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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Gritos Noturnos / Nora Roberts
Gritos Noturnos / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Gritos Noturnos

 

Não era um lugar muito agradável para se encontrar com um informante. Uma noite fria, uma rua escura, com cheiro de whisky e suor, que se filtrava através das rachaduras da porta do bar que tinha a suas costas. Colt pegou um charuto fino enquanto estudava o saco de ossos que havia vendido algumas informações importantes a ele. Ainda que tivesse pouco que olhar: baixo, magro e feio como o pecado. À brilhante luz do cartaz de néon que tinha por trás deles, seu informante parecia quase cômico.

Mas o assunto que os ocupava não tinha nada de engraçado.

- Foi difícil encontrar você, Billings.

- Sei, sei… - Billings mordiscou um dedo sujo e olhou ambos os lados da rua-. É uma maneira de me manter saudável. Ouvi dizer que andava me procurando –observou Colt um instante e depois desviou o olhar. -Um homem em minha posição tem de ter cuidado, sabe? O que quer comprar não é barato. E é perigoso. Me sentiria melhor com “minha” policial. Normalmente trabalho com ela, mas não pude encontrá-la durante todo o dia.

- Eu me sentiria melhor sem sua policial. E sou eu quem paga –para ilustrar a afirmação, pegou duas notas de cinqüenta dólares do bolso da camisa. Viu nos olhos de Billings o brilho da cobiça - Falo melhor com uma bebida –com a cabeça assinalou a porta do bar. O riso de uma mulher, alta e aguda, atravessou o cristal como um disparo.

- Eu te escuto perfeitamente –observou que o homem era um feixe de nervos. Quase podia ouvir o som de seus ossos se chocando um contra o outro enquanto ele retorcia a perna. Se não insistisse nesse momento, ia sair correndo como um coelho assustado. Tinha chegado longe demais e tinha muito em jogo para perdê-lo agora -Me diga o que preciso saber, e depois convidarei você para uma bebida.

- Não é da região.

- Não –Colt ergueu uma sobrancelha e esperou.- E isso representa algum problema?

- Nenhum. É até melhor. Como soube que eu...

- Já o fiz em mais de uma ocasião – deu uma última tragada antes de atirar o charuto em um esgoto - Informação, Billings – para demonstrar sua boa fé, estendeu uma das notas. -Vamos direto ao ponto.

No momento em que o outro estendia os dedos ansiosos, o ar frio foi quebrado pelo som de rodas freando sobre o asfalto.

Colt não teve que ler o terror nos olhos de Bilings. A adrenalina e o instinto entraram em ação como coice de uma mula. Atirou-se ao solo no instante em que soaram os primeiros disparos.

 

Althea não considera importante estar aborrecida. Depois de um dia duro, um pouco de tédio era bem-vindo, já que dava a sua mente e a seu corpo a oportunidade de recarregar. Não importava acabar um turno de dez horas depois de uma esgotante semana de sessenta horas e entrar em um vestido de noite e usar sapatos com saltos de dez centímetros. Nem sequer se queixava por estar num banquete no salão do Brown House enquanto um discurso depois de outro lhe embotava a mente.

O que importava era que seu companheiro deslizasse a mão por sua coxa embaixo da toalha de mesa de linho branco.

Os homens eram tão previsíveis…

Ergueu o copo de vinho e, movendo-se no assento, roçou a orelha de seu par com o nariz.

- Jack?

- Mmm? –os dedos subiram um pouco mais.

-Se não tirar sua mão… digamos nos próximos dois segundos… vou fincar com muita força o garfo de sobremesa sobre ela. Vai se machucar, Jack – se recostou e bebeu um gole de vinho, sorrindo acima do borda da taça enquanto ele arqueava uma sobrancelha - Vai demorar um mês para poder voltar a jogar golfe.

Jack Holmsby, solteiro cobiçado, temido promotor e convidado de honra no Banquete da Escola de advogados de Denver, sabia como manejar as mulheres. E estava há meses tentando se certificar do melhor jeito de manejar aquela mulher.

-Thea… -suspirou, presenteando-a com seu sorriso mais encantador e brilhante- Quase terminamos por aqui. Por que não vamos para minha casa? Podemos… - no ouvido sussurrou uma sugestão descritiva, imaginativa e, com toda certeza, anatomicamente impossível.

O som de um celular tocando poupou Althea de ter que contestar e a Jack o salvou de ver-se submetido a um pequeno procedimento cirúrgico. Vários dos convidados que compartilhavam a mesa se moveram para verificar seus bolsos e bolsas. Com uma inclinação de cabeça ela se levantou.

- Perdão. Creio que é o meu – afastou com uma oscilação sutil de quadris e de suas longas pernas. Aquele corpo no interior de um vestido púrpura, com as costas nuas, fez que mais de uma cabeça se voltasse. A pressão arterial de alguns se elevou. As fantasias entraram em erupção.

Consciente das reações que provocava, mas indiferente a elas, saiu do salão e atravessou o vestíbulo para os telefones. Abriu a bolsa de noite, que continha um pó compacto, lápis de lábios, seu distintivo, dinheiro de emergência e sua nove milímetros, extraiu uma moeda de quatro centavos e realizou o telefonema.

-Grayson –enquanto escutava, jogou para trás seu cabelo cor de fogo e revirou os olhos de uma tonalidade castanha aleonada -Estou indo para lá –desligou, voltou-se e viu que Jack Holmsby avançava em sua direção. Com objetividade teve que reconhecer que era um homem atraente com o aspecto muito distinto. Era realmente uma pena que por dentro ele fosse tão comum -Sinto muito Jack. Tenho que ir.

A irritação fez que ele franzisse o cenho. Em sua casa testava preparada uma garrafa de conhaque Napoleão, lenha para acender a lareira e uns lençóis de cetim.

- Vamos, Thea, ninguém poderá substituir você?

- Não – o trabalho era sua prioridade, sempre. - Ainda bem que tem ficar aqui Jack. Pode desfrutar do resto da festa.

Mas ele não pensava em se render com tanta facilidade. Acompanhou-a pelo vestíbulo até a noite de outono.

-Por que não volta quando tiver terminado? Podemos continuar onde o paramos.

- Não paramos em lugar nenhum, Jack – entregou o ticket do estacionamento a um manobrista -Deve aprender a abandonar uma guerra quando esta já está perdida, não penso em começar nada com você –suspirou quando ele a envolveu com um braço.

- Vamos, Thea, esta noite você não veio apenas comer essas boas iguarias e escutar os intermináveis discursos de um grupo de advogados –baixou a cabeça e murmurou junto a seus lábios - não usou este vestido para me manter longe de você. O pôs para me deixar louco e conseguiu.

A leve irritação que sentia aumentou.

- Estou aqui nessa noite porque respeito você como advogado –a rápida cotovelada que ela deu nas costelas o deixou sem ar e o obrigou a retroceder um passo - E porque pensei que poderíamos passar juntos uma noite agradável. O que visto é assunto meu, Holmsby, mas não o escolhi para que pudesse me apalpar por baixo da mesa nem para que fizesse uma sugestão ridícula sobre como poderia passar o resto da noite.

Não gritava, mas também não se preocupava em manter a voz baixa. Nela trilava a ira, como gelo sob o nevoeiro. Consternado, Jack ajeitou o nó de sua gravata e olhou para direita e esquerda.

- Pelo amor de Deus, Althea, calma.

- Pensava em recomendar o mesmo a você –disse com doçura.

Ainda que o manobrista fosse todo olhos e ouvidos, com educação pigarreou. Althea se voltou para aceitar as chaves.

- Obrigado – ofereceu um sorriso e uma gorjeta generosa.

O sorriso fez que o coração do jovem se acelerasse e que não olhasse a nota antes de guardá-la no bolso. Estava demasiado ocupado sonhando.

- Ah… conduza com cuidado, senhorita. E volte cedo.

- Obrigado – jogou o cabelo para trás e com fluidez sentou diante do volante do Mustang conversível - Nos veremos nos tribunais, promotor -arrancou e se foi.

 

O palco dos crimes, fosse na rua ou dentro de um lar, num meio urbano, suburbano ou no campo, tinham uma coisa em comum: a aura de morte. Como policial com quase dez anos de experiência, Althea tinha aprendido a reconhecê-la, absorve-la e arquivá-la, enquanto se dedicava ao procedimento preciso e mecânico da investigação.

Ao chegar, já tinham isolado meio quarteirão. O fotógrafo da polícia tinha terminado e estava guardando sua equipe. O corpo tinha sido identificado. Por isso a haviam chamado.

Havia três patrulhas com as luzes acesas cujos rádios não deixavam de emitir ruídos. A morte sempre atraía espectadores, que se apertavam por trás da fita de isolamento amarela, ansiosos para dar uma olhada na morte para reafirmar que se achavam com vida e ilesos.

Como a noite era fresca, antes de sair do carro, pegou o xale que tinha jogado no assento traseiro. A seda de cor verde esmeralda afastou o frio de seus braços e costas. Mostrando o distintivo ao policial novato que controlava a multidão, agachou-se para atravessar a barricada. Sentiu-se agradecida ao ver Sweeney, um policial veterano que tinha o dobro de tempo de carreira que ela e não tinha pressa para pendurar seu uniforme.

 

-Tenente – a saudou, depois sacou um lenço e realizou uma tentativa valente de limpar o nariz.

-Que temos, Sweeney?

-O morto estava diante da porta do bar falando quando apareceu um carro – guardou o lenço no bolso - As testemunhas dizem que o carro apareceu a toda velocidade, em direção norte, e lançou uma descarga de balas sem parar.

- Algum pedestre ferido? –podia cheirar o sangue, ainda que já não fosse fresco.

- Não. Alguns cortes pelos vidros que voaram, isso é tudo. Fugiram –olhou acima do ombro - Não tive nenhuma possibilidade, tenente. Sinto muito.

- Eu também, eu também –baixou a vista até o corpo estendido sobre o cimento manchado. Na vida já tinha sido pouca coisa, e nesse momento era ainda menos. Tinha um metro sessenta e cinco, cinqüenta quilos de importância, todo ossos e com uma cara que até a uma mãe teria custado amar.

- Wild Hill Billings, vadio e batedor de carteira em tempo parcial, informante a tempo integral. Mas, maldição, era seu informante.

- E a forense?

- Já estiveram por aqui –confirmou Sweeney - Estamos prontos para colocá-lo no gelo.

- Então pode fazê-lo. Tem uma lista de testemunhas?

- Sim, a maioria não serve para nada. Era um carro negro ou azul. Um bêbado afirma que era uma carroça dirigida por demônios de fogo - Jurou com um humor característico dos veteranos, conhecendo o suficiente a Althea para saber que não se ofenderia.

- Vamos ver o que podemos conseguir –estudou a multidão… habituais de bares, adolescentes em procura de ação, alguns sem lar e …

Suas antenas vibraram ao fixar a vista em um homem. Diferente dos outros, não tinha os olhos carregados de repulsão ou excitação. Estava relaxado, com a jaqueta de couro aberta ao vento, revelando uma camisa de flanela e o reflexo de prata de uma corrente. Seu físico alto e delgado fez que pensasse que seria veloz.

As calças gastas desciam por suas pernas longas até terminar sobre umas botas velhas. O cabelo que poderia ser loiro escuro ou castanho se agitava com a brisa e se encrespava em cima do pescoço.

Fumava um charuto fino e observava o palco tal como tinham feito os olhos de Althea. A luz não era boa, mas chegou à conclusão de que estava bronzeado, o que se encaixava muito bem com o rosto bem definido. Os olhos eram profundos, o nariz longo. A boca era forte, dessas que pareciam a ponto de exibir uma careta desdenhosa com facilidade.

O instinto a impulsionou a catalogá-lo como um profissional, antes que movesse os olhos e os fixasse nela com um impacto parecido ao de um poderoso murro.

- Quem é o cowboy, Sweeney?

- O… Oh – a cara cansada de Sweeney se enrugou no que poderia ter sido um sorriso - Uma testemunha – informou; dava a impressão de que o tipo combinaria perfeitamente com um Stetson e um cavalo

-E? – não virou a vista quando a equipe forense se ocupou do corpo. Não era necessário.

- É o único que nos deu uma história coerente –Sweeney sacou um bloco de notas, umedeceu o polegar e passou algumas folhas-. Diz que se tratava de um sedan Buick 91, com placa do Colorado com as letras ACF. Diz que não pôde ver os números, porque estava com as luzes apagadas e estava ocupado procurando cobertura. Segundo ele, a arma soou como uma AK-47.

- Soou? - “interessante”, pensou. Em nenhum momento apartou os olhos dos da testemunha - Talvez… - calou ao ver seu capitão cruzar a rua. O capitão Boyd Fletcher foi diretamente para a testemunha, moveu a cabeça, sorriu e o envolveu no equivalente masculino a um abraço. Trocaram-se várias palmadas-. Ao que parece o capitão se encarrega dele neste momento –Althea guardou sua curiosidade como se fosse um prato extraordinário para saborear mais adiante - Terminemos aqui, Sweeney.

 

Colt estava observando ela, desde o momento que viu uma perna longa e esbelta sair pela porta do Mustang. Valia a pena olhar uma mulher como aquela, mesmo naquela situação. Gostou dos seus movimentos, com uma graça atlética e concisa que não desperdiçava nem tempo nem energia. E, com certeza, tinha gostado da sua aparência. Seu corpo pequeno, cuidado e sexy tinha curvas suficientes para avivar o apetite de um homem, e com toda aquela seda púrpura e verde agitando ao vento… o cabelo de fogo, ladeando um rosto digno de se guardar num camafeu, contribuiria para que um homem olhasse com mais interesse as jóias antigas de sua avó.

Era uma noite fresca, mas uma só olhada naquela mulher fez com que Colt sentisse calor.

Não era um jeito ruim de manter-se abrigado enquanto aguarda, já que, nas melhores circunstâncias, não era um homem que gostasse de esperar.

Não ficou surpreso quando ela mostrou o distintivo ao jovem policial que fazia o cerco. Ela tinha uma beleza com a autoridade sobre seus exuberantes ombros de nadadora. Acendeu um charuto e imaginou que seria uma ajudante do promotor do distrito, depois compreendeu o erro cometido ao ver que se punha a conversar com Sweeney.

A dama tinha a palavra polícia escrita em todo seu corpo.

Menos de trinta anos, talvez um metro sessenta e cinco sem aqueles saltos altos. Era evidente que os policiais cada dia ficavam mais interessantes.

Da maneira que esperou, analisando a cena, os restos de Wild Hill Billings não lhe inspiravam nenhum tipo de sentimentos. O homem nesse momento não lhe servia.

Logo descobriria outra coisa, ou a outra pessoa. Colt Nightshade não era um homem que deixasse que um assassinato se interpusesse em seu caminho.

Quando sentiu o olhar dela, deu uma tragada preguiçosa e soltou a fumaça. Depois moveu os olhos até que se encontraram com os da mulher. A contração que experimentou nas entranhas foi inesperada… espontânea e puramente sexual. O momento fugaz em que sua mente ficou mais limpa do que o cristal foi mais do que inesperado. Não tinha precedente. Foi um choque de poderes. Ela deu um passo para ele. Colt soltou o ar que não sabia que tinha estado contendo.

A preocupação que o embargava facilitou que Boyd pudesse se aproximar pelas costas e o surpreendesse.

- Colt! Filho de uma cadela!

Este se voltou, preparado para qualquer coisa. Mas a fria intensidade de seus olhos se desvaneceu num sorriso que poderia ter derretido a qualquer mulher situada a vinte passos.

-Fletch – na relaxada calidez que reservava aos amigos, Colt lhe devolveu o abraço de urso antes de retroceder para observá-lo. Não via Boyd fazia quase dez anos. Aliviou-o comprovar que tinha mudado tão pouco - Ainda segue com essa cara bonita, heim?

-E você ainda dá a impressão de que acaba de sair das montanhas. Deus, fico contente de ver você. Quando chegou a cidade?

-Faz alguns dias. Queria ocupar-me de um assunto antes de telefonar para você.

Boyd olhou em direção do furgão da polícia forense.

-Seu assunto era esse?

-Parte. Alegro-me de que tenha vindo tão cedo.

-Sim – observou Althea e reconheceu sua presença com um consentimento imperceptível - Colt chamou o policial ou um amigo?

-Não é tão ruim que seja ambos –olhou o pouco que sobrara do charuto, atirou-o na sarjeta e o apagou com a bota.

- Matou aquele sujeito? - fez a pergunta com tanta naturalidade que Colt voltou a sorrir. Sabia que Boyd não teria movido um cabelo se tivesse confessado nesse momento e lugar.

- Não.

- Vai me dizer o que aconteceu?

-Sim.

-Por que não esperas no carro? Estarei com você em um minuto.

 

- Capitão Boyd Fletcher – Colt moveu a cabeça e riu entre dentes. Ainda que passasse da meia-noite, achava-se tão alerta como relaxado, com uma xícara de café ruim na mão e as botas apoiadas na escrivaninha de Boyd. -Progrediu. Pensava que estava se dedicando aos cavalos e ao gado em Wyoming.

-E o faço. De vez em quando.

-O que aconteceu com seu título de advogado?

-Tenho ele guardado em algum lugar.

-E as forças aéreas?

-Continuo voando. O que passa é que já não uso uniforme. Quanto tempo demorará para trazer essa pizza?

-O suficiente para que chegue fria e não se possa comer –Boyd se reclinou em sua cadeira. Sentia-se cômodo no escritório. Estava cômodo na rua. E tal como vinha acontecendo a mais de vinte anos, desde a escola primária, sentia-se cômodo com Colt - Não chegou a ver a quem disparou?

-Diabos, Fletch, tive sorte de conseguir distinguir o carro antes de morder o asfalto para me proteger. Ainda que também não acredito que isso ajude muito, já que o mais provável é do que fosse roubado.

-A tenente Grayson está pesquisando. Por que não me conta que fazia com Wild Hill?

- Ele se pôs em contato comigo. Levo… - calou quando Althea entrou. Não tinha se preocupado em bater na porta e trazia uma caixa plana de papelão.

-Pediu pizza? – deixou a caixa na mesa de Boyd e estendeu uma mão - Dez dólares, Fletcher.

-Althea Grayson, Colt Nightshade. Colt é um velho amigo – pegou dez dólares da carteira.

- Senhor Nightshade – depois de dobrar o dinheiro com meticulosidade e guardá-lo na bolsa de lantejoulas, depositou a mesma, sobre as pastas.

-Senhorita Grayson.

-Tenente Grayson – corrigiu. Levantou a tampa da caixa, analisou os ingredientes e escolheu uma fatia - Pelo que entendi estava na cena do crime.

-Pelo jeito é o que parece - baixou as pernas da escrivaninha para adiantar seu torso e pegar também um pedaço da pizza. Captou a fragrância dela acima da pizza. Era muito mais tentadora.

- Obrigado – murmurou Althea quando Boyd lhe passou um guardanapo-. Fico me perguntando o que fazia participando de um tiroteio com meu informante.

-Seu informante? – Colt estreitou os olhos.

-Exato –“igual os seus cabelos, seus olhos não parecem decidir-se pela cor que deveriam ter”, pensou. Estavam entre o azul e o verde. E nesse momento eram tão frios como o vento que soprava contra a janela.

-Hill me contou que passou o dia inteiro tentando falar com seu contato policial.

-Fazia um trabalho de campo. -Colt arqueou as sobrancelhas e percorrer a seda esmeralda.

- Campo?

-A tenente Grayson dedicou todo o dia a rastrear uma operação de drogas –interveio Boyd- E bem, garotos, por que não começamos de novo desde o princípio?

-Bem –Althea deixou o pedaço pela metade dentro da caixa, limpou os dedos e tirou o xale.

Colt apertou os dentes para evitar que a língua caísse. Como ela lhe dava as costas, teve o doloroso prazer de avaliar quanto sedutora podia ser umas costas nuas, o quanto era esbelta, reta e emoldurada entre seda de cor púrpura.

Depois de deixar o xale sobre um arquivador, Althea recuperou seu pedaço de pizza e se sentou no canto da escrivaninha de Boyd.

Colt se deu conta que ela era consciente do que fazia a um homem. Podia ver esse conhecimento feminino em seus olhos. Sempre tinha acreditado que cada mulher conhecia qual era seu arsenal, mas era um osso duro quando uma mulher se encontrava tão bem armada como aquela.

-Wild Hill, senhor Nightshade… -começou Althea- Que fazia com ele?

-Conversava – sabia que a resposta era arredia, mas nesse momento tentava julgar se tinha algo entre a sexy tenente e seu velho amigo. Seu velho e casado amigo. Aliviou-o e o surpreendeu um pouco não perceber a mínima atração entre eles.

-Sobre o que? – a voz de Althea seguia sendo paciente, inclusive agradável. Como se interrogasse um menino pequeno com uma deficiência mental.

-A vítima era o informante de Althea – recordou Boyd a Colt- Se quer o caso…

-E o quero.

-Então é seu.

Para ganhar tempo, Colt pegou outra fatia de pizza. Ia ter que fazer algo que odiava e que lhe deixava com um nó na garganta. Pedir ajuda. E para obtê-la teria que compartilhar o que sabia.

-Demorei dois dias em localizar Billings e convencê-lo a falar comigo –também tinha custado duzentos dólares em subornos para limpar o caminho, mas não era um sujeito que contava o preço até o resultado final. - Estava nervoso, realmente não queria falar até ter ao lado a presença de seu contato policial. Assim que o tentei – olhou a Althea. Deu-se conta de que estava exausta. Demorara a detectar a fadiga, mas estava ali… na ligeira queda das pálpebras, nas leves sombras que tinha sob os olhos - Lamento que o tenha perdido, mas não acredito que sua presença tivesse mudado algo.

-Nunca saberemos, não é verdade? – não permitiria que o pesar nublasse sua voz ou seu juízo- Por que tomou tantas providências para contatar Hill?

-Havia uma garota que trabalhava para ele. Jade. Provavelmente este seja seu nome profissional.

-Sim –Althea assentiu- Loira, pequena, cara de menina. A prenderam algumas vezes pelo que fazia na rua. Terei que comprovar, mas creio que faz umas quatro ou cinco semanas que não aparece pela noite.

-Encaixa – Colt se levantou para encher a xícara de café -Billings conseguiu um trabalho para ela faz aproximadamente nesse tempo. No cinema –deu um gole e se voltou- Não falo de Hollywood, e sim de material pesado para espectadores particulares e o com dinheiro bastante para comprar esses pratos fortes. Fitas de vídeo para aficionado em coisas mais fortes – encolheu os ombros e se sentou outra vez- Não posso dizer que me incomoda, Acredito que são pessoas adultas e responsáveis por elas mesmas. Ainda que eu prefira o sexo pessoalmente.

-Mas não falamos de você, senhor Nightshade.

-Oh, não tem que me chamar de senhor, tenente. Parece frio quando tratamos temas tão incandescentes – se recostou com um sorriso no rosto. Por razões que não ia se preocupar em explorar agora, tinha vontade de sacudir aquela fachada - Bem, o resultado é que algo assustou Jade e ela desapareceu. Não faço parte dos que pensam que uma prostituta tem um coração de ouro, mas ao menos esta tinha consciência. Enviou uma carta ao senhor Frank Cook e senhora - olho a Boyd - Frank e Marleen Cook.

-Marleen? –Boyd ergueu as sobrancelhas- Marleen e Frank?

-Os mesmos –o sorriso de Colt era irônico- Mais velhos amigos, tenente. Há um milhão de anos tive o que se poderia chamar.. uma amizade íntima com a senhora Cook. Mas como ela é uma mulher com juízo sensato, casou-se com Frank, estabeleceu-se em Albuquerque e teve uns bonitos meninos.

Althea se moveu e cruzou as pernas com um rangido de seda. Notou que o cordão de prata que sobressaía acima da camisa de Colt era uma medalha de São Cristóvão, o santo padroeiro dos viajantes. Perguntou-se se o senhor Nightshade sentia a necessidade de proteção espiritual.

-Suponho que isto nos conduz a outra parte que não seja o caminho das recordações, verdade?

- Oh, conduz justo até a porta de sua delegacia, tenente. De vez em quando eu gosto de dar rodeios – pegou um charuto e o passou por seus dedos longos antes de pegar o isqueiro - Faz um mês, a filha mais velha de Marleen… Elizabeth. Chegou a conhecer a Liz, Boyd?

Boyd negou com a cabeça. Não estava gostando para onde se conduzia à conversa.

-Não a vejo desde que usava fraldas. Quantos anos têm agora, doze?

-Treze. Recém feitos –acendeu o isqueiro e aspirou o charuto. Ainda que sabia que a fumaça não eliminaria o sabor amargo de sua garganta- Preciosa, como sua mãe. Também com o temperamento aceso como o de Marleen. Teve alguns problemas em casa, desses que imagino que a maioria das famílias experimenta de vez em quando. Mas Liz decidiu ir embora.

-Ela fugiu de sua casa? –Althea compreendia muito bem a mentalidade dos jovens que decidiam fugir.

-Meteu algumas coisas em sua mochila e foi embora. Não é errado dizer que há algumas semanas Marleen e Frank estão vivendo num inferno. Chamaram à polícia, mas a via oficial não os levou a nenhuma parte –exalou a fumaça-. Sem querer ofender. Dez dias atrás me chamaram.

-Por que? –inquiriu Althea.

-Já disse. Somos amigos.

-Costuma procurar a ladrões e esquivar-se de balas pelos amigos?

-Faço favores as pessoas -pensou que o sarcasmo não lhe caia mal. Uma arma a mais em seu arsenal.

- É um investigador com licença?

Com os lábios apertados, Colt estudou a ponta do charuto.

-Não sou muito aficionado às licenças. Consegui algumas informações e tive um pouco de sorte em rastreá-la pelo norte. Depois os Cook receberam a carta de Jade –apertou o charuto com os dente e sacou uma folha dobrada com motivo florais do bolso interior da calça- Ganharás tempo se a ler você mesmo –disse, passando-a para Boyd.

Althea se levantou e apoiou uma mão no ombro de Boyd enquanto lia.

Era um gesto curiosamente íntimo, mas assexual. Colt chegou à conclusão de que se tratava de um gesto que falava de amizade e confiança.

A caligrafia era tão atraente como o papel, mas o conteúdo não tinha nada que ver com flores e fantasias infantis.

 

“Estimados senhor e senhora Cook:

Conheci a Liz em Denver. É uma garota muito agradável. Sei que lamenta muito ter ido embora e agora ela regressaria para a casa se pudesse. Eu a ajudaria, mas tenho de sair da cidade. Liz está metida em problemas. Eu deveria ir à polícia, mas me sinto muito assustada… ademais, não creio que escutassem a alguém como eu. Sua filha não encaixa nesta vida, mas não a deixam ir. É jovem, e tão bonita, e creio que estão ganhando muito dinheiro com os filmes. Eu estou nesta vida há cinco anos, mas algumas das coisas que querem que façamos para a câmera me deixam de cabelos em pé.

Me parece que mataram uma das garotas, por isso eu vou embora antes de que me matem. Liz me deu seu endereço e me pediu que eu escrevesse para dizer que sentia. Está assustada para valer e espero que a encontrem bem.

Jade.

P.S. Têm um lugar nas montanhas onde fazem os filmes. É um apartamento na Segunda Avenida.“

 

Boyd não devolveu a carta, e sim a deixou em sua escrivaninha. Tinha uma filha. Pensou em Allison, doce, alegre e com seis anos, e engoliu a ira.

-Poderia ter ido a minha casa com isso. Tinha que ter ido.

-Estou acostumado a trabalhar sozinho –deu uma tragada no charuto antes de apagá-lo- Em qualquer caso, iria falar com você depois de resolver algumas coisas. Consegui o nome do cafetão de Jade e queria tirar alguma informação dele.

- E agora está morto –manifestou Althea com voz impassível enquanto girava o corpo para olhar pela janela de Boyd.

-Sim – Colt estudou seu perfil. Dela não emanava unicamente ira. Percebia muito mais- Deve ter corrido a conversa que eu o andava procurando e o fato que ele estava disposto a falar comigo, me faz pensar que estamos tratando de um lixo bem relacionado e que nem pisca antes de matar.

-É um assunto policial, Colt –murmurou Boyd.

-Não discuto isso –pronto para pactuar, estendeu as mãos- Também é um assunto pessoal. Vou continuar pesquisando, Fletch. Não há nenhuma lei contra isso. Sou o representante dos Cook… seu advogado, se precisamos uma desculpa legal.

- É o que é? –com as emoções outra vez controladas, Althea o olhou-. É advogado?

-Quando me convém. Não desejo interferir na investigação – disse a Boyd- Quero à menina de volta, a salvo, junto a Marleen e Frank. Darei toda minha cooperação. Qualquer coisa que saiba, vocês também saberão. Mas deve de ser recíproco. Me passe um policial que possa trabalhar comigo, Boyd –esboçou um leve sorriso, como se o divertisse a idéia- E você deveria saber o quanto odeio solicitar um colega oficial para um trabalho. Mas aqui quem importa é Liz. Sabe que sou bom –aproximou o corpo- Sabe que não fugirei. Me dê seu melhor homem e agarraremos esses canalhas.

Boyd levou os dedos a seus olhos cansados. Sabia que podia ordenar que Colt abandonasse o caso. E que perderia seu tempo. Também podia negar a cooperar, a compartilhar qualquer informação que o departamento descobrisse. Sim, sabia que Colt era bom, e tinha uma idéia do tipo de trabalho que tinha realizado como militar.

Não seria a primeira vez que Boyd Fletcher pulava as regras. Tomada à decisão, indicou a Althea.

-Ela é a melhor.

 

Se um homem devia ter uma colega, bem, podia ser bonita. Alem do mais, Colt não pensava trabalhar com Althea, mas sim através dela. Seria sua ligação com a parte oficial da investigação. Manteria a palavra e lhe proporcionaria qualquer informação que descobrisse. Ainda que não esperasse que ela pudesse fazer muita coisa uma vez que a recebesse.

Só tinha um punhado de polícias que Colt respeitava, com Boyd encabeçando a lista. No referente a tenente Grayson, imaginou que seria decorativa, de certa ajuda ou um pouco mais.

O distintivo, o corpo e o sarcasmo provavelmente deveria servir para alguma coisa quando tivessem que entrevistar um possível contato qualquer.

Ao menos tinha podido dormir seis horas. Não tinha protestado quando Boyd insistiu que deixasse o hotel e se alojasse na casa dos Fletcher o tempo que durasse sua estadia. Ele gostava das famílias, ao menos as de outras pessoas, e tinha curiosidade por conhecer a mulher de Boyd.

Não pôde assistir seu casamento. Mesmo não muito aficionado à pompa das cerimônias, teria ido. Mas era um longo trajeto desde Beirut até Denver, e naquela época estava ocupado com terroristas.

Cilla o encantou. Nem tinha se aborrecido quando o marido apareceu com um desconhecido as duas da manhã. Enfurnada em um roupão de flanela, tinha oferecido o quarto de hóspedes, com a sugestão de que se quisesse dormir, era melhor tampar a cabeça com o travesseiro. Ao que parecia os meninos acordavam as sete para ir ao colégio.

Tinha dormido como uma pedra, e quando os gritos e os sons de pés o acordaram, tinha seguido o conselho de sua anfitriã e desfrutado de outro sonho com a cabeça enterrada.

Fortalecido com um excelente café da manhã que constou de três xícaras de café de primeira, fato pelo qual se apaixonou pela babá dos Fletcher, estava pronto para ir para o trabalho. Seu acordo Boyd faria que sua primeira parada fosse da delegacia de polícia. Veria Althea, se interaria das pessoas que tinham contato com Billings e seguiria seu caminho.

Deu a impressão que seu amigo dirigia uma embarcação bem organizada. Se ouvia um ruído habitual de telefones, teclados e vozes alteradas. E reinava a mistura habitual com o odor de café, desinfetante e corpos suados. Mas também imperava a sensação de eficácia.

O sargento da recepção tinha anotado o nome de Colt, assim que chegou entregou um crachá de visitante para ele e lhe indicou como chegar ao escritório de Althea. Duas portas adiante, por um corredor estreito. Encontrou-o. Estava fechado, assim chamou duas vezes antes de abrir. Soube que ela estava presente antes de vê-la. Sentiu o aroma que vinha dela, tal como um lobo cheira a sua parceira. Ou a sua presa.

Já não usava um vestido de seda, ainda que parecesse mais uma modelo do que uma policial. As calças e a jaqueta sob medida de cor cinza sob nenhum conceito sugeriam masculinidade. Ressaltava o traje com uma blusa rosa e um broche na lapela com forma de estrela. Os cabelos estavam recolhidos numa trança complicada que emoldurava seu rosto com suavidade. Em suas orelhas brilhavam dois brincos de ouro.

O resultado era tão interessante que poderia estar sendo usado por qualquer tia solteirona, apesar de que, nela, deixava irradiar sexo latente.

-Grayson.

-Nightshade –lhe indicou uma cadeira -Sente-se.

Colt deu a volta e se sentou relaxado, apoiando os braços no respaldo. Notou que sua sala era a metade da de Boyd, e organizada de forma impecável. Os arquivadores estavam fechados, os papéis ordenados, os lápis bem afiados. Tinha uma planta em um canto, por trás da escrivaninha, e não lhe coube dúvida de que a regava meticulosamente. Não tinha fotos de família ou de amigos. O único ponto de cor na sala pequena e sem janela era um quadro abstrato de tonalidades azuis, verdes e vermelhas.

-Bem –se adiantou um pouco- Passou a placa do carro pelo computador?

-Não precisou. Apareceu no relatório desta manhã – ofereceu sua cópia-. As onze da noite foi declarado seu roubo. Os donos tinham ido jantar, e ao sair do restaurante descobriram que já não estava lá. Os doutores Walmir, um casal de dentistas que celebrava seu quinto aniversário. Parecem limpos. Provavelmente estejam –pôs a folha sobre a mesa. Na realidade, em nenhum momento imaginou que iria encontrar uma conexão com o carro.

-Ele já apareceu?

-Não. Tenho o histórico de Jade, se lhe interessa –depois de deixar o outro documento em seu lugar, recolheu uma pasta- Janice Willowby. Vinte e dois anos. Um par de detenções por prostituição… algumas apreensões quando menor pela mesma causa. Uma detenção por posse, sendo menor, quando encontraram alguns de cigarros de maconhas em sua bolsa. Passou por todas as dependências dos serviços sociais, até que fez vinte anos e voltou as ruas.

-Tem família? –Não era uma história nova- Talvez volte pra casa.

-Uma mãe em Kansas City, ao menos era ali onde estava há dezoito meses. Tentei localizá-la.

-Tem estado ocupada.

-Nem todos começamos o dia à -olhou… o relógio- … às dez horas.

-Funciono melhor de noite, tenente –sacou um charuto.

-Aqui não, amigo –moveu a cabeça.

De bom humor, Colt o guardou.

-Em quem mais confiava Billings, além de você?

-Desconheço que confiasse em alguém –mas doía, porque sabia que tinha confiado em alguém, nela, e de algum modo Althea tinha chegado tarde. E nesse momento estava morto- Tínhamos um acordo. Eu lhe dava dinheiro e ele me dava informação.

-De que tipo?

-Com Wild Bill variava. Tinha os dedos metidos em muitos assuntos. Em sua maioria coisas pequenas –organizou alguns papéis - Mas tinha ouvidos grandes, sabia como se confundir com o meio até fazer que esquecessem que estava por perto. As pessoas falavam em sua presença porque dava a impressão de que seu cérebro cabia numa xícara de chá. Mas era inteligente –sua voz mudou, indicando-lhe a Colt algo que ainda não queria reconhecer ante si mesma. Doía-lhe sua morte - Era bastante inteligente como para evitar cruzar a linha que o enviaria uma longa temporada à sombra. O bastante para não pisar em pés equivocados. Até ontem à noite.

-Eu não ocultei o fato de que o procurava por uma informação que poderia me dar. Mas sob nenhum conceito o queria morto.

-Não culpo você.

-Não?

-Não – afastou da mesa para girar a cadeira e olhá-lo frente a frente-. Gente como Hill, sem importar o quanto inteligente seja, tem uma expectativa de vida curta. Se ele tivesse se colocado em contato comigo, teria sido possível que eu tivesse me reunido com ele no mesmo lugar que você, com os mesmos resultados –já tinha analisado com frieza a situação- Pode ser que eu não goste de seu estilo, Nightshade, mas não lhe culpo por isto.

Notou que ela permanecia sentada muito quieta, sem realizar nenhum gesto. Igual ao quadro que tinha a suas costas, comunicava uma paixão vibrante sem movimento.

-Qual é meu estilo, tenente?

-Você é um renegado. Desses que se negam a jogar de acordo com as regras, se aprecia rompê-las – não piscou ao olhá-lo, e seus olhos eram tão frios como água de um lago- Inicia coisas, mas nem sempre as termina. Talvez isso indique que se aborrece com facilidade ou que se fique sem energia. Seja como for, isso não fala a favor de sua confiabilidade.

A exposição que ela fez de sua personalidade o irritou, mas quando voltou a falar seu lento acento do sudoeste soou divertido.

-Deduziu tudo isso desde ontem à noite?

-Eu pesquisei. O colégio primário no que estudou com Boyd me surpreendeu – esboçou um sorriso, mas seus olhos seguiram frios- Não parece o tipo de homem adequado para esse tipo de instituição.

-Meus pais pensaram que me domesticariam –sorriu- Mas não foi assim

-Também não conseguiram em Harvard, onde se graduou em direito… carreira que mal utilizou. Parte de seu histórico militar era classificado, mas em geral conseguiu um bom quadro – tinha um prato com amêndoas açucaradas na escrivaninha; Althea se adiantou e, depois de uma meticulosa deliberação, elegeu a que queria- Não trabalho com alguém a quem não conheço.

-Eu também não. Por que não me põe a par de Althea Grayson?

-Sou policial – respondeu com singeleza - E você não. Imagino que terá uma foto recente de Elizabeth Cook não?

-Sim –mas não a mostrou. Não tinha por que suportar essas tolices de um bombonzinho com um distintivo- Alô, tenente, quem lhe meteu o dedo…?

Mas o telefone o cortou, e tendo em conta o reflexo dos olhos dela, talvez tivesse sido melhor. Ao menos já sabia como descongelar aqueles olhos.

-Grayson –aguardou um segundo, depois anotou algo num bloco- Avise a forense. Vou para lá – levantou-se e guardou o bloco numa bolsa de pele de serpente - Encontramos o carro – franzia o cenho ao passar a bolsa para o ombro- Como Boyd quer que participe, pode me acompanhar… só como observador. Entendido?

-Oh, sim. Claro.

Seguiu-a pelo corredor e se pôs a seu lado. A mulher tinha o melhor traseiro daquele lado do Mississipi e não queria que o distraísse.

-Ontem à noite não tive muito tempo para me por em dia com Boyd –começou - Me perguntava como é que mantém… uma relação tão cordial com seu capitão – ela baixava as escadas em direção à garagem quando se deteve e o olhou com os olhos afiados como uma navalha -O que? –quis saber Colt enquanto era avaliado em silêncio.

-Tentava decidir se nos está ofendendo... Boyd e a mim… pois se for este o caso me veria obrigada a lhe causar certa dor..., ou se só expôs mal a pergunta.

-Tente o segundo –ergueu uma sobrancelha.

- Certo. – seguiu descendo-. Fomos parceiros durante mais de sete anos –chegou ao fim dos degraus e girou à direita. Os saltos baixos de suas botas de pele soaram no cimento - Quando você confia a vida a alguém todos os dias, mais vale querê-lo bem.

-Depois ele ascendeu a capitão.

-Exato – depois de sacar as chaves, abriu o carro-. Sinto, mas o assento do passageiro está travado para frente. Ainda não tive tempo para mandá-lo arrumar.

Colt observou o carro esportivo com certo pesar. Um carro fantástico, sem nenhuma dúvida, mas com o assento nessa posição, ira ter que se dobrar como uma sanfona e se sentar com o queixo nos joelhos.

-E isso não foi nenhum problema? Refiro-me a que Boyd ser o capitão

Althea se sentou com elegância e fez uma leve careta quando Colt grunhiu e se acomodou a seu lado.

-Não. Sou ambiciosa? Sim. Me aborrece que o melhor policial com que trabalhei seja meu superior? Não. Espero ascender a capitão em cinco anos. Pode apostar seu traseiro –pôs os óculos de sol- Aperte o cinto, Nightshade –arrancou e subiu pela rampa em direção a a rua.

O teve que admirar sua perícia ao volante. Não dispunha de outra escolha, já que era ela quem conduzia.

-Então Boyd e você são amigos.

-Sim,somos. Por quê?

-Queria estabelecer que não são todos os homens atraentes de determinada idade que a deixam rígida – sorriu quando girou por uma esquina-. Gosto de saber que sou eu. Faz com que eu me sinta especial.

Então ela sorriu e lhe lançou o que poderia ter sido um olhar amistoso. Na verdade não era mais do que amistosa, e não deveria ter acelerado as batidas do seu coração.

-Eu não diria que me deixa rígida, Nightshade. Só que não confio nos autônomos. Mas como nesta situação ambos perseguimos o mesmo objetivo, e como Boyd é amigo dos dois, podemos tentar levar isso da melhor maneira possível.

-Soa razoável. Temos o trabalho e Boyd em comum. Talvez possamos encontrar algumas coisas a mais –o volume da rádio era baixo. Subiu e mostrou sua aprovação ante o blues lento que saía pelos alto-falantes - Viu? Tem mais uma coisa aqui. Que lhe parece a comida mexicana?

-Eu gosto de chile picante e de margaritas geladas.

-Progredimos –tentou mover-se no assento, seu joelho golpeou o painel, ele amaldiçoou alto - Se vamos sair mais vezes juntos num carro, o faremos no meu.

-Já discutiremos esse caso –voltou a baixar o volume da música ao ouvir que a rádio da polícia ganhava vida.

-Todas as unidades próximas a Sheridan e Jewel, esta acontecendo um...

Althea praguejou enquanto escutava a solicitação de ajuda pela rádio.

-Estamos só a um quarteirão –girou à esquerda e observou a Colt com dúvidas- Tiros –explicou - Assunto da polícia, entendido?

-Claro.

