Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GUERREIRO TIGRE / David Gibbins
GUERREIRO TIGRE / David Gibbins

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Depois disso, em direção ao leste e com o oceano à direita, navegando à pouca distância da praia, para além das terras remanescentes à esquerda, encontra-se a terra do Ganges; nessa região há um rio, também de nome Ganges, que é o maior de todos os rios da Índia e sobe e desce como o Nilo. Perto desse rio há uma ilha no oceano, a parte mais distante do mundo habitado em direção ao leste, abaixo da própria ascensão do sol; ela é chamada de Chryse, a terra do ouro. Para além dessa terra, agora no ponto muito mais ao norte — onde o mar termina em algum lugar nos limites externos — há uma vasta área no interior chamada Thina. Daí são transportados por via terrestre lã, algodão e seda, passando por Báctria para chegar a Barygaza, e pelo rio Ganges de volta para Limyrikê. Quanto a esse lugar, Thina, nem sempre é fácil chegar lá; porque as pessoas ra¬ramente vêm de lá, e mesmo assim são poucos. O local fica diretamente abaixo da Ursa Menor, e dizem que, de certo modo, está ligado a partes do mar Negro e do mar Cáspio, onde eles desviam (...) Ainda não se ex¬plorou o que há além dessa região, devido a tempestades violentas, um imenso frio e um terreno impenetrável, e também por algum poder divi¬no dos deuses.
Do Périplo do mar egípcio-grego da Eritreia, século 1 d.C.

No nono mês, o primeiro imperador foi sepultado no monte Li. Quan¬do o imperador subiu ao trono, ele começou a escavar a terra e a formar o monte Li. Mais tarde, ao unificar o império, ele já havia transportado para lá mais de 700 mil homens de todo o império. Eles cavaram o solo até a terceira camada das fontes de água subterrânea e despejaram bronze para fazer o caixão. Reproduções de palácios, torres cênicas e centenas de oficiais, bem como utensílios raros e objetos maravilhosos, foram trazi¬dos para preencher o túmulo. Artesãos foram convocados para instalar bestas medievais e flechas, arranjadas de tal maneira que poderiam atirar imediatamente em qualquer um que tentasse arrombá-lo. Para modelar as imitações dos cem rios, usou-se mercúrio. O rio Amarelo, o Yangtsé e os mares foram construídos de tal modo que pareciam fluir. Acima havia representações de todos os corpos celestes e abaixo, as feições da terra...
Terminado o sepultamento, alguém mencionou que os artífices e ar¬tesãos que haviam construído o túmulo sabiam o que estava enterrado nele, e se eles deixassem escapar uma palavra sobre os tesouros, seria algo muito sério. Portanto, depois que as peças foram colocadas no túmulo, o portão interno foi fechado e o externo, baixado, de modo que todos os artífices e artesãos ficaram encerrados dentro da sepultura, incapazes de sair. Arvores e arbustos foram plantados para dar o aspecto de uma mon¬tanha...
Sima Qian, Records of the Grand Historian, Século 2 a.C.

 

 

 


                Lago Issyk-Gul, Ásia Central, outono, século 19 a.C.
O sol pairava de maneira agourenta no céu oriental avermelhado por um redemoinho de poeira do deserto do outro lado. O homem alcançou o topo da colina, endireitou a armadura nos ombros e ajeitou a grande espada nas costas. Abaixo dele havia os seixos redondos espar¬ramados pela praia e além dela uma grande massa de água que parecia estender-se até o infinito. Ele havia provado a água, estava mais fresca que salgada, então ainda não haviam alcançado o oceano, e o horizonte à fren¬te não era o limite abrasador do mundo. Cerrou os olhos para descobrir onde o lago se estreitava e as elevadas montanhas cobertas de neve imer¬giam, para a passagem que levava mais além, abaixo do sol nascente. O comerciante lhe contara essas coisas, mas ele ainda não estava seguro. Eles já estariam mortos? Teriam cruzado o rio Estige?  Aquele seria o Elísio ?
Pela primeira vez sentiu uma pontada de medo. Saberiam os mortos que haviam passado para o outro lado?
- Licinius! Uma voz gritou alto. - Traga seu traseiro para cá!
O homem mostrou um sorriso cansado, ergueu o braço, depois olhou para baixo, para os outros. Eles estavam esperando no extremo mais afas¬tado da torrente gelada pela qual haviam passado para chegar até ali, onde a água derretida que enchia o lago irrompia pelo canyon traiçoeiro que tinham atravessado na noite anterior. De manhã cedo o comerciante o conduzira até o local secreto onde o barco estava escondido. O comercian¬te. Licinius ainda podia sentir seu odor, um odor de medo. Ele o havia acorrentado a uma rocha atrás da colina. Não ia demorar agora. Ele se lembrava do que o homem dissera de modo desesperado repetidas vezes, enquanto eles o arrastavam ao longo do caminho. O túmulo de um im¬perador, o maior que o mundo jamais conhecera, em algum lugar no ho¬rizonte oriental. Ele lhes mostraria o caminho. Podiam ter certeza de que ele era o mais rico dos reis. Iam viver como imperadores, cada um deles. Eles encontrariam a imortalidade. Imortalidade.
Licinius estava cético. Os outros ficaram extasiados. Era o que eles queriam ouvir, o chamariz que havia conduzido tantos deles para a morte ao longo dessa rota. Mas Licinius ainda não tinha certeza. Ele olhou no¬vamente para o horizonte, depois para o sul. Será que tomara a decisão correta? Olhou novamente para a margem do lago. No lado mais distan¬te estava seu acampamento — retangular, rodeado de estacas pontiagudas voltadas para fora. O chão era sólido, duro como uma rocha, e eles ha¬viam ficado extremamente cansados na noite anterior, depois de cavar um fosso e empilhar o solo pedregoso para formar uma trincheira, como ha¬viam sido treinados a fazer. E tinham boas razões para isso: um novo inimigo apavorante, que viera atrás deles depois que atacaram os sogdianos e capturaram o comerciante. Era um inimigo de quem tinham ouvido falar mas mal viram, tendo lutado corpo a corpo com ele no redemoinho escuro do canyon na noite anterior. Um inimigo que havia abusado de sua força usando estratagemas para derrotá-los, como soldados. Como legionários romanos.
Já vinham em marcha havia semanas. Quarenta quilômetros por dia, quando as condições permitiam. Mas o pesadelo começara uma vida an¬tes. Trezentos e vinte quilômetros em direção ao leste da costa mediterrâ¬nea, no campo de batalha em Carrhae. Dois mil e duzentos quilômetros de lá para a cidadela de Merv, em Partia, acorrentados e açoitados por seus capturadores. Cada um que vacilasse era decapitado na hora. Só sobraram os mais resistentes. Passados trinta e quatro anos, depois de escapar, esta¬vam em marcha novamente, por 1.600 quilômetros de deserto e monta¬nhas, sob um calor ardente e um frio gelado, passando por tempestades de poeira e neve que apagavam sua passagem como se ali fosse uma terra de sombras. Eles haviam seguido a rota de Alexandre, o Grande. Marge¬ando a desolada planície além de Merv, passaram pelo último de seus al¬tares, um grande pedestal que marcava o limite oriental de sua conquista. Cavaram o local em busca de tesouros, já sem se preocupar com a ira dos deuses. A frente deles erguia-se uma parede ameaçadora de montanhas, a rota das caravanas. Outros haviam escapado de Merv por essa rota quase vinte anos antes, e a notícia voltou a circular, os rumores se espalharam entre os prisioneiros como fogo indomável, de que havia exércitos além das montanhas, exércitos que pagariam muito dinheiro por mercenários, por soldados que outrora haviam lutado em Roma.
E agora havia outra razão. Licinius se lembrava do que o comercian¬te lhe havia dito. Uma grande sepultura enterrada sob uma pirâmide de terra, construída por setenta mil escravos. Uma sepultura que ele, o co¬merciante, podia abrir para eles. A sepultura do maior imperador que o mundo conhecera, um imperador que os faria esquecer Alexandre. Uma sepultura que continha todas as riquezas do mundo, riquezas que seriam suas se delas se apropriassem, em um local onde seriam tratados como deuses.
Eram cinquenta homens fortes quando escaparam da cidadela, fugin¬do pelo buraco que haviam feito nas paredes com todo o ouro que pude¬ram carregar. A metade deles foi abatida antes que ficassem fora da vista das paredes. A rota das caravanas, dos comerciantes, havia sido sinuosa, desconcertante, não era só uma rota, mas muitas, e mais de uma vez eles entraram em becos sem saída, indo cada vez mais alto, passando por desfiladeiros mais e mais estreitos, até chegarem a locais nevados, tão altos que uma águia não podia alcançar, onde o fogo queimava com uma chama pálida e a respiração era difícil. Tinham consciência de sua mortalidade, ao violar a casa dos deuses. Desceram novamente e continuaram em mar¬cha. Precisavam encontrar um guia. Precisavam de comida, sentiam uma fome desesperada, voraz, não se tornaram muito diferentes de cachorros selvagens que ficavam cercando viajantes nessas regiões, pilhando os que se perdiam dos demais e os agonizantes. E o destino lançou seu feitiço tenebroso sobre um primeiro companheiro, depois outro. Foram atacados por gente como eles, bandos de saqueadores que pilhavam as caravanas. Mas agora sentiam a aproximação silenciosa de uma força mais lúgubre que os seguia, caçando-os desde que haviam empurrado o comerciante para diante, dizendo-lhe que encontrasse um caminho para fora daquele lugar de pesadelos.
Licinius viu Fabius começar a subir a colina. Observou também que os outros entravam na água para ir em direção ao barco, carregando os sacos de pilhagem conduzidos por Marcus, o construtor de navios de Aquileia, que ia tentar mantê-lo flutuando. Apalpou o saco que levava e sentiu a forma dentro dele. Ele o havia arrancado do comerciante quando o encontraram. Havia outro saco, idêntico, que ele deu para Fabius. O comerciante implorara que não abrissem os sacos e os deixassem separa¬dos. Mesmo precisando do homem, zombaram dele. Licinius ainda não sabia o que o saco continha. Ele o abriria tão logo tivesse negociado com o comerciante e encontrado algum lugar para dormir naquela noite. O restante da pilhagem fora tomado dos sogdianos. Os comerciantes con¬duziam seus camelos para o oeste, atravessando as planícies, e iam carre¬gados com sacos de pedras preciosas, tecidos, roupas brilhantes que eles chamavam de serikon. Os legionários haviam matado todos, menos um. Matavam todos com quem se deparavam. Era o que faziam. Então junta¬ram tudo numa pira: corpos, tecidos, tudo e depois se fartaram. Estavam famintos e chegaram até a roer os ossos, como cachorros. Haviam encon¬trado vários odres de vinho e, embriagados, fizeram tições com pedaços de ossos dos camelos e marcaram a si mesmos. Ele ainda podia sentir o odor de carne queimada. Olhou para o antebraço, pressionou-o, viu o sangue gotejar e coagular. Ficaria com uma boa cicatriz, por cima de todas as outras, as cicatrizes das chicotadas e pancadas, as velhas marcas de bata¬lha. A ferida queimava como o Hades, mas ele gostava da dor. Ajudava-o a se concentrar. Era como eles haviam sido treinados. Foi assim que ha¬viam sobrevivido, escravizados durante trinta e quatro anos, chicoteados durante o dia e acorrentados à noite, construindo as paredes da cidadela em Partia. Muitos morreram. Os que ficaram eram os mais fortes. Ele segurou o punho bem fechado e grunhiu. A marca do tição era um nú¬mero impresso em sua alma: XV Décima quinta de Apolinário. A legião perdida. A legião de fantasmas. A sua legião.
Era como se as almas de todos aqueles homens estivessem encerradas neles, congeladas durante os últimos trinta e quatro anos. Dez mil haviam marchado do campo de batalha em Carrhae. Eram somente nove agora, um a menos que no dia anterior. - Frater -, ele sussurrou, lembrando-se de Ápio. — Ave atque vale. Uma saudação e adeus. Até que nos encontremos no Elísio -. Haviam passado a noite num lugar terrível, cheio de canyons se desintegrando e becos sem saída, habitado por mugidos e lamentos dos es¬píritos que estavam ali de tocaia. O céu escurecera e explodira com relâm¬pagos, como se o próprio Júpiter estivesse desferindo golpes na oficina do céu. O vento uivara atrás deles, como um dragão lançando fogo através dos canyons, lambidas de hálito envenenado procurando por eles, alcançando cada recanto e fenda. Eles tinham se amontoado sob os escudos entrela¬çados, como numa formação de guerra testudo ou tartaruga, como haviam sido treinados, debaixo de escudos quadrados que haviam feito para si mes¬mos, enquanto a chuva caía em meio aos trovões e as flechas dos inimigos os açoitavam. Ápio ficou meio louco, gritava com o inimigo para que se mostrasse, que lutasse como homem, e ao sair de formação e se expor sozinho, uma flecha o atingiu. Licinius o arrastou de volta para baixo dos es¬cudos, enquanto ele murmurava de olhos arregalados, e ficou segurando-o muito apertado, mesmo depois que ele morrera, tremendo e em meio a convulsões. A morte em batalha como é na realidade, não como Licinius a esculpira em pedra para seus benfeitores em Roma. Ele próprio ficou meio louco, lambuzou o corpo com sangue e derrubou da sela o arqueiro, ber¬rando de raiva e dor, segurando firme e torcendo o pescoço do homem, ar¬rancando seus olhos. Eles eram humanos, gritou, não demônios, e se eram humanos podiam ser derrotados. Arrancou violentamente a grande espada gotejante do cavaleiro, sua luva forte e rústica de punho largo e comprido em forma de tigre, e arrancou a armadura de escamas, atirando-a nas costas, puxou a cabeça rachada pela longa trança de cabelo amarrada num laço. Mas os outros legionários já tinham ido embora, levando consigo o corpo de Ápio, deixando-o atrás para lutar, e ele escorregou e derrubou a cabeça no meio de uma poderosa queda d'água.
Horas mais tarde ele os encontrou, o bando diminuído, com o comer¬ciante na cidade, à beira de um lago. Haviam encontrado seixos redondos com entalhes misteriosos e tinham deixado Ápio ali, com sua espada, uma adaga-machado de bronze, quebrada. Haviam colocado moedas em seus olhos, uma moeda do altar de Alexandre, o Grande, a outra, uma moeda estranha com um buraco quadrado que tomaram dos sogdianos. Eles não podiam se arriscar a acender o fogo de uma pira, mas ele, Licinius, o pri¬meiro escultor, usou um cinzel que modelou para esculpir algumas pa¬lavras numa rocha ao lado do corpo. Registrou o número sagrado de sua legião na pedra, para que Caronte  soubesse para onde levar Ápio quando viesse buscá-lo, a fim de juntar-se a todos os outros que estavam na escu¬ridão, a legião dos fantasmas.
Fabius o alcançou e se sentou, olhando para o leste. Licinius sentou-se ao seu lado, ajeitando a espada nas costas para tirá-la do caminho, com o metal da luva em forma de tigre brilhando acima de seu ombro. Fa¬bius era dos Alpes, alto, de olhos azuis e cabelo vermelho ainda visível em meio à barba curta e cinzenta. Por um momento ele nada disse. Eles eram irmãos de sangue, os últimos dos contubernium , faziam parte dos oito que haviam respondido ao chamado quando Julio César marchou para a Gália, que tinham provocado desordens, acampado e lutado juntos do princípio ao fim dos dias de glória da legião. Licinius olhou para o lu¬gar onde tinham colocado Ápio, uma desolada e deserta região de seixos, depois retirou algo de uma bolsa em seu cinto e passou para Fabius. Era uma pedra pequena e lisa, de pouco peso, com um furo no meio. Fabius a pegou e levantou. - Da cor do mel -, disse. - Há algo dentro dela. Um mosquito.
Tirei-a do corpo de Ápio disse Licinius. - Era uma peça de heran¬ça tradicional que sua mãe lhe dera. É uma pedra estranha que ele cha¬mava de burn-stone, que veio da praia do mar ao norte da Germânia. Você se lembra do padrão dos escudos dos gauleses com os quais lutamos em Alésia, os animais que rodopiavam? Você pode ver a mesma coisa gravada na pedra. A mãe de Ápio era germânica, você sabe. Ele disse que esta pe¬dra era para crianças, para lhes dar sorte. Ele esperava poder ter um filho algum dia. Eu prometi que ficaria com ela se sobrevivesse a ele. De algu-ma maneira ele a guardou durante todos estes anos nas pedreiras.
Odeio pensar no lugar onde a escondia -, disse Fabius. - Mas co-nhecendo Ápio, tem sentido. Ele vivia falando de seu rabo.
Vamos sentir falta dele.
Até o Elísio.
Licinius fechou seu saco. - Pode ficar com ela. Somos velhos, mas não muito, talvez um dia você escape de tudo isso, encontre uma mulher e tenha um filho. Meu momento já passou. Eu tive um filho outrora, um menino cujo cabelo agora estaria salpicado de cinza, mas para mim não haverá mais oportunidade. Tome e lembre-se de Ápio. Lembre-se de mim, frater. Lembre-se de todos nós, nesse dia.
Fabius não disse nada, mas pegou a pedra. Licinius o examinou super¬ficialmente. Macrobius, o que trabalhava com couro, havia feito sandálias de pele de carneiro, sandálias fortes próprias para marchar, amarradas nas pernas nuas até os joelhos. Com elas podiam ir a qualquer lugar. Tirando isso, pareciam bárbaros. Fabius usava armadura e armas que tinha pilhado ao longo do caminho, uma jaqueta de couro rígido, manchada de sangue seco, tiras de cotas de malha de ferro de Partia toscamente costuradas nela. A corrente era à moda romana, mais bem adaptada para resistir a um golpe de espada, mas a cota nova de malha de Licinius, feita com quadrados segmentados de metal, podia deter algumas flechas e proteger do vento na baía. Fabius possuía uma arma mais valiosa, uma espada curta de arremesso, feita de bronze, com intrincados padrões estranhos, dragões, tigres e demônios. Era como umgladius romano, uma espada perfeita para uma luta em que se está em estreito contato com o inimigo. A grande es¬pada de longo alcance nas costas de Licinius tinha uma lâmina cortante, tão afiada como capim de brejo e havia decapitado seu inimigo na noite anterior como se ele tivesse uma cabeça de repolho. Mas golpes com es¬padas de longo alcance deixam o corpo exposto, e essa não era a maneira de lutar romana. Ele ia pedir para Rufus, que trabalhava com metal, para diminuir o tamanho da espada. Mas depois se lembrou. Rufus também tinha morrido. E pouco importava agora. Ele estendeu os braços nus e examinou as mãos. - Olhe para nós. Praticamente não sinto mais frio. Minha pele ficou como couro de camelo. E agora, quando mato, faço isso com as mãos nuas.
Quem sabe estamos nos tornando deuses.
Os deuses são os nossos irmãos que se foram antes de nós.
Quando Fabius falava, Licinius ainda ouvia a voz de um homem jo-vem, mas quando olhava para ele via um homem devastado pelos anos, grisalho e velho, já a meio caminho do Elísio. No dia anterior, muito embriagados e recém-marcados, eles haviam cortado o cabelo e a barba bem rente, preparando-se para a batalha final. Não tinham esperança de sobreviver ao canyon, e quando fossem ter com os demais no Elísio que¬riam estar com boa aparência. Licinius sentiu seu couro cabeludo. Estava áspero, duro, como o resto da superfície de seu corpo, como o mármore recém-cortado pelo qual passara os dedos em sua oficina em Roma. Ele sentiu os vergões ao redor dos pulsos, tão grossos como pele de elefante. Trinta e quatro anos acorrentados. Embora fossem sobreviventes, sentiu que eram fantasmas vivos, homens cuja alma havia partido naquele dia no campo de batalha muito quente de Carrhae.
Você está lembrando? A batalha? perguntou Fabius baixinho.
Sempre.
A expedição malograra desde o início. Crasso era seu general. Crasso, que se considerava igual a César. Licinius resfolegou. Crasso, o banquei¬ro. Crasso, que só queria ouro. Eles o haviam desprezado, detestaram-no ainda mais do que o inimigo de Partia. Quando cruzaram o rio Eufrates, houve estrondos de trovão, estrépitos de raios, e um vento tenebroso, meio nevoeiro, meio furacão. Em seguida, o estandarte da legião com a águia sagrada virou para baixo, por si mesmo. Por si mesmo. Mesmo as¬sim continuaram marchando. Insuportável não era a derrota, era a derro-ta sem honra. Crasso, muito fraco para morrer pela própria espada, teve que ser acorrentado por seu tribuno. Pobre Caio Pacianus, primus pilus da primeira coorte cujo destino foi ostentar uma grande semelhança com Crasso, exibiu-se em torno dos partos com um vestido vermelho de mu¬lher, com trombeteiros e oficiais montados em camelos à sua frente, e as cabeças gotejantes dos romanos mortos suspensas em machados por todo lado. Os partos fizeram ele engolir ouro fundido para zombar de Crasso, um homem que pensava que pagamento e promessas de ouro seriam a única garantia de lealdade de um soldado.
Mas isso não foi o pior. O pior foi perder a águia, arrancada violenta-mente de seu estandarte e levada embora diante de seus olhos. A partir daí eles se transformaram em fantasmas, todos eles, os vivos e os mortos.
O comerciante nos deu alguma notícia de Roma?-, perguntou Fa-bius baixinho. - Você é o único que sabe falar grego. Eu ouvi sons gregos quando ele estava suplicando clemência.
Ele esteve muitas vezes em Barygaza, um lugar no mar da Eritreia para onde iam comerciantes vindos do Egito. Era para lá que a caravana de sogdianos se dirigia e onde ele aprendeu o grego. - Licinius fez uma pausa, sem saber como Fabius seria afetado por isso. - Há algumas notí¬cias, meu amigo, sobre Roma.
Ah. - Fabius se inclinou para diante. - Notícias gloriosas, espero.
Ele diz que as guerras terminaram há muito tempo. Que há uma nova paz. - Ele colocou a mão no ombro de Fabius. - E diz que Roma é governada agora por um imperador.
Um imperador? - Fabius olhou severo para ele, com os olhos flame-jantes. - Julio César. Nosso general. Ele é único. Deve ser ele.
Licinius sacudiu a cabeça. - César morreu faz tempo. Nós dois sabe¬mos disso, em nosso coração. E se fosse ele o imperador, teria vindo nos procurar. Não, é alguém novo. Roma mudou.
Fabius parecia abatido. - Então vou procurar César no Elísio. Não ser¬virei a outro imperador. Em Partia, vi o que os imperadores fazem. Nós somos cidadãos-soldados.
Licinius examinou novamente suas mãos, deformadas, cheias de cica¬trizes, endurecidas de sangue e sujeira, dois dedos sem as pontas. - Ci¬dadãos - disse tristemente. - Trinta e cinco anos atrás, talvez. Estas ainda são as mãos de um escultor?
Fabius se apoiou num cotovelo. - Você se lembra de Quintus Varius, que os partos tornaram feitor do setor sul das paredes? Primeiro centurião da terceira coorte? Ele tinha sido construtor na baía de Nápoles antes de ser feitor, sabia tudo sobre concreto. Persuadiu o vizir parto de que a poeira assentada em nós durante todos aqueles anos era o ingre¬diente chave do concreto, como a poeira vulcânica de Nápoles. É claro que não se tratava disso. Varius foi executado há alguns anos, uma coisa trivial, mas desde então nós colocamos aquela poeira em nossa argamas¬sa. Aquelas paredes que passamos trinta anos construindo não vão durar nem mais dez. Anote minhas palavras. Elas vão se desintegrar em poeira. Esse é um cidadão-soldado para você. Exerce todas as suas habilidades e se comporta como um civil.
E um cidadão-soldado pode voltar para a vida civil.
O que você está pensando?
O comerciante disse algo mais.
Conte, Licinius.
Ele disse que esse imperador negociou a paz com os partos. Que criou uma nova moeda, para celebrar a paz como um grande triunfo. Disse que as águias haviam regressado.
Fabius sacudiu a cabeça com muita raiva. - Impossível. Ele está lhe contando histórias. Sabe quem você é, sabe sobre a pilhagem do tesouro parto. Devem ter circulado rumores sobre nós ao longo da rota da carava¬na. Está ansioso para agradar, e acha que uma lorota sobre um imperador nos deixará satisfeitos. Bem, ele estava errado. Deveríamos tê-lo abatido juntamente com os outros.
Então, nunca teríamos chegado até aqui. Ele nos guiou pelo canyon.
Deveríamos ter morrido lutando. Uma morte com honra.
Se as águias retornaram, então podemos voltar também, com honra.
Fabius fez uma pausa. - As águias seriam o triunfo desse imperador, não nosso. Nós seríamos um embaraço. - Ele olhou atentamente para Licinius. - Mas eu conheço você muito bem, irmão. Você está pensando em seu filho.
Licinius não disse nada, mas espreitou a esfera que se erguia sobre o horizonte oriental, lançando uma cintilação tremeluzente, cor de laranja, sobre a superfície do lago. Seu filho. Um filho que não o conheceria, que era pouco mais que um bebê de colo quando ele saíra em marcha. Um filho que tavez tivesse seguido o caminho do pai, como as gerações anteriores haviam feito. Licinius pensou no que Fabius dissera. Eu vi o que imperadores fazem. Imperadores não apenas escravizam e aterrorizam. Eles também constroem palácios, templos. Haveria trabalho para um escultor nessa nova Roma.
Não se iluda -, disse Fabius. - Se o que o comerciante disse é verda¬de, o mundo mudou. Roma nos abandonou. Só temos a nós mesmos. O bando de irmãos. Tudo o mais desapareceu.
Meu filho ainda pode estar vivo.
Seu filho provavelmente está no Elísio agora. Ele também pode ter se tornado um cidadão-soldado, lutado e morrido com honra. Pense nisso.
Eles ouviram um grito amortecido vindo de algum lugar além da coli¬na. Fabius agarrou a empunhadura da espada, mas Licinius o deteve. - É apenas o comerciante. Ele está acorrentado.
Eu pensei que você o havia matado. Que tinha vindo aqui para fazer isso.
Eu queria saber se ele estava dizendo a verdade. Que o barco não era nenhuma ruína.
Conte-me novamente o que ele disse. Precisamos começar a mover-nos. O dia está raiando.
Ele disse que onde a grande esfera se ergue, resplandecendo, situa-se Chryse, a terra do ouro. Para chegar lá, é preciso primeiro cruzar o lago, depois atravessar um desfiladeiro, em seguida transpor o deserto, um lu¬gar pior que tudo o que já suportamos, que suga o homem e o engole para sempre. Deve-se acompanhar as caravanas de camelos em direção ao leste e chegar a uma cidade maior chamada Thina. E lá o mais bravo encontrará o império do céu, todas as riquezas do mundo esperando por aqueles que podem derrotar os demônios que atacaram o comerciante, um tesouro esperando por nós, seus novos donos.
O comerciante falou muito. Ele lhes contou tudo o que precisavam ouvir. Não escondeu nada. Não houve engano. Não estava acostumado a barganhar com os Destinos.
O comerciante contou algo mais para Licinius, enquanto este o acor¬rentava. Na direção sul, exatamente ao sul, havia outra rota. Grandes montanhas barravam o caminho, depois, a partir dali, se encontrava o rei¬no de Báctria, e além dele um rio poderoso, o rio que Alexandre, o Gran¬de havia cruzado. E ao sul, por quilômetros incontáveis, através da selva e ao longo da costa, havia uma rota para um lugar chamado Ramaya, onde havia romanos. Existiam perigos inenarráveis. Sempre tome cuidado com o tigre, ele tinha dito. Mas nesse lugar, como em Barygaza, as mercadorias dos comerciantes — as riquezas de Cryse e Thina, o serikõn e as jóias pre¬ciosas, o jade, a canela e o cinamomo — estariam sendo transportadas em navios através do mar da Eritreia, e de lá se poderia seguir caminho para Roma. Para Roma.
Licinius agarrou a mão forte de Fabius com a maior força que podia, seu vínculo especial desde que haviam disputado uma queda de braço quando ainda eram jovens recrutas. Ambos relaxaram e se abraçaram, an¬tes de empurrar um ao outro de maneira rude. Homens velhos brincan¬do como crianças. Ele pegou o saco que havia tirado do comerciante e fez um gesto para o outro, no cinturão de Fabius. - Antes de ir-nos. Não precisamos mais apaziguar o comerciante com promessas. Podemos mui¬to bem olhar o que roubamos dele.
Fabius recuou, dando um puxão no cinto para aliviar o peso da cor-rente da armadura em seus quadris. - Há tempo para isso mais tarde. - E apontou para a praia, onde os outros estavam sentados perto dos remos, fazendo gestos para eles. - O barco está pronto.
O barco para o outro lado está esperando por nós há muito tempo, irmão.
Não estou falando de Caronte, seu tolo. Estou falando do nosso bar-co. O barco para a liberdade. O barco para riquezas incalculáveis. Esta¬mos indo para leste, para Chryse.
Vá na frente. Tenho que terminar com o comerciante. Sua hora chegou.
- Ave atque vale, frater. Neste mundo ou no outro.
Licinius olhou para Fabius. Ele sabia.
Fabius correu colina abaixo sem olhar para trás. Licinius se ergueu e foi em outra direção, para o lugar onde havia deixado o comerciante. O céu a oeste estava escurecendo novamente acima da passagem por onde tinham vindo, bruxuleando com relâmpagos, e ele sentiu os primeiros pingos de chuva. O ar ainda estava sinistro, exatamente como antes do redemoinho da noite anterior. Seriam envolvidos por ele se não partis¬sem imediatamente. Ele sabia que Fabius não protelaria a partida, e que os outros o seguiriam. Ele era seu centurião. E Fabius sabia que não ha¬via tempo a perder. Haveria outros barcos, escondidos como aquele que acharam, deixados por outros viajantes. Havia a rota ao redor da costa. Seus inimigos tinham cavalos, e podiam mover-se rapidamente. Licinius olhou de novo para a passagem, e viu a silhueta do cume do desfiladeiro iluminado por lampejos distantes de raios. A chuva subitamente come¬çou a cair com força, e ele escorregou no declive. Nesse momento, o barco estava obscurecido pela colina, e em direção ao sul tudo o que ele podia ver era o nebuloso contraforte das montanhas. Ele se voltou para o buraco. O comerciante ainda estava lá, deitado no chão, os braços acor¬rentados acima da cabeça em volta de uma pedra alta.
Licinius puxou a espada grande da bainha de couro às suas costas, co¬locou a mão dentro da luva dourada de punho largo e comprido e agar¬rou a barra horizontal. Olhou para a imagem do tigre, depois esfregou a lâmina no antebraço. Encontrou uma fenda na rocha e empurrou a lâmi¬na dentro dela, depois a curvou até que estalasse, deixando a luva presa a uma lâmina com cerca de sessenta centímetros de comprimento. Aquilo era mais adequado. Mais parecido com umgladius romano. Voltou-se para o comerciante. O homem pensou que teria uma chance, eles o haviam trazido pelo canyon até esse local, mas agora ele sabia. Licinius se abaixou para bem perto, a fim de sentir o odor das axilas do homem, sua respira¬ção, da maneira como cheiram os animais quando estão acossados, presos numa armadilha. Ele colocou a parte quebrada da lâmina abaixo do peito do homem. Podia sentir o coração batendo.
Ali, não havia certo ou errado.
Eles matavam. Era isso que faziam.
O homem olhou para cima. Licinius se lembrou de seu filho. Era como baixar o olhar para uma criança, o desamparo era o mesmo. Mas aquilo era diferente. A respiração do homem estava curta, rouca, seu ros¬to, contorcido de terror, da boca escorria uma baba. Um cheiro repug¬nante veio de baixo, e Licinius virou a cabeça, nauseado. Ele se ajoelhou de modo a pôr o peso do corpo na parte de trás da espada, e pela primeira vez viu que o homem era diferente dos outros sogdianos, os olhos me¬nos oblíquos, as maçãs do rosto mais altas, um tufo de bigode acima dos lábios. Sua pele era a de um habitante da cidade e não a de um nômade do deserto. Em seguida, lembrou-se do que homem dissera. Ele próprio viera dessa terra distante ao leste, da grande cidade no interior, afastada da costa. Disse que conhecia o túmulo. Que sabia como entrar nele. E que era o zelador. Ficara balbuciando, desesperado para agradar.
O homem tentava falar, enquanto olhava para o saco que Licinius havia tirado dele. Falava num sussurro rouco, com um sotaque grego muito forte, que Licinius mal conseguia entender, e palavras pouco compreensíveis.
- Meu avô a viu e se apoderou dela, a maior estrela no céu.
Meu avô, com duzentos anos de idade, guardou segredo.
Eu, Liu Jian, a peguei para devolvê-la ao seu devido lugar, e eles vie¬ram atrás de mim.
Agora eles virão atrás de você.
O homem tentou erguer a cabeça do chão. Seu grego ficou subita-mente claro, como se ele soubesse que seriam suas últimas palavras. - Você pegou a joia celestial. Ela pertence à parte de cima do túmulo do imperador. Ela está dividida em duas partes. Uma parte é azul, lápis-lazúli das montanhas de Báctria, a outra parte é verde, olivina da ilha no mar da Eritreia. Você deve levar o que está com você para as minas de lápis-lazúli e esconder lá. Esse é o único lugar onde o poder da pedra não será senti¬do. Você não deve jamais colocar as duas pedras juntas, para tornar a joia inteira. Somente o imperador terá imortalidade. Aqueles que perseguem irão atrás de você. Jamais se deverá permitir que eles tenham o poder.
O homem baixou a cabeça, seus lábios tremiam. Licinius permane-ceu silencioso. Subitamente, ele se deu conta. O tesouro sobre o qual o comerciante se expressara confusamente no dia anterior, o tesouro do tú¬mulo do imperador. Ele não estava num lugar muito distante ao leste. Ele estava ali. Ele sentiu o saco em sua cintura, a forma dentro dele. Deu um pulo e tropeçou na beirada da cavidade, olhando para o lago. Estava mui¬to atrasado. Os outros já deviam estar bem longe da costa, remando para salvar a vida. Haviam visto a tempestade se aproximando. Fabius nunca saberia. Licinius se virou para o comerciante. Sentiu-se vazio, no limbo. Renunciaria ele ao maior tesouro de todos, o chamariz da imortalidade, por um sonho sem esperança de encontrar seu filho?
Ele se voltou para a escuridão nebulosa. Seus olhos ardiam, castiga¬dos pelo vento carregado de poeira vermelha, que parecia redemoinhar ao redor do lago, soprado do leste, chicoteado com furor pela tempestade que vinha do desfiladeiro. Então ele ouviu, acima do distante estrondo do trovão, de início quase imperceptível, como o pulsar do sangue em seus ouvidos, depois insistente, mais alto. Um toque de tambor. Ele se lembrava da noite anterior. Cavalos empinando, cavalos negros, de olhos amare¬los, a poeira vermelha redemoinhando para fora e para dentro de suas narinas, a respiração vital. Cavalos escorregadios de sangue, seu próprio sangue, como se estivesse saindo por seus poros. Cavalos puxando carros romanos de batalha, o besteiro quase invisível e, na frente, o condutor com a pele da besta drapejada sobre a armadura, o rosto emoldurado por dentes selvagens, só escuridão dentro.
E agora eles estavam de volta.
Licinius se virou para o comerciante e enfiou a lâmina profundamente através de sua espinha dorsal. O homem morreu de olhos abertos, o san¬gue de sua última pulsação cardíaca jorrando para fora da ferida. O corpo entrou em convulsão, os músculos se enganchavam na lâmina. Licinius se levantou e firmou o pé para puxar a lâmina. Ficou ali de pé, com a lâmina gotejando, olhando atentamente através da escuridão e da chuva. Então ele o viu. Uma silhueta no espinhaço, olhando em sua direção. Cascos batendo no chão, pele vermelha brilhante, expirando poeira, que brilhava ao sol, a cabeça rosnante e os dentes recortados acima, uma gran¬de espada levantada e reluzindo.
Ele lembrou como o comerciante o havia chamado.
O guerreiro tigre.
Licinius voltou-se para o sul.
E começou a correr.

               O Mar Vermelho, nos dias atuais
- Jack, você não vai acreditar o que encontrei.
A voz veio pelo intercomunicador de algum lugar no vazio azul à frente, onde uma corrente prateada de bolhas subia por trás de uma borda rochosa para a superfície do mar quase cinquenta metros acima. Jack Howard deu uma última olhada na âncora incrustada de coral abaixo dele, depois injetou um jato de ar em seu colete e flutuou acima da espessa cama de ondas que se inclinavam na corrente como grama alta ao vento. Foi para diante com suas nadadeiras, depois estendeu braços e pernas como um para-quedista e caiu sobre a beira da saliência rochosa. A vista abaixo era de tirar o fôlego. Ao longo de toda a descida, ele vira frag¬mentos de cerâmica antiga: islâmica, dos nabateus, egípcia, mas este era o principal filão. Durante muitos anos houve rumores de um cemitério de navios no lado do barlavento do recife, mas foi apenas isso, rumores e boatos, até que as correntes da maré, excepcionalmente fortes no Mar Vermelho naquela primavera, limparam o platô e revelaram o que havia antes dele. Em seguida, surgiu o boato que fez o coração de Jack bater mais rápido, um naufrágio romano, perfeitamente preservado debaixo da areia. Agora, enquanto ele via as formas que emergiam do sedimento, fi¬las e filas de antigas ânforas de cerâmica, as alças altas se tornando abas largas nas extremidades, expirou o ar fortemente, descendo mais rápido, e sentiu a excitação familiar percorrer seu corpo. Silenciosamente, movi¬mentou os lábios, como sempre fazia. Afortunado Jack.
A voz crepitava novamente. - Quinze anos de mergulho com você, e achei que já tinha visto tudo. Este realmente ganha o prêmio.
Jack se voltou para a borda mais distante do platô. Já conseguia ver Cos¬tas, pairando imóvel diante da cabeça de coral  do tamanho de um pequeno caminhão, com as formações em crescimento subindo vários metros aci¬ma dele. Duas cabeças mais se erguiam atrás da primeira, formando uma fila. Mais além delas, a água era muito profunda para que o coral floresces¬se, e Jack pôde ver o declive de areia mergulhando no abismo. Ele acendeu sua headlamp e nadou em direção a Costas, parando alguns metros antes dele e movimentando sua luz sobre o fundo do mar. Havia uma explosão de cores, esponjas vermelhas brilhantes, anémonas marinhas, corais mo¬les crescendo profusamente, com peixes-palhaços movendo-se rápida e bruscamente por entre recantos e fendas. Uma enguia saiu de um buraco, com a língua para fora, olhando para Jack, depois se retirou novamente. Jack olhou para baixo através de um leito ondulante de leques-do-mar e viu fragmentos de ancoras tão densamente incrustadas, que estavam quase irreconhecíveis. Olhou atentamente mais uma vez, viu uma alta alça ar¬queada, uma aba inconfundível. Voltou-se para Costas, com sua headlamp iluminando o capacete amarelo de seu amigo e a mochila de forma aerodinâmica que continha seu gás trimix para a respiração.
Belo achado -, ele disse. - Vi cacos como estes ao descer a ladeira. Ânforas de vinho de Rodes, do século 2 a.C.
Desligue sua headlamp. - Costas estava com a atenção fixa em algo à sua frente. - Dê mais uma olhada. E esqueça as ânforas.
Jack estava ansioso para nadar até os destroços que havia visto na areia. Mas ele se deixou ficar diante da cabeça de coral, extasiado com o des¬lumbramento de cor e movimento. E se lembrou das palavras do profes¬sor Dillen, tantos anos antes, em Cambridge. A arqueologia trata de detalhe, mas não deixe o detalhe obscurecer o quadro maior. Jack já sabia disso desde menino, quando saía em busca de artefatos. Esse sempre fora seu dom especial. Ver o quadro maior. E encontrar coisas. Afortunado Jack. Fechou os olhos, acendeu sua headlamp, depois abriu os olhos novamente. Foi como se estivesse em um universo diferente. A profusão de cores tinha sido substituída por um azul monótono, em tons escuros onde havia ro¬xos e vermelhos vivos. Era como olhar para um desenho feito com carvão vegetal, no qual todo o acabamento e a cor haviam desaparecido, e o olho era atraído não pelo detalhe, mas pela forma, para o contorno inteiro. Para o quadro maior.
E então ele viu.
Bom Deus!
Jack piscou com força e olhou de novo. Não havia como se enganar. Não um, mas dois, sobressaindo na areia, curvando-se para cima de am¬bos os lados da cabeça de coral, de maneira simétrica, com um brilho branco por causa de séculos de sepultamento no sedimento. Lembrou-se de onde estavam. No Mar Vermelho. A extremidade oriental do Egito, à beira do mundo greco-romano antigo. Além dali havia terras fabulosas, terras de terror e fascínio, de tesouros incalculáveis e perigos, de raças de gigantes, pigmeus e animais de grande porte, animais de caça e de guerra que apenas os bravos conseguiam subjugar, feras que podiam fazer de um homem um rei.
Eles tinham, presas.
Estou esperando, Jack. Explique como vai sair desta.
Jack engoliu em seco. Seu coração batia com empolgação. Falou baixi¬nho, tentando manter a voz controlada: - Este é um elephantegos.
Um quê?
Um elephantegos.
Certo. Um elefante. A estátua de um elefante.
Não. Um elephantegos.
Muito bem, Jack. Qual é a diferença?
Existe um papiro de uma carta surpreendente, encontrado no deserto do Egito -, disse Jack. - Maurice Hiebermeyer a mandou por e-mail para o Seaquest II enquanto estávamos navegando por aqui. Eu lhe perguntei se ha¬via algo nesses documentos em papiro que pudesse fazer menção a um naufrágio. É quase como se ele tivesse intuído que íamos encontrar algo assim.
Não seria a primeira vez disse Costa. - Ele é um indivíduo excên-trico, mas tenho que admirá-lo.
A mente de Jack estava à toda. Ele estendeu a mão e tocou a ponta da presa mais próxima. Era suave como seda, mas parecia feita de pó, como o giz. - A carta menciona um naufrágio. É um dos poucos documentos antigos a mencionar um naufrágio no Mar Vermelho. Maurice sabia que estávamos planejando mergulhar aqui, a caminho de sua escavação em Berenike.
Estou ouvindo, Jack.
O documento conta como um navio despachado do porto de Be-renike afundou. A carta deveria chegar a um lugar chamado Ptolemais Theron. Era um posto avançado em algum lugar ao sul daqui, na costa da Eritreia onde os egípcios adquiriam seus animais selvagens. Por causa do naufrágio, os homens não receberam seus cereais. A carta lhes assegurava que outro elephantegos estava sendo construído em Berenike, e logo estaria a caminho com todos os suprimentos que eles necessitavam.
-Elephantegos murmurou Costas. - Você quer dizer...
Um elefante transportador marítimo. Um navio elefante.
Jack, estou ficando com aquela sensação engraçada novamente, que sempre experimento quando mergulho com você e cujo nome é descrença.
Você já olhou para além delas? Há mais duas cabeças de coral. Exata¬mente do mesmo tamanho. Três deles enfileirados. Exatamente o núme¬ro que seria de esperar; acorrentados e amarrados embaixo, exatamente como estariam dentro de um casco.
Você está me dizendo que esta coisa na minha frente é um elefante. Um elefante de verdade, não uma estátua.
Sabemos que o marfim pode sobreviver sepultado na água, certo? Encontramos presas e dentes de hipopótamo no Mediterrâneo. E o co¬ral por aqui cresce muito rápido, mais rápido do que um esqueleto de elefante levaria para se desintegrar. Já não deve haver ossos, mas o coral mantém a forma que existia lá dentro.
Necessito de um momento, Jack. Lembre-se, sou apenas um enge-nheiro, preciso olhar para esta coisa cara a cara. Esta poderia ser a única des¬coberta arqueológica que faria isso comigo. Acho até que poderia chorar.
Você consegue lidar com isso. - Jack flutuou de volta e olhou para a aparição fantasmagórica diante deles, uma das coisas mais impressio¬nantes que ele já vira debaixo d'água. Ele acendeu de novo sua headlamp. - Aquelas presas não vão sobreviver por muito tempo. Precisamos levá- las enterradas. Mas antes disso, necessitamos de uma equipe de filmagem aqui embaixo, imediatamente. Isto é material para manchete de jornal.
Deixe comigo, Jack. Tenho um canal aberto com o Seaquest II.
Jack olhou para seu computador de pulso. - Tenho sete minutos. Que¬ro dar uma olhada naquelas ânforas na areia. Vou ficar dentro do alcance visual.
Acho que já tive emoções suficientes para um único mergulho.
Vou encontrá-lo a meio caminho para a subida.
Entendido.
Jack se voltou para a direção do platô de areia, deixando-se levar pela corrente. Ela aumentara ligeiramente durante o mergulho, erguendo uma nuvem de lama que flutuava um metro mais ou menos acima do fundo oceânico, obscurecendo ligeiramente a visão das ânforas. À sua frente, uma colônia de peixes transparentes estava flutuando na água como um véu diáfano, contribuindo para revelar um tubarão galha-preta de recife nadando languidamente ao longo da encosta. Ele ouviu o barulho abafa¬do do barco Zodiac na superfície acionando rapidamente seus motores de popa, andando em círculos para manter a posição. Um som forte vindo do barco marcou o alerta de cinco minutos. Ele olhou para Costas, dis¬tante agora cerca de vinte metros, depois mergulhou no sedimento em suspensão. Costas podia não ser capaz de vê-lo, mas as bolhas de sua expiração seriam vistas com clareza. Desviou o olhar, concentrando-se em seu objetivo, com os braços estendidos à frente e as mãos juntas, as per¬nas dando impulso lentamente para um nado de bruços do tipo pulo de sapo. Ele estava controlando plenamente sua flutuabilidade. De repente, viu uma fileira inteira de quatro ânforas, intactas e apoiadas na areia e percebeu mais uma fileira para além delas. Expirou com força, esvazian¬do bem os pulmões, sabendo que sua vida dependia de seu equipamento para permitir a respiração seguinte, o toque de perigo que fazia do mer¬gulho a sua paixão. Desceu mais, depois inspirou logo acima do fundo do mar, tornando a ganhar flutuabilidade neutra. As ânforas estavam cober¬tas por um fino sedimento que reluzia ante a luz do sol que chegava da superfície, através da água, 45 metros acima.
Viu mais fileiras de ânforas, em seguida um canal de corrente com madeiras de construção escuras embaixo, projetando-se para fora. Pren¬deu a respiração. - Bem, vou ser amaldiçoado.
Conseguiu alguma coisa? -, era a voz de Costas no intercomunicador.
Apenas outro antigo naufrágio.
Não foi possível vencer um elephantegos -, retorquiu Costas. - Meu elephantegos.
Apenas alguns potes velhos -, disse Jack.
Com você, nunca são apenas potes velhos. Eu o vi retirando o ouro que estava dentro do pote para poder observá-lo. Um arqueólogo típico.
É nos potes que jaz a história disse Jack.
É o que você sempre diz. Pessoalmente, vou pegar um saco de do-brões de algum pote qualquer dia destes. Então, o que você conseguiu?
Ânforas de vinho, com cerca de dois séculos a mais do que aquelas de Rodes com o elephantegos. Estas datam do tempo de Augusto, o primei¬ro imperador romano. Vieram da Itália.
Jack moveu as nadadeiras em direção à fila de ânforas. Sua excitação cresceu. - Estas têm a aparência de que não chegaram ao destino. Ainda conservam os lacres nas tampas, com o carimbo das propriedades italia¬nas que os produziram. Este é um tipo de safra de vinho Falernian. Cos¬tas, acho que demos de cara com uma descoberta lucrativa. - Disse isso e olhou para trás. Costas havia nadado para cima da cabeça de coral e estava parado na água no meio do caminho, já alguns metros acima do solo oce-ânico. - Está na hora de irmos, Jack. Faltam dois minutos para que nosso limite se esgote.
Entendido. - Os olhos de Jack examinavam o que havia ao redor, absorvendo tudo o que era possível nos momentos que restavam antes de o alarme soar. - Cada uma dessas ânforas de vinho valia um escravo. Há centenas delas. Esta era uma carga bem valiosa. Este era um navio roma¬no que operava sob licença da Companhia das índias Orientais.
Você quer realmente dizer que ele ia para a índia? - Costas acendeu sua headlamp revelando as cores do fundo oceânico ao redor de Jack. - Isso não significa ouro ou prata em barras ou lingotes? Um tesouro?
Jack tocou em uma das ânforas. Sentiu a emoção que o percorria cada vez que tocava em um artefato que havia ficado fora do alcance de mãos humanas desde tempos antigos. E os naufrágios eram os achados mais excitantes de todos. Não o lixo acumulado de uma civilização, refugos e dejetos, mas organismos vivos, perdidos em um momento de catástrofe, no ápice de uma grande aventura. Aventuras que sempre vinham com riscos, e dessa vez o dado caíra do lado errado. Esse navio havia enfren¬tado ventos perigosos, numa viagem de milhares de quilômetros através do oceano Índico. Jack conhecia a atração pelo Oriente, por causa de seus próprios ancestrais, que navegaram no tempo da Companhia das Índias Orientais. Eles a chamavam de "A aventura das índias", a maior aventura de todas. Incontáveis tesouros. Imenso perigo. E para os antigos, os ris¬cos eram ainda maiores. Em algum lugar lá fora estendia-se o selvagem limite do mundo. No entanto, ao longo de sua borda, tão distante quanto se pudesse ir, encontravam-se riquezas que humilhariam até mesmo um imperador poderoso e o colocariam face a face com os maiores segredos imagináveis, os elixires sagrados, a alquimia, a imortalidade.
O alarme soou, um tinido insistente e irritante que parecia vir de to-dos os lados. Jack respirou profundamente e se ergueu alguns metros aci¬ma das ânforas, depois começou a nadar em direção a Costas. Eles iam escavar. Boa parte do que a arqueologia revelava ficava abaixo do radar da história registrada sobre o resíduo mundano da vida diária, mas ali haviam encontrado algo significativo. Aquele foi um naufrágio que poderia ter sido um ponto decisivo na história, que poderia ter determinado se Roma algum dia reinaria no oceano Índico. Ele olhou para Costas, que contemplava a piscina colorida iluminada por sua headlamp, refletindo a areia. Jack examinou seu computador de mergulho, depois viu que Cos¬tas continuava olhando, hipnotizado. Seguindo seu olhar, ele olhou para baixo novamente.
Então ele viu. Amarelo, brilhando. Areia, mas não apenas areia. Uma miragem fantástica. Piscou com força, depois soltou o ar e mergulhou para baixo novamente, até que seus joelhos tocaram o fundo do mar. Ele mal podia acreditar no que estava vendo. Então se lembrou. Um lamento de um imperador romano, dois mil anos atrás. Todo o nosso dinheiro escoou para o leste, por causa de especiarias e bugigangas.
Jack ergueu o olhar para Costas e de novo dirigiu-o para baixo.
O fundo do mar estava acarpetado de ouro.
Ele pegou uma peça brilhante, segurou-a perto dos olhos. Era uma moeda de ouro, um aureus, moeda nova, nem chegara a circular. A cabeça de um homem jovem, forte, confiante, um homem que acreditava que Roma podia governar o mundo. O imperador Augusto.
Caramba! -, disse Costas. - Diga-me que isso é verdade.
Eu acho -, disse Jack com voz rouca, - que você conseguiu seu tesouro.
Precisamos manter este lugar bloqueado -, replicou Costas, dando um piparote num interruptor na lateral de seu capacete. - Qualquer co¬municação de rádio desligada. Não queremos ninguém ouvindo o que dizemos. Mesmo neste navio. Há ouro suficiente aqui para financiar uma pequena jihad.
Entendido. - Jack desligou seu interruptor. Saboreou o momento segurando a moeda de ouro, contemplando o espetáculo brilhante à sua frente, as fileiras de ânforas já em segundo plano. Costas tinha razão. Jack era um arqueólogo, não um caçador de tesouros, mas na verdade havia percorrido o mundo atrás de uma descoberta como esta, um bom tesouro à moda antiga, o preço do resgate de um imperador em ouro. E era roma¬no.
Jack olhou para cima, viu o Zodiac bem acima, percebeu a sombra mais escura do Seaquest II a poucas centenas de metros da praia. De polegar para cima, mandou um sinal de okay para Costas. Os dois homens come¬çaram a subir. Jack olhou mais uma vez para o fundo do mar, que ia desaparecendo, os detalhes já perdidos na areia, as ânforas não se distinguindo da rocha e do coral. Ele havia sonhado com isso durante anos: encontrar um naufrágio que o levasse de volta à maior aventura que o mundo an¬tigo já conhecera, uma busca de tesouros de valor inimaginável, tesouros que até esse dia continuavam acenando para os exploradores. Seu espírito foi completamente tomado pela excitação. Esse tinha sido o mergulho de sua vida. Eles haviam encontrado o primeiro tesouro de naufrágio ocor¬rido no mundo antigo. Jack viu que Costas olhava para ele através de sua máscara, com os olhos vincados num sorriso. Então sussurrou as palavras novamente: Afortunado Jack.

