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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IMPULSOS DO CORAÇÃO / Corin Tellado
IMPULSOS DO CORAÇÃO / Corin Tellado

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

IMPULSOS DO CORAÇÃO

 

Adolfo encostou-se no umbral. Era um rapaz de mais ou menos vinte e cinco anos, cabelos pretos e olhos castanhos-claros. Nem bonito nem feio, nem alto nem baixo. Um homem como qualquer outro. Apenas os olhos o distinguiam de seu irmão e dos amigos deste. Tinham um brilho desusado ao pousarem, naquele instante, sobre os grupos que se formavam no salão. Sorriu. Era um sorriso que mais parecia uma careta.

Raul, quando o viu, gritou:

— Venha, Adolfo. Divirta-se, rapaz.

Este pensou que vinha de um divertimento onde só conseguira ficar aborrecido. Isso acontecia-lhe muitas vezes. “Estarei envelhecendo?”

Tornou a esboçar um sorriso.

— Eh, você, Adolfo — gritou uma jovem loura. — Não vem? Faça-me companhia, homem.

O moço deu de ombros. Inclinou um pouco a cabeça para melhor contemplar o quadro. Era divertido, mas nada edificante. Bem, ele tampouco era um homem edificante.

Observou o quadro, novamente, mas de olhar parado. Raul, seu irmão, enchia as taças. Entre risos e piadas, ia passando-as aos amigos. Brindavam, batendo umas nas outras. Bebiam, faziam discursos. No outro extremo do salão, três jovens dançavam e no centro, um homem resolveu acompanhar Maruchi no Madison.

Onde estaria Teresa? Sua irmã era bem capaz de ter ido para a biblioteca namorar algum de seus amigos. Era tudo muito pueril e ao mesmo tempo desenfreado, sem moral nem pudor.

Deu meia volta.

— Eh, eh, Adolfo. Não vá embora, homem.

Este continuou andando. Atravessou o corredor, olhou em torno com ar de idiota. De repente, tudo lhe parecia diferente. A luxuosa residência de seus pais, os grandes salões, ricamente decorados, os pisos reluzentes, os quadros valiosos nas paredes... Os grossos tapetes sobre os quais os pés afundavam...

Tudo começara por causa daquele enterro. Quatro pessoas acompanhavam o féretro. A filha mais velha do morto e os seus três irmãos. Aquela visão fora um amargo despertar para ele. Deu de ombros. Que tinha ele a ver com tudo aquilo?

Empurrou a porta da biblioteca. De fato, sua irmã ali estava, afundada numa poltrona, com um homem... mais um, sem dúvida. Tinham dois cálices de licor sobre a mesa, fumavam e conversavam muito animados.

Adolfo fechou a porta novamente e dirigiu-se ao seu quarto. O primeiro andar comunicava-se com o segundo por uma artística escada atapetada.

Ainda bem que os aposentos de Adolfo eram no segundo andar. Havia uma porta particular por onde podia entrar e sair sem que ninguém visse. É claro que em sua casa, embora o ouvissem chegar às seis da manhã, ninguém lhe diria nada. Cada qual fazia o que bem entendia. Era raro reunirem-se todos para fazer uma refeição juntos. Seus pais também tinham o seu grupinho. Era muito divertido. Sim, muito divertido.

Onde estariam eles àquela hora? Bem, talvez estivessem em alguma reunião social. O pai, com suas amigas, sua mãe com os seus. Era absurdo.

Não era um sentimental, nem moralista. Parecia-se ao pai, ao irmão, aos amigos deste, e aos acompanhantes da irmã. Não era um imoral no modo atual de encarar as coisas. Era apenas um homem moderno.

Empurrou a porta de seu quarto e foi diretamente para o leito. Estirou-se nele e acendeu um cigarro. Tinha bom sabor. Bem, todos os cigarros eram bons. Fumou devagar, tragando e expelindo a fumaça lentamente, como se vê-la desaparecer no ar, formando estranhos arabescos, o divertisse. Olhos fixos no teto, parecia que até a respiração parara. Refletia. Adolfo Montero pensava poucas vezes. Muito poucas.

A princípio, quando estudante, antes de aprender a catalogar as pessoas e suas atividades sociais ou profissionais, costumava pensar o que faria na vida.

Na verdade o pai nunca tivera a preocupação de perguntar-lhe: “Que pretende fazer? Quais são suas inclinações? Em que se baseiam suas aspirações?” Nada. Mandara educá-lo num grande colégio, que lhe custara uma fortuna. Terminou o curso secundário no internato. Quando voltou para casa, em definitivo, e chegado o momento de escolher a carreira, o pai limitou-se a perguntar.

— Vai estudar?

Ele respondeu:

— Sim.

— Engenharia?

Era “bem” ser engenheiro. Todo o mundo queria ser. O jovem disse que não, queria ser aparelhador.

André Montero deu de ombros. Dolores Morales, sua esposa, também fez o mesmo.

Adolfo começou os estudos.

Foi fácil. Terminou o curso no meio de farras, amiguinhos e passeios. Nunca lhe perguntaram: “Quer trabalhar?” E não trabalhava.

André Montero tinha bastante dinheiro. Muito dinheiro. Raul, por exemplo, declarou que não desejava estudar. Os pais tornaram a sacudir os ombros...

 

Desceu ao salão. Os amigos de Raul já se haviam retirado. Eram onze horas da noite. Teresa fumava um cigarro, afundada no divã, de pernas cruzadas, numa atitude negligente. Era muito bonita, mas fútil como ele, como Raul, como seus pais. Era espantoso que pensasse assim, após vinte e sete anos de uma vida vazia de pensamentos. Dera para analisar sua própria vida e a alheia, há pouco mais de um ano. Não era ridículo?

— O que é que havia com você, esta tarde? — perguntou Raul.

Adolfo fez um gesto vago.

— Não sabe que ele tem manias? — disse Teresa.

Adolfo olhou para ela.

— Quem era o rapaz que a acompanhava?

Teresa começou a rir.

— Alguém — disse. Levantou-se e deu umas voltas pelo salão. — Vou para a cama.

Deu um adeus com a mão e não esperou resposta.

Os dois irmãos ficaram sós. Raul era moreno, alto e esbelto. Tinha vinte e cinco anos, mas qualquer pessoa lhe daria trinta. Ele também. Seus vinte e oito aparentavam trinta e muitos.

— Onde estão os velhos? — perguntou Adolfo daí a pouco.

Raul fez um gesto vago, como que dizendo: “Sei lá”!

— O porteiro morreu — disse Adolfo pouco depois, como se aquele fato o obcecasse.

O irmão o olhou com expressão distante. “E eu com isso”, seus olhos pareciam dizer. Adolfo apressou-se a acrescentar:

— Vi o enterro.

— Muito divertido — comentou Raul com a mesma indiferença.

— Não achei nada divertido — disse Adolfo.

Raul soltou uma risada. Acendeu um cigarro e dirigiu-se à porta.

— A turma está esperando por mim no clube. Até amanhã, pois, amigo.

Adolfo continuou afundado no divã. Atirara-se nele, desanimado. Levantou-se duas vezes e tornou a sentar-se, como que em dúvida.

E era isso mesmo. Pela primeira vez, em muitos anos, ficava em casa àquela hora. Talvez fosse por causa da morte do porteiro. Afinal de contas era um ser humano e deixara quatro órfãos.

Adolfo tinha consciência. Talvez um tanto remota ou adormecida, mas tinha. Assim como um coração, embora envenenado ou gasto, no fundo, ou lá o que fosse. Não era desprovido de sentimentos.

Ouviu passos no vestíbulo e a voz de seu pai, alegre e otimista.

Sentiu-se deslocado. Os pais divertiam-se. Estavam no seu direito. Talvez fosse a coisa mais natural do mundo. O amor, naquele lar, primava pela ausência, mas eles divertiam-se, assim como Raul, a quem também pouco interessava, nem a Teresa, nem a ele próprio. Quando teria notado aquela falta de amor?

— Caramba — exclamou André, tirando o cachecol e o sobretudo. — Mas que faz você aqui?

Seu pai devia estar beirando os sessenta anos, embora não aparentasse. Sua mãe era magra, esbelta e ainda parecia jovem, apesar dos cinqüenta anos. Era parecida com Teresa.

Sentaram-se diante dele. Não perguntaram por Teresa nem por Raul. Onde quer que estivessem, pouco se preocupavam.

— Por que não saiu? — perguntou-lhe a mãe.

— Estava sem vontade.

E, como que obcecado, repetiu:

— O porteiro morreu.

A senhora e seu marido entreolharam-se.

— Já sabemos — riu, tranqüilamente André. — Mandamos um donativo para os órfãos e decidimos que a filha mais velha tome conta da portaria. Como proprietários do imóvel, temos direito a fazer esta imposição. — Olhou para a esposa. — Não está cansada, Dolores? Vamos dormir?

E recolheram-se. Adolfo tornou a pensar: “Um donativo e a tranqüilidade que a filha mais velha possa continuar na portaria.” Grande consolo material.

Levantou-se e foi dormir. Era absurdo aquele súbito clamor de sua consciência, se nunca tivera muita. O pai arranjava tudo por meio de donativos. Fazia pouco, atropelara um transeunte com o seu carro, A vítima era pai de sete filhos. O seguro pagou a fiança do pai. Pouco tempo depois a viúva apareceu para reclamar. André deu ordem ao secretário para que lhe entregasse grande quantia. E ficara tão tranqüilo... Nem mesmo tornou a se lembrar que dirigia meio embriagado, quando matou o pedestre.

André tinha uma consciência muito elástica. Sempre que aquele caso era comentado, dizia invariavelmente: “A família estabeleceu-se.” Quanto ao morto, pouco lhe interessava...

Começou, então, a ver claro em sua vida e na de sua família. Mas isso não lhe agradava, em absoluto. Só lhe restava esquecer um pouco que tinha consciência para continuar vivendo.

Entrou no quarto de banho e meteu-se no chuveiro, antes de se deitar. Acendeu o último cigarro da noite, voltando a pensar na família e em si próprio.

Recordava-se de ter ouvido falar que seu avô começara a vida vendendo quinquilharia num povoado da província. Tempos depois instalara uma loja de antigüidades. Seu pai não chegou a conhecer a pobreza. Foi um distinto universitário, e ao casar-se com a filha de um abastado comerciante, todos pareceram esquecer a procedência de sua fortuna.

Raul, Teresa e ele foram crianças mimadas. Que tinham de positivo? Dinheiro. Amor fraternal? Ternura? Lar? Não, não tinham nada disso. Mas nunca notara essa falta até aquela tarde, quando viu a filha mais velha do porteiro, muito bonita, por certo, caminhar junto de seus três irmãos, acompanhando o féretro. Era, certamente, desolador o que presenciara. Preferia não ter visto nada. E pensar como seu pai: “Enviei-lhes um donativo e decidi que a filha mais velha continue ocupando o lugar de porteiro.” Desconsolador, certamente.

 

Teresa era a única que estava na sala de jantar. Ali, cada um fazia o que bem entendia. Seus pais levantavam-se à uma hora da tarde. Raul, na hora do almoço. Teresa madrugava, mas não o fazia para realizar alguma tarefa doméstica, e sim para ir ao clube ou à hípica e passar a manhã namoriscando.

Que tinha a lhe censurar? E ele, que fazia? Passava as manhãs sentado no terraço de um café com seu grupo.

— Sabe de uma coisa, Teresa?

Esta ergueu seu lindo olhar.

— Sei de muitas — disse a irmã, tranqüilamente.

— Desta, não. Nem desconfia.

— Arranjou outra amiga?

— Não se trata disso. Já não é novidade para mim

— disse Adolfo.

— Vocês, homens, são nojentos.

Sempre dizia isso. E as mulheres? Que era ela, na realidade? Que faria neste mundo? Divertir-se, vestir-se bem, gastar,.tjrocar de carro duas vezes por ano...

— Não quer saber de que se trata?

Teresa levantou os ombros. Era lógico que não lhe interessava. Tinha seus assuntos particulares que não externava, por achar que não podiam interessar a ninguém.

— Diga, se quiser.

— Vou viajar.

— Grande novidade! Você parte quando lhe der na telha. É a terceira vez este ano — e, despreocupada, ficando em pé: — Suponho que não irá sozinho.

— Pois engana-se. Desta vez vou só.

Teresa saiu, sem responder.

Adolfo tomou o desjejum, servido pela diligente copeira. Era uma gracinha de pequena. Raul as selecionava. Não sabia que jeito dava, mas o certo era que da agência sempre mandavam verdadeiras maravilhas. Lindas como cromos. E o mais curioso era, além disso, que nunca saíam da casa até casarem.

O café da manhã terminou. Ele nunca se interessara pelas criadas de sua casa. Sabia que elas o chamavam de “o Ogro”. Tanto melhor. Ainda lhe restava alguma decência.

Pôs-se de pé e pediu o sobretudo e o chapéu. A criada o ajudou a vestir o abrigo.

— Até logo — disse.

Deslizou pelo vestíbulo e abriu a porta. Moravam no primeiro andar. Não utilizou o elevador. Não pensara ainda no porteiro e seus órfãos, mas ao chegar ao portal e ver a filha do falecido em seu posto, ficou um tanto suspenso.

— Bom dia — cumprimentou, amavelmente.

— Bom dia, Sr. Adolfo.

Era uma linda criatura. Céus, bonita demais para ser apenas uma porteirinha.

Tinha uns olhos maravilhosos, intensamente verdes, acariciantes, velados por pestanas negras e espessas. Uma cabeleira preta e sedosa...

— Meus sentimentos, pelo seu pai.

Viu-a apertar os lábios.

— Obrigada, senhor.

— Seus irmãos, como estão?

— Mandei-os para a escola, antes de descer.

Afastou-se sem dizer palavra. Que poderia dizer-lhe?

Começava a surgir, em seu íntimo, uma nova idéia obsessiva. Aquela moça tão só numa portaria...

Apressou o passo e entrou no carro. Sentia-se mesquinho. Porque censurara a família na noite anterior, se ele era muito pior? Quanta miséria moral!

Pôs o carro em movimento e dirigiu-se ao Clube.

Firmou as mãos no volante. Pisou mais fundo no acelerador, aumentando a velocidade.

Passou a manhã no clube e depois no terraço de um café. Às duas horas voltou para casa. Olhou para o compartimento do porteiro. Ali estava um menino de mais ou menos onze anos.

— E sua irmã? — perguntou, amavelmente.

— Cozinhando, senhor. Temos que nos revezar — disse o garoto, que parecia muito vivo. — Ela fica de manhã. Dorinha, que tem doze anos, faz as camas antes de ir para a escola. Eu me encarrego de encerar o chão. Maria José dá de comer a Bernardinho.

Isso era viver! Uma vida de verdade! Que fazia ele, entretanto? O que gastava por semana dava para a filha mais velha do porteiro pagar, mensalmente, um colégio para as três crianças.

Tornou a abafar o grito de sua consciência e entrou no elevador.

 

— Seu Adolfo, do primeiro andar, perguntou por você,

Maria José começou a servi-los.

— Eu disse que você estava cozinhando.

Maria José continuou calada. Pensava nas crianças e em si mesma. A vida ali não era nada fácil. O que ganhava como porteira não era suficiente para manter os quatro. Seus pais costumavam fazer biscates, além de seu trabalho. E quem iria cuidar da calefação? Dentro de um mês, talvez menos, seria necessário acendê-la. Não agüentaria aquele serviço, mesmo que quisesse.

— Seu Adolfo é bom. Não acha? É o único que fala com a gente.

— Coma.

— Maria José, Maria José — Bernardinho chamou do quarto — estou com medo.

Precisava acabar com o medo do menino. Não podia cuidar de tudo. Era muita coisa. Não por falta de força de vontade e resignação, mas porque era impossível abarcar tudo.

— Maria José...

— Já vou, meu bem, já vou...

— Você não acha, Maria José, que Seu Adolfo...?

— Coma — insistiu. — Depois falará sobre isso. Tem que ir buscar Dorinha — consultou o relógio. — Vou descer dentro de uma hora para fechar a portaria.

Entrou na alcova que compartilhava com o menorzinho. Bernardinho tinha seis anos de idade. Exatamente o tempo em que ficaram órfãos de mãe. O caçulinha já ia para a escola com os irmãos. Ainda bem, pois assim poderia tomar conta da portaria todas as manhãs e escapulir pelo elevador de serviço para preparar o almoço.

Moravam no último andar, que dissimulava o telhado; era cômodo e até elegante. Seus pais, há justamente sete anos passados, um antes de Bernardinho nascer, quando pegaram aquele emprego, ali se instalaram cheios de ilusões. Arrumaram o apartamento com cortinas, tapetes e móveis cômodos... O pai tirara um pequeno prêmio na loteria, e devido à sua saúde precária, resolveram, de comum acordo, aceitar aquele trabalho que era, até certo ponto, leve.

Não teriam que pagar aluguel; naquela época era difícil achar apartamento. Ajudavam-se uns aos outros, e com dinheiro do prêmio podiam viver, mobiliar a casa e educar os filhos. Quem mais proveito tirou daquele prêmio foi Maria José, pois pôde aprender inglês. Fazia o curso secundário e ia aprender francês, quando sua mãe faleceu ao dar à luz Bernardinho. Teve então que deixar os estudos e ajudar o pai na portaria, pois seu estado de saúde não permitia nenhum excesso. Depois, quando adoeceu para não mais se levantar, teve que tomar conta da mesma, alternando o serviço com seus dois irmãos. Pepe, o maior, já com treze anos; Dorinha, com doze; Bernardinho, seis, e ela... dezenove.

— Maria José, estou com medo.

Apertou-o contra si. Adorava seus três irmãos. Agora o que tinha que fazer era consolar Bernardinho. Esquecer, inclusive, da morte do pai. Nem sequer pudera chorar livremente. Queria poupar essa dor aos irmãos.

Fora horrível! Ninguém no edifício teve idéia de perguntar se precisava de alguma coisa, de companhia, pelo menos. Estiveram sempre sós. Algumas moças, quando souberam que seu pai havia falecido, foram levar-lhes alguns donativos. Dinheiro! Era lógico que fazia falta, mas como seria confortadora e humana a companhia de alguém, embora por poucos instantes naquele transe tão doloroso...

— Durma, meu bem.

— Estou com medo.

— Eu estou com você.

— Não vá embora.

Agarrava-se a ela. Beijou-o, devagar, muitas vezes.

Cantou-lhe uma canção de ninar. Era tão pequenino! Percebeu que Pepe saíra pelo elevador de serviço. Ia fazer companhia à irmã.

Pouco depois, ao sair do quarto de dormir, tendo o menino adormecido, encontrou a cozinheira do primeiro andar.

— Maria.

— Olá, Maria José. Vim trazer-lhe isto...

Era meio pastelão, dos grandes, com um cheiro convidativo. Sentiu pena, dor, humilhação, mas aceitou sem protestar.

— Naquela casa não há controle — Maria riu, bem-humorada. — Você sabe como eles são. Cada qual come, diz e faz o que bem entende.

Ela não sabia. As poucas coisas de que tomava conhecimento vinham por intermédio delas, das tagarelas, e não lhe interessava, em absoluto. Maria era uma boa mulher. Contava-lhe o que se passava na casa dos patrões. A jovem deixava-a falar, porque fora amiga de sua mãe e também por ter sido a única pessoa que se ocupara deles, naquele transe.

— Obrigada, Maria — disse, tranqüilamente. — Se não tem pressa, sente-se.

— Eu, em seu lugar, não me sujeitava a isto. Você nasceu para coisa melhor.

Sempre lhe dizia o mesmo. Maria José olhava-a, agradecida, embora nunca lhe respondesse.

A senhora sentou-se por uns momentos. Era uma mulher de mais ou menos quarenta anos. Trabalhava na casa dos Montero há mais de dez. Já se encontrava lá, quando eles ocuparam seu posto. Lembrava-se de tê-la visto, às quintas e domingos, fazendo tricô, na saleta, em companhia de sua mãe. Haviam passado nove anos, pelo menos.

— Hoje tenho um pouco de tempo — disse Maria, interrompendo os pensamentos da moça. Ninguém virá para jantar. Os patrões foram para Barcelona. Estão sempre viajando. São uns felizardos. Seu Raul passa o tempo em seu apartamento de solteiro. Dona Teresa vai jantar com uns amigos e Seu Adolfo, não sei, saiu à tarde e disse que não voltaria — deu um suspiro. — Que vida! Uns com tanto e outros com tão pouco. Não acha esta vida um tanto desordenada, Maria José?

A jovem fez um gesto vago, como que dizendo: “Certamente, mas devemos nos conformar.” A cozinheira prosseguiu:

— Estou há dez anos nessa casa. Como não pretendo casar, creio que continuarei aqui até envelhecer. Ainda bem que agora temos aposentadoria.

A jovem consultou o relógio.

— São dez e meia. Tenho que fechar a portaria. Vou buscar as crianças.

— Vá. Como não tenho o que fazer agora, vou lavar a louça, num instante, para você.

— Não, de modo algum.

— Vamos, menina, não seja assim. Com essas mãos tão bonitas. Sinto tanta pena. Você não nasceu para esta vida.

— É muito indulgente, Maria.

— Qual nada. É a verdade. Parece uma princesa. Eu diria que nasceu em berço de ouro. Não só você, como seus três irmãos, também.

Maria José esboçou um sorriso:

— Volto logo. Mas não se incomode em fazer nada. Dorinha e eu faremos tudo em poucos minutos. Devo deitá-los cedo e eu também tenho que dormir. Sabe como é preciso madrugar. Se a água está fria às sete da manhã, ou apenas morna, os inquilinos acham que tenho de madrugar ainda mais.

— Que vida nojenta! — resmungou Maria, malhumorada. — Se eles tivessem que abastecer a caldeira...

Pepe e Dorinha subiram pelo elevador de carga assim que viram a irmã começar a fechar a porta. A entrada do edifício era suntuosa, de mármore negro, com vidros deslumbrantes.

Fechou primeiro a portaria e depois foi ao subsolo. Tudo estava em ordem. Pôs mais carvão na caldeira, a fim de conservar a água quente até seis horas da manhã, quando se levantava e tornava a descer para acendê-la, novamente. Era o pior serviço da portaria. Não acreditava que pudesse resistir por muito tempo.

Deixou o subsolo e dirigiu-se ao hall. Todas as noites fechava a porta às dez e meia em ponto, mas se por acaso um inquilino que tivesse esquecido a chave, desejasse entrar à meia-noite, tocava a campainha de seu apartamento e ela devia descer para abrir. Era um trabalho, na opinião de Maria, impróprio para uma mulher jovem. Mas ela devia agüentar. Era seu dever. Pelos irmãos, por ela mesma, pela vida, que não estava fácil...

Adolfo Montero freou o carro diante da casa, exatamente no momento em que ela fechava. Esperou-o com a porta envidraçada aberta.

— Ora bem! — exclamou afavelmente. — Por um triz não a encontro. Deixei a chave em casa. Boa noite, Maria José.

— Boa noite, Sr. Adolfo.

Este entrou.

— Posso fechar ou vai sair novamente?

— Não, é claro — riu com a mesma simpatia.

— Vou fechar, então.

— Seus irmãos, como vão?

— Bem, obrigada.

— São muito engraçadinhos — riu Adolfo com mais simpatia ainda. — Qualquer dia... irei até lá em cima para conhecê-los em seu ambiente... Serei importuno, Maria José?

Pestanejou. Subir? Ir à sua casa, o rapaz mais rico dos que moravam ali? Não lhe pareceu próprio.

Adolfo pareceu compreender a expressão dos belos olhos verdes, porque tratou logo de dizer:

— Ninguém precisa saber. A hora indicada...

— Obrigada, senhor. Seria ótimo — acrescentou com naturalidade — mas impossível.

Adolfo fingiu indiferença.

— Por quê? — riu fleumático. — Não seria o primeiro caso...

— É possível, mas...

— Bem, falaremos sobre isso qualquer dia, está bem?

— Boa noite, senhor.

— Boa noite, Maria José.

Entrou no elevador social. Ela dirigiu-se lentamente para o de serviço. Fechou-o e calcou o botão, ao mesmo tempo que suspirava.

Adolfo Montero era um homem bem interessante. Mas falavam tanto dele... Maria contava-lhe; não era nada edificante. Mas, apesar do que Maria lhe dissera, tinha que admitir ser ele um homem simples e agradável. Fora o único do edifício a manifestar seu sentimento pela morte de seu pai.

E se lhe dissesse o que desejava?... Sim, era bem possível que a ajudasse a encontrar emprego. Porque não lhe dizer? Era tão simpático e ao mesmo tempo tão prestativo!

Não conhecia os homens. Dedicara-se, primeiro, aos estudos. Após a morte da mãe, alternava os estudos com os trabalhos da portaria, auxiliando o pai. Assim mesmo ele a obrigava a continuar freqüentando a academia de línguas. Não teve tempo de conhecer os homens. Desconhecia as intenções ocultas sobre a capa da amabilidade, assim como ignorava que uma mulher bonita deve sempre fugir desse tipo de amabilidade.

A vida, com seus reveses, lhe ensinaria a compreender o seu equívoco.

 

— Pensei que não subisse mais — disse Maria. — Seus irmãos já foram dormir.

— Encontrei o Sr. Adolfo, quando entrava.

— Entrava? A estas horas? Mas se... não o terá tomado por outro morador do edifício?

— É claro que não. Conheço todos muito bem. Além disso, ninguém é tão amável como ele.

— Certamente — admitiu a senhora, com simpatia.

— Seu Adolfo é a única pessoa simples da casa, mas a estas horas... Passa as noites fora, minha filha. Muitas vezes regressa com os primeiros clarões da aurora. Recordo que no verão passado, quando voltou de São Sebastião, mais de uma vez o vi estacionar o carro diante do edifício às nove e meia da manhã...

— De qualquer modo e apesar de seus argumentos, ele subiu pelo elevador há cinco minutos. Terá que ir servi-lo.

— De modo algum — riu Maria, cruzando os braços sobre o busto volumoso. — Não sou eu quem serve à mesa. Para isso temos três criadas, que se revezam todos os dias. Três pequenas muito bonitas — acrescentou maliciosa — que entendem muito bem os rapazes. A vida dos Montero, minha filha, não é nada parecida com a sua. Cada um faz o que bem entende. Trabalhei em muitas casas boas. Percorro as cozinhas alheias desde a idade de quinze anos. Pois bem, nunca servi num lar menos lar do,, que o dos Montero. Têm muito dinheiro. Dizem... dizem, e deve ser verdade, que são os senhores mais ricos da Capital.

Nesse ponto, Maria começou a expor o que faria se possuísse muito dinheiro. Naturalmente, o oposto do que eles faziam.

— É o que a senhora diz — acrescentou Maria José — porque não é rica. Acho que o dinheiro modifica até o modo de pensar.

— Não, minha filha, não. Quando se tem a cabeça bem assentada sobre os ombros... a gente desfruta dele como Deus manda. O que é o lar? Não significa o mesmo para todos?

Falou mais de meia hora sobre o assunto, sem que Maria José lhe opusesse uma opinião firme. Para quê?

— Bem — disse Maria, finalmente, levantando-se.

— Preciso deixá-la. Dei um pouco do pastelão às crianças. Gostaram muito. Amanhã trarei outras coisas.

— Não — disse, ruborizada. — Não se preocupe conosco, Maria. Não fica bem a senhora trazer o que... o que...

— O que não me pertence? — riu Maria, tranqüilamente. — Devo dizer-lhe para sossegá-la, minha filha, que se não as trouxer, jogam-nas fora. Que pensa você? Que todos são como nós?

Maria José abaixou a cabeça, envergonhada. Não era orgulhosa, sabia que não devia ser, mas não gostava quando Maria lhe contava o que se passava em casa dos Montero. Era difícil explicar porque, mas sentia-se humilhada.

— Até amanhã, querida.

— Até amanhã, Maria.

 

Deitou-se ao lado de Bernardinho. Apertou-o contra si. O menino, meio desperto, passou-lhe carinhosamente os braços em volta do pescoço, encostando o rostinho no seu. Não conhecera outra mãe. Adorava-a. Certo dia, quando a encontrou chorando, abraçou-se a ela e gritou: “Não chore, Maria José, não chore.” Gritava de tal maneira, que a jovem parou de chorar e nunca mais o fez na presença da criança.

“Terei que trabalhar muito”, pensou. “Trabalhar para os três. Quisera que Pepe completasse o curso secundário, mas não sei se será possível. Onde irei arranjar dinheiro para pagar um colégio particular?”

De olhos muito abertos, aqueles olhos maravilhosos em que Adolfo pensava dia e noite, como uma obsessão, fixos no teto que não via, porque a luz estava apagada, Maria José Palacios ficou acordada por muito tempo. Levantava-se às seis da manhã. Era uma coisa horrível! Custava muito a conciliar o sono e, quando acordava, era um sacrifício sair da cama.

Ia para debaixo do chuveiro e a água fria atuava como um despertador elétrico.

Adormeceu à meia-noite e às seis em ponto pulou da cama. Cobriu os irmãos. Pepe dormia sozinho no quarto que dava para a área. Ela, num quarto com Do- rinha e Bernardinho.

Acendeu o fogão e pôs o leite no fogo. Tomou um banho de chuveiro, enquanto esquentava. Vestiu-se. Tomou café e saiu.

A primeira coisa que fez foi acender a caldeira. Muito jovem e de compleição delicada, aquele trabalho, para ela, tornava-se penoso, quase insuportável para suas forças, mas Maria José Palacios lembrava-se dos irmãos, dos pais falecidos, de sua responsabilidade e redobrava de esforços. Acesa a caldeira, limpou o rosto e endireitou o busto.

— Bom dia, Maria José.

Bruscamente, quase com violência, muito vermelha, assustada e tímida ao mesmo tempo, voltou-se.

— Sr... Sr. Adolfo...

— Ouvi o ruído do carvão lá da porta. Estava saindo, mas pensei: o que acontece lá embaixo? E desci. Desculpe a minha curiosidade, menina.

Maria José, ainda muito vermelha, balbuciou:

— É que... acendemos a caldeira bem cedo.

Adolfo olhou para suas mãos sujas de carvão e para a toalha que ainda segurava, e disse-lhe, suavemente:

— Parece que meu pai não lhe fez nenhum favor mantendo-a na portaria. Esse trabalho não é próprio para uma mulher só.

— Tenho... Tenho três irmãos.

— Sim, é claro — e daí a pouco, com marcada simpatia: — Você não sabe fazer nada melhor?

Era a ocasião propícia, mas não se atrevia. E se tivesse coragem? Parecia ser tão distinto...

— Sabe fazer alguma outra coisa, Maria José?

— Pois...

— Vamos, seja franca. Talvez possa ajudá-la.

Olhava-a, enquanto falava. Baixara as pálpebras e procurava evitar que a moça visse a expressão de seu olhar. Não era boa. Sabia muito bem disso. Tinha sua consciência, como foi comprovada, mas também tinha desejos. E, na verdade, habituara-se a não contrariá-los. Aquela pequena era linda. Tinha uma cintura que quase se podia rodear com a mão, quadris arredondados, perfeitos, o busto firme e ereto e um rosto... Um rosto que era um poema. Era um sujeito de vida desregrada, sabia disso, mas...

— Completei o curso secundário — disse Maria José, inopinadamente, interrompendo os seus pensamentos. — Além disso, falo bem o inglês.

— Como?

Ficou tão espantado, que quase saiu correndo, porém conteve-se.

— Que acha se eu lhe arranjasse uma colocação de acordo com sua pessoa e aptidões?

— Ficaria tão agradecida... senhor.

 

— Trata-se de uma jovem que tem preparo, Amado.

— Mas com três irmãos — protestou este. — Não acha é que muito?

— E que é que tem isso?

— É que...

— Deixe de bobagens. Você a emprega e pronto. Vá pensando nisso. Você está bem de negócios.

Amado era um homem de mais ou menos cinqüenta anos. Solteirão, de boa aparência e amigo íntimo de Adolfo, apesar da diferença de idade. Ambos sabiam muito de seus mútuos pecados. Tinham a mesma consciência maleável e se divertiam juntos centenas de vezes.

— É algum plano?

— É claro que não — respondeu ele alterado. — Trata-se de uma obra de caridade.

Amado olhou-o, descrente.

— Obra de caridade, você... Hum! Permita-me duvidar.

Adolfo não queria confessar aquele pecado, ainda por cometer. Era discreto e sabia muito bem que falava de uma mulher honesta. Mas... suas intenções eram excusas, se bem... que interessava ao amigo saber disso? Aquele assunto não podia ser tratado levianamente. Seria uma coisa discreta.

— Seu pai tem boas casas de negócios — disse Amado, querendo irritá-lo. — Por que não colocar esse melro branco na direção de uma das casas de antigüidades que vocês têm às dúzias?

— Não se trata de meu pai, Amado. Sabe muito bem que não gosto de imiscuí-lo em minhas coisas.

— Pois confesse que é um plano e o ajudarei.

— Claro que não é — agitou-se, aborrecido. — Não estou dizendo que é uma obra de caridade? Parece mentira que isso seja dito por você. A única obra de caridade que faço em minha vida, e você não se dispõe a me ajudar.

— Você e eu, Adolfo, não pertencemos a nenhum apostolado. Somos dois devassos. Lembra-se quando me pediu um favor parecido? Pouco tempo depois soube que... visitava aquele apartamentozinho.

— Asseguro-lhe — disse, impaciente — que este assunto... é limpo.

— Está bem. Mande-a hoje mesmo. Se me interessar...

— Escute, Amado — com o dedo em riste. — Abstenha-se de olhar para ela como costuma olhar para suas secretárias. Este assunto é sagrado, entende-me bem? Ela me considera um homem honrado e o serei, enquanto me tiver neste conceito... Está compreendendo? Muito cuidado com o que disser de mim, e com o que disser de si próprio. Vou dizer-lhe desde já que é muito bonita, muito jovem e inocente.

— Isso não tem importância.

— Amado...

— Entendido. Vou tratá-la como se fosse uma princesa.

— Basta — resmungou Adolfo, mais mal-humorado do que pensava. — Desejo que a trate como o faria com uma mulher decente. Está claro?

— Bem, bem. Mande a moça. Assunto encerrado.

Adolfo pensou que, na realidade, aquele assunto já estava encerrado, mas precisava concluir outro: a moradia.

Perguntou-se, assombrado, por que motivo se preocupava com tantos detalhes, pois nunca, até então, o fizera em seus assuntos particulares, quando desejava alcançar algum objetivo. Quase sempre o conseguia. Enfim, continuou sua busca e encontrou um apartamento, sempre por intermédio de amigos, bastante cômodo e de aluguel barato.

Tudo resolvido, dirigiu-se para sua casa. Pepe e Dorinha estavam na portaria. Era meio-dia em ponto.

Não queria, de modo algum, que seus pais, nem mais ninguém do edifício tivesse a menor suspeita de quem os deixava sem porteira.

Decidido, supondo que àquela hora Maria José estaria só com o irmãozinho, deu uma volta pela porta de entrada e dirigiu-se para o elevador de serviço. Fechou a porta e apertou o botão do último andar.

Sentiu algum remorso? Sim, um pouco, mas abafou-o, imediatamente. Certamente, não lhe cabia toda a culpa de ser e pensar assim. Fora criado desse modo. Fizeram-no acreditar que, na vida, tudo se pode conseguir com dinheiro e astúcia, e assim se acostumara a agir. Naturalmente, já tinha idade suficiente para distinguir o bem do mal. Mas Adolfo Montero não estava disposto a analisar seu modo de pensar, agir e sentir.

Não saberia dizer desde quando e por que começou a desejar a filha do falecido porteiro. Talvez despertasse no dia em que a viu acompanhando o féretro do pai. Aquele vestido negro, seu rostinho pálido e seu andar suave... Ou a ternura com que levava os irmãos pela mão... Nunca saberia explicar as causas. Aquele enterro provocara reações desencontradas. Censurou a indiferença de seus pais, a frivolidade dos seus irmãos, sua própria apatia... Depois concebeu uma idéia. Perguntou-se perplexo quem era pior. Os pais, com sua indiferença, ou ele com seus desejos?

Deu de ombros. Era um homem. Era uma desculpa tão pouco humana!...

 

Maria José preparou a comida. Estendeu uma toalha sobre a mesa, os talheres, um jarro d’água, quatro copos e um ramo de flores. Gostava da harmonia. Era delicada. Aquela delicadeza transparecia em todos os detalhes da casa. Talvez o seu cantinho tivesse mais aparência de lar do que o resto do edifício.

A cozinha, arrumada com suas pias limpas e reluzentes, e ela asseada e bonita, mais parecia uma dona de casa com o filhinho. Bernardinho brincava no chão. Tinha um carrinho plástico na mão e o fazia rodar. De vez em quando, Maria José recomendava, suavemente:

— Não arranhe o assoalho, meu amor.

A campainha soou nesse momento. Pepe tocava-a, às vezes, quando voltava da portaria.

— Não seja enjoado, meu bem — sussurrou Maria José. — Entre e deixe de brincadeiras.

Adolfo sentiu como que um abalo em todo o seu corpo.

Maria José estava inclinada sobre Bernardinho e beijava seus cabelos. Aquele quadro deixou o homem do mundo, o colecionador de paixões fáceis, um tanto suspenso.

Maria José ficou em pé, num salto, muito vermelha e acanhada diante dele. Adolfo olhou em torno. “Sou um canalha”. Mas isso não o impediu de continuar com a comédia.

— Sr. Adolfo...

— Bem, vejo que não me esperava.

— Não, não senhor.

— Quem é, Maria José? — perguntou o menino, ainda brincando com o carrinho de plástico.

Maria José inclinou-se e pegou-o, no colo.

— Sente-se, senhor. Queira passar para cá... Estará melhor na saleta. Eu... não, francamente, não o esperava.

Tinha uns olhos lindos. Fabulosos, sim senhor. E uma boca... Toda ela...

— Não se lembra mais do que me disse em outro dia?

— Bem...

— Que completou o curso secundário e sabia inglês. Ocupei-me de você... Acho que é meu dever. Qualquer médico que a visse trabalhar no subsolo, teria feito o que fiz. Não sou médico, mas sei que um trabalho como esse é impróprio para uma moça. Tenho, pois, a obrigação...

— Fico muito agradecida, Sr. Adolfo.

— Pois então, amanhã cedo, os seus irmãos podem ficar na portaria, enquanto você vai a este endereço

— estendeu-lhe um cartão. — O Sr. Amado a receberá. É um homem afável, embora um tanto brincalhão. Não faça caso de suas brincadeiras, se ele fizer alguma. Ele é assim mesmo. Precisam de uma moça para a correspondência, que tenha conhecimentos de inglês. Acho que você serve.

— Oh, senhor! Não sei como pagar o que faz por nós.

Em voz alta, disse, com simpatia:

— Esqueça. Para que estamos neste mundo? Para nos ajudarmos uns aos outros. Não é mesmo?

— Se todos pensassem como o senhor...

— Dia chegará em que terá que pensar assim ou desaparecer. Bem, já vou indo — acariciou o garoto.

— Bonito menino! Como se chama, guri?

— Bernardinho, e você?

— Não se diz você, Bernardo — Maria José repreendeu-o. — Este senhor chama-se Sr. Adolfo.

— Ah!

— Basta que me chame Adolfo — falou este ao menino, tornando a acariciá-lo. — Maria José, eu, em seu lugar, nada diria, até o momento de sair daqui. Podem fazer comentários que seriam prejudiciais para você. É um conselho de homem experiente.

— Seguirei seu conselho, senhor.

— Além disso, não convém mencionar a pessoa que a ajuda. Não gosto de ficar em evidência.

— Não o farei.

— Quanto à moradia, também me ocupei do assunto. Certamente, se deixar de trabalhar na portaria, não a deixarão ficar morando aqui.

— Já pensei nisso.

— Tome este cartão. Procure este senhor. Ele a conduzirá ao apartamento que consegui para vocês. Espero — disse depois, com afeto fraternal, o grande velhaco — que não me proíba de dar aulas aos seus dois irmãos.

— Oh! senhor.

— Terei prazer em visitá-la e fazer algo por eles.

— Como vou...

— ... agradecer? De modo algum, isto é, de um. Confiando em minha amizade.

— Como não hei de confiar no senhor, depois do que está fazendo por nós?

A consciência de Adolfo teve uns lampejos, como de aviso, mas o nosso amigo abafou-a, novamente.

Despediu-se e Maria José ficou como que aparvalhada. Devia aceitar a ajuda, tão desinteressada, daquele jovem? Por que não? Era totalmente inocente, como ela. Um homem bom. Havia poucos, sem dúvida, mas sempre restava algum! Aquele era um desses poucos...

 

Já estava de volta. Vira o apartamento que, para falar a verdade, era uma gracinha; novo, com dois banheiros, uma cozinha elétrica e com gás, quatro aposentos, um corredor espaçoso e uma sala de jantar comunicando com a cozinha. Imaginou-o já mobiliado, com os móveis que seus pais haviam comprado quando tiraram a sorte grande e que ainda estavam impecáveis. Seria um lar acolhedor, maravilhoso.

Fora depois ao escritório do Sr. Amado. Era uma agência de publicidade, de muito futuro. Não tinha intérpretes. Amado, falando a sério com ela, disse-lhe que seria conveniente aprender francês. Ela prometeu fazê-lo em suas horas livres. Ofereceu-lhe um esplêndido ordenado, três vezes o que lhe pagavam na portaria, e disse-lhe que podia começar a trabalhar daí a dois dias, tempo necessário para instalar-se em sua nova casa. Na despedida, disse-lhe:

— Realmente, seria uma pena que, com o seu preparo e perfeição física, fosse apodrecer numa portaria.

— Devo isso ao Sr. Adolfo Montero.

— Sei, sei... Adeus, menina. Até depois de amanhã às nove em ponto. Gosta que meus empregados sejam pontuais.

Voltou para casa felicíssima. Beijou os irmãos muitas vezes, abraçando-os fortemente. Eles olharam-na um tanto espantados, porque embora ela fosse uma mãezinha muito carinhosa, nunca exteriorizava seu amor daquele modo ruidoso.

À noite, quando Maria subiu com um pedaço de pastelão, perguntou-lhe se o Sr. Montero, pai, estaria em casa, no dia seguinte, pela manhã.

— O que deseja dele?

— Preciso vê-lo.

— Nunca é encontrado antes de meio-dia, e isso... se não continuar deitado.

— Não poderia dizer-lhe que desejo vê-lo?

— Falarei com seu camareiro. Mas diga-me, minha filha, de que se trata? Por acaso vai pedir aumento?

— Maria, à senhora eu posso contar. Vou deixar a portaria. E tem que ser amanhã. Virão buscar meus móveis, amanhã, às três da tarde.

— Céus! — exclamou Maria, espantada. — E para onde vai?

— Para um apartamento. Arranjei um emprego numa agência de publicidade, serei intérprete e correspondente.

— Oh! Quem lhe arranjou o emprego?

— Pois... eu, é claro, eu.

Acreditou, Em sua opinião, Maria José era incapaz de mentir.

— Alegro-me. Sinto perdê-los de vista, mas enfim, sendo para bem de vocês, considero necessário. Direi ao criado de quarto que você precisa ver o patrão logo que ele se levantar. Quer que a avise na hora apropriada?

— Ficarei agradecida.

— Tocarei a campainha três vezes forte e uma fraca. Como se fosse um sinal. Você descerá e pedirá para vê-lo. Acha que está bem?

— Sim, sim, Maria.

— Acho que não vai gostar. Pior para ele.

Agradeceu intimamente a Maria pela sua discrição.

Não fizera outras perguntas e isso a deixou mais aliviada. Não sabia mentir; se Maria insistisse, acabaria contando a verdade. Aquele, talvez fosse o primeiro passo em falso que Maria José Palacios deu. Se tivesse dito alguma coisa, Maria se teria apressado a informar quem era o caridoso Sr. Adolfo.

 

André Montero estava de mau-humor, quando se sentou à mesa, às duas e meia. Aquele era um dos poucos dias em que a família fazia uma refeição reunida. Sua esposa perguntou-lhe:

— Que há com você, André?

— Dra! Faz-se o bem e veja o pagamento que se recebe. A porteira vai sair.

Adolfo não levantou os olhos do prato. Como estava saborosa aquela carne! Que dizia o pai? Ah! Não ia com ele.

— Vai sair? E para onde irá a infeliz com seus três irmãos?

— Arranjou algum amigo rico — disse Teresa, sem piedade.

— Deve ser isso — admitiu a senhora, indiferente.

— Onde encontrarei um porteiro em vinte e quatro horas?

— E por que há de ser você a procurá-lo? — resmungou Raul. — Deixe isso para o administrador.

— Você terá que tratar disso — disse o pai. — Matias está de férias há uma semana.

— Não permita que essa jovem deixe a portaria, assim em brancas nuvens.

— Bem, bem — resmungou o chefe da família. — Não vai pretender que discuta com uma jovem que deseja melhorar sua posição social e econômica. Todo mundo tem direito a realizar-se, não?

Raul continuou dizendo:

— Se fosse uma criada... seria fácil. Mas um porteiro ...

— Claro, as criadas passam por suas mãos facilmente — riu Teresa, maldosamente.

Ninguém ligou ao que ela disse. O pai reparou em Adolfo.

— Você sempre fica à margem dos problemas da família. Porque não procura um porteiro?

— Raul pode telefonar para a agência. Mandarão dúzias deles. Eu não me ocupo disso.

— Calma, calma — ordenou a senhora, sem esperança de consegui-la.

Com efeito, Raul gritou:

— Você sempre comodista. Só interessa o que é seu e nada mais.

— Silêncio.

— Não é certo, e que mais?

— Creio que o mais indicado — a mãe tornou a dizer — é Raul.

— Eu não, mamãe. Basta que eu me encarregue de arranjar criadas.

— Adolfo — o pai resolveu — telefone você para a agência.

— Está bem.

Olharam-no como se fosse um objeto estranho. Era a primeira vez que concordava sem discutir. O que ele desejava, na realidade, era que esquecessem o assunto o quanto antes.

Quando menos esperava, porém, a conversa tomou um rumo mais perigoso. Raul, sempre malicioso, disse:

— Mas o que tem, afinal? Uma colocação ou um amigo rico?

— Não seja maldoso.

— Deve pensar sempre o pior. É muito bonita.

— Raul!

— Mamãe, nós somos vividos, não somos marionetes, nem vamos nos deixar levar por fantasias.

— Por que não há de poder ter um bom emprego?

— perguntou Adolfo, não podendo se conter.

— Simplesmente, porque é uma porteira.

— Talvez tenha algum preparo.

— É muito bonita, de fato — admitiu o pai, de repente. — Talvez um amigo... Sim, por que não?

— Ela não teve tempo de procurar apartamento e emprego.

— Teresa — censurou a mãe. — Não sejam tão maldosos...

Terminado de comer, Adolfo pediu licença para se retirar. Foi concedida.

Continuaram discutindo por longo tempo. Adolfo retornou meia hora depois.

— Já têm porteiro — disse do umbral. — Virá esta tarde.

— Onde o conseguiu?

— Numa agência. Não tem filhos.

— Casado?

— Sim.

 

— Não tenha medo, meu amor — disse Maria José, em voz baixa, apertando-o contra si. — Estou a seu lado. Mas ainda não acabei, sabe? Tenho muito que fazer.

Bernardinho passou os bracinhos em volta de seu pescoço encostando-se nela. A jovem acariciou-lhe os cabelos e beijou-o. Assim ficou, até que o menino foi adormecendo, pouco a pouco. Sentia grande ternura por aquele garotinho indefeso e que custara a vida de sua mãe. Só conhecia suas carícias. Nunca as negara. Fazia-as prodigamente, porque mais do que irmã, sentia-se mãe.

Graças a Adolfo Montero, a quem, por certo, não tornara a ver desde que saíra daquela casa, podiam desfrutar de uma tranqüilidade absoluta. O trabalho não era estafante. Os colegas eram todos muitos amáveis. Amado não era exigente e, aos poucos, ia ficando a par do serviço, com a ajuda deles que, desinteressadamente, a ensinavam todos os dias.

Saíam de casa, todas as manhãs, às quinze para as nove. Pepe levava os irmãos para o colégio. Freqüentavam uma escola particular, a poucos metros da casa em que moravam. Bernardinho estava no Jardim de Infância. Dorinha e Pepe cursavam o primário. Estavam meio atrasados, mas na opinião do professor que os examinou, Pepe poderia fazer o exame de admissão em junho e entrar para o ginásio em setembro. Dorinha não era tão viva. A vida convertera-se, pois, em algo bem alentador. Não podia ressuscitar o pai; mas se ao menos pudesse vê-los do outro mundo, saberia que haviam deixado aquela portaria vulgar, tornando-se cidadãos normais, que trabalhavam, progridem e vivem com certo desafogo.

Suspirou e foi para a cozinha. Ainda havia alguma roupa para passar. Às vezes tinha que trabalhar até tarde da noite. Custara muito a arrumar o apartamento, mas conseguia-o, afinal. Ficara uma beleza. As paredes estavam pintadas em cores suaves. Dizia sempre:: “As cores de Picasso”. Os móveis eram escuros, modernos.

Um conjunto de sala de jantar, simples; um tapete, que comprara barato numa liquidação, com o qual cobrira o chão de mosaico verde muito claro.

Dorinha dormia em um quarto, numa caminha; um armário e uma mesinha de cabeceira, além de uma poltrona. O quarto de Pepe era mais masculino. Gostava de considerá-lo o homem da casa. E sabia que os homens têm direito a certas regalias. No seu aposento, havia uma cama turca muito confortável, duas poltronas, uma secretária e um divã, ao fundo.

Em seu quarto havia duas camas, para ela e Bernardinho, mas este nunca queria dormir só. Estava habituado ao calor da irmã, e quando ela se deitava na cama ao lado da sua, o menino estendia o braço e dizia com meiguice: “Maria José, não me deixe.”

A jovem sentia tanta ternura, que, apertando-o contra si, era capaz de passar toda a noite mal acomodada para poupar-lhe qualquer desconforto.

O apartamento era dotado de outro aposento, destinado às visitas.

Sorridente, corajosa, bonita, tanto mais bonita quanto mais tranqüila vivia, encaminhou-se para a cozinha onde ligou o ferro para passar roupa. Eram dez horas da noite. Seus irmãos deitavam-se cedo. Assim que chegava do colégio, às cinco horas, Dorinha preparava a ceia. Deixava tudo preparando e quando chegava à casa era só aquecer. Ceavam às nove em ponto. Dorinha ajudava-a a tirar a mesa, e às dez horas, mais ou menos, iam dormir.

Levantavam-se às sete. Dorinha dava banho em Bernardinho, enquanto a irmã mais velha fazia o almoço. Às quinze para as nove saíam todos, e à uma hora, quando Pepe voltava, Dorinha e o irmãozinho já estavam em casa e o almoço quase pronto.

Dispunha-se a passar umas calças de Pepe para vestir na segunda-feira (era sábado), quando a campainha soou.

Maria José franziu o sobrecenho. Quem poderia ser? Não conhecia ninguém no edifício. Era muito grande, e como o outro, tinha elevador. Raramente via algum vizinho pelas escadas.

A campainha soou novamente.

Maria José deixou o ferro e foi abrir a porta com certo receio:

— Quem é? — perguntou baixinho, para não acordar os irmãos.

— Sou eu.

O Sr. Adolfo? O coração deu um salto. Afinal...

E abriu a porta...

— Boa noite, Maria José — disse, afavelmente. — Nunca esqueço meus bons amigos.

— Entre, entre. Há corrente de ar na porta. Tire o abrigo — disse, em voz baixa.

— Por que fala tão baixo?

— As crianças estão dormindo. Entre aqui, na saleta.

— Se não me engano, Maria José, você estava na cozinha.

Ela enrubesceu. Adolfo pensou que já não existiam mulheres que se ruborizassem. Aquela era um raro exemplar, na vida feminina moderna.

— Pois... estava.

— Vamos, então, para a cozinha.

— É que... estava passando roupa.

— ótimo — tirou o sobretudo e pendurou-o junto com o chapéu, no cabide do pequeno vestíbulo. — Eu lhe farei companhia, enquanto passa. É maravilhoso ver uma mulher nos seus afazeres.

— Poderemos conversar um pouco na saleta. Bem, —. perturbou-se — na sala de jantar. Serve para as duas coisas.

— É lindo o seu apartamento.

— Graças ao senhor.

Ele fez um gesto vago.

— Quem se lembra disso? Leve-me à cozinha. Creio que me agradará.

E gostou. Era um recinto tão acolhedor como o restante. Tão diverso de sua casa. Oh! sim, muito!... Mas infinitamente mais grato e acolhedor.

Maria José ofereceu-lhe uma cadeira, junto à mesa de mármore.

— Continue passando roupa — pediu ele, — Vou gostar de ver.

— Senhor....

— Por favor, Maria José. Asseguro-lhe — acrescentou com simpatia, — gosto de vir à sua casa. Voltarei muitas vezes, se permitir, mas não o poderei fazer, se a minha visita lhe toma tempo.

— É que fico sem jeito.

— De modo algum. Se não a incomodo, faço-lhe companhia e lhe falarei sobre milhares de coisas. Gosto de falar.

— Aceita uma xícara de café?

— Seria — exclamou — o complemento. Aceito, sim, Maria José.

Via-a ir de um lado para outro. Ativa, bonita, jovem, cem por cento feminina. De súbito, sentiu uma estranha sensação de paz. E pensou, sem querer, que gostaria de ter um lar simples, atraente como aquele, e uma cozinha também como aquela, pequenina, cálida, branca, e uma mulher... uma mulher como Maria José.

— Seu café, Sr. Adolfo.

Olhou para as mãos da moça. Eram macias, de unhas curtas e nacaradas. Não se conteve e apoderou-se de uma delas, apertando-a entre os dedos.

— Maria José — disse-lhe em voz baixa. — Gosto de vir a sua casa e vê-la aí... assim mesmo como você é. Agrada-me... ser seu amigo. Não poderia suprimir esse senhor?

— Senhor — disse ela, perturbada.

— Faça-o, por favor. Para eu vir aqui e ser tratado como uma visita protocolar, acabarei não voltando.

— É que...

— Rogo-lhe. Chame-me Adolfo, simplesmente.

Continuou a passar roupa. Ele tomou o café em pequenos goles. Olhava-a de vez em quando e sorria.

— Sabe de uma coisa, Maria José?

— Não, senhor.

— É encantador vê-la assim, tão senhora de sua casa. No dia em que se casar...

— Não me casarei — riu, sem amargura. — Tenho três irmãos. Não é fácil um homem aceitar uma mulher com tamanha. carga.

— Quando se ama, deveras...

— Oh, o amor!

— Não acredita nele?

— Sim, por que não?

— Acalenta sonhos, por certo...

— Como todas as jovens, senhor. Mas... a gente os reprime.

— Quais são os seus sonhos, Maria José? — perguntou, inclinando-se para a frente. — O que sonha?

— Pois... — corando. — O que todas as jovens de minha idade sonham.

— Quantos anos tem? Muito poucos, não?

— Dezenove.

Dezenove!... Deus do Céu. Não estaria se portando como um vilão? Bem, ainda não aconteceu nada. Aconteceria. Não estava ali só para contemplar uma moça bonita. Estava ali, após lutar durante quinze dias para esquecer aquele caminho. Sim, lutara. Não acreditavam? Pois podiam acreditar.

— Conte-me sobre seus sonhos, Maria José...

— Tantas coisas! — murmurou ela, sem calor. — Pretende refrear os sonhos, quando se vive como eu vivo... acorrentada a um dever... Como sabe... Tenho três irmãos.

— Não pode consentir que esse fato destrua sua felicidade.

— Por nada deste mundo renunciarei a eles. Confiam em mim. Deve ter notado.

— Sim, é claro.

Considerou que, como primeira visita, já era suficiente. A partir daquela noite, iria diariamente àquela casa.

— Amanhã — disse — virei dar aula a seus irmãos.

— Amanhã é domingo, senhor.

— Ah, é mesmo! — fez uma pausa. — Poderei vir vê-la... a ésta mesma hora?

— Pode, sim — murmurou.

— Então, vou deixá-la agora. São onze horas. O café estava delicioso, menina.

Estendeu a mão. Ela lhe deu a sua. Apertou-a com ardor. Levou-a aos lábios. Maria José estremeceu, perturbada. Teve medo. Medo de enamorar-se dele, se já não o estava. Retirou a mão, forçando um sorriso.

— Até amanhã, Maria José.

— Até amanhã...

— Adolfo — murmurou ele.

— Adolfo — repetiu ela, baixinho.

A porta fechou-se. Ouviu o ruído do elevador e, depois, a descida rápida, bem como o palpitar de seu coração. Encostou-se na parede... Semicerrou os olhos. Que se passava com ela? Acontecia-lhe alguma coisa, na realidade?

Voltou, lentamente, para a cozinha. Retirou o ferro e a xícara vazia que ele deixara sobre a mesa. Sonhava. Para quê, se não podia? Era proibido sonhar.

Foi dormir. Deitou-se e ficou muito tempo acordada...

 

O carro de Adolfo nunca era levado para a oficina. Quando enguiçava, trocava-o por outro novo. Era um método que ninguém, em casa, censurava. Sorria com desdém. A vida era tão diferente para uns e outros... Eles, possuindo tanto, sem jamais se contentarem. Emoções e mais emoções, como se jorrassem de um repuxo e fossem vividas aos borbotões, e a vida estivesse para acabar, não restando mais tempo para nada. E outros, como aquela jovem chamada Maria José, filha de um homem sacrificado, que morrera tão cedo, talvez por excesso de trabalho, conformando-se com tão pouco.

Chegando à casa, o contraste causou-lhe certo mal-estar. As luzes do salão estavam acesas. O retinir de copos, risadas, gargalhadas...

Recostou-se no umbral. Era meia-noite. Ali, no luxuoso salão de sua casa, um esbanjar de luzes e de riqueza deixou-o desassossegado. Teresa dançava em ritmo de bossa-nova. Fazia-o com certa graça. Um amigo acompanhava-a. Os outros... quantos? Um bando, aplaudiam. Bebida nos cálices reluzentes, pontas de cigarros nos cinzeiros, risos nas bocas moles. Vício! Isso mesmo, vício. E se consideravam felizes.

— Rapaz — gritaram, quando o viram — onde esteve?

Não respondeu. Olhava para tudo, devagar. O contraste era notório e, no entanto, não sabia ainda onde se sentia melhor. Na cozinha de Maria José, tomando uma vulgar xícara de café, ou ali, onde o champanha corria abundante, onde as mulheres eram desfrutáveis e se consideravam decentes? Eram-no a seu modo, é claro.

— Adolfo — Raul aproximou-se, rindo. — Você está com uma expressão de idiota...

— Talvez seja.

— Divirta-se, homem.

Uma moça pôs a mão em seu braço.

— Dance comigo, querido...

Deixou-se levar. Precisava esquecer. Enlaçou-a com seus braços. Dançou, bebeu, cantou. Às quatro da manhã, seus pais apareceram na porta do salão. Adolfo olhou-os, com ar idiota. Impecáveis em seus trajes de gala, sorriam. Ao que parecia, aquele quadro lhes agradava.

— Seus pais estão esperando lá embaixo — disseram.

As moças procuraram seus agasalhos. Sorriam, também. Todos sorriam. Sorrir era muito normal. Os homens inclinaram-se, respeitosos, diante da mão da dona da casa. Beijaram-na com galantería. Sim, eram muito educados. Educadíssimos. Adolfo sorriu, novamente. Seu sorriso era um esgar. Concentrou o pensamento no lar de Maria José.

Sacudiu a cabeça. Estalava. Bebera demais.

— Adolfo — falou seu pai, tocando-lhe no braço — você se excedeu, como sempre.

Exceder? Sim, ele não entendia bem os meios termos. Era dos extremos. Ou tomava uma bebedeira, ou não ingeria um único trago. Ou tinha várias amantes, ou não tinha nenhuma. Por isso achava tão aborrecidas as reuniões de seus irmãos. Raul era mais diplomático. Em sua casa, divertia-se apenas. Não sabia representar essa espécie de comédia. Era um indecente.

— Adolfo — o pai tornou a falar, com sua habitual mansidão — é preciso ser mais discreto.

Adolfo encolheu os ombros. Subiu as escadas, cambaleando. No salão, Raul dizia zombeteiro: “Não sei como se arranja; ele sempre se embriaga.”

Estendeu-se na cama. O camareiro do pai ajudou-o a despir-se.

— Matias — disse, com voz arrastada. — Aposto como você nunca se embriagou.

— Nunca, senhor.

— E é feliz?

— Muito, senhor.

— Que entende você por felicidade? Diga, Matias, diga.

— O senhor está cansado.

— Não estou, não, Matias. Sairia agora mesmo para andar por aí e só voltar ao amanhecer. Sabe de uma coisa, Matias? Gostaria de ter uma casa sossegada. Sim, seria tão diferente... Sabe o que fiz aos quinze anos? Não vou contar. Para quê? Você também o terá feito, e todos os homens. Mas... com discrição. Isso mesmo, com discrição. Justiça social! Sabe o que meu pai diz a esse respeito?

— Durma, senhor.

— Uma mulher, Matias — gritou o rapaz, sonolento. — Uma mulher só para mim, como ela. Não sei se poderei dizer-lhe... Não sei se poderei... Tudo é tão diferente...

Matias não compreendia. Ouviu-o, como era seu dever.

— Um lar. Não desejo um lar e, no entanto, admiro-o. Admiro o seu. Como se pode ser feliz carecendo de tudo? É o que- não compreendo. Você disse que era feliz, Matias?

— Sim, senhor.

— É isso, é feliz mesmo servindo a um patrão tolo.

— Sr. Adolfo...

— Bem... bem...

— O senhor precisa dormir.

 

— Vamos, ao cinema, Maria José?

Sentia-se feliz. Tudo estava resolvido. A vida era amena. O apartamento não precisava de atenção, no momento. As crianças bem vestidas, ela também.

— Levo-os ao cinema.

Se o pai morrera há dois meses? Sim, mas não os censuraria por aquela saída. Estava certa de que seu pai, se pudesse vê-los, ficaria feliz e os abençoaria.

— Que bom, que bom! — gritou Bernardinho. — Será de bangue-bangue?

— Não. Desenho animado.

— Oh! — exclamou Pepe, desanimado.

— Oh! — sussurrou Dorinha. — Não será de fadas?

— Será o que for — disse Maria José terminantemente.

Foram. Frescos, limpos, quase elegantes, foram andando rua abaixo. Maria José no meio. Dorinha de um lado e Pepe de outro. Bernardinho de mão dada com ii irmã mais velha.

— Devemos conformar-nos — dizia Maria José pausadamente — com o que Deus põe ao nosso alcance. Não devemos desejar o que não nos pertence.

— Sim.

— E você, Pepe?

— Sim, Maria José.

— Procurem, então, moderar seus desejos ou caprichos. Temos que ser simples nos desejos, na posse, na ansiedade. Devemos ser comedidos em tudo, estamos entendidos?

Os dois mais velhos concordaram. Bernardinho, porém, puxou a mão da irmã, obrigando-a a olhar para ele.

— Eu também tenho que me conformar? — perguntou.

— Naturalmente, você tanto quanto eles. Temos muito que agradecer a Deus e ao Senhor Adolfo. Deus o colocou diante de nós como se nos enviasse um anjo tutelar. Percebem? Graças a ele podemos ir ao cinema, passear como qualquer família, ter um apartamento sem depender dos vizinhos e eu... — sorriu tristonha — não preciso mexer com caldeiras.

— Sim, Maria José.

— Vamos, pois, ao cinema. Veremos um filme de desenho animado e espero que agrade a todos.

Dorinha e Pepe não estavam muito convencidos, mas não fizeram objeção. Já era noite quando saíram.

— Gostei muito — disse Bernardinho, que não entendera nada.

Pepe olhou para Maria José e fez um gesto vago, como a dizer: “Se ele gostou... todos de acordo.”

— Agora, vamos para casa, devagar. Como o jantar já está pronto, só será preciso aquecê-lo — disse a irmã mais velha. — Você, Dorinha, dará banho no Bernardinho, enquanto eu preparo a mesa. Pepe tem que resolver uns problemas. Por certo, Pepe, que isso não me agrada. Nunca se deve deixar para amanhã o que se pode fazer no momento preciso. Que esta seja a última vez.

— Pensei — disse Pepe vagamente — que... você não soubesse.

— Eu sempre sei de tudo — afirmou a irmã, sem parar de andar. — Tenho obrigação de saber; é por isso que olho os seus cadernos todos os dias. Não disse nada porque era domingo. Que não torne a acontecer.

— Desculpe, Maria José.

— Tenha em conta, Pepe, que entre um porteiro e um chefe de escritório, há uma grande diferença. Veja-o por mim. Se não estivesse preparada, teria que continuar naquela portaria e morreria jovem, como mamãe e papai. Além disso, não falo por orgulho, a criatura humana deve e tem esse encargo na vida, superar-se cada vez mais. Não para zombar do ignorante que não teve a oportunidade de aprender, mas para ajudá-lo. O homem, como a mulher, tem obrigação de trabalhar, seja no que for. Você tem agora seus deveres de estudante. Se os abandonar, cometerá um erro incorrigível.

Chegavam diante do edifício. Subiram pelo elevador.

— Tudo é muito diferente — disse Maria José, quando o elevador parou. — E deixemos isso a Deus. Sabem em que estou pensando? Que somos uma família feliz. E sabem por que somos felizes? Porque nos contentamos com o que Deus nos dá. Enquanto não nos conformarmos, não haverá felicidade.

Introduziu a chave na fechadura e ao entrar em seu lar, sentiu uma súbita paz.

Uma hora depois, sentavam-se todos à mesa. Mesa simples com uma refeição comum, mas que pareceu extraordinária a todos. Já iam rezar, quando soou a campainha.

— Quem poderá ser se não conhecemos ninguém? — perguntou Pepe, levantando-se.

 

Ouviu sua voz um pouco rouca, bem modulada... Tinha uma voz peculiar. Naquele momento, Pepe disse, do umbral:

— É o Sr. Adolfo.

Maria José estremeceu. Aquele homem...! Aquele homem despertava nela anseios desconhecidos. Tinha que refrear seu ímpeto juvenil. Precisava... dominar-se. Imaginou-o colocando o sobretudo e o chapéu no cabide, como um velho amigo. Nunca tivera amigos. Sua mãe trabalhava muito, mas não se dava com ninguém. O pai continuou o mesmo sistema. Ela só conhecia seus companheiros de trabalho no escritório, que, por certo, portavam-se muito bem, e agora a... o Sr. Adolfo.

— Boa noite — disse ele, envolvendo todo o conjunto com o olhar.

— Entre, Sr. Adolfo.

Olhou-a com ar de censura. Seus olhos pareciam dizer: “Terá esquecido que sou apenas Adolfo?”. Corou. Tinha vontade de bater em si mesma pelo seu excesso de sensibilidade. Enrubescia toda vez que ele falava, por quê?

— Entre — disse perturbada — e sente-se. Quer comer alguma coisa?

Aceitou. Seria a primeira vez que comia em mesa de dois talheres, simples e comum. Maravilhosamente vulgar. Sentou-se entre Dorinha e Pepe, de frente para ela. Considerou-se insensato. Não estava pensando como lhe seria agradável ser pai daquelas crianças e ter Maria José por esposa? Julgava-se tolo demais por dar guarida a semelhante idéia em seu pensamento, imaginando-se como pai deles e esposo da jovem.

Seria maravilhoso ajudá-la a deitá-los e, a seguir, sumir com ela na penumbra da intimidade. Seus lábios seriam suaves, cálidos. Suas mãos trêmulas e a voz harmoniosa... atraente. Caiu em si, quando Maria José, alheia a seus pensamentos, lhe serviu um prato de sopa.

— Não creio que lhe agrade — disse com timidez.

— Mas... é o que nós comemos.

— Deve estar censurando o meu atrevimento.

— De modo algum.

— Não o vemos há muito tempo, Sr. Adolfo — disse Pepe, satisfeito por ter um homem com quem conversar.

— Não me chame por Sr. Adolfo — resmungou este. — Chame-me Adolfo, simplesmente. Trate-me por você.

— Isso não — reclamou Maria José. — Não devem acostumar-se a faltar com o respeito às pessoas.

— Mas, minha amiga, o tratamento “você” hoje...

— Entre pessoas adultas. Eu os educo à minha maneira.

— Não admite censuras?

— Sim, sim, permito. Todos precisamos de conselhos e censuras. Mas não... neste caso.

— Estão bem disciplinados — disse ele, sorridente.

— Considero isso um dever.

— É muito severa com vocês? — perguntou, dirigindo-se aos dois mais velhos.

Ambos olharam para Maria José com ternura.

— É uma mãezinha — disse Pepe. — Quando for homem, trabalharei para ela e a cobrirei de presentes.

— Sem presentes — disse a jovem, suavemente — também se pode ser feliz, Pepe.

— Você sempre diz isso — sorriu o menino — mas acho que todo o mundo é feliz quando recebe presentes.

— Eu — disse Dorinha — também vou trabalhar.

E o menorzinho, que comia uma banana com a delicadeza de que um menino d.e seis anos era capaz, não fez por menos. Com voz aguda, disse:

— Eu também vou dar presentes.

Maria José apertou sua cabecinha contra o peito. Adolfo sentiu-se deslocado. Pensou em sua casa. Naquele instante, Teresa estaria jantando em algum restaurante da moda com um amigo. Raul estaria visitando a amante. Os pais dançando em algum clube elegante. Os criados divertindo-se sozinhos, como faziam todos os domingos. E, em compensação, ali...

— Carne? — perguntou ela.

— Foi você quem a preparou?

— É claro — riu. — Eu sou a única cozinheira. Dorinha está aprendendo, para um dia ficar em meu lugar, se eu adoecer. Mas não sabe ainda.

— Aceito a carne, então. Francamente, Maria José, estou abusando. Cobro com juros o favor que você diz me dever.

— Estamos muito felizes, vendo-o aqui — disse Pepe, impulsivo. — Saiba que nunca tivemos amigos, Sr. Adolfo.

— Obrigado, menino. Sabe que amanhã virei dar- lhe aula?

— Sim? Eu não sabia.

— Pois assim é. Não é, Maria José?

Ela concordou sem palavras. Pouco depois, quando todos já haviam terminado, ordenou:

— Já sabem o que cada um de nós tem que fazer.

Todos foram-se levantando.

— Eu, que posso fazer? — perguntou como que sugestionado.

— Sente-se para ler o jornal na sala de jantar.

— De modo algum, Maria José. Quero ajudá-los. Quero pagar a ceia de alguma maneira...

 

A casa estava mergulhada em silêncio. Um relógio longínquo fez ouvir onze badaladas dentro da noite. O rapaz sentia-se constrangido e ao mesmo tempo feliz. Estranho paradoxo. Por que se sentia assim, inibido, diante daquela moça?

— Fuma? — perguntou.

— Não, nunca fiz.

— Experimente.

— Não, não, obrigada.

— Eu pergunto a mim mesmo, Maria José, você é feliz?

— Sim, muito.

— Em que consiste a felicidade?

— Não poderia dizer. Para mim consiste em ver meus irmãos felizes. Vê-los crescer. Não sei. Há um mundo de coisas que não posso discernir, que me tornam feliz. Sabe que a felicidade não é a mesma para todos. Uns possuem tudo... — sorriu.

— Possivelmente. Diga, Maria José. Considera-me um homem feliz?

Tornou a olhar para ele.

— Sim, naturalmente. O senhor tem tudo.

— Pois não sou.

— E o que deseja, que não tem?

— Isso é que é desconcertante. Como você disse muito bem, eu tenho tudo. Não acha que, justamente por possuir tudo, cansa? Pode-se ser feliz por desejar e também por nada querer, e vice-versa.

— Não entendo. Não concebo a vida sem felicidade. Já vê o senhor...

— Por que não me trata por “você”? — pediu, de repente.

— Oh! Eu acho que...!

— Você já não é mais a porteira de minha casa, Maria José — riu, como se quisesse dar-lhe menos importância. — Agora é uma moça livre. Como eu, como outro qualquer.

— Sim, senhor. Mas... não esquecerei nunca que é o Sr. Adolfo.

— Enquanto não me vir como um homem e não me considerar como tal, não me terá como amigo.

— Asseguro-lhe que é o meu melhor amigo, o único que tive em toda minha vida.

— Já é tarde — falou baixo. — Estou ocupando-a e amanhã terá que levantar-se cedo.

— Não se preocupe comigo.

— Sacrifica-se sempre pelos outros?

— É meu dever.

— Pois não devia ser, Maria José. Quem pode olhar por nós melhor do que nós mesmos?

— Se consideramos as coisas da vida a esse extremo... ninguém pode ser feliz.

— Admiro-a — disse, ficando em pé. — Admiro-a muito, Maria José. Mas não sou meu próprio admirador. Não sou tão desprendido assim...

Retirou-se mal-humorado. Por que ia lá? Por que, se sabia que nunca teria coragem de lhe dizer que a fizera sair da portaria, porque gostava dela e a desejava? Casar com ela? Era absurdo. Não era adepto do casamento. Como manteria a mulher? Ficaria dependendo sempre do pai, enquanto este vivesse. Além disso, ele não tinha jeito para marido. Gostava demais de todas as mulheres. De todas de um modo igual. Ora! Estava pensando muito e...

Entrou no carro e seguiu rua abaixo. Iria para o clube. Sendo domingo e meia-noite, que poderia fazer na cama? Pensar e ele não era homem para isso.

Parou diante do clube e empurrou a porta. Vozes, fumaça, camisas de peito engomado, sorrisos convencionais. Mentira. Tudo mentira. Por que só agora achava que tudo era mentira?

— Ei, você, rapaz!

Virou-se. Amado chamava-o. Estava só numa mesa, com um charuto entre os dentes.

— Olá.

— Sabe o que você me pareceu quando o vi entrar?

— Não sei.

— Um mocho assustado.

— Estou enojado — disse Adolfo asperamente. — Enojado! Nunca se sentiu assim?

— De mim mesmo?

— E do próximo.

— Não. Sou mais cordato. Ouça — acrescentou sem transição: — Que tal a pequena?

— Que pequena?

— Sua protegida.

— A porteirinha? Ah, você é que tem que me contar. Não a vi mais.

— Oh! — riu. — É mesmo? Pois saiba que é uma jóia. Trabalhadora, inteligente, nobre, pura, simples... Há um rapaz que daria tudo para levá-la ao altar. Mas acontece que ela tem três irmãos. Não existe um valente no mundo todo, que se chame homem que, diga-se de passagem, quase nunca são valentes...

— Somos.

— Admitamos isso. Somos. Que queira se encarregar de três crianças.

— Você diz que ela tem boa conduta?

— Muito boa. Para lá de boa. Eu a respeito, veja você. Por nada do mundo ousaria olhá-la... como nós, os homens de nossa laia, olhamos as mulheres.

— Faz muito bem.

— Sim? Por que diz isso?

— Parece-me muito decente.

— Sabe por experiência, hem, seu sabido?

— Amado — ficou sério — eu sou decente, quando a mulher é decente.

— Se quer que lhe demonstre o contrário, permita que lhe refresque a memória.

— Amado!

— É melhor preferir que eu não o faça — baixou o tom de voz. — Notou como ela é bonita?

Não respondeu. Amado lançou uma grande baforada de fumo.

— Que faz por aqui a estas horas e sozinho?

— O mesmo que você.

— Espero alguém.

Sorriu com desdém. Eram todos iguais. Onde estaria esse outro mundo, ao qual pertencia Maria José Palácios? Não restava dúvida que existia. Todos os que estavam no salão eram como ele, podres...

— Vem conosco? — perguntou Amado.

— Não.

— Rapaz, como ficou austero!

Despediu-se precipitadamente. Austero? Entrou no carro. Austero não, nem modificara seus maus hábitos. Mas, naquela noite, sentia-se saturado de paz. A paz do lar de Maria José. Não podia, de modo algum, perturbar aquela paz adquirida de modo tão estranho.

Um grupo de jovens, entre eles Raul, rodeou seu carro.

— Mas já vai?

— Que é isso?

— Não podemos crer.

— Ou tem algum encontro?

Movimentou o carro. As risadas de seus irmãos e dos amigos foram ficando para trás. Não sabia para onde ia. Pela primeira vez em muitos anos, quantos?

Entrou em casa às duas da madrugada. Jogou-se no leito. — Fechou os olhos. “Essa jovem me enlouquece — pensou. — Explodirei, se não falar com ela”.

Mas não era fácil, não, perturbar a tranqüilidade daqueles olhos verdes, puros, expressivos...

 

Começou a dar-lhes aula. Não as estava levando muito a sério. Era apenas um pretexto para aproximar-se mais de Maria José. Esta, no entanto, dava muita importância ao assunto, e passados alguns dias, quase sem o perceber, Adolfo Montero viu-se transformado em professor profissional.

Isto causou-lhe regozijo, hilaridade e assombro ao mesmo tempo. Mas firme em sua idéia e usando de falsa personalidade, obcecado, talvez, pela posse daquela jovem diferente, continuou o seu trabalho.

Chegava à casa da moça às sete horas em ponto. Algumas vezes encontrava as crianças sozinhas, pois Maria José ainda não tinha voltado do escritório. Sentavam todos à sua volta, no quarto de Pepe. Falava sem cessar durante mais de meia hora, sempre de ouvido atento ao menor ruído que indicasse a volta da jovem. Se demorava muito, ficava inquieto, aborrecido, mal-humorado.

Quando refletia, esclarecendo o verdadeiro objetivo por que estava ali, imaginava-se dedicado inteiramente ao estudo, procurando transpor obstáculos. A vitória final sobre essa oposição seria a perturbadora posse de Maria José.

Nunca, até então, e começara a comprar o amor aos quatorze anos, estava com vinte e oito, tivera tanto trabalho, inquietações e contrariedades para conquistar uma mulher. Em suas reflexões sobre isso, dizia a si mesmo que ela era uma moça diferente, valendo a pena conquistá-la, mesmo à custa de grandes esforços, razão daquela dedicação e daquela paciente espera.

O tempo passou. Uma semana, duas, um mês... Maria José chegava à casa às sete e meia, invariavelmente. Recostava-se ao umbral da porta do quarto de Pepe, sem tirar o agasalho. Sorria. O brilho de seus olhos caía em cheio nos de Adolfo. Nunca saberia dizer, ao certo, de que cor eram. Mudavam com freqüência.

Depois levantava-se a sessão de estudo. Cada qual ia ocupar seu posto. Ajudavam-na a fazer o jantar.

— Vou embora — dizia Adolfo, invariavelmente — voltarei para fazer-lhe companhia quando deitar as crianças.

Quase sempre acontecia o mesmo. Quando a campainha soava de novo, os meninos já estavam deitados. Ela passava roupa, ou tricotava ou o escutava de braços cruzados.

As conversas tornavam-se cada vez mais prolongadas. Não sabia explicar como acontecera, mas um dia surpreendeu-se em tratá-lo por “você’’ como se fosse a coisa mais natural do mundo.

O jovem não fez o menor comentário. Percebeu aquele progresso com prazer.

Às vezes, via-se a si próprio como um caçador furtivo, esperando o momento em que a presa ficasse ao alcance do tiro. Que aconteceria, então? E, concretamente, no dia em que efetuasse a caça? Perseveraria ou se cansaria logo daquela posse há tanto tempo desejada?

Uma dia fez uma descoberta. HorrorizoU-se a princípio, mas depois considerou que era o melhor que lhe podia acontecer. Quando e como fora? Não saberia explicar. Descobrira, nem mais nem menos, que Maria José o amava e acreditava nele. Não corou nem se sentiu envergonhado por esse fato.

Chegou, naquela noite, quando Maria José se dirigia para a sala de jantar. Terminara seus afazeres domésticos e atravessava o corredor, com uma revista na mão, quando a campainha soou. Foi abrir a porta.

— Você se atrasou — disse com a maior naturalidade.

— Tenho um estômago, querida — riu-se ele, divertido. — Ou acha que vivo de ar?

Maria José sorriu, suavemente.

— É verdade. Não vai tirar o sobretudo? Como faz frio na rua, hem? Cheguei entorpecida.

— Amanhã irei buscá-la com o meu carro.

— Não, não. Não quero provocar comentários.

Enquanto falava, ajudava-o a tirar o casaco. O jovem colocou-o no cabide e passou o braço pela cintura dela. Encaminharam-se para o canto da sala. Aquela, manifestação de carinho vinha-se repetindo há uma semana. Agia assim, como se Maria José fosse propriedade sua. Ela não percebia a rede que a envolvia. Ou estava apaixonada ou era demasiado inocente.

— Que tal as crianças? — perguntou ela. — Aprendem?

— Pepe é muito inteligente. Dorinha está um pouco atrasada. Bernardinho segue o mesmo caminho do irmão.

Sentaram-se no divã, um ao lado do outro. Adolfo, com naturalidade, passou o braço sobre o encosto do sofá. Enrolou os dedos no cabelo da jovem.

— Fique quieto — disse ela, tranqüila.

— Gosto de tê-la perto de mim.

Nunca a beijara. Sabia que no dia em que o fizesse, ficaria com um sentimento de culpa.

— Já me tem aqui.

Ele riu. Um riso prazenteiro, íntimo. Maria José sentiu-se mais perto dele. Era tão bem-parecido, tão nobre... Raramente se lembrava de que era um homem rico. Para ela, era um homem, o único. Amava-o e não corava ao constatá-lo. Sentia-o cada vez mais próximo, não fisicamente, mas espiritualmente.

A noite estava frigidíssima. Adolfo lembrou-se de seu carro. Estava na rua e a chuvarada iria estragá-lo, mas logo o esqueceu.

Maria José estava sentada a seu lado. Sempre cheirosa, feminina.

— Está trovejando — disse ela daí a pouco.

— Muito.

— Sabe que seu rosto parece muito enrugado? É a luz...

Apagou-se naquele momento. O temporal aproximava-se.

— Oh! — murmurou ela.

— Está com medo?

— A seu lado, não — disse ela num fio de voz.

Adolfo sentiu uma súbita ternura. Aquela jovem tinha a virtude de inspirar-lhe sentimentos desencontrados. Às vezes, como que um demônio o dominava, despertando-lhe desejos. Em outras, uma luz celestial o iluminava e o aproximava, como naquele momento.

Rodeou-a com os braços. A luz demorava a voltar.

Suas vozes eram sussurros. A cabeça de Maria José repousava em seu peito. Foi fácil encontrar sua boca. Beijou-a devagarinho. Cheirava a lavanda.

— Maria José.

— O quê?

Sentia seu hálito perfumado, feminino. Fechou-lhe a boca com a sua. Beijou-a muito, ansiosamente. Terna e apaixonadamente. Foi um momento sublime para ela.

— Querida...

Não se afastou. Confiava nele. Nunca pensara no final daquilo tudo. Talvez não tivesse fim, ou talvez sim, dias depois. Amava-o.

— Você é tão frágil — sussurrou ele.

Não se atrevia a acariciá-la com maior intimidade. Suas mãos pareciam presas a sua cintura. Receava assustá-la, ou talvez, sem o saber, temesse ofendê-la. Tornou a beijá-la. Beijara muitas mulheres, mas nunca encontrara lábios tão puros, inocentes, tão... pessoais. Eram cálidos, suaves e não sabiam beijar.

— Maria José...

— Sim...?

— A luz não volta.

— Não.

Nada lhe censurara. Aquela demonstração de ternura parecia-lhe muito natural. Talvez a considerasse um complemento de seu afeto. O rapaz dominava sua ansiedade. Era muita, tanto quanto a inocência e pureza de Maria José.

— Gosto de você — disse ela com voz abafada.

— Amo-o, Adolfo.

— Querida...

— Você também me ama, não é?

— Sim, querida...

E assim começou tudo. Tinha-a junto ao seu peito quando a luz voltou. Entreolharam-se. Excitado e nervoso, ficou de pé, olhando-a de cima.

— Sabe que horas são?

— Sim — sorriu nervosa, confusa, ruborizada. — Muito tarde.

Não recordava o beijo. Aquele longo e intenso beijo que iniciaria uma interminável cadeia de acontecimentos.

Não o recordava, pelo menos aparentemente. Tomou-lhe as mãos, puxando-a para si.

— Voltarei amanhã.

— Sim.

— Quer?

— Você sabe que sim.

— Sei tão pouco a seu respeito...

Por que começava aquele diálogo? Que lhe importava, no fim de contas, o que ela pensasse, sentisse ou dissesse? Não era preciso aprofundar-se. Já era senhor da superfície. Agora tudo era questão de paciência...

Não a amava. Jamais amara uma mulher. Cortejava-as, fingindo amá-las durante certo tempo. Cansava-se logo. Era inconstante e volúvel, reconhecia, mas não podia remediá-lo.

— Tenho que ir — disse baixinho.

Tinha um poder estranho de dominar e subjugar. Era claro que não percebia que Maria José era demasiado pura e sincera para não subjugá-la, por sua vez.

Acompanhou-o até a porta. Ajudou-o a vestir o sobretudo. Numa vozinha embargada pela emoção, sussurrou:

— Se me faltasse agora...

— Querida...

— Se me faltasse... eu morreria, Adolfo.

Não pronunciou uma única palavra. Beijou-a apaixonadamente. Ela passou-lhe os braços em volta do pescoço. Teve a impressão de que tudo rodava, como se a felicidade que vagava em torno dela intumescesse seu coração.

— Adolfo — sussurrou. — Oh! Adolfo.

— Até amanhã, querida.

Abriu a porta descendo as escadas sem precipitação. Que estava fazendo? Que fizera? Aquela pequena acreditava nele. E ele era... era... um canalha.

 

Ligou o motor do carro e saiu, em velocidade.

Era meia-noite. Não iria para casa. Não estava com disposição de se recolher ainda. Precisava de ar. Baixou o vidro do carro. Precisava atordoar-se. Dirigiu-se ao apartamento do irmão. Raul sempre estava acompanhado de mulheres. Tornou a sentir-se enojado como se uma doença incurável o perseguisse, mas sujeitou-se mais uma vez. Precisava esquecer Maria José, a pureza que ia conspurcar sem piedade, seu olhar ardente, seus lábios suaves, sua voz abafada...

Freou o carro diante do prédio de Raul. Talvez não estivesse em casa. Às vezes a noitada era em casa dos amigos ou na casa dos pais, quando estes saíam. Olhou para cima. Raul sempre gostava das alturas. Morava no oitavo andar. Havia luz.

Como se receasse arrepender-se, empurrou a porta e entrou no elevador. Premiu o botão com dedo trêmulo. Não percebera que não era só o dedo que tremia, mas todo ele. Sentia-se tão mesquinho e ao mesmo tempo...

Precisava esquecer tudo. Esquecer para recomeçar no dia seguinte.

Uma jovem loura, de grandes olhos escuros, abriu a porta.

— Adolfo!... — exclamou. — Mas... que foi feito de sua vida todo este tempo?

Entrou, sem responder.

O quadro não era estranho para ele. Era o mesmo de todos os dias. O toca-discos funcionando. Raul dançando, uma moça acompanhando-o. Homens e mulheres bebendo. Todos amigos da família. Pessoas que se consideravam decentes, que vestiam-se de branco no dia do casamento e levavam flores de laranjeira.

Nunca desrespeitara uma mulher daquelas, sem preconceitos, porque para encobrir seus maus hábitos contavam com um nome ilustre e uma conta-corrente inesgotável. No entanto, estava prestes a ofender uma mulher honesta, que teria ficado horrorizada diante daquele quadro.

— Você está abstrato — disse Raul, rindo, sonoramente. — Não dança?

— Não.

— Não bebe? — perguntou um amigo.

Olhou. Sentiu mais repugnância ainda. Amado ali estava, com sua idade, seus cabelos brancos, seus maus costumes. Deu a volta.

Raul estava atrás dele.

— Que veio fazer aqui? — perguntou.

Olhou-o calmamente. Sacudiu os ombros, pôs a mão na maçaneta da porta e saiu, sem que ninguém o impedisse.

 

Maria José saiu do escritório, abriu o guarda-chuva e atravessou a rua a passos rápidos.

Elias seguiu-a.

— Não me dá um lugarzinho sob seu guarda-chuva, Maria José?

— Sim, sim. Certamente.

Elias era um jovem, chefe de publicidade, bom rapaz. Nem alto nem baixo, de estatura comum. Admirava-a, desde que começara a trabalhar no escritório, havia seis meses. Nunca ousara dizer-lhe nada. Era uma moça séria e não ficava bem falar-lhe de amor se não pretendia -casar-se com ela. Não sabia o que dizer-lhe naquele momento, mas tinha certeza de que lhe diria alguma coisa.

— Maria José... quer ir comigo ao cinema, esta tarde, logo que sairmos do escritório?

Olhou para ele. Sorriu, agradecida.

— Não, Elias. Sinto muito.

— Por que Maria José?

Disse com naturalidade, como se fosse, realmente, a coisa mais natural do mundo.

— Tenho namorado.

Elias parou para recomeçar imediatamente a andar, acertando seu passo com o dela.

— Namorado? Que surpresa, Maria José! Desde quando?

Desde quando? Seus olhos brilharam. Parecia-lhe que desde sempre, mas o certo era que namorava Adolfo há poucas horas, desde a véspera.

— Desde ontem...

— Oh! Eu o conheço?

— Não creio.

Não pensava falar a ninguém sobre Adolfo. Era um assunto tão íntimo, tão seu, tão extraordinário, que falar ou compartilhar com alguém que não fosse ele, parecia-lhe um sacrilégio.

— Você está muito apaixonada?

Maria José suspirou. Olhou para o alto. Afastou o guarda-chuva para ver o firmamento.

— Muito — sussurrou. — Muito, sim.

— Feliz ele. Eu... que pensava dizer-lhe...

— Não diga nada — riu feliz. — Sentiria se me dissesse.

— Maria José, diga-me a verdade. Se lhe tivesse dito a semana passada.

Aquele rosto tornou a se iluminar com um sorriso radiante.

— Mesmo que me tivesse falado há um mês atrás, Elias, E não se ofenda. O amor é uma coisa tão grande, tão...

— Percebo.

— Perdoe — sussurrou, como se tivesse acanhamento de falar de seus próprios sentimentos. — É como se estreasse um vestido novo. Você... sabe.

— Estou arrasado, querida.

Despediram-se numa rua próxima. Elias foi andando, lentamente, sob a chuva, decepcionado, triste. Ela debaixo do guarda-chuva, radiante, feliz.

Apanhou os irmãos na escola. Pôs Bernardinho nos braços.

— Olhe, olhe! — gritou este. — É Adolfo!

Ela virou-se. O carro que os salpicara de lama fora, na realidade, o de Adolfo. Levava alguns amigos em seu carro.

Ficou triste. Continuou andando.

— Era Adolfo.

— Sim, mas não nos viu.

Na verdade, ele os vira... Acelerou o carro, perdendo-se, mal-humorado, rua abaixo. Os amigos olharam-no, espantados.

— O que é que você tem? Pisou o acelerador e esteve na iminência de atropelar uma linda mamãe com seus três filhos...

Sentiu-se mesquinho, desprezível. Não respondeu.

 

Nunca trabalhara aos sábados de tarde. Ele devia saber, porque bateu na porta às cinco horas em ponto. Ela abriu.

— Querida, não esperava encontrá-la em casa.

— Entre — disse, sorridente. — Sabe que o vimos esta manhã? Ia no seu carro e nos sujou de lama.

Pegou-a pela cintura.

— É? Por que não me chamou?

— Ia com uns amigos.

Beijou-a na testa. Ela, tranqüilamente, acrescentou:

— Foi uma pena!

Foram para a cozinha de mãos dadas.

— E as crianças?

— Não vieram ainda. Sabe que não trabalho aos sábados à tarde?

— Por isso vim até cá — e beijou-a.

Um século ou uma eternidade. Ela nunca soube nem quis saber. Adolfo era toda sua vida, era seu noivo, pelo menos assim pensava.

Olhando-a nos olhos, viu que enrubescera.

— Querida.

— Sinto uma vergonha...

— Como você é criança! — passou o braço em volta de seus ombros. — Vamos nos sentar um pouco no nosso cantinho? Sabe que ele me traz recordações inesquecíveis?

Trazia, realmente. Para ela, também. Deixou-se levar. Ia ser difícil conter aquela precipitação para o abismo. Só seria evitada a queda se despertasse a consciência de Adolfo e se ele o admitisse. Ele não era homem que ficasse no meio do caminho. Lutara muito para merecer a confiança de Maria José, e agora...

A jovem nunca saberia dizer como aquilo acontecera. Mas o certo é que aconteceu um dia. Quando? Nem quis pensar.

Acontecera. Ele dizia: “Quando nos casarmos.”

Nunca pensara que ninguém impediria que ele se casasse no dia que bem entendesse. Conformava-se em ouvi-lo dizer: “Quando nos casarmos...”

Mas um dia Maria José sentiu-se culpada. Não sabia bem de quê. Bem, saber, sabia, mas custava a admiti-lo. Amava-o tanto. Erra-se quando se ama? Foi se confessar. O confessor ficou horrorizado, quando lhe contou tudo.

— Mas, criatura, você é assim, tão inocente?

— Não sei, padre, não sei o que se passa comigo.

— É claro que não sabe, porque se soubesse... Ficaria assombrada. Deve sustar essas relações imediatamente. Uma moça pode ter noivo, inclusive casar-se com ele, ou pretender fazê-lo, mas isso não desculpa o seu procedimento.

— Padre, confio nele... como em mim mesma.

O sacerdote não confiava, em absoluto, mas teve pena ou dificuldade em dizer-lhe. Fê-la prometer que não tornaria a suceder, e que suas relações, no futuro, seriam normais, sem ligações perigosas.

— Um homem quando ama deveras a uma mulher — disse aborrecido — não chega a esse extremo. Quem é ele? Que faz?

— É rico.

— Hum... E você tem três irmãos para quem trabalha. Seu noivo trabalha?

— Não precisa.

— Maria José... Maria José, todo homem precisa e deve trabalhar. Com que pensa mantê-la no dia em que se casarem? Com o dinheiro do pai? Isso não é digno. Reflita sobre isso, Maria José, e sobretudo, cumpra o prometido. Se não o fizer, incorrerá em pecado mortal e você não é uma pecadora. Você pecou por ingenuidade, e seu noivo, por leviandade. É preciso sustar essas relações.

— O senhor diz para deixar de vê-lo?

— Não. Para que queremos a vontade? É ela que deve conter o ímpeto de vocês. Deseja ser a mulher que se visita clandestinamente?

— Não, não — sussurrou angustiada. — Isso não.

— Pois vai nesse caminho. Devia ter vindo falar comigo antes... antes de se lançar à aventura de um amor, tão inocente de sua parte e tão leviano da parte de seu noivo... que, diga-se de passagem, minha filha, não me parece nada nobre.

— É o melhor homem do mundo.

— É o que talvez pareça a você.

— Padre...

— Não se assuste. Vou-lhe dizer o que vai acontecer'. Pode suceder de duas maneiras. Ou seu noivo se casa o quanto antes com você, pois não há razão que o impeça, e partilha com você da vida de um lar e a responsabilidade de educar os seus três irmãos, ou então se afasta e não volta mais. Se cumpre a primeira, é porque a ama, verdadeiramente, e Deus levará isso em conta, perdoando-lhe os pecados da juventude. Mas se proceder da segunda.. você cometerá pecado mortal, se tornar a aceitá-lo em sua vida pela porta falsa do amor, a que me referi momento atrás. São, portanto, duas alternativas. Espero, dada sua inocência, que em má hora seu amigo maculou..

— Meu noivo, padre.

— Está bem, minha filha, está bem. Digamos, seu noivo, se prefere assim. Mas, em minha opinião, perdoe-me a franqueza, é um noivo muito peculiar. Levou-a ao cinema alguma vez?

— Não temos tempo.

— Em compensação, têm tempo para pecar — censurou. — Foram passear alguma vez?

— Já lhe disse, não temos tempo.

— Apresentou-a à sua família?

— Não.

— Aos amigos?

— Ele concentra toda sua vida em mim.

— Hum... Bem. Creio que já lhe dei um bom conselho. Se voltar aqui, dizendo que não pôde ou não soube manter-se incólume, não poderei absolvê-la.

— Padre!

— Essa é a verdade, minha filha.

— Que devo fazer?

— Diga-lhe a verdade. Essa verdade que ele lhe ocultou com inteligente má-fé.

— Adolfo é um homem bom.

— Pode ser, mas eu diria que essa sua bondade é bem... singular. Assim como o procedimento que teve com você. Repita, pode-lhe contar que veio me procurar. Sou seu confessor desde quando lhe dava aulas no instituto. Lembre-se que sempre a dava como exemplo para tudo.

— Padre, estou desesperada.

— É lógico. Veio a mim ignorando o alcance de seu imenso pecado. Agora já sabe. Você é muito ingênua, Maria José. Confiou num homem. Acha que se deve confiar dessa maneira? Deus premia a inocência, mas a tolice, como você a cometeu, é condenável. Agora que já sabe disso, pode ir. A penitência é não ver seu noivo durante uma semana. Volte no sábado.

— Uma semana. Como farei?

— Não sei. Você terá que decidir.

— Padre, o senhor está zangado comigo?

— Minha filha, não pretenderá que a aplauda, ainda por cima. Mas não estou zangado apenas, estou indignado, desgostoso, assustado...

Ela também estava. Depois de ouvir, sentiu uma grande inquietação. Era bem verdade, que se sentira assim, desde o começo, .em seu subconsciente, mas não quis ou não soube reconhecê-lo. Agora era diferente. Não era uma pecadora. Era apenas uma mulher enamorada. Intensamente apaixonada.

Eram seis horas da tarde. Tinha que cumprir sua penitência, embora lhe custasse fazê-lo.

Chegou em casa. Os irmãos estudavam fechados no quarto de Pepe. Bernardinho, enquanto os outros discutiam sobre uma lição de história, brincava no chão com um cachorrinho de pano, que Adolfo lhe trouxera dias atrás.

Precisava falar pelo telefone com ele, antes que ficasse tarde.

Correu para o quarto e discou um número.

— Alô!

— O Sr. Adolfo, por favor?

— Quem deseja falar? — perguntou uma voz fanhosa, desconhecida.

— Uma pessoa amiga — sussurrou, mordendo a língua.

— Um momento. Parece que não está.

Esperou, com ansiedade, apertando o fone como se fosse o próprio coração rebelde, negando-se a admitir aquele desenlace.

— Alô!

— Adolfo...

— Não deve ligar para cá — disse ele mal-humorado.

Sentiu-se fraquejar. Era cruel, sim, cruel, falar-lhe naquele tom. Amar seria pecado? Que tinham os pais dele a lhe censurar? Era uma moça honrada, ou fora... até conhecê-lo.

Passou a mão nos olhos, com violência, para conter as lágrimas que afluíam.

— Desculpe — disse em tom baixo. — Desculpe.

— Que deseja.

Ouvia-se música. Certamente era uma festa. Lembrava-se ainda das festas que os Montero davam. Eram ruidosas e esplêndidas.

— Não venha, Adolfo.

— Como?

— Não venha. Fiz uma... promessa.

— Que tolices está dizendo? Promessas a estas alturas?

— O nosso caso... — era difícil falar. Não podia mover a língua — terminou.

Fez-se um silêncio.

— Que diz? Vou para aí, agora mesmo.

— Não venha. Não abrirei a porta. Ficarei sem vê-lo durante uma semana, e depois... de modo diferente.

— Bem — disse ele, de repente. — Se não posso vê-la durante uma semana... vou viajar. As explicações você dará quando eu voltar. Suponho que haja explicações a dar.

— Sim.

— Então, até daqui a uma semana, querida ingênua...

Ingênua? Desligou, repetindo a frase como se a mordesse. Então fora isso: uma ingênua. Nunca fora uma noiva para ele. Fora primeiro um divertimento e depois uma amante. A convicção de que as coisas se haviam passado exatamente assim, horrorizou-a.

 

— Não jantamos hoje? — perguntou Pepe com estranheza, batendo na porta do quarto da irmã. — Adolfo não veie, e você não nos dá jantar. Está doente, Maria José?

Não tinha o direito de perturbar a paz e tranqüilidade de seus irmãos.

— Já vou — disse, enxugando os olhos. — Já vou.

— Quer que preparemos o jantar, Maria José? Se está-se sentindo mal...

— Não, não, Pepinho. Vou agora mesmo.

Se seus pais erguessem a cabeça e soubessem o horror que praticara. Ainda recordava o pai dissertando sobre a dignidade. Dizia que um homem pode ser muito pobre e tolo, mas honrado... Honrado! Ela também o fora até conhecer Adolfo. No começo seu amor era maravilhoso!

Olhou-se novamente ao espelho. Os olhos continuavam avermelhados, mas isso não devia impedi-la de fazer o jantar. As crianças não notariam.

Saiu. Os três estavam ali, inquietos, meio assustados. Ela nunca estivera enferma e, de repente...

— Você está bem? — perguntou Dorinha.

— Sim, naturalmente. Um pouco cansada...

Forçava um sorriso.

— Sente-se aqui — agitou-se Pepe. — Diga o que temos que fazer. Dorinha e eu faremos o jantar.

Eram maravilhosos. Por que havia de se apaixonar, tendo aquelas três obrigações? Por que fizera aquilo, se era uma moça honesta?

— Eu o farei, Pepinho. Vão brincar um pouco no corredor.

— Não podemos deixá-la sozinha — disse Dorinha.

— Você parece adoentada. Está pálida, sabe? Você.... chorou?

— É claro que não.

— Eu gosto muito de você — disse Bernardinho, agarrando-se às suas pernas. — Gosto muito de você, Maria José.

Suspendeu-o e apertou-o contra si. Olhou para todos, ocultando seu rubor, sua vergonha. Ainda não podia compreender. Mas um dia compreenderiam...

— Vou fazer o jantar — disse bruscamente, colocando o menino no chão.

Preparou-o, de fato. Jantaram todos, sentados em torno da mesa. Pepe comentou no meio da refeição:

— É estranho que Adolfo não tenha vindo hoje.

— Está viajando...

— Sem se despedir?

— Veio, mas vocês não estavam...

— Ah!

Foram dormir. Logo depois de deitar Bernardinho, voltou para a cozinha. Começou a passar a ferro. De vez em quando parava e uma terrível angústia invadia-a. Como fora tão fraca? Como pudera esquecer tão depressa sua formação moral?

A campainha do telefone soou. Estremeceu. Bernardinho podia acordar. Atravessou o aposento e pegou o fone com ansiedade.

— Alô!

— Sou eu.

Não precisava dizer o nome. Conheceria sua voz mesmo através dos séculos. Era uma voz peculiar, misto de altivez e ternura. Uma voz rouca e suave ao mesmo tempo.

— Você sabe onde o telefone está — disse em tom baixíssimo. — Não lhe posso falar daqui. Telefone amanhã.

— Estou no café da esquina. Vou à sua casa.

— Não!

— Mas, Maria José, que diabo aconteceu, de repente? Que lhe fiz eu?

— Explicarei mais tarde.

— Sobre o que eu lhe fiz?

— Sobre o que acontece.

— Não seja criança, Maria José. Não podemos terminar assim.

— Por favor, não me faça falar. Vou acordar o menino.

— Está bem. Irei à sua casa amanhã.

— Não, por favor, não.

— Como? — perguntou rispidamente. — Está louca? Não podemos acabar desse modo intempestivo.

— Não falei em acabar, Adolfo. Disse que darei uma explicação dentro de uma semana. No sábado que vem. Você disse que ia viajar. É melhor ir.

— Que eu vá ou deixe de ir — exclamou mal-humorado — não há de ser você quem vai me dizer. Trata-se de outra coisa.

— Isso já está resolvido. Não quero vê-lo por uma semana.

— Veja bem o que faz, porque se não me vir durante uma semana, talvez não me veja nunca mais.

Sorveu as lágrimas.

— Está bem — disse pouco depois. — Se não devo vê-lo pelo resto de minha vida, não o verei.

Outro silêncio. Depois...

— Não gosta de mim?

— Adolfo.

— Sim, sim — instou. — Tenha a coragem de confessá-lo.

— Amo-o — disse com voz abafada. — Nunca poderei deixar de gostar de você.

— Que tem você, Maria José? — perguntou roucamente. — Que é que há? Ontem estava contente. De repente, hoje, agora, esta tarde... Por quê?

— Você não me ama — disse com súbita energia.

— Que diferença faz? Que lhe interessa o que possa me acontecer?

— Nunca me falou assim.

— Responda. Não é verdade que pode viver sem mim? Que está cansado? Que não gostou quando telefonei para sua casa? Que se envergonha de ter uma namorada que foi porteiro de seu edifício?

— Maria José!

— Confesse, e o considerarei um homem sincero.

— Está bem — decidiu. — Você quer assim, pois assim seja. Adeus.

Desligou. Ela fez o mesmo, por sua vez, com mão trêmula. Ao voltar-se, encontrou os olhos imensamente grandes de Bernardinho fixos nela. Engoliu as lágrimas. Inclinou-se maternal para ele:

— Filhinho...

— Com quem estava falando?

— Com... com... a modista.

— Não vai fazer o vestido?

Acariciou seu rostinho. Deitou-se junto dele e apertou-o contra si.

— Não, não vai fazer — respondeu.

— E chora por causa disso? — perguntou, tristemente, acariciando-lhe o rosto.

— Não... não... choro, meu bem.

— Não? E isto o que é?

— É que... que... estava tomando banho quando telefonaram.

O garotinho acreditou.

— Não tem medo que o banho lhe faça mal?

— Durma, minha vida.

— Que dizia Adolfo? — perguntou ele daí a pouco.

— Era... a modista.

— Chama-se como o seu noivo?

— Sim.

— Ah!

— Durma, meu amor.

Ele adormeceu, fazendo perguntas. Ela ficou ali, ao seu lado durante muito tempo, até cair de sono. Quando acordou, ao romper do dia seguinte, viu que ainda estava vestida. Seus olhos ainda estavam vermelhos de pranto.

 

— Que faz aí, parado? — gritou. — Arrume minha maleta e acabe de uma vez.

Matias obedeceu, em silêncio. Iria comentar na cozinha com Maria, depois. Notava-se que o jovem açoitara móveis e objetos, porque estava tudo em desordem. O armário aberto, de par em par, e as roupas jogadas no chão, como se fossem trapos.

— Que está esperando? — gritou ele de novo, furioso. — Não me ouviu? Para que acha que o mandei chamar?

— Sim, sim, patrão.

— Arrume a maleta e acabe de uma vez, Matias.

Adolfo continuou a andar, novamente, pelo quarto.

De vez em quando dava um pontapé no primeiro objeto que encontrava, na poltrona, no pé da cama, no tapete e, por fim, na maleta. Matias o olhava.

Que estaria acontecendo com Seu Adolfo? Nunca estivera assim. Já o tinha visto zangado, mas nunca usara de violência para desabafar sua raiva, e sim a ironia. Suas frases eram ferinas, certeiras, quando se aborrecia com os irmãos. A violência, nunca.

— Acabe de uma vez, Matias.

O camareiro de André achava que não tinha obrigação de agüentar Adolfo, mas obedeceu.

Fechou a maleta e perguntou:

— Mais alguma coisa, Seu Adolfo?

— Guardou tudo?

— Acho que sim.

— Acha, acha... Olhe, estúpido.

Era um velho de cabeça branca. O jovem nunca lhe faltara ao respeito. Devia estar muito desgostoso. Mulheres? Andava sempre às voltas com saias.

Matias inclinou-se novamente sobre a valise e abriu-a.

— Está tudo em ordem.

— Leve-a, então, para o vestíbulo e reserve uma passagem para o avião das quatro e vinte.

— Sim, senhor.

— Rápido. Que espera? Por que me olha assim?

Pouco depois, Matias comentava com Maria, na cozinha :

— Alguma coisa deve estar correndo mal para Seu Adolfo.

Maria enxugou as mãos no avental e comentou, com indiferença:

— É preciso que as coisas vão mal, um dia, para que saibam como é.

— Não resta dúvida — insistiu Matias — que algo de muito sério está acontecendo com ele. Sempre tratou bem aos criados. Está furioso. Vai viajar.

— Alguma conquista fracassada...

Em seu quarto, o jovem continuava passeando com as mãos atrás das costas. Abria-as e fechava à medida que avançava, no seu vaivém. Raul entrou.

— Homem — riu, gracejando e sentando-se na beira da cama. — Que acontece ao Dom Juan?

Adolfo não parou. Continuou medindo o aposento de um lado para o outro, como se apertasse o coração de Maria José a cada passo que dava.

— O que foi que não correu bem para você?

— Quer me deixar em paz?

— Será algo doloroso, de fato? Você não fica assim por qualquer coisa, Adolfo.

— Deixe-me em paz, Raul. Vá para o diabo.

— Ouvi dizer que vai viajar — disse Raul, rindo, tranqüilamente. — Vai só?

Adolfo saiu, batendo com a porta. Topou com o pai, no salão. Eram duas horas da tarde e acabava de levantar-se. Ainda estava de roupão.

— Que estão me dizendo? — exclamou ao vê-lo.

— Soube que deu um pontapé no cão de sua irmã, machucando-o muito. Vai ter de levá-lo ao veterinário. Desde quando resolve seus problemas com o pé? Pensei que o fizesse com o cérebro.

— Vou viajar — exclamou Adolfo, como se quisesse morder.

— Sim, Teresa me contou. Eu me pergunto: será tão ingênuo, a ponto de esperar que sua mágoa, sua dor ou sua raiva desapareçam com a viagem?

— Não tenho mágoa, nem dor, nem raiva.

— Despeito, então? Será que se trata de algum rabo-de-saia? Não o considero tão sentimental que chegue a sofrer por uma mulher.

— Está para nascer a mulher que me cause tristeza ou alegria.

— É afirmar muito — riu o pai gostosamente — mas como é você quem o diz...

Contemplou o charuto, levou-o à boca e saiu sem esperar resposta.

Adolfo sentou-se numa poltrona apertando um cálice entre os dedos. Esse era seu pai. Jamais se preocupara com eles, salvo para fazer um comentário irônico, como o que acabava de fazer.

Partiu às duas e meia.

Não olhou para trás. Esqueceria. Não saíra tudo como desejara? Assunto encerrado. Outra mulher. Recordou as palavras do poeta: “A mancha da amora, outra tira.” Sim, era um bom método.

 

Foi uma semana horrível. Desde que ficara sem notícias de Adolfo, a vida era horrível em todos os seus momentos.

Foi falar com seu confessor. Não se resignara a confessar no confessionário. Tinha que vê-lo de frente, dizer-lhe que cumprira a promessa ou penitência. Fora dura de cumprir, mas cumprira.

— É assim que se faz — exclamou o sacerdote. — Agora já sabe o que deve fazer no futuro. Quer continuar sendo seu noivo? De acordo. As boas relações, a ternura de duas pessoas de sexo diferente, o amor que possam vir a sentir uma pela outra, Deus aprova. Mas fora daí... tudo é condenável.

— Padre, ele partiu.

— Melhor para você.

— Eu o amo.

— Sim, minha filha, já sei. Basta olhar seu rosto para ler a desolação que existe em sua alma. Ele tem que amá-la, do mesmo modo que você o ama. Sem amor não há respeito. Nunca pensou nisso?

— Nunca, mas agora, sim.

— Bem. Não é muito rápido, mas uma pedra apanhada em tempo.... Você atirou a primeira... Atingiu o alvo. O que tem que fazer agora é não atirar mais pedras.

 

Transcorreu um mês. Elias perguntou-lhe, um dia:

— Continua noiva?

Desciam a rua juntos. Elias era um bom rapaz. Falar com ele consolava-a, de certa forma. Um modo um tanto absurdo, mas ela, depois de conhecer Adolfo, jamais tratara com outro homem, a não ser os do escritório.

— Não.

O rosto de Elias iluminou-se:

— Brigaram?

— Sim.

— Maria José... não sei o que dizer-lhe. Posso ajudá-la em alguma coisa?

— Obrigada, Elias — disse baixinho.

— Se minha amizade lhe serve de alguma coisa...

— Serve, para não me sentir tão só.

— Não está agora — disse ele, fervoroso. — Oh! não! Estarei sempre a seu lado.

Chegou à casa mais desanimada do que nunca. Não se casaria jamais. Cuidaria de Dorinha, velaria ciumentamente por ela, sim. Tudo o que não fizera por sua própria pessoa. Os anos passariam céleres. Sempre que se pretende deter o tempo, este desliza de modo alarmante, produzindo um pesar cada dia que passa. Pepe se casaria, Dorinha logo depois, e a seguir Bernardinho. Ficaria muito só e continuaria trabalhando e vendo os dias passarem monótonos e frios.

Introduziu a chave na fechadura. Empurrou a porta. Estacou, paralisada. Seus irmãos estavam rindo. Ouvia-se o ruído de uma bola rolando. A voz de Adolfo... Era a voz dele, sim.

Levou as mãos à altura do coração. Iria tudo recomeçar outra vez? Ergueu os olhos para o alto. Sempre olhava para o alto, quando alguma coisa a agitava.

Era mulher. Apenas mulher. Bem o sabia, como sabia também que não teria força de vontade suficiente para repelir o rapaz. Não poderia proibir que a visitasse, mas... aquela intimidade... não, nunca, jamais.

Foi entrando lentamente. Alguém, um de seus irmãos, não saberia dizer qual deles, tão confusa estava, gritou:

— Maria José chegou!

Recostou-se no umbral. Adolfo estava inclinado sobre Bernardinho. Observava-a por baixo de seu próprio braço. Ela sentiu no rosto o calor da vergonha. Não pôde evitá-lo. Todos os momentos que viveu junto a ele acorreram à sua mente.

— Olá — disse ele, suavemente.

— Olá — respondeu ela, baixinho.

Os olhos nos olhos. As recordações nas duas mentes. Ansiedade em seus corações...

— Adolfo trouxe-me um dicionário de inglês, autêntico — gritou Pepe.

— Para mim, trouxe discos — disse Dorinha, transbordando de felicidade.

— Para mim — gritou o menorzinho — um trem elétrico e uma bola de gás.

Continuavam a fitar-se.

Pepe — disse Maria José, afastando os olhos de Adolfo. — Leve seus irmãos para a cozinha. Preciso falar com Adolfo.

— Vamos — exclamou Adolfo, não se dando por achado. — Nem sequer me dá um beijo?

— Preciso falar com você. Não quero que tenha trabalho com os meus irmãos.

— Mas que lhe aconteceu? Que diabo há com você? Parece outra.

Parecia, na realidade. A mesma, com outros olhos, outra boca, outro sorriso. Ficou agitado. Fora um mês de pesadelo. Não era fácil conhecer Maria José, como ele a conhecera, e depois esquecê-la. Não, não era nada fácil.

— Maria José... trouxe um presente para você, também.

— Não quero.

— Maria José!

— Escute, Adolfo. O que havia entre nós, do modo que era... compreende, não?...

Ele concordou com um leve gesto.

— Não pode continuar. Fui louca — passou os dedos pela testa — descontrolada, perdida... Não sabia o que estava fazendo. Você talvez me ache estranha. É o que estou farta de dizer a mim mesma.

— Falemos claro, Maria José. Que quer de mim?

Olhou-o, assombrada:

— Querer de você?

— Sim, sim — ficou impaciente, sem notar que estava pisando mais em falso do que até então. — Não sou homem que se case. Deve supor isso...

Não, não supunha. Sempre acreditara que uma vez entregue a carta de recomendação, como dizia seu confessor, chegaria por si mesma ao emprego e ao acesso. Inteirava-se naquele momento que Adolfo Montero jamais pensara em casar-se. Suportou a dor.

— Julguei que esta seria sua meta, nossa meta — disse ela sossegadamente, sem se rebelar. — Lamento e ao mesmo tempo folgo em sabê-lo.

O moço compreendeu que fora longe demais. Aproximou-se e procurou segurar sua mão. Tal e qual uma leoa, em defesa de seus filhotes, Maria José recuou.

— Não me toque — disse bruscamente. Não me toque, nunca mais.

O jovem ficou com a mão estendida. Que dizia aquela doida? Não podia tocá-la? Não se capacitaria ainda que sua razão de viver era tocá-la, precisamente? Passara um mês horrível afastado dela. Não podia suportar aquele calvário novamente.

— Seja razoável — disse, lentamente. — Seja razoável, Maria José. Nossa situação já está decidida. É verdade que não pretendo me casar, por enquanto. Mas se algum dia mudar de opinião... o farei com você.

— Nem a promessa de um casamento com data marcada me faria mudar de parecer. Ainda não se convenceu de minha decisão? Fui sua, é certo. De que modo? Conscientemente? Acho que não.

— Isso é tolice.

— Sei que essa é sua opinião. Por isso parece-me mais conveniente não discutirmos. Terminemos por aqui.

— Quer dizer que já não posso... voltar à sua casa?

— Seria o mais razoável. Mas se quiser vir... procure fazê-lo quando eu não estiver presente.

— Éramos uns noivos felizes...

— Sim, com uma felicidade como a de sua casa.

— Maria José!

— Desculpe. Ensinaram-me a viver de outro modo. Nunca me disseram que o dinheiro trazia felicidade. Pelo contrário, disseram-me que perturba na maioria das vezes. Eu nunca seria feliz, da maneira que vocês são. Sinto muito, Adolfo. Não quis ofendê-lo. Sei que você nunca me amou. Já o fez demais. Está cansado, farto... Eu... Acreditei em você. Sabe o que isso significa?

— Não, não me diga. Nunca soube. Acho que compreendi neste instante.

— Se sabe e me estima um pouco, não me moleste. Esqueça-se de tudo o que aconteceu.

— E você? — perguntou irado. — E você? Vai esquecer?

— Não. Já lhe disse que não estava cansada de amar. Amo-o e amarei sempre.

Ele deu um passo à frente.

— Maria José.

— Não se aproxime. Amei-o e amarei enquanto viver. Mas isso não significa que o admita novamente em minha vida.

— Permita ao menos que sejamos noivos.

— Não. A venda já me caiu dos olhos. Você nunca teve noiva. Acho que... me tirou da portaria para ter mais possibilidades de triunfo. Esqueceu que eu não tenho tendências para mulher adúltera, e um dia reagiria. Foi um pouco tardia essa reação, mas... — inclinou-se um pouco para a frente. — Ora. A recomeçar... seria capaz de me matar.

Compreendeu que o faria, realmente.

Sentiu-se envergonhado. Vestiu o sobretudo e enterrou o chapéu na cabeça. Abriu a porta e saiu sem dizer palavra.

Maria José encostou-se na parede e estancou a lágrima que estava prestes a rolar. Depois tirou o agasalho e dirigiu-se para a cozinha com passo firme.

As crianças brincavam com o trem de Bernardinho.

— Maria José — exclamou Dorinha, feliz — Adolfo prometeu fazer uma árvore na véspera de Natal.

Não respondeu. Estava colocando um avental na cintura.

— Falou que iria pedir um triciclo a Papai Noel para mim — disse Bernardinho, rindo, feliz.

— Está sentindo alguma coisa, Maria José? — perguntou Pepe, ficando de pé e inclinando-se para ela.

A jovem passou a mão sobre seus cabelos.

— Devo estar cansada. Quer ir com seus irmãos para a sala de jantar, enquanto preparo o jantar? Não esqueça de limpar os sapatos.

— Quer que a ajude, Maria José? — perguntou Dorinha.

— Vá com seus irmãos.

Na rua, Adolfo Montero entrou no carro e ligou o motor.

Não sabia se dava gritos de desespero ou uma risada louca. Que acontecia com ele, com Maria José? Teria enlouquecido? Não era que isso o afetasse muito... não. Por que haveria de se incomodar? O que sentia... Seria despeito, raiva, dor?

Precisava atordoar-se. Sim, provavelmente tudo não passara de uma coisa passageira.

Foi para o clube.

— Homem, viajante! — exclamou Amado ao vê-lo.

— Quando regressou?

— Esta tarde.

— Não me parece muito bem disposto.

— É a vida.

— Agitada, hem?

— Que tal as parisienses?

— As inglesas. Não estive em Paris.

— Rapaz, quisera ser você.

Ele. Ser ele? Não desejava isso nem ao pior dos inimigos. Que pensava ter ele feito em Londres? Vegetar. Era a primeira vez que isso lhe acontecia. Museus, salões de festas, edifícios importantes, mostras de arte... E tudo passara adiante de seus olhos, como coisas sem nenhum valor, sem nenhuma importância. Nem as mulheres o interessaram. Era absurdo ter chegado àquele estado de apatia.

— Vamos jogar uma partida — disse o amigo, segurando seu braço. — Enquanto isso, irá contando os detalhes.

Desprendeu-se, sem raiva, melhor dizendo, com pesar. Que aconteceria se contasse a Amado o que se passava, na realidade? Riria dele.

— Estou cansado — disse. — Vou me deitar.

— Sabe que de uns tempos para cá, acho-o meio esquisito? Comentava com seu irmão no outro dia: “Adolfo parece estar nas nuvens.” — Deu-lhe uma palmadinha no ombro e acrescentou: — Não terá algum caso amoroso por aí?

— Que disparate!

— Cuidado! — riu. — O homem, como o pombo, deve voar sem se deter por muito tempo num mesmo lugar. Em matéria de amor, nada pior do que se dedicar a uma única mulher.

— Seus conselhos são edificantes.

— Os que utilizei para mim — riu Amado, com a mesma simplicidade.

Despediu-se. Não tinha ânimo nem para discutir, nem mesmo para falar. Precisava pensar. Ao contrário de há um mês atrás, não desejava esquecer; queria arranjar um meio de acertar o assunto.

 

Emagrecera, mas isso, longe de lhe diminuir os encantos, realçava-os. Mais pálida, mais elegante; os olhos cercados de profundas olheiras resultavam maiores. Até a cor ficara mais pronunciada. De um verde intenso, ou azul transparente.

Sabia muito da vida para esquecer num instante. Evidentemente propusera-se a esquecer, e talvez o conseguisse, mas precisava de tempo. Não era nenhuma heroína. Era uma simples mulher cheia de problemas e responsabilidades, que talvez a auxiliassem a minorar sua dor pessoal. Assim foi vivendo todo aquele mês de novembro. Estava mais frio. A estufa elétrica do pequeno apartamento acolhedor funcionava sem cessar. Dorinha estava incumbida de ligá-la. E Pepe de desligá-la na hora de irem todos dormir.

A princípio todos perguntavam: “Por que será que Adolfo não vem? Não vai mais nos dar aulas? Estará zangado conosco?”

Ela não respondia, nunca. Aparentemente sabia tanto como eles, mas desculpava-o, para não dar importância à sua ausência.

Passados uns vinte dias, os irmãos deixaram de perguntar. A vida normalizou-se. A sós, consigo mesma, pensava que lhe devia sua tranqüilidade e a dos irmãos. A material, pois a moral não existia. E depois, pagara-a com juros; nada deviam, portanto, um ao outro. Chegara a esta conclusão, num de seus dias mais tristes, quando deparou com Elias à saída do escritório.

Caíra um forte aguaceiro durante a noite e o sol brilhava à uma hora da tarde como se fosse verão. Se ao menos não fizesse aquele frio na sombra, dir-se-ia que ainda estavam no mês de agosto. Ela vestia um costume de casaco verde-escuro, blusa branca e calçava sapatos de salto alto. Elias era um pouco mais baixo que ela e tinha que erguer a cabeça para lhe falar. Sentia-se humilhado. “Se me aceitar como noivo, algum dia, — pensava ele invariavelmente — pedirei para não usar sapatos altos.” — Não acreditava que ela o aceitasse. Decidira enfrentar os encargos de Maria José. Amava-a e sabia muito bem que quando um homem ama uma mulher, ama, também, o que ela ama.

Notava que Maria José vivia ausente de si mesma. No escritório, trabalhava com entusiasmo, como se o trabalho diário a ajudasse a esquecer alguma coisa. Era o que mais intrigava o rapaz. Que seria? Que estaria acontecendo para perturbá-la assim?

Caminharam juntos, rua afora, naquela manhã. Era uma hora.

— Convido-a a tomar qualquer coisa, Maria José

— disse Elias.

A jovem sorriu.

— Obrigada, Elias.

— Vamos?

— Se soubesse que nunca tomei nada em nenhum lugar.

— Quer dizer que nunca esteve num café?

— Foi exatamente o que quis dizer.

— Oh! — surpreendeu-se. Olhou-a, com curiosidade. Devia estar com vinte anos. Maravilhosos vinte anos, e ainda continuava sendo uma garota.

Ela penetrou, ou julgou penetrar em seu pensamento. Vinte anos, na realidade! Mas às vezes parecia-lhe ter mais de mil.

— Vamos, Maria José?

Passavam diante de um luxuoso café. Viu-o ali. Ele também a viu. Estava num grupo de homens e mulheres. Ficou sentado, mas seus olhos, quando se fixaram em Maria José, tinham um brilho diferente.

— Não — disse quase sem abrir os lábios. — Não posso.

Sua voz tremia. Que lhe acontecia?

Sentiu suas costas arderem. Os olhos de Adolfo a fitavam, sem dúvida. Era uma queimadura que produzia dor, pesar, decepção. Tudo havia terminado, mas vê-lo novamente, após um mês, fazia-a sofrer. Era como se tudo se renovasse, como se recordasse, minuto por minuto, os momentos vividos a seu lado.

— Maria José...

— Vamos, Elias.

Ele segurou seu braço. Caminhou a seu lado até dobrarem a rua.

— Está sentindo alguma coisa, Maria José?

Sentir? Sentia muitas coisas. Muitas, todos os dias, a cada momento. Era difícil esquecer o que houve entre ela e Adolfo e muito mais ainda deter o cérebro.

— Gostaria de poder acompanhá-lo — disse, pouco depois. — Não estou habituada a entrar num café, me tornaria ridícula.

— Uma mulher como você nunca se torna ridícula em parte alguma.

— Faria, sim.

— Maria José, deixe que lhe diga...

— Não, não diga nada. Para quê? Acredita mesmo que adiantaria alguma coisa?

— Eu a amo.

Eu a amo! Era consoladora a frase e o que ela significava. Mas ela nunca mais tornaria a amar. Estava há um mês procurando abafar aquele sentimento. Procurando razões e encontrando-as para minorar seu sofrer. Vão empenho. Nem diminuíra a dor nem dominara os sentimentos.

— Fale-me de outra coisa — pediu. — Suprima o amor.

— Por quê? Por quê?

Compreenderia, mesmo que lhe dissesse? Não. Elias não era nem herói nem santo. Era um homem com seus preconceitos, seu orgulho, sua dignidade... Há coisa que nem mesmo o amor desculpa.

— Chegamos à minha casa, Elias. Bons amigos? — perguntou, carinhosa.

— Não me conformo...

— Terá que se conformar — disse, terminante. E mais carinhosa. — Preciso muito de um amigo, Elias. Se você não quiser ser...

— Que se passa com você? Que é que você tem?

Deu um meio sorriso. Estendeu a mão.

— Até logo mais, Elias. Não me faça perguntas inúteis. Não é fácil encontrar respostas adequadas.

Pressentira-o durante todo o dia. Nunca tivera pressentimentos. Era simplesmente intuitiva.

Quando ouviu a campainha da porta, sentiu o coração parar. Pensou ao mesmo tempo que podia ser uma vizinha, uma amiguinha da irmã, o companheiro de Pepe. Mas não. Tinha certeza de que era ele.

— Vá abrir, Pepe.

Seu irmão já se encaminhava para a porta.

Estavam todos no cantinho da sala de jantar. Bernardinho, como sempre, brincava com o trenzinho. Deitava-se no chão e olhava entusiasmado para os trilhos. Dorinha estava sentada à sua frente com os deveres sobre a mesa do centro. Ajudava-os, como todas as noites. Eram dez e meia.

— Boa noite, rapaz — exclamou a voz de Adolfo.

Aparentemente Maria José não moveu um único músculo do rosto. Sentada no divã, ali continuou. Vestia uma saia estreita, de um tecido grosso, escuro. Uma blusa branca, de gola aberta um pouco erguida. O cabelo estava penteado para cima, num coque artístico, feito sem pretensões. A luz iluminava-lhe a cabeça com certos reflexos azulados, escurecendo o cabelo ainda mais.

— Boa noite — Adolfo cumprimentou.

Ela olhou-o, impassível.

— Adolfo! — gritou Dorinha, dando um pulo e correndo para ele. Pendurou-se no seu pescoço e beijou-o ruidosamente em ambas as faces. — Quanto tempo sem vê-lo! Esteve doente?

Emocionou-se, para pesar seu. Não estava habituado àquelas recepções, àquela ternura, à paz que se respirava naquele lar e que nem a sua ausência perturbara.

— Adolfo! — gritou Bernardinho, por sua vez, abandonando o trem e correndo para o amigo, agarrando-se às suas pernas.

Ergueu-o no ar. Nem um só momento deixou de olhar para a moça, que sustentava o olhar e no qual havia uma velada censura, uma pergunta: “Que veio fazer aqui? Não vê que também somos felizes sem você?”

— Posso sentar-me? — perguntou.

— Aqui — disse Pepe. — Perto de Maria José.

Assim fez, sem soltar Bernardinho. Virou-se um pouco de lado para olhar a jovem. Só viu sua nuca branca, o cabelo negro, o perfil aquilino.

— Ainda não me disse nada, Maria José — disse em voz baixa.

— Vejo que vai muito bem.

— Você também. Eu... a vi esta manhã. Ia... muito bem acompanhada. Seu noivo?

Era cruel. Noivo, se estava condenada a morrer solteira!

Sacudiu os ombros. Preferia morrer a deixá-lo perceber a dor que a pergunta lhe causava.

— Talvez — disse indiferente. E dirigindo-se aos irmãos: — Continuemos? Não podemos esquecer os deveres, porque tenha chegado... o amigo de vocês.

Não pronunciou o seu nome. Ele notou a indecisão. Desprezo? Asco? Repugnância? Qualquer daqueles sentimentos causava dor. Sim, dor.

Os dois, tanto Dorinha como Pepe, obedeceram em silêncio.

— Vamos brincar, nós dois, enquanto eles terminam? — Bernardinho propôs.

Aceitou. Tudo menor ficar ao lado de Maria José, aspirando seu perfume suave, indescritivelmente feminino e nem sequer poder pegar-lhe na mão.

Por que estava ali? Que lhe ocorrera para mudar de parecer? Resolvera não voltar mais. Compreendera que ela estava com a razão, que havia perturbado sua vida. Não era homem feito para o casamento. Assim sendo..., tudo o que fizesse para aproximar-se dela seria desumano. E talvez por razões ocultas que nunca se podem compreender, Maria José Palacios inspirava-lhe um estranho respeito. Era a primeira mulher, em sua vida, que possuíra e respeitara a um só tempo.

— Vamos — disse o menino, puxando-o pela mão.

Ela não olhou para ele. Concentrou toda sua atenção nos deveres dos irmãos.

Adolfo sentou-se no chão com Bernardinho e pôs o trem a andar.

Enquanto o trem corria e o garoto dava gritinhos de contentamento, ele pensava. Em sua casa, nos pais, sempre às voltas com os amigos, envolvidos em suas próprias satisfações, alheios aos problemas íntimos de seus filhos. Em Raul, que, como ele, jamais sentira piedade de ninguém. Em Teresa, vivendo só para si, esquecida de seus deveres humanos. E aquele lar em que os cinco viviam, cheio de riqueza, de egoísmo, de indiferença humana, de satisfações externas; aquela casa era o seu lar, só de nome, pois nunca o fora.

Pensou, também, no pouco interesse dos pais em saber o que pensavam, sentiam ou diziam os seus filhos. Cuidaram tão-somente, de educá-los, levá-los a um bom colégio e vesti-los com elegância. Jamais pensaram em seus problemas, anseios ou inclinações. Isso não era desculpa para sua má conduta, porque apesar de todas essas considerações íntimas, continuava inclinado para o último.

— Já terminamos — disse Maria José aos irmãos, tirando-o de suas reflexões. — Agora vão para a cama.

 

Obedientes, dóceis, carinhosos, levantaram-se. Pepe recolheu os cadernos, como se fosse uma obrigação, Dorinha pegou as cadeiras e colocou-as em seus lugares. Bernardinho ficou em pé para arrumar seu trem.

— Boa noite — disse o menino.

— Vai sozinho para a cama? — perguntou       Adolfo.

— Eu agora durmo com Pepe.

Dormia com Pepe há muito tempo. Desde que Adolfo saíra e ela chorava noites inteiras.

— Até amanhã, se Deus quiser — disse Pepe.

Todos o beijaram. Maria José continuava impassível. De pé, esperava no umbral da porta que eles passassem. Assim que saíram, olhou para ele rapidamente e disse:

— Se vai sair...

— Não vou, ainda — replicou ele.

Maria José afastou-se. Ouviu-a andar no quarto de Dorinha. Dizia-lhe alguma coisa, numa voz suave e carinhosa. Depois no de Pepe. Imaginou-a despindo o menorzinho e pareceu-lhe vê-lo abraçado ao pescoço da irmã, enquanto esta lhe vestia o pijama.

— Pelo sinal...

Afundou-se no divã. Acendeu um cigarro e começou a fumar, nervosamente.

Em casa, seus pais nunca os haviam acompanhado até a cama.

As vezes, ficava atento a todos os ruídos da casa. Esperava ansioso o regresso dos pais. Certa vez, estava acordado quando voltaram. Saiu do leito e, na pontinha, dos pés, atravessou o corredor. Recostou sua figura miúda no umbral da porta do salão. Seu pai, vestido a rigor, servia-se de uma bebida. A mãe, ricamente adornada de jóias, ria de alguma coisa que o marido dissera. Quando viram o menino, ficaram surpreendidos.

— Adolfo! — exclamou a mãe, severíssima. — Que faz aqui? Vá para a cama agora mesmo.

— Mamãe... — sussurrou ele —, mamãe...

— Já disse para ir para a cama. Que faz a governanta?

E fora para a cama sem o beijo. Chorou muito naquela noite, mas ninguém o foi consolar. No dia seguinte, soube que a governanta fora despedida.

Assim, aprendeu a valer-se por si mesmo, a julgar por si mesmo, a viver sua vida.

Sentia-se cansado, muito cansado de viver, de divertir-se, ou de desejar alguma coisa que nunca possuíra.

Ouviu passos. Os de Maria José. Ela sim, era uma mãezinha. As crianças educadas por aquela moça nunca seriam como ele fora, como continuava sendo.

Viu-a no umbral. Levantou-se.

— Esperei-a — disse simplesmente.

— Estou vendo... A que veio?

Foi para perto dele. Gentil, esbelta, feminina... Semicerrou os olhos. Quanto daria para poder tomá-la nos braços, ouvir sua voz, aquela voz confiante, cheia de ternura. “Amo-o, minha vida.” Jamais tornaria a ouvir aquelas frases dos lábios de Maria José.

Cada recanto, cada objeto daquela casa, guardava uma recordação diferente e agradável. O divã onde ficava junto dela. O abajur que punha centelhas luminosas no olhar de Maria José. O tapete onde caíra uma vez. A lâmpada do teto, sempre apagada. A cozinha, o quarto... aquele quarto de hóspedes que só ele usara. Ele e Maria José.

Quando? Como, por que o fizera? Ou nada havia feito? Seria tudo fruto de sua imaginação exaltada, ou fora uma realidade tangível? Teriam decorrido anos, ou só dez minutos?

— Não devia ter vindo — disse ela, sem recriminá-lo.

— Precisava vê-la — murmurou ele, afundando no divã. — Não venho humilhá-la. Talvez... humilhar-me, eu próprio. Saber se pode me perdoar...

— Não — atalhou ela com voz amarga. — Não me peça perdão. Desgraçadamente, já o perdoei. Não posso culpá-lo de algo que compartilhei com você. Foi tão culpado um quanto o outro. Por isso... — apertou os lábios. — Por isso... mudei.

— Que posso dizer-lhe, Maria José?

— Não diga nada. Já dissemos tudo.

— Há coisas que não se esquecem...

— Cale-se — pediu com voz abafada. — Esquecem-se quando se cumpre um dever com o esquecimento. Você não pode esquivar-se a esse dever. Não me ama — acrescentou. — Você mesmo disse isso. Apenas fui mais um capricho. É fácil, para um homem como você, esquecer esses caprichos. Antes de mim houve muitas outras, e depois de mim, haverá mais uma infinidade.

— É lamentável. Não sei se poderá haver mais.

— Que grande comediante!

Talvez o fosse em muitos momentos de sua vida. Fora e talvez ainda o fosse, mas naquele instante, com ela, não.

Deu umas voltas pela sala de jantar. Contemplou vagamente o conjunto.

— Pode não me acreditar — disse repentinamente, detendo-se junto dela — mas o certo é que enquanto vim a esta casa, antes e depois de cometer a falta que você condena, eu fui feliz. Nunca tivera felicidade — acrescentou, como se falasse para si mesmo. De súbito, deixou-se cair numa poltrona diante dela, e acendeu um cigarro. Fumou, nervosamente. — Vê-se, ouve-se e julga-se — riu com uma careta. — Ao se ver grandezas, ao ouvir frases acadêmicas, ao se julgar o conjunto, diz-se: “São felizes. Têm tudo.” Assim fui julgado, pois enganam-se. Não tenho sido feliz. Não tenho com isso a pretensão de que me acredite, ou de enternecer o seu coração. Nem pretendo que me veja como vítima. Falo assim, porque sinto necessidade de falar. Nunca tive oportunidade de deixar meu outro eu surgir. Talvez não me compreendesse embora o fizesse, ou talvez não me interessasse, até agora, aparecer como um homem vulgar perante uma mulher — olhou à sua volta e deteve-se no semblante impassível da jovem. — Sinto-me... como direi? em paz comigo mesmo ou com Deus, quando estou a seu lado. Você me escuta. Talvez não queira, mas o certo é que me ouve e isso significa muito para mim.

Guardou silêncio. Ela continuou impassível, calada.

— Tive duas ou três professoras — riu sarcástico, como se seguisse o curso de seus pensamentos. — Caprichos... tudo quanto me apeteceu, e a crianças são bastante caprichosas. Brinquei, pulei, cantei... Tudo muito divertido. Fisicamente, fui um menino feliz. Moralmente fui um menino angustiado.

— Não vai pretender — disse ela em tom indefinível — que eu acalme suas angústias...

Olhou-a fixamente.

— Diga-me — perguntou inesperadamente. — Já não me ama?

— E que importa isso agora? Se teve a pretensão de me enternecer, saiba que não o conseguiu. É muito tarde, preciso madrugar. Você — acrescentou sarcástica —, continua sendo o homem caprichoso e se levantará à hora que lhe convier. Sabe o que penso?

— Que me despreza.

— Não. Nunca se pode desprezar o homem que se ama.

— Maria José.

Ficou de pé. Olhou-o tranqüilamente.

— Penso em como seria maravilhoso se todas essas palavras fossem empregadas em algo proveitoso. Digo- lhe, como você fez há pouco, só porque eram frases bonitas, que fez você de útil nesta vida? Amar de tal modo que cansou o coração, enfadou-se e se aborreceu de tudo. Empregue essas horas de seus dias vazios em algo verdadeiro. Trabalhe. Você tem fortuna. Dirá que não precisa trabalhar. Todo homem precisa. Para sua dignidade, para sua hombridade, para sua liberdade. Que é você, na realidade? Um filho de papai rico. Terá que esperar pela sua morte, para poder dispor do que ele deixar. É humilhante, para um homem como você, esperar por isso..., tão simplesmente. Tão tolamente.

— Maria José, acho que me despreza muito.

— Não. Já lhe disse porque — disse friamente. — Tenho pena de você, somente.

— Maria José, não poderíamos esquecer por um instante o que eu poderia fazer, e pensarmos em nós, mais... objetivamente? Você não pode ter esquecido o que fomos um para o outro. Não pode...

— Cale-se.

— Maria José.

— Luto para esquecer — disse ela, indo até a porta.

— Talvez esse homem, que a acompanhava hoje, a ajude a esquecer, não?

Desafiou-o com o olhar. Sua altivez esmagou-o por momentos.

— E se assim fosse? Poderia impedi-lo?

Ele fechou os punhos. Impetuosamente disse:

— Nunca fui acossado pelos ciúmes. Tive muitas mulheres e me ri. De você nunca pude rir. Esta tarde senti como se tivesse sido apunhalado a sangue-frio. Não posso tolerar que um homem, outro homem a possua como eu a possuí. Se isso é amor... eu estou louco por você. — Passou os dedos pela testa. — Vim por esse motivo. Havia jurado a mim mesmo não voltar. Mas aqui estou... e voltarei, embora contra minha vontade. Uma e muitas vezes.

— Vá embora, Adolfo.

— Não sei o que sinto — disse enquanto vestia o sobretudo. — Não sei e esta incerteza descontrola. Às vezes, durante a noite, quando me sinto mais solitário do que nunca, estendo o braço. Sonho que a aprisiono, que você se inclina, e seus lábios sobre os meus me tranqüilizam.

— Cale-se.

— Acordo... agitado como um louco.

Vá embora.

— Como um louco, Maria José. Quisera que consolasse esta minha incerteza, mas não o fará. Já não faz nada por mim. Importuno-a e aborreço-a.

Sua voz era rouca e abafada. Estava de ombros caídos e um rictus amargo no desenho sensual dos lábios. Ela, impulsiva, pôs a mão sobre seu braço.

— Não posso consolar seu mal — disse com ternura. — Mas sinto, acredite-me, sinto muito.

— Permita ao menos... que venha vê-la. Será um consolo para mim. Dirá que sou o mais vulgar dos homens.

— Assim... me parece mais humano, e não vulgar.

— Voltarei. Terei que voltar...

Desceu as escadas. Maria José apoiou-se na porta fechada. Sentia uma grande tristeza.

 

Voltou no outro dia e em todos os subseqüentes.

Brincava com as crianças, enquanto Maria José preparava o jantar. Às vezes ficava para fazer a refeição com eles. De outras, ajudava-os a fazer os deveres.

Tudo voltava a ser como antes, com a diferença de que agora tudo era mais doce, mais sincero, mais suave. Nunca lhe pedia um beijo. Jamais lhe disse uma frase ofensiva. Apenas, em certo dia, quando a viu novamente com Elias na rua, pediu-lhe com ansiedade, prendendo suas mãos e levando-as à boca:

— Não me mortifique. Não torne a sair com ele.

— É um amigo.

— Qualquer homem perto de você me inquieta. Faça-o por mim, Maria José. Pelo que me une agora. Você sabe... que a adoro, mas não tenho, não tenho fé em mim mesmo. Não sei o que me acontece.

— Trabalhe — pediu ela, de novo. — Procure trabalho. Será fácil.

— Meu pai se riria de mim.

— Seus filhos o admirariam.

— Maria José... não tenho filhos.

— É pena. Não ter nem filhos, nem amigos leais, nem esposa, nada. Dinheiro apenas...

— Você é minha amiga?

— Sim.

As crianças chegaram e a conversa não se prolongou.

Outro dia, chegou quando as crianças já estavam dormindo.

— Maria José — disse-lhe em voz baixa. — Fiz o que me disse.

— O que eu disse?

— Já tenho trabalho.

Sorriu, feliz. Impulsiva, procurou seus dedos e os apertou.

— Começa a se encontrar. Isso é grande, muito importante.

Ele aprisionou aquela mão. Foi algo inesperado. Nem ele mesmo soube como aconteceu, nem ela pôde compreender. Apertou-a contra si, procurou sua boca. Ela não se afastou. Não pôde. Fora algo desejado, inevitável. Beijou-a com ansiedade, com ardor. Suas bocas ao contato dos lábios, estremeceram. Mantendo-a em seus braços, olhou-a nos olhos. Estavam cheios de lágrimas.

— Maria José...

— Adolfo... outra vez.

—- Não. Juro que não. Se existe mulher neste mundo a quem respeito e admiro, essa mulher é você. Beijei-a... Deus do Céu! Porque ansiava por isso. Sou feliz, estou contente, tenho-a... Não compreende? Não compreende? Comecemos de novo, Maria José — pediu com ternura e ansiedade irreprimível. — Mas desta vez, a sério, para nos casarmos. Quando? Não sei. Um dia sentirei a necessidade de formar um lar como este... e você será minha mulher.

— Não diga isso. Você nunca poderá casar-se. Ama demasiadamente a si mesmo.

— Não fale assim. Receio que seja verdade e isso me magoa.

— Está vendo?

— Maria José...

— Não desejo que seja meu esposo, Adolfo, pelo fato de você ser rico. Porventura, não fui feliz junto de meus pais e no entanto eram uns simples porteiros? Fui feliz. E você, coberto de riquezas, sentiu falta de tudo, até mesmo da ternura de seus pais. Se desejo que se encontre a si mesmo, que trabalhe e me ame deveras, é por você mesmo. Para que possa conhecer algo de verdadeiro que jamais conheceu.

Sim, falaram ainda muitas vezes, como naquela noite, sem jamais chegarem a um acordo. Não havia identidade de idéias. Se se compreendiam, ele fugia ao assunto. Tinha medo. Receio de não poder fazê-la feliz, de se cansar um dia daquela paz doméstica. Amava-a ou a desejava, ou a admirava demais para torná-la desgraçada. Vê-la chorar seria um suplício para ele. Não pretendia, portanto, precipitá-lo no abismo de sua própria inconsciência.

 

Uma tarde chegou às seis em ponto. Era sábado. Pendurou o sobretudo no cabide e seguiu-a até a cozinha.

— E as crianças?

— Foram ao cinema.

— Tenho uma notícia agradável para lhe dar. Estou gostando de trabalhar.

— Seu pai sabe?

— Não estive em casa, por isso ainda não lhe disse.

— Sente-se. Faz frio, não?

— Muito.

— Vou preparar uma xícara de café.

Vestia uma saia escura. Um suéter branco, decotado, sem mangas. Tinha um aventalzinho florido atado à cintura.

— Sabe de uma coisa? Vou-me associar a uma companhia de construções.

— Vai ver como depois não terá mais tempo para se divertir e zombar das mulheres.

— Nunca zombei de você.

Serviu o café. Ele pegou sua mão. Sentado como estava, puxou-a para >si. Maria José ficou inclinada sobre ele.

— Maria José... sou feliz.

— Por estar trabalhando?

— Está sendo coquete comigo.

— Às vezes eu gosto, Adolfo. Não sei por quê. Gostaria de começar nossa amizade neste momento. Pensar que você não é filho de um homem poderoso, mas sim um simples trabalhador, que regressa do serviço e vem me ver porque sou sua noiva e juntos fazemos planos para o futuro.

— Pense isso, então.

— Não posso. Você está muito aferrado aos pra- zeres da vida, esquecendo que existe algo melhor em que ocupar a existência e que também proporciona prazer.

— Como, por exemplo?

— A ternura de um lar, a crença em si mesmo. A ventura de ter filhos para educar... Não pense que com isto estou pedindo para se casar comigo.

— Mas deseja...

— Amo-o — disse com simplicidade. — É justo que eu. deseje isso, mas nunca farei pressão para que se realize. Já o conheço. Você é maravilhoso, mas ao mesmo tempo...

— Ao mesmo tempo...

— Ao mesmo tempo incontentável. Como um passarinho insatisfeito que voa de galho em galho e nunca se detém.

— Eu me detive em você. Bem sabe.

— O café...

Em vez de tomá-lo, atraiu-a para si.

— Um beijo, Maria José. Não há nada na vida que eu deseje tanto como os seus beijos. Sabe o que significam para minha vida?

— Prazeres materiais momentâneos.

— Nunca acreditará em mim.

— Solte minha mão.

— Vou beijá-la... Não tornei a fazê-lo desde aquela noite.

— Deixe-me.

Ouviram-se vozes no corredor. Quebrara-se o sortilégio.

— Adolfo está aqui! — gritou Pepe. — Venha, garotada.

A garotada em questão eram Dorinha e Bernardinho. Entraram sufocados na cozinha.

— Como faz frio na rua — lamentou Dorinha. — É um prazer entrar aqui. Sabem que filme vimos... ?

Os dois olhavam, embora não os ouvissem.

“Está vendo?”, ela parecia perguntar. “Aqui estão três criaturas felizes e como vê, seus agasalhos são baratos, as botas compradas numa liquidação, o xale feito de pano felpudo. E são felizes. Nunca serão como você, inconformados.”

O olhar dele parecia responder:

“Foi o que você fez, e tudo o que faz... é maravilhoso.”

— Não volto ao cinema — disse Dorinha — quando for filme de mocinho. Só querem tiros e mais tiros.

— Quero desenho animado — disse Bernardinho.

— Tirem essa roupa — ordenou Maria José. — Vistam os pijamas.

Assim passavam os dias, um após o outro, e ele contemplando aquela paz de lar feliz, aquela ternura que lhe causava emoção, embora custasse a reconhecê-lo.

Jantou com eles e à noite, ao se despedir, na porta tornou a pedir:

— Dê-me um beijo.

— Não seja assim, Adolfo.

— Está desejando tanto quanto eu.

Oh, sim. Desejava-o intensa, dolorosamente! Mas continha-se. Sabia que era seu dever. Cumpriria sua promessa, a qualquer custo.

Ele prendeu sua mão. Levou-a aos lábios e beijou-a uma, outra vez com a palma aberta. Maria José estremeceu.

— Vá embora — pediu baixinho. — Vá embora.

— Lembra-se...

— Por favor.

— Um dia não poderei ir, Maria José, você sabe.

Retirou a mão.

— Boa noite, querido.

Bruscamente, puxou-a para si e beijou-a longamente no pescoço. Ela fechou os olhos. Toda ela vibrava. Empurrou-o brandamente e ele, rindo como uma criança que roubara uma guloseima, fugiu escadas abaixo.

O dia seguinte era domingo.

“Virá ao meio-dia”, pensou.

 

Aos domingos, quase sempre estavam todos presentes na hora da refeição.

André foi o último a se sentar à mesa.

— O que me disseram, rapaz? — perguntou sarcástico. — Parece que você começou a trabalhar?

Raul soltou uma gargalhada. Teresa olhou para o irmão mais velho, como se este fosse um animal raro. A mãe contemplou-o com interesse crescente. André disse, novamente:

— A trabalhar... por quê?

— Porque me aborrecia sem ter o que fazer.

— Bem, está bem. Mas se desse umas voltas pelas nossas casas de antigüidades como faz o seu irmão Raul, já teria afastado o tédio.

Quase disse: “É que eu, ao contrário de Raul, não me interesso pelas empregadas. Só me interesso por uma mulher.”

— Não estudei uma carreira para ser vendedor — replicou indiferente.

Teresa comentou, zombeteira:

— Dizem que você visita muito um apartamento de certo edifício...

Teresa sempre sabia de tudo. Olhou-a desafiante.

— E daí?

— Dizem também — interveio Raul — que ela não é grande coisa.

Sentiu-se muito ofendido. Por que tivera esse pensamento naquele instante? Não sabia o que se passava com ele. Uma espécie de nuvem sangüínea cegou-o. Ferozmente, exclamou:

— É minha noiva.

— Oh!

— Ah!

— É filha de quem?

— A que família pertence?

As duas perguntas saíram da boca dos pais como disparos.

— É minha noiva — respondeu. — Que importa o resto?

— Importa muito, rapaz. Não pense que vou consentir no casamento de meu filho com uma qualquer.

Adolfo riu. Nunca pensou que pudesse amar, precisar e admirar tanto Maria José Palacios, como constatou naquele instante. Olhou para o pai serenamente, sem rancor, mas com coragem.

— Em primeiro lugar, papai, saiba que a mulher que eu escolho é para mim. Sou eu, portanto, quem vai se casar com ela, sejam quem forem seus pais, pertença ou não a uma família ilustre como você deseja. É lógico que não penso escolher uma mulher do meu meio. Seria absurdo se na minha idade, com minha experiência e minhas... aspirações de homem normal, procurasse para companheira uma mulher como... — e olhou para a irmã —, como Teresa, por exemplo...

— Adolfo! — gritou o pai.

— Sinto muito, papai. E você perdoe, mamãe. Nem a Maria José nem a mim, importa se vocês dão ou não o seu consentimento. Nós nos amamos e precisamos um do outro. Ainda não sabem a quem me refiro?

Ouviram e olhavam-no como se pertencesse a outro mundo. Acrescentou muito calmo:

— A porteirinha. É minha noiva. Já se esqueceram dela? Quem pensam que a tirou daqui? Eu. Vou casar-me com ela. Oh diabo! — disse. — Está ficando tarde. Tenho que levá-la ao futebol.

Levantou-se.

— Adolfo...

— Que dizia, papai?

Estava congestionado. Os olhos fora das órbitas. Deu um soco na mesa.

— Se me fizer passar pela vergonha de vê-lo casado com Maria José Palacios... nunca o perdoarei.

Riu-se. Avaliava quanto amara Maria José desde o princípio. Seria muito importante o perdão de seu pai? Que pretendia ele? Que se casasse com uma mulher como sua mãe, como Teresa, como suas amigas? Oh, não. Precisava de um lar, encher sua vida de ternura, de compreensão, de amor... Ter tudo aquilo que desejou desde criança. Sua consciência despertava. Por que despertava precisamente naquele instante? Que importavam as causas?...

— Adolfo — chamou a senhora.

— Não, mamãe. Não procure me deter. Já ninguém será capaz disso.

— Você se sentirá envergonhado a seu lado, Adolfo — falou Teresa com maldade.

Olhou-a parando no umbral.

— Sim, querida? Por quê? Por que é uma ignorante? Ou porque não sabe falar sobre modas? Porque todo o resto ela sabe — riu. — Sabe, por acaso, falar inglês corretamente?

— Adolfo.

— Nunca me sentirei envergonhado de minha mulher — disse gravemente. — Nunca.

Saiu sem esperar resposta.

 

Estava só. As crianças, como em todas as tardes de domingo, tinham ido ao cinema. Ela abriu a porta. Quando o viu, parecia-lhe diferente.

— Que tem você? — perguntou, intrigada. — Parece dançar sozinho...

Entrou, passando por ela.

— Para a cozinha ou para a sala de jantar?

Ela começou a rir.

— Para a sala. Não tenho mais nada que fazer na cozinha até logo mais à noite.

Parou no umbral. De súbito, segurou-a pela cintura e encostou-a ao seu peito. Com voz rouca e emocionada, abafada e trêmula, diferente e ao mesmo tempo parecida à daquele Adolfo que a beijava, incansável, em outros tempos, murmurou:

— Descobri esta tarde, Maria José...

— Solte-me...

— Descobri. Não posso viver sem você. Vamos nos casar.

— Como? Que diz? Está louco?

Beijou-a. Ardorosa e intensamente. Maria José perdeu a rigidez. Amava-o tanto... Impulsiva, ergueu os braços.

— Maria José...

— Está me enganando.

— Oh, não! Amo-a. Quero que seja minha mulher.

— Eu...

— Você, eu e eles. Como se fossem nossos filhos. Percebe? — beijou-a, de novo. Maria José abriu os lábios. Recebeu-os com intensidade. — Quando nossos filhos nascerem... os nossos, serão para eles como mais um irmão. A grande família, Maria José. Cristã, verdadeira. Entende?

Certamente que sim. Ficou pequenina em seus braços. Era tão grato estar ali e ouvir aquelas coisas de sua boca...

— Adolfo... você me engana.

— Não. Meus pais não aprovaram o nosso casamento. Mas que importa? Que importa tudo isso?

Com efeito, nada importava, além deles. Horas, minutos, séculos perdidos nos braços um do outro? Nunca souberam. Apenas souberam e julgaram suficiente, que estavam juntos, que se amavam, que precisavam um do outro, que iam formar a grande família e poderiam, sem obstáculos de qualquer espécie consagrar sua união. E a entrega mútua seria... seria algo de maravilhoso.

 

— Adolfo...

Pela primeira vez sua mãe entrava em seu quarto e olhava-o com ternura. Ficou atônito. A maleta estava aberta e ia enchê-la de objetos pessoais.

— Adolfo...

— Entre, mamãe. Não fique aí na porta.

— Você vai embora...

— Vamos nos casar depois de amanhã.

— Há uma semana que você não vem em casa, meu filho. Onde esteve?

Ele deu uma risada abafada.

— Se eu lhe disser, vai rir — riu por sua vez. — Eu, o amoral, o vadio, o sem-vergonha, o aproveitador... o canalha, o incrédulo... estive comendo à mesa de um sacerdote, dormindo em sua casa... confessando e preparando-me para o matrimônio. — Sentou-se na beira da cama. A dama continuava de pé, rígida na porta. — Não se ri? Eu, para dizer a verdade, sinto-me emocionado. Maria José, a porteirinha, a pequena de quem nem sequer se compadeceram quando ficou órfã; a mulherzinha diligente, honesta, boa, que ama seus irmãos como se seus filhos fossem, encheu todos os recantos de minha vida, mamãe. E havia muitos. Tomou-me pela mão e conduziu-me à casa do confessor. Sabe o que descobri? Que vivemos como tolos seres vazios. Ignoramos a verdade que se encerra em toda obra. Somos egoístas e maus. Tudo... para nada. De agora em diante, mamãe, vou viver como um ser humano, filho de Deus. Vou viver a vida espiritual, a vida de graça que nunca havia vivido. Às vezes — acrescentou reflexivo, como se falasse só para si — julgo ser um andarilho.

“Caminhei durante anos e anos sem saber para onde ia. E um dia parei, olhei para o alto e senti uma luz deslumbrante em meus olhos. Sem dúvida surgiram dois caminhos. O que me conduziria a esta vida de graça que respiro agora e essa outra que sempre vivi, que vocês vivem, que vivemos todos os que estamos cumulados de bens de fortuna na terra. Escolhi o melhor caminho. Então não fui mais o caminhante desorientado. Pisei firme e soube que ali, junto a uma mulher boa, honesta e pobre, estava o meu destino. Tomei-o e aqui estou, disposto a trilhá-lo em sua companhia.

A dama chorava. Adolfo nunca vira sua mãe chorar. Foi até ela e tomou-lhe as mãos entre as suas.

— Mamãe!

— Leve-me para conhecê-la. Passei por ela muitas vezes — acrescentou com amargura. — Talvez você tenha razão, vivemos demasiado egoistamente. Seu pai e eu falamos muito de você, estes dias; desejamos ir ao seu casamento. Queremos ajudar essas crianças órfãs, queremos mudar de vida...

— Mamãe!

— Temos... conversado com o confessor de sua noiva. Pensou talvez que o tivéssemos abandonado... Não é exato, Adolfo.

Seu pai apareceu por trás deles.

— Papai...

— Não faça a mala. No dia em que se casar sairá desta casa pelo braço de sua mãe. Eu irei buscar a noiva. Espero que não me prive do prazer de levá-la ao altar.

Estaria sonhando? Estava realmente desperto? Não era a sua irmã Teresa quem lhe sorria ternamente por ti*ás do pai, e Raul, seu irmão, quem olhava, meio carinhoso e zombeteiro?

— Gostariam... — gaguejou — de ver Maria José, agora?

— Sim — disse o pai. — Sim...

— Vamos, então.

 

O quadro já tão conhecido de Adolfo, e que o enternecera e levara por uma semana muito diferente em sua vida, comovera igualmente aos quatro visitantes. Pepe foi abrir. Adolfo segurou-o pela gola.

— Olá, rapaz.

Depois convidou toda a família a entrar. Levou-os ao recanto da sala de jantar. Dorinha penteava o irmãozinho que falava sem cessar. Pepe pusera os sapatos no chão.

— Maria José — chamou ele.

Ela apareceu no umbral da porta da sala, radiante, bonita, feminina, a cintura enfeitada com uma aventalzinho. Tinha o cabelo penteado para cima. Esbeltís- sima. Ficou suspensa.

— É minha família — disse o rapaz com naturalidade. — Meus pais, meus irmãos... — passou-lhe o braço em volta da cintura. — Minha futura esposa, queridos meus. Não vão me dizer que tive mau gosto.

A emoção dissipou-se com umas frases de Raul. Todos a beijaram, um por um.

— Sentem-se — disse um pouco aturdida, e olhando para o noivo repetiu, baixinho: — Devia ter-me avisado.

— De modo algum, querida — sorriu a dama. — Vimos surpreendê-la na intimidade. Temos que reconhecer que é encantadora.

Conversaram muito. Retiraram-se às dez, e às onze Adolfo batia novamente à porta.

— Não pude dar o beijo de despedida, meu bem.

— Louco.

— As crianças...

— Estão na cama.

— Então, vou beijá-la muito, Maria José. Dentro de dois dias poderei beijá-la a cada instante, mas agora... tem que saciar minha sede.

Olhou-o, intensamente. Passou os braços pelo seu pescoço e ofereceu-lhe a boca, num gesto muito seu e muito feminino, que o endoidecia. Tomou... aquela boca, mas não mitigou a sede até o dia em que se casou com ela, e mesmo assim... teve de confessar a si mesmo que a sede de amor provocada por Maria José não se extinguia nunca, pois quanto mais bebia, mais sede sentia...

 

                                                                                Corin Tellado  

 

                      

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