-Aqui é a unidade seis –respondeu no rádio-. Estou no lugar –depois de frear por trás de um carro patrulha, abriu a porta-. Fique no carro -com essa ordem seca, desembainhou a arma e se dirigiu para a entrada de um edifício de quatro andares.

Ao chegar à porta respirou fundo. Quanto a atravessou, ouviu o som de outro disparo.

- Um andar acima -deduziu. “Talvez dois”. Com o corpo colado à parede, estudou a entrada reduzida, depois se pôs a subir. Pareceu-lhe ouvir alguns gritos ou prantos. Um menino. Com a mente fria e as mãos firmes, girou a pistola ao chegar ao primeiro patamar. Uma porta se abria a sua esquerda. Se agachou e apontou para ao movimento ainda que só para olhar aos olhos de uma mulher mais velha com olhos aterrorizados.

-Polícia –informou- Não saia.

A porta se fechou e ouviu o ferrolho. Althea se moveu para a segunda escada. Os viu nesse momento, o policial abatido e ao policial que o examinava.

-Agente – sua voz irradiou autoridade ao apoiar uma mão sobre o ombro do oficial ileso- O que aconteceu?

-Atirou em Jim. Saiu correndo com a menina e abriu fogo.

O polícia uniformizado estava pálido, igual que seu colega, que sangrava na escada. Não pôde distinguir quem tremia com mais violência.

-Como você se chama?

-Harrison. Dom Harrison –apertava um lenço empapado contra a ferida do ombro esquerdo de seu colega.

-Agente Harrison, sou a tenente Grayson. Ponha-me a par da situação, e depressa.

-Senhor –respirou fundo duas vezes- Uma briga doméstica. Teve disparos. Um homem branco atacou à mulher do apartamento 2-D. Disparou contra nós e subiu pelas escadas com uma menina pequena como escudo.

Ao terminar, uma mulher chegou trêmula e arquejante do apartamento de cima. Através dos dedos que segurava as costelas, gotejava sangue.

-Levou a minha pequena. Charlie levou a minha pequena. Por favor, Deus… -caiu de joelhos chorando-. Está louco. Por favor, Deus…

-Agente Harrison –um som na escada fez que Althea se movesse com rapidez, para depois amaldiçoar. Deveria ter imaginado que Colt não permaneceria no carro- Solicite ajuda –continuou- Um oficial e uma civil feridos. Situação de refém- E olhou para a arma que ele brandia. Parecia uma 45 -Faça o telefonema, depois venha aqui e me dê apoio –olhou para Colt- Seja de utilidade. Faça o que possa por estes dois.

Subiu as escadas correndo. Ouviu o pranto da criança outra vez, gritos aterrorizados que reverberam nos corredores estreitos. Ao chegar ao último andar, ouviu o som de uma porta fechando-se com força. “O telhado”, decidiu. Com as costas coladas na parede da porta, provou a maçaneta, abriu e atravessou agachada.

O outro disparou sem direção. A bala assobiou a mais de meio metro a sua direita. Althea se plantou diante dele.

-Polícia! –gritou- Solte a arma! -Era um homem grande, junto à beira do telhado. Tinha a pele enrubescida pela ira e os olhos brilhavam devido a algum estimulante químico. Ela podia lidar com aquilo. Também a 45 que ele empunhava. Mas era a pequena de talvez dois anos que ele sustentava pelo pé sobre o vazio o que não podia manejar.

-A soltarei! –gritou como um cântico- Eu farei! Eu farei! Juro por Deus que a farei cair como se fosse uma pedra! –sacudiu à pequena, que não parava de chorar. Uma de suas pequenas sapatilhas se desprezou e caiu os quatro andares.

-Não querer cometer um erro, não é, Charlie? –Althea se afastou lentamente da porta, sem deixar de apontar com a nove milímetros ao peito do outro- Tire-a daí.

- Vou soltar à pequena cadela –sorriu ao dizê-lo- É como sua mãe. Não para de gemer e de chorar o tempo inteiro. Pensaram que poderiam afastar-se de mim. Mas as encontrei, não é? Linda agora lamenta, não? Lamenta ter me deixado.

-Sim –tinha que recuperar a menina. Devia ter um modo de conseguir. Para surpresa, uma recordação antiga e terríveis lhe invadiram a mente. Os gritos, as ameaças, o medo. Achatou-os como se fossem uma barata- Se você machucar a criança, Charlie. Tudo estará acabado.

- Não me diga que vai acabar! –furioso, sacudiu à menina como se fosse uma bolsa de feira. O coração de Althea quase parou, e o mesmo sucedeu com os gritos. A pequena nesse momento só soluçava, com os braços pendurando-lhe e os olhos vidrados - Ela tentou me dizer que tinha acabado. “Acabou-se, Charlie” –emitiu com voz aguda- Assim que lhe aticei um pouco. Deus sabe que ela merecia. Não parava de dar-me trabalho, com tudo. E quanto veio a menina, tudo mudou. As cadelas não me servem para nada na vida. Mas sou eu quem diz quando vai acabar.

O barulho das sirenas cresceu. Althea percebeu um movimento a suas costas, mas não se atreveu a voltar-se. Precisava que o homem estivesse concentrado nela, só nela.

-Traga à pequena para cá e talvez se salve. Quer salvar-se, não é verdade, Charlie? Vamos. Dê-me ela. Não precisa dela.

-Acha que eu sou estúpido? –rugiu-. Você nada mais é do que outra cadela.

-Não acredito que seja estúpido –captou um movimento pelo canto do olho e teria soltado uma maldição por ele ser atrevido. Não era Harrison, mas sim Colt, que avançava como uma sombra para o lado cego do homem- Não creio que seja bastante estúpido para ferir à pequena –já estava mais perto, a menos de dois metros. Mas bem poderiam ser cinqüenta.

-Vou matá-la! –gritou-. Vou matá-la e a você também, e a qualquer um que se interponha em meu caminho! Ninguém me diz que acabou até que eu digo que acabou!

Aconteceu então, depressa, como uma mancha imprecisa num canto de um sonho. Colt se lançou para frente e com um braço enganchou a cintura da menina. Althea vislumbrou um reflexo de metal em sua mão e o reconheceu como uma 32. Poderia tê-la empregado, se não tivesse sido sua prioridade salvar à pequena. Girou, de maneira que seu corpo foi um escudo para ela, e quando conseguiu erguer a arma tudo já tinha acabado.

Vendo que o outro desviava a 45 para Colt e a menina. Althea disparou. À bala o jogou para trás. Com os joelhos golpeou a beirada do telhado. Foi ele quem caiu como uma pedra.

Althea nem sequer se permitiu o luxo de suspirar. Embainhou a arma e dirigiu ao lugar onde Colt acalentava a menina, que chorava.

- Ela está bem?

-Parece que sim –com um movimento tão natural que ela teria jurado que o fizera durante toda a sua vida , acomodou à pequena contra seu quadril e lhe deu um beijo na têmpora molhada - Já está bem, pequena.

-Mamãe – com o rosto banhado em lágrimas, enterrou-o no ombro de Colt -Mamãe.

-Te levaremos para a sua mamãe, querida, não se preocupe –Colt ainda sustentava a arma, mas a outra mão se ocupava de acariciar o cabelo encaracolado e loiro - Bom trabalho, tenente.

-Já fiz melhor – olhou acima do ombro. Os policiais já subiam pelas escadas.

-Não deixou de falar para que a menina tivesse uma oportunidade, depois o abateu. É impossível fazê-lo melhor – e durante toda a ação tinha visto nos olhos dela a expressão de um guerreiro.

-Vamos embora daqui- disse passados alguns momentos de um olhar fixo.

-De acordo –dirigiram-se para a porta.

-Uma coisa, Nightshade.

-O que? – sorriu um pouco, confiante que seria o instante que ela lhe agradeceria.

-Tem porte de arma?

Deteve-se e fixou os olhos nela. Depois estourou numa gargalhada profunda. Super feliz, a pequena ergueu a vista, franziu o nariz e conseguiu esboçar um sorriso trêmulo.

 

Não pensava em matar. Não se permitia. Já tinha matado e sabia que era provável que voltasse a fazê-lo. Mas não pensava nisso. Estava segura de que, se reflexionasse muito nesse aspecto de seu trabalho, iria parar, se dedicaria a beber ou ficaria indiferente. Ou o que era infinitamente pior, terminaria por gostar.

De maneira que arquivou o relatório e o tirou da cabeça. Ao menos tentou.

Levou em pessoa uma cópia ao escritório de Boyd e o deixou sobre sua mesa. Ele deu uma olhada e depois a olhou.

-O policial, Barkley, continua na sala de operações. A mulher se encontra fora de perigo.

-Bem. Como esta à menina?

-Tem uma tia em Colorado Springs. Os serviços sociais se colocaram em contato com ela. O fichado era seu pai. Tem um amplo histórico de abusos físicos e drogas. Sua mulher levou a pequena faz aproximadamente um ano a um refúgio para mulheres. Solicitou o divórcio. Mudou-se para cá faz uns três meses, conseguiu um trabalho e começou uma nova vida .E ele ao encontrou.

-Pois não voltará a encontrá-la – voltou para a porta, mas Boyd se levantou e rodeou a escrivaninha.

-Thea –fechou a porta para aplacar o ruído da delegacia- Você está bem?

-Claro. Não creio que os assuntos internos me incomodem muito por este caso.

-Não falo deles –moveu a cabeça- Um ou do dias livres não fariam mal a você.

-Também não me ajudariam – encolheu de ombros. A Boyd podia dizer coisas que não mencionaria a ninguém mais - Não pensei que pudesse chegar até ela a tempo. E não me equivoquei. Colt não deveria ter estado lá.

- Mas estava –com gentileza apoiou as mãos em seus ombros - Oh, oh, trata-se do complexo da super policial. Esquivar balas, redigir relatórios, gritar em becos escuros, vender entradas para o Baile da Polícia, eliminar o mundo dos tipos maus e salvar gatos presos nas copas das árvores. Ela pode fazer tudo.

-Cale-se, Fletcher –mas sorriu- Traço a linha de não salvar gatos.

-Quer vir jantar esta noite?

-O que tem? –apoiou a mão no pomo da porta.

-Nem faço idéia –sorriu- É a noite livre de Maria.

-Quem vai cozinhar é a Cilla? –olhou-o com expressão doída- Acreditava que éramos amigos.

-Pediremos pizza.

-Trato feito.

Ao sair viu Colt. Tinha os pés sobre uma mesa e um fone ao ouvido. Aproximou-se, sentou-se na borda da mesa e esperou que terminasse o telefonema.

-Terminou a burocracia?

– Nightshade, suponho que não tenho que lhe assinalar que esta mesa, este telefone e esta cadeira são propriedade do departamento de polícia, e de acesso proibido aos civis.

-Não – sorriu- Mas se quer fazê-lo, adiante, podemos comer enquanto você fala dos procedimentos adequados.

-Seus convites me deixam sem fôlego – afastou os pés da mesa- Já temos o carro roubado. Os garotos do laboratório estão pesquisando, assim não tem por que não dar uma investigada.

- Você tem algum outro plano?

-Começando pelo Tick Tock, passarei por alguns dos lugares onde parava Wild Hill, para falar com algumas pessoas.

-Estou com você – quando ela empreendeu o caminho para a garagem, tomou-a pelo braço- Desta vez em meu carro, lembra?

Encolheu os ombros e saiu para a rua. O carro de cor negra tinha uma multa no pára-brisa. Colt a guardou no bolso.

-Suponho que não posso pedir que solucione esse problema.

-Não –Althea se sentou no veículo.

-Não tem problema. Fletch o fará.

Olhou-o e lançou o que poderia ter sido um sorriso antes de voltar a concentrar-se na frente.

-Hoje você foi ótimo com a pequena –a irritava reconhecer, mas devia fazer - Não acredito que tivesse sobrevivido sem você.

-Sem nós. Alguns chamariam de trabalho em equipe.

-Alguns – abotoou o cinto de segurança com um movimento das mãos.

- Relaxe, Thea –engatou a primeira e misturou-se ao tráfico- Onde estávamos antes que nos interrompessem? Oh, sim, falávamos de você.

-Acho que não.

-Certo, eu falarei de você. É uma mulher que gosta da organização, depende dela. Não, não, de fato insiste em tê-la –adicionou - Por isso é tão boa em seu trabalho, tanta lei e ordem.

-Deveria ser psiquiatra, Nightshade –bufou - Quem teria adivinhado que um policial gosta da lei e da ordem?

-Não me interrompa. Tem… não sei, vinte e sete, vinte e oito anos?

-Trinta e dois.

-Não está casada –baixou a vista para a mão sem anéis.

-Outra dedução brilhante.

-Tem a tendência ao sarcasmo e gosta de seda e perfumes caros. Perfumes realmente agradáveis, Thea, desses que seduzem a mente de um homem antes de que entre o jogo do corpo.

-Talvez deveria trabalhar numa agência de publicidade.

-Não há nada sutil a respeito de sua sexualidade. Está aí, em letras maiúsculas. Agora bem, algumas mulheres a explorariam, outras a ocultariam. Você não, em algum ponto decidiu que vai ficar as custas dos homens aprender a lidar com ela. O que algo inteligente –“não tem resposta para isso”, pensou. Ou preferiu não dar- Não perde o tempo nem energia. Dessa maneira, quando os precisa, tem-os ao alcance da mão. Aí dentro tem um cérebro de policial, que lhe permite avaliar uma situação depressa. E suponho que é capaz de manejar um homem com a mesma frieza com a que empunha sua arma.

-Uma análise interessante, Nightshade.

-Não se encolheu ao abater aquele sujeito hoje. Encomodou-a, mas não hesitou– parou adiante do Tick Tock e apagou o motor - Se tenho que trabalhar com alguém, com a possibilidade de viver uma situação desagradável, gosto de saber que não se humilharia.

- Ok, obrigada. Agora posso deixar de me preocupar com a sua aprovação –mal humorada, saiu do veículo.

-E por último… -alcançou com passadas longas e passou o braço pelos ombros - Um pouco de calor. É um alívio ver que também tem temperamento.

Althea surpreendeu a si mesma e a ele dando um tapinha nas costelas.

-Não gostaria se deixasse de controlá-lo. Acredite.

Dedicaram as seguintes duas horas a ir primeiro a um bar, depois a um bilhar e ainda a uma cafeteria de péssima aparência. Só conseguiram algum progresso ao chegar em uma pardieiro de nome Clancy’s.

As luzes eram tênues, uma recompensa para os bebedores madrugadores, que gostavam de esquecer que o sol continuava brilhando. Um rádio por trás do balcão emitia música country que contava uma história triste sobre enganos e garrafas vazias. Vários desses clientes já se achavam distribuídos pelo balcão ou mesas, a maioria bebendo sozinhos.

Althea se dirigiu a um extremo do balcão e pediu um refrigerante que não pensava em provar. Colt decidiu por um chopp. Ela arqueou uma sobrancelha.

-O vacinaram contra tétano a pouco tempo? – sacou vinte dólares, mas manteve os dedos sobre a ponta da nova de vinte dólares enquanto o garçom servia- Wild Hill costumava vir aqui com bastante assiduidade – o garçom observou o dinheiro e depois a ela. Uns olhos vermelhos e um rosto cheio de veias rompidas provavam que bebia tanto como servia- Wild Hill Billings –insistiu.

-E?

-Era amigo meu.

-Parece que perdeu um amigo.

-Algumas vezes vim aqui com ele – retirou um pouco a nota de vinte dólares - Talvez se lembre.

-Tenho uma memória bastante seletiva, mas não me custa reconhecer um policial.

-Bem. Então é possível que deduzisse que Hill e eu tínhamos um acordo. Provavelmente deduzi que esse acordo acabou com seu sangue esparramado sobre a calçada.

-Dedução errada. Não me passava nenhum sopro quando o mataram, e sou uma pessoa sentimental. Quero saber quem acabou com ele, e estou disposta a pagar –adiantou o bilhete- Muito mais do que isto.

-Não sei nada do assunto –ainda que os vinte desapareceram em seu bolso.

-Mas talvez conheça a gente que conheça gente que conheça algo –se adiantou com expressão risonha nos olhos

- Se fizesse correr a voz, o agradeceria – encolheu os ombros e teria saído se ela não tivesse apoiado a mão em seu braço - Creio que esses vinte vale um ou dois minutos. Bill tinha a uma garota chamada Jade. Sumiu. Também tinha algumas mais, verdade?

-Algumas. Não era muito importante no negócio.

-Algum nome?

O homem pegou um trapo sujo e se pôs a limpar o balcão.

-Uma garota de cabelo negro chamada Meena. Às vezes trabalhava aqui. Ultimamente não a vi.

-Se a vê, me chame –retirou um cartão e deixou sobre o balcão- Sabe algo sobre filmes? Filmes particulares com garotas jovens?

Encolheu os ombros, mas Althea captou antes o reflexo de conhecimento em seus olhos.

-Não tenho tempo para filmes, e isso é tudo o que receberá por suas vinte.

-Obrigado –o deixou e se levantou- Dê-lhe um minuto –sussurrou para Colt. Depois avistou através da vitrine suja - Vá, vá. É engraçado que de repente tenha tanta pressa em fazer um telefonema.

-Gosto do seu estilo, tenente – Colt observou o garçom ir ao telefone público e introduzir uma moeda de um quarto.

-Vejamos quanto gosta depois de passar umas horas num carro frio. Espera-nos uma noite de vigília, Nightshade.

-Estou impaciente.

 

Ela tinha razão sobre o frio. Mas não importava tanto, não com calças longas e uma jaqueta de pele de cordeiro para espantá-lo. No entanto, o que incomodava era a inatividade. Teria jurado que para Althea era uma prazer.

Estava comodamente sentada a seu lado, concentrada numa revista de palavras-cruzadas com a luz fraca da lanterna. Trabalhava de forma metódica, paciente, interminável, enquanto tentava combater a chatice com a retrospectiva de B.B. King na rádio.

Pensou no jantar que os dois tinham perdido na casa dos Fletcher. Comida quente, uma lareira, um conhaque. Inclusive tinha passado pela cabeça que talvez Althea se descontraísse um pouco num meio não oficial. Talvez não ajudasse pensar nela dessa maneira, como a deusa do frio que se derrete, mas avivou suas fantasias.

Na situação que se achavam era toda policial, tão distante emocionalmente como a lua. Mas no sonho, ajudado pelo lento blues que saía pela rádio, era toda mulher, sedutora como a seda negra que imaginava que usava nas roupas íntimas, tentadora como o fogo que ardia na chaminé de pedra, suave como o tapete de pele branca sobre a que tinham jogado.

E seu sabor, quanto provou sua boca, era como um whisky almiscarado. Embriagante, doce, potente. Um oleáceo com o que um homem podia afogar-se.

A seda se desprendeu centímetro a centímetro, revelando a pele de alabastro. Delicada como uma pétala de rosa, impecável como o cristal, firme e suave como água. E quando ela alongava as mãos para ele, para introduzi-lo em seu segredo, seus lábios sussurravam algo ao ouvido.

-Mais café?

-Como? –voltou à realidade e a contemplou com o carro em penumbra. Oferecia uma garrafa térmica a ele.

- Quer café? –intrigada pela expressão de sua cara, tirou-lhe a xícara e a encheu até a metade. A primeira vista, teria dito que tinha veemência em seus olhos, mas conhecia muito bem essa expressão. Era desejo, maduro e pronto- Dando uma divagada, Nightshade?

-Sim –aceitou a xícara e bebeu, desejando que fosse whisky. Mas sorriu, e a diversão consigo mesmo e a ridícula situação mitigou a incomodidade de suas entranhas - Uma grande divagada.

-Bom, tente não se afastar muito – bebeu um gole de sua própria xícara e lhe ofereceu um pacote de rosquinhas açucaradas - Aí vai outro – eficiente, deixou a xícara e pegou a câmera. Tirou duas fotos do homem que entrou no bar. Era o segundo na última hora.

- Ao que parece não tem um negócio muito próspero.

- À maioria gosta de aproveitar um ambiente para um gole.

- Samambaias e música digital?

- Copos limpos, para começar –deixou a câmara-. Duvido que vamos ver um de nossos diretores de cinema por aqui.

- Então, o que fazemos sentados em um carro frio ante um tugúrio às onze da noite?

- Porque é meu trabalho –escolheu uma amêndoa e a levou a boca-. E porque espero outra pessoa.

- Quer me dar uma pista? –era a primeira notícia que tinha.

- Não –comeu outra amêndoa e voltou a concentrar-se na palavra cruzada.

- Muito bem, acabou–tirou o jornal das mãos-. quer jogar, Grayson? Deixe que lhe diga como jogo eu. Irrito-me quando as pessoas me escondem algo. Especialmente quando estou mortalmente aborrecido. Então me ponho um tanto desagradável.

-Perdão –murmurou com voz suave, em direto contraste com o fogo que ardia em seus olhos-. Mal posso falar pelo nó de terror que sinto na garganta.

-Quer assustar-se? –moveu-se a grande velocidade. Ela não poderia ter se esquivado embora tivesse tentado. De modo que cedeu sem nenhuma amostra de resistência quando a tomou pelos ombros-. Suponho que serei capaz de colocar o medo em seu divino corpo, Thea, e animar um pouco as coisas para os dois.

 - Bem, se tiver terminado com sua demonstração de machismo, a quem estou esperando está a ponto de entrar no bar.

-O que?

Colt girou a cabeça, o qual apresentou a Althea a oportunidade perfeita para lhe agarrar o dedo polegar e retorcê-lo com ferocidade. Quando ele praguejou, soltou-o.

-Meena. A outra garota do Wild Hill –ergueu a máquina e tirou outra foto-. Vi sua foto esta tarde em seu histórico. Esteve presa. Prostituição, posse de droga com intenção de vendê-la, conduta exibicionista.

-É uma garota doce nossa Meena.

-Sua Meena –corrigiu-. Como gosta tanto de fazer o tipo durão, pode ir seduzi-la e trazê-la aqui para que possamos falar com ela –abriu a bolsa e tirou um bolo de cinco notas de dez dólares -. E se seu encanto falhar, lhe ofereça cinqüenta.

-Quer que entre e a convença de que procuro farra?

-Isso.

-Bem –tinha feito costure piores que interpretar um sedutor em um bar sujo. Mas lhe devolveu o montante-. Tenho meu próprio dinheiro.

Althea o observou cruzar a rua e esperou até que desaparecesse dentro do local. Logo se recostou e se permitiu um momento para fechar os olhos e soltar um prolongado suspiro.

Pensou que Colt Nightshade era um homem perigoso. Não tinha experimentado somente raiva quando lhe agarrou pelos ombros. O que havia sentido era complexo, retorcido e confuso: Excitação profunda, ardente, que lhe abrasou a alma, mesclada com uma pequena dose de medo primário e fúria.

“Não é típico de você”, refletiu enquanto se tomava tempo para acalmasse-se. Ter estado tão perto de perder o controle devido a que um homem apertava as teclas erradas, ou as certas, era pouco habitual.

Era ela quem apertava as teclas. Essa era a regra principal da Althea Grayson. E se Colt acreditava que podia pular em cima dela como tinha feito ia ficar muito decepcionado.

Esforçou-se muito para se transformar em quem era, elaborando metas em sua vida e seguido-as. Tinha saído do caos e tinha conseguido controlá-lo. Certamente, de vez em quando era necessário trocar de padrão. Não era uma mulher rígida. Mas nada, absolutamente nada, sacudia esse padrão.

Supôs que se devia ao caso. A jovem retida por desconhecidos, da que sem dúvida abusavam.

“Outro padrão”, pensou com amargura. Muito familiar.

E a menina aquela manhã. Assustada pelos adultos a rodeavam.

Moveu a cabeça, recolheu o periódico para dobrá-lo com precisão e deixá-lo a um lado.

Disse-se que estava cansada. A operação antidroga de na semana anterior tinha sido terrível. E sair daquilo para entrar no novo caso haveria conmocionado a qualquer. Precisava de umas férias. Sorriu e imaginou uma praia de areias brancas, águas azuis e um hotel a suas costas. Uma cama grande, serviço de quarto e um jacuzzi privativa.

E pensava em fazer exatamente isso quando fechasse o caso e enviasse Colt Nightshade de volta para seu trabalho...ao que diabos considerasse sua profissão.

Voltou a olhar em direção ao bar e se viu obrigada a assentir com aprovação. Tinham passado menos de dez minutos e saía seguido de Meena.

-OH, um trio? –Meena estudou Althea com olhos muito pintados. afastou os cachos negros e fez uma careta-. Bom, querido, isso vai custar mais.

-Não há problema –com cavalheirismo a ajudou a subir ao assento de atrás.

- Imagino que um homem como você pode dar conta das duas.

-Não acredito que vá ser necessário –Althea tirou o distintivo para mostrar-lhe . Meena amaldiçoou, lançou a Colt um olhar de profundo desagrado e depois cruzou os braços.

-Os policiais não têm nada melhor que fazer que perseguir pobres almas trabalhadoras?

-Não teremos que levá-la a delegacia de polícia, Meena, se responder a umas perguntas. Vamos dar uma volta, Colt? –quando ele arrancou, Althea se voltou no assento-. Wild Hill era meu amigo.

-Sim, claro. Fez-me alguns favores.

- E foi correspondido?

-Sim, claro que… -calou e estreitou os olhos-. Você é a policial a que lhe vendia informações, a que ele dizia que tinha classe? –Meena relaxou um pouco. Existia uma boa probabilidade de que não passasse a noite em uma cela-. Disse que foi legal com ele, que sempre lhe dava umas notas sem se queixar.

-Estou comovida –Althea notou o sorriso ambicioso de Meena arqueou uma sobrancelha-. Possivelmente teria que disse que pagava quando havia algo que valesse a pena comprar. Conhece Jade?

-Claro. Faz umas semanas que não a vejo. Hill disse que saiu da cidade –colocou a mão em sua bolsa de plástico vermelho e tirou um cigarro. Quando Colt acendeu o isqueiro e lhe ofereceu fogo, tomou a mão entre as duas delas e lhe deu de presente um olhar cálido-. Obrigado, querido.

-O que me diz desta garota? –do bolso tirou uma foto da Elizabeth. depois de acender a luz do teto, a ofereceu a Meena.

-Não –ia devolver quando franziu o cenho-. Não sei. Talvez –enquanto a analisava, soltou uma coluna de fumaça, enchendo o ambiente-. Não trabalha na rua. Parece-me que a vi em alguma lugar.

-Com o Hill? –pergunto Althea.

-Diabos, não. Bill não trata mexe com o que pode lhe dar cadeia.

-Quem o faz?

Meena olhou para Colt.

-Georgia Cool tem a algumas jovens em seu estábulo. Embora ninguém tão verde como esta.

-Bill conseguiu uma atuação para você, Meena? Um filme? –insistiu Althea.

-É possível.

-Sim ou não? –Althea tirou a foto de Liz - Me faz perder tempo, e não perco meu dinheiro.

-Demônios, não me incomoda se um cara quer gravar uns vídeos enquanto trabalho. Pagaram mais.

-Tem nomes?

-Não trocamos cartões.–bufou.

-Mas pode me dar uma descrição. Dizer quantos tinham envolvidos, onde foi o lugar da gravação.

-É provável – o olhar astuto regressou a seu rosto enquanto soltava fumaça- Se tivesse algum incentivo.

-Teu incentivo será não passar uma temporada na cadeia com uma sueca de cem quilos –comentou Althea com suavidade.

-Não pode me prender. Gritarei que foi uma armadilha.

-Grite o que quiser. Com teu histórico, o juiz rirá.

-Vamos, Thea –a voz de Colt pareceu ter se espessado- Dê um descanso à moça. Está tentando cooperar, não é, Meena?

-Claro –Meena apagou o cigarro e umedeceu os lábios-. Claro que sim.

-O que tenta é me enganar – Althea compreendeu que Colt e ela tinham adotado os papéis de policial bom, policial mal, sem pestanejar- E quero respostas. Não as que está dando –sorriu para a jovem pelo espelho retrovisor- Toma meu tempo.

-Eram três –repôs Meena com uma careta- Um sujeito que manejava a câmara, outro sentado num canto, não pude vê-lo. E o que estava atuando comigo, já sabe. O da câmara era calvo. Negro, grande para valer… como um lutador ou algo parecido. Estive lá aproximadamente uma hora, e em nenhum momento abriu a boca.

-Lhe chamaram por algum nome? –Althea abriu o bloco de notas.

-Não – pensou um momento e moveu a cabeça- Não. É engraçado, não? Se não me engano, nem sequer falaram entre eles. O cara com que contracenava comigo era pequeno… menos em suas partes vitais –riu entre dentes e pegou outro cigarro-. Esse falou. Uma conversa vaga, para a câmara. Alguns gostam desse jeito. Tinha uns… não sei, quarenta anos talvez, magro, com o cabelo amarrado que chegava aos ombros. Era um tipo que lembrava um cowboy solitário.

-Quero que trabalhe com um desenhista da polícia –indicou Althea.

-Não. Não quero mais policiais.

-Não tem problema o que fizermos na delegacia –decidiu jogar com seu coringa-. Se nos dá uma descrição boa, que nos ajude a pegar esses sujeitos, ganhará cem extra.

-De acordo –o rosto se iluminou- De acordo.

-Onde gravou? –Althea moveu o lápis sobre o bloco.

-Num lugar bonito. Tinha um jacuzzi redonda no banheiro e espelhos nas paredes –se adiantou para apoiar os dedos no ombro de Colt-. Foi… estimulante.

-A direção? –insistiu Althea.

-Não sei. Um desses edifícios grandes de apartamentos que há na Segunda. Na cobertura.

-Aposto a que reconheceria o edifício se passássemos por ali, verdade, Meena? –o tom de Colt foi amistoso, como o sorriso que ofereceu por cima do ombro.

-Sim, claro –e o fez. Minutos mais tarde apontava pela janela-. Esse, aí. Vê o apartamento mais alto, com os janelões e a sacada? Estive ali. Um lugar com classe. Carpete branco, um dormitório muito sexy, com cortinas vermelhas e uma cama enorme e redonda. Tinha torneiras de ouro no banheiro, em forma de cisne. Céus, adoraria voltar.

-Só foi uma vez? –perguntou Colt.

-Sim. Disseram a Billy que era o tipo adequado –com voz de desagrado pegou outro cigarro- Disseram que era velha demais. Podem acreditar?Acabo de completar vinte e dois anos e esses desgraçados dizem a Billy que sou velha demais. Incomodou-me… Oh, sim… -inspirada, bateu no ombro de Colt-. A garota. A da foto. Aí é onde a vi. Tinha saído, mas tive que voltar porque tinha esquecido os cigarros. Ela estava sentada na cozinha. Não a reconheci de imediato na foto, porque estava muito maquiada.

-Te disse algo? –quis saber Colt, lutando por manter firme a voz- Fez algo?

-Não, não se moveu de onde estava sentada. Pareceu-me drogada.

Ao perceber que precisava de apoio, Althea alongou o braço e cobriu a mão de Colt. Tinha a mão rígida. Quando ele apertou os dedos para unir suas palmas, surpreendeu-a, mas não protestou.

-Quero falar com você outra vez –com a mão livre, pegou dinheiro suficiente do bolso para garantir a cooperação futura de Meena-. Preciso um número onde posso localizá-la.

-Com certeza –o deu enquanto contava as notas- Suponho que Billy tinha razão. É legal. E, talvez pode me deixar no Tick Tock. Irei tomar uma dose em memória de Bill.

-Acho que precisamos de uma ordem judicial para entrarmos.

-Verdade –suspirou e meteu a mão no interior da jaqueta para verificar sua automática- E vão nos convidar para tomar café. Se me der duas horas…-ficou boquiaberta ao vê-lo virar-se. Depois da polidez com que tinha manejado a situação até esse momento, desconcertou-a fúria que ardia em seu rosto.

-Ouça, tenente, não penso esperar nem mais dois minutos para comprovar se Liz continua aí. E se está, se há alguém, não vou precisar uma maldita ordem.

-Colt, compreendo…

-Não compreende nada.

Ela abriu a boca e voltou a fechá-la, aturdida porque tinha estado a ponto de gritar que sim, o entendia, e muito bem.

-Chamaremos –conveio com voz tensa e se dirigiu à porta da cobertura e chamou.

-Talvez sejam um pouco surdos –bateu na porta com o punho. Quando ninguém contestou, moveu-se com tanta celeridade que Althea não teve tempo nem de amaldiçoar. Já tinha aberto a porta de um pontapé.

-Estupendo, Nightshade. Sutil como um tijolo.

-Suponho que escorreguei –sacou a pistola da bota-. Olha, a porta está aberta.

-Não… -mas já tinha entrado. Amaldiçoando Boyd e a todos seus amigos da infância, pegou a arma e o seguiu, cobrindo-lhe instintivamente as costas. Não precisou de luz, que Colt acendeu, para ver que estava vazio. Irradiava uma sensação de abandono. Não sobrou nada, somente o carpete e as cortinas.

-Fugiram –murmurou ao ir de um quarto a outro-. Os miseráveis fugiram.

Convicta de que não ia precisar, Althea voltou a embainhar a arma.

-Suponho que agora sabemos para quem telefonou nosso amigável garçom esta tarde. Veremos o que podemos conseguir do contrato de aluguel, dos vizinhos… -ainda que não tinha esperança de encontrar nenhuma pista. Entrou no banheiro. Era como o tinha descrito Meena, com o jacuzzi redondo, as torneiras em forma de cisne, de latão, não de ouro, e espelhos por todas partes-. Colocasse em perigo a integridade de um possível palco de um crime, Nightshade, espero que esteja satisfeito.

-Ela poderia estar aqui –comentou o a suas costas.

Althea viu seus reflexos atracados nos espelhos. O que a suavizou foi à expressão de seu rosto, que não tinha imaginado ver.

-Vamos encontrá-la, Colt –murmurou- Vamos nos encarregar de que volte para casa.

-Claro –queria quebrar algo, qualquer coisa. Usou toda a força de vontade para não quebrar os espelhos- Cada dia que tenham em seu poder, é um dia com que terá que viver o resto de sua vida, para sempre –se inclinou e deslizou a pistola na bota-. Deus, Thea, ela não é mais que uma menina.

-Os meninos são mais duros do que a gente pensa. Esquecem as coisas quando precisam. E vai ser mais fácil porque tem uma família que a quer.

-Mais fácil que o quê?

“Que estar só”, pensou.

-Simplesmente mais fácil –não pode evitá-lo; levantou uma mão e a apoiou na face dele - Não se culpe, Colt, ou vai acabar estragando as coisas.

-Sim –conteve essa emoção perigosa que conduzia a erros perigosos. Mas quando ela começou a baixar a mão para a lateral, agarrou o pulso- Sabe de uma coisa? –aproximou-se uns centímetros… talvez só porque precisava de um contato-. Durante um momento foi quase humana.

-Verdade? –seus corpos se roçavam. Pensou que seria um ato de covardia retroceder-. E geralmente eu sou o que?

-Perfeita –levantou a mão livre e meteu os dedos em seu cabelo, algo que queria fazer desde o primeiro momento que a viu-. Assusta –disse- É tudo… o rosto, o cabelo, o corpo, a mente. Um homem não sabe que fazer, se uiva à lua ou geme a seus pés.

Ela teve que inclinar a cabeça atrás para continuar olhando-o nos olhos. O seu coração pulsava mais depressa, não prestava atenção. Já tinha acontecido anteriormente. Sentia uma leve curiosidade, inclusive desejo, não seria a primeira vez, e podia controlar. Mas o que era difícil de canalizar era uma borbulhação inesperada de seus sentidos. Contra isso teria que lutar.

-Não me dá a impressão de ser um homem que faça alguma dessas duas coisas –esboçou um sorriso frio, quase uma careta que fazia que os homens se afastassem de imediato.

Colt não era como a maioria dos homens.

-Nunca fui. Por que não provamos outra coisa? –disse devagar, depois se moveu como um relâmpago para fechar a boca sobre a dela.

Se Althea tivesse protestado, se tivesse lutado, inclusive se tivesse retrocedido de forma simbólica, a teria soltado, dando-se por perdedor. Talvez.

Depois ela pensaria que poderia tê-lo freado em secos com vários movimentos de defesa própria. Depois. Mas tinha um calor tão descarnado nos lábios dele, uma força tão intensa nos braços, e um prazer aquecia seu próprio corpo.

Sim, isso era o que pensaria depois.

Foi tal como Colt tinha imaginado. E tinha imaginado muito. O sabor que tinha nos lábios era exatamente igual ao que tinha provado em sua mente. Era tão viciante como o ópio. Quando se abriu a ele, submergiu-se mais para tomar.

Althea era tão pequena, esbelta e flexível como poderia desejar qualquer homem. E forte. Com os braços o rodeava com força e seus dedos mexiam em seus cabelos. O som baixo e rouco de aprovação que vibrou por sua garganta pôs o sangue como um rio desembocado.

Murmurando seu nome, a fez girar e a apoiou contra os espelhos, cobrindo-lhe o corpo com o seu. Percorreu-a com mãos cobiçosas, ansiosas de tomar, tocar e possuir. Depois desabotoou os botões da blusa com uma necessidade desesperada por eliminar a primeira barreira.

Desejava-a nesse momento. “Não”, compreendeu que nesse momento precisava dela. Do modo em que um homem precisa dormir depois de um duro dia de trabalho, tal como precisava comer depois de um prolongado jejum.

Separou a boca dos lábios dela e a depositou em seu pescoço, extasiando-se com o sabor da pele.

Perdida num delírio, Althea arcou as costas e gemeu ao sentir a boca faminta sobre sua pele acesa. Soube que se não tivesse tido o apoio da parede, já teria caído ao solo. E era ali, justo ali, onde ele a tomaria, onde se tomariam mutuamente. No solo frio, no duro, com dúzias de espelhos que devolviam os reflexos de seus corpos desesperados.

Ali, nesse momento.

E como um ladrão entrando numa casa a escuras, em sua mente brilhou a imagem de Meena e do que tinha tido lugar naquele apartamento. “Que estou fazendo? Santo céu, que estou fazendo?”, pensou com fúria ao separar-se.

Era uma policial e tinha estado a ponto de ceder a um sexo cego no meio do palco do delito.

-Pare! –sua voz soou dura pela excitação e o desgosto consigo mesma-. Falo sério, Colt. Pare. Agora.

-Que? –como um nadador que emerge das profundidades, moveu a cabeça, quase mareado.

Seus joelhos tremiam. Para compensar, apoiou uma mão na parede enquanto a olhava. Tinha soltado o cabelo, que caía como uma cascata de fogo sobre seus ombros. Nesse instante seus olhos eram mais dourados que castanhos, enormes, sedutoramente nebulosos. Tinha a boca vermelha pela pressão à que tinha submetido e a pele brilhante de um rosa pálido adorável.

-É linda. Incrivelmente linda –com suavidade passou um dedo pela garganta-. Como uma flor exótica por trás de um cristal. Um homem deve quebrar o cristal para tomá-la.

-Não –segurou a mão para não voltar a perder a razão-. É uma loucura.

-Sim – ele não tinha como negar- E é magnífico.

-É uma investigação, Nightshade. E nos achamos no que possivelmente seja o palco de um delito importante.

-Então, vamos para outro lugar –sorriu e pegou a mão para mordiscar os dedos. O fato de se encontrarem em uma beco sem saída em relação a investigação não significava que devia deter toda atividade.

-Vamos para outro lugar –empurrou e com movimentos seguros voltou a abotoar a blusa- Separados –consternada, deu-se conta de que se sentia fraca.

Colt considerou que o melhor lugar para ter as mãos nesse momento era nos bolsos. Ela tinha razão e isso era o pior.

-Quer fingir que isto não aconteceu?

-Não finjo nada –jogou o cabelo para trás e alisou a jaqueta com dignidade-. Aconteceu, e já terminou.

-Em absoluto, tenente. Ambos somos adultos, e ainda que só posso falar por mim, a conexão que sentimos não acontece todos os dias.

-Tem razão –inclinou a cabeça-. Fale apenas por você –conseguiu voltar ao salão antes de que ele a tomasse pelo braço e a fizesse girar de volta para ele.

-Quer uma demonstração agora? –perguntou com voz mortalmente serena-. ou quer ser sincera?

-Certo –podia ser sincera, por que as mentiras não funcionariam-. Se me interessasse uma aventura rápida e quente, sem dúvida o chamaria. Mas neste momento tenho outras prioridades.

-Tem uma lista, não?

Althea calou-se por um instante para controlar seu temperamento.

-Acredita que esta me ofendendo? –inquiriu com voz doce.- Prefiro organizar minha vida.

-De metê-la em compartimentos.

-O que queira –arqueou uma sobrancelha-. Para o bem ou para o mau, temos uma relação profissional. Eu quero encontrar a garota, Colt, tanto como você. Quero que regresse para junto de sua família, que coma hambúrgueres e que só se preocupe de seu último exame de matemáticas. E quero pegar os canalhas que a têm. Mais do que poderia chegar a entender.

-Então, por que não me ajuda a compreender?

-Sou policial –informou.- Isso basta.

-Não –seu rosto tinha refletido paixão que ele tinha sentido ao tê-la nos braços. A ponto de perder o controle-. Nem para você nem para mim –suspirou e esfregou a nuca. Deu-se conta de que ambos se achavam cansados e tensos. Não era o momento nem o lugar para aprofundar nos motivos pessoais.

Precisava de tempo para encontrar objetividade se queria compreender Althea Grayson

- Olhe, desculpe-me se me enganei. Mas ambos sabemos que não foi assim. Estou aqui para procurar a Liz, e nada vai me deter. E depois de prová-lo, Thea, penso em mostrar igual determinação por receber mais.

-Não sou o prato do dia, Nightshade –murmurou esgotada. -Vai receber o que eu oferecer.

-É bem como quero –esboçou um sorriso rápido-. Vamos, levarei você para casa.

Sem dizer nada, Althea o olhou. Tinha a incômoda sensação de que não tinham resolvido as coisas tal como ela tinha querido.

 

Armado com uma segunda xícara de café, Colt se achava à beira de um redemoinho. Era evidente que pegar três meninos da casa para metê-los num ônibus escolar era um acontecimento de proporções gigantescas. Perguntou-se como um trio de adultos poderia manejar esta loucura diária sem perder a sensatez.

-Não gosto desses cereais –se queixou Bryant. Levantou a colher e, com o cenho franzido, mexeu outra vez a massa na cumbuca-. Tem gosto de árvores molhadas.

