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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HÉLADES, A Terra dos Sonhos / R. F. Dropa
HÉLADES, A Terra dos Sonhos / R. F. Dropa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

H É L A D E S

A Terra dos Sonhos

 

Liziane Quincas é uma jovem vivendo um período amargo em sua vida. Assim como a maioria das pessoas faz um dia, ela questiona sobre o porquê das coisas e que sentido dar para sua existência. Em meio a este questionamento, ao chegar aos escritórios de uma revista de variedades, de sua propriedade, ela descobre que se esqueceu de providenciar uma matéria sobre cultura grega que ela própria se comprometera a concluir. Apressada, ela parte em busca de dados sobre o tema e acaba conhecendo Pasifaé, jovem animada que coordena uma fundação de estudos filosóficos e que a convida para participar de um curso sobre cultura grega, contendo aulas práticas e teóricas. Liziane aceita e no fim de semana, ela e um grupo de pessoas partem com Pasifaé para a primeira aula prática rumo ao Pico do Marumbi, região nordeste de Curitiba, onde segundo a instrutora, vivenciarão o “mito da caverna” de Platão.

Na primeira noite, já acampados diante da caverna que servirá de base para o curso, Liziane não consegue dormir devido aos “ruídos noturnos” de uma senhora participante do evento e decide dormir dentro da caverna. Na manhã seguinte, ela é despertada por homens vestindo roupas de guerreiros gregos que se espantam ao ver uma mulher ali. Ela acaba conhecendo o aventureiro Ulisses, que a alerta sobre estarem dentro da caverna de um ciclope. Depois de fugirem dali, ela aceita a oferta de Ulisses e navega com ele por algum tempo. Ela acredita estar participando de uma brincadeira promovida por Pasifaé e decide voltar para Curitiba. Depois de passarem pela feiticeira Circe e as sereias, ela decide ficar no primeiro ponto firme que o barco de Ulisses encontra.

Na floresta, ela se depara com o jovem Narciso admirando seu reflexo no lago. Ele diz à Liziane que ela encontrará Pasifaé, a esposa de Minos, no palácio de Knossos, bastando seguir pela trilha que parte do lago. Acreditando se tratar da mesma Pasifaé que coordena o curso, ela chega a Knossos e acaba agredindo Pasifaé, a rainha de Knossos, por engano. Irado, seu marido, o rei Minos, lança-a no labirinto do Minotauro junto com o tributo de Atenas: sete moças e sete rapazes, dentre eles, o jovem herói Teseu, a quem Liziane ajuda a matar o monstro. Depois, com a ajuda de Ariadne, eles deixam o labirinto e Liziane decide voltar ao bosque para encontrar Narciso e perguntar por quê ele mentiu a ela sobre Pasifaé. Ao invés dele, encontra o centauro Quíron, que a guia até a caverna das Moiras, as fiadeiras do fio da vida de cada ser humano. Ali ela conhece o deus Apolo, que a leva com ele ao Olimpo e é apresentada a Afrodite. Juntos, o casal de deuses mostra a Liziane a criação do universo a partir da “teogonia” grega. Afrodite presenteia a jovem irriquieta com sapatos mágicos, que a conduzirão para todos os lugares que ela desejar estar. Sem querer, ela pensa em Héracles e tem um encontro com o semi-deus, o qual relata a ela seus doze trabalhos.

Após várias aventuras, ela se encontra com Perseu, ajudando o herói a matar a Medusa e voam juntos no cavalo Pégaso. Ela se apaixona por ele, mas acabam se separando, pois ela não pertence aquele mundo, indo parar, então, em Tróia, sendo recepcionada por Helena. Ela percebe então que o que falta em sua vida é a entrega ao amor e descobre que nunca sentiu algo tão forte por um homem como o que sentiu por Perseu.

Ela deixa o palácio troiano e vai para Atenas, onde encontra Platão explicando a seus pupilos sobre o mito da caverna e o Mundo das Idéias. Seu último desejo é conhecer o mito da caverna mais de perto e depois disso, ela volta para casa, sendo encontrada sem sentidos pela jovem instrutora Pasifaé, junto à caverna do Marumbi.

Liziane é o reflexo de todos nós, pois tem dúvidas. Somente ela seria capaz de questionar de Apolo se os jovens que o adoram são “gays”, de sentir “nojo” de Afrodite por ela ter nascido da espuma produzida pela queda do falo de Urano no oceano, de perguntar ao Centauro como ele e seus espécimes se reproduzem, já que não existem “centauras” e se as Amazonas são másculas. Seu jeito irreverente leva-a a questionar suas próprias atitudes, seu vazio interior e descobrir que aquilo que lhe falta, realmente, é o auto-conhecimento e, principalmente, o amor.

 

 

Naquela manhã fria de julho, Liziane estava parada diante da porta do elevador segurando sua enorme bolsa e vestindo um sobretudo cinza. A porta se abriu e a moça cumprimentou o ascensorista com um movimento da cabeça, o qual retribuiu da mesma forma. Estavam sozinhos. Ela nem precisou pedir e ele apertou o botão referente ao oitavo, local onde ficavam os escritórios da III Milênio, a mais importante revista de variedades da cidade de Curitiba.

Aquela segunda-feira começava de modo normal para a moça, igual a todas as outras dos últimos tempos, e isso fazia com que Liziane se sentisse um tanto entediada e aborrecida com o dia-a-dia monótono de sua vida. Perdida em seus pensamentos à medida que observava os andares pulando diante dela no painel sobre a porta, ela imaginava o porquê de tudo o que vinha sentindo. Com vinte e três anos de idade, mulher de negócios e empresária bem sucedida ao lado de sua irmã e um grupo de amigos, ela se perguntava se a vida seria somente o dia-a-dia cansativo dos negócios e da falta de emoções, ou se havia algo a mais para se descobrir. No seu intimo, ela sabia que o mundo era muito mais do que as quatro paredes de seu escritório, ou ainda, muito além das quatro paredes daquele elevador.

Olhou para o ascensorista, um rapaz com mais ou menos a sua idade e que tinha uma vida toda pela frente. Quais seriam seus sonhos, suas ambições? Teria ele desejos secretos de viver uma grande aventura onde pudesse descobrir o sentido da vida? Colocou-se no lugar daquele jovem que conduzia, todos os dias, diferentes pessoas aos diversos andares daquele prédio, preso num cubículo que não lhe permitia ver a luz do sol ou o mundo lá fora. Imaginou consigo mesma se ele, no íntimo de seus pensamentos mais profundos, não desejava que, em determinado momento, a porta daquele elevador se abrisse e lhe apresentasse um mundo novo, feito de emoções e situações que lhe revelassem o prazer de se estar vivendo.

Quando voltou a si, percebeu que estava olhando fixamente para ele, o qual tentava lhe anunciar que já estavam no oitavo andar. Meio sem jeito, ela tentou voltar ao normal, agradecendo e saltando para o corredor.

- Obrigada, Fábio!

Ele não tinha a intenção de responder, pois diariamente ouvia agradecimentos das pessoas. Porém, retribuiu com um “não há de que” ao olhar contemplativo da moça. Liziane esperou um pouco, até que a porta do elevador se fechasse novamente. Olhou para trás e murmurou:

- E lá vai ele novamente em seu tedioso vai-e-vem...

Caminhou alguns metros até entrar pela porta dos escritórios da revista, recebendo o cumprimento gentil da recepcionista:

- Bom-dia, dona Liziane...

- Bom-dia, Raquel! Diga apenas “Liziane”, pois sou mais nova do que você, lembra-se.

- Desculpe, é uma questão de hábito! - disse a moça sorrindo desajeitadamente – A senhora...quero dizer, você quer ver sua agenda hoje?

Liziane soltou um suspiro profundo e moveu com a cabeça, afirmativamente. A secretária abriu a agenda e disse:

- Às dez horas, o diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de Curitiba virá trazer os folders para o incentivo do público junto ao teatro. As quatorze horas está marcada a entrevista com o escritor pontagrossense Homar Antunes e o recém-lançamento de seu novo livro Teias de Seda. Já às...

- O quê, a entrevista com Homar será hoje? Mas eu nem estou preparada para recebê-lo! Oh, não! Diga à Greg para me substituir!

- Mas Gregório tem que concluir a reportagem sobre o pólo turístico de Guaraqueçaba e...

- Isto pode esperar. A entrevista com Homar é fundamental, mas hoje não estou me sentindo espiritualmente preparada para isso. Se Greg achar algum inconveniente, ele que venha falar comigo.

- Mas...

- Estou indo...

Liziane deixou a moça com um aceno e rumou para sua sala. Ao atravessar o enorme salão da revista, subdivida em pequenas salas com divisórias de vidro, admirou cada um de seus funcionários. Pensou consigo mesma que cada um deles tinha um propósito de vida, uma meta para alcançar. Imaginou que, assim como ela, eles também tinham dúvidas.

Logo ao entrar em sua sala, deparou-se com sua irmã Danielle e a amiga Jane, que a esperavam com ansiedade.

- Bom-dia! - exclamou ela

Sua irmã foi a primeira a falar:

- Liziane, temos de correr com nossa reportagem sobre a cultura grega para que possamos publicá-la ainda na edição deste mês!

- Você prometeu que se encarregaria disso, lembra-se! - disse Jane

- Sim, eu sei que prometi e vou cumprir. Vou resolver isso ainda hoje! - respondeu ela um tanto desanimada. As duas jovens a observaram, curiosas e, em seguida, trocaram olhares inquisitivos.

- Você está bem, Liziane? - indagou Jane - Parece doente.

- Não me diga que brigou com a mamãe logo cedo, Liziane! - exclamou sua irmã um pouco exaltada.

Liziane colocou a bolsa sobre sua mesa e caminhou até a janela. Lá embaixo, na Avenida Marechal Deodoro, automóveis trafegavam num eterno ir e vir. Em seguida, sem desviar o olhar, respondeu:

- Mal entrei por aquela porta e, ao invés de receber um cumprimento, vocês vieram me cobrar pelo meu trabalho. Somente porque pareço um pouco cansada, minha irmã já vem me acusando de haver discutido com minha mãe! - ela se voltou para as duas - Será que serei eternamente subestimada por vocês?

Elas abaixaram a cabeça, arrependidas pelo modo com que a trataram. Liziane voltou para sua mesa, apanhou sua bolsa e caminhou em direção à porta. Com a voz triste, sua irmã perguntou:

- Onde você vai?

Antes de sair, ela se voltou para responder:

- Terminar a reportagem que vocês me pediram. Alguma objeção? Ela não esperou pela resposta, saindo em seguida, sob o olhar inquisitivo de suas sócias.

 

Liziane caminhava lentamente pela Rua das Flores. Seus olhos admiravam as centenas de pessoas que passavam por ela naquele enorme calçadão. Novamente os pensamentos de angústia lhe assaltaram a mente tentando imaginar que espécie de dúvidas cada uma delas carregava no íntimo de seu ser. De repente, ela se voltou para um cartaz afixado sobre uma coluna do prédio onde ficava o Sindicato da Indústria e Comércio de Curitiba. Havia um desenho da Acrópole grega e a expressão Ego, tratando-­se de um curso sobre filosofia e cultura grega promovido por um centro de estudos da cidade. Ela anotou o endereço em sua agenda e seguiu para lá, justamente a cerca de três ou quatro quadras dali, na rua Ermelino de Leão.

Ao chegar no prédio, pediu informações ao porteiro, que indicou a ela que se dirigisse ao quarto andar. Apanhou o elevador e a figura da jovem ascensorista a fez se lembrar de Fábio. Assim como ele, quais seriam os seus sonhos?

Desceu no andar indicado e caminhou até o Centro Filosófico Hermes, sendo recebida por uma simpática jovem logo na entrada:

- Chegou no horário, moça!

Liziane olhou com admiração para aquela simpática jovem de cabelos negros e compridos até a altura dos ombros:

- Como assim? Vim em busca de informações e...

- E aqui as encontrará! - disse ela convidando Liziane para entrar. Ela se sentou atrás de uma mesa onde haviam inúmeros catálogos com fotos sobre a Grécia e referências a sua cultura milenar, convidando Liziane para que se sentasse diante dela, a qual obedeceu, em silêncio.

- Meu nome é Pasifaé. Sabe, todos os que procuram nosso instituto vêm em busca de respostas às suas dúvidas. Com você não é diferente e...

- Bem, na verdade sou a sócia-proprietária da revista III Milênio e estou aqui especialmente para um trabalho sobre a cultura grega.

- Mas que ótimo! - disse a moça, animada - A cultura grega tem muito a nos ensinar. Os áureos tempos gregos foram importantes não só para seu povo, mas para o mundo como um todo. Devemos aos gregos muitas das virtudes que hoje são cultuadas pela humanidade.

Liziane interessou-se sobremaneira no assunto. Talvez aprendesse alguma coisa com ela.

- De que trata o curso?

A jovem lhe entregou dois prospectos, ao passo que explicou:

- Nosso curso tem a duração de sete meses, com saídas de campo no primeiro fim de semana de cada mês, totalizando sete encontros práticos. Ah, o número sete foi premeditadamente escolhido por se tratar de um número detentor de inúmeras forças que permeiam o universo: sete cores do arco-da-aliança, sete vidas do gato, sete...

- Arco-da-aliança?

- O arco-íris, ou o arco-da-aliança de Deus com o homem para que nunca mais houvesse um dilúvio sobre a terra.

- Ah, sim!

- Bem, continuando alguns outros exemplos: as sete notas musicais, os sete meses do ano do antigo calendário romano, as sete maravilhas do mundo, os sete mares, os sete dias da semana e muitos outros. Segundo Pitágoras, o sete é um número cósmico, a chave para se entender o Todo...

- Sei...

- Todas as saídas de campo envolvem exercícios práticos de meditação e filosofia em grupo, numa comunhão com a natureza e o universo. Você tem algum conhecimento sobre a cultura grega?

- Muito pouco. Mas estudo o grego desde os dez anos de idade. Sei um pouco sobre eles, mas não o suficiente.

- Mas está ótimo! Pronta para começar?

- Bem, e quando eu começo?

- Amanhã, à tarde. Partiremos do Jardim Botânico num ônibus fretado e seguiremos para Roça Nova. De lá, seguiremos a pé até um determinado ponto do Pico do Marumbi!

- Pico da Marumbi? Mas por que tão longe?

- É o melhor lugar para se comungar com o meio. E então, podemos contar com você?

Liziane não tinha muito o que pensar, pois tinha que entregar a reportagem para Jane ainda naquele mês.

- Claro, quero me inscrever.

- Ótimo - exclamou a moça apanhando a ficha em branco - Seu nome?

- Liziane...

 

O ônibus com aproximadamente quinze pessoas seguia rapidamente pela BR-116 rumo à comunidade de Roça Nova. Liziane estava sentada na primeira poltrona e admirava a paisagem pela janela. Um tanto desanimada e procurando dormir, ela teve sua atenção voltada para a passageira imediatamente atrás dela, que tagarelava sem parar com sua companheira de viagem:

- Nossa, ela “tava” linda! Você precisava ver, minha flor! A menina tinha passado por uma cesariana e no dia seguinte não se entregou! Carol sempre foi muito vaidosa, já a Bibi não! Mas a Carol é vaidosa, nossa, você precisa ver. No dia seguinte à cesárea ela se levantou e disse: “mãe, eu quero tomar um banho de corpo inteiro”. Pois ela foi até o banheiro da clinica e tomou um banho demorado, perfumou-se, vestiu a calça uma cinta apertada, pegou a mão do Rafaelzinho e saíram passear pelo corredor. Nem pareciam marido e mulher, pareciam dois irmãos!

- Puxa, mas que menina forte, Gilda! - exclamou a outra mulher que ouvia com atenção.

- Nossa, Carol é forte. Puxou a Tia Delfina, que não se entrega. Já Bibi puxou a De Lourdes. Não tem vaidade, é simples, parece uma santa, uma madre! Bibi cuida muito do cabelo. Ela lava o cabelo com shampoo de algas-marinhas, massageia e escova todo santo-dia! E aquele cabelo, nossa, parece uma seda! Bibi banha os cabelos em água mineral, não usa cloro!

- Que bom, não Gilda! um pouco de vaidade faz bem para o espírito, não é?

- É verdade, Odaísa. Eu só tenho pena dessas pessoas que não vivem. Veja, um exemplo é aquela menina, filha da Etelvina. Se formou advogada, tem profissão mas não é feliz. Bibi disse que ela fica o dia todo em casa sentada numa almofada em posição de yoga e fumando sem parar. Fica remoendo os preconceitos. Não gosta de gente de cor, de homossexual, de ladrão! Eu tenho muita pena, aquela moça não é feliz...chuif...

Liziane colocou-se de joelhos sobre a poltrona e olhou para elas. Notou que a mulher loura com pele alva tinha os olhos azuis rasos d’água. Aproveitou para perguntar:

- Com licença, foi impossível deixar de ouvir, pois a senhora fala pelos cotovelos! Mas, responda-me uma coisa: o quê é ser feliz para a senhora?

A mulher enxugou uma lágrima que havia escapado de seus olhos, respondendo rapidamente: - Nossa, mas é tão simples! É só olhar para os lados e ver quanta gente que está sofrendo por aí. Se repararmos no sofrimento alheio vamos perceber que o nosso sofrimento é tão ínfimo diante da dor alheia.

- A senhora me parece conformada!

- Não, minha flor! - disse a mulher em tom lírico - Só procuro ver o lado belo da vida. Chorar pr’á quê? A vida é linda! Você é linda! Chuif...

Liziane achou aquela mulher um tanto divertida, apesar de se emocionar a todo instante com suas próprias palavras, Sua atenção foi então atraída para Pasifaé, que levantou-se de seu lugar no meio do corredor do ônibus e anunciou:

- Pessoal, estamos chegando...

 

O grupo seguia por uma trilha aberta pelos alpinistas e aventureiros que subiam regularmente o monte, seguindo em fila indiana. Liziane olhava admirada para o alto do Pico do Marumbi, com seus 1.400 metros de altitude, cercado por uma densa neblina naquele dia sem sol. Tinha uma mochila nas costas e trazia sua enorme bolsa, sua companheira inseparável, como de costume. Era a quarta da fila, sendo antecedida por Pasifaé, a líder, Gilda e Odaísa, duas senhoras na casa dos sessenta e quarenta e cinco anos que também carregavam pesadas mochilas nas costas. Liziane se admirava da disposição daquelas duas, principalmente de Gilda, que continuava falando sem parar. Sua voz se confundia com o ruído dos galhos que se quebravam sob os passos do grupo:

- E ai eu vesti aquele traje de gala todo em pérola! Na época o Teatro Renascença ainda existia e era o ponto chic da cidade. Todo mundo se arrumou para ir assistir Jorge Mistral e sua orquestra. E eu me arrumei: coloquei um chapéu com um laço vermelho, aquele espartilho apertado, apanhei meu leque e fui. Papai e mamãe foram juntos. Ainda me lembro que eu e mamãe gostávamos muito das músicas de Emilinha Borba e Dalva de Oliveira. Papai gostava de Ataúfo Alves, Noel Rosa...Mário Lago! Chegamos no Teatro, aquele lugar lotado: as moças todas abanando seus leques. Os rapazes galantes com bengala e palheta. E foi lá que eu conheci o Augusto. Ele vestia um frack branco com um cravo vermelha na lapela... lindo! Estava todo-galantezinho! Veio cumprimentar papai, beijou a mão de mamãe e me tirou pr’á dançar. E dançamos, não paramos um minuto. Sempre fui pé-de-valsa, não é, Odaísa? E daquele dia em diante Augusto passou a freqüentar a casa de papai. Claro, com o pretexto de me ver. Ficava horas conversando com papai, até o dia em que resolveu pedir minha mão em namoro!

- E você aceitou? - questionou Pasifaé, que ouvia a conversa animada à medida que subiam o Pico Marumbi. Gilda soltou um grito histérico, o que assustou Liziane:

- Mas é claro!!! Só que ele não pediu para mim. Ele pediu à papai. Naquele tempo os rapazes pediam a mão da moça diretamente para o pai. E era assim para o noivado, que deveria durar mais de dois anos, e para o casamento!

- Nossa, no meu tempo não foi assim! - exclamou Odaísa - Havia princípios, mas não tão severos deste jeito!

- É, no meu tempo havia respeito. Hoje não, acontece tudo de repente, da noite para o dia. Mas o respeito se passa de pai para filho, Odaísa. Veja a Carol: namorou o Rafaelzinho três anos, noivaram por três anos e então se casaram. Tudo como manda a tradição. já Bibi não sei. Bibi não pensa em se casar! É uma santa. Não quer viver para uma pessoa só, quer viver pr’o mundo! É a minha bonequinha, tão linda, chuif...

- Mas a senhora já está chorando? - gritou Liziane

- Eu me emociono, chuif...

- Falta muito, Pasifaé? - perguntou Odaísa, rindo.

- Não. Mais seiscentos metros montanha acima e chegaremos até a Caverna do Pico...

- Caverna do Pico? - indagou Liziane - E o que é que a gente vai fazer lá?

Vamos tentar entender o princípio do “mito da caverna”, de Platão.

Que beleza! - exclamou Gilda, já recobrada.

- E precisa ser numa caverna? - indagou Liziane, preocupada, pois já começava a achar que Pasifaé era louca.

- Para entendermos o pensamento platônico sobre a realidade do homem é necessária uma aproximação com suas idéias. E na caverna poderemos fazer isso sem problemas.

- Só espero que Jason não apareça por lá e passe a faca em todo mundo! – disse Liziane, em tom mal-humorado.

- Jason? É aquele menino que morre afogado no rio? - indagou Gilda recordando-se do filme “Sexta feira 13”.

- Sim, é ele mesmo.

- Eu adoro aquele filme. Bibi sempre diz: “ei, mãe, você é a cara da mãe do Jason!”, só porque tem uma mulher loura parecida comigo no primeiro filme!

Todos riram do comentário de Gilda, com exceção de Liziane, que diz:

- Só espero que seu filho não resolva aparecer lá no alto para lhe visitar, dona Gilda!

Gilda não ouviu, continuando a tagarelar:

- Bibi é divertida. Eu adoro a minha bonequinha. Ela diz também que eu me pareço com uma atriz chamada Jill Clayburgh. Bibi viu um filme que a atriz entra numa canoa e sai à procura da filha num pântano no meio de uma neblina...

- E aí aparece o Jason! - intromete-se Liziane

- É? Não sei, eu não assisti, minha flor! Ele aparece, aquele menino?

- Esqueça...

 

Estava quase escurecendo quando largaram as mochilas diante da entrada da caverna escondida num imenso paredão coberto pela floresta.

- Bem, vamos fazer uma fogueira e começar nossa viagem ao mundo grego! ­anunciou Pasifaé.

Os cerca de dez integrantes do sexo masculino saíram à procura de madeira e gravetos para acender a fogueira, enquanto as mulheres se encarregaram de limpar a área.

Liziane estava um tanto aflita, sem saber o porquê. Dirigiu-se à Pasifaé e perguntou:

- Escute, nós vamos dormir na caverna?

- Claro que não, Liziane!

- Ufa! - respirou ela aliviada - Então deixe-me ajudá-la a montar as barracas...

- Barracas? Que barracas?

- Você não trouxe barracas para nós?

- Liziane, repare em nossas mochilas, querida! Você acha que iria caber alguma barraca nelas?

- Que amorzinho! - exclamou Gilda admirando a ingenuidade de Liziane.

Pasifaé esboçou um sorriso e ergueu as palmas das mãos para cima, indicando que dormiriam ao ar livre.

- O quê? No relento? - perguntou Liziane, incrédula.

- E qual é o problema, Liziane? Viemos aqui para “nos imantar” com a natureza! Você não trouxe seu saco de dormir, como lhe pedi?

- Sim, eu trouxe.

- Pois então está ótimo!

- Mas...

Liziane não conseguiu argumentar. Foi interrompida por Gilda, que distribuía sanduíches naturais embrulhados em papel alumínio para todos.

- Tome, minha flor, você precisa se alimentar!

- Obrigada, mas...

- Mamãe trouxe muita comida! - disse a mulher em tom animado - Mamãe trouxe até sorvete no isopor e um leitão recheado.

- Hum, que delícia! - exclamou Pasifaé.

- A senhora conseguiu subir até aqui com toda esta “comidarada”? – perguntou Liziane.

- “Mamãe” adora fazer exercícios! “Mamãe” faz jogging todos os dias enquanto acompanha o genro, o Rafaelzinho, até a firma onde trabalha. Ele vai rapidinho, assim “tchu, tchu, tchu, tchu” e “mamãe” seguindo sem cansar! - explicou Gilda, referindo-se a si mesma.

- Acho que vou querer conhecer esse tal Rafaelzinho e as suas respectivas filhas! ­- murmurou Liziane mordendo seu sanduíche.

- Mas é claro, minha flor, você vai adorar Carol e Bibi! Pois olhe, desde hoje você está convidada a aparecer em nosso apartamento. Fica ali na Coronel Dulcídio...

- E por que sua filha Bibi não acompanhou a senhora neste curso? – perguntou Liziane - Pelo que vejo ela é descompromissada.

- Bibi não gosta de sair! - cochichou a mulher em meio a um gesto repentino com a mão em sinal de negativa - Bibi é caseira, adora ficar vendo televisão.

- É, deu pr’á perceber...

 

Estavam todos sentados em torno da fogueira. O calor do fogo tornou a noite agradável, visto que a temperatura caíra um pouco por se tratar de uma montanha. Liziane estava sentada ao lado de Gilda, a qual já acabara de servir suas tacinhas de sorvete de creme e chocolate enfeitadas com tubetes sabor morango para todos os membros do grupo, logo após saborearem o delicioso leitão trazido pela amável senhora.

- Você comeu bem, minha flor? - perguntou ela enrolando-se numa manta e em meio a um acesso de tosse.

- Sim, e como comi! - respondeu Liziane - A senhora cozinha muito bem!

- Obrigada, cóf...cóf ..cóf...

- A senhora está bem?

- Estou, cóf...eu tenho um problema de bronquite alérgica, aí me ataca o peito. Acho que tomei gelado perto do fogo, mas já vai passar, não se preocupe!

Nisso, Pasifaé, ainda em pé, abriu uma de suas mochilas e retirou várias túnicas brancas, entregando-as a seus “pupilos”.

- Tomem, vistam estas túnicas!

- Ué, mas para que isso? - questionou Liziane

- Para ficarmos ainda mais perto do povo grego! - respondeu a jovem instrutora em tom animado.

Liziane não gostou muito da idéia, mas resolveu obedecer, visto que ninguém ali ousava contrariar as manias estranhas de Pasifaé. Cada um se dirigiu para um ponto no meio da vegetação, que serviu de provador, a fim de experimentarem as túnicas. Em cinco minutos desfilavam todos de chiton, a região do pescoço e clavícula à mostra, enquanto as vestes estavam presas aos ombros por dois broches em forma de ostras. A única diferença entre eles era que as túnicas dos homens terminavam na altura dos joelhos, em forma de saiotes, enquanto que as das mulheres se estendiam até as canelas e eram desprovidas de mangas. Algumas se acharam estranhas, portando as túnicas e vestindo sapatos e tênis, mas Odaísa e Liziane pareciam as únicas prevenidas, já que haviam trazido sandálias na bagagem.

- Somos gregas genuínas! - exclamou Odaísa com sua voz estridente e que deixava Liziane um pouco irritada.

Sentaram-se novamente em torno da fogueira e cada qual ajeitou-se como pode a fim de prestar atenção às palavras da instrutora, Pasifaé, que finalmente sentou-se num ponto do círculo, iniciando sua aula:

- Bem, o nosso propósito é aprender um pouco mais sobre a cultura e a filosofia grega. Aqueles que pretenderem fazer anotações, sugiro que o façam amanhã, durante o dia, pois hoje teremos uma breve explanação sobre filosofia, a qual entrarei em detalhes posteriormente.

Ninguém do grupo sequer pensou em anotar alguma coisa no meio àquela luz cansativa provinda do fogo. Estavam mais interessados em ouvir do que escrever.

- Pois bem, comecemos primeiramente com uma definição para o termo filosofia. Esta palavra vem do grego, evidentemente, philos, que quer dizer “amigo” e sophia, “saber”, Assim, philosóphos ou filósofo é aquele que ama o saber, o amigo do saber. Sócrates e Platão, dois dos maiores filósofos de que se tem notícia, foram os primeiros a empregarem o termo. Eles a entendiam como o amor pelo saber e sua amorosa procura. Segundo eles, a origem da atitude filosófica é a perplexidade do homem diante do espetáculo da natureza e do desenvolvimento da história, que o levam a formular perguntas sobre a procedência, consistência e razão das coisas.

Liziane ouvia a tudo com atenção, apesar de vez ou outra Gilda ser acometida por novo acesso de tosse e desconcentrar o grupo. Pasifaé deu uma rápida explanação a respeito de Sócrates, passando em seguida para Platão, filósofo que ela considerava essencial para o curso que estava ministrando.

- Platão investigou a idéia geral do Bem para procurar um conceito através do pensamento lógico. Ele era um idealista, afirmando que todas as coisas são simples cópias de tipos ideais, de tipos hierarquizados ou representações do mundo espiritual, desde o ser mais humilde ao Bem Supremo. Todos os fenômenos semelhantes são passíveis de serem assimilados pelo homem a partir do momento em que o indivíduo tentar considerá-los como a reprodução de uma imagem primordial, à qual denominou “idéia” . Uma idéia, ou o “entender do ser” se constrói no íntimo do homem. As idéias formavam uma hierarquia e, no seu cume reside a idéia superior, que seria o Bem ou o própria Criador, É neste mundo das idéias que reside, o interior, o âmago, a imaginação e a intuição.

- Fale a respeito do “mito da caverna”! - pediu Florinda, uma jovem professora que fazia parte do grupo.

- Certamente, querida. Como eu já disse, Platão afirmava que tudo o que está à nossa volta é irreal, meras cópias de uma realidade superior que é o mundo espiritual. Assim, em sua vastíssima obra, ele nos diz que devemos tomar o homem como que acorrentado no fundo de uma caverna, próximo à entrada. Está preso de maneira tal que não consegue se voltar e observar o que se passa às suas costas, permanecendo eternamente diante da parede ao fundo de sua prisão. Porém, a luz que penetra pela entrada permite a este prisioneiro perceber, projetadas na parede diante dele, sombras do que acontece do lado de fora. Estas sombras são reflexos da realidade exterior, a “verdadeira realidade” ou o mundo das idéias...

- E este homem permanecerá eternamente acorrentado? - perguntou Odaísa.

- Coitadinho! - exclamou Gilda

- Platão nos assegura que este homem acorrentado deve procurar se libertar das correntes que o prendem àquela falsa realidade e olhar para trás, onde se encontra a verdadeira realidade.

- Que interessante! - exclamou Jackson, um garoto de mais ou menos quinze anos e ar de intelectual - Significa que o dia em que o homem se libertar de seus medos, preconceitos, dogmas e toda forma de pensamentos que obstruam a percepção do seu verdadeiro “eu”, estará finalmente despertando para a realidade!

- Exatamente! - exclamou Pasifaé, estalando os dedos - Para Platão, através da razão a alma se eleva ao mundo das idéias. A alma é o princípio que dá vitalidade e move o homem. O objetivo é purificar esta alma e libertá-la dos laços materiais a que está vinculada, a fim de que possa aprender realmente a idéia do Bem!

- Fantástico! - exclamou Florinda por trás de seus imensos óculos de aros redondos.

- Eu não sei o que há de tão fantástico nisso! - disse Liziane achando impróprios aqueles comentários de surpresa - A Seicho-No-Ie ensina isso há muito tempo e qualquer criança sabe que nossos pensamentos moldam nossas vidas!

- A Seicho-No-Ie também se trata de uma filosofia de vida! - completou Pasifaé referindo-se à filosofia japonesa.

- Fizeram um alarde tão grande par causa deste tal mito da caverna para depois eu descobrir que já sabia de tudo! - ralhou Liziane

- Ela é tão inteligente! - comentou Gilda sorrindo para o grupo e apontando para Liziane.

- Pois é ótimo que você já esteja familiarizada com esse princípio básico do conhece-te a ti mesmo, Liziane! - argumentou Pasifaé - Amanhã faremos uma aula prática dentro da caverna e vamos tentar viver o que Platão tentou nos passar!

- Entrar ali dentro? E é seguro?

- Claro. Já ministrei pelo menos dez cursos iguais a este, querida. Conheço a caverna como minha própria casa! Não se preocupe, o lugar é completamente seguro.

