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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GERMINAL / Emili Zola
GERMINAL / Emili Zola

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GERMINAL

 

Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e espessura de tinta, um homem caminhava sozinho pela estrada real que vai de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterraba. A sua frente, não enxergava nem mesmo o solo negro e somente sentia o imenso horizonte achatado através do sopro do vento de março, rajadas largas como sobre um mar, geladas por terem varrido léguas de pântanos e terras nuas. Nem sombra de árvore manchava o céu; a estrada desenrolava-se reta como um quebra-mar em meio à cerração ofuscante das trevas.

O homem partira de Marchiennes lá pelas duas horas. Caminhava a passos largos, tiritando sob o algodão puído de sua jaqueta e da calça de veludo. Um pequeno embrulho, feito com um lenço de quadrados, incomodava-o bastante; ora o mantinha apertado debaixo de um braço, ora de outro, para poder assim enfiar no fundo dos bolsos as mãos entorpecidas que o açoite do vento leste fazia sangrar. Uma única idéia lhe ocupava o cérebro vazio de operário sem trabalho e sem teto, a esperança de que o frio se tornasse menos agudo com o romper do dia. Havia uma hora que ele caminhava assim, quando percebeu à esquerda, a dois quilômetros de Montsou, uns clarões vermelhos, três braseiros queimando ao ar livre, e como suspensos. A princípio hesitou, tomado de receio; mas logo após não pôde resistir à necessidade dolorosa de aquecer por um instante as mãos.

Entrou por um atalho que se afundava campo adentro. Tudo desapareceu. À sua direita o homem tinha uma paliçada, um pedaço de tapume feito de pranchas grossas protegendo uma via férrea, enquanto à esquerda se elevava um talude de erva encimado por empenas confusas, visão de uma aldeia de tetos baixos e uniformes. Percorrera uma distância aproximada de duzentos passos quando, bruscamente, numa volta do caminho, os fogos reapareceram próximos dele sem que o homem chegasse a compreender como podiam elevar-se tão alto no céu morto, iguais a luas enevoadas. Mas, ao nível do solo, outro espetáculo o fazia parar. Era uma massa pesada, um amontoado de construções de onde se levantava a silhueta da chaminé de uma fábrica. Raros clarões saíam das janelas sujas, cinco ou seis lampiões tristes pendiam do lado de fora das vigas de madeira

enegrecidas do edifício, alinhando vagamente perfis de cavaletes gigantescos. E, dessa aparição fantástica, engolfada na noite e na fumaça, um único ruído se elevava: o arfar grosso e prolongado de um escapamento de vapor, que não se via.

Só então o homem se deu conta de que aquilo era uma mina e a vergonha tomou conta dele. Para que tentar? Não haveria trabalho... Em vez de se dirigir para o edifício, decidiu escalar o terreno onde ardiam os três fogos de hulha em tachos de ferro fundido que serviam para alumiar e aquecer os homens no trabalho. Os operários encarregados do desaterro certamente tinham trabalhado até tarde, ainda estavam retirando o entulho. Agora ouvia os carregadores empurrando os vagonetes sobre os trilhos montados nos cavaletes, divisava sombras que se moviam descarregando os carros ao lado das fogueiras.

— Bom dia — disse ele aproximando-se de um dos fogos. 

Em pé, de costas para o fogo, encontrava-se o carroceiro, um velho com uma blusa de malha de lã violeta e gorro de pele de coelho; enquanto seu cavalo, um cavalo baio e gordo esperava, numa imobilidade de pedra, que esvaziassem os seis vagonetes puxados por ele. O trabalhador encarregado da descarga, um rapagão ruivo e esguio, parecia não ter pressa, e pressionava a alavanca com gestos lentos. No alto, o vento redobrava de intensidade, um sopro glacial feito de grandes golfadas regulares que cortavam como golpes de foice.

— Bom dia — respondeu o velho.

E de novo o silêncio. O homem, que se sentia olhado com desconfiança, disse logo o nome:

— Eu me chamo Etienne Lantier e sou operador de máquinas. Não haverá trabalho por aqui?

As chamas o iluminavam: devia ter vinte e um anos, bem moreno, belo homem, de aspecto vigoroso, apesar de os membros serem pouco desenvolvidos.

Tranqüilizado, o carroceiro abanou a cabeça.

— Trabalho para operador de máquinas, não, não há. Ainda ontem apareceram dois, mas não há nada.

Uma rajada de vento impediu-os de falar. Mas, em seguida, Etienne, indicando o amontoado sombrio das construções ao pé do aterro, perguntou

— É uma mina, não é?

Desta vez o velho não pôde responder imediatamente, um violento acesso de tosse o sufocava. Por fim escarrou, e seu escarro fez uma mancha negra no chão avermelhado.

— É, sim, é uma mina, a Voreux. E veja, lá bem próximo está o conjunto habitacional dos mineiros.

Por sua vez, com o braço estendido, indicava no escuro a aldeia cujos telhados o jovem já vira. Mas os seis vagonetes acabavam de ser descarregados e o homem os seguiu sem mesmo fazer estalar o chicote, as pernas rígidas pelo reumatismo, enquanto o cavalo baio partia sozinho, puxando-os a custo entre os varais, debaixo de uma nova rajada de vento que lhe eriçava os pêlos.

Agora a Voreux tornava-se realidade. Etienne, que continuava em frente ao braseiro aquecendo as pobres mãos escalavradas, olhava, começava a perceber cada uma das partes da mina, o galpão preto onde o carvão é peneirado, a torre do sino do poço, a vasta casa da máquina de extração, o torreão quadrado da bomba de esgoto. Esta mina, apertada no fundo de um buraco, com suas construções de tijolo atarracadas, de onde sobressaía uma chaminé que mais parecia um chifre ameaçador, dava-lhe a impressão de um animal voraz e feroz, agachado à espreita para devorar o mundo. Examinando-a, pensava em si, na sua existência de vagabundo que havia oito dias procurava trabalho; via-se na oficina da estrada de ferro, esbofeteando o chefe, expulso de Lille, expulso de toda parte; sábado tinha chegado a Marchiennes, onde se dizia que havia trabalho nas Forjas, e nada, nem nas Forjas nem em Sonneville: tivera de passar o domingo escondido sob as madeiras de uma fábrica de carroças, de onde o vigia acabava de expulsá-lo, às duas horas da madrugada. Nada, nem mais um tostão, nem mesmo uma côdea. Como continuar assim pelos caminhos, sem destino, não sabendo sequer onde abrigar-se do vento frio? Sim, era de fato uma mina, os raros lampiões iluminavam o pátio, uma porta subitamente aberta permitira-lhe vislumbrar as fornalhas das caldeiras das máquinas envoltas numa claridade viva. Encontrava explicação até para o escapamento da bomba, essa respiração grossa e ampla, resfolegando sem descanso, e que era como a respiração obstruída do monstro.

O encarregado da descarga dos vagonetes, de costas curvadas, nem mesmo levantara os olhos para Etienne. No momento em que este ia apanhar seu pequeno embrulho que estava no chão, um acesso de tosse anunciou-lhe a volta do carroceiro. Lentamente ele surgiu do escuro, seguido pelo cavalo baio que puxava outros seis vagonetes cheios.

— Há fábricas em Montsou? — perguntou o rapaz.

O velho escarrou preto antes de responder em meio à ventania:

— Fábricas é o que não falta. Você precisava ver há três ou quatro anos: tudo produzindo, faltava mão-de-obra, nunca se ganhou tanto. E, de repente, começa-se a apertar o cinto. Uma verdadeira desgraça cai sobre a região, o pessoal é despedido, as oficinas começam a fechar uma após outra. Talvez não seja culpa do imperador, mas que necessidade tem ele de ir lutar na América? E isso tudo sem contar os animais que morrem de cólera, como as pessoas.

E, em frases curtas, com a respiração entrecortada, ambos continuaram a lamentar-se. Etienne falou sobre seus passos inúteis que já duravam uma semana. Então havia-se de morrer de fome? Dentro em pouco as estradas estariam cheias de mendigos. Sim, retrucava o velho, tudo isso ia terminar mal, Deus não tinha o direito de jogar tantos cristãos na desgraça.

— Nem todo dia se tem carne.

— Se ao menos houvesse pão!

— É verdade, se ao menos houvesse pão!

Suas vozes se perdiam, rajadas de vento transformavam as palavras num lamento melancólico.

— Veja! — disse em voz alta o carroceiro, voltando-se para o sul. — Montsou fica para lá.

E com a mão novamente estendida designou nas trevas pontos invisíveis, à medida que os nomeava. Lá, em Montsou, a refinaria de açúcar Fauvelle ainda trabalhava, mas a Hoton reduzira o pessoal. As únicas que ainda se agüentavam: a fábrica de moagem Dutilleul e a cordoaria Bleuze, que fazia cabos de mina. Depois, com um gesto largo, indicou, ao norte, a metade do horizonte: as oficinas de construção de Sonneville não tinham recebido nem dois terços das encomendas habituais; dos três altos-fornos das Forjas de Marchiennes, só dois estavam em serviço; e, finalmente, na fábrica de vidros Gagebois havia ameaça de greve porque se falava em redução de salário.

— Sei, sei — repetia o rapaz a cada indicação. — De lá venho eu.

— Para nós aqui, as coisas até agora estão indo — continuou o carroceiro. — Contudo, as minas diminuíram a extração. E repare, em frente, na Victoire, há apenas duas baterias de fornos de coque acesas.

Escarrou, e seguiu de novo atrás do cavalo sonolento, depois de o ter atrelado aos vagonetes vazios.

Agora Etienne dominava toda a região. As trevas continuavam profundas, mas a mão do velho como que as povoara de grandes misérias, que o jovem, inconscientemente, sentia naquela hora à sua volta, por toda parte, na amplidão sem termo. Não era um grito de fome que rolava com o vento de março através destes campos nus? As rajadas do vento haviam aumentado e pareciam trazer consigo a morte do trabalho, uma escassez que mataria muitos homens. E, com os olhos errando de um ponto a outro, ele se esforçava por furar as sombras, atormentado pelo desejo e pelo medo de ver.

Tudo se aniquilava no fundo desconhecido das noites obscuras; só percebia, muito ao longe, os altos-fornos e as fornalhas de coque. Estas, baterias de cem chaminés erguidas obliquamente, alinhavam rampas de chamas rubras, enquanto as duas torres, mais à esquerda, ardiam, azuis, em pleno céu, como tochas gigantescas. Era uma tristeza de incêndio, não havia no horizonte ameaçador outros astros elevando-se a não ser esses fogos noturnos dos países da hulha e do ferro.

— Você é da Bélgica, não é? — perguntou por trás de Etienne o carroceiro, que estava de volta.

Desta vez ele trouxera apenas três vagonetes. Um acidente na gávea de extração, uma porca quebrada, iria retardar o trabalho por um bom quarto de hora, mas estes vagonetes ainda podiam ser descarregados. Ao pé do aterro reinava silêncio, os carregadores não estavam mais sacudindo os cavaletes com uma rotação prolongada. Ouvia-se apenas sair de dentro da mina o ruído longínquo de um martelo batendo o ferro.

— Não, sou do sul — respondeu o jovem.

O encarregado de despejar os vagonetes sentara-se no chão, feliz com o acidente. E continuava no seu mutismo selvagem, erguera apenas os grandes olhos mortiços para o carroceiro, como incomodado com toda aquela conversa. Na verdade, este último, de hábito, não falava muito. Era preciso que o rosto de um desconhecido lhe agradasse e que ele estivesse tomado por um desses desejos imperiosos de confidencias que fazem, às vezes, as pessoas idosas falarem sozinhas, em voz alta.

— Eu — disse ele — sou de Montsou e chamo-me Boa-Morte.

— E apelido? — perguntou Etienne admirado.

O velho riu com gosto e, apontando para Voreux, respondeu:

— É, é... Retiraram-me três vezes lá de dentro, em pedaços. Uma vez com o cabelo todo chamuscado, outra com terra até o bucho e a terceira com a barriga cheia de água, como uma rã... Foi então que eles viram que eu não queria morrer mesmo e começaram a me chamar Boa-Morte, de troça.

Sua alegria redobrou — rangido de roldana mal azeitada que degenerou num terrível ataque de tosse. O fogo iluminava-lhe agora a grande cabeça de cabelos brancos e ralos, o rosto achatado, de uma palidez cadavérica, cheio de manchas azuladas. Era baixo, pescoço enorme, a barriga da perna e os calcanhares salientes, com braços compridos e mãos quadradas que batiam nos joelhos. E, como o cavalo que permanecia imóvel em pé, sem dar mostras de estar sofrendo com o vento, ele parecia de pedra, insensível ao frio e às rajadas que assobiavam em seus ouvidos. Depois de tossir, a garganta escoriada por um rascar profundo, escarrou para o lado do fogo e a terra enegreceu.

Etienne olhou-o para em seguida examinar a nódoa no chão.

— Há muito tempo que você trabalha na mina? Boa-Morte abriu muito os braços:

— Ah! Sim... Há muito tempo. Não tinha ainda oito anos quando desci, imagine justamente na Voreux, e agora tenho cinqüenta e oito. Veja bem, fiz de tudo lá dentro: primeiro como aprendiz; depois, quando tive forças para puxar, fui operador de vagonetes e, mais tarde, durante dezoito anos, britador. Em seguida, por causa destas malditas pernas, puseram-me para desaterrar, aterrar, consertar... Isso até o momento em que tiveram de me tirar lá de baixo porque o médico disse que um dia eu não voltaria mais. E faz cinco anos que sou carroceiro... Que tal? Não é bonito? Cinqüenta anos de mina, sendo que quarenta e cinco no fundo!

Enquanto falava, pedaços de hulha incandescentes, que, a espaços, caíam do tacho, punham reflexos sangrentos em seu rosto lívido.

— Mandam-me descansar — continuou ele. — E, como não quero, julgam que sou idiota. Faltam só dois anos para eu completar sessenta, e aí terei direito à pensão de cento e oitenta francos. Se eu lhes desse boa-noite hoje, concediam-me imediatamente a de cento e cinqüenta. Esses velhacos são vivos!... De resto, tirante as pernas, sou forte. Foi a água, isso é certo, que me entrou na pele; durante a extração a gente fica todo o tempo dentro dela. Há dias em que não posso mexer um pé sem gritar.

Outro acesso de tosse veio interrompê-lo.

— E a tosse vem disso também? — perguntou Etienne.

O velho respondeu que não, violentamente, com a cabeça. Depois, quando pôde falar, disse:

— Não, não. Desde o mês passado que ando resfriado. Nunca tossia, agora não consigo mais livrar-me desta tosse... E o mais engraçado é como escarro, como escarro...

Pigarreou novamente e cuspiu negro.

— É sangue? — Etienne ousou perguntar.

Boa-Morte limpava lentamente a boca com as costas da mão.

— É carvão. Tenho tanto carvão no corpo que chega para aquecer o resto dos meus dias. E já faz cinco anos que não ponho os pés lá embaixo. Tinha tudo isso armazenado, parece-me, sem saber. Melhor, até conserva!

Houve um silêncio. Longínquo, o martelo batia regularmente na mina, e o velho era como uma queixa, como um grito de fome e de cansaço vindo das profundezas da noite. Diante das chamas enfurecidas o velho continuou, mais baixo, a remoer suas lembranças. Ah! Certo, não era de ontem que ele e os seus cavavam no veio. A família trabalhava para a companhia das minas de Montsou desde a sua criação; e isso já vinha de muito longe, cento e seis anos. Seu avô, Guillaume Maheu, na época um garoto de quinze anos, fora o descobridor da hulha em Réquillart, a primeira mina da companhia, uma velha galeria atualmente abandonada, lá longe, perto da refinaria de açúcar Fauvelle. Toda a região sabia disso, e a prova é que o veio descoberto se chamava Guillaume, do nome de batismo do seu avô. Não o conhecera, mas diziam que fora um latagão; morrera de velhice aos sessenta anos. Depois, seu pai, Nicolas Maheu, conhecido como o Ruivo, com apenas quarenta anos de idade, ficara na Voreux, que nesse tempo estava sendo aberta: um desabamento e ele ficara completamente achatado, com o sangue bebido e os ossos engolidos pelas rochas. Dois dos seus tios e seus três irmãos ali também haviam deixado a pele, mais tarde. Ele, Vincent Maheu, que conseguira sair mais ou menos inteiro, apenas com as pernas em mau estado, passava por astucioso. Mas que fazer? Era preciso trabalhar. Isso já vinha sendo feito de pai para filho, como bem podia ser outra coisa. Seu filho, Toussaint Maheu, já se matava no mesmo ofício, assim como seus netos e toda a família, que morava em frente, no conjunto habitacional. Cento e seis anos de trabalho para o mesmo patrão, as crianças após os velhos: que tal? Muitos burgueses não saberiam contar tão bem a sua história!

— Quando ainda se pode comer... — murmurou novamente Etienne.

— É isso que eu digo: enquanto há pão para comer, vai-se vivendo.

Boa-Morte calou-se, os olhos voltados para o conjunto habitacional, onde as luzes se acendiam uma a uma.

O campanário de Montsou deu quatro horas; o frio aumentava.

— E essa sua companhia é rica? — voltou à carga Etienne.

O velho levantou os ombros para, em seguida, deixá-los cair, como que esmagado sob um monte de moedas.

— Sim, sim... Talvez não tanto como sua vizinha, a Companhia d'Anzin. Mas assim mesmo tem milhões e milhões. Nem se pode contar. Dezenove galerias, sendo que treze para exploração: Voreux, Victoire, Crèvecoeur, Mirou, Saint-Thomas, Madeleine, Feutry-Cantel e outras, e seis para esgoto ou ventilação, como a Réquillart... Dez mil operários, concessões que se estendem por sessenta e sete comunas, uma extração de cinco mil toneladas por dia, uma estrada de ferro ligando todas as galerias, e oficinas, e fábricas! Se é rica! Dinheiro é o que não falta.

Um rolar de carros sobre os cavaletes pôs em pé as orelhas do grande cavalo baio. Embaixo, o elevador já devia estar consertado, os carregadores tinham voltado ao serviço. Enquanto atrelava o animal para voltar a descer, o carroceiro falava-lhe com carinho:

— E agora não vais habituar-te a tagarelar, preguiçoso! Se o Sr. Hennebeau soubesse em que tu perdes o tempo!

Etienne, pensativo, contemplava a noite. Perguntou:

— Então, esta mina é do Sr. Hennebeau?

— Não — explicou o velho —, o Sr. Hennebeau é apenas o diretor-geral. Ele é pago como nós.

O jovem mostrou com um gesto a imensidão das trevas.

— Então, de quem é tudo isto?

Boa-Morte, no entanto, ficou por um instante sufocado com nova crise, de tal violência que não lhe permitia respirar. Por fim, tendo escarrado e limpado a espuma preta dos lábios, disse, em meio à ventania cada vez mais violenta:

— O quê? De quem é tudo isso? Não se sabe. É de umas pessoas. E com a mão designou no escuro um ponto vago, um lugar ignorado e remoto, povoado por essas pessoas para quem os Maheu cavavam no veio havia mais de um século.

Sua voz elevava-se com uma espécie de medo religioso, era como se estivesse falando a respeito de um tabernáculo inacessível onde se escondia o deus farto e acocorado, a quem todos eles davam a sua própria carne e que nunca tinham visto.

— Se ao menos se comesse o pão necessário para viver! — repetiu pela terceira vez Etienne, sem transição aparente.

— Pois é! Se a gente pudesse comer sempre pão! Mas isso é impossível.

O cavalo partiu e o carroceiro seguiu-o com passo arrastado, de inválido. Sempre próximo do basculante, o operário encarregado de manobrá-lo não se mexera, todo curvado, com o queixo fincado nos joelhos, os grandes olhos mortiços fixos no vácuo.

Apesar de já ter apanhado o embrulho, Etienne permaneceu onde estava. Sentia as rajadas de vento gelando-lhe as costas, enquanto seu peito queimava, devido à fogueira. Talvez devesse tentar a mina, o velho podia não saber; e depois, estava resignado, aceitaria qualquer trabalho. Onde ir e em que transformar-se nesta região faminta devido ao desemprego? Esconder atrás de algum muro sua carcaça de cão vadio? No entanto, hesitava ainda; era medo, medo da Voreux no meio desta planície rasa, mergulhada numa noite tão profunda. A cada nova rajada o vento parecia aumentar, como se soprasse de um horizonte distendendo-se cada vez mais. Nenhum sinal de alvorada clareava o céu morto, apenas os altos-fornos e as fornalhas de coque ensangüentavam as trevas, sem alumiar seu mistério. E a Voreux, do fundo do seu buraco, com sua postura de bicho maligno parecendo cada vez mais retraído, respirava agora mais grossa e amplamente, como que sofrendo com sua dolorosa digestão de carne humana.

 

No meio dos campos de trigo e beterraba, o conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante dormia sob a noite negra. Distinguiam-se vagamente os quatro imensos corpos de pequenas casas encostadas umas às outras, corpos de caserna ou de hospital, geométricos, paralelos, que separavam as três largas avenidas divididas em jardins iguais. E, no planalto deserto, ouvia-se apenas a queixa do vento por entre as sebes arrancadas.

Em casa dos Maheu, no número dezesseis do segundo grupo de casas, tudo era sossego. O único quarto do primeiro andar estava imerso nas trevas, como se estas quisessem esmagar com seu peso o sono das pessoas que se pressentiam lá,

amontoadas, boca aberta, mortas de cansaço. Apesar do frio mordente do exterior, o ar pesado desse quarto tinha um calor vivo, esse calor rançoso dos dormitórios, que, mesmo asseados, cheiram a gado humano.

O cuco da sala do térreo deu quatro horas, mas ninguém se moveu. As respirações fracas continuaram a soprar, acompanhadas de dois roncos sonoros. Bruscamente, Catherine levantou-se. No seu cansaço, tinha ela, pela força do hábito, contado as quatro badaladas que atravessaram o soalho, mas continuara sem o ânimo necessário para acordar de todo. Depois, com as pernas para fora das cobertas, apalpou, riscou um fósforo e acendeu a vela. Mas continuou sentada, a cabeça tão pesada que tombava nos ombros, cedendo ao desejo invencível de voltar ao travesseiro.

Agora, a vela iluminava o quarto, quadrado, com duas janelas, atravancado com três camas. Havia um armário, uma mesa e duas cadeiras de nogueira velha, cujo tom escuro manchava duramente as paredes pintadas de amarelo-claro. E nada mais, a não ser roupa de uso diário pendurada em pregos, uma moringa no chão ao lado de um tacho vermelho que servia de bacia. Na cama da esquerda, Zacharie, o mais velho, um rapaz de vinte e um anos, estava deitado com o irmão, Jeanlin, com quase doze anos; na da direita, dois pequenos, Lénore e Henri, a primeira de seis anos, o segundo de quatro, dormiam abraçados; Catherine partilhava a terceira cama com a irmã Alzire, tão fraca para os seus nove anos, que ela nem a sentiria ao seu lado, não fosse a corcunda que deformava as costas da pequena enferma. A porta envidraçada estava aberta, podiam-se ver o corredor do patamar e o cubículo onde pai e mãe ocupavam uma quarta cama, contra a qual tiveram de instalar o berço da recém-nascida, Estelle, de apenas três meses.

Entretanto, Catherine fez um esforço desesperado. Espreguiçava-se, crispava as mãos nos cabelos ruivos que se emaranhavam na testa e na nuca. Franzina para os seus quinze anos, não mostrava dos membros senão uns pés azulados, como tatuados com carvão, que saíam da bainha da camisola estreita, e braços delicados, alvos como leite, contrastando com a cor pálida do rosto, já estragado pelas contínuas lavagens com sabão preto. Um último bocejo abriu-lhe a boca um pouco grande, com dentes magníficos incrustados na palidez clorótica das gengivas, enquanto seus olhos cinzentos choravam de tanto combater o sono. Era uma expressão dolorosa e abatida que parecia encher de cansaço toda a sua nudez.

Mas um grunhido veio do patamar; era a voz de Maheu que gaguejava, empastada:

— Raio! Já está na hora... Foste tu que acendeste a luz, Catherine?

— Fui, sim, senhor... O relógio acaba de dar horas.

— Então apressa-te, vagabunda! Se tivesses dançado menos ontem, domingo, ter-nos-ias acordado mais cedo. Que vida de malandros!

Continuou a ralhar, mas foi vencido pelo sono, suas repreensões embaralharam-se, extinguindo-se em novo ressonar.

A moça, de camisola, descalça, andava no quarto de um lado para outro. Ao passar pela cama de Henri e Lénore, cobriu-os novamente. As crianças não acordaram, mergulhadas no pesado sono da infância. Alzire, de olhos abertos, sem dizer palavra, pusera-se do outro lado, tomando o lugar aquecido pela irmã mais velha.

— Vamos, Zacharie! Vamos, Jeanlin! Levantem! — repetia Catherine, em pé diante dos dois irmãos, que continuavam refocilados, o nariz enfiado no travesseiro.

Teve de agarrar o mais velho pelos ombros e sacudi-lo; e, enquanto ele a injuriava com voz pastosa, ela resolveu descobri-los, arrancando o lençol. Isto divertiu-a, e pôs-se a rir, vendo os dois rapazes debater-se, pernas nuas.

— Idiota! Deixa-me em paz! — grunhiu Zacharie, mal-humorado, ao sentar-se. — Não gosto de brincadeiras... Porcaria! Já tenho que levantar...

Era magro, desengonçado, rosto comprido, barba rala, louro e com a palidez anêmica de toda a família. A camisola estava enrolada até a altura da barriga; baixou-a, não por pudor, mas por estar com frio.

— Vamos, de pé, o relógio já bateu — repetia Catherine. — Assim o pai se zanga.             

Jeanlin, que se havia enroscado, fechou novamente os olhos, dizendo:

— Não chateies, estou dormindo.

Ela riu outra vez, um riso de coração aberto. O irmão era tão pequeno, de membros franzinos e articulações enormes, deformadas por escrófulas, que ela o pegou no colo. Mas o rapaz esperneou e sua cara de macaco desbotado e cabeludo, esburacada por dois olhos verdes e alargada pelas orelhas grandes, empalideceu de raiva por ser fraco. Sem dizer palavra, mordeu-a no seio direito.

— Animal malvado! — murmurou ela, contendo um grito e colocando-o no chão.

Alzire, silenciosa, com o lençol até o queixo, não voltara a dormir; seguia com seus olhos inteligentes de inválida a irmã e os dois irmãos que se vestiam. Outra discussão teve lugar em volta do tacho, e os rapazes começaram a empurrar a moça porque esta levava muito tempo lavando-se. As camisolas voavam, enquanto eles, ainda cheios de sono, urinavam sem vergonha, com a sem-cerimônia tranqüila de uma ninhada de

cachorros criada junta. Em todo caso, Catherine foi a primeira a ficar pronta; enfiou as calças de mineiro, vestiu a jaqueta de algodão, amarrou a coifa azul em torno do cabelo preso na nuca; nessa roupa limpa de segunda-feira, mais parecia um homenzinho. Do seu sexo ficava apenas o ligeiro meneio dos quadris.

— Quando o velho voltar — disse maldosamente Zacharie —, ficará contente de encontrar a cama desarrumada... E vou dizer a ele que foste tu.

O velho era o avô, Boa-Morte, que trabalhava de noite e dormia de dia. Para que a cama não esfriasse, havia sempre nela alguém a roncar.

Sem responder, Catherine começou a alisar as cobertas, pondo as pontas para baixo do colchão. Há um momento que se ouviam ruídos do outro lado da parede, na casa vizinha. Essas construções de tijolos, feitas o mais economicamente possível pela companhia, tinham paredes tão finas que a respiração mais delicada as atravessava. As pessoas viviam tão chegadas, de um extremo a outro, que nenhuma parcela de vida íntima se conservava oculta, mesmo para as crianças. Um passo mais pesado sacudiu uma escada, depois houve como que uma queda suave, seguida de um suspiro de satisfação.

— Bem — disse Catherine —, Levaque desce, e lá vai Bouteloup para a cama da mulher dele. Jeanlin deu uma risada de escárnio, os próprios olhos de Alzire brilharam. Toda manhã eles troçavam assim daquele triângulo de vizinhos, um cortador que hospedava um operário do desaterro, o que dava à mulher dois homens, um de noite, outro de dia.

— Philomène está tossindo — continuou Catherine, após ter apurado o ouvido.

Falava da filha mais velha dos Levaque, moça alta de dezenove anos, amante de Zacharie, de quem já tinha dois filhos. Era tão fraca do peito que nunca pudera trabalhar no fundo da mina, permanecendo como separadora do carvão.

— Ora, Philomène! — respondeu Zacharie. — Ela nem se importa com isso; e depois, tem sorte, pode dormir até às seis horas...

Enquanto vestia as calças, tomado de um pensamento repentino, foi abrir uma janela. Lá fora, nas trevas, o conjunto habitacional acordava; réstias de luz escapavam por entre as frinchas das persianas. E outra contenda teve lugar: o rapaz debruçava-se à janela para espreitar a casa dos Pierron, que ficava em frente, para ver se não sairia de lá o capataz da Voreux, que era acusado de dormir com a mulher de Pierron; enquanto a irmã lhe gritava que o marido desta voltara, desde a véspera, ao seu trabalho diurno na embocadura de uma das galerias com o poço de extração, e que portanto Dansaert não

podia ter dormido lá naquela noite. Rajadas glaciais entravam pela janela aberta; os irmãos, exaltados, sustentavam a exatidão de suas próprias informações. Nesse momento, Estelle, de seu berço, incomodada pelo frio, começou a chorar em altos brados.

Com isso Maheu acordou de vez. Será que já não tinha mais tutano nos ossos, para voltar a dormir assim, como um vagabundo? E começou a praguejar tão alto, que os filhos, ao lado, nem ousavam respirar. Zacharie e Jeanlin acabaram de se lavar com uma lentidão que já era cansaço. Alzire, com os olhos bem abertos, continuava a observar. Os dois pequenos, Lénore e Henri, abraçados, continuavam imóveis, a respiração leve, apesar de toda a gritaria.

— Catherine, traz a vela! — gritou Maheu.

Tendo acabado de abotoar a jaqueta, ela levou a vela para a outra peça, deixando os irmãos à procura das roupas, apenas com a escassa claridade que vinha da porta. O pai saltou da cama; ela, porém, não parou; desceu, às apalpadelas, calçando apenas grossas meias de lã, para acender na sala uma outra vela e preparar o café. Todos os tamancos da família estavam debaixo do armário.

— Cala, porcaria! — gritou Maheu, exasperado com o choro contínuo de Estelle.

Era baixo como o velho Boa-Morte e parecia-se com ele, só que mais gordo, cabeça grande, rosto chato e lívido sob o cabelo louro, cortado bem curto. A criança berrava cada vez mais, assustada com aqueles grandes braços nodosos que gesticulavam por cima dela.

— Deixa, tu sabes bem que ela não quer calar-se — disse a mulher, estendendo-se no meio da cama.

Também ela acabava de acordar e lamentava-se. Era estúpido, nunca dormia uma noite completa. Por que eles não saíam em silêncio? Enfiada entre as cobertas, só se lhe via o rosto comprido, de traços graúdos, de uma beleza pesada, já disforme aos trinta e nove anos por uma vida de miséria e os sete filhos que tivera. Olhos no teto, começou a falar lentamente, enquanto seu homem se vestia.

— Sabe? Estou sem vintém, e hoje é apenas segunda-feira... Seis dias ainda para a quinzena... O dinheiro não dura nada. Todos vocês juntos trazem nove francos. Somos dez na casa, como é que vai dar?

— Nove francos? — protestou Maheu. — Eu e Zacharie, cada um três, são seis; Catherine e o pai, dois, são quatro; quatro e seis, dez... E Jeanlin, um, que faz onze.

— Sim, onze, mas há os domingos e feriados. Nunca mais de nove, compreende?

Ele não respondeu, procurava no chão o cinto de couro. Levantando-se, disse:

— Não devemos queixar-nos, ainda tenho saúde. Aos quarenta e dois anos muita gente já não presta para mais nada.

— É possível, meu velho, mas nem por isso temos mais pão. O que é que vou fazer? Não tens nada, mesmo?

— Tenho dois soldos1.

— Pois podes tomar uma cerveja com eles... Meu Deus! O que é que vou fazer? Esses seis dias não vão terminar nunca! Devemos sessenta francos a Maigrat; anteontem ele me pôs na rua, mas isso não me impede de voltar lá. O caso é se ele continuar recusando...

E a mulher de Maheu continuou a lamentar-se, cabeça imóvel, fechando os olhos de vez em quando, à triste claridade da vela. Falou do guarda-comida vazio, das crianças que pediam pão, do café que faltava, da água que dava cólica e dos longos dias passados a enganar a fome com folhas de couve cozidas. Pouco a pouco foi elevando a voz, já que o berreiro de Estelle cobria suas palavras; seus gritos estavam ficando insuportáveis. De repente, Maheu pareceu ouvi-los e, fora de si, agarrou a criança no berço e atirou-a para junto da mãe, gaguejando de ódio:

— Toma! Pega-a, sou capaz de esmagá-la... Maldita criança... Não lhe falta nada, mama à vontade e queixa-se mais alto que os outros...

Realmente, Estelle pusera-se a mamar. Sumida debaixo das cobertas, sossegada pela tepidez da cama, agora só fazia um ruído guloso com os lábios.

— Os burgueses da Piolaine não disseram que fosses vê-los? — tornou o pai depois de uma pausa.

A mãe franziu a boca numa expressão de dúvida e desânimo.

— Sim, encontraram-me, andam distribuindo roupas às crianças pobres. Enfim, vou até lá esta manhã com Lénore e Henri. Se pelo menos eles me dessem uns cem soldos...

Novo silêncio, Maheu estava pronto; ficou imóvel um momento para, em seguida, encerrar a conversa com sua voz profunda:

— Que queres? Não há outro jeito, arranja a sopa como puderes. Melhor é ir trabalhar do que ficar aqui conversando.

— Claro — respondeu a mulher. — Apaga a vela, não quero ver a cor dos meus pensamentos.

 

1. Soldo: moeda francesa, correspondente a um vigésimo do franco. (N. do T.)

 

O homem apagou a vela e seguiu Zacharie e Jeanlin, que já estavam descendo. A escada de madeira rangeu sob o peso de seus pés enfiados em meias de lã. O quarto e o cubículo do corredor voltaram às trevas. As crianças dormiam, a própria Alzire fechara novamente as pálpebras. A mãe, no entanto, permanecia de olhos abertos na escuridão, enquanto Estelle sorvia no seu seio murcho de mulher exausta e ronronava como um gatinho.

Embaixo Catherine tratara, em primeiro lugar, de reavivar o fogo no fogão de ferro que tinha uma grelha no centro e dois fornos nos lados e onde a hulha ardia constantemente. A companhia distribuía por mês, a cada família, oito hectolitros de lascas de carvão duro, sobras dos sacos, carvão esse difícil de acender. Toda noite a moça deixava o fogo aceso e coberto de cinzas; pela manhã apenas o reavivava com pedacinhos de carvão tenro, escolhidos com cuidado. Após ter colocado uma vasilha com água sobre a grelha, agachou-se diante do guarda-comida.

Era uma sala bastante grande, ocupando todo o térreo, pintada de verde claro, de um asseio flamengo, com suas lajes muito bem lavadas e espargidas de areia branca. Além do guarda-comida de pinho envernizado, a mobília consistia de uma mesa e cadeiras da mesma madeira. Colados às paredes, reproduções de cores vivas, retratos do imperador e da imperatriz dados pela companhia, figuras de soldados e santos onde o dourado predominava, ressaltavam violentamente na nudez clara da peça, onde não havia outros ornamentos além de uma caixa de cartão cor-de-rosa em cima do guarda-comida e do relógio de cuco, de mostrador sarapintado, cujo tique-taque parecia encher o vazio da sala. Perto da porta da escada, outra porta conduzia ao portão.

Apesar do asseio, um cheiro de cebola cozida e guardada desde a véspera empestava o ar aquecido e pesado, sempre carregado de um cheiro forte de hulha.

Catherine refletia diante do guarda-comida aberto. Só havia um pedaço de pão, suficiente queijo fresco e apenas uma migalha de manteiga. E com isso teria de preparar comida para os quatro. Por fim decidiu-se: cortou o pão, cobriu uma fatia com queijo, a outra untou com manteiga e depois colou-as; era o "engana a fome" do mineiro, a fatia dupla que é levada pela manhã para a mina. Num instante os quatro sanduíches estavam enfileirados sobre a mesa, preparados com severa justiça, desde o grande para o pai até o pequeno para Jeanlin.

Catherine, que parecia toda entregue a seu trabalho, devia, contudo, estar pensando nas histórias que Zacharie contava a respeito do capataz com a mulher de Pierron, já que entreabriu a porta da rua e espiou para fora. O vento continuava a soprar, e, nas fachadas baixas do casario do conjunto habitacional, de onde subia uma vaga trepidação de despertar, as luzes eram cada vez mais numerosas. Portas batiam, grupos escuros de operários desapareciam dentro da noite. Era tolice ficar ali, apanhando frio, seguramente Pierron ainda dormia, seu trabalho começava às seis horas. Mas mesmo assim ela ficou olhando a casa do outro lado dos jardins. Tendo alguém aberto a porta, sua curiosidade aumentou. Mas só podia ser a filha dos Pierron, Lydie, que partia para a mina.

Nisto, um assobio de vapor fez que se voltasse; fechou a porta e correu: a água fervia e transbordava, apagando o fogo. Não havia mais café; teve de se contentar em passar a água pela borra da véspera para depois adoçá-la na cafeteira com açúcar preto. Nesse momento o pai e os dois irmãos desceram.

— Puxa! — exclamou Zacharie, enfiando o nariz na tigela. — Com um café deste não há perigo de ficar com dor de cabeça.

Maheu encolheu os ombros com ar resignado.

— Tanto faz! Está quente e até gostoso.

Jeanlin juntara as migalhas do pão e fizera uma papa. Depois de beber, Catherine despejou o que sobrara na cafeteira em cantis de lata. Os quatro em pé, mal iluminados pela vela fumacenta, engoliam às pressas.

— Como é, terminamos? — reclamou o pai. — Até parece que somos ricos!

Nisto uma voz veio da escada, cuja porta tinha deixado aberta; era a mãe que gritava:

— Levem todo o pão, ainda tenho um pouco de aletria para as crianças.

— Sim, sim! — respondeu Catherine.

Havia coberto novamente o fogo e colocado numa ponta da grelha um resto de sopa que o avô encontraria quente ao voltar do trabalho, às seis horas.

Cada um deles apanhou seu par de tamancos debaixo do guarda-comida, passou o cordão do cantil pelo ombro e enfiou o sanduíche nas costas, entre a camisa e a jaqueta. E saíram todos, homens na frente, a moça atrás, depois de soprar a vela e dar uma volta na chave. A casa voltou à escuridão.

— Muito bem, vamos juntos! — disse um homem que fechava a porta da casa vizinha.

Era Levaque com o filho Bébert, menino de doze anos, grande amigo de Jeanlin. Catherine, admirada, sufocou uma risada no ouvido de Zacharie: com que então Bouteloup nem esperava mais que o marido saísse?!

No conjunto habitacional, agora, as luzes se apagavam. Uma última porta bateu, tudo dormia novamente, mulheres e crianças voltavam ao sono em camas mais largas. E do vilarejo no escuro à Voreux que resfolegava houve um lento desfilar de sombras sob o vento impiedoso: a partida dos carvoeiros para o trabalho. Caminhavam balançando os ombros, sem saber o que fazer com os braços, que cruzavam no peito, enquanto, atrás, o farnel se transformara numa corcunda. Vestindo roupas leves, tiritavam de frio, mas nem por isso caminhavam mais depressa, dispersos ao longo da estrada, num tropear de rebanho.

 

Etienne desceu finalmente do aterro e entrou na Voreux. Os homens a quem se dirigia, perguntando se havia trabalho, balançavam a cabeça, respondendo que esperasse pelo capataz. Deixaram-no à vontade dentro das edificações mal iluminadas, cheias de buracos negros, assustadoras mesmo pela complicação de suas salas e andares. Tendo subido uma escada escura, quase em ruínas, encontrou-se numa ponte estreita e oscilante; em seguida, atravessou o galpão da triagem, mergulhado em noite tão profunda que teve de caminhar com as mãos estendidas para não esbarrar. De repente, diante dele, dois olhos amarelos, enormes, furaram as trevas. Estava

exatamente sob a torre do sino de rebate, no local onde os elevadores cheios de hulha são içados, à boca do poço.

Um contramestre, o velho e gordo Richomme, com cara de policial bonachão, de bigode grisalho, dirigia-se nesse momento para o escritório do recebedor.

— Não estão precisando por aqui de um operário para qualquer tipo de trabalho? — perguntou novamente Etienne.

Richomme ia dizer não, mas conteve-se e respondeu como os outros, enquanto se afastava: 

— Espere pelo Sr. Dansaert, o capataz.

Além de quatro lampiões, havia ainda os refletores com toda a sua luz dirigida para o poço, a iluminar vivamente os corrimões de ferro, as alavancas de sinais e de fechar as guias por onde deslizavam os dois elevadores. O resto, a vasta peça, parecida a uma nave de igreja, continuava no escuro e povoada de grandes sombras que flutuavam. Somente o depósito de lampiões resplandecia ao fundo; e no escritório do recebedor uma lamparina raquítica bruxuleava como uma estrela apagando-se.

O trabalho de extração recomeçara; sobre as chapas de ferro havia um trovejar contínuo, vagonetes de carvão rolavam sem descanso, carregadores corriam e podiam-se distinguir suas longas espinhas curvadas dentro do tumulto de todas aquelas coisas negras e ruidosas que se agitavam.

Por um instante Etienne permaneceu imóvel, ensurdecido e cego. Sentia-se gelado, havia correntes de ar por todos os lados. Em seguida deu alguns passos, atraído pela máquina da qual via reverberar agora aços e cobres. Ela ficava por trás do poço, a vinte e cinco metros, numa peça mais alta e tão solidamente assente sobre seu maciço pedestal de tijolos que mesmo trabalhando a todo vapor, com toda a força dos seus quatrocentos cavalos e com o movimento de sua biela, enorme, emergindo e mergulhando numa suavidade oleosa, não conseguia fazer que as paredes estremecessem. O maquinista, em pé ao lado da alavanca de comando, escutava as campainhas dos sinais, não tirava os olhos do painel indicador, onde o poço, com seus diversos andares, estava figurado numa ranhura vertical que era percorrida por pedaços de chumbo amarrados em barbantes e que representavam os elevadores. E a cada partida, quando a máquina se punha outra vez em movimento, as bobinas, as duas imensas rodas de cinco metros de raio por meio das quais os dois cabos de aço se enrolavam e desenrolavam em sentido inverso, giravam a tal velocidade que mais pareciam uma poeira cinzenta.

— Cuidado! — gritaram três trabalhadores que arrastavam uma escada gigantesca.

Por pouco Etienne não fora esmagado. Seus olhos habituavam-se, já podia ver no ar a corrida dos cabos, mais de trinta metros de fita de aço que subiam velozes à torre, onde passavam em roldanas para, em seguida, descer a pique ao poço e prenderem-se nos elevadores de extração. Uma armação de ferro, igual à dos campanários, sustentava as roldanas. Era como um vôo de pássaro, sem ruído, sem choque, a fuga rápida, o contínuo vaivém de um fio de peso enorme que podia levantar até doze mil quilos com uma velocidade de dez metros por segundo.

— Cuidado, com mil raios! — gritaram novamente os carregadores que empurravam a escada para o outro lado, para vistoriarem a roldana da esquerda.

Lentamente Etienne voltou à boca do poço. Esse vôo, como o perpassar de uma ave gigantesca, aturdia-o. E, tintando devido às correntes de ar, começou a observar o trabalho dos elevadores, os ouvidos zonzos com o rodar dos vagonetes. Perto do poço o sinal estava funcionando, um pesado martelo de alavanca que uma corda puxada do fundo fazia cair sobre uma bigorna. Uma pancada para parar, duas para descer, três para subir; isto sem descanso, como golpes de clava dominando o tumulto e acompanhados do som claro da campainha; ao mesmo tempo, o operário que dirigia o trabalho gritava ordens ao maquinista por um megafone, aumentando o barulho. Os elevadores, no meio de toda essa confusão, apareciam e desapareciam, esvaziavam-se e enchiam-se sem que Etienne compreendesse nada dessas operações tão complicadas.

Só uma coisa ele compreendia perfeitamente: que o poço engolia magotes de vinte e de trinta homens, e com tal facilidade que nem parecia senti-los passar pela goela. Desde as quatro horas os operários começavam a descer; vinham da barraca, descalços, lâmpada na mão, e esperavam em grupos pequenos até formarem número suficiente. Sem ruído, com um pulo macio de animal noturno, o elevador de ferro subia do escuro, enganchava-se nas aldravas, com seus quatro andares, cada um contendo dois vagonetes cheios de carvão. Nos diferentes patamares, os carregadores retiravam os vagonetes, substituindo-os por outros vazios ou carregados antecipadamente com madeira em toros. E era nesses carros vazios que se empilhavam os operários, cinco a cinco, até quarenta de uma vez, quando ocupavam todos os Compartimentos. Uma ordem partia do megafone, um tartamudear grosso e indistinto, enquanto a corda, para dar o sinal embaixo, era puxada quatro vezes, convenção que queria dizer "aí vai carne" e que avisava da descida desse carregamento de carne humana. Em seguida, depois de

um ligeiro solavanco, o elevador afundava silencioso, caía como uma pedra, deixando atrás de si apenas a fuga vibrante do cabo.

— É muito fundo? — perguntou Etienne a um mineiro com ar sonolento que esperava perto dele.

— Quinhentos e cinqüenta e quatro metros — respondeu o homem. — Mas há quatro paradas, a primeira a trezentos e vinte metros.

Ambos se calaram, os olhos no cabo que subia. Etienne voltou a falar:

— E quando isso quebra?

— Ah! Quando quebra...

O mineiro acabou a frase com um gesto. Chegara a sua vez, o elevador apareceu com seu movimento ágil e repousado. O homem entrou, agachando-se, com os demais companheiros. A máquina desapareceu no poço, para voltar a brotar ao fim de apenas quatro minutos para engolir outro carregamento de pessoas. Durante meia hora o poço devorou essa carga humana com suas fauces mais ou menos glutonas, isto é, de acordo com a profundidade da galeria para onde elas iam, e isso sem descanso, sempre esfomeado, com tripas gigantes, capazes de digerir todo um povo. Elas se enchiam sem descanso, mas as trevas não se desfaziam, estavam mortas, e o elevador continuava a brotar do vazio no mesmo silêncio voraz.