- Você os escolheu porque traziam uma surpresa no interior da caixa –recordou Cilla enquanto preparava sanduíches de manteiga de amendoim e geléia-. Você comerá tudo.

-Poe mais um prato –sugeriu Boyd enquanto tentava recolher o cabelo loiro de Allison em algo parecido a uma trança.

-Ai! Papai, esta puxando o cabelo!

-Desculpe. Qual é a capital de Nebraska?

-Lincoln –suspirou sua filha-. Odeio as provas de geografia –disse com uma careta enquanto praticava seus passos de dança- Para que quero conhecer os estúpidos estados e suas estúpidas capitais?

-Porque o conhecimento é sagrado –com a língua entre os dentes, Boyd se afanava em arrumar a trança-. E quando aprende algo, jamais chega a esquecê-lo.

-Bom, pois não lembro qual é a capital de Virginia.

-É, ah… -quando o conhecimento sagrado o escapou, Boyd amaldiçoou baixinho. Que diabos importava? Vivia em Colorado. Para ele, um dos principais problemas de ter filhos era que os pais se viam obrigados a voltar ao colégio-. Já se recordará.

-Mamãe, Bry está dando seus cereais ao Bongo –Allison sorriu para seu irmão com o tipo de sorriso astuto que só uma irmã consegue.

Cilla se voltou a tempo de ver a seu filho estender a colher para a boca ansiosa do cachorro.

-Bryant Fletcher, dentro de um minuto vai comer esses cereais todos.

-Olha, mamãe, nem sequer Bongo quer comer. São uma porcaria.

 -Não diga isso –repreendeu Cilla com cansaço. Mas notou que o cachorro grande e peludo, que pelo geral até bebia água da latrina, tinha afastado o focinho depois de provar o grude em que se tinham convertido os Rocket Crunchies-. Come o prato e pegue seu casaco.

 -Mamãe! –Keenan, o menor, entrou na cozinha. Estava descalço e sem calças e sustentava um tênis na mão-. Não posso encontrar meu outro tênis. Alguém o roubou!

-Chama à polícia –murmurou Cilla ao guardar o último sanduíche na lancheira.

-Eu encontrarei, senhora –Maria limpou as mãos no avental.

 -Bendita seja.

-Os homens maus o levaram, Maria –a informou Keenan com voz baixa e séria-. Vieram a noite e o levaram. Papai vai prende-los.

-Com certeza que sim –com expressão igualmente séria, Maria tomou da mão e o levou para as escadas-. Agora vamos procurar pistas.

-Guarda chuva –Cilla voltou e passou a mão pelo cabelo curto e castanho-. Está chovendo. Temos guarda chuva?

-Costumávamos ter –acabada sua sessão de penteado, Boyd se serviu de outra xícara de café- Alguém os roubou. Provavelmente o mesmo bando que levou os tênis de Keenan e os deveres de ortografia de Bryant. Já pus uns agentes para trabalhar no caso.

-Bela ajuda que me oferece –Cilla foi à porta da cozinha-. Maria! Guarda chuva! –deu a volta, tropeçou no cachorro, soltou uma praga e depois recolheu as três lancheiras - Casacos –ordenou-. Têm cinco minutos para chegar ao ônibus.

Bongo decidiu que esse era o momento perfeito para saltar sobre tudo o que estivesse diante dele.

-Odeia as despedidas –disse Boyd a Colt enquanto punha a coleira no animal.

-O tênis estava no armário – anunciou Maria ao levar Keenan à cozinha.

-Os ladrões devem ter escondido lá. É diabólico demais –disse Cilla ao oferecer-lhe a lancheira- Um beijo.

Keenan sorriu e plantou um beijo sonoro nos lábios.

-Bry, os cereais vão para o lixo –ao entregar a lancheira, passou um braço pelo pescoço, provocando risadas enquanto lhe dava um beijo-. Allison, a capital de Virginia é Richmond.

Depois de que todos se beijaram, Cilla levantou uma mão.

-Qualquer um que deixe o guarda chuva na escola será executado de imediato. Podem ir.

Todos saíram correndo. A porta se fechou. Cilla fechou os olhos.

-Ah, outra manhã calma na casa dos Fletcher. Colt, que posso oferecer? Bacon, ovos? Whisky?

-Fico com os dois primeiros. Reserva o último –sorriu e ocupou a cadeira que Bryant tinha deixado livre -. Todos os dias são iguais?

-Os sábados começam mais tarde –passou as mãos pelos cabelos e verificou a hora-. Gostaria de ficar com vocês, garotos, mas tenho que preparar-me para o trabalho. Tenho uma reunião dentro de uma hora. Se sentir-se perdido, Colt, passa pela emissora. Mostrarei a cidade a você.

-Pode ser que o faça.

-Maria, precisas que traga algo?

-Não, senhora –já tinha o bacon na frigideira- Obrigada.

-Voltarei às seis –se deteve junto à mesa para acariciar o ombro de seu marido-. Acho que entendi que terá uma partida de pôquer esta noite.

-Isso são rumores –atirou-se em direção a sua mulher e Colt viu que sorriam antes de se beijarem-. Sabe muito bem, É Roarke.

-Geléia de morango. Nos veremos depois, detetive –deu um ultimo beijo antes de deixá-lo.

Colt a escutou correr escadas acima.

-Acertou na mosca né, Fletch?

-Mmm?

-Uma mulher magnífica e crianças maravilhosas. E de primeira.

-É o que parece. Acho que soube que Cilla era para mim ao vê-la –recordar o fez sorrir-. Ainda que tenha precisado de um bom tempo para convencê-la de que não poderia viver sem mim.

-Althea e você eram parceiros quando conheceu Cilla, não?

-Sim. Nós trabalhávamos a noite naquela época. Thea foi a primeira mulher que tive de parceira. E também foi a melhor policial com quem trabalhei.

-Tenho que perguntar… será obrigado a negar, mas tenho que fazê-lo –“Como perguntar?”. Pegou o garfo e o bateu na borda da mesa fazendo soar-. Thea e você… antes de Cilla… existiu algo pessoal?

-Há muitas coisas pessoais quando se trabalha com outra pessoa, às vezes vinte e quatro horas –recolheu a xícara de café e sorriu descontraído-. Mas não tinha nada romântico, se é isso que você quer saber.

-Não é assunto meu –encolheu os ombros, incomodado pelo quanto que aliviava a reposta de Boyd-. Senti apenas curiosidade.

-Por saber por que não tentei nada com uma mulher tão bonita? Com seu cérebro? seu… qual é a melhor palavra para descrevê-lo? –divertido pela evidente incomodo de Colt, riu enquanto Maria servia o café da manhã-. Obrigada, Maria. O chamaremos estilo, na falta de uma palavra melhor. É simples, Colt. Não vou dizer que não pensei nisso. Mas encaixamos como colegas, como amigos, e isso não nos levou por nenhum dos outros caminhos –provou os ovos e ergueu uma sobrancelha-. Está pensando nisso?

Voltou a encolher os ombros e mexeu com o bacon.

-Não posso dizer que tenhamos encaixado como colegas… ou amigos. Mas imagino que já nos adentramos por um desses caminhos.

Boyd não fingiu surpresa. Qualquer que dissesse que o azeite e a água não se misturavam era porque não os tinha agitado o suficiente.

-Há algumas mulheres que se metem sob sua pele, e algumas em sua cabeça. E outras nas duas coisas.

-Sim. Qual é sua história?

-É uma boa policial, uma pessoa que pode confiar. Como todo mundo, tem certa bagagem, mas o leva bem. Se quer saber coisas pessoais, terá que perguntar a ela –levantou a xícara.- E ela receberá a mesma resposta de mim sobre você.

-Perguntou?

-Não –bebeu para ocultar seu sorriso-. E agora, por que não me conta os progressos no que se refere à Liz?

-Conseguimos uma pista sobre uma cobertura da Segunda Avenida, mas já estava vazia –era algo que continuava frustrando-o-. Pensei em falar com o encarregado do edifício, com os vizinhos. Há uma testemunha que talvez seja capaz de identificar um ou a mais de nossos magnatas do cinema.

-Bom começo. Posso ajudar em algo?

-Comunicarei. Já a tem em seu poder duas semanas, Fletch. Vou recuperá-la –levantou a vista e a fúria contida que tinha neles não deixou lugar a dúvidas-. O que me preocupa é o estado que a encontrarei.

-Vai passo a passo.

-Fala como a tenente –Colt preferia dar saltos em vez de passos-. Não posso ficar com ela até última hora da tarde. Está nos tribunais.

-Nos tribunais? –Boyd franziu em cenho, depois assentiu-. Verdade... o juízo Marsten. -Roubo a mão armada e agressão. Quer que envie um agente uniformizado contigo à Segunda Avenida?

-Não. Eu me encarregarei.

 

Colt decidiu que era maravilhoso trabalhar sozinho outra vez. Isso significava que não tinha que se preocupar de pisar nos sapatos de seu colega nem discutir sobre estratégia. E no referente a Althea, significava que não tinha que se centrar em não pensar nela como mulher.

Primeiro foi ver o encarregado do edifício, Nieman, um homem baixo e meio calvo que evidentemente considerava que seu posto requeria que levasse um traje de três peças, uma gravata torpemente enrolada e um oceano de loção pós barba.

-já dei minha declaração à outra oficial –informou a Colt através da abertura de cinco centímetros que proporcionava a corrente de segurança de sua porta.

-Agora terá que dar a mim –não viu sentido em declarar que ele não era polícia- Quer que grite minhas perguntas do corredor, senhor Nieman?

-Não –tirou a corrente, visivelmente irritado-. Eu já não tive problemas suficientes? Mal tinha me levantado esta manhã quando vocês bateram na minha porta. Os inquilinos não deixaram de me chamar por telefone, querendo saber por que a polícia está interditando a cobertura. Demorarei semanas em desterrar esta publicidade.

-Tem um trabalho muito duro, senhor Nieman –estudou o apartamento ao entrar. Não era tão grande como a cobertura vazia, mas não estava mau. Nieman o tinha mobiliado ao estilo rococó francês. Colt pensou que sua mãe teria se encantado.

-Não, imagina –resignado, o outro lhe indicou um cadeirão talhado-. Os inquilinos são como meninos. Precisam que alguém os guie, que alguém de uns tapas na mão quando fogem de alguma regra. Sou encarregado deste edifício há dez anos, três como residente, e as histórias que poderia lhe contar …

Por medo a que o fizesse, cortou-o.

-Por que não me fala dos inquilinos da cobertura?

-Pouco posso dizer –subiu um pouco as calças antes de sentar-se. Cruzou as pernas pelos tornozelos e mostrou as meias com desenho geométrico-. Como expliquei à outra detetive, na verdade jamais cheguei a vê-los. Permaneceram aqui só quatro meses.

-É que não mostra os apartamentos aos possíveis inquilinos, senhor Nieman? Não aceita em pessoa seus formulários?

-Como regra, com certeza. Neste caso em particular, o arrendatário enviou por correio referências e um cheque bancário como depósito pelo primeiro e último aluguel.

-É habitual que alugue um apartamento dessa maneira?

-Não… -depois de clarear a garganta, brincou com o nó de sua gravata-. A carta veio acompanhada de um telefonema. O senhor Davis, o inquilino, explicou que era amigo do senhor e a senhora Ellison. Os Ellison tinham alugado a cobertura antes, durante três anos. Um casal encantador, com um gosto elegante. Mudaram-se para Boston. Como os conhecia, não precisava ver a cobertura. Afirmou que tinha assistido a vários jantares e outras festas na casa dos Ellison. Olhe, estava ansioso para alugá-lo, e como suas referências eram impecáveis…

-As verificou?

-Com certeza –com os lábios franzidos, Nieman se ergueu-. Levo muito a sério minhas responsabilidades.

-Como ele ganhava a vida?

-Trabalha como engenheiro numa empresa local. Quando me pus em contato com a empresa, disseram que o tinham na mais alta estima.

-Que empresa?

-Ainda tenho seus dados –estendeu a mão para a mesinha do centro para recolher uma pasta fina-. Foxx Engineering –começou, depois recitou a direção e o telefone-. Também entrei em contato com o encarregado do edifício onde vivia. Nós temos um código ético. Me assegurou que o senhor Davis era um arrendatário ideal, responsável e pontual na hora de pagar. E assim foi.

-Mas nunca chegou a vê-lo em pessoa?

-Leste é um edifício grande. Há vários inquilinos que não vejo. Nos encontramos de maneira regular é com os problemáticos, e o senhor Davis jamais causou um problema.

 

“Nunca causou um problema”, pensou com gesto sombrio enquanto terminava o lento processo de ir de porta em porta. Tinha conseguido uma cópia do contrato, das referências e da carta de Davis. Já passava do meio dia e já tinha entrevistado quase todos os inquilinos que tinham respondido seu telefonema. Só três afirmavam ter visto o misterioso senhor Davis. Nesse momento Colt dispunha de três descrições diferentes para adicionar ao relatório.

O selo da polícia na porta da cobertura tinha impedido a entrada. Poderia ter aberto a fechadura e cortado a fita, mas duvidava que fosse encontrar um pouco de utilidade.

De modo que tinha começado por cima. Nesse momento percorria o terceiro andar, dominado pela frustração e o começo de uma dor de cabeça.

Chamou no apartamento 302 e sentiu que o avaliavam através do olho mágico. Ouviu o ruído e a corrente de segurança e do ferrolho. E se viu avaliado cara a cara por uma mulher grande, com uma mata selvagem de cabelo tingido por uma improvável cor laranja. Tinha os olhos azuis brilhantes que refletiam dúzias de rugas enquanto o estudava. O moletom dos Denver Broncos que usava era do tamanho de uma loja de campanha, e cobria o que Colt deduziu que eram cem quilos de massa corporal. Tinha uma padada dupla e já tinha começado a desenvolver uma tripla.

-Você é atraente demais para vender algo que não quero.

-Não, senhora – se tivesse usando um chapéu, o teria tirado-. Não vendo nada. A polícia está levando a cabo uma investigação. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas a respeito de uns vizinhos seus.

- Você é policial? Se fosse, teria uma identificação.

-Não, senhora, não sou polícia –parecia ser mais aguda do que Nieman.-.Realizo um trabalho particular.

-É detetive? –os olhos azuis se iluminaram como dois faróis-. Como Sam Spade? Juro que Humphrey Bogart foi o homem mais sexy que jamais nasceu. Se eu tivesse sido Mary Astor, não teria pensado nem dois segundos num pássaro de metal quando podia tê-lo.

-Não, senhora – demorou um momento, mas ao final captou a referência ao Falcão Maltes-. Minhas preferências eram por Lauren Bacall. Era quem fazia cantar os pássaros no Sonho Eterno.

-Com certeza que sim –soltou uma gargalhada- Bem, entre. Não faz sentido que fique aí de pé.

Colt entrou de imediato e teve que esquivar de móveis e gatos. O apartamento estava cheio de ambos. Mesas, cadeiras, lustres, algumas boas antiguidades, outros objetos sem valor comprados em alguma loja de usados, disseminados sem ordem por amplo salão. Meia dúzia de gatos de todas as descrições se encontravam deitados em toda a parte.

-Sou colecionadora –informou a mulher, sentando-se num sofá de duas vagas de estilo Luis XV. Seu corpo ocupou dois terços das almofadas, de modo que Colt elegeu ocupar uma cadeira de estilo colonial-. Chamo-me Esther Mavis.

-Colt Nightshade –aceitou que um gato cinza saltasse sobre a cadeira e outro sobre o respaldo para olhar o seu cabelo.

-Bem, quem estamos investigando, senhor Nightshade?

-O inquilino que ocupou a cobertura.

-O que acaba de descobrir? –coçou-se a cabeça.- Ontem vi uns homens uniformizados colocar coisas em um furgão.

“Igual as outras pessoas”, pensou Colt. Ninguém tinha preocupado em fixar-se um furgão que levava o nome de alguma empresa de transportes.

-Prestou atenção ao furgão, senhora Mavis?

-Senhorita –indicou-. Era grande. Não se comportavam como transportadores.

-Como?

-Trabalhavam depressa. Não como pessoas que se paga por hora, sabe. Levaram algumas peças boas –observou seu próprio salão-. Gosto de antiguidades e obras raras. Tinha uma mesa Belker que gostaria de possuir. Não sei onde teria colocado, mas sempre encontro um lugar.

-Poderia descrever alguns dos transportadores?

-Não me fixo nos homens a não ser que tenham algo especial –lhe deu uma piscada.

-E que me diz do senhor Davis? O viu alguma vez?

-Não posso assegurar. Não conheço quase ninguém do edifício por seu nome. Meus gatos e eu somos reservados. Que fez?

-Estamos investigando.

-Não quer soltar a descoberta, não é? Bogey teria feito o mesmo. E bem, se mudou?

-Isso parece.

-Suponho que então não poderei entregar seu pacote.

-Pacote?

-Chegou ontem. Um mensageiro o trouxe e o deixou aqui por erro. Davis, Mavis… -moveu a cabeça-. Nestes dias as pessoas não prestam muito atendimento aos detalhes.

-Sei a que se refere –com cuidado tirou um gato do ombro-. Que tipo de pacote é, senhorita Mavis?

-Um pacote “pacote” –com uns rosnados e apitos, pôs-se de pé-. Pus no quarto. Ia subir hoje –se moveu como uma espécie de tanque graciosos pelos espaços estreitos que tinha entre os móveis e regressou com um envelope fechado e acolchoado.

-Senhora, gostaria de levar isto. Se representa algum problema para você, pode chamar o capitão Boyd Fletcher, da polícia de Denver.

-Não faz diferença –entregou o pacote-. Quem sabe, quando estiver resolvido o caso, possa vir contar-me o que tinha dentro.

-O farei –seguindo um impulso, pegou a foto de Liz-. Viu esta jovem?

A senhorita Mavis a estudou com o cenho franzido, depois moveu a cabeça.

-Não que eu recorde. Está metida em problemas?

-Sim, senhora.

-Tem algo que ver com a cobertura?

-Creio que sim.

-É uma jovem muito bonita –devolveu a foto-. Espero que a encontre logo.

-Eu também.

 

Não era o seu procedimento habitual de conduta. Colt não saberia dizer por que tinha realizado uma exceção, mas em vez de abrir o pacote e vistoriar de imediato seu conteúdo, deixou-o sem abrir e foi para o fórum. Chegou bem a tempo para presenciar o interrogatório da defesa de Althea. Estava vestida com um conjunto azul, que poderia ser indiferente se não fosse ela a vesti-lo, com o cabelo preso e um colar de pérolas de uma volta.

Colt se sentou na parte de trás do tribunal e observou enquanto ela respondia as perguntas com paciência ao argumento de defesa. Em nenhum momento levantou a voz, nem gaguejou. Qualquer um que escutasse ou olhasse, incluído o júri, a teria considerado uma profissional perfeita.

“O que ela realmente é!” concluiu Colt enquanto esticava as pernas e esperava. Com certeza, ninguém que a observasse nesse momento imaginaria que se ardia como um foguete nos braços de um homem. Em seus braços.

Ninguém iria supor que essa mulher meticulosa e controlada se arqueava enquanto as mãos de um homem, suas mãos, percorriam-na.

Era impossível esquecer.

E ao estudá-la nesse momento, quando não era consciente de sua presença e estava completamente centrada na tarefa que a ocupava, começou a notar outras coisas, coisas pequenas.

Estava cansada. Podia ver em seus olhos. De vez em quando sua voz refletia um deixe leve de impaciência quando a obrigavam a repetir. Cruzou as pernas. Foi um movimento suave, discreto, como de costume. Mas Colt percebeu algo mais, inquietude, não nervos. Desejava que sua declaração acabasse de uma vez.

Ao terminar o interrogatório, o juiz declarou um descanso de quinze minutos.

Jack Holmsby a tomou pelo braço antes de que pudesse passar a seu lado.

-Bom trabalho, Thea.

-Obrigada. Não vai haver nenhuma problema para condená-lo.

-Isso não me preocupa – se moveu o suficiente para bloquear o passo dela -. Escuta, lamento que as coisas não foram bem, na outra noite. Por que não voltamos a tentar? Que tal se jantarmos esta noite, só você e eu?

Ela aguardou um instante, não tanto irritada por sua descaração, mas pelo cansaço que ele provocava.

-Jack, as palavras nem no inferno significam algo para você?

Ele riu e apertou o braço dela num gesto íntimo. Durante um momento, ela considerou a idéia de algemá-lo e acusá-lo de agressão.

-Vamos, Althea. Gostaria de ter a oportunidade de compensar minha atitude da outra noite.

-Jack, nós dois sabemos do que você gostaria. Mas isso não vai acontecer, agora, solte o braço enquanto os dois estamos do mesmo lado da lei.

-Você poderia ser um pouco mais...

-Tenente? –disse Colt, deixado que seu olhar percorresse Holmsby-. Tem um minuto?

-Nightshade –a irritou que ele tivesse presenciado aquela cena-. Perdoe-me, Jack. Tenho trabalho –saiu do tribunal, deixando que Colt a seguisse-. Se tem algo que ainda valha a pena, me solte –ordenou-. Neste momento os advogados não são do meu agrado.

Tomou-a pelo braço e se crispou quando ela ficou rígida. Contendo-se, conduziu-a para as portas.

-Meu carro está aqui na frente. Por que não damos um passeio enquanto nos colocamos em dia?

-Perfeito. Vim andando da delegacia até aqui. Pode me levar.

-Bem –encontrou outra multa no pára-brisas, o qual não o surpreendeu, já que tinha estacionado numa zona restrita. A guardou e subiu no veículo -Lamento ter interrompido seu ritual de esclarecimento.

-Olhe..por que você não... – Começou enquanto colocava o cinto de segurança.

-Tenente, sonhei em fazer exatamente isso –estendeu a mão para abrir a porta. Nessa ocasião ela não ficou rígida ante o contato, só pareceu retrair-se-. Aspirina.

-Que?

-Para a dor de cabeça.

-Estou bem –não era do todo uma mentira. O que tinha não podia qualificar-se como dor de cabeça. Parecia mais um trem de ferro correndo a toda velocidade por seu cérebro.

-Odeio mártires.

-Me deixe em paz –fechou os olhos e conseguiu isolar-se.

Não estava bem em absoluto. Não tinha dormido. Ao longo dos anos se acostumou em dormir duas ou três horas por noite. Mas na anterior não tinha dormido nada e era muito orgulhosa para culpar a quem merecia. Colt.

Tinha pensado nele. Tinha repassado a impossível cena na cobertura, e tinha palpitado. Para voltar a fustigar-se. Tinha tentado de tudo para tirar ele da cabeça, um banho quente, um livro aborrecedor, yoga, conhaque quente. Nada a tinha aliviado.

Tinha dado voltas na cama e ao final tinha terminado por levantar-se para passear inquieta pelo apartamento. E tinha visto o sol nascer.

Desde o amanhecer estava trabalhando. Nesse momento era uma da tarde e já estava no trabalho quase oito horas sem um descanso. E o que piorava tudo, o que o fazia intolerável, era que talvez terminasse passando outras oito horas com Colt.

Abriu os olhos quando ele freou bruscamente. Tinham parado em frente a um supermercado.

-Preciso de uma coisa –comentou, saindo.

“Perfeito, estupendo”, pensou, e voltou a fechar os olhos. “Não se preocupa em perguntar se talvez eu preciso de algo. Como uma serra para cortar-me a cabeça”.

Ouviu-o regressar. Pareceu estranho reconhecer o som de seus passos depois de tão pouco tempo. Com obstinação, manteve os olhos fechados.

-Aspirina –meteu algo na mão. -Chá –explicou quando ela abriu os olhos para observar a xícara de papel- Para diminuir a dor de cabeça – abriu o pote e o colocou entre suas mãos- E agora tome os malditos tabletes, Althea. -Mostrou um pacote de biscoitos salgados. -E coma isto. Deve que estar sem comer nada o dia todo, se não contarmos as bolachas de chocolate ou os caramelos. Jamais vi a uma mulher acabar com os caramelos como você faz.

-O açúcar tem bastante energia –mas levou as aspirinas à boca e bebeu o chá. O pacote com bolachas salgadas fez com que franzisse o cenho-. Não tinha nada doce?

-Precisa de proteínas.

-Garanto que as tortas têm proteínas –o chá era demasiado forte e amargo, mas ajudou - Obrigado –bebeu outro gole, depois abriu a caixa de bolachas. Era importante recordar que era responsável de suas próprias ações, reações e emoções. Se não tinha dormido, era problema seu-. Os garotos do laboratório já devem de ter terminado na cobertura.

-Sim. Estive lá.

-Preferiria que não atuasse sozinho.

-Não posso satisfazer todo mundo, de maneira que satisfaço a mim mesmo. Falei com um cara de fuinha encarregado do edifício. Jamais viu o inquilino da cobertura –enquanto Althea se concentrava na comida improvisada, pôs a falar.

-Sabia de Davis –afirmou ela quando Colt concluiu-. Tirei Nieman da cama esta manhã. Já chamei às referências. Telefones desconectados em ambos casos. Não há nenhuma Foxx Engineering nessa direção, nem em nenhuma outra em Denver. Liguei para o casal da referência que Davis deu. O senhor e a senhora Ellison, os anteriores inquilinos, jamais ouviram falar dele.

-Tem estado ocupada – observou e martelou com um dedo sobre o volante-. Que era isso de não atuar sozinho?

Ela sorriu um pouco. A dor de cabeça remetia.

-Eu levo um distintivo –soltou-. Você não.

-Seu distintivo não introduziu você no apartamento da senhorita Mavis.

-Descobriu algum fato?

-Creio que sim –satisfeito de ir adiante dela, levou a mão atrás e lhe mostrou o pacote-. O mensageiro o entregou à dama dos gatos por engano.

-Dama dos gatos?

-Teria que ter estado ali –o apartou quando tentou tirar-se-. É minha descoberta, encanto. Estou disposto a compartilhá-la.

Impacientou-se, mas se acalmou ao ver que não tinha aberto.

-Continua fechada.

-Pareceu-me justo –a olhou aos olhos-. Pensei que poderíamos abrir juntos.

-Ao que parece desta vez acertou. Vamos dá uma olhada.

Colt baixou a mão e sacou uma faca da porta. Ao abrir o pacote, Althea franziu os olhos.

-Não creio que esse brinquedo entre nos limites legais.

-Não –respondeu de bom humor e voltou a guardá-lo na bota. Meteu a mão no envelope e extraiu uma fita de vídeo e uma folha de papel.

-“Edição final. Está preparado para as dificuldades? No final de semana se espera muita neve. Os víveres não escasseiam. No vez seguinte envio fitas e cervejas. Os caminhos talvez estejam fechados”.

Althea sustentou a folha por uma ponta e tirou uma bolsa de plástico da bolsa.

-Procuraremos impressões. Talvez tenhamos sorte.- poderia revelar-nos quem é. Mas não onde está –guardou a fita de novo no envelope-. -Quer assisti um vídeo?

-Sim –Althea depositou a bolsa no colo e a fechou-. -Mas acredito que este filme requer uma sessão privada. Tenho um vídeo cassete em casa.

Também tinha um sofá cômodo com muitas almofadas. No solo de madeira reluzente ficavam ressaltados os tapetes índios. Os quadros de arte decó da parede deveriam de ter se chocado com os toques decorativos do sudoeste, mas não era assim. Nem as exuberantes plantas sobre o carrinho de ferro forjado, nem os dois peixes dourados que nadavam no aquário com forma de tubo nem o banquinho que parecia um gnomo sorridente.

-Um lugar interessante –comentou.

-Cumpre com sua função –se dirigiu para uma prateleira central de cromo e cristal enquanto tirava os sapatos.

Colt decidiu que esse gesto lhe falava bem mais de Althea Grayson do que uns detalhados relatórios pessoais.

Com sua habitual eficácia, meteu a fita no vídeo cassete e ligou o televisor.

Passados cinco segundos de fita em alvo, começou o espetáculo.

Inclusive para um homem com a experiência dele, foi uma surpresa.

Meteu as mãos nos bolsos e se apoiou nos calcanhares. Supôs que era uma tolice, já que ambos eram profissionais e adultos, mas experimentou uma inegável sensação de vergonha.

-Eu, hummm, suponho que não esperam ascender o desejo do público com isto.

Althea inclinou a cabeça e estudou a tela com um distanciamento clínico. Não era fazer amor. Nem sequer era sexo, segundo sua própria definição. Era pornô direto, mais patético que estimulante.

-Vi coisas mais quentes em despedidas de solteiro.

-Sério? –Colt afastou a vista da tela o tempo suficiente para olhá-la com uma sobrancelha arqueada.

-A fita mostra uma qualidade surpreendente. E a gravação, se pode chamar assim, parece bastante profissional –escutou os gemidos-. O som também –assentiu quando a câmara passou a um plano general-. Não é a cobertura.

- Deve ser a choupana das montanhas. Rústica, mas cara, pela madeira. A cama parece Chippendale.

-Como sabe?

-A minha mãe gosta de antiguidades. Olha o lustre que há junto à cama. É uma Tiffany, ou uma boa imitação. Ah, o argumento se enriquece…

Observaram a outra mulher entrar no enquadre. Umas poucas linhas de diálogo indicaram que tinha encontrado seu amante e a sua melhor amiga. A confrontação se tornou violenta.

-Não acredito que o sangue seja falso – observou Althea com os dentes apertados quando a primeira mulher recebeu um golpe duro na cara-. E também não creio que esperasse o golpe.

Colt praguejou baixinho à medida que se desenvolvia a cena. A mistura de sexo e violência, uma violência centrada nas mulheres, tornava toda a cena desagradável. Teve que se segurar para não desligar o televisor.

Já não se tratava de uma questão de sexo bonachão divertido, e sim de repulsão.

-Está bem, Nightshade? – apoiou uma mão em seu braço. Ambos sabiam o que ele mais temia, que Liz aparecesse na tela.

-Acho que não vou querer pipocas.

Instintivamente, Althea deixou a mão onde estava e ficou perto dele.

Tinha uma espécie de padrão e começou a segui-lo. Um fim de semana numa choupana num lugar de esqui, dois casais que se misturavam e relacionam de várias maneiras. Observou isso e se centrou nos detalhes. O mobiliário. Colt tinha razão… era de primeira. Os diferentes ângulos da câmara mostraram que a casa tinha dois andares com um espaço diáfano e tetos altos com vigas. Chaminé de pedra, jacuzzi.

Com umas poucas tomadas artísticas, viu que nevava um pouco. Captou cenas de árvores nevadas e cumes brancos. Numa cena no exterior que pareceu ser mais do que incômoda para os atores, notou que não tinha nenhuma casa ou estrutura perto. A fita terminava sem os créditos. E sem Liz. Colt não soube se sentia-se ou não aliviado.

-Não creio que vá ganhar um Oscar –Althea manteve a voz calma enquanto rebobinava a fita-. Está bem? -Não estava bem. Ardiam-lhe as entranhas e precisava liberar a tensão.

-Foram duros com as mulheres –disse com cuidado-. Violentos para valer.

-A primeira vista, diria que os principais clientes para este tipo de coisas seriam sujeitos que fantasiam com a dominação… física e emocional.

-Não creio que se possa aplicar a palavra fantasia a algo assim.

-Nem todas as fantasias são bonitas –murmurou pensativa. A qualidade era boa, mas a parte da atuação, do emprego do vocábulo de forma liberal, era patético. Será possível que alguns de seus clientes vivam suas fantasias ao vivo?

-Era o que faltava –respirou fundo - A carta de Jade mencionava que uma das garotas tinha morrido. Quem sabe não se enganou.

-O sadismo é um instrumento sexual peculiar…que com freqüência pode escapar das mãos. Poderemos localizar a região pelas tomadas exteriores –foi extrair a fita, mas ele a fez dar a volta.

-Como pode ser tão fria? Não a afetou? Não lhe provocou nada?

-Seja o que seja, enfrento isso. Deixemos as personalidades fora disto.

-Não. Basta saber com quem está trabalhando. Falamos do fato de que alguma garota poderia ter morrido diante da câmara –o dominava uma fúria que não podia controlar e uma terrível necessidade extravasá-la -. Acabamos de ver a duas mulheres sendo esbofeteadas, empurradas, golpeadas e ameaçadas com ameaças de receber algo pior. Quero saber o que sente ao olhar isso.

- Me deixa com muita raiva –gritou, soltando-se-. Me revolta. E se me permitisse, teria me entristecido. Mas a única coisa que importa, importa para valer, é que dispomos de nossa primeira prova –pegou a fita e a guardou no estojo-. E agora, se quer me fazer um favor, me deixará na delegacia para que a possa entregar. Depois poderá me dar um pouco de espaço.

-Claro, tenente –foi à porta para abri-la-. Te darei todo o espaço que precisa.

 

Colt tinha três rainhas, e pareceu uma pena que a única que desejava estivesse sentada frente a ele, aumentando a aposta que acabava de fazer.

- Aí vai seus vinte e cinco, Nightshade, e mais vinte e cinco –Althea jogou umas fichas mais. Tinha as cartas coladas ao peito.

- Ah, bom… -Sweeney suspirou e observou as cartas horríveis que tinha, como se com o desejo pudessem se converter numa mão ganhadora-. É muito para mim.

De seu assento entre Sweeney e um detetive forense chamado Louis, Cilla considerou sua dupla de cinco.

- O que parece, Matador?

Keenan, vestido para ir dormir com uma camiseta dos Denver Nuggets, botou as cartas em seu colo.

- Solta o dinheiro.

- Para você é fácil dizer –mas empurrou as fichas ao centro.

Depois de um debate pessoal que incluiu murmúrios, movimentos na cadeira e de cabeça. Louis também entrou na jogada.

-Cubro teus vinte e cinco –disse Colt. Manteve o cigarro entre os dentes enquanto contava as fichas-. E volto a subir.

Boyd sorriu, contente de ter passado. Produziu-se outra ronda de apostas; na mão só ficaram Althea, Cilla e Colt.

- Um trio de impressionantes rainhas –anunciou, mostrando as cartas.

- Boa –os olhos de Althea brilharam ao olhá-lo-. Mas meu full pode com elas –estendeu as cartas para revelar três oitos e um par de reis.

- Isso destroça meus dois cincos –Cilla suspirou enquanto Althea recolhia os ganhos.- muito bem, pequeno, custou-me setenta e cinco centavos. Agora vá dormir –pegou no colo um risonho Keenan ao levantar-se.

- Papi! –estendeu os braços e sorriu-. Me ajude! Não deixe que ela me coloque na cama!

- Sinto, filho –Boyd revirou o cabelo de seu filho e deu um beijo solene-. Parece que está perdido. Vamos sentir sua falta por aqui.

-Salva-me! –sempre disposto a prolongar o inevitável, Keenan rodeou o pescoço do Colt.

Este lhe deu um beijo e moveu a cabeça.

-Neste mundo só me assusta uma coisa, colega, uma mãe. Está sozinho.

Sustentado pelos braços de Cilla, o pequeno deu uma ronda de beijos. Quando chegou a Althea, brilharam-lhe os olhos.

- Está bem? Posso?

Era um jogo antigo que Althea estava disposta a consentir.

- Por um níquel.

- Fico te devendo.

- Já me deves oito mil dólares e quinze centavos.

- Me dão a mesada sexta-feira.

- Muito bem, então –o apoiou em seu pescoço para dar um abraço e ele lhe bagunçou o cabelo como um cachorrinho. Colt viu que a expressão de Althea se suavizava e que subia a mão para acariciar-lhe a nuca.

- Gosto disso –anunciou Keenan, tentando uma última vez com gesto exagerado.

- Não esqueça os oito mil de sexta-feira. E agora, adeus –depois de dar-lhe um beijo, o passou novamente para Cilla.

- Vou passar uma jogada –sugeriu Cilla, acomodando a seu filho sobre um quadril para levá-lo à cama.

-Um garoto que sabe convencer uma mulher para que o tenha em seu colo, é um garoto que deve ficar orgulhoso –Sweeney sorriu enquanto recolhia suas cartas-. Passo.

Durante a hora seguinte, as fichas de Althea não deixaram de multiplicar-se. Encantava-lhe a partida mensal de póquer que tinha se convertido num costume pouco depois de que Cilla e Boyd se casaram. O desafio básico de superar o talento de seus oponentes a relaxava tanto quanto a atmosfera doméstica que impregnava cada canto do lar dos Fletcher.

Era uma jogadora cautelosa, que só apostava quando estava satisfeita com as probabilidades, e que inclusive o fazia de maneira meticulosa e reflexiva. Notou que as fichas de Colt também tinham se multiplicado. Decidiu que não era temerário, e sim implacável. Com freqüência aumentava as apostas quando não tinha nada, ou deixava que outros o fizessem quando tinha uma mão ganhadora.

“Não segue nenhum padrão”, pensou, o qual em si mesmo representava um padrão.

- Alguém quer uma cerveja? –perguntou quando a mão terminou a favor de Sweeney.

Althea foi para a cozinha e começou a destampar garrafas. Estava servindo uma taça de vinho quando entrou Colt.

- Pensei que cairia bem um pouco de ajuda.

- Posso me arrumar sozinha.

- Suponho que há poucas coisas com as quais não poderia se arrumar. Só quero te dar uma mão.

Maria tinha preparado suficientes sanduíches para satisfazer um pelotão. A falta de algo melhor do que fazer, Colt mudou alguns da bandeja para um prato. Decidiu que tinha que falar. Ao estar a sós e desfrutar da oportunidade, já não sabia como começar.

- Tenho que dizer algo sobre esta tarde.

- Oh? –inquiriu com tom gelado. Abriu a geladeira e pegou um prato com uma torta incomparável que preparava María.

- Eu sinto muito.

- Perdão? –esteve a ponto de soltar a torta.

- Maldita seja, sinto muito, certo? –odiava pedir desculpas, já que significava que tinha cometido um erro, um importante-. Olhar essa fita me balançou. Fez com que eu desejasse quebrar alguma coisa, acertar alguém. O mais fácil era você.

Como era a última coisa que teria esperado, surpreendeu-a. Permaneceu com o prato na mão sem saber que fazer.

- Certo.

-Temia ver Liz na fita –continuou, impulsionado a contar tudo-. E temia não ver –desconcertado, pegou uma das garrafas abertas e bebeu um longo trago-. Não estou acostumado a sentir-me assim assustado.

Pouco podia ter dito ou feito que tivesse atravessado melhor as defesas dela. Comovida, deixou o prato na mesa e abriu um pacote de batatas fritas.

- Eu sei. Também me senti assim. Não deveria ser assim, mas foi –verteu as batata em outro prato, desejando que tivesse algo mais do que pudesse fazer-. Lamento que as coisas não avancem mais depressa, Colt.

- Também não se estancou. E isso tenho que agradecer a você –pegou uma mão e a deixou cair-. Esta tarde tive vontade de fazer algo mais do que quebrar algo, e foi te abraçar –viu o reflexo de cautela que apareceu no olhar dela e teve que se conter-. Não saltar sobre você. Te abraçar. Há uma diferença.

- Sim, há –suspirou. Nos olhos dele tinha necessidade. Não desejo, só necessidade, de contato, de consolo, de compaixão. Isso ela entendia nele-. Suponho que também teria me agradado.

- Ainda pode agradá-la – custou dar o primeiro passo, mas avançou para ela com os braços estendidos.

Ela também custou responder para entrar em seus braços e rodeá-lo com os próprios.

E quando estiveram perto, quando a face de Althea se apoiou no ombro de Colt, os dois suspiraram. A tensão desapareceu como a água por um dique.

Não o entendia, nem sequer sabia se poderia aceitá-lo, mas a sensação era a correta. A diferença da primeira vez que a tinha abraçado, não experimentou luxúria nem fogo pelo sangue. Senão algo cálido, doce e em expansão, sólido.

Poderiam ficar daquela maneira durante horas.

Ela não se permitia relaxar com muita freqüência, não com um homem, e menos com um que a atraía. Mas foi tão fácil, tão natural. As batidas constantes de seu coração a acalmaram. Sentiu o impulso de esfregar a face contra a de Colt, de fechar os olhos e ronronar. Quando ouviu que ele suspirar, riu.

-O garoto tem razão –murmurou-. É estupendo.

- Isso vai custar um níquel, Nightshade.

- Põe em minha conta –disse ao levantar o rosto para sorrir.

Não soube se o impacto que sentiu se devia ao fato que Althea jamais o olhara dessa maneira. A única coisa que sabia era que sua beleza era extraordinária, com o cabelo solto e entre suas mãos, cintilando como línguas de fogo sob a intensa luz da cozinha. Os olhos dela sorriam, profundos e cheios de humor, e a boca… sem batom, curvada, levemente aberta. Irresistível.

Rodeou a cabeça e a baixou, à espera de que ela se pusesse rígida ou retrocedesse. Não fez nenhuma dessas coisas. Ainda que o humor nos olhos se transformasse em percepção, a calidez continuou presente. Tomou os lábios de Althea, provando com gentileza, um experimento em emoções. Com os olhos abertos, observaram-se, como se cada um esperasse que o outro se movesse ou saltasse.

Ao permanecer inflexível em seus braços, Colt mudou o ângulo, mordiscando-a levemente. Sentiu ela estremecer uma vez à medida que lhe escureciam os olhos. Mas seguiram abertos.

Queria vê-lo, precisava. Se fechasse os olhos, temia cair no abismo que se abria diante dela. Tinha que ver quem era ele, tentar entender o que tinha nesse homem que era capaz de derretê-la.

Ninguém tinha conseguido anteriormente. E estava orgulhosa de sua capacidade de resistir ou controlar, divertida pelos homens e mulheres que caíam sob seus respectivos feitiços para sofrer os tormentos do amor. Nunca tinha estado segura de que as alegrias equilibrassem esses tormentos.

Mas quando aprofundou o beijo, de forma lenta e persuasiva, para que não só os lábios, senão a mente e o corpo ficassem envolvidos no contato, perguntou-se que tinha perdido ao não permitir jamais que a rendição se misturasse com o poder.

- Althea… -suspirou ao voltar a mudar o ângulo do beijo-. Vêm comigo…

Compreendia o que ele lhe pedia. Queria que se deixasse ir, que o acompanhasse onde pudesse levá-los o momento. Ceder diante ele, tal como Colt cedia diante ela. Que apostasse, quando não estava certa das probabilidades.

Ele foi o primeiro a fechar os olhos. A calidez e sonolência se converteram numa dor embotadora, que era todo prazer. Ela suspirou e também os fechou.

- Ei! O que aconteceu com as cervejas…? Haaa....- Boyd tentou não sorrir. Meteu as mãos nos bolsos e teve que se conter para não assobiar enquanto seu amigo e sua antiga colega se separavam como dois ladrões pegos em flagrante - Sinto, garotos – pegou as garrafas de cerveja. Pensou que, em todos os anos que conhecia Althea, jamais a tinha visto com essa expressão no rosto- Esta cozinha deve ter algo em especial –adicionou ao se dirigir para a porta-. Não posso contar as vezes que me encontrei fazendo o mesmo aqui.

Quando a porta se fechou a suas costas, Althea suspirou.

- Santo céu –foi a única coisa que pôde dizer.

- Parecia bastante satisfeito consigo mesmo, não é? –apoiou uma mão no ombro dela.

- Vai pegar em meu pé – sussurrou Althea-. E contará a Cilla, para que ela também possa pegar.

- Provavelmente tenham coisas melhores para fazer.

- Estão casados –soltou-. Gente casada adora em falar da vida de outras pessoas.

Quanto mais nervosa ficava, mais agradava Colt. Estava convencido de que só alguns escolhidos tinham visto a tenente agitada. Queria saborear cada momento da experiência. Com um sorriso se apoiou na mesa.

- É? Se quer mesmo deixá-los loucos, poderia permitir uma visita minha a sua casa. Essa noite..

- Em seus sonhos, Nightshade…

- Bom, há certa verdade nisso, querida – arqueou uma sobrancelha. A voz dela tinha soado insegura-. –Bem, posso ser sincero e dizer que não estou disposto a esperar muito para transformar esse sonho em realidade.

Althea precisava se acalmar, precisava fazer algo com as mãos. Matou dois coelhos com uma cajadada só e pegou a taça de vinho para beber um gole.

- É uma ameaça?

- Althea –começou com suma paciência, o qual também o divertiu, já que não lembrava da ultima vez que foi paciente com alguma coisa -. Nós dois sabemos que o que aconteceu aqui não pode se converter numa ameaça. Foi agradável –com um dedo acariciou o cabelo-. Se estivéssemos sozinhos em algum outro lugar, teria sido bem mais agradável –fechou a mão em seu cabelo e a imobilizou-. Eu a desejo, Althea, e muito. Deduza o que quiser disso.

Ela sentiu que algo lhe percorria as costas. Não era medo. Fazia tempo que era policial e podia reconhecer o medo em todas suas formas. E tinha levado sua vida a sua própria maneira o tempo suficiente para mostrar-se cautelosa.

-Tenho a impressão que deseja muitas coisas. Deseja recuperar Liz, e deseja apanhar e castigar os homens que a seqüestraram. Deseja essas coisas a sua própria maneira, com minha cooperação. E… -bebeu mais vinho, sem deixar de olhá-lo-… deseja se deitar comigo.

“É surpreendente” pensou Colt. Tinha que estar sentindo um pouco da necessidade e desespero que ele experimentava. No entanto, era como se falasse do tempo.

- Isso mais ou menos resume tudo. Por que não me conta o que você deseja?

Temia saber exatamente o que desejava.

- A diferença entre você e eu, Nightshade, é que eu sei que nem sempre se consegue o que se deseja. E agora vou dormir. Foi um dia longo. Pode ir me ver amanhã. Já teremos os desenhos das descrições de Meena. Pode ser que apareça algo quando os comparar com fotos do sistema.

- De acordo –a deixaria ir… por enquanto. O problema com uma mulher como Althea era que um homem sempre queria seduzi-la, e sempre desejaria que se deitasse com ele por sua própria vontade-. Thea?

- Sim? –deteve-se junto a porta da cozinha e virou a cabeça.

- Que vamos fazer?

Ela conteve um suspiro de anseio.

-Não sei –respondeu com toda sinceridade-. Quem me dera saber.

 

Às nove e meia da manhã seguinte, Colt esperava no trabalho de Althea. De puro tédio, folheou alguns dos papéis que tinha sobre a mesa. Relatórios, redigidos na linguagem peculiar que usavam os policiais, uma linguagem que era ao mesmo tempo concisa e florida. Teve que reconhecer que, para quem gostasse dessa gíria burocrática, ela escrevia os relatórios muito bem. “Regulamento Grayson”, pensou, fechando a pasta. Quem sabe o principal problema que tinha ele tinha visto nela bem mais do que a policial profissional.

Tinha visto ela empunhar uma arma, firme como uma rocha, enquanto seus olhos irradiavam medo e determinação. Tinha visto responder com glória um abraço impulsivo e urgente. Tinha visto ondular-se como uma menina, suavizar-se com compaixão e gelar-se como um granizo.

Tinha visto demais e sabia que ainda restava muito por ver.

Mas sua prioridade era Liz, tinha que ser. No entanto, Althea seguia em seu interior, como uma bala alojada na carne. Quente, dolorosa e impossível de evitar.

Enfurecia-o. Irritava-o. E quando ela entrou na sala, o fez rosnar.

- Estou esperando há quase uma hora. Não tenho tempo para isto.

- É uma pena –deixou outra pasta sobre a mesa, notando de imediato que tinham mexido em seus papéis-. Quem sabe você vê muita televisão, Nightshade. É o único lugar onde um policial trabalha um caso por vez.

- Eu não sou policial.

- É mais do que evidente. E a próxima vez que tiver que me esperar, mantenha o nariz longe de meus papéis.

- Escuta, tenente… -amaldiçoando, calou quando soou o telefone.

- Grayson –ao falar se sentou atrás de sua escrivaninha e pegou um lápis-. Sim. Sim, tenho. Foi um trabalho rápido, sargento. Obrigada. Farei se alguma vez eu passar por ali. Obrigada de novo –cortou de imediato e pôs a anotar um número-. Kansas City localizou à mãe de Jade –informou a Colt-. Mudou-se para Missouri.

- Jade está com ela?

- É o que vou tentar averiguar –ao terminar de anotar, olhou a hora-. Trabalha de garçonete pelas noites. O mais provável é que agora a encontre em casa –antes que Colt pudesse voltar a falar, levantou uma mão para pedir silêncio-. Oi, gostaria de falar com Janice Willowby –uma voz sonolenta e irritada disse que Janice não vivia ali-. É a senhora Willowby? Senhora Willowby, sou a tenente Grayson, da polícia de Denver… Não, senhora, não aconteceu nada. Não está metida em nenhum problema. Cremos que poderia nos ser de certa ajuda num caso. Teve notícias de sua filha nas últimas semanas? –escutou com paciência enquanto a mulher negava ter estado em contato com Janice e, irritada, exigia informação-. Senhora Willowby, Janice não é uma fugitiva da justiça nem suspeita de crime. Mas precisamos falar com ela –seus olhos se endureceram, com rapidez e frialdade -. Perdão? Como não estamos pedindo que entregue sua filha, não considero lógico oferecer-lhe uma recompensa. Sim…

Colt cobriu o fone com a mão.

- Cinco mil dólares –indicou-. Se ela nos por em contato com Jade, esta nos conduz a Liz –viu a negativa nos olhos dela, mas se manteve firme-. Não depende de você. Recompensa é particular.

Althea engoliu o desgosto.

- Senhora Willowby, há um grupo privado que autoriza entregar a soma de cinco mil dólares por informação sobre Janice, com a condição de que isso ajude a fechar satisfatoriamente a investigação. Sim, estou convicta de que poderão dar em efetivo. Oh, estou certa de que fará o que puder. Pode pôr-se em contato comigo as vinte e quatro horas do dia, neste número –o repetiu duas vezes-. A cobrar, certamente. Tenente Althea Grayson, Denver. Espero que telefone –depois de pendurar, jogou chispas pelos olhos-. Não me estranha que garotas como Jade abandonem o lar e terminem na rua. Não se importava com sua filha, só queria estar certa de que nada repercutiria sobre ela. Se Jade estivesse com problemas, sem pestanejar a teria entregue pelo dinheiro mencionado.

-Nem todo mundo tem instinto maternal.

- Isso me ocorreu –guardou as emoções para que não interferissem neste caso- Meena está trabalhando com o desenhista da polícia, e deu com um que parecia uma das estrelas da produção que vimos ontem.

- Quem?

- A com a jaqueta vermelha de couro. Enviamos uma cópia a narcóticos para começar. Requererá tempo.

- Não disponho de tempo.

Ela deixou o lápis e juntou as mãos. Prometeu que não voltaria a perder a estribeira.

- E ocorre algo melhor a fazer?

- Não –deu a volta e virou-se outra vez para olhá-la-. Alguma impressão no carro usado para matar Billings?

- Limpo.

- A cobertura?

- Nenhuma. Alguns cabelos. Não nos ajudarão a localizá-los, mas serão importantes para atar o caso no tribunal. O laboratório está trabalhando na fita e na nota. Quem sabe tenhamos sorte.

- E em pessoas desaparecidas? Algum cadáver sem identificar no depósito? Jade disse que acreditava que tinham matado uma das garotas.

- Não apareceu nada. Se mataram alguém que estava algum tempo na rua, é improvável que denunciem seu desaparecimento. Verifiquei todas as mortes suspeitas e sem identificar dos últimos três meses. Ninguém encaixa no perfil.

- Um pouco de sorte nos abrigos para os moradores de rua?

-Ainda não –titubeou, depois decidiu que era melhor que falasse-. Há algo que tenho que contar.

- Adiante.

- Temos algumas meninas bonitas e jovens. Boas policiais. Poderíamos colocá-las incógnitas nas ruas e ver se recebem alguma oferta de cinema.

Colt pensou na idéia. Pensou que também isso requereria tempo. Mas ao menos oferecia uma possibilidade.

- É uma missão delicada. Tem alguém que seja bastante boa para levá-la a cabo?

- Disse que sim. Eu faria …

- Não –a brusca negativa foi como um rugido.

- Disse –continuou ela sem pestanejar- eu faria , mas não posso passar por uma adolescente. Ao que parece nosso produtor prefere meninas. O colocarei a parte do que for decidido.

-De acordo. Pode me conseguir uma cópia da fita?

- Suas noites estão aborrecidas? –sorriu.

- Muito engraçado. Pode?

Meditou-o. Não se ajustava aos procedimentos oficiais, mas não podia causar problemas.

- Falarei com o laboratório. Enquanto isso, vou interrogar o garçom de Clancy. Aposto que foi ele quem deu o aviso ao grupo da Segunda Avenida. É possível que consigamos algo.

- Irei com você.

- Eu vou com Sweeney –moveu a cabeça e sorriu-. Um enorme irlandês num bar chamado Clancy. Pode encaixar.

- É um jogador de pôquer horrível.

- Sim, mas um encanto –o surpreendeu adotando um perfeito sotaque irlandês.

- O que você acha se eu acompanhar de qualquer modo?

- O que você acha de esperar meu telefonema? –levantou e pôs uma jaqueta azul marinho que tirou do respaldo da cadeira. Usava calça da mesma cor e uma blusa mais clara, de seda. A pistoleira e a arma eram tão naturais nela que poderiam ser acessórios de moda.

- Você vai me ligar.

- Disse que faria.

Colt apoiou as mãos nos ombros dela e encostou a testa na sua.

- Marleen me telefonou esta manhã. Não gosto de lhe dar falsas esperanças, mas disse que estávamos chegando perto. Tive que fazer.

-O que sirva para tranqüilizá-la é o certo – não pôde evitar apoiar a mão na face dele para dar-lhe calor, depois a deixou cair-. Agüente, Nightshade. Reunimos muita informação em pouco tempo.

- Sim – afastou a cabeça e baixou as mãos pelos braços de Althea até que seus dedos se entrelaçassem-. Deixarei você ir procurar o intimidador irlandês. Mas, uma coisa mais –levantou as mãos de ambos para estudar o contraste de textura, tom e tamanho-. Cedo ou tarde teremos que nos ocupar de outras coisas.

- Então o faremos. Ainda que talvez você não goste do resultado.

Tomou-lhe o queixo com uma mão e deu um beijo intenso e a soltou antes que ela pudesse fazer outra coisa que murmurar.

- Eu digo o mesmo. Tenha cuidado aí fora, tenente.

- Nasci cautelosa, Nightshade –saiu colocando a jaqueta.

 

Dez horas mais tarde, estacionou o carro na garagem de seu edifício e se dirigiu ao elevador. Estava ansiosa para tomar um banho de água quente, uma taça de vinho branco gelado e escutar um blues lentos.

Ao subir ao seu apartamento, apoiou-se na parede do elevador e fechou os olhos. Não tinham conseguido grande coisa com o garçom, Leio Dorsetti. Os subornos não tinham funcionado e também não as ameaças veladas. Althea não duvidava de que tinha contatos com o círculo da pornografia. Nem que estava preocupado com a possibilidade de acontecer o mesmo que a Wild Bill.

Chegou à conclusão de que precisava de algo mais do que algumas notas. Tinha que descobrir algo no envelope de Leio Dorsetti, bastante sólido para poder levá-lo à delegacia para interrogá-lo.

Quando o tivesse em seu terreno, estava convencida de que conseguiria que ele soltasse a língua.

Fez soar as chaves nas mãos ao sair do elevador e avançar pelo corredor. Tinha chegado o momento de se dar um descanso, ao menos durante uma ou duas horas. Impacientar-se em um caso geralmente só conduzia a cometer erros.

Já tinha aberto a porta quando o alarme disparou em sua cabeça. Não questionou o que o tinha ativado, simplesmente pegou a arma. Verificou os cantos e por trás da porta.

Estudou a sala e notou que não tinha nada fora de lugar… a não ser o disco de Bessie Smith nesse momento soava no aparelho de som. E o aroma. A comida, levemente picante. Deu água na boca, ainda que sua mente permanecesse alerta.

Girou ao captar um som procedente da cozinha.

Colt se deteve na porta enquanto limpava as mãos num pano. Sorrindo, apoiou-se no balcão.

- Oi, querida. Teve um bom dia?

 

Althea baixou a pistola. Não levantou a voz. As palavras que escolheu, serenas e precisas, nublaram seus sentimentos com mais clareza do que um disparo.

Quando terminou, Colt moveu a cabeça dominado pela admiração.

-Creio que jamais jogou pragas com mais estilo. E agora estaria agradecido se guardasse essa pistola. Não é que acredite que você vá usá-la e arriscar manchar o assoalho de sangue.

- Poderia valer a pena –guardou a arma, mas sem deixar de olhá-lo-. Tem direito de permanecer em silêncio… -começou.

Colt levantou as mãos e conteve uma gargalhada.

- O que vai fazer?

- Ler os seus direitos antes de prende-lo por entrar em minha casa.

Não duvidou de que o faria sem pestanejar.

-Há uma explicação.

-Tomara que seja boa –tirou a jaqueta e a apoiou no respaldo de uma cadeira-. Como conseguiu entrar?

- Eu, e… Pela porta?

- Tem direito a um advogado – franziu os olhos.

Era evidente que com evasivas não a aplacaria.

- De acordo, forcei a fechadura –com as mãos fez o gesto de que se rendia-. Ou é muito boa ou eu estou envelhecendo.

- Forçou a fechadura –assentiu, como se o tivesse esperado-. Usa um arma escondida, uma nove milímetros…

- Bom olho, tenente.

- E uma faca que excede os limites legais –continuou-. Ao que parece também leva um canivete.

-São úteis. Supus que você teve um dia duro e que merecia chegar em casa para desfrutar de um jantar quente e vinho gelado. Também que se irritaria um pouco em me encontrar aqui. Mas contei com o fato que me perdoaria uma vez que tivesses provado meu lingüini.

“Talvez”, pensou ela, “se fecho os olhos durante um minuto, tudo desapareça”. Mas, ao tentar, ele continuava ali, sorrindo.

- Seu lingüini?

- Lingüini com mariscos. Eu diria que era a receita de minha santa mãe, mas em sua vida ela só cozinhou um ovo. Você quer uma taça de vinho?

- Claro. Por que diabos, não?

- Assim que se fala –entrou na cozinha. Decidindo que podia matá-lo depois, Altea o seguiu. O cheiro era delicioso-. Você gosta de vinho branco –anunciou enquanto servia duas taças, utilizando as melhores taças de cristal dela-. É um estupendo vinho italiano, com corpo, que não estragará meu molho. Atrevido, mas com classe. Vamos ver se agrada você.

Aceitou o vinho e deixou que ele brindasse a taça com a sua, bebeu um gole. Era realmente delicioso.

- Quem demônios é você, Nightshade?

- A resposta as suas preces. Por que não vai à sala se sentar? Sei que quer tirar os sapatos.

Ela fez, mas não tirou os sapatos ao sentar-se no sofá.

- Explique-se.

- Acabo de fazê-lo.

-Se não pode pagar um advogado…

- Deus, você é dura –suspirou e se sentou a seu lado-. De acordo, tenho alguns razões. Uma, sei que tem estado dedicando muito tempo extra a minha investigação…

- É meu…

- Trabalho? –concluiu por ela-. Talvez. Mas reconheço quando alguém dá uns passos adicionais, desses que consomem o tempo pessoal, e preparar o jantar era um modo de agradecer.

Althea pensou que também era um detalhe, ainda que não estava disposta a dizer em voz alta.

- Podia ter mencionado a idéia.

-Segui um impulso. Nunca teve um?

-Não teste sua sorte, Nightshade.

- Bem. Voltando aos motivos, também está o fato de que não pude tirar este assunto da cabeça durante mais de uns minutos. Cozinhar me ajuda a recarregar. Não era provável que Maria me permitisse trabalhar em sua cozinha, assim pensei em você –alongou a mão para enroscar uma mecha de cabelo dela num dedo-. Penso muito em você. E por último, me desculpe, mas queria passar uma noite contigo.

Começava a convencê-la. Althea queria acreditar que era pelo delicioso cheiro que saía da cozinha. Mas não conseguiu.

- Então forçou a fechadura da minha casa para invadir minha intimidade.

- O único lugar onde mexi foi nos armários da cozinha. Era uma tentação –reconheceu- mas não fui mais longe.

- Não gosto de seus métodos, Nightshade –com o cenho franzido, fez balançar o vinho na taça. - Mas acredito que vou gostar do seu lingüini.

Não gostou, quase a deixou louca. Era difícil guardar ressentimento quando seu paladar tinha sido seduzido por completo. Alguns homens já tinham cozinhado para ela, mas não recordava ter ficado jamais tão enfeitiçada.

E ali estava Colt Nightshade, sem dúvida armado até os dentes embaixo dos jeans velhos e a camisa de flanela, servindo-lhe massa à luz da velas. “Não é que seja romântico”, pensou. Era inteligente demais para cair em algo tão convencional. Mas era engraçado, e estranhamente doce.

Ao servir-se da segunda porção de lingüini, o pôs a par dos progressos realizados. Esperavam ter os relatórios do laboratório em vinte e quatro horas, o garçom de Clancy estava sendo vigiado e uma agente incógnita se preparava para sair à rua.

Colt arquivou a informação em mente e compartilhou a sua. Aquela tarde tinha falado com algumas das garotas que trabalhavam nas ruas. Pelo seu encanto ou pelo dinheiro que tinha mudado de mãos, inteirou-se de que faziam algumas semanas que não viam em seu lugar habitual uma garota que respondia ao nome de Lacy.

- Encaixa no perfil –continuou, enchendo a taça de Althea-. Jovem e pequena. As garotas me contaram que era morena, mas que gostava de usar uma peruca loira.

- Tinha cafetão?

-Mmm. Trabalhava por sua conta. Passei pelo lugar que alugava –partiu um pão de alho e deu metade a ela-. Falei com o encarregado… uma simpatia. Como tinha deixado de pagar duas semanas, tinha pego as coisas da casa. Empenhou o que tinha algum valor e tirou o resto.

-Me ocuparei de que todos no Narcóticos recebam sua descrição.

-Bem. Voltei a visitar alguns dos refúgios –prosseguiu-. Mostrei a foto de Liz e os desenhos da polícia –franziu o cenho enquanto brincava com a comida-Não consegui que ninguém os identificasse. De fato, custou-me convencer às jovens de que olhassem os retratos. A maioria queria fazer-se de dura, mas o que eu via em seus olhos era medo.

- Quando se convive com esse medo, tem que ser dura. Quase todas procedem de lares destruídos pela droga, a bebida, abusos físicos e sexuais. Ou caem nas drogas e já não sabem como sair delas –moveu os ombros-. Seja como for, fugir parece o melhor caminho.

- Não era assim para Liz.

- Não –concordou. Decidiu que era hora de que descansassem desse tema, ainda que fosse por alguns minutos-. sabe, Nightshade? Poderia deixar de brincar de aventureiro e dedicar ao campo da advocacia. Faria uma fortuna.

Colt compreendeu qual era sua intenção e decidiu seguir a corrente.

- Prefiro reuniões pequenas e íntimas.

- Bem –o olhou nos olhos e depois baixou a vista à taça de vinho- se não foi sua santa mãe quem ensinou a preparar um lingüini de primeira, quem o fez?

-Quando era pequeno tínhamos uma cozinheira irlandesa magnífica. A senhora O’Malley.

- Uma cozinheira irlandesa ensinou a preparar comida italiana.

- Podia cozinhar o que quisesse, desde um refogado de cordeiro até um frango ao vinho. “Colt, moço”, costumava dizer-me, “o melhor que pode fazer um homem por si mesmo é aprender a alimentar-se bem. Depender de uma mulher para que encha a barriga…” –a recordação lhe provocou um sorriso-. Quando me metia em problemas, que era quase sempre, fazia-me sentar na cozinha. Recebia discursos sobre como comportar-me e como desossar um frango.

- Bonita combinação.

- O da conduta eu esqueci –caçoou-. Mas preparo um estupendo frango recheado. E quando a senhora Ou’Malley se aposentou, faz uns dez anos, minha mãe entrou numa profunda depressão.

- E contratou a outra cozinheira –sorriu acima da taça.

- Um sujeito francês com uma atitude esnobe. Ela o adora.

- Um chef francês em Wyoming.

- Eu moro em Wyoming –disse-. Eles em Houston. Dessa maneira convivemos melhor. Que me diz de sua família? É daqui?

- Não tenho família. O que aconteceu com seu título de advogado? Por que não fez nada à respeito?

- Eu não disse isso –a estudou um momento. Tinha soltado a resposta como se a queimasse. Era algo que teria que retomar-. Averigüei que não me agradava passar horas em cima de livros de leis, tentado enganar à justiça com formalismos.

- Assim ingressou nas Forças Aéreas.

- Era um bom método para aprender a voar.

- Mas não é piloto.

- Às vezes sim –sorriu-. Sinto, Thea, não me encaixo num lugar estreita. Disponho de dinheiro suficiente para fazer o que me agradar quando me agradar.

- E os militares não lhe agradaram? –não bastava com sua resposta.

- Durante um tempo, sim. Depois me fartei - encolheu os ombros e se recostou na cadeira. A luz da vela brilhava em sua cara e em seus olhos-. Aprendi algumas coisas. Igual que aprendi da senhora O’Malley, e do primário, e de Harvard, e de um velho treinador de cavalos índio que conheci em Tulsa há alguns anos. Nunca se sabe quando vai utilizar o que aprendeu.

- Quem ensinou a abrir fechaduras?

- Não vai me jogar na cara, não é? –adiantou-se para afastar o cabelo do rosto e servir mais vinho-. Aprendi no exército. Fazia parte no que poderia chamar um destacamento especial.

- Operações clandestinas –traduziu ela. Não a surpreendia-. Por isso grande parte da sua história é confidencial.

- Faz tempo, já teriam me dispensado. Mas sim são as coisas, não? Aos burocratas os segredos tanto como a burocracia. O que fazia era recolher informação, ou plantá-la, talvez desativar algumas situações voláteis, ou agitá-las, dependendo das ordens –bebeu de novo-. Suponho que poderíamos dizer que comecei a fazer favores às pessoas… só que essas pessoas dirigiam o governo –sorriu-. Ou tentavam.

- O sistema não agrada você, não é?

-Me agrada o que funciona –durante um instante, seus olhos perderam o brilho-. Vi muitas coisas que não funcionavam. Portanto… - encolheu os ombros e a atmosfera escura se desvaneceu-. Abandonei o serviço, comprei uns cavalos e vacas e brinquei de ser rancheiro. Parece que os velhos hábitos demoram a desaparecer, porque agora volto a fazer favores às pessoas. Salvo que primeiro têm que cair bem.

- Algumas pessoas diriam que vai custar decidir o que quer ser quando crescer.

- É possível. Suponho que é o que venho fazendo. Que me diz de você? Qual é a história que há por trás de Althea Grayson?

- Nenhuma que possa interessar a um produtor de cinema –descontraída, apoiou os cotovelos na mesa-. Entrei diretamente na academia ao cumprir os dezoito anos.

- Por que?

- Por que me tornei policial? –meditou a resposta-. Porque gosto do sistema. Não é perfeito, mas se você trabalha nele, pode conseguir que algo funcione. E a lei… aí afora há pessoas que desejam que funcione. Muitas vidas que perdem nos resquícios que tem. Significa algo quando pode salvar uma.

- Não posso questionar isso –sem pensar, apoiou a mão na dela-. Sempre pude ver que Boyd estava destinado a fazer que a lei e a ordem funcionassem. Até faz pouco, era o único policial que respeitava o suficiente para confiar nele.

- Suponho que acaba de fazer um elogio.

- Não duvide. Vocês dois têm muito em comum. Uma visão clara, um tipo de valor obstinado, uma compaixão irremovível –sorriu, brincando com seus dedos -A menina que salvamos no telhado… também fui vê-la. Estava encantada com a moça bonita de cabelo vermelho que deu uma boneca a ela.

- Realizei um procedimento. É meu trabalho…

- Tolices –satisfeito com a resposta dela, levantou a mão dela e a beijou-. Não tinha nada que ver com o dever, e sim com o que você é. Ter um lado sensível não diminui seu lado policial, Thea. Só faz você ser uma policial amável.

Soube aonde conduziria isso, mas não afastou a mão.

- O fato de sentir fraqueza pelos meninos não faz que sinta por você.

- Mas sente –sussurrou-. Chego até você –sem deixar de observá-la, deslizou os lábios por seu pulso. Sua pulsação era firme, mas também rápida-. E não penso em deixar de chegar até você.

- É possível –era inteligente demais para continuar negando o óbvio-. Isso não significa que disso vá sair algo. Não durmo com todos os homens que me atraem.

- Fico feliz em ouvi-lo. Mas vai fazer muito mais do que dormir comigo –riu entre dentes e beijou outra vez a mão-. Deus, encanta-me quando fica com essa expressão. Me deixa louco. O que ia dizer era que, quando chegarmos à cama, dormir não vai ser a maior prioridade. Assim o melhor será que descansemos um pouco até então –se levantou e a levou consigo. –Me dê um beijo de boa noite, e deixarei você descansar agora –a surpresa que viu em seus olhos lhe provocou outro sorriso. Esperaria até mais tarde para se dar uma palmada nas costas pela estratégia escolhida-. Pensou que tinha preparado o jantar e feito companhia como desculpa para seduzir você –suspirou e moveu a cabeça-. Althea, estou magoado. Quase destroçado.

Ela riu e manteve a mão na sua.

-Sabe, Nightshade? Às vezes quase gosto de você. Quase.

- Vê? Falta pouco para estar louca por mim –a abraçou e o retraimento que sentiu nas entranhas contradisse o tom leve que empregou-. Se tivesse me pedido para preparar uma sobremesa, estaria suplicando.

- Você perdeu –burlou-. Todo mundo sabe que palha italiana acaba comigo.

- Não esquecerei – deu um beijo ligeiro e a observou sorrir. E o coração deu um salto-. Deve existir alguma confeitaria italiana por aqui.

- Não. Perdeu sua oportunidade –apoiou o tronco no peito dele, dizendo a si mesma que deveria mandá-lo embora, enquanto ainda podia sentir as pernas- Obrigada pela massa.

- Claro –mas seguiu olhando-a, concentrado nela, como se quisesse ver além da pele de marfim, dos ossos delicados. Compreendeu que passava algo. Algo interno que não terminava de entender-. Tem algo nos olhos.

- O que? – os nervos de Althea dançavam.

-Não sei –falou devagar, como se medisse cada palavra-. As vezes quase posso vê-lo. Então, impulsiona-me a perguntar onde tem estado. Aonde vamos.

Teve que respirar fundo para arejar os pulmões.

- Você ia pra casa.

- Sim. Num minuto. É muito fácil dizer que é linda –murmurou, como se falasse consigo mesmo-. Ouvir constantemente é muito superficial para que possa afetar você. Há algo mais aí. Algo que não consigo discernir –sem deixar de procurar em seus olhos, acercou-a ainda mais-. O que há em você, Althea? O que há que não consigo descobrir?

- Nada. Está acostumado demais a procurar sombras.

- Não, você tem –devagar, subiu a mão até sua bochecha-. E o que tenho eu é um problema.

- Qual?

- Provarei com isto.

Baixou a boca para beijar-lhe os lábios e todos os músculos do corpo de Althea se derretiam aos poucos. Não foi um beijo exigente nem urgente. Mas teve um resultado devastador. Aprofundou-o e a bombardeou com emoções para as quais ela não tinha defesa. Os sentimentos dele se liberaram e a encheram, rodeando-a.

“Não há escapatória”, pensou ela e ouviu seu próprio som abafado de desespero e aceitação. Colt tinha aberto uma brecha numa defesa que Althea tinha dado por sentada e que nunca mais poderia levantar.

Poderia repetir uma e outra vez que não ia apaixonar-se, que não podia apaixonar-se por um homem que mal conhecia. Mas seu coração já ria da idéia.

Sentiu-a ceder… não de tudo, pior sim entregar outra parte de seu ser. Ali tinha bem mais do que paixão; e também uma espécie de descoberta. Para Colt foi uma revelação descobrir que uma mulher, essa mulher, podia aturdir a sua mente, abrir-lhe o coração e deixá-lo desvalido.

- Começo a perder terreiro –manteve a mão no ombro de Althea ao separar-se -. E depressa.

- É demais –foi uma resposta pobre, mas a melhor do que pôde dar.

- Diz isso para mim? –os ombros dela voltavam a ficar tensos. Impulsionou-o a separar-se-. Nunca tinha sentido isto antes. E não é um truque – disse quando ela girou.

- Eu sei. Tomara que fosse –agarrou o respaldo da cadeira onde pendurava a cartucheira. “um símbolo do dever”, pensou. “do controle. O que me conformou”-. Colt, creio que ambos estamos nos metendo mais fundo do que talvez nos agrade.

- Talvez já nos cansamos de sempre drenar água.

- Não permito que os assuntos pessoais interfiram em meu trabalho –com temor teve que reconhecer que estava pronta, inclusive disposta e ansiosa, para afundar-se-. Se não somos capazes de manter isto sob controle, deveria pensar em trabalhar com outra pessoa.

- Nos damos bem juntos –disse com os dentes apertados-. Não ponha desculpas falsas porque não quer reconhecer o que acontece entre nós.

- É o melhor do que tenho –as juntas estavam alvas de agarrar a cadeira-. E não se trata de uma desculpa, só de um motivo. Quer que diga que me assusta. De acordo. Me assusta. Isto me assusta. E não creio que vá querer uma parceira que não seja capaz de se concentrar porque você a deixa nervosa.

- Talvez esteja mais contente com essa parceira que com a que se concentra tanto que custa reconhecer se é humana –não ia permitir que esse momento escapasse-. Não me diga que não é capaz de trabalhar em dois níveis, Thea, ou que não pode funcionar como policial quando tem um problema em sua vida pessoal.

- Talvez não queira trabalhar com você.

-É uma pena, mas não há volta. Se quer nos frear, tentarei com prazer. Mas não vai deixar de Liz porque teme permitir-se sentir algo por mim.

- Penso em Liz e no melhor para ela.

- Como diabos vai saber? –estourou e se mostrava irracional. Estava a ponto de apaixonar-se por uma mulher que não o queria em nenhum âmbito de sua vida. Estava desesperado por encontrar uma jovem assustada, e a pessoa que o tinha ajudado a avançar para seu objetivo ameaçava em deixá-lo-.Como diabos vai saber algo sobre ela ou outra pessoa? Está tão dominada pelas regras e os procedimentos que não é capaz de sentir, não, não é que não seja capaz, não quer. Arriscaria sua vida, mas um contato com a emoção e em seguida alça um escudo. Tudo tem de ser muito medido para você, verdade, Thea? Aí afora há uma menina assustada, mas para você só é um caso a mais, simplesmente outro trabalho.

- Não se atreva a dizer o que eu sinto –seu controle se quebrou ao apartar a cadeira, que caiu com estrépito ao solo entre os dois-. Ou se atreva a dizer o que entendo. É impossível que saiba o que passa por meu interior. Você acredita que conhece Liz ou qualquer uma das garotas como as que falou hoje? Por ter entrado nuns refúgios e albergues acredita que entende?

Os olhos dela cintilaram com uma ira tão aguda que não pôde fazer outra coisa que deixar que o cortasse.

- Sei que há muitas jovens que precisam de ajuda, que nem sempre a encontram.

-Oh, isso parece tão fácil –se pôs a caminhar pela sala e dar uma estranha exibição de movimento inútil-. Preenche um cheque, paga uma fatura, pronuncia um discurso. Conta tão pouco esforço. Não tem nem idéia do é estar sozinha, ter medo ou se ver presa nessa máquina trituradora à que arrojamos aos jovens deslocados. Eu passei quase toda minha vida nessa maquinaria, assim não me diga que não sinto. Sei o que é almejar escapar, a ponto de correr ainda sem ter aonde ir. E sei o que é que desenvolvem ali, e você fica impotente, abusam e a fazem sentir-se presa e miserável. Entendo muito bem. E sei que Liz tem uma família que a quer, à que a devolveremos. Sem importar o que passe, a devolveremos e não ficará presa nesse ciclo. Assim não me diga que se trata de outro caso, porque me importo com ela. Todos importam –calou e passou uma mão trêmula pelo cabelo. Nesse momento não sabia que era maior, se a vergonha ou a fúria que sentia-. Agora gostaria que fosse embora –sussurrou-. Para valer.

- Sinto muito –quando ela não respondeu, aproximou-se e a obrigou a sentar-se numa cadeira-. Sinto. É um recorde para mim desculpar-me duas vezes num dia com a mesma pessoa –quis afastar seu cabelo do rosto, mas se conteve-. Quer um pouco de água?

- Não. Só quero que você vá embora.

- Não posso –se sentou no banquinho diante dela para que seus olhos ficassem no mesmo nível-. Althea...

Ela se jogou para trás com os olhos fechados. Sentia como se tivesse subido ao cume de uma montanha para atirar-se ao vazio.

- Nightshade, não estou com humor para contar a história da minha vida, de maneira que, se espera isso, já sabe onde está a porta.

- Isso pode esperar –correu o risco de tomar-lhe a mão. Notou que estava firme, mas fria- Vamos tentar outra coisa. O que temos aqui são dois problemas diferentes. Encontrar a Liz é o número um. É uma menina inocente, uma vítima, que precisa de ajuda. Poderia encontrá-la só, mas demoraria tempo. E cada dia que passa… bom, já se passaram muitos dias. Preciso que trabalhe comigo, porque você conseguirá passar pelos canais que eu demoraria o dobro em rodear. E porque confio que dedique tudo o que tem para localizá-la e levá-la para casa.

- De acordo –manteve os olhos fechados, concentrada para que desaparecesse a tensão-. A encontraremos. Se não amanhã, ao dia seguinte. Mas a encontraremos.

- Segundo problema –contemplou suas mãos-. Creio… ah, como para mim representa um campo novo, gostaria de indicar que só se trata de uma opinião…

- Nightshade –abriu os olhos e neles dançou o fantasma de um sorriso-. Juro que fala como um advogado.

- Não creio que deva xingar um homem que vai dizer que está quase convencido de que te ama –se moveu incômodo. Ela se sobressaltou. Teria apostado o rancho que, se tivesse sacado uma arma, Althea não teria piscado. Mas a menção do amor a fazia dar um bote-. Não tema –continuou-. Disse “quase”. Isso nos deixa uma margem de segurança.

-A mim dá a impressão de que é um campo minado –o medo a pôs a tremer outra vez, soltou sua mão-. Nestas circunstâncias, creio que seria inteligente enterrar o tema por enquanto.

- E agora quem fala como um advogado? –sorriu-. Querida, isso provoca pânico? Pensa no que faz a mim. Só entrei nesse assunto porque espero que isso facilite o que estamos encarando. Pelo que sei, bem pode ser a gripe ou algo parecido.

- Seria estupendo –conteve um riso, aterrorizada de que parecesse embriagada-. Descanse e beba muito líquido.

-Tentarei –se adiantou-. Mas se não é a gripe, ou algum outro vírus, vou fazer algo à respeito. O que seja pode esperar até que tenhamos solucionado o primeiro problema. Até então, não entrarei mais no tema do amor, nem todas a coisas que pelo geral implica, já sabe… o casamento, a família e uma casa com garagem para dois carros –pela primeira vez desde que a conhecia, viu-a totalmente desconcertada. Tinha os olhos muito abertos e a boca frouxa. Juraria que, se tocasse seu ombro, teria caído como uma árvore jovem açoitado por uma tormenta-. Imagino que é o melhor já que falar disso em sentido abstrato parece ter posto você em coma.

- Eu… -conseguiu fechar a boca, engolir saliva e depois falar-. Creio que perdeu a cabeça.

- Eu também –só Deus sabia por que se sentia tão contente-. Assim que, pelo momento, concentremo-nos em encontrar os vilões. Certo?

- E se aceito, vai deixar o outro tema de lado?

- Está disposta a aceitar minha palavra? –esboçou um sorriso lento.

- Não –se ergueu e lhe devolveu o sorriso-. Mas estou disposta a apostar que serei capaz de desvirar qualquer coisa que me lance.

- Aceito a aposta –estendeu uma mão-. Colega – as estreitaram com gesto solene-. E agora, Por que não…?

O telefone interrompeu o que Althea estava certa de que seria uma sugestão pouco profissional. Passou junto a Colt e pegou o telefone na extensão da cozinha.

Isso lhe deu um momento para refletir sobre o que tinha iniciado. Para sorrir. Para pensar em como lhe agradaria terminá-lo. Antes de poder concluir a fantasia, ela voltava a seu lado. Levantou a cadeira caída e recolheu a pistoleira.

- Você lembra de nosso amigo, Leio, o garçom? Acabamos de prendê-lo por vender coca no bar –enquanto colocava a pistoleira, seu rosto recuperou a expressão combativa-. Vão levá-lo a delegacia para interrogá-lo.

- Vamos.

- Se Boyd autorizar –soltou enquanto se conteve em vestir a jaqueta-, poderá observar por trás do vidro, nada mais.

- Deixa que eu esteja presente. Manterei a boca fechada.

- Não me faça rir –pegou a bolsa no caminho da porta -. Aceita ou deixo-o… parceiro.

- Eu aceitarei –amaldiçoou e o fechou com força a porta.

 

A frustração inicial de Colt ao se ver obrigado a permanecer por trás de um vidro desapareceu ao ver trabalhar Althea. Seu interrogatório paciente e minucioso tinha estilo. Em nenhum momento permitiu que Leio a distraísse, jamais mostrou reação alguma ao sarcasmo do outro e jamais, nem sequer quando Leio recorreu a uma linguagem abusiva e a ameaças veladas, levantou a voz.

Recordou que jogava pôquer da mesma maneira. Com frieza, metodicamente, sem revelar emoção alguma até o momento de recolher os ganhos. Mas Colt começava a poder ver essa mulher que tinha por trás da fachada altiva.

Certamente, havia surpreendido muitas e várias emoções na tenente contida. Paixão, ira, simpatia, inclusive aturdimento mudo. Tinha a sensação de que só tinha remexido na superfície. Pensava seguir escavando até desenterrar todas suas emoções.

-Uma noite longa –Boyd apareceu a suas costas com duas xícaras de café.

- Já tive piores –aceitou a xícara e bebeu um pouco-. Está forte. Poderia dançar tango com minha sombra –fez uma careta e bebeu um pouco mais-. O capitão presencia geralmente um interrogatório rotineiro?

- O capitão o faz quando tem um interesse pessoal –Fletcher observou um momento Althea-. Está conseguindo algo?

Com certo esforço, Colt conteve o impulso de golpear o vidro para demonstrar que podia participar.

- Leio segue escapulindo.

- Se cansará muito antes que ela.

- Eu mesmo já cheguei a esta conclusão –ambos guardaram silêncio enquanto Leio soltava um insulto desagradável e Althea respondia perguntando-lhe se queria repeti-lo para que ficasse registrado em sua declaração-. Thea nem se intimida –comentou Colt-. Fletch, já viu alguma vez um gato esperar um rato? –olhou um segundo para Boyd, depois fincou a vista no vidro-. Fica imperturbável, talvez durante horas. E dentro do buraco o rato começa a ficar louco. Pode cheirá-lo, ver os olhos que o estudam. Passado um tempo, os circuitos do cérebro do rato entram em curto-circuito e tenta escapar. Então o gato move uma pata e tudo termina. Pois aí temos uma gata magnífica –com a cabeça indicou o vidro e bebeu outro gole de café.

- Chegou a conhecê-la muito bem em tão pouco tempo.

- Oh, ainda me falta muito por descobrir. Tem tantas coberturas –murmurou para si mesmo-. Não posso dizer que alguma vez tenha conhecido uma mulher que me tivesse deixado tão interessado em tirar essas coberturas tanto quanto as roupa.

- Sabe? –comentou Boyd, com a cautela que empregaria um homem cego em avançar por um labirinto.- Thea é especial. Pode manejar praticamente tudo o que lhe apareça por diante.

- E o faz –adicionou Colt.

- Sim. Mas isso não quer dizer que não seja vulnerável. Não gostaria que a ferissem. Não gostaria de maneira nenhuma.

- Uma advertência? –levemente surpreso, Colt arqueou uma sobrancelha-. Soa como aquela que me deu sobre sua irmã Natalie há um milhão de anos.

- É o mesmo. Thea é como da família.

- E acha que poderia magoá-la.

Boyd suspirou. Não sentia prazer com essa conversa.

- Digo que, se o fizesse, teria que arrancar vários órgãos vitais seus. Lamentaria, mas teria que fazer.