- Assim espero...

 

Após o debate, todos enfileiraram os sacos de dormir lado a lado e procuraram descansar, a fim de enfrentar a aula prática do dia seguinte. Liziane, porém, não conseguia dormir. Estava deitada justamente ao lado de Gilda, que falava dormindo, cantarolava, tossia e resmungava, além de emitir ruídos estranhos que a assemelhavam a alguma criatura da floresta. Já passavam das três horas da manhã e ela mantinha os olhos bem abertos e fixos nas copas das árvores que os cercavam. Depois de muito pensar, decidiu tomar uma iniciativa: levantou-se, apanhou seu saco de dormir, sua bolsa, da qual não se separava jamais e de onde retirou uma lanterna, caminhando em direção à caverna que antes a afligia. Estava decidida a procurar um lugar tranqüilo para dormir e a caverna lhe parecia agora um bom lugar após o comentário de Pasifaé.

- Se essa demente disse que a caverna é segura, então não há por que ter medo. Pelo menos aí dentro é mais sossegado...

Antes de entrar, ligou a lanterna e mirou o feixe de luz em seu interior, penetrando lentamente naquele estranho mundo.

- Seja o que Deus quiser! - murmurou ela.

 

Um ruído estranho fez Liziane despertar. Não sabia se já havia amanhecido ou não, visto que estava tudo escuro no interior da caverna. Sentou-se sobre o saco de dormir e ligou a lanterna que estava sobre a bolsa, ao seu lado.

- Será que aquela mulher resolveu vir dormir aqui dentro também? - murmurou consigo mesma - Não me venha tossir aqui dentro, porque eu...ahhhh!

Ela soltou um grito quando o feixe de luz artificial revelou um rosto masculino, em pé, próximo a ela. Não reconheceu aquele rosto como sendo um dos membros do grupo.

- Quem é você?? - gritou ela levantando-se rapidamente e apoderando-se da bolsa, sua melhor arma. O estranho vestindo um saiote grego idêntico ao que os rapazes do grupo estavam usando olhava para ela com admiração. Recuou um pouco, devido ao gesto abrupto da moça. Usava uma barba rala e tinha a pele queimada pelo sol.

- O quê faz aqui? perguntou ele, admirado. Liziane estranhou o fato daquele homem se dirigir em grego para ela. Achou que fazia parte do curso, assim utilizou o grego que havia estudado para argumentar com ele:

- Eu é que pergunto! disse ela com a bolsa em punho.

- Não sabe que não deve ficar aqui, filha da Hélades? - disse ele perplexo diante da luz artificial - Que estranha lanterna é esta?

Liziane ficou aturdida com aquela expressão. Acreditou tratar-se de mais um maluco recém-chegado ao grupo.

- Olhe aqui, eu estou chegando a conclusão de que vocês são um bando de doidos e eu vou dar o fora daqui agora mesmo! - exclamou enrolando seu saco de dormir e guardando-o na mochila. Nisso, uma nova voz ecoou na escuridão:

- Capitão Ulisses, descobrimos que a caverna é habitada!

- Mas o quê é isso? - interrogou Liziane largando seus pertences para levar as mãos à cintura - É a caverna da mãe-joana? Quem é você?

O recém-chegado, vestindo os mesmos trajes gregos, olhou para o outro homem com espanto, no que este disse:

- Mulher, fuja enquanto e tempo. Esta caverna tem dono e temos de deixá-la antes que ele retorne.

- Ah, e por acaso lotearam o Pico Marumbi para esta caverna ter dono? Eu bem sabia que estava lidando com um bando de loucos! Eu vou embora agora mesmo e exigir meu dinheiro de volta!

Ela apanhou sua bolsa novamente e a mochila, empurrando os dois homens para o lado e caminhando a passos largos pela caverna, guiada pela lanterna. Foi aí que ela se deparou com mais dez homens parados e olhando para ela, assustados.

- O quê? Mais gente maluca? Ah, eu vou dar um cabo nesta Pasifaé...

- Mulher, espere...

O homem que parecia ser o líder segurou-a pelo braço. Liziane desferiu-lhe uma violenta bolsada na cabeça, gritando:

- Solte-me, seu brucutu!

- Perdoe-me, filha de Hélades, mas...

- Eu não sou filha da Hélades, coisa nenhuma! Sou filha de Rebeca e meu nome é Liziane!

- Pois bem, Liziane - disse ele com a mão na cabeça, tentando aliviar a dor - Como chegou até esta ilha?

- Ilha? Que ilha? Estamos numa montanha, idiota! Ai, meu Deus, onde é que eu fui me meter? - voltou-se, então, para o líder - Quem são vocês?

- Sou o capitão Ulisses, filho de Laertes, rei de Ítaca. Estávamos a caminho do reino quando uma violenta tempestade nos tirou do curso. Chegamos até esta ilha onde eu e alguns homens da tripulação resolvemos explorar o lugar. Encontramos esta caverna e aí...

- E aí resolveram me acordar para me enlouquecer ainda mais. Se isto faz parte da tal aula prática do mito da caverna, vão desistindo porque já estou indo embora. Pr’á mim chega desta palhaçada!

- Não sabemos do que você está falando. Só advertimos para que venha conosco procurar um lugar seguro. Veja, esta caverna é habitada...

O líder fez um gesto para que Liziane examinasse a caverna. Ela dirigiu o feixe por todo o recinto, avistando diversas baias com carneiros e cabritos, cestos cheios até a borda com cereais e cântaros de leite encostados nas paredes. Ela notou que a própria caverna parecia maior do que antes.

- Mas o quê é isso? - indagou ela, perplexa - Isso não estava aí ontem!

- Passou a noite aqui?

- É evidente. Ou você achou que eu ia conseguir com aquela mulher emitindo silvos durante a noite toda?

Ele não entendeu e nem questionou mais nada, simplesmente dizendo:

- É melhor que venha conosco!

- Mas quem é você para me dizer o que eu devo fazer? - ralhou ela – Eu vou embora imediatamente!

Liziane deu meia-volta e caminhou em direção à saída, por onde a luz do dia já começara a penetrar. Quando estava praticamente do lado de fora, Liziane espantou-se com o que encontrou: não havia nenhum sinal do grupo, a vegetação era rasteira, não havendo nenhum sinal da mata silvestre que escondia a caverna. Ao longe, no horizonte, pode distinguir o oceano.

- Mas a quê é isso? Conseguiram me enlouquecer?

Mal ela terminou de formular a pergunta e avistou um homem enorme subindo a colina, em direção à caverna. Ela apanhou um binóculo da sua bolsa e procurou observá-lo. Alarmada, seu queixo caiu ao perceber que o estranho deveria ter mais de dois metros de altura e apenas um olho no meio da testa.

- Credo! - gritou ela

- O que aconteceu? - indagou o líder dos homens saindo atrás dela. Ela entregou-lhe o binóculo, o que o assustou, já que parecia não conhecer aquele instrumento. Irritada, Liziane ajudou-o a colocar o binóculo na altura dos olhos e apontou para a figura do gigante que se aproximava. Espantando com a visão próxima, o homem jogou o binóculo no chão, gritando:

- Por Zeus, são olhos mágicos!

Liziane apertou os lábios, passando a língua pelos dentes e expressando um ar de impaciência, enquanto apanhava o instrumento do chão.

- Muito bem, seu maluco! Quem é aquele desengonçado que está vindo para cá?

Um pouco mais recobrado do susto, o homem olhou na direção do estranho, que já estava se aproximando da caverna. O sangue pareceu fugir de suas faces ao constatar a realidade do que estava vendo.

- É um ciclope! - gritou ele

- O quê?

- O dono da caverna! - gritou agarrando o braço de Liziane e puxando-a para o interior da caverna. Imediatamente ele começou a gritar para seus homens:

- À postos, homens, o ciclope está chegando!

Esconderam-se atrás de algumas pedras ao fundo da caverna. Liziane estava furiosa com aquele banda de malucos, resmungando sem parar:

- Vocês já conseguiram me enlouquecer, o que querem mais?

- Cale-se, mulher! - gritou um dos homens.

A bolsa de Liziane voou na direção dele, tirando-lhe os sentidos. Ela ficou em pé e gritou:

- É isso o que acontecerá se mais algum engraçadinho ousar gritar comigo!

De repente, uma voz ecoou no interior da caverna, como um trovão:

- Quem são vocês?

Liziane olhou na direção da entrada, por onde o gigante acabara de passar. Ela jamais vira um ciclope em toda a sua vida, seres mitológicos que possuíam apenas um olho no meio da testa. Estava olhando para ela, o que a fez estremecer por um instante. O líder do grupo, trêmulo, ousou tentar explicar:

- Somos heládios retornando de Tróia, senhor, onde lutamos pelo grande Rei Agamenon. Rogamos que nos receba com a hospitalidade que os deuses recompensam.

A voz do estranho ser ressoou como um trovão dentro da caverna:

- Não me interessam os deuses. O que fazem aqui?

- Nossa, que educação a sua, heim? - ralhou Liziane

- Cale-se, mulher, ou terei de devorá-la! - gritou o ciclope

Liziane não perdeu tempo. Arremessou sua volumosa bolsa na direção dele, acertando em sua cabeça em cheio. O ciclope caiu para trás, batendo com a cabeça em uma pedra e perdendo os sentidos.

- Alguém mais vai me mandar calar a boca? - indagou ela caminhando na direção do corpo desfalecido do gigante para apanhar sua bolsa. Os homens olhavam para ela espantados, já que nunca haviam visto tamanha coragem em uma mulher. Ela apanhou sua bolsa e caminhou até a saída, procurando deixar logo aquele lugar e ir para casa. Começou a seguir pela trilha, colina abaixo, quando ouviu o líder do grupo gritar para que esperasse por eles. Liziane voltou-se para eles, nervosa:

- Não me sigam, me deixem em paz! Vocês me tiraram do sério e vou processar essa maldita escola filosófica tão logo eu descubra para onde me trouxeram. Onde já se viu me seqüestrar e me colocar nesta ilha?

- Para onde está indo? - perguntou o líder

- Vou ver se acho um telefone nesta droga de ilha! Nenhum de vocês têm um celular?

- Deixe-nos acompanhá-la, mulher - pediu ele - Pode vir conosco em nosso barco!

Liziane gostou da idéia. Talvez eles a levassem de volta ao continente.

- Por quê querem me ajudar se estão sendo pagos para me enlouquecer?

- Ninguém está nos pagando para isso! - disse ele - Já lhe disse que estamos perdidos!

- Qual é o seu nome?

- Já disse, sou Ulisses, filho de Laertes, e estes são meus homens!

Liziane olhou para ele, admirada, medindo-o dos pés à cabeça e olhando em seguida para o resto dos homens vestidos com trajes gregos. Ela esboçou um sorriso irônico e deu-lhe um leve toque com a mão na altura do estômago, em meio a uma exclamação:

- Safadinho, heim?

Ele não entendeu seu comentário, dizendo:

- Venha, vamos fugir daqui antes que o ciclope acorde!

- Onde foi que aquela maluca da Pasifaé conseguiu encontrar um ciclope? ­murmurou Liziane num pensamento alto - Acho que vou indicá-la à Lisiane Villas-Bhoas, uma amiga. Ela é a sócia-proprietária de uma cadeia de mais de setenta lojas espalhadas pelo mundo todo. Um ciclope seria uma grande atração no shopping!

Os homens prestavam atenção em tudo o que ela dizia, sem entender absolutamente nada, à medida que caminhavam em direção ao barco à vela e misto de galera, ancorado na baía onde estava a ilha. Entraram num imenso bote e os homens puseram-se a remar. De repente, Liziane soltou um grito forte, assustando toda a tripulação:

- Parem! Arretêz-vous! Stop that!

Os homens pararam imediatamente, sendo que Ulisses perguntou:

- O que houve?

- Minha mochila! Eu a esqueci na caverna!

- Não podemos voltar agora, Liziane! O ciclope já deve ter despertado e estar vindo atrás de nós.

- Grrrr...maldito ciclope! A imbecil da Pasifaé vai me pagar uma mochila nova assim que eu puser as mãos nela!

- Por que razão você quer encontrar a esposa de Minos?

- Ah, aquela esquálida é casada? O marido deve ser outro doido para querer viver com aquela maluca!

- Nossa, cuidado com esse ódio!

- Escute, mas por quê vocês insistem em falar em grego comigo? Por que não usam o bom e velho português?

- Gosto de você, Liziane - disse Ulisses sem se importar com a pergunta - Bem se vê que não tem medo de nada e...

De repente, ele começou a admirá-la melhor, deixando a moça perplexa.

- O quê está olhando? Nunca me viu?

- Você não é uma filha de Zeus, é?

- Não, meu pai se chama Jonas.

- Para ser tão corajosa, impetuosa e munida com olhos mágicos só pode ser uma descendente dos deuses!

Liziane soltou um suspiro impaciente e não disse nada. Percebeu que seria difícil argumentar com aquele bando de malucos.

- Sou tetraneto de Atlas, bisneto de Hermes e tataraneto de Zeus! - exclamou ele com orgulho.

- E daí?

- Pensei que poderíamos ser consangüíneos!

- Felizmente não! - disse ela - Aliás, atlas para mim é coletivo de mapas. Onde já se viu alguém ter um nome desses?

- Você não conhece a história de meu tataravô Atlas? - indagou Ulisses, surpreso.

- Por que haveria de conhecer? É algum político?

- Pois então vou contar. Você deve ser uma estrangeira, já que não sabe nada sobre nós, os heládios. Meu tataravô Atlas disputou com Zeus e foi condenado a sustentar o mundo nas costas!

- Novidade! Há dias em que eu carrego o mundo nas costas e nem por isso sou conhecida de todo mundo. Vamos, isso é “café pequeno”!

- E a história de meu bisavô, Hermes, você conhece?

- Não, minha flor, nem ao menos sei quem é! Por acaso não é uma rede de lojas?

- Meu bisavô Hermes era mensageiro dos deuses!

- Ah, ele era Espírita? Kardecista ou de outras linhas espiritualistas?

Como sempre, Ulisses não entendeu, continuando seu relato:

- Hermes inventou a lira, e com ela encantou seu irmão Apolo, recebendo o perdão deste por haver lhe roubado suas vacas.

- Ah, era ladrão? Furtou do próprio irmão? E você ainda tem orgulho dele? Que vergonha, Ulisses!

Ulisses, porém, continuava, orgulhoso:

- Ele desposou a deusa Afrodite e seu filho, meu tio-avô, foi Hermafrodito.

- Que nome, heim? Mas chega de falar da sua família. Diga-me para onde vamos em seu barco?

Vamos navegar ao sabor do vento, já que não temos uma direção.

- Como assim? E a bússola?

- Bússola?

- Mas, meu Deus...de que galáxia vocês vieram? - bradou ela abrindo sua bolsa e retirando uma bússola que carregava consigo. Entregou-a a Ulisses, que olhou perplexo para o instrumento.

- A agulha está apontando para o norte magnético da terra. Paranaguá está à oeste!

- Paranaguá? É de onde você vem?

- Não, minha flor, mas se formos para lá, poderei chegar até Curitiba. Será que vou precisar ensinar geografia para vocês?

- Não podemos ir para o oeste! - disse Ulisses

- E por que não? - gritou Liziane, impaciente.

- Ninguém viaja para o oeste. Lá está a borda do mundo!

- Borda do mundo, é? Ahã, sei!

- Vamos para o norte ou leste! - exclamou ele, indicando o ponteiro da bússola.

- E você pode me dizer o que é que eu vou fazer no Rio de Janeiro ou em Waivis Bay, na Namíbia?

- Vamos tentar chegar à Ítaca!

- Eu não quero ir para Ítaca! O que é que eu vou fazer lá?

- Venha conosco e poderemos ajudá-la a encontrar sua terra.

- Quero ver!

O bote encostou no barco e os homens ajudaram Liziane a subir à bordo, sempre munida de sua bolsa.

Ulisses ordenou a seus homens que içassem as velas para partir. Liziane permanecia no convés, observando a vastidão do mar com seu binóculo, à procura de terra firme. Tinha certeza de que chegaria ao ponto de estrangular Pasifaé quando a encontrasse, pois acreditava que toda aquela confusão fora ocasionada por ela.

Após navegarem por um longo tempo, cerca de dois dias, alcançaram uma nova ilha. Liziane estava irritada pois percebeu que aqueles homens eram completamente ignorantes em geografia, visto que desconheciam lugares como Paranaguá, Matinhos ou a própria Ilha da Mel, no litoral do Paraná. Ancoraram o barco e alguns homens desembarcaram na areia. Por um instante, Ulisses insistiu para que Liziane permanecesse no barco, mas já sabia que seria terrivelmente difícil “domar” aquela corajosa moça.

Só então Liziane percebeu que aqueles estranhos homens em trajes gregos se utilizavam de espadas e lanças. Decidiram fazer uma fogueira na praia, enquanto que outros homens se empenharam em explorar o lugar.

- Por que não vamos com eles? - indagou Liziane

- Deixe-os ir, Liziane. Logo nos trarão notícias.

- Grrr...odeio esperar!

Permaneceram ali por cerca de duas horas. Liziane não conseguia se entender com Ulisses diante daquele vocabulário estranho e nomes que ela não conseguia conceber, como Ítaca, Penélope ou Argos.

Nisso, Euríloco, um dos homens do grupo que havia se embrenhado no bosque, surgiu do meio da vegetação, numa corrida que o fez cair aos pés de Ulisses.

- Euríloco, o que houve?

- Senhor, encontramos um palácio no meio da floresta. Uma jovem doce convidou-nos a entrar a fim de descansarmos, mas não aceitei, permanecendo do lado de fora, enquanto que os outros caíram em sua armadilha...

- Armadilha? Que armadilha?

- Ela deve ter lhes servido vinho e comida enfeitiçados. Nossos homens se transformaram em porcos e ela os aprisionou em um chiqueiro atrás do palácio...

- Por Zeus!

Liziane ouvia aquilo com um sorriso irônico.

- Vocês não desistem mesmo de tentar me enlouquecer, não é? Mas tudo bem, eu vou levando só para ver onde é que esta pantomima vai terminar. Quero ver até que ponto chega a insanidade de Pasifaé.

Ulisses não lhe deu atenção, simplesmente dizendo:

- Vou salvá-los!

- Fique, Ulisses. Ela o matará! - pediu Euríloco, quase que implorando.

- Não, se quiserem, os outros podem ficar aqui. Tenho a obrigação de ajudar meus homens!

- Eu vou com você! - disse Liziane levantando-se da areia e apanhando sua bolsa.

- Não, você fica e...

Ele calou-se ao ver Liziane empunhando a bolsa, em silêncio.

- Tudo bem, é você quem decide!

- E vocês, não virão? - perguntou ela dirigindo-se aos homens de Ulisses. Nenhum deles fez menção de acompanhá-los, o que deixou Liziane decepcionada:

- Covardes!

Ulisses apanhou suas armas e começou a caminhar pela floresta na companhia de Liziane. Após caminharem por cerca de uma hora no bosque, encontraram uma grande clareira. Liziane, que seguia logo atrás de Ulisses e tinha certa dificuldade em caminhar com aquela túnica, ficou perplexa diante da cena que testemunhou: havia um enorme palácio em mármore, cerca de duzentos metros de onde estavam, com quatro torres laterais de mais ou menos vinte metros de altura e cercado por leões e lobos. Os animais estavam sentados junto aos quatro cantos da magnífica construção, mas não amedrontaram os dois. De repente, os animais começaram a saltitar como cães dóceis diante deles.

- Mas o que é isso? - questionou Liziane, absorta.

- É um palácio. Devemos estar em algum reino desconhecido!

Liziane ficou mais perplexa ainda diante da explicação de Ulisses. Como ele poderia dizer aquilo com tanto naturalidade e vivendo no Brasil? Começou a achar que havia alguma coisa errada em toda aquela história.

Ao mesmo tempo, uma jovem extremamente formosa, similar a uma fada e segurando uma varinha materializou-se diante deles, fazendo com que Liziane arregalasse os olhos. Ela voltou-se para Ulisses:

- Veio libertar seus companheiros, capitão Ulisses? Tome cuidado, pois você também poderá ser vítima de Circe, a bruxa que vive no palácio. Tenha certeza que os deuses o acompanham pela sua dedicação a eles...

- Como poderemos evitar de sermos enfeitiçados? - perguntou Ulisses

Ela estendeu a mão e entregou a ele algumas folhas de uma erva desconhecida.

- Esta erva chama-se mólio - explicou ela - Não tenham medo de beber aquilo que Circe porventura lhes oferecer. Porém, previnam-se, colocando uma folha em cada copo. Mais que depressa, a imagem da moça se esvaneceu e Liziane murmurou:

- Até truques holográficos esta desmiolada utiliza para me enlouquecer. Mas tudo bem, vamos ver onde tudo isso vai terminar!

Nisso, a atenção de ambos foi chamada por um estranho e doce canto feminino do interior do palácio. Ao mesmo tempo, as duas imensas portas em forma de arco da entrada do palácio se abriram e uma mulher vestindo uma túnica azul celeste surgiu diante deles. Tinha uma longa trança envolta por um fino véu transparente, a pele alva como leite e expressão delicada.

- Sejam bem-vindos, viajantes! - exclamou ela pedindo para que entrassem no palácio. Ulisses concordou, mas Liziane relutou por um instante, afinal, aquela história já estava passando dos limites.

- Quem é você?

- Meu nome é Circe! - disse ela penetrando seus olhos negros e amendoados nos de Liziane - Vocês são meus hóspedes agora!

- Não tenho a intenção de ficar! - disse Liziane sob o olhar inquietante de Ulisses, temendo que ele ofendesse a suposta deusa - Gostaria apenas de usar seu telefone e chamar a polícia!

A mulher não compreendeu, simplesmente sorrindo e exclamando:

- Verei o que posso fazer!

Entraram no palácio, cujas paredes de mármores impressionaram Liziane. Caminharam por um extenso corredor, onde tochas às paredes iluminavam todo o segmento. Adentraram em um enorme salão, onde almofadas e divãs convidavam os viajantes cansados para um repouso.

- Sentem-se! - indicou ela uma cadeira especial para Ulisses e outra para Liziane. Pouco depois, trouxe uma bandeja com vinho e cálices no mais puro ouro. Sem que eles percebessem, ela bateu com o indicador na borda de ambos os cálices, e um estranho pó caiu de suas unhas, misturando-se à bebida.

- Bebam à nossa saúde!

Ulisses, que pouco antes entregara uma folha de mólio à Liziane, jogou a erva na bebida sem que Circe o visse. Liziane fez o mesmo, em meio a um sorriso irônico. De certa maneira, estava começando a achar todo aquele teatro divertido.

Os dois beberam o vinho e Circe ficou satisfeita. Permaneceu um determinado tempo observando-os, como que aguardando o efeito da droga que misturara ao vinho, mas isso não aconteceu. Seu sorriso começou a desaparecer e ela desesperou-se ao ver Ulisses se levantar e desembainhar a espada. Investiu contra ela, sobre o olhar surpreso de Liziane, que achava, às vezes, aquela encenação um tanto real demais.

Imediatamente, Circe jogou-se aos seus pés, pedindo para que a poupasse. Liziane, num ímpeto, segurou sua mão e moveu com a cabeça para que ele não a matasse. Sabia que tudo não passava de mera representação, mas começou a achar tudo aquilo muito convincente. Ulisses obedeceu, abaixando a espada.

- Como podem estar bem? - gritou Circe ainda de joelhos - Resistiram ao efeito de minha poção! Vocês são feiticeiros? Por favor, clemência, nobre Ulisses!

- Como haveria de ter clemência por você, bruxa sem caráter? Você transformou meus companheiros em porcos!

- Se me poupar, eu os devolverei a você!

Ele aceitou o trato, e pouco depois, os homens de Ulisses entraram no salão, conduzidos por moças belíssimas e desnudas que serviam à feiticeira.

- Mas que pouca-vergonha! - exclamou Liziane olhando indignada para aquilo.

- O que fará comigo, Ulisses? - questionou Circe, em pé junto a suas escravas.

- É tempo de voltamos para nossas casas!

- Por haver me poupado, eu o ajudarei! - disse ela em meio a um sinal de reverência.

A feiticeira proveu o grupo com carne, cereais, pão e vinho. Liziane observava a tudo com certa desconfiança, e logo deixaram o palácio, voltando para o barco. Ao sinal de Ulisses, a âncora foi levantada e partiram uma hora depois.

- Você confia nela, Ulisses? - perguntou Liziane

- Uma feiticeira, quando vencida, não torna a mentir, Liziane!

- Ahã, sei! - exclamou ela meio que ironizando.

- Circe previu a viagem para nós! Teremos de ser cuidadosos!

- E eu acabei esquecendo de pedir o telefone dela emprestado! - exclamou Liziane, decepcionada.

Liziane ficou desanimada quando avistou novo grupo de ilhas, cerca de um dia depois de deixarem aquela onde ficava o palácio da bruxa Circe.

- Mas que droga que lugar é este? - gritou ela - É ilha que não acaba mais!

- São as ilhas das sereias! - explicou Ulisses - Circe me preveniu sobre isso!

- Sereias? Mulheres com corpo de peixe? Ah, mais isso agora?

- Elas são mulheres do mar. Diz a lenda que o deus-rio Aquelóo, filho de Tétis e Oceano, tinha corpo de serpente, tórax e cabeça humanos, com um grande par de chifres na testa. Héracles, em um de seus doze trabalhos, lutou com Aquelóo, quebrando-lhe um dos chifres. Seu sangue fecundou o mar e a partir dele surgiram as sereias. Elas passam o tempo todo cantando. Sua voz mágica atrai os homens, inevitavelmente. Mas quando se aproximam delas, apaixonados, as sereias os atacam e os devoram!

- Credo, que taradas!

- Mas Circe me concedeu isso para nos ajudar! - disse ele mostrando à Liziane alguns tampões de cera - Distribuirei-os aos homens para que evitem de ouvir o canto delas.

- E quanto a mim?

- Circe disse que o canto das mulheres do mar só atraem aos homens. Você está livre deste mal, Liziane.

- E mesmo que não estivesse saiba você que não há canto no mundo que possa com o estardalhar da minha bolsa. Elas que venham!

Ulisses distribuiu os tampões de cera entre seus homens e, em seguida, pediu que o amarrassem com fortes cordas ao mastro e que não o soltassem por mais que suplicasse.

Liziane avistou, ao longe, pequenos pontos de terra que pareciam verdadeiros oásis no meio do mar, com flores silvestres dos mais lindos tons. Porém, à medida que o barco se aproximava dos pontos de terra, ela percebeu que, em meio às flores e o que parecia ser um remanso, haviam esqueletos e restos de corpos humanos, com certeza todos vítimas das sereias.

- Meu Deus! - exclamou Liziane

A esta altura, Ulisses já estava muito bem amarrado ao mastro. Liziane temia que o barco encalhasse entre as ilhotas, mas Ulisses a prevenira de que não havia perigo, pois os pequenos blocos de terra no meio do mar eram mera ilusão criada pelas mulheres.

- De onde é que eles arrumam tanto dinheiro para esta pantomima? E tudo apenas para me deixar maluca! - exclamou ela consigo mesma.

Ao mesmo tempo, Liziane percebeu um formoso canto lírico vindo das ilhotas. Olhou para elas e avistou mulheres surgindo dentre as flores que enfeitavam os montículos de terra flutuando no mar. Tinham vastas cabeleiras adornadas com flores. Os seios estavam à mostra, sendo que o tronco terminava e dava lugar a uma enorme cauda de peixe.

Os homens de Ulisses, que começaram a remar o barco a fim de atravessarem o território das sereias, não ouviam o canto graças aos tampões de cera que Circe entregara a Ulisses. Este, contudo, que estava somente amarrado ao mastro, começou a ficar inebriado com tamanha cantoria, percebendo-se um enorme deleite em seu semblante.

- Outra pantomima! - exclamou Liziane observando a tudo com atenção. O canto era desenvolvido em coro pelas centenas de mulheres em cada montículo, as quais, por mera magia, sabiam que o capitão do barco era o herói Ulisses, tentando atraí-lo:

“Vem cá, Ulisses, famoso pelo canto, grande glória dos deuses! Aproxima o teu navio, para que possas ouvir a nossa voz! Pois homem algum passou por este lugar em seu navio negro sem atentar para o nosso canto, que flui como mel de nossas bocas. Quem o ouvir encontra nele deleite e sabedoria. Pois sabemos tudo o que os gregos e troianos sofreram, pela vontade dos deuses, por causa de Tróia. E sabemos tudo o que acontece na terra, em toda a parte e em todos os tempos...”

Ulisses, ao ouvir aquilo, começou a implorar para que seus homens o desamarrassem. Como eles não podiam ouvi-lo, fez desesperados sinais com a cabeça para que o soltassem. Porém, todos foram fiéis às suas ordens anteriores. E Liziane estava pronta para enfrentar quem ousasse desobedecê-lo.

Pouco a pouco, os montículos foram ficando para trás e, os viajantes, livres das sereias.

- Vai ficar amarrado aí por quanto tempo, Ulisses? - indagou Liziane - O perigo já passou!

- Circe disse que tenho de permanecer aqui por mais algum tempo. Haverá outros perigos no futuro!

- O quê? E você acha que eu vou embarcar nessa? Pois está enganado!

Liziane apanhou seu binóculo e regozijou-se ao avistar terra firme. Voltou-se, então, para Ulisses, ainda amarrado ao mastro e gritou:

- Ulisses, diga a seus homens para descerem o bote e me deixarem em terra firme!

- Você não pode ir até lá sozinha. Você desconhece os perigos que poderão advir! - gritou ele

- Ah, claro que sei. O maior perigo será continuar com essa palhaçada. Daqui a pouco, quem mais vai aparecer? O diabo? Muito obrigada, foi bom enquanto durou. Vou tentar encontrar um povoado neste lugar e talvez eles até tenham um rádio-­amador. Vou chamar ajuda e colocar esta maluca da Pasifaé na cadeia. Eu até entendo que vocês estão sendo pagos para me enlouquecer e devem ter família e filhos para sustentar, mas para mim chega! Vamos, ordene a seus homens que me levem até lá!

Ulisses até que insistiu, mas não conseguiu persuadir Liziane a ficar. Ele pediu para que Liziane retirasse os tampões de quatro de seus homens e ordenou a eles que a conduzissem até terra firme:

- Tenha cuidado Liziane! – gritou ele do alto do mastro

- Fique tranqüilo! Eu sei me cuidar.

- Que Zeus a proteja!

- Adeus! - gritou ela descendo para o bote acompanhada de sua bolsa e amparada pelos homens de Ulisses. Durante o percurso, acenou-lhe diversas vezes. Sabia que tudo não passava de mera representação deles e até estava achando aquilo tudo divertido. Mas tinha que voltar para casa e para o trabalho. Deveriam estar preocupados com ela, visto já haver passado cerca de dois dias desde que sumiu no Pico do Marumbi.

“É tudo culpa daquela lunática!” - pensou ela

Os homens de Ulisses a deixaram na praia e ela permaneceu durante algum tempo acenando para eles. Pouco depois, quando os homens já voltavam a remar e o navio começou a se deslocar, ela deu meia-volta e olhou para os lados. Havia um grande bosque para explorar e torceu para encontrar alguém que a ajudasse. Decidiu caminhar à beira do mar, pois haveria maior possibilidade de encontrar alguém ou algum vilarejo. Onde quer que estivesse, pelo menos uma pessoa mentalmente sã ela haveria de encontrar...

 

Liziane caminhou durante mais ou menos uma hora ao longo da praia. O sol forte castigou-a por algum tempo, até que ela decidiu retirar um chapéu de praia que costumava carregar na bolsa. Achou a túnica grega propícia para aquele calor e convenceu-se de que pelo menos uma vez Pasifaé acertara.

A areia branca e o mar límpido a impressionavam. Um branco promontório de calcária se estendia ao longo da costa, deixando-a assustada com a geologia do lugar: Não sabia em que ilha do litoral paranaense estaria, talvez a Ilha do Mel ou a Galheta. Onde quer que fosse, sabia que haveria de encontrar alguém que pudesse ajudá-la a descobrir onde estava e voltar para casa.