Três horas mais tarde, do heliporto no Seaquest II, Jack inclinou o nariz do helicóptero Lynx e o girou, formando um grande arco, demorando algum tempo para programar o computador de navegação na direção da costa egípcia, a uma distância de cerca de 64 quilômetros na direção no¬roeste. Eles iam voar a baixa altitude, para não permitir que o nitrogênio em sua corrente sanguínea formasse bolhas e evitar uma embolia gasosa. Jack olhou para além da figura de Costas, protegido com um capacete e sentado no assento do co-piloto, em direção ao Seaquest II. Na popa estava escrita a palavra "Truro", o porto de registro mais próximo do campus da Universidade Marítima Internacional (IMU), na Cornuália, Inglaterra, e no alto tremulava a bandeira da IMU, um escudo com uma âncora impo¬nente inspirada no escudo de armas da família de Jack. Era seu primeiro navio de pesquisa, construído sob encomenda menos de dois anos antes para substituir o primeiro Seaquest, perdido no mar Negro. De longe ele parecia um navio de apoio naval. Na coberta de proa, Jack viu uma equipe vestida de macacão branco brilhante, ao lado de uma Breda gun pod , calibre 40 mm, montada para a prática com fogo real. Alguns membros da tripula¬ção haviam feito parte da elite Britânica do Serviço Especial de Barco (SBS) que Jack conhecera na Marinha Real. Eles se aproximavam da costa da So¬mália, onde a ameaça de pirataria estava sempre presente; esperava-se que em questão de dias eles estivessem fora da ilha devastada pela guerra do Sri Lanka. Mas em relação a todos os outros aspectos, o Seaquest II era o mais moderno navio de pesquisa, equipado com a mais avançada tecnologia de mergulho e escavação, com acomodação e instalações de laboratório para uma equipe de trinta pessoas. Como resultado de décadas de experiências acumuladas e do trabalho em equipe, eles chegaram ao projeto de um navio ideal. Não pela primeira vez, Jack, silenciosamente, agradeceu a seu benfei¬tor, Efram Jacobovich, um magnata de software e mergulhador apaixonado, que, percebendo o potencial que havia em seus planos, fizera a doação para financiar seu trabalho de exploração ao redor do mundo.
Estamos de cinto afivelado -, disse Jack pelo intercomunicador. - Prontos para ir.
Costas apontou para o horizonte e disse: - Inicie.
Jack sorriu largamente, empurrou a alavanca de comando cíclica para a frente, a fim de inclinar o nariz do helicóptero novamente, depois girou o piloto automático. Quando ganharam velocidade, ele olhou para a asa da ponte de comando e viu James Macalister, um antigo capitão canadense da guarda costeira que era o comandante do Seaquest II. Atrás dele estava uma moça alta e esguia, com o longo cabelo negro esvoaçando na brisa, protegendo os olhos da luz forte e ofuscante e acenando para eles.
Rebecca parece estar se saindo muito bem disse Costas.
Para uma primeira expedição, é inacreditável que tenha se adaptado tão bem -, replicou Jack. - Ela está quase dirigindo o espetáculo. Admirá¬vel, para uma garota de dezesseis anos.
Deve estar no sangue, Jack.
Já podiam vislumbrar o recife, o azul-escuro do abismo subindo atra¬vés de matizes de turquesa até as cabeças de coral no topo do declive, algumas quase assomando à superfície. Passaram pelas formas amarelas oscilantes de dois Aquapod submersíveis, prontos para mergulhar no ce¬mitério de antigos navios cinquenta metros abaixo. Dentro de algumas horas os Aquapod teriam concluído um levantamento fotogramétrico e a laser completo do local, algo que levaria semanas de mergulho e meticu¬losas medidas à mão na época em que Jack começou. Depois que subi¬ram do mergulho e retornaram ao Seaquest II, Jack tinha ido direto para uma videoconferência com autoridades egípcias em antiguidades, a ma-rinha egípcia e o grupo de assistentes do Instituto de Arqueologia de seu amigo Maurice Hiebermeyer em Alexandria. Com o Seaquest II compro¬metido meses antes para fazer uma viagem ao Pacífico, outro navio da IMU iria se encarregar da escavação, e uma fragata da marinha egípcia ficaria no posto naval durante esse período. A escavação ia completar um hat-trick de antigas investigações de naufrágios feitas pela IMU durante alguns anos passados: um naufrágio minuano da Idade do Bronze no mar Egeu, o naufrágio do navio St Pauls, na Sicília, e agora este. Jack esperava ardorosamente estar de volta a tempo de ele mesmo trabalhar no local, mas por ora estava excitado por ter colocado a máquina em movimento. Relaxou em seu assento, expirando o excesso de nitrogênio do sangue e sentindo o corpo recuperar força após o mergulho. Estava exausto, mas feliz, ansioso para chegar a seu destino e descobrir por que Hiebermeyer o atormentara persistentemente durante meses para ver o que havia em sua escavação no deserto egípcio.
Me explique aquela ilha. - Costas apontou para uma terra estéril, que emergia maltratada pelo tempo no mar abaixo deles, com cerca de dois quilômetros de um lado a outro e elevando-se num pico com várias centenas de metros de altura, a rocha branca ressecada e aparentemente privada de vegetação. Parecia um lugar de extremos, incapaz de permitir vida.
Aquela é Zabargad, conhecida como ilha de St John -, disse Jack. - Os antigos gregos chamavam-na Ilha de Topázio.
Posso perceber rochas toscas, trabalhos de minas antigas, ao redor das extremidades da montanha -, disse Costas.
Ela era a única fonte antiga de peridoto, a gema verde translúcida também chamada de olivina disse Jack. - A ilha é um sonho de mineralogista, uma erupção da crosta terrestre. Os chineses reverenciam o pe¬ridoto por sua semelhança com o jade, uma pedra sagrada. Acham que ele possui qualidades curativas. As melhores gemas pertenciam aos tesouros dos imperadores.
A mineração era feita por condenados? -, perguntou Costas.
Você acertou. A ilha era a mãe de todas as colônias penais -, disse Jack. - Para muitos dos prisioneiros que estavam encarcerados aqui, este local era o ponto final da Terra.
Costas respirou profundamente. - Isto me faz lembrar Alcatraz.
É mais longe para atravessar a nado daqui do que da baía de São Francisco, e há um pouco mais de tubarões.
Alguém já escapou?
Antes de tentar responder, olhe para isto. - Jack enfiou a mão no bolso e tirou um pequeno envelope. Ele o passou para Costas, que tirou o objeto que estava dentro e o colocou na palma da mão. Era a moeda de ouro que Jack havia recolhido do fundo do oceano no local do naufrágio, reluzindo e perfeita, como se tivesse vindo direto da cunhagem de moedas.
- Jack...
Eu a emprestei. É uma amostra. Preciso ter alguma coisa para mos¬trar a Maurice. Desde nosso tempo de escola ele me diz que não há nada igual aos tesouros das tumbas egípcias.
Doutor Jack Howard, o primeiro arqueólogo marítimo do mundo, saqueia o sítio de escavação. O que dirão as autoridades egípcias quando eu lhes contar?
As autoridades? Você quer dizer Herr Professor Doutor Maurice Hiebermeyer, o maior egiptólogo vivo? Ele provavelmente me lançará um olhar penalizado e me mostrará uma múmia incrustada de jóias.
Pensei que vocês, rapazes, só gostassem de cacos de cerâmica -, disse Costas sorrindo e segurando a moeda cuidadosamente entre dois dedos. - Muito bem, por que me mostra isso agora?
O rosto é de Augusto, o primeiro imperador romano. Agora observe o outro lado.
Costas girou a moeda. Jack viu um escudo no meio, com um símbolo de cada lado. O símbolo da direita estava encimado por uma esfera, o que significava o domínio de Roma sobre o mundo. O da esquerda tinha a aquila, a águia sagrada que os legionários lutariam até a morte para prote¬ger. Eram signa militaria (insígnias militares), os protótipos dos legionários romanos. Jack apontou para a inscrição no centro. - Muito bem. Agora leia as palavras em voz alta.
Costas piscou e leu: - Signis Receptis.
Isto significa "Símbolos Devolvidos". Esta moeda pertence a uma das tiragens valiosas de Augusto, de cerca de 19 a.C., apenas poucos anos de¬pois de Augusto tornar-se imperador. Ele estava consolidando o império, depois de décadas de guerra civil. Seu filho Tibério acabara de concluir um tratado de paz com os partos, que dominavam a área do Irã e Iraque. Eles concordaram em devolver os estandartes com os símbolos que ha¬viam sido tirados das legiões romanas derrotadas. Augusto considerou a devolução um triunfo pessoal e os exibiu em desfiles por toda Roma. Foi uma imensa e importante propaganda para ele, embora muito tardia para ajudar os homens que haviam lutado sob aqueles símbolos e foram muito desventurados por não ter morrido no campo de batalha.
O que isso tem a ver com os condenados?
Retrocedendo a 53 a.C., Roma ainda é uma república, governada pelo triunvirato de Júlio César, Pompeu e Crasso. As coisas já estão des¬moronando, por causa de rivalidades pessoais e ambições que conduzi¬riam à guerra civil. O prestígio militar é o que importa. Pompeu tem o seu, por ter libertado o mar dos piratas. Julio César está obtendo seu prestígio, com suas operações militares na Gália. Crasso é o único excêntrico que está fora. Ele decide procurar a glória no Leste e ir atrás de ouro. A diferença entre eles era que Pompeu e César eram ambos generais expe-rimentados. Crasso era banqueiro.
Acho que posso adivinhar o que aconteceu.
A batalha de Carrhae, perto da moderna Harran, no sudeste da Tur-quia. Uma das piores derrotas jamais sofridas por um exército romano. Crasso era um general inútil, mas suas legiões lutavam por Roma, e por sua própria honra. Eles lutaram duramente, mas foram subjugados pelo calvário estabelecido pelos partos. Pelo menos vinte mil foram massacra¬dos, e os feridos foram todos executados. Crasso foi morto, mas um sol¬dado romano foi vestido como ele e forçado a beber ouro fundido.
Um fim apropriado para um banqueiro.
Pelo menos dez mil soldados romanos foram capturados. Aqueles que não passaram pela execução foram enviados para a cidadela parta de Merv, tendo sido provavelmente usados como escravos no trabalho de construção dos muros da cidade. Esta é a sequência lógica. Minas, pe¬dreiras, trabalho escravo. A sina dos prisioneiros de guerra na antiguida¬de. A cidadela de Merv não era cortada por mar çomo a ilha de St John, mas estava isolada na solidão do deserto do que é agora o Turquemenis¬tão. Naquela época, quase ninguém sabia o que havia por trás das terras conquistadas por Alexandre, o Grande no século 4 a.C., além do Indo e do Afeganistão. Jack abriu a tela do computador entre os dois assentos e clicou o mouse até aparecer uma imagem. Mostrava uma paisagem res¬secada de ruínas e pistas empoeiradas rodeadas por uma vasta e arrui¬nada fortificação, transformada em alguns pontos num pequeno morro arredondado. - Isto foi o que sobrou de Merv -, ele disse. - Aqueles são os muros da antiga Margiana (oásis no deserto de Karakum), o nome da cidade na época dos partos.
Parecem trabalho de aterro e não de alvenaria.
Eles foram feitos com tijolos de barro, inúmeras vezes, um novo muro construído no topo erodido remanescente do muro anterior. Mas em algum momento pode ter havido uma experiência fracassada com a argamassa. Nós encontramos uma seção recentemente exposta onde um dos muros ruiu, e ele estava preenchido com uma substância em pó, esbranquiçada. Quase como concreto que não tivesse sido colocado de ma¬neira apropriada.
Quando você esteve lá?
Na Conferência Transoxiana, em abril disse Jack. - O Oxus (tam-bém chamado Amu Daria) era o antigo nome do grande rio que corre perto daqui, do Afeganistão até o mar de Aral. Os antigos gregos e roma¬nos o viam como o limite de seu mundo. A conferência se concentrou nos contatos entre o Ocidente e a Ásia Central.
Você quer dizer a Rota da Seda?
Na época em que os chineses e os comerciantes da Ásia Central es¬tavam operando pela primeira vez em locais como Merv, logo depois que Alexandre, o Grande passou por lá.
Costas olhou atentamente para a paisagem. - Pare aí. Quem é esta? Eu reconheço esta pessoa.
Ela está lá apenas por causa de escala.
- Jack! Aquela é Katya!
Ela abriu minha sessão na conferência. É sua especialidade. Vem estu¬dando inscrições antigas ao longo da Rota da Seda e me convidou. Como não estávamos mergulhando ou fazendo outra coisa em abril, não pude recusar.
Bem, bem. Você andou se encontrando com Katya novamente. É disso que se trata, não é? Jack Howard, arqueólogo subaquático, voando para um amontoado de poeira no meio de um deserto. Turquemenistão, não é? Não pode haver nada mais distante de um naufrágio.
-Apenas mantendo contato com antigos colegas. - Jack grunhiu e fe¬chou a tela.
Costas resmungou. - De todo modo... Esses romanos. Prisioneiros de guerra. Perguntei se algum deles escapou.
Da ilha de St John, eu duvido. De Merv é outro assunto. Dificil¬mente qualquer um dos legionários de Crasso poderia ter sobrevivido à época de Augusto e repatriado os estandartes com os símbolos, mais de trinta anos depois da batalha. Mas houve rumores em Roma que perdu¬raram por várias gerações.
Que espécie de rumores?
O tipo que você ouve falar, mas cuja fonte não pode nunca determi-nar. Rumores sobre um bando de prisioneiros que escaparam, legionários que foram capturados em Carrhae. Prisioneiros que não foram para o Ocidente, que não retornaram para um mundo que os havia abandonado, mas em vez disso, foram para o leste.
Você acredita nisso?
Se eles sobreviveram a todos aqueles anos de trabalho pesado na ci¬dadela dos partos, deviam ser os mais fortes. E eles eram legionários ro¬manos. Sabiam como seguir uma rota.
Vamos ver. Indo para o leste. Isso significa Afeganistão, Ásia Central?
Jack fez uma pausa. - Alguns rumores chegam de regiões muito mais
distantes a leste. Dos antigos anais dos imperadores chineses. Mas isso terá que esperar. Estamos quase chegando. - Jack apontou à frente, para uma língua de terra que se projetava para dentro do Mar Vermelho. - Ali é Ras Banas. Ela tem a forma de uma cabeça de elefante. Acho que vai gostar daquilo.
Como eu poderia esquecer? -, murmurou Costas. - Meu elephantegos. Nem em um milhão de anos eu pensaria em encontrar antigos ele¬fantes debaixo d'água.
Mergulhe comigo, e tudo é possível.
Somente se eu fornecer a tecnologia.
Touché.
Jack abaixou o controle coletivo, e o helicóptero começou a descer. - Estou vendo a escavação agora. Sim, posso até ver Maurice. Aqueles shorts dele parecem uma bandeira de sinalização. Vou descer em uma parte de terra rochosa bem na frente da praia para evitar um redemoinho de poeira. Segure firme.
A cena com que se depararam ao sair do helicóptero era de desolação: enormes extensões de solo endurecido pelo sol com nada além do mar brilhando atrás. Apesar dos melhores esforços de Jack, eles provocaram um remoinho de areia ao aterrissar, e a paisagem agora se refratava através de uma névoa de poeira vermelha, como se o próprio ar estivesse irradiando calor. A oeste, em direção ao interior, Jack só conseguia ver a linha de montanhas baixas que assinalavam a borda do deserto costeiro, na rota para o Nilo; do lado leste, a acidentada península de Ras Banas fazendo uma curva para dentro do oceano. Comprimida na altura da extremidade da baía, algumas centenas de metros adiante ficavam as cabanas, em ruínas, do posto aduaneiro egípcio, e além dele havia uma lagoa rasa, com cerca de um quilômetro de diâmetro, cercada por uma fina península de areia do lado voltado para o mar. Dava a impressão de ser um lugar no limite da existência humana, destilado pelo calor causticante do sol egípcio.
Costas ficou parado ao lado de Jack, usando um chapéu de palha e óculos extravagantes e muito grandes, esfregando a poeira e o suor do rosto. Apontou para a névoa de poeira. - Lá vem ele. - Uma figura cor¬pulenta saiu da poeira da pequena colina ao lado deles, com a mão já es¬tendida. Ele era mais baixo que Jack, um pouco mais alto que Costas, mas enquanto Costas tinha o tronco musculoso e em forma de barril de seus ancestrais das ilhas gregas, Hiebermeyer nunca conseguira se livrar da impressão de que seu ser inteiro girava em torno de linguiça e chucru¬te. Era uma ilusão, Jack sabia, para um homem que estava continuamente em movimento e tinha a energia de um pequeno exército.
Ele ainda está voando a meio mastro, como vejo, - Costas murmu-rou para Jack.
Não diga nada. Lembre-se, eu lhe dei esses shorts. Eles são uma par¬te consagrada de nossa herança arqueológica. Um dia vão estar no Smith- sonian Museum. Ele lançou um olhar para os shorts largos de Costas e a camisa sensacionalmente colorida. - De todo modo, você não pode dizer nada. "Hawaii 5.0".
Estou apenas me preparando -, disse Costas. - Para quando viajar-mos. Para o Pacífico. Lembra? Época de férias. Embora eu possa também usar estas roupas agora.
Sim. Você pode. - Jack pigarreou exatamente quando Hiebermeyer chegou e trocou um aperto de mãos caloroso com ele e depois com Cos¬ta. - Venham -, ele disse, colina abaixo, sem realmente parar.
Chega de tagarelice disse Costas, bebendo grandes goles de uma garrafa de água.
Faz meses que ele está querendo me mostrar este lugar -, disse Jack, colocando sua velha e desbotada mochila cáqui no ombro e começando a andar. - Mal posso esperar.
Certo, certo. - Costas arremessou a garrafa para dentro do helicóp-tero e seguiu os dois homens colina abaixo, alcançando-os a cerca de cin¬quenta metros da beira da água. Hiebermeyer tirou seus pequenos óculos redondos, limpou-os e depois abriu os braços de maneira expansiva. - Bem-vindos à antiga Berenike. O refúgio de férias no fim do universo. - Apontou de volta para o declive. - Lá em cima está o Templo de Serapis; aqui embaixo, a principal estrada leste-oeste, o decumanus. A cidade foi fundada por Ptolomeu II, filho do general Alexandre, o Grande, que governou o Egito no século 3 a.C. e chamou o local de Berenike, o nome de sua mãe. Floresceu especialmente sob o imperador romano Augusto, depois declinou.
Então, onde fica o anfiteatro? - Costas olhou ao redor. - Não vejo absolutamente nada.
Olhe para baixo.
Costas chutou o chão. - Muito bem. Alguns fragmentos de cerâmica.
Agora venham até aqui. - Eles seguiram Hiebermeyer mais alguns metros em direção ao mar. Ele os levou até a borda de uma área escavada do tamanho de uma grande piscina. Era como se o chão tivesse uma pele que fora tirada. Viram paredes de coral construídas com entulho bruto e arenito, formando pequenas salas e passagens estreitas. Era a fundação de uma antiga cidade, não um projeto impecável de cidade romana, como Pompéia ou Herculano, mas um lugar sem nenhuma pretensão arquite¬tônica, onde paredes e salas haviam sido claramente adicionadas na medi¬da da necessidade. Hiebermeyer pulou com agilidade surpreendente para uma prancha sobre uma vala. Saltou para o lado mais distante e puxou uma grande lona impermeabilizada, depois fez um floreio triunfante. - Aqui está, Jack. Achei que você ia gostar disto.
Era uma fileira de ânforas romanas, exatamente como aquelas que eles tinham visto naquela manhã, só que estas estavam gastas, e muitas tinham as beiradas quebradas. - Todas reutilizadas, como você pode ver disse
Hiebermeyer. - Suponho que elas chegaram à índia cheias de vinho, de¬pois foram trazidas de volta para cá vazias, para ser utilizadas como reci¬pientes de água. A água é um artigo precioso aqui. A fonte mais próxima se encontra a quilômetros de distância, nos flancos das montanhas. Não temos nem eletricidade. Utilizamos painéis solares para ligar os compu¬tadores. E precisamos trazer nossa comida para cá do vale do Nilo, do mesmo modo que eles faziam nos tempos antigos. Isto realmente nos faz ter empatia com o passado.
Isto se parece com uma colônia lunar -, murmurou Costas.
Hiebermeyer recolocou a lona encerada e puxou outra que estava ao lado, revelando uma pilha de pedras escuras mais ou menos do tamanho de bolas de futebol. - Lastro de navio -, ele disse. - Trata-se de um basal¬to vulcânico que não existe nesta área.
Lastro de navio repetiu Costas. - Por quê?
Um navio outward-bound  repleto de ouro e vinho vai navegar bem. Um navio retornando com grãos de pimenta vai balançar como uma cor¬tiça. Por isso é preciso usar lastro. A origem desta pedra foi identificada como sendo do sul da índia.
Maurice -, exclamou Jack, batendo em suas costas. - Ainda faremos de você um arqueólogo náutico.
Índia -, disse Costas. - Alguém vai ter que me informar.
Jack se voltou para ele. - Durante milênios, os antigos egípcios ha-viam recebido artigos de além do Mar Vermelho, mas sempre por meio de intermediários. Então, algum tempo depois que Alexandre conquistou o Egito e os primeiros mercadores gregos apareceram ao longo desta cos¬ta, alguém ensinou para os egípcios e gregos como se navega pelo oceano Índico usando as monções. Eles navegavam para fora do Egito com a monção na direção nordeste, voltavam com a monção na direção su¬deste, realizando uma viagem inteira no período de um ano. Era perigo¬so e aterrador, mas os ventos eram tão previsíveis como as estações. Isso inaugurou uma era assombrosa de descobertas marítimas. Os primeiros mercadores gregos por via marítima chegaram à Índia logo depois que Berenike foi estabelecida. Depois que os romanos dominaram o Egito em 31 a.C., tudo andou mais rápido. Sob Augusto, cerca de trezentos navios saíam daqui anualmente. Era um enorme investimento, algo muito arris¬cado, assim como as Índias do Leste Europeu se dedicaram ao comércio mil e quinhentos anos mais tarde. Os navios iam com ouro, prata, vinho e retornavam com gemas, especiarias e pimenta.
E não só isso -, disse Hiebermeyer, pulando para fora da vala e en-xugando o suor da testa. - Agora vou mostrar o que realmente queria que vocês vissem. Sigam-me, vamos subir a colina. - Uma rajada de vento muito quente soprou, ferindo seus olhos. Costas se agachou para se pro¬teger, depois se arrastou atrás dos outros dois homens.
Nós estávamos falando sobre a batalha de Carrhae, as legiões perdi¬das de Crasso -, disse Jack.
Estou sempre pronto para ouvir acerca de uma derrota romana -, replicou Hiebermeyer, sorrindo para Jack.
Ora. Os romanos não governaram o Egito de uma maneira muito ruim. Se não fosse por eles, vocês não estariam aqui, tomando sol ao lado do Mar Vermelho. Este é um local basicamente romano.
Eu preferiria estar no Vale dos Reis -, fungou Hiebermeyer.
Falando com Costas sobre Carrhae, lembrei-me de outra derrota ro-mana -, disse Jack. - Uma que nunca foi esquecida pelos imperadores. As legiões perdidas pelo general Públio Varo, que foram destruídas no século 9 d.C. na floresta de Teutoburg.
Hiebermeyer parou de andar. - Este foi meu primeiro verdadeiro sa-bor de arqueologia, quando era menino, e buscava o lugar da batalha. Minha família possuía uma residência nas proximidades, fora de Osnabruque, na Baixa Saxônia.
Os olhos de Jack ficaram sombrios, e ele olhou para Costas. - Os romanos estavam investindo na Alemanha. Eram os dias gloriosos de Augusto. As possibilidades pareciam limitadas. Então tudo deu terrivel¬mente errado. Varo era inexperiente, como Crasso, e levou três legiões para território desconhecido. Eles foram atacados de tocaia pelos alemães e aniquilados, eram pelo menos vinte mil homens.
- O que você quer dizer? perguntou Hiebermeyer, subindo vagaro-samente a colina.
O declínio de Berenike, depois de Augusto. Isso é bizarro, no auge do império, quando a economia romana estava crescendo rapidamente. E como se o governo britânico tivesse subitamente perdido o interesse pela Companhia das Índias Orientais no final do século 18, quando as maio¬res fortunas estavam sendo feitas.
A derrota deteve os romanos em seus avanços -, disse Hiebermeyer. - O Reno tornou-se a fronteira. Augusto quase ficou louco por causa dessas legiões perdidas.
Jack aquiesceu. - Fico imaginando se Augusto não teria outras inten¬ções. Ele prestava atenção no leste, na Arábia, na Índia, nas terras além desse local, onde tudo era propício para a conquista. Ele observou e disse não. O império estava suficientemente grande. Eles não podiam se permi¬tir outra derrota. E o risco fora daqui, o custo do fracasso, era imenso.
E não somente militar -, disse Costas.
Continue.
Sólidas fortunas estavam envolvidas, certo? Navios carregados de ouro e prata. Isso significava somente os investidores mais poderosos, en¬tre eles o próprio imperador. Quais são os riscos de um naufrágio em uma viagem que parte daqui? Um em três, um em quatro? Vamos dizer que isso tenha ocorrido, e o imperador, perdido em escala muito grande. Seu próprio dinheiro. Um investimento de alto risco dá errado, e depois as legiões são eliminadas. Isso tudo é demais. Ele interrompe o negócio com a índia.
Jack parou. - Esta é uma ideia infernal.
Eu a vendo por uma cerveja gelada -, disse Costas, enxugando a fronte.
Encontre-me um naufrágio fora daqui cheio de moedas cunhadas oriundas de tesouro imperial, que eu poderei acreditar em você -, dis¬se Hiebermeyer, caminhando de maneira determinada declive acima, na frente deles. Costas olhou de maneira interrogativa para Jack, que sorriu e seguiu Hiebermeyer.
Falando de naufrágios, a propósito, obrigado pela pista, Maurice -, Jack disse em voz alta, embaraçado.
Hein?
Aquela tradução que você me mandou por e-mail. Do arquivo Coptos. O antigo naufrágio. O elephantegos.
-Ah, sim.
Nós encontramos um.
Ah, que bom!
Encontramos um elephantegos.
Ah, sim. Bom! - Hiebermeyer parou, claramente concentrado em alguma outra corrente de pensamento, aquiesceu educadamente, depois continuou andando. Depois de alguns instantes ele parou de novo, subi¬tamente, e olhou fixo para Jack, com a boca aberta de espanto. Jack captou o olhar de Costas, e os dois continuaram a subir o declive. Hiebermeyer os seguiu até a borda de outra ampla vala de escavação, onde ficou subi¬tamente preocupado ante a cena atarefada à frente deles. Ele gesticulou para um grupo de estudantes e trabalhadores egípcios que estavam num canto sob uma lona encerada. Uma mulher egípcia morena, de cabelo preso atrás sob um chapéu de aba larga, apareceu rapidamente e subiu para fora da vala diante deles. Ela falou baixinho com Hiebermeyer em alemão. Ele aquiesceu e se voltou para Jack. - Você se lembra de Aysha? Ela escavou comigo no cemitério de múmias em Fayum. Está encarrega¬da das escavações lá, mas eu lhe pedi que viesse para cá logo que começa¬mos a encontrar o que você está prestes a ver.
Congratulações pelo seu doutorado. - Jack estendeu a mão e a cum¬primentou.
E ao seu diretor assistente do Instituto de Alexandria -, disse Costas.
Alguém tem que cuidar de Maurice -, ela disse.
Jack sorriu consigo mesmo. Dois anos atrás, Aysha tinha sido a es-tudante mais graduada de Hiebermeyer, uma escavadora naturalmente bem-dotada que tinha mais paciência que Maurice com as minúcias de uma escavação, capaz de passar horas analisando minuciosamente uma tira de um envoltório de múmia, quando ele logo ficaria nervoso. Ela nunca se tornava subserviente em relação a ele, sempre silenciosamente sob controle. Era um complemento perfeito para ele, e Maurice nunca era pomposo com ela. Jack olhou para os dois juntos por um momento, e depois baniu o pensamento. Era impossível. Maurice nunca permitiria a distração.
-Você deve sentir saudades da cidade de Nova York -, disse Costas. - Eu volto para lá sempre que posso.
Quando concluí o curso em Columbia, mantive o apartamento -, disse Aysha. - Depois que terminar esta escavação, vou voltar para a cida¬de de Nova York para um ano sabático. O apartamento é o que consegui¬mos com os tutores de Rebecca, quando ela ficou conhecendo Jack. Eles ficaram lá na primavera.
Obrigado novamente por isso, Aysha -, disse Jack sorrindo para ela. - Você sabe que ela está conosco no Seaquest II?
É claro. Ela me enviou um e-mail esta manhã. Um comentário cor-riqueiro sobre as piadas de seu espantoso amigo.
Quando você voltar ao Queens, mande lembranças para meu bar-beiro, Antonio -, disse Costas melancolicamente. - Na esquina da 24a com a 22a. Ele cortou meu cabelo durante dez anos. Enquanto eu estava na escola. Cinco dólares o corte. Foi ele que fez minha primeira barba. Ensinou-me tudo o que sei.
É claro, Costas -, disse Aysha, desviando os olhos. - Da próxima vez vou marcar um horário para arrumar os cabelos.
Não é preciso marcar hora. Basta aparecer.
Jack riu. Hiebermeyer batia o pé impacientemente, e Jack viu sua ex¬pressão. - Muito bem, Maurice, o que você conseguiu? - Hiebermeyer fez um sinal para Aysha, e ela os acompanhou até a borda da vala. - Esta é uma villa romana ela disse. - Ou deveria dizer, o que se considerava uma villa neste local. O proprietário utilizou os melhores materiais disponíveis e gastou muito dinheiro em sua construção. As paredes são feitas com blocos de coral fossilizado, o principal material de construção usado aqui, mas elas estão chapeadas com tiras de gesso natural que devem ter sido trazidas do Nilo em caravanas de camelo. As pequenas colunas são de granito cinza egípcio, extraídos de montanhas a oeste daqui. A coisa realmente fascinante é que o proprietário conseguiu um chão de madeira polida, completamente em desacordo com a tradição romana. A madeira é teca, do sul da Índia. É madeira de lei, de navio, reutilizada.
E percebo alguns confortos modernos disse Jack, apontando para o canto onde os trabalhadores estavam escavando.
É uma cisterna de água, cavada dentro da rocha, revestida com con¬creto impermeável. Ao lado dela há uma versão econômica de um ba¬nheiro romano. Ele construiu para si umfrigidarium  alinhado com tubos de cerâmica para isolamento, e um sistema engenhoso para manter o aposento úmido.
- Ele devia passar muito tempo dentro dele -, murmurou Costas, enxu¬gando o suor do rosto. - Não sei como alguém pode suportar este calor.
Durante metade do ano não é tão quente -, replicou Aysha. - Este lugar ficava abandonado durante meses, no período compreendido entre a saída dos navios daqui para pegar a monção noroeste até sua volta, com a monção sudeste. Acho que o proprietário desta villa era um mercador viajante que se movimentava muito. Acho que este lugar era apenas seu abrigo quando estava na cidade. E acho, também, que provavelmente ele tinha outra casa na índia.
Na Índia! -, exclamou Costas.
Aysha, mostre-lhes, está bem? -, disse Hiebermeyer, saboreando ni¬tidamente o momento.
Aysha concordou e os conduziu para baixo da coberta de lona encerada ao lado da vala. Sobre uma mesa de cavalete estavam tabuleiros cheios de achados, principalmente fragmentos de cerâmica. - Algumas dessas peças são da índia. Estilo tâmil disse ela, passando para Jack um fragmento dentro de uma mala de polietileno. - Este fragmento tem um grafito em tâmil, possivelmente a palavra - Ramaya -. Poderia ser o nome do pró¬prio mercador, mas acho que é o nome da comunidade romana, no sul da Índia, o nome que a população local lhe deu.
Você acha que o proprietário era indiano? perguntou Costas.
Ou sua mulher disse Aysha. - Dê uma olhada nisso. - Ela apontou para um pedaço grosso de arenito, com cerca de trinta centímetros de diâmetro, muito erodido, mas com uma gravura ainda visível na parte da frente. Mostrava uma mulher de quadris e seios pronunciados, em um movimento sinuoso, como se estivesse dançando entre pilares, com um ornamento em espiral, tendo acima uma viga decorativa. - Quando este pedaço de arenito foi encontrado, meu assistente inglês lhe deu o nome de "Vénus de Berenike" -, disse Aysha. - Uma perspectiva tipicamente ocidental. Aposto que ela é indiana. Os colares, a decoração são típicos do sul da Índia. Acho que ela não é absolutamente uma deusa clássica, mas uma yaksi, um espírito feminino indiano. Você pode esperar encontrar algo assim num templo dentro de uma gruta em Tamil Nadu, o ponto mais distante que sabemos que os mercadores romanos visitaram ao lon¬go da costa da Índia, na baía de Bengala.
E olhe para isto. - Hiebermeyer apontou para uma caixa impermeá-vel ao ar com um termostato ao longo dela. - Isto é seda.
Seda? -, perguntou Costas. - Você quer dizer da China?
Achamos que sim disse Aysha, excitada. - Achamos que isto mos-tra que a seda não estava vindo somente por via terrestre da Pérsia para o Império Romano. Também estava vindo por mar, dos portos da Índia. Isto mostra que os mercadores estavam deixando a Rota da Seda em algum lu¬gar da Ásia Central, dirigindo-se ao sul pelo Afeganistão e descendo o Indo e o Ganges para alcançar portos nos quais se encontravam com mercadores como este. E de fato, Costas, isto aproxima a China do mundo romano.
Quem sabe é para lá que todo o ouro estava indo -, disse Costas. - Não para comprar pimenta, mas sim seda.
Outra idéia interessante murmurou Jack.
Encontre um naufrágio ligado a esse comércio, e valeria a pena esca¬var seu carregamento -, disse Hiebermeyer. - Até eu reconheço isso. Um antigo East Indianman .
Acho que podemos estar apenas um passo à sua frente, meu velho replicou Costas, chutando uma pedra e dando uma olhada para Jack. Mas Hiebermeyer deu um salto e se afastou para o outro lado da escavação, onde levantou uma caixa de alumínio e levou com cuidado até onde eles estavam, pingando de suor.
Costas se abaixou, pegou a pedra do chão e a ergueu. Era uma pedra que depois de lapidada pode ser usada como joia. Uma pedra inteira, não cortada, de um azul profundo, com salpicos de ouro. - Examinem isto.
Aysha olhou, depois disse, ofegante. - É lápis-lazúli, Maurice, olhe! Costas encontrou uma pedra de lápis-lazúli!
Hiebermeyer colocou a caixa de lado e pegou a pedra de Costas, levan¬tando os óculos e olhando atentamente para ela, virando-a e esfregando-a. - Meu Deus ele murmurou. - É da mais alta pureza. Do Afeganistão. Esta é outra peça do complicado quebra-cabeça. Eles também faziam co¬mércio disso. Lápis-lazúli vale igualmente uma fortuna.
Meses de escavação meticulosa, e você nunca teria encontrado isso - disse Costas, olhando com ar inexpressivo para Hiebermeyer.
Os olhos de Hiebermeyer estreitaram-se. - Onde, posso perguntar, você pegou esta pedra?
Costas apontou para baixo, sorrindo. - Você deve apenas saber para onde olhar.
Hiebermeyer bufou, depois colocou cuidadosamente a pedra num ta¬buleiro de achados. - É óbvio que alguma coisa da habilidade de Jack passou para você. E agora vamos ao verdadeiro tesouro.
- Ainda tem mais? perguntou Jack.
Hiebermeyer bateu na caixa. - Esperava ansioso a chegada do Seaquest II. Nós precisamos das instalações completas do laboratório, visualizador infravermelho, imagem multiespectral. Precisamos olhar esses achados apropriadamente, fora daqui, deste lugar quente -, ele disse, enxugando o rosto. - Nós vamos terminar aqui nesta estação. O lugar ficou muito quente. Meu capataz egípcio fechará o sítio. Aysha e eu já nos despedi¬mos da equipe e fizemos as malas; estamos prontos.
Você está dizendo que quer ir embora agora? -, perguntou Jack.
Vocês tinham duas cabines sobressalentes, não é?
É claro. Vou passar uma mensagem por rádio para o capitão; vocês podem juntar-se a nós para um cruzeiro pelo oceano Índico.
Costas olhou de maneira cética para Hiebermeyer. - Como está sua capacidade para ficar andando pelo convés de um navio? Podemos nos deparar com a monção.
Minha capacidade vai bem. - Hiebermeyer olhou propositadamente para Jack. - É com a dele que estou preocupado.
Faz anos que isso não acontece -, disse Jack na defensiva. - Não acontece desde que éramos crianças, Maurice. E aquela era uma navega¬ção num barco pequeno. E foi você quem a construiu. De maneira muito imperfeita.
Aysha arregalou os olhos para Jack, com uma sombra de sorriso nos lábios. - Estou ouvindo direito? O famoso Jack Howard sofre de enjôo de mar?
Ele chama isso de toque de Nelson -, disse Costas. - O maior almi-rante da Inglaterra, Lord Nelson. Enjoado como um cachorro cada vez que saía ao mar.
Não tenho enjôo de mar -, disse Jack. - Apenas sinto empatia com meus heróis.
Bem, isto é bom -, disse Hiebermeyer. - Porque com aquilo que tenho aqui nesta caixa, você não terá muito tempo para olhar para o hori¬zonte. Você vai mesmo nos levar para Arikamedu?
Para onde? - Costas olhou fixamente para Jack, com ar de suspeita. - Você está com aquele olhar.
Jack pigarreou. - Aonde os romanos que saíram daqui para navegar chegaram, no sudeste da Índia. É um lugar surpreendente. O Levanta¬mento Arqueológico da Índia está planejando uma nova escavação. Sou oficial conselheiro de sua unidade subaquática, e prometi ir dar uma olhada quando o Seaquest II estivesse perto dali no oceano Índico. Maurice e Aysha nunca estiveram lá, e parece loucura não lhes proporcionar essa chance se, de qualquer maneira, eles estiverem a bordo conosco. Eu já telefonei para nosso homem em Arikamedu e o preparei.
Pensei que fôssemos testar meu novo submersível no Havaí mur-murou Costas. - E encontrar uma praia. E encontrar um pequeno e agra¬dável bar com palmeiras frondosas.
Trata-se apenas de uma pequena diversão antes -, disse Jack.
Costas olhou fixo para ele. - Sim. Certo. Uma diversão.
Jack olhou para a gravura da mulher espírito dançando, depois para o fragmento com o grafito tamil. Ramaya. Colocou-o cuidadosamente de volta na mesa e deu uma olhada nos outros. - Bem, se vocês estão pron¬tos, acho que podemos partir. Quanto antes sairmos, mais cedo descobri¬remos o que foi que vocês conseguiram e está aí dentro dessa caixa.
Hiebermeyer pegou a caixa. Jack e Costas pegaram as duas mochilas que estavam prontas perto da tenda, e Aysha, uma pasta e uma mochila menor. Eles acenaram para o grupo que estava na vala e começaram a descer o declive em direção ao helicóptero. Hiebermeyer parecia nova¬mente perdido em pensamentos, mas subitamente parou, colocou a caixa no chão e olhou atentamente para Jack. - Acabei de me lembrar. Falar do pequeno barco me fez lembrar. E então ir para o sul da Índia. Você tem uma história familiar lá, não tem? Seu tatatavô, não é, o soldado? Algo que ele encontrou na selva, no século 19. Você costumava falar nisso quando estávamos na escola. Como você gostaria de ir para lá. Segundo me lembro era em algum lugar em Tamil Nadu, o Ghats oriental. Se você estiver em Atkademu, não estará muito longe.
Jack olhava fixamente para Hiebermeyer. - Eu sempre quis saber se poderia descobrir mais a respeito. Sou apaixonado por esse assunto. Você está certo. Esta é uma oportunidade demasiado boa para se perder. Acho que posso combinar isso com o Levantamento Arqueológico da índia. E há uma conexão com os romanos. Tenho certeza disso. Tive um instinto visceral.
Uh-oh disse Costas, parando ao lado dele. - Não apenas uma di-versão. Um instinto visceral. Isso é sério.
Jack sorriu maliciosamente, depois colocou no chão a mochila e pro¬curou algo dentro da sua própria, retirando dela um pequeno envelope marrom, que segurou na palma da mão e com cuidado tirou a moeda de ouro. Aysha suspirou, e Hiebermeyer segurou a moeda no alto, com o sol cintilando de maneira ofuscante sobre a imagem do imperador. - Pressenti que você havia encontrado algo como isso, Jack. Você estava deixan¬do uma série de pistas. Eu o conheço muito bem. - Ele olhou fixo para a moeda. - Ela é fantástica -, ele murmurou. - Essas paredes desmorona¬das, esses fragmentos da antiga Berenike contam uma história humana, mas esse lugar tinha realmente a ver com o que passou por ele, riquezas incalculáveis, a fortuna de um império. Para compreender o que real¬mente ocorreu aqui, você tem que segurar isto. Segurar um tesouro. Foi isto que promoveu este lugar, tesouros em escala inimaginável.
E o mar se apoderou de um carregamento em suas redes -, disse Costas.
Existem mais dessas moedas? perguntou Hiebermeyer.
Milhares delas -, disse Jack. - Toda uma tiragem de moedas novas. Todas de ouro imperial.
É um filão disse Costas.
Hiebermeyer relaxou os ombros, deu um amplo sorriso, e colocou sua outra mão no ombro de Jack. - Congratulações, Jack. Você se lembra de como eu costumava chamá-lo, quando éramos crianças? Jack Sortudo. - Ele devolveu a moeda, pegou novamente a caixa, depois tomou Costas pelo braço, guiando-o para descer o declive empoeirado em direção ao helicóptero. - Agora conte-me sobre os elefantes.
Você não vai acreditar.
- Experimente!

Três dias mais tarde, Jack estava parado na ponte de comando do Seaquest II, inclinado na balaustrada e olhando em direção ao horizonte oriental. O sol havia se erguido num céu claro pela primeira vez desde que tinham deixado o Mar Vermelho, e Jack desfrutava dos raios cálidos quan¬do ele se refletia na água. Os últimos três dias não tinham sido nada agra¬dáveis. A monção os atingira assim que eles circundaram a Arábia, e eles navegaram diretamente através do mar aberto em direção à extremidade sul da índia. A única maneira de navegarem com economia era manter a velocidade em vinte nós, com o vento de popa. Jack tinha dificuldade para compreender como os antigos marinheiros gregos e egípcios faziam, sa¬colejando e chafurdando, com as grandes ondas, centenas de quilômetros longe da terra, tendo apenas a direção da monção para orientar a navega¬ção. Devia ser uma tremenda façanha, exigindo muita coragem e navegar fora da vista de terra devia ser o pior dos pesadelos. Especialmente se eles tivessem enjôo de mar. Jack engoliu em seco e tentou esquecer as últimas setenta e oito horas. O pior não acontecera, mas tinha estado perto. Ele es¬tava exausto, mas também se sentia como um sobrevivente de uma doença quase fatal, com uma nova oportunidade de vida.
E também não haviam sido divertidas as horas que passara parado nes¬se local, açoitado pelo vento e borrifos de água, com os olhos perambu¬lando sem parar, procurando uma linha no horizonte, no tumulto das vagas e na negritude bruxuleante que parecia não ter fim.
O rosto do capitão apareceu na porta da ponte de comando, e ele se¬gurava uma caneca fumegante. - Agora estamos entrando no estreito de Palk. Conseguimos um piloto local para nos ajudar a navegar pelo es¬treito, e estou colocando o navio em alerta. A marinha do Sri Lanka está envolvida num conflito armado com os barcos dos rebeldes Tigres Tamil exatamente na extremidade setentrional, e estaremos ao alcance deles.
- Certo. Obrigado. - Jack pegou a caneca, agradecido, e voltou-se para o oceano. Observou a lancha que trazia o piloto, aproximando-se pela lateral do navio, emparelhando cuidadosamente com ele em velocidade, enquanto o piloto era guinchado, sentado numa cadeira, e içado a bor¬do. Agora ele podia ver terra dos dois lados, a extremidade sul da Índia e a costa noroeste do Sri Lanka. Os estreitamentos à frente eram outro obstáculo que os antigos marinheiros deviam ter enfrentado, baixios trai¬çoeiros e recifes conhecidos apenas por profissionais locais. Mas, uma vez ultrapassado o estreito, os marinheiros estavam chegando ao final de sua viagem, no local onde se encontravam com negociantes vindos do leste, de Chryse, a quase mítica Terra do Ouro, um dos lugares mais distan¬tes conhecidos pelos ocidentais. Jack olhou para o relógio. Maurice tinha prometido que nessa manhã revelaria seu achado, antes que eles alcanças¬sem o sítio romano de Arikamedu. Maurice e Aysha tinham permaneci¬do o tempo todo dentro do laboratório do navio, tentando compreender aquilo que ele havia trazido de sua escavação no Egito. Jack estava ansioso por juntar-se a eles. Ia descer e ver por si mesmo, assim que terminasse o café. Especialmente agora que no convés inferior havia uma proposta realista e não o pesadelo desesperador dos últimos três dias.
Jack sentiu um toque no braço e se voltou. Era Rebecca. Ela vestia jeans e uma camiseta do IMU. - Está se sentindo melhor? ela pergun¬tou. Jack fez que sim, sorrindo. Seu sotaque era americano, e sua voz es¬tava adquirindo a tonalidade grave que Jack achava atraente em sua mãe.
Rebecca era morena, como Elizabeth, mas tinha os olhos azuis de Jack. Havia certa tristeza neles, uma tristeza que sempre estaria ali, e o coração de Jack se enterneceu com a criança que havia experimentado a perda da mãe e tinha crescido longe de seus verdadeiros pais. Jack só soube que era pai depois das horríveis circunstâncias do desaparecimento e da morte de Elizabeth em Nápoles menos de um ano antes. Elizabeth o havia deixado dezesseis anos atrás, quando sucumbira à pressão da família para regressar a Nápoles, e Jack percebeu que ela só soube que estava grávida depois de ter sido sugada de volta para dentro do submundo sombrio do qual nunca conseguira escapar. Ela não queria se arriscar a criar a filha naquele mundo e mandou-a para Nova York. Rebecca cresceu forte e segura sob a guarda de amigos da mãe, e quando Elizabeth lhe explicou o motivo disso, o cenário sombrio de sua vida em Nápoles, ela compreendeu como somente uma criança pode compreender, absorvida na excitação de sua própria vida. Mas a morte da mãe fora devastadora, e depois que Jack en¬controu Rebecca pela primeira vez em Nova York, seus amigos no IMU tornaram-se uma segunda família para ela. Jack a acompanhou a Nápoles para a comemoração feita pelas colegas de sua mãe da Superintendência Arqueológica nas encostas do monte Vesúvio, contemplando do alto o sítio romano que fora a vida toda o local de trabalho de Elizabeth e a cida¬de moderna cujos tentáculos sombrios haviam tirado sua vida. Jack sabia que eles ainda estavam lá, aqueles que a usaram, exauriram, mesmo entre sua própria família, mas não ia haver represália; aquele ciclo de violência tinha sido o veneno que a matou. Sua escolha, a única que Elizabeth teria desejado, era ir embora, levando consigo a filha, e criar um mundo novo e excitante para Rebecca, que a ajudaria a guardar o passado num lugar de onde ele nunca a ameaçaria nem se apossaria dela. Jack nunca saberia se Elizabeth timha intenção de lhe contar sobre sua filha, mas não podia se permitir ficar pensando nisso. Sua responsabilidade agora era a felicidade de Rebecca. Ele colocou a mão na dela. - Eu me sinto bem -, ele disse. - Apenas precisava de um tempo livre.
- Durante três dias? Você? Pai! - Fazia pouco tempo que ela começara a chamá-lo assim. - Sou eu, lembra? Você não precisa bancar o herói comigo.
Jack apontou para aquilo que ela segurava. - Que livro é este?
De um cara chamado Cosmas Indicopleustes. Quer dizer, Cosmas, um marinheiro do oceano Índico. Era um monge egípcio, que chegou aqui no século 6 d.C. Eu estava fazendo leitura de base, como você me pediu, como sua assistente em pesquisa. Encontrei este livro em sua bi¬blioteca.
O que ele diz sobre o Sri Lanka?
Ela abriu o livro e leu:
A ilha, estando como está em uma posição central, é muito frequentada por navios de todas as partes da índia, Pérsia e Etiópia, e de lá partem igualmente muitos de seus próprios navios. E dos mais remotos países, penso em Tzinitza, ela recebe sedas, áloe, cravo-da-índia e outros produ¬tos, que são passados para os mercados deste lado. E a ilha recebe importações de todos esses mercados que mencionamos e as manda para portos remotos, enquanto, ao mesmo tempo, exporta seus produtos em ambas as direções. E muito mais longe está o país do cravo-da-índia, naquela época Tzinitza, que produz a seda. Além deste, não há outro país, porque o oce¬ano o limita na direção leste.
Ela fechou o livro. - Muito bem. Tzinitza é a China, o país do cravo- da-índia é a Indonésia. O que ele está dizendo é que Sri Lanka era uma espécie de Câmara de Compensação, a meio caminho entre dois mundos. O capitão Macalister sugeriu dar uma olhada no mapa do Almirantado. Eu vi quão traiçoeiro é esse estreito, é uma armadilha mortal para na¬vios grandes. Então, o que Cosmas estava dizendo é que navios do Egito chegavam aqui, descarregavam suas coisas nas embarcações locais, depois esperavam. Os barcos locais as levavam para o outro lado, passando pelos baixios, carregavam-nas em grandes navios vindos da baía de Benga¬la, Indonésia, até mesmo da China. E a mesma coisa acontecia do outro lado. Você pode realmente imaginar isto aqui, aqueles enormes e bem-providos navios romanos neste local onde estamos agora, e lá adiante, do outro lado, barcaças chinesas, com todos os tipos de canoas e catamarãs no meio delas? Bem legal, não é?
Bem legal -, replicou Jack, sorrindo. - Cosmas estava se referindo a quinhentos anos depois da chegada dos negociantes romanos em Berenike, mas basicamente é o mesmo cenário, até que a conquista árabe do Oriente Médio e Norte da África fechou as rotas marítimas para a índia. Cosmas oferece o relato mais detalhado que temos do antigo comércio realizado nesta região. Bom trabalho, assistente de pesquisa.
Pense de maneira não convencional. Foi o que o tio Costas me disse.
Tio Costas disse Jack.
Hiemy diz que sou muita parecida com você. Não sei se isso é um elogio ou não.
Quem?
Hiemy; Você sabe, seu velho companheiro. Herr Professor Doctor Hiebermeyer. E assim que Aysha o chama. Hiemy.
É claro, disse Jack. - Hiemy.
Aysha está apaixonada por ele, você sabe.
Espere um pouco. Uma coisa de cada vez.
Estou apenas atualizando-o. Você passou os três últimos dias com a cabeça nas nuvens.
Jack riu. - Bem, eu estive esperando. Hiemy tem hibernado como Caractatus Pott  trabalhando no seu Chitty Chitty Bang Bang. Ele sempre foi assim, desde nosso tempo de escola. Cada vez que me chama com uma nova descoberta e insiste em que eu venha vê-la, eu concordo, e então ele percebe que precisa de mais tempo para ficar absolutamente seguro. Então, antes de ir embora, geralmente espero que ele venha me ver pessoalmente umas três vezes. Aí vou saber que se trata de uma obra de arte.
- Jurei guardar segredo. Eu poderia lhe dizer o que é, mas não dá. Esta foi a condição que ele impôs para me deixar ajudá-lo no laboratório.
Isso também faz parte do jogo. - Ele a olhou nos olhos, pensou du-rante um momento, depois disse com cuidado: - Estive pensando muito
em sua mãe nestes últimos dias. Você sabe que quando você nasceu eu já não tinha contato com ela, e quando a vi no ano passado foi apenas por poucos momentos, no sítio arqueológico em Herculano. Mas tenho uma lembrança maravilhosa dela, de quando estivemos juntos durante todos aqueles anos, como a gente se recorda de um filme favorito, que nunca vai mudar. Você também está nesse filme agora. E como se fossemos uma família unida. Consigo perceber muito dela em você.
Quando ela me falou de você na ultima vez em que a vi, disse o mesmo sobre você -, disse Rebecca. - Ela planejava entrar em contato com você depois que eu fizesse dezesseis anos, você sabe. Disse que sem¬pre teve intenção de fazer isso, assim que eu tivesse idade suficiente para cuidar de mim. Meu aniversário foi um mês depois quê ela desapare¬ceu. - Rebecca olhou para Jack com olhos insondáveis, depois colocou os braços ao redor dele e descansou a cabeça em seu ombro. Jack abraçou-a apertado, e sorriu. - Talvez ela estivesse certa ele disse. - Talvez exista um pouco de mim em você.
Não o pedaço que enjoa, espero.
Eu não fico mareado.
Sim, certo. - Ela se inclinou novamente na ponte de comando e gritou. - Doutor Jack Howard, famoso arqueólogo subaquático e coman¬dante extraordinário, tem enjôo de mar.
Está na hora de você voltar para a escola, - resmungou Jack.
Hah. Estamos em alto-mar. Também estive lendo sobre isso. As leis não se aplicam aqui.
Sentiu um toque no ombro, era Scott Macalister que estava atrás dela, sorrindo para Jack. - Jovem dama, somente uma lei se aplica aqui, e é a lei do capitão. Qualquer pessoa menor de dezoito anos está sob minha responsabilidade pessoal. - Colocou um antigo sextante de metal nas mãos dela. - Aula de navegação exatamente às dezesseis horas. - Naquele momento, uma faixa branca apareceu a algumas centenas de metros da proa de estibordo. - Inspetores chegando -, ele disse. - Agora, todos para dentro. - Ele os introduziu na ponte de comando e fechou a porta, pu¬xando uma lâmina de aço sobre a janela. Tirou os binóculos e olhou atentamente através do vidro fronteiro à prova de bala. - Essa era uma ronda exaustiva que vinha do conflito armado a uns três quilômetros adiante. Melhor prevenir do que remediar.
Ben vem me ensinando a atirar com um rifle EM-2 disse Rebecca.
Não acho que você possa enfrentar os rebeldes Tigres Tamil com um rifle EM-2 murmurou Macalister, com os olhos ainda fixos no binóculo.
Espero que esteja usando proteção de ouvido disse Jack.
Posso cuidar de mim mesma. - Ela se virou e foi na direção da esco¬tilha traseira que levava aos alojamentos no convés.
Talvez ela não tenha herdado nada de mim murmurou Jack, olhando com expressão de pesar para Macalister. - Adolescentes.
Venha, papai -, chamou Rebecca. - Eles estão prontos para recebê- lo no laboratório. Foi para lhe dizer isso que subi. Ajudei Aysha com as peças finais. Você vai adorar isto. É meu presente para você por ter me salvado da escola.
Jack sentiu uma onda de excitação e se voltou para Macalister. - Muito bem, Scott. Avise-me quando o estreito estiver desimpedido, está bem? E eu quero o Zodiac preparado. Nosso encontro com as pessoas do Levan¬tamento Arqueológico da Índia em Arikamedu é às quinze horas, e quero estar de volta aqui e navegar subindo a costa pelo anoitecer.
Faremos isso, Jack. - Macalister enfiou a cabeça pela escotilha. - E melhor você seguir o chefe.
O laboratório principal do Seaquest II era do tamanho de uma sala de aula e ficava abaixo do bloco de alojamentos e acima da casa de máquinas. A limpeza e a conservação dos achados eram efetuadas numa sala nos fundos, com uma grande quantidade de tanques de dessalinização para madeiras e outros materiais muito delicados para ser retirados da água. Jack pensou no complexo como um campo hospitalar, para a estabiliza¬ção dos achados que seriam depois transferidos para um tratamento de longo prazo no museu do IMU em Cartago, no Mediterrâneo, ou para o campus na Inglaterra. O laboratório tinha instalações para limpeza a seco de achados como cerâmica, que podiam ficar fora d'água com segurança por períodos curtos. Um pouco mais à frente havia salas para trabalho de análise, inclusive imagem multi-espectral, uma seção de petrologia com análise de qualidade por meio de cortes finos e espectrometria de massa. O complexo fora planejado para permitir respostas a questões básicas du¬rante uma escavação.
Jack seguiu Rebecca para dentro. Quatro mesas compridas tinham sido montadas juntas para formar uma superfície única, com as pernas fixadas no chão. Acima delas uma grande quantidade de luzes de tungsténio inci¬dia sobre a superfície das mesas com um brilho vivo. Aysha e Hiebermeyer estavam curvados sobre um tripé de câmera fotográfica. Aysha empurrava algo para a tabua preta debaixo da câmera, enquanto Hiebermeyer se equi¬librava sobre o visor, segurando o controle remoto do disparador. Parecia um estranho abraço. Rebecca olhou para Jack, apontando para eles como para fazer uma pausa em seu caso. Ambos esperaram silenciosamente, en¬quanto Hiebermeyer acionava o disparador, e depois Aysha colocou o ob¬jeto de volta na mesa. Hiebermeyer voltou-se para eles. - Jack! -. Sob a luz de tungstênio, seu rosto parecia ter um brilho febril, e suas pálpebras estavam vermelhas. - Desculpe-me por tê-lo deixado no escuro por tanto tempo. Só queria estar absolutamente seguro.
Rebecca deu a volta, foi para o outro lado da mesa e se sentou num banquinho, rodeada de livros e blocos de anotações que acumulara nos últimos dias. Costas também fora convocado e chegou depois de Jack, e ambos foram até a mesa. Sobre ela havia centenas de fragmentos de ce¬râmica, alguns deles bem pequenos, com apenas um ou dois centímetros de diâmetro, e outros do tamanho de pires pequenos.
- Vamos brincar de quebra-cabeça? -, perguntou Costas.
O pulso de Jack começou a se acelerar. - Ostraka! - Ele se inclinou sobre a mesa. Aysha acompanhou Costas até um banquinho. - Esta é a palavra grega para fragmentos de cerâmica -, ela disse. - Mas os arqueó¬logos a usam para fragmentos que contêm inscrições, quando a cerâmica era usada como superfície para escrever. No mundo antigo, o papiro era uma mercadoria muito valiosa, usada somente para cópias importantes. Se quisessem uma superfície para escrita de uso diário, anotações tipo lembrete, para escrever cartas, compor esboços toscos, era só procurar a ânfora velha mais próxima e quebrar.
Jack circundou a mesa, olhando para os fragmentos, com a mente ace¬lerada. - São fragmentos de ânforas romanas, italianas, do século 1 a.C. ou século 1 d.C. É o mesmo tipo de ânfora de vinho que vimos em Bere- nike. E a escrita é grega, como era de se esperar no Egito daquela época. O grego era a segunda língua desde que Alexandre conquistara o Egito. Parecia que toda escrita era feita pela mesma mão. Suponho que você en¬controu todos esses fragmentos na casa do mercador que está escavando.
Os olhos de Hiebermeyer brilharam. - Isso é espantoso. Ainda não consigo acreditar. - Ele fez uma pausa, olhando firmemente Jack nos olhos. - Você está pronto? Muito bem. Este é o único texto antigo conhe¬cido do Periplus Maris Erythraei, o único que realmente data do período romano em que ele foi originalmente escrito.
Jack ofegou. The Periplus of the Erythraean Sea (O périplo do mar da Eritreia). O maior livro de viagem que subsistiu da antiguidade. Era exa¬tamente o que se podia encontrar em Berenike, num posto fronteiriço na extremidade do Império. Não era um grande livro de literatura, não uma história perdida ou um volume de poesia, mas um guia de viagem, um itinerário para capitães de mar e mercadores. Ele pigarreou. - Cópia ou desenho? -, perguntou.
- Desenho.
Jack expirou intensamente. Desenho. Isso era ainda mais extraordiná¬rio. Um desenho podia significar retificações, um material apagado na versão polida. Todas as anotações esboçadas que depois são editadas. Pa¬lavras e frases preciosas. Ele olhou atentamente para Hiebermeyer. - Mal ouso perguntar. Você viu alguma coisa nova?
Hiebermeyer estava explodindo de excitação. - Eu o vi nos primei-ros dias do início da escavação em Berenike. Você se lembra de quando tentei falar com você em Istambul? Eu sabia pouco naquela época sobre quantos fragmentos mais iria encontrar e quanto tempo isso levaria. Foi um exercício de paciência. Eu não teria conseguido fazê-lo sem Aysha. - Ele se voltou e olhou para Aysha, que fez um gesto de assentimento. Ele estendeu a mão e pressionou um painel de controle. A tela de plasma na parede ao lado da mesa mostrou uma imagem em computação gráfica dos fragmentos em 3-D, não ordenados. - Era assim que eles apareciam na escavação, na villa antiga. Nós o chamamos de sala de arquivo, mas na verdade era mais um estúdio. Depois de desenhar cada sentença em um grande pedaço de ânfora, acreditamos que o autor a transferia para um papiro e depois lançava os fragmentos num canto. Alguns permaneceram quase intactos, outros se quebraram em pequenos pedaços. Percebi que íamos ter que registrar todas as relações espaciais entre os fragmentos in situ, se quiséssemos manter qualquer esperança de juntá-los novamente. Esse foi o trabalho de Aysha. Ela tem sido maravilhosa.
Seria bom alguém me esclarecer -, disse Costas.
- Maris Erythraea, o mar da Eritreia, traduzido como Mar Vermelho -, disse Aysha. - O que para os antigos significava todos os mares a leste do Egito: o Mar Vermelho, o oceano Índico, o que há além. Periplus signifi¬ca navegar ao redor, e era o termo para um guia náutico, um itinerário.
O guia náutico do mar da Eritreia -, murmurou Costas.
Ele é, na realidade, um dos documentos mais surpreendentes re-manescentes da antiguidade -, disse Jack. - O Periplus não foi escrito por um aristocrata, não por um Cláudio ou um Plínio, o Velho, mas por trabalhador de pés descalços. No entanto, ele narra umajornada muito maior que qualquer fantasia de Ulisses ou Eneias, um relato verídico de exploração e comércio com as regiões inferiores do mundo antigo. Parecia difícil acreditar no Periplus antes que os arqueólogos começassem a encontrar os remanescentes de gregos e romanos onde estamos agora, ao sul da Índia.
Então esse homem que tinha a villa, o mercador, foi o autor? per-guntou Costas.
Estou absolutamente convencido disso -, Hiebermeyer pressionou o console novamente, revelando uma foto aérea da casa escavada em Berenike que eles tinham visitado quatro dias antes, mostrando o antigo porto e o Mar Vermelho. - Nós sabemos, por uma moeda romana enterrada nas fundações, que a sala do arquivo fora construída logo depois de 10 a.C., e a casa toda foi abandonada em torno de 20 d.C. O fato de esses fragmentos não terem sido removidos para fora da sala nos leva a supor que o texto data de pouco antes do abandono, aproximadamente nos pri¬meiros anos do reinado do imperador Tibério.
Você quer dizer quando o comércio estava começando a declinar?, perguntou Costas. - Aquilo de que falávamos no Egito, alguns dias atrás, sobre o fato de o imperador obstruir o fluxo de ouro ou prata em barras ou lingotes?
Correto. Mas não acho que tenha sido por isso que a casa foi abando¬nada. Tudo aponta para esse homem, que já velho se aposentou, Aysha?
Ela ergueu o olhar. - Felizmente, conseguimos grande quantidade de conhecimentos para continuar. Antes desse achado, o primeiro texto que subsistiu do Periplus foi uma cópia medieval datada do século 10 d.C., e ela tem sido estudada em traduções desde o século 19. O que nós encontramos confirma o que muitos estudiosos pensaram, mas acrescenta uma nova e fascinante dimensão. Em primeiro lugar, fica claro pelo vocabulá¬rio e analogias que ele era um grego egípcio. Em segundo lugar, não há duvida de que ele mesmo navegou pelas rotas descritas no Periplus, indo muito longe, até Zanzibar, na África, depois de circundar a Arábia em direção ao noroeste da Índia, usando as monções em sua rota para o sul da índia. Ele fez isso um número de vezes suficiente para conhecer muito sobre navegação, mas fica claro que é um mercador, não um capitão de mar. Ele estava interessado, principalmente, em nomear os portos, contar como chegar a eles e fazer uma lista das mercadorias a serem negociadas em cada um. No sul da Índia, predominavam os metais preciosos, o que significa moedas romanas de ouro e prata que eram trocadas por pimenta e uma lista fantástica de outras especiarias e produtos exóticos, alguns de¬les vindos de lugares muito distantes.
Você faz ideia da sua especialização? -, perguntou Costas.
Você se lembra do pedaço de seda que lhe mostramos no local da escavação? Acho que era essa sua especialidade. Ele devia ter tido contatos com os lugares mais distantes do comércio, com negociantes que tinham vindo para o Ocidente saindo do mar da China Meridional, passando pelo estreito de Malaca e depois da Ásia Central, atravessando a Báctria, o Afeganistão moderno. Da Rota da Seda.
Acho que entendi -, disse Costas. - O livro era um projeto de apo-sentadoria. Ele o terminou, morreu, e a casa foi posta à venda, mas não havia compradores.
Posto de maneira muito eloquente, como sempre. - Hiebermeyer empurrou seus pequenos óculos redondos para cima. - De maneira não usual para um mercador do mar da Eritreia, ele não foi para Alexandria ou Roma, mas parece ter permanecido no porto egípcio que provavel¬mente foi sua base durante toda a sua vida ativa. Talvez lhe tenham dado algum tipo de trabalho administrativo, quem sabe como duovir, prefeito da cidade, para supervisioná-la no período fora de estação, quando ficava quase completamente deserta. Mas poucos homens saudáveis e capazes de manter uma villa iam querer viver em Berenike, e sua casa era imprati¬cável, especialmente com os negócios de grande valor declinando.
Talvez ele não tenha morrido aqui -, disse Rebecca, olhando para Aysha, que aquiesceu, encorajando-a. - Aysha acha que ele tinha uma es¬posa, e que ela era indiana. Um dos fragmentos tem um nome feminino indiano, Amrita. Ela me mostrou fotos de alguns materiais que eles en¬contraram, outros fragmentos como o grafito Tamil, fragmentos de te¬cido indiano, cerâmica do sul da índia. Talvez o Periplus fosse sua última palavra como comerciante, e depois de terminar o livro pegou a família e foi embora numa última viagem para o leste, para nunca mais voltar.
Costas esfregou o queixo. - Belo pensamento. Talvez depois de todo aquele tempo fazendo comércio com a Índia ele tenha se tornado nativo.
Jack estava absorvido com um conjunto de pequenos fragmentos de cerâmica colocados juntos, que claramente eram restos de dois fragmen¬tos maiores que tinham sido quebrados. - Olhem para isso -, ele excla¬mou. - Extraordinário! Posso ler as palavras Ptolemais Théron, Ptolemaida da Caça. Trata-se do porto de elefantes no mar Vermelho, Costas. E aqui, Rebecca, neste outro fragmento, posso ver Taprobana. Era assim que Sri Lanka era chamada, quinhentos anos antes que Cosmas Indicopleustes navegasse por aqui. - Ele se endireitou e olhou para Hiebermeyer.
- E então? Tudo isso é fantástico. Mas eu o conheço muito bem. O que você quer realmente me mostrar?
Conte logo, Hiemy -, disse Costas.
Os olhos de Hiebermeyer transpassaram Costas. Ele se voltou para Jack. - Nós conseguimos um pouco menos de um terço do Periplus aqui. Cerca de mil palavras. Ele é muito semelhante à copia do século 10, com apenas poucas diferenças na formulação do texto e na gramática. Com uma exceção.
Continue - , disse Jack.
Hiebermeyer apontou para um grande fragmento que estava ao lado de Rebecca, e todos se juntaram em volta dele. O fragmento tinha mais ou menos o tamanho de um prato de jantar e estava preenchido por quinze linhas de uma escrita fina, mal se distinguindo a tinta em alguns pontos da superfície de pátina esbranquiçada da cerâmica. O texto fora escrito dentro do fragmento e não estava interrompido nas bordas. - Esta é uma seção intacta, como um parágrafo -, disse Hiebermeyer. - É onde ele descreve a navegação além do golfo Pérsico e olha em direção à Índia, justo antes de alcançar o porto de Barygaza na embocadura do Indo.
Você quer dizer a seção em que ele põe seu chapéu de arqueólogo -, murmurou Jack.
Hiebermeyer assentiu com a cabeça. - Em geral ele só divagava quan¬do estava em jogo um valor prático, por exemplo, ao mostrar onde cer¬ta tribo local devia ser evitada, ou ao descrever uma região no interior para dar uma ideia de onde os artigos destinados ao comércio vinham. Há duas exceções fascinantes, e ambas dizem respeito a Alexandre, o Gran¬de. Em um lugar ele descreve até onde Alexandre penetrou no Ganges, mas não no sul da Índia. Ele conta como no mercado em Barygaza, perto da embocadura do Indo podem-se encontrar moedas, antigos dracmas, gravados com inscrições ou efígies de governantes que vieram depois de Alexandre.
Apollodotus e Menandro, os primeiros reis selêucidas disse Jack.
Hiebermeyer aquiesceu. - Os negociantes ocidentais que iam para a Índia teriam sido bem versados na história de Alexandre, e sem dúvida havia locais que viam uma maneira de ganhar dinheiro rápido venden¬do moedas selêucidas como relíquias. Alexandre viveu no século 4 a.C., trezentos anos antes que o Periplus fosse escrito, mas a história ainda era tão importante que as pessoas que vinham para cá podiam ter sentido que a poeira da conquista mal assentara. Nosso mercador sabia tudo sobre conduta inescrupulosa e estava alertando seus leitores para o fato de que as relíquias eram falsificações. Ele não era o tipo de homem que podia ser enganado com essas histórias. Isso me faz pensar que podemos levar a sério sua segunda referência, a que vocês veem neste fragmento.
Eu localizei as palavras de Alexandre -, disse Costas, olhando atenta¬mente para baixo. - Meu grego antigo é um pouco grosseiro.
Eis a tradução. - Hiebermeyer pegou um pedaço de papel coberto com sua indecifrável escrita à mão e leu:
Imediatamente após Barake situa-se o golfo de Barygaza e a praia da terra de Ariake, o início do reino dos manbanos e de toda a Índia. A parte do interior, que faz fronteira com a Cítia, é chamada Aberia, a parte ao longo da costa Syrastrene. A região é muito fértil e produz grãos, arroz, óleo de gergelim, manteiga, algodão e tecidos indianos feitos com ele, os de qualidade inferior. Há numerosos rebanhos de gado, e os homens são muito grandes e têm a pele escura. Na área ainda são preservados até hoje mui¬tos sinais da expedição de Alexandre: altares arcaicos, as fundações dos acampamentos e poços enormes.
Jackfez um gesto de cabeça. - Altares arcaicos. Isso soa familiar.
Mas não a próxima sentença -, disse Hiebermayer. Ele fez uma pau¬sa e empurrou os óculos para cima. - E de Margiana, a cidadela dos partos ao norte daqui, os legionários romanos capturados em Carrhae escaparam para o leste, levando o tesouro dos partos com eles em direção a Chryse, a Terra do Ouro.
Jack cambaleou como se tivesse sido fisicamente atingido. - Isto é ina¬creditável -, ele disse, quase sussurrando. - Isto não está no Periplus.
Não era sobre isso que você estava falando no helicóptero, Jack? -, perguntou Costas. - Crasso, suas legiões perdidas?
Boatos e rumores, - murmurou Jack. - Até agora. - Ele respirou pro-fundamente, e olhou para Rebecca, que o observava atenta e de maneira inquisitiva. - Depois da derrota romana em Carrhae em 53 a.C., os partos fizeram milhares de legionários prisioneiros, possivelmente cerca de 10 mil. Sua sina fascinou os romanos durante gerações. O poeta Horácio es¬creveu sobre isso em uma de suas odes, perguntando se os veteranos ro¬manos tinham se casado com nativas e lutado como mercenários para um governante estrangeiro. Depois Tibério, filho de Augusto, negociou a paz com os partos e os estandartes das legiões capturadas foram devolvidos, um grande triunfo para Augusto, que fechou o capítulo da derrota.
Jack lhe mostrou a moeda encontrada em nosso naufrágio, não é, Rebecca? disse Costas. - Ela celebra o retorno das águias, os estandar¬tes sagrados dos legionários.
Jack fez que sim, e sua mente se acelerou. - A única outra alusão das fontes de informações romanas está na História natural de Plínio, o Velho, que diz que os legionários aprisionados foram levados para Margiana, a capital dos partos no atual Turquemenistão.
Isto é o que dá plausibilidade ao Periplus -, disse Hiebermeyer. - E olhe para a referência de Alexandre. Ele nos diz somente o que pode ve¬rificar. Alexandre é conhecido por ter edificado altares durante suas con¬quistas. Elas poderiam ter estado no local para onde Alexandre conduziu seu exército ao atravessar o deserto do Turquemenistão em direção à Ásia Central.
É claro -, replicou Jack. - Alexandre foi além de Margiana, a mo-derna Merv. E se os prisioneiros estavam escapando de Merv para o leste, eles podem ter passado por esses altares a caminho da Ásia central. Tudo se encaixa.
Por que o autor mais tarde apagou essa referência? -, perguntou Costas.
Deve ter sido algo que ele sentia que era verdade, mas nunca conse¬guiu confirmar -, disse Aysha. - As antigas moedas são palpáveis, os alta¬res podem ser vistos, mas as histórias são só historias. Imaginamos que a história pode ter sido contada por um revendedor de Báctria ou por um sogdiano que lhe trouxe seda. Mas talvez esse negociante tenha rompido o contato, desaparecendo sem deixar rastro, como acontecia com frequência na Rota da Seda. Talvez por ser um homem idoso o autor tenha duvidado de sua memória. A história do tesouro na Rota da Seda pode ter soado como uma fábula especuladora. No final havia dúvida suficiente, o que o fez apagar um parágrafo completo naquela sentença do fragmento e livrar-se dele atirando-o dentro de uma pilha de lixo. Era uma história passada de boca em boca, que podia algum dia alcançar o ouvido de um enciclopedista como Plínio, o Velho e ser inserida numa fonte de fatos e testemunhos como a História natural.
E talvez tenha entrado, mas apenas parcialmente, aquela referência no livro de Plínio aos prisioneiros em Merv, mas nada sobre a fuga para o leste -, disse Jack.
Mas você me falou sobre isso no helicóptero, Jack -, disse Costas.
Sobre como os legionários romanos podem ter alcançado a China. A evidência nos anais chineses.
Isto tem estado há vários meses em minha mente, desde que vi Katya.
Na Conferência Transoxiana? perguntou Hiebermeyer.
Katya é sua nova namorada -, disse Rebecca de maneira trivial.
Bem, não nova, exatamente. Ele a encontrou quando estava procurando a Atlântida no mar Negro, mas depois disso ela precisou de um tempo. Depois papai mais ou menos começou a sair com mais alguém durante um período, mas ela estava traumatizada por causa de outro cara com quem estava saindo, que ficou muito mascarado. Ou algo parecido. De todo jeito, ela também precisou de um tempo.
Jack tossiu, e Costas olhou fixamente para o chão, tentando manter o rosto sério. Ele pigarreou. - Como eu estava dizendo — ele lançou um olhar para Rebecca — a conexão chinesa. Nos anos 1950, um estudioso de Oxford publicou uma teoria radical dizendo que os mercenários ro¬manos tinham sido usados em uma guerra de fronteira pelos hunos da Mongólia, a dinastia chinesa na época do Periplus. A evidência foi uma referência a uma formação que soava como sendo a formação romana tes¬tado, tartaruga, em que os escudos ficavam sobrepostos acima das cabeças. A batalha foi em 36 a.C. Mais tarde, um estudo nos anais de Han sugeriu que os prisioneiros romanos da batalha ficaram estabelecidos em uma cidade em Gansu, no trecho final da Rota da Seda, em direção a Xian. Alguém percebeu que a população da aldeia atualmente apresenta certo padrão de beleza acima do normal, e assim começou a lenda dos legioná¬rios romanos na China.
Que evidência arqueológica há nisso? -, perguntou Costas.
Não há nada definitivo -, replicou Jack. - Mas não se deveria esperar muito. Um bando de soldados romanos depois de décadas encarcerados manteriam poucas características de que fosse reconhecidamente roma¬nos. Os soldados que escaparam podiam ter feito para si mesmos sandálias de legionários usadas em marcha e provavelmente escudos retangulares de madeira, a base para a teoria testudo. Mas além disso eles devem ter se apoderado de tudo o que podiam encontrar pelo caminho: armas, arma¬duras, roupas, qualquer coisa dos partos e bactrianos, até dos sogdianos e da população chinesa de Han. Mas uma coisa que eles devem ter feito foi deixar inscrições em pedra. Foi isso que interessou a Katya. Isso é perfeito para ela. Os romanos gostavam de fazer inscrições, marcos quilométri¬cos, lápides, sinetes para autoridade em territórios recém-conquistados. E é aí que entra a arqueologia. Alguns anos atrás, uma inscrição em latim foi encontrada em um complexo de cavernas no sul do Usbequistão, tre¬zentos quilômetros a leste de Merv, perto da fronteira com o Afeganistão - Jack folheou um caderno de apontamentos que retirou do bolso, depois abriu numa página em que havia um esboço. - Katya o desenhou para mim. - Ele lhes mostrou as letras:

                    LIC
                    AP. LG

- Fascinante -, murmurou Hiebermayer. - A primeira linha é um nome pessoal, provavelmente Licinius. E a segunda, Appolinaris Legio, não é? Esta era a legião dedicada a Apolo. Esta era a Décima Quinta legião, não era mesmo, formada por Augusto?
Jack confirmou com a cabeça. - Muito bom para um egiptólogo. Lem¬bro que sua paixão infantil era o exército romano na Alemanha. Mas esse exército não tinha Augusto como imperador. Ele formou a legião com sua aparência externa inicial como Otaviano, o sucessor adotivo de Júlio César. A Décima Quinta Apollinaris data de 41 a.C., logo depois do as¬sassinato de César. Isso ocorreu doze anos depois da batalha de Carrhae. Mais de três centúrias da legião passaram grande parte de seu tempo nas fronteiras orientais do império, lutando com os partos. Uma teoria traz a inscrição feita por um legionário capturado pelos partos e usado como guarda de fronteira, na distante extremidade oriental do império parta.
Mas? perguntou Costas.
Nunca aceitei a ideia de prisioneiros de guerra usados como guardas de fronteira, muito menos um deles fazendo uma inscrição. Katya e eu fizemos um brainstorming sobre isso num dia em que andávamos ao redor das paredes de Merv, e chegamos a outra hipótese. A linha sugerida pelo Periplus dá a isso um pouco mais de peso.
Conte, Jack.
No tempo de Crasso, muitas legiões eram formadas para campanhas específicas e em geral dispersadas depois de seis anos. Sabemos muito pouco sobre essas legiões, qual era seu número ou nomes, e o mesmo número pode ser usado várias vezes. Plutarco e Dião Cássio, as principais fontes sobre Carrhae, não nos contam os nomes das legiões envolvidas. Mas algumas delas já estavam ganhando um status lendário, aquelas que tinham servido sob Júlio César na Gália e na Bretanha nos anos que an-tecederam Carrhae. Várias daquelas legiões sobreviveram para tornar-se as mais famosas do exército Imperial, apreciadas por Augusto devido à sua associação com César. A Sétima Claudia, a Oitava Augusta, a Décima Gemina.
-Você está sugerindo que a Décima Quinta era uma dessas?
-A Décima Quinta foi fundada em 41 a.C., certo? Quer dizer, apenas um par de anos depois que César foi assassinado. O jovem Otaviano es¬tava tentando consolidar sua força e, qualquer coisa que se referisse a seu ilustre pai era aproveitada. Os historiadores nos contam que um milhar dos que passaram pelo calvário em Carrhae eram veteranos das campa¬nhas de César. Por que não uma das legiões também? Nossa teoria é que a Décima Quinta Apollinaris não foi fundada em 41 a.C.; ela foi fundada novamente. Estamos sugerindo que Otaviano deliberadamente reconsti¬tuiu uma das legiões veneradas por César, uma que foi vergonhosamente perdida pela incompetência de Crasso. Teria sido uma sólida demonstra¬ção de confiança e reverencia pela glória passada, exatamente o tipo de coisa que Otaviano teria feito.
Não tão gloriosa para os legionários sobreviventes, acorrentados em Merv -, disse Costas. - Isto os teria descartado.
De qualquer modo era muito tarde para eles -, disse Hiebermeyer. - Mesmo se as pessoas soubessem que a derrota fora causada pela incom¬petência de Crasso, os sobreviventes ainda não podiam manter a cabe¬ça erguida. Eles já teriam marchado com os mortos, procurando apenas encontrar uma morte com honra para que pudessem ir se juntar a seus irmãos de armas no Elísio.
Mas você está sugerindo que algum prisioneiro que escapou pode ter inscrito o nome de sua legião em uma caverna durante a longa e difícil viagem para o leste -, disse Costas.
Para os sobreviventes, o nome de sua legião ainda teria sido sua força de ligação, mesmo na ausência do estandarte com a águia sagrada.
Então, eles ainda eram leais a Roma.
Eles tinham lutado por si mesmos, por seus camaradas, como os sol¬dados sempre fizeram. Eles se orgulhavam de ser cidadãos-soldados, de ter uma profissão civil. Eles se orgulhavam de lutar por um comandante se o respeitassem, se ele fosse um deles, primus inter pares. Eles lutavam por César. Eles lutavam por suas famílias. Se teriam lutado por Roma como um império é um outro assunto.
E a legião? -, perguntou Costas.
A legião era sagrada replicou Hiebermeyer. - Era ali que havia le-aldade. E dentro dela, a coorte, a centúria, o contubernium, a seção de dez ou doze homens que até se chamavam de irmãos, frater.
Então perder a águia era ruim, sério - interrompeu Rebecca.
A pior coisa possível. Uma batalha eles podiam perder, com Crasso não se importavam muito. Mas perder a águia? Uma legião que perdesse sua águia seria uma legião de mortos, nunca poderia aparecer novamente em Roma. Nem mesmo diante de sua família.
Você acha que eles trataram disso com Crasso? -, perguntou Costas.
Crasso assinou sua própria sentença de morte quando os envolveu na batalha. Provavelmente eles teriam chamado isso de suicídio assistido.
Esses homens, se eles realmente sobreviveram e escaparam, devem ter sido os mais valentes entre os valentes -, disse Aysha.
Sempre há alguns -, disse Jack. - Aqueles que escapam da execução, que sobrevivem ao espancamento e à tortura, que têm força mental para suportar. E alguns dos legionários que estavam com Crasso eram homens que tinham sido recrutados cinco anos antes e lutaram com César na Gá¬lia. Eles podem ter sido cidadãos-soldados, mas estavam entre os matado¬res mais implacáveis que o mundo já conheceu. Homens que matavam com a lança, a espada, com as mãos nuas.
E no que se refere às legiões, elas podem fazer qualquer coisa, não há verificações, não há controles -, disse Costas.
Jack concordou com a cabeça. - Alguns daqueles rapazes perto do fim da República viram muito mais ação que seus sucessores, os legionários profissionais do Império, e a idéia de sua vida civil, seu trabalho, tornou-se uma espécie de mito. Mas quando se passa a vida matando, quem sabe onde se situam os limites? Quando chega o momento, se é que chega, como saber quando se deixa de ser soldado e se volta a ser um cidadão?
Um problema de idade avançada -, murmurou Hiebermeyer.
Se eles realmente tivessem escapado, o rumor teria percorrido a Rota da Seda -, disse Jack. - Aquela era uma região de bandidos, mas mesmo lá a reputação dos romanos os teria precedido. Ninguém gostaria de se encontrar com aqueles caras.
E sobre a Rota da Seda? perguntou Costas. - Existem mais inscrições?
Katya passou as duas últimas estações perambulando pelas monta¬nhas e desfiladeiros da Ásia Central, procurando. Uma grande parte dessa região ainda é território inexplorado.
E ainda é um lugar de bandidos disse Hiebermeyer.
Se estou lembrado, Katya sabe como usar uma Kalashnikov -, mur-murou Costas.
Jack abriu novamente seu caderno de apontamentos. - Alguns meses atrás ela fez uma descoberta valiosa num lugar chamado Cholton Apa, na praia do lago Issyk-Gul no Quirguistão. Fica centenas de quilômetros dis¬tante do lugar das inscrições da Décima Quinta Legião, a leste, ao longo da região setentrional da Rota da Seda, ladeando as montanhas de Tien Shan e o desfiladeiro que leva ao deserto de Taklamakan e a China. Já faz anos que os arqueólogos conhecem esse lugar, um cenário desolado com sei¬xos redondos espalhados por uma região onde existem centenas, provavel¬mente milhares de petróglifos, inscrições rasas entalhadas nas rochas onde moram cabras selvagens e outros animais, caçadores. Muitas foram enta¬lhadas por nômades citas. Mas teria havido também um lugar de parada, ao longo da Rota da Seda, para os comerciantes que haviam sobrevivido à longa e difícil viagem do Ocidente, antes de embarcar para a China.
Qual é o tamanho do lago? - perguntou Rebecca.
É o segundo maior lago de montanha do mundo depois do lago Titicaca. Existem muitas histórias de assentamentos afundados, de tesouros. Há muita coisa para ser encontrada. Os soviéticos usam o lago como local de testes de submarinos e torpedos.
Nós podemos ir? - perguntou Rebecca. - Quero me encontrar com Katya.
Jack sorriu. - Está nas cartas. No ano passado Katya se deparou com um seixo redondo que podia ter uma inscrição. O seixo estava quase to¬talmente queimado, e a permissão para uma escavação foi conseguida só agora, no momento da conferência. Ela está de novo por lá.
Não sozinha, espero disse Aysha.
Ela tem a colaboração de um quirguiz -, disse Jack. - O que significa um cara e um velho trator cheio de chiados, até onde sei.
- Você falou com ela recentemente? -, Costas olhou para Jack.
Nesta manhã.
Costas resmungou. - Assim vamos poder juntar alguns pontos.
Há outra coisa. Uma ideia realmente fascinante.
Fale logo.
Bem. Os pontos podem não apenas levar para o leste. Eles podem também fazer uma curva em direção ao sul.
Mapa, Jack-, disse Costas.
Aysha pegou e desenrolou um mapa-múndi na mesa de mapas. Jack marcava cuidadosamente os pontos mais importantes enquanto falava. - A Rota da Seda se estendia de oeste a leste, de Merv em Parta a Xian na China, através das montanhas da Ásia Central. O lago Issyk-Gul ficava na extremidade nordeste do maciço montanhoso, com apenas um desfila¬deiro maior por onde se passava antes de alcançar a China. Mas também era possível deixar a rota no meio do caminho e virar para o sul. Se isso fosse feito a partir do lago Yssyk-Gul, haveria uma imensa massa de mon¬tanhas para atravessar, lugares realmente proibidos, passando pela parte oriental do Afeganistão, mas depois chegaria-se ao Paquistão setentrional e à selva indiana. A partir daí, se você fosse um viajante do Ocidente no século 1 a.C., o mundo romano estaria a seu alcance.
Os olhos de Costas se estreitaram. - Você está sugerindo que os pri¬sioneiros romanos que escaparam podem ter seguido esse caminho?
Jack fez uma pausa. - Um dos colegas de Katya, um homem chama¬do Hai Chen, um estudioso independente estabelecido em Xian, fez um longo estudo durante sua vida sobre a conexão romana. Ele encorajou Ka¬tya a explorar os petróglifos em Issyk-Gul. Ele acredita apaixonadamente na história dos legionários perdidos de Crasso, mas com uma alteração. Originalmente ele é um linguista, um perito na análise dos fundamentos das histórias e mitologias entre povos que têm uma forte tradição oral. Quando jovem, passou muitos anos no Chitral, uma espécie de Xangri-lá no nordeste do Paquistão, o primeiro lugar ao qual se chega depois que se atravessa as montanhas a partir do norte.
O povo que acredita que é descendente de Alexandre, o Grande -, murmurou Hiebermeyer.
As mitologias da região — védica, hindu, budista — estão cheias de histórias de viajantes de regiões distantes, príncipes, peregrinos, ho- mens santos que distribuem sabedoria. Algumas vezes eles estão numa busca, ou se trata de uma jornada transformadora, como a do próprio Buda. Imagine The Canterbury Tales (Os contos de Canterbury), Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, os trabalhos de Hércules, Moisés no deserto. Algumas vezes a chegada corresponde a uma profecia local, e o viajante torna-se rei.
Fahsien não veio através das montanhas? -, perguntou Hiebermeyer.
Jack aquiesceu e olhou para Costas. - Um monge chinês budista que veio para a Índia no início do século 5 d.C. em busca dos textos sagrados de sua religião. Sua obra Relatos dos reinos budistas é um dos grandes livros de viagem. Ele foi para Gandhara, o antigo estado budista, na parte seten¬trional da Índia. Mas o colega de Katya, Hai Chen, não estava na trilha de um monge budista. Ele havia ouvido sobre outra pessoa. O viajante cujas histórias orais ele havia registrado era um yavanas, que significava origi¬nário do Ocidente. E esse yavanas não era um monge, mas um guerreiro, alguém regido pelo ouro. Ele ficou em Chitral por um tempo curto e depois foi embora. Mais adiante, ao sul, Hai Chen ouviu outra lenda, de um deus-rei chamado Haljit Singh, Mão de Tigre. Ele também se foi em direção ao sul.
Para onde estamos indo com isso?, - perguntou Costas.
Se você fosse um romano, depois que atravessasse as montanhas do Afeganistão, passando Chitral, o caminho ficaria aberto para o Ocidente. Você teria duas opções. Poderia viajar pelo vale do Indo na direção sudo¬este, para a parte superior do oceano Índico, indo para o porto de Barygaza, perto da moderna Carachi, no Paquistão. De lá poderia navegar para a Arábia, depois para o mar Vermelho em direção ao lar. Mas há outra opção. Se quisesse fazer contato com companheiros yavanas, com outros romanos na índia, a melhor rota a seguir seria a sudeste, descendo o vale do Ganges até a baía de Bengala. Você acabaria passando por extensas áreas de selva na Índia oriental. Examine as viagens do monge chinês Fahsien. Ele seguiu aquela rota e navegou para o sul o tempo todo até Sri Lanka. Depois exa¬mine o Periplus. Ele descreve a mesma rota, apenas considerando a direção contrária. Ouça isto - disse Jack, pegando a edição moderna do Periplus que estava na mesa, folheando-a até chegar à página que estava procurando, e leu: - Depois disso, em direção a leste e com o oceano à direita, navegando a pouca distância da praia, passando pelas terras remanescentes à esquerda, chega-se à terra do Ganges; nessa região há um rio, ele próprio chamado Ganges, que é o maior de todos os rios da Índia, e que sobe e desce como o Nilo. - Jack fez um gesto em direção à vigia, onde mal se via terra. - O autor do Periplus estava se lembrando de que estava aqui, ao sul da índia, olhando para o norte. Foi provavelmente o lugar mais distante a que che¬gou. Mas ele conhecia o homem que veio de lá. Talvez um revendedor indiano de Gandhara, ou revendedores que viajaram ao longo da Ásia Cen¬tral: bactrianos, sogdianos, ou até um chinês ocidental de Han.
O tipo de comerciante que teria contado para nossos yavanas, nossos romanos que escaparam, que caminho seguir -, disse Aysha.
Mas provavelmente não viveu o bastante para ensinar o caminho disse Jack. - Tudo o que um legionário precisava era de um par de fortes sandálias de marcha e uma visão nítida do sol e das estrelas. Com isso ele encontrava seu rumo. Um guia nunca teria prosseguido com ele.
Trata-se sempre das monções, não é? -, perguntou Costas.
O que você quer dizer?
Bem, por que um legionário procurando por um companheiro ro-mano não iria até esse lugar na embocadura do Indo, Barygaza - ele disse, apontando no mapa. - Fica muito mais perto do Egito. Mas os navios podem navegar muito bem por lá vindo do Mar Vermelho durante o ano todo, seguindo perto da costa, algumas vezes pegando uma rota direta em mar aberto durante a estação das monções. Não havia necessidade de uma presença ocidental permanente em Barygaza, para manter o porto fora do período da estação. Os comerciantes nativos podiam fazer isso. Mas o sul da Índia tem uma história diferente. Se bem compreendi, os marinheiros egípcios apenas iam até lá e voltavam durante a estação das monções, pegando a rota de mar aberto através do oceano Índico, é isso?
Jack confirmou. - A rota costeira para a parte ocidental da Índia era mui¬to traiçoeira. O autor do Periplus deixa isso muito claro. Era como a Costa do Esqueleto da África ocidental, cercada por recifes e infestada de piratas.
Então, durante a metade do ano não há negócios em Arikamedu e nos portos ao sul da Índia. Mas é crucial que eles operem durante a esta¬ção de navegação. Você precisa ter pessoas ali fora da estação, gente sua, pessoas nas quais confia. É o que eu acho. Se você for procurar compa¬nheiros romanos na Índia, deve ir para o sul, não para oeste. Devia ser assim para nosso viajante. E é a isso que tudo está levando, não é? Nós estamos falando de um velho legionário grisalho que quer fazer contato. Talvez ele também tenha vergonha de ir para casa, mas algo o impulsiona a tentar, alguma esperança. Um sonho.
Talvez ele tivesse uma família, naqueles anos passados em Roma an¬tes de marchar para a guerra disse Aysha. - Eles eram cidadãos-soldados. Tinham uma vida antes de se juntar.
Só podemos especular -, disse Jack. - Talvez ele tivesse um sonho, nutrido durante todos aqueles anos de cativeiro. Ir para Barygaza poderia colocá-lo em um navio para o Egito, embora com pouca previsão sobre o que esperar, obrigando-o a descobrir uma verdade que ele talvez não de¬sejasse. Mas dirigir-se para o sul da Índia, para Arikamedu, o teria posto diretamente em contato com outros romanos. Eles lhe teriam contado sobre as guerras civis, a nova ordem, a eliminação de tudo o que existia, a morte da Roma que conhecera. Talvez ele tivesse tido algumas pistas disso por intermédio de comerciantes que encontraram na Rota da Seda, mas ele precisava ter certeza. Talvez soubesse durante o tempo todo que uma viagem de volta nunca poderia ser nada além de uma fantasia, carre¬gada de desapontamento e mágoa. Mas ainda assim ele tinha que estabe¬lecer contato, uma ânsia que só poderia ser satisfeita ao falar com aqueles que tinham ido para o país que ele deixara.
Hiebermeyer olhou atentamente para Jack. - Parece que o colega de Katya podia estar seguindo essa trilha. Ele foi mais adiante em direção ao sul?
Jack franziu os lábios. - Ele estava planejando uma expedição até os po¬vos tribais da índia oriental. Katya disse que ele tinha tido uma revelação sobre algum personagem da mitologia hindu, uma conexão romana. Ele parecia saber exatamente para onde estava indo. Mas mantinha segredo sobre isso, não queria que ela se envolvesse. Katya acha que este é o lugar, bem em frente ao delta do rio Godavari. - Jack apontou para um ponto ao norte de Arikamedu, na frente da costa leste da Índia. - Ele estava para revelar tudo para Katya quando teve que voltar. Era esperado na Confe¬rência Transoxiana, mas não apareceu. Isso ocorreu há quatro meses.
Existe alguma pesquisa dele publicada? - perguntou Hiebermeyer.
Não. Ele era sempre reservado. Katya disse que parecia que ele cos¬tumava se lamentar de qualquer coisa que revelasse. Suspeitava de todo mundo ao seu redor. E não era apenas um estudioso com ideias não orto¬doxas batalhando contra a instituição acadêmica. Achava que estava sendo seguido. Parecia que ele estava sempre evitando as pessoas. Katya disse que desde que o conhecera ele era assim.
Então, como vamos poder confiar no que ele disse para Katya? - perguntou Hiebermeyer.
Porque ele é seu tio - respondeu Jack.
Seu tio - exclamou Costas. - Bom Deus! Isso está ficando mais mis-terioso a cada minuto que passa. Os tios contam as coisas para suas sobri¬nhas, não contam? E ambos são arqueólogos e linguistas. Ele deve tê-la deixado participar de um pouco mais do segredo. Ela não disse nada para você?
Ela disse que ele era como um dos exploradores da Rota da Seda de uma centena de anos atrás, procurando um tesouro ilusório que parecia nunca encontrar.
Que tesouro, Jack?
Jack fez uma pausa. - Você está certo. Katya sabia mais do que estava revelando, mas eu não quis pressioná-la. No entanto, aconteceu uma coi¬sa. No hotel, por ocasião da conferência, ela me mostrou o trabalho de seu tio sobre Chitral. Era sua tese de doutorado, uma das poucas vezes que ele escreveu alguma coisa. Ela não tinha lido a seção anterior sobre a lenda do deus-rei chamado Haljit Singh. Quando leu aquilo, ficou visivelmente pálida. Eu lhe falei a respeito de um artefato que eu tinha e de onde ele viera, e ela quase desmaiou. Depois disso, não disse mais nada. Fim de assunto. Mas ela estava mais perturbada do que o habitual. Acho que há forças malignas em jogo. Alguém que queria que seu tio parasse. E foi então que ela começou a ficar seriamente preocupada com seu pa¬radeiro.
- Então, na verdade é por isso que estamos indo para a selva, Jack? Para encontrar o tio de Katya? Para descobrir atrás do que ele está? O tesouro?
Jack olhou fixo para o mapa por um momento, depois olhou para fora do laboratório na direção da porta aberta de sua cabine. - Há mais que isso. Muito mais. - Olhou para o relógio. - Devemos chegar a Arikamedu dentro de duas horas. Antes disso, há algo que quero que todos vejam. Um pequeno tesouro encontrado por mim mesmo.

As grandes portas de bronze do aposento se fecharam, e instantanea¬mente o calor e o cheiro do deserto desapareceram. O homem lá dentro pressionou o controle remoto, e um fino feixe de luz iluminou a longa placa preta da mesa e os altos recessos do teto. Depois ele desapa¬receu, e a escuridão o envolveu, uma escuridão tão completa que parecia suprimir seu próprio ser, torná-lo uno com a força elementar ao seu re¬dor. Ele estava sentado de pernas cruzadas no frio chão de mármore, as palmas voltadas para cima na posição de lótus, a seda de sua roupa desli¬zando em sua pele quando se inclinou para o controlpad. Durante anos ele jogara, criara diante de uma tela, sempre ansiando estar lá dentro, e agora ele estava ali, controlando um mundo de imagens e sensações que parecia estar a um passo da existência celestial que logo seria sua.
Ele já pusera a sequência em movimento. Ela o prepararia para o que estava por vir, o purificaria, o centraria, como já havia feito vezes sem conta quando ele viera para esse lugar. De algum ponto na escuridão, chegou um som de gotejamento, depois o de uma pequena queda d'água, suficiente apenas para dissimular o som de sua própria respiração, para eliminar qualquer sensação de si mesmo. Ele sentiu a forte corrente através de seu corpo, shuide, o poder da água. Fechou os olhos e sendo todos os um de, os cinco poderes: terra, madeira, metal, fogo, água, cada um su¬perando o anterior, assim como a dinastia de Qin havia superado o inju¬riado Zhou, o poder da água extinguindo o poder do fogo. Com o poder da água veio a escuridão, uma época de formas rudimentares, um vento interminável, de morte, uma destruição de tudo o que existia. E dentro desse vazio veio Shihuangdi, o primeiro imperador, o Celestial, que refez o universo à sua própria imagem, um universo no qual sua vontade era sentida em cada canto da existência, uma vontade da qual ninguém podia escapar. Agora a fraternidade, na sextagésima sexta geração desde que a tumba havia sido fechada, preparada para o momento em que o universo celestial de Shihuangdi envolveria a realidade, quando os guerreiros ter¬restres montariam novamente. Mas, antes disso, eles tinham uma tarefa final. Por isso ele havia convocado os outros nesse dia.
O homem abriu os olhos. Uma brisa alpina gelada o envolveu, trazen¬do com ela uma doce fragrância de flores da montanha. A escuridão havia desaparecido, substituída por uma tênue luz crepuscular, e ele teve a sen¬sação de estar sendo levantado para o céu, de levitar. A imagem de uma paisagem montanhosa apareceu, projetada como se o agasalhasse, peque¬nas torres de rochas retorcidas sobressaíam num mar de nuvens abaixo, ao longe viam-se os picos comprimidos, verde oliva e marrom, tendo acima bosques frondosos num tom verde-esmeralda e que em diversos lugares mostravam uma arquitetura fantástica de villas, pátios e pagodes, estruturas que combinavam com o local como se fossem saliências da rocha. Foi isso que o primeiro imperador Shihuangdi viu, que foi para os altos picos de seu domínio, que reivindicou como seu o espaço entre o céu e a terra, que registrou na rocha suas realizações, que proclamou seu poder sobre a terra e o cosmo. A imagem se deslocou para o fundo, e uma inscrição tomou seu lugar, traços de símbolos chineses brancos contra um fundo escuro. O ho¬mem começou a sussurrar as palavras, sagradas expressões de poder:
Grande é a virtude de nosso imperador
Que pacifica todos os recantos da terra,
Que pune traidores, desterra homens maus E, com vantajosas medidas, traz prosperidade. As tarefas são feitas na estação apropriada, Todas as coisas florescem e crescem; As pessoas comuns conhecem a paz E deixaram de lado armas e armaduras; Os parentes cuidam um do outro, Não há assaltantes ou ladrões; Os homens se regozijam com seu governo Todos compreendem a lei e a disciplina. O universo inteiro E o domínio de nosso imperador...
Ele repetiu a frase final. - O universo inteiro é o domínio de nosso imperador. Sua pronuncia caracterizada por forte articulação, com vogais exatas, vibrou sonoramente, favorecendo a mensagem, tudo ordenado, no seu lugar, sob controle. Ele inspirou devagar, depois relaxou completamente. Quase não precisava respirar. Sentia o sangue fluir de seu coração. O poder estava dentro dele, o poder do shuide. De novo pareceu levitar, muito acima das nuvens e dos picos, até o próprio limite do espaço, para o limiar entre o céu e a Terra. Acima dele havia escuridão, repentina¬mente coberta por um milhão de estrelas brilhantes, com as constelações girando em lento movimento. Abaixo dele a Terra estava reduzida a uma esfera sem aspecto distintivo. Mas depois, enquanto olhava, a superfície começou a cintilar, e de repente se mostrou percorrida por rios, corren¬tes de mercúrio. Os cem rios, o rio Amarelo e o Yangtsé, com os mares circundando-os. A cintilação vinha de mil palácios e templos, de um milhão de tesouros preciosos. Parecia que ele se precipitava e flutuava acima de uma corrente nebulosa, entre gansos e cisnes, grous e garças, com música de sinos como pano de fundo. Então, a cena desapareceu, e os guerreiros estavam lá, todos ao redor dele, estendendo-se em filas até onde ele podia ver, esperando. Uns seguravam lanças, outros vestiam armaduras. Gene¬rais estavam parados na frente de soldados de infantaria, os cavalarianos mantinham os cavalos calmos. Os protetores do universo. O exército de
Qin. Aqueles que se ergueriam novamente, que marchariam para a frente quando o céu e a terra se juntassem, quando o poder da água fosse substi¬tuído pelo poder da luz. O poder que ele próprio controlaria.
Por antecipação, o homem ficou tenso. Houve um clarão ofuscante de verde, depois de azul, como se o sol tivesse sido apanhado por um prisma giratório gigante na escuridão acima. Depois as duas cores parece¬ram juntar-se, formando um branco deslumbrante. Os rios de mercúrio voltaram a fluir, cintilando e emitindo uma luz trêmula. Ao lado deles, cresceram juncos de um verde vívido, tremeluzindo de vida. Os pássa¬ros arqueavam o pescoço no alto, movendo-se na direção da luz. À sua volta, todo o exército parecia se agitar, o cinza monótono adquirindo um tom pastel, cores mais definidas a cada segundo que passava — peles bri¬lhantes, vestes de azul vívido, armaduras de prata brilhantes, estandartes vermelhos tendo como brasão um tigre dourado rugindo, que se curvava e sussurrava como os juncos à beira do rio. Ele podia sentir o calor. Es¬tendeu os braços, exultante.
Então, tudo desapareceu. Ele estava sentado num quarto escuro no¬vamente, sozinho, diante de uma mesa baixa como uma tumba erguida. Deixou cair as mãos na mesa. Ela estava fria, dura, real. Tudo antes havia sido uma ilusão. Uma fantasia que ele criara. Mas era uma premonição do que estava por vir. A jóia celestial brilharia mais uma vez.
Ele olhou para a mesa baixa, de superfície polida e brilhante. Podia ver os caracteres chineses entalhados diante de cada lugar, seis de um lado, seis do outro. Xu, Tan, Ju, Zhongli, Yunyan, Tuqiu, Jiangliang, Huang, Jiang, Xiuyu, Baiming, Feilian. Estendeu a mão e com os dedos traçou no már¬more as linhas cortadas com perfeição pelo laser. Eram os doze, a fraterni¬dade, os guardiães confiáveis do primeiro imperador Shihuangdi, aqueles que aguardavam o retorno. Um lugar ficaria vazio, Huang. Ele apertou firmemente seus punhos até as articulações ficarem brancas. O único que tinha se extraviado. O único que ficara tentado a procurar a jóia sozinho, que sucumbira à sua própria ganância, desviara os olhos do verdadeiro caminho. Eles o tinham caçado, como haviam caçado todos os que deixa¬ram de seguir o caminho de Shihuangdi.
Ele relaxou as mãos e fechou os olhos, afogueados pelo poder de Qin, o todo-abrangente. Logo o lugar vazio à mesa estaria preenchido nova¬mente. Eles tinham encontrado outro, um descendente do senhor feudal de Huang, outro cuja linhagem remontava através do clã àqueles que ha¬viam dominado, protegido com armadura, armas prontas para lutar, atra¬vés das estepes, de sua terra natal até Xian, ao lado daquele que se tornaria Shihuangdi, o primeiro imperador. Ao iniciado eram ensinadas as habi¬lidades do Zhishau, a arte do manejo da espada de Qin, como vencer os inimigos. Ele completaria a tarefa assassina que lhe garantiria seu lugar à mesa. O lugar do guerreiro tigre.
O homem tocou no control pad e um delgado feixe de luz se espalhou ao redor para revelar um par de espadas cruzadas à sua frente, com as lâ¬minas faiscando, como se fossem salpicadas com milhares de pedras. Ele colocou a mão na manopla brilhante de punho largo e comprido, curvan¬do os dedos dentro dela, sentindo o poder das lâminas quando elas se es¬tendiam para além dos tigres de dentes arreganhados que adornavam cada empunhadura. Ficou tenso, e subitamente ele estava ali, entre os pesados cavalos de batalha, estrondeando pela estepe, espumejando, penetrando através do mosto vermelho que escorria de seu pescoço, o brilhante suor de sangue. Sentiu a exaltação do guerreiro, de saber que tudo seria devas¬tado diante dele. Ouviu-se gritando, e tudo o que via era vermelho, tudo o que ouvia era um respirar ofegante, tropel de cavalos, batidas de pés.
Em seguida, a imagem desapareceu. Ele se sentou novamente, aban¬donando as espadas. Logo haveria um sexto poder. O poder da luz. Assim como a água tinha conquistado o fogo, a luz conquistaria a escuridão, a luz da jóia celestial, a luz de sua própria alma, o imperador renascido. O homem inspirou profundamente e tirou as mãos da manopla das espadas. A sua frente uma fresta de luz apareceu na porta, e ele viu formas som¬brias começando a entrar silenciosamente, assumindo cada um seu lugar à mesa. A fraternidade estava reunida. A joia seria encontrada. O guerreiro tigre cavalgaria novamente.
Jack se sentou em sua cabine abaixo do convés da ponte de comando do Seaquest II, com as mãos atrás da cabeça, enquanto contemplava a antiga arca de viagem, de madeira, apoiada no anteparo à sua frente. Removeu a armação de sarrafos de madeira que fora usada para fixar a arca durante as monções e abriu a terceira gaveta de baixo para ver o que continha. Era uma de suas posses mais estimadas, uma arca de madeira de um oficial do século 18, feita com madeira de cânfora, que ainda emanava um ligeiro odor de Oriente. Durante oito gerações seus ancestrais levavam consigo a arca quando saíam ao mar, desde os mercadores aventureiros que haviam feito a fortuna da família Howard nos primeiros anos da Companhia das Índias Orientais, até seu próprio avô, que a carregara consigo durante a Segunda Guerra Mundial e por fim a levara para a praia mais de quaren¬ta anos atrás. Nenhum Howard jamais havia sofrido nenhum naufrágio antes da perda do primeiro Seaquest no mar Negro dois anos antes, e Jack decidiu instalar a arca quando o novo navio estava em construção. Mas a arca significava mais do que apenas boa sorte. Ela continha as chaves para uma busca que Jack ansiava fazer desde menino, quando seu avô lhe mostrou pela primeira vez o conteúdo daquela gaveta.
Jack sentiu uma onda de excitação ao olhar para a arca. Pendurado na parede atrás dela, havia um antigo mosquete da Companhia das Índias Orientais e, embaixo, uma vasta lâmina de aço de um tulwar, uma espada indiana de punho em copa, com um característico botão circular. Ambas as peças pertenciam ao primeiro Howard que vivera na Índia, o coronel de um regimento do exército de Bengala na época das guerras napole¬ônicas. Abaixo da espada havia duas fotografias da época vitoriana, uma mostrando uma mulher com uma criança e a outra, um homem jovem, bem-vestido, de cabelo escuro e olhos castanhos, lábios cheios e um bri¬lho no olhar. As feições vinham da avó do homem, uma judia portugue¬sa, a mulher do coronel do exército de Bengala. Na fotografia, embaixo, numa elegante escrita à mão se lia: - Academia Militar Real 1875, tenente John Howard, engenheiro real". Era a foto de graduação de um jovem cheio de confiança vitoriana, prestes a pôr-se a caminho na maior aven¬tura de sua vida. No entanto, apenas quatro anos depois ia acontecer algo que transformaria aqueles olhos e lhes daria o insondável olhar que algu¬mas vezes Jack via em sua própria filha. Descobrir o que havia acontecido com seu tataravô tinha sido uma busca pessoal de Jack desde quando ele podia se lembrar.
Olhou para a gaveta aberta. De um lado havia uma pequena pilha de livros com capa de couro e um caderno de anotações com a mesma escrita à mão nas lombadas. Do outro lado, havia duas fileiras de caixas contendo grande número de papéis, cartas, manuscritos, alguns dos quais consti¬tuíam o material que Jack mal começara a examinar. E no meio havia ar¬tefatos que Jack desembrulhara pela metade. Retirou de lá uma pequena caixa vermelha com um telescópio de bolso feito de latão, com a borda de marfim do cilindro deslocada pela passagem do tempo. Pela milésima vez, desde que era criança, estendeu o telescópio em todo o seu compri¬mento, de apenas algumas polegadas, e olhou através dele. E exatamen¬te como sempre fizera tentou imaginar o que John Howard teria visto através dele naquele fatídico dia na selva. Jack fechou os olhos, isolando sua mente do presente, depois os abriu de novo, mas a visão permaneceu a mesma. No entanto, ele sabia que se encontrava agora perto de algo importante, a apenas uma viagem de helicóptero do local onde a história que ele passara anos tentando imaginar com tanta dificuldade poderia fi¬nalmente vir à luz.
- Telescópio legal. - Rebecca tinha entrado silenciosamente no apo-sento e estava de pé ao lado de Jack. Ele lhe passou o telescópio e ela olhou atentamente através dele. - Era do seu tatatataravô - disse ele. - Ele o trouxe da Índia, onde o usou em uma guerra na selva não longe do sítio romano em Arikamedu que estávamos visitando hoje à tarde.
Rebecca olhou para as fotos. - Este é ele e sua família, não é? Posso perceber você nele. Posso realmente sentir sua presença, segurando isto. Cada vez que eu ia a museus com a escola, eu sempre queria tocar nas coisas. Numa das vezes arrumei muitas complicações no Museu de Arte Metropolitano. Não precisam ser grandes obras de arte, apenas pequenas coisas. Elas parecem me levar de volta ao passado.
Jack sorriu para ela. - Olhe ao redor deste aposento. Há artefatos de quase todas as expedições em que tomei parte. Muitos deles são pequenas coisas, fragmentos de cerâmica, antigas moedas gastas. Mas é isso que as torna reais para mim. Quando me sento aqui para escrever, sempre fico segurando alguma coisa.
O tio Costas diz que você é um tagarela. Diz que na verdade você é um caçador de tesouro.
Ela lhe devolveu o telescópio e passou o dedo sobre o brasão entalha¬do na frente da arca, uma ancora sobre um escudo com as palavras latinas Depressus Extollor gravadas embaixo.
Jack riu. - É melhor o tio Costas tomar cuidado com o que diz.
Tio Costas diz que sem ele você não iria a lugar nenhum num barco a remo.
E sem mim o tio Costas estaria navegando para lugar nenhum numa escrivaninha em algum parque tecnológico na Califórnia.
Não, ele diz que sem você estaria de férias no Havaí.
Desde que planejamos a viagem ao Pacífico, ele está com o Havaí na cabeça. Tudo o mais que se encontre no caminho, o Egito, a Índia, é ape¬nas uma distração, e ele tolera isso somente porque sou seu companheiro de mergulho e ocasionalmente salvo a vida dele.
Nós já falamos sobre isso. Ele diz que está lhe dando dois dias, e depois vai pedir para ser desembarcado no aeroporto internacional mais próximo. Ele precisa de uma semana antes que cheguemos, para conse¬guir aprontar tudo para o ensaio do submersível.
Ele quer dizer que precisa de uma semana para testar as espreguiça¬deiras em Waikiki. Ele é um parasita de praia.
Naquele momento Costas apareceu, usando uma camisa florida ber¬rante em cima de shorts largos, com uns óculos escuros que lhe cobriam o rosto, mas erguidos na testa. - Aloha!
- Aloha! respondeu Rebecca, sorrindo de maneira travessa para Jack.
Achei que podia ficar pronto -, disse Costas. - Talvez não tenhamos tempo de nos trocar.
Estou ouvindo -, disse Jack.
Costas espiou os objetos que Jack acabara de desembrulhar. - Um ele¬fante! Eu estava tendo crise de ausência.
Jack nada disse, e Costas levou a peça cuidadosamente para a luz. - Ele é feito de lápis-lazúli -, disse Jack. - A mesma pedra daquele fragmento que você encontrou em Berenike. Também é da melhor qualidade, das minas do Afeganistão. Você pode perceber o cintilar das piritas nas cama¬das de azul. Foi bastante manuseado, divertiram-se com ele. Ele estava entre os pertences de meu tataravô, que o ganhou quando era criança. Ele queria dá-lo a seu próprio filho, seu primogênito, no seu segundo aniver¬sário. Mas isso não aconteceu.
Ele é lindo -, disse Rebecca com reverência, tirando-o de Costas e acariciando a tromba do elefante. - Posso ficar com ele? Quer dizer, pos¬so tomá-lo emprestado e guardá-lo em minha cabine? É uma vergonha mantê-lo fechado naquela arca velha.
Costas fez com o dedo sinal de advertência para Rebecca. - Cuidado com o que diz sobre essa arca. Ela o segue por toda parte. Faz que ele se sinta como um velho e experiente marinheiro. Sempre que ele tem al¬gum tempo livre, vem pra cá e senta-se aqui com a arca.
Hiebermeyer e Aysha entraram, e todos se sentaram nas cadeiras que Jack tinha disposto em semi-círculo ao redor da arca. Costas olhou para dentro da gaveta aberta e fez um gesto em direção a outro objeto que es¬tava lá dentro, um velho revólver. - O Oeste Selvagem?
Jack deu um sorriso estranho. - Período certo, continente errado. O período de que estamos falando, os anos 1870, assistiu a confrontos inter¬nacionais importantes: a Guerra Franco-Prussiana que quase destruiu a Europa; a guerra no Afeganistão, que colocou frente a frente os britânicos e os russos. Mas foi também um tempo de conflitos coloniais. Poucos anos depois houve a batalha de Little Bighorn, do general Custer contra os índios Sioux e Scheyennes na América, a guerra Zulu no sul da África e rebeliões na selva indiana. E em nenhum caso fica claro qual lado levou a melhor.
Seu ancestral, John Howard disse Aysha, enquanto Costas tirava com cuidado o revólver da gaveta para examiná-lo mais de perto, - era um oficial do exército britânico?
Jack fez que sim com a cabeça. - Agora que estamos todos aqui, quero falar-lhes sobre ele. Em 1879 ele era tenente na Engenharia Real, nomea¬do para a índia como subalterno no grupo de Sapadores e Mineiros da Rainha de Madras. Este foi um dos primeiros regimentos do exército in¬diano, baseado em Bangalore, no sul da Índia, mas usado em expedições por toda a Índia e nas fronteiras. Eles eram inspetores e construtores, mas também receberam treinamento de infantaria, por isso formavam as tro¬pas mais úteis que havia por lá. Cada uma das dez companhias tinha dois oficiais britânicos e diversos oficiais não comissionados (NCOs), mas os sapadores eram todos de Madras, inclusive os oficiais nativos — os jemadars (despenseiro, o posto mais baixo), os subadars (oficial indiano em uma companhia do exército britânico na índia), os havildars (militares en¬carregados de um forte) e os naiks (cabos). Os habitantes de Madras eram homens orgulhosos, uma casta guerreira. Para um jovem oficial britânico, o serviço com um regimento como o dos Sapadores de Madras era a me¬lhor experiência que se poderia ter como soldado. Os tenentes comanda¬vam as companhias e os subalternos seniores tinham as responsabilidades que um major teria hoje em dia. Todos os oficiais da Engenharia Real tinham passado pelo equivalente a um programa de pós-graduação em engenharia antes de viajar para a Índia.
A Índia deve ter sido um choque para o sistema, que vinha da fria e garoenta Inglaterra -, disse Costas.
Jack sacudiu a cabeça. - Não para Howard. Ele estudou na Inglaterra, mas nasceu na índia em 1855, pouco antes da rebelião indiana, nos anos finais da Companhia das Índias Orientais, antes que a Coroa Britânica assumisse a direção. Seu pai tinha sido um plantador de índigo em Bihar, na fronteira com o Himalaia e o Tibete, e seu avô era coronel no exército da Companhia das Índias Orientais. Portanto, a índia estava em seu san¬gue. Isso ajuda a explicar como ele sobreviveu às condições da selva na sua primeira organização e preparação das tropas para combate.
É para esse lugar que estamos indo -, disse Costas.
Depois de mais de duas décadas de paz que se seguiram à rebelião, a índia estava esquentando -, disse Jack. - Havia guerra no Afeganistão novamente, pela primeira vez em quarenta anos. Muitos dos Oficiais Sa¬padores de Madras estavam organizados ali, mas não Howard. A razão era outro conflito, uma revolta tribal com uso de violência que eclodiu em 1879 na selva, sob a administração da parte setentrional de Madras, nos contrafortes das montanhas orientais de Ghat, ao longo do rio Godavari. - Jack apontou para o mapa acima de sua escrivaninha. - Desde a rebelião, o governo indiano havia derrubado qualquer vestígio de ascen¬são com punho de ferro. Uma expedição do tamanho de uma brigada foi despachada para a selva, inclusive duas companhias de sapadores. Mas essas revoltas eram encaradas como ações policiais, de maneira que havia pouca glória militar e nenhuma medalha para os oficiais, apesar das difí¬ceis operações militares envolvidas. E essa revolta, chamada de "rebelião Rampa" segundo o distrito local, arrastou-se por quase dois anos, mais tempo do que todas as operações militares no Afeganistão. Howard este¬ve lá quase do início ao fim.
- Deve ter sido um local pestilento durante as monções -, disse Hiebermeyer.
Jack aquiesceu. - Rampa possuía todos os excessos de uma guerra na selva, semelhante às campanhas militares no século seguinte, em Mianmar (antiga Birmânia), Malásia, Vietnã. A malária era um grande proble¬ma. Alguns anos depois o cirurgião major dos Sapadores de Madras era Ronald Ross, mais tarde Sir Ronald Ross, o homem que confirmou a ligação entre os mosquitos e a malária. Mas na época da rebelião compre¬endia-se muito pouco sobre isso, e os homens caíam como moscas. E foi aí que a experiência indiana de Howard entrou em jogo. Ele tinha alguma resistência contra a febre, e esse deve ter sido um fator que contribuiu para sua permanência na organização e treinamento das tropas. Ele era o único oficial preparado para a tarefa.
Costas estendeu a mão para a gaveta e retirou o antigo revólver, uma peça longa e elegante que adquirira uma cor de ameixa onde o azul sobre o metal tinha desaparecido. - Colt 1851 da Marinha, fabricado em Lon¬dres ele disse. - Eu costumava atirar com um desses com um tio meu, em Vermont, que era um entusiasta da pólvora. - Ele girou a pistola várias vezes e passou o dedo pelas letras e números estampados na coronha de madeira. - Marcas do exército.
Este é um UC, Upper Canada, província ao norte do Canadá; a letra A corresponde à Tropa do Forte Frontenac, número 50 -, explicou Jack. - Este era um de um lote de revólveres trazidos da fábrica Colt de Lon¬dres para armar os cavalarianos da milícia canadense, baseada em Kingston, no lago Ontário. O cirurgião dos Sapadores de Madras, doutor Walker, foi criado em Kingston, e tendo servido ele próprio na milícia adquiriu essa pistola como sobressalente em 1870, quando a milícia passou a usar revólveres de cartucho. Walker levou-a para a índia e deu a pistola a Howard para complementar um revólver Colt idêntico que ele herdara de seu pai, que o usara durante a rebelião indiana. Sempre foi convenien¬te ter um par de revólveres cap-and-ball, porque se leva muito tempo para recarregá-los.
Onde está a outra arma?
Howard levou-a com ele quando desapareceu.
Desapareceu?
Um dia; muitos anos mais tarde, ele fez a mala e partiu, para nunca mais voltar. Ninguém sabe ao certo para onde foi ou o que lhe aconteceu. Sou obcecado por isso desde que ouvi a história quando era criança. Eu costumava ler Kipling e histórias de exploradores na Rota da Seda, e eu o imaginava em alguma aventura com um grande final. Ele sempre estava em minha mente quando eu partia em minhas próprias buscas. Agora que estamos tão perto da selva, para verdadeiramente estar em seu rastro, gostaria de ficar sabendo o motivo da partida. Mas falaremos sobre isso mais tarde. Não vamos esquecer o revólver.
Encontrei algo sobre a rebelião disse Rebecca, segurando um ca-derno de apontamentos com capa vitoriana que tinha aspecto de már¬more e uma escrita à mão, já desbotada, na etiqueta. — A Expedição Rampa 1879, por John Howard, Tenente, RE.
Esse é seu diário, disse Jack. - É o único relato pessoal que subsis-tiu à rebelião. Quase todo o resto reconstruí a partir dos registros das coleções - Índia Office, encontradas nos arquivos do escritório da Índia em Londres, na Biblioteca Britânica, sobre os procedimentos militares e jurídicos do governo de Madras, que inspecionou a região da selva. A rebelião foi obscurecida pela guerra do Afeganistão, e ficou praticamente perdida para a história.
Rebecca abriu cuidadosamente uma página, depois começou a ler. - As dificuldades de inspeção realmente começam quando o mapeamento está sendo levado adiante dentro de uma região desconhecida, especialmente se os inspetores são impedidos de avançar por ter que se manter com as tropas e porque sua visão quase sempre é obstruída por tempo ruim.
Jack aquiesceu. - Inspecionar era sua especialidade. Ele tinha acabado de sair da Escola Militar de Engenharia em Chatham, dois anos de treino intensivo. Há bastante entusiasmo juvenil no início do diário. Mas logo isso muda.
Rebecca leu outra seção no final do livro.
As causas daquela insurreição tinham sido completamente descritas; a ad¬ministração tinha diminuído; nossos oficiais se faziam de surdos para as queixas de um povo oprimido, e a antiga disposição do povo que se inte¬ressava pela espada finalmente se afirmou, em meio a uma raça corajosa e vigorosa de montanheses. Depois que essa disposição é despertada, e somos forçados a realizar as operações militares em uma área selvagem, difícil e com malária, nenhum homem pode dizer quanto tempo a mi¬serável guerra irá durar, ou quais elementos reprimidos de desordem se¬rão levantados contra nós. Tudo o que se pode predizer é que o inimigo raramente será visto, que a febre lotará os hospitais do regimento e que, quando a paz finalmente vier, será a paz da desolação. Tudo o que esses clãs na colina exigem de nós é que ofereçamos proteção para o gozo tran¬quilo dos poucos acordos e dos simples objetos de liberdade pessoal e de conforto que constituem as principais fontes de sua felicidade.
Gostei da linguagem disse Costas.
Isso resume bem tudo -, disse Jack. - Anos depois, o movimento nacionalista indiano tentou fingir que a rebelião fazia parte da revolta na¬cionalista contra a Inglaterra, mas isso é história revisionista das piores.
Aqueles eram habitantes da selva que basicamente queriam ser deixados sozinhos. Muitos deles nunca tinham visto um rosto europeu antes. Seu principal contato com o mundo exterior havia sido com habitantes da planície, com a guarda policial indiana corrupta e com negociantes que os extorquiam. Para os britânicos havia pouco ganho econômico na selva, e eles colocavam oficiais menos competentes no cargo, um nível abaixo de oficiais distritais, que raramente se davam ao trabalho de inspecionar eles mesmos a área. Então, o Ato da Lei Florestal Indiana interferiu com a tradicional agricultura de corte e queima. Mas o estopim foi um des-cuido de um oficial insignificante em Calcutá, que deixou de isentar os habitantes da colina da taxa abkari sobre o álcool. Os habitantes da selva viviam com o suco fermentado de certas palmeiras, era o licor de palmei¬ra que os sustentava durante o período das monções, quando não havia mais nada a fazer.
Estou percebendo o que você quer dizer -, interferiu Costas. - Não foi exatamente uma guerra gloriosa. Bem distante da geopolítica do Afe¬ganistão.
Mas guerra ainda é guerra disse Jack. - Afaste um grande propósi¬to estratégico, e você desconfia muito mais. E esses oficiais estavam mui¬to longe da caricatura de uma pessoa impermeável a novas idéias, sem emoção diante da tragédia. A Engenharia Real atraía homens de grande intelecto e curiosidade. Hoje eles seriam cientistas, engenheiros civis, exploradores. Muito do que sabemos sobre a antropologia e a história na¬tural da Índia vem do que esses homens faziam com seu tempo livre. E muito do seu trabalho não era gasto como soldado, mas para inspecionar e mapear, na construção de estradas, pontes, represas, aquedutos e sistemas de irrigação, estradas de ferro, monumentos públicos, a infraestrutura da nação de hoje. Você deve saber falar a língua para operar efetivamente na Índia, e muitos desses oficiais eram linguistas dotados, que tinham em¬patia por seus soldados e pelas pessoas ao redor deles. Você pode ver isso no diário. O jeito de escrever pode nos parecer um pouco pomposo hoje, mas sujeitos como Howard viam seres humanos como tal e não como tribos primitivas. Eles eram soldados fortes, inabaláveis em sua lealdade à coroa britânica, e matariam sem hesitação, mas sabiam que nem sempre estavam pisando num terreno de moral elevada.
Há uma referência a um livro aqui, na página final do diário -, disse Rebecca. - É tudo um borrão preto. - Ela ergueu o livro e o cheirou, logo afastando o rosto. - Isto fede a ovo estragado.
É resíduo de pólvora -, disse Jack. - Ele devia ter pó de pólvora nas mãos quando escreveu isso. Devia ter acabado de atirar. Olhe a data: 20 de agosto de 1879.
Mal consigo ler, mas a nota diz: "Campbell, Tribos Selvagens do Condistão, página 177". Depois diz: "Deus me ajude".
Jack pegou um dos dois volumes de capa de couro da gaveta e abriu-o numa página marcada. - Este é o livro verdadeiro. Ele o tinha consigo quando escreveu aquela anotação no diário. Na margem do livro, naque¬la página, está escrito "Capitão Frye, um oficial admirável, um erudito oriental do mais alto nível, que se ocupou com muito zelo em aprender a linguagem khon. Ele nitidamente escreveu essa anotação algum tempo antes, talvez quando leu o livro pela primeira vez, antes de ir para a selva. Mas a passagem do texto ao lado da anotação está circundada com a mes¬ma tinta que a última anotação no diário, levemente borrada. Ele deve tê-la lido novamente naquele dia na selva. Ouçam isto:

Uma circunstância curiosa ocorreu a esse oficial quando ele estava nas co¬linas. Um dia ele foi informado sobre um sacrifício na véspera de sua con¬sumação; a vítima era uma moça jovem e bonita, de quinze ou dezesseis anos. Sem um momento de hesitação, ele se apressou com um pequeno grupo de homens armados até o local indicado e, quando chegou, encon¬trou os khonds já reunidos com o sacerdote que ia realizar o sacrifício, e a vítima escolhida preparada para o primeiro ato da tragédia. Ele exigiu imediatamente que a entregassem; os khonds, meio loucos de excitação, hesitaram por um momento, mas observando seu pequeno destacamento preparado para a ação, soltaram a garota. Vendo o estado selvagem e irrita¬do dos khonds, o capitão Frye, com muita prudência, julgando que aquela não era a ocasião adequada para argumentar com eles, voltou com sua presa para seu velho acampamento.
Sacrifício humano? - exclamou Costas, parecendo horrorizado. - Na índia? Em 1879?
Este livro foi publicado em 1864, quinze anos antes da rebelião Rampa. O título completo é Uma narrativa pessoal de treze anos de serviço entre as tribos selvagens do Condistão para a supressão do sacrifício humano. O autor, John Campbell, era um oficial do exército encarregado dessa tarefa e Frye, seu assistente.
Mas eles falharam.
Jack franziu os lábios. - Eles tiveram êxito. Essa foi a face pública dele, de todo jeito. Os britânicos não interferiram muito com o ritual na índia, mas conseguiram algo importante na atitude relativa ao sacrifício humano e ao infanticídio feminino. O que eles fizeram foi manter as duas práticas veladas. Quem sabe o que ocorre nas profundezas da selva, quilômetros distante de olhares curiosos! Mesmo hoje em dia, o sacrifício ritual sub¬siste entre os povos tribais, embora eles usem galinhas em vez de seres humanos. Ou assim nos disseram.
E em 1879?
O líder rebelde, Chendrayya, executou abertamente vários policiais nativos que ele havia aprisionado, dando às execuções a aparência de sa¬crifício, para desafiar os britânicos. Em certa ocasião, ele usou uma es¬pada, provavelmente uma tulwar como aquela ali na parede. - Jack abriu o livro numa ilustração no frontispício. Mostrava uma mulher seminua amarrada a um poste com um sacerdote à sua frente e uma multidão se pressionando em volta, brandindo facas. - Mas existem vestígios de que verdadeiros sacrifícios humanos também eram realizados. Eles envolviam um meriah, um homem ou mulher, até mesmo uma criança, comprada como escrava pela tribo que realizava o sacrifício, que era bem alimentada e bem tratada durante meses, depois intoxicada com o suco fermentado de palmeira e amarrada a um poste.
Como eles faziam? -, perguntou Rebecca, baixinho.
É bem desagradável. Eles abriam a vítima com suas facas ou com as mãos nuas. Cada homem levava uma tira de carne para casa para enterrar em seu próprio solo antes da chegada da noite, como uma espécie de ofe¬renda de fertilidade.
Rebecca parecia pálida. Costas pegou o livro. - Por que faziam isso? Quem era seu deus?
Vou chegar lá.
E essa data? 20 de agosto de 1879?
Essa é a data chave da rebelião, e também, de alguma forma, da vida de Howard. Algo aconteceu naquele dia, e venho tentando me aprofundar nisso desde a primeira vez que li o diário, quando criança. - Jack pegou o diário. - Aqui está o que sei. Naquele dia, um grupo de trinta sapadores foi levado a uma emboscada preparada por quatrocentos rebeldes, armados com arcos e flechas envenenadas e mosquetes equipados com travas, bem como alguns velhos mosquetes que eles tinham roubado da polícia. Os sapadores lutaram para voltar através da selva para o rio. Foi uma das maiores batalhas da rebelião, com dezenas de homens mortos e feridos. Um oficial britânico morreu, um homem do serviço civil responsável por essa área que tinha acompanhado as tropas. A luta daquele dia foi su¬ficientemente grande para virar notícia, tendo sido publicada até no London Times, e no New York Times com o nome do oficial que comandava os sapadores, tenente Hamilton. Seu relato da luta foi registrado também no Madras Military Proceedings. Por outro lado, não há registros de teste¬munhas oculares daquele dia. Mas tenho certeza de que algo aconteceu.
Execuções? -, perguntou Costas. - Sacrifícios?
Jack olhou para o livro. - A incursão de Hamilton ocorreu a partir de um barco a vapor, Shamrock, que estava subindo o rio em direção a um lugar onde os sapadores iam tomar um caminho para dentro da selva. O tenente Howard, meu tataravô, estava encarregado de tudo, como o subalterno mais velho presente. Assim como o tenente Howard e Hamil¬ton, havia outro oficial sapador, Robert Wauchope, que retornara havia pouco do Afeganistão, um americano irlandês que era amigo próximo de Howard. Já tínhamos encontrado o cirurgião Walker, o canadense. Ele provavelmente estava muito ocupado tratando da febre da selva. Eu já identifiquei o local onde o grupo de Hamilton saiu da selva, na margem do rio, e o Shamrock devia estar. Ali ficava uma aldeia nativa. Os rebeldes reuniram-se lá e montaram um show para eles. Algo bastante espetacular. Howard estava no barco a vapor. Ele viu alguma coisa ou fez algo que afetou profundamente o resto de sua vida.
O que você quer dizer?
Jack fez uma pausa. - Ele tinha sido o melhor de sua classe na Aca-demia Militar Real, um dos oficiais destinados a grandes coisas, talvez o comando de um exército como Lord Kitchener, ele próprio engenheiro real. Mas depois da selva, foi como se ele fizesse todo o possível para evitar o serviço ativo novamente. Ele tinha sido escolhido para juntar-se à Khyber Field Force no Afeganistão, mas em vez disso foi mantido para treinar e organizar tropas em Rampa até o final. Em seguida, abandonou os Sapadores de Madras e foi transferido temporariamente para o Depar¬tamento de Obras Públicas da Índia; depois disso, voltou para a Inglaterra para passar dez anos ensinando vigilância e publicando o jornal da Escola de Engenharia Militar. Essas eram mudanças de carreira respeitáveis para um oficial da Engenharia Real, mas não para o soldado ambicioso que ele fora outrora. Mesmo depois que voltou para a Índia como engenheiro de guarnição nos anos 1890, ele rejeitou oportunidades para efetuar operações militares. Foi somente no final de sua carreira que ele se tornou dis¬ponível para o serviço ativo novamente, na fronteira afegã, vinte e cinco anos depois da rebelião Rampa.
E sua devoção à família? -, perguntou Rebecca. - Isso não podia tê- lo influenciado?
Jack olhou para a fotografia desbotada acima da arca, mostrando uma mulher vestida de preto segurando um bebê, o rosto voltado para a crian¬ça, não discernível. Então se virou para Rebecca, aquiescendo lentamente com um gesto de cabeça. - Howard se casou jovem, logo que saiu da academia. Eles tinham um menininho que adoravam. Viviam no posto militar em Bangalore, quartel-general dos sapadores de Madras. O me¬nino morreu enquanto Howard estava na selva, vários meses depois da¬quele dia em agosto, atacado por convulsões numa manhã e enterrado ao anoitecer. Howard só soube disso depois de semanas. Sua esposa nunca superou o fato, embora eles tivessem tido mais três crianças. Howard era completamente devotado a eles e disse que assumiu o trabalho na Esco¬la de Engenharia Militar na Inglaterra para mantê-los longe das doenças que haviam matado seu irmão e para estar perto deles quando fossem para a escola.
Ele colocava a família antes da carreira -, disse Aysha. - Não há nada de errado com isso.
Jack franziu os lábios. - Mas havia mais que isso nessa escolha. Mes¬mo depois que eles cresceram e ele voltou para a Índia, ele rejeitava as oportunidades. Estou convencido de que algo aconteceu naquele dia. Em 20 de setembro de 1879.
Dá a impressão de que alguma coisa o traumatizou - disse Costas.
Há outra coisa. - Jack se inclinou e abriu a gaveta inferior da arca. - Você lembra que mencionei um artefato sobre o qual falei com Katya, quando eu e ela vimos a referência de seu tio ao Elaljit Singh, Mão de Tigre? Aquele que quase a fez desmaiar? Era este. - Ele tirou da gave¬ta um objeto de latão brilhante quase do tamanho de seu antebraço e o colocou cuidadosamente na mesa entre eles. O objeto tinha uma forma semicilíndrica, e em uma das extremidades fora esculpida uma cabeça, com orelhas espichadas para fora e uma grande boca, que ia de uma ore¬lha à outra. - Howard trouxe isto de Rampa. Isso, o revólver, o pequeno telescópio e algumas armas primitivas capturadas dos rebeldes são prati¬camente os únicos artefatos que podem ser atribuídos à operação militar. Alguém pode adivinhar o que é isso? - perguntou Jack.
Hiebermeyer empurrou os óculos para cima e se inclinou sobre o ob¬jeto, erguendo-o com cautela para olhá-lo por baixo. - Bem, é claramente um pedaço de armadura, correspondente à parte de baixo, do antebraço e mão -, ele afirmou. - No buraco debaixo da cabeça há uma travessa, e no espaço da boca cabe uma lâmina. Em minha opinião, isto era antigamente uma luva grande, com punho largo e comprido com uma adaga presa ou uma lâmina de espada.
Cheia de símbolos -, disse Jack. - Não é uma lâmina para se enfiar com força física, mas uma lâmina longa e flexível, para cortes extensos.
Ela teria sido inadequada para mãos inexperientes, mas com a luva de punho largo e comprido e a travessa, em vez de uma empunhadura con¬vencional de espada, a lâmina se tornaria uma extensão do braço. O espa¬dachim poderia desferir um golpe extenso e pesado, facilmente suficiente para cortar um corpo em dois com uma lâmina bem afiada. Elas eram armas terríveis, destinadas a ser usadas a cavalo.
Rebecca apontou com o dedo o nariz. - Estes olhos parecem chine-ses.
Ela é chamada de pata, uma espada com uma luva de punho largo e comprido disse Jack. - Esta aqui é única, e somente se conhecem pou¬cas luvas de latão. As patas de aço eram usadas pelos maratas, os príncipes guerreiros com os quais os britânicos lutaram na índia central e no sul no século 18. Mas o erudito britânico que estudou pela primeira vez a pata achava que ela tinha uma origem muito anterior, entre os ancestrais tárta¬ros dos mongóis na China setentrional. Elas podem ter entrado na índia com os invasores mongóis, com Timur o Grande, no século 14, ou com Genghis Khan. Ou talvez algumas delas possam ter vindo mais cedo pela Rota da Seda, tendo sido depois copiadas. Muitas das patas indianas do século 17 ou 18 são feitas de aço, e elas não têm essa decoração, a cabeça forjada à parte. Meu instinto me diz que esta é mais antiga, muito mais antiga, possivelmente até de uma era antiga.
Então, qual é a conexão? perguntou Costas.
Você perguntou sobre o deus, o deus dos sacrifícios na selva -, re-plicou Jack. - Havia vários, um deles era uma espécie de deusa da terra, Gaia, e outro, o deus da guerra. Mas existe apenas um santuário que co¬nhecemos, e este é dedicado a Rama, o deus que deu nome a esse distrito. A lenda do príncipe Rama aparece dissimulada na mitologia hindu, mas a versão do Rama adorado na selva era diferente, possivelmente de ori¬gem muito anterior. O santuário é mencionado nos relatos da rebelião Rampa, porque o líder rebelde Chendrayya sacrificou nele dois policiais. Fica diretamente no interior, desde o ponto em que Shamrock pegou o tenente Hamilton e seus sapadores antes de sua incursão na selva. Acre¬dito que foi lá que meu ancestral encontrou sua pata. O santuário era a única estrutura permanente na selva, além das cabanas dos aldeões, e é exatamente o lugar onde se espera que um objeto incomum como este seja guardado, até mesmo venerado.
E você quer ir até lá e verificar isso -, disse Costas.
Preciso ver o que ele viu. Ver se alguma coisa foi deixada lá.
Rama - murmurou Hiebermeyer, tamborilando na mesa. - Rama.
O que é? -, perguntou Costas.
Estou só pensando em voz alta.
Costas pegou a pata e olhou fixo para a figura. - O que é? Um deus?
Jack olhou para o outro lado. - É um tigre.
Um deus tigre? - perguntou Costas.
Jack deslizou a pata na mão, segurando-a pela travessa. - Não é um deus tigre - disse ele, girando-a cuidadosamente em torno do braço. - Era como ele sempre a chamava quando eu era criança, como meu avô nos disse para chamá-la. Ele dever ter aprendido com o avô dele, com John Howard. Isso fez Katya quase desmaiar quando eu a descrevi para ela. Guerreiro Tigre.

Uma hora mais tarde eles estavam de pé na ponte, olhando para a proa do navio. O Seaquest II tinha passado pelo estreito de Palk, entre a índia e o Sri Lanka, navegando pelo perigoso canal a uma velocidade de apenas poucos nós. Eles tinham acabado de observar o piloto desembarcar e de¬samarrar seu barco veloz. A extremidade setentrional do Sri Lanka estava agora desaparecendo no tombadilho a estibordo da popa, e o capitão tinha reduzido o nível de alerta quando eles entraram nas águas territoriais da índia. A torre blindada e rotatória com a metralhadora Breda tinha sido baixada para ficar fora de vista abaixo da coberta de proa, e a equipe de se¬gurança estava guardando as duas metralhadoras automáticas de uso geral que tinham sido montadas de cada lado da ponte de comando. À frente deles ficava a baía de Bengala, uma cintilante superfície de água que pa¬recia estender-se até o infinito. O mar estava completamente calmo, era como se eles estivessem parados, encerrados num nevoeiro de água e céu sem nenhum horizonte à vista.
Jack sentia a onda de excitação que, antes dele, devia ter atraído para aquelas águas seus próprios ancestrais. O céu, a leste, parecia cheio de fas¬cinação, e com os riscos aquilo ficava muito mais atraente. Jack voltara a pensar nos romanos. Ali, dois mil anos atrás, eles deviam estar no auge do desconhecido, no lugar por onde passava a linha que o autor do Periplus havia traçado, entre o que ele próprio vira e o mundo mais além. À fren¬te situavam-se lugares meio imaginados, que o autor conhecia somente pelos produtos que lhe traziam os comerciantes através das grandes mon¬tanhas e desertos até o mar: seda, lápis-lazúli, especiarias exóticas e medi¬camentos. Os nativos que ele conhecera haviam lhe contado pouca coisa, e o que realmente lhe diziam podia ter sido deliberadamente enganoso, planejado de modo que ele não pudesse ir até as fontes por si mesmo. No entanto, suas histórias não precisavam conter muito exagero. Os perigos eram todos muito reais, como ainda são hoje em dia. Jack se lembrava das linhas finais do Periplus. - O que se situa além dessa região, por causa de terríveis tempestades, um frio imenso e um terreno impenetrável, e por causa de algum poder divino dos deuses não foi explorado.
Costas chegou junto dele e tornou a falar: - Rebecca quer vir conosco, Jack. Ela ainda tem três semanas de férias na escola.
Ela pode ir para o sítio romano em Arikamedu, mas não para a selva. Aquela é uma região de bandidos. O lugar é um refúgio de terroristas maoístas. É perigoso desde que o governo indiano permitiu a entrada na selva dos especuladores estrangeiros de mineração e os maoístas começa¬ram a incitar revoltas entre as tribos.
Muito bem, conte isso para ela.
Parece que ela ouve você, tio Costas.
Ela já sabe disso. - Aysha estava parada do outro lado de Jack. - Eu já contei.
Oh, obrigado, Aysha. - Os olhos de Jack foram subitamente atraídos por uma imagem espetacular. A costa oriental da índia se tornara visível alguns quilômetros à direita da proa, mas estava agora iluminada pelo sol da manhã, que subia acima do nevoeiro a leste. Era uma visão extraor¬dinária, a fina linha da praia e a franja de palmeiras brilhantes, cor de laranja, como se um canal de fogo estivesse subindo depressa pela margem em direção ao horizonte, ao norte. Jack pensou na índia em 1879, ano da rebelião na selva. Ainda era a Índia da opulência mongol e da civili¬dade colonial, no entanto, existia outra índia, um lugar mais sombrio de desespero e crueldade, de fome, de uma doença que matou metade das crianças e viria a matar um adulto por dia. Duas décadas antes da rebe¬lião Rampa, a Índia fora dividida pela amotinação das tropas indianas do exército de Bengala, da Companhia das índias Orientais, uma orgia de barbarismo e derramamento de sangue. Três anos antes da rebelião, em 1876, uma fome terrível se instalou no sul e matou milhões de pessoas. A índia parecia um lugar tentador, no entanto, um lugar no qual uma mortalidade imprevisível aguçava os sentidos, centralizando a experiência no presente. Jack se lembrava daquelas últimas palavras no diário de John Howard, escritas em algum lugar da selva além da linha da costa que ar¬dia através do horizonte. Deus me ajude. O que ele vira?
Uma brisa cálida soprou sobre eles quando o Seaquest II ganhou veloci¬dade. Jack se voltou e desceu as escadas em direção à sua cabine, deixando a porta aberta. Alguns minutos mais tarde, Rebecca entrou, deixando-se cair pesadamente na cama dobrável. - Estive lendo a história que você colocou na minha cama, O homem que queria ser rei, de Rudyard Kipling. O livro foi publicado em 1888 e traz a assinatura "John Howard, Capitão, RE".
Continue - disse Jack.
Trata-se de dois aventureiros britânicos, antigos soldados, que foram para o norte do Afeganistão em busca de um lendário reino perdido. Eles o encontram, e um deles torna-se rei, governando como um deus. Mas acidentalmente ele se corta, e o povo, vendo seu sangue, percebe que ele é mortal, e ele acaba tendo um mau fim. Também encontrei o Horizon¬te Perdido, de James Hilton, publicado em 1933. Este é sobre Xangri-lá, um lugar lendário nas montanhas, no nordeste da índia, onde as pessoas eram quase imortais.
São ambas lendas modernas - disse Hiebermeyer, entrando na cabi¬ne com Aysha, ambos carregando canecas fumegantes de café enquanto Costas os acompanhava.
Rebecca sacudiu a cabeça resolutamente e apontou para um livro em cima da escrivaninha. A capa mostrava a imagem de um vulcão explo¬dindo no mar, sobreposta sobre uma fotografia de uma escadaria esculpi¬da na rocha que levava a uma via de acesso escura rodeada por símbolos misteriosos. Adiante havia uma única palavra: Atlantis. - Minha mãe me enviou esse exemplar antes que eu o conhecesse. Aquele primeiro capí¬tulo, sobre o antigo filósofo grego Platão. Atlantis também é uma lenda moderna, mas havia uma semente de verdade nela.
Então você acha que estamos procurando um reino perdido, um Xangri-lá? - perguntou Hiebermeyer de maneira duvidosa.
Rebecca sacudiu a cabeça e apontou para uma pequena estátua de cerâ¬mica de um guerreiro chinês, na escrivaninha, usada por Jack como peso de papel. - Estive pensando naquele guerreiro.
Uh-oh -, murmurou Costas. - Acho que estamos entrando numa fria, um pouco do pensamento lateral de Jack.
Você se lembra, pai? Quando me levou para ver a exposição dos Guerreiros de Terracota no Museu Britânico em Londres no dia seguinte ao que saímos de Nova York. - Ela se voltou para Aysha, repentinamente quase sem fôlego por causa da excitação. - É impressionante. Aquele cara, o primeiro imperador, enterrou-se com tudo, e quero dizer tudo, sob um monte do tamanho de uma pirâmide egípcia. Eles ainda nem tinham es¬cavado a tumba, podem acreditar nisso? Existe somente um antigo relato chinês de como foi isso. Há um modelo completo do mundo, com rios de mercúrio, e até o céu. As estrelas eram feitas com jóias. E ao redor do monte há aquilo que eles realmente desenterraram, aqueles guerreiros, todos em tamanho natural, milhares deles. É a coisa mais legal que al¬guém já viu.
Hiebermeyer começou a tamborilar. - O que você quer dizer, Rebecca?
Acho que tudo isso tem a ver com imortalidade.
É isso que as tumbas são, em geral -, disse Hiebermeyer, ainda tam¬borilando, - Equipar as pessoas para a vida após a morte.
Não estou falando da vida depois da morte, quero dizer imortalidade - disse ela com impaciência, - Para o primeiro imperador, isso era uma completa obsessão. Você lembra, pai? Na exposição dizia-se que ele enviou uma enorme expedição em busca de uma ilha lendária no Pacífico. As ilhas dos Imortais. Perguntei se alguma vez você havia procurado por elas.
Costas, com um olhar distraído, começou a entoar de lábios fechados a melodia de Haivai 5.0. - Acho que sei onde eles estão.
O rosto de Rebecca contraiu-se de frustração. - Você não está me le¬vando a sério.
Jack olhou para a estátua. - O conceito chinês de vida após a morte estava próximo da noção de imortalidade. A pessoa não vai para o céu como você pode supor. Em vez disso, permanece numa espécie de uni¬verso paralelo, que representa o mundo real. Para o primeiro imperador da China, Shihuangdi, no século 3 a.C., o conceito de céu não podia lhe oferecer mais do que ele tinha sobre a terra. Era isso que o exército de Terracota representava, uma cópia daquilo que ele tinha sob seu coman¬do durante sua vida mortal.
Rebecca estava silenciosa, olhando para baixo e mexendo nervosamen¬te com os dedos. Aysha se inclinou para a frente e olhou para ela. - Sei o que você está insinuando. É a fascinação pelo Oriente, não é? Acha que é o que Howard estava procurando quando desapareceu? Para alguns, havia vales fantasiosos remotos, Xangri-lá, reinos perdidos, céu sobre a terra, lugares onde se podia viver para sempre num paraíso terrestre. Para outros, era onde se podia encontrar o segredo da imortalidade. Tratava-se sempre da fascinação pela vida eterna, o maior dos tesouros.
Mas e os nossos legionários romanos? -, perguntou Costas. - Era atrás disso também que eles estavam? Acho que tudo o que eles queriam era uma morte gloriosa, para juntar-se aos seus irmãos de armas no Elísio.
- Ali, na Rota da Seda, indo para leste, eles podem ter pensado que já estavam naquela região escura, marchando ao lado de seus companheiros mortos - disse Jack. - Para aqueles dentre eles que ainda a desejavam ar¬dentemente, a imortalidade pode ter parecido a única esperança de algum dia regressar a Roma.
Como eles podiam saber o que havia à frente? - murmurou Aysha. - O que podia tê-los atraído?
Eu ia chegar nisso -, disse Rebecca. - A tumba do primeiro impera-dor ficava no final da Rota da Seda, certo? Cheia de tesouros, exatamente como ela é hoje. Se os comerciantes que chegavam pela Rota da Seda pu¬deram contar para o autor do Periplus sobre os legionários que escaparam de Partas e se dirigiam para o leste, então os negociantes também pode¬riam ter contado para os legionários sobre a lendária tumba do primeiro imperador. Talvez um deles tenha lhes contado com a esperança de que ele lhe poupasse a vida.
Talvez estejamos sendo demasiado místicos sobre isso - disse Cos¬tas, esfregando a barba curta.
O que você quer dizer? - perguntou Rebecca.
Talvez você esteja pensando certo, mas não foi por causa de uma fas¬cinação mística, mas só pelo beneficio do tesouro à moda antiga.
Papai diz que você se engana sobre ele, que é um arqueólogo, não um caçador de tesouro.
Quando vejo um elefante, eu o chamo de elefante - disse Costas e se levantou. - Precisamos ir para o helicóptero. E eu não estava sendo irreverente. O Havaí é o paraíso. A costa ocidental de Kaua'i, sabe? Há ali uma linda praia com algumas palmeiras na sombra, logo depois de Hana- lei, e um pequeno bar perfeito.
Papai diz que você é um parasita de praia - disse Rebecca.
Agora você sabe por que tenho que ir.
Jack se voltou para Rebecca. - Continue a ler o diário de John Ho- ward. Pode haver mais coisas que deixei escapar. E você, a propósito, fez uma reflexão muito boa, Acho que podemos simplesmente contratá-la. Tudo o que você tem a fazer é aprender a mergulhar.
O acordo está feito -, disse Costas. - Vou levá-la para Kaua'i na pró-xima semana.
Ela pode não querer ir, é claro - disse Jack, - Pode preferir aprender a voar com helicópteros em vez disso.
Oh, farei qualquer coisa pelo tio Costas - disse Rebecca, acenando com um livro sobre mergulho para eles enquanto seguia Hiebermeyer e Aysha para fora da cabine. Jack se voltou para Costas, e sua expressão estava séria. - Estou exausto, mas ansioso por isso. - Ele sacudiu a cabeça em direção à pilha de roupas cáqui e botas para selva ao lado de sua cama. Uma correia de ombro e um coldre estavam em cima da pilha, com a ex¬tremidade de sua Beretta 92 automática projetando-se para fora. - Já faz tempo desde a última vez que usei isto.
Demasiado tempo, Jack. Nós não queremos perder a destreza.
Subitamente, Jack estava alegre. As últimas vinte e quatro horas ha¬viam sido extraordinárias, e sua mente estava girando. Eles tinham come¬çado a investigar uma história do passado, um padrão de possibilidades e conexões. Já estava começando a ver imagens, as primeiras cenas em sua mente que lhe diziam que seus instintos estavam certos. Rostos retorci¬dos, maltratados pelo tempo, rostos romanos, o brilho da luz do sol sobre uma espada encharcada de sangue, neve rodopiando, depois algo mais, a imagem de um guerreiro, coisa que ele não conseguia tirar da mente. Ele se voltou e olhou para as fotografias acima da arca, as imagens apagadas do oficial britânico, de sua mulher e filho. Jack sentiu como se estivesse prestes a penetrar na imagem e juntar-se a seu ancestral em sua incursão para dentro da escuridão, para um lugar que ele ansiara conhecer duran¬te toda a sua vida adulta. Ele respirou profundamente, pegou o coldre e olhou para Costas. - Pronto para ir?
- Pronto para ir.

                     Rio Godavari, Índia, 20 de agosto de 1879
O tenente John Howard, da Engenharia Real, tirou seu capacete safári e enxugou a testa. O sol estava batendo diretamente no convés do barco a vapor naquela hora, e estava diabolicamente quente. O capacete metalizado dos Sapadores e Mineiros da Rainha de Madras cintilou para ele, polido com amor por seu ordenança naquela manhã. Mas era um excelente alvo para um atirador de precisão, então ele esfregou a palma da mão suja nele e depois recolocou o capacete na cabeça. Estendeu a mão para tocar a cobertura de metal da roda de pás, o último lugar de sombra ao longo da lateral do barco, mas o metal estava como uma fornalha. Um punhado de carvão tinha rolado de baixo de um oleado à sua frente, e ele o chutou desanimado. Pelo menos eles tinham conseguido mantê-lo seco. Tinha visto vestígios de pirita de ferro no carvão e se lembrou de uma demonstração alarmante de combustão espontânea em carvão úmi¬do na Escola de Engenharia Militar. Teria sido um fim menos que glorio¬so para seu primeiro comando de campo, preso em um banco de areia na garganta de um rio abandonado por Deus na selva da Índia oriental, sem nem ter dado um único tiro raivoso. Estava começando a perceber que a guerra era assim.
Observou um crocodilo passar nadando de maneira lânguida, parecen¬do abstraído do drama que se desenrolava na curva do rio, depois virou-se para ficar de frente para a coberta de proa do barco, ajeitando o cinturão Sam Browne na cintura para que seu coldre ficasse fora do caminho, man¬tendo a cabeça debaixo das chapas de aço que eles tinham erguido para se proteger das balas no porto do rio em Rajahmundry. Passou os olhos pela placa identificadora, Shamrock, depois por seus homens. Ajoelhados atrás das chapas, havia doze, sapadores de Madras, com as cartucheiras aber¬tas e os rifles Snider-Enfield prontos. Atrás deles estava o canhão de sete libras, com tubos metálicos de metralha e uma haste de esponja colocada ao lado. O coronel Rammel requisitara urgentemente uma porção de ar¬mas de montanha para mulas, mas em vez disso enviaram duas peças de campo de carregamento manual na boca do cano e fixadas em carretas onde eram transportadas, inúteis na selva. No último minuto os sapa¬dores instalaram uma no barco a vapor no rio, e haviam projetado um sistema de roldanas para manter o coice da arma sob controle. Além do canhão, os barqueiros marujos da Índia oriental ainda estavam engajados num esforço inútil para rebocar o barco para fora de um banco de areia, onde estavam presos havia quase dois dias. Durante a noite, outro barco subira o rio, deixando com eles um oficial substituto e levando embora alguns dos sapadores atacados pela febre da selva, mas todos os esforços da tripulação haviam falhado no reboque do barco a vapor. Essa era outra razão para rezar pela volta das monções. Com o rio inundado, eles flutu¬ariam e seriam capazes de seguir viagem subindo o rio até Wuddagudem, onde se esperava que fosse aberta uma estrada fora da selva. Suas mulas ainda estavam pacientemente paradas a sotavento do convés, carregadas com prateleiras, picaretas e machados. Um dos marujos também estava lá, deitado inconsciente numa maca. Seus gemidos e gritos tinham torna¬do a noite anterior insuportável. Na tarde da véspera, o barqueiro tinha carregado a âncora em um pequeno barco e a deixara cair num local a 3 mil metros de distância, e o infeliz marujo estava no cabrestante quando o cabo grosso se rompeu e voltou bruscamente, destroçando suas pernas. O cirurgião Walker tinha lhe administrado conhaque e láudano, mas não havia nada mais que se pudesse fazer. O acidente com o marujo fora o único da expedição até então, e Howard estava muito cansado para outra noite como a anterior. Ele esperava com fervor que o homem não durasse até o fim do dia.
Da parte de cima vinha um choro lento, seguido por uma fraca pan-cada e uma baforada de fumaça da margem oposta. Uma figura com um grande bigode surgiu de trás do abrigo do deque e postou-se firmemente atrás da linha do carabineiro, com as mãos às costas e um pesado revólver Adams fora do coldre. Ele se voltou para Howard, e um olho injetado de sangue apareceu sob a aba de seu capacete de safári.
Será que devíamos disparar uma saraivada de tiros, senhor? Deixá-los preocupados? Malditos selvagens!
Sargento O'Connell, gostaria de lembrá-lo de que o governo deseja que iniciemos negociações para convencer os rebeldes a libertar os poli¬ciais nativos que eles aprisionaram.
Tolice, senhor, se me permite dizê-lo.
Você pode. Entrementes, não atire.
O bigode se contraiu. - Muito bem, senhor.
Howard tirou do bolso do cinturão um telescópio de metal e mar¬fim, ergueu ligeiramente a cabeça acima do conjunto de placas metálicas e olhou através do telescópio para a margem mais distante. Havia deze¬nas deles lá agora, afluindo da aldeia, inclinados, homens escuros vesti¬dos com tangas, alguns carregando arcos e flechas e outros, mosquetes e espingardas sem trava. Ele podia ver que alguns estavam arrumados de maneira mais extravagante, com o cabelo comprido trançado na frente e ornamentados com roupa vermelha e plumas. Outros carregavam tam¬bores de pele e cornetas de metal. Ao longo da praia, grupos de homens estavam cavando buracos na areia e levantando uma cerca de bambu ali¬nhada com a margem da selva. Haviam acendido fogueiras ao ar livre, e a fumaça preta se acumulava sobre o rio, obscurecendo o cenário visto do barco a vapor. A cena mudava: viam-se lampejos de atividade, que logo eram obscurecidos pela fumaça, o que impossibilitava que se entendesse qual era o plano deles. A qualquer momento podiam sair de canoa e con¬centrar-se no ataque. Howard se voltou para o sargento. - Sua mais re¬cente fuzilaria foi para o alto. Há algo estranho acontecendo lá. Eles estão bem na margem do rio, como se quisessem ser vistos, confundindo-nos. Se começarem a fazer pontaria contra nós, você pode autorizar a atirar. Sob meu comando. Você compreende?
- Sim, senhor! - O rosto queimado de sol do sargento estava resoluta¬mente voltado para a frente.
Howard olhou de novo para a cena. Uma semana antes, banhado pela chuva, aquele era um lugar de beleza cintilante, a grande garganta do Godavari serpenteando através de colinas verdes brilhantes, que se elevavam de cada lado a cento e cinquenta metros ou mais, com os espinhaços e cumes do Ghast oriental por trás. Mas agora, era como se um pesado miasma houvesse se erguido do rio e sufocado os vales com véus de né¬voa. O rio era uma linha vital de comunicação, o único local banhado pelo sol, enquanto todos os outros lugares eram escondidos, sinistros. Ele podia sentir o medo e a superstição do mundo espiritual, as centenas de deuses e demônios em que essas pessoas acreditavam espreitando da sel¬va. Sua primeira patrulha no interior o deixara profundamente nervoso, e não se tratava somente dos rebeldes esperando em emboscada. Havia algo mais ali, alguma coisa que conservara aqueles lugares sombrios e re¬motos impenetráveis à marcha do progresso através do continente. Ele podia compreender porque os carregadores nativos das planícies costei¬ras temiam e desprezavam esse lugar e se recusavam a ir com eles para além de Rajahmundry. Respirou profundamente e ergueu seu monóculo novamente em direção à aldeia de telhados vermelhos que se espalhava pelo outro lado da margem do rio, e à crescente multidão de nativos que giravam e dançavam ao redor do fogo na praia arenosa. Voltou-se para o oficial indiano ao seu lado, originário da Índia do sul, com aspecto feroz, usando turbante, de olhos pretos penetrantes. Howard falou com ele em hindi: - Jemadar, chame Mr. Wauchope, por favor.
Sim, sahib.
Alguns momentos depois, uma figura alta saiu lentamente da cabine do convés carregando um pequeno livro aberto na mão. Vestia uma roupa cáqui empoeirada, a nova moda entre os recém-chegados oficiais da fron¬teira norte-oeste, e suas bandagens para proteger a perna estavam amarra¬das com tiras de roupa afegã colorida. Ele estava sem chapéu, bronzeado, com o denso cabelo negro cortado curto e barba cheia. Howard falara brevemente com ele quando chegou com reforços durante a noite, ou¬vindo as últimas notícias do Afeganistão, mas Wauchope logo foi dormir no que era considerado o quarto dos oficiais, debaixo de um mosquitei¬ro, bem ao lado da cabine. Howard estava ansioso para ter outro oficial no convés, um amigo que tinha fama de tranquilo, exatamente do que necessitavam para evitar que perdessem a cabeça com a escuridão e a fei¬tiçaria do local.
Wauchope olhou atentamente para o tumulto do outro lado da mar-gem, franziu os lábios depois acenou com a cabeça para Howard. Ele tinha olhos penetrantes, intensos, mas havia humor neles. - Estava pro¬curando o bar - disse, com uma fala arrastada, pronunciada. - Acabo de perceber que este não é exatamente um barco a vapor do Mississippi.
Nunca entendi por que você saiu da América, Robert.
Minha família é irlandesa, lembre-se. - Wauchope se encostou na la¬teral do parapeito, e puxou o cachimbo. - Não um pobre irlandês, mas um irlandês proprietário de terras de origem inglesa. Meu pai se mudou para a América porque se sentiu impotente durante a escassez de víveres, e não podia admitir voltar depois. Nós temos uma longa tradição militar. Para mim, a escolha era West Point ou a Academia Militar Real. Depois de viver a Guerra Civil americana quando menino, não poderia admitir a possibi¬lidade de enfrentar um irmão no campo de batalha. - Deu uns tapas no cachimbo. - Eu estava inclinado a procurar minha glória no estrangeiro.
Eu estava aqui na Índia durante a rebelião, você sabe - disse Howard. - Era uma criança de colo. Não me lembro dela, e minha mãe nunca me falou do que vi, mas eu costumava ter sonhos ruins. Não os tenho mais. - Ele fez uma pausa, depois apontou para o livro. - O que você está lendo?
Wauchope habilmente riscou um fósforo com a outra mão e acendeu o cachimbo, sugando-o enquanto atirava o fósforo no rio. Ergueu o livro para Howard. - Arriano. A vida de Alexandre, o Grande. Nós encon¬tramos antigas ruínas acima, além do Indo, e tenho certeza de que são altares gregos.
A fronteira o deixou mudado, Robert.
Fui indicado para a Agência Central de Mapeamento e Levanta-mento Topográfico da índia, você sabe. Eles tinham um lugar disponível na Comissão de Fronteiras. Estava voltando das operações militares no Afeganistão para liquidar meus assuntos com o regimento em Bangalore quando fui desviado para cá como substituto.
Nós estamos sendo derrubados como pinos de boliche. Cada oficial que entra na selva fica prostrado em uma semana. Esta é a pior febre que já vi.
Parece que você sobreviveu a ela.
Eu nasci aqui, lembra-se? Na propriedade rural de plantação de índigo de meu pai em Bihar. Qualquer criança que sobrevive ao sol de Bengala está preparada para a vida.
O cirurgião major Cross em Bangladore acha que a febre é causada por mosquitos.
É claro que é. - Howard deu um tapa na nuca e observou atentamen¬te. Além das colinas, apareceu no céu uma faixa negra de nuvens, bifur¬cada por clarões distantes. - E também não estamos livres dos mosquitos no rio. A monção os empurra sobre nós como uma manta pestilenta.
Piedade. - Wauchope sugou o cachimbo e fechou o livro. - Se você se permitisse ser atacado pela febre, ficaria fraco para continuar aqui e en¬tão seria enviado para o Afeganistão. É lá que se faz carreira. Não haverá medalhas tora de lá.
Fui designado para o Campo Militar Khyber. Dizem que ali a guerra ainda não terminou. Mas eu quis ficar perto de Edward e Helen em Ban¬galore. O coronel Prendergast tem sido muito compreensivo.
Ah. - Wauchope pousou a mão no braço de Howard. - Como vai seu menino?
O rosto de Howard se abateu. - Ele não está bem, Robert, esteve do¬ente o ano todo. Você sabe o que isso significa para uma criança de fora daqui.
Ele é muito querido por seus colegas oficiais. Você sabe disso.
Ele é uma criança muito afetuosa. - A voz de Howard ficou grave. - Eu o trato com muito carinho. A pobre Helen anda fora de si. - Ele se voltou, piscando com força, depois se ajoelhou novamente e ficou olhan¬do atentamente pelo telescópio. Em seguida, passou-o para o outro ho¬mem. -Veja o que você faz com aquilo.
Wauchope olhou para Howard com preocupação, depois pelo apare¬lho observou a praia do outro lado. - Santo Deus. Deve haver uns qui¬nhentos deles, talvez mais.
A cena de poucos momentos atrás havia mudado. Agora multidões de homens estavam batendo os pés ao redor das fogueiras, e havia cabaças, o licor de palmeira fluía livremente. Os homens de cabelo trançado es¬tavam girando bastões, agora formando espirais, depois figuras em forma de oito e novamente espirais. Tambores soavam dissonantes, sem harmo¬nia, depois eram tocados juntos, com uma batida monótona. Repentina¬mente, saindo da fumaça, uma aparição extraordinária se materializou. Uma dúzia de homens apareceu, com capacetes extravagantes ornamen¬tados com grandes chifres curvados de bisão precariamente assentados na cabeça. Vestiam pele de tigre, e seu rosto era pintado de vermelho com pó de cúrcuma. A medida que avançavam, o ar foi cortado por um som agu¬do, tão alto que fez que Howard trincasse os dentes, nervoso. Os homens avançavam em linha em direção ao banco de areia do rio, recuavam, de¬pois avançavam novamente, ajoelhavam-se e batiam com os pés na terra imitando luta de touros.
Acho que eles estão invocando o deus vermelho-sangue da batalha, Manecksoroo - murmurou Howard. - Pedindo que ele transforme os machados em espadas, os arcos e flechas, em pólvora e balas.
Eles têm touros de verdade, também - disse Wauchope, passando o telescópio. Howard olhou por ele, e resmungou. - Então é isso. - Ele fechou o telescópio, depois voltou-se e encostou-se contra na grade.
- Sacrifício de touro. É para isso que são aqueles buracos. Eles misturam o sangue com sementes e as atiram nas clareiras da floresta, para induzir fertilidade ao solo. Isso pode continuar assim por horas, até que se entor¬peçam com o suco fermentado de palmeira.
Pensei que o sacrifício tivesse sido eliminado - disse Wauchope.
O sacrifício humano sim, décadas atrás, mas não o sacrifício animal, embora seja desencorajado. - Howard se abaixou, subitamente dominado pelo cansaço. - Isto é o que aqueles idiotas da Receita não entendem. Eu trouxe o livro de Campbell sobre a supressão do sacrifício humano comi¬go. Você mesmo pode lê-lo. Ele diz que não podemos usar a moralidade para persuadir um povo a abandonar seus antigos costumes. Nossa mora¬lidade não significa nada para eles. É necessário mostrar-lhes que sua vida ficará melhor em consequência da mudança. Se ficarem sem seus gran¬des prazeres, vão voltar aos antigos costumes. Nós rompemos o ciclo, ao mostrar-lhes que sua terra pode ser fértil sem a necessidade de sacrifícios. Agora, basta uma assinatura em Calcutá e o que se fez fica arruinado. Tudo estava ocorrendo logo abaixo da superfície, dentro da selva, mas agora eles querem que assistamos. Não se pode culpá-los.
Conte-me sobre este povo.
Eles são Kóya, disse Howard. - Descendentes dos antigos dravidia- nos habitantes da índia, que estavam aqui na época de Alexandre, o Gran¬de. Mas não se poderia obter um contraste maior com a civilização dos mongóis e dos siques. Essas pessoas se assemelham mais a seus índios pele-vermelha. Eles caçam na floresta e queimam o mato para abrir pe¬quenas clareiras e semear. Dificilmente qualquer um deles tem alguma noção do mundo exterior.
Isso talvez não seja algo ruim - murmurou Wauchope, fumando seu cachimbo. - Nós conhecemos a linguagem deles?
Tenho algum conhecimento de seu vocabulário coloquial. Mas temos um intérprete que me conta sobre seus costumes. - Howard apontou com a cabeça para um homem baixo e magro, de idade indeterminada, sentado com as pernas cruzadas na coberta de proa, de pele profundamente bron¬zeada, usando apenas uma tanga branca. Seu cabelo era castanho-escuro, quase ruivo, enrolado, a barba irregular e o rosto mirrado. Em uma das mãos segurava um arco e flecha, e na outra, um pedaço de bambu de uns trinta centímetros de comprimento. Seu único enfeite era uma corrente de ouro pendurada em volta da orelha, com um pequeno pingente. Estava fumando um charuto, e seus olhos pareciam entorpecidos.
Ele está meio grogue de vinho de palmeira - disse Howard. - Isso não pode ser evitado. É seu salva-vidas durante a monção. A rebelião é acerca disso. Quanto o coronel Rammell lhe contou?
Wauchope sacudiu a cabeça. - Só tive tempo de informar minha che¬gada no quartel-general do campo militar em Dowlaishweram. O barco, com os sapadores de reforço, já estava me esperando para me levar rio acima. E Rammell e seu assistente estavam ambos prostrados, com febre, como quase todos os outros oficiais.
Howard expirou com força. - Bem, esse é o ponto importante. Se al-gum imbecil da Receita não tivesse decidido impor uma taxa sobre o suco fermentado de palmeira, não estaríamos aqui. Nem nós nem os policiais nativos. Durante meses inteiros a única presença estrangeira entre essas pessoas tem sido os guardas, habitantes das planícies, que os habitantes da colina desprezam. O superintendente de polícia britânico e a agência co¬missionada dificilmente se aventuram por aqui por causa da febre da sel¬va. Os guardas têm liberdade para intimidar e explorar os habitantes das colinas como os habitantes das planícies sempre fizeram. E agora que necessitamos deles, são mais que inúteis. Dificilmente se consegue que um desses homens suporte o cheiro de pólvora. O primeiro ato dos rebeldes foi capturar meia dúzia deles. É uma boa maneira de desembaraçar-se dos sujeitos, até onde me diz respeito.
Uma saraivada desigual de tiros partiu da margem do rio, mas não se ouviu nenhum som de balas no alto. - São mosquetes equipados com travas novamente, sargento. Não atire.
Wauchope olhou atentamente por cima da placa de metal do telescó¬pio para a fumaça. - Onde eles conseguem a pólvora?
Quando fiz minha primeira incursão para dentro da selva na últi¬ma semana, procurei uma aldeia e recolhi seus revólveres, e eram todos mosquetes com travas - replicou Howard. - As mulheres estavam fazen¬do salitre, urinando em sacos de esterco suspensos sobre recipientes para evaporação, e depois deixando o líquido que escorria se cristalizar. Enge¬nhoso, realmente. Como estão sempre queimando trechos na selva para abrir áreas de cultivo, têm grande quantidade de carvão vegetal e enxo¬fre, que conseguem com os comerciantes. O pó é bastante pobre, mas ser¬ve para um joguinho. Alguns deles também conseguem pó e bala com os agiotas das planícies, que os escravizam com as dívidas que contraem. Mas temo que agora eles tenham uma nova fonte de armas e de pólvora.
Uma bala atingiu a chaminé de fumaça do barco a vapor, causando um som muito alto, seguido por um estalo agudo na praia. - Falando no diabo... - Howard olhou atentamente de novo pelo telescópio. - Um ve¬lho mosquete de percussão da Companhia das Índias Orientais, herdado da polícia nativa. Alguns dos guardas supriram os rebeldes com armas e munição em troca de sua própria segurança. A polícia realmente é com¬pletamente inútil. Não se pode confiar neles para nada, são desobedientes e insubordinados. Mas o governo quer que os empreguemos. E isso que acontece quando uma guerra é dirigida por escriturários em Calcutá. O coronel Rammell tem sido obrigado a desobedecer. E há outro problema. Nos regimentos de infantaria organizados no campo militar, há oficiais indianos que ainda não conseguem utilizar um mapa adequadamente, nem aqueles rudimentares que fizemos deste local. Sem um mapa e pon¬tos de apoio fica-se perdido na selva. Mas todos os nossos sapadores são excelentes leitores de mapas. Então, aqui estamos, os mineiros e sapado¬res da própria rainha, empregados como infantaria e polícia. E realmente um estado de coisas dos mais lamentáveis.
- Qual é a qualidade dos mapas?
Howard bufou. - Este é o único embaraço. Tivemos que fazê-los à medida que avançávamos. Quando o tenente George Everest chegou aqui em 1809 com o Grande Levantamento Trigonométrico, eles ainda não ti¬nham nem estabelecido seus postes de trigonometria nas colinas quando foram todos atacados pela febre da selva. A metade deles morreu, e Everest nunca voltou. Este lugar é um grande buraco negro que atinge com violência, no meio da Índia. Ele pode estar tanto no Baluchistão quanto nas profundezas da Ásia Central. - Ao olhar para a coberta de proa, viu O'Connell olhando fixo para ele, com o lábio inferior tremendo. - Muito bem, sargento, ponha seus homens de prontidão. Se mais uma bala for atirada em nossa direção, pode abrir fogo. Primeiro dê uma descarga aci¬ma da cabeça deles. Aguarde meu comando.
Sim, senhor. O'Connell gritou uma ordem em hindi, e uma linha de rifles se ergueu, ficando na horizontal ao longo do parapeito do convés, seguidos pelos estalidos das armas sendo engatilhadas. O'Connell estava positivamente ansioso para fazer algo, respirando como um touro pronto para atirar.
Dei uma olhada em seus camaradas nativos quando subi a bordo - disse Wauchope apontando o cachimbo para o intérprete. - O pingente em sua orelha é uma moeda romana, você sabe. Você se lembra de quan¬do éramos cadetes e eu o levei para ver uma coleção no Museu Britânico? Ela está muito gasta, mas acho que é da época da República Romana, pos¬sivelmente Julio César.
Você as encontra ao redor de Bangalore, e mais adiante ao sul - dis¬se Howard. - A aia indiana de Edward tem uma, uma moeda de ouro. Disseram-me que os romanos as trocavam por pimenta.
Quem é ele, em todo caso, nosso amigo Kóyal - Wauchope o apon-tou novamente com o cachimbo.
É um muttadar, um chefe local de Rampa, a aldeia que dá nome ao distrito. Ele conserva uma espécie de ressentimento contra Chendrayya, o líder da revolta. Ramaya age por motivos egoístas. Uma vez satisfeito nesse ponto, retribui com seu tempo e trabalho muito zelosa e incansa¬velmente, quando está suficientemente sóbrio. - Howard abaixou a voz. - Ele é também um vezzugada, um feiticeiro. Os Kóya não sabem nada sobre a religião hindu. Eles adoram divindades próprias, antigos deuses dravidianos, deuses e deusas animistas. Tigres, hienas, búfalos. Às vezes as divindades se apossam da pessoa, que é conhecida então como konda devata. Os sacrifícios são feitos para uma divindade pavorosa chamada Ra-maya. O bambu oco que ele está segurando, supostamente contém uma espécie de ídolo, o supremo vélpu. Ele o chama de Lakkála Rámu, e diz-se que é decorado com olhos de olivina e lápis-lazúli. Ele não o mostra para ninguém. Supõe-se que seja guardado numa caverna sagrada, um santuá¬rio perto da aldeia de Rampa, para aplacar a divindade. O muttadar tirou-o do santuário quando escapou de Chendrayya e veio até nós. Mas agora a divindade precisa do ídolo de volta, e parece que está ficando agitada. Nossa parte do acordo é ajudar o muttadar a repor o ídolo no lugar.
Você vai manter a promessa?
É claro. Precisamos instilar medo entre os rebeldes e confiança entre aqueles que mostram boa disposição em relação a nós.
Concordo.
Houve uma súbita comoção e uma imprecação, e uma escotilha no porão se abriu atrás deles. Um cheiro indescritível saiu de lá, seguido de um homem vigoroso, despido até a cintura, usando apenas um lúgubre avental manchado. Era poucos anos mais velho que os dois subalternos, da mesma idade do sargento O'Connell e, como ele, ostentava costeletas compridas, que estavam na moda na geração passada.
Cirurgião Walker - disse Howard, olhando preocupado para o ho-mem. - Como vão as coisas no buraco negro?
A maior parte dos homens passaram por repetidos ataques de ma-lária, e todos estão num estado muito debilitado. - Walker falou com as consoantes fortes de seu local de origem, Kingston, no alto Canadá, e seis anos na Queen's University em Belfast. Há sérias consequências: o baço aumentado, anemia, paralisia parcial, extrema magreza, desordens de estômago e intestinos, e outras enfermidades de natureza grave. Muitos de¬les estão passando pelo estágio agudo de paroxismo febril, é doloroso ver seus sofrimentos e angústias.
E esse cheiro ruim?
Realmente. É uma erupção cutânea pútrida singular. - Walker en-xugou no avental algo desagradável que havia em sua. - Estou aqui para tomar um pouco de ar fresco. O tenente Hamilton já voltou?
Howard sacudiu a cabeça e tirou o relógio do bolso. - Ele já está fora há vinte e quatro horas, agora. Não deve ter provisões para muito mais tempo. - Virou-se então para Wauchope. - Um dos homens muttadar nos informou que Chendrayya tem sido visto na aldeia Rampa, cerca de treze quilômetros a nordeste daqui. Mandei Hamilton com o que restava da Companhia G, somente vinte e dois homens. Era um risco, mas rara¬mente encontramos os rebeldes em bandos de mais de dez ou vinte. Até agora, quer dizer.
Vamos esperar que Hamilton não vá para aquela área de terra. - Mur¬murou Wauchope, apontando com a cabeça na direção da margem do rio.
Howard resmungou. - Só desejo que ele não tenha levado o infernal Bebbie com ele.
Quem?
O comissário assistente para as Províncias Centrais. - Howard fez uma pausa tentando controlar seu temperamento. - Porque o governo, na sua sabedoria, decidiu que esta é uma ação policial, e todas as nossas incursões dentro do distrito tribal devem ser conduzidas por um oficial civil. Alguns são camaradas decentes, gente fina. O senhor Bebbie decididamente não é um desses. Ele proferiu uma palestra antes que nos puséssemos a caminho: como o clima sempre vai impedir que este lugar tenha indústrias prósperas ou uma grande empresa comercial; como os Kóya são uma raça degenerada, mergulhada nas profundezas da ignorân¬cia e da superstição; como é seu dever ensinar-lhes o valor de uma obri¬gação moral e o nosso, de não repreendê-los pelo passado, mas inaugurar com eles um futuro melhor. Sua palestra foi uma magnífica exibição de linguagem, combinada com uma atroz perversão dos fatos. Falhou em esconder a verdade, que ele raramente se preocupou em vir aqui em sua jurisdição antes e está permanentemente prostrado, com febre. Nunca vi um espécime de líder de homens tão imprestável e perfeitamente inútil.
Tenho certeza de que Hamilton o manterá em seu lugar - murmu¬rou Wauchope com um sorriso, encostando-se de maneira relaxada con¬tra a lateral do barco e acendendo novamente seu cachimbo.
Nosso muttadar está convencido de que um daqueles homens lá adiante na margem do rio é Chendrayya, o líder rebelde - disse Howard. - Se for assim, Hamilton foi levado para dentro de um buraco de víboras por Bebbie. Eu disse para Bebbie não confiar em seu guia, mas se Bebbie não ia ouvir nem Deus todo-poderoso, o que dizer de um mero sapador subalterno! - Howard fechou os olhos, depois se lembrou de um artigo que tinha lido na longínqua Londres: índia, pacífica e próspera desde a re¬belião, sob o governo benigno da rainha Imperatriz. Outra bala de mosquete estalou dentro da chaminé do barco. Ele abriu os olhos, fez um gesto de aquiescência para o sargento O'Connell e ergueu o braço esquerdo. En¬tão, percebendo uma comoção no rio, rapidamente voltou a olhar atento pelo telescópio. - Não atirem! - gritou. - Acho que vi algo. - Todos se¬guiram seu olhar. Meia hora antes ele havia mandado para dentro do rio rio pequeno barco a vapor, preparado para pegar o grupo que voltava, e agora eles estavam vendo o barco chegar, fazendo a volta pela curva de uma escarpa arenosa do rio, escondido da aldeia. Os quatro marujos indianos remavam furiosamente contra a corrente. No meio havia um grupo de sapadores madrassi com suas baionetas fixas, e na popa se via o capacete safári de um oficial britânico. Atrás deles na escarpa arenosa, homens vestidos com tanga e longos mosquetes materializaram-se fora da selva, e eles ouviram gritos e estalos dissonantes de mosquetaria. Uma fumaça branca se ergueu onde os rebeldes estavam atirando e juntou-se com a névoa sobre o rio, escondendo brevemente o barco e os rebeldes. Quando a fumaça clareou, os rebeldes tinham ido embora da escarpa, e Howard captou um vislumbre do último deles correndo ao longo do banco de areia na direção da multidão na aldeia, brandindo seus mosque-tes e gritando e entoando cantos. Poucos momentos depois o barco me¬nor deu a volta para o lado protegido a sotavento do barco a vapor. Houve uma algazarra quando os homens desembarcaram e chegaram ao convés, abaixando-se rapidamente parapeito abaixo. Tinham um cheiro forte de suor e enxofre, e pareciam exaustos. Hamiltom, o último a subir a bordo, dirigiu-se para onde Howard e os outros estavam. Ele tirou o revólver Adams e girou o cilindro, deixando cair a tira de cartuchos vazia. Suas mãos estavam tremendo, e seu rosto, manchado de resíduos gordurosos de pólvora. Parecia cansado, mas estava exuberante. Era o subalterno mais novo no efetivo militar de Madras, e essa era sua primeira amostra do objetivo final da classe militar.
Estávamos acampados para passar a noite, bem dentro da selva - dis¬se ofegante, sentando no chão, enquanto recarregava o revólver. Sua voz estava rouca, e ele respirava fundo algumas vezes para controlá-la. - Nos¬sos guias nos disseram que um bando de cem rebeldes estava numa aldeia próxima. Marchamos às três da manhã para surpreendê-los ao amanhe¬cer. O guia nos levou para uma pequena clareira na frente da aldeia, onde fomos descobertos. Ele desapareceu e não o vimos de novo. Um tiro foi disparado em nossa direção, seguido de mais cinco ou seis em rápida su¬cessão. Organizei os homens em posição de luta e abrimos fogo contra os rebeldes, que rapidamente recuaram para a selva. Uma vez lá e conhecendo o caminho, eles tinham uma decidida vantagem sobre nós. Se pelo menos eles tivessem parado e lutado num lugar aberto, poderíamos ter acabado com essa rebelião em uma semana.
Isso acontece todas as vezes que tentamos prendê-los - murmurou Howard para Wauchope. - Continue.
Estávamos ficando sem munição. Eles tentavam atrair-nos mais para dentro da selva. Decidi bater em retirada, e depois de uma calmaria eles nos seguiram, mantendo um fogo cerrado sobre nós por todo o caminho. Algumas vezes era possível vê-los, quando corriam rapidamente de uma árvore para outra, o que nos possibilitava atirar em alguns deles. Por duas vezes fiz que os sapadores parassem e confrontassem os atacantes com fogo pesado, mas eles sempre se refugiavam atrás das árvores. No total, gastamos umas mil balas, mas com certeza acertamos somente dez. Qua¬se sempre os rebeldes foram confrontados dessa maneira, e saíram com poucas perdas entre mortos e feridos. Acho que se nossos homens usas¬sem cartuchos com chumbo grosso, o efeito teria sido maior.
Howard concordou. - Muito bem. Coloque isso em seu relatório.
E qual foi a conta? - perguntou Walker.
Seus mosquetes não têm muita força para fazer estragos além de cin¬co quilômetros, aproximadamente. Um dos sapadores tem uma bala in¬crustada no crânio.
Vamos vê-lo, então. - Walker deu um sorriso meio mórbido e abriu uma algibeira, em seu cinturão, que continha fórceps e alicates, pegando os maiores e esfregando-os no avental. - Um ferimento de verdade de¬pois da porcaria fedorenta lá de baixo.
Hamilton apontou para um sapador com uma faixa ensanguentada na cabeça. Em seguida se voltou para Howard e Wauchope, com os olhos brilhando febrilmente - Conseguimos, no entanto, uma pequena vitória. Fez um gesto de cabeça para o sapador parado atrás dele, que deixou cair um saco de aniagem, contendo algo pesado, aos pés de Howard. - Um rebelde chamado Tamman Dora. Nós atiramos nele ontem na aldeia. Um dos sapadores era um Gurkha e tinha uma faca curva. Aqui está a prova.
Santo Deus, homem! - Wauchope retrocedeu, segurando o nariz. - Isto fede a carne podre. Livre-se disso.
Hamilton chutou o saco para o lado, depois acocorou-se, olhando atentamente para eles. - Aparentemente ele era um dos líderes. Talvez seja exatamente disso que necessitamos. Mostrar qual é nosso negócio. - Ele virou rapidamente a cabeça para a margem do rio.
Quem lhe disse que ele era um líder rebelde? - Howard perguntou baixinho. - Seu guia?
Ele estava convencido disso. E o homem armou uma bela briga. Descarreguei meu revólver nele, e ele continuou vindo.
Você quer dizer o guia que o levou para dentro de uma emboscada? Ele não podia estar somente usando-o para pagar uma dívida antiga?
Hamilton olhou para o saco e depois novamente para Howard, per-turbado. - Outra pessoa pode confirmar a identificação. Seu muttadar.
Você terá sorte se ainda houver alguma coisa identificável naquele saco - disse Wauchope.
Mantenho que nós matamos um líder rebelde - insistiu Hamilton.
Muito bem - disse Howard, franzindo os lábios. - Você deve escre-ver um relato para ir junto com meu relatório para o coronel Rammell, quando finalmente sairmos desta desgraçada margem de rio. - Ele fez uma pausa, ficou olhando para os sapadores, depois novamente olhou para o barco vazio. - Acabei de perceber. Está faltando alguém. Onde está Bebbie?
Eu ia falar nisso. Foi abatido pela cólera.
-Vivo?
Exatamente. Você sabe quão rapidamente ela pode arrebatar um homem. Ele estava prostrado quando alcançamos um lugar para resistir aos rebeldes em um santuário perto da aldeia Rampa. Então, aconteceu a coisa mais curiosa. Ele pegou uma flecha Kóya e conseguiu cortar-se com ela. Pensamos que ele morrera por causa disso. Mas a flecha esta¬va revestida com alguma espécie de pasta e não com o veneno habitual. Aparentemente, eles se picavam com ela. Em meia hora ele estava em pé novamente. Nós todos percebemos que os nativos parecem imunes às piores devastações da febre. Porém, mais tarde naquela noite, o efeito passou, e ele começou a delirar. Quando marchamos contra os rebeldes, ele insistiu em ficar em Rampa. Queria negociar com o chefe da aldeia. Deixei quatro sapadores com ele e a promessa de voltar. Era tudo o que eu podia fazer.
Confundir o homem - murmurou Howard furiosamente. - Se pelo menos ele tivesse falado com essas pessoas seis meses antes, nada disso teria acontecido. - Ele olhou para Hamilton. - Você terá que voltar. Não quero deixar nenhum dos sapadores lá. Diga ao seu havildar para pegar outra caixa de munição e dar a seus homens um pouco de água.
Entendido. - Hamilton fez um gesto para seu havildar, que compre-endeu e se retirou imediatamente.
Se você precisa ir, agora é o momento - disse Wauchope languida-mente, mostrando o rio com seu cachimbo. - Não acho que algum deles vá perceber sua partida. O vinho de palmeira está fluindo livremente.
Um de nós o acompanhará - disse Howard.
Hamilton se voltou para Howard. - Gostaria que você e Robert vies-sem. Seria uma oportunidade para Robert percorrer a região acima e co¬nhecê-la um pouco. E há algo mais que quero que vejam. Robert, você tem uma queda por antiguidades, não é? E Howard, você não está sempre falando sobre línguas antigas?
Wauchope empertigou-se e limpou o cachimbo. - Você encontrou al¬guma coisa antiga?
No santuário, simplesmente tropecei na entrada por um momento, mas você terá que ver.
Houve um estalido vindo da praia, como o de um fogo de artilharia, mas diferente. Howard pegou seu telescópio e olhou atentamente. Os nativos estavam dançando ao redor do fogo, atirando dentro dele pedaços de bambu. O bambu estourava forte quando o ar se expandia entre os nós. Era um espetáculo de fogos de artifício, com as lascas flamejantes espalhando-se no ar como faíscas. Howard percebeu o olhar do sargento O'Connell e sacudiu a cabeça com veemência. Em seguida o ar foi inva¬dido por uma sucessão de sons agudos. Ele olhou novamente. A dança se tornara subitamente frenética, acompanhada de batidas de tambor e sopros em chifre de búfalo. Um homem nu apareceu, com o corpo todo cheio de manchas pretas e brancas, conduzindo um filhote de búfalo na direção de um buraco perto da praia. O animal estava berrando e batendo as patas no chão. Atrás deles os dançarinos separaram-se e outro homem apareceu, vestindo apenas calças pretas de boca larga, mas carregando algo que realuzia em sua mão direita.
Chendrayya - murmurou Howard. - Exatamente como o muttadar o descreveu.
Ele está com uma tulwar - murmurou Wauchope.
O homem de calça preta levantou a mão direita, revelando a espada curva mais temida que todas as outras pelos soldados britânicos na ín¬dia, capaz de cortar um homem em dois com um único golpe. Com um lampejo, a espada desceu de um lado e depois do outro atrás do búfalo, fendendo o ar. Por uma fração de segundo fez-se silêncio, e em seguida soou um berro terrível quando o filhote caiu, dobrando as pernas e deixando os pés atolados grotescamente na areia. O sangue jorrou dos vários membros cortados. Os dançarinos lançaram-se sobre o filhote como um bando de hienas enfurecidas, cortando pedaços de carne com facas ou com as mãos nuas. O sangue continuava jorrando e escorria para dentro de um buraco, e o coração do animal continuava pulsando, mesmo ele tendo sido cortado abaixo da caixa torácica. Então, as batidas dos tambo¬res recomeçaram, lentas, insistentes. Os dançarinos se afastaram do mas¬sacre, com a cabeça e as mãos ensopadas de sangue e nelas seus troféus gotejantes, circulando lentamente ao redor. O muttadar na coberta de proa começou a balbuciar de maneira incompreensível, repetindo as mesmas palavras muitas vezes na linguagem Kóya, salivando e batendo a cabeça durante todo o tempo, desviando os olhos da cena na praia.
O que diabos ele está fazendo? - perguntou Wauchope.
Meriah - disse Howard um pouco mais que sussurrando.
Meriah? Você quer dizer sacrifício humano? Santo Deus!
Três homens foram empurrados até a beira do buraco. Sua pele era escura, vestiam farrapos de calças típicas da planície e tinham as mãos amarradas atrás das costas. Pareciam estupefatos, incapazes de manter-se eretos, e eram chutados nos joelhos pelo homem com o corpo pintado. Howard olhava com uma fascinação horrorizada. Os guardas capturados. Não havia nada que ele pudesse fazer.
Siri - gritou O'Connell.
Repentinamente, Howard viu algo mais. - Espere! - ele berrou. - Há mulheres e crianças ali! Suspenda o fogo!
Num instante a tulwar reluziu novamente. Duas cabeças voaram, e o sangue jorrou para dentro do buraco. O terceiro guarda caiu para a fren¬te, gritando. O homem pintado lançou-se sobre ele e o empurrou para dentro do buraco, mantendo para baixo a forma que se contorcia no ato¬leiro de sangue, até que ela se imobilizou. Por um instante fez-se silêncio. Então o homem ficou em pé, de costas para eles, encarando Chendrayya, e ergueu os braços para fora, com sangue e muco escorrendo dos braços num diáfano reflexo vermelho.
Isso foi em nosso benefício - Howard murmurou para Wauchope. - Porque para ser um verdadeiro sacrifício meriah, a vítima tem que ser ritualmente preparada. Aqueles guardas foram executados. O que eles fi¬zeram com o búfalo foi um sacrifício.
Você quer dizer que eles fazem aquilo com humanos também? - perguntou Wauchope, consternado, sua tranquilidade desaparecera.
Supostamente eles cortam suas vítimas com facas, deixando a cabeça suspensa num poste. Nenhum europeu já viu isso.
As batidas de tambores recomeçaram. O homem pintado, no buraco, puxou uma pesada peça de roupa, gotejante, sobre os ombros. Howard pôde ver que era uma pele de tigre, e estava encharcada de sangue. As pri¬meiras gotas de chuva caíam sobre o convés do barco a vapor, e a fumaça dos fogos misturava-se com uma florescência que parecia subir da carcaça mutilada do búfalo e do buraco sangrento ao lado. Chendrayya olhou para o barco a vapor, parecendo encarar Howard diretamente, depois se virou e caminhou até o banco de areia, ao lugar onde antes haviam er¬guido os três postes. Os frenéticos dançarinos à sua frente separaram-se, revelando um grupo de mulheres vestidas de branco ao redor de um dos postes. De olhos semicerrados, Howard olhou para a névoa que rede¬moinhava sobre o rio. As mulheres estavam brandindo ramos, e o poste exibia a imagem suspensa de um pássaro, um galo. Howard engoliu com dificuldade. Com uma sensação de enjoo, ele percebeu que deviam vir mais coisas. Três vítimas, uma para cada poste: oeste, meio, leste: pôr-do- sol, meio-dia, nascer do sol.
Isso não vai terminar logo - ele murmurou para Wauchope.
Um homem foi conduzido para diante da mulher, os cabelos raspados, enfeitado com guirlandas de flores, usando uma roupa branca limpa. Seu pescoço estava preso numa fenda de bambu, e ele já parecia meio morto, era impossível dizer se devido a um lento estrangulamento ou pela inges¬tão de muito suco fermentado de palmeira. Mãos ansiosas estendiam-se para pegar a baba que escorria de sua boca, esfregando-a no açafrão espa¬lhado em seu próprio rosto. Ele foi arrastado em direção ao poste mais distante, fora dos olhares da multidão. A incessante batida lenta do tam¬bor aumentou subitamente, transformando-se num crescente frenesi, e o grupo de mulheres ao redor do poste central se separou. Howard olhou e se sentiu mal.
Uma criança.
Um menino, não muito mais velho que seu próprio filho, foi acor-rentado a um poste. Sua cabeça estava inclinada, a língua de fora, como a do homem, mas seu corpo estremecia, ainda vivo. Quatro das mulheres seguravam seus pequenos braços e pernas. O homem com a pele de tigre aproximou-se e pegou um pau como o cabo de um machado e bateu na cabeça do menino com ele, depois bateu em cada um de seus membros. Só que não eram golpes leves. Howard estava vendo tudo em câmara len¬ta, e à medida que sua mente repassava a cena, ele via cada um dos peque¬nos membros estalar e cair, quebrados como ramos de madeira seca. A mulher o largou, e o pequeno corpo ficou pendurado como uma boneca em farrapos da corrente que segurava seu pescoço. Uma corda amarra¬da no topo do poste foi puxada, e o galo começou a rodopiar, girando e girando, seguido pela mulher, que circundava o poste. Entre os vestidos que rodopiavam havia lampejos de lâminas mantidas em prontidão, re-luzindo. O menino levantou a cabeça, e Howard teve certeza de ouvi-lo chorar, o choro impotente de uma criança que parecia chegar até ele, pa¬recia vir de seu próprio filho.
Era insuportável. Howard estendeu o braço e pegou o rifle Snider-Enfield de um dos sapadores de Hamilton, agachando-se perto dele. Havia um reparo por trás do receptor, um pedaço escuro de madeira, mas estava inteiro. Ele puxou o percussor para armar o cão, abriu com uma rotação rápida da mão direita o bloco da culatra, levou para trás o ejetor, e puxou para fora o pente de cartuchos vazio. Cuspiu no dedo e limpou com ele os resíduos de dentro da câmara, depois esfregou o resíduo preto fedo¬rento no parapeito. Estendeu a mão para a bolsa de couro no cinturão do sapador e pegou o único cartucho que sobrara. Nesse momento, ele estava agindo sem pensar, todo o seu ser concentrado nos atos mecânicos da manobra. Deixou cair o cartucho dentro da culatra e empurrou-o para dentro, depois fechou o bloco. Ergueu o rifle até o ombro, apontando a mira para algumas polegadas abaixo de seu alvo. Com o polegar direito recuou o martelo, armando completamente o cão, e enganchou o indicador ao redor do gatilho. Fechou o olho esquerdo e ergueu firmemente o cano, até que a mira ficasse alinhada com o entalhe da alça de mira. Lentamente, de maneira quase imperceptível, pressionou o gatilho, sem nenhum outro movimento, com o olho fixo no objeto em sua visão.
Era um alvo, nada mais.
O rifle coiceou, batendo em seu ombro, mas ele parecia não ouvir som nenhum, como se seus sentidos tivessem se congelado um momen¬to antes, imprimindo a imagem em sua retina como um negativo de fo¬tografia. Tudo o que sentia era uma rápida vertigem, como se ele próprio estivesse se lançando violentamente a trezentos e sessenta metros por segundo em direção ao alvo. Piscou, e a imagem desapareceu. Seus ouvidos estavam ressoando, e tudo o que podia ver era uma nuvem de fumaça saindo da boca do cano, e depois uma grande confusão como um remoi¬nho na praia. Ele deixou o rifle cair em sua base e balançou pesadamente para a frente sobre um joelho, tentando desesperadamente parar de vo¬mitar. Ouviu um berro do sargento O'Connell e depois o imenso estron¬do de uma saraivada de tiros que partia da linha de atiradores ao seu lado. Ele se voltou e viu o rosto de O'Connell curvado sobre ele, totalmente avermelhado, a própria imagem do demônio encarnado. Viu os lábios se movendo, depois ouviu a voz: - Isso deve bastar para você, sir. Malditos canibais. - Howard olhou em volta e viu Wauchope olhando fixamen¬te para ele. Ele respirava com dificuldade. Ele deve permanecer no controle. Endireitou-se e olhou para O'Connell. - Vamos ter que pagar o diabo se causarmos um massacre, sargento. As autoridades civis nos levarão acorrentados para fora daqui, Só podemos atirar se atirarem primeiro em nós. Confio em você para exercer prudência.
- O senhor acabou com o sofrimento daquele menino, senhor - disse O'Connell. - Foi preciso uma imensa coragem para fazer isso, senhor. Deus o abençoe.
Sentindo que ia desmaiar, Howard voltou rapidamente para o parapei¬to, mantendo-se firme. Wauchope tirou seu revólver, girando o cilindro para verificar se as câmaras estavam carregadas; colocou-o de volta no col¬dre e apoiou a mão no ombro de Howard. - Agora chegou o momento de irmos encontrar nossos sapadores e Bebbie - ele disse baixinho. - A sarai¬vada de tiros de O'Connell derrubou os selvagens que estavam suplician¬do o menino, mas o líder rebelde e o resto deles já estavam se dirigindo para as outras duas vítimas. Temo que o sacrifício tenha se realizado. Os rebeldes beberam em demasia aquele suco fermentado de palmeira e não nos verão partir. Eles estão completamente embriagados.
Walker chegou do lugar onde ele operara o sapador ferido, enxugan¬do as mãos no avental. - Aqueles que não estão totalmente embriagados irão para casa com suas tiras de carne - ele disse. - Eles precisam enterrar suas oferendas em seu próprio pedaço de terra antes que a noite caia, para assegurar a eficácia do sacrifício. Eles vão estar dispersos e separados em suas aldeias.
Hamilton olhou para Howard. - Então? - Howard tocou seu próprio coldre e olhou novamente para o outro lado do rio. Sua boca estava seca e o coração, palpitando. Ele não tinha certeza daquilo que acabara de fazer, ou se era um sonho horrível. Respirou profundamente e aquiesceu com a cabeça. - Muito bem. O jemadar e o tenente O'Connell podem cuidar das coisas aqui. - Olhou por algum tempo para o convés, para o muttadar, que estava agachado atrás do canhão de sete libras, agarrado a seu tubo de bambu. - E o muttadar pode vir conosco. Ele pode trazer sua carga precio¬sa. E mesmo se Bebbie estiver fora do alcance de nossa ajuda, pelo menos podemos manter a finalidade de nossa barganha. - Ergueu o olhar para a parede de nuvens negras que agora estava muito alta acima deles, e sentiu as gotas de chuva no rosto. - Já é hora de trazermos de volta aquele vélpu sagrado para o lugar ao qual pertence. E levar nossos sapadores para fora daqui.

