não faltava ao povo judeu no Egito uma religião, e se Moisés, que lhes forneceu uma nova, era egípcio, não se pode colocar de lado a suposição de que essa outra nova religião era a egípcia.

Há algo que se coloca no caminho dessa possibilidade: o fato de haver o mais violento contraste entre a religião judaica atribuída a Moisés e a religião do Egito. A primeira é um monoteísmo rígido em grande escala: há apenas um só Deus, ele é o único Deus, onipotente, inaproximável; seu aspecto é mais do que os olhos humanos podem tolerar, nenhuma imagem dele deve ser feita, mesmo seu nome não pode ser pronunciado. Na religião egípcia, há uma quantidade quase inumerável de divindades de dignidade e origem variáveis: algumas personificações de grandes forças naturais como o Céu e a Terra, o Sol e a Lua, uma abstração ocasional como Ma’at (Verdade ou Justiça), ou uma caricatura como Bes, semelhante a um anão. A maioria delas, porém, são deuses locais, a datar do período em que o país estava dividido em numerosas províncias, deuses com a forma de animais, como se ainda não tivessem completado sua evolução a partir dos antigos animais totêmicos, sem distinções nítidas entre eles, mas diferindo nas funções que lhes eram atribuídas. Os hinos em honra desses deuses dizem quase as mesmas coisas sobre todos eles e os identificam decididamente uns com os outros, de maneira desesperadoramente confusa para nós. Os nomes dos deuses são combinados mutuamente, de modo que um deles pode ser quase reduzido a um epíteto do outro. Assim, no apogeu do ‘Novo Reinado’, o principal deus da cidade de Tebas foi chamado de Amen Re’, a primeira parte desse composto representa o deus de cabeça de carneiro da cidade, ao passo que Re’ é o nome do deus solar de cabeça de falcão de On [Heliópolis]. Atos, encantamentos e amuletos mágicos e cerimoniais dominavam o serviço desses deuses, assim como governavam a vida cotidiana dos egípcios.

Algumas dessas diferenças podem facilmente derivar-se do contraste fundamental existente entre um monoteísmo estrito e um politeísmo irrestrito. Outras são evidentemente resultado de uma diferença em nível espiritual e intelectual, já que uma dessas religiões estava muito próxima de fases primitivas [de desenvolvimento], ao passo que a outra se elevou a alturas de abstração sublime. Pode ser devido a esses dois fatores que, ocasionalmente, se tem a impressão de que o contraste entre as religiões mosaica e egípcia é deliberado e foi intencionalmente intensificado, tal como quando, por exemplo, uma delas condena a magia e a feitiçaria nos termos mais severos, enquanto na outra elas proliferam abundantemente, ou quando o insaciável apetite dos egípcios por corporificar seus deuses em argila, pedra e metal (a que nossos museus tanto devem hoje), se confronta com a dura proibição de fazer imagens de qualquer criatura viva ou imaginada.

Mas ainda existe outro contraste entre as duas religiões que não é atendido pelas explicações que tentamos. Nenhum outro povo da Antiguidade fez tanto [como os egípcios] para negar a morte, ou se deu a tais trabalhos para tornar possível a existência no próximo mundo. Por conseguinte, Osíris, o deus dos mortos, o soberano desse outro mundo, era o mais popular e indiscutido de todos os deuses do Egito. Por outro lado, a antiga religião judaica renunciou inteiramente à imortalidade; a possibilidade de a existência continuar após a morte em parte alguma jamais é mencionada. E isso ainda é mais notável por experiências posteriores terem demonstrado que a crença num após-vida é perfeitamente compatível com uma religião monoteísta.

Era nossa esperança que a possibilidade de Moisés ser egípcio se mostrasse frutífera e esclarecedora em diversas direções, mas a primeira conclusão que tiramos dessa hipótese — que a nova religião que ele deu aos judeus era a sua, egípcia — foi invalidada por nossa compreensão do caráter diferente e, em verdade, contraditório das duas religiões.

(2)

Outra possibilidade nos é aberta por um acontecimento marcante na história da religião egípcia, um acontecimento que só ultimamente foi reconhecido e apreciado. Continua sendo possível que a religião que Moisés deu a seu povo judeu era, mesmo assim, a sua própria, que era uma religião egípcia, embora não a religião egípcia.

Na gloriosa XVIII Dinastia, sob a qual o Egito se tornou uma potência mundial, um jovem faraó subiu ao trono, por volta de 1375 a.C. Inicialmente ele foi chamado, tal como seu pai, Amenófis (IV); mais tarde, porém, mudou seu nome, e não apenas seu nome. Esse rei dispôs-se a impor uma religião a seus súditos egípcios, uma religião que ia de encontro às suas tradições de milênios e a todos os hábitos familiares de suas vidas. Ela era um monoteísmo escrito, a primeira tentativa dessa espécie, até onde sabemos, na história do mundo, e, juntamente com a crença num deus único, nasceu inevitavelmente a intolerância, que anteriormente fora alheia ao mundo antigo e que por tão longo tempo permaneceu depois dele. O reino de Amenófis, contudo, durou apenas 17 anos. Logo após sua morte, em 1358 a.C., a nova religião foi varrida e proscrita a memória do rei herético. O pouco que sabemos dele deriva-se das ruínas da nova capital real que construiu e dedicou a seu deus, e das inscrições nas tumbas de pedra adjacentes a ela. Tudo o que pudemos aprender sobre essa personalidade marcante e, na verdade, única, será merecedor do mais elevado interesse.

Toda novidade deve ter suas preliminares e pré-condições em algo anterior. As origens do monoteísmo egípcio podem ser um pouco remontadas com alguma certeza. Durante um tempo considerável, entre os sacerdotes do templo do Sol em On (Heliópolis), tinham-se manifestado tendências no sentido de desenvolver a idéia de um deus universal e de dar ênfase ao lado ético de sua natureza. Ma’at, a deusa da Verdade, da Ordem e da Justiça, era filha do deus-Sol Re’. Durante o reinado de Amenófis III, pai e predecessor do reformador, a adoração do deus-Sol já tinha ganho novo ímpeto, provavelmente em oposição a Aman de Tebas, que se tornara poderoso demais. Um nome muito antigo do deus-Sol, Aten ou Atum, foi trazido a nova proeminência, e o jovem rei encontrou nessa religião de Aten um movimento já pronto, que não teve de ser o primeiro a inspirar, mas de que podia tornar-se um aderente.

Por esse tempo, as condições políticas do Egito haviam começado a exercer influência duradoura na religião egípcia. Como resultado das façanhas militares do grande conquistador, Tutmósis III, o Egito havia-se tornado uma potência mundial; o império incluía agora a Núbia, ao sul, a Palestina, a Síria e uma parte da Mesopotâmia, ao norte. Esse imperialismo refletiu-se na religião como universalismo e monoteísmo. Visto as responsabilidades do faraó abrangerem agora não apenas o Egito, mas ainda a Núbia e a Síria, também a divindade foi obrigada a abandonar sua limitação nacional e, tal como o faraó era o único e irrestrito soberano do mundo conhecido dos egípcios, isso também teve de aplicar-se à nova deidade destes. Além disso, com a ampliação das fronteiras do império, era natural que o Egito se tornasse mais acessível a influências estrangeiras; algumas das princesas reais eram princesas asiáticas, e é possível que incentivos diretos ao monoteísmo tenham inclusive aberto caminho desde a Síria.

Amenófis nunca negou sua adesão ao culto solar de On. Nos dois hinos a Aten que sobreviveram nas tumbas de pedra, e que foram provavelmente compostos por ele próprio, louva o Sol como criador e preservador de todas as coisas vivas, tanto dentro quanto fora do Egito, com um ardor que não se repete senão muitos séculos depois, nos Salmos em honra do deus judeu Javé. Ele, porém, não se contentou com essa espantosa previsão da descoberta científica do efeito da radiação solar. Não há dúvida de que ele foi um passo além, de que não adorou o Sol como um objeto material, mas como símbolo de um ser divino cuja energia manifestava em seus raios.

Entretanto, não estaríamos fazendo justiça ao rei se o encarássemos simplesmente como um aderente ou fomentador de uma religião de Aten já em existência antes de sua época. Sua atividade foi uma intervenção muito mais enérgica. Ele introduziu algo de novo, que, pela primeira vez, converteu a doutrina de um deus universal em monoteísmo: o fator da exclusividade. Em um de seus hinos, ele declara expressamente: ‘Ó tu, único Deus, ao lado de quem nenhum outro existe!’, E não devemos esquecer que, ao avaliar uma nova doutrina, não é suficiente o conhecimento de seu conteúdo positivo; seu lado negativo é quase igualmente importante, ou seja, o conhecimento daquilo que ela rejeita. Também seria um equívoco supor que a nova religião foi completada de um só golpe e surgiu em vida completamente armada, tal como Atena da cabeça de Zeus. Tudo sugere antes que, no correr do reinado de Amenófis, ela tenha crescido pouco a pouco no sentido de uma clareza, congruência, dureza e intolerância cada vez maiores. É provável que esse desenvolvimento se tenha realizado sob a influência da violenta oposição à reforma do rei, surgida entre os sacerdotes de Amun. No sexto ano do reinado de Amenófis, esse antagonismo havia atingido um ponto tal, que o rei mudou seu nome, do qual o nome proscrito do deus Amun fazia parte. Em vez de ‘Amenófis’, denominou-se então ‘Akhenaten’., Mas não foi apenas do próprio nome que ele expungiu o do detestado deus: apagou-o também de todas as inscrições, inclusive onde aparecia no nome de seu pai, Amenófis III. Pouco depois de alterar seu nome, Akhenaten abandonou a cidade de Tebas, dominada por Amun, e construiu para si uma nova capital real rio abaixo, à qual deu o nome de Akhenaten (o horizonte de Aten). Seu sítio em ruínas é hoje conhecido como Tell el-’Amarna.,

A perseguição por parte do rei incidiu mais duramente sobre Amun, mas não só sobre ele. Por todo o reino, foram fechados templos, proibido o serviço divino, confiscadas as propriedades dos templos. Na verdade, o zelo do rei chegou ao ponto de fazer examinar os monumentos antigos, a fim de que a palavra ‘deus’ fosse nele obliterada,quando ocorresse no plural., Não é de espantar que essas medidas tomadas por Akhenaten provocassem um estado de ânimo de vingança fanática entre a classe sacerdotal suprimida e o povo comum insatisfeito, estado que pôde encontrar expressão livre após a morte do rei. A religião de Aten não se tornara popular; provavelmente permanecera restrita a um círculo estreito em torno da pessoa do rei. O fim de Akhenaten permanece envolto em obscuridade. Sabemos de alguns vagos sucessores, de vida efêmera, de sua própria família. Já seu genro, Tut’ankhaten, foi obrigado a regressar a Tebas e a substituir, em seu nome, o nome do deus Aten pelo de Amun.* Seguiu-se um período de anarquia até que, em 1350 a.C., um general, Haremhab, obteve êxito em restaurar a ordem. A gloriosa XVIII Dinastia estava no fim e, simultaneamente, suas conquistas na Núbia e na Ásia foram perdidas. Durante esse sombrio interregno, as antigas religiões do Egito foram restabelecidas. A religião de Aten foi abolida. A cidade real de Akhenaten foi destruída e saqueada, e a memória dele proscrita como a de um criminoso.É com um intuito particular que enfatizaremos agora certos pontos entre as características negativas da religião de Aten. Em primeiro lugar, tudo relacionado com mitos, magia e feitiçaria é excluído dela., A seguir, a maneira pela qual se representava o deus-Sol não era mais, como no passado, através de uma pequena pirâmide e um falcão,, mas — e isso parece quase prosaico — por um disco redondo com raios a partir dele, raios que terminam em mãos humanas. A despeito de toda a exuberante arte do período Amarna, nenhuma outra representação do deus-Sol — nenhuma imagem pessoal de Aten — foi encontrada, e pode-se confiantemente dizer que nenhuma o será., Por fim, houve completo silêncio sobre o deus dos mortos, Osíris, e o reino dos mortos. Nem os hinos nem as inscrições tumulares tomam qualquer conhecimento do que talvez estivesse mais perto dos corações dos egípcios. O contraste com a religião popular não pode ser mais claramente demonstrado.

(3)

ostaria agora de arriscar esta conclusão: se Moisés era egípcio e se comunicou sua própria religião aos judeus, ela deve ter sido a de Akhenaten, a religião de Aten.

Já comparei a religião judaica com a religião popular do Egito e demonstrei a oposição existente entre elas. Devo agora fazer uma comparação entre as religiões judaica e de Aten, na expectativa de provar sua identidade original. Isso, estou ciente, não será fácil. Graças à vingatividade dos sacerdotes de Amun, talvez saibamos muito pouco a respeito da religião mosaica em sua forma final, tal como foi fixada pela classe sacerdotal judaica, cerca de oitocentos anos mais tarde, em épocas pós-exílicas. Se, apesar desse estado desfavorável do material, encontrarmos algumas indicações que favoreçam nossa hipótese, poderemos atribuir-lhes um alto valor.

Haveria um caminho mais certo para provar nossa tese de que a religião mosaica outra não era que a de Aten: a saber, se tivéssemos uma confissão de fé, uma declaração. Mas temo que nos seja dito que esse caminho está fechado para nós. A confissão judaica de fé, como é bem sabido, proclama: ‘Schema Jisroel Adonai Elohenu Adonai Echod’, Se não é simplesmente por acaso que o nome de Aten (ou Atum) egípcio soa como a palavra hebraica Adonai [Senhor] e o nome da divindade síria Adônis — devendo-se isso, porém, a um parentesco primevo de fala e significado — então a fórmula judaica pode ser assim traduzida: ‘Ouve, Israel, nosso deus Aten (Adonai) é o único deus.’ Infelizmente, sou totalmente incompetente para dar resposta a essa questão e pouco pude encontrar a respeito dela na leitura sobre o assunto.,Mas, com toda probabilidade, isso equivale a tornar as coisas fáceis demais para nós. De qualquer modo, teremos de retornar mais uma vez aos problemas referentes ao nome do deus.,

 a fazer remontar o que possuem em comum a essa característica Tanto as semelhanças quanto as diferenças entre as duas religiões são facilmente discerníveis, sem nos fornecerem muita luz. Ambas foram formas de monoteísmo escrito, e estaremos inclinados, a priori, fundamental. Sob certos aspectos, o monoteísmo judaico comportava-se ainda mais duramente do que o egípcio: ao proibir representações pictóricas de qualquer tipo, por exemplo. A diferença mais essencial (à parte os nome dos deuses) deve ser vista no fato de a religião judaica ser inteiramente desprovida de adoração solar, na qual a egípcia ainda encontrava apoio. Ao fazermos a comparação com a religião popular do Egito, tivemos a impressão de que, além do contraste fundamental, um fator de contradição intencional desempenhava papel na diferença entre as duas religiões. Essa impressão parecerá justificada se, agora, ao fazermos a comparação, substituirmos a religião judaica pela religião de Aten, que, como sabemos, foi desenvolvida por Akhenaten em hostilidade deliberada à popular. Com toda razão ficamos surpresos por descobrir que a religião judaica nada tinha que ver com o próximo mundo ou com a vida após a morte, embora uma doutrina desse tipo fosse compatível com o mais estrito monoteísmo. Contudo, a surpresa se desvanece quando tornamos da religião judaica para a de Aten e imaginamos que essa recusa foi extraída desta última, de uma vez que, para Akhenaten, ela constituía uma necessidade em sua luta contra a religião popular, na qual Osíris, o deus dos mortos, desempenhava um papel maior, talvez, do que qualquer outro deus do mundo superior. A concordância entre as religiões judaica e de Aten nesse importante ponto é o primeiro argumento forte em favor de nossa tese. Viremos a saber que não é o único.

Moisés não apenas forneceu aos judeus uma nova religião; pode-se afirmar com igual certeza que ele introduziu para eles o costume da circuncisão. Esse fato é de importância decisiva para nosso problema e sequer foi levado em consideração. É verdade que o relato bíblico o contradiz mais de uma vez. Por um lado, faz a circuncisão remontar à era patriarcal, como sinal de um pacto entre Deus e Abraão; por outro, descreve, em passagem particularmente obscura, como Deus ficou irado com Moisés por ter negligenciado um costume que se tornara sagrado,, e procurou matá-lo; a esposa dele, porém, uma madianita, salvou-o da ira de Deus realizando rapidamente a operação., Estas, contudo, são deformações que não nos devem desencaminhar; posteriormente, descobriremos a razão para elas. Permanece o fato de haver apenas uma só resposta para a questão de saber de onde os judeus derivaram o costume da circuncisão — a saber, do Egito. Heródoto, o ‘pai da História’, conta-nos que o costume da circuncisão por muito tempo fora indígena no Egito,, e suas afirmações são confirmadas pelas descobertas em múmias e, na verdade, por pinturas nas paredes dos túmulos. Nenhum outro povo do Mediterrâneo oriental, até onde sabemos, praticava esse costume, e pode-se com segurança supor que os semitas, os babilônios e os sumérios não eram circuncidados. A própria história da Bíblia diz que isso é típico dos habitantes de Canaã; constitui uma premissa necessária para a aventura da filha de Jacó e o príncipe de Siquém., A possibilidade de que os judeus tenham adquirido o costume da circuncisão durante sua estada no Egito por outra maneira, que não a vinculação com o ensinamento religioso de Moisés, pode ser rejeitada como completamente despida de fundamento. Ora, tomando como certo que a circuncisão era costume popular e universal no Egito, adotemos por um momento a hipótese de que Moisés era judeu, de que buscou libertar da servidão seus compatriotas no Egito e de que os conduziu a desenvolver uma existência nacional independente e autoconsciente em outro país — que foi realmente o que aconteceu. Que sentido poderia ter, nesse caso, o fato de que, ao mesmo tempo, ele lhes tenha imposto um costume incômodo, que inclusive, até certo ponto, os transformava em egípcios e devia manter permanentemente viva a lembrança deles em relação ao Egito, ao passo que os esforços de Moisés só podiam visar à direção oposta, isto é, a tornar alheio o povo à terra de sua servidão e a superar o anseio pelas ‘panelas de carne’ do Egito? Não, o fato do qual partimos e a hipótese que lhe acrescentamos são tão incompatíveis entre si, que podemos atrever-nos a chegar a esta conclusão: se Moisés deu aos judeus não apenas uma nova religião, como também o mandamento da circuncisão, ele não foi um judeu mas um egípcio, e, nesse caso, a religião mosaica foi provavelmente uma religião egípcia, que, em vista de seu contraste com a religião popular, era a religião de Aten, com a qual a religião judaica posterior concorda em alguns aspectos marcantes.Já indiquei que minha hipótese de que Moisés não era judeu, mas egípcio, criou um novo enigma. O desenvolvimento de sua conduta, que parecia facilmente inteligível num judeu, era incompreensível num egípcio. Se, contudo, colocarmos Moisés na época de Akhenaten e o supusermos em contato com esse faraó, o enigma se desfará, mostrando-se possíveis os motivos que responderão a todas as nossas perguntas. Comecemos pela suposição de que Moisés era um aristocrata, um homem proeminente, talvez, na verdade, um membro da casa real, tal como a lenda diz a seu respeito. Indubitavelmente, estava cônscio de suas grandes capacidades, era ambicioso e enérgico; pode ter inclusive acalentado a idéia de um dia vir a ser o líder de seu povo, de se tornar o governante do reino. Achando-se perto do faraó, era um aderente convicto da nova religião, cujos pensamentos básicos fizera seus. Quando o rei morreu e a reação se instalou, ele viu destruídas todas as suas esperanças e projetos; se não estivesse preparado para abjurar de todas as convicções que lhe eram tão caras, o Egito nada mais teria a lhe oferecer: ele perdera seu país. Nesse dilema, encontrou uma solução fora do comum. Akhenaten, o sonhador, afastara de si o povo e deixara seu império despedaçar-se. A natureza mais enérgica de Moisés sentia-se melhor com o plano de fundar um novo reino, de encontrar um novo povo, a quem apresentaria, para adoração, a religião que o Egito desdenhara. Era, como podemos ver, uma tentativa heróica de combater o destino, de compensar em dois sentidos as perdas em que a catástrofe de Akhenaten o envolvera. Talvez ele fosse, nessa época, governador da província da fronteira (Gósen), onde certas tribos semitas se tinham estabelecido talvez já no período dos hicsos. A elas escolheu para ser seu novo povo — uma decisão histórica., Chegou a um acordo com elas, pôs-se à sua testa e realizou o Êxodo ‘com mão forte’., Em total contraste com a tradição bíblica, podemos supor que o Êxodo realizou-sepacificamente e sem perseguição. A autoridade de Moisés tornou isso possível e, àquela época, não havia autoridade central que pudesse ter interferido.

De acordo com essa nossa construção, o Êxodo do Egito teria ocorrido durante o período que vai de 1358 a 1350 a.C., isto é, após a morte de Akhenaten e antes do restabelecimento, por Haremhab, da autoridade estatal., O objetivo da migração só poderia ter sido a terra de Canaã. Após o colapso da dominação egípcia, hordas de belicosos arameus irromperam naquela região, conquistando e saqueando, e demonstraram dessa maneira onde um povo capaz poderia conquistar novas terras para si. Tomamos conhecimento desses guerreiros pelas cartas encontradas, em 1887, na cidade em ruínas de Amarna. Nelas, eles são chamados de ‘habiru’, e o nome foi transferido (não sabemos como) para os invasores judeus posteriores — ‘hebreus’ —, aos quais as cartas de Amarna não podiam referir-se. Ao sul da Palestina também, em Canaã, viviam as tribos que eram os parentes mais próximos dos judeus que então abriam caminho para fora do Egito.

Os motivos que descobrimos para o êxodo como um todo aplicam-se também à introdução da circuncisão. Estamos familiarizados com a atitude adotada pelas pessoas (tanto em nações, como individualmente) para com esse costume primevo, o qual mal é compreendido ainda. Aqueles que não praticam a circuncisão, encaram-na como muito estranha e ficam um pouco horrorizados com ela, mas os que a adotaram, orgulham-se dela. Sentem-se exalçados por ela, enobrecidos, por assim dizer, e olham com desprezo para os outros, a quem consideram sujos. Ainda hoje, inclusive, um turco injuriará um cristão chamando-o de ‘cão incircunciso’. Pode-se supor que Moisés, o qual, sendo egípcio, era ele próprio circuncidado, partilhava dessa atitude. Os judeus com quem partiu de seu país deveriam servir-lhe como um substitutivo superior aos egípcios que deixara atrás de si. De modo algum os judeus deveriam ser inferiores a eles. Quis transformá-los num ‘povo santo’, tal como está expressamente enunciado no texto bíblico,, e, como sinal de sua consagração, introduziu também entre eles o costume que os tornava, pelo menos, iguais aos egípcios. E ele só podia acolher bem o fato de que eles fossem isolados por tal sinal e mantidos separados dos povos estrangeiros entre os quais suas peregrinações os levassem, tal como os próprios egípcios se tinham mantido separados de todos os estrangeiros.,

Posteriormente, contudo, a tradição judaica comportou-se como se tivesse sido posta em desvantagem pela inferência que estivemos tirando. Caso se admita que a circuncisão foi um costume egípcio introduzido por Moisés, isso será quase a mesma coisa que reconhecer que a religião que lhes foi dada por ele, era também uma religião egípcia. Houve bons motivos para negar esse fato, de maneira que a verdade sobre a circuncisão também teve de ser contraditadada.

 

(4)

Nesse ponto, espero defrontar-me com uma objeção a minha hipótese. Essa hipótese situou Moisés, um egípcio, no período de Akhenaten. Fez sua decisão de assumir o povo judeu derivar das circunstâncias políticas do país naquela ocasião, e identificou a religião que ele apresentou ou impôs a seus protegés como a religião de Aten, que, na realidade, tinha desmoronado no próprio Egito. Espero que me seja dito que apresentei essa estrutura de conjecturas com excessiva positividade, para a qual não existe base alguma no material. Acho que essa objeção não se justifica. Já dei ênfase ao fator de dúvida em minhas observações introdutórias; por assim dizer, coloquei esse fator fora dos colchetes e pode-se permitir que eu me poupe o trabalho de repeti-lo em vinculação a cada item dentro deles.

Posso continuar o exame com algumas considerações críticas elaboradas por mim mesmo. O cerne de minha hipótese — a dependência do monoteísmo judaico do episódio monoteísta na história egípcia — já fora suspeitado e mencionado por diversos autores. Poupo-me o trabalho de citar essas opiniões aqui, pois nenhuma delas foi capaz de indicar como essa influência pode ter entrado em operação. Ainda que, em nossa opinião, a influência permaneça vinculada à figura de Moisés, devemos também mencionar algumas outras possibilidades, em acréscimo àquela que preferimos. Não se deve supor que a queda da religião oficial de Aten tenha imposto uma interrupção completa à corrente monoteísta no Egito. A classe sacerdotal de On, a partir da qual ela se iniciou, sobreviveu à catástrofe e pode ter continuado a influenciar, pela tendência de suas idéias, gerações posteriores a Akhenaten. Assim, a ação empreendida por Moisés é ainda concebível, mesmo que não tenha vivido na época de Akhenaten e não tenha caído sob sua influência pessoal, quer fosse ele apenas um adepto, quer, talvez, um membro da classe sacerdotal de On. Essa possibilidade adiaria a data do Êxodo e a colocaria mais próxima da data geralmente adotada (no século XII), mas nada tem a recomendá-la. Nossa compreensão interna (insight) dos motivos de Moisés se perderia e a facilitação do Êxodo pela anarquia dominante no país não mais se aplicaria. Os sucessivos reis da XIX Dinastia estabeleceram um regime forte. Só no período imediatamente posterior à morte do rei herético, houve uma convergência de todas as condições, tanto externas quanto internas, favoráveis ao Êxodo.Os judeus possuem, independentemente da Bíblia, uma copiosa literatura onde podem ser encontradas as lendas e mitos que se desenvolveram, no decurso dos séculos, em torno da imponente figura de seu primeiro líder e fundador de sua religião, lendas e mitos que tanto a iluminaram quanto a obscureceram. Disseminados nesse material, talvez existam fragmentos de tradição fidedigna para os quais não se encontrou lugar no Pentateuco. Uma lenda desse tipo fornece uma descrição atraente de como a ambição do homem Moisés encontrou expressão mesmo em sua infância. Certa vez, quando o faraó o tomara nos braços e, de brincadeira, suspendera-o no ar, o menino de três anos apossou-se da coroa que estava na cabeça do rei e a colocou sobre a sua. Esse augúrio alarmou o rei, que não deixou de consultar seus conselheiros sobre ele. Existem, em outras partes, histórias de suas ações militares vitoriosas como general egípcio na Etiópia, e, em vinculação a isso, de como fugiu do Egito porque tinha motivos para temer a inveja de um partido na Corte ou do próprio faraó. O próprio relato bíblico atribui a Moisés certas características, às quais pode-se muito bem dar crédito. Descreve-o como sendo de natureza irascível, a encolerizar-se facilmente, tal como quando, indignado, matou o brutal feitor que estava maltratando um trabalhador judeu, ou quando, em sua ira pela apostasia do povo, quebrou as tábuas da Lei que trouxera do Monte de Deus [Sinai]; na verdade, o próprio Deus o puniu ao final por um ato impaciente, mas não nos é dito qual foi esse ato. Como um traço dessa espécie não constitui algo que sirva para sua glorificação, talvez possa corresponder a uma verdade histórica. Tampouco se pode excluir a possibilidade de que alguns dos traços caracterológicos que os judeus incluíram em sua primitiva representação de seu Deus — descrevendo-o como ciumento, severo e cruel —, possam ter sido, no fundo, derivados de uma rememoração de Moisés, pois, de fato, não fora um Deus invisível, mas sim o varão Moisés que os tirara do Egito.

Outro traço atribuído a Moisés possui direito especial a nosso interesse. É dito que Moisés era ‘pesado de boca’; ele deve ter sofrido de uma inibição ou distúrbio da fala. Por conseguinte, em suas supostas negociações com o faraó,precisou do apoio de Aarão, que é chamado de seu irmão., Essa, mais uma vez, pode ser uma verdade histórica, e constituiria uma contribuição bem-vinda à apresentação de um retrato vívido do grande homem. Contudo, também pode ter outra significação, mais importante. Pode recordar, de modo ligeiramente deformado, o fato de que Moisés falava outra língua e não podia comunicar-se com seus neo-egípcios semíticos sem intérprete, pelo menos no início de suas relações — uma nova confirmação, portanto, da tese de que Moisés era egípcio.

Agora, porém, ou assim parece, nosso trabalho chegou a um final provisório. No momento, não podemos tirar outras conclusões de nossa hipótese de que Moisés era egípcio, tenha ela sido provada ou não. Nenhum historiador pode encarar a descrição bíblica de Moisés e do Êxodo como algo mais do que um piedoso fragmento de ficção imaginativa, que moldou uma tradição remota em benefício de seus próprios intuitos tendenciosos. A forma original dessa tradição nos é desconhecida; deveríamos contentar-nos em descobrir quais foram os intuitos deformantes, mas nossa ignorância dos acontecimentos históricos nos mantém no escuro. O fato de nossa reconstrução não deixar lugar para uma série de ostentações da história da Bíblia, tais como as dez pragas, a passagem do Mar Vermelho e a solene entrega das leis no Monte Sinai, não nos desconcerta. No entanto, não poderemos tratar o assunto como sendo indiferente se nos encontrarmos em contradição com as descobertas das sóbrias pesquisas históricas dos dias atuais.

Esses historiadores modernos, dos quais podemos tomar Eduard Meyer (1906) como representante, concordam com a história bíblica num ponto decisivo. Também eles acham que as tribos judaicas, que mais tarde se desenvolveram no povo de Israel, adquiriram uma nova religião num determinado ponto do tempo. Contudo, segundo eles isso não se realizou no Egito ou ao sopé de um montanha na Península de Sinai, mas numa certa localidade conhecida como Meribá-Cades, um oásis distinguido por sua riqueza em fontes e poços, na extensão de terra ao sul da Palestina, entre a saída oriental da Península de Sinai e a fronteira ocidental da Arábia. Aí eles assumiram a adoração de um deus Iavé ou Javé, provavelmente da tribo árabe vizinha dos madianitas. Parece provável que outras tribos da vizinhança também fossem seguidoras desse deus.

Javé era, indiscutivelmente, um deus vulcânico. Ora, como é bem sabido, o Egito não possui vulcões e as montanhas da Península de Sinai nunca foram vulcânicas; por outro lado, existem vulcões que podem ter sido ativos, até tempos recentes, ao longo da fronteira ocidental da Arábia. Assim, uma dessas montanhas deve ter sido Sinai-Horeb, considerado a morada de Javé. Apesar de todas as revisões a que a história bíblica foi submetida, o retrato original do caráter do deus pode ser reconstruído, segundo Eduard Meyer: era um demônio sinistro e sedento de sangue, que vagueava pela noite e evitava a luz do dia.

O mediador entre Deus e o povo, na fundação dessa religião, chamava-se Moisés. Era o genro do sacerdote madianita Jetro e cuidava de seus rebanhos quando recebeu a convocação de Deus. Foi também visitado por Jetro em Cades e recebeu alguns conselhos dele.4

Embora Eduard Meyer diga, é verdade, que nunca duvidou de que havia certo âmago histórico na versão da estada no Egito e da catástrofe para os egípcios, evidentemente não sabe como localizar e que uso fazer desse fato que ele reconhece. A única coisa que se mostra pronto a fazer derivar do Egito é o costume da circuncisão. Acrescenta duas importantes indicações, que confirmam nossos argumentos anteriores: primeiro, que Josué ordenou que o povo fosse circuncidado, a fim de ‘revolver de sobre vós o opróbrio [a desobediência] do Egito’, e, segundo, uma citação de Heródoto que diz que ‘os próprios fenícios (sem dúvida os judeus) e os sírios da Palestina admitem que aprenderam com os egípcios esse costume.Mas ele pouco tem a dizer em favor de um Moisés egípcio: ‘O Moisés que conhecemos é o ancestral dos sacerdotes de Cades, isto é, uma figura oriunda de uma lenda genealógica, colocada em relação a um culto, não uma personalidade histórica. Assim (à parte aqueles que aceitam as raízes e ramificações da tradição como verdade histórica), ninguém que o tenha tratado,como figura histórica foi capaz de dar-lhe qualquer conteúdo, representá-lo como indivíduo concreto ou apontar o que pode ter feito e qual pode ter sido seu trabalho histórico.

Por outro lado, Meyer não se cansa de insistir na relação de Moisés com Cades e Madiã: ‘A figura de Moisés, que está intimamente ligada a Madiã e aos centros de culto no deserto…e ‘Essa figura de Moisés, portanto, está inseparavelmente vinculada a Cades (Massá e Meribá), e isso é suplementado por ser ele genro do sacerdote madianita. Seu vínculo com o Êxodo, pelo contrário, e toda a história de sua juventude são inteiramente secundários e simplesmente a conseqüência da interpolação de Moisés numa história legendária encadeada e contínua.Meyer também aponta que todos os temas incluídos na história da juventude de Moisés foram, sem exceção, abandonados mais tarde: ‘Moisés em Madiã não é mais um egípcio e neto do faraó, mas um pastor a quem Javé se revelou. No relato das pragas, não se fala mais em suas vinculações anteriores, embora um uso eficaz pudesse facilmente ter sido feito delas, e a ordem de matar os filhos [recém-nascidos] dos israelitas, fosse completamente esquecida. No Êxodo e na destruição dos egípcios, Moisés não desempenha papel algum; sequer é mencionado. O caráter heróico que a lenda de sua infância pressupõe está totalmente ausente do Moisés posterior; ele é apenas o homem de Deus, um taumaturgo equipado por Javé com poderes sobrenaturais.

Não podemos discutir a impressão de que esse Moisés de Cades e Madiã, a quem a tradição podia realmente atribuir o erguimento de uma serpente de metal como um deus da cura,é alguém inteiramente diferente do aristocrático egípcio por nós inferido, que apresentou ao povo uma religião em que toda a magia e todos os encantamentos eram proscritos nos termos mais estritos. Nosso Moisés egípcio não é menos diferente, talvez, do Moisés madianita do que o deus universal Aten o é do demônio Javé em sua morada no Monte de Deus. E se tivermos alguma fé nos pronunciamentos dos historiadores recentes, teremos de admitir que o fio que tentamos tecer a partir de nossa hipótese de que Moisés era egípcio rompeu-se pela segunda vez. E dessa vez, parece, sem esperança de remendo.

 

(5)

Inesperadamente, uma vez mais um caminho de fuga apresenta-se aqui. Os esforços para ver em Moisés uma figura que vai além do sacerdote de Cades, e confirmar a grandeza com que a tradição o glorifica, não cessaram desde Eduard Meyer. (Cf. Gressmann [1913] e outros.) Em 1922, Ernest Sellin fez uma descoberta que influenciou decisivamente nosso problema. Descobriu no profeta Oséias (segunda metade do século VIII a.C.) sinais inequívocos de uma tradição segundo a qual Moisés, o fundador da religião dos judeus, encontrou um final violento num levante de seu povo refratário e obstinado, ao mesmo tempo que a religião por ele introduzida era repudiada. Essa tradição, contudo, não se restringe a Oséias; reaparece na maioria dos profetas posteriores, e, na verdade, segundo Sellin, tornou-se a base de todas as expectativas messiânicas mais tardias. Ao fim do cativeiro babilônico, surgiu entre o povo judeu a esperança de que o homem que fora tão vergonhosamente assassinado retornasse dentre os mortos e conduzisse seu povo cheio de remorso, e talvez não apenas esse povo, para o reino da felicidade duradoura. A vinculação óbvia disso com o destino do fundador de uma religião mais tardia não nos interessa aqui.

Mais uma vez, naturalmente, não me acho em posição de julgar se Sellin interpretou corretamente as passagens tiradas dos profetas. Se estiver certo, porém, poderemos atribuir credibilidade histórica à tradição que ele identificou, pois tais coisas não são facilmente inventadas. Não existe motivo tangível para fazê-lo, mas, se tais coisas realmente aconteceram, é fácil compreender que as pessoas estavam ansiosas por esquecê-las. Não precisamos aceitar todos os pormenores da tradição. Na opinião de Sellin, Shittim, na região a leste do Jordão, deve ser encarada como a cena do ataque a Moisés. Contudo, logo veremos que essa região não é aceitável para nossas idéias.

Tomaremos de empréstimo a Sellin sua hipótese de que o egípcio Moisés foi assassinado pelos judeus e de que a religião que ele introduziu foi abandonada. Isso nos permite tecer para mais além nossos fios, sem contradizer as descobertas autênticas da pesquisa histórica. À parte isso, porém, nos aventuraremos a manter independência em relação às autoridades e a ‘seguir nosso próprio caminho’. O Êxodo do Egito permanece nosso ponto de partida. Um número considerável de pessoas deve ter abandonado o país com Moisés; um pequeno grupo não teria parecido valer a pena a esse homem ambicioso, com seus grandes objetivos em visita. Os imigrantes provavelmente viveram no Egito por tempo suficientemente longo para se terem desenvolvido numa população bastante grande. Mas decerto não estaremos errados se presumirmos, com a maioria das autoridades, que apenas uma fração daquilo que posteriormente viria a ser o povo judeu experimentou os acontecimentos do Egito. Em outras palavras, a tribo que retornou do Egito juntou-se, posteriormente, na faixa de terra entre o Egito e Canaã, com outras tribos aparentadas, que aí se tinham estabelecido havia muito tempo. Essa união, da qual surgiu o povo de Israel, encontrou expressão na adoção de uma nova religião, comum a todas as tribos, a religião de Javé — acontecimento que, segundo Eduard Meyer [1906, p. 60 e segs.], se realizou sob a influência madianita em Cades. Mais tarde, o povo sentiu-se suficientemente forte para empreender a invasão da terra de Canaã. Não se harmonizaria com o curso dos eventos supor que a catástrofe ocorrida com Moisés e sua religião aconteceu no país a leste do Jordão; deve ter acontecido muito antes da união das tribos.

Não pode haver dúvida de que elementos muito diferentes se uniram na construção do povo judeu, mas o que deve ter causado a maior diferença entre essas tribos foi o fato de elas terem experimentado ou não a estada no Egito e aquilo que se seguiu a essa estada. Considerando esse ponto, podemos dizer que a nação surgiu da união de suas partes componentes, e a isso se ajusta o fato de, após breve período de unidade política, ela se ter cindido em dois fragmentos — o reino de Israel e o reino de Judá. A história gosta de reintegrações como essa, onde uma fusão posterior é desfeita e uma separação anterior reemerge. O exemplo mais impressivo disso foi fornecido, como é bem sabido, pela Reforma, a qual, após um intervalo superior a mil anos, trouxe mais uma vez à luz a fronteira existente entre a Alemanha que fora outrora romana e a Alemanha que permanecera independente. No caso do povo judeu, não é possível indicar uma reprodução tão fiel do antigo estado de coisas; nosso conhecimento daqueles tempos é incerto demais para nos permitir afirmar que as tribos estabelecidas se reuniram mais uma vez no Reino do Norte, e que as retornadas do Egito se reuniram no Reino do Sul; contudo, também aqui a divisão posterior não pode ter ficado sem relação com a reunião anterior. O número dos ex-egípcios era provavelmente menor do que o dos outros, embora eles se tenham mostrado culturalmente mais fortes. Exerceram uma influência mais poderosa sobre a evolução posterior do povo, porque trouxeram consigo uma tradição que faltava aos outros.

Talvez tenham trazido consigo algo mais tangível do que uma tradição. Um dos maiores enigmas da pré-história judaica é o da origem dos levitas. Eles são remontados a uma das doze tribos de Israel — a de Levi —, mas nenhuma tradição aventurou-se a dizer onde essa tribo estava originalmente localizada, ou qual a parte da terra conquistada de Canaã que lhe foi atribuída Os levitas preenchiam os ofícios sacerdotais mais importantes, mas eram distintos dos sacerdotes. Um levita não é necessariamente um sacerdote; tampouco é o nome de uma casta. Nossa hipótese sobre a figura de Moisés sugere uma explicação. É inacreditável que um grande senhor, como Moisés, o egípcio, se tivesse reunido desacompanhado a esse povo estranho. Sem dúvida, deve ter trazido com ele um séquito — seus seguidores mais chegados, escribas, criados domésticos. Estes é que foram originalmente os levitas. A tradição que alega que Moisés foi um levita parece ser uma deformação clara do seguinte fato: levitas eram os seguidores de Moisés. Essa solução é apoiada pelo fato que já mencionei em meu ensaio anterior: é apenas entre os levitas que os nomes egípcios ocorrem mais tarde., Presume-se que um bom número desses seguidores de Moisés tenha escapado à catástrofe que desabou sobre ele e a religião que fundara. Eles se multiplicaram no decorrer das gerações seguintes, fundiram-se com o povo entre o qual viviam, mas permaneceram fiéis a seu senhor, preservaram a memória dele e continuaram a tradição de suas doutrinas. Por ocasião da união com os discípulos de Javé, formavam uma minoria influente, culturalmente superior ao resto.

Apresento como hipótese provisória que, entre a queda de Moisés e o estabelecimento da nova religião em Cades, duas gerações, ou talvez mesmo um século, se passaram. Não vejo meio de decidir se os neo-egípcios (como gostaria de chamá-los aqui), isto é, aqueles que retornaram do Egito, encontraram seus parentes tribais após estes já terem adotado a religião de Javé, ou antes. A segunda possibilidade poderia parecer a mais provável, mas, no resultado, não haveria diferença. O que aconteceu em Cades foi uma conciliação, em que a parte assumida pelas tribos de Moisés é inequívoca.

Aqui, mais uma vez podemos invocar as provas fornecidas pela circuncisão, a qual repetidamente nos foi de auxílio, tal como, por assim dizer, um fóssil-chave fundamental. Esse costume tornou-se obrigatório também na religião de Javé e, uma vez que estava indissoluvelmente vinculado ao Egito, sua adoção só pode ter sido uma concessão aos seguidores de Moisés, ou aos levitas entre estes, que não renunciariam a esse sinal de sua santidade, ver em[[1]]. Pelo menos isso de sua antiga religião eles desejavam salvar e, em troca, estavam prontos a aceitar a nova divindade e o que os sacerdotes de Madiã lhes contaram a respeito dela. Talvez tenham conseguido ainda outras concessões. Já mencionamos que o ritual judaico prescrevia certas restrições ao emprego do nome de Deus. Em vez de ‘Javé’, a palavra ‘Adonai [Senhor]’ deve ser pronunciada. É tentador trazer essa prescrição para nosso contexto, mas é apenas uma conjectura sem qualquer outra base. A proibição incidente sobre o nome de um deus é, como bem se sabe, um tabu das eras primevas. Não compreendemos por que ele foi revivido precisamente na Lei Judaica, e não é impossível que isso tenha acontecido sob a influência de um novo motivo. Não há necessidade de supor que a proibição era levada a cabo sistematicamente na construção de nomes pessoais teóforos — ou seja, em compostos —, o nome do Deus Iavé ou Javé podia ser livremente empregado (Jochanan, Jaú, Josué, por exemplo.) Havia, contudo, circunstâncias especiais vinculadas a esse nome. Como sabemos, a pesquisa bíblica crítica supõe que o Hexateuco teve duas fontes documentárias., Elas são distinguidas como J e E, porque uma delas utiliza ‘Javé’ como nome de Deus e a outra, ‘Eloim’; ‘Eloim’, é verdade, não ‘Adonai’. Mas podemos manter em mente a observação feita por uma de nossas autoridades: ‘Os nomes diferentes constituem clara indicação de dois deuses originalmente diferentes’.

Trouxemos à baila a retenção da circuncisão como prova do fato de que fundação da religião em Cades envolvia uma conciliação. Podemos perceber sua natureza a partir dos relatos concordantes fornecidos por J e E, que assim retornam, nesse ponto, a uma fonte comum (uma tradição documentária ou oral). Seu intuito principal era demonstrar a grandeza e o poder do novo deus Javé. Como os seguidores de Moisés davam tanto valor à sua experiência do Êxodo do Egito, esse ato de libertação tinha de ser representado como devido a Javé, e forneceram-se ao evento aperfeiçoamentos que davam prova da terrificante grandeza do deus vulcânico, tais como a coluna de fumaça [nuvem] que se transformava à noite numa coluna de fogo e a tempestade que pôs a nu o leito do mar por algum tempo, de maneira que os perseguidores foram afogados pelas águas que retornavam., Esse relato aproximou o Êxodo e a fundação da religião e renegou o longo intervalo ocorrido entre um e outro. Assim, também, a entrega da lei foi representada como a ocorrer não em Cades, mas ao sopé do Monte de Deus, assinalada por uma erupção vulcânica. O relato, contudo, fez grave injustiça à memória do homem Moisés; fora ele e não o deus vulcânico que libertara do Egito o povo. Desse modo, era-lhe devida uma compensação, e esta consistiu em o homem Moisés ser transferido para Cades ou para Sinai-Horeb e colocado no lugar dos sacerdotes madianitas. Descobriremos mais tarde que essa solução satisfez outro intuito imperativamente premente. Dessa maneira, chegou-se, por assim dizer, a um acordo mútuo: permitiu-se a Javé, que vivia numa montanha em Madiã, estender-se até o Egito, e, em troca disso, a existência e a atividade de Moisés foram estendidas até Cades e o país a leste do Jordão. Assim, ele foi fundido com a figura do fundador religioso posterior, o genro do madianita Jetro [[1]],e emprestou-lhe seu nome, Moisés. Desse segundo Moisés, contudo, não podemos fornecer uma descrição pessoal, tão completamente foi ele eclipsado pelo primeiro, o egípcio Moisés, a menos que recolhamos as contradições existentes na descrição bíblica do caráter de Moisés. Ele é quase sempre representado como prepotente, de temperamento arrebatado e até mesmo violento, embora também seja descrito como o mais suave e paciente dos homens.Essas últimas qualidades evidentemente se ajustariam mal ao Moisés egípcio, que teve de lidar com seu povo em tão grandes e difíceis assuntos; elas podem ter pertencido ao caráter do outro Moisés, o madianita. Estamos, penso eu, justificados em separar as duas figuras e em presumir que o Moisés egípcio nunca esteve em Cades e nunca escutou o nome de Javé, e que o Moisés madianita nunca esteve no Egito e nada sabia de Aten. A fim de soldar as duas figuras, a tradição ou a lenda receberam a missão de trazer o Moisés egípcio a Madiã, e vimos que mais de uma explicação disso era corrente.

 

(6)

 Mais uma vez, estou preparado para me ver acusado de ter apresentado minha reconstrução da primitiva história do povo de Israel com certeza demasiadamente grande e injustificada. Não me sentirei muito severamente atingido por essa crítica, visto ela encontrar eco em meu próprio julgamento. Eu mesmo sei que minha estrutura possui seus pontos fracos, mas tem seus pontos fortes também. Em geral, minha impressão predominante é a de que vale a pena continuar o trabalho na direção que ele tomou.

A narrativa bíblica que temos perante nós contém dados históricos preciosos e, na verdade, valiosíssimos, os quais, contudo, foram deformados pela influência de poderosos intuitos tendenciosos e embelezados pelos produtos da invenção poética. No decorrer de nossos esforços até agora, pudemos detectar um desses intuitos deformantes,ver em [[1]].Essa descoberta nos aponta o caminho posterior. Temos de descobrir outros intuitos tendenciosos semelhantes. Se contratarmos meios de reconhecer as deformações produzidas por esses propósitos, traremos à luz novos fragmentos do verdadeiro estado de coisas que jaz por trás deles.

E começaremos ouvindo o que a pesquisa bíblica crítica pode dizer-nos sobre a história da origem do Hexateuco, os cinco livros de Moisés e o livro de Josué, os quais, somente eles, nos interessam aqui. A mais antiga fonte documentária é aceita como J (o autor javístico ou iavístico), que, em épocas mais recentes, foi identificado como sendo o sacerdote Ebiatar (Ebyatar), contemporâneo do Rei Davi. Um pouco mais tarde — não se sabe quanto —, chegamos ao chamado autor eloístico [E], que pertenceu ao Reino do Norte.3 Após o colapso desse reino em 722 a.C., um sacerdote judeu combinou partes de J e E e efetuou alguns acréscimos de sua própria autoria. Sua compilação é designada como JE. No século VII, o Deuteronômio, o quinto livro, foi acrescentado a isso. Supõe-se que ele tenha sido encontrado completo no Templo. No período posterior à destruição do Templo (586 a.C.), durante e após o Exílio, foi compilada a revisão conhecida como ‘Código Sacerdotal’ e, no século V, a obra recebeu sua revisão final; desde então não foi alterada em seus elementos essenciais.A história do Rei Davi e seu período é, mais provavelmente, obra de um contemporâneo. Trata-se de escrito histórico genuíno, quinhentos anos antes de Heródoto, o ‘Pai da História’. Torna-se mais fácil compreender essa realização se, segundo as linhas de nossa hipótese, pensarmos na influência egípcia. Surge mesmo uma suspeita de que os israelitas daquele período primitivo — o que equivale a dizer, os escribas de Moisés — podem ter tido alguma parte na invenção do primeiro alfabeto.Naturalmente, está além de nosso conhecimento descobrir até onde os relatos sobre tempos anteriores remontam a registros primitivos ou à tradição oral, e, em casos individuais, qual a duração do intervalo de tempo existente entre um acontecimento e seu registro. O texto, contudo, tal como o possuímos hoje, nos dirá bastante sobre suas próprias vicissitudes. Dois tratamentos mutuamente opostos deixaram suas marcas nele. Por um lado, foi submetido a revisões que o falsificaram no sentido de seus objetivos secretos, mutilaram-no e amplificaram-no e, até mesmo, o transformaram em seu reverso; por outro, uma piedade solícita dirigiu-o e procurou conservar tudo tal como era, pouco importando se era coerente ou se se contradizia. Assim, em quase toda parte ocorreram lacunas observáveis, repetições perturbadoras e contradições óbvias, indicações que nos revelam coisas que não se destinavam a serem comunicadas. Em suas implicações, a deformação de um texto assemelha-se a um assassinato: a dificuldade não está em perpetrar o ato, mas em livrar-se de seus traços. Bem poderíamos emprestar à palavra ‘Entstellung [deformação]’ o sentido duplo a que tem direito, mas do qual, hoje em dia, não se faz uso. Ela deveria significar não apenas ‘mudar a aparência de algo’, mas também ‘pôr algo em outro lugar, deslocar’., Por conseguinte, em muitos casos de deformação textual, podemos não obstante esperar descobrir que o que foi suprimido ou renegado está oculto em outro lugar, embora modificado e despojado de seu contexto. Apenas, nem sempre será fácil reconhecê-lo.

Os intuitos deformantes que estamos ansiosos por apreender já deviam ter estado em ação sobre as tradições antes que qualquer delas fosse registrada por escrito. Já descobrimos um deles, talvez o mais poderoso de todos. Como dissemos, com o estabelecimento do novo Deus, Javé, em Cades, tornou-se necessário fazer algo para glorificá-lo. Seria mais correto dizer: tornou-se necessário ajustá-lo, abrir espaço para ele, apagar os traços de religiões mais antigas. Isso parece ter sido conseguido com completo sucesso com referência à religião das tribos residentes: nada mais ouvimos dela. Com os que retornavam do Egito, isso não foi tão fácil; eles não se deixariam ser privados do Êxodo, do varão Moisés ou da circuncisão. É verdade que tinham estado no Egito, mas tinham-no abandonado, e, daí por diante, todo sinal de influência egípcia deveria ser renegado. Lidou-se com o homem Moisés deslocando-o para Madiã e Cades, e fundindo-o com o sacerdote de Javé que fundou a religião. A circuncisão, a indicação mais suspeita de dependência para com o Egito, teve de ser mantida, mas não se pouparam esforços para desligar o costume do Egito — toda evidência em contrário. É apenas como negação deliberada do fato revelador que podemos explicar a passagem enigmática e incompreensivelmente enunciada no Êxodo [iv, 24-6], segundo a qual, em certa ocasião, Javé ficou irado com Moisés por ele ter negligenciado a circuncisão, e sua esposa madianita salvou-lhe a vida executando rapidamente a operação. Dentro em pouco, nos depararemos com outra invenção destinada a tornar inócua a desconfortável prova material.

O fato de encontrarmos sinais de esforços feitos para negar explicitamente que Javé era um novo deus, estrangeiro aos judeus, mal pode ser descrito como sendo o aparecimento de novo intuito tendencioso; trata-se, antes, de uma continuação do anterior. Com esse objetivo em vista, as lendas dos patriarcas do povo — Abraão, Isaac e Jacó — foram introduzidas. Javé asseverou que ele já era o deus desses antepassados, embora seja verdade que ele próprio teve de admitir que eles não o tinham adorado sob esse nome. Não acrescenta, contudo, qual era o outro nome.E aqui estava a oportunidade para um golpe decisivo contra a origem egípcia do costume da circuncisão: Javé, foi dito, já insistira nela com Abraão e a introduzira como penhor do pacto celebrado entre ele e este último. Mas foi uma invenção particularmente inábil. Como marca destinada a distinguir determinada pessoa das outras e preferir aquela a estas, escolher-se-ia algo que não pudesse ser encontrado em outro povo, e não uma coisa que podia ser exibida, da mesma maneira, por milhões de outras pessoas. Um israelita que se tivesse transplantado para o Egito teria sido obrigado a reconhecer todo egípcio como irmão no pacto, como irmão em Javé. É impossível que os israelitas que criaram o texto da Bíblia pudessem ignorar o fato de a circuncisão ser indígena ao Egito. A passagem em Josué [v, 9] citada por Eduard Meyer,ver em [[1]]admite isso sem discussão, mas, por esse próprio motivo, tinha de ser renegada a qualquer preço.

Não devemos esperar que as estruturas míticas da religião dêem demasiada atenção à coerência lógica. De outra maneira, o sentimento popular, justificadamente, poderia ter-se ofendido contra uma divindade que fez um pacto com seus antepassados, com obrigações mútuas, e que depois, por séculos a fio, não mais concedeu atenção a seus sócios humanos, até que, subitamente, lhe ocorreu manifestar-se de novo a seus descendentes. Ainda mais enigmática é a noção de um deus que repentinamente ‘escolhe’ um povo, que o declara como seu e a ele próprio como seu deus. Acredito que este é o único exemplo desse tipo na história das religiões humanas. Comumente, deus e povo estão indissoluvelmente vinculados, são um só desde o próprio início das coisas. Sem dúvida, às vezes ouvimos falar de um povo que adquire um deus diferente, mas nunca de um deus que busca um povo diferente. Poderemos talvez entender esse acontecimento único se relembrarmos as relações existentes entre Moisés e o povo judeu. Moisés abaixara-se até os judeus, fizera-os o seu povo: eles eram o seu ‘povo escolhido’.A introdução dos patriarcas serviu ainda a outro propósito. Eles tinham vivido em Canaã e sua lembrança estava ligada a localidades específicas nesse país. É possível que eles próprios fossem, originalmente, heróis canaanitas ou divindades locais, sendo depois tomados pelos israelitas imigrantes para a sua pré-história. Apelando para os patriarcas, eles estavam, por assim dizer, afirmando seu caráter indígena e defendendo-se contra o ódio que se liga a um conquistador estrangeiro. Foi uma torção hábil declarar que o deus Javé estava apenas devolvendo-lhes o que seus antepassados tinham possuído outrora.

Nas contribuições posteriores ao texto da Bíblia, colocou-se em efeito a intenção de evitar a menção de Cades. O local em que a religião fora fundada foi definitivamente fixado como sendo o Monte de Deus, o Sinai-Horeb. Não é fácil perceber o motivo para isso; talvez as pessoas não estivessem dispostas a ser lembradas da influência de Madiã. Mas todas as deformações posteriores, especialmente as do período do Código Sacerdotal, tinham outro objetivo em vista. Não havia mais necessidade alguma de alterar descrições de acontecimentos num sentido desejado, pois isso já tinha sido feito havia muito tempo. Mas tomou-se o cuidado de deslocar de volta ordens e instituições da época atual para os tempos primitivos, o cuidado de fundamentá-los, via de regra, na legislação mosaica, de maneira a derivar disso sua reivindicação a serem sagrados e obrigatórios. Por mais que o retrato do passado possa ter sido assim falsificado, o procedimento não deixava de ter certa justificação psicológica. Ele refletia o fato de que, no curso de longas eras — entre o Êxodo do Egito e a fixação dos textos da Bíblia, sob Ezra e Neemias, cerca de oitocentos anos haviam transcorrido —, a religião de Javé tivera sua forma modificada em conformidade, ou talvez até em identidade, com a religião original de Moisés.

E esse é o resultado essencial, a momentosa substância, da história da religião judaica.

 

(7)

De todos os acontecimentos de tempos primitivos que posteriormente poetas, sacerdotes e historiadores empreenderam elaborar, um se salienta, cuja supressão foi imposta pelos mais imediatos e melhores motivos humanos. Trata-se do assassinato de Moisés, o grande líder e libertador, descoberto por Sellin a partir de alusões nos escritos dos profetas. A hipótese de Sellin não pode ser chamada de fantástica; é bastante provável. Moisés, derivando-se da escola de Akhenaten, não empregou métodos diferentes dos que o rei usara; ele ordenou, forçou sua fé ao povo. A doutrina de Moisés pode ter sido inclusive mais dura do que a de seu mestre. Ele não tinha necessidade de manter o deus solar como apoio: a escola de On não possuía significação para seu povo estrangeiro. Moisés, como Akhenaten, defrontou-se com o mesmo destino que espera todos os déspotas esclarecidos. O povo judeu, sob Moisés, era tão capaz de tolerar uma religião tão altamente espiritualizada e encontrar satisfação de suas necessidades no que ele tinha a oferecer quanto os egípcios da XVIII Dinastia. Em ambos os casos, aconteceu o mesmo: aqueles que tinham sido dominados e mantidos em falta levantaram-se e lançaram fora o fardo da religião que lhes fora imposta. Mas, ao passo que os dóceis egípcios esperaram até que o destino removesse a figura sagrada de seu faraó, os selvagens semitas tomaram o destino nas mãos e livraram-se de seu tirano.

Tampouco se pode sustentar que o texto remanescente da Bíblia não nos dá ciência de um fim desse tipo para Moisés. A descrição do ‘pastoreio no deserto’, que pode representar o período durante o qual Moisés governou, descreve uma sucessão de sérias revoltas contra sua autoridade, as quais também foram, por ordem de Javé, suprimidas mediante sangrentos castigos. É fácil imaginar que uma dessas rebeliões terminou de maneira diferente daquela que o texto sugere.A defecção do povo quanto à nova religião também é descrita no texto, na história do bezerro de ouro. Nesse episódio, através de uma mudança engenhosa, o rompimento das tábuas da lei (que deve ser entendido simbolicamente: ‘ele rompeu a lei’) é transposto para o próprio Moisés, e sua indignação furiosa é atribuída como motivo desse rompimento.

Chegou um tempo em que o povo começou a lamentar o assassinato de Moisés e a procurar esquecê-lo. Isso certamente aconteceu na época da união das duas partes do povo em Cades. Mas, quando o Êxodo e a fundação da religião no oásis [de Cades] foram aproximados,ver em [[1]],e Moisés foi representado como relacionado com esta última, em vez de outro homem [o sacerdote madianita], não apenas as exigências dos seguidores de Moisés foram satisfeitas, mas também o fato aflitivo de seu fim violento foi renegado com sucesso. Na realidade, é muito improvável que Moisés pudesse ter tomado parte nas ações de Cades, ainda que sua vida não houvesse sido abreviada.

Temos agora de fazer uma tentativa de elucidar as relações cronológicas desses acontecimentos. Colocamos o Êxodo no período posterior ao fim da XVIII Dinastia (1350 a.C.). Ele pode ter ocorrido então ou um pouco depois, já que os cronistas egípcios incluíram os anos supervenientes de anarquia no reinado de Haremhab, que lhes pôs fim e durou até 1315 a.C. O ponto fixado seguinte (mas também único) da cronologia é fornecido pela estela de [o faraó] Merenptah (1225-15 a.C.), que se gaba de sua vitória sobre Isiraal (Israel) e da dispersão de sua semente (?). O sentido a ser ligado a essa inscrição é, infelizmente, duvidoso, supondo-se que prove que as tribos israelitas já estavam, nessa época, estabelecidas em Canaã. Eduard Meyer, corretamente, conclui a partir dessa estela que Merenptah não pode ter sido o faraó do Êxodo, como levianamente foi anteriormente presumido. A data do Êxodo deve ter sido anterior. A questão de saber quem foi o faraó do Êxodo, parece-me inteiramente ociosa. Não houve faraó do Êxodo, porque este ocorreu durante um interregno; tampouco a descoberta da estela de Merenptah lança qualquer luz sobre a possível data da união e fundação da religião em Cades. Tudo o que podemos dizer com certeza é que ocorreu em alguma ocasião entre 1350 e 1215 a.C. Desconfiamos de que o Êxodo ocorreu bastante perto do início desses cem anos e os eventos de Cades não muito longe de seu fim. Gostaríamos de reivindicar a maior parte desse período para o intervalo entre as duas ocorrências, de uma vez que necessitamos de um tempo comparativamente longo para que as paixões das tribos que retornavam se esfriassem após o assassinato de Moisés, e para a influência de seus seguidores, os levitas, se tornasse tão grande quanto a que está implícita na conciliação de Cades. Duas gerações, sessenta anos, poderiam aproximadamente bastar para isso, mas trata-se de um acerto apertado. O que é inferido da estela de Merenptah chega demasiado cedo para nós e, como reconhecemos que, nessa nossa hipótese, cada suposição se baseia em outra, temos de admitir que esse exame revela um lado fraco de nossa construção. É desafortunado que tudo que se relaciona com o estabelecimento do povo judeu em Canaã seja tão obscuro e confuso. Nossa única saída consiste em supor que na estela o nome de ‘Israel’ não se relacione às tribos cuja sorte estamos tentando acompanhar e que, combinadas, formaram o povo posterior de Israel. Afinal de contas, o nome de ‘habiru’ (hebreus) foi transferido para essas mesmas pessoas no período Amarna, ver em [[1]].

A união dessas tribos numa nação, através da adoção da uma religião comum, não importa quando tenha ocorrido, facilmente poderia ter-se transformado num acontecimento bastante sem importância na história mundial. A nova religião seria arrastada pela corrente de eventos, Javé teria tido de ocupar seu lugar na procissão de deuses passados na visão de Flauberte todas as doze tribos se teriam ‘perdido’, e não apenas as dez que os anglo-saxões há tanto tempo andam procurando. O deus Javé, a quem o Moisés madianita então apresentou um novo povo, provavelmente não era, sob aspecto algum, um ser proeminente. Um deus grosseiro, tacanho, local, violento e sedento de sangue prometera a seus seguidores dar-lhes ‘uma terra que mana leite e mel’e os concitara a exterminar seus habitantes de então ‘ao fio da espada’.É espantoso o quanto resta, apesar de todas as revisões nas narrativas bíblicas, que nos permita reconhecer a natureza original dele. Sequer é certo que sua religião fosse um monoteísmo genuíno, que negasse a divindade das deidades de outros povos. Provavelmente era suficiente que seu povo encarasse seu próprio deus como mais poderoso do que qualquer deus estrangeiro. Se, não obstante, subseqüentemente, tudo tomou um curso diferente do que tais primórdios teriam levado a esperar, a causa só pode ser encontrada num único fato. O Moisés egípcio dera a uma parte do povo uma noção mais altamente espiritualizada de deus, a idéia de uma divindade única a abranger o mundo inteiro, que era não menos amantíssimo do que todo-poderoso, com aversão a todo cerimonial e magia, e que apresentava aos homens, como seu objetivo mais elevado, uma vida na verdade e na justiça, pois, por incompletas que sejam as descrições que temos do lado ético da religião de Aten, não pode constituir fato sem importância que Akhenaten comumente se referisse a si mesmo, em suas inscrições, como ‘vivendo em Ma’at’ (Verdade, Justiça). A longo prazo, não fez diferença que o povo tivesse rejeitado o ensinamento de Moisés (provavelmente pouco tempo depois) e o tivesse matado. A tradição desse ensinamento permaneceu e sua influência alcançou (apenas gradativamente, é verdade, no decorrer dos séculos) aquilo que fora negado ao próprio Moisés. O deus Javé conseguira honras imerecidas quando, a partir da época de Cades em diante, fora creditado com o feito da libertação realizada por Moisés, mas teve de pagar pesadamente por essa usurpação. A sombra do deus cujo lugar ele ocupara tornou-se mais forte do que ele próprio; ao final do processo de evolução, a natureza do deus esquecido de Moisés veio à luz por trás da sua própria. Ninguém pode duvidar de que foi apenas a idéia desse outro deus que capacitou o povo de Israel a sobreviver a todos os golpes do destino e o manteve vivo até nossos dias.

Não é mais possível avaliar a parte assumida pelos levitas na vitória final do deus mosaico sobre Javé. Eles haviam tomado o partido de Moisés no passado, quando o acordo fora alcançado em Cades, numa lembrança ainda viva do amo de quem haviam sido o séquito e os compatriotas. Durante os séculos que passaram desde então, fundiram-se com o povo ou com a classe sacerdotal, e tornou-se função principal dos sacerdotes desenvolver e supervisionar o ritual, e, ao lado disso, preservar a escritura sagrada e revisá-la de acordo com seus fins. Mas todo sacrifício e todo cerimonial, no fundo, não eram somente magia e feitiçaria, tais como haviam sido incondicionalmente rejeitados pelo antigo ensinamento mosaico? Surgiu então, dentre o povo, uma sucessão infindável de homens que não eram ligados a Moisés em sua origem, mas que foram cativados na obscuridade: foram esses homens, os profetas, que incansavelmente pregaram a antiga doutrina mosaica — a de que a divindade desdenhava o sacrifício e o cerimonial e pedia apenas fé e uma vida na Verdade e na Justiça (Ma’at). Os esforços dos profetas alcançaram sucesso duradouro; as doutrinas com que haviam restabelecido a velhafé tornaram-se o conteúdo permanente da religião judaica. É honra bastante para o povo judeu que tenha conseguido preservar tal tradição e produzir homens que lhe deram voz, ainda que a iniciativa para isso tenha provindo do exterior, de um grande forasteiro.