- Quem ganhou a última briga que tivemos?

- Creio que foi um empate –apesar da incomodidade, Boyd sorriu.

- Sim, assim eu me recordo. E também foi por uma mulher, verdade?

- Cheryl Anne Madigan –o suspiro de Boyd foi nostálgico nessa ocasião.

- Uma loira pequena?

- Não, uma morena alta. Com uns enormes olhos azuis.

- Sim –Colt riu e moveu a cabeça-. Pergunto-me que terá acontecido à bonita Cheryl Anne.

Guardaram um silêncio ameno por um momento, recordando. Através dos alto-falantes, podiam ouvir o interrogatório implacável de Althea.

- Não gostaria de feri-la –sussurrou Colt-, mas não posso prometer que não vá acontecer. Fletch, a questão é que pela primeira vez me encontrei com uma mulher que me importo o suficiente, e que também possa me ferir –bebeu outro gole de café-. Acredito que estou apaixonado por ela.

Boyd se engasgou e se viu obrigado a deixar a xícara antes de verter o conteúdo sobre sua camisa. Aguardou um instante e se levou uma mão ao ouvido, como se quisesse limpa-lo.

- Quer repetir? Acredito que não escutei direito.

- Me ouviu –pensou que era típico de um amigo humilhá-lo num momento vulnerável-. Quando disse à ela, recebi a mesma reação.

- Você disse a ela? –tentou esforçar-se em prestar atenção ao interrogatório enquanto assimilava essa informação nova e fascinante-. E ela o que respondeu?

-Pouca coisa.

A frustração na voz de Colt divertiu tanto a Boyd, que teve que se morder a língua para não sorrir.

- Bom, ao menos não riu na sua cara.

- A ela não pareceu tão engraçado –suspirou e desejou que a seu amigo tivesse colocado um trago de brandy no café-. Ficou sentada, ficando cada vez mais pálida, quase boquiaberta.

- É um bom sinal –lhe deu uma palmada no ombro-. Custa muito desconcertá-la dessa maneira.

- Pensei que o melhor era dizer, já que isso nos daria aos dois tempo para decidir que fazer ao respeito. Ainda que já esteja bastante claro o que vou fazer.

- E que é?

- Bem, a não ser que acorde uma destas manhãs para descobrir que tive um ataque, vou casar com ela.

- Casar com ela? –Boyd riu entre dentes-. Thea e você? Deus, espere até eu contar a Cilla –o olhar assassino que Colt lançou só serviu para ampliar seu sorriso.

- Não sei como agradecer o apoio oferecido, Fletch.

Boyd conteve outra risada, ainda que não conseguisse o mesmo com o sorriso.

- Oh, mas o tem amigo. Todo. O que passa é que jamais pensei que utilizaria a palavra casamento na mesma frase com Colt Nightshade ou Althea Grayson. Creia-me, tem todas as minhas simpatias.

 

Na sala de interrogatório, Althea continuou com o desgaste de sua presa. Percebia medo, o que empregou de forma cruel.

- Sabe, Leio? Um pouco de cooperação ajudaria muito.

- Claro, tanto como ajudou a Wild Bill.

- Apesar de me aborrecer oferecê-la –Althea inclinou a cabeça-, teria proteção.

- Claro –soltou uma baforada de fumaça-. Acredita que quero os policiais vigiando minha bunda vinte e quatro horas por dia? Acha que funcionaria?

- Talvez não –utilizou o desinteresse como outra ferramenta, reduzindo o ritmo da entrevista até que Leio começou a retorcer-se na cadeira-. Mas se não cooperar, não disporá de nenhum escudo. Sairá daqui nu, Leio.

- Me arriscarei.

- Perfeito. Você terá uma fiança por tráfico de droga… provavelmente possa evitar passar um tempo no cárcere. Mas é peculiar como se corre os boatos pela rua, não acha? –deixou que assimilasse bem suas palavras-. As partes interessadas saberão onde esteve, Leio. E, quando sair, não estarão muito certos do você terá contado.

- Não contei nada. Não sei nada.

- É uma pena, porque talvez essa ignorância funcione contra você. Verá, estamos aproximando, e essas mesmas partes interessadas poderão se perguntar se você nos ajudou –com indiferença abriu uma pasta e revelou os desenhos da polícia-. Se perguntarão se foi você quem me deu as descrições dos suspeitos.

- Não disse nada –ao observar os desenhos a testa dele encheu de suor-. Nunca antes vi esses sujeitos.

- Bem, talvez seja verdade. Mas, se surgisse o tema, terei que dizer que falei com você. Muito tempo. E que disponho de desenhos detalhados dos suspeitos. Sabe, Leio? –adicionou, inclinando-se para ele- algumas pessoas somam dois mais dois e obtêm cinco. Acontece o tempo todo.

- Isso não é legal –umedeceu os lábios-. É chantagem.

- Não fira meus sentimentos. Quer ser sua amiga, Leio –empurrou os desenhos para ele-. Tudo é uma questão de atitude, e saber se me importa ou não que ao sair daqui termine achatado na calçada. Francamente, neste momento não me importo –sorriu, gelando-lhe o sangue-. Agora bem, se fosse meu amigo, faria tudo o que estivesse a meu alcance para que levasse uma vida longa e feliz. Talvez não em Denver, talvez em outro lugar. Mas uma mudança de palco pode fazer milagres. Mudança de nome, mudança de vida.

- Fala do programa de proteção de testemunhas? –perguntou com titubeio.

- Poderia ser. Mas se for solicitar algo tão importante, tenho que obter resultados –ao vê-lo vacilar de novo, suspirou-. Será melhor que escolha de que lado está amigo. Lembra de Wild Bill? A única coisa que fez foi encontrar-se com um sujeito. Talvez não fizessem mais do que falar das possibilidades que tinham os Broncos de ganhar a Superbowl. Mas ninguém lhe brindou o benefício da dúvida. Simplesmente o mataram.

O medo o dominou outra vez em forma de suor pelas têmporas.

- Quero imunidade. E que retirem as acusações de tráfico de droga.

- Leio, Leio… -Althea moveu a cabeça-. Um homem pronto como você sabe como funciona a vida. Me dê algo, e se for bom, eu dou algo pela mudança. É o estilo americano.

- É possível que tenha visto estes dois antes – umedeceu de novo os lábios e acendeu outro cigarro.

-Estes dois? –apoiou um dedo sobre os desenhos, e depois, como uma gata, saltou-. Fala-me deles.

Quando terminou eram as duas da manhã. Tinha interrogado Leio, escutado sua história longa e confusa, tomando notas, tinha-o feito retroceder, repetir, explorar. Depois chamou a digitadora da polícia e fez que Leio repetisse toda a história, realizando uma declaração oficial.

Se movia de energia quando regressou a seu escritório. Já dispunha de nomes que passar pelo computador. Tinha fios… finos, talvez, mas fios que uniam uma organização.

Grande parte do que Leio tinha contado era especulação e rumores. Mas Althea sabia que com algumas provas podia iniciar uma investigação.

Tirou a jaqueta, sentou-se diante a escrivaninha e acendeu o terminal de seu computador. Estudava a tela quando Colt entrou e pôs uma xícara sob o nariz.

- Obrigado –bebeu, fez uma careta e o olhou-. O que é isto?

- Chá de ervas –informou-. Já bebeu café suficiente.

- Nightshade, não vai estragar nossa relação pensando que tem que cuidar de mim, não é? –deixou a xícara de um lado e se concentrou outra vez no monitor.

- Está agitada, tenente.

- Sei quanto posso tomar antes de que se sobrecarregue o sistema. Não é você quem não deixa de repetir que a única coisa que nos falta é tempo?

- Sim –se situou por trás da cadeira que ela ocupava, baixou as mãos sobre seus ombros e começou a massagear-. Fez um trabalho magnífico com Leio –disse antes de que pudesse afastar aos mãos dele-. Se algum dia decidir retomar a prática da advocacia, odiaria que interrogasse um de meus clientes.

Os dedos de Colt eram mágicos, relaxando sem debilitar, mitigando sem amaciar,

- Não consegui tudo o que queria, mas acredito que era tudo que ele tinha.

- Leio é insignificante –conveio Colt-. Passa um pouco dos negócio aos peixes gordos e leva uma comissão.

- Não conhece o chefão. Estou convicta de que não mentia ao negá-lo. Mas identificou os dois sujeitos que descreveu Meena. Lembra do homem da câmara, do que nos falou… o afro-americano grande? Olhe –assinalou a tela-. Matthew Dean Scout, apelido Dean Milhar, apelido Wave Dean. Jogou ao futebol semi profissional faz uns dez anos. Lavrou-se um nome sendo desnecessariamente duro. Quebrou a perna de um adversário no jogo.

- Essas coisas passam.

- Depois da partida.

- Ah. que mais temos dele?

- Direi que mais tenho dele –indicou, ainda que não pôde resistir a facilitar-lhe a massagem-. Foi despedido por romper as regras da equipe… ao levar uma mulher em seu quarto.

- Os garotos são assim.

- Essa mulher em particular estava atada e gritando desesperadamente. Reduziram as acusações de violação a agressão, mas seus dias como jogador de futebol terminaram. Depois daquilo, foi acusado de agressão, exibicionismo, embriagues e roubos menores, aparte de conduta imoral –apertou outra tecla-. Isso foi faz uns quatro anos. A partir de então, nada.

- Acredita então, que começou uma nova etapa de sua vida? Que se converteu num pilar da comunidade?

- Claro, assim como os homens lêem as revistas de mulheres nuas por seus artigos eruditos.

- Isso é o que me motiva –sorriu e se agachou para dar-lhe um beijo na cabeça.

- Aposto que sim. Temos uma história similar no suspeito número dois –continuou-. Harry Kline, um ator fajuto de Nova York, cujos delitos figuram conduta violenta em estado de embriaguez, posse de drogas e agressão sexual. Entrou na indústria pornográfica faz uns oito anos e, ainda que custe acreditar, foi despedido de vários filmes por comportamento violento e errático. Mudou-se para o oeste, atuou em vários filmes na Califórnia e depois foi preso por estuprar um de seus amigos da filmagem. Devido ao trabalho que realizava, a defesa conseguiu que retirassem os cargos. A única justiça para a vítima foi que a carreira de Harry se acabou, para o cinema. Ninguém minimamente legal quis contratá-lo. Isso foi há cinco anos. Desde então, seu histórico está em branco.

- Uma vez mais, poderia crer que nossos amigos se converteram em cidadãos exemplares ou morreram enquanto dormiam.

- Ou encontraram um buraco pra esconderem-se. Leio afirma que foi Kline quem se aproximou há dois ou três anos. Queria mulheres, mulheres jovens interessadas em participar de filmes particulares. Citando a liberdade de empresa, Leio as conseguiu e recebeu sua comissão. O número de telefone que lhe deram para por em contato com Kline está fora de serviço. Conferirei com a empresa telefônica para ver se era da cobertura ou de outra casa.

- Nunca viu o outro homem, esse que segundo Meena permaneceu no canto do quarto?

- Não. Seus únicos contatos eram Kline e Scout. Ao que parece este se apresentava nesse bar para tomar umas e alardear como era bom manejando uma câmera e do dinheiro que ganhava.

- E sobre as garotas – sussurrou Colt. Os dedos que massagearam os ombros de Althea se puseram rígidos-. De como seus amigos e ele dispunham… Como o expôs? Do melhor da ninhada?

- Não pense nisso –instintivamente ergueu uma mão para tomar na sua-. Não, Colt. Se fizer isso não poderá manter-se frio. Avançamos muito para encontrá-la. Deve concentrar nisso.

- Eu faço –se voltou e se dirigiu para a outra parede-. Também me concentro no fato de que se descubro que um desses dois canalhas tocou em Liz, vou matá-lo –se voltou com o olhar centrado-. Você não me deterá, Thea.

- Sim, eu farei –se levantou para aproximar-se e lhe tomar as duas mãos-. Porque entendo muito que quer matá-los. E se o fizer, não mudará o acontecido. Não ajudará Liz. Mas cruzaremos essa ponte depois que a encontremos – apertou as mãos-. Não se comporte agora como um renegado comigo, Nightshade. Não quando começo a gostar de trabalhar com você.

Colt se permitiu olhá-la. Ainda que tivesse olheiras e as faces pálidas pela fadiga, podia sentir a energia que vibrava através dela. Estava-lhe oferecendo algo. Compaixão… com restrições, com certeza. E esperança, sem nenhum limite. A ferocidade de sua fúria se transformou na necessidade humana do calor do contato.

-Althea… -relaxou as mãos-. Deixa que eu abrace você –a viu titubear, com as sobrancelhas arqueadas pela surpresa. O só pôde sorrir-. Sabe? Começo a entender você bastante bem. Se preocupa com a imagem profissional ao estar colada a um homem em seu escritório –suspirou e lhe acariciou o cabelo-. Tenente, são quase três da manhã. Não há ninguém que possa ver-nos. E realmente preciso de um abraço.

Uma vez mais, Althea deixou que o instinto prevalecesse e se jogou em seus braços. Cada vez que ficava dessa maneira, encaixavam-se com perfeição. E cada vez ficava mais fácil admiti-lo.

- Se sente melhor? –perguntou, e sentiu que Colt assentia sobre seu cabelo.

- Sim. Sabia algo sobre Lacy, a garota que está desaparecida?

- Não –sem pensar, acariciou-lhe as costas, afrouxando-lhe os músculos tensos como ele tinha afrouxado os seus-. E quando mencionei a possibilidade do assassinato, mostrou-se sinceramente emocionado. Não fingiu. Por isso estou convicta de que nos proporcionou tudo o que sabia.

- A casa nas montanhas – Colt fechou os olhos-. Não pôde dar-nos muito.

- Ao oeste ou talvez ao norte de Boulder, perto de um lago –encolheu os ombros-. É algo melhor do que tínhamos antes. A encontraremos, Colt.

- Sinto como se não conseguisse encaixar todas as peças.

- Estamos unindo todas as peças das que dispomos –lhe disse-. E se sente assim pelo cansaço. Vá para casa –se afastou para poder olhá-lo-. Vá dormir um pouco. Começaremos de novo pela manhã.

- Preferiria ir pra casa com você.

- Nunca se rende? –divertida, exasperada, moveu a cabeça.

- Não disse que espero isso, só que preferiria –lhe emoldurou o rosto entre as mãos e acariciou as sobrancelhas com os polegares, depois as têmporas-. Quero passar mais tempo com você, Althea. Tempo que nenhum de nós dois tenha tantas coisas na cabeça. Para descobrir o que tem que fazer para começar a pensar em algo permanente, a longo prazo.

- Não comece, Nightshade –cautelosa, separou-se de seus braços.

- Isso sim deixa você nervosa –sorriu, descontraído-. Jamais conheci alguém tão assustado ante a idéia do casamento… salvo eu mesmo. Pergunto-me porque… e se deveria averiguar as causas e depois colocar um anel em seu dedo. Ou… -se aproximou, encostando-a contra a mesa- … se deveria tomar as coisas com calma e tranqüilidade, até conseguir que diga “Sim, quero”, sem que tivesse dado conta.

- Em ambos os casos, está sendo ridículo –tinha um nó na garganta. Soube que era pelos nervos e não gostou. Fingindo indiferença, pegou a xícara de chá e bebeu um pouco. - É tarde –anunciou-. Vá. Eu pedirei um carro e irei pra casa.

- Levarei você – tomou o queixo na mão e esperou até que o olhou aos olhos-. E falo em sério, Thea. Mas tem razão… é tarde. E estou em dívida contigo.

- Você não… -a negativa terminou num gemido quando a boca de Colt cobriu a sua. O beijo transmitiu frustração, uma necessidade desesperada e mal contida. E o que mais custou resistir: a doçura do afeto, como um bálsamo sobre o ardor palpitante-. Colt…-inclusive ao murmurar seu nome, soube que estava perdendo. Já tinha levantado os braços para rodeá-lo, para aceitar e exigir.

O corpo a traiu. Ou que foi o coração? Já não sabia distingui-los, pois as necessidades de um se confundiam com as necessidades do outro. Fincou os dedos nos ombros enquanto lutava pra recuperar o equilíbrio. Depois se afrouxaram ao permitir-se um momento de loucura.

Foi Colt quem se retirou… por si mesmo e por ela. Althea tinha se convertido em algo mais importante do que a satisfação do momento.

- Estou em dívida com você –repetiu, olhando-a nos olhos-. Se não fosse assim, esta noite não permitiria que você fosse. Não acredito que conseguiria. Levarei você para casa – pegou a jaqueta dela e a ofereceu-. Depois o mais provável é que passe o resto da noite perguntando-me como teria sido se tivesse fechado a porta e deixado que a natureza continuasse com seu curso.

Aturdida, passou a jaqueta pelos ombros antes de ir para a porta. Mas não pensava deixar que ele levasse vantagem. Deteve-se e sorriu acima do ombro.

- Eu direi como se sentiria, Nightshade. Não se pareceria com nada do que tenha experimentado. E quando estiver preparada, se algum dia estiver, demonstrarei.

Emocionado pelo impacto desse sorriso sedutor, observou-a sair. Suspirou e levou uma mão à boca do estômago. “santo céu”, pensou, “esta mulher é para mim”. E assim ia demonstrar.

 

Com quatro horas de sono, duas xícaras de café só e uma pastilha no estômago, Althea estava pronta para continuar o trabalho. As nove da manhã já estava no escritório chamando a companhia telefônica com uma petição oficial para que comprovasse o número que Leio tinha dado. Às nove e meia, tinha conseguido um nome e uma direção e a informação de que o cliente tinha cancelado o serviço tão só quarenta e oito horas atrás.

Ainda que não esperava encontrar nada, estava pedindo uma ordem de registro quando entrou Colt.

- Não deixa que o mofo cresça sob teus pés, não é?

- Não deixo que nada cresça sob meus pés –pendurou-. Tenho uma pista sobre o número Leio que nos deu. O cliente cancelou o serviço. Imagino que encontraremos o lugar vazio, mas terei uma ordem de registro numa hora.

- Isso é o que me encanta em você, tenente… não faz nenhum movimento inútil –apoiou o quadril na mesa e gostou de descobrir que Althea cheirava tão bem como o aspecto que tinha-. Como dormiu?

- Como uma pedra –o olhou num desafio direto-. E você?

- Nunca melhor. Acordei esta manhã com uma perspectiva nova. Pode sair ao meio dia?

- Aonde?

- Tive uma idéia. Conferi com Boyd e… -franziu o cenho ao fincar a vista no telefone-. Quantas vezes ao dia toca?

- As suficientes –levantou o fone-. Grayson. Sim, a tenente Althea Grayson – levantou a cabeça-. Jade –com um gesto, tampou o fone-. Linha dois –sussurrou-. E mantém a boca fechada –seguiu escutando enquanto Colt saía do escritório em procura de uma extensão-. Sim, estamos procurando você. Agradeço sua ligação. Pode dizer onde está?

- Preferiria não dizer –a voz de Jade soava nervosa-. Só chamo porque não quero nenhum problema. Consegui um trabalho e tudo isso. Um trabalho legal. Se tiver algum problema com a polícia, o perderei.

- Não há nenhum problema. Chamei a sua mãe porque pode ser de ajuda no caso que estou pesquisando –girou a cadeira para a direita para ver Colt através da porta. - Jade, lembra-se de Liz, não é? A garota que pediu que você escrevesse uma carta ao pais.

-Sim… suponho. Talvez.

-Ajudou muito escrevendo e saindo da situação na que se encontrava. Os pais de Liz estão muito agradecidos.

- Era uma garota agradável. Sabe? Não sabia no que tinha se metido. Queria escapar –fez uma pausa; soou um fósforo ao acender e uma aspiração profunda-. Escute, não podia fazer nada por ela. Só dispusemos de uns momentos a sós numa ou duas ocasiões. Me deu seu endereço e me pediu que escrevesse para seus pais. Como já disse, era uma boa garota numa má situação.

- Então me ajuda a encontrá-la. Diga-me aonde a levaram.

- Não sei. Juro que não sei. Algumas vezes nos levaram, várias garotas, às montanhas. Não tinha ninguém nem nada ao redor. Ainda que tivessem uma choupana elegante. De primeira, com um jacuzzi e uma enorme chaminé de pedra, ah, e uma tela grande de televisão.

-Por onde saiu de Denver? Se lembra?

- Bem, sim, mais ou menos. Foi pela rota 36, em direção a Boulder, mas pareceu que a viagem durava uma eternidade. Depois nos desviamos por um caminho. Não era uma auto estrada.

- Lembra de passar por algum povoado? Algo que tenha gravado na memória?

- Boulder. Depois disso pouca coisa.

- Saiu pela manhã, à tarde ou à noite?

- A primeira vez pela a manhã. Tempo bom.

- Passado Boulder, tinha o sol adiante de você ou às costas?

- Oh, compreendo, ah… creio que às costas.

Althea seguiu fazendo questão de que proporcionasse detalhes sobre o lugar, descrições da gente que tinha visto. Como testemunha, Jade acabou sendo imprecisa, mas com vontade de cooperar. Não obstante, não custou reconhecer as descrições de Kline e Scott. De novo se produziu à menção de um homem que permanecia no fundo, em sombras, olhando.

-Era quieto, sabe? –continuou a jovem-. Como um museu. O trabalho era bem pago, de maneira que voltei algumas vezes. Trezentos dólares por um dia, e um bônus de cinqüenta dólares se precisavam de dois. Eu… veja, esse dinheiro não se pode ganhar na rua.

- Sei. Mas deixou de ir.

- Sim, porque às vezes tinha resultados agressivos. Tinha contusões por todo o corpo, e um deles inclusive me abriu o lábio enquanto fazíamos essa cena. Assustei-me, porque não dava a impressão de que estivessem atuando. Parecia como se quisessem machucar para valer. Contei a Wild Bill e ele me falou que não teria que voltar. E que não ia enviar nenhuma garota mais. Disse que ia falar com seu policial. Sabia que era você, por isso decidi chamá-la ao receber sua mensagem. Bill a considera legal.

Com gesto cansado, Althea passou uma mão pela testa. Não contou a Jade que deveria empregar o tempo passado para referir-se a Wild Bill. Não teve ânimos.

- Jade, em sua carta dizia que acreditava que tinham matado uma das garotas.

- Suponho que sim – tremeu a voz-. Escute, não penso e, testemunhar nem nada parecido. Não penso em voltar.

- Não posso prometer nada, só que tentarei deixar você de lado. Me diz por que acredita que mataram uma das garotas?

- Falei que estavam se tornando agressivos demais. E que não atuavam. A última vez que estive lá, me machucaram para valer. Foi quando decidi não regressar mais. Mas Lacy, a garota com quem compartilhei cenas, disse que podia manejar tudo e que o dinheiro era bom demais para deixá-lo escapar. Voltou lá, mas jamais regressou. Nunca mais a vi –fez uma pausa e acendeu outro fósforo- Não posso provar nada. O que aconteceu… deixou todas suas coisas no lugar onde vivia, sei porque fui vê-la. E ela tinha afeto por suas coisas. Tinha uma coleção de animais de cristal. Muito bonitos. Nunca os teria deixado. Se pudesse, teria voltado para recolhê-los. Assim pensei que estava morta, ou que a retinham na choupana, como Liz. Pior que isso acreditei que o melhor era fugir antes de que me fizessem algo.

- Pode me proporcionar o nome de Lacy, Jade? Qualquer outra informação sobre ela?

- De acordo. Foi de grande ajuda. Por que não me dá um número de telefone que possa chamar você?

- Não quero. Olhe, contei-lhe tudo o que sei. Quero esquecer. Já disse, vou começar uma nova vida aqui.

Althea não a pressionou. Seria simples obtê-lo na empresa telefônica.

- Se lembrar de alguma outra coisa, sem importar o insignificante que pareça, me chamará?

- Acredito que sim. Para valer espero que tirem a garota de lá e que dêem a esses miseráveis o que merecem.

- O faremos. Obrigada.

- De acordo. Dê um alô a Wild Bill por mim.

Antes que Althea ocorresse uma contestação, Colt cortou a comunicação. Levantou a vista e o viu de pé na porta. Seus olhos voltavam a exibir essa expressão perigosa.

- Poderia conseguir que se apresentasse aqui. É uma testemunha material.

- Sim poderia –voltou a levantar o fone. Averiguaria o número de Jade nesse momento, mas o guardaria-. No entanto, não o farei –levantou uma mão em gesto de silêncio antes que Colt pudesse falar, e fez a petição oficial à operadora.

- O 212 o prefixo –leu Colt enquanto Althea escrevia no bloco-. Poderia dizer à polícia de Nova York que a procure.

- Não –respondeu, guardou o bloco na bolsa e se levantou.

- Por que diabos não? –tomou-a pelo braço quando foi recolher a jaqueta-. Se conseguiu tirar dela tanto por telefone, conseguirás mais cara a cara.

- É porque tirei o bastante –incomodada pela interferência de Colt, soltou-se-. Deu-me tudo o que sabia, a troca de nada. Não fizemos ameaças, nem promessas nem manipulações. Só pedi e ela respondeu. Não traio a confiança que se deposita em mim, Nightshade. Se preciso que faça baixar o martelo nesses canalhas, então a utilizarei. Mas não até esse momento, e não há outra maneira. E não –adicionou-, sem seu consentimento. Ficou claro?

- Sim –passou as mãos pela cara-. Sim, está claro. E você tem razão. Quer recolher a ordem e ir verificar essa outra direção?

- Sim. Vai vir?

- Posso apostar. Teremos tempo antes de viajar.

- Viajar?

- Isso, tenente. Você e eu vamos fazer uma pequena viagem. Contarei pelo caminho.

 

- Acredito que perdemos a cabeça - Althea se agarrou ao assento quando o bico do Cessna se elevou para o suave céu outonal.

Relaxado ante os controles, Colt a olhou um segundo.

- Vamos, não gosta de aviões?

- Claro que sim –uma corrente de ar sacudiu a avião-. Mas com auxiliares de vôo.

- Há uma despensa atrás. Quando estabelecermos nossa altura de vôo, pode se servir.

Não se referia a isso, mas preferiu guardar silêncio e ver como a terra ia ficando abaixo. Gostava de voar, ainda que com certos rituais: abotoar-se o cinto de segurança, selecionar um canal de música para ouvir pelos fones, abrir um livro e isolar-se durante a duração do vôo.

Não agradava pensar em todos os comandos sobre os que exercia nenhum controle.

-Sigo pensando que é uma perda de tempo.

-Boyd não questionou a idéia –ele assinalou-. Olhe, Thea, conhecemos a localização geral da choupana. Estudei essa maldita fita até que os olhos quase me saírem das órbitas. A reconhecerei quando a ver, e quase todas os objetos circundantes. Vale a pena verificar.

- Talvez –foi à única coisa que esteve disposta a ceder.

- Pense nisso –estabilizou a avião em seu curso. Sabem que tem alguém atrás deles. Por isso deixaram a cobertura. Sem dúvida vão perguntar-se onde foi parar essa fita, e se tentam pôr-se em contato com Leio, não o encontrarão, já que você o tem vigiado numa casa segura.

- Então se manterão longe de Denver –conveio ela. Os motores eram um ruído horrível em seus ouvidos-. É possível que inclusive levantem o acampamento e se mudem.

- É o que temo –apertou os lábios ao deixar Denver atrás-. O que acontecerá com Liz se o fazem? Nenhuma das opções tem um final feliz.

- Não –isso, e a aprovação de Boyd, tinham-na convencido de acompanhar a Colt-. Não.

- Tenho de pensar que por momento não se moverão da choupana. Ainda que deduzam que sabemos que existe, não poderão pensar que conhecemos sua localização. Desconhecem que falamos com Jade.

- Concedo isso a você, Nightshade. Mas me dá a impressão de que conta com a sorte para que guie até eles.

- Já tive sorte antes. Se sente melhor? –perguntou quando o aparelho se estabilizou-. É bonito aqui acima, não?

Tinha neve nos cumes ao norte, e entre as montanhas tinha uns vales largos e planos. Voavam a suficiente baixa altura como para poder vislumbrar os carros na estrada, as comunidades de pequenos grupos de casas e o bosque verde e denso ao oeste.

- Tem suas vantagens –de repente ocorreu um pensamento que fez que girasse para Colt-. Tem licença para pilotar aviões, Nightshade?

Olhou-a e esteve a ponto de soltar uma gargalhada.

- Deus, você me deixa louco, tenente. Quer um casamento em grande estilo ou um íntimo e pequeno?

- É, você quem está louco – sussurrou e se concentrou em olhar pela janela. Comprovaria se tinha licença quando regressassem a Denver-. Disse que não ia voltar a tocar nesse assunto.

-Menti –repôs com alegria. Apesar da preocupação que não conseguia dissipar-se por completo, nunca tinha se sentido melhor na vida-. Isso me provoca um problema. Uma mulher como você sem dúvida poderia curar-me.

- Cure-se com um psiquiatra.

- Thea, vamos formar um casal perfeito. Espere até minha família conhecer você.

-Não acho que vou conhecê-la –atribuiu a súbita agitação em seu estômago a outra turbulência.

- Bem, talvez tenha razão nisso… ao menos até que estejamos preparados para entrar na igreja. Minha mãe tende querer controlar tudo, mas você saberá lidar com ela. Meu pai gosta das regras. O que significa que combinam como os ovos e o bacon. Assim é o almirante.

- Almirante? –repetiu, apesar de ter jurado guardar silêncio.

- É um homem da marinha. Seu coração se destroçou quando me incorporei às Forças Aéreas – encolheu de ombros-. Provavelmente fiz por isso. Depois tenho uma tia… bom, será melhor que os conheça em pessoa.

- Não vou conhecê-los –repetiu, irritada porque a declaração soava petulante demais. Soltou cinto de segurança e foi à parte de trás, onde se pôs a remexer até encontrar uma lata de amendoins e uma garrafa de água mineral.

A curiosidade fez que abrisse o pequeno compartimento de refrigeração, onde viu uma diminuta lata de caviar e uma garrafa de vinho-. De quem é este avião?

- De um amigo de Boyd. Um jockey que gosta de voar com mulheres.

- Deve ser Frank, o libertino –grunhiu ao regressar a seu assento-. Há anos tenta me convencer de que voe com ele pelos céus sexys.

- É? Não é seu tipo?

- É tão óbvio. Ainda que os homens tendem a ser.

- Tenho que lembrar se ser sutil. Vai se comportar comigo?

- Isso é Boulder? –ofereceu-lhe a lata.

- Sim. Aqui porei rumo noroeste e voarei em círculos. Boyd me contou que tem uma choupana perto.

- Sei. Muita gente tem. Gostam de escapar os fins de semana da cidade para passear pela neve.

- Não é de seu agrado?

- Não vejo nenhum sentido em neve e esquis. E o principal objetivo de esquiar, pelo que vejo por mim, é voltar ao refúgio para beber rum quente diante da chaminé.

- Ah, é aventureira.

- Vivo para a aventura. Na realidade, a choupana de Boyd tem uma bonita vista –reconheceu-. E às crianças se encantam.

- Assim, vejo que já a visitou.

- Algumas vezes. Agrada-me mais ao final da primavera e começo do verão, quando há poucas possibilidades de que os caminhos fiquem fechados –baixou a vista às ladeiras e nevascas-. Odeio a idéia de me ver presa.

- Pode ter suas vantagens.

- Não para mim –guardou silêncio um momento, contemplando as montanhas e as árvores-. É bonito –concedeu-. Em particular por essa vista. Parece um quadro.

- A natureza à distância –sorriu-. Pensava que as garotas da cidade sempre almejavam um refúgio no campo.

- Não esta garota de cidade. Prefiro… -sofreram uma chacoalhada violenta que fez que os amendoins saíssem voando e que Althea se segurasse-. Que demônios foi isso?

Com os olhos entrecerrados, Colt estudou os indicadores enquanto se ocupava em levantar o bico do aparelho.

- Não sei.

- Não sabe? Que quer dizer com que não sabe? Se supõe que deve saber!

-Sss! –virou a cabeça para prestar atendimento aos motores-. Perdemos pressão –comentou com a calma fria que o tinha mantido com vida nas selvas rasgadas pela guerra, nos desertos e nos céus cheios de metralha.

Quanto Althea compreendeu que o problema era sério, respondeu com frieza.

- Que faremos?

- Vou ter que aterrissar.

- Onde? –olhou abaixo, estudando com expressão fatalista os bosques e as colinas.

- Segundo o mapa, há um vale uns poucos graus ao leste –modificou o curso enquanto ativava uns interruptores-. Observe a paisagem –ordenou, depois ligou o rádio-. Torre de Boulder, aqui Baker Able John três.

- Ali –Althea assinalou em direção ao que parecia ser uma faixa muito estreita de terreno plano entre cumes rompidas. Colt assentiu e continuou informando à torre de sua situação.

-Segure-se – disse. - Vai ser um pouco movimentado.

Ela obedeceu e se negou a afastar a vista à medida que a terra corria a seu encontro.

- Segundo meus relatórios, é um bom piloto, Nightshade.

- Está a ponto de averiguá-lo –reduziu a potência, adaptando-se às correntes enquanto enfiava o avião para o vale estreito.

“É como manejar um agulha” pensou Althea. Depois conteve o fôlego ao sentir o primeiro impacto forte das rodas sobre o solo. Quicaram, deslizaram com chacoalhadas e terminaram por deter-se.

- Está bem? –perguntou Colt no instante seguinte.

- Sim –soltou o ar contido. Tinha o estômago revirado, mas além disso se sentia bem-. Sim, estou bem. E você?

-Perfeitamente –alongou as mãos para emoldurar-lhe o rosto e aproximou-se o suficiente para dar-lhe um beijo. -Por todos os céus, tenente –comentou, beijando-a outra vez-. Mostrou-se impassível.

- Medo –quando essa mulher estava acostumada a emoções estáveis, custava saber o que fazer quando tinha o impulso de rir e gritar ao mesmo tempo. Empurrou-o - Quer me deixar sair desta lata? Não notou que cairia bem um pouco de terra firme sob os pés.

- Claro –abriu a porta e a ajudou a descer -. Vou transmitir nossa posição por rádio-informou.

- Bem –respirou fundo o ar frio e limpo e firmou as pernas. Com prazer, descobriu que não as tinha frouxas. Era a sua primeira aterrissagem forçada, e esperava que fosse a última. Devia reconhecer que Colt tinha atuado com serenidade e perícia.

Não se pôs de joelhos para beijar o solo, mas agradeceu tê-lo sob os pés. Como bônus adicional, a paisagem era magnífica. Estavam entre montanhas e bosques, protegidos do vento, e podia observar a neve que caía dos cumes rochosos sem sofrer seus inconvenientes.

O ar era esplêndido, o céu azul e o ambiente fresco tonificavam o sangue. Com um pouco de sorte, os resgatariam numa hora, de modo que podia permitir-se o luxo de desfrutar da paisagem sem sentir-se abrumada pela solidão.

Sentia-se em sintonia com o mundo quando ouviu que Colt baixava da cabine. Inclusive sorriu a ele.

- E bem, quando vão vir procurar-nos?

- Quem?

- Eles. A equipe de resgate. Já sabe, esses heróis altruístas que retiram as pessoas de situações complicadas como esta.

- Oh, eles. Não virão –deixou no solo uma caixa de ferramentas, depois regressou ao interior para pegar uma escada pequena de madeira.

- Perdoe-me? –conseguiu dizer ao encontrar a voz. Soube que se tratava de uma ilusão, mas as montanhas de repente pareceram maiores-. Disse que ninguém vai vir procurar-nos? O rádio não funciona?

- Está perfeito –subiu os degraus e levantou a tampa do motor. Já se tinha metido um trapo no bolso de trás do jeans-. Disse a eles que iria verificar se posso consertar o motor e os manteria informados.

- Você disse a eles...? – moveu-se a toda velocidade, antes de que nenhum dos dois pudesse entender a intenção que almejava. O primeiro golpe foi nos rins e o fez descer da escada cambaleando-. Idiota! Quer dizer que você vai consertar essa lata? –lançou outro golpe, mas ele esquivou, mais desconcertado do que irritado-. Não se trata de um Ford avariado na estrada, Nightshade. Não é um maldito avião.

-Não –respondeu com cuidado, pronto para seu seguinte ataque-. Acredito que é o carburador.

- Acredita que é… -soltou o ar por entre os dentes e cerrou os olhos-. Acabou. Vou matar você com as minhas próprias mãos.

Lançou-se sobre ele. Colt tomou uma decisão numa fração de segundo, girou e deixou que o impulso dela os levasse ao solo. Demorou outro segundo em dar-se conta de que não era inexperiente no combate corpo a corpo. Recebeu um golpe no queixo que fez seus dentes se chocarem. Tinha chegado o momento de pôr-se sério.

Rodeou-lhe o corpo com as pernas e, depois de uma breve luta, conseguiu colocá-la de costas.

- Calma, ok? Alguém vai se machucar!

- E não está errado.

Como a razão não funcionava, empregou seu peso, situando-se sobre ela enquanto lhe imobilizava os pulsos. Althea esforçou-se duas vezes, depois ficou quieta. Ambos sabiam que só ganhavam tempo até encontrar o momento propício para lançar outro ataque.

- Escuta – concedeu outro momento para recuperar o ar, depois lhe falou diretamente ao ouvido-. Era a opção mais lógica.

- É uma merda.

- Deixa que eu explicar. Se depois estiver em desacordo, ganhará quem derrube ao outro duas vezes em três chances. De acordo? –quando não obteve resposta, Colt apertou os dentes-. Quero que me dê sua palavra de que não me dará um murro até que termine.

- Está certo–aceitou de má vontade.

Com cautela, Colt se ergueu até poder ver o rosto dela. Estava se levantando quando ela subiu o joelho para golpeá-lo com força na virilha.

Ele não teve ar para amaldiçoá-la enquanto se colocava em posição fetal.

- Não foi um murro –assinalou Altea. Levou certo tempo para alisar-se o cabelo e sacudir a jaqueta antes de levantar-se-. Muito bem, Nightshade, agora você pode falar.

Ele levantou uma mão, emitiu uns sons abafados e esperou que as estrelas desaparecessem de seus olhos.

- Pode ter posto em perigo nossa descendência, Thea –ficou de joelhos como pôde e respirou com dificuldade -. Você não briga limpo.

- É a única maneira de brigar. Fale.

Ao recuperar as forças, lançou um olhar assassino.

- Devo uma a você. E grande. Não estamos feridos –soltou-. Ao menos eu não estava até que você me atacou. O aparelho está ileso. Se der uma olhada ao redor, verá que não há espaço para que outro avião aterrisse com segurança. Poderiam enviar um helicóptero e nos resgatar com um cabo, mas, para que? As possibilidades são que, se realizo uns ajustes menores, podemos sair de aqui.

“Talvez faça sentido”, pensou Althea. Mas não era uma coisa simples.

- Deveria ter falado comigo. Eu também estou aqui, Nightshade. Não tinha direito de tomar essa decisão sozinho.

- Foi meu erro – voltou e regressou coxeando à escada-. Supus que era uma pessoa lógica e que, sendo servidora pública, não queria ver outros servidores públicos se dedicarem a um resgate desnecessário. Ademais, maldita seja, Liz poderia estar por trás daquela montanha –com um movimento violento, sacou uma ferramenta da caixa-. Não penso voltar sem ela.

“Oh, tinha que apertar essa tecla”, pensou ela ao voltar-se para observar o verde profundo do bosque próximo. Tinha que deixar de ouvir a preocupação em sua voz, ver o fogo em seus olhos.

-Tem toda a razão.

O orgulho era a pílula que pior se engolia. Fez o esforço, regressou e se situou junto à escada.

- Eu sinto muito. Não deveria ter perdido as estribeiras –a resposta dele foi um rosnado-. Está doendo ainda?

Então Colt a olhou com um brilho nos olhos que teria feito babar a mulheres menos decididas.

- Só quando respiro.

Althea sorriu e apalpou a perna dele.

- Tenta pensar em outra coisa. Quer que eu passe as ferramentas ou ajude em algo?

-Conheces a diferença entre um trinquete e uma chave inglesa? –perguntou com os olhos duas fendas azuis.

- Não - jogou o cabelo para trás-. Por que teria que o saber? Um mecânico muito competente se ocupa de meu carro.

- E se ocorre uma avaria na estrada?

- E quanto à ajuda humana?

- Se eu me contentasse com isso, me chamariam de sexista –apertou os dentes e se concentrou no carburador.

Ela sorriu a suas costas, mas quando falou o fez em voz séria.

- Há café instantâneo na despensa? –continuou-. Prepararei um pouco.

- Não é prudente usar a bateria – sussurrou-. Nos conformaremos com refrigerantes.

- Bem.

Quanto Althea regressou vinte minutos mais tarde, Colt amaldiçoava o motor.

- Teremos que fuzilar esse amigo de Boyd, por descuidar de um avião.

- Vai conseguir arrumá-lo ou não?

- Sim, vou arrumá-lo –afirmou enquanto se esforçava por afrouxar um parafuso-. Mas vou demorar algo mais do que esperava –preparado para algum comentário mordaz, olhou-a. Ela simplesmente esperou com paciência-. O que é isso? –indicou o que tinha na mão.

- Creio que se chama sanduíche – levantou o pão e o queijo para que os vistoriasse-. Não é grande coisa, mas pensei que estaria faminto.

- Está certa –o gesto o aplacou um pouco. Levantou as mãos e lhe mostrou os dedos cheios de graxa-. Estou um pouco incapacitado para comê-lo.

- Ok. Agacha –quando obedeceu, levou-lhe o pão à boca. Observaram-se enquanto Colt mordia.

- Obrigado.

- De nada. Encontrei uma cerveja –sacou uma garrafa do bolso-. Vamos dividi-la –a levou aos lábios dele.

- Agora sei que te amo.

- Come – deu um pouco mais de sanduíche-. Tem idéia de quanto demoraremos em voltar a voar?

- Sim –mas antes de revelar se certificou de que lhe desse sua parte completa do sanduíche e da cerveja-. Uma hora, talvez duas.

- Duas horas? –piscou.- Então nós ficaremos sem luz. Não está pensando em voar no escuro, verdade?

- Não –ainda que estivesse preparado para um ataque surpresa, voltou a concentrar-se no motor-. Será mais seguro esperar até amanhã.

- Até amanhã –repetiu com a vista fincada em suas costas-. O que se supõe que vamos fazer até a manhã?

- Para começar, montar uma barraca. Há uma na cabine, na parte de cima. Suponho que Frank gosta de acampar com suas amigas.

- Isso é estupendo. Estupendo. Esta me dizendo que vamos ter que dormir aqui?

- Poderíamos fazê-lo no avião –assinalou-. Mas não seria tão cômodo nem tão seguro como numa barraca na companhia do fogo –começou a assobiar enquanto trabalhava. Tinha dito que devia uma. Mas não tinha imaginado que poderia pagar tão cedo ou tão bem-. Suponho que não sabe como acender uma fogueira.

- Não, não sei.

- Nunca foi exploradora?

- Não –bufou-. E você?

- Não posso dizer que fui… mas tinha alguns amigos que sim. Bem, vá recolher alguns ramos, querida. Depois ensinarei como se faz.

- Não penso em recolher ramos.

- Muito bem, mas fará frio quando o sol se por. O fogo mantém o frio, e outras coisas, longe.

- Não vou… -calou e olhou incômoda ao redor-. Que outras coisas?

- Oh, já sabe. Veados, alces… pumas…

- Pumas - levou a mão automaticamente à pistoleira-. Não há pumas por aqui.

Ele alçou a cabeça e olhou ao redor pensativo.

- Bem, talvez ainda não seja a temporada. Mas começam a baixar das montanhas ao chegar o inverno. Pode deixar, se quer esperar até que termine aqui, eu o farei. Mas então, talvez tenha escurecido.

Althea estava certa de que ele fazia de propósito. No entanto… olhou outra vez ao redor, em direção ao bosque, onde as sombras se alongavam.

- Trarei a maldita lenha –sussurrou, e se dirigiu para as árvores depois de ter comprovado sua arma.

Ele a observou com um sorriso.

- Vamos ficar muito bem aqui –ele disse a si mesmo-. Muito bem.

Seguindo as instruções de Colt, conseguiu iniciar um fogo respeitável dentro de um círculo de pedras. Não gostou, mas o fez. Depois, devido a afirmação dele em estar concentrado nos toques finais do motor, se viu obrigada a montar a barraca.

Era uma barraca leve que segundo Colt se levantava praticamente sozinha. Depois de vinte minutos de esforços e imprecações, conseguiu. Um estudo detalhado indicou que abrigaria os dois… desde que dormissem colados um ao outro.

Ainda seguia olhando a barraca, sem prestar atenção ao frio do crepúsculo, quando ouviu que o motor retornava a vida.

- Como novo –gritou, e depois o desligou-. Tenho que me limpar– informou. Saltou da cabine com uma jarra de água. Usou-a com cuidado, junto com uma lata de removedor de graxa da caixa de ferramentas-. Bom trabalho –comentou, olhando a barraca.

- Obrigada.

- Há cobertores no avião. Nos ajeitaremos - respirou fundo, cheirando a fumaça, o pinheiro e o ar puro-. Não há nada como acampar entre as montanhas.

- Terei que aceitar sua palavra –ela meteu as mãos nos bolsos.

Colt terminou de limpar-se com o trapo antes de se levantar.

- Não me diga que jamais acampou.

- Concordo, não direi.

- Como são suas férias?

- Vou a um hotel –indicou com as sobrancelhas arqueadas-. Onde há serviço de quarto, água quente e tv por cabo.

- Não sabe o que perde.

- Suponho que estou a ponto de averiguar –tremeu uma vez e suspirou-. Não me viria mal um vinho.

Junto ao vinho,deram-se um banquete de queijo, caviar e torradas salgadas untadas com um delicado patê.

Althea chegou à conclusão de que poderia ter sido pior.

- Nunca comi assim num acampamento –comentou Colt ao pôr mais caviar sobre uma torrada-. Pensei que ia ter que sair e matar um coelho.

- Por favor, não diga isso enquanto como –bebeu mais vinho e se sentiu estranhamente descontraída. Era verdade que o fogo ajudava a manter o frio a risca. E encantava ver como crepitava. No céu, inumeráveis estrelas piscavam, apunhalando o céu negro e sem nuvens. Uma lua crescente enchia de prata as árvores e projetava seu resplendor sobre os cumes nevados que os rodeavam. Já tinha deixando de sobressaltar-se cada vez que um lobo uivava.

- Lugar bonito –Colt acendeu um cigarro-. Nunca antes tinha passado muito tempo por aqui.

Althea também não, fazia doze anos que não saia de Denver.

- Gosto da cidade –sussurrou, mais para si mesma do que para ele. Escolheu um ramo para avivar o fogo.

- Por que?

- Suponho porque esta cheia. Porque pode encontrar qualquer coisa que queira. E porque ali me sinto útil.

- E para você isso é importante.

- Sim, é.

- Foi difícil seu passado –comentou enquanto via como as chamas ressaltavam os olhos de Althea e suavizava sua pele.

- É algo que ficou para trás –quando Colt tomou a mão dela, não resistiu, nem respondeu-. Não quero falar disso –afirmou-. Nunca.

- De acordo –podia esperar-. Falaremos de outra coisa – levou a mão aos lábios e sentiu uma leve resposta no modo em que ela flexionou os dedos-. Acho que nunca contou histórias em torno de uma fogueira.

- Suponho que não –não sorriu.

- Provavelmente poderia me ocorrer uma… para passar o tempo. Mentira ou verdade?

Althea se colocou a rir, mas no ato se pôs de pé de um salto, engatilhando a pistola. A reação de Colt foi como um relâmpago. No mesmo instante ficou a seu lado, afastando-a, com a arma na mão depois de tê-la sacado da bota.

- O que? –demandou, com os olhos entrecerrados, escrutinando a escuridão.

- Ouviu isso? Há algo aí fora.

Prestou atenção, enquanto instintivamente se movia para proteger as costas. Depois de um momento de vibrante silêncio, ouviu um leve rugido, depois o uivo longínquo de um coiote. O uivo fez que o sangue de Althea gelasse.

Colt soltou um praga, mas ao menos não riu.

- Animais –explicou, agachando-se para guardar o arma.

- De que tipo? –seus olhos não deixaram de estudar o perímetro com cautela.

- Pequenos –assegurou-. coelhos –apoiou uma mão sobre os dedos dela, que seguiam sustentando a pistola-. Nada a que esburacar, franco atiradora.

Ela não se convenceu. O coiote voltou a emitir seu uivo e obteve a resposta de um uivo.

- E que me dizes dos pumas?

Foi responder, pensou melhor e se conteve.

- Vamos, querida, não é provável que cheguem muito perto do fogo.

- Talvez devêssemos avivar o fogo –com o cenho franzido, guardou a pistola.

- Já é bem grande –a voltou para ele e passou as mãos pelos braços-. Acredito que jamais vi você tão assustada.

- Não gosto de ficar exposta, existem muitas coisas por aqui e a verdade é que preferia enfrentar um ianque pendurado num beco escuro que a uma criatura pequena e peluda com caninos. Não ria, maldito seja!

- Sorrir –passou a língua pelos dentes e se esforçou por manter-se sério-. Parece que vai ter que confiar em mim para sair disso.

- Oh, verdade?

A apertou com mais força quando ela ameaçou afastar-se. A expressão de seus olhos mudou com tanta velocidade, de divertida a cheia de desejo, que ela ficou sem fôlego.

- Só estamos você e eu, Althea.

- É o que parece –soltou o ar devagar.

- Creio que não é necessário que volte a dizer o que sinto por você. Nem o muito que desejo você.

- Não –a invadiu a tensão ao sentir os lábios de Colt na têmpora. E a atravessou um calor aterrorizador.

- Posso fazer que esqueça onde está –baixou os lábios até a mandíbula-. Se me deixar.

- Teria que ser muito bom para isso.

Colt riu.

- Falta muito para manhã. Aposto que posso convencer você antes de que amanheça.

Não sabia por que resistia a algo que queria com tanto afinco. Não tinha dito, faz tempo, que nunca voltaria a deixar que o medo dominasse seus desejos? E não tinha aprendido a saciar esses desejos sem sentir-se culpada?

Podia fazê-lo nesse momento, com ele, e apagar esse demolidor anseio.

- De acordo, Nightshade –com atrevimento rodeou o pescoço com os braços e o olhou aos olhos-. Aceito a aposta.

A mão dele se cerrou sobre seu cabelo e jogou a cabeça para trás. Durante um momento longo e palpitante, olharam-se. Depois a pegou.

A boca de Althea era ardente e tinha gosto de mel, tão exigente como a fome, tão selvagem como a noite. Aprofundou o beijo, utilizando a língua e os dentes, sabendo que podia dar-se um banquete que jamais o saciaria. Então tomou mais, atacando sua boca de maneira implacável enquanto ela respondia com igual fervor.

Mareada, Althea compreendeu que era como a primeira vez que a tinha arrastado a ele e tinha feito provar o que podia oferecer. Como uma droga fatal, o sabor acelerou seu pulso e bombeou o sangue com tanta velocidade que a mente se afastou da razão.

Perguntou-se como tinha esperado sair ilesa. E depois esquecer o que importava.

Já não queria estar certa, nem controlar a situação. Nesse momento, com ele, só queria sentir, experimentar tudo o que uma vez parecia impossível, ou pouco inteligente. E se com isso tinha que sacrificar a sobrevivência, que assim fosse.

Impulsionada pela cobiça, começou a tirar a camisa dele, desesperada por sentir aquele corpo duro e sólido. Ele não tinha que ser mais forte que ela, mas ele era, aceitaria a vulnerabilidade que implicava ser mulher. E o poder que a acompanhava.

Era como um vulcão a ponto de estourar e quando surgissem os tremores só queria estar unida a Colt.

Cobertura a cobertura, estava arrancando a sensatez. Esses lábios selvagens, essas mãos febris. Com um juramento mais parecido a uma prece, levou-a quase à força para a barraca, sentindo-se como um caçador primitivo que agarrava a sua companheira eleita no interior de uma gruta.

Caíram juntos no refúgio, uma emaranhada de braços, pernas e necessidades. Tirou a jaqueta dela, lutando por respirar enquanto com cobiça enchia de beijos o pescoço.

Sentiu a vibração do gemido de Althea sobre os lábios enquanto lutava com a cartucheira, deixando de lado o símbolo de domínio e violência, sabendo que começava a perder o controle, esmagado por uma torrente de sentimentos que não era capaz de suprimir.

Queria-a nua. Tensa e a ponto de gritar.

A respiração dela saía entrecortada enquanto lhe tirava a roupa. A fogueira brilhava com uma luz alaranjada através do tênue material da barraca, o que lhe permitia ver o propósito escuro e perigoso nos olhos dele. Encantou-lhe, extasiada no pânico que sacudiu seu corpo ali onde o tocava e possuía. Sabia que essa noite a tomaria. E seria tomado.

Contendo-se, Colt tirou a malha pela cabeça e o atirou de lado. Embaixo ela usava um sutiã, uma delicada renda banca que em outro lugar, num momento de maior sensatez, o teria excitado por sua manifesta feminilidade. Poderia ter brincado com as tiras, deslizado os dedos sobre os sutis elásticos. Mas nesse instante o arrancou com um movimento brusco para liberar os seios para sua boca faminta.

O sabor dessa pele cálida e aromática o agitou vigoroso como um golpe. E a reação dela, a forma adorável em que arqueou o corpo contra o seu, o prolongado e rouco gemido que emitiu, o rápido e desvalido arrepio que sentiu, impulsionaram-no a um cume de prazer com a que jamais tinha sonhado.

Deu-se um banquete.

Um gemido ficou atracado na garganta de Althea. Fincou as unhas nos ombros nus dele, com o desejo de incitá-lo a continuar, aterrorizada ao pensar para onde a conduzia. Agarrou-se a Colt na procura de equilíbrio, moveu-se embaixo em sinuoso convite, arqueando-se uma vez mais quando tirou as calças, baixando esses dedos tão hábeis por suas coxas.

O triângulo de tecido que a protegia se rasgou. Uma vez mais se banqueteou.

O grito aturdido da libertação dela percorreu as veias de Colt. Althea explodiu como um foguete. Mas chegado o momento do auge, não lhe deu respiro. Ela se agarrou ao cobertor enquanto a sacudia com sensações carentes de nome ou forma.

Ao posicionar-se sobre ela, com músculos trêmulos, seus olhos abertos se encontraram. Colt observou seu rosto, encheu-se com sua imagem enquanto se enterrava em seu interior com uma investida desesperada. Os olhos dela se puseram vidrados, fecharam-se. A própria visão dele se nublou antes de afundar o rosto em seu cabelo.

Seu corpo dominou a situação e se acoplou ao ritmo veloz e furioso dos quadris de Althea. Cavalgaram como meninos furiosos e cobiçosos de uma fruta proibida. O grito final de escuro prazer que emitiu, ela soltou no ar segundos antes do de Colt.

Ausente de forças derrubou-se sobre ela e suspirou ao senti-la tremer.

- Quem ganhou? –conseguiu perguntar passado um momento.

A Althea não tinha parecido possível poder rir num momento semelhante, mas um riso subiu por sua garganta.

- Digamos que foi um empate.

- Me basta –pensou em levantar seu corpo, mas temia que se quebrasse com o movimento-. Mais do que suficiente. Vou beijá-la num minuto –murmurou-, primeiro tenho que reconstituir minhas forças.

- Posso esperar –deixou que seus olhos voltassem a fechar-se e desfrutou da proximidade. O corpo dele seguia irradiando calor e o coração estava sereno. Acariciou-lhe as costas pelo simples prazer do contato, mas franziu um pouco o cenho quando seus dedos encontraram uma cicatriz-. O que é isto?

- Mmm? –moveu-se, surpreso ao descobrir que tinha estado a ponto de dormir sobre ela-. Tormenta do deserto.

Em nenhum momento pensou que tinha chegado a participar naquela guerra. De repente ocorreu que tinha muitas coisas dele ainda ocultas.

- Achava que tinha se retirado antes.

- E assim foi. Aceitei fazer um pequeno trabalho… algo colateral.

- Um favor.

- Poderia chamá-lo assim. Alguém soltou uma carga de metralhadoras em mim… nada de que se preocupar –virou a cabeça-. Tem belos ombros. Já tinha lhe dito?

- Não. Continua fazendo favores para o governo?

- Só se me pedem com amabilidade –grunhiu, girando para poder colocá-la em cima dele-. Melhor?

- Mmm… -apoiou a face em seu peito-. Ainda acho que podemos congelar.

- Não se nos mantermos ativos –sorriu quando ela levantou a cabeça para olhá-lo-. Métodos de sobrevivência, tenente.

- Com certeza –sorriu-. Tenho de reconhecer, Nightshade, que gosto de seus métodos.

- Sim? –com suavidade passou os dedos pelo cabelo.

- Sim. Quando temos que adicionar madeira ao fogo?

- Oh, ainda temos algum tempo.

- Então não deveríamos perder o tempo, não é? –sem deixar de sorrir, baixou a boca à sua.

-Sim –sentiu que voltava a enrijecer-se dentro de Althea, preparado para deixar que ela tomasse a iniciativa. Ao beijá-la o invadiu um amor tão intenso que o deixou sem respiração. Abraçou-a com força-. Sei que não é original, Thea, mas nunca tinha sido assim para mim. Com ninguém.

Isso a assustou, e mais do que as palavras foi à sensação de calidez que provocou nela.

- Fala demais.

- Thea…

Mas ela moveu a cabeça e ergueu seu corpo, levando-o ao mais fundo dentro dela, provocando-o para que a necessidade de palavras se desvanecesse.

 

Colt acordou no ato. Um velho costume. Assimilou em meio… a luz pálida do amanhecer que entrava na barraca, o cobertor áspero e o solo duro sob as costas, e a mulher esbelta e suave aconchegada sobre ele. Fez que sorrisse, recordando a forma com que tinham se acomodado durante a noite, procurando um lugar mais cômodo do que o solo do vale.

O sol trazia as lembranças do mundo exterior e dos deveres que tinham nele. Não obstante, tomou-se um momento para desfrutar da preguiçosa intimidade e para imaginar outros momentos, outros lugares, onde voltariam a ser só eles dois.

Com gentileza, tampou-lhe o ombro nu com o cobertor e deixou que seus dedos acariciassem o cabelo. Ela se moveu, abriu os olhos e os fincou nele.

- Bons reflexos, tenente.

Althea deixou que sua mente e seu corpo se adaptassem à situação.

- Suponho que chegou a manhã.

- Sim. Dormiu bem?

- Já dormir melhor–cada músculo do corpo doía, ainda que achasse que um par de aspirinas e um pouco de exercício o solucionariam-. E você?

- Como um bebê. Alguns estão acostumados a terrenos duros.

Ela arqueou uma sobrancelha e se afastou.

- Alguns querem café –quando abandonou a calidez de Colt, o frio arrepiou a pele. Tremendo, alongou a mão em procura da malha.

- Eh –antes de que pudesse pôr, a tomou pela a cintura e a puxou para si-. Esqueceu de uma coisa –deslizou a mão por suas costas para aproximar-lhe a cabeça e poder beijá-la.

O corpo de Althea adquiriu uma fluidez doce e ela separou os lábios em convite. Sentiu que se derretia nele, maravilhada. Durante a noite tinham tido juntos os orgasmos, uma e outra vez, como relâmpagos, com reflexos de cobiça. Mas isso foi mais suave, mais forte, com uma vela que permanece acesa muito depois de que um fogo violento se tenha apagado.

- É agradável acordar com você, Althea.

Quis agarrar-se a ele como se fosse a vida. Mas o que fez foi passar um dedo por sua barba de um dia.

- Você não está tão mau, Nightshade.

Afastou-se com rapidez talvez, para dar-se tempo e espaço. Como ele começava a compreendê-la muito bem, sorriu.

- Sabe? Quando nos casarmos, teremos que comprar uma dessas camas gigantes, para dispor de espaço suficiente para dar voltas e nos agarrar.

Althea pôs a malha. Quando sacou a cabeça pelo pescoço, seus olhos estavam serenos.

- Quem prepara o café?

- É algo que teremos que decidir –assentiu pensativo-. Manter esses pequenos costumes ajuda um casal a se dar bem.

Ela conteve uma gargalhada e recolheu as calças.

- Me deve um conjunto de lingerie.

Observou-a pôr por suas pernas longas e suaves.

- Comprar será um prazer – pôs a camisa enquanto ela procurava as meias -. Querida, tenho pensado. –recebeu um rosnado enquanto se calçava-. O que você acha se nos casamos no réveillon? É romântico compartilhar o ano novo como marido e mulher.

- Eu prepararei o maldito café – devolveu ela, saindo as pressas da barraca.

Colt deu uma palmada no traseiro e riu entre dentes. Althea começava a mudar. O que acontecia, era que ela ainda não sabia.

 

Quando ela conseguiu voltar a acender o fogo, já tinha tido mais do que suficiente da vida ao ar livre. Enquanto remexia entre o pequeno fornecimento de suprimentos que tinha encontrado no avião, reconheceu que talvez a Montanha fossem bonita, talvez magnífica, com seus cumes irregulares e nevascas e os densos bosques. Mas também era fria, dura e deserta.

Tinham uns amendoins diante de si e nem um restaurante à vista.

Impaciente demais para esperar até que fervesse, retirou a água quando esteve quente ao contato, depois verteu uma quantidade generosa de café instantâneo. O aroma bastou para fazê-la babar.

- Essa sim que é uma visão bonita –Colt a observou no exterior da barraca-. Uma mulher preciosa inclinada sobre uma fogueira.

- Deixe-me, Nightshade.

- Irritada antes do café, meu bem? – chegou perto dela sorrindo.

Althea afastou a mão que ele tinha posto em seu cabelo. Voltava a enfeitiçá-la, e isso tinha que se acabar.

- Aqui tem o café da manhã –empurrou a lata de amendoins-. Pode servir seu café.

Obediente, agachou-se e verteu o conteúdo em duas xícaras de latão.

- Bonito dia –comentou-. Pouco vento, boa visibilidade.

- Sim, estupendo –aceitou a xícara que ofereceu-. Deus, mataria por uma escova de dentes.

- Nisso não posso ajudar–provou o café e fez uma careta. Decidiu que era barro, mas ao menos daria energia-. Não se preocupe, regressaremos cedo à civilização. Poderá escovar os dentes, tomar um banho de água quente e ir à cabeleireira –ela deixou a xícara ao lado, remexeu na bolsa e encontrou a escova para o cabelo; sentou-se no solo com as pernas cruzadas e com as costas para Colt se pôs a escovar os cabelos-. Deixa-me fazer –se sentou por trás dela e a acomodou entre as pernas.

- Posso fazê-lo eu.

- Sim, mas com essa energia vai ficar calva –depois de um leve toque de força, tirou a escova dela-. Deveria ter mais cuidado –com delicadeza, começou a desembaraçar os cabelos-. É o cabelo mais bonito que já vi. De perto, posso ver mil tonalidades de vermelho e ouro.

- Só é cabelo –mas se Althea tinha um ponto de vaidade, Colt o acariciava nesse momento. E era maravilhoso. Não pôde resistir suspirar. Podiam estar no meio de nenhuma parte, mas durante um instante sentiu como se achasse imersa em pleno luxo.

- Quando voltarmos a Denver, quero que me lembre onde estávamos.

- Pode deixar –com certo pesar, afastou-se-. Será melhor… como chama? levantar o acampamento? A propósito –adicionou com um encolhimento de ombros-. Me deve mais do que roupa íntima nova… me deve um café da manhã.

- Põe na minha conta.

 

Vinte minutos mais tarde, estavam sentados na cabine com os cintos de segurança presos. Colt comprovou os medidores enquanto Althea passava blush pela cara.

- Não vamos a uma festa –comentou.

- É possível que não possa escovar os dentes –disse, levando-se à boca um caramelo que tinha encontrado na bolsa-. Pode ser que não disponha de um chuveiro. Mas não preciso esquecer do resto.

- Gosto das suas bochechas quando estão pálidas – ligou os motores-. Dão um aspecto frágil.

Depois de olhá-lo um momento, pôs mais blush.

- Voa, Nightshade.

- Sim, senhor, tenente.

Não considerou apropriado informá-la de que seria um despegue complicado. Enquanto ela se ocupava em trançar o cabelo, situou o avião em posição para avançar. Depois de levar um dedo à medalha que pendurava de seu pescoço, começou a avançar.

Experimentaram tombos, botes e chacoalhadas e ao final se elevaram. Colt lutou contra as correntes cruzadas de ar baixando uma asa, nivelando-se, alçando o bico. Ao final deixaram atrás o vale e voaram acima das copas das árvores.

- Não foi tão mau, Nightshade – jogou a trança às costas.

Ele a olhou e viu o conhecimento em seus olhos. Tinha as mãos firmes, mas sabia que seria complicado.

- Boyd tinha razão, Althea. É uma parceira estupenda.

- Tenta manter essa coisa quieta uns minutos? –sorriu e aproximou o espelho dos olhos para ocupar-se das pestanas.- E bem, qual é o plano?

- O mesmo de ontem. Circundaremos esta zona. Procuraremos choupanas. A que queremos tem um acesso restrito.

- Sem dúvida isso estreita nossas possibilidades.

- Fique quieta. Também se trata de uma choupana de dois andares com uma sacada que a circunda e três janelas na parte dianteira, de cara ao oeste. O sol se punha numa das cenas do vídeo –explicou-. Segundo a informação que temos, há um lago em alguma parte perto. Também viu pinheiros e pinheiros, o que nos brinda elevação. A choupana tinha uns troncos pintados de branco. Não pode ser tão difícil.

Talvez tivesse razão nisso, mas Althea estava segura de que era necessário dizer algo mais.

- Pode ser que não esteja ali, Colt.

- Vamos averiguar – virou o avião para pôr rumo ao oeste.

- Me diga, que posto tinhas nas Forças Aéreas? –perguntou com afã de mudar de tema e distrair sua preocupação.

- Major –esboçou um sorriso-. Parece que supero você em graduação.

- Está aposentado – lembrou-. Aposto que o uniforme ficava bem em você.

- Não me importaria ver você vestida de azul. Olhe.

Seguiu a direção que assinalava e avistou uma choupana. Era uma estrutura de três plantas de madeira de secuoya. Notou outras duas, separadas entre se por uma fileira de árvores.

- Nenhuma encaixa.

- Não –conveio-. Mas a encontraremos.

Continuaram a busca, Althea com um binóculo. Algumas choupanas que viram pareciam desocupadas e de outras saía fumaça pela chaminé, com veículos estacionados no exterior.

Numa ocasião viu um homem com camisa vermelha partindo lenha. Em outra divisou um grupo de alces pastando numa pradaria gelada.

- Não há nada –comentou ao final –ao menos que queiramos gravar um documentário sobre… Espera –um reflexo branco captou sua atenção, depois o perdeu- DÊ a volta.–seguiu observando entre as colinas nevadas.

E ali estava, dois andares, troncos pintados de branco, três janelas que davam ao oeste, a sacada. Ao final do caminho de acesso tinha um furgão. E pela chaminé saía fumaça.

- Poderia ser essa.

- Aposto a que é –voou em círculo uma vez e depois se desviou.

- Aceito a aposta –desenganchou o microfone do rádio-. Dá-me a posição. Chamarei para pedir uma equipe de vigilância a fim de que possamos voltar a solicitar uma ordem de registro.

- Adiante, chama –lhe deu as coordenadas. - Mas não penso esperar até que consigamos um papel.

- Que demônios acredita que pode fazer?

- Penso aterrissar e entrar –a olhou por um momento.

- Não –afirmou-, não o fará.

- Se faz o que se deve –se dirigiu para o prado onde Althea tinha visto pastar aos alces-. Há uma grande possibilidade de que esteja ali. Não vou deixá-la.

- Que vai fazer? –quis saber, incomodada demais para fixar-se na perigosa descida-. Entrar com a pistola em punhos? Só se ver isso em filmes, Nightshade. Não só é ilegal, e ainda põe a refém em perigo.

- Tem uma idéia melhor? –preparou-se para a aterrissagem. Iam patinar quanto às rodas posassem no solo. Esperou que não voltassem.

- Virão agentes com equipe de vigilância. Averiguaremos quem é o proprietário da choupana e conseguiremos uma ordem.

- Para depois entrar? Não, obrigada. Disse que sabia esquiar, verdade?

- O que?

- Está a ponto de fazê-lo num avião. Segure-se.

Althea girou a cabeça e ficou boquiaberta ao ver que a gelada pradaria estava cada vez mais próxima deles. Teve tempo de soltar uma praga, mas depois ficou sem ar ante a força do impacto.

Aterrissaram e patinaram. A neve se levantou de ambos lados do aparelho, salpicando as janelas. Ela observou quase com resignação enquanto avançavam para um arvoredo. Então o avião girou por duas vezes antes de parar com brusquidão.

-Maníaco! –respirou fundo várias vezes, lutando contra o pior de seu mal humor, já que, quando o matasse, queria fazê-lo bem.

- Numa ocasião aterrissei nas Aleutianas, sem rodar. Foi muito pior do que isto.

- E que demonstra? –exigiu.

- Que ainda sou um magnífico piloto?

- Cresce de uma maldita vez! –gritou-. Não estamos na terra da fantasia. Estamos perto de supostos seqüestradores e assassinos, e o mais possível é que em meio se encontre presa uma jovem inocente. Vamos fazer isto bem, Nightshade.

Com um gesto, soltou-se o cinto e tomou as duas mãos dela pelos pulsos.

- Escuta-me você. Sei o que é real, Althea. Vi suficiente realidade em minha vida e conheço a sua crueldade. Conheço essa garota. Tive-a em meus braços quando era bebê e não penso deixar que sua vida dependa da burocracia e os procedimentos.

- Colt…

- Esqueça – soltou as mãos e se jogou para trás.- não vou solicitar sua ajuda, porque tento respeitar as idéias que tem sobre as regras e os regulamentos. Mas irei procurá-la, Thea, e o farei agora.

- Espera –levantou uma mão e a passou pelo cabelo-. Deixa-me pensar um minuto.

- Pensa demais –mas quando tentou levantar-se, plantou-lhe um punho no peito.

- Disse que esperasse –jogou a cabeça para trás, cerro os olhos e o meditou-. A que distância se encontra a choupana? –perguntou passado um momento-. A uns oitocentos metros?

- Um quilômetro ou algo mais.

- Os caminhos que conduziam até ali estavam limpos de neve.

- Sim –o dominou a impaciência-. E?

- É melhor do que ficar preso na neve. Mas uma avaria bastará.

- De que está falando?

- Falo de trabalhar juntos –abriu os olhos e o imobilizou com o olhar-. Você não gosta da minha forma de trabalhar e a e eu não gosto da sua. Assim que vamos ter que encontrar um ponto intermediário. Vou chamar à polícia local para que nos apóie e pedirei que se coloquem em contato com Boyd, para ver se ele pode iniciar a burocracia.

- Você disse…

- Não importa o que eu falei antes –cortou com calma-.Faremos assim. Não podemos entrar assim na choupana. Primeiro, talvez seja a choupana errada. Segundo –voltou a interrompê-lo antes de pudesse falar-, porá Liz num perigo maior se está ali. E terceiro, sem uma causa provável, sem um procedimento adequado, esses canalhas poderiam ficar livres, e os quero encerrados. E agora escuta…

Colt não gostou. Pouco importava o lógico que fosse ou que se tratasse de um bom plano. Mas durante o longo trajeto até a choupana, Althea rebateu com lógica serena e singela os argumentos que propôs ele.

Fazia questão de entrar.

- O que faz você pensar que eles nos deixarão entrar somente atendendo ao nosso pedido?

Olhou-o com a cabeça inclinada.

- Não desperdicei nenhum com você, Nightshade, mas disponho de muito encanto. O que acha que faria a maioria dos homens ao ver uma mulher desvalida que pede ajuda porque está perdida, tem o carro quebrado e… -tremeu e converteu sua voz num ronronado-… e faz tanto frio fora?

- E se eles se oferecem para levar você até o carro para arrumá-lo? –perguntou depois de soltar um juramento.

- Pois estarei profundamente agradecida. E os distrairei o tempo suficiente para fazer o que tenha que fazer.

- E se mostram-se desagradáveis?

- Então você e eu teremos que chutar algumas bundas, não?

- Continuo pensando que deveria acompanhar você.

- Não vão ser simpáticos com uma mulherzinha se ela for acompanhada de um homem grande e forte –replicou com sarcasmo no ar frio-. Com um pouco de sorte, os agentes locais terão chego antes que possa acontecer alguma coisa –calou e calculou a distância-. Estamos bastante perto. Talvez um deles tenha saído para dar um passeio. Não é bom nos ver juntos.

Colt meteu as mãos nos bolsos e se obrigou a relaxar. Althea tinha razão… e alem disso era boa. Ele pegou ela pelos ombros e a abraçou.

- Vá com cuidado, tenente.

- O mesmo digo –e deu um beijo apaixonado.

Girou e se afastou com passos longos. Colt quis dizer que parasse, que a amava. Mas deu a volta para a parte de atrás da choupana. Não era o momento para declarações amorosas. As reservaria para depois.

 

Desterrou tudo de sua mente e correu pela neve endurecida, mantendo-se agachado durante todo o momento.

Althea avançou a toda velocidade. Queria estar ofegante e com os olhos umedecidos ao chegar à choupana. Quando teve as janelas à vista, empreendeu uma caminhada lenta, imitando alívio. Praticamente se deixou cair sobre a porta.

Reconheceu Kline quanto ele abriu a porta. Usava uma calça cinza de chándal e tinha os olhos entrecerrados devido à fumaça que se elevava do cigarro que apertava na comissura dos lábios. Cheirava a fumo e a whisky.

- Oh, graças a Deus! –apoiou-se no marco da porta-. Graças a Deus! Temia não encontrar ninguém. Acho que estou caminhando a uma eternidade.

Kline a estudou. Pensou que era um bombom muito doce, mas não gostava de surpresas.

- Que quer?

- Meu carro… - levou uma mão trêmula ao coração-. Quebrou… deve de estar a um quilômetro daqui, no mínimo. Vinha visitar a uns amigos. Não sei, mas talvez me meti no desvio errado –tremeu e se jogou mais na entrada-. Posso entrar? Tenho muito frio.

- Não há ninguém por aqui, nenhuma outra choupana.

- Sabia que tinha tomado a saída errada –fechou os olhos-. Passado um tempo tudo começa a ser igual. Saí de Englewood antes que amanhecesse… estou começando as minhas férias –o olhou com os olhos muito abertos e conseguiu esboçar um sorriso débil-. Me deixa usar o telefone, para informar aos meus amigos para virem me procurar?

- Talvez –decidiu que era inofensiva. E um prazer para a vista.

- Oh, um fogo… -com seu gemido de alívio, Althea se lançou para a chaminé-. Não imaginei que pudesse ser tão frio –enquanto esfregava as mãos, sorriu-lhe acima do ombro-. Não sabe como agradeço por ajudar-me.

- Não é nada – tirou o cigarro da boca-. Não há muita gente por aqui.

- Não me estranha –olhou pela janela. - Mas é lindo. Suponho que se estivesse acalentada junto ao fogo com uma garrafa de vinho, pouco importaria cair uma ou duas nevascas.

- Eu já gostaria de ser acalentado com algo mais do que uma garrafa –Kline sorriu.

Althea piscou e terminou por baixar as pálpebras.

- O Senhor é romântico, senhor…

- Kline. Podes chamar-me de Harry.

- De acordo, Harry. Eu sou Rose –disse, dando seu segundo nome por precaução, pois seu nome poderia ser reconhecido, relacionando-o com o da polícia que tratava com Wild Bill. Ofereceu-lhe a mão-. É um verdadeiro prazer. Acredito que você me salvou a vida.

- Que diabos passa aqui?

Althea levantou a vista para o primeiro andar e viu a um homem alto e delgado com uma mata revolta de cabelo loiro. Reconheceu-o como o segundo ator da película.

- Temos uma convidada inesperada, Donner –informou Kline-. O carro dela quebrou.

- Bem, diabos… Donner piscou para despejar-se a vista e a olhou com atenção-. Está fora de temporada, encanto.

- Estou de férias –respondeu, sorrindo-lhe.

- Não é estupendo? –começou a descer as escadas como um galo num galinheiro-. Por que não prepara uma xícara de café para a dama, Kline?

- Wave já está na cozinha. É seu turno.

- Perfeito –Donner lançou a Althea o que ele considerava um sorriso intimo-. Diga que sirva outra xícara para nossa convidada.

- Por que não vai você…?

- Oh, me encantaria uma xícara de café –interveio Althea, olhando Kline com seus enormes olhos castanhos-. Estou gelada.

- Claro – encolheu os ombros, olhou Donner como um cachorro que adverte a um competidor, e se foi.

Ela se perguntou se teria algum componente mais da organização na choupana ou se estariam só os três.

- Dizia a Harry como a choupana é bonita –entrou no salão e deixou a bolsa na mesa-. Vive o ano todo?

- Não, viemos de vez em quando.

- É bem maior do que parece por fora.

- Cumpre com sua função – se aproximou da cadeira que Althea se sentou-. Talvez agradaria a você ficar aqui e passar suas férias.

Ela riu, sem pôr objeção quando ele passou um dedo pelo cabelo.

- Oh, mas meus amigos me esperam. Alem do mais, são somente duas semanas… -riu com voz rouca e sensual-. Me diga, que fazem para divertir?

- Você se surpreenderia –Donner apoiou uma mão na coxa dela.

- Não me surpreendo com facilidade.

- Afaste-se –Kline regressou com uma xícara de café-. Aqui tem, Rose.

- Obrigado –aspirou o aroma-. Já me sinto menos gelada.

- Por que não tira o casaco? –Donner aproximou-se para retirar o casaco, mas ela se moveu, sem deixar de sorrir.

- Quando esquentar um pouco meu corpo –tinha tomado a precaução de tirar a pistoleira, mas preferia ter mais camuflagem, já que usava pistola nas costas-. São irmãos? –pergunto para emplacar conversa.

- Não –bufou Kline-. Poderia dizer que somos sócios.

- Oh, verdade? Que negócios vocês se dedicam?

- Comunicações –indicou Donner mostrando uns dentes brancos.

- É fascinante. Sem dúvida têm muitos equipamentos –olhou a tela grande de televisor, o vídeo de ultima geração e o equipamento de som-. Encanta-me ver filmes nas noites longas de inferno. Talvez poderíamos reunir-nos alguma vez para… -calou, alertada por um movimento no andar de cima. Levantou o olhar e viu à garota. Tinha o cabelo revolto e uma expressão de infinito cansaço nos olhos. Tinha perdido peso, mas a reconheceu pela foto que Colt havia lhe mostrado-. Oi –saudou com um sorriso.

- Volte para seu quarto –gritou Kline-. Agora.

Liz umedeceu os lábios. Usava jeans gastos e uma malha azul com os punhos desfiados.

- Queria tomar o café da manhã –disse com voz abafada, mas não intimidada.

- Você tomará –Kline observou Althea e ficou satisfeito ao verificar que sua expressão era de amistoso desinteresse-. Agora volta para seu quarto até que eu a chame.

Liz titubeou o tempo suficiente para lançar-lhe um olhar frio. Isso animou Althea. Ainda não a tinham derrotado. Voltou a entrar no quarto e fechou a porta com força.

- Meninos –sussurrou Kline, acendendo outro cigarro.

- Sim –Althea sorriu com simpatia-. É sua irmã?

Kline se engasgou com a fumaça, mas assentiu.

- Sim. Sim, é minha irmã. Queria usar o telefone?

- Oh, sim –deixou a xícara de café e se pôs de pé-. Eu agradeço. Meus amigos começarão a preocupar-se.

- Aqui está –indicou ele-. Adiante.

- Obrigada –mas ao levantar o fone, não tinha tom-. Céus, acredito que não tem linha.

Kline amaldiçoou e chegou perto dela ao mesmo tempo em que sacava uma chave em forma de L do bolso.

- Eu esqueci. Desconectei-o de noite para que a pequena não pudesse usá-lo. Fazia um montão de telefonemas a longa distância. Já sabe como são as garotas.

- Sim, é verdade –sorriu. Ao ouvir o sinal de tom, marcou o número da polícia local-. Fran –disse com alegria, chamando à telefonista pelo nome que tinham lembrado-. Não vai acreditar no que aconteceu. Perdi-me e o carro quebrou. Se não fosse por uns garotos estupendos, não sei que teria feito –riu, com a esperança de que Colt estivesse em ação-. Não, sempre me perco. Espero que Bob venha procurar-me.

 

Enquanto Althea falava no telefone, Colt subiu numa árvore. Com o binóculo tinha visto tudo o que precisava ver através dos amplos janelões. Althea dominava a situação e Liz se achava no segundo andar.

Tinham lembrado que se surgisse a oportunidade, a tiraria da casa. Colt teria preferido um caminho mais direto, para dar-lhes uma lição a esses miseráveis, mas o primeiro era a segurança de Liz. Quando a afastasse dali, regressaria.

Com um rosnado, trepou até o saliente estreito e se jogou na borda da janela. Viu Liz tombada numa cama desfeita; de costas para ele, se colocava numa postura defensiva. Seu primeiro impulso foi quebrar o vidro e saltar para o interior. Por medo de assustá-la e que pudesse gritar, chamou com suavidade.

Ela se moveu. Quando voltou a chamar, girou com cautela, olhando com olhos perdidos para o sol. Então piscou e com lentidão se incorporou na cama. Colt levou um dedo aos lábios para indicar-lhe que ficasse em silêncio. Mas isso não conteve as lágrimas que inundaram os olhos de Liz ao aproximar-se.

- Colt! –sacudiu a janela, depois apoiou a face contra o vidro e seguiu chorando-. Quero ir para casa! Por favor, por favor, quero ir para casa!

Mal conseguia ouvi-la através do vidro. Temendo que suas vozes pudessem ser escutadas, chamou outra vez e aguardou até que Liz girou a cabeça para olhá-lo. -Abre a janela, pequena – moveu os lábios com precisão, mas ela só negou com a cabeça.

- Esta trancada –disse, esfregando-se os punhos contra os olhos-. Trancaram-na.

- Está certo, ok. Olhe, olhe-me –fez sinais com as mãos para captar seu atendimento-. Um travesseiro. Traz um travesseiro.

Um leve reflexo brilhou nos olhos dela. Uma cautelosa volta da esperança. Obedeceu com celeridade.

- Apóia contra o vidro. Mantenha firme e vira a cabeça. Afasta a cabeça, pequena –empregou o cotovelo para romper o vidro, satisfeito de que o travesseiro amortecido quase todo o ruído. Quando afastou fragmentos suficientes para meter o corpo, entrou. Ela se lançou de imediato a seus braços, sem deixar de soluçar. Segurou-a e a acalentou como se fosse um bebê-. Sss… Liz. Tudo vai ficar bem agora, vou levar você para casa.

- Eu sinto. Sinto tanto.

- Não se preocupe. Não se preocupe por nada –se afastou para olhá-la aos olhos. Estava muito magra e pálida. E tinha muitas coisas que perguntar-. Querida, vai ter que ficar assim um pouco mais. Vamos levar você embora daqui, mas temos que nos mover com toda velocidade. Tem um Casaco? Sapatos?

- Eles levaram –moveu a cabeça-. Levaram tudo para que não pudesse fugir. Tentei, Colt, juro que o tentei, mas…

- Está bem –voltou a colar o rosto contra o ombro antes que pudesse dominá-la a histeria-. Não pense nisso agora. Vai fazer exatamente o que te diga. De acordo?

- De acordo. Podemos ir já? Agora mesmo?

- Agora mesmo. Envolveremos você nesse cobertor –o pegou da cama com uma mão e fez o que pôde para abrigá-la-. Agora vamos sofrer uma pequena queda.

Mas se agarra a mim e relaxa, tudo sairá bem –a levou para a janela, com cuidado de proteger-lhe o rosto contra o frio e das pontas irregulares do vidro rompido-. Se quer gritar, faça em sua cabeça, mas não em voz alta. Isso é importante.

- Não gritarei –com o coração acelerado, colou-se ao peito dele-. Por favor, só leva-me a casa. Quero minha mamãe.

- Ela também quer você. E seu pai –não deixou de falar baixinho e tranqüilizadora-. Vamos chamá-los assim que sairmos daqui - rezou e saltou.