Com o tempo, Etienne voltou a sentir o mal-estar de que já fora acometido no aterro. Valeria a pena insistir? Na certa esse capataz o despediria, como os outros. Um medo vago fez que tomasse uma decisão brusca: caminhou para fora, só parando em frente à casa dos geradores. A porta, aberta de par em par, deixava ver sete caldeiras de duas fornalhas. Em meio ao vapor branco e ao silvo das válvulas, um foguista abastecia uma das fornalhas, cujo calor ardente chegava até a soleira da porta. O rapaz, contente de poder aquecer-se, ia aproximar-se, quando divisou um novo grupo de carvoeiros que vinha chegando à mina. Eram os Maheu e os Levaque. Vendo à frente Catherine, com seu ar meigo de menino, teve a idéia supersticiosa de arriscar uma última pergunta:

— Por favor, camarada... Será que não estão precisando aqui de um operário, para qualquer trabalho?

Ela olhou-o surpreendida, assustada mesmo com aquela voz brusca que saía da sombra. Atrás dela, porém, Maheu tinha ouvido, e foi ele quem respondeu, conversando mesmo, por um momento. Não, não estavam precisando de ninguém... Mas aquele pobre-diabo, aquele operário perdido nas estradas interessava-o. Ao deixá-lo, exclamou para os outros:

— Viram? A gente podia estar na mesma situação... Não devemos queixar-nos, há muita gente sem trabalho.

O grupo entrou e foi direto ao vestiário, uma vasta peça grosseiramente rebocada, rodeada de armários fechados a cadeado. No centro, um fogão de ferro, uma espécie de estufa sem porta, estava em brasa; havia nele tanta hulha incandescente que os pedaços estalavam e rolavam para o chão de terra batida. A peça tinha como única iluminação esse braseiro, cujos reflexos sanguinolentos dançavam pelas paredes revestidas de madeira imunda e pelo teto coberto de fuligem.

No momento da chegada dos Maheu o pessoal estava rindo, afogueado. Uns trinta operários estavam de pé, de costas para o fogo, deixando-se assar com prazer. Antes de descerem, todos vinham aqui para absorver e levar consigo uma provisão de calor dentro do corpo capaz de fazer face à umidade do poço. Naquela manhã estavam rindo mais do que era costume, brincavam com a filha de Mouque, uma operadora de vagonetes, de dezoito anos, boa moça, mas com seios e nádegas tão grandes que furavam a jaqueta e as calças. Ela morava em Réquillart com seu velho pai, que era cavalariço, e com seu irmão, carregador; como as horas de trabalho não coincidiam, ela vinha sozinha para o trabalho. E, no meio dos campos de trigo, no verão, encostada a um muro, no inverno, entregava-se ao prazer com seu namorado da semana. Toda a mina estava passando pelos seus braços, um verdadeiro torneio entre colegas, sem outra conseqüência. Um dia em que alguém reclamou por ter ela andado com um negociante de pregos, de Marchiennes, quase explodiu de cólera, aos gritos de que tinha grande respeito próprio, que cortaria um braço se alguém pudesse provar que a vira com outra pessoa que não fosse um carvoeiro.

— Então não é mais o grandalhão do Chaval? — perguntou um mineiro às gargalhadas. — Agora andas com aquela criança? Na certa ele precisa de uma escada. Eu vi vocês dois atrás de Réquillart. Por sinal, ele teve de subir num marco...

— E daí? — respondeu a moça, de bom humor. — O que é que tens com isso? Ninguém te chamou para empurrar...

Esse descaramento inocente fez redobrar as gargalhadas dos homens que balançavam os ombros meio cozidos pelo fogo, enquanto ela, sacudida de riso, passeava entre eles a indecência de suas roupas, de um cômico perturbador, com suas saliências de carne exageradas até a enfermidade.

Mas a alegria logo terminou: a moça, conversando com Maheu, contou-lhe que Fleurance, a grande Fleurance, não trabalharia mais; tinha sido encontrada na véspera,

hirta, sobre a cama. Uns diziam que fora o coração, outros, que a causa tinha sido um litro de genebra bebido muito rapidamente. Maheu ficou desesperado: que má sorte a sua! Perdia uma das suas operadoras de vagonetes, sem poder substituí-la imediatamente... É que trabalhava de empreitada; eram quatro britadores associados na sua zona de corte: ele, Zacharie, Levaque e Chaval. Se ficassem somente com Catherine para operar, o trabalho atrasaria.

De repente gritou:

— Pronto! E aquele homem que procurava trabalho?

Nesse momento Dansaert passava em frente ao alojamento; Maheu contou-lhe o caso e pediu autorização para empregar o homem; insistiu no desejo que tinha a companhia de substituir as operadoras de vagonetes por rapazes, como em Anzin. O capataz esboçou um sorriso. Esse projeto de retirar as mulheres do fundo da mina repugnava de ordinário aos mineiros, que temiam pelo emprego de suas filhas, pouco se importando com a questão da moralidade e da higiene. Após alguma hesitação, finalmente deu licença, mas reservando-se o direito de fazer ratificar sua decisão pelo Sr. Négrel, o engenheiro. 

— Muito bem! — exclamou Zacharie. — Mas o homem já deve andar longe, se continua naquele passo.

— Não — respondeu Catherine. — Eu o vi parar nas caldeiras.

— Pois corre até lá, preguiçosa! — gritou Maheu.

A jovem saiu correndo, enquanto uma vaga de mineiros subia ao poço, cedendo o fogo a outros. Jeanlin, sem esperar pelo pai, foi buscar sua lâmpada com Bébert, um menino gordo e ingênuo, e Lydie, de dez anos, garota apagada e insignificante. A filha de Mouque, que partira na frente deles, gritava na escada escura, chamando-os de fedelhos sem-vergonha e ameaçando esbofeteá-los se a beliscassem.

Etienne, na casa das caldeiras, conversava com o foguista, que estava abastecendo as fornalhas de carvão. A idéia de ter de voltar para o relento sentia enorme frio, mas assim mesmo decidiu partir. Nesse momento sentiu uma mão pousando-lhe no ombro.

— Venha — disse Catherine. — Arranjamos alguma coisa para o senhor.

Não compreendeu logo; depois, num movimento de alegria, apertou energicamente as mãos da moça.

— Obrigado, camarada! Você é um bom sujeito...

Ela começou a rir, encarando-o ao clarão vermelho das fornalhas que iluminava a ambos. Divertia-se ao ver que ele a confundia com um rapaz, mesmo sendo ela tão franzina, cabelos apanhados na nuca, debaixo da coifa. Etienne ria também, de contentamento. E por um instante os dois ficaram assim, rindo um para o outro, faces afogueadas.

No vestiário, Maheu, agachado em frente à sua caixa, retirava os tamancos e as grossas meias de lã. Com a chegada de Etienne tudo foi combinado em quatro palavras: trinta soldos por dia, trabalho cansativo, mas ele aprenderia logo. O britador aconselhou-o a ir de sapatos e emprestou-lhe um chapéu velho de couro, destinado a proteger o crânio, precaução que pai e filhos não tomavam. As ferramentas foram tiradas da caixa, onde, precisamente, encontrava-se a pá de Fleurance. Maheu, tendo guardado os tamancos, as meias e o embrulho de Etienne, impacientou-se bruscamente:

— E por onde andará essa besta do Chaval? Na certa com alguma mulher num monte de pedras! Já estamos com atraso de meia hora...             

Zacharie e Levaque assavam tranqüilamente as costas. O primeiro acabou por dizer:

— Se é Chaval que esperas, ele chegou antes de nós e desceu logo...

— E tu sabias disso e não disseste nada?! Vamos, vamos depressa. Catherine, que aquecia as mãos, teve de seguir o grupo. Etienne deixou-a passar e subiu atrás dela. Viajava outra vez num dédalo de escadas e corredores escuros, onde os pés descalços faziam um ruído macio de chinelos velhos. De repente, o depósito de lampiões resplandeceu: um compartimento envidraçado, cheio de fileiras de cabides de onde pendiam centenas de lâmpadas Davy, inspecionadas e lavadas de véspera, acesas como círios ao fundo de uma câmara-ardente. No guichê, cada operário recebia a sua, em que estavam gravadas as suas iniciais; depois de examiná-la, ele mesmo a fechava. Enquanto isso, um marcador, sentado numa mesa, escrevia no registro a hora da descida. Maheu teve de intervir para conseguir uma lâmpada para seu novo operador de vagonetes. Como última precaução, os operários tinham que desfilar diante de um verificador que examinava todas as lâmpadas para ver se estavam bem fechadas.

— Cruzes! Como faz frio aqui... — murmurou Catherine, batendo o queixo.

Etienne limitou-se a acenar com a cabeça. Encontrava-se novamente diante do poço, no centro da vasta peça varrida por correntes de ar. Apesar de se acreditar destemido, uma sensação desagradável o sufocava, resultante do trovejar dos vagonetes, das pancadas surdas dos sinais, dos berros abafados do megafone e pela visão do vôo

contínuo dos cabos desenrolados e enrolados a todo vapor pela bobina da máquina. Os elevadores subiam e desciam com seu deslizar de animal noturno, tragando homens que a goela do buraco parecia beber. Chegara a sua vez: tinha muito frio e guardava um silêncio nervoso que fazia Zacharie e Levaque darem boas gargalhadas, já que ambos desaprovavam o engajamento desse desconhecido, sobretudo Levaque, que se sentia ofendido por não ter sido consultado. Por isso Catherine ficou feliz ao ver o pai explicar ao rapaz como as coisas funcionavam.

— Olhe, por cima do elevador há um pára-quedas, uns ganchos de ferro que se engatam nas corrediças, mas isso sempre funciona. O poço é dividido em três Compartimentos revestidos de alto a baixo por pranchas: no meio ficam os elevadores, à esquerda, as escadas.

Interrompeu-se para resmungar, mas sem ousar falar muito alto:

— Mas o que é que a gente está fazendo aqui, com todos os diabos! Deixarem-nos gelando dessa maneira!

O contramestre Richomme, que também ia descer, com a sua lâmpada de fogo livre segura por um prego no couro do chapéu, ouviu-o queixando-se.

— Cuidado! As paredes têm ouvidos... — murmurou ele paternalmente, como velho mineiro que permaneceu sempre bem com seus companheiros. — As manobras têm que ser feitas... Pronto! Aí está ele. Embarca com a tua gente.

Realmente, o elevador chegara, todo guarnecido de faixas de ferro fundido e de uma rede de arame de malhas pequenas, e esperava-os descansando sobre os trabalhos. Maheu, Zacharie, Levaque e Catherine escorregaram para um vagonete que estava no fundo. Como nele cabiam cinco pessoas, Etienne também entrou. Os melhores lugares já estavam tomados, teve de espremer-se ao lado da jovem, que, com um cotovelo, tocava-lhe a barriga. A lâmpada incomodava-o; aconselharam-lhe que a prendesse a uma casa de sua jaqueta. Não tendo ouvido, continuou a segurá-la desajeitadamente na mão.

O embarque continuava em cima e embaixo, um atropelo confuso de gado. Ainda não se podia partir; que estaria acontecendo? Sua impaciência parecia estar durando longos minutos. Enfim, um solavanco sacudiu-o e tudo afundou; os objetos a seu redor voavam e ele começou a sentir a vertigem ansiosa da queda, como que arrancando-lhe as entranhas. Isso durou enquanto havia luz, ao passar pelos dois andares de recepção do produto extraído, entre a fuga estonteante do vigamento. Depois, caído no escuro da galeria, permaneceu aturdido, perdida a percepção nítida de suas sensações.

— Agora, sim, estamos indo — disse placidamente Maheu. Todos estavam à vontade. Quanto a ele, às vezes, não sabia se estava descendo ou subindo. Quando o elevador corria reto, sem tocar nas guias, era como se estivesse imóvel; mas em seguida produziam-se umas trepidações repentinas, uma espécie de deslocamento de todas as pranchas, que lhe faziam temer o pior. Ademais, ele não conseguia distinguir as paredes do poço por trás da rede onde colara o rosto. As lâmpadas mal iluminavam os corpos empilhados a seus pés. Somente a lâmpada do contramestre, no vagonete vizinho, brilhava como um farol, — Este tem quatro metros de diâmetro — continuou Maheu a instruí-lo. — O madeiramento está precisando ser mudado, a água filtra por todos os lados. Veja! chegamos ao nível, está ouvindo? 

Etienne justamente estava intrigado com o ruído de água caindo que ouvia. A princípio, algumas enormes gotas tinham batido no teto do elevador, como uma pancada de chuva; agora ela aumentava, fluía, transformava-se num verdadeiro dilúvio. Sim, havia uma goteira, um fio de água que, caindo no seu ombro, molhava-o até os ossos. O frio tornara-se glacial; afundavam numa umidade negra quando, de repente, atravessaram por um rápido deslumbramento, a visão de uma caverna onde homens se agitavam à luz de um relâmpago. Em seguida caíram novamente no nada.

Maheu disse:

— Esta é a primeira embocadura de galerias. Estamos a trezentos e vinte metros. Repare na velocidade.

Levantando a lâmpada, ele iluminou uma viga das guias que fugia como um trilho por baixo de um trem correndo a todo vapor. Além disso, não se via mais nada. Mais três embocaduras de galerias passaram numa revoada de luzes. A chuva ensurdecedora fustigava as trevas.

— Como é profundo! — murmurou Etienne.

Esta queda devia estar durando horas... Sofria com a posição incômoda que tomara, torturado sobretudo pelo cotovelo de Catherine, mas não ousava mexer-se. Ela não dizia palavra, sentia-a, apenas, contra si, aquecendo-o. Quando finalmente o elevador parou no fundo, a quinhentos e cinqüenta e quatro metros, ficou admirado de saber que a descida durara apenas um minuto. Mas o barulho dos pinos fixando-se, a sensação daquela solidez por baixo dos pés, deu-lhe uma repentina euforia, e foi gracejando que ele tratou Catherine por tu.

— Estás tão quente que parece que tens febre... O teu cotovelo continua fincado na minha barriga.

Ela começou a rir também; esse tolo ainda não sabia que ela era uma moça. Estava com os olhos tapados ou o quê?

— Estou com o cotovelo nos teus olhos, isso sim...

A resposta da moça foi recebida com uma tempestade de gargalhadas que o rapaz, surpreso, não compreendeu.

O elevador se esvaziava; os operários atravessaram a embocadura da galeria, uma sala talhada na rocha, com abóbada de alvenaria iluminada por três grandes lâmpadas de fogo livre. Sobre as chapas de ferro fundido os carregadores rolavam com estrondo vagonetes cheios. Um cheiro úmido de subterrâneo ressudava dos muros, um frescor salitroso perpassado de sopros quentes vindos da cavalariça vizinha. Nesses muros, quatro galerias tinham suas bocas abertas.

— Por aqui — disse Maheu a Etienne. — Ainda não chegou; temos dois bons quilômetros pela frente.

Os operários se separavam, perdiam-se em grupos no fundo desses buracos negros. Uns quinze deles acabavam de entrar no da esquerda. Etienne marchava na retaguarda, atrás de Maheu, que era precedido por Catherine, Zacharie e Levaque.

Era uma bela galeria de tração, cavada numa rocha tão sólida que apenas em parte teve necessidade de ser murada. Avançavam em fila, avançavam sempre, em silêncio à luz escassa das lâmpadas. O rapaz tropeçava a cada passo, os trilhos o atrapalhavam. Havia um instante que um ruído surdo o preocupava; era um reboar longínquo de tempestade que parecia estar crescendo e vir das entranhas da terra. Seria o estampido de um desabamento esmagando sobre suas cabeças a massa enorme que os separava da luz do dia? De repente, uma claridade furou as trevas e ele sentiu que a rocha tremia; quando se encostou-se ao muro, como faziam os outros, viu passar à sua frente um grande cavalo branco atrelado a um comboio de vagonetes. No primeiro, segurando as rédeas, estava sentado Bébert, enquanto Jeanlin, agarrado ao último, corria descalço.

Recomeçaram a caminhar. Mais adiante havia uma encruzilhada onde se abriam duas novas galerias; o grupo dividiu-se outra vez; os operários repartiam-se pouco a pouco por todas as seções da mina. Neste ponto, a galeria de tração estava revestida de madeira; toros de carvalho sustentavam o teto, cobrindo a rocha desmoronadiça com uma proteção de vigas, para trás das quais se podiam ver as lascas de xisto cintilante de mica, e a massa grosseira de arenito, baça e rugosa.

Comboios de vagonetes, cheios ou vazios, passavam e cruzavam-se continuamente, com seu estrondo que animais de formas vagas, num trote fantasmagórico, levavam para as sombras. Numa linha de desvio, dormia uma longa serpente negra: era um comboio de vagonetes parado, atrelado a um cavalo que rinchava; estava tão engolfado na noite, que sua garupa confusa mais parecia um bloco caído da abóbada. Portas de ventilação batiam, fechando-se lentamente. E, à medida que avançavam, a galeria ficava mais baixa, com o teto cheio de saliências, forçando as espinhas dorsais a dobrarem-se constantemente.   

Etienne bateu violentamente com a cabeça. Se não fosse o chapéu de couro, teria quebrado a cabeça. E, contudo, seguia com atenção os mínimos gestos de Maheu, cuja silhueta sombria se destacava à claridade das lâmpadas. Nenhum dos outros operários esbarrava; deviam conhecer cada saliência, nó de madeira e protuberância da rocha. O rapaz tinha ainda problemas com o solo escorregadio, cada vez mais alagado. Em certos trechos atravessava verdadeiros charcos que só o chapinhar lamacento dos pés revelava. Mas o maior motivo do espanto eram, sobretudo, as bruscas mudanças de temperatura. No fundo do poço estava muito fresco e na galeria de tração, por onde passava todo o ar da mina, soprava um vento gelado, cuja violência parecia de tempestade, entre os muros apertados. A seguir, à medida que se penetrava nas outras galerias, que recebiam somente seu quinhão muito racionado de ventilação, o vento diminuía e era substituído por um calor sufocante, pesado como chumbo.

Maheu não voltara a abrir a boca. Entrou à direita, numa nova galeria, dizendo simplesmente a Etienne, sem se voltar:

— O veio Guillaume.

Era nesse veio que se encontrava sua zona de corte. Desde as primeiras passadas Etienne machucou a cabeça e os cotovelos. O teto, em declive, descia tanto que, por extensões de vinte a trinta metros, tinha de caminhar dobrado em dois. A água chegava aos tornozelos. Caminharam assim duzentos metros e, de repente, viu desaparecer Levaque, Zacharie e Catherine, como se tivessem voado por uma fenda estreita aberta diante dele.

— É preciso subir — disse Maheu. — Prenda sua lâmpada numa casa da jaqueta e agarre-se no madeirame. — E desapareceu também.

Etienne teve de segui-lo. Essa fenda aberta no veio era destinada à passagem dos mineiros e servia a todas as vias secundárias. Tinha a espessura da camada de carvão, apenas sessenta centímetros. Felizmente o rapaz era magro, já que, ainda desajeitado,

içava-se a custo, com um dispêndio inútil de forças, achatando ombros e quadris, avançando com as mãos, agarrado às vigas. Quinze metros acima encontrou a primeira via secundária, mas continuou para frente; a zona de corte de Maheu e parceiros era na sexta via, "no inferno", como eles diziam. E a cada quinze metros havia uma outra via, a subida não terminava mais nessa fenda que esfolava o peito e as costas. Etienne estertorava, como se o peso das rochas lhe tivesse triturado os membros, mãos dilaceradas, pernas arranhadas, principalmente com falta de ar, a ponto de sentir que o sangue ia jorrar pela pele. Percebeu ao longe, numa das vias, duas formas indistintas e curvadas, uma pequena e outra grande, que empurravam vagonetes: eram Lydie e a filha de Mouque, já trabalhando. Ainda lhe faltava galgar a altura de duas zonas de corte! O suor o cegava, lutava desesperadamente para alcançar os outros, cujos membros ágeis ele ouvia roçar a rocha, como um farfalhar prolongado.

— Coragem, já chegamos! — disse a voz de Catherine.

No momento em que ele efetivamente chegava, outra voz gritou do fundo da caverna:

— Então, que brincadeira é essa? Eu, que tenho dois quilômetros para percorrer de Montsou, sou o primeiro a chegar...

Era Chaval, um magricela, alto, de vinte e cinco anos, ossudo, de feições duras, que estava furioso por ter esperado. Ao ver Etienne, perguntou, com uma surpresa cheia de desprezo:

— Quem é esse aí?

Tendo Maheu contado o que se passara, acrescentou entre dentes:

— Agora, então, os homens vão comer o pão das moças.

Os dois homens trocaram um olhar iluminado por um desses ódios cegos que se ateiam subitamente. Etienne sentira o insulto, sem compreendê-lo ainda. Em silêncio, todos começaram a trabalhar.

Pouco a pouco, os veios enchiam-se de gente, o corte começava em todos os andares, no extremo de cada caverna. O poço devorador tinha engolido sua ração diária de homens, cerca de setecentos operários que trabalhavam neste horário no formigueiro gigante, furando a terra em todos os sentidos, esburacando-a como a uma madeira velha atingida pelo caruncho. E, no meio do silêncio pesado, do esmagamento das camadas profundas, poder-se-ia ouvir, colando o ouvido à rocha, o laborar desses insetos humanos em marcha, desde o vôo do cabo a subir e a descer o elevador de extração, até a mordida das ferramentas cortando a hulha no fundo dos canteiros de desmonte.

Ao voltar-se, Etienne se encontrou novamente apertado contra Catherine, mas desta vez descobriu as saliências nascentes dos seios e compreendeu o porquê daquele calor que se apossara dele.

— Mas tu és uma moça! — murmurou ele, estupefato. Ela respondeu, alegre, sem ruborizar-se:

— Claro! Custaste a perceber.

 

Os quatro britadores acabavam de se estender uns acima dos outros por toda a altura frontal do corte, cada um deles ocupando aproximadamente quatro metros do veio, separados pelas pranchas com ganchos onde depositavam o carvão britado. Este veio era tão fino, com apenas cinqüenta centímetros de espessura neste lugar, que eles tinham de ficar achatados entre o teto e o muro, arrastando-se com os joelhos e cotovelos, sem se poderem voltar, para não ferir as costas. Para despedaçar a hulha, tinham de ficar deitados de lado, pescoço torto, braços levantados e brandindo de viés a picareta de cabo curto.

Bem embaixo estava Zacharie, no meio, superpostos, Levaque e Chaval, e, no alto, Maheu. Cada um deles cortava o leito de xisto a golpes de picareta, para depois abrir dois entalhes verticais na camada e destacar o bloco inteiro com uma cunha de ferro encravada na parte superior. A hulha era gordurosa, o bloco esfarelava-se, rolava em pedaços ao longo do ventre e das coxas. Quando esses pedaços, barrados pela prancha, tinham se amontoado sobre eles, os britadores desapareciam, murados na fenda estreita.

O que mais sofria era Maheu; na parte de cima a temperatura subia a trinta e cinco graus, o ar não circulava e com o tempo a asfixia era mortal. Para poder ver, tivera de pendurar a lâmpada num prego, próximo da cabeça, e essa lâmpada, esquentando-lhe o crânio, fazia-lhe o sangue ferver. O seu suplício agravava-se com a umidade; a rocha por cima dele, a poucos centímetros do rosto, porejava água: gotas enormes, contínuas e rápidas, caindo numa espécie de ritmo teimoso, sempre no mesmo lugar. Não adiantava torcer o pescoço, revirar-se: elas batiam-lhe no rosto, escorriam, fustigavam-no sem

cessar. Após um quarto de hora estava encharcado — além de coberto de suor — e fumegando num lago quente como uma lixívia. Naquela manhã, uma goteira encarniçada contra seu olho fazia-o praguejar. Não queria largar o trabalho, dava golpes fortes, que o estremeciam violentamente entre as duas rochas, mais parecia um pulgão preso entre duas folhas de um livro, sob ameaça de ser completamente esmagado.

Não tinham trocado palavra; todos golpeavam sem descanso e não se ouvia mais que esses golpes irregulares, velados e como que longínquos. Os ruídos adquiriam uma sonoridade rouquenha, sem eco no ar morto. E era como se as trevas estivessem revestidas de uma cor negra ainda desconhecida, tornadas mais espessas pela poeira flutuante do carvão e grávidas de gases que eram um castigo para os olhos. As mechas das lâmpadas, sob suas proteções de tela metálica, emitiam apenas uns reflexos avermelhados. Não se distinguia coisa alguma, a fenda subia como uma enorme chaminé, achatada e oblíqua, onde a fuligem de dez invernos parecia ter acumulado uma noite profunda. Formas espectrais agitavam-se nessa fenda, clarões perdidos deixavam entrever o roliço de um quadril, um braço nodoso, uma cara terrível, deformada como para um crime. Às vezes, desprendendo-se, luziam pedaços de hulha, fímbrias e arestas, repentinamente iluminados como cristais. Depois, tudo voltava ao escuro, as picaretas davam grandes golpes surdos, não havia mais que o arquejar dos peitos, o grunhido de mal-estar e de cansaço sob o peso do ar e da chuva proveniente das infiltrações.

Zacharie, que estava com os braços sem vigor, devido a uma farra que fizera na véspera, logo deixou o trabalho, pretextando que era necessário forrar com madeira o local onde estava, e deixou-se ficar ali, assobiando baixinho, de olhos perdidos no escuro.

Atrás dos britadores, quase três metros do veio estavam desguarnecidos, sem que eles tivessem ainda tomado a precaução de colocar contrafortes, descuidados em face do perigo e sem querer perder tempo.

— Ei, aristocrata! — gritou o rapaz para Etienne. — Traze um pouco de madeira.

Etienne, que estava aprendendo com Catherine a trabalhar com a pá, teve de levar madeira ao veio; ainda havia uma pequena provisão de véspera. Toda manhã, como de costume, traziam um carregamento de toros já cortados na medida exata.

— Apressa-te, preguiçoso! — voltou à carga Zacharie, vendo o novo operador de vagonetes subindo desajeitadamente entre o carvão, carregando nos braços quatro toros de carvalho.

Com a picareta fez um entalhe no teto e logo um outro no muro; enfiou neles as duas extremidades da madeira, escorando assim a rocha. Na parte da tarde os operários

do desaterro tiravam o entulho deixado no fundo da galeria pelos britadores e aterravam as partes já exploradas do veio, onde enfiavam os toros, deixando livres apenas as vias inferior e superior, para o carreto.

Maheu cessou de gemer; tinha enfim cortado o seu bloco. Limpou na manga o rosto molhado e, inquieto, 

— Deixa isso — disse ele. — Depois do almoço veremos. É melhor que voltes ao corte, senão ficaremos sem preencher nossa cota de vagonetes.

— É que isso está baixando — respondeu o rapaz. — Olha, há mesmo uma racha; tenho medo de que desabe.

O pai deu de ombros. Ora, desabar! Não seria a primeira vez... E depois, a gente sempre daria um jeito de se salvar. Acabou ficando zangado e mandando o filho de volta para a frente do corte

A verdade é que todos estavam com preguiça. Levaque, deitado de costas, praguejava, examinando o polegar esquerdo, que sangrava, esfolado pela queda de um pedaço de arenito. Chaval arrancava furiosamente a camisa, punha-se de torso nu, por causa do calor. Todos eles já estavam negros de carvão, revestidos de uma poeira fina que o suor diluía, fazendo escorrer, e que ia formar regatos e charcos. Maheu foi o primeiro que voltou a golpear, desta vez mais abaixo, a cabeça ao nível da rocha. A goteira pingava agora sobre a sua testa, e tão obstinada que ele tinha a sensação de que ela ia fazer-lhe um buraco nos ossos do crânio.

— Eles sempre estão berrando — explicou Catherine. — O melhor é não dar importância.

E, cheia de boa vontade, continuou com sua lição. Cada vagonete carregado chegava lá em cima tal como partia do corte, marcado com um sinal especial para que o recebedor pudesse lançá-lo na conta da empreitada. Assim, devia-se ter muito cuidado ao enchê-lo, só colocando o carvão bom, sob pena de ser recusado na recepção.

O rapaz, cujos olhos se habituavam à escuridão, olhava-a, branca ainda, com sua tez clorótica, e não conseguia descobrir-lhe a idade; dava-lhe doze anos, de tão franzina que parecia, mas, na verdade, sabia que era mais velha, livre como um menino, de um descaramento ingênuo, que o constrangia um pouco; não se agradava dela, achava engraçada demais sua cara esbranquiçada de Pierrô, comprimida nas têmporas pela coifa. O que o espantava era a força dessa criança, uma força nervosa em que havia muito de destreza. Ela carregava seu vagonete mais ligeira do que ele, com pazadas regulares e rápidas; a seguir empurrava o carro até o plano inclinado, com um único e

lento impulso, sem dificuldade, passando facilmente sob as rochas baixas. Ele se machucava, descarrilava, perdia o rumo.

Na verdade, o caminho não era cômodo. Havia cerca de sessenta metros da frente de corte ao plano inclinado, e a via, que os mineiros desaterro ainda não tinham alargado, era um verdadeiro desfiladeiro, de teto muito desigual, cheio de saliências; em certos ares o vagonete mal passava, e o operador tinha de se achatar e empurrar ajoelhado para não quebrar a cabeça. Além disso, os caibros já estavam vergando e rachando. Podia-se ver que se partiam meio, em compridas fendas pálidas, semelhantes a muletas muito frágeis; era preciso tomar cuidado para não se arranhar essas fendas. E, sob o lento esmagamento que estourava toros de carvalho da grossura de uma coxa, era preciso passar de rastos, com a surda inquietação de ouvir de repente os ossos das costas se quebrando.

— Outra vez! — disse Catherine, rindo.

O vagonete de Etienne acabava de descarrilar numa passagem mais difícil. Não conseguia fazê-lo rodar direito naqueles trilhos que se afundavam na terra úmida; e praguejava, enfurecia-se, lutava raivosamente com as rodas que não podia, apesar dos esforços exagerados, pôr novamente no lugar.

— Espera um pouco — aconselhou a moça. — Se te zangas, ele jamais andará.

Habilmente escorregou para baixo do vagonete, ficando apenas com a parte superior do corpo para fora, e, usando os rins como alavanca, levantou e recolocou o carro no lugar. O peso do vagonete era de setecentos quilos. Ele, surpreso, envergonhado, balbuciou algumas desculpas.

Foi preciso que ela lhe ensinasse a abrir as pernas e a escorar os pés contra as vigas dos dois lados da galeria para ter pontos de apoio sólidos. O corpo devia permanecer inclinado, os braços tesos para poder empurrar, com todos os músculos, os ombros e os quadris. Numa das viagens ele seguiu-a, viu-a conduzindo com o dorso tenso e as mãos tão embaixo que mais parecia estar trotando de quatro pés, como um desses animais anões que trabalham nos circos. Ela suava, arquejava, estalava as juntas, mas sem uma queixa, com a indiferença do hábito, como se a miséria comum fosse uma fatalidade: a de viverem assim, curvados. Mas ele não conseguia fazer o mesmo, os sapatos incomodavam, e, ao ter de caminhar assim, com a cabeça baixa, seu corpo parecia que ia partir-se em pedaços. Depois de alguns minutos, essa posição era um verdadeiro suplício, uma angústia intolerável e tão dolorosa que ele se punha de joelhos, por instantes, para descansar as costas e respirar.

Depois, no plano inclinado, era uma nova trabalheira. Ela lhe ensinou como dar rapidez ao vagonete. Nos altos e baixos desse plano que dava vazão a todos os veios, de uma embocadura de galeria a outra, havia gente a postos: em cima o guarda-freio embaixo o recebedor. Esses malandros, entre doze e quinze anos gritavam um ao outro, todo o tempo, palavras abomináveis, e, para os prevenir, era preciso berrar palavrões ainda mais violentos.

Logo que havia um carro vazio para subir, o recebedor dava sinal, a operadora empurrava o seu, cheio, e era o peso deste que fazia subir o outro, quando o guarda-freio acionava a chave. Embaixo, na galeria do fundo, formavam-se os comboios que os cavalos puxavam até o poço.

— Olá, malditos burros! — gritou Catherine no plano inclinado, todo revestido de madeira, com uma extensão de cem metros e que ressoava como um megafone gigantesco.

Os dois rapazes deviam estar descansando, nenhum deles respondeu. Em todos os andares o transporte parou. Uma voz esganiçada de menina proclamou:

— Um deles está em cima da filha do Mouque, com certeza. Gargalhadas enormes retumbaram pela mina; as operadores de todo o veio se dobraram de riso, apertando a barriga.

— Quem foi? — perguntou Etienne a Catherine.

Esta lhe disse que era a Lydie, uma garotinha muito sabida e que empurrava seu carro tão vigorosamente como uma mulher, apesar dos seus braços de boneca. Quanto à filha de Mouque, era bem capaz de estar com os dois rapazes juntos.

Mas a voz do recebedor veio lá de baixo, gritando que podiam soltar o carro; decerto surgira um contramestre. O transporte recomeçou nos nove andares; só se ouviam agora os chamados dos dois operários do plano inclinado e o bufar das operadoras chegando ao plano, esbaforidas como jumentas carregadas demais. Havia um sopro de bestialidade por toda a mina, um desejo súbito de macho, quando um mineiro encontrava uma dessas moças de quatro, o traseiro ao ar, as ancas arrebentando as calças de homem.

E, depois de cada viagem, Etienne voltava a encontrar no fundo do veio a mesma sufocação, a cadência surda e quebrada das picaretas, os grandes suspiros dolorosos dos britadores ferozes na sua labuta. Os quatro tinham-se posto em pêlo, enterrados na hulha, cobertos de lodo negro até os cabelos. Num certo momento foi preciso ajudar Maheu, que estertorava, e levantar as pranchas para fazer o carvão escorregar até a via.

Zacharie e Levaque enfureciam-se contra o veio, que, diziam eles, estava resistindo às picaretas, o que tornaria as condições de sua empreitada desastrosas. Chaval deitava-se por uns instantes de costas, para poder assim descompor Etienne, cuja presença decididamente o exasperava.

— Este molenga tem menos força que uma moça! Desse jeito nunca vais encher o teu vagonete... Hem? É para poupar teus braços? Juro que não te pago os dez soldos se um deles não for aceito...

O rapaz evitava responder; ainda se considerava muito feliz por ter encontrado esse trabalho de forçado, e aceitava o brutal sentido de hierarquia do operário e do mestre-de-obras. Mas não podia mais, tinha os pés em sangue, os membros torcidos por cãibras atrozes, o tronco apertado por um cinto de ferro. Felizmente eram dez horas, o grupo resolveu almoçar.

Maheu tinha relógio, mas nem olhou para ele. No fundo desta noite sem astros, nunca se enganava, fosse a cinco minutos. Todos vestiram novamente a camisa e a jaqueta e desceram do veio; em seguida, acocoraram-se, puseram os cotovelos nas ilhargas, as nádegas sobre os calcanhares, nessa postura tão comum aos mineiros e que adotam até mesmo fora da mina, sem sentirem necessidade de uma pedra ou de uma trave para sentar. E cada um, tendo desenrolado seu sanduíche, começou a morder gravemente a grossa fatia, falando muito pouco sobre o trabalho da manhã. Catherine, que ficara em pé, acabou indo juntar-se a Etienne, que se espichara mais adiante, atravessado nos trilhos, as costas contra as madeiras; havia ali um lugar que estava quase seco.

— Não vais comer? — perguntou ela de boca cheia, sanduíche na mão.

Em seguida lembrou que encontrara esse rapaz vagando na noite, talvez sem vintém ou um pedaço de pão...

— Vamos repartir?

E, como ele não aceitasse, jurando que não tinha fome, mas com a voz trêmula de desejo, ela continuou alegremente:

— Ah! estás com nojo... Eu só mordi deste lado, vou te dar do outro, está bem?

Enquanto falava, foi partindo o pão em dois. O rapaz, ao pegar sua metade, teve de se conter para não a devorar de uma só vez, e descansou os braços sobre as coxas para que ela não notasse como remiam. Com seu ar tranqüilo, de bom colega, Catherine deitara-se ao lado dele, barriga para baixo, o queixo em uma das mãos, enquanto com a outra comia sem pressa. Entre eles, as duas lâmpadas os iluminavam.

A moça olhou-o um momento em silêncio; devia estar achando bonito aquele rosto de feições finas e de bigode preto. Docemente, ela sorriu de prazer.

— Então és mecânico e te despediram da estrada de ferro... Por quê?

— Esbofeteei o chefe...

Ela ficou estupefata, confusa nas suas idéias hereditárias de subordinação e de obediência passiva.

— A verdade é que tinha bebido — continuou ele —, e quando bebo fico louco, sou capaz de me comer e comer os outros. E isso; basta beber dois goles para sentir a necessidade de destroçar um homem... Depois fico doente por dois dias...

— Não devias beber — disse ela muito séria.

— Não precisa ter medo, me conheço muito bem. Balançou a cabeça: tinha um ódio de morte da aguardente, o ódio de último filho de uma raça de bêbados, que sofria na carne o resultado de toda essa ascendência empapada em álcool e desequilibrada graças a ele, e isso a tal ponto que uma simples gota transformava-se num veneno agindo no seu corpo.

— É mais por causa de minha mãe que estou aborrecido de ter sido posto na rua — continuou ele depois de engolir um bocado. — Ela não é feliz e de vez em quando eu lhe mandava uma moeda de cem soldos.

— E onde é que mora a tua mãe?

— Em Paris, na rua de la Goutte d'Or. É lavadeira.

Houve um silêncio. Quando ele pensava nessas coisas, seus olhos negros enfraqueciam-se e vacilavam, era uma angústia rápida resultante da lesão da qual ele temia o pior, apesar de sua saudável juventude. Por um instante ficou com os olhos perdidos nas trevas da mina. Àquela profundidade, sob o peso esmagador da terra, começou a relembrar sua infância, a mãe ainda bonita e corajosa, abandonada pelo pai, que depois voltou, apesar de ela já estar casada com outro, ela vivendo entre os dois homens que a destruíam, chafurdando com eles nas sarjetas, no vinho, na imundície. Sim, era lá mesmo, lembrava-se até da rua, de pormenores: a roupa suja no meio da loja, as bebedeiras que empestavam a casa, as bofetadas de quebrar os queixos...  

— Agora — continuou ele lentamente — não será com trinta soldos que eu poderei ajudá-la. Com certeza vai morrer de tanta miséria...

Encolheu os ombros num gesto desesperado e mordeu novamente o pão.

— Queres beber? — perguntou Catherine abrindo o cantil. — E café, não faz mal. A gente chega a se engasgar engolindo dessa maneira...

Ele não quis aceitar; já não comera metade do seu pão? Mas ela insistiu cheia de boa vontade, dizendo:

— Muito bem! Bebo antes, já que és tão cortês, só que agora tens de aceitar, senão fica feio.

Catherine estendeu-lhe o cantil: estava de joelhos, muito próxima dele, iluminada pelas duas lâmpadas. Como podia tê-la achado feia? Agora que ela estava negra, o rosto empoado de carvão fino, parecia-lhe de um encanto singular. Naquela fisionomia escura, os dentes, na boca grande demais, eram uma explosão de brancura, os olhos pareciam maiores, brilhavam com um reflexo esverdeado, iguais a olhos de gata. Uma mecha de cabelo ruivo que escapara da coifa fazia-lhe cócegas no ouvido, obrigando-a a rir. Já nem parecia tão criança, bem que podia ter catorze anos...

— Já que queres... — disse ele, bebendo e devolvendo-lhe o cantil.

Ela bebeu outro gole e forçou-o a beber outro: para repartir, disse. E aquele gargalo minúsculo passando de uma boca a outra lhes proporcionou uma sensação agradável. De repente ele se perguntou se não devia tomá-la em seus braços e beijá-la na boca. A moça tinha lábios grossos de um rosa-pálido que o carvão ressaltava, o que fazia aumentar o seu desejo. No entanto não ousou, intimidado diante dela; em Lille só conhecera mulheres da mais baixa espécie, não saberia como agir com uma operária que ainda vivia com a família.

— Deves ter catorze anos, não? — perguntou ele após ter mordido o pão.

Ela respondeu espantada, quase zangada:

— O quê? Catorze? Tenho quinze anos! A verdade é que não sou muito desenvolvida; as moças aqui não crescem muito depressa.

Ele continuou a interrogá-la e ela respondeu a tudo, sem impudência ou acanhamento. De resto, ela não ignorava nada sobre o homem ou a mulher, ainda que ele a sentisse virgem de corpo, e virgem criança, com a maturidade do seu sexo retardada devido ao ar impuro e ao cansaço em que vivia. Quando ele voltou a falar na filha de Mouque, tentando embaraçá-la, ela contou histórias espantosas num tom tranqüilo e alegre: — Ah! essa vivia fazendo das dela!. — E quando ele quis saber se não tinha namorado, ela respondeu gracejando que não queria contrariar a mãe, mas seguramente isso aconteceria um dia. Seus ombros estavam curvados, ela tinha um leve tremor de frio resultante da roupa molhada de suor, a fisionomia resignada e doce, pronta a suportar as coisas e os homens.

— Namorado é fácil encontrar quando todo mundo vive junto, não é verdade?

— Claro.

— E depois isso não faz mal a ninguém; é só não dizer nada ao padre...

— O padre pouco me importa! O Homem Negro, esse sim, é perigoso...

— Que Homem Negro?

— O velho mineiro que volta à mina para torcer o pescoço das moças que se portam mal...

Etienne fixou-a, receando que ela estivesse zombando dele.

— Então tu crês nessas bobagens? É porque não sabes nada... — Sei, sim, sei ler e escrever... Isso é muito útil para nós; no tempo do papai e da mamãe não se estudava.

Decididamente, ela era encantadora. Assim que acabasse de comer, tomá-la-ia em seus braços e beijaria aqueles lábios grossos e róseos. Era a resolução de um tímido, um pensamento de violência que chegava a estrangular-lhe a voz. Essas roupas de rapaz, essa jaqueta e essas calças sobre a carne de moça o excitavam e incomodavam ao mesmo tempo. Tendo acabado de comer o último naco de pão, bebeu no cantil e entregou-lho, para que ela o esvaziasse. O momento de voltar ao trabalho havia chegado, deu uma olhadela inquieta para os mineiros no fundo; nesse momento uma sombra obstruiu a galeria.

Havia um instante que Chaval, em pé, observava-os de longe. Avançou, não sem primeiro estar certo de que Maheu não podia vê-lo, e, como Catherine tivesse permanecido sentada no chão, agarrou-a pelos ombros, deitou sua cabeça e esmagou sua boca com um beijo brutal, e tudo isso tranqüilamente, fingindo não se preocupar com a presença de Etienne. Havia nesse beijo uma tomada de posse, uma espécie de decisão ciumenta.

A moça, no entanto, revoltou-se:

— Deixa-me, ouviste?

Mas ele continuava a segurar-lhe a cabeça e olhava-a no fundo dos olhos. Seu bigode e sua barbicha ruivos flamejavam no rosto negro de nariz enorme, em forma de bico de águia. Por fim, largou-a e foi-se sem dizer palavra.

Um arrepio gelara o corpo de Etienne. Fora estúpido por ter esperado, e agora, claro, não a beijaria, ela poderia pensar que ele estava querendo imitar o outro. Na sua vaidade ferida, sentia-se verdadeiramente desesperado.

— Por que mentiste? — perguntou ele em voz baixa. — Esse é o teu namorado.

— Não, não, juro! — exclamou ela. — Não há nada entre nós. Às vezes ele gosta de fazer brincadeiras. Ademais, ele nem é daqui, veio há seis meses de Pas-de-Calais.

Era hora de voltar ao trabalho, ambos se levantaram. Vendo-o tão frio, ela ficou triste. Sem dúvida achava-o mais bonito que o outro, talvez mesmo o preferisse. Queria inventar uma amabilidade, alguma coisa para consolá-lo; e como o rapaz, admirado, examinava sua lâmpada, que tinha uma chama azul envolta num grande círculo pálido, ela tentou ao menos distraí-lo:

— Vem comigo, vou mostrar-te uma coisa — murmurou, num tom amistoso.

Levou-o para o fundo do veio e apontou para uma frincha na hulha; escapava dela um leve murmúrio, um ruidozinho igual a pipilo de pássaro.

— Põe a mão... sentes o vento? É o grisu.

Ele teve uma surpresa: então era só isso o gás terrível que fazia ir tudo pelos ares? Ela riu e explicou que naquele dia devia haver muito para que as chamas das lâmpadas estivessem tão azuis.

— Quando é que vocês vão parar de tagarelar, seus vagabundos? — gritou a voz brutal de Maheu.

Catherine e Etienne voltaram correndo ao trabalho de encher seus carros e de empurrá-los para o plano inclinado, as espinhas dorsais retesadas, raspando no teto acidentado da galeria. A partir do segundo carreto, o suor os inundava e os ossos voltavam a estalar.

No veio, o trabalho dos britadores tinha recomeçado. Muitas vezes eles apressavam o almoço para não perderem o calor do corpo; e seus sanduíches, comidos numa voracidade muda e naquela profundidade, transformavam-se em chumbo no estômago. Deitados de lado, golpeavam mais forte, com a idéia fixa de completar um número elevado de vagonetes. Tudo desaparecia nessa fúria de ganho tão duramente disputado, nem mesmo sentiam mais a água que escorria e lhes inchava os membros, as cãibras resultantes das posições forçadas, as trevas sufocantes onde eles descoravam como plantas encerradas em adegas. E, à medida que o dia avançava, o ar ficava cada vez mais envenenado, aquecia-se com a fumaça das lâmpadas, com a Pestilência dos hálitos, com a asfixia do grisu, que pousava nos olhos como teias de aranha e somente o vento da noite varreria. Mas eles, no fundo dos seus buracos de toupeira, suportando o peso da terra, sem ar nos peitos escaldantes, continuavam a cavar.

 

Maheu, sem olhar o relógio guardado na jaqueta, parou e disse:

— Quase uma hora... Zacharie, acabou com isso?

O rapaz começara havia pouco tempo a colocar escoras. Durante o trabalho ele se deitara de costas, o olhar perdido, pensando nas partidas de críquete que jogara na véspera. Voltando ao mundo, respondeu:

— Sim, por hoje chega, amanhã veremos. E retornou a seu lugar no veio.

Agora era a vez de Levaque e Chaval largarem as picaretas. Houve um descanso. Todos secavam o rosto nos braços nus, enquanto observavam a rocha do teto cuja parte de xisto estava toda fendida. O único motivo de conversa era o trabalho.

— Mais uma vez vim parar em terras que se esfarelam — murmurou Chaval. — Eles deviam ter levado isso em conta durante as negociações...

— Quem? Esses trapaceiros? — grunhiu Levaque. — O que eles querem é enterrar-nos aqui dentro.

Zacharie começou a rir; pouco se importava com o trabalho e o resto, mas gostava de ouvir falar mal da companhia. Com seu jeito calmo, Maheu explicou que o terreno mudava de natureza a cada vinte metros. Era preciso ser justo, ninguém podia prever. Como os outros dois continuassem a invectivar os chefes, ele ficou inquieto, começou a olhar para os lados. 