Logo, suas pernas começaram a pedir descanso e ela resolveu procurar uma sombra para repousar um pouco. Decidiu buscar a sombra de uma árvore da bosque que acompanhava a praia e, com um pouco de sorte, talvez encontrasse alguma fruta para comer, pois estava faminta. Embrenhou-se na mata e caminhou por alguns minutos através de uma trilha natural. Depois de determinado tempo, começou a ouvir o ruído do que parecia ser uma queda d'água. Aumentou a velocidade do passo, pois estava sedenta. Logo, encontrou uma pequena cascata de água límpida formando um belo lago. Aquilo pareceu-lhe um oásis e Liziane largou a bolsa e o chapéu no chão, correndo sorver do precioso líquido. Agachada sobre a margem da lago e levando a água à boca com a mão em concha, seus olhos estacaram ao reconhecer a imagem de um jovem sentado justamente na margem oposta. Ela pensou em gritar, mas o barulho da queda d'água abafaria sua voz. Apanhou seus pertences e resolveu ir até ele para pedir uma informação. Contornou o formoso e refrescante lago e, ao se aproximar, distinguiu belíssimos trajes gregos no rapaz. Tinha cabelos dourados e encaracolados. Pele alva coma o leite e músculos dos braços e tronco à mostra, sendo que uma pequena parte da manto atravessava seu ventre, passando pelo peito e sumindo atrás das ombros. Liziane estranhou que o rapaz estivesse debruçado sobre a água, procurando por alguma coisa. Parecia estar hipnotizado. Resolveu chamá-lo:

- Com licença!

Ele pareceu não ouvir, tamanha a sua concentração no fundo do lago. Liziane insistiu por mais duas vezes, sem resposta. Irritada, ela apanhou um apito que tinha em sua bolsa e fez bom uso dele, ensurdecendo o rapaz que pareceu despertar de um transe.

- Até que enfim! - exclamou ela guardando o apito novamente em sua bolsa. - ­Pensei que fosse surdo!

Ele admirou-a por algum tempo. Seus olhos verdes eram penetrantes e plácidos, deixando Liziane perplexa diante de tanta beleza.

- Que desejas, filha de Hélades!

- Mais um me chamando assim? - questionou ela - Eu não sei porque insistem em me chamar assim. Meu nome é Liziane. Meu pai se chama Jonas e minha mãe Rebeca.

- Que bom, Zeus a proteja. Eu, por minha vez, sou Narciso, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope!

- Muito prazer! - disse ela sorrindo - Mas, me responda uma coisa: o quê há de tão interessante aí neste lago?

O rapaz voltou-se calmamente para a água, admirou o fundo do lago por mais algum tempo e respondeu, sem retirar os olhos dele:

- Agradeço a Zeus por ter me concedido olhos ao vir para este mundo. Com eles posso admirar a criação mais bela de Zeus! Nem no Hades, nem no Olimpo se encontrará tamanha beleza!

Liziane, um tanto cismada, aproximou-se um pouco mais da margem do rio. Olhou para o fundo do lago e não viu absolutamente nada que atraísse sua atenção,

- Só vejo pedras e barro! - disse ela já imaginando se tratar de outro maluco

- Observe os traços, Liziane! - disse ele em meio a um deleite - Como pode não reconhecer a personificação do belo espelhada nestas águas?

Liziane voltou a procurar por alguma coisa no lago. Só então, por causa da mudança de perspectiva do olhar, ela visualizou seu rosto e o do rapaz refletidos na água. Finalmente ela compreendeu tudo. Colocou as mãos na cintura e emitiu uma expressão debochada:

- Ahã, um narcisista, heim?

- Narcisista? Não, já disse que me chamo Narciso!

- Pois a sua mãe ninfa não poderia ter lhe dado nome melhor. Narciso era o nome do belo rapaz que, segundo a mitologia grega, apaixonou-se pela sua própria imagem refletida no fundo do lago e terminou por se afogar, já que queria possuí-lo!

Narciso soltou um suspiro profundo, exclamando:

- E quem não se apaixonaria por tamanha beleza? Duvido que Apolo ou Zeus não desejassem jovem tão belo!

- Ihhh...bem, cada um tem seu gosto! E se você gosta, não sou eu quem vai julgá-lo: acho que cada um tem a liberdade de ir e vir e, como diz o artigo quinto da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei.”

- Gostaria imensamente de tocá-lo, amá-lo...

- Ei, eu não quero atrapalhar seu "flerte" consigo mesmo, por isso vou ser rápida! Diga-me, onde estou?

Continuando a observar a própria imagem no fundo do lago, ele respondeu:

- Em Creta.

- Creta? É uma ilha?

- Sim.

- E há alguma cidade ou vilarejo próximos?

- Siga pela trilha - respondeu apontando para um corredor entre as árvores logo atrás deles - Você chegará ao Palácio de Cnossos.

- Palácio?

- Sim, onde vivem o rei Minos e sua esposa Pasifaé!

Os olhos de Liziane brilharam, radiantes:

- Pasifaé? Então a desgraçada está lá?

- É a esposa de Minos!

- Minos? Ulisses citou este nome e agora percebo que não me é estranho! Parece que já ouvi este nome no colégio. Mas deixa pr'á lá: vou imediatamente pois mostrarei para aquela protótipo de grega com quantas colunas se faz uma Acrópole!

O rapaz voltou os olhos para sua imagem, sem tentar entender a que Liziane estava se referindo. A moça, percebendo que ele estava mais interessado em sua imagem, resolveu partir:

- Bem, obrigada pela informação! Adeus!

- Que Zeus esteja com você!

Ela deixou o rapaz perdido em sua contemplação, rumando pela trilha indicada por ele. Imaginou que deveria estar havendo um surto de loucura múltipla, pois todas com quem estivera desde que acordou na caverna agiam de modo estranho, além de se vestir como gregos genuínos.

“Deve fazer parte da aula prática daquela esquizofrênica!" - pensou.

Marchou cerca de um quilômetro pela trilha, até que se deparou com uma enorme clareira. Seu queixo caiu diante do cenário que então se mostrou perante seus olhos: lá embaixo, cerca de quinhentos metros do ponto onde estava, avistou uma grande cidade formada por colunatas em pedra calcário. No centro, distinguiu uma grande fortificação que deveria ser o palácio mencionado por Narciso. Um pouco mais distante, cerca de um quilômetro, no que poderia se chamar de periferia da pacata cidade, ela distinguiu uma grande baía e alguns barcos a vela próximos à praia.

Liziane caminhou mais ou menos quinze minutos pelo estreito chão de pedra que dava acesso à pequena cidade. Não demorou muito para estar caminhando por uma alameda comprida e que levava justamente ao palácio. Os transeuntes, vestindo túnicas, estranhavam o andar rápido da recém-chegada e que carregava sua enorme bolsa.

Ela parou por um instante quando se viu diante de um enorme portal que dava acesso ao palácio e guardado por dois soldados armados de lanças e escudos. Ela tentou passar por eles, mas foi barrada pelos dois homens, que a interpelaram cruzando as lanças diante dela.

- Mas o quê é isso?

- O quê quer? – perguntou um deles em tom áspero.

- Quero falar com Pasifaé. E não venha me dizer que ela não está porque eu sei muito bem que vou achá-la aqui!

- Ninguém chega à rainha sem passar pelo sacerdote de Minos.

- E onde está ele? – questionou ela, visivelmente nervosa.

- Estou aqui!

Um homem vestindo uma túnica vermelha com a barra confeccionada em fios dourados atravessou o portal do interior do palácio e veio ter com Liziane.

- O que quer da rainha?

- Quero colocar os pingos nos “is” desta história toda.

- O quê diz? Não compreendo!

- Aliás, ninguém aqui compreende nada, não é? Estão todos combinados para tentarem me enlouquecer!

- De onde vem?

- De Curitiba. Pasifaé me levou ao Pico do Marumbi e me deixou lá. Depois que entrei naquela maldita caverna a minha vida virou um inferno!

- Caverna? Não estou entendendo.

- Pudera, está sendo pago por ela! Vamos, leve-me até ela antes que eu não deixe pedra sobre pedra deste palácio!

Então, ocorreu ao sacerdote, um homem de meia-idade, que Liziane poderia ter sido enviada pelos deuses para testar a rainha Pasifaé depois da maldição que se abatera sobre Creta, quando ela gerou um filho metade homem, metade touro e chamado de Minotauro.

- Quem a mandou? Os deuses?

Irritada, Liziane gritou:

- Sim, a deusa da fúria!

O rosto do sacerdote estremeceu e ele ficou pálido.

- A Erínia?

- O quê?

Ele agarrou o braço de Liziane e puxou-a para dentro do palácio.

- Largue-me!

O homem, completamente transtornado, conduziu-a pelo portal e adentraram num imenso salão formado por seis colunas de sustentação e piso de mármore. Ao fundo, distinguia-se uma passagem em forma de losango, além de um imenso trono forrado com tapeçaria vermelha.

- A rainha virá em breve!

- Ei, mas...

O sacerdote deixou o salão do palácio e sumiu através de outra passagem, próxima ao portal de entrada. Liziane, examinando o lugar com atenção, cruzou o salão e caminhou lentamente em direção ao trono para examinar melhor, sempre carregando sua enorme bolsa. Enquanto examinava o imenso móvel, ela ouviu uma voz masculina vindo através da passagem em forma de losango.

- Pasifaé, chamemos os escravos para nos servirem!

Liziane percebeu que ela se aproximava e resolveu apanhá-la de surpresa, permanecendo junto à porta com a bolsa em punho, pronta para usá-la contra a moça. Quase ao mesmo tempo, uma mulher de cabelos negros e longos, exatamente iguais aos de Pasifaé, atravessou a porta na companhia de um homem calvo e de meia-idade. Ambos vestiam trajes gregos e não perceberam Liziane. Esta, sem perder tempo, investiu contra a mulher gritando:

- Bonito, heim??

Ao mesmo tempo ela desferiu-lhe um violento golpe com sua bolsa. A mulher soltou um grito, perdendo o equilíbrio e cambaleando na direção do homem, que a amparou.

- O quê significa isso? - gritou ele, amparando a pobre mulher, sem entender nada.

Liziane, porém, não lhe deu ouvidos. Começou a gritar, gesticulando o dedo indicador contra a mulher, em sinal de advertência: ­

- Isto é para você aprender a não me fazer de boba, sua desequilibrada! Onde já se viu me colocar no meio deste circo maldito e...mas quem é você???

Só então ela percebeu que não se tratava de Pasifaé, pelo menos aquela que procurava. Imediatamente o homem calvo começou a gritar:

- Guardas, rápido!

Liziane, aturdida diante daquela estranha, não percebeu quatro homens armados com suas lanças e escudos penetrarem no salão pela porta através da qual ela própria acabara de entrar. Logo que a seguraram, ela começou a se debater, tentando investir contra eles com sua bolsa, porém, sem sucesso, sendo completamente dominada.

- Soltem-me, seus animais!

O homem, depois de amparar a mulher, que permanecia sem entender nada e um tanto zonza devida ao impacto que acabara de sofrer, aproximou-se de Liziane com ira nos olhos:

- Coma ousa bater em sua rainha?

- Pensei que fosse outra pessoa. E ela não é minha rainha, seu careca ridículo!

- Você só pode ter enlouquecido! Não sabe que deve respeito a sua alteza? - gritou Minos

- Já disse que me enganei! - gritou ela, debatendo-se - E diga para estes macacos me soltarem antes que eu resolva ficar nervosa!

- Por sua ousadia receberá a morte! - gritou ele de modo austero - Guardas, levem-­na ao calabouço. Coloquem-na junto com os jovens heládios de Atenas!

Liziane manifestou sua revolta gritando histericamente e se debatendo, porém foi inútil. Os guardas, a muito custo, conseguiram tirá-la do salão e a levaram para um corredor que terminava numa escada de mais ou menos vinte degraus. Lá embaixo, a escuridão era vencida por tochas ao longo das paredes úmidas e construídas com imensos blocos de pedra. Pararam diante de uma enorme porta de madeira com uma pequena abertura no centro recheada com grades, em cuja fechadura um dos guardas enfiou uma enorme chave brocada, típica das antigas masmorras. Um rangido ensurdecedor se fez ouvir quando foi aberta e Liziane terminou por ser violentamente empurrada para o interior da cela. Fecharam a porta em seguida, sob os protestos inúteis da moça:

- Vocês vão me pagar por tudo isso, ouviram? Eu vou processá-los!

Com as mãos na cintura, completamente indignada, ela perscrutou o lugar. Só então se deparou com um grupo de moças amedrontadas, no fundo da cela, abraçadas e olhando para ela.

- O quê foi? Nunca me viram? - perguntou ela asperamente

A princípio, não houve resposta, até que uma entre elas resolveu falar:

- Imaginávamos que nossa hora havia chegado!

- Hora? Que hora?

- A hora de sermos lançadas no labirinto!

Liziane sentiu vontade de chorar, pois percebeu que estava diante de mais gente maluca.

- Meu Deus, quando é que isso vai acabar?

- Não demorará muito! - disse uma jovem com lindas tranças douradas e olhar tristonho - Em breve todas nós morreremos!

- Morrer? Morrer por quê?

- Somos parte do tributo de Atenas! - disse a primeira

- Tributo de Atenas?

- Pensei que soubesse! Vejo que você não é uma heládia!

- Não sou “heládia”, nem “peládia” e muito menos “tarádia”! - ironizou ela - Sou a pobre vítima de uma vigarista! No momento queria apenas um telefone, um banho e uma delegacia do Procon para reclamar meus direitos de consumidora!

Como era de se esperar, nenhuma das sete moças que estavam ali conseguiram entender as palavras de Liziane.

- E não me olhem como se eu fosse de outro planeta. Acho que os senis daqui são todos vocês que compartilham com esta maluca da Pasifaé deste plano vil e infame de tentar me enlouquecer!

- Não sei do que você fala! - disse a moça portadora das belas tranças - Mas sinto que você também tenha de pagar com a sua vida!

- E posso saber por quê?

- Como já dissemos, somos uma parte do tributo de Atenas. Dizem que Androgeu, o filho de Minos, morreu vítima do touro Maratona. A culpa de sua morte recaiu sobre o rei Egeu, de Atenas, que o incitou a enfrentar o terrível monstro que cuspia fogo. Logo depois disso, a peste e a fome aterrorizaram Atenas e o rei Minos advertiu os atenienses que essa terrível maldição só cessaria quando fosse pago o terrível tributo pela morte do príncipe cretense: ficou acertado que, de nove em nove anos, sete moças e sete rapazes seriam enviados para cá e desapareceriam no Labirinto como vítimas do Minotauro!

- Minotauro? Agora me lembro que ouvi essa história na escola! E parece que foi tema do Sítio do Pica-pau Amarelo, não foi? Não foi ele quem raptou a Tia Anastácia do Sítio?

A moça não deu atenção àquele comentário estranho de Liziane, continuando a explicar.

- Somos o último tributo, recém-chegados de Atenas! Além de nós, mais sete rapazes aguardam o momento de sucumbirem no Labirinto!

A moça tinha os olhos úmidos, se bem que aquilo de nada impressionou Liziane. Ela ainda achava que tudo não passava de um teatro, uma encenação promovida por Pasifaé.

- E quando vamos ter a chance de conhecer o tal Minotauro? - perguntou ela

- Não sabemos, ó que Zeus nos proteja! - a moça deixou escapar um grito angustiado e começou a chorar. Imediatamente as outras começaram a se desesperar, o que provocou um certo alarde no calabouço.

- Ei, ei! Está bem, está bem, já chega! Vocês são ótimas atrizes, não precisam me provar nada. Espero realmente ver qualquer uma de vocês na novela das oito ou, quem sabe, recebendo o Oscar no Doroty Chamber Pavillion, em Hollywood!

De repente, um ruído chamou a atenção delas. Os guardas estavam abrindo a cela e as moças imaginaram que havia chegado a hora.

- Oh, eles vieram para nos levar! - exclamaram em uníssono

Entretanto, o que se viu não foi a figura de um dos guardas, mas uma mulher loura de mais ou menos meia-idade usando uma túnica cor esmeralda. Acompanhada dela estava uma jovem de rara beleza, com cabeleira negra e ondulada, pele muita branca e olhos amendoados da cor da noite. Logo atrás delas surgiram dois guardas trazendo diversas iguarias: uma ave assada, uvas, pêssegos, damascos e cântaros com vinho. Puseram tudo sobre um quadrado de concreto num dos cantos da cela, sob os olhares aturdidos de todas, inclusive de Liziane.

- Pelo menos a cadeia daqui é melhor que a do resto do país! - exclamou Liziane admirando toda aquela comida - Ninguém morre de fome!

- Mas de jeito nenhum! - exclamou a mulher mais velha, num ímpeto. Aquele gesto abrupto por parte dela fez com que Liziane prestasse mais atenção nela. Depois de observá-la por alguns segundos, ela soltou um grito grave:

- Gilda, então é você?!

A mulher estranhou, apressando-se em corrigi-la:

- Não, minha flor, meu nome é Eribéia!

Liziane achou que ela fazia parte da encenação e resolveu observá-la. Ficou feliz por encontrar o primeiro rosto familiar.

- Eribéia, é?

- Sim. E esta é a princesa Ariadne! – falou apontando para a outra moça - Sempre peço ao rei para que me deixe alimentar os jovens antes de entrarem no Labirinto! Não quero que passem fome antes de se perderem lá dentro! Faço isso desde que o labirinto foi construído e, desta vez, Ariadne se ofereceu para me ajudar!

- Ahã...sei! - exclamou Liziane fingindo acreditar nela.

- Eu tenho tanta pena! - exclamou a mulher levando a mão aos olhos, tentando conter as lágrimas - São tão jovens!

- Mas já está chorando! - gritou Liziane reconhecendo a mesma Gilda de outrora.

- Já disse, eu tenho pena!

- Se tem pena, por que não nos ajuda a sair daqui e acabar com esta palhaçada?

- Não posso, o rei me mataria. Seria uma traição. Eu vivo aqui há tantos anos. Eu vi essa menina nascer! - gritou ela apontando para Ariadne, jovem na faixa dos dezoito anos, que observava tudo com revelada preocupação, como que compartilhando da dor das outras jovens - Eu vi Fedra, a mais nova, nascer também. Fui eu quem ajudou Pasifaé no parto delas, inclusive no de Astérion!

- Quem é Astérion? - indagou Liziane

- O Minotauro.

- A senhora ajudou no parto do Minotauro?

- Sim, minha flor! Ainda me lembro como se fosse hoje. Pasifaé começou a sentir as dores logo depois do banho com pétalas de hortência. Eu corri apanhar lençóis e água limpa, pois sabia que tinha chegado a hora. Eu conversava e ela gritava...eu conversava e ela gritava! De repente, no meio das contrações eu tive aquele susto: vi surgir aquela cabecinha de novilho...lindo! Não chorava, era um amorzinho! Em seguida veio o corpo de bebê: parecia um deusinho, todo-galantezinho! Eu sabia que aquilo poderia acontecer, pois a rainha sempre me pedia conselhos e havia me confessado a paixão pelo lindo touro branco que saiu do mar!

- Quer dizer então que o Minotauro, vulgo Astérion era, um amorzinho, é? ­questionou Liziane com ar debochado.

- Nossa, era lindo! Era um primor de criança. Não deu um mugido quando nasceu. Aquela cabecinha de terneiro e o corpinho de bebê me faziam chorar de felicidade. Era lindo! Era a criança mais bela que já tinha visto: aqueles olhinhos negros como bolinhas de vidro, o pelo marron e brilhante, o focinho preto e minúsculo...lindo! Nossa, como eu ninei aquele menino! Encostava aquela cabecinha no meu peito e ninava!

- E ele mamava?

- Lógico. Só que ele não podia mamar no peito da mãe. Ele tinha dentes e podia machucá-la. Aquilo me deixou tão triste, pois o desejo de toda mãe é alimentar o filho no peito! Tiveram de trazer uma vaca que havia ganho um terneiro e ele mamava nela!

- Uma vaca? E Pasifaé?

- Ficou triste, evidentemente!

- E ela não sofreu com o parto? Aliás, ela não deixa de ser uma vaca por ter parido tamanha aberração! - comentou Liziane em meio à pergunta.

- Nossa, ela sofreu tanto! O problema do parto foi a cabecinha de Astérion que custava a aparecer. Mas quando saiu foi uma alegria. Pasifaé ficou feliz por ter tido um filho de seu touro amado. E ela não se entregou: no dia seguinte ela levantou do leito e disse: "Eribéia, eu vou tomar um banho de corpo inteiro!". Ela mandou que eu chamasse as servas, preparasse o tanque de banho e banhou-se demoradamente. Depois as servas aplicaram essências e ela se perfumou. Em seguida colocou aquele cinturão apertado para não criar barriga, vestiu a túnica e foi se sentar ao lado do rei. Nem parecia que tinha acabado de ser mãe!

Liziane já conhecia aquela história. Em seguida questionou:

- Suponho que hoje ele já é um homem feito...ou deveria dizer "um touro feito"?

- Realmente, hoje já é um tourinho! Ainda me lembro quando ele tinha cinco aninhos e o rei mandou Dédalo construir o Labirinto de presente para ele. O par de chifrinhos começava a aparecer na testinha e ele ficou todo-galantezinho quando pôde ir brincar no Labirinto! E vive lá até hoje!

- A senhora o visita?

- De vez em quando. Astérion adora minhas bolachinhas de mel! Ele fica doente pelos meus doces. Só que ele não fala, só ouve. Ele senta no troninho, cruza as perninhas, come os biscoitinhos sem derrubar um "farelinho" no chão e fica me ouvindo contar as novidades. Ele é um amorzinho!

- E canibal também! - completou Liziane - Nunca tentou devorá-lo?

- Infelizmente o pobre menino gosta de devorar seres humanos, mas ele gosta de mim, pois eu o alimentei desde criança. E o que se há de fazer?

- Matá-lo! - sugeriu Liziane

- Nunca! - bradou Eribéia - Ele é como se fosse meu filho!

- E a senhora veio até aqui para nos alimentar muito bem apenas para estarmos suculentas para o monstro?

- De jeito nenhum, minha flor. Sei o quanto é penoso ficar nesta masmorra. Vim trazer-lhes alimento porque sei que estão famintas!

Ao mesmo tempo, ela apontou para a comida e disse:

- Vamos, comam e bebam, minhas flores! Saboreiem esta comida que preparei com amor!

Imediatamente, as sete moças avançaram contra o precioso alimento. Estavam realmente famintas e Liziane estranhou a falta de modos de donzelas portadoras de tanta beleza.

- Parece que nunca viram comida! - exclamou ela

- Elas são tão lindas...eu tenho muita pena! - exclamou Eribéia contendo as lágrimas novamente.

- Bem, eu não estou com a mínima vontade de comer. Quero sair daqui e acabar com toda esta palhaçada. Maldita a hora que fui dar ouvidos àquele narcisista do bosque. Poderia ter seguido meu caminho e ido em outra direção!

- Ah, você veio pelo bosque que circunda o Palácio? Então deve ter se encontrado com Quíron?

- Não, não me encontrei. Quem é esse?

- O Centauro.

- Centauro? Uma criatura metade homem, metade cavalo?

- Isso mesmo. Ele é um amor de cavalinho. É tão sábio, tão inteligente! Ele é tão galantezinho com aquele tronco de homem e corpete de cavalo. Tem os músculos saltados, o porte robusto, parece um deus! E o pêlo, nossa, é brilhante, macio, cheiroso! Dizem que são as ninfas quem tratam do seu pêlo, por isso é tão bem cuidado. E ele é tão animadinho. Quando me vê fica saltitante, parece uma criança. E pula pr'á lá, e pula pr'á cá, e “pocotó pocotó”! Quando eu apareço com meus biscoitos, então, nossa, ele fica todo feliz, saltitando de um lado pr'o outro e batendo os casquinhos no chão. Abana o rabinho e relincha de alegria! Ele é um amorzinho! E o que você perguntar ele lhe responderá! É tão sábio!

- Acho que vou procurar este tal Quíron. Talvez ele, metade animal, seja mais racional do que todo este bando de neuróticos que encontrei. Quem me garante que ele não me indicará a saída deste hospício tamanho-família?

- Isso, minha flor, procure por ele! - aconselhou a gentil senhora se esquecendo que Liziane era feita prisioneira.

- A senhora tem umas amizades excêntricas, não?

- Eu só trato a todos com carinho, minha flor!

Nisso, a jovem Ariadne, que a tudo ouvia com a máxima atenção, chamou a atenção de Eribéia para deixarem a cela.

- Já está na hora, Eribéia!

- Isso mesmo, minha flor. Temos que servir os rapazes!

A mulher despediu-se delas e chamou o guarda para que abrisse a porta do calabouço. Antes de sair, Ariadne voltou-se para Liziane e murmurou:

- Tive um belo sonho esta noite. Sonhei que um grande herói, vindo de Atenas, acabaria com todo este pesadelo. Se os deuses assim o desejarem, vocês estarão salvos!

Liziane não respondeu. Não queria mais compartilhar da encenação. As duas deixaram o local e a enorme porta voltou a ser trancada novamente. Liziane se voltou para a comida no fundo da cela: as moças já haviam devorado praticamente tudo. Ela, por sua vez, não tinha a menor vontade de comer. Tinha um único desejo: ir embora.

- Esfomeadas! - exclamou consigo mesma.

 

Liziane não fazia a menor idéia de que horas eram quando a enorme porta se abriu e alguns guardas penetraram no calabouço. As moças acordaram assustadas e começaram a gritar, pois sabiam que havia chegado a hora.

- Calem a boca, suas esganiçadas! - ralhou Liziane, sempre com os pés no chão.

Os guardas amarraram correntes à seus pés, ligando-as como se formando um único elo. Assim, se uma delas desejasse fugir, estaria presa à sua companheira.

Deixaram o calabouço em fila indiana, sendo Liziane a primeira do grupo. Seguiram pelo corredor e, ao invés de subirem os degraus por onde haviam descido, percorreram cerca de alguns metros até alcançar uma saída que dava para as ruas de Cnossos. Logo atrás delas vinha um grupo de sete fortes rapazes também acorrentados. Os guardas os conduziram pelas ruas de chão batido sob os olhares satisfeitos da população, que via naquele sacrifício uma forma de manter a peste e a fome afastadas dali.

Liziane procurava manter a serenidade pois continuava certa de que tudo não passava de um teatro, um circo, como ela mesma dizia.

Caminharam cerca de quinhentos metros até alcançarem uma enorme fortificação. Era a mesma construção que Liziane havia visto do alto do bosque, logo que avistou a cidade.

A fortificação era impressionante, formada por quatro muralhas com cerca de cinco metros de altura e devendo ter aproximadamente mil quilômetros quadrados. Junto ao portal de entrada, onde haviam dois guardas de vigia, estavam Minos e sua rainha Pasifaé, aguardando o sacrifício com ansiedade. A direita da mãe estavam Ariadne, uma outra jovem que Liziane concluiu se tratar de Fedra e a simpática Eribéia, que já se encontrava em pranto convulsivo.

O grupo estacou diante do rei e este admirou-os, satisfeito. Após breve contemplação dos objetos de sacrifício para o filho de sua mulher, uma voz ecoou de algum ponto dali:

- Aqueles que devem morrer, saúdem o rei e a rainha!

Liziane, sempre acompanhada de sua bolsa, percebeu que as moças e os rapazes fizeram sinal de reverência, curvando-se diante de Minos e a rainha. Todos com exceção dela e de um jovem rapaz acorrentado aos demais, logo atrás do grupo de donzelas.

Minos aproximou-se de Liziane com arrogância, ordenando:

- Saúde o rei, cretina!

Ela sentiu seu sangue ferver, exclamando:

- Com prazer!

Imediatamente, Liziane desferiu um violento golpe com sua bolsa contra o rosto de Minos, que soltou um tormentoso brado. Risos ecoaram entre a multidão, sob os gritos de ódio de Minos.

- Joguem-na no Labirinto! Lancem estes bastardos de Atenas para a morte!

A porta se abriu e os quatorze jovens foram empurrados para dentro da grande fortificação. Eles se viram dentro de uma espécie de hall de entrada para o Labirinto e então foram conduzidos pelos guardas por entre as paredes e pilastras que formavam o conjunto. O lugar era todo formado por inúmeras divisões desconexas, originando um complexo de onde seria impossível sair. Depois de darem algumas voltas com o grupo, os guardas retiraram as correntes e os abandonaram ali, retornando até a saída, caminho que eles conheciam muito bem com anos de treino. Havia uma tocha iluminada naquele primeiro corredor e demais outras ao longo do caminho, se bem que apagadas. A intenção era caminhar ao longo do edifício e, à medida que se caminhava, iluminar as demais tochas para facilitar o percurso.

O pavor começou a tomar conta de alguns dos jovens, especialmente das moças, as quais tinham certeza de que a morte logo viria. Liziane pediu para que tivessem calma:

- Se vocês ficarem berrando como galinhas esganiçadas o tempo todo, vão atrair o "cabeça de vaca" até nós!

Eles, porém, não lhe deram ouvidos, sendo que um dos rapazes se manifestou:

- Vamos nos manter unidos e procurar a saída deste lugar! Quem quiser que me siga!

- Não há saída deste lugar! - disse o rapaz que anteriormente se recusara à venerar Minos – Se quiserem sair daqui, terão que esperar aqui mesmo até que...

- Esperar? Nunca! - gritou outro rapaz, convicto - O monstro logo virá até nós. Fujamos enquanto há tempo!

Ele saiu em disparada, sendo seguido pelos demais rapazes e moças. Liziane permaneceu observando-os por algum tempo sem saber o que fazer. Foi aí que ouviu a voz do jovem de cabelos castanhos e curtos, pele bronzeada e porte robusto:

- Eles não permitiram que eu concluísse!

Liziane admirou os músculos salientes do rapaz que demonstrava uma grande serenidade.

- Você tem algum plano?

- Eu iria fazê-los esperar aqui até que eu o matasse!

- Matar o Minotauro? Você?

- Só assim teremos chance de escapar vivos daqui. Além do mais, vim de Atenas para honrar meu pai.

Liziane mediu-o com os olhos. Estava doida para saber quem seria aquele mais novo maluco em seu caminho.

- Quem é você?

- Meu nome é Teseu, filho de Poseidon. Meu pai terreno é o rei Egeu, de Atenas. Vim para acabar com este monstro que destrói os sonhos de nossa juventude. Este terrível tributo que Creta faz imperar sobre Atenas deve acabar. Este monstro deve morrer para que nossos jovens voltem a ter paz. Nossas crianças de hoje serão os jovens sacrificados de amanhã.

- Acho estranho este tributo numa época em que se fala de globalização.

- Você fez bem em ficar comigo. Não se desesperou como os outros.

- Desesperar pr'á quê? Isso tudo não passa de uma palhaçada!

- A filha do rei esteve comigo ontem. Eu a conheci há dois dias, logo que o navio chegou. Apaixonamo-nos e ela prometeu me ajudar. Ontem, quando esteve em nossa cela com sua ama, ela me revelou a única maneira de escapar do Labirinto!

- E qual é? - perguntou Liziane, curiosa.

- Com isto!

Teseu retirou um fuso do interior de sua túnica, onde estava enrolada uma grande quantidade de lã, o caminho para a liberdade do Labirinto...

 

- Muito bem, e o que você pretende fazer? - perguntou Liziane, à medida que acompanhava Teseu e este desfiava o novelo de lã dado por Ariadne. Os dois caminhavam pelos corredores desconexos do grande Labirinto, sem saber o que encontrariam entre uma passagem e outra.

- O monstro não tem hora para parecer - explicou Teseu - Pode estar em seu trono, no centro deste lugar, como também estraçalhando um daqueles pobres jovens que se separaram de nós.

- Eles foram inconseqüentes! - disse Liziane – Ei, mas de que adianta começar a desfiar este novelo agora? Os guardas nos fizeram andar bastante antes de nos deixarem.

- A filha do Rei conhece muito bem o labirinto. Disse que sabe onde os guardas costumam abandonar os prisioneiros e irá nos esperar lá. Terei tempo de matar o monstro.

O que se ouvia enquanto tentavam explorar o lugar era somente o eco de suas próprias vozes, pois o Labirinto fôra construído com um teto. Aquilo deixava Liziane um pouco preocupada, pois temia surpresas. Para evitar qualquer susto desnecessário, ela mantinha-se armada com sua bolsa.

- Se o chifrudo resolver aparecer, ele terá o que merece!

Caminharam por um longo tempo que Liziane não soube precisar. A idéia de estar naquele lugar começava a desagradá-la, e ela perguntou a Teseu sobre a possibilidade de voltarem, seguindo o fio de lã.

- Não podemos esperar por ele! - argumentou o jovem ateniense

- Escute aqui, eu não sei por que você está levando este circo com tanta seriedade. Acho que Pasifaé lhe pagou muito bem para esta representação, não é?