Não deveria sentir-me seguro em fornecer essa descrição, se não pudesse apelar para o julgamento de outros investigadores com conhecimento especializado, que perceberam a significação de Moisés para a religião judaica à mesma luz que eu, ainda que não tenham reconhecido sua origem egípcia. Assim, por exemplo, Sellin (1922, 52) escreve: ‘Conseqüentemente, temos de pintar a verdadeira religião de Moisés — sua crença num só Deus moral, que ele prega — como sendo, daí por diante, necessariamente propriedade de um pequeno círculo do povo. Não devemos, necessariamente, esperar encontrá-la no culto oficial, na religião dos sacerdotes ou nas crenças do povo. Podemos, necessariamente, apenas calcular encontrar uma faísca ocasional e emergir, ora aqui, ora ali, da tocha espiritual que ele outrora ateara, descobrir que suas idéias não pereceram inteiramente, mas estiveram silentemente em ação, aqui e ali, sobre crenças e costumes, até que, mais cedo ou mais tarde, mediante o efeito de experiências especiais ou de pessoas especialmente movidas pelo seu espírito, elas mais uma vez irromperam intensamente e conquistaram influência sobre massas mais amplas da população. É a partir desse ponto de vista que a história da antiga religião de Israel deve, necessariamente, ser encarada. Todo aquele que procurar elaborar a religião mosaica segundo as linhas da religião que encontramos, segundo as crônicas, na vida do povo durante seus primeiros quinhentos anos em Canaã, estará cometendo o mais grave erro metodológico.’ Volz (1907, 64) fala ainda mais claramente: acredita ele que ‘a obra excelsa de Moisés foi compreendida e levada a cabo, a princípio apenas débil e esparsamente, até que, no decorrer dos séculos, ela penetrou cada vez mais, e, por fim, encontrou-se, nos grandes profetas, com espíritos semelhantes que continuaram a obra do homem solitário.’

E aqui, segundo parece, cheguei à conclusão de meu estudo, que se dirigiu para o objetivo único de introduzir a figura de um Moisés egípcio no nexo da história judaica. Nossos achados podem ser assim expressos na fórmula mais concisa. A história judaica nos é familiar por suas dualidades: dois grupos de pessoas que se reúnem para formar a nação, dois reinos em que essa nação se divide, dois nomes de deuses nas fontes documentárias da Bíblia. A elas, acrescentamos outras duas, novas: a fundação de duas religiões — a primeira reprimida pela segunda, não obstante emergindo depois vitoriosamente, por trás dela, e dois fundadores religiosos, ambos chamados pelo mesmo nome de Moisés e cujas personalidades temos de distinguir uma da outra. Todas essas dualidades são as conseqüências necessárias da primeira: o fato de uma parte do povo ter tido uma experiência que tem de ser considerada como traumática, à qual a outra parte escapou. Mais além disso, haveria muita coisa a examinar, explicar e asseverar. Somente assim um interesse em nosso estudo puramente histórico encontraria sua verdadeira justificação. Em que reside a natureza real de uma tradição, em que repousa seu poder especial, quão impossível é discutir a influência pessoal, sobre a história mundial, dos grandes homens tomados individualmente, qual o sacrilégio que se comete contra a esplêndida diversidade da vida humana se se reconhecerem apenas os motivos que se originam das necessidades materiais, de que fontes algumas idéias (e, especificamente, as religiosas) derivam seu poder de submeter tanto homens quanto povos a seu jogo — estudar tudo isso no caso especial da história judaica seria tarefa sedutora. Continuar meu trabalho segundo linhas como essas seria descobrir um vínculo com as afirmativas que apresentei vinte e cinco anos atrás em Totem e Tabu [1912-13], mas não mais sinto que possua força para fazê-lo.

 

III - MOISÉS, O SEU POVO E A RELIGIÃO MONOTEÍSTA

 

PARTE I

 

NOTA PREAMBULAR I

([Viena], antes de março de 1938)

 

Com a audácia daquele que tem pouco ou nada a perder, proponho-me pela segunda vez romper uma intenção bem fundada e acrescentar a meus dois ensaios sobre Moisés aparecidos em Imagoa parte final que retive. Terminei o último ensaio com a asserção de que sabia que minhas forças não seriam suficientes para isso. Quis significar, naturalmente, o debilitamento dos poderes criativos que acompanham a velhice,mas pensava também em outro obstáculo.

Estamos vivendo num período especialmente marcante. Descobrimos, para nosso espanto, que o progresso aliou-se à barbárie. Na Rússia Soviética, dispuseram-se a melhorar as condições de vida de algumas centenas de milhões de pessoas que eram mantidas firmemente em sujeição. Foram suficientemente precipitados para retirar-lhes o ‘ópio’ da religião e avisados o bastante para conceder-lhes uma razoável quantidade de liberdade sexual; ao mesmo tempo, porém, submeteram-nas à mais cruel coerção e despojaram-nas de qualquer possibilidade de pensamento. Com violência semelhante, o povo italiano está sendo treinado na organização e no sentido de dever. Sentimos como um alívio de uma apreensão opressiva quando vemos, no caso do povo alemão, que uma recaída numa barbárie quase pré-histórica pode ocorrer também sem estar ligada a quaisquer idéias progressistas. De qualquer modo, as coisas revelaram-se tais, que, atualmente, as democracias conservadoras se tornaram as guardiãs do progresso cultural e, estranho é dizê-lo, é precisamente a instituição da Igreja Católica que ergue uma defesa poderosa contra a disseminação desse perigo à civilização — a Igreja que até constituíra o incansável inimigo da liberdade de pensamento e dos progressos no sentido da descoberta da verdade!

Estamos vivendo aqui, num país católico, sob a proteção dessa Igreja, incertos quanto ao tempo que essa proteção resistirá. Mas, enquanto durar, naturalmente hesitamos em fazer algo que estaria sujeito a despertar a hostilidade da Igreja. Não se trata de covardia, mas de prudência. O novo inimigo, que desejamos evitar servir, é mais perigoso do que o antigo, com quem já havíamos aprendido a entrar em acordo. As pesquisas psicanalíticas que conduzimos são, em todo caso, encaradas com atenção suspeitosa pelo catolicismo. Não sustentarei que isso seja injusto. Se nosso trabalho nos leva a uma conclusão que reduz a religião a uma neurose da humanidade e explica seu enorme poder da mesma maneira que uma compulsão neurótica em nossos pacientes individuais, podemos estar certos de atrair o ressentimento de nossos poderes governantes sobre nós. Não que tenha algo a dizer que seja novo ou que não tenha dito claramente um quarto de século atrás, mas isso foi esquecido nesse ínterim e não poderia deixar de ter efeito se o repetisse hoje e o ilustrasse por um exemplo que oferece um padrão para todos os fundamentos religiosos. Conduziria provavelmente a sermos proibidos de exercer a psicanálise. Métodos violentos de repressão desse tipo não são, em verdade, de maneira alguma estranhos à Igreja; o fato é, antes, que ela sente como invasão de seus privilégios alguém mais fazer uso desses métodos. Mas a psicanálise, que, no decurso de minha longa vida, foi a todas as partes, ainda não possui um lar que possa ser mais valioso para ela do que a cidade em que nasceu e se desenvolveu.

Não apenas acho, mas sei que me deixarei ser dissuadido por esse segundo obstáculo, pelo perigo externo, de publicar a última parte de meu estudo sobre Moisés. Fiz ainda outra tentativa de afastar do caminho a dificuldade, dizendo-me que meus temores se baseiam numa superestimação de minha própria importância pessoal, que provavelmente será completamente indiferente às autoridades que eu escolha escrever sobre Moisés e a origem das religiões monoteístas. Mas sinto-me incerto de meu julgamento sobre isso. Parece-me bem mais possível que a malícia e o sensacionalismo contrabalancem qualquer falta de reconhecimento de mim no julgamento do mundo contemporâneo. Assim, não entregarei este trabalho ao público. Mas isso não precisa impedir-me de escrevê-lo, especialmente se já o pus por escrito no passado, dois anos atrás,de modo que só tenho de revisá-lo e uni-lo aos dois ensaios que o precederam. Ele pode então ser preservado às ocultas até que, algum dia, chegue a hora em que possa aventurar-se à luz sem perigo, ou até que se possa dizer a alguém que chegue às mesmas conclusões: ‘Houve alguém, em épocas mais sombrias, que pensou o mesmo que você!’

 

NOTA PREAMBULAR II

([Londres], junho de 1938)

 

As dificuldades bastante especiais que pesaram sobre mim durante a composição deste estudo relacionado à figura de Moisés — dúvidas internas, assim como obstáculos externos — resultaram no fato de este terceiro e conclusivo ensaio ser introduzido por dois prefácios diferentes, os quais se contradizem e, na verdade, se anulam mutuamente, pois, no breve espaço de tempo existente entre os dois, ocorreu uma mudança fundamental nas circunstâncias do autor. Na data anterior, eu estava vivendo sob a proteção da Igreja Católica, e temia que a publicação de meu trabalho resultasse na perda dessa proteção e conjurasse uma proibição sobre o trabalho dos adeptos e estudiosos da psicanálise na Áustria. Então, subitamente, veio a invasão alemã e o catolicismo mostrou ser, para empregar as palavras da Bíblia, ‘uma cana quebrada’. Na certeza de que seria agora perseguido não apenas por minha linha de pensamento, mas também por minha ‘raça’, acompanhado por muitos de meus amigos abandonei a cidade que, desde minha primeira infância, fora meu lar durante setenta e oito anos.

Encontrei a mais amistosa recepção na encantadora, livre e magnânima Inglaterra. Aqui vivo agora, hóspede bem-vindo; posso exalar um suspiro de alívio agora que o peso foi tirado de mim e mais uma vez posso falar e escrever — quase disse ‘e pensar’ — como quero ou como devo. Aventuro-me a apresentar ao público a última parte de minha obra.

Não restam obstáculos externos, ou, pelo menos, nenhum de que se deva ter medo. Nas poucas semanas de minha estada aqui, recebi incontáveis saudações de amigos que ficaram satisfeitos por minha chegada, e de estranhos desconhecidos e, na verdade, não envolvidos, que apenas queriam dar expressão à sua satisfação por eu ter encontrado liberdade e segurança aqui. E, além disso, chegaram, com uma freqüência surpreendente para um estrangeiro, comunicações de outro tipo, interessadas no estado de minha alma, apontando-me o caminho de Cristo e procurando esclarecer-me sobre o futuro de Israel. As boas pessoas que dessa maneira escrevem não podem ter sabido muito sobre mim, mas espero que quando este trabalho sobre Moisés se torne conhecido, em tradução, entre meus novos compatriotas, serei privado em muito da simpatia que também um certo número de outras pessoas sente agora por mim.Com referência às dificuldades internas, uma revolução política e uma mudança de domicílio nada poderiam alterar. Não menos do que antes, sinto-me incerto face a meu próprio trabalho; falta-me a consciência de unidade e de ser da mesma classe que deveria existir entre um autor e sua obra. Não é como se houvesse ausência de convicção na correção de minha conclusão. Adquiri-a um quarto de século atrás, quando, em 1912, escrevi meu livro sobre Totem e Tabu, e desde então ela só se tornou mais firme. Desde aquela época nunca duvidei de que os fenômenos religiosos só podem ser compreendidos segundo o padrão dos sintomas neuróticos individuais que nos são familiares — como o retorno de acontecimentos importantes, há muito tempo esquecidos, na história primeva da família humana — e de que eles têm de agradecer exatamente a essa origem por seu caráter compulsivo, e de que, por conseguinte, são eficazes sobre os seres humanos por força da verdade histórica de seu conteúdo. Minha incerteza se instala apenas quando me pergunto se alcancei sucesso em provar essas teses no exemplo que aqui escolhi do monoteísmo judaico. A meu senso crítico, este livro, que tem sua origem no homem Moisés, assemelha-se a uma dançarina a equilibrar-se na ponta de um dedo do pé. Se não tivesse podido encontrar apoio numa interpretação analítica do mito e passar daí para a suspeita de Sellin sobre o fim de Moisés, tudo teria tido de permanecer sem ser escrito. De qualquer modo, demos agora o mergulho.

 

A - A PREMISSA HISTÓRICA

 

Aqui, pois, temos o pano de fundo histórico dos acontecimentos que absorveram nosso interesse. Em resultado das conquistas da XVIII Dinastia, o Egito tornou-se um império mundial. O novo imperialismo refletiu-se no desenvolvimento das idéias religiosas, se não de todo o povo, pelo menos de seu estrato superior governante e intelectualmente ativo. Sob a influência dos sacerdotes do deus solar em On (Heliópolis), fortalecida talvez por impulsos provindos da Ásia, surgiu a idéia de um deus universal Aten, a quem a restrição a um único país e a um único povo não mais se aplicava. No jovem Amenófis IV, chegou ao trono um faraó que não tinha interesse mais alto do que o desenvolvimento dessa idéia de um deus. Ele promoveu a religião de Aten a religião estatal e, através dele, o deus universal tornou-se o único deus: tudo o que se contava dos outros deuses era engano e mentira. Com magnífica inflexibilidade, ele resistiu a toda tentação ao pensamento mágico, e rejeitou a ilusão, tão cara aos egípcios, especificamente, de uma vida após a morte. Num espantoso pressentimento de descobertas científicas posteriores, identificou na energia da radiação solar a fonte de toda a vida sobre a Terra e adorou-a como símbolo do poder de seu deus. Gabava-se de sua alegria na criação e de sua vida em Ma’at (Verdade e Justiça).

Esse é o primeiro e talvez o mais claro caso de uma religião monoteísta na história humana; uma compreensão interna (insight) mais profunda dos determinantes históricos e psicológicos de sua origem seria de valor incomensurável. Entretanto, cuidou-se de que informações demasiadas sobre a religião de Aten não chegassem até nós. Já sob os débeis sucessores de Akhenaten tudo o que ele havia criada entrou em colapso. A vingança da classe sacerdotal que ele havia suprimido grassou contra sua memória; a religião de Aten foi abolida, e a cidade capital do faraó, estigmatizado como um criminoso, foi destruída e saqueada. Por volta de 1350 a.C., a XVIII Dinastia terminou; após um período de anarquia, a ordem foi restaurada pelo general Haremhab, que reinou até 1315 a.C. A reforma de Akhenaten parecia ser um episódio fadado ao esquecimento.

Até aqui, o que está estabelecido historicamente; agora, começa nossa seqüência hipotética. Entre os que compunham o entourage de Akhenaten havia um homem talvez chamado Tuthmosis, como muitas outras pessoas daquela época; o nome não é de grande importância, exceto o fato de que seu segundo componente deve ter sido ‘—mose’. Achava-se ele numa elevada posição e era um adepto convicto da religião de Aten, mas, em contraste com o rei meditativo, era enérgico e apaixonado. Para ele, a morte de Akhenaten e a abolição da religião deste significaram o fim de todas as suas esperanças. Só poderia permanecer no Egito como fora-da-lei ou como renegado. Talvez, como governador da província da fronteira, tenha entrado em contato com uma tribo semita que imigrara para ela algumas gerações antes. Pela necessidade de seu desapontamento e solidão, voltou-se para esses estrangeiros e neles buscou compensação para suas perdas. Escolheu-os como seu povo e neles tentou realizar seus ideais. Após ter abandonado o Egito com eles, acompanhado por seus seguidores, transformou-os em santos pelo sinal da circuncisão, forneceu-lhe leis e introduziu-os nas doutrinas da religião de Aten, que os egípcios tinham acabado de rejeitar. Os preceitos que esse varão Moisés deu a seus judeus podem ter sido ainda mais severos do que os de seu senhor e mestre Akhenaten, e ele pode também ter abandonado a dependência do deus solar de On, que Akhenaten continuara a seguir.

Devemos tomar o período do interregno posterior a 1350 a.C. como a data do Êxodo do Egito. O intervalo de tempo que se seguiu, até o término da ocupação da terra de Canaã, é particularmente inescrutável. A pesquisa histórica moderna foi capaz de extrair dois fatos da obscuridade que a narrativa bíblica deixou, ou melhor, criou, nesse ponto. O primeiro desses fatos, descobertos por Ernst Sellin é que os judeus, que, mesmo segundo a descrição da Bíblia, eram obstinados e indisciplinados para com seu legislador e líder, levantaram-se contra ele um dia, mataram-no e livraram-se da religião de Aten que lhes fora imposta, tal como os egípcios se tinham livrado dela anteriormente. O segundo fato, demonstrado por Eduard Meyer, é que esses judeus que tinham retornado do Egito uniram-se mais tarde com tribos estreitamente relacionadas na região entre a Palestina, a Península de Sinai e a Arábia, e lá, numa localidade bem regada por águas, chamada Cades, sob a influência dos madianitas árabes, assumiram uma nova religião, a adoração do deus vulcânico Javé. Pouco depois disso, estavam prontos para invadir Canaã como conquistadores.

As relações cronológicas entre esses dois eventos e entre eles e o Êxodo do Egito são muito incertas. O ponto de referência histórico mais aproximado é fornecido por uma estela do faraó Merenptah (que reinou até 1215 a.C.), a qual, no correr de uma descrição de campanhas na Síria e na Palestina, nomeia ‘Israel’ entre os inimigos derrotados. Se tomarmos a data dessa estela como um terminus ad quem, ficamos com aproximadamente um século (desde depois de 1350 até antes de 1215 a.C.) para todo o decorrer dos acontecimentos, começando com o Êxodo. É possível, contudo, que o nome ‘Israel’ ainda não se relacionasse às tribos cuja sorte estamos acompanhando, e que, de fato, tenhamos um intervalo mais longo à nossa disposição. O estabelecimento, em Canaã, do que deveria ser mais tarde o povo judeu certamente não foi uma conquista rapidamente completada, mas realizou-se em ondas e durante consideráveis períodos de tempo. Se nos libertarmos da limitação imposta pela estela de Merenptah, poderemos ainda mais facilmente atribuir uma geração (trinta anos) ao período de Moisés, e permitir que pelo menos duas gerações, e provavelmente mais, tenham decorrido até a época da união em Cades. O intervalo entre Cades e a irrupção em Canaã precisa apenas ser curto. A tradição judaica, como foi demonstrado no ensaio anterior,ver em [[1]],dispunha de bons fundamentos para abreviar o intervalo entre o Êxodo e a fundação da religião em Cades, ao passo que o contrário disso é do interesse de nosso relato.

Tudo isso, contudo, ainda é história, uma tentativa de preencher as lacunas em nosso conhecimento histórico e, em parte, uma repetição de meu segundo ensaio em Imago [Ensaio II, acima]. Nosso interesse acompanha a sorte de Moisés e de suas doutrinas, às quais o levante dos judeus apenas aparentemente pôs fim. A partir da descrição fornecida pelo Javista, assentada por escrito por volta de 1000 a.C., mas sem dúvida baseada em registros anteriores, descobrimos que a união e a fundação da religião em Cades foram acompanhadas por um acordo em que os dois lados ainda são facilmente distinguíveis. Uma das partes ficou interessada apenas em renegar a novidade e o caráter estrangeiro do deus Javé e em aumentar sua reivindicação à devoção do povo; a outra estava ansiosa por não sacrificar-lhe preciosas lembranças da libertação do Egito e da grande figura do líder Moisés. O segundo lado conseguiu, também, introduzir tanto o fato quanto o homem no novo relato da pré-história, retendo pelo menos o sinal externo da religião de Moisés — a circuncisão —, e possivelmente estabelecendo certas restrições ao uso do nome do novo deus. Como dissemos, os representantes dessas reivindicações foram os descendentes dos seguidores de Moisés, os levitas, que estavam separados de seus contemporâneos e compatriotas por apenas algumas gerações, e a que ainda estavam ligados à lembrança dele por uma recordação viva. A narrativa poeticamente embelezada que atribuímos ao Javista, e a seu rival posterior, o Eloísta, era algo como mausoléus sob os quais, afastada do conhecimento de gerações posteriores, a verdadeira descrição daquelas primeiras coisas — a natureza da religião mosaica e o final violento do grande homem — deveriam, por assim dizer, encontrar seu descanso eterno. E se adivinhamos o que aconteceu corretamente, nada resta a respeito que seja enigmático, mas bem poderia ter significado o ponto final do episódio de Moisés na história do povo judeu.

O notável, porém, é que não foi esse o caso — que os efeitos mais poderosos da experiência do povo deveriam vir à luz apenas mais tarde e abrir caminho para a realidade no decorrer de muitos séculos. É improvável que Javé diferisse muito em caráter dos deuses dos povos e tribos circunvizinhos. É verdade que combateu com eles, tal como os próprios povos lutavam uns com os outros, mas não podemos supor que viesse à cabeça de um adorador de Javé daqueles dias negar a existência dos deuses de Canaã, Moab ou Amalek, e assim por diante, mais do que negar a existência dos povos que neles acreditavam.

A idéia monoteísta, que flamejara com Akhenaten, mais uma vez escurecera e deveria permanecer nas trevas por longo tempo vindouro. Descobertas na ilha Elefantina, logo abaixo da Primeira Catarata do Nilo, forneceram-nos a surpreendente informação de que uma colônia militar judaica lá estivera estabelecida durante séculos, e em cujo templo, juntamente com o deus principal Yahu, duas divindades femininas eram adoradas, uma delas denominada Anat-Yahu. Esses judeus, é verdade, estavam isolados de sua pátria-mãe e não tinham tomado parte no desenvolvimento religioso dela; o governo persa do Egito (do século V a.C.) transmitiu-lhes a informação das novas normas de adoração emitidas porJerusalém. Remontando a tempos anteriores, podemos dizer que o deus Javé certamente não apresentava semelhança com o deus mosaico. Aten fora um pacifista como o seu representante na Terra — ou, mais apropriadamente, como o seu protótipo, o faraó Akhenaten, que ficou passivamente olhando enquanto o império mundial conquistado por seus ancestrais se desagregava. Sem dúvida, Javé era mais apropriado a um povo que estava começando a ocupar novas pátrias pela força. E tudo no deus mosaico que merecia admiração estava muito além da compreensão das massas primitivas.

Já disse — e, nesse ponto, alegrei-me por ter podido reivindicar um acordo com outros escritores — que o fato central do desenvolvimento da religião judaica foi que, com o decorrer do tempo, o deus Javé perdeu suas próprias características e começou a assemelhar-se cada vez mais ao antigo deus de Moisés, Aten. É verdade que permaneceram diferenças às quais se estaria inclinado, à primeira vista, a atribuir grande importância, mas que podem ser facilmente explicadas.

No Egito, Aten começara a dominar durante um período afortunado de posse estabelecida, e mesmo quando o império começou a oscilar, seus seguidores tinham podido voltar as costas à perturbação e continuar a louvar suas criações e delas desfrutar. O povo judeu estava fadado a experimentar uma série de graves provas e penosos eventos; seu deus tornou-se duro e severo e, por assim dizer, envolto em tristeza. Manteve a característica de ser um deus universal, a reinar sobre todos os países e povos, mas o fato de sua adoração ter passado dos egípcios para os judeus encontrou expressão na crença adicional de que estes últimos eram seu povo escolhido, cujas obrigações especiais acabariam por receber também uma recompensa especial. Pode não ter sido fácil ao povo reconciliar uma crença em ser preferido por seu deus onipotente com as tristes experiências de seu infeliz destino. Mas eles não se deixaram abalar em suas convicções; aumentaram seu próprio sentimento de culpa a fim de sufocar suas dúvidas a respeito de Deus, e pode ser que, por fim, tenham apontado para os ‘inescrutáveis desígnios da Providência’, como as pessoas piedosas fazem até hoje. Se eles se sentiram inclinados a se espantar por ele ter permitido que um agressor violento após outro surgisse, os expulsasse e os maltratasse — assírios, babilônios, persas — ainda puderam reconhecer o poder dele no fato de todos esses perversos inimigos terem sido, por sua vez, conquistados e seus impérios se terem desvanecido.

Sob três importantes aspectos, o deus posterior dos judeus tornou-se, ao final, semelhante ao velho deus mosaico. O primeiro e decisivo ponto é que ele foi verdadeiramente reconhecido como o único deus, ao lado do qual qualquer outro deus era impensável. O monoteísmo de Akhenaten foi levado a sério por um povo inteiro; na verdade, esse povo apegou-se tanto a essa idéia, que ela se tornou o principal conteúdo de sua vida intelectual e não lhe deixou interesse para outras coisas. Sobre isso, o povo e a classe sacerdotal que se tinha tornado dominante entre ele estavam acordes. Mas, enquanto os sacerdotes exauriam esforços em erguer o cerimonial para a sua adoração, entraram em oposição com intensas correntes dentro do povo, que buscavam reviver duas outras das doutrinas de Moisés sobre seu deus. As vozes dos Profetas nunca se cansaram de declarar que Deus desprezava o cerimonial e o sacrifício, e exigia apenas que as pessoas acreditassem nele e levassem uma vida de verdade e justiça. E quando louvavam a simplicidade e a santidade da vida no deserto, estavam certamente sob a influência dos ideais mosaicos.

É hora de levantar a questão de saber se existe qualquer necessidade de invocar a influência de Moisés como causa da forma final assumida pela idéia judaica de Deus, ou se não seria suficiente presumir um desenvolvimento espontâneo para a intelectualidade mais elevada no correr de uma vida cultural a se estender por centenas de anos. Há duas coisas a serem ditas sobre essa possível explicação, que colocaria fim a todas as nossas enigmáticas conjecturas. Em primeiro lugar, ela não explica nada. No caso dos gregos — indiscutivelmente, um povo altamente dotado —, as mesmas condições não conduziram ao monoteísmo, mas à desintegração de sua religião politeísta e ao início do pensamento filosófico. No Egito, até onde podemos compreender, o monoteísmo cresceu como um subproduto do imperialismo. Deus era um reflexo do faraó, que era soberano absoluto de um grande império mundial. Com os judeus, as condições políticas eram altamente desfavoráveis ao desenvolvimento da idéia de um deus nacional exclusivo para a de um soberano universal do mundo. E onde foi que essa minúscula e impotente nação achou a arrogância de declarar-se a si própria filha favorita do grande Senhor? O problema da origem do monoteísmo entre os judeus permaneceria assim irresolvido, ou teríamos de nos contentar com a resposta comum segundo a qual o monoteísmo era expressão do gênio religioso peculiar desse povo. É bem sabido que o gênio é incompreensível e irresponsável; portanto, não devemos trazê-lo à baila como explicação até que toda outra solução nos tenha falhado.

Além disso, deparamo-nos com o fato de que os próprios registros e escritos históricos judaicos nos apontam o caminho, asseverando bastante definidamente — dessa vez, sem contradizer-se — que a idéia de um deus único foi trazida ao povo por Moisés. Se há uma objeção à fidedignidade dessa afirmação, é a de que a revisão sacerdotal do texto que temos perante nós faz, obviamente, demasiadas coisas remontarem a Moisés. Instituições tais como as ordenações rituais, que datam inequivocamente de épocas posteriores, são dadas como mandamentos mosaicos, com a clara intenção de lhes emprestar autoridade. Isso certamente nos fornece fundamentos para suspeita, mas não o suficiente para uma rejeição, pois o motivo mais profundo para um exagero desse tipo é óbvio. A narrativa sacerdotal busca estabelecer uma continuidade entre seu período contemporâneo e o remoto passado mosaico; busca repudiar exatamente o que descrevemos como sendo o fato mais notável da história religiosa judaica, a saber, a existência de uma lacuna hiante entre a legislação de Moisés e a religião judaica posterior — lacuna que foi, a princípio, preenchida pela adoração de Javé, e só lentamente remendada depois. Ela discute esse curso de eventos por todos os modos possíveis, embora sua correção histórica esteja estabelecida para além de qualquer dúvida, desde que, no tratamento específico dado ao texto bíblico, provas superabundantes foram deixadas para prová-lo. Aqui, a revisão sacerdotal tentou algo semelhante à deformação tendenciosa que transformou o novo deus Javé no deus dos Patriarcas,ver em [[1]].Se levarmos em consideração esse motivo do Código Sacerdotal, acharemos difícil reter nossa crença a partir da asserção de que foi realmente o próprio Moisés que forneceu a idéia monoteísta aos judeus. Estaremos ainda mais prontos a dar assentimento já que podemos dizer de onde Moisés derivou essa idéia, a qual, certamente, os sacerdotes judeus não conheciam mais.

E, aqui, alguém poderia perguntar o que lucramos fazendo remontar o monoteísmo judaico ao egípcio. Isso simplesmente leva o problema a voltar um pouco mais para trás: não nos diz nada sobre a gênese da idéia monoteísta. A resposta é que não se trata de questão de lucro, mas de investigação. Talvez possamos aprender algo a partir dela, se descobrimos o curso real dos eventos.

 

B - O PERÍODO DE LATÊNCIA E A TRADIÇÃO

 

Confessamos a crença, portanto, de que a idéia de um deus único, bem como a rejeição do cerimonial magicamente eficaz e a ênfase dada às exigências éticas feitas em seu nome, foram de fato doutrinas mosaicas, às quais de início nenhuma atenção foi prestada, mas que, após um longo intervalo ter transcorrido, entraram em operação e acabaram por tornar-se permanentemente estabelecidas. Como explicaremos um efeito retardado desse tipo e onde nos deparamos com um fenômeno semelhante?

Ocorre-nos em seguida que tais coisas não são infreqüentemente encontradas nas esferas mais variadas e que elas provavelmente acontecem através de uma série de maneiras que são compreensíveis com maior ou menor facilidade. Tomemos, por exemplo, a história de uma nova teoria científica, tal como a teoria da evolução, de Darwin. A princípio, ela defrontou-se com acerbada rejeição e foi violentamente discutida durante décadas; contudo, não foi preciso mais de uma geração para ser reconhecida como um grande passo à frente no sentido da verdade. O próprio Darwin conquistou a honra de ter uma sepultura ou cenotáfio na Abadia de Westminster. Um caso como esse deixa-nos pouco a esclarecer. A nova verdade desperta resistências emocionais; estas encontram expressão em argumentos pelos quais as provas em favor da teoria impopular não podem ser discutidas; o combate de opiniões toma um certo período de tempo; desde o princípio, há adeptos e oponentes; tanto o número quanto o peso dos primeiros continuam a crescer, até que, por fim, levam a palma; durante todo o tempo de luta, o assunto com que ela se relaciona jamais é esquecido. Mal nos surpreendemos que o curso inteiro dos acontecimentos tome uma extensão considerável de tempo, e provavelmente não apreciamos suficientemente que aquilo em que estamos interessados constitui um processo de psicologia de grupo.

Não há dificuldade em encontrar, na vida mental de um indivíduo, uma analogia que corresponde exatamente a esse processo. Tal seria o caso se uma pessoa aprendesse algo de novo para ela, que, com base em certas provas, teria de reconhecer como sendo verdadeiro, mas que contradiz alguns de seus desejos e choca algumas convicções que lhe são preciosas. A seguir, essa pessoa hesitará, buscará razões que a capacitem a lançar dúvidas sobre essa coisa nova, e, por algum tempo, ela lutará consigo mesma, até que, finalmente, admitirá para si: ‘De qualquer modo, é assim, embora não me seja fácil aceitar, embora me seja aflitivo ter de acreditar. O que a partir disso aprendemos é simplesmente que leva tempo para a atividade raciocinante do ego superar as objeções sustentadas por intensas catexias afetivas. A semelhança entre esse caso e aquele que estamos nos esforçando por compreender não é muito grande.

O próximo exemplo para o qual nos voltamos parece ter ainda menos em comum com nosso problema. Pode acontecer que um homem que experimentou algum acidente assustador — colisão ferroviária, por exemplo, — deixe a cena desse evento aparentemente incólume. No decorrer das semanas seguintes, contudo, desenvolve uma série de sintomas psíquicos e motores graves, os quais só podem ser remontados a seu choque, à concussão, ou ao que quer que seja. Agora, esse homem tem uma ‘neurose traumática’. Trata-se de um fato inteiramente ininteligível — o que equivale a dizer: novo. O tempo decorrido entre o acidente e o primeiro aparecimento dos sintomas é descrito como sendo o ‘período de incubação’, numa clara alusão à patologia das doenças infecciosas. Refletindo, deve impressionar-nos que, apesar da diferença fundamental entre os dois casos — o problema da neurose traumática e do monoteísmo judaico —, exista, não obstante, um ponto de concordância; a saber: a característica que poderia ser descrita como ‘latência’. Segundo nossa ousada hipótese, na história da religião judaica houve, após a defecção em relação à religião de Moisés, um longo período durante o qual não se detectou sinal algum da idéia monoteísta, do desprezo pelo cerimonial, ou da grande ênfase dada à ética. Assim, ficamos preparados para a possibilidade de que a solução de nosso problema deva ser procurada numa situação psicológica específica.

Já descrevemos repetidamente o que sucedeu em Cades, quando as duas partes do que mais tarde viria a ser o povo judeu se reuniram para receber uma nova religião. Naqueles que, por um lado, estiveram no Egito, as lembranças do Êxodo e da figura de Moisés eram ainda tão fortes e vívidas, que exigiram sua inclusão numa descrição dos primeiros tempos. Eram netos, talvez, de pessoas que conheceram o próprio Moisés, e alguns ainda se sentiam, eles próprios, egípcios, e portavam nomes egípcios. Mas tinham bons motivos para reprimir a lembrança da sorte que seu líder e legislador encontrara. O intuito determinante da outra parte do povo era glorificar o novo deus e discutir sua condição de estrangeiro. Ambas as partes possuíam o mesmo interesse em repudiar o fato de terem tido uma religião anterior e a natureza do conteúdo dela. Foi desse modo que ocorreu o primeiro acordo, provavelmente logo registrado por escrito. O povo oriundo do Egito trouxera consigo a escrita e o desejo de escrever história; mas longo tempo deveria passar-se antes que a escrita histórica compreendesse que estava comprometida com uma veracidade inabalável. Inicialmente, ela não tinha escrúpulos em modelar suas narrativas segundo as necessidades e os propósitos do momento, como se ainda não tivesse reconhecido o conceito de falsificação. Em resultado dessas circunstâncias, pôde desenvolver-se uma discrepância entre o registro escrito e a transmissão oral do mesmo material — a tradição. O que fora omitido ou alterado no registro escrito poderia muito bem ter sido preservado intacto na tradição. Esta constituía não só um suplemento, mas, ao mesmo tempo, uma contradição do escrito histórico. Estava menos sujeita à influência de intuitos deformantes e talvez, em certos pontos, inteiramente isenta deles; poderia, portanto, ser mais verídica do que o relato registrado por escrito. Sua fidedignidade, contudo, padecia do fato de ser menos estável e menos definida do que a descrição escrita, e exposta a numerosas mudanças e alterações quando era transmitida, de uma geração para outra, através da comunicação oral. Uma tradição dessa espécie poderia defrontar-se com variados tipos de destino. O que deveríamos esperar mais, seria que ela fosse esmagada pelo relato escrito, incapacitada de erguer-se contra este, se tornasse cada vez mais esmaecida e, finalmente, passasse para o esquecimento. Mas ela poderia defrontar-se com outros destinos: um deles seria o de que a própria tradição terminasse num registro escrito, e ainda teremos de lidar com outros, à medida que progredimos.

O fenômeno da latência na história da religião judaica, com o qual estamos lidando, pode ser explicado, portanto, pela circunstância de que os fatos e as idéias que foram intencionalmente repudiados pelos que podem ser chamados de historiadores oficiais, nunca se perderam realmente. Informações sobre eles persistiram em tradições que sobreviveram entre o povo. Na verdade, como Sellin nos assegura, houve realmente uma tradição sobre o fim de Moisés que contradizia redondamente a descrição oficial e que estava muito mais perto da verdade. O mesmo, podemos presumir, também se aplicou a outras coisas que aparentemente deixaram de existir ao mesmo tempo que Moisés — a alguns dos conteúdos da religião mosaica que tinham sido inaceitáveis para a maioria de seus contemporâneos.

O fato marcante com que somos aqui confrontados é, contudo, que essas tradições, em vez de se tornarem mais fracas com o tempo, se tornaram cada vez mais poderosas no decorrer dos séculos, impuseram sua entrada nas revisões posteriores dos relatos oficiais e, finalmente, se mostraram suficientemente fortes para exercer influência decisiva nos pensamentos e ações do povo. No momento, é verdade, os determinantes que tornaram possível esse resultado estão fora de nosso conhecimento.

Esse fato é tão notável, que nos sentimos justificados em examiná-lo de novo. Nosso problema está abrangido nele. O povo judeu abandonou a religião de Aten que lhes foi dada por Moisés e voltou-se para a adoração de outro deus que pouco diferia dos Baalim dos povos vizinhos. Todos os esforços tendenciosos de épocas posteriores fracassaram em disfarçar esse fato vergonhoso. Mas a religião mosaica não se desvaneceu sem deixar traço; algum tipo de lembrança dela manteve-se viva: uma tradição possivelmente obscurecida e deformada. E foi essa tradição de um grande passado que continuou a operar (do fundo da cena, por assim dizer), que gradativamente adquiriu cada vez mais poder sobre as mentes das pessoas e que, ao final, conseguiu transformar o deus Javé no deus mosaico e redespertar para a vida a religião de Moisés que fora introduzida e, depois, abandonada havia longos séculos. Que uma tradição assim mergulhada no olvido exercesse efeito tão poderoso sobre a vida mental de um povo constitui uma idéia pouco familiar para nós. Aqui, encontramo-nos no campo da psicologia grupal, onde não nos sentimos à vontade. Procuramos em volta, em busca de analogias, de fatos que sejam pelo menos de natureza semelhante, ainda que em campos diferentes. E fatos desse tipo, acredito, podem ser encontrados.

Durante o período em que, entre os judeus, o retorno da religião de Moisés estava em preparação, o povo grego descobriu-se na posse de um acervo excepcionalmente rico de lendas tribais e mitos heróicos. Acredita-se que o século IX ou VIII a.C. viu a origem das duas epopéias homéricas, que hauriram seu material nesse círculo de lendas. Com nossa atual compreensão interna (insight) psicológica, poderíamos, muito antes de Schliemann e Evans, ter levantado a questão de saber de onde os gregos conseguiram todo o material legendário elaborado por Homero e os grandes dramaturgos áticos em suas obras-primas. A resposta teria tido de ser a de que esse povo provavelmente experimentara em sua pré-história um período de brilhantismo externo e eflorescência cultural perecido numa catástrofe histórica, do qual uma obscura tradição sobrevivia nessas lendas. As pesquisas arqueológicas de nossos dias confirmaram agora essa suspeita, que no passado certamente teria sido pronunciada como sendo audaciosa demais. Essas pesquisas revelaram as provas da impressionante civilização minóico-miceniana, que provavelmente chegou ao fim na Grécia continental antes de 1250 a.C. Dificilmente uma alusão a ela pode ser encontrada nos historiadores gregos da época posterior; no máximo, uma observação de que houve um tempo em que os cretenses exerciam o comando do mar, e o nome do rei Minos e de seu palácio, o Labirinto. Isso é tudo; além disso nada remanesceu, exceto as tradições de que os poetas se apossaram.

As epopéias nacionais de outros povos — alemães, indianos, finlandeses — também vieram à luz. É tarefa dos historiadores da literatura investigar se podemos presumir em relação à sua origem os mesmos determinantes que os dos gregos. Uma tal investigação renderia, acredito, um resultado positivo. Aqui está o determinante que identificamos: um fragmento de pré-história que, imediatamente depois, estaria sujeito a parecer rico em conteúdo, importante, esplêndido, e sempre, talvez, heróico, mas que jaz tão atrás, em tempos tão remotos, que apenas uma tradição obscura e incompleta informa as gerações posteriores sobre ele. Sentiu-se surpresa por que a epopéia, como forma artística, se tenha extinguido em épocas posteriores. A explicação pode ser que sua causa determinante não existe mais. O velho material foi utilizado e, para todos os eventos posteriores, a escrita histórica tomou o lugar da tradição. Os maiores feitos heróicos de nossos dias não foram capazes de inspirar um poema épico, e mesmo Alexandre, o Grande, tinha direito a se lamentar de não encontrar um Homero.

As eras há muito tempo passadas exercem uma grande e freqüentemente enigmática atração para a imaginação dos homens. Sempre que estão insatisfeitos com seu ambiente atual — e isso acontece quase sempre — se voltam para o passado e esperam ser agora capazes de demonstrar a verdade do imperecível sonho de uma Idade de Ouro. Provavelmente ainda se encontram sob o encantamento de sua infância, que lhes é apresentada por sua memória não imparcial como uma época de ininterrupta felicidade.

Se tudo o que resta do passado são as incompletas e enevoadas lembranças que chamamos de tradição, isso oferece ao artista uma atração peculiar, pois, nesse caso, ele fica livre para preencher as lacunas da memória de acordo com os desejos de sua imaginação e para retratar o período que quer reproduzir segundo suas intenções. Quase se poderia dizer que, quanto mais vaga uma tradição, mais útil ela se torna para um poeta. Não precisamos,portanto, ficar surpresos pela importância da tradição para a escrita imaginativa, e a analogia com a maneira pela qual as epopéias são determinadas nos deixará mais inclinados a aceitar a estranha hipótese de que foi a tradição de Moisés que, para os judeus, alterou a adoração de Javé no sentido da antiga religião mosaica. Contudo, sob outros aspectos, os dois casos ainda são muito diferentes. Por um lado, o resultado é um poema; por outro, é uma religião, e, nesse último caso, presumimos que, sob o acicate da tradição, ele foi reproduzido com uma fidelidade para a qual o exemplo da epopéia naturalmente não pode oferecer contrapartida. Por conseguinte, resta muita coisa de nosso problema para justificar a necessidade de analogias mais apropriadas.

 

C - A ANALOGIA

 

A única analogia satisfatória com o notável curso de acontecimentos que encontramos na história da religião judaica reside num campo aparentemente remoto, mas é bastante completa e aproxima-se da identidade. Nela, mais uma vez nos deparamos com o fenômeno da latência, o surgimento de manifestações ininteligíveis, a exigir uma explicação, e um acontecimento precoce, e depois esquecido, como determinante necessário. Encontramos também a característica da compulsão, que se impõe à mente juntamente com uma subjugação do pensamento lógico, aspecto que, por exemplo, não entrou em consideração na gênese do poema épico.

A analogia é encontrada na psicopatologia, na gênese das neuroses humanas, num campo, equivale a dizer, pertencente à psicologia dos indivíduos, ao passo que os fenômenos religiosos, naturalmente, têm de ser considerados como parte da psicologia grupal. Veremos que essa analogia não é tão surpreendente como a princípio se poderia pensar; na verdade, ela se assemelha mais a um postulado.

Denominanos traumas aquelas impressões, cedo experimentadas e mais tarde esquecidas, a que concedemos tão grande importância na etiologia das neuroses. Podemos deixar de lado a questão de saber se a etiologia das neuroses em geral pode ser encarada como traumática. A objeção óbvia a isso é que não é possível, em todos os casos, descobrir um trauma manifesto na história primitiva do indivíduo neurótico. Com freqüência, devemos resignar-nos a dizer que tudo o que temos perante nós é uma reação anormal, fora do comum, a experiências e exigências que afetam a todos, mas são elaboradas e tratadas por outras pessoas de uma outra maneira, que pode ser chamada de normal. Quando não temos nada mais à nossa disposição para explicar uma neurose, exceto disposições hereditárias e constitucionais, ficamos naturalmente tentados a dizer que ela não foi adquirida, mas desenvolvida.

Quanto a isso, porém, dois pontos devem ser enfatizados. Em primeiro lugar, a gênese de uma neurose invariavelmente remonta a impressões muito primitivas da infância. Em segundo, é verdade que existem casos que se distinguem como ‘traumáticos’ porque seus efeitos remontam inequivocamente a uma ou mais impressões poderosas nessas épocas primitivas — impressões que escaparam de ser lidadas normalmente, de maneira que se fica inclinado a julgar que, se não tivessem ocorrido, tampouco a neurose teria surgido. Seria bastante para nossos fins se fôssemos obrigados a restringir a analogia de que estamos à procura a esses casos traumáticos. Mas o hiato entre os dois grupos [de casos] não parece ser intransponível. É inteiramente possível unir os dois determinantes etiológicos numa só concepção; trata-se simplesmente da questão de como definir ‘traumático’. Se presumirmos que a experiência adquire seu caráter traumático apenas em resultado de um fator quantitativo — isto é, que em cada caso é um excesso de exigência o responsável por uma experiência que evoca reações patológicas fora do comum —, então poderemos facilmente chegar ao expediente de dizer que algo age como um trauma no caso de determinada constituição, mas, no caso de outra, não teria tal efeito. Dessa maneira, atingimos o conceito de uma ‘série complementar’ deslizante, tal como é chamada1 na qual dois fatores convergem para o preenchimento de um requisito etiológico. Uma parte menor de um dos fatores é equilibrada por uma parte maior do outro via de regra, ambos operam em conjunto e é somente nas duas extremidades da série que se pode discutir se um motivo simples está em ação. Após mencionar isso, podemos desprezar, como sendo irrelevante para a analogia que estamos buscando, a distinção entre etiologias traumáticas e não-traumáticas.

Apesar do risco de repetição, talvez seja bom reunir aqui os fatos que abrangem a analogia que nos é significativa. São os seguintes. Nossas pesquisas demonstraram que aquilo que chamamos de fenômenos (sintomas) de uma neurose são o resultado de certas experiências e impressões que, por essa mesma razão, encaramos como traumas etiológicos. Temos agora duas tarefas perante nós: descobrir (1) características comuns dessas experiências e (2) as dos sintomas neuróticos, e, assim procedendo, não precisamos evitar traçar um quadro um tanto esquemático.

(1) (a) Todos esses traumas ocorrem na primeira infância até aproximadamente o quinto ano de idade. Impressões da época em que uma criança está começando a falar ressaltam como sendo de particular interesse; os períodos entre as idades de dois e quatro anos parecem ser os mais importantes; não se pode determinar com certeza quanto tempo após o nascimento esse período de receptividade começa. (b) As experiências em apreço são, via de regra, totalmente esquecidas, não são acessíveis à memória e incidem dentro do período de amnésia infantil, geralmente interrompida por alguns resíduos mnêmicos isolados, conhecidos como ‘recordações encobridoras’. (c) Elas relacionam-se a impressões de natureza sexual e agressiva, e, indubitavelmente, também a danos precoces ao ego (mortificações narcísicas). Com relação a isso, deve-se observar que essas crianças de tenra idade não estabelecem distinção nítida entre atos sexuais e agressivos, como o fazem posteriormente. (Cf. a má interpretação do ato sexual, num sentido sádico.) O predomínio do fator sexual é, naturalmente, mais marcante e exige consideração teórica.

Esses três pontos — o aparecimento bastante precoce dessas experiências (durante os cinco primeiros anos de vida), o fato de serem esquecidas, e seu conteúdo sexual-agressivo — estão estreitamente intervinculados. Os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo do indivíduo ou percepções sensórias, principalmente de algo visto e ouvido, isto é, experiências ou impressões. A intervinculação desses três pontos é estabelecida por uma teoria, um produto do trabalho de análise que, apenas ele, pode provocar um conhecimento das experiências esquecidas, ou, para expressá-lo do modo mais vivo, embora também mais incorretamente, trazê-las de volta à memória. A teoria é que, em contraste com a opinião popular, a vida sexual dos seres humanos (ou o que a ela corresponde mais tarde) apresenta uma eflorescência precoce que chega ao fim por volta do quinto ano, sendo seguida pelo que é conhecido como período de latência (até a puberdade), em que não há desenvolvimento ulterior da sexualidade e, na verdade, o que fora atingido experimenta uma retrogressão. Essa teoria é confirmada pela investigação anatômica do crescimento dos órgãos genitais internos; ela nos leva a supor que a raça humana descende de uma espécie animal que atingiu a maturidade sexual aos cinco anos e desperta a suspeita de que o adiamento da vida sexual e seu desencadeamento difásico [em duas ondas] estão intimamente vinculados à função de hominização. Os seres humanos parecem ser os únicos organismos animais com um período de latência e um retardamento sexual desse tipo. Investigações efetuadas em primatas (que, até onde sei, não estão disponíveis) seriam indispensáveis para a verificação dessa teoria. Não pode ser psicologicamente indiferente que o período de amnésia infantil coincida com esse período primitivo da sexualidade. Pode ser que esse estado de coisas forneça o verdadeiro determinante para a possibilidade da neurose, que é, em certo sentido, uma prerrogativa humana e, desse ponto de vista, aparece como um vestígio — um ‘survival’ — de tempos primevos, tal como certas partes de nossa anatomia corporal.

(2) Dois pontos devem ser acentuados quanto às características ou peculiaridades comuns dos fenômenos neuróticos: (a) Os efeitos dos traumas são de dois tipos, positivos e negativos. Os primeiros são tentativas de pôr o trauma em funcionamento mais uma vez, isto é, recordar a experiência esquecida ou, melhor ainda, torná-la real, experimentar uma repetição dela de novo, ou, mesmo que ela seja apenas um relacionamento emocional primitivo, revivê-la num relacionamento análogo com outra pessoa. Resumimos esses esforços sob o nome de ‘fixações’ no trauma e como uma ‘compulsão a repetir’. Eles podem ser percebidos no que passa por ser um ego normal e, como tendências permanentes nele, podem emprestar-lhe traços caracterológicos inalteráveis, embora, ou melhor, precisamente por causa disso, sua verdadeira base e origem históricas estejam esquecidas. Assim, um homem que passou a infância numa ligação excessiva e atualmente esquecida com a mãe pode passar toda a vida procurando uma esposa de quem possa conseguir ser nutrido e apoiado. Uma menina que foi tornada objeto de uma sedução sexual na infância pode orientar sua vida sexual posterior de maneira a constantemente provocar ataques semelhantes. Pode-se facilmente adivinhar que, a partir de tais descobertas sobre o problema da neurose, podemos penetrar numa compreensão da formação do caráter em geral.

As reações negativas seguem o objetivo oposto: que nada dos traumas esquecidos seja recordado e repetido. Podemos resumi-las como ‘reações defensivas’. Sua expressão principal constitui aquilo que é chamado de ‘evitações’, que se podem intensificar em ‘inibições’ e ‘fobias’. Essas reações negativas também efetuam as contribuições mais poderosas para a cunhagem do caráter. Fundamentalmente, elas são fixações no trauma, tanto quanto seus opostos, exceto por serem fixações com intuito contrário. Os sintomas de neurose, no sentido mais estrito, são conciliações em que ambas as tendências procedentes dos traumas se reúnem, de maneira que a cota, ora de uma, ora de outra tendência, encontre nelas expressão preponderante. Essa oposição entre as reações dá início a conflitos que, no curso comum dos acontecimentos, não conseguem chegar a qualquer conclusão.

(b) Todos esses fenômenos, tanto os sintomas quanto as restrições ao ego e as modificações estáveis de caráter, possuem uma qualidade compulsiva: isso equivale a dizer que têm uma grande intensidade psíquica e, ao mesmo tempo, apresentam uma independência de grandes conseqüências quanto à organização dos outros processos mentais, que se ajustam à exigências do mundo externo real e obedecem às leis do pensamento lógico. Eles [os fenômenos patológicos] são insuficientemente ou de modo algum influenciados pela realidade externa, não lhe concedeu atenção ou a seus representantes psíquicos, de maneira que podem facilmente entrar em oposição ativa a ambos. São, poder-se-ia dizer, um Estado dentro de um Estado, um partido inacessível, com o qual a cooperação é impossível, mas que pode alcançar êxito em dominar o que é conhecido como partido normal e forçá-lo a seu serviço. Se isso acontecer, acarreta uma dominação, por parte de uma realidade psíquica interna, sobre a realidade do mundo externo, e está aberto o caminho para a psicose. Mesmo se as coisas não vão até esse ponto, a inibição prática dessa situação dificilmente pode ser superestimada. A inibição sobre a vida daqueles que são dominados por uma neurose e sua incapacidade de viver constituem fator muito importante numa sociedade humana, e podemos identificar em seu estado uma expressão direta de sua fixação numa parte primitiva de seu passado.

E agora investiguemos a latência, que, em vista da analogia, está fadada a nos interessar especialmente. Um trauma na infância pode ser imediatamente seguido por um desencadeamento neurótico, uma neurose infantil, com uma abundância de esforços de defesa, e acompanhada pela formação de sintomas. Esta neurose pode durar um tempo considerável e provocar perturbações acentuadas, mas pode também seguir um curso latente e não ser notada. Via de regra, as defesas levam a palma nisso; seja como for, alterações do ego, comparáveis a cicatrizes, são deixadas atrás. Só raramente uma neurose infantil prossegue, sem interrupção, numa neurose adulta. Muito mais freqüentemente ela é sucedida por um período de desenvolvimento aparentemente não perturbado — curso de coisas apoiado ou tornado possível pela intervenção do período fisiológico da latência. Só posteriormente realiza-se a mudança com que a neurose definitiva se torna manifesta, como um efeito retardado do trauma. Isso ocorre ou na irrupção da puberdade ou algum tempo depois. No primeiro caso, isso sucede porque as reações e alterações do ego provocadas pela defesa se mostram agora um estorvo no lidar com as novas tarefas da vida, de maneira que graves conflitos surgem entre as exigências do mundo externo real e o ego, que busca manter a organização a que penosamente chegou em sua luta defensiva. O fenômeno de uma latência das neuroses entre as primeiras reações ao trauma e o desencadeamento posterior da doença deve ser considerado como típico. Essa última doença também pode ser encarada como uma tentativa de cura — como mais um esforço para reconciliar com o resto aquelas partes do ego que foram expelidas (split off) pela influência do trauma, e uni-las num todo poderoso vis-à-vis o mundo externo. Contudo, uma tentativa desse tipo raramente tem êxito, a menos que o trabalho de análise venha em sua ajuda, e mesmo então, nem sempre; finda, com bastante freqüência, por uma devastação ou fragmentação completa do ego, ou por ele ser esmagado pela parte que foi precocemente expelida e que é dominada pelo trauma.

A fim de convencer o leitor, seria necessário fornecer relatórios pormenorizados das histórias da vida de numerosos neuróticos. Entretanto, em vista da difusão e dificuldade do assunto, isso destruiria completamente o caráter do presente trabalho. Transformá-lo-ia numa monografia sobre a teoria das neuroses e, ainda assim, provavelmente só teria efeito sobre aquela minoria de leitores que optaram pelo estudo e a prática da psicanálise como seu trabalho de vida. Visto que estou dirigindo-me aqui a uma audiência mais ampla, só posso pedir ao leitor para conceder-me uma certa crença provisória na descrição abreviada que forneci acima, e isso deve ser acompanhado por uma admissão de minha parte de que as implicações a que estou agora conduzindo-o só precisam ser aceitas se as teorias em que se baseiam se mostrarem corretas.

Não obstante, posso tentar contar a história de um caso isolado que apresenta com especial clareza algumas das características de neurose que mencionei. Não devemos esperar, naturalmente, que um único caso demonstre tudo, e precisaremos não nos sentir desapontados se seu tema geral estiver muito afastado do tópico para o qual estou buscando uma analogia.

Um menininho que, como tão freqüentemente acontece nas famílias de classe média, partilhara do quarto de dormir dos pais durante os primeiros anos de sua vida, tivera repetidas e, na verdade, regulares oportunidades de observar atos sexuais entre os pais — de ver algumas coisas e ouvir outras mais — numa idade em que mal aprendera a falar. Em sua neurose posterior, que irrompeu imediatamente depois de sua primeira emissão espontânea, o primeiro e mais perturbador dos sintomas foi o distúrbio do sono. Era extraordinariamente sensível a barulhos à noite e, uma vez acordado, não conseguia dormir de novo. Esse distúrbio do sono era um verdadeiro sintoma de conciliação. Por um lado, constituía expressão de sua defesa contra as coisas que havia experimentado à noite, e, por outro, uma tentativa de restabelecer o estado de vigília em que pudera escutar aquelas impressões.

A criança foi prematuramente despertada, por observações desse tipo, a uma masculinidade agressiva e começou a excitar seu pequeno pênis com a mão e a tentar variados assaltos sexuais à mãe, identificando-se assim com o pai, em cujo lugar se colocava. Isso prosseguiu até que, por fim, a mãe proibiu-o de tocar no pênis e ameaçou-o ainda de contar a seu pai, que o castigaria tirando-lhe fora o órgão pecaminoso. Essa ameaça de castração exerceu um efeito traumático extraordinariamente poderoso sobre o menino. Ele abandonou sua atividade sexual e alterou seu caráter. Em vez de se identificar com o pai, ficou com medo dele, adotou para com ele uma atitude passiva e, através de travessuras ocasionais, provocava-o à administração de castigos corporais, que tinham para ele significado sexual, de maneira a assim poder identificar-se com sua maltratada mãe. Apegou-se à mãe cada vez mais ansiosamente, como se não pudesse passar sem o amor dela por um só momento, visto que percebia nele uma proteção contra o perigo de castração que o ameaçava do lado do pai. Nessa modificação do complexo de Édipo, passou ele seu período de latência, que foi livre de quaisquer distúrbios acentuados. Tornou-se um menino exemplar e era muito bem-sucedido na escola.

Até agora, acompanhamos o efeito imediato do trauma e confirmamos o fato da latência.

A chegada da puberdade trouxe consigo a neurose manifesta e revelou seu segundo sintoma principal — a impotência sexual. Perdera a sensibilidade do pênis, não tentava tocá-lo, não se arriscava a aproximar-se de uma mulher para fins sexuais. Sua atividade sexual permanecia limitada à masturbação psíquica, acompanhada por fantasia sado-masoquista nas quais não era difícil identificar ramificações de suas primitivas observações da relação sexual entre os pais. A onda de masculinidade intensificada que a puberdade trouxera consigo foi empregada num ódio furioso ao pai e na insubordinação a ele. Essa relação extremada com o pai, ousada ao ponto de autodestruição, era responsável tanto por seu fracasso na vida quanto por seus conflitos com o mundo externo. Ele tinha de ser um fracasso em sua profissão, porque o pai o forçara a segui-la. Tampouco fazia amigos e nunca esteve em bons termos com seus superiores.

Quando, onerado por esses sintomas e incapacidades, ele por fim, depois da morte do pai, encontrou uma esposa, emergiram nele, como se constituíssem o cerne de seu ser, traços caracterológicos que tornavam o contato com ele tarefa difícil para aqueles que o rodeavam. Desenvolveu uma personalidade completamente egoísta, despótica e brutal, que claramente sentia necessidade de dominar e insultar outras pessoas. Constituía uma cópia fiel de seu pai, tal como formara uma imagem deste em sua memória, o que equivale a dizer, uma revivescência da identificação com o pai que, no passado, ele assumira como rapazinho, por motivos sexuais. Nessa parte da história, reconhecemos o retorno do reprimido, o qual (juntamente com os efeitos imediatos do trauma e o fenômeno da latência) descrevemos como estando situado entre as características essenciais de uma neurose.

 

D - APLICAÇÃO

 

Trauma primitivo — defesa — latência — desencadeamento da doença neurótica — retorno parcial reprimido: tal é a fórmula que estabelecemos para o desenvolvimento de uma neurose. O leitor é agora convidado a dar o passo de supor que ocorreu na vida da espécie humana algo semelhante ao que ocorre na vida dos indivíduos, de supor, isto é, que também aqui ocorreram eventos de natureza sexualmente agressiva, que deixaram atrás de si conseqüências permanentes, mas que foram, em sua maioria, desviados e esquecidos, e que após uma longa latência entraram em vigor e criaram fenômenos semelhantes a sintomas, em sua estrutura e propósito.

Acreditamos que podemos adivinhar esses eventos e nos propomos demonstrar que suas conseqüências semelhantes a sintomas são os fenômenos da religião. Visto que o surgimento da idéia da evolução não mais deixa lugar para dúvidas de que a raça humana possui uma pré-história, e visto que esta é desconhecida — isto é, esquecida —, uma conclusão desse tipo carrega quase o peso de um postulado. Quando aprendemos que, em ambos os casos, os traumas operantes e esquecidos se referem à vida na família humana, podemos acolher isso como um prêmio altamente bem-vindo e imprevisto, que não foi invocado por nossos estudos até esse ponto.

Apresentei essas asserções já um quarto de século atrás, em meu Totem e Tabu (1912-13), e basta que eu as repita aqui. Minha construção parte de um enunciado de Darwin (1871, 2, p. 362 e seg.] e inclui uma hipótese de Atkinson [1903, p. 220 e seg.]. Afirma ela que, em épocas primevas, o homem primitivo vivia em pequenas hordas cada uma das quais sob o domínio de um macho poderoso. Nenhuma data pode ser atribuída a isso; tampouco isso se acha sincronizado às épocas geológicas que nos são conhecidas; é provável que essas criaturas humanas não tivessem progredido muito no desenvolvimento da fala. Uma parte essencial da construção é a hipótese de que os eventos que me disponho a descrever ocorreram a todos os homens primitivos, isto é, a todos os nossos antepassados. A história é contada sob forma enormemente condensada, como se tivesse acontecido numa só ocasião, ao passo que, de fato, ela abrange milhares de anos e se repetiu incontáveis vezes durante esse longo período. O macho forte era senhor e pai de toda a horda, e irrestrito em seu poder, que exercia com violência. Todas as fêmeas eram propriedade sua — esposas e filhas de sua própria horda, e algumas, talvez, roubadas de outras hordas. A sorte dos filhos era dura: se despertavam o ciúme do pai, eram mortos, castrados, ou expulsos. Seu único recurso era reunirem-se em pequenas comunidades, arranjarem esposas para si através do rapto, e, quando um ou outro deles podia ter êxito nisso, elevarem-se a uma posição semelhante à do pai, na horda primeva. Por razões naturais, os filhos mais novos ocupavam uma posição excepcional. Eram protegidos pelo amor de suas mães e podiam tirar vantagem da idade crescente do pai e sucedê-lo quando de sua morte. Podemos detectar, em lendas e contos de fadas, ecos tanto da expulsão dos filhos mais velhos quanto do favorecimento dos mais novos.

O primeiro passo decisivo no sentido de uma modificação nesse tipo de organização ‘social’ parece ter sido que os irmãos expulsos, vivendo numa comunidade, uniram-se para derrotar o pai e, como era costume naqueles dias, devoraram-no cru. Não há necessidade de esquivar-se a esse canibalismo; ele continuou bem adiante, em épocas posteriores. O ponto essencial, contudo, é que atribuímos a esses homens primitivos as mesmas atitudes emocionais que pudemos estabelecer pela investigação analítica nos primitivos da época atual — em nossos filhos. Isto é, supomos que eles não apenas odiaram e temeram o pai, mas também o honraram como modelo, e que cada um deles desejou ocupar seu lugar na realidade. Podemos, se assim for, compreender o canibalismo como uma tentativa de assegurar uma identificação com ele, pela incorporação de um pedaço seu.

Deve-se supor que, após o parricídio, um tempo considerável se passou, durante o qual os irmãos disputaram uns com os outros a herança do pai, que cada um deles queria para si sozinho. Uma compreensão dos perigos e da inutilidade dessas lutas, uma rememoração do ato de liberação que haviam realizado juntos, e os vínculos emocionais mútuos que haviam surgido durante o período de sua expulsão, conduziram por fim a um acordo entre eles, a uma espécie de contrato social. A primeira forma de organização social ocorreu com uma renúncia ao instinto, um reconhecimento das obrigações mútuas, a introdução de instituições definidas, pronunciadas invioláveis (sagradas), o que equivale a dizer, os primórdios da moralidade e da justiça.Cada indivíduo renunciou a seu ideal de adquirir a posição do pai para si e de possuir a mãe e as irmãs. Assim, surgiram o tabu do incesto e a injunção à exagomia. Boa parte do poder absoluto liberado pelo afastamento do pai passou para as mulheres; veio um período de matriarcado. A recordação do pai persistiu nesse período da ‘aliança fraterna’. Um animal poderoso — a princípio, talvez, sempre um que também era temido — foi escolhido como substituto do pai. Uma escolha desse tipo pode parecer estranha, mas o abismo que os homens estabeleceram mais tarde entre eles próprios e os animais não existia para os novos primitivos, nem tampouco existe para nossas crianças, cujas fobias animais podemos compreender como sendo medo do pai. Com relação ao animal totêmico, a dicotomia original na relação emocional com o pai (ambivalência) foi inteiramente mantida. Por um lado, o totem era encarado como ancestral de sangue e espírito protetor do clã, a ser adorado e protegido, e, por outro, marcava-se um festival em que se lhe achava preparado o mesmo destino que o pai primevo havia encontrado. Ele era morto e devorado por todos os membros da tribo, em comum. (A refeição totêmica, segundo Robertson Smith [1894].) Esse grande festival, na realidade, era uma celebração triunfante da vitória dos filhos combinados sobre o pai.

Qual é o lugar da religião com relação a isso? Penso que estamos completamente justificados em encarar o totemismo, com sua adoração de um substituto paterno, com sua instituição de festivais comemorativos e de proibições cuja infração era punida pela morte, estamos justificados, dizia eu, em encarar o totemismo como a primeira forma em que a religião se manifestou na história humana, e em confirmar o fato de ele ter sido vinculado, desde o início, aos regulamentos sociais e às obrigações morais. Aqui, só podemos fornecer o levantamento mais resumido dos outros desenvolvimentos da religião. Eles, sem dúvida, progrediram paralelamente com os avanços culturais da raça humana e com as modificações na estrutura das comunidades humanas.

O primeiro passo para longe do totemismo foi a humanização do ser que era adorado. Em lugar dos animais, aparecem deuses humanos, cuja derivação do totem não é escondida. O deus ainda é representado sob a forma de um animal ou, pelo menos, com um rosto de animal, ou o totem se torna o companheiro favorito do deus, inseparável dele, ou a lenda nos conta que o deus matou esse animal exato, que era, afinal de contas, apenas um estádio preliminar dele próprio. Em certo ponto dessa evolução, que não é facilmente determinado, aparecem grandes deusas-mães provavelmente antes mesmo dos deuses masculinos, persistindo após, por longo tempo, ao lado destes. Nesse meio tempo, uma grande revolução social ocorrera. O matriarcado fora sucedido pelo restabelecimento de uma ordem patriarcal. Os novos pais, é verdade, jamais conquistaram a onipotência do pai primevo; havia muitos deles que viviam juntos em associações maiores do que a horda. Estavam obrigados a se manter em bons termos uns com os outros, e permaneceram sob as limitações das ordenanças sociais. É provável que as deusas-mães se tenham originado na época do cerceamento do matriarcado, como compensação da desatenção às mães. As divindades masculinas aparecem a princípio com filhos, ao lado das grandes mães, e só mais tarde assumem claramente as características de figuras paternas. Esses deuses masculinos do politeísmo refletem as condições existentes durante a era patriarcal. São numerosos, mutuamente restritivos, e ocasionalmente subordinados a um deus superior. O passo seguinte, contudo, nos conduz ao tema que aqui nos interessa: ao retorno de um deus-pai único, de domínio ilimitado.