— Psiu! Chega!

— Tens razão — disse Levaque, que também baixou a voz. — É perigoso. 

A obsessão dos espiões não os deixava, mesmo naquela profundidade, como se a hulha dos acionistas, ainda no veio, tivesse ouvidos.

— Isso não impede — proclamou Chaval bem alto, em tom desafiador —, se o porco do Dansaert me falar novamente no tom com que falou no outro dia, que eu lhe

pregue com um tijolo na pança. Não sou eu quem o proíbe de gastar dinheiro com louras de pele delicada.

Desta vez Zacharie riu às gargalhadas. Os amores do capataz com a mulher de Pierron eram o maior motivo de brincadeiras na mina. A própria Catherine, apoiada na pá, lá embaixo, dobrava-se de rir, e, numa frase, pôs Etienne a par do caso, enquanto Maheu resolveu zangar-se, presa de um medo que não conseguia esconder mais.

— Como é, não vais calar-te? Fala quando estiveres sozinho, se queres que te aconteça uma desgraça.

Ele falava ainda quando se ouviu um ruído de passos na galeria de cima. Quase no mesmo momento, o engenheiro da mina, o pequeno Négrel, como os operários o chamavam entre si, apareceu no alto do veio, acompanhado de Dansaert, o capataz.

— Eu não disse? — murmurou Maheu. — Eles sempre brotam da terra, de repente.

Paul Négrel, sobrinho do Sr. Hennebeau, era um rapaz de vinte e seis anos, magro e bonito, cabelos crespos e bigode escuro. O nariz pontudo, o olhar vivo lhe davam um ar de pessoa curiosa mas amável, de uma inteligência cética, que se transformava em brusco autoritarismo nas suas relações com os operários. Andava vestido e sujo de carvão como eles, e, para que o respeitassem, desafiava os perigos passando pelos lugares mais difíceis; era sempre o primeiro nos desabamentos e nas explosões de grisu.

— É aqui, Dansaert? — perguntou.

O capataz, um belga de cara grande e nariz grosseiro e sensual, respondeu com delicadeza exagerada:

— Sim, Sr. Négrel... Este é o homem que foi contratado de manhã.

Tinham escorregado até o meio do leito do veio e mandaram subir Etienne. O engenheiro levantou a lâmpada e observou-o sem o interrogar.           

— Está bem — disse afinal. — Não gosto muito de que se agarrem desconhecidos nas estradas; que isso não se repita.

 E sem escutar as explicações que lhe davam sobre as necessidades do trabalho e do desejo de substituir as mulheres por rapazes no carreto, começou a estudar o teto, e os britadores tiveram de voltar às suas picaretas.

De repente exclamou:

— Será possível, Maheu, que você não se importa com nada? Vão ficar todos enterrados aqui, seus idiotas!

— Não, está firme — respondeu tranqüilamente o operário.

— Firme?! A rocha já está cedendo e vocês colocam as vigas com distâncias de mais de dois metros, e de má vontade! Quer saber de uma coisa? Vocês são todos iguais, preferem deixar-se esmagar a largar o veio, quando necessário, para fazer o revestimento. Vamos! Quero que me escorem isto imediatamente; e com vigas duplas, ouviram?

Diante da pachorra dos mineiros, que discutiam, dizendo que ninguém era melhor juiz da sua segurança do que eles, o engenheiro encolerizou-se:

— Como é? Vamos de uma vez! Quando estiverem com a cabeça esmagada, quem é que vai sofrer as conseqüências? Vocês? Claro que não! É a companhia; ela terá de pagar as suas pensões ou das suas mulheres. Já sabemos muito bem como são: para terem no fim do dia dois vagonetes a mais na conta, são capazes de largar a pele.

Maheu, apesar da cólera que pouco a pouco se apossava dele, conseguiu falar com calma:

— Se nos pagassem melhor poderíamos pensar nessas coisas. O engenheiro deu de ombros sem responder. Tendo acabado de descer até o fundo, falou lá de baixo:

— Têm uma hora para fazer esse trabalho. E estão avisados de que a empreitada vai ser multada em três francos.

Os britadores receberam essas palavras com um surdo murmúrio de descontentamento. Só a força da hierarquia, essa hierarquia militar que do trabalhador menor ao capataz da mina, curvava a todos, uns por baixo dos outros, retinha-os. Contudo, Chaval e Levaque tiveram um gesto de fúria, enquanto Maheu os continha com o olhar e Zacharie encolhia zombeteiramente os ombros. Mas era talvez Etienne o mais irritado; desde que se encontrava no fundo daquele inferno, uma revolta lenta o agitava. Olhou para Catherine, que continuava curvada, resignada. Então era possível que uma pessoa se matasse num trabalho de escravo, no fundo dessas trevas horrendas, e nem sequer conseguisse ganhar os parcos tostões para o pão de cada dia? 

Négrel deu alguns passos, sempre acompanhado de Dansaert, que se contentara em aprovar tudo o que ele dissera com um movimento contínuo de cabeça. Ouviu-se outra vez a voz do engenheiro; tinham parado para examinar o revestimento da galeria, da qual os britadores eram responsáveis pela conservação numa extensão de dez metros, a partir do veio.

— Quando eu lhe digo que eles não ligam para nada estou mentindo? — berrava o engenheiro. — E você, meu Deus! Não viu isto?

— Sim, claro que vi... — balbuciava o capataz. — Estou cansado de adverti-los.

Négrel chamou aos brados:

— Maheu, Maheu!

Todos desceram; ele continuou:

— Veja isto. Está firme? Diga-me! Isso nunca foi trabalho decente. Este encaixe não segura mais os caibros porque foi colocado de qualquer jeito, e assim por diante. Agora compreendo as enormes somas que gastamos em consertos... Desde que isto agüente enquanto vocês são os responsáveis o resto não tem importância, não é assim? E que tudo quebre depois, a companhia está aí mesmo, ela que mantenha um exército de operários para consertar... Veja aquilo ali, é uma vergonha.

Chaval quis falar, mas ele não deixou.

— Não fale nada, já sei o que vai dizer: que lhe paguem melhor, não é? Pois previno-os de que vão forçar a direção a fazer uma coisa! Sim, pagaremos o revestimento à parte e reduziremos proporcionalmente o preço do vagonete. Já veremos o que ganharão com isso. Agora quero esse revestimento feito todo de novo e imediatamente. Amanhã volto aqui.

E partiu, deixando atrás de si o impacto causado por sua ameaça.

Dansaert, tão humilde diante do outro, ficou para trás por alguns segundos para dizer brutalmente aos operários:

— Essa vocês me pagam... Não vai ser somente de três francos a multa que vou aplicar. Tomem cuidado comigo!

Depois de ele partir foi a vez de Maheu estourar.

— Com todos os diabos! O que não é justo não é justo. Gosto de fazer tudo com calma porque é a única maneira com que a gente se pode entender, mas é de ficar furioso. Vocês ouviram? Vão pagar menos por carro e o revestimento à parte! Isso não passa de uma desculpa para nos pagarem menos... Raios os partam. 

Procurava alguém para descarregar a fúria: encontrou Catherine e Etienne sem fazerem nada.

— Vocês querem passar-me a madeira, ou será que isso não lhes interessa? Não me custa nada dar uns bons pontapés nos dois.

Etienne foi buscar madeira, sem guardar rancor por causa da grosseria do outro; estava tão furioso contra os chefes, que achava que os mineiros eram até muito delicados.

Levaque e Chaval desabafaram com palavrões. Todos, até Zacharie, emadeiravam furiosamente. Durante quase meia hora só se ouviu o estalar das madeiras

sob os golpes dos martelos. Não falavam mais, resfolegavam, exasperavam-se contra a rocha, que, se pudessem, desalojariam e jogariam para o lado com um movimento de ombros.

— Chega! — disse enfim Maheu, cheio de raiva e cansaço. — Uma e meia... Ah, que belo dia! Não chegaremos a cinqüenta soldos. Vou embora, estou farto!

Ainda havia meia hora de trabalho, mas ele se vestiu e os outros fizeram o mesmo. Só de olhar para o veio perdiam a cabeça. Como a operadora de vagonetes continuasse a trabalhar, eles a chamaram, irritados com tanto zelo: o carvão que fosse sozinho, se pudesse. E os seis, ferramentas debaixo dos braços, voltaram ao poço pelo caminho da manhã.

Na fenda, Catherine e Etienne ficaram para trás, enquanto os britadores escorregaram até embaixo. Os dois haviam encontrado Lydie, que parara no meio de uma via para deixá-los passar, e que lhes contou que a filha do Mouque deixara o trabalho havia bem uma hora com o nariz sangrando e fora molhar o rosto ninguém sabia onde.

Quando a deixaram, a meninazinha começou a empurrar novamente o carro, prostrada, cheia de lama, retesando seus braços e pernas de inseto, igual a uma formiga preta em luta com um fardo demasiadamente pesado.

Os dois desceram de costas, encolhendo os ombros com receio de esfolar a testa; deslizavam tão rapidamente ao longo da rocha polida por todos os recantos da mina que tinham, de vez em quando, de agarrar-se às madeiras — para que suas nádegas não pegassem fogo, diziam eles gracejando.      

Embaixo, não encontraram ninguém. Estrelas vermelhas passavam ao longe, num cotovelo da galeria. Puseram-se a caminho, ela na frente, ele atrás, arrastando os pés de cansaço, sem mais vontade de fazer gracejos. As lâmpadas fumegavam; ele mal podia vê-la, envolta numa espécie de neblina de fumaça. A idéia de que ela era uma moça o deixava inquieto; sentia-se estúpido por não a beijar, mas a lembrança do outro o impedia. Certamente ela tinha mentido: o outro era seu amante, dormiam juntos em todos os leitos de pedras que encontravam, ela já rebolava como uma prostituta... Sem motivo, sentiu-se despeitado, como se a moça o tivesse enganado. E no entanto ela, a cada momento, voltava-se, prevenia-o sobre algum obstáculo, parecia convidá-lo a ser amável. Estavam tão sós, bem que podiam rir como dois bons amigos! Finalmente desembocaram na galeria de trânsito; foi um alívio para ele, ali não poderia fazer mais nada, nem que quisesse. Ela olhou-o pela última vez com um olhar triste, como saudosa de uma ventura para sempre perdida.

Agora, em torno deles, a vida subterrânea estrondeava com as contínuas andanças dos contramestres, o vaivém dos comboios de vagonetes puxados pelo trote dos cavalos. Só as lâmpadas punham estrelas naquela noite. Eles tinham de se encostar na rocha, dar passagem às sombras de homens e de animais e receber seu hálito no rosto. Jeanlin, correndo descalço atrás dos seus vagonetes, gritou-lhes um impropério que não entenderam, devido ao ribombar das rodas.

Continuavam caminhando; ela agora silenciosa, ele não reconhecendo as encruzilhadas e galerias por onde passara de manhã, imaginando que ela o afundava cada vez mais na terra. O que mais sentia era o frio; um frio sempre maior, que começara na saída do veio e o fazia tiritar violentamente à medida que se aproximavam do poço.

A corrente de ar soprava novamente como uma tempestade entre as muralhas estreitas. Ele pensava que nunca mais chegaria quando, de repente, atingiram a embocadura da galeria.

Chaval lançou-lhes um olhar atravessado, a boca franzida de desconfiança. Os outros também estavam lá, suando no ar gelado, mudos como ele, engolindo o ódio. Haviam chegado cedo demais, recusavam-se a subi-los antes de meia hora, ainda mais que estavam fazendo manobras complicadas para descer um cavalo. Os carregadores ainda faziam correr os carros com um ruído ensurdecedor de ferragem sacudida; os elevadores subiam, desaparecendo na chuva torrencial que caía do buraco negro; embaixo, o desaguadouro, com uma boca de dez metros de diâmetro, fluía sem descanso, exalando a sua umidade lodosa. Em volta do poço havia homens que trabalhavam infatigavelmente puxando as cordas dos sinais, pendurando-se nos braços das alavancas em meio àquela garoa que lhes encharcava as roupas. A claridade avermelhada das três lâmpadas de chama livre, recortando grandes sombras móveis, dava a essa sala subterrânea um aspecto de covil, de toca de bandidos próxima de uma torrente.

Maheu fez um último esforço. Aproximou-se de Pierron, que pegara no serviço às seis horas.

— Como é? tu bem que podias deixar-nos subir.

Mas o carregador, belo rapaz de rosto meigo e membros fortes, recusou com um gesto de medo.

— Impossível, pede ao contramestre. Eles me multariam se eu deixasse.

Novos grunhidos de cólera foram abafados. Catherine, inclinando-se, disse ao ouvido de Etienne:

— Vamos então à cavalariça, vais ver como é agradável. Tiveram de escapar sem ser vistos, porque era proibido ir lá.

A cavalariça encontrava-se à esquerda, no fim de uma pequena galeria. Talhada na rocha e abobadada de tijolos, com vinte e cinco metros de comprimento e quatro de altura, podia conter vinte cavalos. Realmente era agradável ali, com um bom calor de animais vivos, um cheiro bom de palha fresca e sempre limpa. A única lâmpada existente espalhava uma luz calma de lamparina. Os cavalos, descansando, viraram a cabeça para olhá-los com seus grandes olhos infantis, para em seguida voltarem à sua aveia, sem pressa, como trabalhadores bem alimentados e saudáveis, apreciados por todos.

Catherine começou a ler em voz alta os nomes escritos em placas de zinco por cima das manjedouras; de repente deu um pequeno grito, vendo um corpo erguer-se diante dela: era a filha de Mouque, que, sobressaltada, saía de um monte de palha, onde estivera dormindo. Às segundas-feiras, quando estava realmente cansada das farras de domingo, dava-se um violento soco no nariz, deixava seu veio com o pretexto de ir em busca de água e vinha esconder-se ali, na palha quente, com os animais. Seu pai, que a amava muito, tolerava tudo isso, correndo o risco de ter aborrecimentos.

Justamente nesse momento entrou o velho Mouque, baixo, careca, uma ruína, mas apesar de tudo gordo, o que era raro num mineiro de cinqüenta anos. Depois que fora transferido para a cavalariça, mascava tanto tabaco que as gengivas sangravam na boca negra. Vendo os dois com a filha, resolveu zangar-se. 

— Que é que vocês todos estão fazendo aqui? Vamos, fora! E essas malandras ainda me trazem um homem... É muito bonito virem fazer suas sem-vergonhices em cima da palha!

A filha achou engraçado e começou a rir, apertando a barriga. Etienne, encabulado, foi embora, e Catherine lhe sorriu.

Os três chegaram à plataforma do poço com Bébert e Jeanlin, que traziam um comboio de vagonetes. Houve uma parada para a manobra dos elevadores, e a moça aproximou-se do cavalo deles, acariciou-o e falou dele a Etienne. Era o Batalha, um animal branco que tinha dez anos de serviços prestados no fundo da mina, o mais antigo de todos os cavalos que trabalhavam ali; havia dez anos que ele vivia enfurnado, ocupando o mesmo canto da estrebaria, fazendo a mesma tarefa ao longo das galerias negras, sem jamais ter revisto a luz do dia. Muito gordo, de pêlo luzidio e ar bonachão, parecia levar ali embaixo uma existência de sábio, ao abrigo dos dissabores lá de cima; de tanto viver nas trevas, transformara-se num espertalhão; a via onde trabalhava era-lhe

agora tão familiar que empurrava com a cabeça as portas de ventilação e curvava-se nos lugares mais baixos para não bater. Decerto ele contava suas viagens, porque, depois de ter feito o seu número regulamentar, recusava-se a continuar e tinha de ser reconduzido à manjedoura. Agora, que estava ficando velho, seus olhos de gato costumavam encher-se de melancolia; talvez estivesse revendo, no fundo de seus sonhos obscuros, o moinho onde nascera, perto de Marchiennes — um moinho construído às margens do Scarpe, rodeado de muito verde, sempre batido pelo vento. Alguma coisa ardia no ar, um lampião enorme, cuja forma exata escapava à sua memória de animal. E assim ele ficava, cabeça baixa, trêmulo sobre as pernas velhas, fazendo esforços inúteis para se lembrar do sol.

Enquanto isso, as manobras continuavam no poço; o martelo dos sinais dera quatro pancadas, já iam descer o cavalo. Isso era sempre motivo de emoção, já que muitas vezes o animal, presa de tal horror, desembarcava morto. Em cima, enrolado numa rede, ele se debatia, enlouquecido; depois, logo que sentia faltar-lhe o chão, ficava como que petrificado, e assim afundava no poço, sem um frêmito na pele, os olhos arregalados e fixos.

Este, como era muito grande para poder passar entre as guias, tiveram de amarrá-lo por baixo do elevador e encolhê-lo ligando a cabeça à ilharga. A descida durou cerca de três minutos: haviam diminuído a velocidade da máquina, por precaução. Embaixo, a emoção era cada vez maior. Que estaria acontecendo? Será que iam deixá-lo assim, pendurado no escuro, no meio do caminho? Afinal, ele apareceu, com sua imobilidade de pedra, olhar fixo, dilatado de terror. Era um cavalo baio, com apenas três anos, chamado Trombeta.

— Cuidado! — gritou o velho Mouque, que estava encarregado de recebê-lo. — Ponham-no aqui, mas sem desamarrá-lo.

Dentro em pouco, Trombeta estava deitado sobre as lajes de ferro fundido, como um fardo. Continuava sem movimento, parecia ainda dentro do pesadelo daquele buraco escuro, infinito, daquela peça profunda, cheia de barulho. Começavam a desamarrá-lo quando Batalha, já desatrelado, aproximou-se espichando o pescoço para farejar esse companheiro que vinha da terra. Os operários abriram a roda, gracejando: que cheiro bom estaria sentindo? Mas Batalha, surdo às zombarias, excitava-se. Sim, estava descobrindo o cheiro bom do ar livre, o perfume esquecido do sol nos campos. E subitamente deu um relincho sonoro, que era uma música de alegria onde parecia haver a tristeza do soluço. Eram as boas-vindas, a exultação daquelas coisas antigas das quais recebia o hálito, a tristeza por aquele prisioneiro a mais que só voltaria a subir depois de morto.

— Mas que animal esse Batalha! — gritavam os operários, divertidos com as patuscadas do seu favorito. — Agora está conversando com o companheiro.

Trombeta, desamarrado, continuava sem movimento. Permanecia de lado, como se ainda estivesse com a rede a apertá-lo, garroteado pelo medo. Por fim ficou em pé, depois de uma chicotada, atordoado, os membros sacudidos por tremores. O velho Mouque levou os dois animais, que confraternizavam.

— Como é, chegou a nossa vez? — perguntou Maheu. Primeiro era preciso desimpedir os elevadores, e ainda faltavam dez minutos para a hora da subida.

Pouco a pouco, o trabalho ia parando, os mineiros desembocavam de todas as galerias. Já havia cerca de cinqüenta homens esperando, todos molhados e tiritando, sob a ameaça da pneumonia que poderia vir de qualquer lado.

Pierron, apesar do seu jeito delicado, deu um bofetão na filha, Lydie, por esta ter deixado o trabalho antes da hora. Zacharie esfregava-se na filha de Mouque, a pretexto de se aquecer. E o descontentamento ia crescendo; Chaval e Levaque contaram que o engenheiro os tinha ameaçado, que o preço do carro baixaria e o revestimento ia ser pago à parte; diversas exclamações acolheram este projeto; germinava uma rebelião naquele buraco estreito, a aproximadamente seiscentos metros abaixo do solo. Em dado momento, as vozes começaram a subir; esses homens, imundos de carvão, gelados pela espera, acusaram a companhia de matar no fundo da mina a metade dos seus operários e de fazer a outra metade morrer de fome. Etienne escutou tudo isso com um frêmito

— Vamos, mais depressa, mais depressa! — gritava aos carregadores o contramestre Richomme.

Apressava a manobra para a subida, não querendo usar de severidade, fingindo não escutar. Mas os murmúrios já estavam tão altos que ele se viu obrigado a entrar na história. Por trás dele gritava-se que como estava não podia durar muito e um belo dia aquilo tudo ia pelos ares.

— Tu, que és sensato — disse ele a Maheu —, faze que se calem. Quando não se é o mais forte, deve-se ter paciência.

Mas Maheu, que se acalmava e começava a inquietar-se, não teve que intervir. De repente, as vozes calaram. Négrel e Dansaert, voltando da inspeção, desembocavam, banhados em suor, de uma galeria. O hábito da disciplina fez que todos os homens formassem filas, enquanto o engenheiro atravessava o grupo sem dizer palavra; entrou num vagonete e o capataz noutro. O sinal foi puxado cinco vezes, sinal de "carne graúda", como diziam os operários, e o elevador subiu, em meio a um silêncio soturno.

 

No elevador que o levava para cima, amontoado com mais quatro, Etienne resolveu voltar ao seu andarilhar faminto pelas estradas. Melhor seria morrer lá mesmo do que voltar ao fundo daquele inferno, onde nem sequer conseguia ganhar o suficiente para o pão. Catherine, encurralada acima dele, não mais estava ali, a seu lado, entorpecendo-o com o seu calor. Sim, era melhor que nem pensasse mais nessas bobagens, que se fosse... Sendo mais instruído que eles, não podia sentir essa resignação de rebanho, e acabaria por estrangular um chefe qualquer.

De repente, não enxergou mais nada; a subida fora tão rápida que ficou aturdido com a claridade, os olhos piscando, desabituados com a luz. Contudo, não deixou de ser um alívio para ele quando sentiu que o elevador se firmava nos ferrolhos. Um carregador abriu a porta, e uma vaga de operários saltou dos vagonetes.

— Como é, Mouque — murmurou Zacharie ao ouvido do carregador —, vamos ao Volcan esta noite?

O Volcan era um café-concerto de Montsou; o jovem Mouque piscou o olho esquerdo e riu silenciosamente, mas com toda a boca. Baixo e gordo como o pai, tinha um nariz arrebitado, típico desses rapazes que tudo esbanjam, sem qualquer preocupação com o futuro. Nesse momento, a irmã saía de dentro do elevador, e ele pespegou-lhe uma enorme palmada no traseiro, de pura ternura fraternal.

Etienne quase não reconhecia a nave alta de recepção que à noite lhe parecera tenebrosa, sob a luz bruxuleante dos lampiões. Agora não era mais que nua e suja. Uma

claridade terrosa entrava pelas janelas empoeiradas. Só a máquina luzia seus cobres ao fundo da peça. Os cabos de aço, cobertos de graxa, corriam como fitas encharcadas de tinta, e as roldanas no alto, as enormes vigas que as sustentavam, os elevadores, os vagonetes, todo esse imenso aparato metálico escurecia a sala com a sua opacidade de ferragem gasta. O ruído surdo das rodas fazia que as lajes de ferro fundido tivessem um estremecimento contínuo, e da hulha transportada subia uma poeira fina de carvão que tisnava o solo, as paredes e até as traves da torre do sino de rebate.

Chaval, tendo dado uma vista de olhos no quadro de lançamentos, no pequeno escritório envidraçado do recebedor, voltou furioso; constatara que dois vagonetes dos seus tinham sido recusados; um por não conter a quantidade regulamentar, outro porque a hulha estava suja.

— O dia está completo! — gritou ele. — São vinte soldos a menos! A culpa é da gente, empregar vagabundos que se servem dos braços como um porco do rabo...

E, com um olhar de viés para Etienne, completou seu pensamento. O rapaz esteve a ponto de responder com um murro, mas conteve-se; para quê? Não ia embora? Esse incidente veio persuadi-lo de uma vez por todas.

— No primeiro dia não se pode fazer tudo direito — disse Maheu para pacificar. — Amanhã ele fará melhor.

Mas todos estavam exasperados, prontos para brigar. Ao passarem pelo depósito de lâmpadas, Levaque agarrou-se com o encarregado, que ele acusou de não limpar a sua como devia. Só no vestiário é que se acalmaram um pouco; ali o fogo continuava a arder tão forte que o fogão estava em brasa; o enorme compartimento sem janelas parecia estar em chamas com os reflexos purpúreos do braseiro dançando nas paredes. Houve exclamações de satisfação, todos se puseram a aquecer as costas a certa distância, fumegantes como pratos de sopa; quando os rins queimavam, punham as barrigas para cozer. A filha de Mouque, com toda a calma, tinha descido as calças para secar a camisa. Os rapazes começaram a soltar piadas; de repente, houve uma gargalhada geral, com a moça mostrando-lhes o traseiro, o que, para ela, era extrema expressão de desdém.

— Eu me vou — disse Chaval, que tinha fechado suas ferramentas na caixa.

Ninguém se mexeu. Só a filha de Mouque se apressou, correu atrás dele, pretextando que ambos iam para Montsou. Mas as brincadeiras a seu respeito continuaram, todos sabiam que Chaval não queria mais nada com ela.

Catherine, no entanto, preocupada, falava com o pai em voz baixa. Este, a princípio, mostrou-se espantado, depois fez um movimento de aprovação com a cabeça e chamou Etienne para lhe entregar o embrulho.

— Escute — murmurou ele. — Se você está sem dinheiro, vai morrer de fome antes do fim da quinzena. Quer que lhe arranje crédito em algum lugar?

O jovem não soube o que responder, embaraçado; ia justamente pedir seus trinta soldos e partir, mas teve vergonha diante da moça que o olhava fixamente; talvez fosse pensar que ele não gostava de trabalhar.

— Mas não lhe prometo nada — continuou Maheu. — Podem muito bem não querer dar.

Etienne resolveu não dizer que não; era certo que recusariam o tal crédito. E, além do mais, isso em nada o comprometia, podia ir embora quando quisesse, depois de haver comido alguma coisa. Mas em seguida arrependeu-se por ter aceito, ao ver a alegria de Catherine, seu riso aberto, seu olhar de amizade, sua satisfação por ter podido ajudar. De que serviria tudo aquilo?

Tendo apanhado os tamancos e fechado as caixas, Maheu e os filhos deixaram o vestiário, atrás dos camaradas que partiam depois de se aquecerem. Etienne seguiu-os, e Levaque e seu filho incorporaram-se ao grupo. Ao atravessarem a triagem, uma cena violenta fê-los parar.          

Era um galpão, amplo, com o vigamento negro de pó e grandes persianas por onde soprava constantemente uma corrente de ar. Os carros de hulha vinham para ali diretamente da recepção, em seguida eram derramados por basculadores nas tremonhas, longas calhas metálicas de transporte; à direita e à esquerda destas, as separadoras, trepadas em degraus e armadas de pá e ancinho, retiravam as pedras e empurravam o carvão limpo que, em seguida, caía através de funis nos vagões do caminho de ferro construído sob o galpão.

Philomène Levaque trabalhava ali, franzina e pálida, com ar resignado de moça que põe sangue pela boca. A cabeça protegida por um farrapo de lã azul, mãos e braços negros até os cotovelos, fazia a sua triagem logo depois de uma velha bruxa, a mãe da mulher de Pierron, a Queimada, como a chamavam, terrível com seus olhos de coruja e lábios comprimidos como a bolsa de um avarento. As duas estavam brigando; a jovem acusava a velha de surrupiar suas pedras, de modo que não conseguia encher um cesto em dez minutos.

Eram pagas por cestos, daí nascerem disputas a cada momento; cabelos desfeitos, mãos marcadas a preto nos rostos vermelhos...

— Vamos, dá-lhe um soco! — gritou Zacharie lá de cima para a amante.

Todas as separadoras começaram a rir, mas a Queimada investiu furiosa contra o rapaz.

— Indecente! Era melhor que reconhecesses os dois filhos que fizeste nela! Imaginem! Nessa pateta de dezoito anos que nem consegue ficar em pé.

Maheu teve de impedir o filho de descer para ver, como ele disse, a cor da pele daquela carcaça. Um fiscal acorreu e os ancinhos puseram-se de novo a remexer o carvão. Não se via, do alto até o ponto mais baixo das tremonhas, senão as costas curvadas das mulheres encarniçadas a se disputarem as pedras.

Lá fora o vento amainara subitamente, um frio úmido caía do céu cinzento. Os mineiros encolheram os ombros, cruzaram os braços e partiram em debandada, com um movimento de cadeiras que tornava salientes seus ossos enormes sob a fazenda fina das roupas. À luz do dia, mais pareciam uma tropilha de negros que tivessem caído no lodo. Alguns deles não tinham comido todo o sanduíche, e esse resto de pão, enfiado entre a camisa e a jaqueta, tornava-os corcundas.

— Olha, lá vai o Bouteloup — disse Zacharie, rindo. Levaque, sem parar, trocou duas frases com o seu inquilino, um homem gordo de trinta e cinco anos, de jeito calmo e honesto. 

— Como é, Louis, a sopa está pronta?

— Acho que sim.

— Então a mulher está andando direito hoje?

— Sim, acho que sim.

Outros mineiros do desaterro estavam chegando, grupos novos e um a um, eram engolidos pela mina. Era o turno das três horas, ais homens para a fome do poço e cujas equipes iam substituir os britadores de empreitada no fundo dos filões. A mina nunca parava, noite e dia havia insetos humanos cavando a rocha, seiscentos metros abaixo dos campos de beterraba.

Os meninos agora caminhavam na frente. Jeanlin confiava a Bébert um plano complicado para conseguir quatro soldos de tabaco a crédito, enquanto Lydie se conservava, respeitosamente, a distância. Catherine caminhava com Zacharie e Etienne; nenhum deles falava. Em frente à taberna Avantage, Maheu e Levaque alcançaram o grupo.

— Chegamos — disse o primeiro a Etienne. — Você quer entrar?

Separaram-se. Catherine tinha ficado um instante imóvel, olhando por uma última vez o rapaz com seus olhos grandes, límpidos e glaucos como água de fonte, encravados no rosto negro, o que mais ressaltava seu brilho. Ela sorriu e desapareceu com os outros no caminho ascendente que conduzia ao conjunto habitacional.

A taberna encontrava-se entre este e a mina, no cruzamento dos dois caminhos; era uma casa de tijolos de dois andares, caiada de alto a baixo, com as janelas emolduradas de largas faixas de um alegre azul-claro. Por cima da porta havia uma tabuleta com os seguintes dizeres pintados em amarelo: À Avantage, taberna, administrada por Rasseneur. Por trás da casa havia uma cancha para jogo de boliche cercada por uma sebe viva. A companhia, que tudo fizera para comprar esse terreno encravado em suas vastas terras, não se conformava com uma taberna aberta em pleno campo, às portas da Voreux.

— Entre — repetiu Maheu a Etienne.

A sala era pequena, de uma nudez clara com suas três mesas e sua dúzia de cadeiras, seu balcão de pinho, do tamanho de um guarda-comida de cozinha. Havia, quando muito, uns dez copos, três garrafas de licor, um garrafão, uma pequena caixa de zinco com torneira de estanho para a cerveja e nada mais, nenhuma imagem, nenhuma prateleira, nenhum jogo. No fogão de ferro fundido, envernizado e brilhante, ardia brandamente uma pazada de hulha. Sobre as lajes, uma camada fina de areia branca absorvi a contínua umidade daquela região encharcada.

— Uma cerveja — pediu Maheu a uma moça gorda e loura, filha de uma vizinha e que às vezes cuidava do estabelecimento. — J. Rasseneur está?

Abrindo a torneira, ela respondeu que o patrão vinha já Lentamente, de um só trago, o mineiro bebeu metade do copo, para limpar a garganta da poeira que a obstruía. Não ofereceu nada a seu companheiro. Um único freguês, um outro mineiro molhado e lambuzado, estava sentado a uma mesa e bebia sua cerveja em silêncio, com ar de profunda meditação. Um terceiro entrou, foi servido a um gesto que fez, pagou e retirou-se sem dizer palavra.

Apareceu um homem gordo, de trinta e oito anos, barbeado, de rosto redondo e sorriso bonachão: era Rasseneur, antigo britador que a companhia tinha despedido havia três anos, depois de uma greve. Ótimo operário, falava bem, punha-se à frente de todas as reclamações e acabara sendo chefe dos descontentes. Sua mulher já tinha um pequeno estabelecimento, como muitas mulheres de mineiros; quando foi posto na rua,

resolveu ser taberneiro, arranjou dinheiro e estabeleceu-se defronte da Voreux, como numa provocação à companhia. Atualmente sua casa prosperava, tornava-se um ponto de encontro, e ele enriquecia com as cóleras que pouco a pouco insuflara em seus antigos companheiros.

— É o rapaz que eu empreguei esta manhã — explicou Maheu sem mais preâmbulos. — Tens um dos teus dois quartos desocupado e queres dar-lhe crédito por uma semana?

O rosto largo de Rasseneur ficou subitamente desconfiado. Examinou Etienne com um olhar rápido e respondeu, sem tentar fingir que sentia muito:

— Impossível; meus dois quartos estão ocupados.

O rapaz esperava por aquela recusa, e no entanto sofreu com ela; espantou-se mesmo com o repentino desgosto que sentia por ter de partir. Mas que importa! Iria embora logo que recebesse os trinta soldos. O mineiro que bebia a uma mesa tinha saído. Outros, um a um, entravam para molhar a garganta e punham-se novamente a caminho com o mesmo passo cansado. Era uma simples lavagem de garganta, sem alegria ou paixão; o mudo saciar de uma necessidade.

— Então, que há de novo? — perguntou num tom misterioso Rasseneur a Maheu, que acabava sua cerveja a pequenos goles.

Este virou-se e viu que apenas Etienne se encontrava na peça. 

— Houve outra briga... por causa do revestimento.

Contou o caso. O rosto do taberneiro ficou vermelho; uma cão sangüínea, que lhe saía em chamas pela pele e olhos, inchou-o. Por fim, explodiu:

— Agora sim! Se eles baixarem os salários, estão perdidos.

A presença de Etienne o incomodava, mas assim mesmo continuou, lançando-lhe de vez em quando olhares oblíquos. Falava cheio de reticências, de subentendidos, citava o diretor, o Sr. Hennebeau, sua mulher, seu sobrinho, o pequeno Négrel, sem contudo os nomear, repetindo que isso não podia continuar assim, que mais dia menos dia ia explodir. A miséria era grande demais, citou as fábricas que estavam fechando, os operários despedidos. Havia um mês que dava mais de três quilos de pão por dia. Na véspera, tinham-lhe dito que o Sr. Deneulin, o proprietário de uma mina vizinha, já não sabia como agüentar. Para completar, acabava de receber uma carta de Lille cheia de detalhes inquietadores.

— Sabes de quem? — murmurou ele. — Daquela pessoa que viste aqui uma noite.

Nisso foi interrompido; entrou sua esposa, uma mulher alta, magra e nervosa, de nariz comprido e pômulos violáceos. Em política era muito mais radical que o marido.

— A carta de Pluchart! — exclamou ela. — Ah, se aquele estivesse no comando, isto endireitava logo.

Etienne começara a escutar, a compreender, a se apaixonar por essas idéias de miséria e de desforra. Aquele nome atirado por acaso fê-lo estremecer. Disse alto, quase involuntariamente:

— Eu conheço Pluchart. Olharam-no; teve de acrescentar:

— Sim, eu sou operador de máquinas, ele foi meu contramestre em Lille. Um homem capaz; conversei muitas vezes com ele.

Rasseneur examinou-o novamente: houve no seu rosto um movimento rápido, uma mudança súbita. Por fim disse à mulher:

— Maheu trouxe este senhor, trabalha para ele como operador de vagonetes, quer saber se não há um quarto desocupado em cima e se não poderíamos dar-lhe crédito por uma quinzena.

O negócio foi fechado em quatro palavras. Havia um quarto, o inquilino partira de manhã. E o taberneiro, cada vez mais exaltado, desabafou tudo, repetindo sempre que só pedia o possível aos patrões, sem exigir, como muitos outros, coisas difíceis de obter. Sua mulher dava de ombros; ela queria seus direitos completos.

Até amanhã — interrompeu Maheu. — Tudo isso não impede que desçamos à mina, e enquanto se descer haverá gente morrendo Olha para ti, forte e saudável desde que saíste de lá, há três anos

— É verdade, estou muito melhor — declarou Rasseneur com bonomia.

Etienne foi até a porta para agradecer ao mineiro que partia; este abanou a cabeça sem dizer palavra e o rapaz ficou ali, vendo-o subir com dificuldade o caminho do conjunto habitacional.

A Sra. Rasseneur, que estava servindo fregueses, pedira-lhe que esperasse um minuto; em seguida o conduziria ao quarto para lavar-se. Devia ficar? Hesitava novamente, dominado por um mal-estar que o fazia sentir falta da liberdade das estradas abertas, da fome ao sol, sofrida com a alegria de ser dono de si. Parecia-lhe que vivera anos ali, desde a sua chegada ao aterro, no meio da borrasca, até as horas passadas debaixo da terra, arrastando-se pelas galerias escuras. Repugnava-lhe ter de começar; era injusto e demasiado duro; seu orgulho de homem revoltava-se à idéia de ter de ser um animal a quem se cega e esmaga.

Enquanto Etienne se debatia nessa crise, seus olhos, que vagavam pela planície imensa, foram-na captando. Espantou-se; não imaginara assim o horizonte quando o velho Boa-Morte apontara com o dedo, no fundo das trevas. Clara, diante dele, ali estava a Voreux, numa depressão do terreno, com suas construções de madeira e de" tijolo, a triagem alcatroada, a torre do sino de rebate coberta de ardósia, a casa da máquina e a imensa chaminé de um vermelho pálido, tudo amontoado, de aparência lúgubre. Mas em torno das edificações desenrolava-se o pátio — e ele não o imaginara tão grande —, transformado num lago escuro pelas ondas cada vez maiores do estoque de carvão, eriçado de pontões altos que sustentavam os trilhos dos passadiços, atulhado a um canto com a provisão de madeira, semelhante à colheita de uma floresta ceifada. À direita, o aterro obstruía a vista, colossal como uma barricada de gigantes, já coberto de erva na parte mais antiga, consumido na outra por um fogo interior que ardia havia um ano, soltando uma fumaça espessa, deixando na superfície, entre o cinza esbranquiçado dos xistos e dos arenitos, extensos rastilhos de ferrugem cor de sangue. Depois, desenrolava-se o campo, plantações sem fim de trigo e beterraba ainda sem brotar naquela época do ano; pântanos de vegetação agreste entrecortada de alguns salgueiros definhados; prados longínquos separados por filas esguias de álamos. No fim do horizonte, pequenas manchas brancas indicavam as cidades: Marchiennes ao norte, Montsou ao sul e a leste a floresta de Vandame, orlando o espaço com a linha violácea das suas árvores despojadas. E, sob o céu lívido e de nuvens baixas daquele entardecer de inverno, parecia U todo o negrume da Voreux, toda a poeira esvoaçante da hulha que ia abater-se na planície, enodoando as árvores, saibrando as estradas, juncando a terra.

Etienne olhava, e o que sobretudo o surpreendia era o canal, o Rio Scarpe - canalizado, que não tinha visto de noite. Da Voreux até Marchiennes, esse canal ia reto, uma fita de prata fosca de duas léguas, uma avenida debruada de árvores altas, correndo acima dos terrenos baixos, deslizando para o infinito com a perspectiva de suas ribanceiras verdes, de sua água pálida por onde escorregavam as popas vermelhas das chatas. Perto da mina havia um cais, barcos atracados que os vagonetes, de cima dos pontões, enchiam diretamente. A seguir, o canal fazia uma curva, cortando obliquamente os pântanos. Toda a alma dessa planície rasa parecia estar ali, nessa água geométrica que a cortava como uma estrada, carreando a hulha e o ferro.

Os olhos de Etienne subiram do canal para o conjunto habitacional dos mineiros, construído no planalto, e de que distinguia somente as telhas vermelhas; depois voltaram à Voreux, pararam na base da ladeira argilosa, em dois enormes montes de tijolos, fabricados e cozidos ali mesmo. Um ramal da estrada de ferro da companhia passava por trás de uma paliçada, em direção à mina. Os últimos mineiros do desaterro deviam estar sendo descidos. Um único vagão, empurrado por homens, gemia nos trilhos. Aquilo já não era mais o ignoto das trevas, os trovões inexplicáveis, o resplendor de astros ignorados. Ao longe, os altos-fornos e as fornalhas de coque tinham empalidecido com a alvorada. O que continuava, sem descanso, era o escapamento da bomba, respirando com o mesmo fôlego grosso e amplo, a respiração de um monstro, cujo bafo cinzento ele via agora, e que nada podia fartar.

Repentinamente, Etienne se decidiu. Talvez tenha acreditado estar entrevendo lá no alto, na entrada do conjunto habitacional, os olhos claros de Catherine. Antes talvez fosse um vento de revolta que vinha da Voreux, não sabia. Queria voltar a descer na mina para sofrer e combater; pensava com ódio nessas pessoas de quem falava Boa-Morte, nesse deus repleto e acocorado ao qual dez mil famintos davam sua carne sem nunca o terem visto.

 

A propriedade dos Grégoire, a Piolaine, ficava a dois quilômetros de Montsou, para leste, na estrada de Joiselle. Era um casarão quadrado, sem estilo, construído no começo do século passado. Das vastas terras que, no princípio, faziam parte da propriedade, apenas restavam uns trinta hectares rodeados de muros e de fácil conservação. Eram muito falados o pomar e a horta, célebres por seus frutos e legumes, tidos como os melhores da região. Não tinha parque; uma pequena mata tomava seu lugar. A alameda de velhas tílias, uma abóbada de folhagem de trezentos metros, desde o portão até a

escadaria, era uma das curiosidades daquela planície rasa onde, de Marchiennes a Beaugnies, podiam-se contar as árvores.

Naquela manhã, os Grégoire levantaram-se às oito horas. De ordinário, só saíam da cama uma hora mais tarde, dormindo muito e com paixão, mas a tempestade noturna os enervara. E, enquanto o marido fora logo ver se o vento não fizera estragos, a Sra. Grégoire descera à cozinha em chinelos e roupão de flanela. Baixa, gorda, já com cinqüenta e oito anos de idade, conservava um largo rosto alvar de boneca, sob a brancura resplandecente dos cabelos.

— Mélanie — disse ela à cozinheira —, já que a massa está pronta, você bem que poderia fazer bolo esta manhã. A senhorita só se levantará daqui a meia hora, e então teria bolos para comer com o chocolate. Que tal? Seria uma surpresa...

A cozinheira, uma velha magra que. trabalhava na casa havia trinta anos, pôs-se a rir.      

— É verdade, seria uma bela surpresa. O fogão já está aceso, o forno deve estar quente e a Honorine vai ajudar-me um pouco.

Honorine, uma moça dos seus vinte anos, recolhida criança e criada pela casa, desempenhava agora as funções de camareira. Como criadagem, além destas duas mulheres, havia somente o cocheiro, Francis, encarregado dos trabalhos pesados. Um jardineiro e uma jardineira cuidavam dos legumes, das frutas, das flores e do aviário. E, como o serviço era patriarcal, de uma pacatez familiar, esse pequeno mundo vivia em harmonia.

A Sra. Grégoire, que tinha meditado na cama a surpresa do bolo, ficou para ver a massa ser posta no forno.

A cozinha era muito grande e percebia-se a importância que davam a essa peça pelo seu extremo asseio e pelo arsenal de caçarolas, utensílios e potes que a enchiam; cheirava a comidas boas; as provisões chegavam a não caber nas prateleiras e armários.

— E que fique bem tostado, sim? — recomendou a Sra. Grégoire, passando à sala de jantar.

Apesar do calorífero que aquecia toda a casa, um fogo de hulha alegrava aquela sala; luxo, nenhum: a mesa grande, as cadeiras, um aparador de mogno e apenas duas cômodas poltronas denunciavam o amor pelo conforto, as longas digestões felizes. O salão nunca era usado; ficava-se ali, em família.

Nesse momento, entrava o Sr. Grégoire, vestindo um casaco grosso de fustão, corado ele também para os seus sessenta anos, de largas feições honestas e bondosas

sob a neve dos seus cabelos encaracolados. Tinha estado com o cocheiro e o jardineiro: não houvera estragos importantes, apenas um cano de chaminé caído. Costumava todas as manhãs ir dar uma vista de olhos na Piolaine, que não era bastante grande para lhe inspirar cuidados e de que tirava todas as alegrias de proprietário.

— E Cécile? — perguntou ele. — Não se levanta hoje?

— Não estou entendendo — respondeu a mulher. — Parecia-me tê-la ouvido mexer-se.

A mesa estava posta: três chávenas sobre a toalha branca. Mandaram Honorine ver o que era feito da moça; a criada voltou logo a descer, contendo o riso, abafando a voz como se estivesse falando lá em cima, no quarto.

Se os senhores a vissem! Está dormindo, dormindo como um Menino Jesus... Nem fazem idéia, é um prazer olhá-la.

Pai e mãe trocaram olhares enternecidos. Ele disse, sorrindo:

— Vens ver?  

— Coitadinha! — murmurou ela. — Vou, sim.

Subiram juntos. O quarto era a única peça luxuosa da casa, forrado de seda azul, com mobiliário laqueado de branco e filetes azuis, um capricho de criança mimada satisfeito pelos pais. No alvor informe do leito, à meia-luz filtrada pela abertura de um cortinado, a mocinha dormia, cabeça apoiada no braço nu. Não era bonita, mas muito sadia, muito vigorosa, madura mesmo nos seus dezoito anos, com uma carnação soberba, uma frescura de leite, cabelos castanhos, rosto redondo, narizinho voluntarioso afundado entre as faces. As cobertas tinham escorregado e podia-se vê-la respirando, mas tão levemente que a respiração nem sequer movimentava seu colo já desenvolvido.

— Foi esse maldito vento que a impediu de pregar olho — disse a mãe, baixinho.

O pai, com um gesto, mandou que se calasse. Ambos se curvaram para contemplar com adoração, na sua nudez de virgem, aquela filha tanto tempo desejada, vinda tardiamente, quando não esperavam mais. Viam-na perfeita, nunca demasiadamente gorda, jamais alimentando-se a contento.

A moça continuava dormindo, sem sentir a presença deles, seus rostos colados ao dela. De repente, uma sombra ligeira perpassou naquelas feições serenas. Temendo acordá-la, o casal saiu na ponta dos pés.

— Psiu! — fez o velho, já na porta. — Se ela não dormiu bem, deixemo-la dormir.

— Quanto a queridinha quiser — apoiou a esposa. — Esperaremos.

Desceram, instalando-se nas poltronas da sala de jantar, enquanto as criadas, rindo do sono pesado da moça, conservaram, sem reclamar, o chocolate ao fogo. Ele apanhou um jornal e ela começou a tricotar uma manta de lã para os pés. Estava muito quente; a casa voltou a cair no silêncio.

A fortuna dos Grégoire, quarenta mil francos de rendimento aproximadamente, consistia toda numa ação das minas de Montsou. Contavam com bonomia suas origens: nascera com a criação da companhia.

Lá pelo começo do século passado, teve lugar, de Lille a Valenciennes, uma febre de busca de hulha. O sucesso dos concessionários que deviam mais tarde formar a companhia de Anzin virara todas as cabeças. Em todas as comunas o solo era sondado, criavam-se sociedades e as concessões surgiam como cogumelos.