Sabia como cair, de um edifício, de umas escadas, de um avião. Sem a menina, singelamente teria rodado. Com ela, girou o corpo para receber a maior parte do impacto sobre suas costas e protegê-la.

Ficou sem ar e se golpeou no ombro, mas se incorporou quanto aterrissaram, com Liz ainda agarrada contra o peito. Correu para o caminho; tinha percorrido a metade do trajeto quando ouviu o primeiro disparo.

 

Althea estendeu a conversa com a telefonista da polícia, detendo-se o tempo suficiente para assimilar a informação de que a equipe de apoio chegaria em dez minutos. Esperava que Colt tivesse tirado Liz da choupana, mas, fosse como fosse, parecia que tudo sairia como a seda.

- Obrigada, Fran. Eu também tenho vontade de ver Bob e você. Espere que perguntarei a Harry onde estamos porque não tenho nem idéia –sorriu na direção de Harry e tampou o fone com a mão-. Tem uma direção ou algo para que se orientem? Bob vai vir pegar-me e dar uma olhada no meu carro.

- Não há problema –desviou a vista quando Wave saiu da cozinha-. Espero que tenha preparado suficiente café da manhã para incluir a nossa convidada –lhe disse-. Teve uma manhã difícil.

- Sim, há bastante –Wave olhou a Althea e franziu os olhos-.Eh! Que diabos é isto?

- Mostre modos –sugeriu Donner-. Há uma dama presente.

- Dama é uma ova! É policial. É a policial de Wild Bill.

Lançou-se para ela, mas Althea estava preparada. Tinha captado o reconhecimento em seus olhos e já tinha a arma na mão. Não teve tempo para pensar ou preocupar-se pelos outros dois, já que cento trinta quilos de músculo a golpearam.

Voou pelos ares e o primeiro disparo deu numa mesa antiga. Uma coleção de frascos caiu ao solo, esparramando fragmentos de ametista e água marinha. Althea viu as estrelas e, através delas, viu o seu oponente avançar como um trem de ônus.

O instinto a impulsionou rodar para a esquerda para esquivar do golpe. Wave era enorme, mas ela era rápida. Pôs-se de joelhos e segurou a arma com ambas mãos.

Nessa ocasião não errou. Dispôs só de um instante para notar a mancha de sangue na camiseta branca antes de incorporar-se de um salto.

Donner se dirigia para a porta e Kline amaldiçoava enquanto abria uma gaveta. Althea percebeu o reflexo de cromo.

- Quieto! –a ordem fez que Donner levantasse as mãos e se convertesse numa estátua, mas Kline sacou a pistola-. Faça e morrerá –lhe disse, retrocedendo para poder manter ambos à vista-. Deixe-a, Harry, ou vai manchar o tapete igual seu amigo.

- Filha de uma cadela –com os dentes apertados, soltou a arma.

- Boa escolha. E agora, no chão, de bruços, com as mãos às costas. Você também, Romeu – ordenou a Donner. Enquanto obedeciam, recolheu a arma de Kline-. Deveria saber que não deveria deixar entrar nenhum desconhecido.

“Deus, dói”, pensou Althea ao baixar a descarga de adrenalina. Dos pés à cabeça era um único ponto de dor. Esperava que Wave não tivesse acertado nada vital.

Na distância ouviu o som de uma sirene.

- Ao que parece a boa Fran enviou à cavalaria. E agora, se ainda não entenderam, sou a lei e estão presos.

Ouvindo a sirene ela lia os direitos dos prisioneiros quando Colt irrompeu com a pistola numa mão e a faca na outra. De acordo com seus cálculos, mal tinha passado três minutos desde o primeiro disparo. Era evidente que se movia depressa.

Althea o olhou um instante e concluiu o procedimento.

- Cuide desses idiotas, certo Nightshade? –pediu ao recolher o fone do telefone que ainda pendurava do cabo-. Agente Money? Sim, sou a tenente Grayson. Precisaremos de uma ambulância. Há um suspeito com uma ferida no peito. Não, a situação está sob controle. Obrigada, foi de grande ajuda –pendurou e olhou Colt-. E Liz?

- Está bem. Disse-lhe que esperasse a polícia junto ao caminho. Ouvi os disparos –tinha as mãos firmes, algo que agradeceu, já que por dentro era gelatina-. Pensei que a tinham descoberto.

- Não se equivocou. Esse –com a cabeça indicou Wave-. Já me viu com Wild Bill. Por que não vai procurar uma toalha? Será melhor que tentemos parar a hemorragia.

- Ao demônio com isso! –a fúria saiu tão repentinamente e com tanta violência que os dois homens tendidos no solo tremeram-. Tem um corte na cabeça.

- Tenho? –acercou os dedos à dor palpitante na têmpora direita, depois observou o sangue com desgosto-. Diabos. Espero não precisar pontos. Odeio pontos.

- Qual deles golpeou você? –Colt estudou os três homens com olhos gelados-. Quem?

- O que recebeu o disparo. O que está sangrando. Vá procurar uma toalha e veremos se conseguimos que chegue vivo ao tribunal –quando não respondeu, se interpôs entre Colt e o ferido. As intenções dele eram óbvias-. Não me venha com essas tolices, Nightshade. Não sou uma donzela em apuros, e os cavaleiros de brilhante armadura me irritam. Entendido?

- Sim –conteve a respiração. Percorriam-no demasiadas emoções. Nenhuma alteraria a situação-. Sim, entendido tenente.

Girou para fazer o que ela tinha pedido. “Depois de tudo”, pensou. “Althea pode manejar a situação. Pode manejar tudo”.

Não começou a serenar-se até achar-se outra vez no avião. Ao menos tinha que fingir calma pelo bem de Liz. Tinha-se agarrado a ele, suplicando-lhe que não a enviasse com a polícia, que ficasse com ela. Por isso tinha aceitado que a pequena ocupasse o assento do co-piloto e Althea fora atrás.

Com olhar perdido, a jovem olhava pelos pára-brisas. Apesar das tentativas dele de lhe passar calor, não parava de tremer. Quando puseram rumo ao este, começou a chorar. Os ombros tremeram com violência, mas não emitiu nenhum som.

- Vamos, pequena –impotente, Colt segurou sua mão-. Já passou tudo. Ninguém mais vai lhe ferir.

Mas as lágrimas silenciosas seguiram caindo.

Sem dizer uma palavra, Althea se levantou, avançou e com calma soltou o cinto de segurança. Comunicando-se mediante o contato, fez com que Liz se levantasse. Ocupou o assento e a acomodou em seu abraço, com a cabeça no ombro.

- Não olhe para trás –murmurou.

Quase de imediato, os soluços de Liz soaram em toda a cabine. A dor que manifestava rasgou o coração de Althea enquanto a abraçava. Destroçado pelo pranto, Colt alongou uma mão e lhe acariciou o cabelo. Mas ao sentir o contato a jovem se aconchegou mais contra Althea.

Ele baixou a mão e se concentrou no céu.

 

Foi a gentil insistência de Althea o que convenceu Liz que o melhor seria ir primeiro ao hospital. A pequena não parava de repetir que queria ir pra casa. E a todo momento teve que recordar com suavidade que seus pais já estavam a caminho de Denver.

- Sei que é duro –manteve o braço em torno dos ombros de Liz-. E sei que assusta, mas precisa ser examinada.

- Não quero que nenhum médico me toque.

- Eu sei –o sabia bem demais-. Mas é uma doutora –sorriu e lhe acariciou o braço-. Não fará nenhum mau a você.

- Será muito rápido –assegurou Colt. Lutou por manter o sorriso. O que desejava era gritar. Quebrar algo. Matar alguém.

- De acordo –Liz voltou a olhar com receio a sala de consulta do hospital-. Por favor… - apertou os lábios e olhou com expressão de súplica a Althea.

- Quer que vá com você? Que fique com você? –ante ao consentimento da menina, abraçou-a com mais força-. Claro, não há problema. Colt por que não vai procurar uma máquina de refrigerantes, talvez caramelos? –sorriu à jovem – Eu gostaria de um chocolate. E você?

- Sim –Liz respirou fundo-. Suponho que sim.

- Voltaremos em alguns instantes– disse Althea a Colt.

Sentindo-se inútil, percorreu o corredor.

Dentro do consultório, Althea ajudou Liz a tirar a roupa e colocar uma bata. Notou os hematomas em seu corpo, mas não disse nada. Precisariam de uma declaração oficial de Liz, mas isso podia esperar um pouco mais.

- Esta é a doutora Mailer –explicou quando a jovem doutora de olhar suave se aproximou da maca.

- Oi, Liz –a doutora Mailer não ofereceu a mão nem a tocou de nenhum modo. Especializava-se em pacientes com traumas e compreendia o terror que dominava às vítimas violentadas-. Vou ter que fazer umas perguntas e algumas verificações. Se há algo que deseje me perguntar, adiante. E se quiser que pare, que espere um pouco, diga. De acordo?

- De acordo –Liz se concentrou no teto. Mas não deixou de apertar com força a mão de Althea.

Esta tinha solicitado a doutora Mailer porque conhecia sua reputação. À medida que avançava o exame, ficou mais do que convicta de que era uma reputação justificada. Mostrou-se amável, delicada e eficaz. Parecia que instintivamente sabia quando devia parar, dar-lhe a oportunidade a Liz de que se recobrasse, e quando continuar.

- Terminamos –a doutora Mailer tirou as luvas e sorriu-. Quero que descanse aqui um momento enquanto vou preparar uma receita para você antes que saiam.

- Não terei que ficar aqui, verdade?

- Não –apertou a mão-. Fez tudo certinho. Quando seus pais chegarem, voltaremos a falar. Quer que tragam alguma coisa para você comer? – ao sair da sala, voltou-se com o olhar que indicou a Althea que elas também conversariam mais tarde.

- Deu tudo certo, de verdade –disse, ajudando-a a sentar-se-. Quer que eu vá ver se Colt encontrou o chocolate?

- Não quero ficar sozinha.

- Muito bem – pegou a escova da bolsa e começou a desembaraçar o cabelo-. Me avise se estou machucando.

- Quando vi você no salão da choupana, pensei que era outra das mulheres que eles levavam lá. Que ia acontecer tudo outra vez –fechou os olhos e as lágrimas caíram por entre suas pestanas-. Que iam me obrigar a fazer outra vez essas coisas.

- Eu sinto muito. Não tinha nenhum jeito de avisar você de que estava lá para ajudar.

- E ao ver Colt na janela, pensei que sonhava. Não deixava de sonhar que alguém apareceria, mas nunca acontecia. Estava com medo que meus pais não se importassem comigo.

- Querida, seus pais em nenhum momento deixaram de se preocupar –pegou no queixo dela- Eles estão muito preocupados. Por isso enviaram Colt. E posso dizer que ele também gosta de você. Não pode imaginar as coisas que me convenceu a fazer para encontrar você.

Liz tentou sorrir, mas não conseguiu.

- Mas não sabem… talvez não me queiram mais quando souberem… tudo.

- Não. Eles ficarão tristes, e será realmente duro para eles. Mas isso é porque gostam de você. Nada do que tenha acontecido vai mudar isso.

- Eu… eu não consigo fazer outra coisa além de chorar.

- Então é o único que deve fazer, por agora.

- Foi culpa minha fugir de casa –passou uma mão trêmula pela bochecha.

- Sim –concordou Althea-. É a única coisa de que tem culpa.

Liz afastou as lágrimas do rosto que continuaram caindo enquanto olhava para o chão.

- Não entende o que se sente. Não sabe o que é. O terrível que é.

- Você está errada –com delicadeza voltou a pegar o rosto dela entre as mãos-. Entendo. Entendo muito bem.

- Sim? –tremeu-. Aconteceu com você também?

- Quando tinha mais ou menos a sua idade. E senti como se alguém me tivesse arrancado algo que nunca mais recuperaria. Pensei que nunca mais voltaria a estar limpa, inteira. Ser eu outra vez. E chorei durante muito, muito tempo, porque dava a impressão de que não podia fazer outra coisa.

- Não deixava de repetir a mim mesma que não era eu –Liz aceitou o lenço de papel que Althea depositou em suas mãos-. Mas estava muito assustada. Acabou. Colt não para de dizer que já acabou, mas dói.

- Eu sei –a acalentou em seus braços-. Dói mais do que nada no mundo, e vai doer por algum tempo. Mas você não está sozinha. Deve lembrar que não está só. Tem a sua família, seus amigos. Tem Colt. E pode falar comigo sempre que precisar.

- O que você fez? – apoiou a cabeça no peito de Althea-. Que fez?

- Sobrevivi –murmurou, com o olhar perdido por cima da cabeça da pequena-. E você também sobreviverá.

Colt estava na porta do consultório, com latas de refrigerantes e guloseimas nas mãos. Se antes se sentia inútil, nesse momento a sensação era insuportável.

Ali não tinha lugar para ele, não tinha maneira em que pudesse entrar na dor dessa mulher. Sua primeira reação foi de ira. Mas, para onde canalizá-la? Voltou-se para deixar os refrigerantes sobre uma mesa na sala de espera. Se não podia consolar a nenhuma das duas, se não podia parar o que já tinha acontecido, o que poderia fazer?

Na sala de consulta, Althea terminou de pentear o cabelo de Liz.

- Quer se vestir?

A jovem conseguiu esboçar o que passou por um sorriso.

- Não quero voltar a colocar essa roupa, nunca mais.

- Bem dito. Bem, talvez consiga encontrar algo… -se voltou ao captar um movimento na porta. Viu uma mulher pálida e a um homem abatido, os dois com os olhos vermelhos.

- Oh, pequena! Liz! –a mulher foi a primeira em mover-se, seguida do homem.

- Mamãe! –Liz voltou a soluçar enquanto abria os braços-. Mamãe!

Althea ficou de lado ante o encontro de pais e filha. Ao ver Colt na porta, dirigiu-se para ele.

- Será melhor que fique com eles. Antes de sair, vou avisar a doutora Mailer que chegaram.

- Aonde vai?

- Redigir meu relatório –passou a bolsa ao ombro.

 

Depois foi para casa tomar um banho quente. Esfregou o corpo até que quase deixou de senti-lo. Cedendo à exaustão, tanto física como emocional, deitou-se nua na cama e teve e sonhou até que as batidas na porta a acordaram.

Aturdida, procurou o roupão e fez um nó no cinto enquanto ia comprovar quem era. Franziu o cenho ao ver Colt pela mira, a seguir abriu a porta inesperadamente.

- Me dê um motivo para não prender você por incomodar a paz alheia. Minha paz.

- Eu trouxe pizza – mostrou a caixa plana.

- Isso pode chegar a salvar você. Suponho que também queira entrar.

- Essa era a idéia.

- Bem, adiante, então –com esse duvidoso convite, foi procurar pratos e guardanapos-. Como está Liz?

- Surpreendentemente bem. Marleen e Frank são muito fortes.

- Tem que ser –regressou com os pratos -. Espero que compreendam que vão precisar de conselhos.

- E falaram disso com a doutora Mailer. Ela vai ajudá-los a encontrar um bom terapeuta –pegou uma porção de pizza e escolheu com cuidado suas palavras-. O primeiro que quero fazer é agradecer você. E não me interrompa, Thea. Gostaria de falar tudo.

- De acordo –se sentou e pegou uma porção-. Fale.

- Não falo só da cooperação oficial, do modo que me ajudou a encontrá-la e a resgatá-la. Por isso estou em dívida contigo, mas entra no plano profissional. Não tem nenhuma bebida para acompanhar isto?

- Há vinho na cozinha.

- Irei buscá-lo –disse ao começar a levantar.

- Como queira –Althea encolheu os ombros e continuou comendo. Colt regressou com uma garrafa e dois copos-. Suponho que estava cansada demais para me dar conta de que morria de fome.

- Então não devo desculpar-me por ter acordado você –encheu ambos os copos mas não bebeu-. Também quero agradecer pelo modo que se comportou com Liz. Pensei que resgatá-la bastava… já sabe, isso de ir de cavaleiro andante que tanto irrita você –levantou a vista e se encontrou com seus olhos-. Não foi assim. Também não bastou dizer que tudo estava bem, que tinha acabado. Precisava de você.

- Precisava de uma mulher.

- E você é. Sei que é esperar demais, mas depois de que você saiu ela me perguntou por você várias vezes –remexeu o conteúdo do copo-. Vão ficar na cidade pelo menos alguns dias, até que a doutora Mailer tenha alguns dos resultados que espera. Pensei que poderia falar outra vez com Liz.

-Não é necessário que me peça isso, Colt – pegou a mão dele-. Eu também me envolvi.

- E eu, Thea – beijou-lhe a mão-. Estou apaixonado por você. Não, não se afaste – apertou os dedos antes que pudesse se soltar-. Nunca antes tinha dito isso a uma mulher. Costumava empregava termos alternativos –sorriu um pouco-. Estou louco por você, é especial para mim, essas coisas. Mas jamais usei a palavra amor, não até conhecer você.

Acreditava. E o que era mais aterrorizador, queria acreditar. “vá com cuidado”, recordou-se. “passo a passo”

- Escuta, Colt, nós dois temos estado numa montanha russa desde que nos conhecemos… faz muito pouco tempo. As coisas, as emoções, tendem a adquirir proporções desmedidas numa montanha russa. Por que não freamos um pouco?

A sentiu nervosa, mas essa ocasião não o divertiu.

- Tive que aceitar que não podia mudar o que aconteceu a Liz. Foi duro. Mas não posso mudar o que sinto por você. Aceitar isso é fácil.

- Não sei muito bem o que quer de mim, Colt, e não acredito que seja capaz de dar.

- Pelo que aconteceu com você. Pelo que ouvi o que você contou a Liz no consultório.

- Isso foi entre Liz e eu –se retraiu no instante, completamente-. E não é assunto seu.

Foi exatamente a reação que Colt esperava, para que estava preparado.

-Nós dois sabemos que não é verdade. Mas falaremos disso quando estiver preparada –sabendo o valor que tinha manter desconcertado um oponente, pegou o copo -. Sabe que dão a Wave possibilidades de cinqüenta por cento para sobreviver?

- Eu sei –o observou com receio-. Liguei para o hospital antes de ir para cama. No momento, Boyd se ocupa do interrogatório de Kline e Donner.

- Tem vontade de que caiam em suas mãos, eh?

- Sim –sorriu.

- Sabe? Ao ouvir os disparos pensei que meu coração tinha parado –mas descontraído, deu uma mordida na fatia da pizza-. Regressei a toda velocidade, pronto para patear algumas bundas, pior ao entrar como uma cavalaria, que é o que vejo? -moveu a cabeça e bateu o copo com o de Althea-. Você com sangue pelo rosto… -se deteve para passar com delicadeza um dedo pela têmpora protegida-. Com uma pistola em cada mão.Um animal de cento cinqüenta quilos sangrando a seus pés e outros dois sujeitos de bruços com as mãos por cima da cabeça. E você erguida, parecida à deusa Diana depois de uma caçada, recitando os direitos. Tenho de reconhecer que me senti bastante supérfluo.

- Esteve bem, Nightshade –suspirou-. E acredito que merece saber que me senti muito contente de ver você. Parecia Jim Bowie no Álamo

- Ele perdeu.

- Você não –cedeu e se adiantou para dar-lhe um beijo.

- Nós não –corrigiu. - trouxe um presente.

- Sim? –como o momento perigoso parecia ter passado, sorriu e voltou a beijá-lo-. Me dê –ele lançou a mão para trás e meteu a mão no bolso da jaqueta. Pegou uma pequena bolsa de papel e a colocou em frente a ela-. Oh, vejo que o embrulhou muito bem –riu entre dentes ao meter a mão no interior. Pegou uma calcinha e um sutiã da cor azul celeste. O riso se transformou numa gargalhada.

- Pago minhas dívidas –informou Colt. - Como supus que você deveria ter muitas daquela cor, escolhi algo diferente –estendeu a mão para sentir a seda e a renda-. Talvez queira provar.

- Em seu momento –ainda que sabia o que queria nesse momento. O que precisava. Levantou-se para tomá-lo. Meteu os dedos no cabelo dele e puxou até levantar o rosto dele para que suas bocas se encontrassem-. Talvez queira ir para cama comigo.

- Decididamente –subiu as mãos por seus quadris, sem afastar a boca de seus lábios-. Pensava que nunca perguntaria.

- Não queria que a pizza se esfriasse.

- Continua com fome? –baixou um dedo pelo centro de seu corpo para tirar o cinto do roupão.

Ela pegou a camisa dele.

- Agora que mencionou, talvez sim –riu.

Dirigiu-se para ao quarto, decidido a dar-lhe outra surpresa. Depositou-a na cama, tombando-se a seu lado enquanto enchia o rosto dela de beijos leves e tentadores.

Os dedos de Althea se achavam ocupados desabotoando os botões da camisa. Sabia o que a esperava e estava preparada, e ansiosa, para a tormenta, o fogo e a invasão de sensações. Quando as mãos afastaram o algodão e encontraram uma pele cálida e firme, emitiu um gemido baixo e satisfeito.

Seguiu beijando-a e mordiscando-a enquanto ela o despia. Em seus movimentos tinha uma energia frenética que prometia algo selvagem e febril. Cada vez que Colt sentia uma apunhalada de desejo, absorvia o impacto e continuava com seu rimo descontraído.

- Eu o desejo –impaciente, Althea girou a boca para a sua e se arqueou contra ele.

Colt desconhecia que duas palavras pudessem fazer-lhe ferver o sangue. Mas seria fácil demais tomar o que ela oferecia e perder o que ainda retinha.

- Eu sei. Posso perceber –voltou a beijá-la com tanta ternura que lhe provocou outro gemido. A mão que tinha estado fechada sobre o ombro de Colt ficou frouxa-. E eu a desejo também –murmurou, jogando-se para trás para contemplá-la-. Toda –fascinado, passou os dedos pelo cabelo, estendendo-o até que acendeu a savannah branca. Depois baixou para dar-lhe um beijo gentil sobre a têmpora ferida.

A emoção provocou um nó na garganta de Althea.

- Colt…

- Sss… Só quero olhar – e olhou, enquanto passava um dedo por suas feições e acariciava o lábio inferior com o polegar, para baixá-lo pela mandíbula e pousá-lo uns momentos na veia que palpitava no pescoço-. O sol está se pondo –sussurrou-. A luz realiza coisas incríveis sobre seu rosto, seus olhos agora são dourados, com tons mais escuros, da tonalidade do brandy. Jamais vi olhos como os seus. Parece tirada de um quadro. Mas posso tocar –deslizou o polegar pelo pescoço-, sentir como treme, saber que é real.

- Não preciso de palavras –levantou uma mão para abraçá-lo outra vez e desterrar a necessidade.

- Claro que sim –sorriu um pouco. - É possível que não tenha encontrado as adequadas, mas precisa –foi colar os lábios ao seu pulso e notou a marca leve dos roxos. E lembrou.

Franziu o cenho quando se sentou e lhe tomou ambas mãos. Examinou os pulsos com cuidado.

- Eu fiz isto.

“Santo Deus”, pensou ela. “tem que existir um modo de por fim a este terrível tremor”.

- Não importa. Estava irritado. Agora faça amor comigo.

- Não gosto de saber que posso magoar quando estou bravo, ou que é possível que volte a fazê-lo –com extremo cuidado, beijou-lhe cada pulso-. Faz com que que seja fácil esquecer quanto é suave, Althea –as mangas do roupão baixaram por seus braços e a beijou até o cotovelo-. Quanto é pequena e perfeita. Tenho que demonstrar.

Passou uma mão sob a cabeça dela e levantou seu rosto, deixando que o cabelo caísse como uma cascata. Possuiu outra vez sua boca, saboreando um beijo profundo e sonhador que fez que Althea se sentisse em órbita. Colt sentiu que outra camada se dissolvia. Com músculos trêmulos, ela lhe rodeou o pescoço com os braços.

Não sabia o que fazia, só que era incapaz de pensar, de resistir. Tinha estado preparada para a necessidade, e ele estava dando ternura. Que defesa podia ter contra a paixão e seu suave envoltório de doçura? Quis dizer que a sedução era desnecessária, mas era glorioso render-se aos segredos que Colt desentranhava com essa boca devastadoramente suave e essas mãos lentas e hábeis.

Voltou a depositá-la sobre a cama e Althea ouviu o sussurro do tecido enquanto abaixava o roupão, para liberá-los para enfim oferecer-lhe beijos com a boca aberta enquanto com a língua deixava um rasto úmido.

Colt notou o instante em que ela se deixou ir. Experimentou o calor do triunfo quando as mãos de Althea, tão suaves como as suas próprias, começaram a acariciá-lo. Resistiu ao impulso de acelerar o ritmo e a explorou sobre da bata, sob ela, uma e outra vez, à medida que o corpo dela se derretia como cera quente.

Em nenhum momento deixou de observar o rosto de Althea, excitado por cada reflexo de emoção, tentado pelo modo em que continha o fôlego, para depois soltá-lo quando sentia seu contato. Teria jurado que a sentiu flutuar ao despi-la por completo.

Então ela abriu os olhos, escuros e pesados, Colt compreendeu que, ainda que entregue, não ia mostrar-se passiva. Suas mãos também eram exaustivas, tocando, possuindo, com a mesma ternura insuportável.

Até que ficou tão seduzido como ela.

Gemidos suaves e roucos. Segredos contados em sussurros. Carícias prolongadas. O sol se perdeu no crepúsculo e este na noite. Tinha necessidade, mas não a precipitação febril de saciá-la. Tinha prazer, o desejo sonolento de prolongá-lo.

Ele tocou e ela tremeu. Ela provou e ele foi dominado por um arrepio.

Quando ao fim se introduziu em seu interior, Althea sorriu e o abraçou. O ritmo que estabeleceram foi paciente, carinhoso e tão verdadeiro como a música. Ascenderam juntos, até que o ofego de Colt imitou o dela. E depois flutuaram regressando a terra.

Althea guardou um longo momento em silêncio, aturdida pelo que aconteceu. Ele lhe tinha dado algo e, a mudança, ela tinha devolvido o gesto livremente. Não era algo que pudesse recuperar. Perguntou-se que passos poderia dar uma vez que tinha descoberto que estava apaixonada.

Pela primeira e única vez em sua vida.

Talvez passasse. Uma parte dela se encolheu ante a idéia de perder o que acabava de encontrar. Sem importar a firmeza com que se recordou que sua vida era tal como a queria, não foi capaz de pensar com profundidade como seria sem ele.

No entanto, não tinha eleição. Colt iria embora. E ela sobreviveria.

- O que pensa? – pôs-se de costas e a rodeou com um braço para abraçá-la-. Quase posso ouvir as engrenagens de seu cérebro –contente, beijou-lhe o cabelo e fechou os olhos-. Me diz o que é que passou primeiro por sua cabeça.

- O que? Não…

- Não, não, não o analise. É uma prova. A primeiro, Thea. Agora.

- Me perguntava quando você iria embora –se ouviu sussurrar.-Para Wyoming .

- Ah –sorriu com expressão comprazida-. Gosto de saber que sou a primeira coisa que ocupa sua mente.

- Não fique vaidoso, Nightshade.

- De acordo. Não fiz nenhum plano concreto. Primeiro deveria atar alguns cabos soltos.

- Quais?

- Você, para começar. Não fixamos uma data.

- Colt…

Ele voltou a sorrir. Talvez fosse uma fantasia, mas em vez de irritação., pareceu-lhe captar exasperação. Em seu tom de voz.

- Continuo preferindo o réveillon… suponho que voltei a ser sentimental, ainda que temos tempo para falar. Depois está o fato de que não terminei o que me trouxe aqui.

- A que se refere? –levantou a cabeça-. Encontrou Liz.

- Não basta –os olhos brilharam na escuridão-. Não temos o chefe. Não terá terminado até que o capturemos.

- Isso é algo que eu preciso me preocupar, a mim e ao departamento. Aqui não há lugar para as vinganças pessoais.

- Não disse que era uma vingança –ainda que fosse-. Pretendo fechar o caso, Althea. E gostaria que continuássemos trabalhando juntos.

- E se minha resposta for não?

- Me esforçaria ao máximo em conseguir que você mudasse de idéia. Talvez não tenha notado, mas posso ser tenaz.

- Eu notei –murmurou. Uma parte dela resplandecia ante a idéia de que sua parceira não tivesse terminado-. Suponho que posso dar uns dias a mais.

- Bem –se moveu para passar uma mão pelo quadril-. Inclui na oferta umas noites a mais?

- Suponho que poderia –esboçou um sorriso travesso. -Se fizer que valha a pena.

- Oh, eu farei –sob a cabeça-. É uma promessa.

 

Com o grito ainda rasgando-lhe a garganta, Althea se sentou na cama. Cega de terror e fúria, lutou contra os braços que a rodeavam enquanto respirava fundo para voltar a gritar. Podia sentir as mãos dele tocando-a, quentes, violentas. Mas nessa ocasião… “Deus, que nesta ocasião…”.

- Althea –Colt a sacudiu, obrigando-se a manter a voz serena, ainda que o coração batesse depressa.-. Althea, acorde. Está sonhando.

Ela abriu passo entre as bordas do sonho, sem deixar de debater-se. A realidade era uma luz fraca em comparação as escuras profundidades do pesadelo. Com um último esforço, conseguiu agarrá-lo.

- Calma, calma… -emocionado ainda pelo grito que o tinha acordado, acalentou-a, colando-a a seu corpo e sentindo o grito suor que a dominava-. Calma, meu amor. Agarra-se a mim.

- Oh, Deus… -soluçou ao enterrar o rosto no ombro dele. Fechou com impotência as mãos a suas costas-. Oh, Deus... Oh, Deus...

-Já passou -continuou tranqüilizando-a quando ela o abraçou com mais força-. Estou aqui. Foi um sonho, isso é tudo. Só sonhava.

Tinha conseguido escapar do pesadelo, mas o temor que tomava conta dela era grande demais para permitir ficasse envergonhada. Tremendo, agarrou-se a ele e tentou absorver a força que emitia.

- Dê-me um minuto. Num minuto estarei bem –disse que os tremores passariam, que as lágrimas se secariam, que o medo se desvaneceria-. Sinto -mas nada parava-. Deus, sinto muito.

- Simplesmente relaxe -tremia como um pássaro e parecia igualmente frágil-. Quer que acenda a luz?

- Não -apertou os lábios com a esperança de serenar a voz. Não queria luz. Não queria que a visse até que tivesse se recuperado-. Não. Me deixe beber um pouco de água. Ficarei bem.

- Irei buscar – afastou o cabelo dela do rosto e a viu cheia de lágrimas-. Volto em seguida.

Althea subiu os joelhos até o peito quando ficou só. «Controle», ordenou-se, mas apoiou a cabeça nos joelhos. Enquanto escutava o som da torneira e via o facho de luz através da porta do quarto, respirou fundo.

- Sinto muito, Nightshade -disse quando regressou-. Suponho que acordei você.

- Suponho que sim -notou que a voz dela era mais firme. Mas não as mãos. Ele as tomou e levou a água a seus lábios-. Deve de ser um mau pesadelo.

A água aliviou a garganta seca.

-Sim. Obrigado -lhe devolveu o copo, sufocada por não ser capaz de sustentá-lo.

Ele o deixou na mesinha ao lado da cama antes de voltar para o lado dela.

- Conte-me.

- É por causa do dia duro que tivemos e à pizza - encolheu os ombros.

Com firmeza e suavidade lhe tomou o rosto entre as mãos. A luz que tinha deixado acesa no banheiro projetava um reflexo tênue. Graças a ela pôde ver a pálida que estava.

- Não. Não vou descartar isso, Thea. Não vai deixar de lado. Gritava -ela tentou virar o rosto, mas Colt não permitiu-. Continua tremendo. Posso ser tão obstinado como você, e agora mesmo acredito que tenho vantagem.

- Foi um pesadelo -quis mostrar-se furiosa com ele, mas não achou forças-. As pessoas têm pesadelos.

- Com que assiduidade os sofre?

- Com nenhuma -levantou uma mão cansada e passou no cabelo-. Não o tinha há anos. Não sei que o provocou.

Ele acreditava saber. E a não ser que estivesse muito equivocado, acreditava que também Althea sabia.

- Tem uma camiseta, uma camisola ou algo parecido? Está gelada.

- Irei procurar.

- Me diz onde está -o suspiro rápido e irritado dela o tranqüilizou.

- Na gaveta superior da cômoda. À esquerda.

Levantou-se e ao abrir a gaveta pegou o primeiro que achou. Antes de passar pela cabeça, notou que era uma camiseta de malha grande.

-Bonita lingerie que usa, tenente.

- Cumpre com sua função.

Ele a deitou e colocou uns travesseiros sob a cabeça, como faria uma mãe com uma menina mimada.

- Não gosto que você se envolva -comentou com o cenho franzido.

- Sobreviverá.

Ao ficar satisfeito de que se encontrava cômoda, pôs a camisa. Quisesse ou não, decidiu que ia falar. Sentou-se junto a ela. Tomou-lhe a mão e aguardou até que o olhou aos olhos.

- O pesadelo. Tinha a ver com o momento em que violentaram você, verdade? -os dedos dela se puseram rígidos em sua mão-. Eu falei que ouvi a conversa sua com Liz.

- Foi faz muito tempo. Não é algo que tenha a ver com o presente.

- Tem sim, quando acorda gritando. A situação pela que passou Liz, fez que recordasse de tudo.

- Muito bem. E daí?

- Confie em mim, Althea - sussurrou sem deixar de olhá-la-. Deixa que eu ajude.

- Dói - ouviu responder. Depois fechou os olhos. Era a primeira vez que reconhecia isso ante alguém-. Não o tempo todo. Nem sequer a maior parte. De vez em quando aparece de surpresa e me rasga.

- Quero entendê-lo -lhe beijou as mãos. Quando ela não tentou afastar-se, deixou-as sob seus lábios-. Conte-me.

Não sabia por onde começar. O mais certo parecia fazê-lo pelo princípio. Apoiou a cabeça no travesseiro e fechou outra vez os olhos.

- Meu pai bebia e, quando o fazia, embebedava-se, e então se tornava um homem mesquinho. Tinha mãos grandes -fechou as suas e se obrigou a relaxá-las-. Empregava-as contra minha mãe, contra mim. Minha primeira recordação é dessas mãos, da ira que tinha nelas, que eu era incapaz de compreender e podia opor-me. Dele não recordo muito bem. Uma noite enfrentou alguém mais mesquinho e acabou morto.

-Eu tinha seis anos -abriu os olhos ao entender que era outra maneira de ocultar-se-. Logo, minha mãe decidiu seguir por onde ele tinha parado ... com a garrafa. Não bebeu tanto como ele, foi mais consistente.

- Tinhas alguém mais?

- Avôs pelo lado materno. Desconhecia onde viviam. Jamais os vi. Deixaram de falar com sua filha quando fugiu com meu pai.

- Mas, conheciam sua existência?

-Por ser assim, não importava.

Ele não disse nada, tratando de assimilá-lo. Mas foi impossível entender essa indiferença.

- Muito bem. Que fez?

- Quando é uma menina, não faz nada -expôs-. Estamos a mercê dos adultos, e a realidade é que muitos adultos são implacáveis -se deteve um momento para recuperar o fio da história-. Quando eu tinha uns oito anos, ela saiu, saía muito, mas numa ocasião não regressou para casa. Alguns dias mais tarde, um vizinho chamou o Serviço Social. E me introduziram no sistema -alongou a mão para o copo de água. Dessa vez não tremeu-. É uma história longa e típica.

- Quero ouvi-la

- Me colocaram num lar adotivo -bebeu um gole. Não fazia sentido contar que como assustada e perdida estava me sentindo. Os fatos eram mais do que suficientes-. Estava bem. Decente. Mas então encontraram a minha mãe, a repreenderam, disseram-lhe que se regenerasse e me devolveram a sua custódia.

- Por que diabos fizeram isso?

- As coisas eram diferentes então. O tribunal acreditou que o melhor lugar para uma menina era com sua mãe. De todos modos, não passou muito sem que voltasse a beber e o ciclo se retomasse. Fugi algumas vezes, mas sempre me encontravam. Mais lares adotivos. Não deixam num muito tempo, em particular quando é reincidente.

- Não me estranha.

- Conheci todo o sistema. Domésticas sociais, tribunais, conselheiros escolares. Todos sobrecarregados de casos. Minha mãe se enganchou com outro sujeito e decidiu largar-se para sempre. Acredito que foi para o México. Seja como for, não regressou. Eu tinha doze ou treze anos. Odiava não poder manifestar onde queria ir, onde queria estar. Fugia na primeira oportunidade que me apresentava. De maneira que me etiquetaram como uma delinqüente juvenil e me colocaram num lar para garotas, o mais parecido a um reformatório -esboçou um sorriso carente de humor -Isso me provocou medo. Era duro, semelhante a uma prisão. De maneira que me reformei e me comportei bem. Com o tempo voltaram a destinar-me a um lar adotivo.

Esvaziou o copo e o deixou na mesinha. Sabia que não teria as mãos firmes muito tempo.

- Temia que dessa vez não conseguisse fazer que funcionasse, devolvessem-me ao lar para garotas até cumprir os dezoito anos. Assim eu me esforcei. Era um casal agradável, ingênuo, talvez, mas com boas intenções. Queriam fazer algo para consertar os erros da sociedade. Iam a manifestações contra as usinas nucleares, falavam de adotar a um órfão vietnamita. Suponho que em ocasiões me burlava deles a suas costas, mas gostava deles de verdade. Foram amáveis comigo -guardou silêncio e ele não disse nada, dando-lhe tempo para que continuasse-. Puseram-me limites bons e me trataram com justiça. Mas tinha um inconveniente. Tinham um filho de dezessete anos, capitão da equipe de futebol e estudante de primeira. O braço direito deles. Um verdadeiro jovem de estilo.

- Jovem de estilo?

- Já sabe, esse que é toda educação e cortesia por fora, cheio de encanto. Mas que por trás da fachada é lixo. Não pode chegar a esse lixo porque não deixa de escorregar com sua fachada polida; no entanto, está aí -brilharam os olhos ao recordar-. Mas eu podia vê-la. Odiava como me olhava quando eles não o viam -respirava mais depressa, mas ainda mantinha a voz controlada-. Como se fosse um pedaço de carne para sua avaliação. Eles nem notavam. O único que viam era o filho perfeito que jamais lhes tinha dado uma dor de cabeça. E uma noite, quando tinham saído, ele voltou para casa depois de um jogo. Deus.

- Está bem, Thea -quando ela cobriu o rosto com as mãos, abraçou-a-. Já é suficiente.

- Não -moveu a cabeça com violência e se jogou para trás. Se tinha chego tão longe, terminaria-. Estava irritado. Suponho que sua garota não tinha se rendido a seus muitos encantos. Entrou em meu quarto. Quando disse que saísse, riu e me lembrou que era sua casa e que estava ali só porque seus pais sentiam pena de mim. Ele tinha razão.

- Não, não tinha.

-Tinha razão nisso -insistiu Althea-, não no demais. E baixou a braguilha das calças. Corri para a porta, mas ele voltou e jogou sobre a cama. Golpeou-me a cabeça com força contra a parede. Recordo-me de ter estado mareada uns momentos e ouvir-lhe dizer que as garotas como eu pelo geral cobravam, mas que devia de sentir-me lisonjeada por sua atenção. Meteu-se na cama. O esbofeteei, amaldiçoei-o. Ele me golpeou e me imobilizou. Pus-me a gritar. Não deixei de gritar o tempo inteiro enquanto me violava. Quando terminou, eu tinha deixado de gritar. Só chorava. Saiu da cama e subiu as calças. Advertiu-me que se contasse a alguém, negaria. Que ninguém ia acreditar que ele procuraria alguém como eu. Ele era puro, de maneira que não teriam dúvidas. E sempre poderia conseguir que cinco de seus amigos dissessem que estava disposta a deitar-me com eles. Depois me devolveriam ao lar para garotas.

-Assim não disse nada, porque não tinha nada que dizer nem ninguém a quem dizer. Durante o mês seguinte me violentou mais duas vezes, até que eu juntasse dinheiro para voltar a fugir. Depois, encontraram-me. Talvez nessa ocasião queria que o fizessem. Fiquei no lar até cumprir os dezoito anos. E, quando saí, soube que ninguém voltaria a exercer jamais sobre mim esse tipo de controle. Ninguém voltaria a fazer-me sentir que não era nada.

Sem saber bem que fazer, com gesto hesitante, ele estendeu uma mão para secar-lhe uma lágrima da face.

- Fez de sua vida algo importante, Althea.

- Fiz que fosse minha -suspirou e com energia secou as lágrimas-. Não gosto de pensar no que já passou, Colt.

- Mas está aí.

- Está aí -lembrou-. Tentar conseguir que desapareça só o trás à superfície. Também aprendi isso.

-Quanto aceita que só faz parte do fez o que o você é hoje, deixa de ser tão vital. Não me fez odiar os homens, nem a mim mesma. Fez que compreendesse o que é ser uma vítima.

Teve vontade de abraçá-la, mas temeu que ela não quisesse que a tocasse.

- Gostaria de conseguir que a dor desaparecesse.

- São cicatrizes velhas -murmurou-. Só doem em certos momentos -percebeu o retraimento dele e sentiu que a dor se estendia-. Sou a mesma pessoa que era antes de te contar. O problema é que quando a gente ouve uma história assim, muda.

- Eu não mudei -foi tocá-la, mas ela se retraiu-. Maldita seja, Thea, não sei que o dizer. O que fazer por você -se levantou e pôs-se a caminhar-. Poderia preparar um pouco de chá.

- A cura para tudo de Nightshade? -quase riu-. Não, obrigada.

- O que quer? -instou ele-. Me diz.

- Por que não me diz o que você quer?

-O que eu quero -se dirigiu à janela e virou para ela-. Quero voltar no tempo, para quando você tinha quinze anos e quebrar a cara desse filho de uma puta. Quero fazer cem vezes mais dano do que ele fez a você. Depois quero ir mais atrás e quebrar as pernas do seu pai, e de passagem sapatear na bunda de sua mãe.

- Pois não pode -indicou com frieza-. Escolha outra coisa.

- Quero abraçar você -gritou, metendo as mãos nos bolsos-. Mas me dá medo de tocá-la!

- Não quero seu chá nem sua simpatia. De maneira que se é a única coisa que tem para oferecer, será melhor do que vá.

- É o que quer?

- O que eu quero é que me aceite por quem sou. E não que me trate como uma inválida por ter sobrevivido à violação e o abuso.

Foi replicar, mas se conteve. Compreendeu que não pensava nela, senão em sua própria ira, em sua própria impotência e dor. Devagar regressou à cama e se sentou a seu lado. Os olhos de Althea seguiam úmidos; viu-os brilhar na escuridão. Rodeou-a com um braço e com gentileza a abraçou até que ela apoiou a cabeça em seu ombro.

- Não vou a nenhuma parte -sussurrou-. De acordo?

- De acordo -suspirou.

 

Althea acordou ao amanhecer com dor de cabeça. No mesmo instante soube que Colt não estava do seu lado. Cansada abriu a boca e esfregou os olhos inchados.

Perguntou-se que tinha esperado. Nenhum homem se sentiria cômodo com uma mulher depois de escutar a história que tinha contado. Não soube por que tinha aberto seu passado dessa maneira. Como podia ter confiado fragmentos de si mesma que nunca lhe tinha revelado a ninguém?

Inclusive a Boyd, a pessoa que considerava seu melhor amigo, só estava a par dos lares adotivos. Quanto ao demais, tinha enterrado… até a noite anterior.

Voltou a suspirar, incorporou-se e apoiou a testa nos joelhos.

Estava apaixonada por Colt. Ridículo como era, devia enfrentar a verdade. “E”, tal como sempre tinha suspeitado, “o amor me deixa estúpida, vulnerável e infeliz”.

Pensou que tinha que existir um remédio. Ou soro que pudesse tomar. Como um antídoto para uma mordida de serpente.

O som de pisadas fez que levantasse a cabeça. Abriu muito os olhos ao ver Colt entrar com uma bandeja nas mãos.

Se dispôs de uma fração de segundo para ler sua reação antes que a ocultasse. Com pensamento sombrio compreendeu que Althea tinha acreditado que ele tinha ido embora. Teria que ensiná-la que ia ficar, sem importar muito o que ela pudesse fazer em contrário.

- Bom dia, tenente.

Com cautela, observou-o aproximar-se da cama e esperou até que depositou a bandeja a seus pés.

- O que celebramos? -indicou os pratos com torradas francesas.

- Eu devia um café da manhã, lembra-se?

- Sim –levantou a vista a para seu rosto. O amor ainda fazia que se sentisse estúpida e vulnerável, mas já não infeliz-. É um mago na cozinha.

- Todos temos nossos talentos -se sentou com as pernas cruzadas do outro lado da bandeja e começou a comer-. Pensei... -mastigou e engoliu-... que depois de nos casar, eu poderei me encarregar da cozinha.

Ela evitou a onda de pânico e engoliu a primeira mordida.

- Deveria conferir com alguém a respeito dessa obsessiva fantasia que tem, Nightshade.

- Minha mãe está morrendo de vontade de conhecer você - sorriu ao ver que o garfo caia no prato-. Meu pai e ela enviam saudações.

- Você... -não encontrou palavras.

Os dois conhecem Liz. Liguei para tranqüilizá-los e falei de você -com um sorriso, afastou-lhe o cabelo dos ombros-. Ela gostaria de um casamento na primavera... já sabe, essas coisas das noivas em junho. Mas eu disse que não pensava esperar tanto.

- Você é louco.

- É possível -o sorriso se desvaneceu-. Mas sou seu, Thea. Estou aqui para valer, e não penso em deixar você.

- Escuta, Colt –“pense com lógica”, disse-se-. Tenho muito carinho por você, mas...

- Que? -voltou a sorrir-. Me tem o que?

- Carinho -soltou, furiosa dele achar aquilo divertido.

- Eufemismos - apalpou a mão com afeto e moveu a cabeça-. Me decepciona. Tinha considerado você uma pessoa direta.

- Cala a boca e me deixe comer – “ao inferno a lógica”.

Obedeceu, já que isso lhe dava tempo para pensar e para estudá-la. Continuava um pouco pálida, e tinha os olhos inchados de ter chorado a noite anterior. Mas não queria permitir-se ser frágil. Devia admirar sua inesgotável energia. Recordou que ela não desejava simpatia, senão entendimento. Mas ia ter que aceitar ambos dele.

- Como está o café?

- Bom -e como o café da manhã que tinha preparado já tinha conquistado sua dor de cabeça, cedeu-. Obrigada.

- De nada -se adiantou e roçou os lábios com os seus-. Suponho que não posso interessar você, numa coisa depois do café da manhã.

- Tenho que pensar -sorriu, descontraída, e lhe deu outro beijo. Fechou os dedos sobre a medalha que ele tinha ao pescoço-. Por que a leva?

- Presente da minha avó. Dizia que quando um homem está decidido a não se assentar num lugar, deveria ter alguém que velasse por ele. Até agora funcionou muito bem -depositou a bandeja no solo e depois pegou Althea em seus braços.

- Nightshade, disse...

- Eu sei, sei-a acomodou-. Mas se me ocorreu que se tínhamos que tomar um banho, poderíamos não sair de nossa agenda.

Ela riu e lhe mordiscou o ombro.

 

Tinha que encaixar um dia completo em vinte e quatro horas. Esperava-a uma montanha de burocracia e precisava falar com Boyd a respeito do interrogatório ao que submeteriam a Kline e a Donner antes de vê-lo em pessoa. Por motivos pessoais e profissionais, queria entrevistar outra vez Liz.

Sentou-se e com meticulosidade começou a revisar os papéis.

- Perdoe-me, tenente -Cilla chamou à porta aberta-. Tem um momento?

- Sim, para a mulher do capitão -sorriu e lhe indicou que passasse-. Disponho de um minuto e meio. Que faz por aqui?

- Boyd me contou -se inclinou e com olhos penetrantes de mulher viu, além da maquiagem, que tinha passado uma noite difícil-. Você está bem?

- Estou bem. Cheguei à conclusão de que qualquer um que por própria vontade decida sair de casa precisa de ajuda psiquiátrica imediata, mas foi uma experiência.

- Deveria testar com três meninos.

- Não -respondeu com rapidez-. Não quero.

Cilla riu e se sentou na borda da mesa.

- Me alegro muito de que Colt e você encontraram a garota. Como está?

- Será difícil por um tempo, mas seguirá adiante.

- Esse miseráveis tinham que... -lhe brilharam os olhos mas calou-. Não vim falar com a polícia.

- Oh?

- E sim do peru de Ação de Graças. Não me olhe assim -adiantou na mente a, lista para a batalha-. Todos os anos tem uma desculpa para não vir jantar, e desta vez não a aceitarei.

- Cilla, sabe que agradeço o convite.

- É da família. Queremos que venha -inclusive enquanto Althea movia a cabeça, Cilla insistiu-: Deb e Gage vão vir. Faz um ano que não os vê.

Althea pensou na irmã menor de Cilla e no marido. Encantaria vê-la de novo. Tinha se conhecido e reconhecido à amizade que as ligava enquanto Deborah terminava a carreira em Denver. E Gage Guthrie. Franziu os lábios ao pensar nele. Gostava dele, e até um cego teria visto que adorava a sua mulher. Mas tinha algo nele... algo que não conseguia decifrar. Não mau nem que fosse alvo de preocupação, mas algo.

- Volte à realidade -disse Cilla.

- Sinto muito -se ocupou dos papéis que estavam sobre a mesa-. Sabe que me encantaria vê-los outra vez, mas...

- Vêm com Adrianna - a arma secreta de Cilla era a filha pequena de sua irmã, a quem Althea só tinha visto em fotos e vídeos-. Nós duas sabemos que os bebês deixam você louca.

-Tenho que manter uma reputação -suspirou e se recostou na cadeira-. Sabe que quero ver, a todos. E como estou certa de que ficarão para passar o fim de semana inteiro, o farei. Irei no sábado.

- Virá ao jantar de Ação de Graças - esfregou as mãos ao erguer-se- Este ano vai vir, ainda que tenha que dizer a Boyd que dê uma ordem. Vou desfrutar da presença da família. De toda a família.

- Cilla…

- Está certo –cruzou os braços-. Vou comentar ao capitão.

- Está com sorte -disse Boyd ao chegar à porta-. O capitão está disponível. E trouxe um presente – se colocou de lado.

- Natalie! -com uma exclamação de prazer, Cilla abraçou com força a sua cunhada-. Pensei que estava em Nova York.

- E assim era - afastou Cilla para dar-lhe um beijo-. Tinha que vir por uns dias, e me pareceu melhor do que essa fosse a minha primeira parada. Você está fantástica.

- E você fenomenal, como sempre -o qual era verdade. A mulher alta e esbelta com o cabelo loiro e o traje de corte conservador sempre faria que as cabeças se voltassem para olhá-la-. Os garotos ficarão encantados de ver você.

- Não vejo a hora de abraçá-los -se voltou e estendeu ambas mãos-. Thea. Não acredito na sorte de encontrar os três juntos.

- Me alegro em ver você - com as mãos ainda unidas, Althea apertou a face de Natalie. Nos anos que tinha sido parceira de Boyd, a irmã menor dele e ela eram de fato boas amigas-. Como estão seus pais?

- Muito bem. Mandam beijos a todos -por costume, olhou ao redor do escritório-. Thea, não pode ao menos conseguir um espaço com uma janela?

- Gosto desse. Menos distrações.

-Quanto chegar à emissora, chamarei Maria -anunciou Cilla-. Preparará algo especial para esta noite. Virá, Thea.

- Não perderia por nada do mundo.

- O que é isto? -inquiriu Colt ao tentar entrar no escritório-. Uma conferência? Thea, vai ter que conseguir um escritório maior... -calou e ficou boquiaberto-. Nat?

- Colt? -a expressão aturdida dela refletiu a dele.

- Que loucura -esboçou um sorriso e empurrou Boyd para ir abraçar Natalie e levantá-la do solo-. Por todos os diabos. A preciosa Natalie. Quanto tempo passou? Seis anos?

- Sete -lhe deu um beijo nos lábios-. Encontramo-nos em São Francisco.

- Sim, no partido dos Giants. Está melhor do que nunca.

- Estou melhor do que nunca. – ela concordou- Por que não tomamos um vinho depois e colocamos os assuntos em dia?

- Na realidade... -calou ao olhar a Thea. Estava sentada na borda da mesa, observando a reunião com expressão de leve curiosidade e interesse cortês. Ao dar-se conta de que ainda tinha Natalie pela cintura, baixou rapidamente os braços -. Na realidade, eu... -como se supunha que um homem ia falar com uma velha amiga quando a mulher que amava o estudava como se fosse algo achatado sobre um peso-de-papel de vidro?

Natalie captou o olhar que passou entre Althea e Colt. Surpreendida ao princípio, teve que ocultar uma risada com uma tossida. “Ah...”, pensou, “cheguei num momento em que acontece algo interessante”.

- Colt e eu nos conhecemos faz tempo - disse ela-. Sendo adolescente era louca por ele -lhe sorriu com gesto perverso -. Fiquei anos esperando que se aproveite disso.

-É sério? -Althea levou um dedo aos lábios-. Não me parece dos lentos. Um pouco denso, talvez, mas não lento.

- Tem razão nisso. Mas também é lindo, não é?-lhe piscou um olho.

- De uma maneira mais bem evidente –concordou Althea, desfrutando do incômodo de Colt- Por que você e eu não tomamos esse vinho depois, Natalie? Creio que temos muito que conversar.

- Com certeza.

- Não acredito que este seja o lugar idôneo para arrumar compromissos sociais -consciente de que o superavam, Colt meteu as mãos nos bolsos- Althea parece ocupada.

- Oh, disponho de um ou dois minutos. Que faz na cidade, Natalie?

- Vim por negócios. Sempre é grato quando pode misturá-los com o prazer. Tenho uma reunião urgente numa hora com a junta diretiva sobre uma de nossas propriedades da parte residencial da cidade. Ter uma imobiliária é um trabalho a tempo integral. Sem uma direção adequada, pode ser uma grande dor de cabeça --explicou.

- Não será na Segunda Avenida, verdade? -inquiriu Althea.

- Mmm, não. Há alguma em venda? -não pôde evitar rir-. Vícios da profissão -indicou-Há algo especial em se ter uma propriedades, inclusive com todos os problemas que arcam.

- Qual é o problema agora? -perguntou Boyd, tratando de sentir um pouco de interesse.

- O encarregado decidiu subir todos os aluguéis e ficar com a diferença -respondeu Natalie com olhos duros, em marcado contraste com seu rosto suave e precioso-. Odeio que me enganem.

- Orgulho -Boyd apoiou um dedo em seu nariz-. Odeia cometer um erro.

- Não cometi nenhum erro -alçou o queixo -. O currículo do homem era sobressalente –quando seu irmão continuou com o sorriso, fez-lhe uma careta-. O problema radica em dar autonomia a um encarregado. Não pode estar em todas partes ao mesmo tempo. Lembro de um encarregado que tivemos que dirigia um negócio de jogo num apartamento vazio. Mantinha-o alugado sob um nome falso -continuou, quase divertida-. Inclusive tinha recheado a solicitação, completa com referências falsas. Obtinha suficientes benefícios do jogo como para permitir-se o gasto adicional do aluguel, que pagava religiosamente. Jamais teria inteirado se alguém não tivesse chamado à polícia, que foi pesquisar o lugar. Acabou que já tinha feito o mesmo em outras ocasiões.

-Santo céu -comentou Althea, aturdida.

- Oh, não foi tão mau -prosseguiu Natalie-. Na realidade, animou um pouco a monotonia. O que passa... de que se trata? -perguntou quando Althea se levantou de um salto.

- Vamos -Colt já ia para a porta.

Althea recolheu a jaqueta e correu depois dele.

- Boyd, verifique a...

- Nieman -disse ele a suas costas-. Quer apoio?

- Comunicarei se precisar.

Quando o escritório se esvaziou, Natalie levantou as mãos e olhou para Cilla.

- A que se deveu isso?

- Policiais -resumiu Cilla com um dar de ombros.

 

- Não posso acreditar que deixamos passar isso -Colt fechou a porta do jeep e arrancou. Nessa ocasião não se preocupou em tirar a multa dos pára-brisas.

- Seguimos uma pista -lhe recordou Althea-. Talvez não nos leve a nenhuma parte.

- Não acredito.

- Reconheço que concorda -fechou os olhos um momento, deixando que as coisas encaixassem em seu lugar-. Nem um só vizinho pode dizer que viu ao senhor Davis. Talvez porque nunca esteve ali.

- E quem teria acesso à cobertura? Quem poderia ter falsificado as referências? Quem poderia ter se movido pelo edifício sem chamar a atenção, porque sempre estava ali?

- Nieman.

- Falei que era uma doninha -soltou Colt com os dentes fechados.

Com cautela, viu-se obrigada a estar de acordo.

- Não se adiante, Nightshade. Vamos interrogá-lo. Isso é tudo.

- Vou obter respostas - soltou-. Isso é tudo.

- Não faça que tenha que impor a casta, Colt -sussurrou, acalmando-o-. Vamos fazer-lhe algumas perguntas. Talvez consigamos que cometa um escorregão. Ainda que é possível que tenhamos que sair sem ele. No entanto, agora dispomos de um lugar pelo que começar a pesquisar.

- Seguirei suas pautas – “no momento”, pensou.

Deteve-se ante um semáforo em vermelho e martelou com impaciência os dedos sobre o volante-. Gostaria... mmm... explicar sobre a Nat.

- Explicar que?

- Que não somos... não fomos. Jamais -indicou com veemência-. Entendido?

- Para valer? -estava certa de que mais adiante riria, quando não tivesse tantas coisas na cabeça. Não obstante, não estava tão preocupada para que não resitisse-. Por que não? É bonita, é divertida e é inteligente. Isso o agrada, Nightshade.

- Não é que não me agradasse... quero dizer, me passou pela mente. Comecei a... -amaldiçoou e arrancou quando o semáforo mudou-. Era a irmã de Boyd, sabe? Antes que me inteirasse, também foi como minha irmã, assim não podia... pensar nela dessa maneira.

- Por que se desculpa? -o olhou com curiosidade.

- Não o faço -respondeu furioso ao dar-se conta de que era exatamente o que fazia-. Explico. Ainda que só Deus sabe por que. Pensará o que quiser.

- De acordo. Penso que reage em demasia ante uma situação, de maneira típica e predominantemente masculina -sorriu quando a olhou com vontade de matá-la-. Não jogo isso na cara. Não mais do que se Natalie e você tivessem estado juntos. O passado é isso. Eu sei melhor do que ninguém.

- Suponho que sim -pôs quarta e estendeu a mão para tomar a de Althea- Mas não estivemos juntos.

- Vamos dizer que você a perdeu. É fantástica.

- E você também.

- Sim, eu também - sorriu.

Colt estacionou numa zona de carga e descarga. Esperou enquanto Althea comunicava sua posição.

- Pronta?

- Sempre estou -desceu do veículo-. Quero que seja algo ligeiro -lhe disse-. Só umas perguntas posteriores ao caso. Não temos nada contra ele. Nada. Se pressionarmos demais, perderemos nossa oportunidade. Se temos razão...

- Temos razão. Pressinto.

Também ela; assentiu.

- Então quero desmascará-lo. Por Liz. Por Wild Bill -e soube que por si mesma. Para ajudar a fechar a porta que esse caso tinha voltado a abrir.

Juntos se dirigiram ao apartamento de Nieman. Antes de chamar, Althea lançou a Colt um último olhar de advertência.

- Sim, sim... soou a voz de Nieman do outro lado da porta-. De que se trata?

- A tenente Grayson, senhor Nieman – levantou o distintivo na altura da mira-. Polícia de Denver. Precisamos uns minutos de seu tempo.

O outro abriu com a corrente de segurança. Estudou aos dois.

- Não pode esperar? Estou ocupado.

- Temo que não. Não nos levará muito tempo, senhor Nieman. É simples rotina.

- Oh, muito bem -de mau humor, tirou a corrente-. Entrem, então.

Quando Althea entrou, notou as caixas no tapete. Muitas estavam com papéis cortados em tiras.

Resultou tão delator como uma pistola fumegante.

- Como podem ver, encontraram-me num mau momento.

- Sim, vejo. Vai se mudar, senhor Nieman?

- Acredita que ficaria aqui, trabalharia aqui, depois deste... escândalo? -ofendido, ajustou a gravata preta-. Não. Polícia, jornalistas, inquilinos. Não tive nem um momento de paz desde que isso começou.

- Estou convicto de que foi uma grande moléstia para você -afirmou Colt. Queria pôr as mãos nessa gravata.

- Certamente. Bem, suponho que queiram sentar-se -indicou umas cadeiras-. Mas não posso dedicar-lhes muito tempo. Ficarão coisas pra guardar. Não confio em transportadores – adicionou -. São desleixados, sempre quebram alguma coisa.

- Teve muita experiência com mudanças? -inquiriu Althea enquanto pegava um bloco de notas e um lápis.

- Naturalmente. Como já expliquei viajo muito. Desfruto de meu trabalho -sorriu-. É tedioso ficar muito tempo num lugar. Os proprietários sempre precisam de um encarregado responsável e com experiência.

-Não tenho nenhuma dúvida -moveu o lápis sobre o bloco-. Os proprietários deste edifício... -adiantou umas folhas.

- Johnston e Croy, S.A.

- Sim -assentiu ao encontrar a anotação-. Ficaram muito inquietos ao inteirar-se das atividades que aconteciam na cobertura

- Não me estranha - levantou um pouco as calças e se sentou-. É uma empresa respeitável. Com muito sucesso no Oeste e o Sudoeste. Supostamente, me culparam. Que outra coisa cabia esperar?

- Por não ter conduzido uma entrevista pessoal com o arrendatário? -instou Althea.

- O objetivo final no negócio imobiliário, tenente, é receber os aluguéis com pontualidade e uma estadia prolongada dos inquilinos. Eu proporcionava isso.

- Também proporcionou o palco de um delito.

- Não pode me fazer responsável da conduta de meus arrendatários.

Althea decidiu que era o momento de correr um risco calculado.

- E você jamais entrou na cobertura? Jamais o comprovou?

- Por que teria de fazê-lo? Não tinha motivos para molestar o senhor Davis nem de entrar em sua casa.

- Jamais entrou estando o senhor Davis presente?-inquiriu.

- Acabo de manifestar que não.

- E como explica suas impressões? -insistiu Althea, olhando suas anotações.

Algo piscou nos olhos de Nieman, mas se desvaneceu.

- Não sei a que se refere.

Decidiu insistir um pouco mais.

- Me perguntava que explicação daria se lhe perguntasse que suas impressões foram achadas no interior da cobertura... já que afirma que nunca entrou.

- Não vejo... -começou, nervoso-. Oh, sim, agora me lembro. Uns dias antes... antes do incidente... disparou o alarme de incêndios na cobertura. Utilizei minha chave mestra para pesquisar quando ninguém respondeu a meu telefonema.

- Teve um incêndio? -perguntou Colt.

- Não, não, simplesmente um detector de fumaças defeituoso. Foi algo tão insignificante, que esqueci.

- Talvez tenha esquecido alguma outra coisa -comentou Althea com cortesia-. Talvez esqueceu de nos mencionar uma choupana, ao oeste de Boulder. Também é o encarregado daquela propriedade?

- Não sei de que me fala. A única propriedade que levo é esta.

- Então utiliza a choupana para descansar -continuou Althea-. Com os senhores Donner, Kline e Scott.

- Desconheço a existência dessa choupana –repôs com rigidez, ainda que uma gota de suor tinha aparecido em seu lábio superior-. Também não conheço a pessoas com esses nomes. Agora terão que me dar licença.

-O senhor Scott não pode receber visitas agora -informou Althea, sem levantar-se-. Mas podemos ir ver Kline e Donner. Isso poderia refrescar-lhe a memória.

-Não penso ir a nenhuma parte com vocês -Nieman se incorporou-. Respondi todas suas perguntas de um modo razoável e paciente. Se persistem neste comportamento hostil, me verei obrigado a chamar a meu advogado.

- Por favor, faça-o -Althea assinalou o telefone- Pode reunir-se conosco na delegacia. Enquanto isso gostaria que nos dissesse onde esteve à noite do vinte e cinco de outubro. Talvez viria bem um álibi.

- Para que?

- Por assassinato.

- Isso é ridículo - pegou um lenço do bolso exterior da jaqueta e secou o rosto-. Não podem vir acusar-me desse modo.

- Não o acuso, senhor Nieman. Pergunto-lhe onde esteve o vinte e cinco de outubro, entre as nove e as onze da noite. Também pode informar a seu advogado de que vamos interrogá-lo a respeito de uma mulher desaparecida conhecida como Lacy, e sobre o rapto de Elizabeth Cook, quem na atualidade se encontra sob proteção. Liz é uma jovem brilhante e observadora, verdade Nightshade?

- Sim -pensou que Althea era assombrosa. Fazia que Nieman se desmoronasse só com insinuações- Entre a declaração de Liz e os esquemas, o promotor disporá de um bom material.

- Acredito que não mencionamos os desenhos ao senhor Nieman -Althea fechou o bloco de notas-. Nem o fato de que Kline e Donner foram submetidos ontem a um exaustivo interrogatório. Supostamente, Scott segue em estado crítico de maneira que teremos que esperar sua colaboração.

O rosto de Nieman ficou branco.

- Mentem. Sou um homem respeitável. Tenho credenciais - sua a voz vacilou-. Não podem demonstrar nada se baseando na palavra de dois atores miseráveis.

- Creio que não mencionamos que Kline e Donner são atores, ou sim, Nightshade?

-Não -poderia tê-la beijado-. Não o fizemos.

- Deve ser adivinho, Nieman -afirmou ela-. Por que não vamos à delegacia e vemos que mais averiguamos?

- Conheço meus direitos -os olhos do encarregado brilharam de fúria ao notar que a armadilha se fechava-. Não penso ir a nenhuma parte com vocês.

- Terei que insistir -Althea se levantou-. Chame a seu advogado, Nieman, mas nos acompanhará para ser interrogado. Agora.

- Nenhuma mulher vai dizer-me o que posso fazer -Nieman se lançou sobre ela e, ainda que Althea estivesse preparada, Colt se interpôs entre os dois e com uma mão o empurrou para o sofá.

- Agressão a uma agente da lei -expôs com suavidade-. Creio que o prenderemos por esse crime. Dará tempo suficiente para conseguir uma ordem.

- Mais do que suficiente -conveio ela, sacando as algemas.

- Ah, tenente... -observou enquanto com eficácia juntava os pulsos magros de Nieman-. Jamais encontraram impressões lá em cima, verdade?

- Nunca disse isso - jogou o cabelo para trás-. Simplesmente perguntei que diria ele se lhe comunicasse que as tinham encontrado.

- Me equivoquei -concluiu Colt-. Agrada-me seu estilo.

- Obrigado -satisfeita, sorriu-. Pergunto-me que vamos encontrar nestas caixas.

 

Encontraram mais do que suficiente. Fitas, fotos inclusive um diário detalhado escrito pelo próprio Nieman. Registrava todas suas atividades todos seus pensamentos, seu ódio pelas mulheres. Descrevia como a mulher chamada Lacy tinha sido assassinada e seu corpo enterrado por trás da choupana

Pela tarde tinham apresentado bastante provas contra ele e com certeza o manteria afastado da sociedade uma vida inteira.

- É como um jarro de água fria -comentou Colt ao seguir Althea ao seu escritório onde ia redigir o relatório-. Era tão asqueroso, que nem sequer pude encontrar a energia para matá-lo.

- É um homem de sorte -se sentou e ligou o computador-. Se serve de consolo, acredito que não mentia quando disse que não tocou Liz. Aposto que seu perfil psiquiátrico o comprovará. Impotência, acompanhada de fúria contra as mulheres e tendências ao voyeur.

- Sim, só gostava de olhar – a fúria tinha evaporado. Althea tinha razão a respeito de que não poderiam mudar o que já aconteceu.

- E ganhar muito dinheiro com seus gostos -adicionou ela-. Quando recrutou a o câmera e a dois atores miseráveis, entrou no negócio de satisfazer a outros com seus gostos peculiares. Há que reconhecer o mérito. Mantinha uns livros detalhados sobre suas atividades pornográficas. Algo que permitiu levar uma vida muito folgada.

- Sentirá falta dela na cadeia -apoiou as mãos nos ombros de Althea-. Realizou um grande trabalho, Thea. Bom para valer.

- Geralmente o faço – o estudou acima do ombro. Só lhe ficava por decifrar o que fazer com Colt-. Escuta, Nightshade, quero pôr em marcha esta burocracia, e depois preciso relaxar. De acordo?

-Claro. Tenho conhecimento que esta noite há uma reunião na casa dos Fletcher. Gostaria de ir?

- Com certeza. Por que não nos vemos lá?

- De acordo -se inclinou para apoiar os lábios no cabelo dela-. Te amo, Thea.

Esperou até que se foi, fechando a porta por trás dele. “Eu sei”, pensou. “Eu também te amo”.

Foi ver Liz. Ajudou a oferecer para a jovem e a sua família uma espécie de resolução do caso. Mas Colt já tinha adiantado. No entanto, percebeu que a jovem precisava ouvir dela.

- Nunca poderemos pagar pelo que fez.- Marleen mantinha o braço ao redor dos ombros de Liz, como se não suportasse não a tocar-. Não tenho palavras para dizer como estamos agradecidos.

-Eu... -a ponto esteve de dizer que tinha cumprido com seu trabalho. Era a verdade, mas não toda-. Cuide dela -pediu.

- Vamos passar bem mais tempo fazendo isso -Marleen apoiou a face contra a de sua filha-. Amanhã voltamos para casa.

- Iremos ver um conselheiro familiar -anunciou Liz-. E eu... entrarei num grupo de apoio a vítimas da violência sexual. Estou um pouco assustada.

- É normal.

Liz olhou a sua mãe.

- Mamãe, posso...? Gostaria de falar com a tenente Grayson um minuto, em particular.

- Claro. Irei a cozinha ajudar seu pai quando com os sorvetes.

- Obrigado -esperou até que sua mãe deixou o quarto-. Papai ainda não sabe como falar comigo sobre o que aconteceu. É muito duro para ele.

- Ele a ama. Dê-lhe um tempo.

- Chorou -os olhos de Liz se encheram de lágrimas-. Nunca antes tinha visto ele chorar. Pensava que estava ocupado demais com seu trabalho para importar-se. Fui uma estúpida ao fugir -quanto soltou, respirou fundo-. Pensava que não me entendiam, nem que me queriam. Agora vejo o muito que os feri. Nunca voltará a ser exatamente igual, verdade?

- Não, Liz. Mas se você os ajudar, pode ser melhor.

- Isso espero. Ainda me sinto muito vazia por dentro. Como se uma parte de mim já não estivesse aí.

- A encherá com outra coisa. Não pode permitir que isto bloqueie seus sentimentos para outras pessoas. Pode voltar a ser forte, Liz, mas não sejas muito dura com você mesma.

-Colt disse... - fungou e pegou um lenço de papel da caixa que sua mãe tinha deixado sobre a mesa-. Disse que sempre que eu pensar que não posso conseguir, me lembrar de você.

- De mim? -a olhou surpresa.

- Porque você passou algo horrível e o utilizou para ser uma pessoa digna. Por dentro e por fora. Que não apenas sobreviveu, mas também triunfou -sorriu com gesto trêmulo-. E que eu também posso conseguir. Foi engraçado ouvi-la falar dessa maneira. Suponho que goste muito de você.

- Eu também gosto muito dele -compreendeu que era verdade. Não era uma fraqueza amar alguém, não quando podia admirá-lo e respeitá-lo ao mesmo tempo. Não quando via claramente quem era e que a amava.

- Colt é o melhor -afirmou Liz-. Sabe?, nunca a decepciona. Sem importar o que acontece.

- Acho que sei.

- Me perguntava... Sei que a terapia é importante, mas me perguntava se podia ligar para você de vez em quando. Quando... quando duvide de minhas forças para consegui-lo.

- Espero que o faça -se levantou e foi sentar-se junto à jovem. Abriu os braços-. Me chame quando se sentir mau. E quando se sentir bem. Todos precisamos de alguém com quem dividir as coisas.

Quinze minutos mais tarde, Althea deixou os Cook com seus sorvetes e sua intimidade. Decidiu que tinha muitas coisas em que pensar. Sempre soube o que fazer de sua vida. Nesse momento em que tinha tomado um desvio súbito e drástico, precisava voltar a orientar-se.

Mas Colt a esperava no vestíbulo.

- Oi, tenente –levantou lhe o rosto e deu um beijo ligeiro.

- Que faz aqui? Marleen comentou que já tinhas passado antes.

- Fui dar uma volta com Frank. Precisava conversar.

- É um bom amigo, Nightshade -lhe acariciou a bochecha.

- É a única classe de amigo que existe. Quer uma carona?

- Tenho o carro -mas ao sair juntos, descobriu que já não queria meditar sozinha-. Que tal um passeio?

- Claro -lhe passou um braço pelo ombro-. Pode ajudar-me a ver vitrines. Na próxima semana é o aniversário de minha mãe.

- Não sou boa em escolher presentes para alguém que não conheço -repôs, sentindo que voltava a experimentar o ato reflito da resistência.

- Chegará a conhecê-la -na esquina virou à esquerda, em direção a uma série de lojas elegantes.

- Essa roupa muito bonita -Althea assinalou uma vitrine que um manequim usava uma malha azul com gola baixa-. Talvez ela goste do cachemir.

- Talvez -assentiu-. Perfeito. Vamos comprá-lo.

- Está vendo? Esse é seu problema – se colocou em frente a ele com as mãos nos quadris-. Não para pensar , olha uma coisa e “zás”, já está.

- Quando é o correto, por que continuar procurando? -sorriu e afastou uma mecha do cabelo-. Sei o que funciona para mim quando o vejo. Vamos –lhe tomou a mão e a levou ao interior da loja-. A malha azul da vitrine -lhe disse à vendedora.- Você tem no tamanho...? -no ar mediu com as mãos.

- Médio? -adivinhou a vendedora-. Certamente, senhor. Um momento.

- Não perguntou quanto custa -assinalou ela.

- Quando algo é o perfeito, o preço é irrelevante -sorriu-. Vai manter-me a risca. Isso me agrada. Tenho tendência a esquecer dos detalhes.

- Vá achando -se afastou para olhar umas blusas de seda.

“É descuidado”, recordou. “É impulsivo e precipitado”. Tudo o que ela não era. Althea preferia a ordem, a rotina, o cálculo meticuloso. Devia estar louca se acreditava que podiam conviver. Girou a cabeça e o observou enquanto esperava que a vendedora envolvesse a malha. Mas compreendeu que combinavam. Tudo nele encaixava como uma luva. Sua intrepidez. Esse olhar entre azul e verde que podia parar seu o coração. Sua fidelidade.

Seu entendimento total e incondicional.

- Algum problema? -perguntou Colt ao ver que o olhava.

- Não.

- Quer um laço rosa ou azul, senhor?

- Rosa -disse sem afastar a vista-. Vendem vestidos de noiva aqui?

- Formais, não, senhor -os olhos da vendedora se iluminaram ante a perspectiva de uma nova venda-. Temos alguns vestidos e trajes elegantes de cocktail que seriam perfeitos para um casamento.

- Tem de ser algo festivo -decidiu com humor nos olhos-. Para o reveillon.

Althea ergueu os ombros e voltou para olhá-lo.

- Entenda isso, Nightshade. Não penso em casar com você no reveillon.

- Tudo bem, eleja uma nova data.

- Dia de Ação de Graças -respondeu, e teve o prazer de ver como ficava boquiaberto ao mesmo tempo em que deixava cair à caixa que a vendedora entregou.

-O que?

- Disse Ação de Graças. Aceite ou deixe – e se dirigiu para a saída.

- Espera! Maldita seja! -foi atrás dela, depois de agachar-se para recolher a caixa. Alcançou ela já na rua abaixo-. Disse que se casaria comigo no dia de Ação de Graças?

- Odeio ficar repetindo, Nightshade. Se não consegue retê-lo, é problema seu. E agora, se terminou com as compras, volto ao trabalho.

- Espera um maldito minuto -exasperado ele passou a caixa por embaixo do braço, achatando o laço, deixando as mãos livres para tomá-la pelos ombros-. O que fez mudar de idéia?

- Sem dúvida seu enfoque sutil -repôs com tom seco. Deu-se conta de que estava desfrutando do momento-. E se não afastar as mãos de mim, amigo, vou prender você.

- Vai casar comigo? -moveu a cabeça como para ordenar os pensamentos.

- Tem pássaros na cabeça? -arqueou as sobrancelhas

- No dia de Ação de Graças? Esse dia de Ação de Graças? Dentro de umas semanas?

- Ficou com medo já? -começou a dizer e descobriu que tinha a boca ocupada demais para articular mais palavras. Foi um beijo embriagante, cheio de promessas e júbilo-. Conhece o castigo por beijar uma policial na rua? –inquiriu quando pôde falar outra vez

- Me arriscarei.

- Bem –aproximou-se outra vez da boca dele-. Por isso vai receber um castigo, Nightshade.

- Conto com isso -com cuidado a agastou para olhá-la no rosto-. Por que em Ação de Graças?

- Porque gostaria de ter uma família com que celebrá-lo. Cilla sempre faz questão de que me una a eles, mas não... não podia.

- Por que?

- É um interrogatório ou um compromisso? -exigiu.

- Ambas, mas é a última pergunta. Por que vai casar comigo?

- Porque insistiu até me esgotar. E porque senti pena de você, já que parecia decidido. Alem do mais, amo você, e me acostumei a você, assim que...

- Um momento. Repete.

- Disse que me acostumei a você.

- Essa parte não -com um sorriso, deu-lhe um beijo na ponta do nariz-. A parte anterior.

- A que sentia pena de você?

-Mmm. Depois disso.

- Oh, à parte que eu te amo.

- Essa mesma. Repete.

- De acordo -respirou fundo-. Te amo. Custa dizê-lo desta maneira.

- Vai se acostumar.

- Creio que tem razão.

- Aposto que sim -riu e a achatou contra ele.

 

- Acredito que preciso pensar outra vez.

Althea se achava diante do espelho de corpo inteiro do quarto de Cilla, olhando-se. Com frieza, notou que dentro do espelho tinha uma mulher. Uma mulher pálida com uma manta de cabelos vermelhos. Se via elegante com um esbelto traje de cor marfim, com botões diminutos de pérolas que percorriam toda a extensão da jaqueta cingida.

Mas tinha os olhos grandes demais, abertos e temerosos.

- Não acredito que isso vá funcionar.

- Está fabulosa –assegurou Deborah-. Perfeita.

- Não falava do vestido – levou uma mão ao estômago-. Falo do casamento.

- Não comece –Cilla falou, ajeitando a jaqueta de seda-. Está nervosa.

- Claro que estou nervosa –na falta de algo melhor do que fazer, levantou uma mão para assegurar-se de que tinha bem postos os brincos de pérolas. Tinha sido presente da mãe de Colt, e sentiu uma grande calidez ante a recordação. Tinha-lhe dito que tinha que os passar na família, tal como tinha feito a avó de Colt com ela.

Logo tinha chorado um pouco e beijado a face de Althea, dando-lhe as boas vindas à família.

“Família”, pensou com uma nova onda de pânico. “O que sei eu sobre a família?”

- Vou comprometer-me de por toda a vida com um homem que conheço faz umas semanas - sussurrou à mulher do espelho.

- O ama, não? -perguntou Deborah.

-E isso que tem haver?

Rindo, Deborah tomou a mão inquieta de Althea.

- Tudo. Eu também mal conhecia a Gage. Mas o amava, e o sabia. Vi o modo como olha Colt, Thea. Você também sabe.

- Advogadas -se queixou Althea a Cilla-. Sempre dão a volta nas coisas.

- É boa, verdade? -o orgulho invadiu a Cilla ao abraçar a sua irmã-. A melhor promotora do oeste do Mississipi.

- Quando tem razão - repôs Deborah com um sorriso-. E agora, vamos dar uma olhada na madrinha -virou a cabeça para observar a sua irmã-. Está maravilhosa, Cilla.

- E você -Cilla lhe passou uma mão pelo cabelo escuro-. O casamento e a maternidade fizeram bem.

- Se querem acabar com a hora de admiração mútua, estou a ponto de sofrer um ataque de nervos -Althea se sentou na cama e fechou os olhos-. Tenho vontade de escapar pelos fundos.

- Colt alcançaria você –indicou Cilla.

- Não se tivesse uma boa vantagem. Talvez se… -um telefonema à porta a interrompeu-. Se é Nigthshade, não vou falar com ele.

- Claro que não- conveio Deborah-. Traz má sorte –abriu a porta para ver seu marido e a sua filha. Enquanto lhe sorria Gage pensou que isso que era uma boa sorte. A melhor de todas.

- Lamento interromper, mas tem algumas pessoas nervosas lá em baixo.

- Se os meninos tocaram a torta… -começou Cilla

- Boyd a salvou –assegurou Gage. Com o bebê sob um braço, passo o outro em torno dos ombros de sua mulher-. Colt está gastando os tapetes.

- Assim que dominar meus nervos –disse Althea-. Mas ele tem razão. Olhe em que nos meteu. Como gostaria se ser uma mosca sobre a parede.

Gage sorriu e piscou um olho para Deborah.

- Tem suas vantagens – fez uma careta quando a pequena se agitou.

- Me dê, Gage –Deborah tomou Adriana em seus braços-. Você ajuda Boyd a acalmar o noivo. Já estamos terminando.

- Quem disse? –Althea retorceu as mãos.

Cilla empurrou Gage e fechou a porta. Era hora começar a agir.

- Covarde – sussurrou.

- Aguarde um momento.

- Você tem medo de descer e estabelecer um compromisso público com o homem que ama. Isso é patético.

Enquanto acalmava sua filha, Deborah captou as intenções de sua irmã e se entrou no jogo.

- Vamos, Cilla, não seja tão dura. Se mudou de idéia...

- Não mudou. Simplesmente não se decidiu. E Colt faz tudo o que está a seu alcance para satisfazê-la. Vendeu seu rancho e comprou terras aqui em Denver.

- Isso não é justo -Althea ficou de pé.

- Certamente -Deborah se pôs do lado de Althea e mordeu os lábios para não sorrir-. Pensava que seria um pouco mais compreensiva, Cilla. Trata-se de uma decisão importante.

- Então deveria tomá-la em vez de esconder-se como uma virgem medieval a ponto de ser sacrificada.

Althea ergueu o queixo.

- Não me escondo. Deb, vá pedir que comece a maldita música. Desço em seguida.

- Muito bem, Thea. Se está segura - pegou seu braço, piscou um olho para sua irmã e abandonou o quarto a toda velocidade.

- Bem, vamos -Althea se dirigiu para a porta-. Comecemos de uma vez.

- Perfeito -Cilla passou a seu lado e baixou os degraus.

Althea tinha chego quase ao patamar quando se deu conta de que a tinham enganado. As duas irmãs tinham representado o papel de polícia má e boa como profissionais.

Sentiu um nó no estômago ao ver flores por todas partes. Soava uma música suave e romântica. Viu a mãe de Colt apoiada em seu marido, com um sorriso valoroso nos lábios enquanto caíam algumas lágrimas de felicidade. Viu Natalie reluzente e secando os olhos. Deborah, com as pestanas úmidas, acalentava Adrianna.

Ali estava Boyd, tomando a mão de Cilla para dar-lhe um beijo na bochecha molhada antes de olhar Althea a fim de lhe oferecer ânimos com uma piscada.

Althea se deteve em seco. Deduziu que se pessoas chorava nos casamentos, tinha que ter um bom motivo para isso.

Então olhou para a lareira e só viu Colt.

E ele só viu a Althea.

Os joelhos dela fraquejaram. Foi para ele, com uma única rosa branca e todo seu coração.

- Me alegro de vê-la, tenente -murmurou ao tomar-lhe a mão.

- Eu também me alegro de vê-lo, Nightshade -sentiu o calor do fogo que resplandecia a seu lado, o calor que emanava dele. Sorriu quando Colt lhe beijou a mão.

- Feliz dia de Ação de Graças.

- O mesmo digo eu -talvez não soubesse muito sobre uma família, mas aprenderia. Os dois aprenderiam-. Te amo muito.

- O mesmo digo eu. Acredita?

- Agora sim.

Enquanto as chamas crepitavam, olharam-se e pensaram na vida que levariam juntos.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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