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HORA ZERO / Agatha Christie
HORA ZERO / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

HORA ZERO

 

                       

 

Personagens

Sr.Treves — Um maduro e experiente advogado de 80 anos, cuja excelente memória de crimes anteriores causou sua morte.

Andrew MacWhirter — Um homem completamente arruinado, salvo a contra gosto de uma tentativa de suicídio, estava por acaso no mesmo local, alguns meses depois, para prestar o mesmo serviço a uma moça em desespero.

Superintendente Battle — Um detetive de fisionomia impassível, da Scotland Yard, cujo sistema metódico de investigações fazia com que sempre estivesse em atividade, mesmo durante suas férias.

Srta. Amphrey — Uma bem sucedida diretora de um Colégio de Moças; um ótimo exemplo do perigo de teorias psicológicas imaturas na cabeça de um amador.

Sylvia Battle — A jovem filha do Superintendente. Sua dolorosa experiência no internato ajudou o pai a salvar uma vítima inocente.

Nevile Strange — Um verdadeiro Apolo; tinha tudo que um homem poderia desejar, inclusive uma excelente reputação como atleta, uma grande conta bancária e duas lindas esposas. Entretanto, não era feliz.

Kay Strange — Jovem e de natureza vibrante, com um temperamento que se equiparava a seus inigualáveis cabelos ruivos. Definitivamente não era o tipo de mulher para ficar em segundo plano em relação à primeira esposa de Nevile.

Lady Camilla Tressilian — Uma autocrata inválida que gostava imensamente de receber, mas que impôs um limite quando Gull's Point se transformou num “Ménage à trois”.

Mary Aldin — Abnegada e devotada dama de companhia da idosa Lady Camilla; apreciava sua posição de mediadora numa casa repleta de hóspedes tensos, até isso se tornar demasiado, mesmo para sua enorme paciência.

Audrey Strange — Sua beleza apagada e sem muito colorido tomou conta de Gull's Point, perturbando Nevile Strange e enfurecendo sua atual esposa.

Thomas Royde — Conhecido como “Fiel Thomas” por causa de sua irmã adotiva, Audrey, escondia um coração apaixonado sob sua aparente fleumática indiferença.

Ted Latimer — O atraente jovem, amigo de Kay Strange, que sempre aparecia inesperadamente onde ela estivesse.

Inspetor James Leach — Sobrinho de Battle. Novo em sua profissão, e uma vez designado para tratar do caso de assassinato em Gull's Point, aceitou a ajuda do tio, com quem aprendeu inúmeras lições úteis.

 

19 de novembro

      O grupo, em volta da lareira, era quase todo de advogados ou pessoas interessadas em Direito. Ali estavam Martindale, o solicitador, Lorde Rufus, K. C., o jovem Daniels que se tornou famoso com o caso Carstairs e outros advogados; o Sr. Justice Cleaver, da Lewis e Lewis e ainda, o velho Sr. Treves. Este, com os seus quase 80 anos de experiência, era o mais importante membro de um famoso escritório de advocacia. Havia solucionado vários casos difíceis no tribunal, e era tido, mais do que qualquer outro homem no país, como um profundo conhecedor “dos bastidores” da História da Inglaterra, além de ser um grande criminalista.

      Os imprudentes achavam que o Sr. Treves deveria escrever suas Memórias, mas ele não o faria, pois estava certo de que sabia demais.

      Apesar de estar há muito tempo aposentado, não havia na Inglaterra homem nenhum cuja opinião fosse tão acatada pelos colegas de profissão. Sempre que sua voz pequena e precisa se levantava, havia um silêncio respeitoso.

      A conversa girava em torno de um caso muito comentado que tinha sido resolvido naquele dia, no Old Bailey. Era um caso de assassinato e o acusado havia sido dado como inocente. Os presentes estavam ocupados reexaminando o caso e fazendo críticas do ponto de vista jurídico.

      A acusação cometera um erro em confiar numa de suas testemunhas; o velho Depleach deveria ter percebido a oportunidade que estava dando à defesa. O jovem Arthur explorou ao máximo o depoimento da criada. Bentmore, em sua alegação final, situou o assunto em sua perspectiva correta, mas já então o dano estava feito: os jurados acreditaram na moça.

      Os jurados são engraçados! Nunca se sabe no que estão acreditando. No entanto, no momento em que colocam uma idéia na cabeça, ninguém consegue tirá-la. Admitiram que a moça estava falando a verdade sobre a alavanca, e “ponto final”.

      O laudo médico havia sido muito complicado para que os jurados pudessem entendê-lo. Todas aquelas expressões técnicas, o palavreado científico, as péssimas testemunhas, aqueles “cientistazinhos” sempre hesitando ao falar, não sabendo dizer sim ou não a uma pergunta simples, sempre “sob certas circunstâncias que poderiam ter ocorrido”, e assim por diante!

      À medida que discutiam e as observações se tornavam tumultuadas e contraditórias, crescia uma sensação de que alguma coisa estava faltando. Uma após outra, as cabeças se viraram na direção do Sr. Treves, já que ainda não havia emitido a sua opinião. Aos poucos sentiu-se claramente que todos ali esperavam a palavra final de seu mais conceituado colega.

      O Sr. Treves, recostado na cadeira, limpava os óculos distraidamente. Alguma coisa no silêncio fez com que levantasse a cabeça e olhasse com atenção.

      — Hein? — disse ele. — O que foi? Alguém perguntou alguma coisa?

      O jovem Lewis falou:

      — Estávamos comentando o caso Lamorne.

      E parou em atitude de expectativa.

      — Sim, sim — disse o Sr. Treves. — Estava mesmo pensando sobre isto...

      Fez-se um silêncio respeitoso.

      — Mas receio — continuou o Sr. Treves, limpando os óculos — que eu estava imaginando coisas a respeito. Sim, fantasiando. Creio que é conseqüência da velhice. Na minha idade podemos ter o privilégio de ser imaginativos, se quisermos, é claro.

      — Realmente senhor — comentou o jovem Lewis parecendo confuso.

      — Estava pensando — falou o Sr. Treves — não apenas nos vários pormenores da lei, apesar de terem sido interessantes...   muito interessantes! Se o veredito tivesse sido outro, teriam bons motivos para apelação... creio eu. Mas não quero discutir isso agora. Estava apenas pensando, como disse, não nos pormenores da lei, mas, nas... bem, nas pessoas envolvidas no caso.

      Todos olharam um tanto espantados. Tinham considerado essas pessoas apenas no que dizia respeito à veracidade do que falaram ou então, como simples testemunhas. Nenhum deles, sequer, arriscou uma especulação sobre se o réu era culpado ou inocente, como o tribunal havia pronunciado.

      — Seres humanos, como sabem — continuou o Sr. Treves, pensativo —, seres humanos de todo tipo, espécie, tamanho e forma. Alguns inteligentes, outros não. Vindos de todos os lugares, Lancashire ou Escócia, como aquele proprietário de um restaurante na Itália e aquela professora de algum lugar do Middle West. Todos apanhados, envolvidos no caso e finalmente levados juntos, num dia cinzento de novembro ao tribunal em Londres. Cada qual contribuindo com uma pequena parte. E tudo culminando num julgamento por crime de assassinato.

      Parou e bateu levemente no joelho.

      — Gosto de um bom romance policial, mas como se sabe, sempre começam do ponto errado! Começam do assassinato. Entretanto, o assassinato é o final. A história começa muito antes disso: algumas vezes anos antes, com todos os motivos e fatos que trazem certas pessoas a certos lugares, numa certa hora e num certo dia. Veja o testemunho da jovem criada: se a cozinheira não tivesse roubado seu namorado, ela não teria se descontrolado, e num acesso de raiva, ido à casa dos Lamornes tornando-se assim a principal testemunha da defesa. O tal Giuseppe Antonelli chegara para ficar no lugar do irmão por um mês. O irmão que é cego como um morcego, não teria visto o que os olhos aguçados de Giuseppe viram. Se o guarda não tivesse namoricado a cozinheira do n° 48, não teria se atrasado em sua ronda...

      Balançou a cabeça levemente.

      — Todos se dirigindo para um determinado lugar... E então, quando chegar a hora: o clímax! Hora zero. Sim, todos convergindo para a hora zero... Hora zero — repetiu ele.

      Teve então um pequeno estremecimento.

      — O senhor está com frio. Chegue mais perto da lareira.

      — Não, não — disse o Sr. Treves. — É como se alguém estivesse andando sobre meu túmulo. Bem, preciso ir para casa.

      Com um ligeiro e afável cumprimento, saiu da sala vagarosamente e com firmeza.

      Houve um vago silêncio. Em seguida Rufus, Lorde, K. C., observou que o pobre Sr. Treves estava envelhecendo.

      O Sr. Willian Cleaver comentou:

      — É um cérebro muito perspicaz... realmente muito perspicaz.

      — Seu coração já está fraco — disse o Lorde. — Pode morrer a qualquer momento.

      — Mas ele sabe se cuidar — ressaltou o jovem Lewis. Naquele momento, o Sr. Treves entrava cuidadosamente em seu confortável Daimler, que o levaria até o quarteirão sossegado onde ficava sua casa. Um solícito mordomo ajudou-o a tirar o casaco.

      Entrou em sua biblioteca onde a lareira ardia. Seu quarto ficava no mesmo andar pois seu coração o impedia de subir escadas. Sentou-se em frente ao fogo e apanhou as cartas. Seu pensamento ainda divagava na fantasia que esboçara no Clube.

      Neste momento, algum drama, algum assassinato futuro estava sendo planejado. Se eu estivesse escrevendo uma destas interessantes histórias de crime e sangue, começaria com um velho senhor abrindo sua correspondência em frente à lareira, indo irremediavelmente de encontro à hora zero.

      Abriu o envelope e olhou distraidamente para a folha de papel que tinha nas mãos. De repente sua expressão mudou. Saiu da fantasia para a realidade.

      — Meu Deus! — disse o Sr. Treves. — Que aborrecimento! Realmente muito desagradável! Depois de tantos anos! Isto vai alterar os meus planos.

 

Abra a Porta. Eis as pessoas

11 de janeiro

      O homem deitado na cama do hospital moveu-se soltando um gemido. A enfermeira de serviço, levantando de sua mesa, dirigiu-se até ele. Arrumando os travesseiros, colocou-o numa posição mais confortável.

      Andrew MacWhirter apenas resmungou um agradecimento. Estava num estado de profunda revolta e amargura.

      A esta hora tudo já deveria ter acabado. Deveria estar livre de tudo! Maldita árvore crescendo no penhasco! Malditos namoradinhos intrometidos que enfrentaram a noite fria de inverno para comparecer ao encontro na beira do penhasco. Não fossem eles e aquela árvore, e tudo teria terminado num mergulho na profunda água gelada. Talvez, uma rápida tentativa de luta para sobreviver, e então o esquecimento: o fim de uma vida mal vivida, inútil e vazia.

      E agora, onde estava ele? Deitado ridiculamente numa cama de hospital, com o ombro quebrado e na expectativa de ser levado pela polícia ao tribunal, por crime de tentativa de suicídio.

      Maldição! Era a sua própria vida, não?

      Se seu intento tivesse sido bem sucedido, o teriam enterrado piedosamente como um doente mental.

      Maluco? Nunca estivera tão lúcido! O suicídio era a atitude mais lógica e sensata para um homem naquela situação.

      Completamente arruinado financeiramente, com a saúde afetada para sempre, com uma esposa que o deixara por outro homem, sem emprego, sem carinho, sem dinheiro, saúde ou esperança, certamente acabar com tudo seria a única solução possível.

      E agora estava numa situação ridícula. Breve seria admoestado, por um juiz santarrão, por haver feito a única coisa ajuizada com aquilo que somente a ele pertencia: a sua vida!

      Bufou de raiva. Uma onda de febre o invadiu.

      A enfermeira estava novamente a seu lado. Era jovem, ruiva, um rosto bondoso com um ar distraído.

      — Está sentindo muita dor?

      — Não, não estou.

      — Vou lhe dar alguma coisa para dormir.

      — Você não vai fazer nada disso.

      — Mas...

      — Acha que não posso suportar um pouco de dor e insônia?

      Ela sorriu, gentilmente, de maneira um tanto superior.

      — O médico disse que você poderia tomar alguma coisa.

      — Não me importa o que disse o médico.

      Ela ajeitou as cobertas e colocou o copo de limonada mais perto do doente. Envergonhado de si mesmo, ele falou:

      — Desculpe. Fui grosseiro.

      — Não. Está tudo bem.

      O fato de ela permanecer completamente impassível a seu mau humor o perturbava. Nada penetraria sua couraça de indulgente indiferença. Ele era um paciente e não um homem.

      — Maldita interferência. Toda aquela maldita interferência... — disse ele.

      Com ar de reprovação ela retrucou:

      — Ora, ora, isto não foi muito gentil.

      — Gentil? — exclamou ele. — Gentil? Meu Deus!

      — Você se sentirá melhor pela manhã — respondeu, engolindo em seco.

      — Vocês enfermeiras. Enfermeiras! São desumanas, isto é o que são!

      — Sabemos o que é melhor para vocês.

      — Isto é o que mais me enfurece. Você, o hospital, o mundo. A contínua interferência, sabendo sempre o que é melhor para as pessoas. Tentei me matar. Você sabe disso, não sabe?

      Ela concordou com a cabeça.

      — Era uma problema só meu me atirar ou não daquele penhasco. Para mim a vida terminara. Estava completamente arruinado.                                                           

      A enfermeira estalou a língua num gesto de simpatia. Ele era um enfermo e ela o acalmava, deixando-o desabafar.

      — Por que não devo me matar, se esta é minha vontade? — perguntou.

      — Porque é errado — respondeu ela com seriedade.

      — Errado por quê?

      Ela o olhou indecisa. Não por falta de convicção, mas por não ter facilidade para se expressar.

      — Bem, quero dizer, não é certo a pessoa se matar. Você tem que continuar vivendo, quer queira, quer não.

      — Por quê?

      — Bem, existem outras pessoas a considerar, não existem?

      — Não no meu caso. Não há uma só pessoa no mundo que sentiria minha morte.

      — Não tem parentes? Mãe, irmãs ou mais alguém?

      — Não. Tinha uma esposa mas ela me abandonou. E estava certa! Viu que eu não servia para nada.

      — Mas você tem amigos, não é certo?

      — Não, não tenho. Não sou do tipo sociável. Olha aqui enfermeira, vou lhe contar uma coisa. Já fui um sujeito feliz. Tinha um bom emprego e uma mulher bonita. Houve um acidente de carro. Meu patrão estava dirigindo e eu estava com ele. Ele queria que eu dissesse que na hora do acidente estava dirigindo a menos de 50 quilômetros. Mas não estava. Estávamos a quase 80. Ninguém morreu, ou coisa parecida. Ele apenas queria estar com a razão para poder receber o seguro. Bem, não disse o que ele queria. Era uma mentira. E eu não minto!

      — Bem, acho que você estava absolutamente certo. Realmente certo — disse ela.

      — Você acha, não? Pois esta minha teimosia me valeu o emprego. Meu patrão foi perverso. Providenciou para que não conseguisse outro emprego. Minha mulher se cansou de me ver perambulando, incapaz de conseguir trabalho. E então foi embora em companhia de um amigo meu que estava progredindo e melhorando na vida. Vagueei, descendo sempre. Comecei a beber e isto não me ajudou a manter os empregos. Finalmente fui arrastado para baixo. Minha saúde ficou abalada, irremediavelmente abalada, como disse o médico. E a esta altura já não havia mais motivo para viver. O caminho mais fácil e mais honesto era desaparecer. Minha vida não tinha o menor valor, nem para mim, nem para os outros.

      — Você não pode estar certo disso — retrucou a jovem enfermeira.

      Ele riu. Já estava mais bem-humorado. Sua teimosia o divertia.

      — Minha querida, para que é que eu sirvo?

      — Nunca se sabe. Você pode algum dia...

      — Algum dia? Não vai haver “algum dia”. Na próxima vez, não vou falhar.

      A enfermeira balançou a cabeça, resoluta.

      — Ah não!  — disse. — Vocês nunca tentam a segunda vez!

      — Por que não?

      — Vocês nunca tentam!

      Então ele a encarou. “Vocês nunca tentam!”... Agora pertencia à classe dos futuros suicidas. Ao abrir a boca para protestar energicamente, sua honestidade inata o fez parar.

      Tentaria de novo? Tinha realmente a intenção de fazê-lo?

      De repente soube que não tentaria. Por nenhum motivo especial. Talvez o motivo exato fosse aquele dado por ela. Suicidas não tentam outra vez.

      Além do mais ele se sentia decidido a forçar uma revelação do ponto de vista ético, por parte dela.

      — De qualquer maneira tenho o direito de fazer o que quiser com a minha própria vida.

      — Não. Você não tem.

      — Mas por que minha querida?

      Ela corou. Brincando com a pequena cruz de ouro pendurada em seu pescoço, falou:

      — Você não compreende?  Deus pode precisar de você.

      Ele a encarou surpreso. Não queria perturbar sua fé infantil. Disse zombando:

      — Suponho que um dia eu pare um cavalo fugitivo e salve da morte uma criança de cabelos dourados, hein? É isto?

      Ela balançou a cabeça. Tentando expressar o que estava tão vivido em sua mente e tão hesitante em sua fala, disse com veemência:

      — Pode ser apenas por estar em algum lugar, não por fazer alguma coisa, só por estar num determinado lugar numa determinada hora. Oh! não consigo dizer o que penso; entanto você pode estar simplesmente andando por uma rua algum dia, e só em fazer isto, realizar algo terrivelmente importante. Talvez nem mesmo sabendo que o fez.

      A jovem e ruiva enfermeira era natural da costa ocidental da Escócia e parte de sua família tinha “visões”.

      Talvez ela tenha visto vagamente a imagem de um homem andando por uma estrada numa noite de setembro e salvando um ser humano de uma morte terrível.

14 de fevereiro

      Havia uma única pessoa na sala e o único barulho que se ouvia era o da caneta rabiscando palavra por palavra no papel.

      Não havia ninguém para ler o que estava sendo escrito. Se houvesse, dificilmente acreditaria no que estava vendo, porque estava sendo traçado um claro e detalhado plano de assassinato.

      Há momentos em que o corpo tem consciência de que a mente o controla. É quando se curva obediente àquele algo estranho que comanda as ações. Há outros momentos em que a mente está consciente de possuir e controlar um corpo, e de realizar seu propósito ao usá-lo.

      Era neste último estado que se encontrava a pessoa que escrevia.

      Era uma inteligência fria e controlada. Esta cabeça tinha apenas um pensamento e um propósito: a destruição de um outro ser humano.

      A fim de alcançar o propósito, o plano estava sendo cuidadosamente traçado no papel. Cada possibilidade e cada eventualidade estavam sendo consideradas. Tinha que ser absolutamente seguro. O esquema, como todo bom esquema, não estava completamente estabelecido. Sempre existiriam certas alternativas de ações em determinadas circunstâncias. Além disso, sendo inteligente, compreendia que era preciso estar preparado para os imprevistos. Contudo, as partes principais estavam claras e haviam sido cuidadosamente testadas. A hora... o lugar... a maneira... a vítima...

      Levantou a cabeça. Apanhou as folhas de papel e leu cuidadosamente. Sim. Estava tudo claro como cristal.

      Apareceu um sorriso em seu rosto sério. Não era um sorriso completamente são. Respirou fundo. Da mesma forma que o homem foi feito à imagem de seu Criador, ali estava agora um que era uma terrível caricatura da alegria de um criador.

      Sim. Estava tudo planejado. Todas as reações previstas e levadas em consideração: o bem e o mal de cada um, explorados e harmonizados com um intento diabólico.

      Faltava porém um detalhe...

      Com um sorriso, marcou uma data. Uma data em setembro...

      Então, com um riso, rasgou o papel, pegou os pedaços, atravessou a sala, e jogou-os no fogo reluzente. Não haveria descuido. Cada pedacinho foi consumido e destruído. Agora o plano existia somente na cabeça de seu criador.

18 de março

      O Superintendente Battle estava sentado à mesa do café. Com o maxilar cerrado lia devagar e com atenção a carta que sua esposa lhe entregara chorosa. Não havia em seu rosto nenhuma expressão. Como sempre, nada denunciava. Tinha o aspecto de um rosto esculpido em madeira. Sólido, durável e de certa forma impressionante.

      O Superintendente nunca sugeria brilhantismo; definitivamente não era um homem brilhante. Tinha, porém, outras qualidades difíceis de se definir, embora fossem poderosas.

      — Não posso acreditar — disse a Sra. Battle soluçando. — Sylvia!

      Sylvia era a mais nova dos cinco filhos do casal. Tinha 16 anos, e estava num colégio perto de Maidstone.

      A carta era da Srta. Amphrey, diretora do colégio. Estava escrita de uma forma gentil, precisa e com muito tato: Expunha uma série de pequenos roubos que durante algum tempo haviam intrigado as autoridades escolares, e que finalmente haviam sido esclarecidos, uma vez que Sylvia Battle os havia confessado. A Srta. Amphrey gostaria ainda de ver o Sr. e a Sra. Battle na primeira oportunidade para que o problema fosse discutido.

      O Superintendente Battle dobrou a carta. Colocando-a no bolso falou:

      — Deixe isto comigo, Mary.

      Levantou-se, deu a volta à mesa, fez um carinho no queixo da Sra. Battle e disse:

      — Não se preocupe querida. Vai dar tudo certo.

      Saiu da sala, deixando atrás de si o conforto e a segurança.                                                                    

      Naquela tarde, na moderna sala de visitas privativa da Srta. Amphrey, o Superintendente, sentado ereto, com suas grandes e rudes mãos pousadas nos joelhos, encarava a diretora, conseguindo parecer muito mais do que habitualmente, um policial em cada milímetro.

      A Srta. Amphrey era uma diretora bem sucedida. Tinha personalidade, uma grande dose de personalidade. Era esclarecida e atualizada. Associava disciplina com avançadas idéias de autodeterminação. Sua sala traduzia o espírito de Meadway. Era tudo em cor creme, com grandes jarras de narcisos e taças de tulipas e jacintos. Na parede uma ou duas boas reproduções do grego antigo, duas esculturas modernas, dois primitivos italianos. Em meio a isto, ela própria vestida de azul escuro, com um rosto ansioso que fazia lembrar um galgo e com seus olhos azuis-claros observando com seriedade através de grossas lentes.

      — O mais importante — dizia ela com sua voz clara e bem modulada — é que o assunto seja conduzido de forma correta. Devemos em primeiro lugar nos preocupar com a menina, Sr. Battle. Com a pessoa de Sylvia! É importante, muito importante, que sua vida não seja afetada de modo algum. Ela não deve ser forçada a assumir a responsabilidade do furto. No caso de ser julgada, a atitude dela deve ser encarada com indulgência. Devemos descobrir o que existe por trás desses pequenos roubos. Será talvez um complexo de inferioridade? Como o senhor sabe, ela não se sai bem nos esportes. Ou quem sabe tenha um desejo oculto de se sobressair noutro setor? Ou ainda um desejo de afirmação? Por essa razão quis falar-lhe a sós em primeiro lugar para aconselhá-lo a ser cauteloso ao tratar com Sylvia. Repito que é muito importante compreender o que há por trás disto.

      — É por este motivo, Srta. Amphrey, que estou aqui — disse o Superintendente Battle.

      Sua voz estava calma, o rosto imperturbável, examinando e avaliando a diretora.

      — Tenho sido muito compreensiva com ela — afirmou.

      — Meus parabéns minha senhora — retrucou ele lacônico.

      — O senhor sabe, realmente amo e compreendo estas meninas.

      Battle não respondeu a isto. Apenas comentou:

      — Se não se importa, gostaria de ver minha filha agora.

      Novamente, com ênfase, a Srta. Amphrey o advertiu para ser cuidadoso, falar com tato, não contrariar uma menina que está se tornando mulher.

      O Superintendente não mostrava sinais de impaciência. Seu rosto estava inexpressivo.

      Finalmente ela o levou para o gabinete. Depararam com uma ou duas meninas no caminho que permaneceram de pé, educadamente, mas com os olhos cheios de curiosidade. Depois de introduzir Battle na pequena sala que não refletia tanta personalidade como a do andar de baixo, a Srta. Amphrey retirou-se dizendo que iria buscar Sylvia.

      No momento em que ia saindo, Battle a deteve.

      — Espere um instante. Como a senhorita descobriu que era Sylvia a responsável por estes desaparecimentos?

      — Usei meus métodos psicológicos, Sr. Battle — falou a diretora com dignidade.

      — Psicológicos? Hum!... E quanto às evidências, Srta. Amphrey?

      — Já sabia que seria esta a sua reação, Superintendente. É efeito de sua profissão. No entanto a psicologia está começando a ser reconhecida dentro da Criminologia. Posso lhe assegurar que não houve erro. Sylvia admitiu tudo espontaneamente.

      Battle balançou a cabeça.

      — Sim, eu já sei disto. Estava apenas perguntando como a senhorita veio a desconfiar dela.

      — Bem, Sr. Battle, o número de coisas desaparecidas do vestiário aumentava. Reuni então as alunas e expus os fatos, enquanto estudava discretamente suas fisionomias. A expressão de Sylvia chamou-me atenção imediatamente. Trazia a culpa estampada no rosto! Naquele instante descobri quem era a culpada. Não queria forçá-la a confessar, mas sim fazê-la admitir o erro por si mesma. Preparei um pequeno teste para ela: um teste de associação de palavras,

      Ele balançou a cabeça para mostrar que estava compreendendo.                                 .

      — E finalmente a menina confessou tudo.

      — Entendo — disse o pai.

      A diretora hesitou por um momento e então saiu.

      Battle estava olhando pela janela, quando a porta se abriu novamente. Voltou-se e olhou para a filha.

      Sylvia estava parada perto da porta que acabara de fechar. Era alta, morena e angulosa. Seu rosto estava sombrio e trazia vestígios de lágrimas. Falou de um modo mais tímido do que desafiante:

      — Bem, aqui estou eu.

      Battle olhou-a atentamente por um minuto ou dois e suspirou:

      — Nunca deveria tê-la mandado para este lugar — comentou ele. — Aquela mulher é uma tola.

      Sylvia, completamente surpresa, esqueceu-se até de seu problema.

      — A Srta. Amphrey? Mas ela é maravilhosa! Todas nós achamos.

      — Hum! Então não deve ser assim tão tola, uma vez que consegue ser tão bem aceita. De qualquer maneira este não era o lugar apropriado para você, embora tudo isto pudesse ter acontecido em qualquer outro lugar.

      Sylvia torceu as mãos. Olhou para baixo e disse:

      — Sinto muito, papai. Estou realmente arrependida.

      — Pois deveria estar mesmo — retrucou abruptamente. — Venha cá.

      Ela se encaminhou devagar e de má vontade até o pai; este, segurando-lhe o queixo com sua mão forte, a encarou:

      — Você tem passado por maus momentos, não — é? — perguntou carinhosamente.

      Vieram lágrimas aos olhos de Sylvia.

       — Olhe, Sylvia, sempre soube que havia “algo” com você. A maioria das pessoas apresenta uma ou outra forma de fraqueza. Normalmente é uma coisa banal. Pode-se observar quando a criança é egoísta, tem mau gênio ou é briguenta. Você foi uma criança boa, muito sossegada, de temperamento dócil, e que não criou nenhum problema; o que me preocupou algumas vezes. Quando existe algum defeito que não podemos perceber, este defeito, por vezes, arruina totalmente o indivíduo no momento em que ele é posto à prova.

      — Assim como eu? — perguntou Sylvia.

      — Sim, como você. Você desmoronou sob tensão, e também de uma forma muito estranha. De maneira tão esquisita como nunca vi antes.

      — Sempre pensei que você encontrasse ladrões com bastante freqüência — concluiu ela repentinamente e com ironia.

      — Ah sim! Eu os conheço bem. E é por isso, minha querida, e não por ser seu pai (os pais pouco sabem a respeito dos filhos), mas sim um policial, que me leva a ter certeza de que você não é uma ladra. Você nunca tirou nada deste lugar. Há dois tipos de ladrão: o tipo que se entrega a súbita e irresistível tentação (e isto acontece muito raramente. E impressionante o número de tentações a que um ser humano comum, normal e honesto pode resistir), e o tipo que simplesmente se apossa do que não lhe pertence como se isto fosse um fato natural. Você não pertence a nenhum dos dois tipos. Você não é uma ladra, mas sim um tipo raro de mentirosa.

      — Mas... — Sylvia começou a falar.

      Ele continuou, num impulso:

      — Você admitiu tudo? Sim, eu sei. Existia uma santa que destribuía pão para os pobres. Seu marido não aprovava. Aproximou-se dela e perguntou o que havia na cesta. Ela perdeu a calma e disse que eram rosas. Ele abriu a cesta com violência e lá estavam as rosas: um milagre! Se você tivesse sido Santa Isabel e saísse com uma cesta de rosas, e seu marido chegasse e perguntasse o que você estava carregando você perderia a calma e diria:

      — Pão.

      Fez uma pausa e depois disse carinhosamente:

      — Foi assim que aconteceu, não foi?

      Houve um silêncio ainda maior, e repentinamente Sylvia baixou a cabeça. Seu pai pediu:

      — Conte-me filha. O que aconteceu exatamente?

      — Ela nos reuniu. Fez um discurso. Vi seus olhos fixos em mim, e senti que eles me achavam culpada. Senti-me enrubescer, e notei que algumas garotas olhavam para mim. Foi horrível. Então as outras começaram a me olhar e a cochichar. Sabia o que pensavam. Assim, certa noite a Amp nos trouxe, a mim e as outras meninas, aqui para cima, e fizemos um certo tipo de jogo de palavras: ela dizia algumas palavras e nós dávamos respostas...

      Battle resmungou aborrecido.

      — Compreendi o que aquilo significava e fiquei de certo modo bloqueada. Tentei não dizer a palavra errada, tentei pensar em coisas diferentes, como esquilos e flores. Enquanto isso a Amp me olhava com olhos penetrantes que mais pareciam brocas. O senhor sabe, como se estivessem me penetrando. Tudo isso foi piorando dia após dia, até que certa vez a Amp falou comigo tão carinhosamente, tão compreensiva, que não resisti mais, confessando que tinha feito aquilo. Foi um alívio, papai!

      Battle passava a mão no queixo.

      — Entendo.

      — Entende mesmo?

      — Não Sylvia, não compreendo, porque não sou assim. Se alguém tentasse me fazer confessar alguma coisa que eu não tivesse feito, teria vontade de lhe dar um soco no queixo. Mas posso ver o que aconteceu no seu caso. Esta tal de Amp dos olhos penetrantes teve diante do nariz um ótimo exemplo de psicologia, exatamente como qualquer amador de novas teorias poderia desejar. Agora o importante é esclarecer esta confusão. Onde está a Srta. Amphrey?

      A Srta. Amphrey estava discretamente por perto. O sorriso simpático desapareceu do seu rosto quando o Superintendente Battle disse bruscamente:

      — Para fazer justiça a minha filha devo pedir que a senhorita chame a polícia.

      — Mas, Sr. Battle, a própria Sylvia...

      — Ela nunca tocou em nada aqui que não lhe pertencesse.

      — Posso entender que o senhor como pai...

      — Não estou falando como pai, mas sim como policia! Chame a polícia para ajudá-la neste caso. Serão discretos. Acharão os objetos escondidos em algum lugar, e espero que encontrem também as impressões digitais. Ladrões iniciantes não se lembram de usar luvas. Vou levar minha filha comigo. Se a polícia encontrar provas, provas reais, para ligá-la aos furtos estou preparado para levá-la ao tribunal e suportar o que lhe acontecer. Mas não estou receoso.

      Cinco minutos mais tarde, ao atravessar o portão ao lado de Sylvia, perguntou:

      — Quem é aquela garota de cabelo louro, ligeiramente crespo, as faces muito rosadas, um sinal no queixo e olhos azuis bem separados? Cruzamos com ela na passagem.

      — Deve ser a Olive Parsons.

      — Bem, não ficaria surpreso se fosse ela a culpada.

      — Ela parecia assustada?

      — Não. Parecia dissimulada. Uma aparência tão calma e tão dissimulada como as que tenho visto centenas de vezes no tribunal de polícia.  Aposto bom dinheiro como ela é a ladra. Você não a verá confessar. Jamais!

      Sylvia disse com um suspiro:

      — É como sair de um pesadelo. Oh, papai, sinto muito! Sinto muito! Estou realmente arrependida! Como pude ser tão boba, completamente tola? Sinto-me horrível com tudo isso.

      O Superintendente Battle tirou a mão do volante, acariciou o braço da filha e, para consolá-la, emitiu uma de suas frases usuais de carimbo:

      — Ora, não se preocupe. Estas coisas acontecem só para nos atormentar. Sim, é isso. Pelo menos, é o que suponho. Não vejo outra razão para que sucedam.

19 de abril

      O sol brilhava na casa de Nevile Strange, em Hindhead. Era um desses dias de abril, como acontece pelo menos uma vez durante o mês, mais quente que os dias de junho os quais ainda estavam para chegar.

      Nevile desceu as escadas usando calça branca e com quatro raquetes de tênis debaixo do braço.                       

      Se tivessem que escolher um homem entre outros ingleses, como um homem de sorte e com tudo aquilo que alguém possa desejar, a Comissão de Seleção bem que poderia escolher Nevile Strange. Era um homem popular, excelente jogador de tênis e um desportista versátil. Apesar de nunca ter chegado às finais em Wimbledon, havia ganho várias partidas nos torneios de abertura, e nas duplas mistas por duas vezes chegara às semifinais.

      Era talvez, um desportista versátil demais para ser campeão de tênis. Jogava golfe, era bom nadador e havia feito escaladas nos Alpes. Tinha 33 anos, ótima saúde, boa aparência, muito dinheiro, uma linda mulher com quem se casara recentemente, e, ao que tudo indicava, nenhum problema ou preocupação.

      Entretanto, naquela bela manha, quando desceu as escadas uma sombra o acompanhou. Uma sombra que só seus olhos perceberam. Estava consciente disto, e sua testa enrugada o fazia ficar com uma expressão perturbada e indecisa.

      Atravessou o hall, ajeitando os ombros como que para livrar-se definitivamente de alguma carga. Passou pela sala de visitas indo até a varanda envidraçada, onde sua mulher estava enroscada em almofadas, bebendo um suco de laranja.

      Kay Strange tinha 23 anos e era de uma beleza extraordinária. Era esbelta, mas o corpo possuía formas delicadamente exuberantes, cabelo ruivo escuro, a pele tão perfeita que para realçá-la usava pouquíssima maquilagem, olhos e sobrancelhas escuras que raramente combinam com cabelos ruivos mas que quando isto acontece são tão devastadores.

      Seu marido disse alegremente:

      — Olá beleza! O que temos para o café da manhã?

      — Para você, horríveis rins sangrentos, cogumelos e bacon.

      — Parece bom! — exclamou Nevile.

      Serviu-se das carnes e de uma xícara de café. Houve um silêncio amistoso por alguns minutos.

      — Oh!  — disse Kay balançando sensualmente os pés de unhas vermelhas. — O sol não está lindo? Até que a Inglaterra não é tão desagradável.

      Tinham acabado de chegar do Sul da França.

      Depois de ler apenas as manchetes dos jornais, Nevile passou à seção de esporte e comentou simplesmente:

      — Hum!...

      Deixando de lado o jornal, pegou uma torrada com geléia e em seguida abriu a correspondência. Havia muitas cartas, mas ele rasgou a maioria delas e jogou fora. Circulares, Propagandas e impressos.

      — Não gosto do colorido da sala de visitas. Posso reformá-la? — perguntou Kay.

      — Como quiser, beleza.

      — Azul-pavão — disse Kay sonhadora — e almofadas de cetim branco.

      — Você terá que colocar um macaco — retrucou Nevile.

      — Você pode ser o macaco — disse Kay.

      Nevile abriu outra carta.

      — A propósito — falou Kay. — Shirty nos convidou para um cruzeiro de iate até Norway, no final de junho. É pena que não possamos ir.

      Ela olhou cautelosamente para ele e acrescentou, ansiosa:

      — Adoraria ir.

      Alguma coisa como uma nuvem, uma dúvida, pairou no semblante de Nevile.

      Kay perguntou revoltada:

      — Temos mesmo que ir à casa lúgubre da velha Camilla?

      Nevile franziu as sobrancelhas.

      — Claro que temos. Olhe aqui Kay, já discutimos isto antes. Sir Matthew foi meu tutor. Ele e Camilla tomaram conta de mim. Gull's Point é meu lar mais do que qualquer outro lugar.

      — Está bem, está bem — disse ela. — Afinal de contas quando ela morrer ficaremos com todo aquele dinheiro. Por isso, suponho que tenhamos que bajulá-la.

      Nevile respondeu zangado:

      — Não é uma questão de bajular! Ela não tem controle sobre o dinheiro. Sir Matthew deixou-o em usufruto.  Depois ficará para mim e para minha esposa. É uma questão de amizade. Por que você não consegue entender isso?

      Depois de uma pausa, Kay disse:

      — Sim, entendo. Estou fazendo uma cena porque sei que lá sou tolerada apenas por ser sua esposa. Elas me detestam! Sim, esta é a verdade! Lady Tressilian, com aquele seu nariz comprido, me olha com ar de superioridade, e Mary Aldin não me encara quando fala comigo. Para você está tudo ótimo. Você não vê o que se passa.

      — Sempre me pareceram muito gentis com você. Bem sabe que não admitiria o contrário.

      Por debaixo de seus cílios escuros, Kay lançou-lhe um olhar estranho.

      — São suficientemente educadas, mas sabem muito bem me atingir. Para elas sou uma intrusa.

      — Bem, afinal de contas, é uma reação natural, não é? — disse Nevile.

      Sua voz havia mudado um pouco. Levantou-se, e de costas para ela, ficou olhando a paisagem.

      — Ah! Sim!  Eu diria que é natural. Eram tão devotas de Audrey, não eram? — sua voz tremeu um pouco. — A querida, a bem nascida, a tranqüila e insípida Audrey! Camilla nunca me perdoou por ter tomado o lugar dela.

      Nevile não se virou. Sua voz estava velada e sem vida quando falou:

      — Afinal de contas, Camilla é idosa. Já passou dos setenta. Sua geração não aceita bem o divórcio. Acho até que ela reagiu muito bem à situação, considerando o quanto ela gostava de... de Audrey.

      Sua voz mudou um pouco ao pronunciar seu nome.

      — Elas acham que você a tratou muito mal.

      — E tratei mesmo — sussurrou Nevile. Mas Kay ouviu.

      — Ora Nevile, não seja tão tolo. Só porque ela resolveu fazer drama.

      — Ela não faz dramas. Audrey nunca age assim.

      — Bem, você sabe a que estou me referindo. Ela foi embora, ficou doente, demonstrando sofrimento o tempo todo. É isto que chamo de drama! Audrey não é uma boa perdedora. No meu ponto de vista, se uma mulher não consegue prender o marido, deve abrir mão dele sem criar problemas! Vocês nada tinham em comum. Ela nunca praticava esporte, era anêmica e desanimada como um trapo. Não havia nela nenhuma vida ou energia. Se realmente gostava de você, deveria em primeiro lugar pensar na sua felicidade, e ficar satisfeita por você poder ser feliz com alguém com quem tivesse mais afinidade.

      Nevile voltou-se e com um sorriso levemente sarcástico nos lábios, falou:

      — Quanta sabedoria!   Como você entende do jogo do amor e do matrimônio!

      Kay riu e corou.

      Bem, talvez eu tenha exagerado um pouco. De qualquer maneira, uma vez acontecido, não há mais jeito. É preciso saber aceitar os fatos.

      E Audrey aceitou. Ela se divorciou para que pudéssemos casar.

      — Sim, eu sei... — disse Kay hesitante.

      — Você nunca entendeu Audrey.

      — Não, nunca. De certa forma, ela me dá arrepios. Não sei o que há com ela. Nunca se sabe no que está pensando. Ela... ela é um pouco assustadora.

      — Que bobagem, Kay!

      — Bem, ela me assusta. Talvez por ser inteligente.

      — Sua linda bobinha!

      Kay riu.

      — Você sempre me chama assim.

      — Porque é isto que você é.

      Sorriram um para o outro. Nevile indo até ela, se abaixou e beijou-lhe a nuca.

      — Linda, linda Kay — murmurou ele.

      — E também muito boazinha — disse ela. — Desisti da maravilhosa viagem de iate para ir visitar e ser tratada friamente pelos vitorianos parentes empertigados do meu marido.

      Nevile voltou e sentou-se à mesa.

      — Sabe, já que você deseja tanto ir, não vejo por que não fazermos essa viagem com Shirty.

      Kay ficou atônita.

      — E quanto a Saltcreek e Gull's Point?

      Com a voz um tanto artificial, Nevile respondeu:

      — Não vejo por que não irmos lá no começo de setembro.

      — Mas, Nevile, certamente... — ela parou.

      — Não podemos ir em julho nem em agosto por causa do torneio — disse Nevile. — O encerramento, porém, será na última semana de agosto em St. Loo, e de lá poderemos ir diretamente a Saltcreek.

      — Assim seria perfeito. Mas pensei... bem, ela sempre vai lá em setembro, não vai?                                 

      — Você se refere a Audrey?

      — Sim. Suponho que poderiam transferir a visita dela, mas...

      — Mas por que iriam fazer isso?

      Kay olhou-o indecisa.

      — Você quer dizer que ficaríamos lá na mesma época? Que idéia mais estranha.

      Nevile disse irritado:

      — Não há nada de estranho nisto. Hoje em dia, muitas pessoas agem assim. Por que não devemos ser todos amigos? Simplificaria tudo! Ora, você mesma disse isto outro dia!

      — Eu disse?

      — Disse. Não se lembra? Estávamos falando sobre os Howes. Você comentou que era uma forma sensata e civilizada de encarar os fatos, e que a ex-esposa de Leonard e a atual eram ótimas amigas.

      — Bem, eu não me incomodaria. Acho realmente uma atitude sensata, mas não creio que Audrey pense da mesma forma.

      — Bobagem sua.

      — Não é bobagem.  Você sabe, Nevile, Audrey gostava imensamente de você... Não creio que suportasse esta situação nem por um minuto.

      — Você está enganada, Kay. Audrey acha uma ótima idéia.

      — O que você quer dizer com “Audrey acha”? Como sabe o que ela pensa?

      Nevile ficou um pouco embaraçado. Pigarreou constrangido.

      — Na verdade, encontrei-a ontem por acaso, quando estava em Londres.

      — Você não me contou.

      — Estou contando agora — disse Nevile irritado. — Foi uma simples coincidência. Estava andando pelo parque quando ela veio em minha direção. Você não iria querer que eu fugisse dela, não é?

      — Não, claro que não — disse Kay encarando-o. — Continue.

      — Eu... nós... bem, paramos, é claro, e começamos a caminhar juntos. Eu... eu achei que era o mínimo que poderia fazer.

      — Continue.

      — Depois nos sentamos e conversamos. Ela foi muito amável... muito mesmo.

      — Ótimo para você.

      — Continuamos a conversar sobre uma coisa e outra... Ela estava espontânea e natural.

      — Maravilhoso!

      — Ela perguntou por você.

      — Muito amável da parte dela!

      — Falamos um pouco a seu respeito. Acredite, Kay ela não poderia ter sido mais gentil.

      — A querida Audrey!

      — E então me ocorreu como seria bom se vocês duas fossem amigas, se pudéssemos nos reunir. Pensei que talvez fosse possível neste verão em Gull's Point. O tipo do lugar onde isto poderia acontecer com naturalidade.

      — Esta idéia foi sua?

      — Eu... bem, sim é claro. Foi toda minha.

      — Você nunca me falou sobre esta hipótese.

      — Na verdade, só me ocorreu naquela hora.

      — Entendo. De qualquer maneira, você sugeriu e Audrey concordou achando uma brilhante idéia.

      Só então Nevile percebeu alguma coisa diferente na maneira de Kay.

      — Alguma coisa errada, beleza? — ele perguntou.

      — Ah! não é nada. Nada mesmo! Vocês não se preocuparam com o que eu iria achar dessa idéia?

      Nevile olhou-a nos olhos.

      — Mas por que você haveria de se importar?

      Kay mordeu o lábio.

      — Você mesma disse, no outro dia... — prosseguiu ele.

      — Ah, não vamos discutir isto novamente! Estava me referindo a outras pessoas, e não a nós.

      — Mas, em parte, foi isto que me levou a pensar no assunto.

      — Está querendo me fazer de boba?

      Nevile a olhava espantado:

      — Mas, Kay, por que você se aborreceria? Não há razão para isso.

      — Não há?

      — Bem, quero dizer, ciúme ou coisa assim deveria partir dela — fez uma pausa, e sua voz mudou. — Entenda Kay, nós tratamos Audrey terrivelmente mal. Não, não é isso que eu quero dizer. Você não tem culpa alguma. Eu é que a tratei muito mal. Não adianta nada dizer apenas que não pude evitar o que aconteceu. Se minha idéia desse certo, me sentiria muito melhor. Ficaria bem mais feliz.

      — Então você não tem sido feliz? — disse Kay lentamente.

      — Minha querida idiota, o que está dizendo? É claro que tenho sido feliz, extremamente feliz. Mas...

      Kay o interrompeu.

      — “Mas”, é isto! Sempre houve um “mas” nesta casa. Uma sombra maldita rastejando pelo local. A sombra de Audrey.

      Nevile a encarou.

      — Não me diga que tem ciúmes de Audrey!

      — Não tenho ciúme. Tenho medo. Nevile, você não conhece Audrey.

      — Como não a conheço, se estive casado com ela por mais de 8 anos?

      — Você não a conhece — repetiu Kay.

30 de abril.

      — Um absurdo — disse Lady Tressilian. Ajeitou-se nas almofadas e olhou furiosamente em torno da sala. — Um absurdo completo! Nevile deve estar maluco.

      — Parece realmente um tanto estranho — concluiu Mary Aldin.

      Lady Tressilian tinha um perfil marcante, o nariz comprido e afilado, de tal forma que quando se inclinava ganhava uma aparência impressionante. Apesar de já ter passado dos 70 anos e de ter uma saúde frágil, sua energia mental não fora de modo algum afetada. É verdade que tinha longos períodos de abstração quando ficava deitada com os olhos semicerrados, mas saía destas letargias com todas as suas faculdades aguçadas ao máximo, e com uma língua mordaz. Numa cama larga em um dos cantos do quarto, apoiada nos travesseiros, dominava sua corte como se fosse uma Rainha da França.

      Mary Aldin, uma prima afastada e que também morava ali, cuidava dela. As duas mulheres se davam maravilhosamente bem. Mary tinha 36 anos, com um desses rostos perenes que pouco mudam com o passar dos anos. Poderia ter tanto 30, como 45 anos. Tinha boa aparência e classe. O cabelo escuro, com uma mecha branca na frente, dava-lhe um ar de personalidade. Houve época em que a mecha estivera na moda, mas a de Mary era natural, uma vez que a possuía desde bem jovem. Ela olhava pensativa a carta de Nevile Strange que Lady Tressilian lhe entregara.

      — Sim — disse ela. — Parece muito estranho.

      — Não posso acreditar que seja idéia de Nevile! Alguém a colocou em sua cabeça. Provavelmente foi aquela sua nova mulher.

      — Kay? A senhora acha que partiu dela?

      — Seria bem próprio dela. Jovem e vulgar. Se o marido e mulher, porventura, têm que anunciar seus problemas e recorrer ao divórcio, deveriam pelo menos fazê-lo com decência. Acho revoltante que ambas se tornem amigas. Hoje em dia ninguém mais tem padrões morais.

      — Deve ser o costume atual — disse Mary.

      — Em minha casa não vou admitir tal coisa — afirmou Lady Tressilian. — Acho que já fiz muito, recebendo aquela criatura de unhas vermelhas aqui.

      — Ela é a esposa de Nevile.

      — Exatamente.  Por isso, achei que Matthew gostaria que eu a recebesse. Era dedicado ao menino e sempre desejou que ele considerasse esta casa como seu próprio lar. Recusar recebê-la seria o rompimento de nossa amizade. Por este motivo, cedi e a convidei. Não gosto dela. É a esposa errada para Nevile: nem berço, nem raízes.

      — Ela é bem nascida — apaziguou Mary.

      — Péssima origem — retrucou Lady Tressilian. — O pai, como já lhe contei, foi expulso de todos os clubes depois daquele problema com jogos de cartas. Felizmente morreu logo em seguida. A mãe era famosa na Riviera. Que educação para uma menina! Morava sempre em hotéis... e com aquela mãe...! Depois conheceu Nevile nas quadras de tênis, passou a atacá-lo com tal determinação que não descansou enquanto ele não abandonou a mulher, de quem gostava muito. Ela é a culpada de tudo!

      Mary sorriu timidamente. Lady Tressilian tinha a característica antiquada de sempre culpar a mulher e de ser indulgente com o homem.                                                       

      — Para ser justa, devo dizer que acredito que Nevile tenha sido igualmente culpado — sugeriu Mary.

      — Nevile teve muita culpa — concordou Lady Tressilian. — Tinha uma esposa encantadora, sempre dedicada, devotada até demais. Entretanto, se não fosse pela insistência dessa moça, estou convencida de que ele teria sido mais racional. Contudo, ela estava decidida a se casar com ele. Sim, minha simpatia é toda de Audrey. Gosto muito dela.

      — Tudo tem sido muito difícil — suspirou Mary.

      — Sim, realmente. Qualquer um fica desorientado, sem saber como agir em tais circunstâncias. Matthew e eu gostávamos de Audrey, e não se pode negar que era uma ótima esposa para Nevile. Pena não ser do tipo esportivo para ter participado mais das atividades do marido. Foi tudo muito penoso. Quando eu era jovem, estas coisas não aconteciam. É verdade que os homens tinham seus casos, mas não se admitia a hipótese de se dissolver um casamento.

      — Bem, agora é diferente — enfatizou Mary bruscamente.

      — Certo. Você tem bom senso querida. De nada adianta lembrar dias passados. Hoje estas coisas acontecem, e moças assim como Kay Mortimer roubam os maridos de outras mulheres, sem que ninguém pense o pior delas!

      — Exceto pessoas como você, Camilla.

      — Minha opinião não pesa. Aquela criatura não está se importando se eu a aprovo ou não. Está muito ocupada se divertindo. Nevile pode trazê-la quando vier, e estou mesmo disposta a receber seus amigos, apesar de não gostar muito daquele jovem com ar teatral que está sempre com ela. Qual é o nome dele?

      — Ted Latimer?

      — É este mesmo. Um amigo de seus dias de Riviera. Gostaria muito de saber como ele consegue viver daquela maneira.

      — De sua esperteza.

      — Isto seria perdoável. Acredito porém que viva de sua aparência. Não é um amigo adequado à esposa de Nevile. Não gostei quando, no último verão, ele se hospedou no Hotel Easterhead Bay durante a estada dos Nevile aqui.

      Mary olhou pela janela. A casa de Lady Tressilian ficava num penhasco íngreme, projetando-se sobre o rio Tern. Do outro lado do rio havia o recém-construído balneário de Easterhead Bay com uma vasta praia, um conjunto de modernos bangalôs e um grande hotel no alto de um morro, com vista para o mar. Saltcreek era uma isolada e pitoresca vila de pesca, situada na encosta de uma colina. Era uma vila antiga, conservadora, e com um profundo desprezo por Eastterhad Bay e seus veranistas.

      O Hotel Easterhead Bay ficava praticamente de frente para a casa de Lady Tressilian e Mary olhava através da estreita faixa de água para o espalhafatoso balneário.

      — Fico satisfeita — comentou Lady Tressilian fechando os olhos — que Matthew não tenha chegado a ver esta construção vulgar. Na sua época, o litoral ainda não estava estragado.

      Sir Matthew e Lady Tressilian haviam chegado a Gull's Point há 30 anos. Passaram-se 10 anos desde que ele, um entusiasta navegador, havia se afogado na presença de sua esposa quando seu bote virou.

      Todos esperavam que Lady Tressilian vendesse Gull's Point e deixasse Saltcreek, todavia ela não o fez. Sua única reação foi vender todos os barcos e acabar com a casa dos barcos. Não haviam em Gull's Point barcos disponíveis para os hóspedes, assim tinham que caminhar até o ancoradouro, e alugá-los em um dos vários barqueiros existentes.

      — Devo, então, escrever a Nevile e contar-lhe que seu propósito não vem de encontro aos seus planos? — perguntou Mary hesitante.

      — Certamente nem sonho em interferir na visita de Audrey. Ela sempre vem em setembro e não pedirei que mude seus planos.

      — Nevile diz aqui que Audrey aprova a idéia, e está disposta a se encontrar com Kay — comentou Mary olhando a carta.

      — Simplesmente não acredito. Nevile, como todos os homens, acredita no que quer.

      Mary insistiu:

      — Ele diz que conversou com ela sobre o assunto.

      — Que coisa mais estranha! Não. Talvez no fundo não seja.   

      Mary olhou-a esperando uma explicação.

      — Tal qual Henrique VIII — disse Lady Tressilian.

      Mary olhou-a intrigada.

      Lady Tressilian explicou a observação:

      — Problema de consciência! Henrique VIII estava sempre tentando fazer com que Catarina concordasse com o divórcio. Nevile sabe que agiu mal e quer sentir-se menos culpado. Está então tentando forçar Audrey a dizer que virá encontrar Kay e que nada a perturba.

      — Estava pensando... — falou Mary pausadamente.

      — Em que estava pensando minha querida?

      — Estava pensando... — ela parou e depois prosseguiu — esta carta nem parece de Nevile. Você acha que por algum motivo especial Audrey possa desejar este encontro?

      — Por que haveria? — perguntou Lady Tressilian categoricamente. — Depois que Nevile a abandonou, ela foi para casa da tia, a Sra. Royde, na Reitoria, onde teve um colapso nervoso. Ficou uma sombra do que era. È evidente que foi terrivelmente atingida. Ela é dessas pessoas calmas, controladas mas que sentem as coisas intensamente.

      Mary mexeu-se inquieta.

      — Sim. Ela é extremamente sensível. Uma moça estranha sob vários aspectos...

      — Ela sofreu muito... Veio o divórcio, Nevile casou-se com a outra, e, aos poucos, Audrey começou a se recuperar. Atualmente ela está quase aquilo que era. Não me venha dizer que agora ela quer remexer em velhas recordações.

      Mary respondeu com teimosia.

      — É o que Nevile diz.

      A velha senhora olhou-a com curiosidade:

      — Você está excessivamente obstinada em relação a este assunto, Mary. Por quê? Você está querendo que isto aconteça?

      Mary Aldin corou.

      — Não,. claro que não.

      Lady Tressilian disse rispidamente:

      — Foi você quem fez esta sugestão a Nevile?

      — Como pode pensar tamanho absurdo?

      — Bem, nem por um segundo acreditei ser idéia de Nevile. Não é próprio dele — fez uma pausa e depois seu rosto se iluminou. — Amanhã é 1° de maio, não é? Bem, dia 3 Audrey virá para a casa dos Darlingtons em Esbank. Fica a menos de 40 quilômetros daqui. Escreva e convide-a para almoçar conosco.

5 de maio.

      — A Sra. Strange está aqui.

      Audrey Strange entrou no amplo quarto indo até a cama. Abaixou-se, beijou a velha senhora e sentou-se na cadeira que lhe fora destinada.

      — Prazer em vê-la, minha querida — disse Lady Tressilian.

      — A satisfação é minha — respondeu ela.

      Havia algo de inatingível em Audrey Strange. Era pálida, feições delicadas e proporcionais ao rosto ovalado. Os olhos eram de um cinza-claro e bem separados. Os cabelos, louro-acinzentados. Tinha mãos e pés pequenos. Com tal colorido, com um rosto bonito, mas não lindo, tinha, entretanto, alguma coisa que não poderia ser ignorada e que fazia com que não lhe desviassem o olhar. Lembrava um fantasma, mas ao mesmo tempo sentia-se que neste fantasma havia algo mais real do que em qualquer ser humano vivo... Sua voz era excepcionalmente bonita, suave e límpida como um pequeno sino de prata.

      Durante alguns minutos falaram sobre amigos comuns e acontecimentos em geral. Em seguida Lady Tressilian disse:

      — Além do prazer de revê-la, minha querida, eu a convidei aqui porque recebi de Nevile uma carta um tanto curiosa.

      Audrey encarou-a, seus olhos estavam serenos e calmos. Falou:

      — Ah, sim!

      — Sugere, uma sugestão absurda, eu diria, que ele e Kay venham para cá em setembro. Deseja que você e ela se tornem amigas, e que você mesma achou isto uma ótima idéia.

      Fez uma pausa. Em seguida, Audrey, com sua voz tranqüila, perguntou:

      — Acha a idéia assim tão absurda?

      — Minha querida, você quer mesmo que isto aconteça?

      Novamente Audrey calou-se por um ou dois minutos. Então, gentilmente, confessou:

      — Sabe, acho que poderia ser uma boa coisa.

      — Quer mesmo encontrar com esta...  encontrar Kay?

      — Creio, Camilla, que poderia simplificar as coisas.

      — Simplificar! — repetiu Lady Tressilian com desânimo.

      — Querida Camilla, você tem sido tão boa. Se Nevile deseja que... — Audrey falou suavemente.

      — Pouco importa o que Nevile deseja! — reagiu Lady Tressilian bruscamente. — O problema é saber se é realmente isto o que você quer.

      Audrey enrubesceu. Seu rosto ganhou o brilho delicado de uma concha.

      — Sim. É o que eu quero.

      — Bem, então...

      Fêz-se uma pausa.

      — Mas é claro que você e quem resolve — disse Audrey. — A casa é sua e...

      Lady Tressilian fechou os olhos.

      — Estou velha — enfatizou. — Não consigo entender mais nada.                   

      — Mas é claro que... posso vir em outra época... quando você achar melhor.

      — Você virá em setembro como todos os anos — disse repentinamente Lady Tressilian. — Nevile e Kay também virão. Posso ser velha, mas creio que consigo adaptar-me tanto quanto qualquer outra pessoa às mudanças da vida moderna. Chega de conversa, já está resolvido.

      Fechou novamente os olhos. Pouco depois, com as pálpebras semicerradas, olhou para a jovem sentada ao seu lado, e perguntou:

      — Então, conseguiu o que queria?

      Audrey sobressaltou-se.

      — Ah! sim, sim. Obrigada.

      — Minha querida — falou Lady Tressilian com tom de preocupação —, tem- certeza de que esta situação não vai magoá-la? Você gostava muito de Nevile. Pode reabrir velhas feridas.

      Audrey olhava para as mãos. Lady Tressilian notou que uma delas agarrava com força o lado da cama. Audrey levantou a cabeça.  Seus olhos estavam calmos e imperturbáveis.

      — Tudo já passou. Acabou completamente.

      Lady Tressilian recostou-se com mais força nos travesseiros.

      — Bem, você é quem sabe. Estou cansada... você deve ir agora, querida. Mary a espera lá embaixo. Peça a Barrett que suba.

      Barrett era sua mais antiga e devotada criada. Encontrou a patroa recostada, com os olhos fechados.

      — Quanto mais cedo me vá deste mundo, melhor, Barrett. Não compreendo as pessoas, nem mais nada que acontece.

      — Não diga isto. A senhora está apenas cansada.

      — Sim, estou cansada. Tire este edredão dos meus pés e me dê uma dose do meu tônico.

      — Foi a vinda da Sra. Strange que a perturbou. É uma senhora agradável, mas eu diria que um pouco de tônico lhe faria bem. Ela não é saudável. Parece estar sempre vendo coisas que ninguém mais vê. Mas tem personalidade marcante e muita presença.

      — Isto é verdade, Barrett — disse Lady Tressilian. — Sim, é a pura verdade. E é também o tipo de pessoa de quem não se esquece facilmente.  Sempre imagino se, às vezes, o Sr. Nevile não pensa nela. A nova Sra. Strange é muito bonita, realmente bonita, mas a Srta. Audrey se faz lembrar na sua ausência.

      Lady Tressilian ressaltou num rompante:

      — Nevile é um tolo em querer aproximar estas duas mulheres. Será o primeiro a se arrepender.

29 de maio

      Fumando cachimbo, Thomas Royde inspecionava o garoto malaio que arrumava as malas com muita agilidade. De vez em quando, seu olhar se dirigia até a plantação. Durante uns 6 meses, não veria aquela paisagem que nos últimos sete anos lhe fora tão familiar. Seria estranho retornar à Inglaterra.

      Allen Drake, seu companheiro, apareceu na porta.

      — Oi, Thomas, como vão as coisas?

      — Já está tudo pronto.

      — Venha tomar um drinque, seu sortudo. Estou me consumindo de inveja.

      Thomas Royde saiu vagarosamente do quarto e foi ao encontro do amigo. Permaneceu calado, pois era um homem singularmente lacônico. Seus amigos aprenderam a julgar suas reações pelo tipo de seu silêncio. Tinha uma figura um pouco atarracada, um rosto honesto e grave, com olhos observadores e pensativos. Seu andar era meio de lado como o de um caranguejo. Isso era o resultado do esmagamento que sofrera, por uma porta, durante um terremoto, e que mais tarde viria a contribuir para o apelido de “Caranguejo Solitário”. O braço e o ombro, que haviam ficado parcialmente paralíticos, além de um andar afetado, levavam as pessoas a acreditar que ele se sentia tímido e embaraçado, o que na verdade raramente acontecia.

      Allen Drake preparou as bebidas.

      — Bem — disse ele —, boa caçada.

      Royde resmungou alguma coisa que soou como “hum, hum”.

      Drake olhou-o curioso.

      — Fleumático como sempre — comentou.  — Não sei como consegue ser assim. Há quanto tempo você está fora de casa?

      — Sete anos. Quase oito.

      — É muito tempo. Fico pensando se você já não se transformou inteiramente em um nativo.

      — É. Talvez isso tenha acontecido.

      — Você sempre pertenceu mais ao grupo animal do que ao humano. Por acaso planejou esta viagem?

      — Bem...  sim, em parte.

      Seu rosto duro e impassível de repente se tingiu de vermelho profundo.

      Allen Drake comentou muito surpreso:

      — Acredito que existe uma garota nesta história. Credo, você está ruborizado!

      — Não seja tolo — disse Thomas Royde um tanto ríspido, segurando com mais força seu velho cachimbo.

      Batendo todos os recordes anteriores, continuou a conversa:

      — Certamente encontrarei tudo um pouco mudado.

      Allen Drake perguntou curioso:

      — Nunca entendi por que da última vez você desistiu de ir para casa. E bem em cima da hora.

      Royde encolheu os ombros.

      — Achei que aquela caçada poderia ser mais interessante. E já havia, então, recebido más notícias de casa.

      — Mas é claro, tinha me esquecido. Seu irmão morreu naquele acidente de automóvel.

      Thomas Royde concordou com a cabeça.

      Drake refletiu e achou que de qualquer maneira era um motivo estranho para se cancelar uma viagem de volta para casa. Havia a mãe e parece que também uma irmã. Certamente numa hora destas... Lembrou-se, então, de alguma coisa. Thomas havia cancelado a passagem antes de chegar a notícia do falecimento do irmão.

      Allen olhou intrigado para o amigo. Seria o velho Thomas, um desconhecido?

      Depois de passados três anos, podia agora perguntar:

      — Você e seu irmão eram muito amigos?

      — Adrian e eu? Não em especial. Cada um tinha sua vida. Ele era advogado.

      Sim — pensou Drake —, uma vida muito diferente. Escritório em Londres, festas; ganhando a vida pela sagacidade da palavra. Concluiu que Adrian Royde tinha sido um sujeito muito diferente do velho e silencioso Thomas.

      — Sua mãe ainda está viúva?

      — Mamãe? Sim, está.

      — Você também tem uma irmã, não?

      Thomas balançou a cabeça.

      — Ah, pensei que tivesse. Naquela fotografia...

      — Não é minha irmã. É uma prima distante ou coisa parecida. Era órfã e foi criada conosco — Royde murmurou.

         Mais uma vez uma leve cor apareceu em seu rosto bronzeado.

      Drake perguntou curioso:

      — Ela é casada?

      — Ela foi casada com o tal de Nevile Strange.

      — Aquele jogador de tênis, etc?

      — Sim. Agora estão divorciados.

      E você vai até lá tentar sua sorte com ela — pensou Drake.

      Felizmente a conversa tomou outro rumo.

      — Vai pescar ou caçar?

      — Primeiro vou para casa. Depois pretendo velejar em Saltcreek.

      — Conheço o lugar. Encantador. E tem um bom hotel antigo, porém bastante agradável.

      — Sim, o Balmoral Court. Talvez fique lá, ou me hospede na casa de uns amigos.

      — Parece-me ótimo.

      — Saltcreek é um lugar muito sossegado. Ninguém para nos perturbar.

      — Eu sei — comentou Drake. — O tipo de lugar onde nada acontece.

16 de junho

      — É realmente irritante — disse o velho Sr. Treves. — Há 25 anos que me hospedo no Hotel Marine, em Leahead; e agora parece incrível, estão reformando todo o lugar. Estão ampliando a parte da frente e fazendo mais outras obras absurdas Por que será que não deixam em paz esses lugares no litoral? Leahead sempre teve um fascínio peculiar: o estilo regência, puro regência.

      Sir Rufus disse querendo consolar:

       — Mas suponho que existam outros lugares onde se hospedar, não?

      — Na realidade, não vejo como ir a Leahead. No Marine, a Sra. Mackay compreendia perfeitamente minhas necessidades. Todos os anos eu ficava no mesmo quarto, e raramente havia mudanças no serviço do hotel. A comida era excelente, realmente excelente.

      — E que tal ir a Saltcreek? Existe lá um hotel antigo e simpático: O Balmoral Court. O hotel está sob a gerência do casal Rogers. A Sra. Rogers foi cozinheira do velho Lorde Mounthead; ele dava os melhores jantares de Londres. Ela se casou com o mordomo e agora os dois administram esse hotel. Parece-me o lugar ideal para você: sossegado, sem orquestras de jazz, cozinha e serviço de primeira.

      — É uma idéia, certamente uma idéia. Tem terraço coberto?

      — Sim. Uma varanda coberta e também um terraço. Pode escolher a sombra ou o sol, conforme sua preferência. Se quiser, posso lhe dar urna carta de apresentação para aquela redondeza, Existe também a velha Lady Tressilian, que mora bem próximo. Tem uma bonita casa, sendo que ela própria é uma mulher encantadora, apesar de estar praticamente inválida.

      — Refere-se à viúva do juiz?

      — Sim, a ela mesma.

      — Eu conheci Matthew Tressilian e acho que cheguei a conhecê-la. Uma mulher encantadora, mas é claro que isto foi há muito tempo. Saltcreek é perto de St. Loo, não é? Tenho vários amigos por lá. Sabe, acho Saltcreek uma ótima idéia. Vou escrever pedindo maiores detalhes. Pretendo ir em meados de agosto, e ficar até meados de setembro. Suponho que tenha garagem e lugar para o meu motorista, não?

      — Sim. É inteiramente moderno.

      — Pois como você sabe, tenho que ser cuidadoso com a subida de escadas. Prefiro um quarto no andar térreo, apesar de acreditar que haja elevador.

      — Sim. Possui todas essas coisas.

      — Parece que resolveria perfeitamente o meu problema; e apreciaria muito reencontrar Lady Tressilian.

28 de julho

      Kay Strange, de short e casaquinho amarelo, estava debruçada assistindo à partida de tênis. Era a semifinal do torneio, a individual masculina, onde Nevile jogava com o jovem Merrick, considerado o futuro campeão de tênis. Sua habilidade era inegável, e alguns de seus saques irrebatíveis. Entretanto, às vezes perdia a calma, quando a experiência e a técnica do jogador mais velho conseguiam vencê-lo.

      Deslizando, Ted Latimer sentou-se na cadeira vizinha à de Kay. Comentou com a voz vagarosa e irônica:

      — A esposa devotada assiste ao marido abrir caminho para a vitória!

      Kay sobressaltou-se:

      — Como você me assustou! Não sabia que estava aí.

      — Sempre estou. A esta altura você já deveria saber.

      Ted Latimer tinha 25 anos e era extremamente bonito, apesar de velhos coronéis costumarem fazer comentários maldosos contra ele:

      — “O toque latino”.

      Era moreno, com um lindo bronzeado, além de ótimo dançarino. Seus olhos escuros eram muito expressivos, e controlava a voz com a segurança de um ator. Kay o conhecia desde os quinze anos. Juntos, em Juan-les-Pins, haviam tomado banho de sol, dançado e jogado. Além de amigos, tinham sido aliados.

      O jovem Merrick estava sacando do lado esquerdo da quadra. A devolução de Nevile foi irrebatível: uma magnífica jogada para o fundo da quadra.

      — O seu golpe de esquerda é bom — comentou Ted. — É melhor do que o de direita. Ele sabe que o fraco de Merrick é o golpe de esquerda. Vai jogar tudo o que sabe.

      Terminou a partida: “4x3”. Nevile estava na liderança e continuou a levar vantagem na outra partida. O jovem Merrick jogava furiosamente.

      — “5x3”.

      — Vantagem para Nevile — falou Latimer.

      Em seguida o rapaz recuperou a calma. Suas jogadas tornaram-se cautelosas, modificando o compasso de seus lances.

      — Ele tem cabeça — disse Ted. — E seu trabalho de pés é de primeira classe. Vai ser uma disputa para valer!

      Aos poucos, Merrick conseguiu empatar: “5x5”. Chegou a “7”, e finalmente ganhou a partida com “9x7”.

      Nevile aproximou-se da rede. Sorrindo e balançando a cabeça, cumprimentou o adversário.

      — A mocidade falou mais alto — disse Ted Latimer — 19 a 33. Mas posso lhe dizer, Kay, porque Nevile nunca chegou a campeão. É bom perdedor.

      — Que bobagem!

      — Não é não. O maldito Nevile comporta-se sempre como um perfeito desportista. Nunca o vi zangado por perder uma partida.

      — É claro que não — falou Kay. — Os jogadores costumam agir como Nevile.

      — Ah! Não costumam mesmo. Todos nós já vimos grandes tenistas ficarem nervosos, mas nunca Nevile. Deixa que o melhor deles vença; e tudo o mais.

      Kay virou a cabeça.

      — Não acha que está sendo muito maldoso?

      — Sim, completamente felino!

      — Preferiria que não demonstrasse tão claramente que não gosta de Nevile.

      — E por que haveria de gostar? Ele roubou minha garota.

      Ted olhou-a demoradamente.

      — Eu não era sua garota. As circunstâncias impediam.

      — Certamente. Não se pode esquecer o fato dele ter mais dinheiro.

      — Cale esta boca. Apaixonei-me por Nevile e me casei com ele...

      — E ele é um ótimo rapaz... é o que todos acham, não?

      — Está tentando me aborrecer?

      Ao fazer a pergunta, Kay virou a cabeça. Ele sorriu e imediatamente ela correspondeu ao sorriso.

      — Como vai indo a temporada de verão, Kay?

      Mais ou menos. Fiz uma linda viagem de iate. Já estou bastante cansada deste negócio de tênis.

      — Por quanto tempo ainda vai ter que agüentar isto? Mais um mês?

      — Sim. Depois, em setembro, iremos a Gull's Point por quinze dias.

      — Estarei no Hotel Easterhead — disse Ted. — Já reservei um quarto.

      — Vai ser um belo acontecimento! — exclamou Kay. — Nevile, eu, sua ex-esposa, e um fazendeiro da Malásia que vem para casa de férias.

      — Perece muito divertido.

      — E também, é claro, a prima desajeitada, sempre serviçal, em volta daquela velha desagradável, o que de nada adianta pois o dinheiro será meu e de Nevile.

      — Talvez ela não saiba disto.

      — E até que seria bem engraçado — disse Kay, falando distraidamente.

      Olhou para a raquete que estava rodando nas mãos. De repente prendeu a respiração.

      — Ah, Ted!

      — O que há, meu bem?

      — Não sei. Às vezes perco a coragem. Sinto-me estranha e com medo.

      — Nem parece você, Kay.

      — Não pareço, não é? De qualquer maneira você estará no Hotel Easterhead Bay.

      — Conforme os planos.

      Quando Kay encontrou Nevile na saída do vestiário, ele comentou:

      — Vejo que seu amiguinho chegou.

      — Ted?

      — Sim, o cão fiel, ou talvez fosse mais apropriado dizer um lagarto.

      — Você não gosta dele, não é?

      — Ah! Ele não me preocupa. Se você se diverte em andar com ele pela coleira.

      Nevile encolheu os ombros em sinal de indiferença.

      — Acho que você está com ciúmes — disse Kay.

      — De Latimer? — sua surpresa era verdadeira.

      — Ted é considerado muito atraente.

      — Tenho certeza de que sim. Tem aquele charme latino.

      — Você está com ciúmes! — exclamou Kay.

      Nevile apertou com carinho o braço de Kay.

      — Não, não estou, beleza. Você pode ter seus admiradores Uma corte inteira deles, se quiser. Eu tenho a posse e, pela lei, o direito é meu.

      — Você está muito seguro de si — contestou Kay chateada.

      — Claro que estou. Você e eu fomos predestinados. O destino nos uniu. Lembra-se do nosso encontro em Cannes: eu estava a caminho do Estoril e, de repente, quando cheguei lá, a primeira pessoa que vi foi a linda Kay. Soube então que era o destino, e que não poderia escapar.

      — Não foi exatamente o destino — esclareceu ela. — Fui eu!

      — O que você quer dizer com “fui eu”?

      — Porque fui eu! Ouvi você dizer no hotel que ia para o Estoril, e então insisti e convenci minha mãe. Por essa razão, a primeira pessoa que você encontrou lá foi a Kay.

      Nevile olhou-a com uma expressão curiosa.

      Falou devagar:

      — Você nunca me contou isso antes.

      — Não, porque não teria sido bom para você. Poderia torná-lo convencido. Sempre fui boa em planejar coisas. Nada acontece sem que preparemos o acontecimento. Às vezes você me chama de tola, mas a meu modo sou até bem esperta. Faço com que as coisas aconteçam. Algumas vezes planejo com bastante antecedência.

      — É. O trabalho intelectual deve ser intenso.

      — Pode zombar se quiser, Nevile — disse com uma estranha e repentina amargura.

      — Será que só agora estou conhecendo a mulher com quem me casei? Em lugar de destino, leia-se Kay!

      — Você não está zangado, está? — perguntou ela.

      Seu marido disse um tanto distraído:

      — Não, é claro que não. Só estava pensando...

10 de agosto

      — E lá se foram minhas férias! — exclamou o Superintendente Battle aborrecido.

      A Sra. Battle estava desapontada, mas os longos anos como esposa de um policial haviam-na preparado para aceitar com resignação esses contratempos.

      — Bem, não podemos fazer nada — ressaltou ela. — Espero que pelo menos seja um caso interessante.

      — Não é o que me parece — disse o Superintendente Battle. — O Ministério das Relações Exteriores está na maior confusão: todos aqueles jovens altos e esbeltos movimentando-se de um lado para o outro, dizendo: Calma! calma! No final tudo se resolverá satisfatoriamente e solucionaremos o problema de todos. Entretanto, não é o tipo de caso que colocaria em minhas Memórias, se algum dia fosse tolo o bastante para escrevê-las.

      — Creio que podemos adiar nossas férias... — começou a Sra. Battle indecisa, quando o marido a interrompeu com firmeza.

      — De forma alguma. Você e as garotas vão para Britlington. Os quartos estão reservados desde março e seria uma pena não aproveitá-los. Sabe o que vou fazer quando isto tudo acabar? Irei passar uma semana com Jim.

      Jim era sobrinho do Superintendente Battle, inspetor James Leach.

      — Saltington é bem perto da baía de Easterhead e Saltcreek — prosseguiu ele. — Posso respirar um pouco de ar puro e tomar banho de mar.

      A Sra. Battle torceu o nariz.

      — O mais provável é que ele o convença em ajudá-lo a resolver algum caso.

      — Nesta época do ano, nada acontece, a não ser que uma mulher roube coisas de pouco valor de Woolworth. De qualquer maneira, Jim está muito bem, e não precisa que o orientem.

      — Ah, bem! — disse a Sra. Battle. — Acredito que tudo isso dê certo, porém, mesmo assim foi uma decepção.

      — Estas coisas acontecem para nos atormentar — afirmou o Superintendente Battle.

 

Branca de Neve e rosa vermelha

      Ao descer do trem em Saltington, Thomas Royde encontrou Mary Aldin esperando-o na plataforma.

      Guardava dela apenas uma vaga lembrança, e agora, revendo-a, ficou agradavelmente surpreso com sua maneira ativa de lidar com as coisas.

      Ela o chamava pelo primeiro nome.

      — Que prazer em revê-lo depois de todos estes anos, Thomas.

      — Obrigado por me hospedar. Espero não incomodar.

      — Nem um pouco. Você é especialmente bem-vindo. Aquele é o carregador? Diga-lhe para trazer a bagagem por aqui. O carro está estacionado logo adiante.

      As malas foram guardadas no Ford. Mary sentou-se à direção e Royde a seu lado. Partiram. Thomas notou que ela era uma boa motorista, ágil, cuidadosa no trânsito, além de segura quando calculava a distância e o espaço entre os carros.

      Saltington ficava a 11 quilômetros de Saltcreek. Logo que saíram do pequeno centro comercial da cidade e pegaram a estrada, Mary Aldin voltou ao assunto de sua visita.

      — Na verdade, Thomas, sua vinda neste momento será como uma dádiva de Deus. Tudo está um pouco complicado e precisamos de um estranho, ou seja, alguém que não esteja realmente envolvido, para ajudar-nos.

      — Qual é o problema?

      Como sempre, seu jeito era indiferente e quase indolente. Deu a impressão de estar perguntando mais por delicadeza do que por interesse na resposta. Sua maneira acalmara Mary. Ela precisava urgentemente falar com alguém, entretanto, preferia que esse alguém fosse imparcial.

      Ela disse:

      — Bem, estamos numa situação bem delicada. Como deve saber, Audrey está aqui.

      Ela parou interrogativa, e Thomas concordou com a cabeça.

      — Nevile e a esposa também.

      Thomas Royde ergueu as sobrancelhas. Depois de um instante, murmurou:

      — Um tanto embaraçoso...

      — Sim, é. Foi tudo idéia de Nevile.

      Ela fez uma pausa. Royde não falou, mas sentiu que uma corrente de dúvida vinha da parte dela. Mary repetiu, afirmando:

      — Foi realmente idéia de Nevile.

      — Por quê?

      Por um momento ela tirou as mãos do volante, levantando-as.

      — Ah, alguma atitude moderna! Todos juntos, amigos e sensatos. Esta é a idéia. Mas não creio que esteja dando muito certo.

      — Provavelmente não dará. Que tal é a nova esposa? — acrescentou ele.

      — Kay? Bonita, é claro. Realmente muito bonita e bem jovem.

      — E Nevile está apaixonado?

      — Sim. Mas também, estão casados há apenas um ano e meio!

      Thomas Royde virou a cabeça para olhá-la, dando um pequeno sorriso. Mary apressou-se.

      — Não foi exatamente isto que eu quis dizer.

      — Ora Mary. Acho que você quis sim.

      — Bem, não se pode deixar de notar que eles têm muito pouco em comum. Os amigos, por exemplo... — Ela parou.

      — Ele a conheceu na Riviera, não foi? — perguntou Royde. — Não estou bem a par do que aconteceu. Sei apenas de poucos fatos que minha mãe me contou quando me escreveu.

      — Sim. Encontraram-se pela primeira vez em Cannes. Nevile sentiu-se atraído por ela. Acredito que isto já tenha acontecido antes, mas como sempre, de uma forma inofensiva. Continuo achando que se ela não tivesse insistido, não teria dado em nada. Como você sabe, ele gostava muito de Audrey.

      Thomas concordou com a cabeça.

      — Não creio que ele tivesse a intenção de se separar — prosseguiu Mary — Estou até certa disto. Kay estava, porém, terminantemente decidida. Não descansou enquanto não o fez abandonar a esposa. E como se sente um homem em tais circunstâncias? Naturalmente que fica lisonjeado.

      — Ela estava muito apaixonada por ele?

      — É. Talvez tenha sido isto.

      Havia dúvida no tom de voz de Mary. O olhar de indagação de Royde fê-la corar.

      — Estou sendo malévola! Há sempre por perto um velho amigo dela, um jovem bonitão, com tipo de gigolô. Às vezes, não se pode deixar de pensar se o fato de Nevile ter uma boa situação financeira e prestígio nada teve a ver com isto... Afinal, ela não tinha um tostão.

      Fez uma pausa parecendo envergonhada. Thomas Royde apenas exclamou:

      — Hum!  hum!

      — Entretanto — continuou Mary —, devo estar sendo muito maldosa. A moça é o que se pode chamar de deslumbrante, e isto, provavelmente, faz com que meus instintos felinos de solteirona venham à tona.

      Royde olhou-a pensativo, porém em seu rosto impassível, não se via nenhuma reação. Pouco depois, ele perguntou:

      — Exatamente, qual é o problema que está havendo?

      — Na verdade, não tenho a menor idéia. É isto que é muito estranho. É lógico que primeiramente consultamos Audrey, porém ela não se mostrou contra o encontro com Kay. Foi encantadora em relação a tudo. E continua sendo. Ninguém poderia ter sido mais simpática. Aliás, é sempre correta em tudo que faz. Seu comportamento para com o casal é perfeito. Como você sabe, ela é muito reservada. Nunca se tem idéia do que realmente está sentindo ou pensando, mas sinceramente não acredito que esta situação não a perturbe.

      — Não vejo por que haveria de perturbá-la — disse Thomas. — Afinal, já se passaram três anos — acrescentou ele depois de algum tempo.

      — Será que pessoas como Audrey esquecem? Ela gostava muito de Nevile.

      Thomas mexeu-se no banco.

      — Ela tem apenas 32 anos. Há uma vida inteira pela frente.

      — Ah! eu sei. Mas sofreu muito. Como você sabe, teve um colapso nervoso.

      — Eu sei. Minha mãe me escreveu contando.

      — De certa maneira — disse Mary —, ter que cuidar de Audrey foi até bom para a sua mãe. Distraiu-a de seu próprio sofrimento: a morte de seu irmão. Sentimos muito o que aconteceu

      — Eu sei. Pobre Adrian. Sempre dirigiu em alta velocidade.

      Ficaram calados. Mary fez sinal com o braço para avisar que iria tomar o caminho para Saltcreek.

      Enquanto passavam pela estrada estreita e cheia de curvas, ela perguntou:

      — Thomas, você conhece bem Audrey?

      — Mais ou menos. Não a tenho visto muito nestes últimos dez anos.

      — Eu sei. Mas você a conheceu em criança. Ela era como uma irmã para você e Adrian, não?

      Ele concordou com a cabeça.

      — Ela tinha... tinha alguma forma de desequilíbrio? Ah, não é bem isto que quero dizer. Mas sinto que atualmente há algo de muito errado com ela. É completamente desligada de tudo, e seu equilíbrio tão perfeito não é natural. Às vezes fico imaginando o que se passa por traz da sua fisionomia impassível. Uma vez ou outra, sinto que existe uma emoção forte. Mas não sei bem qual é. Sei apenas que ela não é normal. Há algo estranho, e isto me preocupa. Alguma coisa no ambiente daquela casa afeta as pessoas. Estamos todos nervosos e sobressaltados. Mas não sei o porquê. Algumas vezes, Thomas, sinto medo.

      — Medo?

      O tom de surpresa na sua voz a fez recobrar a calma e soltar um riso nervoso.

      — Parece absurdo... Mas o que quero dizer é que sua chegada será boa para nós, trará uma mudança no ambiente. Olhe, chegamos.

      Haviam dobrado a última curva. Gull's Point ficava num planalto de pedra com vista para o rio. Havia penhascos nos dois lados. Os jardins e a quadra de tênis ficavam do outro lado, perto da estrada.

      — Vou guardar o carro e já volto. Hurstall cuidará de você — disse Mary.

      Hurstall o velho mordomo, cumprimentou Thomas com o prazer de um velho amigo.

      — Fico feliz em vê-lo, Sr. Royde, depois destes anos todos. Lady Tressilian também ficará. O senhor dormirá no quarto leste. Creio que encontrará todos no jardim, a não ser que prefira ir primeiro para o seu quarto.

      Thomas balançou a cabeça. Atravessou a sala de visitas e abriu a janela que dava para o terraço. Ficou observando sem ser visto.

      Duas mulheres eram as únicas ocupantes do terraço. Uma delas estava sentada na balaustrada, olhando o rio. A outra a observava.

      A primeira era Audrey... a outra deveria ser Kay Strange, que por sua vez, não sabendo que estava sendo observada, não se preocupou em disfarçar a expressão do rosto. Talvez Thomas Royde não conhecesse bem as mulheres, mas não poderia deixar de notar que Kay Strange odiava Audrey Strange.

      Audrey olhava o rio parecendo inconsciente ou indiferente à presença da outra.

      Haviam passado mais de sete anos desde que Thomas vira Audrey pela última vez. Examinou-a cuidadosamente. Teria ela mudado, e se assim fosse, de que maneira?

      Sim, havia uma mudança — concluiu ele. Estava mais magra, mais pálida, com uma aparência mais etérea. Porém havia mais alguma coisa, que não conseguiu definir bem. Era como se ela controlasse cada um de seus movimentos, mantendo-se presa a uma coleira, entretanto, sempre muito atenta a tudo que acontecia a sua volta. Parecia uma pessoa com um segredo a esconder. No entanto, que segredo? Ele tinha conhecimento de alguns fatos ocorridos com ela nestes últimos anos. Estava preparado para ouvir lamentações, porém o que estava vendo agora era algo diferente do que esperava. Ela parecia uma criança que por segurar com força um tesouro, chamava atenção para aquilo que queria esconder.

      Em seguida ele olhou para a outra mulher: a atual esposa de Nevile Strange. Linda. Mary Aldin tinha razão. E também perigosa. Pensou: “Não a deixaria perto de Audrey se estivesse com uma faca na mão”.

      Contudo, por que haveria ela de odiar a primeira mulher de Nevile? Tudo já terminara. Atualmente, Audrey nada tinha a ver com a vida dos dois.

      Passos ressoaram no terraço. Parecendo cordial, Nevile se aproximou com uma revista nas mãos.

      — Eis a Illustrated Review — disse ele. — Não encontrei a outra...

      Aconteceram então duas coisas ao mesmo tempo.

      — Ótimo, me dá aqui — pediu Kay. E Audrey, sem. virar o rosto, estendeu a mão distraída.

      Nevile estava parado entre as duas. Ficou embaraçado. Antes que pudesse falar, Kay exclamou com uma voz ligeiramente histérica:

      — Eu quero a revista. Dê para mim, Nevile!

      Audrey Strange sobressaltou-se, abaixou a mão, e murmurou um tanto confusa:

      — Ah, desculpe. Pensei que estivesse falando comigo, Nevile.

      Thomas Royde notou que Nevile Strange ficara ruborizado. Deu três passos à frente e entregou a revista à Audrey, que cada vez mais embaraçada, hesitando, continuou:

      — Ah, mas...

      Kay empurrou a cadeira com um movimento brusco. Levantou-se e saiu em direção à sala de visitas. Esbarrou em Royde antes que ele tivesse tempo de se mexer.

      O choque fê-la recuar e olhá-lo, enquanto ele se desculpava. Só então percebeu por que ela não o tinha enxergado: seus olhos estavam cheios de lágrimas... lágrimas de raiva, supôs ele.

      — Olá — disse ela. — Quem é você? Ah, mas é claro, o homem da Malásia.

      — Sim — disse Thomas. — Sou o homem da Malásia.

      — Agradeceria a Deus se eu estivesse agora na Malásia! Qualquer outro lugar, menos isto aqui. Detesto esta casa nojenta. Detesto todo mundo que está dentro dela!

      Cenas nervosas sempre assustaram Thomas. Olhou para Kay receoso e murmurou nervoso:

      — Hum!

      — Se não tomarem cuidado — observou ela —, vou acabar matando alguém: ou Nevile ou aquela gata pálida lá fora!

      Saiu apressadamente batendo a porta.

      Thomas Royde continuou parado. Não tinha muita certeza do que faria em seguida, mas estava satisfeito que a jovem Sra. Strange tivesse ido embora. Ficou olhando para a porta que ela batera com violência. A nova Sra. Strange lembrava um gato selvagem.

      Nevile surgiu, parando entre as duas portas. Estava ofegante.

      Cumprimentou Thomas:

      — Alô Royde, não sabia que já tinha chegado. Por sinal, viu a minha mulher?

      — Ela passou por aqui há um minuto — respondeu.

      Nevile saiu da sala, parecendo aborrecido.

      Thomas Royde se encaminhou para o terraço. Seus passos eram leves, e somente quando estava a poucos metros de Audrey, é que ela virou a cabeça.

      Então ele viu seus olhos arregalados e a sua boca entreaberta. Ela desceu de onde estava, vindo em sua direção com os braços estendidos.

      — Thomas! — disse ela. — Meu querido Thomas! Que bom que você está aqui.

      No momento em que ele se curvou e segurou as mãos de Audrey, Mary Aldin apareceu na janela. Ao ver os dois no terraço, parou e ficou observando-os por alguns minutos. Em seguida, voltou para dentro.

      Lá em cima, Nevile encontrara Kay no quarto. O único quarto de casal que havia na casa era o de Lady Tressilian. Os casais ficavam sempre com os dois quartos, no lado oeste da casa, que tinha uma porta de comunicação, além de um pequeno banheiro. Era uma pequena e isolada suíte.

      Nevile passou pelo seu quarto indo direto ao de sua mulher. Kay tinha se jogado sobre a cama. Levantou o rosto marcado de lágrimas, e gritou:

      — Ah, você está aí! Já não era sem tempo!

      — Por que esta confusão toda? Você ficou maluca, Kay?

      Nevile falou calmamente, mas no canto de suas narinas havia vestígios de raiva.

      Por que você deu a Illustrated Review para ela e não para mim?

      — Ora, Kay, você está sendo infantil. Todo este drama por causa de uma revista?

      — Você entregou a revista para ela e não para mim — repetiu Kay com obstinação.

      — Bem, e por que não? Que importância tem isso?

      — Para mim tem muita.

      — Não entendo o que está havendo com você. Não pode ter esse comportamento histérico na casa dos outros. Será que não sabe se comportar em público?

      — Por que você deu a revista para Audrey?

      — Porque ela queria.

      — Eu também queria. E além do mais sou sua mulher.

      — Mais um motivo para dá-la a uma mulher mais velha, e que oficialmente não é parente.

      — Ela se desforrou. Era o que queria, e conseguiu. Você estava do lado dela!

      — Você está falando como uma criança idiota e ciumenta. Pelo amor de Deus, controle-se e procure se comportar corretamente em público.

      — Como Audrey, não é?

      Nevile falou com frieza:

      — De qualquer modo, ela é uma dama. Não faz papel ridículo.

      — Ela está jogando você contra mim. Me odeia e está conseguindo se vingar.

      — Olhe aqui, Kay, chega de ser boba e melodramática. Já estou farto!

      — Então vamos embora daqui. Amanhã mesmo. Detesto este lugar!

      — Só estamos aqui há quatro dias.

      — E já é o bastante! Por favor, vamos embora Nevile.

      — Olhe aqui, Kay, já aturei o bastante. Viemos para ficar 15 dias e ficaremos.

      — Se ficarmos — disse ela — você vai se arrepender. Você e a sua Audrey! Você a acha maravilhosa.

      — Não acho Audrey maravilhosa, mas sim uma pessoa extremamente boa e gentil, a quem tratei muito mal e que foi generosa me perdoando.

      — É aí que você se engana — falou. Levantou-se da cama.  Tinha se acalmado. Falou seriamente, quase solene:

      — Audrey não o perdoou, Nevile. Eu a tenho observado quando olha para você. Não sei dizer no que fica penando mas há alguma coisa... Ela é do tipo que não deixa ninguém saber em que está pensando.

      — É pena — disse Nevile — que a maioria não seja assim.                  

      Kay ficou muito pálida.

      — Você está se referindo a mim? — Havia em sua voz uma ponta de ameaça.

      — Bem... você não tem sido muito discreta, tem? Você demonstra claramente todo seu rancor e mau humor. Cria uma situação ridícula para você e para mim.

      — Ainda tem alguma coisa para dizer?

      Sua voz estava gelada.

      Ele respondeu num tom igualmente frio:

      — Sinto muito se você acha que fui injusto. Mas esta é a pura verdade. Você tem menos autocontrole do que uma criança.

      — Você nunca perde a calma, não é? É sempre o senhor superior, de maneiras encantadoras e controladas. Acho que você não tem sentimentos. Nem parece que tem sangue nas veias! Por  que você não se descontrai? Por que você não grita, não amaldiçoa, não me manda para o inferno?

      Nevile suspirou e encolheu os ombros.

      — Oh Deus — suspirou ele.

      Virou-se e saiu do quarto.

      — Você está com a mesma aparência que tinha aos 17 anos, Thomas Royde — comentou Lady Tressilian. — O mesmo jeitão de coruja. E continua calado como antes. Por quê?

      Thomas disse vagamente:

      — Não sei. Nunca tive o dom da palavra.

      — Tão diferente de Adrian. Seu irmão era um conversador espirituoso e esperto.

      — Talvez seja esse o motivo. Sempre deixei a conversa a cargo dele.

      — Pobre Adrian. Tinha um futuro tão promissor.

      Thomas concordou com a cabeça.

      Lady Tressilian mudou de assunto. Estava concedendo uma audiência a Thomas. Normalmente ela preferia receber uma visita de cada vez. Desta forma não se cansava e podia dar maior atenção às pessoas.

      — Você já está aqui há 24 horas — comentou ela. — O que está achando da situação?

      — Situação?

      — Não fique com esta cara de bobo. Você faz isto propositadamente. Sabe muito bem a que me refiro: ao triângulo amoroso que se instalou aqui em minha casa.

      Thomas respondeu com cautela:

      — Parece haver um pouco de conflito.

      Lady Tressilian sorriu maliciosa.

      — Devo lhe confessar, Thomas, que estou me divertindo. Esta situação aconteceu contra minha vontade: na verdade fiz o possível para evitá-la. Todavia, Nevile estava obstinado. Insistiu em reunir estas duas mulheres e agora está colhendo o que plantou!

      Thomas Royde mexeu-se na cadeira.

      — Perece-me estranho — falou ele.

      — O que quer dizer com isto?

      — Não pensei que Strange fosse desse tipo de sujeito.

      — É interessante que você pense assim, porque foi o que também me ocorreu. Não é próprio dele. Nevile, como a maioria dos homens, preocupa-se em evitar qualquer problema ou possível aborrecimento. Desconfiei de que a idéia não tivesse partido dele, mas se não o foi, não posso imaginar de quem possa ter sido.

      Ela fez uma pequena pausa, e com uma pequena inflexão na voz, perguntou:

      — Não teria sido idéia de Audrey?

      Thomas respondeu de imediato:

      — Não, Audrey nunca!

      — E também não posso acreditar que tenha sido idéia daquela jovem infeliz, a Kay. A não ser que seja uma atriz notável. Saiba que ultimamente sinto quase pena dela.

      — A senhora não gosta muito dela, não é?

      — Não. Ela parece uma cabeça oca, e sem nenhum equilíbrio emocional. Mas como lhe disse, começo a sentir pena. Tem se comportado de modo desajeitado e desnorteado. Não sabe que armas usar. Mau humor, péssimas maneiras, grosserias infantis, e tudo que tem o pior efeito sobre um homem como Nevile.

      Thomas concluiu calmamente:

      — Acho que Audrey é quem está numa situação difícil.

      Lady Tressilian lançou-lhe um olhar penetrante.

      Você sempre esteve apaixonado por Audrey, não é verdade Thomas?

      — Acredito que sim — respondeu imperturbável. — Praticamente desde o tempo em que eram crianças, não é?

      Ele concordou com a cabeça.

      — E então Nevile apareceu, e a levou bem debaixo do seu nariz.

      Ele se mexeu, inquieto, na cadeira.

      — Bem... sempre soube que não tinha a menor chance.

      — Derrotista! — disse Lady Tressilian.

      — Sempre fui um estúpido.

      — Pacato demais!

      — Thomas, o bonzinho! É isto que Audrey pensa de mim.

      — Fiel Thomas — lembrou Lady Tressilian. -— Era este o seu apelido, não era?

      Ele sorriu pois estas palavras traziam lembranças de sua infância.

      — Engraçado! Não ouço isto há muito tempo.

      — Pode ser que agora isto lhe traga vantagem.

      Ela respondeu ao seu olhar, segura e pensativa.

      — Fidelidade — disse ela — é uma condição que qualquer pessoa, que tenha passado pela experiência que Audrey passou, deve apreciar. A devoção de uma vida inteira, Thomas, às vezes, é recompensada.

      Royde olhou para baixo, desajeitado com seu cachimbo.

      — Vim para cá com essa esperança — falou ele.

      — E aqui estamos todos — disse Mary Aldin.

      Hurstall, o velho mordomo, enxugou a testa. Quando entrou na cozinha, a Sra. Spicer, a cozinheira, comentou sua expressão.

      — A verdade é que não posso estar bem — afirmou ele. — Tenho a impressão de que, atualmente, tudo que é dito e feito nesta casa tem um significado diferente do que aparenta:  será que você compreende?

      A Sra. Spicer parecia não entender, e Hurstall prosseguiu:

      — Agora mesmo, quando todos sentaram para jantar, a Srta. Aldin disse: “E aqui estamos todos.” Isto me assustou. Fez-me pensar em um treinador preso numa jaula com as portas fechadas, com um bando de animais selvagens. De repente, tive a impressão de termos caído numa armadilha.

      — Ora, Sr. Hurstall! — impacientou-se a Sra. Spicer. — O senhor deve ter comido alguma coisa que não lhe fez bem.

      — Não é problema de digestão. É a maneira como todos estão nervosos. Ainda há pouco, a porta da frente bateu e a nossa Sra. Strange, a Srta. Audrey, sobressaltou-se como se tivesse levado um tiro. Existem ainda os silêncios, que são muito estranhos. Ê como se de repente todos tivessem medo de falar. Logo em seguida, começam a tagarelar todos ao mesmo tempo, dizendo a primeira coisa que lhes vem à cabeça.

      — Realmente, é o bastante para deixar qualquer pessoa embaraçada — concordou a Sra. Spicer. — Duas Sras. Strange na mesma casa. Não acho decente.

      Agora, a sala de jantar, estava num daqueles silêncios a que Hurstall tinha se referido.

      Foi com muito esforço que Mary Aldin se dirigiu a Kay e disse:

      — Convidei seu amigo, o Sr. Latimer, para jantar aqui amanhã.

      — Ótimo! — disse Kay. Nevile perguntou:

      — Latimer está aqui?

      — Está hospedado no Hotel Easterhead Bay — respondeu Kay.

      — Podemos ir jantar lá uma noite destas. Até que horas a barca funciona? — indagou Nevile.

      — Até uma e meia — respondeu-lhe Mary.

      — Imagino que dancem lá todas as noites, não?

      — Lá, a maioria das pessoas tem cem anos! — exclamou Kay.

      — Não deve ser muito divertido para o seu amigo — disse Nevile a ela.

      Mary retrucou prontamente.

      — Poderemos ir nadar um desses dias na baía de Easterhead. Ainda está calor e a praia é linda.

      Em voz baixa, Thomas sussurrou a Audrey.

      — Pensei em velejar amanhã. Gostaria de ir?

      — Gostaria sim.

      — Podemos ir todos — afirmou Nevile.

      — Pensei que você havia dito que ia jogar golfe — lembrou Kay.

      — Realmente pensei em ir ao campo de golfe. Outro dia joguei bastante mal.

      — Que tragédia! — exclamou sua esposa.

      Nevile respondeu, bem humorado:

      — Golfe é um jogo trágico.

      Mary perguntou a Kay se ela jogava.

      — Sim. Jogo mais ou menos.

      Nevile ressaltou:

      — Ela seria uma boa jogadora se levasse o jogo mais a sério.

      Kay perguntou a Audrey:

      — Você não pratica nenhum esporte, não é?

      — Na realidade não. Jogava um pouco de tênis, mas sou inteiramente desajeitada.

      — Você ainda toca piano, Audrey? — perguntou Thomas.

      — Atualmente não.

      — Você costumava tocar muito bem — enfatizou Nevile.

      — Pensei que não apreciasse música, Nevile — retrucou Kay.

      — Não entendo muito de música — disse ele vagamente. — Nunca compreendi como Audrey, tendo as mãos tão pequenas, conseguia dar uma oitava.

      Ele a estava olhando, quando Audrey pousou os talheres.

      Ela corou um pouco e disse apressada:

      — Meu dedo mínimo é muito comprido. Creio que isto ajuda.

      — Você então deve ser egoísta — comentou Kay. — Senão seu dedo mínimo seria curto.

      — Isto é verdade? — perguntou Mary Aldin. — Então devo ser altruísta. Olhe, meus dedos mínimos são bem curtos.

      — Acho você muito generosa — falou Thomas Royde, olhando-a pensativamente.

      Ela ficou vermelha, porém continuou prontamente:

      — Quem será o menos egoísta de nós? Vamos comparar os dedos mínimos. O meu é mais curto que o seu, Kay. Mas, acho que Thomas ganha.

      — Eu ganho de vocês dois — apressou-se Nevile. — Olhe! — e esticou a mão.

      — Mas só em uma das mãos — lembrou Kay. — O dedo mínimo de sua mão esquerda é curto mas o da mão direita é comprido. E sua mão esquerda é o que nasce com você, e a direita é o resultado do que você faz de sua vida; o que significa que você nasceu egoísta, mas foi se tornando altruísta à medida que o tempo passou.

      — Você pode ler o futuro, Kay? — perguntou Mary Aldin, estendendo-lhe a mão, com a palma virada para cima. — Uma quiromante me disse que eu ia ter dois maridos e três filhos. Vou ter que me apressar!

      Kay corrigiu:

      — Estas pequenas cruzes não significam crianças, e sim viagens. Você fará três viagens por mar.

      — Isto também parece improvável — enfatizou Mary.

      — Você já viajou muito? — perguntou Thomas Royde.

      — Não.

      Notando uma tristeza oculta em sua voz, continuou:

      — Você gostaria de viajar?

      — Mais do que qualquer outra coisa.

      Ele refletiu sobre o tipo de vida que Mary levava. Sempre a serviço de uma mulher velha. Calma, diplomática, uma excelente administradora. Em seguida, perguntou curioso:

      — Você mora com Lady Tressilian há muito tempo?

      — Há quase quinze anos. Vim para cá logo depois da morte de meu pai, que já estava inválido há alguns anos antes de morrer.

      Depois, respondeu à pergunta que ele estava querendo fazer:

      — Tenho trinta e seis anos. Era isto que você queria saber, não?

      — Eu estava imaginando — ele admitiu. — Você poderia ter qualquer idade, percebe?

      — Este é um comentário que pode ter duplo sentido.

      — É, imagino que sim.

      Seu olhar pensativo e sombrio não se afastava do rosto de Mary. Ela porém não se sentia constrangida, pois havia ele um interesse genuíno e atencioso, despido de crítica. Vendo-o observar seus cabelos, ela passou a mão na mecha branca, e disse:

      — Tenho esta mecha desde muito jovem.

      — Gosto dela — comentou Thomas simplesmente.

      Ele continuou a olhá-la. Finalmente, num tom ligeiramente divertido ela perguntou:

      — Bem, qual é o veredicto?

      Sob o rosto bronzeado, ele corou:

      — Ah! acho que é indelicado ficar lhe encarando. Estava curioso a seu respeito; queria saber como você é realmente.

      — Por favor — ela disse precipitadamente, levantando-se da mesa. Ao entrar na sala de visitas, segurando Audrey pelo braço, falou:

      — O velho Sr. Treves também vem jantar amanhã.

      — Quem é ele? — perguntou Nevile.

      — Ele trouxe uma carta de apresentação de Lorde Rufus. É um senhor encantador. Está hospedado no Balmoral Court. Sofre do coração e tem uma aparência frágil, mas suas faculdades mentais estão perfeitas e ele conheceu muitas pessoas interessantes. Não me lembro se é advogado ou solicitador.

      — Todos aqui são tão velhos! — exclamou Kay descontente.

      Ela estava parada bem debaixo da luz, na mesma direção que Thomas olhava. Olhou-a com o pouco interesse que sempre dava a tudo que estava diretamente diante de seus olhos.

      De repente foi fulminado pela beleza intensa e ardente de Kay. Uma beleza de muito colorido, repleta de vitalidade. Dirigiu então o olhar para Audrey, apagada e sem colorido, com seu vestido prateado.

      Ele sorriu para si mesmo e murmurou:

      — Rosa vermelha e Branca de Neve.

      — O quê? — era Mary Aldin perguntando ao seu lado.

      Ele repetiu as palavras:

      — Como aquele velho conto popular, você sabe...

      Mary disse:

      — É uma ótima comparação...

      O Sr. Treves bebia seu vinho com prazer. O vinho estava ótimo e o jantar muito bem servido. Era evidente que Lady Tressilian não tinha problemas com seus empregados. A casa também era bem administrada, apesar de sua dona ser uma inválida.

      Pena que as senhoras não tenham se retirado da sala de jantar quando o vinho do porto foi servido. Ele preferia o costume antigo, porém os jovens têm hábitos diferentes.

      Seus olhos pousaram pensativos na radiante beleza da jovem mulher: a atual esposa de Nevile Strange.

      Hoje, a noite era de Kay. Sua resplandecente beleza brilhava à luz das velas. Ao seu lado. Ted Latimer com os cabelos escuros e brilhantes bajulava-a, fazendo-a se sentir triunfante e segura de si mesma.

      A simples visão de tamanha e tão radiante vitalidade deixava o Sr. Treves animado.

      Juventude! realmente, nada como a juventude! — pensou.

      Não era de se admirar que o marido tivesse perdido a cabeça e deixado a primeira mulher. Audrey estava sentada perto dele. Uma criatura encantadora e também uma dama. Porém, segundo a experiência do Sr. Treves, ela era o tipo de mulher que é abandonada invariavelmente.

      Ela estava com a cabeça abaixada olhando para o prato. Sua completa imobilidade chamou a atenção do Sr. Treves, que a observou mais atentamente. Ficou imaginando no que ela estaria pensando. Achou encantadora a maneira como o cabelo caía sobre sua pequenina orelha...

      Ao notar que alguma coisa estava acontecendo, o Sr. Treves, com um pequeno sobressalto, voltou a si. Num movimento rápido ficou de pé.

      Na sala de visitas, Kay Strange foi até a vitrola e colocou um disco para se dançar.

      Mary Aldin desculpou-se com o Sr. Treves:

      — Estou certa de que o senhor detesta jazz.

      — De forma alguma — disse ele educadamente, apesar de não estar sendo sincero.

      — Talvez mais tarde possamos jogar bridge — sugeriu ela. — Mas não começaremos uma partida agora, pois sei que Lady Tressilian o aguarda para conversarem.

      — Está bem, com muito prazer! Lady Tressilian nunca desce para jantar?

      — Não. Antes ela costumava descer numa cadeira de rodas. Por isto instalamos um elevador. No entanto, atualmente ela prefere ficar no seu quarto. Lá ela pode receber apenas quem desejar, convocando numa espécie de Comando Real.

      — Muito bem expressado, Srta. Aldin. Estou ciente do toque real nas maneiras de Lady Tressilian.

      No centro da sala, Kay ensaiava uns passos de dança.

      — Tire esta mesa do caminho, Nevile — pediu ela.

      Sua voz era autoritária e segura. Seus olhos brilhavam e sua boca estava entreaberta.

      Obedientemente, Nevile empurrou a mesa. Ela caminhou em sua direção, mas deliberadamente, virou-se para Ted Latimer.

      — Venha, Ted, vamos dançar.

      Ted imediatamente passou o braço em torno dela. Dançavam, movendo-se, balançando, os passos perfeitamente coordenados. Era um lindo espetáculo.

      O Sr. Treves murmurou:

      — Ah! bastante profissional.

      Mary Aldin estremeceu ligeiramente ao ouvir a palavra. Entretanto, o Sr. Treves falara apenas por simples admiração. Olhando para seu rosto sagaz, notou uma expressão distraída, como se ele estivesse perdido em seus próprios pensamentos.

      Nevile hesitou por um momento, indo depois até Audrey que estava parada perto da janela.

      — Quer dançar, Audrey?

      Seu tom era formal, quase frio. Dir-se-ia que seu pedido fora por simples delicadeza. Audrey Strange hesitou um pouco antes de aceitar e dar um passo em direção a ele.

      Mary fez alguns comentários banais, aos quais o Sr. Treves não respondeu. Até então ele não havia mostrado sinais de surdez e sua educação era perfeita. Ela concluiu que ele deveria estar absorto em alguma coisa; e era este o motivo de sua distração. Ela não pôde descobrir se ele observava os casais dançando, ou Thomas Royde parado, sozinho, do outro lado.

      Com um pequeno sobressalto, o Sr. Treves perguntou:

      — Desculpe-me, minha senhora, o que estava falando?

      — Nada. Apenas comentava que não é normal, agora em setembro, termos um tempo tão bom, como estamos tendo.

      — Sim, realmente. No hotel disseram-me que está precisando chover urgentemente.

      — Espero que o senhor esteja bem instalado.

      — Ah, sim! apesar de ter-me aborrecido ao chegar e encontrar...

      O Sr. Treves parou.

      Audrey tinha se soltado dos braços de Nevile. Com um sorriso, ela se desculpou:

      — Está muito quente para dançar.

      E saiu para o terraço.

      — Vá atrás dela, seu tolo — murmurou Mary. Ela pretendia falar baixo, porém foi alto o bastante para o Sr. Treves virar-se e olhá-la surpreso.

      Ela ficou encabulada e riu embaraçada.

      — Estou pensando muito alto — comentou ela triste. — Mas ele me irrita tanto. É tão parado!

      — O Sr. Strange?

      — Oh, não, não o Nevile. Thomas Royde.

      Enquanto Thomas fazia um gesto para sair, Nevile, depois de uma pequena pausa, já havia seguido Audrey.

      Por um momento, o Sr. Treves olhou pensativo para a porta, e depois sua atenção voltou-se para os dançarinos.

      — Um ótimo dançarino, o jovem Sr.... Latimer, é este o seu nome?

      — Sim. Edward Latimer.

      — Ah, Edward Latimer. Um velho amigo da Sra. Strange, não é?

      — Sim.

      — E o que este jovem tão decorativo faz para ganhar a vida?

      — Bem, na verdade, eu não sei.

      — Realmente! — disse o Sr. Treves, conseguindo colocar uma grande dose de compreensão numa palavra tão inofensiva.                                                            

      Mary prosseguiu:

      — Ele está hospedado no Hotel Easterhead Bay.

      — Uma situação muito agradável — comentou o Sr. Treves.

      Depois de um ou dois minutos, ele acrescentou, divagando:

      — Tem um formato de cabeça muito interessante: um curioso ângulo da cabeça ao pescoço, que é disfarçado pelo seu corte de cabelo. Mas é realmente fora do comum.

      Depois de outra pausa, continuou, ainda, a divagar:

      — O último homem que vi, com este formato de cabeça, pegou dez anos de cadeia por uma brutal agressão a um velho joalheiro.

      — Certamente, o senhor não quer dizer!... — exclamou Mary.

      — Não, claro que não — disse o Sr. Treves. — A senhora não compreendeu. Não estou querendo fazer uma comparação injuriosa com um convidado seu. Estava apenas mostrando que um criminoso brutal pode estar escondido por trás de um jovem encantador e atraente. Parece estranho, mas é a pura verdade.

      Ele sorriu amavelmente. Mary disse-lhe:

      — Sabe, Sr. Treves, acho que estou com medo do senhor.

      — Que bobagem, minha senhora.

      — Mas estou. O senhor é um observador muito perspicaz.

      — Meus olhos — explicou o Sr. Treves complacente — continuam perfeitos. — Fez uma pausa e depois prosseguiu: — Se isto é bom ou ruim, no momento não consigo saber.

      — Como poderia ser ruim?

      O Sr. Treves indeciso balançou a cabeça.

      — Às vezes, nos encontramos numa posição de responsabilidade. A atitude certa a se tomar, nem sempre é fácil de se decidir.

      Hurstall entrou, carregando a bandeja de café.

      Depois de servir Mary e o velho advogado, foi até o canto da sala onde estava Thomas Royde. Em seguida, seguindo instruções de Mary, pousou a bandeja na mesa baixa e saiu da sala.

      — Vamos acabar de dançar esta música — falou Kay por cima do ombro de Ted.

      — Vou levar o de Audrey lá fora — disse Mary, saindo pela porta, com a xícara na mão. O Sr. Treves a acompanhou. Quando ela parou na soleira da porta, ele olhou-a por cima do ombro.

      Audrey estava sentada na beira da balaustrada. À luz da lua, sua beleza ganhava vida: uma beleza feita de contornos, e não de colorido. Uma linha perfeita do maxilar à orelha, queixo e boca delicadamente modelados, os ossos da cabeça realmente bonitos e um nariz pequeno e reto. Esta beleza se conservaria até quando Audrey Strange se tornasse uma mulher velha, pois nada tinha a ver com a sua pele, os seus ossos é que eram bonitos. O vestido brilhante que usava acentuava o efeito do luar. Ela estava sentada, parada, enquanto Nevile a olhava.

      Ele se aproximou:

      — Audrey — disse ele —, você...

      Ela mudou de posição, levantou-se repentinamente colocando a mão na orelha:

      — Ah! meu brinco... devo tê-lo deixado cair.

      — Onde? Deixe que eu procuro...

      Ambos se abaixaram, desajeitados e embaraçados, esbarrando um no outro. Audrey recuou, e Nevile exclamou:

      — Espere um minuto... minha abotoadura... prendeu em seu cabelo. Fique parada.

      Ela ficou parada enquanto ele manuseava desastradamente a abotoadura.

      — Oh, você está puxando o meu cabelo! Como você é desajeitado Nevile. Acabe logo com isso.

      — Sinto muito. Sou mesmo desajeitado.

      O luar estava bastante claro para que os dois espectadores vissem o que Audrey não podia ver: o tremor das mãos de Nevile ao tentar soltar os fios do cabelo bonito e acinzentado. Entretanto, Audrey também tremia, como se de repente sentisse frio.

      Mary Aldin assustou-se quando uma voz calma, atrás dela, falou:

      — Com licença... — pediu Thomas Royde se aproximando. — Posso ajudar, Strange?

      Nevile levantou, afastando-se de Audrey.

      — Está tudo bem. Já consegui.

      O rosto de Nevile estava bastante branco.

      — Você está com frio — comentou Thomas com Audrey. — Entre e tome seu café.                    

      Ela voltou com ele, enquanto Nevile virou-se, encaminhando-se para o mar.

      — Trouxe o seu café aqui para fora — disse Mary. — Mas talvez seja melhor você entrar.

      — Sim — respondeu Audrey. — Tem razão. É melhor entrar.

      Todos voltaram para a sala de visitas. Ted e Kay tinham parado de dançar.

      A porta abriu, quando uma mulher magra e alta, vestida de preto, entrou e falou respeitosamente:

      — Minha senhora manda os seus cumprimentos e gostaria de ver o Sr. Treves.

      Lady Tressilian recebeu o Sr. Treves com evidente prazer. Logo depois estavam mergulhados em agradáveis recordações, também lembrando amigos comuns.

      Meia hora depois, ela deu um profundo suspiro de satisfação.

      — Ah! — exclamou — passei bons momentos. Não há nada como ficar a par das novidades e relembrar velhos escândalos.

      — Um pouco de malícia dá certo sabor à vida — concordou o Sr. Treves.

      — A propósito — disse Lady Tressilian —, o que o senhor achou do nosso triângulo amoroso?

      O Sr. Treves ficou discretamente inexpressivo.

      — Hum... que triângulo?

      — Não me diga que não notou? Nevile e suas duas esposas,

      — Ah, isto? A atual Sra. Strange é uma jovem extremamente atraente.

      — Audrey também o é — afirmou Lady Tressilian.

      — Sim, ela tem encanto — o Sr. Treves admitiu.

      — O senhor quer dizer que compreende que um homem possa deixar Audrey, que é uma pessoa de rara qualidade, por...  por uma Kay? — perguntou Lady Tressilian.

      — Perfeitamente. Acontece com freqüência — replicou o Sr. Treves com calma.

      — É revoltante. Se eu fosse homem, logo me cansaria de Kay e desejaria nunca ter feito tamanha besteira!

      — Isto também acontece com freqüência. Estas grandes e súbitas paixões — comentou o Sr. Treves, parecendo impassível e preciso — raramente têm longa duração.

      — E o que costuma acontecer depois? — perguntou ela.

      — Normalmente — explicou o Sr. Treves — eles se ajustam. Muitas vezes há um segundo divórcio. O homem se casa com uma terceira pessoa, alguém de bom gênio.

      — Absurdo! Nevile não é um Mormon, como alguns de seus clientes possam ser.

      — Às vezes, acontece, o antigo casal torna a se unir.

      Lady Tressilian balançou a cabeça.

      — Isto nunca! Audrey é muito orgulhosa.

      — A senhora acha?

      — Tenho certeza. Não balance a cabeça desta forma irônica.

      — Falo por experiência — concluiu o Sr. Treves — que as mulheres têm pouco ou nenhum orgulho em questões de amor. Orgulho é uma palavra muito comum em suas bocas, entretanto não aparece em suas ações.

      — O senhor não entende Audrey. Ela amava profundamente Nevile... Talvez em demasia. Depois que ele a abandonou por aquela moça, apesar de não culpá-lo inteiramente (a moça o perseguia por toda parte, e o senhor sabe como são os homens), ela nunca mais quis vê-lo.

      O Sr. Treves tossiu levemente.

      — Entretanto — disse ele — ela está aqui!

      — Bem — retrucou Lady Tressilian aborrecida —, não digo que compreenda essas idéias modernas. Imagino que Audrey esteja aqui apenas para mostrar que não se importa, e que tudo já passou,

      — Pode ser — duvidou o Sr. Treves, esfregando o queixo.

      — Certamente que para si mesma, ela possa colocar o assunto nestes termos.

      — Quer dizer — falou ela — que o senhor pensa que Audrey ainda continua ansiosa atrás de Nevile e que... ah, não! Não posso acreditar em tal coisa.

      — Mas pode ser — opinou o Sr. Treves.

      — Pois eu não aceito — disse Lady Tressilian. — Não em minha casa.

      — A senhora já está confusa, não está? — perguntou ele astutamente. — Existe tensão. Senti no ambiente.

      — Então o senhor também sentiu? — perguntou ela abruptamente.

      — Sim. E devo confessar que estou intrigado. Os verdadeiros sentimentos do grupo permanecem obscuros. Mas na minha opinião, o pavio  está aceso. A explosão pode vir a qualquer hora.

      — Pare de falar como Guy Fawkes, e diga-me o que fazer — pediu Lady Tressilian.

      O Sr. Treves levantou as mãos.

      — Na verdade, não sei o que sugerir. Tenho certeza de existe um foco. Se pudéssemos isolá-lo... mas há tanta coisa que permanece obscura...

      — Não tenho intenção de pedir à Audrey que se vá embora — disse Lady Tressilian. — Até onde pude observar, ela tem se comportado de maneira correta, numa situação muito difícil. Tem sido educada, mas mantendo distância dele. Considero sua conduta irrepreensível.

      — Sim — concordou ele. — Bastante. Mas, mesmo assim, está tendo um efeito muito marcante sobre o jovem Nevile Strange.

      — Nevile — disse Lady Tressilian — não está se comportando bem. Falarei com ele sobre isso. Porém, não posso nem pensar em mandá-lo embora desta casa. Matthew o considerava praticamente como um filho adotivo.

      — Eu sei.

      Lady Tressilian, suspirando, perguntou em voz baixa:

      — O senhor sabe que Matthew morreu afogado aqui em Gull's Point?

      — Sim, eu soube.

      — Muitas pessoas ficaram surpresas por eu ainda permanecer neste lugar, o que eu considero pura ignorância. Aqui sempre senti Matthew perto de mim. A casa inteira está cheia da presença dele. Sentir-me-ia solitária e estranha em qualquer outro lugar. — Fez uma pausa e prosseguiu: — No começo, tive a esperança de que não demoraria a me juntar a ele, principalmente quando minha saúde começou a fraquejar. Mas parece que sou um destes inválidos perpétuos que não morrem nunca — zangada, deu uma pancada no travesseiro. — É horrível! Sempre desejei que quando chegasse minha hora, fosse tudo rápido. Que encontrasse a morte cara a cara, e que não a sentisse rastejando ao meu lado, gradativamente me forçando a sucumbir de uma humilhação a outra, por força da doença. Aumentando o meu desespero, e minha dependência para com as outras pessoas.

      — Entretanto, tenho certeza de que são pessoas muito devotadas. A senhora tem uma criada fiel, não tem?

      — Barrett? A que acompanhou o senhor até aqui em cima? É o conforto da minha vida. Uma velha severa e briguenta que está comigo há anos.

      — E a senhora tem sorte em ter a Srta. Aldin.

      — O senhor tem razão. Tenho sorte em ter Mary comigo.

      — Ela é sua parenta?

      — É uma prima distante. Uma dessas criaturas altruístas cuja vida é continuamente sacrificada em benefício de outros. Ela tomou conta do pai, um homem inteligente, mas de difícil relacionamento. Quando ele morreu, pedi que ela viesse morar comigo, e abençôo o dia em que veio. O senhor não tem idéia de como são terríveis, na maioria, as damas de companhia. Criaturas enfadonhas e fúteis. Chego a me exasperar com a inatividade delas. São damas de companhia só porque não servem para outra coisa melhor. É maravilhoso poder ter Mary, uma mulher inteligente e culta. Possui realmente um cérebro de primeira classe: um cérebro de homem. Ela leu muito aprofundadamente, não havendo o que não possa discutir. É esperta tanto no ponto de vista doméstico, como no intelectual. Dirige a casa com perfeição, e mantém os empregados contentes. Acaba com todas as discussões e ciúmes. Não sei como ela consegue isso, todavia creio que usa apenas de diplomacia.

      — Mary está com a senhora há muito tempo?

      — Há 12 anos. Não, mais do que isto. Uns treze ou quatorze anos. Uma coisa assim.  Tem sido um grande conforto para mim.

      O Sr. Treves concordou com a cabeça.

      Lady Tressilian, observando-o com as pálpebras semicerradas, perguntou de repente:

      — O que há? O senhor está preocupado com alguma coisa?

      — É algo sem muita importância. Uma bobagem. A senhora é muito observadora — ressaltou o Sr. Treves.

      — Gosto de estudar as pessoas — disse ela. — Sempre sabia o que se passava pela cabeça de Matthew — ela suspirou e recostou-se nos travesseiros. — Agora preciso descansar — era a palavra de uma rainha, embora não houvesse nisso nenhuma descortesia. — Estou muito cansada. Mas foi um grande prazer. Espero que volte logo.

      — Pode estar certa de que voltarei. Só espero não ter falado demais.

      — Não. É o meu cansaço que vem de repente. Antes de sair, toque a campainha para mim, por favor.

      O Sr: Treves puxou energicamente um antiquado cordão com uma enorme borla na ponta.

      — Uma relíquia e tanto — comentou ele.

      — Minha campainha? Não gosto de coisas modernas. Na maior parte do tempo estão quebradas, fazendo as pessoas tocarem inutilmente, por um longo tempo. Esta nunca falha. Toca lá em cima no quarto de Barrett. Já que fica em cima de sua cama, ela nunca demora a responder. Se por acaso demora, eu chamo logo em seguida.

      Ao sair do quarto, o Sr. Treves ouviu a campainha tocar pela segunda vez, ressoando em algum lugar do andar de cima. Olhou e viu os fios estendidos no teto. Barrett, que desceu correndo as escadas, passou por ele indo atender a patroa.

      O Sr. Treves desceu vagarosamente sem se preocupar com o pequeno elevador. Em seu rosto havia uma expressão carrancuda de incerteza.

      Encontrou o grupo todo reunido na sala de visitas, quando Mary Aldin, de pronto, sugeriu que jogassem bridge, o que o Sr. Treves recusou polidamente, alegando que em breve deveria ir embora.

      — Meu hotel é antiquado — disse ele. — Eles não esperam que ninguém fique fora depois de meia-noite.

      — Ainda falta muito para isso. São apenas dez e meia — observou Nevile. — Espero que não tranquem o senhor do lado de fora.

      — Na verdade, acredito que nunca tranquem a porta. Às nove horas ela é fechada, mas basta girar o trinco e entrar. As pessoas aqui são muito displicentes, contudo suponho que tenham motivos para confiar na honestidade do povo local.

      — Certamente.  Aqui, durante o dia, ninguém tranca a porta — comentou Mary. — A nossa fica aberta o dia todo, entretanto é fechada à noite.

      — Que tal é o Hotel Balmoral Court? — perguntou Ted Latimer. — Parece uma estranha monstruosidade vitoriana.

      — Faz jus ao nome — observou o Sr. Treves —, tendo o bom e sólido conforto vitoriano. Boa cama, boa comida, armários espaçosos e banheiros imensos com móveis de mogno.

      — O senhor não comentou que ficara aborrecido com alguma coisa? — perguntou Mary.

      — Sim. Tinha cuidadosamente reservado, por carta, dois aposentos no andar térreo. Como sabe, por ter um coração fraco, as escadas estão proibidas para mim. Quando cheguei fiquei irritado ao saber que não estavam disponíveis. Ao contrário, deram-me dois aposentos, muito agradáveis, devo admitir, no andar de cima. Protestei, mas parece que um antigo hóspede que costuma ir à Escócia em setembro, ficou doente e não pôde desocupar o quarto.

      — A Sra. Lucan, suponho? — perguntou Mary.

      — Acho que é este o nome. Nestas circunstâncias, tive que me acomodar da melhor maneira possível; felizmente há um bom elevador. Assim sendo, na verdade, não há nenhum inconveniente.

      — Ted, por que você não se muda para o Balmoral Court? Ficaria mais accessível — sugeriu Kay.

      — Ah, não creio que se adapte ao meu gosto.

      — Tem razão, Sr. Latimer — disse o Sr. Treves. — Não estaria de acordo com o seu estilo de vida.

      Por algum motivo Ted Latimer corou.

      — Não entendi o que o senhor quis dizer com isso — afirmou ele.

      Mary, percebendo o ambiente constrangedor, fez rapidamente um comentário sobre um caso que saíra no jornal.

      — Li que o homem do caso da mala de Kentish Town foi detido.

      — É o segundo homem que prendem — comentou Nevile. — Espero que desta vez seja o certo.

      — Mesmo que seja, talvez não possam retê-lo — explicou o Sr. Treves.

      — Insuficiência de provas? — perguntou Royde.

      — Sim.

      — Contudo — disse Kay —, suponho que no final sempre se consigam as provas.

      — Nem sempre, Sra. Strange. A senhora ficaria surpresa se soubesse quantos criminosos andam livres por este país, e sem serem molestados.

      — O senhor quer dizer por que nunca foram descobertos, não é?

      — Não é apenas isto. Há um homem, e cito um famoso caso ocorrido há dois anos, que a polícia sabe que matou aquelas duas crianças (sabem sem a menor sombra de dúvida), entretanto, nada pode fazer. Duas pessoas forneceram alibi, e embora fosse falso, não havia como prová-lo. Assim, o assassino continua livre até hoje.

      — Que coisa horrível! — exclamou Mary.

      — Isto vem confirmar o que sempre achei: há ocasiões que é admissível fazer justiça com as próprias mãos — disse Thomas Royde com sua voz calma e pensativa, esvaziando o cachimbo.

      — O que quer dizer, Sr. Royde?

      Thomas começou a encher o cachimbo. Olhava pensativo para as mãos, enquanto falava aos trancos:

      — Suponha que o senhor soubesse de um trabalho sujo, soubesse ainda que o responsável não pode ser acusado perante às leis, e que está imune à punição. Nesse caso, mantendo meu ponto de vista, admito que se faça justiça pelas próprias mãos.

      O Sr. Treves explicou cordialmente:

      — Uma doutrina muito perniciosa. Sr. Royde! Tal atitude não se justificaria.

      — Não vejo o porquê. Estou falando na hipótese de fatos provados.

      — Ainda assim, uma atitude pessoal não seria permitida.

      Thomas sorriu; um sorriso muito gentil.

      — Não concordo — disse ele. — Se o homem merece ter o pescoço torcido, não me incomodaria de tomar o encargo de torcê-lo.

      — E por sua vez, o senhor ficaria sujeito às penalidades da lei.

      — Eu teria que ser cuidadoso, é claro... De fato, acho que teria que usar de muita astúcia... — continuou Thomas sorrindo.

      Com sua voz clara, Audrey falou:

      — Você seria descoberto, Thomas.

      — Para falar a verdade, não creio que o fosse.

      — Houve um caso, certa vez — começou o Sr. Treves, mas parou. Desculpando-se continuou: — Criminologia é uma espécie de hobby para mim.

      — Por favor, continue — disse Kay.

      — Tenho tido uma vasta experiência em casos de crimes. Poucos deles foram realmente interessantes. A maioria dos assassinos é de grande inexpressividade e de pouca visão. Entretanto, poderia contar um caso interessante.

      — Ah, conte — pediu Kay. — Adoro assassinatos.

      O Sr. Treves falava devagar, parecendo escolher as palavras com muito cuidado e ponderação.

      — É o caso de uma criança. Não mencionarei nem a idade, nem o sexo. Os fatos foram os seguintes: duas crianças brincavam de arco e flecha. Uma delas atirou a flecha, que atingindo um ponto vital, causou, assim, a morte da outra. Houve um inquérito, a criança sobrevivente ficou completamente perturbada; o acidente foi lamentado e demonstraram compaixão pelo autor do acontecimento.

      Fez-se uma pausa.

      — Isto é tudo? — perguntou Ted Latimer.

      — Sim, um triste acidente. Mas há outro lado da história: algum tempo antes do ocorrido, um fazendeiro, passando por acaso por um atalho da floresta, viu quando uma criança praticava arco e flecha, numa pequena clareira.

      Fez-se outra pausa para que sentissem o que ele queria dizer.

      — Quer dizer — perguntou Mary Aldin incrédula — que não foi um acidente? Foi intencional?

      — Não sei — disse o Sr. Treves. — Nunca soube. Mas foi declarado, no inquérito, que, por não saberem usar arco e flecha, as crianças atiravam as flechas de uma forma desordenada.

      — E não era verdade?

      — Em relação a uma criança, certamente que não!

      — O que fez o fazendeiro? — perguntou Audrey ansiosa.

      — Não fez nada. Até hoje não sei se ele agiu certo ou pão. Era o futuro de uma criança que estava em jogo. Ele talvez tenha achado que se deveria dar o benefício da dúvida a tal criança.

      — Mas o senhor mesmo nunca teve dúvida do que aconteceu? — falou Audrey.

      O Sr. Treves respondeu sério:

      — Pessoalmente, sou da opinião de que foi um crime muito engenhoso... um crime planejado com antecedência em seus mínimos detalhes.

      — Havia um motivo? — perguntou Ted.

      — Sim, havia um motivo. Implicâncias infantis e palavras más, o bastante para gerar ódio. As crianças odeiam com facilidade...

      — Mas houve premeditação de tudo! — chocou-se Mary.

      O Sr. Treves balançou a cabeça.

      — Sim, a premeditação é que foi um mal. Uma criança, guardando uma intenção assassina no coração, praticando escondida dia após dia, e finalmente a consumação do seu plano: a estranha flechada... a catástrofe... a simulação da dor e do desespero. Foi tudo incrível, tão incrível que provavelmente ninguém acreditaria no tribunal.

      — E o que aconteceu com as crianças? — perguntou Kay curiosa.

      — Creio que seu nome foi trocado — explicou o Sr. — Depois da publicidade do inquérito, isto foi considerado conveniente. Aquela criança é, hoje, uma pessoa adulta, em algum lugar deste mundo. A questão é saber se ela ainda tem um coração assassino... Apesar de já ter-se passado muito tempo, reconheceria o pequeno assassino em qualquer lugar — acrescentou pensativo.

      — Mas isso é impossível — objetou Royde.

      — Não é não. Há uma certa peculiaridade física... Bem, não vou me estender no assunto. Não é um assunto muito agradável. Agora, tenho que ir embora — e levantou-se.

      — O senhor não aceita uma bebida, antes de ir? — perguntou Mary.

      As bebidas estavam numa mesa do outro lado da sala. Thomas Royde, que estava mais perto, aproximou-se e tirou a tampa da garrafa de uísque.

      — Uísque com soda, Sr. Treves? Latimer, e você?

      Nevile disse à ex-esposa em voz baixa:

      — Está uma noite linda. Vamos lá fora um pouco?

      Audrey estava parada perto da porta, olhando o terraço enluarado. Ele passou por ela e já do lado de fora, esperava-a. Ela voltou para a sala, balançando a cabeça e muito nervosa.

      — Não, estou cansada... Eu... eu acho que vou dormir.

      Atravessou a sala e saiu. Kay bocejou.

      — Também estou com sono. E você Mary?

      — Acho que também estou. Boa noite, Sr. Treves. Thomas, cuide bem dele.

      — Boa noite, Srta. Aldin. Boa noite, Sra. Strange.

      — Iremos almoçar com você amanhã, Ted — disse Kay. — Poderemos tomar banho de mar, se o tempo ainda estiver bom.

      —  Certo. Estarei esperando por você. Boa noite, Srta Aldin.

      As duas mulheres deixaram a sala.

      Ted Latimer disse com amabilidade para o Sr. Treves:

      — Vamos pelo mesmo caminho. Porque vou pegar a barca, tenho que passar pelo seu hotel.

      — Obrigado, Sr. Latimer. Ficarei satisfeito com a sua companhia.

      Apesar de ter declarado sua intenção de partir, o Sr. Treves não parecia estar com pressa. Saboreava sua bebida com prazer e calma, e entregava-se à tarefa de extrair de Thomas Royde informações sobre as condições de vida na Malásia.

      Royde era monossilábico em suas respostas. Os mais simples detalhes da vida do dia-a-dia pareciam segredos de estado, pela dificuldade com que eram arrancados. Ele parecia estar perdido em algum pensamento, do qual não era fácil sair para responder a seu interlocutor.

      Ted Latimer estava inquieto. Parecia impaciente, entediado e ansioso para ir embora. De repente, interrompendo a conversa, exclamou:

      — Ia quase me esquecendo! Trouxe os discos que Kay queria. Vou pegá-los lá no hall. Você fala com ela amanhã, Royde?

      O outro concordou com a cabeça. Ted deixou a sala.

      — Este jovem tem uma natureza inquieta — murmurou o Sr. Treves.

      Royde resmungou alguma coisa, sem responder.

      — É amigo da Sra. Strange, não é? — prosseguiu o velho advogado.

      — De Kay Strange — disse Thomas.

      O Sr. Treves sorriu.

      — Sim. Foi isto que quis dizer. Dificilmente seria amigo da...   primeira mulher de Nevile.         

      — Dificilmente — enfatizou Royde. Em seguida, notando o olhar zombeteiro do outro, falou corando um pouco: — O que quis dizer é que...

      — Ah, compreendi muito bem o que quis dizer, Sr. Royde. O senhor é amigo da Sra. Audrey Strange, não é?

      Thomas Royde enchia, vagarosamente, o cachimbo de tabaco. Seus olhos se abaixaram ao ouvir a pergunta. Concordou, ou melhor, murmurou:

      — S... Sim. Mais ou menos. Fomos criados juntos.

      — Ela deve ter sido uma moça muito bonita.

      Thomas Royde murmurou alguma coisa parecida com “hum, hum”.

      — É esquisito ter duas Sras. Strange na mesma casa.

      — Sim... sim, bastante!

      — Uma situação difícil para o Sr. Strange.

      — Extremamente difícil — Thomas corou.

      O Sr. Treves se inclinou. Sua pergunta saiu num rompante:

      — Por que ela veio, Sr. Royde?

      — Bem... acho que... — sua voz estava confusa —, ela... não tinha como recusar.

      — Recusar a quem?

      Royde mexeu-se desajeitadamente.

      — Bem, na verdade, creio que ela sempre vem nesta época do ano, no começo de setembro.

      — E Lady Tressilian convidou Nevile e sua nova esposa para virem na mesma época? — na voz do velho senhor havia uma nota de incredulidade.

      — Quanto a isso, creio que foi o próprio Nevile quem se convidou.

      — Então ele estava ansioso por este...  encontro.

      — Creio que sim — mexendo-se inquieto, Royde respondeu, evitando encará-lo.

      — É estranho! — disse o Sr. Treves.

      — Uma idéia idiota! — exclamou Thomas numa fala mais demorada.

      — Um tanto embaraçoso, eu diria — retrucou o Sr. Treves.

      — Ah, é. Porém, hoje em dia há pessoas que agem dessa maneira.

      — Fico pensando — comentou o Sr. Treves —, se não teria sido idéia de outra pessoa.

      — De quem mais poderia ser? — encarou-o Royde.

      O Sr. Treves suspirou.

      — Há no mundo tantos amigos bem intencionados, sempre ansiosos em resolver os problemas alheios, nem sempre sugerindo o melhor.

      Parou de falar assim que Nevile entrou pela porta do terraço. Neste exato momento, Ted Latimer entrava pela porta que dava para o hall.

      — Olá, Ted, o que você tem aí? — perguntou Nevile.

      — São os discos que Kay pediu para eu trazer.

      — Ah, pediu? Ela não me contou nada.

      Houve um rápido instante de constrangimento entre os dois. No entanto, Nevile se dirigiu à bandeja com as bebidas e se serviu de uísque com soda. Parecia nervoso e infeliz, e respirava ofegante.

      O Sr. Treves já ouvira alguém se referir a Nevile como “aquele sujeito sortudo, o Strange, tem tudo que alguém poderia desejar neste mundo”. Entretanto, neste momento, não parecia nada feliz.

      Thomas, com a volta de Nevile, pareceu achar que suas obrigações como anfitrião haviam terminado. Saiu da sala sem mesmo se despedir. Seu andar estava mais ligeiro que o habitual. Era quase que uma fuga.

      — Foi uma noite muito agradável — afirmou o Sr. Treves gentilmente ao posar o copo. — Muito...  ah...  instrutiva.

      — Instrutiva? — Nevile ergueu ligeiramente as sobrancelhas.

      — Informações sobre a Malásia — lembrou Ted, sorrindo. — Teve um trabalho enorme para arrancar respostas do Thomas Taciturno.

      — É um sujeito singular, este Royde — enfatizou Nevile. — Creio que foi sempre assim. Fumando aquele seu velho e horrível cachimbo, ouvindo a conversa, ocasionalmente dizendo “hum!” e “ah!”, e parecendo inteligente como uma coruja.

      — É bem possível que ele esteja pensando a maior parte do tempo — disse o Sr. Treves. — E agora, preciso mesmo me retirar.

      — Venha visitar Lady Tressilian brevemente — pediu Nevile ao acompanhar os dois homens ao hall. — O senhor a distrai muito. Atualmente tem pouquíssimo contato com o mundo lá fora. Ela é maravilhosa, não é?

      — Sim, realmente. E tem uma conversa muito estimulante.

      O Sr. Treves vestiu cuidadosamente o casaco e o cachecol, e depois de renovadas despedidas, partiu acompanhado por Ted Latimer.

      O Balmoral Court ficava apenas a pouco mais de cem metros de distância, na curva da estrada. Erguia-se majestoso e misterioso, completamente à parte da cidade.

      A barca, para onde Ted ia, ficava a cerca de 200 ou 300 metros adiante, no local onde o rio era mais estreito.

      O Sr. Treves parou à porta do Balmoral Court e estendeu a mão.

      — Boa noite, Sr. Latimer. Vai ficar aqui por muito tempo?

      — Isto depende, Sr. Treves. Ainda não tive tempo para me sentir entediado — Ted sorriu mostrando dentes muito brancos.

      — Estou certo disto. Imagino que, como a maioria dos jovens de hoje, o que você mais receia é o tédio. Entretanto, posso lhe assegurar que existem coisas muito piores.

      — Como o quê, por exemplo?

      A voz de Ted Latimer estava suave e agradável, mas havia nele um significado oculto, algo difícil de se definir.

      — Ah! deixo à sua imaginação, Sr. Latimer. Saiba que eu jamais teria a pretensão de lhe dar conselhos. Conselhos de pessoas antiquadas são sempre tratados com desdém. E talvez tenham razão, quem sabe? Todavia, sujeitos velhos como eu gostam de pensar que a experiência nos ensinou algo, uma vez que observaram muito durante a vida inteira.

      Uma nuvem cobriu a lua; o caminho estava muito escuro. Saindo da escuridão, subindo o monte, a figura de um homem vinha na direção deles.

      Era Thomas Royde.

      — Fui até as barcas para caminhar um pouco — comentou ele indistintamente, porque tinha o cachimbo preso entre os dentes.

      — Esta é a sua taberna? — perguntou ao Sr. Treves. — Parece que o senhor ficou preso do lado de fora.

      — Não creio.

      Virou a grande maçaneta de metal, e a porta se abriu.

      — Levaremos o senhor lá dentro — sugeriu Royde.

      Os três entraram no hall, que estava pouco iluminado com apenas uma lâmpada elétrica. Não havia ninguém, e o odor do jantar, do veludo um tanto empoeirado, do verniz da mobília entrou em suas narinas.

      De repente o Sr. Treves soltou uma exclamação de aborrecimento. À sua frente, na porta do elevador, havia um aviso: “PARADO”.

      — Meu Deus, que chateação! Terei que subir as escadas.

      — Que azar — opinou Royde. — Não tem um elevador de serviço para bagagens e tudo mais?

      — Receio que não. Este é usado para todos os propósitos. Bem, só terei que subir devagar, e isto é tudo. Boa noite.

      Começou a subir vagarosamente as largas escadas. Royde e Latimer se despediram, saindo para a rua escura. Por um momento ficaram calados, quando Royde abruptamente disse:

      — Bem, boa noite.

      — Boa noite. Vejo-o amanhã.

      — Sim.

      Ted Latimer desceu o morro a passos largos, em direção à barca. Thomas ficou parado por uns minutos observando-o. Em seguida, caminhou vagarosamente na direção oposta, se dirigindo para Gull's Point.

      A lua saiu de trás da nuvem e Saltcreek ficou novamente banhada de radiosa luz prateada.

      — Parece até um dia de verão — murmurou Mary Aldin.

      Ela e Audrey estavam sentadas na praia do imponente prédio do Hotel Easterhead Bay. Audrey usava uma roupa de banho branca e parecia uma delicada estatueta de marfim. Mary não tomara banho de mar. Logo adiante, Kay estava deitada de bruços, com seu corpo bronzeado exposto ao sol.

      — Uh! — disse ela sentando. — A água está terrivelmente fria.

      — Bem, estamos em setembro — lembrou Mary.

      — Faz sempre frio na Inglaterra — resmungou Kay descontente. — Como gostaria de estar no Sul da França. Lá sim, faz calor.                                                         

      — Este sol, não é sol de verdade — murmurou Ted Latimer.

      — Não vai entrar n'água, Sr. Latimer? — perguntou Mary..

      Kay riu:

      — Ted nunca entra n'água. Fica apenas tomando sol, que nem um lagarto.

      Esticando o pé, ela o cutucou. Ele levantou-se num pulo.

      — Vamos andar um pouco, Kay. Estou com frio.

      Saíram andando pela praia.

      — Lagarto? Uma comparação infeliz — murmurou Mary Aldin, acompanhando-os com o olhar.

      — É isto que você pensa dele? — perguntou Audrey.

      Mary Aldin franziu as sobrancelhas.

      — Não. Um lagarto sugere alguma coisa domesticável, porém não creio que ele seja manso.

      — Não — disse Audrey pensativa. — Eu também não acho.

      — Formam um lindo par — comentou Mary, enquanto olhava os dois se afastarem. — Parecem combinar, não é?

      — Acho que sim.

      — Gostam das mesmas coisas — continuou Mary. — Têm as mesmas opiniões e falam a mesma língua. Que pena que...

      Ela parou.

      — Que o quê? — indagou Audrey abruptamente.

      — Acho que ia dizer que foi uma pena ela e Nevile terem se conhecido.

      Audrey ficou rígida. O que Mary chamava de “expressão gélica de Audrey” imediatamente surgiu em seu rosto. Mary desculpou-se apressada:

      — Sinto muito Audrey. Eu não deveria ter dito isto.

      — Se não se importa, eu preferiria não falar neste assunto.

      — É claro. Foi estupidez minha. Eu... eu esperava que você já tivesse superado tudo.

      Audrey virou a cabeça devagar, e com o rosto calmo e inexpressivo, afirmou:

      — Posso lhe assegurar que não há nada a superar. Eu... eu não tenho nenhum sentimento a este respeito.  Desejo... desejo de todo o coração, que Kay e Nevile sejam muito felizes juntos.

      — Bem, é muita bondade de sua parte, Audrey.

      — Não é bondade. É... apenas a verdade. E acho perda de tempo relembrar o passado: “é pena que isto aconteceu”. Agora tudo já passou. Por que ficar remoendo? Temos que viver do presente.

      — Acho — comentou Mary — pessoas como Kay e Ted tão excitantes, porque... bem, são tão diferentes de tudo que já conheci.

      — Sim, suponho que sejam.

      — Até você — lembrou Mary com repentina amargura — viveu e teve experiências as quais eu, provavelmente, nunca terei. Sei que você tem sido infeliz, muito infeliz. Todavia, não posso deixar de pensar que- mesmo todos estes fatos são melhores do que nada... o vazio! — pronunciou a última palavra com raiva.

      Audrey olhou-a, um pouco assustada.

      — Nunca imaginei que você se sentisse assim.

      — Nunca? — Mary Aldin riu, se desculpando. — Ah! foi só um acesso de descontentamento, minha querida. Não estava falando sério.

      — Não deve ser muito divertido para você — continuou Audrey — morar aqui com Camilla, apesar dela ser maravilhosa... ler para ela... cuidar dos criados... e nunca ter viajado.

      — Estou bem alimentada e abrigada — ressaltou Mary. — Milhares de mulheres nem isto têm. E na verdade, Audrey, estou bem satisfeita. Tenho — um pequeno sorriso apareceu em seus lábios — minhas distrações secretas.

      — Vícios secretos? — perguntou Audrey também sorrindo.

      — Ah! eu planejo coisas — confessou Mary vagamente. — Na minha mente é lógico. Algumas vezes, gosto de fazer experiências com as pessoas, só para ver se posso fazê-las reagir da maneira que pretendo, ao que digo.

      — Você parece quase sádica, Mary. Como eu a conheço pouco!

      — Ah, é tudo inofensivo. Só uma brincadeira infantil.

      — Você fez a experiência comigo? — perguntou Audrey curiosa.                                                                                    

      — Não. Você é a única pessoa que sempre achei imprevisível. Nunca sei o que está pensando.

      — Talvez — disse Audrey gravemente — eu sinta o mesmo em relação a você.

      Estremeceu, e Mary exclamou:

      — Você está com frio.

      — Sim. Acho que vou me vestir. Afinal de contas é setembro!

      Mary Aldin ficou sozinha, olhando o reflexo na água. O nível d'água estava baixando. Estirou-se na areia, fechando os olhos.

      Todos haviam almoçado bem no hotel, que ainda estava repleto de pessoas dos mais variados tipos, apesar da temporada já ter terminado. Ah, bem, tinha sido um passeio! Algo para quebrar a monotonia do dia-a-dia. E, também, um alívio sair daquele clima de tensão, daquele ambiente sobressaltado que existia ultimamente em Gull's Point. Não tinha sido culpa de Audrey, mas Nevile...

      Seus pensamentos foram interrompidos repentinamente, quando Ted Latimer sentou-se furioso a seu lado.

      — O que houve com Kay? — perguntou Mary.

      — Sua presença foi exigida pelo seu proprietário.

      Alguma coisa, em seu tom de voz, impressionou Mary. Ela olhou para a faixa de areia dourada, por onde Nevile e Kay caminhavam. Em seguida, olhou também para o homem que estava ao seu lado.

      Já havia pensado nele, como uma pessoa aproveitadora, esquisita e até mesmo perigosa. E agora, pela primeira vez, estava tendo a visão de um jovem ferido. Ela pensou:

      “Ele amava Kay, amava realmente, e então Nevile chegou e a carregou”...

      — Espero que esteja se divertindo aqui — disse ela amavelmente.

      Eram palavras convencionais. Mary raramente usava palavras que não fossem as convencionais: era o seu modo de falar. Mas, pela primeira vez, seu tom era o de uma oferta de amizade. Ted Latimer respondeu:

      — Tanto quanto em qualquer outro lugar.

      — Sinto muito.

      — Sente coisa nenhuma! Sou um estranho. E qual é a importância sobre o que um estranho sente ou pensa?

      Ela voltou-se para poder olhar este jovem amargo e bonito, que, no entanto, retribuiu com um olhar desafiante.

      Ela falou devagar, como alguém que faz uma descoberta:

      — Entendo. Você não gosta de nós.

      — Esperava que eu gostasse? — perguntou rindo.

      — Sim, supus que sim. É claro que tomamos muita coisa como certa. Deveríamos ser mais humildes. Na verdade, nunca me ocorreu que você, porventura, pudesse não gostar de nós. Procuramos tratá-lo como um amigo de Kay.

      — Sim... como amigo de Kay!

      Fez o comentário com profundo rancor.

      — Gostaria que dissesse, realmente, por que não lhe agradamos? O que lhe fizemos? O que há de errado conosco? — perguntou Mary, com uma sinceridade desconcertante.

      — São todos afetados! — exclamou Ted Latimer, colocando toda a sua rudeza nesta palavra.

      — Afetados? — perguntou Mary sem raiva, examinando a acusação.

      — Sim — admitiu ela. — Acredito que possamos dar essa impressão.

      — Vocês são assim! Tomam todas as boas coisas da vida como um direito. São felizes e superiores em seu pequeno mundo, isolado e fechado para as pessoas comuns. Gente que nem eu é considerada como um animal estranho!

      — Sinto muito — desculpou-se Mary.

      — Mas é a verdade, não é?

      — Não, não é bem assim. Talvez sejamos pessoas tolas e sem imaginação, mas não somos mal intencionadas. Eu mesma sou convencional, superficial e diria que até um tanto afetada. Contudo, sou bastante humana. Neste momento, sinto muito que você esteja infeliz e gostaria até de poder fazer algo.

      — Bem, se é assim, é muito gentil de sua parte.

      Houve uma pausa, para que em seguida, Mary perguntasse afetuosamente:

      — Você sempre esteve apaixonado por Kay?

      — Sim, sempre.

      — E ela?

      — Pensei que sim. Até o dia em que Nevile apareceu.

      — E você ainda está apaixonado por ela? — perguntou com delicadeza.

      — Acho que isto está evidente, não está?  

      — Não seria melhor para você ir embora daqui? — perguntou ela amável.

      — Por que seria?

      — Porque você está se expondo a maiores tristezas.

      Ele a olhou e riu.

      — Você é uma boa pessoa, mas pouco sabe a respeito dos animais que podem rondar seu pequeno mundo fechado. Num futuro bem próximo, muitas coisas podem acontecer.

      — Que tipo de coisas? — perguntou Mary ansiosa.

      — Espere e verá — disse ele e riu.

      Depois que Audrey trocou de roupa, andando pela praia, foi se encontrar com Thomas Royde. Sentado, fumava seu cachimbo, olhando para o outro lado do rio onde ficava Gull's Point, com toda sua brancura e serenidade.

      Thomas apenas virou a cabeça com a chegada de Audrey. Ela sentou ao seu lado sem nada falar. Permaneceram calados, tornando o silêncio agradável, como o de duas pessoas que se conhecem muito bem.

      — Parece tão perto! — exclamou finalmente Audrey, quebrando o silêncio.

      Thomas olhou para Gull's Point.

      — Poderíamos nadar até lá.

      — Não com esta maré. Camilla tinha uma criada que gostava de nadar, e que costumava ir e voltar, sempre que a maré permitia. O problema é que quando há correnteza, você pode ser puxado para o fundo do rio. Certo dia, foi isto que aconteceu com ela. A sorte é que se salvou, conseguindo chegar em Easter Point, apenas muito exausta.

      — Não há nada avisando que é perigoso.

      — Mas não é deste lado. A corrente é do lado oposto, em frente aos penhascos. No ano passado houve uma tentativa de suicídio: um homem se jogou do Stark Head, ficando preso numa árvore no meio do penhasco, mas os guardas conseguiram salvá-lo.

      — Pobre coitado! — exclamou Thomas. — Aposto que não ficou agradecido. Deve ser revoltante, ser salvo após a difícil decisão de se suicidar. Deve fazer com que o sujeito se sinta um tolo.

      — Talvez agora ele esteja agradecido — sugeriu Audrey sonhadora.

      — Duvido!

      Thomas pitou seu cachimbo. Para olhar Audrey, bastava virar ligeiramente a cabeça. Notou que seu rosto estava sério e absorto enquanto ela olhava a água. Seus longos cílios escuros, a linha pura do rosto, a pequena orelha... Isto o fez lembrar de alguma coisa.

      — Ah!, encontrei o seu brinco, aquele que você perdeu ontem à noite.

      Ele procurou-o no bolso, ao mesmo tempo em que Audrey estendia a mão.

      — Que bom! Onde o achou? No terraço?

      — Não. Estava perto da escada. Você deve tê-lo perdido ao descer para jantar. Notei que no jantar você estava sem ele.

      — Estou contente que o tenha encontrado.

      Enquanto apanhava o brinco, Thomas observava como era grande e pesado para uma orelha tão pequena. Os que ela usava agora também eram grandes.

      — Reparei que você usa brincos mesmo quando vem à praia. Não tem medo de perdê-los? — comentou ele.

      — Não são de valor. Detesto ficar sem eles por causa disto, lembra?

      Quando ela segurou a orelha esquerda, Thomas se lembrou.

      — Sim. Aquela vez que o velho Bouncer lhe mordeu.

      Audrey concordou com a cabeça.

      Ficaram em silêncio, recordando um acontecimento da infância. Audrey Standish (como se chamava naquela época), uma criança de pernas compridas, cuidava da pata do velho Bouncer, quando ele lhe dera uma mordida traiçoeira. Ela tivera que dar uns pontos na orelha, o que atualmente se tornara quase que imperceptível, apenas uma pequena cicatriz.

      — Minha querida — disse ele —, mal se vê a marca. Por que você se importa tanto?

      Audrey fez uma pausa antes de responder com evidente sinceridade:

      — É porque... porque simplesmente não suporto um defeito.

      Thomas balançou a cabeça. Aquilo combinava com a idéia que tinha sobre Audrey e seu instinto de perfeição. E na realidade, ela própria era perfeita.

      — Você é muito mais bonita que Kay — afirmou ele de repente.

      — Ah, não Thomas! Kay... Kay é realmente linda — respondeu Audrey apressada.

      — Apenas por fora.

      — Você está se referindo à minha bela alma? — perguntou Audrey ligeiramente divertida.

      Thomas jogou fora as cinzas do cachimbo.

      — Não — ressaltou ele. — Acho que falava de seus ossos.

      Audrey riu.

      Thomas encheu novamente o cachimbo. Durante uns cinco minutos permaneceram calados. Olhou-a mais uma vez, porém de uma forma tão discreta que ela nem percebeu.

      Finalmente, falou com muita calma:

      — O que há de errado com você, Audrey?

      — Errado? O que quer dizer com isso?

      — Que há algo errado com você.

      — Não há nada errado. Nada mesmo.

      — Há alguma coisa sim.

      Ela balançou a cabeça.

      — Não vai me contar?

      — Não há nada para contar.

      — Creio que estou sendo insistente, mas eu tenho que lhe dizer... — e fez uma pausa. — Audrey, será que não pode esquecer? Tirar tudo de sua cabeça?

      Nervosamente, ela fincou as pequenas mãos na pedra.

      — Você não compreende... não pode compreender.

      — Mas Audrey, minha querida, eu compreendo. É isto que quero lhe dizer. Eu sei de tudo.

      Ela o olhou com o rosto pequeno cheio de dúvida.

      — Sei exatamente tudo o que aconteceu. E... e o que deve ter significado para você.

      Ela ficou pálida, muito pálida.

      — Entendo — disse ela —, no entanto, não pensei que alguém soubesse...

      — Bem, eu sei. Não vou mais tocar no assunto, porém gostaria de que você se convencesse que tudo já passou, que acabou para sempre!

      — Certas coisas nunca passam — afirmou ela com a voz baixa.

      — Olhe aqui, Audrey, de nada adianta ficar pensando e se atormentando. Você já sofreu demais. Não é saudável ficar remoendo um pensamento. Olhe para frente, e nunca para trás. Você ainda é bastante jovem. Tem a maior parte de sua vida para viver. Pense no futuro e não no passado.

      Ela o olhou com os olhos muito abertos, tranqüilos e que ocultavam seus verdadeiros pensamentos.

      — E se eu não puder fazer isto? — perguntou Audrey.

      — Mas é preciso!

      — Pensei que você não compreendesse. Acho... acho que não sou muito normal em... certas coisas.

      Ele a interrompeu bruscamente:

      — Tolice. Você...

      — Eu o quê?

      — Estava pensando em como você era quando menina, antes de se casar com Nevile. Por que se casou com ele?

      Audrey sorriu.

      — Porque me apaixonei.

      — Sim. Sim, eu sei. Mas por que se apaixonou por ele? O que a atraiu tanto?

      Franziu os olhos, tentando ver como se fosse a garota que já não existia.

      — Acho que foi porque ele era tão positivo — ela observou. — Era o meu oposto. Sempre me senti sombria e irreal. Nevile tinha muita vida. Era tão feliz e seguro de si mesmo e tão... tudo o que eu não era; e também muito atraente, — acrescentou com um sorriso.

      Thomas comentou com amargura:

      — Sim, o homem ideal: bom nos esportes, sóbrio, atraente, sempre como um pequeno grande senhor conseguindo tudo que quer.

      Audrey ajeitou-se encarando-o.

      — Você o detesta — ela falou vagarosamente. — Você o detesta muito, não é?

      Ele evitou olhá-la virando o rosto para acender o cachimbo que se apagara.

      — Não seria nada surpreendente, seria? — falou baixinho. — Ele tem tudo que eu não tenho. Pratica esporte, dança, natação, e sabe conversar. E eu sou desajeitado, calado e com um braço aleijado. Ele sempre foi um homem brilhante e bem sucedido, enquanto eu sempre fui um indivíduo bronco. E além do mais, se casou com a única garota de quem gostei.

      Ela soltou um som fraco. Thomas continuou cheio de ódio:

      — Você sempre soube, não é? Sabia que desde que você tinha quinze anos, eu te amava. Sabe que ainda gosto...

      Ela o interrompeu:

      — Não. Atualmente não.

      — O que quer dizer com... atualmente não?

      Audrey levantou-se. Com a voz calma e pensativa, explicou:

      — Porque agora... não sou mais a mesma.

      — Não é mais a mesma como?

      Ele ficou de pé, encarando-a. Audrey, com a voz muito excitada, falou apressada:

      — Se você não sabe, não posso lhe dizer... Eu mesma não tenho certeza. Só sei que...

      Calou. E, virando-se bruscamente, correu pelas pedras na direção do hotel.

      No caminho, encontrou Nevile deitado, olhando atentamente para uma poça d'água. Ele levantou a cabeça e sorriu.

      — Olá Audrey!

      — Olá Nevile!

      — Estou observando um caranguejo. O pobre coitado é terrivelmente ativo. Olhe, aqui está ele.

      Ela se ajoelhou e olhou para onde ele apontava.

      — Está vendo?

      — Sim.

      — Quer um cigarro?

      Ele acendeu o cigarro que ela aceitara. Audrey permaneceu sem olhá-lo, e após algum tempo ele falou nervosamente:

      — Escute Audrey?

      — Sim. O que é?

      — Está tudo bem, não está? Quero dizer... entre nós dois?

      — Sim. Claro que está.

      — Somos amigos, não somos?

      — Sim, é claro que sim.

      — Eu quero... que sejamos amigos.

      Ele a olhou ansioso. Audrey sorriu nervosa.

      — Foi um dia agradável, não foi? Bom tempo e tudo o mais — comentou ele.

      — Ah, sim...  foi.

      — Está bastante quente para setembro, não acha?

      — Sim. Demais.

      Ficaram calados.

      — Audrey..

      Ela se levantou.

      — Sua esposa está acenando para cá.

      — Quem... Kay?

      — Eu disse sua esposa.

      Nevile levantou-se e olhando-a fixamente, falou em voz muito baixa:

      — A minha esposa é você, Audrey...

      Ela se virou e foi embora. Nevile correu pela areia ao encontro de Kay.

      Ao chegarem de volta a Gull's Point, Hurstall dirigiu-se a Mary.

      — A senhorita poderia subir para ver Lady Tressilian? Ela está muito perturbada e gostaria de vê-la assim que chegasse.

      Mary subiu imediatamente, encontrando-a pálida e trêmula.

      — Querida Mary, ainda bem que chegou! Estou tão angustiada! O Sr. Treves está morto.

      — Morto?

      — Sim. Não é terrível? Foi tão repentino. Parece que nem chegou a trocar de roupa. Deve ter tido um colapso assim que chegou ao hotel.

      — Oh, sinto muito!

      — Sabíamos, é claro, que sua saúde estava abalada e seu coração fraco. Espero que, aqui, nada tenha acontecido que pudesse lhe causar uma tensão excessiva. Teve algum prato indigesto no jantar?

      — Creio que não. Aliás, estou certa de que não. Parecia bem disposto e animado.

      — Estou realmente desolada. Gostaria que fosse ao Balmoral Court e pedisse maiores informações à Sra. Rogers. Pergunte-lhe se não há nada que possamos fazer. Por causa de Matthew, gostaria de fazer alguma coisa, quanto ao funeral. Num hotel é tão desagradável.              

      — Querida Camilla, tente não se preocupar. Eu sei que foi um choque muito grande para a senhora — advertiu Mary.

      — Sim. Realmente foi.

      — Irei ao Balmoral Court agora mesmo, e lhe trarei notícias.

      — Obrigada querida Mary. Você é sempre tão prática e compreensiva.

      — Agora procure descansar. Um choque deste tipo não é bom para a senhora.

      Mary Aldin saiu do quarto, desceu as escadas, e ao entrar na sala de visitas, exclamou:

      — O velho Sr. Treves está morto! Morreu ontem à noite, no hotel.

      — Coitado! — exclamou Nevile. — Como aconteceu?

      — Foi o coração. Teve um colapso assim que chegou.

      — Será que a escada o matou? — disse Thomas Royde pensativo.

      — Escada? — Mary olhou-o sem compreender.

      — Sim.  Quando Latimer e eu o deixamos, ele estava começando a subir as escadas. Recomendamos que subisse devagar.

      — Mas que estupidez não tomar o elevador! — exclamou Mary.

      — Estava quebrado.

      — Ah, entendo. Que falta de sorte! Pobre velho. Agora, vou até o hotel, pois Camilla quer saber se podemos fazer alguma coisa.

      — Irei com você — disse Thomas.

      Caminhando juntos até o Balmoral Court, Mary comentou:

      — Será que ele tem algum parente que deva ser notificado?

      — Ele não falou de ninguém.

      — É, e normalmente as pessoas costumam mencionar. Dizem “minha sobrinha” ou “meu primo”.

      — Ele era casado?

      — Creio que não.

      Entraram no Balmoral Court. A Sra. Rogers, a proprietária, estava falando com um homem alto de meia-idade, que cumprimentou Mary cordialmente.

      — Boa tarde, Srta. Aldin.

      — Boa tarde, Dr. Lazenby. Este é o Sr. Royde. Viemos trazer um recado: Lady Tressilian se oferece para ajudar no que for preciso.

      — É muita gentileza de sua parte, Srta. Aldin — comentou a proprietária do hotel. — Venha para a sala, por favor.

      Todos entraram na pequena e confortável sala, quando o Dr. Lazenby perguntou:

      — O Sr. Treves jantou ontem em sua casa, não foi?

      — Sim.

      — E como estava ele? Mostrava algum sinal de esgotamento?

      — Não. Parecia bem disposto e alegre.

      O médico balançou a cabeça.

      — Isto é o pior de tudo nessas doenças cardíacas. A morte  vem quase sempre repentinamente. Li sua prescrição médica, e ficou bem evidente que se encontrava em precário estado de saúde. É claro que me comunicarei com seu médico em Londres.

      — Ele sempre se cuidava muito — afirmou a Sra. Rogers. — E posso lhe assegurar que aqui o tratávamos da melhor maneira possível.

      — Estou certo disto, Sra. Rogers — afirmou o médico com delicadeza. — Não há dúvida que sua morte foi causada apenas por algum pequeno esforço a mais do que devia ter feito.

      — Como subir escadas — sugeriu Mary.

      — Sim, isto talvez fosse o suficiente. Na verdade, é quase certo que seria, isto é, se por ventura ele subisse os três lances da escada. Entretanto, não creio que o tenha feito.

      — Nunca — espantou-se a Sra. Rogers. — Ele sempre usava o elevador. Era muito cauteloso.

      — Quero dizer que... estando o elevador quebrado ontem à noite... — disse Mary.

      A Sra. Rogers olhou-a surpresa.

      — Mas, ontem,  o elevador não estava quebrado, Srta. Aldin.

      Thomas Royde tossiu.

      — Desculpe-me —  interrompeu ele —  mas  ontem  à noite acompanhei o  Sr. Treves até aqui, e havia um aviso no elevador escrito “PARADO”.

      A Sra. Rogers olhou-o atônita.

      — Bem, isto é muito estranho! Afirmei que nada havia de errado com o elevador, e estou certa disto; caso contrário eu teria sabido. Não temos tido problemas com o elevador (bateu na  madeira)  há mais de oito meses. Pode acreditar!

      — Talvez — sugeriu o médico — algum porteiro ou cabineiro tenha colocado o aviso, enquanto estava de folga.

      — É um elevador automático. Não precisa de ninguém para manejá-lo.

      — Sim, é mesmo! Já estava me esquecendo.

      — Falarei com Joe — disse a Sra. Rogers. Saiu apressada da sala chamando-o: — Joe, Joe.

      O Dr. Lazenby olhou curioso para Thomas.

      — Perdoe-me, o senhor tem certeza, Sr.... er...

      — Royde — interveio Mary.

      — Absoluta! — assegurou Thomas.

      A Sra. Rogers voltou acompanhada do porteiro. Joe foi enérgico ao declarar que, na noite anterior, nada havia de errado com o elevador. O tal aviso realmente existia, mas estava guardado na escrivaninha e não era usado há mais de um ano.

      Todos se olharam e concordaram que era tudo muito misterioso. O médico sugeriu a hipótese de ter sido uma peça pregada por algum hóspede do hotel.

      Em resposta às perguntas de Mary, o Dr. Lazenby explicou que o motorista do Sr. Treves havia fornecido o endereço do seu advogado, com quem ele iria se comunicar imediatamente, procurando Lady Tressilian para dizer-lhe como seria o funeral, logo em seguida.

      Com pressa, o ativo e alegre médico despediu-se. Mary e Thomas voltaram lentamente a Gull's Point.

      — Você tem certeza de que viu aquele aviso, Thomas? — perguntou Mary.

      — Tanto eu como Latimer o vimos.

      — Que coisa mais estranha! — exclamou Mary.

      Era 12 de setembro.

      — Faltam apenas mais dois dias — disse Mary Aldin e mordeu o lábio, enrubescendo.

      Thomas olhou-a pensativo.

      — É assim que se sente a esse respeito?

      — Não sei o que está acontecendo comigo — explicou ela. — Em toda a minha vida, nunca fiquei tão ansiosa para que uma visita terminasse logo. Normalmente gostamos muito de receber Nevile aqui. E também a Audrey.

      Thomas balançou a cabeça.

      — Mas desta vez — prosseguiu Mary — sinto-me como se estivesse sentada em dinamite que poderá explodir a qualquer hora. Por isso, a primeira coisa em que pensei esta manhã é que faltam apenas mais dois dias. Audrey irá embora na quarta-feira, e Nevile e Kay na quinta.

      — E eu irei na sexta-feira — disse Thomas.

      — Ora, não o estou incluindo nisto. Você tem sido um forte apoio para mim. Não sei o que teria feito sem você.

      — Uma espécie de pára-choque humano?

      — Muito mais do que isto. Você tem sido tão paciente e tão... tão amável. Sei que estou parecendo ridícula, contudo é realmente isto que quero dizer.

      Thomas parecia satisfeito, apesar de ligeiramente embaraçado.

      — Não sei por que temos estado tão sobressaltados — comentou Mary pensativa. — Afinal de contas, se houvesse uma... uma explosão de sentimentos, seria desagradável e constrangedor. No  entanto, nada mais além disto.

      — Mas creio que você sente que ainda há alguma coisa por trás disso tudo.

      — Sim, uma sensação de apreensão. E até os empregados sentem. Esta manhã, a copeira irrompeu em lágrimas e pediu demissão sem nenhum motivo. A cozinheira anda irritada, Hurstall tremendamente agitado e até Barrett, que habitualmente é calma e segura, tem mostrado sinais de nervosismo. E tudo porque Nevile teve a ridícula idéia de querer que suas duas esposas se tornassem amigas, para poder assim aliviar a sua consciência.

      — O que foi um fracasso total — concluiu Thomas.

      — Sim, realmente. Kay está começando a perder o controle. E eu não posso deixar de sentir pena dela. Você notou a maneira com que Nevile olhou para Audrey enquanto ela subia as escadas ontem à noite? Ele ainda gosta dela, Thomas. Foi tudo um terrível engano.

      Thomas começou a encher o cachimbo.

      — Ele deveria ter pensado nisto antes.

      — Eu sei que isto seria o certo, embora não altere o fato de que tudo continue sendo uma tragédia. Sinto pena de Nevile.

      — Pessoas como Nevile... — Thomas começou a falar.

      — Sim?

      — Pessoas como Nevile acham que podem ter tudo o que querem. Acho que até se deparar com  este  problema com Audrey, nunca tenha tido uma contrariedade na vida. Bem, agora ele levou a pior, não podendo ficar com Audrey. Ela está fora de seu alcance, e nada vai adiantar agir desta forma absurda. Terá  que suportar a derrota!

      — Imagino que você tenha razão, entretanto acho que está sendo muito severo. Andrey estava apaixonada por Nevile quando se casaram, e sempre se deram muito bem.

      — Mas atualmente ela  não o ama.

      — Duvido muito — murmurou Mary baixinho.

      Thomas prosseguiu:

      — E lhe digo mais; é melhor Nevile tomar cuidado com Kay, pois é do tipo de moça perigosa, realmente muito perigosa. Se perder a calma, nada a deterá.

      — Meu Deus! — Mary suspirou repetindo sua observação inicial. — Bem, faltam apenas mais dois dias.

      Os últimos dias tinham sido difíceis. A morte do Sr. Treves causara um choque prejudicial à saúde de Lady Tressilian. O funeral, que tivera lugar em Londres, agradou Mary, pois faria Lady Tressilian esquecer mais depressa. Os empregados haviam estado nervosos e difíceis, e esta manhã Mary sentia-se cansada e deprimida.

      — Em parte é culpa do tempo — disse Mary em voz alta. — Não está muito normal.

      Realmente para o mês de setembro estava um calor fora do comum. Em certos dias, o termômetro chegara a marcar 40° à sombra.

      Nevile aproximou-se no momento em  que Mary falava.

      — Culpando o tempo? — perguntou ele olhando o céu. — É mesmo incrível. Hoje está mais quente que nunca e não há vento. Deixa qualquer um nervoso, contudo creio que vai chover a qualquer momento, uma vez que está quente  demais.

      Thomas Royde, que se afastara com o seu andar calmo e incerto, desapareceu por trás da casa.

      — A retirada do melancólico Thomas! — comentou Nevile. — Não se pode dizer que lhe  agrade  a minha companhia.

      — Ele é um amor de pessoa — disse ela.

      — Eu discordo. É o tipo de sujeito tacanho e cheio de preconceitos.

      — Você acha isso porque sabe que ele desejou casar-se com Audrey, até que você apareceu e afastou-a dele.

      — Ele levaria uns sete anos para se decidir a pedi-la em casamento. Será que ele queria que Audrey o esperasse até a morte?

      — Agora talvez dê tudo certo — falou Mary deliberadamente.

      Nevile olhou-a, levantando a sobrancelha.

      — A recompensa do  verdadeiro amor é isso? Audrey casar-se com aquele bolha? Ela é muito boa para isto. Não, não vejo Audrey casada com o melancólico Thomas.

      — Acho que ela gosta muito dele, Nevile — afirmou Mary.

      — Vocês mulheres são sempre umas casamenteiras! Por que não deixam Audrey aproveitar um pouco sua liberdade?

      — Certamente. Mas será que está aproveitando?

      — Você acha que ela não é feliz? — perguntou Nevile apressado.

      — Não tenho  a menor idéia.

      — Nem eu — disse Nevile devagar. — Nunca se sabe o que Audrey está sentindo. — Ele fez uma pausa e depois acrescentou: — Na verdade, ela é perfeita! Tem classe... é correta...

      Continuando,  falou   mais  para si  mesmo  do  que para Mary:

      — Deus! Como tenho sido um completo idiota!

      Mary entrou em casa um pouco preocupada. Pela terceira vez, repetiu as palavras que a confortavam:

      — Apenas mais dois dias.

      Nevile perambulou irrequieto pelo jardim e terraço.

      Encontrou Audrey no fundo do jardim, sentada num muro, olhando para a água. A maré estava alta e o rio cheio.

      Ela levantou-se imediatamente vindo em sua direção.

      — Já ia voltar para casa, pois deve estar na hora do chá — falou nervosa e depressa, sem olhá-lo.

      Calado, ele caminhou a seu lado. Somente quando chegaram ao terraço é que ele perguntou:

      — Posso falar com você, Audrey?

      — Acho melhor não — respondeu apressada, apertando com força a beira da balaustrada.

      — Isto  significa que você sabe o que tenho para lhe dizer.

      Ela não respondeu.

      — O que me diz, Audrey? Não podemos voltar ao que éramos? Esquecer tudo o que aconteceu?

      — Inclusive Kay?

      — Kay será sensata — afirmou ele.

      — O que quer dizer com sensata?

      — Simplesmente isto. Direi a verdade a Kay, e contarei com a sua generosidade. Direi que você é a única mulher a quem amei.

      — Você amava Kay quando se casou com ela.

      — Meu casamento com Kay foi o maior erro de minha vida. Eu...

      Ele parou. Kay caminhava em sua direção, e havia tamanha fúria em seus olhos que Nevile se assustou um pouco.

      — Sinto interromper esta cena tocante — ironizou ela. — Mas acho que já está na hora.

      Audrey levantou-se. Seu rosto e a sua voz estavam totalmente sem expressão.

      — Deixarei vocês sozinhos — falou se afastando.

      — Pode ir. Você já causou todo dano que queria, não é? Mais tarde cuido de você. Agora prefiro me entender com Nevile.

      — Olhe aqui, Kay, Audrey nada  tem a ver com isto. Não é culpa dela. Pode me culpar, se quiser.

      — E é o que vou fazer — respondeu Kay, com os olhos brilhando de raiva. — Que tipo de homem você é?

      — Um pobre coitado — falou com amargura.

      — Você deixa sua mulher, vem correndo atrás de mim como um obstinado e pede o divórcio. Num minuto está louco por mim e no outro já está cansado! Suponho que agora queira voltar para aquela choramingona, pálida, gata traidora...

      — Pare com isto, Kay!

      — Bem, o que você quer afinal?

      Nevile estava muito pálido.

      — Pode me chamar do  que você quiser, mas de nada vai adiantar Kay. Não posso continuar com essa situação. Acho que sempre estive apaixonado por Audrey, e além do  mais, meu amor por você foi uma espécie de loucura. Só sei que agora não conseguiria lhe fazer feliz por muito tempo. Acredite Kay, é melhor nos separarmos como amigos. Procure ser compreensiva.

      — O que exatamente você está sugerindo? — perguntou Kay decepcionada.

      Nevile não a encarou. Havia teimosia em seu rosto.

      — Que nos divorciemos. Você pode alegar abandono de lar.

      — Você terá que esperar algum tempo por isto.

      — Não faz mal... eu espero — afirmou Nevile.

      — E depois de três anos ou mais, você pedirá a querida e doce Audrey que se case novamente com você.

      — Se ela aceitar...

      — É claro que aceitará! — afirmou Kay maldosamente. — E como eu fico nesta história toda?

      — Você ficará livre para encontrar um homem melhor do  que eu. Naturalmente tratarei que fique bem financeiramente...

      — Chega de conversa! — gritou ela se descontrolando. — Escute aqui, Nevile, você não pode fazer isto comigo. Não lhe darei o divórcio. Casei com você porque realmente o amava. Depois que lhe contei que o segui até o Estoril, é que você começou a ficar contra mim. Você preferiria acreditar que tudo não passava da obra do destino. Ao saber que fui eu e não o destino, a sua vaidade ficou abalada. Mas não estou envergonhada do que fiz! Você se apaixonou e se casou comigo, logo não vou deixar que volte para aquela gata dissimulada que o fisgou novamente. Eu juro que ela não vai conseguir o que quer! Antes disto mato você! Entendeu? Mato você e ela. Mato os dois. Eu...

      Nevile segurou-lhe o braço, dizendo:

      — Pelo amor de Deus, Kay. Cale  a boca. Não vê que você não pode fazer este tipo de cena aqui?

      — Não posso? Você verá. Eu...

      Hurstall aproximou-se. Seu rosto estava impassível.

      — O chá já está servido — anunciou ele.

      Kay e Nevile se encaminharam lentamente para a sala de visitas.

      Hurstall saiu do caminho, para deixá-los passar.

      No céu, nuvens se agrupavam.

      A chuva começou a cair às 7 horas enquanto Nevile olhava pela janela de seu quarto. Ele e Kay não haviam conversado mais, evitando-se depois do chá.

      Naquela noite, o jantar fora formal e penoso. Nevile estivera totalmente absorto em seus pensamentos; Kay se maquilara muito mais do que habitualmente; Audrey parecia um fantasma congelado; Mary Aldin, fazendo o possível para manter uma conversação, ficara um pouco aborrecida com Thomas Royde por ele não ter contracenado melhor com ela.

      Hurstall estava muito nervoso e suas mãos tremiam ao servir a salada.

      Quando a refeição estava quase por acabar, Nevile falou com estudada  casualidade:

      — Acho que depois do jantar irei ao Easterhead visitar Latimer. Lá poderemos jogar bilhar.

      — Leve a chave para o caso de voltar tarde — ofereceu Mary.

      — Obrigado. Levarei.

      Foram para a sala de estar, onde o café foi servido. Ligaram o rádio, o que fez com que as notícias servissem para distrair o ambiente.

      Kay, que estivera bocejando ostensivamente desde o jantar, declarou que estava com dor de cabeça e que ia dormir.

      — Já tomou aspirina? — indagou Mary.

      — Sim, obrigada — respondeu ela, saindo da sala.

      Nevile mudou para um programa  musical. Sentado no sofá, todo encolhido como um garoto infeliz, permaneceu calado por muito tempo, não olhando nem uma vez para Audrey. Apesar de ser contra sua vontade, Mary sentiu muita pena dele.

      — Bem, é melhor eu ir agora — disse finalmente, levantando-se.

      — Você vai de carro ou de barca?

      — De barca. Não tem sentido dirigir 80 quilômetros. E depois, será  bom andar um pouco.

      — Sabe que está chovendo?

      — Sei. Vou levar a capa. Boa noite.

      No hall, Hurstall aproximou-se:

      — Por favor, senhor. Lady Tressilian o chama. Gostaria de vê-lo imediatamente.

      Nevile olhou o relógio. Eram quase 10 horas. Encolheu os ombros, e indo até o quarto de Lady Tressilian, bateu à porta. Enquanto esperava ordem para entrar, ouvia os demais se despedindo lá embaixo. Parecia que hoje todos iam dormir cedo.

      — Entre — ordenou Lady Tressilian com sua voz clara.

      Nevile entrou, fechando a porta atrás de si.

      Ela estava preparada para dormir. Todas as lâmpadas estavam apagadas, exceto a da mesa de cabeceira. Tinha posto de lado o livro que lia. Olhou para Nevile por cima dos óculos, e foi de certa forma, um olhar terrível.

      — Quero falar-lhe, Nevile.

      Apesar de tudo, ele sorriu timidamente, e brincou:

      — Sim, senhora  diretora.

      Lady Tressilian não retribuiu o sorriso.

      — Há certas coisas que não permitirei em minha casa. Não tenho nenhuma intenção de ouvir as conversas particulares dos outros, mas desde que você e sua mulher resolveram gritar um com o outro bem debaixo da janela do meu quarto, dificilmente poderia deixar de ouvi-los. E pelo que entendi... você estava esboçando um plano, no qual Kay lhe daria o divórcio, e no tempo devido você se casaria outra vez com Audrey. Você não pode fazer isto. E não quero mais nem ouvir, nem saber que você ainda pensa nisso.

      Nevile parecia estar se esforçando enormemente para se controlar.

      — Peço desculpas pela cena, mas quanto ao resto, garanto que é problema unicamente meu!

      — Não. Não é. Você usou a minha casa para se encontrar com Audrey, ou então foi ela quem usou...

      — Ela não fez nada disto. Ela...

      Lady Tressilian levantou a mão, fazendo-o calar.

      — De qualquer maneira, você não pode fazer o que está pretendendo. Kay é sua esposa e tem certos direitos que você não pode lhe negar. Aliás,  estou inteiramente do lado de Kay. Você tem que arcar com as conseqüências de todos os seus atos. Seu dever agora é com Kay e estou lhe dizendo claramente que...

      Nevile deu um passo à frente. Elevou a voz:

      — Este assunto não lhe diz respeito.

      — E tem mais — continuou ela apesar de seu protesto. — Audrey deixará esta casa amanhã.

      — Não pode fazer isto! Não permitirei.

      — Não grite comigo, Nevile.

      — Digo-lhe que não vou permitir...

      Em algum lugar do corredor, uma porta se fechou...

      Alice Bentham, a empregada de olhar apatetado, aproximou-se meio perturbada da Sra. Spicer,  a cozinheira.

      — Não sei o que fazer, Sra. Spicer.

      — O que há Alice?

      — É a  Srta. Barrett. Levei-lhe um xícara  de chá há mais de uma hora. Porque ela  estava dormindo profundamente, eu não quis acordá-la. Há cinco minutos, voltei novamente a seu quarto porque o chá de Lady Tressilian já estava pronto para ser levado, e ela ainda não tinha descido. Continua dormindo e não consigo  acordá-la.

      — Já tentou sacudi-la?

      — Sim, Sra. Spicer. Sacudi a sua mão com força, mas ela continua deitada com uma cor horrível.

      — Meu Deus! Ela não está morta,  está?

      — Oh, não! Posso ouvi-la respirar, apesar de ser uma respiração esquisita. Acho que está doente, ou qualquer coisa assim.

      — Bem, irei vê-la. Agora leve o chá de Lady Tressilian. É melhor prepará-lo de novo. Ela deve estar preocupada sem saber o que aconteceu.

      Enquanto a Sra. Spicer se dirigia para o segundo andar, Alice cumpria obedientemente  as ordens.

      Carregando a bandeja, Alice bateu na porta do quarto de Lady Tressilian. Depois de bater duas vezes sem conseguir resposta, resolveu entrar assim mesmo. Um segundo depois, ouviam-se o barulho de louça quebrada e vários gritos estridentes. Alice desceu correndo as escadas, quando encontrou Hurstall que se encaminhava para a sala de jantar.

      — Sr. Hurstall, entraram ladrões e Lady Tressilian está morta, assassinada, com um grande buraco na cabeça e há sangue espalhado por todo lugar...

 

Um toque de mestre

      O Superintendente Battle havia aproveitado bem suas férias. Ainda faltavam três dias para terminarem, entretanto a mudança de tempo e a chuva faziam-no ficar um pouco desapontado. Mas o que se poderia esperar na Inglaterra? Felizmente até agora, ele tinha tido muita sorte.

      Estava tomando café com o Inspetor James Leach, seu sobrinho, quando o telefone tocou.

      — Irei imediatamente — Jim desligou.

      — Algum problema? — perguntou Battle, notando a expressão do rosto do sobrinho.

      — Um caso de assassinato. Lady Tressilian, uma velha senhora inválida, muito conhecida aqui. É dona daquela casa, em Saltcreek, que fica em cima do penhasco.

      Battle balançou a cabeça.

      — Vou me encontrar com o velho (era assim, desrespeitosamente, que Leach se referia ao chefe de polícia). Ele era amigo dela.  Vamos juntos ao local do crime.

      Quando chegou perto da porta, pediu:

      — O senhor vai me ajudar nisto, não vai tio? É o meu primeiro caso de assassinato.

      — Enquanto estiver aqui, eu lhe ajudo. Foi um caso de furto e arrombamento?

      — Ainda não sei.

      Meia hora depois, o Major Robert Mitchell, Chefe de Polícia, falava com seriedade com o tio e o sobrinho.

      — Ainda é cedo para afirmar, mas uma coisa é certa: não foi trabalho de estranhos. Nada foi roubado nem há sinais de arrombamento. Pela manhã todas as janelas e portas foram encontradas fechadas.

      Ele olhou diretamente para Battle.

      — Será que se eu pedisse à Scotland Yard, eles o colocariam no caso? O senhor já está aqui, e além do mais ainda existe o seu parentesco com Leach. Bem, só se o senhor estiver disposto, pois isto significa cortar o final de suas férias.

      — Isso não é problema — afirmou Battle. — Quanto ao mais, terá que ser  levado ao conhecimento do Sr. Edgar (Edgar Cotton era o Assistente do Comissário), mas creio que ele seja seu amigo, não?

      Mitchell concordou com a cabeça.

      — Sim, acho que posso me entender com Edgar. Então está resolvido! Vou tratar disso agora mesmo.

      — Ligue-me com a Yard — falou ele ao telefone.

      — O senhor acha que vai ser um caso importante? — indagou Battle.

      — Vai ser um caso onde não poderá haver a possibilidade  de um engano. É preciso estar absolutamente certo quanto ao nosso homem ou a nossa mulher.

      Battle compreendeu claramente, que por trás daquelas palavras havia algo.

      Ele pensa que sabe quem é o assassino — disse para si mesmo. — Apesar de não gostar de fazer prognósticos. É alguém conhecido e popular ou não me chamo Battle!

      Battle e Leach estavam parados à porta do quarto bem mobiliado e, por sinal, muito bonito. No chão, em frente a eles, o oficial de polícia examinava cuidadosamente as impressões digitais que ficaram no cabo do taco de golfe... um pesado taco de golfe. A parte superior do taco estava cheia de sangue, tendo um ou dois fios de cabelo branco presos a ele.

      Ao lado da cama, o Dr. Lazenby, o cirurgião da polícia local, estava debruçado sobre o corpo de Lady Tressilian.

      Soltando um suspiro, ele se levantou.

      — Foi um golpe direto. Ela foi atingida de frente, com uma força incrível. A primeira pancada, e que foi a fatal, esmagou o seu osso, mas por via das dúvidas o assassino golpeou-a uma segunda vez para ter plena certeza de que ela estaria morta. Não usarei termos complicados, e sim uma linguagem prática  e de bom senso.

      — Há quanto tempo ela está morta? — perguntou Leach.

      — Eu diria... que deve ter sido entre as 10 horas e a meia-noite.

      — Não poderia nos dar uma hora mais exata?

      — Não. Há vários fatores a serem levados em consideração. Hoje em dia não condenamos ninguém baseados apenas em rigor mortis. Não foi nem antes das dez, nem depois da meia-noite.

      — Ela foi atingida com este taco?

      O médico olhou.

      — Provavelmente! A sorte é que o assassino o esqueceu aqui. Porque pelo tipo de ferimento eu não poderia nunca chegar à conclusão do que teria sido usado como arma. Da forma como aconteceu, não foi a parte pontiaguda que atingiu a cabeça e sim o seu ângulo posterior.

      — Isto não seria difícil de acontecer? — indagou Leach.

      — Sim, se tivesse sido proposital — concordou o médico — mas suponho que tenha acontecido assim, por mera casualidade.

      Leach levantou as mãos, tentando reconstruir o golpe.

      — Estranho — comentou ele.

      — Sim, é tudo muito estranho — disse o médico pensativo. — Ela recebeu o golpe no lado  direito da cabeça. Mas seja lá quem o deu, deve ter ficado do lado direito da cama, exatamente em frente  à cabeceira, porque,  por ser o ângulo entre a parede e a cama muito pequeno, não há espaço à esquerda.

      Leach aguçou os ouvidos.

      — Seria canhoto? — perguntou ele.

      — Eu não me arriscaria em afirmar isto — disse Lazenby. — Há sempre muitos  imprevistos. É  muito fácil a explicação de que o assassino seja canhoto. No entanto, existem vários outros fatos  a  se  considerar: suponhamos, por exemplo, que a velha senhora tenha virado a cabeça ligeiramente para a esquerda na hora em que foi atingida; ou então que o criminoso tenha afastado a cama e ficado à sua esquerda, trazendo-a depois para sua posição anterior.

      — Esta última hipótese não é muito provável.

      — Talvez não. Mas poderia ter acontecido. Tenho alguma experiência neste assunto e posso lhe dizer que concluir que o golpe tenha sido dado por um canhoto pode ser muito perigoso.

      O sargento-detetive Jones observou:

      — Este é um taco destro de golfe.

      Leach concordou com a cabeça.

      — Contudo, poderia não pertencer ao homem que o usou.  Foi um homem não foi, doutor?

      — Não necessariamente. Se a arma do crime foi mesmo o taco, o assassino bem poderia ter sido uma mulher.

      — Mas o senhor não pode afirmar que foi esta a arma, pode? — inquiriu Battle calmamente.

      Lazenby olhou-o  interessado.

      — Não. Posso apenas dizer que a arma poderia ter sido o taco, e que provavelmente o tenha sido. Mandarei analisar o sangue para ver se é do mesmo tipo sangüíneo... e também os fios de cabelo.

      — Sim, é sempre bom reunir todas as provas.

      — O senhor também tem suas dúvidas em relação ao taco de golfe? — perguntou Lazenby curioso.

      — Não, não. Sou apenas um homem simples que gosta de acreditar no que vê. Ela foi atingida com alguma coisa pesada... e isto é pesado. O sangue e cabelo nele fazem-nos presumir que sejam da vítima. Portanto... esta deve ter sido a arma usada.

      — Ela estava acordada ou dormindo quando foi golpeada? — indagou  Leach.

      — Na minha opinião estava acordada, pela expressão de espanto que há em seu rosto. Acredito que ela não esperasse o que iria acontecer. Não há sinal nenhum de qualquer tentativa de luta... nem de horror ou medo em seu rosto. Direi sem compromisso que, ou ela tinha acabado de acordar e ainda meio confusa não entendeu o que acontecia, ou então que reconheceu, em seu assaltante, alguém que seria impossível lhe desejar algum mal.

      — A única lâmpada acesa era a da mesa de cabeceira — comentou Leach pensativo.

      — Sim, isto nos dá duas alternativas. Poderia tê-la ligado ao  acordar, repentinamente, com alguém entrando em seu quarto, ou então poderia já estar ligada.

      O sargento-detetive, levantando-se do chão, falou sorrindo:

      — Lindas impressões digitais. Perfeitamente nítidas.

      — Isto deve simplificar as coisas — disse Leach dando um profundo suspiro.

      — Sujeito amável o criminoso. Deixou a arma... deixou as impressões digitais... é de se admirar que também não tenha deixado seu cartão de visita! — comentou o Dr. Lazenby.

      — Pode ter perdido a cabeça. Às vezes isso acontece — observou o Superintendente Battle.

      —  É verdade — concordou o médico. — Agora devo ir cuidar de minha paciente.

      — Que paciente? — Battle parecia interessado.

      — Antes do crime ser descoberto, fui chamado pelo mordomo. Uma das empregadas de Lady Tressilian foi encontrada em estado de coma esta manhã.

      — O que aconteceu com ela?

      — Estava extremamente dopada com barbitúricos. Apesar de estar muito mal, é certo que se recuperará.

      — A  empregada?! — falou Battle. —  Seu  olhar  se dirigiu para o cordão da campainha cuja borla estava pousada no travesseiro perto da mão da  vítima.

      Lazenby balançou a cabeça.

      — Exatamente. A primeira coisa que  Lady  Tressilian faria caso se alarmasse, seria puxar a campainha chamando a empregada. Bem, mas neste  caso, ela poderia  puxar  até cansar, pois a empregada não a ouviria jamais.

      —  O   assassino  tomou  precauções   quanto   a  isto,  não acha? — perguntou Battle. — Mas você tem certeza de que ela não costumava tomar remédio para dormir?

      — Tenho certeza absoluta. Não encontramos nada em seu quarto. E após algumas  investigações, cheguei à conclusão  de como foi usada a droga: colocaram-na no chá de cássia que ela  costuma  tomar todas as noites.

      — Hum! — resmungou Battle, coçando o queixo. — Alguém conhece bem todos os hábitos desta casa. Sabe, doutor, este é um caso de assassinato muito estranho.

      — Bem — disse Lazenby —, agora o problema é todo de vocês.                                                                 

      — Ele é um bom homem — afirmou Leach, depois que Lazenby  saiu  da  sala.

      Agora estavam sozinhos. Haviam sido tiradas fotografias e medidas. Os dois policiais já tinham todos os dados a respeito do aposento onde o crime havia sido cometido.

      Battle concordou com a observação do sobrinho, mas parecia intrigado com alguma coisa.

      — Você acha que alguém... de luvas.... poderia  ter usado este taco... com impressões digitais anteriores?

      — Não, e nem você acha. Não se poderia segurar nele sem  apagar as impressões. E estão perfeitamente nítidas, como você mesmo viu — observou Leach.

      Battle concordou.

      — Agora pediremos educadamente a todos para que suas impressões digitais sejam tiradas... sem coação, é claro. Todos dirão que sim, o que acarretará em duas soluções: ou nenhuma das impressões digitais  corresponderá a  essas, ou então...

      — Ou então teremos  apanhado o nosso assassino.

      — Suponho que sim. Ou quem sabe... uma assassina?

      — Não, não foi uma mulher. As  impressões  no  taco são grandes demais para serem de uma mulher. Além disso, não foi um crime com características femininas.

      — Tem razão — consentiu Battle. — Realmente foi um crime tipicamente masculino. Brutal, másculo, um tanto atlético apesar de um. pouco idiota. Conhece alguém aqui que seja assim?

      — Ainda não conheço ninguém nesta casa. Estão todos reunidos na sala de jantar.

      — Vamos então conhecê-los — disse Battle dirigindo-se para a porta.

      Olhando para a cama, balançou a cabeça, e comentou:

      — Não gosto deste cordão de campainha.

      — Por quê?

      — Não se enquadra com o resto.

      Acrescentou ao abrir a porta:

      — Quem poderia querer matá-la?  Há por aí uma porção de velhas rabugentas merecendo uma pancada na cabeça, mas ela não parecia ser deste tipo. Acredito que fosse uma pessoa querida. — Fez uma pausa, e em seguida perguntou: — Ela era rica, não? Quem ficará com o dinheiro?

      — O senhor acertou no alvo! Isto esclarecerá tudo. É uma das primeiras coisas a se descobrir.

      Enquanto desciam as escadas, Battle olhou a lista em sua mão, e leu alto:

      — Srta. Aldin, Sr. Royde, Sr. Strange, Sra. Strange, Sra. Audrey Strange. Hum, parece que a família Strange é grande demais.

      — São suas duas esposas.

      — Um barba-azul... — murmurou Battle levantando as sobrancelhas.

      A família estava reunida em torno da mesa, onde haviam tido  um  pretenso  jantar.

      O Superintendente Battle olhou aguçadamente para todos os rostos virados em sua direção. Ele os estava analisando de acordo com seus próprios métodos. Se soubessem... certamente ficariam surpresos com seu julgamento: era uma visão severa e cheia de preconceitos. Apesar da lei considerar a pessoa inocente até prova em contrário, o Superintendente Battle sempre considerava toda e qualquer pessoa envolvida num caso de homicídio como um assassino em potencial.

      Olhou para Mary Aldin sentada ereta e pálida à cabeceira da mesa... para Audrey com uma xícara de café na mão direita e um cigarro na esquerda... para Nevile que parecia confuso e desnorteado tentando, com a mão trêmula, acender um cigarro... para Kay com os cotovelos apoiados na mesa e sua palidez aparecendo por debaixo da maquilagem.

      Foram estes os pensamentos do Superintendente Battle:

      “Aquela deve ser a Srta. Aldin. Diria que é uma pessoa calma, competente e dificilmente a pegaremos desprevenida. O homem a seu lado é imprevisível, tem uma fisionomia impassível, um braço defeituoso e provavelmente complexo de inferioridade. A outra (que deve ser uma das esposas) está morrendo de medo... sim, está mesmo muito assustada. Aquele é Strange (já o vi antes em algum lugar); está mesmo muito agitado... com os nervos em frangalhos. A ruiva é do tipo irritável, com um temperamento dos diabos. Contudo, parece ser muito esperta.”

       Enquanto os analisava, o Inspetor Leach fazia um pequeno discurso formal. Mary Aldin citou o nome dê cada um dos presentes.

      — Foi um terrível choque para todos, mas estamos prontos para ajudar no que for preciso — finalizou  ela.

      — Para começar, alguém sabe alguma coisa sobre este taco de golfe? — indagou  Leach.

      — Que  horrível! Foi isto que... — exclamou Kay chocada.

      Nevile Strange levantando-se deu a volta à mesa.

      — Parece um dos meus. O senhor me permite dar uma olhada?

      — Agora não tem mais problema — falou o inspetor. — Pode segurá-lo.

      A maneira significativa como o “agora” foi dito não pareceu produzir qualquer reação nos presentes. Nevile examinou o taco.

      — Acho que é um dos meus. Se o senhor vier comigo, poderei  confirmar com  certeza.

      Seguiram-no até um grande armário debaixo da escada. Ele abriu com violência a porta, e o armário estava repleto de raquetes de tênis.

      Battle, lembrando-se de onde conhecia Nevile Strange, falou apressado:

      — Já o vi jogar em Wimbledon.

      — Ah, sim! — disse Nevile virando parcialmente o rosto.

      Ele estava tirando algumas raquetes do armário. Encostados em um equipamento de pesca, estavam os dois sacos de golfe.

      — Somente minha mulher e eu jogamos —  explicou Nevile. — Este é um taco de homem...  Sim... é meu.

      Ele tinha apanhado o saco de golfe que continha pelo menos uns quatorze tacos.

      Estes desportistas levam mesmo a coisa a sério. Não gostaria de ser seu caddy — pensou o Inspetor Leach.

      — É um taco fabricado por Walter Hudson de St. Esbert.

      — Obrigado, Sr. Strange. Com isso, uma parte, já está definida.

      — O que me  surpreende é que nada foi roubado, e além do mais a casa não parece ter sido assaltada — sua voz estava confusa, e também assustada.

      Eles já andaram refletindo sobre o crime... — pensou Battle.

      — Os empregados são completamente inofensivos — afirmou Nevile.

      — Falarei com a Srta. Aldin sobre eles — explicou calmamente Leach. — Mas agora, gostaria de saber quais são os advogados de Lady Tressilian?

      — Askwith & Trelawny — esclareceu de pronto Nevile.

      — Obrigado, Sr. Strange. É preciso que nos informemos sobre os bens de Lady Tressilian.

      — Para saber quem herdará seu dinheiro? — perguntou Nevile.

      — Sim, é isso. Sobre o seu testamento e  tudo o mais.

      — Nada sei sobre o seu testamento, a não ser que ela pouco tinha para deixar. Entretanto posso informar-lhe sobre-a distribuição de seus bens.

      — Sim, Sr. Strange?

      — Ficarão para mim e para minha mulher, de acordo com o testamento  do falecido  Sir Matthew Tressilian.  Sua esposa tinha os bens apenas em usufruto.

      — Realmente! — o Inspetor Leach olhou para Nevile com o interesse de alguém que acaba de descobrir algo importante. Seu  olhar fez  Nevile estremecer. O inspetor prosseguiu:

      — Não tem idéia do valor da fortuna, Sr. Strange?

      — Não posso dizer com certeza, mas creio que seja por volta de 100.000 libras.

      — Para cada um?

      — Não. Para  ser dividido entre  nós  dois.

      — Entendo. É uma soma bastante considerável...

      Nevile, sorrindo, falou com muita calma:

      — Tenho bastante dinheiro para viver. Não preciso desejar desesperadamente uma herança.

      Leach pareceu chocado, por serem tais idéias atribuídas a ele.

      Voltaram à sala de jantar onde Leach fez outro pequeno discurso. Desta vez foi sobre as impressões digitais... uma simples questão de rotina, embora fossem excluídos os empregados que tivessem acesso  ao quarto da vítima.

      Todos expressaram desejo, quase ansiedade, para terem suas impressões digitais tiradas.                                   

      E com esta finalidade, foram para a biblioteca, onde o  detetive  Jones  os esperava  com  seu  equipamento.

      O  interrogatório  começou  pelos  empregados.

      Pouco tinham a dizer. Hurstall explicou seu sistema de trancar a casa e jurou que encontrara tudo conforme deixara na noite anterior: não havia nenhum sinal de arrombamento. A porta da frente, ele explicou, não fora trancada com o ferrolho, mas apenas com a chave, porque o Sr. Nevile tinha ido a Easterhead Bay e voltaria tarde.

      — Sabe a que horas voltou?

      — Sim, senhor, creio que foi por volta das duas e meia da madrugada. Acho que alguém veio com ele, pois ouvi vozes. Também ouvi um carro se afastando, a porta se fechando e, logo após, o Sr. Nevile subindo as escadas.

      — A que horas ele foi para Easterhead Bay?

      — Por volta das  10:20 horas.  Ouvi  quando fechou  a porta.

      Hurstall, por não ter muito mais a dizer, foi dispensado. Leach continuou entrevistando os outros criados. Todos pareciam nervosos e assustados, mas não mais do que seria natural nas circunstâncias.

      O inspetor olhou inquisitivamente para seu tio quando a porta se fechou atrás da ligeiramente histérica ajudante de cozinha, a qual foi a última  a ser interrogada.

      — Traga a empregada de volta. Não a de olhar assustado, mas sim a alta e magra, e um tanto carrancuda. Ela sabe de  alguma coisa.

      Era evidente a inquietação de Emma Wales, que estava completamente alarmada, por agora estar sendo interrogada por aquele homem mais velho.

      — Vou lhe dar um conselho, Srta. Wales — disse ele cordialmente —, não deve esconder nada da polícia. Pois, se o fizer, fará com que a senhorita mesma se comprometa... Se é que realmente compreende o que quero dizer...

      Emma Wales protestou indignada e nervosa:

      — Tenho certeza de que nunca...

      — Agora chega! — ordenou Battle levantando sua grande mão. — Você viu ou ouviu alguma coisa. O que foi?

      — Eu não ouvi exatamente... quero dizer... não pude deixar de ouvir. O Sr. Hurstall também ouviu. E acho que aquilo nada teve a ver com o assassinato.

      — Provavelmente não, mas diga-nos apenas o que escutou.

      — Bem, era pouco depois das dez e eu ia subir para dormir. No entanto, antes de me recolher, tinha que deixar o saco de água. quente  que a Srta. Mary Aldin usa, seja no verão ou no inverno. Naturalmente para isso, eu teria que passar pela porta de Lady Tressilian.

      — Continue — apressou Battle.

      — Foi  quando  ouvi-a discutindo violentamente  com  o Sr. Nevile. As vozes estavam muito exaltadas e algumas vezes ele gritava. Oh, era uma discussão para valer!

      — Lembra-se exatamente do que diziam?

      — Bem, não estava propriamente prestando atenção.

      — Eu sei. Mas mesmo assim deve ter ouvido pelo menos algumas palavras.

      — Ela dizia que não ia admitir não sei bem o que em sua casa, e em seguida o Sr. Nevile respondia: “não ouse dizer nada contra ela”. Ele parecia muito excitado.

      Battle, com o rosto inexpressivo, tentou perguntar-lhe mais alguma coisa, porém não conseguindo mais nenhuma declaração, acabou por dispensá-la.

      Ele e Jim se entreolharam. Em seguida, Leach falou:

      — Jones  a esta  altura já deve ter alguma coisa para nos dizer sobre aquelas impressões digitais.

      — Quem está revistando os quartos? — indagou Battle.

      — Williams. Ele é muito eficiente, e não deixará escapar nada.

      — Cada um dos ocupantes está sendo mantido afastado do seu quarto?

      — Sim, até que Williams termine o  seu trabalho.

      A porta se abriu, e o jovem Williams apareceu.

      — Venham ver o que encontrei no quarto do Sr. Nevile.

      Seguiram-no até a suíte do lado oeste da casa. Williams apontou para um amontoado de roupa no chão. Um casaco azul-marinho, calças e colete.

      — Onde encontrou isto? — perguntou Leach prontamente.

      — Estavam jogados no fundo do armário. Agora, olhe isto aqui, senhor.

      Apanhando o casaco azul-marinho, mostrou as manchas nos punhos.

      — Estão vendo estas manchas escuras? Aposto que é sangue!  E está espalhado por toda a manga.

      — Hum! — resmungou Battle, evitando o olhar ansioso do outro. — Devo dizer que a situação parece feia para o jovem Nevile. Há algum outro terno no quarto?

      — Sim, um terno cinza-escuro listrado  jogado  na  cadeira. E tem ainda muita água no chão perto da bacia.

      — Parece que ele tentou limpar o sangue com muita pressa. Contudo, não podemos afirmar nada, pois está perto da janela, e não se pode esquecer que choveu bastante.

      — Não o bastante para fazer estas poças no chão, senhor. E ainda não secaram.

      Battle ficou em silêncio. Uma imagem estava se formando diante de seus olhos: um homem com sangue nas mãos e nas mangas, tirando a roupa com violência e jogando-a suja no fundo do armário. Em seguida, lavando furiosamente suas mãos e braços.

      Olhou para a porta da parede em frente.

      — É o quarto da Sra. Strange, senhor. A porta está trancada — explicou Williams.

      — Trancada? Deste lado?

      — Não, do outro.

      — Do lado da Sra. Strange, hem?

      Battle ficou uns minutos pensativo. Finalmente falou:

      — Vamos ver novamente aquele velho mordomo.

      Hurstall estava nervoso, Leach perguntou-lhe enérgico:

      — Por que não nos disse, Hurstall, que tinha ouvido uma discussão entre o Sr. Strange e Lady Tressilian ontem à noite?

      O velho homem piscou nervoso.

      — Não dei muita importância ao fato, senhor. Não creio que se possa chamar aquilo de discussão, mas sim de uma amigável  divergência de opiniões.

      Resistindo à tentação de dizer “amigável divergência de opiniões, uma ova!”, Leach perguntou:

      — Que terno o Sr. Strange usou ontem à noite no jantar?

      Hurstall hesitou. Battle falou com calma:

      — Era azul-marinho ou cinza listrado? Certamente se o senhor não se lembra outra pessoa poderá nos responder.

      — Ah, estou me lembrando agora. Era um terno azul-marinho. Durante os meses de verão — continuou ansioso, para não perder o prestígio — a família não tem o hábito de usar traje a rigor. Freqüentemente saem após o jantar, indo algumas vezes para o jardim, ou então até o ancoradouro .

      Battle dispensou Hurstall, que ao sair, encontrou Jones parecendo agitado.

      — Vai ser uma barbada! Tirei as impressões digitais de todos. E apenas uma combina com as anteriores. Por enquanto, só pude fazer uma comparação grosseira, mas posso apostar que são estas mesmo.

      — Então? — indagou Battle.

      — As impressões digitais no taco são do Sr. Nevile Strange.

      — Bem — disse Battle recostando-se na cadeira —, parece que isto resolve tudo, não é?

      Três homens  de  rostos  graves  e  preocupados  estavam no gabinete do Chefe de Polícia...

      — Bem, acho que não há nada a fazer, a não ser prendê-lo — afirmou o Major Mitchell com um suspiro.

      — É ó que parece, senhor — respondeu Leach.

      Mitchell olhou o Superintendente Battle.

      — Ânimo, Battle — disse gentilmente. — O seu melhor amigo não morreu.

      — Isto não está me agradando — suspirou Battle.

      — Não creio que esteja agradando a nenhum de nós, mas já temos  evidências  suficientes  para  que  um  mandado de prisão seja feito — afirmou Mitchell.

      — Sim. Mais do que o suficiente — confirmou Battle.

      — O fato é que, se não emitirmos uma ordem de prisão,  perguntarão  por  que  diabo  isto  não  foi  feito.

      Battle balançou a cabeça insatisfeito.

      — Vamos recapitular tudo — disse o Chefe de Polícia.

      — Temos o motivo: com a morte de Lady Tressilian, Strange e sua mulher receberão uma considerável soma de dinheiro. Pelo que sabemos, foi a última pessoa a vê-la com vida, e também o ouviram discutindo com ela.  O terno que ele usou naquela noite tinha manchas de sangue, as quais são do mesmo tipo sangüíneo do da vítima. E o que veio agravar a situação é que suas impressões digitais foram encontradas na arma do crime... e as de mais ninguém.

      — Ainda  assim,  isto  também  não  está  lhe  agradando — comentou Battle.

      — Pode estar certo que não!

      — O senhor não está gostando exatamente do quê?

      O Major Mitchell esfregou o nariz.

      — Tudo isso faz com que o criminoso pareça um pouco tolo demais, não acha? — perguntou.

      — É. Mas, às vezes, eles  se  comportam como  verdadeiros tolos.

      — Ah! eu sei... eu sei. Onde estaríamos se não fosse assim?

      — E você Jim, o que não gosta nisto tudo? — perguntou Battle a Leach.

      — Sempre simpatizei com o Sr. Strange. Durante anos o tenho visto por aqui. Ele é um cavalheiro muito educado e um desportista excelente.                             

      — Não? vejo por  que  um bom jogador  de  tênis  não possa ser também um assassino. Não há nada que o impeça — Battle fez uma pausa. — Só não gosto é do taco de golfe.

      — O taco de golfe? — indagou Mitchell, ligeiramente intrigado.

      — Sim, e também a campainha. Ou um... ou outro... mas  nunca os dois...

      Ele continuou com calma e cautela.

      — O que acha que realmente aconteceu? O Sr. Strange foi até o quarto dela, onde tiveram uma forte discussão. Perdendo a calma, golpeou-a na cabeça? Se não tivesse sido premeditado, por que razão estaria ele com um taco de golfe exatamente naquela hora? Não é o tipo de coisa que se carregue por aí durante a  noite.                   

      — Ele poderia ter estado praticando umas jogadas, ou algo assim, quem sabe?

      — É, talvez, mas ninguém o viu fazê-lo.  A última vez que foi visto com um taco na mão foi na semana passada, quando praticava umas tacadas na areia. Na minha opinião há duas possibilidades. Ou houve uma discussão e ele perdeu a cabeça... mas lembre-se de que o vi em um torneio de tênis, onde os jogadores ficam excitados e uma pilha de nervos, e pude notar que se descontrolam facilmente. Nunca vi o Sr.  Strange perturbar-se.  Dir-se-ia que tem um grande controle de si mesmo, muito maior do que  a maioria  das pessoas. E aqui estamos nós, sugerindo que ele tenha freneticamente atingido, na cabeça, uma frágil senhora.

      — Há ainda  uma outra  alternativa, Battle — disse o Chefe de Polícia.

      — Eu sei: é a teoria de que houve premeditação, por estar ele querendo o dinheiro. Isto se enquadra com a campainha o com a empregada narcotizada, mas nunca com o taco nem com a discussão. Se ele tivesse decidido matá-la, teria tido muito cuidado para que não discutissem, e teria poupado a empregada. O que teria feito é ter entrado furtivamente no quarto de Lady Tressilian, matando-a... simulado um pequeno roubo, e por fim, ter limpado o taco de tênis, guardando-o de volta em seu lugar.   Porém, está tudo errado! Há mistura de uma fria premeditação com uma violência não premeditada... que simplesmente não  combina!

      — Está certo no que diz, Battle. Mas então, qual é a alternativa?

      — É o taco que me intriga, senhor.

      — É mais do que certo de que ninguém poderia usá-lo, sem que as impressões digitais do Sr. Nevile fossem apagadas.

      — Neste caso — afirmou o Superintendente Battle — ela foi atingida na cabeça por algum outro objeto.

      — É uma hipótese um tanto absurda, não acha?

      — É uma questão de bom senso, senhor. Ou foi Strange quem golpeou-a com o taco ou mais ninguém. Meu voto é por ninguém. Neste caso o taco foi deliberadamente colocado no quarto, com sangue e fios de cabelos espalhados nele. O Dr. Lazenby também não está muito satisfeito em aceitar o taco como a arma do crime, mas teve que fazê-lo por não ter nada que o contradissesse.

      O Major Mitchell recostou-se na cadeira.

      —  Continue, Battle. Estou lhe dando carta branca. Qual é o próximo passo?

      — Deixando de lado o taco — prosseguiu Battle  —, o que resta? Primeiro, o motivo. Tinha Nevile Strange realmente um motivo para matar Lady Tressilian? Ele herdaria o dinheiro. Mas  na minha opinião, tudo depende se ele realmente necessita desse dinheiro. Ele afirma que não. Sugiro que o estado de suas finanças seja verificado. Se for constatado  que  está em  aperto  financeiro e precisando do dinheiro, então as suspeitas aumentarão. Se, por outro lado, estiver falando a verdade, e estiver bem de finanças, por que então...?

      — Então?

      — Então teremos que investigar os motivos de todas as outras pessoas.

      — Acha que tentaram incriminar Nevile?

      O Superintendente Battle apertou os olhos.  

      — Há uma frase que li em algum lugar, que ativa minha imaginação. Alguma coisa sobre um toque de mestre. É... é isto que acredito ver neste caso. Ostensivamente foi um crime brutal e direto, mas entrevejo alguma coisa mais... um verdadeiro toque de mestre por trás disso tudo.

      Durante uma longa pausa, o Chefe de Polícia ficou encarando o  Superintendente Battle.

      — Talvez tenha razão. Raio! há algo esquisito nesta história! Como pretende agir agora?

      — Bem, senhor, sou sempre a favor de agir de uma forma clara. Foi tudo preparado para suspeitarmos do Sr. Nevile Strange. Desse modo, continuaremos a suspeitar dele. Não precisaremos chegar ao ponto de prendê-lo, mas poderemos  intimidá-lo,  interrogá-lo,  fazê-lo  ficar  com  medo,  e observar a reação de todos. Verificaremos seus depoimentos, e analisaremos cuidadosamente cada movimento da noite do crime. Colocaremos as cartas na mesa.

      — Bastante maquiavélico — comentou o Major Mitchell com uma piscadela. — A imitação de um desastrado policial, pelo grande ator Battle.

      O  Superintendente  Battle  sorriu.

      — Sempre gosto de fazer o que esperam de mim. Desta vez pretendo ir com muita calma... e não me apressar. Quero bisbilhotar um pouco; e suspeitar do Sr. Strange é uma boa  desculpa para isto. Tenho a impressão de que alguma coisa muito estranha está acontecendo naquela casa.

      — Quem sabe se não é uma incriminação passional?

      — Se o senhor quer botar tudo sob este ângulo!

      — Trabalhe à sua maneira, Battle. Deixo o assunto em suas mãos e nas de Leach.

      — Então  ficaremos de olho nestes três — afirmou Battle.

      — Você é um sujeito desconfiado, não é? — disse Mitchell parecendo divertido.

      — É bom não nos impressionarmos com 50.000 libras — observou Battle impassível. — Já foram cometidos muitos outros homicídios por muito menos do que 50 libras. Depende de quanto se queira o dinheiro. Barrett ganhou sua parte na herança, e quem sabe, tenha tomado a precaução de se dopar para evitar suspeitas?

      — Mas quase morreu, e lembre-se de que Lazenby ainda não nos deixou interrogá-la.

      — Talvez, por ignorância, ela tenha exagerado na dose. Hurstall também pode ter precisado, desesperadamente, de dinheiro. E Mary Aldin, que não tem dinheiro próprio, pode ter-se imaginado vivendo de  renda própria, antes de ficar velha  demais  para  poder se  aproveitar  disto.

      O Chefe de Polícia pareceu ficar na dúvida.

      — Bem — disse ele —, deixo o assunto em suas mãos. Continuem o trabalho.

      Ao chegarem de volta a Gull's Point, os dois policiais receberam o relatório de Williams.

      Nada de natureza significativa ou suspeita fora encontrado nos quartos. Os empregados pediam autorização para continuar com o trabalho doméstico.

      — Pode dá-la — disse Battle. — Antes, porém, eu mesmo vou dar uma olhada lá em cima. Os quartos frequentemente revelam alguma coisa característica de seus donos.

      Jones pousou na mesa uma pequena caixa de papelão.

      — Isto estava no casaco azul-marinho do Sr. Nevile Strange — explicou. — Os cabelos ruivos estavam no punho, e os louros  no lado de dentro do colarinho e no ombro direito.

      Battle olhou os dois longos fios de cabelo ruivo, e meia dúzia de fios louros.

      — Muito conveniente — comentou Battle, com leve brilho nos olhos. — Temos nesta casa uma loura, uma ruiva e uma morena. Sendo assim, saberemos de imediato o que queremos. O Sr. Nevile tem um pouco do Barba Azul. Seu braço em torno de uma das esposas, e a outra com a cabeça apoiada no seu ombro.

      — O sangue da camisa já foi mandado para  análise, senhor. E assim que tiverem o resultado, nos telefonarão.

      — E quanto aos criados?

      — Segui  suas  instruções,  senhor. Chequei os  empregados, e verifiquei  que nenhum deles fora mandado embora, ou mesmo guarda rancor contra a velha senhora. Ela era severa, mas muito querida. De qualquer maneira, Mary Aldin é quem controla os empregados; e parece ser muito benquista entre eles.

      — No momento em que  botei os olhos  nela,  vi  que era uma mulher eficiente — comentou Battle. — Se ela for a assassina, não será fácil enforcá-la.

      — Mas aquelas impressões digitais no taco eram...  — falou Leach espantado.

      — Sei...  sei — disse Battle. — Do excepcionalmente amável Sr. Strange. Há uma crença geral de que os atletas não  são  lá muito  inteligentes  (o que  aliás,  nem  sempre  é verdade), mas não acredito que Nevile Strange seja um completo débil mental.   Mudando  de  assunto, o  que  apuraram sobre o chá de cássia?

      — Fica sempre no armário do banheiro de empregada, no segundo andar. Ela costuma colocá-lo de molho ao meio-dia, ficando lá até a hora em que ela vai dormir.

      — Sendo assim, qualquer pessoa teria acesso a ele, ou melhor, qualquer pessoa de dentro da casa.

      — Não há dúvida de que foi um trabalho interno! — afirmou Leach com convicção.

      — Sim, acho que sim. Não que este seja um daqueles crimes de poucos suspeitos. Qualquer um que tivesse a chave poderia abrir a porta da frente e entrar. Ontem à noite, Nevile tinha esta chave. Mas poderia ser uma simples questão de mandar-se fazer uma, ou alguém, com alguma experiência, poderia abri-la com um pedaço de arame. Entretanto não vejo como um estranho pudesse saber sobre a campainha e sobre o chá de cássia que Barrett tomava todas as noites. Só as pessoas da casa poderiam ter conhecimento disto! Venha Jim, vamos subir e ver o banheiro e todo o resto.

      Chegaram ao andar superior. Em primeiro lugar olharam um pequeno quarto cheio de mobílias quebradas e sucata  de  todo  o  tipo.

      — Não examinei este quarto, senhor. Não sabia que...

      — Procurar o que aqui? Tem razão. É apenas perda de tempo. Pela poeira que há no chão, ninguém vem aqui há pelo menos seis meses.

      Todos os quartos dos empregados ficavam neste andar, como também dois aposentos desocupados e um banheiro. Battle inspecionou cada quarto, notando que Alice, a empregada de olhos esbugalhados, dormia com a janela fechada; que Emma, a magra, tinha muitos parentes, cujas fotografias estavam agrupadas no fundo da gaveta, e que Hurstall tinha uma ou duas peças boas de porcelana de Dresden & Crown, apesar de lascadas.

      O quarto da cozinheira era rigorosamente limpo e o de sua ajudante, caoticamente desarrumado. Em seguida foram até o banheiro que era o aposento mais próximo da escada. Williams apontou para a comprida prateleira em cima da pia, onde havia escovas, copos, vários ungüentos, vidros de sais e loção para cabelo. Em um dos cantos, um pacote  de  cássia estava  aberto.

      — Você não encontrou nenhuma impressão digital no copo ou no pacote?

      — Somente as da própria empregada.

      — É realmente seria... seria o suficiente jogar-se a droga dentro do copo, sem que para isto fosse preciso segurá-lo.

      Battle, acompanhado de Leach, começou a descer. No topo da escada havia uma janela um tanto mal situada e perto dela uma vara com um gancho na ponta.

      — Com ela se abre a parte de cima da janela — explicou Leach. — Entretanto o fecho de segurança só permite abrir até um determinado ponto, que é demasiado estreito para que alguém possa entrar.

      — Não estava pensando que alguém tivesse entrado por aí — disse Battle meditando.

      Entraram no quarto de Audrey Strange. Era arrumado, arejado, com escovas de marfim em cima da penteadeira. Não havia nenhuma roupa espalhada. No armário havia dois casacos e saias bem simples, alguns vestidos de noite, um ou dois trajes de verão. Estes eram vestidos baratos, embora houvesse também algumas roupas bem talhadas e caras, apesar de não serem novas.

      Battle ficou algum tempo brincando com a caneta que estava perto do mata-borrão.

      — Não encontrei nada que me interessasse, nem no mata-borrão nem na cesta de papel.

      — Sua palavra é o bastante — afirmou Battle. — Podemos então passar para o outro quarto.

      O de Thomas Royde era desarrumado, com roupas espalhadas, cachimbos e cinzas por todos os móveis e inclusive ao lado da cama, onde havia um exemplar de Kim, de Kipling.

      — Bem se vê que está acostumado a ter o serviço dos nativos para limpar tudo — concluiu Battle. — Gosta de, ler velhos clássicos. Eu o chamaria de  conservador.

      O quarto de Mary Aldin era pequeno, mas muito confortável. Battle notou que as prateleiras estavam com livros de viagens, e escovas de prata antigas. A decoração1 era bem mais moderna do que a do resto da casa.

      — Essa já não é tão conservadora, não acha? — observou Battle. — Nem há fotografias! Não é do tipo de pessoa que viva no passado.

      Ainda viram três ou quatro aposentos desocupados, apesar de limpos e arrumados, prontos para serem usados. Adiante, estava o amplo quarto de casal de Lady Tressilian. A seguir, subindo-se três pequenos degraus, ficava a suíte dos Strange.

      Battle não gastou muito tempo no quarto de Nevile. Olhou pela janela as pedras que caíam abruptamente em direção do mar. A vista dava para o lado oeste, onde Stark Head se erguia selvagem e misteriosa.

      — Bate sol aqui à tarde — murmurou ele. — Entretanto, pela manhã, a vista é assustadora: aquele cabo tem uma aparência horrível.  Não me admira que atraia suicidas.

      Entrou no quarto de Kay, onde reinava a maior confusão. As roupas estavam completamente amontoadas: meias finas, roupas de baixo, blusas, modelos de verão jogados na cadeira. Battle viu o armário cheio de peles, vestidos a rigor, shorts, roupa de tênis, trajes esportivos.

      Fechou a porta quase que com reverência, e comentou:

      — Ela tem gostos dispendiosos. Tudo isso deve sair muito caro para seu marido.

      — Talvez por isso que... — disse Leach sombriamente.

      — Que precisasse das cem... ou melhor 50.000 libras? Quem sabe? Acho melhor vermos o que ele tem a nos dizer.

      Desceram até a biblioteca. Williams ficou encarregado de avisar aos empregados que já podiam voltar aos seus habituais afazeres domésticos, e que os ocupantes poderiam voltar aos quartos se assim o desejassem. Deveria avisar ainda que o Inspetor Leach gostaria de entrevistar cada uma das pessoas separadamente, sendo que o Sr. Nevile deveria ser o primeiro.

      Quando Williams saiu da sala, Battle e Leach se acomodaram atrás de uma pesada mesa vitoriana. Um jovem policial, com um bloco de anotação, sentou-se sério em um dos cantos da sala.

      — Você cuida desta parte, Jim. Seja incisivo.

      Leach concordou com a cabeça e Battle esfregou o queixo, franzindo a testa:

      — Gostaria de saber por que não consigo tirar Hercule Poirot de minha cabeça?

      — Você está se referindo àquele sujeitinho engraçado... o belga?

      — Engraçado coisa nenhuma! Quando se faz passar por charlatão... é tão perigoso quanto uma cobra ou um leopardo!  Gostaria que estivesse aqui agora, porque este caso se enquadra perfeitamente em sua especialidade.

      — Mas de que maneira? — perguntou Leach.

      — Psicologia  —  respondeu Battle. —  Psicologia  verdadeira e não estas tolices apresentadas por pessoas inexperientes, que nada sabem sobre o assunto —  sua memória voltou-se ressentida para a Srta. Amphrey e sua filha, Sylvia. — Para ele, a verdadeira compreensão  da matéria é saber exatamente o que faz as engrenagens funcionarem. Uma de suas normas é manter o assassino falando, pois diz que, com isto, mais cedo ou mais tarde, o criminoso acaba contando a verdade. Para todos é mais fácil contar tudo do que continuar inventando mentiras. Assim, um deslize cometido, mesmo que pareça sem importância, é o suficiente para que o peguemos.

      — É assim que pretende agir com Nevile?

      Distraído, Battle concordou. Depois prosseguiu um tanto surpreso e aborrecido:

      — O que realmente me preocupa é saber por que me lembrei de Hercule Poirot. Acho que foi alguma coisa que devo ter visto lá em cima. O que teria sido?

      A conversa terminou com a chegada de Nevile.

      Estava pálido e preocupado, porém muito menos nervoso do que pela manhã. Battle estudou-o com atenção. Era incrível como um homem capaz de algum raciocínio, ciente de que as suas impressões digitais tinham sido reconhecidas pela polícia, não demonstrasse um intenso nervosismo, ou enfrentasse a situação de uma forma descarada. Contudo Nevile parecia bastante natural: chocado, preocupado, aflito, apenas aparentando um pouco de nervosismo saudável.

      Jim Leach falava com o seu agradável sotaque do oeste.

      — Gostaríamos, Sr. Nevile, que respondesse algumas perguntas relativas aos seus atos de ontem à noite e, também, outros  dados  particulares. Devo entretanto avisá-lo de que não é obrigado a responder a estas perguntas, sem a presença do seu advogado, se preferir fazê-lo dessa maneira.

      Leach recostou-se para ver o efeito que esta observação lhe causara. Nevile parecia meio confuso.

      Ou ele não tem a menor idéia do que pretendemos, ou então é um ótimo ator — pensou Leach. E como ele continuasse calado, o Inspetor insistiu:

      — E então, Sr. Strange?

      — Estou pronto para responder o que quiser saber.

      — Compreenda bem que tudo o que disser aqui poderá ser usado como prova contra o senhor, no tribunal.

      Um lampejo de raiva apareceu no rosto de Strange.

      — Isto é uma ameaça?

      — Não, não, Sr. Strange. Estou apenas lhe prevenindo.

      Nevile encolheu os ombros, mostrando indiferença.

      — Já que isto faz parte da sua rotina pode começar.

      — O senhor está pronto para fazer uma declaração?

      — Se é assim que vocês chamam!

      — Para iniciar, o senhor nos contará o que fez ontem à noite, a partir da hora do jantar.

      — É lógico. Depois do jantar fomos todos para a sala de visitas onde tomamos café e ouvimos rádio. Então resolvi ir até o Hotel Easterhead Bay para visitar um amigo que está hospedado lá.

      — Qual é o nome dele?

      — Latimer. Edward Latimer.

      — Ele é seu amigo íntimo?

      — Mais  ou  menos.  Temos  nos  encontrado  com  bastante freqüência. Tanto ele tem vindo almoçar e jantar conosco, quanto nós também já estivemos lá.

      — Um tanto tarde para ir até Easterhead Bay, não acha?

      — Ora! É um lugar bastante animado. Fica aberto a noite toda.

      — Neste caso, os  empregados  tiveram  que  ficar  acordados para esperá-lo, não foi?

      — Não. Eu levei a chave.

      — Sua esposa não quis acompanhá-lo?

      — Não. Ela estava com dor de cabeça e já tinha ido se deitar — respondeu Nevile com a voz um pouco dura.

      — Prossiga, Sr. Strange.

      — Ia subir para trocar de roupa, quando...

      — Desculpe-me, Sr. Strange, mas trocar como? Vestir ou tirar a roupa a rigor?

      — Nem uma coisa, nem outra. Estava usando um terno azul-marinho, aliás, o meu melhor terno. No entanto estava chovendo um  pouco;  e como  eu  pretendesse  ir  de  barca  até lá, teria que caminhar forçosamente até o hotel. Assim, vesti uma  roupa mais velha, um terno cinza listrado. Já que todos os detalhes são importantes, espero estar lhe ajudando.

      — Gostamos de tudo bem esclarecido, Sr. Nevile — explicou Leach humildemente. — Por favor, continue.

      — Como estava dizendo, ia subir para trocar de roupa quando Hurstall aproximou-se dizendo que  Lady Tressilian queria falar comigo. Fui até o seu quarto e conversei um pouco com ela.

      — O senhor foi a última pessoa a  vê-la  com  vida, não foi?

      Nevile  corou.

      — Sim, sim. Suponho que sim. Na ocasião ela estava muito bem.

      — Durante quanto tempo ficou com ela?

      — Cerca de uns 20 minutos ou meia hora no máximo. Logo depois, fui para o meu quarto trocar de roupa. E quando saí, levei a chave da porta da frente comigo.

      — A que horas foi isso?

      — Acho que foi por volta das 10:30 horas. Apressei-me e peguei a barca que já estava de saída. Encontrei Latimer no hotel, onde bebemos um pouco, e jogamos bilhar. O tempo passou tão depressa que quando vi, já tinha perdido a última barca, a que sai à 1:30. Sendo assim, Latimer, muito amável, se ofereceu para trazer-me de carro. Como você sabe, isto significa dar toda volta por Saltington... 25 quilômetros mais precisamente. Saímos do hotel às 2 horas e diria que chegamos meia hora depois. Agradeci a Ted Latimer, e convidei-o para um drinque, o que ele recusou.  Dessa maneira, entrei em casa indo direto para a cama. Não vi, nem ouvi nada de anormal. A casa parecia sossegada e tranqüila.  Só esta manhã é que ouvi... aquela moça gritando e...

      Leach o interrompeu.

      — Esta bem! Esta bem!Vamos voltar a sua conversa com Lady Tressilian. Ela parecia bem?

      — Ah, certamente.

      — Sobre o que conversaram?

      — Futilidades!

      — Amigavelmente?

      — Lógico! — exclamou Nevile corando.

      — Por acaso, vocês tiveram uma discussão violenta?

      Nevile não respondeu. Entretanto Leach insistiu:    

      — É melhor dizer a verdade, porque, por acaso, a sua conversa foi ouvida.                                      

      — Realmente houve um pequeno desentendimento, mas nada tão importante.

      — E qual foi o motivo desse desentendimento, Sr. Strange? — perguntou Leach.

      Com esforço Nevile recobrou a calma, e sorriu:

      — Para lhe falar francamente, ela me passou um sermão, o que acontecia com freqüência. Sabia demonstrar sua raiva quando discordava de alguém. Era uma pessoa antiquada e contra todas as idéias modernas, assim como o divórcio. Tivemos uma pequena discussão e, talvez, eu tenha me exaltado um pouco, mas nos despedimos em termos amigáveis apesar dos nossos pontos de vista divergirem. — Nevile acrescentou um tanto inflamado: — Certamente não golpeei sua cabeça só porque perdi a calma numa discussão, se é isto. que está imaginando!

      Leach olhou para Battle que, debruçando-se na mesa, disse:

      — Esta manhã o senhor identificou o taco de golfe como seu. Tem alguma explicação para o fato de terem encontrado nele as suas impressões digitais?

      — Eu... mas é claro que sim... o taco é meu, e eu o uso com freqüência.

      — As impressões provam que o senhor foi a última pessoa a usá-lo. Existe alguma explicação para isso?

      Nevile estava imóvel, e o colorido sumira de seu rosto.

      — Isto não é verdade — disse finalmente. — Não pode ser. Alguém usou-o depois de mim... alguém que estivesse usando luvas.

      — Não, Sr. Strange. Ninguém podê-lo-ia ter usado. Não da maneira que o senhor pensa, isto é, levantando-o para o: golpe. Para isso, as suas impressões estariam confusas.

      Houve um silêncio... um silêncio muito longo.

      — Ah, Deus! — exclamou Nevile estremecendo. Colocou as mãos sobre os olhos. Os dois policiais observavam-no.

      Tirando as mãos dos olhos, sentou-se rígido.

      — Não é verdade — afirmou calmamente. — Simplesmente não é verdade. Os senhores pensam que eu a matei, mas juro que não fui eu. Está havendo um terrível engano.

      — Nesse caso, o senhor pode nos explicar aquelas impressões no taco?

      — Como é que eu posso? Estou completamente aturdido.

      — Tem alguma explicação para o fato das mangas e dos punhos de seu terno azul-marinho estarem manchados de sangue?

      — Sangue? Não pode ser! — exclamou perplexo.

      — O senhor, por acaso, não se cortou?

      — Não, claro que não!

      Nevile Strange, com a testa enrugada, parecia estar pensando. Finalmente, levantou os olhos, onde medo e pânico estavam estampados.

      — É fantástico! Simplesmente fantástico! Nada disto é verdade.

      — Os fatos estão bastante claros — contestou o Superintendente Battle.

      — Mas por que eu faria tal coisa? É totalmente inconcebível... inacreditável.  Sempre fui amigo de Camilla.

      O senhor mesmo nos disse que com a morte de Lady Tressilian herdaria muito dinheiro.

      — Acha que por isso eu... mas eu não quero dinheiro! Não preciso.

      — Isto — comentou  Leach, com um pigarro — é o que o senhor nos diz, Sr. Strange.

      Nevile  levantou-se  repentinamente.

      — Olhe aqui: isto é algo que posso lhes provar! É só me deixarem telefonar para o gerente do banco, e o senhor mesmo poderá falar com ele.

      Em poucos minutos, a ligação para Londres foi completada.   Nevile falou:

      — É você, Ronaldson? Aqui quem fala é Nevile Strange. Você conhece minha voz. Quero que informe à polícia... é. Estão aqui agora... tudo que quiserem saber sobre minha situação financeira... sim, sim... por favor.

      Leach pegou o telefone. Falava calmamente, fazendo perguntas e dando respostas.  Por fim, acabou desligando.

      —  E então? — perguntou Nevile ansioso.

       — O senhor tem um grande saldo bancário; e o banco, que é encarregado de todos os seus investimentos, declara que estão todos em ótima condição.

      — O que prova que eu disse a verdade!

      — É o que parece. Mas  ainda há a hipótese de que o senhor tenha compromissos, dívidas, pagamento de extorsão, ou qualquer outra razão desconhecida, para precisar do dinheiro.

      — Mas  não tenho nada a esconder! Garanto-lhe que não vai encontrar nada deste tipo.

      O Superintendente Battle falou em um tom amigável:

      — O senhor deve concordar, Sr. Nevile, que temos provas suficientes para lhe darmos um mandado de prisão. Contudo,  ainda  não  o  fizemos,  porque estamos lhe dando o benefício da dúvida.

      — Quer dizer com isto que o senhor já decidiu que realmente fui eu quem a matou, mas que é preciso descobrir o motivo, para que o caso possa ser encerrado, não é isso? — perguntou Nevile amargamente.

      Battle permaneceu calado, e Leach olhando para o teto.

      — Parece até um pesadelo! Não há nada que eu possa dizer ou fazer. É como estar preso numa armadilha, sem se poder sair — desesperou-se Nevile.

      O Superintendente mexeu-se agitado. Um brilho inteligente apareceu em seus olhos semicerrados.

      — Muito bem pensado — comentou. — Realmente muito bem pensado. Isto me dá uma idéia...

      Para que marido e mulher não se encontrassem, o sargento Jones, astutamente, fez com que Nevile se retirasse pela sala de jantar, e com que Kay entrasse pela porta do terraço.

      — Mas mesmo assim, é inevitável que ele se encontre com os outros — observou Leach.

      — Não tem problema — esclareceu Battle. — Ela é a única pessoa que faço questão de entrevistar antes que saiba de alguma coisa.

      Com o vento cortante, o dia tornara-se sombrio. Kay usava uma saia de lã, suéter roxo e seu cabelo tinha a aparência de uma brilhante auréola de cobre. Parecia um tanto assustada e excitada. Sua beleza e vitalidade resplandeciam no escuro e pesado cenário vitoriano.

      Com bastante facilidade, Leach conseguiu com que ela fizesse um relatório da sua noite anterior.

      Por causa de uma dor de cabeça, ela se recolhera cedo: mais ou menos por volta das 9:15 horas. Tinha dormido profundamente. Nada ouvira de anormal, até ser acordada com alguém gritando de manhã.

      Battle passou a interrogá-la.

      — Seu marido não foi vê-la antes de sair?

      — Não.

      — A senhora não o viu desde a hora em que ele deixou a sala de visitas até a manhã seguinte, está correto?

      Kay concordou com a cabeça.

      — Sra. Strange, a porta de comunicação entre o seu quarto e o de seu marido estava trancada. Quem a trancou?

      — Fui eu.

      Battle nada disse... esperou... como um gato experiente que espera o rato sair do buraco que está vigiando.

      O seu silêncio teve o efeito que suas perguntas talvez não conseguissem ter. Descontrolando-se  Kay  falou:

      — Oh, acho que o senhor terá que saber de tudo! Aquele velho decrépito do Hurstall deve ter-nos ouvido, e eu sei que acabará lhe contando tudo, se é que já não contou. Nevile e eu tivemos uma briga, uma briga feia! Eu estava furiosa com ele! Subi e fechei a porta de comunicação, porque continuava com uma raiva danada!

      — Entendo... entendo — disse Battle complacente. — E qual foi o motivo da briga?

      — E isto tem alguma importância? Ora, não me incomodo mesmo de contar. Nevile vem se comportando como um perfeito idiota, e é tudo culpa daquela mulher.      

      — Que mulher?

      — Sua primeira esposa. Para começar, ela o persuadiu a vir até aqui.

      — Quer dizer... encontrá-la?

      — Sim. Nevile pensa que foi tudo idéia dele... pobre inocente! Mas sei que não foi. Ele nunca pensou em tal coisa, até encontrá-la certo dia num parque, quando ela tentou persuadi-lo com esta idéia, fazendo-o acreditar que fosse sua. Ele pensa  realmente que foi idéia dele, mas posso ver a mão de Audrey por trás disto tudo.

      — Por que ela faria tal coisa? — indagou Battle.

      — Porque ela queria fisgá-lo novamente — Kay falava apressada e sua respiração estava ofegante. — Ela nunca o perdoou por tê-la abandonado, e esta é sua vingança. Fez com que ele providenciasse para que todos nos reuníssemos aqui, e desde então vem provocando-o. Tem feito isto desde que chegou. Ela é esperta: sabe como parecer patética e misteriosa. Há também outro homem na história, o Thomas Royde, um cachorro fiel, que sempre esteve apaixonado por ela. Pois bem, ela providenciou tudo para que ele também viesse para cá, e ao fingir que ia se casar com Thomas, deixou Nevile louco.

      Parou ofegante de raiva.

      — Creio que ele deveria ficar satisfeito ao saber que ela encontrará a felicidade com um velho amigo — aparteou Battle.

      — Satisfeito? Ele está é morrendo de ciúme!

      — Sendo assim, ele deve gostar muito dela.

      — Sim, ele gosta! — disse Kay amargamente. — Ela se encarregou disso!

      Battle continuava a passar a mão no queixo, em dúvida.

      — A senhora poderia ter-se negado a vir para cá.

      — Como poderia? Teria dado a impressão de que estava com ciúme.

      — Bem, afinal de contas, a senhora estava, não estava?

      Kay ficou ruborizada.

      — Sim, sempre tive ciúme de Audrey. Desde o começo... ou melhor, quase desde o começo. Costumava sentir sua presença por toda a casa, como se esta fosse dela e não minha. Mudei toda a decoração, mas de nada adiantou. Continuei a sentir como se houvesse um fantasma triste sempre rastejando  à  nossa  volta.   Eu sabia que Nevile sempre se preocupou achando que a havíamos tratado muito mal. Não conseguia esquecê-la... ela estava sempre lá... como um sentimento de reprovação no fundo de sua mente. Há pessoas assim, que parecem apagadas e insignificantes, mas que fazem com que sintamos sua presença.

      Battle balançou a cabeça, pensativo.

      — Bem, muito obrigado, Sra. Strange. Por enquanto é só.  Tivemos  que lhe  fazer todas essas perguntas, especialmente por ter seu marido herdado tanto dinheiro de Lady Tressilian... 50.000 libras...

      — Tudo isso? Receberemos pelo testamento do velho Sir Matthew, não é?

      — A senhora sabe tudo sobre a herança?

      — Ah, sim! O que ele deixou deverá ser dividido entre Nevile e sua esposa. Não que eu esteja contente com a morte da velha, pelo contrário, não estou. É verdade que não gostava muito dela, provavelmente porque não gostava muito de mim, contudo é horrível imaginar que um ladrão tenha entrado e esmagado a sua cabeça.

      Acabando de falar, se retirou.  Battle olhou para Leach.

      — O que você achou dela? Eu direi que é um bocado bonita. O tipo de mulher que faz qualquer homem perder a cabeça.

      Leach concordou.

      — Entretanto  não me parece ser uma  dama —  duvidou ele.

      — Não há muitas delas hoje em dia — afirmou Battle. — Vamos ver agora a número 1? Não, acho melhor que a próxima seja a Srta. Aldin. Assim poderemos ter um ponto de vista imparcial quanto a esse problema matrimonial.

          Mary Aldin entrou muito tranqüila. Por baixo de sua aparente calma via-se que seus olhos estavam preocupados.

      Respondeu às perguntas de Leach com bastante clareza, confirmando o depoimento de Nevile. Tinha ido para a cama por volta das 10 horas.

      — O Sr. Strange estava então com Lady Tressilian? — perguntou Leach.

      — Sim. Pude ouvi-los falando.

      — Falando, Srta. Aldin, ou discutindo?

      Ela corou, mas respondeu calmamente:

      — Lady Tressilian apreciava uma discussão. Muitas vezes ela parecia mordaz, enquanto na realidade não era nada disto.  Tinha tendência, também, a ser autoritária e dominadora, e há de convir que um homem não aceita isso com a mesma facilidade com que uma mulher o faz.

      Da mesma maneira que você! — pensou Battle.

      Ele olhou para o seu rosto inteligente. Foi ela quem quebrou o silêncio.

      — Não quero bancar a tola, mas me parece inacreditável...  realmente inacreditável, que o senhor suspeite de alguém desta casa. Por que não poderia ser obra de um estranho?

      — Por várias razões, Srta. Aldin. Uma delas é que nada foi roubado, e nenhuma entrada forçada. Não preciso lembrar-lhe a disposição da casa e do terreno. Do lado oeste há o penhasco íngreme em direção do mar;  ao sul fica o terreno com o muro e o mar lá embaixo; a leste, os jardins dão para  a praia,  mas  são  cercados por muros altos. As duas únicas saídas são uma pequena porta que dá para a estrada, mas que foi encontrada fechada pelo lado de dentro como de costume, e a porta principal da casa. Não nego que se pudesse ter entrado com uma chave   falsa, mas na minha opinião não foi isso que aconteceu. Seja lá quem for o criminoso,  sabia  que  Barrett  costumava  tomar  chá   de cássia todas as noites, o que significa que só pode ser alguém desta casa. O taco de golfe foi tirado do armário que fica debaixo das escadas. Tenho certeza de que não foi um estranho, Srta. Aldin!

      — Não foi Nevile! Estou certa de que não foi ele!

      — Por que está tão certa?

      Desanimada, ela levantou as mãos.

      — Porque ele nunca mataria uma velha indefesa. Não o Nevile!

      — É. Não parece muito plausível — ponderou Battle. — A senhorita entretanto ficaria surpresa com o que as pessoas são capazes de fazer quando aparece um bom motivo. O Sr. Strange  pode ter precisado desesperadamente  de  dinheiro.

      — Tenho certeza de que não. Ele não é uma pessoa extravagante. Nunca o foi.

      — Mas a sua esposa o é.

      — Kay? — e após alguns minutos de reflexão. — Sim, talvez... mas isso é ridículo. Garanto que ultimamente a última coisa em que Nevile pensa é dinheiro.

      O Superintendente Battle pigarreou.

      — Tinha outras preocupações, não é mesmo?

      — Kay lhe contou? Tudo tem sido muito embaraçoso porém nada tem a ver com este terrível acontecimento.       

      — Provavelmente não. Mesmo assim, gostaria de ouvir a sua versão sobre o caso, Srta. Aldin.

      — Bem, como eu dizia, criou-se uma situação delicada. Seja lá de quem foi a idéia de...

      Ele a interrompeu astutamente.

      — Pelo que sei, a idéia foi do Sr. Nevile.

      — É o que ele diz.

      — Mas a senhorita não acredita — afirmou Battle.

      — Eu... não... não me parece próprio de Nevile. Sempre achei que alguém impingiu-lhe esta idéia.

      — Talvez a Sra. Audrey Strange?

      — É incrível acharmos que Audrey tenha feito tal coisa.

      — Neste caso quem mais poderia ser? — perguntou Battle.

      Mary levantou os ombros desarmada.

      — Eu não sei. É apenas... estranho.

      — Estranho — repetiu Battle pensativo. — Também acho muito estranho!

      — Tudo tem sido estranho. Tenho uma sensação... não sei bem descrevê-la. É alguma coisa no ar. Uma ameaça!

      — Todos tensos e nervosos?.

      — Sim. É isso. E todos nós sofremos as conseqüências. Até o Sr. Latimer...

      — Eu já ia lhe perguntar sobre ele. O que sabe a respeito do  Sr. Latimer, Srta. Aldin?

      — Bem, na verdade, pouco sei a respeito dele. É um amigo de Kay

      — Então, é amigo da Sra. Strange? Os dois se conhecem há muito tempo?

      —  Sim, ela o conheceu antes de se casar.

      — O Sr. Strange gosta dele?

      — Creio que bastante.

      — Então não há nenhum problema? — perguntou sutilmente Battle.

      — Certamente que não — respondeu Mary rápida e enfática.

      — Lady Tressilian gostava do Sr. Latimer?

      — Não muito.

      Battle notou o tom de indiferença em sua voz e mudou de assunto.

      — E Jane Barrett, a empregada, é digna de confiança?

      — Sim! Completamente. Era muito dedicada a Lady Tressilian.

      — Poderia considerar a possibilidade de Barrett assassinar sua patroa e dopar-se só para evitar que suspeitássemos dela?

      — É claro que não. Por que faria isso? — espantou-se Mary.

      — Como sabe, foi beneficiada com a herança.

      — E eu também — disse Mary Aldin encarando-o.

      — Sim, eu sei. Sabe quanto vai receber?              

      — O Sr. Trelawny, que chegou agora, acabou de me informar.                                                          

      — A senhorita não o sabia de antemão?

      — Não. É claro que supunha que ela me deixaria alguma coisa. Como sabe, não tenho dinheiro o suficiente para poder viver sem trabalhar. Achava que Lady Tressilian me deixaria uma renda de pelo menos 100 libras por ano, entretanto por ela ter alguns primos, não estava certa de como tencionava dispor do seu dinheiro. É evidente que eu sabia que a fortuna de Sir Matthew ficaria para Nevile e Audrey.

      — Então ela não sabia quanto Lady Tressilian ia deixar para ela? — comentou Leach quando Mary Aldin se retirou. — Pelo menos é o que ela diz!

      — É o que ela diz — repetiu Battle. — E agora interroguemos a primeira mulher do Barba Azul.

VII

      Audrey usava um conjunto de lã cinza-claro, que a deixava com o mesmo aspecto do fantasma que Kay descrevera: “um fantasma triste rondando pela casa”.

      Ela respondeu às perguntas com naturalidade e sem nenhum sinal de emoção.

      Tinha ido se deitar às 10 horas, a mesma hora que Mary Aldin. Não ouvira nada durante toda a noite.

      — Desculpe-me pela intromissão em sua vida particular, mas  poderia me  explicar  a  razão  da  sua  vinda  a  Gull's Point?

      — Sempre venho nesta época. Este ano meu... meu ex-marido  queria  vir nesta mesma época, e por isto me perguntou se me  incomodaria.

      — Foi sugestão dele?

      — Sim.

      — Não foi sua?

      — Não — respondeu categoricamente Audrey.

      — Mas a senhora não concordou?

      — Sim, concordei... não vi maneira de recusar.

      — Por que não, Sra. Strange?

      — Não gosto de ser descortês.

      — A senhora foi a parte injuriada? — perguntou Battle.

      — Como disse?

      — Foi a senhora quem pediu o divórcio?

      — Sim.

      — Sente pelo seu ex-marido algum rancor?

      — Não. Nem um pouco.

      — É muito generosa, Sra. Strange.

      Ela não respondeu. Ele tentou o silêncio, mas Audrey não era Kay para ser levada a falar. Poderia permanecer calada sem o menor sinal de inquietação. Battle considerou-se derrotado.

      — Tem certeza de que a idéia deste... deste encontro não foi sua?

      — Absoluta.

      — Mantém relações amigáveis com a atual Sra. Strange?

      — Acho que ela não gosta muito de mim.

      — E a senhora? Gosta dela?

      — Sim. Acho-a muito bonita.

      — Bem, obrigado. Acho que por enquanto é só. Levantando-se, ela dirigiu-se para a porta. Logo depois, hesitando... voltou.

      — Gostaria apenas de dizer... — falava nervosamente e depressa. — Os senhores acham que Nevile é o culpado... que a matou por causa do dinheiro. Tenho certeza de que não foi ele.  Estivemos casados por 8 anos, e sei como ele nunca ligou para  dinheiro. Não posso imaginá-lo matando alguém por esse motivo!  Sei que o que estou dizendo não tem muito valor... mas gostaria que me acreditassem.

      Virou-se e saiu da sala.

      — O que achou dela? — perguntou Leach. — Nunca vi ninguém tão... tão despida de emoção.

      — Ela não demonstrou nenhuma, mas garanto que existe alguma por debaixo daquela capa. Uma emoção muito forte, mas não sei qual é...

      O último a ser interrogado foi Thomas Royde. Estava sério e formal, piscando um pouco como uma coruja.

      Tinha vindo para casa, depois de 8 anos na Malásia. Desde menino tinha o hábito de se hospedar em Gull's Point. A Sra. Audrey Strange era uma prima distante e havia sido criada por sua família desde a idade de 9 anos. Na noite anterior, tinha ido se deitar um pouco antes das onze. Ouvira Nevile sair por volta das 10:20 ou talvez um pouco mais tarde; e não escutara nada de estranho durante a noite. Já tinha se levantado e estava no jardim, quando descobriram o corpo de Lady Tressilian. Ele era um madrugador.

      Houve uma pausa.

      — A Srta. Aldin nos disse que havia um clima de tensão na casa. O senhor também notou?

      — Não, acho que não. Não sou muito observador — respondeu Thomas.

      Está mentindo — pensou Battle. — Você observa tudo, diria até que muito mais do que os outros.

      Não. Ele não achava que Nevile estivesse com problemas de dinheiro. Certamente não era o que parecia, apesar de pouco saber sobre os negócios do Sr. Strange.

      — Conhece bem a segunda Sra. Strange?

      — Conheci-a somente agora.

      Battle deu sua última cartada:

      — Como já deve saber, Sr. Royde, encontramos não só as impressões digitais do Sr. Nevile na arma do crime, como também sangue na manga do paletó que usou ontem à noite.

      — Sim. Ele estava nos contando — murmurou Royde.

      — Vou lhe perguntar francamente: acha que foi ele quem a matou?

      Thomas Royde, que não gostava de ser apressado, esperou um pouco antes de responder.

      — Não vejo por que está me perguntando isso. Isso não é problema meu, e sim seu. Porém acho muito improvável .

      — Existe alguém que lhe pareça mais provável?

      — A única pessoa que considero plausível, não poderia tê-lo feito.  Assim, o assunto está encerrado.

      — E quem é essa pessoa? — indagou Battle.

      — Não direi, pois é apenas minha opinião particular — afirmou Royde, decidido.

      — É seu dever auxiliar a polícia.

      — Sim, mas  só com fatos concretos. Isso não é um fato, e sim uma idéia. E de qualquer modo teria sido impossível .

      — Não conseguimos  arrancar  muita coisa dele — comentou  Leach, depois da saída  de Royde.

      — É. Realmente não conseguimos. Ele tem algo em mente; alguma coisa bem definida, que eu gostaria de saber o que é. Este é um crime muito peculiar, Jim.

      Antes que Leach pudesse responder, o telefone tocou. Depois de ficar alguns minutos ouvindo, ele exclamou: “ótimo”, e desligou.

      — O sangue no paletó é do mesmo grupo sangüíneo que o de  Lady Tressilian — informou ele. — Parece que Nevile está em maus lençóis.

      Battle tinha ido até a janela e olhava para fora, com bastante interesse.

      — Lá fora  tem um jovem muito bonito  — observou ele — e diria também que bastante perigoso. É pena que o Sr. Latimer tenha estado em Easterhead Bay ontem à noite. Ele é o tipo de pessoa que esmagaria a cabeça da própria avó, se soubesse que com isso poderia tirar algum proveito.

      — Bem. Não lhe  cabe nenhuma  parte  da herança.  A morte de Lady Tressilian não o beneficia de forma alguma.

      O telefone tocou de novo.

      — Droga de telefone! O que será agora? — impacientou-se Leach indo atendê-lo.

      — Alô. Ah!... é o senhor, doutor?...O quê?... Ela se recuperou?... O quê?...  O quê?!

      — Tio! Venha só ouvir isto.

      Battle pegou o telefone e, como sempre, não havia nenhuma expressão em seu rosto.

      — Chame o Sr. Strange, Jim.

      Quando Nevile entrou, Battle estava acabando de colocar o fone  no  gancho.      

      Pálido e exausto, ele olhava curioso para o Superintendente da Scotland Yard, tentando adivinhar o que estava se passando  por  trás  daquele rosto  inexpressivo.

      — Sr. Strange, conhece alguém que não goste do senhor? Nevile negou com a cabeça.

      — Tem certeza? — Battle foi incisivo. — Quero dizer, alguém que realmente não goste do senhor, alguém que o deteste?

      — Não. É claro que1 não — sobressaltou-se Nevile.

      — Pense, por favor. Não existe alguém que, de alguma forma, tenha sido ofendido pelo senhor?

      Nevile ruborizou-se.

      — Há apenas uma pessoa a quem eu magoei, mas ela não é do tipo de guardar rancor.  A minha primeira esposa ficou muito magoada quando a deixei por outra mulher. Entretanto posso garantir-lhe que ela não me odeia. Ela... ela tem sido um anjo.

      O Superintendente debruçou-se na mesa.

      — É um homem de sorte, Sr. Nevile. Não digo que me agradassem as provas que o incriminavam, mas elas existiam. E, a não ser que os jurados gostassem muito da sua pessoa, elas seriam o suficiente para condená-lo.

      — O senhor fala como se tudo já pertencesse ao passado.

      — E  assim o é! O senhor foi inocentado  por  pura sorte.

      Nevile continuava  a olhá-lo, sem entender nada.

      — Depois que o senhor saiu do quarto de Lady Tressilian, ela tocou a campainha chamando a empregada. — Battle observava a maneira com que Nevile  assimilava o que tinha sido dito.

      — Depois... então Barrett a viu... — surpreendeu-se Nevile.

      — Sim  — afirmou o Superintendente. — Ela  estava viva. E antes que fosse atender a sua patroa, ela o viu deixando  a casa.

      — Mas o taco... e minhas impressões digitais?...

      — Ela não foi morta por aquele taco. Na  ocasião, notei que o Dr.  Lazenby não queria aceitá-lo como a arma do crime. Ela foi atingida por algum outro objeto. O taco foi colocado, deliberadamente, lá, para que as suspeitas recaíssem sobre o senhor. Deve ter sido alguém que ouviu a sua discussão e que o escolheu como a vítima perfeita. Ou então, pode ter sido porque...

      Parou e repetiu a pergunta:

      — Quem o detesta nesta casa, Sr. Nevile?

      — Tenho uma pergunta a lhe fazer, doutor — disse Battle.

      Estavam agora na casa do médico, depois de terem ido ao hospital, onde tinham tido uma pequena entrevista com Jane Barrett.

      Apesar de fraca e exausta, ela foi bem clara em seu depoimento; já ia se deitar, depois de tomar o seu chá de cássia, quando ouviu a campainha tocar. Quando olhou o relógio, eram 10:25 horas. Vestiu o roupão e desceu. Ao ouvir barulho no hall, debruçou-se no corrimão com curiosidade .

      — Era o Sr. Nevile preparando-se para sair. Estava pegando a sua capa no  cabide.

      — Que terno ele estava usando?

      — Um cinza listrado. Parecia muito preocupado e insatisfeito. Vestiu  a capa de  qualquer maneira, como se isto fosse o menos importante; saindo, batendo a porta logo em seguida. Entrei no quarto de Lady Tressilian. Coitada, estava muito sonolenta, e não conseguia se lembrar por que me havia chamado, o que já acontecera outras vezes.  Mas, mesmo assim, ajeitei seus travesseiros, colocando-a em uma posição confortável.

      — Ela parecia perturbada ou com medo de alguma coisa?

      — Não. Apenas cansada. Eu também estava cansada, bocejando o tempo todo. Subi e fui direto para a cama.

      Esta era a história de Barrett. Era impossível duvidar-se da sua genuína tristeza e horror diante da notícia da morte da sua patroa.

      Foram para a casa de Lazenby, onde Battle comunicou que tinha uma pergunta a fazer.

      — Pode fazê-la — consentiu Lazenby.

      — A que horas acha que Lady Tressilian morreu?

      — Já lhe disse. Entre as 10 horas e meia-noite.

      — Eu  sei. Mas o que estou querendo ouvir é a sua opinião pessoal.

      — Quer uma opinião extra-oficial?

      — Sim — respondeu  Battle  categoricamente.

      — Bem! Meus cálculos são de que foi por volta das 11 horas.

      — É isso que eu queria saber.

      — Por quê? — intrigou-se Lazenby.

      — Nunca fiquei satisfeito com a idéia  dela ter sido assassinada antes das 10:20. Veja bem: a esta hora os barbitúricos ainda não teriam feito efeito em Barrett. Isto prova que o crime estava preparado para ser cometido bem mais tarde. Eu ainda prefiro acreditar que foi à meia-noite.

      — Pode ser. Onze horas é apenas uma suposição.

      — Mas, definitivamente, não poderia ter sido depois da meia-noite? — insistiu Battle.

      — Não.

      — E depois das 2:30?

      — Não! Isso nunca!

      — Bem, sendo assim, parece que desta vez o Strange fica livre. Só me resta verificar os seus atos após a sua saída da casa. Se estiver falando a verdade, estará limpo, e teremos que procurar o criminoso entre os outros suspeitos.

      — Entre os herdeiros? — sugeriu Leach.

      — Talvez. Mas de alguma forma, não creio que seja isso.  Estou procurando uma pessoa com alguma anomalia.

      — Anomalia?

      — Sim. Uma anomalia sórdida — explicou Battle.

      Ao saírem da casa do médico, foram até o local das barcas, que eram operadas por dois irmãos, Will e George Barnes. Os irmãos Barnes conheciam de vista todas as pessoas de Saltcreek, e a maior parte dos que vinham de Easterhead Bay. George afirmou de imediato que, na noite anterior, o Sr. Strange de Gull's Point tinha atravessado na barca das dez e meia. Não. Ele não trouxera o Sr. Strange de volta. A última barca saíra de Easterhead à uma e meia, e o Sr. Strange não estava nela.

      Battle perguntou se ele conhecia o Sr.  Latimer.

      — Latimer? Latimer? Um jovem alto, bonitão, que costuma vir do hotel para Gull's Point? Sim, eu o conheço. Ontem à noite, entretanto, não o vi. Esta manhã ele atravessou conosco para Gull's Point, só voltando agora na última viagem.

      Chegando ao Hotel Easterhead Bay, encontraram Latimer que acabara de regressar. Estava muito ansioso para ajudar no que pudesse.

      — Sim, o velho Nevile veio aqui ontem à noite, e parecia muito deprimido. Contou-me que tivera uma briga com a  velha senhora. Soube depois que ele e Kay discutiram, mas isso, é claro, ele não me contou. De qualquer modo, ele estava bem desanimado, e parecia satisfeito em ter a minha companhia.

      — Fui  informado de  que  foi  meio  difícil  para  o  Sr. Nevile encontrá-lo.

      — Não entendo por que, se eu estava na sala de estar — explicou Latimer. — Strange disse que me procurou mas que não me viu. A verdade é que ele estava perturbado demais para se concentrar, ou eu mesmo posso ter saído por uns  cinco minutos, para  dar uma  volta  pelo  jardim. Saio sempre que posso, pois há um cheiro muito desagradável neste hotel. Notei isso ontem à noite no bar. Acho  que é o esgoto. Nevile também sentiu o mesmo cheiro repulsivo. Pode ser até um rato morto  debaixo do chão da  sala de bilhar.

      — Vocês jogaram bilhar, e depois?

      — Conversamos e bebemos mais um pouco, até que Nevile percebeu que tinha perdido a última barca. Foi aí que eu me ofereci para levá-lo  em meu carro, e se  estou certo, chegamos a Gull's Point por volta das duas e meia.

      — E o Sr. Strange esteve em sua companhia durante toda a noite?

      — Mas é claro! Pode perguntar a qualquer pessoa.

      — Obrigado, Sr. Latimer.  Temos que ser muito cuidadoso.

      Assim que deixaram o controlado e  sorridente jovem, Leach perguntou:

      — Onde está querendo chegar, com todas estas minuciosas investigações a respeito do Sr. Nevile?

      Battle sorriu, e de repente Leach compreendeu tudo.

      — Ora veja, é o outro que você está inspecionando. Então é essa a idéia!

      — Ainda é cedo para se ter idéias — afirmou Battle. — Tenho apenas que saber exatamente onde o Sr. Latimer esteve ontem à noite. Só sabemos que das onze e quinze à meia-noite ele estava com Nevile Strange. Mas onde esteve ele antes disso, fazendo com que o Sr.  Nevile não o pudesse encontrar?

      Continuaram a entrevistar com insistência os barmen, garçons, ascensoristas. Entre nove e dez horas, Latimer tinha sido visto na sala de estar, e estivera no bar às dez e quinze. Mas entre aquela hora e onze e vinte, ele estivera singularmente desaparecido. Por fim, encontraram uma empregada que declarou que o Sr. Latimer tinha estado em um dos pequenos escritórios com a Sra. Beddoes, uma gorda senhora do norte do país.

      Pressionada quanto à hora, ela disse que deveria ter sido por volta das onze horas.

      — Bem, isto resolve tudo — concluiu Battle tristemente.   — Ele estava mesmo aqui. Apenas não queria atrair atenção para sua gorda e, sem dúvida, rica amiga. Isto nos leva de volta aos outros:  os  criados, Kay Strange, Audrey Strange, Mary Aldin e Thomas Royde. É mais do que certo que uma dessas pessoas tenha matado a velha senhora, mas quem? Se pudéssemos descobrir a verdadeira arma do crime...

      Ele parou, e em seguida bateu com força na perna.

      — Achei, Jim! Agora sei o que me fez lembrar de Hercule Poirot. Vamos almoçar rapidamente e voltar a Gull's Point, onde  tenho  algo  a lhe  mostrar.

      Mary Aldin estava inquieta, entrando e saindo da casa; colhendo uma dália aqui e outra ali; arrumando os jarros de flores quase que mecanicamente.

      Da biblioteca vinha um vago murmúrio de vozes. O Sr. Trelawny estava lá com Nevile, enquanto Kay e Audrey não se encontravam por perto.

      Mary retornou ao jardim. E vendo Thomas Royde fumar tranqüilamente, foi se juntar a ele.

      — Oh, meu Deus! — suspirou aturdida, sentando-se a seu lado.

      — Algum problema? — perguntou Thomas.

      Mary riu. Havia uma ponta de histeria em seu riso.

      — Só mesmo você diria uma coisa desta. Com um assassinato em casa e você apenas pergunta “algum problema?”.

      Parecendo um pouco surpreso, Thomas disse:

      — Estava me referindo a  alguma novidade especial.

      — Ah, eu sei o que você estava querendo dizer. É realmente um grande alívio encontrar alguém tão magnificamente imperturbável como você!

      — Não adianta ficar nervoso, adianta?

      — Não. Não. Você é profundamente sensato. O que me intriga é saber como consegue ser assim.

      — Bem, suponho que seja, porque sou um estranho.

      — Bem isto é verdade, é claro. Você não pode sentir o alívio que nós sentimos, depois que soubemos que Nevile foi inocentado.

      — Mas mesmo assim, é claro que estou satisfeito — falou Royde.

      — Ele esteve por um fio. Se Camilla não tivesse tocado a campainha para chamar Barrett depois que Nevile saiu...

      Thomas terminou a frase que ela deixara incompleta.

      — Nevile estaria perdido! — isto foi dito com uma certa satisfação, ao mesmo tempo em que balançava a cabeça com um pequeno sorriso ao notar o olhar reprovador de Mary. — Não pense que sou cruel, mas agora que a situação de Nevile foi esclarecida, não posso deixar de sentir um certo prazer por saber que ele se abalou com tudo isso. Ele sempre foi tão presunçoso.

      — Ele não é nada disso, Thomas — disse Mary.

      — É. Talvez seja por causa do seu jeito. De qualquer maneira, ele parecia um bocado assustado hoje de manhã.

      — Que maldade, Thomas! — irritou-se ela.

      — Bem. Agora não há mais perigo. Sabe, Mary, até mesmo neste caso Nevile teve uma sorte danada. Qualquer outro sujeito que tivesse contra ele todas aquelas provas acumuladas  não teria tido nenhuma chance.

      — Não diga isto. Gosto de pensar que os inocentes são... protegidos.

      — Você gosta, minha querida? — sua voz era amável.

      — Thomas, estou muito preocupada. Preocupada e assustada.

      — Com o quê?

      — É a respeito do Sr. Treves.

      Thomas deixou cair o cachimbo nas pedras. Sua voz mudou quando abaixou-se para apanhá-lo.

      — Sobre o que você está falando?

      — Lembra aquela noite que ele veio aqui... e aquela história que contou sobre um pequeno assassino? Estive pensando, Thomas... será que era apenas uma história, ou ele a contou de propósito?

      — Você está querendo me dizer que ele visava um dos presentes?

      — Sim — murmurou Mary.

      — Eu também estive pensando — comentou Thomas calmamente. — Na realidade, estava pensando sobre isto agora mesmo, quando você chegou.

      — Estive tentando me lembrar... ele contou a história tão deliberadamente. Foi como se estivesse forçando o assunto na  conversa. Disse ainda que reconheceria a pessoa em qualquer lugar. Ele salientou bem esta parte, como se já a tivesse reconhecido.

      — Hum... já pensei nisto tudo — disse Thomas.

      — Mas por que ele faria isto? Qual seria o seu objetivo?

      — Imagino que tenha sido como uma espécie de advertência, e não como alguma forma de experiência.

      — Acha que o Sr, Treves sabia que Camilla iria ser assassinada? — espantou-se Mary.

      — Não. Isto seria fantástico demais. Pode ter sido apenas uma advertência geral.

      — Acha que eu deveria contar isto à polícia?

      — Acho que não — respondeu Thomas finalmente, depois de refletir bastante. — Não me parece importante. Não é como se o Sr. Treves estivesse vivo e pudesse informar-lhes alguma coisa.

      — Não. Ele está morto! — afirmou Mary estremecendo. — A maneira como ele morreu, Thomas, foi tão estranha.

      — Foi um ataque do coração. Ele tinha problemas cardíacos.

      —  Refiro-me ao fato curioso do elevador estar quebrado. Não gostei nada daquilo.

      — Eu também não — reforçou Thomas Royde.

      O Superintendente Battle olhou em torno do quarto. A única coisa que mudara era a cama que tinha sido feita. No mais, continuava tão arrumado como antes.

      — É isto — disse o Superintendente Battle, apontando para a antiquada grade da lareira. — Vê alguma coisa de estranho naquela grade?   

      — Está precisando de limpeza — observou Jim Leach. — Está bem conservada. Não vejo nada de anormal, exceto... Sim! A esfera da extremidade esquerda está mais brilhante do que a da direita.

      — Foi isto que me fez lembrar Hercule Poirot — explicou Battle. — Você conhece a sua mania pelas coisas que não estão em perfeita simetria. Acho que, inconscientemente, eu pensei: “isto teria chamado a atenção do velho Poirot”, e então comecei a falar sobre ele. Trouxe seu equipamento de impressões digitais, Jones? Vamos dar uma olhada nessas esferas.                                                  

      — Há impressões na esfera do lado direito, senhor, mas nenhuma na do lado esquerdo.

      — Então é a esfera esquerda que queremos.  Aquelas outras impressões são da empregada, quando ela fez a limpeza pela última vez.   A esfera da esquerda já havia sido limpa.

      — Encontrei na cesta de lixo alguns papéis amassados — informou Jones. — Não pensei que pudessem ter qualquer importância.

      — É porque na ocasião você não sabia o que estava procurando. Entretanto aposto como, neste momento, o que você mais gostaria é de desatarrachar esta esfera... sim, foi o que pensei.

      Jones segurou a esfera.

      — É bem pesada — falou ele, avaliando o peso com as mãos.

      — Tá algo escuro no parafuso — disse Leach olhando com atenção.

      — Provavelmente é sangue — disse Battle. — A pessoa limpou a esfera cuidadosamente, entretanto não notou esta pequena mancha no parafuso. Aposto o que você quiser, como esta foi a arma que esmagou a cabeça de Lady Tressilian. Contudo, ainda há muito mais a se descobrir. Você, Jones, fica encarregado de dar uma nova busca pela casa. Só que, desta vez, você saberá exatamente o que procura.

      Deu mais algumas instruções detalhadas, e foi olhar na janela.

      — Há alguma coisa amarela presa nas plantas. Aquilo pode ser mais uma  peça do quebra-cabeça. E  é provável que seja.

      Ao atravessar o hall, o Superintendente Battle foi interpelado por Mary Aldin.

      — Poderia falar-lhe um  minuto, Superintendente?

      — Mas é claro, Srta. Aldin. Entremos aqui — e abriu a porta da sala de jantar.

      — Gostaria de lhe fazer uma pergunta.  Certamente o senhor não continua a acreditar que este... este crime horrível tenha sido cometido por um de nós. Só pode ter sido um estranho! Um maníaco!

      — Neste ponto, a senhorita não  deve  estar enganada, pois creio que  esta é  a melhor palavra para descrever o criminoso. Mas a verdade é que  o crime  não foi  cometido por um estranho.

      — Quer dizer que alguém nesta casa é... é louco? — perguntou ela com os olhos arregalados.

      — Se a senhorita está pensando em alguém com a boca espumante e olhos revirados, não é bem isso. Alguns dos mais perigosos criminosos parecem tão sadios  quanto qualquer um de nós. Normalmente trata-se  de  uma  obsessão, como se fosse uma idéia que  ficasse  remoendo  no  pensamento, e que aos poucos o vai corrompendo. Pessoas patéticas  e  racionais vêm a nós, para nos contar como estão sendo perseguidas e como os seus atos e movimentos são espionados. Algumas vezes chegamos até a acreditar que é tudo verdade.

      — Asseguro-lhe que aqui ninguém tem mania de  perseguição.           

      — Citei apenas um exemplo. Há no entanto outras formas de insanidade. Minha opinião é de que quem cometeu este crime estava  totalmente dominado por uma idéia fixa. Uma idéia que foi se desenvolvendo até ter a máxima importância.

      Mary estremeceu, e disse:

      — Creio que há algo que o senhor deveria saber.

      Ela contou, de um modo claro e sucinto, a visita do Sr. Treves e a história que ele havia contado. O Superintendente  Battle mostrava-se  profundamente  interessado.

      — Ele reconheceu essa pessoa? Por acaso... era homem ou  mulher?

      — Eu achei que a história era sobre um menino, mas a verdade é que ele não afirmou nada... aliás estou me lembrando agora de que ele falou claramente que não iria especificar nem o sexo,  nem a idade.

      — É mesmo? Isto é muito significativo. E disse também que havia uma peculiaridade física, que faria com que ele reconhecesse esta criança em qualquer lugar?

      — Sim — respondeu  ela.

      — Talvez uma cicatriz. Porventura, alguém aqui tem alguma cicatriz? — indagou  Battle.

      Ele percebeu a hesitação de Mary Aldin antes que respondesse:

      — Não que eu tenha notado.

      — Ora, Srta. Aldin — ele sorriu —, é evidente que a senhorita notou. É muita ingenuidade sua achar que eu não serei capaz de notá-la também, não acha?

      — O senhor está enganado!

      Ele pôde observar o quanto ela estava assustada. Obviamente as suas palavras tinham produzido uma desagradável sucessão de pensamentos. Ele desejaria saber qual era, mas a sua experiência lhe deixava ciente de que pressioná-la, naquele momento, não levaria a nada.

      Ele voltou ao assunto do velho Sr. Treves. Mary narrou o fato trágico ocorrido naquela noite.

      Battle interrogou-a detalhadamente. Ao terminar, comentou:

      — Isto é novo para mim. Nunca me deparei com nada igual.

      — O que quer dizer?

      — Nunca tomei conhecimento de um assassinato cometido  pelo simples ato de se pendurar um aviso na porta do elevador.

      — O senhor não acha realmente que... — ela falou horrorizada.

      — Que foi assassinato? É claro que foi! Um crime rápido e ligeiro. É lógico que poderia ter falhado... mas isto não aconteceu.

      —  Apenas porque o Sr. Treves sabia...

      — Sim. Ele poderia fazer com que a nossa atenção se voltasse para um dos ocupantes da casa. Do jeito que aconteceu, começamos no escuro. No entanto já temos um vislumbre de luz, e a cada minuto que passa o caso se esclarece mais e mais. Digo-lhe  uma coisa, Srta. Aldin, este crime foi   cuidadosamente   planejado   em seus mínimos detalhes. Quero alertá-la para uma coisa: não deixe ninguém saber o que me contou. Isto é muito importante. Por favor, não comente com ninguém.

      Apesar de meio confusa, Mary Aldin concordou com a cabeça.

      O Superintendente Battle saiu da sala e encaminhou-se para fazer o que deveria ter feito, se não fosse a interrupção de Mary. Era um homem metódico e que desejava certas informações. Uma nova e promissora pista, por mais tentadora que pudesse ser, não o distrairia do cumprimento ordenado de suas obrigações. Bateu na porta da biblioteca, e Nevile Strange respondeu:

      — Entre.

      Battle foi apresentado ao Sr. Trelawny, um homem alto, de  aparência  distinta  e de olhos  penetrantes.

      — Desculpe-me se os estou interrompendo — justificou-se o  Superintendente Battle  —, porém há uma coisa que ainda não está esclarecida: o senhor, Sr. Strange, herdará a metade da fortuna do falecido Sir Matthew. Quem receberá a outra metade?

      Nevile pareceu  surpreso.

      — Eu já lhe disse. É a minha esposa.

      — Sim. Mas qual delas,  Sr.  Strange?

      — Ah, entendo. Desculpe-me se me expressei mal. O dinheiro vai para Audrey, porque na ocasião em que o testamento foi feito era ela a minha esposa. Está correto, Sr. Trelawny?

      O advogado concordou.

      — O  testamento é bem claro. A herança é para ser dividida entre o tutelado de Sir Matthew, Nevile Henry Strange, e sua esposa, Audrey Elizabeth Strange, nascida Standish. O divórcio não altera em nada.

      — Bem, agora está esclarecido. A Sra. Audrey Strange já está ciente destes fatos?

      — Mas é óbvio — assegurou o  Sr. Trelawny.

      — E quanto à atual Sra. Strange?

      — Kay? — Nevile parecia ligeiramente surpreso. — Suponho que sim! Pelo menos... nunca falamos muito sobre este assunto.

      — Então houve um mal-entendido — disse Battle. — A Sra. Kay pensa que, com a morte de Lady Tressilian, o dinheiro ficará para o senhor e para ela, por ser a sua atual esposa. Pelo menos, foi isto que ela deu a entender esta manhã. Sendo assim, resolvi vir aqui para descobrir qual é a verdadeira situação.

      — É incrível! — comentou Nevile. — Entretanto, imagino que  isto possa ter acontecido facilmente. Pensando bem, agora me  lembro dela ter dito uma ou  duas vezes: “quando Camilla morrer, receberemos aquele dinheiro”, mas naturalmente imaginava que ela se referia a nós dois, só levando em conta a minha parte na herança.

      — É espantoso — afirmou Battle — o número de mal-entendidos que pode existir, mesmo entre duas pessoas que discutam um certo assunto com bastante freqüência: cada uma  delas entende o que melhor lhe convém, sem que o outro  desconfie  de  qualquer disparidade  de  pensamento.

      — É. Suponho que sim — disse Nevile não parecendo muito  interessado. — De qualquer forma, neste caso, isto não tem muita importância, porque nós realmente não precisamos de dinheiro. Fico muito satisfeito por Audrey. Ela tem passado por dificuldades e este  testamento fará  uma grande diferença para ela.

      — Mas é certo que, ao ser discutido o divórcio, uma pensão tenha sido estabelecida, não?

      Nevile, ruborizando-se, falou  com  a voz constrangida:

      — Existe uma coisa chamada orgulho, Superintendente. Audrey sempre se recusou a tocar em um centavo da pensão que lhe enviava.

      — Uma pensão muito generosa — acrescentou o senhor Trelawny. — Mas mesmo assim, a Sra. Audrey Strange sempre devolvia o dinheiro.

      — Muito interessante — comentou Battle, retirando-se antes que pudessem lhe pedir qualquer explicação sobre o seu comentário.

      Foi ao encontro de seu sobrinho.

      — Aparentemente — comentou ele —, cada uma das pessoas envolvidas neste caso tem um bom motivo monetário: Nevile e Audrey Strange receberão 50.000 libras cada um; Kay Strange pensa  que  tem direito a  50.000;  Mary Aldin ficará com uma renda que lhe possibilitará viver sem nunca mais ter que trabalhar. Quanto a Thomas Royde, sou obrigado a confessar que é o único que nada ganhará. Entretanto, podemos incluir Hurstall e até mesmo Barrett, se admitirmos a hipótese de que ela tenha se arriscado a morrer  para evitar suspeitas. Sim, como eu já disse, não faltam motivos levados pelo dinheiro; apesar de achar que ele nada tem a ver com este crime. Este é um típico assassinato movido por puro ódio. E se não aparecer ninguém para atrapalhar o  meu trabalho, vou pegar a pessoa culpada!

      Mais tarde, ele ficou imaginando por que teria colocado aquela frase em sua cabeça.

      Andrew MacWhirter havia chegado em Easterhead Bay no sábado anterior.

      Andrew MacWhirter estava sentado no terraço do Hotel Easterhead Bay, olhando fixamente para o outro lado do rio onde ficava a sombria elevação do Stark Head. No momento, estava ocupado fazendo um cuidadoso levantamento de seus pensamentos e emoções.

      Aqui, sete meses atrás, ele tentara contra a própria vida. O acaso, apenas o acaso, tinha intervido. Estaria ele grato a tudo isto?

      Ele decidiu, orgulhosamente, que não. Era verdade que no momento presente não sentia a menor vontade de se matar. Esta fase tinha acabado para sempre. Agora estava disposto a cumprir a tarefa de viver, não com entusiasmo ou mesmo prazer, mas apenas com o metódico espírito do dia-a-dia. Ninguém pode, isto ele admitia, tirar a própria vida a sangue frio. Terá que haver um estímulo extra como o desespero, a tristeza, ou a paixão. Não se pode cometer suicídio meramente por sentir-se que a vida é uma triste sucessão  de  acontecimentos  desinteressantes.

      Ele supunha que agora poderia ser considerado um homem de bastante sorte. O destino, depois de ter-se mostrado adverso, agora sorria-lhe. Ele porém não estava com ânimo para sorrir em retribuição. Seu senso de humor foi revitalizado com a lembrança da entrevista para a qual havia sido convocado por aquele rico e excêntrico nobre, Lorde Cornelly.

      — Você é o MacWhirter? Era você quem estava com Herbert Clay, não? Clay teve sua carteira de motorista apreendida porque você se negou a dizer que ele estava dirigindo a 40 quilômetros por hora. Certa noite, quando nos contou sobre todos os fatos, ele estava lívido. “Maldito escocês teimoso!”, disse-nos ele. E aí eu pensei comigo mesmo que era este o tipo de sujeito que eu queria: um homem que não se deixa subornar. Comigo, você não terá que dizer mentiras, porque não é assim que trabalho. Eu vivo à cata de homens honestos... e como existem poucos  por  aí!

      O nobre soltara uma gargalhada, e seu rosto astuto ganhara um aspecto alegre e jovial. MacWhirter permanecera indiferente, não se divertindo nem um pouco.

      Porém havia conseguido um trabalho, um bom trabalho, e seu futuro estava assegurado. Dentro de uma semana ele deixaria a Inglaterra rumo à América do Sul.

      Não sabia bem por que escolhera aquele lugar para passar seus últimos dias de lazer. Só sabia que alguma coisa o arrastara até ali. Talvez o desejo de se pôr à prova, de ver se em seu coração ainda havia algum vestígio do antigo desespero.

      Mona? Atualmente ele pouco se importava. Ela estava casada com outro homem. Certo dia haviam se cruzado na rua, sem que ele sentisse qualquer emoção. Ainda podia lembrar sua tristeza e amargura quando ela o abandonara, mas agora isto tudo pertencia ao passado.

      Ele foi despertado de seus pensamentos pelo impacto de um cachorro molhado e a agitação de sua nova amiga de 13 anos, Diana Brinton.

      — Ah, saia daí, Don. Venha!  Não é horrível? Ele se esfregou lá na praia, em algum peixe ou coisa parecida. E pelo jeito o peixe estava podre.

      O nariz de MacWhirter confirmou esta hipótese.

      — O peixe estava  preso  entre  as  pedras — explicou a menina Brinton. — Levei Don até o mar e tentei lavá-lo, mas parece que não adiantou nada.

      MacWhirter concordou. Don, um terrier pêlo-de-arame, de temperamento amigo e amoroso, parecia magoado com a atitude de seus amigos, em mantê-lo preso aos braços.

      — A água do mar não serve para isto. A única coisa que resolve é água quente e sabão — observou MacWhirter.

      — Eu sei. Porém em um hotel isto não é lá muito fácil. Não temos banheiro privativo.

      Levando Don pela coleira, MacWhirter e Diana acabaram entrando, sorrateiramente, pela porta lateral, conduzindo-o clandestinamente para o banheiro de MacWhirter. Fizeram uma limpeza completa. Tanto ele como a menina ficaram muito molhados. Quando tudo terminou, Don estava muito triste.

      Outra vez este cheiro horrível de sabonete... e logo agora que ele encontrara um perfume realmente agradável, capaz de fazer inveja a qualquer pessoa. Bem, era sempre a mesma coisa com os humanos... eles não tinham o sentido do olfato aguçado.

      Este pequeno incidente deixara MacWhirter mais animado. Pegou o ônibus para Saltington, onde havia deixado um terno na lavanderia.

      A moça encarregada da Lavanderia 24-Horas olhou-o com uma expressão vazia.

      — MacWhirter, o senhor disse? Receio que a roupa não esteja pronta.

      Mas já deveria estar. Haviam-no prometido para ontem e, mesmo assim, já se teriam passado 48 horas e não 24. Uma mulher teria dito tudo isto, entretanto ele apenas franziu a testa.

      — Ainda não houve tempo para ficar pronta — disse a moça, sorrindo com indiferença.

      — Conversa fiada!

      A moça parou de sorrir e falou com rispidez:

      — Seja lá como for, não está pronta!

      — Então vou levar agora mesmo, do jeito que estiver — retrucou MacWhirter.

      — Ainda  nem começamos o serviço — preveniu-o  a garota.

      — Vou levar assim mesmo.

      — Talvez possa  ficar pronto amanhã... como favor especial.

      — Não tenho o hábito  de pedir favores  especiais. Só quero que me entregue o terno, por favor.

      Lançando-lhe um olhar mal-humorado, a moça dirigiu-se à sala dos fundos. Voltou com um embrulho mal feito que empurrou para o outro lado do balcão.

      MacWhirter, pegando-o, saiu.

      Ele se sentiu, apesar de ridiculamente, como se tivesse conseguido uma vitória. Na verdade isso apenas significava que ele teria que mandar o terno para outro lugar!

      Chegando ao hotel, jogou o embrulho em cima da cama, extremamente aborrecido. Talvez pudesse ser lavado e passado lá mesmo. Na verdade, não estava muito sujo... quem sabe nem precisasse ser lavado?

      Ao desfazer o embrulho, apareceu em seu rosto uma expressão de aborrecimento. Realmente, a Lavanderia 24-Horas era ineficiente demais para ser descrita. Este não era o seu terno. Não era nem da mesma cor! O dele era azul-marinho. O serviço era confuso e ineficaz!

      Olhou irritado para a etiqueta que tinha o nome de MacWhirter. Seria um outro MacWhirter ou alguma estúpida troca de etiquetas?

      Olhando contrariado para o amontoado de roupas amassadas, sentiu, repentinamente, um odor estranho. Certamente ele conhecia aquele cheiro, um cheiro desagradável... ligado de alguma forma a um cachorro. Sim, era isto! Diana e seu cachorro. Era sem dúvida o mau cheiro do peixe podre.

      Curvando-se, ele examinou o terno. No ombro do paletó» havia um pequeno pedaço de pano desbotado. No ombro...

      Isto — pensou MacWhirter — é realmente muito curioso...

      De qualquer modo, no dia seguinte, ele iria ter uma conversa com a moça da lavanderia, que por sinal tinha uma péssima administração.

      Depois do jantar, ele saiu do hotel e andou até as barcas. Era uma noite clara, apesar de fria, com um vento cortante, antecipando o inverno. O verão acabara.

      MacWhirter atravessou de barca até a margem de Saltcreek. Esta era a segunda vez que voltava a Stark Head, e mesmo assim, o lugar exercia uma espécie de fascínio sobre ele. Subiu vagarosamente o morro, passando pelo Hotel Balmoral Court. Adiante, viu uma grande casa na beira de um penhasco, onde leu um nome no portão: Gull's Point.

      É claro! Fora ali que a velha senhora havia sido assassinada. No hotel comentaram muito sobre o caso: a camareira insistia em lhe contar tudo que sabia, e os jornais haviam dado muito destaque ao assunto, o que tinha lhe desagradado, pois preferia ler notícias de interesse geral e não sobre crimes,

      Prosseguiu seu caminho. Descendo novamente o morro, dirigiu-se até a margem de uma pequena praia, onde havia algumas cabanas antigas, as quais tinham sido modernizadas. Em seguida tornou a subir até o final do caminho e, exausto, tomou o atalho que o levaria a Stark Head.

      Stark Head era sombrio e misterioso. MacWhirter ficou parado à beira do penhasco olhando para o mar. Fora desta mesma forma que ele ficara naquela outra noite. Tentou relembrar alguns dos sentimentos que tivera então: o desespero, a raiva, a exaustão, o desejo de se ver livre de tudo. No entanto, não havia mais nada para ser relembrado. Agora, tudo aquilo pertencia ao passado. Ficara apenas uma raiva profunda: preso naquela árvore, salvo pelos guardas, tratado no hospital como uma criança malcriada e uma série de indignidades e afrontas. Por que não o haviam deixado sozinho? Ele teria preferido mil vezes ficar livre de tudo; e ainda pensava assim. A única coisa que perdera fora a impetuosidade necessária.

      Naquela época, como lhe doía pensar em Mona! Atualmente, porém, conseguia se lembrar dela com muita tranqüilidade. Ela sempre fora muito tola: era facilmente envolvida por qualquer pessoa que soubesse lhe adular e cortejar. Era muito bonita, realmente muito bonita, mas nada inteligente. Não era o tipo de mulher com quem ele sonhara algum dia.

      Mas aquilo era a beleza, é claro... A imagem vaga e fantasiosa de uma mulher, com sua roupa branca esvoaçante, correndo através da noite... algo como a figura de um navio, porém não tão bravia... nem tão sólida...

      E então, mais que de repente, o incrível aconteceu! Dentro da noite, surgiu uma figura correndo. Por um momento, ela não estava lá... e no momento seguinte, lá estava ela... uma figura branca correndo... correndo em direção à beira do penhasco. Uma figura bonita e desesperada, sendo levada à destruição, perseguida pelas Fúrias! Correndo num desespero terrível... ele conhecia aquele desespero. Ele sabia o que significava...

      Com um salto brusco, ele saiu das sombras e conseguiu segurá-la no exato momento em que ela ia pular!

      — Não! Você não vai fazer isso... — condenou-a com firmeza.

      Era como se ele estivesse segurando um pássaro. Ela se debateu... se debateu silenciosamente, e então, novamente como um pássaro, ficou completamente imóvel.

      MacWhirter exclamou ansioso:

      — Não se mate! Nada Tale isto. Nada! Mesmo que você esteja desesperadamente infeliz...

      Ela emitiu um som. Era talvez como o riso de um fantasma distante.

      — Você não é infeliz? Então qual é o seu problema? — perguntou bruscamente.

      Ela respondeu de imediato, com um sussurro:

      — Medo!

      — Medo? — ele ficou tão atônita que a soltou, dando um passo para trás a fim de que pudesse vê:la melhor.

      Compreendeu então a veracidade de suas palavras. Foi o medo que tinha colocado aquela premência em seus passos. Era o medo que fazia com que seu pequeno e inteligente rosto branco estivesse vazio e aparvalhado. Era o medo que arregalava aqueles olhos.

      — De que você tem medo? — perguntou ele incrédulo.

      Ela lhe respondeu tão baixo que ele mal pôde ouvir.

      — Tenho medo  de  ser enforcada...

      Sim. Fora isto mesmo que ela dissera. Ele ficou encarando-a fixamente e, em seguida, desviou o olhar para a beira do penhasco.

      — Então é por isto?

      — Sim. Uma morte rápida ao invés de... — ela fechou os olhos e estremeceu. Continuou a estremecer.

      De uma forma lógica, MacWhirter juntava as peças em seu cérebro, como num jogo de quebra-cabeça. Finalmente ele falou:

      — Lady Tressilian? A velha senhora que foi assassinada? — Em seguida, falou acusador: — A senhora deve ser a Sra. Strange... a primeira Sra. Strange.

      Ainda tremendo, ela concordou com a cabeça.

      Com a voz calma e cuidadosa, MacWhirter continuou. tentando se lembrar de tudo o que ouvira. Agora os rumores tomavam forma.

      — Eles detiveram seu marido, não é verdade?  Havia muitas  provas contra ele, mas aí então descobriram que tinham sido forjadas por alguém que...

      Calando-se, ele a encarou. Ela parara de tremer. Estava imóvel, olhando-o como uma criança dócil. MacWhirter achou a  sua  atitude  profundamente  comovente.

      Ele continuou a falar:

      — Eu entendo... sim, eu entendo o que aconteceu... Ele a abandonou por outra mulher, não foi?... e você estava apaixonada por ele... foi por isso... — e fez uma pausa. — Eu compreendo. Minha mulher também me deixou por outro homem.

      Repentinamente ela estendeu os braços e começou a gaguejar desesperada:

      — N... não é... n-n-nada disso. N... não é...

      Com a voz firme e autoritária, ele a fez calar.

      — Vá para casa. Não precisa mais ter medo, está me ouvindo? Cuidarei para que você não seja enforcada!

      Mary Aldin estava deitada no sofá da sala de visitas. Sentia-se completamente exausta, e a cabeça lhe doía.

      O inquérito tivera lugar no dia anterior. E após as formalidades de identificação, ficara adiado por uma semana.

      O funeral de Lady Tressilian seria no dia seguinte. Audrey e Kay tinham ido de carro a Saltington a fim de providenciar algumas roupas para o luto. Ted Latimer as acompanhara. Nevile e Thomas tinham ido dar uma volta. Sendo assim, à exceção dos empregados, Mary estava sozinha em casa.

      O Superintendente Battle e o Inspetor Leach não haviam aparecido, o que também era um alívio. Parecia que, com a ausência deles, uma sombra sumira. Eles haviam sido bastante educados, e é verdade que até bem agradáveis. Contudo, as perguntas incessantes e todas aquelas investigações de cada fato eram o tipo de coisa que arrasaria com os nervos de qualquer um. Agora, o Superintendente de fisionomia indecifrável já deveria saber de cada incidente, cada palavra e até cada gesto dos últimos dez dias. Agora, com a sua ausência, havia paz. Assim, Mary deixou-se descansar. Ela iria esquecer tudo... tudo. Apenas recostar-se, sem pensar em nada.

      — Perdão senhora... — interrompeu-lhe uma voz.

      Era Hurstall, à porta, parecendo desculpar-se.

      — O que é, Hurstall?

      — Um cavalheiro deseja vê-la. Levei-o para o escritório.

      Mary olhou-o surpresa e um tanto aborrecida.

      — Quem é ele?

      — Apresentou-se como MacWhirter, senhora.

      — Não o conheço — estranhou ela.

      — Não, senhora.

      — Deve ser um repórter. Não deveria tê-lo deixado entrar, Hurstall.

      — Não creio que seja um repórter, senhora. Acho que é um amigo da Sra. Audrey — pigarreou ele.

      — Bem, assim é diferente.

      Sentindo-se bastante cansada, Mary, ajeitando os cabelos, atravessou o hall em direção do pequeno escritório. Chegando lá, ficou um tanto perplexa quando o homem alto que estava parado à janela se virou, pois não parecia em nada com um amigo de Audrey.

      Mesmo assim ela lhe falou amavelmente:

      — Sinto muito, mas a Sra. Strange não está. O senhor queria vê-la?

      — A senhorita deve ser a Srta. Aldin? — e examinou-a pensativo.

      — Sim, sou eu.

      — Acredito também que a senhorita possa me ajudar. Preciso ver se há alguma corda por aqui.

      — Corda? — exclamou ela extremamente intrigada.

      — Sim, uma corda! Tem idéia de onde possa estar guardada?

      Mais tarde Mary concluiu que deveria estar semi-hipnotizada. Se aquele estranho homem tivesse dado qualquer explicação, talvez ela tivesse resistido. Entretanto, Andrew MacWhirter, incapaz de pensar em uma explicação plausível, limitou-se simplesmente a dizer o que queria.

      Assim, ela se encontrava, semi-entorpecida, conduzindo-o à procura da tal corda.

      — Que tipo de corda o senhor está procurando? — perguntou ela.

      — Serve qualquer uma — respondeu ele.

      — Talvez lá no depósito...

      — Vamos até lá? — pediu MacWhirter.

      Ela o conduziu ao local. Lá, encontraram não só um pedaço de corda trançada, mas também um tipo de barbante, mais grosso. No entanto, isto não lhe agradou. O que ele queria era uma corda... um bom pedaço de corda...

      — Há um outro pequeno depósito lá em cima no sótão — disse Mary hesitante.

      — É! Talvez esteja lá!

      Entraram na casa e subiram as escadas. Mary abriu a porta do depósito e MacWhirter, olhando para dentro, soltou um curioso suspiro de contentamento.

      — Lá está ela! — exclamou ele.

      Em um baú, junto com um velho equipamento de pesca e algumas almofadas comidas por traças, estava um grande rolo de corda. Segurou o braço de Mary, impelindo-a gentilmente para frente, de modo que pudessem ver melhor a corda. Pegando-a MacWhirter disse:

      — Quero que guarde isto muito bem na sua memória. A senhorita pode observar que o depósito inteiro está coberto de poeira... tudo... menos esta corda. Pode até segurar para comprovar.

      — Está um pouco úmida — comentou ela admirada.

      — É isto mesmo — confirmou ele.

      Andrew se virou para sair.

      — Mas, e a corda? Pensei que a quisesse? — surpreendeu-se Mary.

      — Eu só queria ter certeza de que estava aqui — e sorriu. — Apenas isto.  A senhorita se incomodaria de trancar a porta e tirar a chave? Obrigado. Eu ficaria muito agradecido se a entregasse ao Superintendente Battle ou ao Inspetor Leach. Com eles, ela estaria mais bem guardada.

      Enquanto desciam as escadas, Mary fez esforço para se recobrar. Ao chegarem ao hall principal, ela protestou:

      — Mas realmente, eu não estou compreendendo nada...

      — Não há necessidade disso — retrucou ele com firmeza.   Segurou a mão dela, apertando-a  amigavelmente. — Estou muito grato pela sua cooperação.

      Acabando de falar, saiu apressadamente pela porta da frente. Mary ficou imaginando se não havia sonhado!

      Nevile e Thomas chegaram logo em seguida, e pouco depois o carro voltava trazendo Kay e Ted. Mary Aldin sentiu inveja ao vê-los tão alegres. Estavam rindo e tagarelando. Afinal de contas, por que não? — pensou ela. Camilla Tressilian nada significava para Kay, e todo este acontecimento trágico era demasiado para uma jovem cheia de vida.

      Tinham acabado de almoçar quando a polícia chegou. Hurstall parecia um tanto assustado ao anunciar que o Superintendente Battle e o Inspetor Leach estavam aguardando na sala de visitas.

      Com bastante cordialidade o Superintendente os cumprimentou.

      — Espero não estar incomodando — desculpou-se ele. — Porém preciso esclarecer um ou dois assuntos. Por exemplo: a quem pertence esta luva?

      Mostrou uma pequena luva de camurça amarela e, dirigindo-se a Audrey, perguntou:

      — E sua, Sra. Strange?

      — Não... não é minha.

      — Srta. Aldin?

      — Acho que não. Não tenho nenhuma desta cor.

      — Posso ver? — perguntou Kay estendendo a mão. — Não. Não é minha.

      — Por favor, poderia calçá-la?

      Kay tentou, mas a luva era muito pequena.

      — Srta. Aldin?

      Mary, por sua vez, também calçou a luva.

      — Também é muito pequena para a senhorita — observou Battle. Então se voltou para Audrey. — Creio que ficará perfeita na senhora. Sua mão é menor do que as das duas outras senhoras presentes.

      Audrey apanhou a luva e calçou-a em sua mão direita.

      — Ela já disse, Superintendentes que não é dela — repreendeu Nevile com rispidez.

      — Bem — explicou Battle. — Nesse  caso,  talvez ela tenha se enganado ou, até mesmo, se esquecido.

      Audrey falou:

      — É capaz de ser minha...  as luvas são tão parecidas umas com as outras, não são?

      — De qualquer forma, ela foi encontrada presa entre as plantas... com a outra luva, debaixo da sua janela, Sra. Strange.

      Houve uma pausa. Audrey abriu a boca para falar, mas fechou-a em seguida. Diante do olhar fixo do Superintendente Battle, ela baixou os olhos.

      Nevile levantou-se bruscamente.

      — Olhe aqui, Superintendente...

      — Poderia falar-lhe em particular, Sr. Strange? — perguntou Battle sério.

      — Com todo o prazer. Vamos para a biblioteca. — Mostrou o caminho para os dois policiais, e assim que a porta se fechou, falou rispidamente. — Que história ridícula é essa a respeito das luvas debaixo da janela de minha esposa?

      — Foram encontradas algumas coisas estranhas nesta casa, Sr. Strange — informou Battle calmamente.

      — Estranhas? O que pretende dizer com isto?

      — Vou lhe mostrar.

      Em obediência a um gesto feito pelo tio, Leach saiu da sala e voltou trazendo um objeto muito esquisito.

      Battle explicou:

      — Isto, como o senhor pode ver, consiste de uma esfera de aço tirada de uma grade vitoriana... uma pesada esfera de aço. A raquete de tênis foi serrada e a pesada esfera foi presa a seu cabo. Creio que não há dúvida de que foi esta a arma que matou Lady Tressilian.

      — Que horror! — exclamou Nevile estremecendo. — Mas como o senhor achou este... este pesadelo?

      — A esfera foi limpa e recolocada na grade. O assassino entretanto, se descuidando, não limpou o parafuso, levando-nos a encontrar vestígios de sangue. Da mesma forma, as duas partes da raquete foram novamente fixadas com esparadrapo. Jogaram-na, então, displicentemente no armário debaixo das escadas, onde provavelmente passaria desapercebida entre outros objetos, se não fosse o caso de estarmos procurando por alguma coisa deste tipo.

      — O senhor foi muito esperto, Superintendente.

      — É apenas uma questão de rotina.

      — Suponho que não tenham encontrado impressões digitais?

      — Aquela raquete, que pelo peso pude concluir que pertença a Sra. Kay Strange, foi usada por ela e também pelo senhor, pois encontramos nela suas impressões. Entretanto, também há sinais indiscutíveis de que alguém calçando luvas tenha usado a raquete depois de vocês dois. Encontramos apenas mais uma impressão, deixada provavelmente por descuido, no esparadrapo usado para recompor a raquete. Por enquanto não direi de quem é. Antes tenho que tratar de outros detalhes.

      Battle se calou por um momento, e pouco depois voltou a falar:

      — Quero que se prepare para um choque, Sr. Strange. Primeiro tenho uma pergunta a lhe fazer. Está certo de que a idéia deste encontro aqui  foi sua, e não da Sra. Audrey Strange?

      — Audrey nada teve a ver com isto, Audrey...

      A porta se abriu e Thomas Royde entrou.

      — Desculpe-me pela intromissão — disse ele — mas creio que gostaria de participar da conversa.

      Nevile olhou-o com uma expressão de aborrecimento.

      — Sinto muito, meu velho, mas este é um assunto particular.

      — Lamento! Mas não estou me importando com isto. Eu ouvi um nome entende?! O nome de Audrey.

      — E que diabo você tem a ver com o nome de Audrey? — indagou Nevile perdendo a calma.

      — Bem... e o que você teria a ver com isso? Ainda não disse nada de definitivo a ela, mas vim para cá com a intenção de pedi-la em casamento, o que acho que ela já sabe. E tem mais: pretendo me casar com ela.

      O Superintendente Battle pigarreou. Nevile se dirigiu ao policial bruscamente.

      — Perdão, Superintendente, esta interrupção...

      — Eu não me importo, Sr. Strange. Tenho mais uma coisa a lhe perguntar. Aquele terno azul-marinho que o senhor usou durante o jantar, na noite do crime está com cabelos louros dentro do colarinho e nos ombros.  Poderia me explicar como foram parar lá?

      — Acho que são meus.

      — Não. Não são seus. São cabelos de mulher, e há alguns fios de cabelos ruivo nas mangas.

      — Suponho que estes sejam da minha mulher... Kay. Por acaso o senhor está insinuando que os outros são de Audrey?... É... parece-me bastante provável! Lembro-me de que uma noite no terraço prendi minha abotoadura nos seus cabelos.

      — Neste caso — murmurou o Inspetor Leach — os cabelos louros deveriam estar na abotoadura.

      — Que diabo está querendo insinuar com isto? — gritou Nevile.

      — Também há vestígios de pó-de-arroz na parte de dentro do colarinho — observou Battle. — Primavera Naturelle N° 1: um pó-de-arroz caro e de aroma muito agradável. E não adianta querer me convencer que é o senhor quem o usa, Sr. Strange, porque não vou acreditar. A Sra. Kay Strange usa Orchid Sun Kiss, e a Sra. Audrey Strange usa  Primavera Naturelle N° 1.

      — O que está querendo insinuar com isto? — repetiu Nevile.

      Battle se inclinou para a frente.

      — Estou dizendo que a Sra. Audrey Strange usou aquele casaco em alguma ocasião. É a única explicação lógica para o fato de termos encontrado o pó nele. O senhor reparou aquela luva que eu mostrei ainda há pouco? É lógico que é dela. Aquela era a mão direita, aqui está a esquerda... — ele tirou uma luva do bolso, colocando-a em cima da mesa. Estava amassada e com manchas cor de ferrugem.

      — O que é isto? — na voz de Nevile havia um quê de medo.

      — Sangue, Sr. Strange — respondeu Battle com firmeza. — E repare: é a luva da mão esquerda. A Sra. Audrey Strange é canhota. Pude observar assim que a vi sentada à mesa com e xícara de café na mão direita e o cigarro na esquerda. E além do mais, o tinteiro em sua escrivaninha estava do lado esquerdo. Tudo se enquadra perfeitamente: a esfera da grade de seu quarto, as luvas debaixo da sua janela, o cabelo e o pó-de-arroz no paletó. Lady Tressilian foi atingida na têmpora direita, mas a posição da cama não permitiria que alguém ficasse do outro lado.  Donde se conclui que golpear Lady Tressilian com a mão direita seria muito difícil, mas para uma pessoa canhota, esta seria a maneira normal.

      Nevile riu com desdém.

      — O senhor está insinuando que Audrey... Audrey seria capaz de todos esses elaborados preparativos para matar uma velha senhora com quem ela conviveu durante todos esses anos, só para colocar a mão naquele dinheiro?

      Battle balançou a cabeça.

      — Eu não estou insinuando nada. Sinto muito, Sr. Strange, mas o senhor precisa entender o que está se passando. Este crime foi desde o começo dirigido contra o senhor. Desde que foi abandonada, a Sra. Audrey vem alimentando o desejo de vingança. Acabou se tornando mentalmente desequilibrada. Talvez nunca tenha sido mentalmente muito forte. É possível que ela tenha pensado em matá-lo, mas isto não seria o suficiente. Finalmente teve a idéia de vê-lo enforcado por assassinato. Escolheu uma noite em que sabia que o senhor tinha discutido com Lady Tressilian. Pegou o paletó em seu quarto e usou-o ao golpear a vítima, para que assim ficasse manchado de sangue. Colocou seu taco de golfe no chão para que encontrássemos nele as suas impressões digitais, e espalhou sangue e cabelo na sua parte superior. Persuadiu-o sutilmente a vir aqui na mesma época que ela. O que o salvou foi a única coisa com que ela não podia contar... o fato de Lady Tressilian ter tocado a campainha chamando Barrett, que por acaso o viu sair de casa.

      Nevile enterrou o rosto nas mãos.

      — Não é verdade! Não pode ser verdade! Audrey nunca guardou rancor contra mim. O senhor compreendeu tudo errado. Ela é a pessoa mais correta, honesta... incapaz de qualquer maldade.

      Battle suspirou.

      — Não pretendo discutir com o senhor. Queria apenas preveni-lo. Devo pedir à Sra. Strange que me acompanhe. Tenho um mandado de prisão. É melhor arranjar-lhe um advogado.

      — É um absurdo! Completamente absurdo!

      — O amor se transforma em ódio muito mais facilmente

      — Digo que é tudo um erro... um absurdo!

      Thomas Royde o interrompeu. Sua voz era calma e agradável:

      — Pare de repetir que é um absurdo, Nevile. Procure se controlar. Não vê que a única coisa que pode ajudar Audrey agora é você desistir de todas as suas idéias de cavalheirismo e dizer a verdade?

      — A verdade? Você quer dizer... — gaguejou Nevile.

      — A verdade sobre Audrey e Adrian — Royde voltou-se para os policiais. — Sabe, Superintendente, o senhor está equivocado. Nevile não abandonou Audrey... e sim ela é que o deixou. Fugiu com o meu irmão Adrian, que logo em seguida morreu em um acidente de automóvel. Nevile se comportou com o máximo de cavalheirismo para com ela. Combinou que se divorciariam, e que ele levaria a culpa.

      — Eu não queria que o nome dela fosse arrastado na lama — murmurou Nevile mal-humorado. — Pensei que ninguém soubesse nada a este respeito.

      — Adrian me escreveu contando — explicou Thomas. — Isto elimina o motivo, Superintendente. Audrey não tem por que odiar Nevile; pelo contrario, ela só tem razões para lhe ser agradecida. Ele tentou fazer com que ela aceitasse uma mesada, o que Audrey recusou. Naturalmente, quando ele quis que ela viesse e se encontrasse com Kay, ela não teve como recusar.

      — O senhor está vendo? — acrescentou aflito Nevile. — Isto elimina o motivo. Thomas tem razão.

      Battle continuava imperturbável.

      — O motivo é apenas uma parte — disse ele. — Posso ter-me enganado, mas existem os fatos, e todos eles mostram que ela é a culpada.

      — Há dois dias, todos os fatos mostravam que era eu o culpado! — afirmou Nevile de maneira significativa.

      Battle pareceu um tanto hesitante.

      — Bem, isto é verdade. Mas veja bem o que o senhor está me pedindo para acreditar. Está pedindo que eu acredite que existe alguém que detesta vocês dois... alguém que, se a trama armada contra o senhor falhasse, teria preparado uma trilha para nos levar até a Sra. Audrey. Pode pensar em alguém que deteste tanto o senhor quanto a sua antiga esposa?

      Mais uma vez, Nevile afundou o rosto nas mãos.

      — Da maneira como o senhor fala, tudo parece tão fantástico!

      — Mas é fantástico! Tenho que me basear nos fatos. Se a Sra. Strange tiver alguma explicação a dar...

      — Por acaso eu tive alguma explicação? — perguntou Nevile.

      — Não adianta, Sr. Nevile. Eu tenho que cumprir o meu dever.

      Battle levantou-se abruptamente. Ele e Leach foram os primeiros a se retirar, e logo atrás saíram Nevile e Royde. Atravessaram o hall indo para a sala de visitas. Chegando lá, pararam.

      Audrey Strange levantou-se e foi até eles. Ela olhou diretamente para Battle, com os lábios entreabertos, quase num sorriso.

      — É a mim que o senhor quer, não é?

      Battle falou em tom muito profissional:

      — Sra. Strange, tenho comigo a sua ordem de prisão pelo assassinato de Lady Tressilian, na última segunda-feira, no dia 12 de setembro. Devo preveni-la de que tudo o que disser será anotado, e poderá ser usado como prova no seu julgamento.

      Audrey suspirou. Seu pequeno rosto estava calmo e puro como um camafeu.

      — É quase um alívio. Estou contente que... que tudo tenha acabado!

      Nevile deu um passo à frente.

      — Audrey, não diga nada... nada mesmo.

      — Por que não, Nevile? É tudo verdade... e estou tão cansada!

      Leach suspirou fundo. Bem, o caso estava resolvido! Coisa de louco, é claro, mas pouparia um bocado de preocupação! Ele ficou imaginando o que teria acontecido com seu tio. O velho parecia ter visto um fantasma. Olhava fixamente para a pobre moça desequilibrada, como se não acreditasse no que estava vendo. Bem, tinha sido um caso interessante — pensou Leach satisfeito.

      E então, num anticlímax quase grotesco, Hurstall abriu a porta e anunciou:

      — O Sr. MacWhirter.

      MacWhirter entrou resoluto, indo direto até Battle.

      — O senhor é o policial encarregado do caso de Lady Tressilian?

      — Sim, sou eu.

      — Tenho uma importante declaração a fazer. Lamento não ter vindo antes, mas só agora percebi a importância do que eu vi, por acaso, na noite da última segunda-feira — ele lançou um rápido olhar em torno da sala. — Será que poderíamos conversar em algum outro lugar?

      Battle dirigiu-se a Leach.

      — Pode ficar aqui com a Sra. Strange?

      — Sim, senhor — respondeu Leach.

      Em seguida, ele se inclinou e cochichou alguma coisa no ouvido do tio:

      — Venha por aqui. — disse Battle para MacWhirter, conduzindo-o até a biblioteca.

      — Bem. E agora? O que significa tudo isto? Meu colega me falou que já o viu antes... no inverno passado?

      — Correto — confirmou MacWhirter. — Tentativa de suicídio. Isto faz parte da minha história.

      — Prossiga, Sr. MacWhirter.

      — No último mês de janeiro tentei me matar, jogando-me do Stark Head. Entretanto, algo me impeliu agora, para que voltasse ao mesmo lugar.  Na noite de segunda-feira subi até lá. Olhei para o mar, para Easterhead Bay e em seguida para a minha esquerda. O que significa que olhei na direção desta casa. Com o luar, eu pude ver com muita clareza.

      — Continue — ordenou Battle.

      — Somente hoje dei-me conta de que aquela noite tinha sido a do crime.  — Inclinou-se para a frente. — Vou lhe contar o que vi.

      Na realidade haviam-se passado apenas cinco minutos antes de Battle retornar à sala de visitas, entretanto, para os que lá estavam, pareceu uma eternidade.

      Kay tinha, repentinamente, perdido o controle, e gritava para Audrey:

      — Sabia que era você. Sempre soube que era você. Tinha certeza de que você estava tramando alguma coisa...

      — Por favor, Kay — pediu Mary apressada.

      — Cale a boca, Kay, pelo amor de Deus — disse Nevile rispidamente.

      Ted Latimer foi até Kay, que começara a chorar.

      — Procure se controlar — disse ele carinhosamente.

      Virando-se para Nevile, falou com raiva:

      — Parece que você não compreende que Kay tem estado sob enorme tensão! Por que não cuida dela um pouco, Strange?

      — Eu estou bem — disse Kay.

      — Por mim eu a levaria, agora mesmo, para longe deste bando — exclamou Ted.

      O Inspetor Leach pigarreou. Como ele tão bem sabia, numa hora dessas, sempre se diziam muitos insultos. O mal é que, normalmente, depois de tudo terminado, sempre continuavam a ser lembrados.

      Battle voltou para a sala. Seu rosto estava inexpressivo.

      — Quer preparar algumas coisas para levar, Sra. Strange? Receio que o Inspetor Leach terá que acompanhá-la até lá em cima — informou ele.

      — Eu também irei — informou Mary Aldin.

      Assim que as duas mulheres se retiraram com o Inspetor, Nevile indagou aflito:

      — Bem, o que desejava aquele sujeito?                  

      — O Sr. MacWhirter contou uma história muito estranha.

      — E vai servir para ajudar Audrey? O senhor continua decidido a prendê-la?

      — Já lhe disse, Sr. Strange. Tenho que cumprir o meu dever.

      Nevile virou-se. A ansiedade estava apagando-se do seu rosto.

      — Creio que é melhor telefonar para. Trelawny.

      — Isto pode esperar, Sr. Strange. Primeiro há uma certa experiência que eu quero fazer, por causa da declaração de MacWhirter. Só estou esperando que a Sra. Strange se vá.

      Audrey vinha descendo as escadas, e ao seu lado estava o Inspetor Leach. Ainda havia em seu rosto aquela expressão tranqüila, distante e desligada.

      Com as mãos estendidas, Nevile foi até ela.

      — Audrey...

      Ela, que estava com o olhar vazio, falou:

      — Está tudo bem, Nevile. Eu não me importo. Não me importo com coisa alguma.

      Perto da porta, estava Thomas Royde, como se fosse barrar a saída.

      Um sorriso desmaiado apareceu nos lábios de Audrey. .

      — O Fiel Thomas — sussurrou ela.

      — Se há alguma coisa que eu possa fazer... — murmurou ele.

      — Ninguém pode fazer nada — disse ela. E saiu de cabeça erguida.

      Lá fora um carro da polícia e o sargento Jones aguardavam.  Audrey e Leach entraram no carro.

      — Linda saída! — comentou Ted Latimer.

      Nevile partiu furioso para cima dele. O Superintendente Battle, habilmente, apartou-os com o corpo, e começou a falar com voz suave:

      — Como eu disse, tenho uma experiência a fazer. O Sr. MacWhirter está nos esperando nas barcas. Devemos encontrá-lo daqui a dez minutos. Vamos sair numa lancha a motor. Sendo assim, é melhor que as senhoras se agasalhem bem. Em dez minutos, por favor!

      Parecia um diretor de teatro, comandando o elenco no palco. Não tomou o menor conhecimento dos rostos intrigados.

 

Hora Zero

      A água estava fria, fazendo com que Kay se aconchegasse mais a seu pequeno casaco de pele.

      A lancha deslizava pelo rio abaixo, e mais adiante deu a volta entrando na pequena baía que dividia Gull's Point da massa sombria de Stark Head.

      De quando em quando alguém esboçava uma pergunta, mas a cada vez que isso acontecia, o Superintendente Battle levantava sua grande mão, como um aviso de que a hora ainda não havia chegado. Assim, o silêncio só fora quebrado pelo ruído do motor da lancha,

      Kay e Ted se encontravam de pé olhando para a água; Nevile estava afundado num canto, com as pernas para fora; Mary Aldin e Thomas Royde estavam sentados na proa. De vez em quando, todos olhavam curiosamente para a figura alta e desinteressada de MacWhirter perto da popa. Ele não olhava para ninguém, permanecendo virado de costas, com os ombros curvados.

      Somente quando chegaram debaixo da pesada sombra de Stark Head é que Battle diminuiu a marcha da lancha e começou a falar.

      Falava sem constrangimento e o seu tom de voz era acima de tudo ponderado.

      — Este foi um caso muito curioso; um dos mais curiosos que eu já vi, e assim, gostaria de dizer-lhes algumas palavras sobre assassinatos em geral. Entretanto, o que vou dizer-lhes não é nada novo. Na realidade ouvi o jovem Daniels K.C. comentar alguma coisa a este respeito, e não ficaria surpreso se ele também já tivesse ouvido de uma outra pessoa... ele tem o costume de agir desta maneira!

      — É o seguinte: quando os senhores lêem o relato de um assassinato, ou mesmo um romance baseado num assassinato, normalmente eles começam com o próprio crime. No entanto, está tudo errado. O crime começa muito antes. Ele é o ponto culminante de várias circunstâncias diferentes, todas convergindo para um determinado momento e para um determinado local. As pessoas são reunidas, vindas de todas as partes do mundo por motivos inesperados. O Sr. Royde, por exemplo, veio da Malásia; o Sr. MacWhirter está aqui porque desejava rever o local onde havia tentado o suicídio. O assassinato é o final da história, é a Hora Zero.

      Fez-se uma pausa.

      — Agora é a Hora Zero — repetiu Battle.

      Cinco rostos se viraram em sua direção... apenas cinco, pois MacWhirter não moveu a cabeça. Cinco rostos intrigados.

      Mary Aldin foi a primeira a falar:

      — O senhor quer dizer que a morte de Lady Tressilian foi o clímax de uma longa série de acontecimentos?

      — Não, Srta. Aldin, não estou me referindo ao assassinato de Lady Tressilian. Sua morte foi apenas uma conseqüência do principal objetivo do assassino. Estou falando sobre o assassinato de Audrey Strange.

      Podia-se ouvir a respiração ofegante dos presentes. Battle ficou imaginando se, de repente, alguém estaria com medo...

      — Este crime foi planejado há muito tempo... provavelmente no último inverno. Foi planejado em seus mínimos detalhes. Tinha um objetivo... um único objetivo: que Audrey Strange fosse pendurada pelo pescoço até morrer... Tudo foi astutamente arquitetado por alguém que se considerava muito esperto. Os assassinos costumam ser muito vaidosos. Primeiro foram todas aquelas provas insatisfatórias contra Nevile Strange, preparadas só para nos enganar. Depois de termos tantas provas forjadas, seria quase impossível considerarmos a hipótese de uma repetição de fatos. Entretanto, se observarmos bem, todas as provas contra Audrey Strange também poderiam ter sido forjadas.  A arma tirada da lareira de seu quarto; suas luvas; a luva da mão esquerda salpicada  de sangue e escondida entre  as plantas debaixo de sua janela; o pó-de-arroz e também alguns fios de cabelo espalhados no colarinho do paletó; suas impressões digitais no esparadrapo, que foi tirado de seu quarto e até mesmo a natureza do golpe de canhota.

      — E por último — prosseguiu Battle —, a evidência condenatória da própria Sra. Strange. Não creio que entre vocês exista alguém (exceto aquele que o sabe) que possa acreditar em sua inocência, depois da maneira como se comportou, quando a levamos presa. Naquela hora, ela praticamente admitiu a sua culpa. Talvez eu mesmo não tivesse acreditado em sua inocência se não tivesse tido minha experiência particular... Assim que a vi e a ouvi falar, fiquei muito impressionado, porque conheci uma garota que fez exatamente a mesma coisa, isto é, que se confessou culpada quando na verdade não o era.  Naquele momento, Audrey Strange estava me olhando com os olhos daquela garota...

      — Todavia, era preciso cumprir o meu dever. Eu sabia disto. Nós policiais temos que nos basear em evidências, e não no que pensamos ou sentimos. Entretanto posso lhes afirmar que, naquele exato momento, rezei por um milagre, porque sabia que só assim aquela pobre moça poderia se salvar. E eu consegui o milagre. Consegui-o na mesma hora! O Sr. MacWhirter, que aqui está, apareceu contando a sua história.

      Fez-se uma nova pausa.

      — Sr. MacWhirter, poderia repetir o que me contou?

      MacWhirter se virou.  Ele falou em frases curtas e precisas, cheias de convicção justamente por serem sucintas.

      Fez um relato sobre o seu salvamento no penhasco em janeiro último e sobre a sua vontade de voltar ao local. E continuou falando.

      — Fui até lá na noite de segunda-feira. Fiquei parado, perdido em meus pensamentos. Isto deve ter sido por volta das onze horas. Olhei em direção daquela casa naquele cabo... Gull's Point, como agora sei que se chama.

      Ele fez uma pausa, e depois prosseguiu:

      — Havia uma corda pendurada na janela, caindo no mar. Vi um homem subindo por ela...

      Passou-se apenas um minuto para que percebessem o que ele havia dito.

      Mary exclamou:

      — Então foi mesmo um estranho?! Nada teve a ver com nenhum de nós. Foi um ladrão comum!

      — Não se precipite — retrucou Battle. — Realmente foi alguém vindo do outro lado do rio, já que veio nadando. No entanto, era preciso que alguém de dentro da casa tivesse deixado a corda pronta para ser usada;  donde se concluí que se trata realmente de alguém de Gull's Point.

      — Sabemos de alguém que, naquela noite, estava do outro lado do rio — continuou Battle vagarosamente. — Alguém que não foi visto entre às 10:30 hs e 11:15 hs, e que poderia ter nadado ida e volta.  Alguém que poderia ter um amigo nesta margem do rio.

      — Eh, Sr. Latimer? — acrescentou ele.

      Ted deu um passo para trás, gritando numa voz estridente:

      — Mas eu não sei nadar! Todo mundo sabe que eu não sei nadar! Kay, diga a eles que eu não sei nadar.

      — É claro que Ted não sabe nadar — gritou Kay.

      — É verdade? — perguntou o Superintendente gentilmente.

      Battle atravessou o barco no momento em que Ted se movia na sua direção. Houve algum movimento desajeito, e ouviu-se um barulho  n'água.

      — Meu Deus! — exclamou o Superintendente, preocupado. — O Sr. Latimer caiu n'água.

      Battle segurou Nevile com as duas mãos, quando este se preparava para pular atrás de Ted.

      — Não, não, Sr. Strange. Não há necessidade de se molhar. Dois dos meus homens estão pescando ali naquele bote. — Ele olhou para a água. — O Sr. Latimer estava falando a verdade. Realmente não sabe nadar. Agora está tudo bem. Já conseguiram pegá-lo. Peço desculpas, mas só existe uma maneira para se ter certeza absoluta de que uma pessoa não sabe nadar: é jogá-la n'água e ficar observando. Não gosto de cometer erros! Primeiro eu precisava eliminar o Sr. Latimer. O Sr. Royde tem um braço defeituoso e não poderia ter subido por aquela corda.

      A voz de Battle tornou-se felina:

      — Isso nos leva ao senhor, não é, Sr. Strange? Um ótimo atleta, alpinista, nadador e tudo o mais. Já foi confirmado que o senhor pegou a barca das 10:30 hs., entretanto, ninguém pode jurar que o tenha visto no Hotel Easterhead antes das 11:15 hs., apesar da sua versão de ter ficado durante este tempo todo à procura do Sr. Latimer.

      Com um puxão, Nevile soltou o braço. Jogou a cabeça para trás e riu.

      — Está sugerindo que eu atravessei o rio a nado e subi pela corda...

      — Que o senhor já tinha deixado pendurada em sua janela — afirmou Battle.

      — Matado Lady Tressilian e nadado de volta? Por que eu faria uma coisa tão fantástica? E quem preparou todas aquelas provas contra mim?  Suponho que tenha sido eu mesmo!

      — Exatamente — atestou Battle. — E a idéia não foi má.

      — E por que eu haveria de querer matar Camilla Tressilian?

      — O senhor não queria! Queria, no entanto, enforcar a mulher que o deixara por outro homem. O senhor é um tanto perturbado mentalmente. E assim o é desde criança... investiguei aquele velho caso do arco e flecha. Qualquer pessoa que o ofenda deve ser castigada, e a morte não era o suficiente para Audrey, a sua Audrey a quem amava tanto. Oh, sim! O senhor a amava antes de seu amor se transformar em ódio. Precisava pensar em algum tipo especial de morte: uma morte lenta e sofrida. E quando o senhor decidiu como ela seria, o fato de que seu plano incluiria o assassinato de uma mulher que tinha sido uma espécie de mãe para o senhor, não o preocupou nem um pouco...

      Quando Nevile falou, sua voz parecia bastante calma.

      — É tudo mentira. Tudo mentira. E eu não sou louco. Não sou louco.

      Battle falou com desdém:

      — Quando foi embora, deixando-o por outro homem, ela o atingiu profundamente, não foi? Feriu o seu orgulho. Era um absurdo pensar que ela seria capaz de abandonar uma pessoa como o senhor. Fingindo para o mundo todo que o senhor a havia abandonado, conseguiu salvar o seu orgulho. E para reforçar esta crença, ainda se casou com outra mulher. No entanto, durante este tempo todo o senhor esteve planejando o que faria contra Audrey. Não pôde pensar em nada pior do que vê-la enforcada.  Realmente foi uma idéia bastante boa! Pena que não tenha tido cabeça para executá-la melhor!

      Nevile mexeu os ombros, num movimento esquisito. Battle continuou:

      — Infantil... toda aquela história do taco de golfe! Todas aquelas pistas grosseiras apontando para a sua pessoa. Audrey deveria saber o que o senhor estava tramando. Como ela deve ter rido ao pensar que eu não suspeitava do senhor. Vocês assassinos são uns sujeitos engraçados. Tão convencidos! Sempre achando que são muito espertos e habilidosos, quando, na verdade, são lamentavelmente infantis...

      Um estranho e grotesco grito partiu de Nevile.

      — Foi um plano excelente... realmente foi! O senhor nunca teria descoberto. Nunca! Se não fosse a interferência deste pretensioso e arrogante escocês idiota. Eu estudei cada detalhe... cada detalhe. Não pude evitar o que aconteceu. Como poderia saber que Royde tinha conhecimento da verdade a respeito de Audrey e Adrian? Audrey e Adrian... Maldita Audrey... Ela vai ser enforcada... o senhor tem que enforcá-la... quero que ela morra sentindo muito medo... que morra... morra. Eu a odeio. Quero que ela morra.

      Sua voz alta e lamurienta se calou. Nevile se afundou em um canto e começou a chorar baixinho.

      — Oh! meu Deus — disse Mary Aldin, que estava muito pálida.

      Battle falou delicadamente:

      — Sinto muito, mas tive que pressioná-lo. Havia poucas provas.

      Nevile continuava a chorar. Seu choro parecia o de uma criança.

      — Quero que ela seja enforcada. Quero que ela seja enforcada...

      Mary estremeceu e se virou para Thomas Royde, que segurou suas mãos.

      — Eu sempre senti medo — disse Audrey.

      Audrey estava sentada no terraço, perto do Superintendente Battle, o qual havia retomado suas férias e se encontrava agora em Gull's Point na condição de amigo.

      — Sempre tive medo... o tempo todo — repetiu Audrey.

      Balançando a cabeça, Battle comentou:

      — No primeiro momento em que a vi, soube que estava morta de medo. A senhora tinha aquele mesmo jeito apagado e reservado que as pessoas possuem quando estão reprimindo alguma emoção muito forte. Poderia ser amor ou ódio, mas na verdade, era medo, não era? Audrey concordou com a cabeça.

      — Comecei a ter medo de Nevile pouco depois que nos casamos. Mas, sabe o que era terrível em tudo isso? É que eu não sabia o porquê. Comecei a pensar que estava ficando louca.

      — Não, não era a senhora.

      — Quando me casei com Nevile ele parecia tão sadio e normal, sempre maravilhosamente bem-humorado e gentil.

      — Interessante — comentou Battle. — Ele desempenhava o papel de um bom desportista. É por isto que conseguia manter tão bem a calma nos jogos de tênis. Para ele, o papel de bom desportista era mais importante do que ganhar as partidas.   Porém isto o mantinha sob constante tensão, o que sempre acontece quando se vive representando um papel. E assim, ele acabou se destruindo interiormente.

      — O interior — murmurou Audrey com um tremor. — Sempre o interior. Nada em que se possa tocar.  Às vezes havia uma palavra ou um olhar. Mas logo em seguida, eu ficava pensando que era tudo minha imaginação... Algo esquisito. E 2depois, como eu já disse, comecei a achar que eu é que deveria ser desequilibrada. E assim, continuei a me sentir cada vez mais amedrontada... um medo irracional que deixa qualquer um doente!

      — Disse a mim mesma que estava ficando louca — continuou Audrey. — Mas eu não podia evitar o que estava acontecendo.  Senti que faria qualquer coisa no mundo para poder fugir. Foi aí que Adrian apareceu dizendo que me amava, e eu achei que seria ótimo fugir com ele, porque assim eu ficaria a salvo... — ela fez uma pausa. — Sabe o que aconteceu? Fui ao encontro de Adrian... ele nunca apareceu... ele morreu... tive a sensação de que de alguma forma Nevile havia preparado aquilo...                              

      — Talvez tenha — observou Battle.

      Audrey olhou-o alarmada.

      — Ah, o senhor acha?

      — Nós nunca saberemos. Acidentes de carro podem ser preparados. Contudo não fique se afligindo com esta idéia, Sra. Strange. Provavelmente foi apenas um acidente.

      — Eu... eu estava arrasada. Fui então para a Reitoria: a casa da mãe de Adrian. Íamos escrever-lhe contando tudo sobre nós, mas já que ela não chegara a saber, resolvi não lhe contar para evitar o seu sofrimento. Nevile foi até lá, logo em seguida. Foi muito amável e gentil, mas durante o tempo todo em que conversamos eu estava morrendo de medo. Ele disse que não havia necessidade de ninguém saber sabre Adrian, e que eu poderia me divorciar dele alegando os motivos que ele me indicaria mais tarde. Disse também que iria se casar novamente, logo em seguida. Fiquei muito grata por tudo aquilo. Sabia que ele achava Kay atraente. Eu esperava que tudo desse certo e que pudesse me livrar daquela estranha obsessão, pois continuava a pensar que era eu que não estava bem.

      — Na verdade — prosseguiu Audrey —, nunca consegui me livrar completamente daquela sensação. Sempre achei que não  escaparia. Então, certo dia encontrei Nevile no parque e ele me explicou que gostaria muito de que eu e Kay nos tornássemos amigas, e sugeriu que viéssemos todos para cá em setembro. Eu não pude recusar. Como poderia recusar, depois de tudo de bom que ele havia feito por mim?

      — “Quer entrar em minha casa? Disse a aranha para a mosca” — observou Battle.

      Audrey estremeceu.

      — Sim, foi exatamente isso — confirmou ela.

      — Ele foi muito esperto a este respeito — comentou Battle. — Protestou tão alto dizendo que a idéia tinha sido dele, que todos ficaram com a impressão de que não tinha sido.

      — E então cheguei aqui... e foi como um pesadelo — disse Audrey. — Eu sabia que algo horrível iria acontecer... sabia que Nevile estava tramando alguma coisa... alguma coisa contra mim. Porém eu não sabia o quê. Acredite, eu quase fiquei louca de verdade. Estava paralisada de medo, como quando se está sonhando que algo vai acontecer e não se consegue se mover...

      — Sempre achei — comentou o Superintendente — que gostaria de ver uma cobra hipnotizar um pássaro, para não deixá-lo voar. Agora, no entanto, eu já não tenho certeza se gostaria.

      Audrey continuou falando:

      — Mesmo quando Lady Tressilian foi assassinada, eu não compreendi o que aquilo significava. Estava confusa. Não suspeitei de Nevile. Sabia que ele não dava importância a dinheiro, e seria um absurdo pensar que ele a havia matado para herdar 50.000 libras.

      — Pensei sem parar no Sr. Treves e na história que ele havia contado — disse ela. — Mesmo assim, não associei o Nevile ao caso. O Sr. Treves mencionara uma peculiaridade física que faria com que ele reconhecesse a criança da história, mesmo depois de passado tanto tempo.  Eu tenho uma cicatriz na orelha, mas não pude notar nada de diferente em mais ninguém da casa.

      Battle observou:

      — A Srta. Aldin tem uma mecha branca. Thomas Royde tem um braço defeituoso, que poderia não ter sido apenas o resultado de um terremoto. O Sr. Ted Latimer tem um formato de cabeça bastante estranho. E Nevile Strange...

      Ele se calou.

      — Nevile não tem nenhuma peculiaridade física — afirmou Audrey.

      — Oh, sim, tem. O dedo mínimo de sua mão esquerda é mais curto do que o da mão direita. Isto é muito raro, Sra. Strange... muito raro.

      — Então era isto?

      — Sim.

      — E Nevile pendurou  aquele cartaz na  porta do  elevador?

      — Sim. Foi até lá e voltou rapidamente, enquanto Royde e Latimer serviam bebidas para o velho. Um golpe inteligente e simples. Tenho minhas dúvidas se conseguiríamos provar que aquilo foi um assassinato.

      Mais uma vez Audrey estremeceu.

      — Calma, calma — pediu Battle. — Agora tudo já acabou, minha querida.  Continue falando.

      — O senhor é muito esperto... há anos que não falo tanto!

      — É! E este foi o seu erro. Quando foi que percebeu o jogo do Sr.  Nevile?

      — Eu não sei exatamente. Percebi tudo de repente. Ele havia sido inocentado, deixando assim nós todos como suspeitos. E então, subitamente, eu o vi olhando para mim... um olhar de satisfação maligna. E foi aí que compreendi! Foi então que...

      Ela parou repentinamente.

      — Foi então que o quê?

      — Foi então que pensei que uma saída rápida seria o melhor — Audrey falou vagarosamente.

      O Superintendente Battle balançou a cabeça.

      — Nunca desista. Este é o meu lema.

      — Oh, o senhor tem razão. Contudo, não sabe o que o medo pode fazer a uma pessoa. Fica-se paralisada... não se consegue pensar... não se pode planejar nada... fica-se apenas esperando que uma coisa terrível aconteça. E então quando acontece. — Audrey deu um sorriso rápido e inesperado. — O senhor ficaria surpreso com o alívio que se sente. Nada mais de esperas ou de medo.  Acho que o senhor vai pensar que eu sou maluca, se eu lhe contar que quando veio me prender por assassinato eu não me importei nem um pouco. Nevile tinha conseguido o que queria, e agora estava tudo terminado. Senti-me tão segura indo embora em companhia do Inspetor Leach.

      — Em parte, foi por este motivo que fizemos aquilo — explicou Battle. — Queria que a senhora ficasse fora do alcance daquele louco. E, além disso, se eu pretendia desmascará-lo era preciso poder contar com o choque da sua reação. E ele achando que seu plano dera certo, o choque seria muito maior.

      — Se Nevile não tivesse perdido a calma, haveria alguma prova contra ele?

      — Pouca coisa. Haveria o relato de MacWhirter sobre o homem que ele vira, ao luar, subindo pela corda. E para confirmar esta história, havia a própria corda, guardada no sótão, ainda ligeiramente úmida. Como sabe, estava chovendo naquela noite.

      Calou-se e ficou encarando Audrey como se esperasse que ela fosse dizer alguma coisa. Já que ela permaneceu calada aparentando apenas interesse, ele prosseguiu:

      — Havia também o terno listrado. Naquela noite, ele tinha se despido no escuro, na parte rochosa da margem da Easterhead Bay, enfiando o terno em um vão entre as pedras. Por acaso ele colocou o terno em cima de um pedaço de peixe deteriorado, que tinha sido levado pela maré dois dias antes. Com isto, o paletó ficou com uma mancha no ombro e com um cheiro muito forte.   Descobri que houve uns rumores sobre algum problema com os esgotos no hotel. Foi o próprio Nevile quem se encarregou de espalhar o boato. Vestiu a capa de chuva por cima do terno, mas o cheiro era muito ativo. Mais tarde, viu-se atrapalhado com o terno e, na primeira oportunidade, levou-o para a lavanderia onde, muito tolamente, não deu o seu nome verdadeiro. Escolheu um nome a esmo, na realidade um que ele tinha visto no registro do hotel. E assim o terno foi parar nas mãos de seu amigo, que sendo inteligente, associou-o com o homem subindo pela corda. Você pisa num peixe deteriorado, mas não põe o ombro nele a não ser que tenha tirado a roupa para se banhar à noite; e ninguém iria se banhar por prazer numa noite chuvosa de setembro. O Sr. MacWhirter encaixou todas as peças. Ele é um homem muito engenhoso.

      — Mais do que engenhoso — opinou Audrey.

      — M-m, bem, talvez. Quer informações sobre ele? Posso lhe contar o que sei a seu respeito.

      Audrey ouviu com atenção. Battle encontrou nela uma boa ouvinte.

      — Devo muito a ele e ao senhor — disse ela.

      — A senhora não me deve tanto assim —  observou Battle. — Se não tivesse sido tão tolo, teria logo percebido a questão da campainha.

      — Campainha? Que campainha?

      — A campainha do quarto de Lady Tressilian. Sempre achei que havia algo de errado com ela. Quase decifrei tudo quando, ao descer as escadas, vi uma dessas varas usadas para abrir janelas.

      Audrey ainda parecia confusa.

      — Esta era toda a questão com a campainha, entende... dar a Nevile um alibi. Lady Tressilian não se lembrava por que tocara a campainha... é claro que não poderia se lembrar, pois não a tinha tocado! Fora Nevile que, com aquela vara comprida, tocara a campainha no corredor, encostando nos fios que ficavam ao longo do teto. Foi por isto que Barrett, ao descer, viu o Sr. Nevile Strange descendo as escadas e saindo, e encontrou Lady Tressilian viva e em perfeita saúde. Todo o caso da empregada era bastante suspeito. De que adiantaria dopá-la para um crime que iria ser cometido antes da meia-noite? Haveria poucas chances de que ela já estivesse convenientemente adormecida até então. Contudo, ficaria assim determinado que o assassinato fora um trabalho interno, dando algum tempo para Nevile desempenhar seu papel de principal suspeito. Em seguida Barrett dava seu testemunho e Nevile seria tão triunfalmente inocentado que ninguém se preocuparia em investigar, mais minuciosamente, a hora exata em que ele havia chegado ao hotel. Sabemos que ele não tinha atravessado de barca, e que nenhum barco fora roubado. Restava ainda a possibilidade de ter nadado. Ele é um excelente nadador, mas mesmo assim o tempo parecia pouco. Subindo pela corda que ele mesmo havia deixado pendurada, entrou em seu quarto deixando no chão uma considerável quantidade de água, como pudemos notar, mas infelizmente sem perceber o indício. Vestiu o terno azul-marinho, foi até o quarto de Lady Tressilian (não vamos entrar em detalhes aqui), o que não teria levado mais do que alguns minutos, uma vez que havia deixado previamente preparada a esfera de aço. Em seguida voltou ao seu quarto, tirou a roupa, desceu pela corda e voltou para Easterhead.

      — E se Kay entrasse no quarto?

      — Pode estar certa de que ela havia sido suavemente dopada. Contaram-me que logo após o jantar ela começou a bocejar. Além disso, ele tinha providenciado uma discussão com ela, para que assim ela trancasse a porta, impedindo a sua entrada.

      — Estou tentando me lembrar se eu notei a falta  da esfera na grade da lareira. Acho que não. Quando foi que ele a recolocou no lugar?

      — Na manhã seguinte, quando a confusão começou. Depois de voltar no carro de Ted Latimer, teve toda a noite para se livrar das pistas, ajeitar tudo, reparar a raquete de tênis, etc... A propósito, ele matou a velha senhora com um golpe de esquerda. Foi por este motivo que se teve a impressão de que o crime havia sido cometido por uma pessoa canhota. Lembre-se de que, no tênis, o golpe de esquerda sempre foi o ponto forte de Nevile!

      — Chega... chega... — Audrey levantou as mãos. — Não suporto mais.

      Ele sorriu para ela.

      — De qualquer maneira lhe fez bem desabafar. Posso ser impertinente e lhe dar um conselho, Sra. Strange?

      — Sim, por favor.

      — A senhora viveu durante oito anos com um criminoso lunático, e isto é o bastante para acabar com os nervos de qualquer mulher. Mas agora é preciso acordar, Sra. Strange, Não precisa mais ter medo. A senhora deve se convencer disto.

      Audrey sorriu. A expressão gélida desaparecera de seu rosto. Neste momento ele era doce, um tanto tímido, mas confiante. Seus olhos estavam cheios de gratidão.

      — Qual será a melhor maneira de se fazer isto?

      O Superintendente Battle refletiu.

      — Pense na coisa mais difícil que puder imaginar, e então comece a realizá-la imediatamente — aconselhou Battle.

      Andrew MacWhirter estava fazendo as malas. Guardou cuidadosamente três camisas que havia se lembrado de apanhar na lavanderia. Dois ternos deixados por dois MacWhirters diferentes tinha sido demais para a balconista.

      Uma batida na porta e ele gritou:

      — Entre.

      — Audrey entrou.

      — Vim agradecer-lhe... está fazendo as malas?

      — Sim. Vou-me embora hoje à noite. O  navio parte depois de amanhã.

      — Para a América do Sul?

      — Para o Chile.

      — Deixe que eu faço a mala para você — disse ela.

      MacWhirter protestou, mas ela não lhe deu ouvidos. Ele a observava enquanto trabalhava  ágil e metodicamente.

      — Pronto — falou ela ao terminar.

      — Você fez isso muito bem — observou MacWhirter.

      Ficaram em silêncio. Foi Audrey quem falou.

      — Você salvou minha vida. Se não tivesse visto o que viu...

      Ela interrompeu o que estava dizendo, para logo depois perguntar-lhe.

      — Você compreendeu de imediato, naquela noite no penhasco, quando você... você me impediu de pular... quando disse “Vá para casa, não deixarei que seja enforcada”, foi naquele instante que você percebeu que tinha alguma prova importante?

      — Não exatamente — respondeu MacWhirter. — Eu ainda precisava refletir.

      — Então como pôde dizer o que disse?

      MacWhirter sempre ficava aborrecido quando tinha que explicar a enorme simplicidade do curso de seu pensamento.

      — Era exatamente aquilo o que eu queria dizer... que pretendia impedir que você fosse enforcada.

      Audrey ficou ruborizada.

      — E se eu fosse culpada.

      — Isto não teria feito nenhuma diferença.

      — Então você achava que eu era culpada?

      — Eu não pensei muito no assunto. Estava inclinado a acreditar que você era inocente. Mas mesmo que não o fosse eu teria feito tudo da mesma maneira que fiz.

      — Foi então naquela hora que você se lembrou do homem da corda?

      MacWhirter permaneceu em silêncio por alguns minutos. Depois pigarreou.

      — Suponho que é melhor que você saiba logo a verdade:eu não vi nenhum homem subindo por aquela corda. Na realidade eu não poderia ter visto, pois estive em Stark Head na noite de domingo e não na segunda-feira. Deduzi o que deveria ter acontecido pelas evidências do terno, e as minhas suposições foram confirmadas ao encontrar no sótão a corda ainda úmida.

      De vermelha Audrey ficara branca. Ela perguntou incrédula:

      — Toda a sua história era uma mentira?

      — A polícia não teria dado crédito a uma simples dedução.  Eu precisava afirmar que tinha visto o que acontecera.

      — Mas... mas você poderia ter tido que jurar no tribunal.

      — Eu sei.

      — E você o teria feito?

      — Sim.

      Audrey gritou:

      — E é você... você, o homem que perdeu o emprego e chegou ao ponto de se jogar de um penhasco por não querer adulterar a verdade!

      — Eu tenho um grande respeito pela verdade. Entretanto, descobri que existem coisas mais importantes.

      — Como o quê?

      — Você — afirmou MacWhirter.

      Audrey baixou os olhos. Ele pigarreou, embaraçado.

      — Não precisa achar que me deve algum favor ou coisa parecida. Amanhã você não mais ouvirá falar em mim. Uma vez que Nevile confessou, a polícia não mais precisará do meu testemunho. Seja como for, ouvi dizer que ele está tão mal, que talvez não viva para comparecer ao julgamento.

      — É melhor assim — comentou Audrey.

      — Você já gostou muito dele, não é mesmo?

      — Gostei do homem que eu pensei que ele fosse.

      MacWhirter balançou a cabeça.

      — Acho que todos nós já sentimos isto alguma vez na vida.

      Ele continuou falando:

      — Tudo terminou bem. O Superintendente Battle pôde conseguir o que queria usando a minha história...

      Audrey o interrompeu, dizendo:

      — Sim, ele usou realmente a sua história para conseguir o que queria. Entretanto não acredito que você tenha conseguido enganá-lo. Ele deliberadamente fechou os olhos.

      — Por que está dizendo isto?

      — Quando estávamos conversando, ele mencionou que tinha sido uma sorte você ter visto o que viu ao luar. Logo adiante, acrescentou algo sobre ter sido uma noite chuvosa.

      MacWhirter ficou perplexo.

      — Ele está certo. Duvido muito que na noite de segunda-feira eu pudesse ter visto qualquer coisa.

      — Não tem importância — afirmou Audrey. — Ele sabia que o que você alegou ter visto era o que realmente tinha acontecido. Há, entretanto, uma explicação para o fato de ter provocado Nevile até desmascará-lo: no momento em que Thomas contou sobre mim e Adrian, ele suspeitou de Nevile. Sabia que tinha se fixado na pessoa errada, estando porém certo a respeito da natureza do crime. O que precisava era de alguma evidência para ser usada contra Nevile. Ele queria, como ele mesmo disse, um milagre... e você foi a resposta às  preces do  Superintendente  Battle.

      — Isto é uma coisa muito esquisita para ele dizer — falou MacWhirter secamente.

      — Como você está vendo, você é um milagre. O meu milagre especial.

      MacWhirter respondeu de modo grave:

      — Eu não gostaria que você sentisse que me deve algum favor. Vou sair de sua vida...

      — Isto é preciso? — indagou Audrey.

      Ele a encarou, fazendo com que ficasse ruborizada.

      — Por que não me leva com você? — pediu ela.

      — Você não sabe o que está dizendo!

      — Sim, sei. Estou fazendo algo muito difícil... mas algo que para mim tem mais importância do que a própria vida ou a morte.  Sei que temos pouco tempo.  A propósito, sou muito convencional e gostaria de me casar antes de partirmos.

      — Naturalmente — disse MacWhirter, profundamente chocado. — Você não imaginou que eu fosse capaz de lhe propor uma coisa diferente.

      — Estou certa de que não — assegurou Audrey.

      — Eu não sou o seu tipo — observou MacWhirter. — Pensei que se casaria com aquele sujeito calado, que gosta de você há tanto tempo.

      — Thomas? Querido e fiel Thomas! Ele é fiel demais. Manteve-se leal à imagem da garota que  amou  anos atrás. Porém a pessoa de quem ele realmente gosta é Mary Aldin, apesar dele ainda não saber disto.

      MacWhirter aproximou-se dela, e falou gravemente:

      — Você está falando sério?

      — Sim. Quero ficar com você para sempre e nunca mais sair do seu lado. Se for embora, jamais encontrarei alguém como você, e meus dias futuros serão muito tristes.

      MacWhirter respirou fundo. Pegou a carteira e examinou cuidadosamente o seu conteúdo.

      — Uma licença especial de casamento custa caro. Amanhã cedo vou ter que ir ao banco.

      — Eu poderia lhe emprestar algum dinheiro — murmurou Audrey.

      — Você não vai fazer nada disto. Quando me casar, eu pago a licença de casamento. Compreendeu?

      — Não precisa ficar tão sério — disse Audrey suavemente.

      Chegando mais perto dela, MacWhirter falou carinhosamente:

      — Na última vez em que a tive em meus braços, você parecia um pássaro, debatendo-se para fugir. Agora nunca mais a deixarei fugir...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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