O sargento John Howard puxou sua espada e descansou junto a um toco queimado de uma árvore de tamarindo. Observou que os doze sapadores de Madras haviam tomado posição ao redor da margem da clareira na selva e agora podia relaxar por um momento. Matou com um golpe um mosquito que o mordera através do fino algodão de seu uniforme, que estava ensopado de suor e grudado em seu corpo como uma segunda pele. A mancha de sangue em sua perna podia ter vindo do mosquito ou da miríade de pequenos cortes onde a grama da selva havia cortado seu rosto e os braços como uma faca. Estava agradecido ao cirur¬gião Walker por ele ter insistido em que protegesse as pernas e tornoze¬los com bandagens ou roupa grossa. Mesmo assim, sabia que qualquer ferimento aberto naquele local poderia significar uma má notícia, e ele esperava que estivessem de volta ao barco a vapor, sob os cuidados aten¬tos de Walker antes que algum infeccionasse. Puxou o relógio de bolso. Faltavam quatro horas para o pôr-do-sol. Mais uma hora e eles voltariam. Sabia com total convicção que não sobreviveriam se tivessem de passar a noite na selva.
Guardou o relógio. Sua mão direita ainda tremia, a mão que puxara o gatilho menos de uma hora atrás, e ele apertou-a pelo pulso querendo que parasse. Com a outra mão levantou a aba do coldre e retirou seu re¬vólver Colt, examinando o cilindro para ver se as cápsulas de percussão ainda estavam firmemente alojadas em cada câmara.
Você deve conseguir para uso próprio um revólver com cartucho, você sabe. - O oficial agachado ao seu lado estivera olhando para ele com preocu¬pação, e Howard percebeu que Wauchope devia ter visto sua mão tremendo.
Meu pai usou este revólver para nos defender durante a rebelião - disse Howard. - Ele funcionou na época. Chame isso de superstição.
Se não fosse pelo barulho que produz, denunciando-nos, eu ficaria extremamente tentado a usar o meu naqueles cachorros - replicou Wau¬chope. - No Afeganistão, vi um bando de cães de caça arrebentar um homem ferido em pedaços em poucos segundos.
Howard recolocou o revólver no coldre, depois olhou ao redor da cla¬reira. Estavam num trecho de arbustos e espinheiros emaranhados que já fora uma área nativa usada para plantação, abandonada depois que o solo se exauriu e que agora voltava a se transformar em selva. A intervalos, meia dúzia de cachorros se sentavam e ficavam observando-os silenciosa¬mente, compridos, animais magros como os cachorros que o regimento mantinha para shirkar, caçar pássaros, lebres, esquilos e pequenos outros animais nas colinas ao redor do posto militar em Bangalore. Esses tam¬bém eram cães caçadores e vinham caminhado silenciosamente ao lado deles desde que haviam subido da margem do rio e tomado o caminho para a selva, através de densos bosques de tamarindo com vinte e cinco e até mesmo trinta metros de altura, ornamentados com imensas trepa¬deiras e videiras, que gotejavam devido à condensação. Havia um silêncio sinistro durante todo o caminho, como se os animais e os pássaros da selva estivessem no limbo, sem ter certeza se a monção estava prestes a se abater sobre eles e se deviam esconder-se ou explodir em sua ensurde-cedora cacofonia habitual. Ou talvez eles estivessem temerosos por causa de outra presença, os maus espíritos que o muttadar disse que espreitavam na selva depois de um sacrifício, esperando enquanto os nativos voltavam para sua aldeia com suas tiras ensanguentadas de carne, e que só se aco¬modariam depois que as oferendas fossem enterradas.
Howard, percebendo que estava preso nas garras de uma imaginação demasiadamente fértil, dominado por uma espécie de irracionalidade que ele mal podia controlar, fechou os olhos. Era o primeiro sinal de febre, talvez, um estado que não lhe era familiar. Olhou de novo para os cachor¬ros e sentiu sua cólera aumentar. Cães caçadores, mas empanturrados de carniça do tipo mais bestial, com os focinhos ainda reluzindo, vermelhos e gotejantes. A multidão, com seus gritos agudos, havia deixado para eles, na margem do rio, os ossos e cartilagens, e os cães haviam ficado atrás, lam¬bendo no atoleiro sangrento do buraco. Durante um momento horrível, Howard sentiu como se os cães estivessem ali por causa dele, como se seu ato ao puxar o gatilho não tivesse banido o pavoroso ritual mas o tivesse tornado parte dele, como se tivesse se tornado um sacerdote sacrificador que pudesse proporcionar outra festa horrível antes de terminar o dia.
- Não há esperança - disse Wauchope. - Um momento atrás fantasiei que vi o lampejo de um heliógrafo, mas deve ter sido um truque do olho, um breve raio de luz do sol na vegetação molhada. Não há chance agora. - Ele começou a armar o instrumento à sua frente, um tripé de madeira com um pequeno espelho no topo e uma alavanca para incliná-lo e enviar uma mensagem em código Morse. Howard voltou à realidade e abriu seu compasso. Fez uma marcação, depois sacudiu a cabeça. A qualidade champanhe do ar da selva, registrada pelo tenente Everest sessenta anos atrás naquele local, só aparecia depois do dilúvio, e isso ainda não acontecera. Quando haviam parado na clareira dez minutos antes, uma ten¬tativa de sinalização heliográfica tinha parecido possível, com os cumes das colinas encobertas ainda visíveis através da névoa nos vales. Mas na¬quele momento descera uma cerração pesada, e a umidade penetrava por toda parte, condensando até dentro dos canos dos rifles dos sapadores. Howard olhou para Wauchope. - Não fosse pela prodigiosa vegetação, o Shamrock ainda estaria em nossa linha de visão - ele disse. - Mas de acordo com Hamilton, de agora em diante vamos descer e entrar na selva, acompanhando um riacho até chegarmos a uma aldeia. Você até pode deixar o heliógrafo aqui. Ele não tem utilidade para nós.
Outra figura vestindo uma roupa cáqui e um capacete safári apareceu através da vegetação emaranhada, depois parou na beirada da clareira e pegou alguma coisa do chão. Seus olhos estavam marcados pelo cansaço, e Howard se perguntou se agira certo ao deixar Hamilton conduzi-los de novo a esse local tão em seguida à árdua fuga dos rebeldes. Mais uma vez, deixou que a raiva que sentia do assistente comissionado Bebbie fluísse através dele, a emoção sustentada que parecia mantê-lo em equilíbrio. Se tivesse sido somente Bebbie quem precisasse ser salvo, eles o deixariam para os tigres e hienas, mas o fato de estar com quatro sapadores para defendê-lo tornava imperativo que fizessem todo o possível para tentar resgatá-los.
Hamilton abaixou-se perto deles e encheu a mão de cartuchos Snider usados. - Este é o lugar certo. Foi onde paramos e disparamos uma sarai¬vada de tiros - disse ofegante, com voz seca e rouca. - Nós derrubamos três, talvez quatro, mas eles pegaram os que caíram e fugiram correndo para dentro da selva. - Ele olhou atentamente para Howard, e seus olhos estavam estranhos, queimando, era o começo da febre. - Usamos rifles e baionetas do comprimento de alabardas, organizando táticas de infantaria projetadas para o campo de Waterloo. Precisamos de carabinas sem raias, de chumbo grosso, revólveres, facas. Devemos ir atrás deles dentro da selva, seguir seus rastros, matá-los como os animais matam suas presas. Precisamos fazer o jogo deles, mas temos que ser melhores, deixar que o instinto animal supere a decência. Precisamos ser selvagens.
Howard olhou para ele. - Mais que tudo, é preciso encontrar o mise-rável do Bebbie e sair daqui. Você diz que não consegue escolher entre as trilhas à frente?
- Nós estávamos sendo pressionados para trás. Somente agora perce¬bo que há três trilhas acima do vale para fora desta clareira. Teremos que seguir o muttadar. - Ele virou a cabeça na direção da figura seminua aga¬chada sozinha à entrada da clareira, a cabeça envolta num turbante cas¬tanho que Bebbie havia lhe dado como sinal de autoridade do governo, tendo bem seguro nas mãos seu precioso tubo de bambu. Howard respi¬rou profundamente e olhou firme para Hamilton. Talvez todos estives¬sem perdendo o juízo. Ou talvez fosse a febre. Ele viu os globos oculares amarelados, as faces empalidecidas. Lembrou-se das palavras do cirurgião Walker. Uma febre baixa do tipo virulenta, demorada. Sentiu um frio súbito, e um tremor percorreu seu corpo. Pediu a Deus que fossem apenas seus nervos. Olhou para Wauchope. - Muito bem. Diga ao havildar para man¬ter os homens separados por cinco passos. Rifles com o cão meio armado. E lembrem-se, estas pessoas podem seguir nossos rastros como tigres.
Meia hora mais tarde eles se agacharam junto a um pequeno riacho es¬condido na selva. Desde que haviam deixado a clareira, vinham descendo por um túnel escuro formado por folhagens que bloqueavam qualquer vislumbre do céu. Era um local pestilento e infestado de nuvens de mos¬quitos que pareciam surgir de cada charco de água estagnada, aranhas do tamanho de um pássaro pulavam nos cabelos dos homens cada vez que um capacete era removido e sanguessugas espreitavam em cada ponto úmido e grudavam neles sem a menor hesitação. Agora era como se eles tivessem saído ao ar livre, com o céu visível acima deles exibindo nuvens escuras iluminadas por lampejos distantes de relâmpagos. Howard enxu¬gou o rosto pingando suor e mergulhou o cantil de água dentro de uma poça repugnante no riacho. Subitamente, um tiro soou. Howard deixou cair o frasco e tirou o revólver do coldre, pondo-se de pé num salto. Ha¬milton estava parado alguns metros à frente, com seu próprio revólver apontado para o chão. Uma cobra gigante tinha deslizado até o caminho, e Hamilton tolamente atirou nela. Howard o amaldiçoou baixinho por causa do barulho. E ela só fora ferida. A cobra saltou, ficou pulando e se retorcendo como uma dançarina demente, depois grudou na perna de um dos sapadores. O homem gritou e caiu inconsciente no chão. Hamilton tirou sua espada da bainha e decapitou a serpente. O muttadar gesticulou de maneira selvagem, depois desapareceu dentro da selva e logo reapare¬ceu mastigando uma massa de matéria verde, que forçou para dentro da boca do sapador. Dentro de segundos o homem abriu os olhos, sentou-se de maneira ereta e começou a hiperventilar, com a respiração se acalman¬do enquanto dois outros soldados o seguravam.
Howard olhou atônito para a cena. Assegurou-se de que o sapador estava realmente se recuperando, depois recolocou o revólver no coldre e começou a encher novamente o cantil. O muttadar, que o observava fazendo isso, pulou e puxou sua mão, depois apontou para a faca kukri, a adaga curva, no cinturão de um dos sapadores. Howard olhou para ele de maneira zombeteira, depois fez um gesto de cabeça para o havildar, que fez sinal com sua grande pistola de percussão para que o muttadar fosse em frente. Ele pegou a kukri e foi até um bosque de grossos bam¬bus que cresciam à margem do riacho. Deu umas pancadinhas de leve com o lado cego da faca naquele que se encontrava mais perto dele, logo abaixo do nó. Então deu um passo atrás e virou a kukri para o bambu, dando um golpe cortante de lado para evitar que se estilhaçasse. Uma quantidade de uma xícara cheia de água cristalina escorreu para o chão. Os sapadores logo se colocaram atrás dele, estendendo os cantis vazios enquanto ele ia de tronco em tronco, cortando habilimente com a afiada lâmina da adaga.
- Dê a água primeiro para o sapador Narrainsamy - disse Howard em hindi. - É preciso que ele consiga andar. - Ele observou o sapador que estava encostado numa raiz de tamarindo, para quem o halvidar es¬tava passando um frasco de água. Howard olhava ao redor de maneira apreensiva. O som do tiro e o grito agudo haviam disparado um alerta na selva, e as poucas palavras cautelosas e os pios tornaram-se uma cacofonia explosiva de gritos altos, latidos e uivos. De algum lugar nas profundezas surgiu o ronco gutural de um tigre, que foi aumentando até tornar-se um rugido poderoso que sacudia o solo. Os cachorros que estavam com eles durante todo o tempo subitamente dispararam, ganindo freneticamente, e desapareceram na selva. Todos os sapadores largaram seu cantil e agar¬raram suas armas. O muttadar caiu no chão encolhido como uma bola, tremendo, gemendo e cantando um mantra para si mesmo, palavras que Howard já o ouvira pronunciar.
Ele diz que se trata de uma konda devata, uma mulher possuída, com forma de um tigre - Howard murmurou para Wauchope. - Ela devora qualquer um que esteja na floresta por ocasião de um sacrifício. É ela que irá lamber o sangue das vítimas sacrificiais, não os cachorros.
Um tigre de verdade já é suficiente para mim - resmungou Waucho-pe, segurando o revólver.
Feitiçaria e superstição - disse Howard em hindi, acenando seve-ramente para o havildar e dizendo algumas palavras de confiança para os sapadores que ficaram com medo. Ele se lembrou de sua própria imagi¬nação nervosa lá na clareira, na selva, mas procurava se fortalecer. Disper¬sar o medo, pois todos dependiam dele. Olhou para o leito do riacho e depois para Hamilton. - Você reconhece este lugar?
Hamilton fez que sim. - Nós deixamos Bebbie e os sapadores cerca de oitocentos metros acima daqui. O riacho estava quase seco quando eles chegaram lá embaixo, mas é uma passagem estreita, e seu desfiladeiro es¬treito se transformará numa torrente com a chuva. A selva de todo lado é impenetrável. Você pode ver o céu através da cobertura de folhas. Ele está praticamente negro. Precisamos sair daqui.
Howard conduziu-os para diante. De início, o declive estava razoa-velmente aplainado, e o leito do rio era firme, formado de areia e pedras. Aqui e acolá afloramentos de profundos arenitos vermelhos emergiam de cada margem, e musgos gigantes e matas de samambaias os forçavam a lutar para subir na borda e descer de novo para o leito do rio. Quando o declive aumentou, o leito do rio se transformou numa pequena ravina, as margens de arenito de cada lado se elevavam cinco metros ou mais acima de suas cabeças. Eles agora podiam perceber evidências de mon¬ções anteriores, quando o rio espancara a rocha ao se transformar numa torrente feroz, deixando árvores desenraizadas e empurrando as pedras para dentro do leito. Àquela altura, as margens de arenito estavam muito altas para serem galgadas, e Howard sabia que eles não teriam chance se a monção começasse. Já havia lampejos de raios em ziguezague e estrépi¬tos distantes de trovões. Os animais selvagens pareciam estar uivando em harmonia com os elementos, algumas vezes destoando, outras, na mesma pulsação, como uma orquestra afinando os instrumentos, um preâmbulo da tempestade que certamente viria.
Howard tentou ignorar seu medo, esforçando-se para andar algumas jardas adiante dos outros. Ao passar em torno de uma pedra grande, ar¬redondada, algo desceu rolando da margem lamacenta bem à sua fren¬te. Era uma cabaça vermelha do tamanho de uma cabeça humana, e ele a chutou para diante instintivamente. Ao fazer isso, percebeu que havia algo diferente nela. Jogou-a para frente, virou-a, depois rapidamente en¬fiou o pé dentro dela antes que os sapadores pudessem vê-la. Havia uma representação grosseira de um homem pendurado numa forca. O muttadar tinha lhe falado sobre isso. Significava mais do que simplesmente um aviso. As cabaças eram sinais de advertência para o kunda devata, destinadas a atrair os espíritos malignos como a carne podre atrai a hiena. O coração de Howard estava disparado, e ele, piscando por causa dos pingos de chuva, olhou lá no alto para a parede impenetrável da selva acima da margem do rio. Não enxergava nada. Mas não era apenas um tigre que os espreitava. Estavam perto da aldeia, e havia outras formas na selva, que passavam rapidamente. Ele olhou à frente, ao longo dos seixos, para o lugar onde o leito do rio dava saltos, e fantasiou que via uma criança, uma forma enrolada num xale, de braços estendidos, acenando para ele. Pren¬deu a respiração. Deve ser alucinação. Lembrou-se da cena na margem do rio, o que ele havia feito, e a imagem desapareceu. Fez um esforço para ir adiante, até alcançar a base da correnteza. Ela já estava chegando perto deles, uma torrente de um tom vermelho amarronzado quando passava pelos arenitos. Duas árvores recém-caídas de cada lado estavam soltando uma seiva vermelho-escura que manchava as margens. Era como se ele estivesse andando em uma torrente de sangue. Ele se perguntou se esta¬ria sendo arrastado para dentro de um mundo de feitiçaria e horror que ele passara a fazer parte ao puxar aquele gatilho, e meio que caiu para a frente, depois subitamente afundou até a cintura. Mas foi agarrado bem a tempo por Wauchope e Hamilton, que vinham atrás dele.
- Eu devia ter comentado - disse Hamilton, ofegante. - A cachoeira li¬quefez o leito do riacho, e ele agora está como areia movediça. Vamos ter bastante dificuldade para sair daqui. Debaixo do bloqueio causado pela folhagem e galhos secos há uma armadilha mortal.
Estamos perto? - perguntou Howard, esforçando-se para manter-se calmo.
Fica logo depois da cachoeira. Há uma ponte, e em seguida pegamos a trilha que vai da aldeia até o santuário. Deixamos Bebbie e os sapadores numa clareira bem na frente dele.
Estamos sendo seguidos - disse Howard.
Aquela cabaça? Eu o vi olhando para ela - disse Wauchope.
Por que eles não nos matam? - perguntou Hamilton. - Eles podem abater-nos como porcos num matadouro.
Howard olhou para o muttadar, que vinha correndo pelos seixos com uma agilidade natural e havia se materializado silenciosamente ao lado deles, segurando firme seu precioso tubo de bambu. - Acho que é o mut¬tadar. Ele é feiticeiro, e embora os rebeldes saibam que ele os traiu, talvez haja algum tipo de feitiço que os impede de causar-lhe dano.
O ídolo? - perguntou Wauchope.
Howard fez que sim. - Esta é a única razão pela qual ele está aqui co¬nosco, e nos conduziu até aqui. Ele se aterroriza tanto quanto essas pes¬soas com os demônios da selva, o konda devata, mas creio que ele sabe que lhe darão passagem livre para voltar ao santuário e colocar no lugar o que retirou de lá. E como nós ousamos entrar na selva em meio aos espíritos que assombram o local depois do festival, eles podem pensar que nós próprios temos alguma espécie de poder sobrenatural.
Eles são selvagens completamente irrecuperáveis - murmurou Ha-milton, com o o rosto agora afogueado por causa da febre. - O único poder sobrenatural que conseguirão de mim é uma saraivada de chumbo de nossas Sniders.
Segure isto. - Wauchope estendeu para Howard a ponta de uma cor¬da que ele havia retirado da mochila de um dos sapadores e saltou para a pedra grande que rolara para a base da cachoeira. Pôs a espada de lado, para desempedir o caminho, e foi escalando agilmente, de pedra em pe¬dra, permitindo que a corda se desenrolasse. Parou no topo, cerca de trinta pés acima deles, levemente visível no meio da névoa, e fez um gesto para que o seguissem. Durante os dez minutos seguintes todos eles subiram atrás dele, um por um, os sapadores com o rifle nas costas e de pés des¬calços. No topo havia uma pequena ponte de bambu acima do leito cheio de cascalho do riacho, e eles passaram por ela chegando a uma clareira rodeada por juncos emplumados. Cerca de cinco metros adiante, a selva começava novamente, se elevando sobre outro pequeno monte rochoso. O havildar gesticulou subitamente, e um dos sapadores correu em direção a um pequeno grupo de companheiros, de baionetas preparadas, visíveis abaixo de uma pedra o outro lado da clareira. Um deles deu um súbito grito de aviso em hindi, mas era demasiado tarde. O sapador desapareceu sem emitir um som. Os outros se adiantaram cautelosamente. Hamilton e Howard na vanguarda, olharam atentamente para baixo.
Santo Deus, não - sussurrou Hamilton. - Eu sabia que havia isto aqui. Devia tê-los avisado. Não estou bom da cabeça.
Um som horrível, gorgolejante, veio de baixo, depois parou. Howard se inclinou, sentindo-se nauseado. Uma armadilha para tigre. O buraco era fundo, tinha pelo menos uns três metros, com estacas de bambu fincadas no chão. O sapador caíra sentado, e uma estaca havia penetrado em seu corpo até a nuca, atravessou o crânio, e a ponta ensanguentada foi sair trinta centímetros ou mais acima de seu turbante. A força do impacto quase o decapitou, e seu pescoço ficou esticado de maneira grotesca, o restante do seu corpo preso na cama de estacas como um espeto. Howard engoliu com dificuldade, depois se afastou para deixar que os demais sa¬padores olhassem. Levou o havildar para um lado e conversou baixinho com ele em hindi antes de se voltar para Wauchope e Hamilton.
Eu lhe pedi para recuperar o rifle e a munição - ele disse. - Eles que¬rem retirá-lo dali e cremá-lo.
Esta será uma tarefa odiosa - murmurou Wauchope.
Eles não o deixarão aqui dessa maneira - disse Howard. Então se virou e caminhou para o outro lado da clareira, enquanto sua raiva crescia. Beddie tinha agora mais contas para acertar. Mas quando se aproximou percebeu que eles estavam muito atrasados. Os quatro sapadores do destacamento, aqueles que Hamilton havia deixado para defender Bebbie, estavam ajo¬elhados e com as baionetas apontadas para fora ao redor de um grosseiro palanquim de bambu. Sobre ele havia um corpo meio coberto, empapado de suor, muito longe de parecer que estava vivo. Howard sabia com que crueldade a cólera podia devastar a aparência de uma pessoa, mas aquilo era demoníaco ao extremo. As faces estavam cinza, e a boca, com a língua para fora, cheia de sangue solidificado. Ele se aproximou. Algo não estava muito certo. Os olhos de Bebbie tinham sido nitidamente arrancados, somente para serem empurrados de volta de maneira grosseira. Quando Howard chegou perto, segurando o nariz para não sentir o odor das fezes, teve a explicação. Havia um grande buraco no meio da testa de Bebbie.
O havildar seguiu Howard e falou rapidamente com os quatro sapado¬res e passou-lhes seu cantil com água, depois deixou que também falas¬sem. Howard escutou, depois se voltou para Hamilton e Wauchope, com a raiva ainda palpável apesar do caráter horrível da cena. Ele empurrou o cadáver com o polegar. - Este tolo ordenou aos sapadores que fossem à aldeia Rampa para negociar com os rebeldes. Seu guia nativo havia lhe contado que o líder rebelde Chendrayya estava lá. Um dos sapadores foi através da selva até a entrada da aldeia para um reconhecimento. Ele viu pelo menos quatrocentos rebeldes reunidos, talvez mais. Acho que eles faziam parte do grupo que chegou pelo rio e que vimos se juntar com a multidão. O sapador retornou e relatou o que viu para Bebbie. Os sapa¬dores tinham visto o que os rebeldes fizeram com os policiais capturados. Aqueles que vimos ser executados perto do rio não são as únicas vítimas. Mais dois foram assassinados aqui na noite passada, à vista dos sapadores, do lado de fora do santuário. Mas mesmo assim Bebbie ordenou ao sapa¬dor que voltasse à aldeia.
- Ele devia estar delirando - disse Wauchope.
-Você não conhecia este homem - disse Howard, rangendo os dentes. - Mas antes que eles pudessem ir foram atacados. Tiros foram trocados. Bebbie foi atingido e morto.
Wauchope se ajoelhou perto do cadáver e olhou atentamente para a abertura azul do buraco na testa. Ergueu a cabeça, levantando um enxame de moscas pretas da massa pegajosa embaixo. A parte de trás da cabeça estava despedaçada, e havia fragmentos de crânio espetados no chão. Ele ergueu o olhar para os outros dois oficiais. - Esta não é uma bala de mos¬quete - ele disse baixinho. - É uma bala Snider. No Afeganistão, eu vi o que nossos rifles fazem.
Howard olhou para o buraco e engoliu com dificuldade. Olhou para sua mão direita e viu que ela ainda estava tremendo. Pensou durante um momento e se voltou para dirigir-se ao havildar em hindi. Um assunto infeliz. De qualquer maneira ele não teria sobrevivido muito tempo com a cólera. - Diga aos outros para enterrá-lo lá mesmo. E garanta aos nossos sapadores que eles não serão mandados para falar com o inimigo.
Sahib. - O havildar dirigiu-se aos quatro homens, que assentiram com a cabeça e pegaram as pás dobráveis nas mochilas. Howard olhou de novo para o corpo com desprezo. - Se ele tivesse feito seu trabalho, esta rebelião nunca teria acontecido.
O rumor de que ele foi baleado irá se espalhar - murmurou Hamilton.
Uma bala de mosquete. É como os sapadores descrevem. Eles foram atacados. É o que será relatado - disse Howard com determinação.
Se você tiver a chance de fazer um relatório - disse Wauchope. - O que vamos fazer agora?
Howard subitamente se sentiu cansado, mortalmente cansado. Tirou o capacete e esfregou a barba curta. Recolocou o capacete e olhou atenta¬mente para o céu ameaçador. - Saímos em vinte minutos. Os sapadores têm esse tempo para terminar as coisas aqui. Hamilton, por favor, enco¬raje-os. Robert, você e eu vamos visitar aquele santuário. Você disse que teve a impressão de ver figuras lá dentro, Hamilton? Entalhes, inscrições? No momento, tudo o que quero fazer é levar aquele desgraçado vélpu lá para dentro e dar o fora daqui. Não acho que o muttadar vá nos deixar ir embora sem que cumpramos nossa parte do trato.
Os dois homens deixaram Hamilton e os sapadores para trás, em meio à neblina, e se aproximaram do lado norte da clareira, onde o riacho fazia uma curva debaixo de outra cachoeira. Através do resplendor dos respingos d'água eles podiam distinguir três imensos seixos redondos, um dos quais formava uma espécie de telhado sobre os outros dois, com uma placa de rocha vertical bloqueando o espaço entre eles. O muttadar vinha seguindo-os, mas assim que o santuário surgiu ele arrancou o turbante e agachou-se no chão, murmurando e cantando para si mesmo na língua Kóya, com os olhos arregalados de terror. Howard se voltou e se ajoelhou ao lado dele, tentando persuadi-lo com bom-senso. - Ele sente o mais intenso terror por este lugar. Nada o induzirá a ir adiante.
Eu achava que este era seu templo - disse Wauchope.
Ele sabe que tem que devolver o ídolo, mas tem pavor da fúria do konda devata, o espírito do tigre. Ele diz que, em vez dele, nós é que deve¬mos levar o ídolo para dentro.
Mas sem o ídolo, ele fica sem defesa. Certamente os rebeldes o ma¬tarão.
Evidentemente, ele teme os espíritos mais do que teme a morte.
Howard falou de maneira insistente com o muttadar, fazendo gestos na direção dos sapadores, mas o homem permanecia imóvel, olhando fixa¬mente à frente como se estivesse em transe. Subitamente, com as mãos tremendo, ele pegou uma cabaça que trazia consigo e levou-a à boca, en¬golindo licor de palmeira como se fosse água. Howard estendeu a mão e arrancou o tubo de bambu da mão do muttadar, puxando-o, até que ele o soltasse. O conteúdo estava selado de ambos os lados com um material resinoso duro por cima de uma rolha de madeira. Howard ficou em pé e levou-o para Wauchope, que olhou para o tubo com curiosidade e per¬guntou: -Vamos abri-lo? - Logo ele ficará demasiado embriagado para se importar.
Howard olhou para o santuário. Achou que conseguia discernir a for¬ma da cara de um tigre nos seixos, os olhos e as orelhas formados pelas ondulações da rocha. Ele sacudiu a cabeça. - Vamos acabar com isso. Eu lhe fiz uma promessa. Não vou tratar essa gente como selvagens.
E foram em frente. Viram um pequeno aposento de pedra à esquer-da da entrada do santuário. Dois grossos troncos de bambu, formando uma espécie de varanda, serviam de apoio para um telhado de estacas e folhas de palmeira. Em frente havia uma linha de estacas cobertas com cabeças esbranquiçadas, algumas delas de tamanho prodigioso: elefantes, tigres, javalis selvagens. Atrás ficavam dois postes mais altos, enfeitados com plumas sujas. Entre os postes, no meio, estavam dependuradas duas massas enegrecidas, gotejando e supurando. Howard havia percebido um cheiro, mas pensou que fosse de Bebbie. Agora percebia que era o fedor doce e nauseabundo de uma putrefação mais antiga, e lembrou-se do que os sapadores tinham dito. Os dois outros policiais. Ele se forçou a olhar. Sus¬pensas por cordas, abaixo dos cadáveres, havia facas girando lentamente. As cabeças estavam esmagadas e escalpeladas, os olhos haviam sido arrancados. Havia movimento no chão. Viu um rato saciado fugindo, arras¬tando uma indescritível massa informe de baixo de um dos postes. Ele se virou rapidamente, tentando não vomitar, e se aproximou de Wauchope, que estava de pé perto da placa vertical entre as pedras. - Precisamos ir embora deste lugar - ele disse com voz rouca e apoiando-se contra a ro¬cha úmida, com a cabeça latejando.
Primeiro precisamos terminar aqui - murmurou Wauchope. Ele estava percorrendo com o dedo uma fenda em um dos lados da placa. - E uma pe¬dra cortada. Um incrível trabalho artesanal. Quem teria feito isso?
Tente empurrá-la - disse Howard. Wauchope colocou a mão sobre a placa, e ela imediatamente girou para dentro. No interior havia uma pas¬sagem suficientemente larga para que ambos ficassem em pé lado a lado, mas mais além havia uma escuridão de breu. Howard tirou um recipiente de metal do bolso de seu cinturão e extraiu uma pedra de isqueiro e um pedaço de aço, produzindo faísca para acender uma corda coberta com parafina e usar como vela. Ele a ergueu, e foi imediatamente confrontado por uma grosseira gravura de um litiga, um falo. Howard levantou mais a vela. Em todo lugar ao redor havia outros emblemas, inscrições gros¬seiras, figuras feitas com linhas e pontos como a que ele vira na cabaça quando estava na ravina. Eles foram adiante. Mais à frente, podiam ouvir o som precipitado da cachoeira através das rochas. Wauchope tropeçou, e Howard estendeu o braço para segurá-lo, deixando cair o tubo de bam¬bu com estrépito ao agarrar Wauchope. Quando Wauchope se endireitou, ele ergueu o bambu. Um dos lados estava estilhaçado, e ele pôde sentir algo dentro dele como um papel. Agachando-se, viu no que Wauchope tropeçara, uma depressão não muito funda no terreno, como uma bacia cheia de líquido, parado e escuro, com um leve odor metálico. Ele ergueu a vela sobre o local e viu seu próprio rosto refletido, brilhando com uma profunda aura vermelha. Depois se lembrou do que o muttadar tinha lhe dito. - O sacerdote prediz o futuro em uma tigela de sangue. - Olhou novamente, mas viu apenas a chama amarela da vela. Seu olhar se deslo¬cou ligeiramente, e então ele viu algo, ofegou, deixou o cilindro cair de novo e deixou sua mão direita cair pesadamente dentro do líquido. Era grosso, coagulado e quente. Puxou a mão para fora e sacudiu-a fortemen¬te, espalhando gotas vermelhas pelas paredes do túnel, depois a limpou no uniforme. - Acabo de ver as aparições mais medonhas -, ele disse com voz rouca. - Tigres, demônios, escorpiões.
Eles estão no teto, acima de você - disse Wauchope.
Howard ergueu a vela e olhou para cima. - É claro. - Eram gra¬vuras feitas na rocha. Ele vira o reflexo delas. Respirou fundo e olhou atentamente adiante. - Deve ser ele, o próprio santuário. Parece haver algum tipo de altar no centro. - Ele pegou o bambu novamente e parou cuidadosamente além da bacia. Através da luz bruxuleante da vela, viu figuras mais arredondadas, esculturas em relevo, máscaras e membros balançando. - Estas eu reconheço - ele murmurou. - Minha aia indiana costumava me levar para templos em cavernas como este lugar quan¬do eu era criança, em Bihar. Esta é Parvati, esposa de Shiva. E Vishnu, atravessando a parede, vencendo um demônio. - Ele se moveu para a frente dentro da câmara principal, onde mal se viam as paredes à luz da vela. - Mas estas são diferentes. Parecem figuras de guerreiros. Preciso examiná-las mais de perto.
Pode me passar a tocha? - Wauchope tinha se agachado ao lado da es¬trutura que ficava no meio, como um altar, uma forma retilínea de pé, que nitidamente tinha sido esculpida na rocha viva. Howard cuidadosamente lhe passou a tocha. Wauchope segurou-a junto a um lado da pedra.
Santo Deus!
O que é?
É uma inscrição. Consigo lê-la.
Em que língua?
Wauchope não respondeu. Howard observou a trajetória amarela da luz indo rapidamente de um lado a outro da lateral da rocha. Ele só pôde distinguir formas, inscrições esculpidas. No meio do caminho ao longo da quarta fila a tocha crepitou e se apagou. Eles estavam numa quase escuridão, e a única luz era um cinza escuro que vinha da abertura da entra¬da. - Depressa - disse Wauchope de maneira excitada. - Acenda uma luz, acho que consigo ler uma das linhas. - Howard colocou o bambu perto do altar e apressadamente tirou sua pedra de isqueiro e o pedaço de aço, atritando-os repetidas vezes no ar úmido, até que uma faísca acendeu a corda. Ele a protegeu com a mão, esperando que surgisse a chama, e pas¬sou-a cuidadosamente para Wauchope. Ele aproximou a chama oscilante da rocha e moveu-a para a frente. A chama da tocha atingiu seus dedos, e ele a deixou cair, gemendo de dor. Ouviu-se um chiado quando a corda atingiu o chão molhado, e eles ficaram no escuro novamente.
Acabou-se - disse Howard. - E então?
Wauchope ficou calado. Howard via sua silhueta acariciando a mão, silencioso como um bloco, e olhando cegamente para a pedra. Em segui¬da, Wauchope virou-se na direção dele, e Howard só pôde distinguir seu rosto barbudo na fraca iluminação que vinha da entrada.
Está em latim. Sacra iulium sacularia. Guardião da joia celestial. Há mais, mas isso foi tudo o que pude discernir.
- Já ouvi isso antes - sussurrou Howard. - Alguma lembrança de mi-nha infância. Das histórias de minha aia indiana. A jóia celestial. A jóia da imortalidade.
Ouviu-se um imenso estrondo vindo do lado de fora, depois um es-tampido de trovão. O raio iluminou o interior do santuário como um lampejo de pólvora, revelando por um instante uma massa de figuras que, subindo e descendo, pareciam estar se amontoando sobre eles, deuses e deusas, demônios e tigres de olhar furioso, rostos contorcidos em agonia e medo, cavaleiros aterradores aparecendo indistintamente acima deles como o cavaleiro do apocalipse. Howard achou que via romanos. Legio¬nários romanos. Experimentava a mesma sensação de quando estava na selva, antes da eclosão do barulho dos animais. Colocou a mão na testa, ela estava ardendo, e sua mão tremia. Ele se agachou ao lado de Wauchope, e eles começaram a voltar para a entrada. O barulho da cachoeira atrás dos seixos aumentara, e eles já podiam ver a chuva caindo forte, pingos gigantes invadindo o corredor. Howard percebeu que estava ouvindo algo mais, o som insistente de batidas de tambores, vindo de todos os lados, algumas vezes desencontradas mas depois firmes e rítmicas, como as que ouvira naquela manhã na margem do riacho. Sentiu medo. Olhou aten-tamente para o aguaceiro, procurando o muttadar, e então viu uma forma numa posição estranha, uma grande quantidade de flechas saindo dela e uma mancha escura escorrendo pela lama. A chuva estava desintegrando o corpo, que parecia estar desaparecendo diante de seus próprios olhos. Os dois homens rastejaram de volta para a câmara principal. Howard pu¬xou seu revólver, e Wauchope fez o mesmo. Eles se ajoelharam no espaço confinado, e apertaram-se as mãos.
Deus esteja com você - disse Howard.
Se jamais sairmos daqui, este lugar será nosso segredo - replicou Wauchope. - Eu vi algo mais naquela inscrição.
Se corrermos bastante até aquela rocha onde deixamos os sapadores, podemos conseguir chegar lá.
Então voltaram para a entrada. No escuro, Howard alcançou o topo da placa do altar e ergueu algo que vira antes, uma manopla de metal larga e comprida, com um punho em forma de cabeça de tigre, uma lâmina enferrujada projetando-se para fora da boca do tigre. Tocou o botão do punho de sua própria espada, depois, pensando melhor, deslizou a mão direita para dentro da manopla e envolveu com os dedos a barra horizontal dentro dela. A cabeça do tigre se parecia com a imagem que ele vira nos seixos do santuário fazendo caretas, de olhos oblíquos. - Parece que a única coisa de que eles têm medo são os tigres - disse Howard. - Se está dentro do santuário, esta coisa deve ser uma espécie de objeto sagrado. Pode ser que induza neles o temor a Deus.
- Tive a mesma idéia. - Wauchope pegou o tubo de bambu e o segu¬rou à sua frente. - Você manteve sua parte do que foi combinado. Trouxe o precioso ídolo do muttadar de volta para o santuário. Mas acho agora que ele faz parte do passado, podemos tomar emprestado o ídolo por mais al¬gum tempo. Se os rebeldes virem que ainda o temos, podem se manter à distância, como fizeram antes.
Em meio ao barulho da chuva e batidas dos tambores, eles ouviram o estrondo de balas do Snider, depois gritos. Howard respirou fundo. Pelo menos os rebeldes não seriam capazes de usar seus mosquetes na chuva. Um estrondo imenso os sacudiu subitamente, e dessa vez não era um trovão, mas as nítidas reverberações de um terremoto. Eles se abraçaram. Em algum lugar atrás deles havia o som de rocha caindo, e o seixo acima deles parecia estar se deslocando. Howard se lembrou do rugido do tigre e se perguntou se ele estaria lá fora, esperando. Lembrou-se também do filho. Ele se lembrou do que havia feito. Armou o cão do revólver e segurou a espada já preparada. Por uma fração de segundo sentiu-se separado do seu corpo, como se ele estivesse atrás observando eles dois andando para a frente, desaparecendo sob o véu da chuva e entrando na história. Respi¬rou profundamente, e olhou para Wauchope. - Vamos fazê-lo.