- Não tenho nada com a rainha - disse ele sobriamente - E não estou representando!

Liziane pensou em dizer alguma coisa, mas um estranho e pavoroso mugido ecoou pela edificação, assustando a ambos.

- O que foi isso? - indagou Liziane olhando para todos os lados

- É o monstro!

O ruído animal tornou-se freqüente e Teseu concluiu que ele estaria se aproximando de onde estavam, atraído pelo seu cheiro. Era mais do que certo que o Minotauro conhecia muito bem os seus domínios.

- Ele deve estar por perto! - exclamou Teseu olhando para frente e para a sua retaguarda.

- Pois ele que venha! - disse Liziane segurando a sua bolsa de maneira estratégica. Ao passo que andavam pelos corredores escuros, Liziane ia acendendo as demais tochas. Estava visivelmente impressionada com a arquitetura do lugar e começou a questionar se tudo era realmente uma encenação. Se era, imaginou que Pasifaé havia gasto muito dinheiro para construir tudo aquilo.

- Vamos continuar percorrendo! - disse ele desfiando o fio - E esteja preparada para quando o monstro aparecer!

- Já disse que ele pode vir à vontade. Terei o máximo prazer em me encontrar com ele!

Poucos passos adiante e, ao iluminarem uma nova tocha, se depararam com um pequeno portal livre. Teseu sabia que ali estava o centro do Labirinto, justamente ande o Minotauro costumava se esconder.

- É aqui! - exclamou ele

O eco de suas palavras vibrou mais forte naquele recinto de mais ou menos cem metros quadrados. Ao penetrarem, notaram que já haviam tochas acesas e, justo ao centro, um trono de concreto sem qualquer luxúria onde o monstro deveria costumar se sentar. Liziane pensou em dizer alguma coisa, mas um clamor ecoou de algum lugar ao fundo do salão:

- Estamos aqui!!

Teseu largou o fuso com a lã sobre o trono, correndo em socorro dos jovens atenienses que se encontravam prisioneiros numa jaula escondida na penumbra do lugar mal-iluminado.

- Onde está o monstro? - perguntou ele forçando a porta da jaula para libertá-los.

- Ele nos obrigou a vir até aqui, onde nos prendeu - explicou o mesmo jovem intrépido que chamou pelos outros na entrada do Labirinto. - Ele saiu atrás de vocês, pois consegue sentir o cheiro dos humanos!

Liziane, ao vê-los, não conseguiu se conter:

- Bonito, não? Se afastaram de nós e agora estão onde merecem! Quem mandou vocês bancarem os "metidos”?

De repente, o mesmo assombroso mugido ecoou no recinto, justamente atrás de Liziane, que saltou para frente, assustada. Com a mão no coração, ela voltou-se na direção do ruído e se surpreendeu diante da imponente figura de um homem com aproximadamente dois metros de altura e cabeça de touro olhando para ela.

- Seu animal! - berrou achando que se tratava do ator representando o Minotauro - Quer me matar de susto?

O Minotauro soltou um urro, irritando ainda mais Liziane que, sem se conter, desferiu-lhe uma violenta bolsada na cabeça.

- Seu grosso!

A fera bestial, furiosa diante daquele gesto, avançou na direção da moça, que tentou se esquivar contornando o trono no centro do salão. Numa perseguição voraz, ela começou a amaldiçoar a fera que, sem ao menos compreendê-la, empreendia implacável perseguição à moça, em círculos.

Contudo, foi justamente neste instante que Teseu pulou sobre o monstro, agarrando-o em seu pescoço pelas costas. O Minotauro tentou se desvencilhar dele, lançando o herói ateniense para o outro extremo do salão como se fosse um boneco. Teseu gemeu com o impacto no chão e teve tempo de perceber o monstro vindo em sua direção soltando brados de fúria. Rolou o corpo sobre o piso frio antes que a fera lhe atingisse com os punhos cerrados, pondo-se em pé, em posição de ataque. O Minotauro, criatura extraordinária pela sua metade humana e a outra animal, mantinha um porte imponente diante do adversário que tinha mais ou menos o seu tamanho e a mesma quantidade de músculos. Puseram-se em posição de observação mútua, esperando o melhor momento para atacar. Liziane resolveu ajudar Teseu, aproximando-se novamente do monstro e acertando a bolsa contra as suas costas. O Minotauro se voltou para ela, proporcionando a Teseu a chance de agarrá-lo novamente pelo pescoço e aplicar uma chave de braço, estrangulando-o. A fera começou a se agitar, tentando se desvencilhar do ateniense, porém o herói manteve-se preso a ele, usando todas as suas forças para derrubá-lo. Liziane pulava de um lado para o outro numa eufórica torcida por Teseu que, em poucos minutos, conseguira imobilizar o braço esquerdo da besta e asfixiá-la. O Minotauro, pouco a pouco, começou a dobrar os joelhos, tombando em seguida sob o peso do corpo de Teseu. Foi neste momento que Liziane viu, horrorizada, o herói torcer violentamente a cabeça do touro, quebrando-lhe o pescoço.

- Teseu, você quebrou o pescoço dele? - indagou ela, incrédula.

O jovem de Atenas, com a respiração arfante, largou o corpo inerte do Minotauro sobre o concreto frio, enxugando o suor que lhe escorria da testa.

- Eu o matei, Liziane!

- Mas acho que você exagerou! - disse ela preocupada - Eu cheguei a ouvir o ruído do pescoço dele se quebrando. Era só de mentirinha, seu assassino!

Teseu não lhe deu ouvidos, caminhando em direção à jaula onde os jovens atenienses vibravam de alegria diante de sua vitória. Avisaram-no de que o Minotauro depositara a chave junto ao assento de seu trono. Em poucos segundos os sete rapazes e sete moças se ajoelhavam diante de seu salvador, beijando-lhe as mãos.

Liziane, de braços cruzados e um tanto preocupada com o corpo inerte do Minotauro, tentava reanimá-lo, porém sem sucesso:

- Ei, já acabou! Pode parar de fingir!

Ela chacoalhava o corpo do homem-touro com a ajuda de seu pé esquerdo, estranhando o fato dele não se mexer.

- Escute, fim do primeiro ato!

- Deixe-o, Liziane! - disse Teseu apanhando o fuso com a lã que os guiaria até a saída - Está morto!

- Estou vendo! Acho que você exagerou, Teseu!

- Precisava ser feito! - disse ele calmamente - Atenas está livre do jugo de Cnossos!

Ele puxou-a pelo braço para que deixassem o que outrora fôra o aposento principal do monstro de Creta sob o olhar ainda aturdido de Liziane. Aos poucos ela começou a perceber um certo realismo em tudo o que estava vendo, mas queria realmente acreditar que tudo não passava de uma representação teatral.

Deixaram o salão e seguiram o caminho formado pelo fio de lã. Em pouco tempo alcançavam o ponto de partida, onde Ariadne os aguardava com ansiedade. Por fim, ela guiou-os até a saída do Labirinto, rumo à liberdade.

 

Os jovens atenienses acabavam de embarcar no navio que a princesa mandara preparar, clandestinamente, para fugirem. Quando Teseu se preparou para ajudar Liziane a subir, ela relutou:

- Não, muito obrigada. Quero ficar por aqui mesma! Para mim chega de navios, sereias e bois!

- Ficar? Se Minos encontrá-la, ele a executará!

- Não se preocupe, não vou voltar lá! Vou ao bosque!

- O que irá fazer lá? - perguntou Ariadne, preocupada com o destino da moça.

- Vou seguir o conselho de Eribéia e tentar encontrar o tal Centauro Quibe. Talvez ele seja sábio o suficiente para me ajudar a voltar para casa. Além do mais, se não encontrá-lo, alguém equilibrado eu hei de achar!

- Você quer dizer “Quíron”? – corrigiu Teseu.

- É, que seja!

Teseu riu de seu comentário sem realmente entender a que ela se referia. Abraçou-a, fraternalmente, e beijou-lhe o rosto, dizendo:

- Obrigado, Liziane. Você foi muito corajosa. Ajudou-me muito!

- Eu disse que estava preparada para ele!

Ariadne abraçou-a também e, em seguida, ajudada por Teseu, subiu ao navio.

Logo, a embarcação levando os atenienses e a princesa se afastava da praia rumo ao continente. Liziane permaneceu durante algum tempo acenando para eles até que iniciou uma marcha acelerada rumo ao bosque onde encontrara Narciso. Tinha a pretensão de encontrá-lo novamente. Talvez ele a ajudasse a encontrar o tal Centauro.

- Ou pelo menos alguém certo da cabeça! - murmurou enquanto caminhava acompanhada de sua bolsa...

 

Liziane chegou ao lago onde anteriormente estava o jovem Narciso, mas não o encontrou ali. Ficou desapontada. Estava cansada, com fome e necessitada de um banho. Pensou em se banhar nas águas límpidas do lago, mas temia que alguém aparecesse e a prendesse por atentado violento ao pudor.

- As leis de seu mundo não prevalecem aqui, jovem peregrina!

Liziane voltou-se na direção da voz atrás dela e teve nova surpresa: diante dela, observando-a com um sorriso nos lábios, estava a figura de um ser metade homem, metade cavalo. Imaginou que aquele deveria ser Quíron.

- Sim, sou eu mesmo! - disse ele

- Você leu meu pensamento? - perguntou ela, perplexa.

- Sim, eu li. Zeus dotou-me com este dom magnífico, além da sabedoria. Já tive o prazer de confabular, por diversas vezes, com a deusa Atena e a bela Têmis, deusa da justiça, bem como com suas sábias e justiceiras filhas!

Liziane mediu-o das patas à cabeça. Para ela se tratava de um novo ator vestindo uma fantasia de cavalo. Aproximou-se e observou melhor a linha divisória abaixo de seu umbigo humano onde iniciava a sua porção eqüina. O Centauro, que sabia o que ela estava pensando, preveniu-a:

- Não uso uma fantasia, Liziane. Sou Quíron, filho de Íxion e de uma nuvem em forma de mulher moldada por Zeus.

- Como sabe meu nome?

- Posso ler pensamentos, já disse. E já a previno que tudo o que já viu e está vendo é a mais pura realidade de nosso mundo.

- O quê quer dizer com "nosso mundo"? Por acaso eu tenho cara de interplanetária? Não sou o E.T. de Roswell, muito menos o de Varginha, se é isso que está pensando! O seu mundo é o meu mundo.

- Acompanhe-me...

Ele se embrenhou na mata virgem, sob os gritos de Liziane:

- Ei, espere aí, aonde você vai?

Ela o seguiu floresta adentro, encontrando uma caverna escondida em meio à vegetação. Viu quando o Centauro penetrou em seu interior, correndo logo atrás dele. Lá dentro, repentinamente, uma imensa tela se iluminou diante dela. Assombrada, Liziane assistiu cenas de seu encontro com Ulisses, o Ciclope, sua conversa com Narciso e a chegada à Cnossos, terminando com a despedida de Teseu, na praia. Procurou pela máquina projetora em algum lugar no alto daquela caverna, sem sucesso. Teve a impressão de que o filme não estava sendo exibido, mas simplesmente acontecendo diante dela.

- Você é a enviada de Quíron?

Liziane ouviu uma voz feminina vir de algum lugar no interior da caverna. Viu surgir, da penumbra, munida de uma lanterna, a figura de uma velha decrépita de aparência assutadora: nariz comprido, pele muito enrugada e cabelos grisalhos, compridos. O peso da idade forçava-a a andar curvada para frente. Uma túnica negra cobria completamente seu corpo frágil.

- Quem é você? Onde está o Centauro? - perguntou Liziane

- Meu nome é Átropos, a Inevitável...

- O quê?

- Siga-me! - ordenou a mulher

Desconfiada e, ao mesmo tempo, curiosa, Liziane seguiu a velha através de um extenso corredor úmido e frio. No final, deram para um imenso salão natural, recheado de estalactites e estalagmites por toda a parte. No centro, Liziane distinguiu a figura de outras duas mulheres exatamente iguais à primeira. Estavam sentadas, cada qual sobre uma pedra e manipulando fios brancos parecidos com seda. Liziane percebeu que se tratavam de fiandeiras.

- O quê elas estão fazendo?

- Você verá! - disse a velha, que conduziu Liziane através do caminho acidentado entre as rochas da lúgubre caverna até as outras duas mulheres. Estas, ao verem Liziane, receberam-na secamente:

- Esta é a enviada de Quíron? - perguntou a que estava fiando.

Liziane percebeu que ela usava os dedos para produzir o fio, como que se o tirasse do nada.

- Não temos tempo para ela! - disse a outra, que ordenava o seu cumprimento.

- Quíron preveniu-nos de que ela viria. Pediu-nos para que a deixássemos passar! - explicou a velha que recebera Liziane na entrada da caverna.

- Ninguém está autorizado a passar! - gritou a primeira - Ainda mais se tratando de uma mortal!

Liziane, impaciente como sempre, resolveu se intrometer:

- Com licença, só uma perguntinha: vocês são loucas?

As velhas começaram a rir como bruxas maquiavélicas e o som de suas gargalhadas ecoaram por toda a caverna!

- Quíron abusa de nossa paciência, Átropos! - disse a fiandeira - Esta mortal não deveria estar aqui!

- Ah, é? E por que não? - indagou Liziane de modo autoritário.

- Pelo simples fato de ser mortal. O maldito Centauro, simplesmente por ter nos ajudado a impedir a morte de nosso irmão Hipnos pelo malvado Hades, o deus do mundo subterrâneo, acha que lhe somos devedoras, pedindo-nos os mais absurdos favores! Ele nos exigiu que deixássemos você passar por nós. A saída desta caverna lhe permite encontrar o Olimpo!

- Acontece, minha senhora, que eu não pedi nada a ninguém e muito menos sei o que é que estou fazendo aqui. Só sei que segui o tal Quíron até o interior desta maldita caverna e dei de cara com esta velhota aqui! Aliás, quem são vocês?

- As Moiras! - responderam em uníssono e gargalhando em seguida.

- Pois bem, donas Moiras! Qual é a função de vocês na palhaçada promovida por Pasifaé? Sim, porque eu já vi de tudo desde que esta baboseira começou no maldito Pico do Marumbi!

- Somos as deusas do destino! - respondeu a fiandeira - Sou Cloto, a que tece o fio da vida!

- Eu sou Láquesis, a que determina o cumprimento! - disse a outra.

- E eu, Átropos, corto-o! - disse a primeira.

- Deusas do destino, é? Então permitam que eu me apresente: sou Joana D'Arc, mas muitos me chamam de Elisabete Taylor ou Jacqueline Kennedy! Sou a deusa das bolsadas!

As Moiras se entreolharam, sem parar de trabalhar o fino fio de seda. Cloto, a mais radical dentre as três, simplesmente mencionou com sua voz estridente:

- Nunca ouvimos falar!

- Ah, mas depois que vocês provarem da minha bolsa, tenho certeza de que jamais se esquecerão de mim!

Ela tomou posição para usar sua maior arma contra as velhas, quando parou bruscamente diante do grito em uníssono proferido pelas três, que ecoou por toda a caverna:

- Quem vem lá???

Uma voz masculina e forte como o trovão foi a resposta:

- Apolo, deus do Belo e da Música! Veneradas Moiras, peço-lhes uma audiência!

- Aproxime-se! - ordenaram as três.

Pelo mesmo caminho que Liziane percorrera na companhia da velha Átropos, surgiu um formoso jovem de cabelos negros e ondulados. Tinha os músculos muito bem trabalhados e corpo atlético. Na mão direita segurava uma cítara, enquanto trazia uma parte da túnica presa ao pescoço e que lhe cobria somente as costas, terminando pendente sobre o antebraço esquerdo. O resto de seu corpo estava completamente à mostra, com exceção das genitálias, cobertas por minúscula sunga.

- Mais um biruta! - murmurou Liziane

O jovem Apolo saudou-as com um sorriso, causando uma certa simpatia em Liziane diante de tamanha beleza masculina.

- Perdoem-me se as aborreço, sábias e eternas Moiras.

- O quê quer, filho de Zeus? - questionou Cloto sem se esquecer de seu trabalho junto ao misterioso fio da vida.

- Desejei visitá-las! - respondeu o jovem - Queria agradá-las com minha música e oferecer-lhes um pouco de vinho...

Diante delas, sob o olhar aturdido de Liziane, surgiram cinco cálices de ouro puríssimo flutuando no ar. Liziane não sabia como aquele truque fôra produzido.

- Bebamos! - disse ele apanhando as taças e entregando-as às Moiras. A última ele entregou à Liziane, mesmo sem conhecê-la.

- Beba conosco, bela donzela!

Liziane sentiu-se hipnotizada diante daqueles olhos azuis como o céu. Nunca vira homem mais belo em toda a sua vida e não fez outra coisa a não ser apanhar o cálice de suas mãos e beber. Sentiu-se revigorada diante do sabor daquela bebida deliciosa. Jamais havia provado de tão saboroso vinho.

- Obrigada! - disse ela meio atrapalhada e sem retirar os olhos dele.

O jovem Apolo, contudo, voltou-se para as Moiras, que bebiam goles e goles de vinho. O poder do jovem era tão especial que, quando o cálice se esvaziava nas mãos das velhas, imediatamente voltava a se encher com vinho. O cálice de Liziane, entretanto, esvaziou­-se uma única vez e não tornou a se encher. Ela não quis dizer nada, visto que não queria mais beber, procurando observar o que iria acontecer. Notou que Apolo tocava sua cítara e mantinha uma conversa animada com as Moiras, enquanto que estas bebiam e gargalhavam sem parar. Ao fim de algum tempo, as três tombaram no chão pedregoso da caverna, aos pés do belo rapaz, totalmente embrigadas. Aproveitando a situação, ele apanhou o fio de seda largado sob os corpos das velhas, enrolou-o e guardou-o entre as dobras de sua túnica.

- Por quê fez isso? - perguntou Liziane ainda segurando o cálice vazio.

- Tive de enganá-las. Átropos prometeu cortar o fio de Admeto neste dia!

- Admeto? Quem é ele?

- Alguém que amo muito! Iria buscá-lo no Hades se fosse preciso para mantê-lo eternamente ao meu lado.

Liziane torceu o nariz, lembrando-se de Narciso, mas em seguida procurou pensar que se tratava de um grande amigo, talvez um irmão.

- Venha comigo, linda heládia! - pediu ele estendendo-lhe a mão.

Liziane, hipnotizada pelo olhar do recém-chegado, segurou-lhe os dedos e fechou os olhos sem saber o porquê. Sentiu o chão faltar-lhe sob os pés, o vento batendo contra seu rosto. Abriu os olhos lentamente, tendo uma surpresa: estava flutuando entre as nuvens do céu: Lá embaixo, viu o continente, as florestas e o oceano ao longe. Ao seu lado, segurando sua mão, estava Apolo, que sorria magnificamente. Liziane acreditou estar sonhando, tamanha a satisfação e o prazer daquele momento. Percebeu que estava vestindo uma túnica diferente: era azul, da cor do céu, mais comprida, tecida com fios de seda. Sentiu-se revitalizada e o cansaço que até então tomara conta de seu corpo havia desaparecido por completo.

Após um longo momento volitando, Liziane avistou uma grande montanha no horizonte, ao longe. Seu cume estava atrás das nuvens brancas que cobriam o céu, as quais eles atravessaram em questão de segundos. Logo o alto da montanha se fez visível e Liziane percebeu que seu cume era uma extensa planície coberta por lagos e árvores. Desceram sobre uma região limpa, onde magníficas colunas e templos de primoroso estilo arquitetônico grego se mesclavam ao verde do campo.

- Nossa...que lugar!

Apolo levou-a com ele até um dos templos. Sua arquitetura lembrava muito à Acrópole grega, em Atenas, que Liziane conhecia de fotos e livros sobre a Grécia.

- Você vive aqui?

- Vivo em todos os lugares onde há o Belo, Liziane...

- Como sabe meu nome?

- Eu sei tudo. Sou um deus...

Logo, inúmeros jovens de ambos os sexos começaram a caminhar por ali, saudando o belo deus. Liziane estranhou o fato de não vestirem uma única peça de roupa sequer, andando nus através do belo tapete verde que cobria a região. Alguns rapazes e moças completamente nus e com os corpos perfeitos, lembrando à Liziane as estátuas da Idade Antiga, vieram ter com Apolo, trazendo-lhe frutas, liras e cântaros com água. Ali mesmo, diante dela, enquanto alguns o refrescavam com o abano de plumas, outros levavam uvas à sua boca. Ao mesmo tempo, duas das belíssimas moças lavaram seus pés e os enxugaram com os próprios cabelos compridos e sedosos, enquanto que dois belos rapazes tocavam suas liras para agradar ao deus. Em recompensa, Apolo beijou os lábios de cada um deles, os quais logo o deixaram, apressados, sumindo para o interior do templo.

- Mas que pouca vergonha! - ralhou ela - Quem são esses imorais?

São os ninfeus e as ninfas! - respondeu ele com voz doce.

- São seus escravos?

- Não tenho escravos. Tenho adoradores. Aqui todos amam as artes, a música, enfim, o Belo!

- Por que você beijou aqueles rapazes?

- Como agradecimento. Eles me ofereceram seus préstimos e eu os recompensei.

Todos aqui ambicionam um beijo de Apolo.

- Até os homens?

- E por que não haveria de ser? - perguntou ele, perplexo.

- Por nada, bobagem!

- O beijo é a manifestação do amor puro. Beijo meus adoradores porque os amo!

- Mesmo assim, ainda está difícil de entender! Nada contra, é só falta de costume.

- Quíron falou-me a seu respeito!

- Você também? Mas que Centauro fofoqueiro! - exclamou Liziane começando a perder a placidez que a dominara até então.

- Ele me avisou que viria. Preveniu-me também que você não é uma das nossas!

- Como assim?

- Ele me disse que você vem de uma terra desconhecida, um mundo além do Olimpo!

- Olhe, está todo mundo tentando me convencer de que eu estou na Grécia e já começo a acreditar! Já vi sereias, ciclopes, um homem com cabeça de touro e muitas outras aberrações. Pode até ser verdade...ou maluquice, ou mesmo um sonho. Mas eu quero ir embora ou acordar logo!

- Por que reluta em aceitar a realidade? As coisas são tão mais fáceis quando aceitamos aquilo que não conseguimos compreender.

- Você está querendo me dizer que eu estou realmente testemunhando as fábulas da Grécia Antiga e que agora estou no Olimpo?

- Você não viu as Moiras? Não viu os cálices de vinho flutuando no ar e se enchendo do líquido constantemente? E o nosso vôo até aqui?

Liziane refletiu um pouco. Já havia visto muita coisa estranha desde que, acordou naquela caverna e encontrou Ulisses. Parecia real demais para ser uma armação.

- Mesmo assim, não sei o que vocês pretendem. Qual o motivo de ter me trazido aqui? Veja só onde é que fui me meter. Antes tivesse entrado na banheira flutuante de Teseu.

- Teseu, o filho de Egeu? Vejo que ele está com Fedra, a filha mais jovem de Minos!

- E Ariadne?

- Ele a abandonou na ilha de Dia...

- O quê? Pulou a cerca? Que cafajeste, ainda mais com a cunhada!

- Não se preocupe, Dionísio já encontrou Ariadne na ilha. Ele já a trouxe ao Olimpo!

- Ariadne está aqui? - perguntou Liziane olhando em torno.

- Está, mas em outro lugar. Está na dimensão de Dionísio!

- Mas tão depressa? Mal dei as costas e já aconteceu isso?

- Acredite, você está na dimensão do Belo!

- E onde está Zeus? No botequinho da esquina?

- Infelizmente, não poderá vê-lo! - preveniu o deus que não compreendia muito bem a ironia dela.

- E por quê não?

- Nenhum mortal pode ir até Zeus. É ele quem vai até os mortais!

- Que besteira. Isso para mim é orgulho!

- Cuidado com as palavras, bela donzela. Se Zeus a ouvir ele pode fulminá-la com um raio!

- Bah! - exclamou ela - Eu não tenho medo porque sou filha de Deus Perfeita e Maravilhosa! Antes dele há um Deus muito maior e...

- Quem é esta jovem, Apolo?

Liziane foi interrompida por uma jovem formosa com lindos e sedosos cabelos negros cujo comprimento lhe cobriam as costas. Vestia uma grinalda lindíssima que esvoaçava ao sabor do vento. Seus grandes olhos negros se destacavam em meio ao tom róseo de sua pele. Com certeza se tratava de uma deusa, pois Liziane percebeu que ela parecia flutuar diante deles.

- Esta é a jovem Liziane, vinda de terras além de Hélades!

A jovem aproximou-se de Liziane e beijou-a no rosto, em sinal de amizade.

- Seja bem-vinda, Liziane. Sou Afrodite, a deusa do Amor.

Liziane não sabia mais o que dizer, limitando-se a um cumprimento com a cabeça.

- Acho que você gostaria de ouvir algumas histórias nossas, não é, Liziane?­ - indagou Apolo estendendo-lhe a mão e guiando a moça até o templo. Afrodite os seguiu volitando. Liziane estava prestes a conhecer as mais lindas e belas fábulas do mundo grego...

 

Liziane foi convidada a se sentar em meio a aconchegantes e macias almofadas em forma de nuvens, espalhadas no salão principal do Templo de Apolo. Alegres jovens desnudos harmonizavam o ambiente tocando liras, enquanto outras se ofereciam para massagear suas costas.

- Você é minha convidada, Liziane! - lembrou Apolo enquanto algumas crianças cantavam para ele - Deixe que meus adoradores lhe demonstrem nossa hospitalidade!

Um pouco relutante, ela permitiu que duas moças lhe afagassem os cabelos e outras duas lhe proporcionassem uma massagem relaxante em suas costas. Sentiu-se um tanto ridícula, mas achou melhor não contrariar o deus que estava lhe tratando com tanta gentileza.

Logo, algumas ninfas lhes trouxeram frutas e néctar dos deuses, uma bebida preparada a base de flores do próprio Olimpo.

- À sua vinda, Liziane! - exclamou Afrodite, sentada à esquerda de Apolo.

Liziane provou da estranha bebida, sentindo um estranho torpor. Não notou qualquer presença de álcool, mas a sensação de relaxamento que se seguiu deu-lhe a sensação de haver bebido uma droga qualquer. Repentinamente ela começou a se inebriar com o toque das jovens em seu corpo e sentir um amor profundo por todos que estavam à sua volta. Imaginou que estaria sentindo o imenso amor fraterno que fazia aquelas criaturas tão felizes, ao ponto de admirarem todas as coisas que as cercavam.

- Estou me sentindo tão estranha! Vocês me doparam? Por acaso é crack?

- É o Amor! - disse Apolo - Eros está aqui!

- Onde? - indagou ela olhando em volta. Apolo riu, animado.

- Aqui, em toda a parte. O deus do Amor não possui forma. A única que o amou em forma humana foi Psique!

- Já ouvi a respeito disso! - falou Liziane bebendo um pouco mais de néctar.

- Há muitas coisas que você já deve ter ouvido a nosso respeito! - disse Afrodite em meio a um formoso sorriso límpido.

- E vou lhe contar muitas outras coisas! - anunciou Apolo aproximando-se de Liziane e beijando sua mão. Ela sentiu uma emoção forte e agradeceu aos céus por estar se sentindo tão bem.

- Conte-me... desde o princípio! - pediu ela dispensando a massagem e espreguiçando-se sobre as confortáveis almofadas de estranha textura. Pareceu esquecer, por um momento, que desejava ardentemente voltar para casa.

 

Liziane viu-se em meio a uma grande escuridão. Olhou à sua direita e encontrou o sorriso de Apolo. A esquerda estava Afrodite, cujo perfume inebriante lembrava, em muito, aromas do campo trazidos pelo vento. Não entendeu como chegou até ali, pois estava no templo, esperando que Apolo iniciasse seu relato e, de repente, apanhou-se naquele lugar escuro. Não havia nenhum ruído, nada que denunciasse onde estavam.

- Onde estamos? - perguntou admirada com a paisagem cinematográfica.

- No início de tudo! - explicou Apolo, apontando com o dedo para adiante.

Liziane ergueu a cabeça e sentiu um vento fresco vindo de algum lugar. Percebeu que estava volitando na companhia dos deuses e aquilo encheu-a de júbilo.

- Que delícia! - exclamou abrindo os braços e sentindo o vento contra o rosto - Só não sei onde Pasifaé arrumou tanto dinheiro para montar todas estas cenas!

- Você está testemunhando o princípio de nosso mundo, Liziane! - disse Afrodite.

Liziane percebeu, adiante, em meio à toda a escuridão, um enorme corpo oval prateado, lembrando em muito a um ovo de avestruz, navegando através do imenso vazio da noite.

- Nyx, a Noite - explicou Apolo - concebeu do vento e gerou o Ovo Cósmico...

Enquanto ouvia o deus explicar o princípio, Liziane percebeu uma estranha rachadura se produzir no gigantesco corpo, seguindo de um pólo a outro.

- Nossa...está se partindo!

- O impetuoso Eros, aquele que impulsiona todas as criaturas a se unirem, está vindo para fora trazendo Hêmera, a luz do dia...

Liziane vislumbrou que através da enorme rachadura, alguns raios de luz começaram a escapar, atravessando a imensa escuridão. Logo, a grande casca se rompia, libertando magnífica luz que se espalhou por todos os lados numa explosão de cores radiantes. De repente, a noite se dissipou, e Liziane começou a distinguir a imensidão do espaço, reconhecendo estrelas perdidas ao longe e, abaixo de seus pés, a Terra.

- Nossa mãe Géia acaba de nascer! - explicou Afrodite apontando para a Terra.

­Ainda dentro do ovo ela uniu-se a Urano, o grande pai celeste. Vamos descer até o seio de nossa mãe e conhecer os filhos desta união...

Ambos seguraram Liziane pelas mãos e volitaram até a Terra. Em questão de milésimos de segundos estavam diante de uma paisagem bucólica similar ao Olimpo. Tapetes verdes se estendiam por todos os cantos onde a vista alcançava. Jardins floridos das mais variadas cores alegravam o olhar, enquanto animais das mais variadas espécies corriam por entre os gramados e planícies.

Permaneceram flutuando por um bom tempo, até que Liziane percebeu um grande deserto rochoso à sua frente formando um vazio. Havia um gigante em forma de homem caminhando através do chão seco e repleto de rachaduras. De repente, num piscar de olhos, ele se metamorfoseou e a grande cavidade no seio da terra foi preenchida com água, surgindo um esplêndido mar.

- Oceano acabou de nascer!

Afrodite apontou o céu que, novamente, tornou-se estrelado. Estava havendo uma estranha revolução, pois o céu parecia se mover rapidamente diante deles. Liziane viu várias novas criaturas virem à luz, como que nascidas do nada. A deusa explicou:

- Lá estão os outros Titãs, depois de Oceano: Crio, Ceos, Hiperíon, Jápeto e Cronoss!

Tudo acontecia muito rápido e Liziane não conseguia reter todas as imagens. Percebia que estranhas explosões celestes estavam ocorrendo no firmamento negro, originando seres com a forma humana. No fundo, estava tendo uma interessante aula sobre mitologia grega e resolveu esquecer um pouco de sua ira sobre Pasifaé. Afrodite logo apontou à sua retaguarda e a jovem viu nova revolução no hemisfério sul.

- São as Titânides: Tétis, Têmis, Febe, Téia, Mnemósina e Réia!

A moça voltou os olhos para a areia da praia. Percebeu que estranhas formas humanas começaram a surgir dos finos grãos límpidos. Logo, três gigantes com apenas um olho na testa emergiram, imponentes, à beira do mar.

- São os Ciclopes! - gritou Liziane, estupefata - Eu bati em um deles com minha bolsa!

Ambos os deuses riram do comentário da moça e Apolo esclareceu:

- Você bateu em um de seus descendentes. Os Ciclopes se espalharam por toda a Terra.

- Mas estamos na Terra ou no Olimpo? Eu não estou entendendo esta confusão! Vocês deveriam ter chamado o Steven Spielberg para pôr uma ordem nesta bagunça.

- No momento estamos na Terra. Em breve você verá o que acontece no Olimpo.

- Perceba, Liziane, que Hélio está nascendo no horizonte além-mar! – falou Afrodite.

Liziane viu o magnífico astro-rei despontando ao longe.

- Téia e Hiperíon acabam de se unir! Logo nascerão Selene e Eos, seus irmãos!