Dos cabeçudos dessa época, porém, o Barão Desrumaux era o que, certamente, deixara a lembrança da inteligência mais heróica. Durante quarenta anos, batera-se sem fraquejar contra os mais variados obstáculos: primeiras pesquisas infrutíferas, novas galerias abandonadas depois de longos meses de trabalho, desabamentos que fechavam as escavações, inundações súbitas que afogavam os operários, milhões de francos perdidos; depois, as complicações da administração, o pânico entre os acionistas, a luta com os proprietários das terras resolvidos a não reconhecer as concessões régias, se recusassem negociar com eles em primeiro lugar. Por fim, foi fundada a sociedade Desrumaux, Fauquenoi & Cia., para explorar a concessão de Montsou, e as minas começaram a dar pequenos lucros quando duas concessões vizinhas, a de Cougny, pertencente ao Conde de Cougny, e a de Joiselle, pertencente à sociedade Cornille & Jenard, quase a esmagaram com o peso terrível de sua concorrência. Felizmente, em 25 de agosto de 1760, realizou-se um acordo entre os três grupos de concessionários, reunindo as três firmas numa só. A Companhia das Minas de Montsou foi então fundada, tal como existe até hoje. Para a partilha dividiu-se, segundo o padrão monetário da época, a propriedade total em vinte e quatro soldos, cada um dos quais se subdividia em doze dinheiros, o que perfazia duzentos e oitenta dinheiros; e, como o dinheiro era de dez mil francos, o capital representava uma soma de aproximadamente três milhões. Desrumaux, agonizante mas vencedor, recebeu nessa partilha seis soldos e três dinheiros.

Naquele tempo, o barão possuía a Piolaine, que tinha trezentos hectares de extensão; a seu serviço, como administrador, encontrava-se Honoré Grégoire, um rapaz da Picardia, bisavô de Léon Grégoire, pai de Cécile.

Na época da convenção de Montsou, Honoré, que escondia um pé-de-meia de uns cinqüenta mil francos, cedeu, tremendo, ante a fé inabalável do patrão. Agarrou dez mil libras de belos escudos e comprou um dinheiro, sempre com o terror de estar roubando os filhos dessa importância. Seu filho Eugène, com efeito, recebeu dividendos bem reduzidos, e, como se tinha aburguesado cometera a loucura de empatar os outros quarenta mil francos da herança paterna numa associação desastrosa; assim, viveu quase na miséria. Mas os lucros do dinheiro foram subindo; e a fortuna começou com Félicien, que pôde realizar o sonho com que seu avô, o antigo administrador, o embalara na infância: a compra da Piolaine desmembrada, que obteve como bem nacional, por uma soma irrisória. Mas os anos seguintes foram maus, teve de esperar pelo desenlace das catástrofes revolucionárias, depois pela queda sangrenta de Napoleão. Foi portanto Léon Grégoire quem lucrou, numa progressão espantosa, desde a jogada tímida e nervosa do seu bisavô. Os parcos dez mil francos engrossaram, multiplicaram-se com a prosperidade da companhia. A partir de 1820 eles renderam cem por cento, dez mil francos; em 1844, produziram vinte mil; em 1850, quarenta; enfim, havia dois anos que o dividendo subira à cifra prodigiosa de cinqüenta mil francos: o valor do dinheiro, cotado na Bolsa de Lille em um milhão, centuplicara num século.

O Sr. Grégoire, a quem aconselharam que vendesse sua parte quando essa cotação de um milhão foi atingida, recusou-se, com seu ar sorridente e paternal. Seis meses mais tarde, explodia uma crise industrial e o dinheiro voltou a cair para seiscentos mil francos. Mas ele continuou a sorrir, sem sombra de preocupação: os Grégoire tinham agora uma fé obstinada em sua mina; voltaria a subir, nem Deus era tão sólido. Aquela crença religiosa misturava-se uma profunda gratidão por uma ação que, havia um século, sustentava a família, que não fazia nada. Era como uma divindade particular que seu egoísmo rodeava de um culto, a benfeitora do lar, embalando-os no grande leito de preguiça, engordando-os na mesa da gula. Isso ia passando de pai para filho: por que correr o risco de descontentar a sorte, duvidando dela? No fundo daquela fidelidade havia um terror supersticioso, o medo que o milhão dos juros derretesse de repente, logo depois de ser trocado e guardado numa gaveta. Acreditavam-no mais seguro na terra, de onde uma população de mineiros, gerações de famintos, extraía-o para eles, um pouco por dia, segundo as suas necessidades.

De resto, as venturas choviam sobre aquela casa. O Sr. Grégoire, muito jovem, desposara a filha de um farmacêutico de Marchiennes, moça feia, sem dinheiro, que ele adorava e que lhe retribuía em dobro a felicidade. Ela se fechara em casa, extasiada

diante do marido, não tendo outra vontade senão a dele; nenhum gosto diferente os separava, um mesmo ideal de bem-estar confundia seus desejos. E assim viviam havia quarenta anos, de ternuras e pequenos cuidados recíprocos. Era uma existência pautada, os quarenta mil francos comidos sem ruído, as economias gastas com Cécile, cujo nascimento tardio chegou a transtornar por um instante o orçamento. Ainda hoje satisfaziam todos os caprichos da filha: um segundo cavalo, mais duas outras carruagens, roupas de Paris. Mas saboreavam naquilo uma alegria a mais; nada era bonito em demasia para a sua filha, apesar do horror pessoal que tinham da exibição, que, aliás, levou-os a conservar os modos de sua juventude. Toda despesa sem proveito lhes parecia estúpida

Repentinamente a porta abriu-se e uma voz alta soou:

— Muito bem! Com que então fazem o desjejum sem mim!

Era Cécile, recém-saída da cama, os olhos intumescidos de sono; levantara simplesmente os cabelos e enfiara um roupão de lã branca.

— Claro que não — respondeu a mãe. — Como vês, esperávamos-te. O vento não te deixou dormir, não foi? Coitadinha!

A moça olhou-a, muito admirada.

— Vento? Não senti nada, dormi toda a noite.

A história lhes pareceu engraçada e os três se puseram a rir; as criadas, que traziam o desjejum, também começaram a rir, a tal ponto a idéia de que a moça da casa dormira doze horas consecutivas alegrava a todos. À vista do bolo, o regozijo foi ainda mais acentuado.

— Como! Já está pronto? — repetia Cécile. — Por esta não esperava... Como vai ser bom quentinho, com chocolate!

Finalmente puseram-se à mesa; o chocolate fumegava nas taças, o bolo foi motivo para longa conversação. Melanie e Honorine permaneceram na sala dando detalhes sobre o modo de assar observando-os empanturrarem-se, os lábios gordurosos, repetindo que era um prazer preparar um bolo e ver os patrões comê-lo com tanto gosto.

Nesse momento, os cães ladraram violentamente; pensou-se que era a professora de piano, que vinha de Marchiennes às segundas e sextas-feiras. Vinha também um professor de literatura. Toda a instrução da moça estava sendo feita assim, na Piolaine, numa feliz ignorância, entre caprichos infantis que a levavam a jogar o livro pela janela no momento em que um problema a aborrecia.

— E o Sr. Deneulin — disse Honorine voltando.

Atrás dela, Deneulin, um primo do Sr. Grégoire, entrou sem cerimônia, falando alto, gesticulando, com maneiras de antigo oficial de cavalaria. Embora já tivesse ultrapassado os cinqüenta, os cabelos cortados à escovinha e o bigode farto conservavam-se pretos retintos.

— Alô, sou eu, bom dia. Não se incomodem.

Sentou-se entre as exclamações admirativas da família, que não tardou a voltar ao chocolate. 

— Tens alguma coisa a me dizer? — perguntou Grégoire.

— Não, nada — apressou-se a responder Deneulin. — Saí para dar um passeio a cavalo, para me desenferrujar um pouco, e, como passava pela porta, entrei para dar um bom-dia.

Cécile quis saber de suas filhas, Jeanne e Lucie. Iam muito bem; a primeira não largava mais os pincéis, enquanto a outra, a mais velha, cultivava o canto, ao piano, de manhã à noite. Havia um ligeiro tremor na sua voz, um mal-estar que dissimulava com explosões de alegria.

O Sr. Grégoire voltou à carga:

— E tudo vai bem na mina?

— Pois sim! Fui arrastado com os outros companheiros para essa crise dos diabos! Ah! estamos pagando pelos anos de prosperidade... Construímos fábricas e linhas férreas em demasia, imobilizamos enormes capitais tendo em vista uma produção formidável e hoje o dinheiro está imobilizado, não se encontram meios de fazer funcionar tudo isso... Felizmente não é para desesperar, conseguirei safar-me.

Como seu primo, recebera em herança um dinheiro das minas de Montsou. Mas, engenheiro empreendedor, açulado pelo desejo de uma fortuna principesca, apressara-se a vender o dinheiro assim que a sua cotação atingira um milhão. Há algum tempo que vinha articulando um plano: sua mulher recebera de um tio a pequena concessão de Vandame, onde só havia duas galerias abertas, Jean-Bart e Gaston-Marie, num tal estado de abandono, com material tão deficiente, que a exploração mal cobria as despesas. Ora, ele sonhava em reparar a Jean-Bart, renovar as máquinas e alargar o poço para poder botar mais gente a trabalhar, deixando a Gaston-Marie só para esgoto. Era certo, dizia ele, que ali se encontraria ouro a dar com o pé. A idéia era correta, só que o milhão já fora gasto e essa maldita crise industrial explodia no momento em que lucros enormes iam dar-lhe razão. De resto, mau administrador, de uma bondade rude para com os seus operários, deixava-se roubar após a morte da mulher, dando também às filhas rédea

solta. A mais velha falava em entrar para o teatro e a outra já tivera três paisagens recusadas no Salão, mas ambas, risonhas na derrocada, revelavam-se ótimas donas de casa, diante da miséria próxima.   

— Pois é, Léon — continuou ele com a voz hesitante —, fizeste mal em não vender tua ação quando vendi a minha. Agora terás que correr, está tudo desmoronando. Se me tivesses confiado teu dinheiro, verias o que teríamos feito em Vandame, na nossa mina.

O Sr. Grégoire acabava o chocolate, devagar. Respondeu tranqüilamente:

— Isso nunca! Bem sabes que não quero especular. Vivo em paz, seria estúpido começar agora a quebrar a cabeça com negócios. Quanto a Montsou, pode continuar a baixar, sempre nos bastará. Não se deve querer abarcar o mundo com as pernas, que diabo! Escuta o que te digo: serás tu quem vai roer as unhas um dia, porque Montsou subirá e ainda dará pão aos filhos dos filhos de Cécile.

Deneulin ouviu-o com um sorriso forçado.

— Então — murmurou ele —, se eu te dissesse que empregasses cem mil francos no meu negócio, recusavas?

Diante dos olhares inquietos dos Grégoire, ele se arrependeu de ter ido tão longe, e deixou para mais tarde sua idéia de empréstimo, reservando-a para um caso desesperado.

— É uma brincadeira, ainda não cheguei a esse ponto. Depois, Deus meu! talvez tenhas razão: o dinheiro ganho com o suor dos outros é o que mais engorda.

Mudaram de conversa. Cécile voltou a falar nas primas, cujos gostos a preocupavam e lhe desagradavam; a Sra. Grégoire prometeu levar a filha a visitar suas queridas priminhas no primeiro dia de sol. Mas o Sr. Grégoire, com ar distraído, não entrou na conversa; de repente, acrescentou em voz alta:

— Eu, se estivesse no teu lugar, não teimaria mais, negociaria com Montsou. Eles estão prontos a negociar e tu receberias de volta o teu dinheiro.

Aludia ao velho ódio que existia entre a concessão de Montsou e a de Vandame. Apesar da pouca importância desta última, sua poderosa vizinha enfurecia-se de ver, encravada nas suas sessenta e sete comunas, aquela légua quadrada que não lhe pertencia; e, depois de ter tentado em vão matá-la, tramava sua compra a baixo preço, quando estivesse sufocando. A guerra sem quartel continuava, cada exploração fixava suas galerias a duzentos metros umas das outras, era um duelo de morte, ainda que os diretores e engenheiros mantivessem entre si relações corteses.

Os olhos de Deneulin chamejaram.  ,

— Nunca! — exclamou ele por sua vez. — Enquanto eu for vivo Montsou não vai encampar Vandame... Jantei na quinta-feira com Hennebeau e notei as voltas que dava para chegar ao assunto.

Já no outono passado, quando os cartolas visitaram a empresa, quiseram adoçar-me o bico. Pois sim! Conheço bem esses marqueses e duques, esses generais e ministros! Salteadores é o que são! Capazes de roubar até a camisa da gente numa curva da estrada...

O homem desandou a falar que não acabava mais. A verdade é que o Sr. Grégoire não defendia a direção da Montsou, os seis diretores instituídos pelo tratado de 1760, que governavam despoticamente a companhia e cujos cinco sobreviventes, a cada falecimento, escolhiam o novo membro entre os acionistas poderosos e ricos. A opinião do proprietário da Piolaine, de gostos tão comuns, era que esses senhores eram às vezes desmedidos no seu amor ao dinheiro.

Melanie viera retirar a mesa. Fora, os cães voltaram a ladrar, e Honorine já se dirigia para a porta quando Cécile, que o calor e a comida entorpeciam, ergueu-se da mesa.

— Deixa que eu vejo; deve ser a professora.

Deneulin também se levantou. Examinou a moça que saía e perguntou sorrindo:

— E então, esse casamento com o pequeno Négrel?

— Por enquanto, nada — respondeu a Sra. Grégoire. — Não passa de um plano, temos que refletir.

— Claro — continuou ele com um sorriso astuto. — Suponho que o sobrinho e a tia... O que me espanta é que seja a Sra. Hennebeau que se joga dessa maneira nos braços de Cécile.

O Sr. Grégoire indignou-se; uma senhora tão distinta, e catorze anos mais velha que o rapaz! Era uma monstruosidade, não gostava que fizessem brincadeiras com tais assuntos...

Deneulin, rindo sempre, apertou-lhe a mão e saiu.

— Ainda não é a professora — disse Cécile voltando. — É aquela mulher com dois filhos; sabes quem é, mamãe? A mulher do mineiro que encontramos. Mando-os entrar aqui?

Hesitaram. Estavam muito sujos? Não, não muito, e deixariam seus tamancos no patamar. O pai e a mãe já se tinham acomodado no fundo das grandes poltronas, para a digestão. O temor de uma mudança de ar fê-los decidir.

— Que entrem, Honorine.

A mulher de Maheu e suas crianças entraram, enregelados, famintos, perdidos e amedrontados ao verem-se naquela sala tão aquecida e cheirando a bolo.       

 

No quarto, que se conservara fechado, as persianas deixavam entrar, pouco a pouco, manchas pardas de luz que se espalhavam em leque pelo teto. O ar viciado ficava cada vez mais pesado, mas todos continuavam no seu sono da noite: Lénore e Henri nos braços um do outro, Alzire com a cabeça para trás, apoiada na corcunda, enquanto o velho Boa-Morte, com a cama de Zacharie e Jeanlin só para ele, roncava de boca aberta. Nenhum ruído no cubículo ao lado da escada, onde a mulher de Maheu voltara a dormir dando de mamar a Estelle, com o seio caído para o lado, a criança atravessada na barriga, empanturrada de leite, adormecida também, sufocando-se nas carnes moles dos seios maternos.

O relógio de cuco, embaixo, deu seis horas. Ouviu-se ao longo das fachadas dos casebres o bater de portas, depois o pisar de tamancos na pedra das calçadas: eram as separadoras de carvão que partiam para a mina.

Até as sete horas houve outra vez silêncio; a partir de então, as persianas se abriram e através das paredes ouviram-se bocejos e limpar de gargantas. Por algum tempo rangeu uma máquina de moer café, sem que ninguém acordasse no quarto.

Subitamente, um barulho de tapas e gritos ao longe fez Alzire sentar na cama. Deu-se conta da hora e, descalça, correu e sacudiu a mãe.

— Mamãe! mamãe! É tarde e tens o que fazer... Cuidado! Vais esmagar Estelle.

E puxou a criança já meio sufocada sob a abundância dos seios.

— Inferno de vida! — tartamudeou a mulher, esfregando os olhos. — Ando tão esfalfada que podia dormir o dia inteiro. Veste Lénore e Henri, levo-os comigo; tu ficas com a Estelle, não quero expô-la, tenho medo de que apanhe alguma doença com este tempo maldito.

Lavou-se às pressas, enfiou uma velha saia azul, a mais limpa que tinha, uma bata de lã cinzenta, na qual pusera dois remendos na véspera.

— E a sopa, como é que vai ser? Vida miserável! — murmurou ela de novo.           

Enquanto sua mãe descia, esbarrando em tudo, Alzire retornou ao quarto levando consigo Estelle, que voltara a berrar; já estava acostumada com as manhas da criança; nos seus oito anos, possuía astúcias de mulher capazes de acalmá-la e distraí-la. Com muito jeito, deitou-a na sua cama ainda quente e adormeceu-a dando-lhe um dedo para chupar. Não era sem tempo, porque começava outra algazarra: teve que apaziguar Lénore e Henri, que enfim acordavam. Esses dois não se entendiam muito bem, só se abraçavam enquanto dormiam. A menina, de seis anos, engalfinhava-se no garoto logo que acordava; este, que era dois anos mais moço, recebia os tapas sem retribuí-los. Ambos tinham uma cabeça enorme, como um balão, de cabelos eriçados e amarelos. Foi preciso que Alzire puxasse a irmã pelas pernas, ameaçando-a com uma boa surra. Depois repetiu-se a algazarra durante a lavagem do rosto e a cada peça de roupa que Alzire lhes enfiava. Evitava-se abrir as persianas para não perturbar o sono do velho Boa-Morte, que continuava a roncar, apesar da terrível gritaria das crianças.

— Está pronto! Vocês ainda estão aí em cima? — gritou a mãe. Tinha aberto os postigos das janelas, reavivado o fogo, colocado mais carvão. Sua esperança era que o velho não tivesse engolido toda a sopa, mas encontrou o tacho lambido. Colocou no fogo um punhado de aletria que tinha de reserva havia três dias; comê-la-iam assim, feita em água, sem manteiga: não devia restar nada da insignificância da véspera, mas ficou surpresa ao ver que Catherine, ao preparar as porções, miraculosamente deixara um pouco, do tamanho de uma noz. Fora isso, no entanto, desta vez o guarda-comida estava completamente vazio; nada, nem uma côdea de pão, um resto de provisões, um osso para roer... Que ia ser deles se Maigrat não quisesse fiar mais, se os burgueses da Piolaine não lhe dessem cem soldos? Quando os homens e a moça voltassem da mina teriam que comer alguma coisa; infelizmente ainda não tinham inventado um meio para que se vivesse sem comer.

— Vão descer ou não vão? — gritou ela, zangada. — Já devia ter saído.

Quando Alzire e as duas crianças apareceram, repartiu a aletria em três pratos pequenos. Ela não estava com fome, disse. Ainda que Catherine já tivesse passado água pela borra de café da véspera, passou mais um pouco e bebeu dois canecos de um café tão fraco que mais parecia chá. Mesmo assim, sentiu-se reconfortada.

— Escuta — repetiu ela a Alzire —, deixa teu avô dormir, cuida de Estelle para que não quebre a cabeça, e, se ela acordar e berrar muito, aqui tens um torrão de açúcar... Prepara uma água açucarada e dá-lhe algumas colheradas. Sei que és sensata e não vais comê-lo. 

— E a escola, mãe?

— A escola... pois fica para um outro dia. Estou precisando de

— E a sopa, queres que a faça, se demorares?

— A sopa, a sopa... Não, espera por mim.

Alzire, de uma inteligência precoce de menina enferma, sabia fazer sopa muito bem. Devia ter compreendido, não insistiu.

Agora todo o conjunto habitacional já estava desperto, grupos de crianças iam para a escola arrastando os tamancos. Deram oito horas; à esquerda, na casa de Levauque, um barulho de conversa foi aumentando. As mulheres começavam o seu dia, em volta das cafeteiras, mãos nos quadris, tagarelando sem descanso, verdadeiras línguas — de — trapo. Uma cabeça' definhada, de lábios grossos e nariz chato, apareceu repentinamente do outro lado do vidro da janela, gritando:

— Escuta, tenho novidade!

— Não, não, mais tarde — respondeu a mulher de Maheu. —

Tenho de sair.

E receando sucumbir ao oferecimento de um copo de café quente, empurrou aos tapas Lénore e Henri para a porta e saíram. Em cima, o velho Boa-Morte continuava a roncar num compasso que embalava a casa.

Na rua, a mulher admirou-se ao constatar que o vento amainara. Era um degelo súbito, o céu cor de terra, as paredes viscosas de uma umidade esverdeadas os caminhos encharcados de uma lama resinosa, dessa lama típica das regiões carboníferas, negra como a fuligem diluída, espessa e pegajosa a ponto de lá ficarem enterrados os tamancos. Logo de saída teve de bater em Lénore porque a menina divertia-se em juntar o lodo sobre os tamancos, como numa pá. Ao deixar o conjunto habitacional, contornou o aterro e tomou o caminho do canal, atravessando, para encurtar

caminho, ruas intransitáveis, terrenos baldios fechados por tapumes cobertos de hera. Passou por diversos galpões compridos edifícios de fábricas, altas chaminés cuspindo fuligem. sujando esses arredores arrasados de subúrbio industrial. Por trás de um bosque de choupos, a velha mina Réquillart exibia o desmoronamento de sua torre do sino de rebate, da qual só restavam em pé as vigas mais grossas. Dobrando à direita, a mulher e as duas crianças entraram na estrada real.

— Espera um pouco porcalhão! — exclamou a mãe — Vou te ensinar como é que se fazem bolas de barro.

Agora era Henrique tinha apanhado um punhado de lama para amassar. As duas crianças, esbofeteadas em conjunto, voltaram à ordem, mas sem deixar de olhar para trás, para ver as pegadas que haviam feito na lama. No fim, já patinhavam, exaustas dos esforços que faziam para despegar os tamancos a cada passada.

Do lado de Marchiennes, a estrada tinha duas léguas retas de pavimento que mais pareciam uma fita embebida de graxa entre terras avermelhadas. Do outro lado, porém, esta mesma estrada descia em ziguezague através de Montsou, construída num declive ondulado que ia dar na planície. Essas estradas ao norte, traçadas a cordel entre as cidades manufatureiras, com curvas suaves e subidas lentas, estavam sendo construídas aos poucos, tendentes a transformar um departamento numa colméia de trabalho. As casinhas de tijolos, pintadas em cores variadas para alegrar o ambiente — umas de amarelo, outras de azul, outras de preto, estas últimas sem dúvida já antecipando a cor final de todas —, desciam serpenteando à direita e à esquerda, até a base do declive. Algumas belas casas de dois andares, residências dos chefes das fábricas, furavam a linha apertada das fachadas estreitas. Uma igreja, também de tijolos, mais parecia algum modelo novo de alto-forno, com seu campanário quadrado, já sujo da poeira do carvão. E, entre as refinarias de açúcar, cordoarias e fábricas de moagem, o que dominava eram as salas de baile, os botequins, as cervejarias, e em tão grande número que, para mil casas, havia mais de quinhentas tabernas.

Ao aproximar-se dos depósitos da companhia, vasto renque de armazéns e oficinas, a mulher resolveu levar Henri e Lénore pela mão, um à direita, outro à esquerda. Logo adiante ficava o palacete do diretor, o Sr. Hennebeau, uma espécie de chalé amplo, separado da estrada por uma grade, com um jardim onde vegetavam árvores raquíticas.

Nesse momento, em frente à porta, estacionava uma carruagem; desembarcaram um senhor condecorado e uma senhora de capa de peles: alguma visita de Paris vinda

pelo trem e que devia ter descido na estação de Marchiennes, porque a Sra. Hennebeau, surgindo na meia-luz do vestíbulo, soltou uma exclamação de surpresa e alegria.

— Caminhem, seus malandros! — ralhou a mulher, puxando as duas crianças, que se arrastavam pela lama.

Estava chegando à venda de Maigrat, daí seu nervosismo. Maigrat morava bem ao lado do diretor, um simples muro separava o palacete da sua casinha; tinha ali um armazém, uma edificação comprida que dava para a estrada; era uma loja sem vitrine, mas onde havia de tudo: condimentos, artigos defumados, frutas, pão, cerveja, caçarolas. Antigo fiscal na Voreux, Maigrat começara com uma pequena cantina; depois, graças à proteção dos chefes, seu negócio aumentara, matando pouco a pouco o comércio a varejo de Montsou. Ele centralizava as mercadorias, a considerável clientela dos conjuntos habitacionais de mineiros permitia-lhe vender mais barato e abrir créditos maiores. Aliás, permanecera nas mãos da companhia, que lhe tinha construído a casinha e o armazém.

— Aqui estou outra vez, Sr. Maigrat — disse a mulher com humildade, ao dar com ele justamente à porta.

O homem encarou-a sem responder. Era gordo, frio e polido, e gabava-se de nunca voltar atrás numa decisão.

— O senhor não pode mandar-me embora como ontem. Temos de comer pão, daqui até sábado... Eu sei, nós lhe devemos sessenta francos há dois anos...

Tentava explicar-se em frases curtas, saídas a custo. Era uma dívida antiga, contraída durante a última greve. Vinte vezes tinham prometido saldá-la, mas não conseguiam, mal podiam entregar-lhe quarenta soldos por quinzena. Para cúmulo, acontecera-lhes uma desgraça na antevéspera, ela tivera de pagar vinte francos a um sapateiro que os ameaçava com uma penhora; eis a razão por que estavam sem dinheiro, de outro modo teriam ido até sábado, como os outros mineiros.

Maigrat, barrigudo, de braços cruzados, respondia negativamente com a cabeça a cada súplica.

— Só dois pães, Sr. Maigrat. Sou comedida, nem quero café. Nada mais que dois pães de três libras1 por dia...

— Não! — berrou ele enfim com toda a força.

Sua esposa apareceu: uma criatura insignificante, que passava os dias sobre o livro do registro, sem mesmo ousar levantar a cabeça. Fugiu assustada ao ver a infeliz virar para ela uns olhos de súplica ardente. Dizia-se que cedia o leito conjugai às

operadoras de vagonetes que faziam parte da clientela. Era coisa sabida: quando um mineiro queria uma prorrogação do crédito, bastava enviar sua filha ou esposa, feias ou belas, contanto que fossem condescendentes.

A mulher de Maheu, que continuava a suplicar com o olhar, sentiu-se chocada com o clarão pálido daqueles olhinhos que a desvestiam. Encolerizou-se; compreenderia tal audácia antes de ter tido sete filhos, quando era jovem. Partiu puxando violentamente Lénore e Henri, que juntavam cascas de nozes jogadas na sarjeta para levar para casa.

— O que está fazendo não lhe trará nenhum proveito, Sr. Maigrat, não esqueça!

Agora só lhe restavam os burgueses da Piolaine. Se esses não dessem os cem soldos, então o melhor seria deitar-se e esperar pela morte.

Tomou à esquerda o caminho de Joiselle. A sede da administração era ali, numa volta da estrada, um verdadeiro palácio de tijolos, onde os ricaços de Paris, príncipes, generais e gente do governo vinham todos os outonos participar de grandes jantares. Enquanto caminhava, ia pensando onde gastaria os cem soldos: primeiro pão, depois café, em seguida um quarto de manteiga e um alqueire2 de batatas para a sopa da manhã e para o guisado da noite; finalmente, talvez um pouco de torresmos, porque o pai precisava de carne.

                                                                                

1. Libra: antiga medida de peso, equivalente a 459,5 gramas. (N. do T.)

2. Alqueire: antiga medida de capacidade para secos e líquidos,correspondente a 13,8 litros.(N.do T)

 

O pároco de Montsou, Padre Joire, passou levantando a batina, com delicadezas de velho gato bem alimentado que tem medo de molhar o pêlo. Era um bom sujeito, só que fingia não se interessar por nada, para não ter problemas nem com operários, nem com patrões.

— Bom dia, senhor pároco.

Ele não parou, apenas sorriu para as crianças e deixou-a parada no meio da estrada. Apesar de não ter religião, ela imaginou de repente que esse padre ia dar-lhe alguma coisa.

E a caminhada recomeçou na lama negra e pegajosa. Ainda tinha dois quilômetros pela frente e as crianças deixavam-se arrastar, cansadas, não se divertindo mais. À direita e à esquerda da estrada desenrolavam-se os mesmos terrenos baldios, fechados por tapumes cobertos de hera, os mesmos edifícios de fábricas, sujos de fumaça, coroados de altas chaminés. Depois, em pleno campo, as terras planas se estendiam, imensas, iguais a um oceano de moitas escuras, sem o mastro de uma árvore até a linha violácea da floresta de Vandame.

— Mamãe, me leva no colo!

Levou-os, ora um, ora outro. Charcos acidentavam o calçamento, arregaçou a saia para não chegar muito suja. Três vezes quase caiu, tão escorregadias estavam aquelas malditas pedras. Ao chegarem, finalmente, à escadaria da mansão, dois cães enormes correram para eles ladrando tão forte que as crianças começaram a chorar de medo. Foi preciso que o cocheiro apanhasse um chicote.

— Tirem os tamancos e entrem — disse Honorine.

Na sala de jantar mãe e filhos ficaram imobilizados, atordoados pelo calor, sem jeito diante dos olhares daquele casal de velhos estendidos em suas poltronas.

— Minha filha — disse a dona da casa —, faze a tua caridade.

Os Grégoire encarregavam Cécile da distribuição de suas esmolas. Com isso pensavam estar inculcando na filha uma bela educação. Era preciso ser caridoso; diziam mesmo que sua casa era a casa de Nosso Senhor. Deleitavam-se em dizer que praticavam a caridade com inteligência; na verdade, viviam possuídos do pavor de serem enganados e de encorajarem os vícios. Por isso nunca davam dinheiro, nunca! nem dez soldos, nem mesmo dois; então não era sabido que assim que um pobre se via com dois soldos ia logo bebê-los? Suas esmolas, portanto, eram sempre em gêneros, principalmente em roupas quentes, distribuídas no inverno às crianças indigentes.

— Ah, pobrezinhos! — exclamou Cécile. — Estão roxos de frio... Honorine, vai buscar o pacote no armário.

As criadas também olhavam aqueles miseráveis com a piedade e a ponta de inquietação daqueles que não precisam preocupar-se com o que vão jantar. Enquanto a camareira subiu, a cozinheira permaneceu ali, voltou a colocar o que sobrara do bolo na mesa e ficou de braços cruzados.

— Felizmente — continuou Cécile — ainda tenho dois vestidos de lã e uns lenços de pescoço. Vocês vão ver como os pobrezinhos vão ficar aquecidos!

Só então a mulher de Maheu pôde soltar a língua; disse gaguejando:

— Muito obrigada, senhorita... Os senhores todos são muito bons.

Os olhos encheram-se de lágrimas, estava certa de que lhe dariam os cem soldos, só não sabia como pedi-los se não oferecessem. A camareira estava custando a voltar, houve um silêncio embaraçoso. Agarradas à saia da mãe, as crianças arregalavam os olhos na contemplação do bolo.

— Você só tem esses dois? — perguntou a Sra. Grégoire para romper o silêncio.

— Não, senhora. Tenho sete.

O Sr. Grégoire, que voltara ao seu jornal, teve um sobressalto de indignação.

— Sete filhos! Por que, Santo Deus?

— Que imprudência! — murmurou a senhora.

A mulher de Maheu esboçou um gesto vago de desculpa. Que havia de fazer? Não eram planejados, vinham naturalmente. Depois, quando cresciam, sempre produziam, ajudavam na manutenção da casa. Na família dela, por exemplo, todos poderiam viver muito bem se não fosse o avô que começava a ficar velho; dos filhos, apenas dois dos rapazes e a moça mais velha é que estavam em idade de trabalhar na mina. O problema era alimentar os menores, que não faziam nada...

— Então — continuou a Sra. Grégoire —, há muito tempo que trabalham nas minas?

Um sorriso mudo passou pelo rosto lívido da mulher.

— Sim, sim, há muito tempo. Eu trabalhei até os vinte anos. Quando dei à luz pela segunda vez, o médico disse que eu morreria se continuasse na mina; parece que o trabalho estava atacando-me os ossos. Aliás, foi nessa ocasião que me casei, e tinha muito que fazer em casa. Mas, do lado do meu marido, eles trabalham nisso há séculos, desde o tetravô, que sei eu! Seja como for, a família sempre trabalhou na mina, a partir das primeiras escavações em Réquillart.

Com um olhar sonhador, o Sr. Grégoire examinou aquela mulher e aquelas crianças esquálidas, suas carnações linfáticas, seus cabelos descoloridos, a degenerescência que até as fazia mirrar, roídas pela anemia, de uma fealdade triste de esfomeados.

Fez-se novo silêncio; apenas a hulha ardia, lançando um jato de gás. Na sala ligeiramente úmida respirava-se esse ar pesado de bem-estar no qual medra, sonolenta, a felicidade burguesa.

— Mas o que é que ela está fazendo? — exclamou Cécile impaciente. — Mélanie, vá dizer-lhe que o pacote está no fundo do armário, à esquerda.

Nesse entretempo, o Sr. Grégoire concluiu em voz alta as reflexões que lhe inspirava a visão desses famintos.

— Há muita desgraça neste mundo, isso é verdade; mas, minha boa mulher, é preciso que se diga que os operários nem sempre têm juízo... Em lugar de porem um dinheirinho de lado, como fazem os nossos camponeses, os mineiros bebem, contraem dívidas, terminam não tendo com que alimentar a família.

— O senhor tem razão — respondeu gravemente a mulher do mineiro. — Nem sempre trilhamos a estrada certa. É isso que sempre digo a esses malandros, quando se queixam... Eu tive sorte, meu marido não bebe, a não ser nos domingos de festa, quando às vezes toma uns tragos, mas só então. E o que é formidável, no caso dele, é que antes do nosso casamento tomava cada bebedeira de ver tudo de pernas para o ar, com perdão dos senhores... Mas o comportamento atual do meu marido não nos tem servido de grande coisa. Há dias, como hoje, que nem revirando todas as gavetas da casa se encontraria um tostão.

Com isso queria insinuar-lhes a idéia da moeda de cem soldos; e, continuando com sua voz arrastada, explicou o caso da dívida fatal, no começo pequena, depois grande e devoradora. Pagaram regularmente durante algumas semanas; um dia atrasaram e depois disso nunca mais conseguiram pôr-se em dia. O buraco era cada vez maior, os homens desgostavam-se do trabalho, que nem lhes permitia pagar as dívidas. Inferno de vida! Desse atoleiro não sairiam mais... Mas, que diabo, também era preciso saber compreender: um mineiro precisava de um gole de cerveja para limpar a garganta. Infelizmente tudo começa por aí, e, quando as dificuldades chegam, ele não sai mais da taberna. Vendo bem, e sem querer queixar-se de ninguém, talvez os operários não estivessem ganhando o suficiente para viver.

— Pensava — disse a Sra. Grégoire — que a companhia lhes fornecesse casa e carvão.

A mulher de Maheu lançou um olhar oblíquo para a hulha que ardia na chaminé.

— Sim, é verdade, fornecem-nos carvão, não é grande coisa, mas sempre acende... Quanto à casa, o aluguel é de seis francos por mês, parece que não é grande coisa, mas muitas vezes como é duro pagar... De forma que hoje, nem que me cortassem em pedaços, não encontrariam dois soldos. Onde não há nada, não há nada.

O casal resolveu ficar em silêncio, confortavelmente refestelados, pouco a pouco enojados e inquietos com todo aquele alarde de miséria. A outra, receando tê-los ofendido, acrescentou, com seu ar justo e calmo de mulher prática:

— Não me estou queixando. As coisas são assim, temos que aceitar, de nada adiantaria lutar, não mudaríamos nada, claro... O melhor mesmo é continuar trabalhando honestamente, como Deus quer, não é verdade, meus senhores?

O dono da casa aprovou-a com entusiasmo.

— Com tais sentimentos, minha boa mulher, é que se vencem os infortúnios.

Honorine e Mélanie trouxeram finalmente o pacote; Cécile desatou-o e retirou os dois vestidos, alguns lenços de pescoço e até meias e luvas. Tudo ia ficar às mil maravilhas; apressou-se, fez as criadas embrulharem as roupas escolhidas, e, como sua professora de piano acabava de chegar, foi empurrando a mãe e os filhos para a porta.

— Estamos tão apertados — gaguejou a mulher —; se ao menos tivéssemos uma moeda de cem soldos...

A frase engasgou-a: os Maheu eram orgulhosos, não mendigavam.

Cécile, inquieta, olhou para o pai, que recusou terminante-mente, com ares de estar cumprindo um dever.

— Não, isso não está nos nossos costumes. Não podemos.

A moça, então, comovida com o semblante transtornado da mãe, quis agradar aos filhos, que não tiravam os olhos do bolo; cortou duas fatias e deu-as às crianças.

— Pronto! É para vocês.

Mas em seguida apanhou novamente os pedaços de bolo e pediu um jornal velho.

— Esperem, repartam com seus irmãos.

E, sob os olhares enternecidos dos pais, pô-los finalmente para fora da sala. As pobres crianças, que não tinham pão, lá se foram carregando respeitosamente as fatias de bolo nas mãozinhas entorpecidas pelo frio.

A mulher de Maheu saiu arrastando os filhos pela estrada, não enxergando mais os campos desertos, a lama negra, o vasto céu lívido que girava. Ao passar novamente por Montsou, entrou resolutamente na loja de Maigrat e suplicou com tal veemência que conseguiu arrancar dois pães, café, manteiga e até sua moeda de cem soldos; o homem emprestava a juro, em curto prazo. Não era ela que ele queria, era Catherine; compreendeu muito bem quando ele lhe recomendou que mandasse a filha para fazer as compras. Ah, gostaria de ver! Que ele se aproximasse muito e Catherine lhe deixaria a cara marcada...

 

Deram onze horas na igrejinha do conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante, uma capela de tijolos onde o Padre Joire dizia missa aos domingos. Ao lado, na escola também de tijolos, ouviam-se as vozes balbuciantes das crianças, apesar das janelas fechadas por causa do frio do exterior. As ruas largas, divididas por pequenos jardins enfileirados, estavam desertas no perímetro dos quatro grandes quarteirões de casas uniformes; e esses jardins assolados pelo inverno expunham a tristeza de sua terra argilosa, que crestava e sujava os derradeiros legumes. Preparava-se a sopa, as chaminés fumegavam, uma ou outra mulher surgia de repente ao longo das fachadas, abria uma porta e desaparecia. De um extremo ao outro da calçada, as calhas dos telhados pingavam nos tonéis, se bem que não chovesse, tanta umidade havia na atmosfera. E esse lugarejo, edificado de uma só vez no meio do vasto planalto, rodeado de estradas negras como tarjas de luto, não tinha outro enfeite além do franjado regular de suas telhas vermelhas, constantemente lavadas pelas chuvas.

Voltando para casa, a mulher de Maheu fez um desvio para ir comprar batatas à esposa de um fiscal que ainda as tinha de sua colheita. Por trás de um horizonte de choupos mirrados, únicas árvores possíveis naqueles terrenos planos, havia um grupo de construções isoladas, com diversos lotes de quatro casas rodeadas de jardins. E, como a companhia reservara esse novo plano habitacional para os contramestres, os operários apelidaram esse recanto do povoado de conjunto habitacional dos Bas-de-Soie1, assim como chamavam a aglomeração que lhes tocava de Paie-tes-Dettes2, numa ironia bem-humorada para com a sua própria miséria.

— Ufa! até que enfim chegamos! — exclamou a mulher de Maheu, carregada de embrulhos, empurrando para dentro de casa Lénore e Henri, enlameados e cambaleantes.

Diante do fogo, Estelle berrava, embalada nos braços de Alzire. Esta, tendo acabado o açúcar e não sabendo mais como fazê-la calar, decidira fingir que lhe dava de mamar. Esse simulacro costumava surtir efeito, mas desta vez, por mais que abrisse o vestido e lhe colasse a boca ao seu seio descarnado de enferma de oito anos, só conseguia enfurecer a criança, cansada de morder aquele peito seco.

                                                                                

1. Bas-de-Soie: meias de seda. (N. do E.)

2. Paie-tes-Dettes: pague suas dívidas. (N. do E.)

 

— Vamos, dá-me — gritou a mãe logo que se viu livre dos embrulhos. — De outra forma ela não nos deixará falar.

Assim que puxou para fora do corpete um peito pesado como um odre e que a gritona se pendurou ao bico, subitamente emudecida, puderam enfim conversar. Tudo ia bem, a pequena dona-de-casa tinha alimentado o fogo, varrido, arrumado a sala. E no silêncio ouvia-se o roncar do avô no andar de cima, o mesmo ressonar compassado que não parara um instante.

— Ah, quanta coisa! — murmurou Alzire, sorrindo para as provisões. — Se queres, mamãe, eu faço a sopa.

A mesa estava cheia: um embrulho de roupas, dois pães, batatas, manteiga, café, chicória e meia libra de torresmos.

— Ai, a sopa! — disse a mulher, exausta. — E preciso ainda ir colher cebola e alho... Mas não, faço depois a sopa dos homens... Põe agora a cozer umas batatas, nós as comeremos com um pouco de manteiga. E café, hem? Não esqueças o café.

De repente, lembrou-se do bolo; olhou para as mãos vazias de Lénore e Henri, a lutarem no chão, já descansados e bem dispostos. Será que esses comilões tinham devorado sorrateiramente o bolo pelo caminho? Deu-lhes alguns safanões, enquanto Alzire, que punha a panela no fogo, tentava acalmá-la.

— Não tem importância, mamãe, se é por mim. Não ligo para bolos, tu sabes. Eles sentiram fome com a caminhada.

Deu meio-dia; ouviram-se os tamancos das crianças que saíam da escola. As batatas estavam cozidas e o café, engrossado com uma boa quantidade de chicória, passava no coador com um ruído cantante de gotas grossas. Limparam uma ponta da mesa, onde só a mãe comeu, enquanto as três crianças ficaram no seu colo; o menino, que era de uma voracidade muda, olhava sem dizer nada para o torresmo, cujo papel engordurado o excitava.

A mulher de Maheu tomou seu café aos golinhos, com ambas as mãos em volta do copo, para aquecê-las. Nesse momento, desceu o velho Boa-Morte; geralmente levantava-se mais tarde, encontrando sempre o almoço no fogão. Nesse dia pôs-se a

resmungar porque não havia sopa. Depois, quando sua nora lhe disse que nem todos os dias se comia o prato preferido, devorou as batatas em silêncio. De vez em quando levantava-se para ir cuspir nas cinzas, por asseio; e voltava a encolher-se na sua cadeira para remoer vagarosamente a comida, de cabeça baixa e olhar ausente.

— Ah, ia esquecendo! Mamãe, a vizinha esteve aqui — disse Alzire.

A mãe interrompeu-a:

— Aquela chata!

Era um rancor surdo contra a mulher de Levaque, que viera, na véspera, chorar suas misérias só para não lhe emprestar nada. E ela sabia muito bem que a outra tinha dinheiro na ocasião, porque o seu inquilino, Bouteloup, pagara adiantado a quinzena. Nesse conjunto habitacional era assim, quase nada se emprestava de casa para casa.

— Agora me lembro... — continuou a mãe — estou devendo café desde anteontem à mulher do Pierron. Embrulha um pouco, que vou levá-lo.

Apanhando o embrulho feito pela filha, disse que já voltava para preparar a sopa dos homens. Saiu com Estelle nos braços, deixando o velho Boa-Morte a mastigar lentamente suas batatas, enquanto Lénore e Henri se engalfinhavam para comer as cascas caídas no chão.

A mulher, em vez de dar a volta, atravessou pelos jardins, para evitar a vizinha, que aborrecia. O jardim dela era continuação do dos Pierron, e havia, na velha cerca que os separava, um buraco por onde passavam quando se visitavam. Era ali o poço comum de que se serviam quatro famílias. Ao lado, por trás de um pé de lilás quase murcho, elevava-se um galpão baixo cheio de ferramentas velhas e onde eram criados, um a um, os coelhos para serem comidos nos dias de festa.

Bateu uma hora: era a hora do café, não se via viv‘alma nas portas ou janelas; apenas um operário do desaterro, esperando a hora da descida, capinava sua pequena horta sem levantar a cabeça. Quando a mulher atravessou a rua e se encontrou em frente às casas do outro quarteirão, ficou surpreendida de ver aparecer junto à igreja um homem acompanhado de duas senhoras. Estacou um segundo e reconheceu-os: era a Sra. Hennebeau, que mostrava o conjunto habitacional dos mineiros aos seus convidados, o homem condecorado e a senhora de capa de peles.

— Ora, não precisava incomodar-se! — exclamou a mulher de Pierron quando a outra lhe devolveu o café. — Não tinha pressa...

Tinha vinte e oito anos, passava por ser a mulher mais bonita do conjunto habitacional: morena, testa pequena, olhos grandes e boca bem feita; muito elegante,

andava sempre limpa como uma gata; os seios continuavam belos, porque não tinha tido filhos. Sua mãe, a Queimada, viúva de um britador que morrera na mina, após ter posto a filha a trabalhar numa fábrica, jurando que esta jamais casaria com um mineiro, ficara furiosa ao vê-la casada tardiamente com Pierron, que ainda por cima era viúvo e tinha uma filha de oito anos. O casamento, no entanto, dera certo, e o casal vivia feliz, apesar dos mexericos e das histórias que corriam a respeito da complacência do marido e dos amantes da mulher; nenhuma dívida, carne duas vezes por semana, uma casa tão limpa que as caçarolas poderiam servir de espelho. Para cúmulo da sorte, graças a algumas proteções, a companhia autorizara-a a vender doces e biscoitos, que ela expunha em frascos sobre duas tábuas por trás dos vidros da janela. Com isso ganhava seis ou sete soldos por dia, às vezes doze, aos domingos. A única discrepância nessa felicidade toda era a mãe, a Queimada, que vivia berrando na sua fúria de velha revolucionária, que tinha de vingar a morte do seu homem, pela qual os patrões eram os responsáveis. Quem perdia com tudo isso era a filha de Pierron, a pequena Lydie, que recebia freqüentes bofetadas dessa família enérgica.

— Como está gorda! — exclamou a mulher de Pierron, brincando com Estelle.

— A trabalheira que isso dá, nem te digo! — respondeu a outra. — Considera-te feliz de não Teles... Pelo menos podes andar limpa.

Embora na casa dela tudo andasse em ordem, e mesmo a lavasse todos os sábados, não podia deixar de olhar com inveja aquela sala tão clara e jeitosa, onde havia até vasos dourados sobre o guarda-comida, um espelho, três gravuras emolduradas.