Tem-se de admitir que esse levantamento histórico possui lacunas e é incerto em alguns pontos. Mas todo aquele que esteja inclinado a pronunciar nossa construção da história primeva como sendo puramente imaginária estaria subestimando gravemente a riqueza e o valor probatório do material nela contido. Grandes partes do passado, que aqui foram reunidas num todo, estão historicamente atestadas: totemismo e as confederações masculinas, por exemplo. Outras partes sobreviveram em réplicas excelentes. Assim, as autoridades freqüentemente se impressionaram pela maneira fiel mediante a qual o sentido e o conteúdo da antiga refeição totêmica são repetidos no rito da Comunhão Cristã, na qual o crente incorpora o sangue e a carne de seu deus, em forma simbólica. Numerosas relíquias da era primeva esquecida sobrevieram nas lendas populares e nos contos de fadas, e o estudo analítico da vida mental das crianças proporcionou inesperada abundância de material para preencher as lacunas em nosso conhecimento dos tempos primitivos. Como contribuições à nossa compreensão da relação do filho com o pai, de tão grande importância, basta-me apenas apresentar as fobias animais, o medo, que nos impressiona como tão estranho, de ser comido pelo pai, e a enorme intensidade do pavor de ser castrado. Nada existe de inteiramente fabricado em nossa construção, nada que não possa apoiar-se em fundamentos sólidos.

Se nossa descrição da história primeva é aceita como, em geral, digna de crédito, dois tipos de elementos serão identificados nas doutrinas e rituais religiosos: por um lado, fixações na história antiga da família e sobrevivências dela, e, por outro, revivescências do passado e retornos, após longos intervalos, daquilo que fora esquecido. É essa última parte, até agora desprezada e, portanto, não compreendida, que vai ser demonstrada aqui, pelo menos num caso impressivo.

Vale a pena acentuar especialmente o fato de que cada parte que retorna do olvido afirma-se com força peculiar, exerce uma influência incomparavelmente poderosa sobre as pessoas na massa, e ergue uma reivindicação irresistível à verdade, contra a qual as objeções lógicas permanecem impotentes: uma espécie de ‘credo quia absurdum‘. Essa característica fora do comum só pode ser compreendida segundo o modelo dos delírios dos psicóticos. Há muito tempo compreendemos que uma parte de verdade esquecida jaz oculta nas idéias delirantes, que quando aquela retorna tem de se apresentar com deformações e más compreensões, e que a convicção compulsiva que se liga ao delírio surge desse cerne de verdade e se espalha para os erros que a envolvem. Temos de conceder a existência de um ingrediente como esse, do que pode ser chamado de verdade histórica, também nos dogmas da religião, os quais, é verdade, apresentam o caráter de sintomas psicóticos, mas que, como fenômenos grupais, fogem à maldição do isolamento.

Nenhuma outra parte da história da religião se nos tornou tão clara quanto a introdução do monoteísmo no judaísmo e sua continuação no cristianismo, se deixamos de lado o desenvolvimento, que podemos traçar não menos ininterruptamente, do animal totêmico ao deus humano, com seus companheiros regulares. (Cada um dos quatro evangelistas cristãos ainda possui seu próprio animal favorito.) Se provisoriamente aceitarmos o império mundial dos faraós como causa determinante do surgimento da idéia monoteísta, veremos que essa idéia, libertada de seu solo nativo e transferida para outro povo, foi, após longo período de latência, assumida por este, por ele preservada como uma possessão preciosa, e, por sua vez, ela própria o manteve vivo, por fornecer-lhe o orgulho de ser um povo escolhido: foi à religião de seu pai primevo que ligou sua esperança de recompensa, de distinção e, finalmente, de domínio mundial. Essa última fantasia de desejo, há muito tempo abandonada pelo povo judeu, ainda sobrevive entre os inimigos desse povo, na crença numa conspiração por parte dos ‘Velhos de Sion’. Reservamos para exame em páginas posteriores a maneira pela qual as peculiaridades especiais da religião monoteísta, tomada de empréstimo ao Egito, afetaram o povo judeu, e como estava fadada a deixar uma marca permanente em seu caráter, através de sua rejeição da magia e do misticismo, de seu convite a avanços em intelectualidade, e de seu incentivo às sublimações; como o povo, extasiado pela posse da verdade, esmagado pela consciência de ser escolhido, veio a ter uma alta opinião do que é intelectual e a dar ênfase ao que é moral, e como seus melancólicos destinos e seus desapontamentos na realidade serviram apenas para intensificar todas essas tendências. De momento, seguiremos seu desenvolvimento em outra direção.

O restabelecimento do pai primevo em seu direitos históricos constituiu um grande passo à frente, mas não podia ser o fim. As outras partes da tragédia pré-histórica insistiam em ser reconhecidas. Não é fácil discernir o que colocou esse processo em movimento. Parece como se um crescente sentimento de culpa se tivesse apoderado do povo judeu, ou, talvez, de todo o mundo civilizado da época, como um precursor de retorno do material reprimido, até que, por fim, um desses judeus encontrou, ao justificar um agitador político-religioso, ocasião para desligar do judaísmo uma nova religião — a cristã. Paulo, um judeu romano de Tarso, apoderou-se desse sentimento de culpa e o fez remontar corretamente à sua fonte original. Chamou essa fonte de ‘pecado original’; fora um crime contra Deus, e só podia ser expiado pela morte. Com o pecado original, a morte apareceu no mundo. Na verdade, esse crime merecedor de morte fora o assassinato do pai primevo posteriormente deificado. Mas o assassinato não era recordado; ao invés, havia uma fantasia de sua expiação, e, por essa razão, essa fantasia podia ser saudada como uma mensagem de redenção (evangelium). Um filho de Deus se permitira ser morto sem culpa e assim tomara sobre si próprio a culpa de todos os homens. Tinha de ser um filho, visto que fora o assassinato de um pai. É provável que tradições de mistérios orientais e gregos tenham exercido influência na fantasia da redenção. O essencial nela parece ter sido a própria contribuição de Paulo. No sentido mais próprio, ele foi um homem de disposição inatamente religiosa: os traços sombrios do passado espreitavam em sua mente, prontos a irromperem para suas regiões mais conscientes.

Que o redentor se sacrificara sem culpa era evidentemente uma deformação tendenciosa, que oferecia dificuldades para a compreensão lógica, pois como podia alguém sem culpa do ato do assassinato tomar sobre si a culpa dos assassinos, permitindo-se ser morto? Na realidade histórica, não havia tal contradição. O ‘redentor’ não podia ser outro senão a pessoa mais culpada, o cabeça da reunião de irmãos que havia derrotado o pai. A meu juízo, temos de deixar indecidido se houve esse rebelde principal e cabeça. É possível, mas temos também de manter em mente que cada um do grupo de irmãos certamente tinha desejo de cometer o feito por si próprio, sozinho, e criar assim uma posição excepcional para si e encontrar um substituto para sua identificação com o pai, que estava tendo de ser abandonada e se estava fundindo na comunidade. Se não houve tal cabeça, então Cristo foi o herdeiro de uma fantasia de desejo que permaneceu irrealizada; se houve, então ele foi seu sucessor e sua reencarnação. Mas não importa que aquilo que temos aqui seja uma fantasia ou o retorno de uma realidade esquecida; seja como for, a origem do conceito de um herói deve ser encontrada neste ponto; o herói que sempre se rebela contra o pai e o mata sob a uma forma outra. Aqui também está a verdadeira base para a ‘culpa trágica’ do herói do teatro, que, de outra maneira, é difícil de explicar. Mal se pode duvidar de que o herói e o coro do teatro grego representem o mesmo herói rebelde e o grupo de irmãos, e não é sem significância que, na Idade Média, aquilo com que o teatro se iniciou de novo foi a representação da história da Paixão.

Já dissemos que a cerimônia cristã da Sagrada Comunhão, na qual o crente incorpora o sangue e a carne do Salvador, repete o conteúdo da antiga refeição totêmica, indubitavelmente apenas em seu significado agressivo. A ambivalência que domina a relação com o pai foi claramente demonstrada,contudo, no desfecho final da inovação religiosa. Ostensivamente visando a propiciar o deus paterno, termina por ele ser destronado e por livrar-se dele. O judaísmo fora uma religião do pai; o cristianismo tornou-se uma religião do filho. O antigo Deus Pai tombou para trás de Cristo; Cristo, o Filho, tomou seu lugar, tal como todo filho tivera esperanças de fazê-lo, nos tempos primevos. Paulo, que conduziu o judaísmo à frente, também o destruiu. Fora de dúvida, ele deveu seu sucesso, no primeiro caso, ao fato de, através da idéia do redentor, exorcizar o sentimento de culpa da humanidade, mas deveu-o também à circunstância de ter abandonado o caráter ‘escolhido’ de seu povo e seu sinal visível — a circuncisão —, de maneira que a nova religião podia ser uma religião universal, a abranger todos os homens. Ainda que no fato de Paulo dar esse passo um papel possa ter sido desempenhado por seu desejo pessoal de vingança pela rejeição de sua inovação nos círculos judaicos, ele, contudo, restaurou também uma característica da antiga religião de Aten; afastou uma restrição que essa religião havia adquirido quando fora transmitida a um novo veículo, o povo judeu.

Sob certos aspectos, a nova religião significou uma regressão cultural, comparada com a mais antiga, a judaica, tal como regularmente acontece quando uma nova massa de povo, de um nível mais baixo, consegue ingresso à força ou recebe admissão. A religião cristã não manteve o alto nível em coisas da mente a que o judaísmo se havia alçado. Não era mais estritamente monoteísta, tomou numerosos rituais simbólicos de povos circunvizinhos, restabeleceu a grande deusa-mãe e achou lugar para introduzir muitas das figuras divinas do politeísmo, apenas ligeiramente veladas, ainda que em posições subordinadas. Acima de tudo, como a religião de Aten e a religião mosaica que a seguiu haviam feito, não excluiu o ingresso de elementos surpersticiosos, mágicos e místicos, que deveriam mostrar-se como uma inibição grave sobre o desenvolvimento intelectual dos dois mil anos seguintes.

O triunfo do cristianismo foi um novo triunfo dos sacerdotes de Amun sobre o deus de Akhenaten, após um intervalo de mil e quinhentos anos e num palco mais amplo. E, contudo, na história da religião — isto é, com referência ao retorno do reprimido — o cristianismo constituía um avanço e, a partir dessa época, a religião judaica foi, até certo ponto, um fóssil.

Valeria pena entender como foi que a idéia monoteísta causou uma impressão tão profunda exatamente sobre o povo judeu, e como foram eles capazes de mantê-la tão tenazmente. É possível, penso, encontrar uma resposta. O destino trouxera o grande feito e o malfeito dos dias primevos, a morte do pai, para mais perto do povo judeu, fazendo-o repeti-lo na pessoa de Moisés, uma destacada figura paterna. Tratou-se de um caso de ‘atuação’ (acting out) ao invés de recordação, como sucede tão amiúde com os neuróticos durante o trabalho de análise. À sugestão de que deviam recordar, que lhes foi feita pela doutrina de Moisés, reagiram, contudo, pelo repúdio de sua ação; permaneceram detidos no reconhecimento do grande pai e bloquearam assim seu acesso ao ponto a partir do qual, mais tarde, Paulo deveria iniciar sua continuação da história primeva. Dificilmente pode ser questão indiferente ou fortuita que a morte violenta de outro grande homem se tenha tornado também o ponto de partida da nova criação religiosa de Paulo. Tratava-se de um homem a quem um pequeno número de adeptos na Judéia encarava como sendo o Filho de Deus e o Messias anunciado, e a quem, igualmente, uma parte da história da infância inventada para Moisés foi posteriormente transferida ver em[[1]], mas de quem, na verdade, pouco mais conhecemos, com certeza, do que de Moisés: se ele foi realmente o grande mestre retratado pelos Evangelhos, ou se, antes, não foram o fato e as circunstâncias de sua morte que foram decisivos para a importância que sua figura adquiriu. O próprio Paulo, que se tornou apóstolo, não o conhecera.

A morte de Moisés por seu povo judeu, identificada por Sellin a partir de traços dela na tradição (e também, estranho é dizê-lo, aceita pelo jovem Goethe sem qualquer prova), torna-se assim parte indispensável de nossa construção, um vínculo importante entre o evento olvidado dos tempos primevos e seu surgimento posterior sob a forma de religiões monoteístas. É plausível conjecturar que o remorso pelo assassinato de Moisés forneceu o estímulo para a fantasia de desejo do Messias, que deveria retornar e conduzir seu povo à redenção e ao prometido domínio mundial. Se Moisés foi o primeiro Messias, Cristo tornou-se seu substituto e sucessor, e Paulo poderia exclamar para os povos, com certa justificação histórica: Olhai! O Messias realmente veio: ele foi assassinado perante vossos olhos!’ Além disso, também, existe um fragmento de verdade histórica na ressurreição de Cristo, pois ele foi o Moisés ressurrecto e, por trás deste, o pai primevo retornado da horda primitiva, transfigurado e, como o filho, colocado no lugar do pai.O pobre povo judeu, que, com sua obstinação habitual, continuava a repudiar o assassinato do pai, expiou-o pesadamente no decurso do tempo. Defrontou-se constantemente com a recriminação: ‘Vocês mataram nosso Deus!’ E essa censura é verdadeira, se for corretamente traduzida. Colocada em relação com a história das religiões, ela diz: ‘Vocês não admitem que mataram Deus (a figura primeva de Deus, o pai primevo, e suas reencarnações posteriores).’ Deveria haver um acréscimo, declarando-se: ‘Fizemos a mesma coisa, é verdade, mas o admitimos, e, desde então, fomos absolvidos.’ Nem todas as censuras com que o anti-semitismo persegue os descendentes do povo judeu podem apelar para justificação semelhante. Um fenômeno de tal intensidade e permanência como o ódio do povo pelos judeus deve, naturalmente, possuir mais de um fundamento, alguns deles claramente derivados da realidade, que não exigem interpretação, e outros a jazer mais profundamente, derivados de fontes ocultas, que poderiam ser consideradas as razões específicas. Dos primeiros, a censura por serem estrangeiros é talvez a mais débil, visto que em muitos lugares hoje dominados pelo anti-semitismo, os judeus estavam entre as partes mais antigas da população, ou mesmo lá se encontravam antes dos atuais habitantes. Isso se aplica, por exemplo, à cidade de Colônia, à qual os judeus chegaram junto com os romanos, antes que fosse ocupada pelos germânicos. Outros fundamentos para odiar os judeus são mais fortes; assim, as circunstâncias de eles viverem, em sua maior parte, como minorias entre outros povos, pois o sentimento comunal dos grupos exige, a fim de completá-lo, a hostilidade para com alguma minoria externa, e a debilidade numérica dessa minoria excluída encoraja sua supressão. Há, contudo, duas outras características dos judeus que são inteiramente imperdoáveis. A primeira é o fato de, sob alguns aspectos, serem diferentes de suas nações ‘hospedeiras’. Não são fundamentalmente diferentes, pois não são asiáticos, de uma raça estrangeira, conforme seus inimigos sustentam, mas compostos, na maioria, de remanescentes dos povos mediterrâneos e herdeiros da civilização mediterrânea. São, não obstante, diferentes, com freqüência diferentes de maneira indefinível, especialmente dos povos nórdicos, e a intolerância dos grupos é quase sempre, de modo bastante estranho, exibida mais intensamente contrapequenas di ferenças do que contra diferenças fundamentais. O outro ponto possui um efeito ainda maior: a saber, que eles desafiam toda opressão, que as perseguições mais cruéis não conseguiram exterminá-los e que, na verdade, pelo contrário, exibem uma capacidade de manter o que é seu na vida comercial e, onde são admitidos, de efetuar contribuições valiosas a todas as formas de atividade cultural.

Os motivos mais profundos do ódio pelos judeus estão enraizados nas mais remotas eras passadas; operam desde o inconsciente dos povos, e acho-me preparado para descobrir que, a princípio, não parecerão críveis. Aventuro-me a asseverar que o ciúme para com o povo que se declarou o filho primogênito e favorito de Deus Pai ainda hoje não foi superado entre os outros povos; é como se estes tivessem pensado que havia verdade na reivindicação. Ademais, entre os costumes pelos quais os judeus se tornam separados, o da circuncisão causou impressão desagradável e sinistra, que deve ser explicada, indubitavelmente, por ela relembrar a temida castração e, juntamente com ela, uma parte do passado primevo que fora alegremente esquecida. E finalmente, como último motivo dessa série, não devemos esquecer que todos os povos que hoje sobressaem em seu ódio pelos judeus se tornaram cristãos apenas em épocas históricas tardias, amiúde impulsionados a isso por sanguinolenta coerção. Poder-se-ia dizer que todos eles são ‘mal batizados’. Sobrou-lhes, sob delgado verniz de cristianismo, aquilo que eram seus ancestrais, que adoravam um politeísmo bárbaro. Ainda não superaram um ressentimento contra a nova religião que lhes foi imposta, mas deslocaram esse ressentimento para a fonte de onde o cristianismo os foi buscar. O fato de os Evangelhos contarem uma história que se desenrola entre judeus e que, na verdade, trata apenas de judeus, tornou-lhes fácil esse deslocamento. Seu ódio pelos judeus é, no fundo, um ódio pelos cristãos, e não precisamos surpreender-nos de que, na revolução nacional-socialista alemã, essa relação íntima entre as duas religiões monoteístas encontre expressão tão clara no tratamento hostil que é dado a ambas.

 

E - DIFICULDADES

 

Talvez, pelo que disse, tenha tido sucesso em estabelecer a analogia entre os processos neuróticos e os acontecimentos religiosos e, assim, em indicar a origem insuspeitada dos últimos. Nessa transferência da psicologia individual para a de grupo, duas dificuldades surgem, a diferirem em natureza e importância, para as quais agora nos devemos voltar.

A primeira delas é que lidamos aqui apenas com um exemplo isolado da copiosa fenomenologia das religiões, e não lançamos luz sobre quaisquer outras. Pesarosamente tenho de admitir que sou incapaz de dar mais do que esse único exemplo e que meu conhecimento técnico é insuficiente para completar a investigação. A minhas informações limitadas, posso talvez acrescentar que o caso da fundação da religião maometana me parece assemelhar-se a uma repetição abreviada da judaica, da qual emergiu como imitação. Parece, na verdade, que o Profeta pretendia originalmente aceitar o judaísmo completamente, para si e para seu povo. A retomada do grande e único pai primevo trouxe aos árabes uma extraordinária exaltação de sua autoconfiança, que conduziu a grandes sucessos mundiais mas neles exauriu-se. Alá mostrou-se muito mais grato a seu povo escolhido do que Javé ao seu. Mas o desenvolvimento interno da nova religião logo se interrompeu, talvez por lhe faltar a profundidade que, no caso judaico, fora causada pelo assassinato do fundador de sua religião. As religiões aparentemente racionalistas do Leste são, em sua essência, veneração dos ancestrais e detiveram-se também num estádio primitivo da reconstrução do passado. Se é verdade que nos povos primitivos da atualidade o reconhecimento de um ser supremo é o único conteúdo de sua religião, só podemos encarar isso como uma atrofia do desenvolvimento religioso e colocá-la em relação com os incontáveis casos de neuroses rudimentares que podem ser observadas no outro campo. Por que tanto num caso quanto no outro as coisas não foram mais além, nosso conhecimento é, em ambos, insuficiente para dizer-nos. Podemos apenas atribuir a responsabilidade aos dotes individuais desses povos, à direção tomada por sua atividade e sua condição social geral. Além disso, é boa regra no trabalho de análise contentar-se em explicar o que realmente está perante nós e não procurar explicar o que não aconteceu.

A segunda dificuldade sobre essa transferência para a psicologia de grupo é muito mais importante, já que coloca um problema novo, de natureza fundamental. Esse problema levanta a questão de saber sob que forma a tradição operante na vida do povo se apresenta, questão que não ocorre com os indivíduos, visto que é solucionada pela existência, no inconsciente, de traços mnêmicos do passado. Retornemos a nosso exemplo histórico. Atribuímos o acordo de Cades à sobrevivência de uma tradição poderosa entre aqueles que tinham retornado do Egito. Esse caso não envolve problema algum. Segundo nossa teoria, uma tradição desse tipo baseava-se em lembranças conscientes de comunicações orais que as pessoas então vivas tinham recebido de seus ancestrais de apenas duas ou três gerações atrás, ancestrais que, eles próprios, tinham sido participantes e testemunhas oculares dos acontecimentos em apreço. Mas podemos acreditar na mesma coisa dos séculos posteriores, ou seja, que a tradição ainda tivesse base num reconhecimento normalmente transmitido de avô para neto? Não é mais possível dizer, como no primeiro caso, quais foram as pessoas que preservaram esse conhecimento e o transmitiram oralmente. Segundo Sellin, a tradição do assassinato de Moisés esteve sempre na posse dos círculos sacerdotais, até que acabou por encontrar expressão por escrito, o que, e somente isso, permitiu a Sellin descobri-las. Mas ela só pode ter sido conhecida de algumas pessoas; não constituía propriedade pública. E isso é suficiente para explicar seu efeito? É possível atribuir a um conhecimento como esse, detido por poucas pessoas, o poder de produzir uma emoção tão duradoura nas massas, ao chegar ao seu conhecimento? Parece antes que, também nas massas ignorantes, deve ter havido algo que era, de certa maneira, aparentado ao conhecimento dos poucos, e que foi encontrar esse conhecimento a meio caminho quando ele foi enunciado.

A decisão é tornada ainda mais difícil quando nos voltamos para o caso análogo, nos tempos primevos. É bastante certo que, no decurso de milhares de anos, foi esquecido o fato de que houvera um pai primevo, com as características que conhecemos, e qual fora a sua sorte; tampouco podemos supor que existisse qualquer tradição oral disso, como no caso de Moisés. Em que sentido, então, uma tradição se torna importante? Sob que forma pode ter estado presente?

A fim de torná-lo mais fácil aos leitores que não desejam ou não estão preparados para mergulhar num complicado estado de coisas psicológicas, anteciparei o resultado da investigação que deve seguir-se. Em minha opinião, existe, a esse respeito, uma conformidade quase completa entre o indivíduo e o grupo: também no grupo uma impressão do passado é retida em traços mnêmicos inconscientes. No caso do indivíduo, acreditamos que podemos ver claramente. O traço mnêmico de sua experiência primitiva foi nele preservado, mas numa condição psicológica especial. Pode-se dizer que o indivíduo sempre o conheceu, tal como se conhece a respeito do reprimido. Aqui formamos idéias, que podem ser confirmadas sem dificuldades através da análise, de como algo pode ser esquecido e depois reaparecer, após algum tempo. O que é esquecido não se extingue, mas é apenas ‘reprimido’; seus traços mnêmicos estão presentes em todo seu frescor, mas isolados por ‘anticatexias.’ Eles não podem entrar em comunicação com outros processos intelectuais; são inconscientes — inacessíveis à consciência. Pode ser também que certas partes do reprimido, havendo escapado ao processo [de repressão], permaneçam acessíveis à lembrança e ocasionalmente emerjam na consciência, mas, mesmo assim, se encontrem isoladas, como corpos estranhos sem conexão com o restante. Pode ser assim, mas não precisa sê-lo; a repressão também pode ser completa e é com essa alternativa que lidaremos no que se segue.

O reprimido mantém seu impulso ascendente, seu esforço para abrir caminho até a consciência. Ele consegue seu objetivo em três condições: (1) se a força da anticatexia é diminuída por processos patológicos que tomam conta da outra parte [da mente] que chamamos de ego, ou por uma distribuição diferente das energias catexiais nesse ego, como acontece normalmente no estado de sono; (2) se os elementos instintuais que se ligam ao reprimido recebem um reforço especial (do qual o melhor exemplo são os processos que ocorrem durante a puberdade); e (3) se, em qualquer ocasião na experiência recente, ocorrem impressões ou vivências que se assemelham tão estreitamente ao reprimido, que são capazes de despertá-lo. No último caso, a experiência recente é reforçada pela energia latente do reprimido e este entra em funcionamento por trás da experiência recente e com a ajuda dela. Em nenhuma dessas três alternativas, o que até então foi reprimido ingressa na consciência de modo suave ou inalterado; tem sempre de defrontar-se com deformações que dão testemunho da influência da resistência (não inteiramente superada) que surge da anticatexia, da influência modificadora da experiência recente, ou de ambas.

A diferença entre um processo psíquico ser consciente ou inconsciente serviu-nos como critério e meio de orientação. O reprimido é inconsciente. Ora, simplificaria agradavelmente as coisas se essa frase admitisse inversão, isto é, se a diferença entre qualidades de consciente (Cs.) e inconsciente (Ics.) coincidisse com a distinção existente entre ‘pertencente ao ego’ e ‘reprimido’. O fato de existirem coisas isoladas e inconscientes como essas em nossa vida mental já seria suficientemente novo e importante. Na realidade, porém, a posição é mais complicada. É verdade que tudo que é reprimido é inconsciente, mas não é verdade que tudo que pertença ao ego seja consciente. Constatamos que a consciência é uma qualidade transitória, que se liga a um processo psíquico apenas de passagem. Para nossos fins, portanto, temos de substituir ‘consciente’ por ‘capaz de ser consciente’ e chamamos essa qualidade de ‘pré-consciente’ (Pcs.). Dizemos, então, de modo mais correto, que o ego é principalmente pré-consciente (virtualmente consciente), mas que partes do ego são inconscientes.

O estabelecimento desse último fato nos demonstra que as qualidades sobre as quais até aqui nos apoiamos são insuficientes para nos orientar na obscuridade da vida psíquica. Temos de introduzir uma outra distinção que não é mais qualitativa, mas topográfica e, o que lhe dá valor especial, simultaneamente genética. Distinguimos, agora, em nossa vida psíquica (que encaramos como um aparelho composto de diversas instâncias, distritos ou províncias) uma determinada região que chamamos de ego propriamente dito e uma outra que denominamos de id. O id é a mais antiga das duas; o ego desenvolveu-se a partir dele, como uma camada cortical, através da influência do mundo externo. É no id que todos os nossos instintos primários estão em ação; todos os processos no id se realizam inconscientemente. O ego, como já dissemos, coincide com a região do pré-consciente; inclui partes que normalmente permanecem inconscientes. O curso dos acontecimentos no id e sua interação mútua são governados por leis inteiramente diferentes das que prevalecem no ego. Foi, na verdade, a descoberta dessas diferenças que nos conduziu à nossa visão e que a justifica.

O reprimido deve ser considerado como pertencente ao id e sujeito aos mesmos mecanismos; distingue-se dele apenas quanto à sua gênese. A diferenciação se cumpre no mais primitivo período da vida, enquanto o ego se está desenvolvendo a partir do id. Nessa época, uma parte do conteúdo do id é absorvida pelo ego e elevada ao estado pré-consciente; outra parte é afetada por esse traslado e permanece atrás, no id, como o inconsciente propriamente dito. No curso ulterior da formação do ego, contudo, certas impressões e processos psíquicos do ego são excluídos [isto é, expelidos] dele através de um processo defensivo; a característica de serem pré-conscientes é deles retirada, de modo que são mais uma vez reduzidos a serem partes componentes do id. Aqui, então, temos o ‘reprimido’ no id. No que concerne à relação entre as duas províncias mentais, presumimos portanto que, por um lado, processos inconscientes do id são levados ao nível do pré-consciente e incorporados ao ego, e que, por outro lado, material pré-consciente do ego pode seguir o caminho oposto e ser devolvido ao id. O fato de posteriormente uma região especial — a do ‘superego’ — separar-se do ego está fora de nosso interesse atual.

Tudo isso pode parecer longe de ser simples, mas, quando nos reconciliamos com essa visão espacial fora do comum do aparelho psíquico, ela não pode apresentar dificuldades específicas para a imaginação. Acrescentarei ainda o comentário de que a topografia psíquica que aqui desenvolvi nada tem que ver com a anatomia do cérebro, e, na realidade, entra em contato com ela apenas num ponto. O que é insatisfatório nesse quadro — e estou ciente disso tão claramente quanto qualquer um — se deve à nossa completa ignorância da natureza dinâmica dos processos mentais. Dizemo-nos que o que distingue uma idéia consciente de outra pré-consciente, e esta de uma inconsciente, só pode ser uma modificação, ou talvez uma distribuição diferente, de energia psíquica. Falamos de catexias e hipercatexias, mas, além disso, achamo-nos sem qualquer conhecimento sobre o assunto, ou mesmo sem qualquer ponto de partida para uma hipótese de trabalho útil. Do fenômeno da consciência, podemos pelo menos dizer que esteve originalmente ligado à percepção. Todas as sensações que se originam da percepção de estímulos penosos, tácteis, auditivos ou visuais, são as mais prontamente conscientes. Os processos de pensamento, e tudo o que possa ser análogo a eles no id, são, em si próprios, inconscientes, e obtêm acesso à consciência vinculando-se aos resíduos mnêmicos de percepções visuais e auditivas ao longo do caminho da função da fala. Nos animais, aos quais esta falta, as condições devem ser de tipo mais simples.

As impressões dos traumas primitivos, das quais partimos, não são traduzidas para o pré-consciente ou são rapidamente devolvidas pela repressão para o estado de id. Seus resíduos mnêmicos, nesse caso, são inconscientes e operam a partir do id. Acreditamos que podemos facilmente seguir suas vicissitudes ulteriores, enquanto se trata do que foi experimentado pelo próprio indivíduo. Mas uma nova compilação surge quando nos damos conta da probabilidade de que aquilo que pode ser operante na vida psíquica de um indivíduo pode incluir não apenas o que ele próprio experimentou, mas também coisas que estão inatamente presentes nele, quando de seu nascimento, elementos com uma origem filogenética — uma herança arcaica. Surgem então as questões de saber em que consiste essa herança, o que contém, e qual é a sua prova.

A resposta imediata e mais certa é que ela consiste em certas disposições [inatas], características de todos os organismos vivos: isto é, na capacidade e tendência de ingressar em linhas específicas de desenvolvimento e de reagir, de maneira específica, a certas excitações, impressões e estímulos. Visto a experiência demonstrar que, a esse respeito, existem distinções entre os indivíduos da espécie humana, a herança arcaica deve incluir essas distinções; elas representam o que identificamos como sendo o fator constitucional no indivíduo. Ora, desde que todos os seres humanos, em todos os acontecimentos de seus primeiros dias, têm aproximadamente as mesmas experiências, eles reagem a elas, também, de maneira semelhante. Pôde, portanto, surgir uma dúvida sobre se não deveríamos incluir essas reações, juntamente com suas distinções individuais, na herança arcaica. Essa dúvida deve ser posta de lado: nosso conhecimento da herança arcaica não é ampliado pelo fato dessa semelhança.

Não obstante, a pesquisa analítica trouxe-nos alguns resultados que nos dão motivo para reflexão. Temos, em primeiro lugar, a universalidade do simbolismo na linguagem. A representação simbólica de determinado objeto por outro — a mesma coisa aplica-se a ações — é familiar a todos os nossos filhos e lhes vem, por assim dizer, como coisa natural. Não podemos demonstrar, em relação a eles, como a aprenderam, e temos de admitir que, em muitos casos, aprendê-la é impossível. Trata-se de um conhecimento original que os adultos, posteriormente, esquecem. É verdade que o adulto faz uso dos mesmos símbolos em sonhos, mas não os compreende a menos que um analista os interprete para ele, e, mesmo então, fica relutante em acreditar na tradução. Se ele faz uso de uma das figuras de retórica muito comuns em que esse simbolismo lhe fugiu completamente. Ademais, o simbolismo despreza as diferenças de linguagem; investigações provavelmente demonstrariam que ele é ubíquo — o mesmo para todos os povos. Aqui, então, parecemos ter um exemplo seguro de uma herança arcaica a datar do período em que a linguagem se desenvolveu. Mas ainda se poderia tentar outra interpretação. Poder-se-ia dizer que estamos lidando com vinculações de pensamento entre idéias — vinculações que foram estabelecidas durante o desenvolvimento da fala e que têm de ser repetidas agora, toda vez que, num indivíduo, o desenvolvimento da fala tem de ser percorrido. Seria assim um caso de herança de uma disposição instintual, e, mais uma vez, não constituiria contribuição para nosso problema.

O trabalho da análise, entretanto, trouxe à luz algo mais que excede em importância o que até agora consideramos. Quando estudamos as reações a traumas precoces, ficamos amiúde bastante surpresos por descobrir que elas não se limitam estritamente ao que o próprio indivíduo experimentou, mas dele divergem de uma maneira que se ajusta muito melhor ao modelo de um evento filogenético, e, em geral, só podem ser explicadas por tal influência. O comportamento de crianças neuróticas para com os pais nos complexos de Édipo e de castração abunda em tais reações, que parecem injustificadas no caso individual e só se tornam inteligíveis filogeneticamente — por sua vinculação com a experiência de gerações anteriores. Valeria bem a pena apresentar esse material, para o qual posso apelar aqui, perante o público, de forma reunida. Seu valor probatório parece-me suficientemente forte para que me aventure a dar um passo à frente e postule a assertiva de que a herança arcaica dos seres humanos abrange não apenas disposições, mas também um tema geral: traços de memória da experiência de gerações anteriores. Dessa maneira, tanto a extensão quanto a importância da herança arcaica seriam significativamente ampliadas.

Refletindo mais, tenho de admitir que me comportei, por longo tempo, como se a herança de traços de memória da experiência de nossos antepassados, independentemente da comunicação direta e da influência da educação pelo estabelecimento de um exemplo, estivesse estabelecida para além de discussão. Quando falei da sobrevivência de uma tradição entre um povo ou da formação do caráter de um povo, tinha principalmente em mente uma tradição herdada desse tipo, e não uma tradição transmitida pela comunicação. Ou, pelo menos, não fiz distinção entre as duas e não me dei claramente conta de minha audácia em negligenciar fazê-lo. Minha posição, sem dúvida, é tornada mais difícil pela atitude atual da ciência biológica, que se recusa a ouvir falar na herança dos caracteres adquiridos por gerações sucessivas. Devo, contudo, com toda modéstia, confessar que, todavia, não posso passar sem esse fator na evolução biológica. Na verdade, não é a mesma coisa que está em questão nos dois casos: num, trata-se de caracteres adquiridos que são difíceis de apreender; no outro, de traços de memória de acontecimentos externos — algo tangível, por assim dizer. Mas bem pode ser que, no fundo, não possamos imaginar um sem o outro.

Se presumirmos a sobrevivência desses traços de memória na herança arcaica, teremos cruzado o abismo existente entre psicologia individual e de grupo: podemos lidar com povos tal como fazemos com um indivíduo neurótico. Sendo certo que, atualmente, não temos provas mais fortes da presença de traços de memória na herança arcaica do que os fenômenos residuais do trabalho da análise que exigem uma derivação filogenética, ainda assim essas provas nos parecem suficientemente fortes para postular que esse é o fato. Se não for, não avançaremos, quer na análise quer na psicologia de grupo. A audácia não pode ser evitada.

E, mediante essa punição, estamos efetuando algo mais. Estamos diminuindo o abismo que períodos anteriores de arrogância humana rasgaram entre a humanidade e os animais. Se se quiser encontrar qualquer explicação dos chamados instintos dos animais, que permitem que eles se comportem, desde o início, numa nova situação da vida como se fosse antiga e conhecida, se se quiser encontrar qualquer explicação dessa vida instintiva dos animais, ela só pode ser a de que eles trazem consigo as experiências da espécie para sua própria e nova existência — isto é, que preservaram recordações do que foi experimentado por seus antepassados. A posição do animal humano, no fundo, não seria diferente. Sua própria herança arcaica corresponde aos instintos dos animais, ainda que seja diferente em extensão e conteúdo.Após esse exame, não hesito em declarar que os homens sempre souberam (dessa maneira especial) que um dia possuíram um pai primevo e o assassinaram.

Duas outras questões devem agora ser respondidas. Primeiro, sob que condições uma recordação desse tipo ingressa na herança arcaica? E, segundo, em que circunstâncias pode ela tornar-se ativa — isto é, progredir para a consciência a partir de seu estado inconsciente no id, ainda que sob forma alterada e deformada. A resposta à primeira pergunta é fácil de formular: a recordação ingressa na herança arcaica se o acontecimento foi suficientemente importante, repetido com bastante freqüência, ou ambas as coisas. No caso do parricídio, ambas as condições são atendidas. Da segunda questão, há que dizer o seguinte. Um grande número de influências pode estar relacionado, mas nem todas são necessariamente conhecidas. Um desenvolvimento espontâneo também é concebível, segundo a analogia do que acontece em certas neuroses. Contudo, o que, certamente, é de importância decisiva é o despertar do traço da memória esquecido por uma repetição real e recente do acontecimento. O assassinato de Moisés constituiu uma repetição desse tipo e, posteriormente, o suposto assassinato judicial de Cristo, de maneira que esses acontecimentos vêm para o primeiro plano como causas. Parece como se a gênese do monoteísmo não pudesse passar sem essas ocorrências. Somos lembrados das palavras do poeta:

Was unsterblich im Gesang soll leben,Mus im Leben untergehen.

E, por fim, uma observação que traz à baila um argumento psicológico. Uma tradição que se baseasse unicamente na comunicação não poderia conduzir ao caráter compulsivo que se liga aos fenômenos religiosos. Ela seria escutada, julgada e talvez posta de lado, como qualquer outra informação oriunda do exterior; nunca atingiria o privilégio de ser liberada da coerção do pensamento lógico. Ela deve ter experimentado a sorte de ser reprimida, o estado de demorar-se no inconsciente, antes de ser capaz de apresentar efeitos tão poderosos quando de seu retorno, de colocar as massas sob seu fascínio, como vimos com espanto, e, até aqui, sem compreensão, no caso da tradição religiosa. E essa consideração pesa consideravelmente em favor de acreditarmos que as coisas realmente aconteceram da maneira por que tentamos retratá-las ou, pelo menos, de algum modo semelhante.

 

PARTE II - RESUMO E RECAPITULAÇÃO

 

A parte deste estudo que se segue não pode ser entregue ao público sem extensas explicações e desculpas, pois ela nada mais é do que uma repetição fiel (e, quase sempre, palavra por palavra) da primeira parte [do terceiro Ensaio], abreviada em algumas de suas indagações críticas e aumentada com acréscimos referentes ao problema de saber como surgiu o caráter especial do povo judeu. Estou ciente de que um método de exposição como esse é tão inconveniente quanto pouco artístico, e eu mesmo o deploro sem reservas. Por que não o evitei? Não me é difícil descobrir a resposta para isso, mas não é fácil confessar. Descobri-me incapaz de apagar os traços da história da origem da obra, o que foi, de qualquer modo, fora do comum.

Na realidade, ela foi escrita duas vezes: pela primeira vez, alguns anos atrás, em Viena, onde não pensei que fosse possível publicá-la. Decidi abandoná-la, mas ela me atormentou como um fantasma insepulto e descobri uma saída tornando independentes duas partes suas e publicando-as em nosso periódico Imago: o ponto de partida psicanalítico de todo o assunto, ‘Moisés, um Egípcio’ [Ensaio I], e a construção histórica sobre isso erigida, ‘Se Moisés fosse Egípcio…’ [Ensaio II]. O restante, que incluía o que estava realmente aberto à objeção e era perigoso — a aplicação [desses achados] à gênese do monoteísmo e a visão da religião em geral —, eu retive, para sempre, segundo pensava. Então, em março de 1938, veio a inesperada invasão alemã, que me forçou a abandonar meu lar, mas também me libertou da ansiedade de que minha publicação pudesse conjurar uma proibição da psicanálise num lugar onde ainda era tolerada. Mal chegara à Inglaterra quando achei irresistível a tentação de tornar acessível ao mundo o conhecimento que eu havia retido, e comecei a revisar a terceira parte de meu estudo para acomodá-lo às duas partes que já tinham sido publicadas. Isso, naturalmente, envolvia uma predisposição parcial do material. Não tive êxito, contudo, em incluir a totalidade dele em minha segunda versão; por outro lado, não podia decidir-me a abandonar inteiramente as versões primitivas. E assim aconteceu que adotei o expediente de ligar, sem modificação, toda uma parte da primeira apresentação à segunda, o que acarretou a desvantagem de envolver extensa repetição.

Poderia, contudo, consolar-me com a reflexão de que as coisas que estou tratando são, seja como for, tão novas e importantes, independentemente de quanto a minha descrição delas é correta, que não pode constituir desventura que o público seja obrigado a ler a mesma coisa sobre elas duas vezes. Há coisas que deveriam ser ditas mais de uma vez e que não podem ser ditas com freqüência suficiente. Mas o leitor deve decidir, de sua própria e livre vontade, entre estender-se sobre o assunto ou retornar a ele. Não deve ser sub-repticiamente levado a ver a mesma coisa apresentada a ele duas vezes num só livro. Trata-se de uma inépcia cuja culpa deve ser assumida pelo autor. Infelizmente, o poder criativo de um autor nem sempre obedece à sua vontade: o trabalho avança como pode e com freqüência se apresenta a ele como algo independente ou até mesmo estranho.

 

A - O POVO DE ISRAEL

 

Se está claro em nossa mente que um procedimento como o nosso, o de aceitar o que nos parece útil no material que nos é apresentado, rejeitar o que não nos convém e reunir os diferentes fragmentos de acordo com a probabilidade psicanalítica, se mantemos claro que uma técnica desse tipo não pode dar qualquer certeza de que cheguemos à verdade, então pode-se justamente perguntar por que estamos empreendendo este trabalho. A resposta constitui um apelo ao resultado do trabalho. Se abandonarmos grandemente a rigidez dos requisitos que se exigem de uma investigação histórico-psicológica, talvez seja possível lançar luz sobre problemas que sempre pareceram merecer atenção e que acontecimentos recentes impuseram de novo à nossa observação. Como sabemos, de todos os povos que viveram ao redor da bacia do Mediterrâneo na Antiguidade, o povo judeu é quase o único que ainda existe em nome e também em substância. Ele enfrentou infortúnios e maus tratos com uma capacidade sem precedentes de resistência; desenvolveu sincera antipatia de todos os outros povos. Ficaríamos alegres em compreender mais a respeito da fonte dessa viabilidade dos judeus e a respeito de como suas características estão vinculadas à sua história.

Podemos partir de um traço caracterológico dos judeus que domina sua relação com os outros. Não há dúvida de que eles têm uma opinião particularmente elevada de si próprios, de que se consideram mais eminentes, de posição mais alta, superiores a outros povos — dos quais também se distinguem por muitos de seus costumes. Ao mesmo tempo, são inspirados por uma confiança peculiar na vida, tal como a que se deriva da posse secreta de algum bem precioso, uma espécie de otimismo: pessoas idosas chamá-lo-iam de confiança em Deus.

Conhecemos a razão desse comportamento e qual é seu tesouro secreto. Eles realmente se consideram o povo escolhido de Deus, acreditam que estão especialmente próximos dele, e isso os torna orgulhosos e confiantes. Relatos dignos de fé dizem-nos que se comportavam nos tempos helenísticos tal como se comportam hoje, de maneira que o judeu completo já estava lá, e os gregos, entre os quais e junto dos quais viveram, reagiram às características judaicas do mesmo modo que seus ‘hospedeiros’ de hoje. Poder-se-ia pensar que reagiram como se eles também acreditassem na superioridade que o povo de Israel reivindicara para si. Quando se é favorito declarado do pai temido, não se precisa ficar surpreso com o ciúme dos próprios irmãos e irmãs, e a lenda judaica de José e seus irmãos mostra muito bem aonde esse ciúme pode conduzir. O curso da história mundial parecia justificar a presunção dos judeus, visto que, quando mais tarde agradou a Deus enviar à humanidade um Messias e redentor, mas uma vez escolheu-o entre o povo judeu. Os outros povos poderiam então ter tido ocasião para dizer a si próprios: ‘Na verdade, eles estavam com a razão; eles são o povo escolhido de Deus.’ Ao invés, porém, o que aconteceu foi que a redenção por parte de Jesus Cristo só intensificou o ódio deles pelos judeus, ao passo que estes últimos, eles próprios, não obtinham vantagem alguma desse segundo ato de favoritismo, já que não reconheceram o redentor.

Com base em nossos debates anteriores, podemos agora asseverar que foi o varão Moisés que imprimiu esse traço — significante para todo o tempo — no povo judeu. Ele elevou a sua auto-estima, assegurando-lhe ser o povo escolhido de Deus, prescreveu-lhe a santidade,ver em [[1]],e comprometeu-o a ser separado dos outros. Não que aos outros povos faltasse auto-estima. Tal como acontece hoje, também naqueles dias cada nação se julgava melhor do que qualquer outra. Mas a auto-estima dos judeus recebeu de Moisés um arrimo religioso: ela tornou-se parte de sua fé religiosa. Devido à sua relação especialmente íntima com seu Deus, adquiriram uma parcela da grandeza dele. E visto sabermos que por trás do Deus que escolhera os judeus e os libertara do Egito ergue-se a figura de Moisés, que fizera precisamente isso ostensivamente por ordem de Deus, aventuramo-nos a declarar que foi esse homem Moisés que criou os judeus. É a ele que esse povo deve não só sua tenacidade de vida, mas também muito da hostilidade que experimentou e ainda experimenta.

 

B - O GRANDE HOMEM

 

Como é possível a um homem isolado desenvolver uma eficácia tão extraordinária para poder formar um povo a partir de indivíduos e famílias ocasionais, cunhá-los com seu caráter definitivo e determinar seu destino por milhares de anos? Não constitui uma hipótese como essa uma recaída na modalidade de pensamento que levou aos mitos de um criador e à adoração de heróis, em épocas em que a redação da história nada mais era do que uma relação das façanhas e destinos de indivíduos isolados, de dominadores ou conquistadores? A tendência moderna é antes no sentido de fazer remontar os acontecimentos da história humana a fatores mais ocultos, gerais e impessoais, à influência irresistível das condições econômicas, a alterações em hábitos alimentares, a avanços no uso de materiais e ferramentas, a migrações ocasionais provocadas por aumentos de população e mudanças climáticas. Os indivíduos não têm nisso outro papel a desempenhar que o de expoentes ou representantes de tendências grupais, que estão fadadas a encontrar expressão, e a encontram, nesses indivíduos específicos, em grande parte por acaso.

Trata-se de linhas de abordagem perfeitamente justificáveis, mas elas nos fornecem ocasião de chamar a atenção para uma importante discrepância entre a atitude assumida por nosso órgão de pensamento e a disposição das coisas no mundo, as quais se imagina sejam apreendidas por intermédio de nosso pensamento. É suficiente para nossa necessidade de descobrir causas (que, com efeito, é imperativa) que cada acontecimento tenha uma causa desmontável. Mas na realidade que jaz fora de nós, esse dificilmente é o caso; pelo contrário, cada acontecimento parece ser supradeterminado e prova ser efeito de diversas causas convergentes. Assustadas pela imensa complicação dos acontecimentos,nossas investigações tomam o partido de determinada correlação contra outra e estabelecem contradições que não existem, mas que só surgiram devido a uma ruptura de relações mais abrangentes. Por conseguinte, se a investigação de um caso específico nos demonstra a influência transcendente de uma personalidade isolada, não é preciso que nossa consciência nos censure por nos termos, através dessa hipótese, precipitado em desafio da doutrina da importância dos fatores gerais e impessoais. Há lugar, em princípio, para ambas as coisas. No caso da gênese do monoteísmo, contudo, não podemos apontar para fator externo, exceto o que já mencionamos — que esse desenvolvimento esteve vinculado ao estabelecimento de relações mais estreitas entre nações diferentes e à construção de um grande império.Reservamos assim um lugar para os ‘grandes homens’ na cadeia, ou melhor, na rede de causas. Mas talvez não seja inteiramente inútil indagar sob que condições conferimos esse título de honra. Ficaremos surpresos em descobrir que nunca é muito fácil dar uma resposta a essa questão. Uma primeira formulação — ‘fazemo-lo se um homem possui em grau especialmente alto qualidades que valorizamos grandemente’ — claramente erra o alvo, sob todos os aspectos. A beleza, por exemplo, e a força muscular, por invejáveis que possam ser, não constituem reivindicações à ‘grandeza’. Pareceria, então, que as qualidades têm de ser mentais — distinções psíquicas e intelectuais. Com referências a estas, somos detidos pela consideração de que, todavia, não descreveríamos sem hesitação alguém como sendo um grande homem simplesmente porque foi extraordinariamente eficiente em alguma esfera específica. Certamente não o faríamos no caso de um mestre de xadrez ou de um virtuoso num instrumento musical, mas não muito facilmente, tampouco, no caso de um eminente artista ou cientista. Em tais casos, naturalmente e falaríamos dele como um grande poeta, pintor, matemático ou físico, ou como um pioneiro no campo desta ou daquela atividade, mas nos abstemos de pronunciá-lo um grande homem. Se sem hesitação declaramos que, por exemplo, Goethe, Leonardo da Vinci e Beethoven foram grandes homens, temos de ser levados a isso por algo mais do que admiração por suas esplêndidas criações. Se precisamente exemplos como esses não se interpusessem, nos ocorreria provavelmente a idéia de que o nome de ‘grande homem’ é reservado de preferência para homens de ação — conquistadores,generais, governantes —, e isso em reconhecimento da grandeza de suas realizações, da força dos efeitos a que deram origem. Mas também isso é insatisfatório, sendo inteiramente contraditado por nossa condenação de tantas figuras inúteis cujos efeitos sobre seu mundo contemporâneo e sobre a posterioridade não podem, todavia, ser discutidos. Tampouco poderemos escolher o sucesso como sinal de grandeza, quando refletimos sobre a maioria dos grandes homens que, ao invés de o alcançarem, pereceram no infortúnio.No momento, então, estamos inclinados a decidir que não vale a pena procurar uma conotação do conceito de ‘grande homem’ que não seja ambiguamente determinada. Esse conceito parece ser apenas um reconhecimento frouxamente empregado e um tanto arbitrariamente conferido de um desenvolvimento excessivamente grande de certas qualidades humanas, com alguma aproximação ao sentido original e literal de ‘grandeza’. Temos de lembrar, também, que não estamos interessados tanto na essência dos grandes homens quanto na questão dos meios pelos quais eles influenciam seus semelhantes. Manteremos, contudo, essa investigação tão sucinta quanto possível, visto que ela ameaça conduzir-nos para longe de nosso objetivo.Permitam-nos, portanto, tomar como certo que um grande homem influencia seus semelhantes por duas maneiras: por sua personalidade e pela idéia que ele apresenta. Essa idéia pode acentuar alguma antiga imagem de desejo das massas, ou apontar um novo objetivo de desejo para elas, ou lançar de algum outro modo seu encantamento sobre as mesmas. Ocasionalmente — e esse é indubitavelmente o caso mais primário —, a personalidade funciona por si só e a idéia desempenha papel bastante trivial. Nem por um só momento nos achamos às escuras quanto a saber por que um grande homem se torna um dia importante. Sabemos que na massa humana existe uma poderosa necessidade de uma autoridade que possa ser admirada, perante quem nos curvemos, por quem sejamos dirigidos e, talvez, até maltratados. Já aprendemos com a psicologia dos indivíduos qual é a origem dessa necessidade das massas. Trata-se de um anseio pelo pai que é sentido por todos, da infância em diante, do mesmo pai a quem o herói da lenda se gaba de ter derrotado. E pode então começar a raiar em nós que todas as características com que aparelhamos os grandes homens são características paternas, e que a essência dos grandes homens, pela qual em vão buscamos, reside nessa conformidade. A decisão de pensamento, a força de vontade, a energia da ação fazem parte do retrato de um pai — mas, acima de tudo, a autonomia e a independência do grande homem, sua indiferença divina que pode transformar-se em crueldade. Tem-se de admirá-lo, pode-se confiar nele, mas não se pode deixar de temê-lo, também. Deveríamos ter sidolevados a entender isso pela própria expressão: quem, senão o pai, pode ter sido o ‘homem grande’ na infância? Não há dúvida de que foi um poderoso protótipo de um pai que, na pessoa de Moisés, se curvou até os pobres escravos judeus para lhes assegurar que eram seus filhos queridos. E não menos esmagador deve ter sido o efeito sobre eles da idéia de um Deus único, eterno e todo poderoso, para quem não eram humildes demais para que com eles fizesse um pacto e prometesse cuidar deles se permanecessem leais à sua adoração. Provavelmente não lhes foi fácil distinguir a imagem do varão Moisés da de seu Deus e, nisso, o sentimento estava com a razão, pois Moisés pode ter introduzido traços de sua própria personalidade no caráter do seu Deus — tais como seu temperamento irado e sua inquietude. E se, assim sendo, eles mataram um dia seu grande homem, estavam apenas repetindo um malfeito que em tempos antigos fora cometido, como prescrito pela lei, contra o Rei Divino e que, como sabemos, remontava a um protótipo ainda mais antigo.

Se, por um lado, vemos assim a figura do grande homem exalçada a proporções divinas, por outro, contudo, temos de recordar que também o pai foi outrora uma criança. A grande idéia religiosa que o homem Moisés representava não era, em nossa opinião, propriedade sua: ele a tomara do Rei Akhenaten. E este, cuja grandeza como fundador de uma religião está inequivocamente estabelecida, pode talvez ter seguido sugestões que lhe chegaram — de partes próximas ou distantes da Ásia — através de sua mãe ou por outros caminhos.

Não podemos seguir a cadeia de acontecimentos mais além, mas se identificamos corretamente esses primeiros passos, a idéia monoteísta retornou como um bumerangue à terra de sua origem. Assim, parece infrutífero tentar fixar o crédito devido a um indivíduo, em relação a uma nova idéia. É claro que muitos tiveram parte em seu desenvolvimento e lhe deram contribuições. E, mais uma vez, seria obviamente injusto interromper abruptamente a cadeia de causas em Moisés e desprezar o que foi efetuado por aqueles que o sucederam e levaram à frente suas idéias, os Profetas judaicos. A semente do monoteísmo fracassou em amadurecer no Egito. A mesma coisa poderiater acontecido em Israel, após o povo ter-se libertado da religião onerosa e exigente. Mas constantemente surgiram, no povo judeu, homens que reviveram a tradição a esmaecer-se, que renovaram as admonições e as exigências feitas por Moisés, e que não descansaram até que aquilo que estava perdido fosse mais uma vez estabelecido. No curso de constantes esforços, através dos séculos, e finalmente devido a duas grandes reformas, uma antes e outra após o exílio babilônico, efetuou-se a transformação do deus popular Javé no Deus cuja adoração fora imposta aos judeus por Moisés. E provas da presença de uma aptidão psíquica peculiar nas massas que se tinham tornado o povo judeu são reveladas pelo fato de terem sido capazes de produzir tantos indivíduos preparados para assumir o ônus da religião de Moisés, em troca da recompensa de ser o povo escolhido e talvez por alguns outros prêmios de grau semelhante.

 

C - O AVANÇO EM INTELECTUALIDADE

 

A fim de ocasionar resultados psíquicos duradouros num povo, é claro que não basta assegurar-lhes que foram escolhidos pela divindade. O fato também deve ser-lhes provado de alguma maneira, se é que devem crer nele e tirar conseqüências da crença. Na religião de Moisés, o Êxodo do Egito serviu como prova; Deus, ou Moisés em seu nome, nunca se cansava de apelar para essa prova de favor. A festa da Páscoa foi introduzida a fim de manter a lembrança desse acontecimento, ou, antes, injetou-se numa festa de antiga criação o conteúdo dessa lembrança: o Êxodo pertencia a um passado enevoado. No presente, os sinais do favor de Deus eram decididamente escassos; a história do povo apontava antes para seu desfavor. Os povos primitivos costumavam depor seus deuses ou até mesmo castigá-los, se deixavam de cumprir seu dever de assegurar-lhes vitória, felicidade e conforto. Em todos os períodos, os reis não foram tratados de modo diferente dos deuses; uma antiga identidade assim se revela: uma origem a partir de uma raiz comum. Assim, também os povos modernos têm o hábito de expulsar seus reis se a glória do reinado deles é conspurcada por derrotas e as perdas correspondentes em território e dinheiro. Por que o povo de Israel, contudo, apegou-se cada vez mais submissamente a seu Deus quanto pior era tratado por este, é um problema que, por ora, temos de deixar de lado.

Esse problema pode incentivar-nos a indagar se a religião de Moisés trouxe ao povo algo mais além de uma acentuação de sua auto-estima, devida à sua consciência de ter sido escolhido. E, na verdade, outro fator pode ser facilmente encontrado. Essa religião trouxe também aos judeus uma concepção muito mais grandiosa de Deus, ou, como poderíamos dizer mais modestamente, a concepção de um Deus mais grandioso. Todo aquele que acreditasse nesse Deus possuía algum tipo de parte em sua grandeza, ele próprio poderia sentir-se exalçado. Para um descrente, isso não é inteiramente auto-evidente, mas talvez possamos torná-lo mais fácil de compreender se apontarmos para o senso de superioridade sentido por um britânico num paísestrangeiro que se tornou inseguro devido a uma insurreição — sentimento completamente ausente no cidadão de qualquer pequeno Estado continental. Pois o britânico conta o fato de que seu Government enviará um navio de guerra se um só dos cabelos de sua cabeça for tocado, e que os rebeldes compreendem isso muito bem — ao passo que o pequeno Estado não possui navio de guerra algum. Assim, o orgulho da grandeza do British Empire tem raiz também na consciência da maior segurança — da proteção — desfrutada pelo indivíduo britânico. Isso pode assemelhar-se à concepção de um Deus grandioso. E, visto que mal se pode ter o direito de auxiliar Deus na administração do mundo, o orgulho da grandeza de Deus se funde com o orgulho de ser escolhido por ele.

Entre os preceitos da religião de Moisés há um que é de importância maior do que parece inicialmente. Trata-se da proibição contra fabricar uma imagem de Deus — a compulsão a adorar um Deus que não se pode ver. Nisso, suspeito eu, Moisés excedia a rigidez da religião de Aten. Talvez ele simplesmente quisesse ser coerente: seu Deus, nesse caso, não teria nome nem semblante. Talvez fosse uma nova medida contra abusos mágicos. Mas, se essa proibição fosse aceita, deveria ter um efeito profundo, pois significava que uma percepção sensória recebia um lugar secundário quanto ao que poderia ser chamado de idéia abstrata — um triunfo da intelectualidade sobre a sensualidade, ou, estritamente falando, uma renúncia instintual, com todas as suas seqüências psicológicas necessárias.

Isso pode não parecer óbvio à primeira vista, e, antes que possa proporcionar convicção, temos de recordar outros processos do mesmo caráter no desenvolvimento da civilização humana. O mais antigo desses, e talvez o mais importante, está fundido à obscuridade das eras primevas. Seus assombrosos efeitos compelem-nos a asseverar sua ocorrência. Em nossos filhos, em adultos que são neuróticos, bem como em povos primitivos, deparamo-nos com o fenômeno mental que descrevemos como sendo uma crença na ‘onipotência de pensamentos’. Em nosso juízo, esse fenômeno reside numa superestimação da influência que nossos atos mentais (nesse caso, intelectuais) podem exercer na alteração do mundo externo. No fundo, toda a magia, precursora de nossa tecnologia, repousa nessa premissa. Também toda amagia das palavras encontra aqui seu lugar, e a convicção do poder ligado ao conhecimento e à pronúncia de um nome. A ‘onipotência de pensamentos’ foi, supomos nós, expressão do orgulho da humanidade no desenvolvimento da fala, que resultou em tão extraordinário avanço das atividades intelectuais. Escancarou-se o novo reino da intelectualidade, no qual idéias, lembranças e inferências se tornaram decisivas, em contraste com a atividade psíquica inferior que tinha como seu conteúdo as percepções diretas pelos órgãos sensórios. Esse foi, indiscutivelmente, um dos mais importantes estádios no caminho da hominização ver em [[1]].

Podemos muito mais facilmente apreender outro processo, de data posterior. Sob a influência de fatores externos nos quais não precisamos ingressar aqui e que também, em parte, são insuficientemente conhecidos, aconteceu que a ordem social matriarcal foi sucedida pela patriarcal, o que, naturalmente, acarretou uma revolução nas condições jurídicas até então predominantes. Um eco dessa revolução parece ainda ser audível na Oréstia, de Ésquilo. Mas esse afastamento da mãe para o pai aponta, além disso, para uma vitória da intelectualidade sobre a sensualidade — isto é, para um avanço em civilização, já que a maternidade é provada pela evidência dos sentidos, ao passo que a paternidade é uma hipótese, baseada numa inferência e numa premissa. Tomar partido, dessa maneira, por um processo de pensamento, de preferência a uma percepção sensória, provou ser um passo momentoso.

Em algum lugar entre os dois acontecimentos que mencionei, ocorreu outro que apresenta a máxima afinidade com o que estamos investigando na história da religião. Os seres humanos viram-se obrigados, em geral, a reconhecer as forças ‘intelectuais [geistige]’, isto é, forças que não podem ser apreendidas pelos sentidos (particularmente pela vista), mas que não obstante produzem efeitos indubitáveis e, na verdade, extremamente poderosos. Se nos apoiarmos na prova da linguagem, foi o movimento do ar que proporcionou o protótipo da intelectualidade [Geistigkeit], pois o intelecto [Geist] deriva seu nome de um sopro de vento — ‘animus‘, ‘spiritus‘, e o hebraico ‘ruach (fôlego)’. Isso conduziu tambémà descoberta da mente [Seele (alma)] como o princípio intelectual [geistigen] nos seres individuais. A observação encontrou o movimento do ar mais uma vez na respiração dos homens, que cessa quando eles morrem. Até o dia de hoje, um homem moribundo ‘exala o espírito [Selle]’. Agora, contudo, o mundo dos espíritos [Geisterreich] jaz aberto aos homens. Eles estavam preparados para atribuir a alma [Seele] que tinham descoberto em si próprios a tudo na Natureza. O mundo inteiro era animado [beseelt], e a ciência, que surgiu tão mais tarde, muito teve de fazer para mais uma vez despir parte do mundo de sua alma; na verdade, mesmo nos dias de hoje, ela não completou essa tarefa.

A proibição mosaica elevou Deus a um grau superior de intelectualidade; abriu-se então o caminho para novas alterações na idéia de Deus, as quais ainda temos de descrever. Mas podemos considerar primeiro outro efeito da proibição. Todos os avanços em intelectualidade desse tipo têm, como conseqüência, o aumento da auto-estima do indivíduo, tornando-o orgulhoso, de maneira que se sente superior a outras pessoas que permaneceram sob o encantamento da sensualidade. Moisés, como sabemos, transmitiu aos judeus um exaltado sentimento de serem um povo escolhido. A desmaterialização de Deus trouxe uma nova e valiosa contribuição para o secreto tesouro desse povo. O infortúnio político da nação ensinou-o a apreciar em seu justo valor a única possessão que lhe restou — sua literatura. Imediatamente após a destruição do Templo em Jerusalém por Tito, o rabino Jochanan ben Zakkai solicitou permissão para abrir a primeira escola de Torá em Jabné. Dessa época em diante, a Escritura Sagrada e o interesse intelectual por ela mantiveram reunido o povo dispersado.

Tudo isso é geralmente sabido e aceito. Tudo o que eu quis fazer foi acrescentar que esse desenvolvimento característico da natureza judaica foi introduzido pela proibição mosaica contra adorar a Deus numa forma visível.

A permanência concedida aos labores intelectuais através de cerca de dois mil anos na vida do povo judeu teve, naturalmente, seu efeito. Ela ajudou a controlar a brutalidade e a tendência à violência, aptas a aparecer onde odesenvolvimento da força muscular constitui o ideal popular. A harmonia no cultivo da atividade intelectual e física, tal como alcançada pelo povo grego, foi negada aos judeus. Nessa dicotomia, a decisão deles foi pelo menos a favor da alternativa mais digna.

 

D - A RENÚNCIA AO INSTINTO

 

Não é óbvio nem imediatamente compreensível por que um avanço em intelectualidade, um retrocesso da sensualidade, deva elevar a autoconsideração tanto de um indivíduo quanto de um povo. Esse avanço parece pressupor a existência de um padrão definido de valor e de alguma outra pessoa ou instância que o sustente. Para uma explicação, voltemo-nos para um caso análogo na psicologia individual, caso que chegamos a compreender.

Se o id de um ser humano dá origem a uma exigência instintual de natureza agressiva ou erótica, o mais simples e natural é que o ego, que tem o aparelho de pensamento e o aparelho muscular à sua disposição, satisfaça a exigência através de uma ação. Essa satisfação do instinto é sentida pelo ego como prazer, tal como sua não satisfação indubitavelmente se tornaria fonte de desprazer. Ora, pode surgir um caso em que o ego se abstenha de satisfazer o instinto, por causa de obstáculos externos, a saber, se percebesse que a ação em apreço provocaria um sério perigo ao ego. Uma abstenção da satisfação desse tipo, a renúncia a um instinto por causa de um obstáculo externo — ou, como podemos dizer, em obediência ao princípio da realidade —, não é agradável em caso algum. A renúncia ao instinto conduziria a uma tensão duradoura, devida ao desprazer, se não fosse possível reduzir a intensidade do próprio instinto mediante deslocamentos de energia. A renúncia instintual, contudo, pode também ser imposta por outras razões, as quais corretamente descrevemos como internas. No curso do desenvolvimento de um indivíduo, uma parte das forças inibidoras do mundo externo é internalizada e constrói-se no ego uma instância que confronta o restante do ego num sentido observador, crítico e proibidor. Chamamos essa nova instância de superego. Doravante o ego, antes de colocar em funcionamento as satisfações instintuais exigidas pelo id, tem de levar em conta não simplesmente os perigos do mundo externo, mas também as objeções do superego, e terá ainda mais fundamentos para abster-se de satisfazer o instinto. Mas onde a renúncia instintual, quando se dá por razões externas, é apenas desprazerosa, quando ela se deve a razões internas, em obediência ao superego, ela tem um efeito econômico diferente. Em acréscimo às inevitáveis conseqüências desprazerosas, ela também traz ao ego um rendimento de prazer — uma satisfação substitutiva, por assim dizer. O ego se sente elevado; orgulha-se da renúncia instintual, como se ela constituísse uma realização de valor. Acreditamos quepodemos entender o mecanismo desse rendimento de prazer. O superego é o sucessor e o representante dos pais (e educadores) do indivíduo, que lhe supervisionaram as ações no primeiro período de sua vida; ele continua as funções deles quase sem mudança. Mantém o ego num permanente estado de dependência e exerce pressão constante sobre ele. Tal como na infância, o ego fica apreensivo em pôr em risco o amor de seu senhor supremo; sente sua aprovação como libertação e satisfação, e suas censuras como tormentos de consciência. Quando o ego traz ao superego o sacrifício de uma renúncia instintual, ele espera ser recompensado recebendo mais amor deste último. A consciência de merecer esse amor é sentida por ele como orgulho. Na época em que a autoridade ainda não fora internalizada como superego, poderia ter havido a mesma relação entre a ameaça de perda do amor e as reivindicações do instinto; havia um sentimento de segurança e satisfação quando se conseguia uma renúncia instintual por amor ao país. Mas esse sentimento feliz só poderia assumir o peculiar caráter narcísico de orgulho depois que a própria autoridade se tivesse tornado parte do ego.

Que auxílio essa explicação da satisfação que surge da renúncia instintual nos dá no sentido de compreendermos os processos que desejamos estudar — a elevação da autoconsideração quando existem avanços em intelectualidade? Muito pouco, parece. As circunstâncias são inteiramente diferentes. Não se trata de qualquer renúncia instintual e não existe segunda pessoa alguma ou instância por cujo amor o sacrifício é feito. Logo sentiremos dúvidas sobre essa última asserção. Pode-se dizer que o grande homem é exatamente a autoridade por cujo amor a realização é levada a cabo; e, visto que o próprio grande homem opera por virtude de sua semelhança com o pai, não há necessidade de sentir surpresa se, na psicologia de grupo, o papel de superego cabe a ele. Desse modo, isso também se aplicaria ao homem Moisés em relação ao povo judeu. Com referência ao outro ponto, contudo, nenhuma analogia pode ser estabelecida. Um avanço em intelectualidade consiste em decidir contra a percepção sensória direta, em favor do que é conhecido como processos intelectuais superiores — isto é, lembranças, reflexões e inferências. Consiste, por exemplo, em decidir que a paternidade é mais importante do que a maternidade, embora não possa, como esta última, ser estabelecida pela prova dos sentidos, e que, por essa razão, a criança deve usar o nome do pai e ser herdeira dele. Ou declara que nosso Deus é o maior e o mais poderoso, embora seja invisível como uma rajada de vento ou como a alma. A rejeição de uma exigência instintual sexual ou agressiva parece ser algo inteiramente diferente disso. Ademais, no caso de alguns avanços em intelectualidade — no caso da vitória do patriarcado, por exemplo —, nãopodemos apontar a autoridade que estabelece o padrão que deve ser considerado superior. Nesse caso, não pode ser o pai, visto que ele só é elevado a autoridade pelo próprio avanço. Somos assim defrontados pelo fenômeno de que, no curso do desenvolvimento da humanidade, a sensualidade é gradativamente superada pela intelectualidade e que os homens se sentem orgulhosos e exalçados por cada avanço desse tipo. Contudo, somos incapazes de dizer por que isso deve ser assim. Acontece ainda, posteriormente, que a própria intelectualidade é superada pelo fenômeno emocional bastante enigmático da fé. Aqui, temos o famoso ‘credo quia absurdum‘, e, mais uma vez, todo aquele que tenha alcançado êxito nisso encara-o como uma realização suprema. Talvez o elemento comum em todas essas situações psicológicas seja outra coisa. Talvez os homens simplesmente afirmem que aquilo que é mais difícil é superior, e seu orgulho seja meramente seu narcisismo aumentado pela consciência de uma dificuldade vencida.

Essas certamente não são considerações muito frutíferas, e poder-se-ia pensar que nada têm que ver, de modo algum, com nossa investigação a respeito do que determinou o caráter do povo judeu. Isso só nos seria proveitoso, mas uma certa vinculação com nosso problema é não obstante revelada por um fato que posteriormente nos interessará ainda mais. A religião que começou com a proibição de fabricar uma imagem de Deus transforma-se cada vez mais, no decurso dos séculos, numa religião de renúncias instintuais. Não é que ela exija abstinência sexual; contenta-se com uma acentuada restrição da liberdade sexual. Deus, contudo, afasta-se inteiramente da sexualidade e eleva-se para o ideal de perfeição ética. Mas a ética é uma limitação do instinto. Os profetas nunca se cansaram de asseverar que Deus nada exige de seu povo senão uma conduta de vida justa e virtuosa — isto é, abstenção de toda satisfação instintual, que ainda é condenada como impura também por nossa mortalidade atual. E mesmo a exigência de crença nele parece ficar em segundo lugar, em comparação com a seriedade desses requisitos éticos. Dessa maneira, a renúncia instintual parece desempenhar um papel preeminente na religião, mesmo que não se tivesse salientado nela desde o início.

Aqui é o lugar, contudo, para uma interpelação, a fim de evitar um mal-entendido. Ainda que possa parecer que a renúncia instintual e a ética nela fundada não façam parte do conteúdo essencial da religião, geneticamente, contudo, elas estão bastante intimamente vinculadas à religião.O totemismo, a forma mais primitiva de religião que identificamos, traz consigo, como constituintes indispensáveis de seu sistema, uma série de ordens e proibições que não possuem outra significação, naturalmente, que a de renúncias instintuais: a adoração do totem, que inclui uma proibição contra danificá-lo ou matá-lo; a exogamia — isto é, a renúncia às apaixonadamente desejadas mães e irmãs da horda —, a concessão de direitos iguais a todos os membros da aliança fraterna — isto é, a restrição da inclinação para a rivalidade violenta entre eles. Nesses regulamentos, devem ser visto os primórdios de uma ordem moral e social. Não nos escapa que dois motivos diferentes estão em ação aqui. As duas primeiras proibições operam do lado do pai, que foi eliminado: dão continuidade a sua vontade, por assim dizer. A terceira ordem — a concessão de direitos iguais aos irmãos aliados — despreza essa vontade; justifica-se por um apelo à necessidade de manter permanentemente a nova ordem que sucedeu ao afastamento do pai, pois, de outra maneira, uma recaída no estado anterior se tornaria inevitável. É aqui que as ordens sociais divergem das outras, as quais, como poderíamos dizer, se derivam diretamente de vinculações religiosas.

A parte essencial desse curso de acontecimentos repete-se no desenvolvimento abreviado do indivíduo humano. Também aqui é autoridade dos pais da criança — essencialmente, a de seu pai autocrático, a ameaçá-la com seu poder de punir — que lhe exige uma renúncia ao instinto e que por ela decide o que lhe deve ser concedido e proibido. Mais tarde, quando a Sociedade e o superego assumiram o lugar dos pais, o que na criança era chamado de ‘bem-comportado’ ou ‘travesso’, é descrito como ‘bom’ e ‘mau’, ou ‘virtuoso’ e ‘vicioso’. Mas ainda é sempre a mesma coisa — renúncia instintual sob a pressão da autoridade que substitui e prolonga o pai.

Uma nova profundidade é adicionada a essas descobertas quando examinamos o notável conceito de santidade. O que é que realmente nos parece ‘santo’ de preferência a outras coisas que valorizamos altamente e reconhecemos como importantes? Por um lado, a vinculação de santidade ousacralidade com o religioso é inequívoca. Nela se insiste enfaticamente: tudo que é religioso é sagrado, ela é o próprio cerne da sacralidade. Por outro lado, nosso julgamento é perturbado pelas numerosas tentativas de aplicar as características de sacralidade a tantas outras coisas — pessoas, instituições, funções — que pouco têm que ver com a religião. Esses esforços servem a propósito óbvios e tendenciosos. Comecemos pelo caráter proibitivo que está tão firmemente ligado à sacralidade. O sagrado é obviamente algo em que não se pode tocar. Uma proibição sagrada possui um tom emocional muito forte, mas, na realidade, nenhuma base racional. Por que, por exemplo, deveria o incesto com uma filha ou irmã ser um crime tão especialmente grave — tão pior de que qualquer outra relação sexual? Se pedirmos uma base racional, certamente nos será dito que todos os nossos sentimentos se revoltam contra isso. Mas isso apenas significa que as pessoas encaram a proibição como auto-evidente e não conhecem base alguma para ela.

É bastante fácil demonstrar a futilidade de tal explicação. O que é representado como insultante a nossos mais sagrados sentimentos constituía costume universal — poderíamos chamá-lo de um uso tornado sagrado — entre as famílias dominantes dos antigos egípcios e de outros povos primitivos. Era aceito como coisa natural que o faraó tomasse a irmã como sua primeira e principal esposa, e os sucessores dos faraós, os Ptolomeus gregos, não hesitaram em seguir esse modelo. Somos compelidos, antes, a uma compreensão de que o incesto — nesse caso, entre irmão e irmã — constituía um privilégio retirado dos mortais comuns e reservado aos reis como representantes dos deuses, tal como, semelhantemente, nenhuma objeção se fazia a relações incestuosas dessa espécie no mundo das lendas grega e germânica. Pode-se suspeitar de que a escrupulosa insistência sobre a igualdade de nascimento entre nossa aristocracia é uma relíquia sobre esse antigo privilégio, e pode-se estabelecer que, em resultado do cruzamento consangüíneo praticado durante tantas gerações nos estratos sociais mais elevados, a Europa é hoje governada por membros de uma única família e de uma segunda.

A evidência do incesto entre deuses, reis e heróis ajuda-nos também a lidar com outra tentativa, que busca explicar biologicamente o horror ao incesto e fazê-lo remontar a um obscuro conhecimento dos danos causados pelo cruzamento consangüíneo. Sequer é certo, entretanto, que exista algumperigo de danos por causa desse cruzamento, quanto mais dizer que povos primitivos pudessem tê-lo identificado e contra ele reagido. Do mesmo modo, a incerteza na definição dos graus permitidos e proibidos de parentesco pouco argumenta em favor da hipótese de que um ‘sentimento natural’ constitui a base suprema do horror ao incesto.

Nossa construção da pré-história nos força a outra explicação. A ordem em favor da exogamia, da qual o horror ao incesto é a expressão negativa, era um produto da vontade do pai e deu continuidade a essa vontade depois que ele foi afastado. Daí provém a força de seu tom emocional e a impossibilidade de descobrir uma base racional para ela — isto é, sua sacralidade. Confiantemente esperamos que uma investigação de todos os outros casos de proibição sagrada conduza à mesma conclusão que à do horror ao incesto: que aquilo que é sagrado originalmente nada mais era do que o prolongamento da vontade do pai primevo. Isso também lançaria luz sobre a ambivalência até aqui incompreensível das palavras que expressam o conceito de sacralidade. Trata-se da ambivalência que em geral domina a relação com o pai. [O latim] ‘sacer‘ significa não apenas ‘sagrado’, ‘consagrado’, mas também algo que só podemos traduzir por ‘infame’, ‘detestável’, (e.g., ‘auri sacra fames’).

 Mas a vontade do pai não era apenas algo que não podia ser tocado, que se tinha de ter em elevado respeito, mas também algo perante o que se tremia, por exigir uma penosa renúncia instintual. Quando ouvimos que Moisés tornou santo seu povo,ver em [[1]],pela introdução do costume da circuncisão, compreendemos o significado profundo dessa asserção. A circuncisão é o substituto simbólico da castração que o pai primevo outrora infligira aos filhos na plenitude de seu poder absoluto, e todo aquele que aceitava esse símbolo demonstrava através disso que estava preparado para submeter-se à vontade do pai, mesmo que esta lhe impusesse o mais penoso sacrifício.

Retornando à ética, podemos dizer, em conclusão, que uma parte de seus preceitos se justifica racionalmente pela necessidade de delimitar os direitos da sociedade contra o indivíduo, os direitos do indivíduo contra a sociedade, e os dos indivíduos uns contra os outros. Mas o que nos parece tão grandioso a respeito da ética, tão misterioso e, de modo místico, tão auto-evidente, deve essas características à sua vinculação com a religião, à sua origem na vontade do pai.

 

E - O QUE É VERDADEIRO EM RELIGIÃO

 

Quão invejáveis, para aqueles de nós que são pobres de fé, parecem ser aqueles investigadores que estão convencidos da existência de um Ser Supremo! Para esse grande Espírito, o mundo não oferece problemas, pois ele próprio criou todas as suas instituições. Quão amplas, exaustivas e definitivas são as doutrinas dos crentes, comparadas com as laboriosas, insignificantes e fragmentárias tentativas de explicação que constituem o máximo que somos capazes de conseguir! O Espírito divino, que é, ele próprio, ideal da perfeição ética, plantou nos homens o conhecimento desse ideal e, ao mesmo tempo, o impulso a assemelhar suas próprias naturezas a ele. Eles percebem diretamente o que é superior e mais nobre e o que é inferior e mais vil. Sua vida afetiva se regula de acordo com sua distância do ideal, em qualquer momento. Quando dele se aproximam — em seu periélio, por assim dizer —, é-lhes trazida alta satisfação; quando, em seu afélio, se tornam distantes dele, a punição é o severo desprazer. Tudo isso é estabelecido tão simples e inabalavelmente. Só podemos lamentar que certas experiências da vida e observações do mundo nos tornem impossível aceitar a premissa da existência de tal Ser Supremo. Como se no mundo já não houvesse enigmas suficientes, é-nos proposto o novo problema de compreender como essas outras pessoas puderam adquirir sua crença no Ser Divino de onde essa crença obteve seu imenso poder, que esmaga ‘a razão e a ciência’.

Retornemos ao problema mais modesto que nos ocupou até aqui. Desejávamos explicar a origem do caráter especial do povo judeu, caráter que provavelmente tornou possível sua sobrevivência até os dias presentes. Descobrimos que o homem Moisés imprimiu nesse povo esse caráter dando-lhes uma religião que aumentou tanto sua auto-estima que ele se julgou superior a todos os outros povos. Depois disso, sobreviveram mantendo-se apartados dos outros. Misturas de sangue pouco interferiram nisso, visto que o que os mantinha unidos era um fator ideal, a posse em comum de certa riqueza intelectual e emocional. A religião de Moisés conduziu a esse resultado porque (1) permitiu ao povo participar da grandiosidade de uma nova idéia de Deus, (2) afirmou que esse povo fora escolhido por esse grandeDeus e destinado a receber provas de seu favor especial, e (3) impôs ao povo um avanço em intelectualidade que, bastante importante em si mesmo, lhe abriu o caminho, em acréscimo, à apreciação do trabalho intelectual e a novas renúncias aos instintos.

Foi a isso que chegamos. E, embora não queiramos retirar nada, não podemos esconder de nós que, de uma ou outra maneira, é insatisfatório. A causa, por assim dizer, não combina com o efeito; o fato que desejamos explicar parece-nos ser de magnitude diferente de tudo pelo qual o explicamos. Talvez todas as investigações que até aqui fizemos não tenham revelado a totalidade da motivação, mas apenas certa camada superficial, e talvez, por trás desta, outro fator muito importante aguarde a descoberta? Em vista da extraordinária complexidade de toda a causação na vida e na história, algo dessa espécie era de esperar.

O acesso a essa motivação mais profunda pareceria ter sido fornecido num ponto específico dos debates anteriores. A religião de Moisés não produziu seus efeitos de imediato, mas de modo notavelmente indireto. Isso não quer dizer simplesmente que ela não funcionou logo em seguida, que levou longos períodos de tempo, centenas de anos, para desdobrar todo o seu efeito, pois isso é auto-evidente quando se trata de imprimir o caráter de um povo. A restrição, porém, relaciona-se a um fato que derivamos da história da religião judaica, ou, se quiserem, nela introduzimos. Dissemos que, após certo tempo, o povo judeu rejeitou a religião de Moisés mais uma vez; se o fez completamente ou se reteve alguns de seus preceitos é coisa que não podemos adivinhar. Se supusermos que, no longo período da tomada de Canaã e da luta com os povos que a habitavam, a religião de Javé não diferiu essencialmente da adoração de outros Baalim,ver em[[1]],encontrar-nos-emos em terreno histórico, apesar de todos os tendenciosos esforços posteriores para lançar um véu sobre esse envergonhante estado de coisas.

A religião de Moisés, contudo, não desapareceu sem deixar traço. Uma espécie de lembrança sua sobreviveu, obscurecida e deformada, apoiada, talvez, entre membros individuais da classe sacerdotal, mediante antigos registros. E foi essa tradição de um grande passado que continuou a operar em segundo plano, por assim dizer, que gradativamente conquistou cada vez mais poder sobre as mentes dos homens, e finalmente conseguiu transformar o deus Javé no Deus de Moisés e chamar de volta à vida a religião de Moisés, que se estabelecera e fora depois abandonada, muitos séculos antes.

Numa parte anterior deste Estudo [ver em[1]], consideramos qual presunção parecerá inevitável se quisermos achar compreensível esse feito da tradição.

 

F - O RETORNO DO REPRIMIDO

 

Há uma quantidade de processos semelhantes entre os que a investigação analítica da vida mental nos ensinou a conhecer. Alguns deles são descritos como patológicos; outros se contam entre a diversidade dos acontecimentos normais. Mas isso pouco importa, já que as fronteiras entre os dois [os patológicos e os normais] não estão nitidamente traçadas, seus mecanismos são em grande parte os mesmos, sendo de muito maior importância saber se as alterações em apreço se realizam no próprio ego ou se confrontam com ele como estranhas a ele — caso em que são conhecidas como sintomas.

Da massa de material, apresentarei primeiramente alguns casos que se relacionam com o desenvolvimento do caráter. Tome-se, por exemplo, a moça que atingiu um estado da mais decidida oposição à mãe. Ela cultivou todas aquelas características que percebeu faltarem à mãe, e evitou tudo que a lembrasse da mesma. Podemos suplementar isso, dizendo que, em seus primeiros anos, como toda criança do sexo feminino, adotou uma identificação com a mãe e agora se rebela energicamente contra ela. Mas quando essa moça se casa e se torna, ela própria, esposa e mãe, não precisamos surpreender-nos por descobrir que ela começa a ficar cada vez mais parecida com a mãe a quem tanto antagonizou, até que finalmente a identificação com esta, identificação que ela supera, é inequivocamente restabelecida. O mesmo também acontece com os rapazes; inclusive o grande Goethe, que, no período de seu gênio, decerto olhava com desprezo para seu inflexível e pedante pai, em sua velhice desenvolveu traços que faziam parte do caráter deste. O resultado pode tornar-se ainda mais notável quando o contraste entre as duas personalidades é mais nítido. Um jovem cujo destino foi crescer ao lado de um pai inútil, começou por transformar-se, em desafio a ele, numa pessoa capaz, digna de confiança e honrada. No apogeu da vida, seu caráter se inverteu, e daí por diante comportou-se como se tivesse tomado aquele mesmo pai como modelo. A fim de não perdermos a vinculação com nosso tema, devemos manter em mente o fato de que, no início de tal curso de acontecimentos, há sempre uma identificação com o pai na primeira infância. Esta é posteriormente repudiada e até mesmo supercompensada, mas, ao final, mais uma vez se estabelece.

Há muito tempo é do conhecimento comum que as experiências dos cinco primeiros anos de uma pessoa exercem efeito determinante sobre suavida, efeito que mais tarde pode enfrentar. Muita coisa que merece ser sabida poderia ser dita sobre a maneira como essas impressões precoces se mantêm contra quaisquer influências em períodos mais maduros da vida — mas isso não seria pertinente aqui. Contudo, pode ser menos conhecido que a influência compulsiva mais forte surge de impressões que incidem na criança numa época em que teríamos de encarar seu aparelho psíquico como ainda não completamente receptivo. O fato, em si, não pode ser posto em dúvida, mas é tão enigmático que podemos torná-lo mais compreensível comparando-o a uma exposição fotográfica que pode ser revelada após qualquer intervalo de tempo e transformada num retrato. Não obstante, fico contente em indicar que essa nossa incômoda descoberta foi antecipada por um escritor imaginativo, com a audácia que é permitida aos poetas. E.T.A. Hoffmann costumava fazer remontar a riqueza das figuras que se lhe punham à disposição para seus escritos criativos a imagens e impressões mutantes que experimentara durante uma viagem de algumas semanas, numa carruagem de correio, quando ainda era um bebê ao seio da mãe. O que as crianças experimentaram na idade de dois anos e não compreenderam, nunca precisa ser recordado por elas, exceto em sonhos; elas só podem vir a saber disso através do tratamento psicanalítico. Em alguma época posterior, entretanto, isso irromperá em sua vida com impulsos obsessivos, governará suas ações, decidirá de suas simpatias e antipatias e, com muita freqüência, determinará sua escolha de um objeto amoroso, para a qual quase sempre é impossível encontrar uma base racional. Não podemos enganar-nos sobre os dois pontos em que esses fatos fazem aflorar nosso problema.

Em primeiro lugar, há a distância do período em apreço, que é reconhecido aqui como o verdadeiro determinante — no estado especial da lembrança que, por exemplo, no caso dessas experiências infantis, classificamos de ‘inconsciente’. Esperamos encontrar nisso uma analogia com o estado que estamos procurando atribuir à tradição na vida mental do povo. Não foi fácil, com efeito, introduzir a idéia do inconsciente na psicologia de grupo.

[Em segundo lugar], contribuições regulares são feitas aos fenômenos de que estamos à procura pelos mecanismos que levam à formação dasneuroses. Aqui, mais uma vez, os acontecimentos determinantes ocorrem nas primeiras épocas infantis; só que o acento não se coloca sobre o tempo mas sobre os processos pelos quais o acontecimento é enfrentado, pela reação a ele. Esquematicamente, podemos descrevê-lo da seguinte maneira. Em resultado da experiência, surge uma experiência instintual que reclama satisfação. O ego recusa essa satisfação, seja porque está paralisado pela magnitude da exigência, seja porque a reconhece como um perigo. O primeiro desses fundamentos é o mais primário; ambos equivalem à evitação de uma situação de perigo. O ego desvia o perigo pelo processo da repressão. O impulso instintual é, de alguma maneira, inibido, e esquecida sua causa precipitante, com suas percepções e idéias concomitantes. Isso, contudo, não constitui o fim do processo: o instinto ou reteve suas forças ou as reúne novamente ou é redespertado por alguma nova causa precipitante. Logo após, ele renova sua exigência, e, como o caminho à satisfação normal lhe permanece fechado pelo que podemos chamar de cicatriz da repressão, alhures, em algum ponto fraco, ele abre para si outro caminho ao que é conhecido como satisfação substitutiva, que vem à luz como sintoma, sem a aquiescência do ego, mas também sem sua compreensão. Todos os fenômenos da formação de sintomas podem ser justamente descritos como o ‘retorno do reprimido’. Sua característica distintiva, contudo, é a deformação, de grandes conseqüências, a qual o material que retorna foi submetido, quando comparado com o original. Pensar-se-á talvez que esse último grupo de fatos nos levou para muito longe da semelhança com a tradição, mas não devemos lamentar se nos trouxe para mais perto dos problemas da renúncia ao instinto.

 

G - VERDADE HISTÓRICA

 

Empreendemos todos esses desvios psicológicos a fim de tornar mais crível para nós que a religião de Moisés só transmitiu seu efeito ao povo judeu como uma tradição. É provável que não tenhamos conseguido mais do que um certo grau de probabilidade. Suponhamos, contudo, que tivemos êxito em provar isso completamente. Ainda assim permaneceria a impressão de que simplesmente satisfizemos o fator qualitativo do que foi exigido, mas não o fator quantitativo. Há um elemento de grandiosidade a respeito de tudo o que se relaciona à origem da religião, decerto inclusive à da judaica, e esse elemento não foi igualado pelas explicações que até aqui fornecemos. Deve estar envolvido algum outro fator, com o qual há pouco que seja análogo e nada que seja da mesma espécie, algo único, algo da mesma ordem de magnitude do que dele surgiu, como a própria religião.Ver em [[1]]

Tentemos abordar o assunto a partir da direção oposta. Compreendemos como um homem primitivo tem necessidade de um deus como criador do universo, como chefe de seu clã, como protetor pessoal. Esse deus assume posição por trás dos pais mortos [do clã], a respeito de quem a tradição ainda tem algo a dizer. Um homem de dias posteriores, de nossos próprios dias, comporta-se da mesma maneira. Também ele permanece infantil e tem necessidade de proteção, inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem o apoio de seu deus. Tudo isso é indiscutível. Menos fácil, porém, é compreender por que só pode haver um único deus, por que precisamente o avanço do henoteísmo ao monoteísmo adquire uma significância esmagadora. Não há dúvida, é verdade, como já explicamos ver em[[1]e[2]],de que o crente participa da grandeza de seu deus e, quanto maior este, mais digna de confiança é a proteção que pode oferecer. Mas o poder de um deus não pressupõe necessariamente que ele seja o único. Muitos povos encaravam apenas como uma glorificação de seu deus principal que ele governasse outras divindades que lhe eram inferiores, e não pensavam que diminuísse sua grandeza a existência de outros deuses além dele. Indubitavelmente, seesse deus se tornasse universal e tivesse todos os países e povos como sua preocupação, isso significaria um sacrifício da intimidade, também. Era como se se partilhasse o próprio deus com os estrangeiros, e havia que compensar isso pela estipulação de se ser preferido por ele. Podemos ainda argumentar que a idéia de um único deus significa, em si própria, um avanço em intelectualidade, mas é impossível considerar esse ponto tão altamente.

Os crentes piedosos, contudo, sabem como preencher adequadamente essa lacuna óbvia na motivação. Dizem que a idéia de um deus único produziu um efeito tão esmagador sobre os homens porque se tratava de uma parte da verdade eterna, a qual, longo tempo oculta, por fim veio à luz, estando então fadada a conduzir todos consigo. Temos de admitir que um fator desse tipo é, por fim, algo que iguala a magnitude, tanto do assunto quanto do seu efeito.

Também nós gostaríamos de aceitar essa solução. Mas uma dúvida se apresenta a nós. O piedoso argumento repousa numa premissa otimista e idealista. Não foi possível demonstrar, em relação a outros assuntos, que o intelecto humano possua um faro particularmente bom para a verdade, ou que a mente humana demonstre qualquer inclinação especial para reconhecê-la. Encontramos antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente se extravia sem qualquer aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós do que aquilo que, sem referência à verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo. Temos, por esta razão, de acrescentar uma reserva à nossa concordância. Nós também acreditamos que a solução piedosa contém a verdade — mas a verdade histórica, não a verdade material. E assumimos o direito de corrigir uma certa deformação a que essa verdade foi submetida em seu retorno. Isso equivale a dizer que não acreditamos que exista um único e grande deus hoje, mas que, em tempos primevos, houve uma pessoa isolada que estava fadada a parecer imensa nessa época e que, posteriormente, retornou na memória dos homens, elevada à divindade.

Já presumimos que a religião de Moisés foi, inicialmente, rejeitada e semi-esquecida, irrompendo posteriormente como uma tradição. Estamos agora presumindo que esse processo estava sendo repetido pela segunda vez. Quando Moisés trouxe ao povo a idéia de um deus único, ela não constituiu uma novidade, mas significou a revivescência de uma experiência das eras primevas da família humana, a qual havia muito tempo se desvanecera na memória consciente dos homens. Mas ela fora tão importante e produzira ou preparara o caminho para mudanças tão profundamente penetrantes na vida dos homens, que não podemos evitar crer que deixara atrás de si, na mente humana, alguns traços permanentes, os quais podem ser comparados a uma tradição.Aprendemos das psicanálises de indivíduos que suas impressões mais primitivas, recebidas numa época em que a criança mal era capaz de falar, produzem, numa ou noutra ocasião efeitos de um caráter compulsivo, sem serem, elas próprias, conscientemente recordadas. Acreditamos que temos o direito de fazer a mesma presunção sobre as experiências mais primitivas da totalidade da humanidade. Um desses efeitos seria o surgimento da idéia de um único e grande deus — idéia que deve ser reconhecida como uma lembrança que foi deformada. Uma idéia como essa possui um caráter compulsivo: ela deve ser acreditada. Até o ponto em que é deformada, ela pode ser descrita como um delírio; na medida em que traz um retorno do passado, deve ser chamada de verdade. Também os delírios psiquiátricos contêm um pequeno fragmento de verdade e a convicção do paciente estende-se dessa verdade para seus invólucros delirantes.

O que se segue daqui até o fim, é uma repetição ligeiramente modificada dos debates da Parte I [do presente (terceiro) ensaio].

Em 1912, tentei, em meu Totem e Tabu, reconstruir a antiga situação da qual essas conseqüências decorreram. Assim procedendo, fiz uso de certas idéias teóricas apresentadas por Darwin, Atkinson e, particularmente, Robertson Smith, e combinei-as com os achados e indicações derivados da psicanálise. De Darwin tomei de empréstimo a hipótese de que os seres humanos originalmente viviam em pequenas hordas, cada uma das quais sob o governodespótico de um macho mais velho que se apropriava de todas as fêmeas e castigava ou se livrava dos machos mais novos, inclusive os filhos. De Atkinson, em continuação dessa descrição, tomei a idéia de que esse sistema patriarcal terminou por uma rebelião por parte dos filhos, que se reuniram em bando contra o pai, o derrotaram e o devoraram em comum. Baseando-me na teoria totêmica de Robertson Smith, presumi que, subseqüentemente, a horda paterna cedeu lugar ao clã fraterno totêmico. A fim de poder viver em paz uns com os outros, os irmãos vitoriosos renunciaram às mulheres por cuja causa, afinal de contas, haviam matado o pai, e instituíram a exogamia. O poder dos pais foi rompido e as famílias se organizaram em matriarcado. A atitude emocional ambivalente dos filhos para com o pai permaneceu em vigor durante a totalidade do seu desenvolvimento posterior. Um animal específico foi colocado em lugar do pai, como totem. Era encarado como ancestral e espírito protetor, e não podia ser ferido ou morto. Uma vez por ano, toda a comunidade masculina se reunia numa refeição cerimonial, em que o animal totêmico (adorado em todas as outras ocasiões) era despedaçado e devorado em comum. Ninguém podia ausentar-se dessa refeição: ela era a repetição cerimonial da morte do pai, com a qual a ordem social, as leis morais e a religião haviam iniciado. A conformidade entre a refeição totêmica de Robertson Smith e a Ceia do Senhor cristã impressionara certo número de escritores antes de mim.Ver em [ [1][2]].

Até o dia de hoje, atenho-me firmemente a essa construção. Repetidamente defrontei-me com violentas censuras por não ter alterado minhas opiniões em edições posteriores de meus livros, apesar do fato de etnológos mais recentes terem unanimemente rejeitado as hipóteses de Robertson Smith e em parte apresentado outras teorias, totalmente divergentes. Posso dizer em resposta que esses avanços ostensivos me são bem conhecidos. Mas não fui convencido quer da correção dessas inovações, quer dos erros de Robertson Smith. Uma negação não é uma refutação, uma inovação não é necessariamente um avanço. Acima de tudo, porém, não sou etnólogo, mas psicanalista. Tenho o direito de extrair, da literatura etnológica, o que possa necessitar para o trabalho de análise. Os escritos de Robertson Smith — um homem de gênio — forneceram-me valiosos pontos de contato com o material psicológico da análise e indicações para seu emprego. Nunca me encontrei em campo comum com seus opositores.

 

H - O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

 

Não posso aqui repetir pormenorizadamente o conteúdo de Totem e Tabu. Mas tenho de tentar preencher a longa extensão existente entre aquele hipotético período primevo e a vitória do monoteísmo, nos tempos históricos. Após a instituição da combinação de clã fraterno, matriarcado, exogamia e totemismo, começou um desenvolvimento que deve ser descrito como um lento ‘retorno do reprimido’. Aqui, não estou empregando o termo ‘o reprimido’ em seu sentido próprio. O que está em tela é algo na vida de um povo que é passado, perdido de vista, relegado, e que nos aventuramos a comparar com o que é reprimido na vida mental de um indivíduo. Não podemos, à primeira vista, dizer sob que forma esse passado existiu durante o tempo de seu eclipse. Não nos é fácil transferir os conceitos da psicologia individual para a psicologia de grupo, e não acho que ganhemos alguma coisa introduzindo o conceito de um inconsciente ‘coletivo’. O conteúdo do inconsciente, na verdade, é, seja lá como for, uma propriedade universal, coletiva, da humanidade. Por ora, pois, teremos de nos arranjar com o uso de analogias. Os processos da vida dos povos que estamos estudando aqui são muito semelhantes àqueles que nos são familiares na psicopatologia; contudo, não são inteiramente os mesmos. Temos de finalmente decidir-nos por adotar a hipótese de que os precipitados psíquicos do período primevo se tornaram propriedade herdada, a qual, em cada nova geração, não exigia aquisição, mas apenas um redespertar. Nisso, temos em mente o exemplo do que é certamente o simbolismo ‘inato’ que deriva do período do desenvolvimento da fala, familiar a todas as crianças sem que elas sejam instruídas, e que é o mesmo entre todos os povos, apesar de suas diferentes línguas. O que talvez ainda nos possa faltar em certeza aqui é compensado por outros produtos da pesquisa psicanalítica. Descobrimos que, em certo número de relações importantes, nossas crianças reagem, não de maneira correspondente às suas próprias experiências, mas instintivamente, como animais, de um modo que só é explicável como aquisição filogenética.O retorno do reprimido realizou-se de modo lento e decerto não espontâneo, mas sob a influência de todas as mudanças em condições de vida que preenchem a história da civilização humana. Não posso fornecer aqui um levantamento desses determinantes, não mais do que uma enumeração fragmentária dos estádios desse retorno. O pai mais uma vez tornou-se o cabeça da família, mas de modo algum era tão absoluto quanto o pai da horda primeva o fora. O animal totêmico foi substituído por um deus, numa série de transições que ainda são muito claras. Inicialmente, o deus em forma humana ainda portava uma cabeça de animal; mais tarde, transformou-se, de preferência, nesse animal específico, e, posteriormente, este foi consagrado a ele e constituiu-se em seu assistente preferido, ou, então, o deus matava o animal e portava-lhe o nome, como epíteto. Entre o animal totêmico e o deus, surgiu o herói, amiúde como passo preliminar no sentido de deificação. A idéia de uma divindade suprema parece ter começado cedo, a princípio apenas de maneira indistinta sem interferir nos interesses cotidianos dos homens. À medida que tribos e povos se reuniam em unidades maiores, os deuses também se organizavam em famílias e hierarquias. Um deles era com freqüência elevado a senhor supremo sobre deuses e homens. Após isso, deu-se hesitadamente o passo seguinte de prestar respeito apenas a um só deus, e, finalmente, tomou-se a decisão de conceder todo poder a um deus único e de não tolerar outros deuses além dele. Somente assim foi que a supremacia do pai da horda primeva foi restabelecida e as emoções referentes a ele puderam ser repetidas.

O primeiro efeito de encontrar o ser que por tanto tempo estivera faltando e pelo qual se ansiara foi esmagador e semelhante à descrição tradicional da entrega das leis no Monte Sinai. Admiração, temor respeitoso e agradecimento por ter encontrado graça a seus olhos — a religião de Moisés não conhecia outros que não fossem esses sentimentos positivos para com o deus pai. A convicção de sua irresistibilidade, a submissão à sua vontade não poderiam ter sido mais indiscutidas no desamparado e intimidado filho do pai da horda — na verdade, esses sentimentos só se tornaram plenamente inteligíveis quando transpostos para o ambiente primitivo e infantil. Os impulsos emocionais de uma criança são intensa e inexaurivelmente profundos, num grau inteiramente diferente dos de um adulto; só o êxtase religioso pode trazê-los de volta. O enlevo da devoção a Deus foi assim a primeira reação ao retorno do grande pai.

A direção a ser tomada por essa religião paterna foi, dessa maneira, estabelecida para todo o tempo. Contudo, isso não levou seu desenvolvimento a um final. A ambivalência faz parte da essência da relação com o pai: nodecurso do tempo, também a hostilidade não podia deixar de despertar, o que mais uma vez impulsionou os filhos a matarem seu admirado e temido pai. Não havia lugar, na estrutura da religião de Moisés, para uma expressão direta do ódio assassino pelo pai. Tudo o que podia vir à luz era uma reação poderosa contra ele — um sentimento de culpa por causa dessa hostilidade, uma má consciência por ter pecado contra Deus e por não ter deixado de pecar. Esse sentimento de culpa, que foi ininterruptamente mantido desperto pelos Profetas, e que cedo constituiu parte essencial do sistema religioso, possuía ainda outra motivação superficial que habilmente disfarçava sua verdadeira origem. As coisas estavam indo mal para o povo; as esperanças que repousavam no favor de Deus não eram comprimidas; não era fácil manter a ilusão, amada acima de tudo o mais, de ser o povo escolhido de Deus. Se queriam evitar renunciar a essa felicidade, um sentimento de culpa devido à sua própria pecaminosidade oferecia um meio bem-vindo de exculpar Deus: não mereciam mais do que serem punidos por ele, visto não terem obedecido a seus mandamentos. E, impulsionados pela necessidade de satisfazer esse sentimento de culpa, que era insaciável e provinha de fontes muito mais profundas, tinham de fazer com que esses mandamentos se tornassem ainda mais estritos, mais meticulosos e, até mesmo mais triviais. Num novo arroubo de ascetismo moral, impuseram-se mais e mais novas renúncias instintuais e por essa maneira atingiram — em doutrina e preceito, pelo menos — alturas éticas que permaneceram inacessíveis aos outros povos da Antiguidade. Muitos judeus consideram essa consecução de alturas éticas como a segunda característica principal e a segunda grande realização de sua religião. A maneira pela qual ela está vinculada à primeira — a idéia de um deus único — deveria ficar clara a partir de nossas considerações. Essas idéias éticas não podem, contudo, renegar sua origem a partir do sentimento de culpa sentido por causa de uma hostilidade recalcada para com Deus. Elas possuem a característica — incompleta e incapaz de conclusão — de formações reativas neuróticas obsessivas; podemos adivinhar também que servem aos propósitos secretos de punição.

O desenvolvimento ulterior leva-nos para além do judaísmo. O remanescente do que retornou do trágico drama do pai primevo não foi mais reconciliável, de maneira alguma, com a religião de Moisés. O sentimento de culpa daqueles dias estava muito longe de restringir exclusivamente ao povo judeu; apoderara-se de todos os povos mediterrâneos como um apático malaise, uma premonição de calamidade para a qual ninguém podia sugerir uma razão. Os historiadores de nossos dias falam de envelhecimento da antiga civilização, mas suspeito de que aprenderam apenas causas acidentaise contribuintes desse humor deprimido dos povos. A elucidação dessa situação de depressão surgiu do judaísmo. Independentemente de todas as aproximações e preparações do mundo circunvizinho, foi afinal de contas no espírito de um judeu, Saulo de Tarso (que, como cidadão romano, chamava-se Paulo), que a compreensão pela primeira vez emergiu: ‘a razão por que somos tão infelizes é que matamos Deus, o pai,’ E é inteiramente compreensível que ele só pudesse apreender esse fragmento de verdade no disfarce delirante da boa notícia: ‘estamos libertos de toda culpa, uma vez que um de nós sacrificou a vida para absolver-nos.’ Nessa fórmula, a morte de Deus naturalmente não foi mencionada, mas um crime que tinha de ser explicado pelo sacrifício de uma vítima só poderia ter sido um assassinato. E o passo intermediário entre o delírio e a verdade histórica foi proporcionado pela garantia de que derivou da fonte da verdade histórica, essa nova fé derrubou todos os obstáculos. O sentimento bem-aventurado de ser escolhido foi substituído pelo sentimento liberador da redenção. Mas o fato do parricídio, retornando à memória da humanidade, teve de superar resistências maiores do que o outro fato, que constituíra o tema geral do monoteísmo; ele também foi obrigado a submeter-se a uma deformação mais poderosa. O crime inominável foi substituído pela hipótese do que deve ser descrito como um indistinto ‘pecado original’.

O pecado original e a redenção pelo sacrifício de uma vítima tornaram-se as pedras fundamentais de nova religião fundada por Paulo. Deve permanecer incerto se houve um cabeça e instigador ao crime entre o bando de irmãos que se rebelou contra o pai primevo, ou se tal figura foi criada posteriormente pela imaginação de artistas criativos, a fim de se transformarem em heróis, tendo sido então introduzida na tradição. Após a doutrina cristã ter queimado a estrutura do judaísmo, recolheu componentes de muitas outras fontes, renunciou a uma série de características do monoteísmo puro e adaptou-se, em muitos pormenores, aos rituais de outros povos mediterrâneos. Foi como se o Egito mais uma vez se vingasse dos herdeiros de Akhenaten. Vale a pena notar como a nova religião lidou com a antiga ambivalência na relação com o pai. Seu conteúdo principal foi, é verdade, a reconciliação com o Deus pai, a expiação pelo crime cometido contra ele, mas o outro lado da relação emocional mostrava-se no fato de o filho, que tomara a expiação sobre si, tornar-se um deus, ele próprio, ao lado do pai, e, na realidade, em lugar deste.O cristianismo, tendo surgido de uma religião paterna, tornou-se uma religião filial. Não escapou ao destino de ter de livrar-se do pai.

Apenas uma parte do povo judeu aceitou a nova doutrina. Aqueles que a recusaram ainda hoje são chamados de judeus. Devido a essa cisão, tornaram-se ainda mais nitidamente separados dos outros povos do que antes. Foram obrigados a ouvir a nova comunidade religiosa (que, ao lado de judeus, incluía egípcios, gregos, sírios, romanos e, por fim, germânicos) censurá-los por terem matado Deus. Na íntegra, essa censura diria o seguinte: ‘Eles não aceitarão como algo verdadeiro que assassinaram Deus, ao passo que nós o admitimos e fomos limpos dessa culpa.’ É fácil, portanto, ver quanta verdade reside por trás da censura. Exigir-se-ia uma investigação especial para descobrir por que foi impossível aos judeus reunirem-se nesse passo à frente, que estava implícito, apesar de todas as suas deformações, pela admissão de ter matado Deus. Em certo sentido, eles, dessa maneira, tomaram uma trágica carga de culpa sobre si próprios, e viram-se obrigados a pagar uma pesada penitência por isso.

Talvez nossa investigação tenha alcançado um pouco de luz sobre a questão de saber como o povo judeu adquiriu as características que o distinguem. Uma luz menor foi lançada sobre o problema de saber como foi que puderam reter sua individualidade até o dia de hoje. Mas respostas exaustivas para tais enigmas não podem, com justiça, ser pedidas ou esperadas. Uma contribuição, a ser julgada à vista das limitações que mencionei de início,ver em[[1]],é tudo o que posso oferecer.

 

ESBOÇO DE PSICANÁLISE (1940 [1938])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

ABRISS DER PSYCHOANALYSE

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1940   Int. Z. Psychoanal. Imago, 25, (1), 7-67.

1941   G. W., 17, 63-138.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

An Outline of Psychoanalysis

 

1940   Int. J. Psycho-Anal., 21, (1) 27-82. (Trad. de James Strachey.)

1949   Londres, Hogarth Press e Instituto de Psicanálise. ix + 84 págs. (Reimpressão revista da acima, em forma de livro.)

1949   Nova Iorque, Norton, 127 págs. (Reimpressão da acima.)

 

A atual é uma versão consideravelmente revista da tradução publicada em 1949.

 

Quando este trabalho foi publicado pela primeira vez, tanto em alemão quanto em inglês, fez-se acompanhar de dois resumos do pequeno trabalho escrito por Freud na mesma época, “Some Elementary Lessons in Psycho-Analysis” (1940b [1938]). Esses resumos apareceram como nota de rodapé no Capítulo IV da versão alemã e como apêndice na inglesa. O trabalho do qual foram extraídos no resumo foi publicado na íntegra pouco depois (aparece na [1]do vol. XXIII da Standard Edition),e a nota de rodapé e o apêndice foram conseqüentemente omitidos das reimpressões subseqüentes do presente trabalho.

Por um descuido lamentável, o “Prefácio” do autor ver em ([1]) foi omitido da reimpressão das G.W. e, assim, só pode ser encontrado, em alemão, no Zeitschrift. Deve-se observar que o Volume XVII das Gesammelte Werke, que foi o primeiro de seus volumes a ser publicado (1941), foi também lançado simultaneamente, com página de rosto e encadernação diferentes, como Schriften aus dem Nachlass. (Trabalhos Póstumos).

O manuscrito de todo este trabalho acha-se redigido de forma inusitadamente abreviada, sobretudo o terceiro capítulo (“O Desenvolvimento da Função Sexual”,ver em [1])é, em grande parte, muito abreviado, com a omissão, por exemplo, dos artigos definidos e indefinidos e de muitos verbos principais— no que poderia ser descrito como um estilo telegráfico. Os coordenadores alemães, segundo nos informam, ampliaram essas abreviações. O sentido geral não se acha em dúvida e, embora a editoração seja, em certos pontos, um pouco livre, pareceu mais simples aceitá-la e traduzir a versão fornecida pelas Gesammelte Werke.

A Parte I do trabalho não recebeu título por parte do autor. Os coordenadores alemães adotaram, para esse fim, “Die Natur des Psychischen” (“A Natureza do Psíquico”), que é subtítulo do pequeno trabalho escrito na época e já citado aqui, “Some Elementary Lessons in Psycho-Analysis” ver em ([1] do Vol. XXIII da Standard Edition). Para a presente edição, imaginou-se um título bastante mais geral.

Há uma certa controvérsia quanto à época em que Freud começou a escrever o Esboço. Segundo Ernest Jones (1957, 255), “começou-o durante o tempo de espera em Viena” — o que significaria abril ou maio de 1938. O manuscrito, contudo, traz em sua página inicial a data de “22 de julho”, o que confirma a opinião dos coordenadores alemães de que o trabalho foi começado em julho de 1938, equivale a dizer, logo após a chegada de Freud a Londres, no início de junho. No começo de setembro, ele já havia escrito 63 folhas do Esboço, quando teve de interromper o trabalho para submeter-se a uma operação muito séria, e não mais retomou-o, embora tivesse começado, pouco depois, outro trabalho expositivo (“Some Elementary Lessons in Psycho-Analysis”), que logo foi interrompido também.

Assim, o Esboço deve ser descrito como inacabado, mas é difícil considerá-lo incompleto. O último capítulo, é verdade, é mais curto que o resto e bem poderia ter prosseguido com o exame de coisas como sentimento de culpa, embora isto já houvesse sido aflorado no Capítulo VI. Em geral, contudo, a questão de até onde e em que direção Freud teria continuado o livro é intrigante, pois o programa estabelecido pelo autor em seu prefácio parece ter sido cumprido de maneira bastante satisfatória.

Na longa sucessão dos trabalhos expositivos de Freud, o Esboço apresenta um caráter único. Os outros, sem exceção, visam a explicar a Psicanálise a um público estranho a ela, um público com graus e tipos mais variados de abordagem geral ao tema de Freud, mas, sempre, um público relativamente ignorante. Não se pode dizer isto do Esboço. Deve-se entender claramente que não se trata de um livro para principiantes, sendo algo muito mais semelhante a um “curso de atualização” para estudantes adiantados. Em todo ele, espera-se que o leitor esteja familiarizado não apenas com a abordagem geral de Freud à Psicologia, mas também com os pormenores de seus achados e teoria. Exemplificando, umas duas alusões muito sucintas ao papel desempenhado pelos traços mnêmicos de impressões sensoriais verbais,ver em ([1]e[2]),dificilmente seriam inteligíveis a quem não se achasse familiarizado com certo número de difíceis argumentos do último capítulo de A Interpretação de Sonhos e da seção final do artigo metapsicológico sobre “O Inconsciente”. E, ainda, as considerações muito escassas, em dois outros lugares, sobre a identificação e sua relação com objetos amorosos abandonados,ver em ([1] e [2]),implicam o conhecimento de, pelo menos, o Capítulo III de The Ego and the Id. Mas aqueles que já estão familiarizados com as obras de Freud acharão este Esboço um epílogo fascinante. Uma nova luz é lançada sobre todos os pontos que ele aborda — as teorias mais fundamentais ou as observações clínicas mais pormenorizadas — e tudo é debatido no vocabulário de sua mais recente terminologia. Há mesmo alusões ocasionais e desenvolvimentos inteiramente novos, sobretudo na parte final do Capítulo VIII, onde a questão da divisão (splitting) do ego e o seu repúdio de partes do mundo externo, tal como exemplificada no caso do fetichismo, recebe consideração ampliada. Tudo isto demonstra que, aos 82 anos de idade, Freud ainda possuía um dom espantoso de efetuar uma abordagem nova ao que poderia parecer tópicos muito batidos. Em parte alguma, talvez, atinge o seu estilo nível mais alto de concisão e lucidez. Todo o trabalho nos dá uma sensação de liberdade em sua apresentação, o que é talvez de se esperar na última descrição, por parte de um mestre, das idéias de que foi o criador.

 

ESBOÇO DE PSICANÁLISE [PREFÁCIO]

 

O objetivo deste trabalho breve é reunir os princípios da Psicanálise e enunciá-los, por assim dizer, dogmaticamente, sob a forma mais concisa e nos termos mais inequívocos. Sua intenção, naturalmente, não é compelir à crença ou despertar convicção.

Os ensinamentos da Psicanálise baseiam-se em número incalculável de observações e experiências, e somente alguém que tenha repetido estas observações em si próprio e em outras pessoas acha-se em posição de chegar a um julgamento próprio sobre ela.

 

PARTE I - [A MENTE E O SEU FUNCIONAMENTO]

 

CAPÍTULO I - O APARELHO PSÍQUICO

 

A Psicanálise faz uma suposição básica, cuja discussão se reserva ao pensamento filosófico, mas a justificação da qual reside em seus resultados. Conhecemos duas espécie de coisas sobre o que chamamos nossa psique (ou vida mental): em primeiro lugar, seu órgão corporal e cena de ação, o cérebro (ou sistema nervoso), e, por outro lado, nossos atos de consciência, que são dados imediatos e não podem ser mais explicados por nenhum outro tipo de descrição. Tudo o que jaz entre eles é-nos desconhecido, e os dados não incluem nenhuma relação direta entre estes dois pontos terminais de nosso conhecimento. Se existisse, no máximo permitir-nos-ia uma localização exata dos processos da consciência e não nos forneceria auxílio no sentido de compreendê-los.Nossas duas hipóteses partem desses fins ou inícios de nosso conhecimento. A primeira delas está relacionada com a locação. Presumimos que a vida mental é função de um aparelho ao qual atribuímos as características de ser extenso no espaço e de ser constituído por diversas partes — ou seja, que imaginamos como semelhante a um telescópio, microscópio, ou algo desse gênero. Não obstante algumas tentativas anteriores no mesmo sentido, a elaboração sistemática de uma concepção como esta constitui uma novidade científica.

Chegamos ao nosso conhecimento deste aparelho psíquico pelo estudo do desenvolvimento individual dos seres humanos. À mais antiga destas localidades ou áreas de ação psíquica damos o nome de id. Ele contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento, que está assente na constituição — acima de tudo, portanto, os instintos, que se originam da organização somática e que aqui [no id] encontram uma primeira expressão psíquica, sob formas que nos são desconhecidas.

Sob a influência do mundo externo que nos cerca, uma porção do id sofreu um desenvolvimento especial. Do que era originalmente uma camada cortical, equipada com órgãos para receber estímulos e com disposições para agir como um escudo protetor contra estímulos, surgiu uma organização especial que, desde então, atua como intermediária entre o id e o mundo externo. A esta região de nossa mente demos o nome de ego.

São estas as principais características do ego: em conseqüência da conexão preestabelecida entre a percepção sensorial e a ação muscular, o ego tem sob seu comando o movimento voluntário. Ele tem a tarefa de autopreservação. Com referência aos acontecimentos externos, desempenha essa missão dando-se conta dos estímulos, armazenando experiências sobre eles (na memória), evitando estímulos excessivamente intensos (mediante a fuga), lidando com os estímulos moderados (através da adaptação) e, finalmente, aprendendo a produzir modificações convenientes no mundo externo, em seu próprio benefício (através da atividade). Com referência aos acontecimentos internos, em relação ao id, ele desempenha essa missão obtendo controle sobre as exigências dos instintos, decidindo se elas devem ou não ser satisfeitas, adiando essa satisfação para ocasiões e circunstâncias favoráveis no mundo externo ou suprimindo inteiramente as suas excitações. É dirigido, em sua atividade, pela consideração das tensões produzidas pelos estímulos, estejam essas tensões nele presentes ou sejam nele introduzidas. A elevação dessas tensões é, em geral, sentida como desprazer, e o seu abaixamento, como prazer. É provável, contudo, que aquilo que é sentido como prazer ou desprazer não seja a altura absoluta dessa tensão, mas sim algo no ritmo das suas modificações. O ego se esforça pelo prazer e busca evitar o desprazer. Um aumento de desprazer esperado e previsto é enfrentado por um sinal de ansiedade; a ocasião de tal aumento, quer ele ameace de fora ou de dentro, é conhecida como um perigo. De tempos em tempos, o ego abandona sua conexão com um mundo externo e se retira para o estado de sono, no qual efetua alterações de grande alcance em sua organização. É de inferir-se do estado de sono que essa organização consiste numa distribuição específica de energia mental.

O longo período da infância, durante o qual o ser humano em crescimento vive na dependência dos pais, deixa atrás de si, como um precipitado, a formação, no ego, de um agente especial no qual se prolonga a influência parental. Ele recebeu o nome de superego. Na medida em que este superego se diferencia do ego ou se lhe opõe, constitui uma terceira força que o ego tem de levar em conta.

Uma ação por parte do ego é como deve ser se ela satisfaz simultaneamente as exigências do id, do superego e da realidade — o que equivale a dizer: se é capaz de conciliar as suas exigências umas com as outras. Os pormenores da relação entre o ego e o superego tornam-se completamente inteligíveis quando são remontados à atitude da criança para com os pais. Esta influência parental, naturalmente, inclui em sua operação não somente a personalidade dos próprios pais, mas também a família, as tradições raciais e nacionais por eles transmitidas, bem como as exigências do milieu social imediato que representam. Da mesma maneira, o superego, ao longo do desenvolvimento de um indivíduo, recebe contribuições de sucessores e substitutos posteriores aos pais, tais como professores e modelos, na vida pública, de ideais sociais admirados. Observar-se-á que, com toda a sua diferença fundamental, o id e o superego possuem algo comum: ambos representam as influências do passado — o id, a influência da hereditariedade; o superego, a influência, essencialmente, do que é retirado de outras pessoas, enquanto o ego é principalmente determinado pela própria experiência do indivíduo, isto é, por eventos acidentais e contemporâneos.

Pode-se supor que este quadro esquemático geral de um aparelho psíquico aplique-se também aos animais superiores que se assemelham mentalmente ao homem. Temos de presumir que um superego se acha presente onde quer que, como é o caso do homem, exista um longo período de dependência na infância. Uma distinção entre o ego e id é uma suposição inevitável. A Psicologia Animal ainda não tomou a seu cargo o interessante problema que é aqui apresentado.

 

CAPÍTULO II - A TEORIA DOS INSTINTOS

 

O poder do id expressa o verdadeiro propósito da vida do organismo do indivíduo. Isto consiste na satisfação de suas necessidades inatas. Nenhum intuito tal como o de manter-se vivo ou de proteger-se dos perigos por meio da ansiedade pode ser atribuído ao id. Essa é a tarefa do ego, cuja missão é também descobrir o método mais favorável e menos perigoso de obter a satisfação, levando em conta o mundo externo. O superego pode colocar novas necessidades em evidência, mas sua função principal permanece sendo a limitação das satisfações.

As forças que presumimos existir por trás das tensões causadas pelas necessidades do id são chamadas de instintos. Representam as exigências somáticas que são feitas à mente. Embora sejam a suprema causa de toda atividade, elas são de natureza conservadora; o estado, seja qual for, que um organismo atingiu dá origem a uma tendência a restabelecer esse estado assim que ele é abandonado. É assim possível distinguir um número determinado de instintos, e, na prática comum, isto é realmente feito. Para nós, contudo, surge a importante questão de saber se não será possível fazer remontar todos esses numerosos instintos a uns poucos básicos. Descobrimos que os instintos podem mudar de objetivo (através do deslocamento) e também que podem substituir-se mutuamente, a energia de um instinto transferindo-se para outro. Este último processo é ainda insuficientemente compreendido. Depois de muito hesitar e vacilar, decidimos presumir a existência de apenas dois instintos básicos, Eros e o instinto destrutivo. (O contraste entre os instintos de autopreservação e a preservação da espécie, assim como o contraste entre o amor do ego e o amor objetal, incidem dentro de Eros.) O objetivo do primeiro desses instintos básicos é estabelecer unidades cada vez maiores e assim preservá-las — em resumo, unir; o objetivo do segundo, pelo contrário, é desfazer conexões e, assim, destruir coisas. No caso do instinto destrutivo, podemos supor que seu objetivo final é levar o que é vivo a um estado inorgânico. Por essa razão, chamâmo-lo também de instinto de morte. Se presumirmos que as coisas vivas apareceram mais tarde que as inanimadas e delas se originaram, então o instinto de morte se ajusta à fórmula que propusemos, a qual postula que os instintos tendem a retornar a um estado anterior. No caso de Eros (ou instinto do amor), não podemos aplicar esta fórmula. Fazê-lo pressuporia que a substância viva foi outrora uma unidade posteriormente desmembrada e que se esforça no sentido da reunião.

Nas funções biológicas, os dois instintos básicos operam um contra o outro ou combinam-se mutuamente. Assim, o ato de comer é uma destruição do objeto como o objetivo final de incorporá-lo, e o ato sexual é um ato de regressão com o intuito da mais íntima união. Esta ação concorrente e mutuamente oposta dos dois instintos fundamentais dá origem a toda a variedade de fenômenos da vida. A analogia de nossos dois instintos básicos estende-se da esfera das coisas vivas até o par de forças opostas — atração e repulsão — que governa o mundo orgânico.

Modificações nas proporções da fusão entre os instintos apresentam os resultados mais tangíveis. Um excesso de agressividade sexual transformará um amante num criminoso sexual, enquanto uma nítida diminuição no fator agressivo torna-lo-á acanhado ou impotente.

Não se pode pensar em restringir um ou outro dos instintos básicos a uma das regiões da mente. Eles, necessariamente, têm de ser encontrados em toda parte. Podemos imaginar um estado inicial como sendo o estado em que a energia total disponível de Eros, a qual, doravante, mencionaremos como ‘’libido”, acha-se presente no ego-id ainda indiferenciado e serve para neutralizar as tendências destrutivas que estão simultaneamente presentes. (Não dispomos de um termo análogo a “libido” para descrever a energia do instinto destrutivo.) Num estágio posterior, torna-se relativamente fácil acompanhar as vicissitudes da libido, mas isto é mais difícil com o instinto destrutivo.

Enquanto esse instinto opera internamente, como instinto de morte, ele permanece silencioso; só nos chama a atenção quando é desviado para fora,como instinto de destruição. Parece ser essencial à preservação do indivíduo que esse desvio ocorra e o aparelho muscular serve a esse intuito. Quando o superego se estabelece, quantidades consideráveis do instinto agressivo fixam-se no interior do ego e lá operam autodestrutivamente. Este é um dos perigos para a saúde com que os seres humanos se defrontam em seu caminho para o desenvolvimento cultural. Conter a agressividade é, em geral, nocivo e conduz à doença (à mortificação). Uma pessoa num acesso de raiva com freqüência demonstra como a transição da agressividade, que foi impedida, para a autodestrutividade, é ocasionada pelo desvio da agressividade contra si própria: arrancar os cabelos ou esmurrar a face, embora, evidentemente, tivesse preferido aplicar esse tratamento a outrem. Uma porção de autodestrutividade permanece interna, quaisquer que sejam as circunstâncias, até que, por fim, consegue matar o indivíduo, talvez não antes de sua libido ter sido usada ou fixada de uma maneira desvantajosa. Assim, é possível suspeitar de que, de uma maneira geral, o indivíduo morre de seus conflitos internos, mas que a espécie morre de sua luta malsucedida contra o mundo externo se este mudar a ponto de as adaptações adquiridas pela espécie não serem suficientes para lidar com as dificuldades surgidas.

É difícil dizer algo do comportamento da libido no id e no superego. Tudo o que sabemos sobre ela relaciona-se com o ego, no qual, a princípio, toda a cota disponível de libido é armazenada. Chamamos a este estado absoluto de narcisismo primário. Ele perdura até o ego começar a catexizar as idéias dos objetos com a libido, a transformar a libido narcísica em libido objetal. Durante toda a vida, o ego permanece sendo o grande reservatório, do qual as catexias libidinais são enviadas aos objetos e para o qual elas são também mais uma vez recolhidas, exatamente como uma ameba se conduz com os seus pseudópodos. É somente quando uma pessoa se acha completamente apaixonada que a cota principal de libido é transferida para o objeto e este, até certo ponto, toma o lugar do ego. Uma característica da libido que é importante na vida é a sua mobilidade, a facilidade com que passa de um objeto para outro. Isto deve ser contrastado com a fixação da libido a objetos específicos, a qual freqüentemente persiste durante toda a vida.Não se pode discutir que a libido tenha fontes somáticas, que ela flua para o ego de diversos órgãos e partes do corpo. Isto se vê mais claramente no caso daquela porção da libido que, por seu objetivo instintivo, é descrita como excitação sexual. As partes mais proeminentes do corpo de que esta libido se origina são conhecidas pelo nome de “zonas erógenas”, embora, de fato, o corpo inteiro seja uma zona erógena desse tipo. A maior parte do que conhecemos sobre Eros — isto é, sobre o seu expoente, a libido — foi obtida de um estudo da função sexual, que, na verdade, segundo a opinião dominante, ainda que não segundo a nossa teoria, coincide com Eros. Pudemos formar uma imagem da maneira como o impulso sexual, que está destinado a exercer uma influência decisiva em nossa vida, desenvolve-se gradativamente a partir de contribuições sucessivas de um certo número de instintos componentes que representam zonas erógenas específicas.

 

CAPÍTULO III - O DESENVOLVIMENTO DA FUNÇÃO SEXUAL

 

Segundo a opinião predominante, a vida sexual humana consiste essencialmente numa busca de colocar o próprio órgão genital em contato com o de alguém do sexo oposto. A isto acham-se associados, como fenômenos acessórios e atos introdutórios, beijar esse corpo alheio, olhar para ele e tocá-lo. Imagina-se que essa busca faça seu aparecimento na puberdade — isto é, na idade da maturidade sexual — e esteja a serviço da reprodução. Não obstante, sempre foram conhecidos certos fatos que não se encaixam na estreita moldura desta visão. (1) Constitui um fato marcante existirem pessoas que só são atraídas por indivíduos de seu próprio sexo e pelo órgão genital deles. (2) É igualmente notório existirem pessoas cujos desejos se comportam exatamente como os sexuais, mas que, ao mesmo tempo, desprezam inteiramente o órgão sexual ou sua utilização normal; as pessoas deste tipo são conhecidas como “pervertidas”. (3) E, por fim, é uma coisa notável que algumas crianças (que são, por causa disso, encaradas como degeneradas) tenham um interesse muito precoce pelo seu órgão genital e apresentem nele sinais de excitação.

Bem se pode acreditar que a Psicanálise tenha provocado espanto e oposição quando, em parte com base nesses fatos negligenciados, contradisse todas as opiniões populares sobre a sexualidade. Os seus principais achados são os seguintes:

(a) A vida sexual não começa apenas na puberdade, mas inicia-se, com manifestações claras, logo após o nascimento.

(b) É necessário fazer uma distinção nítida entre os conceitos de “sexual” e “genital”. O primeiro é o conceito mais amplo e inclui muitas atividades que nada têm que ver com os órgãos genitais.

(c) A vida sexual inclui a função de obter prazer das zonas do corpo, função que, subseqüentemente, é colocada a serviço da reprodução. As duas funções muitas vezes falham em coincidir completamente.

O interesse principal focaliza-se naturalmente na primeira destas afirmações, a mais inesperada de todas. Descobriu-se que, na tenra infância, existem sinais de atividade corporal a que somente um antigo preconceito poderia negar o nome de sexual e que se acha ligada a fenômenos psíquicos com que nos deparamos mais tarde, na vida erótica adulta — tais como a fixação a objetos específicos, o ciúme, e assim por diante. Descobriu-se ainda, entretanto, que esses fenômenos que surgem na tenra infância fazem parte de um curso ordenado de desenvolvimento, que atravessam um processo regular de aumento, chegando a um clímax por volta do final do quinto ano de idade, após o qual segue-se uma acalmia. Durante esta, o progresso se interrompe, muita coisa é desaprendida e há muito retrocesso. Após o fim deste período de latência, como é chamado, a vida sexual avança mais uma vez, com a puberdade; poderíamos dizer que tem uma segunda eflorescência. E aqui deparâmo-nos com o fato de o início da vida sexual ser difásico, de ele ocorrer em duas ondas — algo que é desconhecido, exceto no homem, e que, evidentemente, tem uma relação importante com a hominização. Não é um fato sem importância que os acontecimentos deste período primitivo, exceto esses poucos resíduos, sejam vítimas da amnésia infantil. Os nossos pontos de vista sobre a etiologia das neuroses e a nossa técnica de terapia analítica derivam-se dessas concepções e nosso rasteio dos processos desenvolvimentais nesse primeiro período forneceu também provas para outras conclusões mais.

O primeiro órgão a surgir como zona erógena e a fazer exigências libidinais à mente é, da época do nascimento em diante, a boca. Inicialmente, toda a atividade psíquica se concentra em fornecer satisfação às necessidades dessa zona. Primariamente, é natural, essa satisfação está a serviço da autopreservação, mediante a nutrição; mas a fisiologia não deve ser confundida com a psicologia. A obstinada persistência do bebê em sugar dá prova, em estágio precoce, de uma necessidade de satisfação que, embora se origine da ingestão da nutrição e seja por ela instigada, esforça-se todavia por obter prazer independentemente da nutrição e, por essa razão, pode e deve ser denominada de sexual.

Durante esta fase oral, já ocorrem esporadicamente impulsos sádicos, juntamente com o aparecimento dos dentes. Sua amplitude é muito maior na segunda fase, que descrevemos como anal-sádica, por ser a satisfação então procurada na agressão e na função excretória. Nossa justificativa para incluir na libido os impulsos agressivos baseia-se na opinião de que o sadismo constitui uma fusão instintiva de impulsos puramente libidinais e puramente destrutivos, fusão que, doravante, persiste ininterruptamente.

A terceira fase é conhecida como fálica, que é, por assim dizer, uma precursora da forma final assumida pela vida sexual e já se assemelha muito a ela. É de se notar que não são os órgãos genitais de ambos os sexos que desempenham um papel nesta fase, mas apenas o masculino (o falo). Os órgãos genitais femininos por muito tempo permanecem desconhecidos; nas tentativas das crianças de compreender os processos sexuais, elas se rendem à respeitável teoria da cloaca — teoria que tem justificação genética.

Com a fase fálica, e ao longo dela, a sexualidade da tenra infância atinge seu apogeu e aproxima-se da sua dissolução. A partir daí, meninos e meninas têm histórias diferentes. Ambos começaram a colocar sua atividade intelectual a serviço de pesquisas sexuais; ambos partem da premissa da presença universal do pênis. Mas agora os caminhos dos sexos divergem. O menino ingressa na fase edipiana; começa a manipular o pênis e, simultaneamente, tem fantasias de executar algum tipo de atividade com ele em relação à sua mãe, até que, devido ao efeito combinado de uma ameaça de castração e da visão da ausência de pênis nas pessoas do sexo feminino, vivencia o maior trauma de sua vida e este dá início ao período de latência, com todas as suas conseqüências. A menina, depois de tentar em vão fazer as mesmas coisas que o menino, vem a reconhecer sua falta de pênis ou, antes, a inferioridade de seu clitóris, com efeitos permanentes sobre o desenvolvimento de seu caráter; como resultado deste primeiro desapontamento em rivalidade, ela com freqüência começa a voltar as costas inteiramente à vida sexual

Seria um erro supor que essas três fases se sucedem de forma clara. Uma pode aparecer em aditamento a outra; podem sobrepor-se e podem estar presentes lado a lado. Nas primeiras fases, os diferentes componentes dos instintos empenham-se na busca de prazer independente uns dos outros; na fase fálica, há os primórdios de uma organização que subordina os outros impulsos à primazia dos órgãos genitais e determina o começo de uma coordenação do impulso geral em direção ao prazer na função sexual. A organização completa só se conclui na puberdade, numa quarta fase, a genital. Estabelece-se então um estado de coisas em que (1) algumas catexias libidinais primitivas são retidas, (2) outras são incorporadas à função sexual como atos auxiliares, preparatórios, cuja satisfação produz o que é conhecido como pré-prazer, e (3) outros impulsos são excluídos da organização, e são ou suprimidos inteiramente (reprimidos) ou empregados no ego de outra maneira, formando traços de caráter ou experimentando a sublimação, com deslocamento de seus objetivos.

Este processo nem sempre é realizado de modo perfeito. As inibições em seu desenvolvimento manifestam-se como os muitos tipos de distúrbio da vida sexual. Quando é assim, encontramos fixações da libido a condições de fases anteriores, cujo impulso, que é independente do objetivo sexual normal, é descrito como perversão. Uma dessas inibições do desenvolvimento é, por exemplo, a homossexualidade, quando ela é manifesta. A análise mostra que em todos os casos um vínculo objetal de caráter homossexual esteve presente e, na maioria dos casos, persistiu em estado latente. A situação complica-se porque, via de regra, os processos necessários a um desfecho normal não se acham completamente presentes ou ausentes, mas parcialmente presentes, de maneira que o resultado final fica dependente dessas relações quantitativas. Nessas circunstâncias, a organização genital é, na verdade, obtida, mas faltam-lhe aquelas porções da libido que não avançaram com o resto e permaneceram fixadas em objetos e metas pré-genitais. Este enfraquecimento revela-se numa tendência, se há ausência de satisfação genital ou se existem dificuldades no mundo externo real, de a libido retornar a suas catexias pré-genitais anteriores (regressão).

Durante o estudo das funções sexuais, chegamos a uma certeza preliminar, ou melhor, a uma suspeita, de duas descobertas que logo mais se verá serem de importância para todo o nosso campo. Em primeiro lugar, as manifestações normais e anormais por nós observadas (isto é, fenomenologia do assunto) necessitam ser descritas do ponto de vista de sua dinâmica e economia (em nosso caso, do ponto de vista da distribuição quantitativa da libido). E, em segundo, a etiologia dos distúrbios que estudamos deve ser procurada na história do desenvolvimento do indivíduo — ou seja, no começo de sua vida.

 

CAPÍTULO IV - QUALIDADES PSÍQUICAS

 

Descrevi a estrutura do aparelho psíquico e as energias ou forças que nele são ativas, e delineei num exemplo notório a maneira como essas energias (principalmente a libido) organizam-se numa função fisiológica que serve ao propósito da preservação da espécie. Nada havia, nisso tudo, que demonstrasse a característica inteiramente peculiar do que é psíquico, à parte, naturalmente, o fato empírico de que esse aparelho e essas energias são as bases das funções que descrevemos como nossa vida mental. Voltar-me-ei agora para algo que é exclusivamente característico do psíquico, e que, na verdade, de acordo com opinião largamente aceita, coincide com ele, à exclusão de tudo o mais.

O ponto de partida dessa investigação é um fato sem paralelo, que desafia toda explicação ou descrição — o fato da consciência. Não obstante, quando se fala da consciência, sabemos imediatamente, e pela experiência mais pessoal, o que se quer dizer com isso. Muitas pessoas, tanto ligadas à ciência [psicológica] quanto estranhas a ela, satisfazem-se com a suposição de que só a consciência é psíquica; nesse caso a Psicologia não terá senão de fazer a discriminação entre fenômenos psíquicos, percepções, sentimentos, processos de pensamento e volições. No entanto, há uma concordância geral no sentido de que esses processos conscientes não formam seqüências ininterruptas, completas em si mesmas; assim, não haveria alternativa para a pressuposição de que existem processos físicos ou somáticos concomitantes aos psíquicos e que teríamos de reconhecer necessariamente como mais completos que as seqüências psíquicas, visto que alguns teriam processos conscientes paralelos a eles, mas outros não. Sendo assim, torna-se plausível dar ênfase, em Psicologia, a esses processos somáticos, ver neles a verdadeira essência do psíquico e procurar outra determinação dos processos conscientes. A maioria dos filósofos, entretanto, assim como muitas outras pessoas, discute isso e declara que a idéia de algo psíquico ser inconsciente é autocontraditória.Mas é isso precisamente que a Psicanálise é obrigada a afirmar, e esta é a sua segunda hipótese fundamental ver em [[1]].Ela explica os fenômenos concomitantes supostamente somáticos como sendo o que é verdadeiramente psíquico, e assim, em primeira instância, menospreza a qualidade da consciência. Não está sozinha ao assim proceder. Alguns pensadores (como Theodor Lipps por exemplo) afirmaram a mesma coisa nas mesmas palavras e a insatisfação geral com a visão costumeira do que é psíquico resultou numa exigência cada vez mais urgente da inclusão, no pensamento psicológico, de um conceito de inconsciente, embora essa experiência tenha assumido forma tão indefinida e obscura que não poderia ter nenhuma influência sobre a ciência.

Pode parecer que essa disputa entre Psicanálise e Filosofia fosse apenas uma frívola questão de definição — se o nome “psíquico” deve ser aplicado a uma ou outra seqüência de fenômenos. Na realidade, porém, este passo tornou-se da mais alta significação. Enquanto a psicologia da consciência nunca foi além das seqüências rompidas que eram obviamente dependentes de algo mais, a outra visão, que sustenta que o psíquico é inconsciente em si mesmo, capacitou a Psicologia a assumir seu lugar entre as ciências naturais como uma ciência. Os processos em que está interessada são, em si próprios, tão incognoscíveis quanto aqueles de que tratam as outras ciências, a Química ou a Física, por exemplo; mas é possível estabelecer as leis a que obedecem e seguir suas relações mútuas e interdependentes ininterruptas através de longos trechos — em resumo, chegar ao que é descrito como uma “compreensão” do campo dos fenômenos de novas hipóteses e criação dos novos conceitos, e estes não devem ser pormenorizados com indício de embaraço de nossa parte, mas, pelo contrário, merecem ser apreciados como um enriquecimento da Ciência. Podem pretender, como aproximações, o mesmo valor dos andaimes intelectuais correspondentes encontrados em outras ciências naturais e esperamos que sejam modificados, corrigidos e mais precisamente determinados à medida que uma maior experiência for acumulada e filtrada. Assim, também estará inteiramente de acordo com nossas expectativas que os conceitos e princípios básicos da nova ciência (instinto,energia nervosa, etc.) permaneçam por tempo considerável não menos indeterminados que os das ciências mais antigas (força, massa, atração, etc.).

Toda ciência se baseia em observações e experiências a que se chegou através do veículo de nosso aparelho psíquico. Mas visto que a nossa ciência tem por assunto esse próprio aparelho, a analogia acaba aqui. Efetuamos nossas observações através do mesmo aparelho perceptivo, precisamente com o auxílio das rupturas na seqüência de ocorrências “psíquicas”: preenchemos o que é omitido fazendo deduções plausíveis e traduzindo-as em material consciente. Desta maneira construímos, por assim dizer, uma seqüência de ocorrências conscientes que é complementar aos processos psíquicos inconscientes. A relativa certeza de nossa ciência psíquica baseia-se na força aglutinante dessas deduções. Quem quer que se aprofunde em nosso trabalho descobrirá que nossa técnica tem fundamentos para defender-se contra qualquer crítica.

Ao longo deste trabalho, as distinções que descrevemos como qualidades psíquicas se impõem à nossa atenção. Não há necessidade de caracterizar o que chamamos de “consciente”: é o mesmo que a consciência dos filósofos e do senso comum. Tudo o mais que é psíquico é, em nosso ponto de vista; “o inconsciente”. Logo somos levados a fazer uma divisão importante nesse inconsciente. Alguns processos se tornam facilmente conscientes; podem depois deixar de ser conscientes, mas podem mais uma vez tornar-se conscientes sem qualquer dificuldade: como as pessoas dizem, podem ser reproduzidos ou lembrados. Isto nos faz lembrar que a consciência é, em geral, um estado altamente fugaz. O que é consciente é consciente só por um momento. Se nossas percepções não confirmaram isto, a contradição é apenas aparente; explica-se pelo fato de que os estímulos que levam à percepção podem persistir por consideráveis períodos, de maneira que, entrementes, a percepção deles pode ser repetida. A posição global torna-se clara em relação à percepção consciente de nossos processos de pensamento: também estes podem persistir por algum tempo, mas podem também, da mesma maneira, passar num relâmpago. Tudo o que for inconsciente e que se comporte desta maneira, que pode assim facilmente trocar o estado inconsciente pelo consciente, é, portanto, preferivelmente descrito como “capaz de tornar-se consciente” ou como pré-consciente. A experiência nos ensinou que é muito difícil um processo psíquico, por complicado que seja, que não possa ocasionalmente permanecer pré-consciente, ainda que, via de regra, force o seu caminho para a consciência, como dizemos. Há outros processos psíquicos e material psíquico que não têm um acesso tão fácil a se tornarem conscientes, mas têm de ser inferidos, reconhecidos e traduzidos para forma consciente através da maneira descrita. Para tal material, reservamos o nome de inconsciente propriamente dito.

Atribuímos, assim, três qualidades aos processos psíquicos: eles são conscientes, pré-conscientes ou inconscientes. A divisão entre as três classes de material que possui estas qualidades não é absoluta nem permanente. O que é pré-consciente se torna consciente, como vimos, sem qualquer assistência de nossa parte; o que é inconsciente pode, através de nossos esforços, vir a ser consciente, e, no processo, temos muitas vezes a impressão de estar superando resistências muito fortes. Quando tentamos fazer isto com outra pessoa, não devemos esquecer que o preenchimento consciente das lacunas de percepção — a construção que lhe estamos apresentando — não significa ainda que tenham conseguido tornar consciente o material inconsciente em questão. Tudo isso é verdadeiro na medida em que o material se acha nele presente em dois registros uma vez na reconstrução consciente que foi fornecida e, além disso, em seu estado inconsciente original. Os nossos esforços continuados geralmente acabam conseguindo tornar consciente esse material inconsciente, em conseqüência do que os dois registros são levados a coincidir. A quantidade de esforços que temos de dispender, pela qual avaliamos a resistência contra a conscientização do material, varia de magnitude segundo os casos individuais. Exemplificando, o que ocorre num tratamento analítico como resultado de nossos esforços pode também ocorrer espontaneamente: um material que ordinariamente é inconsciente pode se transformar em pré-consciente e, então, tornar-se consciente — coisa que acontece, em grande escala, nos estados psicóticos. Disto inferimos que a manutenção de certas resistências internas constitui um sine qua non da normalidade. Um relaxamento de resistências como este, com um conseqüente impulsionamento para a frente do material inconsciente, realiza-se normalmente no estado de sono, e ocasiona assim uma pré-condição necessária à construção de sonhos. Inversamente, o material pré-consciente pode tornar-se temporariamente inacessível e bloqueado por resistências — como acontece quando algo é temporariamente esquecido ou foge à memória — ou um pensamento pré-consciente pode ser mesmo temporariamente devolvido ao estado inconsciente, como parece ser uma pré-condição no caso dos chistes. Veremos que uma transformação semelhante de volta de material ou processos pré-conscientes ao estado inconsciente desempenha grande papel na causa dos distúrbios neuróticos.

A teoria das três qualidades do psíquico, descrita assim de maneira generalizada e simplificada, pode parecer mais uma fonte de confusão ilimitada do que um auxílio no sentido do esclarecimento. Mas não se deve esquecer que, de fato, ela não é absolutamente uma teoria, mas sim um primeiro inventário dos fatos de nossas observações, que se mantém tão preso a esses fatos quanto possível e não tenta explicá-los. As complicações que ela revela podem pôr em relevo as dificuldades peculiares que temos de enfrentar em nossas investigações. É de se esperar, entretanto, que chegaremos a uma compreensão mais clara desta própria teoria se determinarmos as relações existentes entre as qualidades psíquicas e as regiões ou agências do aparelho psíquico que postulamos — embora estas relações também estejam longe de ser simples.

O processo de algo tornar-se consciente está, acima de tudo, ligado às percepções que nossos órgãos sensoriais recebem do mundo externo. Do ponto de vista topográfico, portanto, trata-se de um fenômeno que se efetua no córtex mais externo do ego. É verdade que também recebemos informações conscientes do interior do corpo — os sentimentos, que na realidade exercem em nossa vida mental uma influência mais peremptória do que as percepções externas; ademais, em certas circunstâncias, os próprios órgãos sensoriais transmitem sentimentos, sensações de dor, além das percepções que lhes são específicas. No entanto, desde que essas sensações (como as chamamos, em contraste com as percepções conscientes) emanam também dos órgãos terminais e desde que encaramos todas elas como prolongamentos ou ramificações da camada cortical, continuamos a poder manter a afirmação feita acima [no início deste parágrafo]. A única distinção seria que, em relação aos órgãos terminais de sensação e sentimento, o próprio corpo tomaria o lugar do mundo externo.

Processos conscientes na periferia do ego e tudo o mais no ego inconsciente — esse seria o estado de coisas mais simples que poderíamos imaginar. E tal pode ser de fato o estado que predomina nos animais. Nos homens, porém, há uma complicação adicional, através da qual os processos internos do ego podem adquirir também a qualidade de consciência. Este o trabalho da função da fala, que leva o material ao ego numa firme conexão com resíduos mnêmicos de percepções visuais, porém, mais particularmente, auditivas. Daí por diante, a periferia perceptiva da camada cortical pode ser excitada em muito maior grau a partir de dentro também, acontecimentos internos como passagens de idéias e processos de pensamentos podem tornar-se conscientes, e exige-se um artifício especial para fazer a distinção entre as duas possibilidades — um artifício conhecido como teste de realidade. A equação “percepção = realidade (mundo externo)” não mais se sustenta. Erros, que podem então facilmente surgir e surgem com regularidade nos sonhos, são chamados de alucinações.

O interior do ego, que encerra, acima de tudo, os processos de pensamento, possui a qualidade de ser pré-consciente. Esta é característica do ego e só a ele pertence. Não seria correto, entretanto, pensar que a vinculação com os resíduos mnêmicos da fala seja uma pré-condição necessária ao estado pré-consciente. Ao contrário, esse estado independe de uma vinculação com eles, embora a presença dessa vinculação torne segura a dedução da natureza pré-consciente de um processo. O estado pré-consciente, caracterizado, por um lado, pelo acesso à consciência e, por outro, pela vinculação com os resíduos da fala, é todavia algo peculiar, cuja natureza não se esgota nessas duas características. Prova disto é o fato de que grandes porções do ego, e particularmente do superego, a que não se pode negar a característica de pré-consciência, permanecem, não obstante, em sua maior parte, inconscientes no sentido fenomenológico da palavra. Não sabemos porque isto tem de ser assim. Tentaremos, a seguir, atacar o problema da verdadeira natureza do pré-consciente.

A única qualidade predominante no id é a de ser inconsciente. Id e inconsciente acham-se tão intimamente ligados quanto ego e pré-consciente; na verdade, no primeiro caso, a vinculação é ainda mais exclusiva. Se voltarmos o olhar para a história do desenvolvimento de um indivíduo e de seu aparelho psíquico, poderemos perceber uma distinção importante no id. Originalmente, com efeito, tudo era id; o ego desenvolveu-se a partir dele, através da influência contínua do mundo externo. No decurso desse lento desenvolvimento, alguns dos conteúdos do id foram transformados no estado pré-consciente e assim incorporados ao ego; outros de seus conteúdos permaneceram no id, imutáveis, como o seu núcleo dificilmente acessível. Durante esse desenvolvimento, entretanto, o jovem e débil ego devolveu ao estado inconsciente algo do material que havia incorporado, abandonou-o, e comportou-se da mesma maneira em relação a algumas novas impressões que poderia ter incorporado, de modo que estas, havendo sido rejeitadas, só podiam deixar um vestígio no id. Em consideração à sua origem, falamos desta última parte do id como o reprimido. Pouco importa que não possamos sempre traçar uma linha nítida entre essas duas categorias de conteúdos do id. Elas coincidem aproximadamente com a distinção entre o que se achava originalmente presente, inato, e o que foi adquirido ao longo do desenvolvimento do ego.

Tendo já estabelecido a dissecação topográfica do aparelho psíquico em um ego e um id, com os quais a diferença de qualidade entre pré-consciente e inconsciente corre paralela, e havendo concordado em que esta qualidade deve ser considerada apenas como indicação da diferença e não como sua essência, uma outra questão se nos apresenta. Se as coisas são assim, qual é a verdadeira natureza do estado que é revelado no id pela qualidade de ser inconsciente e, no ego, pela de ser pré-consciente, e em que consiste a diferença entre eles?

Disso, porém, nada sabemos. E a profunda obscuridade do pano de fundo de nossa ignorância é escassamente iluminada por alguns lampejos de percepção interna (insight). Aqui aproximamo-nos do segredo ainda velado da natureza do psíquico. Presumimos, como as outras ciências naturais nos levaram a esperar, que na vida mental esteja em ação alguma espécie de energia, mas não temos nada em que nos basear que nos capacite a aproximarmo-nos de um conhecimento dela através de analogias com outras formas de energia. Parecemos reconhecer que a energia nervosa ou psíquica ocorre de duas formas, uma livremente móvel, e outra, em comparação, presa; falamos de catexias e hipercatexias do material psíquico, e até mesmo aventuramo-nos a supor que uma hipercatexia ocasiona uma espécie de síntese de processos diferentes — uma síntese no curso da qual a energia livre é transformada em energia presa. Mais longe que isto, ainda não avançamos. De qualquer modo, atemo-nos firmemente à opinião de que a distinção entre o estado inconsciente e o pré-consciente reside em relações dinâmicas desse tipo, que explicariam como é que, espontaneamente ou com a nossa assistência, um pode se transformar no outro.

Por trás de todas essas incertezas, contudo, reside um fato novo, cuja descoberta devemos à pesquisa psicanalítica. Descobrimos que os processos no inconsciente ou no id obedecem a leis diferentes daqueles do ego pré-consciente. Denominamos essas leis, em sua totalidade, de processo primário, em contraste com o processo secundário, que dirige o curso das ocorrências no pré-consciente, no ego. No cômputo geral, portanto, o estudo das qualidades psíquicas provou, afinal de contas, não ser infrutífero.

 

CAPÍTULO V - A INTERPRETAÇÃO DE SONHO COMO ILUSTRAÇÃO

 

Uma investigação de estados estáveis, normais, em que as fronteiras do ego são resguardadas contra o id mediante resistências (anticatexias) e se agüentam firmes, e nos quais o superego não se distingue do ego, por trabalharem juntos harmoniosamente — uma investigação desse tipo pouco nos ensinaria. A única coisa que pode ajudar-nos são estados de conflito e tumulto, quando os conteúdos do id inconsciente têm perspectiva de forçar caminho para o ego, e a consciência e o ego mais uma vez se põem na defensiva contra essa invasão. É somente nestas condições que podemos fazer as observações que confirmarão ou corrigirão nossas afirmações sobre os dois parceiros. Ora, nosso sono noturno é precisamente um estado desse tipo, e, por essa razão, a atividade psíquica durante o sono, que percebemos como sonhos, é o nosso objeto de estudo mais favorável. Dessa maneira, também, evitamos a acusação costumeira de basearmos nossas construções da vida mental normal em achados patológicos, pois os sonhos são ocorrências comuns na vida de uma pessoa normal, por mais que suas características possam diferir das produções de nossa vida desperta. Os sonhos, como todos sabem, podem ser confusos, ininteligíveis ou positivamente absurdos, o que dizem pode contradizer tudo o que sabemos da realidade, e comportamo-nos neles como pessoas insanas, visto que, enquanto estamos sonhando, atribuímos realidade objetiva ao conteúdo do sonho.

Encontramos nosso caminho para a compreensão (“interpretação”) de um sonho presumindo que o que lembramos como sendo o sonho depois de termos acordado não é o verdadeiro processo onírico, mas apenas uma façade por trás da qual esse processo jaz escondido. Aqui temos a nossa distinção entre o conteúdo manifesto de um sonho e os pensamentos oníricos latentes. O processo que produz aquele a partir desse é descrito como elaboração onírica. O estudo da elaboração onírica nos ensina, através de um exemplo excelente, a maneira como o material inconsciente oriundo do id (originalmente inconsciente e da mesma maneira inconsciente reprimido) força seu caminho até o ego, torna-se pré-consciente e, em conseqüência da oposição do ego, experimenta as modificações que conhecemos como deformação onírica. Não existem aspectos de um sonho que não possam ser explicados desta maneira.

É melhor começar ressaltando que a formação de um sonho pode ser provocada de duas maneiras diferentes. Ou um impulso instintivo que é comumente suprimido (um desejo inconsciente) encontra durante o sono força suficiente para fazer-se sentido pelo ego, ou um impulso que sobrou da vida desperta, uma seqüência pré-consciente de pensamento, com todos os impulsos conflitantes a ela ligados, recebe reforços, durante o sono, de um elemento inconsciente. Em resumo, os sonhos podem originar-se do id ou do ego. O mecanismo da formação de sonhos é em ambos os casos o mesmo e assim também a pré-condição dinâmica necessária. O ego dá prova de sua derivação original do id fazendo cessar ocasionalmente suas funções e permitindo uma reversão a um estado anterior de coisas. Isto é logicamente desencadeado pelo rompimento das suas relações com o mundo externo e pela retirada de suas catexias dos órgãos dos sentidos. Justifica-se assim dizermos que surge no nascimento um instinto de retornar à vida intra-uterina que foi abandonada — um instinto de dormir. O sono é um retorno desse tipo ao útero. Visto que o ego desperto governa a motilidade, esta função é paralisada no sono e, por conseguinte, uma boa parte das inibições impostas ao id inconsciente torna-se supérflua. A retirada ou redução destas “anticatexias” dá assim ao id o que é agora uma liberdade inofensiva.

As provas do papel desempenhado pelo id inconsciente na formação dos sonhos são abundantes e convincentes. (a) A memória é muito mais ampla nos sonhos que na vida de vigília. Os sonhos trazem à tona recordações que o sonhador esqueceu, que lhe são inacessíveis quando está acordado. (b) Os sonhos fazem uso irrestrito de símbolos lingüísticos, cujos significados são, na maioria, desconhecidos da pessoa que sonha. Nossa experiência, contudo, permite-nos confirmar o seu sentido. Eles provavelmente originam-se de fases mais antigas do desenvolvimento da fala. (c) A memória muito freqüentemente reproduz em sonhos impressões da tenra infância de quem sonha, das quais podemos definitivamente dizer que foram não apenas esquecidas, mas que se tornaram inconscientes devido à repressão. Isso explica o auxílio — geralmente indispensável — que nos é proporcionado pelos sonhos nas tentativas que fazemos, durante o tratamento analítico das neuroses, de reconstruir o início da vida do sonhador. (d) Além disso, os sonhos trazem à luz material que não pode ter-se originado nem da vida adulta de quem sonha nem de sua infância esquecida. Somos obrigados a considerá-lo parte da herança arcaica que uma criança traz consigo ao mundo, antes de qualquer experiência própria, influenciada pelas experiências de seus antepassados. Descobrimos a contrapartida desse material filogenético nas lendas humanas mais antigas e em costumes que sobreviveram. Dessa maneira, os sonhos constituem uma fonte da pré-história humana que não deve ser menosprezada.Mas o que torna os sonhos tão valiosos para nos dar uma compreensão interna (insight) é a circunstância de que, quando o material inconsciente abre seu caminho para o ego, ele traz consigo as suas próprias modalidades de funcionamento. Isto significa que os pensamentos pré-conscientes em que o material inconsciente encontrou sua expressão são manejados no curso da elaboração onírica como se fossem partes inconscientes do id; e, no caso do método alternativo de formação dos sonhos, os pensamentos pré-conscientes que obtiveram reforço de um impulso instintivo inconsciente são rebaixados ao estado inconsciente. Somente dessa maneira é que aprendemos as leis que regulam a passagem de acontecimentos no inconsciente e os aspectos em que diferem das regras que nos são familiares no pensamento desperto. Assim, a elaboração onírica é essencialmente um exemplo do trabalho inconsciente dos processos de pensamento pré-conscientes. Tomando-se uma analogia da história: conquistadores invasores governam um país conquistado, não segundo o sistema jurídico que lá encontram em vigor, mas de acordo com o seu próprio. É entretanto um fato inequívoco que o resultado da elaboração onírica é uma conciliação. A organização do ego não está todavia paralisada e sua influência pode ser vista na distorção imposta ao material inconsciente e naquilo que são freqüentemente tentativas muito ineficazes de dar ao resultado total uma forma não demasiado inaceitável pelo ego (revisão secundária). Em nossa analogia, isso seria uma expressão da resistência contínua do povo derrotado.

As leis que governam a passagem de acontecimentos no inconsciente, e que assim vêm à luz, são bastante notáveis e bastam para explicar a maior parte do que nos parece estranho nos sonhos. Acima de tudo, há uma tendência impressionante à condensação, uma inclinação para formar novas unidades a partir de elementos que, em nosso pensamento de vigília, certamente teríamos mantido separados. Em conseqüência disso, um elemento isolado do sonho manifesto freqüentemente representa um grande número de pensamentos oníricos latentes, como se fosse uma alusão conjunta a todos eles; e, em geral, o âmbito do sonho manifesto é extraordinariamente pequeno em comparação com a riqueza de material de que se originou. Outra peculiaridade da elaboração onírica, não inteiramente independente da anterior, é a facilidade com que intensidades psíquicas (catexias) são deslocadas de determinado elemento para outro de maneira que com freqüência acontece que um elemento que era de pequena importância nos pensamentos oníricos apareça como o aspecto mais claro, e, por conseguinte, mais importante do sonho manifesto e vice-versa, que elementos essenciais dos pensamentos oníricos sejam representados no sonho manifesto apenas por ligeiras alusões. Ademais, via de regra, a existência de pontos em comum inteiramente insignificantes entre dois elementos é suficiente para permitir à elaboração onírica substituir um pelo outro em todas as operações ulteriores. É fácil imaginar quanto esses mecanismos de condensação e deslocamento podem aumentar a dificuldade de interpretar um sonho e de revelar as relações existentes entre o sonho manifesto e os pensamentos oníricos latentes. Da prova da existência dessas duas tendências à condensação e ao deslocamento, nossa teoria infere que, no id inconsciente, a energia se acha num estado livremente móvel e que o id dá mais valor à possibilidade de descarregar quantidades de excitação do que a qualquer outra consideração; e nossa teoria faz uso dessas duas peculiaridades ao definir o caráter do processo primário que atribuímos ao id.

O estudo da elaboração onírica nos ensinou muitas outras características dos processos do inconsciente que são tão notáveis quanto importantes, mas só devemos mencionar aqui algumas delas. As regras que regem a lógica não têm peso no inconsciente; ele poderia ser chamado de Reino do Ilógico. Impulsos com objetivos contrários coexistem lado a lado no inconsciente, sem que surja qualquer necessidade de acordo entre eles. Ou não têm nenhuma influência um sobre o outro, ou, se têm, nenhuma decisão é tomada, mas acontece um acordo que é absurdo, visto envolver detalhes mutuamente incompatíveis. A isso está ligado o fato de que os contrários não são mantidos separados, mas tratados como se fossem idênticos, de maneira que, no sonho manifesto, qualquer elemento pode também possuir o significado do seu oposto. Certos filólogos descobriram que o mesmo é válido nas línguas mais antigas e que contrários tais como “forte-fraco”, “claro-escuro” e “alto-profundo” foram originalmente expressos pelas mesmas raízes, até que duas modificações diferentes da palavra primitiva estabeleceram a distinção entre os dois significados. Resíduos desse duplo significado original parecem ter sobrevivido mesmo numa língua altamente desenvolvida como o latim, no uso de palavras como “altus” (“alto” e “profundo”) e “sacer” (“sagrado” e “infame”). [Cf. Moses and Monotheism, S.E. 21, p. 121.]

Em vista da complicação e ambigüidade das relações existentes entre o sonho manifesto e o conteúdo latente que jaz por trás dele, é naturalmente justificável perguntar como afinal de contas é possível deduzir um a partir do outro e se tudo o que temos para prosseguir não será apenas um palpite feliz, auxiliado talvez por uma tradução dos símbolos que ocorrem no sonho manifesto. Pode-se dizer, em resposta, que na grande maioria dos casos o problema pode ser satisfatoriamente solucionado, mas somente com a ajuda das associações aos elementos do conteúdo manifesto feitas pelo próprio sonhador. Qualquer outro procedimento é arbitrário e não pode produzir resultado certo. Mas as associações do sonhador trazem à luz ligações intermediárias que podemos inserir na lacuna entre os dois [entre o conteúdo manifesto e o latente] e com o auxílio dos quais podemos restabelecer o conteúdo latente do sonho e “interpretá-lo”. Não é de admirar se esse trabalho de interpretação (atuando numa direção oposta à da elaboração onírica) fracassa às vezes em chegar a numa certeza completa.

Resta-nos dar uma explicação dinâmica do porquê de o ego adormecido se dar o trabalho da elaboração onírica. A explicação, felizmente, é fácil de encontrar. Com a ajuda do inconsciente, todo sonho em processo de formação faz uma exigência ao ego — a satisfação de um instinto, se o sonho se origina do id; a solução de um conflito, a remoção de uma dúvida ou a formação de uma intenção, se o sonho se origina de um resíduo da atividade pré-consciente na vida de vigília. O ego adormecido, contudo, está focalizado no desejo de manter o sono; ele sente essa exigência como uma perturbação e procura livrar-se dela. O ego consegue realizar isto através do que parece ser um ato de submissão: ele satisfaz a exigência com o que, nas circunstâncias, é uma realização inofensiva de um desejo e, assim livra-se dele. Esta substituição da exigência pela realização de um desejo permanece sendo a função essencial da elaboração onírica. Talvez valha a pena ilustrar isso com três exemplos simples — um sonho de fome, um sonho de conveniência e um sonho induzido pelo desejo sexual. Uma necessidade de comida faz-se sentir numa pessoa que sonha durante o sono; ela sonha com uma refeição deliciosa e continua a dormir. Naturalmente, estava aberta a essa pessoa a escolha de despertar e comer algo ou de continuar o sono. Decidiu em favor do último e satisfez a fome por meio do sonho — por enquanto, pelo menos, pois se a fome persistisse, teria de acordar, apesar de tudo. Aqui temos o segundo exemplo: uma pessoa adormecida tinha de acordar para chegar na hora ao seu trabalho no hospital. Continuou, porém, a dormir, e teve um sonho de que já se achava no hospital — mas como um paciente, que não tem necessidade de levantar-se. Ou, ainda, durante a noite tornou-se ativo um desejo de gozo de um objeto sexual proibido, a esposa de um amigo. Ele sonha então que está tendo relações sexuais — não, na verdade, com essa pessoa, mas com outra do mesmo nome e que lhe é, de fato, indiferente; ou a luta contra o desejo pode encontrar expressão na amante que permanece inteiramente anônima.

Naturalmente, todos os casos não são tão simples. Sobretudo em sonhos que se originaram de resíduos não tratados do dia anterior, e que só obtiveram um reforço inconsciente durante o estado de sono, com freqüência não é tarefa fácil descobrir a força motivadora inconsciente e sua realização de desejo, mas podemos admitir que sempre estão lá. A tese de que os sonhos são realizações de desejos facilmente despertará ceticismo, quando é lembrado quantos sonhos possuem um conteúdo realmente aflitivo ou chegam até a despertar a pessoa que sonha em ansiedade, inteiramente à parte dos numerosos sonhos sem qualquer tom de sentimento definido. Mas a objeção baseada nos sonhos de ansiedade não pode ser sustentada contra a análise. Não se deve esquecer que os sonhos são invariavelmente o produto de um conflito, que eles são uma espécie de estrutura de conciliação. Algo que é uma satisfação para o id inconsciente pode, por essa mesma razão, ser causa de ansiedade para o ego.

À medida que a elaboração onírica progride, às vezes o inconsciente pressiona com mais êxito e outras o ego se defende com maior energia. Os sonhos de ansiedade são muitas vezes aqueles cujo conteúdo experimentou a menor deformação. Se a exigência feita pelo inconsciente é grande demais para que o ego adormecido esteja em posição de desviá-la pelos meios à sua disposição, ele abandona o desejo de dormir e retorna à vida desperta. Estaremos tomando toda experiência em consideração se dissermos que o sonho é invariavelmente uma tentativa de livrar-se de uma perturbação do sono por meio de uma realização de desejo, de maneira que o sonho é um guardião do sono. A tentativa pode alcançar êxito mais ou menos completo; pode também fracassar, e, nesse caso, a pessoa acorda, ao que parece, despertada precisamente pelo sonho. Do mesmo modo, também, existem ocasiões em que aquela excelente pessoa, o vigia noturno, cuja missão é guardar o sono da cidadezinha, não tem outra alternativa senão fazer soar o alarma e despertar a população adormecida.

Encerrarei estas considerações com um comentário que justificará o tempo que concedi ao problema da interpretação de sonhos. A experiência mostrou que os mecanismos inconscientes que viemos a conhecer através do estudo da elaboração onírica e que nos forneceram a explicação da formação dos sonhos também nos auxiliam a entender os enigmáticos sintomas que atraem nosso interesse para neuroses e psicoses. Uma semelhança dessa espécie não pode deixar de despertar grandes esperanças em nós.

 

PARTE II - O TRABALHO PRÁTICO

 

CAPÍTULO VI - A TÉCNICA DA PSICANÁLISE

 

Um sonho, então, é uma psicose, com todos os absurdos, delírios e ilusões de uma psicose. Uma psicose de curta duração sem dúvida, inofensiva, até mesmo dotada de uma função útil, introduzida com o consentimento do indivíduo e concluída por um ato de sua vontade. Ainda assim é uma psicose e com ela aprendemos que mesmo uma alteração da vida mental tão profunda como essa pode ser desfeita e dar lugar à função normal. Será então uma ousadia muito grande pretender que também deve ser possível submeter as temidas doenças espontâneas da vida mental à nossa influência e promover a sua cura?

Já conhecemos certo número de coisas preliminares a esse empreendimento. De acordo com nossa hipótese, é função do ego enfrentar as exigências levantadas por suas três relações de dependência — da realidade, do id e do superego — e não obstante, ao mesmo tempo, preservar a sua própria organização e manter a sua própria autonomia. A pré-condição necessária aos estados patológicos em debate só pode ser um enfraquecimento relativo ou absoluto do ego, que torna impossível a realização de suas tarefas. A exigência mais severa feita ao ego é provavelmente a sujeição das reivindicações instintivas do id, para o que ele é obrigado a fazer grandes dispêndios de energia em anticatexias. Mas as exigências feitas pelo superego também podem tornar-se tão poderosas e inexoráveis que o ego pode ficar paralisado, por assim dizer, frente às suas outras tarefas. Podemos desconfiar de que, nos conflitos econômicos que surgem neste ponto, o id e o superego freqüentemente fazem causa comum contra o ego arduamente pressionado que tenta apegar-se à realidade a fim de conservar o seu estado normal. Se os outros dois se tornam fortes demais, conseguem afrouxar e alterar a organização do ego, de maneira que sua relação correta com a realidade é perturbada ou até mesmo encerrada. Vimos isto acontecer no sonhar: quando o ego se desliga da realidade do mundo externo, desliza, sob a influência do mundo interno, para a psicose.Nosso plano de cura baseia-se nessas descobertas. O ego acha-se enfraquecido pelo conflito interno e temos de ir em seu auxílio. A posição é semelhante à de uma guerra civil que tem de ser decidida pela assistência de um aliado vindo de fora. O médico analista e o ego enfraquecido do paciente, baseando-se no mundo externo real, têm de reunir-se num partido contra os inimigos, as exigências instintivas do id e as exigências conscienciosas do superego. Fazemos um pacto um com o outro. O ego enfermo nos promete a mais completa sinceridade — isto é, promete colocar à nossa disposição todo o material que a sua autopercepção lhe fornece; garantimos ao paciente a mais estrita discrição e colocamos a seu serviço a nossa experiência em interpretar material influenciado pelo inconsciente. Nosso conhecimento destina-se a compensar a ignorância do paciente e a devolver a seu ego o domínio sobre regiões perdidas de sua vida mental. Esse pacto constitui a situação analítica.

Mal acabamos de dar esse passo e um primeiro desapontamento nos espera, uma primeira advertência contra o excesso de confiança. Se o ego do paciente vai ser um aliado útil em nosso trabalho comum, deve — por mais árdua que tenha sido a pressão das forças hostis — ter conservado uma certa coerência e algum fragmento de compreensão das exigências da realidade. Mas isto não é de se esperar do ego de um psicótico; ele não pode cumprir um pacto desse tipo; na verdade, mal poderá engajar-se. Muito cedo ter-nos-á abandonado, bem como à ajuda que lhe oferecemos, e nos juntado às partes do mundo externo que não querem dizer mais nada para ele. Assim, descobrimos que temos de renunciar à idéia de experimentar nosso plano de cura com os psicóticos — renunciar a ele talvez para sempre ou talvez apenas por enquanto, até que tenhamos encontrado um outro plano que se lhes adapte melhor.

Existe, entretanto, outra classe de pacientes psíquicos que visivelmente se assemelha muito de perto aos psicóticos — o vasto número de pessoas que sofrem de graves neuroses. Os determinantes de sua doença, bem como seus mecanismos patogênicos, devem ser os mesmos ou, pelo menos, muito semelhantes. Mas o ego mostrou-se mais resistente e tornou-se menos desorganizado. Muitos deles, apesar da doença e das inadequações dela decorrentes, foram capazes de manter-se na vida real. Esses neuróticos podem mostrar-se prontos a aceitar nosso auxílio. Limitaremos a eles nosso interesse e veremos até onde e mediante que métodos seremos capazes de “curá-los”.

Com os neuróticos, então, fazemos nosso pacto: sinceridade completa de um lado e discrição absoluta do outro. Isso soa como se estivéssemos apenas visando ao posto de um padre confessor. Mas há uma grande diferença, porque o que desejamos ouvir de nosso paciente não é apenas o que sabe e esconde de outras pessoas; ele deve dizer-nos também o que não sabe. Com este fim em vista, fornecemos-lhe uma definição mais detalhada do que queremos dizer com sinceridade. Fazemo-lo comprometer-se a obedecer à regra fundamental da análise, que dali em diante deverá dirigir o seu comportamento para conosco. Deve dizer-nos não apenas o que pode dizer intencionalmente e de boa vontade, coisa que lhe proporcionará um alívio semelhante ao de uma confissão, mas também tudo o mais que a sua auto-observação lhe fornece, tudo o que lhe vem à cabeça, mesmo que lhe seja desagradável dizê-lo, mesmo que lhe pareça sem importância ou realmente absurdo. Se, depois dessa injunção, conseguir pôr sua autocrítica fora de ação, nos apresentará uma massa de material — pensamentos, idéias, lembranças — que já estão sujeitos à influência do inconsciente, que, muitas vezes, são seus derivados diretos, e que assim nos colocam em condição de conjeturar sobre o material inconsciente reprimido do paciente e de ampliar, através das informações que lhe fornecemos, o conhecimento do ego a respeito do inconsciente.

Mas o ego está longe de contentar-se em desempenhar o papel de nos trazer passiva e obedientemente o material que pedimos e de aceitar nossa tradução do mesmo e nela acreditar. Acontece um certo número de outras coisas, algumas das quais poderíamos ter previsto, mas também outras que estão destinadas a surpreender-nos. A mais notável é a seguinte: o paciente não fica satisfeito de encarar o analista, à luz da realidade, como um auxiliar e conselheiro que, além do mais, é remunerado pelo trabalho que executa e que se contentaria com um papel semelhante ao de guia numa difícil escalada de montanha. Pelo contrário, o paciente vê nele o retorno, a reencarnação, de alguma importante figura saída de sua infância ou do passado, e, conseqüentemente, transfere para ele sentimentos e reações que, indubitavelmente, aplicam-se a esse protótipo. Essa transferência logo demonstra ser um fator de importância inimaginável, por um lado, instrumento de insubstituível valor e, por outro, uma fonte de sérios perigos. A transferência é ambivalente: ela abrange atitudes positivas (de afeição), bem como atitudes negativas (hostis) para com o analista, que, via de regra, é colocado no lugar de um ou outro dos pais do paciente, de seu pai ou de sua mãe. Enquanto é positiva, ela nos serve admiravelmente. Altera toda a situação analítica; empurra para o lado o objetivo racional que tem o paciente para ficar sadio e livre de seus achaques. Em lugar disso, surge o objetivo de agradar o analista e de conquistar o seu aplauso e amor. Este passa a ser a verdadeira força motivadora da colaboração do paciente; o seu ego fraco torna-se forte; sob essa influência realiza coisas que, ordinariamente, estariam além de suas forças; desiste dos sintomas e aparenta ter-se restabelecido — simplesmente por amor ao analista. Este pode modestamente admitir para si próprio que se dispôs a uma empresa difícil sem suspeitar sequer dos extraordinários poderes que estariam sob seu comando.

Ademais, a relação de transferência traz consigo duas outras vantagens. Se o paciente coloca o analista no lugar do pai (ou mãe), está também lhe concedendo o poder que o superego exerce sobre o ego, visto que os pais foram, como sabemos, a origem de seu superego. O novo superego dispõe agora de uma oportunidade para uma espécie de pós-educação do neurótico; ele pode corrigir erros pelos quais os pais foram responsáveis ao educá-lo. A essa altura, cabe uma advertência contra o mau uso dessa nova influência. Por mais que o analista possa ficar tentado a transformar-se num professor, modelo e ideal para outras pessoas, e criar homens à sua própria imagem, não deve esquecer que essa não é a sua tarefa no relacionamento analítico, e que, na verdade, será desleal a essa tarefa se permitir-se ser levado por suas inclinações. Se o fizer, estará apenas repetindo um equívoco dos pais, que esmagaram a independência do filho através de sua influência, e estará simplesmente substituindo a primitiva dependência do paciente por uma nova. Em todas as suas tentativas de melhorar e educar o paciente, o analista deve respeitar a individualidade deste. A influência que possa legitimamente permitir-se será determinada pelo grau de inibição no desenvolvimento apresentado pelo paciente. Alguns neuróticos permaneceram tão infantis que, também na análise, só podem ser tratados como crianças.

Outra vantagem ainda da transferência é que, nela, o paciente produz perante nós, com clareza plástica, uma parte importante da história de sua vida, da qual, de outra maneira, ter-nos-ia provavelmente fornecido apenas um relato insuficiente. Ele a representa diante de nós, por assim dizer, em vez de apenas nos contar.

E, agora, o outro lado da situação. Uma vez que a transferência reproduz a relação do paciente com seus pais, ela assume também a ambivalência dessa relação. Quase inevitavelmente acontece que, um dia, sua atitude positiva para com o analista se transforma em negativa, hostil. Também isso, via de regra, é uma repetição do passado. Sua obediência ao pai (se se tratar do pai), sua corte para obter as simpatias deste, tem raízes num desejo erótico para ele voltado. Numa ocasião ou noutra, esta exigência pressionará seu caminho no sentido da transferência e insistirá em ser satisfeita. Na situação analítica, ela só pode defrontar-se com a frustração. Relações sexuais reais entre pacientes e analista estão fora de cogitação e mesmo os métodos mais sutis de satisfação, tais como preferência, intimidade, etc., só são concedidos parcialmente pelo analista. Uma rejeição desse tipo é tomada como ocasião para a mudança; provavelmente as coisas aconteceram da mesma maneira na infância do paciente.

Os sucessos terapêuticos que ocorreram sob a influência da transferência positiva estão sujeitos à suspeita de serem de natureza sugestiva. Se a transferência negativa leva a melhor, eles são soprados como farelo ao vento. Observamos com horror que todo o nosso esforço e labuta até ali foi em vão. Na verdade, o que poderíamos ter considerado como ganho intelectual permanente por parte do paciente, a sua compreensão da Psicanálise e sua confiança na eficácia desta, subitamente se desvanece. Ele se comporta como uma criança que não tem poder de julgamento próprio, mas que cegamente acredita em qualquer pessoa que ame e em ninguém que lhe seja estranho. O perigo desses estados de transferência evidentemente reside em o paciente não compreender a sua natureza e tomá-los por experiências novas e reais, em vez de reflexos do passado. Se ele (ou ela) se dá conta do forte desejo erótico que se acha escondido por trás da transferência muda, sente-se então insultado e desprezado, odeia o analista como seu inimigo e está pronto a abandonar a análise. Em ambos esses casos extremos, esqueceu o pacto que fez no início do tratamento e que se tornou inútil para a continuação do trabalho comum. É tarefa do analista tirar constantemente o paciente da ilusão que o ameaça e mostrar-lhe sempre que o que ele toma por uma vida nova e real é um reflexo do passado. E para que não caia num estado em que fique inacessível a qualquer prova, o analista toma o cuidado de que nem o amor nem a hostilidade atinjam um grau extremo. Isto se faz preparando o paciente, em tempo, para estas possibilidades e não negligenciando os primeiros sinais delas. Um manejo cuidadoso da transferência, de acordo com essa orientação, é, via de regra, extremamente compensador. Se conseguimos, como geralmente acontece, esclarecer o paciente quanto à verdadeira natureza dos fenômenos de transferência, teremos tirado uma arma poderosa da mão de sua resistência e convertido perigos em lucros, pois um paciente nunca se esquece novamente do que experimentou sob a forma de transferência; ela tem uma força de convicção maior do que qualquer outra coisa que possa adquirir por outros modos.

Achamos muito indesejável que o paciente atue fora da transferência, em vez de recordar. A conduta ideal para os nossos fins seria que ele se comportasse tão normalmente quanto possível fora do tratamento e expressasse suas reações anormais somente na transferência.

O método pelo qual fortalecemos o ego enfraquecido tem como ponto de partida uma ampliação do autoconhecimento. Isso, naturalmente, não é toda a história, mas apenas seu primeiro passo. A perda de tal conhecimento significa, para o ego, uma abdicação de poder e influência; é o primeiro sinal tangível de que está sendo encurralado e tolhido pelas exigências do id e do superego. Por conseguinte, a primeira parte do auxílio que temos a oferecer é um trabalho intelectual de nossa parte e um incentivo ao paciente para nele colaborar. Esse primeiro tipo de atividade, como sabemos, destina-se a preparar o caminho para outra tarefa, mais difícil. Não perderemos de vista o elemento dinâmico nessa tarefa, mesmo durante o seu estágio preliminar. Coletamos o material para o nosso trabalho de uma variedade de fontes — do que nos é transmitido pelas informações que nos são dadas pelo paciente e por suas associações livres, do que ele nos mostra nas transferências, daquilo a que chegamos pela interpretação de seus sonhos e do que ele revela através de lapsos ou parapraxias. Todo esse material ajuda-nos a fazer construções acerca do que lhe aconteceu e foi esquecido, bem como sobre o que lhe está acontecendo no momento, sem que o compreenda. Nisso tudo, porém, nunca deixamos de fazer uma distinção rigorosa entre o nosso conhecimento e o conhecimento dele. Evitamos dizer-lhe imediatamente coisas que muitas vezes descobrimos num primeiro estágio, e evitamos dizer-lhe a totalidade do que achamos que descobrimos. Refletimos cuidadosamente a respeito de quando lhe comunicaremos o conhecimento de uma de nossas construções e esperamos pelo que nos pareça ser o momento apropriado — o que nem sempre é fácil de decidir. Via de regra, adiamos falar-lhe de uma construção ou explicação até que ele próprio tenha chegado tão perto dela que só reste um único passo a ser dado, embora esse passo seja, de fato, a síntese decisiva. Se procedemos doutra maneira e o esmagamos com nossas interpretações antes que esteja preparado para elas, nossa informação ou não produziria efeito algum ou, então, provocaria uma violenta irrupção da resistência que tornaria o avanço de nosso trabalho mais difícil ou poderia mesmo ameaçar interrompê-lo por completo. Mas se preparamos tudo adequadamente, com freqüência acontece que o paciente imediatamente confirma nossa construção e ele próprio recorda o acontecimento interno ou externo que esqueceu. Quanto mais exatamente a construção coincidir com os pormenores do que foi esquecido, mais fácil ser-lhe-á assentir. Nesse assunto em particular, o nosso conhecimento tornar-se-á, então, também o seu conhecimento.

Com a menção de resistência, chegamos à segunda e mais importante parte de nossa tarefa. Já dissemos que o ego se protege contra a invasão de elementos indesejáveis provenientes do inconsciente e do id reprimido por meio de anticatexias, que devem permanecer intactas para poderem funcionar normalmente. Quanto mais premido o ego se sente, mais convulsivamente se apega (como num susto) a essas anticatexias, a fim de proteger o que resta de si contra outras irrupções. Mas esse intuito defensivo de maneira alguma concorda com os objetivos de nosso tratamento. O que desejamos, pelo contrário, é que o ego, que se tornou afoito pela certeza de nosso auxílio, atreva-se a tomar a ofensiva, a fim de reconquistar o que foi perdido. E é aqui que nos damos conta da força dessas anticatexias, sob a forma de resistências ao nosso trabalho. O ego recua, em alarma, ante tais empreendimentos, que parecem perigosos e ameaçam com o desprazer; para não nos falhar, tem de ser constantemente incentivado e apaziguado. Essa resistência, que persiste durante todo o tratamento e se renova a cada novo período de trabalho, é conhecida, não muito corretamente, como resistência devida à repressão. Descobriremos que não é a única com que nos defrontamos. É interessante notar que, nessa situação, as divisões partidárias são, até certo ponto, invertidas: pois o ego luta contra o nosso estímulo, enquanto o inconsciente, que comumente é nosso adversário, vem em nosso auxílio, visto possuir um “impulso ascendente” natural e não desejar nada melhor que pressionar além de suas fronteiras estabelecidas, até o ego, e, assim, até a consciência. A luta que se desenvolve, se alcançamos nosso fim e podemos induzir o ego a superar suas resistências, é realizada sob nossa direção e com nossa assistência. O seu desfecho é indiferente, quer resulte na aceitação por parte do ego, após novo exame, de uma exigência instintiva que até então rejeitara, quer a rejeite de novo, desta vez definitivamente. Em qualquer desses casos, um perigo permanente foi liquidado, o âmbito do ego foi ampliado e um dispêndio inútil de energia tornou-se desnecessário.

A superação das resistências é a parte de nosso trabalho que exige mais tempo e maior esforço. Ela vale a pena, contudo, pois ocasiona uma alteração vantajosa do ego, a qual será mantida independentemente do resultado da transferência e se manterá firme na vida. Trabalhamos também, simultaneamente, para livrar-nos da alteração do ego que foi ocasionada sob a influência do inconsciente, pois onde quer que pudemos detectar qualquer de seus derivados no ego, apontamos-lhes sua origem ilegítima e incentivamos o ego a rejeitá-los. Será lembrado que foi uma das pré-condições necessárias de nosso pacto de ajuda que qualquer alteração desse tipo no ego, devida à intrusão de elementos inconscientes, não deveria ir além de certa medida.

Quanto mais nosso trabalho progride e mais profundamente a nossa compreensão interna (insight) penetra na vida mental dos neuróticos, mais claramente se impõem à nossa observação dois novos fatores, os quais exigem a mais rigorosa atenção, como fontes de resistência. Ambos são completamente desconhecidos do paciente, nenhum deles poderia ter sido levado em conta quando o nosso pacto foi feito; tampouco originam-se do ego do paciente. Ambos podem ser englobados sob a denominação única de “necessidade de estar doente ou de sofrer”, mas têm origens diferentes, embora, sob certos aspecto, sejam de natureza aparentada. O primeiro desses dois fatores é o sentimento de culpa ou consciência de culpa, como é chamado, embora o paciente não o sinta e não se dê conta dele. Trata-se, evidentemente, da parte da resistência que é contribuição de um superego particularmente severo e cruel. O paciente não deve ficar bom, mas tem de permanecer doente, pois não parece melhorar. Essa resistência não interfere concretamente em nosso trabalho intelectual, mas torna-o inoperante; na verdade, com freqüência nos permite remover determinada forma de sofrimento neurótico, mas está imediatamente pronta a substituí-la por outra, ou, talvez, por alguma doença somática. O sentimento de culpa explica também a cura ou melhora de graves neuroses que ocasionalmente observamos depois de infortúnios reais: tudo o que importa é que o paciente seja desgraçado — de que maneira, não tem importância. A resignação sem queixas com que essas pessoas freqüentemente se acomodam à sua árdua sorte é muito notável, mas também reveladora. Para desviar essa resistência, somos obrigados a restringir-nos a torná-la consciente e a tentar promover a lenta demolição do superego hostil.

É menos fácil demonstrar a existência da outra resistência, para a qual os nossos meios de combate são especialmente inadequados. Existem alguns neuróticos em quem, a julgar por todas as suas reações, o instinto de autopreservação na realidade foi invertido. Eles parecem visar a nada mais que à autolesão e à autodestruição. É possível também que as pessoas que, de fato, terminam por cometer suicídio pertençam a esse grupo. É de se presumir que, em tais pessoas, efetuaram-se defusões de instinto de grandes conseqüências, em conseqüência do que houve uma liberação de quantidades excessivas do instinto destrutivo voltado para dentro. Os pacientes dessa espécie não podem tolerar o restabelecimento mediante o nosso tratamento e lutam contra ele com todas as suas forças. Mas temos de confessar que se trata de caso que ainda não conseguimos explicar completamente.

Lancemos mais um olhar sobre a situação a que chegamos, em nossa tentativa de trazer auxílio ao ego neurótico do paciente. Esse ego não é mais capaz de cumprir a tarefa que lhe foi estabelecida pelo mundo externo (inclusive a sociedade humana). Nem todas as suas experiências se acham à sua disposição; uma grande parte de seu estoque de lembranças lhe fugiu. Sua atividade está inibida por rigorosas proibições oriundas do superego e sua energia é consumida em vãs tentativas de desviar as exigências do id.Além disso, como resultado de contínuas irrupções por parte do id, sua organização acha-se danificada, não é mais capaz de qualquer síntese correta, está dilacerada por impulsos mutuamente opostos, por conflitos não resolvidos e por dúvidas não solucionadas. Para começar, conseguimos que o ego do paciente assim enfraquecido participe do trabalho puramente intelectual de interpretação, que visa a provisoriamente preencher as lacunas em seu patrimônio mental e a transferir-nos a autoridade de seu superego; incentivâmo-lo a aceitar a luta contra cada exigência individual feita pelo id e a vencer as resistências que surgem em conexão com isso. Ao mesmo tempo, restauramos a ordem no ego detectando o material e os impulsos que forçaram caminho a partir do inconsciente e expômo-los à crítica, remontando-os à sua origem. Servimos ao paciente em diversas funções, como autoridade e substituto dos pais, como professor e educador, e fizemos o melhor por ele se, como analistas, elevamos os processos mentais de seu ego a um nível normal, transformamos o que se tornou inconsciente e reprimido em material pré-consciente, e assim devolvêmo-lo, mais uma vez, à posse de seu ego. Do lado do paciente, alguns fatores racionais trabalham em nosso favor, tais como a necessidade de restabelecimento, que tem seu motivo nos sofrimentos dele, e o interesse intelectual que possamos ter-lhe despertado pelas teorias e revelações da Psicanálise; de muito maior força, porém, é a transferência positiva com que ele nos recebe. Lutando contra nós, por outro lado, estão a transferência negativa, a resistência do ego devido à repressão (isto é, seu desprazer por ter de abrir-se ao árduo trabalho que lhe é imposto), o sentimento de culpa que surge de sua relação com o superego e a necessidade dos seus instintos [do paciente]. A parte ocupada pelos dois últimos fatores decide se o caso deve ser considerado leve ou grave. Fora esses, pode-se discernir alguns outros fatores como tendo relação favorável ou desfavorável. Uma certa inércia psíquica, uma indolência da libido, que não está disposta a abandonar suas fixações, não podem ser olhadas com bons olhos; a capacidade do paciente de sublimar seus instintos desempenha um grande papel e assim também a sua capacidade de elevar-se acima da vida grosseira dos instintos, bem como, ainda, o relativo poder de suas funções intelectuais.

Não ficaremos desapontados, mas, pelo contrário, acharemos perfeitamente inteligível, se chegarmos à conclusão de que o desfecho final da luta em que nos empenhamos depende de relações quantitativas da cota de energia que podemos mobilizar no paciente, em nosso favor, comparada à soma de energia das forças que trabalham contra nós. Aqui, mais uma vez, Deus acha-se do lado dos grandes batalhões. É verdade que nem sempre conseguimos ganhar, mas, pelo menos, podemos geralmente identificar por que foi que não vencemos. Aqueles que estiverem acompanhando a nossa exposição apenas por interesse terapêutico provavelmente se afastarão com desprezo, após esta admissão. Aqui, porém, estamos interessados na terapia apenas na medida em que ela funciona através de meios psicológicos e, por enquanto, não possuímos outra. O futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta, através de substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua distribuição no aparelho mental. Pode ser que existam outras possibilidades ainda não imaginadas de terapia. De momento, porém, nada temos de melhor à nossa disposição do que a técnica da psicanálise, e, por essa razão, apesar de suas limitações, ela não deve ser menosprezada.

 

CAPÍTULO VII - UM EXEMPLO DE TRABALHO PSICANALÍTICO

 

Chegamos a uma familiaridade geral com o aparelho psíquico, com as partes, órgãos e áreas de ação de que se compõe, com as forças que nele operam e com as funções atribuídas às partes. As neuroses e as psicoses são os estados em que se manifestam distúrbios no funcionamento do aparelho. Escolhemos as neuroses como assunto de nosso estudo porque somente elas parecem acessíveis aos métodos psicológicos de nossa intervenção. Enquanto estamos tentando influenciá-las, coligimos observações que nos proporcionam um quadro de sua origem e da maneira como elas surgem.

Enunciarei antecipadamente um de nossos principais achados, antes de prosseguir com minha descrição. As neuroses (diferentemente das moléstias infecciosas, por exemplo) não possuem determinantes específicos. Seria ocioso buscar nelas excitantes patogênicos. Elas se transformam gradualmente, através de fáceis transições, no que é descrito como normal, e, por outro lado, dificilmente existe qualquer estado reconhecido como normal em que indicações de traços neuróticos não possam ser apontadas. Os neuróticos possuem aproximadamente as mesmas disposições inatas que as outras pessoas, têm as mesmas experiências e as mesmas tarefas a desempenhar. Por que é, então, que vivem de modo tão pior e com tão grande dificuldade, e, no processo, padecem de mais sentimentos de desprazer, ansiedade e sofrimento?

Não precisamos embaraçar-nos para encontrar uma resposta a esta pergunta. O que deve ser tido como responsável pela inadequação e sofrimentos dos neuróticos são desarmonias quantitativas. A causa determinante de todas as formas assumidas pela vida mental humana deve, na verdade, ser buscada na ação recíproca entre as disposições inatas e as experiências acidentais. Ora, um determinado instinto pode ser inatamente forte ou fraco demais, ou uma determinada capacidade pode ser sustada ou desenvolvida de modo insuficiente na vida. Por outro lado, as impressões e experiências externas podem fazer exigências de intensidade diferente a pessoas diferentes e aquilo que é passível de ser manejado pela constituição de uma pessoa pode ser uma tarefa impossível para a de outra. Essas diferenças quantitativas determinarão a variedade dos resultados.

Muito cedo acharemos, contudo, que esta explicação é insatisfatória: ela é muito geral, explica demasiado. A etiologia apresentada aplica-se a todos os casos de sofrimento, infelicidade ou incapacidade mental, mas nem todos os estados desse tipo podem ser denominados de neuróticos. As neuroses possuem características específicas, são infelicidades de um tipo determinado. Dessa maneira, temos de, afinal de contas, esperar encontrar causas específicas para elas. Ou podemos adotar a suposição de que, entre as tarefas com que a vida mental tem de lidar, há algumas nas quais se pode muito facilmente fracassar, de modo que a peculiaridade dos fenômenos da neurose, que quase sempre são tão notáveis, decorreria disto, sem que necessitássemos retirar nossas asserções anteriores. Se acreditamos que as neuroses não diferem, em qualquer aspecto essencial, do normal, o seu estudo promete render valiosas contribuições para o conhecimento do normal. Pode ser que assim descubramos os “pontos fracos” de uma organização normal.

A suposição que acabamos de fazer encontra confirmação. As experiências analíticas nos ensinam que existe, de fato, uma exigência instintiva para com a qual as tentativas de com ela lidar muito facilmente fracassam ou conseguem um sucesso insatisfatório, e que há um período da vida que aparece exclusiva ou predominantemente em conexão com a geração de uma neurose. Esses dois fatores — a natureza do instinto e o período de vida relacionado — exigem consideração separada, embora estejam intimamente ligados.

Podemos falar com um bom grau de certeza sobre o papel desempenhado pelo período da vida. Parece que as neuroses são adquiridas somente na tenra infância (até a idade de seis anos), ainda que seus sintomas possam não aparecer até muito mais tarde. A neurose da infância pode tornar-se manifesta por um curto tempo ou pode mesmo nem ser notada. Em todo caso, a doença neurótica posterior se liga ao prelúdio na infância. É possível que aquelas que são conhecidas como neuroses traumáticas (devido a um susto excessivo ou graves choques somáticos, tais como desastres ferroviários, soterramentos, etc.) constituem exceção a isto; suas relações com determinantes na infância até aqui fugiram à investigação. Não há dificuldade em explicar esta preferência etiológica pelo primeiro período da infância. As neuroses são, como sabemos, distúrbios do ego e não é de admirar que o ego, enquanto é débil, imaturo e incapaz de resistência, fracasse em lidar com tarefas que, posteriormente, seria capaz de enfrentar com a máxima facilidade. Nessas circunstâncias, exigências instintivas provenientes do interior, não menos que excitações oriundas do mundo externo, operam como “traumas”, particularmente se certas disposições inatas as vão encontrar a meio caminho. O ego desamparado defende-se delas por meio de tentativas de fuga (repressões), que posteriormente se mostram ineficazes e que envolvem restrições permanentes ao futuro desenvolvimento. O dano infligido ao ego por suas primeiras experiências dá-nos a impressão de ser desproporcionadamente grande, mas podemos fazer uma analogia com as diferenças dos resultados produzidos pela picada de uma agulha numa massa de células no ato da divisão celular (como nas experiências de Roux) e no animal crescido que se desenvolveu a partir delas. Nenhum indivíduo humano é poupado de tais experiências traumáticas; nenhum escapa às repressões a que elas dão origem. Essas reações discutíveis por parte do ego podem talvez ser indispensáveis para a consecução de outro objetivo que é estabelecido para o mesmo período da vida: no espaço de poucos anos, a pequena criatura primitiva deve transformar-se num ser humano civilizado; ela tem de atravessar um período imensamente longo de desenvolvimento cultural humano de uma forma abreviada de maneira quase misteriosa. Isso se torna possível pela disposição hereditária, mas quase nunca pode ser conseguido sem o auxílio adicional da educação, da influência parental, que, como precursora do superego, restringe a atividade do ego mediante proibições e punições, e incentiva ou força o estabelecimento de repressões. Não devemos, portanto, esquecer de incluir a influência da civilização entre os determinantes da neurose. É fácil, como podemos ver, a um bárbaro ser sadio; para um homem civilizado, a tarefa é árdua. O desejo de um ego poderoso e desinibido pode parecer-nos inteligível, mas, tal como nos é ensinado pelos tempos em que vivemos, ele é, no sentido mais profundo, hostil à civilização. E visto que as exigências da civilização são representadas pela educação familiar, não devemos esquecer o papel desempenhado por essa característica biológica da espécie humana — o prolongado período de sua dependência infantil — na etiologia das neuroses.

Com referência ao outro ponto — o fator instintivo específico — deparamo-nos com uma discrepância interessante entre a teoria e a experiência. Teoricamente, não há objeção a supor que qualquer tipo de exigência instintiva possa ocasionar as mesmas repressões e suas conseqüências, mas nossa observação demonstra-nos, invariavelmente, até onde podemos julgar, que as excitações que desempenham esse papel patogênico se originam dos instintos componentes da vida sexual. Os sintomas das neuroses, poder-se-ia dizer, são, sem exceção, ou uma satisfação substitutiva de algum impulso sexual ou medidas para impedir tal satisfação, e, via de regra, são conciliações entre as duas, do tipo que ocorre em consonância com as leis que operam entre contrários, no inconsciente. A lacuna em nossa teoria não pode, presentemente, ser preenchida e nossa decisão torna-se mais difícil pelo fato de a maioria dos impulsos da vida sexual não ser de natureza puramente erótica, mas surgir de combinações do instinto erótico com partes do instinto destrutivo. Mas não se pode duvidar de que os instintos que se manifestam fisiologicamente como sexualidade desempenham um papel preeminente e inesperadamente grande na causação das neuroses — se é um papel exclusivo, é o que resta a ser decidido. Deve-se também ter em mente que, no curso do desenvolvimento cultural, nenhuma outra função foi tão enérgica e extensamente repudiada como precisamente a função sexual. A teoria tem de satisfazer-se com algumas alusões que revelam uma conexão mais profunda: o fato de que o primeiro período da infância, durante o qual o ego começa a diferenciar-se do id, é também o período da primeira eflorescência sexual, que chega a um fim com o período de latência; o de que dificilmente pode ser fortuito que este momentoso período inicial mais tarde venha a ser vítima da amnésia infantil, e, por fim, o de que as modificações biológicas na vida sexual (tais como o início difásico da unção que já mencionamos, o desaparecimento do caráter periódico da excitação sexual e a transformação na relação entre menstruação feminina e excitação masculina) — o de que essas inovações na sexualidade devem ter sido de alta importância na evolução dos animais para o homem. Deixa-se para a ciência do futuro reunir numa nova compreensão esses dados ainda isolados. Não é na Psicologia, mas na Biologia, que há uma lacuna aqui. Não estaremos errados, talvez, em dizer que o ponto fraco na organização do ego parece residir em sua atitude para com a função sexual, como se a antítese biológica entre autopreservação e preservação da espécie houvesse encontrado expressão psicológica neste ponto.

A experiência analítica convenceu-nos da completa verdade da afirmação, ouvida com tanta freqüência, de que a criança psicologicamente é pai do adulto e de que os acontecimentos de seus primeiros anos são de importância suprema em toda a sua vida posterior. Terá, assim, interesse especial para nós algo que possa ser descrito como a experiência central deste período da infância. Nossa atenção é atraída primeiro pelos efeitos de certas influências que não se aplicam a todas as crianças, embora sejam bastante comuns — tais como o abuso sexual de crianças por adultos, sua sedução por outras crianças (irmãos ou irmãs) ligeiramente mais velhas que elas e, o que não esperaríamos, ficarem elas profundamente excitadas por ver ou ouvir, em primeira mão, um comportamento sexual entre adultos (seus pais), principalmente numa época em que não se pensaria que pudessem interessar-se por tais impressões ou compreendê-las, ou serem capazes de recordá-las mais tarde. É fácil confirmar até onde essas experiências despertam a suscetibilidade de uma criança e forçam os seus próprios impulsos sexuais para certos canais dos quais depois não se podem safar. Visto essas impressões estarem sujeitas à repressão, seja em seguida, seja logo que buscam retornar como lembranças, constituem elas o determinante para a compulsão neurótica que depois tornará impossível ao ego controlar a função sexual e provavelmente o fará voltar as costas permanentemente a essa função. Se ocorre esta última reação, o resultado será uma neurose; se não ocorre, desenvolver-se-á uma variedade de perversões, ou a função, que é de importância imensa não apenas para a reprodução, mas também para toda a modelação da vida, tornar-se-á impossível de manejar.

Por mais instrutivos que casos desse tipo possam ser, um grau ainda mais alto de interesse deve ligar-se à influência de uma situação pela qual toda criança está destinada a passar e que decorre inevitavelmente do fato de ser ela cuidada por outras pessoas e viver com os pais durante um período prolongado. Estou pensando no complexo de Édipo, assim denominado porque sua substância essencial pode ser encontrada na lenda grega do rei Édipo, a qual felizmente pôde chegar até nós na versão de um grande dramaturgo. O herói grego matou o pai e tomou a mãe como esposa. Que assim tenha procedido inintencionalmente, visto não os conhecer como pais, constitui um desvio dos fatos analíticos que podemos facilmente compreender e que, na verdade, reconheceremos como inevitável.

Neste ponto, temos de fazer relatos separados do desenvolvimento de meninos e meninas (de indivíduos dos sexos masculino e feminino), pois é agora que a diferença entre os sexos encontra expressão psicológica pela primeira vez. Defrontamo-nos aqui com o grande enigma do fato biológico da dualidade dos sexos: trata-se de um fato supremo para o nosso conhecimento; ele desafia qualquer tentativa de remontá-lo a algo mais. A Psicanálise não contribuiu em nada para o esclarecimento deste problema, que, não há dúvida, incide de todo na área da Biologia. Na vida mental, encontramos apenas reflexos desta grande antítese e sua interpretação torna-se mais difícil pelo fato, há muito suspeitado, de que ninguém se limita às modalidades de reação de um único sexo; há sempre lugar para as dos sexo oposto, da mesma maneira que o corpo carrega, juntamente com os órgãos plenamente desenvolvidos de determinado sexo, rudimentos atrofiados, e com freqüência inúteis, dos do outro. Para distinguir entre masculino e feminino, na vida mental, usamos o que é, sem dúvida alguma, uma equação empírica, convencional e inadequada: chamamos de masculino tudo o que é forte e ativo, e de feminino tudo o que é fraco e passivo. Este fato da bissexualidade psicológica dificulta também todas as nossas investigações sobre o assunto e torna-as mais difíceis de descrever.

O primeiro objeto erótico de uma criança é o seio da mãe que a alimenta; a origem do amor está ligada à necessidade satisfeita de nutrição. Não há dúvida de que, inicialmente, a criança não distingue entre o seio e o seu próprio corpo; quando o seio tem de ser separado do corpo e deslocado para o “exterior”, porque a criança tão freqüentemente o encontra ausente, ele carrega consigo, como um “objeto”, uma parte das catexias libidinais narcísicas originais. Este primeiro objeto é depois completado na pessoa da mãe da criança, que não apenas a alimenta, mas também cuida dela e, assim, desperta-lhe um certo número de outras sensações físicas, agradáveis e desagradáveis. Através dos cuidados com o corpo da criança, ela se torna seu primeiro sedutor. Nessas duas relações reside a raiz da importância única, sem paralelo, de uma mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas posteriores — para ambos os sexos. Em tudo isso, o fundamento filogenético leva tanto a melhor sobre a experiência acidental da pessoa, que não faz diferença que uma criança tenha realmente sugado o seio ou sido criada com mamadeira e nunca desfrutado da ternura do cuidado de uma mãe. Em ambos os casos, o desenvolvimento da criança toma o mesmo caminho; pode ser que, no segundo caso, seu anseio posterior torne-se ainda mais forte. E, por mais tempo que tenha sido amamentada ao seio materno, ficará sempre com a convicção, depois de ter sido desmamada, de que sua amamentação foi breve e muito pouca.

Este prefácio não é supérfluo, pois ele pode elevar nossa compreensão da intensidade do complexo de Édipo. Quando um menino (a partir da idade de dois ou três anos) ingressou na fase fálica de seu desenvolvimento libidinal, está sentindo sensações prazerosas em seu órgão sexual e aprendeu a proporcionar-se essas sensações à vontade, mediante a estimulação manual, ele se torna o amante da mãe. Quer possuí-la fisicamente, das maneiras que adivinhou de suas observações e intuições sobre a vida sexual, e tenta seduzi-la mostrando-lhe o órgão masculino que está orgulhoso de possuir. Numa palavra, a sua masculinidade, precocemente despertada, procura ocupar o lugar do pai junto a ela; este, até aqui, seja como for, constituía um modelo invejado para o menino, devido à força física que nele percebe e à autoridade de que o acha investido. O pai agora se torna um rival que se interpõe em seu caminho e de quem gostaria de livrar-se. Se, enquanto o pai está ausente, é permitido à criança partilhar do leito da mãe e se, quando ele volta, ela é mais uma vez afastada, a sua satisfação quando o pai desaparece e o seu desapontamento quando surge novamente são experiências profundamente sentidas. Este é o tema do complexo de Édipo que a lenda grega traduziu do mundo da fantasia de uma criança para a suposta realidade. Nas condições de nossa civilização, ele está invariavelmente fadado a um fim assustador.

A mãe do menino compreende muito bem que a excitação sexual dele relaciona-se com ela, mais cedo ou mais tarde reflete que não é correto permitir-lhe continuar. Pensa estar fazendo certo proibindo-lhe manipular seu órgão genital. Sua proibição tem pouco efeito; no máximo, ocasiona uma certa modificação em seu método de obter satisfação. Por fim, a mãe adota medidas mais severas; ameaça tirar fora dele a coisa com que a está desafiando. Geralmente, a fim de tornar a ameaça mais assustadora e mais crível, delega a execução ao pai do menino, dizendo que contará a este e que ele lhe cortará fora o pênis. É estranho dizer que esta ameaça funciona somente se outra condição foi preenchida antes ou depois dela. Em si própria, parece inconcebível demais para o menino que tal coisa possa acontecer. Entretanto, se na ocasião da ameaça ele pode recordar a aparência dos órgãos genitais femininos ou se pouco depois tem uma visão deles — de órgãos genitais, equivale a dizer, a que falta realmente essa parte supremamente valorizada, então ele toma a sério que ouviu e, caindo sob a influência do complexo de castração, experimenta o trauma mais sério de sua vida em início.

Os resultados da ameaça de castração são multifários e incalculáveis; afetam a totalidade das relações do menino com o pai e a mãe e, mais tarde, com os homens e as mulheres em geral. Via de regra, a masculinidade da criança é incapaz de resistir a este primeiro choque. A fim de preservar seu órgão sexual, ele renuncia à posse da mãe de modo mais ou menos completo; sua vida sexual com freqüência fica permanentemente dificultada pela proibição. Se um forte componente feminino, tal como o chamamos, acha-se presente nele, a força deste é aumentada por esta intimidação de sua masculinidade. Ele cai numa atitude passiva para com o pai, tal como a que atribui à mãe. É verdade que, em conseqüência da ameaça, abandonou a masturbação, mas não as atividades de sua imaginação que a acompanhavam. Pelo contrário, visto serem esta agora a única forma de satisfação sexual que lhe resta, entrega-se a elas mais do que antes e, nessas fantasias, embora ainda continue a identificar-se com o pai, também se identifica, simultânea e talvez predominantemente, com a mãe. Derivados e produtos modificados dessas primeiras fantasias masturbatórias geralmente abrem caminho em seu futuro ego e desempenham um papel na formação de seu caráter. Independentemente deste encorajamento de sua feminilidade, o medo e o ódio do pai cresceram muito em intensidade. A masculinidade do menino se retrai, por assim dizer, numa atitude desafiadora em relação ao pai, a qual dominará o seu comportamento posterior, na sociedade humana, de maneira compulsiva. Um resíduo de sua fixação erótica na mãe com freqüência subsiste sob a forma de uma dependência excessiva dela, e isto persiste como uma espécie de servidão às mulheres.Ele não mais se aventura a amar a mãe, mas não pode correr o risco de não ser amado por ela, pois, nesse caso, ficaria em perigo de ser por ela traído e entregue ao pai para a castração. A experiência completa, com todos os seus antecedentes e conseqüências, dos quais minha descrição só pôde dar uma seleção, é submetida a uma repressão altamente enérgica, e, tal como se torna possível pelas leis que operam no id inconsciente, todos os impulsos e reações emocionais mutuamente conflitantes que estão sendo postos em movimento nessa ocasião são preservados no inconsciente e ficam prontos a perturbar o desenvolvimento posterior do ego, após a puberdade. Quando o processo somático de maturação sexual dá nova vida às antigas fixações libidinais que aparentemente haviam sido superadas, a vida sexual mostrará ser inibida, sem homogeneidade e dividida em impulsos mutuamente conflitantes.

Está fora de dúvida, é verdade, que o impacto da ameaça de castração sobre a vida sexual incipiente de um menino nem sempre tem essas conseqüências temíveis. Dependerá, mais uma vez, das relações quantitativas, de quanto dano é causado e de quanto é evitado. Toda a ocorrência, que pode provavelmente ser encarada como a experiência central dos anos de infância,o maior problema do início da vida e a fonte mais intensa de inadequação posterior, é tão completamente esquecida que sua reconstrução, durante o trabalho de análise, se defronta nos adultos com a descrença mais decidida. Na verdade, a aversão a ela é tão grande que as pessoas tentam silenciar qualquer menção ao assunto proscrito e os mais óbvios lembretes dele são menosprezados por uma estranha cegueira intelectual. Pode-se ouvir objetar, por exemplo, que a lenda do rei Édipo não tem de fato nenhuma conexão com a construção feita pela análise: os casos são inteiramente diferentes, visto Édipo não saber que o homem a quem matara era seu pai e a mulher com que casara era sua mãe. O que não se leva em conta aí é que uma deformação desse tipo é inevitável se se faz uma tentativa de manejo poético do material, e que não há introdução de material estranho, mas apenas um emprego hábil dos fatores apresentados pelo tema. A ignorância de Édipo constitui representação legítima do estado inconsciente em que, para os adultos, toda a experiência caiu, e a força coercitiva do oráculo, que torna ou deveria tornar inocente o herói, é um reconhecimento da inevitabilidade do destino que condenou todo filho a passar pelo complexo de Édipo. Foi ainda ressaltado, por parte das fileiras psicanalíticas, quão facilmente o enigma de outro herói dramático, o procrastinador de Shakespeare, Hamlet, pode ser solucionado tendo como ponto de referência o complexo de Édipo, desde que o príncipe fracassou na tarefa de punir outrem pelo que coincidia com a substância de seu próprio desejo edipiano — em conseqüência do que a falta geral de compreensão por parte do mundo literário demonstrou quão pronto está o grosso da humanidade a aferrar-se às suas repressões infantis.Entretanto, mais de um século antes do surgimento da Psicanálise, o filósofo francês Diderot deu testemunho da importância do complexo de Édipo, ao expressar a diferença entre os mundos primitivo e civilizado nesta frase: “Si le peti sauvage était abandonné à lui même, qu’il conservât toute son imbécilité, et qu’il réunît au peu de raison de l’enfant au berceau la violence des passions de l’homme de trente ans, il tordrait le col à son père et coucherait avec sa mère” Aventuro-me a dizer que, se a Psicanálise não pudesse gabar-se de mais nenhuma realização além da descoberta do complexo de Édipo reprimido, só isso já lhe daria direito a ser incluída entre as preciosas nova aquisições da humanidade.

Os efeitos do complexo de castração nas meninas são mais uniformes e não menos profundos. Uma criança do sexo feminino, naturalmente, não tem necessidade de recear a perda do pênis; ela reage, todavia, ao fato de não ter recebido um. Desde o início, inveja nos meninos a posse dele; pode-se dizer que todo o seu desenvolvimento se realiza à sombra da inveja do pênis. Ela começa por efetuar vãs tentativas de fazer o mesmo que os meninos e, mais tarde, com maior sucesso, faz esforços por compensar a sua falta — esforços que podem conduzir, afinal, a uma atitude feminina normal. Se, durante a fase fálica, tenta obter prazer com um menino, pela estimulação manual de seus órgãos genitais, com freqüência acontece fracassar em obter satisfação suficiente e estende os julgamentos de inferioridade de seu pênis atrofiado a todo o seu eu (self). Via de regra, cedo desiste da masturbação, visto não ter desejos de ser lembrada da superioridade de seu irmão ou companheiro de brincadeiras, e volta as costas completamente à sexualidade.

Se uma menina persiste em seu primeiro desejo — transformar-se em menino — em casos extremos, acabará homossexual manifesta, ou, doutra maneira, apresentará traços marcantemente masculinos no encaminhamento de sua vida futura, escolherá uma vocação masculina, e assim por diante. O outro caminho é feito através do abandono da mãe que amou: a filha, sob a influência de sua inveja do pênis, não pode perdoar à mãe havê-la trazido ao mundo tão insuficientemente aparelhada. Em seu ressentimento por isto, abandona a mãe e coloca em lugar dela outra pessoa, como objeto de seu amor — o pai. Se se perdeu um objeto amoroso, a reação mais óbvia é identificar-se com ele, substituí-lo dentro de si própria, por assim dizer, mediante a identificação. Este mecanismo vem agora em auxílio da menina. A identificação com a mãe pode ocupar o lugar da ligação com ela. A filha se põe no lugar da mãe, como sempre fizera em seus brinquedos; tenta tomar o lugar dela junto ao pai e começa a odiar a mãe que costumava amar, e isso por dois motivos: por ciúme e por mortificação pelo pênis que lhe foi negado. Sua nova relação com o pai pode começar tendo por conteúdo um desejo de ter o pênis dele à sua disposição, mas culmina noutro desejo — ter um filho dele como um presente. O desejo de um bebê ocupou assim o lugar do desejo de um pênis, ou, pelo menos, dele foi dissociado e expelido (split off).

É interessante que a relação entre o complexo de Édipo e o complexo de castração assuma forma tão diferente — uma forma oposta, na realidade — no caso das mulheres, quando comparada com a dos homens. Nos indivíduos do sexo masculino, como vimos, a ameaça de castração dá fim ao complexo de Édipo; nas mulheres, descobrimos que, ao contrário, é a falta de um pênis que as impele ao seu complexo de Édipo. Pouco prejuízo é causado a uma mulher se ela permanece em sua atitude edipiana feminina. (O termo “complexo de Electra’’ foi proposto para esta.) Nesse caso, escolherá o marido pelas características paternas dele e estará pronta a reconhecer a sua autoridade. O seu anseio de possuir um pênis, que é, na realidade, insaciável, pode encontrar satisfação se ela for bem-sucedida em completar o seu amor pelo órgão estendendo-o ao portador do órgão, tal como aconteceu anteriormente, quando progrediu do seio da mãe para a mãe como uma pessoa completa.

Se perguntarmos a um analista o que a sua experiência demonstrou serem as estruturas mentais menos acessíveis à influência em seus pacientes, a resposta será: numa mulher, o desejo de um pênis; num homem, a atitude feminina para com o seu próprio sexo, cuja pré-condição, naturalmente, seria a perda do pênis.

 

PARTE III - O RENDIMENTO TEÓRICO

 

CAPÍTULO VIII - O APARELHO PSÍQUICO E O MUNDO EXTERNO

 

Todas as descobertas e hípoteses gerais que apresentei no primeiro capítulo foram feitas através de um pormenorizado trabalho laborioso e paciente, do tipo de que dei um exemplo no capítulo anterior. Podemos agora ceder à tentação de fazer um levantamento das ampliações de conhecimentos que conseguimos através de um trabalho como esse e considerar quais os caminhos que abrimos para avanços ulteriores. Em relação a isto, nos impressiona o fato de termos sido obrigados, com tanta freqüência, a aventurar-nos além das fronteiras da ciência da Psicologia. Os fenômenos de que estamos tratando não pertencem somente à Psicologia; têm um lado orgânico e biológico também, e, por conseguinte, no decorrer de nossos esforços para construir a Psicanálise, fizemos também algumas importantes descobertas biológicas e não pudemos evitar a estruturação de novas hipóteses biológicas.

Por ora, porém, atenhamo-nos à Psicologia. Vimos que não é cientificamente viável traçar uma linha de demarcação entre o que é psiquicamente normal e anormal, de maneira que esta distinção, apesar de sua importância prática, possui apenas um valor convencional. Estabelecemos assim um direito a chegar a uma compreensão da vida normal da mente a partir do estudo de seus distúrbios — o que não seria admissível se esses estados patológicos, as neuroses e as psicoses, tivessem causas específicas operando à maneira de corpos estranhos.

O estudo de um distúrbio mental que ocorre durante o sono, que é passageiro e inofensivo, e que, na verdade, desempenha uma função útil, nos deu uma chave para a compreensão das doenças mentais, que são permanentes e prejudiciais à vida. E podemos agora aventurar-nos à afirmação de que a psicologia da consciência não era mais capaz de compreender o funcionamento normal da mente do que de compreender os sonhos. Os dados da autopercepção consciente, os quais, somente eles, se achavam à sua disposição, mostraram-se sob todos os aspectos inadequados para sondar a profusão e complexidade dos processos da mente, para revelar as suas interligações e assim reconhecer os determinantes de suas perturbações.

A hipótese que adotamos, de um aparelho psíquico que se estende no espaço, convenientemente reunido, desenvolvido pelas exigências da vida, que dá origem aos fenômenos da consciência somente em um determinado ponto e sob certas condições — essa hipótese nos colocou em posição de estabelecer a Psicologia em bases semelhantes às de qualquer outra ciência, tal como, por exemplo, a Física. Em nossa ciência, tal como nas outras, o problema é o mesmo: por trás dos atributos (qualidades) do objeto em exame que se apresenta diretamente à nossa percepção, temos de descobrir algo que é mais independente da capacidade receptiva particular de nossos órgãos sensoriais e que se aproxima mais do que se poderia supor ser o estado real das coisas. Não temos esperança de poder atingir esse estado em si mesmo, visto ser evidente que tudo de novo que inferimos deve, não obstante, ser traduzido de volta para a linguagem das nossas percepções, da qual nos é simplesmente impossível libertar-nos. Mas aqui reside a verdadeira natureza e limitação de nossa ciência. É como se devêssemos dizer, em Física: “Se pudéssemos ver de modo bastante claro, descobriríamos que o que parece ser um corpo sólido é constituído de partículas de tal e qual formato e tamanho, a ocupar tais e quais posições relativas.” Enquanto isso, tentamos aumentar ao máximo possível a eficiência de nossos órgãos sensoriais mediante auxílios artificiais, mas pode-se esperar que todos os esforços desse tipo não conseguirão atingir o resultado último. A realidade sempre permanecerá sendo “incognoscível”. O rendimento trazido à luz pelo trabalho científico de nossas percepções sensoriais primárias consistirá numa compreensão interna (insight) das ligações e relações dependentes que estão presentes no mundo externo, que podem de alguma maneira ser fidedignamente reproduzidas ou refletidas no mundo interno de nosso pensamento, um conhecimento das quais nos capacita a “compreender” algo no mundo externo, provê-lo e, possivelmente alterá-lo. O nosso procedimento na Psicanálise é inteiramente semelhante. Descobrimos métodos técnicos de preencher as lacunas existentes nos fenômenos de nossa consciência e fazemos uso desse métodos exatamente como um físico faz uso da experiência. Dessa maneira, inferimos um certo número de processos que são em si mesmos “incognoscíveis” e os interpolamos naqueles que são conscientes para nós. E se, por exemplo, dizemos: “Neste ponto, interveio uma lembrança inconsciente”, o que queremos dizer é: “Neste ponto, ocorreu algo de que nos achamos totalmente incapazes de formar uma concepção, mas que, se houvesse penetrado em nossa consciência, só poderia ter sido descrito de tal e qual maneira.” Nossa justificação por fazer tais inferências e interpolações e o grau de certeza que a elas se liga naturalmente permanecem abertos à crítica em cada caso individual, e não se pode negar que com freqüência é extremamente difícil chegar a uma decisão — fato que encontra expressão na falta de concordância entre analistas. A novidade do problema é que deve ser culpada por isto — isto é, uma falta de treinamento. Mas, ao lado disso, há um fator especial, inerente ao próprio assunto, pois na Psicologia, diferentemente da Física, não estamos sempre interessados em coisas que só podem despertar um frio interesse científico. Assim, não ficaremos muito surpresos se uma analista que não ficou suficientemente convencida da intensidade de seu próprio desejo de um pênis venha a fracassar também em dar uma importância correta a este fator em suas pacientes. Mas tais fontes de erro, que se originam da equação pessoal, não têm grande importância a longo prazo. Se se examinarem antigos livros didáticos sobre o uso de microscópio, fica-se espantado ao descobrir as extraordinárias exigências que se faziam à personalidade dos que efetuavam observações com o instrumento, enquanto a sua técnica ainda era incipiente — exigências da quais não se fala mais hoje.

Não posso pretender dar aqui um quadro completo do aparelho psíquico e de suas atividades; eu seria impedido, entre outras coisas, pela circunstância de que a Psicanálise ainda não teve tempo para estudar igualmente todas essas funções. Vou-me contentar, portanto, com uma recapitulação pormenorizada da descrição feita no capítulo inicial.

O âmago de nosso ser é, então, formado, pelo obscuro id, que não tem comunicação direta com o mundo externo e só é acessível, mesmo ao nosso conhecimento, mediante outro agente. Dentro de id operam os instintos orgânicos, que são, eles próprios, compostos de fusões de duas forças primevas (Eros e destrutividade) em proporções que variam e se diferenciam umas das outras por sua relação com órgãos ou sistemas de órgãos. O único e exclusivo impulso destes instintos é no sentido da satisfação, a qual se espera que surja de certas modificações nos órgãos, com o auxílio de objetos do mundo externo. Mas a satisfação imediata e desregrada dos instintos, tal como o id exige, conduziria com freqüência a perigosos conflitos com o mundo externo e à extinção. O id desconhece a solicitude acerca da garantia de sobrevivência e desconhece igualmente a ansiedade, ou talvez fosse mais correto dizer que, embora ele possa gerar os elementos sensoriais da ansiedade, não pode utilizar-se deles. Os processos que são possíveis nos supostos elementos psíquicos do id e entre eles (o processo primário) diferem amplamente daqueles que nos são familiares, através da percepção consciente, em nossa vida intelectual e emocional; tampouco estão eles sujeitos às restrições críticas da lógica, que repudia alguns desses processos como inválidos e busca desfazê-los.

O id, excluído do mundo externo, possui seu próprio mundo de percepção. Ele detecta com extraordinária agudez certas modificações em seu interior, especialmente oscilações na tensão de suas necessidades instintivas, e essas modificações tornam-se conscientes como sensações na série prazer-desprazer. É difícil dizer, com efeito, por que meios e com a ajuda de que órgãos sensórios terminais essas percepções ocorrem. Mas é fato estabelecido que as autopercepções — sensações cenestésicas e sensações de prazer-desprazer — governam a passagem de acontecimentos no id com força despótica. O id obedece ao inexorável princípio de prazer. Mas não o id sozinho. Parece que também a atividade dos outros agentes psíquicos só é capaz de modificar o princípio de prazer, mas não de anulá-lo, e permanece sendo questão da mais alta importância teórica, questão que ainda não foi respondida, quando e como é possível este princípio de prazer ser superado. A consideração de que o princípio de prazer exige uma redução, no fundo a extinção, talvez, das tensões das necessidades instintivas (isto é, o Nirvana) leva às relações ainda não avaliadas entre o princípio de prazer e as duas forças primevas, Eros e o instinto de morte.

A outra região da mente, que acreditamos conhecer melhor e na qual nos reconhecemos mais facilmente — a que é conhecida como ego —, desenvolveu-se a partir da camada cortical do id, que, por ser adaptada à recepção e exclusão de estímulos, está em contato direto com o mundo externo (realidade). Partindo da percepção consciente, ela submeteu à sua influência regiões cada vez maiores e estratos cada vez mais profundos do id, e, na persistência com que mantém sua dependência do mundo externo, traz a marca indelével de sua origem (como se fosse “Made in Germany”) Sua função psicológica consiste em levar a passagem [de acontecimentos] no id a um nível dinâmico mais alto (talvez pela transformação de energia livremente móvel em energia ligada, tal como corresponde ao estado pré-consciente); sua função construtiva consiste em interpolar, entre a exigência feita por um instinto e a ação que a satisfaz, a atividade de pensamento que, após orientar-se no presente e avaliar experiências anteriores, se esforça, mediante ações experimentais, por calcular as conseqüências do curso de ação proposto. Dessa maneira, o ego chega a uma decisão sobre se a tentativa de obter satisfação deve ser levada a cabo ou adiada, ou se não será necessário que a exigência do instinto seja suprimida completamente por ser perigosa. (Temos aqui o princípio de realidade.) Da mesma maneira que o id é voltado unicamente para a obtenção de prazer, o ego é governado por considerações de segurança. O ego estabeleceu-se a tarefa de autopreservação, que o id parece negligenciar. Ele [o ego] faz uso das sensações de ansiedade como sinal de alerta dos perigos que ameaçam a sua integridade. Uma vez que os traços anêmicos podem tornar-se conscientes, tal como as percepções, especialmente mediante sua associação com resíduos da fala, surge a possibilidade de uma confusão que conduziria a uma má compreensão da realidade. O ego se guarda contra esta possibilidade pela instituição do teste de realidade, que se permite cair em inatividade temporária nos sonhos em virtude das condições predominantes no estado de sono. O ego, que procura manter-se num meio ambiente de forças mecânicas esmagadoras, é ameaçado por perigos que provêm, em primeira instância, da realidade externa, mas perigos não o ameaçam somente daí. O seu próprio id é uma fonte de perigos semelhantes, e isso por duas razões diferentes. Em primeiro lugar, uma intensidade excessiva de instinto pode prejudicar o ego de maneira semelhante a um “estímulo” excessivo proveniente do mundo externo. É verdade que aquela intensidade não pode destruí-lo, mas pode destruir a sua organização dinâmica característica e transformar o ego, novamente, numa parte do id. Em segundo lugar, a experiência pode ter ensinado ao ego que a satisfação de alguma exigência instintiva, que não seja em si própria insuportável, envolveria perigos no mundo externo, de maneira que uma exigência instintiva desse tipo torna-se, ela própria, um perigo. Assim, o ego combate em duas frentes: tem de defender sua existência contra um mundo externo que o ameaça com a aniquilação, assim como contra um mundo interno que lhe faz exigências excessivas. Ele adota os mesmos métodos de defesa contra ambos, mas a sua defesa contra o inimigo interno é particularmente inadequada. Em conseqüência de haver sido originalmente idêntico a este último inimigo e de ter vivido com ele, desde então, nos termos mais íntimos, o ego tem grande dificuldade de escapar aos perigos internos. Eles persistem como ameaças, mesmo que possam ser temporariamente subjugados.

Já vimos como o fraco e imaturo ego, no primeiro período da infância, é permanentemente prejudicado pelas tensões a que é submetido em seus esforços de desviar os perigos que são peculiares a esse período da vida. As crianças são protegidas contra os perigos que as ameaçam do mundo externo pela solicitude dos pais; pagam esta segurança com um temor de perda de amor que as deixaria desamparadas face aos perigos do mundo externo. Este fator exerce influência decisiva no resultado do conflito quando um menino se encontra na situação do complexo de Édipo, no qual a ameaça ao seu narcisismo representada pelo perigo da castração, reforçado desde fontes primevas, se apossa dele. Impulsionada pela operação combinada dessa duas influências, o perigo real e presente e o perigo relembrado com sua base filogenética, a criança embarca em suas tentativas de defesa — repressões — que são momentaneamente eficazes, mas que, todavia, se tornam psicologicamente inadequadas quando a reanimação posterior da vida sexual traz reforço às exigências instintivas que haviam sido repudiada no passado. Se as coisas são assim, teria de ser dito, de um ponto de vista biológico, que o ego fracassa na tarefa de dominar as excitações do período sexual primitivo, numa época em que sua imaturidade o torna incompetente para fazê-lo. É nesse atraso do desenvolvimento do ego em relação ao desenvolvimento libidinal que vemos a pré-condição essencial da neurose, e não podemos fugir à conclusão de que as neuroses poderiam ser evitadas se se poupasse ao ego infantil essa tarefa — isto é, se à vida sexual da criança fosse concedida liberdade de ação, como acontece entre muitos povos primitivos. Pode ser que a etiologia das doenças neuróticas seja mais complicada do que aqui a descrevemos; se assim for, pelo menos chamamos a atenção para uma parte essencial do complexo etiológico. Tampouco devemos esquecer as influências filogenéticas, que se acham representadas de alguma maneira no id, sob formas que ainda não somos capazes de apreender, e que devem certamente agir sobre o ego mais poderosamente nesse período primitivo do que mais tarde. Por outro lado, desponta em nós a compreensão de que essa tentativa precoce de represar o instinto sexual, um partidarismo tão decidido por parte do incipiente ego em favor do mundo externo, em oposição ao mundo interno, ocasionado pela proibição da sexualidade infantil, não pode deixar de ter efeito na disposição posterior do indivíduo para com a cultura. As exigências instintivas forçadas a afastar-se da satisfação direta são compelidas a ingressar em novos caminhos que conduzem à satisfação substituta, e, no curso desses détours, podem tornar-se dessexualizadas e a sua vinculação com seus objetivos instintivos originais pode tornar-se mais frouxa. E, neste ponto, podemos antecipar a tese de que muitos dos bens altamente valorizados de nossa civilização foram adquiridos à custa da sexualidade e através da restrição das força motivadoras sexuais.Repetidamente tivemos de insistir no fato de que o ego deve a sua origem, bem como a mais importante de suas características adquiridas, à sua relação com o mundo externo real. Estamos assim preparados para presumir que os estados patológicos do ego, nos quais ele mais se aproxima novamente do id, fundamentam-se numa cessação ou num afrouxamento dessa relação com o mundo externo. Isto harmoniza-se muito bem com o que aprendemos da experiência clínica — a saber, que a causa precipitadora da irrupção de uma psicose é ou que a realidade tornou-se insuportavelmente penosa ou que os instintos se tornaram extraordinariamente intensificados — ambas as quais, em vista das reivindicações rivais feitas ao ego pelo id e pelo mundo externo, devem conduzir ao mesmo resultado. O problema das psicoses seria simples e claro se o desligamento do ego em relação à realidade pudesse ser levado a cabo completamente. Mas isso parece só acontecer raramente ou, talvez, nunca. Mesmo num estado tão afastado da realidade do mundo externo como o de confusão alucinatória, aprende-se com os pacientes, após seu restabelecimento, que, na ocasião, em algum canto da mente (como o dizem) havia uma pessoa normal escondida, a qual, como um espectador desligado, olhava o tumulto da doença passar por ele. Não sei se podemos presumir que isso seja assim em geral, mas posso relatar o mesmo de outras psicoses com um curso menos tempestuoso. Recordo um caso de paranóia crônica em que, após cada crise de ciúmes, um sonho transmitia ao analista uma representação correta da causa precipitadora, livre de qualquer delírio. Um contraste interessante foi assim trazido à luz: embora estejamos acostumados a descobrir, nos sonhos dos neuróticos, ciúmes que são alheios à vida desperta, neste caso psicótico o delírio que dominava o paciente durante o dia era corrigido pelo sonho. Podemos provavelmente tomar como verdadeiro, de modo geral, que o que ocorre em todos esses casos é uma divisão (split) psíquica. Duas atitudes psíquicas formaram-se, em vez de uma só — uma delas, a normal, que leva em conta a realidade, e outra que, sob a influência dos instintos, desliga o ego da realidade. As duas coexistem lado a lado. O resultado depende da sua força relativa. Se a segunda é ou se torna a mais forte, a pré-condição necessária para uma psicose acha-se presente. Se a relação é invertida, há então uma cura aparente do distúrbio delirante. Na realidade, ele apenas se retira para o inconsciente — tal como numerosas observações nos levam a acreditar que o delírio existia, já pronto, muito tempo antes de sua irrupção manifesta.

O ponto de vista que postula que em todas as psicoses há uma divisão do ego (splitting of the ego) não poderia chamar tanta atenção se não se revelasse passível de aplicação a outros estados mais semelhantes às neuroses e, finalmente, às próprias neuroses. Esta anormalidade, que pode ser englobada entre as perversões, baseia-se, como é bem sabido, em o paciente (que é quase sempre do sexo masculino) não reconhecer o fato de que as mulheres não possuem pênis — fato que lhe é extremamente indesejável, visto tratar-se de uma prova da possibilidade de ele próprio ser castrado. Nega, portanto, a sua própria percepção sensorial, que lhe mostrou que falta um pênis aos genitais femininos, e aferra-se à convicção contrária. A percepção negada, contudo, não fica inteiramente sem influência, pois, apesar de tudo, ele não tem a coragem de afirmar que realmente viu um pênis. Em vez disso, o paciente apodera-se de alguma outra coisa — uma parte do corpo ou algum outro objeto — e lhe atribui o papel do pênis sem o qual não pode passar. Trata-se geralmente de algo que ele realmente viu no momento em que viu os genitais femininos, ou então é algo que pode apropriadamente servir como substituto simbólico do pênis. Ora, seria incorreto descrever este processo, quando um fetiche é construído, como divisão do ego; ele é uma conciliação formada com a ajuda do deslocamento, tal como aquela com que nos familiarizamos nos sonhos. Mas nossas observações nos revelam ainda mais. A criação do fetiche foi devida a uma intenção de destruir a prova da possibilidade de castração, de maneira a que o temor desta possa ser evitado. Se os indivíduos do sexo feminino, como outras criaturas vivas, possuem um pênis, não há necessidade de temer pela posse continuada do próprio pênis. Ora, deparamo-nos com fetichistas que desenvolveram o mesmo temor da castração dos não-fetichistas e reagem da mesma maneira a ela. O seu comportamento, portanto, expressa simultaneamente duas premissas contrárias. Por um lado, negam o fato de sua percepção — o fato de que não viram pênis nos genitais femininos — e, por outro, reconhecem o fato de que as mulheres não possuem pênis e tiram dele as conclusões corretas. As duas atitudes persistem lado a lado durante toda a vida, sem se influenciarem mutuamente. Temos aqui o que pode ser corretamente chamado de divisão do ego. Esta circunstância também capacita-nos a compreender como é que o fetichismo, com tanta freqüência, é apenas parcialmente desenvolvido. Ele não governa exclusivamente a escolha de objeto, mas deixa lugar para um maior ou menor comportamento sexual normal; às vezes, na verdade, contenta-se com o desempenho de um papel modesto ou se limita a uma mera alusão. Nos fetichistas, portanto, o desligamento do ego em relação à realidade do mundo externo nunca alcançou êxito completo.

Não se deve pensar que o fetichismo apresente um caso excepcional com referência à divisão do ego; trata-se simplesmente de um tema particularmente favorável para estudar a questão. Voltemos à nossa tese de que o ego da criança, sob o domínio do mundo real, livra-se das exigências instintivas indesejáveis através do que é chamado de repressões. Suplementaremos agora isto afirmando ainda que, durante o mesmo período da vida, o ego com bastante freqüência se encontra em posição de desviar alguma exigência do mundo externo que acha aflitiva e que isto é feito por meio de uma negação das percepções que trazem ao conhecimento essa exigência oriunda da realidade. Negações desse tipo ocorrem com muita freqüência e não apenas com fetichistas e, sempre que nos achamos em posição de estudá-las, revelam ser meias-medidas, tentativas incompletas de desligamento da realidade. A negação é sempre suplementada por um reconhecimento: duas atitudes contrárias e independentes sempre surgem e resultam na situação de haver uma divisão do ego. Mais uma vez, o resultado depende de qual das duas pode apoderar-se da maior intensidade.

Os fatos desta divisão do ego, que acabamos de descrever, não são tão novos nem tão estranhos quanto podem a princípio parecer. É, na verdade, uma característica universal das neuroses que estejam presentes na vida mental do indivíduo, em relação a algum comportamento particular, duas atitudes diferentes, mutuamente contrárias e independentes uma da outra. No caso das neuroses, entretanto, uma dessas atitudes pertence ao ego e a contrária, que é reprimida, pertence ao id. A diferença entre este caso e o outro [examinado no parágrafo anterior] é essencialmente uma diferença topográfica ou estrutural, e nem sempre é fácil decidir, num caso individual, com qual das duas possibilidades se está lidando. Elas possuem, contudo, a seguinte importante característica em comum. Seja o que for que o ego faça em seus esforços de defesa, procure ele negar uma parte do mundo externo real ou busque rejeitar uma exigência instintiva oriunda do mundo interno, o seu sucesso nunca é completo e irrestrito. O resultado sempre reside em duas atitudes contrárias, das quais a derrotada, a mais fraca, não menos que a outra, conduz a complicações psíquicas. Para concluir, é necessário apenas apontar quão pouco de todos estes processos se torna conhecido de nós através de nossa percepção consciente.

 

CAPÍTULO IX - O MUNDO INTERNO

 

Não temos maneira de transmitir o conhecimento de um conjunto complicado de acontecimentos simultâneos, a não ser descrevendo-os sucessivamente, e assim acontece que todas as nossas descrições são falhas, em princípio, devido à simplificação unilateral, e têm de esperar até que possam ser suplementadas, elaboradas e corrigidas.

A representação de um ego que medeia entre o id e o mundo externo, que assume as exigências instintivas daquele, a fim de conduzi-las à satisfação, que deriva percepções do último e utiliza-as como lembranças, que, concentrado em sua autopreservação, põe-se em defesa contra reivindicações excessivamente intensas de ambos os lados, e que, ao mesmo tempo, é guiado em todas as suas decisões pelas injunções de um princípio de prazer modificado — essa representação, de ato, aplica-se ao ego apenas até o fim do primeiro período da infância, até aproximadamente a idade de cinco anos. Por volta dessa época, uma mudança importante se realizou. Uma parte do mundo externo foi, pelo menos parcialmente, abandonada como objeto e foi, por identificação, incluída no ego, tornando-se assim parte integrante do mundo interno. Esse novo agente psíquico continua a efetuar as funções que até então haviam sido desempenhadas pelas pessoas [os objetos abandonados] do mundo externo: ele observa o ego, dá-lhe ordens, julga-o e ameaça-o com punições, exatamente como os pais cujo lugar ocupou. Chamamos este agente de superego e nos damos conta dele, em suas funções judiciárias, como nossa consciência. É impressionante que o superego freqüentemente demonstre uma severidade para a qual nenhum modelo foi fornecido pelos pais reais, e, ademais, que chame o ego a prestar contas não apenas de suas ações, mas igualmente dos seus pensamentos e intenções não executadas, das quais o superego parece ter conhecimento. Isso nos lembra que o herói do mito de Édipo também sentia-se culpado pelas suas ações e submeteu-se à autopunição, embora a força coercitiva do oráculo devesse tê-lo isentado de culpa em nosso julgamento e no seu. O superego é, na verdade, herdeiro do complexo de Édipo e só se estabelece após a pessoa haver-se libertado desse complexo. Por essa razão, a sua excessiva severidade não segue um modelo real, mas corresponde à força da defesa utilizada contra a tentação do complexo de Édipo. Fora de dúvida, uma certa suspeita desse estado de coisas reside, no fundo, na afirmação feita pelos filósofos e crentes de que o senso moral não é instalado nos homens pela educação ou por eles adquirido na vida social, mas lhes é implantado de uma fonte mais alta.

Enquanto o ego trabalha em plena harmonia com o superego, não é fácil distinguir entre as suas manifestações, mas tensões e desavenças entre eles fazem-se muito claramente visíveis. Os tormentos causados pelas censuras da consciência correspondem precisamente ao medo da perda de amor, por parte de uma criança, medo cujo lugar foi tomado pelo agente moral. Por outro lado, se o ego resistiu com êxito à tentação de fazer algo que, para o superego, seria censurável, ele sente-se elevado em sua auto-estima e fortalecido em seu orgulho, como se houvesse feito alguma preciosa aquisição. Dessa maneira, o superego continua a desempenhar o papel de um mundo externo para o ego, embora se tenha tornado uma parte do mundo interno. Durante toda a vida posterior, ele representa a influência da infância de uma pessoa, do cuidado e da educação que lhe foram dados pelos pais e de sua dependência destes — uma infância que é tão grandemente prolongada, nos seres humanos, por uma vida familiar em comum. E, em tudo isso, não são apenas as qualidades pessoais desses pais que se fazem sentir, mas também tudo o que teve um efeito determinante sobre eles próprios, os gostos e padrões da classe social em que viveram e as disposições e tradições inatas da raça da qual se originaram. Aqueles que têm gosto por generalizações e distinções nítidas podem dizer que o mundo externo, no qual o indivíduo se descobre exposto, após desligar-se dos pais, representa o poder do presente; que o id, com suas tendências herdadas, representa o passado orgânico, e que o superego, que vem a juntar-se a eles posteriormente, representa, mais do que qualquer outra coisa, o passado cultural, que uma criança tem por assim dizer, de repetir como pós-experiência durante os poucos anos do início de sua vida. É pouco provável que essas generalizações possam ser universalmente corretas. Alguma parte das aquisições culturais indubitavelmente deixou um precipitado atrás de si no id; muita coisa do que é contribuição do superego despertará eco no id; não poucas das novas experiências da criança serão intensificadas por serem repetições de alguma primeva vivência filogenética.

“Was du ererbt von deinen Vätern hast,Erwirb es, um es zu besitzen.”Assim, o superego assume uma espécie de posição intermediária entre o id e o mundo externo; ele une em si as influências do presente e do passado. No estabelecimento do superego, temos diante de nós, por assim dizer, um exemplo da maneira como o presente se transforma no passado (…)

 

ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL (1937)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

DIE ENDLICHE UND DIE UNENDLICHE ANALYSE

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1937   Int. Z. Psychoanal., 23 (2), 209-40.

1950   G. W., 16, 59-99.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

‘Analysis Terminable and Interminable’

 

1937   Int. J. Psycho-Anal., 18 (4), 374-405. (Trad. de Joan Riviere.)

1950 C.P. 5, 316-57. (Reimpressão revista da anterior.)

 

A presente tradução é uma versão modificada da publicada em 1950. Os últimos oito e meio parágrafos da Seção VI do original alemão foram reimpressos no outono de 1937, no Almanach der Psychoanalyse 1938, 44-50.

 

Este artigo foi escrito no começo de 1937 e publicado em junho. Ele e o seguinte, sobre ‘Construções em Análise’ (1937d), foram os últimos escritos estritamente psicanalíticos de Freud a serem publicados em sua vida. Quase vinte anos se tinham passado desde que ele publicara um trabalho puramente técnico, embora, naturalmente, tivesse tratado de questões de técnica em seus outros escritos.

O principal exame anterior, por parte de Freud, do funcionamento da terapia psicanalítica fora feito nas Conferências XXVII e XXVIII das Introductory Lectures (1916-17). Retornara ao assunto, de modo muitíssimo mais breve, na Conferência XXXIV das New Introductory Lectures (1933a). Os leitores desses trabalhos anteriores ficam às vezes impressionados por aquilo que parece constituir diferenças entre o presente artigo e seus predecessores, e essas divergências aparentes exigem exame.

O artigo, como um todo, dá impressão de pessimismo quanto à eficácia terapêutica da psicanálise. As limitações desta são constantemente acentuadas, e insiste-se nas dificuldades do procedimento e nos obstáculos que se interpõem em seu caminho. Na verdade, essas limitações constituem seu tema principal. Na realidade, contudo, nada há de revolucionário nisso. Freud sempre esteve bem ciente das barreiras ao sucesso da análise e sempre se mostrou pronto a investigá-las. Ademais, sempre esteve ávido por dirigir a atenção para a importância dos interesses não terapêuticos da psicanálise, direção em que jaziam suas próprias preferências pessoais, particularmente no último período de sua vida. Recordar-se-á que no breve debate sobre a técnica nas New Introductory Lectures (1933a), ele escrevera que ‘nunca fora um terapeuta entusiasta.’ (Standard Ed., 22, 151.) Assim, nada há de inesperado na fria atitude demonstrada neste artigo para com as ambições terapêuticas da psicanálise ou na enumeração das dificuldades com que ela se defronta. O que pode talvez causar mais surpresa são alguns aspectos do exame, feito por Freud, da natureza e causas subjacentes dessas dificuldades.

Deve-se notar, em primeiro lugar, que os fatores para os quais ele chama grandemente a atenção são de natureza fisiológica e biológica, sendo assim, em geral, insuscetíveis a influências psicológicas. Desse tipo, por exemplo, são a relativa força ‘constitucional’ dos instintos,ver em ([1]),e a relativa fraqueza do ego, devido a causas fisiológicas como a puberdade, a menopausa e a doença física ver em([1]).Mas o fator impeditivo mais poderoso de todos, um fator que está além de qualquer possibilidade de controle (ao qual algumas páginas do trabalho são dedicadas,ver em [1],é o instinto de morte. Freud sugere aqui que este não é apenas, como apontara em trabalhos anteriores, responsável por grande parte da resistência encontrada na análise, mas que é, realmente, a causa suprema de conflito na mente,ver em ([1]).Em tudo isso, contudo, mais uma vez nada há de revolucionário. Freud pode estar dando ênfase maior do que a costumeira aos fatores constitucionais entre as dificuldades com que a psicanálise se defronta, mas ele sempre reconheceu sua importância.

Tampouco são novos quaisquer dos três fatores que Freud seleciona aqui como ‘decisivos’ para o sucesso de nossos esforços terapêuticos ver em ([1]):o prognóstico mais favorável dos casos de origem ‘traumática’, de preferência aos de ‘origem constitucional’; a importância das considerações ‘quantitativas’, e a questão de uma ‘alteração do ego’. É sobre esse terceiro ponto que muita luz nova é lançada no presente artigo. Em descrições anteriores do processo terapêutico, um lugar essencial era sempre atribuído a uma alteração no ego que deveria ser ocasionada pelo analista, como preliminar à anulação das repressões do paciente (ver, por exemplo, a descrição na Conferência XXVIII das Introductory Lectures, Standard Ed., 16, 455). Quanto à natureza da alteração, e como ela podia ser efetuada, muito pouco era sabido. Os recentes avanços na análise do ego, por parte de Freud, tornaram-lhe agora possível levar a investigação mais adiante. A alteração terapêutica do ego era agora vista mais como a anulação de alterações já presentes como resultados do processo defensivo. E vale a pena lembrar que o fato das alterações do ego ocasionadas por processos defensivos já fora mencionado por Freud em data muito anterior. O conceito pode ser encontrado em seus estudos dos delírios, em seu segundo artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b), Standard Ed., 3, 185, e em diversos pontos de seu Rascunho K, ainda mais anterior (Freud, 1950a), de 1º de janeiro de 1896. Posteriormente, a noção parece ter ficado temporariamente inativa, a conexão entre anticatexias, formações reativas e alterações do ego é claramente anunciada pela primeira vez em Inhibitions, Symptoms and Anxiety (1926d), Standard Ed., 20, 157, 159 e 164. Reaparece nas New Introductory Lectures (1933a), ibid., 22, 90, e, após longo exame dela no presente artigo, em Moisés e o Monoteísmo (1939a),ver em [1], e finalmente, no Esboço de Psicanálise (1940a),ver em [1], acima.

Há um aspecto, contudo, em que as opiniões expressas por Freud neste trabalho parecem diferir de suas opiniões anteriores, ou mesmo contradizê-las — a saber, o ceticismo por ele expresso em relação ao poder profilático da psicanálise. Suas dúvidas estendem-se às perspectivas de impedir não simplesmente a ocorrência de uma neurose nova e diferente, mas inclusive o retorno de uma neurose que já foi tratada. A mudança aparente fica demonstrada se relembramos uma frase da Conferência XXVII, das Introductory Lectures (1916-17), Standard Ed., 16, 445-5: ‘Uma pessoa que se tornou normal e livre da operação dos impulsos instintuais reprimidos em sua relação com o médico permanecerá assim em sua própria vida, depois de o médico mais uma vez ter-se retirado dela.’ E, novamente, na Conferência XXVIII (ibid., 451), onde Freud compara os efeitos da sugestão hipnótica e da psicanálise: ‘um tratamento analítico exige, tanto do médico quanto do paciente, a realização de um trabalho sério, que é empregado para levantar resistências internas. Mediante a superação dessa resistências, a vida mental do paciente é permanentemente modificada, elevada a um nível mais alto de desenvolvimento, ficando protegida contra novas possibilidades de cair doente.’ Semelhantemente, nas frases finais da Conferência XXXI, das New Introductory Lectures (1933a), Freud escreve que a intenção da psicanálise é ‘fortalecer o ego, ampliar seu campo de percepção e aumentar sua organização, de maneira a que possa apropriar-se de novas partes do id. Onde era o id, ficará o ego.’ (Standard Ed., 22, 80.) A teoria que fundamenta essas passagens parece ser a mesma, e parece diferir, em importantes aspectos, da teoria implícita no presente trabalho.  A base desse aumentado ceticismo de Freud parece ser uma convicção quanto à impossibilidade de lidar com um conflito que não é ‘atual’, e quanto às graves objeções a converter um conflito ‘latente’ num conflito ‘atual’. Essa posição parece implicar uma modificação de opinião não simplesmente sobre o processo terapêutico, mas também sobre os eventos mentais, de um modo mais geral. Aqui Freud parece estar encarando o conflito ‘presentemente ativo’ como algo isolado, algo, por assim dizer, num compartimento estanque. Mesmo que o ego seja auxiliado a enfrentar este conflito, sua capacidade de lidar com outro não será afetada. Do mesmo modo, também as forças instintuais parecem ser pensadas como isoladas: o fato de sua pressão ter sido relaxada no conflito atual não lança luz sobre seu comportamento subseqüente. Em contraste, segundo a opinião anterior, o processo analítico parece ter sido considerado capaz de alterar o ego num sentido mais geral, um sentido que persistiria após o final da análise, e as forças instintuais parecem ter sido encaradas como se fizessem derivar sua pressão de um reservatório indiferenciado de força. Dessa maneira, na proporção em que a análise foi bem- sucedida, qualquer nova incursão por parte das forças instintuais teria tido um pouco de sua pressão reduzida pela análise, e seriam enfrentadas por um ego que a análise tornara mais capaz de lidar com elas. Assim, não haveria uma segregação absoluta do conflito ‘atual’ em relação aos conflitos ‘latentes’, e o poder profilático da análise (bem como seu resultado imediato) dependeria de considerações quantitativas — do relativo aumento ocasionado por ela na força do ego e da diminuição relativa na força dos instintos.

Pode-se observar que a descrição dos efeitos terapêuticos da análise, feita por Freud cerca de um ano após o presente artigo, em seu Esboço de Psicanálise (1940a [1938]), embora em geral concorde de perto com a descrição aqui fornecida, talvez pareça reverter à sua opinião anterior sobre a questão específica que estivemos considerando. Por exemplo, escreve ele naquele trabalho, após comentar o grande esforço envolvido na superação das resistências: ‘Ela vale a pena, contudo, pois ocasiona uma alteração vantajosa do ego, a qual será mantida independentemente do resultado da transferência e se manterá firme na vida.’ Ver em ([1]) Isso pareceria sugerir uma alteração de um tipo geral.

É de interesse notar que, no próprio começo de sua clínica, Freud estava preocupado com quase os mesmos problemas que estes, dos quais se pode dizer que se prolongaram por toda a extensão de seus estudos analíticos. Aqui temos um extrato de uma carta escrita por ele a Wilhelm Fliess a 16 de abril de 1900 (Freud, 150a, Carta 133) sobre Herr E., que certamente estivera em tratamento desde 1897 e, provavelmente, pelo menos desde 1985, e a cujo caso, em seus altos e baixos, há repetidas referências na correspondência: ‘A carreira de E. como paciente chegou finalmente a um fim, com um convite para passar uma noite aqui. Seu enigma está quase completamente solucionado, sua condição é excelente, e todo o seu ser está alterado; no momento, permanece um resíduo de seus sintomas. Estou começando a entender que a natureza aparentemente interminável do tratamento é algo determinado por lei e depende da transferência. Espero que esse resíduo não prejudique o sucesso prático. Compete apenas a mim decidir se o tratamento deve ser ainda mais prolongado, mas raiou em mim que tal prolongamento constitui uma conciliação entre estar doente e estar bom que os próprios pacientes desejam, e na qual, por essa razão, o médico não deve consentir. A conclusão assintótica do tratamento é substancialmente indiferente para mim; é mais para os estranhos que ela constitui um desapontamento. De qualquer modo, manterei um olho no homem…’

 

ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL

 

I

A experiência nos ensinou que a terapia psicanalítica — a libertação de alguém de seus sintomas, inibições e anormalidades de caráter neuróticas — é um assunto que consome tempo. Daí, desde o começo, tentativas terem sido feitas para encurtar a duração das análises. Tais esforços não exigiam justificação; podiam alegar que se baseavam nas mais fortes considerações de razão e conveniência. Provavelmente, porém, havia também em ação neles algum traço do desprezo impaciente com que a ciência médica de dias anteriores encarava as neuroses como conseqüências importunas de danos invisíveis. Se agora se tornou necessário atendê-las, deveríamos, pelo menos, livrar-nos delas tão rapidamente quanto possível.

Uma tentativa particularmente enérgica nesse sentido foi efetuada por Otto Rank, secundando seu livro O Trauma do Nascimento (1924). Supôs ele que a verdadeira fonte da neurose era o ato do nascimento, uma vez que este envolvia a possibilidade de a ‘fixação primeva’ de uma criança à mãe não ser superada, mas persistir como ‘repressão primeva’. Rank tinha esperança de que, se lidássemos com esse trauma primevo através de uma análise subseqüente, nos livraríamos de toda a neurose. Assim, esse pequeno fragmento de trabalho analítico pouparia a necessidade de todo o resto e alguns meses seriam suficientes para realizá-lo. Não se pode discutir que o argumento de Rank era audaz e engenhoso, mas não suportou o teste do exame crítico. Ademais, foi um produto de seu tempo, concebido sob a tensão do contraste entre a miséria do pós-guerra na Europa e a ‘prosperity’ dos Estados Unidos, e projetado para adaptar o ritmo da terapia analítica à pressa da vida americana. Não ouvimos muito sobre o que a colocação em prática do plano de Rank fez pelos casos de doença. Provavelmente, não fez mais do que faria o Corpo de Bombeiros se, chamado para socorrer a uma casa que se incendiara por causa de uma lâmpada a óleo emborcada, se contentasse em retirar a lâmpada do quarto em que o fogo começara. É fora de dúvida que, por esse meio, seria conseguida uma considerável diminuição das atividades dos bombeiros. A teoria e a prática do experimento de Rank são hoje coisas do passado — não menos do que a própria ‘prosperidade’ americana.

Eu mesmo adotei outro modo de acelerar um tratamento analítico, inclusive antes da guerra. Nessa época, aceitei o caso de um jovem russo, homem estragado pela opulência, que chegara a Viena em estado de completo desamparo, acompanhado por um médico particular e um assistente. No curso de poucos anos, foi possível devolver-lhe grande parte de sua independência, despertar seu interesse pela vida e ajustar suas relações com as pessoas que lhe eram mais importantes. Mas aí o progresso se interrompeu. Não progredimos mais no esclarecimento da neurose de sua infância, em que se baseava a doença posterior, e era óbvio que o paciente achava sua situação atual altamente confortável e não desejava dar qualquer passo à frente que o trouxesse para mais perto do fim do tratamento. Era um caso de tratamento a inibir-se a si próprio; corria perigo de fracassar em resultado de seu — parcial — sucesso. Nesse dilema, recorri à medida heróica de fixar um limite de tempo para a análise. Ao início de um ano de trabalho, informei o paciente de que o ano vindouro deveria ser o último de seu tratamento, não importando o que ele conseguisse no tempo que ainda lhe restava. A princípio, não acreditou em mim, mas, assim que se convenceu de que eu falava absolutamente a sério, a mudança desejada se estabeleceu. Suas resistências definharam e, nesses últimos meses de seu tratamento, foi capaz de reproduzir todas as lembranças e descobrir todas as conexões que pareciam necessárias para compreender sua neurose primitiva e dominar a atual. Quando me deixou, em meados do verão de 1914, suspeitando tão pouco quanto o restante de nós do que estava tão próximo à frente, acreditei que sua cura fora radical e permanente.

Numa nota de rodapé acrescentada em 1923 à história clínica desse paciente, já comunicara que eu estava enganado. Quando, por volta do fim da guerra, ele retornou a Viena, refugiado e destituído, tive de ajudá-lo a dominar uma parte da transferência que não fora resolvida. Isso foi realizado em alguns meses, e pude encerrar minha nota de rodapé com a declaração de que, ‘desde então, o paciente tem-se sentido normal e se comportado de modo não excepcional, apesar de a guerra tê-lo despojado de seu lar, de suas posses e de todos os seus relacionamentos familiares’. Quinze anos se passaram desde então sem que tenha sido refutada a verdade desse veredicto, mas certas reservas tornaram-se necessárias. O paciente permanecera em Viena e mantivera um lugar na sociedade, ainda que humilde. Diversas vezes, porém, durante esse período, seu bom estado de saúde foi interrompido por crises de doença que só podiam ser interpretadas como ramificações de sua doença perene. Graças à perícia de uma de minhas alunas, a Dra. Ruth Mack Brunswick, um breve tratamento, nessas ocasiões, pôs fim a essas condições. Tenho esperança de que a própria Dra. Mack Brunswick dentro em breve comunique as circunstâncias. Algumas dessas crises ainda estavam relacionadas a partes residuais da transferência, e onde isso assim acontecia, por efêmeras que fossem, apresentavam caráter distintamente paranóico. Em outras crises, contudo, o material patogênico consistia em fragmentos da história da infância do paciente, que não tinham vindo à luz enquanto eu o estava analisando e que agora se desprendiam — a comparação é inevitável — como suturas após uma operação ou pequenos fragmentos de osso necrosado. Achei a história do restabelecimento do paciente pouco menos interessante do que a de sua doença.

Subseqüentemente, empreguei a fixação de um limite de tempo também em outros casos, e levei ainda em consideração as experiências de outros analistas. Só pode haver um veredicto sobre o valor desse artifício de chantagem: é eficaz desde que se acerte com o tempo correto para ele. Mas não se pode garantir a realização completa da tarefa. Pelo contrário, podemos estar seguros de que, embora parte do material se torne acessível sob a pressão da ameaça, outra parte será retida e, assim, ficará sepultada, por assim dizer, e pedida para nossos esforços terapêuticos, pois, uma vez que o analista tenha fixado o limite de tempo, não pode ampliá-lo; de outro modo, o paciente perderia toda a fé nele. A saída mais óbvia seria, para o paciente, continuar o tratamento com outro analista, embora saibamos que tal mudança envolveria nova perda de tempo e o abandono dos frutos do trabalho já realizado. Tampouco se pode estabelecer qualquer regra geral quanto à ocasião correta para recorrermos a esse artifício técnico compulsório; a decisão deve ser deixada ao tato do analista. Um erro de cálculo não pode ser retificado. O ditado de que o leão só salta uma vez deve ser aplicado aqui.

 

II

 A discussão do problema técnico de saber como acelerar o lento progresso de uma análise nos conduz a outra questão, mais profundamente interessante: existe algo que se possa chamar de término de uma análise — há alguma possibilidade de levar uma análise a tal término? A julgar pela conversa comum dos analistas, assim pareceria ser, já que freqüentemente os ouvimos dizer, quando deploram ou desculpam as imperfeições reconhecidas de algum mortal seu colega: ‘Sua análise não foi terminada’ ou ‘ele nunca se analisou até o fim.’

Temos, primeiro, de decidir o que se quer dizer pela expressão ambígua ‘o término de uma análise’. De um ponto de vista prático, é fácil responder. Uma análise termina quando analista e paciente deixam de encontrar-se para a sessão analítica. Isso acontece quando duas condições foram aproximadamente preenchidas: em primeiro lugar, que o paciente não mais esteja sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições; em segundo, que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico em apreço. Se se é impedido, por dificuldades externas, de alcançar esse objetivo, é melhor falar de análise incompleta, de preferência a análise inacabada.

O outro significado do ‘término’ de uma análise é muito mais ambicioso. Nesse sentido, o que estamos indagando é se o analista exerceu uma influência de tão grande conseqüência sobre o paciente, que não se pode esperar que nenhuma mudança ulterior se realize neste, caso sua análise venha a ser continuada. É como se fosse possível, por meio da análise, chegar a um nível de normalidade psíquica absoluta — um nível, ademais, em relação ao qual pudéssemos confiar em que seria capaz de permanecer estável, tal como se, talvez, tivéssemos alcançado êxito em solucionar todas as repressões do paciente e em preencher todas as lacunas em sua lembrança. Podemos primeiro consultar nossa experiência para indagar se tais coisas de fato acontecem, e depois nos voltarmos para nossa teoria, a fim de descobrir se há qualquer possibilidade de elas acontecerem.

Todo analista já terá tratado de alguns casos que apresentaram esse gratificante desfecho. Ele teve êxito em aclarar o distúrbio neurótico do paciente, esse distúrbio não retornou, nem foi substituído por alguma outra perturbação do mesmo tipo. Tampouco nos achamos sem compreensão interna (insight) dos determinantes desses sucessos. O ego do paciente não foi notavelmente alterado e a etiologia de seu distúrbio foi essencialmente traumática. A etiologia de todo distúrbio neurótico é, afinal de contas, uma etiologia mista. Trata-se de uma questão de os instintos serem excessivamente fortes — o que equivale a dizer, recalcitrantes ao amansamento por parte do ego — ou dos efeitos de traumas precoces (isto é, prematuros) que o ego imaturo foi incapaz de dominar. Via de regra, há uma combinação de ambos os fatores, o constitucional e o acidental. Quanto mais forte for o fator constitucional, mais prontamente um trauma conduzirá a uma fixação deixando atrás de si um distúrbio desenvolvimental; quanto mais forte for o trauma, mais certamente seus efeitos prejudiciais se tornarão manifestos, mesmo quando a situação instintual é normal. Não há dúvida de que uma etiologia do tipo traumático oferece, de longe, o campo mais favorável para a análise. Somente quando um caso é predominantemente traumático é que a análise alcançará sucesso em realizar aquilo que é tão superlativamente capaz de fazer; apenas então ela conseguirá, graças a ter fortalecido o ego do paciente, substituir por uma solução correta a decisão inadequada tomada em sua vida primitiva. Só em tais casos pode-se falar de uma análise que foi definitivamente terminada. Neles, a análise fez tudo o que deveria e não precisa ser continuada. É verdade que, se o paciente que dessa maneira foi restaurado nunca produz outro distúrbio que exija análise, não sabemos quanto sua imunidade pode ser devida a um destino bondoso que lhe poupou provações demasiadamente severas.