                         Baía de Bengala, Índia, hoje
Jack, com a mão esquerda, puxou a cana do leme do motor de popa em sua direção, trazendo o costado do Zodiac para a praia e desacele¬rando. À frente deles, logo atrás do contorno da costa, ficava o sítio ro¬mano de Arikamedu. Romanos, no sul da Índia. Isso parecia virtualmente inconcebível, num ambiente completamente em desacordo com todos os preconceitos da história clássica. Jack voltou bruscamente à realidade. A ondulação onde haviam ancorado os pegou de surpresa em um redemoi¬nho de espuma e esteira, e o barco foi arremessado de lado na onda com¬prida que vinha da baía de Bengala. Costas estava sentado na plataforma flutuante no lado oposto ao de Jack, e Hiebermeyer e Aysha agarrados no outro lado, um pouco mais adiante. Rebecca, de cócoras na proa, segu¬rava uma corda para salvamento marítimo, com o cabelo preto flutuan¬do ao vento. Todos vestiam macacões de sobrevivência cor de laranja do IMU e coletes salva-vidas. Jack olhou atentamente para a praia ornada de palmeiras, agora distante apenas algumas centenas de metros, e viu a onda comprida se erguendo sobre os baixios. Acionou o acelerador, e o motor Mariner de sessenta cavalos-vapor, elevou-os ao longo da crista da onda, empurrando-os de novo para águas mais profundas enquanto eles se di¬rigiam para o sul, paralelamente à costa, e deixavam a forma cinzenta do Seaquest II muito para trás.
- Deve ser ali, lá adiante - gritou Costas acima do barulho. Ele fez um gesto em direção à praia com a sua unidade GPS, enquanto se segurava numa corda fixa ao redor da plataforma flutuante, com a outra mão. - Pa¬rece ser uma via de acesso para o rio.
Jack concordou com a cabeça e desacelerou novamente, virando o bar¬co em direção à terra e manobrando entre duas zonas de ondas de arre¬bentação que assinalavam o recife exterior a cerca de duzentos metros da praia. O mar se acalmou, e ele desligou o motor. - Devemos ficar bem se nos mantivermos no canal entre as bóias, mas permaneça muito vigilante do lado da proa. - Rebecca aquiesceu. Pela primeira vez desde que ha¬viam deixado o Seaquest II, Jack se permitiu relaxar e olhar ao redor. Eles tinham passado pelo moderno porto de Pondicherry e pelas ruínas da antiga Companhia das índias Orientais aproximadamente vinte minutos antes, e estavam agora fora do baixo contorno da costa, com sua margem verde e densa, que continuava por cerca de trezentos e vinte quilômetros em direção à extremidade sul da índia, até a margem do estreito Palk, de onde tinham saído cedo naquela manhã, no Seaquest. Jack acelerou ligei¬ramente. Passaram por um barco com uma vela triangular latina nava, onde um menino nu estava parado na popa, inclinado sobre o braço do remo do leme. Os olhos escuros de um pescador seguiram os de Jack quando eles passaram, no entanto, ele continuou ajogar e puxar sua rede. Rebecca colocou a mão para fora de estibordo, e Jack empurrou a cana do leme para o ancoradouro, olhando para ver onde a água se tornava rasa. Seu destino mal se distinguia do restante do contorno da costa, uma água represada que formava um plácido canal dentro do mar, no entanto, levava a um dos sítios arqueológicos mais extraordinários da Índia. Jack sonhava desde criança estar ali e no lugar na selva que ele planejava visitar mais tarde. Estava tremendo de excitação. Olhou de novo para o nava, agora emoldurado pela vastidão da baía de Bengala. O sol dava à água uma coloração parecida com o aço, e ela parecia morosa, pesada como mercúrio; o reflexo do nava oscilava em câmara lenta com o remanescen¬te da onda comprida.
Jack passou para Costas a cana do leme, depois girou e olhou o sol a leste, erguendo a cabeça para ele e estreitando os olhos. Essa era ou¬tra imagem extraordinária desse local. Em algum lugar por lá se situava Chryse, a terra do ouro. Jack se lembrava das palavras do Periplus, escritas dois mil anos antes por um homem que estivera nesse mesmo lugar, que virara para o leste, como Jack fez, ponderando sobre o que devia haver além. Jack espreitou novamente o nava. O que ele vira, aquele grego egíp¬cio que fora para lá tanto tempo antes? Teria ele próprio visto o kolandio-phônta sobre o qual escrevera no Periplus, os grandes navios que desciam pelo Ganges? Teria ele visto outros navios que vinham de Chryse atra¬vessando o oceano, navios com velas muito altas adornadas com fitas e dragões na proa, navios carregados com fardos de seda e decorações visto¬sas inenarráveis que eram emissários de um império guerreiro tão grande quanto a própria Roma?
- Estou desligando o motor - disse Costas. - Não confio nestes lu-gares rasos. - A água clara do oceano tinha dado lugar a uma lama mar¬rom quando eles entraram no fluxo do rio. Jack concordou com a cabeça, olhando para um mapa de material laminado preso numa prancha na frente deles que mostrava a localização do sítio arqueológico. - Faltam somente cerca de duzentos metros ao longo do rio, no lado sul do canal. - Costas se ergueu e travou o motor na viga de popa, e depois pegou um remo de pá larga no lado em que estava do barco. Jack pegou o outro, mergulhando a lâmina na água escura, sentindo seu calor. O único som que se ouvia agora era o distante bramido das ondas de arrebentação e o sussurrar do vento entre as palmeiras. Eles passaram por uma península de areia que assinalava a entrada do rio e penetraram num canal com me¬nos de quinze metros de largura. A margem do rio era uma mistura de verde e vermelho, uma profusão de primaveras e um estranho mangue e limoeiros aparecendo entre os coqueiros. Subitamente, começou a fazer calor, um calor seco, intenso, e ambos fixaram os remos e imitaram Hiebermeyer e as duas garotas, baixando o macacão até a cintura. Flutuando, passaram por uma linha de navas com peixes secando dependurados em cordas como luzes, e depois um grupo de mulheres banhando-se e bú¬falos asiáticos domésticos na água, aparentemente indiferentes aos caranguejos violinistas (uma das noventa e quatro espécies existentes) e peixes anfíbios que nadavam entre eles. Era uma cena bela e lânguida, no en¬tanto, também frágil e efêmera, num lugar varrido por ciclones e tsuna¬mis, onde assentamentos duradouros só podiam se acomodar no interior, além da zona de perigo. Jack pensou novamente no Periplus e se colocou no lugar do autor cerca de dois mil anos antes. Não era apenas a visão do leste que era tão sedutora. A visão do interior, além das filas de palmeiras, também era tentadora e ameaçadora. Os primeiros gregos e romanos ali eram como os primeiros exploradores europeus, à beira do desconheci¬do, milhares de quilômetros de selva, montanha e deserto. Tudo o que eles sabiam era que em algum lugar ao norte ficavam as terras alcançadas por Alexandre, o Grande. No entanto, eles tinham ido para lá não para colonizar ou conquistar, mas para negociar — exatamente da mesma ma¬neira que os portugueses, franceses e britânicos fariam mil e quinhentos anos mais tarde — com civilizações tão antigas e sofisticadas como as do Egito e do Mediterrâneo.
Jack remava com cuidado, levando o Zodiac para a margem oposta do rio, e bateram contra um molhe de madeira. Um homem magro e vestido de maneira asseada estava parado, observando-os. Usava sandálias, shorts e uma camisa cáqui aberta no pescoço, com as insígnias do Levantamento da Índia nos ombros. Dois outros homens se aproximaram, pegaram a corda que Rebecca lhes estendeu e ajudaram Aysha e Hiebermeyer a sair do barco. Eles despiram o macacão de sobrevivência, e sem dizer uma palavra, Hiebermeyer pulou em direção à borda de uma vala de escava¬ção, com o suor escorrendo, levantando os shorts de tamanho fora do co¬mum. Rebecca olhou para trás, para Jack, que fez um aceno, e ela e Aysha correram para alcançar Hiebermeyer. Jack sorriu para o homem quando ele e Costas subiram para a doca. - Você deve desculpar meu companhei¬ro. Ele fica com a visão comprometida quando vê uma nova escavação.
O homem bateu os calcanhares e estendeu a mão. - Comandante Howard. É uma honra conhecê-lo, senhor.
Chame-me de Jack. Sou apenas um reservista. - Apertaram-se as mãos. - Você é o capitão Pradesh Ramaya?
Engenheiro do exército da Índia, servindo como auxiliar no Levan-tamento da índia. Estou encarregado das escavações subaquáticas.
Obrigado por me mandar aquele mapa por e-mail - disse Jack, aca-bando de tirar o macacão de sobrevivência, revelando as calças e a camisa cáqui. Pegou sua velha mochila da caixa na proa do barco e pendurou-a no ombro, mantendo o coldre discretamente fora de vista. Fez um gesto para o lado e disse: - Costas Kazantzakis. Outro membro da marinha. Engenheiro também.
Aha! - disse Pradesh, com os olhos brilhando, apertando a mão de Costas. - De que área?
Robótica submarina - disse Costas. - Apenas um par de anos entre me formar e encontrar este personagem. E você pode esquecer o velho assunto da marinha. Raras vezes tive que usar um uniforme.
Jack lhe lançou um olhar estranho. - Exceto quando você pegou uma canhoneira em Shatt-al-Arab durante a primeira guerra do Golfo.
Eles me colocaram para fazer carreira com aeronaves. Um completo desperdício de minhas habilidades. Só estava matando tempo.
E ganhando uma Cruz da Marinha.
Olha quem fala! Um reservista. Serviço Especial de Barco? Deixe- me pensar. Aqueles pedaços de fitas em seu uniforme, Atlântico Sul, gol¬fo Pérsico, Adriático...
Os pedaços de fitas que as traças não comeram, você quer dizer. É tudo história antiga.
É um prazer conhecer dois guerreiros tão distintos - disse Pradesh, sorrindo.
- Arqueólogos - replicou Jack com um sorriso.
Ele, não eu - retorquiu Costas. - De jeito nenhum. Sou apenas seu subordinado. Ao longo do trajeto. Para encontrar o tesouro no final. Ele terminou de tirar o macacão, revelando os sensacionais shorts havaianos. Pradesh olhou fixo e tossiu. Costas olhou parajackde maneira desafiado¬ra, depois para Pradesh. - Você é daqui?
Sou da região do rio Godavari, cerca de trezentos e vinte quilôme-tros daqui indo para o norte. Para onde estaremos indo depois disso.
Quando telefonei do Egito para combinar esta visita, não fazia idéia de que havia qualquer conexão - disse Jack para Costas. - Mas quando Pradesh respondeu por e-mail e me disse que ele fazia parte do Grupo de Engenharia de Madras do exército da Índia baseado em Bangalore, men¬cionei meu bisavô.
Um retrato do coronel Howard ocupa um lugar de honra no refei¬tório do regimento - disse Pradesh.
Coronel? - perguntou Costas. - Achei que ele fosse tenente.
Mais tarde - disse Jack. - Vou falar sobre isso.
E o coronel Wauchope é um de nossos heróis mais reverenciados - disse Pradesh. - Seu trabalho com o Levantamento da índia nos anos 1880 e 1890 ajudou a estabelecer a fronteira com o Afeganistão. E uma honra ajudá-los. Os oficiais no refeitório ainda levantam brindes a eles no aniversário de seu desaparecimento.
- Ambos desapareceram? - exclamou Costas para Jack. - Você mencio¬nou que Howard desapareceu, mas ambos?
Mais tarde - repetiu Jack colocando uma mão no ombro de Pradesh e apontando para um esconderijo de equipamentos de mergulho sob um abrigo a poucos metros mais adiante na praia. - Estou ansioso para ver o que você tem feito aqui. Nós só temos uma hora e meia até a chegada do helicóptero.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, Jack se levantou da mesa de traba¬lho sob o abrigo e largou o lápis. Ele e Costas haviam dado uma volta rá¬pida pela escavação, passando por uma vala onde Hiebermeyer e as duas garotas estavam ajoelhados, no barro endurecido, tirando entulho com uma espátula, cercados por um grupo de estudantes indianos de arqueo¬logia. Pradesh os levou de volta para a tenda com o equipamento de mer¬gulho, enquanto Jack ficara tomando notas sobre o plano do local. Ele se voltou para Pradesh. - O material romano está sofrendo erosão no leito do rio. O local onde Hiebermeyer estava usando a espátula parece ser a extremidade de um grande armazém feito de tijolo de barro, mas acho que pelo menos metade dele desapareceu. Você conseguiu dois ou três metros de profundidade de água, e provavelmente muitos metros mais de sedimento enterrado. Ele deve estar cheio de artefatos, mas nenhum deles estratificado. Com o equipamento que vocês conseguiram, vão ter grandes problemas para escavar o local. É nisso que podemos ajudar.
Nós tentamos usar uma bomba de dragagem, mas o buraco se enche quase imediatamente e os mergulhadores não enxergam nada.
Costas? - perguntou Jack.
Costas desligou o rádio receptor fora da tenda. Ele entrou erguendo os óculos escuros e enxugando o suor da testa. - Estamos prontos para ir. Podemos usar o grande barco de plataforma flutuante do Seaquest II para trazer o equipamento para cá passando pelos lugares rasos.
Jack se inclinou sobre o plano e bateu com o lápis em diversos pontos. - Nós sugerimos que você providencie um caixão flutuante, uma cerca impermeável para circundar a área do leito do rio contígua ao local de terra - ele disse. - Você vai descarregar o sedimento peneirado para fora do caixão flutuante, o que significa que a água que está dentro permanecerá clara. Temos também uma peça de um equipamento desenhado por Costas que usamos pela primeira vez no mar Negro, como uma fôrma de cortar biscoitos gigante, de cinco metros quadrados, que se coloca na área do sedimento a ser escavado. Ela possui uma bomba de dragagem integral que se pode ir aumentando à medida que se escava mais profundamente, com o tubo de saída na praia, onde o sedimento pode ser peneirado em busca de pequenos achados e material orgânico. Posso trazer para cá dois técnicos para que permaneçam aqui como orientadores.
Porque Jack e eu vamos para o Havaí - murmurou Costas
Pradesh tossiu, olhando para os shorts. - Ah!, entendo. Férias?
Trabalho - disse Jack.
Pradesh olhou para os dois homens, depois sorriu. Então voltou a olhar para o rio. - Estou extremamente grato - ele disse. - Mesmo o me¬nor achado neste lugar vale seu peso em ouro. E o leito do rio pode ser nosso tesouro encontrado. Agora, por favor, desculpe-me uns minutos enquanto conto isso para meu pessoal. - E se apressou na direção de um grupo de mergulhadores que estavam organizando equipamento no mo¬lhe, e Jack voltou-se para a principal área escavada do local. O que teria visto o autor do Periplus quando desembarcou nesse local, dois mil anos atrás? Era uma clareira na selva, à margem de um rio, uma área menor que um campo de futebol. Em sua imaginação, Jack via paredes feitas com tijolos de barro, ruelas estreitas, armazéns com tetos planos, uma fi¬leira de ânforas romanas ao longo do desembarcadouro, engradados com cerâmica vermelha esmaltada da Itália. Arikamedu era como Berenike no mar Vermelho, mas funcional a ponto de ter se tornado um lugar empo¬brecido, sem templos, sem mosaicos, uma cidade de comércio de troca na beira do desconhecido, no entanto, um lugar que não correspondia ao enorme valor de bens que passavam por ela, onde cada fragmento de cerâmica preservada era a única evidência de um dos mais extraordinários empreendimentos do mundo antigo.
- Jack - Hiebermeyer chegou pulando, seguido por Aysha e Rebecca, pingando de suor. - Você se lembra de Ostia, o porto de Roma? A Praça dos Mercadores, com todas as pequenas lojas? É isto que temos aqui, esta construção tipo armazém. Ela é como um estábulo, com uma baia para cada comerciante, cada firma. E você não acredita que baia acabamos de encontrar. Aysha a descobriu.
Um estudante indiano chegou com uma bandeja de achados. Aysha pegou cuidadosamente um saco de plástico da bandeja e retirou um frag¬mento de cerâmica quebrada. - É um fragmento local, do sul da índia, manufatura do final do século 1 a.C.
Há um grafito nele - disse Jack.
Aysha confirmou com a cabeça. Sua voz estava alterada pela excitação. - E um fragmento Tamil. Eu não queria acreditar quando o vi. Contém o mesmo nome de um grafito Tamil que encontramos num pedaço de ce¬râmica na casa de um negociante em Berenike. O nome de uma mulher: Amrita.
E agora, olhe para os outros fragmentos - disse Hiebermeyer, pegan¬do um e mostrando-o para Jack. - A cerâmica é da Itália Central, de uma ânfora de vinho. Reconhece a escrita?
Números - murmurou Jack. - São livros de escrituração mercantil, relatórios de negócios. O que você esperava? - Viu algumas palavras em grego. Subitamente, ficou ofegante. - Reconheço o estilo. Veja a manei¬ra como as letras estão inclinadas. Parecem feitas pela mesma mão que escreveu nos fragmentos encontrados em Berenike com o texto do Periplus!
Hiebermeyer aquiesceu com entusiasmo, depois apontou para a esca¬vação. - Eis o que vejo. Não conhecemos seu nome, mas vamos chamá- lo Priscus. Ele está sentado lá adiante, em sua loja, com a esposa, Amrita. Eles formam uma equipe - marido e mulher. Ela é do local, perfeita para fazer contatos comerciais por aqui, e sua família cuida da loja quando eles voltam para o Egito. Você se lembra de que suspeitávamos que nosso homem fosse um negociante de seda, talvez com um negócio paralelo de pedras preciosas? Bem, olhe para estas palavras gregas. Esta é serikõn, seda. Os números devem se referir a grau de qualidade, quantidades, preços. E olhe esta outra. Sappheiros. Esta é uma palavra grega para lápis-lazúli. É a palavra que o autor do Periplus usa para esta pedra. O mesmo homem, nosso comerciante. Na antiguidade, isto só pode significar o lápis-lazúli encontrado em uma mina nas montanhas Badakhshan, no Afeganistão.
-Você quer dizer este material? - perguntou Costas retirando uma pe¬dra azul brilhante do bolso de seus shorts e segurando-a na frente deles.
Hiebermeyer ofegou. - Esta é a peça que você encontrou em Bereni¬ke? Não podemos levá-la a lugar nenhum! O que acontece com os mer¬gulhadores?
Bem, Jack faz isso às vezes - disse Costas, com ar inexpressivo. - Eu apenas a emprestei. Para dar sorte, até chegarmos ao Havaí. Depois você pode levá-la de volta.
Jack escondeu um sorriso. - Algo mais, Maurice?
Hiebermeyer bufou para Costas e se voltou para Rebecca. - Bem, sua filha acaba de ganhar suas credenciais como arqueóloga - ele disse. - Foi durante aqueles poucos minutos que passamos trabalhando com as espá¬tulas junto com aqueles estudantes. Ela tem sorte de descobridora.
Isto me soa familiar - disse Jack. Rebecca abriu a mão e mostrou-lhe uma gema perfeita verde-oliva, mas muito brilhante ao sol do meio dia.
Olivina - disse Jack admirado, pegando a gema da mão dela e segurando-a no alto. - Da ilha de St John, próxima de Berenike. Costas e eu a sobrevoamos no mar Vermelho há apenas alguns dias. Então você acha que nosso homem as exportava do Egito?
E trocava-a por seda - disse Aysha. - Olhando para esta pedra, você pode compreender por que a olivina fascinou os chineses. Ela é como jade polido.
O império guerreiro - murmurou Jack, segurando a gema erguida contra o sol, olhando para a luz verde lançada sobre sua outra mão.
O que você quer dizer? - perguntou Costas.
Apenas uma imagem que me veio - explicou Jack. - Uma imagem de navios chineses, de guerreiros chegando do oriente. Mas esta gema a torna real.
E ela fecha o circuito - disse Hiebermeyer. - Roma, Egito, índia, lápis-lazúli das minas do Afeganistão, a Rota da Seda, a lendária cidade de Xian. Oito mil quilômetros de contato ligando os dois maiores impérios que o mundo já conheceu.
Costas pegou a pedra de Jack. Segurou-a em direção ao sol com o pe¬daço de lápis-lazúli na outra mão. A luz reluziu através de ambas, e elas pareciam brilhar juntas, como se estivessem envoltas numa mesma es¬fera de incandescência. Ele as segurou juntas e depois se afastou do sol, separando-as. - Quente - ele disse.
Provavelmente um efeito concentrador, como o de uma lente de aumento, concentrando a luz - disse Pradesh, juntando-se ao grupo. - Sempre existiram histórias sobre pedras fazendo isso, um resultado plausível da refração. Um de meus professores na Roorkee University especializou-se nisso. Mas eu nunca ouvi falar de olivina e lápis-lazúli interagindo dessa maneira, especialmente pedras não cortadas. Um projeto interessante para pesquisa.
Você é bem-vindo ao laboratório de engenharia do IMU quando quiser - disse Costas com entusiasmo, devolvendo a olivina para Rebecca e colocando no bolso o lápis-lazúli. - Mas logo você se aborrecerá com as pedras. Há um material robótico subaquático incrível sobre o qual estive trabalhando recentemente. Serve para uma grande quantidade de aplica¬ções militares, bem sua área, imagino.
Realmente? - disse Pradesh. - Fale mais sobre o assunto.
Haverá muito tempo mais tarde para isso - disse Jack, protegendo os olhos e espiando o helicóptero Lynx chegando devagar do Seaquest II para contornar a costa. Ele sentiu uma onda de excitação. - Estamos prontos? Pradesh aquiesceu e apontou para dois homens vestidos com jeans e ca¬misetas, carregando mochilas e rifles automáticos G3. - Uma dupla de meus sapadores - ele disse. - Não quero agravar a situação com as tribos, aparecendo na selva com soldados, mas há uma ameaça muito real dos insurgentes maoístas. E não quero ser responsável pelo desaparecimento dos mais famosos arqueólogos subaquáticos do mundo.
E seu assistente - acrescentou Costas.
Rebecca olhou tristemente para Jack, segurando a olivina. - Se con-quistei minhas credenciais, como diz Hiemy, quer dizer que posso ir jun¬to com vocês agora?
Não dessa vez - Jack fez uma pausa, olhando para Hiebermeyer. - Mas Hiemy pode deixá-la dirigir o Zodiac na volta. Bem devagar.
Oh, legal. - Ela colocou a pedra de volta na bandeja de achados e bateu palmas.
Jack sorriu e fez um movimento giratório com os dedos para Costas. - Pronto para ir?
Pronto para ir.

Três horas depois de deixar o sítio romano em Arikamedu, Jack se sentou entre Costas e Pradesh na coberta de proa de um barco de plataforma flutuante que navegava para o oeste pela ampla extensão do rio Godavari, com sua onda de proa formando cristas contra a corrente. Jack estava dominado por sua própria onda pessoal de excitação. Essa era sua chance de realizar um sonho pessoal, trilhar o mesmo caminho de seu ancestral, descobrir o que o tenente John Howard havia visto na selva naquele dia em 1879. Jack segurou no parapeito e olhou para fora, preparando-se. De Arikamedu eles voaram para o norte, com o helicóp¬tero, ao longo da costa da Índia para o porto de Cocanada, e depois vi¬raram em direção ao interior, subindo o delta do rio. Passaram devagar sobre um milhão de acres de arrozais e de cana-de-açúcar, voando em meio a nuvens encapeladas de fermento doce onde a cana estava sendo processada para se transformar em açúcar mascavo. Em Dowlaishweram, a cerca de sessenta quilômetros distante da costa, eles desembarcaram na grande represa que era responsável pela fertilidade do delta, e Pradesh lhes mostrou onde os Sapadores de Madras ficaram baseados enquanto construíam a represa, em 1860. As figuras ainda estavam vacilantes dentro da mente de Jack quando eles se transferiram para um barco com plataforma flutuante da Godavari Steam Navigation Company, acima da represa, para a viagem ao interior da selva. Três mil e duzentos quilô¬metros de canais de irrigação, cinco vezes mais que a área cultivada em acres. Tinha sido uma das realizações duradouras do governo britânico na índia, no entanto, à medida que subiam o rio, a evidência do domínio humano sobre a natureza diminuía, e viam apenas adaptação, aceitação, exatamente como haviam visto na costa de Arikamedu. Como todos os grandes rios que aumentam com as inundações, como o Nilo ou o Mississippi, todas as tentativas para controlar a água do Godavari represen¬taram apenas uma ilusão de sucesso, fortificações efêmeras contra uma força esmagadora que podia num instante destruir as maiores realizações humanas.
Entre os mais sagrados rios da Índia, o Godavari é o segundo, vindo depois do Ganges - disse Prashed, enquanto dirigia o barco para dentro do canal central. - Eu queria que vocês conhecessem por experiência os vinte e quatro quilômetros finais de nossa viagem pelo rio, para que vocês pudessem criar empatia por aqueles soldados que estiveram aqui cento e trinta anos atrás, penetrando no desconhecido em seu barco a vapor, sem nenhuma idéia do que esperar.
A não ser mosquitos - disse Costas, batendo na perna.
Pradesh concordou. - No final da campanha de Rampa, quatro quin¬tos das tropas haviam sido abatidos pela malária, e muitos morreram. O povo Kóya da selva tem algum grau de imunidade contra a doença. Eles acreditam que a febre foi a vingança de seu demônio mais terrível, o konda devata, o espírito do tigre.
Costas observava atentamente mas desconfiado o nevoeiro adiante, as formas das baixas colinas que mal se viam a leste. - A nascente do rio fica lá?
Pradesh sacudiu a cabeça. - Mais longe, a oeste. Alguns dizem que ele verte da boca de um ídolo sagrado perto de Mumbai. Outros até dizem que ele se junta, por um canal subterrâneo, ao Ganges, unindo todos os cursos d'água navegáveis.
Isso soa como fé naquilo que se quer que seja verdade - disse Jack.
O engenheiro em mim concorda, mas ainda assim é um conceito atraente. Na Índia, tudo o que vem do norte parece fluir para baixo, para o sul. Invasores como os mongóis, religiões como o budismo. Mas dificilmente qualquer um deles penetrou na área das colinas, na selva. O distrito de Rampa, para onde estamos indo, nem tinha sido reconhe¬cido até 1928. Na época da rebelião de 1879, havia um grande branco no mapa. Ainda hoje há centenas de quilômetros quadrados que foram visitados somente por caçadores de tribos. Nem mesmo os missionários vão até lá.
Durante quase uma hora eles permaneceram sem falar, observando os bancos de lama à medida que o rio se estreitava, de cerca de um quilôme¬tro e meio de largura para apenas poucas centenas de metros. Avistaram bois arando campos de arroz entre as fileiras de coqueiros. Passaram por mulheres de saris banhando-se no rio, outras batendo roupa nas pedras, arriscando-se a ser arrastadas pela corrente. Homens de tanga debruçados na lateral dos barcos, enfiando-se na água para se refrescar. Por toda parte viam sinais de decadência ou conserto, mas era difícil dizer do quê. Jack percebeu que a tranquilidade da cena não dava lugar à ideia da violência da estação da monção que estava para chegar, quando as inundações iam varrer tudo o que houvesse na beira do rio.
Ultrapassaram uma linha de postes de madeira no meio do rio, com os farrapos remanescentes de redes de pescar flutuando na água em volta deles. Para Jack, era como se as redes estivessem ali para captar história, fragmentos do passado desalojados da selva ali adiante. Desde que haviam deixado Arikamedu, ele vinha tentando se sintonizar com a arqueologia em rios, lugares que podiam conter tesouros, como o uso de lã de carnei¬ro para pegar ouro em rios de montanhas, mas em outros momentos ha¬via um vazio, em que era varrido qualquer traço do passado. Ali se tratava de outro tipo de arqueologia, mais enganosa, sem nenhuma das certezas que havia em um naufrágio.
Como a costa de Arikamedu, a marca deixada pelos homens na mar¬gem do rio parecia efêmera, reformando-se o tempo todo. A única estrutura permanente que eles viam era um belo templo branco em uma ilha de rochas no rio, cujo telhado era uma espiral de serpentes esculpidas acima de camadas de pintura dourada. Pradesh diminuiu a velocidade do barco, enfiou a mão dentro de uma tigela e atirou uma mão cheia de pé¬talas de flores dentro da água. - Este é Vishnu, adormecido sob a serpente enrolada Sesha, a de cinco cabeças - ele disse. - O azul profundo, o azul do lápis-lazúli, a cor de Visnhu, é a cor da eternidade, da imortalidade.
- Os habitantes da selva são indianos? - perguntou Costas.
Pradesh sacudiu a cabeça e acelerou novamente, elevando a voz acima do barulho. - Mais à frente há uma colina chamada Shiva, na entrada da selva. Chamá-la de Shiva é um pouco como pôr uma cruz cristã num antigo templo romano, só que aqui não havia uma tentativa de conversão, nenhuma tentativa de suprimir antigas crenças. O hinduísmo é como um sítio arqueológico. Removem-se as camadas superiores, e os antigos deu¬ses, as antigas religiões, continuam todas lá. Somente aonde nós estamos indo não há nada para remover. Aquele templo é o ultimo baluarte dos habitantes da planície contra a selva ameaçadora adiante, um lugar aonde até seus deuses têm medo de ir.
Depois disso, eles viram algumas pessoas ao longo da praia, e depois mais ninguém. Os arrozais abertos deram lugar aos arbustos e depois à selva, uma folhagem densa de musgo verde que alcançava os declives e envolvia o contorno da costa, guarnecendo a margem do rio com palmei¬ras e coqueiros que se projetavam sobre trechos de praia de tonalidade prateada. A neblina no alto das árvores caía sobre as margens do rio, dei¬xando uma passagem estreita no centro dele, onde o caminho para frente estava claro. Em seguida, as colinas que escondiam a selva erguiam-se até trezentos metros ou mais de cada lado do rio, e seus cumes quase invisíveis exibiam uma silhueta nebulosa azul esverdeada.
Um barco, longo e de superfície plana, apareceu em uma curva, sendo levado pela correnteza, com o motor fazendo um ruído ensurdecedor e inútil. Trazia, em cada lado, pilhas de cocos e toras de tronco de árvo¬res, tamarindeira e mogno. Um guarda policial vestido com um unifor¬me cáqui esfarrapado espreguiçava-se na popa segurando um velho rifle Lee-Enfield, olhando com suspeita para eles enquanto o barco passava deslizando. Pradesh acenou para ele de modo agradável. - A polícia sem¬pre foi um problema aqui - ele disse. - Os habitantes das colinas os veem como protetores dos habitantes das planícies aos quais foram dadas con-cessões na área florestal, pessoas que chegam e cortam sua preciosa madeira dura. E dificilmente dá para imaginar aquele sujeito enfrentando os terroristas maoístas, não é? Mas isso dá lugar a uma quantidade de outros problemas. Se militarizarmos a polícia, vamos hostilizar mais ain¬da os habitantes das colinas, e se enviarmos o exército para confrontar os maoístas, nos arriscaremos a voltar para a situação que havia em 1879. Os sapadores são a melhor opção, porque os habitantes das colinas po¬dem vê-los fazendo coisas úteis, construindo estradas, clínicas, escolas. Os sapadores também são soldados, embora sejam um tipo de homem diferente.
Estou percebendo - disse Jack, sorrindo.
Pradesh desacelerou, tirou o barco da corrente principal e foi para as águas redemoinhadas ao longo da margem esquerda, onde o suave resfolegar do motor foi abafado pelos gritos e sons rápidos e inarticulados de um bando de macacos langur, de cara branca, que olhavam de soslaio para eles do alto das árvores. O barco passou por uma curva, e eles viram caminhos que subiam de uma praia até um conjunto de ca¬sas baixas numa clareira na selva, com telhados de folhas de palmeiras sombreados por mangueiras e tamarindeiras. Pela primeira vez viram os Kóya, homens escuros com músculos admiráveis usando apenas tangas, parados debaixo das folhagens das palmeiras observando-os. Um deles usava uma pele de leopardo com um pendente de pluma de pavão dependurado no pescoço.
Esta é a aldeia de Puliramanaguden - disse Pradesh baixinho. - Esse nome significa o Local do Deus Tigre.
Tigres - murmurou Costas. - Alguns elefantes?
Raramente, mas está cheio de gaur, o bisão indiano. Os Kóya cha-mam este trecho da selva de Pappikondalu, as Colinas dos Bisões. O bisão tem o tamanho aproximado de um elefante pequeno. Costumo ouvi-los à noite, juntos, fazendo alarido através da selva, rugindo e arquejando como criaturas da mitologia. Tudo o que dá para ver é o branco de seus olhos. Até os tigres se mantêm longe deles.
Costas resmungou. - Outra opção do IMU para passar as férias.
Continuaram adiante, ainda envoltos pela neblina ao longo da mar-gem, e alcançaram outra curva; o fluxo do canal central era visível agora na água à frente. Pradesh manteve-se a sotavento da margem até que es¬tivessem a apenas poucas jardas de outra curva; mantendo o barco quase parado enquanto esperava que a corrente os puxasse para o centro do rio. Jack viu uma mulher sentada nas raízes entrelaçadas de uma figueira-de-bengala. Era muito velha e cega. Seus olhos eram como os de uma estátua antiga cuja pintura já desaparecera, ficando somente o branco, no entan¬to, Jack sentiu que ela estava olhando diretamente para ele, mantendo fixo o olhar. Ela parecia uma Pietá, uma mãe angustiada lamentando o fi¬lho perdido. Jack se lembrou de uma foto da época vitoriana de uma mãe com o filho acima da antiga arca em sua cabine, sua tataravó e seu bebê. Olhou para o dossel que a floresta formava acima da mulher, e através de uma brecha na névoa viu as colinas escuras contra o céu. Sentiu uma in¬tensa sensação de familiaridade, que em seguida desapareceu. Perto dali, um búfalo de água apareceu, dando estocadas, amarrado por um cabres¬to a uma estaca, um movimento súbito e violento que fez a pulsação de Jack se acelerar. A correnteza puxou o barco, e Pradesh ligou o motor, levando-os para dentro do canal central, para longe daquele lugar e da mulher, até que ela desapareceu na neblina. O rio se alargou, a neblina subiu, e Jack viu que haviam chegado. O lugar combinava exatamente com sua descrição no diário de sua tataravó. Pradesh dirigiu o barco até uma água calma ao lado da margem esquerda, e empurrou a proa para a praia, até ela ficasse presa. Jack olhava para o lado oposto, um banco de areia que se estendia por várias centenas de metros ao longo de outra curva do rio para onde o sedimento tinha sido empurrado pela corrente.
O banco de areia era cortado por um rio saindo da selva, cujo leito, seco, mal se podia perceber. - Ali adiante - disse Pradesh, apontando. - Foi lá que aconteceu.
Eu sei - replicou Jack baixinho. - É exatamente como imaginei.
Não espere encontrar nada de 1879 na margem do rio - disse Pra-desh. - Este banco de areia desaparece todos os anos com a inundação da monção, e depois se forma novamente. Precisamos ir até a aldeia à beira do rio, que vocês podem perceber lá adiante, na entrada da selva.
Nós estamos em suas mãos - disse Jack.
Pradesh olhou para o relógio. - O helicóptero deve chegar dentro de uma hora. Ele nos levará mais fundo, para dentro da selva. Meus dois sapadores estarão a bordo. Não quero despertar nenhuma hostilidade levando-os conosco pelo rio, mas não quero entrar na selva sem eles, sem nenhum desrespeito por sua Beretta de nove milímetros, Jack.
Você a viu - disse Jack.
Mantenha-a fora de vista. Ela é altamente inflamável por aqui. Se qualquer um dos habitantes das colinas que não me conheça suspeitar que somos oficiais do governo, então o jogo termina. Eles ficarão com¬pletamente silenciosos. Vamos parar aqui para descansar antes de con¬tinuar. Pode parecer estranho neste calor, mas estou doido para tomar um chá.
Pradesh se ocupou pessoalmente da velha e usada chaleira e o fogarei¬ro Primus da caixa de suprimentos do barco, e Costas discretamente de¬sapareceu na direção da praia. Jack sentou-se sozinho, olhando ao redor. Haviam deixado a neblina na parte estreita do rio lá atrás e entraram num oásis de luz, como se o ar tivesse sido lavado. A praia do outro lado se curvava na forma de uma espada, e a areia era de um dourado deslumbran¬te. Atrás, erguiam-se troncos de árvores cintilantes e grandes seixos de arenito lavados pelas inundações. Acima, no dossel da selva, miríades de tonalidades de verde subiam pelas encostas laterais dos despenhadeiros, enquanto eles convergiam rio acima na grande garganta do Godavari.
Adiante de nós, onde a garganta se estreita, o rio tem apenas duzen¬tos metros de largura - disse Pradesh, estendendo a Jack um copo de chá.
- As colinas de ambos os lados erguem-se acima dos oitocentos metros, e o rio é muito profundo, quase cem metros.
Jack olhou para as paredes cobertas de hera da garganta. Eram atraen¬tes mas proibidas, como uma passagem por uma alta montanha que pro¬metia um vale viçoso além, mas que ameaçava grave perigo na travessia. Para os poucos habitantes da planície que se aventuraram a ir lá, a pro¬messa era a Residência dos Imortais, a Cidade Celestial. Para os primeiros europeus, ela era o lendário reino de Golconda, a Montanha de Luz, de onde fora extraído o diamante Koh-i-noor, em algum lugar para além da garganta. Mesmo antes da chegada dos barcos a vapor, este era o final do percurso pelo rio, e muitos que foram para lá retornaram, sem conseguir resistir à corrente quando ela passa através da garganta, virando os bar¬cos e deixando que o rio os devolvesse à civilização corrente abaixo. Jack olhou atentamente para dentro da água. Ela estava escura, não com lama, mas com algum outro tipo de coisa escura, que à luz do sol parecia de¬saparecer dentro dela. As paredes do canyon deveriam se refletir na água, mas em vez disso ele não via nada. Era desconcertante, como se o rio fosse um buraco negro que engolisse a realidade, fazendo-o imaginar se o contorno da costa coberto de neblina era algum tipo de fantasma, quase próximo demais da lembrança de infância que ele tinha desse lugar para ser real. Ele saiu de seu devaneio quando Costas voltou, fazendo barulho através da vegetação rasteira, e pulou para a proa do barco, uma figura em desalinho, com os shorts quase caindo.
-Alguma coisa ameaçou sua masculinidade? - perguntou Jack.
Aranhas - disse Costas arquejante, sentando-se, examinando ansiosa¬mente as pernas. - Aranhas gigantes e cabeludas do tamanho de um pires.
As aranhas são inofensivas, a menos que você as provoque - disse Pradesh, estendendo-lhe um copo de chá. - Mas mantenha-se vigilante com as cobras. O Kóya usa uma raiz como antídoto para veneno, Mas nunca fui capaz de encontrá-la.
Sempre há a Beretta de Jack - disse Costas.
Atirar em serpentes é carma ruim - replicou Pradesh, advertindo com o dedo. - De todo jeito, não se preocupe. Nós não vamos andar pela selva. Jack queria refazer os passos de seu ancestral, mas eu o convenci de que devemos ir de helicóptero e ele concordou. Ele estava preocupado com sua segurança.
Minha segurança? Jack? Sim, certo, esta seria a primeira vez - res-mungou Costas, enxugando o suor do rosto e esmagando um mosquito com um tapa. - Pelo menos nós todos tomamos vacina contra a malária.
Essa é outra coisa - disse Pradesh apressadamente. - As vacinas nem sempre funcionam aqui. Mas conheço alguém que pode nos dar um pou¬co de reforço na aldeia.
Jack obseivou novamente a cena, imaginando-a cento e trinta anos atrás. - Então, o que você sabe sobre o dia 20 de agosto de 1879?
Pradesh olhou para ele intensamente. - Bem, você tem razão sobre o que aconteceu.
Sacrifício humano?
Pradesh olhou para o barranco. - Eu lhe disse que cresci perto do rio Godavari, em Dowlaishweram. Bem, meu avô era efetivamente um Kóya, deste local. A história daquele dia em 1879 tornou-se uma espécie de lenda, mantida em segredo até dos antropólogos que ocasionalmente apareciam por aqui fazendo perguntas. Até onde sei, o que estou prestes a lhe contar nunca foi dito a nenhum estranho.
Continue - disse Jack.
Os rebeldes montaram um show espetacular. Executaram seus po-liciais capturados na praia, bem diante dos olhos dos sapadores que esta¬vam no barco a vapor preso no banco de areia do rio. Mas eles também puseram o resto dos Kóya num frenesi, enchendo-os de álcool e Deus sabe o que mais. Os membros da tribo realizaram três sacrifícios naquele dia, o meriah completo. Um homem, uma mulher e uma criança.
Uma criança também? -, murmurou Jack.
Mais tarde, as autoridades na planície recusaram-se a acreditar que havia sido um sacrifício e pensaram que os rebeldes haviam dado às exe¬cuções a aparência de um meriah para fazer que parecessem mais aterra¬doras, como se eles estivessem ressuscitando uma prática pavorosa que os britânicos achavam que haviam erradicado anos atrás. Mas as autoridades estavam erradas. Aquela cena na margem do rio era verdadeira. Mes¬mo hoje em dia, sacrifícios ainda são praticados usando macacos langur e galinhas, mas o ritual meriah ainda está aqui, de atalaia, logo abaixo da superfície, e bastaria um pouco de provocação, a lembrança daquela situação altamente inflamável, para que o ritual ressurgisse.
Mas o que aconteceu? - insistiu Jack. - O que teria feito que meu tataravô desse fim ao seu diário naquele dia?
Prashed franziu os lábios. - Não sei. Alguma coisa deve tê-lo trauma¬tizado. Poderia ter sido uma visão pavorosa, especialmente a da criança, a carne deles arrancada enquanto ainda estavam vivos. Talvez ele tenha se sentido impotente, incapaz de ajudar. Você diz que ele próprio era pai de uma criança pequena? Você me contou que era um menino e estava na índia durante a rebelião, quando houve cenas terríveis de carnificina. Talvez alguma lembrança latente daquele horror tenha voltado à tona en¬quanto ele observava o sacrifício. Segundo todos os relatórios, ele era um excelente oficial, um soldado valente, então, seja o que for que ele tenha visto ou feito, deve ter sido algo realmente ruim.
Então, para onde vamos daqui? - perguntou Jack baixinho.
Pradesh fez uma pausa. - Sei aonde ele e o tenente Wauchope foram naquele dia.
Continue.
Pradesh procurou algo no bolso da frente de sua camisa e retirou um antigo cordão de couro com um pendente. - É uma garra de tigre - ele disse. - O tigre foi morto pelo meu avô, que era um muttadar, que quer di¬zer chefe de aldeia, mas também uma espécie de sacerdote. O tigre estava atacando um menino que brincava no rio, e meu avô atirou no tigre com um velho mosquete da Companhia das índias Orientais que o Kóya tinha roubado anos antes da polícia nativa. Porém, o tigre é considerado sagrado aqui, e por tê-lo matado meu avô tornou-se um proscrito, foi forçado a abandonar a selva. Ele encontrou minha avó, uma habitante da planície, e eles viviam em Dowlaishweram. Mas seu filho, meu pai, tornou-se o diretor florestal do distrito, e ele costumava me trazer aqui. Fui adotado pelos aldeões de Rampa e aprendi a falar o dialeto Kóya. As pessoas da tribo reverenciavam meu pai, porque muitos dos oficiais indicados para cá tinham sido habitantes da planície, e tradicionalmente essas pessoas eram vistas como agiotas corruptos que tratavam os habitantes das colinas com desprezo. Meu pai efetivamente foi para Deli para lutar pelo caso deles, para conseguir os direitos florestais. Ele era um grande homem.
Ele deve estar orgulhoso de você.
Pradesh pareceu triste. - Ele poderia ter estado. Nunca saberei. Desde a época do British Raj , a causa dos habitantes da floresta tem sido con¬trolada por outros. Cem anos atrás era o movimento nacionalista indiano que reivindicava que as rebeliões tribais, de certa forma, faziam parte de uma luta pela independência contra os britânicos. E agora são os maoístas, pertencentes ao Partido Comunista da Índia. As pessoas das tribos es¬tão furiosas novamente porque o governo tem vendido miniconcessões, e o partido assumiu o lado das tribos. Na realidade, ele pouco se importa. Foi só uma maneira de conseguir que as tribos os deixassem sozinhos em suas bases na selva, onde eles planejam ataques terroristas por toda a ín¬dia. Meu pai entrou em confronto com eles e foi morto por causa disso.
Sinto muito - disse Jack.
É por isso que nunca fui designado para trabalhar aqui - Pradesh replicou tristemente. - Meu coronel conhece a história de minha família. Eu era muito próximo.
Você não parece ser do tipo vingativo - murmurou Costas.
Experimente-me - disse Pradesh calmamente.
Costas apontou para a garra pendurada no pescoço de Pradesh. - Isso não vai nos causar problemas com algum Kóya com quem cruzarmos? Quero dizer, se o tigre é sagrado...
Pradesh sacudiu a cabeça. - Uma vez que o tigre esteja morto e o es¬pírito tenha abandonado o corpo, a pele e as garras têm grande valor. A pele é usada por um muttadar para a dança e as cerimônias, e as garras são distribuídas entre os jovens da aldeia. São amuletos de boa sorte, para proteger dos espíritos zangados quando os homens estão caçando nas profundezas da selva.
Costas tomou o chá de uma só vez. - Acho que eu optaria por uma tropa com rifles.
Pradesh sorriu. - Isso também ajudaria.
Vamos ouvir sua história - disse Jack. - O que os Kóya lembram da-quele dia?
Pradesh fez uma pausa. - Meu avô me contou quando eu era criança. Para os habitantes da colina ela se tornou parte de sua mitologia, envolta em lenda como os mitos de origem dos deuses. Mas ela diz respeito ao seu tataravô.
Continue.
Os objetos mais sagrados para os Kóya eram os vélpu, uma palavra que significa ídolos ou deuses - disse Pradesh. - Cada família tem um, cada clã. Em geral eles são pequenos objetos que pareceriam comuns para nós, mas que eram exóticos para os Kóya, como uma peça de ferro forjado. Cada vélpu era mantido dentro de um tubo vazio de bambu de cerca de uns quarenta centímetros de comprimento. Eram guardados com gran¬de segredo, somente eram retirados de onde estavam em raras ocasiões, para ser venerados. O maior deles todos, o supremo vélpu, era chamado o Lakkála Rámu. Era mantido dentro de um santuário numa caverna nas profundezas da selva, e nunca havia sido aberto. Contava-se que o deus que estava ali dentro era tão deslumbrante que cegaria qualquer um que olhasse para ele. Talvez fosse vidro, ou pedra preciosa, algo exótico que chegou aos Kóya vindo de fora inúmeras gerações antes. O vélpu supremo defende a alma do povo Kóya. Sem ele, o povo estaria numa terra som¬bria, submetido ao capricho dos espíritos malignos que assombram a sel¬va, especialmente o horrível konda devata, o espírito do tigre. E eles estão nesta terra sombria desde 1879.
O que aconteceu?
Pradesh olhou ao redor e baixou a voz. - Meu avô, o chefe da aldeia, era um muttadar hereditário. De acordo com a tradição antiga, os chefes da aldeia Rampa tinham sido os guardiães do santuário da selva onde o
Lakkála Rámu estava escondido. O avô de meu avô era o muttadar em 1879, mas ele não sobreviveu à rebelião. Sei o que aconteceu com ele por¬que os rebeldes que observaram os acontecimentos naquele dia na selva me contaram, homens do meu próprio clã que se retiraram furtivamente cada um para sua aldeia depois que a revolta terminou, e eles passaram a história para seus filhos. Você me mostrou o diário de Howard, Jack, a anotação final. Naquele dia o muttadar foi rodeado pelos rebeldes que atiraram inúmeras flechas nele. Eles sabiam o que ele tinha feito.
O quê? - perguntou Costas.
O muttadar temia que Chendrayya, o líder rebelde, fosse até o santu¬ário e pegasse o Lakkála Rámu e o usasse para controlar os habitantes da colina de acordo com seus próprios propósitos. Chendrayya era de outro clã, um que tinha ficado preso em um feudo durante gerações com o clã do muttadar, uma antiga disputa sobre que família devia controlar o santuário. Os britânicos sabiam da existência de feudos tribais devido à sua experiência no Afeganistão, e usavam isso em seu benefício.
O muttadar passou para o lado dos britânicos - murmurou Jack.
Ele retirou o vélpu do santuário para mantê-lo a salvo, depois apro-veitou uma grande oportunidade e ofereceu-se voluntariamente como guia e intérprete - disse Pradesh. - Sua condição era que os britânicos lhe permitissem devolver o vélpu para o santuário quando tudo estivesse terminado. Ele estava no barco a vapor com os sapadores naquele último dia registrado no diário de Howard, em 20 de agosto de 1879. Isto está nas páginas que você me enviou por e-mail, Jack. E coincide exatamente com o que eu sabia. Houve uma grande luta com os rebeldes na selva naquele dia, dezenas foram mortos e feridos. Então Howard e os outros que estavam no barco a vapor testemunharam aquela cena de sacrifício na margem do rio. O muttadar também a viu e ficou nervoso, completamen¬te abalado. Era como se todos os espíritos malignos da selva estivessem convergindo para ele, insultando-o por ter retirado o vélpu. Não há re¬gistro no diário de Howard sobre o que aconteceu depois, e dificilmente alguma coisa nos registros regimentais em Bangalore. A maioria dos ofi¬ciais que regressaram de Rampa só queria esquecer o que tinham viven- ciado. Mas há uma história que meu avô me contou. Um oficial britânico com os sapadores, um homem chamado Bebbie, recebeu um tiro, quan¬do ainda estava na selva. Howard e Wauchope saíram com um grupo de resgate. Bebbie foi deixado perto do santuário, já morto. O muttadar tinha se oferecido para conduzi-los ao local, desde que pudesse levar o ídolo consigo. Os britânicos provavelmente sentiram que não tinham escolha. Mesmo com suas armas superiores teria sido um suicídio aventurar-se na selva sem um guia, uma pequena força de uma dúzia de pessoas contra centenas de rebeldes. Eles julgavam que a presença do ídolo impediria que os rebeldes os atacassem. O muttadar desistiu de entrar no santuário no último minuto, aterrorizado, achando que o deus ia descarregar sua vingança sobre ele, e depois ele foi assassinado. O próprio Howard levou o ídolo para a caverna.
E depois disso Chendrayya o roubou? - perguntou Jack.
Pradesh sacudiu a cabeça. - Não. Howard manteve a palavra dada ao muttadar. Mas depois ele e Wauchope perceberam que a única chance que tinham de escapar era levar o ídolo de volta com eles, para usá-lo como salvaguarda, assim como o muttadar fizera para entrar na selva. Assim que eles saíram da caverna houve tiroteio, mas quando os rebeldes viram que eles ainda estavam com o bambu, eles se retiraram. Os outros dois ofi¬ciais retrocederam através da selva em direção ao rio, com os sapadores e o corpo de Bebbie. E eles haviam retirado algo mais do santuário, outra relíquia sagrada. Era uma espada quebrada, ligada a uma manopla doura¬da de punho largo e comprido com a forma de uma cabeça de tigre. Os Kóya acreditavam que ela havia sido usada pelo próprio Rama, o grande deus.
Bem, vou ser amaldiçoado - murmurou Jack.
Você conhece isto?
Há algo que ainda não lhe mostrei. Uma peça de herança tradicional. Ela é de latão, não de ouro, mas deve ser a mesma peça - replicou Jack muito excitado. - Howard a deu para sua filha, minha bisavó, e eu a her¬dei. - Jack se sentou, exaltado. Ele sabia que a manopla de punho largo e comprido tinha vindo da selva, mas nada mais. Isso era extraordinário.
Depois se lembrou de Katya, de sua reação quando ele lhe falou sobre isso. Ele se lembrou do tio de Katya, Hai Chen, o antropólogo que tinha desaparecido na selva havia mais de quatro meses. Essa era outra razão pela qual Jack estava ali. Ele olhou para o dossel na selva. Talvez Hai Che tivesse simplesmente partido. Talvez tivesse acontecido algum acidente. Antropólogos solitários já tinham desaparecido na selva antes. Depois Jack pensou nos maoístas, os perigos que espreitavam na selva. Ele fran¬ziu os lábios. Algo mais estava acontecendo. Os apontadores estavam ali, mas ainda não tinham se juntado a eles. Ele se voltou para Pradesh, que disse algo baixinho, não em inglês nem em hindi, mas em alguma outra língua, com sons leves de estalos.
Ele olhou para Jack com os olhos iluminados. - A recuperação desse objeto significaria tudo para os Kóya - murmurou Pradesh. - E eu quase não ouso perguntar. Você tem o vélpu também?
Jack sacudiu a cabeça. - Nunca ouvi falar disso antes.
Pradesh fechou os olhos por um instante e expirou com força. - O que sabemos é isso. A rebelião Rampa continuou durante meses mais, mas aquele foi um dia decisivo. Nunca mais houve uma força rebelde da¬quele tamanho, e posteriormente a isso Chendrayya e os outros líderes só foram capazes de reunir bandos leais com poucas pessoas, o núcleo duro, e muitos deles proscritos e criminosos. Nos meses iniciais, muitos dos rebeldes eram homens honestos da floresta, Kóya e Reddi. Quando eles viram Chendrayya executar o muttadar e perceberam quanto ele cobiçava seu vélpu sagrado, perderam o entusiasmo pela rebelião. E sabendo que os britânicos estavam com o ídolo e cientes do poder que essa posse lhes dava sobre eles, isso enfraqueceu mais ainda sua decisão de lutar. Eles sa¬biam que recuperariam o ídolo somente quando a rebelião terminasse.
Mas você está dizendo que eles nunca o recuperaram - comentou Costas.
Aquele santuário - perguntou Jack, - fica perto da aldeia Rampa? - Pradesh aquiesceu. - Cerca de treze quilômetros ao norte daqui, através da selva densa. Ele tem o nome do deus Rama.
Rama - repetiu Jack suavemente, com a mente acelerando.
Rama não era um deus hindu? - perguntou Costas.
Pradesh aquiesceu novamente. - A imagem de um homem perfeito, elevado à divindade, a sétima encarnação de Vishnu. Mas é como eu disse antes. Ele surgiu repentinamente do nada. As crenças dos Kóya não têm virtualmente mais nada em comum com a religião hindu. E a lenda do príncipe Rama, suas andanças, sua busca de redenção espiritual, é encon¬trada em todo o sul da índia. Os Kóya acreditam que foi aqui que ele ter¬minou, ao encontrar seu legítimo reino no coração da selva.
Parece mais Coração das Trevas, - disse Costas olhando para os de¬clives densos e verdes na praia do outro lado, depois dando golpes violen¬tos numa nuvem de mosquitos que o envolveu.
É para lá que você está nos levando? - perguntou Jack. - Para o san¬tuário?
Pradesh respirou profundamente e aquiesceu, tocando o pendente com a garra de tigre. - Eu fui lá quando era criança. Era proibido, mas tendo sido criado na planície, não acreditava em superstição. Nenhum Kóya havia visitado o santuário desde aquele dia em 1879. Meu avô disse que houve uma terrível tempestade naquela noite, com trovões e raios. Um terremoto selou a entrada depois que os dois oficiais saíram. Para os Kóya, esse era um sinal absoluto de que o pior horror ocorreria com eles se chegassem a qualquer lugar perto dali. E agora há uma nova razão para permanecer longe. O santuário fica perto de um córrego numa clareira na selva, e ela tem sido usada pelos guerrilheiros maoístas como base. Uma vez eles me pegaram, levaram para seu acampamento e brincaram comi¬go. Isso aconteceu antes que eles assassinassem meu pai. Tenho desejado voltar lá desde então.
Isso soa como se você e Jack estivessem numa missão - murmurou Costas.
Seu ancestral, o muttadar, também queria ir ao santuário quando es¬tava junto com o tenente Howard no barco a vapor, num rio deste lugar, há todos estes anos - acrescentou Jack.
Nunca tentei me pôr na mente de um homem santo, um Kóya. Ele pode ter sido meu ancestral, mas esse é um lugar a que, definitivamente, não quero ir. - Pradesh olhou para Jack, com a firmeza do aço. - E minha missão nada tem a ver com deuses antigos e espíritos e ídolos. Ela tem a ver com o dia de hoje. Ela tem a ver com a dívida de um filho com a me¬mória de um pai assassinado.
Jack aquiesceu, depois se virou e saiu pela proa, pronto para empurrar o barco. Pradesh se sentou e girou a chave da ignição. - Temos cerca de quatro horas de luz diurna. O cortador deve chegar aqui dentro de qua¬renta minutos. Isto nos dá tempo para visitar a aldeia na outra margem. Há algo que quero que vejam.
Vamos embora - disse Jack. - Depois do que você disse, não quere-mos ficar aqui fora depois que escurecer.
Costas esmagou um mosquito em seu pescoço, deixando uma man¬cha de sangue E disse: - Entendido.

Jack se ajoelhou na proa do barco flutuante, segurando a corda de salva¬mento, de prontidão, enquanto Pradesh girava a cana do leme, movia o barco para fora da corrente do rio e entrava numa água represada pela praia. No último instante, ele acelerou e bateu com a quilha do barco na praia arenosa defronte à selva. Jack pulou com a corda na mão, correu alguns passos pela areia quente e a amarrou no tronco de uma tamarinderira. Pradesh desligou o motor e o cobriu com uma lona, depois ele e Costas pularam para fora do barco, um de cada lado, e o empurraram o quanto conseguiram. Jack prendeu bem a corda e olhou ao redor. A areia estava imaculada, tão branca como em outros lugares que vira. Ele alimentava a expectativa de encontrar alguma coisa de imediato, alguma evidência daquele dia fatal em 1879, embora também temesse isso, como se tivesse receio de despertar algum trauma atávico herdado de seu an¬cestral. Mas a areia não tinha marca nenhuma, e não havia sinal do an¬tigo sacrifício. Ele viu a área que a inundação da monção devastava em volta da curva do rio, revirando violentamente a areia e recriando a praia todos os anos. Olhou para o lugar onde a garganta do rio se estreitava e lembrou-se das palavras de um engenheiro vitoriano que vira o Godavari completamente inundado. - Ele espumava ao passar pelas obstruções com uma velocidade e uma turbulência que nenhuma embarcação que flutuasse podia enfrentar." Eles só haviam se deslocado algumas centenas de metros da margem oposta, mas era como se tivessem atravessado algu¬ma espécie de limite sagrado dentro de outro mundo. Até o ar tinha um odor diferente — penetrante, orgânico — e a luz acima da orla da selva tinha uma aura peculiar, como se o próprio ar estivesse colorido de verde e azul na interface entre o dossel de folhas e o céu.
Vamos. - Pradesh andou pela areia até uma abertura na selva entre duas árvores, um atalho bastante usado para se subir pelo declive que le¬vava às casas feitas com caniços e bambus que eles haviam visto da mar¬gem oposta, construídas acima do nível das inundações. - Este é um dos caminhos traçados pelos sapadores no início da rebelião de 1879, mas de¬pois que foram embora foi negligenciado. Eles não conseguiram recursos para construir algo permanente dentro da selva, e as coisas não mudaram muito desde então. - Costas se arrastava penosamente atrás dele, e Jack subia na retaguarda. Costas tirou um frasco de repelente de insetos de sua mochila e borrifou generosamente suas partes expostas, passando-o depois para Jack. - Um pequeno avanço para a humanidade desde 1879 - murmurou, batendo num mosquito cheio de sangue que o havia mordi¬do através da camisa. Pradesh virou-se e observou. - Esta foi praticamente a única coisa que mudou - ele disse. - Prepare-se para voltar no tempo. Uma imensa aranha passou apressada pelo caminho rochoso entre eles, e Jack ficou imóvel, prendendo a respiração. Pradesh percebeu. - Essa é uma reação normal - ele disse. - E a primeira coisa que aprendemos no treinamento para sobrevivência na selva. Você para sob o dossel verde e perde instantaneamente o verniz de civilização, torna-se um animal no¬vamente, e selvagem. E usa isso em seu benefício, uma atenção muito amplificada. Mas o medo primordial também é reativo, o instinto de so¬brevivência. Aranhas podem provocar isso, e serpentes também.
E tigres - murmurou Costas. - Acho que preciso de um drinque.
Essa é outra maneira de lidar com este lugar, infelizmente um pou-co tentadora demais para o povo Kóya. - Pradesh se voltou e os conduziu caminho acima, passando por raízes gigantes de tamarindo e teca que tinham se entrelaçado, envolvendo a desobstrução do caminho que tinha sido feita em 1879. Ouviu-se um rumor como o de vento sopran¬do nas folhas acima de sua cabeça, e um bando de macacos guinchou alto. Passaram um pedaço de terra aplainado e encontraram várias casas, todas de construção modesta de bambus na vertical e telhado de folhas de palmeira colocadas umas sobre as outras, rodeadas por uma estreita varanda e na frente treliças de bambu e talos de folhas de palmeiras en¬trelaçadas, com brotos de feijão germinando. Costas apontou para uma marca vermelha recente na parede. - Aquele símbolo parece estranha¬mente fora de lugar.
Um martelo e uma foice - murmurou Jack.
Pradesh olhou de novo, e seus lábios se curvaram numa expressão de desgosto. - Os guerrilheiros maoístas. Eles veem os Kóya como seus alia¬dos, mas não é profanando as casas de seus amigos que vão conseguir favores. Quando estão sóbrios, os Kóya os desprezam, mas as tribos das colinas ficam confinadas em seu canto e se desesperam por algum au¬xílio contra as companhias de mineração. Mas a ideologia dos maoístas não significa nada para eles, e isso será apagado em breve. - Pradesh fez sinal para que continuassem. Eles o seguiram até a extremidade do terre¬no plano onde a selva se fechava ao redor da aldeia e começava o aclive, numa profusão emaranhada. Havia sinais de vida por toda parte ao redor deles, pequenas nuvens de fumaça das fogueiras, madeiras meio empi¬lhadas, brinquedos de madeira esculpidos, mas eles não conseguiam ver ninguém.
Onde estão as pessoas? - perguntou Costas.
Elas estão nos observando - disse Pradesh. - Para elas, permanecer invisíveis é uma segunda natureza. Essa é outra coisa que se aprende na selva, a se fundir com ela. Eles sabem quem eu sou, mas outros estrangei¬ros estiveram aqui recentemente, exploradores de minas, e eles têm moti¬vos para suspeitar. - Ele os levou até uma pequena clareira depois da aldeia, margeada por troncos altos: pau-rosa, uma árvore semelhante ao mogno, palmeira, teca. Ele se agachou perto da base de uma velha tamarindeira e apontou para um pedaço de arenito ocre avermelhado com cerca de um metro de largura que tinha se incrustado no tronco, erguendo-se à medi¬da que a árvore crescia. Costas se ajoelhou ao lado. - Este é um daqueles objetos sagrados de que você falava? Um vélpu?
Pradesh assentiu com a cabeça. - Olhe bem. Era isto que eu queria lhe mostrar.
Sim. Vejo que há uma inscrição nele.
Jack se agachou do outro lado da árvore, onde estava mais claro. Tocou a pedra, sentindo sua rugosidade, a condensação. Havia várias linhas es¬critas em inglês, gravadas toscamente. Leu em voz alta as palavras:

                  William Charles Bebbie
                  Comissário Assistente, províncias Centrais
                  Morto pelos rebeldes em 20 de agosto de 1879
                  41 anos de idade