A mulher de Pierron tomava café sozinha; toda a sua família estava na mina.

— Vais tomar um copo comigo — disse ela.

— Não, obrigada, acabo de beber o meu.

— Não tem importância, toma outro.

Realmente, não tinha importância; e ambas se puseram a beber lentamente. Por entre os frascos de biscoitos e doces, seus olhares pousaram nas casas da frente, com suas janelas de cortinas, cuja maior ou menor alvura falava das virtudes das suas respectivas proprietárias. As cortinas dos Levaque estavam imundas, verdadeiros esfregões, parecia terem servido para limpar o fundo das panelas.

— Como é possível viver com tal sujeira! — murmurou a mulher de Pierron.      

A outra, então, começou a falar e não parou mais. Ah! Se ela tivesse um inquilino como esse Bouteloup, veriam como andaria limpa a sua casa! Para quem sabia fazer as coisas, um hóspede era um negócio excelente; mas nada de dormir com ele, isso não.

Mas aqueles... O marido bebia, batia na mulher, vivia atrás das cantoras dos cafés-concerto de Montsou...

A mulher de Pierron fez um gesto de nojo. Essas cantoras transmitiam todas as doenças. Em Joiselle havia uma que tinha contaminado os mineiros de uma galeria inteira.

— O que me espanta é que tenhas deixado teu filho andar com a filha deles.

— Ora! E como impedir? O jardim deles é ligado ao nosso; no verão, Zacharie levava a Philomène para trás dos lilases, e faziam de tudo no galpão sem se incomodar com a gente; não se podia tirar água no poço sem tropeçar neles.

Era a história comum das promiscuidades do conjunto habitacional, rapazes e moças apodrecendo juntos, jogando-se de costas, como eles diziam, sob o teto baixo e em declive do galpão, assim que anoitecia. Todas as operadoras de vagonetes geravam ali o primeiro filho, quando não se davam ao trabalho de ir fazê-lo em Réquillart ou nos trigais. Mas isso não era considerado uma catástrofe, casavam-se depois; as mães zangavam-se quando os rapazes começavam muito cedo, já que um filho casado deixava de trazer dinheiro para a família.

— No teu lugar, poria fim nisso — continuou ajuizadamente a mulher de Pierron. — O teu Zacharie já a embarrigou duas vezes e vão acabar amigando-se... Bem, de qualquer maneira, o dinheiro está perdido.

A outra mulher fez um gesto furioso com as mãos.

— Escuta, eu amaldiçôo os dois se eles se amigarem. Então Zacharie não nos deve respeito? E custou-nos dinheiro, não foi? Pois então, que nos pague o que deve antes de se grudar a uma mulher... O que seria de nós se nossos filhos, mal começando a trabalhar, tivessem de sustentar os outros? Ah! melhor seria morrer!

Depois dessa explosão, acalmou-se.

— Falo de modo geral, mais tarde é que se verá... O teu café está realmente forte, pões a dose exata.

E, após mais um quarto de hora de novas histórias, levantou-se e saiu correndo, gritando que a sopa dos homens ainda não estava feita. Encontrou na rua as crianças que retornavam à escola; algumas mulheres estavam paradas nas soleiras das portas, vendo a Sra. Hennebeau, que caminhava ao longo de um dos blocos de casas, mostrando o conjunto habitacional a seus convidados. Essa visita começava a abalar a pacatez do lugarejo. O homem do desaterro parou de capinar por um momento, duas galinhas assustadas correram pelos jardins.

Ao voltar para casa, a mulher de Maheu deu de cara com a vizinha que não queria encontrar e que tinha saído ao ver que passava o Dr. Vanderhaghen, médico da companhia, homenzinho apressado, cheio de trabalho, que dava consultas caminhando.

— Doutor — disse a mulher de Levaque —, não estou dormindo mais, tenho dores por todo o corpo... O senhor tinha que tratar disso...

Ele tratava todas elas por tu. Respondeu sem parar:

— Deixa-me em paz! Tu bebes muito café.

— E o meu marido, doutor? — exclamou por sua vez a mulher de Maheu. — O senhor devia vê-lo. Continua com aquelas dores nas pernas.

— Porque tu o cansas demais... Sai do caminho.

As duas mulheres ficaram plantadas no meio da calçada sem saber o que fazer, enquanto o doutor se afastava a passos rápidos.

— Entra — disse a Levaque, depois de trocar com a vizinha um encolher de ombros desesperado. — Temos novidades... E tomas um cafezinho comigo, acabo de fazê-lo.

A outra, que procurava escapar, não resistiu à tentação. Por que não? Mas somente uma gota, para não lhe fazer desfeita... E entrou.

A sala era negra de sujeira, o chão e as paredes manchados de gordura, o guarda-comida e a mesa lambuzados de imundície; o mau cheiro, típico da casa que quase nunca é limpa, dava engulhos.

Perto do fogo, com os cotovelos sobre a mesa, o nariz enfiado no prato, Bouteloup, de aparência jovem para os seus trinta e cinco anos, dava cabo de um resto de cozido com a pachorra de movimentos inerente àquele tipo de homem, grande e calmo. Em pé, encostado nele, encontrava-se Achille, o filho mais velho de Philomène, já com seus três anos, olhando-o com o jeito suplicante e mudo dos animais famintos. O homem, cheio de ternura sob a espessa barba trigueira, metia-lhe de vez em quando um naco de carne na boca.

— Espera, vou adoçá-lo — disse a dona da casa, pondo açúcar preto na cafeteira.

Era uma mulher horrível, seis anos mais velha que ele, gasta, com os seios batendo na barriga e a barriga chegando até as coxas, com um carão achatado, de cabelos grisalhos, sempre despenteada. Ele dormia com ela com toda a naturalidade, sem a examinar mais do que a sopa que lhe era servida e onde encontrava fios de cabelo, e do que a cama onde os lençóis só eram mudados de três em três meses. Era

pensão realmente completa, incluía até sexo... O marido gostava de dizer que o bom entendimento nos negócios faz os bons amigos.

— Queria te dizer — continuou ela — que viram ontem à noite a mulher de Pierron vagando pelas bandas dos Bas-de-Soie. O homem, tu sabes quem, estava esperando atrás da loja do Rasseneur; depois saíram juntos pela margem do canal. Que tal essa? Uma mulher casada...

— Ora! — respondeu a outra. — Antes de casar com ela, Pierron dava coelhos de presente ao contramestre, agora lhe empresta a mulher, sai mais barato.

Bouteloup deu uma gargalhada e enfiou um pedaço de miolo de pão embebido em molho na boca de Achille.

As duas mulheres continuaram a massacrar a esposa de Pierron: uma sirigaita que não era mais bonita do que as outras, mas vivia cuidando da pele, lavando-se, passando pomadas... Enfim, isso era da conta do marido, que parecia gostar desses requintes. Havia homens tão ambiciosos que eram capazes de limpar os sapatos dos chefes só para os ouvirem dizer obrigado. Estavam nesse ponto quando foram interrompidas pela chegada de uma vizinha trazendo ao colo uma menina de nove meses, Désirée, a filha mais nova de Philomène; esta, que almoçava no trabalho, pedira que lhe levassem a criancinha até lá, diariamente, para amamentá-la, sentada por uns minutos sobre o carvão.

— Não posso largar a minha um momento, começa logo a berrar... — disse a mulher de Maheu, olhando para Estelle, que dormia em seus braços.

Não conseguiu, porém, evitar a intimação que lia já há algum tempo nos olhos da outra e exclamou:

— Quando é que a gente vai resolver esse problema?

A princípio, as duas mães, implicitamente, tinham concordado em não apressar o casamento. Se a mãe de Zacharie queria receber durante o maior espaço de tempo possível as quinzenas do filho, a mãe de Philomène, só de pensar em largar as da filha, ficava uma fera. Nada a apressava, preferira mesmo cuidar do menino, isso enquanto havia um só; mas quando ele começou a crescer e a comer pão, e quando veio outro filho, achou-se prejudicada e tornou-se partidária fervorosa do casamento, disposta a não mais gastar do que era seu com os outros.

— Zacharie já está resolvido — continuou ela, implacável. — Agora só resta casar. Então, para quando?

— Deixemos isso para melhores dias — respondeu a mulher de Maheu embaraçada. — Esse assunto me irrita. Como se tivessem de esperar pelo casamento para andarem juntos... Palavra de honra, eu estrangulava Catherine se soubesse que ela deu um mau passo!

A mulher de Levaque deu de ombros.

— É melhor não jurares, ela fará exatamente como as outras. Bouteloup, com a tranqüilidade de um homem que está em sua casa, começou a revirar o guarda-comida à procura de pão. Legumes para a sopa de Levaque, batatas e alhos esparramavam-se numa ponta da mesa, meio descascados, tomados e abandonados dez vezes, por entre mexericos contínuos. A mulher começou a descascá-los de novo, quando voltou a largá-los para correr à janela.

— Que é isso? Ah! é a Sra. Hennebeau com outras pessoas. Entraram na casa do Pierron.

Imediatamente ambas voltaram a cair sobre a outra. Claro! Isso não podia faltar: bastava a companhia querer mostrar o conjunto habitacional a estranhos, era logo para a casa dela que iam, por ser limpa. Sem dúvida não contavam aos visitantes seus amores com o capataz. Pode-se muito bem ser asseada quando se tem amantes que ganham três mil francos, belas casas, aquecimento, não contando os presentes... Limpa por fora, suja por dentro, essa era a verdade. E, durante todo o tempo em que as visitas estiveram na casa defronte, não pararam de tagarelar.

— Já estão saindo — disse a mulher de Levaque. — Estão inspecionando... Olha, minha cara, parece que vão para a tua casa.

A outra ficou amedrontada: teria Alzire limpado a mesa? E a sopa que também não estava pronta! Balbuciou um "até logo" e saiu correndo, entrando em casa sem olhar para os lados.

Felizmente estava tudo muito limpo. Vendo que sua mãe não voltava, Alzire, muito séria, amarrou um pano na cintura e começou a fazer a sopa. Arrancara os últimos alhos do jardim, colhera cebolas e limpava com muito cuidado os legumes, enquanto no fogo, num caldeirão enorme, aquecia a água para o banho dos homens, quando viessem. Por acaso, Henri e Lénore não estavam brigando, ocupados em rasgar um almanaque velho. O velho Boa-Morte fumava silenciosamente o cachimbo.

A mulher ainda estava esbaforida quando bateram.

— Podemos entrar, boa mulher?

Alta, loura, um pouco pesada na maturidade soberba dos quarenta, a Sra. Hennebeau sorria com esforço, querendo ser amável, sem querer deixar transparecer que temia sujar a roupa de seda cor de bronze, protegida por um manto de veludo preto.

— Entrem, entrem — repetia ela a seus convidados. — Não incomodam ninguém... Como é asseada também, não é? Esta boa mulher tem sete filhos. Todas as nossas casas são assim. Como já lhes disse, a companhia aluga a casa a seis francos por mês. Uma sala grande no térreo, dois quartos em cima, uma adega e jardim.

O senhor condecorado e a senhora de capa de peles, que tinham chegado de manhã pelo trem de Paris, abriam muito os olhos, não sabiam o que dizer, pasmados ante aquelas coisas que escapavam à sua compreensão.

— E jardim... — repetiu a senhora. — Poder-se-ia viver aqui, é encantador.

— A quantidade de carvão que lhes damos é muito mais do que precisam — continuou a Sra. Hennebeau. — Recebem visita do médico duas vezes por semana, e, quando estão velhos, recebem uma aposentadoria, apesar de não se fazer desconto algum nos salários.

— Um paraíso! Uma verdadeira Terra da Promissão! — murmurou o homem, maravilhado.

A mulher de Maheu precipitou-se para oferecer cadeiras, que as outras não aceitaram.

A Sra. Hennebeau já estava ficando cansada; a princípio sentira-se bem naquele papel de mostrar bichos, distraída por um instante no tédio do seu exílio, mas já estava cheia de repugnância pelo cheiro enjoativo de miséria, não obstante a limpeza das casas escolhidas onde ela se arriscava a entrar. Na verdade, repetia apenas pedaços de frases que ouvira, pois jamais se preocupara muito com todos esses operários que trabalhavam e sofriam perto dela.

— Que crianças lindas! — murmurou a senhora, que as achava horríveis, com aquelas enormes cabeças de cabelo cor de palha.

E a dona da casa teve de dizer a idade delas; fizeram-lhe igualmente perguntas sobre Estelle, por delicadeza. O velho Boa-Morte, respeitosamente, retirara o cachimbo da boca, mas nem por isso deixou de chamar a atenção, tão estragado estava pelos quarenta anos que passara no fundo da mina, as pernas endurecidas, só pele e osso, a face terrosa. E, como o acometesse um violento ataque de tosse, preferiu sair para cuspir fora, com medo de que seu escarro preto fosse assustar aquela gente.   

Alzire foi muito festejada. Que bonita dona-de-casa, com o seu avental! Deram os parabéns à mãe por ter uma filha como aquela, já tão esperta para a idade. Mas ninguém falou sobre a sua corcova, apenas olhares de uma compaixão cheia de asco voltavam sempre a cair sobre o pobre ser enfermo.

— Agora — concluiu a Sra. Hennebeau —, se lhes perguntarem sobre nossas aldeias de mineiros, lá em Paris, já podem responder. Sempre esta calma, costumes patriarcais, todos felizes e saudáveis, um lugar para onde deviam vir descansar um pouco, onde há ar puro e tranqüilidade.

— É maravilhoso, maravilhoso! — exclamou o homem, numa demonstração final de entusiasmo.

E saíram com aquele ar satisfeito de quem sai de um circo onde se exibem fenômenos. A mulher de Maheu acompanhou-os até a porta e ali ficou enquanto eles se afastavam devagar, falando alto. As ruas estavam movimentadas, tiveram de defrontar grupos de mulheres atraídas pelo boato da sua visita, que fora espalhado de casa em casa.

Justamente defronte de sua porta, a mulher de Levaque acabava de deter a de Pierron, excitada com a visita. Ambas fingiam uma surpresa maldosa. Como é? Essa gente não saía mais da casa dos Maheu? Francamente, como é que agüentavam!

— Sempre sem dinheiro, apesar de tudo o que ganham... Claro, com os vícios que têm!

— Acabo de saber que ela foi mendigar hoje de manhã na porta dos burgueses da Piolaine, e que o Maigrat, que não queria vender-lhe mais nada, acabou voltando atrás e vendeu-lhe pão. Mas já sabemos como é que Maigrat cobra...

— Não, mas não ela! Também, precisava ter estômago... É a Catherine que Maigrat quer.

— Ah! escuta: sabes que ela teve a audácia de me dizer há pouco que estrangularia a Catherine se esta fizesse qualquer bobagem? Como se o latagão do Chaval já não tivesse há muito tempo dado um jeito nela, lá no galpão...

— Psiu! Aí vêm eles.

As duas mulheres adotaram então um ar despreocupado, sem mostras de curiosidade, contentando-se em espiar os visitantes pelo rabo do olho. Em seguida, chamaram com um aceno enérgico a outra, que ainda trazia Estelle ao colo. E as três, imóveis, ficaram contemplando as costas bem vestidas da Sra. Hennebeau, que se

afastava com seus convidados. Quando estes iam já a uns trinta passos, o falatório recomeçou com violência redobrada.

 — Esses vestidos valem talvez mais do que elas.

 — Ah! claro... Não conheço a outra, mas essa daqui não vale quatro soldos, grande como é. Contam cada história...

— Hem? Que histórias?

— Que ela teria muitos homens, ora! Para começar, o engenheiro...

— Aquele magricela? Não, é muito pequeno, ela o perderia entre os lençóis.

— E o que é que tem, se ela gosta? Eu, quando vejo uma mulher assim, sempre fazendo caras de enjôo, de nariz torcido, fico logo desconfiada. Olha como ela rebola o traseiro, como que para nos rebaixar. Então isso se faz?

Os visitantes continuavam no mesmo passo lento, conversando, quando uma caleça apareceu, indo estacionar defronte à igreja. Saltou dela um homem dos seus quarenta e oito anos, apertado numa sobrecasaca preta, bem moreno, de semblante autoritário e correto.

— O marido! — murmurou a mulher de Levaque, baixando a voz como se ele pudesse ouvi-la, presa do medo hierárquico que o diretor inspirava aos seus dez mil operários. — Mas não é que esse homem tem mesmo cara de cornudo!

Agora toda a aldeia estava na rua. A curiosidade das mulheres continuava a aumentar, os grupos aproximavam-se, fundiam-se em turba, enquanto bandos de crianças ranhentas se espalhavam pelas calçadas, com ar atônito. Até o professor, com seu rosto pálido, espiou por um instante por trás da sebe da escola. No meio do jardim, o homem que capinava parou de trabalhar e ali ficou, com o pé na enxada e os olhos arregalados. E o murmúrio dos cochichos foi crescendo pouco a pouco, como um ruído de matraca, semelhante a um pé-de-vento em folhas secas.

O falatório maior era justamente em frente à casa de Levaque; primeiro aproximaram-se duas mulheres, depois dez, em seguida vinte. Prudentemente, a mulher de Pierron se calara: havia muitos ouvidos; a mulher de Maheu, uma das mais espertas, contentava-se em olhar, e, para acalmar Estelle, que acordara aos gritos, puxou para fora o seu seio enorme de vaca leiteira, que pendia flácido, como que alongado pela força de manancial do seu leite. Quando o Sr. Hennebeau acomodou as senhoras na carruagem que partiu em direção a Marchiennes, houve uma última explosão de loquacidade, todas as mulheres gesticularam, falando umas no rosto das outras, mais parecendo um formigueiro em pânico.

Nisso, bateram três horas. Os operários do desaterro, Bouteloup e os demais, partiram para a mina. De repente, de uma esquina da igreja, começaram a surgir os primeiros mineiros que voltavam rosto preto, roupas encharcadas, braços cruzados e dorso arqueado' Houve então uma debandada entre as mulheres, todas corriam todas voltavam para os trabalhos caseiros que haviam esquecido de tanto dar com a língua nos dentes e tomar café. E não se ouviu mais que a exclamação irritada, cheia de ameaças:

— Ah, meu Deus! E a sopa, e a sopa, que ainda não está pronta!

 

Quando Maheu voltou, depois de haver deixado Etienne na casa de Rasseneur, encontrou Catherine, Zacharie e Jeanlin à mesa acabando de tomar a sopa. Voltando da mina, a fome era tanta que comiam com roupa molhada e antes mesmo de se lavarem; e ninguém fazia cerimônia, a mesa permanecia posta da manhã à noite, sempre havia alguém sentado comendo sua ração, segundo as exigências do trabalho.

Da porta, Maheu vislumbrou as compras; não disse nada, mas seu semblante iluminou-se. Durante toda a manhã, o vazio do guarda-comida, a casa sem café e sem manteiga mantiveram-no preocupado, voltaram à sua cabeça em ondas dolorosas enquanto cavava no veio, sufocado no fundo da jazida. Como teria ela conseguido tudo aquilo? E que seria deles se ela tivesse voltado para casa de mãos vazias? Ah, felizmente havia de tudo! Riu de satisfação.

Catherine e Jeanlin já tinham acabado e bebiam seu café em pé, ao passo que Zacharie, não satisfeito com a sopa, cortava uma grossa fatia de pão e besuntava-a de

manteiga. Viu o Chouriço num prato, mas não o tocou: a carne, quando havia, era só para um, o pai. Todos terminavam a refeição com um enorme copo de água fresca, em substituição à boa aguardente dos fins de quinzena.

— Não tenho cerveja — disse a mulher, quando o marido sentou à mesa. — Quis economizar um pouco... Mas, se estás com vontade, a menina pode ir correndo buscar um litro.

Ele olhou-a assombrado. O quê? Também tinha dinheiro!

— Não, não — disse ele. — Já bebi um copo, chega.

E pôs-se a comer vagarosamente a mistura de pão, batatas, alho e cebola disposta na gamela que lhe servia de prato. A mulher, sem largar Estelle, inspecionava o trabalho de Alzire para que não faltasse nada, empurrava para perto dele a manteiga e o queijo, punha novamente no fogo seu café, para mantê-lo aquecido.

Ao mesmo tempo, ao lado do fogão, começava o banho, num tonei cortado ao meio e que servia de tina. Catherine, que era a primeira a lavar-se, encheu-a de água tépida e começou a despir-se tranqüilamente: tirou a coifa, a jaqueta, as calças e a camisa, acostumada a isso desde os oito anos, tendo crescido sem ver mal naquilo. Apenas se voltou de frente para o fogo e começou a esfregar-se vigorosamente com sabão preto. Ninguém a olhava; nem mesmo Lénore e Henri tinham mais curiosidade em ver como ela era. Acabado o banho, subiu nua a escada, deixando a camisa molhada e as outras peças do vestuário num monte no chão.

Em seguida, os dois irmãos começaram a discutir: Jeanlin correra para entrar na tina, a pretexto de que Zacharie ainda estava comendo; este empurrou-o, dizendo ser a sua vez, e que, se era bastante bondoso para permitir que Catherine tomasse seu banho em primeiro lugar, não queria lavar-se no resto de meninos sujos, tanto mais que água de banho daquele ali só serviria depois para encher os tinteiros da escola. Terminaram por lavar-se juntos, igualmente de frente para o fogo e até ajudando-se, um esfregando as costas do outro. Depois, como a irmã, subiram nus a escada.

— Que sujeira fazem! — murmurou a mãe, apanhando as roupas do chão para pô-las a secar. — Alzire, seca o chão, sim?

Uma algazarra do outro lado da parede cortou-lhe a palavra. Eram pragas de homem, choro de mulher, um barulhão de briga, com pancadas surdas que soavam como quedas de cabeças vazias.

— A mulher do Levaque está recebendo a sua dose — constatou calmamente Maheu, que rapava o fundo da gamela com a colher. — Engraçado, Bouteloup garantiu que a sopa estava pronta.

— Pronta! Essa não... — respondeu a mulher. — Eu vi os legumes em cima da mesa; nem descascados estavam.

Os gritos eram cada vez mais fortes; houve um encontrão tão violento que estremeceu a parede; em seguida voltou o silêncio. O mineiro, então, engolindo sua última colherada, concluiu com ar justo e calmo:

— Se a sopa não estava pronta, bem fez ele.

E depois de beber um copo cheio de água, passou ao Chouriço; cortava-o em pedacinhos, espetava-os com a ponta da faca e ia comendo, depois de colocá-los sobre o pão, sem garfo. Enquanto o pai comia, ninguém falava; ele mesmo guardava silêncio, degustando o Chouriço, no qual não encontrava o sabor característico do de Maigrat. Sim, devia ter vindo de outro lugar... Mas assim mesmo não interrogou a mulher a esse respeito. Perguntou-lhe apenas se o velho ainda estava dormindo. Não, o avô já tinha saído para o passeio habitual. E o silêncio baixou novamente sobre a sala.

O cheiro da carne açulara o olfato de Lénore e Henri, que se divertiam fazendo córregos no chão com a água derramada. Ambos foram para perto do pai, o menor na frente. Seguiam com os olhos cada pedaço; cheios de esperança, viam-nos partir do prato e, consternados, assistiam ao desaparecimento deles na boca do pai. Finalmente, o homem notou o desejo voraz que chegava a torná-los pálidos e lhes punha água na boca.

— As crianças já comeram disto? — perguntou. E como a mulher hesitasse:

— Sabes bem que não gosto dessas injustiças. Tira-me o apetite vê-los ao meu redor, mendigando um pedaço.

— Mas claro que já comeram! — exclamou ela, encolerizada.

— Se começas a apiedar-te acabas dando o que te toca e mais a parte dos outros, e eles comerão até estourar. Alzire! Não é verdade que todos nós já comemos Chouriço?

— É, sim, mamãe — respondeu a corcundinha, que naqueles casos mentia com a desfaçatez de um adulto.

Lénore e Henri permaneceram imóveis, surpresos, revoltados ante tal mentira, eles, que eram açoitados quando não diziam a verdade. Com a revolta no coração, sentiram uma enorme vontade de protestar, de dizer que não estavam presentes quando os outros tinham comido.

— Vamos, saiam já daqui — gritou a mãe, enxotando-os para o outro extremo da peça. — Deveriam ter vergonha de estar sempre querendo a comida do seu pai. E se fosse só ele a comer, não seria justo? Não é ele quem trabalha? Vocês não passam de dois inúteis que fazem despesas e estão cada vez mais gordos!

Maheu chamou-os de volta, sentou Lénore na sua perna esquerda e Henri na direita e acabou o Chouriço repartindo-o em pedacinhos com as crianças, que o devoraram deliciadas. Ao terminar, disse à mulher:          

— Não, não quero o café agora, vou lavar-me primeiro... Ajuda-me a despejar esta água suja.     

Agarraram a tina pelas alças e despejavam-na na sarjeta em frente à porta quando jeanlin desceu vestindo roupas secas: umas calças e uma blusa de lã enormes, da medida do irmão. Vendo-o escapar sorrateiramente pela porta aberta, a mãe chamou-o. 

—  Aonde vais?  

—  Ali...

— Ali, aonde? Tu vais é colher um molho de dente-de-leão para a salada da ceia, ouviste? Se não trouxeres a verdura, vais arranjar-te comigo.

— Está bem, está bem!

Jeanlin partiu de mãos nos bolsos, arrastando os tamancos, gingando o traseiro magro de subnutrido de dez anos, mais parecendo um velho mineiro. Zacharie desceu por sua vez, mas mais bem cuidado, vestindo um suéter de malha de lã preta listrado de azul. Seu pai gritou-lhe que não voltasse tarde e ele saiu balançando a cabeça, de cachimbo na boca, sem responder.

A tina foi outra vez cheia de água morna. Maheu começou a tirar lentamente a jaqueta. A um olhar deste, Alzire levou Lénore e Henri para brincar na rua. O homem não gostava de se lavar diante da família, como era a prática em muitas casas do conjunto habitacional. Aliás, ele não censurava ninguém, dizia apenas que tomar banho na frente dos outros só era admissível para crianças.

— Que é que estás fazendo aí em cima? — gritou a mulher junto da escada.

— Estou remendando meu vestido, que se rasgou ontem — respondeu Catherine.

— Pois fica aí, não desce, teu pai está-se lavando.

Maheu e a mulher ficaram finalmente sós. Esta resolveu colocar Estelle sobre uma cadeira bem perto do fogo; a criança, por milagre, não começou a berrar e ficou olhando para os pais à maneira vaga dos inocentes que ainda não têm entendimento. Ele, completamente nu, acocorado diante da tina, mergulhou primeiro a cabeça ensaboada

com esse sabão preto cujo uso secular descolorira e amarelecera os cabelos da raça; em seguida meteu-se na água, ensaboando o peito, a barriga, os braços e as pernas, para depois esfregá-los energicamente com ambas as mãos. Em pé, à sua frente, a mulher o observava.

— O que é que há? — começou ela. — Eu vi tua cara quando chegaste, estavas com uma carranca... Ao veres as compras é que desanuviaste o semblante. Imagina que os burgueses da Piolaine não quiseram dar-me um soldo... Mas mesmo assim são amáveis, deram roupas para as crianças e eu tive vergonha de suplicar; as palavras ficam-me atravessadas na garganta quando tenho de pedir. Interrompeu-se por um instante para escorar Estelle na cadeira, com receio de uma queda. O homem continuou a rascar-se sem apressar com perguntas aquela história que tanto o interessava, esperando pacientemente compreendê-la.

— É preciso que te diga que o Maigrat tinha recusado com aquela empáfia dele, como quem enxota um cão. Calcula como me estava sentindo... Roupas de lã aquecem, mas não alimentam, não é verdade?

Ele levantou a cabeça, sempre mudo. Nada na Piolaine, nada no Maigrat; e então? Mas, como de costume, ela acabava de arregaçar as mangas para lhe lavar as costas e as partes do corpo que ele não podia alcançar. Ele gostava de que ela o ensaboasse, que o esfregasse todo, até cansar os pulsos. Apanhando o sabão, a mulher começou a lhe rascar os ombros, enquanto ele se firmava para poder permanecer ereto.

— Voltei então ao Maigrat e disse-lhe umas verdades, ah! se disse... Que era preciso não ter coração, que se havia justiça ele iria pagar por tudo isso... Ele ficou apavorado, desviava os olhos, queria escapar...

Das costas descera às nádegas e, arrebatada, continuou por todo o corpo, não deixando uma prega, uma curva sem esfregar, fazendo-o brilhar como as suas três caçarolas reluziam na limpeza geral dos sábados. Já estava suando com aquele terrível vaivém dos braços, tão agitada e sem fôlego que as palavras a engasgavam.

— Por fim, chamou-me de carrapato, mas temos pão até sábado, e o mais formidável é que me emprestou cem soldos... Trouxe ainda de lá manteiga, café e chicória, e ia pedir que me fornecesse um pouco de salsicharia e batatas, mas achei que era demais, ele já estava resmungando... Sete soldos de queijo de porco, dezoito soldos de batatas, sobram três francos e setenta e cinco para um guisado e um cozido. Que tal? Parece que aproveitei muito bem a manhã.

Agora enxugava-o; nos lugares que não queriam secar, batia com a toalha. Ele, feliz, sem mais se preocupar com o futuro da dívida, ria a plenos pulmões e abraçava-a.

— Solta-me, bruto! Estás encharcado, vais molhar-me. O que receio é que Maigrat tenha lá seus planos...

Ia falar em Catherine, mas conteve-se. De que serviria preocupar o marido? Seriam histórias sem fim;

—  Que planos? — perguntou ele.

—  Planos para nos roubar; o que haveria de ser? É preciso que Catherine examine muito bem a nota.

Ele abraçou-a de novo, não a deixando mais. O banho dele acabava sempre assim; ela excitava-o ao esfregá-lo com tal vigor, e depois, ao secá-lo com panos que lhe faziam cócegas nos cabelos dos braços e do peito. Aliás, por todo o conjunto habitacional, essa era a hora das brincadeiras, quando faziam mais filhos do que queriam. À noite não era possível, dormiam todos amontoados. Maheu empurrava a mulher para a mesa, gracejando com o bom humor daqueles que estão gozando do único momento agradável do dia, chamando o que ia fazer de comer sua sobremesa, e uma sobremesa que não lhe custava dinheiro. Ela, balançando seios e quadris, debatia-se um pouco, por brincadeira.

— Que bruto, meu Deus! Que bruto... A Estelle nos está olhando! Espera um pouco que vou virar a cabeça dela para o outro lado.

— Ora! Com três meses não pode compreender nada.

 Levantando-se, ele vestiu apenas umas calças enxutas. Seu prazer, depois do banho e de ter feito suas brincadeiras com a mulher, era ficar com o torso nu por algum tempo. Na sua pele branca, de uma alvura de moça anêmica, os arranhões, os cortes de carvão deixavam tatuagens, "enxertos", como diziam os mineiros; e ele sentia-se orgulhoso disso, exibia seus braços grossos, seu peito largo, brilhante como um mármore raiado de azul. No verão, todos os mineiros ficavam nas portas de suas casas assim. Apesar da umidade do tempo, ele foi até a porta por um momento e gritou um palavrão para um companheiro que se encontrava igualmente de torso nu do outro lado dos jardins. Outros apareceram; e as crianças que brincavam nas calçadas ergueram as cabeças e riram também ao constatarem que havia alegria em toda aquela carne fatigada que os trabalhadores expunham ao ar livre.

Tomando o café, ainda sem camisa, Maheu contou à mulher da cólera do engenheiro por causa do estaqueamento. Estava calmo, descansado e ouviu com sinais de aprovação os prudentes conselhos da esposa, que demonstrava grande bom senso

naqueles assuntos. Ela sempre repetia que não se ganhava nada entrando em choque com a companhia; falou-lhe, em seguida, da visita da Sra. Hennebeau. Sem o dizerem, ambos estavam envaidecidos com o acontecimento.

— Posso descer? — perguntou Catherine do alto da escada.

— Podes, sim, teu pai está-se enxugando.

A moça trajava sua roupa de domingo, um velho vestido de popelina azul-escuro, desbotado e já puído nas pregas. Trazia na cabeça uma touca de tule preto, muito simples.

— Como? Estás toda preparada! Onde é que vais?

— Vou a Montsou comprar uma fita para a minha touca... Arranquei a velha, estava imunda.

— Então tens dinheiro?

— Não, mas a filha do Mouque vai emprestar-me dez soldos.

A mãe deixou-a sair. À porta, porém, chamou-a.

— Escuta, não vás comprar tua fita no Maigrat... Ele te roubaria e ficaria pensando que estamos nadando em ouro.

O pai, que se tinha agachado em frente ao fogo para secar mais depressa o pescoço e as axilas, limitou-se a acrescentar:

— Volta para casa antes do anoitecer.

Na parte da tarde, Maheu trabalhou no jardim. Já plantara batatas, semeara feijão e ervilha e tinha em viveiros, desde a véspera mudas de couves e alfaces, que se pôs a transplantar. Aquele retalho de jardim os abastecia de legumes, com exceção das batatas, que nunca chegavam para os gastos da casa. A verdade é que ele gostava de plantar e até alcachofras conseguia ali, o que era tido pelos vizinhos como uma mania de grandeza.

Estava preparando o canteiro quando surgiu Levaque, que viera dar uma cachimbada na entrada da sua casa e que se pôs a examinar as alfaces que Bouteloup plantara pela manhã; sem a disposição do senhorio para o cultivo, não cresceriam ali senão urtigas. E os dois começaram a conversar por cima da cerca. Levaque, descansado mas excitado por ter batido na mulher, tentou em vão arrastar Maheu para o Rasseneur. Então, será que tinha medo de um copo de cerveja? Jogariam uma partida de boliche, vadiariam um pouco com os camaradas e voltariam para jantar. Era assim que passavam o tempo, depois de deixarem a mina. Claro que não havia mal nisso, mas Maheu estava decidido: se não transplantasse suas alfaces, no dia seguinte elas estariam

murchas. No fundo, não queria ir por economia, para não ter que pedir à mulher um centavo do que sobrara dos cem soldos.

Davam cinco horas quando a mulher de Pierron veio perguntar se tinha sido com Jeanlin que a sua Lydie havia escapado. Levaque respondeu que talvez sim, porque o Bébert também desaparecera e os três faziam das suas sempre juntos. Maheu tranqüilizou-os falando da salada de alface, e em seguida ele e o companheiro passaram a fazer piadas com a mulher, numa linguagem de caserna. Ela zangou-se mas não foi embora, deleitada no fundo com os palavrões, que a faziam dobrar-se de riso. Veio em seu auxílio uma mulher magra, cuja cólera gaguejante se assemelhava a um cacarejar de galinha. Outras, das suas portas, começavam a ficar perturbadas com a cena, da qual não ouviam palavra.

A escola acabava de fechar suas portas, a petizada andava à solta, era um rebuliço de pequenos seres esganiçando-se, engalfinhando-se, rolando por terra. Enquanto isso, os pais que não estavam na taberna juntavam-se em grupos de três ou quatro, sentavam nos calcanhares, como no fundo da mina, para fumar seus cachimbos, falando pouco, encostados numa parede. A mulher de Pierron partiu furiosa quando Levaque tentou apalpá-la para ver se tinha as coxas bem torneadas; em seguida, este decidiu ir sozinho mesmo à taberna e Maheu continuou a trabalhar nos seus legumes.

O sol começou a desaparecer; a mulher de Maheu acendeu o candeeiro, irritada com a ausência dos filhos. Podia apostar: nunca faziam juntos a única refeição em que podiam estar todos em volta da mesa. E ainda havia a tal salada que Jeanlin não trouxera. Como poderia colhê-la agora, nessa escuridão? E uma salada viria a calhar com o guisado de batata, alho, azedinhas — tudo refogado na cebola —, que estava cozendo em fogo brando!

A casa inteira cheirava a cebola frita, um odor agradável que logo fica rançoso e penetra nas paredes dos conjuntos habitacionais de mineiros e passa a exalar tal fedor que de longe, do campo aberto, pode-se sentir esse cheiro de cozinha pobre.

Ao cair da noite, Maheu deixou o jardim e estirou-se numa cadeira para um cochilo, a cabeça apoiada na parede. À noite, bastava sentar para pegar no sono. O cuco deu sete horas. Henri e Lénore acabaram por quebrar um prato teimando em ajudar Alzire, que punha a mesa. O velho Boa-Morte foi o primeiro a voltar, pediu logo a janta, pois tinha que pegar no trabalho. A mulher resolveu então acordar o marido.

— Vamos comer. Se não vêm, pior para eles; são bastante grandes para encontrar o caminho de volta. O que me irrita é a salada.

 

Na casa de Rasseneur, depois de tomar uma sopa, Etienne voltou ao quarto estreito que ia ocupar no sótão, de frente para a Voreux, e caiu na cama completamente vestido, morto de cansaço. Durante dois dias não chegara a dormir quatro horas. Quando acordou, já anoitecia; ficou atordoado por alguns instantes, sem saber onde estava. Sentia tamanho mal-estar, tal peso na cabeça, que a muito custo se pôs em pé, com a intenção de ir tomar ar antes de jantar e deitar-se de novo.

Fora, não estava fazendo frio, o céu de fuligem tinha cintilações de cobre, grávido de uma dessas longas chuvadas que só caem no norte e cuja aproximação se fazia sentir na tepidez úmida do ar. A noite descia como um rolo de fumaça, engolfando os longínquos confins da planície. Sobre aquele mar imenso de terras avermelhadas, o céu baixo parecia fundir-se em poeira negra, sem um sopro de vento repentino que desse vida às trevas. Tudo isso era de uma tristeza confrangedora e baça como uma mortalha.

Etienne começou a caminhar ao acaso, com o único fim de livrar-se daquele mal-estar. Ao passar pela Voreux já em sombras no fundo do seu buraco e com os lampiões ainda apagados, parou um momento para ver a saída dos operários que trabalhavam à tarde. Eram decerto seis horas; carregadores da expedição e cavalariços saíam em grupos, misturados com as moças da triagem, indistintas e risonhas no meio da escuridão.

Os primeiros a sair foram a Queimada e o genro, Pierron; ela admoestava-o por não a ter apoiado numa altercação que tivera com um fiscal por causa de sua conta de pedras.

— Que molengão! Deus meu, como é que pode? Um homem desse, e rebaixando-se assim na frente dos canalhas que querem destruir-nos.

Pierron seguia-a tranqüilamente, sem responder. Acabou dizendo:

— Eu teria talvez de me atracar com o chefe. Muito obrigado! Não quero encrencas comigo.

— Pois então estende o traseiro! — gritou ela. — Ah! inferno de vida! Se ao menos minha filha me tivesse escutado... Parece que não chega o marido que me mataram, queres talvez que eu vá agradecer-lhes, não é isso? Pois verás, pagarão por isso...

As vozes foram ficando distantes e Etienne permaneceu olhando para a mulher que desaparecia com seu nariz adunco, seus cabelos brancos desgrenhados, seus longos braços que gesticulavam furiosamente. Atrás dele, porém, a conversa de dois rapazes fez que apurasse o ouvido. Reconheceu Zacharie, que estava à espera e que um amigo, o jovem Mouque, acabava de abordar.

—  Como é, vens ou não vens? — perguntou este. — Comemos um pão com manteiga e vamos para o Volcan.

—  Logo; primeiro vou resolver um assunto.

— O que é, hem?

O carregador virou-se, percebeu Philomène que saía da triagem e julgou compreender.

— Ah! é isso... Então eu vou na frente.

— Vai, que logo te alcanço.

Ao seguir pelo caminho, o carregador deu com o pai, o velho Mouque, que também estava saindo da Voreux; os dois homens cumprimentaram-se apenas, o filho tomou a estrada real e o pai enveredou pela margem do canal.

Zacharie, tendo cortado o passo a Philomène, carregou-a para esse mesmo caminho desviado apesar da sua resistência. Estaria outra vez com pressa? E começaram a discutir como um casal já antigo. Não tinha nenhuma graça só se verem fora, sobretudo no inverno, quando a terra está molhada e não há trigais para servir de cama.

— Não, não é isso — murmurou ele impaciente. — Tenho que te dizer uma coisa...

Segurou-a pela cintura, fazendo-a caminhar devagar. Assim que chegaram à sombra do aterro, ele perguntou-lhe se tinha dinheiro.

— Para quê? — quis ela saber.

Ele então atrapalhou-se, falou de uma dívida de dois francos que ia desesperar sua família.

— Não me venhas com essa! Eu vi o filho do Mouque falando contigo, tu vais é para o Volcan farrear com aquelas cantoras nojentas.

Ele jurou que não, bateu no peito, deu sua palavra de honra. Vendo que ela dava de ombros, disse num repente:

— Pois vem com a gente, se isso te agrada. Não me atrapalhas em nada. Cantoras! Não é nada disso, bobinha... Vens?

— E a criança? — perguntou ela. — Está sempre chorando, não posso dar um passo... Vou é para casa, aposto que a confusão é total por lá.

Mas ele reteve-a e começou a suplicar. Então ia deixá-lo em má situação na frente do amigo ao qual havia prometido companhia? Um homem não podia dormir diariamente como as galinhas... Vencida, ela levantou uma ponta da sua bata, cortou a linha com a unha e tirou duas moedas de dez soldos de um canto da bainha. O receio de ser roubada pela mãe fazia com que escondesse ali o ganho das horas extras na mina.

— Tenho cinco, estás vendo? Posso muito bem dar-te três... Mas tens que jurar que vais convencer tua mãe a casar-nos. Chega dessa vida irregular, não posso mais agüentar as reclamações de mamãe a cada pedaço de pão que ponho na boca. Jura, jura primeiro. Falava com a voz fraca de mulher doentia, sem paixão, exausta de viver. Ele jurou, disse que era coisa prometida, sagrada; depois, assim que se viu com as três moedas, beijou-a, fez-lhe carícias e graças, e tê-la-ia possuído ali mesmo, naquele recanto do aterro, que era o quarto de inverno da sua já antiga união, se ela não tivesse repetido que não, que desse jeito não teria nenhum prazer. E, assim, voltou para o conjunto habitacional sozinha, enquanto ele cortava através do campo para encontrar-se com o amigo.

Etienne, maquinalmente, seguira-os de longe, sem compreender, pensando que era um simples encontro. As moças eram precoces nas minas... Lembrou-se então das operárias de Lille que costumava esperar atrás das fábricas, esses bandos de moças corrompidas desde os catorze anos, entregues à miséria de sua própria sorte. Pensava nisso, quando um outro encontro o surpreendeu ainda mais. Parou.

Era no fundo do aterro, numa cova para onde tinham escorregado enormes pedras, que Jeanlin se instalara para maltratar Lydie e Bébert, que estavam sentados um à sua direita, outro à sua esquerda.

— Hem? Qual é a queixa? Dou um bom tabefe em cada um se reclamarem... Quem é que teve a idéia? Vamos, digam!

Na verdade, Jeanlin tivera a idéia. Depois de, durante uma hora, ter vagado pelos prados que ficam ao longo do canal, colhendo alfaces com os outros dois, decidiu, olhando para o molho de verdura, que em sua casa jamais comeriam tudo aquilo e, em vez de voltar para o conjunto habitacional, foi a Montsou levando Bébert para ficar de guarda e mandando Lydie bater nas portas dos burgueses oferecendo alfaces. Dizia ele

— voz da experiência — que as meninas vendiam tudo o que quisessem. No ardor do negócio, todo o molho foi vendido e a garota apurara onze soldos. Agora repartiam o lucro.

—  Não é justo — declarou Bébert. — Temos que dividir por três. Se tu ficas com sete, nós ficamos só com dois cada um.

—  Não é justo por quê? — replicou Jeanlin furioso. — Para começar, colhi muito mais que vocês.

O outro costumava submeter-se às decisões do amigo, com uma admiração amedrontada, uma credulidade que o transformava na eterna vítima. Apesar de mais velho e mais forte, deixava que Jeanlin até mesmo o esbofeteasse. Mas, desta vez, a visão de todo esse dinheiro o excitava à resistência.

— Lydie, não é verdade que ele nos está roubando? Se não repartir por igual vamos dizer tudo à mãe dele.

Num relance Jeanlin abateu o punho no nariz do outro.

— Repete, repete! Eu é que vou dizer que vocês venderam a salada da mamãe... E depois, seu burro, como é que vou dividir onze soldos por três? Tenta só, espertinho. Aqui está: dois soldos para cada um. E peguem logo, senão vão voltar para meu bolso.

Resignado, Bébert apanhou os dois soldos. Lydie, toda trêmula, nada dissera: diante de Jeanlin ela sentia uma mistura de medo e ternura de mulherzinha acostumada a levar pancada. Como ele lhe estendesse os dois soldos, ela espichou a mão com um sorriso submisso. Mas ele, repentinamente, mudou de idéia.

— O que vais fazer com todo esse dinheiro? Não sabes como escondê-lo e a tua velha vai roubá-lo, com toda a certeza... É melhor que eu guarde para ti. Quando precisares dele é só pedir.

E os nove soldos sumiram. Para que não pudesse reclamar, abraçou-a rindo e rolou com ela pelo aterro. Era a sua mulherzinha, tentavam juntos, nos cantos escuros, praticar o amor que ouviam e viam em suas casas, por trás dos tabiques, pelas fendas das portas. Sabiam tudo, mas ainda não conseguiam fazer nada por serem muito jovens; apenas se apalpavam, brincavam durante horas como cãezinhos viciados. Ele chamava a isso "brincar de papai e mamãe", e quando queria bastava chamá-la, ela vinha correndo, deixava-se agarrar com o estremecimento delicioso do instinto, algumas vezes amuada, mas cedendo sempre, ansiando por algo que não chegava a acontecer.

Bébert nunca era admitido nessas brincadeiras e logo recebia uma tapona assim que tentava apalpar Lydie, por isso transformava-se numa fera, enquanto os outros dois

se divertiam fazendo caso omisso da sua presença. A vingança dele era assustá-los e interrompê-los gritando que estavam sendo observados.

 — Olha o homem espiando vocês!

Desta vez não mentia, ali estava Etienne, que imediatamente decidiu seguir seu caminho. Os meninos deram um pulo e se esconderam e ele passou, contornando o aterro e seguindo o canal, divertido com o susto que pregara nos pequenos descarados. Sem dúvida, era cedo para a idade deles, mas que fazer? Viam tantos exemplos, ouviam tanta barbaridade que teria sido preciso amarrá-los para que não fizessem o mesmo. Apesar de tudo isso, no fundo, Etienne entristecia-se com o fato.

Cem passos adiante encontrou mais casais. Estava chegando a Réquillart e ali, ao redor da velha galeria em ruínas, todas as moças de Montsou passeavam com seus namorados. Era o ponto de encontro comum, o recanto ignoto e deserto onde as operadoras de vagonetes iam conceber seu primeiro filho, quando não ousavam fazê-lo no galpão do fundo da casa. Os tapumes derruídos serviam de entrada para o antigo pátio transformado em terreno baldio, obstruído pelos destroços de dois galpões que tinham desabado e pelos esqueletos dos enormes cavaletes ainda em pé. O terreiro estava cheio de vagonetes fora de uso, de caibros velhos que apodreciam amontoados, enquanto uma vegetação violenta reconquistava aquele canto de terra, transformando-o em matagal cerrado, com pequenas árvores já copadas.