O Sol cruzou o céu num piscar de olhos, desaparecendo no poente, vindo a noite em seguida. No mesmo lugar onde ele acabara de nascer, Liziane reconheceu a Lua surgindo acima da linha do horizonte, a qual percorreu o mesmo caminho do Sol, antes de desaparecer, porém, permitiu que, à leste, a maravilhosa aurora boreal vislumbrasse os olhos da jovem.

Tudo continuava muito rápido e Liziane não conseguia captar todas as imagens. As figuras no céu iam e vinham, sendo que ela necessitava da ajuda do casal de deuses para lhe explicar o que estava acontecendo. Foi neste momento que uma grande explosão surgiu no céu, ocasionando uma chuva de faíscas por sobre toda a Terra.

- O que aconteceu?

- Réia e Cronos geraram Héstia, Deméter, Hera, Nades, Poseidon e Zeus! - explicou Apolo. - Este último se unirá à deusa Leto, a filha de Ceos e Febe. Desta união nasceremos eu e minha irmã Ártemis!

- Pelo que conheço de mitologia, seu pai era um mulherengo! - disse Liziane

- No Olimpo, tudo é permitido, Liziane! - explicou ele

- E quais foram os filhos de seu pai?

- Além de mim e Ártemis, ele gerou Perséfone, filha de Deméter, a deusa que hoje vive no mundo subterrâneo junto com Hades. De sua união com Sêmele nasceu Dionísio, deus do vinho, da natureza e da alegria de viver. Com Eurínome ele teve as Cárites: Aglaia, a gloriosa, Eufrósina, a alegria e Talia, a fartura! Já com Têmis...

- Chega! - gritou Liziane - Vamos continuar assistindo o filme que está muito mais interessante! - pediu ela percebendo que a mitologia era muito complexa.

- Vamos lhe mostrar o nascimento do Grande Zeus! - anunciou Afrodite

A paisagem se revolucionou diante deles e Liziane viu uma mulher vestindo longa túnica branca que carregava uma criança enrolada num lençol azul celeste entrando numa caverna em algum lugar que ela não soube distinguir. Afrodite sanou sua dúvida prontamente:

- Estamos em Creta. Esta mulher é Réia. Veio procurar por Licto, uma ninfa que tomará conta do menino.

- Mas por que a própria mãe não ficou com ele?

- Cronos, o marido de Réia, devorava todos os filhos que a mulher lhe dava assim que deixavam o ventre sagrado da mãe. Ele era rei entre os filhos de Urano e não queria que nenhum outro deus lhe sucedesse. Sua mãe Géia e o pai, Urano, haviam lhe profetizado que ele seria deposto por um de seus filhos. Dessa maneira, mantendo-se sempre alerta, exigia que Réia lhe mostrasse todos os filhos que lhe dava, devorando-os logo em seguida ao nascimento.

- Credo, que monstro!

- Réia, quando gerou Zeus - continuou a deusa do Amor - Suplicou a seus pais, Géia e Urano, que a ajudassem. Eles ouviram suas preces e a mandaram para Licto, em Creta, onde, na escuridão da noite, escondeu a criança numa caverna na montanha coberta de bosques. Por outro lado, ofereceu a Cronos o, primeiro rei dos deuses, uma grande pedra enrolada em cueiros. O terrível deus pegou a pedra e a engoliu, sem saber que o filho estava em lugar seguro. Zeus, por sua vez, cresceu rápido. Depois de adulto, apareceu diante de seu pai e ofereceu néctar a ele, embriagando-o. Cronos caiu ao pés do filho, que o acorrentou e o aprisionou no alto de uma torre numa das Ilhas dos Bem-aventurados...

- Nossa, mas que filho, heim? - comentou Liziane assistindo todas as cenas que passavam diante dela a medida que a deusa contava a história - O pai não era flor que se cheirasse, mas em compensação o filho...

- Vou lhe contar agora o meu próprio nascimento! - anunciou Apolo fazendo um gesto com a mão e fazendo surgir um novo cenário naquilo que para Liziane se assemelhava à uma tela de cinema em terceira dimensão. Uma ilha montanhosa despontou no meio do mar e Liziane foi transportada para uma paisagem bucólica, comum em toda a Grécia antiga.

- Estamos na ilha de Ortígia. Minha mãe Leto está prestes a dar à luz. Durante nove dias e nove noites ela sofreu dores muito além de suas expectativas. As deusas Réia, Têmis e Anfitrite, a deusa do mar, estavam junto a ela, amparando-a.

Liziane assistiu o trabalho de parto daquela bela mulher loura e com longas madeixas, amparada por três outras amáveis senhoras. O "filme" logo revelou um menino vindo ao mundo, sendo que Têmis banhou-o na água límpida de um rio que passava por perto, cobrindo-o em seguida com panos brancos. Leto, entretanto, não amamentou o filho e Liziane percebeu que Têmis deu-lhe outro alimento.

- São néctar e ambrósia! - explicou Apolo que assistia a si mesmo - Quando provei de tão maravilhoso alimento, o dom da fala desabrochou em mim e cresci rapidamente. Ainda me lembro de haver dito a elas: "Caros me serão a tira e o arco, e em meus oráculos revelarei aos homens a vontade inexorável de Zeus"...

Liziane percebeu que no exato instante em que a criança dissera aquelas palavras, a ilha ficou coberta de flores e ela sentiu um perfume muito forte tomar conta do ambiente. Teve a impressão de que o delicioso aroma provinha da projeção, mas rejeitou a idéia.

- Que bonito! - exclamou ela

- Sou o portador da beleza, Liziane! Onde passo, deixo a minha marca.

- Você poderia dar uma passadinha lá no sertão nordestino. Talvez ajudasse um pouco!

Afrodite anunciou, em seguida, que agora relataria o seu nascimento. Liziane foi transportada para o oceano e ficou um pouco assustada quando mergulharam para dentro d'água. Ela sabia que tudo era um filme, mas às vezes era real demais.

- Lembra-se da história de Cronoss devorando seus filhos? Pois bem, o mesmo fazia seu pai, Urano, quando Géia gerava crianças em seu ventre, porém, ao invés de devorá­-las, ele as escondia na escuridão para que não vissem a luz. Géia, terrivelmente triste, foi ter com os filhos escondidos e contou a estes toda a sua angústia. Disse que Urano vinha todas as noites ter com ela. Por sua vez, ela odiava a atitude dele para com os filhos, acusando-o de criminoso por não deixá-los ver a luz do dia. Cronos, que já havia nascido, prometeu à mãe que encontraria uma solução, punindo-o. Géia fabricou então uma foice de dentes afiados com o ferro de cor cinza de suas entranhas, entregando-a a Cronos.

A cena se passou numa tela no fundo do mar. Liziane testemunhou o momento em que a bela senhora entregava a foice ao deus de cabelos grisalhos e pele pálida. Em seguida, ela permaneceu em uma caverna onde o filho ficou escondido segurando a foice, aguardando pelo amante de todas as noites. Quando Urano chegou, ao cair da escuridão, em busca do amor de Géia, o filho estendeu a mão e castrou o pai, atirando sua virilidade para trás. Em meio ao desespero de Urano, Gaia recebeu o sangue dele em seu ventre, gerando três mulheres monstruosas.

- São as Erínias! - anunciou Afrodite

Ao mesmo tempo, a virilidade de Urano foi atirada para trás, atravessando uma abertura na caverna e caindo no mar. Liziane, um tanto enojada diante daquelas cenas, percebeu que uma espuma branca formou-se em volta da virilidade do pai de Cronoss. Uma metamorfose ocorreu repentinamente, gerando uma bela mulher, a própria Afrodite.

- Nossa, é você! - exclamou Liziane, perplexa - Que nojo!

Mais que depressa, a imagem se esvaneceu e Liziane se viu novamente no Templo de Apolo, deitada sobre as almofadas com textura de nuvens.

- Graças a Deus! - exclamou - Estava começando a sentir ânsia!

- Esperamos que tenha gostado de nossas histórias! - exclamou Afrodite, muito meiga.

- É, até que gostei, não fosse a última parte...

Ela se levantou, apanhou sua bolsa e anunciou:

- Bem, já vou andando. A conversa estava ótima, mas tenho que ir para casa. À propósito, se não fosse incômodo, eu poderia emprestar o telefone? Ah, se vocês tiverem um micro ligado à Internet eu poderia usar o e-mail, assim eu posso enviar um pedido de socorro para a minha revista!

Apolo e Afrodite se entreolharam, sem entenderem absolutamente nada.

- Vamos lhe dar um presente, Liziane! - anunciou Afrodite elevando as mãos acima da cabeça - Pronto, agora você pode ir aonde quiser, desde que seja em terras, de Hélades, no Olimpo ou em Hades, o mundo subterrâneo!

Liziane permaneceu olhando para Afrodite sem entender. A deusa continuou:

- Olhe para seus pés...

Liziane obedeceu e descobriu que suas sandálias gregas haviam desaparecido. Estava vestindo sapatos de cristal de cor pérola.

- Estes são sapatos mágicos! Basta pensar para onde quer ir e você logo estará lá! - explicou a deusa

- Quer dizer que basta pensar? - perguntou Liziane, já acreditando em tudo o que estava lhe acontecendo.

- Sim, mas somente em terras de Hélades!

- E se eu pensar em Curitiba, São Paulo...talvez a Terra do Nunca, não adianta?

- São terras desconhecidas. Estes sapatos só detêm o poder para Hélades, o Olimpo e Hades.

- Tudo bem, não faz mal!

- Como despedida, ofereço a você a oportunidade de ir para algum lugar através de meus poderes! - anunciou Apolo - Para onde você deseja ir?

- Para casa.

- E onde é sua casa? Em Atenas?

- No Paraná, Brasil, América do Sul, Hemisfério Sul, Planeta Terra, Sistema Solar, Via-Láctea, Universo Paralelo 45, nível atômico macromolecular 6...quer as coordenadas também? Posso lhe apresentar as latitudes e longitudes e a diferença de fuso-horário com relação ao meridiano de Greenwich?

- Você me diverte, filha de Hélades! - riu Apolo - Não sei do que fala, mas acho muito divertido!

- Está me chamando de palhaça?

- O quê vem a ser "palhaça"? - indagou Afrodite

- Ihhh, que gente burra! Eu vou é dar o fora daqui! Já vi que vocês não podem mesmo me ajudar a voltar para o meu mundo.

Ela saldou-os com a cabeça, num gesto de reverência que deixou ambos os deuses satisfeitos. Em seguida, para se divertir um pouco, pediu:

- Apolo, gostaria muito de conhecer Hércules. Poderia me levar para junto dele?

- Quem é Hércules? - perguntou o deus, intrigado

- Acho que Liziane está se referindo à Héracles, meu irmão Apolo!

Só então Liziane se lembrou de que Hércules fazia parte da mitologia romana, e Héracles da mitologia grega.

- Ah, certo! Como queira! - disse ela

Liziane observou quando o deus ergueu os braços e fez um gesto no ar. Ela pensou em dizer para que parasse, que estava apenas brincando, mas ambos, ele e Afrodite, sumiram diante dela. O próprio templo desapareceu, e Liziane viu-se sobre uma estrada de chão, numa paisagem típica às que já estava habituada a encontrar por ali.

 

- Se isso tudo fosse um filme, Pasifaé ganharia o Oscar de efeitos especiais! - murmurou em voz alta.

De repente, uma voz masculina soou atrás dela:

- Aonde vai, filha de Hélades?

Liziane levou um susto, voltando-se, as mãos na cintura, o olhar inquisitivo. Percebeu um homem forte, com quase dois metros de altura, parado a poucos metros dela. Vestia um saiote de couro, trazia uma pele de leão formando um colete e calçava sandálias de treliça.

- Precisava me assustar deste jeito? - gritou ela

- Desculpe...só não esperava encontrar uma donzela tão jovem e bonita nestas terras.

- Obrigada. Na verdade, nem eu queria estar aqui, mas uma maluca chamada Pasifaé me enfiou nesta confusão toda e não sei como voltar para a minha realidade!

- Vai para Tênaro?

- Não. Vou para Curitiba., Mas, me diga: quem é você?

- Meu nome é Héracles e...

- Ah...certo, eu havia me esquecido.

- Já me conhece?

- Pessoalmente não. Meu nome é Liziane Quincas.

- Que nome estranho!

- Tão estranho quanto Héracles!

- Deveria sair daqui, Liziane! - disse ele - Não é seguro andar por estas terras.

- Olhe, minha flor, eu não tenho medo de nada.

- Nem mesmo do Hades?

- Hades? Que Hades?

- O mundo subterrâneo.

- Nunca ouvi falar.

- Vim em busca de Cérbero!

- Ahã...sei...

- Já vivi inúmeras aventuras, Liziane. A mais recente, antes da aventura em que agora me encontro, foi libertar Prometeu de sua condenação eterna.

- Quem é Prometeu?

- O irmão de Epimeteu...

- E quem diabos é Epimeteu? - perguntou ela, impaciente

- O marido de Pandora...

- Grrrrrr... - Liziane preparou-se para usar sua bolsa - Quer ser mais claro?

- Prometeu e Epimeteu eram gigantes titãs, inimigos de Zeus e dos deuses. Epimeteu era o guardião do pote que continha os males da humanidade. Havia uma época em que os deuses existiam, mas ainda não havia mortais. Quando chegou o momento para os mortais virem a existir, os deuses os colocaram embaixo da terra, com terra e fogo e tudo o que se mistura com eles. Quando pensaram em trazê-los à luz, ordenaram a Prometeu e Epimeteu que equipassem aquelas criaturas e distribuíssem entre elas as capacidades mais adequadas a cada uma. Epimeteu pediu a Prometeu que o deixasse levar a termo a distribuição sozinho. Desastrosamente, ele distribuiu tudo entre os animais, de modo que o homem ficou completamente desprotegido e descoberto. Nestas condições, Prometeu viu-se compelido a roubar o fogo do templo dos deuses e doá-los à humanidade. Depois disso, o homem pôde sobreviver, mas Prometeu, apesar da culpa ser do irmão, foi punido por isso. A cólera encheu o coração de Zeus quando avistou as luzes, visíveis de longe, das fogueiras acendidas pelos homens. O deus dos deuses ordenou, então, à Hefaístos, aquele que forjou o cetro de Zeus, para que esculpisse a imagem de uma tímida donzela. Ordenou ao ferreiro que misturasse terra com água, incutisse voz à mistura e beleza capaz de despertar o desejo nos homens. Pediu à Atena, a deusa da Sabedoria, que lhe ensinasse as habilidades femininas e a tecedura. Hermes, por sua vez, encheu-a com o despudor da prostituta e da traição. A deusa Atena, por fim, enfeitou-a com um cinto e vestidos alvinitentes. De sua cabeça fez pender um véu ricamente trabalhado e uma grinalda de ouro. Quando foi terminada, chamaram-na Pandora. Em seguida, Zeus enviou-a à Epimeteu, o qual fora prevenido pelo irmão para que jamais aceitasse qualquer tipo de presente dos deuses. Porém, ele não deu ouvidos ao conselho de Prometeu e aceitou a bela mulher. Mal chegara à terra, a primeira coisa que a funesta Pandora fizera foi abrir o pote que continha os males da humanidade, espalhando-os por toda a terra...

- Ah, se eu estivesse por lá. Bastaria uma bela bolsada nesta retardada para que ela nunca mais se aproximasse desse pote.

- Felizmente, Élpis permaneceu dentro do pote, não voando para fora.

- E quem é Élpis?

- A Esperança. O resto do enxame, inumerável e portador do sofrimento, vagueia por toda a parte no meio da humanidade. A terra está cheia de mal por causa de Pandora, a primeira mulher,..

- Isso me lembra a história de Adão e Eva!

- Quem são estes?

- Você nunca foi ao catecismo?

- Não.

- Então esqueça. Não vou perder meu tempo com gente ignorante. Ei, mas você falou, falou e falou e não disse o que aconteceu à Prometeu!

- Ora, além do castigo promovido com a criação da mulher, Zeus mandou Hefaístos acorrentar Prometeu na montanha mais alta do Cáucaso, junto a uma pilastra. Ali, ele é atacado por uma águia furiosa, que o deus enviou para roer-lhe o fígado durante o dia. Por determinação do deus, o fígado voltava a crescer durante a noite. Assim, o ciclo era eterno, para que os homens nunca mais tivessem um aliado tão astuto contra os deuses.

- E aí você apareceu?

- Sim. Matei o pássaro assassino com uma flecha. Hoje, Prometeu serve à Zeus e somente a ele.

- Credo, que submissão! - exclamou Liziane, desapontada - Estava esperando que ele voltasse e destronasse Zeus! Ah, não gostei. Conte outra história.

- Quer ouvir a minha própria história?

- Pode ser.

- Minha história é muito triste, Liziane! - disse ele cabisbaixo - A deusa Hera lançou-me terrível maldição. Enlouqueci e matei minha mulher e meus filhos. A fim de purificar minha alma e livrar-me dos pecados, a Pítia de Delfos aconselhou que eu procurasse o rei Euristeu e realizasse doze trabalhos para ele!

- Esse negócio de pecado parece coisa de beata! Mas agora que você falou eu me lembrei desta parte da mitologia. Então quer dizer que você está realizando os tais trabalhos?

- Já completei onze. A ida ao Hades é o último.

- E quais foram seus outros trabalhos?

Héracles olhou para o alto e percebeu que faltava um pouco para o sol se pôr. Acolheu Liziane para a sombra de uma grande árvore que cresceu ao lado da estrada e falou:

- Meus trabalhos não foram tão fáceis...

- Aliás, nenhum trabalho é fácil! - exclamou Liziane - E se não pagarem a você o que é justo, procure a Justiça do Trabalho!

Ela abriu sua bolsa e retirou um cartão de apresentação, entregando-o à Héracles, perplexo.

- Este é o telefone de uma amiga minha. Ela é advogada trabalhista. Se precisar reclamar alguma coisa pelos trabalhos, procure-a! Mas e daí, fale sobre eles!

- O primeiro deles - iniciou o herói depois de tomar fôlego - Foi matar o Leão de Neméia.

- Leão? Você matou um Leão?

- Sim, matei!

- Isto é crime ecológico, sabia? - gritou ela, indignada - Vou denunciar você ao Ibama!

- Tive de fazê-lo. O grande monstro era irmão da Esfinge de Tebas.

- Ainda não tive o prazer de conhecer, mas estou certa de que não faltará a oportunidade!

- Era também filho da deusa-serpente Equidna com o próprio filho, o cão Orto!

Liziane ficou olhando para ele, petrificada. Não entendeu absolutamente nada.

- Espere aí, deixa eu ver se eu entendi: o tão leão era filho da serpente com o próprio filho dela, um cão?

- Isso mesmo.

- E quem era o irmão da sogra do cunhado do compadre nesta história?

- O quê?

- Nada. Só que ninguém acreditaria em mim se eu contasse que do cruzamento de uma cobra com um cachorro nascem leõezinhos!

- Mas este não era um leão comum. Vivia na floresta de Neméia e aterrorizava as pessoas que ali viviam. Um camponês chamado Molorco, que me hospedou em sua humilde choupana, ensinou-me o melhor modo de matar o leão. Seria uma luta corpo a corpo dentro da caverna do monstro...

- Caverna, é? Já estou cheia de cavernas!

Héracles continuou:

- Lá chegando, travei um combate corpo a corpo com ele, exatamente como Molorco me prevenira. Estrangulei-o com uma chave de braço, arranquei-lhe a pele, a qual hoje trago sobre meu corpo.

- Outro crime! - observou Liziane olhando para o pêlo reluzente do animal nas costas de Héracles.

- O segundo trabalho...

- Ei, espere aí, foi só isso?

- É um resumo. Acho que você não iria querer saber dos detalhes!

- Tem razão. Se for para me falar que matou o bichinho assim ou assado, eu prefiro nem ouvir!

- Pais bem, o segundo trabalho foi o de matar a Hidra de Lerna.

- Hidra? Isso me lembra válvula de descarga!

- Gostaria que eu continuasse?

- É evidente!

- Era outra filha da Equidna, tendo uma pluralidade de cabeças, assim, como seu irmão, Cérbero, o cão que vou buscar no Hades.

- Estou ouvindo.

- A grande cobra-d'água cresceu no pântano, dizimando grandes rebanhos de ovelhas e gado de nossos camponeses. Meu sobrinho tebano, Iolau, acompanhou-me nesta importante missão à Lerna. Encontramos a serpente infernal em sua cova, ao pé da fonte Amimone. De posse de um arco e flecha, disparei cinco setas no interior da cova, abrigando o monstro a sair de lá. Era um ser diabólico, com cinqüenta cabeças de serpente e uma, no centro, era humana. Logo que deixou a cova, agarrei duas de suas cabeças bestiais. O monstro enrolou-se em torno de uma de minhas pernas e, mais que depressa, arranquei-lhe uma das cabeças. Para meu espanto, nasceram outras duas no lugar, imediatamente. Eu sabia que a única maneira de evitar que isto acontecesse seria cauterizando as feridas, o que Iolau fez para me ajudar. A medida que eu arrancava cabeça por cabeça, ele aproximava uma tocha comprida junto às feridas, sanando-as. Só então me foi possível alcançar a cabeça humana, que era considerada imortal, cortando-­a. Enterrei-a à beira da estrada que vai de Lerna a Eleunte. Antes, porém, embebedei algumas de minhas flechas no veneno do corpo da serpente, pois sabia que me seria útil em outro trabalho.

- Matar para você parece uma coisa tão fácil! - comentou Liziane estirada sabre o confortável gramado que se estendia sob eles à sombra da árvore - Acho que você causou a extinção de um animal raro. Este é mais um motivo para que eu o denuncie ao Ibama.

- Mas eu...

- E o terceiro trabalho, qual foi?

- Foi encontrar a Corça de Cerinéia.

- Mais um animal?

- Sim. No pico do maciço da Artemísio fica o Templo de Ártemis. Fui até lá em busca da corça de chifres de ouro e pés de bronze, a qual deveria levar viva para Micenas. A corça pertencia à deusa de Ênoe, mas procurava esconder-se até da própria Ártemis, deusa da caça, no monte rochoso de Cerinéia, na Arcádia. Devastava os campos e plantações dos camponeses, daí a minha missão em capturá-la...

- E retirá-la de seu habitat natural, não é?

- Diziam que todos aqueles que se embrenhavam nos domínios da corça de lá jamais conseguiam retornar, não pela caça em si, mas pelos perigos que rondavam o lugar. Quando a encontrei, pastando em suas terras, fiquei vislumbrado diante da beleza daquele animal com chifres dourados. Ao me ver, ela saiu em disparada, fugindo de Ênoe para o monte Artemísio e, em seguida, através de toda a Arcádia, até o rio Ládon. Como a mim estava proibido de matá-la ou feri-la, fui obrigado a perseguí-la durante um ano inteiro. Por fim, encontrei-a além do fim do mundo, no Jardim das Hespérides, muito longe do rio Ládon, na Arcádia, sob a árvore de pomos de ouro. Ela tentou fugir, nadando através de um rio que passava próximo, mas consegui capturá-la, amarrando-­lhe os pés. Coloquei-a nos ombros e voltei para Arcádia.

- E daí?

- Passemos para o quarto trabalho.

- Já? Não vi emoção nenhuma neste terceiro trabalho.

- As vezes as palavras não conseguem transmitir a real sensação de um momento.

- Você é filósofo também?

- Não, mas...

- Fale sobre o quarto trabalho!

Héracles estranhou um pouco o temperamento irrequieto da jovem, não condizente com o de nenhuma outra jovem que já conhecera.

- Bem, o quarto trabalho foi capturar o Javali de Erimanto...

- Espere um pouco!

O herói esperou enquanto ela abria sua enorme bolsa e retirou dali um caderno com uma caneta, escrevendo alguma coisa rapidamente. Héracles, curioso, perguntou:

- O quê está fazendo?

- Anotando os animais que você prejudicou. Vou anotar um a um para fazer minha denúncia, posteriormente.

- Como queira! - exclamou o herói, sem entender.

- Bem, continue!

- Como eu dizia, fui ao monte Erimanto em busca do Javali. Segundo consta, a deusa Ártemis, quando voltava seu olhar irado para algum país, mandava sempre para lá um javali raivoso, que devastava os campos dos lavradores. Em minha jornada, cheguei às florestas de Fóloe, terras altas entre o vale do Alfeu e o Erimanto...

Liziane olhava para ele com um certo desprezo, visto que não fazia a mínima idéia do que seriam aqueles lugares.

- Este lugar era habitado por Centauros, sendo muito bem recebido por um deles, o sábio Folo, que vivia numa caverna.

- Centauros, é? Já tive o desprazer de conhecer um e sua respectiva caverna. Foi tão mal-educado que mal falou comigo e saiu correndo. Acho que me achou com cara de palhaça!

- Era Quíron?

- Exatamente. Você o conhece?

- É o mais sábio de sua espécie.

- Por acaso não existem "Centauras"?

- Espécimes femininas? Não, não existem.

- Como eles se reproduzem?

- Através de mulheres ou éguas...

- Credo?! Isso deve causar muita confusão na cabecinha deles. Se acaso quiserem, posso passar o telefone do meu psiquiatra!

- O quê vem a ser isso?

- Esqueça. Continue a história.

- Da hospitaleira caverna de Folo, segui para o monte Erimanto, chegando até a caverna do javali...

- Mas quanta caverna, heim?

- Construí uma armadilha, um alçapão à boca da furna. O monstro saiu de lá e capturei-o. Levei-o vivo para Micenas, cumprindo meu trabalho.

Liziane não disse nada. Aguardou apenas pelo quinto trabalho. Héracles entendeu, iniciando:

- A quinta tarefa foi encontrar os pássaros do lago Estínfalo.

Ele viu Liziane fazer nova anotação em seu caderno.

- É estranho vê-la usar esta vareta.

- Não é vareta, é caneta! Vamos, continue!

- Ali, junto ao lago pantanoso viviam aves devoradoras de homens, com asas tão afiadas que feriam qualquer um que atacassem. Minha tarefa era expulsá-las do lago Estínfalo para terras distantes. Subi, então, numa elevação à beira do pântano e assustei as aves fazendo um estardalhaço, usando uma matraca de bronze, o que espantou-as, imediatamente. Suponho que tenham voado para a ilha de Ares, no mar Negro. Matei duas para levá-las à Palas Atenas, como prova de meu encontro com as aves.

- Outro crime, não é?

- Sexto trabalho!

- Já? Que sem graça este quinto trabalho...mas continue!

- Foi na costa ocidental do Peloponeso, onde reinava Áugias, rei da Élida e dono de grande rebanho de gado. Em conseqüência, os excrementos dos animais enchiam os estábulos, havendo perigo de peste e doenças por toda a região. Minha tarefa era limpar a sujeira e me fora dado o prazo de um dia.

- Isso é o que eu chamo de trabalho sujo! - comentou Liziane apoiada sobre os joelhos - Lembra muito aquela música brega da Zasha: "Lavar a roupa é um serviço sujo, mas alguém tem de fazê-lo!

- Ficou acertado que receberia a décima parte do rebanho como pagamento pelos serviços.

- E aí você apanhou a pá e a vassourinha e...

- Não, desviei o curso d'água dos rios Alfeu e Peneu, de modo que atravessassem os estábulos, limpando-os completamente...

Liziane olhou para ele com o desejo profundo de usar sua bolsa. Ela pensava consigo mesma se ele estava achando que ela era estúpida o suficiente para acreditar naquela história.

- Ahã...sei! E suponho que você usou as mãos para tal proeza, não?

- Exatamente! - disse ele abrindo e fechando os punhos em meio a um sorriso de satisfação.

- Tá...me engana que eu gosto! E o rei lhe pagou?

- Não. Expulsou-me de suas terras, mas como eu tinha permissão para permanecer lá por apenas um dia, tive de deixar a região. Porém, assim que terminar os trabalhos, voltarei a atacar a Élida a fim de obter o que é meu, por direito!

- Sétimo trabalho!

- Viajei à Trácia, a fim de trazer os perigosos cavalos do rei Diómedes para Micenas...

Ele parou, esperando que Liziane fizesse sua costumeira anotação. Em seguida, continuou:

- Estes cavalos, em número de quatro, devoravam carne humana. O rei Diómedes, um dos mais terríveis deuses da morte e filho de Ares, conservava presos seus cavalos selvagens com correntes de ferro numa manjedoura de bronze, alimentando-os com carne de estrangeiros que por ali viessem a dar. Quando lá cheguei, consegui imobilizar o próprio Diómedes, atirando-a aos cavalos, que o devoraram, imediatamente. Saciados e mais calmos, ainda em suas correntes, levei-os para Micenas, entregando-os à Euristeu.

- Quer dizer que além de crimes ecológicos você ainda me praticou um homicídio doloso? - indagou Liziane em meio às suas anotações.

- Meu oitavo trabalho foi em Creta...

- Nem me fale neste lugar. Tenho péssimas recordações de lá!

- Euristeu ordenou-me que capturasse o Touro de Minos...

- O quê? O pai do Minotauro?

- Este mesmo. Era o touro branco pela qual Pasifaé se apaixonou, gerando o Minotauro. Meu primo Teseu acabou por matá-lo.

- Esta história eu conheço muito bem, melhor do que ninguém! - ironizou ela

- Segundo contam, Minos prometeu à Poseidon, deus do mar, sacrificar o primeiro ser que saísse do mar. O rei ficou maravilhado diante do imenso touro que surgiu das águas, capturando-o. A fim de enganar o deus Poseidon, Minos sacrificou um touro comum. Como castigo, Poseidon despertou terrível desejo em Pasifaé, esposa de Minos, pelo Touro. Depois disso, o Touro enlouqueceu, causando terror e destruição. Foi por isto que Euristeu me enviou à Creta. No confronto, prendi-o com uma corda em torno do focinho e golpeei-o com uma clava de madeira. Levei-o para Micenas, onde o libertei. Pelo que vim a saber depois, o touro indomado vagou errante por todo o Peloponeso, cruzando o Istmo e alcançando Maratona, onde Teseu o ofereceu em sacrifício a Apolo!

- O quê? - gritou Liziane, indignada - Aquele troglodita insensível matou o pai também? Coitadinho do touro!

- Foi pelo bem de Hélades e...

- Não me venha com essa! Foi um crime monstruoso matar um touro branco...ah, mas o seu primo também será denunciado, pode ter certeza!

- A nona tarefa me foi pedida por Admetes, a filha de Euristeu. Ela desejava o cinturão de Hipólita, a rainha das Amazonas! Viajei até a terra do Ponto, na Ásia, onde viviam as Amazonas, raça de mulheres guerreiras. Não havia homens e...

- Ah, eram masculizinadas?

- O quê vem a ser isso?

- Você deve saber melhor do que eu. Vamos, continue!

- Elas permitiam que os homens viessem à aldeia apenas uma vez por ano, a fim de garantirem a perpetuação da espécie. Dos filhos que geravam, matavam os meninos e criavam apenas as meninas.

- Credo, que assassinas!

- Elas também cortavam o seio direito para poderem manusear melhor as lanças e amamentavam as meninas com o seio esquerdo.

- Isto eu já sabia. Além de assassinas eram masoquistas!

- Neste trabalho, muitos homens me acompanharam, inclusive Teseu. Fomos bem recebidos pelas mulheres e pela rainha Hipólita. Como sabíamos que ela não daria seu cinto de livre e espontânea vontade, capturamos sua irmã Melanipa, exigindo o cinturão em troca de sua vida. Primeiramente houve uma batalha terrível, em que muitos homens e mulheres morreram. Quando Melanipa foi oferecida em troca do cinto, Hipólita não teve outra opção senão entregar-me o cinturão que trazia preso ao vente!

- Assassino, extorsionário e ladrão! - murmurou Liziane anotando em seu caderno.

- Não compreendo...

- E não é para compreender mesmo. Só sei que você e toda esta corja reunida cometeram crimes gravíssimos. Vamos, conte-me o décimo trabalho!

Héracles deu uma rápida olhada para o poente. O sol estava a meio caminho e ele sorriu satisfeito, sem que Liziane entendesse o porquê. Em seguida, continuou relatando:

- Fui para o oeste a fim de apanhar o gado de Gerião. Cruzei o mar, alcançando a ilha de Erícia, onde o pôr-do-sol é vermelho. Lá, o pastor Eurícion e o cão de duas cabeças chamado Orto, irmão de Cérbero e da Hidra de Lerna guardavam o gado em seus enevoados estábulos...

- Lá vem você de novo com o irmão da sogra do cunhado do compadre...