É o seu homem, não é Jack? - disse Costas. - Aquele que comandava os sapadores para dentro da selva, o oficial responsável por esta área que nunca havia sido visitada?
É o próprio, isso mesmo, - Jack murmurou, colocando a palma da mão na pedra.
Uma inscrição bem simples. Quero dizer, nem uma citação sagrada, repouse em paz, essas coisas.
Ele teve sorte de obter ao menos uma inscrição. Deve ter sido feita pelos sapadores quando voltaram para saquear o santuário, onde prova¬velmente o sepultaram. Não acho que tenham chorado muito por ele.
Enterro rápido. Livrar-se das evidências.
O que você quer dizer?
Bem, se ele foi baleado. Quer dizer, se os sapadores o alvejaram. Quem vai saber? Eles estavam sendo atacados por todos os lados, sob o fogo dos inimigos e desesperados, e ele pode ter sobressaído entre eles. Isso pode ter sido entendido como se ele quisesse pôr sua vida em risco. Um bom oficial como Howard pode ter achado que ele tentava pegá-los. Ele seria mais leal a seus sapadores do que a qualquer oficial civil descuidado.
É possível, - Jack murmurou. - E um sepultamento rápido não sus-citaria nenhuma curiosidade. As pessoas eram enterradas na Índia no mesmo dia em que morriam. Edward, o filhinho de Howard, foi enterra¬do em Bangalore poucas horas depois de ter sucumbido à doença, meses antes que Howard pudesse ir até seu túmulo.
Costas deu um grito e pulou para trás. Jack arregalou os olhos, horri¬velmente fascinado com o que surgira a poucos centímetros de seu rosto. Uma enorme serpente, uma naja amarela e marrom, com estrias negras, erguendo-se ereta de um buraco entre as raízes em frente à lápide de Bebbie. Ela movia o pescoço e fitava Costas, sua língua estalava, assobiando e balançando.
Está certo, - Jack murmurou entre dentes, sem mover um só mús-culo. - O que fazer agora?
Fique absolutamente imóvel - disse Pradesh.
Costas começou a se balançar suavemente.
Isso vale para todos nós - Pradesh sussurrou. - Não importa quão longe você esteja. Você não tem idéia do alcance do golpe dessa coisa.
Só para entrar no espírito da coisa - murmurou Costas.
Isto é exatamente algo que você não vai querer fazer - Pradesh disse calmamente, com os olhos grudados na serpente. A cobra abriu muito a boca, deixando ver suas presas salientes gotejando veneno.
Costas parou de balançar. - Peguei você!
Pradesh se aproximou lentamente de uma cabaça que estava presa en¬tre as raízes e pegou um punhado do que ela continha. Ergueu a mão sobre a serpente e atirou um pó vermelho na sua direção. Ela começou lentamente a se desenrolar, como que acalmada, e então saltou para o lado, direta como uma flecha, percorrendo várias vezes o comprimen¬to de seu corpo até alcançar a beira da clareira. Ouviu-se um zunido, e ela já havia sumido. Jack e Costas permaneceram imóveis, atordoados, em silêncio. Pradesh virou para eles e sorriu. - Um pequeno truque que aprendi quando criança. Quando eu ficava aqui com meu pai. Eu costu¬mava ter uma dessas como animal de estimação.
Um bicho de estimação!, - disse Costas com um fio de voz.
É um presságio - disse Pradesh. - O aparecimento da serpente as-sinala o início do festival de Thota Panduga. É o que está para acontecer aqui. Ele gesticulou, apontando para a terra batida da clareira. - É aqui que eles dançam. É um acontecimento sagrado, e não por causa de Bebbie. Voltando a 1858, os chefes das colinas foram enforcados aqui pelos britânicos por realizarem sacrifícios humanos. Os Kóya não esquecem es¬sas coisas. Eles ainda sacrificam aves aqui, debaixo dos coqueiros. Devem ter preparado comidas durante a última noite e deixado sob as árvores, para festejar hoje.
Jack foi relaxando devagar, girando o corpo e olhando tudo em vol-ta. Lagartixas corriam pelas rochas e subiam num formigueiro diante da selva. Havia insetos por todo lado, não só mosquitos, mas libélulas e bor¬boletas pousando nas flores que se agrupavam ao sol em volta da clareira. A selva parecia explodir de ruídos. Nas folhagens gotejantes acima deles, Jack viu morcegos pendurados com as asas encolhidas ou despregadas. Ele percebeu que os macacos de rabo comprido que eles haviam visto no caminho rochoso que subia da praia os haviam seguido até ali e esta¬vam sentados sobre umas raízes em volta da clareira. Repentinamente, puseram-se a guinchar e gritar. Além deles Jack percebeu que estava ven¬do rostos humanos, homens, mulheres e crianças, algumas dúzias pelo menos, observando-os silenciosamente.
Temos amigos, - Costas disse, apontando.
Um homem havia se materializado silenciosamente na extremidade da clareira. Pradesh disse alguma coisa em Kóya e tocou as mãos do homem em forma de saudação. O homem era ágil, magro, de músculos rijos, e sua pele tinha um tom marrom-escuro. Estava vestido somente com uma tanga branca, presa por uma corda de cipós de trepadeira trançados, um turbante folgado e descalço. Tinha bochechas grandes e nariz achatado, como os homens da planície que eles haviam visto na margem do rio, e seus olhos pareciam preto-azeviche. Estava carregando um arco e um punhado de flechas e trazia uma adaga curva na cintura. Pradesh virou-se e fez um gesto para que Jack e Costas se aproximassem. - Este é Murla Rajareddy - disse. Ele é o fazedor de vinho de palmeira. - Pradesh apontou para um pneu velho de carro e um rolo de cordas junto a uma palmeira, evidentemente um jogo de ganchos para trepar em árvore. - Ele usa uma faca para abrir a base das folhas da palmeira e depois recolhe a seiva numa cuia. Esta é a melhor época do ano para isso. E essa é a razão do festival. Jack viu que o tronco do homem estava marcado por sulcos e estrias, alguns de ferimentos antigos e curados, outros frescos, linhas de vergões paralelas que brilhavam devido a algum tipo de unguento curativo. Pra¬desh falou com o homem, que respondeu com uma voz suave e vibrante, apontando para as cicatrizes.. Pradesh voltou-se para Jack e Costas. - Ele é também o caçador de tigre da aldeia, o único autorizado a matá-los. Ele disse que um tigre apareceu cerca de dez dias atrás aqui, e ele escapou por pouco. O tigre havia matado e comido uma criança de outra aldeia. Ele acha que a chegada do tigre foi um presságio do que viria a acontecer em seguida, a chegada de outros estrangeiros que estiveram aqui recente¬mente. Perguntei a respeito disso. Era por essa razão que estavam suspei¬tando de nós. Eles imaginavam que fôssemos fazer o mesmo.
Jack e Costas se aproximaram, estenderam a mão e cumprimentaram o homem, que inclinou levemente a cabeça, mas manteve os olhos sobre eles. Ele recendia a álcool. Estava cercado por uma nuvem de mosquitos, mas parecia ignorar a presença deles.
Como ele lida com a malária? - Costas perguntou.
Eles fazem pílulas para a febre. É uma pasta feita da casca da Astonia Scholaris, a casca da raiz da Ophioxylon scrobiculatum e a raiz, o talo e as fo¬lhas da Andrographis paniculata.
Você acredita nisso? - Costas perguntou.
Funcionou para mim. Sir Ronald Ross definiu o papel dos mosqui-tos na malária depois de tratar os veteranos de Rampa, mas há mais a estudar. Mesmo hoje, doutores das terras baixas pensam que os remédios da selva são produtos de feiticeiros. A ironia é que a própria superstição com respeito aos Kóya é que os impede de aprender com este povo.
O fazedor de vinho de palmeira se agachou e pegou uma cabaça de trás da árvore. Ratos negros e gordos correram para dentro da escuridão da selva e em seguida voltaram, olhando vorazmente ao redor. Costas olhou para eles e depois lançou a Jack um olhar malicioso. O homem ignorou Jack e deu a cabaça para Costas.
Parece que você foi o escolhido, disse Pradesh.
Escolhido para quê?
Chama-se comida de tigre - ele sorriu. - Os que comem ganham poderes mágicos que permitem encantar o tigre, ligando-se a ele. Quan¬do terminar o festival, você será despido e enviado para a selva para ir encontrar o tigre, uma espécie de alimento e saudação.
Certo. Então, quando é exatamente que este helicóptero vai chegar?
Pradesh olhou para o relógio. - Em vinte e cinco minutos.
-Acho que já posso ir andando e esperar na praia.
Quando você entra num ritual nativo, você nunca pode recuar. Isso é muito ruim, você sabe. Qualquer antropólogo pode lhe dizer isso.
Antropólogo, arqueólogo, é tudo a mesma coisa para mim - Costas resmungou. - Sou engenheiro. Um engenheiro supostamente em férias. - Observou atentamente dentro da cabaça. - De qualquer forma, de que se trata, exatamente?
Frutos da árvore do tamarindo, a tâmara da Índia. São como fei¬jões largos, verdes e aveludados, e chupa-se a polpa das sementes. Eles o misturam com o miolo da palmeira e o caroço da manga. Como especial consideração para com o festival, eles já esmagaram as sementes na boca e cuspiram a polpa. A saliva engrossa a pasta. Realmente é muito bom.
Eu não ouvi você dizer isso. - Costas parecia pálido.
E a maior iguaria deles.
-Eu vou ter de...?
Considere-se uma pessoa de sorte. Ele poderia indicar você para o sacrifício.
Eles ainda fazem isso?
Você nunca pode estar muito seguro. Os velhos costumes dificil-mente morrem. E ultimamente eles têm sido provocados, como se esti¬vessem em 1879. Sugiro que você aceite esse presente.
Costas observou atentamente a cabaça, sorriu de modo agradável para o homem e mergulhou nela um dedo. Retirou-o e o lambeu, em seguida sorriu, acenando com a cabeça entusiasticamente. Olhou de relance para Jack e depois para Pradesh. Engoliu com dificuldade e por uma fração de segundo parecia uma criança com ânsia de vômito. - Diga a ele que estava excelente. Tem alguma coisa para ajudar a engolir? - Ele perguntou roucamente, ainda sorrindo.
-Está vindo...
O homem pegou outra cabaça e a ofereceu para Costas. Pradesh segu¬rou a mão do homem e cheirou o conteúdo. - É kallu, vinho de palmeira, fermentado ao sol. As vezes acrescentam folhas de papoula ou maconha. Mas não hoje. Deve estar puro para o festival. - Deixou que o homem o entregasse a Costas, que tomou um golinho cauteloso e depois uma golada, bochechando e em seguida engolindo. Ele suspirou e olhou com aprovação para a cabaça. - Nada mau. Lembra um pouco a cidra.
- Eu estava verificando se não era áraque - disse Pradesh. - É o que resulta quando se destila essa coisa. Uma mistura letal de álcool metílico e amido. Esse é outro meio pelo qual os habitantes das terras baixas ex¬ploram essas pessoas. Há destilação de áraque em quase todas as aldeias, agora. O vinho de palmeira os mantém flutuando juntos, mas o áraque os destrói. - Costas fez o gesto de devolver a cabaça, mas o fazedor de vinho de palmeira a recusou, insistindo em que ele bebesse. Ele então pegou Pradesh pela mão e o conduziu a um grupo de Kóya que estavam na beira da clareira, sentados à sombra de uma grande árvore de tamarin¬do. Pradesh olhou para trás. - Eu os questionei sobre os maoístas - ele disse. - Preciso descobrir onde eles estão operando. - Ele se agachou ao lado do grupo, e Jack e Costas ficaram assistindo atentamente. No prin¬cípio as perguntas dele foram recebidas em silêncio, mas então o fazedor de vinho de palmeira ficou animado, falando apressadamente, pondo os dedos nos olhos, puxando-os, fazendo uma careta, e voltando a tagarelar, gesticulando com as mãos, movimentando os antebraços, como se esti¬vesse desenhando. Tirou algo de uma pequena bolsa de sua tanga e en¬tregou a Pradesh. O outro Kóya se esquivou para trás do limite da selva, parecendo assustado, agachando-se com os arcos e flechas. Pradesh fez várias perguntas mais, depois pôs a mão no ombro do homem e se levan¬tou, retrocedendo na direção de Jack e Costas com um ar de preocupação na rosto. - Tenho que ir para algum lugar com ele, em particular. Ele não falará aqui. Vão para a praia. Eu os encontrarei lá.
Quinze minutos depois, Jack e Costas estavam de volta ao lado do bar¬co, sentados na sombra da plataforma flutuante. O sol tinha ficado fe¬rozmente ardente, mas agora estava mais baixo no céu, a oeste, acima da garganta do rio. Eles tinham ainda aproximadamente três horas de luz do dia. Jack estava tamborilando na lateral da plataforma flutuante, quando de repente parou. Pela primeira vez outra pessoa estava no controle, e Jack não estava acostumado com isso. Mas Pradesh parecia ter tudo sob controle rígido, e ele sabia melhor do que Jack quanto tempo levaria para chegar até o santuário na selva e depois voltar. Jack relaxou ligeiramente e deslizou para o lado na plataforma flutuante, com os cotovelos enfiados na areia. Observava Costas em silêncio, com ar divertido. Costas estava sentado na areia, com os joelhos ligeiramente dobrados, e as pernas dos shorts esvoaçando. Ao longe, um caranguejo de rio viu um recanto con¬fortável e estava rapidamente indo de lado para lá. No último instante, Costas se levantou, e o caranguejo passou por baixo dele, ultrapassou o barco, desaparecendo na praia atrás deles a uma velocidade prodigiosa. Costas percebeu que Jack o estava observando, balançou a cabaça com ar inocente e perguntou. - O que foi?
-Acho que você já bebeu muito disso aí.
- Só tomei dois goles. De qualquer maneira, estou de férias. Na praia. Bebeu outro gole e esfregou a boca, suspirando. - Certo. O suficiente para espantar um pouco a decepção, nada mais. - Ele virou a cabaça de cabeça para baixo na areia, depois tomou um longo gole de sua garrafa de água. - Enquanto esperamos, Jack, me atualize. Esse sujeito, o Bebbie. O que ele estava fazendo aqui? Que rebelião foi aquela?
Jack se recostou e pôs os braços atrás da cabeça. Olhou para as pal¬meiras que margeavam a praia e viu outro fazedor de vinho de palmeira descendo habilmente de um tronco. Jack se aproximou de Costas, deu um tapinha na cabaça virada para baixo e começou a explicar: - Foi um imposto sobre o vinho de palmeira. Totalmente desnecessário, uma recei¬ta quase insignificante, mas uma fonte enorme de discórdia para o povo tribal. Foi assim que começaram vários conflitos coloniais. Um ressenti¬mento e depois uma ligeira estupidez administrativa que assume propor¬ções catastróficas. E em 1879, com a guerra no Afeganistão, uma rebelião interna era a última coisa que o governo queria. A reação foi típica. Anos de indiferença e negligência com as pessoas da selva foram seguidos por grande falta de habilidade e ineficiência para sufocar a rebelião. Desde o início os britânicos enfrentaram dificuldades por falta de conhecimento das pessoas e das condições da selva. É aí que entra Bebbie. Havia muitos funcionários britânicos notáveis na administração civil da Índia, de gran¬de inteligência e retidão moral. Bebbie era um funcionário de segunda linha, nomeado para a retaguarda. Para os povos tribais, havia alguns es¬trangeiros que eram adorados, como o lendário príncipe Rama. Bebbie certamente não era um deles.
Um barulho os fez voltar-se para a selva. Era um som novo, pare-ciam sinos ou gongos distantes. Era difícil dizer se era provocado pela brisa entre as árvores, ou por algo real. Então soou claramente um som de tambor vindo da direção da aldeia, três batidas fortes, silêncio, mais três batidas, intensificando-se, como se mais tambores fossem se juntando aos anteriores. Então eles os viram: homens de tanga carregando longos tambores de face dupla, saindo da selva por ambos os lados do caminho, depois dando um passo para trás, em seguida vindo novamente para dian¬te, acompanhando o ritmo das batidas dos tambores. Entre eles aparece¬ram algumas mulheres, com sinos nas orelhas e agitando vigorosamente a cabeça. Elas batiam os pés no chão em uníssono, reforçando o ritmo dos tambores, crescendo em número, entrando e saindo por entre as fileiras dos tocadores. Vozes ecoaram, subindo e descendo, num canto melancó¬lico. Então uma fileira se abriu, e um homem surgiu, com um crânio de bisão na cabeça, enrolado numa túnica vermelha e enfeitado com penas de pavão, os chifres arqueados para cima e gotejando algo vermelho. Mais homens com chifres surgiram, formando um círculo na areia, batendo os pés em harmonia e cantando.
Chifres do bisão indiano -, Jack murmurou. - Outra fera temida da selva. Vejam como eles já se pintaram com sangue.
Só de galinha, espero, - Costas disse. - Mas ainda é terrivelmente assustador. Acrescente sacrifícios humanos, e ponha-se no lugar de um soldado britânico assistindo a isto daquele navio a vapor no rio em 1879. Deve ter sido algo parecido com a visão do inferno que todos aqueles pastores vitorianos deviam ter inculcado neles quando criança. Aqueles eram selvagens pagãos, e estes homens chifrudos são uma visão do pró¬prio diabo.
Pradesh abriu caminho por entre as fileiras dos tambores e dançarinos e a passos largos aproximou-se deles. O fazedor de vinho de palmeira es¬tava com ele, mas ficou para trás, na entrada da selva. Pradesh olhou para o relógio, depois examinou o céu esquadrinhando o horizonte a leste. - A dança do bisão - ele disse. - O primeiro ato do festival. O vinho de pal¬meira está fluindo livremente agora. É uma boa hora para partir.
Antes que eles me dispam e me mandem dar uma pequena cami-nhada pela selva, você quer dizer - Costas disse.
Teve sorte? - Jack perguntou.
Você viu isso que o fazedor de vinho de palmeira fez com as mãos, na clareira da selva? Ele puxou a pele do rosto para ficar com os olhos oblíquos. Disse que um homem esteve aqui antes do início das monções, aproximadamente há quatro meses. Ele tinha olhos assim.
O tio de Katya? - Costas perguntou.
Poderia ser - Jack murmurou. - Hai Chen parecia muito distinto, chinês mongol. Mais alguma coisa?
O homem contou para o Kóya que era amigo de Christoph von Fürer-Haimendorf, um antropólogo que veio para cá com a esposa nos anos 1930, durante os últimos anos do governo britânico. Eles ficaram na selva durante vários meses, patrocinando a causa tribal. Christoph era amigo de meu pai quando menino e sempre foi citado pelos Kóya com grande reverência.
Esses homens se lembram de uma visita de quase oitenta anos atrás? Costas perguntou.
Certamente Pradesh respondeu. - E eles se lembram do tenente Howard, o trisavô de Jack. Nos meses seguintes à derrota dos rebeldes, depois que a principal Força de Campo Rampa foi retirada, Howard e seus sapadores ficaram para trás para limpar e começar a construção da estrada. Aparentemente, Howard conseguiu, à moda dele, ajudar os aldeões, melhorando o abastecimento de água e o serviço de saúde públi¬ca, ensinando técnicas de construção. Ele era diferente dos missionários que ocasionalmente subiam o rio. Dizia-lhes que os únicos deuses que eles deveriam adorar eram os seus próprios deuses. Eles se lembraram disso. Ele ficou doente, teve um esgotamento, e eles cuidaram dele. Era especialmente solícito com as crianças, e construiu brinquedos para elas enquanto estava convalescendo. E eles se lembram do dia em que chegou o navio a vapor para levá-lo embora, o dia que ficou sabendo que seu próprio filho tinha morrido. Ele estava inconsolável e foi sozinho para o rio, ao lugar onde o Kóya havia realizado a cerimônia naquele dia em 1879, onde haviam sacrificado a criança. Talvez tenha sido essa visão que o afetou ainda mais.
Jack engoliu em seco. - Isso parece bem ele - murmurou. - Era muito dedicado às suas crianças, as que teve nos anos seguintes.
Mas ele nunca devolveu o vélpu sagrado ou a manopla de tigre - dis¬se Costas.
Por alguma razão, ele e Wauchope decidiram ficar com ambos - Jack respondeu. - Howard pode ter pretendido voltar ao santuário e tentar achar um modo de entrar lá de novo, mas depois que foi afetado pela do¬ença nunca mais retornou à selva.
Pradesh se virou para Costas. - Você perguntou como os Kóya se lem¬bram do passado distante. É porque eles não têm linha do tempo, e visi¬tas de cem ou mil anos atrás são descritas da mesma forma, como - no tempo dos antepassados deles. No devido tempo, os mais antigos acabam entrando para o campo da mitologia, e alguns deles se tornam deuses.
Ao declarar sua amizade com Von Fürer-Haimendorf, Hai Chen es-tava se valendo da mais antiga técnica do livro do antropólogo - Jack dis¬se. - Ganhe a confiança das pessoas declarando amizade com uma visita venerada do passado. Hai Chen devia ter conhecimento disso.
Ao que parece, ele falou com eles no idioma Kond, da selva do norte, e suficientemente bem para eles se entenderem - Pradesh disse. - O idio¬ma Kóya é um dialeto do Kond.
Isso esclarece tudo - disse Jack. - Katya contou que seu tio era um exímio linguista, e tinha estudado os idiomas tribais quando começou suas explorações junto aos povos da selva na Índia. O que mais eles po¬dem nos contar?
Ele estava interessado na mitologia deles, nas tradições antigas, seus artefatos. O fazedor de vinho de palmeira lhe falou sobre o vélpu e apres¬sou-se em mostrar-lhe um. Eventualmente ele mesmo produzia seu vélpu familiar, já retirado de seu recipiente de bambu. Desde que o vélpu mais sagrado, o Lakkála Rámu, havia desaparecido em 1879, os vélpu perderam muito de seu poder, e o vélpu familiar é o menos poderoso. Mesmo assim, os outros aldeões desaprovaram, e foi por isso que você os viu se retiran¬do da clareira para a selva agora mesmo quando ele estava fazendo um. - Pradesh levantou o objeto que o fazedor de vinho de palmeira tinha lhe dado, uma moeda. Eles a observaram atentamente, e Costas assobiou. - Eu já vi uma dessas. Em nosso naufrágio no mar Vermelho. É romana.
Um denarius imperial antigo - Jack disse, pegando a moeda e olhan¬do de perto. - Não é de ouro, como a do naufrágio, mas de prata. Está bastante gasta, mas a efígie é de Augustus jovem, não há nenhuma dúvida sobre isso. Admirável.
Elas são encontradas em todo o sul da Índia - Pradesh disse. - Nós temos uma numismata em Arikamedu que está fazendo um estudo exaustivo sobre elas. Ela ficou sabendo de John Howard, quando a co¬leção de moedas romanas da Índia de sua juventude foi doada para o Le¬vantamento da índia por sua filha. As moedas são normalmente perfeitas, novas. Foram exportadas pelos romanos como ouro em barra. Esta aqui está usada porque deve ter sido manuseada por gerações pelos Kóya, provavelmente como enfeite, antes que ganhasse o estado de objeto sagrado e ser escondida como vélpu. O fazedor de vinho de palmeira disse que a efígie era de Rama. Ele está nos observando com olhos de águia lá de cima. Tenho que lhe devolver isto antes de irmos embora.
Rama, Jack pensou. - Mais alguma coisa?
Pradesh se agachou. - Há algo mais, e é preocupante. - Fez uma pau¬sa. - O homem, Hai Chen, chegou aqui logo antes do início das monções e quis percorrer quanto território conseguisse, antes que a selva ficasse intransitável. Eles o enviaram com um guia para a aldeia de Rampa, e de lá ele foi sozinho para ver o santuário. Nenhum dos Kóya iria para lá com ele.
A caverna de que estava falando - disse Costas.
Pradesh fez que sim com a cabeça. - E então, alguns dias depois, outros vieram, simplesmente assim. - Pradesh puxou os olhos com os dedos.
Mais chineses - Jack murmurou.
Pradesh assentiu com a cabeça. - Mas eles eram diferentes. Havia sete deles, e eles vieram de helicóptero. E eram agressivos. Disseram que eram funcionários das minas. Os aldeões estavam muito receosos. Eles já haviam tido contato com os prospectores das companhias mineiras, e eles os odiavam. As colinas ao redor são ricas em bauxita, e a área inteira está sob ameaça. Mas havia algo em particular que os aterrorizou. Os homens tinham tatuagens idênticas nos antebraços. A imagem de um tigre.
Um tigre - Jack repetiu.
O fazedor de vinho de palmeira ficou petrificado. Ele pensou que o konda devata viera para castigá-lo por ter revelado seu vélpu para Hai Chen. Ele ainda acha que eles o estão espreitando na selva ao redor da aldeia, esperando o momento de atacar. E ele tem boas razões para estar apreensivo.
Jack repentinamente começou a se sentir inquieto. - Continue.
A técnica dos prospectores para obter informações era ligeiramente diferente. Eles agarraram uma das crianças, uma menina pequena, e colo¬caram uma arma na cabeça dela. Eles queriam saber para onde tinha ido o outro homem chinês, aquele que nós pensamos que era Hai Chen.
E o fazedor de vinho de palmeira contou.
Pradesh fez que sim com a cabeça. - Isso foi há mais de três meses. Os maoístas chegaram aqui e disseram que eles não deviam chegar per¬to do santuário. Eles estavam acostumados a ouvir os maoístas dizerem para que ficassem longe de seus acampamentos, e o santuário, de todo modo, já era um tabu para os Kóya. Mas agora era diferente. Depois do desaparecimento do antropólogo chinês, o fazedor de vinho de palmeira soube que outra coisa tinha acontecido. Os espíritos malignos haviam sido despertados.
Qual é o problema de enviar tropas da polícia? - Costas disse. - Isso parece bastante justificado agora.
Pradesh sacudiu a cabeça. - Ninguém do governo vai comprar essa história. Ainda há um desprezo enraizado pelos tribais entre os habitantes das terras baixas que compõem a maioria do governo regional e do minis¬tério da justiça, e se uma palavra escapasse de que eles tinham estado in¬comodando os prospectores somente com base numa história dos Kóya, iriam pagar caro por isso. Há elementos poderosos no governo que fica¬riam muito contentes de ver o povo das tribos ser desapropriado e estas colinas se transformando numa gigantesca área de mineração. As pressões financeiras são enormes. Uma intervenção militar só poderia ocorrer se os maoístas praticassem violências na selva, e os maoístas normalmente tomam cuidado para evitar isso. A selva é a casa segura deles. Meu pai foi assassinado pelos maoístas em Dowlaishweram, não aqui. Se os maoístas atirarem nas tropas, isso vai se tornar um assunto federal, e a próxima coisa que se veria seriam helicópteros metralhando a selva. Transformar este lugar em uma versão da Guerra do Vietnã não ajudaria o povo tribal. É preciso andar com muito cuidado. Oficialmente, estou aqui de férias, e os dois rapazes de nossa companhia de segurança que estarão conosco no helicóptero são guarda-costas particulares, empregados por você.
E o que você realmente quer fazer é você mesmo matar os maoístas, na hora certa - Costas disse tranquilamente. - Por seu pai.
Jack olhou para Pradesh, que baixou a cabeça sem dizer nada. - E a respeito do antropólogo, Hai Chen? - Costas perguntou.
Pradesh sacudiu a cabeça. - Não há sinal dele desde então.
O barulho de um helicóptero encheu o ar, abafando a batida do tam-bor na entrada da selva. Pradesh tirou o receptor de rádio e falou rapi¬damente em hindi. O helicóptero retrocedeu para cima do rio e desceu sobre o banco de areia na margem oposta. Pradesh acenou para o fazedor de vinho de palmeira, que estava gesticulando para o helicóptero. - Eu lhes disse para pousar no outro lado do rio. Os Kóya merecem alguma margem de segurança, depois da última vez que um destes pousou aqui. E não queremos que eles percam o controle e nos enxotem.
Jack observou os dançarinos. - Eles estão muito longe para ser vistos. - Ele se levantou e caminhou de volta para o outro lado da areia, onde havia deixado a corda. Costas, com a cabaça na mão, foi na direção do fazedor de vinho de palmeira que estava de pé ali adiante. - Só vou me despedir de meu novo amigo.
Não deixe que ele o leve para a selva - Jack disse. - Se você estiver com aquele amuleto de tigre, podemos precisar dele também.
Costas apertou a mão do homem, enquanto apontava com ar de apro¬vação para a cabaça. Jack o acompanhou, segurando a corda do barco, e Pradesh juntou-se a eles, devolvendo ao fazedor de vinho de palmeira a moeda romana. O homem a guardou com cuidado na pequena bolsa de couro e a amarrou à tanga. - Ele não parece estar incomodado com o he¬licóptero - disse Costas.
Alguns já estão acostumados com eles. Os chineses não são os pri-meiros a chegar aqui. Houve outros, as multinacionais. Às vezes os Kóya são contratados para trabalhar como guias. Os prospectores os pagam com tijolos de haxixe. É a maneira que as companhias mineradoras usam para oferecer uma retribuição, mostrando que realmente se preocupam.
Jack virou para o fazedor de vinho de palmeira, refletiu por um mo-mento, então tirou o binóculo Nikon que tinha a tiracolo. Já havia visto vários Kóya olhando através de um com curiosidade. Ele seria de pouco uso na viagem até os confins da selva, então deu-o a ele. O homem o segurou, olhou de perto para as lentes, girou-o na mão e o devolveu. Ele inclinou a cabeça e disse algumas palavras para Pradesh.
Ele disse que se você não necessita do binóculo, ele também não. E que consegue ver até onde precisa.
Jack olhou seriamente para o homem, depois acenou lentamente com a cabeça. - Bastante razoável.
Introdução à antropologia, Jack - Costas murmurou.
Jack ergueu as sobrancelhas. - O quê?
Não crie confusão com os nativos.
Obrigado, engenheiro.
Pradesh apontou para o helicóptero. Eles se dirigiram apressadamente para o barco. Ele e Costas puseram-se de pé, um de cada lado, e Jack ati¬rou a corda por cima.
Okay - disse Pradesh. - Prontos para zarpar?
Costas o encarou e acenou com a cabeça, aprovando. - Falou e disse!
Jack atirou sua velha bolsa cáqui por cima do ombro, procurando sen¬tir a Beretta no coldre. Alguma coisa estava acontecendo, algo maior do que ele havia imaginado. Pensou em Katya novamente e de repente sen¬tiu necessidade de falar com ela. Olhou para o relógio. Só faltavam quatro horas para que o Lince fosse apanhá-los em Rajahmundry para os levar de volta para o Seaquest II.
Costas olhou para a escuridão da selva, depois apontou para o penden¬te em volta do pescoço de Pradesh. - Eu estava imaginando - ele disse. - Será que você possui mais algumas dessas garras de tigre?
Pradesh olhou para ele e começou a subir no barco. - Você não precisa de uma, lembra? Você comeu a comida de tigre. Mas não se preocupe. Não vou envolver você num tiroteio. Se houver algum sinal de proble¬ma, meus dois sapadores atirarão para matar.
Soa como um plano - Costas disse. - Jack?
Vamos nessa!

Olhe para baixo agora, e rápido, antes que eles desapareçam. Na selva.
Jack olhou para fora da porta lateral aberta do helicóptero, enquanto sentia o turbilhão de ar provocado pelo rotor contra seu capace¬te. Costas fez o mesmo do outro lado. No início eles nada viram além da exuberância da selva, estendida sobre os contornos ásperos das colinas como um tapete felpudo. Então Jack percebeu que havia movimentos na escuridão debaixo das árvores, uma onda como uma sombra se pro¬pagando, como se o rio Godavari atrás deles tivesse inundado suas margens e estivesse descendo pelos desfiladeiros e valas da selva. Viu figuras pretas adiantando-se, atravessando as clareiras. Ele não ouvia nada a não ser o helicóptero, mas sentiu um estrondo, como o de um trovão, o som de um rebanho de bisões correndo pela selva para algum destino desco¬nhecido.
- São os gaur -, Pradesh disse pelo interfone do co-piloto. - Os kóya os temem quase tanto quanto aos tigres. Com uma multidão dessa por perto, temos mais uma razão para evitar o caminho da selva e tomar o helicóptero.
Jack se recostou. Ele e Costas, com o cinto afivelado, estavam sentados nos assentos da porta que davam para a popa, e Jack estava agarrado ao suporte de onde outrora pendia uma arma. O helicóptero era um Huey velho, do antigo exército indiano, que agora era utilizado como uma mula para prover as aldeias remotas nas selvas do Ghats oriental. Não se cogitara que Pradesh requisitasse um helicóptero de sua própria unidade, com insígnias, o que teria alarmado os Kóya e os terroristas maoístas, e o Lince do IMU se parecia muito com uma das máquinas que levavam os prospectores das minas. Mas Jack sentia que eles estavam suficientemen¬te protegidos durante aquela missão, uma rápida incursão que Pradesh esperava que durasse menos de duas horas, até que eles pudessem estar de volta antes do pôr-do-sol. Nos assentos opostos estavam dois dos sa¬padores de Pradesh, homens alegres do Grupo de Assalto da Companhia de Engenheiros de Madras. Cada um deles tinha uma caixa com armas presa no chão abaixo deles. Jack olhou para eles, para os bigodes e olhos ferozes, e quis saber se algum de seus antepassados havia estado ali, gente que poderia ter estado junto com seu trisavô no caminho da selva naque¬le dia fatídico em 1879.
Estamos só a dez minutos de lá - disse Pradesh. - A clareira com o santuário está à nossa frente, e a aldeia de Rampa fica a cerca de um qui¬lômetro a leste, lá onde se pode ver a fumaça se elevando acima da selva. - Os dois sapadores abriram depressa as caixas com as armas, retiraram os rifles de assalto AK-74 e inseriram os carregadores. Ergueram as armas e as puseram nos joelhos, com os canos apontando para fora. Um deles sugeriu que Jack e Costas deslizassem seus assentos pelos trilhos do chão para o centro da cabine, longe das portas abertas. Pradesh se inclinou, verificando se eles haviam se movido. - Só para o caso de entrar alguma bala perdida - disse. - De acordo com os Kóya com quem falamos há pouco, a clareira não tem sido usada de um tempo para cá pelos maoístas como acampamento regular. Mas eles disseram que os aldeões de Rampa ouviram muito tiroteio no dia em que os prospectores mineiros chineses foram lá. Não há nenhuma informação sobre o que iremos encontrar.
E então, o que há com o nome da aldeia de Rampa? - perguntou Costas.
O nome veio de Rama, o príncipe que se tornou um foco de adora-ção na índia - Pradesh respondeu. De acordo com o Ramayana, o antigo épico sânscrito, o príncipe Rama se dirigiu para o sul de Oudh e passou dez anos em exílio na selva. O santuário, para onde estamos indo, sempre foi conhecido como Templo de Rama.
Jack acionou o interfone do capacete. - Tenho pensado nisso desde que vimos aquela moeda romana do vélpu. Quando os romanos estavam em Arikamedu, o nome local mais comum para eles era yavanas, ociden¬tais. Mas o nome raumanas também aparece na literatura Brahmin. Pode ser só uma coincidência.
Ora vamos, Jack - disse Costas. - Desde quando você passou a acre¬ditar em coincidência?
-É uma possibilidade fascinante - disse Pradesh. - Como indiano, levo o Ramayana a sério. Parece que ele leva isso em conta. Mas sei, por meus ascendentes Kóya, que um santuário para Rama está em total contraste com as convicções da selva. Eles não têm nenhum santuário para seus deuses, nenhum lugar sagrado, nem mesmo cores sagradas. Os deuses deles estão à sua volta, é pura imanência. Como indianos, nós aceitamos as histórias de intrusos, porque nossa religião é inteiramente abrangente. Mas para as convicções animistas dos Kóya, a história é diferente. Se não foi o próprio Príncipe Rama, deve ter sido uma presença igualmente po-derosa que esteve aqui e deixou uma marca.
Talvez outro intruso - disse Costas.
Certo. Aqui estamos nós agora. - O helicóptero reduziu a veloci-dade, inclinou-se ligeiramente para pousar e começou a voar num largo círculo ao redor de um pequeno terreno na selva, envolvido pela bruma. Jack pôde ver a área que eles haviam sobrevoado, um desfiladeiro, o flan¬co de selva áspero que subia de ambos os lados com algumas manchas vermelhas por onde a lama devia ter deslizado durante as monções. Pela folhagem densa, pôde reconhecer o sulco que o fluxo da água havia cava¬do na ribanceira, entre massas confusas de pedras expostas em seu curso. Era a única rota óbvia rio acima, quinze quilômetros em direção ao sul, e deve ter sido aí que Howard e Wauchope chegaram com seus sapado¬res em 1879. Deviam estar completamente expostos ao fogo que vinha do alto, e era difícil imaginar como não foram dizimados pelos rebeldes.
Mas Jack se lembrou da história de Pradesh sobre o vélpu de bambu, a promessa de Howard para o muttadar. Era a única explicação para eles te¬rem passado incólumes.
O turbilhão do rotor desanuviou o ar circundante, e Jack pôde ver onde o córrego margeava o lado oriental da clareira, depois de expelir uma chuva de pedras que do flanco da selva rolaram para baixo. Pôde ver a cachoeira escoando por sobre as pedras que se estendiam para além da clareira. Na frente havia três lajes enormes, uma delas apoiada em duas outras, como um portal pré-histórico gigantesco.
Aquele é o santuário - disse Pradesh, apontando. - A entrada fica sob o batente da frente, mas foi lacrada pelo terremoto depois que os dois oficiais britânicos vieram aqui, no dia em que o vélpu mais sagrado desa¬pareceu para sempre. Meu avô disse que o terremoto era a vingança do konda devata, o espírito do tigre. Os Kóya já tinham pavor deste lugar. Os tigres vêm aqui à noite para beber no córrego. Depois do terremoto os Kóya ficaram com medo até de chegar perto da clareira.
Então como vamos entrar? - perguntou Costas.
Meu avô disse que existe outra entrada, pela parte de trás da cacho-eira. Mas só cabe alguém muito pequeno, flexível. Ele disse que fez isso quando menino e viu demônios pavorosos lá dentro. Os anciãos de Kóya na aldeia de Rampa contam a mesma história para suas crianças. Nós chegamos aqui furtivamente à noite, mas a história de demônios nos im¬pediu de entrar.
Arqueologia da cachoeira - disse Costas. - Essa é nova para mim.
Pradesh balançou um barbante atrás do assento. - Há outro modo.
Costas se virou para olhar, e seus olhos brilharam de repente. – Um estopim de detonador! Agora sim, esse é o meu tipo favorito de arqueo¬logia.
O piloto chegou até o centro da clareira, apontando o nariz do heli-cóptero na direção das pedras uns cinquenta metros além. Ele nivelou o aparelho e começou a descer. O rotor dissipou a névoa abaixo deles, mas levantou um redemoinho de pó e folhas. Jack se inclinou para fora da porta para observar. De repente soou um tinido forte, e o helicóptero balançou para o lado, e a extremidade da porta quase acertou o rosto de Jack. Em seguida, ouviram-se mais tinidos e o matraquear de fogo de artilharia, um barulho que até chegava a atravessar os fones. O ar era cor¬tado por uma série de estalos violentos, como balas zunindo pelas portas abertas do helicóptero, errando o alvo por polegadas. Jack instintivamen¬te esticou o braço esquerdo para manter Costas agachado. O piloto acionou os comandos, e o helicóptero deu uma guinada brusca para cima e para longe. Jack olhou brevemente para as figuras lá embaixo, três de¬les em trajes de combate e lenço vermelho. O piloto nivelou novamente o aparelho, e os dois sapadores se ajoelharam ao lado da porta aberta e apontaram os rifles. Abriram fogo com rajadas automáticas, atirando uma chuva de projéteis sobre os assaltantes. Depois pararam, olharam para fora rapidamente, então deram três tiros cada um, dessa vez mirando cui¬dadosamente. Então substituíram rapidamente os carregadores vazios por outros cheios. Jack viu as três figuras deitadas, estateladas na poeira, cer¬cadas de manchas vermelhas escuras que se expandiam numa poça pelo chão da clareira.
Maoístas! - Pradesh exclamou com desgosto. - Minha suposição é que não era uma festa de recepção para nós. De jeito nenhum eles po¬diam ter ficado sabendo que nós estávamos vindo. Essa era uma patrulha avançada de um grupo maior, que provavelmente está na selva, a algumas horas daqui. Normalmente fazem o reconhecimento em grupos de três. Eles se apavoraram quando viram que nós estávamos a ponto de pousar.
O que fazemos agora? - Jack perguntou, com o coração ainda dispa¬rado pela adrenalina.
Vamos manter o plano. Você viu aquilo que meus dois amigos po-dem fazer. A sorte é que o resto dos maoístas está suficientemente distan¬te para ter ouvido o fogo da artilharia. O som é rapidamente absorvido na selva. O piloto nos deixará e depois desaparecerá em direção ao sul, para não despertar suspeitas. Os maoístas estão acostumados a ver este pássaro velho que voa de uma aldeia a outra levando suprimentos.
Pradesh acenou com a cabeça para o piloto, que dessa vez desceu ra¬pidamente, tocando bruscamente a superfície dura da clareira. Os dois sapadores saltaram para fora antes que o helicóptero se estabilizasse no solo, chutando os três corpos dos maoístas e conferindo o perímetro. Jack e Costas desafivelaram o cinto e saíram correndo, abaixados, por causa do rotor. Pradesh os seguiu, carregando sua bolsa, então o motor se acelerou com um rugido, e o Huey subiu numa nuvem de pó, movendo-se para a frente em direção ao sul assim que ultrapassou a altura das árvores. Mo-mentos depois o barulho sumiu. Jack se levantou, colocando no ombro sua bolsa cáqui e controlando Costas. Tiraram o capacete e empilharam todos juntos. O pó estava assentando sobre os três corpos no chão a al¬guns metros deles, misturando-se com o sangue. Jack estava excitado pela adrenalina. Viu que Pradesh também estava excitado, com seu revólver Magnum .357 pronto para a ação, tenso e equilibrado como um animal de caça. A ação inteira tinha durado só alguns segundos, mas estava pas¬sando de novo em câmara lenta pela mente de Jack. Isso já lhe acontecera antes, quando ele esteve a pouca distância da morte. Viu Costas caminhar na direção de umas rochas na entrada da selva, aproximadamente a trinta metros da entrada do santuário de pedras. As rochas tinham sido eviden¬temente usadas como abrigo, e as mochilas dos maoístas estavam lá. Cos¬tas se agachou para investigar o que havia nas bolsas atiradas no chão.
- Cuidado com as cobras - Pradesh gritou.
Costas levantou uma comprida pele velha que se soltara de uma naja. - Te peguei! - Ele a deixou cair, esmagou um mosquito e depois pegou outra coisa. - Veja só! esses maoístas tinham Kalashnikovs, e há bastan¬te cápsulas de balas detonadas espalhadas por aqui. Na realidade, muitas usadas no tiroteio que vimos há pouco. Ao que parece, este lugar foi usado como galeria de tiro bastante recentemente, a julgar pelo estado do bronze. E olhem para isto. É uma cápsula muito mais velha. Parece ser de uma arma para matar elefante. Caçadores de caça grossa, talvez. Há várias dessas cápsulas por aqui também, disse varrendo o chão com os pés. Isso deve ter ocorrido há muito tempo.
Jack juntou-se a ele. - Bem, raios me partam! - murmurou. - Estas são calibre .577, do Snider-Enfield. Os rifles que os sapadores de Madras usavam em 1879.
-Você está brincando! - Costas apanhou outra cápsula, olhou de perto para a borda, então grunhiu. - Arqueologia de campo de batalha. Eles fizeram isso com os cartuchos da última batalha de Custer no Little Big Horn. Você pode reconstruir campos de tiro, o fluxo da batalha. - Costas se levantou, olhando em volta. - Talvez tenha sido nesta rocha que o comissário assistente Bebbie conheceu seu fim, onde Howard e Wauchope o encontraram com os sapadores. Com a rocha atrás deles, era a melhor proteção que havia ao redor, uma posição defensiva contra os rebeldes enquanto eles esperavam salvamento.
- Eu sei o que esses três terroristas estavam fazendo quando nós os pegamos de surpresa - Pradesh disse em voz alta. - Não era só um reco¬nhecimento. Eles estavam limpando. - Ele tinha avançado, dando a volta para a parte de trás da rocha, com o revólver pronto. Costas e Jack o se¬guiram com cuidado. O cheiro da selva ficou mais forte, mais mofado, diferente do cheiro enferrujado de sangue fresco que havia ao redor dos corpos na clareira. Jack soube do que se tratava mesmo antes de chegar junto da rocha. Uma massa de ossos e roupas rotas tinha sido empurrada para dentro de uma fenda na pedra. Alguns eram de um branco bem alvo, mas também havia cabelo, e os membros ainda estavam articulados, com tendões entre as juntas. Pradesh observou mais de perto, enquanto tam¬pava o nariz, depois correu para trás, ofegante. - Bem, isso resolve um mistério. Estes são os nossos chineses, aqueles que os Kóya viram chegar dois meses atrás. Olhe, você pode ver a palavra INTACON nas cami¬setas. Esse é o nome da companhia de mineração. Eles devem ter sido emboscados pelos maoístas. Isso explica todas as cápsulas de Kalashnikov - Ele apanhou uma vara e a usou para levantar uma ponta de roupa. - E olhe para isto. Exatamente como descreveu o Kóya. - Ainda havia uma seção de pele intata no braço de um dos esqueletos. Eles puderam ver os restos de uma tatuagem, que foi provavelmente o que manteve preserva¬da a pele. Jack sentia uma onda de apreensão. Antes era só uma conver¬sa, especulação. Agora, aquilo era real. A imagem que tinham diante dos olhos estava manchada, meio apodrecida, mas não havia nenhuma dúvida sobre o que era: a tatuagem de um tigre.
Pradesh acenou para os dois sapadores e apontou, para que eles pu¬dessem ver onde estavam os corpos dos chineses, levantou seis dedos no ar e depois levou a mão em direção à garganta. Ele se levantou, e Jack e Costas o seguiram até a clareira, para além dos três corpos frescos. De repente, ouviu-se o barulho de um tiro. Manchas de sangue espirraram do ombro de Costas, e Jack só teve tempo de ver um dos corpos com uma pistola levantada antes que Pradesh apontasse e atirasse. O primeiro tiro arrancou o topo da cabeça do homem, lançando um pedaço de cé¬rebro e de osso estilhaçado para trás. As pernas do homem bateram no chão, mas ele já estava morto. Pradesh deu um tiro após o outro, lenta e metodicamente, deixando o grande revólver recuar e depois apontando cuidadosamente, reduzindo a cabeça do homem a uma polpa sangrenta. Jack o alcançou e segurou o braço de Pradesh com um aperto férreo, afastando-o. Ele atirou mais uma vez, o último tiro, a bala ricocheteou atrás da pedra. - Chega! - Jack disse. Pradesh se virou e o encarou, en¬furecido, com os olhos arregalados. Jack podia sentir o cheiro do suor fresco, a adrenalina. Afrouxou o aperto e fitou Pradesh diretamente nos olhos. - Você o pegou! - disse Jack calmamente. - Por seu pai. - Jack se virou rapidamente para ver onde estava Costas, que esfregava o sangue de um arranhão no ombro. Parecia tão imperturbável como sempre. - Você está bem?
Costas acenou com a cabeça, então se virou para Pradesh. - Sim. E... obrigado!
Pradesh suspirou profundamente, então observou e chutou os outros dois corpos, enquanto recarregava o revólver. Os dois sapadores manti¬nham os rifles apontados para os corpos, até que ele lhes fez um sinal, e eles voltaram para a extremidade da clareira onde antes tinham assumido posição, escondidos junto à entrada do caminho. Pradesh estalou os de¬dos, apontou com dois dedos para seus olhos, bateu no relógio e acenou para a selva. Um dos sapadores pegou o rifle e desapareceu pelo caminho abaixo. - Ele está fazendo um reconhecimento - Pradesh disse. - Se es¬ses três maoístas forem um grupo avançado, o grupo principal deve estar seguindo-os. Os maoístas só usam os caminhos existentes. Eles não são nem um pouco gente da selva. O caminho vem de Chodavaram, no pas¬sado outro lugar frequentado pelos maoístas. Eles se movem de um lugar a outro, umas noites aqui, outras ali. Pensam que são como heróis de Bollywood, como Robin Hood. Mas são é covardes e assassinos, e a ideologia deles fede. Eu os detesto.
Então, vamos ver - disse Costas, enquanto pegava um curativo da bolsa de Jack e colocava no ferimento.
Jack colocou a mão no ombro de Pradesh. - Você está bem?
Não podia estar melhor.
Você há pouco matou um homem.
Este não era um homem. E não foi a primeira vez. Eu estive na Cachemira. Atirei num engenheiro do exército paquistanês que estava ten¬tando explodir uma ponte que nós havíamos construído fazia pouco. Eles atiraram em nós, nós atiramos neles. Fiz isso por meus homens. Poderia ter escolhido errar o tiro, mas não o fiz. Daquela vez, eu vomitei. Desta vez, não.
Jack assentiu com a cabeça. Ele havia feito o mesmo raciocínio em relação a si mesmo, e sabia o que Pradesh estava fazendo. Suas orelhas estavam apitando, em parte pela adrenalina e em parte pelo tiroteio. Eles precisaram se concentrar no objetivo, manter-se firmes. Apontou para as pedras onde a água escorria em direção ao riacho. Pradesh suspirou profundamente, olhou para os cadáveres, e então entregou seu revolver para Jack. Abriu a bolsa e tirou uma pequena placa de explosivo C-4 embru¬lhada em plástico e o rolo do estopim do detonador que lhes mostrara no helicóptero. - Há uma pedra grande obstruindo a passagem da entrada - disse. - Se eu conseguir rachá-la, vamos poder entrar. - Ele os conduziu ao longo da clareira até a entrada. A queda de pedras estendia-se por cerca de quinze metros além da face da cachoeira. Parecia uma antiga tumba de megálitos, entretanto, era completamente natural, resultado de um forte e antigo desabamento de terra que causara grande erosão e deixara expos¬to o túmulo de pedras. Era mais alto e mais largo do que parecera do he¬licóptero, a entrada tinha pelo menos duas vezes a altura de Jack. As duas volumosas rochas verticais e o batente formaram uma passagem abaixo, bloqueada com a pedra grande que Pradesh descrevera. Fragmentos de rocha se espalhavam pelo chão na frente da grande pedra. Pradesh se ajo¬elhou e pegou um. - Isto está fresco - disse. - Alguém tentou quebrar esta pedra com uma picareta bem recentemente.
Costas se ajoelhou ao lado dele. - Os maoístas?
Pradesh sacudiu a cabeça. - E mais provável que tenham sido os pros¬pectores. Os maoístas podem tê-los flagrado no ato e atirado neles, ou talvez os prospectores tenham desistido desta entrada e tentaram achar outra.
Ou poderia ter sido o tio de Katya - Jack murmurou.
Quem quer que tenha sido, facilitou o trabalho para nós. - Pradesh rastejou alguns metros por uma cavidade embaixo da pedra e depositou o explosivo em um espaço debaixo dela. Ligou o cordão do detonador, li¬berou o carretel e se retirou da entrada, levando-o pela clareira por apro¬ximadamente dez metros até outra grande pedra que surgia no limite da selva. Jack e Costas o seguiram e se agacharam atrás da pedra. Pradesh ar¬mou o pequeno detonador eletrônico, depois levantou o braço para avisar os sapadores que o observavam do outro lado da clareira. Olhou para Jack e Costas, apontando de leve para a orelha com uma mão. - Fogo!
Eles se agacharam juntos atrás da pedra, com as mãos protegendo as orelhas. Pradesh acionou o detonador, e um segundo depois houve um estrondo e um baque. Eles olharam para cima e viram uma nuvem de pó saindo pela entrada da passagem. Pradesh saltou para a frente a fim de inspecionar o trabalho, esperando alguns momentos até que o pó se assentasse, antes de cautelosamente rastejar para dentro. - Tudo de que eu precisava era de explosivo suficiente para rachar a pedra - disse, com voz calma. - Está perfeito.
Belo trabalho! - disse Costas, observando lá de trás.
Temos um buraco de cerca de um metro quadrado. E suficiente-mente grande até para você.
O que você quer dizer com isso? - perguntou Costas.
Significa que você está convidado a entrar. - Ele retirou a tocha halógena de bastão de mergulho de dentro da bolsa e se ajoelhou sob a entrada. Pradesh era aproximadamente seis polegadas menor que Jack, de corpo flexível, e o buraco era um pouco menos generoso do que ele descrevera. Jack se movimentou vagarosamente por cima das superfícies denteadas onde a pedra tinha rachado com o explosivo e penetrou no buraco depois de Pradesh. A parede de pedra, como percebia, era lisa, e ele se deu conta de que estava dentro da passagem. Ouvia maldições e resmungos à medida que Costas o seguia, e depois um som de roupa se rasgando.
Minha camisa. Minha especial camisa havaiana.
Eu lhe comprarei outra. Quando chegarmos lá. - Jack lhe ofereceu a mão, e Costas a agarrou, conseguindo passar pelo buraco. Jack tropeçou na escuridão atrás de Pradesh, vendo só um foco chamejante de luz à frente na escuridão. Ele demorou um momento, olhando para trás pelo buraco para a clareira na selva. Fora, o pôr-do-sol flamejava sobre as fo¬lhas de palmeira molhadas lá do outro lado, como se a selva tivesse sido tomada de repente pelas chamas. Jack podia ver o sapador se agachando contra a rocha a meio caminho, enquanto preparava seu rifle, observan¬do atentamente em sua direção. Olhou para os corpos no pó e pensou em Rebecca. Graças a Deus não permitira que ela viesse. Quase havia dito sim. Olhou para o relógio. Eles tinham uma hora, nada mais. Então voltu e olhou para a escuridão através da passagem. Sentia a urgência da excitação que sempre lhe vinha no limiar do desconhecido. Pôs a mão no ombro de Costas. Lembrou-se de Katya e da promessa que lhe fizera de descobrir o que acontecera com seu tio. Ela estaria esperando. Eles precisavam se apressar.

                     Lago Issyk-Gul, Quirguistão
Katya Svetlanova se encostou na rocha, mexendo-se para encontrar uma posição ligeiramente mais confortável e esticou as pernas no chão duro batido. Deixou de lado a máquina fotográfica digital SLR e prendeu o longo cabelo escuro para trás com uma faixa. Olhou para a pedra ao seu lado. Figuras em círculo tinham sido esculpidas na pedra: leopardos da neve, cabritos selvagens saltando, um símbolo solar miste¬rioso. As esculturas tinham sido pintadas com cores primitivas, verme¬lho e ocre, mas já estavam um pouco apagadas, haviam sido corroídas pelo tempo e chamuscadas pelo sol. Tinham sido esculpidas havia mais de dois mil anos pelos caçadores citas que vagavam por essas estepes e se sentavam nesse lugar onde ela estava, contemplado o lago e as montanhas. Eram antepassados dos quirquistanezes que ainda viviam ali, os próprios ancestrais de sua mãe que haviam conhecido o poder do xamã. Era um lugar sagrado, um chão de cemitério onde ela ainda podia sentir o cheiro de cavalos nômades, carne de carneiro e suor, contudo, também era um lugar por onde outros tinham passado, povos extraordinários - aventurei¬ros, comerciantes, guerreiros, pessoas vindas de distâncias imensuráveis do leste e oeste. Em algum lugar deveria haver uma marca dessas pessoas. Ela estivera fotografando as esculturas, aproveitando as longas sombras do fim de tarde. Tinha sido um dia duro, como eram todos ali. Cada nova pedra trazia a promessa de uma descoberta extraordinária, contudo, a que ela mais almejava ainda a estava frustrando.
Ela se mexeu ligeiramente, e as esculturas entravam e saíam de foco, como um holograma. Estava morta de cansaço. Tinham sido cinco se¬manas sem descanso, e agora só faltavam alguns dias. Ela se pôs a pen¬sar quanto tempo os grandes exploradores do Rota da Seda investiam na busca de tesouros perdidos: décadas, toda a vida. Muitos nunca chega¬vam a encontrar o que procuravam: fabulosos reinos perdidos, o tesouro de Alexandre, a Sétima Preciosidade, tesouros sempre incompreensíveis para eles. Talvez os xamãs estivessem certos, e esse lugar verdadeiramen¬te fosse um domínio divino, com suas maiores revelações só disponíveis para aqueles que davam um passo na direção da vida após a morte. Talvez a arqueologia fosse realmente isso, e o tempo dela com Jack Howard e o IMU procurando a Atlântida teria sido um vendaval mágico, seduzindo- -a para pensar que havia mais vida no estudo das descobertas de outras pessoas do que numa carreira no Instituto de Paleontologia em Moscou. Jack a advertira, mas ela precisava descobrir por si mesma. Ela precisava saber se tinha sorte de descobridora.
Bebeu um grande gole de água de sua garrafa e olhou para baixo, onde as águas azuis extraordinárias do Issyk-Gul lambiam a beira da costa ro¬chosa a uma distância do lançamento de uma pedra. Era como um mar interno, espremido entre as montanhas de Tien Shan ao sul, com seus picos nevados formando um cenário de tirar o fôlego.
Em algum lugar além do Afeganistão secular, a massa proibitiva das montanhas Kush do Indo, as passagens que levavam à Índia - a Passagem Khyber para o leste, a Bolan para o oeste. Mas as montanhas Tien Shan cercavam o lago como as ameias de algum castelo inconquistável, e pare¬cia inconcebível que qualquer pessoa tivesse conseguido atravessá-lo. O olhar era sempre atraído do leste para o oeste, ao longo da Rota da Seda - a maior rota de comércio que o mundo já vira. A leste, as montanhas desciam em direção ao deserto de Taklamakan e ao coração das terras chi-nesas, à fabulosa cidade de Xian. Para oeste, a rota conduzia pelo Quirguistão ao Uzbequistão e à Pérsia, e daí para as costas do mediterrâneo. Quando o pôr-do-sol lançou uma cor rósea sobre o lago, deixando-o ma¬tizado de faixas vermelhas, Katya mudou de lugar para observar a extre¬midade do desfiladeiro que subia a oeste. Ela sempre se sentia inquieta ao subir por aquela estrada, como os viajantes antigos deviam ter-se sentido. Era um lugar sobre o qual sua avó do Quirguistão a advertira, assombra¬do por demônios guerreiros espreitando em seus corcéis escuros em cada ravina, prontos para devorar quem se aventurasse por seu domínio. Katya conhecia esses mitos nômades pelo que eles eram, lembranças folclóricas de conquista e horror, dos hunos, mongóis, furacões humanos que var¬riam tudo a partir do leste. Eles também eram seus antepassados, não pelo lado de sua mãe, mas do pai. Ela também tinha pensado nele nessa noite, o senhor da guerra dos dias modernos, lembrando sua morte violenta no mar Negro dois anos antes, com Jack ao seu lado. Tentou lembrar do pai quando a tentação ainda não o tinha dominado e levado embora, da mes¬ma forma que as marés de ganância e da guerra haviam passado outro¬ra por essas passagens montanhesas. Isso também estava em seu sangue, mas ela não conseguia perdoá-lo, sabia do peso desse lugar em sua busca de redenção, em seu anseio de conseguir forças em suas origens no Quir¬guistão, de ouvir as palavras do xamã naquelas esculturas de pedra.
- Katya! - Uma figura magra apareceu no alto das pedras a uns cin-quenta metros dela. - Estamos prontos. - Pôs-se de pé num salto, ace¬nando e pegando sua máquina fotográfica. Adorava ver Altamaty, seu entusiasmo contagiante. Ainda não lhe contara quem ela realmente era antes de chegar ali. Continuava cuidadosa, insegura sobre as consequên¬cias que o fracasso poderia lhe acarretar. Mas de repente se sentiu revita¬lizada. De pé ali, ela podia ver a enormidade da tarefa deles, um mar de pedras que se estendiam por quilômetros ao longo das margens do lago, por centenas de metros para o alto da escarpa montanhosa de onde elas haviam sido desalojadas e levadas para baixo durante séculos por inunda¬ções e terremotos. Eles já haviam documentado mais de trezentos blocos, contudo ainda havia dúzias de quilômetros quadrados para explorar, cada pedra exigindo meticuloso exame, e a metade delas requerendo escava¬ção por estar enterradas numa terra dura como rocha. Talvez ela estivesse exigindo muito de si. Lembrou-se novamente de Jack e de sua oferta para ocupar um cargo de pesquisadora no IMU. Teria toda a liberdade, re¬cursos ilimitados e poderia continuar vivendo ali. Mas ela era a única no instituto em Moscou que podia defender seus colegas contra a burocracia e a corrupção, por ser filha de quem era - do pai dos velhos tempos, o professor e historiador de arte que havia fundado o instituto. Na verdade, os sentimentos dela eram muito simples; ela achava impossível aceitar qualquer coisa de Jack. Seu pai havia se transformado em tudo aquilo contra o que ela lutava, um rebento do mercado negro de antiguidades, um senhor da guerra que fora apanhado nas armadilhas de seus antepassados. Ele tinha se tornado seu inimigo, e Jack o destruíra. Mas ela ainda tinha o fogo dentro dela, a lealdade feroz de filha, a ligação tribal de um clã de guerreiros. Ver Jack na conferência três meses atrás havia trazido tudo de volta. Antes de estender a mão a qualquer pessoa, ela precisava encontrar sua própria paz.
Pôs a máquina fotográfica no ombro e começou a subir pelas pedras. Lembrou-se de outra coisa que Jack lhe dissera. - Você necessita de sorte, mas também precisa correr riscos, estar disposta a deixar tudo por conta de um instinto visceral. - Para Jack, isso significava entregar-se ao navio de pesquisas, à sua equipe, a Costas e a toda a parafernália de explora¬ção subaquática. Ela olhou para as pedras que se estendiam em todas as direções como um cemitério gigantesco e para sua pequena barraca per¬to do lago. Ali ela ia precisar de um pequeno exército de trabalhadores de campo, e um acampamento como base operacional avançada de um exército. Parou e respirou fundo. Talvez tivesse chegado a hora de aceitar aquela oferta. Não ia se decepcionar. Ela e Altamaty tinham feito tudo o que era humanamente possível. Precisava entrar em contato com Jack de qualquer maneira, descobrir se ele tinha feito algum progresso na localização do seu tio na selva. Ficara aflita e ansiosa durante semanas, e agora precisava saber. E queria ouvir a voz dele. Então decidiu que instalaria o telefone via satélite naquela noite.
Um motor começou a tossir ao ser acionado e acabou funcionando com o ruído de um motor a diesel de quatro cilindros. Katya subiu uma elevação e viu Altamaty à frente, com seu chapéu cholpak aparecendo acima das pedras. Ele estava montado no único equipamento mecânico deles, um venerável trator Nuffield britânico que encontrara de alguma maneira o caminho da Índia até a Ásia Central, parte de um revigorado comércio pela Rota da Seda que terminara com a queda da União So¬viética. Katya ficara totalmente apaixonada por ele, apesar do barulho e da fumaça preta que vomitava. Era o cavalo de batalha deles, e enquanto funcionasse ainda havia esperança. Ela saltou de pedra em pedra até che¬gar ao pequeno espaço aberto diante do trator, estendendo a mão para Altamaty para olhar por cima da corrente que estava enrolada em volta de uma pedra meio enterrada. Esse tinha se tornado o ritual de final de dia deles. Altamaty manobraria o trator para junto de uma pedra promisso¬ra que eles já tinham deixado marcada, perto dos rastros grosseiros que subiam do lago. Ela olhou para a pedra escolhida para aquele dia. Nesse caso, a pedra que precisava ser removida havia caído de encontro a uma pedra promissora, e o espaço entre as duas tinha se enchido de terra dura, que Altamaty tinha passado a maior parte da tarde retirando para passar a corrente ao redor da pedra.
Katya se agachou, inspecionando a corrente e o couro de cavalo que a recobria para proteger a superfície da pedra. O couro estava desgasta¬do, mas aguentaria por enquanto, mantendo a corrente bem presa. Ela olhou para o cabo frouxo que se ligava ao trator. Altamaty tinha recupe¬rado a corrente de um velho barco patrulha que enferrujava num baixio próximo, uma herança do tempo em que os soviéticos usaram o lago como base naval secreta de testes. Ele havia treinado ali como um re¬cruta da marinha em 1980, antes de ser enviado para a guerra soviética no Afeganistão. Ele dizia que confiava mais na velha tecnologia soviética do que na nova, mesmo estando enferrujada. Katya tinha que acreditar na palavra dele. Ela se levantou, ergueu o polegar e se afastou para uma distância segura em cima das pedras. Abaixou-se atrás de uma delas. Altamaty também se abaixou, atrás de uma barreira de placas de metal re¬cuperadas que ele tinha armado como proteção na frente do volante, na eventualidade de a corrente se romper. Katya levantou e fez sinal com a mão, abaixou a cabeça e cruzou os dedos. Era como raspar um cartão de loteria a cada vez, geralmente com sucesso. Mas dessa vez podia não dar certo. Eles estavam perto do desfiladeiro a oeste, o estreito que condu¬zia ao lago. Se eles estivessem procurando a inscrição de algum viajante, esse seria o lugar, pois era ali que as caravanas descansavam e se recu¬peravam, não no alto do declive onde a maioria do petróglifos dos citas tinham sido achados.
Ela fechou bem os olhos. Ouviu Altamaty pondo o trator em marcha à ré, lentamente abaixando a alavanca do regulador de pressão até que o motor começasse a roncar, e então foi soltando a embreagem suavemen¬te. A superfície inteira do chão parecia pulsar. Ela abriu os olhos e viu o trator avançar lentamente para trás, um metro, depois dois. Finalmente parou, quando as rodas dianteiras se levantaram do chão, e então o baru¬lho diminuiu e o trator deu uma guinada para trás. Altamaty se levantou e acenou. Katya se levantou e percebeu que a pedra tinha sido puxada, chocando-se contra outra na parte traseira. Não havia nenhuma maneira de movê-la mais. Mas a pedra que eles estavam tentando descobrir pare¬cia acessível, só coberta por uma camada de sujeira solta. Altamaty puxou o freio de mão, enquanto deixava o motor em marcha lenta, e saltou com uma espátula e uma escova nas mãos. Antes que Katya se desse conta, ele já estava no buraco, limpando a pedra. Originalmente ela estava na vertical, mas fora empurrada séculos atrás pela pedra que eles há pouco tinham removido, provavelmente deslocada durante uma antiga inunda¬ção. Ela viu que a superfície exposta era plana, pelo menos um metro em ambas as direções. Armou a máquina fotográfica. Parecia perfeito, mas se decepcionou. Seus colegas do instituto lhe haviam contado que era uma caça ao ganso selvagem. Bactrianos e sogdianos, os comerciantes que pas¬saram por lá nunca haviam esculpido inscrições em pedra. Entretanto, ela se lembrou de Jack. Ele havia dito que a gente tem um pressentimento, impossível de descrever. Cruzou os dedos com força.
Altamaty se levantou, estava de costas para ela, bloqueando sua visão. Ela pousou a mão direita na velha jaqueta de combate gasta dele. Então percebeu que estava agarrada nele, segurando-se nele de punho fechado. Por um momento eles ficaram imóveis. Percebeu que ele estava tremen¬do. Ela já tinha se segurado nele antes, mas nunca sentira isso. Ele estava rindo. Ela relaxou completamente, toda a tensão desaparecera, deixou cair a mão, sorriu insanamente e começou a se sacudir com a própria risada, pela primeira vez desde que se lembrava. Algo tinha se soltado dentro dela, e nem mesmo tinha visto a pedra ainda. Altamaty virou-se, e ela viu seu rosto anguloso, bonito, sorrindo para ela. - Não sei muito latim - ele disse em quirguiz. - E nunca estive a oeste do Afeganistão, mas quando menino li todos os livros que podia achar sobre os romanos. Reconheço isto.
Ela acompanhou a direção do dedo dele, e ainda ofegante apoiou de novo a mão em seu ombro enquanto se firmava. Ajoelhou-se e olhou atentamente. Lembrou-se novamente de Jack. Os primeiros momentos são cruciais. Você poderia nunca mais ver aquilo novamente. Esqueça a euforia. Seja uma cientista. Com o sol baixo no céu, o contraste estava perfeito, e até mesmo a mais leve ondulação na superfície da pedra era visível. Ela ti¬rou rapidamente uma dúzia de fotografias, usando três ângulos diferen¬tes. Continuava imóvel, receosa de que a imagem desaparecesse. Era uma águia. Tirou um caderno da bolsa e folheou as páginas até achar a certa. Então ficou olhando para um desenho feito por seu tio em uma caver¬na em Uzbequistão, a mais de quatrocentos quilômetros a oeste dali. Ao lado do desenho estava a letra de Jack, anotações que haviam feito quan¬do estudaram o desenho para a conferência três meses atrás. Ela olhou novamente para a pedra, e de volta para o caderno. Não havia dúvida. Era o mesmo. Esculpido pela mesma mão. Ela se levantou, cambaleando li¬geiramente. - Tenho que voltar para a yurt  - ela disse, com voz trêmula. - Preciso usar o telefone de satélite.
- O que foi? - Altamaty perguntou. - O que nós achamos?
Ela olhou para o rosto esculpido pelo tempo, os olhos azuis encanta¬dores e o abraçou forte por um momento. Sentia o cheiro de seu colete de pele de ovelha, o cheiro penetrante de seu suor, a barba dele contra sua bochecha. Sentia-se extraordinariamente bem. Ela se soltou dele e pôs a bolsa a tiracolo. Também se sentia muito cansada. Precisava fazer aquela ligação antes de desmoronar. Mas ela queria que Altamaty ouvisse isso primeiro. - Em todas as suas leituras sobre os romanos - disse ela, - você já se deparou com a história dos legionários perdidos de Crassus?