As moças sentiam-se ali tão à vontade como em suas casas; havia tocas escondidas para todas, os namorados deitavam-nas sobre as vigas, atrás dos montes de madeira ou dentro dos vagonetes. Sempre arranjavam um lugar, podia ser mesmo ao lado de outro casal, cada um cuidava da sua vida. E era como se fosse uma vingança da criação aquela prática do amor livre que, sob o látego do instinto, fecundava os ventres dessas meninas-moças ao redor da máquina extinta, junto do poço exausto de vomitar hulha.

Contudo, havia um guarda morando ali, o velho Mouque, a quem a companhia cedera, quase por baixo da torre do sino de rebate destruída, duas peças que a queda prevista das últimas vigas em pé punha sob a constante ameaça de esmagamento. Mouque tivera mesmo de escorar uma parte do teto e ali passara a viver muito bem, em família, ele e o filho num quarto, a filha no outro. Como as janelas não tinham mais vidros, vedara-as com tábuas; a luz era escassa, mas não fazia frio. Na verdade, era um guarda que não guardava nada; tratava, isso sim, dos cavalos da Voreux, não tendo o menor

cuidado com as ruínas de Réquillart, das quais apenas o poço tinha serventia, como chaminé de uma fornalha que injetava ar na galeria vizinha.

E assim envelhecia o pai Mouque, entre amores. A partir dos dez anos de idade, sua filha fora possuída seguidamente naqueles escombros, não como garotinha assustada e ainda verde do tipo de Lydie, mas como mulher adulta, boa para rapazes de barba na cara. O pai não dizia nada porque ela mostrava-se respeitosa, nunca introduzira um namorado dentro de casa. Com o tempo, habituara-se àquelas cenas. Indo para a Voreux ou voltando de lá, cada vez que saía do seu buraco, tinha de cuidar onde punha o pé para não tropeçar em algum casal estendido no pasto; mas o pior era quando queria juntar gravetos para o fogo da sopa, ou relva para o coelho, no outro extremo do cercado: via então levantarem-se, um a um, os narizes gulosos de todas as moças de Montsou, ao passo que ele devia tomar precauções para não esbarrar nas pernas estendidas nas veredas. Aliás, pouco a pouco, esses encontros não incomodaram mais ninguém, nem a ele, que simplesmente cuidava de não cair, nem às moças, que deixava divertirem-se, afastando-se a passinhos discretos, como um homem bom, compreensivo para com as exigências da natureza. Mas, assim como elas já o reconheciam no escuro, ele também acabara por reconhecê-las, como se reconhece as gralhas em cio pousadas nas pereiras dos pomares. Ah! Esta juventude! Como sabia divertir-se, como se embriagava de prazeres! Às vezes, balançava a cabeça numa melancolia muda, ao desviar-se daquelas mulheres licenciosas e barulhentas, que gemiam alto demais no fundo das trevas. Só uma coisa o punha de mau humor: dois amantes tinham adquirido o péssimo costume de se abraçarem encostados à parede do seu quarto. Isso não o impedia de dormir, mas mexiam-se tanto que iam acabar derrubando a parede.

Todas as noites Mouque recebia a visita do seu amigo, o velho Boa-Morte, que regularmente dava um passeio antes do jantar. Os dois anciãos quase não falavam, apenas umas dez palavras durante a meia hora que passavam juntos. Mas alegrava-os estar um em companhia do outro, pensar no passado, ruminá-lo em comum, sem recorrer às palavras. Era sempre assim ali em Réquillart: sentavam-se lado a lado numa viga, diziam algo e depois partiam pelo caminho do sonho, os olhos postos.na terra. Com isso sentiam-se rejuvenescer. Em volta deles os rapazes levantavam as saias das namoradas, cochichavam entre risos e beijos, um cheiro quente de mulher subia por entre o frescor da grama machucada. Fora atrás da mina, quarenta e três anos antes, que o velho Boa-Morte possuíra sua mulher, uma operadora de vagonetes tão magra que ele tinha que colocá-la sobre um vagonete para poder beijá-la à vontade. Ah, os bons tempos! E os

dois velhos, balançando a cabeça, separavam-se enfim, muitas vezes sem se despedirem.

Naquela noite, porém, no momento em que Etienne chegava, o velho Boa-Morte levantava-se da viga para voltar ao conjunto habitacional, e estava dizendo a Mouque:

— Boa noite, meu velho... Escuta aqui, conheceste a Ruiva? Mouque ficou um momento calado, deu de ombros e disse, entrando em casa:

— Boa noite, boa noite, meu velho.

Etienne, por seu turno, sentou-se na viga. Estava cada vez mais triste, sem saber por quê. O velho que via pelas costas fazia que se lembrasse da sua chegada pela manhã, do borbotão de palavras que o vento enervante arrancara daquele homem soturno. Quanta miséria! E todas essas moças esfalfadas, tolas bastante para, à noite, ainda se porem a fazer filhos, mais carne para trabalhar e sofrer! Isso não terminaria nunca se continuassem assim, a produzir mortos de fome. Antes, não seria melhor que arrolhassem o ventre e juntassem as pernas ante a aproximação da desgraça? Talvez a causa de todos esses pensamentos lúgubres e confusos fosse proveniente da sua solidão entediada, enquanto os outros, àquela hora, andavam aos pares, gozando a vida. A temperatura abafada pesava sobre ele, gotas de chuva ainda raras começaram a cair-lhe nas mãos febris. Não havia dúvida, todas elas se entregavam ao prazer, era uma compulsão.

E como Etienne permanecesse sentado, imóvel no escuro, um casal que vinha de Montsou roçou nele sem contudo notá-lo e embrenhou-se no terreno baldio de Réquillart. A moça, certamente uma virgem, debatia-se, resistia, suplicava em voz baixa; o rapaz, silencioso, implacável, empurrava-a para as trevas de um canto do galpão que ainda estava em pé e onde havia um monte de cordame bolorento. A dupla era Catherine e o espadaúdo Chaval, que Etienne não reconhecera ao passar, mas seguira com o olhar, esperando pelo fim da história, presa de uma sensualidade que mudava o curso de suas reflexões. Para que intervir? Quando elas dizem não, é porque gostam de apanhar antes do ato.

Ao deixar o conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante, Catherine tinha ido a Montsou pela estrada. Desde os dez anos, desde que ganhava a vida na mina, andava pela região sempre sozinha, na mais completa liberdade, típica das famílias dos carvoeiros. E, se chegara aos quinze anos sem ter sido possuída, era graças ao tardio acordar da sua puberdade, cuja eclosão ainda aguardava. Ao passar pelos depósitos da companhia, atravessou a rua e entrou na casa de uma lavadeira, onde tinha certeza de encontrar a filha de Mouque, pois sabia que esta sempre estava ali, entre mulheres que, da manhã à noite, ofereciam rodadas de café umas às outras. Desta vez, no entanto, Catherine calculara mal; realmente a outra estava na casa da lavadeira, mas acabava de pagar a sua rodada e não pôde emprestar-lhe os dez soldos prometidos. Para consolá-la, em vão lhe ofereceram um copo de café quentinho. Ela nem mesmo quis que a companheira pedisse o dinheiro a outra mulher. Veio-lhe à cabeça uma idéia de economia, uma espécie de temor supersticioso, a certeza de que, se comprasse a tal fita agora, ela lhe traria desgraça.

Apressou-se em tomar o caminho de volta e já passava pelas duas últimas casas de Montsou quando um homem parado na porta do Café Piquette a chamou.

— Ei, Catherine, aonde vais com tanta pressa?

Era Chaval. Sentiu-se contrariada, não porque ele lhe desagradasse, mas porque não estava com vontade de conversar.

— Vem, convido-te a beber alguma coisa. Um copinho de licor, queres?

Delicadamente, agradeceu: estava anoitecendo, esperavam-na em casa. Ele avançou para o meio da rua e começou a falar em voz baixa, suplicante. Há muito tempo que planejara fazê-la subir ao seu quarto, no primeiro andar do Café Piquette, uma bela peça com cama de casal. Então, tinha medo dele? Por que dizia sempre não? Ela, inocente, ria, dizendo que iria na semana em que as crianças não vingassem. Em seguida, pulando de um assunto a outro, falou, não se sabe como, da fita azul que não pudera comprar.

— Mas eu vou dar-te uma! — exclamou ele.

Ela corou, sentindo que devia dizer não, outra vez, mas no fundo aguilhoada pelo enorme desejo de obter sua fita. Voltou-lhe a idéia de um empréstimo, terminou por aceitar, mas com a condição de pagar-lhe mais tarde a importância gasta. Isso foi motivo para outra brincadeira: sim, devolveria o dinheiro, mas só se não dormisse com ele. Nesse ponto sobreveio outra dificuldade, ele falou em ir ao Maigrat. 

— Não, ao Maigrat não, mamãe não quer.

— Ora, ora! É preciso dizer aonde foste? Maigrat tem as fitas mais bonitas de Montsou.

Quando Maigrat viu entrar na sua loja aquele par, mais parecendo dois namorados comprando o presente de núpcias, ficou muito vermelho e mostrou as peças de fita azul com a raiva de um homem desprezado. Depois de atendê-los, pôs-se à porta para observar os dois jovens afastando-se no crepúsculo. Nisto surgiu sua mulher, que, com

voz tímida, pediu-lhe um esclarecimento; descarregou seu ódio sobre ela, injuriou-a, gritou que um dia todos esses ingratos haviam de se arrepender quando os tivesse aos pés, lambendo-lhe as botas.

Catherine, acompanhada de Chaval, alto e forte, seguiu pela estrada. Caminhavam lado a lado, ele de braços balançando mas empurrando-a levemente com o quadril, dirigindo-a sub-repticiamente. De repente ela notou que ele a fizera sair da estrada e se embrenhavam juntos pelo estreito caminho que ia terminar em Réquillart. Não teve tempo de zangar-se: ele já a agarrava pela cintura, aturdindo-a com uma torrente de palavras carinhosas. Que boba era de ter medo! Que mal podia ele fazer a uma Coisinha mimosa daquela, mais macia do que a seda, tão tenrinha que poderia comê-la? Ela sentia arrepios por todo o corpo, sentindo a respiração do homem no pescoço. Arrebatada, não encontrava resposta. Uma coisa era verdade, ele parecia amá-la. Ainda sábado à noite, depois de apagar a vela, interrogara-se sobre o que aconteceria se ele a agarrasse assim; depois, dormindo, sonhara que, frouxa de prazer, não dizia mais não. Então por que, hoje, à mesma idéia, sentia repugnância e desgosto? Enquanto ele lhe fazia cócegas na nuca com o bigode, e com tal jeito que ela fechava os olhos, a sombra de um outro homem, do rapaz que conhecera pela manhã, voltejava no escuro de suas pálpebras cerradas.

Quando Catherine olhou em volta, deu-se conta de que Chaval a conduzira para os escombros de Réquillart. Recuou fremindo ante as trevas do galpão desmoronado.

— Não, não! Pelo amor de Deus, deixa-me ir embora!

O medo do macho enlouquecia-a, esse medo que retesa os músculos das mulheres — o instinto de defesa —, mesmo quando estão incendiadas de desejo e sentem a aproximação triunfante do homem. Sua virgindade, que, aliás, já sabia tudo, aterrorizava-se sob a ameaça de um golpe, de um ferimento cuja dor futura temia.

— Não, não, já disse que não quero! Tu sabes que ainda sou muito moça. Juro! Mais tarde sim, quando eu estiver um pouco mais madura...

Ele respondeu com um rosnar surdo:

—  Boba! assim ainda é melhor... não há perigo algum.

E não falou mais. Agarrou-a com força, atirando-a para dentro do galpão. Ela caiu de costas sobre as cordas velhas, não fez mais qualquer gesto de defesa e submeteu-se ao macho, sem ter idade para isso, com a humildade hereditária com que, desde a infância, entregam-se, mesmo ao ar livre, as moças da sua raça. Seu balbuciar assustado extinguiu-se, não se ouvia mais que a respiração ofegante do homem.

Etienne escutou tudo sem se mover. Mais uma que entrava na roda! E, agora que já assistira à comédia, levantou-se invadido pelo mal-estar, por uma espécie de excitação ciumenta onde predominava a cólera. Não se deu mais ao incômodo de ser discreto, saltou por cima das vigas: aqueles dois estavam ocupados demais para o notarem. Mas ficou surpreso ao voltar-se, depois de ter caminhado uns cem passos pela estrada, vendo que já estavam de pé e pareciam, como ele, dirigir-se ao conjunto habitacional. O homem abraçara novamente a moça pela cintura, cingindo-a com ar de reconhecimento, falando-lhe sempre ao ouvido. Era ela quem parecia apressada, querendo voltar logo para casa, com gestos zangados, sobretudo pela demora.

Etienne começou então a ser espicaçado pelo desejo de ver seus rostos. Mas isso era idiota! Apressou o passo para não sucumbir à tentação. Mas seus pés se tornavam lentos por si mesmos; ele acabou, ao passar pelo primeiro lampião de rua, por se esconder na sombra. Ficou paralisado de espanto ao reconhecer de passagem Catherine e Chaval. Chegou a não acreditar: seria mesmo ela essa mocinha de vestido azul-escuro e touca? Essa seria o garotinho que vira pela manhã de calças e lenço de pano grosseiro amarrado à cabeça? Eis por que ao passar, roçando-o, não a reconhecera... Não, não duvidava mais, eram bem os seus olhos, aquela limpidez esverdeada de água de fonte, clara e profunda... Que devassa! Sentiu um desesperado desejo de vingar-se dela, sem outro motivo que o desprezo. Ah! como estava horrível com aquelas roupas de mulher!

Catherine e Chaval tinham passado lentamente. Não sabiam que estavam sendo espiados, ele puxava-a muito moça. Juro! Mais tarde sim, quando eu estiver um pouco mais madura... para si, beijando-a no pescoço, ela começava a entregar-se novamente às carícias que lhe davam cócegas.                 

Tendo ficado para trás, Etienne foi obrigado a segui-los, irritado por tê-los à sua frente, obrigado a assistir àquelas cenas que o exasperavam. Então era verdade o que ela dissera de manhã: ainda não tinha amante. Apesar de ela ter jurado, não acreditara, mas assim mesmo privara-se de possuí-la para não fazer papel de canalha, como o outro. E agora ela acabava de ganhar um amante bem nas suas barbas! E ele, que chegara a ponto de divertir-se, de se excitar, vendo-os! Parecia que ia ficar louco, cerrava os punhos, sua vontade era destroçar aquele homem, numa dessas vontades de matar que o cegavam.

O passeio durou uma meia hora. Ao aproximar-se da Voreux, o casal caminhou ainda mais vagarosamente, parando duas vezes à beira do canal, três vezes ao longo do aterro, muito alegre, fazendo gracinhas um para o outro. Etienne também tinha de parar à medida que os outros dois o faziam, com receio de ser visto. Esforçava-se para não ter mais aquele desgosto brutal, sabia agora que devia tratar as moças com delicadeza. Depois de ter passado pela Voreux, podendo enfim ir jantar no Rasseneur, continuou a segui-los até o conjunto habitacional e ali ficou, em pé, escondido no escuro, esperando que Chaval deixasse Catherine entrar em casa. Quando esteve seguro de que já se haviam separado, continuou a caminhar para a frente, estrada de Marchiennes afora, cego, sem pensar em nada, demasiadamente sufocado e triste para encerrar-se num quarto.

Só uma hora mais tarde, lá pelas nove, voltou a atravessar o conjunto habitacional, repetindo-se que era preciso comer e dormir se queria estar de pé às quatro da manhã. O lugarejo dormia engolfado na noite. Nenhum clarão varava as persianas fechadas. O extenso casario fazia uma reta, num sono pesado de caserna que ressona. De repente, um gato correu entre os jardins vazios. Era o fim do dia, com o aniquilamento dos trabalhadores que caíam da mesa para a cama, embrutecidos pelo cansaço e pela comida.

No estabelecimento de Rasseneur a sala estava iluminada e um mecânico e dois operários do turno do dia bebiam cerveja. Antes de entrar, Etienne parou para lançar um último olhar às trevas. Encontrou a mesma negra imensidão da madrugada em que chegara, trazido pela ventania. Diante dele ali estava a Voreux, agachada com seu ar de fera ávida, dissimulada, entrevista apenas através da luz baça de alguns lampiões. As três fogueiras do aterro refulgiam no ar, iguais a luas sanguinolentas, ressaltando por momentos os perfis descomunais do velho Boa-Morte e do seu cavalo baio. Para além, na planície rasa, tudo estava submerso em sombras: Montsou, Marchiennes, a floresta de Vandame, o vasto mar de beterrabas e trigo. Como faróis longínquos furando a treva permaneciam apenas as chamas azuis dos altos-fornos e as labaredas vermelhas das fornalhas de coque. E a noite avançava, agora acompanhada de uma chuva lenta e contínua que submergia esse nada no seu tamborilar monótono. Mas outro ruído persistia, a respiração grossa e compassada da bomba de sucção, que resfolegava dia e noite.

 

No dia seguinte, e nos que vieram depois, Etienne continuou trabalhando na mina. Ia-se acostumando, regulava sua existência pelo trabalho e pelos novos hábitos que, a princípio, tinham parecido tão duros. Uma única aventura quebrou a monotonia da primeira quinzena, uma febre passageira que o reteve na cama com os membros alquebrados, a cabeça fervendo, povoada de incoerências, uma espécie de semidelírio no qual empurrava seu vagonete para o fundo de uma passagem muito estreita onde ficava entalado Era simplesmente a estafa do aprendizado, um excesso de fadiga de que se restabeleceu logo.

E assim passaram dias, semanas, meses. Agora, já na rotina levantava-se às três horas, bebia café e carregava consigo o sanduíche duplo que a mulher de Rasseneur preparava na véspera. Regularmente, indo para a mina, encontrava o velho Boa-Morte, que deixava o trabalho, e ao sair, de tarde, cruzava com Bouteloup, que iniciava seu turno. Como os outros, tinha o seu pano para amarrar na cabeça suas calças e jaqueta de trabalho, tiritava e aquecia as costas no fogão do vestiário. Depois vinha a espera, descalço, na recepção entrecortada por violentas correntes de ar. Mas a máquina de grossos membros de aço enfeitados de cobre, luzindo lá em cima no escuro, não o atemorizava mais, nem os cabos a pique voltejando como asas negras e silentes de pássaro noturno, nem os elevadores emergindo e mergulhando sem descanso em meio ao barulhão dos sinais, das ordens bradadas, dos vagonetes estremecendo o chão de ferro. Sua lâmpada iluminava mal, o maldito lanterneiro seguramente não a limpara... Ele só despertava realmente quando o jovem Mouque os empurrava para dentro do elevador com grande estardalhaço dando palmadas retumbantes nos traseiros das moças. O ascensor desprendia-se, caindo como uma pedra num poço, sem que ele sequer virasse a cabeça para ver a luz desaparecendo. Jamais pensava na possibilidade de uma queda, sentia-se em casa à medida que afundava nas trevas sob a chuvada violenta. Embaixo, na expedição, assim que Pierron abria as portas do elevador com seu ar hipócrita de humildade, era sempre o mesmo tropel de rebanho, os grupos partindo para os seus filões a passo arrastado. Agora, ele já conhecia melhor as galerias da mina do que as

ruas de Montsou, sabia onde tinha que dobrar, onde abaixar-se ou evitar mais adiante uma poça. Habituara-se tanto àqueles dois quilômetros subterrâneos que poderia percorrê-los sem lanterna com as mãos nos bolsos. E todos os dias eram os mesmos encontros, um contramestre iluminando na passagem o rosto dos operários, o velho Mouque puxando um cavalo, Bébert guiando Batalha aos relinchos, Jeanlin correndo atrás dos vagonetes e fechando as portas de ventilação, a rotunda filha de Mouque e a magricela Lydie empurrando seus carros...

Com o tempo, Etienne começou a acostumar-se à umidade e ao abafamento do filão onde trabalhava. O respiradouro já lhe parecia fácil de subir, como se tivesse encolhido e pudesse agora passar por fendas onde antes não teria ousado enfiar a mão. Respirava sem dificuldade a poeira do carvão, via muito bem no escuro, suava tranqüilamente, adaptado à sensação das roupas molhadas colando-se ao corpo da manhã à noite. E mais, já não gastava inutilmente suas forças, adquirira rapidamente uma destreza que espantava os companheiros. Ao cabo de três semanas era citado entre os bons operadores de vagonetes da mina: ninguém melhor do que ele rodava seu vagonete até o plano inclinado embalando-o a seguir com tanta correção. Sua pequena estatura lhe permitia entrar em qualquer lugar, seus braços, apesar de brancos e finos como de mulher, pareciam de ferro sob a delicadeza da pele, tanta força punham no trabalho. Nunca se queixava, sem dúvida por orgulho, mesmo quando já não podia mais de tanto cansaço. Acusavam-no apenas de não saber brincar, ficava logo todo eriçado assim que alguém lhe fazia uma piada. Com o tempo acabou sendo aceito e olhado como um verdadeiro mineiro, escravizado pelo hábito que o reduzia um pouco cada dia à função de máquina.    

Maheu, sobretudo, tomara-se de amizade por Etienne, porque respeitava o trabalho bem feito. E, assim como os outros, ele sentia que esse rapaz tinha uma instrução superior à sua: via-o lendo, escrevendo, rabiscando planos, ouvia-o falar de coisas das quais ignorava até a existência. Isso não era de admirar, os carvoeiros são homens rudes, têm a cabeça mais dura que os mecânicos, mas o que o surpreendia era a coragem daquele rapazola, a maneira intrépida com que se atirava ao carvão para não morrer de fome. Era o primeiro operário de ocasião que se aclimatava tão rapidamente. Assim, quando o corte estava atrasado e não queria deslocar um britador, encarregava o rapaz do estaqueamento, certo da limpeza e solidez do trabalho. Os chefes estavam sempre em cima dele, azucrinando-o com esse maldito problema do revestimento, temia ver aparecer a qualquer momento o engenheiro Négrel, seguido de Dansaert, gritando, discutindo, fazendo recomeçar tudo de novo. Notara que o trabalho de estaqueamento do seu operador de vagonetes satisfazia muito mais a esses senhores que o dos outros, apesar dos seus ares de nunca estarem contentes e de repetirem que a companhia, mais dia menos dia, tomaria uma atitude radical. As coisas estavam nesse pé, um descontentamento surdo fermentava na mina, o próprio Maheu, tão calmo, andava de punhos cerrados.

No começo houvera muita rivalidade entre Zacharie e Etienne. Uma noite quase chegaram a vias de fato, mas o primeiro, de boa índole e disposto apenas a gozar a vida, voltou logo às boas diante do oferecimento de uma cerveja, vendo-se obrigado a reconhecer a superioridade do forasteiro. Até Levaque desanuviara o semblante e conversava sobre política com o operador de vagonetes, que, segundo ele, era cheio de idéias. Entre os homens da empreitada, o único que Etienne não tragava era o latagão do Chaval; não que tivessem discutido, ao contrário, eram até bons camaradas, mas quando brincavam um com o outro notava-se a divergência fundamental que os separava, seus olhos eram como labaredas. Catherine, entre eles, voltara ao seu trem de vida de moça cansada e resignada, vergando o dorso empurrando seu vagonete, sempre amável com seu companheiro de transporte, que a ajudava quando podia, e por outro lado submissa aos desejos do amante, de quem recebia abertamente as carícias. Era uma situação aceita, um casal de fato sobre o qual a própria família fechava os olhos, e isso a tal ponto que Chaval levava a operadora de vagonetes para trás do aterro todas as noites e depois a conduzia até a porta de casa, beijando-a uma última vez diante de todo o conjunto habitacional.

Etienne, que já se acreditava totalmente resignado, provocava-a falando dos seus passeios noturnos, soltando palavrões de brincadeira, como fazem rapazes e moças no fundo dos veios. Ela respondia-lhe no mesmo tom, dizia, por fanfarronice, o que o amante lhe tinha feito, mas trêmula e pálida ao encontrar os olhos do rapaz nos seus. Desviavam então o rosto, ficavam às vezes uma hora sem dizer palavra, como que se odiando por coisas que guardavam dentro de si e sobre as quais não conseguiam explicar-se.

Chegara a primavera. Um dia, saindo do poço, Etienne recebera no rosto a aragem tépida de abril, um cheiro bom de terra nova, de verdura tenra e ar puro. E agora, a cada saída do poço, notava que a primavera era cada vez mais perfumada e tépida após as suas dez horas de trabalho no eterno inverno da mina, no meio das trevas úmidas que nenhum verão conseguia dissipar. Os dias eram mais longos; em maio, desceu ao poço ao nascer do sol, com um céu rosicler aspergindo sobre a Voreux uma poeira de aurora à qual se misturava, subindo, o branco vapor dos escapes... Já não se tiritava mais, um sopro tépido vinha dos confins da planície e, lá no alto, as cotovias cantavam. Depois, às três horas, havia o deslumbramento do sol abrasador que incendiava o horizonte e fazia dardejar os tijolos sob a crosta de carvão. Em junho, os trigais já crescidos eram de um verde-azulado que se destacava sobre o verde-escuro das plantações de beterraba; um mar imenso, ondulando à menor aragem, que ele via estender-se e crescer de um dia para outro e o surpreendia às vezes, quando, ao sair da mina, pressentia-o ainda mais túrgido de verdura do que pela manhã. Os choupos do canal empenachavam-se de folhas, ervas invadiam o aterro, flores cobriam os prados, uma vida completa germinava, brotava dessa terra sob a qual, lá no fundo, ele gemia de miséria e cansaço.

Agora, quando ao anoitecer Etienne fazia o seu passeio, não era mais atrás do aterro que assustava os namorados. Seguia na esteira deles pelos trigais e ali descobria seus ninhos de aves lascivas sob o farfalhar das espigas amadurecendo e das grandes papoulas vermelhas. Para lá voltaram Zacharie e Philomène, como um casal torna ao lar. A velha Queimada, sempre nos calcanhares de Lydie, ia ali desaninhá-la a todo instante — a ela e a Jeanlin — tão profundamente entrincheirados que para fazê-los abalar tinha de pisá-los. Quanto à filha de Mouque, qualquer lugar servia; não se podia atravessar uma plantação sem ver a cabeça dela mergulhando, de pernas para o alto, em decúbito dorsal. Mas todos esses podiam fazer o que quisessem, não se importava; para Etienne, os únicos que achava imorais eram Catherine e Chaval.

Duas vezes os vira quando, ao aproximar-se, esconderam-se num trigal cujas hastes logo ficaram imóveis, como mortas. Outra vez, seguindo por uma senda estreita, os olhos claros de Catherine surgiram ao nível do trigo, desaparecendo em seguida. Nessas ocasiões, a planície imensa parecia-lhe pequena demais, preferia passar sua noite em casa de Rasseneur, no Avantage.

— Sra. Rasseneur, uma cerveja, por favor... Não, hoje não saio, estou com as pernas alquebradas.

E voltando-se para um camarada que tinha por hábito sentar à mesa do fundo, com a cabeça encostada na parede, perguntava:

— Aceitas uma, Suvarin?

— Obrigado, não, não quero.

Etienne travara conhecimento com Suvarin porque ambos moravam ali. Era um mecânico da Voreux que ocupava no primeiro andar um quarto mobiliado, vizinho ao seu.

Devia ter uns trinta anos, era magro, louro, de fisionomia fina emoldurada por vasta cabeleira e barba rala. Seus dentes brancos e pontiagudos, sua boca e nariz delicados e o corado das faces davam-lhe um aspecto de mulher, um ar de doçura teimosa que o reflexo cinza dos olhos de aço percorria em cintilações selvagens. No seu quarto de operário pobre tinha apenas uma caixa cheia de papéis e livros. Era russo, nunca falava de si, não se importava com as lendas que corriam a seu respeito. Os mineiros, muito desconfiados com estrangeiros, pressentindo-o de outra classe devido a suas mãos pequenas, de burguês, a princípio tinham imaginado uma aventura, um assassinato de cujo castigo fugia. Depois, como ele se mostrasse sempre tão fraternal com todos, distribuindo à garotada do conjunto habitacional todas as moedas que trazia no bolso, passaram a aceitá-lo, tranqüilizados pelo boato corrente de que era um refugiado político, boato não confirmado, mas em que encontravam uma desculpa, mesmo para o crime, adotando-o assim como um companheiro de sofrimentos. 

Nas primeiras semanas, Etienne achara-o extremamente reservado, não tendo conhecido senão mais tarde toda a sua história. Suvarin era o último rebento de uma família nobre do governo de Tula. Em São Petersburgo, onde estudava medicina, a paixão socialista que inflamava então toda a juventude russa convencera-o a aprender um ofício manual, o de mecânico, para estar assim junto ao povo, conhecê-lo e ajudá-lo como irmão. E agora era desse ofício que vivia, depois de ter fugido, em seguida, a um atentado malogrado contra a vida do imperador. Durante um mês vivera na adega de um fruteiro, cavando uma galeria por baixo da rua, carregando bombas, sob a contínua ameaça de voar pelos ares com a casa. Renegado pela família, sem dinheiro, posto como estrangeiro no índex das indústrias francesas, que viam nele um espião, morria de fome quando finalmente a companhia de Montsou o empregara num momento de aperto. Havia um ano que trabalhava ali como bom operário, sóbrio, silencioso, uma semana no turno do dia, outra semana no da noite, tão pontual que os chefes o citavam como exemplo.

—  Como é, nunca tens sede? — perguntou-lhe Etienne, rindo.

Ele respondeu com voz macia, quase sem sotaque:

— Só quando como...

Etienne gostava de brincar com ele a respeito das mulheres; jurava tê-lo visto com uma operadora de vagonetes nos trigais para os lados dos Bas-de-Soie. O russo então encolhia os ombros, numa indiferença tranqüila. Uma operadora de vagonetes, para quê? A mulher, para ele, era como um rapaz, um camarada, quando possuía a coragem e a fraternidade do homem. Não, não permitia que seu coração sucumbisse a tais fraquezas.

Mulher, amigo... não queria união alguma. Libertara-se de todos os laços com o seu próprio sangue e com o sangue dos outros.

Todas as noites, pelas nove horas, quando a taberna se esvaziava, Etienne punha-se a conversar com Suvarin. Enquanto bebia sua cerveja aos golinhos, o mecânico fumava um cigarro atrás do outro, os dedos delicados manchados de tabaco. Seus olhos sonhadores de místico seguiam a fumaça que se evolava; sua mão esquerda, hesitante e nervosa, tateava, procurando algo no vazio. E, como era seu hábito, acabava por instalar nos joelhos uma coelha caseira, uma eterna mãe sempre prenhe, que vivia solta pelos quartos. Esta coelha, que ele apelidara de Polônia, adorava-o, farejava-lhe as calças, erguia-se nas patas traseiras, arranhava-o até ele a tomar ao colo, como a uma criança. Depois, aconchegada contra ele, de orelhas caídas, fechava os olhos, enquanto o homem, incansável, alisava a seda acinzentada do seu pêlo com um gesto inconsciente, repousado pela maciez tépida e palpitante do animal.

— Sabem? — disse Etienne uma noite — recebi uma carta de Pluchart.

Apenas Rasseneur estava presente. O último freguês partira para o conjunto habitacional que se preparava para dormir.

— Sim? — exclamou o taberneiro, em pé diante dos seus dois hóspedes. — E que diz?

Havia dois meses que Etienne mantinha correspondência assídua com o mecânico de Lille, ao qual tivera a idéia de comunicar que trabalhava em Montsou, e agora o catequizava, impressionado pela propaganda que ele poderia fazer entre os mineiros.

— Diz que a sociedade da qual já falamos vai indo muito bem. Parece que as adesões estão chovendo de toda parte.

— E tu, que achas dessa sociedade? — perguntou Rasseneur a Suvarin.

Este, que coçava ternamente a cabeça de Polônia, exalou uma baforada de fumaça e murmurou com seu jeito tranqüilo:

— Mais uma bobagem.

Etienne, no entanto, estava muito animado. Uma predisposição para a revolta o impelia à luta do trabalho contra o capital, numa primeira ilusão, que era produto da ignorância. Tratava-se da Associação Internacional dos Trabalhadores, da famosa Internacional que acabava de ser criada em Londres. Não havia nisso um esforço maravilhoso, uma campanha onde a justiça ia enfim triunfar? O fim das fronteiras, os trabalhadores do mundo inteiro levantando-se, unindo-se para assegurar ao operário o pão que ganha. E que organização simples e grandiosa! Embaixo a seção que representa

a comuna, em seguida a federação que agrupa as seções de uma mesma província, depois a nação e por fim, no topo, a humanidade encarnada num conselho geral onde cada nação está representada por um secretário correspondente. Antes de seis meses a terra seria conquistada e ditar-se-iam as leis aos patrões se eles se fizessem de espertos.

— Bobagens! — repetiu Suvarin. — Esse Karl Marx de vocês ainda acredita que se deve deixar agir as forças naturais. Nada de política, nada de conspiração, não é isso? Tudo feito abertamente, luta só pela subida dos salários... Não quero ter nada que ver com essa evolução de vocês. Incendeiem as cidades, ceifem os povos, arrasem tudo, e, quando não sobrar mais nada deste mundo podre, talvez nasça outro melhor dos escombros.

Etienne pôs-se a rir. Nem sempre prestava atenção às palavras do companheiro; essa história de destruição parecia-lhe uma atitude para impressionar. Rasseneur, mais prático, com um bom senso de homem de negócios, nem sequer se zangou. Quis apenas saber em que pé andavam as coisas.            

— Então vais tentar criar uma seção em Montsou? 

Era esse o desejo de Pluchart, que estava de secretário da Federação do Norte. Insistia ele particularmente sobre os serviços que a associação prestaria aos mineiros, se um dia entrassem em greve Etienne, por seu lado, acreditava numa greve iminente: a questão dos revestimentos ia acabar mal; mais uma exigência da companhia e todas as galerias se revoltariam.

— O problema é a cotização — declarou Rasseneur em tom judicioso. — Cinqüenta cêntimos por ano para o fundo comum e dois francos para a seção parece que não são nada, mas aposto que muitos se recusarão a dá-los.

— Tanto mais — acrescentou Etienne — que se devia criar aqui uma caixa de previdência, que seria transformada em caixa de resistência no momento oportuno. Chegou o momento de pensar nessas coisas. Por mim, estou pronto para acompanhar os outros.

Houve um silêncio. O candeeiro a querosene fumegava sobre o balcão. Pela porta aberta ouvia-se distintamente a pá de um foguista da Voreux abastecendo uma fornalha da máquina.

— Está tudo tão caro! — disse a mulher de Rasseneur, que acabava de entrar e escutava com ar sombrio, parecendo mais alta dentro do seu eterno vestido preto. — Vocês não acreditariam se eu dissesse que paguei vinte e dois soldos pelos ovos. A coisa não pode continuar assim, tem de explodir.

Desta vez os três homens estiveram de acordo. Cada um disse o que pensava com uma voz desolada e daí pularam para as lamentações. O operário não podia agüentar mais; a revolução só servira para agravar-lhe as misérias; a partir de 89 os burgueses é que se enchiam, e tão vorazmente que nem deixavam um resto no fundo do prato para o trabalhador lamber. Quem poderia demonstrar que os trabalhadores tinham tido um quinhão razoável no extraordinário aumento da riqueza e bem-estar dos últimos cem anos? Zombaram deles ao declará-los livres. Livres para morrerem de fome, isso sim, e do que, aliás, não se privavam. Não dava pão a ninguém votar em malandros que, eleitos, só queriam locupletar-se, pensando tanto nos miseráveis como nas suas botas velhas. Era preciso terminar com isso, de uma maneira ou de outra: ou por bem, por meio de leis, num acordo amigável, ou por mal, como selvagens, queimando tudo e devorando-se uns aos outros. Se isso não fosse feito agora, pela atual geração, seus filhos com certeza o fariam, já que o século não podia terminar sem outra revolução, desta vez a dos operários, uma revolução devastadora que varreria a sociedade de alto a baixo para reconstruí-la mais decente e justa.      

— E preciso haver uma explosão — repetiu energicamente a Sra Rasseneur.

— Sim, sim — exclamaram os três —, é preciso haver uma explosão.

Suvarin, afagando as orelhas de Polônia, que estremecia o focinho de prazer, disse a meia voz, olhar vago, como para si mesmo:

— Aumentar o salário, como? Ele está fixado pela lei de bronze na menor soma indispensável, exatamente no necessário para os operários poderem comer pão seco e fabricar filhos... Se cai muito baixo, os operários morrem e a procura de novos homens faz que ele suba. Se sobe muito alto, o excesso de oferta faz que baixe. É o equilíbrio das barrigas vazias, a condenação perpétua à escravidão da fome.

Quando o russo começava a discorrer dessa maneira, abordando assuntos de socialista instruído, Etienne e Rasseneur ficavam inquietos, perturbados pelas suas afirmações desoladoras, às quais não sabiam o que responder.

— Entendem? — continuou ele com sua calma habitual, encarando-os. — E preciso destruir tudo para que a fome não renasça. Sim! A anarquia, o nada, a terra banhada em sangue, purificada pelo incêndio! Em seguida veremos o que se pode fazer.

— O senhor tem razão — declarou a mulher de Rasseneur, que mesmo nas suas violências revolucionárias se mostrava de uma grande polidez.

Etienne, desesperado com a sua ignorância, não quis continuar a discussão. Levantou-se, dizendo:

— Vamos dormir. Tudo isso não impede que eu tenha de me levantar às três horas.

Suvarin cuspiu a ponta de cigarro colada aos lábios, tomou delicadamente a coelha grávida por baixo da barriga, colocando-a no chão, e Rasseneur fechou a casa. Separaram-se em silêncio, com os ouvidos zumbindo e a cabeça cheia de questões graves e excitantes.

Todas as noites era a mesma coisa, as mesmas conversas na sala vazia, em volta do copo de cerveja que Etienne levava uma hora para esvaziar. Certas idéias obscuras, ainda informes, agitavam-se e tomavam corpo dentro dele. Devorado sobretudo pela ânsia de saber, hesitara por muito tempo em pedir livros emprestados ao seu vizinho, que, infelizmente, quase só possuía obras alemãs e russas. Finalmente conseguira emprestado um livro francês sobre sociedades cooperativas, que, segundo Suvarin, eram outras besteiras, e lia regularmente um jornal que este recebia, Lê Combat, folha anarquista publicada em Genebra. De resto, apesar de suas relações cotidianas, continuava a achá-lo reservado e inacessível, com ar de quem está de passagem pela vida, sem interesse, sentimentos ou bens de qualquer gênero.

Nos primeiros dias de julho a situação de Etienne começou a melhorar. No meio dessa vida monótona, sempre a mesma, da mina, sobreveio um acidente: as seções do veio Guillaume acabavam de descobrir uma interferência na jazida, uma mudança de matéria na camada hulhífera que certamente prenunciava a aproximação de uma falha. E, com efeito, em breve encontraram essa falha, que os engenheiros, apesar do seu grande conhecimento do terreno, ainda ignoravam. O fato agitou a mina, só se falava do filão desaparecido, que, sem dúvida, continuava do outro lado da falha. Os velhos mineiros já andavam farejando, como bons cães lançados à caça da hulha. Mas, enquanto esperavam, as seções afetadas não podiam permanecer de braços cruzados e a companhia lançou editais anunciando que ia leiloar novas empreitadas.

Um dia, à saída, Maheu acompanhou Etienne e propôs-lhe o lugar de britador na sua empreitada, em substituição de Levaque, que passara a outra seção. O negócio já fora combinado com o capataz e o engenheiro, que se mostravam muito satisfeitos com o rapaz. Etienne aceitou essa rápida subida de posto, contente com a crescente estima que lhe dedicava Maheu.

Naquela noite voltaram juntos à mina para tomarem conhecimento dos editais. As seções leiloadas encontravam-se no veio Filonière, na galeria norte da Voreux. Pareciam pouco vantajosas; à medida que o rapaz lia as condições, o mineiro balançava a cabeça.

Na manhã seguinte, com efeito, quando desceram e foram inspecionar o veio, fez-lhe notar a grande distância da expedição, a natureza movediça do terreno, a pouca espessura e a dureza do carvão. Mas tinham de trabalhar, se queriam comer... Assim, no domingo seguinte, foram ao leilão que tinha lugar no vestiário e ao qual o engenheiro da mina, assistido pelo capataz, presidia, na ausência do engenheiro de divisão. Quinhentos a seiscentos mineiros ali estavam, em frente ao pequeno estrado armado a um canto. E as adjudicações eram feitas tão depressa que se ouvia apenas um surdo tumulto de vozes, de números gritados e logo abafados por outros números.

Por um momento, Maheu temeu não poder obter uma das quarenta empreitadas oferecidas pela companhia. Todos os concorrentes baixavam os preços, inquietos com os boatos de crise, presas do pânico do desemprego. O engenheiro Négrel não se apressava diante dessa luta encarniçada, deixando descer os lances o mais baixo possível, enquanto Dansaert, desejoso de apressar ainda mais as coisas, mentia sobre a excelência das condições. Para que Maheu obtivesse seus cinqüenta metros de avanço, teve que lutar contra um camarada tão obstinado como ele. Cada um por sua vez foi diminuindo um cêntimo por vagonete e, se saiu vencedor, foi por ter baixado a tal ponto o salário que o contramestre Richomme, por trás dele, zangou-se entre dentes, cutucou-o diversas vezes, grunhindo que a esse preço não teria lucro algum.

Ao saírem, Etienne praguejava, e explodiu diante de Chaval, que voltava dos trigais em companhia de Catherine, flanando enquanto o sogro tratava dos negócios sérios.

— Raios os partam! — gritou ele. — Isso é um crime! O que eles querem é que o operário seja o algoz do seu próprio companheiro!

Chaval exaltou-se; se fosse ele, não teria baixado nunca! E Zacharie, que viera por curiosidade, declarou-se enojado. Etienne, porém, com um gesto de surda violência, fê-los calar.

— Isso vai terminar. Um dia nós seremos os donos.

Maheu, que permanecera silencioso desde o fim do leilão, pareceu despertar. Repetiu:

— Donos disto... Ah! vida desgraçada! Não vejo como.

 

Era o último domingo de julho, dia da festa do padroeiro de Montsou. No sábado, à noite, as boas donas de casa do conjunto habitacional tinham lavado as suas salas com grandes quantidades de água, um dilúvio de baldes jogados um atrás do outro nas lajes do chão e pelas paredes. E até agora os soalhos não tinham secado, apesar da grande quantidade de areia branca espargida, luxo dispendioso para aquelas bolsas de pobre. O dia, no entanto, anunciava-se muito quente, de céu pesado, prenunciando uma dessas tempestades que no verão costumam abater-se sobre os campos do norte, rasos e áridos até o infinito.       

Na casa dos Maheu, o domingo mudava a hora do despertar. O pai, a partir das cinco horas, não podia mais ficar na cama, e vestia-se para sair; os filhos dormiam até às nove, usufruindo as delícias de feriado. Naquele dia, Maheu foi fumar seu cachimbo no jardim, mas acabou voltando para dentro de casa para comer uma fatia de pão com manteiga enquanto esperava. E assim foi passando a manhã, meio desarvorado; consertou a tina que estava furada, colou por baixo do cuco um retrato do príncipe imperial que tinham dado aos garotos. Nesse momento os outros começaram a descer. O velho Boa-Morte levou uma cadeira para fora e sentou-se ao sol, a mãe e Alzire começaram logo a tratar da cozinha, Catherine surgiu, tendo à frente Lénore e Henri, que acabava de vestir. Deram onze horas, o cheiro de coelho com batata já enchia a casa, quando desceram finalmente Zacharie e Jeanlin, de olhos inchados de tanto dormir, e ainda bocejando.

O conjunto habitacional estava em polvorosa, preparando-se para a festa, esperando a hora do jantar, que queria ver chegar logo, para, em seguida, dirigir-se em turba para Montsou.

Bandos de crianças corriam em alvoroço, homens em mangas de camisa arrastavam chinelos, na lassidão característica dos dias de repouso. As janelas e as portas, abertas de par em par para deixar entrar o estio, davam para salas transbordantes de gestos e gritos, fervilhantes de famílias. E de um extremo a outro das fachadas pairava o aroma de coelho, a fragrância de cozinha rica que combatia naquele dia o persistente odor de cebola frita.

Os Maheu comeram ao meio-dia em ponto. Não faziam muita algazarra em comparação com os falatórios em curso nas outras portas, com as discussões de vizinhas que resultavam numa troca permanente de perguntas e respostas, de objetos emprestados e crianças postas para fora ou trazidas para dentro de casa a palmadas. Aliás, havia três semanas que mal falavam com os Levaque, por causa do casamento de Zacharie com Philomène. Os homens mantinham relações, mas as mulheres faziam que não se conheciam. Este caso servira para estreitar as relações com a mulher de Pierron. Esta, no entanto, partira muito cedo para passar o dia na casa de uma prima em Marchiennes, deixando o marido e Lydie aos cuidados da mãe. O fato foi motivo de muita maledicência; todos sabiam bem quem era a prima: tinha bigode e um emprego de capataz na Voreux. A mulher de Maheu declarou ser imoral deixar a família num dia de festa.

Além do coelho com batatas, o qual haviam cevado durante um mês na coelheira, os Maheu tinham sopa gorda e carne de vaca. 0 pagamento da quinzena fora justamente na véspera. Até já tinham esquecido o gosto de tais manjares. Mesmo na última Santa Bárbara, a festa dos mineiros, em que eles não trabalham por três dias, o coelho não fora nem tão gordo, nem tão tenro. Assim, aqueles dez pares de mandíbulas, desde a pequena Estelle, cujos dentes começavam a nascer, até o velho Boa-Morte, que perdia os seus, trabalhavam com tal afinco que até os ossos desapareciam. Como era bom comer carne! A pena é que a digeriam mal, tão raramente a viam. Devoraram tudo, não sobrou mais que um pouco de cozido para a noite. Comê-lo-iam com pão, se tivessem fome.

Jeanlin foi o primeiro a desaparecer. Bébert esperava-o atrás da escola. Vagaram por muito tempo antes de conseguir arrancar Lydie, que a Queimada queria reter em casa, decidida a não a deixar sair. Quando se deu conta da fuga da menina, começou a agitar seus braços descarnados, enquanto Pierron, farto de brigas, foi dar um passeio com a calma do marido que se diverte sem remorsos, sabendo que também sua mulher passa momentos agradáveis.