- O gado, pertencente à Gerião, tinha a cor púrpura. Minha missão era arrancá-lo de lá e conduzi-lo por todo o longo trajeto até Argos. Gerião era um guerreiro munido de elmo e armadura, escudo e lança. Na verdade, era um monstro que, do tronco para cima, tinha três ramificações, sendo um gigante de três corpos.

- Ah, eram trigêmeos siameses! - concluiu Liziane.

- Além disso, tinha asas também.

- Então eram trigêmeos siameses mutantes! - concluiu ela novamente

- O gado púrpura pastava ao pôr-do-sol e junto a ele permanecia Eurícion. Orto percebeu minha presença pelo olfato, logo que cheguei à montanha Aba, onde o gado pastava. Entretanto, assim que ele se aproximou, investi minha clave de madeira contra ele, matando-o.

- Sei...como se chamava mesmo o animal?

- Orto, o cão bicéfalo...

Liziane anotou mais aquele nome em seu caderno. Depois fez sinal para que

Héracles continuasse.

- Eurícion veio em seu socorro e matei-o, igualmente...

- Calma, espere um pouco...Eu-rí-cion...pronto, já anotei outro crime.

- Perto dali, Menetes, súdito de Hades, pastoreava o gado deste e viu quando matei ambos e passei a guiar o gado púrpura ao longo do rio Antemo. Ele, imediatamente, correu a contar o fato ao gigante Gerião. Este me alcançou e atirou três lanças em minha direção, ao mesmo tempo, já que tinha três corpos. Lutamos por algum tempo e consegui abatê-lo com minha clave...

- Um momento...Ge-ri-ão...homicídio qualificado, já que você matou trigêmeos!

- Após longa e conturbada viagem de retorno, cheguei à Micenas, entregando o gado a Euristeu...

- Sei...décima primeira!

- Bem, a missão era pegar os pomos de ouro do jardim das Hespérides. A árvore dos pomos de ouro era o presente de casamento de Géia à Hera, Rainha dos Deuses. Era guardada pela serpente Ládon, que nunca fechava os olhos. Tinha muitas cabeças, assim como a Hidra de Lerna, e muitas vozes.

- Esta árvore dos pomos de ouro não é a mesma onde você encontrou a corsa de Cerineu?

- Isto mesmo.

- E por que não fez isso da primeira vez?

- Não era permitido. Deveria realizar um trabalho de cada vez. E, ao chegar ao jardim, as Hespérides, ninfas filhas da Noite, vieram ter comigo. Relatei a elas os doze trabalhos a mim confiados e elas, comovidas, ajudaram-me adormecendo a serpente Ládon. Colhi os pomos de ouro que, segundo dizem, são portadores da vida eterna!

- E aí entregou-os a Euristeu! - deduziu Liziane

- Sim. Ele, contudo, achou melhor não ficar com os frutos sagrados de Zeus e

Hera, dizendo-me para que ficasse com eles.

- E você?

- Não achava certo ficar com eles também. Zeus é meu pai e furtando dele estaria furtando de mim mesmo...

- Parabéns, senhor Héracles! - exclamou Liziane batendo palmas - Até que enfim uma lição de civilidade!

- Como não achava justo guardá-los comigo, clamei por Zeus e Hera e devolvi-lhes os frutos!

- Muito bem! Décimo segundo?

- Estou em fase de conclusão.

- Mas do que se trata?

- Capturar Cérbero, o cão de Hades, do mundo subterrâneo!

- Já sei, o filho da Équidna!

- Isso mesmo. E vou fazê-lo dentro de algumas horas! Segundo os sábios, uma porta para a Casa de Hades se abre justamente nesta estrada, no ponto à nossa frente, todas as noites sem luar.

Liziane olhou para o local apontado por Héracles.

- Aqui? Vai aparecer assim, do nada?

- É uma porta. Entretanto, dizem que nenhum mortal consegue entrar lá sem a permissão de Caronte.

- Quem é esse?

- O barqueiro que leva as almas ao mundo subterrâneo.

- Credo, parece coisa da Idade Média! - exclamou Liziane - Mas, mudando de assunto, você mencionou que é filho de Zeus. Como ocorreu seu nascimento?

- Você é muito curiosa, não? Gosto de jovens curiosas!

- É, mas vá tirando a Equidna da chuva porque eu não sou para o seu "bico”. Aliás, homens musculosos e trogloditas lembrando a gorilas não me interessam!

Héracles riu alto. Estava gostando da companhia de Liziane.

- Bem, não sei se minha história pode vir a ser interessante para você. Meu pai mortal era Anfitrião. Minha mãe, Alcmena, havia feito um voto de que só receberia meu pai como marido se ele vingasse a morte de seus irmãos, mortos pelo rei de Micenas. Ele cumpriu o prometido, mas quando retornou, chegou demasiado tarde. Na noite anterior, Zeus, tomando a forma de meu pai mortal, foi ao encontro de minha mãe, fazendo-a agir em erro. Foi dessa união que fui concebido! Além disso, tive um irmão gêmeo, Íficlo, mas que não traz a força que trago comigo. Contaram-me a história de que Hermes, durante a noite, levou-me até Hera, em sua residência celestial e, enquanto ela dormia, fez-me mamar em seu seio divino. Devido a minha força, ela despertou com terrível dor, lançando-me com as mãos. O leite, porém, continuou a correr e assim se formou o caminho das estrelas!

- A Via-Láctea? A nossa galáxia?

- O que vem a ser isso?

- Nada. Mas vivendo e aprendendo, Héracles! Taí uma boa lenda para explicar o surgimento da galáxia.

- Quer ouvir outra história?

- Por enquanto não! - disse ela se espreguiçando - Estou um pouco cansada e acho que vou dormir por algum tempo. Você se importa?

- De maneira alguma. Tenho que ficar vigilante para quando a porta do Hades se abrir...

- Ahã...sei! - disse ela virando-se para um lado enquanto se estendia sobre a relva. – ­Acorde-me quando isso acontecer! - pediu ela, despreocupadamente.

 

Liziane sonhara com sua casa, em Curitiba. Estava sentada à mesa com os pais e a irmã Danielle, aquela com quem sempre discutia às refeições. Estava comendo um delicioso strogonoff preparado por sua mãe, do qual podia sentir o próprio aroma. Estava prestes a levar uma porção à boca quando ouviu alguém chamá-la. Imediatamente ela abriu os olhos e encontrou Héracles olhando estático para ela. Depois de mais ou menos três segundos, ela gritou, num efeito retardado.

- Ai...precisa me assustar, seu estúpido?

- Desculpe, mas você me pediu para que eu a acordasse, lembra-se? Veja por você mesma como eu estava certo!

Ela esfregou os olhos e dirigiu-os para onde Héracles apontava. Só então notou que já havia escurecido. Diante deles, a poucos metros de onde estavam, a estrada dera lugar a um rio que corria para dentro de uma caverna que antes não havia ali. À margem, ela percebeu uma pequena barca feita com um tronco de árvore onde estava um barqueiro posicionado.

- Mas o que é isso? - indagou completamente absorta - De onde veio esta parafernália?

- É a entrada para o Hades! - disse ele, radiante.

- E você vai entrar aí?

- É o meu último trabalho. Se conseguir cumpri-lo, estarei livre de ser condenado à morte por haver matado minha mulher e meus filhos!

- Bem, então se é assim, “vaya con Diós”!   

- Você vai ficar aqui?

Liziane pensou um pouco. Ficando ali estaria estagnada e sem saber realmente onde estava. E, se ao contrário, penetrasse naquele novo mundo na companhia de Héracles, poderia se divertir mais um pouco naquela região fantástica do imaginário. Estendeu as mãos à Héracles, ordenando:

- Vamos, ajude-me a levantar!

Pouco depois, paravam diante do barqueiro vestido em trajes negros e olhar imutável. Liziane percebeu, com a ajuda da pouca luz vinda das estrelas, que o barqueiro tinha a pele muito pálida, mais parecendo um morto-vivo. Em meio à noite, ouvindo os passos dos recém-chegados, perguntou alto e em bom tom:

- Quem vem lá? Acaso está deixando o mundo dos vivos?

- Não. Sou Héracles, filho de Zeus e Alcmena! E esta é Liziane, filha de...

O herói parou, esperando que Liziane completasse. A moça nem precisou pensar, pois já tinha a resposta, como sempre, na ponta da língua:

- Filha de Jonas e Rebecca!

- Héracles? O detentor da força?

Liziane percebeu que a voz do barqueiro pareceu estremecer um pouco.      

- Sim, quero que nos conduza ao Hades!

O barqueiro pareceu relutar um pouco, em meio a um gesto de recuo. Mas, depois de pensar melhor, resolveu obedecer:

- Como desejar, filho de Zeus!

Ambos subiram na pequena embarcação que, por pouco, não afundou com o peso do herói, uma verdadeira montanha de músculos. Liziane percebeu que a água do rio era pantanosa, repleta de plantas aquáticas. Além disso, um odor fétido provinha da água escura cortada pelo barco.

- Que fedor! - exclamou Liziane tampando as narinas.

- Acostume-se, Liziane! - aconselhou Héracles

- É um tanto difícil, você não acha?

- Logo chegaremos até Cérbero. Fique sempre atrás de mim. O cão costuma ficar a poucos metros da entrada, numa borda de pedra sobre o rio a fim de esperar os que aqui chegam. É ele quem escolhe quem incluir nos rebanhos do Hades e a quem manter afastado. Com certeza não nos aceitará, pois estamos vivos. Assim, corremos o risco de sermos devorados pelo monstro!

- Pois ele que venha! - disse ela mostrando sua bolsa à Héracles.

Liziane notou que das paredes da caverna escorria uma substância limosa, que aliada ao odor do ambiente, enojou-a um pouco. Ao mesmo tempo avistou, à pouco mais de trinta metros de onde estava a barca, uma criatura horrível sentada sobre uma rocha, à direita do canal. Era um cão com três cabeças e um colar de serpentes em torno do pescoço. Sem saberem porque, viram o animal sair em disparada de onde estava, rumo túnel adentro. Héracles concluiu:

- Ele sabe que vim buscá-lo!

Liziane percebeu, em meio à escuridão reinante do lugar, iluminada apenas por alguns focos de fogo que vertiam do chão limoso à margem do rio, que inúmeros vultos desnudos se esquivavam pelas paredes do lugar, procurando se ocultarem dos olhos dos recém-chegados.

- Eles temem a mim! - disse Héracles

- Mas você é convencido, heim? - ralhou Liziane.         

O herói pareceu não ouvir. Pediu ao barqueiro que os levassem até Hades, o deus do mundo subterrâneo. O fiel barqueiro obedeceu e, logo, a barca parou diante de cinco degraus de pedra onde havia um grande templo de cor vermelha como o sangue. Admirada, Liziane avistou um casal sentado aos seus respectivos tronos, observando-os atentamente. Foi justamente a mulher quem saldou Héracles logo que ele aportou diante deles:

- Salve, Héracles, meu irmão!

- Salve, Perséfone, deusa do mundo subterrâneo!

- Como vai o mundo exterior? Amanhã me preparo para reencontrar minha mãe por seis meses!

Liziane cutucou Héracles e perguntou:

- Do que é que esta desequilibrada está falando?

- Esta é Perséfone, filha de Zeus e Deméter. Hades a raptou, trazendo-a para cá. Desesperada, Deméter trouxe a aridez para o mundo e, depois de um trato com Zeus, Hades permitiu que ela retornasse ao mundo exterior de seis em seis meses para reencontrar a mãe, tempo este em que a terra produz frutos e flores, pois é quando a alegria volta ao coração de Deméter, deusa das plantações.

- Sabíamos que viria, filho de meu irmão Zeus? - interrompeu Hades, um grande homem vestindo um manto negro e um cetro de pedras escuras.

- Nobre Hades, vim em busca de Cérbero...

- Não se explique, Héracles! - anunciou Hades - Conhecemos sua história. Sou seu tio e você é irmão de minha rainha. Assim, não podemos lhe negar o que veio buscar...

- Oh, obrigado, nobre Hades...

- Contudo, Héracles, você terá de fazê-lo por si só, sem armas, usando apenas a pele de leão que trazes consigo. Cérbero voltou à sua vigília na entrada do Hades. Se conseguir capturá-lo, será seu!

- Muito lhes agradeço, majestades! - agradeceu o herói curvando-se perante eles. Em seguida, puxou por Liziane e seguiram por um caminho de pedras, entre a parede da caverna e o rio pantanoso. Liziane mal esperava para sair dali, visto que o ambiente não estava lhe agradando nenhum pouco.

- Muito gentis estes dois, mas não vejo a hora de deixar este lugar! Daqui a pouco vou começar a ouvir pranto e ranger de dentes!

- E é o que você ouvirá se descer às profundezas do Hades! - preveniu Héracles.

Em instantes, chegaram próximos à plataforma onde estava o cão. Héracles pediu à Liziane que o esperasse atrás de uma rocha, enquanto ele aproximou-se do terrível monstro. Entregou a ela uma corrente que encontrara ao longo do caminho com um fecho. Reparou então que a cauda de Cérbero também era uma cabeça de serpente, vindo a ser mais uma ameaça para o herói. Aquele era seu último trabalho e não poderia falhar justo ali. Orou a Zeus, pedindo-lhe força e presença de espírito.

Homem e cão permaneceram sob estranha admiração mútua por algum tempo, como que estudando os passos e ações um do outro. Era terrível e grotesca a imagem daquele animal de três cabeças que; passados alguns instantes, investiu contra Héracles com suas três mandíbulas à mostra. Liziane estremeceu diante daquele latido alto e metálico, som jamais testemunhado pelos seus ouvidos. Héracles, entretanto, foi mais rápido, comprimindo-se contra a parede e permitindo que o cão desse um salto perdido no ar, vindo a se chocar contra uma enorme rocha atrás de si. O herói aproveitou o momento que o animal permaneceu atordoado para comprimir sua garganta contra o chão. Com o pé ele segurou a cauda em forma de serpente, enquanto suas enormes mãos arrancaram a coleira de serpentes, arremessando-a no rio pantanoso. Logo, o cão tombou sufocado pela violência com que o herói investiu contra sua garganta. O herói gritou para que Liziane lhe jogasse a corrente, o que ela fez de pronto. Héracles acorrentou o cão que, aos poucos, foi se recobrando da falta de ar que lhe fôra imposta. Héracles esmagou a cabeça da serpente que lhe formava a cauda e conduziu o cão atrelado.

- E agora? - perguntou Liziane um tanto temerosa de se aproximar do cão que lhe rosnava, furiosamente.

- Vamos sair daqui. Preciso levar o cão para cumprir meus trabalhos e obter a salvação.

Liziane seguiu-a e os dois caminharam por algum tempo pelo corredor que ladeava o rio pantanoso rumo à saída da Hades. Ao passarem por uma reentrância na parede, foram chamados par uma voz masculina vinda do interior da rocha. Liziane retirou sua lanterna da bolsa e, diante do olhar curioso de Héracles, mirou-a na direção da voz. Ficou surpresa diante da figura conhecida que se revelou acorrentada à parede fria e úmida da caverna:

- Teseu!!? O que está fazendo aqui? - gritou ela, admirada.

- Liziane!? Zeus ouviu minhas palavras! Por favor, ajude-me!        

- Tenha calma, meu primo!

Só então Teseu reconheceu seu primo Héracles, que com apenas uma das mãos quebrou as algemas que o prendiam à parede.

- Como veio parar aqui? - perguntou Liziane

- Intentei jornada perigosa ao Hades para raptar Perséfone. Fracassei e Hades me condenou à permanecer eternamente preso à esta cavidade úmida. Graças à Zeus, vocês chegaram!

- Você deveria dizer: Graças à Deus! Aliás, se eu fosse você, não ficaria tão feliz com a nossa chegada, porque agora você vai se ver comigo, seu cafajeste!

Liziane desferiu violentas bolsadas contra o herói ateniense, exigindo explicações sobre sua atitude com relação à Ariadne:

- Eu soube que você abandonou a pobre Ariadne numa ilha só para ficar com a irmã dela, a tal de "Pedra”! E se não bastasse agora veio atrás de uma mulher casada! Vocês homens são todos iguais!

Héracles, rindo sem parar e ainda segurando Cérbero pela corrente, foi obrigado a deter Liziane. Teseu não explicou nada, implorando apenas que o tirassem dali. Seguiram pelo estreito caminho de pedras, rumo à saída, sob os brados indignados de Liziane.

Alcançaram a saída para o mundo exterior em poucos minutos. Liziane se surpreendeu ao perceber que o dia já estava nascendo.

- Mas não ficamos muito tempo aqui dentro! - exclamou ela, pensativa. Héracles explicou:

- Todos aqueles que saem do mundo subterrâneo acabam encontrando a luz!

Caminharam até a mesma árvore sob a qual pouco antes Héracles relatara suas façanhas à Liziane. Esta percebeu que havia chegado a hora dele partir levando o cão.

- Cuide bem dele! - pediu ela mantendo-se afastado do animal raivoso que espumava pelos cantos da boca. Liziane estranhou o olhar do animal que, à luz do dia, ganhara uma tonalidade azul como a do fundo da chama do fogo.

- Você vai partir? - perguntou Héracles

- Sim, vou procurar um modo de voltar para minha casa!

- Você ainda está procurando sair de Hélades? - perguntou Teseu

- Não fale comigo! - ralhou a jovem - Você está no meu caderninho, seu cafajeste!

- Para onde vai, Liziane?

- Sei lá...

- Se seguir por esta estrada chegará à Tebas!     

Só então Liziane se deu conta de que o rio pantanoso e a caverna de entrada para o Hades haviam desaparecido, dando lugar à mesma estrada de chão de antes.

- Então está certo! - exclamou ela em bom tom, sem se lembrar dos sapatos que ganhara de Afrodite - Quero ir para Tebas porque...

Teseu e Héracles tiveram certeza de que a moça era filha dos deuses quando, repentinamente, desapareceu diante de seus olhos como fumaça...

 

- ...de qualquer maneira, quero encontrar aquela maldita Pasifaé tão logo volte à minha realidade e mostrar a ela com quantas colunas se faz um templo...

Liziane estranhou que nem Teseu nem Héracles estavam com ela. Olhou em volta e tomou um tremendo susto ao se defrontar com uma enorme muralha formando extensa cercania.

- Mas que diabos! - exclamou ela - Onde vim parar agora?

Havia um imenso portal, com a parte superior em forma de arco, onde poderia se ler a inscrição “Tebas”. Ao que parecia, ela estava às portas da cidade de Tebas mencionada por Héracles.

- Aqui as coisas acontecem tão depressa! - murmurou ela enquanto caminhava até o portal.

De repente, um ser monstruoso saltou diante dele de algum ponto de cima da muralha, intercedendo sua passagem. Liziane ficou impressionada diante daquele corpo de leão com cabeça de mulher e asas de águia. Com a mão no coração e ainda segurando sua bolsa, ela não deixou de ralhar:

- Precisava me dar um susto destes, sua esquálida?

O novo personagem, contudo, pareceu não ouvi-la. Media Liziane dos pés à cabeça, dando voltas em torno da moça, como que tentando arrancar algo dela.

- O que foi? Nunca me viu?

Ela abriu suas imensas asas em meio a uma indagação em tom de cantoria:

- Aonde pensa que vai, filha de Hélades?

- Já disse que o nome do meu pai é Jonas. E vou entrar nesta cidade...

A estranha mulher mutante barrou-lhe a entrada em meio a um sorriso maquiavélico. Seu olhar era penetrante e frio, chegando a fazer com que Liziane recuasse diante dela.

- Só os que respondem à minha questão podem entrar em Tebas...      

- Mas o quê?

- Sobre dois pés, e no entanto sobre quatro, caminha sobre a terra, e também sobre três, uma criatura de um nome só. Sozinha, muda a forma de tudo o que anda no chão, voa no ar ou nada no mar. Mas quando é sustentada por quatro pés, a velocidade é mais fraca em seus membros...

- O que você acha se, ao invés de eu lhe responder à esta pergunta, eu lhe der uma boa bolsada, heim?!

Liziane tomou posição para o seu tradicional golpe, quando uma voz masculina soou atrás dela:

- Está falando do Homem. Quando sai do molde, sobre quatro pés primeiro se arrasta, bebê recém-nascido; na velhice uma bengala, o terceiro pé, tem de sustentá-lo, o pescoço pesado, e a velhice curva, sem esperança!

Era um rapaz de cabelos negros e cacheados vestindo uma túnica pérola. Deveria ter pouco mais de vinte anos e tinha no olhar uma serenidade indescritível. Ao ouvir aquela resposta para seu enigma, a virgem-leoa abriu as asas e saiu em disparada, atirando-se num precipício a certa distância deles, morrendo instantaneamente.

- Está feito! - exclamou ele serenamente

- Quem é você?

- Meu nome é Édipo.

- Sou Liziane e...

- Ele matou a Esfinge, ele matou a Esfinge!! - gritos e alardes ecoaram do portal da cidade provindos da população sitiada. Imediatamente, dezenas de homens e mulheres vierem ter com o jovem herói recém-chegado, erguendo-o nos braços e conduzindo-o triunfalmente para o interior da fortaleza. Em meio ao empurra-empurra, Liziane, irritada, começou a desferir bolsadas contra os jubilosos moradores de Tebas.

- Seus grossos, mal-educados!! - gritava, à medida que desfrutava de sua útil e inseparável bolsa.

Ninguém se preocupou com ela, que acabou sendo conduzida em meio à massa humana para o interior da cidade, formada por inúmeras construções de calcário e formando pequenas ruelas. Ela acabou sendo levada para dentro de um imenso palácio que lembrava muito ao de Minos, em Creta, sendo colocada junto com Édipo perante os imperadores da cidade. Liziane avistou uma bela mulher loura e cabelos cacheados sentada a um trono de ouro, ao lado de um homem que, naquele instante, abraçava um jovem rapaz, em meio à lágrimas de alegria. Ao lado da rainha, Liziane percebeu uma outra mulher, também loura, cabelos curtos e mais idosa, lembrando muito à Gilda e Eribéia, ainda mais porque estava se debulhando em lágrimas perante a comovente cena do rei com o jovem que ela desconhecia.

- Vejam...vejam, filhos de Tebas! - gritou o rei, um homem de mais ou menos quarenta anos que usava uma barba discreta e muito bem cuidada - A promessa se cumpriu: meu filho Hêmon voltou!

O povo que invadiu o palácio vibrou de alegria, enquanto o rei beijava o filho com extrema felicidade. Liziane cruzou as braços expressando a sua habitual "expressão de nojo" diante daquela confusão. Estava curiosa para saber que fábula grega seria encenada diante dela naquele momento.

- Nobre rei Creonte! - exclamou um dos súditos aproximando-se do altar – Este jovem valente e sua companheira expulsaram a Esfinge de Tebas. O monstro precipitou-­se no despenhadeiro que cerca a cidade! Estamos livres da Esfinge!

O rei deixou o filho e veio ao encontro de Édipo e Liziane, lado a lado. Ele apoiou as mãos sobre os ombros do rapaz, dizendo:

- A promessa se cumpriu, queridos filhos. A Esfinge raptou meu filho quando aqui chegou e levou-o para a escuridão. Ele voltou quando ela morreu no abismo! E como havia prometido, cumprirei minha promessa: aquele que matasse a Esfinge e trouxesse Hêmon de volta, desposaria minha irmã Jocasta e reinaria como novo rei de Tebas!

Ele fez um gesto lento, apontando para a bela senhora sentada ao trono, que sorria amavelmente para Édipo. O rapaz, ao cruzar as olhos com o da bela dama, sentiu-­se magnetizado, parecendo que uma estranha e misteriosa força os unira com o simples olhar. A rainha admirava-o com o belo sorriso alvo, levantando-se do trono e vindo ter com ele. Diante dos olhos negros de Édipo, curvou a cabeça e exclamou:

- Agora vós sois o rei de Tebas e eu, a vossa rainha...

Édipo apanhou sua mão e a beijou. Novos brados vieram da multidão e o rei Creonte abençoou a ambos guiando-os até o trono. Depois, voltou para Liziane, que assistia a tudo com certa impaciência:

- E você será a conselheira da rainha, jovem dama!

- Eu? Conselheira? Não, obrigada!

O sorriso de Creonte desapareceu, cedendo lugar a uma expressão de espanto.

- Não acompanhou nosso rei até as portas de Tebas? Pela sua coragem e astúcia

tem o direito de permanecer no reino! - explicou ele

- Tudo isso foi por acaso. Eu estava prestes a acabar com aquela “experiência genética fracassada” quando Édipo chegou. Ele simplesmente me atrapalhou quando eu estava pondo um fim naquela idiota!

- Mesmo assim, você ajudou-o a debelar o sofrimento que imperava em Tebas. Por favor, fique conosco!

- Obrigada pelo convite. Ficaria muito agradecida se pudesse me emprestar um telefone!   

- Telefone? O quê é isso?

- Ah, certo, eu me esqueci que aqui não existe isso!

Liziane foi interrompida pela mulher que estava ao lado de Jocasta e que lembrava muito à Gilda e Eribéia:

- Creonte, e esta menina, vai permanecer conosco? - sua maneira de falar e gesticular eram idênticos às duas conhecidas de Liziane, diferindo um pouco no semblante.

- Estou tentando, mas ela se recusa. Veja se consegue convencê-la, Plexaura!

- Fique conosco, minha flor! - exclamou a amável mulher abraçando Liziane - Venha, vou apresentá-la à minha rainha!

Ela puxou Liziane para junto da rainha, que conversava animadamente com Édipo. Estavam tão íntimos que pareciam se conhecer há anos.

- Jocasta, minha rainha, esta é...como é seu nome?

Édipo apressou-se em responder:

- Esta é a corajosa Liziane, que enfrentou a Esfinge e me ajudou a matá-la! Jocasta olhou com ternura para Liziane, dizendo:    

- Você ajudou nosso novo rei a salvar Tebas. Liziane, humildemente lhe agradeço!

- Não há de que, dona "Madrasta”, mas eu ficaria mais agradecida se me dissesse como posso voltar para casa!

- Não sei a que se refere, mas gostaria imensamente que ficasse conosco como uma de minhas conselheiras! Plexaura é minha fiel ama e cuidará de você também.

- Não, obrigada. Tenho que voltar para casa e entregar o material da revista sobre o mundo grego ou Jane me matará se eu atrasar. Por favor, ajudem-me a sair daqui!

- Você é livre, Liziane! - disse a rainha - Só acho que você deveria descansar um pouco já que deseja continuar sua viagem.

- Hum...está bem. Gostaria de um bom banho e comer alguma coisa. O efeito do tal néctar que Apolo me serviu já passou...

- Você esteve com Apolo? - indagou Jocasta, assombrada.

- Sim. E com Afrodite também...

- Zeus a abençoe! Então você é uma mensageira dos deuses?   

- Não, eu...

- Creonte! - gritou Jocasta pelo irmão - Liziane esteve com Apolo e Afrodite. É uma mensageira!

Creonte, fascinado fez uma reverência à Liziane:

- Fique conosco, jovem mensageira!

- Obrigada, seu "Monte", mas preciso ir para casa. Vau aceitar a hospitalidade e desfrutar um pouco das mordomias que estão me oferecendo. Acho que não há sentido em me revoltar tanto contra esta confusão toda e não aproveitar um pouco do deleite deste lugar!

Ninguém entendeu suas palavras e Plexaura agarrou-se à moça exclamando animadamente:

- Venha, minha flor. Vou mostrar-lhe a sala de banhos e depois que você comer um pouco vou mostrar Tebas à você!       

Liziane acompanhou a animada senhora para o interior do palácio real, indo até a sala de banhos...

 

Mais tarde, as duas passeavam lado a lado pelas ruelas da cidade. Liziane estava um pouco enfastiada, visto que Plexaura forçou-a a comer tudo o que colocava à sua frente. Aquela mulher era uma cópia fiel de Gilda e Eribéia, as duas simpáticas mulheres que conhecera ao longo de toda aquela confusão promovida por Pasifaé. Plexaura, por sua vez, falou o tempo todo, mostrando cada centímetro da cidade e apresentando Liziane a todos que encontrava.

- A senhora é muito conhecida aqui, não? Há quanto tempo vive aqui?

- Desde que cheguei de Alba Longa e vi os meninos crescerem!

- Meninos? Que meninos?

- Rômulo e Remo. Eu era ama da princesa albana Rea Silvia, na Itália. Eu a ajudei no parto dos meninos gêmeos que teve com o deus Marte. Ainda me lembro como se fosse hoje! Ela me chamou e disse "Plexaura, o bebê está vindo"! Não perdi tempo: corri chamar as escravas, apanhei toalhas, lençóis brancos e água quente. Quando cheguei na câmara da princesa, a cabecinha de Rômulo já estava vindo à luz. Logo veio aquele menino lindo, pele alva como leite e já com cabelinho. As escravas o limparam e o entregaram à mãe, mas a princesa continuou tendo dores e então eu entendi: eram gêmeos! Logo veio Remo, "tão-galantezinho". Os dois eram uns amores, viviam sorrindo! E a princesa era tão bonita! No dia seguinte ao parto ela levantou e disse determinada: “Plexaura, vou tomar um banho de carpo inteiro”. Ela foi à sala de banhos do palácio, tomou um banho demorado, se perfumou, colocou aquele cinturão apertado e foi se sentar no trono ao lado do pai. O rei de Alba Longa era Númitor, pai de Réa e avô dos meninos. Mas uma coisa triste aconteceu: o tio dos meninos tomou o trono do pai e ordenou que uma escrava colocasse os dois pobrezinhos num cesto e os lançasse no rio Tibre. Ainda me lembro de Réa, a menina em prantos e eu também, chorando, vendo a cestinha sumir sendo levada pelas águas. Aquele homem foi monstruoso! Chuif...

Plexaura enxugou algumas lágrimas, num gesto típico que Liziane já conhecia muito bem. Ela aguardou um pouco até que a mulher se recobrasse, até que a ama continuou:

- Mas Júpiter foi benevolente! - gritou ela de repente, assustando Liziane pelo seu ímpeto enérgico, à medida que erguia o braço direito para o alto - Eu soube depois de algum tempo que uma loba bondosa havia encontrado os meninos e os amamentara. Assim os pobrezinhos não morreram de fome. Como gratidão, todos os dias eu levava assados para a querida loba que salvou os nossos meninos. E descobri que um pastor chamado Fáustulo os encontrara na companhia da loba, recolheu-os, levou-os para casa e os criou. Todos os dias eu ia visitá-los e levava muita comida. Os meninos cresceram, voltaram para Alba Longa, depuseram o tio carrasco e devolveram o trono ao avô. Foi lindo ver os meninos abraçados ao avô e o reencontro com a mãe...chuif, eu chorei tanto!

- Suponho que em seguida eles fundaram Roma! - adiantou-se Liziane

- Não sei, minha flor. Foi aí que vim para cá, pois um mensageiro me prevenira que Jocasta estava prestes a dar à luz! Ela é minha sobrinha por parte da mãe e eu não podia deixá-la sozinha neste momento tão lindo na vida de uma mulher!

- Ah, então a senhora foi parteira do filho de Jocasta também? E onde está ele?

A mulher conteve novamente a emoção, procurando recobrar o fôlego.

- Infelizmente, o menino morreu!

- Por quê?

- Laio, o marido de Jocastinha, quando soube da gravidez da rainha foi consultar o Oráculo de Delfos. Ele voltou arrasado, aquele menino. O sábio preveniu-o de que não tivesse um filho, pois este lhe mataria. Então o coitadinho esperou que o menino nascesse. Ainda me lembro do dia em que Jocasta começou a sentir dores e...

- Já sei, um menino lindo veio ao mundo, a Jocasta levantou-se no dia seguinte de seu leito, tomou um banho de corpo inteiro, se perfumou, colocou aquele cinturão apertado e foi se sentar ao lado do rei, não é assim?

- Mas até parece que você viu a cena, minha flor! - exclamou Plexaura, admirada.

- Muito bem, dona "Dinossaura", continue. O que aconteceu ao menino?

- Temendo que a profecia se realizasse, Laio mandou que um escravo abandonasse o menino no mar, dentro de uma arca! Ainda me lembro de Jocasta, em pranto, implorando ao marido que poupasse o menino, mas não houve jeito: o menino foi levado embora pelas ondas! Eu tive muita pena!

- Pudera, onde a senhora passa acontece coisa ruim! Eu, heim!

- Foi a sina do menino!

- E o que aconteceu a Laio? Ela é viúva ou divorciada?

- Divorciada? O quê é isso? A coitadinha é viúva. Laio foi assassinado alguns meses atrás por um ladrão. Foi ao mesmo tempo que a Esfinge apareceu em Tebas.

- E por quê esta inconveniente veio parar aqui? Tanto lugar para ir "encher o saco" e veio dar justamente aqui.

- Foi culpa de Laio! - Plexaura aproximou os lábios de Liziane e cochichou, para que somente ela ouvisse:

- Sabe, florzinha, Laio era um traidor.

- Como assim?

- Era casado com Jocastinha, mas tinha profunda afeição por um menino!

- Ah!!

- O safado tinha um amigo chamado Pélope, Senhor de Olímpia. Este tinha um filho, um menino lindo chamado Crisipo. Laio era hóspede na casa de Pélope e estava ensinando o menino a guiar carros puxados por cavalos. Pélope, da sacada da casa, viu Laio colocar o menino no carro e sair em disparada. Ele fugiu para cá trazendo o moço. Dizia estar apaixonado pelo menino, veja se pode! Ainda me lembro que dois dias depois, o pobre menino se matou, de tristeza! Foi um acontecimento tão triste! Pélope amaldiçoou Laio! Até entendo que ele sentisse amor pelo rapaz, mas onde já se viu raptar a pobre criança do pai? Nenhum pai ou mãe merece ser privado da companhia de seus filhos, você não acha?

- A senhora está certa. E depois, o que aconteceu?

- Soube-se que Apolo, protetor dos jovens e meninos frágeis, ficou indignado com a morte de Crisipo. Ele incitou Hera, a deusa do casamento, a punir Laio. Ela não aceitou o fato dele exigir que um menino substituísse os deveres de Jocasta no casamento e mandou a Esfinge para cá, vinda da Etiópia, como punição pelo que acontecera ao pobre rapaz, tão-galantezinho! Chuif...

- Agora entendo! Puxa, a senhora dá uma aula de mitologia, não? Mas a senhora não me disse como Laio morreu!

- Foi tão triste! Depois da morte do menino, Laio quis falar com Apolo, no Oráculo de Delfos. Fora Apolo quem lhe prevenira de que deveria morrer sem descendência, pois o filho viria matá-lo. Logo vou lhe apresentar Tirésias, um sábio profeta que vive aqui. Ele preveniu Laio para que, antes de viajar, oferecesse um sacrifício a Hera. Laio não lhe ouviu e no caminho para o Oráculo, na encruzilhada entre Citéron e Pótnia, um ladrão o matou. Seu corpo foi trazido por um escudeiro que o acompanhava e foi apenas ferido.

- E este tal ladrão, não sabem quem é? - perguntou Liziane, curiosa.

- Não, mas...

- O ladrão voltou, mas não se trata de um ladrão! - disse uma voz atrás delas.

Liziane se deparou com a figura de um velho com longa cabeleira e barba branca, apoiado sobre um cajado. Notou que era cego de ambos os olhos, mas parecia lúcido apesar da idade. Plexaura apressou-se em apresentá-lo:

- Liziane, este é Tirésias, o profeta do qual lhe falei!

Ela segurou delicadamente a mão do velho que, ao tocá-la, permaneceu algum tempo em silêncio, dizendo pouco depois:

- Jovem estrangeira, vinda de terras distantes de Hélades, acredita estar num mundo que não consegue conceber. Entretanto lhe digo que a realidade está onde ela agora se lhe mostra...

Liziane puxou a mão rapidamente, sem entender as palavras do velho.

- Tirésias tudo vê, minha flor! - explicou Plexaura - Ele é capaz de ver o futuro!

- Ah é? Então me diga, seu Tira, se o senhor é capaz de me ver estrangulando uma certa desequilibrada que provocou a minha vinda para este lugar?

- A jovem que procura está muito distante destas terras. Ao encontrá-la, você mesma encontrará a realidade e a verdade...

- Entendi tudo! - gritou Liziane, irritada - Mas acho que o senhor tentou me dizer que aquela energúmena está longe daqui! É evidente, ela está sã e salva, enquanto que não posso dizer o mesmo a meu respeito!

- Acalme-se, filha distante. Sua hora chegará...

- Assim eu espero!

O velho afastou-se delas, continuando seu caminho errante pelas vielas de Tebas. No fundo, ele conseguiu impressionar Liziane.

- Velho maluco!

- Muitos dizem isso, minha flor, mas Tirésias sabe o que diz, pois tudo vê!

- Vê como, se ele é cego?

Plexaura não respondeu. Simplesmente avisou Liziane que era hora de voltarem ao palácio.

- Agradeço o passeio e a hospitalidade do povo tebano, dona "Tiranossaura", mas creio que é hora de ir!

- Mas tão cedo? Não vá minha flor! Quero que tenha uma refeição conosco! Você vai adorar meu manjar dos deuses!

- Tenho certeza de que é uma delícia! - disse Liziane decidida a partir - Mas realmente preciso ir embora! Agradeça à rainha, ao rei e ao seu Ponte também!

- Que pena! Chuif... você é tão adorável!     

- Mas a senhora já está chorando?

- Eu me comovo com despedidas...

- A senhora saberia me dizer onde vai dar esta estrada que sai de Tebas?

- Se for sempre em frente, poderá alcançar a casa de minha irmã Gnemora e...     

- Ah, não...mais uma não! Aposto que ela também é parteira!

- Sim, minha flor! - confirmou a mulher - Ela ajudou no parto de Perseu, o filho de Dânae e Teus...

- Obrigada. Vou seguir meu próprio rumo!

Ela despediu-se de Plexaura, atravessando o portal na entrada da cidade. Deu uma rápida olhada para trás e percebeu que a mulher estava se debulhando em lágrimas. Não sabia para onde ir, por isso se embrenhou no bosque que circundava a cidade...

 

Liziane estava caminhando há horas através de um pequeno caminho que cortava o bosque principal a partir de Tebas. Somente depois de muito tempo e já exausta ela se lembrou de que poderia ter usado os sapatos que a deusa lhe dera.

- Grrrr...eu esqueci que basta falar em voz alta que estes sapatos me transportam, imediatamente! - murmurou ela, irada.

Sentou-se sobre as folhas úmidas da floresta fresca e silenciosa, a fim de descansar um pouco. Não tinha idéia do que fazer para voltar para seu mundo, e a idéia de espancar Pasifaé se fazia cada vez mais forte.

- Eu hei de pôr as mãos em você, desgraçada! - murmurou enquanto encostava seu corpo cansado contra o caule da frondosa árvore que lhe oferecia frutos. Liziane gostou da paz que o silêncio da floresta apresentava, onde só ouvia o ruído de alguns poucos passarinhos distantes.

- Que silêncio! - murmurou consigo mesma - Isto não está me parecendo normal e...

- O silêncio é para mim, peregrina! - exclamou um personagem escondido atrás de uma moita diante de Liziane. A moça procurou por ele com a cabeça, mas o estranho recusava-se em mostrar o rosto.

- Quem está aí? Vamos, apareça! - exigiu ela enquanto colocava-se novamente em pé e armava-se com sua bolsa para uma eventual emergência.

Súbito, um ser mutante muito ágil saltou dentre a vegetação, apresentando-se diante de Liziane numa dança alegórica. Era um jovem com corpo e patas de bode, enquanto que da cintura para cima tinha o aspecto humano. Cabelos encaracolados e cavanhaque lembravam-no, e muito, à um carneiro. Nas mãos trazia uma flauta pastoral.

- Aqui estou, peregrina! - exclamou ele em rápida reverência        

- Meu nome é Liziane e...

Ele não quis ouvir. Apressou-se em saltitar em torno dela, à medida que tocava sua flauta doce. A melodia quebrou o silêncio e irritou Liziane, que odiou aquele gesto.

- Quem é você? - perguntou ela.

Não houve resposta. O recém-chegado continuou tocando sua flauta e dançando em torno dela. Estava começando a deixá-la tonta. Irritada, ela não teve outra escolha a não ser desferir uma violenta bolsada contra ele, fazendo com que a flauta voasse a metros de distância. O jovem galante, visivelmente atordoado, correu apanhá-la e segurá-la firme com as mãos.

- Quando eu faço uma pergunta gosto que me respondam, seu mal-educado! ­gritou ela gesticulando com o dedo em sinal de advertência. Sem tempo para respirar, ela tornou a gritar:

- Responda! Quem é você?

Trêmulo, o jovem gaguejou para responder:

- P-Pan...

- Pão? Que pão? Eu perguntei o seu nome, não o que você quer comer! Aliás, não vou lhe dar esmolas, já que você foi muito mal-educado!

- M-meu nome é Pan! Sou o deus da fecundidade e...

- Você pode ser o “deus dos infernos”! Vamos, diga-me como faço para sair daqui!

- Para onde deseja ir?

- Para Curitiba e...

Nisso, um novo personagem manifestou-se à cena:

- Jovem heládia, que faz aqui sozinha?

Um rapaz louro, vestindo túnica branca, saiote dourado, capacete, um escudo de prata, sapatos também dourados e um alforge adiantou-se diante dela, surgindo pelo caminho que ela própria percorrera.   

- Quem é esse?

- Sou Perseu, jovem donzela! - exclamou ele fazendo sinal de reverência. Aproveitando a distração da moça, o jovem com corpo de bode sumiu para o interior da vegetação, sob os gritos de protesto de Liziane.

- Viu o que você fez? Agora não poderei dar uma boa lição neste "sem-modos"!

- Deixe-o! - advertiu o jovem recém-chegado e sorridente - Pan nunca vai ter modos!

- Você o conhece?

- Todos conhecem Pan. Mas diga-me, qual é o seu nome?

- Liziane, filha de Jonas e Rebecca!

- Não conheço. São deuses ou mortais?

- Mortais, como eu! Vamos, diga-me como fazer para sair daqui?

- Não sei de que está falando! Como já lhe disse, sou Perseu. Acabei de receber estes apetrechos das Náiades!

- E para que serve todo este lixo? Vai sair em alguma escola de samba?      

- Estou indo para a Terra das Rosas da Rocha, ao leste...

- Leste? Eu vivo no leste. Pelo menos deve ser para “aqueles lados”. Vamos, leve-me com você!

- Mas eu tenho apenas um par de sapatos para voar!

- Como assim? - indagou Liziane olhando para os sapatos dourados de Perseu.

- As Náiades me presentearam com estes sapatos para que pudesse alcançar a Terra das Rosas da Rocha, lugar onde está a caverna das Górgonas. O capacete é para me tornar invisível, já que elas são vigiadas pelas três Gréias. E este alforge é para conseguir a cabeça da Medusa!

- Ahã...sei! Olhe aqui, eu já percebi que todo mundo por aqui é meio biruta, por isso não vou discutir com você. Seja lá o que você for ou deixar de fazer, isso não é da minha conta. Quero apenas que me leve para o leste com você.

- Já disse que os sapatos só conduzirão à mim!

Liziane então lembrou-se de seus próprios sapatos, presentes de Afrodite.   

- Como é mesmo o lugar para onde você quer ir? - perguntou ela.

- Cistene, a Terra das Rosas da Rocha, mas...

- Segure-se! - preveniu ela abraçando-o e pedindo aos seus próprios sapatos que os levassem até lá...

- Quem precisa dos sapatos das “Maias” quando eu mesma tenho meus próprios sapatos?

- Fantástico! - exclamou Perseu ao perceber que a paisagem havia se transfigurado completamente. Estavam no alto de um penhasco à beira-mar. O céu era escuro e sem estrelas, parecendo que um manto de trevas despencara sobre a região. O vento forte e frio assobiava por entre as rochas escarpadas que traçavam o contorno da aparente ilha, trazendo e levando um espesso nevoeiro para todos os lados.

- Que lugar horrível! - exclamou Liziane tremendo - Não tinha lugar melhor para vir não?

- É aqui onde vivem as Górgonas! - disse ele - Palas Atena orientou-me que a entrada da caverna fica de frente para o mar...

Ele agarrou a mão de Liziane e caminhou através da escuridão. Liziane reparou que ele estava com os olhos fechados, como que seguindo sua intuição.   

- Ei...

Ele parou de repente. Não se ouvia nada a não ser o barulho do vento e o mar quebrando suas ondas contra a encosta, lá embaixo.

- É aqui! - exclamou ele apontando para o ponto escuro à frente deles. Liziane não viu absolutamente nada a não ser escuridão.

- Não estou vendo nada.

- Palas Atena me diz que é aqui!         

- Quem é essa “Pata de Antena”?

- A deusa da sabedoria. Ela vem me guiando há muito para o bom êxito de minha missão!

- E eu poderia saber qual é a sua missão?

- Capturar a cabeça da Górgona Medusa e levá-la à Polidectes, o homem que mantém minha mãe escrava na ilha de Sésifo. Se eu cumprir a promessa de lhe levar a

cabeça da Medusa, minha mãe será libertada!

- E essa tal “Merluza” mora na caverna? Pensei que vivesse no mar com as águas­-vivas e outras celenterados!

- As Górgonas são criaturas horríveis, Liziane. As três irmãs têm corpo de cavalo coberto por serpentes, asas de ouro, cabeça de mulher e os olhos injetados de sangue. Quem olhar diretamente em seus olhos se transformará em pedra e...

- Bah! Bobagem, já vi coisa pior. Estas três irmãs não estão com nada. Entre aí de uma vez e faça o que tiver de fazer. Aliás, eu vou com você!

- Impossível.     

- E por quê?

- Você não poderá ficar invisível. Só eu tenho o capacete que me tornará invisível.

- E só eu tenho a minha bolsa! Vamos, chega de conversa fiada!

Ela empurrou Perseu para que caminhasse através da escuridão do nevoeiro. Ele deu um passo à frente, apalpando o nada. Liziane, impaciente, retirou a lanterna que trazia em sua bolsa para iluminar o caminho:

- Este maldito nevoeiro não me deixa ver absolutamente nada e...ei, veja, encontrei uma passagem aqui! - gritou ela

Perseu acreditou ser aquela a entrada para a caverna das Górgonas. Liziane desligou a lanterna e Perseu a puxou para dentro e, antes de avançarem, aconselhou:       

- É melhor você ficar aqui e...

- Se me impedir de ir, usarei minha bolsa em você aqui mesmo! Você deve ter visto a pancada que dei em Pan, não foi? Então não tente me impedir e...

Ela não conseguiu concluir. O jovem herói agarrou-a subitamente, beijando-a nos lábios. Liziane, que fora pega de surpresa, deixou-se levar pelas braços fortes daquele homem que, desde o primeiro momento, fizera despertar alguma coisa especial em seu coração. Passados alguns instantes, ele murmurou, olhando fundo em seus olhos:

- Por Zeus, você é a donzela mais corajosa que já conheci!

Ela não conseguiu dizer nada. Simplesmente suspirou fundo e fechou os olhos. Sem perder tempo, Perseu deixou-a atrás dele, penetrando no submundo das Górgonas. Ao longo do percurso da estreita passagem, ele cochichou:

- Vamos ter de passar pelas Gréias. São velhas decrépitas que possuem apenas um olho e um dente, vigiando a passagem por turnos. O mesmo olho é compartilhado pelas três, uma de cada vez, capaz de ver qualquer um, mesmo através da escuridão. Vamos torcer para que não nos vejam!

- No caso, não vejam você, não é? - lembrou Liziane apontando para o capacete mágico que Perseu estava carregando na mão e que o tornaria invisível. O jovem, então, decidiu dá-lo à jovem que conhecera na floresta.

- Tome, fique com ele!

- Não. Eu sei muito bem como me defender das Gréias!

Alcançaram um ponto no corredor onde a caverna ficava mais larga e ampla. Foi aí que os dois, escondidos atrás de uma imensa estalagmite, perceberam que as três velhas, vestindo capuz e manto negros, com as faces ocultas, estavam próximas, sob a luz de um candeeiro antigo. Havia somente uma delas em pé, fazendo o turno, enquanto as outras duas dormiam. Foi aí que Perseu teve um plano, o qual murmurou sutilmente ao ouvido de Liziane. Esta pensou um pouco e, apesar de querer muito utilizar sua bolsa contra as velhas, concordou em seguir o plano dele.

Esperaram por muito tempo, tempo que Liziane não conseguia precisar, já que estava sem relógio. Estava sentada com a cabeça apoiada contra a parede de rocha, cochilando, quando Perseu a despertou calmamente. Ela, que costumeiramente acordava espantada após um cochilo ou mesmo uma noite de sono, despertou tranqüila e serena sob o toque dos dedos do rapaz. Ele a preveniu de que havia chegado a hora.

Liziane olhou para as Gréias. Agora eram duas que estavam acordadas. Ela ficou ao lado de Perseu e, quando a Gréia que antes vigiava retirou o olho para passá-la à irmã, os dois caminharam nas pontas dos pés através da ante-sala rochosa, sem fazer o mínimo ruído sequer. Aproveitaram o único momento em que ambas ficavam cegas.

Ao fundo daquele salão inicial, havia uma nova caverna. Perseu preveniu Liziane que era ali onde as Górgonas repousavam. Penetraram naquele novo submundo trevoso e logo que entraram se depararam com as três figuras monstruosas, exatamente como Perseu descrevera, dormindo sobre a rocha fria. A Medusa era a única dentre as três considerada mortal e, ao contrário das demais, tinha mais serpentes no lugar dos cabelos do que as outras. Foi fácil identificá-la: era a primeira, à direita, e pelo aspecto de seu ventre, deveria estar grávida. Perseu olhou para o alto e viu que o teto da caverna estava à cerca de vinte metros de altura, onde havia uma pequena abertura para o exterior. Ele sabia que as Górgonas eram aladas e costumavam deixar a caverna.

Perseu havia prevenido Liziane para que não olhasse diretamente para elas, assim, ambos lhes deram as costas e, com a ajuda do precioso escudo prateado que Perseu ganhara das Náiades e servia de espelho, eles foram se aproximando dos três corpos inertes, lado a lado. O herói estava armado com sua harpa, a espada em forma de foice que serviria para cortar a cabeça do monstro. Entretanto, ao caminhar de costas, eles não podiam ver onde estavam pisando, e aconteceu de Liziane calcar seus sapatos sobre uma pedra, esmigalhando-a em pedaços. O ruído seco fez com que justamente a Medusa levantasse a cabeça, procurando pelos intrusos. Mais que depressa e sem olhar para ela, Perseu ergueu o escudo à altura dos olhos e virou a parte espelhada para a Medusa, de modo que ela viesse a olhar para si mesma. Liziane, abraçada à Perseu e com os olhos fechados, não sabia o que estava acontecendo. Não houve qualquer som ou ruído por parte dela, a não ser alguns silvos das serpentes que tinha no lugar dos cabelos. No entanto, logo o silêncio voltou. Perseu elevou um pouco o escudo para além de seu ângulo de visão, procurando os pés da Górgona. Ficou radiante ao perceber que estavam petrificados. Retirou, então, a proteção por completo, admirando a estátua de pedra que se formara diante deles.

Sem perder tempo, ele usou sua afiadíssima espada contra o pescoço da Medusa, fazendo sua cabeça rolar. O que se seguiu foi em fração de segundos, pois as outras duas Górgonas despertaram com aquela movimentação. Do interior do pescoço da Medusa surgiu um pó amarelado, do qual se formou um formoso cavalo branco com asas diante dos olhos espantados dos dois. Perseu e Liziane, mais que depressa, montaram no lombo do animal que, imediatamente, voou para fora dali através da abertura no teto. Tudo, se sucedeu muito rapidamente, não havendo tempo para as Górgonas os alcançarem. Liziane estava maravilhada com a cena e, principalmente, com o lindo cavalo de linda pelagem alva e asas de cisne que cortava os céus através do vento e da escuridão da noite. Voaram por muito tempo, ela agarrada à Perseu e este seguro ao pescoço do animal, trazendo a cabeça da Górgona dentro de seu alforge.

Voaram através das trevas da terra da Noite, sem destino, rumo à qualquer lugar onde pudessem novamente encontrar a luz...

 

Liziane despertou em meio a um gostoso espreguiçamento. Tivera uma ótima e repousante noite de sono naquela cama larga e macia. Sonhara o tempo todo com Perseu, por quem descobrira estar apaixonada. jamais se sentira tão feliz ao lado de alguém e, aquele herói era, sem dúvida, um homem especial, pois fizera seu coração bater mais rápido.

Entretanto, após um breve período de devaneio, Liziane despertou para a realidade à sua volta. Não se lembrava de como fora parar naquela cama, já que a última coisa de que se lembrava era estar montada com Perseu sobre Pégasus, o cavalo alado. Recordou-se que voaram por longo tempo e, de repente, tudo se apagou. Não fazia a mínima idéia do que havia acontecido. Pensou, então, meio que nervosa, sobre a possibilidade do herói ter abusado dela. Entretanto, podia perceber que não, pois ao que tudo indicava, ela passara a noite sozinha naquele leito confortável, Não sabia quem havia retirado suas roupas, já que ela estava usando uma túnica diferente da que vinha vestindo desde que toda aquela confusão começara. Imaginou então o que se sucedera desde o vôo com o cavalo alado, mas sua mente não conseguiu visualizar nada.

Refeita um pouco do susto, ela admirou o enorme quarto que lhe servira de aposento. Suas paredes eram em tons pastéis e pintadas com figuras de animais, como touros e cavalos. A luz do sol penetrava por uma porta, à esquerda, que dava para uma sacada. À direita, havia outra abertura, coberta por uma cortina de seda, que deveria dar para outros cômodos da casa. Liziane se levantou e procurou por suas roupas. Não as encontrou, nem mesmo os sapatos. Em meio a procura, ela viu uma mulher passar pela cortina, trazendo uma túnica nos braços e seu par de sapatos mágicos. A estranha entrou sorrindo, cumprimentando a moça, animadamente:

- Olá, minha flor!

Liziane, apesar de perceber a diferença física daquela senhora com as demais "senhoras” que conhecera ao longo de sua jornada, sabia que estaria destinada a encontrar "clones" de Gilda em toda a parte. Ela sabia que aquela era uma das muitas tentativas de Pasifaé para enlouquecê-la.

- Já acordou, minha flor? Tão cedo! Veja, “mamãe” trouxe esta túnica limpa e perfumada para você vestir, Sinta que perfume, que fragrância! Veja que beleza! ­exclamou a mulher levando o tecido junto às narinas da moça. Liziane reconheceu um delicioso aroma de alfazema.

- Quem é a senhora?

- Oh, por Zeus, como sou distraída. Meu nome é Cassiopéia!

- Prazer, sou Liziane! - disse ela estendendo-lhe a mão - Onde estou?

- Está em Tróia, minha flor. "Deifobinho" a encontrou caída junto ao portão de

entrada da cidade. Você estava desmaiada, coitadinha.

- Tróia? Desmaiada? Mas como, se eu estava com Perseu e...

Nisso, uma senhora de meia-idade apareceu na quarto. Sorriu para Liziane, cumprimentando-a, enquanto Cassiopéia se retirava anunciando que iria buscar algumas frutas para Liziane comer.

- Sou Hécuba, rainha de Tróia. Meu filho Deífobo a encontrou desmaiada diante dos portões da cidade. Como se chama?

- Liziane. Eu somente não entendo. Eu estava com Perseu, no cavalo alado, quando, de repente despertei nesta cama. A senhora não viu Perseu?

- Não, nem sei de quem se trata. Ele é heládio? Se for, ele jamais poderá vir até

aqui para reclamar você, pois estamos em guerra com Hélades...

- Guerra com Hélades? Pensei que Tróia houvesse guerreado com a Grécia e...ei, Hélades é o nome primitivo da Grécia Antiga! Mas por que não me disseram antes? ­gritou Liziane exaltada - Eu não teria feito papel de estúpida quando me chamaram de "filha de Hélades" por diversas vezes.

- Você é heládia? - perguntou a mulher, visivelmente preocupada: Liziane sabia que poderia responder qualquer coisa, menos ser grega ou "heládia". E, afinal de contas, tudo não passava de uma representação.

- Não, minha senhora, sou brasileira, paranaense de coração...

- Não conheço estas origens...

- Onde estará Perseu? - indagou Liziane temendo ouvir o pior - Por quê ele me abandonou? Eu estou apaixonada por ele. Nunca houve um sentimento tão forte por um homem quanto o que estou sentindo por ele...

Liziane, sem se importar com a presença de Hécuba, permitiu que suas lágrimas extravasassem. Perseu fizera com que ela esquecesse por completo o vazio que vinha sentindo há muito tempo, encontrando nele um significado para sua vida. Nesse exato momento, Cassiopéia entrou no quarto trazendo uma fruteira sortida. Ao ver Liziane chorando, ela soltou um grito de susto, largando a fruteira, que despencou no chão provocando um ruído metálico contra o piso de mármore.

- Mas o que aconteceu? - gritou preocupada

- Nada! - exclamou Liziane enxugando as lágrimas

- Como nada...a menina está em prantos! - ela sentou-se ao lado de Liziane e apanhou sua mão tentando confortá-la.

- Não chore, minha flor! - pediu Cassiopéia, já em lágrimas - Mamãe não gosta de ver ninguém chorando!

- Eu estou bem, dona “Centopéia”! - disse ela tentando se recobrar - A culpa é minha por abrir meu coração tão depressa.

Hécuba e Cassiopéia se entreolharam, sem entender. A rainha, visivelmente sensibilizada pela situação da jovem, tentou distraí-la um pouco:

- Não se preocupe com este rapaz, Liziane. Existem muitos jovens honestos aqui em Tróia. Você adoraria conhecer Deífobo, meu filho. Já não posso dizer o mesmo com relação à Páris. Ele já tem uma pretendente, a mulher que nas causa tanta desgraça nos dias de hoje.

- Que mulher?

- Helena, a princesa espartana. Meu filho Páris a tomou do marido Menelau e a trouxe para Tróia. Desde então, há nove anos, nossos jovens guerreiam com os heládios e espartanos...

Hécuba não conseguiu se conter, levantando-se e deixando o aposento. Cassiopéia, por sua vez, também já se debulhava em lágrimas.

- Chuif...eu tenho muita pena! - exclamou ela - Essa família não é feliz! Tudo por culpa desta moça que enfeitiçou o menino “Parisinho”. Ele era tão queridinho, um amor de menino! Era tão doce, tão amável. De repente, mudou da água para o vinho.

Liziane, que desejava rir um pouco, apesar de já imaginar qual seria a história que a mulher iria relatar, ousou perguntar:

- A senhora viu o menino nascer?

Os olhos de Cassiopéia, marejados com lágrimas, brilharam de repente.

- Mas claro, minha flor! Eu ajudei aquele menino a nascer. Na verdade, eu ajudei a todos eles: Páris, Deífobo e Cassandra. Mas Páris, o mais novo, sempre foi o meu preferido. Ainda me lembro quando Hécuba, sentada no trono, começou a sentir aquelas dores fortes. Não perdi tempo: chamei as escravas, apanhei...

- Lençóis e água quente...

- Isso mesmo, minha flor! - disse Cassiopéia, admirada com a perspicácia de Liziane.

- Ela fez força e o menino nasceu.

- E como era?

- Nossa, era lindo. Era a criança mais linda que eu já havia visto. Louro como a mãe, olhos azuis do' pai e o porte de um deusinho. Lindo! Ainda lembro que Hécuba, no dia seguinte...

- Levantou-se do leito, tomou um banho de corpo inteiro, perfumou-se, colocou aquele cinturão apertado e foi se sentar ao lado do rei! - completou Liziane.

- Mas como é que você sabe, minha flor? - indagou a mulher, surpresa. Entretanto, ela mesma continuou a relatar:

- Mas aconteceu uma coisa muito triste...

Liziane, lembrando-se de Rômulo e Remo, Édipo e Minotauro, esperou com paciência pelo problema com Páris.

- Hécuba, quando estava grávida, sonhou que havia gerado um tição incandescente, cujo fogo se espalhou por toda a cidade. Uma Erínia portadora de fogo, com uma centena de braços, deitou-se sobre Tróia. O sonho da rainha foi interpretado por diversos profetas, mas nenhum deles soube dizer o que realmente significara. Diziam apenas que a criança que viria a nascer traria a desgraça para todos nós. Cassandra, a menina do meio, diz ter o dom da profecia e preveniu o pai de que o menino deveria ser morto, veja se pode! Ninguém deu ouvidos à ela. Dizem que ela ganhou este dom de Apolo. Prometeu se entregar a ele caso obtivesse o dom da profecia. Quando ele concedeu o desejo, ela não o aceitou. Como castigo, ele disse que ninguém acreditaria nas profecias que ela viesse a fazer. É realmente, ninguém acredita nela...

- Mas pelo que eu entendi, Páris acabou trazendo. a desgraça, não? Ao raptar Helena ele provocou a guerra! Cassandra estava certa...

- Não, minha flor! Cassandra é menina boba. Todos a consideram uma louca. Agora deu para espalhar para toda a cidade que os heládios vão presentear Tróia com um cavalo de madeira como pedido de trégua, mas que os soldados estarão escondidos dentro dele para nos atacar quando estiverem dentro das muralhas. Veja se é possível tamanha bobagem!

Liziane percebeu que aquilo que Apolo dissera realmente funcionara sobre a jovem chamada Cassandra. O fato dela haver prevenido Tróia sobre o próprio irmão, a profecia se cumprir e ninguém acreditar nela assim mesmo, denota que Cassandra era desprezada, bem como suas previsões. Mas não se preocupou, já que tudo não passava de uma lenda e achou melhor não se meter.

- E depois que Páris nasceu?

- A "ingnorante" da Cassandra disse que deveriam matar o menino. Imagine, um anjinho! Aquela "sapa gorda" não tem coração! O rei seguiu o conselho de alguns profetas e abandonou o pobrezinho no monte Ida. Ficamos sabendo então que uma ursa o encontrou e o amamentou por quatro dias. Depois disso um pastor chamado Agelau o encontrou e o criou como filho. O menino cresceu e acabou sendo escolhido por Zeus como juiz do Pomo da Discórdia!

- Pomo da Discórdia?

- Dizem que durante o casamento de Téfis e Peleu, Eris, a deusa da Discórdia, que não foi convidada, apareceu na festa e foi barrada na entrada do templo. Ela então atirou uma maçã de ouro entre os convidados, que continha a inscrição "à mais bela". As três deusas mais poderosas: Hera, Atena e Afrodite, reclamaram a posse da maçã, por acharem que a dedicatória se referia a elas. Houve uma disputa pelo pomo de ouro. Zeus determinou que um mortal decidisse a quem caberia a maçã e desceu à terra na companhia das três damas divinas, vindo ter com Páris, que pastoreava os rebanhos de seu pai, para que este escolhesse a mais bela dentre as três. Segundo contam, Atena lhe prometeu a vitória e o heroísmo, caso ele a escolhesse. Hera ofereceu o império sobre a Ásia e a Europa, e Afrodite prometeu a posse de Helena, filha de Zeus com Leda.

- E quem ele escolheu? - perguntou Liziane, roendo as unhas nervosamente.

- Ele ouvira falar muitas vezes sobre Helena, a irmã dos Dióscuros Pólux e Cástor.

E por isso escolheu Afrodite. Como parte de sua promessa, Afrodite trouxe-o de volta para Tróia e exigiu que os pais o recebessem como filho legítimo. O pai, então, aconselhando pela deusa, enviou Páris à Esparta, como embaixador. Foi aí que ele raptou Helena! Foi a pior coisa que poderia ter feito!

- E onde está essa tal Helena?

- Passa o tempo todo em seus aposentos. No princípio estava apaixonada por Páris, mas hoje se sabe que ela sempre desejou voltar a Menelau.

- E este tal “Mausoléu” não veio atrás dela?

- Sim, pois ele ordenou a guerra contra Tróia.

Liziane, que de toda a mitologia grega conhecia especialmente a história da guerra de Tróia, resolveu tirar melhores informações de Cassiopéia:

- E quanto à Páris?

A mulher abaixou os olhos e Liziane percebeu que ela estava tentando conter as lágrimas.

- Chuif...o pobrezinho não foi feliz!       

- Como assim?

- Por causa desta guerra horrível o menino foi morto. Um guerreiro chamado Filoctetes flechou-o durante uma das muitas batalhas...chuif...eu tenho muita pena daquela mãe. A coitadinha não consegue superar a perda do menino!

- E quanto à Helena?

- Depois da morte de "Parisinho", foi prometida em casamento à Deífobo!

- Gostaria de conhecer esta tal Helena! - comentou Liziane.

- Se quiser, posso levar você até ela, minha flor!

- Ótimo. Já que estou vivendo tudo isso, vou aproveitar para conhecer melhor os detalhes da Mitologia.

Pediu à Cassiopéia que a apresentasse à Helena, e a bondosa mulher conduziu-a, imediatamente. Atravessaram inúmeros corredores do luxuoso palácio em tons salmão e pisos de mármore cobertos com tapetes vermelhos. Enquanto isso, Liziane aproveitou para perguntar á gentil senhora:

- Por acaso a senhora não tem nenhuma prima chamada Eribéia ou Plexaura?

- São minhas irmãs, minha flor! - gritou a mulher animadamente - Você as conhece?

- Sim, quando estive em Creta e Tebas.

- Que amor! - gritou a mulher com lágrimas nos olhos - E como elas estão?  

- Estão bem...

- Não sei se você esteve em Tebas há muito tempo, mas soube há poucos dias, através de um mercador, que uma coisa horrível aconteceu lá!

- E o que foi? Sua irmã pôs fogo no corpo e saiu gritando? - ironizou Liziane.

- Não, minha flor, foi pior! - exclamou ela liricamente sem perceber a brincadeira de Liziane - Contam que Jocasta casou-se há anos com um belo rapaz chamado Édipo e tiveram três filhos. Agora descobriram que ele era o filho que lhe foi tirado quando nasceu e lançado ao mar a mando do próprio pai. Descobriu-se que ele escapou da morte, sendo achado na praia por um bom homem, que o criou. Ele voltou e tornou-se rei de Tebas. A mãe cometeu incesto com o menino...chuif! Eu tenho muita pena!

- Como assim, se estive com eles ainda há...

Liziane parou de falar. Notou que não havia muita sincronia de tempo naquela novela "tamanha família".

- E o que aconteceu?

- Dizem que tudo isso havia sido profetizado. O filho rejeitado voltaria, mataria o pai e casaria com a mãe, reinando juntos. Depois de tudo descoberto, Jocasta se matou e Édipo, envergonhado, furou os olhos, cegou-se!

- Credo! E Dinossaura? - indagou Liziane, perplexa.

- Não sei sobre minha irmã. Se não fosse pela guerra eu partiria imediatamente para Tebas a fim de visitar minha irmã. Ela deve estar em prantos!

- Eu imagino!

Nisso, alcançaram um aposento igual aos demais, com a única diferença de seu acesso estar impedido por duas enorme portas de madeira em forma de arco. Cassiopéia bateu e esperaram alguns instantes. Não demorou muito para que a porta se abrisse e uma dama loura de olhos azuis muito vivos as recebesse. Para decepção de Liziane, não era Pasifaé, mas outra atriz desconhecida. Sorriu para elas e Cassiopéia apresentou-lhe Liziane, à qual estendeu sua mão, em cumprimento:

- Deífobo falou-me de você e como ele a encontrou! - disse ela, delicadamente.

- Não quer entrar?

Liziane penetrou no aposento da filha de Zeus, notando que não era diferente daquele onde estava, enquanto Cassiopéia saiu dizendo ir buscar alguma coisa para elas comerem. No fundo do quarto havia uma sacada protegida por uma fina cortina de seda, que revoava ao sabor da brisa da noite que começara a cair sobre a cidade. Liziane reparou então na extensa e inexpugnável muralha, ao longe, com tochas iluminando-a aqui e ali, ao longo de sua extensão. No alto, inúmeros sentinelas armados com flechas e lanças, vigiavam os arredores da cidade.

- Você é heládia? - perguntou Helena, sentando-se junto à cama e chamando a atenção de Liziane.

- Não, sou brasileira! Vim de muito longe!

- Muitos me conhecem pelo nome. Talvez você tenha ouvido falar de mim por causa de meus irmãos e minha mãe!

- Não me lembro, mas fale-me a respeito! - pediu Liziane, interessada em aprender um pouco mais sobre mitologia.

- Sou filha de Nêmesis, a deusa alada da raiva justa. Segundo nossos ancestrais, quando a justa Têmis é desrespeitada, minha mãe age, visto ser a raiva justa dirigida contra os que violam a ordem, em especial a ordem da natureza, e desrespeitam a lei e a

norma da natureza...

- Sei! - exclamou Liziane impaciente com tantos absurdos - Mas, continue...

- Seu nome mortal é Leda e Zeus apaixonou-se por ela. Não desejando ter com o deus das deuses, minha mãe fugiu através do Mar Negro. Zeus, entretanto, perseguiu-a e tentou apanhá-la. No mar, ela se converteu em peixe. Zeus sulcou as águas atrás dela até o extremo da terra. Já em terra, ela procurou escapar convertendo-se num ganso. Zeus assumiu a forma de um cisne e amou-a. Depois disso, ela botou um ovo da cor azul do jacinto...

- Ahã, sei...

- Leda, ou Nêmesis, tinha por esposo mortal o rei Tíndaro de Esparta, filho de Ébalo e Gorgófona, a filha de Perseu e...

- E filha de quem?

- De Perseu. Ela recebeu este nome porque Perseu matou a Górgona e...    

- Perseu tem uma filha? E uma neta? E bisnetos?

- Sim, pois...

- Chega...não precisa explicar. Sei quando sou enganada por homens cafajestes e posso me recobrar sozinha. Pode continuar com o relato de Leda! - disse a moça, visivelmente aborrecida.

- Bem, ela estava grávida de Tíndaro. Ela cuidou do ovo até que se partiu. Ao mesmo tempo, pariu Cástor e Clitemnestra, enquanto do ovo nasciam eu e meu irmão Pólux.

- Hum, que lindo! - exclamou em tom debochado

A moça não percebeu a ironia da jovem, continuando a relatar sua história por demais absurda para Liziane. Helena deu um longo suspiro, como que rememorando seu passado, dizendo em seguida:

- Cástor e Pólux eram irmãos inseparáveis. Juntos raptaram as Leucípedes, jovens prometidas em casamento aos irmãos messênicos, Idas e Linceu, nossos primos que viviam em terras vizinhas às nossas. Entretanto, Zeus e Afrodite aprovaram o rapto, abençoando a união de meus irmãos com as jovens raptadas.

- Sei, entendo perfeitamente...

- Tempos depois, pouco antes de Páris chegar à Esparta e me raptar, meus primos Idas e Linceu apareceram em nossa casa para uma visita. Meus irmãos não imaginavam o porquê daquele repentino aparecimento, à primeira vista, cortês. Foi em meio à conversa que Idas explicou que haviam trazido um rebanho de gado como presente de casamento de meus irmãos com as Leucípedes. Ingenuamente, meus irmãos saíram em busca do gado, nos arredores de Esparta. Entretanto, combinaram que Pólux iria na frente, enquanto Cástor permaneceria escondido dentro da caule seco de uma grande árvore que existia em nossas terras, para vigiar se os primos messênicos sairiam ao encalço deles ou não. E eles estavam certos quanto à desconfiança, pois Idas e Linceu não permaneceram muito tempo em nossa casa, saindo pouco depois deles. Na verdade, Linceu avistou Cástor se escondendo dentro da árvore seca. Contou isto à Idas que, criminosamente, aproximou-se da árvore e transfixou-a com uma lança, ferindo Cástor. Correram dali imediatamente, mas Pólux já retornava, sem gado algum. Ao ver o ato terrível, correu atrás deles, alcançando-os na tumba do pai, Afareu. Linceu foi ferido mortalmente por Pólux. Idas arrancou a lápide do chão e arremessou-a contra meu irmão, atordoando-o. Investiu contra ele com sua espada, mas antes que pudesse atingi-lo, foi fulminado por um raio enviado por Zeus...

- Nossa, que coisa! - exclamou Liziane.

Liziane percebeu que o próprio relato emocionara a jovem Helena. Num movimento rápido com a cabeça, percebeu que Cassiopéia, que acabara de trazer uvas e vinho para as jovens, estava chorando em um canto do quarto diante do relato comovente de Helena.

- Pólux voltou para junto do irmão e encontrou-o exalando o último suspiro. Com o corpo de Cástor nos braços, ergueu a voz para Zeus, implorando ao pai que também o deixasse morrer. Zeus aproximou-se de Pólux e disse: "és meu filho. Este homem foi gerado por um mortal em tua mãe pelo marido...". E sugeriu a Pólux que escolhesse entre viver, dali por diante, no Olimpo e passar um dia debaixo da terra com o irmão, no Hades, e o dia seguinte no palácio celestial, entre os deuses. Pólux escolheu partilhar a luz e a treva também, para sempre, a fim de estar todos as dias com o irmão. Assim ambos habitam um dia com Zeus e o dia seguinte no mundo dos mortos. Por isso, quando olhar para o céu e avistar a constelação de estrelas gêmeas, estará vendo meus irmãos Cástor e Pólux! Sabe - concluiu ela enxugando as lágrimas - Sinto muita falta de meus irmãos.

- Que lindo!! - exclamou Cassiopéia

- Chocante! E nesse meio tempo você foi raptada?

Helena olhou para Cassiopéia, que entendeu o olhar da jovem espartana, deixando o aposento em seguida.

- Sim. No início até achei que queria deixar Menelau, mas hoje sei que errei sendo conivente com Páris. Agora ele está morto, estou prometida a um homem que não amo e sinto-me culpada por tantas mortes.

- Ainda bem que você reconhece, heim? E pelo que conheço da história, muita gente vai morrer depois que o cavalo de madeira for introduzido na cidade...

Os olhos de Helena se arregalaram.

- Como sabe sobre o cavalo de madeira?

- Sabendo, oras. Qualquer criança do primário sabe à respeito do cavalo...   

- Mas Ulisses me garantiu que era um plano secreto...

- Ulisses? Você o conhece?

- Ele foi um dos meus muitos pretendentes antes que eu fosse entregue à Menelau. Após o meu rapto, ele se juntou aos espartanos para guerrear contra Tróia e me levar de volta. Há poucos dias ele esteve aqui. Ulisses é muito esperto. Disfarçou-se de mendigo e entrou na cidade. Sua tarefa era explorar a cidade e me localizar, para contar aos outros onde estou escondida. Quando passeava pelas ruas de Tróia, reconheci-o nas vestes sujas e aquilo encheu-me de saudades de meu verdadeiro lar, de meu marido e de minha filha, que abandonei por orgulho. Em rápida conversa, jurei que não o trairia e ele me contou que um imenso cavalo de madeira estava sendo construído para ser presenteado aos troianos e que, dentro dele, estariam escondidos soldados gregos para invadirem a cidade...

- Conheço esta parte. É daí que veio o famoso ditado "presente de grego"! Mas este Ulisses é fogo, não? Quer dizer que ele conseguiu chegar até aqui são e salvo?

- Ulisses está combatendo há nove anos. Deixou sua esposa Penélope e o filho Telêmaco para vir lutar por mim...

- Ah, Penélope, aquela que prometeu se casar novamente quando terminasse de tecer uma manta, não é? - indagou Liziane.

- Não sei!

- Sim, eu me lembro que a professora Eidis, catedrática em História, contou esta história na sala de aulas: Ulisses estava fora já há vinte anos, desde que partira para Tróia. O povo de Ítaca queria um novo rei para a rainha Penélope. Ela, acreditando que o marido ainda estava vivo, prometeu se casar novamente quando terminasse de tecer uma manta. Só que a espertalhona desmanchava à noite o que fizera durante o dia. Assim, o tapete nunca ficava pranto. Quando sentiu-se pressionada a terminar, Ulisses voltou...

- E onde você o conheceu?

- No meio da viagem dele. Mas acho que a guerra de Tróia já havia acabado...     

- Não, a guerra ainda continua!

- Sim...não...sim...não...ahhh, eu não sei mais nada. Já percebi que a ordem Cronoslógica das coisas aqui é uma bagunça!

- Você diz coisas estranhas, Liziane...

- Tão estranhas quanto a maioria das malucos que existem por aqui.

Liziane levantou-se da beira da cama, onde estava sentada ao lado de Helena, dirigindo-se até a sacada de seus aposentos. Após uma expressiva admiração das muralhas que cercavam Tróia, ela perguntou:

- Ulisses disse a você quando se daria a invasão por intermédio do cavalo de madeira?

- Não. Disse apenas que seria em breve. Por quê?

- Bem, acho melhor você ficar preparada. Lá está ele...

Helena correu até a sacada com sua túnica esvoaçante e soltou um grito de surpresa ao avistar a cabeça gigantesca de um cavalo de madeira emergida por sobre as

muralhas da cidade, diante dos portões.

- Chegou a hora...

- Pr'á vocês, porque eu estou me mandando! - anunciou Liziane tentando se lembrar onde havia deixada sua bolsa.

- Não pode sair. Os heládios que agora cercam Tróia a matarão. Eles poderão pensar que você é troiana!

- Não se preocupe, não vou passar pelos portões. Ainda não sei como, mas Pasifaé consegue mudar as imagens rapidamente e quando eu penso que estou num lugar, de repente estou em outro! Bem, vou apanhar minha bolsa e partir. Não quero testemunhar a famosa cena em que o cavalo de madeira presenteado pelos gregos é trazido para dentro dos portões de Tróia e, durante a noite, os soldados saem de sua barriga para atacar a cidade, desprevenida...

- Prometa que fará segredo disso, Liziane.

- Mas claro, não sou eu quem vai atrapalhar a história, Helena!

- Para onde você vai? - perguntou a moça.

Liziane parou um pouco para pensar. Na verdade ela nunca sabia para onde ir.

- Sei lá, você tem alguma sugestão?

- Não. Na verdade não sei o que está procurando.

- Estou procurando a saída deste maldito lugar. Daqui a pouco aparecerão dinossauros e eu me verei perdida no "Jurassic Park"!

- Por que não foge para Atenas? Sei que é longe, mas lá você encontra viajantes que vão para todos os cantos do mundo e poderão orientá-la!

- Ótima idéia e...o quê? Você disse "Atenas"?     

- Sim.

- Você é "lôca", é? O quê é que eu vou fazer em Atenas se eu quero voltar para Curitiba?

- Sim, mas...

- Grrrr, que gente demente! - gritou deixando o quarto furiosa, sob o olhar perplexo de Helena.

Caminhou a passos largos para seus aposentos, apanhou sua bolsa e calçou os sapatos mágicos. Deu uma última olhada através da sacada e observou a cabeça do cavalo de madeira do lado de fora dos portões da cidade, enquanto pensava na cidade de Atenas com firmeza, desaparecendo em seguida dos aposentos de Tróia...

 

As ruas de Atenas, com seus caminhos calçados por pedras, estavam repletas de transeuntes vestindo túnicas brancas que lhes cobriam todo o corpo até os calcanhares. jovens e velhos, homens e mulheres, todos usam os mesmos trajes. Liziane, que caminhava entre eles admirando as construções em estilo helênico, admirava tamanha perfeição e riqueza de detalhes. A idéia de que estava realmente vivendo os acontecimentos do mundo antigo se tornava mais e mais aceita pela jovem, que caminhava calmamente pelas ruelas carregando sua curiosa bolsa.

Alcançou uma praça e deparou-se com a Acrópole grega em perfeito estado de conservação. Sobre as escadarias que conduziam ao templo, avistou centenas de jovens, homens e mulheres sentados sobre os degraus, ouvindo um homem que pregava uma espécie de sermão diante deles, no Ágora, o centro da praça.

O pregador, um homem calvo e com longa barba gesticulava, à medida que falava, e Liziane acomodou-se junto aos outros jovens para ouvi-lo. Sua voz era rouca e penetrante, falando com vigor aos pupilos:

- Assim, amados filhos, analisem a idéia do Bem para procurar um conceito através do pensamento lógico. Todas as coisas são simples cópias de tipos ideais, de tipos hierarquizados ou representações do mundo espiritual, desde o ser mais humilde ao Bem Supremo. Todos os fenômenos semelhantes são passíveis de serem assimilados pelo homem a partir do momento em que o indivíduo tenta considerá-los como a reprodução de uma imagem primordial, à qual denominamos “idéia" . Uma idéia, ou o “entender do ser" se constróem no íntimo do homem. As idéias formam uma hierarquia e, no seu cume reside a idéia superior, que seria o Bem ou o próprio Criador. É neste mundo das idéias que reside, o interior, o âmago, a imaginação e a intuição.

- Fale a respeito do "mito da caverna" sobre o qual o senhor nos falou, mestre! ­pediu uma jovem que fazia parte do grupo.

O pregador, que Liziane acreditou se tratar de um filósofo, sorriu e agradeceu ao pedido da moça.

- Lembrem-se, pupilos que tudo o que está à nossa volta é irreal, meras cópias de uma realidade superior que é o mundo espiritual. Assim devemos tomar o homem como que acorrentado no fundo de uma caverna, próximo à entrada. Ele está preso de maneira tal que não consegue se voltar e observar o que se passa às suas costas, permanecendo eternamente diante da parede ao fundo de sua prisão. Porém, a luz que penetra pela entrada permite a este prisioneiro perceber, projetadas na parede diante dele, sombras do que acontece do lado de fora. Estas sombras são reflexos da realidade exterior, a "verdadeira realidade" ou o mundo das idéias...

- E este homem permanecerá eternamente acorrentado? - perguntou um dos rapazes.

- Este homem acorrentado deve procurar se libertar das correntes que o prendem àquela falsa realidade e olhar para trás, onde se encontra a verdadeira realidade.

- Significa que o dia em que o homem se libertar de seus medos, preconceitos, dogmas e toda forma de pensamentos que obstruam a percepção do seu verdadeiro "eu" estará finalmente despertando para a realidade.? - perguntou uma ,jovem ao lado de Liziane.

- Exatamente! - exclamou o filósofo - Através da razão a alma se eleva ao mundo das idéias. A alma é o princípio que dá vitalidade e move o homem. O objetivo é purificar esta alma e libertá-la dos laços materiais a que está vinculada, a fim de que possa aprender realmente a idéia do Bem!

- Fantástico! - exclamou a jovem.

- Eu não sei o que há de tão fantástico nisso! - disse Liziane achando aqueles comentários familiares - A Seicho-No-Ie ensina isso há muito tempo e qualquer criança sabe que nossos pensamentos moldam nossa vida!

O filósofo olhou, atentamente, para a jovem recém-chegada, sorrindo amavelmente.

- De onde você vem, minha jovem?

- De Curitiba. Aliás, esta Acrópole me lembra muito a Universidade Federal do Paraná.

- Bem se vê que você é estrangeira! - disse o filósofo - Deixe que me apresente: meu nome é Platão e estes são meus pupilos do liceu!

- Platão, é? Então é você quem teorizou sobre o mito da caverna?

- Sim, o mito sobre o qual acabamos de ouvir.

- Gostaria imensamente de ver pessoalmente este tal mito da caverna!

A estranha jovem recém-chegada desapareceu repentinamente diante dos olhos arregalados do filósofo e de seus pupilos...

 

Liziane viu-se tomada por estranho torpor. A realidade à sua volta parecia haver desaparecido, e não havia qualquer imagem que identificasse a ela onde estava. Não sentia frio ou calor. Não havia luz ou som, nem mesmo o tato. Aos poucos, como se despertasse de um sono profundo, seus olhos começaram a captar imagens em meio àquela escuridão, como se sua visão noturna entrasse em funcionamento. Contudo, as imagens não eram coerentes e, diante dela, uma espécie de filme sobre a sua vida passou rapidamente perante seus olhos, como se estivesse assistindo cenas de seu dia-a-dia numa imensa tela de cinema. Reconheceu seus pais, seus amigos, os momentos felizes e até mesmo os de elevada dor e tristeza, momentos que só haviam significado para ela. Percebeu-se na infância, os primeiros dias na escola, as noites felizes de Natal com a família, aniversários festejados e outros esquecidos. Viu-se sorrindo com os colegas, chorando sozinha, sem ninguém ver. Assistiu a seus medos mais íntimos numa viagem sem rumo para dentro de si mesma. Logo estava gritando, chamando por socorro, uma ajuda que sabia que não viria. Estava gritando para alguém que não sabia onde estava, nem ao menos quem era. Sentiu-se sozinha, desamparada. Sabia que havia alguém, em algum lugar, em algum momento que estava esperando por ela, pelo seu chamado. Mas este chamado só seria atendido quando ela mesma se permitisse ser acolhida. Só dependia dela estar receptiva àquele que sempre estava olhando para ela. O olhar de um justo coração que assistia a todos os seus passos, todos os seus momentos, todas as suas angústias. O olhar de um justo amor que estava sempre junto dela, esperando apenas o momento de ser chamado.

O filme passou. A última cena foi a dela própria naquela escuridão. Mais que de repente, formas foram tomando conta do ambiente que a cercava e ela se percebeu pisando solo firme. Paredes escuras se manifestaram em ambos os lados e uma luz, de algum lugar atrás dela, atravessava todo o ambiente, terminando numa imensa parede. Lá avistou duas sombras: a sua própria e a de um vulto. Magnetizada pela força do momento, ela caminhou cerca de dez passos lentos, aproximando-se de um homem desnudo e de costas para ela. Estava acorrentado, os membros inferiores presos e muito juntos. Os braços abertos e esticados para o alto, também presos à firmes correntes de largos elos. No pescoço, uma espécie de coleira por onde se estendia a última corrente, que o aprisionava a uma rocha em forma de estaca na parede à frente. Aquilo impedia-o de se voltar para trás. Liziane aproximou-se, ainda sem ouvir qualquer som que identificasse o momento que estava vivenciando. Adiantou-se e postou-se ao seu lado, admirando as imagens que se projetavam na parede, verdadeiras sombras trazidas pela luz para a qual ela ainda não conseguira olhar. Vislumbrou apenas a face esquerda do estranho homem preso aquele lugar escuro e solitário. Ele tinha os olhos fixos nas imagens projetadas à frente, como que embevecido com as cenas que se passavam, nada mais que sombras perdidas e desconexas.

- O que está olhando? - indagou Liziane quebrando, pela primeira vez, o terrível silêncio que imperava no lugar.

O estranho, sem ao menos piscar, continuava voltado para frente, posição esta condicionada pela corrente presa a seu pescoço. Após breve momento, seus lábios balbuciaram as primeiras palavras:

- Vejo as sombras de minha existência!

Ela não entendeu. Olhou para as imagens na parede e descobriu sua própria sombra junto à dele e das imagens trazidas pela luz. Finalmente ela indagou:

- Quem é você?

Novo momento de silêncio. O estranho fechou os olhos e abaixou-os por um instante, único movimento que lhe era permitido fazer, tamanha a sua clausura. Em seguida respondeu:

- Eu sou o ser humano...

Numa fração de segundos, Liziane virou a cabeça em direção da luz, às suas costas. Não viu absolutamente nada, a não ser uma forte luminosidade dourada vinda da abertura. Percebeu então estar dentro de uma grande caverna.

Imediatamente, sentiu-se sugada pela luz, como que "caindo" em direção dela. A única sensação que teve foi a de perceber, durante a aparente queda, que o filme de sua vida retrocedeu diante de seus olhos, perdendo-se no vazio...

 

Ela despertou sob o chamado insistente daquela voz que lhe penetrou aos ouvidos. Abriu os olhos, lentamente, encontrando o sorriso animado e acolhedor de Pasifaé, aquela por quem tanto buscara. Entretanto, ao invés de dirigir-se irada para ela, procurou se sentar sobre o solo e tentar equilibrar os pensamentos, tamanha a confusão em sua mente.

- Onde você esteve, Liziane? - perguntou a moça, visivelmente surpresa – Estivemos procurando por você durante o dia todo!

- E-eu...onde estou?

- Encontrei-a deitada aqui, diante da caverna! - explicou ela apontando para a entrada da gruta onde resolvera passar a noite - Não encontramos você ao amanhecer, e

pensamos que havia ido embora sozinha. Que bom reencontrá-la, pois fiquei preocupada com você!

Liziane olhou em torno de si e reconheceu o mesmo lugar onde haviam se instalado para o estudo de filosofia. Ainda havia restos da fogueira ao redor da qual, na primeira noite, haviam se sentado e discutido a respeito de Platão e o mito da caverna.

- Onde estão os outros?

- Meditando em alguns pontos do bosque. Fizemos uma experiência prática sobre o mito da caverna e todos se saíram maravilhosamente bem. Pena que não encontramos você!

Pasifaé ajudou-a a se levantar. Liziane estava um pouco tonta, mas conseguiu perceber que ainda estava com sua bolsa, sua companheira inseparável.

- Acho que você conseguiu me enlouquecer, Pasifaé! - exclamou ela - Por um instante cheguei a pensar que estive na antiga Grécia e...

Liziane parou de falar quando seus olhos se voltaram para baixo e ela reconheceu os sapatos cor de pérolas que recebera da deusa Afrodite. Voltou-se imediatamente para Pasifaé, atônita:

- Foi tudo encenação, não foi? Diga que eu não estive na Grécia, Pasifaé!

A moça deu com os ombros, sem saber o que dizer. Percebeu que Liziane estava confusa e alterada.

- Venha, vamos encontrar os outros.

Liziane não contestou, seguindo com ela através de uma trilha que se embrenhava no bosque da Serra do Mar. Antes de desaparecer mata adentro, deu uma última olhada para trás. Seus olhos encontraram novamente a entrada para o interior da estranha e misteriosa caverna...

 

Havia música ambiente e muito "burburinho" no coquetel de comemoração do número 100 da revista III Milênio, um verdadeiro sucesso de público e crítica.

Liziane, sua irmã Danielle e os sócios amigos Jane, Greg e Gastão organizaram a noite nas próprias dependências da revista. Garçons iam e vinham com bandejas de bebidas e iguarias variadas. Mais ou menos cinqüenta pessoas completavam a festa, entre amigos, familiares e repórteres dos principais meios de comunicação. Colunáveis e importantes personalidades da capital e outras cidades do Estado se fizeram presentes, o que muito agradou os proprietários da revista. Pasifaé, Gilda e Odaísa compareceram ao convite de Liziane, estando encantadas com a noite. Logo após uma entrevista de Liziane à principal rede de televisão local, Gilda puxou-a pelo braço, solicitando um instante de sua atenção:

- Venha, minha flor, venha conversar um pouquinho com a “mamãe”! Vejam, Odaísa e Pasifaé, que menina linda! Parece uma bonequinha, um primor! - exclamou Gilda admirada com o belo vestido de seda javanesa pérola que Liziane vestia. Os cabelos estavam presos e arrumados em cima da cabeça, enquanto uma longa madeixa despencava pela fronte, caindo sobre a face direita.

- Obrigada por terem vindo! - disse ela segurando um cálice com champagne. ­

Esta noite é muito especial para nós!

- Nós não poderíamos faltar! - disse Pasifaé, em um fino vestido preto com uma cauda discreta - Sua revista é ótima, Liziane.

- E justamente na número 100 estará a reportagem sobre a cultura grega!

- Que beleza, vou comprar dez e presentear os amigos! - anunciou Gilda – Eu mesma vou comprar cinco só para mim, como lembrança!

- Nossa, não exagere, Gilda!

- Não é exagero, minha flor! Mamãe gosta de prestigiar!

- Obrigada!

Liziane aproximou-se um pouco mais de Pasifaé e, em meio ao som da música executada em CD player e da confusão de vozes, indagou em tom fraco:

- Pasifaé, você realmente jura que não tentou me enlouquecer naquele pico? Não contratou atores para me enganar?

Pasifaé quase se afogou com seu champagne, rindo-se da pergunta da amiga.

- Sim, Liziane, eu juro! Aliás, não tenho nem ao menos dinheiro para tudo isso. E pelo que você me contou, se fosse para maquinar tudo aquilo, precisaríamos de milhões, como os filmes de Hollywood.

- Então eu realmente estive vivendo na Grécia Antiga? Conheci Teseu, o Minotauro, Jocasta e Édipo? E Helena de Tróia também? Vivi o mito da caverna em pessoa e falei com Platão? Ou tudo não passou de um sonho?

Pasifaé tinha os olhos perdidos nas pequenas bolhas de ar de seu champagne. Limitou-se a dizer:

- Liziane, nossos sonhos podem se tornar realidade, um dia. Da mesma forma, nossa realidade pode se tornar um sonho também...

Liziane pensou profundamente na reflexão de Pasifaé. O fato de estar calçando os sapatos que Afrodite lhe dera e a experiência na caverna deixaram-na extremamente confusa. Teria vivido todas aquelas passagens da mitologia grega ou tudo não passara de pura imaginação? Mas só ela sabia o que realmente havia vivido. Verdade ou não, o que sentiu na caverna pouco antes de despertar para a realidade fêz com que ela parasse para refletir sobre si mesma. O momento de solidão interior e o estranho "vazio" que vinha sentindo desapareceram por completo, fazendo com que ela adquirisse uma nova visão da vida, muito mais positiva. E sentia que tudo fora real demais para ser um sonho...

Voltou-se para Gilda, que conversava animadamente com Odaísa, um relato que, por sinal, Liziane conhecia bem demais:

- E logo que eu cheguei no hospital para visitar a filha da De Lourdes, eu a ouvi dizer à minha prima: "mãe, quero tomar um banho de corpo inteiro! Pois ela levantou da cama, Odaísa, foi ao banheiro amparada pela mãe e tomou aquele banho de corpo inteiro. Saiu, perfumou-se, vestiu uma camisola de seda chinesa, colocou aquela cinta apertada e saiu passear com o marido pelo corredor. Nem pareciam marido e mulher, pareciam dois irmãos!

Todos riram, inclusive Liziane, que se divertia muito em companhia de Gilda. Foi em meio ao largo sorriso que expressara que seus olhos encontraram os do belo rapaz louro vindo em sua direção. Ele bebia uma dose de whisky, sorrindo por sobre a borda do copo enquanto olhava para ela. Os olhos de Liziane ficaram estáticos, pois ela não acreditava no que estava vendo: diante dela estava Perseu, o jovem herói que povoava seus pensamentos desde que voltara de sua fascinante aventura grega. Vestindo um elegante blaser carmim, ele postou-se diante dela, a mão esquerda no bolso da calça, enquanto que, com a outra, segurava o copo com seu drink.

- Parabéns, Liziane! - disse ele esboçando um conjunto de dentes alvos e perfeitos. Seus olhos verdes magnetizaram-se aos dela, e Liziane estremeceu por um momento, percebendo que o mesmo sentimento que a invadira na companhia do herói grego voltara a dominá-la novamente. Ela balbuciou o nome da herói, o que quase passou despercebido pelo jovem:

- P-Perseu?

- Não, sou Douglas...

Ele estendeu-lhe a mão. Liziane sentiu o coração disparar ao tocá-lo. Logo ela, que dificilmente se deixava abalar.

- M-muito prazer...sou Liziane...

- Eu sei! - exclamou ele sorrindo - Já a conhecia pela revista e jornais. Aliás, todos conhecem Liziane Quincas!

- Você é curitibano?

- Sou paulistano. Estou há quatro meses em Curitiba. Aliás, esta cidade é maravilhosa, nem penso mais em sair daqui, a não ser para estudar no exterior. Mas isso é outra história.

- Que bom...quero dizer, é um prazer conhecê-lo. E é um prazer tê-lo em minha festa...

- Agradeço o convite. Foi dona Gilda quem me entregou o convite assinado por você!

- Ah...

Liziane deu uma rápida olhada para Gilda, ainda na companhia de Pasifaé e Odaísa. Estavam olhando para ela com expectativa. Gilda deu uma piscadela rápida para Liziane e a moça entendeu que ela estava tentando se passar por Eros, o deus do Amor. Agora ela entendera o porquê de Gilda insistir para que ela convidasse algumas pessoas que não conhecia. Lembrou-se então que dentre os nomes estava o de Douglas. Mais uma vez, a Grécia voltara a agir em sua vida, desta vez através do deus do Amor.

- Que bom que veio, Douglas.

Ele ofereceu-lhe o braço e Liziane, extasiada diante da figura de seu herói bem-amado, saiu em sua companhia para lhe mostrar as várias dependências da revista. Em meio à confusão de vozes e música, ela murmurou em seu ouvido:

- Você gosta de mitologia grega?

De repente, ela odiou a si mesma pela pergunta. Sabia que, num primeiro encontro, qualquer pergunta do tipo "você gosta de arte moderna?" ou "qual a sua opinião sobre Sócrates?" funciona como um balde de gelo sobre qualquer um. Entretanto, para sua surpresa, ela ouviu os lábios do rapaz pronunciarem:

- Adoro. Sou mestre em cultura grega!

Liziane sorriu, enquanto elevava seus pensamentos para alguma região perdida no tempo e no espaço, uma região atém da imaginação:

"Graças à Zeus...”

 

                                                                                R. F. Dropa  

 

                      

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