Uma força constitucional do instinto e uma alteração desfavorável do ego, adquirida em sua luta defensiva, no sentido de ele ser deslocado e restringido, são os fatores prejudiciais à eficácia da análise e que podem tornar interminável sua duração. Fica-se tentado a tornar o primeiro fator — força do instinto — responsável também pelo surgimento do segundo — a alteração do ego —, mas parece que também este último possui sua própria etiologia. E, na verdade, tem-se de admitir que nosso conhecimento desses assuntos ainda é insuficiente. Só agora eles se estão tornando matéria de estudo analítico. Nesse campo, parece-me que o interesse dos analistas está bastante erradamente dirigido. Em vez de indagar como se dá uma cura pela análise (assunto que acho ter sido suficientemente elucidado), se deveria perguntar quais são os obstáculos que se colocam no caminho de tal cura.Isso me conduz a dois problemas que surgem diretamente da clínica analítica, como espero demonstrar pelos exemplos que se seguem. Certo homem que, ele próprio, praticara a análise com grande sucesso, chegou à conclusão de que suas relações com homens e mulheres — com os homens que eram seus competidores e com as mulheres que amava — não eram, apesar de tudo, livres de impedimentos neuróticos e, portanto, fez-se submeter a uma análise por parte de outrem a quem considerava como superior a si. Essa iluminação crítica de seu próprio eu (self) teve um resultado totalmente bem-sucedido. Casou-se com a mulher que amava e transformou-se em amigo e mestre de seus supostos rivais. Muitos anos se passaram dessa maneira, durante os quais suas relações com o antigo analista permaneceram também desanuviadas. Mas então, sem qualquer razão externa atribuível, surgiram problemas. O homem que fora analisado tornou-se antagonista do analista e censurou-o por ter falhado em lhe proporcionar uma análise completa. O analista, dizia ele, devia ter sabido e levado em consideração o fato de uma relação transferencial nunca poder ser puramente positiva; deveria ter concedido atenção à possibilidade de uma transferência negativa. O analista defendeu-se dizendo que, à época da análise, não havia sinal de transferência negativa. Mas, mesmo que tivesse falhado em observar certos sinais muito débeis dela — o que não estava inteiramente excluído, considerando o horizonte limitado da análise naqueles primeiros dias —, ainda era duvidoso, achava o analista, se teria tido o poder de ativar um assunto (ou, como dizemos, um ‘complexo’) simplesmente por apontá-lo enquanto este não estivesse presentemente ativo no próprio paciente naquela ocasião. Ativá-lo teria certamente exigido, na realidade, um comportamento inamistoso por parte do analista. Ademais, acrescentou, nem toda boa relação entre um analista e seu paciente, durante e após a análise, devia ser encarada como transferência; havia também relações amistosas que se baseavam na realidade e que provavam ser viáveis.

Passo agora a meu segundo exemplo, que levanta o mesmo problema. Uma mulher solteira, não mais jovem, fora cerceada da vida desde a puberdade por uma incapacidade de caminhar, devido a severas dores nas pernas. Seu estado era obviamente de natureza histérica e desafiara muitos tipos detratamento. Uma análise que durou três quartos de ano removeu o problema e devolveu à paciente, pessoa excelente e capaz, seu direito a participar da vida. Nos anos que se seguiram ao restabelecimento, ela foi sistematicamente desafortunada. Houve desventuras em sua família, perdas financeiras e, à medida que ficava mais velha, via desvanecer-se toda esperança de felicidade no amor e casamento. Mas a ex-inválida resistiu a tudo isso valentemente e constituiu um apoio para a família, nos tempos difíceis. Não consigo recordar se foi doze ou catorze anos após o fim de sua análise que, devido a hemorragias profusas, ela foi obrigada a submeter-se a um exame ginecológico. Encontrou-se um mioma, o que tornava aconselhável uma histerectomia completa. A partir da ocasião dessa operação, a mulher mais uma vez caiu doente. Enamorou-se de seu cirurgião, afundou-se em fantasias masoquistas sobre as temíveis alterações dentro de si — fantasias com que ocultava seu romance — e mostrou-se inacessível a uma nova tentativa de análise. Ela permaneceu anormal até o fim da vida. O tratamento analítico bem-sucedido realizara-se há tanto tempo, que não podíamos esperar muito dele; ele se processara nos primeiros anos de meu trabalho como analista. Indubitavelmente, a segunda moléstia da paciente pode ter-se originado da mesma fonte que a primeira, que fora superada com êxito: pode ter sido uma manifestação diferente dos mesmos impulsos reprimidos, que só incompletamente solucionara. Mas estou inclinado a pensar que, não fosse pelo novo trauma, não teria havido nova irrupção da neurose.

Esses dois exemplos, intencionalmente selecionados dentre um grande número de outros semelhantes, bastarão para iniciar um exame dos tópicos que estamos considerando. Os céticos, os otimistas e os ambiciosos assumirão, quanto a eles, pontos de vista inteiramente diferentes. Os primeiros dirão que está provado agora que mesmo um tratamento analítico bem-sucedido não protege o paciente, que numa determinada ocasião foi curado, de cair doente mais tarde de outra neurose — ou, na verdade, de uma neurose derivada da mesma raiz instintual —, o que equivale a dizer, de uma recorrência de seu antigo problema. Os outros considerarão que isso não está provado. Objetarão que os dois exemplos datam dos primeiros dias da análise, vinte e trinta anos atrás, respectivamente, e que, desde então, adquirimos uma compreensão interna (insight) mais profunda e um conhecimento mais amplo, e que nossa técnica se modificou de acordo com nossas novas descobertas. Hoje, dirão eles, podemos exigir e esperar que uma cura analítica se mostre permanente, ou, pelo menos, caso um paciente caia doente de novo, que sua nova doença não mostre ser uma revivificação de seu primeiro distúrbio instintual a manifestar-se sob novas formas. Nossa experiência,sustentarão, não nos obriga a restringir tão materialmente as exigências que podem ser feitas a nosso método terapêutico.

Minha razão para escolher esses dois exemplos, é natural, foi precisamente o fato de que eles residiam tão atrás no passado. É óbvio que quanto mais recente foi o desfecho bem-sucedido de uma análise, menos utilizável será ele para nosso debate, visto que não dispomos de meios para predizer qual será a história posterior do restabelecimento. As expectativas dos otimistas pressupõem claramente uma série de coisas que não são precisamente auto-evidentes. Presume, de início, que há realmente uma possibilidade de livrar-se de um conflito instintual (ou, de modo mais correto, de um conflito entre o ego e um instinto) definitivamente e para todo o sempre; em segundo, que, enquanto estamos tratando alguém por causa de determinado conflito instintual, podemos, por assim dizer, vaciná-lo contra a possibilidade de quaisquer outro conflitos desse tipo; e, em terceiro, que temos o poder, para fins de profilaxia, de despertar um conflito patogênico dessa espécie que não se está revelando, na ocasião, por nenhuma indicação, e que é aconselhável fazê-lo. Lanço essas questões sem me propor respondê-las agora. Talvez atualmente de modo algum seja possível dar-lhes qualquer resposta certa.

Talvez se possa lançar alguma luz sobre elas mediante considerações teóricas. Mas outro ponto já se tornou claro: se quisermos atender às exigências mais rigorosas feitas à terapia analítica, nossa estrada não nos conduzirá a um abreviamento de sua duração, nem passará por ele.

 

III

 Uma experiência analítica que agora se estende por diversas décadas, e uma modificação que se efetuou na natureza e no modo de minha atividade incentivaram-me a tentar responder as questões que se nos apresentam. Em dias passados, tratei um número bastante grande de pacientes, os quais, como era natural, desejavam ser tratados tão rapidamente quanto possível. Nos últimos anos, dediquei-me principalmente a análises didáticas; no entanto, um número relativamente pequeno de casos graves de doença permaneceu comigo para tratamento contínuo, interrompido, embora, por intervalos mais breves. Com eles, o objetivo terapêutico já não era o mesmo. Não se tratava mais de abreviar o tratamento; o intuito era, radicalmente, o de exaurir as possibilidades de doença neles e ocasionar uma alteração profunda de sua personalidade.

Dos três fatores que reconhecemos como sendo decisivos para o sucesso ou não do tratamento analítico — a influência dos traumas, a força constitucional dos instintos e as alterações do ego —, o que nos interessa aqui é apenas o segundo, a força dos instintos. Um instante de reflexão levanta uma dúvida quanto a saber se o uso restritivo do adjetivo ‘constitucional’ (ou ‘congênito’) é essencial. Por verdadeiro que possa ser que o fator constitucional seja de importância decisiva desde o próprio início, é concebível que um reforço instintual que chegue tarde na vida possa produzir os mesmos efeitos. Se assim for, teremos de modificar nossa fórmula e dizer ‘a força dos instintos na ocasião‘, em vez de ‘a força constitucional dos instintos’. A primeira de nossas questões,ver em [[1]],foi: ‘É possível, mediante a terapia analítica, livrar-se de um conflito entre um instinto e o ego, ou de uma exigência instintual patogênica ao ego, de modo permanente e definitivo?’ Para evitar a má compreensão é necessário, talvez, explicar mais exatamente o que se quer dizer por ‘livrar-se permanentemente de uma exigência instintual’. Certamente não é ‘fazer-se com que a exigência desapareça, de modo que nada mais se ouça dela novamente’. Isso em geral é impossível, e tampouco, de modo algum, é de se desejar. Queremos dizer outra coisa, algo que pode ser grosseiramente descrito como um ‘amansamento’ do instinto. Isso equivale a dizer que o instinto é colocado completamente emharmonia com o ego, torna-se acessível a todas as influências das outras tendências neste último e não mais busca seguir seu independente caminho para a satisfação. Se nos perguntarem por quais métodos e meios esse resultado é alcançado, não será fácil achar uma resposta. Podemos apenas dizer: ‘So muss denn doch die Hexe dran!’ — a Metapsicologia da Feiticeira. Sem especulação e teorização metapsicológica — quase disse ‘fantasiar’ —, não daremos outro passo à frente. Infelizmente, aqui como alhures, o que a Feiticeira nos revela não é muito claro nem muito minucioso. Temos apenas uma única pista para começar — embora seja uma pista do mais alto valor —, a saber, a antítese entre o processo primário e o secundário, e é para essa antítese que me voltarei neste ponto.

Se agora retomarmos nossa primeira questão, descobriremos que nossa nova linha de abordagem nos conduz inevitavelmente a uma conclusão específica. A questão era a de saber se é possível livrar-se de modo permanente e definitivo de um conflito instintual — isto é, ‘amansar’ desse modo uma exigência instintual. Formulada nesses termos, a questão não faz menção alguma à força do instinto, mas é precisamente disso que o resultado depende. Partamos da presunção de que aquilo que a análise realiza para os neuróticos nada mais é do que aquilo que as pessoas normais ocasionam para si próprias sem o auxílio dela. A experiência cotidiana, contudo, nos ensina que, numa pessoa normal, qualquer solução de um conflito instintual só é válida para uma força específica de instinto, ou, mais corretamente, só para uma relação específica entre a força do instinto e a força do ego. Se a força deste diminui, quer pela doença, quer pela exaustão, ou por alguma causa semelhante, todos os instintos, que até então haviam sido amansados com êxito, podem renovar suas exigências e esforçar-se por obter satisfações substitutivas através de maneiras anormais. Uma prova irrefutável dessa afirmação é fornecida pornossos sonhos noturnos; eles reagem à atitude de sono assumida pelo ego com um despertar das exigências instintuais.

O material do outro lado [a força dos instintos] é igualmente sem ambigüidade. Duas vezes no curso do desenvolvimento individual certos instintos são consideravelmente reforçados: na puberdade e, nas mulheres, na menopausa. De modo algum ficamos surpresos se uma pessoa, que antes não era neurótica, assim se torna nessas ocasiões. Quando seus instintos não eram tão fortes, ela teve sucesso em amansá-los, mas quando são reforçados, não mais pode fazê-lo. As repressões comportam-se como represas contra a pressão da água. Os mesmos efeitos produzidos por esses dois reforços fisiológicos do instinto podem ser ocasionados, de maneira irregular, por causas acidentais em qualquer outro período da vida. Tais reforços podem ser estabelecidos por novos traumas, frustrações forçadas ou a influência colateral e mútua dos instintos. O resultado é sempre o mesmo, e ele salienta o poder irresistível do fator quantitativo na causação da doença.

Sinto-me como se devesse estar envergonhado de tão poderosa exposição, ao ver que tudo o que disse há muito tempo é conhecido e auto-evidente. É fato que sempre nos comportamos como se soubéssemos de tudo isso, mas, em sua maioria, nossos conceitos teóricos negligenciaram dar à linha econômica de abordagem a mesma importância que concederam às linhas dinâmica e topográfica. Minha desculpa, portanto, é a de que estou chamando a atenção para essa negligência.

Antes, porém, de decidirmos sobre a resposta a essa questão, temos de considerar uma objeção cuja força reside no fato de estarmos provavelmente predispostos em seu favor. Nossos argumentos, dir-se-á, são todos deduzidos a partir dos processos que se efetuam espontaneamente entre o ego e os instintos, e pressupõem que a terapia analítica nada pode realizar que, sob condições favoráveis e normais, não ocorra por si. Mas será isso realmente assim? Não é precisamente a reivindicação de nossa teoria o fato de que a análise produz um estado que nunca surge espontaneamente no ego e que esse estado recentemente criado constitui a diferença essencial entre uma pessoa que foi analisada e outra que não o foi? Mantenhamos em mente aquilo em que se baseia essa reivindicação. Todas as repressões se efetuam na primeira infância; são medidas primitivas de defesa, tomadas pelo ego imaturo, débil. Nos anos posteriores, não são levadas a cabo novas repressões, mas as antigas persistem, e seus serviços continuam a ser utilizados pelo ego para o domínio dos instintos. Livramo-nos de novos conflitos através daquilo que chamamos de ‘repressão ulterior’. Podemos aplicar a essas repressões infantis nossa afirmação geral de que as repressões dependem absoluta e inteiramente do poder relativo das forças envolvidas, e que elas não se podem manter contra um aumento na força dos instintos. A análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a empreender uma revisão dessas antigas repressões; algumas são demolidas, ao passo que outras são identificadas, mas construídas de novo, a partir de material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é bastante diferente do das anteriores; podemos confiar em que não cederão facilmente ante uma maré ascendente da força instintual. Dessa maneira, a façanha real da terapia analítica seria a subseqüente correção do processo original de repressão, correção que põe fim à dominância do fator quantitativo.

Até aqui vem nossa teoria, que não podemos abandonar, exceto sob uma compulsão irresistível. E o que tem nossa experiência a dizer sobre isso? Talvez ainda não seja suficientemente ampla para que cheguemos a uma conclusão firmada. Ela confirma nossas expectativas com bastante freqüência, mas não sempre. Tem-se a impressão de que não se deve ficar surpreso se, ao final, ela mostrar que a diferença entre uma pessoa que não foi analisada e o comportamento de uma pessoa após tê-lo sido não é tão radical como visamos a torná-lo, e como esperamos e sustentamos que seja. Se assim for, isso significará que a análise às vezes tem êxito em eliminar a influência de um aumento no instinto, mas não invariavelmente, ou que o efeito da análise se limita a aumentar o poder de resistência das inibições, de maneira que se mostram à altura de exigências muito maiores do que antes da análise ou se nenhuma análise se tivesse efetuado. Realmente não posso comprometer-me com uma decisão sobre esse ponto, nem tampouco sei se atualmente é possível uma decisão.

Existe, contudo, outro ângulo a partir do qual podemos abordar o problema da variabilidade no efeito da análise. Sabemos que o primeiro passo no sentido de chegar ao domínio intelectual de nosso meio ambienteé descobrir generalizações, regras e leis que tragam ordem ao caos. Fazendo isso, simplificamos o mundo dos fenômenos, mas não podemos evitar falsificá-lo, especialmente se estivermos lidando com processos de desenvolvimento e mudança. Estamos interessados em discernir uma alteração qualitativa e, via de regra, assim procedendo, negligenciamos, inicialmente pelo menos, um fator quantitativo. No mundo real, as transições e estágios intermediários são muito mais comuns do que estados opostos nitidamente diferenciados. Ao estudar desenvolvimentos e mudanças, dirigimos nossa atenção unicamente para o resultado; desprezamos prontamente o fato de que tais processos são geralmente mais ou menos incompletos, o que equivale a dizer que são, de fato, apenas alterações parciais. Um arguto satirista da antiga Áustria, Johann Nestroy disse certa vez: ‘todo passo à frente tem somente a metade do tamanho que parece ter a princípio.’ É tentador atribuir uma validade bastante geral a esse ditado malicioso. Há quase sempre fenômenos residuais, uma pendência parcial. Quando um mecenas generoso nos surpreende com algum traço isolado de avareza, ou quando uma pessoa que é sistematicamente muito bondosa súbito se permite uma ação hostil, tais ‘fenômenos residuais’ são valiosos para a pesquisa genética. Eles nos mostram que essas louváveis e preciosas qualidades baseiam-se na compensação e na supercompensação, as quais, como era de esperar, não foram absoluta e completamente bem-sucedidas. Nossa primeira descrição do desenvolvimento da libido foi a de que uma fase oral original cedia caminho a uma fase anal-sádica e que esta, por sua vez, era sucedida por uma fase fálico-genital. A pesquisa posterior não contradisse essa opinião, mas corrigiu-a acrescentando que essas substituições não se realizam de modo repentino, mas gradativamente, de maneira que partes da organização anterior sempre persistem lado a lado da mais recente, e que mesmo no desenvolvimento normal a transformação nunca é completa e resíduos de fixações libidinais anteriores ainda podem ser mantidos na configuração final. O mesmo pode ser visto em muitos outros campos. De todas as errôneas e supersticiosas crenças da humanidade que foram supostamente superadas não existe uma só cujos resíduos não perdurem hoje entre nós, nos estratos inferiores dos povos civilizados ou mesmo nos mais elevados estratos da sociedade cultural. O que um dia veio à vida, aferra-setenazmente à existência. Fica-se às vezes inclinado a duvidar se os dragões dos dias primevos estão realmente extintos.

Aplicando essas observações a nosso presente problema, penso que a resposta à questão de como explicar os resultados variáveis de nossa terapia analítica, bem poderia ser a de que nós também, esforçando-nos por substituir repressões, que são inseguras, por controles egossintônicos dignos de confiança, nem sempre alcançamos nosso objetivo em toda a sua extensão — isto é, não o alcançamos de modo bastante completo. A transformação é conseguida, mas, com freqüência, apenas parcialmente: partes dos antigos mecanismos permanecem intocada pelo trabalho da análise. É difícil provar que isso é realmente assim, pois não temos outra maneira de ajuizar o que acontece, exceto pelo resultado que estamos tentando explicar. Não obstante, as impressões que se recebem durante o trabalho de análise não contradizem essa pressuposição; na verdade, parecem antes confirmá-la. Contudo não devemos tomar a clareza de nossa própria compreensão interna (insight) como medida da convicção que produzimos no paciente. Seria possível dizer que à convicção dele pode faltar ‘profundidade’; trata-se sempre de uma questão do fator quantitativo, que é tão facilmente desprezado. Se essa for a resposta correta à nossa questão, podemos dizer que a análise, ao reivindicar a cura das neuroses assegurando o controle sobre o instinto, está sempre correta na teoria, mas nem sempre na prática, e isso porque ela nem sempre obtém êxito em garantir, em grau suficiente, as fundações sobre as quais um controle do instinto se baseia. É fácil descobrir a causa de tal fracasso parcial. No passado, o fator quantitativo da força instintual opôs-se aos esforços defensivos do ego; por essa razão, convocamos o auxílio do trabalho da análise. Agora, o mesmo fator estabelece um limite à eficácia desse novo esforço. Se a força do instinto é excessiva, o ego maduro, apoiado pela análise, fracassa em sua missão, tal como o ego desamparado anteriormente fracassara. Seu controle sobre o instinto é melhorado, mas permanece imperfeito porque a transformação no mecanismo defensivo é apenas incompleta. Nada há de surpreendente nisso, visto que o poder dos instrumentos com que a análise opera não é ilimitado mas restrito, e o resultado final depende sempre da força relativa dos agentes psíquicos que estão lutando entre si.

Sem dúvida, é desejável abreviar a duração do tratamento analítico, mas só podemos conseguir nosso intuito terapêutico aumentando o poder da análise em vir em assistência do ego. A influência hipnótica pareceu ser um instrumento excelente para nossos fins, mas as razões por que tivemos deabandoná-la são bem conhecidas. Ainda não foi encontrado substituto algum para a hipnose. Desse ponto de vista, podemos compreender como um mestre da análise como Ferenczi veio a dedicar os últimos anos de sua vida a experimentos terapêuticos, os quais, infelizmente, se mostraram vãos.

 

IV

As duas outras questões — se, enquanto estamos tratando determinado conflito instintual, podemos proteger o paciente de futuros conflitos e se é viável e conveniente, para fins profiláticos, despertar um conflito que não está manifesto na ocasião — devem ser tratadas em conjunto, pois obviamente a primeira tarefa só pode ser levada a cabo na medida em que a segunda o é — ou seja, na medida em que um possível conflito futuro se transforma em conflito concreto e atual, ao qual a influência é então aplicada. Essa nova maneira de enunciar o problema é, no fundo, apenas uma ampliação da anterior. Ao passo que, no primeiro caso, estivemos considerando como nos resguardarmos contra um retorno do mesmo conflito, estamos agora considerando como nos resguardarmos contra sua possível substituição por outro conflito. Isso soa como uma proposição muito ambiciosa, mas tudo o que estamos tentando fazer é tornar claros quais os limites estabelecidos à eficácia da terapia analítica.

Por muito que nossa ambição terapêutica possa ficar tentada a empreender tais tarefas, a experiência rejeita categoricamente a noção. Se um conflito instintual não está presentemente ativo, se não está manifestando-se, não podemos influenciá-lo, mesmo pela análise. A advertência de que deixemos repousar os cães a dormir, que com tanta freqüência ouvimos em relação a nossos esforços por explorar o submundo psíquico, é peculiarmente despropositada quando aplicada às condições da vida mental, pois, se os instintos estão provocando distúrbios, isso é prova de que os cães não estão dormindo, e, se eles realmente parecem estar adormecidos, não está em nosso poder despertá-los. Essa última afirmação, contudo, não parece ser inteiramente exata e exige um debate mais pormenorizado. Consideremos quais os meios que temos à nossa disposição para transformar um conflito instintual que é, no momento, latente, num outro presentemente ativo. Obviamente, só podemos fazer duas coisas. Podemos ocasionar situações em que o conflito se torna presentemente ativo, ou podemos contentar-nos em debatê-lo na análise e apontar a possibilidade de ele despertar. A primeira dessas duas alternativas pode ser levada a cabo por duas maneiras: na realidade ou na transferência, em qualquer dos casos expondo o paciente a certa quantidade de sofrimento real, mediante a frustração e o represamento da libido. Ora, é verdade que já fazemos uso de uma técnica desse tipo em nosso procedimento analítico comum, pois qual, de outra maneira, seria o significado da regra segundo a quala análise deve ser levada a cabo ‘num estado de frustração’? Mas essa é uma técnica que utilizamos ao tratar um conflito que já é presentemente ativo. Procuramos levar esse conflito a um ponto culminante, desenvolvê-lo até seu tom mais alto, a fim de aumentar a força instintual disponível para sua solução. A experiência analítica ensinou-nos que o melhor é sempre inimigo do bom e que, em todas as fases do restabelecimento do paciente, temos de lutar contra sua inércia, que está pronta a se contentar com uma solução incompleta.

Se, contudo, aquilo a que estivermos visando é o tratamento profilático de conflitos instintuais que não estão presentemente ativos, mas são meramente potenciais, não será suficiente regular sofrimentos que já se acham presentes no paciente e que ele não pode evitar. Teríamos de decidir provocar-lhe novos sofrimentos, e isso, até aqui, muito corretamente, deixamos ao destino. Receberíamos admonições de todos os lados contra a presunção de emular o destino, no que sujeitássemos pobres criaturas humanas a experimentos tão cruéis. E que tipo de experimentos seriam eles? Poderíamos, para fins de profilaxia, assumir a responsabilidade de destruir um casamento satisfatório, ou fazer com que um paciente abandone um cargo do qual depende sua subsistência? Afortunadamente, nunca nos encontramos na posição de ter de considerar se tais intervenções na vida real do paciente são justificadas; não possuímos os plenos poderes que elas teriam tornado necessários, e o objeto de nosso experimento terapêutico certamente se recusaria a cooperar com isso. Na prática, então, tal procedimento está virtualmente excluído, mas existem, além disso, objeções teóricas a ele, pois o trabalho de análise progride melhor se as experiências patogênicas do paciente pertencem ao passado, de modo que seu ego possa situar-se a certa distância delas. Em estados de crise aguda, a análise é, para todos os fins e intuitos, inutilizável. Todo o interesse do ego é tomado pela realidade penosa, e ele se retrai da análise que está tentando ir além da superfície e revelar as influências do passado. Assim, criar um novo conflito só tornaria o trabalho de análise mais prolongado e mais difícil.

Objetar-se-á que essas observações são inteiramente desnecessárias. Ninguém pensa em, propositadamente, conjurar novas situações de sofrimento, a fim de tornar possível a um conflito instintual latente ser tratado. Comofaçanha profilática, não haveria muito, em relação a isso, de que se gabar. Sabemos, por exemplo, que um paciente que se restabeleceu de escarlatina está imune a um retorno da mesma doença; no entanto, jamais ocorre a um médico pegar uma pessoa sadia que tem possibilidades de adoecer de escarlatina e infectá-la com esta, a fim de torná-la imune à mesma. A medida protetora não deve produzir a mesma situação de perigo que é produzida pela própria doença, mas apenas algo muito mais leve, como é o caso com a vacina contra a varíola e muitos outros procedimentos semelhantes. Na profilaxia analítica contra conflitos instintuais, portanto, os únicos métodos que entram em consideração são os outros dois que mencionamos: a produção artificial de novos conflitos na transferência (conflitos a que, afinal de contas, falta o caráter de realidade) e o despertar de tais conflitos na imaginação do paciente, falando-lhe sobre eles e tornando-o familiarizado com sua possibilidade.

Não sei se podemos asseverar que o primeiro desses dois procedimentos mais brandos está inteiramente excluído na análise. Nenhuma experiência foi feita especificamente nessa direção. Mas sugerem-se logo as dificuldades, as quais não lançam uma luz muito promissora sobre tal empreendimento. Em primeiro lugar, a escolha de tais situações para a transferência é muito limitada. Os pacientes não podem, eles próprios, trazer todos os seus conflitos para a transferência, nem tampouco está o analista capacitado a invocar todos os possíveis conflitos instintuais deles, a partir da situação transferencial. Ele pode torná-los ciumentos ou fazê-los experimentar desapontamentos no amor, mas não se exige nenhum intuito técnico para ocasionar isso. Seja como for, tais coisas acontecem por si mesmas na maioria das análises. Em segundo lugar, não devemos desprezar o fato de que todas as medidas desse tipo obrigariam o analista a se comportar de maneira inamistosa para com o paciente, e isso teria um efeito prejudicial sobre a atitude afetuosa — sobre a transferência positiva — que é o motivo mais forte para o paciente participar do trabalho conjunto da análise. Assim, de modo algum devemos esperar muito desse procedimento.

Isso, portanto, deixa-nos aberto apenas um método: aquele que, com toda probabilidade, foi o único originalmente considerado. Falamos ao paciente sobre as possibilidades de outros conflitos instintuais e despertamos sua expectativa de que tais conflitos possam ocorrer nele. O que esperamos é que essa informação e essa advertência tenham o efeito de ativar nele um dos conflitos que indicamos, em grau modesto, mas suficiente para o tratamento. Dessa vez, porém, a experiência não fala com voz incerta. O resultado esperado não ocorre. O paciente escuta nossa mensagem, mas não há reação. Pode pensar consigo: ‘É muito interessante, mas não sinto traço algum disso.’Aumentamos seu conhecimento, mas nada mais alteramos nele. A situação é muito semelhante à que acontece quando as pessoas lêem trabalhos psicanalíticos. O leitor é ‘estimulado’ apenas por aquelas passagens que sente se aplicarem a si próprio — isto é, que interessam a conflitos que estão ativos nele na ocasião. Tudo o mais o deixa frio. Podemos ter experiências análogas, creio, quando fornecemos às crianças esclarecimentos sexuais. Estou longe de sustentar que isso é prejudicial ou desnecessário, mas é claro que o efeito profilático dessa medida liberal tem sido grandemente superestimado. Após tais esclarecimentos, as crianças sabem algo que não conheciam antes, mas não fazem uso do novo conhecimento que lhes foi presenteado. Viemos a perceber que sequer têm grande pressa de sacrificar, a esse novo conhecimento, as teorias sexuais que poderiam ser descritas como um crescimento natural e que elas construíram em harmonia com sua organização libidinal imperfeita, e na dependência desta — teorias sobre o papel desempenhado pela cegonha, sobre a natureza da relação sexual e sobre o modo como os bebês são feitos. Por longo tempo após receberem esclarecimentos sexuais, elas se comportam como as raças primitivas que tiveram o cristianismo enfiado nelas, mas que continuam a adorar em segredo seus antigos ídolos.

 

V

Partimos da questão de saber como podemos abreviar a duração inconvenientemente longa do tratamento analítico e, ainda com essa questão em mente, passamos a considerar se é possível conseguir uma cura permanente ou mesmo impedir uma doença futura através do tratamento profilático. Assim procedendo, descobrimos que os fatores decisivos para o sucesso de nossos esforços terapêuticos foram a influência da etiologia traumática, a força relativa dos instintos que têm de ser controlados, e algo que denominamos de alteração do ego. [Ver em [1]]Apenas o segundo desses fatores foi pormenorizadamente examinado por nós, e, em conexão com ele, tivemos ocasião de reconhecer a importância suprema do fator quantitativo e de acentuar a reivindicação da linha de abordagem metapsicológica a ser levada em consideração em qualquer tentativa de explicação.

Quanto ao terceiro fator, a alteração do ego, ainda não dissemos nada. Quando voltamos nossa atenção para ele, a primeira impressão que recebemos é a de que há muito a perguntar e muito a responder aqui, e a de que o que temos a dizer sobre ele mostrará ser bastante inadequado. Essa primeira impressão é confirmada quando ingressamos no problema. Como é bem sabido, a situação analítica consiste em nos aliarmos com o ego da pessoa em tratamento, a fim de submeter partes de seu id que não estão controladas, o que equivale a dizer, incluí-las na síntese de seu ego. O fato de uma cooperação desse tipo habitualmente fracassar no caso dos psicóticos, nos fornece uma primeira base sólida para nosso julgamento. O ego, se com ele quisermos poder efetuar um pacto desse tipo, deve ser um ego normal. Mas um ego normal dessa espécie é, como a normalidade em geral, uma ficção ideal. O ego anormal, inútil para nossos fins, infelizmente não é ficção. Na verdade, toda pessoa normal é apenas normal na média. Seu ego aproxima-se do ego do psicótico num lugar ou noutro e em maior ou menor extensão, e o grau de seu afastamento de determinada extremidade da série e de sua proximidade da outra nos fornecerá uma medida provisória daquilo que tão indefinidamente denominamos de ‘alteração do ego’.

Se perguntarmos qual a fonte da grande variedade de tipos e graus de alteração do ego, não poderemos fugir à primeira alternativa óbvia, ou seja, a de que tais alterações são congênitas ou adquiridas. Desta, o segundo tipo seria o mais fácil de tratar. Se forem alterações adquiridas, isso certamente terá acontecido no decurso do desenvolvimento, a partir dos primeiros anos de vida, pois o ego tem de tentar, desde o próprio início, desempenhar sua tarefa de mediar entre seu id e o mundo externo, a serviço do princípio deprazer, e de proteger o id contra os perigos do mundo externo. Se, no decurso desses esforços, o ego aprende a adotar uma atitude defensiva também para com seu próprio id, e a tratar as exigências instintuais deste último como perigos externos, isso acontece, pelo menos em parte, porque ele compreende que uma satisfação do instinto conduziria a conflitos com o mundo externo. Posteriormente, sob a influência da educação, o ego se acostuma a remover a cena da luta de fora para dentro e a dominar o perigo interno antes que se tenha tornado externo, e, provavelmente, com mais freqüência, tem razão em assim proceder. Durante essa luta em duas frentes — posteriormente haverá também uma terceira frente —, o ego faz uso de diversos procedimentos para desempenhar sua tarefa, que, para exprimi-la em termos gerais, consiste em evitar o perigo, a ansiedade e o desprazer. Chamamos esses procedimentos de ‘mecanismos de defesa‘. Nosso conhecimento deles ainda não é suficientemente completo. O livro de Anna Freud (1936) forneceu-nos uma primeira compreensão interna (insight) de sua multiplicidade e significação multilateral.

Foi a partir de um desses mecanismos, a repressão, que o estudo dos processos neuróticos se iniciou. Nunca houve qualquer dúvida de que a repressão não era o único procedimento que o ego podia empregar para seus intuitos. Não obstante, a repressão é algo bastante peculiar, sendo mais nitidamente diferenciada dos outros mecanismos do que estes o são entre si. Gostaria de tornar clara essa relação com os outros mecanismos através de uma analogia, embora saiba que, nestes assuntos, as analogias nunca nos levam muito longe. Imaginemos o que poderia ter acontecido a um livro, numa época em que os livros ainda não eram impressos em edições, mas redigidos individualmente. Suponhamos que um livro desse tipo contivesse afirmações que, em épocas posteriores, fossem consideradas indesejáveis — tal como, por exemplo, segundo Robert Eisler (1929), os escritos de Flávio Josefo devem ter contido passagens sobre Jesus Cristo que foram ofensivas ao cristianismo posterior. Nos dias de hoje, o único mecanismo defensivo de que a censura oficial poderia valer-se seria o de confiscar e destruir todos os exemplares da edição inteira. Naquela época, contudo, diversos métodos eram utilizados para tornar inócuo o livro. Uma das maneiras seria riscar cerradamente as passagens ofensivas, de modo a ficarem ilegíveis. Nesse caso, elas não poderiam ser transcritas, e o copista seguinte do livro produziria um texto inatacável, mas com lacunas em certas passagens, e, assim,nestas ele poderia ser ininteligível. Outra maneira, contudo, se as autoridades não se satisfizessem com isso, mas desejassem ocultar também qualquer indicação de que o texto fora mutilado, seria, para elas, passar a deformar o texto. Palavras isoladas seriam deixadas de fora ou substituídas por outras, e novas frases seriam interpoladas. Melhor do que tudo, toda a passagem seria apagada e colocadas em seu lugar outras novas dizendo exatamente o oposto. O transcritor seguinte poderia então produzir um texto que não despertaria suspeita, mas que seria falsificado. Ele não mais conteria o que o autor desejara dizer, no sentido da verdade.

Se a analogia não é perseguida estritamente demais, podemos dizer que a repressão tem com os outros métodos de defesa a mesma relação que a omissão tem com a deformação do texto, e podemos descobrir, nas diferentes formas dessa falsificação, paralelos com a variedade de maneiras pelas quais o ego é alterado. Pode-se tentar levantar a objeção de que a analogia erra num ponto essencial, pois a deformação de um texto é obra de uma censura tendenciosa, da qual nenhuma contrapartida se pode encontrar no desenvolvimento do ego. Mas não é assim, pois um intuito tendencioso desse tipo é, em grande grau, representado pela força compelativa do princípio de prazer. O aparelho psíquico não tolera o desprazer; tem de desviá-lo a todo custo, e se a percepção da realidade acarreta desprazer, essa percepção — isto é, a verdade — deve ser sacrificada. No que se refere a perigos externos, o indivíduo pode ajudar-se durante algum tempo através da fuga e evitando a situação de perigo, até ficar suficientemente forte, mais tarde, para afastar a ameaça alterando ativamente a realidade. Mas não é possível fugir de si próprio; a fuga não constitui auxílio contra perigos internos. E, por essa razão, os mecanismos defensivos do ego estão condenados a falsificar nossa percepção interna e a nos dar somente uma representação imperfeita e deformada de nosso próprio id. Em suas relações com o id, portanto, o ego é paralisado por suas restrições ou cegado por seus erros, e o resultado disso, na esfera dos eventos psíquicos, só pode ser comparado a caminhar num país que não se conhece, sem dispor de um bom par de pernas.

Os mecanismos de defesa servem ao propósito de manter afastados os perigos. Não se pode discutir que são bem-sucedidos nisso, e é de duvidar que o ego pudesse passar inteiramente sem esses mecanismos durante seu desenvolvimento. Mas é certo também que eles próprios podem transformar-se em perigos. Às vezes, se vê que o ego pagou um preço alto demais pelos serviços que eles lhe prestam. O dispêndio dinâmico necessário para mantê-los, e as restrições do ego que quase invariavelmente acarretam, mostram ser um pesado ônus sobre a economia psíquica. Ademais, esses mecanismos nãosão abandonados após terem assistido o ego durante os anos difíceis de seu desenvolvimento. Nenhum indivíduo, naturalmente, faz uso de todos os mecanismos de defesa possíveis. Cada pessoa não utiliza mais do que uma seleção deles, mas estes se fixam em seu ego. Tornam-se modalidades regulares de reação de seu caráter, as quais são repetidas durante toda a vida, sempre que ocorre uma situação semelhante à original. Isso os transforma em infantilismos, e partilham da sorte de tantas instituições que tentam manter-se em existência depois que a época de sua utilidade passou. ‘Vernunft wird Unsinn, Wohltat Plage’, como se queixa o poeta. O ego do adulto, com sua força aumentada, continua a se defender contra perigos que não mais existem na realidade; na verdade, vê-se compelido a buscar na realidade as situações que possam servir como substituto aproximado ao perigo original, de modo a poder justificar, em relação àquelas, o fato de ele manter suas modalidades habituais de reação. Assim, podemos facilmente entender como os mecanismos defensivos, por ocasionarem uma alienação cada vez mais ampla quanto ao mundo externo e um permanente enfraquecimento do ego, preparam o caminho para o desencadeamento da neurose e o incentivam.

No momento, contudo, não estamos interessados no papel patogênico dos mecanismos defensivos. O que estamos tentando descobrir é qual a influência que a alteração do ego a eles correspondente tem sobre nossos esforços terapêuticos. O material para a resposta a essa pergunta é fornecido no volume a que já me referi, da autoria de Anna Freud. O ponto essencial é que o paciente repete essas modalidades de reação também durante o trabalho de análise, que as produz diante de nossos olhos, por assim dizer. Na verdade, é apenas dessa maneira que chegamos a conhecê-las. Isso não significa que tornem impossível a análise. Pelo contrário, constituem a metade de nossa tarefa analítica. A outra metade, aquela que a análise primeiro enfrentou em seus dias iniciais, é a revelação do que está escondido no id. Durante o tratamento, nosso trabalho terapêutico está constantemente oscilando para trás e para frente, como um pêndulo, entre um fragmento de análise do id e um fragmento de análise do ego. Num dos casos, desejamos tornar consciente algo do id; no outro, queremos corrigir algo no ego. A dificuldade da questão é que os mecanismos defensivos dirigidos contra um perigo anterior reaparecem no tratamento como resistências contra o restabelecimento. Disso decorre que o ego trata o próprio restabelecimento como um novo perigo.O efeito terapêutico depende de tornar consciente o que está reprimido (no sentido mais amplo da palavra) no id. Preparamos o caminho para essa conscientização mediante interpretações e construções, mas interpretamos apenas para nós próprios, não para o paciente, enquanto o ego se apega a suas defesas primitivas e não abandona suas resistências. Ora, essas resistências, embora pertençam ao ego, são inconscientes e, em certo sentido, isoladas dentro do ego. O analista as identifica mais facilmente do que o faz com o material oculto no id. Poder-se-ia supor que seria suficiente tratá-las como partes do id e, tornando-as conscientes, colocá-las em conexão com o restante do ego. Dessa maneira, suporíamos, metade da tarefa da análise estaria realizada; não devemos contar com enfrentar uma resistência contra a revelação das resistências. Contudo, o que acontece é isso. Durante o trabalho sobre as resistências, o ego se retrai — com maior ou menor grau de seriedade — do acordo em que a situação analítica se funda. Ele deixa de apoiar nossos esforços para revelar o id; opõe-se a eles, desobedece a regra fundamental da análise e não permite que surjam novos derivados do reprimido. Não podemos esperar que o paciente possua uma forte convicção do poder curativo da análise. Pode ter trazido consigo uma certa confiança em seu analista, que será fortalecida até um ponto eficaz pelos fatores de transferência positiva que nele serão despertados. Sob a influência dos impulsos desprazerosos que sente em resultado da nova ativação de seus conflitos defensivos, as transferências negativas podem agora levar a melhor e anular completamente a situação analítica. O paciente agora encara o analista como não mais do que um estranho que lhe está fazendo exigências desagradáveis, e comporta-se para com ele exatamente como uma criança que não gosta do estranho e não acredita em nada do que este diz. Se o analista tenta explicar ao paciente uma das deformações por este efetuadas para fins de defesa, e corrigi-la, encontra-o incompreensivo e inacessível a argumentos bem fundados. Assim, percebemos que há uma resistência contra a revelação das resistências e que os mecanismos defensivos realmente merecem o nome que lhe demos originalmente, antes de terem sido examinados mais de perto. Constituem resistências não apenas à conscientização dos conteúdos do id, mas também à análise como um todo, e, assim, ao restabelecimento.

O efeito ocasionado no ego pelas defesas pode ser corretamente descrito como uma ‘alteração do ego’, se por isso entendemos um desvio quanto à ficção de um ego normal, que garantiria lealdade inabalável ao trabalho de análise. É fácil, portanto, aceitar o fato, demonstrado pela experiência cotidiana, de que o resultado de um tratamento analítico depende essencialmente da força e da profundidade da raiz dessas resistências que ocasionam uma alteração do ego. Mais uma vez nos confrontamos com a importância do fator quantitativo e mais uma vez somos lembrados de que a análise só pode valer-se de quantidades de energia definidas e limitadas que têm de ser medidas contra as forças hostis. E aparece como se a vitória, de fato, via de regra esteja do lado dos grandes batalhões.

 

VI

 A questão seguinte a que chegamos é a de saber se toda alteração do ego — em nosso sentido do termo — é adquirida durante as lutas defensivas dos primeiros anos. Não pode haver dúvida sobre a resposta. Não temos razão para discutir a existência e a importância de características distintivas, originais e inatas do ego. Isso é certificado pelo ato singular de que cada pessoa faz uma seleção dos mecanismos possíveis de defesa, de que ela sempre utiliza apenas alguns deles, sempre os mesmos ver em [[1]].Isso pareceria indicar que cada ego está dotado, desde o início, com disposições e tendências individuais, embora seja verdade que não podemos especificar sua natureza ou o que as determina. Ademais, sabemos que não devemos exagerar a diferença existente entre caracteres herdados e adquiridos, transformando-a numa antítese; o que foi adquirido por nossos antepassados decerto forma parte importante do que herdamos. Quando falamos numa ‘herança arcaica’ geralmente estamos pensando apenas no id e parecemos presumir que, no começo da vida do indivíduo, ainda não existe ego algum. Mas não desprezaremos o ato de que id e ego são originalmente um só; tampouco implica qualquer supervalorização mística da hereditariedade acharmos crível que, mesmo antes de o ego surgir, as linhas de desenvolvimento, tendências e reações que posteriormente apresentará, já estão estabelecidas para ele. As peculiaridades psicológicas de famílias, raças e nações, inclusive em sua atitude para com a análise, não permitem outra explicação. Em verdade, mais do que isso: a experiência analítica nos impôs a convicção de que mesmo conteúdos psíquicos específicos, tais como o simbolismo, não possuem outras fontes senão a transmissão hereditária, e pesquisas em diversos campos da antropologia social tornam plausível supor que outros precipitados, igualmente especializados, deixados pelo primitivo desenvolvimento humano, também estão presentes na herança arcaica.

Com o reconhecimento de que as propriedades do ego com que nos defrontamos sob a forma de resistências podem ser tanto determinadas pela hereditariedade, quanto adquiridas em lutas defensivas, a distinção topográfica entre o que é ego e o que é id perde muito de seu valor para nossa investigação. Se avançarmos um passo adiante em nossa experiência analítica, nos depararemos com resistências de outro tipo, que não mais podemos localizar e que parecem depender de condições fundamentais do aparelho mental. Só posso fornecer alguns exemplos desse tipo de resistência; todo o campo de investigação ainda é desconcertantemente estranho e insuficientemente explorado. Deparamo-nos com pessoas, por exemplo, a quem estaríamos inclinados a atribuir uma especial ‘adesividade da libido’ Os processos que o tratamento coloca em movimento nessas pessoas são muito mais lentos do que em outra, porque, aparentemente, elas não podem decidir-se a desligar catexias libidinais de um determinado objeto e deslocá-las para outro, embora não possamos descobrir nenhuma razão especial para essa lealdade catexial. Encontra-se também o tipo oposto de pessoa, em quem a libido parece particularmente móvel; ela ingressa prontamente nas novas catexias sugeridas pela análise, abandonando as anteriores em troca desta. A diferença entre os dois tipos é comparável à sentida por um escultor, conforme ele trabalhe na pedra dura ou no gesso macio. Infelizmente, nesse segundo tipo, os resultados da análise freqüentemente se mostram muito impermanentes; as novas catexias são logo abandonadas de novo, e temos a impressão, não de ter trabalhado em gesso, mas de ter escrito na água. Como diz o provérbio: ‘como vêm, assim vão.’

Em outro grupo de casos, ficamos surpreendidos por uma atitude de nossos pacientes que só pode ser atribuída a um esgotamento da plasticidade, da capacidade de modificação e desenvolvimento ulterior, que comumente esperaríamos encontrar. É verdade que estamos preparados para encontrar na análise uma certa quantidade de inércia psíquica.Quando o trabalho da análise descerrou novos caminhos para um impulso instintual, quase invariavelmente observamos que o impulso não ingressa neles sem uma hesitação acentuada. Chamamos esse comportamento, talvez não muito corretamente, de ‘resistência oriunda do id.’ Com os pacientes que tenho em mente, porém, todos os processos mentais, relacionamentos e distribuições de força são imutáveis, fixos e rígidos. Encontra-se a mesma coisa em pessoas muito idosas, em cujo caso ela é explicada como sendo devida ao que se descreve como força do hábito ou exaustão da receptividade — uma espécie de entropia psíquica. Aqui, no entanto, estamos tratando com pessoas ainda jovens. Nosso conhecimento teórico não parece adequado para fornecer uma explicação correta de tais tipos. Provavelmente, estão relacionadas algumas características temporais — certas alterações de um ritmo de desenvolvimento na vida psíquica que ainda não apreciamos.

Em outro grupo ainda de casos, as características distintivas do ego, que devem ser consideradas como fontes de resistências ao tratamento analítico e obstáculos ao êxito terapêutico, podem originar-se de raízes diferentes e mais profundas. Estamos lidando aqui com as coisas supremas que a pesquisa psicológica pode aprender: o comportamento dos dois instintos primevos, sua distribuição, mistura e defusão — coisas que não podemos imaginar como confinadas a uma única província do aparelho psíquico, ao id, ao ego ou ao superego. Impressão alguma mais forte surge das resistências durante o trabalho de análise do que a de existir uma força que se está defendendo por todos os meios possíveis contra o restabelecimento e que está absolutamente decidida a apegar-se à doença e ao sofrimento. Uma parte dessa força já foi por nós identificada, indubitavelmente com justiça, como sentimento de culpa e necessidade de punição, e foi por nós localizada na relação do ego com o superego. Mas essa é apenas a parte dela que, por assim dizer, está psiquicamente presa pelo superego e assim se torna reconhecível; outras cotas da mesma força, quer presas, quer livres, podem estar em ação em outros lugares não especificados. Se tomarmos em consideração o quadro total formado pelos fenômenos de masoquismo imanentes em tantas pessoas, a reação terapêutica negativa e o sentimento de culpa encontrados em tantos neuróticos, não mais poderemos aderir à crença de que os eventos mentais são governados exclusivamente pelo desejo de prazer. Esses fenômenos constituem indicações inequívocas da presença de um poder na vida mental que chamamos de instinto de agressividade ou de destruição, segundo seus objetivos, e que remontamos ao instinto de morte original da matéria viva. Não se trata de uma antítese entre uma teoria pessimista da vida e outra otimista. Somente pela ação concorrente ou mutuamente oposta dos dois instintos primevos — Eros e o instinto de morte —, e nunca por um ou outro sozinho, podemos explicar a rica multiplicidade dos fenômenos da vida.

Como partes dessas duas classes de instintos se combinam para desempenhar as diversas funções vitais, sob que condições tais combinações se afrouxam ou se rompem, a que distúrbios essas mudanças correspondem e com que sensações a escala perceptual do princípio de prazer a elas responde — são problemas cuja elucidação seria a façanha mais gratificante da pesquisa psicológica. No momento, temos de nos curvar à superioridade das forças contra as quais vemos nossos esforços redundar em nada. Mesmo exercer uma influência psíquica sobre o simples masoquismo constitui um ônus muito severo para nossos poderes.

Ao estudar os fenômenos que dão testemunho da atividade do instinto destrutivo, não nos confinamos a observações sobre material patológico. Numerosos fatos da vida mental normal exigem uma explicação desse tipo, e, quanto mais penetrantes nossos olhos se tornam, mais copiosamente esses fatos nos impressionam. O assunto é novo e importante demais para que o trate como um tema lateral desse debate. Contentar-me-ei, portanto, em selecionar alguns casos exemplificativos.

Aqui temos um exemplo. É bem sabido que em todos os períodos houve, como ainda há, pessoas que podem tomar como objetos sexuais membros de seu próprio sexo, bem como do sexo oposto, sem que uma das inclinações interfira na outra. Chamamos tais pessoas de bissexuais e aceitamos sua existência sem sentir muita surpresa sobre elas. Viemos a saber, contudo, que todo ser humano é bissexual nesse sentido e que sua libido se distribui, quer de maneira manifesta, quer de maneira latente, por objetos de ambos os sexos. Mas ficamos impressionados pelo ponto seguinte. Ao passo que na primeira classe de pessoas as duas tendências prosseguem juntas sem se chocarem, na segunda classe, mais numerosa, elas se encontram num estado de conflito irreconciliável. A heterossexualidade de um homem não se conformará com nenhuma homossexualidade e vice-versa. Se a primeira é a mais forte, ela obtém êxito em manter a segunda latente e em afastá-la, pela força, da satisfação na realidade. Por outro lado, não existe maior perigo para a função heterossexual de um homem do que o de ser perturbada por sua homossexualidade latente. Poderíamos tentar explicar isso dizendo que cada indivíduo só possui à sua disposição uma certa cota de libido, pela qual as duas inclinações rivais têm de lutar. Mas não está claro por que as rivais nem sempre dividem a cota disponível de libido entre si, de acordo com sua força relativa, já que assim podem fazer em certo número de casos. Somos forçados à conclusão de que a tendência a um conflito é algo especial, algo recentemente adicionado à situação, sem considerar a quantidade de libido. Uma tendência ao conflito desse tipo, a emergir independentemente, dificilmente pode ser atribuída a algo que não seja a intervenção de um elemento de agressividade livre.

Se reconhecermos o caso que estamos examinando como expressão do instinto destrutivo ou agressivo, surge imediatamente a questão de saber se essa visão não deve ser estendida a outros exemplos de conflito, e, na verdade, de saber se tudo o que conhecemos sobre o conflito psíquico não deveria ser revisto a partir desse novo ângulo. Afinal de contas, presumimos que, no decurso do desenvolvimento do homem de um estado primitivo para um civilizado, sua agressividade experimenta um grau bastante considerável de internalização ou volta para o interior; se assim for, seus conflitos internos certamente seriam o equivalente apropriado para as lutas internas que então cessaram. Estou bem cônscio de que a teoria dualista, segundo a qual um instinto de morte ou de destruição ou agressão reivindica iguais direitos como sócio de Eros, tal como este se manifesta na libido, encontrou pouca simpatia e na realidade não foi aceita, mesmo entre psicanalistas. Isso me deixou ainda mais satisfeito quando, não muito tempo atrás, me deparei com essa teoria de minha autoria nos escritos de um dos maiores pensadores da antiga Grécia. Estou prontíssimo a ceder o prestígio da originalidade em favor de tal confirmação, em especial porque nunca pode ficar certo, em vista da ampla extensão de minhas leituras nos primeiros anos, se aquilo que tomei por uma nova criação não constituía um efeito da criptoamnésia.

Empédocles de Acragas (Girgenti), nascido por volta de 495 a.C., é uma das maiores e mais notáveis figuras da história da civilização grega. As atividades de sua personalidade multifacetada seguiram as mais variadas direções. Ele foi investigador e pensador, profeta e mágico, político, filantropo e médico com conhecimentos de ciências naturais. Diz-se que libertou a cidade de Selinunte da malária e seus contemporâneos o reverenciavam como a um deus. Sua mente parece ter unido os mais agudos contrastes. Era exato e sóbrio em suas pesquisas físicas e fisiológicas; contudo, não se retraiu ante as obscuridades do misticismo e construiu especulações cósmicas de audácia espantosamente imaginativa. Capelle compara-o ao Dr. Fausto, ‘a quem muitos segredos foram revelados’. Nascido, como foi, numa época em que o reino da ciência ainda não estava dividido em tantas províncias, algumas de suas teorias devem inevitavelmente impressionavas coisas pela mistura dos quatros elementos, a terra, o ar, o fogo e a água. Sustentava que toda a natureza era animada, e acreditava na transmigração das almas. Mas também incluiu no corpo teórico do conhecimento idéias modernas, como a evolução gradual das criaturas vivas, a sobrevivência dos mais aptos e o reconhecimento do papel desempenhado pelo acaso (ƒäƒåƒÓƒØ) nessa evolução.

Mas a teoria de Empédocles que merece especialmente nosso interesse é uma que se aproxima tanto da teoria psicanalítica dos instintos, que ficaríamos tentados a sustentar que as duas são idênticas, não fosse pela diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica. Ao mesmo tempo, o ato de Empédocles atribuir ao universo a mesma natureza animada que aos organismos individuais despoja essa diferença de grande parte de sua importância.

O filósofo ensinou que dois princípios dirigem os eventos na vida do universo e na vida da mente, e que esses princípios estão perenemente em guerra um com o outro. Chamou-os de ƒÚƒÙƒÜƒÑ (amor) e ƒÞƒÕƒÙƒÛƒßƒÆ (discórdia). Desses dois princípios — que ele concebeu como sendo, no fundo, ‘forças naturais a operar como instintos, e de maneira alguma inteligências com um intuito consciente’ —, um deles se esforça por aglomerar as partículas primevas dos quatro elementos numa só unidade, ao passo que o outro, ao contrário, procura desfazer todas essas fusões e separar umas das outras as partículas primevas dos elementos. Empédocles imaginou o processo do universo como uma alternação contínua e incessante de períodos, nos quais uma ou outra das duas forças fundamentais leva a melhor, de maneira que em determinada ocasião o amor e noutra a discórdia realizam completamente seu intuito e dominam o universo, após o que o outro lado, vencido, se afirma e, por sua voz, derrota seu parceiro.

Os dois princípios fundamentais de Empédocles — ƒÚƒÙƒÜƒÑƒnƒÕƒnƒÞƒÕƒÙƒÛƒßƒÆ — são, tanto em nome quanto em função, os mesmos que nossos dois instintos primevos, Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem. Não ficaremos surpresos, contudo, em descobrir que, em seu ressurgimento após dois milênios e meio, essa teoria se alterou em algumas de suas características. À parte a restrição ao campo biofísico que se nos impõe, não mais temos como substâncias básicas os quatro elementos de Empédocles: o que é vivo foi nitidamente diferenciado do que é inanimado, e não mais pensamos em mistura e separação de partículas de substância, mas na solda e na defusão dos componentes instintuais. Ademais, fornecemos um certo tipo de fundamento ao princípio de ‘discórdia’, fazendo nosso instinto de destruição remontar ao instinto de morte, ao impulso que tem o que é vivo a retornar a um estado inanimado. Isso não se destina a negar que um instinto análogo já existiu anteriormente, nem, é natural, a asseverar que um instinto desse tipo só passou a existir com o surgimento da vida. E ninguém pode prever sob que disfarce o núcleo de verdade contida na teoria de Empédocles se apresentará à compreensão posterior.

 

VII

 Em 1927, Ferenczi leu um instrutivo artigo sobre o problema da terminação das análises. Ele finda com a confortadora garantia de que ‘a análise não é um processo sem fim, mas um processo que pode receber um fim natural, com perícia e paciência suficientes por parte do analista’. O artigo como um todo, contudo, parece-me ter a natureza de uma advertência a não visar a abreviar a análise, mas a aprofundá-la. Ferenczi demonstra ainda o importante ponto de que o êxito depende muito de o analista ter aprendido o suficiente de seus próprios ‘erros e equívocos’ e de ter levado a melhor sobre ‘os pontos fracos de sua própria personalidade’. Isso fornece um suplemento importante a nosso tema. Entre os fatores que influenciam as perspectivas do tratamento analítico e se somam às suas dificuldades da mesma maneira que as resistências, deve-se levar em conta não apenas a natureza do ego do paciente, mas também a individualidade do analista.

Não se pode discutir que analistas, em suas próprias personalidades, não estiveram invariavelmente à altura do padrão de normalidade psíquica para o qual desejam educar seus pacientes. Os opositores da análise quase sempre apontam esse fato com escárnio e o utilizam como argumento para demonstrar a inutilidade dos esforços analíticos. Poderíamos rejeitar essa crítica porque faz exigências injustificáveis. Os analistas são pessoas que aprenderam a praticar uma arte específica; a par disso, pode-se conceder-lhes que são seres humanos como quaisquer outros. Afinal de contas, ninguém sustenta que um médico será incapaz de tratar doenças internas se seus próprios órgãos internos não forem sadios; ao contrário, pode-se argumentar que há certas vantagens no fato de um homem que foi, ele próprio, ameaçado pela tuberculose, se especializar no tratamento de pessoas que sofrem dessa doença. Os casos, porém, não são absolutamente idênticos. Enquanto for capaz de clinicar, um médico que sofre de uma doença dos pulmões ou do coração não se acha em desvantagem para diagnosticar ou tratar queixas internas, ao passo que as condições especiais do trabalho analítico fazem realmente com que os próprios defeitos do analista interfiram em sua efetivação de uma avaliação correta do estadode coisas em seu paciente e em sua reação a elas de maneira útil. É, portanto, razoável esperar de um analista, como parte de suas qualificações, um grau considerável de normalidade e correção mental. Além disso, ele deve possuir algum tipo de superioridade, de maneira que, em certas situações analíticas, possa agir como modelo para seu paciente e, em outras, como professor. E, finalmente, não devemos esquecer que o relacionamento analítico se baseia no amor à verdade — isto é, no reconhecimento da realidade — e que isso exclui qualquer tipo de impostura ou engano.

Detenhamo-nos aqui por um momento para garantir ao analista que ele conta com nossa sincera simpatia nas exigências muito rigorosas a que tem de atender no desempenho de suas atividades. Quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo. Evidentemente, não podemos exigir que o analista em perspectiva seja um ser perfeito antes que assuma a análise, ou em outras palavras, que somente pessoas de alta e rara perfeição ingressem na profissão. Mas onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações ideais de que necessitará em sua profissão? A resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua preparação para a futura atividade. Por razões práticas, essa análise só pode ser breve e incompleta. Seu objetivo principal é capacitar o professor a fazer um juízo sobre se o candidato pode ser aceito para formação posterior. Essa análise terá realizado seu intuito se fornecer àquele que aprende uma convicção firme da existência do inconsciente, se o capacitar, quando o material reprimido surge, a perceber em si mesmo coisas que de outra maneira seriam inacreditáveis para ele, e se lhe mostra um primeiro exemplo da técnica que provou ser a única eficaz no trabalho analítico. Só isso não bastaria para sua instrução, mas contamos com que os estímulos que recebeu em sua própria análise não cessem quando esta termina, com que os processos de remodelamento do ego prossigam espontaneamente no indivíduo analisado, e com que se faça uso de todas as experiências subseqüentes nesse recém-adquirido sentido. Isso de fato acontece e, na medida em que acontece, qualifica o indivíduo analisado para ser, ele próprio, analista.Infelizmente, algo mais acontece também. Ao tentar descrevê-lo, só podemos apoiar-nos em impressões. Hostilidade, por um lado, e partidarismo, por outro, criam uma atmosfera desfavorável à investigação objetiva. Parece que certo número de analistas aprende a fazer uso de mecanismos defensivos que lhes permitem desviar de si próprios as implicações e as exigências da análise (provavelmente dirigindo-as para outras pessoas), de maneira que eles próprios permanecem como são e podem afastar-se da influência crítica e corretiva da análise. Tal acontecimento poderia justificar as palavras do escritor que nos adverte que, quando se dota um homem de poder, é difícil para ele não utilizá-lo mal. Às vezes, quando tentamos compreender isso, somos levados a traçar uma analogia desagradável com o efeito dos raios X nas pessoas que os manejam sem tomar precauções especiais. Não seria de surpreender que o efeito de uma preocupação constante com todo o material reprimido que luta por liberdade na mente humana despertasse também no analista as exigências instintuais que de outra maneira ele é capaz de manter suprimidas. Também esses são ‘perigos da análise’, embora ameacem não o parceiro passivo, mas o parceiro ativo da situação analítica, e não deveríamos negligenciar enfrentá-los. Não pode haver dúvida sobre o modo como isso deve ser feito. Todo analista deveria periodicamente — com intervalos de aproximadamente cinco anos — submeter-se mais uma vez à análise, sem se sentir envergonhado por tomar essa medida. Isso significaria, portanto, que não seria apenas a análise terapêutica dos pacientes, mas sua própria análise que se transformaria de tarefa terminável em interminável.

Nesse ponto, contudo, temos de nos resguardar contra uma concepção equivocada. Não estou pretendendo afirmar que a análise é, inteiramente, um assunto sem fim. Qualquer que seja nossa atitude teórica para com a questão, a terminação de uma análise é, penso eu, uma questão prática. Todo analista experimentado será capaz de recordar uma série de casos em que deu a seu paciente um adeus definitivo, rebus bene gestis. Nos casos daquilo que é conhecido como análise de caráter, há uma discrepância muito menor entre a teoria e a prática. Aqui não é fácil prever um término natural, ainda que se evitem quaisquer expectativas exageradas e não se estabeleçam para a análise tarefas excessiva. Nosso objetivo não será dissipar todas as peculiaridadesdo caráter humano em benefício de uma ‘normalidade’ esquemática, nem tampouco exigir que a pessoa que foi ‘completamente analisada’ não sinta paixões nem desenvolva conflitos internos. A missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego; com isso, ela se desincumbiu de sua tarefa.

 

VIII

Tanto em análises terapêuticas quanto em análises de caráter, observamos que dois temas vêm a ter preeminência especial e fornecem ao analista quantidade inusitada de trabalho. Logo se torna evidente que aqui um princípio geral está em ação. Os dois temas estão ligados à distinção existente entre os sexos; um deles é tão característico dos homens quanto o outro o é das mulheres. Apesar da dessemelhança de seu conteúdo, há uma correspondência óbvia entre eles. Algo que ambos os sexos possuem em comum foi forçado, pela diferença entre eles, a formas diferentes de expressão.

Os dois temas correspondentes são, na mulher, a inveja do pênis — um esforço positivo por possuir um órgão genital masculino — e, no homem, a luta contra sua atitude passiva ou feminina para com outro homem. O que é comum nos dois temas foi distinguido pela nomenclatura psicanalítica, em data precoce, como sendo uma atitude para com o complexo de castração. Subseqüentemente, Alfred Adler colocou o termo ‘protesto masculino’ em uso corrente. Ele se ajusta perfeitamente ao caso dos homens, mas penso que, desde o início, ‘repúdio da feminilidade’ teria sido a descrição correta dessa notável característica da vida psíquica dos seres humanos.

Ao tentar introduzir esse fator na estrutura de nossa teoria, não devemos desprezar o fato de que ele não pode, por sua própria natureza, ocupar a mesma posição em ambos os sexos. Nos homens, o esforço por ser masculino é completamente egossintônico desde o início; a atitude passiva, de uma vez que pressupõe uma aceitação da castração, é energicamente reprimida e amiúde sua presença só é indicada por supercompensações excessivas. Nas mulheres, também, o esforço por ser masculino é egossintônico em determinado período — a saber, na fase fálica, antes que o desenvolvimento para a feminilidade se tenha estabelecido. Depois, porém, ele sucumbe ao momentoso processo de repressão cujo desfecho, como tão freqüentemente foi demonstrado, determina a sorte da feminilidade de uma mulher. Muita coisa depende de que uma quantidade suficiente de seu complexo de masculinidade escape à repressão e exerça influência permanente em seu caráter. Normalmente, grandes partes do complexo se transformam e contribuem para a construção de sua feminilidade; o desejo apaziguado de um pênis destina-se a ser convertido no desejo de um bebê e de um marido, que possui um pênis.É estranho, contudo, quão amiúde descobrimos que o desejo de masculinidade foi retido no inconsciente e que, a partir de seu estado de repressão, exerce uma influência perturbadora.

Como se verá pelo que eu disse, em ambos os casos foi a atitude própria ao sexo oposto que sucumbiu à repressão. Já afirmei em outro lugar que foi Wilhelm Fliess que chamou minha atenção para esse ponto. Fliess inclinava-se a encarar a antítese entre os sexos como a verdadeira causa e a força motivadora primeva da repressão. Estou apenas repetindo o que disse então ao discordar de sua opinião, quando declino de sexualizar a repressão dessa maneira — isto é, explicá-la em fundamentos biológicos, em vez de puramente psicológicos.

A importância suprema desses dois temas — nas mulheres, o desejo de um pênis, e, nos homens, a luta contra a passividade — não escapou à observação de Ferenczi. No artigo lido por ele em 1927, transformou num requisito que, em toda análise bem-sucedida, esses dois complexos tivessem sido dominados. Gostaria de acrescentar que, falando por minha própria experiência, acho que quanto a isso Ferenczi estava pedindo muito. Em nenhum ponto de nosso trabalho analítico, se sofre mais da sensação opressiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão, e da suspeita de que estivemos ‘pregando ao vento’, do que quando estamos tentando persuadir uma mulher a abandonar seu desejo de um pênis, com fundamento de que é irrealizável, ou quando estamos procurando convencer um homem de que uma atitude passiva para com homens nem sempre significa castração e que ela é indispensável em muitos relacionamentos na vida. A supercompensação rebelde do homem produz uma das mais fortes resistências transferenciais. Ele se recusa a submeter-se a um substituto paterno, ou a sentir-se em débito para com ele por qualquer coisa, e, conseqüentemente, se recusa a aceitar do médico seu restabelecimento. Nenhuma transferência análoga pode surgir do desejo da mulher por um pênis, mas esse desejo é fonte de irrupções de grave depressão nela, devido à convicção interna de que a análise não lhe será útil e de que nada pode ser feito para ajudá-la. E só podemosconcordar que ela está com a razão, quando aprendemos que seu mais forte motivo para buscar tratamento foi a esperança de que, ao fim de tudo, ainda poderia obter um órgão masculino, cuja falta lhe era tão penosa.

Mas também aprendemos com isso que não é importante sob que forma a resistência aparece, seja como transferência ou não. A coisa decisiva permanece sendo que a resistência impede a ocorrência de qualquer mudança — tudo fica como era. Freqüentemente temos a impressão de que o desejo de um pênis e o protesto masculino penetraram através de todos os estratos psicológicos e alcançaram o fundo, e que, assim, nossas atividades encontram um fim. Isso é provavelmente verdadeiro, já que, para o campo psíquico, o campo biológico desempenha realmente o papel de fundo subjacente. O repúdio da feminilidade pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo. Seria difícil dizer se e quando conseguimos êxito em dominar esse fator num tratamento analítico. Só podemos consolar-nos com a certeza de que demos à pessoa analisada todo incentivo possível para reexaminar e alterar sua atitude para com ele.

 

CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE (1937)

 

KONSTRUKTIONEN IN DER ANALYSE

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS

1937 Int. Z. Psychoanal., 23 (4), 459-69.

1950 G. W. 16, 43-56.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

 

‘Constructions in Analys7is’

 

1938 Int. J. Psycho-Anal., 19 (4), 377-87. (Trad. de James Strachey.)

1950 C. P., 5, 358-71. (Reimpressão revista da anterior.)

 

A presente tradução é uma reimpressão corrigida da publicada em 1950.

 

Este artigo foi publicado em dezembro de 1937.

Embora, como Freud observa, as construções tenham recebido muito menos atenção do que as interpretações nos debates da técnica analítica, seus próprios escritos contêm muitas alusões a elas. Há dois ou três exemplos completos delas em suas histórias clínicas: na análise do ‘Rat Man’ (1909d), Standard Ed., 10, Pp. 182 e 205, e na análise do ‘Wolf Man’ (1918b). Todo o último caso gira em torno de uma construção, mas a questão é especificamente examinada na Seção V (Standard Ed., 17, p. 50 e segs.). Finalmente, as construções desempenharam grande papel na história clínica da jovem homossexual (1920a), como fica claro na Seção I (ibid., 18, p. 152).

O artigo termina pelo exame de um assunto em que Freud estava muito interessado nesse período — a distinção entre o que descreveu como verdade ‘histórica’ e ‘material’.

 

CONSTRUÇÕES EM ANÁLISE

 

Sempre me pareceu ser algo grandemente a crédito de certo bem-conhecido homem de ciência ter ele tratado a psicanálise com justiça, numa época em que a maioria das outras pessoas não se sentiam em tal obrigação. Em determinada ocasião, todavia, expressou ele uma opinião sobre a técnica analítica que foi, ao mesmo tempo, depreciativa e injusta. Disse que, ao fornecermos interpretações a um paciente, tratamo-lo segundo o famoso princípio do ‘Heads I win, tails you lose‘. Isso equivale a dizer que se o paciente concorda conosco, então a interpretação está certa, mas, se nos contradiz, isso constitui apenas sinal de sua resistência, o que novamente demonstra que estamos certos. Desse modo, estamos sempre com a razão contra o pobre e desamparado infeliz que estamos analisando, não importando como ele reaja ao que lhe apresentamos. Ora, de uma vez que é realmente verdade que um ‘não’ de nossos pacientes não é, via de regra, suficiente para nos fazer abandonar uma interpretação como incorreta, uma revelação como essa sobre a natureza de nossa técnica foi muito bem acolhida pelos opositores da análise. Vale a pena, portanto, fornecer uma descrição pormenorizada de como estamos acostumados a chegar a uma avaliação do ‘sim’ ou do ‘não’ de nossos pacientes durante o tratamento analítico — de sua expressão de concordância ou de negação. No correr dessa apologia, naturalmente, o analista militante nada aprenderá que já não saiba.

É terreno familiar que o trabalho da análise visa a induzir o paciente a abandonar as repressões (empregando a palavra no sentido mais amplo) própria a seu primitivo desenvolvimento e a substituí-las por reações de um tipo que corresponda a uma condição psiquicamente madura. Com esse intuito em vista, ele deve ser levado a recordar certas experiências e os impulsos afetivos por ela invocados, os quais, presentemente, ele esqueceu. Sabemos que seus atuais sintomas e inibições são conseqüências de repressões desse tipo; que constituem um substituto para aquelas coisa que esqueceu. Que tipo de material põe ele à nossa disposição, de que possamos fazer uso para colocá-lo no caminho da recuperação das lembranças perdidas? Todos os tipos de coisa. Fornece-nos fragmentos dessas lembranças em seus sonhos, valiosíssimos em si mesmos, mas via de regra seriamente deformados por todos os fatores relacionados à formação dos sonhos. Se ele se entrega à ‘associação livre’, produz ainda idéias em que podemos descobrir alusões às experiências reprimidas e derivados dos impulsos afetivos recalcados, bem como das reações contra eles. Finalmente, há sugestões de repetições dos afetos pertencentes ao material reprimido que podem ser encontradas em ações desempenhadas pelo paciente, algumas bastante importantes, outras, triviais, tanto dentro quanto fora da situação analítica. Nossa experiência demonstrou que a relação de transferência, que se estabelece com o analista, é especificamente calculada para favorecer o retorno dessas conexões emocionais. É dessa matéria-prima — se assim podemos descrevê-la — que temos de reunir aquilo de que estamos à procura.

Estamos à procura de um quadro dos anos esquecidos do paciente que seja igualmente digno de confiança e, em todos os aspectos essenciais, completo. Nesse ponto, porém, somos recordados de que o trabalho de análise consiste em duas partes inteiramente diferentes, que ele é levado a cabo em duas localidades separadas, que envolve duas pessoas, a cada uma das quais é atribuída uma tarefa distinta. Pode, por um momento, parecer estranho que um fato tão fundamental não tenha sido apontado muito tempo atrás, mas imediatamente se perceberá que nada estava sendo retido nisso, que se trata de um fato universalmente conhecido e, por assim dizer, auto-evidente, e que simplesmente é colocado em relevo aqui e examinado isoladamente para um propósito específico. Todos nós sabemos que a pessoa que está sendo analisada tem de ser induzida a recordar algo que foi por ela experimentado e reprimido, e os determinantes dinâmicos desse processo são tão interessantes que a outra parte do trabalho, a tarefa desempenhada pelo analista, foi empurrada para o segundo plano. O analista não experimentou nem reprimiu nada do material em consideração; sua tarefa não pode ser recordar algo. Qual é, então, sua tarefa? Sua tarefa é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo. A ocasião e o modo como transmite suas construções à pessoa que está sendo analisada, bem como as explicações com que as faz acompanhar, constituem o vínculo entre as duas partes do trabalho de análise, entre o seu próprio papel e o do paciente.Seu trabalho de construção, ou, se se preferir, de reconstrução, assemelha-se muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada, ou de algum antigo edifício. Os dois processos são de fato idênticos, exceto pelo fato de que o analista trabalha em melhores condições e tem mais material à sua disposição para ajudá-lo, já que aquilo com que está tratando não é algo destruído, mas algo que ainda está vivo — e talvez por outra razão também. Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permaneceram de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas das mesmas dificuldades e fontes de erro. Um dos mais melindrosos problemas com que se defronta o arqueólogo é, notoriamente, a determinação da idade relativa de seus achados, e se um objeto faz seu aparecimento em determinado nível, freqüentemente resta decidir se ele pertence a esse nível ou se foi carregado para o mesmo devido a alguma perturbação subseqüente. É fácil imaginar as dúvidas correspondentes que surgem no caso das construções analíticas.

O analista, como dissemos, trabalha em condições mais favoráveis do que o arqueólogo, já que dispõe de material que não pode ter correspondente nas escavações, tal como as repetições de reações que datam da tenra infância e tudo o que é indicado pela transferência em conexão com essas repetições. Mas, além disso, há que manter em mente que o escavador está lidando com objetos destruídos, dos quais grandes e importantes partes certamente se perderam, pela violência mecânica, pelo fogo ou pelo saque. Nenhum esforço pode resultar em sua descoberta e levar a que sejam unidas aos restos que permaneceram. O único curso que se lhe acha aberto é o da reconstrução, que, por essa razão, com freqüência só pode atingir um certo grau de probabilidade. Mas, com o objeto psíquico cuja história primitiva o analista está buscando recuperar, é diferente. Aqui, defrontamo-nos regularmente com uma situação que, com o objeto arqueológico, ocorre apenas em circunstâncias raras, tais como as de Pompéia ou da tumba de Tutancâmon. Todos os elementos essenciais estão preservados; mesmo coisas que parecem completamente esquecidas estão presentes, de alguma maneira e em algum lugar, e simplesmente foram enterradas e tornadas inacessíveis ao indivíduo. Na verdade, como sabemos, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquicapossa realmente ser vítima de destruição total. Depende exclusivamente do trabalho analítico obtermos sucesso em trazer à luz o que está completamente oculto. Há apenas dois outros fatos que pesam contra a extraordinária vantagem que assim é desfrutada pelo trabalho de análise, a saber, que os objetos psíquicos são incomparavelmente mais complicados do que os objetos materiais do escavador, e que possuímos um conhecimento insuficiente do que podemos esperar encontrar, uma vez que sua estrutura mais refinada contém tanta coisa que ainda é misteriosa. Mas nossa comparação entre as duas formas de trabalho não pode ir além disso, pois a principal diferença entre elas reside no fato de que, para o arqueólogo, a reconstrução é o objetivo e o final de seus esforços, ao passo que, para o analista, a construção constitui apenas um trabalho preliminar.

 

II

A construção não é, porém, um trabalho preliminar no sentido de que a totalidade dela deve ser completada antes que o trabalho seguinte possa começar, tal como, por exemplo, é o caso com a construção de casas, onde todas as paredes devem estar erguidas e todas as janelas inseridas antes que a decoração interna das peças possa ser empreendida. Todo analista sabe que as coisas acontecem de modo diferente no tratamento analítico e que aí ambos os tipos de trabalho são executados lado a lado, um deles sempre um pouco à frente e o outro a segui-lo. O analista completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de maneira a que possa agir sobre ele; constrói então um outro fragmento a partir do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue, desse modo alternado, até o fim. Se nas descrições da técnica analítica se fala tão pouco sobre ‘construções’, isso se deve ao fato de que, em troca, se fala nas ‘interpretações’ e em seus efeitos. Mas acho que ‘construção’ é de longe a descrição mais apropriada. ‘Interpretação’ aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia. Trata-se de uma ‘construção’, porém, quando se põe perante o sujeito da análise um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu, aproximadamente da seguinte maneira: ‘Até os onze anos de idade, você se considerava o único e ilimitado possuidor de sua mãe; apareceu então um outro bebê e lhe trouxe uma séria desilusão. Sua mãe abandonou você por algum tempo e, mesmo após o reaparecimento dela, nunca mais se dedicou exclusivamente a você. Seus sentimentos para com ela se tornaram ambivalentes, seu pai adquiriu nova importância para você…’, e assim por diante.

No presente artigo, nossa atenção se voltará exclusivamente para esse trabalho preliminar desempenhado pelas construções. E aqui, no próprio início, surge a questão de saber que garantia temos, enquanto trabalhamos nessas construções, de que não estamos cometendo equívocos e arriscando o êxito do tratamento pela apresentação de alguma construção incorreta. Pode parecer que em todos os casos seja impossível dar alguma resposta a essa questão’; contudo mesmo antes de debatê-la, podemos dar ouvidos a certa informação confortadora que é fornecida pela experiência analítica, uma vez que com esta aprendemos que nenhum dano é causado se, ocasionalmente, cometemos um equívoco e oferecemos ao paciente uma construção errada como sendo a verdade histórica provável. Acha-se envolvido, é natural, um desperdício de tempo, e todo aquele que não faça mais do que apresentar ao paciente combinações falsas, não criará boa impressão nele nem levará o tratamento muito longe; entretanto um equívoco isolado desse tipo não pode causar prejuízo. O que realmente ocorre em tal caso é antes o fato de o paciente permanecer intocado pelo que foi dito e não reagir nem com um ‘sim’ nem com um ‘não’. Isso tem possibilidade de não significar nada mais senão que sua reação é adiada; se, porém, nada mais se desenvolve, podemos concluir que cometemos um equívoco, e admitiremos isso para o paciente em alguma oportunidade apropriada, sem nada sacrificar de nossa autoridade. Essa oportunidade surgirá quando vier à luz um novo material que nos permita fazer uma construção melhor e, assim, corrigir nosso erro. Dessa maneira, a construção falsa é abandonada, como se nunca tivesse sido feita, e, na verdade, freqüentemente ficamos com a impressão de que, tomando de empréstimo as palavras de Polônio, nossa isca de falsidade fisgou uma carpa de verdade.* O perigo de desencaminharmos um paciente por sugestão, persuadindo-o a aceitar coisa em que nós próprios acreditamos, mas que ele não deveria aceitar, decerto foi enormemente exagerado. Um analista teria de se comportar muito incorretamente antes que tal infortúnio pudesse dominá-lo; acima de tudo, teria de se culpar por não permitir que seus pacientes tenham oportunidade de falar. Posso garantir, sem me gabar, que um tal abuso de ‘sugestão’ jamais ocorreu em minha clínica.

Já decorre do que foi dito que de modo algum estamos inclinados a negligenciar as indicações que podem ser inferidas a partir da reação do paciente quando lhe oferecemos uma de nossas construções. O assunto deve ser examinado em pormenor. É verdade que não aceitamos o ‘não’ de uma pessoa em análise por seu valor nominal; tampouco, porém, permitimos que seu ‘sim’ seja aceito. Não há justificação para que nos acusem de que invariavelmente deformamos suas observações, transformando-as em confirmação. Na realidade, as coisas não são tão simples assim, e não tornamos fácil para nós próprios chegar a uma conclusão.

Um simples ‘sim’ do paciente de modo algum deixa de ser ambíguo. Na verdade, pode significar que ele reconhece a correção da construção que lhe foi apresentada, mas pode também não ter sentido ou mesmo merecer ser descrito como ‘hipócrita’, uma vez que pode convir à sua resistência fazer uso de um assentimento de uma verdade que não foi descoberta.O ‘sim’ não possui valor, a menos que seja seguido por confirmações indiretas, a menos que o paciente, imediatamente após o ‘sim,’, produza novas lembranças que completem e ampliem a construção. Apenas em tal caso consideramos que o ‘sim’ tratou completamente do assunto em debate.

Um ‘não’ provindo de uma pessoa em análise é tão ambíguo quanto um ‘sim’ e, na verdade, de menor valor ainda. Em alguns raros casos, ele mostra ser a expressão de uma dissensão legítima. Muito mais freqüentemente, expressa uma resistência que pode ter sido evocada pelo tema geral da construção que lhe foi apresentada, mas que, de modo igualmente fácil, pode ter surgido de algum outro fator da complexa situação analítica. Um ‘não’ de um paciente, portanto, não constitui prova de correção de uma construção, ainda que seja perfeitamente compatível com ela. Uma vez que toda construção desse tipo é incompleta, pois abrange apenas um pequeno fragmento dos eventos esquecidos, estamos livres para supor que o paciente não está de fato discutindo o que lhe foi dito, mas baseando sua contradição na parte que ainda não foi revelada. Via de regra, não dará seu assentimento até que tenha sabido de toda a verdade — a qual amiúde abrange um campo muito grande. Dessa maneira, a única interpretação segura de seu ‘não’ é que ele aponta para a qualidade de não ser completo; não se pode haver dúvida de que a construção não lhe disse tudo.

Parece, portanto, que as elocuções diretas do paciente, depois que lhe foi oferecida uma construção, fornecem muito poucas provas sobre a questão de saber se estivemos certos ou errados. É do maior interesse que existam formas indiretas de confirmação, que são, sob todos os aspectos, fidedignas. Uma delas é uma forma de expressão utilizada (como que por consenso) com muito pequena variação pelas mais diferentes pessoas: ‘Nunca pensei’ (ou ‘Nunca teria pensado’) ‘isso’ (ou ‘nisso’). Isso pode ser traduzido, sem qualquer hesitação, por: ‘Sim, o senhor está certo dessa vez — sobre meu inconsciente.’ Infelizmente, essa fórmula, tão bem-vinda ao analista, chega a seus ouvidos com mais freqüência depois de interpretações isoladas do que depois de ele ter produzido uma ampla construção. Confirmação igualmente valiosa está implícita (dessa vez, expressa positivamente) quando o paciente responde com uma associação que contém algo semelhante ou análogo ao conteúdo da construção. Em vez de extrair um exemplo disso de uma análise (o que seria fácil de achar, mas longode relatar), prefiro fornecer um relato de uma pequena experiência extra-analítica que apresenta uma situação semelhante de modo tão notável, que produz efeito quase cômico. Essa experiência se relacionou a um de meus colegas que — há muito tempo atrás — me escolhera como consultor em sua clínica médica. Certo dia, contudo, trouxe sua jovem esposa para me ver, pois estava causando problemas para ele. Recusava-se, sob toda a sorte de pretextos, a ter relações sexuais com ele, e o que ele esperava de mim, evidentemente, era que expusesse a ela as conseqüências de seu comportamento imprudente. Ingressei no assunto e expliquei-lhe que sua recusa provavelmente teria resultados desafortunados para a saúde de seu marido, ou o deixaria exposto a tentações que poderiam conduzir ao rompimento de seu matrimônio. Nesse ponto, ele subitamente me interrompeu com a observação: ‘O inglês que você diagnosticou como sofrendo de um tumor cerebral morreu também.’ A princípio, a observação pareceu incompreensível; o ‘também’ em sua frase era um mistério, pois não faláramos de ninguém que tivesse falecido. Pouco tempo depois, porém, compreendi. Evidentemente o homem estava pretendendo confirmar o que eu dissera; estava querendo dizer ‘Sim, você certamente tem toda a razão. Seu diagnóstico foi confirmado no caso do outro paciente também.’ Era um excelente paralelo às confirmações indiretas que, na análise, obtemos a partir das associações. Não tentarei negar que, postos de lado por meu colega, também havia outros pensamentos que tinham sua parte na determinação da observação dele.

Confirmações indiretas oriundas de associações que se ajustam ao conteúdo de uma construção — que nos forneceu um ‘também’ como aquele de minha história — proporcionam base valiosa para julgar se a construção tem probabilidade de ser confirmada no decorrer da análise. É particularmente notável quando, por meio de uma parapraxia, uma confirmação desse tipo se insinua numa negação direta. Publiquei outrora, em outro lugar, um belo exemplo disso. O nome ‘Jauner’ (familiar em Viena) surgira repetidamente nos sonhos de um de meus pacientes sem que uma explicação suficiente aparecesse em suas associações. Finalmente, apresentei a interpretação de que, quando dizia ‘Jauner’, provavelmente queria dizer ‘Gauner’ [velhaco] ao que ele prontamente replicou: ‘Isso me parece “jewagt” demais [em vez de “gewagt” (ousado, exagerado)]. Ou então, outra vez, quando sugeri a um paciente que ele considerava determinados honorários muito altos, ele pretendeu negar a sugestão com as palavras ‘Dez dólares não são nada para mim’, mas, em vez de dólares, inseriu uma moeda de menor valor e disse ‘dez xelins’.

Se uma análise é dominada por poderosos fatores que impõem uma reação terapêutica negativa, tais como sentimento de culpa, necessidade masoquista de sofrer ou repugnância por receber auxílio do analista, o comportamento do paciente, depois que lhe foi oferecida uma construção, freqüentemente torna bastante fácil para nós que cheguemos à decisão que estamos procurando. Se a construção é errada, não há mudança no paciente, mas, se é correta ou fornece uma aproximação da verdade, ele reage a ela com um inequívoco agravamento de seus sintomas e de seu estado geral.

Podemos resumir o assunto afirmando que não há justificativa para a censura de que negligenciamos ou subestimamos a importância da atitude assumida pelos que estão em análise para com nossas construções. Prestamo-lhes atenção e, com freqüência, dela derivamos informações valiosas. Mas essas reações do paciente raramente deixam de ser ambíguas, e não dão oportunidade para um julgamento final. Só o curso ulterior da análise nos capacita a decidir se nossas construções são corretas ou inúteis. Não pretendemos que uma construção individual seja algo mais do que uma conjectura que aguarda exame, confirmação ou rejeição. Não reivindicamos autoridade para ela, não exigimos uma concordância direta do paciente, não discutimos com ele, caso a princípio a negue. Em suma, conduzimo-nos segundo modelo de conhecida figura de uma das farsas de Nestroy — o criado que tem nos lábios uma só resposta para qualquer questão ou objeção: ‘Tudo se tornará claro no decorrer dos futuros desenvolvimentos.’

 

III

Como é que isso ocorre no processo da análise — o modo como uma conjectura nossa se transforma em convicção do paciente — mal vale a pena ser descrito. Tudo isso é familiar a todo analista, a partir de sua experiência cotidiana, e é inteligível sem dificuldade. Apenas um ponto exige investigação e explicação. O caminho que parte da construção do analista deveria terminar na recordação do paciente, mas nem sempre ele conduz tão longe. Com bastante freqüência não conseguimos fazer o paciente recordar o que foi reprimido. Em vez disso, se a análise é corretamente efetuada, produzimos nele uma convicção segura da verdade da construção, a qual alcança o mesmo resultado terapêutico que uma lembrança recapturada. O problema de saber quais as circunstâncias em que isso ocorre e de saber como é possível que aquilo que parece ser um substituto incompleto produza todavia um resultado completo — tudo isso constitui assunto para uma investigação posterior.

Concluirei esse breve artigo com algumas considerações que descerram uma perspectiva mais ampla. Fiquei impressionado pelo modo como, em certas análises, a comunicação de uma construção obviamente apropriada evocou nos pacientes um fenômeno surpreendente e, a princípio, incompreensível. Tiveram evocadas recordações vivas — que eles próprios descreveram como ‘ultraclaras’ —, mas o que eles recordaram não foi o evento que era o tema da construção, mas pormenores relativos a esse tema. Por exemplo, recordaram com anormal nitidez os rostos das pessoas envolvidas na construção ou as salas em que algo da espécie poderia ter acontecido, ou, um passo adiante, os móveis dessas salas — sobre os quais, naturalmente, a construção não tinha possibilidade de ter qualquer conhecimento. Isso ocorreu tanto em sonhos, imediatamente depois que a construção foi apresentada, quanto em estados de vigília semelhantes a fantasias. Essas próprias recordações não conduziram a nada mais e pareceu plausível considerá-las como produto de uma conciliação. O ‘Impulso ascendente’ do reprimido, colocado em atividade pela apresentação da construção, se esforçou por conduzir os importantes traços de memória para a consciência; uma resistência, porém, alcançou êxito — não, é verdade, em deter esse movimento —, mas em deslocá-lo para objetos adjacentes de menor significação.

Essas recordações poderiam ser descritas como alucinações, se uma crença em sua presença concreta se tivesse somado à sua clareza. A importância dessa analogia pareceu maior quando observei que alucinações verdadeiras corriam ocasionalmente no caso de outros pacientes que certamente não eram psicóticos. Minha linha de pensamento progrediu da seguinte forma: talvez seja uma característica geral das alucinações — à qual uma atenção suficiente não foi até agora prestada — que, nelas, algo que foi experimentado na infância e depois esquecido retorne — algo que a criança viu ou ouviu numa época em que ainda mal podia falar e que agora força o seu caminho à consciência, provavelmente deformado e deslocado, devido à operação de forças que se opõem a esse retorno. E, em vista da estreita relação existente entre alucinações e formas específicas de psicose, nossa linha de pensamento pode ser levada ainda mais além. Pode ser que os próprios delírios em que essas alucinações são constantemente incorporadas sejam menos independentes do impulso ascendente do inconsciente e do retorno do reprimido do que geralmente presumimos. No mecanismo de um delírio, via de regra, acentuamos apenas dois fatores: o afastamento do mundo real e suas forças motivadoras, por um lado, e a influência exercida pela realização de desejo sobre o conteúdo do delírio, por outro. Mas não poderá acontecer que o processo dinâmico seja antes o ato de o afastamento da realidade ser explorado pelo impulso ascendente do reprimido, a fim de forçar seu conteúdo à consciência, enquanto as resistências despertadas por esse processo e a inclinação à realização de desejo partilham da responsabilidade pela deformação e pelo deslocamento do que é recordado? Esse é, afinal de contas, o mecanismo familiar dos sonhos, o qual, desde tempos imemoriais, a intuição igualou à loucura.

Essa visão dos delírios não é, penso eu, inteiramente nova; não obstante, dá ênfase a um ponto de vista que geralmente não é trazido para o primeiro plano. A essência dela é que há não apenas método na loucura como o poeta já percebera, mas também um fragmento de verdade histórica, sendo plausível supor que a crença compulsiva que se liga aos delírios derive sua força exatamente de fontes infantis desse tipo. Tudo o que posso produzir hoje em apoio dessa teoria são reminiscências, não impressões novas. Provavelmentevaleria a pena fazer uma tentativa de estudar casos do distúrbio em apreço com base nas hipóteses que foram aqui apresentadas e também efetuar seu tratamento segundo essas mesmas linhas. Abandonar-se-ia o vão esforço de convencer o paciente do erro de seu delírio e de sua contradição da realidade, e, pelo contrário, o reconhecimento de seu núcleo de verdade permitiria um campo comum sobre o qual o trabalho terapêutico poderia desenvolver-se. Esse trabalho consistiria em libertar o fragmento de verdade histórica de suas deformações e ligações com o dia presente real, e em conduzi-lo de volta para o ponto do passado a que pertence. A transposição de material do passado esquecido para o presente, ou para uma expectativa de futuro, é, na verdade, ocorrência habitual nos neuróticos, não menos do que nos psicóticos. Com bastante freqüência, quando um neurótico é levado, por um estado de ansiedade, a esperar a ocorrência de algum acontecimento terrível, ele de fato está simplesmente sob a influência de uma lembrança reprimida (que está procurando ingressar na consciência, mas não pode tornar-se consciente) de que algo que era, naquela ocasião, terrificante, realmente aconteceu. Acredito que adquiriríamos um grande e valioso conhecimento a partir de um trabalho desse tipo com psicóticos, mesmo que não conduzisse a nenhum sucesso terapêutico.

Estou ciente de que é de pouca utilidade tratar um assunto tão importante da maneira apressada que aqui empreguei. Contudo, não pude resistir à sedução de uma analogia. Os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que erguemos no decurso de um tratamento analítico — tentativas de explicação e de cura, embora seja verdade que estas, sob as condições de uma psicose, não podem fazer mais do que substituir o fragmento de realidade que está sendo rejeitado no passado remoto. Será tarefa de cada investigação individual revelar as conexões íntimas existentes entre o material da rejeição atual e o da repressão original. Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento de experiência perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente ao elemento de verdade histórica que ele insere no lugar da realidade rejeitada. Desse maneira, uma proposição que originalmente asseverei apenas quanto a histeria se aplicaria também aos delírios, a saber, que aqueles que lhes são sujeitos, estão sofrendo de suas próprias reminiscências. Nunca pretendi, através dessa breve fórmula, discutir a complexidade da causação da doença ou excluir o funcionamento de muitos outros fatores.

Se considerarmos a humanidade como um todo e substituirmos o indivíduo humano isolado por ela, descobriremos que também ela desenvolveu delírios que são inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a realidade. Se, apesar disso, esses delírios são capazes de exercer um poder extraordinário sobre os homens, a investigação nos conduz à mesma explicação que no caso do indivíduo isolado. Eles devem seu poder ao elemento de verdade histórica que trouxeram à tona a partir da repressão do passado esquecido e primevo.

 

A DIVISÃO DO EGO NO PROCESSO DE DEFESA (1940 [1938])

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

DIE ICHSPALTUNG IM ABWEHRVORGANG

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1940 Int. Z. Psychoanal., Imago, 25 (3/4), 241-4.

1941 G. W., 17, 59-62.

 

(a) TRADUÇÃO INGLESA:

 

‘Splitting of the Ego in the efensive Process’

1941 Int. J. Psycho-Anal., 22 (1), 65-8. (Trad. de   James Strachey.)

1950 C. P., 5, 372-5. (Reimpressão da anterior.)

 

A presente tradução, com o título alterado, é versão consideravelmente corrigida da publicada em 1950.

 

O manuscrito deste importante trabalho inacabado, publicado postumamente, está datado de 2 de janeiro de 1938 e, segundo Ernest Jones (1957, 255), foi ‘escrito no Natal de 1937’.

O artigo leva mais além do que antes a investigação do ego e seu comportamento em circunstâncias difíceis. Dois tópicos inter-relacionados estão envolvidos, ambos os quais tinham ultimamente ocupado a mente de Freud: a noção do ato de ‘rejeição’ (‘Verleugnung‘) e a noção de que esse ato resulta numa ‘divisão’ (splitting) do ego. A ‘rejeição foi geralmente debatida por Freud, como o é aqui, em conexão com o complexo de castração. Surgiu, por exemplo, no artigo sobre ‘The Infantile Genital Organization’ (1923e), Standard Ed., 19, p. 143, onde uma nota de rodapé do Editor Inglês fornece certo número de referências a outros aparecimentos do termo. Um destes é no breve estudo ‘Fetichismo’ (1927e), Edição Standard Brasileira Vol. XXI, Pp. 182-3, IMAGO Editora, 1974, do qual o presente artigo pode ser encarado como seqüência, pois, naquele estudo, a divisão do ego conseqüente à rejeição foi enfatizada. (Já se aludira a ela em ‘Neurosis and Psychosis’ (1924b), ibid. 19, Pp. 152-3.)

Embora o presente artigo, por alguma razão inexplicada, tenha sido deixado inacabado por Freud, ele retoma seu tema um pouco mais tarde, nas duas ou três últimas páginas do Capítulo VIII de seu Esboço de Psicanálise (1940a [1938]),ver em  [1],[2],[3],[4] acima. Aí, contudo, estende a aplicação da idéiade uma divisão de ego, para além dos casos de fetichismo e das psicoses, às psicoses, às neuroses em geral. Dessa maneira, o tópico vincula-se à questão mais ampla da ‘alteração do ego’, invariavelmente ocasionada pelos processos de defesa. Isso, mais uma vez, era algo com que Freud lidara recentemente, em seu artigo técnico sobre ‘Análise Terminável e Interminável’ (1937c, especialmente na Seção V), mas que nos conduz de volta a tempos bastante iniciais, ao segundo artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b), Standard Ed., 3, p. 185, e o ainda mais inicial Rascunho K da correspondência com Fliess (1950a).

 

A DIVISÃO DO EGO NO PROCESSO DE DEFESA

 

Encontro-me, por um momento, na interessante posição de não saber se o que tenho a dizer deve ser encarado como há muito tempo conhecido ou como algo inteiramente novo e enigmático. Estou, porém, inclinado a pensar que é este último.

Acabei por ficar impressionado pelo fato de que o ego de uma pessoa a quem conhecemos como paciente em análise, deve, dezenas de anos atrás quando era jovem, ter-se comportado de maneira notável em certas situações específicas de pressão. Podemos designar em termos gerais e um tanto vagos as condições nas quais isso sucede, dizendo que ocorre sob a influência de um trauma psíquico. Prefiro selecionar um caso especial isolado e nitidamente definido, ainda que ele, certamente, não abranja todos os modos possíveis de causação.

Suponhamos, portanto, que o ego de uma criança se encontra sob a influência de uma poderosa exigência instintual que está acostumado a satisfazer, e que é subitamente assustado por uma experiência que lhe ensina que a continuação dessa satisfação resultará num perigo real quase intolerável. O ego deve então decidir reconhecer o perigo real, ceder-lhe passagem e renunciar à satisfação instintual, ou rejeitar a realidade e convencer-se de que não há razão para medo, de maneira a poder conservar a satisfação. Existe assim um conflito entre a exigência por parte do instinto e a proibição por parte da realidade. Na verdade, porém, a criança não toma nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente, o que equivale à mesma coisa. Ela responde ao conflito por duas reações contrárias, ambas válidas e eficazes. Por um lado, com o auxílio de certos mecanismos, rejeita a realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; por outro, no mesmo alento, reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma patológico e subseqüentemente tenta desfazer-se do medo. Deve-se confessar que se trata de uma solução bastante engenhosa da dificuldade. Ambas as partes na disputa obtêm sua cota: permite-se que o instinto conserve sua satisfação e mostra-se um respeito apropriado pela realidade. Mas tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra, e esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no ego, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo passa. As duas reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma divisão (splitting) do ego. Todo esse processo nos parece tão estranho porque tomamos por certa a natureza sintética dos processos do ego. Quanto aisso, porém, estamos claramente em falta. A função sintética do ego, embora seja de importância tão extraordinária, está sujeita a condições particulares e exposta a grande número de distúrbios.

Será de ajuda que eu introduza uma história clínica individual nessa dissertação esquemática. Um menino, quando se achava entre os três e quatro anos de idade, familiarizou-se com os órgãos genitais femininos mediante a sedução por parte de uma menina mais velha. Depois que essas relações foram interrompidas, ele prosseguiu a estimulação sexual, posta em andamento dessa maneira, praticando zelosamente a masturbação manual; cedo, porém, foi apanhado nela por sua enérgica babá e ameaçado de castração, cuja realização foi, como de costume, atribuída ao pai. Estavam assim presentes nesse caso condições calculadas para produzir um tremendo efeito de susto. Em si mesma, uma ameaça de castração não necessita produzir grande impressão. A criança se recusará a acreditar nela, pois não pode imaginar facilmente a possibilidade de perder uma parte tão altamente prezada de seu corpo. A visão [anterior] dos órgãos genitais femininos poderia ter convencido nossa criança dessa possibilidade. Mas ela não tirou conclusão alguma disso, já que sua desinclinação a fazê-lo era grande demais e não havia motivo presente que a isso o compelisse. Pelo contrário, qualquer apreensão que pudesse ter sentido foi acalmada pela reflexão de que aquilo que ainda faltava faria seu aparecimento: ela desenvolveria um [pênis] mais tarde. Todo aquele que tenha observado meninos bastante pequenos será capaz de recordar que se deparou com alguma observação desse tipo à visão dos órgãos genitais de uma irmãzinha. Mas é diferente se ambos os fatores estão presentes em conjunto. Nesse caso, a ameaça revive a lembrança da percepção que até então fora considerada como inofensiva, encontrando nessa lembrança uma confirmação temível. O menino agora pensa compreender por que os órgãos genitais da menina não apresentavam sinais de pênis, e não mais se arrisca a duvidar de que seus próprios órgãos genitais possam encontrar o mesmo destino. Daí por diante, ele não pode deixar de acreditar na realidade do perigo de castração.

O resultado costumeiro do susto da castração, aquele que passa por normal, é que imediatamente, ou depois de considerável luta, o menino cede à ameaça e obedece à proibição, integralmente ou pelo menos emparte (isto é, não mais tocando nos genitais com as mãos). Em outras palavras, ele abandona, no todo ou em parte, a satisfação do instinto. Estamos preparados para ouvir, contudo, que nosso paciente atual encontrou outra saída. Criou um substituto para o pênis de que sentia falta nos indivíduos do sexo feminino — o que equivale a dizer, um fetiche. Procedendo assim, é verdade que rejeitou a realidade, mas poupou seu próprio pênis. Enquanto não foi obrigado a reconhecer que as mulheres tinham perdido o pênis delas, não houve necessidade, para ele, de acreditar na ameaça que lhe fora feita; não precisava temer por seu próprio pênis, de modo que prosseguiu imperturbado com sua masturbação. Esse comportamento por parte de nosso paciente forçosamente nos impressiona como sendo um afastamento da realidade — procedimento que preferiríamos reservar para as psicoses. E ele, de fato, não é muito diferente. Contudo, suspenderemos nosso julgamento, já que, a uma inspeção mais rigorosa, descobriremos uma distinção não pouco importante. O menino não contradisse simplesmente suas percepções, e alucinou um pênis onde nada havia a ser visto; ele não fez mais do que um deslocamento de valor — transferiu a importância do pênis para outra parte do corpo, procedimento em que foi auxiliado pelo mecanismo de regressão (de uma maneira que não precisa ser explicada aqui). Esse deslocamento, é verdade, relacionou-se apenas ao corpo feminino; com referência a seu próprio pênis, nada se modificou.

Essa maneira de lidar com a realidade, que quase merece ser descrita como astuta, foi decisiva quanto ao comportamento prático do menino. Ele continuou com sua masturbação como se esta não implicasse perigo para seu pênis; ao mesmo tempo, porém, em completa contradição com sua aparente audácia ou indiferença, desenvolveu um sintoma que demonstrava que, todavia, reconhecia o perigo. Ele fora ameaçado de ser castrado pelo pai e, imediatamente após, de modo simultâneo à criação de seu fetiche, desenvolveu um intenso medo de que o pai o punisse, medo que exigiu toda a força de sua masculinidade para ser dominado e supercompensado. Também esse medo do pai silenciava sobre o tema da castração; pela ajuda da regressão à fase oral, assumia a forma de um medo de ser comido pelo pai. Nesse ponto, é impossível esquecer um primitivo fragmento da mitologia grega, que nos conta como Cronos, o velho Deus Pai, engoliu os filhos e procurou engolir seu filho mais novo, Zeus, tal como os restantes, e como Zeus foi salvo pela habilidade de sua mãe que, posteriormente, castrou o pai. Contudo, temos de retornar à nossa história clínica e acrescentar que o menino produziu ainda outro sintoma, leve embora, o qual ele reteve até o dia de hoje. Tratava-se de uma suscetibilidade ansiosa contra o fato de qualquer de seus dedinhos do pé ser tocado, como se, em todo o vaivém entre rejeição e reconhecimento, fosse todavia a castração que encontrasse a expressão mais clara…

 

ALGUMAS LIÇÕES ELEMENTARES DE PSICANÁLISE (1940 [1938])

 

SOME ELEMENTARY LESSONS IN PSYCHO-ANALYSIS

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1940 Int. Z. Psychoanal., Imago, 25 (1), 21-2. (Em parte.)

1941 G. W. 17, 141-7. (Completo.)

 

(b)TRADUÇÕES INGLESAS:

1940 Int. J. Psycho-Anal., 21 (1), 83-4. (Em parte.) (Trad. de James Strachey.)

1950 C. P., 5, 376-82. (Completo. Mesmo tradutor.)

 

A presente tradução é reimpressão revista da que foi publicada em 1950.As publicações parciais originais foram publicadas como nota de rodapé à primeira edição alemã do Esboço de Psicanálise (1940 [1938]) e como Apêndice à primeira tradução inglesa dessa obra.

 

O título do original está em inglês. Foi escrito em Londres e o manuscrito vem datado de 20 de outubro de 1938. Permaneceu, porém, como um fragmento. o Esboço fora abandonado em começos de setembro anterior — também um fragmento, mas muito maior e mais importante —, e este constituiu uma abordagem nova e diferente do mesmo problema. Cf. exame mais completo da Nota do Editor Inglês ao Esboço,ver em [1].

 

ALGUMAS LIÇÕES ELEMENTARES DE PSICANÁLISE

 

Um autor que se dispõe a introduzir algum ramo do conhecimento — ou, para falar de modo mais modesto, algum ramo da pesquisa — para um público não instruído tem claramente de fazer sua escolha entre dois métodos ou técnicas.

É possível partir daquilo que todo leitor sabe (ou pensa que sabe) e encara como auto-evidente, sem, em primeira instância, contradizê-lo. Logo ocorrerá oportunidade de chamar a atenção dele para fatos do mesmo campo que, embora lhe sejam conhecidos, até então negligenciou ou apreciou de modo insuficiente. Partindo destes, podem-se-lhe apresentar novos fatos dos quais não tem conhecimento e assim prepará-lo para a necessidade de ultrapassar seus juízos anteriores, de procurar novos pontos de vista e de levar em consideração novas hipóteses. Dessa maneira, pode-se conseguir que ele tome parte na construção de uma nova teoria sobre o assunto, e lidar com suas objeções para com ela durante o decurso concreto do trabalho conjunto. Um método desse tipo bem poderia ser chamado de genético. Ele segue o caminho ao longo do qual o próprio investigador viajou anteriormente. Apesar de todas as suas vantagens, tem o defeito de não ocasionar um efeito suficientemente impressivo sobre aquele que aprende. Este não ficará tão impressionado por algo a que assistiu vir à existência e passar por um lento e difícil período de crescimento, quanto ficará por algo que lhe é apresentado já pronto, como um todo aparentemente auto-abrangente.

É exatamente esse último efeito que é produzido pelo método alternativo de apresentação. O outro método, o dogmático, começa diretamente pelo enunciado de suas conclusões. Suas premissas fazem exigências à atenção e à crença da assistência, e muito pouco lhes é aduzido em apoio. E há ainda o perigo de que um ouvinte crítico balance a cabeça e diga: ‘tudo isso soa muito peculiar; de onde foi que esse sujeito o tirou?’

No que se segue, não me basearei exclusivamente em nenhum dos dois métodos de apresentação: farei uso ora de um, ora de outro. Não tenho ilusões sobre a dificuldade de minha tarefa. A psicanálise tem poucas perspectivas de se tornar apreciada ou popular. Não se trata simplesmente do fato de que muito do que ela tem a dizer ofende os sentimentos das pessoas. Uma dificuldade quase igual é criada pelo fato de nossa ciência envolver certo número de hipóteses — é difícil dizer se elas devem ser encaradas como postulados ou como produtos de nossa pesquisas — que estão sujeitas a parecerem muito estranhas às modalidades comuns de pensamento e que contradizem fundamentalmente opiniões correntes. Mas não há saída para isso. Temos de começar nosso breve estudo com duas dessas arriscadas hipóteses.

 

A NATUREZA DO PSÍQUICO

 

A psicanálise constitui uma parte da ciência mental da psicologia. Também é descrita como ‘psicologia profunda’; mais tarde, descobriremos por quê. Se alguém perguntar o que realmente significa ‘o psíquico’, será fácil responder pela enumeração de seus constituintes: nossas percepções, idéias, lembranças, sentimentos e atos volitivos — todos fazem parte do que é psíquico. Mas se o interrogador for mais longe e perguntar se não existe alguma qualidade comum, possuída por todos esses processos, que torne possível chegar mais perto da natureza, ou, como as pessoas às vezes dizem, da essência do psíquico, então será mais difícil fornecer uma resposta.

Se uma pergunta análoga tivesse sido feita a um físico (quanto à natureza da eletricidade, por exemplo), a resposta deste, até muito recentemente, teria sido: ‘Para o fim de explicar certos fenômenos, presumimos a existência de forças elétricas que estão presentes nas coisas e que delas emanam. Estudamos esses fenômenos, descobrimos as leis que os governam e até mesmo colocamo-los em uso prático. Isso nos satisfaz provisoriamente. Não conhecemos a natureza da eletricidade. Talvez possamos descobri-la mais tarde, na medida em que nosso trabalho progrida. Há que admitir que aquilo que dela ignoramos é precisamente a parte mais importante e interessante de todo o assunto, mas, no momento, isso não nos preocupa. É simplesmente como as coisas acontecem nas ciências naturais.’

Também a psicologia é uma ciência natural. O que mais pode ser? Mas seu caso é diferente. Nem todos são bastante audazes para emitir julgamento sobre assuntos físicos, mas todos — tanto o filósofo quanto o homem da rua — têm sua opinião sobre questões psicológicas e se comportam como se fossem, pelo menos, psicólogos amateurs. E agora vem a coisa notável. Todos — ou quase todos — concordaram que o que é psíquico tem realmente uma qualidade comum na qual sua essência se expressa, a saber, a qualidade de ser consciente — única, indescritível, mas sem necessitar de descrição. tudo o que é consciente, dizem eles, é psíquico, e, inversamente, tudo o que é psíquico é consciente; isso é auto-evidente e contradizê-lo é absurdo. Não se pode dizer que essa decisão lance muita luz sobre a natureza do psíquico,pois a consciência é um dos fatos fundamentais de nossa vida e nossas pesquisas dão contra ele como contra uma parede lisa, e não podem encontrar qualquer caminho além. Ademais, a igualação do que é mental ao que é consciente tem o resultado incômodo de divorciar os processos psíquicos do contexto geral dos acontecimentos no universo e de colocá-los em completo contraste com todos os outros. Mas isso não serviria, uma vez que não se pode desprezar por muito tempo o fato de que os fenômenos psíquicos são em alto grau dependentes das influências somáticas e o de que, por seu lado, possuem os mais poderosos efeitos sobre os processos somáticos. Se alguma vez o pensamento humano se encontrou num impasse, foi aqui. Para descobrir uma saída, os filósofos, pelo menos, foram obrigados a presumir que havia processos orgânicos paralelos aos processos psíquicos conscientes, a eles relacionados de uma maneira difícil de explicar, que atuavam como intermediários nas relações recíprocas entre ‘corpo e mente’, e que serviam para reinserir o psíquico na contextura da vida. Mas essa solução permaneceu insatisfatória.

A psicanálise escapou a dificuldades como essas, negando energicamente a igualação entre o que é psíquico e o que é consciente. Não; ser consciente não pode ser a essência do que é psíquico. É apenas uma qualidade do que é psíquico, e uma qualidade inconstante — uma qualidade que está com muito mais freqüência ausente do que presente. O psíquico, seja qual for sua natureza, é em si mesmo inconsciente e provavelmente semelhante em espécie a todos os outros processos naturais de que obtivemos conhecimento.

A psicanálise baseia essa asserção numa série de fatos, dos quais passarei agora a fornecer uma seleção.

Sabemos o que se quer dizer por idéias que ‘ocorrem’ a alguém — pensamentos que subitamente vêm à consciência sem que se esteja ciente dos passos que a eles levaram, embora também estes devam ter sido atos psíquicos. Pode mesmo acontecer que se chegue dessa maneira à solução de algum difícil problema intelectual, que anteriormente, durante certo tempo, frustrou nossos esforços. Todos os complicados processos de seleção, rejeição e decisão que ocuparam o intervalo foram retirados da consciência. Não estaremos apresentando nenhuma teoria nova se dissermos que eles foram inconscientes e que talvez, também, assim permaneceram.

Em segundo lugar, colherei um exemplo isolado para representar uma imensa classe de fenômenos. O presidente de um órgão público (a CâmaraBaixa do Parlamento Austríaco) em certa ocasião abriu uma reunião com as seguintes palavras: ‘Constato que um quorum completo de membros está presente e por isso declaro encerrada a sessão.’ Foi um lapso verbal, pois não pode haver dúvida de que aquilo que o presidente pretendia dizer era ‘aberta’. Por que então disse o contrário? Esperaremos que nos digam que foi um equívoco acidental, uma falha em levar a cabo uma intenção, tal como pode facilmente acontecer por diversas razões: não teve significado e, de qualquer modo, os contrários, de modo particular e fácil, substituem-se uns aos outros. Se, contudo, tivermos em mente a situação em que o lapso verbal ocorreu, ficaremos inclinados a preferir outra explicação. Muitas das sessões anteriores da Câmara tinham sido desagradavelmente tempestuosas e nada haviam produzido, de modo que seria muito natural que o presidente pensasse, no momento de fazer sua declaração de abertura: ‘Se a sessão que está apenas começando estivesse acabada! Preferiria muito mais encerrá-la do que abri-la!’ Quando começou a falar, provavelmente não estava cônscio desse desejo — não lhe era consciente —, mas ele achava-se certamente presente e alcançou sucesso em se fazer efetivo, contra a vontade do orador, em seu aparente equívoco. Um exemplo isolado dificilmente pode capacitar-nos a decidir entre duas explicações tão diferentes. Mas, e se todos os outros exemplos de lapsos verbais pudessem ser explicados da mesma maneira, e, semelhantemente, todos os lapsos de escrita, todos os casos de leitura ou audição equivocada, e todos os atos falhos? E se em todos esses casos (sem uma única exceção, poder-se-ia corretamente dizer) fosse possível demonstrar a presença de um ato psíquico — um pensamento, um desejo ou uma intenção — que explicasse o equívoco aparente e que fosse inconsciente no momento em que se tornou efetivo, ainda que anteriormente pudesse ter sido consciente? Se assim fosse, realmente não seria mais possível discutir o fato de que existem atos psíquicos que são inconscientes e o de que às vezes eles são mesmo ativos enquanto se acham inconscientes, e nesse caso podem inclusive, ocasionalmente, levar a melhor sobre as intenções conscientes. A pessoa envolvida num equívoco desse tipo pode reagir a ele de diversas maneiras. Pode desprezá-lo completamente ou notá-lo e ficar embaraçada e envergonhada. Via de regra, não pode encontrar a explicação dele por si própria, sem auxílio externo, e quase sempre se recusa — por certo tempo, pelo menos — a aceitar a solução quando esta lhe é apresentada.

Em terceiro lugar, finalmente, é possível, no caso de pessoas em estado de hipnose, provar experimentalmente que existem coisas tais como atos psíquicos inconscientes e que a consciência não constitui condição indispensável da atividade [psíquica]. Todo aquele que tenha assistido a uma experiência desse tipo receberá uma impressão inesquecível e uma convicção que jamais poderá ser abalada. Aqui temos, mais ou menos, o que acontece. O médico entra na enfermaria do hospital, coloca seu guarda-chuva a um canto, hipnotiza um dos pacientes e lhe diz: ‘Vou sair agora. Quando eu entrar de novo, você virá a meu encontro com o guarda-chuva aberto e o segurará sobre minha cabeça.’ O médico e seus assistentes deixam então a enfermaria. Assim que retornam, o paciente, que não está mais sob hipnose, executa exatamente as instruções que lhe foram dadas enquanto hipnotizado. O médico o interroga: ‘O que é que você está fazendo? Qual é o significado disso tudo?’ O paciente fica claramente embaraçado. Faz alguma observação desajeitada, tal como: ‘Como está chovendo lá fora, doutor, achei que o senhor abriria seu guarda-chuva na sala antes de sair.’ A explicação é evidentemente bastante inadequada e efetuada impulsivamente, para oferecer algum tipo de motivo para seu comportamento insensato. É claro para nós, espectadores, que ele ignora seu motivo real. Nós, contudo, sabemos qual é, pois estávamos presentes quando lhe foi feita a sugestão que ele está levando a cabo agora, ao passo que ele próprio nada sabe do fato que se acha em ação nele.

A questão da relação do consciente com o psíquico pode agora ser considerada resolvida: a consciência é apenas uma qualidade inconstante. Mas há ainda uma objeção com a qual temos de lidar. Dizem-nos que, apesar dos fatos mencionados, não há necessidade de abandonar a identidade entre o que é consciente e o que é psíquico: os chamados processos psíquicos inconscientes são os processos orgânicos que há muito tempo foram reconhecidos como correndo paralelos aos mentais. Isso, naturalmente, reduziria nosso problema a uma questão aparentemente indiferente de definição. Nossa resposta é que seria injustificável e inconveniente provocar uma brecha na unidade da vida mental em benefício da sustentação de uma definição, de uma vez que é claro, seja lá como for, que a consciência só nos pode oferecer uma cadeia incompleta e rompida de fenômenos. E dificilmente pode ser questão de acaso que só depois de ter sido efetuada a mudança na definição do psíquico, se tenha tornado possível construir uma teoria abrangente e coerente da vida mental.Tampouco é preciso supor que essa visão alternativa do psíquico constitui uma inovação devida à psicanálise. Um filósofo alemão, Theodor Lipps afirmou muito explicitamente que o psíquico é em si mesmo inconsciente e que o inconsciente é o verdadeiro psíquico. O conceito de inconsciente por muito tempo esteve batendo aos portões da psicologia, pedindo para entrar. A filosofia e a literatura quase sempre o manipularam distraidamente, mas a ciência não lhe pôde achar uso. A psicanálise apossou-se do conceito, levou-o a sério e forneceu-lhe um novo conteúdo. Por suas pesquisas, ela foi conduzida a um conhecimento das características do inconsciente psíquico que até então não haviam sido suspeitadas, e descobriu algumas das leis que o governam. Mas nada disso implica que a qualidade de ser consciente tenha perdido sua importância para nós. Ela permanece a única luz que ilumina nosso caminho e nos conduz através das trevas da vida mental. Em conseqüência do caráter especial de nossas descobertas, nosso trabalho científico em psicologia consistirá em traduzir processos inconscientes em conscientes, e assim preencher as lacunas da percepção consciente…

 

UM COMENTÁRIO SOBRE O ANTI-SEMITISMO (1938)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

EIN WORT ZUM ANTISEMITISMUS

 

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1938   Die Zukunft: ein neues Deustschland ein neues Europa, nº 7, 2. (25 de novembro.)

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

 

‘On Antisemitism’

1938   Como acima. (Tradutor não especificado.)

 

A presente tradução é da autoria de James Strachey.

 

Alguns pormenores do periódico em que este trabalho apareceu foram fornecidos por Arthur Koestler (1954, p. 406 e segs.), que o editava na época em que estamos interessados. Era publicado em Paris e ele o descreveu como ‘um semanário alemão émigré‘. Começou sua publicação no outono de 1938 e cessou-a cerca de 18 meses mais tarde. O Sr Koestler esteve encarregado dele durante os primeiros meses de sua existência. O número específico em que o artigo de Freud apareceu foi um número ‘anglo-alemão’, impresso em ambas as línguas, e o Sr. Koestler relata que veio até Londres para persuadir Freud a contribuir para o mesmo. O periódico é hoje difícil de conseguir e ficamos em débito para com o Dr. K. R. Eissler, dos Arquivos Sigmund Freud, por nos fornecer cópias fotostáticas do manuscrito original de Freud, do artigo impresso e da tradução contemporânea, anônima e muito livre.

O artigo, como se verá, consiste quase integralmente na citação de uma fonte que Freud declara que não mais pode traçar. Foi sugerido com alguma plausibilidade (cf. Ernest Jones, 1957, p. 256) que a citação, realmente, é do próprio Freud, que assim escolheu uma maneira indireta de expressar algumas opiniões bastante antipáticas. Seja como for, existe um forte parentesco entre muito do que está aqui contido e as opiniões apresentadas por Freud em outros lugares, particularmente em Moisés e o Monoteísmo (1939a), que acabara de completar. (Ver, por exemplo, os exames do caráter judeu na Parte I (D) e Parte II (A) do terceiro ensaio.) E, ainda, o apelo, feito tão convincentemente aqui, para que os protestos contra a perseguição aos judeus fossemfeitos por não judeus, aparece também na carta de Freud a Time and Tide (1938c—3), publicada apenas um dia após o presente artigo ver em ([1]).

UM COMENTÁRIO SOBRE O ANTI-SEMITISMO

 

Examinando as considerações na imprensa e na literatura provocadas pelas recentes perseguições aos judeus, deparei-me com um determinado ensaio que me impressionou como sendo tão fora do comum, que dele fiz um précis para meu próprio uso. O que o autor escreveu foi aproximadamente o seguinte:

‘A título de prefácio, devo explicar que não sou judeu e, portanto, não sou levado a fazer estas observações por qualquer preocupação egoísta. Entretanto, senti um vivo interesse pelos excessos anti-semitas da atualidade e dirigi minha atenção particular para os protestos contra eles. Esses protestos provieram de duas direções — a eclesiástica e a secular —, os primeiros em nome da religião, os últimos a apelar para os direitos de humanidade. Os primeiros foram escassos e vieram tarde, mas vieram por fim, e mesmo Sua Santidade, o Papa elevou sua voz. Confesso que houve algo de que senti falta nas demonstrações provindas de ambos os lados — algo em seu começo e também em seu fim. Tentarei agora fornecê-lo.

‘Todos esses protestos, penso eu, poderiam ser precedidos por uma introdução específica, que diria: “bem, é verdade, tampouco eu gosto de judeus. De certa maneira, eles me parecem estranhos e antipáticos. Têm muitas qualidades desagradáveis e grandes defeitos. Acho também que a influência que tiveram sobre nós e nossos assuntos foi predominantemente nociva. Sua raça, comparada à nossa, é obviamente inferior; todas as suas atividades argumentaram em favor disso.” E após isso, que é coisa que esses protestos realmente contêm, poderia seguir-se sem qualquer discrepância: “Mas nós professamos uma religião de amor. Deveríamos amar inclusive nossos inimigos como a nós mesmos. Sabemos que o Filho de Deus deu Sua vida na Terra para redimir todos os homens do fardo do pecado. Ele constitui nosso modelo e, portanto, é pecar contra a Sua intenção e contra as ordens da religião cristã consentirmos que os judeus sejam insultados, maltratados, despojados e mergulhados na desgraça. Deveríamos protestar contra isso, independentemente de quão muito ou pouco os judeus mereçam esse tratamento.” O escritores seculares, que acreditam no evangelho da humanidade, protestam em termos semelhantes.

‘Confesso que não fiquei satisfeito com nenhuma dessas demonstrações. À parte a religião do amor e da humanidade, há também uma religião da verdade, e ela tem-se saído muito mal nesses protestos. Mas a verdade é que, por longos séculos, tratamos o povo judeu injustamente, e que assim continuamos a proceder por julgá-los injustamente. Quem quer de nós que não comece por admitir nossa culpa não cumpriu seu dever quanto a isso. Os judeus não são piores do que nós; eles possuem características um tanto diferentes e defeitos um tanto diferentes, mas, no total, não temos direito a olhá-los de cima. Sob alguns aspectos, na verdade, são superiores a nós. Não necessitam de tanto álcool quanto nós para tornar tolerável a vida; crimes de brutalidade, assassinato, roubo e violência sexual são raridades entre eles; sempre concederam alto valor à realização e aos interesses intelectuais; sua vida familiar é mais íntima; cuidam melhor dos pobres; para eles, a caridade é um dever sagrado. Tampouco podemos chamá-los, em qualquer sentido, de inferiores. Desde que permitimos que eles cooperassem em nossas tarefas culturais, granjearam méritos por contribuições valiosas em todas as esferas da ciência, arte e tecnologia, e reembolsaram abundantemente nossa tolerância. Assim, cessemos por fim de lhes conceder favores, quando têm direito à justiça.’

Era natural que um partidarismo tão determinado oriundo de alguém que não era judeu causasse impressão profunda em mim. Mas tenho agora de fazer uma confissão notável. Sou homem muito velho e minha memória já não é o que era. Não consigo mais recordar onde foi que li o ensaio de que fiz o précis, nem quem era seu autor. Será que algum dos leitores deste periódico é capaz de vir em minha ajuda?

Acabou de chegar a meus ouvidos um sussurro de que aquilo que eu provavelmente tinha em mente era o livro do Conde Heinrich Coudenhove-Kalergi, Das Wesen des Antisemitismus [A Essência do Anti-Semitismo], que contém precisamente aquilo que o autor de que estou em busca sentiu falta nos protestos recentes, e outras coisas mais. Conheço o livro. Apareceu pela primeira vez em 1901 e foi relançado pelo filho (Conde Richard Coudenhove-Kalergi] em 1929, com uma introdução admirável. Mas não pode ser esse. Aquilo em que estou pensando é um pronunciamento mais sucinto e de data muito recente. Ou será que estou inteiramente enganado? Não existe nada dessa espécie? E o trabalho dos dois Coudenhove não teve qualquer influência em nossos contemporâneos?

Sigm. Freud

 

BREVES ESCRITOS (1937-1938)

 

LOU ANDREAS-SALOMÉ (1937)

 

A 5 de fevereiro deste ano, Frau Lou Andreas-Salomé faleceu pacificamente em sua casinha de Göttingen, com quase 76 anos de idade. Durante os últimos 25 anos de sua vida, essa notável mulher esteve ligada à psicanálise, à qual contribuiu com trabalhos valiosos e que também praticou. Não estarei dizendo demais se reconhecer que todos nós sentimos como uma honra quando ela se juntou às fileiras de nossos colaboradores e companheiros de armas, e, ao mesmo tempo, como uma nova garantia da verdade das teorias da análise.

Sabia-se que, quando moça, ela manteve intensa amizade com Friedrich Nietzsche, baseada em sua profunda compreensão das audazes idéias do filósofo. Esse relacionamento teve um fim abrupto quando ela recusou a proposta de casamento que ele lhe fez. Era bem sabido, também, que, muitos anos depois, ela atuou como Musa e mãe protetora para Rainer Maria Rilke, o grande poeta, que era um pouco desamparado em enfrentar a vida. Além disso, porém, sua personalidade permaneceu obscura. Sua modéstia e discrição eram mais do que comuns. Ela nunca falou de suas próprias obras poéticas e literárias. Claramente sabia onde devem ser procurados os verdadeiros valores da vida. Aqueles que lhe foram mais íntimos tiveram a mais forte impressão da genuinidade e da harmonia de sua natureza, e puderam descobrir com espanto que todas as fraquezas femininas e talvez a maioria das fraquezas humanas lhe eram estranhas ou tinham sido por ela vencidas no decorrer de sua vida.

Foi em Viena que, há muito tempo atrás, o mais comovente episódio de seu destino feminino fora representado. Em 1912, ela retornou a Viena, a fim de ser iniciada na psicanálise. Minha filha, que foi sua amiga íntima, ouviu-a um dia lamentar não ter conhecido a psicanálise em sua juventude. Mas, afinal, naqueles dias não existia tal coisa.

Sigm. Freud

Fevereiro de 1937.

 

ACHADOS, IDÉIAS, PROBLEMAS (1941 [1938])

 

Londres, junho.

16 de junho. — é interessante que, em conexão com experiências primitivas, quando contrastadas com experiências posteriores, todas as variadas reações a elas sobrevivem, naturalmente inclusive as contraditórias. Em vez de uma decisão, que teria sido o desfecho mais tarde. Explicação: fraqueza do poder de síntese, retenção da característica dos processos primários.

12 de julho. — Como um substituto para a inveja do pênis, identificação com o clitóris: expressão mais nítida de inferioridade, fonte de todas as inibições. Ao mesmo tempo [no caso X], rejeição da descoberta de que as outras mulheres também não possuem pênis.

‘Ter’ e ‘ser’ nas crianças. As crianças gostam de expressar uma relação de objeto por uma identificação: ‘Eu sou o objeto.’ ‘Ter’ é o mais tardio dos dois; após a perda do objeto, ele recai para ‘ser’. Exemplo: o seio. ‘O seio é uma parte de mim, eu sou o seio.’ Só mais tarde: ‘Eu o tenho’ — isto é, ‘eu não sou ele’…

12 de julho. — Com os neuróticos, é como se estivéssemos numa paisagem pré-histórica — no Jurássico, por exemplo. Os grandes sáurios ainda andam por ali; as cavalinhas crescem tanto quanto as palmeiras (?).

20 de julho. — A hipótese de existirem vestígios herdados no id altera, por assim dizer, nossos pontos de vista sobre ele.

20 de julho. — O indivíduo perece por seus conflitos internos; a espécie, em sua luta com o mundo externo ao qual não está mais adaptada. — Isso merece ser incluído no Moisés.

3 de agosto. — Um sentimento de culpa também se origina do amor insatisfeito. Como o ódio. De fato, fomos obrigados a derivar toda coisaconcebível desse material: como Estados economicamente auto-suficientes com seus ‘produtos Ersatz [Substitutos]’.

3 de agosto. — O fundamento supremo de todas as inibições intelectuais e de todas as inibições de trabalho parece ser a inibição da masturbação na infância. Mas talvez isso vá mais fundo; talvez não seja sua inibição por influências externas, mas sua natureza insatisfatória em si. Há sempre algo que falta para a descarga e a satisfação completas — en attendant toujours quelque chose qui ne venalt point — e essa parte que falta, a reação do orgasmo, manifesta-se em equivalentes em outras esferas, em absences, acessos de riso, pranto [Xy], e talvez outras maneiras. — Mais uma vez a sexualidade infantil fixou nisso um modelo.

22 de agosto. — O espaço pode ser a projeção da extensão do aparelho psíquico. Nenhuma outra derivação é provável. Em vez dos determinantes a priori, de Kant, de nosso aparelho psíquico. A psique é estendida; nada sabe a respeito.

22 de agosto. — O misticismo é a obscura autopercepção do reino exterior ao ego, do id.

 

ANTI-SEMITISMO NA INGLATERRA (1938)

 

20 Maresfield GardensLondres, N. W. 316.11. 1938

Ao Redator-Chefe de Time and Tide.

Cheguei a Viena como uma criança de quatro anos de idade, vindo de uma cidadezinha da Morávia. Após 78 anos de trabalho assíduo, tive de abandonar meu lar, vi dissolvida a Sociedade Científica que fundei, destruídas nossas instituições, tomada pelos invasores nossa Impressora (‘Verlag’), os livros que publiquei confiscados ou reduzidos a bagaço, meus filhos expulsos de suas profissões. Não acha que deveria reservar as colunas de seu número especial para as manifestações de pessoas não judias, menos pessoalmente envolvidas do que eu próprio?

Com relação a isso, minha mente se apropria de um velho ditado francês:

Le bruit est pour le fatLa plainte est pour le sot;L’honnête homme trompéS’en va et ne dit mot.Sinto-me profundamente abalado pela passagem de sua carta que reconhece ‘um certo crescimento do anti-semitismo mesmo neste país.’ Não deveria a atual perseguição dar origem antes a uma onda de simpatia neste país?

Respeitosamente seu, Sigm. Freud

                                                                                             

 

                      

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