O velho Boa-Morte partiu em seguida e Maheu decidiu tomar ar, depois de ter perguntado à mulher se iria ter com ele. Não, respondeu ela, com as crianças seria uma trabalheira. Mas talvez sim... refletiria, acabariam por encontrar-se. Fora, Maheu hesitou por um instante antes de entrar na casa dos vizinhos para ver se Levaque já estava pronto. Lá estava Zacharie à espera de Philomène, e a mãe desta voltou a repisar no eterno assunto do casamento, gritou que estavam fazendo troça dela, que teria de procurar a futura sogra da filha e pedir uma explicação definitiva. Então era vida a sua, cuidando dos rebentos de uma filha solteira que só pensava nas farras com o amante?

Tendo Philomène tranqüilamente acabado de enfiar sua touca, Zacharie puxou-a para fora, repetindo que estava pronto a casar, se sua mãe permitisse. E, como Levaque já escapulira, Maheu disse à vizinha que fosse falar com sua mulher e apressou-se em sair. Bouteloup, que dava cabo de um pedaço de queijo, com os cotovelos na mesa, recusou obstinadamente a oferta amistosa de uma cerveja. Ficava em casa, como marido exemplar que era.

Pouco a pouco, o conjunto habitacional se esvaziava. Todos os homens estavam partindo, uns após outros, enquanto as moças, espreitando nas portas, seguiam para o lado oposto, pelo braço dos namorados. Assim que o pai dobrou a esquina da igreja, Catherine correu para Chaval, que a esperava, e tomaram juntos o caminho de Montsou. A mãe, sozinha no meio das crianças às soltas, não se sentia com forças para deixar a cadeira. Encheu outro copo de café escaldante e bebeu-o aos golinhos.

Agora só havia mulheres no conjunto habitacional, mulheres que se visitavam para beber as últimas gotas de café deixadas na cafeteira, em volta das mesas ainda quentes e engorduradas da refeição.

Maheu supunha que Levaque estava no Avantage e para lá se dirigiu, sem a menor pressa. Realmente, por trás da casa, no estreito jardim rodeado de uma sebe, Levaque jogava boliche com alguns camaradas. Em pé, sem jogar, os velhos Boa-Morte e Mouque seguiam tão interessados a bola que nem se lembravam de trocar palavra. Caía a prumo um sol abrasador, não havia mais que uma faixa de sombra ao longo da taberna, e ali se encontrava Etienne, sentado a uma mesa, bebendo sua cerveja, irritado porque Suvarin acabava de deixá-lo para subir ao quarto. Quase todos os domingos o mecânico se isolava, para escrever ou ler.

— Jogas? — perguntou Levaque a Maheu.

Este não quis. Tinha muito calor, estava morrendo de sede.

— Rasseneur! — gritou Etienne. — Uma cerveja, por favor. 

E voltando-se para Maheu:

— És meu convidado.

Agora todos já se tratavam por tu. Rasseneur não tinha pressa, chamaram-no três vezes, e foi a mulher quem trouxe a cerveja morna. O rapaz tinha baixado a voz para se queixar da casa: boa gente, sem dúvida, com boas idéias, mas a cerveja não valia nada e a sopa era detestável. Já teria mudado de pensão umas dez vezes se não fosse a caminhada que teria de dar até Montsou. Um dia desses procuraria um quarto numa casa do conjunto habitacional.

— Claro, claro — repetiu Maheu com sua voz lenta. — Estarias melhor com uma família.

De repente houve uma gritaria: Levaque derrubara todos os paus de uma só vez. Mouque e Boa-Morte, de olhos no chão, observavam um silêncio de profunda aprovação no meio do tumulto. A alegria de tal jogada transbordou em brincadeiras, sobretudo quando os jogadores perceberam por cima da cerca o rosto alegre da filha de Mouque. Já rondava por ali havia uma hora e ousara aproximar-se ao ouvir risos. 

— Como é isso? Andas sozinha? — gritou Levaque. — E os teus namorados?

— Mandei passear todos eles — respondeu a moça com um descaramento cheio de alegria. — Ando em busca de um.

Todos se ofereceram, gritaram-lhe gracejos picantes. Ela recusava com a cabeça, ria às gargalhadas, soltava piadas. Seu pai, impassível, assistia a tudo isso sem mesmo tirar os olhos dos paus derrubados.

— Ora, minha filha, já sabemos bem quem é que tu cobiças - disse Levaque olhando para Etienne. — Terás que pegá-lo à força.

Etienne riu. De fato, era atrás dele que a operadora de vagonetes andava. Apesar de divertir-se com a idéia, não queria, não sentia a menor atração pela moça.

Ela ficou ainda alguns minutos olhando fixamente para o rapaz por cima da cerca, retirando-se em seguida num passo lento, subitamente séria, como que oprimida pelo peso do sol.

Etienne retomou as explicações dadas a meia voz para Maheu sobre a necessidade da criação de uma caixa de previdência entre os mineiros de Montsou.

— Uma vez que a companhia afirma que nos dá liberdade — continuou ele —, nada temos a recear. Só temos as pensões que ela, aliás, distribui a seu bel-prazer com a desculpa de não fazer descontos. Pois bem, seria prudente criar, livre da interferência dela, uma associação de socorro mútuo, com a qual pudéssemos contar pelo menos nos casos de necessidade imediata.

Explicou tudo em detalhes, discutiu a organização, prometeu tomar todo o trabalho sobre si.

— Por mim aceito — disse enfim Maheu, convencido. — Os outros é que são o problema. Trata de convencê-los.

Levaque ganhara a partida; abandonaram o jogo para esvaziar os copos. Maheu não quis beber outro: talvez mais tarde, o dia ainda não terminara. Lembrou-se de Pierron; por onde andaria? Sem dúvida no café L'Enfant. Convenceu Etienne e Levaque a

irem com ele para Montsou no momento em que outro grupo invadia o boliche do Avantage.

A caminho, já na estrada de Montsou, tiveram de entrar no Casimir e no Progrès. Camaradas os chamavam lá de dentro, não havia como dizer não. De cada vez bebiam uma cerveja, ou duas, tinham a delicadeza de retribuir. Não ficavam mais do que dez minutos, trocavam quatro palavras e recomeçavam mais adiante, muito sensatos, conhecendo a cerveja, que podiam beber à vontade, sem outro inconveniente que o de uriná-la em seguida — à medida que a tomavam —, clara como água de fonte.

No café L'Enfant encontraram Pierron, que estava acabando eu segundo copo e, para não se recusar ao brinde, entornou um terceiro. Eles, claro está, também beberam. Agora, que eram quatro, saíram com o projeto de encontrar Zacharie, que deveria estar no Tison. A sala estava vazia e pediram cervejas, para beberem enquanto o esperavam. Em seguida lembraram-se do café Saint-Éloy, onde aceitaram uma rodada do contramestre Richomme. Daí por diante não mais procuraram pretextos para entrar em todos os cafés; queriam divertir-se.

—  Vamos ao Volcan! — disse de repente Levaque, que começava a pegar fogo.

Os outros hesitaram, riram e acabaram acompanhando o camarada por entre a balbúrdia crescente da festa popular. Na sala estreita e comprida do Volcan, sobre um estrado de tábuas erguido ao fundo, cinco cantoras, o rebotalho das prostitutas de Lille, desfilavam com gestos e decotes absurdos. E os fregueses davam dez soldos quando queriam possuir uma delas atrás das tábuas do estrado. Quem ia lá eram sobretudo operadores de vagonetes, ascensoristas, até mineiros de catorze anos, toda a rapaziada das minas, e que bebiam mais genebra que cerveja. Alguns mineiros velhos também se arriscavam, os maridos que gostavam de dar as suas escapadas dos conjuntos habitacionais, aqueles cujos lares viviam imundos.

Assim que conseguiram uma pequena mesa e se sentaram, Etienne apoderou-se de Levaque para lhe explicar o seu plano de uma caixa de previdência. Tinha a obstinação dos neófitos que se outorgam uma missão.

— Cada membro — começou ele — poderia muito bem dar vinte soldos por mês. Com esses vinte soldos acumulados teríamos em quatro ou cinco anos um pecúlio. O dinheiro faz a força, não é isso? Em qualquer ocasião... Hem? que dizes disto?

— Não digo que não — respondeu Levaque distraído. — Depois falaremos.

Uma loura enorme o excitava; insistiu em ficar quando Maheu e Pierron, após terem bebido suas cervejas, quiseram partir sem esperar por outra canção.

Na rua, Etienne, que saíra com eles, encontrou novamente a filha de Mouque, que parecia tê-los seguido. Continuava a fitá-lo, rindo sempre, de coração aberto, como se estivesse dizendo: Queres?" O rapaz gracejou e deu de ombros. Ela fez então um gesto de cólera e perdeu-se na multidão.

— Onde está Chaval? — perguntou Pierron.

— É verdade, onde andará? — disse Maheu. — Certamente no Piquette... Vamos até lá.

Quando os três chegavam ao café Piquette, um ruído de briga fez que parassem à porta. Era Zacharie, que ameaçava com o punho um vendedor de pregos belga, atarracado e fleumático. Por sua vez, Chaval, mãos nos bolsos, observava.

— Vejam, lá está Chaval — falou tranqüilamente Maheu. — Catherine também.

Havia cinco horas que a operadora de vagonetes e o namorado passeavam pela festa do padroeiro da cidade. Ao longo da estrada de Montsou, dessa rua larga de casas baixas pintadas de cores berrantes, descendo em ziguezague, havia uma multidão locomovendo-se ao sol, igual a um carreiro de formigas perdido na nudez da planície rasa. A eterna lama negra tinha secado; subia uma poeira preta que pairava como uma nuvem de tempestade. Dos dois lados, as tabernas estavam apinhadas de gente, e tinham de colocar suas mesas até na calçada, onde estacionava uma dupla fileira de vendedores ambulantes, verdadeiros bazares ambulantes vendendo lenços e espelhos para as moças, facas e bonés para os rapazes, sem contar as guloseimas, confeitos e biscoitos. Em frente à igreja atirava-se ao alvo com arco e flecha; diante dos depósitos da companhia havia jogos de bola. Num desvio da estrada de Joiselle, ao lado da administração, um cercado de tábuas burburinhava com a multidão que assistia a uma briga de galos, onde dois enormes galos vermelhos, armados de esporões de ferro, sangravam pelo pescoço. Mais adiante, no estabelecimento de Maigrat, ganhavam-se aventais e calças no jogo de bilhar. E havia silêncios espaçados, a turba bebia, empanturrava-se sem um grito, a muda indigestão de cerveja e batatas fritas era cada vez maior sob o calor intenso, que as frigideiras a borbulhar ao ar livre tornavam ainda mais abrasador.

Chaval comprou um espelho de dezenove soldos e um lenço de pescoço de três francos para Catherine. A cada volta encontravam Mouque e Boa-Morte, que tinham vindo à festa e a atravessavam juntos, com suas pernas cansadas e vagarosas. Um outro encontro, porém, indignou-os: perceberam Jeanlin incitando Bébert e Lydie a furtarem garrafas de genebra de uma tenda instalada num terreno baldio. Catherine conseguiu dar uns tapas no irmão, mas Lydie já escapara com uma garrafa. Ah, essas crianças estavam perdidas, acabariam nas galés!   

Ao passarem em frente à venda Tête Coupée, Chaval teve a idéia de entrar com a sua namorada para assistir a um torneio de pintassilgos verdes que um cartaz na porta anunciava, havia oito dias. Quinze pregueiros, das fábricas de pregos de Marchiennes, concorriam, cada um com uma dúzia de gaiolas. Essas pequenas gaiolas cobertas, onde os pintassilgos sem visão permaneciam imóveis, já estavam penduradas numa cerca de madeira no pátio da taberna. Tratava-se de contar qual deles, durante uma hora, repetiria mais vezes o trinado do seu canto. Cada pregueiro, com uma ardósia, permanecia por trás das suas gaiolas, vigiando seus vizinhos e sendo por eles vigiado. E os pintassilgos começaram, uns gravemente, outros com uma sonoridade aguda, a princípio tímidos, soltando um ou outro gorjeio; depois, excitados pelos outros, apressaram o ritmo, e enfim, arrebatados por tal fúria de competição, alguns chegaram a cair mortos. Violentamente, os pregueiros os açulavam com a voz, gritavam-lhes em flamengo que cantassem mais, mais, um pouquinho mais, enquanto os espectadores, umas cem pessoas, permaneciam mudos, siderados no meio daquela música infernal de cento e oitenta pintassilgos repetindo a mesma cadência em desacordo. Foi um pássaro de trinado agudo que ganhou o primeiro prêmio, uma cafeteira de ferro batido.

Catherine e Chaval já estavam lá quando entrou Zacharie acompanhado de Philomène. Trocaram apertos de mão e ficaram juntos. Repentinamente Zacharie teve uma explosão ao surpreender um pregueiro, que ali entrara por curiosidade com outros companheiros, tateando as pernas da irmã. Ela, muito vermelha, pedia-lhe que se calasse, apavorada com a idéia de uma mortandade, com todos aqueles pregueiros atirando-se sobre Chaval se este resolvesse criar caso. Ela já sentira o homem a apalpá-la, mas não dissera nada por prudência. Mas seu namorado não levou a coisa a sério, os quatro saíram e o assunto pareceu encerrado. Apenas, porém, tinham entrado no Piquette para beber uma cerveja e eis que o pregueiro apareceu, debochando deles, resfolegando nas suas caras, provocando. Zacharie, sentindo ultrajada a dignidade familiar, atirou-se sobre o insolente.

— Esta é a minha irmã, seu cachorro! Espera que já faço com que a respeites!

Precipitaram-se para apartar os dois homens, enquanto Chaval, muito calmo, repetia:

— Deixa para lá, isso é comigo... Mas o melhor é não lhe dar a mínima importância...              

Maheu vinha chegando com os companheiros e logo foi acalmar Catherine e Philomène, que choravam. A animação já voltara, o pregueiro tinha desaparecido. Para pôr um ponto final no incidente, Chaval, que se sentia em casa no café Piquette, ofereceu cerveja. Etienne teve de brincar com Catherine, todos beberam juntos, o pai, a filha e o amante, o filho e a amante, dizendo polidamente: "À saúde de todos!" Em seguida foi Pierron quem insistiu em pagar uma rodada. Todo mundo já estava de acordo e feliz, quando Zacharie se enfureceu de novo ao avistar seu amigo Mouque. Chamou-o, para irem juntos, dizia ele, ajustar as contas com o pregueiro.

— Tenho ganas de amassá-lo! Chaval, toma conta de Philomène e Catherine, volto logo.

Agora era a vez de Maheu oferecer cerveja. Afinal, se o rapaz queria vingar a irmã, não podia proibi-lo. Philomène, no entanto, ao ver que o amante saía com o filho de Mouque, balançou a cabeça tranqüilizada. Claro, os dois malandros tinham ido para o Volcan.

Nessas festas, concluía-se o dia no baile do Bon-Joyeux. Era a viúva Désir que organizava esse baile. Désir tinha cinqüenta anos, vigorosa e rotunda como um tonei, com energia suficiente para dar prazer a seis amantes; recebia um por dia durante a semana e, dizia ela, todos juntos no domingo. Chamava os mineiros de seus filhos, enternecida com a visão do rio de cerveja com que os inundava havia trinta anos; e gabava-se ainda de que nenhuma operadora de vagonetes ficava grávida sem ter, antes, dançado na sua casa. O Bon-Joyeux compunha-se de duas salas: a taberna, onde havia o balcão e as mesas, e, no mesmo andar e ligado a ela por um enorme arco, o salão de baile, peça muito ampla, com uma pista de madeira no meio e chão de tijolo em volta. A decoração compunha-se de duas guirlandas de flores de papel que se cruzavam de um ângulo a outro do teto, formando no centro uma coroa; ao longo das paredes alinhavam-se brasões dourados com nomes de santos: Santo Elói, padroeiro dos metalúrgicos, São Crispim, dos sapateiros, Santa Bárbara, dos mineiros, todo o calendário festivo das profissões. O teto era tão baixo que os três músicos, no seu estrado do tamanho de um púlpito, batiam nele todo o tempo com a cabeça. À noite, a iluminação era feita por quatro lampiões a querosene presos nos quatro cantos do salão.

Naquele domingo, dançou-se a partir das cinco horas, ainda com sol alto. Foi, no entanto, a partir das sete que a casa começou a encher. Lá fora soprava um vento de tempestade, levantando ondas de poeira negra que cegavam as pessoas e caíam como granizo dentro das frigideiras das tendas que vendiam batata frita. Maheu, Etienne e

Pierron, que tinham entrado para descansar um pouco, encontraram no Bon-Joyeux Chaval dançando com Catherine, enquanto Philomène, sozinha, observava. Levaque e Zacharie ainda não tinham aparecido. Como não havia bancos no salão de baile, Catherine, após cada dança, ia descansar na mesa do pai. Chamaram Philomène, que disse preferir ficar em pé.

Anoitecia. Os três músicos tocavam sem parar; só se via na sala o movimento dos quadris e dos seios no meio de uma confusão de braços. Uma gritaria acolheu os quatro lampiões que, subitamente, iluminaram tudo: as faces vermelhas, os cabelos em desalinho, colados à pele, as saias no ar, expulsando o cheiro forte dos pares suados. Maheu mostrou a Etienne a filha de Mouque, que, redonda e gorda como uma bexiga cheia de unto de porco, rodopiava violentamente nos braços de um ascensorista alto e magro: para se consolar, arranjara outro homem.

Eram oito horas quando finalmente surgiu a mulher de Maheu, com Estelle ao colo, seguida do resto das crianças: Alzire, Henri e Lénore. Sabia que seu homem estava ali, nunca se enganava. Ceariam mais tarde, ninguém tinha fome, todos estavam com o estômago repleto de café e inchado de cerveja. Outras mulheres chegavam. Houve cochichos quando, atrás da mulher de Maheu, entrou a de Levaque, acompanhada de Bouteloup, que trazia pela mão os filhos de Philomène, Achille e Désirée. As duas vizinhas pareciam andar às mil maravilhas, voltavam-se todo o tempo para trocar impressões. Pelo caminho tinham tido uma grande conversa, a mãe de Zacharie resignara-se finalmente ao casamento do filho, abatida por ter de perder o dinheiro que o rapaz lhe dava, mas vencida pela razão: não podia conservá-lo por mais tempo sem cometer uma injustiça. Tratava, agora, de manter as aparências, mas com o coração aos pulos, de dona-de-casa que se perguntava ansiosamente como faria para manter o lar provido quando os filhos começavam a abandoná-lo.

— Senta-te aí, vizinha — disse ela, apontando para uma mesa junto daquela em que Maheu bebia com Etienne e Pierron.

— Meu marido não está com vocês? — perguntou a mulher de Levaque.         Responderam-lhe que voltava. Estavam todos amontoados, Bouteloup e as crianças ficaram espremidos entre os que bebiam as duas mesas formavam uma só. Pediram cerveja. Vendo a mãe e os filhos, Philomène aproximou-se. Aceitou uma cadeira e deu sinais de alegria quando soube que finalmente ia casar. Depois como lhe perguntassem por Zacharie, respondeu com sua voz fraca:

— Estou à espera dele, anda por aí.

Maheu trocou olhares com a mulher. Então ela consentia? Ficou sério e pôs-se a fumar em silêncio. Ele também se inquietava com o dia de amanhã, diante da ingratidão daqueles filhos que se casariam, um a um, deixando os pais na miséria.

Continuavam a dançar. Um fim de quadrilha enchia a sala de poeira vermelha, as paredes estalavam, um pistom dava assobios agudos, como uma locomotiva descarrilada. Os dançarinos, quando pararam, mais pareciam cavalos esfalfados, com o suor evaporando.

— Lembras — disse a mulher de Levaque ao ouvido da vizinha — quando dizias que estrangularia Catherine se ela desse um mau passo?

Chaval trouxe Catherine para a mesa da família e ambos, em pé por trás de Maheu, acabaram seus copos.

— Ah! — respondeu a outra. — A gente diz cada coisa... O que me tranqüiliza é que não pode ter filhos, disso estou certa. Imagina se ela também resolvesse parir e eu fosse obrigada a casá-la! Como é que a gente ia comer?

Agora era uma polca que o pistom tocava. Quando a barulheira recomeçou, Maheu curvou-se para a mulher e cochichou-lhe uma idéia que tivera. Por que não tomavam um inquilino, Etienne, por exemplo, que queria sair da pensão? Teriam lugar com a saída de Zacharie e, assim, o dinheiro que iam perder desse lado poderiam recuperá-lo, pelo menos em parte, do outro. O semblante da mulher iluminou-se: claro, que boa idéia, era preciso tratar disso! Parecia mais uma vez salva da fome, seu bom humor era tanto que pediu mais uma rodada de cerveja.

Enquanto isso, Etienne tentava catequizar Pierron, explicando-lhe seu projeto de uma caixa de previdência. Já conseguira que o outro prometesse aderir, quando cometeu a imprudência de descobrir sua verdadeira intenção.

— E, se entrarmos em greve, a utilidade dessa caixa será enorme. Podemos enfrentar a companhia, porque teremos fundos para resistir. Hem? Dás a palavra? Podemos contar contigo?

Pierron baixara os olhos, empalidecendo. Gaguejou:

—  Vou refletir. O nosso bom comportamento é a melhor caixa de socorro.

Nesse momento Maheu apoderou-se de Etienne e propôs-lhe tomá-lo como hóspede, com aquela maneira franca, de homem sincero, que era a sua. O rapaz aceitou do mesmo modo, ansioso para ir morar no conjunto habitacional e conviver mais largamente com os camaradas. O assunto ficou resolvido com três palavras e a mulher de Maheu declarou que esperariam pelo casamento dos filhos.

Justamente nessa ocasião entrou Zacharie, acompanhado do jovem Mouque e de Levaque. Os três traziam o cheiro do Volcan, um hálito de genebra, um azedume almiscarado de mulheres mal lavadas. Estavam muito bêbados, satisfeitos com a aventura, cutucando-se e gracejando. Quando soube que finalmente ia casar, Zacharie riu tanto que se engasgou. Com toda a calma Philomène declarou que preferia vê-lo rindo a vê-lo chorando. Como não havia mais cadeiras, Bouteloup cedeu a metade da sua a Levaque. Este, subitamente enternecido por ver todos reunidos, em família, pediu mais uma rodada de cerveja.

— Diabos! Não é sempre que a gente pode divertir-se! — berrou.

Permaneceram no baile até as dez horas. As mulheres continuavam a chegar para arrastar de volta ao lar os seus homens. Grupos de crianças vinham a reboque. As mães, sentindo-se à vontade, punham à mostra seios compridos e louros como sacos de aveia, lambuzando de leite os bebês rechonchudos. Os que já podiam andar, abarrotados de cerveja, engatinhavam por baixo das mesas e urinavam na frente de todos. Era um verdadeiro dilúvio de cerveja, os tonéis da viúva Désir esvaziados, a bebida arredondando as panças, gotejando por todas as partes, pelo nariz, pelos olhos e pelos outros orifícios. Já estavam tão cheios naquele amontoado, que cada um tinha um ombro ou um joelho enterrado no vizinho, todos alegres e expansivos por se sentirem juntos. Um gargalhar contínuo mantinha as bocas abertas, rasgadas até as orelhas. O calor era de forno, assava-se, todos se punham à vontade, expondo as carnes que pareciam douradas devido à espessa fumaça dos cachimbos. O único inconveniente eram as necessidades fisiológicas: de vez em quando, uma moça levantava-se, dirigia-se para o fundo e ali, perto da bomba, levantava as saias e depois voltava. Sob as guirlandas de papel colorido, os dançarinos não se viam mais de tanto que suavam, o que encorajava os meninos de catorze anos a darem tombos nas operadoras de vagonetes com golpes de quadris distribuídos ao acaso. Mas, quando uma delas caía com um homem por cima, o pistom disfarçava a queda com o seu toque furioso, o movimento dos pés dos outros fazia-os rolar pela pista, como se o salão tivesse desabado sobre eles.

Alguém de passagem advertiu Pierron de que sua filha Lydie dormia na porta, atravessada na calçada. A menina tinha bebido sua parte da garrafa roubada e estava bêbada. O pai teve de carregá-la ao ombro, enquanto Jeanlin e Bébert, ainda bons das pernas, seguiam-no a distância, achando que era fingimento da companheira. Isso foi o sinal para a partida. As famílias começaram a deixar o Bon-Joyeux; os Maheu e os Levaque decidiram voltar para casa.

Nesse momento, Boa-Morte e Mouque deixavam Montsou, sempre no mesmo passo sonâmbulo, obstinados no silêncio de suas recordações.

E assim voltaram todos juntos, atravessando por uma última vez o local da festa, onde a gordura coalhava nas frigideiras e as últimas cervejas, provindas das tabernas, corriam para o meio da estrada, formando regatos. A tempestade podia desabar a qualquer momento. As risadas recomeçaram assim que deixaram para trás as casas iluminadas e se embrenharam pelo campo escuro. Um hálito ardente vinha dos trigais maduros, na certa muitas crianças foram concebidas ali nessa noite... Chegaram ao conjunto habitacional em grupos separados. Tanto os Levaque como os Maheu comeram sem vontade; estes cabeceavam de sono sobre o cozido da manhã.

Etienne convidou Chaval para mais uma cerveja no Rasseneur.

— Estou contigo! — exclamou Chaval quando o companheiro lhe explicou o plano da caixa de previdência. — Vamos, homem, faze isto marchar! Tu és dos bons!

Um início de embriaguez fazia cintilar os olhos de Etienne. Gritou, arrebatado:

— Sim, sejamos amigos! Vês? Eu pela justiça troco tudo, bebida e mulheres. Só tenho uma idéia, um pensamento que faz pulsar meu coração: unidos, destruiremos a burguesia.

 

Em meados de agosto, assim que Zacharie casou e obteve da companhia uma casa desocupada do conjunto habitacional para Philomène e os dois filhos, Etienne foi morar com os Maheu. Nos primeiros tempos o rapaz não conseguia sentir-se à vontade em presença de Catherine.

Viviam em comum, era o substituto do irmão mais velho, partilhava o leito com Jeanlin, dormia no mesmo quarto com a moça. Ao deitar e ao levantar tinha de se despir e vestir diante dela, via-a tirando e pondo a roupa. Quando caía a última saia, ela era de uma brancura pálida, dessa alvura transparente das louras anêmicas. Ele ficava profundamente comovido ao vê-la tão branca, as mãos e o rosto já estragados, como que molhada em leite dos tornozelos ao pescoço, onde havia uma linha bronzeada que mais

parecia um colar de âmbar. Fingia não olhar, mas pouco a pouco foi conhecendo-a. Primeiro os pés, que seus olhos baixos encontravam. Depois um joelho entrevisto quando ela entrava para baixo das cobertas. Em seguida o colo, de seios pequenos e rijos, quando pela manhã a moça curvava-se para o tacho. Enquanto ela era rápida, despia-se com movimentos ágeis de cobra e em dez segundos estava nua e estendida ao lado de Alzire, o rapaz era lento: não terminara de tirar os sapatos e ela já estava quase dormindo, de costas para ele, apenas com a vasta cabeleira à mostra.

A verdade é que a moça nunca teve motivo de queixa. Só uma espécie de obsessão, combatida, fazia que a espiasse no momento em que se deitava. Ele, por outro lado, evitava todas as brincadeiras e mantinha-se a distância. Os pais estavam ali mesmo, e, além disso, cultivava por ela um sentimento que era uma mistura de amizade e rancor, que o impedia de tratá-la como mulher que se deseja, apesar de todos aqueles momentos propícios de vida em comum, ao levantar, nas refeições, no trabalho, ambos conhecendo-se intimamente, mesmo nas necessidades fisiológicas. Todo o pudor familiar se refugiara no banho cotidiano, que a moça tomava agora no andar de cima, enquanto os homens se lavavam embaixo, um após o outro.

Ao término de um mês, Etienne e Catherine pareciam já não se ver, quando à noite, antes de apagar a vela, vagavam nus pelo quarto. Ela deixara de se apressar, voltara ao seu velho costume de prender os cabelos sentada na cama, de braços erguidos, com as coxas à mostra. Ele, sem calças, ajudava-a às vezes, procurando os grampos que ela perdia. A vergonha da nudez desapareceu com a força do hábito, achavam natural andar assim, já que não faziam nada de mal e não era culpa deles se havia um só quarto para toda a família. Mas mesmo assim, nos momentos em que não pensavam em coisas pecaminosas, voltava-lhes, repentinamente, um sentimento de culpa. Depois de diversas noites se terem passado sem que notasse a palidez do seu corpo, ele a vislumbrava de súbito toda branca, dessa brancura que o fazia fremir, que o obrigava a dar-lhe as costas, pelo receio de ceder à tentação de tomá-la em seus braços. Ela também, em certas noites, sem razão aparente, era presa de uma inquietação pudica, fugia, enrolava-se nos lençóis, como se tivesse sentido as mãos do rapaz percorrendo seu corpo. Depois, apagada a vela, sabiam-se acordados, pensando um no outro, apesar de exaustos. Isso os deixava intranqüilos e irritadiços no dia seguinte, porque preferiam as noites calmas em que conviviam como bons camaradas.

Etienne só se queixava de Jeanlin, que dormia encolhido. Alzire respirava levemente. Lénore e Henri eram encontrados na manhã seguinte como tinham sido

deitados, nos braços um do outro. Na casa às escuras, só se ouvia o ressonar de Maheu e da mulher; eram roncos regulares que mais pareciam sair de um fole de ferreiro.

Em suma, Etienne achava-se melhor que na pensão de Rasseneur. A cama não era má, e os lençóis, mudados uma vez por mês. A sopa, muito boa, mais substanciosa mesmo que a da pensão: só sentia falta da carne, que vinha raramente à mesa. Mas todos os outros estavam na mesma situação, não podia exigir, por quarenta e cinco francos mensais, coelho a cada refeição. Esses quarenta e cinco ajudavam a família, ela podia continuar vivendo, ainda que deixando pequenas dívidas para trás. Por sua vez, os Maheu mostravam-se reconhecidos ao hóspede, sua roupa era lavada, remendada, os botões pregados, suas coisas estavam sempre em ordem. Enfim, o rapaz vivia rodeado de asseio e bem cuidado pela dona da casa.

Foi por essa época que Etienne começou a compreender as idéias que lhe fervilhavam na cabeça. Até então não passara de um revoltado instintivo absorvendo a surda fermentação dos companheiros. Uma gama variada de perguntas confusas não o deixava em paz: por que havia tanta miséria de um lado e tanta riqueza de outro? Por que estes tinham de viver escravizados àqueles, sem a menor esperança de um dia mudarem de posição? A primeira etapa vencida foi a da compreensão de sua ignorância. Uma vergonha secreta, um desgosto oculto começaram a atormentá-lo: nada sabia, não ousava falar sobre essas coisas que eram a sua paixão, a igualdade entre os homens, a justiça que exigia que os bens da terra fossem repartidos entre todos. Por isso começou a estudar, sem método, como fazem aqueles que são ignorantes mas têm sede de saber. Entabulou uma correspondência regular com Pluchart, mais instruído e a par do movimento socialista. Encomendou livros cuja leitura mal digerida acabou por exaltá-lo, sobretudo um livro de medicina, Higiene do Mineiro, em que um médico belga fazia o resumo das doenças de que morrem os trabalhadores das hulheiras, sem contar os tratados de economia política de uma aridez técnica incompreensível, folhetos anarquistas que o perturbavam, números antigos de jornais que lia e guardava depois como argumentos irrefutáveis em possíveis discussões. Também Suvarin lhe emprestava livros, e a obra sobre sociedades cooperativas fizera-o sonhar durante um mês com uma associação universal de intercâmbio, abolindo o dinheiro e baseando toda a vida social no trabalho. A vergonha de sua ignorância foi cedendo lugar a um certo orgulho desde que sentia que pensava.

Durante esses primeiros meses, Etienne viveu no êxtase dos neófitos, com o coração transbordante de indignações generosas contra os opressores e da esperança do

triunfo próximo dos oprimidos. De todas as suas leituras ainda não conseguira pôr em pé um sistema que fosse seu. Misturavam-se nele as reivindicações práticas de Rasseneur com as violências destrutoras de Suvarin. Ao sair do Avantage, onde, quase todas as noites, ia invectivar com eles contra a companhia, caminhava como num sonho, assistindo à regeneração radical dos povos sem que para tanto fosse necessário quebrar um vidro ou derramar uma gota de sangue. Os meios de execução permaneciam obscuros, preferia acreditar que as coisas viriam por si, já que, ao tentar formular um programa de reconstrução, não sabia o que pensar. Mostrava-se cheio de moderação e até inconseqüente, repetindo, às vezes, que era preciso banir a política da questão social, uma frase que tinha lido e lhe parecia boa para ser dita no meio dos mineiros fleumáticos em que vivia.

Agora, na casa de Maheu, dormia-se meia hora mais tarde. Etienne repisava a conversa de sempre. Desde que começara a instruir-se, a promiscuidade do conjunto habitacional chocava-o. Então eram animais para viverem assim, amontoados, uns por cima dos outros, com tanto campo em volta, a ponto de não se poder trocar a camisa sem ter que mostrar o traseiro ao vizinho? E que bem fazia para a saúde essa promiscuidade, com moças e rapazes apodrecendo juntos!

— Ora! — respondia Maheu. — Se houvesse mais dinheiro viveríamos melhor... Mas, de fato, só pode fazer mal viver amontoado desse jeito. Sempre termina com homens bêbados e mulheres grávidas.

Era sempre assim que começava a conversa, cada um tinha algo a dizer, enquanto o querosene do candeeiro viciava o ar da sala já empestada pelo cheiro de cebola frita. Esta vida não tinha nada de agradável. Trabalhavam como bestas numa coisa que antes só era feita pelos condenados às galés, morriam ali, muito antes de ter chegado a sua hora, e tudo isso para nem sequer terem carne no jantar. Ainda comiam, claro, mas tão pouco, apenas o suficiente para seguirem sofrendo, cheios de dívidas, perseguidos como se estivessem roubando o pão que não os deixava morrer de fome. Aos domingos sucumbiam, exaustos. Os únicos prazeres eram embriagar-se e fazer filhos na mulher. E ainda por cima a cerveja fazia crescer a barriga, e os filhos, mais tarde, renegavam os pais. Não, não, a vida não tinha graça alguma. Nesse ponto a mulher de Maheu entrava na conversa.

— Mas o pior é quando a gente se diz que tudo isso não pode mudar... Quando se é jovem, imagina-se que a felicidade virá, tem-se esperança, mas a miséria continua e

nada muda... Eu não desejo mal a ninguém, mas certas vezes ando revoltada com tanta miséria.

Descia um silêncio sobre o grupo, que respirava a custo, no mal-estar resultante desse horizonte cerrado. Apenas o velho Boa-Morte, quando estava, arregalava uns olhos surpresos, porque no seu tempo ninguém se preocupava dessa maneira: nascia-se no carvão, escavava-se no veio sem pedir mais nada. Agora, novos ventos enchiam os mineiros de ambição.

— Não presta cuspir no prato em que se come — murmurava ele. — Uma boa cerveja é uma boa cerveja... Claro, os chefes são quase sempre uns canalhas, mas sempre haverá chefes, não é verdade? Não quebrem a cabeça pensando nisso.

Era como botar fogo em Etienne. Como? Então os operários não podiam pensar? Pois esperassem e veriam... As coisas iam mudar muito em breve, justamente porque o operário aprendera a pensar. No tempo do velho, o mineiro vivia na mina como um animal de carga, como uma máquina de extrair hulha, sempre enfurnado na terra, os ouvidos e os olhos tapados, sem saber o que estava acontecendo no mundo. Por esse motivo os ricos que governam podiam fazer o que bem entendessem, vendê-lo e comprá-lo, chupar-lhe o sangue, o mineiro nem se dava conta. Agora ele estava acordado nas entranhas da terra, germinava lá no fundo como uma semente. E todos veriam, um belo dia, brotar homens da terra. Sim! Um exército de homens que restabeleceria a justiça... Ou será que todos não eram iguais depois da Revolução? Uma vez que tinha direito ao voto, por que o operário deveria permanecer escravo do patrão que lhe pagava? As grandes empresas, com suas máquinas, esmagavam tudo, e não se tinham sequer as garantias de outrora, quando o pessoal da mesma profissão, reunido em corporações, sabia defender-se. Raios! Era por isso, por isso e por muitas outras coisas, que este mundo acabaria explodindo um dia, graças à instrução. Era só olhar, ali no conjunto habitacional mesmo: os avós não sabiam nem assinar o nome, os pais já o assinavam, enquanto os filhos liam e escreviam como professores. Ah! Era uma bravia messe de homens amadurecendo ao sol, crescendo pouco a pouco. Desde o momento em que já não se estava mais colado no mesmo lugar a vida inteira e tinha-se a ambição de tomar o lugar do vizinho, por que não abrir caminho à força e vencer de uma vez por todas?

Apesar de sensibilizado pelos argumentos do rapaz Maheu continuava cheio de desconfiança.

— No momento em que a gente dá um pio é despedido — disse ele. — O velho tem razão, o mineiro será sempre a vítima, sem esperança de receber pelo menos uma perna de carneiro como recompensa.

A mulher, que ficara calada por algum tempo, falou como se estivesse saindo de um sonho.

— Se ao menos o que os padres dizem fosse verdade, os pobres deste mundo seriam os ricos do outro...

Uma gargalhada interrompeu-a. Até as crianças davam de ombros, transformadas em incrédulas pelas mudanças do mundo, rindo do céu vazio, ainda que cultivando sempre o secreto temor dos fantasmas da mina.

— Ora, ora! os padres... — exclamou Maheu. — Se eles acreditassem nisso comeriam menos e trabalhariam mais para terem garantido um bom lugar lá em cima... Nada disso. Quem morre acabou.

A mulher soltou suspiros enormes.

— Ah! Meu Deus, meu Deus...     

Depois, com as mãos sobre os joelhos, num total abatimento:

— Então é verdade, nós, os pobres, não podemos ter esperança alguma.

Todos se olharam. O velho Boa-Morte escarrou no lenço Maheu não mais acendeu o cachimbo e esqueceu-o na boca. Alzire escutava entre Lénore e Henri, que tinham adormecido debruçados sobre a mesa. Mas era sobretudo Catherine, com o queixo apoiado na mão, quem fitava Etienne com seus grandes olhos claros quando ele proclamava sua fé e pintava para a família o futuro maravilhoso do seu sonho social. Em torno deles o conjunto habitacional adormecia; ouviam-se apenas o choro longínquo de uma criança e os gritos de um bêbado retardatário. Na sala, o relógio batia lentamente um frescor de umidade subia do chão de lajes espargido de areia apesar da temperatura elevada.

— Santa ignorância! — exclamou o rapaz. — Então vocês ainda precisam de um Deus e do seu paraíso para serem felizes? Não podem construir com as próprias mãos a felicidade na terra?

E, com uma voz cheia de paixão, continuou falando. Era como se, de repente, o horizonte cerrado explodisse; um facho de luz começava a iluminar a vida sombria dessa pobre gente. O eterno recomeçar da miséria, o trabalho pesado, o destino de rebanho que dá a lã e é degolado, todas essas desgraças desapareciam, como que varridas por um raio de sol, e, num desabar feérico, a justiça descia do céu. Já que Deus estava morto, a

justiça asseguraria a felicidade humana, fazendo reinar a igualdade e a fraternidade. Uma sociedade nova surgiria em um dia, como nos sonhos: uma cidade imensa, esplêndida como uma miragem, onde cada cidadão viveria do seu trabalho e teria o seu quinhão nas alegrias comuns. O velho mundo podre voltaria ao pó, uma humanidade nova, purgada dos seus crimes, formaria um único povo de trabalhadores, tendo por divisa: a cada um segundo seu mérito, e a cada mérito segundo suas obras. E este sonho seria cada vez mais amplo, mais sedutor à medida que fosse atingindo o impossível.

A princípio, a mulher de Maheu não quis dar ouvidos, presa de surdo temor. Não, não, era bonito demais, não devia deixar-se levar por tais idéias, que, em seguida, tornariam a vida um horror e levariam o homem a destruir tudo em busca da felicidade. Vendo cintilar os olhos do marido, perturbado e convencido, a mulher, quase em pânico, interrompia Etienne:

— Não deves dar ouvido a essas histórias, marido! É tudo lorota... Como é que vais acreditar que os burgueses um dia vão aceitar trabalhar como a gente?

Mas pouco a pouco, o encanto atuava também sobre ela. Acabava sorrindo, com a imaginação trabalhando, entrando finalmente no mundo maravilhoso da esperança. Era tão agradável esquecer por uma hora a triste realidade! Quando se vive como um animal  de cabeça baixa, um pouco de ilusão não faz mal, um escape onde se possa sonhar com as coisas que jamais estarão ao alcance da mão. Mas o que mais a arrebatava, o que a punha de acordo com o rapaz, era a idéia de justiça.

— Nisso você tem razão! — exclamava ela. — Quando a justiça está do meu lado, luto até morrer... Que diabo! Nós também temos direito a um pouco de bem-estar!

Maheu, então, ousava exaltar-se:

— Juro por Deus! Não sou rico, mas daria com prazer cem soldos para não morrer antes de ver tudo isso... Que grande farra! Como é? Vai ser para breve? Como é que a gente vai fazer para dar cabo deles?

Etienne recomeçava a falar. A velha sociedade estava caindo aos pedaços, não agüentava mais que alguns meses, afirmava ele, peremptório. Sobre os meios de execução mostrava-se mais vago, misturando o que tinha lido, não temendo, diante de ignorantes, dar explicações em que ele próprio se perdia. Misturava todos os sistemas, suavizando-os com a certeza de um fácil triunfo, uma paz universal que terminaria com a luta de classes, e tudo isso sem levar em conta a má-fé reinante entre patrões e burgueses, o que talvez obrigasse os operários a fazê-los serem razoáveis à força.

A tudo isso os Maheu assentiam como se estivessem compreendendo, aceitavam as soluções miraculosas com a fé cega dos neófitos, iguais aos cristãos dos primeiros tempos da Igreja, que esperavam o advento de uma sociedade perfeita sobre os escombros do mundo antigo. A pequena Alzire apanhava uma ou outra palavra e imaginava a felicidade sob o ângulo de uma casa aquecida, onde as crianças brincariam e comeriam à vontade. Catherine, imóvel, sempre com o queixo apoiado na mão, continuava com os olhos fixos em Etienne, e, quando este se calava, ela, toda pálida, fremia levemente, como que perpassada por uma corrente de ar.

Nesse momento a mulher de Maheu olhava para o relógio.

Como é que pode! Já são mais de nove horas... Aposto que amanhã ninguém se levanta.

E os Maheu deixavam a mesa frustrados e desesperados. Parecia-lhes que tinham sido ricos e de repente voltavam à miséria. O velho Boa-Morte, que partia para a mina, resmungava que todas aquelas histórias não tornavam a sopa mais suculenta, enquanto os outros subiam em fila, sentindo a umidade das paredes e mal podendo respirar o râncido ar ambiente. Em cima, já insulado no pesado sono do conjunto habitacional, Etienne sentia que Catherine, afinal deitada e tendo apagado a vela, remexia-se febrilmente antes de conciliar o sono.

Muitas vezes, durante aquelas conversas, apareciam os vizinhos: Levaque, que se deixava inflamar pelas idéias de partilha, ou Pierron, que por prudência ia logo dormir assim que atacavam a companhia. De tempos em tempos Zacharie também vinha, mas a política aborrecia-o, preferia dar um pulo até o Avantage e beber uma cerveja. Chaval era o que ia mais longe: queria sangue. Quase todas as noites passava uma hora com os Maheu; nessa assiduidade havia um ciúme inconfessado, o medo de que lhe roubassem Catherine. A moça, de quem já começava a cansar, tornara-se-lhe repentinamente cara a partir do momento em que um homem dormia perto dela e era capaz de tomá-la em seus braços durante a noite.

A influência de Etienne crescia, ele revolucionava pouco a pouco o conjunto habitacional. Fazia uma propaganda surda e dela já colhia frutos, graças à estima cada vez maior de que gozava. A mulher de Maheu, apesar de sua desconfiança de hospedeira prudente, tratava-o com toda a consideração devida a um rapaz que pagava a pensão pontualmente, não bebia nem jogava e estava sempre com o nariz colado em algum livro. Por esse motivo, fazia-lhe, junto às vizinhas, uma reputação de homem instruído, da qual elas abusavam, pedindo-lhe para que escrevesse suas cartas. Transformara-se numa

espécie de sábio, encarregado da correspondência, consultado pelas famílias nos casos delicados.

Mas, a partir de setembro, sua famosa caixa de previdência finalmente entrou em funcionamento, muito precária ainda, contando apenas com as pessoas do conjunto habitacional. Esperava, no entanto, obter a adesão dos mineiros de todas as galerias, sobretudo se a companhia, até o momento inativa, não passasse ao ataque. Acabava de ser nomeado secretário da associação e recebia até um pequeno salário pela escrita. Isso o fazia quase rico. Se um mineiro casado não consegue viver sem dívidas, um rapaz sóbrio, sem qualquer compromisso, pode fazer sua economia.   

A partir dessa época, operou-se em Etienne uma transformação lenta. Uma inclinação para a elegância e o viver bem, até agora abafada pela pobreza, revelou-se, levou-o a comprar roupas de bons tecidos e um par de botas finas. Transformou-se num chefe e todo o conjunto habitacional passou a ouvi-lo. Seu amor-próprio foi-se enfunando, vivia embriagado com a fruição de sua incipiente popularidade: estar à frente dos outros, tão jovem e já no comando, ele, que ainda na véspera não passava de um simples trabalhador braçal... Isso enchia-o de orgulho, fazia que se tornasse mais certo do seu sonho de uma revolução para breve, na qual desempenharia um papel. Sua fisionomia transformou-se, adotou um ar grave, passou a ouvir a própria voz. Ao mesmo tempo, a ambição nascente tornava ainda mais candentes suas teorias e levava-o a fazer planos de combate.

Enquanto isso, o outono avançava, os frios de outubro tinham queimado os pequenos jardins do conjunto habitacional. Por trás dos mirrados lilases, os rapazes já não deitavam as operadoras de vagonetes no galpão. E restavam apenas os legumes de inverno, as couves peroladas de gotas de geada, os alhos-porros e as saladas de conserva. De novo as bátegas de chuva lavavam as telhas vermelhas e escorriam para os tonéis debaixo das goteiras com um ruído de torrente. Nas casas, os fogões estavam sempre acesos, carregados de hulha, envenenando as salas fechadas. Era outra estação de grande miséria que começava.

Em outubro, por uma dessas primeiras noites glaciais, Etienne, febril de tanto ter falado, no térreo, não conseguia dormir. Observara Catherine escorregando para dentro das cobertas e depois apagando a vela. A moça também parecia estar tremendo, atormentada por um daqueles pudores que a faziam apressar-se para não ser vista, o que, às vezes, por alguma falta de jeito, mais a deixava à mostra. Na escuridão, ela ficou como se estivesse morta, mas o rapaz sentia que a moça também não dormia, que

ambos estavam pensando um no outro. Nunca antes aquela silenciosa troca dos seus seres os enchera de tanta perturbação. Os minutos passavam, nenhum dos dois se movia, mas suas respirações se encontravam, apesar dos esforços que faziam para contê-las. Por duas vezes ele esteve na iminência de levantar-se para tomá-la em seus braços. Era estúpido ter tal desejo mútuo e nunca satisfazê-lo. Por que remar contra a correnteza? As crianças dormiam, ela estava tremendo de desejo, ele tinha certeza de que era esperado, de que ela sufocava, de que o apertaria em seus braços, muda, de dentes cerrados. E assim transcorreu cerca de uma hora. O rapaz não foi para os braços da moça, que também não se voltou, com medo de o chamar. Quanto mais viviam sob o mesmo teto, mais alta ficava a barreira que os separava: de vergonha, de repugnâncias, de gestos de amizade que nem eles mesmos conseguiriam explicar.

 

— Escuta — disse a mulher de Maheu ao seu marido —, já que vais a Montsou receber o pagamento, traze uma libra de açúcar e um quilo de café.

Ele costurava um pé de sapato para poupar o dinheiro do conserto.

— Está bem — murmurou, sem abandonar o que fazia.

— Talvez ainda pudesses passar pelo açougue... Não seria bom um pedaço de vitela? Há tanto tempo que não vemos carne...

Desta vez ele ergueu a cabeça.

— Tu estás pensando que vou receber milhares e centenas! Esta quinzena não deu quase nada, por causa da maldita idéia deles de suspenderem constantemente o trabalho.

Ambos ficaram calados. Era depois do almoço de um sábado dos fins de outubro. A companhia, a pretexto de ter de fazer o pagamento naquele dia, suspendera a extração em todas as galerias. Em pânico diante da crise industrial cada dia mais grave, não querendo aumentar seu estoque já enorme, ela aproveitava os menores pretextos para forçar seus dez mil operários a ficarem em casa.

— Tu sabes que Etienne te está esperando no Rasseneur — continuou a mulher. — Leva-o contigo, ele é mais esperto que tu e descobrirá as trapaças que farão na contagem das horas.

Maheu disse que sim com a cabeça.

— E fala com esses senhores sobre o caso de teu pai. O médico é pau mandado da direção... Não é verdade, velho, que o doutor está enganado, que o senhor ainda pode trabalhar?

Havia dez dias que o velho Boa-Morte, os pés dormentes, como ele dizia, estava pregado a uma cadeira. A nora teve de repetir a pergunta, e ele então resmungou:

— Claro que posso trabalhar. Estou doente das pernas, mas não estou morto. Tudo isso são histórias que eles inventam para não me pagarem a pensão de cento e oitenta francos.

A mulher, que estava pensando nos quarenta soldos que o velho talvez nunca mais tornasse a trazer, soltou um grito de angústia.

—  Meu Deus do céu! Acabaremos todos mortos, se a coisa continua desse jeito.

—  Os mortos não têm fome — sentenciou Maheu.

Terminou o conserto dos sapatos com alguns pregos e por fim saiu. O conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante só receberia por volta das quatro horas. Por isso os homens não tinham pressa, demoravam-se, iam um a um, perseguidos pelas mulheres que lhes suplicavam para que voltassem logo. Muitas delas encomendavam coisas para ver se assim os impediam de parar pelas tabernas.

Etienne fora ao Rasseneur em busca de novidades. Corriam notícias alarmantes, dizia-se que a companhia andava cada vez mais descontente com o estaqueamento. Os operários viviam sendo multados, um conflito parecia fatal. Verdade é que aquela era apenas uma das faces da contenda, a visível; por baixo dela havia toda uma série de complicações, de causas graves e secretas.

No momento em que Etienne entrou, um companheiro, que bebia cerveja e estava voltando de Montsou, falava sobre um cartaz que vira pregado na caixa, só que não sabia muito bem o que estava escrito ali. Em seguida entrou outro, e mais outro. Cada um deles contava uma história diferente, mas parecia certo que a companhia finalmente tomara uma resolução.

— O que dizes disto? — perguntou Etienne, sentando-se ao lado de Suvarin, que não tinha mais que um pacote de tabaco sobre a mesa que ocupava.

O mecânico não mostrou pressa em responder, continuou enrolando o seu cigarro.

— Digo que era fácil de prever. Eles vão puxar a corda até arrebentá-la.

Só ele tinha a inteligência bastante desenvolvida para analisar a situação. Explicava-se com seu ar tranqüilo. A companhia, atingida pela crise, via-se forçada a reduzir seus gastos para não sucumbir. E naturalmente seriam os operários os primeiros a pagar pela situação: ela ia cercear os salários, inventando um pretexto qualquer. Havia dois meses que a hulha se amontoava no pátio das minas, quase todas as fábricas estavam fechando as portas. Como ela não ousava fazer o mesmo, temendo a inação, ruinosa para o material, planejava um meio-termo, talvez uma greve, da qual os mineiros sairiam domados, e corri menor salário. Por fim, a nova caixa de previdência inquietava-a: tornava-se uma ameaça para o futuro Com uma greve, ficaria livre dela, esvaziando-a, o que seria fácil já que a caixa ainda não tinha grandes reservas.

Rasseneur sentara-se ao lado de Etienne e ambos escutavam, com um ar consternado, o que o outro dizia. Podiam falar em voz alta; lá só estava a mulher do taberneiro, sentada atrás do balcão.

— Que idéia! — murmurou Rasseneur. — Para que tudo isso? A companhia não tem nenhum interesse numa greve e os operários também não. O melhor é que cheguem a um acordo.

Era muito prudente, mostrava-se sempre partidário das reivindicações razoáveis. Com a rápida popularidade do seu antigo inquilino, ele ficara reticente, desdenhava desse sistema de progresso, dizendo que não obtinha nada quem queria ter tudo de uma só vez. Na sua bonomia de obeso, de homem alimentado a cerveja, germinava um ciúme secreto, agravado pelo esvaziamento de sua casa, onde os operários da Voreux entravam agora em menor número para beber e para ouvi-lo. Assim é que, às vezes, chegava a defender a companhia, esquecendo seu rancor de antigo mineiro despedido.

— Então tu és contra a greve? — gritou a Sra. Rasseneur sem sair do balcão.

E, como ele respondesse energicamente que sim, ela mandou-o calar.

— Desalmado! Fica quieto e deixa os outros falarem. Etienne pensava, com os olhos postos na cerveja que ela lhe servira. Por fim levantou a cabeça.

— Tudo o que o camarada disse é bem possível. Se eles nos forçarem, seremos obrigados a fazer greve. A esse respeito Pluchart me escreveu com muito acerto. Ele também é contra a greve, porque nessas ocasiões o operário sofre tanto quanto o patrão e sem conseguir qualquer coisa de definitivo. No entanto, ele vê nela uma ocasião excelente, capaz de levar os nossos homens a entrarem na sua grande organização. Aqui está a carta dele...

Realmente, Pluchart, desolado com as desconfianças que a Internacional encontrava entre os mineiros de Montsou, esperava vê-los aderir em massa se um conflito os obrigasse a lutar contra a companhia. Apesar dos seus esforços, Etienne não conseguira colocar uma única carteira de membro em Montsou, mas também porque pusera todo o peso de sua influência na caixa de socorros, muito mais bem acolhida. A verdade, porém, é que a caixa ainda estava muito pobre, e deveria esvaziar-se rapidamente, como dizia Suvarin. Fatalmente, então, os grevistas voltar-se-iam para a Associação dos Trabalhadores, a fim de que seus irmãos de todos os países os auxiliassem.

— Quanto é que vocês têm em caixa? — perguntou Rasseneur.

— Não mais do que três mil francos — respondeu Etienne. — E como já sabem, a direção me chamou anteontem. São muito polidos, aqueles senhores... Repetiram que não impediam os operários de criar um fundo de reserva, mas deixaram subentendido que queriam controlá-lo... De qualquer maneira, vamos ter de travar uma batalha desse lado.

O taberneiro pusera-se a andar de um lado para outro, assobiando desdenhosamente.

— Três mil francos! E o que é que pretendem fazer com esse dinheiro? Não chega para seis dias de pão... E contar com os estrangeiros, essa gente que mora na Inglaterra, é um sonho, seria preferível ir logo preparando a cova. Não, francamente, esse plano de greve é uma grande besteira.

Então, pela primeira vez, aqueles dois homens, que de ordinário acabavam por entender-se no seu ódio comum ao capital, trocaram palavras ríspidas.

— Vejamos o que tu dizes disso — repetiu Etienne virando-se para Suvarin.

Este respondeu com a sua habitual palavra depreciativa:

— Greves? Ora, besteiras!

Em seguida, em meio ao silêncio ressentido que se armara, acrescentou brandamente:

— Em suma, não digo que não, se isso os diverte. Vai arruinar alguns, matar outros, é sempre uma limpezinha... Só que nesse ritmo gastaremos mil anos para renovar o mundo. Por que não começam fazendo explodir esse calabouço onde todos vocês deixam a pele?

Com a sua mão fina apontou para a Voreux, cujas construções podiam-se ver pela porta aberta. Nesse momento um drama imprevisto interrompeu-o: Polônia, a grande coelha caseira, que se arriscara a sair, voltava de um salto, fugindo das pedras de um bando de meninos aprendizes. E no seu pânico, de orelhas murchas e rabo levantado, veio refugiar-se contra as pernas dele, arranhando-o, implorando para ser posta no colo. Tendo deitado o animal nos joelhos, abrigando-o com as duas mãos, o russo caiu naquela espécie de sonolência sonhadora em que mergulhava ao acariciar o pêlo macio e tépido da coelha.                              

Maheu entrou quando as coisas estavam nesse pé. Não quis beber nada, apesar da insistência polida da Sra. Rasseneur, que vendia sua cerveja como se a estivesse oferecendo. Etienne levantou-se e ambos partiram para Montsou.

Nos dias de pagamento nos escritórios da companhia, Montsou parecia estar em festa, como nos belos domingos do padroeiro. De todos os conjuntos habitacionais operários chegava uma multidão de mineiros. O escritório do caixa era muito pequeno e eles preferiam esperar à porta; estacionavam em grupos na calçada e impediam o trânsito com uma fila enorme e que crescia sempre. Os vendedores ambulantes aproveitavam a ocasião e ali instalavam suas tendas de rodas, exibindo nos seus mostruários até louças e salsicharia. Mas eram sobretudo os cafés e os botequins que faziam uma boa féria, já que os mineiros, antes de receberem o pagamento, iam pacientar diante dos balcões e depois, com o dinheiro no bolso, voltavam para diluí-lo. Isso, quando não acabavam com ele no Volcan.

À medida que Maheu e Etienne avançavam por entre os grupos, sentiam no ar um surdo exaspero. Não era a habitual despreocupação do dinheiro recebido e esbanjado nas tabernas. Os punhos estavam cerrados, corria de boca em boca um sopro de violência.

— Então é verdade? — perguntou Maheu a Chaval, que se encontrava em frente ao Piquette. — A sujeira está feita?

Chaval, no entanto, contentou-se em responder com um grunhido furioso, olhando de revés para Etienne.

Depois da renovação da empreitada, fora trabalhar com outros, aos poucos roído de inveja do companheiro, esse recém-chegado que queria ser líder e a quem todo o conjunto habitacional, dizia ele, vinha lamber as botas. Esse despeito complicava-se com um amuo de amante: toda vez que levava Catherine a Réquillart ou para trás do aterro, acusava-a em termos abomináveis de dormir com um hóspede da família; em seguida afogava-a em carícias, presa de um desejo selvagem.

Maheu fez-lhe outra pergunta:

— É a vez da Voreux?

E como o outro lhes desse as costas, depois de ter respondido afirmativamente com a cabeça, os dois homens decidiram-se a entrar no escritório.

A pagadoria era uma peça acanhada, retangular, dividida em duas por um gradeado. Sentados em bancos dispostos ao longo das paredes, cinco ou seis mineiros esperavam, enquanto o caixa, ajudado por um funcionário, pagava a outro que estava em pé diante do guichê, de boné na mão. Por cima do banco da esquerda estava colado um cartaz amarelo cuja cor sobressaía no reboco de um pardo opaco. E era por ali que havia um desfile contínuo de homens desde a manhã. Entravam em grupos de dois ou três, ficavam parados por algum tempo e depois partiam calados, balançando os ombros, como se tivessem recebido uma bordoada nas costas.

Naquele momento havia dois mineiros diante do cartaz: um, jovem, com uma cabeçorra quadrada e bestial, e outro já velho, muito magro, o rosto embotado pela idade. Nenhum dos dois sabia ler: o mais moço soletrava movendo os lábios, o velho limitava-se a olhar estupidamente. Muitos entravam assim, só para ver, sem poder compreender.

— Lê isso para a gente — disse Maheu ao companheiro. Ele também não era forte na leitura.

Etienne pôs-se a ler o cartaz. Era um aviso da companhia aos mineiros de todas as galerias, advertindo-os de que, diante do descuido com que estava sendo feito o estaqueamento, cansada de infligir multas inúteis, resolvera aplicar um novo método de pagamento para o abate da hulha. De agora em diante, pagaria o estaqueamento à parte, por metro cúbico de madeira descida e empregada, baseando-se na quantidade necessária para um bom trabalho. O preço do vagonete de carvão abatido seria naturalmente diminuído, numa proporção de cinqüenta para quarenta cêntimos, segundo, claro está, a natureza e a distância dos veios. A seguir, um cálculo bastante obscuro

tentava provar que essa diminuição de dez cêntimos ficava exatamente compensada pelo preço do estaqueamento. Para concluir, a companhia acrescentava que, querendo deixar a cada um o tempo necessário para se convencer das vantagens do novo sistema, pretendia aplicá-lo somente a partir de segunda-feira, primeiro de dezembro.

— Faça o favor, leia mais baixo! — gritou o caixa. — Com esse barulho não é possível trabalhar.

Etienne terminou sua leitura sem levar em conta a observação do funcionário. Sua voz estava trêmula, e, quando acabou, todos continuaram a olhar fixamente para o cartaz. O velho mineiro e o rapaz pareciam estar esperando por mais coisas. Depois foram-se, como que vergados.                  

— Infames! — murmurou Maheu.

Ele e seu companheiro sentaram-se, absortos, de cabeça baixa, enquanto o desfile continuava em frente ao papel amarelo. Aquilo mais parecia uma brincadeira! Jamais poderiam ressarcir-te dos dez cêntimos descontados de vagonete apenas com o estaqueamento. No máximo receberiam oito cêntimos, sem contar o tempo perdido num trabalho de estaqueamento cuidadoso. Era a isso que ela queria chegar, a esse rebaixamento de salário disfarçado! O que estava fazendo era economia com o suor dos mineiros.

— Malditos infames! — repetiu Maheu, levantando a cabeça. — Não passamos de uns incapazes se aceitarmos isso.

Como o guichê estava livre, ele aproximou-se para receber. Os chefes das empreitadas apresentavam-se sozinhos à caixa e depois repartiam o dinheiro entre seus homens, o que economizava tempo.

— Maheu e consócios — disse o funcionário. — Veio Filonnière, seção número sete.

Procurava nas listas que eram feitas de acordo com as cadernetas, onde os contramestres, diariamente e por seção, anotavam o número de vagonetes extraídos. Em seguida repetiu:

— Maheu e consócios, veio Filonnière, seção número sete... Cento e trinta e cinco francos.

O caixa pagou.

— Perdão, senhor — balbuciou o britador transido —, está certo de que é isso mesmo?

Olhava para a ínfima quantia sem tocá-la, perpassado por um leve frêmito que lhe atingia o coração, gelando-o. Claro que esperava um pagamento reduzido, mas não tanto assim... Ou será que seus cálculos estavam errados? Após ter entregue a Zacharie, Etienne e ao outro companheiro que substituía Chaval seus quinhões respectivos, sobrariam quando muito cinqüenta francos para ele, seu pai, Catherine e Jeanlin.

— Não, não estou enganado — disse o empregado. — Foram descontados dois domingos e quatro dias em que não houve trabalho, um total de nove dias.

Maheu seguia aquele cálculo adicionando baixinho: nove dias dariam a ele aproximadamente trinta francos, dezoito a Catherine, nove a Jeanlin. Quanto ao velho Boa-Morte, só trabalhara três dias. Com tudo isso, somando os noventa francos de Zacharie e dos dois camaradas, era com certeza muito mais.

— E não esqueça que houve multas — concluiu o funcionário. — Só nelas foram vinte francos por revestimentos defeituosos.

O britador não sopitou um gesto de desespero. Vinte francos de multas, quatro dias sem trabalho! Tudo se esclarecia... E dizer que houvera quinzenas em que recebera cento e cinqüenta francos, quando o pai ainda trabalhava e Zacharie era solteiro!

—  Vai apanhar o dinheiro ou não vai? — exclamou o caixa com impaciência. — Não vê que há outro esperando? Se não quer, diga.

Quando Maheu começou a juntar o dinheiro com a sua grossa mão trêmula, o empregado falou-lhe novamente.

— Espere, tenho o seu nome aqui comigo. Toussaint Maheu, não é? O senhor secretário-geral deseja vê-lo. Pode entrar, ele está só.

Atordoado, o operário achou-se num gabinete mobiliado de mogno velho e forrado com um tecido verde já desbotado. E durante cinco minutos escutou o secretário-geral, um homem alto e macilento, que lhe falou sem se levantar, por cima dos papéis espalhados na mesa. Não podia ouvir direito devido a um zumbido nos ouvidos. Compreendeu vagamente que se tratava do seu pai, cuja aposentadoria estava sendo estudada, com um teto de pensão de cento e cinqüenta francos, cinqüenta anos de idade e quarenta de serviços prestados. Em seguida, pareceu-lhe que a voz do secretário ficava mais áspera. Era uma repreensão, acusavam-no de estar fazendo política, uma alusão foi feita ao seu locatário e à caixa de previdência. Por fim o outro aconselhou-o a não se comprometer com tais loucuras, pois era um dos melhores operários da mina. Quis protestar, mas só conseguiu pronunciar palavras sem nexo, amarrotou o boné entre os dedos e retirou-se gaguejando:

— Certamente, senhor secretário... Asseguro-lhe, senhor secretário...

Já do lado de fora, ao dar com Etienne, que o esperava, explodiu.

— Eu sou um incapaz, devia ter respondido! O que pagam não chega para o pão, e ainda me vêm com histórias! Claro, a coisa é contra ti, disse-me que o conjunto habitacional está envenenado... Que se pode fazer? Diacho! Curvar-se, agradecer... Ele tem razão, é mais prudente.

O infeliz calou-se, dividido entre a cólera e o medo. Etienne meditava com ar sombrio. Novamente atravessaram os grupos que atravancavam a rua. A exasperação crescia, uma exasperação de gente calma, um murmúrio que prenunciava a tempestade, sem gestos violentos, pairando terrível por cima da multidão compacta. Algumas cabeças que sabiam contar tinham feito o cálculo e os dois cêntimos arrebatados pela companhia no estaqueamento circulavam, exaltavam até os mais ignorantes. Mas era sobretudo a fúria contra aquele pagamento desastroso que circulava, a revolta da fome contra as folgas e as multas. Já não se comia mais, o que iria acontecer agora com esse corte nos salários? Nos cafés, a fúria tinha livre curso, a cólera secava a tal ponto as goelas que a ninharia recebida ficava toda sobre os balcões.

De Montsou até o conjunto habitacional, Etienne e Maheu não trocaram palavra. Quando este último entrou, a mulher, que estava sozinha com as crianças, deu-se conta imediatamente de que ele voltara de mãos abanando.

— Como és bonzinho! — disse ela. — Onde está o café, o açúcar e a carne que pedi? Um pedaço de vitela não seria a causa da tua ruína.

Ele não respondeu, sufocado por uma emoção reprimida. Mas, em seguida, houve uma explosão de desespero naquele rosto denso de homem enrijecido nos trabalhos das minas, e grossas lágrimas saltaram em borbotões dos seus olhos. Desmoronou sobre uma cadeira chorando como criança e jogou os cinqüenta francos na mesa.

— Toma — gaguejou ele —, é isto o que te trago... Do trabalho de toda a família...

A mulher virou-se para Etienne, que estava mudo e abatido. Ela também começou a chorar. Como alimentar nove pessoas com cinqüenta francos para quinze dias? O filho mais velho os abandonara, o velho já não podia caminhar, era a morte certa para todos eles! Alzire jogou-se ao pescoço da mãe, aterrorizada ao vê-la chorando. Estelle começou a berrar, Lénore e Henri soluçavam.

E de todo o conjunto habitacional começou a subir o mesmo grito de miséria. Os homens tinham voltado, cada família se lamentava ante o desastroso pagamento. As portas se abriram, mulheres surgiram nas soleiras, aos gritos, como se os tetos das casas

não mais pudessem conter suas queixas. Caía uma chuva fina que elas não sentiam, aos gritos umas às outras, mostrando na palma da mão o mísero dinheiro.

— Olha só o que eles pagaram! Então isso não é uma vergonha?

— E eu, que nem sequer para o pão da quinzena tenho!

— E o que dizem de mim? Contem, contem aqui na minha mão! Vou ter que vender minhas camisolas outra vez.

A mulher de Maheu foi para fora como as outras. Formou-se um grupo em torno da esposa de Levaque, que era a que gritava mais forte, porque o beberrão do marido nem sequer voltara e ela sabia que, muito ou pouco, todo o dinheiro recebido ia esboroar-se no Volcan. Philomène espreitava Maheu, para saltar sobre Zacharie no momento em que este fosse apanhar seu quinhão. Só a mulher de Pierron parecia calma: o salafrário do marido se arranjava sempre, ninguém sabia como, para ter mais horas que os outros na caderneta do contramestre. A Queimada, no entanto, achava isso uma covardia da parte do genro, estava entre as exaltadas, magra e ereta no meio do grupo, de punho ameaçador apontando para Montsou.

— E dizer — gritava ela, sem nomear os Hennebeau — que eu vi a empregada deles andando de caleça hoje de manhã! Juro! A cozinheira, na caleça de dois cavalos, indo a Marchiennes, na certa para comprar peixe!

Elevou-se um clamor e as violências recrudesceram. Essa empregada de avental branco, indo ao mercado da cidade vizinha na carruagem dos patrões, levantava uma indignação geral. Enquanto os operários morriam de fome, eles não podiam passar sem peixe na mesa! Mas isso não podia continuar, um dia não comeriam mais peixe, a vez do pobre tinha de chegar... E as idéias semeadas por Etienne tomavam corpo. Era um grito de revolta. Era a impaciência pela idade de ouro prometida, a pressa para gozarem do seu quinhão de felicidade, libertos enfim desse horizonte de miséria, esmagador como um sepulcro. A injustiça estava-se tornando quase insuportável, acabariam por exigir seus direitos, uma vez que lhes era tirado o pão da boca. As mulheres, sobretudo, queriam entrar de assalto, imediatamente, nessa cidade ideal do progresso, onde não haveria miseráveis.

Era quase noite e a chuva caía cada vez mais forte. As mulheres continuavam a inundar com suas lágrimas o conjunto habitacional, em meio à gritaria enlouquecedora das crianças.

A noite, no Avantage, a greve ficou decidida. Rasseneur já não mais a combatia e Suvarin aceitava-a como um primeiro passo. Concisamente, Etienne descreveu a situação: se a companhia queria a greve, ia tê-la.

 

Transcorreu uma semana, o trabalho continuou num ambiente de desconfiança sombria, na expectativa do conflito.

Na casa dos Maheu, a quinzena anunciava-se como devendo ser ainda mais magra. Por esse motivo, a mulher, apesar da sua moderação e bom senso, tornava-se cada vez mais azeda. Pois não é que sua filha, Catherine, tivera a audácia de passar uma noite fora? Na manhã seguinte voltara tão cansada e doente dessa aventura que não pôde ir trabalhar. Disse, chorando, que não tinha culpa, fora Chaval quem a obrigara, ameaçando-a com uma surra se escapasse. O amante estava enlouquecendo de tanto ciúme, queria impedi-la de voltar ao leito de Etienne, onde, tinha certeza — dizia ele —, a família a fazia dormir. A mãe, furiosa, após ter proibido sua filha de rever tal crápula, falou em ir a Montsou para esbofeteá-lo. Mas seria perder tempo, e a moça, já que tinha seu homem, preferia não o trocar.

Dois dias mais tarde aconteceu outra história. Na segunda e na terça-feira, Jeanlin, que todos julgavam estar tranqüilamente trabalhando na Voreux, escapou para uma incursão pelos pântanos e pela floresta de Vandame, carregando consigo Bébert e Lydie, por ele desencaminhados. Nunca se soube a que roubos, a que brinquedos proibidos de crianças precoces os três se entregaram. Jeanlin recebeu um forte corretivo, uma surra aplicada do lado de fora, na calçada, diante das apavoradas crianças do conjunto habitacional. Onde é que se vira coisa igual? Filhos que pusera no mundo, que desde o nascimento davam gastos, que deviam agora estar ajudando a manutenção da casa! Nesse grito havia a lembrança da sua atribulada juventude, da miséria hereditária que obrigava cada filho da família a ser um ganha-pão para o futuro.

Nessa manhã, tendo os homens e a moça partido para a mina, a mulher levantou a cabeça do travesseiro para dizer a Jeanlin:

— Escuta bem, cachorro sem-vergonha: se voltares a fazer o que fizeste eu te esfolo vivo.

O novo local de trabalho exigia um esforço penoso de Maheu e seus companheiros. Aquele trecho do veio Filonnière era tão estreito que os britadores, espremidos entre o muro e o teto, esfolavam os cotovelos durante o abate. Além disso, era cada vez mais úmido, receava-se que a qualquer momento a água jorrasse, numa dessas bruscas torrentes que rebentam as rochas e arrastam os homens. Na véspera, quando Etienne trabalhava metendo violentamente sua picareta na hulha, ao retirá-la recebeu um jacto de água no rosto. Foi como um toque de alerta, e o recinto ficou simplesmente mais molhado e insalubre. Aliás, ele já nem pensava mais nas possíveis catástrofes, entrosado com os camaradas, esquecido do perigo. Viviam no meio do grisu sem mesmo sentir seu peso sobre as pálpebras o véu de teia de aranha que ele deixava nos cílios. Às vezes, quando a chama das lâmpadas enfraquecia e ficava muito azul, lembravam-se de sua existência, e um mineiro encostava a cabeça no veio para escutar o leve ruído do gás, um ruído de bolha de ar borbulhando em cada fenda. Mas a constante ameaça eram os desmoronamentos, já que, além da insuficiência do estaqueamento, sempre feito às pressas, o terreno, minado pela água, não era firme. Por três vezes naquele dia Maheu tivera de mandar pôr reforços no estaqueamento. Eram duas e meia, os homens iam começar a subir. Deitado de lado, Etienne terminava o abate de um bloco quando um longínquo ribombar de trovão abalou toda a mina. 

— Que é isso? — gritou ele, largando a picareta para escutar. 

Por um momento acreditou que a galeria desabava por cima deles. Mas Maheu já escorregava pelo declive do filão, dizendo:

— É um desmoronamento... Depressa! Depressa!

Todos escorregaram declive abaixo, precipitadamente, levados por um impulso de fraternidade apreensiva. As lâmpadas balançavam nas suas mãos, no mortal silêncio que se fizera; corriam em fila ao longo das vias, de espinhas dobradas, como se estivessem galopando sobre os quatro membros. E, sem frear essa corrida, interrogavam-se, davam respostas sucintas: Onde? Onde? Seria nos desmontes? Não, o barulho vinha mais de baixo! Talvez da galeria de rodagem! Ao chegarem à chaminé de ventilação, precipitaram-se por ela, de cambulhada, sem se preocuparem com as contusões.

Jeanlin, com o couro ainda ardendo da surra da véspera, não escapara da mina naquele dia. Trotava descalço atrás do seu comboio de vagonetes, fechando uma a uma as portas de ventilação. E às vezes, quando sabia que não encontraria um contramestre,

subia no último vagonete, o que lhe estava proibido para evitar que dormisse. A sua grande distração era ir ter com Bébert, que viajava na frente, guiando, cada vez que o comboio entrava num desvio para deixar outro passar. Vinha em silêncio, sorrateiramente, sem a lâmpada, beliscava o companheiro até fazer sangue, inventava brincadeiras de menino perverso, com aqueles seus cabelos amarelos, suas orelhas enormes, sua cara magra iluminada por pequenos olhos verdes que brilhavam no escuro. De uma precocidade malsã, parecia ter a inteligência obscura e a destreza viva de um aborto humano que estivesse regredindo à animalidade de origem.

À tarde, Mouque entregou aos aprendizes o Batalha, cujo turno de trabalho começava. E, como o animal resfolegasse num desvio. Jeanlin, que fora ter com Bébert, disse-lhe:

— O que é que há com esse matungo, que toda hora estaca? Numa dessa vai quebrar-me as pernas...

Bébert não pôde responder, retendo Batalha, que ficara todo alvoroçado com a aproximação de outro comboio. O cavalo reconhecera de longe, pelo faro, seu camarada Trombeta, pelo qual se tomara de grande ternura desde o dia em que o vira desembarcando no fundo do poço. Dir-se-ia a piedade afetuosa de um velho filósofo, desejoso de facilitar a vida do jovem amigo, inspirando-lhe resignação e paciência, porque Trombeta não se aclimatava, puxava os vagonetes sem vontade, permanecia de cabeça baixa, cego de tanta treva, com a constante nostalgia do sol. Assim, toda vez que Batalha o encontrava, espichava o pescoço, relinchando, incitando o outro com uma carícia de encorajamento.

— Raios de cavalos! — praguejou Bébert. — Já estão outra vez trocando carinhos...

Após a passagem de Trombeta, ele respondeu a respeito de Batalha:

— Este velhote é sabido. Quando estaca assim é porque está adivinhando algum tropeço pela frente, uma pedra, um buraco, sei lá... E ele se cuida, não quer machucar-se. Hoje não sei o que poderá haver logo depois da porta. Assim que a empurra, ele estaca... Sentiste alguma coisa tu também?

— Não — respondeu Jeanlin. — Há água, fico com ela até os joelhos.

O comboio voltou a partir. E na viagem seguinte, tendo aberto a porta de ventilação com a cabeça, Batalha, novamente, recusou-se a avançar, rinchando e tremendo. Por fim decidiu-se e partiu.

Jeanlin, que fechava a porta, ficara para trás. Abaixou-se para observar o charco em que chafurdava; depois, levantando sua lâmpada, percebeu que as madeiras tinham vergado com a infiltração contínua de um ponto de água. Justamente nesse momento, um britador chamado Berloque, apelidado Chicot, vinha do seu veio, com pressa para ir ver sua mulher, que estava de parto. Ele também parou para examinar o estaqueamento. E, de repente, quando o menino ia sair correndo para alcançar seu comboio, ouviu-se um estalo formidável e o desabamento submergiu o homem e a criança.

Houve um grande silêncio. Impelida pelo deslocamento de ar, uma poeira espessa invadiu as vias laterais. Cegos, sufocados, os mineiros surgiam de todas as partes, dos veios mais longínquos, com suas lâmpadas balouçantes que mal davam para iluminar essa correria de homens enegrecidos, no fundo daquelas tocas de toupeira. Quando os primeiros esbarraram nos escombros, começaram a gritar, chamando os camaradas. Um outro grupo, vindo pela via do fundo, achava-se do outro lado do desmoronamento, cuja massa selava a galeria. Imediatamente verificaram que o teto desabara numa extensão de aproximadamente dez metros. O estrago não tinha nada de grave, mas os corações apertaram-se quando um estertor saiu dos escombros.

Bébert, largando seu comboio, acorreu repetindo:

— Jeanlin está aí embaixo! Jeanlin está aí embaixo!

Nesse exato momento, Maheu, acompanhado de Zacharie e Etienne, surgia na boca da chaminé. Foi tomado por um furor desesperado e só conseguiu praguejar:

— Com mil raios! Com mil raios! Com mil raios! Catherine, Lydie e a filha de Mouque, que também tinham acorrido, puseram-se a soluçar, a gritar de terror, em meio à pavorosa desordem que as trevas aumentavam. Tentaram fazê-las calar, mas elas estavam enlouquecidas e a cada estertor gritavam mais forte.

O contramestre Richomme chegou correndo, contrariado por não estarem na mina nem o engenheiro Négrel, nem Dansaert. Com o ouvido colado ao entulho, escutou, e acabou declarando que aqueles queixumes não eram de criança. Um homem, certamente, estava soterrado ali. Maheu gritou umas vinte vezes o nome do filho, mas nem sua respiração era ouvida. O menino devia estar esmagado.

Mas o estertor continuava, monótono. Falaram com o agonizante, perguntaram seu nome, apenas o gemido vinha como resposta.

— Apressemo-nos! — gritou Richomme, que já organizara os serviços de salvamento. — Depois se conversa.

De ambos os lados, os mineiros começaram a desentulhar, com picaretas e pás. Chaval trabalhava em silêncio ao lado de Maheu e de Etienne, enquanto Zacharie dirigia a remoção dos escombros. Era a hora de deixar o trabalho, ninguém comera ainda; mas quem abandonaria companheiros em perigo para ir comer tranqüilamente sua sopa? No entanto, pensaram no pessoal do conjunto habitacional, que já devia estar inquieto vendo que ninguém voltava, e alguém propôs enviar as mulheres. Nem Catherine, nem a filha de Mouque nem mesmo Lydie quiseram afastar-se, roídas pelo desejo de saber quem estava ali, ajudando o desentulhar. Levaque aceitou então a missão de anunciar o desmoronamento como um simples estrago que estava sendo reparado. Eram quase quatro horas, em menos de uma hora os operários tinham feito o trabalho de um dia; metade do entulho já podia ter sido removido se não tivessem caído do teto outras rochas. Maheu trabalhava com tal obstinação e fúria que, se alguém se aproximava para substituí-lo, ele o afastava com um gesto terrível.

— Devagar, devagar... — disse enfim Richomme. — Já estamos perto deles, dessa maneira acabaremos de matá-los.

Realmente, o estertor era cada vez mais distinto. Era esse gemido contínuo que guiava os trabalhadores; agora eles pareciam estar por baixo das picaretas. Bruscamente, cessaram.

Todos se olharam em silêncio, arrepiados por terem sentido passar o frio da morte pelas trevas. Continuaram a cavar, inundados de suor, os músculos retesados a ponto de se romperem. Encontraram um pé e a partir daí o entulho foi retirado com a mão. Os membros foram aparecendo. A cabeça não tinha sofrido. As lâmpadas o iluminaram e o nome de Chicot passou de boca em boca. Ainda estava quente, mas com a coluna vertebral quebrada por uma rocha.

— Enrolem-no com uma manta e ponham-no num vagonete — ordenou o contramestre. — Agora ao garoto, depressa!

Maheu enfiou mais uma vez sua picareta e fez uma abertura pela qual já podia se comunicar com os homens que trabalhavam do outro lado. Estes gritaram: acabavam de encontrar Jeanlin desmaiado, as duas pernas quebradas, respirando ainda. Foi o pai que carregou o pequeno no colo. De dentes cerrados, continuou a praguejar: era a única maneira de expressar sua dor. Por sua vez, Catherine e as outras mulheres puseram-se novamente a gritar.

Formou-se rapidamente o cortejo. Bébert trouxe Batalha, que foi atrelado aos vagonetes; no primeiro jazia o cadáver de Chicot, carregado por Etienne, no segundo

sentou-se Maheu, levando ao colo Jeanlin desacordado, coberto com um pedaço de lã arrancado de uma porta de ventilação. Partiram vagarosamente. Em cada vagonete luzia uma lâmpada, que era como uma estrela vermelha. Atrás, seguiam os mineiros, umas cinqüenta sombras em fila. Agora que o cansaço se abatera sobre eles, caminhavam arrastando os pés, escorregando na lama, com a lassidão de um rebanho atacado por uma epidemia. Foi necessária cerca de meia hora para chegarem ao patamar do poço. Parecia que aquela procissão não tinha mais fim, marchando nas entranhas da terra, em meio à escuridão, ao longo de galerias que bifurcavam, davam voltas, espichavam...

No patamar do poço, Richomme, que partira adiante, dera ordem para que reservassem um elevador vazio. Pierron embarcou logo os dois vagonetes. Num ficou Maheu com seu filho ferido sobre os joelhos, enquanto no outro Etienne permanecia com o cadáver de Chicot nos braços, para que este não escorregasse. Assim que os operários se amontoaram nos outros andares, o elevador subiu. Levou dois minutos. A água que jorrava do estaqueamento estava gélida; os homens olhavam para cima, impacientes por verem novamente a luz do dia.

Felizmente, um aprendiz enviado à casa do Dr. Vanderhaghen tinha-o encontrado e trazia-o. Jeanlin e o morto foram levados para o quarto dos contramestres, onde, durante o ano inteiro, ardia um grande fogo. Foram colocados ali dois baldes de água quente, prontos para a lavagem dos pés, e, tendo estendido dois colchões no chão, deitaram o homem e o menino. Apenas Maheu e Etienne entraram na peça. Fora, operadoras de vagonetes, mineiros e garotos em busca de notícias formavam um grupo e conversavam em voz baixa.

O médico, mal examinou Chicot, foi logo dizendo:

— Acabado! Podem lavá-lo...

Dois vigias despiram e lavaram com esponja aquele cadáver negro de carvão, ainda sujo do suor do trabalho.

— A cabeça não tem nada — continuou o doutor, de joelhos sobre o colchão de Jeanlin. — O peito também não... Ah!... foram as pernas que sofreram.

Ele mesmo despiu a criança, desatou o lenço da cabeça, tirou a jaqueta, a camisa, puxou as calças com uma destreza de ama. E o pobre corpinho surgiu, magro como um inseto, imundo de poeira negra e terra amarela, que o sangue manchava. Como não se distinguia nada, ele também teve de ser lavado. Sob a esponja pareceu ainda mais magro, a carne tão lívida e transparente que se viam os ossos. Era de partir o coração aquela degenerescência final de uma raça de miseráveis, aquele pobre serzinho sofredor,

meio esmagado pela queda das rochas. Assim que o lavaram, puderam-se ver as contusões nas coxas, dois traços vermelhos na pele branca.

Voltando a si, Jeanlin deu um gemido. Em pé ao lado do colchão, de braços caídos, Maheu olhava para o filho. E grossas lágrimas começaram a rolar dos seus olhos.

— Então tu é que és o pai? — perguntou o doutor, levantando a cabeça. — Pois não chores, bem vês que ele não está morto, antes ajuda-me.

Constatou a existência de duas fraturas simples. Mas a perna direita o preocupava: sem dúvida teria de cortá-la.

Nesse momento, o engenheiro Négrel e Dansaert, finalmente avisados, chegaram, acompanhados de Richomme. O primeiro escutou os fatos da boca do contramestre com ar exasperado. E explodiu: sempre esses malditos estaqueamentos! Já não dissera cem vezes que por causa disso alguém ia morrer? E aqueles animais ainda falavam em entrar em greve se fossem forçados a dar maior solidez ao estaqueamento! O pior era que a companhia agora pagaria o pato... O Sr. Hennebeau ia ficar bem satisfeito com tudo isso!

— Quem é esse? — perguntou ele a Dansaert, silencioso diante do cadáver que enrolavam num lençol.

— Chicot, um dos nossos bons operários — respondeu o capataz. — Tem três filhos... Pobre-diabo!

O Dr. Vanderhaghen ordenou que Jeanlin fosse transportado imediatamente para casa. Deram seis horas, descia o crepúsculo, o defunto também devia ser transportado. O engenheiro deu ordens para que se atrelasse o furgão e trouxessem a maca. O pequeno ferido foi colocado na maca, enquanto metiam no furgão o colchão com o morto.

A porta permaneciam ainda muitas operadoras de vagonetes, conversando com mineiros que haviam ficado para ver. Quando o quarto dos contramestres foi reaberto, um silêncio se abateu sobre o grupo. Formou-se então um novo cortejo, o furgão à frente, a maca atrás, em seguida a turba. Deixaram o pátio da mina, subiram lentamente a estrada ascendente do conjunto habitacional. Os primeiros frios de novembro tinham desnudado a imensa planície, uma noite lenta a sepultava, como uma mortalha caída do céu lívido.

Etienne, então, aconselhou em voz baixa Maheu a enviar Catherine para prevenir a mulher, amortecendo assim o golpe. O pai, que seguia a maca, completamente abatido, assentiu com um gesto e a moça saiu correndo, porque já estavam quase chegando. Mas o furgão, essa caixa sombria bem conhecida de todos, já fora notado. Mulheres enlouquecidas iam para as calçadas; três ou quatro, com os cabelos ao vento, corriam angustiadas. Em seguida foram trinta, depois cinqüenta, todas estranguladas pelo mesmo

terror. Então havia um morto? Quem era? A história contada por Levaque, depois de as ter tranqüilizado, lançava-as agora num exagero de pesadelo: não era mais só um homem, eram dez que tinham morrido e o furgão iria trazer, um por um.

Catherine encontrou sua mãe agitada por um pressentimento. Logo às primeiras palavras balbuciadas, esta gritou:

— Teu pai morreu!

Em vão a moça disse que não, falou de Jeanlin. Sem querer ouvir mais, a mulher lançou-se para a rua. E, vendo o furgão que desembocava diante da igreja, ficou muito pálida e caiu desmaiada. Às portas, mulheres, mudas de horror, espichavam o pescoço, enquanto outras seguiam o cortejo, tremendo à idéia de saber em que casa ele pararia.

O carro passou. Logo atrás, a mulher de Maheu percebeu o marido acompanhando a maca. Quando pousaram a padiola diante da sua porta e ela viu Jeanlin vivo, com as duas pernas quebradas, teve uma reação tão repentina que ficou sufocada pela cólera e só conseguiu gaguejar, os olhos enxutos:

— Então é isto? Agora eles nos aleijam os filhos... Meu Deus, e as duas pernas!... O que vai ser de mim!

— Cala a boca! — ordenou o Dr. Vanderhaghen, que tinha vindo para fazer o curativo de Jeanlin. — Preferias que ele tivesse ficado por lá?

Mas a mulher estava cada vez mais violenta em meio às lágrimas de Alzire, Lénore e Henri. Enquanto ajudava a subirem o ferido e dava ao doutor tudo de que ele necessitava, maldizia-se, perguntava onde queriam que ela fosse buscar dinheiro para alimentar doentes. Não chegava o velho, agora também o garoto perdia as pernas! E não cessava de lamentar-se, enquanto outros gritos, lamentações aterradoras, saíam de uma casa próxima: eram a mulher e os filhos de Chicot que choravam sobre o defunto.

Era noite fechada. Os mineiros, exaustos, comiam enfim sua sopa, no conjunto habitacional mergulhado num silêncio lúgubre, atravessado apenas por aqueles gritos dilacerantes.

Decorreram três semanas. A amputação fora evitada, Jeanlin conservava ambas as pernas, mas ficara coxo. Depois de um inquérito, a companhia resignara-se a dar um auxílio de cinqüenta francos. Além disso, prometera procurar para o pequeno aleijado um emprego na superfície, logo que estivesse restabelecido. Apesar disso, a miséria agravou-se, já que Maheu, de tão abalado, ficou doente e ardeu em febre por alguns dias. Na quinta-feira seguinte, já curado, o homem voltou ao trabalho.

No domingo à noite, Etienne falou sobre o primeiro de dezembro que se aproximava, preocupado em saber se a companhia executaria sua ameaça naquela data. Ficaram acordados até as dez horas, esperando Catherine, que saíra com Chaval. Como a moça não voltou, a mulher, furiosa, fechou a porta com ferrolho, sem uma palavra. Etienne demorou-se a dormir; nervoso com aquela cama vazia, onde Alzire ocupava tão pouco espaço.

Na manhã do dia seguinte Catherine continuou ausente. Somente à tarde, na volta da mina, foi que os Maheu souberam que Chaval decidira que a moça ficaria com ele. O homem fazia cenas tão terríveis, que ela resolvera ir viver com ele. Para evitar falatórios, Chaval demitiu-se bruscamente da Voreux, indo empregar-se na Jean-Bart, o poço do Sr. Deneulin, onde ela o seguiu como operadora de vagonetes. Fora isso, o novo casal continuou morando em Montsou, no Piquette.

No princípio, Maheu disse que ia esbofetear o homem e trazer a filha de volta para casa a pontapés no traseiro. Depois, resolveu resignar-se: para quê? Era sempre assim, não se podia impedir as mulheres de se amigarem quando tinham vontade. O melhor mesmo era esperar tranqüilamente pelo casamento.

Mas a mulher não via as coisas pelo mesmo prisma.

— Diga, eu a espanquei quando ela resolveu meter-se com esse Chaval? — gritava ela para Etienne, que a escutava, silencioso e muito pálido. — Vamos, responda! O senhor, que é um homem razoável, responda! Nós a deixamos livre, não foi? Meu Deus, eu sei que todas passam por isso! Veja eu, estava grávida quando casei, mas não fugi da casa dos meus pais, nunca faria essa sujeira de entregar antes da idade o dinheiro dos meus dias de trabalho a um homem que não precisa. Ah, como tenho razão de estar enojada de tudo! Vai chegar o tempo em que não se quererá mais ter filhos...

E, como Etienne continuasse em silêncio, respondendo apenas com movimentos de cabeça, ela insistia:

— Uma moça que ia aonde queria e todas as noites! Que foi que ele lhe andou metendo na cabeça? Será que não podia esperar que eu a casasse depois de nos ter ajudado a sair do atoleiro em que nos encontramos? Não era assim que ela tinha que agir? Afinal, a gente tem uma filha para que ela trabalhe, não é isso? Mas nós fomos bons demais, nunca devíamos ter permitido que andasse por aí com um homem. Dá-se um dedo e elas tomam logo o braço todo, é sempre assim.

Alzire aprovava com a cabeça. Lénore e Henri, amedrontados com aquela gritaria, choravam baixinho. A mulher, agora, desfiava seu rosário de desgraças: primeiro

Zacharie, a quem tiveram de casar; em seguida o velho Boa-Morte, imobilizado numa cadeira, com os pés inutilizados; depois Jeanlin, que não poderia deixar a cama antes de dez dias, com os ossos ainda mal colados; e finalmente, para cúmulo dos males, a prostituta da Catherine resolvera fugir com um homem! A casa ia por água abaixo, só o pai continuava trabalhando e trazendo dinheiro. Como é que haviam de viver sete pessoas, sem contar Estelle, com os três francos do pai? Ah, o melhor era atirarem-se todos juntos no canal!

— Não adianta nada estares aí massacrando-te — disse Maheu com voz surda. — Talvez ainda não estejamos tão mal assim.

Etienne, que olhava fixamente para as pedras do chão, levantou a cabeça e, com os olhos perdidos numa visão do futuro, murmurou:

— Ah! chegou a hora! chegou a hora!

                                                         

                                                                              CONTINUA

 

                      

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