Através da entrada, Jack olhou para trás, pela última vez, para a clareira na selva e depois passou a tocha pela parede do túnel. Havia no aposento espaço suficiente apenas para ele ficar ereto atrás de Costas e Pradesh. Ele viu o verde escuro das algas, e riscas castanhas que poderiam ter sido alguma outra forma em crescimento. Havia um cheiro forte de umidade e decomposição, misturado com outros odores que tinham pe¬netrado ali vindos da selva. Pradesh apontou sua tocha ao longo da pare¬de à frente deles, então recuou, ofegante. Uma forma extravagante tinha aparecido, esculpida na lateral do seixo à esquerda deles, com a cabeça no mesmo nível deles. Era um demônio espantoso, com olhos esbugalhados, um bico curvo e presas mortais. Jack deu um passo à frente, aproximando sua tocha. - Incrível -, murmurou. - Ele tem asas, como um grifo. Eu di¬ria que isto é persa, ou foi esculpido por alguém que passou muito tempo olhando para imagens como esta. Pradesh, sei que escultura indiana anti¬ga é uma paixão sua. Você tem alguma idéia?
Pradesh tocou a pedra. - Persuadi meus professores de engenharia de que esta era uma boa maneira de estudar tecnologia lítica; mas eu estava igualmente interessado em arte. - Ele olhou fixamente para o demônio. - É uma forma genérica. Há muito em comum entre a arte persa e a india¬na. Mas há algo distintivo, confiante, nesta figura, não exatamente como alguma coisa que eu já tenha visto. Talvez você tenha razão. Ela pode ter sido feita por alguém familiarizado com a escultura monumental persa, talvez do período de Partos.
Costas colocou cuidadosamente a mão no olho bulboso, em seguida o retirou rápido. - Não é de admirar que os Kóya nunca entrem aqui - ele murmurou.
- Agora olhe para a cena atrás da figura - Pradesh disse.
Jack olhou atentamente para a parede atrás da cauda do demônio, usando sua lanterna. Viu mais esculturas. Estava escuro, mas a imagem era nítida. Ele inspirou profundamente. Era uma espécie de cena narrati¬va, com figuras humanas. Viu cabeças decapitadas penduradas em postes, com facas suspensas sob elas. Havia pessoas amarradas na frente e abaixo delas uma faixa manchada de vermelho, desbotada e salpicada de piritas, evidentemente uma extrusão mineral na rocha. Era como se o escultor ti¬vesse posicionado sua imagem acima do mineral para tirar vantagem dele, para fazer parecer que era uma poça de sangue. Sangue humano. Não havia dúvida a respeito. - Uma cena de sacrifício - ele murmurou. - Um sacrifício meriah.
Pradesh aquiesceu. - No entanto não foi esculpido por nenhum na-tivo. Nunca houve uma tradição de escultura em pedra entre os Kóya. E olhe. Há entalhes mais antigos baixo.
Debaixo da imagem, Jack viu outra escultura, quase imperceptível. Era um agrupamento de círculos concêntricos, com cerca de um metro de diâmetro. No centro havia quatro traços paralelos partindo de uma linha, como a cabeça de um ancinho de jardim. Parecia que os traços de¬viam ser simétricos, com a mesma forma de ancinho do outro lado, mas a escultura sobreposta à escultura da cena de sacrifício a havia obscurecido.
Pradesh olhou bem de perto. - O símbolo do labirinto - ele murmurou. - Eles foram encontrados em outros lugares na Índia e na Ásia Central, alguns em cavernas. Os mais antigos são do período neolítico, com pelo menos quinhentos anos de idade. Muitos deles têm uma forma retilínea estilizada no meio, mas eu nunca vi um tão complexo como este.
Costas estendeu a mão e tocou a escultura. Ele olhou intensamente para Jack. - Corrija-me se eu estiver errado.
Incrível - sussurrou Jack. - O símbolo de Atlantis. - Ele ficara olhan-do para ele no dia anterior, sobre a capa da monografia em sua cabine no Seaquest II. Movimentou a luz para a frente e para trás. Isso criou uma imagem bizarra, quase holográfica, com o labirinto aparecendo e desaparecendo debaixo das imagens chocantes do sacrifício. Ele se perguntava se aqueles que haviam esculpido o símbolo bem antigo de uma civilização primeva seriam eles próprios intrusos, testemunhas de cenas primitivas de horror que algum tempo depois um artista iria algum dia esculpir em cima de seu símbolo sagrado, escondendo-o parcialmente. - Um labirin¬to, aquecido com sangue humano.
Posso ver mais. Muitos mais. - Pradesh avançou cuidadosamente pela passagem, de ombros encolhidos, e depois se agachou cerca de cinco metros à frente. Jack e Costas juntaram-se a ele, observando enquanto ele movimentava a tocha sobre as paredes. - Elas são do mesmo estilo que as imagens de sacrifício, mas não estamos olhando para narrativas aqui - ele disse. - Há um símbolo fálico, um pênis, o símbolo de Shiva. E na parede oposta vocês podem ver uma naja encaracolada, com a cabeça voltada para a entrada, a língua chamejante para fora. Este também pode ser um símbolo hindu, mas deuses-cobra também são relíquias de cultos pré-arianos. Vocês se lembram, perto da tumba de Bebbie, o medo que o Kóya teve do giringar, o espírito da naja da floresta? Esta escultura teria induzido neles o medo pelos deuses. Acho que estas duas esculturas são os guardiões da entrada, para manter as pessoas do lado de fora.
Eles avançaram alguns metros além das esculturas, e então Pradesh parou novamente, movimentando a luz de sua tocha pelo teto. Ele estava pintado de azul escuro, em alguns lugares a tinta era grossa como laca e em outros o teto estava remendado onde o pigmento se esmigalhara. - A cor de Shiva - murmurou Pradesh. - No imaginário hindu, a cor azul significa eternidade. - Ele estendeu a mão e tocou a rocha, depois esfregou os dedos onde um pouco de pigmento ficara grudado. - É lápis-lazúli. Era o que eles usavam para fazer pigmento azul. Eles o moíam até formar uma pasta. Vocês nunca viram algo tão precioso quanto o lápis-lazúli do Afeganistão comercializado aqui na selva, então o artista deve tê-lo trazido consigo.
Jack estendeu o braço e colocou a palma no teto, onde o remendo ainda estava tão grosso quanto esmalte. Ele lembrava aquilo que seu avô lhe dis¬sera sobre o pequeno elefante esculpido que estava em sua arca de objetos familiares. Pradesh também o vira. - Lápis-lazúli, a cor da imortalidade.
Eles mudaram de lugar. O corredor se abria para um aposento de cerca de oito metros de diâmetro. Estava coberto de esculturas, uma extraordi¬nária mistura de formas animais e humanas, símbolos estranhos de seres monstruosos. Pradesh movimentou sua tocha ao redor. - Reconheço al¬guns desses seres. Aqui está Vishnu, transpondo uma parede, vencendo um demônio. E Parvati, a mulher de Shiva, com seu olhar maravilhado, realçado com vermelho. E Padmapani, que transporta o lótus, com seu torso bamboleante. Supõe-se que ela irradia serenidade, tranquilidade.
- É um elefante - interrompeu Costas, muito excitado, apontando para um pilar esculpido como um tronco, com olhos bulbosos e orelhas se agitando no topo. - Estranho, entretanto - ele disse. - Com aquelas orelhas, eu juraria que era um elefante africano e não indiano. Os de tipo mais familiar para alguém do antigo Mediterrâneo, que pode tê-los visto no anfiteatro em Roma.
Pradesh assentiu com a cabeça, depois apontou para as duas outras es¬culturas em pilar que estavam ao lado. - Estas são como stupas budista, com touros em cima. E há outra, com uma roda em forma de raios. E olhem para a parede atrás de nós. Figuras aglomeradas, bodhisattvas, se¬res iluminados, usando turbantes, adornados com jóias e de bigodes. E olhem para as criaturas grotescas parecidas com anões. São figuras yaksas, masculinas, e yaksis, femininas, deidades da natureza de religiões antigas, muito mais velhas que o hinduísmo. O grande que se parece com um Buda é Kubera, um yaksa que foi venerado como deus da riqueza, o espí¬rito guardião de tesouro.
Todas forão esculpidas pela mesma mão, - disse Jack, enquanto olha¬va ao redor. - O mesmo estilo, as mesmas técnicas.
As figuras me parecem familiares, mas o estilo não, - Pradesh mur-murou. - Não vi nada disso no sul da Índia.
É arte reminiscente de Gandharan - disse Jack. - A arte da anti¬ga Báctria, o reino fundado pelos sucessores de Alexandre, o Grande no Afeganistão. Uma fusão de estilos indiano e grego.
Mas aqui, não se trata tanto de uma fusão de estilos - Pradesh acres¬centou. - É uma fusão de imagens indianas com um estilo estrangeiro. É como se alguém de uma tradição artística completamente diferente esti¬vesse tentando copiar o que viu na Índia, mas usando suas próprias con¬venções.
Jack passou os dedos em cima do tronco de elefante. - Este é tecnica¬mente um trabalho habilidoso, mas não notável. Se eu fosse fazer uma comparação com o mundo greco-romano, diria que ele foi feito por um escultor sob encomenda, o tipo que faz sarcófagos, altares domésticos, inscrições, decoração arquitetônica rotineira. Mais um artesão do que um artista.
Há algo que não está certo em tudo isso - Pradesh disse, olhando em volta.
Você quer dizer que o lugar inteiro está fora de sincronia com a sel-va?, - disse Costas. - Aquilo que você estava dizendo antes. Os espíritos, os deuses da selva. O Kóya não tem nenhuma necessidade de representar seus deuses. Eles já os vêem.
Isso é um problema. Mas mesmo que se aceite a idéia de que toda essa adoração animista hindu e budista realmente aconteceu aqui, ainda não está certo.
Continue - disse Jack.
Quando fui indicado para a Agência Central de Mapeamento e Le-vantamento Topográfico da índia dois anos atrás, meu primeiro posto foi em Badami, um complexo de cavernas a aproximadamente duzentas mi¬lhas a oeste daqui. Eu tinha estudado a antiga tecnologia de minas para minha tese de engenharia, e nós estávamos avaliando a segurança das cavernas. Elas são famosas por suas pinturas e esculturas, principalmente do século 6 d.C. Há cenas mitológicas familiares, como esta aqui, Vishnu andando a passos largos pelo universo. Mas em Badami elas são parte de um todo coerente que flui para outras cenas, uma iconografia fluente e confiável. Aqui elas são fragmentadas, como ingredientes não misturados. O escultor em Badami conhecia sua mitologia e acreditava nela. Aqui elas se parecem com uma coleção de instantâneos turísticos. Não há nenhu¬ma alma nelas, nenhuma profundidade. O hinduísmo é inclusivo. Vorazmente inclusivo. Ele aceita todas as formas de deuses diferentes. Mas há um pouco demais. Está muito desarticulado. Sou um hindu praticante e posso lhes dizer: isso não parece certo.
É como se alguém quisesse manter as pessoas do lado de fora, mas estivesse protegendo suas apostas, usando todas as deidades que achava que as pessoas poderiam temer - disse Costas.
Até mesmo a estranha imagem parta - Jack murmurou.
Talvez houvesse algo para esconder - disse Pradesh.
Costas apontou para a escuridão da parede do outro lado, onde apare¬ciam fendas escuras entre as formas dos seixos. - Outra câmara, talvez? Aquele deus do tesouro poderia ser o último protetor. Se ele é um deus de religião mais antiga, talvez o escultor entendesse que as pessoas aqui temeriam os deuses antigos mais que qualquer coisa do hinduísmo e do budismo. Quem quer que tenha feito isto deve ter tido algum contato com as pessoas do local. Ele as viu realizar sacrifícios humanos. E deve ter-se alimentado, de alguma maneira.
Pradesh acenou com a cabeça. - Tradicionalmente, o Kóya da aldeia Rampa deixa oferendas de comida aqui, diariamente, do lado de fora. Eles pensavam que o deus Rama ficava aqui dentro, encurralado pelos espíritos da selva. E desde que fosse alimentado ele permaneceria dentro. Todas as noites, as oferendas de comida desapareciam. O muttadar provavelmente vinha à noite e levava embora qualquer resto deixado pelos animais, para manter a simulação. E os ratos costumavam crescer aqui até ficar de um tamanho enorme. A lenda era que se uma oferenda deixasse de ser feita, Rama sairia e descarregaria sua vingança sobre as pessoas da selva, assumindo o disfarce do konda devata, o espírito do tigre, transpassando-os com a sua grande espada quebrada.
Espada quebrada?, - perguntou Costas. - Isso me faz lembrar algu-ma coisa, Jack.
Se nós formos buscar a história por trás da mitologia, o ritual tem sentido - Pradesh continuou. - Nos tempos antigos, Rama entra na selva, o príncipe que mais tarde é divinizado. Mas as pessoas da selva resistem à intrusão do hinduísmo em seu mundo espiritual. O santuário se torna um foco de sua força cultural. Eles puseram Rama lá dentro, o intruso. Seus deuses o prenderam. Assim, para os líderes rebeldes em 1879, este lugar era um ponto de encontro, um foco de desafio contra estranhos. Eles assassinam os guardas policiais aqui, sob a forma de sacrifício. Mas na mente do Kóya, Rama foi depois aprisionado aqui dentro pelo terre¬moto, e os oferendas de comida foram cessando gradualmente. E algo foi embora, o vélpu que desapareceu em 1879. Não era Rama com a aparência do konda devata que eles temiam agora, mas o próprio konda devata, o espírito do tigre da selva.
Assim, onde está a imagem de Rama em tudo isso? - perguntou Costas, olhando ao redor. - Este não é supostamente seu santuário?
Pradesh fez uma pausa. - Na crença hindu, Rama era o descendente de uma antiga dinastia solar. Ele poderia ser representado por aquela ima¬gem de Vishnu, ou por uma escultura do sol. Talvez só precisemos olhar mais de perto.
Jack estava olhando atento o trabalho de cinzel no pescoço do deus de Kubera, percebendo técnicas que pareciam notavelmente familiares. Deu um passo para trás, enquanto movimentava sua tocha ao redor do aposento, encontrando detalhes, demorando-se neles, vendo o que toda a educação que recebera queria negar, mesmo que os anos de descobertas incríveis como arqueólogo o fizessem saber que o que via estava dentro do campo das possibilidades. Sua mente voltou para o Egito, para a des¬coberta que Hiebermeyer fizera do Périplo, para os primeiros vislumbres desse rastro atrás do qual estavam. Uma descoberta extraordinária estava começando a tomar forma diante de seus olhos, uma impressão do passa¬do que estava ficando mais real a cada segundo que passava.
Qual é a data de tudo isso? - perguntou Costas.
Os yaksas e yaksis, como a naja, a serpente (divindade da mitologia hindu e budista), são ídolos dos espíritos da terra, os sobreviventes de uma religião antiga da índia, antes que o hinduísmo e o budismo se im- pusessem - respondeu Pradesh. - As primeiras esculturas yaksas datam do século 3 a.C., mas estas que estão aqui poderiam ser do século 1 a.C., possivelmente do século 1 d.C. Isso se deu quando os deuses do início do hinduísmo, estes que vocês veem aqui, começam a aparecer. Depois disso, os deuses hindus reinam supremos nos cultos nativos, absorvendo- -os ou extinguindo-os. E não há nenhuma imagem de Buda aqui, mas há símbolos budistas, o touro no pilar, a roda feita de raios. É um pou¬co como o início do cristianismo, quando se usavam símbolos antes que Cristo fosse representado de maneira antropomórfica.
-Assim, isso poderia ter sido, digamos, no final do século 1 a.C. - dis¬se Costas.
Isso combinaria com o estilo da escultura, se estivéssemos procuran¬do a influência greco-romana - Jack disse. - Há detalhes estilísticos e téc¬nicos que eu poria no final do período republicano, se isto fosse romano.
Temos que eliminar o óbvio - disse Pradesh. - Do local romano até Arikamedu são apenas quatrocentas milhas ao sul daqui. Nenhum roma¬no de Arikamedu ia entrar na selva sem uma razão muito boa, mas temos que considerar essa possibilidade.
Jack sacudiu a cabeça. - Não vejo um escultor romano em Arika-medu. Lá existem somente edifícios de tijolo de barro, de madeira, são puramente utilitários. Até mesmo em Berenike, no Mar Vermelho, difi¬cilmente havia alguma coisa feita de pedra, quase nada. Não havia nada para um escultor fazer.
Talvez alguém que tivesse sido escultor, mas que mudou de carreira e se tornou marinheiro ou comerciante - disse Costas. - Talvez ele tivesse vindo para a Índia e acabou se tornando um nativo, encontrou uma toca na selva, redescobriu uma velha paixão pela arte de esculpir. Você sempre diz isso, Jack. Qualquer coisa é possível.
Jack hesitou, pensando profundamente. - Esculpir, trabalhar com a pedra, era uma profissão hereditária, e você não mudava de profissão tão facilmente no mundo antigo. E se nós estivermos falando da Roma do tempo de Augusto, teria sido loucura partir. Augusto reconstruiu a cidade com pedra. Foi um dos maiores programas de reconstrução da história. Ele fez uma pausa, depois expressou uma suspeita que tinha lhe ocorrido só alguns momentos atrás. - Mas você pode ter acertado alguma coisa. Havia uma ocupação na vida romana que aceitava homens com todo tipo de habilidades, de qualquer profissão.
O exército - disse Pradesh.
Cidadãos-soldados - murmurou Jack. - Mas precisamos pensar cui-dadosamente na data. Na época de Augusto, o exército estava se tornan¬do profissional, recrutando homens de dezoito anos para um serviço de vinte anos. Em busca de um verdadeiro cidadão-soldado, nós precisamos voltar atrás no tempo, para a época das guerras civis, e antes disso para a república romana, quando homens preparados de qualquer idade se ofe¬receriam para um período mais curto, normalmente não mais que seis anos. Estou falando da metade do século 1 a.C. ou até de antes. Várias décadas se interpõem antes do principal período romano em Arikamedu. E há outro problema. Não há nenhuma evidência, de todo modo, de que os romanos tivessem um dia enviado legionários para a Índia.
Talvez um mercenário? - sugeriu Costas. - Ou um desertor? E aqueles oficiais ingleses e franceses dissidentes no século 18 na índia, co¬mandando exércitos nativos e se comportando como príncipes. Será que a mesma coisa não teria acontecido no período romano?
Jack movimentou a luz nas paredes. - É possível. O Périplo menciona guardas armados em navios, para defesa contra piratas. - Mas Jack sabia para o que eles estavam olhando, com certeza absoluta. A voz dele soou estridente por causa da excitação. - Ou qualquer outra coisa. Um prisio¬neiro que teria fugido da guerra.
Costas começou a andar ao longo do outro lado da câmara, examinan¬do as sombras profundas ao redor dos seixos, ao lado da escultura de Kubera. Ele se inclinou sobre uma, e pousou a mão na barriga do deus. - Eu tinha razão. Há outro túnel aqui. Parece que há outra câmara lá atrás.
Um grito abafado veio do corredor da entrada do outro lado, algu-mas palavras urgentes em hindi. Pradesh gritou algo em resposta e então olhou para além de Costas. Consultou o relógio e sacudiu a cabeça com frustração. - Tenho que ir. O sargento Amratavalli voltou do reconheci¬mento que fez. Preciso me reunir com ele. Deixarei que fiquem aqui o máximo que for possível, mas não temos mais que uma hora. O piloto do helicóptero não vai demorar. Ele é um amigo do tempo do exército, não vai querer que atirem novamente em seu aparelho. Precisaremos partir antes que mais alguns maoístas cheguem. Boa sorte. Pradesh tirou o re¬vólver do coldre e desapareceu voltando para a entrada. Jack entrou na frente de Costas na fenda entre os seixos, e Costas quase ficou entalado na fenda para ir atrás de Jack. A umidade deixava a pedra muito lisa, e isso agiu como um lubrificante, e ele conseguiu forçar a passagem de sua ampla figura pelo buraco. Jack levou a tocha para trás, para olhar Costas, iluminando a sujeira grossa e marrom no que sobrara de sua camisa.
- Está destruída - Costas murmurou tristemente. - Completamente arruinada.
Jack movimentou a tocha ao redor. Eles estavam dentro de outra câ¬mara, aproximadamente do mesmo tamanho da primeira, mas dessa vez era diferente. Alguém tinha feito enormes esforços para desbastar e alisar as características naturais dos seixos, para criar superfícies planas, como telas esculturais. Jack estava ciente das formas atrás dele, mas manteve a tocha focalizada na parede que ele vira em primeiro lugar, logo que en¬trou na câmara. Sua mente ainda estava sintonizada com as imagens vistas antes, de deuses hindus e demônios, esculturas arrojadas que podiam ser vistas por todo lado. A parede à frente era formada por uma pedra maciça de pelo menos cinco metros de comprimento e três metros de altura. Ele olhava fixamente, abismado. As imagens eram totalmente diferentes das encontradas na primeira câmara. Relevos sutilmente esculpidos cobriam quase a parede inteira. Havia soldados, armas, a cena era contínua, uma narrativa. E essas imagens nada tinham a ver com mitologia hindu. Era como se eles tivessem entrado em um museu de arte romana. Em um aposento criado no coração da própria Roma. - Meu Deus - ele sussurrou. - Isto se parece exatamente com a batalha de Issus. Uma das mais famosas batalhas de Alexandre, o Grande, contra os persas.
Costas veio para o lado dele. - Isso foi no século 4 a.C., certo? Você mencionou prisioneiros de guerra, Jack. Estou pensando na batalha de Carrhae, século 1 a.C. É para lá que tudo isso está nos levando?
A mente de Jack estava à toda. - Alexandre devia estar na mente dos legionários enquanto eles marchavam para Carrhae. Crasso, provavel¬mente, se considerava um Alexandre renascido, e pode ter usado Issus como um chamariz para o reagrupamento das tropas. E quando eles per¬deram em Carrhae, a vitória de Alexandre contra os persas deve ter atin¬gido um status místico. Acrescente a isso a evidência da expedição oriental de Alexandre vista pelos prisioneiros romanos que escaparam, os altares descritos naquele fragmento do Périplo. Alexandre devia ser um perma¬nente pano de fundo para aquilo que podia ter acontecido com eles. Uma aventura que podia ter levado um cidadão-soldado de Roma para Car¬rhae, depois para a prisão em Merv, e então para o leste da Ásia Central, na rota seguida por Alexandre e seus macedônios três séculos antes. E depois descendo aqui para a selva, no sul da Índia.
Mas como você sabe que esta imagem é a da batalha de Alexandre?
A batalha de Issus está no mosaico de Alexandre, em Pompéia - disse Jack. - Provavelmente esta é a maneira como a batalha sempre foi descrita. A esquerda está Alexandre, de cabelo ondulado, movendo-se ra¬pidamente em meio à batalha; montado em seu cavalo, Bucéfalo, usando um peitoral reproduzindo a Medusa. Ele está localizado abaixo de seu oponente, Dario, que sobressai entre os soldados persas, olhando para Alexandre, embaixo. Há muitas tropas persas, os macedônios são em me¬nor número. Esse é um modo de enfatizar a grandeza da vitória de Ale-xandre, mostrando-o cavalgando contra o exército do próprio deus-rei. E Dario está correndo, ordenando a seu cocheiro que chicoteie os cavalos enquanto ele tenta escapar, olhando de volta para Alexandre com medo nos olhos. Seu braço direito está estendido para Alexandre, como se ele tivesse acabado de atirar uma lança, ou talvez num gesto de obediência. Estaria reconhecendo o vencedor.
Então, como é possível que um mosaico de Pompeia seja reproduzi¬do aqui por um escultor, no cerne da escuridão da Índia central?
Eis minha teoria, Jack murmurou. - O sujeito que esculpiu isto era um soldado que em sua vida pregressa, antes de ser soldado, era escultor. Há muita técnica nessa escultura, e ela vem diretamente da escola de es¬cultura funerária romana do século 1 a.C. Estou falando de escultura para clientes de meios modestos, lajes em relevo para pôr diante das urnas de cremação, uma ou outra cena maior, para colocar num sarcófago. Mas até mesmo um escultor de pouca importância teria familiaridade com as grandes obras de arte. Roma estava inundada de arte pilhada, depois da conquista da Grécia no século 2 a.C. O mosaico de Alexandre foi feito mais ou menos naquela época por um cliente rico de Pompeia. Mas até esse mosaico era uma cópia de uma pintura famosa feita pelo artista gre¬go Apeles ou Philoxenos de Eretria. Plínio, o Velho o menciona em sua História natural. A pintura deve ter ficado exposta ao público em Roma, e quem esculpiu a cena aqui deve tê-la estudado durante seu aprendizado.
Costas colocou a mão em cima da escultura. - Mas estes soldados não me parecem gregos. Nem persas.
Jack movimentou a tocha pela parede. - Você tem razão. Os soldados que estão à esquerda são romanos, não gregos. Eles tinham cotas de ma¬lha de ferro e capacetes, os primeiros que apareceram. Estão carregando o pilum, a lança romana, e ogladius, a espada de ataque. Eles são os legioná¬rios romanos do século 1 a.C., época de Crasso.
Estou conseguindo ver numerais romanos. - Costas olhou atenta-mente de perto para um estandarte empunhado acima dos soldados. - Os símbolos XV - A Décima Quinta Legião - murmurou Jack. - Essa é a legião men¬cionada na inscrição do Uzbequistão, aquela que o tio de Katya identifi¬cou. O escultor reproduziu a cena da batalha de Issus, mas substituiu os gregos pelos romanos. Este deve ser o exército romano que marchou para a batalha em Carrhae.
E o sujeito alto no centro? Onde Alexandre deveria estar? Aquele é Crasso, o general romano?
Jack sacudiu a cabeça. - De jeito nenhum. Os legionários que sobre¬viveram à prisão em Carrhae e fugiram para o leste deviam ser os mais fortes entre os fortes, provavelmente até teriam sido veteranos das cam¬panhas de César na Gália e na Bretanha alguns anos antes. Mas Crasso era um líder incompetente, em comparação com o venerado César, e os soldados deviam zombar dele. Um veterano de Carrhae nunca colocaria Crasso na posição de Alexandre. E duvido que seja um autorretrato, do próprio escultor. Esse não era o comportamento de um legionário roma¬no. Sua identidade estava com sua legião, com seu contubernium. Mas por causa desse vínculo, os amigos íntimos podiam ser reverenciados. Acho que estamos diante de algo assim. Os membros de um contubernium cha¬mavam-se entre si de irmão, frater. Aquele personagem não está vestido como um general. Talvez ele seja um optio, um líder de seção, ou um centurião, mas nada mais. Ele é mostrado como um primus inter pares, um líder certamente, mas definitivamente um dos homens.
Mas ele é imponente - disse Costas.
Jack aproximou a tocha da escultura. - Olhe novamente. Não, ele não é imponente, é apenas alto. As proporções anatômicas são as mesmas dos outros, ele só tem membros mais compridos. E olhe para o rosto dele. Os escultores funerários romanos produziam grande quantidade de ima¬gens, que ficavam no estoque, mas quando chegava ao rosto, sempre esculpiam figuras atuais. Olhe para estes soldados. Posso ver rostos da Itália central, de homens de Campânia, Lácio, Etrúria, homens fortes, homens grisalhos das montanhas, fazendeiros, pescadores. Essas são reproduções de indivíduos reais conhecidos do escultor. Você pode ver isso nas características peculiares, na humanidade. Olhe para o homem mais alto. O rosto dele é mais longo e magro, com maçãs do rosto mais salientes. Seu cabelo está amarrado atrás, sob o capacete, num rabo-de-cavalo, e ele usa uma barba. Você não vê isso em nenhum dos outros legionários.
Ele é um gaulês, talvez dos Alpes, quem sabe um dos inimigos anteriores recrutados por César. E olhe para a expressão dele, a dureza, a compleição forte, há até um traço de humor nesses olhos, o humor negro do soldado. Há muito para admirar naquele rosto. Ele deve ter sido amigo íntimo do escultor, seu frater.
Parece que o escultor conhecia algo sobre perspectiva, em todo caso - disse Costas. - Contei uma dúzia de legionários aqui embaixo ao redor do homem alto, mas acima deles parece que há uma legião inteira em baixo relevo, um grupo separado de homens no meio do ar.
Foi isso que me chamou a atenção - disse Jack. - Mesmo antes que eu olhasse para os inimigos deles.
Explique-se.
Aquela multidão de soldados acima. Não é uma cena distante, um modo grosseiro de mostrar perspectiva. É uma cena em outra dimensão. É uma legião de fantasmas.
Uma legião de fantasmas?
Aquele estandarte que você percebeu, o da Décima Quinta Legião. Ele não está sendo carregado pelos soldados que estão embaixo, os solda¬dos da vida real. Está sendo levado pela legião de fantasmas. E olhe para a escultura no topo do estandarte. É a aquila, a águia sagrada. Agora olhe novamente para os soldados da vida real que estão embaixo, os doze. Eles não têm nenhum estandarte. Então, isso é estranho. Um escultor romano que aprendeu todas as regras e convenções da iconografia nunca teria fei¬to isso. Uma legião na batalha sempre tem sua águia. Para um escultor que também tivesse sido soldado, não representar isso é quase inimaginável.
Estes eram os legionários que perderam sua águia em Carrhae - murmurou Costas.
Precisamente. E é por isso que esta não é uma representação de Car¬rhae. É outra batalha. Uma batalha posterior. A iconografia está perfeita. Os soldados acima, a legião de fantasmas, são os homens que caíram em Car¬rhae, com sua águia. Os homens abaixo são os sobreviventes. É isso que acho. Estes são os prisioneiros que fugiram de Merv, lutando em outra batalha, a sua própria, distante, em direção ao leste, em um lugar no qual a lenda das conquistas de Alexandre deviam estar em sua mente, algo que deve ter levado o escultor a usar a batalha de Issus como modelo.
Mas eles estão vestidos com roupas completas de legionário - apon¬tou Costas. - Como eles podiam ter mantido tudo aquilo de Carrhae, depois de anos de prisão?
Depois de fugir, eles devem ter tido que se armar no caminho, apa-nhando tudo o que pudessem encontrar. Mas em sua mente, eles eram ainda legionários romanos. Quando entravam em batalha, se viam desse modo. Então foi dessa forma que o escultor os representou.
Certo. Agora, os outros guerreiros. O inimigo.
Jack levou a tocha para a direita. Era uma imagem que parecia incrivel¬mente em desacordo com os legionários romanos. Jack teve uma súbita lembrança de ter estado com Rebecca diante de imagens quase idênticas no Museu Britânico, uma exposição itinerante a que ele a levara para ver alguns dias depois de seu primeiro encontro em Nova York. Ele passou lentamente o feixe de luz pela imagem inteira, voltando a demorar-se no personagem central, aquele que se opunha ao legionário alto. Examinou atentamente. Não há nenhuma dúvida quanto a isso, pensou.
Posso estar errado acerca disso - murmurou Costas, - mas será que estamos olhando para os Guerreiros de Terracota?
Jack respirou fundo, com o coração batendo acelerado. - Olhe para a armadura. Ela é segmentada, como escamas de peixe. E olhe para as armas. Lâminas longas e retas, alabardas elaboradas, arcos e flechas característicos. No mundo antigo, só um exército usou armaduras como esta. E esta não é apenas uma armadura chinesa genérica. Os detalhes aqui são muito espe¬cíficos, minuciosamente observados. O escultor tinha sido soldado e sabia o que estava procurando. O que nós temos aqui é uma representação do século 1 a.C., de soldados romanos confrontando os guerreiros que ves¬tiam a armadura da Dinastia Qin, do primeiro imperador da China, cerca de dois séculos completos antes da época de Augusto.
Como os romanos poderiam ter visto os Guerreiros de Terracota?
Não os Guerreiros de Terracota. Guerreiros reais. Lembre-se de nosso escultor romano, da tradição do retrato. Se puder, ele vai mostrar as pessoas reais como indivíduos. Eu vi os Guerreiros de Terracota com Rebecca. Há vários tipos faciais, mas eles só dão a ilusão de ser indivídu¬os. São como um exército reunido para uma filmagem, com suficiente individualidade para dar a autenticidade necessária, mas não resistindo a um exame minucioso de perto. E os rostos são de um tipo de chinês do centro, bastante uniforme, arredondado, sem muita distinção étnica. Agora, dê uma olhada nestes sujeitos. - Jack movimentou a tocha ao lon¬go de figuras que pareciam estar se empurrando para ocupar uma posição no primeiro plano, de pernas separadas, armas prontas, olhando para fora. Os rostos eram duros, carrancudos, com intensos olhos e bigodes longos, os cabelos trançados no alto em topetes.
- Eles se parecem o pai de Katya - murmurou Costas. - Um rosto que está muito presente em minha memória. Como o de Genghis Khan.
Exatamente - Jack disse. - Estas são pessoas das estepes, nômades, das periferias do norte da China. O próprio povo do primeiro imperador. Os guerreiros que o acompanharam à vitória na China deviam se pare¬cer com estes. E são indivíduos reais. Mas não são como os romanos do outro lado, onde se pode ver afeto, humanidade. Estes são rostos que o escultor encontrou na batalha. Você se lembra dos rostos das pessoas que tentaram matá-lo?
Examine a figura central - Costas murmurou.
Jack apontou a tocha novamente para a figura com a cabeça voltada para trás, em direção ao legionário alto. A figura estava montada num ca¬valo, um corcel musculoso com olhos largos que pareciam fitar acima, os céus. O escultor tinha tentado mostrar o cavalo torcendo-se para o lado, da mesma maneira que a carruagem de Dario foi mostrada, ao se desviar dos macedônios no mosaico de Issus. A perspectiva ali era desajeitada, mas o sentido do movimento era perceptível. O cavalo e os guerreiros circunvizinhos estavam borrados com um vermelho embotado, como se alguém tivesse pincelado tinta em cima da pedra. Costas esfregou com um dedo a pintura, depois cheirou a mancha úmida grudada nele e disse: - Uma base ferrosa, como o ocre.
Jack olhou de novo para a parede. - O escultor poderia ter composto outros pigmentos de afloramentos minerais encontrados na selva, da mes¬ma maneira que os Kóya fazem hoje para pintar o corpo. E nós sabemos que ele tinha lápis-lazúli para pintar o teto. Mas parece que o vermelho foi a única cor que ele usou aqui. Isso dá uma impressão poderosa, como olhar para uma projeção em preto e branco através de um filtro verme¬lho. Esta era uma cena reduzida a seus elementos essenciais, enrijecida na consciência dele. A individualidade dos rostos, o detalhe das armas, a armadura. É a cor de sangue.
Uma memória de batalha.
E daquele guerreiro no cavalo - disse Jack. - Olhe para o adorno de cabeça dele. No mosaico de Alexandre, Dario usa um capuz persa, erguendo-se ao redor do queixo e bem alto sobre a cabeça. Provavelmen¬te foi feito de feltro, como uma proteção contra o sol e o frio da estepe. É com isso que essa cobertura de cabeça também se parece, até você exami¬ná-la de perto. - Ele deu a tocha a Costas, que a segurou acima da cabeça, com o feixe luminoso dirigido para baixo, para a parede, acentuando as sombras. - Eu posso ver olhos - ele murmurou. - E caninos, enormes. É a cabeça de um animal. Um leão.
Jack sacudiu a cabeça. - Não, um tigre.
Um tigre.
O tigre do sul da China - disse Jack. Há só umas poucas dúzias que sobraram em lugares selvagens. Na época do primeiro imperador, eles provavelmente estavam espalhados.
Costas ergueu mais alto a tocha à esquerda, até o nível da legião de fantasmas, perto do teto da caverna. Havia outra escultura em relevo acima dos soldados, um disco com cerca de um metro de diâmetro que continha dois rostos esculpidos. Costas olhou atentamente para eles. - O que você estava dizendo antes, sobre o caminho para Arikamedu - mur¬murou ele. - Sobre a chegada do cristianismo a essa região. Isso se parece tremendamente com uma mãe e uma criança.
Eu a vi assim que entramos aqui - disse Jack. - Quis resolver esta cena inteira antes, mas agora tenho certeza disso. Era ainda muito cedo para o cristianismo. Acho que este lugar foi esculpido em alguma época entre as décadas finais a.C., e que aquele disco foi esculpido pela mesma mão, não foi uma adição posterior. E esses dois retratos dentro dele tam¬bém são de pessoas reais. Você pode ver que eles foram esculpidos com um cuidado especial. A mulher não é precisamente bonita, não é? Um pouco pesada ao redor das mandíbulas, um nariz em forma de gancho. O menininho tem orelhas protuberantes, e seus olhos são muito juntos. Mas esses detalhes estão esculpidos com cuidado amoroso. Esta era uma mãe com seu filho, que ele adorava, pessoas reais em sua memória.
Sua esposa e o filho - murmurou Costas.
O disco é outro tipo de escultura romana, frequentemente funerária -, disse Jack. - Veja como o escultor a colocou lá em cima, no mesmo plano que a legião de fantasmas, como se a mulher e a criança estivessem no céu. É como se ele reconhecesse a verdade. Talvez seu anseio por eles o tenha trazido até aqui, uma viagem longa e difícil através de um con¬tinente para procurar os de sua própria espécie. Talvez tenha encontrado romanos em Arikamedu, e eles lhe contaram o que ele sabia ser verdade, que a vida que abandonara anos antes do outro lado do mundo havia de-saparecido para sempre, que aquela era a única rota deixada para ele se unir com seus familiares.
Você realmente acredita que este era um dos legionários de Crasso?
Jack acenou com a cabeça. - Décadas depois do momento em que ele viu sua esposa e o filho pela última vez, quando marchou para fora de Roma, indo para Carrhae. Trinta, trinta e cinco anos se passaram. Roma foi devastada pela guerra civil. Ele descobriu isso em Arikamedu, antes de se retirar para este lugar. Ele tem a esperança de que seu filho tenha seguido seus passos como escultor, ou vivido e morrido como um legio¬nário. - Jack olhou para o disco. - Mesmo se eles ainda estivessem vivos, ele sabia que a imagem em sua mente era de familiares queridos, desapa¬recidos havia muito tempo, que só sobreviveram na memória dele. De pé aqui, cinzel na mão, dois mil anos atrás, ele sabia que nunca voltaria. Era mais fácil pensar neles como estando no Elísio. E para o soldado que tinha deixado a família para ir para a guerra, havia uma catarse nesta cena.
Jack se voltou para Costas. - Ele e seus camaradas lutaram uns pelos outros, pela honra da legião. Mas eles também lutaram por sua famí¬lia. Colocar o disco ali, acima da cena de batalha, mostra que ele não os abandonou. Dava-lhe confiança, nos momentos esmagadores de dúvida. - Jack se perguntou se John Howard também teria visto aquela cena, na¬quele dia em 1879 em que ele e Wauchope se depararam com esse lugar. Seu próprio filho, seu menininho, deixado para trás com a mãe, uma imagem que só se manteria viva, para sempre, na memória dele. Howard teria sentido isso? Teria visto a imagem de uma morte profetizada? Era isso que ele temia acima de tudo, medo pelo próprio filho, tão longe dele, ao se virar para partir deste lugar, fugir desta escuridão?
Costas movimentou a tocha para baixo do disco e ao longo do braço do guerreiro chinês, iluminando-o estendido para o legionário alto. Entre as duas figuras, a pedra estava enegrecida e com sulcos no lugar onde a água gotejara sobre a pedra de algum ponto acima, corroendo a escultura. Moveu a tocha para lá e para cá. - Sua mão, onde ela aparece como se o guerreiro estivesse levantando um punho fechado para os romanos. - Ele está na verdade usando um tipo de luva. Se eu aproximar a luz, você vai ver que ele está segurando uma espada.
Jack seguiu o feixe de luz. Olhou para a mão, e sua mente se acelerou. - É uma luva de punho largo e comprido - ele disse, com voz tensa. - É uma espada indiana com a luva integrada. Uma pata.
- Você quer dizer como aquela que você herdou?
Jack pegou a tocha de Costas e moveu a luz em várias direções. De re¬pente, ele a viu, as orelhas características, a boca, os dentes caninos retos. Sua voz era apenas um sussurro. - É idêntica. O romano deve ter tirado isto do guerreiro nessa batalha. E deve tê-la trazido para cá. E então Ho¬ward a pegou naquele dia em 1879. - Estendeu a mão e tocou o punho esculpido, da mesma maneira que tocara a pata verdadeira em sua cabine no Seaquest II no dia anterior, passando os dedos por cima das característi¬cas tão familiares desde que seu avô a dera a ele quando ainda era menino. A história parecia ter-se encurtado de repente, e assim lá estava ele, em pé junto da forma fantasmagórica do homem que esculpira aquela imagem, um homem velho dificilmente reconhecível como romano, desbastando e alisando a pedra, sobrevivendo suas semanas e dias finais naquele local, finalizando a imagem de seus entes queridos antes de ir se unir a eles no Elísio. Jack se lembrou dos fragmentos do Périplo, os primeiros vislum¬bres da incrível história que era exibida ali, entre as sombras daquela pa¬rede. Era tudo verdade.
Ouviram um ruído e uma imprecação, e Pradesh apareceu ao lado de¬les, de revólver em punho. Ficou ali parado, enraizado no lugar, olhando fixamente, balançando-se ligeiramente. - Meu Deus - ele sussurrou.
Você quer um resumo? - perguntou Costas.
Nós não temos tempo. Meu sapador diz que há um grupo de maoístas vindo por este caminho. Contou quinze deles. Estão distantes daqui somente uns vinte ou vinte e cinco minutos. Já chamei o helicóptero. Temos que nos mandar daqui. Coloquei um pouco de explosivo C-4 na entrada do santuário. Ele vai explodir e fechar a entrada, mantendo este lugar seguro até que possamos voltar para cá.
Cinco minutos - Jack disse apressadamente, pegando sua máquina fotográfica.
Nada mais que isso. - Pradesh olhou de novo para a escultura, com um olhar de absoluta surpresa e depois se abaixou, voltando pelo cor¬redor. Jack passou a tocha para Costas. - Feche os olhos. Estou usando flash. - Começou a fotografar metodicamente a parede, esperando alguns segundos entre cada foto para recarregar o flash. Costas escorregou e caiu para trás, praguejando baixinho ao se endireitar. - Mantenha o feixe de luz na escultura - disse Jack com urgência. - Preciso ver o que estou fo¬tografando.
Acho que você gostaria de ver com o que me choquei.
Jack se virou e prendeu a respiração. Tinha percebido algumas formas atrás deles quando entraram na câmara e supôs que fossem seixos. Mas aquilo tinha sido feito pela mão do homem. Era uma forma grande e retilínea, com cerca de dois metros de comprimento e um metro e meio de altura, esculpido na pedra natural. Os olhos de Jack moveram-se rapidamente por ela, medindo, calculando. Ele começou a sorrir, sacudindo a cabeça. Era do tamanho certo, com as dimensões certas. Viu que a super¬fície superior era uma tampa de pedra. - É um sarcófago -, ele exclamou. - Você achou o sarcófago dele. Este lugar não era um santuário. Era uma tumba.
Costas passou os dedos ao longo do encaixe debaixo da tampa. - As¬sim, nosso escultor esculpe seu próprio caixão, depois a cena funerária naquela parede. Olha pela última vez a imagem daqueles que ama, depois entra no sarcófago e puxa a tampa por cima de si.
O último ato de força executado pelo mais forte entre os fortes, um legionário que sobrevivera às pedreiras persas em Merv.
Sopra a vela, deita-se e fecha os olhos, corri aquela imagem final im¬pressa em sua mente.
Ele está de volta à Roma, com sua esposa e o filho -, murmurou Jack. - Esquecido de que estava no outro lado do mundo, morrendo len¬tamente num buraco do inferno na selva do sul da Índia.
E ele ainda está aí dentro.
Jack olhou para a tampa. Havia algo estranho naquilo. Ele se inclinou sobre ela. O arenito estava incrustado com uma camada de material trans¬lúcido, duro como resina, evidentemente um depósito de calcita que se formara durante os séculos, quando a condensação gotejara em cima da tumba. No centro havia uma depressão na camada sobressalente, como se algo tivesse sido removido. Jack aproximou a tocha bem perto. Uma cama¬da fina cobria a depressão e a formação mais grossa a cercava, mostrando que aquela parte tinha sido removida décadas atrás, talvez um século ou mais. Ele estava de pé atrás e olhava para a forma. É claro. Vinte de agosto de 1879. - Era aqui que estava a manopla - ele sussurrou. - Dá para ver a for¬ma do punho, e a lâmina da espada, quebrada abaixo do cabo.
Costas sentiu a umidade da pedra. - É assombroso que qualquer lâmi¬na tenha sobrevivido desde a Antiguidade.
Se fosse aço chinês de primeira qualidade, cromo banhado, então seria possível.
Chinês - murmurou Costas. - Você realmente acha isso?
Meu avô disse que a pata feita antigamente tinha uma lâmina, mas que já estava quebrada quando Howard a achou. Howard removeu-a e atirou o pedaço quebrado no rio Godavari depois que eles saíram da sel¬va. Ele só conservou a luva.
Parece estranho ele tê-la levado - disse Costas. - Este lugar era um santuário dos Kóya, e talvez a manopla tenha se tornado um dos objetos sagrados deles, um desses vélpus.
Ele e Wauchope eram soldados, lembra-se? Soldados em primeiro lugar, engenheiros em segundo, antropólogos num terceiro lugar mais distante. Eles tinham sido treinados para lutar com a espada. Deviam ter suas próprias armas, mas Howard conseguiu outra lâmina, uma quebrada mesmo. Numa briga súbita, eles podiam não ter tempo nenhum para recarregar os revólveres, e duas lâminas era melhor que uma. Já foi um pequeno milagre eles terem chegado a este lugar distante sem ser atingi¬dos, e eles deviam estar bem apreensivos. Howard tinha que pensar na própria sobrevivência, na da esposa e da criança. No que diz respeito à cultura local, ela não devia ter prioridade na lista deles. Provavelmente tiveram pouco tempo para ficar aqui, até que os tambores de guerra soas¬sem lá fora.
Como estão soando agora, Jack.
Certo. O tempo acabou.
Falei muito cedo. Nunca devia fazer isso.
O que é?
Há uma inscrição. Onde estava minha mão. Pensei que a pedra esti¬vesse esburacada.
Nesse momento, ouviram o som do helicóptero, o barulho pulsava na câmara. Jack girou sua tocha para onde estava Costas, apontando para a lateral da tumba. Para sua surpresa, viu cinco linhas, em latim. Ele se agachou e leu em voz alta as palavras:

Hic iacet
Licinius optio XV Apollinaris
Sacra iulium sacularia
In sappheiros nielo minium
Alta Fabia frater and Pontus ad aelia acundus

- Jack traduziu:

Aqui jaz
Licinío, optio da Décima Quinta Legião de Apollinário,
Guardião da jóia celestial
Nas sombrias minas de sappheiros
A outra está com Fabius, irmão, do outro lado do lago, em direção ao sol nascente

  • Sappheiros -, exclamou Costas. - Eu me lembro disso do Périplo. Isso não significa lápis-lazúli?
    Uma voz berrou do lado de fora, entrando pelo corredor. - Está na hora de ir! - Costas movimentou a tocha pela câmara uma última vez. Havia outra fissura escura na parte de trás, onde eles tinham ouvido o som de água gotejando. Ele hesitou, então tropeçou, pondo a mão na parede para se apoiar nela. Por alguns momentos, ficou absolutamente imóvel, paralisado de horror, com o feixe de luz brilhando na escuridão. - Jack, este é meu pior pesadelo. Estou conseguindo sentir o cheiro disto. Me tire daqui.
    Havia outro barulho lá fora, um som de fogo de artilharia. Jack se apro¬ximou rapidamente de Costas. Olhou para dentro da piscina de luz. À primeira vista parecia ser outra escultura, branca, uma extrusão da rocha. Mas isso era diferente. Percebeu com horror para o que estava olhando - um corpo humano. Estava esticado na cachoeira, com os braços atrás das costas, a cabeça inclinada para a frente num ângulo extravagante. O pes¬coço fora reduzido a osso e nervo. O rosto estava grotescamente adiposo e irreconhecível. Costas acenou ligeiramente, e Jack segurou-o pelo om¬bro. Ele se forçou a olhar novamente. A cabeça estava sustentada por um laço, amarrado ao redor de uma pedra sobre a cachoeira. Era como se o homem tivesse morrido por estrangulamento lento, com corda suficien¬te apenas para que ele ficasse vivo até que seus pés pudessem encontrar algum ponto de apoio na pedra. Poderia ter sobrevivido assim por horas, até mesmo dias. Um monte de formas pretas correu para longe de suas pernas, e Jack viu que a pele tinha sido esfolada quase até o osso. A cami¬sa do homem estava corroída, revelando a pele de seu ombro esquerdo. Então Jack a viu. Sentiu uma certeza gélida. Era uma tatuagem de tigre. Era distinta daquelas que eles haviam visto nos corpos do lado de fora, mais elaborada. Ele se lembrou do que Katya lhe dissera sobre a tatuagem do tio. Então ele percebeu. Ela sabia que eles poderiam achá-lo dessa maneira.
    - É Hai Chen - ele disse roucamente. O - tio de Katya. - Ele engo¬liu com dificuldade. Já tinha visto o suficiente. Houve outro estouro de arma automática do lado de fora. Ele girou Costas e o empurrou por trás para a entrada da câmara. Jack olhou uma última vez para a escultura na parede. Sua mente estava girando. Romanos. Raumanas. Rama. Um santuá¬rio de Rama. Ele viu o personagem alto, o legionário no meio dos outros. Aquele seria Fabius? Passou a tocha pelo peitoral, o cinturão da espada, as guirlandas. Havia algo que precisava ver novamente. Ele já havia visto, mas deixara de lado: uma decoração do Exército Republicano Romano, que estava perdida para a história. Mas agora ele sabia o que era. Uma forma redonda, como um sol, com raios partindo dela, carregada dentro de uma bolsa no cinturão do legionário. Uma forma como uma jóia. Ouviu outro berro, outro estouro de fogo de artilharia. Empunhou sua Beretta e armou o ferrolho. - Vamos sair daqui.

 


                                                                       CONTINUA

 


O homem que segurava o rifle podia ver claramente as duas figuras à beira do lago, imóveis entre os seixos perto da costa, emolduradas pelas montanhas de Tien Shan a leste, limite do próprio império celestial. Ele ficara observando-as durante toda a tarde, esperando que o sol às suas costas baixasse, para acentuar as formas. Ele aprendera tudo o que podia sobre o comportamento delas, observou cada movimento mínimo, da maneira que sua avó lhe ensinara a fazer. O homem mais alto era desajei¬tado, ossudo, dado a movimentos e gestos súbitos, especialmente quando estava trabalhando com o trator. Mas o homem alto também observava de vez em quando a mulher, quando ela estava curvada, raspando e esco¬vando, fotografando. Quando ela fazia isso, o homem alto ficava parado durante muitos minutos, às vezes meia hora ou mais, como se não qui¬sesse que a mulher soubesse que ele a estava observando. O homem que segurava o rifle fez uma careta. Os quirguizes eram nômades da estepe, como seus próprios antepassados, mas nômades que haviam abandona¬do os modos de guerreiro e tinham se tornado pouco melhor que uma ovelhinha. Ele os menosprezava. Desejou que pudesse mirar o homem primeiro, mas a mulher era a prioridade. Ele desviou o olhar para ela. Tinha os cabelos muito pretos e brilhantes, uma linda estrutura de corpo, a Lycra apertada contra suas coxas quando se agachava mostravam nádegas atléticas, mas curvilíneas. Ela o excitou, e isso aumentou seu fervor. Seu clã se espalhara. A fraternidade exigiria sua recompensa.

 


A luz agora estava perfeita. Ele olhou para a linha de montanhas co¬bertas de neve do outro lado do lago, e então deixou que os olhos vol¬tassem para as duas figuras. Sempre comece no horizonte, a avó dele lhe ensinara, e então tudo entrará em seu lugar. Ele se lembrou do rosto da avó, as bonitas feições dos cazaques que adornavam selos postais e murais por toda a pátria, o verdadeiro retrato da marcha soviética de progresso. Somente sua unidade de produção tinha sido destruída. O mestre dela, Zaitsev, lhe dera o nome de zaichata, pequena lebre, mas os alemães a chamavam de Todesengel, o anjo de morte. A conta dos que ela matara em Estalingrado chegara a centenas. Estrela de Ouro de Herói da União Soviética. Ele se lembrava do que ela lhe dissera em seu leito de morte no alto das montanhas, na fronteira chinesa, a pátria deles. Ela lhe contara que, no final, ela não matara por uma causa. Ela matara porque era isso o que fazia. Ela vira isso nos olhos dele também, quando olhou para ela, sem emoção, só querendo continuar sua atividade assim que ela partisse.
Agora ele possuía o rifle que fora dela. Ele se deitou e virou de bruços no buraco rochoso no cume. Abriu o longo pacote marrom que estava ao seu lado, a capa de couro ainda flexível depois de setenta anos, im¬pregnada com o óleo da arma. Ergueu o rifle e apoiou a parte dianteira na mão direita, com cuidado para não modificar a distância da operação. Passou a mão esquerda sobre a empunhadura de madeira, tocando nos entalhes e marcas de guerra, ferimentos que tinham fortalecido a arma, em vez de diminuí-la. As francoatiradoras soviéticas femininas sempre davam nomes para suas armas. Essa fora chamada de Dragão de Fogo. Ele olhou para as marcas no metal. Mosin-Nagant, 1917, feito sob contrato em Williamsburg, Maryland. A avó dele rira da ironia desse fato, durante os longos anos da Guerra Fria, quando ela havia treinado várias gerações de franco-atiradores para lutar contra os americanos. Mas ela tinha dito que instrumentos de morte não mantêm nenhuma fidelidade. Ele o tomara dela, e chegara a conhecê-lo como conhecia a si próprio. Ela havia dito que cada matança era como um ato de paixão com um amante e que, quanto mais o rifle disparasse, mais conheceria suas próprias necessida-des e mais se tornaria parte de sua própria alma.
Abriu o ferrolho, tocando no brilho fresco de óleo no receptor e pe-gou dois cartuchos de uma bolsa de couro. Ele próprio os tinha recarregado, usando o mesmo lote de munições, a mesma pólvora, medindo o carregamento até em microgramas. Ela também lhe ensinara isso. Tinha polido as balas até que ficassem brilhando. Empurrou os cartuchos para dentro da câmara de repetição, então empurrou o ferrolho para diante e...

 

 

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades