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HISTÓRIAS DOS MARES DO SUL / William Somerset
HISTÓRIAS DOS MARES DO SUL / William Somerset

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

HISTÓRIAS DOS MARES DO SUL

 

O Pacífico é inconstante e versátil como a alma do homem. Às vezes está cinzento como a Mancha, exalando um cheiro pesado, outras encapela-se e cobre-se tumultuosamente de cristas de espuma. Não é com freqüência que se mostra azul e calmo. Mas, em tais ocasiões, o azul chega a ser arrogante. O sol refulge ferozmente num céu sem nuvens. O vento dos trópicos penetra no sangue, enchendo-nos de um anseio impaciente pelo desconhecido. As vagas, rolando majestosamente, estendem-se ao infinito para todos os lados, e nós esquecemos a juventude desaparecida, com as suas memó­rias doces e cruéis, num irrequieto, torturado desejo de viver. Foi sobre um mar assim que velejou Ulisses em busca das Ilhas Afortunadas. Mas também há dias em que o Pacífico semelha um lago. Fica liso e brilhante. Os peixes voadores, sombras fugidias sobre um espelho, levantam ao mergulhar pequenos chafarizes de gotas cintilantes. Surgem no horizonte nuvens algodoadas, que ao pôr do sol assumem formas estranhas, e é impossível não se ter a ilusão de estar vendo uma cadeia de alterosas montanhas. São as montanhas do país dos sonhos. Singramos, no meio de um silêncio inconcebível, um oceano de magia. À espaços, as gaivotas vêm sugerir que a terra não está muito longe — alguma ilha esquecida no seio da savana de águas. Mas as melancólicas gaivotas são o único sinal que se tem delas. Nunca avista­mos um paquete com a sua fumaça amigável, uma barca imponente ou uma elegante escuna — nem sequer um bote de pesca. É um deserto vazio. E esta vacuidade não tarda a nos encher de um vago pressentimento.

Mackintosh

 

 

Ele chapinhou no mar durante alguns minutos. Era muito raso para nadar, e Mackintosh não podia avançar muito, com receio dos tubarões. Por fim saiu e foi ao banheiro tomar um banho de chuva. A frialdade da água doce era agradá­vel depois do salgado e pegajoso Pacífico, tão quente, apesar de serem apenas sete horas, que banhar-se nele não revi­gorava, senão que enlanguescia ainda mais. Quando acabou de se secar, envolveu-se num roupão de banho e gritou ao cozinheiro chinês que estaria pronto para o almoço dentro de cinco minutos. Atravessou de pés descalços a faixa de capim tosco, que Walker, o administrador, chamava orgulho­samente de relvado, entrou na sua habitação e vestiu-se. Isto não lhe tomou muito tempo, pois êle envergou apenas uma camisa e um par de calças de tela. Passou para a casa do chefe, do outro lado da residência. Os dois homens to­mavam juntos as suas refeições. Porém o chinês lhe disse que Walker tinha saído a cavalo às cinco e só voltaria uma hora mais tarde.

Mackintosh dormira mal. Olhou com pouca vontade para os ovos com presunto e o mamão que lhe puseram na fren­te. Os mosquitos haviam estado de enlouquecer aquela noi­te; esvoaçavam ao redor do seu mosquiteiro, em tal número que o seu zumbido, impiedoso, ameaçador, produzia o efeito de uma nota única prolongada ao infinito, tocada num órgão distante, e todas as vezes que conseguia cochilar, Mackintosh acordava sobressaltado, com a impressão de que um deles tinha penetrado na cortina. Fazia tanto calor que se deitara nu. Virava-se de um lado para o outro. E pouco a pouco o rugido surdo das vagas quebrando-se de encontro aos reci­fes, tão contínuo e regular que habitualmente o ouvido lhe era insensível, foi avultando na sua consciência, o seu ritmo foi martelando os seus nervos cansados, até que ele teve de se retesar, cerrando os punhos, no esforço de suportar aquilo. O pensamento de que nada podia pôr fim àquele som, pois ele continuaria por toda a eternidade, era intolerável. E, como se a sua força quisesse porfiar com as forças inexo­ráveis da natureza, ele sentia um impulso doido para come­ter alguma violência. Compreendeu que urgia dominar-se, se não quisesse perder o juízo. E agora, olhando pela janela a laguna e a faixa de espuma que demarcava os recifes, es­tremecia de ódio pela brilhante paisagem. O céu sem nuvens era como uma redoma que a aprisionasse. Mackintosh acen­deu o cachimbo e folheou um maço de jornais de Auckland, que viera de Ápia poucos dias atrás. O mais novo deles já datava de três semanas. Davam uma sensação de incrível tédio.

Depois foi para o escritório. Era uma ampla peça nua, com duas carteiras e um banco ao longo de uma das pare­des. Estavam sentados nele diversos indígenas e duas mu­lheres. Pairavam enquanto esperavam o administrador e, ao entrar Mackintosh, cumprimentaram-no: Talofa-U.

Ele devolveu a saudação e sentou-se à sua carteira. Co­meçou a escrever, redigindo um relatório que o governador de Samoa vinha reclamando e que Walker, na sua delonga costumeira, deixara de preparar. Mackintosh, ao tomar as suas anotações, refletia vingativamente que Walker deixara atrasar-se o relatório porque era tão ignorante que tinha uma aversão instintiva a toda espécie de papéis. E, agora que o documento estava pronto afinal, ele aceitaria o tra­balho do seu subordinado sem uma palavra de gratidão, an­tes com um sorriso escarninho ou um remoque, e enviá-lo-ia ao governador como se fosse composição sua. Não seria ca­paz de escrever uma só palavra do relatório. Mackintosh pensou raivosamente que, se o seu chefe inserisse qualquer coisa a lápis, seria infantil de expressão e vazada em lin­guagem incorreta. Quando ele objetava ou tentava pôr a coisa em frase inteligível, Walker enfurecia-se e gritava:

— Que me importa lá a gramática? É isto que eu quero dizer, e quero dizê-lo deste jeito.

Finalmente chegou Walker. Os nativos rodearam-no imediatamente, procurando serem logo atendidos. Mas ele man­dou-os brutalmente sentar e calar a boca. Ameaçou-os de mandá-los pôr na rua e de não falar com nenhum, caso não ficassem quietos. Acenou com a cabeça para Mackintosh.

Olá, Mac! Levantaste, afinal? Não sei como podes passar na cama a parte melhor do dia. Devias estar de pé antes de sair o sol, como eu. Sujeito preguiçoso! — Ati­rou-se pesadamente na sua cadeira e enxugou o rosto com um vasto lenço de pintas. Caramba, estou com sede!

Dirigindo-se ao policial que estava parado à porta, for­mando uma figura pitoresca, com a sua jaqueta branca e o lava-lava, a tanga dos samoanos, mandou-o trazer kava. A malga de kava estava no chão, a um canto do aposento. O policial encheu uma metade de casca de coco e trouxe-a a Walker. Este derramou algumas gotas no chão, murmurou o brinde costumeiro aos presentes, e bebeu com gosto. De­pois disse ao policial que servisse aos indígenas, e a casca de coco passou às mãos de cada um deles por ordem de idade ou de importância, sendo esvaziada com as mesmas cerimônias.

Então ele encetou a sua tarefa diária. Era um homem pequeno, bastante abaixo da estatura normal, extraordinariamente robusto. Tinha um rosto largo e carnudo, escanhoado, com as faces pendentes dos dois lados em grandes pregas, e vastos refegos sob o queixo. As suas feições pequenas dissolviam-se em gordura, e, salvo uma meia-lua de cabelo branco atrás da cabeça, ele era completamente calvo. Lem­brava Mr. Pickwick. Era grotesco, uma figura de comédia, e todavia fato bastante singular não lhe faltava dig­nidade. Os seus olhos azuis, atrás dos largos óculos de ouro, eram vivazes e astutos, e o seu rosto exprimia grande reso­lução. Tinha sessenta anos, mas a sua vitalidade natural triunfava dos ataques do tempo. Apesar da sua corpulência, seus movimentos eram vivazes, e ele caminhava com passos pesados, decididos, como se quisesse deixar na terra a marca do seu peso. Falava em voz alta e rude.

Havia já dois anos que Mac fora nomeado assistente de Walker. Este, que por um quarto de século tinha sido administrador de Talua, uma das ilhas maiores do Arquipélago de Samoa, era um homem conhecido pessoalmente ou de re­putação em todos os recantos dos mares do sul; e foi com acesa curiosidade que Mackintosh aguardou o seu primeiro encontro com ele. Por um motivo qualquer, demorou-se uma quinzena em Ápia antes de se empossar nas suas funções, e tanto no Hotel Chaplin como no Clube Inglês, ouviu inúme­ras anedotas a respeito do administrador. Era com ironia que se lembrava agora do interesse que elas despertaram. Tinha-as ouvido depois uma centena de vezes, da boca do próprio Walker. Esse sabia que era um original, e, orgulhoso da sua reputação, procedia deliberadamente de acordo com ela. Cioso da sua "legenda", fazia questão de tornar sabidos os pormenores exatos das numerosas histórias que se contavam dele. Indignava-se visivelmente com qualquer que as repe­tisse de modo incorreto a um forasteiro.

Tinha Walker uma espécie de rude cordialidade em que Mackintosh a princípio achou certo atrativo, e o administrador, satisfeito por encontrar um ouvinte para o qual tudo que ele dizia era novidade, deu o melhor de si. Foi ale­gre, bonacheirão e indulgente. Para Mackintosh, que tinha levado a vida agasalhada de um funcionário do governo em Londres até que na idade de trinta e cinco anos um ataque de pneumonia, ameaçando-o com a tuberculose, o obrigara a buscar uma posição no Pacífico, a existência de Walker parecia extraordinariamente romântica. A aventura inicial, com que ele se havia lançado no mundo, era característica do homem. Fugira para o mar quando tinha quinze anos, e durante um ano esteve empregado em baldear carvão num cargueiro. Era um menino mirrado, e tanto os marinheiros como o imediato se mostraram bons para ele. Mas o capitão, por algum motivo, criou-lhe uma antipatia selvagem. Tra­tou cruelmente o rapaz, a tal ponto que, moído de panca­das e de pontapés, ele muitas vezes não podia dormir de­vido à dor que torturava os seus membros. Aborrecia o ca­pitão com toda a alma. Um dia deram-lhe palpite para uma corrida, e ele conseguiu tomar vinte e cinco libras empres­tadas de um amigo que fizera em Belfast. Jogou-as no ca­valo, um corredor desconhecido e com poucas probabilida­des de ganhar. Não poderia restituir o dinheiro se perdesse, mas isto foi idéia que nunca lhe ocorreu. Sentia-se em maré de sorte. O cavalo ganhou e êle viu-se na posse de mais de mil libras em dinheiro sonante. Era chegada a sua vez. Pro­curou o melhor advogado da cidade o carvoeiro andava então pela costa da Irlanda e, dizendo-lhe ter ouvido que o navio estava à venda, pediu ao homem que lhe agenciasse a compra. O advogado achou graça no seu pequeno cliente, que não tinha mais de dezesseis anos e parecia ter menos, e, levado talvez pela simpatia, prometeu, não somente atendê-lo, mas tratar de que ele fizesse um negócio vantajoso. Vol­vido algum tempo, estava o rapaz dono do navio. Voltou para bordo, e teve o que ele chamava o momento mais glo­rioso da sua vida quando despediu o capitão, mandando-o sair do sew navio dentro de meia hora. Nomeou capitão ao imediato e explorou o carvoeiro durante outros nove me­ses, ao fim dos quais vendeu-o com lucro.

Veio para as ilhas na idade de vinte e seis anos, como plantador. Foi um dos poucos brancos que se estabeleceram em Talua no tempo da ocupação alemã, e já nessa época tinha alguma influência entre os indígenas. Os alemães no­mearam-no administrador, posição que ele ocupou durante vinte anos e, ao tomarem posse da ilha, os ingleses o con­firmaram no posto. Ele governava despoticamente, mas com completo êxito. O prestígio que daí lhe advinha era mais um motivo para alimentar o interesse de Mackintosh.

Mas os dois homens não eram feitos para viverem em concórdia. Mackintosh era feio, de gestos canhestros, alto e esguio, com um peito estreito e ombros curvados. Tinha as faces pálidas e encovadas, os olhos grandes e sombrios. Lia muito, e quando os seus livros chegaram e foram desencaixotados, Walker veio ao seu quarto para olhá-los. Depois de o fazer, voltou-se para Mackintosh com uma risada grosseira:

         Mas para que diabo você foi trazer toda esta moxinifada? perguntou.

Mackintosh corou, ofendido.

Lastimo que o senhor faça esta opinião dos meus li­vros. Eu os trouxe para lê-los.

         Quando você disse que ia receber um caixote de li­vros eu pensei que houvesse alguma coisa para eu ler tam­bém. Não tem romances policiais?

Os romances policiais não me interessam.

Então você é um asno chapado.

Considere-me assim, se quiser.

Recebia Walker por todos os correios um maço de litera­tura periódica, jornais da Nova Zelândia e magazines ame­ricanos. Ele se exasperava com o desprezo de Mackintosh por estas efêmeras publicações. Não tolerava os livros que absorviam os lazeres de Mackintosh, achando que era por "pose" que ele lia o Declínio e Queda de Gibbons ou a Ana­tomia da Melancolia de Burton. E, como nunca aprendera a refrear a língua, exprimiu livremente a opinião que fazia do seu auxiliar. Mackintosh começou a ver o fundo da sua natureza, e sob o seu ruidoso bom humor distinguiu uma as­túcia vulgar que lhe era odiosa. Ele era superficial e domi­nador, e — coisa estranha — tinha apesar disto, uma timi­dez que lhe tornava antipáticas as pessoas de natureza di­versa. Julgava ingenuamente os outros pela linguagem e, se esta fosse isenta das pragas e obscenidades que consti­tuíam a maior parte da sua conversação, olhava-os com sus­peita. De noite, os dois homens trocavam cartas no piquei. Ele jogava mal, mas com bravata, blasonando diante do ad­versário quando ganhava e zangando-se quando perdia. De raro em raro aparecia um par de plantadores ou de nego­ciantes para jogar uíste, e então Walker se mostrava a uma luz que Mackintosh considerava característica. Jogava sem se importar com o parceiro, querendo ser mão sempre que tinha boas cartas, e discutia interminavelmente, vencendo pela altura da voz. Desfazia constantemente as suas jogadas, choramingando: "Oh, vocês não vão cobrar isto de um po­bre velho que mal pode enxergar." Sabia ele que os seus oponentes preferiam conservar-lhe as boas graças, e por isso hesitavam em exigir o rigor do jogo? Mackintosh observava-o com frígido desprezo. Terminado o jogo, punham-se a con­tar anedotas enquanto fumavam e bebiam uísque. Walker narrava com gosto a história do seu casamento. Havia-se embebedado tanto na festa nupcial que a noiva fugira e ele nunca mais a tinha visto. Tivera inúmeras aventuras, vul­gares e sórdidas, com as mulheres da ilha. Descrevia-as com um orgulho da sua salacidade que era ofensivo aos ouvidos delicados de Mackintosh. Era um velho grosseiro e sensual. Fazia pouco de Mackintosh porque este não queria compar­tilhar os seus amores promíscuos e permanecia sóbrio en­quanto os outros se embriagavam.

Desprezava-o também pela ordem que ele observava no seu trabalho de escritório. Mackintosh gostava da exatidão em tudo. Sua carteira estava sempre bem arrumada, seus papéis arquivados corretamente, ele encontrava logo qual­quer documento necessitado e sabia na ponta dos dedos to­dos os regulamentos relativos à administração.

— Besteira! — dizia Walker. — Faz vinte anos que go­verno esta ilha sem papeladas e não é agora que vou pre­cisar disso.

— Você acha mais simples ter de rebuscar uma hora in­teira à procura de uma carta quando precisa dela?

— Tu não passas de um reles funcionário. Mas não és mau rapaz. Depois de passares aqui um ano ou dois, hás de en­trar na linha. O teu defeito é não quereres beber. Serias um sujeito passável se tomasses um pifão todas as semanas.

O curioso era que Walker não tinha nenhuma consciên­cia do ódio que a cada mês crescia contra ele no peito do seu assistente. Embora o ridicularizasse, à medida que se lhe acostumava, começou quase a gostar dele. Tinha uma certa tolerância pelas esquisitices dos outros, e aceitou Mackintosh como um ratão. Talvez o estimasse inconscientemente por­que podia mofar dele. O seu humorismo consistia em remo­ques grosseiros, e ele precisava de uma vítima. A exatidão de Mackintosh, a sua moralidade, a sua temperança, eram temas férteis. O seu nome escocês fornecia ensejo para os chistes costumeiros sobre a Escócia. Walker folgava quando se reuniam dois ou três homens no escritório e ele podia fazê-los todos rir à custa de Mackintosh. Dizia aos indíge­nas coisas ridículas a seu respeito, e Mackintosh, ainda pouco familiarizado com a língua samoana, via, com um sorriso de bom humor, a solta alegria deles quando Walker fazia algu­ma referência obscena ao seu subordinado.

         Esta qualidade tu tens, Mac — dizia Walker na sua voz estentórea. — Sabes levar as troças por bem.

         Era troça? — sorria Mackintosh. — Eu não sabia.

         Viva a Escócia! — gritava Walker numa gargalhada retumbante, — Só há um meio de fazer com que um es­cocês perceba um gracejo, e é por operação cirúrgica.

Mal sabia ele que a coisa com que Mackintosh menos se conformava era um gracejo. Acordava no meio da noite para remoer com rancor o ditério que Walker lhe atirara dias atrás descuidosamente. Aquilo o envenenava. Seu coração impava de furor e ele imaginava meios de se desquitar do fanfarrão. Havia tentado replicar, mas Walker tinha sobre ele a vantagem da resposta pronta e ao pé da letra. A obtu­sidade da sua mente o impermeabilizava às finas zombarias. Satisfeito de si como era, tornava-se impossível atendê-lo. A sua voz alta e a sua gargalhada clangorosa eram armas contra as quais Mackintosh nada tinha que opor, e ele com­preendeu que o mais sensato era não trair jamais a sua irri­tação. Aprendeu a dominar-se. Mas o seu ódio cresceu até se tornar em idéia fixa. Vigiava freneticamente a Walker. Alimentava a sua estima própria com cada exemplo de bai­xeza da parte do outro, cada mostra de vaidade infantil, de astúcia e de vulgaridade. Walker comia com sofreguidão, ruidosa e porcamente, e Mackintosh o observava com satis­fação. Tomava nota das tolices que ele dizia e dos seus erros de gramática. Sabendo que o seu chefe o tinha em pouca conta, sentia-se amargamente satisfeito com tal opinião que aumentava o seu desprezo por esse velho ignaro e cheio de si. E proporcionava-lhe um prazer estranho o saber que Wal­ker permanecia em absoluta inconsciência do seu ódio por ele. Era um imbecil que gostava da popularidade e comprazia-se em imaginar que toda a gente o admirava. Certa vez Mackintosh surpreendeu uma referência de Walker a ele.

— Depois de eu lhe dar uma boa sova ele endireita — dizia o administrador. — É um cão fiel, e tem amor ao patrão.

Mackintosh, o rosto comprido e pálido, completamente imóvel, riu-se silenciosa e demoradamente, com gosto.

Mas o seu ódio não era cego; muito pelo contrário, tinha uma singular clarividência que o fazia apreciar com jus­tiça as qualidades de Walker. Este governava eficientemente o seu pequeno domínio. Era justo e honesto. Tendo opor­tunidades para ganhar dinheiro, estava mais pobre do que ao ser investido naquele posto, e o único arrimo da sua ve­lhice seria a pensão que êle esperava para quando se apo­sentasse. Orgulhava-se de poder, com um auxiliar e um es­crevente mestiço, administrar melhor a sua ilha do que o era Upolu, a ilha da capital, com o seu exército de funcio­nários. Tinha alguns policiais indígenas para apoio da súa autoridade, mas não se utilizava deles. Governava pela as­túcia e pelo seu bom humor irlandês.

Eles queriam à força mandar construir uma cadeia aqui dizia. Mas para que é que eu quero uma cadeia? Não vou prender os indígenas. Se não andarem direito eu saberei lidar com eles.

Um dos seus motivos de disputa com as autoridades superiores de Ápia era o fato de ele se arrogar plena juris­dição sobre os nativos da ilha. Fossem quais fossem os seus crimes, não consentia em os entregar aos tribunais compe­tentes, e já por diversas vezes tinha trocado cartas coléri­cas com o governador, em Upolu. Pois considerava os in­dígenas como seus filhos. E isto era o que havia de assom­broso nesse homem grosseiro, vulgar e egoísta: amava apai­xonadamente a ilha onde vivera tantos anos, e tinha pelos nativos uma estranha e rude ternura.

Gostava de percorrer a ilha, montado na sua velha égua cinzenta, e nunca se cansava das suas belezas. Nos seus passeios pelas estradas relvosas, entre coqueiros, detinha-se de quando em quando para admirar a encantadora paisagem. Outras vezes chegava a uma aldeia e, enquanto ficava à es­pera de um púcaro de kava que lhe ia buscar o cacique, contemplava o pequeno amontoado de choupanas com os seus altos tetos de colmo, e um sorriso se lhe espraiava sobre o rosto nédio. Seus olhos pousavam ditosos no verde copado das árvores de pão.

Por Deus! Isto é tal qual o jardim do Éden. Às vezes as suas cavalgadas acompanhavam a linha da -costa, e por entre as árvores ele lobrigava o imenso mar, vazio, sem uma vela a perturbar-lbe a solidão; em outras ocasiões galgava uma colina, e uma grande vastidão de cam­pinas, com as aldeias aninhadas entre as árvores altas, se desdobrava ante os seus olhos, como o reino da terra. Ele deixava-se ficar uma hora inteira sentado ali, presa de embevecimento. Mas não tinha palavras para expressar o que sentia, e desoprimia-se com algum chiste obsceno. Era como se só a vulgaridade pudesse diminuir a tensão dos seus sen­timentos.

Mackintosh observava tudo isto com frio desdém. Walker fora sempre um grande beberrão, e jactava-se de pôr de­baixo da mesa homens duas vezes mais moços que ele, quan­do passava a noite em Ápia. Tinha o sentimentalismo do ébrio. Era capaz de chorar com as histórias que lia nos ma­gazines, e, no entanto recusava emprestar dinheiro a algum mercador em apuros, seu conhecido de vinte anos. Era agar­rado ao seu dinheiro. Certa ocasião, Mackintosh lhe disse:

— Ninguém poderia acusá-lo de desperdícios.

Ele tomou isto por um cumprimento. O seu entusiasmo pela natureza não era mais que a babosa sensibilidade do borracho. Tampouco tinha Mackintosh simpatia pelos senti­mentos do seu chefe para com os indígenas. Amava-os por­que eles estavam debaixo do seu poder, como um egoísta ama o seu cão, e a sua mentalidade nivelava-se com a deles. A índole dos nativos era obscena, e ele trazia sempre uma piada lúbrica na ponta da língua. Compreendiam-se mutua­mente. Walker tinha orgulho da sua influência sobre eles. Considerava-os seus filhos e imiscuía-se nos seus negócios. Mas era cioso da sua autoridade. Governando-os com mão de ferro, sem admitir contradição, não consentia que ne­nhum homem branco da ilha se prevalecesse deles. Vigiava suspeitosamente os missionários, e se estes faziam alguma coisa que lhe caísse no desagrado, podia tornar-lhes a vida tão insuportável que eles, caso não obtivessem remoção, apressavam-se em ir embora por sua própria conta. Era tão grande o seu poder sobre os indígenas que a uma palavra sua, estes se recusariam a trabalhar e fornecer comida aos seus pastores. Por outro lado, Walker não favorecia os mer­cadores. Cuidava que eles não lograssem os indígenas, que não tirassem lucros extravagantes das mercadorias que lhes vendiam, enquanto que tratava de fazer com que os nati­vos fossem bem recompensados pelo seu trabalho e pela sua compra. Anulava sem contemplação todo negócio que lhe parecesse injusto. Às vezes os mercadores se queixavam dele em Ápia. Pagavam-no caro. Nessas ocasiões Walker não re­cuava diante de calúnia alguma para se desforrar, e eles acabavam por compreender que, se quisessem não já viver em paz, mas simplesmente viver, tinham de aceitar as suas condições. Mais de uma vez fora incendiado o armazém de um negociante malquisto com ele, e só pelo a propósito do acontecimento se poderia suspeitar que fora obra de Wal­ker. De uma feita um mestiço de sueco, arruinado pelo in­cêndio, veio procurá-lo e acusou-o redondamente de ser o instigador. Walker riu-lhe nas bochechas.

— Cachorro! Tua mãe era indígena, e tu quiseste roubar dos indígenas. Se o teu carunchoso armazém se queimou, foi por um decreto da Providência. Foi isso, um decreto da Providência. Some-te!

E enquanto o homem cm escorraçado por dois policiais indígenas, o administrador soltava uma gorda risada.

         Um decreto da Providência!

Nessa manhã Mackintosh observou-o enquanto ele iniciava o trabalho do dia. Walker começou pelos doentes, pois além das suas outras atividades, exercia as dc curandeiro, tendo atrás do escritório um quartinho cheio de drogas. Adiantou-se um homem idoso, de cabeleira grisalha e crespa, vestido com um lava-lava azul, coberto de complicadas tatuagens, a pele de todo o corpo enrugada como um pergaminho.

Que é que tu queres? — perguntou Walker abrupta­mente. O homem disse numa voz lamentosa que não podia comer sem vomitar, que tinha dores aqui e ali.

Vai procurar os missionários — respondeu Walker. — Tu bem sabes que eu só curo crianças.

         Já procurei os missionários, mas não serviu de nada.

         Então vai para casa e prepara-te para morrer. Viveste tanto, e ainda queres continuar a viver? És um idiota.

O homem prorrompeu em súplicas queixosas, mas Walker, apontando para uma mulher que tinha nos braços uma criança doente, mandou-a trazê-la à sua carteira. Fez-lhe perguntas e olhou a criança.

         Vou te dar remédio — disse ele. E voltando-se para o escrevente: — Vai buscar umas pílulas de calomelano no dispensário. — Fez a criança engolir uma delas e deu ou­tra à mãe: — Leva a criança e conserva-a bem agasalhada. Se não estiver morta amanhã, estará melhor.

Recostou-se na cadeira e acendeu o cachimbo.

         O calomelano é um porrete. Tenho salvo mais vidas com ele do que todos os médicos de Ápia juntos.

Walker tinha grande desvanecimento da sua perícia, e, com o dogmatismo dos ignorantes, desdenhava dos membros legítimos da profissão.

         O caso de que eu gosto — disse ele — é aquele que foi dado como perdido por todos os doutores. Quando um doutor desengana o indivíduo, entro eu e digo: "Vem a mim." Nunca te contei o daquele sujeito que tinha um cân­cer?

Freqüentemente — respondeu Mackintosh.

Pois eu o endireitei em três meses.

         Você nunca me fala, nos que não curou.

Terminada esta parte do seu expediente, Walker passou ao resto. Era uma miscelânea curiosa. Havia uma mulher que não podia viver em paz com o marido e um homem a queixar-se de que a mulher lhe fugira.

         Sujeito de sorte — disse Walker. — A maior parte desejaria que as suas mulheres fizessem o mesmo.

Havia uma longa e complicada pendência sobre a posse de algumas jardas de terra; uma disputa sobre a partilha do resultado de uma pescaria; uma queixa contra um mercador branco que roubara nas medidas. Walker escutava atentamente cada questão, resolvia-se logo e sentenciava. Feito isso, não queria ouvir mais nada: se o queixoso insistisse, era enxotado dali por um policial. Mackintosh escutava tu­do com reconcentrada irritação. Em grosso, talvez, podia-se admitir que uma tosca justiça era feita, mas o que exaspe­rava o assistente era o fato de o seu chefe se guiar pelo instinto de preferência às provas. Não atendia a alegações. Invectivava as testemunhas, e quando estas não aceitavam o seu modo de ver o caso, chamava-as de ladras e mentirosas.

Deixou para o fim um grupo de homens que estavam sen­tados a um canto do escritório. Fingira não dar pela sua presença. O grupo constava de um velho chefe, homem alto e senhoril de curtos cabelos brancos, com um lava-lava novo e um enorme cocar de palha como insígnia de autoridade, o seu filho e meia dúzia dos homens mais importantes da aldeia. Walker tinha tido uma pendência com essa gente, e vencera-os. Como era próprio dele, queria agora oprimi-los, aproveitando-se do fato de os ter por terra. A questão fora toda especial. Walker tinha a paixão de construir es­tradas. Quando chegara a Talua, não havia mais que alguns sendeiros aqui e acolá, mas com o correr do tempo ele foi abrindo estradas por toda parte, ligando as aldeias, e a isso se devia em grande parte a prosperidade da ilha. Ao passo que antigamente era impossível trazer os produtos da terra (copra, na maioria) até a costa, onde seriam embar­cados para Ápia em escunas e lanchas a vapor, atualmente o transporte era fácil e simples. A sua ambição era fazer uma estrada que cruzasse a ilha de extremo a extremo, e grande trecho dela estava já pronto.

Dentro de dois anos tê-la-ei terminado, e depois não me importa que morra ou que me mandem embora.

As suas estradas faziam o deleite da sua alma, e constantemente saía em excursão para cuidar que elas fossem conservadas em boas condições. Eram bastante simples: lar­gas trilhas cobertas de relva, abertas no meio do matagal ou das plantações. Mas houvera que desenraizar árvores, remo­ver ou fazer saltar rochas, e em certos pontos fora mister proceder a nivelamentos. Êle orgulhava-se de ter vencido com seus próprios recursos todas estas dificuldades. Exta­siava-se com o traçado que lhes dera, o qual não só era con­veniente como também mostrava todas as belezas da ilha, caras ao seu coração. Quando falava nas suas estradas, era quase poeta. Elas serpenteavam entre aqueles cenários de­liciosos, e Walker tivera o cuidado de as fazer correr aqui e acolá em linha reta, proporcionando uma vista verde en­tre as altas árvores. Em outros sítios, fizera-as descrever cur­vas, de modo a repousar os olhos pela variedade. Era assom­broso que Este homem grosseiro e sensual pudesse mostrar tanto engenho na obtenção de efeitos que lhe sugeria a sua imaginação. Empregava na construção das suas estradas to­da a fantasia de um jardineiro japonês. Tinha recebido do governador uma subvenção para esse trabalho, mas timbrava singularmente em só usar pequena parte dela, e no ano an­terior gastara cem libras apenas, das mil que lhe eram con­cedidas.

— Para que é que eles querem dinheiro? — dizia. — Vão gastá-lo em toda espécie de bagatelas de que não precisam. É o que os missionários lhes deixam comprar.

Por nenhuma razão em particular, salvo talvez o orgulho pela economia da sua administração e o desejo de contra­por a sua eficiência aos métodos perdulários de Ápia, fazia os indígenas trabalhar para ele por salários quase nominais. Esta fora a causa da sua recente desavença com a aldeia, cujos maiorais tinham vindo falar-lhe nessa manhã. O filho do cacique havia passado um ano em Upolu, e de regresso falara ao seu povo na boa paga que em Ápia se recebia pelos serviços públicos. Em longos conciliábulos ociosos, acen­dera-lhes nos corações a ganância. Descobria-lhes visões de vastas riquezas, e eles pensavam no uísque que poderiam comprar — este era caro, pois havia uma lei proibindo a sua venda aos indígenas, de modo que ele lhes custava o dobro do preço pago pelos brancos. Pensavam nos grandes cofres de sândalo em que guardavam os seus tesouros, nos sabonetes perfumados e no salmão em potes, luxos pelos quais o canaca é capaz de vender a alma. E assim, quando o administrador os chamou para lhes dizer que queria abrir uma estrada entre a sua aldeia e determinado ponto da cos­ta, oferecendo-lhes vinte libras, eles reclamaram cem. O fi­lho do cacique chamava-se Manuma. Era um rapaz alto e garboso, de pele acobreada, o cabelo crespo tingido do ver­melho com cal, um colar de bagas vermelhas em redor do pescoço e atrás da orelha, uma flor que semelhava uma cha­ma escarlate contra o seu rosto pardo. Trazia desnuda a parte superior do corpo, mas, a fim de mostrar que já não era um selvagem, visto que tinha morado cm Ápia, usava umas calças de algodão em vez do lava-lava. Dissera aos outros aue se eles se conservassem unidos, o administrador se veria forçado a aceitar as suas condições. Ele fazia ques­tão de construir a estrada, e quando visse que os indígenas não trabalhariam por menos, dava-lhes o que pediam. Mas era preciso mostrar firmeza; deixá-lo falar, e não fazer re­baixas; tinham pedido cem libras, e em cem libras deviam ficar. Quando eles mencionaram a quantia, Walker desatou numa de suas longas e retumbantes gargalhadas. Disse-lhes que não se fizessem de tolos e pusessem mãos à obra ime­diatamente. Como estava de bom humor naquele dia, pro­meteu dar-lhes uma festa quando a estrada estivesse terminada. Mas ao ver que ninguém se dispunha a iniciar o trabalho, foi à aldeia e perguntou aos homens que brinca­deira idiota era aquela. Manuma industriara-os bem. Eles se mostraram perfeitamente calmos, não procuraram discutir e a discussão é rima das paixões do canaca. Apenas enco­lhiam os ombros. Fariam o trabalho por cem libras; por menos, não. Ele que fizesse o que entendesse. Pouco se lhes dava. Então Walker enfureceu-se. Nessas ocasiões ficava hor­rendo. O seu pescoço curto e nédio inchava temerosamente, seu rosto vermelho tornava-se purpurino, sua boca deitava esouma. Cobriu-os de invectivas. Sabia, às maravilhas, ofen­der e humilhar. Foi terrificante. Os velhos ficaram pálidos o desinquietos. Hesitavam. Se não fosse Manuma, com a sua experiência do mundo, e o temor de serem ridicularizados por ele, teriam cedido. Foi Manuma quem respondeu a Wal­ker.

         Pague-nos cem libras, e nós trabalharemos.

Walker, sacudindo o punho para ele, lançou-lhe todas as iniúrias que lhe vieram à cabeça. Aturdiu-o de escárnios. Manuma permanecia quieto e sorridente. Talvez houvesse mais fanfarrice do que verdadeira coragem no seu sorriso, mas êle tinha de fazer boa figura diante dos outros. Repe­tiu as suas palavras:

Pague-nos cem libras e trabalharemos.

Pensaram que Walker ia saltar para cima dele. Não se­ria a primeira vez que espancava um indígena por suas próprias mãos. Conheciam-lhe a força, c embora Walker ti­vesse o triplo da idade do moço e seis polegadas a menos na altura, não duvidavam de que ele levasse a melhor. Nin­guém jamais pensara em resistir à selvagem investida do administrador. Mas Walker nada fez. Riu-se apenas.

         Não vou perder o meu tempo com uma cambada de idiotas — disse ele. — Conferenciem de novo. Vocês sabem qual é a minha oferta. Se não começarem o trabalho den­tro de uma semana, cuidado!

Fez meia volta e saiu da casa do cacique. Desamarrou a sua velha montadura, e — fato característico das suas re­lações com os indígenas — um dos velhos segurou-lhe o es­tribo direito enquanto Walker, trepado numa prestimosa pe­dra, se içava pesadamente para a sela.

Nesta mesma noite, quando Walker dava o seu costumeiro passeio pela estrada que lhe passava diante de casa, ouviu algo zunir perto dele e atingir uma árvore com um som surdo. Tinham-lhe atirado qualquer coisa. Dobrou instintiva­mente a cabeça. Com um grito de "Quem está aí?" correu para o lugar de onde proviera o projétil e ouviu o ruído de um homem fugindo entre o matagal. Sabia ser inútil per­segui-lo na escuridão, e além disso perdera logo o fôlego, de modo que parou e voltou à estrada. Esteve procurando o objeto que lhe fora atirado, mas nada encontrou. Era noite feita. Voltou rapidamente para casa, chamando Mackintosh e o chinesinho.

         Um desses diabos me atirou alguma coisa. Venham, vamos ver o que foi.

Mandou o rapaz trazer uma lanterna, e os três voltaram ao sítio. Esquadrinharam o chão, mas não puderam encon­trar o que procuravam. De súbito, o rapaz soltou um grito gutural. Os outros olharam. Ele ergueu a lanterna e, sinis­tramente iluminada em meio à escuridão, Mackintosh e Wal­ker viram uma faca cravada no tronco de um coqueiro. Fora lançada com tanta violência que se fez preciso um es­forço para arrancá-la.

         Caramba, onde estaria eu a estas horas se ele não ti­vesse errado o alvo!

Walker considerou a faca. Era uma dessas, feitas pelo mo­delo das facas de marinheiro, trazidas para a ilha cem anos atrás pelos primeiros brancos que ali aportaram, e usadas no mister de partir cocos ao meio, a fim de retirar a noz para o preparo da copra. Era uma arma mortal, e a lâmina, comprida de doze polegadas, tinha um gume afiadíssimo. Walker riu baixinho.

         O diabo sem-vergonha!

Não duvidou que fosse Manuma quem tinha atirado a faca. Escapara de morrer por uma questão de três polegadas. Mas não se encolerizou; estava, pelo contrário, de ótimo humor. A aventura regozijava-o. Quando chegaram em casa, man­dou vir bebida e esfregou as mãos de contentamento.

         Eles vão me pagar isto!

Os seus olhinhos faiscavam. Walker enfunava-se como um peru, e pela segunda vez naquela meia hora insistiu em contar a Mackintosh todos os pormenores do caso. Depois convidou-o para uma partida de piquet, e enquanto jogava, alardeou os seus projetos de represália. Mackintosh ouvia de lábios cerrados.

Mas por que oprimi-los dessa maneira? perguntou ele. Vinte libras é uma miséria pelo trabalho que você lhes pede.

Eles deviam ficar ainda muito agradecidos por eu os pagar.

Mas, com os diabos, o dinheiro não é seu. O governo lhe entrega para isso uma quantia razoável. Não se queixa­rão se você a gastar.

         Essa gente de Ápia é uma malta de imbecis.

Mackintosh compreendeu que Walker era movido só pela vaidade. Encolheu os ombros.

Não lhe adiantará muito dar quinau no pessoal de Ápia à custa da sua vida.

Ora rapaz, esta gente não é capaz de me fazer mal. Não podem passar sem mim. Manuma é um tolo. Foi só para me assustar que me atirou esta faca.

No dia seguinte Walker foi novamente à aldeia. Esta chamava-se Matautu. Ele não apeou do cavalo. Quando chegou à casa do cacique, viu os homens sentados em círculo, de conversa, e adivinhou que estavam outra vez discutindo a questão da estrada. As palhoças samoanas são construídas da seguinte maneira: estacas feitas de troncos delgados são cravadas em círculo, com intervalos de cinco ou seis pés; no centro ergue-se um tronco alto, de cujo topo vai descendo em redor o teto de colmo. Há venezianas de folhas de co­queiro, que se podem baixar de noite ou quando chove. De ordinário, a choça está aberta de todos os lados, de modo que a brisa circula livremente por ela. Walker aproximou o seu cavalo da beirada e gritou ao cacique:

         Eh lá, Tangatu, o teu filho deixou a faca cravada nu­ma árvore ontem de noite! Vim devolvê-la. — Atirou-a por terra, no meio do círculo, e soltando uma vasta gargalhada, afastou-se a passo.

Na segunda-feira saiu para ver se eles tinham começado o trabalho. Nem sinal disso. Atravessou a aldeia. Os habi­tantes estavam entregues às suas ocupações habituais. Al­guns teciam esteiras de folha de pândano, um velho esme­rava-se numa malga para kava, as crianças brincavam, as mulheres cuidavam dos seus afazeres caseiros. Walker, com um sorriso aos lábios, chegou-se à casa do chefe.

Talofa-li — disse este.

Taloja — respondeu Walker.

Manuma estava fazendo uma rede, sentado, com um cigarro aos lábios. Alçou os olhos para Walker com um sorriso de triunfo.

Decidiram não fazer a estrada?

O chefe respondeu:

Só que o senhor nos pague cem libras.

         Vão-se arrepender. — E, voltando-se para Manuma: — Quanto a ti, meu pimpão, não me admiraria que apanhasses uma dor de lombo qualquer dia destes.

E tocou o cavalo, casquinando. Deixou os indígenas vagamente inquietos. Temiam aquele velho gordo e perverso, e nem os vitupérios dos missionários contra ele, nem o escárnio que Manuma aprendera em Ápia, lhes faziam esquecer que ele tinha uma astúcia diabólica e ninguém lhe fazia frente sem que no fim viesse a sofrer por isso. Dentro de vinte e quatro horas descobriram o estratagema que ele tinha plane­jado. Era típico. Na manhã seguinte, um grande magote de homens, mulheres e crianças entrava na aldeia, e os chefes disseram que se tinham ajustado com "Walker para fazerem a estrada. Walker lhes oferecera vinte libras e eles tinham aceito. Ora, a traça consistia nisto: os polinésios possuem certas regras de hospitalidade que têm força de lei. Uma rígida etiqueta obrigava o povo da aldeia, não somente a hospedar os forasteiros, mas também a dar-lhes de comer e de beber enquanto eles quisessem permanecer ali. Os habitan­tes de Matautu viram-se ludibriados. Todas as manhãs par­tiam os trabalhadores em alegre bando, nivelavam aqui e acolá, e pela tarde regressavam, comiam à tripa forra, be­biam, dançavam, cantavam hinos e gozavam a vida. Para eles era uma espécie de piquenique. Mas bem cedo os hos­pedeiros começaram a torcer o nariz. Os forasteiros tinham um apetite formidável, e as bananas e as frutas-pão evapora­vam-se diante da sua rapacidade. As pereiras aligator, cujos frutos enviados a Ápia rendiam bom dinheiro, foram despo­jadas até os ramos. Eles viram-se com a ruína à porta. E depois, descobriram que os forasteiros estavam trabalhando bem de seu vagar. Tinha-lhes Walker dado a entender que não havia pressa? A seguirem as coisas por este caminho, quando a estrada estivesse pronta não haveria mais uma cô­dea que roer na aldeia. E, o que era pior, eles estavam sen­do alvo de galhofa; quando algum aldeão precisava ir a um povoado distante, descobria que a história tinha chegado lá antes dele. Era recebido com risadas zombeteiras. Para o canaca não há nada mais intolerável do que o ridículo. Não tardou a haver confabulações coléricas entre as vítimas. Manuma deixou de ser um herói; teve de agüentar muita des­compostura, e um belo dia sucedeu o que Walker havia pre­visto: uma discussão acalorada degenerou em rixa, e meia dúzia de moços caíram sobre o filho do cacique, ministrando-lhe uma sova que o deixou estirado uma semana inteira na sua esteira de pândano, cheio de dores e machucaduras. Voltava-se de um lado para o outro, sem encontrar alívio. Cada um Ou dois dias, o administrador ia montado na sua velha égua observar o progresso da estrada. Não era homem que resistisse à tentação de achincalhar um inimigo caído, e não perdeu ensejo de fazer pungir aos envergonhados ha­bitantes de Matautu a amargura da sua humilhação. Desmo­ralizou-os. E uma bela manhã, pondo o orgulho no bolso um modo de falar, pois que bolso era coisa que eles não tinham saíram todos em companhia dos forasteiros e pu­seram-se a trabalhar na estrada. Urgia terminá-la depressa, se quisessem ficar com alguma coisa para comer, e toda a aldeia entrou em atividade. Mas trabalhavam calados, com a raiva e a mortificação no peito, e até as crianças guarda­vam silêncio. As mulheres choravam enquanto carregavam os feixes de galharia. Quando os viu, Walker riu-se a ponto de quase cair da sela. A notícia espalhou-se depressa, e o povo da ilha se regalou. Era a melhor pilhéria de todas, o triunfo supremo do astuto velho a que nenhum canaca ja­mais pudera levar vantagem. E eles vinham de aldeias dis­tantes, com as mulheres e os filhos, para olhar os imbecis que tinham recusado vinte libras pelo trabalho e agora se viam obrigados a fazê-lo por nada. Porém quanto mais eles mourejavam, mais folgavam os seus hóspedes. Para que apres­sar-se, quando estavam sendo alimentados grátis, e quanto mais demorasse a obra mais engraçada seria a farsa? Por fim os infelizes aldeões deram-se por vencidos, e tinham vin­do nesta manhã para suplicar ao administrador que man­dasse os forasteiros embora. Se ele os atendesse, prometiam terminar de graça a estrada. Era para ele uma vitória com­pleta e incondicional. Tinha-os aos seus pés. Uma expressão de arrogante complacência espalhou-se-lhe pela larga cara ra­pada, e ele inchou na sua cadeira como um grande sapo-boi. Havia no seu aspecto qualquer coisa de sinistro, que fêz Mackintosh estremecer de repugnância. Depois ele pôs-se a falar, na sua voz retumbante.

É para meu bem que eu abro a estrada? Que pensam vocês que eu lucro com isso? É para vocês, para poderem carregar com facilidade a sua compra. Ofereci pagar-lhes o trabalho, apesar de ser feito apenas no interesse de vocês. Agora vocês é que terão de pagar. Mandarei o povo de Manua para casa se vocês acabarem a estrada, pagando-me as vinte libras que eu devo a eles.

Houve uma grita. Os indígenas procuraram arrazoar com ele. Alegaram que não tinham o dinheiro. Mas a tudo que eles diziam, Walker replicava com motejos brutais. Depois o relógio bateu horas.

         É a hora do almoço disse ele. — Enxotem-nos to­dos daqui.

Ergueu-se pesadamente da cadeira e saiu do escritório. Mackintosh o seguiu pouco depois, encontrando-o já abancado à mesa, com o guardanapo atado em roda do pescoço, segurando a faca e o garfo à espera da comida que o cozi­nheiro chinês ia trazer. Estava satisfeitíssimo.

Viste como eu os sujeitei? disse ele, ao sentar-se Mackintosh. Daqui por diante não terei mais incômodos com as estradas.

         Você decerto estava gracejando? disse Mackintosh, friamente.

         Que queres dizer com isso?

         Não tem realmente a intenção de os fazer pagar as vinte libras?

Tenho sim, como não?

Não creio que você tenha esse direito.

         Não? Pois eu acho que tenho o direito de fazer o que bem entendo nesta ilha.

         Parece-me que você já abusou bastante deles.

Walker riu-se crassamente. Pouco lhe importava o que pensasse Mackintosh.

Não pedi a tua opinião.

Mackintosh ficou branco como cera. Sabia, por amarga experiência, que o seu único recurso era calar, e o violento esforço para se dominar deixou-o fraco e indisposto. Não pôde tragar a comida que tinha na frente e via com repul­são Walker empilhar as garfadas na sua vasta boca. Era porco no comer e quem sentava à mesa com ele precisava ter bom estômago. Mackintosh tremia. Apóssou-se dele um enorme desejo de humilhar este homem estúpido e cruel. Daria tudo para vê-lo por terra, sofrendo o mesmo que fi­zera os outros sofrer. Nunca abominara tanto como hoje ao fanfarrão.

O dia foi-se escoando. Mackintosh procurou dormir a sesta depois do almoço, mas a sua indignação não lho permitiu. Tentou ler, mas as letras embaralhavam-se-lhe diante dos olhos. O sol zurzia impiedoso, e ele ansiava pela vinda da chuva; mas sabia que a chuva não traria frescura. Não fa­ria mais que aumentar o mormaço. Ele era originário de Aberdeen. Sentiu uma súbita saudade dos ventos gélidos que sibilavam pelas ruas de granito dessa cidade. Estava preso aqui, preso não somente por este mar plácido, mas pelo seu ódio ao horrendo velho. Comprimiu com as mãos a cabeça dolorida. Desejaria matá-lo. Mas dominou-se. Devia fazer qualquer coisa para se distrair, e já que não podia ler, ia pôr em ordem os seus papéis particulares. Era um serviço que há muito tempo pretendia fazer, mas vinha adiando sem­pre. Abriu a gaveta da sua escrivaninha e tirou um punhado de cartas. Deu com os olhos no seu revólver. Passou-lhe pela mente um impulso, imediatamente repelido, de meter uma bala na cabeça a fim de fugir ao jugo intolerável da vida. Notando que o revólver se tinha enferrujado levemente ao ar úmido, embebeu um trapo em querosene e começou a lim­pá-lo. Foi enquanto estava absorvido nessa ocupação que se apercebeu da presença de alguém atrás da porta, tentando esgueirar-se para dentro. Ergueu os olhos e gritou: — Quem está aí?

Volvido um instante, Manuma mostrou-se.

         Que é que você quer?

O filho do cacique sobresteve um momento, silencioso e sorumbático, e quando falou foi numa voz estrangulada.

Nós não podemos pagar vinte libras. Não temos esse dinheiro.

Que é que eu vou fazer? — replicou Mackintosh. — Você ouviu o que Mr. Walker disse.

Manuma começou a rogar, metade em samoano e metade em inglês, numa cantilena lamentosa, com a entonação tre­mida dos mendigos, que encheu Mackintosh de nojo. Cau­sava-lhe revolta ver um homem deixar-se esmagar assim. Era um espetáculo lamentável.

         Eu não posso fazer nada — disse ele, irritado. — Você sabe que quem manda aqui é Mr. Walker.

Manuma tornou a calar. Conservava-se ainda na porta.

Estou doente — disse por fim. — Dê-me remédio.

Que é que você tem?

         Não sei. Estou doente. Tenho dores pelo corpo.

         Não fique aí retorquiu Mackintosh. — Entre. Dei­xe-me olhá-lo.

Manuma entrou no pequeno aposento e parou diante da escrivaninha.

         Tenho dores aqui e ali.

Pôs as mãos nos rins, e o seu rosto assumiu uma expres­são de sofrimento. Súbito, Mackintosh 'percebeu que os olhos do rapaz estavam pousados no revólver, que êle largara em cima da escrivaninha ao ver aparecer Manuma. Houve en­tre os dois um silêncio que Mackintosh achou interminável. Parecia-lhe ler os pensamentos do canaca. Seu coração ba­tia com violência. Foi então, como se uma vontade estranha se apoderasse da sua. Não era ele quem executava os movimentos do seu corpo, mas uma força exterior. Sua garganta secara repentinamente, e êle levou a mão ali maquinalmente, para facilitar a fala. Algo o forçava a evitar os olhos de Manuma.

         Espere aqui um pouco disse ele, numa voz que soa­va como se alguém o estivesse apertando pelas goelas que eu vou trazer-lhe alguma coisa do dispensário.

Levantou-se. Era imaginação sua, ou estava mesmo cambaleando? Manuma guardou silêncio, e, embora tivesse os olhos desviados, Mackintosh sabia que ele estava olhando fixamente para fora da porta. Foi essa outra pessoa que to­mara conta dele, que o fêz sair do quarto, mas foi ele pró­prio quem agarrou um punhado de papéis e os atirou para cima do revólver, a fim de ocultá-lo. Foi ao dispensário. Pe­gou uma pílula, verteu um pouco de líquido azul num fras­quinho e voltou à residência. Como não queria entrar de novo na sua habitação, chamou Manuma de fora: Ve­nha cá.

Deu-lhe as drogas e instruções sobre o modo de se tomar. Não sabia o que era que o impossibilitava de olhar para o canaca. Enquanto lhe falava tinha os olhos fitos no seu om­bro. Manuma pegou os remédios e esgueirou-se para fora do portão.

Mackintosh foi para a sala de jantar e passou mais uma vez os olhos pelos jornais velhos. A casa estava muito si­lenciosa. Walker dormia ém cima, no seu quarto, o cozi­nheiro chinês trabalhava na cozinha, os dois policiais tinham ido pescar. O silêncio, que parecia pesar sobre a casa, era sobrenatural, e na cabeça de Mackintosh martelava esta per­gunta: Estaria o revólver ainda no lugar em que ele o pu­sera? Não podia decidir-se a ir olhar. A incerteza era hor­rível, mas a certeza o seria ainda mais. Ele suava. Afinal não pôde mais suportar o silêncio, e resolveu fazer uma vi­sita ao mercador, um homem chamado Jervis, que tinha ar­mazém na estrada a cerca de uma milha dali. Era um mes­tiço, mas o sangue branco que tinha bastava para se poder conversar com ele. Mackintosh queria estar longe do seu bangalô, com aquela escrivaninha alastrada de papéis, que tinham por baixo alguma coisa ou nada. Saiu a cami­nhar estrada a fora. Ao passar pela festiva cabana de um chefe, gritaram-lhe uma saudação. Chegou ao armazém. Atrás do balcão estava sentada a filha do negociante, morena de rosto largo, trajando saia de brim branco e blusa cor-de-rosa. Jervis tinha esperanças de casá-la com ele. Tinha di­nheiro, e dissera a Mackintosh que o marido de sua filha seria homem abastado. Ela corou um pouco ao avistar Mackintosh.

         Papai está abrindo uns caixotes que chegaram esta manhã. Vou dizer-lhe que o senhor está aqui.

Ele sentou-se, e a rapariga saiu para os fundos da loja. Daí a um momento entrava, bamboleando-se, a sua mãe, mu­lher enorme, uma princesa, proprietária de muitas terras, que lhe estendeu a mão. A sua monstruosa obesidade era uma ofensa à vista, mas apesar disso ela conseguia produ­zir uma impressão de dignidade. Era cordial sem ser obse­quiosa; afável, mas consciente da sua posição.

         O senhor é como se fosse um estranho, Mackintosh. Teresa estava dizendo ainda esta manhã: "Há que tempos não vemos Mr. Mackintosh!"

Ele estremeceu levemente ao imaginar-se como genro desta velha indígena. Era sabido que ela governava o marido à rédea curta, apesar do sangue branco deste. Nas suas mãos estava a autoridade e a direção dos negócios. Para os bran­cos podia ser apenas a mulher de Jervis, mas o seu pai fora um chefe de sangue real, e tanto ele como seu avô tinham reinado. Apareceu o mercador, pequeno diante da sua imponente esposa, homem escuro com uma barba preta já entre­meada de fios brancos, belos olhos e dentes deslumbrantes. Vestia calças de tela. Fazia-se muito inglês, recheando de slang a sua conversação, mas sentia-se que ele falava o in­glês como se fosse uma língua estrangeira. Em família, em­pregava o idioma da sua mãe indígena. Era um homem ser­vil e obsequioso.

         Ah, Mr. Mackintosh, que alegre surpresa! Traze o uísque, Teresa. Mr. Mackintosh vai tomar um gole conosco.

Deu todas as notícias frescas de Ápia, observando os olhos do seu hóspede para descobrir o que mais lhe agradaria ouvir.

E como vai o Walker? Não o temos visto ultimamen­te. Mrs. Jervis vai mandar-lhe um leitãozinho qualquer dia desta semana.

Vi-o passar a cavalo para casa, esta manhã — disse Teresa.

Venha a nós — disse Jervis, erguendo o seu copo de uísque. Mackintosh bebeu. As duas mulheres, sentadas, contemplavam-no. Mrs. Jervis, plácida c majestosa, na sua Mother Hubbard preta, e Teresa ansiosa por sorrir sempre que encontrava o seu olhar, enquanto o mercador tagare­lava de um modo fatigante.

Estavam dizendo em Ápia que era tempo de ele se aposentar. Já não é tão moço. As coisas mudaram depois da sua vinda para as ilhas, mas êle é que ficou no mesmo.

Ele se excede muito — disse a velha princesa. — Os nativos não estão satisfeitos.

A da estrada foi uma boa pilhéria — riu o negociante. — Quando eu a contei em Ápia, o pessoal quase rebentou de riso. Esse Walker!

Mackintosh olhava-o com indignação. Como ousava ele falar do administrador nesse tom? Para um mercador mes­tiço, ele era Mr. Walker. Tinha já na ponta da língua uma áspera objurgatória pela insolência. Não soube o que o re­teve.

Quando ele for embora, espero que o senhor seja posto, no seu lugar, Mr. Mackintosh — disse Jervis. — Todos nós gostamos do senhor aqui na ilha. Agora o povo está edu­cado, e deve ser tratado de outro modo, e não como anti­gamente. Hoje em dia o administrador precisa ser um ho­mem educado. Walker era apenas um mercador como eu.

Os olhos de Teresa reluziam.

Quando chegar o dia de fazermos alguma coisa pelo senhor, fique certo de que o faremos. Eu podia arranjar com todos os chefes para irem a Ápia e dirigirem uma pe­tição ao governo.

Mackintosh sentia-se horrivelmente indisposto. Não se ha­via lembrado que se alguma coisa acontecesse a Walker, podia ser ele o designado para lhe suceder. Era verdade que nenhum funcionário conhecia a ilha tão bem como ele. Le­vantou-se repentinamente, e, mal se despedindo, voltou para a residência. Desta vez foi direito ao seu quarto. Examinou rapidamente a escrivaninha. Remexeu entre os papéis. O revólver não estava ali.

O coração batia-lhe violentamente de encontro às coste­las. Procurou o revólver por toda a parte. Esquadrinhou as cadeiras e as gavetas. Buscava desesperadamente, convenci­do, no entanto de que não o acharia. Súbito, ouviu a voz grossa e jovial de Walker.

         Que diabo de coisa estás fazendo, Mac?

Mackintosh pulou. Walker estava parado na porta, e ele virou-se instintivamente para esconder o que estava em cima da escrivaninha.

         Fazendo uma arrumação? — fez Walker. — Eu man­dei botar a égua na aranha. Vou a Tafoni tomar banho. Tu devias vir junto.

         Está bem — respondeu Mackintosh.

Enquanto ele andasse com Walker, nada podia acontecer. O lugar aonde se dirigiram ficava a umas três milhas de distância. Havia ali um poço de água fresca, separado do mar por um fino paredão de rocha. O administrador tinha-o escavado a dinamite a fim de proporcionar aos indígenas um banheiro natural. O mesmo fizera em diversos pontos ao redor da ilha, onde Quer que encontrara uma nascente; e a água doce, comparada com a quentura pegajosa do mar, era fresca e revigorante. A aranha avançava silenciosa so­bre a relva da estrada, esparrinhando de quando em quando a água dos vaus, nos sítios em que o mar fazia entrada. Passaram por duas aldeias indígenas, com as suas choças em forma de sino, espaçosamente dispostas em círculo, e a canela branca no meio. Na terceira aldeia apearam da aranha, amarraram o cavalo e desceram a pé para o poço. Acompa­nhavam-nos quatro ou cinco raparigas e uma dúzia de crian­ças. Daí a pouco estavam todos esperneando na água, às risadas e aos gritos, enquanto Walker, com um lava-lava nos quadris, nadava de um lado para outro como um boto desajeitado. Trocava chistes lascivos com as raparigas, e es­tas se divertiam a mergulhar por baixo dele, escaoando-lhe quando ele tentava agarrá-las. Quando cansou, Walker es­tendeu-se sobre um rochedo, cercado pelas crianças e pelas raparigas. Era uma família feliz; o velho, enorme, com o seu crescente de cabelo branco e a calva luzidia, dava os ares de algum antigo deus marinho. Em dado momento, Mackintosh surpreendeu-lhe um estranho olhar de ternura.

São umas queridas crianças disse ele. — Conside­ram-me seu pai.

E logo a seguir voltou-se para uma das raparigas, dizen­do uma obscenidade qualquer que as fez todas rebentar em frouxos de riso. Mackintosh começou a vestir-se. Com as suas pernas e braços finos compunha uma figura grotesca, um sinistro Dom Quixote, e Walker meteu-o à bulha. Suas chalaças eram recebidas com risadinhas abafadas. Mackintosh atrapalhava-se com a camisa. Sentia a incongruência dos seus gestos, mas tinha aversão a ser alvo de riso. Conser­vava-se num silêncio casmurro.

Se você quer chegar em casa a horas para a janta, é melhor ir-se mexendo.

Tu não és mau rapaz, Mac. Mas és um imbecil. Quan­do estás fazendo uma coisa, pensas sempre em fazer outra. Não é assim que se vive.

Mas, não obstante, ele se pôs lentamente em pé e começou a vestir a sua roupa. Voltaram com vagar à aldeia, toma­ram um pouco de kava com o chefe, e, após se despedirem alegremente de todos os habitantes, rodaram para casa.

Depois do jantar, como era seu costume, Walker acen­deu um charuto, preparando-se para dar o seu passeio. Mackintosh foi repentinamente tomado de medo.

Você não acha que é pouco sensato sair sozinho de noite numa ocasião destas?

Walker fitou-o com os seus olhos azuis e redondos.

— Que raio de idéia é esta?

— Lembre-se da faca na outra noite. Essa gente anda de ponta com você.

Ora! Eles não se atrevem.

— Alguém já se atreveu.

         Aquilo foi batota. Eles não são capazes de me fazer mal. Consideram-me seu pai. Sabem que tudo que eu faço é para o bem deles.

Mackintosh observava-o com secreto desprezo. A jactân­cia do homem revoltava-o. E, no entanto qualquer coisa — não sabia o que era — o levou a insistir.

— Lembre-se do que aconteceu hoje de manhã. Você não perde nada em ficar em casa, só por esta noite. Eu jogarei piquei consigo.

Jogaremos piquei quando eu voltar. Ainda está para nascer o canaca que me fará mudar de planos.

Então é melhor eu ir com você.

— Nada disso! Fica aqui.

Mackintosh encolheu os ombros. Tinha prevenido o ho­mem devidamente. Se ele não fazia caso, que se aviesse. Walker pôs o chapéu e saiu. Mackintosh começou a ler. De repente acudiu-lhe uma idéia: talvez fosse bom deixar uma prova cabal da sua presença ali. Passou à cozinha e, inven­tando um pretexto qualquer, conversou alguns minutos com o chinês. Depois disso pôs um disco no gramofone. Mas en­quanto este moía a sua música, uma cançoneta cômica de music-hall londrino, o seu ouvido aguçado procurava captar um som distante na noite. Ao lado dele, o disco berrava as suas palavras roucas, c, no entanto, parecia cercá-lo um silêncio sobrenatural. Ouvia o rugido das vagas contra os re­cifes. Ouvia a brisa suspirar lá em cima, na coma dos co­queiros. Quanto tempo demoraria aquilo? Era terrível. Ele ouviu uma risada rouca.

- Isto será sinal de chuva? É uma raridade ver-te tocar um disco, Mac. — Walker estava no limiar da porta, vermelho, brutalhão e jovial. — Pois, como vês, estou são e salvo. Que é que estavas tocando?

Walker entrou.

— Meio nervoso, hem? Tocando música para ganhar coragem?

Estou tocando o seu requiem.

Que negócio é esse?

'Alf o' bitter an' a pint of stout.

— Uma canção macanuda. Nunca me canso de a ouvir. Agora estou pronto para te limpar os bolsos, no piquet.

Jogaram, e Walker bravateou como sempre, logrando o seu adversário, debicando-o, zombando dos seus erros, pronto para - todas as trapaças, descompondo-o, exultando. Mackintosh não tardou a recobrar a calma, e, alheando-se de si mesmo, por assim dizer, pôde observar com um prazer de espectador desinteressado o despótico velho. Algures estava Manuma, à espera da oportunidade...

Walker ganhava partida sobre partida, e no fim do se­rão embolsou os seus ganhos com imensa satisfação.

Terás que crescer mais um pouco para poderes ga­nhar de mim, Mac. Confessa que eu tenho talento para os jogos de carta.

— Não vejo que haja muito talento nisso de se achar com quatorze ases na mão.

         O bom jogador sempre tem boas cartas — retrucou Walker. — Eu ganharia do mesmo jeito com as tuas.

Continuou a contar histórias compridas de diversas oca­siões em que se tinha medido com jogadores fortes, e, para consternação deles, lhes empalmara todo o dinheiro. Blasonou. Fez elogios a si mesmo. E Mackintosh ouvia com aten­ção. Queria agora alimentar o seu ódio. E tudo que o outro dizia, cada um dos seus gestos, tornava-o mais detestável. Afinal Walker levantou-se.

         Bem, vou para a cama — disse ele bocejando alto. — Tenho muito que fazer amanhã.

         Que é que você vai fazer?

         Vou de aranha ao outro lado da ilha. Saio às cinco, mas não espero estar de volta à hora do jantar.

Eles jantavam geralmente às sete.

Convém deixá-lo para as sete e meia, então.

Acho que sim.

Mackintosh viu-o sacudir a cinza do seu cachimbo. A sua vitalidade era rude e exuberante. Causava estranheza pen­sar que a morte estava pendente sobre ele. Um ligeiro sor­riso brilhou aos olhos frios e tenebrosos de Mackintosh.

         Não quer que eu vá com você?

Para que, meu Deus do céu? Vou atrelar a égua, e basta-lhe o trabalho de carregar o meu peso por essas trinta milhas de estrada, sem ter que juntar também o teu.

Talvez você não compreenda bem qual é a disposição do povo de Matautu. Creio que seria mais seguro eu ir com você.

Walker soltou uma risada de desprezo.

         Boa ajuda serias numa briga! Eu não sou muito forte em disparar.

Então o sorriso passou dos olhos para os lábios de Mack­intosh, contorcendo-os dolorosamente.

Quem deus vult perdere prius dementai.

Que raio de história é esta? — perguntou Walker.

É latim — respondeu Mackintosh. E saiu.

Ria-se, agora. Seus sentimentos tinham mudado. Fizera tudo que podia, e o caso estava nas mãos do destino. Ele dormiu como havia semanas não dormia. Quando acordou, saiu. Depois da noite bem dormida, a frescura matinal da­va-lhe um bem-estar delicioso. O mar tinha um azul mais vivo, o céu brilhava mais que de ordinário, o vento da terra era fresco, enrugando as águas da laguna como um veludo arrepiado a contrapelo. Ele sentia-se mais forte e mais moço. Enfronhou-se com gosto no trabalho. Depois do almoço sesteou, e ao cair da tarde mandou selar o baio, saindo a va­guear sem rumo pelos matos. Parecia-lhe ver tudo com ou­tros olhos. Sentia-se mais normalizado. O extraordinário é que ele conseguira tirar Walker da idéia por completo. Para ele. era como se o outro nunca tivesse existido.

Voltou tarde, escaldado do passeio, e banhou-se de novo. Então sentou-se na varanda, fumando o seu cachimbo e olhando o declínio do sol sobre a laguna. Esta era belíssima no ocaso, rósea, verde e purpurina. Ele sentia-se em paz com o mundo e consigo mesmo. Quando o cozinheiro veio dizer que o jantar estava pronto, perguntando se devia es­perar, Mackintosh sorriu-lhe com amizade. Olhou o seu re­lógio.

São sete e meia. É melhor não esperar. Não podemos adivinhar quando voltará o patrão.

O rapaz inclinou a cabeça, e daí a momentos, Mackintosh viu-o atravessar o pátio com uma terrina de sopa fumegan­te. Levantou-se preguiçosamente, entrou no refeitório e jan­tou. Teria acontecido a coisa? A incerteza era divertida, e Mackintosh ria sozinho. A comida não parecia tão monó­tona como de costume, e embora houvesse hamburger steak prato infalível quando a escassa inventiva do cozinheiro não lhe inspirava outro, estava por milagre bem temperado e suculento. Terminado o jantar, ele foi indolentemente à sua habitação, buscar um livro. Gostava daquele silêncio profundo da noite já caída, com as estrelas a fuzilarem no céu. Gritou pedindo uma lâmpada, e num instante apareceu o chinês a correr de pés descalços, rasgando as trevas com um raio de luz. Pôs a lâmpada em cima da escrivaninha e saiu do quarto sem fazer ruído. Mackintosh ficou pregado ao solo: ali, meio oculto pelos papéis em desordem, estava o seu revólver. O seu coração latejava dolorosamente, e ele começou a suar. Estava tudo acabado, então!

Pegou o revólver na mão trêmula. Quatro das câmaras estavam vazias. Imobilizou-se um instante, escrutando suspeitosamente as trevas lá fora, mas não havia ninguém ali. Introduziu depressa quatro cartuchos nas câmaras vazias e fechou o revólver a chave na gaveta. Depois sentou-se para esperar.

Passou-se uma hora, mais uma... e nada! Ele estava aban­cado diante da sua escrivaninha como se escrevesse, mas não escrevia nem lia. Escutava, apenas. Aguçava o ouvido, procurando surpreender algum som vindo de longe. Por fim ouviu uns passos hesitantes, e adivinhou que era o cozinhei­ro chinês.

Ah-Sung! — chamou ele. O rapaz chegou-se à porta.

Patlão muito talde — disse ele. — Janta não plesta.

Mackintosh encarou-o, querendo descobrir se ele sabia o que tinha acontecido, ou se conhecia a verdadeira natureza das suas relações com Walker. O asiático tratava da sua co­zinha, ágil, silencioso... quem poderia adivinhar-lhe os pensamentos?

         Acho que ele jantou no caminho, mas em todo caso você deve conservar quente a sopa.

Mal havia pronunciado estas palavras quando o silêncio foi quebrado repentinamente por uma balbúrdia, gritos, e o rápido ressoar de pés nus. Numerosos indígenas entraram em tropel no bangalô, homens, mulheres e crianças: apinharam-se em redor de Mackintosh, falando todos ao mesmo tempo, numa confusão ininteligível. Estavam excitados, assustados, e alguns choravam. Mackintosh abriu caminho no meio do ajuntamento, rumo ao portão. Mal compreendera o que eles diziam, mas sabia muito bem o que tinha acontecido. Quan­do ele alcançou o portão, apareceu a aranha. Um indígena alto conduzia pela rédea a velha égua, e no veículo vinham dois homens de cócoras, procurando suster Walker. Uma pe­quena multidão de canacas rodeava-o.

A aranha foi trazida para o pátio, e os nativos lançaram-se empós dela. Mackintosh gritou-lhes que ficassem do lado de fora, e os dois policiais, surgidos subitamente não se sabe de onde, afastaram-nos violentamente. Ele já conseguira compreender que dois rapazes, que andavam pescando, tinham encontrado, ao voltarem para a aldeia, a aranha num vau. A égua pastava entre as ervas, e no escuro eles discerniram a custo o grande vulto branco do velho, caído entre o assen­to e o resguardo. A princípio julgaram que ele estivesse bê­bedo e espiaram para dentro, rindo-se, mas então ouviram-no gemer e compreenderam que era coisa mais séria. Corre­ram à aldeia e pediram auxílio. Foi ao voltarem, acompanha­dos por umas cinqüenta pessoas, que descobriram que Wal­ker tinha sido baleado.

Com um frêmito de horror, Mackintosh perguntou a si mesmo se ele já estaria morto. Em todo caso, a primeira coisa a fazer seria retirá-lo da aranha, e isto, dada a corpulência de Walker, era um trabalho difícil. Foram necessários qua­tro homens robustos para erguê-lo. Em certo momento, ao darem-lhe um encontrão, ele soltou um gemido surdo. Vivia ainda. Por fim carregaram-no para dentro, subiram a esca­da e deitaram-no na cama. Só então Mackintosh pôde vê-lo, pois no pátio, alumiado apenas por algumas lanternas, era quase completa a escuridão. As calças brancas de Walker estavam manchadas de sangue, e os homens que o tinham carregado enxugaram as mãos, vermelhas e pegajosas, nos seus lava-lavas. Mackintosh aproximou dele o lampião. Não imaginava que o velho estivesse tão pálido. Tinha os olhos fechados. Respirava ainda, podia-se a custo sentir-lhe o pulso, mas era visível que ele estava morrendo. Mackintosh avis­tou o escrevente indígena, e numa voz rouca de medo, man­dou-o ir buscar no dispensário o que era preciso para uma injeção hipodérmica. Um dos policiais tinha trazido o uísque para cima, e Mackintosh introduziu um pouco dele na boca do velho. O quarto regurgitava de indígenas, sentados no soalho, calados, aterrorizados. De quando em quando um deles lamentava-se em alta voz. Fazia muito calor, porém Mackintosh sentia frio. Suas mãos e seus pés pareciam de gelo, e êle tinha de fazer um esforço violento para não tremer por todo o corpo. Não sabia o que fazer. Não sabia se Walker ainda sangrava, e, em caso afirmativo, como es­tancar-lhe o sangue.

O escrevente trouxe a seringa hipodérmica.

         Dê você a injeção — disse Mackintosh. Tem mais prática do que eu.

Doía-lhe horrivelmente a cabeça. Tinha a sensação de ter dentro dela uma multidão de pequenos insetos a debater-se, furiosos por sair. Esperou pelo efeito da injeção. Daí a pouco, Walker abriu devagar os olhos. Parecia ignorar onde estava.

         Fique quieto disse Mackintosh. Você está em casa. Não há perigo.

Os lábios de Walker esboçaram um sorriso triste.

         Liquidaram-me! — murmurou ele.

         Vou arranjar com Jervis para ele mandar imediata­mente a sua lancha a Ápia. Amanhã de tarde teremos um médico aqui.

Houve um longo silêncio antes que viesse a resposta do velho:

         Daqui até lá estarei morto.

As feições pálidas de Mackintosh tiveram uma horrenda contração. Fez força para rir.

Asneira! Fique quieto, que você vai sarar em dois tempos.

Dá-me um trago — disse Walker. — É forte.

Com mão trêmula, Mackintosh encheu um copo de uísque e água em partes iguais e segurou-o enquanto Walker be­bia avidamente. A bebida pareceu revigorá-lo. Ele soltou um longo suspiro, e o seu largo rosto carnudo ganhou um pouco de cor. Mackintosh sentia-se tolhido por uma extraordinária impotência. Não fazia mais que fitar o velho.

Diga-me o que devo fazer, e eu o farei — disse ele.

Não há nada que fazer. Só deixar-me morrer. Estou acabado.

Causava uma pena horrível ver aquele enorme homem estendido no leito, fraco e exangue. O repouso pareceu clarear-lhe as idéias.

Tinhas razão, Mac — disse ele daí a pouco. — Tu me preveniste.

Quisera Deus que eu tivesse ido com você.

Tu és um bom sujeito, Mac. Só o que tem é que não bebes.

Houve outro longo silêncio. Era visível que Walker se estava finando. Dera-se hemorragia interna, e até Mackintosh, na sua ignorância, não podia deixar de compreender que o seu chefe só tinha uma hora ou duas de vida. Mantinha-se em completa imobilidade ao lado do leito. Walker ficou de olhos fechados durante meia hora talvez, depois abriu-os.

Vão dar-te o meu lugar, Mac — disse devagar. — A última vez que estive em Ápia, falei-lhes em teu favor. Ter­mina a minha estrada. Quero ter a certeza de que ela ficará pronta. Toda à roda da ilha.

         Não quero o seu lugar. Você vai ficar bom. Walker sacudiu cansadamente a cabeça.

         Chegou a minha hora. Trata-os com justiça, que é o mais importante. São umas crianças. Nunca esqueças isto. Deves ser firme com eles, mas bondoso também. E honesto. Eu nunca lhes arranquei um vintém. Em vinte anos não cheguei a juntar cem libras. O importante é a estrada. Ter­mina a estrada.

Algo muito parecido com um soluço escapou do peito de Mackintosh.

         És um bom rapaz, Mac. Sempre gostei de ti. Cerrou os olhos. Mackintosh pensou que ele nunca mais

tornasse a abri-los. Tinha a boca tão seca que força lhe foi beber alguma coisa. O cozinheiro chinês trouxe-lhe uma cadeira. Ele sentou-se ao pé do leito e esperou. Não tinha cons­ciência do tempo. A noite era interminável. Subitamente, um dos homens que estavam sentados no soalho prorrompeu em altos soluços incontidos, como uma criança. Mackintosh no­tou que o quarto estava agora atopetado de indígenas. Todos, homens e mulheres acocorados no soalho, tinham os olhos fitos na cama.

         Que faz aqui toda esta gente? — disse Mackintosh. — Não têm direito. Ponham-nos fora, ponham todos para fora!

Estas palavras pareceram acordar Walker. Descerrou mais uma vez os olhos, que estavam agora enevoados. Quis falar, mas sua voz era tão fraca que Mackintosh teve de aguçar o ouvido para entendê-lo.

Deixa-os ficar. São meus filhos. Devem estar aqui. Mackintosh voltou-se para os indígenas.

Fiquem. Ele quer. Mas estejam quietos.

Um débil sorriso assomou aos lábios do velho.

Chega-te mais perto — disse.

Mackintosh inclinou-se sobre ele. Os olhos de Walker es­tavam fechados, e as palavras que ele dizia eram como uma brisa a sussurrar entre a fronde dos coqueiros.

         Dá-me outro trago. Preciso falar-te.

Desta vez Mackintosh deu-lhe uísque puro. Walker concentrou as suas energias num último esforço de vontade.

         Não faças nenhum escarcéu desta história. Em noventa e nove, o ano dos motins, mataram uns brancos e a frota veio bombardear as aldeias. Morreu muita gente que não tinha culpa nenhuma. Essa gente de Ápia são uns idiotas. Se fizeres alarido vão castigar gente inocente. Não quero que castiguem ninguém.

Fez uma pausa para descansar.

         Diz que foi um acidente. Ninguém teve culpa. Prome­te-me.

         Farei tudo que você quiser — ciciou-lhe Mackintosh.

         Bom rapaz! Dos melhores. São umas crianças e eu sou o pai deles. Um pai não deixa os filhos em apuro, podendo ajudá-los.

A sombra de uma risada desprendeu-se da sua garganta. Era espantosamente triste de se ouvir.

         És um sujeito religioso, Mac. Como é aquela coisa a respeito de perdoá-los? Tu sabes.

Por algum tempo, Mackintosh não pôde responder. Seus lábios tremiam.

         Perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem?

         É isso. Perdoai-lhes. Sabes que eu lhes quero bem. Sempre quis.

Suspirou. Seus lábios moviam-se debilmente. Mackintosh tinha agora de lhes encostar o ouvido para perceber o que ele dizia.

         Segura-me a mão — pediu Walker.

Mackintosh engoliu em seco. Seu coração parecia estar-lhe sendo arrancado do peito. Pegou na sua a mão do ve­lho, aquela mão áspera e rude, tão fria agora e fraca. E assim continuou sentado, até que um longo estertor veio quebrar o silêncio, fazendo-o quase saltar da cadeira. Era terrível, sobrenatural. Walker estava morto. Então os indí­genas prorromperam em altos gritos. As lágrimas escorriam-lhes pelas faces, e eles batiam no peito.

Mackintosh desprendeu a sua mão da do morto e, cambaleando como um homem tonto de sono, saiu do quarto. Foi buscar o revólver fechado a chave na gaveta da sua escrivaninha. Desceu para a praia e entrou na laguna. Avançou cautelosamente, para não tropeçar nas rochas de coral, até que a água lhe chegou às axilas. Então meteu uma bala na cabeça. Meia hora depois, cinco ou seis tubarões pardos e esguios debatiam-se, espadanando água no ponto em que ele caíra.

 

O Degenerado

Bateman Hunter dormiu mal. Durante a quinzena passada, a bordo do paquete que o tinha trazido de Taiti para São Francisco, viera pensando na história que tinha de contar, e nos três dias de trem repetiu mentalmente as palavras com que iria contá-la. Mas agora, que poucas horas faltavam para chegar a Chicago, via-se assaltado por dúvidas. Sua consciência, muito sensível sempre, estava desinquieta. Não tinha certeza de haver feito tudo que lhe era possível, e para ele era uma questão de honra fazer mais do que o possível. Perturbava-o, além disso, o pensamento de que num assunto que tão de perto o interessava, ele tinha dei­xado o seu interesse levar a primazia sobre o seu quixotismo. O sacrifício de si próprio era-lhe tão caro à imaginação que o fato de não o haver podido levar a efeito o deixava decepcionado. Era como um filantropo, que, levado por motivos de altruísmo, constrói habitações-modelos para os pobres e acaba descobrindo que fêz um negócio lucrativo. Não po­de fugir à satisfação que lhe dão os seus dez por cento de rendimento, mas sente com certo desconforto que eles tiram um pouco de sabor à sua virtude. Bateman Hunter sa­bia que o seu coração era puro, mas não estava seguro da firmeza com que iria suportar o exame sereno dos olhos azuis de Isabel Longstaffe quando lhe contasse aquela his­tória. Os olhos eram sábios e clarividentes. Isabel media os outros pelo seu próprio padrão de meticulosa retidão, e não podia haver censura maior que o frio silêncio com que ela exprimia a sua desaprovação de um procedimento que não satisfizesse o seu código exigente. Para a sua sentença não havia apelação. Uma vez resolvida, ela nunca voltava atrás.

Mas Bateman não queria vê-la outra. Amava não somente a beleza do seu corpo, esbelto e ereto, o porte altivo da sua cabeça, mas também a beleza da sua alma. Com a sua veracidade, o seu rígido senso da honra, o destemor com que encarava os fatos da vida, ela parecia-lhe reunir em si todas as qualidades mais admiráveis das suas compatrio­tas. Mas Bateman via em Isabel mais do que o perfeito tipo da moça americana. Sentia que a sua excelência era de certo modo peculiar a um ambiente mais restrito. Tinha cer­teza de que nenhuma cidade no mundo, a não ser Chicago, poderia produzir uma tal criatura. Confrangia-se-lhe o cora­ção quando ele pensava no rude golpe que iria vibrar no seu orgulho. A lembrança de Eduardo Barnard o acendia em cólera.

Finalmente o trem penetrou em Chicago. Ele regozijou à vista das longas ruas de casas cinzentas. Mal podia conter a impaciência ao pensar em State e Wabash com as suas calçadas regurgitantes, o tumulto do trânsito e o ruído. Desvanecia-se de ter nascido na cidade mais importante dos Estados Unidos. São Francisco era provinciana, Nova York decadente. O futuro da nação estava no desenvolvimento das suas possibilidades econômicas, e Chicago, pela sua posição e pela energia dos seus filhos, estava destinada a ser a verdadeira capital do país.

         Creio que viverei bastante para vê-la a maior cidade do mundo disse Bateman de si para si ao apear do vagão.

Seu pai viera esperá-lo. Depois de um cordial aperto de mão, deixaram juntos a estação, ambos altos, esbeltos e bem formados, com as mesmas feições ascéticas e belas, os mes­mos lábios finos. O automóvel de Mr. Hunter estava à es­pera, e eles embarcaram. Mr. Hunter viu o olhar de orgu­lho feliz que seu filho deitava à rua.

         Contente por estares de volta, filho?

         Pode pôr a mão no fogo em como estou disse Bate­man.

Seus olhos devoravam aquela cena de atividade sem re­pouso.

         Imagino que o trânsito daqui seja um pouco mais intenso do que numa ilha do Pacífico riu Mr. Hunter. Gostaste de lá?

         Para mim não há como Chicago, papai.

         Não trouxeste Eduardo Barnard contigo?

Não.

         Como estava ele?

Bateman Hunter guardou silêncio por um momento, e uma nuvem passou pelo seu rosto belo e expressivo.

         Preferiria não falar nele, papai disse por fim.

         Muito bem, meu rapaz. Tua mãe é que vai estar feliz, hoje.

Deixando as ruas movimentadas, entraram no Loop e seguiram a margem do lago até a imponente moradia, cópia de um castelo do Loire, que Mr. Hunter construíra para si, alguns anos atrás. Assim que se viu só no seu quarto, Bate­man pediu um número ao telefone. O coração deu-lhe um pulo no peito quando ele ouviu uma voz responder.

Bom dia, Isabel disse alegremente.

Bom dia, Bateman.

Como foi que reconheceu a minha voz?

         Não faz! tanto tempo que deixei de ouvi-la. Além disso, estava-o esperando.

         Quando poderei vê-la?

Se você não tiver nada de melhor a fazer, talvez queira jantar conosco esta noite.

Você bem sabe que eu não poderia ter nada de me­lhor a fazer.

Deve vir cheio de notícias?

         Sim respondeu.

Ele julgou notar-lhe um certo tom de apreensão na voz.

         Bem, você, mas dará esta noite. Até logo.

E dependurou o fone. Só Isabel Longstaffe seria capaz de esperar tantas horas desnecessárias para saber o que tão de perto a interessava. Bateman viu nesta serenidade uma prova de admirável fortaleza.

No decurso do jantar, ao qual, além dele e de Isabel, só estavam presentes os pais desta, Bateman observou-a enquanto ela guiava a conversação para os assuntos comezinhos de uma palestra urbana. Lembrou-lhe que precisamen­te desta maneira se teria comportado uma marquesa sob a som­bra da guilhotina, ocupando-se com as bagatelas de um dia que não teria amanhã. As suas feições delicadas, o seu lá­bio superior aristocraticamente curto e a sua opulenta ca­beleira loura lembravam também uma marquesa, e teria si­do evidente, se não fosse notório, que nas suas veias corria o melhor sangue de Chicago. A sala de jantar era uma mol­dura apropriada à sua beleza frágil, pois Isabel mandara mobiliar a casa, réplica de um palácio sobre o Grande Ca­nal de Veneza, por um inglês perito no estilo Luís XV. E a graciosa decoração que trazia o nome desse monarca amo­roso realçava-lhe os encantos, recebendo destes, ao mesmo tempo, uma significação mais profunda. Isabel tinha um es­pírito ricamente cultivado, e a sua conversação, embora leve, nunca era frívola. Falava agora no concerto a que ela e sua mãe tinham assistido nessa tarde, nas conferências que um poeta inglês estava fazendo no Auditorium, na situação po­lítica, e no Mestre Antigo que seu pai adquirira recente­mente em Nova York por cinqüenta mil dólares. Ouvi-la era um conforto para Bateman. Sentia-se de novo no mundo civilizado, no centro da cultura e da distinção. E certas vo­zes perturbadoras e rebeldes, que se recusavam a calar, silenciaram por fim no seu coração.

         Ah, como é bom estar de volta em Chicago! disse ele.

Terminado o jantar, ergueram-se da mesa, e Isabel disse na porta à sua mãe:

Vou levar Bateman para o meu château. Temos muito que conversar.

Muito bem, minha querida respondeu Mrs. Longstaffe. Quando terminarem, vocês nos encontrarão na sala de Mme. du Barry.

Isabel conduziu o moço para cima, introduzindo-o na sa­leta de que ele tinha tantas recordações encantadoras. Ape­sar de a conhecer tão bem, não pôde conter uma exclama­ção deleitada, que ela sempre lhe arrancava. A jovem olhou em derredor com um sorriso.

         Creio que isto agrada disse ela. O principal é a exatidão. Não há um cinzeiro sequer que não seja no estilo da época.

         Deve ser isto que a torna tão admirável. É duma cor­reção perfeita, como tudo que você faz.

Os dois sentaram-se em frente a um fogo de achas, e Isa­bel pousou nele uns olhos calmos e graves.

— Bem, que é que você tem para me contar? — per­guntou.

Nem sei como principiar.

Eduardo Barnard voltará?

Não.

Antes que Bateman tornasse a falar houve um longo si­lêncio, cheio de pensamentos para ambos. Era espinhosa a história que ele tinha para contar, pois havia pormenores tão ofensivos aos ouvidos delicados da moça que ele não se animava a referi-los. Tinha, no entanto, para com ela e para consigo mesmo, o dever de dizer toda a verdade.

Aquilo havia começado quando ele e Eduardo Barnard, ainda estudantes de universidade, encontraram Isabel Longstaffe no seu chá de apresentação à sociedade. Ambos a ti­nham conhecido em criança, porém ela passara dois anos na Europa, aperfeiçoando a sua educação, e foi com mara­vilhada surpresa que eles reataram conhecimento com a adorável rapariga que de lá voltou. Ambos se apaixonaram desesperadamente por ela, mas Bateman percebeu bem logo que Isabel só tinha olhos para Eduardo, e, amigo devotado que era, resignou-se ao papel de confidente. Passou amargos quartos de hora, mas não podia negar que Eduardo mere­cia a sua boa fortuna, e, ansioso por conservar intata uma amizade que ele tinha em tão alto preço, cuidou em nunca revelar, por uma alusão que fosse, os seus sentimentos. Den­tro de seis meses os dois jovens estavam noivos. Mas eram muito jovens, e o pai de Isabel resolveu que eles não ca­sassem ao menos até Eduardo colar grau. Tinham de esperar um ano. Bateman lembrava-se do inverno que devia termi­nar pelo casamento de Isabel e Eduardo, uma temporada de bailes, teatros e alegrias mais simples, a que ele, o infalí­vel terceiro, estava sempre presente. Não a amava menos pelo fato de ela estar destinada a se tornar em breve a esposa do seu amigo. O seu sorriso, uma palavra que lhe atirasse, as confidências da sua afeição, nunca deixavam de o deleitar. E ele congratulava-se, com alguma vanglória, por não lhes invejar a ventura. Foi então que sobreveio um aci­dente. Um grande banco faliu, houve pânico na Bolsa, e o pai de Eduardo Barnard viu-se arruinado. Chegou uma noite em casa, disse à esposa que estava sem vintém, e depois do jantar entrou no seu gabinete e meteu uma bala na cabeça. Volvida uma semana, Eduardo Barnard, o rosto pálido e can­sado, foi procurar Isabel pedindo-lhe para desfazer o com­promisso. A resposta da jovem foi lançar-lhe os braços em roda do pescoço, com uma torrente de lágrimas.

         Não me dificultes ainda mais este passo, querida disse ele.

         Pensas que eu vou poder largar-te agora? Eu te amo.

         Como posso ter a coragem de te pedir para casares comigo? É completamente impossível. Teu pai jamais consentiria. Eu não possuo um centavo.

         Que me importa? Eu te amo.

Então ele falou-lhe nos seus planos. Tinha de começar logo a ganhar dinheiro, e Jorge Braunschmidt, velho amigo de sua família, propusera aceitá-lo na sua firma. Nego­ciava nos mares do Sul, tendo agências em muitas ilhas do Pacífico. Sugeria que Eduardo fosse passar um ano ou dois em Taiti, onde sob a direção do seu melhor gerente ele podia aprender as minúcias do variado negócio. Ao cabo desse tempo, prometia êle para o moço uma posição em Chicago. Era uma esplêndida oportunidade, e quando Eduardo termi­nou as suas explicações, Isabel fez-se toda sorrisos.

         Tolinho, por que me quiseste lançar no desespero?

O rosto dele iluminou-se a estas palavras, e os seus olhos cintilaram.

Isabel, queres então dizer que esperarás por mim?

Não achas que vales a pena? sorriu ela.

Oh, não caçoes de mim agora. Rogo-te que me ouças com seriedade. Talvez me demore dois anos.

Não tenhas receio. Eu te amo, Eduardo. Casarei con­tigo quando voltares.

O chefe de Eduardo era um homem que não gostava de delongas, e dissera-lhe que se ele aceitava o lugar, devia embarcar daí a uma semana em São Francisco. Eduardo passou com Isabel o seu último serão. Depois do jantar, Mr. Long­staffe, dizendo que queria dar duas palavras ao moço, levou-o para o fumador. Mr. Longstaffe aceitara com bonomia o ar­ranjo que sua filha lhe tinha participado, e Eduardo não podia imaginar que misteriosa comunicação seria esta que ele queria fazer-lhe agora. O dono da casa mostrava um embaraço que o deixou perplexo. Gaguejava, conversando sobre ninharias. Por fim desabafou.

         Calculo que você tenha ouvido falar em Arnold Jackson, — disse ele, olhando de cenho franzido para Eduardo.

Este hesitou. A sua natural veracidade o obrigava a ad­mitir um fato que ele desejaria negar.

Sim, ouvi. Mas foi há muito tempo. Não prestei muita atenção.

Há pouca gente em Chicago que não tenha ouvido fa­lar em Arnold Jackson — disse Mr. Longstaffe com amar­gura, — e os que não sabem acharão facilmente quem os in­forme. Você sabia que ele é irmão de Mrs. Longstaffe?

         Sim, eu sabia.

         Como é natural, há muitos anos que não nos comunicamos com ele. Saiu do país logo que lhe foi possível, e acho que o país não sentiu em vê-lo pelas costas. Informaram-nos que ele está vivendo em Taiti. O conselho que lhe dou é de o conservar à distância. Mas se ouvir notícias dele, Mrs. Longstaffe e eu leremos prazer em recebê-las.

         Perfeitamente.

         Era tudo que eu lhe queria dizer. Agora creio que você prefere ir fazer companhia às senhoras.

Poucas famílias há que não contem entre os seus mem­bros algum que elas de bom grado esqueceriam, se os vizi­nhos o permitissem. São felizes quando a passagem de uma geração ou duas vem revestir as suas extravagâncias de uma auréola romântica. Mas enquanto ele vive, se as suas singu­laridades não são daquelas que se pode relevar com a frase: "ele (ou ela) só faz mal a si mesmo", boa escusa quando o réu não é culpado de coisa pior que alcoolismo ou afetos transviados, o único recurso é o silêncio. E este fora o re­curso adotado pelos Longstaffes no caso de Arnold Jackson. Nunca falavam nele. Abstinham-se até de passar pela rua em que ele morara. Demasiado generosos para permitir que sua esposa e filhos sofressem por seus malfeitos, tinham-nos sustentado durante anos, com a condição, porém de perma­necerem na Europa. Faziam tudo que podiam para abolir a recordação de Arnold Jackson, mas sentiam que o caso continuava tão fresco na memória do público como no dia em que o escândalo rebentara perante o mundo boquiaberto. Arnold Jackson era uma ovelha das mais gafadas. Banqueiro opulento, figura proeminente na sua Igreja, filantropo, ho­mem por todos respeitado, não apenas pela sua linhagem (corria-lhe nas veias o sangue azul de Chicago) como tam­bém pela probidade do seu caráter, foi preso um belo dia sob acusação de fraude. E a desonestidade que o processo trouxe à luz não era das que se podem atribuir a uma ten­tação repentina, mas deliberada e sistemática. Arnold Jack­son era um velhaco. Quando foi condenado a sete anos, quase toda gente achou que ele escapara por pouco preço.

Ao fim deste último serão, os dois prometidos despediram-se com muitos protestos de devotamente Isabel, toda em lágrimas, encontrava algum consolo na certeza do amor de Eduardo. As suas emoções formavam um misto singular. A separação tornava-a desgraçada, e, contudo sentia-se feliz por que ele a adorava. Isto se passara havia mais de dois anos. Desde então ele lhe havia escrito por todos os correios, vinte e quatro cartas ao todo, pois só havia um correio por mês. Eram perfeitas cartas de amante, íntimas, encantadoras e ternas, espirituosas por vezes (especialmente as últimas). A princípio ele se mostrara nostálgico, desejoso de voltar para Chicago e para a sua Isabel. Um tanto ansiosa, ela res­pondeu, rogando-lhe que fosse perseverante. Receava que ele abandonasse o seu emprego para vir. Não queria que o seu amado fosse um homem sem persistência, e citou-lhe estes versos:

 

Não podia querido, amar-te tanto,

Se mais amor à honra não tivesse.

 

Mas dentro em pouco ele pareceu serenar, e Isabel obser­vava, ditosa, o seu crescente entusiasmo pela introdução dos métodos americanos naquele recanto esquecido do mundo. Conhecendo-o bem, todavia, esperava ter de empregar toda a sua influência para persuadi-lo a permanecer em Taiti quando houvesse passado um ano, o prazo mais curto exigi­do para sua estada ali. Era preferível que Eduardo ficasse conhecendo a fundo o negócio, e, tendo esperado um ano, a jovem não via razão para ele não esperar mais outro. Discutiu o assunto com Bateman Hunter, sempre o mais ge­neroso dos amigos (durante os primeiros dias após a partida de Eduardo, Isabel não sabia o que teria sido de si sem ele). Resolveram que o futuro de Eduardo devia ser sobre­posto a tudo. E foi com alívio que ela notou, volvido algum tempo, que Eduardo não falava em voltar.

         Ele é esplêndido, você não acha? — perguntou a Bateman.

         Oh sim, é perfeito.

         Eu li nas entrelinhas, e sei que ele detesta aquilo lá, mas vai agüentando porque...

Corou um pouco, e Bateman, com aquele seu grave sorri­so que era tão atraente, terminou a frase por ela: — Por­que a ama.

Isto me deixa tão humilde — disse Isabel.

Você é admirável, Isabel. Simplesmente admirável.

Mas o segundo ano foi passando, e Isabel continuou a re­ceber todos os meses vima carta de Eduardo. Começou a achar estranho que ele não falasse na volta. Eduardo expri­mia-se como se estivesse definitivamente instalado em Taiti, e até como se estivesse ali à seu gosto. Ela surpreendeu-se. Releu diversas vezes as cartas todas. E agora, lendo verda­deiramente nas entrelinhas, ficou intrigada ao notar uma mudança que lhe passara despercebida. As últimas cartas eram ternas e prazenteiras como as primeiras, mas o tom era diferente. Ela suspeitava vagamente do seu humorismo. Tinha a desconfiança instintiva do seu sexo por essa qua­lidade indefinível, e distinguia agora nas cartas um tom de futilidade que a deixava perplexa. Parecia-lhe que o Eduardo que lho escrevia presentemente não ora o mesmo Eduardo que ela conhecera. Certa tarde, um dia após a chegada do correio de Taiti, Bateman perguntou-lhe, enquanto passea­vam de automóvel:

         Eduardo já lhe disse quando vem?

         Não, nem toca nesse assunto. Eu pensava que talvez ele lhe tivesse escrito a respeito.

         Não, nem uma palavra.

         Você sabe como é Eduardo respondeu ela, rindo.. Ele não tem a noção do tempo. A próxima vez que lhe escrever, veja se se lembra de perguntar quando é que êle pretende voltar.

Disse isto com um ar tão indiferente que só a aguda sensibilidade de Bateman podia discernir no pedido um desejo ansioso. Ele riu em tom de gracejo.

         Sim, vou perguntar-lho. Não sei o que ele pensa.

Encontrando-se de novo com êle alguns dias depois, a jo­vem notou-lhe certa perturbação. Muito haviam andado jun­tos depois que Eduardo deixara Chicago. Ambos lhe eram devotados, e, gostando de falar nele, cada um encontrava no outro um ouvinte atento. A conseqüência disto era que Isabel conhecia por miúdo as expressões do rosto de Ba­teman, e as negações dele foram inúteis. Algo lhe dizia que este ar de preocupação tinha que ver com Eduardo, e ela não descansou enquanto não o fez confessar.

         O fato disse Bateman por fim é que eu tinha ouvido dizer que Eduardo já não trabalhava com Braun-schmidt & Cia., e ontem aproveitei a oportunidade para per­guntar ao próprio Mr. Braunschmidt.

         E então?

         Há quase um ano que Eduardo deixou de ser seu em­pregado.

         Como é estranho que ele não tenha dito nada!

Bateman hesitou, mas tinha avançado tanto que se via forçado a contar o resto. Sentia um embaraço horrível.

Ele foi despedido.

Por que, Santo Deus?

         Parece que o preveniram uma ou duas vezes, e afinal mandaram-no retirar-se. Dizem que ele era preguiçoso e incompetente.

Eduardo?

Estiveram algum tempo calados. Então ele viu que Isa­bel chorava. Tomou-lhe instintivamente a mão.

Oh, minha querida, não chores! Não posso vê-la cho­rar.

Ela estava tão confusa que deixou sua mão descansar na dele. Bateman procurou consolá-la.

É incompreensível, não é? Eduardo não parece capaz, de proceder assim. Desconfio que deve haver algum engano nisto.

Ela ficou silenciosa por algum tempo, e quando falou foi com certa hesitação.

         Você não notou nada de estranho nas últimas cartas dele? perguntou, desviando os seus olhos que as lágri­mas faziam brilhar.

Ele não sabia bem o que responder.

         Sim, notei uma certa mudança admitiu. Ele parece ter perdido aquela elevada seriedade que eu tanto admirava. Chega a dar a impressão de que para ele as coi­sas importantes da vida... deixaram de ter importância.

Isabel não respondeu. Estava vagamente inquieta.

         Quem sabe se na resposta à sua carta ele dirá quando volta? Tudo que podemos fazer é esperar.

Chegou outra carta de Eduardo para cada um deles. Ain­da não falava no regresso. Mas na data em que escrevera não podia ter recebido a pergunta de Bateman. O próximo correio lhes traria a resposta. Chegou o outro correio, e Bate­man veio mostrar a carta que acabara de receber. Bastou o primeiro olhar dado ao seu rosto para convencê-la de que ele estava desconcertado. Isabel leu detidamente a carta e depois, comprimindo um pouco os lábios, releu-a.

É uma carta muito singular disse. Não a com­preendo bem.

Chega até parecer que ele está mangando comigo disse Bateman, corando.

É o que parece, mas não deve ser intencional. Isto é tão diferente de Eduardo!

         E não diz nada sobre a volta.

         Se eu não tivesse tanta confiança no seu amor, pen­saria... nem sei o quê.

Foi então que Bateman propôs o plano que durante a tarde se viera formando no seu espírito. A firma fundada por seu pai, e de que ele já era sócio, uma firma que ma­nufaturava toda sorte de veículos, ia estabelecer agências em Honolulu, Sidney e Wellington. Bateman ofereceu-se para ir, em lugar do gerente encarregado disso. Podia voltar por Taiti — e vindo de Wellington, isto era até inevitável. Aproveitaria a ocasião para falar com Eduardo.

         Há algum mistério nisto, e eu quero esclarecê-lo. Esse é o único meio.

Oh Bateman. como é possível ter-se tanta bondade! exclamou Isabel.

         Você sabe que o que eu mais desejo neste mundo é a sua felicidade, Isabel.

Isabel olhou para ele, pondo as mãos nas suas.

Você é admirável, Bateman. Eu não sabia que hou­vesse alguém assim no mundo. Como poderei agradecer-lhe?

Não é agradecimentos que eu procuro. Só quero que você me deixe ajudá-la.

Ela baixou os olhos e enrubesceu de leve. Estava tão habituada a ele que não reparava na beleza do seu físico. Bateman era alto e bem-feito, como Eduardo, mas moreno e pálido, ao passo que Eduardo tinha o rosto sanguíneo. Sa­bia, naturalmente, que ele a amava. Isto a tocava. Sentia muita ternura por ele.

Era dessa viagem que Bateman regressava agora.

A parte comercial dela lhe tinha tomado mais tempo do que ele esperava, não lhe deixando muitos vagares para pen­sar no seu amigo. Chegara à conclusão de que não era nada de sério o que impedia Eduardo de voltar o orgulho, talvez, de mostrar o seu valor antes de ganhar a mão de Isabel. Mas este orgulho devia ser debelado. Isabel sofria. Eduardo devia regressar para Chicago com êle, e casar de uma vez. Podia-se-lhe dar uma posição ria Companhia de Tratores e Automóveis Hunter. Bateman, com o coração a sangrar, exultava à perspectiva de fazer a felicidade dos dois entes que mais amava no mundo, à custa da sua pró­pria. Não casaria nunca. Seria padrinho dos filhos de Isa« bel e Eduardo, e, passados muitos anos, quando os dois es­tivessem mortos, diria à filha de Isabel que em moço amara sua mãe. Os olhos de Bateman toldavam-se de lágrimas quan­do ele antevia esta cena.

Querendo tomar Eduardo de surpresa, não telegrafou para avisá-lo da sua chegada. Ao desembarcar por fim em Taiti, deixou-se conduzir ao Hotel de la Fleur por um rapaz que disse ser filho do proprietário. Ria sozinho ao pensar no assombro do seu amigo quando o visse entrar no escritório.

A propósito — perguntou ele enquanto caminhavam, — você não sabe me dizer onde poderei encontrar o Sr. Eduardo Barnard?

Barnard? — disse o menino. — Parece que conheço este nome.

É um americano, um rapaz alto, de cabelos castanho-claros e olhos azuis.

Ah, sim. Agora sei quem é. o senhor se refere ao sobrinho de Mr. Jackson?

Sobrinho de quem?

De Mr. Arnold Jackson.

Creio que é engano — respondeu Bateman friamente.

Estava intrigado. Era esquisito que Arnold Jackson, co­nhecido aparentemente por todo o mundo, usasse aqui o mesmo nome desacreditado sob o qual curtira sete anos de prisão. Mas Bateman não podia conceber quem seria essa pessoa que passava por seu sobrinho. O único irmão que tinha era Mrs. Longstaffe. O rapaz ao seu lado conversava por paus e por pedras, num inglês que tinha certo sotaque de língua estrangeira, e Bateman viu com um olhar de viés o que antes lhe passara despercebido: o rapaz tinha nas veias uma boa dose de sangue indígena. Ele tomou involun­tariamente um ar de desdém. Depois de tomar um quarto, Bateman pediu que lhe indicassem a agência de Braun-schmidt & Cia. Ficava no porto, defrontando a laguna. Con­tente por pisar de novo terra firme após oito dias no mar, ele desceu com vagar a estrada banhada de sol, até a beira d'água. Tendo encontrado o estabelecimento que procurava, Bateman enviou o seu cartão ao gerente. Fizeram-no atra­vessar uma poça alta e ampla, ao mesmo tempo depósito e loja, antes de chegar ao escritório onde estava sentado um homem corpulento e calvo, de óculos.

         O senhor pode me informar onde encontrarei Mr. Eduardo Barnard? Sei que ele esteve empregado aqui por algum tempo.

         É verdade. Não sei bem onde ele está atualmente.

         Mas eu julgava que ele tinha trazido uma recomen­dação especial de Mr. Braunschmidt. Conheço muito Mr. Braunschmidt.

O homem gordo considerou Bateman com uns olhos astu­tos e perspicazes. Chamou um dos empregados do arma­zém.

         Escuta, Henrique: sabes onde está agora o Barnard?

Creio que está trabalhando no Cameron foi a res­posta lançada por alguém que não se deu o trabalho de mover a cabeça.

O gerente fez um sinal de anuência.

         Volte à esquerda ao sair daqui, e em três minutos che­gará à Casa Cameron.

Bateman hesitava.

         Creio dever dizer-lhe que Eduardo Barnard é o meu melhor amigo. Fiquei abismado quando soube que ele dei­xara a firma Braunschmidt.

Os olhos do homem gordo apertaram-se até que as pu­pilas pareceram pontas de alfinete. O seu exame embaraçou Bateman a ponto de o fazer corar.

         Parece que a firma Braunschmidt e Eduardo Barnard não afinam bem em certos assuntos respondeu êle.

Bateman não gostou muito dos modos do sujeito. Levan­tou-se, não sem dignidade, e despediu-se dele pedindo des­culpa pelo incômodo. Saiu da casa com a singular impressão de que este homem teria, se quisesse, muita coisa para lhe dizer. Encaminhou-se na direção indicada, e logo chegou à Casa Cameron. Era uma loja comum, igual a meia dúzia de cutras que ele já tinha encontrado no caminho. A primeira pessoa que viu ao entrar, em mangas de camisa, medindo um corte de fazenda de algodão, foi Eduardo. Sentiu um choque ao vê-lo ocupado em coisa tão humilde. Mas nem bem ele tinha aparecido quando Eduardo ergueu os olhos, avistou-o e soltou um grito de alegre surpresa:

         Bateman! Quem sonharia ver-te aqui?

Estendeu o braço por cima do balcão e apertou a mão de Bateman. Fê-lo com toda a naturalidade. Dos dois o único contrafeito era Bateman.

         Espera um instante, enquanto eu faço este pacote.

Com perfeita calma cortou a fazenda, dobrou-a, empacotou-a e entregou-a ao freguês indígena.

Faça o favor de pagar na caixa.

Depois, sorrindo, com os olhos brilhantes, voltou-se para Bateman.

— Como foi que vieste parar aqui? Oh, estou radiante por te ver. Senta, meu velho. Faz de conta que estás em casa.

Não podemos conversar aqui. Vem comigo ao hotel. Decerto podes deixar o trabalho por algumas horas? — acrescentou ele com certa apreensão.

Está claro que posso. Não andamos tão ocupados assim em Taiti. — E, gritando a um chinês que estava atrás do balcão fronteiro: — As-Ling, quando o patrão chegar diz-lhe que chegou hoje da América um amigo meu e saí para virar um copo com ele.

         Está bem — disse o chinês, arreganhando os dentes.

Eduardo enfiou um casaco, pôs o chapéu e saiu do arma­zém em companhia de Bateman. Este procurou levar a coisa de caçoada.

Não esperava encontrar-te vendendo três jardas de algodão podre a um negro catinguento — disse ele rindo.

Fui despedido da Braunschmidt, como sabes, e achei que este emprego valia outro qualquer.

A candura de Eduardo pareceu surpreendente a Bateman. Mas achou que seria indiscrição prosseguir no assunto.

Não farás fortuna onde estás — replicou, com alguma secura.

Não, mas ganho o bastante para viver, e isso me sa­tisfaz.

         Dois anos atrás não te satisfaria.

         Com a idade vamos ganhando juízo — respondeu Eduardo alegremente.

Bateman examinou-o. Eduardo trajava uma coçada fatiota de linho branco, que não luzia pela limpeza, e um largo chapéu de palha de fabricação indígena. Estava mais magro, fortemente tostado pelo sol, com melhor aparência que nunca. Mas havia nele qualquer coisa que desconcertava Bate­man. Caminhava com uma vivacidade nova. Havia uma certa negligência no seu porte, uma alegria sem motivo, que Bate­man não podia precisamente censurar, mas que o intrigava imenso.

         Macacos me mordam se eu sei que razão tem ele para andar tão alegre — pensou.

Chegados ao hotel, foram sentar-se no terraço. Um rapaz chinês trouxe-lhes coquetéis. Eduardo estava ansiosíssimo por saber todas as novas de Chicago, e bombardeou o seu amigo de perguntas pressurosas. O seu interesse era natural e sincero. Mas o estranho era que ele parecia repartir-se de modo igual entre uma multidão de assuntos. Estava tão sôfrego por saber como ia o pai de Bateman como o que fazia Isa­bel. Falava nela sem sombra de enleio, mas a julgar pelo modo com que se lhe referia, tanto podia ser sua irmã co­mo a sua prometida. E antes que Bateman tivesse tempo de analisar a significação precisa dos comentários de Eduar­do, percebeu que o assunto da conversa tinha derivado para o seu próprio trabalho, e os edifícios erigidos recentemente por seu pai. Resolvido a tornar ao assunto de Isabel, estava aguardando uma oportunidade quando viu Eduardo abanar cordialmente com a mão. Um homem, no terraço, avançava na direção dos dois, porém Bateman tinha as costas voltadas para ele e não podia vê-lo.

         Venha sentar-se • aqui — disse Eduardo em tom prazenteiro.

O recém-vindo chegou-se. Era um homem muito alto, delgado, vestido de linho branco, com uma bela cabeleira branca encaracolada. Tinha o rosto fino também, com uni nariz comprido, largo e adunco, e uma bela barba expressiva.

— Este é o meu velho amigo Bateman Hunter. Já lhe falei nele — disse Eduardo com o seu indefectível sorriso.

-— Tenho prazer em conhecê-lo, Mr. Hunter. Conheci seu pai.

O estranho estendeu a mão, apertando a do moço com força e amizade. Só então foi que Eduardo deu o seu nome.

         Mr. Arnold Jackson.

Bateman fêz-se branco e sentiu as suas mãos esfriarem. Era este o falsário, o condenado, era este o tio de Isabel. Ele não sabia o que dizer. Procurou ocultar a sua confusão. Ar­nold Jackson contemplava-o com olhos cintilantes.

         Aposto que o senhor me conhece de nome — disse ele.

Bateman não sabia se havia de responder sim ou não, e o que mais crítica tornava a situação era que tanto Jack­son como Eduardo pareciam achar-lhe graça. Era já bas­tante desagradável ser forçado a entabular relações com o único homem na ilha que ele desejaria evitar, mas pior ain­da era perceber que estava fazendo papel de tolo. Talvez, no entanto, a sua confusão fora precipitada, pois Jackson acrescentou sem intervalo de silêncio:

         Sei que o senhor é muito amigo dos Longstaffes. Ma­ria Longstaffe é minha irmã.

Então Bateman perguntou aos seus botões se Arnold Jack­son o julgaria na ignorância do escândalo mais retumban­te que Chicago conhecera. Mas Jackson pôs a mão no om­bro de Eduardo.

         Não posso sentar, Teddie — disse ele. — Tenho que fazer. Mas vocês dois deviam jantar esta noite comigo.

         Esplêndida idéia — aprovou Eduardo.

É muita bondade sua, Mr. Jackson, — respondeu Bate­man glacialmente, — mas vou demorar-me muito pouco tempo aqui. Meu navio, como o senhor sabe, parte amanhã. Desculpe-me por não ir.

Tolice! Vou-lhe dar um jantar indígena. Minha mu­lher é uma admirável cozinheira. Teddie o levará lá. Venha cedo, para ver o pôr do sol. Posso improvisar-lhes uma pou­sada se quiserem.

Está visto que iremos — disse Eduardo. — Há sem­pre uma algazarra infernal no hotel, nas noites de chegada de vapores, e lá em cima, no bangalô, nós poderemos cava­quear agradavelmente.

Não posso dispensá-lo, Mr. Hunter — continuou Jackson com a maior cordialidade. — Quero saber todas as no­vidades sobre Maria e sobre Chicago.

Inclinou a cabeça e retirou-se, antes que Bateman pudesse acrescentar uma só palavra.

Não admitimos recusas em Taiti — riu Eduardo. — Além disso, tu vais comer o melhor jantar da terra.

Como foi que ele disse que a sua mulher é boa cozi­nheira? Eu sei que a esposa dele esta em Genebra.

É muito longe para uma esposa, não é? E há muito tempo que ele não a vê. Decerto falava da outra esposa.

Bateman esteve algum tempo calado. Seu rosto fizera-se grave. Mas, erguendo os olhos, notou o ar divertido de Eduardo e corou de indignação.

Arnold Jackson é um velhaco desprezível — disse.

Receio muito que sim — respondeu Eduardo sorrindo.

         Não me parece que um homem decente deva andar de camaradagem com ele.

Talvez eu não seja um homem decente.

Tu o vês muito seguido, Eduardo?

Sim, muito. Ele adotou-me como sobrinho.

Bateman curvou-se para a frente e fitou Eduardo com olhos inquiridores.

Gostas dele?

Muitíssimo.

         Mas então não sabes, não sabem todos aqui, que ele é um falsário e esteve na cadeia? Deviam escorraçá-lo de qualquer sociedade civilizada.

Eduardo observava o anel de fumo que se desprendia do seu charuto no ar imóvel e perfumado.

Acho que ele é um consumado patife — respondeu por fim. — E não tem a atenuante do arrependimento. Foi um caloteiro e um hipócrita. Não se pode contestar isso. Mas nunca encontrei um companheiro mais agradável. Ele me ensinou tudo que sei.

Que foi que ele te ensinou? — perguntou Bateman com assombro.

         A viver.

Bateman desatou numa risada irônica.

         Bonito mestre! Foi de acordo com as lições dele que perdeste a oportunidade de fazer fortuna e ganhas agora a vida num armarinho de dez tostões?

— Ele tem uma personalidade admirável — disse Eduar­do com um sorriso de bom humor. — Talvez compreendas esta noite o que eu quero dizer.

Se pensas que vou jantar com ele, estás enganado. Na­da me levaria a pôr os pés na casa desse homem.

Vem, para me seres agradável, Bateman. Depois de tantos anos de amizade não me recusarias um favor.

Eduardo falou num tom que Bateman ainda não lho co­nhecia. A sua brandura era singularmente persuasiva.

         Se me pedes nestes termos, Eduardo, serei forçado a ir.

Ele sorriu. Bateman achou, aliás, que lhe cumpria averi­guar o mais que pudesse a respeito de Arnold Jackson. Era visível que ele tinha grande ascendência sobre Eduardo, e para combatê-la seria mister descobrir em que consistia. Quanto mais falava com Eduardo, mais se apercebia de cer­ta mudança que se operara nele. Compreendeu instintiva­mente que devia proceder com cautela, e resolveu não re­velar o verdadeiro objetivo da sua visita enquanto não es­tivesse mais certo do terreno que pisava. Pôs-se a falar nu­ma coisa e noutra, na sua viagem o resultado obtido com ela, na política de Chicago, em diversos amigos comuns, nos tempos de universidade.

Afinal Eduardo disse que tinha de voltar ao trabalho e propôs vir procurar Bateman às cinco para irem juntos à casa de Arnold Jackson.

Pois eu pensava que tu morasses neste hotel — disse Bateman ao sair do jardim em companhia de Eduardo. — Disseram-me que é o único decente daqui.

Oh, não! — riu Eduardo. — É muito luxuoso para mim. Alugo um quarto nos arrabaldes. É limpo e barato.

Se bem me lembro, não eram esses os requisitos mais importantes para ti quando vivias em Chicago.

Chicago!

         Não compreendo o que queres dizer, Eduardo. É a maior cidade do mundo.

Eu sei — disse Eduardo.

Bateman relanceou-o, mas o semblante do seu amigo es­tava inescrutável.

Quando voltarás para lá?

É o que me pergunto a miúdo sorriu Eduardo.

Esta resposta, e o modo por que foi dada, causaram es­panto a Bateman. Antes porém que êle tivesse tempo de pedir explicações, Eduardo fazia sinal ao motorista mestiço de um automóvel que passava.

         Leva-me até a loja, Charlie disse ele.

Com um aceno de cabeça a Bateman, correu atrás do veí­culo que estacara a poucos metros adiante. Bateman ficou reunindo as suas surpreendentes impressões.

Eduardo veio buscá-lo numa desconjuntada aranha, puxa­da por uma velha égua, e eles tomaram por uma estrada que corria à beira-mar. Dos dois lados se estendiam planta­ções de coco e baunilha. A espaços viam-se mangueiras, entremostrando os seus frutos amarelos ou purpurinos no meio da folhagem verde. De quando em quando vislumbravam a laguna, azul e lisa, com um minúsculo ilhéu aqui e acolá, embelezado por altas palmeiras. A casa de Arnold Jackson ficava sobre uma colina. Como o único caminho para lá era uma vereda estreita, eles desatrelaram a égua, ataram-na a uma árvore e deixaram a aranha à beira da es­trada. Bateman achou que isto era fazer as coisas um tanto ao deus-dará. Mas em chegando a casa foram recebidos por uma indígena alta e bela, já não muito moça, a quem Eduar­do deu cordial aperto de mão e apresentou Bateman.

Este é o meu amigo Mr. Hunter. Viemos para jantar com vocês.

Muito bem disse ela com um rápido sorriso. Arnold ainda não chegou.

Vamos descer para o banho. Arranje-nos um par de páreas.

A mulher inclinou a cabeça e entrou em casa.

Quem é? perguntou Bateman.

Oh, essa é Lavina. A mulher de Arnold.

Bateman cerrou os lábios, mas não falou. Um momento depois voltava a mulher com um pacote, que deu a Eduardo.

Os dois homens, descendo por um caminho escarpado e pedregoso, rumaram para um bosque de coqueiros à beira da praia. Despiram-se, e Eduardo mostrou a Bateman como transformar a faixa de fazenda vermelha de algodão que se chama pareô num perfeito calção de banho. Daí a pouco chapinhavam os dois na água rasa e tépida. Eduardo estava contentíssimo. Ria, gritava, cantava. Parecia um rapazote de quinze anos. Bateman nunca o tinha visto numa tal alegria, e quando se deitaram depois na praia, fumando cigarros, no ar límpido, a sua irresistível leveza perturbou Bateman.

Pareces encantado com a vida — disse ele.

E estou.

Ouviram um leve movimento e, voltando a cabeça, avista­ram Arnold Jackson que vinha na direção deles.

Vim buscá-los, rapazes. Gostou do banho, Mr. Hunter?

Muitíssimo — respondeu Bateman.

Arnold Jackson trocara a sua elegante fatiota de linho por um pareô, e estava descalço. Tinha o corpo fortemente tostado pelo sol. Com os seus longos e crespos cabelos bran­cos e o semblante ascético, formava uma figura fantástica naquele traje nativo, mas a sua atitude era de perfeita na­turalidade.

Se estão prontos, subimos duma vez — disse Jackson.

Dê-me um momento para me vestir — respondeu Bateman.

         Como, Teddie, não trouxeste um pareô para o teu amigo?

         Creio que ele prefere andar vestido — sorriu Eduardo.

         Por certo que prefiro — disse Bateman friamente, ven­do Eduardo cingir a tanga e pôr-se pronto para partir an­tes que ele tivesse sequer o tempo de enfiar a camisa. — Não tens medo de machucar os pés, andando descalço? O caminho me pareceu um pouco duro.

         Oh, eu estou acostumado — respondeu Eduardo.

         É um conforto vestir-se um parco ao voltar da cidade — disse Jackson. — Se o senhor fosse ficar aqui, eu muito lhe aconselharia que o adotasse. É um dos trajes mais sen­satos que conheço. É fresco, cômodo e barato.

Subiram para a casa, onde Jackson os conduziu a um vasto aposento de paredes caiadas e teto aberta, em que havia uma mesa posta para o jantar. Bateman contou cinco talheres.

         Eva, vem te mostrar ao amigo de Teddie, e depois mistura-nos um coquetel — gritou Jackson.

Então levou Bateman a uma janela larga e baixa.

         Olhe isso disse êle com um gesto dramático. Olhe bem.

Em baixo os coqueiros desciam a ladeira íngreme até a laguna. A laguna, ao entardecer, tomava os suaves matizes de um peito de pomba. À beira de um riacho, a pequena distância, aglomeravam-se as palhoças de uma aldeia indí­gena, e para os lados dos recifes vogava uma canoa, nitida­mente desenhada contra o crepúsculo, na qual estava um par de indígenas pescando. Mais para além, avistava-se a vasta serenidade do Pacífico e, a vinte milhas de distância, etérea e insubstancial como uma fantasia de poeta, a beleza inimaginável da ilha a que chamam Murea. A paisagem tinha um encanto tão maravilhoso que Bateman ficou por algum tempo mudo de enlevo.

Nunca vi nada semelhante a isto disse ele por fim.

Arnold Jackson, imóvel, tinha, nos olhos fitos em frente, uma doçura sonhadora. O seu rosto fino e pensativo estava cheio de seriedade. Bateman, olhando-o de relance, reparou mais uma vez na sua intensa espiritualidade.

         A beleza! murmurou Arnold Jackson. É raro que nos encontremos face a face com a beleza. Olhe bem para isto, Mr. Hunter, porque nunca mais verá o que está vendo agora, já que o momento é transitório. Mas para o seu cora­ção será uma memória imperecível. A eternidade está na sua frente.

Sua voz era profunda e sonora. Ele parecia respirar puro idealismo, e Bateman teve de fazer um esforço para se lembrar de que o homem que assim falava era um criminoso, um embusteiro sem piedade. Mas Jackson, ouvindo um ruí­do, girou rapidamente nos calcanhares.

         Aqui está minha filha, Mr. Hunter.

Bateman apertou-lhe a mão. Ela tinha esplêndidos olhos escuros e uns lábios vermelhos frementes de riso. Mos a sua tez era parda, e a crespa cabeleira que lhe caía em ondas sobre as espáduas era negra como carvão. A única veste que trazia sobre o corpo era uma Mother Hubbard de algodão cor-de-rosa. Estava descalça e coroada com uma grinalda de flores brancas aromáticas. Era uma criatura adorável. Lem­brava uma deusa da primavera polinésia.

Mostrou-se um pouco tímida, mas não menos o estava Bateman, para quem a situação era imensamente embara­çosa. Não contribuiu para tranqüilizá-lo o fato de ver esta espécie de sílfide agarrar um misturador e preparar com pe­rícia três coquetéis.

         Ajunta um picante, menina — disse Jackson.

Ela verteu-os nos copos, sorrindo deliciosamente, e pas­sou-os aos homens. Bateman ufanava-se da sua habilidade na arte sutil de misturar coquetéis e não foi pequena a sua admiração ao achar este excelente. Jackson riu-se com or­gulho quando viu o involuntário olhar de apreciação do seu hóspede.

         Não é mau, hem? Fui eu que ensinei a pequena. No meu tempo de Chicago, eu estava convencido de que não havia na cidade um só barman que me chegasse aos pés. Quando não tinha o que fazer na penitenciária, distraía-me inventando novos coquetéis, mas o fato é que não há nada que se compare a um Martini seco.

Bateman teve a sensação de quem recebe um golpe vio­lento no nervo sensível do cotovelo, e sentiu-se corar e em­palidecer sucessivamente. Mas antes que lhe ocorresse uma resposta, apareceu um menino indígena com uma grande malga de sopa, e todos os presentes sentaram-se para jantar. A observação de Arnold Jackson parecia ter evocado nele um cortejo de outras recordações. Pôs-se a falar nos seus tempos de presidiário. Falava com toda a naturalidade, sem malícia, como quem relata as suas experiências numa uni­versidade estrangeira. Dirigia-se a Bateman. Este ficou pri­meiramente confuso e depois atônito. Via os olhos de Eduar­do fitos nele, com um brilho travesso. Fez-se escarlate, com a desconfiança de que o estava desfrutando. Depois sentiu que estava fazendo um papel absurdo, e, como não sabia por que, encolerizou-se. Arnold Jackson era um cínico — não havia outra palavra e a sua insensibilidade, real ou fingida, era afrontosa. O jantar continuava. Vários pratos foram apresentados a Bateman papas, peixe cru e ou­tros desconhecidos dele. Tragava-os por mero dever de cor­tesia, mas descobriu com assombro que eram saborosíssimos. Então sobreveio um incidente, que para Bateman foi o mais mortificador daquele dia. Como visse um pequeno arco de flores na sua frente, arriscou, na falta de outro assunto, uma observação qualquer sobre êle.

         É uma grinalda que Eva fez para o senhor expli­cou Jackson. Mas decerto não teve coragem de lhe dar.

Bateman tomou-a nas mãos e fez uma pequena alocução de agradecimento à jovem.

         É para o senhor pôr na cabeça disse ela com um sorriso e um rubor nas faces.

         Eu? Não, se me dá licença não o farei.

         É um encantador costume da terra disse Jackson. Agarrou a que estava na sua frente e a pôs na cabeça.

O mesmo fez Eduardo.

Mas o meu traje não está de acordo disse Bate­man, contrafeito.

Quer um parco? acudiu Eva rapidamente. — Tra­go-lhe um num instante.

         Não, obrigado. Sinto-me muito bem assim como estou.

         Mostra-lhe como se põe a grinalda, Eva disse Eduardo.

Nesse momento Bateman chegou a sentir ódio pelo seu melhor amigo. Eva levantou-se, e, desfazendo-se em risos, colocou-lhe a grinalda sobre os cabelos pretos.

         Senta-lhe muito bem disse Mrs. Jackson. Não é verdade, Arnold?

         Naturalmente.

Bateman suava por todos os poros.

         Não é pena estar escuro? disse Eva. Podíamos fotografar os três juntos.

Bateman deu graças aos céus por estar escuro. Sentia que estava fazendo uma figura prodigiosamente grotesca com o seu correto traje de casimira azul, o colarinho alto, e aquela ridícula grinalda de flores na cabeça. Fervia de indignação, e nunca tivera de se dominar tanto como agora para mos­trar um exterior amável. Estava furioso com aquele velho sentado à cabeceira da mesa, seminu, com a sua cara de santo e as flores a lhe cobrirem as belas madeixas brancas. A situação era simplesmente monstruosa.

Terminado o jantar, Eva e sua mãe ficaram para tirar a mesa enquanto os três homens iam sentar-se na varanda. As flores da noite perfumavam o ar tépido. A lua cheia, su­bindo num céu sem nuvens, abria no mar imenso um cami­nho que chegava ao Reino da Eternidade. Arnold Jackson começou a falar Sua voz era rica e musical. Discor­ria agora sobre os indígenas e as antigas lendas da terra. Contou estranhas histórias do passado, de arriscadas expe­dições ao desconhecido, de amor e morte, de ódio e vingan­ça. Contou dos aventureiros que tinham descoberto aquelas ilhas longínquas, dos marinheiros que nelas se estabelece­ram, desposando as filhas dos grandes chefes, e dos espreita-marés, que tinham vivido as suas vidas tão diversas na­quelas praias argentinas. Bateman, mortificado e exaspera­do, escutou a princípio de má sombra. Mas a magia das palavras logo tomou posse dele. Ficou ouvindo, enlevado. A miragem romântica eclipsava a vulgar luz do dia. Não sa­bia ele que Arnold Jackson tinha uma língua de prata, uma língua que arrancara grossas quantias do povo crédulo, uma língua que quase lhe valera escapar à punição dos seus cri­mes? Ninguém possuía eloqüência mais suave, ninguém sa­bia graduar melhor os efeitos. De repente ele se levantou.

Bem, os meus amigos não se vêem há muito tempo. Vou deixá-los para palestrarem à vontade. Quando o senhor qui­ser deitar-se, Teddie lhe mostrará o quarto.

Mas eu não pretendia passar a noite aqui, Mr. Jack­son — disse Bateman.

         Aqui terá mais conforto. Nós o acordaremos com tempo.

E, com um gracioso aperto de mão, digno como um bispo oficiando, Arnold Jackson despediu-se do seu hóspede.

         Se quiseres voltar a Papeete eu te levarei, está claro — disse Eduardo. — Mas aconselho-te que fiques. Um passeio matinal de aranha é delicioso.

 

Pelo espaço de alguns minutos nenhum deles falou. Bate-man não sabia como entabular um assunto que todos os acontecimentos daquele dia tornavam urgente esclarecer.

Quando vais voltar para Chicago? perguntou de chofre.

Eduardo não respondeu logo. Após um momento, virou-se com certa indolência para o seu amigo e sorriu.

Não sei. Talvez nunca.

Em nome de Deus, que queres dizer?

Sou muito feliz aqui. Não seria loucura mudar de si­tuação?

Mas, homem de Deus, não podes passar toda a exis­tência aqui. Isto não é vida para um homem. É uma morte animada. Eduardo, vem embora duma vez, antes que seja tarde demais Eu bem pressenti que havia algo de anormal. Tu te deixaste seduzir por esta ilha, sucumbiste a más in­fluências, mas não é preciso mais que um esforço, e quando estiveres longe deste ambiente, darás graças aos céus. Serás como um viciado que arrancam ao seu entorpecente. Com­preenderás que nestes dois anos estiveste respirando um ar envenenado. Não imaginas qual será o teu alívio quando en­cheres de novo os pulmões com o ar fresco e puro da tua pátria.

Ele falava depressa, atropelando as palavras na sua ex­citação, e a sua voz vibrava de emoção sincera e afetuosa. Eduardo comoveu-se.

Como és bom em te preocupares tanto por mim, meu velho amigo!

Embarca amanhã comigo, Eduardo. Foi um erro vires para este lugar. Isto não é vida para ti.

Tu me falas em diversos gêneros de vida. Qual deles vale mais no teu ver?

Ora, eu acho que para isto só pode haver uma res­posta. Fazer o seu dever, trabalhar com afinco, cumprir com as obrigações da sua posição.

E qual é a recompensa?

A recompensa é a consciência de ter realizado o que se visou.

         Tudo isso me parece muito solene — disse Eduardo. E, como a noite era clara, Bateman pôde ver o seu sorriso. — Receio que me vais achar lamentavelmente degenerado, mas hoje tenho diversas idéias que três anos atrás me parece­riam revoltantes.

— Aprendeste-as com Arnold Jackson? — perguntou Bateman com ironia.

Não gostas dele? Bem, isto é natural. Eu também não gostava quando aqui cheguei. Tinha a mesma prevenção que tu. Ele é um homem extraordinário. Tu mesmo viste como ele não faz segredo de ter estado na penitenciária. Não sei se ele lamenta esse fato, ou os crimes que o levaram lá. A única queixa que lhe ouvi foi de ter a saúde abalada quan­do veio para cá. Creio que ele não sabe o que é remorso. É completamente amoral. Aceita tudo, e a si mesmo tam­bém. É bom e generoso.

Sempre o foi — atalhou Bateman — com o dinheiro dos outros.

Encontrei nele um amigo excelente. Não é natural que eu aceite um homem tal como ele é feito?

O resultado disso é que perdes a discriminação entre o certo e o errado.

Não. Eles continuam tão distintos como antes no meu espírito, mas o que se tornou um tanto confuso para mim foi a distinção entre o bom e o mau homem. É Arnold Jack­son um homem mau que pratica atos bons, ou o inverso? Questão difícil de responder. Talvez nós exageramos a dife­rença entre um homem e outro. Talvez os melhores entre nós sejam pecadores e os piores sejam santos. Quem sabe?

— Nunca me convencerás de que o branco é preto e o preto é branco.

         Eu sei disso, Bateman.

Bateman não pôde compreender a significação do sorriso que passou pelos lábios de Eduardo ao anuir assim com ele. Eduardo guardou silêncio por um minuto.

         Quando te vi esta manhã, Bateman — disse ele ao cabo — pareceu-me ver a mim mesmo, tal como era dois anos atrás. O mesmo colarinho, os mesmos sapatos, o mes­mo terno azul, a mesma energia, a mesma resolução. Meu

Deus, eu era enérgico! Os métodos letárgicos desta terra punham-me formigas pelo corpo. Percorri a ilha, e em toda parte via possibilidade de desenvolvimento e trabalho. Podiam-se fazer fortunas aqui. Parecia-me absurdo que se exportasse a copra em sacos para se extrair o azeite na América. Seria muito mais econômico fazer tudo no lugar da produção, com o trabalho barato, poupando os fretes. Via já surgirem grandes fábricas na ilha. Depois, o processo de extração da copra parecia-me absolutamente inadequado, e inventei uma máquina que partia a casca c retirava a noz à razão de duzentas e quarenta por hora. O porto não tinha espaço suficiente. Fiz planos para ampliá-lo, depois imagi­nei um sindicato para comprar terras, erigir dois ou três grandes hotéis e bangalôs para os residentes eventuais. Pro­jetei melhorar o serviço de paquetes a fim de atrair excur­sionistas da Califórnia. Dentro de vinte anos eu teria, em vez deste vilarejo meio francês, de Papeete, uma grande ci­dade americana com prédios de dez andares, bondes, um teatro, uma ópera, uma bolsa e um prefeito.

         Mas vai avante, Eduardo! exclamou Bateman sal­tando da cadeira, no seu entusiasmo. Tu tens idéias e capacidade. Serás o homem mais rico entre a Austrália e os Estados Unidos.

Eduardo riu-se docemente.

         Mas não quero ser disse ele.

Como, não queres dinheiro, dinheiro aos milhões? Não sabes o que podes fazer com ele? Não conheces o poder que ele dá? E se não o queres para ti mesmo, pensa no que poderias realizar, abrindo novos canais à atividade humana, dando ocupação a milhares de homens. Sinto vertigens com a visão que as tuas palavras despertaram em mim.

         Então senta, meu querido Bateman riu Eduardo. A minha máquina de descascar cocos nunca entrará em uso, e se isso depender de mim, as ruas ociosas de Papeete con­tinuarão para sempre sem bondes.

Bateman afundou-se pesadamente na cadeira.

         Não te compreendo.

Pois eu vim a compreender pouco a pouco. Vim a gostar da vida que se leva aqui, fácil e cheia de vagares, com o seu povo bonacheirão, de rostos felizes e sorridentes. Comecei a pensar, coisa que nunca tivera tempo de fazer. Comecei a ler.

         Sempre gostaste de ler.

         Lia para fazer exames. Lia para poder sustentar uma conversação. Lia para me instruir. Aqui aprendi a ler por prazer. Aprendi a conversar. Sabes que a conversação é uma das maiores delicias da vida? Mas requer lazeres. Antiga­mente eu andava sempre muito ocupado. E pouco a pouco toda aquela vida, que tinha para mim tanta importância, começou a parecer-me vulgar e frívola. De que serve toda essa azáfama, todo esse esforço? Chicago aparece-me agora como uma cidade cinzenta, escura, toda de pedra — e um burburinho incessante. E a que se reduz toda essa atividade? Alguém lá tira proveito da vida? Foi para isso que viemos ao mundo: correr a um escritório, trabalhar até a noite, de­pois correr para casa, jantar o ir ao teatro? É assim que eu devo passar a minha mocidade? A mocidade dura tão pouco, Bateman! E quando eu estiver velho, qual será a minha paga? Correr de manhã para o escritório, trabalhar horas sobre horas até a morte, depois correr para casa, jantar e ir ao teatro. Isto pode valer a pena quando se faz fortuna. Não sei. depende da natureza do indivíduo. Mas quando não se faz fortuna? Eu quero aproveitar mais a vida, Bateman.

         A que dás valor na vida, então?

         Tenho medo que rias de mim. A beleza, à verdade, à bondade.

         Não achas que podes tê-las em Chicago?

Alguns talvez possam, mas eu não. — E Eduardo sal­tou em pé: — Digo-te que sinto horror quando penso na vida que eu levava naquele tempo! — gritou ele com vio­lência. — Tremo de medo ao lembrar-me do perigo a que escapei. Só aqui é que vim a saber que tinha alma. Se conti­nuasse a ser rico, podia tê-la perdido para sempre.

Não sei como podes falar assim! — exclamou Bateman com indignação. — Muitas discussões tivemos a esse res­peito.

         Eu sei. Eram tão eficazes como as discussões de sur­dos-mudos a respeito de música. Nunca voltarei para Chica­go, Bateman.

         E Isabel?

Eduardo foi ao parapeito da varanda, apoiou-se nele e olhou fito a magia azul da noite. Quando se virou para Bate­man havia um leve sorriso no seu rosto.

         Isabel está infinitamente acima de mim. Admiro-a co­mo a nenhuma outra mulher. Tem um cérebro admirável e é tão boa quanto bela. Respeito a sua energia e a sua am­bição. Ela tem um destino brilhante. Sou inteiramente in­digno de Isabel.

Ela não pensa assim.

Mas tu deves dizer-lho, Bateman.

         Eu? — gritou Bateman. — Sou a última pessoa capaz de o fazer.

Eduardo estava de costas voltadas para o vívido luar, e não se lhe podia ver o rosto. Teria ele sorrido de novo?

De nada serve procurares esconder-lhe o que quer que seja, Bateman. Com a sua rápida penetração ela te virará ao avesso em cinco minutos. É preferível desabafares logo.

Não sei o que queres dizer. Naturalmente, contarei a ela que falei contigo. — Bateman falava com alguma agi­tação. — Francamente, não sei o que lhe direi.

Dize-lhe que eu não prosperei. Que não somente sou pobre, mas estou contente de ser pobre. Dize-lhe que fui despe­dido do meu emprego porque era preguiçoso e descuidado. Dize-lhe tudo que viste hoje, e o que eu te contei.

A idéia que subitamente passou pelo cérebro de Bateman fê-lo erguer-se, e ele encarou Eduardo com incontida perturbação.

         Mas, homem de Deus, tu não queres casar com ela?

Eduardo olhou-o gravemente.

Não posso pedir-lhe que me restitua a liberdade. Se ela exigir o cumprimento da minha palavra eu farei o que estiver em mim para ser um marido bom e amante.

Queres que eu lhe transmita esta mensagem, Eduar­do? Oh, mas eu não posso! É terrível. Isabel nunca sonhou que tu não quisesses casar com ela. Ela te ama. Como po­derei infligir-lhe semelhante mortificação?

Eduardo sorriu mais uma vez.

         Por que não casas tu com ela, Bateman? Há séculos que a amas. Sois feitos um para o outro. Tu a tornarás mui­to feliz.

         Não me fales assim. Não posso suportar isto.

         Abdico em teu favor, Bateman. Tu és melhor do que eu.

Havia qualquer coisa na entonação da sua voz que fez Bateman erguer rapidamente os olhos para ele. Mas os de Eduardo estavam sérios. Bateman não sabia o que dizer. Estava desnorteado. Suspeitaria Eduardo qual era a missão que o trouxera a Taiti? E, apesar de achá-lo horrível, não podia refrear o seu regozijo.

         Que farás tu se Isabel escrever, rompendo o seu compromisso contigo? — perguntou ele devagar.

         Continuarei a viver — disse Eduardo.

Bateman estava tão agitado que não ouviu a resposta.

Seria melhor que estivesses com as tuas roupas ordi­nárias — disse ele com certa irritação. — A decisão que estás tomando é tremendamente séria, e este traje fantás­tico a faz parecer duma futilidade terrível.

Eu te garanto que posso ser tão solene de pareô como de casaca e chapéu de copa.

Escuta, Eduardo, não é por mim que fazes isto? Não sei, mas talvez isto vá operar uma tremenda mudança no meu futuro. Não te estás sacrificando por mim? Sabes que eu não poderia me conformar com semelhante coisa.

Não, Bateman. Eu aprendi aqui a pôr de lado esses sentimentalismos tolos. Gostaria que tu e Isabel fôsseis felizes, mas quanto a mim não tenho o menor desejo de ser des­graçado.

Esta resposta abateu um pouco a exaltação de Bateman. Pareceu-lhe algo cínica. Ele preferiria haver-se com nobreza.

         Queres dizer que pretendes desperdiçar a tua vida aqui? É um suicídio, nem mais nem menos. Quando penso nas grandes esperanças que tínhamos ao sair da universidade, parece-me terrível que tu te contentes com ser empregado de balcão num armarinho.

         Oh, isto é apenas provisório, e estou adquirindo muita experiência. O meu plano é outro. Arnold Jackson possui uma ilhazinha nas Tuamotu, a umas mil milhas daqui. É um anel de terra cercando uma lagoa. Êle plantou cocos lá, e ofereceu dar-ma de presente.

         Por quê? perguntou Bateman.

Porque se Isabel-me restituir a liberdade, eu casarei com a filha dele.

Tu? Bateman estava atordoado, como quem foi atin­gido por um raio. Não podes casar com uma mestiça. Não és louco a esse ponto.

Ela é boa rapariga, e tem uma natureza doce e gentil. Creio que me fará muito feliz.

         Tu a amas?

         Não sei respondeu Eduardo, refletindo. — Não a amo como amava Isabel. Por Isabel tinha veneração. Acha­va-a a criatura mais admirável do mundo. Eu não servia para ela. Não é isso que sinto por Eva. Ela é como uma bela flor exótica que precisa ser protegida contra os ventos ru­des. Quero protegê-la. Ninguém jamais se lembraria de pro­teger Isabel. Creio que Eva me ama pelo que sou, e não pelo que posso vir a ser. Aconteça-me o que acontecer, nunca lhe causarei decepção. É a mulher que me convém.

Bateman ficou calado.

         Temos de levantar cedo disse Eduardo finalmente. Já é tempo de irmos para a cama.

Então Bateman falou, e na sua voz vibrava uma mágoa sincera.

         Estou tão atarantado que não sei o que dizer. Eu vim porque achava que havia algum erro nisto. Pensei que os teus planos houvessem falhado e tu tivesses vergonha de voltar. Nunca imaginei deparar com o que estou vendo. Es­tou amargurado, Eduardo desapontado. Esperava grandes coisas de ti. É-me um tormento pensar que estás desperdiçando a tua juventude, teus talentos e teu futuro de um modo tão lamentável.

         Não te aflijas, meu velho amigo disse Eduardo. Não foi um malogro o meu. Foi um êxito. Não calculas com que entusiasmo eu contemplo a vida, quando ela me parece cheia de significação. Depois de estares casado com Isabel, pensarás em mim de vez em quando. Vou construir uma casa na minha ilha de coral e ali viverei, cuidando das mi­nhas árvores — extraindo as nozes dos cocos pelo mesmo processo empregado aqui desde tempos imemoriais. Planta­rei toda sorte de plantas no meu jardim, pescarei. Terei tra­balho bastante para me manter ocupado, mas não o bastante para me embrutecer. Terei os meus livros, Eva, e filhos, es­pero. E, acima de tudo, a variedade infinita do céu, a fres­cura da aurora, a beleza do ocaso, e a rica magnificência da noite. Farei um jardim do que era uma selva. Terei cria­do alguma coisa. Os anos passarão insensivelmente, e quan­do estiver velho, espero recordar-me duma vida feliz, sim­ples e pacífica. A minha maneira humilde, terei também vi­vido em beleza. Achas tão pouca coisa o contentamento? Sabemos que pouco vale a um homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma. Eu creio que achei a minha.

Eduardo conduziu-o a um quarto em que havia duas ca­mas, e ele estendeu-se numa delas. Dentro de dez minutos Bateman percebeu pela sua respiração regular, calma como a de uma criança, que Eduardo dormia. Mas quanto a ele, não teve repouso. Tinha o espírito perturbado, e foi somen­te quando a alvorada se insinuou no quarto, espectral e si­lenciosa, que ele adormeceu.

 

Bateman acabara de fazer a Isabel a sua longa narração. Nada lhe tinha ocultado, salvo o que julgava ofensivo para ela ou o que o tornaria ridículo. Não lhe disse que fora obri­gado a jantar com uma grinalda de flores na cabeça, e que Eduardo estava pronto a casar com a filha mestiça de seu tio assim que ela desfizesse o noivado. Mas a intuição de Isabel devia ser mais profunda do que ele supunha, pois à medida que Bateman falava, os olhos dela se tornavam mais frios, e os seus lábios se apertavam com mais força. De vez em quando o examinava atentamente, e se ele não estivesse tão absorto na narrativa, ter-se-ia admirado da sua expressão.

— Que aspecto tinha essa rapariga? — perguntou ela ao cabo. — A filha do tio Arnold. Havia alguma parecença en­tre ela e mim?

A pergunta surpreendeu Bateman.

É coisa que não me ocorreu. Você sabe, Isabel, que eu só tenho olhos para você, e nunca acharia ninguém pa­recido com você. Quem se lhe podia parecer?

Ela era bonita? indagou Isabel, sorrindo de leve a estas palavras.

Creio que era. Imagino que muitos homens a achariam belíssima.

Bem, isso não tem importância. Não é preciso preocuparmo-nos mais com ela.

Que é que você vai fazer, Isabel? perguntou ele então.

Isabel baixou os olhos para a mão que ainda trazia o anel de noivado.

         Eu não queria que Eduardo quebrasse o nosso compromisso, porque achava que isso lhe seria um incentivo. Que­ria ser a sua inspiração. Pensava que, se havia alguma coisa capaz de levá-lo ao êxito, seria o pensamento de que eu o amava. Fiz o que estava em mim. É um caso sem remé­dio. Negar-me a reconhecer os fatos seria apenas fraqueza da minha parte. O pobre Eduardo só prejudica a si mesmo. Era um rapaz correto, estimável, mas faltava-lhe alguma coisa. Creio que era energia. Espero que ele seja feliz.

Tirou o anel do dedo e pô-lo em cima da mesa. Bateman observava-a, com o coração a pulsar tão forte que ele mal podia respirar.

Você é admirável, Isabel. Simplesmente admirável.

Ela sorriu, levantou-se e estendeu-lhe a mão.

Como lhe poderei agradecer tudo que você tem feito por mim? Prestou-me um grande serviço. Eu sabia que po­dia confiar em você.

Ele reteve-lhe a mão nas suas.

         Oh, Isabel, por você eu faria ainda muito mais. Sabe que tudo que eu quero é a permissão de amá-la e servi-la.

Como você é forte, Bateman! suspirou ela. Te­nho junto de si um sentimento de confiança tão deliciosa!

Isabel, eu te adoro.

Ele não sabia como lhe viera esta inspiração. Subitamente, apertou-a nos braços. Ela, sem resistir, olhava-o, sorrindo.

         Tu sabes, Isabel, que eu desejei casar contigo desde o primeiro dia em que te vi — exclamou ele apaixonadamente.   

         Então por que não me pediste? — replicou ela.

Amava-o. Ele mal podia acreditar nisso. Isabel estendeu-lhe os seus adoráveis lábios para beijar. E enquanto a se­gurava nos braços, ele teve a visão da Companhia de Tra­tores e Automóveis Hunter crescendo em tamanho e impor­tância até cobrir cem jeiras de terra, dos milhões de mo­tores que ela iria produzir, e da grande coleção de qua­dros que ele juntaria, sobrepujando as maiores de Nova York. Usaria óculos de tartaruga. E ela, sentindo em torno de si a deliciosa pressão dos seus braços, sorria de felicidade, pen­sando na soberba casa que teria, cheia de móveis antigos, nos concertos que daria, nos chás dançantes, nos jantares aos quais só viria a gente mais culta. Bateman usaria óculos de tartaruga.

-— Pobre Eduardo — suspirou ela.

 

O Poço

Quando fui apresentado a Lawson por Chaplin, o dono do Hotel Metrópole em Ápia, não lhe prestei grande atenção. Estávamos sentados na varanda, diante de um coquetel matinal, e eu ouvia, divertido, as bisbilhotices da ilha.

Chaplin procurava distrair-me. Era de profissão engenhei­ro de minas, e talvez fosse um indício revelador da sua ín­dole o fato de se haver estabelecido num lugar em que as suas aptidões profissionais não tinham a menor aplicação possível. Era, todavia, tido geralmente por um engenheiro de extraordinária competência. Homem pequeno, nem gor­do nem magro, de cabelos pretos, raros na coroa da cabeça, e um bigodinho mal tratado, tinha o rosto muito vermelho, tanto por efeito do sol como da bebida. Ele era apenas uma figura ornamental, pois o hotel, que apesar do seu nome pomposo não passava de um chalé com dois andares, era administrado por sua esposa, australiana alta e descarnada de quarenta e cinco anos, aspecto imponente e ar resoluto. O excitável homenzinho, que freqüentemente se embriagava, tinha-lhe terror, e os forasteiros não tardavam a saber das rixas em que ela empregava punhos e pés a fim de o man­ter em sujeição. Após uma noite de bebedeira, guardava-o vinte e quatro horas preso no seu quarto, e nessas ocasiões Chaplin era visto, receoso de deixar a sua prisão, falando de modo tocante da sua sacada às pessoas que passavam na rua.

Ele era um original, e as suas reminiscências de uma vida variada, verdadeiras ou falsas, tornavam interessante a sua conversa. Por isso, quando apareceu Lawson eu não gostei muito da interrupção. Conquanto ainda não fosse meio-dia, era visível que ele tinha bebido bastante, e foi sem entusias­mo que eu cedi à sua insistência, aceitando mais um coque­tel que ele me oferecia. Já sabia que Chaplin tinha a ca­beça fraca. A próxima rodada, que eu tinha de pagar por dever de civilidade, seria bastante para pô-lo alegre, e me valeria uns olhares carrancudos da parte de Mrs. Chaplin.

Aliás, não havia nada de atraente no exterior de Lawson. Era um homenzinho magro, de rosto comprido e descarna­do, queixo fraco, nariz proeminente, largo e ossudo, e bas­tas sobrancelhas pretas, que lhe davam uma aparência sin­gular. Os seus olhos, grandes e pretos, eram magníficos. Ele mostrava-se jovial, mas essa jovialidade não me parecia sincera. Ficava na superfície, uma máscara para enganar o mun­do, e suspeitei que ela escondesse uma natureza baixa. O homem almejava evidentemente passar por um "bom companheiro"; mas, sem saber por que, eu o pressentia astuto e furtivo. Ele falava muito, numa voz rouca, contando à porfia com Chaplin casos de pândegas que se tinham tor­nado lendárias, histórias de noites "molhadas" no Clube In­glês, de expedições de caça em que se consumiam quantida­des incríveis de uísque, e de passeios a Sidney, nos quais o orgulho deles consistia em não terem visto nada desde que puseram pé em terra até embarcarem. Um par de beberrões imundos. Mas, mesmo na embriaguez — pois agora, depois de quatro coquetéis, nenhum dos dois estava são — havia grande diferença entre Chaplin, grosseiro e vulgar, e Lawson: Lawson podia estar bêbedo, mas era sempre um cavalheiro.

Afinal ele se levantou um tanto frouxo das pernas.

— Bem, vou me chegando — disse. — Ainda nos vere­mos antes do jantar.

— A patroa vai bem? — perguntou Chaplin.

— Vai.

Ele saiu. Havia na sua resposta monossilábica uma ento­nação particular, que me fez erguer os olhos.

— Bom rapaz — disse Chaplin enquanto Lawson saía para a rua cheia de sol. — Dos melhores. É pena que ele beba.

Esta observação, feita por Chaplin, tinha o seu humoris­mo.

E quando se embebeda, quer brigar.     

Embebeda-se com freqüência?

De cair, duas ou três vezes por semana. A culpa é da ilha e de Ethel.

         Quem é Ethel?

         Ethel é a mulher dele. Lawson casou com uma mes­tiça. A filha do velho Brevald. Levou-a embora daqui, por­que não havia outro remédio. Mas ela não pôde agüentar as saudades, e agora voltaram. Ele se enforcará qualquer dia destes, se a bebida não der cabo dele antes. Bom sujeito, mas desagradável quando está bêbedo.

Chaplin arrotou alto.

Vou botar a cabeça debaixo do chuveiro. Eu não de­via tomar este último coquetel. É sempre o último que cabo da gente.

Olhou com incerteza a escada, enquanto se resolvia a subir para o cubículo em que ficava o chuveiro. Depois levan­tou-se, com extraordinária seriedade.

         Vale a pena fazer amizade com Lawson disse ele. Rapaz muito lido. O senhor vai se admirar quando o vir no seu juízo. Inteligente, também. Boa conversa.

Chaplin contara-me toda a história nestas poucas frases. Quando pela tardinha voltei de um passeio a cavalo pela praia, Lawson achava-se de novo no hotel. Estava derreado numa cadeira de vime da varanda, e fitou em mim uns olhos vidrados. Via-se que estivera bebendo a tarde, inteira. A expressão do seu rosto era tórpida e mal-humorada. O seu olhar pousou um instante na minha pessoa, mas percebi que êle não me reconhecia. Estavam sentados ali dois outros homens a jogar dados, sem se preocupar com êle. O seu es­tado era evidentemente muito habitual para atrair a aten­ção. Sentei-me e comecei a jogar.

         Que troça mais sociável! rosnou Lawson repentinamente. Levantou-se da cadeira e saiu a cambalear, de joe­lhos dobrados, na direção da porta. Não sei o que mais era aquele espetáculo: se ridículo ou revoltante. Depois de ele ter saído, um dos homens casquinou:

O Lawson está hoje como um cacho.

         Se eu não agüentasse melhor a bebida, preferia ficar em casa — disse o outro desdenhosamente.

Quem diria que este ente miserável era uma figura ro­mântica, ou que a sua vida continha esses elementos de pie­dade e de terror que os teóricos dizem ser os requisitos para compor uma tragédia?

Não o vi durante os dois ou três dias que se seguiram.

Achava-me uma tarde sentado na varanda do primeiro an­dar do hotel, a qual dominava a rua, quando Lawson subiu e deixou-se cair numa cadeira ao meu lado. Estava perfeitamente sóbrio. Fez uma observação qualquer, e, como eu respondesse com alguma indiferença, ajuntou com um riso de quem se desculpa:

         Eu estava com uma mona dos diabos o outro dia. Não respondi, mesmo porque nada tinha que responder.

Continuei tirando baforadas do meu cachimbo, na vã esperança de espantar os mosquitos, e observando os indígenas que voltavam do trabalho para casa. Caminhavam a passos largos, devagar, com cuidado e dignidade, e o som macio dos seus pés era estranho de se ouvir. As suas cabe­leiras pretas, crespas ou escorridas, mostravam-se muitas ve­zes brancas de cal, o que lhes dava um ar de distinção extraordinária. Eram altos e formosos. Depois passou cantando uma turma de jornaleiros das ilhas Salomão. Estes eram mais baixos e mais finos que os samoanos, negros como car­vão, com grandes cabeleiras encarapinhadas tintas de verme­lho. De vez em quando um branco passava no seu cabriole, ou entrava no pátio do hotel. No porto, duas ou três es­cunas refletiam o seu vulto gracioso na água tranqüila.

Não sei o que se pode fazer num lugar destes, a não ser empoleirar-se — disse Lawson, finalmente.

Não gosta de Samoa? — perguntei eu, para dizer al­guma coisa.

É bonito, não é?

A palavra pareceu-me tão inadequada para descrever a inefável beleza da ilha que eu sorri, voltando-me para observá-lo. Fiquei admirado com a expressão daqueles olhos som­brios e inteligentes, uma expressão de angústia intolerável. Eles traíam uma trágica profundeza de emoção, de que eu não o julgava capaz. Mas isto passou logo, e êle sorriu. O sorriso era simples e um pouco ingênuo. Transformava-lhe o semblante, de modo a abalar o meu anterior sentimento de aversão por ele.

         Eu percorri toda a ilha no começo da minha estada aqui disse ele. E ficou um momento calado. Depois, he­sitando: Há três anos fui embora, mas tive de voltar, Foi minha mulher que quis. Ela é daqui, como o senhor deve saber.

         Oh, sim.

Ele silenciou de novo, depois fêz uma observação sobre Robert Louis Stevenson. Perguntou-me se eu estivera em Vailima. Estava, não sei por que, esforçando-se para me ser agradável. Pôs-se a falar nos livros de Stevenson, e daí a pouco a conversa passava a revolutear em torno de Londres.

         Imagino que o Covent Garden continua esplêndido disse ele. Uma das coisas de que mais sinto falta aqui é a ópera. O senhor viu Tristão e Isolda?

Fez-me esta pergunta como se a resposta tivesse real importância para ele, e quando eu disse que sim, com certa indiferença, ele pareceu agradado. Começou a falar em Wagner, não como conhecedor de música mas como um homem simples que não sabia analisar a satisfação emocional pro­porcionada pelo mestre.

         Acho que o que se devia fazer era ir a Bayreuth disse ele. Infelizmente sempre me faltou o dinheiro. Mas há coisas piores que o Covent Garden, com as luzes, as mu­lheres vestidas a matar, e a música. O primeiro ato das Walkyrias é lindo, não é? E o final do Tristão. Oh lá lá!

Os seus olhos cintilavam agora, e o rosto se lhe iluminara de tal modo que ele nem parecia o mesmo. As suas faces magras e pálidas ganharam côr, e eu esqueci que a sua voz era áspera e desagradável. O homem tinha até um certo en­canto.

         Caramba, eu gostaria de estar em Londres esta noite. Conhece aquele restaurante de Pall-Mall? Ia lá seguido. E o Piccadilly Circus, com as lojas todas iluminadas, e a mul­tidão? Acho estupendo ficar parado ali, a observar o trân­sito interminável dos ônibus e dos táxis, que parecem que não param nunca. Gosto do Strand também. Como são aque­les versos sobre Deus e Charing-Cross? Fiquei surpreendido.

         Refere-se aos de Thompson? — perguntei. E citei-os:

E assim, quando a tristeza te amargar, Chora, e hás de esquecer a perda atroz Vendo os anjos na escada a transitar De Jacob, entre o Céu e Charing-Cross.

Ele soltou um breve suspiro.

Li o Masfíra do Céu. É magnífico.

É a opinião geral — murmurei.

         Aqui não se encontra ninguém que leia. Acham que isso é pedantismo.

Havia ansiedade no seu olhar, e julguei adivinhar qual era o sentimento que o tinha levado a procurar-me. Eu era o mensageiro de um mundo perdido para ele, de uma vida que não tornaria a conhecer. Olhava-me com respeito e in­veja, porque eu chegava da Londres que ele amava. Não fazia talvez cinco minutos que conversávamos quando ele desabafou, em palavras que me surpreenderam pela sua in­tensidade.

         Estou farto disto. Farto!

         Então por que não vai embora? — perguntei. O seu rosto tomou uma expressão soturna.

         Tenho os pulmões combalidos. Não posso mais agüen­tar o inverno da Inglaterra.

Neste momento um outro homem veio nos fazer compa­nhia na varanda, e Lawson mergulhou num silêncio sorum­bático.

         Está na hora de tomar um gole — disse o recém-che­gado. — Quem me acompanha num scotch? Lawson?

Lawson pareceu arrancado a um mundo distante. Levan­tou-se.

         Vamos descer — disse ele.

Quando nos separamos, a minha disposição para com ele era mais benévola do que eu o teria esperado. Ele me in­trigava e me interessava. Poucos dias depois vim a conhe­cer sua esposa. Eu sabia que os dois estavam casados havia cinco ou seis anos, e admirei-me por ver uma mulher ainda extremamente jovem. Não podia contar mais de dezesseis anos quando casaram. Era deliciosamente linda, sem ser mais trigueira que uma espanhola, pequena e de formas belíssi­mas, mãos e pés minúsculos, o todo esbelto e flexível. Suas feições eram adoráveis. Mas o que mais impressionou foi o seu aspecto delicado. Os mestiços, geralmente são de feitio um tanto vulgar e tosco. Ela, porém, tinha uma mimosa ele­gância que enlevava, qualquer coisa de extremamente civi­lizado, causando espanto encontrá-la naquele ambiente. Fa­zia pensar naquelas beldades famosas que, na Corte do Impe­rador Napoleão III, foram o centro de todas as conversas. Embora usasse apenas um vestido de musselina e um cha­péu de palha, usava-os com uma distinção que revelava a mulher da moda. Devia ser arrebatadora quando Lawson a encontrou pela primeira vez.

Ele chegara não havia muito da Inglaterra para gerir a agência local de um banco inglês, e, alcançando Samoa no início da estação seca, tomara um quarto no hotel. Depressa veio a conhecer toda a gente ali. A vida na ilha era fácil e aprazível. Ele apreciava as longas palestras no salão do ho­tel e as alegres noitadas no Clube Inglês, onde se reunia um grupo para jogar pool. Gostava de Ápia, espalhada à beira da laguna com os seus armazéns e bangalôs e a sua aldeia indígena. Havia além disso as férias de fim de se­mana, quando êle ia a cavalo à casa de algum plantador, pas­sando as duas noites na serra. Era a primeira vez que co­nhecia o descanso e a liberdade. O sol inebriava-o. A be­leza das matas por que passava fazia-lhe andar à roda a cabeça. A terra era prodigiosamente fértil. A floresta per­manecia virgem em partes, um emaranhado de estranhas ár­vores, arbustos e trepadeiras. Davam uma impressão miste­riosa e perturbadora.

Porém o que mais o extasiava era um sítio, a uma ou duas milhas de Ápia, onde seguidamente ia tomar banho à tardinha. Havia ali um rápido ribeiro que cantava nas pe­dras, e, após formar um poço profundo, corria cristalino e raso num vau de grandes lajes onde os indígenas vinham às vezes tomar banho ou lavar roupa. Os coqueiros, com a sua fútil faceirice, eram numerosos nas margens, cobertos de trepadeiras, espelhando-se na água verde. Era um cenário semelhante aos que se encontram entre as colinas do Devonshire, mas com a diferença da riqueza tropical, da volúpia, do perfume langoroso que parece dissolver as fibras do co­ração. A água era fresca mas não fria, deliciosa após a cal­ma diurna. Banhar-se ali não só refrescava o corpo mas a alma também.

A hora em que Lawson ia lá, não se encontrava alma viva. Ele demorava-se muito, ora boiando à flor das águas, ora secando-se ao sol da tarde, gozando a solidão e o silêncio amigo. Naquele tempo não tinha saudades de Londres nem da vida que abandonara, pois a existência na ilha parecia completa, deliciosa.

Foi ali que ele viu Ethel pela primeira vez.

Ocupado fora de horas por umas cartas que deviam se­guir no outro dia pelo paquete mensal, foi com a luz já morrendo que ele desceu naquela tarde ao poço. Amarrou o cavalo e caminhou para a margem. Estava sentada ali uma rapariga. Ela voltou os olhos ao ruído dos seus passos e meteu-se na água silenciosamente. Sumiu-se como uma náiade surpreendida pela aproximação de um mortal. Ele achou graça. Quis saber onde ela se havia escondido. Saiu a na­dar corrente abaixo, e daí a pouco avistou-a sentada numa pedra. A rapariga pousou nele uns olhos tranqüilos. Lawson gritou uma saudação em língua samoana.

Talola.

Ela respondeu, sorrindo repentinamente, e tornou a entrar na água. Nadava agilmente, com a cabeleira espalhada atrás. Lawson observou-a enquanto atravessava o poço e escalava a outra margem. Como todas as indígenas, tomava banho metida numa Mother Hubbard, que a água modelava no seu corpo esbelto. Ela torceu o cabelo. Naquela postura, cheia de indiferença, parecia-se mais que nunca com uma cria­tura selvagem das águas e dos bosques. Lawson notou en­tão que era uma mestiça. Nadou na sua direção, e, saindo da água, falou-lhe em inglês.

         A senhora banha-se tarde.

Ela sacudiu o cabelo para trás, fazendo-o cair em anéis (luxuriantes sobre as suas espáduas.

Gosto quando estou só respondeu.

Eu também.

Ela riu-se, com a franqueza infantil dos indígenas. En­fiou uma Molher Hubbarã seca por cima da cabeça e tirou a molhada por baixo. Tendo-a torcido, hesitou um pouco e depois afastou-se devagar. Subitamente, fêz-se noite.

Lawson tornou ao hotel, e, descrevendo-a aos homens que estavam no salão a jogar dados por bebidas, logo ficou sabendo quem era ela. Seu pai era um norueguês chamado Brevald, visto com freqüência no hotel, onde vinha tomar rum com água. Era um velhote baixo, nodoso como uma árvore antiga, que viera para as ilhas quarenta anos atrás como imediato de um veleiro. Fora ferreiro, negociante, plantador, e chegara a conhecer a abastança. Mas, arruinado pelo grande furacão de 1890, não possuía agora mais que uma pequena plantação de coqueiros. Tivera quatro esposas indígenas, e, como dizia às pessoas, com um riso que soava a rachado, tantos filhos que nem lhes sabia a conta. Mas alguns estavam mortos e outros andavam pelo mundo, de modo que agora só lhe restava Ethel em casa.

É um pedaço disse Nelson, o escrivão do Moana. Eu já dei em cima, mas parece que é tempo perdido.

O velho Brevald não é assim tão tolo, meu rapaz acudiu um outro, chamado Miller. Êle quer um genro que seja capaz de sustentá-lo confortavelmente o resto da sua vida.

Lawson não gostou de os ouvir falar neste tom a respeito da rapariga. Disse qualquer coisa sobre o navio que estava por partir, distraindo-lhes assim a atenção. Mas na tarde se­guinte voltou ao poço. Ethel estava lá. E o mistério do cre­púsculo, o silêncio profundo da água, a graça esbelta dos coqueiros, acresciam à sua beleza, emprestando-lhe uma sig­nificação profunda, um sortilégio que despertava no cora­ção emoções desconhecidas. Desta vez ele teve o capricho de não lhe falar. A rapariga não lhe fêz caso. Nem sequer olhou para o seu lado. Nadava para cá e para lá no poço verde. Mergulhava, descansava na ribanceira, como se esti­vesse completamente só. Ele tinha a singular sensação de ser invisível. Fragmentos de poesias, semi-olvidados, flutua­vam-lhe na memória, de parceria com vagas reminiscências da Grécia Antiga, que ele, com negligência, estudara na es­cola. Quando a rapariga foi embora, depois de ter trocado a sua roupa molhada por outra seca, Lawson encontrou um hibisco escarlate no lugar onde ela estivera. Tinha trazido a flor no cabelo ao vir para o banho, e, tirando-a para en­trar na água, esquecera-se ou desdenhara de a pôr novamen­te. Ele agarrou-a e pôs-se a olhá-la, presa de singular emo­ção. Tinha vontade de guardá-la, mas, irritado com o seu sentimentalismo, jogou-a fora. Foi com verdadeira angústia que a viu derivar corrente abaixo.

Quisera compreender essa estranha propensão da sua natureza, que a fazia procurar este lugar escondido, numa hora em que não havia probabilidade de encontrar ninguém ali. Os nativos da ilha são devotos da água. Banham-se, aqui ou acolá, uma vez por dia sempre, e muitas vezes duas. Mas fa­zem-no aos bandos, alegres e bulhentos, famílias inteiras juntas. E amiúde se viam grupos de raparigas, salpicadas dos raios do sol que passavam entre a folhagem, chapinhan­do em companhia dos mestiços nos rasos da corrente. Era como se este poço tivesse um segredo que atraía Ethel con­tra a sua vontade.

A noite já tinha caído, silente e misteriosa. Ele penetrou docemente na água, para não fazer ruído, e pôs-se a na­dar com indolência na tépida obscuridade. A água parecia guardar ainda o aroma do seu corpo esbelto. Ele voltou para a cidade debaixo da cintilação das estrelas. Sentia-se con­tente com o mundo.

Começou a ir ao poço todos os dias ao cair da tarde, e todos os dias encontrava Ethel. Em breve tinha vencido a sua timidez. Ela tornou-se amigável e folgazã. Os dois sen­tavam-se juntos nas rochas que havia a montante do poço, onde as águas corriam rápidas, ou estendiam-se lado a lado na plataforma sobranceira a ele, vendo o crepúsculo aden­sar-se e envolvê-lo de mistério. Era inevitável que estes en­contros se tornassem conhecidos (nos mares do Sul a vida de cada um parece não ter mistério para ninguém) e ele viu-se alvo de muita chalaça no hotel. Mas sorria e deixa­va-os falar. Nem valia a pena dar-se ao trabalho de contes­tar aquelas grosseiras insinuações. Seu sentimento era abso­lutamente puro. Amava Ethel como o poeta ama a lua. Não via nela uma mulher, mas qualquer coisa de extraordinário. Ela era o espírito do poço.

Certo dia, passando pela porta do bar do hotel, avistou lá dentro o velho Brevald, metido como sempre na sua esfarrapada roupa de algodão. Por ser o pai de Ethel, Lawson teve vontade de falar com ele. Entrou, fez uma inclinação de cabeça, pediu uma bebida, e, dirigindo como que casual­mente a palavra ao velho, convidou-o para beber com ele. Palestraram alguns minutos sobre os assuntos sociais. Lawson notava, embaraçado, que o norueguês o estava examinando com uns olhos matreiros. As suas maneiras não eram agradáveis. Eram sonsas. E todavia, atrás daquele servilismo de um velho alquebrado pela luta com o destino, entremostrava-se uma sombra de antiga ferocidade. Lawson lembra­va-se que êle fora capitão de uma escuna negreira, e tinha uma larga hérnia no peito, conseqüência de um golpe rece­bido em certa refrega com os indígenas das ilhas Salomão. A sineta soou para o almoço.

Bem, tenho de ir disse Lawson.

Por que não aparece um dia lá em casa? perguntou Brevald com a sua voz asmática. Não é lá muito luxuoso, mas o senhor será bem tratado. Já conhece Ethel.

Irei, com prazer.

No domingo de tarde é a melhor ocasião.

O bangalô de Brevald, pobre e mal tratado, ficava entre os coqueiros da plantação, um pouco apartado da estrada real que conduzia a Vailima. Cercavam-no, logo ao redor, enormes bananeiras. Com as suas folhas despedaçadas, ti­nham elas a beleza trágica de uma formosa mulher vestida de farrapos. Tudo ali denotava o desleixo. Leitõezinhos pre­tos, magros e de espinhaço saliente fossavam a terra. Gali­nhas cacarejavam ruidosamente, debicando o lixo espalhado por toda parte. Três ou quatro indígenas preguiçavam na varanda. Quando Lawson perguntou por Brevald, respondeu­lhe a voz rachada do norueguês, e ele foi encontrá-lo na sala, a fumar um velho cachimbo de espinheiro.

         Sente-se, e faça de conta que está na sua casa — disse ele. — Ethel está se enfaceirando.

Ela entrou. Usava saia e blusa, e trazia o cabelo penteado à européia. Embora não tivesse a graça selvagem e tímida da rapariga que ele via todas as tardes no ribeiro, parecia agora mais convencional, e por conseguinte mais acessível. Apertou a mão de Lawson. Era a primeira vez que ele lhe tocava a mão.

         Espero que o senhor fique para tomar uma taça de chá conosco — disse ela.

Lawson sabia que a jovem estivera numa escola de missionários. Achou graça, e ficou ao mesmo tempo comovido pelos ares de cerimônia que ela revestira em atenção a ele. A mesa já estava posta para o chá; e daí a um minuto entrava a quarta mulher de Brevald com o bule. Era uma indígena bonita, já não muito moça, e poucas palavras sa­bia de inglês. Sorria sem cessar. A colação foi um tanto solene, com abundância de pão e manteiga e uma grande variedade de bolinhos doces. A conversa era cerimoniosa. Depois entrou suavemente uma velha encarquilhada.

         Essa é a avó de Ethel — disse Brevald, escarrando com ruído no chão.

Ela sentou-se desconfortavelmente na borda de uma ca­deira. Via-se que não estava costumada àquilo, e que se acharia mais à vontade no chão. Ficou considerando silen­ciosamente Lawson, com os olhos fitos e brilhantes. Na co­zinha, atrás do bangalô, alguém começou a tocar uma concertina, e duas ou três vozes entoaram um hino. Mas eles cantavam mais pelo prazer do canto que por devoção.

Ao voltar para o hotel naquela tarde, sentia-se Lawson singularmente feliz. Tocava-o aquele modo descuidado de viver. E na risonha bonomia de Mrs. Brevald, no passado fantástico do pequeno norueguês, nos olhos brilhantes e misteriosos da avó, achava ele qualquer coisa de raro e fascinante. Era uma vida mais natural que a sua, mais próxima da terra amorável e fértil. Repugnava-lhe naquele momento a civilização, e pelo simples contato com essas criaturas de natureza mais primitiva, êle sentia uma liberdade maior.

Antevia-se deixando o hotel, que já começava a enfadá-lo, instalado num bangalô seu, branco e garrido, à beira-mar para que eles pudessem ter sempre diante dos olhos a cam­biante policromia da laguna. Amava a linda ilha. Londres e a Inglaterra já não significavam nada para ele. Passaria satisfeito o resto dos seus dias naquele recanto esquecido, mas rico do que o mundo tem de mais precioso: o amor e a felicidade. Tomou a resolução de casar com Ethel, fossem quais fossem os obstáculos.

Mas não houve obstáculos. Ele era sempre bem recebido em casa dos Brevald. O velho mostrava-se amável, e Mrs. Brevald sorria continuamente. Lawson avistava por vezes al­guns indígenas que pareciam ser de casa. De uma feita en­controu um jovem alto, de lava-lava, com o corpo tatuado e o cabelo branco de cal. Estava sentado em companhia de Brevald, e este lhe disse que era um sobrinho seu. Mas em geral essa gente se mantinha à distância. Ethel mostrava-se deliciosa para com ele. O brilho dos seus olhos, quando o via, transportava-o de êxtase. Era ingênua e encantadora. Ele ouvia embevecido as suas recordações da escola da missão em que fora educada, e das irmãs. Levava-a ao cinema, que dava espetáculos quinzenalmente, e dançava com ela no baile que se seguia. Nessas ocasiões vinha gente de todos os can­tos da ilha, pois as festas em Upolu são raras. Acotovelava-se ali toda a sociedade da terra, as senhoras brancas fazen­do grupo à parte, os mestiços muito elegantes em traje ame­ricano, e os indígenas, fieiras de raparigas escuras vestidas de branco e de moços pouco à vontade nas suas desacostu­madas fatiotas de brim e sapatos brancos. Tudo muito ale­gre e vistoso. Ethel tinha prazer em mostrar às suas amigas o admirador branco que não lhe saía do lado. Não tardou a se espalhar o rumor de que Lawson queria casar com ela, e as suas amiguinhas começaram a olhá-la com inveja. Para uma mestiça era glória casar com um homem, branco, e mes­mo as relações irregulares eram preferidas. Mas nunca se podia prever quais seriam as conseqüências. A posição de gerente de banco fazia de Lawson um dos bons partidos da ilha. Se não andasse tão embebido em Ethel, teria notado que muitos olhos se fixavam nele com curiosidade, teria visto as miradas e os cochichos das senhoras brancas. Um dia, estando os hóspedes do hotel sentados a tomar uísque antes de se recolherem, Nelson pôs o assunto em cartaz:

         Olha, dizem que Lawson vai casar com aquela pe­quena.

         Então ele é um imbecil de conta — disse Miller.

Miller era um germano-americano que assim havia nacionalizado o seu nome de Müller. Enorme, gordo e calvo, ti­nha uma cara redonda e escanhoada. Usava grandes óculos de aros de ouro que lhe davam um ar de benignidade, e trazia invariavelmente limpa e alva a sua fatiota de brim. Forte bebedor, estava sempre disposto a passar a noite in­teira em companhia dos "rapazes". Porém nunca se embria­gava. Era jovial e afável, mas muito astuto. Os negócios fi­cavam acima de tudo: ele representava uma firma de São Francisco, fornecedora dos artigos procurados na ilha, fa­zendas, máquinas e tudo mais. E a sua cordialidade fazia parte do estoque da casa.

Ele não sabe no que vai se meter — disse Nelson. — Alguém devia preveni-lo.

Se você quer um conselho, não se meta no que não lhe diz respeito — atalhou Miller. — Quando um homem está decidido a fazer uma tolice, o melhor é deixá-lo.

Eu sou amigo de me divertir com as pequenas daqui, mas quando se trata de casar... comigo não!

Chaplin, que estava presente, deu o seu parecer:

— Tenho visto muita gente fazer isso. Não dá certo.

         Tu é que devias falar-lhe, Chaplin. És tu quem tem mais intimidade com ele aqui.

— O conselho que dou a Chaplin é de o deixar fazer o que bem entender — contraveio Miller.

Já naquele tempo, Lawson não gozava de muita popula­ridade, e ninguém se preocupou realmente com aquilo. Mrs. Chaplin discutiu o assunto com duas ou três damas, mas estas limitaram-se a dizer que "era uma pena". E quando ele lhe participou a sua resolução definitiva de casar, pare­ceu-lhe tarde demais para impedi-lo.

Lawson foi feliz durante um ano. Tomara um bangalô na ponta de baía de Ápia, à entrada de uma aldeia indígena. A vivenda ficava encantadoramente aninhada entre coquei­ros, olhando o azul intenso do Pacífico. Ethel era adorável quando tratava da casa, ágil e graciosa como um jovem ani­mal dos bosques. Era alegre também. Os dois riam muito, conversando tolices. Às vezes vinha visitá-los de noite um ou outro hóspede do hotel, e amiúde eles iam passar o do­mingo em casa de algum plantador casado com mulher in­dígena. De quando em quando um dos mercadores mestiços que tinham armazém em Ápia dava uma festa, e eles iam. Os mestiços tratavam Lawson de modo bem diverso agora. O seu casamento fizera-o passar para o número deles. Cha­mavam-no pelo apelido de Bertie. Andavam de braço com ele e davam-lhe palmadas nas costas. Ele gostava de ver Ethel nessas reuniões, risonha, de olhos brilhantes. O espe­táculo da sua radiante felicidade fazia-lhe bem. Seguidamen­te vinham os parentes dela ao bangalô — o velho Brevald e sua mulher, como era natural; mas apareciam primos tam­bém, vagas mulheres indígenas metidas em Mother Hubbarãs, homens e rapazes de lava-lava, com os cabelos tingidos de vermelho e os corpos cobertos de tatuagens complicadas. Ele os encontrava, ao voltar do banco, sentados na sala de jan­tar. Ria-se com indulgência.

— Não deixes que eles nos comam a casa toda — dizia.

— É a minha família. Não posso negar-lhes o que me pedem.

Lawson sabia que quando um homem branco casa com uma indígena ou uma mestiça, é considerado pelos paren­tes dela como uma mina de ouro. Tomou nas mãos o rosto de Ethel e beijou os seus lábios vermelhos. Talvez ela não alcançasse a compreender que o seu salário, folgado para um homem solteiro, devia ser manejado com economia agora que supria o sustento de uma esposa e as despesas da casa. Depois Ethel deu à luz um filho.

Ao agarrar pela primeira vez a criança nos braços, ele sentiu um aperto no coração. Não esperava que ela saísse tão escura. Afinal de contas, tinha apenas uma quarta parte de sangue indígena nas veias, e não havia razão para não ser igualzinha a um baby inglês. Mas a criança, encolhida nos seus braços, amarelada, a cabeça já coberta de cabelos pretos, com uns olhos enormes e pretos também, era uma perfeita criança indígena.

Desde o seu casamento, as senhoras brancas da ilha não o conheciam mais. Quando se encontrava com homens em cujas casas costumara jantar em solteiro, eles se mostravam contrafeitos. E procuravam encobrir o seu embaraço com uma cordialidade exagerada.

— Mrs. Lawson vai bem? Você é que teve sorte. Uma belezinha de moça!

Mas se estavam com as suas esposas ao encontrarem Law­son e Ethel, sentiam-se mal à vontade vendo-as fazer a Ethel um aceno de cabeça superior. Lawson ria-se.

— É um pessoal chato como ele só — dizia. — Lá por não me convidarem para suas festas idiotas é que não vou perder o sono.

Mas agora, isto o aborrecia um pouco. O bebezinho es­curo erguia o rosto para ele. Este era o seu filho. Pensou nas crianças mestiças de Ápia. Eram pálidas, doentias, e duma odiosa precocidade. Ele as tinha visto no paquete, a caminho da escola na Nova Zelândia. Era-se obrigado a es­colher uma escola especial, que aceitasse crianças com san­gue indígena. Eles achegavam-se uns aos outros, impuden­tes e tímidos ao mesmo tempo, com certas características que os apartavam estranhamente dos brancos. Falavam entre si no idioma nativo. E quando cresciam, os homens aceitavam salários inferiores por causa do seu sangue indígena. As raparigas podiam casar com um branco, mas os varões não tinham essa sorte. Força lhes era escolher uma mestiça como eles, ou bem uma indígena. Lawson tomou a veemente re­solução de subtrair seu filho às humilhações de uma vida semelhante. Tinha de voltar para a Europa, a todo custo. E quando ele entrou no quarto para ver Ethel, adoravelmente frágil no leito, a sua decisão afirmou-se ainda mais. Lá na Escócia, no meio da sua gente, ela lhe pertenceria mais completamente. Amava-a com paixão. Queria que ela for­masse com ele uma só alma e um só corpo. E compreendia que aqui, com as raízes profundas que a prendiam à vida dos nativos, haveria sempre um obstáculo a essa união per­feita.

Meteu mãos à obra, em silêncio, levado por um obscuro instinto que lhe recomendava segredo. Escreveu a um pri­mo, sócio de uma firma de armadores em Aberdeen, dizendo que o seu estado de saúde (por cuja causa, como tantos outros, tinha Lawson vindo para as ilhas) se achava tão melhora­do que não havia razão para ele continuar afastado da Eu­ropa. Pediu-lhe que empregasse toda a sua influência para lhe conseguir um emprego, embora humilde, na região do Dee, onde o clima é particularmente favorável aos doentes dos pulmões. As cartas levam cinco ou seis semanas para virem de Aberdeen a Samoa, e foi-lhes necessário trocar di­versas. Tinha tempo de sobra para preparar o espírito de Ethel. Ela ficou radiante como uma criança. Lawson achou graça no modo com que ela alardeava diante das amigas a sua próxima partida para a Inglaterra. Isto seria subir mais um degrau. Lá, ela seria uma perfeita inglesa. A expecta­tiva da partida a punha fremente de excitação. E quando chegou finalmente um cabograma oferecendo a Lawson um emprego de banco no Condado de Kincardine, Ethel não se teve em si de júbilo.

Finda a longa viagem, e instalados ambos na cidadezi­nha escocesa de ruas de granito, Lawson compreendeu o que era viver entre a sua própria gente. Considerou os três anos passados em Ápia como um exílio, e foi com um suspiro de alívio que retornou à existência que lhe parecia ser a única normal. Era uma delícia jogar dc novo o golfe, e pescar de verdade, não como no Pacífico, onde bastava atirar a li­nha e puxar peixe após peixe do mar fervilhante deles. Isto não tinha graça. Era agradável ler todos os dias um jornal com as notícias daquele dia, e encontrar homens e mulhe­res da sua raça, gente com quem se podia conversar. Era bom comer carne fresca, beber leite que não vinha em la­tas. Viviam aqui mais isolados que no Pacífico, e ele es­tava contente por ter Ethel toda para si. Após dois anos de casamento, amava-a com mais devoção do que nunca, mal podia estar longe dela, e o seu anseio por uma comunhão mais íntima fazia-se cada vez mais premente. Mas o estra­nho era que após a excitação da chegada, Ethel parecia to­mar menos interesse pela sua nova existência do que ele esperava. Não se afez ao ambiente. Mostrava uma certa le­targia. Quando o lindo outono se toldou e veio o inverno, ela queixou-se do frio. Passava metade da manhã na cama e o resto do dia estendida no sofá, às vezes lendo novelas, mas geralmente sem fazer nada. Tinha i um ar entanguido.

         Não te preocupes, querida — dizia Lawson. — Logo te acostumarás. Espera só pelo verão. Chega a fazer quase tanto calor como em Ápia.

Ele sentia-se melhor e mais forte do que nunca.

A negligência com que Ethel cuidava da casa não tinha importância em Samoa, mas aqui era descabida. Ele não queria que as visitas tivessem uma impressão de desmazelo. E, rindo, caçoando um pouco dela, punha a casa em ordem. Ethel o observava indolentemente. Passava longas horas brincando com o seu filho. Falava-lhe na linguagem das crian­ças da sua terra. A fim de a distrair, Lawson empenhou-se em fazer amigos na vizinhança, e de vez em quando iam a pequenas reuniões, em que as senhoras cantavam baladas de salão e os homens irradiavam a sua silenciosa bonomia. Ethel mostrava-se tímida. Parecia retrair-se. Às vezes Law­son, tomado de súbita ansiedade, perguntava-lhe se era feliz.

         Sim, absolutamente feliz — respondia ela.

Mas velava-lhe os olhos algum pensamento, que ele não podia adivinhar. Ethel parecia recolher-se consigo mesma, e ele não a conhecia melhor do que naquela tarde em que a encontrara pela primeira vez, banhando-se no poço. Sen­tia com inquietude que ela lhe ocultava qualquer coisa. Co­mo a adorava, isto era para ele uma tortura.

Não tens saudade de Ápia, hem? — perguntou-lhe certa vez.

         Oh! não... gosto muito daqui.

Um obscuro pressentimento levou-o a fazer observações desdenhosas sobre a ilha e o seu povo. Ela sorria, sem responder. De raro em raro recebia de Samoa um maço de cartas. Nessas ocasiões guardava durante um dia ou dois um semblante pálido e imóvel.

Nada me faria voltar para lá disse Lawson de uma feita. Não é lugar para um homem branco.

Mas começou a perceber que Ethel chorava às vezes, na sua ausência. Em Ápia era loquaz, tagarelava com volubili­dade sobre os pormenores da sua vida comum, sobre as bisbilhotices da terra. Mas agora ia-se fazendo calada, e os esforços dele para diverti-la deixavam-na insensível; Parecia a Lawson que as suas recordações da vida passada a afas­tavam dele. Concebeu um ciúme insensato da ilha e do mar, do velho Brevald e de toda aquela gente escura de que se lembrava agora com horror. Era amargo e satírico quando falava em Samoa. Certa tarde de primavera já avançada, quando as bétulas começavam a enfolhar, ao voltar do golfe ele encontrou-a, não estendida no sofá como de costume, mas parada diante da janela. Via-se que estivera esperando a sua volta. Falou-lhe assim que êle entrou no aposento, e com espanto de Lawson fê-lo em samoano.

         Não posso suportar isto. Não posso continuar a viver aqui. Odeio esta terra. Odeio-a!

Pelo amor de Deus, fala numa língua civilizada disse êle com irritação.

Ela aproximou-se e cingiu-o com os braços desajeitada­mente, num gesto que tinha qualquer coisa de bárbaro.

Vamos embora daqui. Vamos para Samoa. Se me obri­gares a ficar eu morrerei. Quero ir para casa.

Subitamente cedeu à sua emoção e prorrompeu em pran­to. A cólera de Lawson desvaneceu-se, e êle sentou-a nos seus joelhos. Explicou-lhe que não podia largar o emprego, que afinal de contas era o seu pão. O seu lugar em Ápia havia muito tempo que fora preenchido. Se voltasse, não encontraria trabalho. Tentou arrazoar com ela, apontando-lhe os inconvenientes da vida em Samoa, as humilhações a que seriam expostos e as amarguras que curtiria o seu filho.

Nesses assuntos de educação a Escócia é admirável. Os colégios são bons e baratos. O rapaz poderá entrar para a Universidade de Aberdeen. Eu farei dele um verdadeiro escocês.

Tínham-lhe dado o nome de André. Lawson queria que ele fosse médico. Casaria com uma mulher branca.

Eu não me envergonho de ser mestiça — disse Ethel com mau modo.

Pois está claro, meu bem. Não há razão para se envergonhar.

O rosto suave dela encostado ao seu dava-lhe um senti­mento de incrível fraqueza.

         Não imaginas quanto te amo — disse ele. — Eu daria tudo para te poder dizer o que tenho no coração.

E procurou os seus lábios.

Veio o estio. O vale tornou-se verde e fragrante, e as urzes cobriram de alegria as colinas. Os dias de sol se sucediam naquele vale abrigado e era grato gozar a sombra das bétulas depois das ofuscações da estrada. Ethel não tornou a falar em Samoa e Lawson perdeu o seu nervosismo. Julgava-a conformada, e o seu amor por ela era tão grande que não podia deixar lugar para outro desejo no coração da jovem. Um dia o médico do lugar deteve-o na rua.

         Olhe, Lawson. A sua senhora deve ter cuidado com os seus banhos nos ribeiros da montanha. Você sabe que isto aqui não é como no Pacífico.

Lawson ficou surpreendido e não teve a presença de es­pírito de ocultar a sua surpresa.

         Eu não sabia disso. O doutor riu-se.

         Muita gente a tem visto. Dão à trela, você compreende, porque acham esquisito o local que ela escolheu: o poço acima da ponte. Os banhos são proibidos aqui, mas isso não tem importância. O que não sei é como ela agüenta a água fria.

Lawson conhecia o poço em questão, e subitamente lhe ocorreu que ele se parecia bastante com aquele poço em Upolu, em que Ethel tinha o costume de se banhar todos os dias. Uma clara torrente descia a montanha num curso sinuoso, entre rochas, murmurejando docemente, e depois for­mava um poço, fundo e espelhante, com uma pequena praia de areia. Densas árvores o sombreavam — não coqueiros, mas faias — e o sol se esgueirava por entre a folhagem para ir brincar na água cintilante. Ele sentiu um choque. Viu com a imaginação Ethel ir ali todos os dias, despir-se na margem, penetrar de mansinho na água fria, mais fria que a daquele poço da sua terra que ela amava, e por um momento sentir-se voltar ao passado. Ela se lhe afigurava mais uma vez o estranho e bravio espírito do regato, atraído pela água corrente. Naquela tarde, foi ao rio. Avançou cautelosamente entre as árvores. O caminho relvoso amortecia-lhe os pas­sos. Alcançou um sítio de onde podia avistar o poço. Ethel estava sentada na praia, completamente imóvel, olhando a água. Era como se a água a atraísse irresistivelmente. Ele quisera saber quais seriam os pensamentos estranhos que lhe passavam pela mente. Afinal ela se levantou, e durante um ou dois minutos esteve escondida dos seus olhos. De­pois tornou a vê-la, envergando uma Mother Hubbard. Ethel caminhou delicadamente com os seus pezinhos nus na mar­gem musgosa, e suavemente, sem ruído, entrou na água. Pôs-se a nadar tranqüilamente de um lado para outro. Havia no seu modo de nadar qualquer coisa que não era bem hu­mano. Ele não compreendia a estranha impressão que aquilo lhe causava. Esperou até vê-la sair. Ela se deteve um momen­to, com a roupa molhada pegada ao corpo, desenhando-lhe as formas, e depois, acariciando devagar os seios, soltou um pequeno suspiro de deleite. Então desapareceu. Lawson vol­tou para a aldeia. Sentia um amargor no coração, por com­preender que Ethel ainda era uma estranha para ele e o seu sedento amor estava destinado a ficar insatisfeito.

Não fez nenhuma menção do que tinha visto. Fingiu ignorar por completo o incidente. Mas olhava-a com curiosidade, tentando adivinhar o que ela pensava. Redobrou de ternura para com ela. Procurava, com a sua paixão, fazê-la esquecer aquele anseio profundo da sua alma.

Um dia, ao chegar em casa, espantou-se de não a encontrar.

Onde está Mrs. Lawson? — indagou da criada.

Foi a Aberdeen, meu senhor, com o menino — respon­deu a mulher, um tanto surpreendida com a pergunta. — E disse que só voltaria pelo último trem.

Ah, está bem.

Vexava-o o fato de Ethel não lhe haver falado nessa ex­cursão. Mas não se inquietou, pois ultimamente ela ia seguido a Aberdeen. Era-lhe uma boa distração visitar as lojas e ir talvez a um cinema. Foi esperar o último trem, e ao ver que ela não voltava tomou-se repentinamente de susto. Subiu ao quarto de dormir e viu logo que os seus objetos de toilette não estavam no lugar costumeiro. Abriu o guarda-roupa e as gavetas. Estavam meio vazios. Ela fugira.

Assaltou-o uma cólera violenta. Era muito tarde para telefonar aquela noite a Áberdeen e fazer averiguações, porém, êle já sabia de antemão qual seria o resultado destas. Com diabólica astúcia, Ethel escolhera a ocasião em que se estava procedendo ao balanço do banco, êle não podia segui-la, preso pelo seu trabalho. Lawson agarrou um jornal, e viu que na manhã seguinte partia um paquete para a Austrália. Ela devia andar perto de Londres a estas horas. Lawson não pôde conter os soluços que lhe irromperam dolorosamente do peito.

Tudo fiz por ela, e agora tem a coragem de me tratar assim. Que crueldade, que monstruosa crueldade!

Após dois dias de desespero, recebeu um bilhete de Ethel, escrito na sua letra de colegial. Ela sempre escrevera com dificuldade:

"Querido Bertie. Não pude agüentar mais. Vou para casa. Adeus.

Ethel."

 

Nem uma palavra de pesar. Ela nem sequer lhe pedia para vir também. Lawson ficou prostrado. Averiguou em que ponto o navio fazia a sua primeira escala, e embora sabendo muito bem que ela não o atenderia, passou um cabograma, suplicando-lhe que voltasse. Esperou, numa lamentável aflição. Queria que Ethel lhe mandasse ao menos uma palavra de amor: ela nem respondeu. Lawson passou por alternativas violentas. Em dado momento considerava-se feliz por se ter livrado dela, e logo de imediato pensava em negar-lhe dinheiro para forçá-la a voltar. Estava solitário e miserável. Sentia falta do seu filho e dela. Sabia que, por mais que dissimulasse consigo mesmo, só havia um partido a tomar, e era segui-la. Não lhe era mais possível viver sem ela. Todos os seus planos de futuro eram como um castelo de cartas, que ele demolia com irada impaciência. Não lhe importava abrir mão da sua carreira. Tudo lhe era indiferente, exceto ter Ethel de novo ao seu lado. Logo que pôde foi a Aberdeen, e disse ao gerente do banco que tencionava deixar o emprego imediatamente. O gerente fez objeções. Esta saída brusca não era conveniente. Lawson não lhe deu ouvidos. Estava de­cidido a desimpedir-se antes da partida do primeiro paquete. E só quando se viu a bordo, depois de haver vendido tudo quanto possuía, foi que ele recobrou alguma calma. Até então, parecera quase fora do seu juízo àqueles que tinham tratado com ele. O seu último ato na Inglaterra foi telegrafar a Ethel em Ápia, avisando-a da sua ida.

De Sidney mandou outro cabograma, e quando o seu va­por passou finalmente a barra de Ápia e ele tornou a ver o casario branco esparso ao longo da baía, Lawson sentiu um alívio imenso. Vieram a bordo o médico e o agente da com­panhia. Ambos eram velhos conhecidos, e foi-lhe grato re­ver os seus rostos familiares. Bebeu alguma coisa com eles, em memória dos velhos tempos, e também porque estava presa de um abominável nervosismo. Não sabia com certeza de que modo Ethel iria recebê-lo. Quando a lancha se aproximou do trapiche, escrutou ansiosamente a pequena multidão que esperava os passageiros. Ela não estava ali. Que angústia! Mas avistou Brevald, na sua velha roupa de zuarte, e recobrou alento.

Onde está Ethel? — perguntou, saltando em terra.

No bangalô. Está vivendo conosco.

Lawson ficou consternado, mas tratou de fazer cara alegre.

         Que tal, não têm lugar para mim também? Vamos precisar de uma semana ou duas para pormos casa.

         Oh sim, acho que te podemos arranjar um lugarzinho.

Depois de passar pela alfândega, eles foram ao hotel, onde Lawson foi saudado por diversos amigos de antanho. Não o deixaram ir embora sem diversas rodadas de uísque, e quando chegaram à casa de Brevald, estavam ambos um pouco alegres. Ele apertou Ethel nos braços. Esqueceu todas as suas amar­guras na alegria de tornar a vê-la. Sua sogra sentia prazer com a sua volta, do mesmo modo que a velha e encarqui­lhada avó de Ethel. Apareceram diversos indígenas e mestiços, que se sentaram em círculo, sorrindo radiantes para ele. Brevald tinha uma garrafa de uísque, e dava um trago a todos os que entravam. Lawson estava sentado com o seu escuro re­bento aos joelhos. Haviam-lhe tirado as suas roupas européias, e ele andava nu. Ethel, ao seu lado, vestia uma Mother Hubbard. Ele sentia-se como o filho pródigo de regresso à casa paterna. De tarde tornou a descer para o hotel, e quando voltou vinha mais que alegre — vinha bêbedo. Ethel e sua mãe sabiam que os homens brancos se embriagavam de vez em quando, e riam com indulgência enquanto o ajudavam a pôr-se na cama.

Mas no outro dia ele saiu à cata de emprego. Sabia que não podia contar com uma posição igual à que tinha abando­nado para se trasladar à Inglaterra. Mas, com a sua prática, ele não podia deixar de ser aproveitado por alguma das fir­mas do comércio, e talvez não perdesse com a troca.

         Afinal de contas, não se pode fazer dinheiro num banco — dizia. — No comércio, sim!

Tinha esperanças de se tornar logo tão indispensável que alguém o tomaria para sócio, e nada o impedia de ser um homem rico dentro de poucos anos.

— Logo que eu estiver colocado, arrumamos um rancho para nós — disse ele a Ethel. — Não podemos seguir morando aqui.

O bangalô de Brevald era tão pequeno que eles viviam como sardinhas em lata, e os dois nunca podiam estar sós. Não havia paz nem intimidade.

         Bem, não há pressa. Estamos muito bem aqui, até en­contrarmos uma casa que nos sirva.

Levou uma semana para se colocar, e o fez na firma de um tal Bain. Mas quando falou a Ethel em mudar-se, ela respon­deu que queria ficar ali até o nascimento do seu filho — pois estava esperando outro. Lawson tentou argumentar.

         Se não gostas daqui — disse Ethel, — vai morar no hotel.

Ele empalideceu.

Ethel, como podes falar assim?

Ela deu de ombros:

— Para que termos uma casa nossa, quando podemos muito bem viver aqui?

Ele cedeu.

Quando Lawson voltava do trabalho para o bangalô, encontrava-o cheio de indígenas a fumar, a dormir, a beber kava. E tagarelavam incessantemente. A casa era desleixada e suja. O seu filho engatinhava brincando com as crianças indígenas, e não ouvia falar outra língua que não fosse o samoano. Ele contraiu o hábito de entrar no hotel a caminho de casa para tomar uns coquetéis, pois só com o auxílio da bebida podia suportar o serão em casa, com aquela turba de parentes e amigos indígenas. E a todas estas, apesar de amá-la com mais paixão do que nunca, sentia que Ethel lhe estava escapulindo das mãos. Quando nasceu a criança, ele sugeriu de novo que fossem morar numa casa própria, mas Ethel recusou. A sua estada na Escócia parecia ter-lhe inspirado um apego apaixonado à sua gente, e ela se entrega­va com abandono aos hábitos indígenas. Lawson entrou a beber mais. Ia todos os sábados ao Clube Inglês, e embebedava-se a não se poder sustentar em pé.

Tinha a peculiaridade de se tornar rixento quando ébrio, e certa vez teve uma disputa violenta com Bain, o seu pa­trão. Bain despediu-o, e êle teve de procurar outro emprego. Passou na ociosidade três semanas, durante as quais, de preferência a ficar sentado no bangalô, ele madraceava no hotel ou no Clube Inglês, bebendo. Mais por piedade que por ou­tra coisa, Miller empregou-o no seu escritório. Mas era um homem sabido, e, apesar da habilidade financeira de Law­son o tornar valioso, naquelas circunstâncias ele não podia recusar um salário mais baixo e foi o que Miller lhe ofe­receu. Ethel e Brevald repreenderam-no por ter aceitado, já que d mestiço Pedersen lhe oferecia mais. Mas ele ficou in­dignado com essa idéia de trabalhar sob as ordens de um mestiço. Como Ethel se pusesse a serraziná-lo, ele explodiu com fúria.

         Hei de morrer de fome, mas não trabalharei para um negro.

         Talvez tenhas de fazê-lo — disse ela.

E seis meses depois Lawson se via arrastado a essa hu­milhação final. A paixão pela bebida viera tomando conta dele. Embriagado com freqüência, não dava boa conta do seu trabalho. Miller advertiu-o uma ou duas vezes, mas Lawson não era homem para admitir censuras. Certo dia, no meio de uma altercação, pôs o chapéu e foi embora. Mas já agora a sua reputação estava feita, e ele não encontrou quem o empregasse. Vadiou algum tempo, depois teve um ataque de delirium trernens. Quando sarou, débil e envergo­nhado, não pôde mais resistir à pressão da necessidade, e foi pedir uma colocação a Pedersen. Pedersen ficou contente por ter um homem branco no seu armazém. Aliás, Lawson era útil pela sua habilidade nas contas.

Daí por diante a sua degeneração foi rápida. Os brancos não lhe davam importância. Só não rompiam de todo com ele por uma piedade desdenhosa e um certo receio da sua cólera violenta quando estava bêbedo. Ele se tornou susce­tível ao extremo, e andava sempre na expectativa de afrontas.

Vivia exclusivamente entre indígenas e mestiços, mas já não tinha para eles o prestígio do homem branco. Eles per­cebiam a sua repugnância, e ressentiam-se da sua atitude de superioridade. Lawson era um deles agora, e não havia razão para se dar tantos ares. Brevald, que fora obsequioso e adulador, passou a tratá-lo com desprezo. Ethel fizera um mau casamento. Havia cenas indecorosas, e uma ou duas vezes os dois homens chegaram a vias de fato. Em todas as disputas Ethel tomava o partido da sua família. Eles o preferiam bêbedo, porque nessas ocasiões se estendia na cama ou no chão e dormia pesadamente.

Muitas vezes, ao voltar ao bangalô para comer a miserável ceia semi-indígena que era a sua refeição da tarde, ele não encontrava Ethel em casa. Se perguntava por ela, Brevald respondia-lhe que Ethel fora passar a tarde com uma amiga ou outra. Certa vez êle foi à casa indicada por Brevald e descobriu que ela não estava lá. A sua volta interpelou-a e Ethel respondeu que seu pai se enganara: ela tinha ido à casa de outra amiga. Mas Lawson sabia que era mentira. Ela pusera o seu melhor vestido. Seus olhos brilhavam, a beleza do seu rosto era fascinante.

Não me venhas com trapaças, minha negra disse ele. Olha que eu te quebro os ossos.

Bêbedo indecente! respondeu ela com escárnio.

Ele julgou ver certa malícia nos olhares que lhe lançavam Mrs. Brevald e a velha avó. Atribuiu o bom humor de Brevald para com ele, tão raro nestes últimos tempos, à satisfação de ver o genro logrado. Depois, despertas as suas suspeitas, ele se pôs a imaginar que os homens brancos o olhavam com curiosidade. O súbito silêncio que se fazia no salão do hotel quando ele entrava, convencia-o de que ele fora o assunto da conversa. Estava-se passando alguma coisa, que ele era o único a ignorar. Foi tomado de ciúmes furiosos. Acreditando que Ethel namorava algum dos brancos, considerava-os a todos com olhos perscrutadores. Mas não encontrava o menor indício. Via-se impotente. E como não podia fixar sobre homem nenhum as suas suspeitas, andava como um louco furioso à procura de alguém para cevar a sua raiva. Quis o acaso que ele se houvesse por fim com quem menos lhe merecia a cólera. Uma tarde que estava no hotel, solitário e sorumbático, Chaplin veio sentar-se ao seu lado. Chaplin era, talvez, o único homem da ilha que ainda guardava alguma simpatia por ele. Mandaram vir bebidas, e estiveram algum tempo palestrando sobre umas corridas que ia haver dentro em poucos dias. Em dado momento disse Chaplin:

         Parece que todos nós teremos de marchar nos cobres para comprar vestidos novos.

Lawson teve um sorriso de mofa. Como era Mrs. Chaplin quem tomava conta da caixa, ela não iria certamente pedir dinheiro ao marido se quisesse um vestido novo.

Como vai a tua mulher — perguntou-lhe Chaplin, para mostrar-se amigo.

Que é que você tem com isso? — disse Lawson, fe­chando o cenho.

Só perguntei por civilidade.

Pois meta a sua civilidade no bolso.

Chaplin não era muito paciente. A sua longa residência nos trópicos, o uísque e as disputas domésticas lhe haviam dado um gênio quase tão exaltado como o do próprio Lawson.

         Olhe, meu amigo, porte-se como um cavalheiro quando estiver no meu hotel, senão vai parar no olho da rua em dois tempos.

O rosto soturno de Lawson carregou-se, fazendo-se rubro.

- Vou dizer-lhe uma vez por todas, e você pode repeti-lo aos outros — disse ele, ofegante de raiva: — se algum de vocês se meter com minha mulher, ele que se cuide!

         Quem é que quer se meter com a sua mulher?

         Não sou tão tolo como vocês pensam. Enxergo tão bem como outro qualquer, e estou-os prevenindo. Ninguém me bota poeira nos olhos, isso não!

— Escute, é melhor você dar o fora daqui, e voltar quando estiver bom da cabeça.

— Só darei o fora quando bem entender — disse Lawson.

Esta foi uma bravata infeliz, pois Chaplin tinha adquirido com a sua longa experiência de hoteleiro uma perícia especial em lidar com cavalheiros cuja presença não lhe convinha. Mal tinham saído as palavras da boca de Lawson, e já se via este seguro pela gola do casaco e empurrado vigorosamente para a rua. Desceu aos trambolhões os degraus sob o sol ofuscante.

Foi em conseqüência disto que ele teve a sua primeira cena violenta com Ethel. Ralado de humilhação, não quis voltar ao hotel naquela tarde. Encontrou Ethel vestindo-se para sair. Geralmente trajava uma Mother Hubbard, de pés descalços, uma flor no cabelo. Mas hoje, de meias de seda branca e sapatos de salto alto, estava dando retoques num vestido de musselina cor-de-rosa, o mais novo que possuía.

Estás muito faceira — disse ele. — Onde vais?

A casa dos Crossleys.

Eu vou contigo.

Por quê? — perguntou ela tranqüilamente.

— Não quero ver-te andejando por aí sempre sozinha.

Mas não foste convidado.

Pouco se me dá. Sem mim é que não vais.

— É melhor ficares deitado até que eu me apronte.

Julgava-o bêbedo, e uma vez estendido na cama ele fer­raria logo no sono. Mas Lawson sentou-se e começou a fu­mar um cigarro. Ethel o observava com crescente irritação. Quando ficou pronta, ele se levantou. Por um acaso raro, não havia ninguém no bangalô. Brevald andava trabalhando na plantação e sua mulher fora à cidade. Ethel enfrentou-o.

         Não vou contigo. Estás bêbado.

         É mentira. Sem mim não vais.

Ela encolheu os ombros e dispôs-se a sair, mas Lawson agarrou-a pelo braço.

         Larga-me, diabo! — disse ela em samoano.

         Por que não queres ir comigo? Eu já não te disse que deixasses de manhas?

Ela cerrou o punho e golpeou-o no rosto. Lawson perdeu todo domínio próprio. Todo o seu amor, todo o seu ódio referveram subitamente, pondo-o fora de si.

         Eu te ensino — gritou ele. — Eu te ensino!

Pegou um chicote de montar que se achava ao alcance da sua mão e bateu-lhe com ele. Ethel gritou, e isto o enfureceu de tal modo que ele continuou a desferir golpe sobre golpe. Os gritos dela repercutiam por toda a casa, de mistura com as pragas de Lawson. Por fim arrojou-a para cima da cama. Ela deixou-se ficar, soluçando de dor e de terror. Ele atirou fora o chicote e precipitou-se para fora do quarto. Ethel ou­viu-o sair e deixou de chorar. Olhou cautelosamente em re­dor de si e levantou-se. Embora lhe doessem as chicotadas, não se machucara muito. Examinou o seu vestido para ver se não ficara danificado. As mulheres indígenas não estranham as pancadas. O que ele fizera não a ofendia. Quando Ethel foi ver-se no espelho, para arranjar o cabelo, os seus olhos brilhavam. Tinham um olhar estranho. Talvez nesse momento ela estivesse mais perto que nunca de amá-lo.

Mas Lawson, que caminhava às cegas, tropeçando no meio da plantação, atirou-se ao solo ao pé de uma árvore, subita­mente exausto e fraco como uma criança. Estava aflito e envergonhado. Ao pensar em Ethel, a frouxa ternura do seu amor parecia amolentar-lhe os próprios ossos do corpo. Pensou no passado, nas suas esperanças, e horrorizou-se com o seu ato. Queria-a mais do que nunca. Sentia vontade de apertá-la nos braços. Devia ir ter com ela imediatamente. Levantou-se. Era tanta a sua fraqueza que ele caminhava cambaleando. Entrou em casa e encontrou-a sentada na pequena alcova, defronte ao espelho.

Ethel, perdoa-me. Estou tão envergonhado! Eu não sa­bia o que estava fazendo.

Ajoelhou-se diante dela e acariciou timidamente a fímbria do seu vestido.

Nem posso pensar no que fiz. É horrível. Eu devia estar louco. Não há ninguém no mundo que eu ame como a ti. Eu, que faria tudo para te poupar uma dor, fui te bater! Nunca me perdoarei. Mas, por Deus te peço, dize que tu me perdoas!

Os gritos dela ressoavam-lhe ainda nos ouvidos, de um modo intolerável. Ethel olhava-o em silêncio. Ele quis segu­rar as suas mãos, e as lágrimas jorraram-lhe dos olhos. Cheio de humilhação, escondeu a face no seu regaço, com o corpo frágil sacudido de soluços. O rosto dela tomou uma expressão de absoluto desprezo. Era o desprezo da indígena pelo ho­mem que se abate diante de uma mulher. Um fracalhão! E ela chegara a pensar um momento que ele valia alguma coisa! Ali estava agora jogando-se aos seus pés, como um cachorro. Ethel deu-lhe um pequeno pontapé desdenhoso.

— Sai daqui — disse ela. — Tenho-te ódio.

Lawson tentou segurá-la, porém ela o empurrou e pôs-se em pé. Começou a despir o vestido. Atirou longe os sapatos, descalçou as meias, depois enfiou a sua velha Mather Hubbard.

         Onde vais?

         Que é que tu tens com isso? Vou nadar no poço.

— Deixa-me ir também — disse ele.

Fez este pedido como o faz uma criança.

— Nem para isso me deixas em paz?

Lawson escondeu o rosto nas mãos, chorando miseravelmente, porém Ethel, com os olhos duros e frios, passou por ele e saiu.

Desse dia em diante desprezou-o por completo. E, apesar de se acotovelarem diariamente no pequeno bangalô sempre cheio de gente, Lawson, cessando de ter importância, nem era notado. Saía, pela manhã, depois da primeira refeição, e só voltava para a ceia. Deixou de lutar pela vida, e quando não podia ir ao Clube Inglês por falta de dinheiro, passava a tarde jogando copas com Brevald e os indígenas. A não ser quando estava bêbedo, mostrava-se inerte e acovardado. Ethel tratava-o como a um cão. Submetia-se por vezes aos seus acessos de paixão arrebatada, assustando-se com as rajadas de ódio que se seguiam. Mas quando ao cabo, ele ficava sub­misso e lacrimoso, Ethel sentia tamanho asco que por pouco não lhe cuspia no rosto. As vezes Lawson se fazia violento, porém ela já estava prevenida agora, e às suas pancadas re­vidava com os dentes, as unhas e os pés. Tinham batalhas terríveis, em que ele nem sempre levava a melhor. As bri­gas do casal tornaram-se logo conhecidas em Ápia. Lawson não gozava de simpatia, e no hotel todos se admiraram do velho Brevald não o pôr fora de casa a pontapés.

Brevald não é de brinquedo disse um dos homens. Não me admiraria nada se êle metesse uma bala no couro de Lawson qualquer dia destes.

Ethel continuava a ir banhar-se de tarde no poço. Este parecia exercer sobre ela uma atração extra-humana, preci­samente a atração que sentiria pelas salsas ondas do mar uma sereia que se tivesse feito mulher. E às vezes Lawson ia também. Não sei o que o levava lá, pois a sua presença irritava Ethel visivelmente. Talvez fosse porque esperava recobrar naquele sítio o puro arrebatamento que lhe enchera o coração da primeira vez que a encontrara. Ou talvez ape­nas, com a loucura dos que amam e não são amados, esperas­se despertar esse amor à força de obstinação. Um dia desceu para lá numa disposição de espírito que era rara nele agora. Sentia-se inopinadamente satisfeito com a vida. A noite ia baixando, e o crepúsculo parecia envolver as folhas dos co­queiros como uma nuvenzinha tênue. Ligeira brisa agitava-as silenciosamente. O crescente da lua pairava-lhes sobre os cimos. Êle caminhou para a margem. Viu Ethel boiando de costas nà água. Com o cabelo todo espalhado em redor, segurava na mão um grande hibisco. Ele deteve-se um instante para admirar esta nova Ofélia.

Olá, Ethel! gritou alegremente.

Ela fêz um movimento brusco e largou a flor vermelha, que saiu deslizando ao acaso, arrastada pela correnteza. Ethel deu uma ou duas braçadas até encontrar fundo, e pôs-se em Pé.

Vai-te embora disse. Vai-te embora!

Ele riu.

Não sejas egoísta. Há lugar de sobra para nós dois.

Por que não me deixas em paz? Eu quero estar só.

         Não brinques, eu quero tomar banho — respondeu ele de bom humor.

Vai tomar banho na ponte. Não te quero aqui.

É pena — disse ele, sorrindo sempre.

Não sentia cólera, e mal percebeu que ela estava furiosa. Começou a tirar o casaco.

— Vai embora! — gritou ela. — Não consinto que tomes banho aqui. Nem aqui me deixas sossegada? Vai embora!

         Não sejas tola, queridinha.

Ela baixou-se, apanhou uma pedra pontiaguda e atirou-a nele. Lawson não teve tempo de se desviar. Foi atingido numa têmpora. Soltando um grito, levou a mão à cabeça. Quando a olhou, estava tinta de sangue. Ethel, imóvel, ar­quejava de raiva. Ele ficou muito pálido, e, sem dizer pala­vra, agarrou o casaco e foi embora. Ethel voltou para o meio da corrente e deixou-se arrastar lentamente sobre o dorso das águas na direção do vau.

A pedrada produzira uma larga ferida e Lawson an­dou alguns dias de cabeça atada. Tinha inventado uma his­tória plausível para explicar o acidente quando o interrogas­sem no clube. Mas não teve ocasião de a contar. Ninguém lhe tocou no assunto. Ele os via lançarem olhares furtivos à sua cabeça, mas sem dizerem palavra. Este silêncio só po­dia significar uma coisa: os outros sabiam de que modo ele se ferira. Então Lawson adquiriu certeza de que Ethel ti­nha um amante, e todos sabiam quem era este. Mas não ha­via o menor indício que o guiasse. Nunca via Ethel em com­panhia de um homem. Ninguém mostrava desejo de estar com ela, ninguém se conduzia de modo suspeito para com ele. Um frenesi de raiva apossou-se de Lawson. E, como não tinha sobre quem descarregá-lo, pôs-se a beber cada vez mais. Pouco antes de eu chegar à ilha tivera ele um segundo acesso de delirium tremens.

Fui conhecer Ethel em casa de um certo Caster, que vivia a duas ou três milhas de Ápia com sua esposa indígena. Estivera jogando tênis com ele, e quando nos cansamos, ele propôs que fôssemos tomar chá. Entramos em casa, e na desasseada salinha de visitas fomos encontrar Ethel de pa­lestra com Mrs. Caster.

Olá, Ethel! disse êle. Eu não a imaginava aqui.

Não pude deixar de olhá-la com curiosidade, procurando descobrir o que havia nela para provocar em Lawson aquela paixão devastadora. Mas quem pode explicar tais coisas? Ela era adorável, na verdade. Lembrava o hibisco vermelho, a flor comum das sebes de Samoa, com o seu langor e a sua graça apaixonada. Porém o que mais me surpreendeu, con­siderando a história que eu já conhecia em boa parte, foi a sua frescura e simplicidade. Ela era quieta e um tanto tími­da. Nada tinha de vulgar ou de atrevida. Faltava-lhe essa exuberância comum dos mestiços. E era quase impossível acreditá-la a virago que sugeriam aquelas horríveis cenas conjugais já conhecidas de todos. Com o seu lindo vestido cor-de-rosa e sapatos de tacão alto, parecia uma perfeita eu­ropéia. Mal se adivinhava aquela vida de indígena que ela levava. Não a julguei em absoluto inteligente, e não me sur­preenderia se um homem, depois de viver alguns anos com ela, visse a sua paixão finar-se no fastio. Veio-me a idéia de que na sua furtividade, semelhante à de um pensamento que surge na consciência e desaparece antes que o possamos corporificar em palavras, é que residia o seu encanto pecu­liar. Mas talvez isto não passasse de fantasia, e se eu nada soubesse da sua vida, achá-la-ia simplesmente uma mestiçazinha bonita como as outras.

Ela conversou comigo sobre os diversos assuntos que se tratam em Samoa com os forasteiros: a viagem, se eu já me tinha deixado escorregar pelo Rochedo de Papaseea, e se eu tencionava parar numa aldeia indígena. Falou-me na Es­cócia, e eu notei-lhe um certo pendor para exagerar a suntuosidade da sua residência ali. Perguntou ingenuamente se eu conhecia a Sra. Fulana e a Sra. Sicrana, a quem tinha freqüentado quando vivia no Norte.

Então entrou Miller, o germano-americano. Apertou muito cordialmente a mão de todos e sentou-se, pedindo uísque com soda na sua voz alta e jovial. Era muito gordo, e suava abundantemente. Tirou os seus óculos de aros de ouro para enxugá-los. Via-se então que os seus olhinhos, benévolos atrás das lentes, eram finos e astutos. A conversa estivera um pouco insípida antes da sua chegada, mas ele era folgazão e bom contador de histórias, e dentro em pouco punha as duas mulheres, Ethel e a esposa do meu amigo, a rir-se deleitadas com as suas saídas. Ele tinha na ilha a reputação de conquis­tador, e percebia-se como este homem gordo e materialão, velhusco e feio, conseguia ainda fascinar. O seu humorismo, feito de vitalidade e de aplomb, estava ao nível da compreensão dos seus ouvintes, e o seu sotaque do Oeste emprestava uma graça especial ao que ele dizia. Afinal Miller se voltou para mim:

         Bem, se quisermos chegar a horas para o jantar, é melhor irmos andando. O senhor querendo eu o levo no meu carro.

Agradeci e levantei-me. Ele apertou ás mãos dos outros, saiu da sala no seu caminhar maciço e forte, e embarcou no auto.

Linda criaturinha, a mulher de Lawson — disse eu em caminho.

Ele a trata de um modo infame. A socos e chicotadas. Eu fico fulo quando ouço dizer que um homem bate numa mulher.

E um pouco adiante, acrescentou:

         Lawson fez uma asneira em casar com ela. Foi o que eu disse na ocasião. Se não tivesse casado, trazia-a agora pelo nariz. O que ele é, é covarde.

Aproximava-se o fim do ano, e com ele a minha partida de Samoa. O meu vapor devia zarpar para Sidney a 4 de janeiro. O Natal fora festejado no hotel com as cerimônias condignas, mas isso não era mais que um ensaio para o Ano Novo, e os freqüentadores do salão resolveram passar uma noite memorável. Houve um estrondoso jantar, após o qual a companhia desceu para o Clube Inglês, um pequeno chalé de madeira, para jogar bilhar. Houve muita conversa, risos e apostas, mas o jogo era fraco, exceto da parte de Miller, que, tendo bebido mais do que qualquer dos outros, todos muito mais moços que ele, conservava a agudeza de vista e a mão firme de sempre. Embolsava com urbanidade e bom humor o dinheiro da rapaziada. Ao cabo de uma hora, eu me cansei e saí. Atravessei a estrada e desci para a praia.

Erguiam-se ali três coqueiros, como três filhas da lua esperando que surgissem do mar os seus apaixonados. Sentei-me ao pé de um deles, contemplando a laguna e a assembléia noturna das estrelas.

Não sei onde Lawson tinha passado a primeira parte da noite, mas entre as dez e as onze ele veio para o clube. Des­ceu a passos incertos a estrada vazia e poeirenta, cheio de tédio. Chegado ao clube, foi ao bar para beber sozinho algu­ma coisa, antes de passar à sala de bilhar. Tinha agora uma certa timidez na companhia dos brancos, e quando o grupo era numeroso êle necessitava uma rija dose de uísque para lhe dar coragem. Estava bebendo quando entrou Miller e veio para êle, ainda em mangas de camisa e com o taco na mão. Lançou um olhar ao empregado do balcão, dizendo: Dá o fora, Jack.

O empregado, um indígena de jaqueta branca e lava-lava vermelho, pôs-se a andar sem dizer palavra.

Escute aqui, Lawson, há tempos que eu quero ter uma pequena conversa com você.

Pois isso é uma das poucas coisas que se pode ter de graça nesta maldita ilha.

Miller firmou os óculos de ouro no nariz e fitou em Law­son os seus olhos frios e resolutos.

Olhe, moço, ouvi dizer que você andou batendo de novo em Mrs. Lawson. Não admito semelhante coisa. Se você não acabar com isso imediatamente, eu lhe quebro todos os ossos desse corpo imundo.

Foi então que Lawson ficou sabendo o que há tanto tem­po procurava descobrir. Era Miller! O aspecto do homem, nédio, calvo, com a sua cara redonda e pelada, o duplo queixo e os óculos de ouro, o seu olhar benigno e matreiro como o de um padre renegado, tudo isto ligado à imagem de Ethel, tão frágil e virginal, encheu-o de um súbito horror. Fossem quais fossem os seus defeitos, Lawson não era covarde, e sem dizer palavra desferiu com violência o punho sobre Miller. Este aparou destramente o golpe com a mão que segurava o taco, e, balançando poderosamente o outro braço, aplicou-o no ouvido de Lawson. Lawson era mais baixo de quatro polegadas que o americano e de compleição delicada, enfraquecido não sò­mente pela doença e o clima enervante do trópico como tam­bém pela bebida. Caiu como uma massa e ficou estendido ao pé do balcão, meio estonteado. Miller tirou os óculos e lim­pou-os com o lenço.

— Agora você fica sabendo o que o espera. Cuide-se.

Agarrou o taco que lhe caíra e voltou à sala de bilhar. A bulha ali era tamanha que ninguém deu pelo que aconte­cera. Lawson ergueu-se. Levou a mão ao ouvido, que ainda lhe zunia. Depois saiu do clube.

Vi um homem atravessar a estrada, formando uma man­cha branca contra o negror da noite, mas não o reconheci. Ele desceu à praia, passou pela árvore ao pé da qual eu estava sentado, e olhou-me. Vi então que era Lawson, mas como sem dúvida ele devia estar embriagado, não lhe falei. Deu mais uns dois ou três passos indecisos, e tornou atrás, inclinando-se para me fitar o rosto.

Calculei que era você — disse ele.

Sentou-se no chão e tirou o cachimbo do bolso.

         Havia muito calor e muito barulho no clube — ex­pliquei eu.

         Por que veio sentar-se aqui?

— Estou esperando pela missa da meia-noite na catedral. — Se lhe agrada, eu vou com você.

Ele estava no seu juízo perfeito. Ficamos um bocado a fumar em silêncio. De vez em quando, na laguna, algum grande peixe saltava espadanando água. Mais para além, na abertura dos recifes, avistava-se a luzinha de uma escuna.

         Você vai embora na semana que vem, não é? — disse ele.

         Vou.

         Que beleza seria voltar mais uma vez para a terra! Mas agora não posso mais suportar o frio.

— É esquisito pensar que na Inglaterra a estas horas es­tão tremendo de frio em roda do fogo.

Não havia o menor sopro de vento. A doçura da noite era um encantamento. Eu não tinha sobre o corpo mais que uma camisa fina e calças de brim. Gozando o delicioso lan­gor da noite, estirei os membros com volúpia.

         Esta véspera de Ano Novo não é daquelas qué nos inspiram boas resoluções para o futuro disse eu, sorrindo.

Lawson não respondeu, e eu não sei que pensamentos lhe teria sugerido esta minha observação fortuita, pois daí a pouco ele se pôs a falar. Fê-lo em voz baixa, sem expressão mas de tom educado. Era um alívio ouvi-lo, depois das entonações fanhosas e vulgares a que os meus ouvidos ainda não se tinham podido acostumar.

         Estraguei a minha vida de um modo horrível. É claro que estou no fundo do precipício, e não tenho saída. "Negro como o abismo de pólo a pólo." Adivinhei o seu sorriso ao fazer a citação. E o estranho é que eu não sei qual foi o meu erro.

Eu sustive a respiração. Não há para mim momento mais emocionante do que quando um homem descobre a nudez da sua alma. Vê-se então que não há ninguém, por mais trivial ou envilecido, que não leve em si a centelha de algum sentimento capaz de excitar a compaixão.

         Minha situação não seria tão abominável se eu sou­besse que a culpa era toda minha. É verdade que bebo, mas não me teria entregue a esse vício se as coisas tomassem ou­tro caminho. Eu não tinha verdadeiro gosto pela bebida. Acho que não devia ter casado com Ethel. Se a tomasse para amante, tudo marcharia bem. Mas eu a amava tanto!

Tremia-lhe a voz.

Você compreende: ela não é realmente ruim. Foi o mau destino. Nós podíamos ter sido felizes como lordes. Quando ela fugiu, o que eu devia fazer era deixá-la, mas não pude... Naquele tempo ela era tudo na vida para mim. E depois, havia o pequeno.

         Você tem muito amor ao pequeno? perguntei.

Tinha. São dois, como você sabe. Mas agora não me importo tanto com eles. São uns verdadeiros indígenas. Te­nho de falar com eles em samoano.

         Mas será tarde demais para recomeçar a sua vida? Não pode fazer um esforço e ir embora daqui?

— Falta-me a energia. Estou liquidado.

Ainda ama a sua mulher?

Agora não! Agora não! Êle repetiu as duas palavras com uma sorte de terror na voz. — Nem isso me resta. Estou no fim.

Os sinos da catedral estavam repicando.

         Se você quer mesmo assistir à missa da entrada do ano, é bom irmo-nos chegando — disse eu.

         Vamos.

Levantamo-nos e seguimos pela estrada. A catedral, toda branca, erguia-se defronte ao mar, não sem imponência, e ao seu lado as capelas protestantes tinham o ar mesquinho de meeting houses. Na estrada estacionavam três automóveis e numerosas aranhas; outras estavam encostadas às paredes laterais. De todos os lados da ilha viera gente para a solenidade, e pelas grandes portas abertas de par em par, vimos que o templo estava apinhado. O altar-mor refulgia de luzes. Ha­via alguns brancos e bom número de mestiços, mas a maioria era de indígenas. Todos os homens usavam calças, pois a Igreja declarou indecente o lava-lava. Encontramos cadeiras no fundo perto da porta, e sentamo-nos. Pouco depois, acompanhando o olhar de Lawson, vi entrar Ethel num grupo de mestiços. Vinham todos muito casquilhos, os homens de altos colarinhos duros e botas reluzentes, as mulheres com grandes e vistosos chapéus. Ethel fazia acenos de cabeça sorridentes aos seus conhecidos enquanto avançava. Começou o ofício. Ao terminar, Lawson e eu postamo-nos a um lado para observar a saída do povo. Depois ele me estendeu a mão.

         Boa noite — disse. — Desejo-lhe feliz viagem.

         Oh, mas nós ainda nos veremos antes da minha par­tida.

Ele riu com ironia.

         A questão é se você me verá bêbedo ou não.

Afastou-se. Ficaram-me na memória aqueles grandes olhos pretos, brilhando febrilmente sob as sobrancelhas bastas. Demorei-me ali ainda um momento, indeciso. Não tinha sono, e achei que o melhor seria passar uma hora no clube antes de ir deitar-me. Ao chegar lá, encontrei vazia a sala do bilhar, mas uma dezena de homens estavam sentados em redor da mesa no salão, a jogar pôquer. Miller ergueu os olhos à minha entrada.

         Sente-se e jogue uma mão conosco — disse ele.

         Muito bem.

Comprei fichas e comecei a jogar. Todos sabem que o pôquer é o mais fascinante dos jogos, e a minha hora espichou-se em duas, e as duas em três. O indígena do balcão, lépido e bem acordado apesar da hora tardia, movia-se em roda da mesa suprindo-nos de bebidas. Arranjara, não sei onde, um quarto de presunto e um pão. Seguíamos jogando. A maior parte da companhia tinha bebido mais do que lhe convinha, e as paradas eram despropositadamente altas. Eu jogava modestamente, sem vontade de ganhar nem tampouco de perder. Observava Miller com fascinado interesse. Ele empinava co­po por copo com os outros, mas conservava-se lúcido e sereno. O seu monte de fichas ia crescendo sem cessar, e êle tinha na frente um pequeno retângulo de papel, onde anotara diversos empréstimos feitos a jogadores em penúria. Irradiava amabi­lidade sobre aqueles rapazes, cujo dinheiro ia empalmando. A sua torrente de pilhérias e de anedotas fluía inesgotável, mas ele nunca esquecia um lance, não lhe passava desperce­bida uma só expressão fisionômica. Afinal a aurora veio pe­netrando pelas janelas, brandamente, com uma timidez de in­trusa. E logo se fez dia.

         Bem disse Miller. Parece que nos despedimos condignamente do velho ano. Agora empinemos mais um copázio, e eu vou para dentro dos mosquiteiros. Lembrem-se de que estou com cinqüenta anos e preciso deitar cedo.

Passamos para a varanda. A manhã era fresca e bela, e a laguna semelhava um grande vidro multicor. Alguém lembrou que déssemos um mergulho antes de nos metermos na cama, mas ninguém queria banhar-se na laguna, pegajosa e de areias traiçoeiras. Miller, que tinha o seu automóvel parado à porta, propôs levar-nos ao poço. Embarcamos todos, e deitamos a correr pela estrada deserta. Quando alcança­mos o, poço, parecia que o dia ainda não rompera ali. A folha­gem espessa cobria a água de sombra, e era como se a noite ainda relutasse em deixar aquele recanto. Nós estávamos de muito bom humor. Não tínhamos toalhas nem roupas de banho, e eu perguntava prudentemente de mim para mim como nos iríamos secar. Nenhum de nós tinha muita roupa no corpo, e em dois tempos nos despimos. Nelson, o pequeno escrivão de bordo, foi o primeiro a ficar pronto.

         Vou descer ao fundo — disse ele.

Mergulhou. Um outro mergulhou logo em seguida, mas no raso, e saiu da água antes dele. Então Nelson veio à tona, e fez força para sair.

Tirem-me daqui — dizia ele.

Que foi?

Era evidente que tinha sucedido alguma coisa. O seu rosto tinha uma expressão de terror. Dois dos rapazes estenderam-lhe a mão e içaram-no.

Escutem! Há um homem lá em baixo.

         Não seja idiota. Você está bêbedo.

Pois então estou com o delirium tremens. Mas lhes digo que há um homem lá em baixo. Não sei onde estou de susto.

Miller considerou-o um momento. O homenzinho estava branco e tremia.

         Vamos lá, Caster — disse Miller ao enorme austra­liano. — É melhor mergulharmos para ver isso.

O homem estava em pé — disse Nelson — todo vestido. Eu vi! Ele quis me agarrar.

Acaba com essa lambança — retrucou Miller. — Você está pronto?

Mergulharam. Nós esperamos na margem, em silêncio. Pareceu-nos que eles estavam demorando debaixo d'água mais tempo do que a respiração humana o permitia. Então apa­receu Caster, e logo de imediato Miller, com a cara rubra como se fosse ter um ataque de apoplexia. Traziam qual­quer coisa a reboque. Um outro homem saltou na água para ajudá-los, e os três arrastaram o fardo para a beira. Puse­ram-no em seco. Vimos então que era Lawson, com uma grande pedra amarrada aos pés.

         Ele fez a coisa com vontade — disse Miller, enxugando a água dos olhos míopes.


 

Honolulu

O viajante sensato só viaja com a imaginação. Um antigo francês (era na realidade um saboiano) escreveu certa vez um livro chamado Viagem à Roda do meu Quarto. Eu não o li, nem sei do que trata, mas o título me estimula a fantasia. Eu poderia fazer desse modo a circunavegação do globo. Um ícone junto à chaminé me transportaria à Rússia dos zimbórios brancos e das grandes florestas de bétulas. O Volga é largo, e, numa taberna dos confins da espalhada aldeia, homens barbudos, metidos em toscos casacões de pele de carneiro, es­tão sentados a beber. Subo ao topo da pequena colina de onde Napoleão avistou Moscou pela primeira vez, e contemplo a vasta cidade. Vou descer, para conversar com homens e mu­lheres que eu conheço mais intimamente do que tantos amigos meus: Aliocha, Vronski, e uma dúzia de outros mais. Mas os meus olhos topam com uma taça de porcelana, e eu sinto os aromas da China. Estou sendo transportado em liteira sobre uma estreita calçada, entre os campos de padi, ou então con­torno uma montanha coberta de arvoredo. Os liteireiros pai­ram alegremente na manhã clara, e, de quando em quando ou­ço, distante e misterioso, o repique profundo de um sino de mosteiro. Nas ruas de Pequim há uma turba heteróclita, que se abre para dar passo a uma fieira de camelos que, pisando delicadamente, trazem peles e drogas estranhas dos desertos da Mongólia. Há em Londres certas tardes de inverno em que as nuvens pairam baixas e pesadas, e a luz é tão lúgubre que nos enche o coração de angústia. Mas basta-nos então olhar­mos para fora da janela e vermos os coqueiros comprimirem-se na praia de uma ilha de coral. A areia é prateada, e quando se caminha nela ao sol, a reverberação é tão intensa que não se pode olhá-la. Nas folhagens, os mainas fazem grande al­gazarra, e as ondas rebentam incessantemente nos recifes. São estas as mais deliciosas viagens, as que fazemos ao pé da la­reira, pois que elas não nos destroem nenhuma ilusão.

Mas há certa gente que põe sal no café. Dizem eles que isso dá à bebida um sabor singular e fascinante. Do mesmo modo, existem lugares cercados de uma auréola romântica, aos quais a inevitável desilusão que se sente, ao vê-los, ajunta um condimento especial. Esperávamos alguma coisa de simplesmente belo, e recebemos uma impressão infinitamente mais complexa do que as que nos pode dar a beleza. É como o defeito de caráter de um grande homem, que, se o torna menos admirável, não deixa também de o tornar mais interessante.

Nada me fizera prever o que seria Honolulu. Fica tão dis­tante da Europa, é tão longe a viagem de São Francisco até lá, o seu nome desperta associações tão estranhas e encan­tadoras que eu mal pude dar crédito aos meus olhos. Não sei se eu tinha uma representação mental precisa do que espera­va, mas o fato é que tive uma grande surpresa. É uma típica cidade ocidental. Barracas acotovelam palacetes de pedra. Cha­lés de tábuas desmantelados irmanam-se com lojas elegan­tes de luzidas vitrinas. Carros elétricos rodam bulhentos nas ruas, entre a multidão de automóveis, Fords, Buicks, Packards. As casas de comércio estão cheias de todos os obje­tos necessários da civilização americana. De três em três casas se encontra um banco, e de cinco em cinco, a agência de uma companhia de navegação.

Nas ruas se apinha uma incrível mistura de povos. Os americanos, sem fazer caso do clima, usam paletós pretos e altos colarinhos engomados, chapéus de palha, chapéus moles e chapéus-coco. Os canacas, de um moreno pálido, cabelos crespos, não vestem mais que calça e camisa. Mas os mestiços andam muito janotas, de gravatas berrantes e botinas de verniz. Os japoneses de sorriso obsequioso mostram-se muito as­seados no seu brim branco, enquanto as suas mulheres os se­guem a um ou dois passos de distância, em traje nacional, com os bebês às costas. As crianças japonesas, com os seus vestidos de cores vivas e as cabeças raspadas, parecem estranhas bonecas. Há também os chineses. Os homens, gordos e prósperos, usam desgarbosamente as roupas americanas. Mas as mulheres são encantadoras com os seus cabelos pretos tão esmeradamente compostos que parece impossível despenteá-los, muito limpas nas suas túnicas e calças de cor branca, azul-pólvora ou preta. Há por fim os filipinos de enormes chapéus de palha, e suas mulheres vestidas de musselina amarelo-canário, com grandes mangas bojudas.

É o ponto de confluência do Oriente e do Ocidente. O que é de ontem anda roçando o incomensuravelmente velho. E, se não se encontra ali o esperado romance, topa-se com algo que leva singularmente a pensar. Toda essa gente estranha vive lado a lado, com línguas e idéias diversas. Acreditam em deuses diferentes, e diferentes são para cada raça os valores da existência. Só duas paixões têm em comum, o amor e a fome. E ao observá-los tem-se, misteriosamente, a impressão de uma vitalidade extraordinária. Apesar da doçura do ar e do céu azul, sentimos, não sei como, qualquer coisa de ferventemente apaixonado a pulsar no coração da turba. Embora o policial nativo da esquina, guindado numa plataforma, dirigindo o trânsito com o seu bastão branco, empreste à cena um certo ar de respeitabilidade, não podemos escapar à suspeita de que essa respeitabilidade é apenas superficial. Em baixo ficam as trevas e o mistério. Sobrevém-nos esse frêmito, esse desfale­cimento do coração que temos à noite na floresta, quando o silêncio entra de súbito a vibrar com o rufo velado e insisten­te de um tambor. Ficamos trêmulos de expectativa, sem saber­mos de quê.

Se me alonguei sobre as incongruências de Honolulú, é porque é justamente isso, a meu ver, que dá significação à minha história. É uma história de superstição primitiva, e cau­sa-me espanto que semelhante coisa possa subsistir numa ci­vilização que, se não muito aprimorada, é por certo extrema­mente complexa. Não posso conciliar-me com o fato de terem sucedido, ou mesmo de se imaginar que tivessem sucedido, coisas tão incríveis bem no meio, por assim dizer, dos telefo­nes, das tranvías e dos jornais. E o amigo que me mostrou Honolulú tinha a mesma incongruência que me pareceu desde o primeiro momento a mais notável característica da cidade.

Era um americano chamado Winter, para quem eu trou­xera uma carta de recomendação de um conhecido de Nova York. Homem entre os quarenta e cinqüenta, cabelo negro e raro, grisalho nas têmporas, êle tinha um rosto fino e de li­nhas enérgicas. Os seus olhos eram faiscantes e os óculos de ouro davam-lhe um ar de gravidade bastante divertido. Êle era mais alto que baixo e de poucas carnes. Nascera em Honolulu, onde seu pai tinha uma grande loja de roupas brancas e todos os demais artigos requeridos pelo homem da socieda­de, desde raquetas de tênis até pano para velas. O negócio era próspero, e bem se compreende a indignação de Winter pai, quando o seu filho, recusando-se a entrar no negócio, anuncia­ra a sua resolução de ser ator. Meu amigo desperdiçou vinte anos no palco, às vezes em Nova York, porém com mais fre­qüência de cidade em cidade, pois os seus dotes não eram grandes. Mas por fim, como não era nenhum tolo, chegou à conclusão de que era preferível vender ligas em Honolulu a representar papéis de terceira ordem em Cleveland, Ohio. Abandonou o palco e entrou no negócio. Creio que depois dessa longa existência ao deus-dará, ele gozava como ninguém o luxo de guiar um grande automóvel e de viver numa bela casa próxima ao campo de golfe, e tenho certeza de que ele administrava completamente o negócio, pois era um homem capaz. Mas, não se resignando a largar completamente de mão as artes, pôs-se a pintar, já que não podia mais representar. Levou-me ao seu estúdio e mostrou-me suas obras. Eram esti­máveis, mas não o que eu esperava dele. Só pintava nature­zas mortas, quadros pequeninos, cerca de dez por oito pole­gadas. Fazia-o com muita delicadeza, e o mais perfeito acaba­mento. Via-se que êle tinha a paixão do pormenor. As suas frutas lembravam as de Ghirlandajo. A sua paciência mara­vilhava, ao mesmo tempo que se ficava impressionado com a sua destreza. Imagino que êle tenha falhado como ator porque os seus efeitos de cena, minuciosamente estudados, não eram bastante audazes nem bastante amplos para alcançarem o pú­blico.

Divertia-me o ar de proprietário, e, todavia, irônico, com que ele me mostrava as belezas de Honolulu. Estava convicto de não haver nos Estados Unidos nenhuma cidade que a igualasse, mas sentia muito bem a comicidade da sua atitude. Le­vou-me a ver todos os edifícios importantes, e impava de con­tentamento quando eu expressava, na devida forma, a minha admiração pela sua arquitetura. Mostrou-me as habitações dos ricos.

         Esta é a casa dos Stubbs disse êle. Custou cem mil dólares. Os Stubbs são uma das nossas melhores famílias. O velho Stubbs veio para cá há mais de setenta anos, como missionário.

Hesitou um pouco, fitando-me os olhos chispantes através dos grandes óculos redondos.

         Todas as nossas famílias mais opulentas são famílias de missionários. Ninguém pode ser grande coisa em Honolulu a menos que os seus avós tenham convertido os gentios.

Na verdade?

Você conhece a Bíblia?

Regularmente respondi.

         Há um versículo que diz: "Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotaram." Parece que em Honolulu é diferente. Os pais trouxeram o cristianismo para o canaca e os filhos empalmaram-lhe as terras.

         Ajuda-te, que Deus te ajudará murmurei.

         Tem razão. Quando os nativos desta ilha chegaram a abraçar o cristianismo, já não tinham mais nada que abra­çar. Os reis davam terras aos missionários em sinal de estima, e os missionários compravam terras a troco dos tesouros depositados no céu. Um bom emprego de capital. Certo missio­nário deixou o negócio creio que se lhe pode chamar negó­cio sem ofensa e fêz-se agente de terras, mas isso foi uma exceção. Em geral eram os seus filhos que cuidavam da parte comercial. Oh, é uma sorte ter um pai que veio para cá cinqüenta anos atrás para propagar a fé. Mas, olhando o seu relógio: Ora bolas, parou! Quer dizer que é hora de tomar um coquetel.

Correndo por uma excelente estrada debruada de hibis­cos vermelhos, tornamos a entrar na cidade.

Você já esteve no Bar União?

Ainda não.

Então vamos lá.

Sabendo ser esse o sítio mais famoso de Honolulú, foi com viva curiosidade que ali entrei. Chega-se lá por uma es­treita travessa da Rua do Rei. Nesta travessa existem escri­tórios, de modo que os cavalheiros sedentos podem dar a apa­rência de irem a um deles quando vão ao bar. É um amplo salão quadrado, com três entradas, e defronte ao balcão, que ocupa todo o comprimento de uma parede, há nos dois cantos, repartições formando pequenos cubículos. Diz a lenda que estes foram construídos para que o Rei Kalakaua pudesse beber ali sem ser visto pelos seus súditos, e apraz-nos pensar que num deles esteve sentado o soberano côr de azeviche com Robert Louis Stevenson, diante de uma garrafa. Há um re­trato dele, a óleo, em rica moldura de ouro. Mas também há duas gravuras da Rainha Vitória. As paredes, além disso, es­tão cobertas de estampas do século XVIII. Uma delas, sabe Deus como foi parar ali, reproduz uma cena de teatro por De Wilde. Seguem-se oleogravuras dos suplementos de Natal do Graphic e do lllustrated London News, de vinte anos atrás. Por fim, anúncios de uísque, champanha e cerveja, fotografias representando equipes de basebol e orquestras indígenas.

Aquele lugar não parecia pertencer ao tumultuoso mundo moderno que eu deixara na rua clara de sol, mas a um mundo em agonia. Tinha o sabor do dia de anteontem. Sujo e mal-iluminado, dava uma vaga impressão de mistério, afigurando-se, a quem o via, um cenário apropriado para sinistras transações. Lembrava tempos mais lóbregos, em que homens sem piedade carregavam as suas vidas na mão, e atos violentos quebravam diariamente a monotonia da existência.

Quando entrei, o bar estava cheio. Um grupo de comer­ciantes discutia negócios de pé diante do balcão, e a um canto bebiam dois canacas. Afora uns dois ou três, que pareciam vendeiros, a jogar dados, os demais eram evidentemente ho­mens do mar. Havia capitães de cargueiros errantes, imediatos e maquinistas. Atrás do balcão, muito ocupados no preparo do coquetel de Honolulú, pelo qual era afamado o bar, serviam dois grandes mestiços vestidos de branco, gordos, de pele escura e cara raspada, com bastas cabeleiras crespas e grandes olhos brilhantes.

Winter parecia conhecer quase toda a gente ali, e quando nos encaminhamos para o balcão, um homenzinho gordo de óculos, que estava só, ofereceu-lhe de beber.

         Não, beba você comigo, capitão disse Winter. E, voltando-se para mim: — Quero apresentar-lhe o Capitão Butler.

O homenzinho me apertou a mão. Pusemo-nos a conver­sar. Mas, com a atenção distraída pelo ambiente, eu não re­parei muito nele. Depois de termos pago uma rodada de co­quetel cada um, separamo-nos. E, de novo no automóvel, disse-me Winter:

         Foi uma sorte toparmos com Butler. Eu queria que você o conhecesse. Que acha dele?

Não lhe prestei muita atenção respondi.

Você acredita no sobrenatural?

Não sei bem se acredito ou não sorri eu.

         Pois um fato muito estranho sucedeu a esse homem, um ou dois anos atrás. Você devia pedir a ele que lho con­tasse.

         De que natureza foi o tal fato?

Winter não respondeu à minha pergunta.

         Não sei explicá-lo disse êle. Mas quanto a ser verídico, não há dúvida. Você se interessa por essas coisas?

Que coisas?

Feitiços, magia e o mais.

Nunca vi ninguém que não se interessasse por isso. Winter ficou um momento silencioso.

         É melhor eu não lhe contar. Você deve ouvi-lo dos lábios dele, para fazer uma idéia justa. Qual é o seu programa para esta noite?

         Não tenho nada que fazer.

         Bem, eu encontrarei o homem daqui até lá, e verei se podemos visitá-lo no navio.

Winter esteve me falando nele. O capitão passara toda a sua vida no Pacífico, já estivera em muito melhor situação que agora, pois tinha sido oficial, primeiro, e depois capitão de um paquete que cabotava na costa da Califórnia. Mas per­dera o navio, e numerosos passageiros se afogaram.

         Foi a bebida, imagino eu disse Winter.

Houve, naturalmente, um processo que lhe custou o seu diploma de oficial. Durante anos andou vagando pelos mares do Sul, mas agora comandava uma pequena escuna que velejava entre Honolulu e as outras ilhas do arquipélago. Perten­cia a um chinês, para quem o fato do seu capitão não possuir diploma representava apenas um pretexto para lhe pagar sa­lário mais baixo. Além disto, era sempre vantajoso ter um homem branco a seu serviço.

Depois de ter ouvido tanta coisa a respeito dele, apliquei-me a relembrar com mais exatidão a sua pessoa. Recordei os seus óculos, e os olhos azuis e redondos atrás destes, e assim gradualmente fui reconstruindo o homem inteiro. Era pequeno e nédio, sem ângulos, com uma cara redonda como a lua cheia e um narizinho redondo também. Tinha os cabelos lou­ros e curtos, faces vermelhas e rapadas. Suas mãos eram gor­duchas, com covinhas nos nós dos dedos, as pernas curtas e grossas. Era uma alma jovial, e a trágica experiência por que passara não parecia ter-lhe feito dano. Embora devesse andar pelos trinta e quatro ou trinta e cinco anos, aparentava ser muito mais moço. Mas, afinal de contas, eu só havia reparado nele superficialmente, e sabedor agora dessa catástrofe que lhe arruinara a vida, prometi a mim mesmo examiná-lo melhor quando tornasse a encontrá-lo. É curioso observar as diferenças de reação emocional de cada indivíduo. Alguns podem atravessar batalhas terríveis, o medo da morte iminente, horrores inconcebíveis, conservando ilesa a sua alma — en­quanto que em outros o tremor da lua refletida num mar deserto, ou o gorjeio de um pássaro numa moita bastam para causar uma convulsão capaz de lhes alterar todo o ser. É isto força ou fraqueza, falta de imaginação ou instabilidade de caráter? Não sei. Quando pintava na minha imaginação aque­la cena do naufrágio, com os gritos dos que se afogavam, o terror, e mais tarde a tortura do processo, o amargo pesar dos que choravam os seus mortos, as acerbas invectivas dos jor­nais, a vergonha e a desonra — era com um choque que me lembrava de ter ouvido o Capitão Butler conversar, com a franca obscenidade de um colegial, sobre as raparigas havaia­nas e sobre Iwelei, o bairro das luzes vermelhas, e as suas aventuras eróticas. E ria com facilidade, esse homem que se diria não poder rir nunca mais. Lembro-me dos seus dentes brancos e brilhantes, que eram o maior atrativo da sua pessoa.

Começou a interessar-me, e pensando na sua alegre despreocupação eu esqueci aquela história que ia ouvir dos seus lá­bios. Desejava falar com êle outra vez, mas era a fim de o es­tudar mais acuradamente.

Winter fêz as combinações necessárias, e depois do jan­tar descemos ao porto. Esperava-nos o escaler do navio, e nele embarcamos. A escuna achava-se ancorada à distância, próximo do quebra-mar. Ao abordarmo-la, ouvi os gemidos de uma guitarra havaiana. Subimos a escada de bordo.

         Ele deve estar no camarote disse Winter, que ia na frente.

Era um compartimento pequeno, sujo e desleixado, com uma mesa encostada a uma das paredes, e ao longo das outras três, um largo banco, sobre o qual dormiam aqueles que caíam na asneira de viajar em semelhante navio. Um lampião de querosene dava uma luz baça. Quem tocava a guitarra era uma rapariga indígena que Butler tinha, cingida pela cintura, meio deitado no banco e com a cabeça reclinada no ombro dela.

Não queremos importuná-lo, capitão disse Winter em tom faceto.

         Vão entrando fêz Butler, erguendo-se e apertando-nos a mão. Que é que os amigos tomam?

A noite estava quente, e pela porta aberta se avistavam estrelas sem número num céu quase azul. O Capitão Butler estava de camisa sem mangas, mostrando os seus braços brancos e roliços, e umas calças incrivelmente sujas. Embora des­calço, trazia na cabeça um chapéu de feltro disforme.

         Deixem-me apresentá-los à minha pequena. Não é uma belezinha?

Apertamos a mão a uma linda criatura. Era consideravelmente mais alta que o capitão, e nem mesmo a Mother Hubbard, cujo uso os missionários de uma geração passada tinham imposto aos relutantes indígenas no interesse da decência, lo­grava disfarçar a beleza das suas formas. Era de suspeitar que a idade lhe daria uma certa corpulência, mas a sua juven­tude era vivaz e graciosa. A pele trigueira tinha uma delicada transparência, e os olhos eram magníficos. Os seus cabelos negros, espessos e ricos, formavam uma trança maciça enro­lada em torno da cabeça. Ao sorrir, numa saudação de encan­tadora naturalidade, ela mostrou os seus dentes pequenos, re­gulares e alvíssimos. Era, por certo, uma criatura atraente ao extremo. Via-se logo que o capitão estava loucamente enamora­do dela. Não podia tirar-lhe os olhos de cima. A todo instan­te queria tocá-la. Quanto a isto, era muito fácil de compre­ender. Mas o que se me afigurou mais estranho foi que a ra­pariga parecia amá-lo também. Havia nos seus olhos um brilho que não enganava, e ela tinha os lábios entreabertos como num suspiro de desejo. Aquilo era emocionante, um pouco per­turbador mesmo, pois eu sentia que era importuno. Que vinha fazer ali um estranho, no meio desse casal apaixonado? Fora melhor que Winter não me houvesse trazido. Pareceu-me que o sujo camarote se transfigurara, sendo agora um cenário condizente àquela paixão extrema. Pensei que nunca mais esqueceria aquela escuna ancorada ali no porto de Honolulú coberto de navios, e, todavia isolada do mundo inteiro, sob a imensidade do firmamento estrelado. Comprazia-me em os imaginar singrando, juntos na noite, as extensões vazias do Pacífico, de uma ilha verde a outra. Soprava-me nas faces uma ligeira brisa de romance.

Todavia, era Butler o homem menos romântico do mun­do, e não se percebia facilmente o que havia nele capaz de despertar amor. Com aquelas roupas que trazia agora, parecia mais lambaz que nunca, e os óculos redondos davam à sua cara redonda a aparência de um querubim pernóstico. Ele dava mais os ares de um cura degenerado que de outra coisa. Apimentavam a sua conversação os mais insólitos americanismos, e é por não me ser possível reproduzi-los que eu re­solvi, embora com perda de colorido, transladar na minha lin­guagem, a história que ele me contou aquela noite. Não era, além disso, capaz de construir uma frase sem pôr de permeio uma praga, branda embora, e o seu falar, conquanto só fosse ofensivo para os ouvidos pudibundos, pareceria tosco em le­tra de fôrma. Ele era amigo do pagode, o que talvez expli­casse em não pequena parte os seus triunfos amorosos, pois as mulheres, criaturas frívolas na maioria, têm imenso fastio dos homens que as tratam com seriedade e poucas vezes resis­tem ao gaiato que as faz rir. O senso humorístico delas é primitivo. Diana de Éfeso está sempre pronta a mandar a prudência às urtigas em benefício do palhaço de nariz vermelho que senta em cima do próprio chapéu. Compreendi que o Capitão Butler tinha o seu encanto. Se eu não conhecesse a trágica história do naufrágio, julgaria que aquele homem nun­ca tivera uma preocupação na suá vida.

O nosso amigo havia tangido uma campainha ao chegar­mos. Apareceu então um chinês com mais copos e várias gar­rafas de água de soda. O uísque e o copo vazio do capitão estavam em cima da mesa. Mas ao ver o chinês eu pulei, literalmente, no banco, pois ele era sem dúvida alguma o homem mais feio que já vi. Era muito baixo, mas atarracado, e coxeava fortemente. Usava camisa de meia e um; par de, calças imundas que tinham sido brancas, e, por cima dos cabelos grisalhos e eriçados, um velho chapéu de caçador. Isto seria grotesco em qualquer chinês, mas nele era afrontoso. A sua cara larga e quadrada era perfeitamente chata, como se alguém a tivesse amassado com um formidável murro, e pro­fundamente picada de bexigas. Mas o que êle tinha de mais revoltante era um pronunciado lábio leporino que nunca fora operado, de modo que a fenda subia obliquamente para o nariz, pondo à mostra uma enorme presa amarela. Era horrível. Ele entrou com um toco de cigarro no canto da boca, e isso lhe dava, não sei por que, uma expressão diabólica.

Verteu o uísque nos copos e abriu uma garrafa de soda.

         Não o ágües muito, João, disse o capitão.

Sem dizer nada, êle passou um copo a cada um de nós, de­pois saiu.

Vi que o senhor reparou no meu chim disse o ca­pitão, com um largo sorriso na face luzidia.

Não gostaria de me encontrar com ele numa noite escura respondi.

É verdade que êle não é bonito tornou Butler; e, por algum motivo, disse isto com particular satisfação. Mas uma qualidade tem: é que a gente é obrigado a empinar um copo todas as vezes que olha para ele.

Mas, tendo avistado uma cabaça antiga pendurada à pa­rede, levantei-me para examiná-la. Andava à procura de uma, e esta era a mais bela que eu tinha visto, fora dos museus.

         Ganhei-a de um chefe, numa das ilhas — disse o capi­tão, observando-me. — Eu lhe tinha prestado um serviço, e ele quis recompensar-me bem.

         Não há dúvida que o fez — respondi.

Pretendia fazer discretamente uma oferta ao Capitão But­ler. Não imaginava que ele tivesse grande apego àquele objeto. Mas, como se tivesse lido nos meus pensamentos, ele acrescentou:

Eu não venderia isso nem por dez mil dólares.

Não — apoiou Winter. — Seria um crime vendê-la.

Por quê? — indaguei.

         Isso faz parte da história — replicou Winter. — Não é, capitão?

Claro.

Então vamos ouvi-la.

         A noite ainda está no começo — respondeu o capitão.

A noite avançou um bocado antes que ele satisfizesse a minha curiosidade. Entrementes, bebemos uísque à farta enquanto o capitão narrava as suas recordações de São Fran­cisco, nos seus bons tempos, e dos mares do Sul. Por fim a rapariga pegou no sono. Deitara-se encolhida no banco, com o rosto sobre o braço trigueiro. O seu peito arfava suave­mente ao ritmo da respiração. Adormecida, tinha um ar de mau humor, mas era sombriamente bela.

Ele a havia encontrado numa das ilhas do arquipélago, que a sua velha e desconjuntada escuna percorria constante­mente em busca de carregamentos. Os canacas são pouco ami­gos do trabalho, e os laboriosos chineses, os astutos japoneses arrebataram-lhes o comércio das mãos. O pai dela possuía uma nesga de terra, em que plantava taro e bananas. Tinha também um bote de pesca. Era vagamente aparentado com o imediato da escuna, e foi este quem levou o capitão à sua mesquinha casita de tábua para passarem um serão desocupado. Levaram uma garrafa de uísque e a guitarra havaiana.

O capitão não era nada mono, e quando encontrava uma pequena bonita punha-se logo a cortejá-la. Falava correntemente o idioma nativo, e em pouco tinha vencido a timidez da rapa­riga. Passaram a noitada cantando e dançando, e no fim já estavam os dois sentados juntos, ele com o braço em volta da sua cintura. Aconteceu que a escuna teve de se demorar vá­rios dias na ilha, e o capitão, que jamais fora apressado, não procurou abreviar a sua estada. Sentia-se muito a seu gosto na confortável angrazinha. Depois, a vida era longa. Todas as manhãs e todas as tardes rodeava o seu navio a nado. Ha­via na praia uma mercearia, onde os marinheiros podiam to­mar o seu trago de uísque. Butler passava ali a maior parte do dia, jogando cartas com o proprietário, um mestiço. À noite subiam a colina e iam para a casa da linda pequena. Cantavam uma ou duas cantigas e diziam histórias. Foi o pai dela quem sugeriu que ele a levasse consigo. Os dois discuti­ram amigavelmente o assunto, enquanto a rapariga, aninhada contra o capitão, incitava-o com a pressão das suas mãos e os seus doces olhares sorridentes. Butler engraçara-se dela, e além disso era um homem de instintos domésticos. Às vezes se abor­recia um pouco no mar, e seria agradável ter a bordo aquela encantadora criaturinha. Como era também prático, aprecia­va a utilidade de ter alguém para lhe cerzir as meias e cuidar da sua roupa branca. Estava cansado do lavadeiro chinês, que rasgava tudo em que tocava. Os indígenas sabiam lavar muito melhor, e quando ia a Honolulu, o capitão gostava de fazer figura num terno elegante. Era só questão de combinar o preço. O pai queria duzentos e cinqüenta dólares, mas o capitão, homem de poucos meios, não dispunha dessa quantia. Generoso, entretanto, e com a face macia da rapariga encostada à sua, não pensou em regatear. Propôs entregar cento e cinqüenta dólares à vista e os cem restantes dentro de três meses. Houve vim longo debate, e naquela noite eles não pu­deram chegar a acordo. Mas a idéia inflamara o capitão, que não dormiu tão bem como de costume. Cada vez que ador­mecia, era para sonhar com a rapariga, e acordava com a im­pressão dos seus lábios suaves e sensuais nos dele. Ao amanhecer ele se amaldiçoou por ter esbanjado o seu dinheiro numa noite de má sorte no pôquer, a última vez que estivera em Honolulu. E, se antes estivera enamorado da rapariga, sentia agora uma paixão doida por ela.

— Escuta, Bananas, — disse ao imediato. — Eu tenho de ficar com aquela pequena, custe o que custar. Vai dizer ao velho que eu levarei os cobres hoje de noite, e ela que esteja pronta. Vamos levantar ferro amanhã de manhã.

Não imagino de onde viera ao imediato este excêntrico cognome. Ele se chamava Wheeler, mas apesar do nome inglês, não tinha uma só gota de sangue branco. Era um homem alto e bem formado, embora com tendência a engordar, mas muito mais escuro do que o são habitualmente os nativos de Havaí. Já não era moço, e a sua basta cabeleira crespa estava grisalha. Tinha coroas de ouro nos incisivos superiores, do que muito se envaidecia. Sofria de um estrabismo pronuncia­do, que lhe dava uma expressão carrancuda. Para o capitão, amigo de pilheriar, era aquilo uma inesgotável fonte de hu­morismo. Hesitava tanto menos em meter à bulha o defeito do imediato por perceber que ele se ressentia disso. Bananas, ao contrário da maioria dos indígenas, era um indivíduo taci­turno e o Capitão Butler teria antipatizado com ele, se fosse possível a um homem da sua natureza bonachona antipatizar com quem quer que fosse. Palrador e sociável por índole, gos­tava de ter alguém com quem conversar em viagem, e passar dias a fio com um camarada que nunca abria a boca era coisa de causar desespero a um santo. Ele fazia o possível para es­pertar o imediato — isto é, debicava-o continuamente e sem piedade. Mas não havia muita graça em rir sozinho, e ele chegou à conclusão de que, bêbedo ou são, Bananas não era companheiro para um homem branco. Mas era bom marinhei­ro, e o capitão não ignorava o valor de um imediato em quem ele podia ter confiança. Não raro, vinha para bordo na hora de zarparem, incapaz de coisa alguma, e era um consolo saber que ele podia cozer tranqüilamente a bebedeira no seu beli­che, pois que Bananas atenderia a tudo. Mas era um diabo casmurro, e seria uma festa ter alguém para conversar. A pe­quena calhava-lhe às maravilhas. Além disto, ele deixaria pro­vavelmente de se embebedar quando fosse à terra, sabendo que o esperava uma linda mulherzinha a bordo.

Foi procurar o seu amigo merceeiro, e diante de um copo de gim negociou com ele um empréstimo. Há muitos serviços que um capitão de navio pode prestar a um regatão de praia, e após um quarto de hora de confabulação em surdina (não é necessário que toda a gente saiba da nossa vida) o capitão enfurnou um maço de notas de banco no bolso traseiro das calças, e naquela noite ao voltar para bordo, levava consigo a rapariga.

O que o Capitão Butler previra, à cata de motivos para uma decisão que ele já havia tomado, veio realmente a su­ceder. Não deixou de beber, mas deixou de fazê-lo com ex­cesso. Uma noitada com os rapazes era agradável, especial­mente após uma ausência de duas ou três semanas, mas tam­bém era agradável voltar para junto da sua pequena. Pensava nela, no seu sono suave e no seu jeito de abrir preguiçosa­mente os olhos e estender-lhe os braços quando ele entrava no camarote e se inclinava sobre o leito aquilo era tão bom como um full-hand. Ele descobriu que estava economizando dinheiro, e, como era generoso, cumulou a rapariga de presen­tes: deu-lhe diversas escovas de cabo de prata para o cabelo, uma corrente de ouro, um anel de rubi sintético. Caramba, como era bom viver!

Um ano inteiro se passou, e êle ainda não se cansara dela. Não era desses que se analisam, mas o fato era tão surpreen­dente que lhe chamou a atenção. A rapariga devia ter qual­quer coisa de extraordinário. Ele sentia que se lhe estava afei­çoando cada vez mais, e havia ocasiões até em que se lembra­va de casar com ela.

Um dia, o imediato não apareceu ao jantar nem ao chá. Butler não se preocupou muito com a sua ausência da pri­meira vez, mas à segunda interpelou o cozinheiro chinês:

Que é do imediato? Não vem ao chá?

Não quer disse o chinês.

Ele estará doente?

Não sabe.

No dia seguinte, Bananas tornou a se mostrar, mas vinha mais casmurro que nunca. Terminando o jantar, o capitão perguntou à rapariga o que tinha ele. Ela sorriu e encolheu os seus lindos ombros. Contou que Bananas se enamorara dela, e andava incomodado porque ela o repelira. Butler era bonacheirão e pouco dado a ciúmes. Bananas apaixonado parecia-lhe uma coisa impagável. O seu estrabismo não o talhava para agradar às mulheres. Ao chá, mofou dele alegremente. Fingindo falar à toa, de modo que Bananas não podia ter certeza de que êle sabia alguma coisa, assestou-lhe umas três ou quatro frechadas certeiras. A rapariga não o achou tão engraçado quanto ele pensava ser, e depois do chá pediu-lhe que acabasse com aquilo. Butler admirou-se da sua serie­dade. Ela lhe disse que conhecia o seu povo. Quando lhes fer­via o sangue eram capazes de tudo. Estava um pouco assustada. Ele achou isto tão absurdo que desatou a rir com gosto.

         Se ele te incomodar de novo, ameaça-o de me contar tudo. Isso basta para esfriá-lo.

         Acho que ó melhor despedi-lo.

         Ah, isso não, meu amor. Eu sei o que vale um bom marinheiro. Mas se êle não te deixar em paz, dou-lhe a maior sova que já levou na sua vida.

Talvez a rapariga tivesse um bom senso raro no seu se­xo. Sabia ser inútil discutir com um homem quando ele está resolvido, pois com isso só se consegue aumentar a sua obstinação. Calou-se, portanto. E a velha escuna, singrando o mar silencioso entre aquelas ilhas encantadoras, foi então a cena de um drama de que o pequeno e gorducho capitão não sus­peitava sequer. A resistência da jovem inflamou de tal modo a Bananas que êle deixou de ser um homem não era mais do que um desejo cego. Não a amava com doçura e alegria, mas com uma ferocidade selvagem. O desprezo dela mudara-se em ódio, e às solicitações do imediato respondia com mo­tejos raivosos e ferinos. Mas essa luta prosseguia pela calada, e quando, volvidos alguns dias, o capitão lhe perguntou se Ba­nanas ainda a importunava, ela mentiu.

Mas uma noite, achando-se a escuna ancorada em Honolulu, ele voltou para bordo a tempo de presenciar uma destas tentativas do imediato. Iam zarpar na manhã seguinte. Bananas tinha estado em terra, e embriagara-se com alguma be­bida indígena. Ao aproximar-se o escaler da escuna, o capitão ouviu certos ruídos que o surpreenderam. Subiu rapida­mente a escada de bordo. Avistou Bananas que, fora de si, tentava forçar a porta do camarote. Gritava para a rapariga, jurando que a mataria se ela não o deixasse entrar.

         Que raio de história é esta? bradou Butler.

O imediato soltou o trinco da porta, deitou ao capitão um olhar de ódio selvagem e voltou as costas sem dizer pa­lavra.

Pára aí! Que é que tu querias com essa porta?

O outro, sempre sem responder, olhava-o com raiva reconcentrada e passiva.

Eu te ensino a andar de maroteiras comigo, seu negro zarolho, imundo! disse o capitão.

Era um bom pé mais baixo que o imediato e não podia competir com êle em força, mas estava acostumado a lidar com equipagens indígenas, e tinha a sua soqueira de aço no bolso. Um cavalheiro não usaria semelhante arma, mas também Butler não era um cavalheiro. Nem costumava tratar com cavalheiros. Antes mesmo que Bananas percebesse o que o outro estava fazendo, o punho do capitão, calçado de aço, atingia-o no meio do queixo. Êle caiu como um touro debaixo do malho.

— Isto te ensinará -— disse o capitão.

Bananas não se movia. A rapariga abriu a porta do cama­rote e saiu.

Está morto?

Não.

Chamou dois homens e mandou-os levar o imediato para o seu beliche. Esfregava as mãos de satisfação, e os seus olhos azuis cintilavam atrás dos óculos. Mas a rapariga guar­dava um silêncio estranho. Abraçou-o, como se quisesse pro­tegê-lo contra algum malefício invisível.

Só dois ou três dias depois foi que Bananas deixou a cama. Saiu da cabina com o rosto machucado e inchado. Atra­vés da sua pele escura via-se a equimose lívida. Butler avis­tou a sua figura furtiva no convés e chamou-o. Êle veio em silêncio.

Escuta aqui, Bananas disse o capitão, ajustando os óculos no seu nariz escorregadio, pois fazia muito calor. Eu não vou te mandar embora por causa disso, mas agora ficas­te sabendo que tenho a mão pesada. Não te esqueças disso, e daqui por diante deixa de gracinhas.

Ele estendeu a mão, olhando o imediato com aquele sor­riso benévolo e luminoso que era o seu maior encanto. Ba­nanas agarrou-lhe a mão, torcendo os seus lábios inchados numa expressão diabólica. Para o capitão o incidente estava tão completamente terminado que ao jantar, estando os três à mesa, ele fez pagode da cara de Bananas. Este comia com dificuldade, e, com a fisionomia ainda mais deformada pela dor, estava mesmo repulsivo.

Naquela noite, estando sentado no convés superior a fumar uma cachimbada, o capitão sentiu percorrê-lo um tremor de frio.

         Não sei por que estou tremendo numa noite destas — rosnou ele. — Talvez tenha febre. Andei meio esquisito o dia todo.

Ao deitar-se, tomou uma dose de quinino, e na manhã seguinte estava melhor, mas um pouco murcho, como depois de uma orgia.

         Devo ter o fígado desarranjado — disse ele. E tomou uma pílula.

Passou o dia com pouco apetite, e ao cair da tarde sen­tia-se bem doente. Experimentou outro remédio, que era to­mar dois ou três uísques quentes. Mas isto não lhe aprovei­tou grande coisa, e quando ele se olhou ao espelho na manhã seguinte, achou que a sua cara não estava nada boa.

— Se eu não estiver melhor quando chegarmos a Honolulu, vou consultar o Dr. Denby. Tenho certeza de que ele me endireita.

Não podia comer. Sentia uma grande fadiga em todo o corpo. Dormia bem, mas o sono não lhe refazia as forças: pelo contrário, ele se sentia singularmente exausto ao des­pertar. E o ativo homenzinho, que não podia suportar a ca­ma, tinha agora de fazer esforço para sair do seu beliche. Ao cabo de alguns dias tornou-se-lhe impossível combater aquele langor que pesava sobre ele, e resolveu não levantar mais.

         Bananas pode cuidar do navio — disse. — Não é a primeira vez que o faz.

E ria, lembrando-se de quantas vezes tivera que ficar um dia inteiro estendido no beliche, completamente inútil, de­pois de uma noitada com os "rapazes". Isto acontecia quan­do ele ainda não tinha a sua pequena. Sorriu para ela, apertando-lhe a mão. A rapariga mostrava-se perplexa e aflita. Percebendo que estava preocupada com o seu estado, Butler procurou tranqüilizá-la. Nunca estivera doente na sua vida, e com uma semana de repouso ficaria são como um boi.

Seria melhor que tivesses mandado Bananas embora disse ela. Desconfio que ele seja a causa disto.

Foi uma sorte eu não o ter feito, do contrário não teria ninguém para marear o navio. Um bom marinheiro vale ouro. Os seus olhos azuis, um tanto pálidos agora e com a esclerótica amarelada, faiscaram. Tu pensas que ele está me envenenando, benzinho?

Ela não respondeu, mas foi conferenciar com o cozinhei­ro chinês, e passou a ter muito cuidado com a comida do ca­pitão. Mas ele comia bem pouco agora, e era com grande dificuldade que ela o fazia tomar duas ou três xícaras de caldo por dia. Evidentemente, o seu estado era grave. Ele perdia peso rapidamente, e a sua cara rotunda estava pálida e com as feições estiradas. Não sentia dores, apenas ia enfraquecendo e enlanguescendo dia a dia. Consumia-se a olhos vistos. A presente viagem circular durou umas quatro semanas, e quando atingiram Honolulu, o capitão estava um pouco ansioso com a sua saúde. Havia mais de uma quinzena que não deixava a cama, e estava muito fraco para ir ao doutor. Mandou um re­cado pedindo-lhe que viesse a bordo. O doutor examinou-o, mas não conseguiu determinar a natureza da sua doença. A temperatura era normal.

         Escute, capitão disse êle. Vou ser franco com o senhor. Não sei o que o senhor tem, e um simples exame não me pode informar grande coisa. Venha para o hospital, e nós o poremos em observação. No seu organismo não há nada de anormal disso tenho certeza. A minha impressão é que umas poucas semanas de hospital o restaurariam.

         É, mas deste navio não saio.

Os proprietários chineses não tinham consideração, disse ele. Se deixasse a escuna por doença talvez o proprietário o despedisse, e ele não podia arriscar-se a perder o lugar. Enquanto ficasse ali estava protegido pelo contrato. Tinha um imediato de primeira. Além disso, não podia deixar a rapari­ga. Não havia melhor enfermeira; e se alguém podia curá-lo, era ela. Todos tinham de morrer um dia e ele só queria que o deixassem em paz. Não quis ouvir as instâncias do dou­tor, que acabou desistindo.

Vou lhe dar uma receita — disse ele em tom de dú­vida. — Veremos se lhe faz bem. É bom ficar de cama por algum tempo ainda.

Não há perigo de eu levantar, doutor — respondeu o capitão. — Estou fraco como uma velha.

Mas, se o doutor não acreditava na sua receita, muito menos ele. Quando ficou só, divertiu-se acendendo o seu cha­ruto com ela. Tinha de procurar um divertimento qualquer, pois o charuto não lhe sabia a nada, e ele só fumava para se convencer de que não estava tão mal assim. Aquela noite, sabendo-o doente, vieram visitá-lo dois mestres de cargueiros, seus amigos. Discutiram a sua enfermidade com a assistência de uma garrafa de uísque e uma caixa de charutos filipinos. Um deles lembrava-se de um seu imediato que sofrera da mesma esquisita consumação. Nenhum doutor dos Estados Unidos pudera curá-lo. Então ele leu um anúncio de remédio no jornal, e achou que não perdia nada em o experimentar. Tomou dois frascos, e estava forte como nunca. Mas a doen­ça dera ao Capitão Butler uma lucidez inédita e estranha. Enquanto os ouvia conversar, parecia-lhe que estava lendo os seus pensamentos. Achavam que ele ia morrer. E quando os outros foram embora, o capitão ficou com medo.

A rapariga adivinhou-lhe esta fraqueza. Era a sua oportunidade. Tinha insistido com ele para que a deixasse cha­mar um curandeiro indígena. Fez-se então mais premente. Ele a escutava com um olhar apoquentado. Hesitava. Era esqui­sito que o médico americano não soubesse dizer-lhe qual era a sua doença. Mas não queria que ela o julgasse amedrontado. Se ia deixar um diabo de negro vir examiná-lo, era só para lhe ser agradável. Disse-lhe que fizesse o que entendesse.

Na outra noite veio o curandeiro. O capitão estava so­zinho, meio adormecido, no camarote foscamente alumiado por ura lampião de querosene. A porta abriu-se de mansinho e a rapariga entrou na ponta dos pés. Alguém a seguia silenciosamente. O capitão sorriu destes modos misteriosos, mas estava já tão fraco que o seu sorriso não era mais que um rebrilhar dos olhos. O curandeiro era um velhinho magríssimo e todo enrugado, completamente calvo, com cara de ma­caco, curvado e nodoso como uma velha árvore. A sua apa­rência pouco tinha de humana, mas os olhos eram muito bri­lhantes, parecendo luzir na penumbra com uma fosforescên­cia vermelha. Trajava um par de calças rotas e imundas, tra­zendo o torso nu. Acocorou-se no chão, e esteve uns dez mi­nutos com os olhos fitos no capitão. Depois tateou-lhe as pal­mas das mãos e as solas dos pés. A rapariga o observava com um olhar aterrado. Ninguém falava. Então ele pediu um ob­jeto qualquer usado pelo capitão. Ela deu-lhe o velho chapéu de feltro que o capitão trazia constantemente na cabeça, e o velho tornou a sentar-se no soalho com ele, segurando-o fir­me com ambas as mãos. E, ao mesmo tempo que se embalava lentamente para trás e para diante, resmungava baixinho uma algaravia incompreensível.

Por fim deu um pequeno suspiro e largou o chapéu. Tirou do bolso das calças um cachimbo e acendeu-o. A rapariga foi sentar-se ao seu lado. Ele segredou-lhe qualquer coisa que a fez estremecer violentamente. Estiveram alguns minutos conversando baixinho, em voz rápida, depois levantaram-se. Ela deu-lhe dinheiro e abriu a porta. O curandeiro foi-se, tão si­lenciosamente como tinha vindo. Então ela aproximou-se do capitão e curvou-se sobre ele para lhe falar ao ouvido.

— É um inimigo que está rezando para morreres.

— Não digas tolices, benzinho — disse ele com impaciência.

— É a verdade. A pura verdade. Foi por isso que o dou­tor americano não pôde descobrir o que tinhas. A minha gente sabe fazer dessas coisas. Eu já vi. Mas pensava que tu não corrias perigo por seres branco.

Não tenho inimigos.

E Bananas?

—        Para que há de ele querer a minha morte?

         Tu devias tê-lo mandado embora antes que começasse.

         Se isto não é mais que o feitiço de Bananas, dentro de poucos dias estarei sentado e alimentando-me.

Ela guardou silêncio por algum tempo, olhando-o com atenção.

         Então não sabes que estás morrendo? — disse por fim.

Isto era o que pensavam os dois capitães de cargueiro — apenas não o tinham dito. Um estremecimento percorreu o rosto lívido do capitão.

         O doutor disse que eu não tenho doença nenhuma. Bas­ta-me passar uns dias quieto na cama, e ficarei bom.

Ela encostou-lhe os lábios à orelha, como se tivesse medo de que o próprio ar a ouvisse:

         Estás morrendo, morrendo, morrendo! Vais-te finar com a lua.

         É bom que eu fique sabendo.

—        Vais-te finar com a lua, a não ser que Bananas morra primeiro.

Ele não era timorato, e já se tinha refeito do choque que lhe produzira, mais do que as palavras, a silenciosa veemên­cia dela. Tornou a faiscar nos seus olhos um sorriso.

Prefiro correr o risco, meu amor — disse ele.

Faltam dez dias para a lua nova.

O tom da sua voz ao dizer isto fe-lo pensar.

         Olha, minha pequena, tudo isso é besteira. Não acre­dito uma só palavra desta história. Mas não quero que faças nada ao Bananas. Ele não é uma beleza, mas não se encontra facilmente um imediato igual.

Teria dito muito mais, se não estivesse exausto. Sentia repentinamente uma grande fraqueza. Era sempre a esta hora que piorava. Cerrou os olhos. A rapariga ficou um minuto a observá-lo, depois esgueirou-se para fora do camarote. A lua, quase cheia no céu sem nuvens, fazia uma esteira de prata no mar tenebroso. Ela olhou o astro com terror, sabendo que com ele morreria o homem que amava. Sua vida estava nas mãos dela. Só ela podia salvá-lo, mas devia ser astuta, pois que o inimigo o era também. Sentiu que alguém a olhava. Sem se voltar, pelo súbito temor que a assaltara, adivinhou que ali, na sombra, os olhos ardentes do imediato estavam cra­vados nela. Não sabia o que iria fazer. Se ele pudesse ler-lhe nos pensamentos, estava já descoberta. Com um esforço, esva­ziou o seu espírito de todo conteúdo. Só a morte de Bananas salvaria o seu amante, e ela podia causar-lhe a morte. Sabia que se conseguisse fazê-lo olhar o seu reflexo numa cabaça cheia d'água, e se agitasse a água desmanchando esse reflexo, ele cairia fulminado no mesmo instante. Porque a imagem era a sua alma. Mas ninguém conhecia o perigo melhor do que ele. Só poderia induzi-lo a isso por meio de um estratagema que adormecesse todas as suas suspeitas. Ele não devia desconfiar um só instante que tinha um inimigo à espreita para destruí-lo. Ela sabia agora o que lhe cabia fazer. Mas o tempo era curto, terrivelmente curto. Momentos depois, percebeu que o imediato se tinha afastado. Respirou mais livremente.

Passados dois dias, a escuna fez-se ao mar. Faltavam agora oito dias para a lua nova. O aspecto do Capitão Butler era horrí­vel. Estava reduzido a pele e ossos, e não se podia mover sem ser ajudado. Porém ela ainda não ousava fazer nada. Devia ter paciência. O imediato era fino, fino... A escuna abicou numa das ilhas e largou carga. Já restavam sete dias apenas. Era o momento de começar. Ela tirou alguns objetos do ca­marote que partilhava com o capitão, empacotou-os, e pô-los na cabina do convés, onde tomava as refeições em companhia de Bananas. Quando entrou lá para jantar, percebeu por um movi­mento brusco do imediato que ele estivera considerando o pacote. Nenhum dos dois falou, mas a rapariga sabia o que o outro suspeitava: ela devia estar-se preparando para aban­donar a escuna. Bananas olhava-a com ar de zombaria. Pouco a pouco, como para impedir que o capitão percebesse o que ela estava fazendo, trouxe para a cabina tudo que lhe perten­cia, e mais algumas peças de roupa do capitão, empacotando tudo. Afinal Bananas não se pôde conter, e, apontando para uma fatiota de brim:

Que é que tu vais fazer com isso? — perguntou. Ela encolheu os ombros.

Vou voltar para a minha ilha.

Ele soltou uma risada que contorceu toda a sua cara enfarruscada: o capitão estava à morte e ela queria safar-sé com tudo que lhe caía debaixo das mãos.

         E se eu disser que não te deixo levar essas coisas? Elas pertencem ao capitão.

         Ele não precisas delas.

Havia uma cabaça pendurada na parede. Era a mesma que eu tinha visto ao entrar no camarote. A rapariga dependurou-a. Como estava coberta de pó, derramou nela um pouco de água de uma moringa e pôs-se a lavá-la com os dedos.

Que é que estás fazendo?

Posso vendê-la por cinqüenta dólares — disse ela.

Se quiseres levá-la, terás de me pagar.

Que é que tu queres?

Bem sabes o que eu quero.

Um ligeiro sorriso passou pelos lábios da rapariga. Ela deitou-lhe um rápido olhar, e voltou as costas. O imediato suspirou de desejo. Ela encolheu levemente os ombros. Com um salto selvagem, Bananas correu para ela e agarrou-a nos braços. Então ela riu-se. Pôs os seus braços redondos e macios em volta do pescoço dele e abandonou-se-lhe voluptuosamente.

Ao romper da manhã, despertou-o de um sono profundo. Os primeiros raios do sol insinuaram-se obliquamente na cabina. Ele apertou-a contra o coração. Depois disse-lhe que Butler não tinha mais que um dia ou dois de vida, e o proprietário da escuna não encontraria tão facilmente um outro capitão branco. Oferecendo-se por um salário menor, Bananas ficaria no seu lugar, e a rapariga podia continuar com ele. Contemplava-a apaixonadamente. Ela enroscava-se nele. Beijou-lhe os lábios, à moda estrangeira, como o capitão a tinha ensinado a beijar. E prometeu de ficar. Bananas estava ébrio de felici­dade. Era chegado o momento.

Ela levantou e foi à mesa para se pentear. Como não ha­via espelho, olhou-se na água da cabaça. Compôs a sua bela cabeleira. Então chamou Bananas com um aceno, e apontando para a cabaça:

         Há alguma coisa no fundo — disse.

Instintivamente, sem suspeitar de nada, Bananas olhou para dentro. O seu rosto espelhou-se ha superfície. Rápida como o relâmpago, ela feriu violentamente a água com as duas mãos, que foram tocar o fundo, fazendo-a jorrar para cima. O reflexo desapareceu. Bananas pulou para trás com um grito rouco, e olhou-a. Ela enfrentava-o ereta, com uma expressão de ódio triunfante. Nos olhos do imediato pintou-se o horror. As suas grossas feições contorceram-se de agonia, e com um baque, como se houvesse tomado um veneno violento, tombou por terra, encolhido sobre si mesmo. Um grande estremecimento passou-lhe pelo corpo, depois ficou imóvel. Ela inclinou-se e olhou-o friamente. Pôs-lhe a mão no coração e arregaçou a sua pálpebra inferior para examinar o olho. Ele estava bem morto.

Foi ao camarote do Capitão Butler. As faces deste haviam tomado uma leve coloração. Êle olhou-a com espanto.

         Que foi que aconteceu? sussurrou.

Eram estas as primeiras palavras que pronunciava depois de quarenta e oito horas.

Não aconteceu nada disse ela.

Estou todo esquisito.

Cerraram-se-lhe os olhos, e ele adormeceu. Dormiu um dia e uma noite, e ao acordar pediu de comer. Dentro de uma quinzena estava bom.

Passava da meia-noite quando Winter e eu voltamos para Honolulu no bote. Tínhamos bebido incontáveis uísques com soda.

Que é que você pensa disso tudo? perguntou Winter.

Que pergunta! Se você quer saber se eu tenho alguma explicação a propor, respondo-lhe que não.

O capitão acredita piamente em tudo.

Está-se vendo. Mas, você sabe, o que mais me interessa não é se isso é verdade ou mentira. O que me interessa é que tais coisas possam suceder a tal gente. Quisera saber o que tem esse homenzinho vulgar para despertar tão grande paixão naquela adorável mulher. Observando-a ali, a dormir enquanto êle contava a história, vieram-me à cabeça certas idéias fantás­ticas sobre o poder que tem o amor, de operar milagres.

Mas não é essa a pequena disse Winter.

Como? Que quer você dizer?

Não reparou no cozinheiro?

Naturalmente. É o sujeito mais feio que tenho visto.

Foi por isso que Butler o empregou. A rapariga fugiu com o cozinheiro chinês, o ano passado. Esta já é outra. Faz apenas dois meses que está com ele.

         Ora essa!

         Ele acha que com este cozinheiro não há perigo. Mas no seu lugar eu não teria tanta confiança. Não sei o que têm os chineses, mas quando um deles assenta de conquistar as graças de uma mulher, ela não pode resistir-lhe.

 

Chuva

Era quase hora de ir para a cama. Quando acordassem na manhã seguinte, avistariam terra. O Dr. Macphail acendeu o cachimbo e, debruçando-se à amurada, procurou no céu o Cruzeiro do Sul. Depois de dois anos no front e duma ferida que levara para cicatrizar mais tempo do que devia, ele se sentia alegre por poder descansar tranqüilamente em Ápia pelo menos doze meses. Só a viagem já lhe fazia bem. Como alguns passageiros deixassem o navio no dia seguinte em Pago-Pago, houvera um baile a bordo aquela noite. Nos ouvidos do médico ainda martelavam as notas metálicas da pianola. Mas o convés finalmente ficara em calma. A poucos passos de onde estava, o Dr. Macphail viu a esposa estendida numa preguiçosa, conversando com os Davidsons. Caminhou para ela. Sentou-se debaixo duma lâmpada e tirou o chapéu, mostrando os cabe­los muito vermelhos, com uma falha na coroa da cabeça, onde a pele era rosada e pintalgada de sardas, como acontece em geral com as pessoas ruivas. Era o Dr. Macphail um homem de quarenta anos, delgado de corpo, o rosto sério e de ar um tanto pedante. Falava com um sotaque escocês e sua voz era baixa e tranqüila.

Entre os Macphails e os Davidsons, que eram missionários, estabelecera-se essa intimidade de bordo que nasce mais do contato diário que de qualquer afinidade de gosto. O laço prin­cipal que os prendia era o sentimento de desaprovação de am­bos os casais para com os homens que passavam seus dias e suas noites na sala de fumar, jogando pôquer ou bridge e bebendo. A Sra. Macphail não deixava de se sentir lisonjeada pelo fato de, ela e seu marido, serem a bordo as únicas pes­soas com quem os Davidsons desejaram fazer relações. E até o doutor, que podia ser um tímido mas não um tolo, de ma­neira meio inconsciente era sensível a essa distinção. Só por espírito de contradição é que à noite, no camarote, ele se per­mitia criticá-los.

A Sra. Davidson estava dizendo que não sabia como iam suportar esta viagem sem a nossa companhia — contava a Sra. Macphail, penteando com cuidado a cabeleira postiça. — Acha que nós somos as únicas pessoas a bordo com quem se pode tratar.

Eu não julgava que um missionário fosse uma pessoa tão importante que pudesse se dar esses luxos.

Não se trata de luxos. Compreendo perfeitamente o que ela quer dizer. Não seria nada agradável para os Davidsons misturar-se com toda aquela gente ordinária da sala de fumar.

O fundador da religião deles não era tão exclusivista assim — observou o Dr. Macphail com uma risada abafada.

Já te pedi mil vezes que não brinques com religião. Eu quisera ter um temperamento como o teu, Alec. Nunca olhas o que as pessoas têm de melhor.

O médico, com seus olhos pálidos e azuis lançou para a mulher um olhar oblíquo, mas não respondeu. Casado havia muitos anos, ele sabia que o melhor caminho para a paz era deixar a esposa com a última palavra. Despiu-se primeiro que ela e, subindo para o leito superior, acomodou-se para ler até que o sono viesse.

Ao chegar ao tombadilho na manhã seguinte, viu que es­tavam já perto da terra. Olhou para ela com olhos gulosos. Avistava-se fina faixa de praia cor de prata a se erguer rá­pida em colinas recobertas, até o topo, de vegetação luxurian­te. Os coqueiros, grossos e verdes, desciam até a beira d'água e no meio deles se viam as casas de capim dos samoanos. Aqui e ali brilhava, branca, uma ou outra igrejinha. A Sra. David­son subiu também e postou-se ao lado do doutor. Estava ves­tida de preto e trazia ao redor do pescoço uma corrente de ouro, da qual pendia pequena cruz. Era uma mulher miúda, de cabelos foscos e castanhos, arranjados de maneira muito complicada; tinha olhos azuis e salientes, por trás do pince-nez invisível. Seu rosto era comprido, como um focinho de car­neiro. Não dava, entretanto, a impressão de estupidez, mas sim de uma perspicácia extrema; tinha os movimentos rápi­dos dum pássaro. O que havia nela de mais notável era a voz: alta, metálica e sem inflexão; feria o ouvido com uma mono­tonia dura; irritava os nervos como o estridular impiedoso duma broca pneumática.

A senhora deve achar isso parecido com a sua terra disse o Dr. Macphail, com o seu sorriso tênue e difícil.

As nossas ilhas são baixas; o senhor sabe, não são como estas. Coral. Estas são vulcânicas. Temos ainda mais uns dez dias de viagem para chegar lá.

Dez dias? Nesta parte do mundo é o mesmo que dizer: logo ali no outro lado da rua...troçou o Dr. Macphail.

Bom, isso é uma maneira um tanto exagerada de ver as coisas, mas nos mares do Sul a gente olha a distância dum modo diferente. Sendo assim, o senhor tem razão.

O Dr. Macphail suspirou de leve.

         Estimo que não fiquemos estacionados aqui continuou ela. Dizem que Pago-Pago é um lugar difícil para se trabalhar. Os vapores que tocam na ilha deixam o povo desinquieto; e depois há também um posto naval, de efeito pernicioso so­bre os indígenas. Na nossa zona não temos dificuldades dessa ordem a combater. Está claro que existem lá uns dois negocian­tes. Mas temos o cuidado de fazer que andem direito; e quan­do não andam, tornamo-lhes a vida tão difícil que eles aca­bam deixando a ilha com o maior prazer.

Ajustando os óculos no nariz, ela contemplou a ilha verde com um olhar implacável.

         O trabalho dos missionários aqui é quase tempo per­dido. Não me canso de dar graças a Deus por Ele nos ter poupado esse desgosto.

O distrito de Davidsqn consistia de um grupo de ilhas que ficavam ao norte de Samoa; achavam-se elas a larga dis­tância umas das outras e o missionário com freqüência tinha de vencer longos trechos em canoa. Quando isso acontecia, a esposa ficava no seu quartel-general e tomava conta da Missão. O Dr. Macphail sentiu o coração desfalecer ao pensar na eficiência com que aquela mulher devia dirigir o trabalho. Ela falava na depravação dos naturais com uma voz que coisa alguma faria calar, mas ao mesmo tempo com um horror cheio duma untuosidade veemente. Seu senso de delicadeza era sin­gular. Logo no princípio, o Dr. Macphail ouvira estas pala­vras da missionária:

         O senhor sabe, os costumes matrimoniais dos indígenas, logo que chegamos às ilhas, eram tão escandalosos que nem posso descrever. Mas vou contar tudo à sua senhora e ela depois lhe dirá.

Depois disso Macphail vira sua esposa e a Sra. Davidson, com as cadeiras preguiçosas muito juntas, empenhadas numa conversação animada que durou perto de duas horas. Passando por elas, a caminhar dum lado para outro por exercício, êle ouvira a voz da Sra. Davidson num cochicho agitado que lem­brava o som distante duma torrente rolando na montanha; e vira pela boca aberta e pelo rosto pálido da esposa que ela estava experimentando uma sensação alarmante. À noite no camarote ela lhe repetiu com respiração difícil tudo quanto a outra lhe havia contado.

         Então, que foi que eu lhe disse? exclamou a Sra. David­son, exultante, na manhã seguinte. O senhor já ouviu falar em coisa mais horrenda? Não é de admirar que eu não pudes­se contar-lhe, não é mesmo? Apesar do senhor ser um médico...

A Sra. Davidson escrutou o rosto do doutor. Mostrou uma ansiedade dramática por ver se havia conseguido o efeito desejado.

É para admirar que o nosso coração se tenha apertado quando chegamos lá por vez primeira? O senhor é capaz de não acreditar quando eu lhe disser que não nos foi possível achar uma única moça direita em qualquer das aldeias.

Ela usava a palavra direita duma maneira rigorosamente técnica.

O Sr. Davidson e eu discutimos o assunto e achamos que a primeira coisa a fazer era proibir a dança. Os nativos eram loucos pela dança.

Eu não era de todo infenso à dança no tempo de mo­ço observou o Dr. Macphail.

Eu logo adivinhei isso quando ouvi o senhor convidar a sua senhora para dar umas voltas a noite passada. Acho que não há nenhum mal em um cavalheiro dançar com a sua espo­sa, mas senti um alívio quando a Sra. Macphail recusou. Na­quelas circunstâncias achei melhor que não nos misturássemos com os outros.

         Que circunstâncias?

A Sra. Davidson lançou-lhe um rápido olhar através das lentes do pince-nez, mas não lhe respondeu à pergunta.

         Mas entre os brancos a coisa não é bem a mesma — continuou ela — embora eu deva dizer que concordo com o Sr. Davidson, que declara que não consegue compreender como um marido possa ficar parado olhando sua mulher nos braços de outro homem. E no que diz respeito à minha pessoa, posso afirmar que não dancei nem dois passos desde que me casei. Mas a dança dos indígenas é um caso completamente diferente. Não é apenas imoral em si, mas conduz distinta­mente à imoralidade. No entanto, dou graças a Deus por à termos aniquilado. E não acho que esteja errada quando digo que ninguém tem dançado no nosso distrito nestes últimos oito anos.

Quando chegavam à embocadura do porto, a Sra. Macphail reuniu-se a eles. O vapor fez uma manobra hábil e entrou lento. Era um grande porto cercado de terra e suficientemente grande para abrigar uma frota de navios de guerra; em torno dele se erguiam, altas e íngremes, colinas verdes. Perto da entrada, exposta aos ventos do mar, ficava a casa do go­vernador, no meio dum jardim. A bandeira norte-americana flutuava lânguida num mastro. O navio passou por dois ou três bangalôs bonitos, por uma cancha de tênis e por fim chegou ao cais orlado de armazéns. O Sr. Davidson apontou para a escuna que se achava ancorada a duzentos ou trezentos metros. Era a embarcação que devia levá-los a Ápia. Via-se uma multidão de indígenas agitados, barulhentos e bem-hu­morados, vindos de todas as partes da ilha, alguns por curio­sidade, outros para fazer permutas com os viajantes que iam para Sydney. Os naturais traziam abacaxis e enormes cachos de bananas, tecidos de tapa, colares de conchas ou de dentes de tubarão, boiões de kava e modelos de canoas de guerra. Marinheiros americanos, limpos e alinhados, rosto escanhoado e de expressão franca, caminhavam à toa no meio dos indí­genas. Via-se também um pequeno grupo de oficiais.

Enquanto as bagagens estavam sendo desembarcadas, os Macphails e a Sra. Davidson contemplavam a multidão. O Dr. Macphail olhou para os sinais da framboesia, doença de que a maioria das crianças e dos rapazes parecia sofrer. Eram fe­ridas que desfiguravam, úlceras horrendas. E o olho profis­sional do médico brilhou quando ele viu, pela primeira vez em sua vida, casos de elefantíases, homens que passeavam braços enormes e pesados ou que arrastavam pernas descomunalmente grossas. Tanto os homens como as mulheres usa­vam o lava-lava.

É um costume muito indecente — disse a Sra. David­son. — O Sr. Davidson acha que devia ser proibido pela lei. Como podemos esperar moralidade duma pessoa que anda vestida apenas com uma tira de algodão vermelho ao redor da cintura?

É um costume muito próprio para o clima — observou o doutor, enxugando o suor da testa.

Agora que se achavam em terra firme, o calor era opres­sivo, embora estivessem nas primeiras horas da manhã. Cir­cundado de colinas, Pago-Pago não gozava da menor aragem.

         Nas nossas ilhas — continuou a Sra. Davidson com a sua voz estridula, — conseguimos abolir praticamente o uso do lava-lava. Só uns poucos velhos continuam ainda a usá-lo; mas não passa disso. As mulheres todas aderiram à Mother Hubbara e os homens usam calças e camisola. Logo que chegamos, o Sr. Davidson escreveu em um de seus relatórios: "Os habitantes destas ilhas só poderão ser inteiramente cristianizados depois que cada rapaz de mais de dez anos for obri­gado a usar um par de calças."

Mas a Sra. Davidson havia lançado dois ou três de seus olhares de pássaro para as pesadas nuvens cinzentas que vi­nham flutuando por sobre a embocadura do porto. Começaram a cair algumas gotas de chuva.

         É melhor procurarmos um abrigo — sugeriu ela.

Caminharam com toda a multidão para dentro dum bar­racão coberto de ferro ondeado. A chuva começou a cair em torrentes. Ficaram ali por algum tempo. O Sr. Davidson ao cabo de algum tempo reuniu-se ao grupo. Mostrara-se realmente cortês para com os Macphails durante a viagem; mas não tinha a sociabilidade da mulher, passara muito de seu tem­po a ler. O missionário era uma criatura silenciosa e um tanto taciturna. Sentia-se que a sua afabilidade era um dever que ele se impunha como bom cristão; o homem era por natureza reservado e até mesmo áspero. Tinha um aspecto singular. Muito alto e magro, suas pernas eram longas e de articulações frouxas. Suas faces, escarvadas e de zigomas curiosamente sa­lientes. Tinha ele um ar tão cadavérico que todos ficavam surpreendidos ao ver naquele rosto uns lábios tão cheios e sensuais. Davidson usava cabeleira muito longa. Tinha olhos escuros, metidos em órbitas fundas, graúdos e trágicos; e suas mãos de dedos grandes e longos, eram finamente modeladas; davam-lhe um aspecto de grande força. Mas o que havia de mais notável naquele homem era a sensação que ele dava de fogo abafado. Era uma coisa impressionante e vagamente per­turbadora. Ali estava uma pessoa com quem a intimidade era impossível.

O missionário trazia agora notícias desagradáveis. Irrom­pera entre os canacas uma epidemia de sarampo, doença séria e freqüentemente fatal. Manifestara-se um caso entre os tripulantes da escuna que devia levá-los até Ápia. O doente fora trazido para terra e posto no hospital, na estação de quaren­tena. De Ápia, porém, haviam chegado instruções telegráfi­cas dizendo que só permitiriam que a escuna entrasse no porto depois que tivessem a certeza de que nenhum outro membro da tripulação estava atacado de sarampo.

Isto significa que temos de ficar aqui pelo menos dez dias.

Mas estão precisando de mim com urgência em Ápia — protestou o Dr. Macphail.

Não se pode fazer nada. Se não se manifestarem mais casos a bordo, a escuna terá licença de largar com os passa­geiros brancos, mas todo o transporte de indígenas ficará proibido por três meses.

         Haverá hotel por aqui? — perguntou a Sra. Macphail. Davidson soltou uma risada gutural.

—        Nenhum.

         Que é que vamos fazer então?

         Estive conversando com o governador. Há um comerciante ali na praia que tem quartos para alugar. Proponho que, logo que a chuva parar, vamos até lá ver o que se pode con­seguir. Não esperem conforto. Temos de dar graças se conse­guirmos uma cama para dormir e um teto para nos abrigar.

Mas a chuva dava mostras de que ia parar e, por fim, com guarda-chuvas e impermeáveis, os dois casais deixaram o abrigo. Não encontraram cidade, mas simplesmente um gru­po de edifícios oficiais, uma ou duas lojas e, no fundo, no meio de coqueiros e arbustos, algumas habitações de indígenas. A casa que eles procuravam ficava cerca de cinco minutos de marcha do cais. Era uma casa de madeira de dois andares, com uma larga varanda em ambos os pisos e um telhado de ferro ondulado. O proprietário era um mestiço chamado Horn, casado com uma indígena da qual tinha vários filhinhos de cor parda. No andar térreo ficava a loja onde ele vendia conser­vas e tecidos de algodão. Os quartos que Horn mostrou aos viajantes eram quase despidos de mobília. No dos Macphails não havia mais que uma cama tosca e velha com um mosqui­teiro esfarrapado, uma cadeira raquítica e um lavatório. O casal olhou em torno consternado. A chuva caía sem cessar.

         Só vou tirar da mala o indispensável para passarmos estes dias — disse a Sra. Macphail.

Quando começou a abrir a mala a missionária entrou no quarto. Revelava muita vivacidade e animação. A tristeza ambiente não exercia nenhuma influência sobre ela.

Aceita um conselho? Pois lhe digo que a senhora vai precisar é de uma agulha com linha para consertar logo o mosquiteiro. Do contrário não vão conseguir dormir nem um minutinho esta noite.

Os mosquitos então prometem ser terríveis? — per­guntou o Dr. Macphail.

É tempo deles. Quando o convidarem para uma festa na Casa do Governo de Ápia, o senhor vai notar que todas as senhoras ganham uma fronha para colocar nela... as... as suas extremidades...

Eu só queria que a chuva parasse um momento — disse a Sra. Macphail. — Se viesse o sol eu podia fazer uma tentativa mais entusiasmada para tornar este quarto confor­tável.

         Oh, se a senhora conta com o sol então terá de esperar muito. Pago-Pago é o lugar onde chove mais em todo o Pacífico. A senhora vê, as colinas e essa baía atraem a água. De qualquer modo nesta época do ano o que se pode esperar é chuva mesmo.

Olhou primeiro para Macphail e depois para a esposa, que andava com ar desamparado dum lado para outro do quarto, como uma alma perdida. Franziu os lábios. Viu que tinha de tomar conta daquele casal. Gente sem iniciativa como aquela sempre a deixava impaciente. Mas ela sentia uma co­ceira nas mãos, uma ânsia de pôr tudo em ordem numa ordem que para ela se oferecia com uma grande naturalidade.

         Olhe, dê-me uma agulha com linha que eu remendo esse mosquiteiro, enquanto a senhora continua a desfazer as malas. A primeira refeição é à uma hora. Dr. Macphail, é melhor o senhor descer ao cais e ver se as suas malas grandes foram colocadas em lugar seco. O senhor sabe como são os indígenas; essa gente é capaz de deixar a bagagem exposta à chuva todo o tempo.

O doutor tornou a pôr o impermeável e desceu. Mr. Horn achava-se à porta conversando com o contramestre do navio no qual eles haviam chegado e com uma passageira de segunda classe que o Dr. Macphail vira várias vezes a bordo. O contramestre, um sujeito pequeno e enrugado, extremamen­te sujo, inclinou a cabeça quando o médico passou.

         Essa história de sarampo é um negócio pau, doutor disse ele. Vejo que o senhor já se aboletou...

O Dr. Macphail achou que o marítimo tomava muita familiaridade; mas, homem tímido, não era com facilidade que se ofendia.

É, conseguimos um quarto lá em cima.

Miss Thompson também ia com os senhores para Ápia, por isso eu a trouxe para cá.

O contramestre apontou com o polegar para a mulher que se achava a seu lado. Teria ela talvez vinte e sete anos, era fornida de carnes e bonita duma maneira tosca. Trazia um vestido branco e um grande chapéu da mesma cor. Seus tornozelos gordos metidos em meias de algodão saltavam por cima do cano alto das botinas de couro glacê. Ela sorriu para Macphail um sorriso aliciante.

O camarada esse estava vendo se me chupava um dólar e meio por dia por um quartinho vagabundo — explicou ela numa voz rouca.

Eu lhe garanto que ela é uma amiga minha, Jo — dis­se o contramestre. — Não pode pagar mais de um dólar e você deve ficar com ela por esse preço.

O negociante era gordo, liso e tranqüilamente sorridente.

Bom, se as coisas são assim, Sr. Swan, vou ver o que se pode fazer. Vou falar com a minha mulher, e se nós achar­mos que podemos fazer um abatimento, então fazemos.

Não venha com esse jogo para cima de mim — pro­testou Miss Thompson. — Vamos combinar a coisa agora. Pago um dólar por dia e nem um níquel mais.

O Dr. Macphail sorriu. Admirou o caradurismo com que a mulher ajustava os seus negócios. O doutor era dessa espécie de homem que sempre paga o que lhe pedem. Preferia pagar demais a regatear. O negociante suspirou.

         Bom, para servir o Sr. Swan aceito a proposta.

São outras falas — disse Miss Thompson. — Vamos en­trar e tomar um traguinho. Sr. Swan, me traga aquela ma­leta que eu tenho lá dentro um uísque dos bons mesmo. Ve­nha também, doutor.

Oh! Acho que não vou; muito obrigado — respondeu ele. — Eu ia justamente descer para ver se a nossa bagagem está em ordem.

Saiu para a chuva, que vinha furiosa em lençóis, das ban­das da embocadura do porto. A praia do lado oposto estava toda esfumada. Macphail passou por dois ou três indígenas que traziam sobre o corpo apenas o lava-lava e enormes guar­da-chuvas suspensos por cima das cabeças. Caminhavam bo­nito, com movimentos vagarosos, muito tesos; ao passarem pelo doutor sorriam e o saudavam numa língua estranha.

Era quase hora de jantar quando Macphail voltou. A re­feição foi servida na sala de visitas do negociante. Era um compartimento que não fora originalmente designado para nenhum propósito prático, mas sim para fins de prestígio. Tipha um ar bolorento e melancólico. Uma série de cortinas de pelúcia estampada recobria habilmente as paredes; e do centro do teto, protegido das moscas por um papel de seda amarelo, pendia um candelabro dourado. Davidson não apareceu.

— Eu sei que ele foi visitar o governador — disse a Sra. Davidson — e eu acho que o homem fê-lo ficar para o jantar.

Uma rapariguinha indígena lhes trouxe um prato de hamburger steak e depois de um instante, o comerciante subiu para saber se os hóspedes tinham tudo o que queriam.

— Vejo que temos outro hóspede, Sr. Horn — disse o Dr. Macphail.

— A moça alugou um quarto; só isso — respondeu o dono da casa. — Foi a bordo buscar as coisas dela.

Olhou para as duas senhoras com um ar obsequioso.

— Botei a mulher lá em baixo para ela não atrapalhar. Ela não vai incomodar as senhoras.

— É alguém que veio no nosso navio? — perguntou a Sra. Macphail.

         Sim, madama, ela viajava na segunda classe. Ia para Ápia. Tem lá um emprego de caixa esperando por ela.

Ah!

Quando o negociante se retirou, Macphail disse:

— Eu acho que ela não vai achar lá muito alegre ter de fazer as refeições sozinha no quarto...

         Se ela viajava na segunda classe acho que há de pre­ferir comer no quarto — respondeu a Sra. Davidson. — Não sei exatamente de quem se trata.

— Eu a vi por acaso quando o contramestre a trouxe. O nome dela é Thompson.

         Não é a mulher que estava dançando com o contra­mestre a noite passada? — perguntou a Sra. Davidson.

— Deve ser — disse a esposa do doutor. — Eu até quis saber ontem quem era ela. Pareceu-me um tanto amiga da pândega.

— O jeito dela não é de boa coisa — afirmou a missionária.

Começaram a falar de outras coisas e depois do jantar, cansados por terem levantado cedo, separaram-se e foram dormir. Quando acordaram, embora o céu estivesse ainda cinzento e as nuvens baixas, a chuva havia parado. Saíram a passear pela estrada que os americanos construíram perlongando a baía. Na volta verificaram que Davidson acabara de chegar.

É possível que fiquemos aqui uma quinzena inteira — disse ele, irritado. — Discuti o assunto com o governador, mas ele diz que não se pode fazer nada.

O Sr. Davidson está ansioso por voltar para o seu tra­balho — explicou a esposa do missionário, lançando para ele um olhar ansioso.

Estivemos ausentes um ano — continuou ele, caminhando na varanda dum lado para outro. A Missão ficou entregue a missionários indígenas e eu estou terrivelmente nervoso, com medo que eles deixem as coisas correr frouxas. São homens bons, não estou dizendo nada contra eles, tementes a Deus, devotos, verdadeiramente cristãos... E o cristianismo deles faria corar a muitos que se dizem cristãos... Mas são duma falta de energia lamentável. São capazes de agir com energia uma vez, duas, mas não todo o tempo. Se se deixa uma Missão a cargo dum missionário indígena, não importa o quão digno de confiança ele pareça: com o correr do tempo descobriremos que ele permitiu que os abusos se manifestassem.

O missionário se calou. Com o seu corpo alto e descarnado e com seus grandes olhos chispando no rosto pálido, era uma figura impressionante. Sua sinceridade fazia-se clara no fogo de seus gestos e no tom profundo de sua voz sonora.

         Espero traçar um plano de ação. Vou agir e agir prontamente. Se a árvore está podre, deve ser cortada e jogada no fogo.

E à noite depois do chá reforçado que foi a última refeição do dia, sentados todos na sala pretensiosa, as senhoras trabalhando e o Dr. Macphail fumando o seu cachimbo, o mis­sionário lhes contou de seu trabalho nas ilhas.

         Quando fomos para lá, eles não tinham a menor consciência do pecado — começou ele. — Quebravam os manda­mentos um após outro e não compreendiam que estavam procedendo mal. Acho que a parte mais difícil do meu trabalho foi instalar nos nativos a consciência do pecado.

Os Macphails sabiam já que Davidson trabalhara nas ilhas de Salomão durante cinco anos, antes de conhecer a mulher que viria a ser sua esposa. Ela era missionária na China. Conheceram-se em Boston, onde ambos aproveitavam parte de sua licença assistindo a um congresso de missionários. Depois de casados haviam sido mandados para as ilhas onde até agora trabalhavam.

No decorrer de todas as palestras com o Sr. Davidson, uma coisa se fizera clara aos olhos dos Macphails. Era que estavam diante dum homem duma coragem inquebrantável. Como mis­sionário que fazia as vezes de médico, estava sujeito a ser cha­mado a qualquer hora para ir a uma ou outra das ilhas do grupo. Nem mesmo uma baleeira consegue agüentar-se no tormentoso Pacífico na estação das chuvas; mas muitas vezes mandavam buscar Davidson de canoa; o perigo, então, era grande. Em casos de doença ou acidente ele nunca hesitava. Uma dúzia de vezes passara toda a noite no mar lutando para não morrer; e mais de uma vez a Sra. Davidson o dera por perdido.

- Em muitas ocasiões eu lhe pedi que não fosse — contou a missionária — ou pelo menos que esperasse até o tempo ficar mais calmo. Mas ele nunca me deu ouvidos. É obstinado e quando resolve uma coisa, nada o convence do contrário.

— Como é que vou pedir aos nativos que confiem no Senhor se eu tenho medo de fazer o mesmo? — gritou Davidson.

— E eu não tenho medo, não tenho! Eles sabem que se me cha­mam quando estão em aflição, eu vou, se isso for humanamente possível. E pensam que o Senhor vai me abandonar quando saio em seu serviço? O vento sopra ao seu comando e as ondas se agitam e enfurecem a uma palavra sua.

O Dr. Macphail era um homem tímido. Nunca fora capaz de se habituar ao silvo e ao estouro das granadas por cima das trincheiras. Quando estava operando num posto de so­corro avançado, o suor lhe escorria da testa e lhe embaciava os óculos no esforço que ele fazia para dominar a mão trê­mula. Estremeceu agora de leve ao olhar para o missionário.

         Eu quisera poder dizer que nunca tive medo — disse ele.

         Eu quisera que o senhor pudesse dizer que acredita em Deus — retorquiu o outro.

Mas por alguma razão, naquela noite os pensamentos do missionário voltaram para os primeiros dias que ele e a es­posa passaram nas ilhas.

         Às vezes a Sra. Davidson e eu olhávamos um para o outro e as lágrimas corriam pelas nossas faces. Trabalhamos sem cessar dia e noite e tínhamos a impressão de não fazer progresso. Não sei o que teria sido de mim sem ela. Quando eu sentia meu coração desfalecer, quando me avizinhava do desespero, ela me dava coragem e esperança.

A Sra. Davidson baixou os olhos para o seu trabalho e uma leve côr rosada lhe aflorou às faces. Suas mãos tremeram um pouco. Ela teve medo de falar.

         Não tínhamos ninguém que nos ajudasse. Estávamos milhares de milhas longe de qualquer dos nossos, cercados pela escuridão. Quando eu me sentia abatido e cansado, ela punha o seu trabalho de lado, tomava da Bíblia e lia para mim até que a paz descia e pousava na minha alma como o sono nas pálpebras duma criança. E por fim, ao fechar o Livro, ela di­zia: "Havemos de salvá-los mesmo contra a vontade deles." E eu me sentia de novo forte no Senhor e respondia: "Sim, com o auxílio de Deus hei de salvá-los. Tenho de salvá-los."

Aproximou-se da mesa e ficou parado diante dela como se ela fosse um púlpito.

O senhor vê, eles eram tão naturalmente depravados que não conseguíamos fazê-los ver a sua própria maldade. Tivemos de transformar em pecado o que eles pensavam fossem ações naturais. Tivemos de mostrar que é pecado não só cometer adultério, roubar e mentir como também expor os corpos, dançar e não ir à igreja. Fiz com que as moças compre­endessem que era pecado mostrar os seios e que os homens considerassem pecado o não usar calças.

De que modo? perguntou o Dr. Macphail, não sem surpresa.

Instituí multas. Está claro que a única maneira de fa­zer as pessoas compreenderem que uma ação é pecaminosa é puni-las quando elas a cometem. Eu multava os indígenas se eles não iam à igreja. Multava-os se dançavam. Multava-os se andavam vestidos de maneira imprópria. Estabeleci tarifas e cada pecado tinha que ser pago em dinheiro ou trabalho. Por fim consegui fazer com que compreendessem.

Mas eles nunca recusaram pagar?

Como podiam recusar?

         Era preciso ser muito valente para se insurgir contra o Sr. Davidson afirmou a missionária, apertando os lábios.

O Dr. Macjthail olhou para Davidson com olhos perturba­dos. O que acabava de ouvir deixava-o abalado, chocado, mas ele hesitava em exprimir a sua desaprovação.

         O senhor deve lembrar-se de que em último recurso eu podia expulsar os rebeldes da congregação.

         E isso lhes importava muito?

Davidson sorriu com sutileza e esfregou as mãos de leve.

         Eles não poderiam vender a sua copra. E não recebiam o seu quinhão quando se repartia o produto da pesca. Era algo que se parecia muito com a ameaça de morrer de fome. Sim, a expulsão lhes importava muitíssimo.

         Conta-lhes do Fred Ohlson pediu a Sra. Davidson. O missionário fixou os olhos ardentes no Dr. Macphail.

         Fred Ohlson era um comerciante dinamarquês que esta­va nas ilhas havia muitos anos. Era um sujeito bastante rico, como costumam ser esses traficantes, e não ficou muito satisfeito por nos ver chegar. O senhor compreende, ele sempre fazia as coisas a seu modo. Pagava aos nativos o que queria pela copra e pagava com mercadorias e com uísque. Tinha uma esposa nativa, mas lhe era flagrantemente infiel. Em­briagava-se. Dei-lhe uma oportunidade para se emendar, mas ele não a aproveitou. Riu na minha cara.

A voz de Davidson desceu a um tom de baixo profundo quando êle pronunciou estas últimas palavras. Ficou calado por um minuto ou dois. Um silêncio pesado de ameaças.

Dentro de dois anos Fred Ohlson era um homem arruinado. Perdera tudo o que economizara num quarto de século. Eu o levei à bancarrota, e por fim ele foi forçado a vir a mim como um mendigo, suplicando que lhe desse uma passagem para voltar a Sydney.

Eu queria que vissem quando ele veio procurar o Sr. Davidson disse a esposa do missionário. Era antes um homem belo, forte e gordo; mas agora estava mirrado, encolhido, todo trêmulo. Envelheceu de repente.

Com olhos fitos e abstratos Davidson contemplava a noite lá fora. A chuva estava caindo de novo.

De repente ouviu-se um som vindo do andar térreo. Da­vidson voltou-se e olhou interrogadoramente para a mulher. Era a música dum gramofone, áspera e forte, estertorando uma melodia sincopada.

         Que é isso? — perguntou.

A Sra. Davidson fixou o pince-nez com mais firmeza no nariz.

         Uma das passageiras de segunda classe alugou também um quarto na casa. Acho que a música vem de lá.

Escutaram em silêncio. Depois começaram a ouvir som de dança. Momentos mais tarde a música parou e a seus ouvidos chegou o espoucar de rolhas e vozes que se alteavam em conversa animada.

         Estou quase a dizer que ela está dando uma festa de despedida aos seus amigos de bordo — sugeriu o Dr. Macphail. — O navio sai às doze, não é?

Davidson não fez nenhuma observação, mas olhou o relógio.

Estás pronta? — perguntou à esposa.

Esta se ergueu e dobrou o trabalho.

Acho que sim — respondeu.

Não acham que ainda é cedo para ir para a cama? — perguntou o doutor.

Temos uma boa hora de leitura antes de dormir — expli­cou a Sra. Davidson. — Onde quer que estejamos, lemos sempre um capítulo da Bíblia antes de nos retirarmos para o quarto e estudamos com o auxílio dos comentários, o senhor sabe, e discutimo-lo por inteiro. É um exercício poderoso para o espírito.

Os dois casais se desejaram uma boa noite. O médico e a esposa ficaram a sós. Por dois ou três minutos não falaram.

         Acho que vou buscar o baralho — disse ele por fim.

A Sra. Macphail fitou os olhos no marido com ar de dúvi­da. A conversa com os Davidson deixara-a um pouco inquieta. Mas ela não queria dizer que achava melhor não jogar baralho, pois os missionários podiam aparecer a qualquer mo­mento. O Dr. Macphail trouxe as cartas e a mulher ficou a observá-lo, com uma vaga sensação de culpa, enquanto ele jogava paciência. Lá em baixo os sons da orgia continuavam.

O dia seguinte amanheceu bastante bom. Os Macphails, condenados a passar quinze dias de ócio em Pago-Pago, procu­raram arranjar-se da melhor maneira possível. Desceram ao cais e tiraram das malas uma quantidade de livros. O doutor procurou o cirurgião-chefe do hospital naval e visitou doentes em companhia dele. Deixaram cartões para o governador. Pas­saram por Miss Thompson no caminho. O doutor tirou o cha­péu e ela lhe disse: "Bom dia, doto", numa voz alta e alegre. Estava vestida como no dia anterior; suas botinas reluzen­tes e brancas de tacões altos, e as suas grossas pernas sal­tando dos canos como que inchadas, eram coisas estranhas naquele cenário exótico.

Devo dizer que o jeito como ela anda vestida não me parece lá muito conveniente comentou a Sra. Macphail. Tenho a impressão de que é uma criatura muito comum...

Ao voltarem para a casa, encontraram Miss Thompson na varanda, brincando com um dos filhos do comerciante.

Dize-lhe uma palavra cochichou o Dr. Macphail à esposa. A moça está sozinha aqui e me parece que não é delicado a gente fazer que não dá pela presença dela.

A Sra. Macphail era tímida mas tinha o hábito de fazer o que o marido mandava.

Parece que somos companheiros de casa, não? disse ela, duma maneira um pouco tola.

Pavoroso, não é mesmo? A gente encalhada num lu­garejo chinfrim destes. ..respondeu Miss Thompson, e dizem que tive até muita sorte por ter achado um quarto. O que eu não posso é me imaginar morando numa dessas chou­panas dos indígenas, e muita gente teve que se sujeitar a isso. Não sei por que é que não abrem um hotel aqui.

Trocaram algumas palavras mais. Miss Thompson, falando alto, gárrula, mostrava claramente que estava querendo mexericar. Mas a Sra. Macphail era pobre de assunto para conversinhas daquela natureza. Em dado momento disse:

Bom, precisamos subir...

À noite quando se sentaram à mesa do chá, Davidson, ao entrar, disse:

— Vi aquela jnulher lá em baixo sentada com dois marinheiros. Eu só queria saber como foi que ela travou relações com eles.

— Ela não deve ser lá muito escrupulosa — avançou a Sra. Davidson.

Estavam todos um tanto cansados, no fim daquele dia preguiçoso e inútil.

— Se vamos passar quinze dias assim, não sei como é que me vou sentir ao cabo deles... — disse o Dr. Macphail.

         A única coisa a fazer é dividir o dia para atividades diferentes — respondeu o missionário. — Vou reservar um certo número de horas para o estudo e um certo número de horas para os exercícios, chova ou faça bom tempo — pois na estação pluvial não se pode dar importância à chuva — e um certo número de horas para o recreio.

O Dr. Macphail olhou para o companheiro com apreen­siva desconfiança. O programa de Davidson o sufocava. Eles estavam comendo de novo hamburger steak. Parecia que era a única coisa que a cozinheira sabia fazer. Depois, lá em baixo, o gramofone começou a berrar. Davidson teve um sobressalto nervoso ao ouvir-lhe as primeiras notas, mas não disse nada. As vozes dos homens subiram. Os convidados de Miss Thomp­son estavam cantando em coro uma canção muito conhecida e agora se distinguia também a voz dela, rouca e aguda. Ex­plodiam gritos e risadas soltas. As quatro pessoas que se achavam no andar superior procurando levar adiante a con­versação, escutavam a despeito de si mesmas o tinir dos co­pos e o arrastar das cadeiras. Era evidente que chegara mais gente. Miss Thompson dava uma festa.

         Eu só queria saber como é que ela consegue acomodar todos no quarto — disse a Sra. Macphail, rompendo de súbito um diálogo de caráter médico entre o marido e o missionário.

Isso mostrou por onde andavam vagando seus pensamentos. A crispação brusca do rosto de Davidson provou que, em­bora ele estivesse a falar em coisas científicas, seu espírito estava ocupado na mesma direção. De repente, enquanto o doutor contava algumas experiências cirúrgicas no front de Flandres, de maneira um tanto prosaica, o outro pôs-se de pé num salto, com um grito.

Que tens, Alfred? perguntou a Sra. Davidson. Claro! A coisa não me tinha ocorrido. Essa mulher veio de Iwelei.

         Não pode ser.

Subiu para bordo em Honolulu. É claro. E está fazendo o seu comércio aqui. Aqui.

Pronunciou a última palavra com uma indignação apaixonada.

Que vem a ser Iwelei? perguntou a esposa do médico. Davidson voltou seus olhos taciturnos para ela e sua voz tremeu de horror:

         A zona pestilenta de Honolulu. O distrito da Luz Vermelha. Uma nódoa na nossa civilização.

Iwelei ficava numa extremidade da cidade. Para se chegar até essa zona, era preciso descer pela escuridão das ruas transversais nas cercanias do porto, atravessar uma ponte frágil e entrar num caminho deserto, cheio de sulcos e buracos. De­pois se caía de súbito na zona iluminada. Havia um abrigo para automóveis de cada lado da rua, e salões espalhafatosos, cheios de luzes, barulhentos, todos com a sua pianola; e havia também barbearias e cigarrarias. Sentia-se uma excitação no ar, uma sensação de alegria expectante. Descendo-se estreito beco para a direita ou para a esquerda porque o caminho dividia Iwelei em duas partes — entrava-se de cheio no dis­trito. Viam-se fileiras de pequenos bangalôs, bem arranjados e pintados de verde; e os corredores que separavam uns dos outros eram largos e retos. O distrito tinha o desenho de uma cidade jardim. Na sua respeitável regularidade, na sua ordem e no seu asseio, Iwelei dava uma impressão de sardónico hor­ror. Porque nunca a procura do amor foi tão sistematizada e ordenada. Os corredores eram alumiados por lâmpadas colo­cadas de raro em raro; estariam completamente às escuras se não fossem as luzes que vinham das janelas abertas dos ban­galôs. Os homens caminhavam dum lado para outro, olhando para as mulheres que se achavam sentadas às janelas lendo ou cosendo, porque a maioria não ligava importância aos pas­santes. E bem como as mulheres, eles eram de todas as na­cionalidades. Havia americanos, tripulantes dos navios que es­tavam no porto, marinheiros licenciados de pequenos vasos de guerra, melancolicamente ébrios e soldados brancos e pretos de regimentos aquartelados na ilha; viam-se também japone­ses caminhando em grupos de dois ou três; havaianos, chi­neses com túnicas longas e filipinos com chapéus absurdos. Eram homens silenciosos: pareciam oprimidos. O desejo é triste.

Foi o escândalo mais berrante do Pacífico excla­mou Davidson com veemência. Os missionários durante anos clamaram contra ele. Por fim a imprensa local desper­tou. A polícia recusou-se a agir. As suas razões eram conheci­das. Diziam que o vício é inevitável e por conseguinte o me­lhor que se tem a fazer é localizá-lo. A verdade é que a polí­cia era paga. Paga pelos donos dos salões, paga pelos proxe­netas, paga pelas próprias prostitutas. Por fim as mulheres foram obrigadas a mudar-se.

Li. qualquer coisa a esse respeito nos jornais que vieram para bordo em Honolulu disse o Dr. Macphail.

Iwelei, com o seu pecado e a sua vergonha, cessou de existir exatamente no dia em que chegamos. Toda a sua população foi levada diante dos juízes. Não sei por que não com­preendi imediatamente de onde vinha essa mulher.

Agora que o senhor falou nisso disse a Sra. Mac­phail eu me lembro de ter visto essa rapariga chegar a bor­do poucos minutos antes do navio partir. Lembro-me de que na hora ela me deu a impressão de que estava escapando de alguém, mas escapando por um fio...

Como é que ela ousa vir cá!? gritou Davidson, indignado. Não vou permiti-lo. Caminhou na direção da porta.

         Que é que pretende fazer? inquiriu o Dr. Macphail.

         Que espera o senhor que eu faça? Vou fazer aquilo cessar. Não permitirei que esta casa seja transformada num... num...

Procurou uma palavra que não ofendesse os ouvidos das senhoras. Seus olhos brilhavam e seu rosto pálido estava mais pálido ainda, na emoção.

Pelo barulho parece que há uns três ou quatro homens lá em baixo insinuou o doutor. Não acha que é um tanto temerário descer agora?

O missionário lhe lançou um olhar de desdém e sem di­zer palavra precipitou-se para fora do quarto.

         O doutor conhece muito pouco o Sr. Davidson — disse a missionária — para pensar que o temor de perigo pessoal seja capaz de detê-lo no cumprimento de seu dever.

Ficou sentada, — as mãos nervosamente entrelaçadas, duas manchas vermelhas nos zigomas salientes, — escutando o que estava para acontecer em baixo. Todos ficaram atentos. Ouviram Davidson descer com ruído os degraus de madeira e abrir a porta num repelão. As cantigas cessaram de súbito, mas o gramofone continuou a zurrar a sua melodia vulgar. Ouviu-se a voz de Davidson e depois o ruído de um objeto que cai pesadamente. A música parou. O missionário havia jogado o gramofone no chão. Depois se ouviu de novo a voz de Davidson — não se distinguiam bem as palavras — e a seguir a voz de Miss Thompson alta e estridula. Momentos após ergueu-se um clamor confuso como se várias pessoas estives­sem a gritar ao mesmo tempo com toda a força de seus pulmões. A Sra. Davidson suspendeu por um instante a respiração e apertou os dedos com mais força. O Dr. Macphail olhou com ar incerto primeiro para ela e depois para a esposa. Não queria descer, mas ficou a imaginar o que seria que espera­vam que ele fizesse. Ouviram-se sons que davam idéia de briga. Os ruídos estavam agora mais distintos. Era possível que estivessem jogando Davidson para fora do quarto. A por­ta bateu. Um instante de silêncio. Depois eles ouviram David­son subir de novo as escadas, rumo ao seu quarto.

— Acho que vou ter com ele — disse a Sra. Davidson.

Ergueu-se e saiu.

— Se precisar de mim, é só chamar — avisou a Sra. Macphail. Quando a outra desapareceu, acrescentou: — To­mara que não o tenham ferido.

         Por que será que o reverendo não cuida da vida dele? — perguntou o doutor.

Ficaram sentados em silêncio por um minuto ou dois e depois ambos tiveram um sobressalto, porque o gramofone começou a tocar uma vez mais, provocante. Vozes zombetei­ras berravam roucamente as palavras duma canção obscena.

No dia seguinte, a Sra. Davidson estava pálida e cansada.

Queixou-se de dor de cabeça; parecia mais envelhecida e mirrada. Contou à Sra. Macphail que o missionário não dormira nem um pouco; passara a noite num estado de tremenda agi­tação, levantara-se às cinco e saíra. Haviam jogado nele um copo de cerveja e suas roupas estavam manchadas e cheirando. Mas um fogo sombrio ardia nos olhos da Sra. Davidson, quan­do ela falou de Miss Thompson.

Um dia há de se arrepender amargamente por ter escarnecido do Sr. Davidson — disse ela. — O Sr. Davidson tem um coração maravilhoso e todos que o procuram nos momentos de aflição acham conforto; mas ele não tem piedade para o pecado, e quando sua ira justa é provocada, ele fica terrível.

Então que é que o reverendo pretende fazer? — per­guntou a Sra. Macphail.

Não sei, mas eu não queria por nada deste mundo estar na pele daquela criatura.

A Sra. Macphail estremeceu. Havia algo de positivamente alarmante na certeza que a mulher do missionário tinha da vitória. Iam todos sair aquela manhã. Desceram as escadas juntos. A porta do quarto de Miss Thompson estava aberta e elas a viram metida num robe de chambre cheio de nódoas, cozinhando alguma coisa num fogareiro.

         Bom dia — disse ela. — O Sr. Davidson amanheceu melhor?

Passaram por ela em silêncio, com os narizes erguidos, como se Miss Thompson não existisse. Coraram, entretanto, quando ela rompeu numa gargalhada debochada. A Sra. Da­vidson voltou-se de súbito:

Não se atreva a me dirigir a palavra — gritou ela. — Se você me insultar, farei que a ponham daqui para fora.

Olhe, moça, por acaso eu pedi que o Sr. Davidson viesse me visitar?

         Não dê resposta — sussurrou a Sra. Macphail, afobada. Continuaram a andar até que as palavras de Miss Thomp­son não puderam mais alcançá-las.

— Que descarada! Que descarada! — explodiu a Sra. Davidson.

A cólera quase a sufocava.

E a caminho da casa, na volta, encontraram Miss Thompson que caminhava descansadamente rumo ao cais. Estava toda enfeitada. O grande chapéu branco com as suas flores vulgares e espalhafatosas era uma afronta. Miss Thompson ao de­frontar as duas mulheres, saudou-as com efusão, e dois marinheiros americanos que estavam parados por ali arreganha­ram os dentes ao verem a expressão de gelo que as duas se­nhoras deram aos rostos. A missionária e a companheira entraram em casa antes da chuva começar a cair de novo.

Acho que ela vai estragar as lindas roupas comentou a missionária com um riso de desdém amargo.

Davidson só entrou quando eles já estavam na metade do jantar. Achava-se completamente ensopado, mas não quis trocar de roupa. Sentou-se taciturno e silencioso, recusando-se a comer mais que algumas garfadas. Ficou olhando com fixidez para a chuva que caía obliquamente. Quando a Sra. Davidson lhe contou de seus dois encontros com Miss Thompson, ele não respondeu. Só a ruga profunda que lhe cortava a testa mostrava que êle tinha ouvido.

         Não achas que devíamos fazer o Sr. Horn pô-la fora daqui? perguntou a Sra. Davidson. Não podemos permitir que ela nos insulte.

Parece que não há outro lugar para onde a moça possa ir observou o Dr. Macphail.

         Ela pode morar com alguma das indígenas.

Com um tempo como este uma cabana indígena deve ser um lugar um tanto sem conforto...

Morei numa delas durante anos disse o missionário.

Quando a rapariguinha nativa trouxe as bananas fritas que constituíam a sobremesa que tinham todos os dias, Davidson voltou-se para ela.

Pergunte a Miss Thompson qual é a hora que ela acha mais conveniente para receber a minha visita.

A rapariga sacudiu a cabeça com timidez e saiu.

         Para que queres vê-la, Alfred? perguntou a "mulher.

         É meu dever procurá-la. Só agirei depois de lhe ter oferecido todas as oportunidades.

Tu não sabes como ela é. Insultou-nos.

         Deixai que ela me insulte. Que cuspa em mim. Ela tem uma alma imortal e eu devo fazer tudo o que estiver nas minhas forças para salvá-la.

Aos ouvidos da Sra. Davidson vibrava ainda a risada debochada de bordel.

         Ela foi longe demais.

         Longe demais para a piedade de Deus? — Os olhos do missionário se acenderam de repente e sua voz ficou macia e doce. — Nunca. O pecador pode ir mais fundo no pecado do que as próprias profundezas do inferno, mas o amor do Senhor Jesus ainda conseguirá tocá-lo.

A rapariga voltou com o recado.

         Miss Thompson manda seus cumprimentos e diz que, se o Rev. Davidson não aparecer nas horas de trabalho, ela terá o prazer de vê-lo a qualquer momento.

O grupo recebeu a notícia num silêncio de pedra. O Dr. Macphail apagou rápido o sorriso que lhe tinha aflorado aos lábios. Sabia que sua esposa ficaria aborrecida se ele achasse divertida a resposta insolente de Miss Thompson.

Terminaram o jantar em silêncio. As duas mulheres se ergueram e começaram a trabalhar. A Sra. Macphail estava acabando mais uma das inumeráveis mantas que ela fizera desde o começo da guerra. O doutor acendeu o cachimbo. Mas Davidson ficou na sua cadeira e com olhos abstratos e fitos olhava para a mesa. Por fim ergueu-se e sem uma palavra saiu do quarto. Ouviram-no descer e Miss Thompson dizer depois, num desafio: "Pode entrar" — quando ele bateu à porta. Davidson ficou com a mulher durante uma hora. E o Dr. Macphail olhava a chuva. Ela estava começando a fazer-lhe mal aos nervos. Não era como a macia chuva ingle­sa que cai suave sobre a terra; era uma chuva impiedosa e de algum modo terrível; sentia-se nela a malignidade das for­ças primitivas da natureza. Ela não caía simplesmente: jor­rava. Era como um dilúvio tombando dos céus; tamborilava no telhado de ferro ondulado com uma persistência firme que era de endoidecer. Parecia ter uma fúria toda sua. E algumas vezes as pessoas sentiam que estavam prestes a gritar se ela não parasse. Depois, de repente, sentiam-se impotentes, como se seus ossos de súbito tivessem amolecido; e ficavam miseráveis e sem esperança.

Macphail voltou a cabeça quando o missionário entrou. As duas mulheres ergueram os olhos.

         Dei-lhe todas as oportunidades. Exortei-a ao arrependimento. É uma mulher má.

Fêz uma pausa. O Dr. Macphail viu seus olhos escurecerem e seu rosto pálido ficar mais duro e severo.

         Agora vou tomar do látego com que o Senhor expulsou do Templo do Altíssimo os vendilhões e usurários.

Caminhava dum lado para outro do quarto. Sua boca e seus lábios estavam apertados e suas sobrancelhas negras, cerradas.           

         Mesmo que ela fugisse para os confins da terra eu ha­veria de persegui-la.

Com um movimento brusco, fêz meia volta e saiu a passos largos do quarto. Ouviram-no descer de novo.

Que será que êle vai fazer? perguntou a Sra. Macphail.

         Não sei. A Sra. Davidson tirou o pince-nez e limpou-o. — Quando ele está a serviço do Senhor nunca lhe faço perguntas.

Suspirou de leve.

         Que é que tem?

Ele vai se consumir. Não sabe poupar-se.

O Dr. Macphail ficou sabendo dos primeiros resultados da atividade do missionário por intermédio do negociante mestiço em cuja casa eles estavam hospedados. Quando o doutor passou pela loja, Horn fê-lo parar. Saiu para lhe falar na varanda. Sua cara gorda mostrava uma expressão de aborre­cimento.

         O Rev. Davidson veio me falar por eu ter alugado um quarto a Miss Thompson disse êle. Mas eu não sabia o que ela era na hora em que a aceitei. Quando as pessoas vêm perguntar se tenho quarto para alugar, só o que me preocupa saber é se elas têm dinheiro para pagar. E essa me pagou uma semana adiantada.

O Dr. Macphail não quis comprometer-se.

         No fim de contas o senhor é o dono da casa. E nós lhe estamos muito gratos por nos ter aceito...

Horn olhou para o médico com ar de dúvida. Não sabia com certeza se Macphail estava ou não do lado do missionário.

Os missionários sempre estão às boas uns com os outros — disse ele, hesitante. — Se começam a perseguir um negociante, é melhor ele fechar a loja e ir embora.

O reverendo exigiu que o senhor pusesse a mulher para fora?

Não, disse que se ela se comportasse direito ele não me pediria isso. Disse que queria ser justo para comigo. Pro­meti que a menina não receberia mais visitas. Acabo de lhe dizer isto.

Como foi que ela recebeu a notícia?

Mandou-me para o inferno.

O negociante se mexeu dentro de sua velha roupa de linho. Achava que Miss Thompson era uma freguesa gros­seira.

Estou quase dizendo que ela vai embora. Não acho que queira ficar aqui se não puder receber ninguém.

Não há outro lugar para onde ir, a não ser as choupanas dos naturais. E nenhum indígena quererá aceitá-la, agora que os missionários estão contra ela.

O Dr. Macphail olhou para a chuva que caía.

         Bom, acho que não adianta nada esperar que a chuva pare...

À noite, quando os dois casais estavam sentados na sala, Davidson falou-lhes de seus primeiros dias de universidade. Não tinha recursos e, para se manter, trabalhava aqui e ali durante as férias. Lá em baixo havia silêncio. Miss Thompson se achava a sós no seu quarto. Mas de repente o gramofone começou a tocar. Ela o pusera a funcionar num desafio, para disfarçar a sua solidão; mas não havia ninguém para cantar, e isso constituía uma nota melancólica. Aquela música era um grito de socorro. Davidson não lhe deu atenção. Estava no meio de longa anedota e, sem mudança de expressão, prosseguiu. O gramofone continuava. Miss Thompson punha disco após disco. Parecia que o silêncio da noite estava a mexer-lhe com os nervos. Era opressivo e morto. Os Macphails foram para a cama e não puderam dormir. Ficaram um ao lado do outro, com os olhos arregalados, escutando a cantiga cruel dos mosquitos fora do cortinado.

         Que é isso? sussurrou a Sra. Macphail ao cabo dum instante.

Ouviram uma voz, a voz de Davidson, através do tabique de madeira. Ela continuava com uma insistência monótona e enérgica. O pastor estava orando em voz alta. Estava re­zando pela alma de Miss Thompson.

Passaram-se dois ou três dias. Cruzaram por Miss Thompson na estrada e ela não os saudou com cordialidade, nem com o seu sorriso cheio de ironia; passou com o nariz no ar e uma expressão de mau humor no rosto pintado, franzindo a testa como se não tivesse visto os outros hóspedes. O comerciante contou a Macphail que ela procurava conseguir um quarto em outra parte, não o conseguindo. À noite tocara vários discos no seu gramofone, mas aquela alegria fingida agora se fazia evidente. O ragtime tinha um ritmo dilacerador, doloroso; era como um one-step de desespero. Quando Miss Thompson começou a tocar no domingo, Davidson mandou Horn pedir-lhe para parar imediatamente, pois aquele era o dia do Senhor. O disco foi tirado do gramofone e toda a casa ficou em si­lêncio. Só se ouvia o ta-ta-ta-ta insistente da chuva no te­lhado de ferro ondulado.

Acho que ela está ficando um pouco cansada disse o negociante no dia seguinte a Macphail. Não sabe o que o Rev. Davidson vai fazer e a incerteza a deixa assustada.

Macphail vira-a de relance naquela manhã. Percebeu logo que aquela expressão de arrogância tinha mudado. Havia no rosto da mulher um ar de fera acossada. O mestiço olhou para o médico com o rabo dos olhos.

         Acho que o senhor não sabe o que é que o Sr. Davidson está fazendo...aventurou êle.

         Não, não sei.

Era singular que Horn lhe dissesse aquilo, porque ele tam­bém tinha a idéia de que o missionário se achava empenhado em algum trabalho misterioso. Tinha a impressão de que Davidson estava tecendo uma rede ao redor da mulher, cuidado­samente, sistematicamente, e de repente, quando tudo esti­vesse pronto, ele apertaria as cordas.

         O reverendo me mandou dizer à moça, contou o comerciante — que se ela quisesse falar com ele a qualquer hora, era só mandar chamá-lo...

Que foi que ela respondeu quando o senhor lhe deu o recado?

Não respondeu nada. Eu não parei. Só dei o recado do reverendo e me retirei. Pareceu-me que ela ia desatar o choro.

Não tenho dúvidas: a solidão está atacando os nervos da rapariga — disse o doutor. — E a chuva... só a chuva é o bastante para deixar qualquer um doido — continuou ele, irritado. — Será que não pára nunca de chover nesta maldita terra?

A coisa vai assim firme toda a estação chuvosa. Temos vários meses de chuva no ano. O Senhor vê, é o formato da baía. Parece atrair a chuva de todo o Pacífico.

         Maldita baía! — exclamou o doutor.

Coçou as mordidas de mosquito. Sentiu-se muito mal-humorado. Quando a chuva parou e o sol surgiu, eles se sentiram como numa estufa férvida, úmida, opressiva, abafada. Tinha-se a estranha sensação de que tudo ia crescer com uma violência selvagem. Os indígenas, que tinham a reputação de ser alegres e pueris, com as suas tatuagens e os seus cabelos pintados, pareciam ter alguma coisa de sinistro em sua apa­rência; e quando eles caminhavam atrás de nós, batendo no chão com pés descalços, a gente voltava a cabeça instintiva­mente. Sentia-se que eles podiam, a cada momento, vir por trás e nos dar uma facada bem entre as omoplatas. Eram indescri­tíveis os pensamentos escuros que se ocultavam por trás da­queles olhos afastados. Tinham um pouco a aparência de egípcios antigos pintados na parede dum templo, e havia neles o terror das coisas imensuravelmente velhas.

O missionário entrava e saía. Estava ocupado, mas os Macphails não sabiam o que ele fazia. Horn contou ao doutor que ele visitava o governador todos os dias — e um dia o próprio Davidson lhe tocou no assunto.

         O homem dá a impressão de ter tomado uma resolução firme — disse o missionário — mas quando a gente desce a detalhes de importância imediata ele revela a sua falta de energia.

         O que quer dizer que ele não vai fazer exatamente o que o senhor deseja — sugeriu o doutor com ar de troça.

O missionário não sorriu.

         Eu quero que ele faça o que é direito. Não devia ser necessário persuadir um homem a praticar a justiça.

         Mas pode haver diferentes opiniões a respeito do direito.

         Se um homem tivesse um pé gangrenado o senhor teria paciência com alguém que hesitasse em amputá-lo?

A gangrena é um fato positivo.

E o Mal?

A obra de Davidson não tardou em aparecer. Os dois casais tinham recém acabado a refeição do meio-dia e ainda não se haviam separado para a sesta que o calor impunha às se­nhoras e ao doutor. Davidson mostrava pouca paciência para esse hábito indolente. A porta se escancarou de repente e Miss Thompson entrou. Olhou em torno do quarto e depois dirigiu-se para Davidson.

         Você, seu patife, seu canalha, que foi que você esteve dizendo de mim ao governador?

Ela se cuspia de raiva. Houve uma breve pausa. Depois o missionário empurrou uma cadeira para a frente.

— Não quer sentar-se, Miss Thompson? Eu estava espe­rando poder falar-lhe outra vez.

         Você... seu cachorro, seu...

Rompeu numa torrente de insultos, bruta e insolente. Davidson conservou seus olhos graves fitos nela.

— Sou indiferente aos desaforos que a senhora me lança em rosto, Miss Thompson — disse ele. — Mas devo pedir-lhe que se lembre de que há senhoras presentes.

Agora as lágrimas lutavam nela com a raiva. O rosto da rapariga estava vermelho e inchado como se ela estivesse sufocada.

— Que foi que aconteceu? — perguntou o Dr. Macphail.

— Um sujeito há pouco esteve aqui dizendo que eu tinha de dar o fora no próximo navio.

Teria havido uma cintilação nos olhos do missionário? Seu rosto permaneceu impassível.

         Nestas circunstâncias a senhora nem podia esperar que o governador lhe permitisse ficar.

— Você é o culpado — gritou ela. — Você não pode me tapear. Foi você que fez tudo.

Não quero enganá-la. Insisti com o governador para que ele tomasse a única medida possível, condizente com as suas obrigações.

Por que não me deixa em paz? Eu não lhe estava fa­zendo nenhum mal.

A senhora pode estar certa de que mesmo que estivesse, eu seria a última pessoa a me queixar disso.

Pensa que eu quero ficar nesta pobre imitação de ci­dade? Eu não tenho jeito de matuta, tenho?

         Nesse caso não vejo motivo de queixa de sua parte. Miss Thompson soltou um grito inarticulado de raiva e

precipitou-se para fora do quarto. Fez-se um curto silêncio. — É um alívio saber que o governador agiu no fim de con­tas — disse Davidson ao cabo dum instante. — É um homem fraco e indeciso. Disse que, fosse como fosse, ela só ia ficar aqui quinze dias, e se Miss Thompson continuasse até Ápia, que está sob a jurisdição inglesa, ele nada tinha a ver com a moça.

O missionário ergueu-se num salto e atravessou o quarto em passadas largas.

         É horrível a maneira como os homens que têm autoridade procuram fugir à responsabilidade. Falam como se o mal que está longe de nossos olhos cessasse de ser mal. A própria existência dessa mulher é um escândalo e o fato de ela ir para Ápia não melhora a situação. No fim tive de falar claro e acenar com uma ameaça.

A testa de Davidson se pregueou numa carranca e ele avan­çou o queixo firme. Estava resoluto e feroz.

         Que quer dizer com isso?

Nossa Missão não é inteiramente sem influência em Washington. Insinuei ao governador que não lhe seria nada bom se houvesse alguma queixa quanto ao modo como ele dirige as coisas aqui...

Para onde é que ela tem de ir? — perguntou o doutor, depois duma pausa.

         O vapor de São Francisco que vem de Sydney deve chegar aqui terça-feira próxima. Miss Thompson vai embarcar nele.

O barco chegava dali a cinco dias. No dia seguinte, vol­tava Macphail do hospital, onde, na falta de coisa melhor a fazer, passava a maioria de suas manhãs, quando o mestiço fê-lo parar no momento em que êle subia as escadas.

         Desculpe, Dr. Macphail, Miss Thompson está doente. O senhor quer vir examiná-la?

         Claro.

Horn levou-o ao quarto da rapariga. Estava ela sentada negligentemente, nem costurando nem lendo, a olhar com fixi­dez para o que tinha diante dos olhos. Estava vestida de branco e tinha na cabeça o grande chapéu com as flores. Macphail percebeu que a pele dela estava amarela e suja por baixo do pó de arroz, e que seus olhos tinham uma pesada expressão de dor.

         Sinto em saber que não está passando bem, disse o médico.

Oh, eu não estou propriamente doente. Eu só disse isso porque precisava falar com o senhor. Tenho que dar o fora num vapor que vai para S. Francisco.

Miss Thompson olhou para o doutor e este viu que os olhos dela de repente revelavam uma expressão de sobressalto. Ela abria e fechava as mãos com força, espasmodicamente. O comerciante achava-se ao pé da porta, escutando.

         Foi o que me contaram disse o médico.

Ela engoliu em seco.

         Acho que não me convém muito ir agora a Frisco. Fui ontem à tarde ver o governador mas não pude falar com ele. Falei com o secretário, e êle me disse que eu tinha de tomar esse vapor e não tinha conversa. Como precisava muito falar com o governador, esperei do lado de fora da casa dele hoje de manhã e quando o homem saiu eu lhe falei. Ele não quis escutar, mas eu não entreguei os pontos e por fim o governador disse que não tinha nenhuma objeção a que eu ficasse aqui até o próximo vapor que vai para Sydney. Tudo dependia do Rev. Davidson. Se êle concordasse...

Ela se calou e olhou com ânsia para o Dr. Macphail.

Não sei exatamente o que eu possa fazer disse este.

Bom, eu pensei que talvez o senhor não se importasse de pedir a ele. Juro por Deus que não incomodo ninguém, se ele me deixar ficar. Não sairei para fora de casa, se ele assim determinar. Não são nem quinze dias...

         Vou pedir.

Ele não vai concordar — opinou Horn. — Você tem de ir embora terça-feira. Assim, é melhor ir se habituando a pensar na viagem.

Diga-lhe que eu posso arranjar trabalho em Sydney, coisa decente, está claro. Não estou pedindo muito.

         Farei o possível.

         E venha me dizer o que houve, sim? Não posso fazer nada sem saber a quantas ando, se vou para Sydney ou para Frisco. 

Era uma incumbência desagradável para o doutor. E o modo indireto como ele a desempenhou talvez dissesse bem de sua maneira de ser. Contou à mulher o que Miss Thompson lhe dissera e lhe pediu que falasse com a Sra. Davidson. A atitude do missionário parecia um tanto arbitrária e não faria mal nenhum se permitissem à rapariga ficar em Pago-Pago mais quinze dias. Macphail, porém, não estava preparado para o resultado de sua diplomacia. O missionário veio direto a ele.

         A Sra. Davidson me contou que essa Thompson esteve conversando com o senhor.

O Dr. Macphail, assim atacado de frente, sentiu o constrangimento do tímido que se vê forçado a sair para a clarida­de. Sentiu que ia perdendo a calma e corou.

Não vejo que possa fazer alguma diferença o fato de ela ir para Sydney e não para São Francisco. E desde que Miss Thompson promete portar-se direito enquanto estiver aqui, é uma malvadeza persegui-la desse modo.

O missionário fitou nele os olhos severos.

         Por que é que ela não quer voltar para São Francisco?

         Não perguntei — replicou o doutor com alguma aspe­reza. — E acho que cada um deve cuidar de sua vida.

Talvez esta não fosse uma resposta habilidosa.

         O governador ordenou que ela seja deportada pelo primeiro barco que deixar a ilha. Ele está apenas cumprindo o seu dever e não serei eu quem há de interferir. A presença dela aqui é um perigo.

Acho que o senhor é cruel e tirano.

As duas senhoras ergueram os olhos para o doutor, um pouco alarmadas. Mas dissipou-se nelas o temor de uma dis­cussão, porque o missionário sorriu suavemente.

Sinto muitíssimo que o senhor pense isso de mim, Dr. Macphail. Creia-me, meu coração sangra por causa dessa desgraçada, mas o que estou fazendo é apenas o meu dever.

O doutor não respondeu. Com ar taciturno dirigiu o olhar para a janela e ficou olhando para fora. Casualmente não estava chovendo e viam-se, lá do outro lado da baía, aninhadas entre árvores, as choupanas duma aldeia indígena.

Acho que vou aproveitar a estiada disse êle.

Por favor, nao me leve a mal por eu não poder aceder ao seu desejo pediu Davidson com um sorriso melancólico.

Eu o respeito muito, doutor, e sentiria muito se o senhor fizesse mau juízo a meu respeito.

Não tenho dúvidas: sei que o senhor tem uma opi­nião suficientemente boa a respeito de si mesmo para receber a minha com serenidade retorquiu o outro.

         Isso já é um mau juízo disse Davidson, rindo baixinho. Quando o Dr. Macphail desceu, zangado consigo mesmo

por ter sido incivil sem nenhum propósito, Miss Thompson o estava esperando com a porta entreaberta.

         Então indagou ela falou ao reverendo?

         Falei. Sinto muito. Ele não quer fazer nada respondeu o doutor, embaraçado, sem encarar a interlocutora.

Mas depois lançou-lhe um olhar rápido, porque um soluço rompeu da garganta dela. Macphail viu que o rosto da rapariga estava branco de medo. Isso lhe deu um desfalecimento. De súbito teve uma idéia.

Mas não perca ainda as esperanças. Acho que é vergo­nhoso o modo como êle a está tratando. Vou eu mesmo falar com o governador.

         Agora?

         Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça. O rosto da moça resplandeceu.

         Olhe, o senhor é muito bondoso, sabe?

Estou certa de que ele vai me deixar ficar, se o senhor falar em meu nome. Eu prometo não fazer nada, nada, enquanto estiver aqui.

O Dr. Macphail mal sabia por que resolvera apelar para o governador. Os assuntos de Miss Thompson eram-lhe perfeitamente indiferentes, mas o missionário o irritara, e nele o ódio era um fogo lento e invisível. Achou o governador em casa. Era um sujeito grande e simpático, homem do mar, ti­nha um bigode grisalho tipo escova de dentes e vestia um uniforme imaculado de linho branco.

Vim falar-lhe a respeito duma mulher que está parando na mesma casa em que nos achamos hospedados. O nome dela é Thompson.

Acho que tenho informações que cheguem sobre ela, Dr. Macphail — respondeu o governador, sorrindo. — Dei-lhe ordem de embarcar terça-feira próxima. É só o que posso fazer.

Eu venho perguntar se o senhor não podia ser um pouco tolerante e permitir que ela fique aqui até que venha o va­por de São Francisco, a fim de que ela possa embarcar para Sydney. Eu me responsabilizo pelo seu comportamento.

O governador continuou a sorrir, mas seus olhos se entrecerraram, graves.

         Eu teria muito prazer em satisfazer o seu pedido, Dr. Macphail, mas já dei a ordem e tenho de mantê-la.

O doutor defendeu a sua causa tão razoavelmente quanto lhe foi possível. Mas o governador então cessou de sorrir por completo. Escutou taciturno, com os olhos afastados do interlocutor. Macphail viu que seu discurso não lhe estava cau­sando impressão.

         Sinto muito em causar embaraços a essa senhora, mas ela terá de embarcar terça e nada mais se pode fazer nesse particular.

         Mas que diferença faz que ela fique ou vá?

         Perdão, doutor, mas não me sinto tentado a explicar minhas ações oficiais, a não ser às autoridades competentes.

Macphail olhou para ele astutamente. Lembrou-se da in­sinuação de Davidson quanto às ameaças. E percebeu um singular embaraço na atitude do governador.

Davidson é um intrometido dos diabos — disse com calor.

Cá entre nós, Dr. Macphail, não digo que eu tenha uma opinião muito favorável a Mr. Davidson, mas sou levado a confessar que êle está dentro de seus direitos, denunciando-me o perigo que constitui a presença duma mulher como Miss Thompson num lugar como este onde há marinheiros aquar­telados no meio duma população de indígenas.

Ergueu-se. O Dr. Macphail foi obrigado a fazer o mesmo.

         Quero pedir que me desculpe. Tenho um compromisso. Queira apresentar os meus respeitos à sua esposa.

O doutor saiu desanimado. Sabia que Miss Thompson es­taria esperando por ele, e não tinha nenhuma vontade de lhe dizer pessoalmente do seu fracasso. Entrou em casa pela por­ta dos fundos e subiu furtivamente a escada, como se tivesse alguma coisa a esconder.

A hora da ceia, estava silencioso e desinquieto. Mas o missionário se mostrava jovial e animado. O Dr. Macphail percebeu que os olhos dele pousavam no seu rosto de quando em quando, com um bom humor triunfante. Chegou logo à conclusão de que Davidson ficara sabendo de sua visita ao governador e do seu insucesso. Mas como, diabos, o reverendo pudera saber? Havia alguma coisa de sinistro na força da­quele homem. Depois da ceia, Macphail viu Horn na varanda e, como quisesse trocar uma ou duas palavras com ele, saiu.

Ela quer saber se o senhor falou com o governador sussurrou o comerciante.

Falei. O homem não quer atender ao meu pedido. Sinto muitíssimo. Não posso fazer mais nada.

Eu sabia que ele não atendia. Eles não têm coragem de ir contra os missionários. - De que é que estão falando? perguntou Davidson afavelmente, reunindo-se a eles.

Eu estava dizendo que não há jeito de os senhores irem para Ápia antes de outra semana disse o comerciante com ar volúvel.

Dizendo isso, retirou-se. Os dois homens voltaram para a sala. O Sr. Davidson dedicava ao recreio uma hora após cada refeição. Ouviu-se uma leve batida à porta.

         Entre disse a Sra. Davidson, com a sua voz aguda.

A porta não se abriu. Ela se ergueu e foi abri-la. Viram Miss Thompson parada no limiar. Mas a mudança em sua aparência era extraordinária. Não era mais a rapariga atrevida e espalhafatosa que zombara delas na estrada, mas sim uma mulher vencida e cheia de medo. Seus cabelos, que de costume estavam arranjados de maneira complicada, caíam-lhe desali­nhados sobre o pescoço. Ela estava de chinelos e vestia saia e blusa. Eram roupas velhas e sujas. A mulher estava diante da porta com as lágrimas a lhe correrem face abaixo. Não ousava entrar.

         Que é que deseja? — perguntou a Sra. Davidson, áspera.

         Posso falar com Mr. Davidson? — perguntou ela com uma voz abafada.

O missionário ergueu-se e caminhou para ela.

         Entre, Miss Thompson — disse ele, num tom de voz cordial. — Em que posso servi-la? 

Ela entrou.

— Olhe, sinto muito ter dito aquilo o outro dia... e ter feito tudo o mais. Eu acho que estava um pouco embriagada. Peço desculpas.

Oh, não foi nada. Tenho as costas bastante largas para agüentar alguns desaforos.

Miss Thompson caminhou para ele com um movimento de horrenda servilidade.

         O senhor me venceu. Estou entregue. O senhor não vai me fazer voltar para São Francisco, não é?

A maneira amável do missionário se sumiu e sua voz cres­ceu, ficou de repente dura e severa.

         Por que não queres voltar para lá?

A mulher se encolheu e ficou toda trêmula diante dele.

         É... é que minha gente mora lá. Não quero que eles me vejam assim. Vou para qualquer outra parte que o senhor disser...

Por que é que não queres voltar para São Francisco?

Já lhe disse.

O missionário se inclinou para a frente, olhando fixamente para a mulher, e seus grandes olhos brilhantes pareciam querer sondar as profundezas da alma dela. Ele cortou súbito a respiração.

         A penitenciária!

Ela soltou um grito e depois caiu aos pés do reverendo, segurando-lhe as pernas.

         Não me mande para lá! Juro-lhe por Deus que hei de ser uma mulher direita. Vou abandonar esta vida.

Rompeu numa torrente de súplicas confusas e as lágrimas desciam correndo pelo seu rosto pintado. Davidson se inclinou sobre ela e, erguendo-lhe o rosto, forçou-a a olhar para ele.

         Não é isso, a penitenciária?

         Eu fugi antes que eles me agarrassem disse ela, ofegante. Se a polícia me pega, tenho de cumprir três anos.

O missionário largou-a. Ela caiu enrodilhada no soalho, soluçando amarguradamente. O Dr. Macphail ergueu-se.

Isso altera a coisa por completo disse ele. — Dê-lhe outra oportunidade. Ela quer tentar uma vida nova.

Vou dar-lhe a mais bela oportunidade que jamais ela teve. Se ela se arrepender, deixemos que aceite o seu castigo!

Miss Thompson compreendeu mal estas palavras e ergueu os olhos pesados de dor. Havia neles um fulgor de esperança.

O senhor vai me deixar ir?

Não. Irás para São Francisco terça-feira.

Ela soltou um urro de horror e depois rompeu em gritos baixos e roucos que mal pareciam sons emitidos por garganta humana e começou a bater com a cabeça no chão apaixonadamente. O Dr. Macphail saltou para ela e ergueu-a.

         Vamos, não faça isso. É melhor ir para seu quarto descansar. Vou-lhe dar alguma coisa.

Fê-la ficar de pé e em parte arrastando-a, em parte carregando-a, levou-a até o andar de baixo. Estava furioso com a Sra. Davidson e com a sua esposa, porque elas não faziam nenhum esforço no sentido de ajudar a pobre criatura. O mestiço estava parado no patamar e com o auxílio dele, o doutor con­seguiu levar a mulher para a cama. Miss Thompson gemia e gritava. Estava quase insensível.. Macphail deu-lhe uma inje­ção hipodérmica. Estava com calor e exausto quando tornou a subir.

         Consegui fazê-la repousar.

As duas mulheres e Davidson se achavam nas mesmas po­sições em que êle os deixara. Era possível que não tivessem falado nem se movido enquanto êle estivera ausente.

         Eu estava esperando o senhor — disse Davidson numa voz estranha e distante. — Quero que todos orem comigo pela alma de nossa irmã transviada.

Tomou da Bíblia que estava numa prateleira e sentou-se à mesa à qual haviam ceado. O reverendo empurrou o bule de chá, de sua frente. Com uma voz possante, sonora e pro­funda, leu o capítulo que narra o encontro de Jesus Cristo com a adúltera.

         Agora, ajoelhem comigo e oremos pela alma de nossa querida irmã Sadie Thompson.

Rompeu numa oração longa e apaixonada na qual implo­rava a Deus que tivesse piedade da pecadora. A Sra. Macphail e a Sra. Davidson se ajoelharam e cobriram os olhos com as mãos. O doutor, tomado de surpresa, desajeitado e submisso, também ajoelhou. A oração do missionário tinha uma eloqüência selvagem. Estava extraordinariamente como­vido e enquanto falava as lágrimas escorriam-lhe pelas faces. Lá fora a chuva impiedosa caía com insistência, com uma malignidade que de tão feroz parecia humana.

Por fim o missionário se calou. Fez pausa por um mo­mento e disse:

         Vamos agora repetir a oração do Senhor.

Disseram a oração e depois, imitando o missionário, os ou­tros se ergueram. O rosto da Sra. Davidson estava pálido e repousado. Ela se achava confortada e cheia de paz. Mas os Macphails se sentiram de repente envergonhados. Não sabiam para que lado olhar.

         Vou até lá em baixo ver com ela está agora — desculpou-se o médico.

Quando bateu à porta de Miss Thompson, foi Horn quem veio abri-la. A rapariga estava numa cadeira de balanço, so­luçando de mansinho.

         Que é que está fazendo aí? — exclamou Macphail. — Eu lhe disse que ficasse deitada.

         Não posso. Quero ver o Sr. Davidson.

         Minha pobre menina, que é que vai adiantar com isso? Não conseguirá nunca demovê-lo.

         Ele disse que viria se eu o chamasse.

Macphail fêz um sinal ao comerciante.

         Vá chamá-lo.

Esperou com ela, em silêncio, enquanto o dono da casa subia. Davidson entrou.

O senhor me desculpe por eu lhe ter pedido para vir até aqui disse ela, olhando para o missionário com ar sombrio.

Eu estava esperando que me chamasses. Eu sabia que o Senhor havia de atender à minha prece.

Eles se contemplaram por um momento e depois a mulher desviou o olhar. E conservou-o assim desviado enquanto o missionário falava.

         Fui uma mulher ruim. Quero me arrepender.

Graças a Deus! Graças a Deus! Ele ouviu as nossas orações. Voltou-se para os dois homens.

         Deixem-me a sós com ela. Digam à Sra. Davidson que nossas orações foram atendidas.

Os dois homens saíram e fecharam a porta.

Papagaio! exclamou o comerciante, surpreendido.

Aquela noite o Dr. Macphail não pôde dormir até tarde e, quando ouviu o missionário subir, olhou o relógio. Eram duas horas. Mas não conseguiu dormir imediatamente; porque atra­vés do tabique de madeira que separava os dois quartos, ele ficou ouvindo o missionário, rezando alto, até que, exausto, caiu no sono.

Ao ver Davidson na manhã seguinte, ficou surpreendido com sua aparência. O homem estava mais pálido que de cos­tume, cansado; seus olhos, porém, brilhavam dum fogo inu­mano. Parecia que êle estava transbordando duma alegria irresistível.

         Quero que o senhor desça agora e veja Sadie disse ele. Não posso esperar que seu corpo esteja melhor, mas sua alma... sua alma está transformada.

O doutor sentia-se desalentado e nervoso.

Esteve com ela até muito tarde a noite passada, não?

Sim, ela não queria que eu a deixasse.

         O senhor está contente como um polichinelo disse o doutor, irritado.

Os olhos de Davidson brilharam de êxtase.

         Uma grande mercê me foi concedida. À noite passada tive o privilégio de trazer uma alma perdida para os braços amantíssimos de Jesus.

Miss Thompson se achava de novo na cadeira de balanço. A cama não tinha sido feita. O quarto estava em desordem. Ela não se dera o trabalho de vestir-se; mas trazia no corpo um robe de chambre cheio de nódoas e seu cabelo estava amarrado num coque desleixado. Passara no rosto uma toalha úmi­da; mas ele estava todo inchado e enrugado do choro. Sadie Thompson tinha um aspecto sórdido.

Ergueu os olhos lentamente quando o doutor entrou. Estava encolhida e derrotada.

         Onde está o Sr. Davidson? — perguntou ela.

         Ele já vem, se a senhora quiser — respondeu Macphail acremente. — Vim ver como está.

Oh, acho que estou O. K. Não se preocupe com a minha saúde.

         Comeu alguma coisa?

Horn me trouxe um pouco de café.

Ela olhou com ânsia para a porta.

— Acha que ele vai descer logo? Não fico tão apavorada quando ele está perto de mim.

         Vai sempre terça-feira?

         Sim, ele diz que eu tenho de ir. Faça o favor de lhe dizer que venha logo. O senhor não me pode fazer nenhum bem. Ele é o único capaz de me ajudar agora.

         Está bem.

Durante os três dias que se seguiram, o missionário passou todo o seu tempo com Sadie Thompson. Só se reunia aos outros à hora das refeições. O Dr. Macphail notou que ele mal be­liscava os alimentos.

— Ele está se consumindo — disse a Sra. Davidson, penalizada. — "Vai adoecer se não tomar cuidado; mas ele não se poupará...

Ela própria estava branca e pálida. Contou à Sra. Macphail que não dormia. Quando Davidson subia, vindo do quarto de Miss Thompson, orava até ficar exausto; mas mesmo assim ião dormia senão muito tempo depois. Ao cabo de uma hora ou duas, erguia-se, vestia-se e saía a caminhar ao longo da baía. Tinha sonhos estranhos.

         Esta manhã ele me disse que sonhou com as montanhas de Nebraska contou a Sra. Davidson.

         É curioso observou o Dr. Macphail.

Lembrou-se de tê-las visto da janela do trem quando atravessara a América. Eram como enormes montes de terra, redondo e lisos; erguiam-se abruptamente da planície. O Dr. Macphail lembrava-se de como elas lhe haviam dado a impres­são de seios de mulher.

A inquietude de Davidson era intolerável até para ele pró­prio. Mas uma maravilhosa jovialidade o trazia de pé. Estava arrancando pelas raízes os últimos vestígios de pecado que se escondiam nos recantos mais fundos do coração daquela mulher. Lia com ela e com ela orava.

É admirável disse ele aos outros um dia, à hora da ceia... É um verdadeiro renascimento. A alma dela, que era negra como a noite, agora está pura como a neve recém-caída. Eu me sinto humilde e temente. O remorso dela por todos os seus pecados é lindo. Não sou digno de tocar a fím­bria de suas vestes.

Tem coragem de mandá-la de volta a S. Francisco? perguntou o doutor. Três anos numa prisão americana. Eu achava que o senhor devia salvá-la disso também.

Ah, mas o senhor não vê? É necessário. Pensa que meu coração não sangra por ela? Eu a amo como amo minha mulher e minha irmã. Todo o tempo que ela estiver na prisão hei de sofrer toda a dor que ela sofre.

         Palavras! exclamou o doutor, impaciente.

         O senhor não compreende porque é cego. Ela pecou, tem de sofrer. Sei o que ela vai passar. Há de sentir fome, há de ser torturada e humilhada. Quero que ela aceite o cas­tigo do homem como um sacrifício a Deus. Quero que ela o aceite com alegria. Está diante duma oportunidade que se oferece a pouquíssimos de nós. Deus é muito bom e muito cheio de piedade.

A voz de Davidson tremia de comoção. Ele mal podia articular as palavras que lhe caíam apaixonadas dos lábios.

         Todos os dias rezo com ela e quando a deixo torno a rezar, rezo com todas as forças da minha alma, para que Jesus lhe possa conceder a sua grande mercê. Quero pôr no coração dela o desejo apaixonado de ser punida para que, no fim, mesmo que eu a deixe livre para ir, ela se recuse a isso. Quero que ela sinta que o amargo castigo da prisão é o ofe­recimento em ação de graças que ela coloca aos pés de Nosso Abençoado Senhor, que deu sua vida por ela.

Os dias passavam com lentidão. Toda a casa, com o sentido na infeliz e torturada mulher lá de baixo, vivia num estado de excitação invulgar. Sadie Thompson era como uma vítima que estava sendo preparada para os ritos selvagens duma idola­tria sangrenta. O terror a paralisava. Ela não podia suportar a ausência de Davidson; era só quando ele estava a seu lado que ela tinha coragem; e ela o contemplava com uma afeição servil de escrava. Chorava muito, muito; lia a Bíblia e orava. Algumas vezes sentia-se exausta e apática. Então lançava realmente os olhos para o futuro, para a sua provação, porque o futuro parecia oferecer-lhe uma fuga, direta e concreta, da angústia que ela sofria. Não podia suportar por muito mais tempo os vagos terrores que agora a assaltavam. Com seus pecados ela pusera de lado toda a vaidade pessoal e se arrastava pelo quarto, desgrenhada e sem aprumo, metida no seu robe de chambre espalhafatoso. Havia quatro dias não tirava do corpo aquela roupa de noite, nem punha meias. Seu quarto estava em desordem. Enquanto isso a chuva caía com uma cruel persistência. Sentia-se que os céus já deviam estar va­zios d'água; mas a chuva continuava a cair direita e pesada em cima do telhado de ferro ondulado, com uma iteração endoidecedora. Tudo estava úmido e pegajoso. Havia míldio nas pa­redes e nos sapatos que ficavam no chão. Através das noites insones os mosquitos zumbiam sua cantiga raivosa.

         Se parasse de chover ainda que fosse um só dia, a coisa não seria tão má — comentou o Dr. Macphail.

Todos esperavam a terça-feira em que o navio que ia para São Francisco devia chegar de Sydney. A tensão era intole­rável. No que dizia respeito ao Dr. Macphail, sua piedade e seu ressentimento eram contrabalançados pelo seu desejo de se desembaraçar daquela desgraçada. Devia-se aceitar o inevitável. Êle sentiu que havia de respirar mais livremente quando o navio tivesse levantado ferros. Sadie Thompson devia ser escoltada a bordo por um funcionário do governo. Essa pessoa apareceu na noite de segunda-feira e disse a Miss Thompson que estivesse pronta às onze da manhã. Davidson não estava com ela.

         Hei de fazer que tudo esteja pronto. Quero dizer: eu mesmo vou levá-la a bordo.

Miss Thompson não falou.

Quando apagou a sua vela e deslizou cautelosamente para baixo do mosquiteiro, o Dr. Macphail deu um suspiro de alívio.

Bom, graças a Deus a coisa acabou. Amanhã a estas ho­ras, ela já terá ido embora...

A Sra. Davidson ficará contente também. Ela diz que o homem está se finando de tal modo que já parece até uma sombra contou a Sra. Macphail. Ela está diferente.

         Quem?

         Sadie. Eu nunca havia de pensar que isso fosse pos­sível. É uma coisa que deixa a gente humilde.

O Dr. Macphail não respondeu e pouco depois caiu no sono. Estava cansado. Dormiu um sono mais pesado que o habitual.

Foi acordado de manhã por uma mão que lhe sacudia o braço. Despertando, viu Horn ao lado de sua cama. O nego­ciante pôs o dedo na boca para evitar qualquer exclamação da parte do Dr. Macphail. Fez-lhe um sinal: fosse com ele. Ha­bitualmente andava Horn metido numa velha roupa de linho mas agora tinha os pés descalços e trazia no corpo apenas o lava-lava dos nativos. Olhado de repente, dava a impressão dum selvagem. Saltando da cama, o médico viu que o ho­mem estava fortemente tatuado. Horn chamou-o para a varanda com um sinal. O Dr. Macphail seguiu o comerciante.

         Não faça barulho sussurrou Horn. Precisamos do senhor. Ponha um casaco e calce os sapatos. Depressa.

O primeiro pensamento que veio à mente do médico foi o de que alguma coisa acontecera a Miss Thompson.

Que foi? Preciso levar meus instrumentos?

Depressa, por favor, depressa.

O Dr. Macphail voltou para o quarto, vestiu um imper­meável por cima do pijama e calçou sapatos com sola de bor­racha. Voltou para junto do comerciante e, lado a lado, desce­ram a escada na ponta dos pés. A porta que dava para fora estava aberta e junto dela se via uma meia dúzia de indígenas.

Que é que há? — repetiu o doutor.

Venha comigo — disse Horn.

Começou a caminhar. O doutor seguiu-o. Os naturais saí­ram atrás deles num pequeno grupo. Cruzaram a estrada e chegaram à praia. O doutor viu um grupo de indígenas parado em torno de alguma coisa à beira d'água. Caminharam talvez uns vinte metros. Os nativos abriram alas quando o doutor se aproximou. O comerciante o impeliu para a frente. E Macphail viu estendida a seus pés, metade dentro d'água, metade fora, uma coisa horrenda: o corpo de Davidson. Inclinou-se — pois não era homem que perdesse a cabeça numa emer­gência daquelas — e virou o cadáver. A carótida estava cor­tada de orelha a orelha e na mão direita se via ainda a na­valha que produzira o talho.

Está completamente frio — disse o doutor. — Deve ter morrido há algum tempo.

Um dos rapazes o viu estendido aqui quando ia para o trabalho. Correu para me contar. Acha que foi suicídio?

         Acho. Alguém devia ir chamar a polícia.

Horn disse alguma coisa em língua indígena e deis rapazes deitaram a correr.

Devemos deixar o corpo aqui até que a polícia venha — aconselhou o doutor.

Não o devem levar para minha casa. Não quero que ele vá para minha casa.

Você vai fazer o que as autoridades disserem — replicou o doutor incisivo. — Mas, para falar a verdade, espero que o levem para o necrotério.

Ficaram esperando. O negociante tirou cigarros duma do­bra do seu lava-lava e ofereceu um ao Dr. Macphail. Fu­maram enquanto contemplavam o cadáver. O Dr. Macphail não podia compreender.

         Por que é que o senhor pensa que ele fez isso? — perguntou Horn.

O doutor encolheu os ombros. Dentro em pouco a polícia indígena chegou, comandada por um marinheiro. Traziam uma padiola e imediatamente depois chegaram dois oficiais de marinha e um médico. Fizeram tudo duma maneira fria e profissional.

         E a senhora dele? perguntou um dos oficiais.

         Agora que os senhores vieram, eu vou voltar para casa e arranjar as coisas. Vou fazer que lhe dêem a notícia. É melhor que ela não veja o corpo antes de o arranjarem um pouco.

         Acho que é isso mesmo concordou o médico naval. Quando o Dr. Macphail voltou, achou a esposa quase ves­tida.

         A Sra. Davidson está num estado pavoroso por causa do marido disse ela logo que Macphail apareceu. Ele não foi para a cama toda a noite. Ela ouviu quando o Sr. Davidson deixou o quarto de Miss Thompson às duas; mas foi para fora. Se ele ficou caminhando desde aquela hora, deve estar morto de cansaço.

O Dr. Macphail contou-lhe o que havia acontecido e lhe pediu que desse a notícia à Sra. Davidson.

         Mas por que será que ele fez isso? perguntou ela, horrorizada.

Não sei.

Mas eu não posso. Não posso.

Precisas contar-lhe.

Ela lhe lançou um olhar assustado e saiu. O médico ouviu a esposa entrar no quarto da missionária. Esperou um minuto para se refazer e depois começou a barbear-se e a lavar-se. Quando estava vestido, sentou-se na cama e esperou a esposa. Por fim ela veio.

         A Sra. Davidson quer ver o marido disse.

Levaram-no para o necrotério. É melhor descermos com ela. Como foi que ela recebeu a notícia?

Acho que ela está atordoada. Não chorou. Mas está tremendo como uma vara verde.

É melhor irmos imediatamente.

Quando bateram à porta, a Sra. Davidson saiu. Estava muito pálida, mas com os olhos secos. Para o doutor a sua compostura pareceu artificial. Não se trocou nenhuma palavra. E em silêncio se puseram a caminho. Ao chegarem ao necroté­rio, a Sra. Davidson falou.

         Deixem-me entrar e ficar sozinha com ele.

O casal ficou para trás. Um indígena abriu a porta para ela, tornando a fechá-la depois. Os Macphails sentaram-se e esperaram. Um ou dois brancos vieram e lhes falaram em voz baixa. O médico lhes contou de novo o que sabia da tragédia. Por fim a porta se abriu suavemente e a Sra. Davidson saiu. O silêncio caiu sobre os outros.

         Agora estou pronta para voltar — disse ela.

Sua voz estava dura e firme. O Dr. Macphail não pôde compreender a expressão de seus olhos. O seu rosto pálido estava rígido. Voltaram para casa devagar, sem dizer uma palavra e por fim chegaram à curva do outro lado da qual ficava a casa onde estavam hospedados. A Sra. Davidson suspendeu a respiração e por um momento eles pararam e ficaram imó­veis. Um som incrível lhes assaltava os ouvidos. O gramofone que tinha estado silencioso por tantos dias estava tocando, tocando um ragtime gritão e rouco.

Que é isso? — gritou a Sra. Macphail, com horror.

Vamos continuar — disse a outra.

Subiram os degraus e entraram no vestíbulo. Miss Thompson estava à porta de seu quarto, palestrando com um marinheiro. Uma súbita mudança se operara nela. Já não era mais a escrava acobardada dos últimos dias. Estava com todos os seus en­feites, vestida de branco, com as botinas lustrosas por cima de cujos canos saltava a carne de suas pernas gordas, nas meias de algodão; seu cabelo estava penteado de maneira complicada; e ela exibia ainda o seu enorme chapéu coberto de flores berrantes. Tinha o rosto pintado, suas sobrancelhas es­tavam audaciosamente negras e seus lábios, escarlates. Sadie Thompson se mantinha empertigada. Era de novo a mulher provocante que eles viram a primeira vez. Quando o grupo entrou, ela rompeu numa gargalhada alta e debochada; e depois, quando a Sra. Davidson parou involuntariamente, Sadie Thompson juntou saliva na boca e cuspiu. A esposa do mis­sionário recuou, encolheu-se e duas manchas vermelhas lhe apareceram de repente nas faces. Depois, cobrindo o rosto com as mãos, ela se afastou do grupo e subiu rápida a escada.

O Dr. Macphail estava indignado. Passou péla mulher e entrou no quarto da rapariga, intempestivo.

         Que diabo você está fazendo? gritou. Pare essa maldita máquina.

Caminhou para o gramofone e arrancou dele o disco. Sadie Thompson voltou-se para o médico.

         Escute, doto, que é que você quer comigo, hem? Que diabo está fazendo no meu quarto?

         Que significa isso? gritou ele. Que significa isso?

É impossível descrever a sua expressão de desprezo ou o ódio desdenhoso que ela pôs na resposta:

         Vocês, os homens! Seus porcos sujos, indecentes! Vocês são todos os mesmos, todos! Porcos! Porcos!

O Dr. Macphail suspendeu a respiração. Tinha compreendido.

 

Vermelho

O capitão meteu a mão num dos bolsos das calças, e com dificuldade (pois as algibeiras ficavam na frente em vez dos lados, e ele era homem corpulento) extraiu um largo relógio de prata. Depois de ver as horas, tornou a considerar o sol em declínio. O canaca que ia ao leme relanceou-lhe os olhos, mas não falou. Os do capitão descansaram na ilha de que se iam aproximando. Uma linha branca de espuma assinalava os recifes. Ele sabia haver uma aberta de largura suficiente para dar passagem ao seu navio, e confiava em que a encon­traria quando estivessem um pouco mais chegados. Ainda tinha por diante quase uma hora de dia. A laguna era funda, e poderiam lançar ferro ali a seu contento. O maioral da aldeia, que já se divisava entre os coqueiros, era amigo do imediato e seria agradável passar a noite em terra. Nesse mo­mento se adiantou o imediato, e o capitão voltou-se para ele.

         Levamos uma garrafa de aguardente e arranjamos umas pequenas para dançar — disse.

         Não vejo a entrada — volveu o imediato.

Era um canaca, rapaz trigueiro, bem-parecido, dando um pouco os ares de um imperador romano da decadência, com pendor para engrossar; tinha, porém, o rosto fino e de linhas puras.

         Tenho toda a certeza de que há uma, bem aqui — disse o capitão, olhando pela luneta. — Não compreendo como não posso encontrá-la. Manda um dos rapazes trepar no mastro para olhar.

O imediato chamou um da equipagem e deu-lhe a ordem. O capitão viu-o marinhar e esperou pelo resultado. Mas o indígena gritou para baixo que só avistava a linha inteiriça de espuma. O capitão falava samoano como um nativo, e praguejou-o copiosamente.

         Quer que ele fique em cima? perguntou o imediato.

         Que adianta isso? replicou o capitão. O maldito palerma não é capaz de enxergar nem uma baleia diante do nariz. Você pode apostar o pescoço em como eu descobria a entrada se estivesse lá.

Olhou o delgado mastro com rancor. Aquilo era bom para um nativo, acostumado toda a vida a trepar em coqueiros. Mas ele era gordo e pesado.

Desce gritou. Você não tem serventia nenhuma. Vai ser preciso costear os recifes até encontrarmos a entrada. Era uma escuna de setenta toneladas, com revestimento de parafina, e fazia, em não tendo vento ponteiro, de quatro a cinco nós por hora. Tinha um aspecto enlameado; fora, muito tempo atrás, pintada de branco, porém, agora estava suja, escura e salpicada. Tresandava a parafina e a copra, que era o seu carregamento usual. Estavam eles então a uns cem pés dos abrolhos, e o capitão mandou o timoneiro perlongá-los até darem com a passagem. Mas, após navegar um par de milhas, compreendeu que ela lhe escapara. Virou de bordo e tornou atrás, vagarosamente. A espuma branca dos cachopos estendia-se ininterrupta, e já o sol ia entrando. Com uma imprecação contra a estupidez da equipagem, ele se resignou a esperar pela manhã seguinte.

Ponham-se ao largo disse. Não podemos ancorar aqui.

A escuna ganhou o mar, e não tardou que fosse noite feita. Fundearam. Colhido o pano, ela entrou a jogar rijo. Dizia-se em Ápia que um belo dia virava de borco; e o proprietário, um germano-americano que geria um dos maiores armazéns, declarava não haver no mundo dinheiro capaz de o fazer viajar nela. O cozinheiro chinês, de calças brancas, sujíssimas e rotas, e uma leve túnica também branca, veio dizer que a ceia estava pronta. Ao entrar na cabina, o capitão já encontrou o maqui­nista abancadp à mesa. O maquinista era um homem comprido e magro, de pescoço ossudo. Trajava de azulão, com uma camiseta de meia sem mangas que punha à mostra os seus braços finos, tatuados do pulso ao cotovelo.

— É o inferno ter de passar a noite cá fora — disse o capitão.

O maquinista não respondeu, e eles cearam em silêncio. A cabina era alumiada por um fosco candeeiro de querosene. De­pois de comerem a sobremesa de abricós em conserva, o chinês lhes trouxe uma taça de chá. O capitão acendeu um charuto e subiu para o tombadilho superior. A ilha era agora apenas um vulto mais negro na noite. As estrelas refulgiam. O único som audível era o rebentar incessante das ondas contra o cas­co. O capitão afundou-se numa cadeira do convés e fumou ociosamente. Daí a pouco, três ou quatro membros da equipa­gem subiram e sentaram-se. Um deles tinha um banjo, outro uma concertina. Começaram a tocar, e um marinheiro cantou. A toada indígena soava de modo singular naqueles instrumentos. Depois, um par saiu dançando. Era uma dança bárbara e pri­mitiva, rápida, acompanhada de vivos movimentos de mãos e pés, e contorções do corpo; era sensual, sexual mesmo, po­rém sem paixão. Muito animal, franca, estranha mas sem mistério, natural em suma, poder-se-ia quase dizer, infantil. Por fim eles se cansaram. Estenderam-se no tombadilho e dormiram. Tudo ficou silencioso. O capitão levantou pesada­mente da cadeira e desceu para a sua cabina, onde se despiu. Trepou para o beliche e deitou-se. O calor da noite o fazia ofegar um pouco.

Mas, na manhã seguinte, quando a aurora veio avançando de mansinho por sobre o tranqüilo mar, a abertura dos re­cifes, que de noite lhes iludira a busca, apareceu um pouco a leste de onde estavam. O navio entrou na laguna. Não havia na superfície d'água nem uma ruga. Fundo, entre as rochas de coral, viam-se nadar peixinhos coloridos. Depois de lan­çarem ferro, o capitão dejejuou e subiu ao convés. O sol bri­lhava num céu sem nuvens, mas àquela hora matinal o ar estava gostosamente fresco. Era domingo, e havia uma sensa­ção de quietude, como se a natureza descansasse. Isto lhe comunicava um bem-estar especial. Daí a pouco, um lento sor­riso lhe encrespou os lábios, e ele jogou n'água o toco do charuto.

— Estou querendo ir à terra — disse. — Arriem o bote. Desceu rigidamente a escada, e foi transportado a uma angrazinha. Os coqueiros chegavam até a beira d'água, não em fileiras, mas espaçados com uma regularidade formalista. Lembravam uma procissão de solteironas, idosas mas louçãs, em posturas afetadas, faceirando os encantos de uma beleza ida. O capitão caminhava negligentemente no meio deles, trilhando uma vereda que via colear adiante o seu curso tortuoso, e que a breve trecho o levou à margem de largo ribeiro. Transpunha-o uma ponte, mas ponte feita com simples troncos de coqueiro, em número de uma dúzia, enfilei­rados ponta com ponta e sustentados nas junções pelas for­quilhas de ramos cravados no leito da corrente. Caminhava-se sobre uma superfície lisa, redonda, estreita e escorregadia, e não havia corrimão. A travessia demandava pés seguros e cabeça sólida. O capitão hesitou. Mas viu na outra mar­gem, aninhada entre as árvores, uma casa de brancos; re­solveu-se, e, com cautela, avançou. Vigiava atentamente os pés, e onde os troncos se punham em contato, a diferença de nível o fazia titubear um pouco. Foi com um suspiro de alívio que alcançou a última árvore e finalmente pisou terra firme, no outro lado. Viera tão absorto na difícil acrobacia que nem percebeu estar sendo observado, e foi com surpresa que ouviu lhe dirigirem a palavra.

         É preciso um pouco de coragem para atravessar estas pontes quando não se está habituado.

Ergueu os olhos, e viu um homem parado na sua frente. Vinha, manifestamente, da casa que êle avistara.

Vi o senhor hesitar continuou o homem com um sor­riso nos lábios e fiquei esperando pela queda.

Não tem perigo tornou o capitão, que já recobrara o sangue frio.

Eu mesmo tenho caído dessa ponte. Lembro-me de uma noite que voltava da caça, e fui abaixo com espingarda e tudo. Agora arranjo sempre um menino para me carregar a espingarda.

Era um homem já passado da idade moça, com uma barba pequena, agrisalhada, e o rosto fino. Vestia uma camiseta sem mangas, e calças de tela. Estava descalço. Falava inglês com leve sotaque.

O senhor é Neilson? perguntou o capitão.

Sou.

         Já ouvi falar. Calculava que o senhor morasse por aqui.

Entrou no pequeno bangalô, em seguimento do dono, e sentou-se pesadamente na cadeira que o outro lhe indicou. Enquanto Neilson saía para buscar uísque e copos, ele circungirou os olhos pelo aposento. Este o encheu de assombro. Nunca vira tanto livro junto. As estantes iam de soalho a teto, ao longo das quatro paredes, e estavam atulhadas. Ha­via ali um piano de cauda, alastrado de músicas, e uma grande mesa sobre a qual jaziam, em desordem, livros e revistas. Este espetáculo o deixou embaraçado. Lembrou-se de que Neilson era um esquisitão. Ninguém lhe sabia muita coisa da vida, apesar da sua longa residência nas ilhas, mas os que o conhe­ciam estavam todos concordes em dizê-lo original. Era sueco.

Que livralhada o senhor tem aqui! — disse ele quando Neilson voltou.

Não fazem mal à ninguém — respondeu Neilson com um sorriso.

Leu-os todos? — perguntou o capitão.

A maior parte.

         Eu também gosto de ler. Recebo o Saturday Evening Post todas as semanas.

Neilson deitou uma rija dose de uísque no copo do visitante e deu-lhe um charuto. O capitão achou que devia fornecer algumas informações.

         Cheguei ontem de noite, mas não pude encontrar a entrada e tive de ancorar fora. Nunca fiz esta viagem, mas o meu pessoal tinha umas mercadorias para entregar aqui. Para o Gray, conhece?

         Sim, tem um armazém aqui perto.

         Pois ele está precisando de uma porção de artigos em lata, e paga em copra. Acharam melhor eu trazê-los, em vez de ficar em Ápia sem nada que fazer. Geralmente viajo entre Ápia e Pago-Pago, mas agora anda por lá a varicela, e os negócios estão parados.

Tomou um gole de uísque e acendeu o charuto. Era um homem taciturno, mas havia em Neilson qualquer coisa que o punha nervoso, e o seu nervosismo tornava-o loquaz. O sueco o olhava com uns grandes olhos pretos em que transparecia leve expressão de divertimento.

É um sítio catita este seu.

Trato dele o melhor que posso.

         As suas árvores devem lhe render bom dinheiro. São lindas. Com a copra ao preço por que está... Eu também já tive uma plantaçãozinha, em Upolu, mas fui obrigado a vendê-la.

Tornou a considerar a sala, em que todos aqueles livros lhe davam o sentimento de qualquer coisa incompreensível e hostil.

         Calculo que o senhor deve achar isto aqui meio aborrecido, apesar de tudo.

         Já me acostumei. Há vinte e cinco anos que estou aqui.

Como não achasse mais que dizer, o capitão fumou em silêncio. Neilson não parecia ter vontade de quebrar esse silêncio. Contemplava o hóspede com um olhar meditativo. Este era alto, com mais de metro e oitenta, e muito encorpado. Tinha o rosto vermelho e borbulhoso, com as faces reticula­das de pequenas veias purpurinas, e as suas feições diluíam-se na gordura. Os olhos eram injetados. O pescoço desapare­cia sob roscas de graxa. A não contar uma franja de cabelo crespo, quase branco, no occipício, êle era inteiramente calvo; e aquela testa imensa e brilhante, que lhe poderia emprestar um falso ar de inteligência, fazia-o pelo contrário aparentar notável imbecilidade. Vestia camisa de flanela azul, aberta ao pescoço e pondo-lhe à mostra o peito coberto por uma maranha de pêlos ruivos, e um velhíssimo par de calças de sarja azul. Estava sentado em postura pesadona e gêba, com a grande barriga lançada para a frente e as pernas roliças descruzadas. Seus membros haviam perdido toda a elastici­dade. Neilson perguntava, devaneando, aos seus botões que espécie de ftómem êle teria sido em moço. Era quase impossí­vel imaginar que esta volumosa criatura fora um menino vivaz e saltitante. O capitão esgotou o copo de uísque e Neilson empurrou a garrafa para o seu lado: — Sirva-se.

O outro inclinou-se para a frente e agarrou-a com a sua manápula.

         Mas como foi que o senhor veio parar nesta zona? perguntou.

Oh, vim para as ilhas por causa da minha saúde. Tinha os pulmões em muito mau estado, e não me davam um ano de vida. Enganavam-se, como vê.

O que eu queria lhe perguntar era por que fez casa neste lugar? 

Porque sou sentimentalista.

Oh!

Neilson sabia que o capitão não o compreendera, e olhou-o com um brilho irônico nos olhos pretos. Talvez justamente por ser ele um homem tão materialão e bronco, deu-lhe o capricho de continuar as suas confidências.

         O senhor estava muito ocupado em conservar o equilíbrio, para reparar, quando passou a ponte, mas geralmente acham bem bonito este sítio.

         Não há dúvida que a sua casinha dá no olho.

         Ah, mas não existia quando cheguei. Havia aqui uma choça de indígena, com o seu teto em forma de colméia e os pilares, à sombra de uma árvore enorme de flores vermelhas; e os crótons, de folhas amarelas, vermelhas e douradas, formavam tapada em redor. Depois, por todos os lados, os coqueiros, caprichosos e fúteis como mulheres. Postavam-se à beira d'água e passavam o dia inteiro olhando-se nela. Eu era moço, então — meu Deus, já lá vai um quarto de século! — e queria gozar tudo que o mundo tinha de adorável no curto prazo de vida que me restava, antes de entrar na escuridão. Este me pareceu o recanto mais belo que tinha visto. Ao deparar com ele, senti um aperto no coração, e tive medo de chorar. Estava nos vinte e cinco anos, e embora procurasse fazer boa cara à minha sorte, não queria morrer. E, de algum modo, era como se a própria beleza do lugar me tornasse mais fácil a aceitação do destino. Quando vim para cá, toda a minha vida passada, Estocolmo com a sua Universidade, e depois Bona, esfumou-se como se fosse a vida de um outro, como se eu tivesse finalmente atingido a realidade tão discutida pelos doutores de Filosofia... eu também o sou, sabe? "Um ano!" gritei de mim para mim. "Tenho um ano. Passá-lo-ei aqui, e depois morrerei contente."

"Aos vinte e cinco anos somos patetas, sentimentais e melodramáticos, porém se não o fôssemos, teríamos talvez menos juízo aos cinqüenta.

"Mas beba, meu amigo. Que a minha conversa fiada não lhe sirva de empecilho."

Acenou com a fina mão para a garrafa, e o capitão embor­cou o que lhe restava no copo.

         O senhor é que não bebe nada disse ele, apanhando o uísque.

Sou sóbrio por costume sorriu o sueco. — Embriago-me de outros modos, que suponho serem mais sutis. Mas, tal­vez isso não passe de vaidade. Entretanto, os efeitos são mais duradouros e os resultados menos deletérios.

         Dizem que hoje em dia estão tomando muita cocaína nos Estados observou o capitão.

Neilson riu-se.

         Mas é raro que eu encontre um branco para conversar continuou, e, por esta vez, acho que uma gota de uísque não me fará mal.

Deitou pequena quantidade para si, temperou-a com água de soda e tomou um sorvo.

         E não tardei a descobrir por que o lugar tinha esse encanto tão maravilhoso. Aqui o Amor se havia detido um ins­tante, como ave migradora que pousa num navio em alto mar, e dobra por um momento as asas fatigadas. O aroma de uma bela paixão o envolvia, como a fragrância dos espinheiros de maio nos prados da minha terra. Parece-me que os lugares onde homens amaram e sofreram guardam sempre a fraca ra­diação de qualquer coisa que não morre de todo. É como se eles adquirissem uma alma, que influi misteriosamente naque­les que passam. Quisera poder exprimir-me com clareza. E sorriu de leve. Mas não creio que o senhor me compre­endesse se eu o fizesse.

Fez uma pausa.

         Acho que este sítio era belo, porque nele fui objeto de um belo amor. E, dando de ombros: — Mas talvez fosse. apenas porque o meu senso estético encontrou pasto na feliz conjunção de um jovem amor e do cenário adequado.

Até um homem menos obtuso que o capitão teria motivo para ficar banzando com as palavras de Neilson. Pois este parecia rir-se brandamente do que ele próprio dizia. Era como se falasse sob o império de uma emoção que o seu espírito achava ridícula. Havia-se declarado sentimentalista, e quando o sentimentalismo anda às testilhas com o cepticismo, a vítima, geralmente, come o pão que o diabo amassou.

Ele guardou silêncio por algum tempo, fitando o capitão com uns olhos em que se pintava repentina perplexidade.

         É notável: não me sai da idéia que eu já o vi em alguma parte — disse.

— Pois eu não me lembro do senhor — volveu o capitão.

         Tenho a singular impressão de que o seu rosto me é conhecido. Isto me intriga. Mas não consigo situar a recordação em lugar, nem em época nenhuma.

O capitão encolheu pesadamente os ombros maciços.

         Faz trinta anos que estou nas ilhas. A gente não pode se lembrar de todas as pessoas que encontrou nesse tempo.

O sueco abanou a cabeça.

Sabe como nos vem, às vezes, o sentimento de que um lugar, onde nunca estivemos, não nos é estranho. É a sensação que o senhor me dá. — Teve um sorriso cismático: — Quem sabe se o conheci nalguma existência passada? Talvez... talvez o senhor fosse mestre de uma galera romana, e eu um escravo no remo. Há trinta anos que está aqui?

Trinta anos inteirinhos, sem tirar um dia.

— Não teria conhecido um homem chamado Vermelho?

Vermelho?

É o único nome que lhe conheço. Pessoalmente, nunca lhe pus os olhos em cima. E, no entanto, parece-me vê-lo com mais clareza que a muita gente — os meus irmãos, por exemplo, com quem vivi diariamente por tantos anos. Ele vive na minha imaginação com a nitidez de um Paulo Malatesta ou um Romeu. Mas o senhor, garanto, nunca leu Dante nem Shake­speare?

         Não, isso não li — respondeu o capitão. Neilson, que estava fumando um charuto, reclinou-se na cadeira e olhou, vagamente, o anel de fumaça a flutuar acima dele, no ar parado. Um sorriso lhe bailava nos lábios, mas os olhos estavam sérios. Depois pousou-os no capitão. A sua chata obesidade tinha qualquer coisa de repelente. Ele mostrava a pletórica satisfação dos imensamente gordos. Isto era afrontoso. Mexia com os nervos de Neilson. Mas o contraste entre esse homem e o que êle tinha na mente era divertido.

A crer no que diziam, Vermelho era a criatura mais perfeita que já se viu. Tenho conversado com numerosas pessoas que o conheceram naquela época, homens brancos, e todos afirmaram que a sua beleza, à primeira vista, tirava o fôlego à gente. Chamavam-no de Vermelho por causa da sua cabe­leira chamejante. Tinha um ondulado natural, e ele a usava comprida. Devia ser dessa cor magnífica que tanto fascinava os pré-rafaelitas. Não creio que o Vermelho se envaidecesse dela era muito ingênuo para isso mas ninguém o po­deria censurar se o fizesse. Era alto, com mais de um metro e oitenta na choupana indígena que existia aqui antiga­mente, a sua altura estava marcada com um entalho de faca no tronco central que sustentava o teto e tinha o feitio de um deus grego, largo de espáduas e estreito nos flancos. Era semelhante a Apolo, com aquela macieza de linhas que lhe deu Praxíteles e aquela graça suave, feminina, que tem algo de perturbador e misterioso. Sua pele era deslumbradoramente branca, láctea, como cetim: uma pele de mulher.

Eu também tinha a pele branca quando era rapazote disse o capitão, com um brilho nos olhos injetados.

Mas Neilson não lhe prestou atenção. Estava agora enfronhado na sua história, e as interrupções impacientavam-no.

         E o seu rosto era tão belo quanto o corpo. Tinha grandes olhos azuis, tão escuros que alguns os davam por pretos, e o que não sucede com a maioria dos ruivos eram pretas as suas sobrancelhas e as longas pestanas. As feições eram de uma regularidade perfeita, e a boca como uma ferida escarlate. Ele tinha vinte anos.

Ditas estas palavras, o sueco calou, sentindo-lhes a dramaticidade. Tomou um gole de uísque.

         Ente incomparável! Jamais houve algum mais belo. Era um feliz acidente da natureza, imotivado como uma flor esplêndida que desabrocha em planta silvestre.

"Desembarcou, um dia, naquela angra em que o senhor deve ter abicado esta manhã. Era marinheiro americano e desertara de um couraçado em Ápia. Tinha persuadido alguma boa alma de indígena a lhe dar passagem num cúter que vinha de Ápia para Safoto e trouxeram-no para aqui numa canoa. Não sei por que desertou. Talvez não suportasse a vida no navio de guerra, com os seus entraves, talvez estivesse em apuros, ou quem sabe se foram os mares do Sul e estas ilhas românticas que lhe calaram no espírito? De vez em quando enfeitiçam estranhamente um homem, que se vê como mosca colhida em teia de aranha. Pode ser que ele tivesse uma certa moleza de fibra, e estas colinas verdes, com o seu ar doce, este mar azul, lhe roubassem o vigor setentrional como Dalila tirou o de Sansão. Seja como for, ele queria esconder-se, e julgava estar seguro neste recanto isolado, até que o seu navio zarpasse de Samoa.

"Havia em frente à angra uma habitação indígena, e en­quanto ele hesitava, sem saber que caminho tomar, uma ra­pariga jovem saiu e convidou-o a entrar. O Vermelho mal sabia duas palavras do idioma indígena, o mesmo que ela quanto ao inglês. Mas compreendeu perfeitamente o que sig­nificavam os seus sorrisos e os seus lindos gestos, e seguiu-a. Sentou-se numa esteira, e ela lhe ofereceu fatias de abacaxi. Eu falo no Vermelho por ouvir dizer, mas quanto à rapariga, conheci-a três anos após esse encontro dos dois. Tinha então apenas dezenove anos. O senhor não pode conceber o quanto era encantadora. Tinha a graça apaixonada e a rica coloração do hibisco. Era um pouco alta, esbelta, com as feições delicadas da sua raça e uns olhos grandes, como poças de água quieta sob as palmeiras. O seu cabelo, preto e encrespado, descia-lhe ondulado pelas costas, e ela usava uma grinalda de flores aromáticas. Suas mãos eram adoráveis — tão pequeninas, tão mimosas que confrangiam o coração. E naquele tempo ela ria com facilidade. O seu sorriso era delicioso a ponto de causar um tremor nos joelhos. Sua pele semelhava um trigal maduro em dia de verão. Deus louvado, como poderei descrevê-la? Era demasiado bela para ser real.

"E as duas jovens criaturas — ela com dezesseis anos e ele com vinte — enamoraram-se uma da outra à primeira vista. É esse o amor verdadeiro, não o que nasce da simpatia, de interesses comuns ou da afinidade intelectual, mas o amor puro e simples. Foi esse o amor que Adão sentiu por Eva, quando despertou do seu sono e encontrou-a no paraíso, mirando-o com os olhos orvalhados. É esse o amor que une os animais, e os deuses. É esse o amor que faz do mundo um milagre. É esse o amor que dá à vida a sua intensa significação. O senhor nunca ouviu falar naquele sábio e cínico duque francês que disse haver sempre, entre dois amantes, um que ama e outro que se deixa amar? É uma amarga verdade, com a qual quase todos nós temos de nos resignar; mas de tempos a tempos se encontram dois que se amam e se dei­xam amar. É então que se pode imaginar o sol parando na sua órbita, como naquele dia em que Josué orou ao Deus de Israel.

"E ainda agora, depois de tantos anos, sinto uma angústia sempre que penso no amor desses dois, tão belo, tão simples. Corta-me o coração, como nas noites em que vejo a lua cheia, num céu sem nuvens, brilhar sobre a laguna. A contemplação da beleza perfeita sempre é dolorosa.

"Eram umas crianças. Ela, doce e bondosa. Quanto a ele, nada sei; mas agrada-me pensar que ao menos era ingênuo e franco. Quero crer que tivesse a alma tão bem formada quanto o corpo. Mas estou em que não tinha mais alma que os habitantes das florestas, que faziam frautas de caniço e banhavam-se nas torrentes da montanha, na juventude do mun­do, quando se podiam avistar corçozinhos galopando entre os juncos, na garupa de algum centauro barbudo. A alma é um objeto incômodo, e no dia em que a criou, o homem per­deu o jardim do Éden.

"Bom; quando o Vermelho chegou na ilha, esta tinha sido assolada, recentemente, por uma dessas epidemias que os bran­cos trouxeram para os mares do Sul, e a terça parte dos habitantes morreram. Parece que a rapariga tinha perdido todos os seus parentes próximos, e vivia agora em casa de primos afastados. A família constava de duas velhas, enrugadas e recurvas, duas mulheres mais moças, um homem e um menino. Ele passou alguns dias ali. Mas talvez achasse que estava muito perto da praia, e podia topar com algum branco que fosse depois revelar o seu esconderijo; talvez pesasse aos amantes que a presença de outros os privaria, ainda que por instantes, da delícia de estarem juntos. Uma bela manhã foram-se os dois, com os poucos pertences da rapa­riga, tomaram o caminho relvoso sob os coqueiros e vieram ter a este regato. Tiveram de passar a ponte que o senhor passou, e a rapariga ria gostosamente do medo dele. Segurou-o pela mão até alcançarem a ponta do primeiro tronco, mas aí o Vermelho perdeu a coragem e teve de voltar. Para se arriscar, foi obrigado a despir toda a roupa. Ela carregou-a na cabeça. Instalaram-se na cabana desocupada que existia aqui. Não sei se ela tinha algum direito (a posse de terras nas ilhas é uma questão complicada) ou se o dono morrera na epidemia, mas o fato é que ninguém contestou, e eles to­maram conta do sítio. A sua mobília compreendia duas esteiras de capim em que dormiam, um caco de espelho e uma ou duas tigelas. Neste delicioso país, é o quanto basta para formar casa.

"Dizem que gente feliz não tem história, e é certo que um amor feliz não a tem. Não faziam nada em todo o dia, e, entretanto, estes lhes pareciam bem curtos. A rapariga tinha um nome indígena, mas o Vermelho a chamava de Sally. Aprendeu depressa a fácil língua nativa, e ficava horas dei­tado na esteira, ouvindo-a papaguear alegremente. Era um rapaz silencioso. Talvez tivesse o espírito indolente. Fuma­va sem cessar os cigarros que ela lhe fazia com tabaco indí­gena e folhas de pândano, e observava-a no trabalho de tecer esteiras com os seus ágeis dedos. Seguido vinham nativos para contar histórias do tempo antigo, quando a ilha era agitada pelas guerras de tribos. As vezes ele ia pescar nos recifes, e voltava com uma cestada de peixes coloridos. Ou­tras vezes saía de noite com uma lanterna, para pegar la­gostas. A cabana era rodeada de bananeiras, cujos frutos Sally assava para os seus frugais repastos. Sabia fazer de­liciosos pratos de coco, e à beira do regato havia uma árvore-do-pão, da qual se supriam diariamente. Nos dias de festa, matavam um leitãozinho e assavam-no sobre pedras quentes. Banhavam-se juntos no ribeiro, e pela tardinha desciam para a laguna, onde remavam numa canoa de toletes salientes. O mar era azul ferrete, cor de vinho no ocaso, como o mar da Grécia homérica; mas na laguna havia uma variedade infinita de cambiantes: berilo, ametista, esmeralda... E o sol entrante a transformava por um momento em ouro lí­quido. O coral também era de todas as cores: pardo, bran­co, róseo, vermelho, púrpura; e tomava formas maravilhosas. Aquilo lembrava um jardim de fadas, em que os peixes ve­lozes seriam borboletas. Era estranhamente irreal. No meio do coral cavavam-se poços com fundo de areia branca, onde a água era deslumbrantemente límpida, e o banho delicioso. Por fim, refrescados e felizes, eles voltavam de mãos dadas ao lusco-fusco pelo caminho coberto de relva, nessa hora em que os coqueiros estão cheios da algazarra dos minas. Depois a noite, com o vasto céu rutilante de ouro que pare­cia alcançar mais longe do que os céus da Europa, e as vi­rações suaves que atravessavam livremente a choupana aber­ta a longa noite também lhes parecia demasido breve. Ela tinha dezesseis anos, êle vinte apenas. A aurora vinha surpreender as duas adoráveis crianças dormindo nos braços uma da outra. O sol escondia-se atrás das grandes íôlhaa rendilhadas das palmeiras para não os molestar. Depois, brin­calhão malicioso, alongava para os seus rostos um raio dourado, como a pata estendida de um angora. Os dois abriam os olhos sonolentos e sorriam para o novo dia que chegava. As semanas, os meses se evaporavam. Um ano passou. Eles pareciam amar-se tão... não direi apaixonadamente, porque a paixão nunca se forra a uma sombra de tristeza, um laivo de amargura e de angústia mas tão plenamente, tão simples e naturalmente como naquele primeiro dia em que, ao se encontrarem, compreenderam que traziam um deus dentro de si.

"Se lhes houvessem perguntado, eles sem dúvida diriam acreditar que o seu amor nunca teria fim. Não sabemos nó» que a crença na sua própria eternidade é o elemento essen­cial do amor? E no entanto, talvez já houvesse no Vermelho um germe invisível, desconhecido dele e não suspeitado pela rapariga, o qual com o tempo iria produzir o fastio. Certo dia, um dos nativos da angra trouxe-lhes a notícia de que a pouca distância da costa se achava ancorada uma baleeira in­glesa.

"Chi! disse ele. Será que eu posso trocar umas bananas e uns cocos por uma ou duas libras de fumo?

"Os cigarros de pândano que Sally não se cansava de lhe fazer eram tortes e bem agradáveis, mas deixavam-no insa­tisfeito; e, subitamente, ficara morto por fumar tabaco de ver­dade, acre e picante. Havia muitos meses que não fumava uma cachimbada. Só de pensar nisso crescia-lhe a água na boca. Seria de crer que Sally tivesse alguma premonição de perigo e procurasse dissuadi-lo, mas estava tão possuída pelo seu amor que nem lhe vinha à mente a possibilidade de exis­tir no mundo alguma força capaz de lho arrebatar. Foram juntos às colinas, encheram um cesto com laranjas silvestres, verdes, mas doces e sumarentas; e ao redor da cabana, colhe­ram bananas, frutas-pão e mangas. Desceram com tudo isto para a angra, onde carregaram a instável canoa. O Vermelho e o menino que lhes trouxera a notícia, fizeram-se ao mar, atravessando os recifes. Foi essa a última vez que ela o viu.

"No outro dia o menino voltou sozinho, banhado em lágrimas. Eis o que ele contou: Quando, após muito remar, alcançaram o navio e o Vermelho chamou, um homem branco apareceu na amurada e mandou-os subir para bordo. Levaram as frutas e as empilharam no tombadilho. O homem branco e ele puseram-se a conversar, e pareceram chegar a um acordo. Um dos marinheiros desceu, voltando com o tabaco. O Verme­lho encheu ali mesmo o cachimbo e acendeu-o. O rapaz imitava a volúpia com que ele tirara a primeira baforada. Depois lhe disseram qualquer coisa, e ele entrou na cabina. Olhando cu­riosamente pela porta aberta, o menino viu aparecerem uma garrafa e copos. O Vermelho bebia e fumava. Sem dúvida lhe fizeram um pedido, porque ele abanou a cabeça e riu. O ho­mem, o primeiro que lhe tinha falado, riu-se também e en­cheu-lhe mais uma vez o copo. Seguiram conversando e rindo, até que o menino, cansado de observar uma cena que para ele nada significava, enroscou-se sobre o convés e adormeceu. Foi acordado por um pontapé. Levantou-se num salto, e viu que o navio ia ganhando o largo. Avistou o Vermelho sentado diante da mesa, com a cabeça abandonada sobre os braços, dormindo a sono solto. Fez um movimento na sua direção, querendo despertá-lo, mas uma mão rude agarrou-o pelo bra­ço. O dono dessa mão proferiu, carrancudo, algumas palavras que ele não entendeu, e apontou a amurada. Ele gritou para o Vermelho, mas, num abrir e fechar de olhos, viu-se erguido no ar e atirado à água. Na impotência de prevenir o seu com­panheiro, alcançou a nado a canoa que vogava a pouca dis­tância dali e a foi empurrando até os recifes. Aí embarcou e, sempre a soluçar, remou para a prjaia.

"É fácil imaginar o que tinha acontecido. A baleeira, por motivo de deserção ou de doença, estava com a equipagem desfalcada, e o capitão convidara o Vermelho para se engajar. Ante a sua recusa, tinha-o embriagado e raptado.

"Sally quase enlouqueceu de desgosto. Chorou e gritou durante três dias. Os nativos fizeram o possível para consolá-la, porém ela não queria ser consolada. Tampouco queria comer. Por fim, exausta, caiu numa apatia sorumbática. Passava dias inteiros na praia, vigiando a laguna, na vã esperança de que o Vermelho tivesse achado meio de escapar. Ficava sentada horas e horas a fio na areia branca, com as lágrimas a lhe escor­rerem pelas faces, e ao cair da noite arrastava-se acabrunhada para a choupana onde tinha sido feliz. A gente com quem vivia antes da vinda do Vermelho desejava que ela voltasse para lá novamente, porém, ela recusou. Estava convencida de que o Vermelho voltaria, e queria que êle a encontrasse onde a ti­nha deixado. Quatro meses depois teve uma criança morta, e a velha que viera ajudá-la, ficou com ela na choupana. Toda a alegria desaparecera da sua vida. Se com o tempo a sua angústia se tornou menos intolerável, foi para dar lugar a uma permanente melancolia. Ninguém diria que entre esse povo, cujas emoções, embora violentas, são tão efêmeras, se acharia uma mulher capaz de tal constância na paixão. Nunca perdeu a profunda convicção de que o Vermelho havia de voltar mais cedo ou mais tarde. Sempre que alguém passava esta pontezinha de troncos de coqueiro, ela ia olhar. Podia ser êle afinal."

Neilson calou-se e soltou um pequeno suspiro.

E que fim levou ela? perguntou o capitão. Neilson sorriu amargamente:

Oh, três anos depois juntou-se com outro homem. O capitão deu uma gorda risada cínica.

É o que elas geralmente acabam por fazer disse.

O sueco dardejou-lhe um olhar de ódio. Não sabia por que motivo esse homem vulgar e obeso lhe causava tanta repulsão. Mas os seus pensamentos tomaram outro rumo, despertando antigas recordações. Viu-se vinte e cinco anos atrás, quando viera para a ilha, cansado de Ápia com suas bebedeiras, sua jogatina e sua grosseira sensualidade; doente, procurando resignar-se à perda da carreira que lhe acendera idéias am­biciosas na imaginação, tinha afastado resolutamente todas as suas esperanças de conquistar renome, e tratava de aproveitar os poucos meses de vida tenteada com que podia contar. Esta­va parando em casa de um negociante mestiço que tinha ar­mazém à entrada de uma aldeia indígena da costa. Caminhando um dia, sem destino, pelas veredas relvosas dos coqueiros, che­gou à cabana em que vivia Sally. Nunca tinha visto criatura tão adorável, e a tristeza daqueles magníficos olhos pretos causou-lhe uma impressão estranha. Os canacas são uma raça bem conformada, e entre eles não rareia a beleza, mas é a beleza vazia dos animais formosos. Aqueles olhos trágicos, porém, tinham um véu de mistério, e sentia-se neles a amarga complexidade da incerta alma humana. O negociante contou-lhe a história, que o comoveu.

         Acha que ele voltará? — perguntou Neilson.

         Qual! O contrato de engajamento é por dois anos, e no fim desse tempo ele nem se lembrará mais dela. Calculo que tenha dado o cavaco quando descobriu o logro, e não me admiraria que quisesse brigar. Mas teve de fazer boa cara, e garanto que dentro de um mês começava a julgar-se muito feliz por ter ido embora da ilha.

Mas Neilson não podia esquecer aquela história. Talvez por ser doente e fraco, a radiosa saúde do Vermelho tocava-lhe na imaginação. Feio e de aparência insignificante como era, tinha em alto apreço a beleza nos outros. Nunca amara apaixo­nadamente, e é certo que também nunca fora amado com paixão. A atração mútua daquelas duas jovens criaturas de­leitava-o singularmente. Sentia nela a inefável beleza do Abso­luto. Voltou à pequena choça da margem do regato. Tinha o talento das línguas e uma mente enérgica, habituada ao trabalho. Já havia dedicado boa parte do seu tempo ao estudo do idioma local. Por força do costume, estava reunindo materiais para um ensaio sobre a fala samoana. A velha que partilhava a choupana com Sally convidou-o a entrar e sentar-se. Deu-lhe kava para beber e cigarros para fumar. Estava contente por achar uma pessoa com quem pairar, e enquanto ela falava,

Neilson contemplava Sally. A rapariga lhe trazia à lembrança a Psique do museu de Nápoles. Suas feições tinham a mesma clara pureza de linhas, e apesar do filho que tivera, sua aparência era virginal.

Só à segunda ou terceira visita foi que conseguiu fazê-la falar. Mesmo assim, Sally não fêz mais que perguntar se ele não tinha visto em Ápia um homem chamado Vermelho.

Neilson não tardou muito a perceber que estava enamorado dela. Já lhe era preciso um esforço de vontade para se abster de ir todos os dias ao regato, e quando ele não estava com Sally, os seus pensamentos iam ter com ela. No princípio, como se tinha na conta de moribundo, contentava-se com olhá-la, ou­vi-la de quando em quando falar, e o seu amor o fazia admi­ravelmente feliz. Exultava com a sua pureza. Nada pedia à jovem, além do ensejo para tecer em torno da sua graciosa pessoa um rendilhado de belas fantasias. Mas o ar livre, o clima estável, o repouso, a alimentação simples, começaram a operar-lhe um efeito inesperado na saúde. A sua temperatura já não tinha de noite aquelas altas assustadoras. Ele tossia me­nos, e entrou a ganhar peso. Seis meses se passaram sem que tivesse uma hemoptise; e, um belo dia, entreviu a possibilidade de viver. Havia estudado minuciosamente a sua doença, e começou a ter esperanças de que, com muito cuidado, po­deria sustar-lhe a marcha. Jubilou ao pensar mais uma vez no futuro. Formou planos. Era claro que toda vida ativa lhe ficava interdita, mas êle podia continuar nas ilhas, e o parco rendimento que tinha, insuficiente alhures, bastaria para sus­tentá-lo folgadamente aqui. Poderia cultivar coqueiros, o que lhe seria uma ocupação. Mandaria buscar os seus livros e um piano. Mas o seu atilado espírito percebeu logo que com tudo isso ele estava mas era procurando ocultar a si mesmo o de­sejo que o obcecava.

Queria Sally. Não só amava a sua beleza, mas também a alma obscura que adivinhava através dos seus olhos sofredores. Inebriá-la-ia com a sua paixão, e acabaria por fazê-la esquecer. No seu êxtase, imaginou-se a lhe dar também a felicidade que pensara nunca tornar a conhecer, mas alcançava agora de modo tão milagroso.

Pediu-lhe que fosse viver com êle. Ela recusou. Neilson esgalgam monstruosamente; mas aqui foi o contrário que se deu, e no feio e obeso velho êle entreviu a vaga figura do adoles­cente. Examinou-o então com olhos perscrutadores. Por que mo­tivo aquela viagem sem destino o trouxera justamente a este lu­gar? Um súbito tremor do coração lhe tirou momentaneamente o fôlego. Uma suspeita absurda entrou no seu espírito. O que lhe ocorrera era impossível, e todavia...

         Qual é o seu nome? perguntou abruptamente.

O capitão enrugou o rosto e soltou uma risada picaresca, que lhe deu um aspecto malicioso e horrivelmente vulgar.

         Faz tanto tempo que não o ouço, que quase me esqueci dele. Mas nestes trinta anos de Pacífico sempre fui conhecido por Vermelho.

O seu enorme arcabouço sacudia aos arquejos do riso baixo, quase silencioso. Era obsceno. Neilson estremeceu. O Vermelho divertia-se à larga com a pilhéria, e dos olhos sanguíneos escorriam-lhe lágrimas pelas faces abaixo.

Neilson reteve a respiração, pois nesse instante entrava na sala uma mulher. Era uma indígena, de parecer algo majestoso, robusta sem ser corpulenta, escura pois os indígenas escu­recem com a idade e de cabelos grisalhos. Vestia uma Mother Hubbard preta e leve, que entremostrava os seus seios nutridos. Era chegado o momento.

Ela fêz uma observação a Neilson sobre algum assunto caseiro, e Neilson respondeu. Perguntou consigo se ela teria no­tado a alteração da sua voz. Sally deitou um olhar indiferente ao homem que estava sentado ao pé da janela, e saiu. O momento havia chegado, e passado. Neilson ficou alguns ins­tantes sem poder falar, presa de estranha comoção. Depois disse:

Quer me dar o prazer de jantar comigo? O que houver nas panelas, já sabe.

Acho que não posso respondeu o capitão. Tenho de procurar esse camarada, o Gray. Entrego-lhe as merca­dorias e vou-me embora. Quero estar de volta a Ápia amanhã.

Vou mandar um menino com o senhor para lhe mostrar o caminho.

         Lindo!

O Vermelho ergueu-se da cadeira enquanto o sueco chamava um dos rapazes que trabalhavam na plantação. Disse-lhe onde o capitão queria ir, e o pequeno enveredou pela ponte. O Vermelho preparava-se para segui-lo.

Não vá cair — disse Neilson.

Não tem perigo.

Neilson o ficou observando enquanto passava, e, mesmo depois de ele ter desaparecido entre os coqueiros, continuou a olhar. Por fim afundou-se pesadamente na sua cadeira. Era então este o homem que o privara de ser feliz? Era este o homem que Sally tinha amado por tantos anos e esperado tão angustiosamente? Que coisa grotesca! Uma fúria repentina apossou-se dele, dando-lbe vontade de saltar em pé e despedaçar tudo que o cercava. Fora logrado. Os dois tinham-se visto afinal, e nem se conheceram. Ele desatou a rir, um riso sem vontade que foi crescendo até se tornar histérico. Os deuses lhe tinham pregado uma partida cruel. E agora estava velho...

Afinal Sally veio dizer-lhe que o jantar estava pronto. Neilson sentou-se diante dela e tentou comer. Que diria ela se soubesse que aquele velho gordo era o amante de quem ainda se lembrava com o mesmo apaixonado abandono da sua mocidade? Anos atrás, quando a odiava pelo que ela lhe fazia sofrer, teria prazer em dizer-lho. Queria amargurá-la como ela o amargurava. Mas, agora, que lhe importava? Encolheu os ombros com indiferença.

         Que é que aquele homem queria? — perguntou Sally daí a pouco. Neilson não respondeu logo. A mulher também es­tava velha — uma velha indígena gorda. Desejaria saber por que chegara a amá-la tão loucamente. Havia lançado aos seus pés todos os tesouros da sua alma, e ela nem lhes fizera caso. Que desperdício! E agora, ao olhá-la, só sentia desprezo. A sua paciência estava esgotada, afinal. Respondeu-lhe a pergunta.

É o capitão de uma escuna que veio de Ápia.

Ah!

— Trouxe notícias da minha terra. Meu irmão mais velho está muito mal, e eu tenho de voltar. — Vais demorar muito por lá?

Ele deu de ombros.

 

POST SCRIPTUM

Quando o nosso navio parte de Honolulu, penduram-nos ao pescoço leis, que são grinaldas de flores suavemente odoríficas. O cais regurgita de povo, e a banda toca uma derretida melodia havaiana. Os passageiros lançam serpentinas colori­das aos que ficam e a amurada do navio engalana-se toda com as finas tiras de papel, vermelhas, verdes, amarelas, azuis. E quando o navio começa a mover-se devagar, as serpentinas rompem-se docemente, com um leve estalido. É como a ruptura dos laços humanos. Homens e mulheres são momentanea­mente reunidos por uma fita de papel de cor alegre, vermelha, azul, verde ou amarela. Depois a vida os separa, e o papel se rompe, tão facilmente, com um pequeno estalido! Por uma hora ainda, os fragmentos tremulam ao longo do casco. Afinal o vento os leva. As flores da nossa grinalda murcham e o seu aroma torna-se opressivo. Então jogamo-las ao mar.

 

                                                                      William Somerset Maugham  

 

                      

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