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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IMPOSSIVEL / Danielle Steel
IMPOSSIVEL / Danielle Steel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

IMPOSSIVEL

Primeira Parte

 

Existem momentos que ficam para a eternidade. Mas depois desses secretos momentos vividos pelos amantes, como se volta à rotina dos dias? Como se esqueceo fulgor da paixão que tinge os dias de vivas e vivazes cores? Impossível, diriam alguns. E talvez seja de facto impossível renunciar a uma inesperadafelicidade.

Sasha e Liam são como água e fogo. Ela uma ponderada e inteligente galerista, ele um pintor sem regras movido pelas sensações. Encontram-se, odeiam-se,apaixonam-se. Mas como podem viver um com o outro sendo tão diferentes?

Uma arrebatadora história de amor entre a Europa e os Hamptons, nos EUA, a contagiar-nosde um doce e picante formigueiro romântico. Danielle Steel atenta, sensível, ousada – no seu melhor.

Liam busca e busca o seu caminho. A pintura não é apenas um trabalho é uma forma de estar no mundo, de olhar a vida e senti-la. Quando se cruza com Sasha,uma poderosa galerista, detesta o seu arrogante mundo de certezas. Casada, com filhos, uma estável e bem sucedida carreira como dona de algumas das maisimportantes galerias do mundo, tudo na sua vida parece, simplesmente, perfeito.

O confronto que se estabelece entre tão diferentes personalidades acabacontudo por revelar algo mais forte e violento: a paixão. Inesperada para ela, procurada por ele, a paixão acontece sem que a possam controlar. Vivem entãouma secreta relação. Ela hesita em acabar com o sólido casamento, teme o escândalo, a reprovação dos filhos, mas a Liam interessa apenas o presente, averdade dos momentos que vivem quando estão sozinhos. Para ele nada mais importa, para ela há muito em jogo.

Um romance a arrebatar-nos da tranquilidade dos dias, e a lançar-nos no mundo das emoções fortes que só mesmo Danielle Steel consegue criar com tanta cor,verdade e intimismo. Ler este livro é assim participar um pouco nas emoções vividas pelas personagens, é deixar que esse formigueiro de quem ama e se dáà paixão nos contamine também a nós, leitores...

 

 

A Galeria Suvery, em Paris, situava-se num edifício impressionante, uma elegante casa apalaçada do século xvII na Faubourg Saint-Honoré. Os coleccionadores eram recebidos apenas com hora marcada, transpondo os imponentes portões de bronze que davam acesso ao pátio interior. Mesmo em frente tinham a galeria principal e à esquerda ficavam os escritórios de Simon de Suvery, o proprietário.

À direita encontrava-se o espaço que a filha havia acrescentado à galeria, a ala de arte contemporânea. Nas traseiras da mansão havia um amplo e requintado jardim, repleto de esculturas, em grande parte da autoria de Rodin. Simon de Suvery ocupava aquele espaço havia mais de quarenta anos. O seu pai, Antoine, fora um dos coleccionadores de arte mais importantes da Europa, enquanto Simon, antes de ter aberto a galeria, havia sido um reputado perito em pinturas da Renascença e dos mestres holandeses. Agora era consultor de vários museus em todo o território europeu, além de ser extremamente conceituado entre os coleccionadores particulares, sendo admirado, e muitas vezes temido, por todos os que o conheciam.

Simon de Suvery era uma figura intimidante, alto e com uma constituição física possante, feições austeras e olhos escuros de expressão tão acerada que parecia penetrar-nos até ao fundo da alma. Simon não tivera pressa em casar. Na juventude andara atarefado a estabelecer-se no seu ramo de actividade, pelo que não havia perdido tempo com romances.

Aos quarenta anos, desposou a filha de um importante coleccionador norte-americano. Foi uma união bafejada pela felicidade e pelo sucesso. Marjorie de Suvery nunca se envolveu pessoalmente nos assuntos da galeria, a qual já se encontrava bem estabelecida antes de se ter casado com Simon. Sentia-se fascinada por aquele espaço dedicado à arte, admirando os trabalhos que o marido expunha.

Estava profundamente enamorada, tendo passado a sentir um interesse apaixonado por tudo o que ele fazia. Marjorie também se dedicava às artes plásticas, embora nunca tivesse tido à-vontade para mostrar os seus trabalhos. Pintava paisagens e retratos de grande suavidade, sendo frequente que oferecesse essas pinturas de presente aos amigos. Verdade fosse dita, Simon sentira-se tocado pelo trabalho dela, mas nunca ao ponto de ficar impressionado.

Era implacável nas suas escolhas, impiedoso nas decisões que tomava em relação à galeria. Tinha uma vontade férrea, um espírito aguçado, muita argúcia para os negócios e um coração generoso, embora este estivesse enterrado muito fundo e, por vezes, bem escondido. Ou, pelo menos, era o que Marjorie dizia, embora nem toda a gente acreditasse nela... Simon era justo na forma como lidava com os que trabalhavam para si, honesto com os seus clientes e persistente quando queria algo que considerava que a sua galeria devia possuir.

Por vezes, levava vários anos até conseguir adquirir um quadro ou uma escultura em especial, mas não descansava até conseguir concretizar os seus objectivos. Havia cortejado a mulher nos mesmos moldes, até terem contraído matrimónio. E depois de a ter, guardou-a como se fosse um tesouro

- em grande parte só seu. Apenas comparecia em eventos sociais quando considerava que era indispensável e tinha por hábito receber os clientes numa das alas da mansão.

Decidiram ter filhos já numa fase bastante adiantada do casamento. De facto, essa decisão coube a Simon, e esperaram dez anos até ao nascimento de uma criança.

 

Sabendo quanto Marjorie ansiava ter filhos, finalmente Simon acedeu aos desejos da mulher, sentindo-se apenas um pouco desiludido quando Marjorie deu à luz uma menina em vez de um menino. Já tinha cinquenta anos quando Sasha nasceu e Marjorie trinta e nove. O bebé passou de imediato a ser o amor da vida da mãe; tornaram-se inseparáveis. Marjorie passava horas a fio com a filha, ria-se às gargalhadas e falava-lhe como se estivesse a arrulhar, brincando com ela no jardim.

Quase entrou numa fase de luto quando Sasha começou a ir à escola, o que obrigou a que estivessem separadas durante parte do dia. Sasha era uma criança terna e adorável, uma mistura interessante dos progenitores. Possuía um certo ar de austeridade do pai, a par da suavidade etérea da mãe. Marjorie era uma mulher loura de fisionomia angélica e olhos azuis, com a aparência de madona de uma pintura italiana. Sasha tinha feições delicadas como a mãe e cabelo e olhos escuros como os do pai, mas, ao contrário dos progenitores, era baixa e de aspecto frágil.

O pai costumava arreliá-la, na brincadeira, dizendo-lhe que ela se assemelhava a uma miniatura de criança. Contudo, não havia nada de pequeno na alma de Sasha; possuía a força de vontade férrea do pai, o calor humano, a amabilidade e ternura da mãe, ao que se associava a franqueza que aprendera com o pai durante os primeiros anos de vida. Já tinha quatro ou cinco anos quando ele começou a reparar nela com olhos de ver, e quando isso aconteceu, só falava de arte com a filha.

Nos seus tempos livres, Simon percorria a galeria com ela, identificando os quadros e respectivos autores, mostrando-lhe os trabalhos de cada um reproduzidos em livros de artes plásticas, esperando que ela repetisse os nomes dos pintores e que fosse mesmo capaz de os soletrar quando já tinha idade para saber escrever. Em vez de se rebelar, a garota absorvia tudo o que ele lhe ensinava, retendo todas as informações, por ínfimas que fossem, que o pai lhe dava. Simon tinha muito orgulho nela. Também se sentia cada vez mais apaixonado pela mulher, que adoeceu três anos depois de Sasha ter nascido.

Inicialmente, a doença de Marjorie constituiu um mistério para todos os médicos que foram consultados e, bem no íntimo, Simon acreditava que o mal era psicossomático. Não tinha paciência para doenças nem fraquezas, acreditando que qualquer problema de natureza física poderia ser dominado e superado. Mas, ao invés de conseguir ultrapassar a doença, Marjorie estava cada vez mais enfraquecida.

Somente decorrido um ano conseguiram obter um diagnóstico em Londres, o qual foi confirmado em Nova Iorque: Marjorie sofria de uma doença degenerativa rara que lhe atacava os nervos e os músculos, e que, numa última fase, lhe incapacitaria os pulmões e o coração. Simon optou por rejeitar este diagnóstico e Marjorie mostrou-se corajosa face a tal atitude, queixando-se pouco, fazendo tudo o que as forças lhe permitiam durante tanto tempo quanto lhe foi possível na companhia do marido e da filha, descansando sempre que tinha oportunidade.

A doença nunca lhe esmoreceu o espírito, mas, como seria de esperar, o seu corpo acabou por sucumbir. Quando Sasha tinha sete anos já ela estava de cama, tendo vindo a falecer pouco depois de a filha completar nove anos. Não obstante o que todos os médicos lhe haviam dito, Simon ficou atordoado. Tal como Sasha. Nenhum dos progenitores a tinha preparado para a morte da mãe.

Tanto Sasha como Simon haviam-se acostumado ao interesse que Marjorie mostrava sempre por tudo o que ambos faziam e à maneira como participava na existência dos dois, até mesmo depois de estar acamada. A percepção repentina de que ela desaparecera do seu mundo atingiu-os como uma bomba, unindo Sasha e o pai como nunca. Para além da galeria, Sasha tornou-se o foco da vida de Simon.

Sasha cresceu a amar a arte; era a sua fome, a sua sede, o seu sono, constituía tudo o que conhecia, o que fazia e amava além do pai.

Era-lhe tão dedicada quanto ele a ela. Até mesmo em criança, já sabia tanto a respeito da galeria como Simon, assim como dos seus trabalhos complicados e intrigantes, conhecendo todos os que ali trabalhavam. Havia ocasiões em que Simon pensava que, apesar de ainda ser muito novinha, ela era mais arguta em relação à galeria e muito mais criativa do que qualquer dos seus funcionários. A única coisa que o aborrecia, e que nem sequer tentava disfarçar, era a paixão crescente da filha pela arte moderna e contemporânea. Os trabalhos de arte contemporânea irritavam-no sobremaneira, nunca hesitando em apelidá-los de sucata, quer em privado quer em público. Simon amava e respeitava os grandes mestres da pintura e nada mais.

Tal como o pai, Sasha estudou na Sorbonne, onde se licenciou em História da Arte; e tal como prometera à mãe, doutorou-se na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Depois do doutoramento, trabalhou durante dois anos como estagiária no Museu Metropolitano de Arte, o que completou a sua educação académica. Durante esse período, ia a Paris com frequência, por vezes apenas para passar um fim-de-semana. Simon também a visitava em Nova Iorque tão amiúdo quanto lhe era possível. Alegava como desculpa que precisava de contactar com clientes e coleccionadores que tinha nos Estados Unidos da América, aproveitando também para visitar alguns museus, mas o que ele queria realmente era poder ver Sasha, recorrendo a qualquer desculpa que lhe permitisse visitar a filha.

Aquilo que Simon nunca esperara era o aparecimento de Arthur Boardman na vida de Sasha. Conheceu-o durante a primeira semana que passou na Universidade de Columbia aquando do doutoramento. Na altura tinha vinte e dois anos e casou-se com ele decorridos seis meses, a despeito dos protestos do pai. Inicialmente,

Simon ficou horrorizado por a filha se casar tão nova. E a única coisa que o abrandou, levando-o a acabar por dar o seu consentimento, foi o fato de Arthur lhe ter garantido que quando Sasha concluísse os estudos e o estágio em Nova Iorque se mudaria para Paris com ela, cidade em que passariam a viver.

Foi por pouco que Simon não o obrigou a assinar essa promessa com o seu próprio sangue. Mas até mesmo ele era incapaz de resistir ao ver como Sasha se sentia feliz. Finalmente, cedeu, admitindo que Arthur Boardman era uma boa pessoa e o homem certo para a filha.

Arthur tinha trinta e dois anos, mais dez que Sasha. Estudara em Princeton e doutorara-se em Harvard. Tinha um cargo respeitável num banco de investimentos de Wall Street que, muito convenientemente, possuía uma sucursal em Paris. Desde os primeiros tempos do casamento, começou a exercer toda a sua influência para que o nomeassem para a gerir. Ao fim de um ano nasceu o primeiro filho, Xavier.

Dois anos depois, foi a vez de Tatiana chegar ao mundo. Apesar da maternidade, Sasha não descurou os seus estudos. Por sorte, as duas crianças nasceram no Verão, logo a seguir ao final do ano lectivo, e Sasha contratou uma ama para a ajudar a cuidar dos filhos enquanto ela ia às aulas e trabalhava no museu.

Aprendera a fazer malabarismos com o tempo, além de ter observado o pai a gerir a galeria quando era criança. Adorava ter uma vida tão preenchida e amava Arthur e os filhos. E se bem que ao princípio Simon fosse um avô um tanto ou quanto relutante, não tardou a mostrar um grande entusiasmo pelas crianças, que eram encantadoras.

Sasha passava com os filhos todos os momentos livres, tal como a mãe fizera consigo, entoando as mesmas canções e partilhando as mesmas brincadeiras. De facto, Tatiana era extraordinariamente parecida com a avó materna, semelhança que, de início, enervava Simon, mas, à medida que Tatiana foi crescendo, adorava sentar-se a observar a neta, enquanto pensava na falecida esposa. Era como se ela tivesse renascido na pele da garota.

Cumprindo o que prometera, Arthur mudou-se com a família para Paris quando Sasha acabou o estágio de dois anos no Museu Metropolitano de Nova Iorque.

 

Para todos os efeitos, o banco de investimentos entregava-lhe a sucursal de Paris para que ele a gerisse aos trinta e seis anos de idade; tal como Sasha, a administração do banco depositava toda a confiança nele. Quanto a Sasha, ia passar a ter uma vida ainda mais ocupada do que em Nova Iorque, onde trabalhara no museu em regime de tempo parcial, dispondo do resto do seu tempo para cuidar dos filhos.

Em Paris, iria trabalhar com o pai na galeria. Agora já estava preparada para isso. Ele tinha concordado que ela saísse todos os dias às quinze horas, para poder estar com as crianças, mas Sasha sabia que teria também bastante do seu tempo ocupado com funções sociais, devido à posição do marido. Regressou a Paris vitoriosa, academicamente bem qualificada, empolgada e intrépida, entusiasmada por poder voltar ao seu país.

O mesmo se aplicava a Simon, contentíssimo por ela estar em casa e a trabalhar, finalmente, com ele. Havia vinte e seis anos que aguardava esse momento, que, por fim, chegara, para grande satisfação de pai e filha.

Simon continuava a ter o mesmo aspecto austero que ostentava quando ela era criança, mas até mesmo Arthur reparou que, depois de se terem mudado para Paris, com o passar dos anos, a atitude de Simon foi abrandando de modo quase imperceptível. De tempos a tempos, até se entretinha a tagarelar com os netos, muito embora, a maior parte das vezes em que os visitava, preferisse ficar sentado a observá-los. Nunca se sentira muito à vontade na presença de crianças pequenas, nem mesmo com Sasha, durante a meninice desta. Quando se mudaram para Paris já Simon tinha setenta e seis anos. Foi a partir dessa altura que a vida de Sasha conheceu um grande impulso.

A primeira decisão que precisavam de tomar era decidir onde passariam a viver; Simon surpreendeu o casal ao resolver-lhes o dilema. Sasha planeara procurar um apartamento na margem esquerda. A família já era grande de mais para o andar que era propriedade do banco, no décimo sexto bairro. Simon ofereceu-se para lhes ceder a ala da mansão em que vivia, um espaço elegante, com três pisos, que fora a sua casa não só durante todo o tempo em que estivera casado, assim como nos anos anteriores e depois disso.

E insistiu, alegando que era grande de mais apenas para ele, além de que os joelhos já se ressentiam quando tinha de subir as escadas, se bem que Sasha não acreditasse inteiramente no que o pai dizia; ele ainda conseguia fazer caminhadas de vários quilómetros. Simon ofereceu-se para se mudar para o outro lado do pátio, para o último andar da ala, onde se situavam os escritórios e armazéns suplementares. E não perdeu tempo, metendo mãos à obra para remodelar aquele espaço, acrescentando-lhe umas bonitas janelas ovais sob o telhado de mansarda.

Também mandou colocar uma cadeira motorizada para subir e descer as escadas, fazendo as delícias dos netos sempre que os autorizava a utilizá-la. Nessas alturas, subia as escadas ao lado deles, que soltavam risos de satisfação. Sasha ajudou-o nos trabalhos de remodelação e decoração, o que lhe deu uma ideia, que inicialmente, porém, não foi do agrado do pai. Era um plano que acalentava havia vários anos e com o qual sonhara toda a vida: queria expandir a galeria para poder incluir trabalhos de artistas contemporâneos.

A ala que anteriormente fora utilizada como armazém era perfeita para a concretização do seu plano; situava-se no extremo oposto do pátio, onde ficavam os escritórios e os novos alojamentos do pai. Era evidente que abrir o piso térreo privá-los-ia de parte do espaço que servia para armazenagem, mas já tinha consultado um arquitecto para lhes desenhar um novo armazém aproveitado ao máximo no andar de cima. À primeira menção de poder vir a negociar trabalhos de arte contemporânea, Simon ficou furibundo.

 

Não tinha a mínima intenção de estragar o bom nome da sua galeria, de pôr a sua reputação em perigo, vendendo os mamarrachos de que Sasha tanto gostava, da autoria de artistas que persistia em dizer que não possuíam talento. Foi preciso quase um ano de discussões azedas para Sasha conseguir convencê-lo.

Só quando ela ameaçou deixar a galeria e começar a trabalhar por conta própria é que Simon finalmente cedeu - se bem que com uma dose considerável de rancor e uma resmunguice feroz. No entanto, ainda que senhora de uma maneira de ser mais branda, Sasha era tão inflexível como o pai, o que lhe permitiu manter-se firme. Mas, mesmo depois de ter concordado com o seu plano, nem sequer se atrevia a reunir-se com os novos artistas nos escritórios principais, por o pai se comportar com tanta grosseria com eles. Todavia, a teimosia de Sasha igualava a de Simon.

Um ano depois de se terem mudado para Paris, inaugurou a ala de arte contemporânea com toda a pompa e circunstância. E, para grande perplexidade do pai, as críticas foram extremamente favoráveis, não apenas por ela ser Sasha de Suvery, mas também porque tinha golpe de vista para o que eram trabalhos de arte contemporânea de qualidade, à semelhança do que acontecia com o pai no campo de que se ocupava.

Notavelmente, Sasha conseguia manter um pé nos dois mundos: era conhecedora no respeitante ao que ele negociava de forma tão competente como era brilhante em relação aos trabalhos modernos. Quando completou trinta anos, três anos depois de ter aberto a Suvery Contemporânea, esta já era a galeria de arte contemporânea mais importante de Paris e talvez mesmo da Europa.

Além do mais, nunca se divertira tanto em toda a sua vida, assim como Arthur. Ele adorava o que Sasha fazia, dando-lhe o seu apoio em todas as decisões, em todos os investimentos, mais ainda do que o pai, que continuava a mostrar relutância, apesar de, em última análise, sentir um grande respeito por tudo o que ela conseguira concretizar em termos de arte contemporânea. De facto, Sasha colocara a galeria do pai na vanguarda, o que fizera com grande impacto.

Arthur adorava o contraste entre a vida profissional da mulher e a sua. Agradava-lhe a jovialidade que transparecia dos trabalhos que ela exibia, assim como o espírito brincalhão dos artistas de artes plásticas com quem trabalhava, tão diferente do dos banqueiros com quem ele tinha de lidar. Era frequente acompanhá-la nas viagens que fazia a outras cidades para contactar novos artistas, além de lhe agradar sobremaneira ir com ela a mostras de arte.

De comum acordo, tinham remodelado a ala de três pisos em que viviam, transformando-a quase num museu de arte contemporânea, com obras de pintores que começavam a ser conhecidos. E os trabalhos que ela negociava na Suvery Contemporânea eram, em termos financeiros, muito mais acessíveis do que os impressionistas e quadros antigos de grandes mestres que o pai transaccionava. Os negócios de um e outro iam de vento em popa.

Sasha geria o seu ramo do negócio havia oito anos quando tiveram de fazer face à primeira crise grave. O banco de investimentos de que Arthur era sócio há vários anos insistiu com ele para que voltasse a gerir as instalações de Wall Street. Dois dos sócios haviam falecido num acidente aéreo com um avião particular e todos eram unânimes em que Arthur era a escolha óbvia para gerir a sede do banco.

Na verdade, ele era a única escolha. Por isso, e em boa consciência, Arthur não tinha maneira de poder recusar-se. Para ele, a sua carreira também era muito importante, e a administração do banco não tencionava dar-lhe qualquer saída. Precisavam dele em Nova Iorque.

Sasha chorava copiosamente quando explicou a situação ao pai, fazendo que as lágrimas assomassem também aos olhos dele.

 

Durante os treze anos de casamento, Arthur sempre dera à mulher todo o seu apoio incondicional, o que se estendeu a todos os aspectos da sua carreira, e agora chegara a hora de ela fazer o mesmo por ele, mudando-se de novo para Nova Iorque. Seria pedir demasiado ao marido que abandonasse a sua carreira profissional por causa dela, de maneira que Sasha pudesse continuar a trabalhar com o pai na galeria, mesmo levando em conta que, inegavelmente, ele estava a envelhecer.

Nesta altura Sasha já tinha trinta e cinco anos e, se bem que não parecesse nem se comportasse como se tivesse essa idade, o pai já fizera oitenta e cinco. Além do mais, fora afortunado por Arthur ter podido viver em Paris durante tanto tempo sem que com isso prejudicasse a sua carreira profissional. Mas agora chegara a altura de ele voltar à terra onde nascera e de Sasha o acompanhar.

À maneira muito característica de Sasha, precisou apenas de seis semanas para encontrar uma solução. Mudar-se-iam para Nova Iorque dentro de um mês. Esta ideia fez o pai ficar com a respiração suspensa, de tão horrorizado que se sentiu. Opôs-se de imediato à ideia da filha, mostrando a mesma atitude que adoptara quando ela sugeriu que começassem a negociar em arte moderna. Mas desta vez ela não o ameaçou, pelo contrário, implorou-lhe.

O que Sasha pretendia era abrir uma sucursal da galeria em Nova Iorque, que se dedicaria tanto aos trabalhos de artes plásticas antigos como modernos. O pai achou a ideia um disparate. A Suvery era a galeria de arte mais conceituada de Paris, contactada diariamente por norte-americanos que adquiriam peças de grande valor, assim como por museus de todo o mundo. Não tinham qualquer necessidade de abrir uma sucursal em Nova Iorque, não fosse o facto de Sasha ir passar a viver nessa cidade, querendo continuar a trabalhar para o pai e na galeria que adorava, tal como fazia havia nove anos.

Na verdade era um ponto de viragem na vida de todos. Arthur achava que a ideia da mulher era brilhante, dando-lhe todo o seu apoio, e foi ele quem acabou por conseguir convencer o sogro, se bem que até mesmo no dia em que partiram Simon continuasse a insistir em que a ideia era uma loucura. Sasha ofereceu-se para financiar o projecto com o seu próprio dinheiro, no que foi secundada por Arthur, mas, no fim, como sempre, o pai acabou por fazer o que ela queria. Assim que chegou a Nova Iorque, arranjou um apartamento na Park Avenue para a família; as instalações da Galeria Suvery Nova Iorque ficariam num prédio em arenito na Rua Sessenta e Quatro, entre a Quinta Avenida e a Madison.

Como habitualmente, quando Sasha se empenhava a fundo num projecto, concretizando-o com uma energia e um trabalho incansáveis, este revelou-se uma ideia brilhante. Entretanto, o pai visitou-os em várias ocasiões e, com alguma casmurrice, reconheceu que o espaço era ideal para o que pretendiam, embora, como seria de esperar, a uma escala reduzida. Porém, quando chegou a altura de ir a Nova Iorque para a inauguração da galeria de arte, o que teve lugar nove meses mais tarde, todo ele era sorrisos.

Sasha tornou-se uma personalidade muito admirada e respeitada no mundo da arte de Nova Iorque. Aos trinta e cinco anos, era uma das negociantes de arte mais importantes em todo o mundo, a exemplo do que acontecia com o pai, tendo acabado por integrar os corpos directivos dos Museus de Arte Moderna e Metropolitano, uma grande honra, porque ninguém fizera parte dos dois simultaneamente até então.

Xavier e Tatiana, nesta altura, tinham doze e dez anos, respectivamente. Xavier adorava desenhar, enquanto Tatiana pegava em qualquer máquina fotográfica que estivesse à mão, tirando fotografias incrivelmente divertidas a adultos surpresos. Tatiana parecia um pequeno elfo louro e Xavier era muito parecido com o pai, com a diferença de ter herdado o cabelo quase de um negro-azeviche do avô e da mãe. Eram crianças lindas e encantadoras e ambas bilingues.

Sasha e Arthur concordaram em matriculá-los no Lycée em Nova Iorque, mas Tatiana não se cansava de repetir que queria voltar para Paris; sentia saudades das amigas. Pelo contrário, quase de imediato, Xavier afirmou que preferia viver em Nova Iorque.

Durante os dois anos seguintes, foi com grande satisfação que Sasha geriu a sua galeria em Nova Iorque. Viajava frequentemente para Paris, regra geral duas vezes por mês. Às vezes seguia no Concorde, quando tinha reuniões importantes com o pai, regressando ainda nessa noite a Nova Iorque, para junto de Arthur e dos filhos. No Verão levava-os sempre de novo a França. Passava bastante tempo com o pai na casa que ele alugara havia vários anos em Saint-Jean Cap Ferrat, mas alojava-se no Éden Roc com as crianças, pois, apesar de Simon adorar os netos, se passasse muito tempo com eles começava a sentir-se enervado. E embora Sasha não gostasse de o admitir, a verdade é que o pai estava a envelhecer. Tinha oitenta e sete anos e, a pouco e pouco, ia declinando.

Com grande pesar, ambos haviam falado sobre o que ela devia fazer quando estivesse sozinha a gerir o negócio das galerias. Sasha tinha dificuldade em imaginar tal situação, ao contrário do pai, que encarava o caso com toda a naturalidade. Tivera uma vida bastante longa e não receava o que o destino lhe reservava. Havia ensinado bem os que trabalhavam para si. Com o tempo, ela conseguiria viver quer em Paris quer em Nova Iorque, tendo pessoas competentes a trabalhar para si em qualquer das duas cidades. Teria de dividir o seu tempo pelas duas galerias, como é evidente, viajando com regularidade entre uma e outra, mas a escolha quanto à cidade em que passaria a residir era sua, graças à previdência e perspicácia do pai.

Tinham gerentes excelentes nas duas galerias, mas era em Paris que ela se sentia em casa, o que não significava que não gostasse de viver e trabalhar em Nova Iorque. Era inegável que, nessa altura, Arthur estava de tal maneira ligado ao banco que não podia viver em qualquer outro lugar que não fosse Nova Iorque. Sasha tinha noção de que não poderia mudar-se para outro local até que ele se aposentasse. E uma vez que Arthur tinha apenas quarenta e sete anos, a aposentadoria ainda estava muito longe. Sentia-se afortunada por o pai continuar a gerir a galeria de Paris, a despeito dos seus oitenta e sete anos.

Simon era notável, apesar de o seu ritmo de vida ter abrandado quase imperceptivelmente. Não obstante, ou talvez devido a isso mesmo, Sasha ficou atônita quando ele faleceu de morte súbita, com oitenta e nove anos. No fundo, sempre acalentara o sonho de que ele vivesse para sempre. Mas Simon morreu precisamente como teria desejado: estava sentado à sua secretária quando foi acometido de uma apoplexia fulminante. Os médicos disseram que não havia sofrido. Morreu de um momento para o outro depois de ter concluído um negócio importante com um coleccionador da Holanda.

Em estado de choque, Sasha seguiu de avião para Paris nessa mesma noite; atordoada, deambulou pela galeria como se não soubesse o que fazia, incapaz de acreditar que o pai havia desaparecido para sempre. A cerimônia fúnebre foi um acontecimento importante. O presidente da República esteve presente, assim como o ministro da Cultura, e todas as pessoas relevantes do mundo das artes compareceram para prestar homenagem ao falecido, assim como os amigos, clientes, Arthur e as crianças.

Era um dia frio de Novembro e chovia intensamente quando o corpo baixou à terra no Cemitério Père Lachaise, situado no vigésimo bairro, no extremo oriental de Paris. Simon ficou rodeado por personalidades como Victor Hugo, Proust, Balzac e Chopin, uma última morada adequada à pessoa que fora em vida.

 

Depois do funeral, Sasha passou as quatro semanas seguintes em Paris a tratar de vários assuntos com os advogados, a organizar as coisas e a guardar os papéis e pertences do pai. A estada foi mais prolongada do que o necessário, mas desta feita a perspectiva da partida era-lhe insuportável. Pela primeira vez desde que deixara de viver em Paris Sasha queria continuar na sua terra natal, ficar perto do local onde o pai vivera e trabalhara. Um mês mais tarde, quando finalmente entrou no avião que a levaria para sua casa em Nova Iorque, sentia-se órfã.

Os estabelecimentos comerciais e as ruas, decorados de acordo com a quadra natalícia, pareciam-lhe uma afronta depois da perda que acabara de sofrer. Foi um ano muito difícil para Sasha, mas, a despeito disso, as duas galerias prosperavam. Os anos que se seguiram foram pacíficos, felizes e produtivos. Sentia saudades do pai, mas, a pouco e pouco, foi criando raízes em Nova Iorque à medida que as crianças cresciam, e continuava a voltar a Paris duas vezes por mês, a fim de orientar a gestão da galeria.

Oito anos depois da morte do pai, as duas galerias iam de vento em popa e eram igualmente bem-sucedidas. Arthur começara a falar em aposentar-se quando fizesse cinquenta e sete anos. Tivera uma carreira respeitável e de sucesso, mas, em privado, confidenciava a Sasha que se sentia cansado. Xavier, já com vinte e quatro anos, vivia e pintava em Londres, expondo os seus trabalhos numa pequena galeria no Soho.

Apesar de Sasha adorar os quadros do filho, ainda não tinham a qualidade necessária para os expor nas suas galerias. O amor que lhe dedicava não a impedia de ver que ele ainda teria de progredir. Possuía talento, mas, como artista, ainda não atingira o auge da maturidade. Todavia, era um apaixonado pelo seu trabalho. O rapaz adorava tudo o que se relacionasse com o mundo da arte de que fazia parte em Londres e Sasha sentia-se muito orgulhosa do filho. Acreditava que um dia seria um grande pintor, e, com o tempo, esperava poder vir a expor os seus trabalhos.

Quanto a Tatiana, licenciara-se na Brown havia quatro meses em Belas-Artes e Fotografia. E começara a trabalhar como terceira-assistente de um fotógrafo de renome em Nova Iorque, o que, na prática, significava que ocasionalmente lhe mudava os rolos de película, lhe levava o café e varria o chão do estúdio, mas a mãe assegurou-lhe que ao princípio as coisas eram assim mesmo.

Nenhum dos filhos mostrava o mínimo interesse em trabalhar nas galerias com ela. Ambos eram de opinião de que o que fazia era maravilhoso, mas queriam ter vidas e carreiras profissionais independentes. Sasha apercebia-se de quão raro era aprender tanto como ela aprendera com o pai; a oportunidade que ele lhe dera e a educação que lhe havia sido proporcionada por ter sido criada no seio da atividade profissional que Simon abraçara e junto dele não tinham preço. Era com pesar que reconhecia não ser capaz de seguir esse exemplo em relação aos filhos.

Sasha perguntava-se se um dia Xavier quereria trabalhar consigo na galeria, mas, para já, tal possibilidade parecia remota. Agora que Arthur começava a falar na hipótese de se aposentar, sentia-se atraída para as suas raízes em Paris. Por muito que gostasse do ambiente empolgante de Nova Iorque, a vida parecia-lhe sempre muito mais agradável quando voltava à sua terra natal. Para ela, a sua casa continuava a ser em Paris, apesar de possuir dupla nacionalidade, graças à mãe, francesa, e a dezasseis dos seus quarenta e sete anos, um terço da sua vida, passados em Nova Iorque.

Mas, no seu íntimo, Sasha continuava a ser francesa. Arthur não se opunha à ideia de voltarem a viver em Paris depois de se aposentar, e no Outono começaram a falar mais a sério sobre o assunto.

Numa sexta-feira soalheira de Outubro, um dos últimos dias de tempo quente, Sasha fazia uma breve inspeção a um lote de pinturas que planeavam vender a um museu de Boston. Mantinham os quadros dos mestres antigos e os trabalhos mais tradicionais nos dois andares superiores do prédio de arenito.

O primeiro e segundo pisos estavam reservados às peças contemporâneas, pelas quais atualmente eram famosos. O gabinete de Sasha situava-se num canto das traseiras do piso térreo.

Depois de ter percorrido os andares de cima, guardou alguns papéis dentro da pasta e olhou pela janela do gabinete para o jardim cheio de peças de estatuária. Tal como acontecia com a maior parte dos trabalhos de arte moderna, era um reflexo do gosto de Sasha. Adorava ficar a observar as peças que se encontravam no jardim, especialmente quando nevava, mas ainda faltavam dois meses para a chegada das primeiras neves, pensou, enquanto pegava na pasta bastante cheia.

Estaria ausente da galeria durante toda a semana seguinte, pois partiria na manhã de domingo para Paris, onde ia inteirar-se de como as coisas estavam a correr. Continuava a fazer as suas viagens de rotina de duas em duas semanas, tal como vinha a acontecer desde a morte do pai, havia oito anos. Era uma negociante que não delegava poderes, quer numa cidade quer noutra, e já estava muito acostumada a estas viagens regulares. Era um hábito fácil de manter e que não a impedia de ter a sua vida, os seus amigos e os seus clientes nas duas cidades. Sasha sentia-se tão à vontade em Paris como em Nova Iorque.

Estava a pensar no fim-de-semana quando o telefone começou a tocar, precisamente quando se preparava para deixar o gabinete. Era Xavier que lhe ligava de Londres. Sasha olhou de relance para o relógio, constatando que era quase meia-noite no país onde o filho se encontrava. Assim que ouviu a sua voz esboçou um sorriso. Amava os dois filhos, contudo, sob certos aspectos, sentia-se mais próxima de Xavier. Sempre achara que era mais fácil lidar com ele. Tatiana era mais chegada ao pai, embora também tivesse algumas afinidades com Simon.

A sua maneira de ser possuía uma faceta mais dura e crítica, que a tornava menos propensa a ceder e a ser consensual do que o irmão. Xavier e a mãe eram almas gémeas sob muitos aspectos: ambos possuíam um carácter brando e eram igualmente compreensivos, sempre dispostos a perdoar alguém que amassem ou um amigo. Tatiana, pelo contrário, adoptava uma postura mais endurecida face à vida e às pessoas.

- Estava com medo de que a mãe já tivesse saído - disse Xavier com um sorriso e um bocejo. Sasha fechou os olhos, pensando nele e visualizando o rosto do filho. Sempre fora uma criança encantadora e agora era um jovem extremamente bem-parecido.

- De facto já estava de saída, apanhaste-me por um triz. O que é que estás a fazer em casa numa sexta-feira à noite?

- Xavier tinha uma vida social muito activa no mundo artístico de Londres, ao que se associava uma fraqueza por mulheres bonitas - em grande número. Era uma coisa que sempre divertira a mãe, sendo frequente que brincasse com ele por causa disso.

- Acabei de chegar a casa - explicou Xavier, defendendo a sua reputação.

- Sozinho? Estou decepcionada... - continuou Sasha, atazanando-o. Divertiste-te?

- Fui com um amigo à inauguração de uma galeria e depois fomos jantar. Toda a gente se embebedou e as coisas começaram a ficar um pouco descontroladas, por isso achei por bem vir para casa, antes de sermos todos presos.

- Parece ter sido muito interessante... - retorquiu Sasha, voltando a sentar-se à sua mesa de trabalho e olhando para o jardim, enquanto pensava quanto sentia a falta dele. O que é que estavam a fazer para poderem ser presos? Apesar de gostar muito de mulheres, a maior parte delas eram inofensivas e bastante cordatas. Ele era apenas um homem jovem que se queria divertir e que, por vezes, se comportava como se ainda fosse um rapazinho, sempre a fazer traquinices.

A irmã gostava de afirmar, para quem a quisesse ouvir, que era muito mais respeitável do que ele, considerando que as mulheres com quem Xavier saía eram desprezíveis.

Nunca perdia uma oportunidade de o repetir, não só à mãe, mas também ao irmão, que, cheio de ardor, saía em defesa das suas damas, independentemente de quem elas fossem, atrevidas ou não.

- Fui à inauguração com um pintor que conheço. É um tanto ou quanto excêntrico, mas tem muito talento. Quero que a mãe o conheça um dia destes. Chama-se Liam Allison. Os seus quadros de pintura abstracta são fantásticos. A exposição a que fomos esta noite é magnífica, embora ele não tenha sido dessa opinião. Aborreceu-se durante a inauguração e embebedou-se.

Depois fomos jantar a um pub e ficou ainda mais embriagado. - Xavier adorava telefonar à mãe para lhe falar das suas amizades; eram poucos os segredos que não partilhava com ela. Sasha divertia-se a ouvir as histórias e peripécias do filho. Desde que ele saíra de casa que sentia a sua falta.

- Deve ter sido uma maravilha... Estou a referir-me ao facto de ele se ter embebedado. - Presumia que o amigo fosse mais ou menos da idade do filho. Dois rapazes folgazões, mas sem que saíssem dos eixos.

- Por acaso até foi. Quando estávamos no bar, despiu as calças. Mas o mais divertido foi o fato de ninguém ter reparado nisso até ele ter perguntado a uma rapariga se queria dançar. Acho que nessa altura já ele próprio se tinha esquecido de que estava sem calças, mas quando foi para a pista em cuecas houve uma velhota que lhe bateu com a mala de mão. Então o Liam convidou-a para dançar, e até chegou a dar algumas voltas com ela. Foi a coisa mais divertida que vi!

A velhota tinha pouco mais de um metro e vinte de altura e não parava de lhe bater com a mala. Parecia uma cena tirada dos Monty Python!... Ele é um dançarino excelente. - Sasha ria-se enquanto o filho lhe contava a história, imaginando a cena, o pintor em cuecas a dançar com uma mulher de idade enquanto ela lhe batia. - O Liam foi muito cortês com ela e toda a gente se ria a bandeiras despregadas, mas pouco depois o empregado do bar disse que ia chamar a Polícia; achei que era melhor levá-lo para casa e entregá-lo à mulher.

- Ele é casado? - perguntou Sasha, que pareceu ter ficado admirada com aquela informação. - Com a tua idade?

- O Liam não tem a minha idade, mãe. Tem trinta e oito anos e três filhos. São umas crianças encantadoras. A mulher também é muito simpática.

- Então... e onde é que ela estava? - perguntou Sasha num tom de voz em que se adivinhava alguma censura.

- Ela detesta sair com ele - replicou Xavier, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Liam Allison tornara-se um dos seus melhores amigos em Londres. Era um pintor que encarava a sua actividade com muita seriedade e a vida com alguma ligeireza, senhor de um sentido de humor extravagante e com uma grande propensão para pregar partidas, para gracejar e para brincadeiras de mau gosto.

- Estou a ver por que razão a mulher detesta sair com ele - comentou Sasha, referindo-se ao amigo do filho. Eu também não gostaria de sair com um marido que despe as calças em público e depois pede a senhoras de idade que dancem com ele.

- Foi mais ou menos isso que ela disse quando o levei para casa. O Liam perdeu a consciência mal o deitei no sofá, e tomei um copo de vinho com ela antes de sair. É uma boa mulher.

- Tem de ser, para aturar isso tudo. Ele é alcoólico? Por momentos, Sasha pareceu assumir uma atitude circunspecta, perguntando-se com que tipo de pessoas o filho se daria. O amigo de Xavier não lhe parecia ser a companhia ideal nem uma boa influência.

- Não, não é alcoólico - replicou Xavier, rindo-se. Só se sentia aborrecido, por isso apostou comigo que ninguém haveria de reparar durante uma hora se ele despisse as calças no pub. E ganhou. Ninguém reparou nisso até ele ter começado a dançar!

- Bem, só espero que não tenhas despido as tuas... retorquiu Sasha, falando com uma autoridade maternal que fez com que Xavier se risse dela. Adorava-a.

- Não, não despi as calças. O Liam afirmou que era uma cobardia da minha parte não me atrever a fazê-lo, e disse que apostaria o dobro se eu também despisse as minhas. Mas não despi.

- Muito obrigada, meu querido. Fico bastante aliviada por saber isso - retorquiu Sasha, consultando o relógio. Tinha combinado encontrar-se com Arthur às dezoito horas, e já passavam dez minutos. Adorava falar com o filho. - Detesto ter de fazer isto, mas prometi ao teu pai ir ter com ele a casa, e já estou atrasada dez minutos. Vamos de carro para os Hamptons depois do jantar.

-Já calculava. Só quis saber se estavam bons.

- Ainda bem que telefonaste. Planeaste alguma coisa de especial para este fim-de-semana? - Sasha gostava de se manter a par das andanças do filho, assim como de Tatiana, embora em relação a esta não o fizesse com tanta frequência. A filha mostrava ser mais independente. Fosse como fosse, ultimamente era mais provável que ela contactasse Arthur do que a mãe. Sasha não falara com a filha durante toda a semana.

- Não tenciono fazer nada de especial. O tempo tem estado horrível. Acho que vou ficar em casa a pintar.

- Óptimo. No domingo à noite vou viajar para Paris. Ligo-te quando chegar. Tens tempo para me visitar esta semana?

- Talvez. Falamos no domingo à noite. Tenha um bom fim-de-semana. Diga ao pai que gosto muito dele.

- Assim farei. Também gosto muito de ti... e diz ao teu amigo que da próxima vez deve ficar com as calças vestidas. Tens muita sorte por os dois não terem acabado na cadeia, por causarem tumulto ou por comportamento indecente em público, por se divertirem em excesso ou por qualquer outro motivo. - Xavier divertia-se sempre onde quer que estivesse e, aparentemente, era o que acontecia com o seu amigo Liam. Não era a primeira vez que mencionava o seu nome, tendo dito sempre que queria que a mãe visse os trabalhos dele.

Um dia destes tencionava fazer-lhe a vontade, se bem que ainda não tivesse tido tempo. Andava sempre a correr de um lado para o outro, e quando ia a Londres era para se encontrar com pintores que já representava, além de querer ver Xavier. Já lhe dissera que lhe enviasse diapositivos dos trabalhos do amigo, mas ele nunca o fizera, o que a levava a pensar que não falava a sério ou que sentia que ainda não estava preparado para lhe mostrar esses trabalhos.

Fosse como fosse, o homem parecia ser uma pessoa revoltante. Ela já representava várias personagens extravagantes e não estava bem certa de querer mais outra, por muito divertido que Xavier o achasse. Era muito mais fácil lidar com artistas que encaravam as suas carreiras com seriedade e se comportavam como pessoas adultas. Homens com quase quarenta anos que tinham um comportamento censurável e se despiam em público eram uma dor de cabeça, e ela não precisava de mais como esses. Falamos no domingo - concluiu Sasha. Telefono-lhe para Paris.

Adeus, mãe - despediu-se Xavier animadamente antes de desligar; Sasha sorria enquanto se apressava a sair do gabinete. Não queria que Arthur ficasse mais tempo à sua espera e, além disso, ainda tinha de preparar o jantar para os dois, mas estava muito contente por ter podido falar com o filho.

Acenou a todos de passagem enquanto abandonava as instalações num passo apressado; chegada à rua, mandou parar um táxi que a levasse até ao apartamento, situado a pouca distância, ainda a pensar em Xavier. Sabia que Arthur estaria à sua espera, ansioso por poder deixar a cidade. O trânsito era sempre impossível à sexta-feira, embora fosse um pouco menos intenso se esperassem até depois da hora do jantar. O tempo estava esplêndido. Apesar de já ser Outubro, fazia calor e estava muito sol. Sentada no táxi, descontraiu-se por momentos, fechando os olhos. A semana tinha sido longa e estava cansada. O apartamento a que voltava era a única coisa na vida deles que considerava desadequada. Havia doze anos que lá viviam, desde que se tinham mudado de Paris para Nova Iorque, e agora que os filhos haviam saído de casa parecia demasiado grande para os dois. Não desistia de insistir com Arthur para que o vendesse, após o que poderiam mudar-se para um andar mais pequeno na Quinta Avenida, com vista para o parque. Por outro lado, como pensavam na hipótese de se instalarem em Paris depois de ele se aposentar, concordaram que seria melhor esperar até decidirem definitivamente o que fazer.

Caso mudassem para Paris, apenas precisariam de ter em Nova Iorque uma segunda residência pequena. Encontravam-se num daqueles momentos raros em que Sasha sentia que a vida deles estava a mudar. Era o que lhe parecia desde que Tatiana se licenciara, tendo-se mudado para a sua própria casa. Havia ocasiões em que sentia um vazio na sua vida, agora que os filhos tinham saído de casa. Arthur costumava brincar a respeito desse assunto sempre que ela o mencionava, recordando-lhe que era uma das mulheres mais ocupadas de Nova Iorque ou de qualquer outra cidade do mundo, mas, fosse como fosse, Sasha sentia falta dos filhos.

Tinham sido uma parte vital da sua existência, pelo que, por vezes, ficava triste, sentindo-se fragilizada e menos útil, agora que ambos haviam partido. Estava grata por tanto Arthur como ela gostarem de viajar e de passar tempo juntos. Se possível, estavam mais unidos do que nunca e ainda mais apaixonados. Vinte e cinco anos de casamento não haviam diminuído o amor e a paixão que sentiam um pelo outro, pelo contrário, a familiaridade e a passagem do tempo tinham reforçado os laços afetivos e de união entre os dois, os quais eram cada vez mais fortes.

Arthur estava à espera de Sasha quando esta chegou a casa, sorrindo-lhe assim que a viu. Ainda vestia a camisa branca que levara para o escritório nessa manhã e tinha arregaçado as mangas. Atirara o casaco para as costas de uma cadeira. Já havia guardado num saco de viagem algumas das coisas que levariam para o fim-de-semana na casa que tinham em Southampton. Sasha planeara preparar uma salada para acompanhar galinha fria. Ambos gostavam de sair da cidade depois da hora de ponta; os fins-de-semana nos meses de Verão e de Outono eram impossíveis.

- Como é que foi o teu dia? - perguntou Arthur, dando-lhe um beijo na cabeça. Sasha penteava o cabelo todo para trás, prendendo-o num carrapito, tal como fizera toda a vida, mas durante os fins-de-semana, quando estavam nos Hamptons, fazia uma trança comprida que lhe caía pelas costas.

Adorava vestir roupas velhas, calças de ganga rotas e camisolas largas ou T-shirts desbotadas. Era um alívio não se vestir formalmente como tinha de fazer todos os dias para ir para a galeria. Arthur adorava jogar golfe e fazer caminhadas pela praia. Na sua juventude fora um marinheiro exímio, paixão que os filhos haviam herdado, e adorava jogar ténis com Sasha. A maior parte das vezes, durante os fins-de-semana, ela fazia um pouco de jardinagem ou aninhava-se confortavelmente a ler um livro.

Tentava não ter de trabalhar durante os fins-de-semana, muito embora, por vezes, tivesse de levar papéis da galeria consigo.À semelhança do que acontecia com o apartamento da cidade, actualmente a casa da praia também era demasiado grande só para os dois, mas isso era algo que a incomodava menos. Não lhe era difícil imaginar-se um dia com netos, além de que era frequente que os filhos fossem lá de visita acompanhados dos amigos.

Para Sasha, a casa nos Hamptons parecia-lhe sempre cheia de vida, talvez devido à vista para o oceano de que desfrutavam. Pelo contrário, o apartamento da cidade dava-lhe uma sensação de solidão e de morte.

 

- Peço desculpa por me ter atrasado - disse Sasha, encaminhando-se apressadamente para a cozinha, depois de lhe ter dado um beijo. Após tantos anos de casamento, continuavam a amar-se e a divertir-se juntos. - O Xavier ligou-me quando já me preparava para sair.

- Como é que ele está?

- Acho que estava um pouco embriagado. Tinha saído com uma pessoa que tem um comportamento muito reprovável.

- Uma mulher? - perguntou Arthur com um interesse renovado.

- Não, um pintor. Despiu as calças em público.

- O Xavier despiu as calças? - Arthur pareceu ter ficado atordoado, enquanto Sasha temperava a salada.

- Não, o amigo é que se despiu. Outro pintor destrambelhado!... - retorquiu Sasha com um abanar de cabeça, dispondo a galinha numa travessa.

Enquanto ela preparava o jantar para os dois, colocando toalhetes e guardanapos de linho e uns pratos bonitos na mesa da cozinha, Arthur mantinha-se de pé a falar sobre banalidades. Sasha gostava de fazer aquele tipo de coisas para o marido, que nunca deixava de reparar, elogiando-a pelo trabalho que tivera.

- Trouxeste a pasta cheia de papéis, Sasha - comentou ele, olhando para a pasta enquanto se servia de um pouco de salada, com uma expressão relaxada e de contentamento. Adorava os fins-de-semana que passavam na praia. Eram sagrados para os dois. Nunca permitiam que o que quer que fosse interferisse nos seus fins-de-semana, excepto uma doença grave ou um acontecimento inadiável. A não ser em qualquer destes casos, todas as sextas-feiras, chovesse ou fizesse sol, de Verão ou de Inverno, faziam-se à estrada às dezanove horas, seguindo em direcção a Southampton.

- No domingo vou para Paris - recordou-lhe ela enquanto comiam a salada e lhe servia outro pedaço da galinha que a empregada lhes deixara já preparada.

- Tinha-me esquecido. Quanto tempo pensas ficar lá?

- Quatro dias, talvez cinco. Tenciono voltar para casa antes do fim-de-semana.

A conversa entre eles era típica de duas pessoas casadas havia muitos anos e que estavam muito acostumadas uma à outra. Não diziam nada de importante, limitando-se a desfrutar da companhia mútua. Arthur falou-lhe de alguém que estava prestes a reformar-se, assim como de uma transacção de somenos importância que não havia corrido de acordo com as expectativas. Quanto a Sasha, contou-lhe que firmara contrato com um novo artista, um jovem pintor brasileiro muito talentoso.

Também mencionou que Xavier lhe dissera que tentaria ir a Paris para a ver durante a semana seguinte. O filho era organizado, estabelecendo o seu próprio horário, ao contrário de Tatiana, que tinha de se sujeitar aos caprichos do fotógrafo seu empregador. Este trabalhava muitas horas todos os dias, o que a obrigava a ficar até tarde no estúdio, e ela gostava de passar os tempos livres com os amigos. No entanto, era preciso levar em consideração que era dois anos mais nova do que o irmão, continuando a lutar pela sua própria independência.

- Quem é a rapariga da semana? - perguntou Arthur com uma expressão divertida. Conhecia bem o filho, tal como Sasha. Ao olhar para Arthur com um sorriso nos lábios, reparou, como acontecia muitas vezes, como ele continuava bem-parecido. Era um homem alto e magro, mantinha-se em boa forma física e tinha feições bem delineadas, com um queixo firme. Sasha apaixonara-se por ele desde o primeiro momento em que entrou na sua vida. Na verdade, amava-o mais do que nunca. Tinha noção de quanto era afortunada. Muitas das suas amigas de Nova Iorque estavam divorciadas, uma ou duas haviam enviuvado, e nenhuma parecia capaz de encontrar um homem decente. Não se cansavam de lhe lembrar a sorte que tinha. De qualquer forma, ela sabia-o. Desde que se haviam conhecido que Arthur era o amor da sua vida.

- A última vez que lhe perguntei disse-me que era a modelo de um pintor qualquer que conheceu numa aula de desenho - replicou Sasha com um sorriso rasgado. Xavier era conhecido entre os amigos e familiares por ter sempre uma corte de mulheres que o adoravam, mas passava a vida a mudar de namorada. Era extremamente bem-parecido, além de ser uma pessoa de quem era impossível não gostar, pelo que as mulheres o achavam irresistível. E ele era igualmente incapaz de lhes resistir.

Já desisti de lhe perguntar como é que elas se chamam acrescentou Sasha, levantando a mesa, enquanto o marido lhe sorria com uma expressão de admiração. Colocou os pratos dentro da máquina de lavar louça. Atualmente viviam de uma maneira muito simples e frugal, se bem que quando os filhos viviam com eles a família se reunisse todas as noites à mesa. Mas agora Arthur e Sasha jantavam na cozinha, sempre uma refeição leve e fácil de preparar, o que era muito mais simples.

- Há anos que não pergunto ao Xavier como é que as namoradas se chamam - retorquiu Arthur, rindo-se do comentário dela. - Todas as vezes que tratava uma pelo nome próprio, constatava que ele já tinha tido cinco depois dessa. Agora já não caio na esparrela. - Foi trocar de roupa, vestindo umas calças de caqui e uma camisola velha, mas confortável, exemplo que Sasha seguiu.

Vinte minutos mais tarde estavam prontos para partir, fazendo a viagem na carrinha de Sasha. Mantinha aquela viatura, apesar de os filhos já terem saído de casa, porque era útil quando precisava de ir buscar os trabalhos dos artistas em princípio de carreira. Trouxera alguns produtos de mercearia na parte de trás, assim como um pequeno saco de viagem com as coisas dos dois. Conservavam as roupas de praia em Southampton, para não terem de levar muita coisa sempre que iam lá.

Também guardava a mala de viagem que levaria para Paris, assim como a pasta demasiado cheia a que o marido aludira. Planeava ir diretamente de Southampton para o aeroporto no domingo, para o que teria de partir num voo que saísse às primeiras horas da manhã, o que lhe permitiria chegar a Paris ao fim do dia. Quando era forçada a isso, seguia no voo noturno, mas não havia nada de premente nessa semana, e para ela fazia mais sentido viajar num voo diurno, apesar de detestar não poder passar o domingo com Arthur.

Às vinte e duas horas já estavam em Southampton e Sasha ficou surpreendida ao aperceber-se de que se sentia cansada. Como de costume, Arthur é que havia conduzido, o que lhe permitira passar pelas brasas durante a viagem; foi com satisfação que se deitou ainda não era meia-noite. Antes disso tinham estado sentados no alpendre a admirar o oceano banhado pelo luar. O tempo estava cálido; passava uma brisa amena e a noite era de uma limpidez cristalina. Quando se deitaram adormeceram mal descansaram a cabeça na almofada.

Como acontecia frequentemente quando estavam na casa da praia, fizeram amor quando acordaram, pela manhã. Depois deixaram-se ficar deitados, aninhados um no outro. A sua vida sexual não sofrera de tédio ao longo dos anos, pelo contrário, melhorara com a familiaridade e um afecto muito profundo. Pouco depois, Arthur foi com ela para a casa de banho, tomando duche, enquanto Sasha relaxava num banho de imersão; adorava a indolência de que desfrutavam nas manhãs passadas em Southampton. Depois do banho, foram para a cozinha e Sasha preparou o pequeno-almoço, após o que fizeram uma longa caminhada pela praia.

O dia estava magnífico, quente e soalheiro, e mal se sentia uma ligeira brisa. Era a primeira semana de Outubro e não tardaria muito que o Outono trouxesse alguma frialdade, mas ainda era cedo para isso. Parecia que estavam no Verão.

No sábado, Arthur levou Sasha a jantar fora a um pequeno restaurante italiano de que ambos gostavam muito. Depois do jantar, já em casa, sentaram-se no alpendre a beber um copo de vinho enquanto conversavam. A vida parecia decorrer de forma harmoniosa e sem grandes atribulações.

Nessa noite deitaram-se cedo, uma vez que Sasha teria de se levantar de madrugada, a fim de seguir para o aeroporto, embarcando no avião que a levaria a Paris. Não lhe agradava deixar o marido sozinho, contudo, aquelas viagens eram situações comuns na vida de ambos. Para Sasha, ausentar-se durante quatro ou cinco dias não era nada de especial. Nessa noite, aninhou-se nos seus braços, com o corpo encostado ao dele, até que adormeceram.

Tinha de se pôr a pé às quatro horas, saindo de casa às cinco, para poder estar no aeroporto por volta das sete horas, a fim de embarcar no voo que partiria às nove. O avião aterraria em Paris às vinte e uma, hora local, o que lhe permitiria chegar a casa por volta das vinte e três horas e dormir descansadamente antes de começar a trabalhar no dia seguinte.

Quando o despertador tocou, às quatro da manhã, silenciou-o imediatamente, deu um abraço demorado a Arthur e depois, bastante a contragosto, levantou-se da cama. Às escuras, foi para a casa de banho em bicos de pés, vestiu umas calças de ganga e uma camisola preta e calçou uns sapatos de pala Hermes confortáveis que já tinham visto melhores dias. Porém, havia muito que Sasha deixara de se vestir com elegância para voos prolongados; o conforto parecia-lhe mais importante.

Regra geral, conseguia dormir durante a viagem. Deteve-se a olhar demoradamente para Arthur antes de sair e depois baixou-se para o beijar ao de leve na cabeça, com cuidado, para não o despertar. Mesmo assim ele mexeu-se, sorrindo-lhe, apesar de continuar adormecido. Momentos depois pestanejou e o sorriso alargou-se, estendendo a mão e puxando-a para junto de si.

- Amo-te, Sasha - sussurrou numa voz sonolenta. Volta depressa. Vou ter saudades de ti. - Arthur dizia-lhe sempre este tipo de meiguices, o que fazia que ela o amasse ainda mais. Beijou-o na face, após o que lhe aconchegou as roupas da cama, tal como costumava fazer aos filhos quando eram pequenos.

- Também te amo - murmurou. - Volta a dormir. Telefono-te quando chegar a Paris. - E ligava sempre. Sabia que o apanharia antes de ele seguir de automóvel para a cidade, desejando poder continuar ali junto dele.

Seria bom quando Arthur se aposentasse, porque poderia acompanhá-la em todas as viagens que tivesse de fazer. Era uma ideia que cada vez lhe agradava mais, pensou, fechando a porta do quarto o mais silenciosamente possível e encaminhando-se para a saída. Na noite anterior ligara a pedir um táxi. O motorista já se encontrava à sua espera defronte de casa, não tendo tocado à campainha, seguindo as instruções dela.

Sasha disse-lhe qual a companhia aérea em que viajaria e o aeroporto para que devia seguir; sorrindo para consigo própria, olhava pela janela do carro. Tinha bem consciência de quanto a sua vida era abençoada. Era uma mulher de sorte, com um marido que amava e que também a amava, dois filhos sensacionais, além de ser proprietária de duas galerias de arte que lhe haviam proporcionado uma satisfação inexcedível e lhe permitiram ter uma vida desafogada desde sempre. Não havia mais nada que almejasse ou pudesse vir a ter. Sasha de Suvery Boardman sabia que tinha tudo.

 

O voo para Paris decorreu sem incidentes. Sasha almoçou e viu um filme a bordo, após o que dormiu umas três horas, despertando quando já aterravam no Aeroporto Charles de Gaulle. Conhecia a maior parte das hospedeiras e o comissário de bordo, os quais, acostumados aos seus hábitos, a deixaram sossegada. Era uma passageira de trato fácil e muito afável, que só bebia água durante o voo. Sasha sabia bem o que fazer a fim de evitar os efeitos da diferença de fusos horários.

Comia frugalmente, dormia e bebia muita água, indo para a cama assim que chegava a casa, sabendo de antemão que na manhã seguinte se sentiria óptima, tendo-se ajustado facilmente à diferença horária. Havia doze anos que viajava com regularidade entre Paris e Nova Iorque.

O tempo em Paris estava frio e chuvoso. Se bem que em Nova Iorque desfrutassem nessa altura do Verão de S. Martinho, ali estava-se em pleno Inverno. Havia levado um xaile de caxemira para colocar por cima do casaco quando aterrassem; como de costume, à sua espera tinha um automóvel com motorista. Trocaram algumas banalidades sobre o tempo e o voo durante o percurso até ao centro de Paris, de onde seguiram para a casa, mergulhada em silêncio.

A empregada de limpeza, que ia trabalhar todos os dias úteis, deixara comida já cozinhada no frigorífico, como era hábito. Assim que transpôs a entrada Sasha pegou no telefone para ligar a Arthur. Para ele eram dezassete horas e pareceu ficar encantado ao ouvi-la. Preparava-se para fechar a casa em Southampton, após o que seguiria para a cidade.

- Tenho saudades tuas - disse ele, depois de ela lhe descrever o tempo que fazia em Paris. Havia ocasiões em que Sasha se esquecia de como os Invernos podiam ser deprimentes naquela cidade. - Talvez não fosse má ideia se abrisses uma galeria em Miami - acrescentou Arthur na brincadeira. Sabia que, a despeito do mau tempo, bem no íntimo Sasha queria mudar-se para Paris, com o que ele estava disposto a concordar e o que fariam no próximo ano, depois de se aposentar. Também gostara de viver em Paris durante os primeiros anos de casamento. Aliás, Arthur gostava de viver nas duas cidades. Tudo o que lhe interessava era estar com Sasha; adorava partilhar a sua vida com ela.

- Na terça-feira vou a Bruxelas, e passarei o dia lá para falar com um novo artista e saber se está tudo a correr bem com os outros - informou Sasha.

- Só quero que estejas em casa no próximo fim-de-semana. - Haviam combinado ir a uma festa de aniversário de uma das melhores amigas de Sasha. A aniversariante enviuvara no ano anterior, tendo começado a sair recentemente com um homem de quem ninguém parecia gostar. Aliás, durante o ano anterior saíra com vários homens, mas nenhum caíra no goto das pessoas que conhecia. Todas gostavam muito dela e albergavam a esperança de que aquele novo namorado não tardasse a desaparecer da sua vida. O marido fora um dos amigos mais chegados de Arthur, tendo falecido em consequência de uma doença cancerígena prolongada e dolorosa.

Tinha apenas cinquenta e dois anos, a mesma idade da viúva. Esta costumava dizer piadas de mau gosto sobre como era deprimente ter de voltar a procurar marido ao cabo de vinte e nove anos de casamento. Tanto Sasha como Arthur sentiam-se pesarosos por ela, o que os levava a suportar os homens pouco simpáticos com quem saía. Sasha sabia melhor do que ninguém, pelas conversas que as duas tinham, até que ponto a amiga se sentia sozinha.

- Vou tentar voltar para casa na quinta-feira; se não for possível, estarei aí na sexta-feira. Quero ver o Xavier, por isso a minha partida depende dele - explicou Sasha, pondo o marido a par dos seus planos.

- Diz-lhe que tenho saudades dele - afirmou Arthur. Continuaram a conversar durante mais uns minutos. Depois de ter desligado, Sasha preparou uma salada, passou uma vista de olhos por alguns papéis que o gerente da galeria lhe deixara e começou a abrir a correspondência que lhe fora endereçada para Paris. Convites para várias festas, uma série de anúncios referentes à inauguração de exposições de artes plásticas, assim como uma carta de uma amiga.

Era muito raro que fosse a jantares de festa em Paris, excepto quando eram organizados por clientes importantes, ocasiões em que sentia que devia estar presente.

Não lhe agradava muito ir a estes eventos sem Arthur, preferindo a vida pacata que ambos levavam, com excepção dos festejos ligados às artes plásticas ou jantares com amigos íntimos.

Telefonou para Xavier, como prometera, mas o filho tinha saído. Deixou uma mensagem no atendedor de chamadas. Mais ou menos à meia-noite foi deitar-se, tendo adormecido pouco depois. Na manhã seguinte acordou às oito horas, ao som do despertador. O tempo continuava chuvoso e nublado, dando a impressão de que se estava em pleno Inverno.

Vestiu uma gabardina e atravessou a correr o pátio interior até à galeria; eram nove horas e trinta minutos e às dez reuniu-se com Bernard, o gerente. A galeria encerrava às segundas-feiras, o que lhes permitia ter um dia sossegado para poderem trabalhar. Sasha e Bernard planearam exposições e o calendário para o ano seguinte.

Comeu sentada à secretária e a tarde passou num ápice. Eram quase dezoito horas quando a secretária lhe disse que tinha a filha em linha, a ligar-lhe de Nova Iorque. Xavier costumava telefonar-lhe com muito mais frequência do que Tatiana, e nesse dia já tinha falado com ele duas vezes. Ficou combinado que iria a Paris jantar com a mãe na quarta-feira, pelo que poderia voltar para junto de Arthur na quinta-feira seguinte.

Com um sorriso nos lábios, Sasha pegou no telefone, pronta para ouvir mais queixas contra o fotógrafo para que Tatiana trabalhava. Só esperava que a filha não se tivesse despedido. Havia ocasiões em que Tatiana era muito teimosa, não sendo do seu feitio agir com subserviência para com os outros, tal como não aceitava ser alvo de injustiças, e Sasha sabia que ela considerava que o patrão não a tratava como devia ser. Dado que tinha uma licenciatura da Brown em Belas-Artes, esperara poder fazer mais do que servir-lhe café e varrer o estúdio depois de ele sair ao fim do dia.

- Bonjour, chéríe - saudou Sasha em francês sem ter consciência de que o fazia. Ficou surpreendida pelo silêncio do outro lado da linha e pensou que a ligação tinha sido cortada, deduzindo que Tatiana voltaria a telefonar-lhe. Preparava-se para desligar quando ouviu um som gutural que lhe pareceu mais animal do que humano. - Tati? C’est toi? És tu? Minha querida, o que se passa? - Nessa altura já se tinha apercebido de que a filha chorava convulsivamente ao telefone. Passou muito tempo até que ela começasse a falar.

- Mãezinha... volte para casa... - Não obstante toda a sofisticação recentemente adquirida, de um momento para o outro a filha parecia uma criança de cinco anos.

- O que é que aconteceu? Foste despedida do teu emprego? - Era a única coisa que ocorria a Sasha que pudesse deixar a filha naquele estado de desolação. Tatiana, de momento, não tinha namorado, portanto, a sua tristeza não podia dever-se a um desgosto de amor.

- O paizinho... - disse ela, mas recomeçou a chorar convulsivamente. Sasha ficou com o coração apertado, com a sensação de que estava prestes a saltar-lhe do peito. Pelo amor de Deus, o que é que lhe poderia ter acontecido?

- Tatiana, diz-me o que se passa! Depressa! Estás a assustar-me.

- Ele... Telefonaram-me do escritório dele há minutos...

- Em Nova Iorque era quase meio-dia. Sasha sabia que se Arthur tivesse sofrido algum acidente a caminho da cidade com certeza alguém lhe teria telefonado na noite anterior. O marido trazia sempre consigo todos os números de telefone dela, tal como ela própria fazia em relação aos números dele.

- Ele está bem? - perguntou Sasha, com a sensação de que o seu peito estava a ser apertado por um torno enquanto esperava pela resposta. Tatiana continuava a chorar descontroladamente.

- Ele sofreu um ataque de coração... no escritório... chamaram os paramédicos...

- Oh, meu Deus!... - Sasha fechou os olhos com força enquanto ouvia a filha, à espera do resto com a mão que segurava o telefone a tremer descontroladamente.

- Mãezinha... ele morreu. - Para Sasha, o mundo parou por completo depois de Tatiana ter dito aquilo. A sala parecia rodopiar. Sem ter consciência do que fazia, pegava no telefone com uma das mãos, enquanto com a outra se agarrava à extremidade da secretária que em tempos havia sido do pai, para se equilibrar. Tinha a sensação de estar prestes a cair num abismo.

- Não pode ser, isso foi um engano! - disse Sasha, como se conseguisse negar o inevitável ou, através do poder da sua mente, fosse capaz de desfazer o que sucedera. - Isso não é verdade! - gritou, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. Sentia-se como se todas as fibras do seu ser tivessem sido atingidas por uma descarga eléctrica e esforçava-se por conseguir respirar.

- É verdade - confirmou Tatiana num tom de voz em que se adivinhava um desgosto incomensurável. - Foi a senhora Jenkins quem me telefonou. Levaram-no para o hospital, mas ele já tinha falecido. Mãezinha... venha já para casa...

- Vou imediatamente - disse Sasha, pondo-se de pé com uma expressão de pânico estampada no rosto e olhando à sua volta, como se estivesse à espera que alguém se materializasse, indo em seu socorro, dizendo-lhe que o que acontecera não era verdade. Mas não apareceu ninguém; encontrava-se sozinha. - Onde é que estás?

- Estou no trabalho.

- Vai para casa... não, não vás para casa, vai para a galeria. Não quero que estejas sozinha. Informa as pessoas do que aconteceu. Compreenderão a situação. - Enquanto ouvia o que a mãe lhe dizia, Tatiana continuava a chorar. Sasha sabia que havia um voo para Nova Iorque às vinte e uma horas, que lhe permitiria chegar sete horas depois. Em Nova Iorque eram seis horas mais cedo.

Chegaria à cidade por volta das onze dessa mesma noite, hora local, cinco da manhã em Paris. Também sabia que a sua leal assistente levaria Tatiana para casa dos pais. - Deixa-te estar aí, Tati. Vou ligar à Mareie para que te vá buscar. - Mareie trabalhava para Sasha desde que esta abrira a galeria. Era uma mulher muito afável, de quarenta e poucos anos, que nunca casara e não tinha filhos, mas que gostava dos filhos de Sasha como se fossem seus.

E depois acrescentou, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer no meio do caos: - Gosto muito de ti, Tati. Estarei em casa assim que me for possível. - Quando pousou o telefone, Sasha tremia da cabeça aos pés. Num momento de loucura, ligou o número do telemóvel de Arthur. Foi atendida pela secretária dele, a senhora Jenkins, que lhe disse que se preparava precisamente para lhe ligar, mas Sasha retorquiu que Tatiana já a tinha posto ao corrente da situação.

Durante uns momentos de insanidade, Sasha quisera acreditar que Arthur atenderia o telefone... mas quem atendeu foi a secretária do marido. Lamento do fundo do coração, senhora Boardman... tenho tanta pena... foi tudo tão súbito. Eu não sabia... ele nem chegou a chamar-me... tinha-o visto cinco minutos antes. Fui ao gabinete do senhor Boardman para que assinasse uns documentos e dei com ele todo curvado sobre a secretária. Já tinha deixado este mundo.

Eles ainda tentaram... mas não foi possível fazer nada - interrompeu-se, poupando a Sasha a cena de horror a que assistira quando os paramédicos tentaram, em vão, reanimá-lo. Ela também chorava. Farei tudo o que estiver ao meu alcance. Quer que telefone para alguém? Para o hospital? Para uma casa mortuária? Lamento tanto...

- Tratarei de tudo quando chegar a casa, obrigada. Ou Mareie trataria de tudo. Não queria que mais ninguém tomasse qualquer decisão com respeito ao marido. Nem sequer queria ser ela própria a tomá-las. Mas, primeiro que tudo tinha de telefonar ao filho.

Em poucas palavras, pôs Eugénie, a sua secretária em Paris, ao corrente do sucedido, pedindo-lhe que tratasse de lhe arranjar passagem aérea para Nova Iorque, após o que foi ao gabinete contíguo, onde tinha deixado as suas coisas.

A secretária de Sasha ficou atordoada. A princípio não queria acreditar no que ouvia, mas quando viu a expressão no rosto dela compreendeu que era verdade.

Sasha estava branca como a cal da parede; dava a impressão de se encontrar em estado de choque. Eugénie via as mãos dela a tremerem que nem varas verdes quando pegou no telefone para ligar a Xavier.

Eugénie saiu do gabinete, regressando pouco depois com uma chávena de chá, após o que voltou a sair para tratar da passagem aérea. Nessa altura Sasha já falava com Xavier, tendo começado a chorar ao telefone; o filho ficou tão abalado como ela. Ofereceu-se para ir ter com a mãe a Paris, acompanhando-a na viagem para Nova Iorque, mas ela sabia que se o voo dele sofresse qualquer atraso corriam o risco de se desencontrarem.

Assim, disse-lhe que fosse diretamente para Nova Iorque nessa mesma noite, caso pudesse. Não que isso agora fizesse alguma diferença para o pai, mas era importante para ela, assim como para Tatiana. Xavier chorava de mansinho quando desligou o telefone. O resto da noite foi uma sequência de imagens desfocadas.

Eugénie fizera a mala de Sasha, como esta lhe pedira, após o que cancelou todos os compromissos que tinha agendados para essa semana. A sua viagem a Bruxelas teria de ser adiada. Num momento fugaz, toda a sua vida havia ficado destruída. Sasha nem sequer estava capaz de pensar racionalmente no que lhe sucedera, e nem queria tentar. A secretária e o gerente da galeria acompanharam-na ao aeroporto e, tratando-a como progenitores preocupados, seguiram com ela até à porta de embarque, onde, discretamente, explicaram ao empregado de serviço o que lhe sucedera, depois de Sasha já ter embarcado. Ambos estavam preocupados por ela se encontrar sozinha a bordo. Bernard tinha-se oferecido para a acompanhar, mas Sasha, corajosamente, declinara a oferta, facto de que se arrependeu assim que o avião levantou voo.

Sentia-se prestes a soçobrar sob uma vaga de pânico tão intensa que receou estar ela própria à beira de um ataque cardíaco. Uma das hospedeiras de bordo comentou com outra que Sasha tinha ficado, literalmente, com uma coloração esverdeada, acompanhada de suores frios. Cobriram-na com cobertores, pedindo ao passageiro que seguia ao seu lado que mudasse para outro lugar, permitindo assim que o comissário de bordo se sentasse ao lado dela durante algum tempo.

Perguntaram-lhe se tinha tranquilizantes, ao que respondeu que não, acrescentando que nunca tomara esse tipo de medicamentos. Mas a verdade é que também nunca havia perdido um marido. Nem sequer quando o pai falecera se sentira assim, não obstante o desgosto que a morte dele lhe causara. Mas Simon já tinha oitenta e nove anos, além de a ter advertido em inúmeras ocasiões de que a sua morte, um dia, seria inevitável, pelo que se sentia bem consciente disso. Portanto, estava mais ou menos preparada para a morte do pai. Mas nunca para aquilo!

Nunca para a morte de Arthur! Na véspera ele dissera-lhe que a amava. Sasha deixara-o a dormir na cama, na casa de Southampton, e agora ele tinha partido. Não era possível! Aquilo não estava a acontecer! Mas a verdade é que estava. A única vez que se recordava de ter sentido um desgosto tão grande, tendo ficado completamente fora de si e atemorizada, foi quando a mãe faleceu, tinha ela apenas nove anos.

Agora voltava a sentir-se como se fosse uma criança. Como uma órfã. Chorou durante toda a viagem até Nova Iorque. Entretanto, depois de Bernard ter telefonado de Paris, Mareie foi para o aeroporto, ficando à espera dela do lado de fora da alfândega. Deixara Tatiana ao cuidado de uma amiga no apartamento.

Mareie não lhe perguntou como estava a sentir-se. Não havia necessidade de o fazer. Sasha mal conseguia falar. Era a mulher mais competente e dinâmica que Mareie tivera oportunidade de conhecer, mas naquele momento parecia completamente destruída.

Em silêncio, abraçou-a, apertando-a carinhosamente e levando-a para fora do aeroporto enquanto Sasha chorava, despertando a curiosidade das pessoas, que a fitavam, atónitas. Momentos depois já a tinha sentado no automóvel e o motorista seguiu velozmente em direcção ao centro de Nova Iorque.

Sasha estava demasiado perturbada para conseguir falar e a meio caminho da cidade começou a fazer perguntas à toa e sem coerência, cujas respostas, face à situação, não tinham a mínima importância. Não interessava quem ou como, onde ou quando Arthur deixara este mundo. Sem aviso. Sem um único som. Sem sequer se despedir dos filhos e da mulher. Desaparecera.

O encontro entre Sasha e Tatiana, meia hora depois, no apartamento deu origem a momentos extremamente dolorosos de presenciar. Mareie limitou-se a ficar em silêncio a chorar. Sentindo que não podia fazer nada que aliviasse tanto sofrimento, foi preparar umas sanduíches, as quais, porém, ninguém comeu. Serviu café e água, que também ninguém bebeu. Ainda tentou convencer Sasha a tomar uma bebida, mas ela também não quis. Às duas da manhã chegou Xavier, vindo de Londres.

Tinha ligado a um amigo, pedindo-lhe que o fosse buscar ao aeroporto. Quando entrou, vinha acompanhado por um dos seus jovens amigos, que era pintor. Foi imediatamente ao encontro da mãe. Pôs os braços à volta dela e de Tatiana e os três ficaram abraçados a chorar. Mareie sentia um desgosto excruciante só de olhar para eles. Ficaram sentados a conversar durante a maior parte da noite. A única pessoa que petiscou a comida que Mareie preparou foi o amigo de Xavier. Os outros não comeram nem beberam nada.

Na manhã seguinte, a realidade revelou-se em toda a sua crueza. Sasha foi ao hospital, insistindo em ver o marido. Queria ficar a sós com ele, e quando saiu da sala parecia um fantasma, mas não vinha a chorar. Encontrava-se em estado de choque: tinha-se despedido de Arthur. Em seguida foram à agência funerária para tratar do enterro e o pároco foi falar com ela ao apartamento; Mareie manteve-se ao seu lado durante todo o tempo. Xavier foi com Tatiana para o apartamento da irmã. Depois de o pároco ter saído, Sasha virou-se para Mareie e perguntou, meio atordoada:

- Isto está realmente a acontecer? Não sou capaz de acreditar. Estou sempre à espera que surja alguém que me diga que é apenas uma brincadeira de mau gosto. Mas não é, pois não? - Mareie respondeu-lhe com um abanar de cabeça. Chegaram ao fim do dia, que pareceu muito longo, com Sasha a sentir-se e a parecer uma morta-viva que tentava confortar os filhos. Nessa noite, finalmente, comeram uma piza, mas ninguém quis mais nada. Tatiana dormiu no seu antigo quarto e Xavier saiu com uns amigos; quando regressou a casa vinha embriagado.

Sasha ficou sentada na sala de estar a olhar para o vazio. Não conseguia suportar a perspectiva de ir para o quarto que partilhara com o marido; só queria que ele estivesse junto de si. Quando, por fim, foi para a cama, demasiado exausta para conseguir conciliar o sono, sentiu o cheiro da loção de barba que ele usava na sua almofada, enterrando o rosto na fronha e chorando desconsoladamente, dando largas ao seu desgosto. Mareie ficou lá em casa, dormindo no sofá, a amiga leal sempre presente. Nessa noite passou várias horas a ligar para pessoas amigas da família, a fim de as pôr ao corrente dos pormenores relativos ao funeral. Também telefonou para a galeria de Paris. Todos viriam às exéquias fúnebres.

Mareie encomendou as flores, enquanto Sasha escolheu a música. Os amigos começaram a passar lá por casa, oferecendo-se para ajudar. As pessoas que conduziriam cada um ao seu lugar, aquando da cerimónia religiosa, foram seleccionadas de entre os melhores amigos e sócios de Arthur. Sasha parecia sentir-se morrer quando teve de escolher as roupas com as quais o marido seria sepultado. Mas, melhor ou pior, todos conseguiram vestir-se para o funeral, tendo chegado a horas. Após a cerimónia fúnebre, os presentes voltaram para casa de Sasha.

Muito tempo depois, ela admitiu que não se recordava de nada. Não se lembrava da música nem das flores, tal como não tinha ideia das pessoas que haviam ido ao funeral. Também não se recordava de quem estivera em sua casa depois das exéquias. Aparentara uma postura normal e sã de espírito, tão composta quanto possível perante as circunstâncias. Contudo, na realidade, encontrava-se em estado de choque, o mesmo se passando com os filhos. Apegavam-se desesperadamente uns aos outros como as pessoas num navio prestes a naufragar, sabendo que morreriam afogadas. E Sasha estava prestes a afundar-se. A parte mais difícil teve lugar no dia a seguir.

A vida com a sua rotina, sem Arthur. O horror de viver o dia-a-dia sem ele. A dor que sentia era indescritível. Como um acto de cirurgia sem anestesia, Sasha não conseguia acreditar na realidade do que era acordar todos os dias sabendo que não poderia tocar-lhe e que jamais voltaria a vê-lo. Tudo o que antes lhe fora querido, maravilhoso e fácil era agora agonizante e excruciantemente difícil. Não havia qualquer compensação por conseguir sobreviver todos os dias sem ele, não valia a pena acordar todas as manhãs, não havia nada que pudesse aguardar com expectativa, nenhuma razão que justificasse continuar viva, exceto os filhos.

Decorridas duas semanas, Xavier voltou para Londres. Telefonava à mãe com muita frequência. Ao fim de uma semana, Tatiana retomou o trabalho. Sasha ligava-lhe todos os dias e, a maior parte das vezes, Tatiana desatava a chorar mal ouvia a voz da mãe. O único conforto que Sasha tinha, para além da simpatia discreta dos que trabalhavam para si e do apoio inabalável de Mareie, era quando falava com amigas que haviam passado pela mesma situação.

Na verdade detestava falar com elas e, a maior parte das vezes, eram conversas que só serviam para a deixar deprimida, mas, pelo menos, elas diziam-lhe com sinceridade o que podia esperar. E nada do que lhe contavam parecia promissor.

Alana Applebaum, cujo marido havia sido amigo de Arthur e a cuja festa de aniversário Sasha não pudera ir porque o funeral de Arthur tivera lugar no dia anterior, confidenciou-lhe que o primeiro ano fora uma tortura. Havia ocasiões em que continuava a ser. Mas depois do aniversário que assinalou o primeiro ano de viuvez fizera um esforço para começar a sair com outros homens. A maior parte eram uns mentecaptos, pelo que ainda não havia encontrado um único minimamente aceitável, mas, pelo menos, não ficava sozinha em casa a chorar. Segundo a sua teoria, por muito mau que um homem com quem saísse fosse, era preferível a estar só.

Uma das amigas mais chegadas que Sasha tinha em Paris, a qual perdera o marido havia três anos devido a um acidente de esqui em Val d’Isère, via as coisas de uma maneira diversa. Dizia que preferia estar sozinha do que acompanhada de um imbecil. Tinha quarenta e cinco anos e enviuvara aos quarenta e dois, e afirmava que não existiam homens decentes disponíveis, porque todos os de bom carácter estavam casados. Os outros eram uns idiotas, ou pior ainda.

Afirmava insistentemente que se sentia mais feliz sozinha. No entanto, Sasha notara que durante os últimos dois anos a amiga começara a beber em excesso, e muitas vezes, quando telefonava a Sasha para a confortar, não tendo em linha de conta a diferença horária, esta apercebia-se de que ela estava embriagada. A amiga não conseguia lidar com a situação da melhor maneira.

Sasha comentou com Mareie os telefonemas dessa amiga:

- Quem sabe se a única maneira de se conseguir sobreviver não será passar a beber? - Ouvir o que as amigas diziam era bastante deprimente. E a situação das divorciadas que Sasha conhecia não era melhor, pois tinham de viver com um desgosto intolerável, embora pudessem escudar-se no ódio que nutriam pelos ex-maridos, em especial se tivessem sido trocadas por mulheres mais jovens. Ouvir o que tinham a dizer era assustador.

O resultado era Sasha evitar o convívio com elas, isolando-se e tentando embrenhar-se no trabalho. Por vezes isso ajudava, mas geralmente não lhe servia de grande lenitivo.

O primeiro Natal sem Arthur chegou e passou por entre uma série de agonias. Xavier e Tatiana passaram a consoada com a mãe, e por volta da meia-noite estavam todos sentados na sala de estar a chorar desconsoladamente. Nenhum queria abrir os presentes, Sasha ainda menos do que os filhos. Tatiana oferecera-lhe uma estola em caxemira, porque Sasha parecia estar sempre com frio, provavelmente porque comia e dormia muito pouco. Quanto a Xavier, ofereceu-lhe uma colecção de livros de arte que sabia que ela queria. Contudo, o Natal não tinha qualquer encanto sem Arthur.

No dia seguinte, os filhos foram esquiar com os amigos. Sasha tomou um comprimido para dormir às vinte horas da véspera de Ano Novo, acordando apenas às duas da tarde do dia seguinte, sentindo-se grata por não ter dado pela passagem do ano. Ela e Arthur nunca tinham feito nada de especial na véspera do Ano Novo, mas, pelo menos, estavam juntos.

Só em Maio é que voltou a sentir-se um pouco mais animada. Nessa altura já haviam passado sete meses desde a morte de Arthur. Tudo o que fizera desde então resumia-se a viajar para Paris uma vez por mês, ficando sentada, aninhada e a enregelar, em casa durante a noite, tratando dos assuntos que a haviam levado à cidade o mais depressa possível, a fim de poder voltar para Nova Iorque. Delegou tanto quanto podia nos gerentes das galerias durante esses meses, ficando grata pela sua ajuda.

Sem eles ter-se-ia sentido completamente perdida, e pouco faltou para que isso acontecesse. Os domingos eram os piores dias da semana, em qualquer das cidades, porque não podia ir para o trabalho. Desde que o marido falecera que não ia à casa nos Hamptons. Não queria voltar lá sem ele, mas também não queria vendê-la. Limitou-se a deixá-la como estava, dizendo aos filhos que podiam utilizá-la sempre que quisessem. Quanto a si, não tencionava voltar a usufruir da casa da praia.

Não tinha a mínima ideia quanto ao que faria da sua vida. Para além do trabalho, que nessa altura não lhe proporcionava qualquer satisfação, não havia nada que a impedisse de se entregar inteiramente ao desgosto que sentia. A sua vida era como uma terra inóspita de desespero. Nunca se sentira tão perdida e desprovida de esperança.

Os gerentes das duas galerias, e até mesmo Mareie, incentivavam-na a conviver com as pessoas amigas. Havia vários meses que não retribuía nenhum dos telefonemas que recebera, com excepção dos que eram feitos das galerias. E até mesmo esses passava-os a outros, sempre que possível. Desde a morte de Arthur não quisera falar com ninguém.

Em Maio, finalmente, sentiu-se um pouco melhor. Para sua grande surpresa, em Junho aceitou um convite de Alana para um jantar, não obstante ter-se arrependido de imediato. Mas arrependeu-se ainda mais quando a noite do jantar chegou.

A última coisa que lhe apetecia era vestir-se para sair. Mareie, para a incentivar, dissera-lhe que Arthur haveria de querer que ela se distraísse. Ter-se-ia sentido devastado se visse o estado em que se encontrava. Perdera quase dez quilos. As pessoas que não a conheciam diziam que estava com um aspecto fabuloso, mas não faziam a mínima ideia porquê. Para essas pessoas, uma aparência emaciada e a magreza devido a um grande desgosto parecia-lhes algo muito elegante.

Portanto, numa noite fatídica de Junho, Sasha saiu pela primeira vez desde que enviuvara. Vestiu um fato de calças e casaco de seda preta calçou uns sapatos de salto alto, apanhando o cabelo todo para trás num carrapito. Os brincos de diamantes que usava haviam sido uma prenda de Arthur no Natal antes de ter falecido. Sasha chorou quando os pôs nas orelhas. Constatou que as roupas lhe estavam largas. Emagrecera imenso e, de um momento para o outro, todas as suas roupas estavam largas de mais.

O jantar começou de forma muito mais agradável do que esperara; o facto de conhecer a maior parte das pessoas presentes ajudou bastante. Nesta altura já Alana tinha outro namorado, que, contra o que seria de esperar, parecia um homem decente. Falou com ele durante algum tempo e ficou a saber que era um coleccionador de arte contemporânea e que já fizera, inclusive, uma ou duas aquisições na sua galeria. A agonia para Sasha começou quando descobriu que Alana lhe pedira que trouxesse um amigo, que passou o jantar a tentar conquistá-la.

Era um homem inteligente e talvez até interessante, não fosse o facto de ter começado a fazer-lhe perguntas, como se ela se tivesse inscrito numa daquelas agências que arranjam encontros por computador, o que não era o seu caso; não tinha qualquer intenção de vir a fazê-lo, agora ou mais tarde. Sabia que Alana já se encontrara com homens através de serviços via Internet em mais de uma ocasião. Era uma perspectiva que horrorizava Sasha. Não queria sair com homem nenhum, fosse aquele ou qualquer outro. Estava firmemente determinada a chorar a morte de Arthur

para sempre.

- Então, quantos filhos tem? - perguntou-lhe ele sem rodeios antes mesmo de se sentarem para jantar, enquanto Sasha se perguntava se não seria melhor alegar uma enxaqueca súbita, desaparecendo. Mas sabia que Alana se sentiria ofendida. Também sabia que a sua anfitriã agira movida pela melhor das intenções, mas não era aquilo que Sasha queria. Tudo o que desejava era que a deixassem em paz e sossego. As suas feridas continuavam abertas. Além disso, não sentia a mínima vontade de substituir Arthur. Jamais!

- Tenho dois filhos já crescidos - respondeu Sasha com frieza.

- Isso é ótimo - retorquiu ele com uma expressão de alívio. Sasha sabia que trabalhava como corretor na Bolsa, tendo dito, sem que ela lhe perguntasse, que era divorciado havia catorze anos. Parecia ter mais ou menos uns cinquenta, dois anos mais velho do que Sasha.

- Na verdade, não é ótimo - retorquiu ela com sinceridade e sorrindo-lhe com tristeza. - Saíram de casa e sinto terrivelmente a sua falta. Quem me dera que fossem mais novos e ainda vivessem comigo!... - Ele pareceu sentir algum mal-estar perante esta resposta.

- Não está a planear ter mais filhos, pois não? - perguntou. Sasha ficou com a impressão de que o homem tinha uma lista e ia eliminando cada pergunta à medida que as fazia.

- Adoraria ter mais, mas enviuvei. - No que lhe dizia respeito, aquilo esclarecia a questão. Mas não era esse o caso dele.

- Provavelmente acabará por casar de novo... - Poof, de uma penada o homem apagara Arthur, avançando para a pergunta seguinte. Mas para Sasha o assunto não ficara arrumado.

- Não tenciono voltar a casar! - replicou com uma expressão obstinada, quando já se encaminhavam para a sala de jantar, verificando, com consternação, que ele ficaria sentado ao seu lado. Era evidente que Alana tinha um plano.

- Durante quanto tempo esteve casada? - perguntou ele com um interesse renovado. Na verdade, não queria mulheres que andassem à procura de marido. Era preferível ter um caso que não implicasse compromissos.

- Durante vinte e cinco anos - respondeu ela afetadamente quando se sentaram. O homem não perdia um segundo a fazer perguntas.

- Claro, estou a ver por que razão não tenciona voltar a casar. Ao fim de tantos anos torna-se monótono, não é verdade? Eu estive casado onze anos, e chegou! - Horrorizada, Sasha ficou a olhar para ele, não lhe dando resposta durante uns minutos que se prolongaram.

- Nunca me fartei do meu casamento! - acrescentou por fim, com firmeza. - Estava muito apaixonada pelo meu marido!

- É uma pena - retorquiu ele, começando a atacar o primeiro prato. Foi o único momento de descanso que deu a Sasha. - O mais provável é ter guardado uma recordação melhor do que foi na realidade. A maior parte das pessoas que enviuvam sofrem de uma espécie de ilusão. Todas acreditam que foram casadas com santos depois de estes falecerem, mas enquanto estavam vivos não gostavam assim tanto deles.

- Posso garantir-lhe - ripostou Sasha, fitando-o com uma expressão altaneira e sentindo uma vontade quase irresistível de lhe arremessar com o que tivesse à mão - que adorava o meu marido. O que é um facto e não uma ilusão

- acrescentou num tom de voz de uma frieza glacial.

- De acordo, como queira... - retrucou o homem com uma expressão de perplexidade. - Acredito no que me está a dizer. Mas adiante; com quantos homens saiu desde que ele morreu? - Por acaso, nesse momento Alana olhou na direcção deles, reparando no semblante da amiga e percebendo que as coisas não estavam a correr nada bem. Sasha estava lívida, tanta a indignação que sentia.

- Não saí com homem nenhum, tal como não tenciono sair com quem quer que seja. Nunca mais! O meu marido faleceu há oito meses, e este é o primeiro convite que aceito para uma reunião social. - O seu parceiro de mesa ficou a olhar para ela, embasbacado.

- Oh, meu Deus, você é uma virgem!... - Inicialmente, pareceu que ele considerava que a sua atitude era bastante estranha, mas depois fitou-a com uma expressão de interesse, como se ela fosse um desafio. Mas havia encontrado em Sasha alguém que lhe faria frente.

- Não, não sou uma virgem, como põe a questão. Tal como não tenciono vir a ser desflorada. Sou uma viúva de quarenta e oito anos que estava muito apaixonada pelo marido. - Com estas palavras, virou-lhe as costas, começando a conversar com a outra pessoa sentada ao seu lado à mesa do jantar, um homem que ela e Arthur haviam conhecido bem. Era casado e tanto Sasha como Arthur simpatizavam muito com a mulher dele.

- Sentes-te bem? - perguntou-lhe o amigo de longa data, olhando-a com alguma preocupação quando Sasha se virou para ele; os seus olhos chispavam. Falou-lhe em voz baixa. Sasha acenou em sinal de concordância, mas tinha os olhos marejados de lágrimas. O homem à sua esquerda não só a insultara, como também a fizera sentir-se deprimida. Aquilo era o que poderia esperar a partir de agora na sua condição de viúva, e pensou para consigo se, de futuro, não passaria a dizer às pessoas que viesse a conhecer que era casada.

Não tinha o mínimo desejo de ser a ”virgem” de quem quer que fosse. Sentia que isso a despojava de toda a dignidade e respeito que tomara como garantidos enquanto estivera casada com Arthur. Não só perdera o homem que amava, como também se apercebeu, de um momento para o outro, que se tornara constrangedoramente vulnerável, tendo perdido a protecção em sociedade que um marido amante e dedicado lhe proporcionara, assim como o escudo seguro e de bem-estar subjacente ao casamento.

- Estou óptima - respondeu em voz baixa ao seu companheiro de mesa.

- Lamento muito, Sasha - disse ele com uma expressão cheia de simpatia, batendo-lhe ao de leve na mão, o que fez com que as lágrimas que lhe haviam assomado aos olhos começassem a correr-lhe pelas faces, forçando-a a procurar um lenço na pequena bolsa de noite. Não podia sair de casa sem um lenço. Enquanto se assoava, embaraçada, sentia-se uma figura patética.

 

Durante o resto da refeição, mal tocou na comida, após o que desapareceu com o maior aprumo possível, enquanto os outros convivas se dirigiam para a sala de estar, onde tomariam o café. Nem sequer teve ânimo para se despedir de Alana, prometendo a si mesma que lhe telefonaria na manhã seguinte.

Não precisou de o fazer; Alana ligou-lhe para a galeria. Era sábado, mas Sasha estava no gabinete a trabalhar, o que era habitual nos últimos tempos. As viagens de fim-de-semana até aos Hamptons tinham-se acabado, ocasiões que ela adorara na companhia de Arthur e que não era capaz de enfrentar sozinha.

- O que é que se passou? - perguntou Alana num tom de queixa. - Ele é um homem verdadeiramente simpático, quando o conhecemos melhor. E gostou de ti. Disse que te achou fantástica! - Sasha considerou aquela informação ainda mais deprimente.

- É muito amável da parte dele, mas eu não queria conhecer homem nenhum, Alana. Só aceitei o teu convite para jantar.

- Não podes continuar sozinha para sempre, Sasha. Mais cedo ou mais tarde vais ter de sair do teu casulo. Ainda és uma mulher nova. E, sejamos realistas, tens de concordar que não existem muitos tipos decentes por aí. Este é um dos poucos que restam. - Ou, pelo menos, era o que Alana achava. No entanto, ela provara ao longo do último ano que a sua capacidade de discernimento não era muito fiável, e revelara mesmo um certo sentimento de desespero.

- Não quero nenhum homem - retorquiu Sasha com tristeza. Gostava da amiga, mas detestava a transformação que sofrera. O seu bom gosto, bom senso e dignidade eram valores que parecia terem sido atirados pela janela fora no momento em que enviuvara. Sasha tinha a certeza de que nem todas as viúvas eram como a amiga. Além disso, Alana tinha grandes problemas financeiros, o que era motivo para andar desesperada por encontrar um marido que os resolvesse. E tal como Arthur dissera antes de falecer, os homens sentiam isso ao longe. ”Água-de-Pânico”, fora assim que ele lhe chamara. Não era um perfume que agradasse aos homens por aí além...

- Tu queres o Arthur - continuou Alana, como se estivesse a esfregar sal nas feridas da amiga. - Pois bem, se queres saber a verdade, eu também quero o Toby. Mas ambos desapareceram, Sasha, essa é que é a realidade. Nunca mais voltarão, e nós estamos aqui sem eles. Temos de tirar partido desta situação adversa da melhor maneira que nos for possível.

- Mas acontece que não estou preparada para isso - retorquiu Sasha numa voz afável. Não disse à amiga quanto o seu comportamento lhe parecia insensato nem até que ponto se estava a tornar constrangedor. - Talvez continuar sozinha seja a atitude mais adequada. Nem sequer sou capaz de me imaginar a sair com um homem. - Aliás, tão-pouco desejava fazê-lo.

- Sasha, tens quarenta e oito anos e eu cinquenta e três. Somos novas de mais para continuarmos sozinhas. - Sasha sentira-se jovem enquanto estivera casada com Arthur. Desde que ele morrera que se sentia como uma mulher muito idosa.

- Não sei bem, Alana. Não sei qual é a resposta. Só sei que neste momento preferia morrer a sair com qualquer homem. - Como sempre, mostrava-se cruamente sincera.

- Tens de ser paciente contigo própria. Dá uma oportunidade a estes sujeitos; mais cedo ou mais tarde encontrarás um que te agrade. - A julgar pelos indivíduos com quem Alana saíra ao longo do último ano, com excepção daquele com quem andava actualmente, nenhum era homem que uma mulher no seu perfeito juízo quisesse, excepto, talvez, pelo seu dinheiro. Os objectivos de vida de Alana eram completamente diferentes dos de Sasha. Tudo o que esta tentava fazer era conseguir sobreviver à perda de Arthur. - Vais ver que daqui a alguns meses pensarás de maneira diferente.

Espera até ao fim do primeiro ano. Nessa altura estarás preparada.

- Espero bem que não. Tenho os meus filhos, as minhas galerias e os meus artistas.

- Mas a verdade é que sem Arthur nada tinha significado para ela, excepção feita aos filhos. Actualmente mal conseguia concentrar-se no trabalho. Servia apenas para a fazer sair do apartamento em Nova Iorque ou para ir até à sua casa em Paris. Todavia, nada na sua vida lhe proporcionava alegria.

- Sabes bem que isso não chega... - insistiu Alana em tom de censura.

- Talvez seja o suficiente para mim.

- Pois bem, para mim não é - retorquiu Alana com firmeza. - Quero encontrar um fulano como deve ser e casar. - Se não fosse um homem de carácter, pelo menos que fosse rico. Porém Sasha não tinha interesse em qualquer das alternativas. - Concede a ti mesma mais seis meses, e vais ver que também andarás à procura de um homem.

- Meu Deus, espero bem que não! - ripostou Sasha com azedume. Só de pensar nessa probabilidade sentia-se ainda mais deprimida.

- A ver vamos... - acrescentou Alana, como se ela é que soubesse o que aconteceria. Mas uma coisa era certa: não era fácil para ninguém, divorciadas ou viúvas, encontrar homens decentes nos tempos que corriam. Alana disse que ouvia o mesmo de todas as suas amigas. Tal como Sasha, embora isso não lhe interessasse.

Na semana seguinte voltou a Paris, desta feita para uma estada de duas semanas. Pela primeira vez em vários meses visitou os seus artistas espalhados por várias cidades da Europa - Bruxelas, Amesterdão e Munique. Aquando da viagem de regresso a casa, teve oportunidade de passar por Londres para ver o filho.

Xavier estava bastante animado e a produzir novos trabalhos muito mais interessantes. Sasha ficou impressionada quando os viu. Deu ao filho o nome de uma galeria com cujos responsáveis, na sua opinião, deveria falar, o que o deixou assaz satisfeito. Não queria expor os seus trabalhos na Suvery. Para ele, essa possibilidade tresandava a nepotismo, e estava determinado a ser bem-sucedido pelos seus próprios méritos.

Durante os últimos meses, Xavier tinha falado à mãe, em várias ocasiões, do seu amigo Liam Allison. Insistia em dizer que Liam era um dos pintores mais talentosos que conhecia, e queria que ela visse os seus trabalhos.

- Terei todo o gosto em fazê-lo, mas quero que, em primeiro lugar, ele me envie diapositivos desses trabalhos. Sasha não queria perder tempo e a visualização dos diapositivos seria um bom processo de avaliação. Mas, apesar de ter dito isso inúmeras vezes a Xavier, a verdade é que o amigo do filho nunca chegou a enviar-lhe os diapositivos. Xavier alegava que ele era tímido, o que não era invulgar num artista inexperiente, e até mesmo nos mais experientes, mas, com base nas histórias com que Xavier a regalava constantemente, ele parecia ser tudo menos tímido.

Sempre que Xavier saía dos eixos ou se comportava de forma menos correcta, sempre que ia a uma festa mais desregrada ou fazia alguma coisa um tanto irresponsável ou imoderada, Liam parecia estar presente. Mais recentemente, os dois tinham ido almoçar numa tarde de domingo de indolência, beberam de mais, e em seguida apanharam um táxi para o aeroporto e partiram para Marraquexe, onde ficaram durante quatro dias. Mais tarde, Xavier disse que nunca se tinha divertido tanto em toda a sua vida. Telefonou à mãe quando voltou para Londres. Ela estava preocupada por ele não lhe ter retribuído os seus telefonemas ao cabo de quase uma semana.

- Deixa-me adivinhar - disse Sasha quando o filho finalmente deu notícias, contando-lhe onde estivera. - Esse tal Liam esteve envolvido na tua aventura. - Nesta altura, já quase conseguia adivinhar o que acontecera. Sempre que Xavier fazia alguma coisa inesperada ou algo tresloucada, o que lhe diria a seguir era que havia estado acompanhado de Liam.

- Ele é completamente louco! A mulher deve ser uma santa...

- Ela tem muito bom feitio - reconheceu Xavier sem hesitar -, se bem que às vezes fique um pouco aborrecida. Trabalha, e espera que ele cuide das crianças.

- O mais provável é ter de o sustentar, assim como aos filhos - retorquiu Sasha, habituada àquele tipo de situações. Conhecia outros artistas como ele, se bem que nenhum tão exuberante ou indiferente aos padrões convencionais de comportamento, pelo menos a fazer fé no que Xavier lhe contava. - Se eu estivesse no lugar dela, acho que o matava.

- Estou em crer que já o ameaçou algumas vezes. Não me parece que a viagem a Marrocos tenha sido o ponto alto no casamento deles.

- O que não admira. Pelo que tu dizes, ele parece uma dessas crianças com quem eu não te deixava brincar quando eras pequeno, porque só serviam para te meter em sarilhos. O que acabará por acontecer um dia destes, ou então ele meter-se-á numa alhada de que terá muita dificuldade em sair.

- Ele não tem mau fundo e nunca faz nada que seja perigoso. Só gosta de se divertir e detesta que lhe digam como deve comportar-se. Acho que foi criado com uma data de regras rígidas, ou algo no género. É alérgico a fazer o que se espera ou imponha que faça. Gosta de andar à rédea solta.

- É o que parece. Mal posso esperar para o conhecer retrucou Sasha com pouco entusiasmo. Na verdade, a sua esperança era vir a detestar o seu trabalho, isto é, se ele chegasse a enviar-lhe os diapositivos. Pelo que o filho dizia, o homem dava a impressão de ser uma dor de cabeça de que ela não precisava, embora, por vezes, as pessoas que possuíam uma energia e personalidade como ele fossem extraordinariamente talentosas. O que os artistas de artes plásticas como Liam precisavam, na opinião de Sasha, era de serem admoestados com severidade e de rédea curta.

Serem aperreados até entrarem nos eixos, caso contrário, esqueciam-se de que tinham de trabalhar, apesar de Xavier afirmar que Liam era diligente e consciencioso no respeitante à pintura. Em tudo o mais é que era irresponsável. Xavier continuava determinado a apresentar o amigo à mãe. Estava convicto de que a Suvery era a galeria perfeita para Liam expor os seus trabalhos. Mas até ao momento nunca conseguira juntá-los, para grande alívio de Sasha.

Sasha passou o mês de Julho em Nova Iorque, mas nunca chegou a ir perto da casa nos Hamptons. Não conseguia forçar-se a ir lá, por isso disse a Tatiana que a usasse. Sasha nem sequer queria ver a casa da praia. Em Agosto foi para Saint-Tropez, uma estada de duas semanas passadas com pessoas do seu círculo de amigos. Foi uma fase em que se sentia estranhamente alheada, como se não tivesse raízes. Passou o resto do mês na casa de Paris.

Era como um berlinde numa caixa de sapatos: o mundo dava-lhe a sensação de ser demasiado grande para ela, agora que estava sem Arthur. A sua existência parecia que não se ajustava. Nunca se tinha sentido tão pequena e tão só em toda a sua vida. Até mesmo quando o pai morrera, tivera sempre Arthur ao seu lado para atenuar o desgosto que sentira. Mas agora não podia contar com ninguém; restavam-lhe as recordações da sua vida com ele e as visitas ocasionais aos filhos.

Em finais de Agosto regressou a Nova Iorque, tendo-se sentido suficientemente corajosa para ir a Southampton no fim-de-semana do feriado da primeira segunda-feira de Setembro. Era a primeira vez que lá ia em quase um ano e, de certo modo, era um alívio. Foi como se voltasse a encontrar uma parte do marido de que sentira uma falta tremenda. O guarda-roupa continuava cheio das coisas dele, e quando olhou para a cama que ambos haviam partilhado recordou-se da última vez em que tinham estado juntos. Arthur dissera-lhe, num murmúrio, que a amava na manhã em que ela partira para o aeroporto; antes de sair beijou-o e ele voltou a adormecer. Naquela casa as recordações eram avassaladoras, e Sasha passou várias horas a pensar nele enquanto caminhava pela praia. Mas ali, finalmente, sentiu que o processo de cicatrização tinha começado.

Quando voltou para a galeria, depois desse fim-de-semana, estava com melhor aparência. Havia quase um mês que andava a matutar numa ideia. Ainda não tomara qualquer decisão. Tratava-se de uma coisa que planeara com Arthur.

Agora parecia-lhe fazer mais sentido do que antes: queria voltar para a sua casa; viver em Nova Iorque sem ele era algo que lhe custava muito.

Setembro passou a voar, com a abertura de uma vaga para um novo artista, que ela ficou a representar, e outra exposição individual. Era responsável por todas as exposições, seleccionando os trabalhos que seriam exibidos e onde colocá-los, procurando contrastes e combinações de modo a dar o maior realce a cada pintura, tirando o máximo partido dos quadros.

Era algo para que tinha forte intuição e que adorava fazer. Também se encontrou com vários clientes mais antigos, e que conhecia bem, e assistiu às reuniões de direcção dos museus a que se encontrava ligada, além de estar a planear uma cerimónia religiosa em memória de Arthur para assinalar o primeiro aniversário do seu falecimento. Xavier prometera-lhe que viria de Londres para poder estar presente. A cerimónia foi, como seria de esperar, uma ocasião de grande tristeza para a família. Todos os que haviam sido sócios de Arthur estiveram presentes, assim como os filhos e os amigos mais chegados de ambos, pessoas amigas, que ficaram entristecidas ao verem como ela ainda se sentia infeliz e desgostosa. Quando saíram da igreja, mal conseguiam acreditar que já havia passado um ano.

Nessa noite, depois da cerimónia religiosa, Tatiana disse à mãe que se demitira do emprego, tendo decidido viajar para a índia com alguns amigos, onde permaneceria vários meses. Queria tirar fotografias, aperfeiçoar o seu estilo, e quando regressasse tencionava procurar trabalho numa revista. Prometeu que voltaria por altura do Natal. A filha tinha vinte e três anos e alegou que precisava de alargar os seus horizontes, o que deixou Sasha um tudo-nada preocupada; no entanto, reconhecia que só lhe restava deixar que ela seguisse o seu caminho.

Depois foi a vez de ela própria informar os filhos sobre os seus planos. Tinha decidido mudar-se para Paris, passando a dirigir lá a galeria, invertendo o sentido das viagens regulares que fizera durante os últimos treze anos. Desde a morte de Arthur que desejava retornar às suas raízes. E depois da partida de Tatiana, pelo menos em Paris estaria mais próxima de Xavier. A filha ficou surpreendida com a sua decisão, mas Xavier mostrou-se muito satisfeito.

- Acho que essa mudança vai ser boa para a mãe - disse ele afectuosamente. Durante o último ano tinha andado preocupado com ela. No passado, a mãe sempre lhe parecera sentir-se mais feliz em Paris, o que esperava viesse a repetir-se. Os últimos doze meses haviam sido de muita tristeza para Sasha.

- Tenciona vender o apartamento? - perguntou Tatiana, mostrando-se preocupada. Era muito raro que ultimamente ficasse lá, mas gostava de saber que estaria à sua disposição caso fosse preciso. Não tivera conhecimento dos planos do pai para quando se aposentasse, tal como não estivera a par das conversas dos pais sobre a venda do apartamento, após o que comprariam uma casa mais pequena.

- Ainda não. É onde ficarei sempre que vier a Nova Iorque. - Tatiana pareceu aliviada. De facto, a mudança para Paris alteraria muito pouco a existência de Sasha. Passaria a estar em Paris durante três semanas do mês, em vez de uma ou duas, enquanto a estada em Nova Iorque passaria a ser de uma semana ou mais, caso fosse necessário. Sempre tivera os pés bem assentes nas duas cidades e havia treze anos que vivia dessa maneira. Os gerentes que se encontravam à frente das duas galerias estavam bem habilitados para fazer o que ela queria, mantendo-se em comunicação constante com Sasha sempre que ela se ausentava. No que lhe dizia respeito, tratava-se de uma mudança a que se ajustaria com facilidade.

Sasha esperou por Novembro para se mudar para Paris. O mês de Outubro era sempre muito movimentado no mundo da arte de Nova Iorque. Havia reuniões de direcção dos museus em que tinha de estar presente, além de precisar de organizar algumas exposições, e antes de transferir a maior parte das suas actividades para Paris ainda queria visitar alguns dos seus amigos em Nova Iorque. Havia quase um ano que não via certas pessoas. Deu um pequeno jantar em honra de Alana, que acabara de ficar noiva e parecia sentir-se extremamente aliviada.

Ia casar com o homem que apresentara a Sasha em Junho passado e ambos aparentavam estar muito satisfeitos. E, como de costume, Alana não conseguiu resistir a perguntar-lhe se já estava pronta para começar a sair com outros homens. Sempre que se encontrava com Sasha, fazia-lhe a mesma pergunta. Era um ritual que Sasha passara a detestar.

- Ainda não - respondeu-lhe com um sorriso prazenteiro antes de se afastar. Isso jamais viria a acontecer, disse para consigo. Passou um último fim-de-semana nos Hamptons antes de partir, tendo celebrado o Dia de Acção de Graças, na última quinta-feira de Novembro, com amigos. Xavier regressara a Londres e Tatiana já se encontrava na índia com os seus companheiros de viagem. Para Sasha era mais fácil ir a casa de uma pessoa amiga por ocasião do Dia de Acção de Graças. Parecia-lhe mais impessoal e menos doloroso. Em sua casa, no ano anterior, a ausência de Arthur ainda era muito recente, e por isso extremamente dolorosa para os três.

Este ano tinha sido melhor. Ficou surpreendida ao encontrar um amigo de longa data durante um jantar para que fora convidada, e ainda mais ao saber que, ao fim de trinta e quatro anos de casamento, ele acabara de se divorciar. Tinha a mesma idade de Arthur e havia muitos anos que não o via. Durante o jantar, discretamente, contou a Sasha que a mulher se tornara alcoólica, tendo sofrido de graves problemas mentais ao longo dos últimos vinte anos de casamento. Apesar de mostrar tristeza, também se sentia aliviado por ter posto fim àquela situação, lamentando saber que Sasha estava prestes a mudar-se para longe.

Passaram uns bons momentos a conversar durante o jantar e Sasha reparou que a anfitriã os olhava com uma expressão esperançosa. Esperara que acontecesse alguma coisa quando convidou os dois; eram os únicos presentes que não estavam casados. quando ele lhe telefonou no dia seguinte. Ligou quando ela estava a fazer as malas que levaria na viagem para Paris. Partiria no dia seguinte. Pensei que talvez quisesses jantar comigo - disse ele, denotando alguma hesitação e um certo constrangimento.

Sempre gostara dela e de Arthur e, tal como Sasha, havia vários anos que não saía com ninguém. Parecia sentir-se inseguro e um pouco nervoso.

- Teria adorado aceitar o teu convite - retorquiu Sasha com à-vontade. Sabia que estava de partida, portanto, para si aquela questão não se punha e, fosse como fosse, não teria constituído problema. No que lhe dizia respeito, eram tão-somente amigos de longa data, e nunca viriam a ser mais do que isso. - Mas parto amanhã para Paris. Vou mudar-me de vez para lá - acrescentou com alívio. Sabia que tinha tomado a melhor decisão. Até mesmo os filhos estavam de acordo.

- Lamento saber isso. Tinha esperança de te convencer a ires ao cinema comigo ou jantar um dia destes. - Ficara satisfeito por a ter encontrado de novo. E até mesmo Sasha era forçada a reconhecer que não havia nada que lhe pudesse apontar. Era um bom homem - com a diferença de não ser Arthur e ela não estar interessada em envolver-se amorosamente com quem quer que fosse.

- Virei todos os meses a Nova Iorque por alguns dias. Vais ter de assistir à inauguração de uma das nossas exposições - convidou ela vagamente, e ele prometeu que iria.

- Quando for a Paris dou-te uma apitadela. De vez em quando tenho de ir lá em negócios.

- Mas a verdade é que andava à procura de alguém mais acessível em termos geográficos e emocionais, pelo que estava certa de que nunca mais voltaria a contactá-la. No entanto, era algo que, francamente, lhe era indiferente. Ele desejou-lhe felicidades e na manhã seguinte Sasha apanhou um táxi que a levou ao aeroporto. Às nove horas já se encontrava no ar e meia hora depois adormecera profundamente.

Quando partiu de Nova Iorque a manhã estava límpida e fresca, mas quando chegou a Paris constatou que fazia um frio de enregelar e chovia a cântaros. Recordou mais uma vez quanto os Invernos em Paris podiam ser deprimentes. Todavia, independentemente do tempo, sentia-se contente por lá estar. Nessa noite adormeceu na sua cama, na casa de Paris, ao som da chuva, que caía, inclemente.

Quando acordou, na manhã de domingo, o nevoeiro era tão cerrado que quase não se via um palmo à frente do nariz. O dia estava frio e pardacento e a casa bastante húmida. Quando se deitou, nessa noite, até os lençóis lhe causaram uma sensação de desconforto, sentindo uma frialdade que se lhe entranhava nos ossos. Por momentos, teve saudades do apartamento acolhedor e confortável em Nova Iorque. Aquilo de que se apercebeu enquanto tentava conciliar o sono foi que, onde quer que se encontrasse, teria por companhia a sua infelicidade. Não interessava qual a cidade em que vivesse nem qual a cama em que se deitasse. Onde quer que estivesse, qualquer que fosse o país ou cidade, a sua cama estaria sempre vazia e ela sozinha.

 

Durante o mês de Dezembro, Sasha teve uma vida muito ocupada em Paris. O negócio da galeria florescia a olhos vistos. Reuniu-se com um grande número dos seus clientes mais importantes, os quais pareciam querer fazer aquisições de vulto, ou vender parte das suas colecções de arte, antes do final do ano. Falava com Xavier quase diariamente e tratara de tudo para ir passar uns dias com os filhos a uma estância de esqui. No dia a seguir ao Natal partiriam para Saint-Moritz. Havia vários clientes importantes que estariam a fazer esqui aí na mesma altura.

A sua vida social em Paris era bastante mais formal do que em Nova Iorque. Os seus clientes de Nova Iorque eram pessoas bem-sucedidas, mas, de uma maneira geral, mais informais, e muitos deles, ao longo dos anos, haviam-se tornado bons amigos. As pessoas com as quais se dava nos Estados Unidos eram interessantes e vinham de toda uma diversidade de origens e actividades profissionais.

Por outro lado, em Paris existiam determinados parâmetros sociais que eram muito característicos dos europeus. A maior parte dos seus clientes vinham da classe aristocrática, frequentemente com títulos nobiliárquicos, de linhagem ou com fortunas estabelecidas há muitas gerações, como os Rothschilds e outros, que recebiam de maneira faustosa, muitos dos quais também haviam sido amigos do pai. As festas para que era convidada eram infinitamente mais elegantes em termos de vestuário e muito mais requintadas do que aquelas a que ia em Nova Iorque, ou a que costumava comparecer quando Arthur era vivo.

Em Paris era bastante mais difícil declinar esses convites, uma vez que grande número das pessoas que a convidavam lhe compravam peças de arte de muito valor. Consequentemente, sentia-se obrigada a ir às suas festas. Queixava-se disso a Xavier, mas o filho insistia em que lhe faria bem distrair-se. Porém, mesmo com a sua idade, era frequente que Sasha fosse, de longe, a pessoa mais nova na sala, e a maior parte das vezes sentia-se entediada. Por razões profissionais, era obrigada a ir a essas festas, mas sentia-se sempre satisfeita quando podia voltar para casa.

 

Em meados de Dezembro, num daqueles dias nublados e cinzentos em que trabalhava no seu gabinete, a secretária informou-a de que chegara um cliente que queria falar com ela. Sasha tinha-o conhecido num jantar de festa na noite anterior. O indivíduo estava interessado na aquisição de uma peça importante de arte flamenga, e Sasha sentiu-se satisfeita por ele ter dado seguimento à conversa que haviam tido sobre o assunto. Saiu do seu gabinete para o receber, mostrando-lhe várias pinturas que pareceu terem-lhe agradado.

Era óbvio para qualquer pessoa, excepto para Sasha, que no decurso da visita de duas horas e meia que o cliente fizera à galeria a proprietária também lhe agradara bastante. Convidou-a para jantar no Alain Ducasse no dia seguinte, a fim de discutirem a possível aquisição de um dos quadros em que estava interessado.

O Ducasse era um dos melhores restaurantes de Paris, e Sasha sabia que a refeição se prolongaria por três ou quatro horas, o que considerava entediante, mas a verdade é que era uma oportunidade de vir a fazer uma venda no valor de um milhão de dólares. Actualmente, a única coisa em que pensava era no trabalho, excepto quando falava com Tatiana ou Xavier.

- Quem sabe se ele não estará interessado em mais alguma coisa além do quadro, mãe... - disse Xavier na brincadeira quando ela lhe falou do convite que aceitara para o jantar no dia seguinte.

- Não sejas disparatado, o meu pai passava a vida a ir a jantares com os clientes! E acredita no que te digo, ninguém estava interessado nele! - replicou, se bem que soubesse de algumas mulheres dispostas a seduzir o pai depois da morte da mãe. No entanto, nunca viu qualquer empenho romântico da parte do pai por quem quer que fosse. Tal como ela, tinha permanecido fiel à memória da mulher até ao fim. Ou, pelo menos, fora essa a impressão que o pai lhe deixara. Era um assunto que nunca discutira com ele. Se ao longo dos anos tinham existido outras mulheres na sua vida, agira com a maior discrição, mas Sasha duvidava disso.

- Nunca se sabe... - Xavier insistiu, esperançado. Nem ele nem a irmã queriam que ela acabasse sozinha. - A mãe é uma mulher lindíssima e ainda é muito nova.

- Não, não sou. Já fiz quarenta e oito anos.

- Na minha opinião, ainda é nova. Um dos meus amigos anda com uma mulher mais velha do que a mãe.

- Isso é revoltante! Quanto a mim, é assédio infantil retorquiu Sasha, rindo-se. A hipótese de vir a sair com um homem mais novo parecia-lhe absurda.

- Não diria a mesma coisa se fosse um homem da sua idade que andasse com uma mulher mais nova...

- Isso é diferente - retrucou ela enfaticamente, e desta feita foi Xavier que se riu dela. Não, não é. Só está acostumada a ver isso. Faz igualmente sentido que seja uma mulher mais velha a sair com um homem mais novo.

- Estás a tentar dizer-me que a tua última apaixonada tem o dobro da tua idade? Porque se for isso nem sequer quero saber nada a esse respeito. - Mas, do mal o menos, Sasha sabia que, se fosse esse o caso, a mulher seria substituída no espaço de uma semana. Com Xavier era o que acontecia sempre, qualquer que fosse a idade delas. No que dizia respeito a mulheres, o filho era um autêntico cata-vento.

- Não, ainda não experimentei isso, mas não hesitaria, se conhecesse uma mulher mais velha de quem gostasse e com quem quisesse andar. bota-de-elástico, mãe! - Regra geral, a mãe não era assim; de facto, Xavier adorava a abertura de espírito que ela mostrava sempre em relação a ele. No que dizia respeito a esse aspecto, era tipicamente francesa e nunca mostrava um mínimo de preocupação (ou intromissão) quanto à vida amorosa do filho, que, por sinal, era bastante activa.

 

Sasha sempre fora muito mais liberal do que as mães dos outros colegas e amigos com quem estudara em Nova Iorque. Lembrava-se que a mãe tinha o hábito de lhe comprar preservativos, assim como para os seus amigos, que deixava num boião de vidro enorme que havia no quarto.

Não lhe fazia perguntas, mas tinha o cuidado de manter o boião sempre cheio. Sasha preferia adoptar uma atitude realista em relação a esse tipo de assuntos. Nesse sentido, possuía um espírito realmente francês.

- Estou a avisar-te de que se casares com uma mulher que tenha o dobro da tua idade não tenciono ir ao teu casamento, em especial se for uma das minhas amigas.

- Nunca se sabe... Só penso que a mãe devia manter uma mente aberta com respeito a si própria. - Sabia que a mãe não saíra com nenhum homem desde a morte do pai. Mãe e filho mantinham uma relação tão franca que Xavier sabia que ela lhe diria, se fosse esse o caso.

- Talvez eu devesse começar a parar pela escola primária das redondezas, ou divulgar o meu número de telefone entre os alunos do Lycée. Até podia adoptar um deles, caso não encontre ninguém com quem namorar... - Sasha ria-se do filho e da imagem absurda e um tanto ou quanto revoltante de si própria com um rapazinho ou mesmo com um homem muito mais novo do que ela. Estava acostumada a viver com alguém mais velho.

- Quando quiser arranjar um namorado, mãe, tenho a certeza de que o fará - disse Xavier com toda a tranquilidade.

- Mas acontece que não quero! - retorquiu ela com firmeza e com o riso a desaparecer da sua voz. Aquele era um assunto que não desejava aprofundar com o filho nem tão-pouco com qualquer outra pessoa.

- Eu sei, mas espero bem que isso venha a acontecer um destes dias. - Havia catorze meses que o pai falecera, e Xavier sabia melhor que ninguém quanto a mãe se sentia sozinha. Ela costumava telefonar-lhe todos os dias quando chegava a casa, e não lhe era difícil aperceber-se da tristeza na sua voz quando não estava a trabalhar. Detestava pensar nela naquela situação.

Tatiana fora para a índia, pelo que tinha muito menos contacto com a mãe do que ele. Além disso, tinha a impressão de que a mãe falava mais abertamente com ele. Havia entre ambos aquela ligação muito especial de afeto que por vezes existe entre mães e filhos, como confidentes e amigos.

Sasha disse-lhe que ia a Nova Iorque para uma reunião de direcção na semana seguinte e que regressaria a Paris num voo que partiria no dia anterior ao da véspera de Natal. Ele e Tatiana tinham ficado de chegar a Paris na tarde da véspera de Natal. No dia a seguir ao de Natal partiriam para Saint-Moritz. Era com expectativa que os três esperavam por esse momento. O novo potencial cliente também possuía uma casa nessa estância de esqui, mas Sasha esperava já ter concluído a venda nessa altura.

No dia seguinte o cliente foi buscá-la a casa para jantar, tendo-a levado ao Alain Ducasse, na Plaza Athénée, tal como combinado. Sasha teria preferido um jantar mais simples, mas nem por isso menos requintado, no Le Voltaire, mas tratava-se de um jantar de negócios, pelo que teria de ir onde o cliente a quisesse levar. Não era difícil perceber que ele tentava impressioná-la, mas a verdade é que Sasha nunca se sentira particularmente deslumbrada por uma culinária complicada e rica, por muitas estrelas que o restaurante possuísse. O Alain Ducasse tinha três.

Previsivelmente, a refeição estava soberba. A conversa havia sido interessante e a venda parecia estar iminente quando Gonzague de Saint Mallory a levou a casa. Era encantador, bem-educado, extremamente rico, um conde e um pedante de primeira ordem. Le comte de Saint Mallory. Fora casado duas vezes, tinha cinco filhos que reconhecia e de que falava e outros três de que todos sabiam e que ele não reconhecera.

Em questões desta natureza, França era um país pequeno, e Paris uma verdadeira aldeia. Os casos amorosos do conde eram lendários, cuidava bem das suas amantes e dos filhos ilegítimos, um tema habitual de conversa no círculo social a que pertencia.

- Estava a pensar que talvez gostasse de ver como é que o quadro ficaria na casa de Saint-Moritz antes de me decidir

- disse o conde com uma expressão pensativa enquanto a levava a casa no seu Ferrari. Um automóvel como o dele só muito raramente era visto nas ruas de Paris, uma cidade em que os carros grandes não eram muito convenientes. Sasha conduzia um pequeno Renault, uma viatura fácil de manobrar e de estacionar. Não sentia necessidade de se exibir num automóvel de preço elevado em Paris ou em qualquer outra cidade. - Talvez pudesse ir até lá para ver como ficava e dar-me a sua opinião - acrescentou quando encostavam ao passeio defronte da casa apalaçada onde se situavam a galeria e a residência de Sasha.

- Não seria difícil - replicou Sasha afavelmente. Podemos enviar-lhe o quadro para Saint-Moritz, onde chegarei dentro de duas semanas com os meus filhos. - Assim que ela disse isto, o conde deu a impressão de ter ficado irritado.

- Pensei que pudesse ficar em minha casa. Talvez lhe fosse possível levá-los a Saint-Moritz numa outra altura. No que lhe dizia respeito, os filhos dela podiam ser dispensados sem problemas de maior. Mas Sasha não era da mesma opinião.

- Lamento ter de lhe dizer que isso está fora de questão

- redarguiu Sasha, olhando-o bem de frente e com toda a clareza. - Há muito tempo que planeámos esta viagem. Mas, ainda que não fosse esse o caso, estou ansiosa por poder passar umas férias com os meus filhos. - Sasha tentava transmitir-lhe que dali não levaria nada, independentemente dos filhos. Não tinha a mínima intenção de misturar negócios com prazer, em especial com ele. O homem tinha a reputação de ser um mulherengo. Tinha cinquenta e quatro anos e era do conhecimento geral que gostava de sair com mulheres muito mais novas. Presumo que queira vender o quadro - continuou Gonzague com a mesma clareza. - Estou em crer que me está a compreender, mademoiselle de Suvery...

- Compreendo, sim, monsieur le comte. O quadro está à venda, mas eu não. Nem mesmo por um milhão de dólares!

Terei todo o prazer de ver como é que o quadro fica em sua casa enquanto estiver em Saint-Moritz - acrescentounum tom de voz mais cordial. Mas nesta altura os olhos do conde já coruscavam. Ambos tinham marcado a sua posição sem qualquer ambiguidade, e ele não gostava do que ouvia. As mulheres nunca se lhe recusavam, sobretudo as mulheres da idade de Sasha. Na sua opinião, estaria a fazer-lhe um favor caso se decidisse a ir para a cama com ela. Sasha parecia-lhe uma mulher triste e solitária, mas, aparentemente, não estava tão sozinha como ele julgara. Tão-pouco estava desesperada por efectuar a venda do quadro.

- Não há necessidade de ir lá para o ver - replicou com frieza. - Decidi que afinal não vou comprar essa pintura. Na verdade, sinto-me seriamente preocupado por pensar que talvez seja falsa - acrescentou enquanto saía do automóvel, que contornou para abrir a porta do lado de Sasha com toda a cortesia. Porém, ela já se encontrava no passeio, fitando-o com uma expressão de fúria quando ele chegou junto dela.

- Muito obrigada pelo magnífico jantar - agradeceu com frieza. - Não fazia a mínima ideia, a acreditar na sua reputação, que se dedicasse a comprar mulheres, e por um preço tão elevado. Estaria em crer que um homem com o seu encanto e inteligência seria capaz de as arranjar de graça. Quero agradecer-lhe esta noite encantadora. - Antes que ele tivesse oportunidade de dizer alguma coisa, Sasha encaminhou-se para o portão de bronze, marcou o código que lhe abriu a porta e desapareceu. Segundos depois ouviu o motor do automóvel, que arrancava velozmente.

Toda ela tremia, de tão indignada que se sentia quando entrou em casa. O estupor tentara comprá-la juntamente com o quadro, pensando que estava tão desesperada para efectuar a transacção que estaria disposta a deitar-se com ele. Era uma atitude que ultrapassava o insulto! Quando Arthur era vivo, ninguém se teria atrevido a tratá-la com tanta falta de respeito. Quando telefonou a Xavier ainda estava a tremer; momentos depois já havia narrado o episódio ao filho. Manifestamente, Xavier não cabia em si de contente, regozijando-se quando ela lhe contou o que disse ao conde no final da conversa.

- A mãe é fantástica! Tem muita sorte por ele não a ter atropelado com o Ferrari quando se foi embora.

- Tenho a certeza de que teria tido muito prazer nisso. Mas que grande sacana que o homem me saiu! - desabafou Sasha, fazendo com que o filho se risse de novo. Estou de acordo. Mas a mãe devia sentir-se lisonjeada: ouvi dizer que ele anda com raparigas mais novas do que a Tatiana... Passa bastante tempo aqui, vai muitas vezes ao Annabels.

- Isso não me surpreende. - O Annabel’s era um clube privado de Londres frequentado por pessoas do mais elevado estrato social, assim como por um grande número de homens de idade acompanhados por mulheres muito mais novas. Sasha e Arthur haviam ido lá em inúmeras ocasiões. Eram membros do clube, e também frequentavam o Harry’s Bar; os dois estabelecimentos eram propriedade da mesma pessoa.

- Como é que vocês, homens, conseguem agir desta maneira sem sofrer qualquer consequência?

- Há mulheres que adoram. A maior parte das proprietárias de galerias de arte, provavelmente, teriam ido para a cama com ele só para lhe venderem um quadro.

- Sim, e depois, no dia seguinte, a pintura ser-lhes-ia devolvida. - O pai tinha-a advertido em relação a homens como o conde quando começara a trabalhar com ele. Gonzague de Saint Mallory não era um espécimen único e, na opinião de Sasha, possuía um carácter que não abonava minimamente a seu favor.

Nessa noite, quando se deitou, ainda estava furiosa devido àquele incidente. Na manhã seguinte informou o gerente da galeria de que não venderiam o quadro ao conde.

- Oh! Pensei que ontem à noite ias jantar com ele comentou Bernard.

- E fui, mas o conde comportou-se de uma forma censurável, e teve muita sorte por eu não o ter esbofeteado. Aparentemente, estava a contar poder comprar os meus serviços juntamente com o quadro. Pensou que eu devia ir com ele para o chalé que possui em Saint-Moritz, cancelando as férias que planeei com os meus filhos.

- E não aceitaste a proposta? - perguntou Bernard, fingindo-se escandalizado. - Sasha, mas que negociante tão fraca que me saíste! Meu Deus, pensa bem, um milhão de dólares por água abaixo! Não tens o mínimo sentido de responsabilidade para com o negócio do teu pai? - Bernard adorava arreliá-la. Ao cabo de quinze anos a trabalhar na galeria, haviam estabelecido uma verdadeira relação de amizade.

- Ora, cala a boca, Bernard! - retorquiu ela com um leve sorriso, dirigindo-se para o seu gabinete e recomeçando a trabalhar. Para Sasha, aquela havia sido a proposta mais ultrajante que lhe fora feita. Na semana seguinte contou o sucedido à gerente da galeria de Nova Iorque, a qual se mostrou francamente chocada.

- Os norte-americanos não se comportam dessa maneira! - retorquiu Karen,

- Provavelmente, alguns comportam-se muito pior. Estou a começar a acreditar que é algo característico apenas da população masculina, que não tem nada a ver com a nacionalidade, se bem que seja possível que os franceses sejam mais ousados nesta matéria, mas tenho a certeza de que estas situações também ocorrem aqui. Nunca ninguém te deu a entender que terias de ir para a cama a fim de conseguires vender uma determinada pintura? - perguntou Sasha, rindo-se à socapa e encostando-se para trás na cadeira.

Ao fim e ao cabo, o incidente começava a parecer-lhe divertido. Karen, a gerente da galeria de Nova Iorque, ficou a pensar no assunto por momentos, após o que abanou a cabeça.

- Não me parece. Talvez eu não me tenha apercebido.

- E o que é que farias, caso tivesses percebido? - Sasha estava a brincar com ela. Eu teria dormido com ele e depois pagava-lhe o milhão de dólares - interveio Mareie, a assistente de Sasha. Vi o retrato dele numa revista. O homem é de morrer, Sasha!

- Sim, de facto é - admitiu Sasha, embora não se mostrasse impressionada com isso. Achava que o seu falecido marido era muito mais bem-parecido do que o conde. A postura, de uma cortesia exagerada, e as maneiras melífluas do homem não lhe haviam agradado. Preferia a aparência e maneira de ser francas, estilo Gary Cooper, de Arthur. Homens como Gonzague de Mallory eram coisa que não faltava, com ou sem Ferrari. Conhecia bem o género.

Os três dias que esteve em Nova Iorque foram tão preenchidos que passaram num ápice. Precisava de falar com vários artistas e clientes importantes com quem ficara de se encontrar, além de ter assistido à reunião de direcção que a levara a Nova Iorque. Passou as duas primeiras noites no apartamento, aproveitando para separar as coisas de Arthur. Tinha prometido a si mesma que, no mínimo, arrumaria algumas delas. Precisara de catorze meses, e agora os roupeiros pareciam-lhe vazios e tristes depois de ter tirado as coisas dele. Mas havia chegado a altura de o fazer.

Na última noite que passou em Nova Iorque foi a uma festa de Natal que uns amigos deram. Para ela, havia qualquer coisa de agridoce por estar em Nova Iorque antes da quadra natalícia. Era uma altura que lhe trazia a recordação do tempo em que os filhos eram pequenos e os levava a patinar no gelo no Centro Rockefeller, além de lhe trazer também à memória os dois Natais anteriores, quando Arthur ainda estava vivo. Era-lhe difícil estar ali. Sentia-se satisfeita por poder ver os amigos, mas também estava farta de lhes explicar que não havia nenhum homem na sua vida.

Parecia ser a única pergunta que as pessoas lhe faziam ultimamente, como se ela não existisse a menos que tivesse uma relação com um homem. Era uma atitude que a fazia sentir-se, de uma maneira estranha, como se fosse um fracasso, agora que o marido morrera e ela ficara sozinha. Observar as amigas casadas que saíam com os respectivos maridos fazia-a sentir-se como se fosse uma espécie única no meio da Arca de Noé. Foi um grande alívio poder regressar a Paris no dia seguinte, entusiasmada ao pensar que os filhos chegariam logo no dia a seguir.

Tratou de arranjar alguém que fosse a sua casa cozinhar o peru para a consoada, e já tinha enfeitado a árvore de Natal e decorado o resto da casa com motivos alegóricos. Era com grande expectativa que aguardava Tatiana, que não via há dois meses. A filha parecia sentir-se bem e estar feliz, dizendo que tinha passado umas semanas maravilhosas; mal podia esperar para mostrar as fotografias à mãe. Estavam a vê-las quando Xavier contou à irmã o que se passara entre a mãe e Gonzague.

- A mãe esteve quase a cancelar a nossa viagem para Saint-Moritz - disse ele, à guisa de lance de abertura. Tatiana mostrou uma expressão de surpresa. - Foi por um triz que não foi sem nós para poder vender um quadro no valor de um milhão de dólares a um conde francês.

- Não, não foi nada disso, miúdo asqueroso... - Sasha contou o episódio à filha, que pareceu ficar chocada por um playboy parisiense ter tentado ir para a cama com a mãe com o engodo da possibilidade de efectuar a venda de um quadro no valor de um milhão de dólares.

- Isso é revoltante, mãe! - afirmou Tatiana com sinceridade e afecto pela mãe. Não lhe era difícil imaginar quanto a situação devia ter sido humilhante para ela. Não, não é. Acho até que a mãe devia sentir-se lisonjeada... - declarou Xavier.

- Ele é um chauvinista asqueroso! - ripostou Tatiana, olhando, furiosa, para o irmão. - Deve ter sido horrível para a mãe!

- Está bem, está bem, vocês duas ganharam. Vou procurá-lo para lhe dar uma surra. Onde é que ele vive? - perguntou Xavier virando-se para a mãe, que desatou a rir.

- Não te devia ter contado nada. Nunca mais me deixarás em paz por causa desta história!

- Deixo, sim. E a propósito, tenho-me esquecido de lhe dizer. Finalmente o Liam decidiu que lhe ia enviar os diapositivos. Já mos mostrou. São muito bons - adiantou Xavier, cheio de orgulho do amigo.

- Vou ficar à espera de os poder ver.

- Sasha sabia que, por vezes, Xavier tinha um bom golpe de vista, mas tambémhavia ocasiões em que procurava ajudar os amigos através dela. Nunca sabia bem o que esperar, mas decerto que valeria a pena ver os diapositivos. Havia alguns anos que ouvia falar do jovem artista norte-americano que vivia em Londres. Bem, a verdade é que ouvira mais sobre as suas aventuras e escapadelas do que sobre os seus trabalhos.

- Estou em crer que a mãe vai ficar impressionada com o trabalho dele - garantiu Xavier. Sasha acenou em sinal de concordância, sem fazer comentários. Continuava esperançada em que não fosse esse o caso; o homem dava-lhe a impressão de ser uma fonte de dores de cabeça.

- Diz-me lá outra vez qual é o apelido dele? - perguntou Sasha, mostrando pouco interesse.Liam Allison. É de Vermont, mas desde que saiu da faculdade que vive em Londres.

- Não me esquecerei do nome. Se gostar dos diapositivos, vou tentar encontrar-me com ele da próxima vez que vier cá. - De vez em quando, Xavier conseguia descobrir-lhe artistas de qualidade; quem sabe se esta não seria uma dessas ocasiões? Sasha estava sempre disposta a ver os trabalhos que lhe eram apresentados. Era por isso que gozava da reputação que tinha. Sasha possuía um espírito aventureiro e um golpe de vista que nunca falhava, mas também sabia de antemão que Liam não era pessoa em quem se pudesse confiar. Era uma conclusão a que inevitavelmente chegara depois de todas as complicações em que Xavier se metera com ele.

Nessa noite foram à Missa do Galo, e passaram o dia seguinte confortavelmente em família. Tatiana trouxera da índia um sari lindíssimo para oferecer à mãe, assim como um bonito par de sandálias douradas a condizer. Quanto a Xavier, comprara-lhe um bracelete em ouro numa loja de antiguidades em Londres. Era o género de prenda que o pai teria oferecido à mãe, e Xavier sentiu um grande carinho ao ver que o rosto dela se iluminava de satisfação quando o enfiou no braço.

Sasha olhou para os dois filhos quando foram para a cama na véspera de Natal, sorrindo-lhes com uma expressão de ternura.

- Sou a mulher mais afortunada do mundo - disse ela, e cada palavra vinha-lhe do fundo do coração. Pela primeira vez em muito tempo, era realmente assim que se sentia.

 

Sasha e os filhos passaram uns dias inolvidáveis em Saint-Moritz, se bem que estes a tivessem arreliado impiedosamente por causa do incidente com Gonzague. Ficaram alojados no Hotel Palace, em acomodações opulentas. De vez em quando, Sasha adorava estragar os filhos com mimos, especialmente durante as férias. Ela e Arthur desde sempre haviam procedido dessa forma. Sentiam-se afortunados por terem meios que lhes permitiam tais extravagâncias e as viagens que tinham feito constituíam recordações que todos guardavam ciosamente. Nesse ano, Saint-Moritz entrou para o álbum de recordações.

Parte do tempo de Sasha foi passado a esquiar com os filhos, aproveitando o resto para ficar a sós consigo e com os seus pensamentos. Xavier era um esquiador notável, e Tatiana era tão ágil como o irmão, apenas um tudo-nada mais responsável e menos temerária. Os dois jovens conheciam pessoas da sua idade com quem saíam à noite, e eram mais as vezes em que Sasha jantava sozinha no seu quarto do que o contrário. Mas não se incomodava com isso. Trouxera vários livros, até porque não tencionava participar na vida nocturna da estância turística.

Sentia-se descansada, contente e relaxada quando regressaram a Paris. Tatiana ficou apenas alguns dias, uma vez que queria voltar para Nova Iorque, a fim de procurar um novo emprego; quanto a Xavier, deixou-se ficar mais um ou dois dias depois da partida da irmã, após o que voltou para o seu estúdio em Londres. Antes de ter partido de Paris, chegaram os diapositivos do amigo Liam Allison. Para grande surpresa - e desagrado de Sasha, constatou que eram de melhor qualidade do que o filho lhe garantira. Ficou impressionada, se bem que, para poder tomar uma decisão quanto a representá-lo, ou não, precisava de ver os trabalhos de pintura ao vivo.

- Vou tentar ir até aí na próxima semana, ou talvez na semana a seguir - disse Sasha a Xavier, tencionando cumprir o que dizia. Porém, só na última semana de Janeiro é que teve oportunidade de ir a Londres, planeando falar com três dos seus artistas e conhecer Liam. Foi com alguma expectativa que lhe marcou uma hora para visitar o estúdio na última tarde que passou em Londres.

As aventuras e o comportamento irresponsável que Xavier lhe havia descrito não contribuíam para que se sentisse ansiosa por vir a ter uma relação profissional com ele, contudo, era impossível negar o seu talento. Sentia que tinha de o conhecer. Uma vez chegada ao estúdio, Sasha sentiu-se satisfeita por ter ido.

Com uma fisionomia onde se lia ansiedade e um sorriso de nervosismo, Liam abriu-lhe a porta. Xavier acompanhou a mãe, dando uma palmada de encorajamento no ombro do amigo. Tinha noção de quanto Liam se sentia ansioso. Sasha, com uma expressão quase de austeridade, aparentava indiferença e profissionalismo quando entrou no estúdio. Vestia umas calças de ganga preta e uma camisola da mesma cor, calçava botas pretas e o cabelo era quase tão negro como a camisola, e, como fazia com frequência, prendera-o num carrapito apertado. Apesar de não ser muito alta, Liam achou que tinha um aspecto aterrador quando lhe apertou a mão.

Sabia que o que quer que dissesse, ou pensasse, a respeito do seu trabalho teria um impacto na sua vida que perduraria para sempre. Caso considerasse que era inadequado ou concluísse que lhe faltava qualidade para ser representado pela sua galeria, ele sentiria essa rejeição quase como se fosse uma agressão física. Enquanto a observava, sentia-se vulnerável e receoso. Educadamente, Sasha agradeceu-lhe por a ter convidado a ir ao seu estúdio.

Liam não tinha maneira de saber, a despeito de tudo o que Xavier lhe dissera, que o que lhe parecia ser uma atitude de frieza escondia a timidez característica de Sasha. O que lhe interessava eram os trabalhos de arte, mais do que a pessoa. No entanto, era inegável que Liam era difícil de ignorar. Ouvira demasiadas histórias a seu respeito contadas pelo filho, e sabia bem que ele era uma pessoa pouco moderada e que, frequentemente, tinha um comportamento reprovável. O único factor mitigador, esperava ela, era ter mulher e três filhos. Com certeza não podia ser totalmente irresponsável e sem nada que abonasse a seu favor, uma vez que era um chefe de família.

Xavier nunca dera a entender que ele fosse promíscuo, somente que era ”irreprimível” e um brincalhão de primeira ordem, além de não gostar que lhe dessem lições de moral. Resistia a todos os esforços que se tentassem fazer a fim de que mudasse o seu comportamento, tal como gorava qualquer expectativa para que passasse a agir como uma pessoa adulta, considerando isso como uma forma de ”controlo”.

 

De acordo com o que Xavier dizia, escudava-se em grande parte no facto de ser um artista, como se isso lhe permitisse qualquer irreverência e fosse justificação para não viver em consonância com as convenções que regiam os demais, podendo fazer o que lhe desse na real gana. Era um estilo de vida a que Sasha não estava acostumada, sendo frequente que constatasse ser difícil lidar com pessoas como ele. Trabalhavam quando bem lhes apetecia, divertiam-se sempre que podiam e, regra geral, não cumpriam os prazos para as exposições.

No fundo, os homens como ele queriam ser tratados como crianças. Ao que tudo indicava, a mulher estava disposta a satisfazer os seus caprichos, mas não era esse o caso com Sasha, por muito bem-parecido e encantador que ele pudesse ser. Se encarasse o seu trabalho com seriedade, pelo menos em certa medida, esperava que se comportasse como um adulto responsável ou que, no mínimo, fingisse comportar-se como tal. Levando em consideração tudo o que ouvira a seu respeito, não se sentia bem certa de que Liam estivesse preparado para ”crescer”. E no fim, encantador ou não, o seu trabalho teria de falar por si.

Num passo lento, atravessou o estúdio até à parede onde ele pendurara algumas telas de grandes dimensões pintadas com cores vivas. Assentes em cavaletes, viu outros três quadros mais pequenos. Os trabalhos de Liam eram assombrosos e plenos de vigor, o uso das cores poderoso, e o tamanho das telas maiores fazia com que o trabalho a impressionasse ainda mais. Deteve-se a admirar as pinturas durante bastante tempo,acenando com a cabeça em silêncio, enquanto ele sustinha a respiração. Xavier sabia que o silêncio da mãe era bom sinal, mas Liam não estava a par disso. Ao ver como ela se concentrava em silêncio no seu trabalho, sentia-se como se fosse desfalecer. Continha a respiração, até que, finalmente, Sasha se virou para ele, dizendo seis breves palavras:

- É fantástico! Quero os seus trabalhos! - Tempos depois, Liam admitiu perante ela que quase desmaiou de alívio. Em vez disso, porém, lançou um grito de vitória, agarrou-a e fê-la rodopiar, levantando-a no ar com um sorriso de orelha a orelha, até que finalmente a pousou no chão.

- Oh, meu Deus, nem consigo acreditar!... Adoro-a! Oh, meu Deus! Estava convencido de que me ia dizer que o meu trabalho não prestava para nada, que era uma grande porcaria!

- Não é porcaria nenhuma - retorquiu Sasha, sorrindo-lhe, sentindo-se empolgada por ele e agradecida a Xavier por ter descoberto Liam e lhe ter falado nele. - Pelo contrário, é brilhante. A forma como usa as cores faz, literalmente, com que o meu coração bata mais depressa e as lágrimas me assomem aos olhos. No entanto, durante o próximo ano não vamos poder expor os seus trabalhos.

Temos um calendário mais do que sobrecarregado. Quero que a sua primeira exposição seja em Nova Iorque e não em Paris. - As exposições em Paris nunca tinham muito impacto, por isso preferia apresentar as exposições de arte contemporânea mais importantes em Nova Iorque. Xavier também sabia que isso era bom sinal, prometendo a si mesmo que mais tarde diria isso mesmo a Liam. Não queria revelar os segredos da mãe enquanto ela estivesse presente. Sentia-se nas nuvens por ter sido ele quem os apresentara. Desde sempre estivera convicto de que o trabalho de Liam era excelente, sentindo um grande alívio e entusiasmo ao ver que a mãe concordava com a sua opinião.

- Oh, meu Deus! - repetiu Liam à beira das lágrimas, sentando-se no chão. Havia quase vinte anos que trabalhava com aquele objectivo e agora, finalmente, os seus desejos tinham-se concretizado. Iria expor os seus trabalhos na Galeria Suvery em Nova Iorque. Tinha a sensação de estar a viver um sonho. E a própria Sasha de Suvery encontrava-se ali, sentada no seu estúdio e a adorar a sua obra. Dizia-lhe que teria de trabalhar mais, a fim de estar preparado para a exposição.

- O que é que posso fazer para lhe agradecer? - perguntou, olhando para ela como se fosse uma visão que tivesse acabado de se materializar no seu estúdio. Sentia-se como um garoto que de repente se vira diante de uma virgem estigmatizada.

- Só precisa de continuar a pintar bons quadros. Pelo sim, pelo não, trouxe comigo um contrato que foi redigido em Paris. Se quiser, pode analisá-lo com um advogado. Não tenho pressa que mo devolva assinado. - Sasha nunca fazia pressão sobre os artistas para que assinassem os contratos que celebrassem consigo.

- Uma ova é que não há pressa! E se você mudar de ideias? Onde é que está? Dê-me isso, que eu assino já! - Era como se estivesse nas nuvens. Ao observá-lo, Sasha concluiu que parecia ter quase a mesma idade do filho.

Sabia, com base nos dados pessoais que ele lhe enviara juntamente com os diapositivos, que tinha trinta e nove anos, porém, olhando para ele, nunca teria adivinhado a sua idade. Havia aprendido com alguns artistas conhecidos, além de já ter exposto os seus trabalhos em algumas galerias de pequena dimensão, mas tinha o aspecto de um garoto. Tudo nele dava a impressão de liberdade, à-vontade e juventude.

Era alto, magro e muito bem-parecido. Tinha o cabelo louro e liso, que, a maior parte das vezes, lhe caía pelas costas. Para ser apresentado a Sasha, prendera-o num rabo-de-cavalo. Tinha uma pele aveludada e fisionomia juvenil. Os ombros eram largos, as mãos esguias e graciosas, andando pelo estúdio como um adolescente; calçava ténis e vestia calças de ganga e T-shirt, tudo cheio de tintas. Andava à sua volta qual criança ansiosa, suplicando-lhe que lhe desse o contrato.

- Deixei-o no hotel - disse ela num tom de voz que pretendia sossegá-lo; subitamente, Sasha parecia ter assumido uma atitude maternal. Agora que ele estava prestes a ser um dos seus artistas, sentia que tinha de o proteger. - Tenciono deixá-lo cá antes de partir, ou talvez o envie por um estafeta. Não vou mudar de ideias, Liam. Nunca faço isso - acrescentou afavelmente. Expressava-se numa voz calma, sentindo-se comovida por ele se mostrar tão entusiasmado.

Liam afirmou que aquele era um dos momentos mais significativos da sua vida. Sasha não era dessa opinião, mas sentia-se satisfeita por aquilo ter tanto significado para ele. Era um dos aspectos de que mais gostava ao expor o trabalho de artistas recentemente chegados ao mundo das artes: estava em posição de lhes dar uma oportunidade. Sempre adorara essa faceta da sua actividade profissional, trabalhar com artistas jovens como ele. Apesar de Xavier ter razão, uma vez que ele não era tão jovem quanto isso, mas a verdade é que parecia.

Tudo nele era juvenil. Tinha apenas menos nove anos do que ela, mas agia como se tivesse uns catorze, com a aparência de um rapaz com mais ou menos vinte e cinco anos, e não como um homem de trinta e nove. Aos seus olhos, não parecia ser mais velho do que Xavier, o que fazia com que sentisse um certo instinto maternal em relação a ele. - Quer mostrar o contrato à sua mulher antes de o assinar?

- O estúdio encontrava-se numa tal desarrumação que era óbvio que Liam não vivia ali, o que era confirmado por não ver qualquer sinal da presença da mulher e dos três filhos que Xavier lhe mencionara. Presumiu que viveriam noutro lugar qualquer, muito embora se vissem roupas dele espalhadas por todo o estúdio cheias de tinta. Certamente era a roupa com que trabalhava. Sasha só podia assumir que existia outro lugar mais arrumado e limpo algures onde ele vivia com a família.

- Ela está em Vermont - explicou Liam num tom contrito. - Envio-lhe uma fotocópia depois de o ter assinado. Nem vai acreditar numa coisa destas - acrescentou, lançando um olhar de relance a Xavier e depois à mãe deste.

Quando Liam serviu vinho para os três, todos pareciam satisfeitos. Sasha bebeu apenas um pequeno gole, enquanto Liam bebeu metade do seu no espaço de um minuto. Sentia-se realmente nas nuvens. Para Sasha, tinha sido um verdadeiro achado e, mais do que nunca, desejou que Xavier começasse a trabalhar com ela.

Como a mãe, tinha olho para o talento. Ambos haviam herdado essa particularidade do pai de Sasha. Mas Xavier queria continuar a viver em Londres e vir a ser um artista, e não um negociante de arte, em Nova Iorque ou em Paris. Talvez um dia abrissem uma galeria em Londres. Pela primeira vez em muitos anos, Sasha estava a pensar em expandir o negócio. Todavia, Xavier ainda era muito novo para assumir tal responsabilidade. Talvez um dia... O filho acabara de completar vinte e cinco anos, se bem que ela tivesse entrado no negócio quando tinha apenas mais um ano, aos vinte e seis, sob a tutela do pai. - Permitem-me que vos convide para jantar? - perguntou Liam, esperançado. - Gostaria de celebrar. - Parecia prestes a rebentar de entusiasmo.

- Adoraria ir, mas... - começou Xavier a dizer com uma expressão matreira, e Sasha compreendeu imediatamente o que ele estava a pensar. Deus o livrasse de um jantar com um artista e a mãe que interferisse com a sua vida amorosa! Sem sombra de dúvida, o filho não estava preparado para entrar no negócio da família. Na sua idade já ela estava casada e a trabalhar num museu, além de ter tido dois filhos. Xavier ainda estava muito longe de atingir esse patamar.

Sasha hesitou por breves momentos. Esperara poder jantar com Xavier nessa noite, uma vez que não sabia que o filho já tinha outros planos, mas isso era típico dele. Virou-se para Liam:

- E que tal se fosse eu a convidá-lo para jantar, Liam? A partir de agora sou eu quem negoceia os seus trabalhos, portanto, não precisa de me convidar. Podemos aproveitar para nos conhecermos melhor - sugeriu cordialmente. Liam viu nela um calor humano de que até então não se apercebera. Sasha mostrava um recato e uma estabilidade que lhe agradavam. Tudo nela dava a impressão de fiabilidade e solidez, características que admirava muito. Ao princípio, sentira-se atemorizado, mas sob a capa fria e profissional adivinhava

que ela era uma pessoa calorosa. A reputação de Sasha intimidava-o, mas não era esse o caso quando em presença dela.

Sasha perguntou a si mesma se ele teria algum fato. A maior parte dos seus artistas mais jovens não possuía um único fato, e Liam não lhe parecia diferente dos outros. Verdade fosse dita, tinha um aspecto pior do que alguns, embora fosse muito bem-parecido. Era um homem bonito e deveras atraente.

- Será um prazer. Posso assinar o contrato durante o jantar - retorquiu ele com um sorriso que já deslumbrara muitas pessoas.

- Sim, mas primeiro deve lê-lo com atenção - aconselhou Sasha num tom de censura. - Tem de se certificar de que está de acordo com as condições. Não deve assiná-lo sem o ler ou mesmo mostrá-lo a um advogado.

- Por si, estaria disposto a vender-me como escravo, ou mesmo a dar-lhe o meu testículo esquerdo, se fosse esse o seu desejo - afirmou Liam sem rodeios, enquanto Sasha pestanejava. No entanto, estava acostumada àquele tipo de conversa dos seus artistas.

- Para dizer a verdade, isso não será necessário - retrucou Sasha com algum formalismo. - Tanto quanto me recordo, os testículos não costumam constar dos contratos. Pode ficar com ambos. Estou certa de que a sua mulher se sentirá bastante aliviada. - Liam sorriu-lhe sem lhe responder. Ao fitá-lo, ocorreu-lhe a imagem de um rapazinho de grande beleza. Era um prazer olhar para ele e, a despeito da fisionomia juvenil, era um homem extraordinariamente talentoso.

- Onde é que gostaria de ir jantar? - perguntou Sasha, se bem que tivesse pensado em levar Xavier ao Hari’s Bar, mas o filho vinha de uma cepa inteiramente diferente, uma vez que possuía vestuário para todas as ocasiões, além de saber como se comportar. Duvidava que Liam tivesse quer modos quer roupas melhores do que as que vestia na altura. Ao fim e ao cabo, era um artista esfomeado, embora, Se dependesse dela, essa situação não se fosse manter por muito mais tempo.

Acreditava que ele faria sensação em Nova Iorque e, eventualmente, em Paris. Liam era um verdadeiro achado, uma ave rara, alguém com um talento incomensurável e que era capaz de produzir trabalhos realmente extraordinários.

- Gostaria de me vestir como deve ser e levá-la a jantar para lhe agradecer - insistiu Liam humildemente, falando ao coração de Sasha.

- Como é que se vai vestir a rigor? - perguntou ela, olhando-o de alto a baixo numa atitude maternal. Ele trazia à superfície a faceta maternal de Sasha. Tudo nele fazia com que uma pessoa sentisse que era um rapaz e não um homem feito. Subitamente, tudo o que queria era protegê-lo e ajudá-lo. Sentia-se empolgada perante a perspectiva de vir a trabalhar com ele, lançando-o numa carreira de sucesso. Para Sasha, Liam era uma descoberta das mais importantes. Aquele era um momento significativo não só para ele, mas também para ela.

- Tenho um fato e duas camisas boas. Uma delas está lavada. Acho que usei a outra para polir o carro - disse, olhando-a com uma expressão acanhada e fazendo com que ela se risse. Havia qualquer coisa nele de endiabrado e irresistível. Recordava-lhe Xavier quando tinha cerca de catorze anos e se esforçava por ser um homenzinho. Xavier atingira os seus objectivos. Liam ainda não conseguira. Sendo assim, vamos ao Harry’s Bar - disse Sasha simplesmente. Adorava jantar lá. Era o seu restaurante preferido em Londres.

- Com um caraças! Não consigo acreditar que isto me esteja a acontecer. Acreditas? - perguntou, voltando-se para Xavier com um sorriso de orelha a orelha, o qual se mostrou radiante pelo amigo. Aquilo tinha corrido muito melhor do que esperara. Sentia-se empolgado por Liam e agradecido à mãe por ter dado uma oportunidade ao amigo.

- Sim, acredito - respondeu Xavier sem hesitar.

- Homem, estou em dívida para contigo, e muito! E com estas palavras Liam abriu a mão, batendo na do amigo.

Na óptica de Sasha, ambos pareciam dois garotos no balneário de um clube desportivo, e só esperava que ele nessa noite se comportasse como devia ser no Harry’s Bar. Com os artistas nunca se sabia, razão por que só muito raramente os levava àquele restaurante, mas com Liam decidiu arriscar. Havia qualquer coisa nele de inocente e encantador, e se saísse da linha ou caso se comportasse de modo espalhafatoso e falasse alto, dir-lhe-ia que tivesse maneiras.

Para ela, os seus artistas eram como crianças, por vezes até mesmo os mais velhos. Sentia-se como uma segunda mãe, o que lhe dava muito trabalho, mas era parte daquilo que ela mais amava no seu trabalho. Os artistas eram os seus pintainhos e ela a galinha-mãe. E apesar de não ser muito mais velha do que ele, Liam dava a impressão de estar a precisar de uma mãe, como o Peter Pan.

- O jantar fica combinado para as vinte horas. O meu motorista estará aqui às dezanove e trinta e em seguida vai buscar-me ao hotel. Esperarei no átrio - indicou Sasha, após o que saiu com Xavier.

- Não se esqueça de trazer o contrato - recordou-lhe Liam quando já desciam as escadas.Tinha sido uma tarde bastante produtiva para ambos e Liam esperava pela hora do jantar com muita expectativa. Queria falar com ela sobre a exposição e acerca da quantidade de quadros de que iria precisar. Estava disposto a trabalhar como um condenado às galés durante todo o ano, a fim de produzir os melhores trabalhos que fizera até então. Não tencionava decepcioná-la. Aquela era a sua grande oportunidade, facto de que estava bem ciente.

Havia trabalhado durante toda a sua vida com vista àquele momento. E por muito que se permitisse comportar-se de maneira reprovável na sua vida pessoal, ou nas noites em que ia para a farra com Xavier, sempre encarara o seu trabalho com grande seriedade. Desde a meninice que sabia que havia nascido para ser pintor.

Era uma particularidade que o tinha diferenciado e isolado dos demais até mesmo em criança, característica que se manteve mais tarde, na adolescência e na juventude. Sempre soubera que era diferente, o que não o incomodava por aí além. A mãe sempre o encorajara, dizendo-lhe que devia seguir os seus sonhos. O resto da família não lhe dera o mesmo incentivo, e até o pai o tratara como se fosse uma aberração. Tal atitude criara um fosso entre eles. Parecia que só a mãe era capaz de ver o génio especial de que era dotado. Os outros, o pai, os irmãos e até mesmo os amigos, pensavam apenas que era esquisito, e os seus primeiros trabalhos de pintura não tiveram o mínimo significado para eles. O pai dizia que eram uma porcaria; quanto aos irmãos, referiam-se-lhes classificando-os de gatafunhos.

Mantinham-no à margem de tudo o que faziam, e no seu isolamento ele procurara conforto na pintura. À semelhança do que acontecia com todos os que haviam sofrido numa primeira fase das suas vidas, Liam era muito diferente do que parecia ser. Sasha ainda não sabia, mas já o pressentia. Todos os artistas que conhecia haviam passado por qualquer desgosto ou inferno pessoal.

Como consequência, talvez as suas vidas fossem mais amarguradas, contudo, essas adversidades imprimiam mais pujança aos seus trabalhos, além de reforçarem o empenho com que abraçavam a sua arte. O facto de ter perdido a mãe quando ainda era muito nova dotara-a de uma maior compaixão para com eles, além de estar mais em sintonia com as adversidades pelas quais haviam passado. Compreendia-os melhor do que às vezes ela própria se apercebia. Era como se existisse uma harmonia que nunca era verbalizada entre eles.

- Sempre acreditei que a mãe gostaria do trabalho dele

- disse Xavier quando já estavam no automóvel, mostrando-se satisfeito. - É extremamente talentoso - acrescentou, cheio de orgulho do amigo.

- Sim, de facto é - concordou Sasha, sentindo-se confiante e entusiasmada por o filho ter descoberto tão excelente pintor. Tinha muito orgulho na perspicácia que o filho demonstrava possuir.

- Além disso, também é um tipo muito simpático garantiu Xavier. - É generoso, honesto e sincero. Adora a mulher e os filhos. Ainda que por vezes aja de uma maneira um bocado destrambelhada, sem dúvida que é um bom homem. É estouvado, mas não faz mal a uma mosca.

- É uma pena que ela esteja em Vermont. Teria gostado muito de a conhecer. A pessoa com quem se é casado pode dar-nos a saber muita coisa sobre nós próprios - disse Sasha placidamente, e por momentos Xavier não fez qualquer comentário. Ela é uma pessoa estupenda. Estão casados há muitos anos, mas há já algum tempo que ela foi para Vermont.

- O que é que queres dizer com isso? - perguntou Sasha, olhando para o filho com uma expressão interrogadora.

- Continuam casados ou ela deixou-o?

- Acho que a resposta é afirmativa para as duas hipóteses. Continuam casados, mas parece-me que decidiram separar-se por uns tempos, ou qualquer coisa assim. Ele não costuma falar sobre esse assunto. Todos os Verões ela volta à terra natal, Vermont, para visitar os pais, mas este ano não regressou em Setembro, como é costume. O Liam disse que ela tencionava ficar por lá durante uns meses.

Desde Julho que está lá. Ele é um tipo excelente, mas não me parece que seja muito fácil viver ao seu lado. Ela é que o sustentou, a trabalhar como empregada de mesa em restaurantes de estâncias turísticas de Verão e de Inverno, enquanto ele tirava o curso de Belas-Artes. Em Londres trabalhava como secretária. Em grande parte, é ela que continua a sustentá-lo, e aos filhos, além de aturar as merdas todas dele de artista extravagante.

Não me parece que ele alguma vez quisesse divorciar-se dela, mas também não acho que ela tenha tido uma vida fácil a sustentar cinco pessoas. Só espero que ela volte para junto dele. É uma boa mulher e sei que o Liam a ama.

- Talvez agora possamos vir a mudar a vida dele - retorquiu Sasha. Aquela história era-lhe familiar. A maior parte dos seus artistas faziam a vida negra às mulheres com quem viviam, limitando-se a pintar, enquanto os outros custeavam o seu talento. O casamento de Liam não era o primeiro a atravessar dificuldades, ou mesmo a impor sacrifícios, em nome da arte. Nada daquilo era novidade para ela. - Eu podia dar-lhe um pequeno adiantamento, caso isso o ajudasse. Verei o que é que ele diz durante o jantar. Talvez isso o ajude a resolver a situação com a mulher.

- Provavelmente teria muito significado, e para ele viria mesmo a calhar. O filho mais velho vai entrar na faculdade para o ano que vem. Com certeza que precisará de dinheiro. Com um pouco de sorte, faremos com que ganhe bastante, mas não é uma coisa que aconteça da noite para o dia - disse Sasha, embora ambos soubessem que, por vezes, isso era possível. Depois do que Xavier acabara de lhe contar, Sasha esperava que as coisas corressem assim em relação a Liam.

Sem dúvida que a sua família era tão merecedora quanto ele próprio, especialmente com um filho prestes a entrar para a faculdade. Liam não parecia ter idade suficiente para ter um filho com quase vinte anos. Ele próprio parecia um adolescente.

Xavier deu um abraço à mãe, prometendo-lhe que no dia seguinte tomaria o pequeno-almoço com ela. Combinaram encontrar-se às dez, uma vez que Sasha teria de fazer alguns telefonemas de negócios logo pela manhã. Estava a pensar em ir para o aeroporto ao meio-dia, e queria passar as últimas horas em Londres com o filho.

- Vê se esta noite te portas como deve ser - disse a sério, embora num ar de brincadeira, uma advertência maternal; Xavier ria-se ao afastar-se. ”Pelo menos, esta noite Liam não estará com ele”, pensou Sasha. Mas agora que conhecera Liam, sentia-se menos preocupada pela influência que ele pudesse exercer sobre o filho. Além do mais, começava a admitir que Xavier tinha razão. Liam dava a impressão de ser infantil, talvez mesmo imaturo, mas inofensivo.

- Até amanhã! - gritou Xavier, acenando-lhe num gesto de despedida antes de entrar no carro; momentos depois arrancou, satisfeito consigo próprio. A tarde havia sido produtiva. Liam estava a caminho do sucesso. A sua carreira, que parecia não ir a lado algum, mudara drasticamente no sentido ascendente.

 

Precisamente às dezanove horas e trinta minutos, o motorista de Sasha foi buscar Liam e depois Sasha ao Claridge, às dezanove horas e quarenta e cinco minutos. Tal como ela dissera, estava à espera no átrio, sentando-se ao lado de Liam assim que o carro chegou. Ele vestia um fato preto com um aspecto bastante decente e uma camisa vermelha que ele próprio pintara e que em tempos havia sido branca.

Tinha-se esquecido de que fora isso que fizera à outra camisa boa, aquela de que não se servira para polir o automóvel. Pintou-a numa noite em que se embebedou, pensando que seria divertido. Agora, como havia concluído nessa noite, era a única camisa que tinha.

Esperava que agradasse a Sasha. Ela não gostou, mas não fez qualquer comentário. Ele era um pintor. Tal como o filho; porém, se este tivesse usado alguma coisa daquele estilo para ir ao Harry’s Bar, ela tê-lo-ia descomposto. Mas acontecia que Liam não era seu filho.

Como quem não quer a coisa, olhou para os sapatos que ele calçava, os quais eram quase decentes, mas não inteiramente.

Eram uns sapatos pretos clássicos, de adulto, a que, por qualquer razão inexplicável, ele tirara os atacadores. Enquanto se vestia, Liam chegou à conclusão de que, provavelmente, os teria usado para alguma coisa, talvez para atar uma encomenda que enviara para qualquer lugar, mas já não se lembrava ao certo. De qualquer modo, achava que os sapatos ficavam melhor sem atacadores, preferindo-os assim. Tinha acabado de se barbear e de tomar duche, e emanava uma fragrância deliciosa, além de ter o cabelo louro e comprido impecavelmente lavado, tendo-o prendido com uma fita negra que enrolara por cima do elástico que segurava o rabo-de-cavalo.

Estava com muito bom aspecto, e se não fosse a camisa e a falta dos atacadores nos sapatos teria mesmo uma aparência respeitável, mas era preciso não esquecer que ele era um artista extravagante. Liam não vivia segundo as convenções da sociedade, coisa que nunca fizera.

Não via qualquer razão para viver de acordo com as regras de quem quer que fosse, além das suas, razão por que, em parte, a mulher havia ficado em Vermont, não o vendo desde Julho. Contudo, não obstante a camisa pintada de vermelho e o rabo-de-cavalo, havia nele algo de distinto e aristocrático. Era um homem lindíssimo, um homem de contrastes. Numa outra vida ou profissão, poderia ter sido actor ou modelo, advogado ou banqueiro, mas a camisa que pintara de vermelho mostrava que não só era um artista, como um garoto rebelde. Parecia dizer: ”Olhem para mim. Posso fazer o que quiser. Não há porra nenhuma que possam fazer contra isso!”

- Estou com bom aspecto? - perguntou, nervoso, a Sasha, que acenou afirmativamente. Não queria magoar os seus sentimentos e, ao fim e ao cabo, a camisa era um trabalho de arte. Só quando entraram no Harry’s Bar é que se lembrou da falta dos atacadores. E quando ele se sentou num banco alto no bar também se apercebeu de que não calçara meias. O chefe de mesa conhecia-a bem e, sem dizer nada a Liam, entregou-lhe uma gravata preta que, na verdade, condizia muito bem com a camisa. Ajudou-o a fazer o nó, tal como sucedera com Xavier quando o filho era garoto. Liam confessou que havia vários anos que não punha uma gravata, tendo-se esquecido de como se dava o nó. Não parecia minimamente constrangido.

O facto de todos os que se encontravam no restaurante estarem vestidos com elegância, os homens com fatos de bom corte e camisas feitas por medida em Paris e as mulheres com vestidos de noite de estilistas famosos, era coisa que não o incomodava nem um pouco. Se havia algo que não faltava a Liam era confiança em si próprio, com excepção do que dizia respeito a Sasha. Queria impressioná-la, mas não sabia como. Ela parecia uma mulher tão competente e confiante, mostrando uma postura tão serena quando falava com ele, que, subitamente, se sentiu como a pessoa inocente que era. Sasha tratava-o como se fosse uma criança.

Quando lhe perguntou como estava, disse-lhe que parecia muito bem, tendo entrado no restaurante orgulhosa de o ter ao seu lado, comportando-se como se todos os homens no restaurante devessem ter uma aparência semelhante à dele. Caminhar ao lado dela deixava-o quase estonteado, sentindo-se como se fosse Picasso quando se sentou à mesa.

Liam já lhe tinha perguntado pelo contrato duas vezes quando estavam no automóvel. Para lhe poupar a ansiedade, assim como os seus próprios nervos, Sasha entregou-lho quando se sentaram à mesa. Liam assinou-o sem sequer o ler, não obstante ela o ter advertido de que devia fazê-lo, e depois olhou-a com uma expressão radiante. A partir de agora passaria a ser um artista da Suvery. Era tudo o que sonhara ao longo dos últimos dez anos da sua existência. Finalmente, o sonho realizara-se, e tencionava saborear cada momento. Sabia que aquela era uma noite que jamais esqueceria, tal como Sasha. Estava quase certa de que um dia haveriam de se rir daquela ocasião, a noite em que ele entrara no Harry’s Bar usando uma camisa que ele próprio pintara.

A despeito da sua aparência juvenil e algo apalhaçada, parecia envolto numa áurea de grandeza.

Depois de Liam ter bebido um martini no bar, Sasha mandou vir champanhe para os dois, com o qual lhe fez um brinde, após o que ele bebeu à saúde dela. Bebeu dois copos. Em seguida, sem sequer pestanejar, acabou o que restava na garrafa. Nessa altura já lhe confiara que era a ovelha negra da família. O pai era banqueiro e vivia em São Francisco; tinha dois irmãos, um formara-se em Direito e o outro em Medicina, e ambos haviam desposado meninas de sociedade.

Porém, desde o início que fora diferente deles. Os irmãos haviam-no atormentado, dizendo-lhe que fora adoptado, o que não era verdade, mas logo na primeira fase da sua vida mostrara que era diferente. Detestava tudo aquilo de que os irmãos gostavam, odiava praticar desporto e não era um bom aluno, enquanto eles se revelavam estudantes brilhantes. Ambos eram capitães dos clubes universitários que integravam, praticando futebol, basquetebol e hóquei em patins.

Em vez disso, Liam ficava sentado no seu quarto a pintar. Os irmãos atazanavam-no impiedosamente, deitando as suas pinturas no lixo. Liam contou a Sasha que o pai lhe dissera, logo de início, que estava extremamente desiludido com ele, pois só causava constrangimento à família. Durante um ano de pesadelo, para o punir por ter más notas, fora enviado para uma academia militar.

Uma noite entrou sorrateiramente no refeitório, tendo pintado caricaturas de todos os professores nas paredes, alguns em poses pornográficas, um plano astuto que arquitectara a fim de ser expulso, o que, confiou a Sasha com um sorriso rasgado, dera o resultado desejado. Quando voltou para casa, a tortura às mãos da família continuou. Finalmente, sem saberem que mais haviam de fazer com ele, decidiram ignorá-lo por completo.

Agiam como se ele não existisse, deixando de o chamar para o jantar, à noite, e sem se darem ao incómodo de falar com ele quando estava na mesma divisão com os familiares. No seio da sua própria família, Liam adquiriu o estatuto de ”inexistente”, acabando por ser banido por completo. Quanto pior o tratavam, pior era o seu comportamento. Uma vez que não se enquadrava na família, não cumprindo as regras estabelecidas, tal como não se cingia aos planos que haviam arquitectado para ele, optaram por o excluir inteiramente da vida familiar.

Em mais de uma ocasião ouvira o pai dizer que tinha dois filhos e não três. Liam não vivia em conformidade com a maneira como a família conduzia a sua existência, portanto, haviam decidido bani-lo. Eventualmente, acabou por agir como um inadaptado até mesmo na escola. Apesar de lhe pedirem que pintasse cenários para o clube de teatro ou se precisassem de cartazes ou letreiros, durante o resto do tempo ninguém lhe prestava a mínima atenção, quer em casa quer na escola.

Os outros alunos referiam-se a ele como ”o pintor louco”, o que, inicialmente, considerou um insulto, mas tempos depois concluiu que até lhe agradava, fazendo plenamente jus à maneira como se lhe referiam. Por vezes, durante a adolescência, perguntava a si mesmo se seria são de mente.

- Cheguei à conclusão de que, se me permitisse agir de acordo com o que diziam que eu era, um artista louco, poderia fazer tudo o que me desse na veneta, e a partir daí passei a fazer o que me apetecia. - E, uma vez que não se dava ao trabalho de estudar, acabava inevitavelmente por ser expulso de todos os colégios em que o matriculavam. Até que, por fim, no último ano desistiu de estudar, nunca se tendo dado ao incómodo de acabar o curso.

Mas depois de casar a mulher convenceu-o a estudar para conseguir o diploma. No entanto, os estudos não haviam significado nada para ele. A escola foi apenas um lugar onde era torturado por ser diferente dos colegas.

De acordo com o que dizia, ninguém, à excepção da mãe, reconheceu (nem se interessou) que ele tinha talento. Na sua família, a arte não constituía uma ocupação aceitável.

As únicas coisas que interessavam eram as actividades desportivas e académicas, e ele não possuía qualificações em qualquer delas, nem tão-pouco tentava. Sasha perguntava-se se ele não teria tido qualquer incapacidade de aprendizagem, o que justificaria o facto de ter tido tanta a aversão à escola. Era o caso com muitos dos seus artistas, característica que para eles havia sido fonte de grande infelicidade, compensada apenas pelo seu talento artístico. Contudo, não o conhecia o suficiente para lhe fazer esse tipo de pergunta, pelo que se conteve, limitando-se a ouvir a história da vida dele com interesse e compaixão.

Liam dizia insistentemente que desde o momento em que saíra do ventre da mãe estava destinado a dedicar-se à pintura. Uma vez, numa manhã de um Dia de Natal, antes de o resto da família se ter levantado, pintara um mural numa das paredes da sala de estar, após o que decidira pintar também o piano de cauda e um sofá. Era evidente que a camisa que vestia era apenas uma versão mais recente da mesma forma de arte. Nessa manhã fatídica, tinha ele sete anos, não foi capaz de compreender por que razão ninguém gostara nem apreciara o que ele tinha feito. O pai deu-lhe uma tareia, e, numa narrativa emocionada e um tanto ou quanto incoerente, explicou que a mãe, depois desse incidente, tinha adoecido gravemente.

Veio a falecer no Verão seguinte, e a partir daí a sua vida passou a ser um autêntico pesadelo. A única pessoa que o protegia, que o amava e o aceitava tal como ele era tinha desaparecido. Havia noites em que nem sequer se davam ao trabalho de lhe dar de comer. Era como se tivesse morrido quando a mãe faleceu. A arte tornou-se então o seu único conforto, a sua única saída, o único elo de ligação a ela que lhe restava, uma vez que a mãe amara tudo o que o filho fazia. Comovido, confidenciou a Sasha que durante muitos anos, e por vezes até mesmo agora, sentia que pintava para a mãe. As lágrimas assomaram-lhe aos olhos quando disse isto.

Os outros membros da família agiam como se ele fosse louco, opinião que continuavam a manter, e acrescentou que não via o pai nem os irmãos havia vários anos.

Tinha conhecido a mulher, Beth, aquando de uma viagem que fizera para ir esquiar, em Vermont, depois de ter saído de casa, aos dezoito anos, tendo ido para Nova Iorque, onde se dedicara à pintura.

Casou-se aos dezanove anos, altura em que pintava e passava fome em Greenwich Village. Beth tinha trabalhado que nem um escravo, de acordo com o que Liam dizia, para o sustentar desde então, para grande desagrado da família dela. Eram pessoas tão conservadoras como as da sua própria família e também não gostavam dele. Detestavam-no pela sua falta de sentido de responsabilidade e incapacidade de sustentar a filha. Ele e Beth tinham tido três filhos, dois rapazes, um com dezassete e outro com onze anos, e uma garotinha que tinha apenas cinco anos. Eram a luz da sua vida, tal como para Beth, até que ela voltara para Vermont, para junto da família, em Julho último.

- Acha que ela voltará para si? - perguntou Sasha, mostrando-se preocupada. Havia qualquer coisa de tão gentil e vulnerável nele que fazia com que lhe apetecesse enlaçá-lo, resolvendo tudo o que pudesse preocupá-lo. No entanto, sabia por experiência própria, devido ao contacto com outros artistas, que as complicações que eles criavam nas suas vidas muitas vezes eram quase impossíveis de resolver.

O relacionamento dele com a família dava a impressão de ser muito difícil de salvar e, provavelmente, nem sequer valia a pena tentar. Mas Sasha sentia-se tocada ao ouvi-lo falar da infância tão solitária que tivera, assim como da mulher e dos filhos. Parecia perdido sem eles, e Sasha apercebeu-se de que havia muita coisa que ficara por dizer. Quando lhe perguntou se Beth voltaria, ele olhou-a com uma expressão de sinceridade, hesitou por momentos e depois respondeu-lhe com um abanar de cabeça.

Provavelmente não voltará - afirmou, parecendo convicto do que dizia. Acreditava que Beth o deixara para sempre.

- É possível que quando ela souber que as coisas estão a melhorar em termos financeiros isso altere a situação. - Por qualquer razão que não sabia explicar, Sasha desejava que Beth voltasse, para bem de Liam. Contudo, não estava certa de que ele quisesse a mesma coisa. Parecia entristecido por estarem separados, mas dava a impressão de aceitar o facto como algo inevitável. Tinham casado havia vinte anos, uma união que obviamente não fora nada fácil, sobretudo para ela. Liam parecia um homem que cometera um crime, sentindo um remorso profundo, embora soubesse que não podia alterar a situação.

- O problema não é esse, não tem a ver com finanças.

- Liam parecia bem claro quanto a isso, pelo que Sasha não conseguiu impedir-se de se perguntar qual teria sido a natureza do problema. Estavam a comer um prato de massa, que acompanhavam com um bom bordéus francês.

- Então, qual foi o problema? - Talvez as crianças constituíssem uma pressão excessiva para o casal. Sasha perguntava-se se teria sido isso ou, muito simplesmente, o desgaste que as relações sofriam com a passagem do tempo.

- Em Junho fui para a cama com a irmã dela - confessou Liam numa voz enrouquecida, mostrando-se contrito, e apesar do seu esforço para disfarçar, Sasha ficou com uma expressão chocada. Ainda que não houvesse outras razões, aquilo era inacreditavelmente estúpido, atraiçoar uma mulher que tivera inúmeros empregos para poder sustentá-lo e aos três filhos ao longo de vinte anos. E Xavier dissera que ela era uma mulher simpática. Talvez Liam não fosse tão boa pessoa como pensara. Sem dúvida que a sua confissão era uma indicação disso mesmo.

- O que é que o levou a fazer uma coisa dessas? - perguntou ela como se estivesse a falar com uma criança.

- Ficámos completamente bêbedos quando a Beth e as crianças foram para fora durante um fim-de-semana. Contei-lhe tudo quando voltou. Imaginei que a Becky lhe contaria. São irmãs gémeas.

- Idênticas? - Sasha achava a história fascinante, embora patética, sentindo-se arrastada para o seu drama enquanto ele o descrevia, tal como acontecera quando lhe contara o que sucedera com os pais e os irmãos. Nem sequer sabia qual a razão para essa atracção, nem se Liam merecia que lhe desse ouvidos, mas gostava dele, queria ajudá-lo. Todavia, sentia-se horrorizada pelo facto de ter traído a mulher. Na opinião de Sasha, o seu comportamento denotava falta de fibra moral, o que a perturbava. No entanto, havia nele uma inocência que impelia uma pessoa a perdoar-lhe, por muito grave que o delito tivesse sido.

- Não são gémeas idênticas, mas quase. A Becky andava atrás de mim havia vários anos. Na manhã seguinte nem queria acreditar no que tinha feito, mas a verdade é que fiz. Parecia prestes a chorar enquanto falava. Quando contou a Beth o sucedido, chorou mesmo.

- Você é alcoólico, Liam? - perguntou Sasha, mostrando uma expressão algo austera. Sem dúvida que ele não estava a dar descanso ao vinho, embora não lhe parecesse embriagado.

- Não, apenas estúpido. Durante o último ano, eu e a Beth passámos o tempo a discutir. Ela queria que eu fosse à procura de emprego; estava farta de trabalhar e passar fome em nome da arte. Além disso, os pais andavam sempre a atazaná-la para que me deixasse e voltasse para casa. O pai é carpinteiro e a mãe professora. Acham que os meus trabalhos são uma merda. Eu também já tinha começado a pensar a mesma coisa. Até hoje. - Sorriu a Sasha com uma expressão de gratidão. Era difícil resistir-lhe. Mesmo depois de ter ouvido a sua confissão de adultério, era-lhe difícil sentir-se indignada com a sua atitude. Liam tinha razão. Era simplesmente uma estupidez.

Mas, apesar disso, havia qualquer coisa de ingénuo nele, o que tornava quase impossível que não se gostasse dele. Sasha não conseguia explicar aquilo de maneira racional; sentia-se atraída por ele não só como pessoa, mas mesmo como homem.

- O que é que a Becky faz? - perguntou num tom de voz de desconfiança.

- É empregada de bar numa estância de esqui. Ganha dinheiro a rodos e também vai para a cama com tipos a rodos. Sempre se quis deitar comigo, e talvez eu também a tivesse desejado. Não sei dizer. Vinte anos passados com a mesma mulher é muito tempo. Eu era virgem quando casei com a Beth e nunca a atraiçoei até essa altura. - Mas até ele próprio tinha percepção de que a sua atitude era censurável.

- Não existe desculpa que justifique o que fiz - disse a Sasha com toda a sinceridade. - Portei-me de uma maneira revoltante.

- Não acredita que ela talvez acabe por lhe perdoar? Para seu bem, Sasha esperava que isso viesse a acontecer. Ele era um homem decente e talentoso que cometera apenas um erro, se bem que, inegavelmente, um erro grave, em vinte anos. E sustentar cinco pessoas sem a ajuda de ninguém não devia ter sido pêra doce para Beth.

- Não acredito que venha a perdoar-me. Teve ciúmes da Becky durante toda a vida. A Becky consegue sempre conquistar os homens que quer, enquanto a Beth teve de me aturar, além de ter tido três filhos e uma vida de trabalho. Eu nunca tive um meio de subsistência que lhe proporcionasse uma existência decente. Foi a Beth quem nos sustentou durante todos estes anos, sem nunca ter deixado de acreditar em mim. Isto é, até eu ter ido para a cama com a Becky...

Telefonei-lhe e às crianças no Natal e ela disse-me que ia meter os papéis para o divórcio. Não a posso censurar, é natural que esteja farta de mim. Pelo menos agora já poderei enviar-lhe algum dinheiro. Ela bem o merece, ao fim de tantos anos. - Era um homem decente, ainda que um pouco alheado da realidade, talvez mesmo por ser um artista. Sasha tinha ouvido histórias muito piores antes da sua, mas a maneira como o casamento deles terminara deixava-a entristecida. Era um desperdício e uma pena. Todos estavam a pagar pelo erro dele.

- Há quanto tempo não vê os seus filhos?

- Não os vejo desde que ela se foi embora. Não tinha dinheiro para a passagem aérea para poder ir visitá-los, e o mais certo era os pais dela matarem-me assim que me vissem. O pai está muito irritado comigo.

- Ela contou-lhe o que aconteceu?

- Não, a Becky é que contou. Ela também me odeia, porque queria que eu deixasse a Beth para casar com ela. Afirmou que sempre esteve apaixonada por mim. Às vezes, entre irmãos gémeos acontecem umas merdas muito estranhas... Ou, pelo menos, era o que se passava com elas. A Beth diz que a Becky lhe teve rancor durante toda a vida. É uma mulher deslumbrante, mas, apesar disso, nunca encontrou um homem que quisesse casar com ela. Engravidou quando tinha dezassete anos, e os pais obrigaram-na a dar a criança, um menino, para adopção.

Estou em crer que isso a deixou desarranjada do juízo. Quando o rapaz fez dezoito anos, ela tentou descobrir o seu paradeiro, o que conseguiu há cerca de seis anos, tendo ficado a saber que ele tinha morrido dois anos antes numa colisão frontal de automóveis. Ficou de rastos. Acho que se culpa pela morte dele. Talvez odeie a Beth por ela ter três filhos maravilhosos, não sei. É um assunto complicado.

- É o que parece. Ao que tudo indica, você entrou num campo de minas quando dormiu com ela em Junho passado.

- Sei que sim. A Beth diz que a Becky me armou uma cilada. Esperou durante vinte anos para o fazer. Com três garrafas de vinho branco ordinário deitei por água abaixo vinte anos de casamento com a mulher mais decente que existe em todo o mundo.

- Por que razão não apanha um avião para Vermont e vai falar com ela? - insistiu Sasha. - Posso dar-lhe um adiantamento, Liam.

De qualquer maneira, já tencionava fazê-lo. - Ele parecia estar a precisar de dinheiro, até mesmo antes de ela saber que não via os filhos havia seis meses.

- Agora é tarde de mais - retorquiu Liam, simplesmente. - Ela recomeçou a andar com o antigo namorado do liceu. Disse-me que vão casar assim que estivermos divorciados. A mulher dele morreu o ano passado, deixando-o com quatro filhos. Ele tem dinheiro, é director de uma estância de esqui, e está disposto a sustentar a Beth e os meus filhos. Parece-me ser um bom partido, e muito melhor do que estar casada com um pintor louco. É o que ela também parece pensar. - Via-se que se sentia infeliz, mas adoptou uma atitude filosófica quanto à situação.

- E você é um pintor louco, Liam? - perguntou Sasha suavemente. Sob certos aspectos, era o que dava a impressão de ser, mas por outro lado não. Acima de tudo, parecia uma pessoa imatura, mas generosa. Era inacreditável pensar que um homem tão atraente como ele só tivesse dormido com uma mulher em toda a sua vida, com excepção de uma única noite, em que fora para a cama com a irmã gémea da mulher. Era um assunto que possuía uma faceta sórdida, mas isso não impedia que fosse uma pessoa como devia ser, o que Xavier confirmava. Sasha confiava nele. Todos os seus instintos lhe diziam que Liam era boa pessoa. Destrambelhado e imaturo, talvez, mas, no íntimo, era um homem bom.

- Por vezes sou um pintor louco - replicou. - Há ocasiões em que só quero divertir-me como um garoto. Mas em que é que isso prejudica alguém?

- Calculo que dependa das pessoas que ficarem magoadas. Neste caso, foi o que sucedeu a Beth. E às suas crianças. E também me parece que você saiu magoado de toda esta confusão. Mas, verdade seja dita, a Becky é muito culpada.Ela está-se nas tintas, só se interessa com o seu bem-estar. Nunca se importou com os outros.

- Aparentemente, parece que sim - concordou Sasha, ficando em silêncio a pensar naquilo, mas de súbito apercebeu-se de que Liam a observava.

- E quanto a si? O Xavier acha que o Sol não nasceria nem se poria sem a Sasha no mundo. Ele é doido por si! É muito raro que um rapaz da idade dele goste tanto da mãe, mas agora que falei consigo, acho que ele tem razão. É muito afortunado por ter uma mãe tão compreensiva. - Liam também tivera uma mãe assim, mas perdera-a ainda era criança.

- Eu também gosto muito do meu filho. É um excelente rapaz, assim como a irmã. Sinto que sou uma mulher cheia de sorte - disse Sasha, sorrindo.

- Talvez não tenha assim tanta sorte. Sei que o seu marido morreu o ano passado - acrescentou Liam numa voz cheia de simpatia.

- Sim, é verdade - confirmou ela serenamente, mas as lágrimas assomaram-lhe aos olhos, o que a deixou constrangida. Os seus desgostos não diziam respeito a Liam e não queria sobrecarregá-lo com eles, do mesmo modo que não desejava partilhar a sua dor. - Faleceu há quinze meses. Fomos casados durante vinte e cinco anos. - E ele também havia sido o único homem na vida dela.

Os dois tinham isso em comum, perdido a mãe quando ainda eram crianças, tendo sofrido as consequências emocionais inevitáveis de um acontecimento que tivera uma repercussão tão marcante nas suas vidas.

- A viuvez deve ser bastante difícil para si - continuou Liam com uma expressão de simpatia quando já acabavam de comer a massa; fitava-a com olhos que reflectiam muita gentileza.

- É verdade. Já não me custa tanto como nos primeiros tempos, no entanto, tenho dias em que é bastante difícil. Ele acenou, num gesto de compreensão. Tinha perdido Beth devido à sua própria estupidez e a um erro fatal; ela perdera Arthur porque o destino assim determinara. - Mas temos de continuar, não nos resta outra alternativa. O meu trabalho ajuda a atenuar a dor.

- Sim, mas à noite não pode procurar refúgio nos seus quadros. Já começou a sair com alguém? - Era um assunto que não lhe dizia respeito, mas, mesmo assim, Sasha decidiu responder. Não queria que ele se apercebesse de quão vulnerável e só se sentia. Se ia passar a representá-lo, teria de lhe dar a impressão de que era uma pessoa forte, ou pelo menos assim pensava.

- Não, não saio com ninguém. E quanto a si? - Sasha sentia-se curiosa em relação a ele. Tal como ele com respeito a ela. Ao fim e ao cabo, ele contara-lhe tudo sobre a sua família e o casamento, tendo passado a existir uma ligação entre os dois bastante além do que ela esperara e, certamente, desejara. Pela primeira vez, teve noção de que se sentia atraída por um dos seus artistas, e não podia permitir que isso acontecesse. Nada os impedia de se abrirem em confidências durante um jantar.

Eram duas pessoas muito sós, que haviam sofrido perdas importantes durante a infância, em consequência do que ficaram privadas de uma meninice feliz, além de terem perdido pessoas que amavam já na idade adulta, contudo, Sasha jamais deixaria que as afinidades entre os dois fossem além disso. Não tinha a mínima intenção de ceder à atracção que sentia por ele. Era uma pessoa demasiado disciplinada e sensata para admitir uma coisa dessas. Do mesmo modo que não permitiria que ele manifestasse quaisquer sentimentos de afecto por ela, caso existissem, o que lhe parecia bastante improvável.

- Saí com duas pessoas - admitiu Liam. - Foi o Xavier quem mas apresentou. - Sorriu à mãe do amigo, que era quem agora tratava dos aspectos financeiros relativos ao seu trabalho. A ligação entre os dois parecia algo estranha, até mesmo na perspectiva dele. - Mas não se passou nada entre nós. Eram apenas umas rapariguinhas. Além disso, qual seria o objectivo? Eu ainda estava muito perturbado por causa do problema com a Beth. Aconteceu no Verão passado, logo a seguir a ela ter partido.

Desde então não tenho saído com outras mulheres, embora agora, que sei que ela está prestes a voltar a casar, o caso mude de figura. Contudo, não conheci ninguém que me agradasse. A maior parte das mulheres que estão dispostas a ter uma relação com artistas também são bastante destrambelhadas - disse Liam sorrindo, o que, repentinamente, lhe deu uma expressão mais adulta. - E quanto a si? O que é que deseja da vida?

- Nada. Não sou uma dessas mulheres patéticas que se sentem desesperadas por encontrar um marido, e penso que namorar na minha idade é uma coisa absurda. Considero mesmo que é humilhante.

- Não se encontrar o homem certo - disse ele com simpatia, mas Sasha abanou a cabeça.

-Já encontrei. Ele morreu. Para mim não existe outro homem.

- Isso é um grande disparate! - ripostou Liam, mostrando-se indignado. - Ainda é muito nova para desistir assim, sem mais nem menos, e bonita de mais. Que idade tem? Calculava que, no máximo, ela teria uns quarenta e cinco anos, e isto por saber a idade de Xavier. Talvez tivesse mesmo menos dois anos, caso tivesse casado aos dezoito.

- Tenho quarenta e oito anos, uma idade suficiente para desistir. Tive vinte e cinco anos magníficos.

- E ainda poderia vir a ter mais cinquenta. Tenciona passá-los sozinha? - perguntou ele, mostrando-se horrorizado perante tal probabilidade. Não, Sasha não queria, mas há muito que se resignara ao que acreditava ser a sua solidão inevitável.

- Não, eu queria ter podido passar o resto da minha vida junto do meu marido, o que teria feito caso ele não tivesse falecido. Agora não disponho de escolha. Além do mais, as outras opções não me seduzem, nem me parece que alguma vez venham a agradar-me. Acho mais digno desistir dessa parte da vida do que andar para aí desenfreada à procura de alguém.

- Ele deve ter sido um homem fantástico, para você o ter amado tanto - retorquiu Liam, que se sentia ainda mais impressionado depois de ter conversado com ela durante o jantar. Era uma mulher espantosa, cuja maneira de ser lhe agradava, além de lhe merecer um respeito genuíno.

- Ele era maravilhoso - confirmou Sasha com tristeza.

- Estávamos profundamente apaixonados. O facto de ter falecido foi um golpe terrível.

- É o que parece. Mas a verdade é que ele morreu, Sasha, e você continua viva. Se tivesse sido o contrário, provavelmente ele já teria encontrado outra pessoa. Todos precisamos de alguém que amemos. A vida é muito difícil para que a vivamos sozinhos. - Os últimos seis meses sem Beth e as crianças tinham sido um autêntico inferno para ele.

- Não estou bem certa de que as coisas sejam muito melhores, caso acabemos com a pessoa errada. Como a Becky. Acertei à primeira. Não me parece que pudesse voltar a ter a mesma sorte. Porquê arriscar? - perguntou ela, com uma expressão de nostalgia.

- Porque é possível que volte a ter sorte. A Sasha é boa pessoa, merece que isso aconteça. Claro que não seria a mesma coisa. Seria diferente. Mas o que é diferente nem sempre é mau.

- Não sou capaz de me imaginar a voltar a sair com outros homens - retorquiu Sasha com sinceridade quando o empregado colocava na mesa três pequenas taças com guloseimas e um prato com biscoitos. - O pouco que tenho visto parece-me aterrador.Sim, também sinto a mesma coisa - corroborou Liam, rindo-se perante o absurdo da situação. - Eu faço o mesmo que você: embrenho-me no meu trabalho. Desde que a Beth me deixou não tenho parado de pintar.

- Comigo resulta - disse Sasha, sorrindo; enquanto existissem artistas talentosos como Liam, a actividade a que ela se dedicava continuaria a dar resultados positivos. Agora que os meus filhos saíram de casa, as coisas são mais difíceis. Pelo menos em Paris estou mais perto do Xavier, e também vou a Nova Iorque com frequência, mas é à noite que as coisas são mais complicadas para mim - confessou. Liam acenou, num gesto de compreensão.

- Também é à noite que me sinto mais só, e tenho umas saudades de morrer dos meus filhos. Enfim, imagino que estejam melhor longe de mim, além de poderem contar com o futuro marido de Beth. Ela diz que é um sujeito extraordinário, além de ser um bom pai. Provavelmente, melhor do que eu. Os meus filhos estão muito melhor com a mãe do que comigo. Ele é um homem mais respeitável do que eu e também mais convencional, e a Beth diz que isso é bom para as crianças. Ele não tem nada de louco. - Adivinhava-se no timbre de voz de Liam que se sentia humilhado e derrotado. Não só perdera a mulher, como também os filhos.

- Mas você será sempre o pai deles, Liam. Não deve abandoná-los. Vá visitá-los logo que possa.

- Sim... - concordou ele vagamente. - É o que farei - acrescentou, embora não parecesse muito convencido, o que perturbou Sasha.

Telefonara para o restaurante antes de chegarem, a fim de pedir que não levassem a conta para a mesa. Não queria constranger Liam. Depois de terem comido os doces e tomado o café, saíram, encaminhando-se para o automóvel, que ficara à espera.

Sasha deu instruções ao motorista para que a deixasse no hotel, após o que levaria Liam a casa, mas quando chegaram ao hotel ele disse-lhe que podia apanhar um táxi a partir dali. Perguntou-lhe se queria tomar uma bebida, mas Sasha disse-lhe sinceramente que não lhe apetecia. Achava que já tinham bebido champanhe e vinho que chegasse. Era muito raro que tomasse bebidas alcoólicas.

- Vou acompanhá-la ao quarto e depois vou-me embora - disse Liam, mostrando-se confiante. Sasha havia desfrutado da sua companhia durante o jantar, e era agradável ter alguém que a acompanhasse até ao hotel.

Sentia a solidão, que lhe era tão familiar, começar a apoderar-se de si sub-repticiamente; Liam sentia o mesmo. As noites eram uma agonia para as pessoas que viviam sozinhas, o que era o caso de ambos. Mas de súbito Sasha sorriu ao olhar para os sapatos dele enquanto subiam os degraus da entrada, voltando a reparar na ausência de meias. Não conseguiu resistir a brincar com ele por causa daquilo, agora que já o conhecia um pouco

melhor. - Não encontrei nenhumas... - justificou-se Liam, mostrando-se embaraçado. - Além do mais, sou um artista. Não sou obrigado a calçar meias! - disse isto com uma expressão de desafio que fez com que ela se risse.

- Quem é que estabeleceu essa regra? - perguntou-lhe.

- Fui eu - replicou ele, muito senhor de si. - Sou um pintor louco. Posso fazer o que me der na veneta! - Ao dizer isto, Liam parecia ter cinco anos, e ela viu toda uma vida de travessuras na expressão dos seus olhos. Era alérgico a qualquer forma de controlo e autoridade, tal como os entendia.

- Não, não pode fazer tudo o que lhe der na veneta. Todos temos de viver em conformidade com determinadas regras. - Sasha sentia-se como se fosse uma professora que repreende uma criança, e ele riu-se dela.

- E existe alguma regra sobre meias?

- Com certeza. - Enquanto lhe respondia, Sasha estava a pensar em enviar-lhe uma caixa com meias e camisas. Era evidente que ele precisava dessas peças de vestuário e também, talvez, de alguns atacadores. Perguntou-se se ele usaria o que lhe enviasse. Provavelmente, não. Era óbvio que adorava viver de maneira pouco ortodoxa, estabelecendo as suas próprias regras. Em seguida, Sasha perguntou a si mesma se ele também não usaria roupa interior, corando ao pensar nisso.

- Em que é que está a pensar? - perguntou Liam, que notou a expressão do seu rosto.

- Em nada - respondeu, mostrando-se embaraçada.

- Com certeza que estava a pensar em alguma coisa. Perguntava a si mesma se eu uso roupa interior, não é verdade? - insistiu Liam, pondo-se a adivinhar e fazendo com que ela voltasse a corar.

- Não, não estava a pensar em nada disso - contradisse ela, rindo-se à socapa enquanto mentia. Sim, estava. Pois bem, uso. Pelo menos nesta altura tenho roupa interior. Consegui encontrar um par de cuecas.

- Mas que alívio!... - retrucou ela, fingindo-se muito mais tranquila e fazendo com que ele voltasse a rir-se de si.

- Isso consta do contrato que acabei de assinar? Que sou obrigado a usar roupa interior e meias? Porque se for esse o caso, então vou ter de o rasgar. Não permito que ninguém me diga o que vestir ou o que tenho autorização para fazer.

- Aquilo era uma manifestação de rebelião típica de um adolescente. Liam Allison tinha grandes problemas no respeitante a questões de controlo ou, pelo menos, era o que parecia. Durante toda a vida lutara contra a corrente, fazendo frente às convenções e infringindo as regras.

- Para lhe dizer a verdade, agora que falou no assunto, acho que sim, que consta do contrato. - Sasha estava a brincar com ele, retribuindo-lhe na mesma moeda, o que lhe estava a agradar sobremaneira. Nessa altura chegaram à porta do quarto dela.

- Não, não consta - contradisse ele, mostrando-se obstinado e petulante, como uma criança indisciplinada.

- Ah, isso é que consta! - afirmou ela com firmeza. Estipula que a partir da data em que assinou o contrato é obrigado a usar roupa interior e meias em todas as ocasiões.

- Não pode obrigar-me a isso! - ripostou Liam em voz alta.

- Posso, - retorquiu ela, afectada, mas firme. Liam olhou para ela, desatando a rir, e, para grande surpresa de Sasha, baixou a cabeça e beijou-a, silenciando-a.

Ela tinha a chave na mão, e deixou-a cair juntamente com a bolsa, de tão perplexa que ficou. Depois fitou-o por instantes. - Porque fez isso, Liam? - perguntou em voz baixa, atónita ao aperceber-se de que havia gostado de o beijar. De facto, gostara muito. Demasiado. Incomensuravelmente. Liam apanhou a chave e a bolsa do chão e, lentamente, abriu a porta do quarto, ficando a olhá-la; sem proferir uma palavra, Sasha entrou e ele seguiu-a. Tinham dado meia dúzia de passos quando no interior do quarto ele voltou a beijá-la, fechando a porta com o pé. Sasha sentia-se avassalada pela diversidade de emoções em conflito que experimentava nesse momento.

Queria impedi-lo de continuar. Era esse o seu propósito.

Tinha a intenção de o obrigar a parar, mas não foi capaz. O pior era o facto de não querer pôr fim à situação, o que também era o caso dele. Liam continuou a beijá-la até a ter tomado nos braços e deitado delicadamente na cama. Havia uma luz ligada no quarto que apagou. Não disse nada. Continuou a beijá-la enquanto a despia, e momentos depois os dois estavam deitados nus e a fazer amor, antes que ela tivesse tempo de se aperceber como é que aquilo acontecera.

Queria conseguir pará-lo, mas não foi capaz; não queria que ele parasse. De facto, queria fazer precisamente aquilo, do mesmo modo que ele o desejava. Eram como duas pessoas famintas que se haviam encontrado e não eram capazes de se apartar. A atracção entre os dois era demasiado forte para poderem resistir-lhe. Embora tivessem estilos de vida e maneiras de ser diferentes, ambos tinham a sensação de serem almas gémeas, de que existiam muitas afinidades entre os dois.

Precisavam um do outro para preencherem a solidão que sentiam, estreitando-se até ficarem nos braços um do outro, exaustos e com a respiração ofegante. Sasha ficou deitada a olhar para ele na escuridão, atordoada pelo que tinha acabado de fazer, enquanto Liam lhe sorria com a ternura de um homem enamorado.

- Parece-me que estou apaixonado por ti... - confessou em voz baixa, e Sasha sentiu o ardor das lágrimas que lhe assomaram aos olhos ao ouvi-lo dizer aquilo. Tinha pensado que jamais voltaria a ouvir tais palavras, mas ali estava ele a proferi-las, quando nem sequer se conheciam a fundo. Todavia, no seu coração, sentia que o conhecia. Apercebia-se da solidão que ele sentira na infância e da sua vulnerabilidade como homem.

- Isso é impossível. Tu nem sequer me conheces... disse ela numa voz suave, enquanto as lágrimas lhe corriam lentamente pelo rosto. Eram lágrimas por Arthur e por Liam e, finalmente, por si própria.

- É possível e eu conheço-te. E quero vir a conhecer-te melhor. - Liam tinha-lhe falado muito a respeito de si próprio nessa noite, e queria saber mais sobre Sasha.

- Isto é uma loucura, Liam - retorquiu ela, soerguendo-se sobre um cotovelo e fitando-o. Com suavidade, Liam começou a limpar-lhe as lágrimas do rosto. O luar invadia o quarto, e tudo o que ele fazia era imbuído de uma grande ternura, amor e generosidade.

- Talvez seja uma loucura - admitiu -, mas parece-me que é do que ambos estamos a precisar. Quanto a mim, sei que preciso, e estou em crer que tu também. De quê, de sexo? - perguntou ela, dando a impressão de se sentir insultada.

Recusava-se a ser uma mulher com quem ele fora para a cama uma noite que não se repetiria, tal como acontecera com Becky. Além do mais, aquela situação era ridícula. Ela era a pessoa que iria passar a negociar os seus trabalhos de arte e não a sua namorada. Até aí nunca se tinham visto e continuavam a não se conhecer. O que é que lhe estava a acontecer? Sasha sentia-se completamente à deriva num mar que não lhe era familiar, como se tivesse sido arrastada em direcção a ele por uma corrente mais forte do que ela e a que não conseguira resistir.

- Isto não tem nada a ver com sexo, Sasha, do que tu estás bem ciente. Ou, melhor dizendo, não se limita ao sexo, se bem que tenha de admitir que foi muito bom.

- De facto, fora fabuloso. Tinha sido espantoso, levando em consideração que, praticamente, não se conheciam. Havia sido inacreditável para ambos.

- Não pode ter a ver com amor. Nem sequer nos conhecemos bem...

- Espero que venhamos a conhecer-nos melhor - retorquiu Liam numa voz afectuosa. Acima de tudo, parecia ser uma boa pessoa, um homem extremamente atraente. Atraente de mais para o seu próprio bem, assim como para o bem dela. Sasha sentia-se profundamente atraída por ele, e nesse momento apercebeu-se de que isso sucedera desde o primeiro instante em que o vira. Havia tentado ignorar essa atracção, mas não foi capaz.

- Isto é impossível! - repetiu Sasha. - Eu sou a pessoa que negoceia os teus trabalhos, além de ser nove anos mais velha do que tu.

- E o que é que isso tem de mais? Também tens regras com respeito a isso? - perguntou Liam, que não parecia incomodado com a diferença de idades entre os dois, dando a impressão de que isso lhe era completamente indiferente.

- Sim, de facto tenho regras quanto a isso. Não costumo dormir com os artistas que represento. Nunca o fiz e não é agora que tenciono começar a fazê-lo! - ripostou com determinação, como se estivesse a dizer aquilo mais para si própria do que para ele.

- Estou em crer que acabaste de fazer isso mesmo. Além do mais, antigamente eras casada. Agora as regras são diferentes.

- Portanto, isso quer dizer que vou começar a ir para a cama com os artistas que represento? Não me parece, Liam! De súbito sentia-se furiosa consigo mesma, mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa ele voltou a beijá-la, ao mesmo tempo que, suavemente, acariciava o seu corpo. Sasha sentiu como que um formigueiro na pele quando Liam lhe tocou; tinha a impressão de que estava a enlouquecer por ele. Desta vez, nem sequer fez menção de querer que ele parasse.

Desejava-o ainda mais do que da primeira vez, e depois ficou deitada nos seus braços e chorou. Desta feita, foram lágrimas de alívio. Ele puxou-a mais para si, abraçando-a e mantendo-a aconchegada até que ela parou de chorar. Sasha sentia-se como se dentro de si houvesse uma represa que tivesse acabado de rebentar, inundando-a de emoções.

- Amo-te, Sasha. Nem sequer te conheço bem, mas sei que te amo. E também sei que te amarei cada vez mais com a passagem do tempo. Só preciso que me dês essa oportunidade - suplicou-lhe Liam. Desejava-a mais do que alguma vez desejara alguém, até mesmo Beth.

- Isto não poderá repetir-se... - disse Sasha, as palavras abafadas no peito dele, o que trouxe um sorriso aos lábios de Liam.

- Prometo que calço meias na próxima vez - acrescentou sem a soltar.

- Estou a falar a sério, Liam... - retorquiu ela numa voz indolente, adormecendo nos seus braços. Sei que sim, Sasha... Sei que sim... Seja como for, estou apaixonado por ti. - Sorria enquanto lhe beijava os cabelos espalhados pela almofada, continuando abraçado a ela quando adormeceu. Era a primeira boa noite de sono tanto para um como para o outro em muitos meses.

 

A luz do dia entrava no quarto de Sasha do Claridge’, despertando-a, e a Liam, às nove horas do dia seguinte. Ele foi o primeiro a acordar, deixando-se ficar deitado com ela nos braços. Então, como se pressentisse que alguém a observava, Sasha mexeu-se. Sentia os braços dele que a enlaçavam, mantendo-se chegado às suas costas, e por breves momentos não soube bem quem ele era, mas quase de imediato recordou-se. Fechou os olhos e gemeu.

- Bom dia, Bela Adormecida - disse ele com ternura, puxando-a mais para si. Sasha virou-se lentamente e olhou para ele. O seu rosto quase tocava o dele, e Liam pareceu-lhe tão belo à luz da manhã como na noite anterior. Sentiu que o coração lhe caía aos pés quando o olhar dos dois se cruzou. Não podia acreditar no que tinha feito! Só de o ver ali, nu em toda a sua beleza, com os cabelos compridos e louros a rasarem-lhe pelos ombros, o corpo chegado ao seu, sabia que tinha perdido o juízo.

- Isto não aconteceu! - disse Sasha numa voz firme. Mas não era capaz de se forçar a levantar-se nem a afastar-se; tudo nele fazia com que o desejasse ainda mais.

- Sim, aconteceu - contrapôs Liam, rindo-se e mostrando-se extremamente satisfeito consigo próprio, levando Sasha a pensar que nunca havia visto um homem tão maravilhoso como ele.

- Não podemos fazer isto, Liam. É impossível. - E nunca viria a ser diferente. Ele seria sempre nove anos mais novo do que ela, o que a incomodava, por muito pouco que ele se importasse com isso; além do mais, era um artista que ela representava. E ainda que Sasha se recusasse a representá-lo, ele continuaria a ser demasiado jovem, na sua opinião. A diferença de idade era uma questão que tinha mais a ver com o grau de maturidade psicológica dele e a sua maneira de ser juvenil do que com a idade que constava dos passaportes dos dois. Além disso, não podia recusar-se a representá-lo só porque

ela própria agira como uma louca. De facto, uma louca velha. Era o que achava nesse momento. Tinha-se sentido faminta de amor, de companhia, de afecto e até mesmo de sexo. Porém, isso não servia de desculpa para o que fizera. Estava furiosa consigo própria e até mesmo vagamente com ele. Mas são o suficiente para se levantar da cama. Agora ou na noite anterior.

- Não é impossível, a menos que queiras que seja. Foi o que disseste ontem à noite antes de termos feito amor pela segunda vez.

- Estava doida! Alego insanidade temporária - retorquiu, deitando-se de costas e pondo-se a olhar para o tecto para evitar fitá-lo. Era tão bom estar ali, deitada ao lado de Liam, sentindo-se de novo mulher... Contudo, aquele era um fruto proibido que não podia permitir-se voltar a comer.

- Fazes ideia até que ponto isto não tem pés nem cabeça?

- perguntou, voltando a cara para o olhar. Liam tinha uns olhos verdes enormes, um rosto de feições quase perfeitas, apenas com um ligeiro toque que lhe dava uma aparência verdadeiramente máscula. Parecia um actor num filme sensual. Precisava de uma jovem estrela ao seu lado e não de uma mulher da idade dela. Estava ciente disso, ainda que ele não concordasse. Ela sabia-o por ambos.

- Não é uma loucura, Sasha. És uma mulher e eu sou um homem. Gostamos um do outro, ambos nos sentimos muito sozinhos. Partilhamos os mesmos interesses e vivemos para a arte. O que é que há assim de tão errado nisso?

- Tudo. Pareço, e sinto-me, com idade suficiente para ser tua mãe. És um amigo do meu filho, sou eu quem te representa. Que tal para começar? E, além do mais, continuas apaixonado pela tua mulher - do que não duvidara por um minuto que fosse na noite anterior, quando ele lhe contara a história de Beth e da sua irmã gêmea.

- Não pareces ter idade suficiente para seres minha mãe. És uma mulher deslumbrante e apenas nove anos mais velha do que eu, portanto, qual é a porra do teu problema? Além do mais, já não estou apaixonado pela minha mulher. Estamos a tratar do divórcio. Tu e eu somos livres, não mantemos uma relação amorosa com ninguém, sentimo-nos muito sozinhos e temos mais de vinte e um anos. Qual é o teu problema? - concluiu, mostrando-se um pouco irritado.

- Continuo apaixonada pelo meu marido - afirmou ela com uma expressão de tristeza, mas desta vez não chorou. Liam esperou uns momentos antes de continuar, acariciando-lhe suavemente a face quando o fez.

- Sasha, ele faleceu. Tu estás viva e ele não. - O que ela provara sobejamente, sem margem para dúvidas, na noite anterior. - Tens todo o direito de ser feliz com alguém. Comigo ou com qualquer outra pessoa. Não podes continuar a esconder-te de todos. Não está certo.

- Sim, posso - retorquiu Sasha, virando-se e ficando de costas para ele, embora continuasse deitada. Liam não podia ver que ela estava a chorar, mas, fosse como fosse, enlaçou-a, puxando-a mais para si.

- Sasha, sei que isto parece disparatado. Eu mal te conheço, mas acho que te amo. Sinto-me como se tivesse estado à espera de ti durante toda a minha vida. Isso é uma loucura... - resmungou, continuando de costas voltadas para ele. Mas havia qualquer coisa no que Liam dissera que soava a verdade, apesar de não fazer sentido.

- Nós bebemos de mais. Não foi amor, foi o vinho. - Sasha tentava desvalorizar o que sucedera entre os dois, mas não o convenceu, nem tão-pouco a si própria.

- Pois bem, seja o que for, quero mais. Por que razão não podes deixar que as coisas aconteçam e ver até onde chegam? - perguntou Liam com ar de súplica.

- E depois, o que é que acontece? - retorquiu ela, voltando a olhá-lo de frente. Mostrava-se verdadeiramente atormentada pelo modo como ambos haviam procedido. - Até onde é que isto poderia ir? Precisas de alguém da tua idade. Sou mais velha do que tu, além de ser a tua negociante de arte. Sou uma pessoa conservadora, ao contrário de ti. Seríamos alvo da chacota de todos em Paris.

- Especialmente se ele comparecesse a uma das reuniões sociais a que ela costumava ir sem meias e com uma camisa pintada. Era uma pessoa respeitável, com uma vida social que levava muito a sério, o que não era o caso de Liam. Ele era precisamente o que dissera ser, um pintor louco, além de ser amigo de Xavier. Os filhos ficariam extremamente perturbados caso tivessem conhecimento do que se estava a passar, tal como ela própria se sentia nesse momento.

- Mas eu não quero ninguém da minha idade, Sasha, quero-te a ti! - Interrompeu-se, ficando a pensar por momentos, e voltou a fitá-la. - Eu causo-te embaraço?

- É possível que sim - respondeu ela com franqueza -, mas não tenciono dar-te oportunidade de o fazeres. Havia de parecer uma velha tonta faminta por sexo se saísse contigo, Liam. Esta relação jamais resultaria.

- Sim, resultaria. E, pelo menos, tens razão em metade do que dizes. Estás sexualmente carente, mas não és nenhuma doida, jovem ou velha.

- Sou, sim - contrapôs ela, mostrando uma expressão de grande tristeza. Liam beijou-a, tanto para a calar como para a animar. Mas apesar de nada conseguir animá-la, não estava insensível ao toque dele, longe disso. Não obstante a sua determinação para que aquilo não acontecesse, ou continuasse, respondeu imediatamente ao toque das mãos dele. Era mais poderoso do que a sua vontade.

Sasha nunca sentira nada assim em toda a sua vida, nem sequer com Arthur, o homem que amara verdadeiramente ao longo de mais de metade da sua vida. Porém, tal como Liam fizera notar, ele já não se encontrava entre os vivos. Mas Liam sim. Segundos depois os dois corpos enlaçavam-se. Sasha gemia de prazer quando ele começou a fazer amor com ela uma vez mais. No relógio da mesa-de-cabeceira faltava um quarto para as dez quando, com a respiração ofegante, exaustos, nos braços um do outro.

- Oh, meu Deus!. - exclamou Sasha quando viu as horas. - O Xavier está a chegar a qualquer momento. Fiquei de tomar o pequeno-almoço com ele. - Liam riu-se.

- Sendo assim, o melhor é pôr-me na alheta. – Desenlaçou as pernas e os braços esguios do corpo dela, levantou-se da cama e ficou a olhar para Sasha. - Nunca desejei tanto uma mulher na minha vida. Quando é que posso voltar?

- Nunca! - respondeu ela, inflexível. - Depois do pequeno-almoço vou logo para o aeroporto. Liam, estou a falar a sério. Temos de pôr fim a isto! - Mas a quem tinha de dizer isso era a si própria.

Nunca se sentira tão confusa e com tão pouco domínio sobre a sua vida. Era como se estivesse a andar numa montanha-russa infernal. Só conseguia imaginar que acontecesse o pior, o que não podia permitir. Tinha de recuperar o controlo da sua existência. - Não vou deixar que isto volte a suceder.

- Nesse caso, és uma idiota - retrucou Liam com tristeza. - O que não acredito que sejas. Telefono-te esta noite.

- Liam, não faças isso. Eu quero representar-te. És um pintor fantástico e podes vir a ter um futuro brilhante. Vamos cingir-nos a isso. Não prejudiques a tua vida. Estás a dizer-me que não me representarás se formos amantes? Porque, se é esse o caso, quero que a galeria se lixe, assim como o contrato! Tu representas mais para mim do que tudo isso. - Eram palavras fortes e Liam estava a falar com toda a sinceridade.

- Estás louco!... - disse ela, sentando-se na cama e olhando-o fixamente.

- É possível que sim. A minha família é dessa opinião

- retorquiu ele, enquanto vestia as calças de ganga e a T-shirt. Não tinha tempo para tomar duche; sabia que precisava de sair antes que Xavier chegasse, ou ela jamais lhe perdoaria. - És tu quem decide, Sasha - acrescentou, olhando para ela e vendo-a junto da cama onde haviam feito amor três vezes. As três melhores vezes da sua vida. Mas não podia tomar tal decisão com base na actividade sexual entre os dois. Sentia-se realmente como se tivesse perdido o juízo, e sabia que tinha de recuperá-lo, e depressa.

- Não me telefones - disse ela, tentando imprimir à voz um tom de quem falava a sério, sabendo que era isso que tinha de fazer. O que quer que aquilo tivesse sido, tinha de acabar antes mesmo de ter começado. - Mais tarde entro em contacto contigo por causa do trabalho.

- Podemos fazer as duas coisas - insistiu ele de modo cordato, ao que Sasha respondeu com um abanar de cabeça, enquanto ele a puxava para si para um último beijo. Sasha encontrava-se diante dele nua, chocada ao perceber até que ponto se sentia à vontade na sua presença. Depois de terem conversado durante o jantar e de ter feito amor com ele, sentia-se como se o tivesse conhecido toda a vida. Junto dele, não sentia o mínimo constrangimento.

- Não, não podemos fazer as duas coisas - disse ela, dando a impressão de estar desesperada. - Recuso-me a ser a tua negociante de arte e a tua amante. - Também não queria ser a mulher mais velha na vida dele. Nunca concordara nem fizera isso, e não era agora que queria começar.

Liam beijou-a, saindo do quarto sem dizer mais nada. Sasha ficou a olhar para a porta durante muito tempo, receando o que poderia acontecer, determinada a erguer barreiras entre os dois. A partir desse momento, disse para si mesma, seria a pessoa que comercializaria os trabalhos dele e nada mais. Apressou-se a ir para o chuveiro e quando saiu ouviu o telefone a tocar. Teve receio que fosse Liam, mas não, era Xavier. Estava a sair de casa nesse momento, assegurando que chegaria ao hotel dentro de cinco minutos.

- Está bem, meu querido - disse Sasha com voz calma, embora as mãos lhe tremessem. - Eu também estou um pouco atrasada. Encontramo-nos no átrio dentro de quinze minutos.Já fez todos os seus telefonemas? - perguntou Xavier, que parecia muito bem-disposto. Com certeza que se tinha divertido na noite anterior. Sasha estremeceu ao pensar no que o filho pensaria dela caso soubesse o que tinha feito. Sentiu-se como se fosse uma libertina.

- Que telefonemas? - perguntou, parecendo distraída.

- Oh!, sim... essas chamadas... Claro que fiz, só estou um pouco atrasada. Até já. - Desligou, sentando-se na beira da cama, a tremer. O que acabara de fazer era uma loucura. Mas aquela insanidade tinha de parar. Era uma pessoa sensata e Liam não passava de um rapaz estouvado num corpo de adulto que fizera da determinação de não crescer o lema da sua vida.

Sasha recordou-se, o que a atemorizou ainda mais, de que ele cometera adultério com a irmã gémea da mulher. Não se podia dizer que isso fosse muito abonatório da sua moralidade e capacidade de discernimento. E por muito bem-parecido que fosse, a verdade é que se portava como uma criança irresponsável, sentindo-se muito orgulhoso por isso. Recriminou-se, dizendo a si própria que não se comportara muito melhor. Tinha de ser ela o adulto naquela situação. Liam era incapaz de assumir esse papel.

Meteu o que trouxera para Londres num saco de viagem, vestiu-se rapidamente, escovou o cabelo e maquilhou-se. Quinze minutos depois já se encontrava no átrio do hotel; o filho chegou logo a seguir, um jovem com uma bela aparência. A sua postura confiante e a maneira de vestir fizeram que se recordasse imediatamente de Liam. Eram semelhantes no estilo de vida, atitude e comportamento. Dois jovens irreverentes e fogosos.

- A mãe parece muito satisfeita - disse Xavier, mostrando-se contente. - Nunca a tinha visto com o cabelo caído. contrariada, de que se tinha esquecido de apanhar o cabelo. Arranjara-se tão à pressa que nem sequer reparara nesse pormenor quando se viu ao espelho. Aquilo era um sinal claro, para ela e para Xavier, de que havia algo de diferente. Soltara o cabelo em circunstâncias muito especiais, e estava na altura de voltar a prendê-lo, mantendo-o desse modo.

- Oh, obrigada pelo elogio! Estava com pressa.

- Devia fazer esse penteado mais vezes. Que tal foi o jantar com o Liam?

- Óptimo... divertido... Não, para dizer a verdade, não foi... Ele é um tanto ou quanto ridículo, não achas? Apareceu no restaurante sem meias nem atacadores nos sapatos e com uma camisa que ele próprio pintara. - Talvez se o ridicularizasse aos olhos de Xavier ela própria conseguisse ver o

ridículo da situação, mas sentiu-se uma traidora ao dizer aquilo.

- Ele é boa pessoa. Que diabo, mãe, alguns dos seus outros artistas têm um aspecto muito pior! - retorquiu Xavier com um encolher de ombros, enquanto Sasha dizia para consigo que nunca havia ido para a cama com nenhum deles. Mas Liam era diferente. Nenhum dos outros a fizera sentir-se como ele fez, para o que bastara olhar para ele no outro extremo do estúdio.

Sentira de imediato a atracção entre os dois quando se conheceram, embora quisesse convencer-se de que era só imaginação sua. Tentara negá-lo, mas não conseguiu. Como veio a revelar-se, era muito mais do que imaginação. Pior ainda, sentia que era genuíno.

Sasha e o filho tomaram o pequeno-almoço no átrio do hotel. Ela bebeu chá, olhando para os scones no seu prato. Não conseguia comê-los. Não tinha fome. Xavier tratou de comer os seus vorazmente - e os da mãe. O rapaz estava esfomeado!

Durante cerca de uma hora conversaram sobre trivialidades, e ele fez-lhe um aceno de despedida quando ela saiu, seguindo para o aeroporto. Sasha perguntava-se se o filho se encontraria com Liam nesse dia e o que é que este poderia dizer-lhe. Estava capaz de o matar se desse alguma coisa a entender ao filho.

Mas confiava em que não o fizesse. Não era mau nem rancoroso, apenas irresponsável e demasiado juvenil para a sua idade. Parecia mais ter a idade de Xavier do que a idade dela, ou mesmo a que tinha de facto. Forçou-se a não pensar nele durante o percurso até ao aeroporto, tirando alguns papéis da pasta.

Porém, não conseguia concentrar-se numa só palavra do que estava a ler. Ficou a olhar para o contrato com a assinatura dele, a qual fora rabiscada apressadamente no Harry’s Bar, e durante breves instantes pensou em rasgá-lo. Mas não podia fazer-lhe uma coisa dessas. Liam devolvera-lhe as duas vias, e disse para si mesma que não podia esquecer-se de lhe enviar a cópia que lhe pertencia quando chegasse a Paris.

Liam dera-lhe o número do telemóvel, mas nada no mundo a teria induzido a ligar-lhe.

Não lhe dera o seu número, tal como não lhe dera o número do telefone de casa. Tudo o que ele tinha era o número da galeria em Paris, e rezou para que não ligasse para lá a fim de falar consigo. Caso o fizesse, tencionava encaminhá-lo para outra pessoa. Outra pessoa qualquer, desde que não fosse ela. Não queria voltar a ouvir a sua voz, pelo menos durante muito tempo. Ele possuía uma voz rouca muito sensual, de que também transparecia uma ternura que mexia com ela.

Desde o início que havia reparado nisso. Agora adorava a voz dele e quase tudo o que lhe dizia respeito, com excepção da maneira como se comportava. A última coisa de que precisava na sua idade era envolver-se com um artista que se afirmava como louco e que agia como um jovem irreverente. O que lhe dissera nessa manhã era verdade: caso se envolvesse abertamente numa relação amorosa com ele, seria alvo da chacota da sociedade de Paris e até mesmo de Nova Iorque.

Tinha obrigação de velar pela sua reputação, o que não era o caso com Liam. Para ele, a sua reputação ou a dela eram-lhe totalmente indiferentes. Não tinha nada a perder se se envolvesse com Sasha, mas ela sim, tinha muito a perder, que mais não fosse o respeito dos filhos, colegas e amigos. Tinha uma percepção muito clara quanto a isso quando entrou no avião em Heathrow. Havia sido um episódio chocante, mas não se repetiria, uma experiência irracional, como se ela fosse outra pessoa no seu corpo, e não podia permitir que se repetisse. Nunca! Quando o avião descolou rumo a Paris, Sasha prometeu a si mesma que recuperaria a sanidade mental e que a manteria.

Eram dezasseis horas quando entrou no seu escritório em Paris. Apesar de o dia estar soalheiro em Londres, em Paris chovia quando chegou. Teve dificuldade em apanhar um táxi no aeroporto, e quando chegou ao escritório estava encharcada. Mas a chuva serviu para lhe esfriar as ideias depois de uma experiência tão capitosa como a que tivera em Londres, tendo servido para que recuperasse a sua capacidade de raciocínio.

- Meu Deus, estás com um aspecto horrível! – disse Bernard, o gerente da galeria. - Ou, pelo menos, muito molhada. Devias ir para casa e mudar de roupa antes que adoeças, Sasha.

- Vou daqui a um minuto. Primeiro tenho de fazer alguns telefonemas. E a propósito... - interrompeu-se, sorrindo a Bernard, e ele reparou que, apesar de ter o cabelo todo molhado e a roupa ensopada, estava com melhor aspecto do que tivera em muitos meses. Pela primeira vez em mais de um ano, parecia relaxada e feliz. Obviamente, a visita ao filho havia corrido bem. - Temos um novo artista. Um amigo do Xavier que também vive em Londres. Já assinou o contrato e temos de lhe enviar a cópia. É um jovem norte-americano. Os seus trabalhos são fantásticos.

- Esplêndido. Fico ansioso por ver esses trabalhos. Sasha gostava mais de arte moderna do que ele. Como Simon, Bernard era mais tradicional, mas isso não o impedia de ter um grande respeito pelo golpe de vista de Sasha em relação a artistas em princípio de carreira. Possuía um instinto que nunca falhava para o que se venderia bem.Eu disse-lhe que o lançaríamos com uma exposição em Nova Iorque.

- Ele respondeu-lhe com um acenar de cabeça, e cada um foi para o seu gabinete. Quando chegou ao seu, Sasha ficou surpreendida: deparou com um grande ramo de rosas vermelhas em cima da mesa de trabalho, sentindo um enorme alívio ao constatar que a secretária não abrira o cartão. O facto de as rosas serem vermelhas devia ter-lhe parecido algo muito pessoal, pelo que não abrira o pequeno sobrescrito, para grande alívio de Sasha quando viu quem lhe havia enviado as flores. Não queria que no escritório pensassem que tinha um amante secreto. Cometera um erro, mas já o corrigira e era assim que as coisas se manteriam.

O cartão dizia: ”É possível. Amo-te. Liam.” Rasgou-o em pedacinhos que atirou para o cesto do lixo, sentindo-se embaraçada.

Aquelas rosas deviam ter-lhe custado uma fortuna, e sabia que ele não tinha dinheiro para tais extravagâncias. Sentiu-se tocada e tentada a ligar-lhe, mas forçou-se a

não ceder à vontade. Fizera um voto de silêncio e tencionava mantê-lo, por muito que lhe custasse.

Em vez de lhe telefonar para agradecer as flores, escreveu-lhe uma mensagem cortês que poderia ter sido redigida pela avó dele ou por qualquer negociante de arte. Não tinha nada de pessoal. Entregou-a à secretária juntamente com a cópia do contrato, número de telefone e morada, e disse-lhe que abrisse um ficheiro em nome de Liam Allison, pois passara a ser um dos novos pintores da galeria.

- As flores são lindas - afirmou Eugénie. O que Sasha lhe dissera explicava o ramo de rosas. Tinham sido enviadas por um novo artista, um gesto bonito por parte de um pintor que estaria a morrer de fome. Bem, talvez aquele não estivesse propriamente a morrer de fome; as rosas em Janeiro eram flores caras. Por instantes, Eugénie perguntara-se se Sasha teria algum namorado, mas não, era apenas um novo pintor em princípio de carreira.

Mas, pelo menos, Sasha parecia feliz como não a via há muito tempo. Desde a morte de Arthur que se mostrava morbidamente deprimida. Agora até mesmo o seu andar parecia ter adquirido uma nova ligeireza. Vinha com um aspecto descontraído depois da viagem a Londres.

Às dezoito horas dirigiu-se para a parte do edifício onde ficava a sua residência, aliviada por Liam não ter tentado falar-lhe. Preparou uma chávena de chá e aqueceu um pouco de sopa. Tomou um banho quente de imersão, tentando não pensar nele, o que não era nada fácil. Na noite anterior, aquela mesma hora, estavam a jantar no Harry’s Bar. EsforÇou-se ainda mais para não pensar no que acontecera mais tarde, quando foram para o hotel.

Foi despertada dos seus devaneios quando o telefone começou a tocar, à meia-noite. Era Tatiana. Nessa manhã tinha arranjado emprego. Ia começar a trabalhar no departamento de arte de uma revista de moda como coordenadora de fotografia, além de se incumbir do que quer que lhe dessem para fazer. Estava feliz e cheia de entusiasmo, e depois de ter dado a notícia à mãe, finalmente, focou a sua atenção nesta.

- E Londres, como é que estava?

- Foi divertido - respondeu Sasha, tentando desviar o pensamento da recordação de Liam. - Estive com o Xavier e falei com uma série de artistas.

- E o amigo do Xavier?

- Que amigo? - Sasha dava a impressão de estar em pânico quando respondeu à filha. Pensei que ele queria que a mãe conhecesse um dos amigos, para ver os trabalhos dele. Ah, esse amigo!... - retrucou Sasha, parecendo ter ficado aliviada. - Estava óptimo. Assinámos um contrato.

- Deve ser muito bom! A sorte que ele teve...

- É realmente muito bom. Vamos organizar uma exposição em Nova Iorque no próximo ano com os trabalhos dele - acrescentou Sasha, esforçando-se por falar de uma maneira séria e profissional.

- Aposto que ficou todo satisfeito... - Os artistas passavam a vida a implorar-lhe que os apresentasse à mãe, o que a deixava bastante irritada. Não queria ser usada como meio de chegar a Sasha. Xavier encarava a situação de um modo muito mais descontraído. - Quando é que a mãe está a pensar em vir a Nova Iorque? Não durante as próximas semanas. Tenho muito trabalho aqui. Mas se quiseres, nada te impede de vir passar um fim-de-semana a Paris. - Sasha adorava ver os filhos e passar algum tempo com eles.

- Detesto estar aí quando chove. Estive a falar com uma amiga que chegou hoje. Disse-me que o tempo estava um horror.

- Não está grande coisa - admitiu Sasha -, mas em Londres estava sol.

- Dizem que amanhã vai nevar aqui. Acho que talvez vá esquiar este fim-de-semana.

- Tem cuidado na estrada. Quando é que começas a trabalhar no novo emprego? - perguntou Sasha, bocejando; já era tarde para si, embora em Nova Iorque ainda só fossem dezoito horas.

- Amanhã - respondeu Tatiana num timbre de voz de quem parecia estar em êxtase; por breves instantes, Sasha invejou-a. A filha tinha a vida toda pela frente e Sasha sentia-se como se a sua estivesse prestes a chegar ao fim. Os seus melhores anos haviam ficado para trás. Os filhos estavam crescidos. Arthur falecera.

Não tinha uma razão especial por que viver, com excepção do seu trabalho e um dia os netos que decerto teria, o que não a entusiasmava particularmente. Depois de se ter despedido da filha e deitado, sentiu-se como uma mulher já com muitos anos. Não conseguiu impedir-se de pensar em Liam. Tinha sido muito gentil da sua parte enviar-lhe as rosas. E disparatado. ”É possível”, escrevera ele no cartão que ela rasgou. Mas Sasha sabia que não.

Nessa noite o seu sono foi bastante agitado, sempre a pensar nele, e às nove da manhã já estava sentada à secretária. Eram apenas oito horas em Londres. Perguntou a si mesma o que é que Liam estaria a fazer e se tentaria telefonar-lhe. Era sábado, pelo que não precisava de ir trabalhar, mas não tinha mais nada para fazer. Recusara vários convites para jantares de festa e almoços para esse fim-de-semana, mas o tempo estava horrível e era demasiado deprimente ficar sozinha em casa. Preferia estar a trabalhar. Ele telefonou-lhe às quatro da tarde, mas Sasha não atendeu.

Pediu à jovem que trabalhava na galeria que lhe dissesse que estava fora e que voltasse a ligar na segunda-feira para falar com Bernard. Este, muito sensatamente, não trabalhava aos sábados. Tinha mulher e três filhos, com quem passava os fins-de-semana numa casa que a família tinha na Normandia. Quando Arthur era vivo, ela também não costumava trabalhar aos fins-de-semana, mas agora o trabalho era tudo o que lhe restava para preencher os seus dias e se distrair. Desde a morte de Arthur os fins-de-semana eram um tormento.

Fecharam a galeria às dezoito horas e Sasha voltou para casa às dezanove. Levava uma pilha de revistas de arte consigo. Ligou as luzes. Apesar de ser hora de jantar, não estava com fome. Voltou a lembrar a si mesma, enquanto fazia um chá, que não lhe servia de nada estar a pensar em Liam. Não levava a lado nenhum, apenas fazia que se sentisse enlouquecer e tristíssima.

Quando deitava o chá na chávena, ouviu a campainha da porta. Continuou a tocar, o que significava que o porteiro saíra. A correr, atravessou o pátio interior até ao enorme portão de bronze, sem fazer a mais pequena ideia de quem pudesse ser. Não era costume que lhe batessem à porta à noite.

Espreitou pelo ralo, mas não conseguiu ver ninguém. Premiu o botão que abria um dos lados dos portões de bronze. Talvez fosse alguém que tivesse deixado qualquer coisa do lado de fora. Quando puxou a porta para a abrir deparou com Liam, ensopado devido à chuva que caía intensamente. Trazia um pequeno saco de viagem e vestia umas calças de ganga e uma camisola.

Calçava umas botas velhas de vaqueiro. O cabelo louro e comprido escorria devido à chuva. Sasha ficou a olhar para ele sem dizer palavra, enquanto ele a fitava; por fim, afastou-se para o lado para que ele pudesse entrar, quanto mais não fosse para o pátio, abrigando-se da chuva.

- Disseste-me que não te telefonasse de Londres - alegou ele, sorrindo -, portanto, não te liguei. Telefonei-te de Paris. Só quando cheguei cá é que liguei. Calculei que a esta hora já estarias em casa.

- O que estás a fazer aqui, Liam? - perguntou ela, mostrando-se mais perturbada do que zangada. E, algures dentro de si, sentia-se assustada. Com muito pouco esforço da parte tanto de um como do outro, a situação podia sair dos eixos.

- Vim para te ver. - Mais do que nunca, tinha o aspecto de uma criança grande. - Desde ontem que não tenho sido capaz de pensar senão em ti, portanto, deduzi que o melhor era vir ver-te. Senti muito a tua falta... - Sasha também sentira a falta dele, mas Liam era um risco que não podia correr.

- As rosas eram lindíssimas - disse ela cortesmente.

- Eram?! Deitaste-as fora? - perguntou ele, mostrando-se decepcionado.

- Claro que não. Estão no meu gabinete. – Ambos continuavam no alpendre abrigado do pátio. - Disse à minha secretária que foram enviadas por um novo artista.

- E por que razão lhe deves explicações? És uma mulher livre.

- Ninguém é livre, Liam. Ou, pelo menos, eu não sou. Tenho um negócio, filhos, empregados, clientes, responsabilidades, obrigações e uma reputação a manter. Não posso andar por aí como uma colegial em busca de amor - disse Sasha mais para si própria do que para ele.

- E porque não? Para variar, talvez te fizesse bem se te visses livre de tantos preconceitos. - Aquilo era o mesmo que o filho lhe dissera, literalmente, quando a viu com o cabelo solto, em Londres. Mas, embora não soubesse explicar porquê, Liam fazia com que se sentisse relaxada, e não era isso que ela queria. Não tencionava deitar tudo a perder, fazendo uma figura ridícula ao apaixonar-se por um rapaz num corpo de homem. - Permites que te leve a jantar a um sítio qualquer?

- Quando ele lhe fez o convite, Sasha pensou subitamente no jantar, que tanto a enfurecera, com Gonzague de Saint Mallory no Alain Ducasse, no mês anterior, quando o conde esperara que fosse para a cama com ele apenas para conseguir vender-lhe um quadro. Tinha sido deveras insultuoso, o que não era o caso nesse momento. Disparatado, talvez, mas sincero e nada ultrajante. Gonzague era muito menos homem, mesmo cavalheiro, do que aquele pintor que se autoproclamava orgulhosamente um artista louco.

- E que tal se entrasses e eu preparasse qualquer coisa para o jantar? O tempo está horrível para se sair - dizendo isto, Sasha seguiu à frente, indicando o caminho até sua casa, cuja porta deixara aberta. - Onde é que vais ficar? - perguntou com algum nervosismo. Se ele tivesse respondido que ficaria com ela, não teria permitido que transpusesse a porta da frente.

- Numa residencial para artistas na Marais, próximo da Place dês Vosges. Fiquei lá no Verão passado. - Ela fez um gesto de assentimento, indicando o caminho até à sala de estar. A mansão era do século xvIII, tal como o mobiliário, mas as peças de arte eram todas modernas e contemporâneas. De facto, era uma mistura de peças que poucos teriam conseguido reunir de maneira harmoniosa; o resultado final era elegante, alegre e acolhedor. Na sala sobressaía uma lareira enorme, que Sasha remodelara com mármore branco. Só havia uma luz em casa, a qual vinha de uma torchère alta em prata que ela comprara havia vários anos em Veneza.

Viam-se castiçais altos com velas por toda a sala, mas Sasha nunca se dava ao trabalho de as acender; era maçada de mais. Atravessaram a sala, passando pela casa de jantar e seguindo para a cozinha, um espaço amplo e acolhedor, com mobiliário rústico francês, uma mesa enorme em mármore e quadros da autoria de artistas em princípio de carreira espalhados pelas paredes. As cores predominantes eram o amarelo e os tons de laranja, o que criava uma ilusão de luz solar.

Por cima da mesa via-se um candelabro veneziano branco enorme; accionando um interruptor, Sasha ligou-o. A cozinha estava bem aquecida e era acolhedora. Quando Arthur era vivo, costumavam ficar ali sentados horas a fio. Serviam-se mais da cozinha do que da sala de estar. As cadeiras eram estofadas em pele de um castanho suave. - Sasha... esta cozinha é magnífica. Quem é que a decorou?

- Eu - respondeu ela, sorrindo. - É um pouco ecléctica. O resto da casa é mais formal. - Tal como a galeria e a ala em que o pai vivera.

As antiguidades e os quadros a óleo que ele coleccionara eram de grande requinte. No entanto, Sasha preferia a sua parte da casa. Também Liam adorou a decoração, sentindo-se como se estivesse em sua casa.

Sasha pôs a sopa a aquecer, oferecendo-se para lhe fazer uma omeleta, que ele aceitou, agradecido, admitindo que estava esfomeado. Desde o almoço que não comera nada.

- Posso fazer massa, se quiseres - ofereceu-se Liam. Ela hesitou, mas acabou por concordar, com um acenar de cabeça. Não queria que ele ficasse durante muito tempo. Tencionava dar-lhe de comer, admoestá-lo por lhe ter aparecido à porta sem avisar e em seguida recambiá-lo para a residencial dos artistas, na Marais. O que fizesse depois só a ele diria respeito.

Não tencionava preocupar-se com isso, nem agora, nem nunca.

Ambos se atarefaram a cozinhar, e meia hora depois estavam sentados ao lado um do outro à mesa da cozinha, a conversar, discutindo a obra de dois dos artistas que Sasha representava. Liam era de opinião que um deles era excelente e promissor, merecedor de todas as oportunidades que ela lhe desse, mas afirmou que o outro não tinha mérito nem talento, e acabaria por ser um embaraço para ela. Segundo dizia, o seu estilo era imitativo, superficial, falso e pretensioso.

- Não o suporto! É um idiota chapado! - declarou, peremptório; tinha opiniões convictas sobre a maior parte dos assuntos.

- Sim, de facto é - admitiu Sasha. Também não gostava do homem. - Mas a verdade é que os trabalhos dele se vendem que nem pãezinhos quentes e os museus adoram-no.

- Só lhe lambem as botas porque a mulher tem dinheiro. - Mas então olhou para ela com um ar envergonhado, rindo-se à socapa. - Imagino que as pessoas poderiam dizer a mesma coisa a meu respeito um dia, se juntássemos os trapinhos. - A maneira como ele disse isto fê-la estremecer.

- Não te preocupes, porque não acabaremos juntos. Nunca virás a ter de lidar com esse problema - retorquiu Sasha com uma expressão de tristeza. - Além disso, existe outra boa razão para não juntarmos os trapinhos, como tu dizes.

- Quero mostrar-te uma coisa - continuou Liam, enquanto erguia uma perna ensopada na ganga das calças e descalçava a bota de vaqueiro com algum esforço. Sasha não via nada digno de nota. Ele calçava meias brancas de desporto em algodão, e apontou para a que ela olhava fixamente. Estás a ver isto? Meias! Calcei-as por ti. Comprei-as no aeroporto. - Com as botas calçadas, não se podiam ver as meias, mas, como se fosse uma criança que tivesse feito algo para agradar à mãe, ele queria que Sasha soubesse que o fizera por ela, para a comprazer, e queria ser reconhecido por isso.

- És um bom rapaz, Liam - disse Sasha, brincando com ele, apesar de se sentir tocada pela sua atitude. Era evidente que queria agradar-lhe, esforçando-se por merecer a sua aprovação, mas precisava de muito mais do que umas meias para ser um homem adulto e com maturidade.

Tudo nele deixava transparecer a jovialidade de um artista louco. Como lhe dissera antes com tanto orgulho, não havia ninguém que pudesse vir a controlá-lo. O pai tinha tentado, assim como os irmãos, mas Liam fizera-lhes frente. Sasha nem sequer queria tentar. Desejava que fosse ele a aprender a controlar-se e que agisse como uma pessoa adulta. Apesar de a sua vinda a Paris ter sido um gesto encantador, a verdade é que se devia a um impulso irreflectido, além de não respeitar o que ela lhe pedira - que se mantivesse afastado de si e esquecesse o momento de loucura que haviam vivido em Londres.

- O que é que tencionavas fazer esta noite antes de eu chegar? - perguntou com ar interessado quando acabaram de jantar. Com o contributo dos dois haviam preparado uma refeição deliciosa. Ambos eram bons cozinheiros.

- Nada. Ler e ir para a cama. Não costumo sair muito.

- E porque não? - insistiu Liam, olhando-a e franzindo o sobrolho.

- Por razões óbvias. Tristeza. Solidão. Sinto-me acabrunhada quando vou a festas sozinha. É como se fosse uma espécie rara, sem parceiro, ou estivesse ali a mais! Os meus amigos lamentam a minha sorte, o que é demasiado deprimente. Só saio quando é absolutamente necessário, e com clientes.

- Tens de sair mais vezes - disse ele com objectividade, como se ela o tivesse contratado para consultor da sua vida social. - Precisas de algum divertimento na tua vida. Não podes ficar aqui, sentada numa casa vazia, a ler e a ouvir a chuva que cai lá fora. Meu Deus, se eu fizesse isso, estaria à beira do suicídio!

- Sasha não lhe disse que era precisamente o que por vezes sentia, que já tinha pensado nisso em mais de uma ocasião desde a morte de Arthur, e que a única coisa que a impedira era ter noção do desgosto que daria aos filhos. Não fosse essa razão, já o teria feito. Instintivamente, Liam pressentiu o que lhe ia na mente. Dada a maneira como vivia e a solidão que impusera a si própria, não a censurava.

Actualmente, tudo o que tinha na vida era a galeria e as visitas ocasionais em que estava com os filhos. - Amanhã vou levar-te ao cinema. Há alguma sala em Paris que passe filmes de samurais? - perguntou Liam, entusiasmado, enquanto a ajudava a levantar a mesa. Sasha riu-se da pergunta dele.

- Não faço a mínima ideia. Nunca vi nenhum filme de samurais... - Quanto mais não fosse, ele punha-a bem-disposta. Por vezes fazia-a rir como não se ria há muitos anos, ou talvez mesmo nunca.

- Tens de ver, são espectaculares. E muito bons para a alma... Nem sequer é preciso ler as legendas, só temos de ouvir a banda sonora. Eles esquartejam-se, ao mesmo tempo que emitem sons e gritos de guerra fantásticos. É uma experiência profundamente psicológica. O Xavier adora estes filmes.

- Nunca me falou disso.. - redarguiu ela, sorrindo.

- Provavelmente sente-se embaraçado. Considera-se um intelectual muito sério. Mas acontece que não há nada de intelectual nos filmes de samurais. Eu detesto os filmes que ele costuma ver, fazem-me sempre dormir.

- A mim também - admitiu ela, rindo-se abertamente.

- Ele adora filmes polacos e checos, que são horríveis e parecem nunca mais chegar ao fim. Eu recuso-me a ir com ele.

- Óptimo, sendo assim podes vir comigo. Até te levo a um cinema chique! Há quanto tempo é que não vais ver um filme? - Sasha ficou a pensar por momentos, chegando à conclusão de que a resposta era a mesma que em relação a tudo o mais que fazia parte da sua existência.

- Não vou ao cinema desde que o Arthur morreu. Liam acenou sem fazer qualquer comentário, olhando para o congelador. Ela tinha um frigorífico vertical de marca norte-americana dos mais modernos, em que parte era congelador, modelos raros em Paris. Quando haviam remodelado a casa,

Arthur insistira em que comprassem um desses frigoríficos. Também tinham casas de banho espaçosas e muito bonitas, ao estilo norte-americano, um luxo em França.

- Tens sorvete? Sou viciado. - Sasha pensou que havia vícios muito piores. Como estar viciada nele, por exemplo... Liam nem sequer bebera vinho a acompanhar a refeição, apesar de ela lho ter oferecido.

- Na verdade... - começou Sasha a dizer, abrindo a porta do congelador e olhando para o interior. Além de gelo, não havia mais nada. Ela nunca comia sorvete nem outras sobremesas. Tudo o que o frigorífico continha era o que a empregada lhe deixava para o jantar: uma salada, legumes, sopa caseira e, de vez em quando, umas carnes frias, queijo ou frango. Não costumava comer muito. Liam, porém, comia como o homem jovem e saudável que era. Um pouco embaraçada, voltou-se para ele. - Nada de sorvete.

Lamento muito. - Nem sequer se recordava da última vez em que havia comido ou comprado sorvete. Isso é um grande problema... - retorquiu ele, mostrando-se extremamente preocupado.

- Mas já sei para a próxima vez - disse ela, como se houvesse uma próxima vez, o que estava determinada a impossibilitar, mas então ocorreu-lhe uma ideia. Havia muitos anos que não ia lá, pelo menos desde que os filhos eram pequenos, mas agora passara a ter uma nova criança na sua vida. Tinha Liam. - Veste o casaco. Vamos sair. - acrescentou, com a expressão de quem tivera uma inspiração súbita, detendo-se a olhar para ele.

- Onde é que vamos? - perguntou Liam ao vê-la vestir a gabardina e pegar na mala. Ainda não despira o fato de calça e casaco preto e de corte austero que usara para ir trabalhar. Momentos depois já estavam na rua. Sasha dirigiu-se para a garagem, sentando-se ao volante do seu pequeno Renault.

Liam parecia um contorcionista; era difícil sentar-se ao lado dela. Tinha as pernas compridas de mais para um automóvel tão pequeno, mas para Sasha era perfeito.Conduziu até à lie Saint-Louis, onde encontrou lugar para estacionar o carro. Deu o braço a Liam quando começaram a caminhar protegidos por um guarda-chuva. Por fim pararam defronte de um estabelecimento antigo e num tom acastanhado no piso térreo de nome Berthillon, e Sasha, toda ufana, olhou para ele.

- É aqui que se come o melhor sorvete em toda a cidade de Paris! - e começou a explicar-lhe o sistema do número de ”bolas” em cada cone, ou copo, e toda a variedade de sabores. Ele escolheu sorvete de pêra, damasco e limão num cone de açúcar, além de terem comprado três embalagens de chocolate, baunilha e café. Sasha pediu apenas uma bola de gelado de coco.

Durante o caminho até ao carro conversaram animadamente. Ela deu uma breve volta turística para Liam apreciar a paisagem nocturna durante o percurso de volta a casa, embora ele tivesse dito que conhecia Paris, mas não as áreas com as quais ela estava familiarizada; num impulso repentino, pararam para tomar café no Café de Flore. Era um dos estabelecimentos mais antigos de Paris. De regresso ao carro passaram pelo Deux Magots e quando voltaram a entrar em casa já eram vinte e duas horas. Liam decidiu experimentar as outras variedades de sorvete que tinham comprado.

Desta vez sentaram-se na sala de estar e Sasha acendeu as velas. No fim de contas acabara por ser um serão deveras agradável. O género de serão que não era possível ter quando se vivia só. Se tivesse ido à Berthillon sozinha ter-se-ia sentido deprimida e não teria justificação para andar a dar voltas de automóvel por Paris. Tomar café sozinha no Café de Flore ter-lhe-ia parecido igualmente patético. Mas com Liam tudo isso resultara e ambos haviam passado uns bons momentos.

Foi a conversa e a troca de pontos de vista sobre política que fizeram com que resultasse, as discussões sobre arte, a troca de opiniões, o riso ao ouvir as histórias e piadas que ele contou, a sua exuberância irreprimível e o entusiasmo que mostrava pela vida que tornaram essas horas divertidas para os dois. É possível que ele se tivesse comportado de maneira juvenil, mas era inegavelmente inteligente, pelo que era divertido estar na sua companhia. Sasha começara a perguntar-se

se poderiam vir a ser amigos. Já era uma da madrugada quando pararam de conversar e ela começou a bocejar.

Liam perguntou-lhe se podia telefonar; queria ligar para a residencial. Tivera intenção de ligar do aeroporto, mas acabara por não o fazer. Voltou à sala alguns minutos depois com uma expressão de acanhamento.

- Foi uma estupidez - disse ele, embaraçado. Nem sequer a tinha beijado nessa noite, e ela estava-lhe grata por isso. Se tivesse tentado, Sasha ter-lhe-ia dito que se fosse embora. Prometera-o a si mesma, antes que as coisas voltassem a sair dos eixos.

- O que é que aconteceu? - perguntou, continuando a apagar as velas. Ele ir-se-ia embora dentro em pouco. A noite passara-se bem, sem qualquer problema. Só teria de pôr para trás das costas a atracção irresistível que sentia por ele, e tudo seria perfeito.

- Devia ter telefonado mais cedo. Já estão cheios. Talvez consiga arranjar quarto num hotel qualquer - disse ele, fitando-a com uma expressão cheia de interrogações que não verbalizava e, subitamente, mostrou-se preocupado.

- Estás a perguntar-me se podes ficar aqui? - indagou ela sem rodeios, perguntando a si própria se aquilo teria sido um estratagema ou se a residencial dos artistas na Marais estaria efectivamente cheia. Mas a verdade é que ele parecia genuinamente constrangido. Liam nunca fora organizado. Tinha-lhe contado em Londres que Beth é que costumava tratar de tudo para ele desde os seus dezanove anos e até ter saído de casa. Inicialmente tivera grandes dificuldades sem ela, mas estava a aprender aos poucos.

- Não tencionava fazê-lo - respondeu Liam com sinceridade. - Não queria deixar-te numa situação embaraçosa. Posso dormir no aeroporto, se for preciso, ou na gare dos caminhos-de-ferro. Não é nada que já não tenha feito, não tem nada de especial.

- Isso é um disparate! - retorquiu Sasha, mostrando-se prática, e respirou fundo. - Podes ficar no quarto do Xavier. Mas, Liam, quero que entendas que não vou dormir contigo. Não quero transformar a minha vida numa grande trapalhada, nem tão-pouco a tua. Se continuarmos a agir como ontem, as coisas ficarão cada vez mais confusas. - Liam não se lembrava de na noite anterior algum deles ter estado confuso, mas não disse nada, limitando-se a um acenar em sinal de aquiescência.

- Porto-me bem, prometo. - Sabia que aquilo também devia ser difícil para ela. Tinha vivido naquela casa com o marido e os filhos. A casa estava associada a demasiadas recordações, ao contrário do quarto de hotel em Londres. Não queria perturbá-la, ou assustá-la, sabendo que seria isso que aconteceria caso tentasse ter algum contacto amoroso com ela ali.

Respeitosamente, seguiu-a enquanto ela se dirigia ao quarto de Xavier, que se situava no andar superior. O quarto do filho era mesmo por cima do seu, um quarto acolhedor e próprio de um jovem, com uma decoração simples em tons de azul-marinho e um quadro que ela lhe oferecera como prenda de Natal havia alguns anos; reproduzia uma mulher com um garoto. Na altura, ele adorara o quadro, que continuava pendurado na parede para a recordar da infância do filho.

O quarto tinha janelas ovais que davam para o jardim. Liam sentia-se deleitado por saber que estava tão perto dela quando Sasha lhe deu um beijo de boas-noites nas faces, mas conseguiu resistir. Não tinha pressa. O que sentia por ela podia esperar, se tal fosse impossível de evitar. Nessa noite ficou deitado na cama a pensar nela, tal como ela pensava nele. Sentia uma vontade enorme de descer as escadas e ir ter com ela, mas não o fez. Só voltou a vê-la quando se encontraram na cozinha na manhã seguinte.

Sasha preparou-lhe um pequeno-almoço de ovos e toucinho fumado, e enquanto comiam discutiram o que iriam fazer. Dado que ele acatara de bom grado dormir no quarto de Xavier sem levantar objecções e sem ter pisado o risco, Sasha deixara de se sentir ansiosa para que partisse. O tempo estava pardacento, mas melhor do que no dia anterior, o que os levou a decidir dar um passeio ao longo do Sena.

Ficaram a ver os bateaux-mouches a deslizar no rio e ela mostrou-lhe certos pontos da cidade que para ele eram novidade. Liam adquiriu um livro de arte que ofereceu a Sasha. Compraram crepes a um vendedor ambulante e passaram pelas lojas que vendiam animais de estimação, rindo-se ao verem as galinhas.

Liam queria entrar, começando a falar de um cão que tivera em garoto e que adorara. Tinha morrido no mesmo ano em que a mãe falecera. Durante o resto do tempo, fê-la rir com as suas piadas e histórias engraçadas. Ela fez-lhe perguntas sobre os filhos e também falou dos seus.

Foi uma dessas tardes perfeitas em que nada era forçado, com a partilha de amizade e confidências, de amor que não exprimiam, mas que era profundamente sentido por ambos, por muito que Sasha lhe resistisse. Ele dera-lhe aquilo de que ela carecera ao longo dos últimos quinze meses: camaradagem e alguém com quem falar que não tivesse de partilhar com outras pessoas. Liam preenchia a sua solidão.

Encontravam-se defronte da última loja de animais do cais quando ele reparou num cocker spaniel. O lojista disse-lhes que era o mais pequeno da ninhada e Sasha observou que o cachorrinho tinha os olhos mais tristes que alguma vez vira. Devias arranjar um cão - afirmou Liam, confiante no que dizia. - Fazia-te companhia. - Ele próprio pensara fazer o mesmo, mas era complicado, por viver em Inglaterra.

- Viajo muito. Teria de o deixar aqui, ou então seria forçada a levá-lo comigo sempre que viajo de avião, o que não me parece muito confortável para um animal.

- Mas tu fazes isso. Por que motivo um cão não poderia fazê-lo?

- Não tenho um cão desde que os meus filhos eram pequenos. Um animal de estimação dá muito trabalho - replicou, mostrando-se prática. - Faria chichi por toda a galeria e o Bernard matar-me-ia, tal como a Karen em Nova Iorque.

- Não podes permitir que sejam os outros a ditar as tuas decisões. - Mas era o que acontecia. Sasha estava a fazer a mesma coisa em relação a ele. Receava em demasia o que os outros pudessem pensar caso se envolvessem. Além do mais, ele era demasiado irreverente, nem sempre se comportando do modo mais apropriado.

Tiraram o animal da jaula, uma cachorrinha que adquiriu imediatamente nova vida quando Liam começou a brincar com ela. Sasha mantinha-se silenciosa a observar enquanto a cadelinha lhe lambia a cara, o que ele não tentava impedir. Tinha uma pelagem branca e preta, um focinho bonito, pernas negras e patas brancas. Liam disse-lhe que o cão que tivera em garoto também era um cocker spaniel.

- Talvez devesses comprá-la e levá-la para casa contigo

- sugeriu Sasha, enamorado da cadelinha, mostrando-se entristecido quando voltou a metê-la dentro da jaula. Quando saíram da loja, a cachorrinha começou a ladrar e a ganir. Liam olhou para trás, soprou-lhe um beijo e acenou-lhe.

- Não poderia levá-la para Inglaterra - explicou a Sasha.

- Os britânicos são demasiado complicados. Abrandaram um pouco as leis relativas ao período de quarentena, mas é preciso tanta papelada que a cadela passaria a ter os requisitos necessários para poder fazer uma viagem espacial. Além do mais... - interrompeu-se, esboçando um sorriso rasgado e com uma expressão jovial - não sou suficientemente responsável para ter um cão. Quando estou a pintar esqueço-me de tudo. Precisaria de voltar a casar para poder ter outro cão.

- Aí está uma admissão e pêras! - Aquilo confirmava o que Sasha receava quanto à maneira de ser dele, mas desta feita isso não lhe pareceu assustador. Era apenas o reconhecimento de uma realidade. Liam tinha bem noção de quem era e da sua maneira de ser. Tal como ela. Era um rapaz encantador e irresponsável.

Voltaram à Berthillon, e nessa noite Sasha levou-o ao aeroporto. Ficaram sentados, e ele fitou-a demoradamente antes de sair do automóvel demasiado pequeno para o seu tamanho.

- Passei um fim-de-semana maravilhoso na tua companhia - disse Liam em voz baixa. Não tinham feito amor; não haviam feito nada de irracional. Tinham-se limitado a sair juntos, comeram sorvete, conversaram, deram longos passeios, compraram um livro de arte, beberam café em antigos estabelecimentos e brincaram com um cão. Era tudo aquilo de que ela sentira falta, ainda que fosse diferente do que possuíra. Sasha e Arthur haviam tido uma existência em comum inteiramente adulta, uma parceria de vida responsável, em que se ocupavam de coisas sérias e em que ambos eram iguais. Quanto a Liam, havia qualquer coisa de maravilhoso, divertido e jovial na sua personalidade.

Era meio homem, meio rapaz, candidato a amante, caso ela lho permitisse, e, sob certos aspectos, devido à sua personalidade irreverente, era quase como um filho. Eu também passei momentos muito agradáveis - reconheceu Sasha, sorrindo. - Obrigada por me teres feito uma surpresa. Se me tivesses perguntado, nunca teria permitido que viesses.

- Foi precisamente por isso que não perguntei - retorquiu, inclinando-se para ela e beijando-a. Sasha sentia-se grata por ele ter respeitado os seus desejos até esse momento. Quando Liam a beijou, sentiu de novo tudo o que sentira por ele em Londres e a que conseguira resistir durante todo o fim-de-semana. Ter-lhe-ia sido impossível agir desse modo se ele a tivesse beijado antes. E impossível também para ele. Beijaram-se durante muito tempo e depois ficaram sentados a olhar um para o outro. Era impossível que houvesse mais alguma coisa entre os dois. Sasha desejou que a situação fosse diferente, embora soubesse que tal não era exequível.

Desta feita não lhe deu a conhecer o que pensava. Não era necessário. Ele sabia o que lhe ia no pensamento. - Quero voltar para poder ver-te - disse Liam antes de sair do carro. Permites que eu venha, Sasha?

- Não sei, veremos. Vou ter de pensar no assunto. É possível que estejamos a tentar o destino, se repetirmos esta experiência, ou talvez estejamos a enganar-nos a nós próprios, acreditando que nos poderíamos limitar a uma relação de amizade. És uma pessoa a quem é extremamente difícil resistir. Liam beijou-a de novo, provando o que ela acabara de dizer. Sasha mal conseguia respirar quando ele parou de a beijar, apercebendo-se de que o desejava ardentemente.

Só queria poder levá-lo para casa consigo. Mas não cedeu à tentação. Sabia que não o podia fazer. Saiu do automóvel, rindo-se ao ver a dificuldade com que ele estendia as pernas para poder sair.

- Tu és a minha representante, por amor de Deus! Com o dinheiro que vais ganhar à minha custa, não podes comprar um carro minimamente decente? Talvez eu devesse dar-te um adiantamento... - Sasha riu-se dele, acompanhando-o até ao interior do aeroporto. Liam calçava as suas botas de vaqueiro e vestia calças de ganga, uma camisola de lã grossa, daquelas que os pescadores usavam habitualmente, que comprara na Irlanda, e um boné de basebol que Xavier lhe enviara dos Estados Unidos. Era um homem alto, jovem e com uma aparência máscula. Tudo nele era atractivo, até mesmo

- e muito em especial - a faceta de juvenilidade que tanto receio inspirava a Sasha.

Seguiram em silêncio até à porta de embarque. Liam foi o último passageiro a entrar a bordo. Parte dela desejava que ele não partisse, que ficasse consigo, mas outra parte queria que ele se fosse embora e nunca mais voltasse a Paris para a ver. As duas partes estavam em conflito permanente.

- Vou ter saudades tuas - disse ele em voz baixa.

- Também vou sentir a tua falta - confessou Sasha com toda a sinceridade. Falava-lhe sempre com a maior das franquezas. Tinha chegado à conclusão de que podia dizer-lhe tudo o que lhe viesse ao pensamento.

Ele beijou-a, um beijo intenso e demorado, quando já se preparavam para fechar a porta do avião.

- Vai... se não perdes o voo... - disse ela num murmúrio. Liam começou a correr, e, virando-se uma última vez para trás, esboçou um sorriso rasgado e acenou-lhe com a mão; só depois é que entrou no avião. Sasha não fazia ideia de quando voltaria a vê-lo.

Enquanto se sentava no seu lugar, Liam pensava nela e na extraordinária mescla de facetas contraditórias que formavam a sua maneira de ser.

Dura e terna, vulnerável e forte. Por vezes ficava triste e séria, quando falava dos pais ou do falecido marido, mas depois, subitamente, mostrava-se feliz e divertida, e até mesmo jovial, quando falava dos seus artistas, dos filhos e das suas perspectivas de vida, além de ser uma pessoa nada pretensiosa.

Complicada nas suas ideias rígidas sobre o modo como sentia que tinha de se comportar em sociedade e como queria ser vista pelos outros; uma grande dama e penosamente senhoril num minuto, para logo a seguir se mostrar caprichosa e maliciosa. Liam sabia através de Xavier que ela era uma mãe maravilhosa, e ele próprio tinha a sensação de que Sasha seria uma amiga sem igual.

Responsável, consciente, capaz e brilhante na sua actividade profissional, mas, simultaneamente, também uma mulher frágil e solitária, que precisava de um homem que a protegesse e amasse. E por muito preparada que estivesse para resistir às investidas dele, Liam queria ser esse homem. Ainda que para o conseguir fosse preciso muito tempo.

 

Sasha estava pensativa e em paz de espírito no seu gabinete no dia seguinte. Ficou sentada à secretária durante muito tempo, a olhar fixamente para uma folha de papel sem a ver. Pensava em Liam, como se haviam divertido juntos durante o fim-de-semana e na estupidez da sua parte por se ter permitido estar com ele. Caso continuasse a agir dessa forma, alguém acabaria por sair magoado da situação, do que não tinha a menor dúvida. E, provavelmente, essa pessoa seria ela própria. Ou talvez ele. No entanto, era ela quem tinha mais a perder.Olhava pela janela, a meditar em tudo aquilo, quando Eugénie entrou no seu gabinete.

- Sasha... - disse com alguma hesitação -, chegou uma encomenda para si. Não sei onde quer que a ponha. Sasha presumiu que seriam quadros enviados por algum dos seus pintores. Os que residiam na Europa enviavam os trabalhos para a galeria de Paris, e era esta que os reencaminhava para Nova Iorque, se estivessem destinados a exposições nessa cidade.

- Ponha-a junto dos outros quadros que chegaram a semana passada - replicou Sasha, mostrando uma expressão alheada. - Vamos despachá-los todos para Nova Iorque no dia um de Fevereiro. Tenha cuidado ao conferir a guia de remessa, para se certificar de que não enviamos nenhum dos quadros que sejam para expor aqui.

- Não me parece que vá querer despachar isto... - retorquiu Eugénie, mostrando-se acanhada. De vez em quando, Sasha atemorizava-a, sobretudo ultimamente. Assim, não estava bem segura de como ela reagiria quando visse aquela encomenda. Por amor de Deus, Eugénie, pare com esse mistério todo! Que encomenda é essa?

- Quer que a traga?

- Não se for preciso desencaixotá-la. Não quero lixo no meu gabinete. Trate disso no armazém. Mais tarde vou lá ver o que é. - Eugénie não se mexeu, mostrando uma expressão confusa, enquanto Sasha se irritava cada vez mais com ela. - Muito bem, traga a encomenda para aqui. Podemos limpar o lixo mais tarde. - Era óbvio que Eugénie considerava que tinha de levar a encomenda a Sasha pessoalmente, a qual já começara a desconfiar de que estava prestes a ver-se a braços com um problema bicudo.

A secretária apressou-se a desaparecer, voltando momentos depois trazendo qualquer coisa nos braços; então virou-se para Sasha, que a fitava com uma expressão de espanto: era a cachorrinha cocker spaniel com que ela e Liam tinham brincado na loja de animais de estimação do cais no dia anterior. A cadelita parecia aterrorizada, e Eugénie aparentava um ar de pânico tão grande como o animal. Não fazia a mínima ideia sobre qual seria a reacção de Sasha. Mas, para seu grande alívio, esta limitou-se a ficar imóvel e muito espantada, e, a pouco e pouco, o esboço de um sorriso começou a desenhar-se no seu rosto.

- Oh, meu Deus!... O que é que eu vou fazer com isso?

- Sasha parecia ter ficado avassalada.

- O homem da loja de animais disse que a Sasha haveria de saber quem é que lho enviou - adiantou Eugénie com alguma hesitação.

- Sim, sei. Foi o Liam AUison, o nosso artista mais recente. - Não valia a pena tentar ocultar aquilo de Eugénie. Mais cedo ou mais tarde, pelo menos isso viria a lume. Porém, com um pouco de sorte, o motivo por que ele lhe oferecera tal presente continuaria em segredo. Eugénie aproximou-se dela, lamber a face de Sasha com tanta energia como lambera a de Liam no dia anterior. - Oh, meu Deus!... Não consigo acreditar nisto!

- Pegou na cachorrinha por instantes e depois pousou-a delicadamente. Estava no chão ainda não havia um minuto quando se agachou junto de Sasha, urinando em cima da carpete. No entanto o estrago foi pequeno. - Ele é doido! - exclamou Sasha, sorrindo ainda mais. Eugénie sentiu-se aliviada ao ver que ela não parecia muito incomodada por causa da carpete.

- É tão amorosa... - disse Eugénie, rindo-se quando a cachorrinha começou a farejar a mobília, correndo de um lado para o outro. De tantos em tantos segundos voltava para junto de Sasha. Ainda corria por todo o lado quando esta se concentrou nas quatro pernas pretas e nas patas brancas. Como é que lhe vai chamar? - perguntou Eugénie.

Sasha hesitou por momentos, mas depois esboçou um sorriso de orelha a orelha.

- Acho que me lembrei de um nome apropriado. Vou chamar-lhe Peúgas. - Com as suas quatro patas brancas, parecia que usava peúgas, o que lhe lembrava uma certa questão relacionada com Liam. - Não lhe trouxeram comida? Não fazia a mais pequena ideia sobre o que dar de comer a um cão.

- O homem disse que trouxe tudo o que era preciso, incluindo um saco de viagem para quando a levar para Nova Iorque. Até tem uma capa cor-de-rosa, uma trela e uma coleira condizer! - Liam pensara em tudo. Sasha sabia até que ponto ele tinha dificuldades de dinheiro, mas, na esperança do que viria a ganhar através da Suvery, havia esbanjado à grande. A cadelinha não devia ter sido nada barata, e os acessórios, além da comida, também deviam ter custado bom dinheiro.

Adorava a generosidade e simpatia dele. Enviar-lhe a cachorrinha era um gesto adorável, e Sasha sabia que ele o fizera com a melhor das intenções. Apesar da sua irresponsabilidade, era uma pessoa de bom coração. Assim que Eugénie saiu do gabinete, Sasha ligou-lhe para o estúdio através do telemóvel.

- Não consigo acreditar que tenhas feito isto. És completamente doido! Além do mais, gastaste uma fortuna, Liam. O que é que eu vou fazer com um cão?

- Precisas de quem te faça companhia. Pelo menos enquanto eu estou em Londres... Ela está bem? - perguntou, ignorando o comentário sobre quanto gastara. Era um assunto que não lhe dizia respeito. Queria estragá-la com mimos. Na sua perspectiva, ela merecia aquilo e muito mais.

- Ela é maravilhosa... Liam, é a coisa mais terna que alguém fez por mim.

- Fico satisfeito - retrucou ele, mostrando-se agradado. Sentira-se um pouco apreensivo ao pensar que ela talvez ficasse irritada, pelo que se sentiu verdadeiramente aliviado ao verificar que não era esse o caso. Sasha continuava em estado de choque. - Que nome lhe vais pôr?

- Peúgas - respondeu ela, deleitada. Liam riu-se às gargalhadas.

- É um nome perfeito. Agora já não vou precisar de calçar as minhas. Ela pode usar as dela. - Recordou-se das quatro patas iguais de um branco de neve.

- És uma pessoa completamente disparatada. E isto é a coisa mais louca que alguém fez por mim em toda a minha vida.

- Óptimo. Necessitas de um pouco de confusão na tua vida. Estás a precisar de algumas surpresas agradáveis e de um pouco menos de controlo. - Enquanto Liam dizia isto, Peúgas ergueu o focinho para a sua nova dona, como se estivesse interessada na conversa, agachou-se e voltou a fazer chichi na carpete.

Mas, para Sasha, era óbvio que deixara de ter qualquer controlo: nem sobre ele, sobre si própria e, de certeza absoluta, sobre o cão. A cachorrinha tinha apenas oito semanas e só daí a alguns meses estaria ensinada. Sasha ia ter de enrolar as carpetes em sua casa.

- Foi uma surpresa maravilhosa, Liam. Ainda estou um pouco atordoada. - A verdade é que não sabia bem como reagir, tal como não sabia qual a razão que o levara a fazer aquilo. Não obstante, dava muito apreço ao gesto dele.

- Estava a pensar que talvez pudesse ir aí para a ver no próximo fim-de-semana. Não comeces a ficar enervada. Não vou para te ver, só vou para ver a cadelinha.

Sasha hesitou e do seu lado da linha fez-se um longo silêncio. Liam não enviara a cachorrinha para exercer pressão sobre ela, tinha sido uma manifestação de amor. Agora que havia ido a Paris para a visitar, tivera oportunidade de se aperceber de como Sasha levava uma vida realmente solitária. O silêncio e a solidão que reinavam em sua casa fizeram-no sentir-se triste por ela. Pensou que a cadelita poderia fazer-lhe companhia. E se ela permitisse, ele também queria ajudá-la.

- Não sei - replicou Sasha com sinceridade. - Liam, estou assustada. Se nos envolvermos, será uma loucura. Estou certa de que ambos acabaríamos por lamentar o sucedido. Sobretudo ela, se Liam viesse a encontrar outra mulher com uma idade mais aproximada da sua, depois de ela se ter apaixonado perdidamente por ele. Não lhe era difícil imaginá-lo com uma mulher de vinte e cinco ou trinta anos, em vez de uma da sua idade. Uma relação entre os dois, do ponto de vista de Sasha, só poderia ter um final desastroso.

- As coisas não precisam de ser assim, Sasha, pára de ser tão obsessiva em relação à minha idade!

- Não é só isso, é tudo o mais. Eu represento-te profissionalmente. Se as coisas derem para o torto, a nossa relação profissional poderá ficar irremediavelmente prejudicada. Além disso, tu não és divorciado. Nada te impede de voltares para a Beth em qualquer altura. E, depois, sou nove anos mais velha do que tu; deves arranjar uma mulher com metade da minha idade. És um artista louco, enquanto a minha vida é tão convencional e aborrecida que daria contigo em doido. - Nos últimos tempos, até ela própria se sentia entediada com a sua existência. No entanto, não poderia levá-lo a certos lugares e eventos sem sentir que estava a ser ridícula, e não fazia a mínima ideia de como ele se comportaria, mas não partilhou estes pensamentos com ele. - Não há absolutamente nada nesta situação que faça sentido.

- Mas achas que o amor tem de ter sempre uma razão de ser? - contrapôs Liam, parecendo desiludido. Sasha apresentara a sua lista de preocupações como se fossem alíneas num contrato que se recusasse a assinar. Mas era assim que ela conduzia a sua existência e o modo como a via.

- Devia fazer sentido. As relações já são difíceis sem que se pegue em duas pessoas diametralmente opostas como nós, tentando fazer que a relação resulte.

Não me parece que isso seja possível no nosso caso. Além do mais, isto não é amor, é atracção física. Trata-se de uma espécie de química insana que faz com que eu perca o juízo sempre que tu estás por perto.

- Sim, mas não perdeste o juízo durante o último fim-de-semana - recordou-lhe Liam. - Quem me dera que tivesses perdido... muito bem - acrescentou, persuasivo.

- E durante quanto tempo é que te parece que essa situação duraria?

- Não muito, espero eu - retorquiu, rindo-se, um riso que ela adorou ouvir. Sasha sorria enquanto escutava o que ele dizia e observava a cachorrinha. - Quando voltei para Londres tive de tomar duches frios durante toda a noite.

- É precisamente aí que quero chegar. Se continuarmos a andar juntos, um de nós vai perder a cabeça e fazer qualquer coisa de que, mais tarde, ambos nos arrependeremos.

A atracção que sentia por ele era como chegar a chama de um fósforo a dinamite. Ambos o haviam demonstrado na sexta-feira anterior, depois do jantar no Harry’s Bar.

- Sendo assim, o que é que fazemos agora? - perguntou Liam numa voz de desânimo. Não estava a conseguir convencê-la; Sasha era tão teimosa quanto ele próprio. Passei a ser a tua muito respeitável negociante de arte. E tu começas a portar-te como um menino bonito.

- Detesto que as pessoas me digam o que fazer! Não sou nenhuma criança! - ripostou Liam, dando a impressão de que estava irritado.

- Há ocasiões em que as pessoas não têm outra alternativa que não seja fazer o que está certo - acrescentou Sasha sensatamente. - Claro que é muito mais divertido fazer o que nos apetece, mas quando procedemos desse modo, em geral acabamos por nos magoar. - Sasha teve a delicadeza de não lhe recordar a escorregadela com a cunhada, que lhe custara o seu casamento.

- Quero ver-te, Sasha - disse ele num tom insistente.

- Quero ir a Paris no próximo fim-de-semana. - Depois, como se a ideia tivesse acabado de lhe ocorrer, acrescentou:

Acho que devia ver a cadela. Ao fim e ao cabo, sou o ”pai” dela.

- Não, não és - ripostou Sasha obstinadamente. - Ela é como uma criança órfã, e vai ter de crescer desse modo, quer goste, quer não. Se quiseres, podes ser o padrinho. Está bem, está bem, ela passa a ser a minha afilhada canina. Mas este fim-de-semana vou a Paris para vos ver, as duas.

- Não vou deixar que entres em minha casa! - retorquiu Sasha com determinação.

- E porque não? Que mais é que tens para fazer, além de ficares sozinha numa casa sombria e matares-te a trabalhar? Por amor de Deus, Sasha, ao menos uma vez na vida, permite a ti própria viver! Mereces isso. Tal como eu.

- Não, não mereces, assim como eu também não mereço, se a nossa intenção for fazer figuras ridículas, pelo menos no que me diz respeito. Tu estás a querer satisfazer os teus desejos, mas não permitirei que o faças à minha custa. - Sasha falava muito a sério. Para ela, os riscos eram demasiado elevados; Liam não tinha nada a perder, com excepção do seu coração.

- Isso não é justo - contrapôs ele, parecendo ter ficado magoado.

- É, sim. É agir com honestidade. Eu sou quase dez anos mais velha do que tu e tu queres portar-te como muito bem te apetecer. Não pretendes ser respeitável e conservador, não tens a mínima intenção de te adaptares ao meu modo de vida. Tencionas fazer disto uma brincadeira, divertires-te um bocado e agir como um pintor louco. Se fizesses isso na minha vida, Liam, porias o meu mundo de pernas para o ar, e não estou disposta a permiti-lo.

- Comportei-me na perfeição quando fomos ao Harry’s Bar - contrapôs ele, mostrando-se mal-humorado e acrescentando de má vontade: - Excepto em relação à camisa e às meias. Se eu soubesse que isso era assim tão importante para ti, teria comprado uma camisa nova e um par de peúgas,

já que isso te incomoda tanto; por amor de Deus! - Liam já tinha começado a gritar.

- Isto não tem nada a ver com a camisa nem com as meias, mas contigo e com a maneira como queres viver. Não te cansas de me dizer que ninguém te controla, que ninguém pode dizer-te o que fazer. Pretendes ser um espírito livre, Liam, coisa a que, aliás, tens todo o direito, só que não podes fazer isso comigo, não se enquadra no meu estilo de vida. Tanto tu como eu sabemos que, quando és motivado pelo teu estado de espírito, fazes o que te passa pela cabeça. Pensas que é divertido.

Pois bem, eu não. E quer queiras quer não, sou velha de mais para ti. Por amor de Deus, tu és o melhor amigo do meu filho! Ele tem vinte e cinco anos, eu tenho quarenta e oito.

- O comportamento dele e as regras que estabelecera para si mesmo eram muito mais próprios do mundo do filho do que do seu, além de que Liam gostava que as coisas fossem assim. Em nome da arte e da independência, resistira a tornar-se numa pessoa adulta e madura durante toda a vida.

- Tenho trinta e nove anos - retrucou Liam num tom de súplica -, estou mais próximo da tua idade do que da dele.

- Mas recusas-te a portar-te de acordo com a tua idade, e é aí que está o problema. Queres fingir que tens vinte anos. Se eu quisesse outro filho, trataria de adoptar uma criança. Não é esse o tipo de relação que quero manter contigo. Em resposta ao que ele fizera, Sasha também elevara o seu timbre de voz. Que espécie de relação queres ter comigo? Eu pensava que na sexta-feira as coisas tinham resultado muito bem entre nós dois. E durante este fim-de-semana também não nos saímos nada mal. Gosto muito de falar contigo, para além de tudo o resto.

- Também eu de falar contigo, mas tu estás-me interdito, não me posso dar ao luxo de te ter.Tu és de certeza absoluta, e sem a mais pequena dúvida, a mulher mais teimosa que conheço. Quer te agrade quer não, estarei aí na sexta-feira. Podemos discutir o assunto durante o fim-de-semana.

- Não quero ver-te!... - ripostou Sasha, em pânico. Os sentimentos que ele lhe despertava deixavam-na sem domínio sobre as suas próprias emoções.

- Mas eu quero ver-te. Pelo menos uma última vez, para debater este assunto contigo cara a cara. Não sou capaz de discutir este tipo de questões pelo telefone.

- Não há nada a discutir. Esta situação é impossível, Liam. Temos de aceitar a realidade, não nos resta outra alternativa.

- Quem está a fazer com que seja impossível és tu. Só será impossível se tu quiseres - retorquiu ele num tom de voz que o termo ”frustração” não era suficiente para descrever.

- Muito bem, digamos que quero que seja impossível.

- É a coisa mais idiota que já ouvi!

- Por vezes, fazer o que está certo parece isso mesmo. Mas, neste caso, é precisamente o que vai acontecer. - Não acrescentou que se ele tivesse agido de maneira correcta com Becky continuaria a ter a mulher e os filhos junto de si. Em vez disso, optara por satisfazer os seus desejos. Era uma atitude que tentava repetir com ela.

- Telefono-te amanhã - disse Liam, dando a impressão de estar bastante deprimido. Se possível, ela assumira uma atitude ainda mais firme na resolução de não se envolver com ele, a despeito da cadelinha, um presente encantador, mas que, apesar disso, não serviu para a convencer de que ele era o homem certo para si.

- Não me telefones, a menos que seja para falar de questões relacionadas com a galeria. Não quero voltar a discutir este assunto contigo. Só estamos a andar às voltas, a enlouquecermo-nos um do outro. - Mas a verdade é que ele a enlouquecia ainda mais quando estava junto de si. Nunca se sentira fisicamente tão atraída por nenhum outro homem em toda a sua vida. Era-lhe difícil compreender a situação, e ainda mais difícil resistir-lhe.

- Telefono-te esta semana - insistiu ele, embora não o tivesse feito, o que para Sasha foi um alívio. Custava-lhe agir daquela maneira, mas acreditava que, finalmente, conseguira persuadi-lo a deixar que o assunto ficasse por ali. Por muito que desejasse voltar a estar com ele, sabia bem que não podia fazê-lo.

A sua única consolação durante essa semana foi a alegria que a cachorrinha que Liam lhe oferecera lhe proporcionava. A Peúgas era adorável e, a despeito dos acidentes frequentes nas carpetes, Sasha andava encantada com ela. Fora o melhor presente que ele poderia ter-lhe oferecido. A melhor prenda a seguir a essa era deixá-la em paz, o que Liam fez.

Nesse fim-de-semana, o tempo voltou a estar horrível em Paris, com uns dias cinzentos e ventosos que ameaçavam eternizar-se. As manhãs estavam nubladas e as noites chuvosas, enquanto as tardes eram deprimentes, com ventos agrestes que enregelavam uma pessoa até aos ossos. Na sexta-feira, Sasha trabalhou até tarde; cansada, deitou-se cedo, mas na manhã seguinte, às nove horas, já estava sentada à sua secretária na galeria, acompanhada da cadelita. Toda a gente andava apaixonada pela Peúgas, até mesmo Bernard.

Sasha ficou a trabalhar na galeria durante todo o dia de sábado e passou a noite sozinha em casa, apenas com a Peúgas. Desde segunda-feira que Liam não lhe telefonava e, até certo ponto, sentia-se aliviada, mas, por outro lado, também se sentia triste. Era doida por ele, contudo, sob vários aspectos, ele era o fruto proibido. Um fruto em que estava determinada a não tocar, por muito que isso lhe custasse. Liam era um sacrifício que era forçada a fazer.

No sábado, às vinte e uma horas, Sasha ouviu a campainha da porta. Não era a campainha do portão, mas sim da porta da frente de sua casa. Assumiu que seria a porteira, uma vez que não ouvira a campainha do portão tocar. Vestia apenas a camisa de noite e levava a cadelinha ao colo quando abriu a porta. Estava à espera de deparar com o rosto envelhecido de madame Barboutier, mas, em vez disso, deu consigo a olhar para Liam. Afinal, sempre se decidira a aparecer.

- O que é que estás a fazer aqui? - perguntou, desagradada por o ver à sua porta. Sentia o coração a bater com força e os joelhos fraquejarem. No entanto, a sua fisionomia não revelava o que lhe ia no íntimo nem lhe deu umas boas-vindas calorosas; tinha-lhe dito expressamente que não fosse a sua casa.

- Vim ver a minha afilhada canina. - Sasha tinha a cadela nos braços e ele olhou para Peúgas, sorrindo. - Está com bom aspecto. - Tal como ele, ao contrário de Sasha, que tinha uma expressão de cansaço e preocupação, o que correspondia ao que sentia. Durante toda a semana, sofrera por causa dele. Não lhe havia sido nada fácil manter a resolução que tomara em relação a Liam. E agora ali estava ele, na soleira da porta, mais bonito do que nunca. Liam era tudo o que ela desejava, mas não podia permitir-se ter. Chamou a si toda a resistência que conseguiu reunir.

- Pedi-te que não viesses cá... - disse-lhe com frieza, mas à beira das lágrimas.

- Quero falar contigo, Sasha - retorquiu Liam, mostrando uma fisionomia circunspecta. Via nos olhos dele que também se sentia triste. - Porque é que não podemos deixar que isto decorra naturalmente por uns tempos, para vermos o que acontece? Talvez, ao fim e ao cabo, não seja nada de tão calamitoso como tu pensas.

- E se for? Depois o que é que fazemos? Os meus filhos ficarão completamente fora de si, os meus artistas vão pensar que estou doida varrida, e passaremos a ser o tema das conversas em Paris e Nova Iorque. - Sasha não estava a pintar um quadro muito bonito, mas o que acabara de ilustrar podia acontecer com toda a facilidade e corresponderia à verdade, facto de que também ele estava ciente.

- Alguma vez pensas em qualquer coisa que não seja um desastre ou a opinião dos outros? - perguntou, mantendo-se a porta com o saco de viagem na mão. - E se as coisas vierem a correr da melhor maneira possível? E se as pessoas se estiverem absolutamente nas tintas para o que nós dois possamos fazer? E se os teus artistas se estiverem a borrifar para o que faças e os teus filhos só quiserem que sejas feliz, ainda que isso signifique que tenhas uma relação com um homem mais novo do que tu? É bem possível que esta situação não venha a ter nada de extraordinário.

- Até encontrares uma rapariga da tua idade, ou mais nova, e te apaixonares por ela. Também não quero ter de passar por uma situação dessas.

- E se eu morresse, ou tu? E se uma noite destas formos atingidos por um raio quando estivermos a fazer amor? E quanto à cólera, difteria e sarampo? E se todos morrermos numa guerra atómica?

- Prefiro morrer devido a uma bomba atómica do que fazer figuras ridículas por tua causa. Liam, não quero ir por aí. Prefiro continuar sozinha.

- Não sejas pateta... Estive apaixonado duas vezes em toda a minha vida, a primeira por Beth, um amor que durou vinte anos, e agora por ti. Foram as únicas mulheres a quem disse que amava.

- Tu só me desejas porque não podes ter-me - contrapôs Sasha, mostrando-se profundamente infeliz. Tremia ao frio, tal como a cadela.

- Posso ao menos entrar por um minuto? Há muitas horas que venho a guiar. Cancelaram o meu voo, pelo que tive de atravessar o túnel da Mancha. - Sasha afastou-se para o lado; desejava ter coragem suficiente para lhe recusar a entrada, mas não conseguiu. Como tinha vindo a acontecer desde que o conhecia, não possuía a força de vontade necessária para lhe resistir, disse para consigo enquanto ele se encaminhava lentamente para a sala de estar.

As luzes estavam todas apagadas e na sala fazia frio. Sasha estava prestes a ir para a cama antes de ele chegar. - Muito bem, desisto. Deixa-me passar a noite em tua casa. Não te tocarei. Partirei amanhã antes de te levantares. Estou demasiado cansado para fazer a viagem de regresso a Londres esta noite. - Sasha ficou a olhar demoradamente para ele, após o que acenou em sinal de assentimento. Podia voltar a dormir no quarto de Xavier.

Tencionava trancar a porta do seu quarto, o que faria mais para resistir a manter-se a si própria dentro do quarto do que por desconfiar dele.

- Queres comer alguma coisa? - perguntou cortesmente, pousando a cadela no chão.

- Tens sorvete?

- Acho que sim. A semana passada comprámos uma grande quantidade e ainda não comi nenhum. Mas devias comer, far-te-ia bem. - Liam achava que ela estava magra de mais, e parecia que havia perdido peso nessa semana; esperava que tal se devesse à agonia das saudades que sentira dele.

Seguiu-a até à cozinha, com a Peúgas a saltitar logo atrás dos dois. A cachorrinha tratou de urinar no chão da cozinha, o que Liam se apressou a limpar, enquanto Sasha lhe servia sorvete de chocolate e de café numa taça enorme.

- Queres comer mais alguma coisa? - Liam respondeu-lhe com um abanar de cabeça, sentando-se à mesa da cozinha sem dizer nada. Na verdade, havia muito pouco que qualquer dos dois pudesse dizer; já tinham dito tudo! Sasha nunca passara por uma situação tão perturbadora, com excepção da morte do marido, havia dezasseis meses. Deixou-se ficar sentada em silêncio enquanto ele comia. Quando Liam acabou, ela levantou-se da mesa. - Vou para a cama. Podes ficar na sala de estar, se quiseres. Sabes onde é o quarto do Xavier.

- Obrigado, mas também estou cansado. Vou já para cima. - Seguiu atrás dela, que o deixou no patamar. Sasha ouviu-o subir o lanço de escadas até ao último andar, após o que fechou a porta do quarto de Xavier.

Sasha, com a cachorrinha junto de si, pôs a água a correr na banheira. Não se deu ao trabalho de trancar a porta. Sabia que não precisava de tomar tal precaução. Finalmente, Liam compreendera, e na manhã seguinte já teria partido. Todo aquele triste episódio de tentação, satisfação de desejos e tortura psicológica teria acabado. Mal conseguia esperar que ele se fosse embora. Estava na casa de banho a lavar os dentes, com a camisa de noite vestida, quando ergueu os olhos e viu Liam reflectido no espelho. Não o tinha ouvido entrar. A cadelinha ficou empolgada quando o viu, mas Sasha mostrou uma expressão desolada.

- Compreendo, Sasha, mas só quero passar a noite contigo. Uma última vez. Só quero poder abraçar-te. Prometo que não farei nada que tu não queiras. - Mas o problema era que ela queria. Desde o princípio fora esse o grande problema.

Começou a abanar a cabeça, enquanto o seu olhar se cruzava com o dele no espelho. Também havia lágrimas nos olhos dele. Sem dizer nada, Sasha deixou cair a escova dos dentes, virando-se para ele e estendendo-lhe os braços. Também desejava passar uma última noite com ele. Só queria poder abraçá-lo, senti-lo junto de si, antes de se separarem para sempre. Aquele momento jamais se repetiria, o que ambos sabiam. Em silêncio, Sasha fez um acenar de cabeça, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. - Está tudo bem, minha querida... está tudo bem... tudo acabará por se resolver, prometo-te... - murmurou-lhe Liam.

- Não, não está bem. - Ambos sabiam que o que ela dizia era verdade, mas sentia-se deliciada só por poder estar ali com ele. Momentos depois, aninhavam-se na cama enorme no quarto gelado. A cachorrinha dormia na sua própria cama na casa de banho de Sasha. Liam desligou a luz e abraçaram-se sem dizerem mais nada. Ela vestia a camisa de noite e Liam usava boxer shorts, uma T-shirt e meias. Comprara outro par só para estar com ela.

- Amo-te - segredou-lhe Liam, abraçando-a.

- Eu também te amo - retorquiu Sasha com tristeza.

- Quem me dera que as coisas fossem diferentes. - Desejou ser mais nova e também ser outra pessoa, de modo a poder sentir-se mais à vontade com alguém como ele. Não o amava da maneira como amara Arthur, mas sentia uma grande atracção e já se apegara a ele. Era uma emoção diferente de qualquer outra que sentira até então. Talvez, mais do que amor, fosse paixão. Porém, o que quer que fosse, dava-lhe a sensação de ser perigoso, mas resistir-lhe era uma verdadeira agonia.

- Isto é tudo de que precisamos para já - sussurrou-lhe, sentindo-se grato por poder abraçá-la e estar na cama com ela. Era mais do que ousara esperar quando fizera a viagem de automóvel de Londres a Paris. Tinha receado que ela não lhe abrisse a porta, sentindo-se grato por isso não ter acontecido.

- Como é que eu vou viver sem ti, Sasha? Ela não lhe deu resposta, mas estava a pensar a mesma coisa. Tinham conseguido até aí; teriam de voltar a consegui-lo. Tudo o que lhes restava era aquela noite. Ele morria de desejo por fazer amor com ela, mas Sasha não queria fazer nada que estragasse aquele momento. Liam manteve-a nos braços até ela adormecer.

Na manhã seguinte Sasha sentiu-o mexer-se, acordando imediatamente. Sabia que ele se iria embora assim que se levantasse. Deixou-se ficar deitada ao seu lado, à espera que ele se levantasse da cama. Liam não se mexeu durante muito tempo, até que os primeiros raios de sol, de um cinzento-pérola, invadiram o quarto.

- Estás acordada? - perguntou num sussurro, e ela respondeu-lhe com um acenar de cabeça afirmativo. - Queres que me vá embora agora? - Desejava com todo o seu ser que ele ficasse, mas tinha de deixar que se fosse embora.

- Daqui a um minuto - disse ela num murmúrio. Chegou-se mais a ele, abraçando-o com força. Mal conseguia respirar, de tão inebriada que se sentia junto dele. Enquanto o abraçava, sentiu que ele começava a ter uma erecção. Os seus corpos estavam colados e, subitamente, começaram a beijar-se; o resto aconteceu sem que nenhum dos dois o premeditasse. Liam sentia-se aterrorizado quando pararam.

Sabia que desta feita ela não lhe perdoaria e que nunca mais voltaria a vê-la. Quebrara a promessa que lhe tinha feito, mas não conseguia impedir-se de a desejar com uma vontade incomensurável. - Amo-te - confessou ela numa voz cheia de ternura. E depois afastou-se apenas o suficiente para poder olhar para ele. Os seus rostos estavam lado a lado na almofada. Liam concluiu que nunca vira uma mulher tão bela em toda a sua vida, independentemente da idade. - O que é que vamos fazer?

- Diz-me tu - retorquiu ele, falando também em voz baixa e sustendo a respiração.

- Não sei dizer... Não quero perder-te... já perdi de mais. - Muito simplesmente, Sasha não era capaz de se forçar a permitir que ele partisse.

Pelo menos, para já. Posso ficar mais um pouco? - Ela respondeu-lhe com um acenar afirmativo e ele voltou a abraçá-la; depois fizeram amor outra vez. A certa altura, ele teve de ir buscar comida para a cadelinha, aproveitando para levar também duas taças de sorvete.

- Terei endoidecido? - perguntou-lhe ela enquanto comia o sorvete de chocolate sentada na cama, ao seu lado. Aquilo era tudo o que queria: estar ali junto dele, com o gelado a escorrer-lhe pelo queixo. Gentilmente, ele limpou-lho.

- Nunca me senti tão lúcido em toda a minha vida, mas não posso falar por ti.

- Isto parece-me um sonho... - retorquiu Sasha.

- Se for, é um sonho muito bom. - Liam sorriu-lhe antes de a beijar.

Ficaram na cama durante todo o dia de domingo. Tomaram banho juntos e desceram ao piso térreo apenas durante o tempo necessário para jantarem, após o que se apressaram a voltar para a cama, como crianças que fugissem dos progenitores. Mas não havia ninguém de quem tivessem de fugir nem lugar onde pudessem esconder-se. A dada altura, durante o fim-de-semana, Sasha pisara o risco, entregando-se nos braços dele. Não tinha ideia quanto ao que ambos fariam a seguir.

Tudo o que sabia era que queria estar junto dele durante o tempo que a relação entre os dois durasse.

Cozinharam juntos e jantaram, rindo-se e conversando com todo o à-vontade. Brincaram com a cadela, lavaram a louça e depois apressaram-se a voltar para a cama, fazendo amor outra vez.

- Estou velha de mais para isto - disse ela, mal conseguindo recuperar a respiração.

- Também eu - retorquiu Liam, rindo-se. - Estás a desgastar-me. - Mas então ela olhou-o com uma expressão preocupada.

- Quando é que vais voltar?

- E que tal se nunca? - Liam estava a brincar com ela, mas a ideia agradou a ambos. - O que é que te parece se eu passasse a semana aqui? - Seria uma boa experiência para verem como é que as coisas corriam no dia-a-dia. Sasha não esperava que ele sugerisse aquilo, mas a ideia agradou-lhe.

- Eu podia dizer a todos na galeria que vieste cá para os conhecer e que te convidei a ficares hospedado em minha casa. - Liam apercebia-se de que ela sentia que tinha de dar uma explicação, mas, qualquer que fosse a maneira como resolvesse o assunto, para ele estaria bem.

- Por mim, concordo. Ou também podias dizer apenas que sou o teu namorado e que vamos passar a semana toda na cama... - Sasha mostrou uma expressão de nervosismo quando ele disse isto, beijando-a. - Não te preocupes, não tenciono fazer nada que possa embaraçar-te.

- É melhor que não faças... - retorquiu ela num tom de advertência.

- Prometo que não.Ficaram deitados na cama e nessa noite dormiram abraçados. Sasha sentia-se excitada perante a perspectiva de poderem passar toda a semana juntos. No dia anterior prometera a si mesma que iria desistir dele, mas no decurso do fim-de-semana decidira arriscar a existência ao seu lado. Agora não lhe restava outra alternativa, quer fosse possível quer não. Não tardariam a descobrir.

 

Sasha tinha uma aparência ainda mais respeitável do que o habitual quando, acompanhada de Liam, atravessou o pátio interior em direcção ao escritório na segunda-feira de manhã. A galeria fechava às segundas-feiras, se bem que o escritório se mantivesse aberto, uma boa oportunidade para porem em dia o expediente atrasado. Sasha vestia umas calças pretas e uma camisola da mesma cor. Quanto a Liam... parecia-se com Liam. Calçava botas de vaqueiro, vestia um casaco de cabedal, uma camisola branca, calças de ganga e tinha um boné de pala.

Planeavam sair nessa tarde para comprar mais T-shirts e algumas peças de roupa interior. Ele não tinha trazido roupa suficiente para uma semana, uma vez que só pensara ficar em Paris durante o fim-de-semana.

Sasha apresentou-o aos funcionários da galeria. Liam era agradável e de trato fácil, pelo que todos pareceram simpatizar com ele. Na semana anterior enviara diapositivos dos seus trabalhos, e Bernard disse que estavam ansiosos por poder apresentá-los ao público. Falaram da exposição individual na galeria de Nova Iorque no fim do ano; entretanto, as duas galerias exporiam os trabalhos dele, tanto em Paris como em Nova Iorque. Para Liam era uma oportunidade inacreditável.

Eugénie quase desmaiou quando o viu. Mais tarde disse a Sasha que nunca, em toda a sua vida, tinha visto um homem tão bonito como ele. Tão-pouco Sasha, e isso era parte da questão que estava a causar-lhe tantos problemas.Nessa noite conversaram sobre a galeria; Liam estava estirado em cima da cama depois de terem feito amor, qual jovem leão.

- Então, o que é que te pareceu? - perguntou-lhe ela. Estava interessada em ouvir a sua opinião, conhecer o ponto de vista de um artista. Nele, Sasha tinha uma oportunidade única para se inteirar da opinião dos pintores em relação à galeria. Para um negociante de arte, era uma perspectiva interessante, além de que respeitava a opinião dele, embora também confiasse na sua. Os seus instintos sempre se haviam revelado excelentes no tocante à galeria e aos profissionais de artes plásticas com quem trabalhava.

- O que é que me pareceu? - perguntou Liam com uma fisionomia de alheamento. Ainda estava a recuperar o fôlego depois de terem feito amor, surpreendido por ela estar a pensar no trabalho. - Ora bem, vejamos... melhor do que ontem à noite... não tão bom como esta manhã... talvez eu estivesse cansado... Pareceu-me que a melhor de todas foi no domingo à tarde, na banheira... - Liam prosseguiu, classificando e comparando as incursões sexuais dos dois, enquanto Sasha se ria à socapa.

- Liam, pára com isso! Eu estava a referir-me à galeria e aos funcionários.

- Oh, isso!... Muito agradável. Gostei de toda a gente.

- Mas estava mais interessado em fazer amor com ela do que em conversar sobre trabalho.

- Vamos falar a sério por momentos - ralhou ela. Adorava falar dos assuntos de trabalho com ele. Também fora assim com Arthur.

- A sério? Se fizermos amor mais vezes vou cair prostrado nos teus braços e vais ter de me reanimar. Sou mais velho do que aparento.

- Também eu - retorquiu Sasha com uma expressão de pesar.

- Nunca tinha feito isto com tanta frequência em toda a minha vida. Estou a começar a sentir-me como um brinquedo sexual - continuou Liam, tentando mostrar-se preocupado. - Pensando bem, talvez seja. - É isso que sou para ti? - Durante uns momentos, ficou com uma expressão muito séria.

- Não sejas parvo!... - retorquiu Sasha, descansando a cabeça na almofada. No entanto, era forçada a admitir que estava a passar uns momentos muito agradáveis com ele. Mesmo muito.

- Sinto-me como se fosse o escravo sexual de Faubourg Saint-Honoré. Talvez devesse ligar para o SAMU, para que venham salvar-me... - O SAMU era o Serviço de Emergência Médica, o equivalente francês do 112.

- Acho que estás a tornar-te um vício - admitiu Sasha, mas a verdade é que estava a divertir-se de mais para se preocupar com isso. Decidira pôr os seus receios em banho-maria durante uma semana, limitando-se a desfrutar da presença dele todos os dias.

- Talvez devêssemos ir a uma reunião de um desses grupos das doze medidas. Os Escravos do Amor Anónimos. Mas que diabo, porquê estragar o nosso divertimento? perguntou Liam, mostrando-se divertido.

- Exactamente - concordou Sasha, inclinando-se para o beijar. Nenhum deles queria acreditar, mas a verdade é que fizeram amor outra vez antes de adormecerem e uma vez mais antes de ela ter saído para trabalhar na manhã seguinte. Quando entrou no escritório sentia-se como uma rapariguinha tonta, esforçando-se por ocultá-lo.

Liam chegou pouco depois, e gostou de visitar a galeria após ter aberto ao público. Sasha ficou satisfeita quando soube que Bernard o tinha convidado para almoçar. Todos pareciam simpatizar com ele, o que já era alguma coisa. Andara preocupada a pensar como é que se enquadraria entre os que trabalhavam na galeria, mas até ao momento tudo estava a correr pelo melhor.

Liam passou o resto da semana a vaguear por Paris, visitando outros artistas seus amigos na Marais, enquanto Sasha fazia o que estava ao seu alcance para aliviar a sua carga de trabalho, a fim de poder passar tanto tempo com ele quanto possível, se bem que por vezes tivesse de se encontrar com clientes que esperavam vê-la quando compravam obras de grande valor. Liam chegou durante uma dessas ocasiões, que teve lugar já no final da semana.

Vestia uma T-shirt, um blusão de cabedal de motociclista, boné de basebol, calças de ganga e botas de vaqueiro. E até calçara meias e vestira roupa interior. Estava determinado a portar-se adequada e civilizadamente durante essa semana. Sasha apresentou-o aos clientes com quem estava reunida quando ele entrou à sua procura.

Liam não tivera o mínimo pejo em interrompê-la, o qUe a deixou incomodada. Assim, mostrou uma expressão um tanto austera e irritada quando ele se inclinou, beijando-a na boca. Sasha ficou furiosa. Os clientes eram pessoas na faixa etária dos setenta; a senhora era uma princesa italiana e o marido o presidente de um banco francês dos mais importantes. Não tinha clientes mais conservadores do que aquele casal. Sasha vestira um fato de saia e casaco Chanel para essa reunião e pusera um colar de pérolas. Tinha um ar tão respeitável quanto os clientes.

Liam, pelo contrário, parecia um James Dean com cabelos louros compridos, o que, decididamente, não era o estilo do casal. Sasha apresentou-o como sendo um dos pintores que expunham na galeria, tendo ficado um tanto ou quanto enervada quando ele se sentou, sem ter sido convidado, para tomar chá com eles; depois mudou de ideias, servindo-se de uma bebida. Portou-se como se estivesse em sua casa, o que também não passou despercebido aos clientes. A princesa parecia chocada, enquanto o banqueiro se mostrava manifestamente irritado.

A sua única esperança era que concluíssem que Liam era um artista excêntrico, embora o beijo que ele lhe dera tivesse sido bastante revelador para o casal, o que tornaria difícil explicá-lo. Mais ainda, eles queriam toda a atenção de Sasha; tinham acabado de comprar dois quadros, cada um no valor de quinhentos mil dólares. No entanto Liam parecia pouco impressionado com as pinturas, que se encontravam em dois cavaletes, tendo comentado que eram muito bonitas, embora pouco inspiradoras. Sasha estava capaz de o matar. Assim que o casal saiu, virou-se para ele, furiosa.

- Em que diabo estavas a pensar quando disseste uma coisa daquelas? É assim que eu ganho a vida!

Aqueles clientes acabaram de comprar duas pinturas no valor de um milhão de dólares, em dinheiro vivo, e não estou minimamente interessada na tua opinião sobre os quadros, se são inspiradores ou não, tal como eles não estão interessados no que possas pensar. Pelo menos, podias ter fingido que gostavas deles! - disse ela, encolerizada. - E como é que te atreves a interromper uma reunião? Isto é o meu trabalho e não o meu quarto! Perdeste o juízo?

- Liam acabara de fazer precisamente aquilo que ela receara: tinha-a embaraçado diante de clientes importantes, e não se mostrava nem um pouco arrependido. Era a maldita questão do controlo! Não permitiria que ninguém lhe dissesse o que fazer ou como comportar-se. Os limites e as regras, para ele, eram letra-morta.

- Eu nunca minto sobre arte - retorquiu com uma expressão de perplexidade, estendendo-se no sofá do gabinete.

- Tenho demasiada integridade para o fazer. Além do mais, estava a ser cortês. Disse-lhes que os quadros não eram inspiradores, mas a verdade é que, na minha opinião, são uma merda. São de um período conturbado na vida do pintor, que fez trabalhos muito melhores antes dessa fase.

- Estou bem consciente disso, Liam, mas aquelas duas pinturas eram o que eles queriam, portanto, tratei de as localizar. Precisei de oito meses para as adquirir a um negociante na Holanda, e foi por muito pouco que tu não arruinaste a transacção. Além do mais, não podes entrar aqui quando bem te apetece, servindo-te de uma bebida quando estou a falar com clientes. Vais ter de mostrar algum respeito.

- Também tu! - ripostou ele, sem ocultar a irritação que sentia. - Pensas que diriges o mundo por aqui. Sou tão bom como eles! Não podes limitar-te a varrer-me para debaixo do tapete só porque alguém com um livro de cheques chorudos entra porta adentro!

- Isso é que posso! Eles são o meu ganha-pão, assim como o dos meus filhos. E se quiseres continuar por aqui, quando eu dançar ao som da batuta deles, tu farás precisamente a mesma coisa.

- Uma porra é que faço! Eu não sou teu lacaio, Sasha, não trabalho aqui. Se sou o homem da tua vida, vais ter de me tratar com respeito.

- Nesse caso, não abuses da sorte e não te exibas dessa maneira. Parecias um motociclista dos HelTs Angels, a entrar aqui com toda a descontracção para te servires de uma bebida, enquanto eles estavam a tomar chá.

- Esse argumento não tem pés nem cabeça, do que estás bem ciente. Só tens de lhes dizer que sou um dos teus artistas, não precisam de saber mais nada. Não estou disposto a vestir um fato de três peças e a tomar chá só porque estás a vender duas pinturas que são uma porcaria e que, já agora, nem sequer devias estar a vender. Se era isso que eles queriam, então tinhas obrigação de os esclarecer, arranjar-lhes trabalhos de melhor qualidade e exigir-lhes mais dinheiro por eles.

Mas aqueles dois quadros são uma merda, o que tu sabes muito bem. Quanto ao meu aspecto, calcei meias e vesti roupa interior, o que devia ser suficiente para ti. Não tenciono andar por aí como um macaco mascarado pela trela só porque tu queres!

- Ninguém te está a pedir que faças isso. Só te peço que sejas bem-educado com os meus clientes, que tenhas uma aparência decente e que sejas discreto. Podes esperar que as pessoas saiam para tomares uma bebida. Além do mais, não tens o direito de interromper as minhas reuniões. A tua independência, muito ou pouca, não me interessa; não estou disposta a tolerar esse comportamento da tua parte!

- Quem é que pensas que és? - perguntou Liam, aos gritos. - Não és minha mãe. Posso fazer o que me apetecer. Não te admito que me digas o que devo fazer ou não. Amo-te, mas isso não te dá o direito de me controlares, Sasha. Não sou um dos teus empregados nem teu filho. De facto, nem sequer tenho a certeza do que sou para ti! - Liam estava a ficar cada vez mais furioso, enquanto ela falava com toda a calma. Não tinha intenção de discutir irracionalmente com ele.

Se o fizesse, sabia que ninguém sairia a ganhar. Mas isso não significava que lhe permitisse que se comportasse como bem lhe apetecia. O pintor louco estava todo lançado.

- Tu beijaste-me, Liam. Na boca! - continuou Sasha, enquanto ele a olhava, furioso, do outro extremo da sala. Em frente de clientes. É uma atitude completamente inapropriada, do que decerto te aperceberás.

- Não me digas o que é apropriado ou não! - gritou-lhe Liam. - Eu amo-te. Não enfiei a língua pela tua garganta abaixo, por amor de Deus! Dei-te um beijo ao de leve nos lábios. O que é que eu sou, afinal! Um rapaz que não passa de um brinquedo com que te andas a divertir e que queres manter fechado no armário? - perguntou, mostrando-se ofendido. Magoara os seus sentimentos ao criticá-lo, e apercebia-se disso, mas ele tinha de aprender a portar-se como devia ser.

Não seria tarefa fácil, tal como receara. Adorava estar com ele na privacidade da sua casa, mas quando andava pela galeria, a dizer e a fazer o que lhe vinha à cabeça, sentia-se bastante enervada. Havia ocasiões em que ele não pensava. E era evidente que era alérgico a qualquer espécie de regras.

- És velho de mais para seres um rapaz que serve de brinquedo - retorquiu Sasha com uma expressão reservada. Liam começou a dizer-lhe qualquer coisa, muito acalorado, mas de súbito desatou a rir às gargalhadas.

- Tens razão, calculo que seja, mas por vezes é realmente assim que me sinto. Mostras-te tão formal quando estás com clientes e tão enfadonha... Porque é que não relaxas? Até é possível que eles gostassem se fosses mais descontraída.

- Não são essa espécie de clientes. As pessoas que compram trabalhos de artistas em começo de carreira são diferentes, Liam. O meu género de clientes espera sobriedade e formalismo da nossa parte. Se eu não agisse assim, fariam negócio com outros que correspondem a este perfil. Acredita em mim. Há vinte e três anos que estou neste negócio, e desde criança que observei o meu pai a lidar com os clientes. Existem determinadas regras que é preciso observar.

- Tu e as tuas regras... - resmungou ele, mas não tardou a pôr o assunto para trás das costas. Mais depressa do que ela. Sasha ficara extremamente perturbada por ele a ter interrompido quando estava com clientes. No que lhe dizia respeito, era uma atitude que não augurava nada de bom para o futuro. Tinha-a deixado bastante enervada. Apesar disso, nessa noite levou-o a jantar ao Lê Voltaire. Tornara-se também o restaurante preferido dele. Para jantar lá, não precisava de se vestir formalmente.

Podia ir de calças de ganga, casaco de cabedal e botas de vaqueiro, muito embora algumas das pessoas mais sofisticadas e elegantes de Paris frequentassem o restaurante. Depois de uma garrafa de vinho, ele estava com uma disposição muito melhor. No entanto Sasha continuava a sentir algum mal-estar depois da discussão breve, mas acalorada, dessa tarde. Liam sentira-se desrespeitado e ela ficara extremamente chocada perante a sua atitude de descontracção enquanto ela falava com clientes. Liam teria de aprender certas regras básicas, e depressa.

Alguém teria de ceder, e esse alguém era ele. Se não fosse assim, a relação entre ambos não tardaria a cair por terra. Sasha precisou do resto da noite para serenar, mas no dia seguinte já estava calma.

Durante o resto da semana tudo correu sem incidentes de maior entre os dois. Bernard comentou com Sasha que Liam parecia estar a prolongar a estada em Paris, mas ela concluiu que ele não desconfiaria de qual a razão para isso. Disse-lhe que Liam não tinha dinheiro para poder alojar-se num hotel, pelo que estava a dormir no quarto de Xavier, o que fazia sentido, na óptica de Bernard. Mas se ele ficasse frequentemente em casa dela, e durante tempo prolongado, sabia que, mais cedo ou mais tarde, o segredo seria descoberto.

Passaram um fim-de-semana agradável e divertido. Foram ao cinema, almoçaram na Brasserie Lipp, no domingo, e depois foram beber café ao Deux Magots. Sasha tentou levá-lo ao bar do Hotel Ritz para tomarem uma bebida, mas não o deixaram entrar por ir de calças de ganga, a menos que estivesse hospedado no hotel, o que Liam considerou uma idiotice. De facto era, mas eles também tinham regras, ao contrário de Liam, que tinha muito poucas. As suas prendiam-se com ser decente, simpático e afectuoso, não com comportar-se de maneira apropriada.

Porém, procedia sempre com muita ternura para com ela. Sasha não tinha a mínima dúvida de que o amava, o que não impedia que vivesse no receio constante de ele vir a fazer alguma coisa que revelasse a relaÇão que existia entre os dois, e ainda não estava preparada para que isso acontecesse. Permitir que ele ficasse consigo em Paris durante uma semana e que andasse pelo escritório já era uma grande cedência da sua parte, portanto, não tencionava ir mais longe do que isso. Agora ou talvez nunca.

Estavam na cama na noite de domingo quando Liam lhe perguntou casualmente quais eram os seus planos para o dia seguinte. Era a primeira pista que lhe indicava que ele não estava a pensar em partir na data estabelecida. Não se importava, uma vez que adorava estar com ele, mas também tinha consciência de que a continuação da sua presença se tornaria cada vez mais difícil de justificar na galeria. Eram os únicos que sabiam que ele estava em casa dela. Liam sugeriu que na noite seguinte jantassem com alguns dos seus amigos da Marais.

- Isso significa que gostarias de ficar por mais tempo?

- Sim, se estiveres de acordo - respondeu Liam, esboçando um sorriso acanhado e com um aceno de cabeça.

Sasha hesitou por breves segundos, sopesando os riscos, mas depois sorriu-lhe; adorava que ele estivesse perto de si. Trataria de arranjar uma explicação qualquer.

- Sim, por mim podes ficar. - No entanto estava relutante em jantar com os artistas seus amigos, uma vez que alguns deles talvez a conhecessem, mas então recordou-se de que já tinha um compromisso. Liam mostrou imediatamente quanto ficara decepcionado e até um pouco magoado.

Sasha beijou-o, explicando-lhe que tinha de ir a um jantar que exigia traje a rigor e que era dado por uns clientes importantes. Tinham-lhe comprado um Monet nesse Verão e, além disso, ela aceitara o convite havia várias semanas. Levá-lo consigo a um jantar formal em casa de um cliente era uma experiência que ainda não estava preparada a arriscar, o que ele disse compreender, mas que não o impediu de se mostrar irritado. Para não o magoar, Sasha afirmou que, de qualquer modo, o convite não lhe permitia levar acompanhante.

- Sendo assim, diz-lhes que não podes ir - declarou Liam, peremptório, com uma expressão de petulância que ela ignorou propositadamente.

- Não posso fazer isso, Liam. São os clientes mais importantes que tenho - replicou Sasha, falando-lhe com toda a sinceridade.

- E o que é que eu sou?

- O homem que eu amo. Mas não faças deste assunto um confronto entre nós. Estás a falar do meu trabalho.

- Terias levado o Arthur a esse jantar? - perguntou Liam frontalmente. Ambos sabiam que o teria feito, mas tudo na presente situação era diferente. Arthur podia ter-se apresentado em qualquer lugar. Não era o caso com Liam; ele não queria conformar-se com as regras. Além do mais, Arthur comportara-se sempre como um adulto, o que Liam também não fazia.

- Isso não é justo - retorquiu Sasha, mostrando-se magoada. - Nós éramos casados, e ele era tão conservador e formal como os meus clientes. Por amor de Deus, o Arthur era banqueiro!

- E eu sou um jovem desmiolado! - Nesta altura já Liam tinha acrescido cólera à petulância.

- Não - contrapôs ela, muito calma -, és um pintor louco, ou já te esqueceste? Foi o que me disseste. E não queres ser ”controlado”. Se estiveres disposto a usar casaco e gravata, a ter um comportamento apropriado e a agir como um banqueiro, sítio que queiras. - Aquilo era uma concessão enorme que ela lhe fazia. Mas ele não queria concessões; queria ter a liberdade de se comportar como muito bem lhe apetecesse, onde quer que fosse, com ou sem ela.

- As pessoas deviam aceitar-me como sou. Tal como tu devias aceitar-me! - ripostou com irritação.

- E aceito, mas não é esse o caso em relação aos outros. Se queres ir comigo a lugares como aquele onde vou jantar, terás de te conformar com as respectivas regras. Tal como eu própria. São essas as regras da sociedade em que vivemos. Desta vez não vou poder levar-te comigo, porque falta muito pouco tempo para o dia do jantar, mas se encarares o assunto com seriedade, vamos comprar-te um smoking, e já poderás acompanhar-me da próxima vez que for convidada para outra coisa qualquer do mesmo género. Isto é, se estiveres disposto a cingir-te às regras. O contrato é este.

- Que se fodam! - vociferou Liam, subitamente irado.

- Quem diabo é que pensam que são? Sou duas vezes mais homem do que eles! Ouvi as mesmas merdas da boca do meu pai quando era miúdo e já depois de crescido. Recuso-me a entrar nesse jogo seja por quem for, Sasha, nem mesmo por ti.

- E não tens de o fazer - retrucou Sasha calmamente.

- Não precisas de ir a nenhuma das reuniões formais a que costumo comparecer. Mas se quiseres ir, terás de seguir as regras. É assim que as coisas são.

- E quem é que estabelece essas regras? Um cara-de-cu qualquer pomposo de smoking? Por que razão eu haveria de comportar-me e vestir-me como ele? Por que motivo não posso ser quem sou?

- Porque esses caras-de-cu velhos e pomposos possuem o dinheiro e o poder e são eles que estabelecem as regras. ”Aquele que é detentor do ouro governa”, lá diz o ditado. E se quiseres movimentar-te nesse mundo, terás de ser civilizado e agir em conformidade com as regras.

- Se tivesses orgulho em mim e me amasses de verdade, aceitar-me-ias tal como sou. - Liam era como uma criança revoltada, e Sasha sentiu que o coração lhe caía aos pés. Tinha receado que as coisas chegassem àquele ponto, e não fora preciso muito tempo para que os seus receios se concretizassem. Em menos de uma semana, aquela era a segunda discussão acesa entre os dois, o que confirmava os seus piores receios, levando-a a concluir que a relação entre os dois não resultaria.

Havia um grande número de coisas que adorava nele, a sua generosidade, o calor humano, o afecto que lhe dedicava e que não ocultava de ninguém, o seu sentido de humor, a sua inteligência, o seu talento e também o quanto era fabuloso na cama. Mas as suas birras de imaturidade não constavam, definitivamente, dessa lista.

- Tenho orgulho em ti e amo-te, mas não tenciono introduzir-te nesse meio para me pores a ridículo ou fazeres figuras disparatadas. Se quiseres comportar-te como te der na veneta, só conseguirás que ambos sejamos alvo de chacota.

- O que é mais importante para ti, Sasha? Eles ou eu?

- Ambos. Amo-te, mas é nesse mundo que eu vivo. Faz parte do meu ser. Eu disse-te isso quando nos conhecemos. Este é um problema com o qual teremos de nos confrontar para sempre, a menos que estejas disposto a abdicar de seres um pintor louco, entrando no meu mundo como um homem de verdade. Mas se pretendes continuar a desempenhar o papel de artista louco ou de jovem destrambelhado que não aceita qualquer tipo de controlo, então não te podes opor a que eu viva nesse mundo sem a tua companhia. É tão simples quanto isso. A escolha é inteiramente tua.

- Eu sou o que sou, e não tenho intenção de mudar a minha maneira de ser nem de lamber as botas de ninguém, quer por ti quer por eles!

- Tens todo o direito de tomar essa decisão, mas não te assiste o direito de obrigar os outros a aceitarem-te se continuares a recusar viver de acordo com as regras deles ou as minhas.

- Bem no fundo, tudo isto tem a ver contigo, não é verdade? Não tem nada a ver com os outros. Tu queres que eu faça de conta que sou o Arthur. Pois bem, não sou. Sou eu, Liam Allison.

- Isto não tem nada a ver com o Arthur! - retorquiu Sasha entre dentes, indignada. - Olha uma coisa, que tal se amanhã jantasses com os teus amigos? Vou ao meu jantar enfadonho, venho-me embora cedo e depois vou ter contigo ao lugar onde estiveres na Marais.

- O quê, tencionas fazer uma visita aos bairros-de-lata? Lady Mãos-Largas deixa a sua mansão para se encontrar com o namorado campónio no pardieiro? Se não tenho categoria suficiente para te acompanhar, então amanhã volto para Londres. - De qualquer modo, inicialmente Liam planeara partir nessa altura. A decisão de prolongar a estada havia sido uma surpresa para ela. Isso depende de ti - retorquiu Sasha numa voz serena. - Estou a fazer o melhor que posso, Liam. Em determinadas ocasiões, a nossa situação exigirá que ambos façamos cedências. Desde o princípio que temos noção disso.

- Sim, é verdade. A diferença é que ainda não me tinha apercebido de que eu seria o único a ter de fazer cedências. Até que ponto esperas que me deixe humilhar? Dizes-me como devo comportar-me na tua galeria, o que devo fazer para não ofender os teus clientes, tenho de andar em bicos de pés, não posso beijar-te em público e não tenho autorização para me servir de uma bebida.

E se quiser ir contigo a algum lugar mais importante, sou forçado a vestir-me como o Pequeno Lorde Fauntleroy e a portar-me como Malcolm Forbes. Pois bem, sou um artista, Sasha. Não sou nenhum macaco amestrado ou um banqueiro e não vou permitir que me cortes os tomates!

- Não estou a tentar cortar-te os tomates. A verdade é que vivemos em mundos diferentes. Era inevitável que isto acontecesse. Vamos precisar de muita compreensão e flexibilidade para que a nossa relação possa resultar. - Ainda nenhum dos dois sabia se tal seria possível e, ao que tudo indicava, isso não aconteceria, principalmente se ele persistisse em comportar-se como um artista louco quando a acompanhasse a qualquer lado. As duas coisas eram antagónicas. Ela já tivera o cuidado de o advertir quanto a isso, e agora encontravam-se num beco sem saída.

- Eu já te disse, não vou permitir que me cortes os tomates. Amanhã regresso a Londres. Logo que tu estabeleças racionalmente as tuas prioridades, dá-me uma apitadela. Ao ouvir o que ele dizia, Sasha só lhe apetecia desatar a gritar.

- Isto não tem nada a ver com prioridades, Liam - disse ela, dando a impressão de estar desesperada por não perder a calma com ele. Mas tentar fazer Liam ver a razão era frustrante, agia como uma criança com birras. - Tem a ver com agirmos segundo as regras estabelecidas e viver em mundos diferentes. É como passar a ser membro de um clube. Caso se queira frequentar esse clube, é necessário que cumpramos as regras.

-Jamais me conformarei com isso, Sasha. Nunca! Se quisesse viver dessa maneira, continuaria na Califórnia com o meu pai, a ter de aceitar as merdas todas dele. Mas acontece que não estou disposto a aceitar merdas de ninguém, muito em especial de ti. Se quiseres que eu faça parte da tua vida, então aceita-me como sou, não me venhas dizer como é que devo portar-me e falar-me de regras, quaisquer que elas sejam. Não existem regras, ou não deviam existir, se me amares de facto.

- Existem sempre regras - retrucou Sasha com tristeza.

- E eu sou obrigada a viver em conformidade com elas. Não posso fazer o que me der na real gana.

Não posso aparecer amanhã de calças de ganga, ou com botas de vaqueiro e um boné de basebol. Tenho de ir como os outros, com o cabelo bem penteado e vestido de noite. Tenho de me apresentar tão apropriadamente quanto os demais, o que faço porque acredito nas regras que estão estabelecidas. Mantêm as coisas de modo civilizado.

- Mas eu não quero ser civilizado, raios partam isto! Só quero ser eu mesmo! Quero ser respeitado e que me aceitem pelo que sou, independentemente do modo como me comporte, e não pelo que possa fingir ser ou por estar disposto a lamber-lhes as botas. Nunca farei isso!

- Era evidente que a discussão estava a trazer à superfície episódios da juventude, uma vez que até Sasha se apercebia de que a cólera que ele mostrava para com ela era completamente desproporcionada. Enquanto continuava com toda a sua retórica, era manifesto que Liam estava fora de si. Nada do que ela dizia tinha a mínima razão de ser para ele, tal como nada o induzia a acalmar-se, pelo contrário, parecia que só servia para lhe exacerbar os ânimos. enquanto o ouvia. Nesse momento ele encontrava-se algures na estratosfera, sozinho.

- Não te estou a pedir que lambas as botas seja de quem for, Liam, muito menos as minhas. Podes portar-te como bem te apetecer. Mas se é isso que queres, então terás de viver no teu lado do muro, permanecendo no teu próprio mundo ou no nosso mundo privado, sobre o que não tenho nada a objectar. Mas caso queiras passar para o outro lado do muro e ficar lá comigo, então terás de viver de acordo com as regras.

- As regras deles que se fodam! E já que estamos a falar nisso, Sasha, vai-te foder! Se não tens orgulho em mim, se te sentes constrangida por eu ser mais novo do que tu, se não me respeitas pelo que sou, então não quero estar contigo. E também não tenciono continuar aqui. Amanhã volto para casa. Quando te decidires, podes telefonar-me.

- Sobre o quê? O que é que eu tenho de decidir? O que é que queres de mim? - Sasha sentira-se aturdida. Parte do que ele dizia era tão irracional que não fazia qualquer sentido. Nada daquilo era novidade. Ele sempre soubera quem ela era e qual a sua atitude perante a vida, desde o princípio. Essas tinham sido as preocupações principais que tivera em relação a ele, para além do factor ”idade”.

Mas agora a idade dele era a última das suas preocupações. A falta de limites e o comportamento imaturo eram aspectos muito mais graves. Liam estava a portar-se como uma criança de cinco anos.

- Ou tu te decides a levar-me para o mundo em que vives tal como eu sou, sem tentares deixar-me aqui, como se eu fosse um prostituto cujos serviços tivesses contratado por uma noite, ou saio de tua casa para sempre. Recuso-me a ser deixado em casa, como se fosse lixo. E também não permito que ninguém me diga como devo comportar-me! - vociferou Liam, enquanto ela fazia um esforço tremendo para conter as lágrimas. Sasha queria que ele fosse diferente do que se estava a revelar. Queria que a relação entre os dois resultasse, mas, por aquele andar, isso jamais viria a acontecer.

- Sendo assim, és tu quem tem de decidir o que queres fazer! - ripostou, subitamente tão irritada quanto ele. - Pára de te portares como uma criança que está a fazer uma birra, a dizer que não toma banho ou que não quer vestir o fato e que pode atirar a comida para o chão quando muito bem lhe apetecer. Se queres descer para jantar com os crescidos, então comporta-te como um adulto. Por amor de Deus, é só isso que é preciso! Podes fazer de artista louco para sempre, uma vez que desejas conduzir-te como as crianças que se

portam mal. Se é isso que queres, então não estejas para aí a lamuriar-te porque não posso levar-te. Meu Deus, era o que gostaria de poder fazer! Gostaria muito, mas não estou disposta a colocar-me numa situação constrangedora enquanto tu te exibes, tentando provar até que ponto consegues ser ultrajante. Se me amas tanto como afirmas, Liam, então começa a crescer e aprende a ter um comportamento como deve ser. Não tenciono levar uma criança mimada a sair comigo.

Sugiro que penses sobre isso e que sejas tu a decidir o que pretendes fazer. Eu já tomei a minha decisão. Estou aqui contigo. Agora só tens de cumprir a tua parte, caso contrário, vai em paz e nunca mais me incomodes. É preciso mais do que amor e ser bom na cama para se viver em sociedade. Em determinada altura, quer nos agrade, quer não, todos temos de crescer. Talvez tenha chegado essa altura para ti, mas quem tem de descobrir isso és tu. Volta para Londres, se é isso que queres, e quando te decidires a crescer dá-me uma apitadela.

Nessa noite não disseram mais nada um ao outro. Pela primeira vez desde que ele tinha chegado a sua casa, cada um ficou no seu lado da cama, mantendo a distância entre os dois. Liam sentia-se profundamente magoado pelo que considerava ser deslealdade da parte dela e por tudo o que ela dissera, enquanto Sasha estava furiosa por causa da birra dele. Liam agira como uma criança mimada. Na manhã seguinte, ambos se levantaram em silêncio.

Ele tomou duche, fez a barba e vestiu-se. Antes que Sasha saísse para o escritório, fez a mala e ficou a olhar para ela no vestíbulo da frente.

- Amo-te, Sasha, mas não vou permitir que me controles nem que me digas o que devo fazer. Tenho demasiado respeito por mim próprio para deixar que isso aconteça.

- Eu também te amo e respeito. A sério que sim - retorquiu ela, falando com sinceridade -, quer como artista quer como homem. Embora não estivesse muito segura quanto ao respeito de que ele seria merecedor como pai, ainda não o conhecia suficientemente bem para poder ajuizar esse aspecto, além de nunca o ter visto com os filhos, mas eram tantas as coisas de que gostava em Liam que cada vez se sentia mais apaixonada por ele. Contudo, não o suficiente para abdicar de toda a sua maneira de viver por ele. Já era velha para isso.

Além do mais, gostava da sua existência tal como era. - Isto não tem nada a ver com controlo. Tem a ver, isso sim, com respeito mútuo. Se me respeitares, vem para o meu mundo, começa a viver conforme as regras e porta-te como um cavalheiro. Caso não queiras agir dessa forma, um direito que te assiste, então não te queixes se eu conviver sozinha com as pessoas que fazem parte desse mundo. Não podes ter as duas coisas. Não podes impor o ”Farei o que me der na veneta” num mundo de gente civilizada, Liam. Já não tens idade para isso. Nem sequer às crianças se permite que se comportem assim.

- Nunca abdicarei da minha maneira de ser. E se me amas, terás de aceitar isso e estar disposta a levar-me a toda a parte tal como sou.

- Não posso. Não posso fazer uma coisa dessas a mim mesma, nem aos meus filhos, do mesmo modo que não posso arriscar a reputação que cimentei ao longo de todos estes anos. Não posso permitir que me obrigues a fazer figuras ridículas em público, Liam. - E sabia de antemão que era isso que ele faria. Tinha ouvido Xavier falar de muitas das façanhas dele, embora nunca tivesse presenciado nenhuma. Porém, o episódio em que a interrompera durante uma reunião na galeria era suficiente para ela. Ao que acrescia a birra da véspera.

Sasha sentia-se deveras preocupada. -Já é bastante mau que eu seja quase dez anos mais velha do que tu. Sei que não é muito, mas a mim parece-me uma diferença enorme, principalmente devido ao teu comportamento e ideias, o que, por si só, já fará com que muitas pessoas fiquem chocadas, portanto, não me peças que te leve aos lugares mais requintados para depois te arrogares o direito de agir como um artista louco, única e exclusivamente para marcares uma posição. Na minha opinião, isso não demonstra amor nem respeito

por mim nem pela minha maneira de ser. Sabias quem eu era e como vivia. Disseste que podias lidar bem com a situação, e acreditei em ti. Mas agora não estás disposto a cumprir o que disseste, só queres fazer o que te der na cabeça no mundo em que vivo, mas não podes. Tal como eu não posso. Ninguém pode!

Todos temos de saber como nos comportar e andar na linha. Espero que acabes por reconhecer que não estás a proceder bem, porque eu amo-te e quero ficar contigo. O que estás a fazer não é justo para comigo. O facto de estarem a ter aquela conversa, ou discussão, era algo que lhe inspirava receio. Quem era realmente aquele homem? E por que razão a liberdade plena era tão vital para ele, ainda que à custa dela?

- Eu é que estou a ser lixado em toda esta situação, além de desrespeitado - contrapôs ele, quase a fazer beicinho. - Tu queres ser a única a dar ordens!

- A única ordem que quero dar é pedir-te que cresças, que procedas de maneira civilizada, ou então que me deixes cumprir as minhas obrigações, enquanto tu te divertes com os teus amigos. Podes ser tão revoltante quanto quiseres, mas, se for esse o caso, então não estejas à espera de poder acompanhar-me e que eu te exiba perante as pessoas que conheço. Se tencionas continuar a proceder de modo ultrajante terás de ficar em casa comigo e agir assim em privado, nunca em público.

- Recuso-me a ser o teu segredo escabroso, Sasha. Se é isso que pretendes, então procura outro homem. Ou te decides a levar-me contigo e apresentares-me aos outros, tal como eu sou, ou está tudo acabado entre nós.

- Sendo assim, deduzo que seja esse o caso, pelo menos para já. Pensa no assunto, Liam. Só espero que acabes por ver a razão quando voltares para Londres. Se o que eu te disse começar a fazer sentido para ti, podes telefonar-me. - Ele olhou para ela, fez um acenar de cabeça e, sem sequer se deter para a beijar, pegou no saco de viagem, passou por ela e saiu, batendo com a porta.

Depois de ele ter partido, Sasha sentou-se, reflectindo sobre tudo o que se passara. Amava-o, mas não ao ponto de virar a sua vida de pernas para o ar por causa dele, abdicando da sua personalidade. Já era tarde de mais para mudar a sua maneira de ser fosse por quem fosse. Nem sequer por Liam. Tinha noção de que estava apaixonada por ele, mas não o suficiente para uma mudança tão radical.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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