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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ILHA DO DR. MOREAU / H. G. Wells
A ILHA DO DR. MOREAU / H. G. Wells

 

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ILHA DO DR. MOREAU

 

Ali fiquei atirado sobre um dos bancos de remadores de pequena embarcação, não sei durante quanto tempo, imaginando que, se ao menos para isso me sobrassem forças, poderia beber água do mar para morrer mais depressa. Enquanto permanecia assim estendido, avistei, sem todavia ligar a isso maior interesse do que a qualquer outra coisa que me deparasse, avistei uma vela no extremo da linha do horizonte, a qual se dirigia para o meu lado. O meu espírito devia estar, nesse momento, incapaz do mínimo raciocínio, mas, não obstante isso, lembro-me perfeitamente de tudo quanto se passou.

 Lembro-me do balanço infernal das ondas, que me fazia vertigens, e também parece-me estar ainda presenciando a dança contínua da vela no horizonte; eu tinha a absoluta convicção de estar já morto, e pensava, com amarga ironia, na inutilidade daquele socorro que ia chegar demasiado tarde - e por tão pouco - para me achar ainda com vida.

 Durante um espaço de tempo que me pareceu interminável, ali fiquei caído sobre o banco, com a cabeça encostada à borda, vendo aproximar-se a goleta sacudida e embalada pela vaga. Era uma pequena embarcação aparelhada de velas latinas que corria em grandes bordadas, pois o seu rumo era diretamente contrário ao vento.

 Nem por um instante sequer me passou pelo espírito a idéia de tentar atrair-lhe a atenção e, desde o momento em que lhe avistei distintamente o costado, até aquele em que me achei em uma cabine de ré, só me restam reminiscências muito confusas. Guardo ainda uma vaga impressão de ter sido suspendido até o passadiço, de ter visto uma fisionomia rubicunda, cheia de manchas de sardas e rodeada de uma cabeleira e de barbas ruivas, a qual olhava para mim do alto da ponte; de ter também visto um outro rosto muito tisnado com uns olhos extraordinários, muito perto dos meus; mas, até tornar a vê-los, acreditei ter sido vítima de um pesadelo. Pareceu-me que pouco depois me deitaram entre os dentes cerrados um líquido qualquer; e foi tudo.

 Permaneci sem sentidos durante muito tempo. A cabina onde afinal voltei era muito apertada e pouco limpa. Um homem bastante moço, de cabelos louros, de bigode amarelo e arrepiado, lábio inferior pendente, estava sentado junto de mim e tomava-me o pulso. Ficamos por um instante a olhar um para o outro sem falar.

 Seus olhos eram pardos, úmidos e inexpressivos.

 Então ouvi justamente por cima da minha cabeça, um ruído como o de uma cama de ferro arrastada, e o grunhido surdo e irritado de um grande animal. Ao mesmo tempo o homem falou, repetindo a pergunta já anteriormente feita: - Como se sente agora?

 Creio que respondi que me sentia bem . Não me era possível compreender o modo como ali viera ter, mas o homem provavelmente leu nos meus olhos a pergunta que eu não conseguia articular.

 

 - Acharam-no em um barco - a morrer de fome. O barco chamava-se Senhora Altiva e tinha na amurada manchas esquisitas.

 

 Nesse momento, volvi os olhos para as mãos: estavam tão emagrecidas que pareciam sacos de pele suja cheios de ossos; a esta vista, readquiri a lembrança do que se passara.

 

- Tome um pouco disso, disse ele, e administrou-me uma dose de uma espécie de droga vermelha e gelada. O senhor foi feliz em ser acolhido em um navio que tinha a bordo um médico.

 

 Ao falar, notava-se um defeito de articulação que o tornava um tanto cicios.

 

- Que navio é este? - proferi lentamente e com uma voz que o meu longo silêncio tornara rouca.

 

- É um pequeno navio mercante que navega entre a África e o Calão. Chama-se Ipecacuanha. Nunca perguntei de que país ele vem: sem dúvida do país dos loucos. Da minha parte nada mais sou que um simples passageiro embarcado em Arisca.

 

 Por cima da minha cabeça começou o ruído, misto de grunhidos coléricos e de entonações de voz humana. Depois, outra vez intimou um "maldito idiota" a que se calasse.

 

 - O senhor estava quase morto, continuou o meu interlocutor, escapou de boa. Mas presentemente inoculei-lhe um pouco de sangue nas veias. Não sente dor no braço?

 

 São as injeções. Saiba que esteve sem sentidos durante perto de trinta horas. A reflexão voltava-me lentamente. Fui arrancado ao meu devaneio pelos latidos de uma matilha de cães.

 

- Posso tomar um pouco de alimento sólido? - perguntei.

 

- Graças a mim! - respondeu ele. Estão cozinhando carneiro para seu alimento.

 

- É isso, - afirmei com segurança, comerei de boamente um pouco de carneiro.

 

- Mas, continuou ele com uma excitação, estou ansioso por saber a causa por que o senhor se encontrava só, dentro daquele barco. Julguei perceber no seus olhos uma certa expressão de desconfiança.

 

- Diabos levem estes bramidos! E saiu precipitadamente da cabine. Ouvi-o disputar violentamente com alguém que me pareceu responder-lhe em uma linguagem ininteligível. A discussão pareceu acabar por meio de murros, mas nesse ponto, cuidei que me iludia o ouvido. Depois o médico principiou a chamar pelos cães, em altos brados, e em seguida voltou para o camarote.

 

 - Ora muito bem! - disse ele, assim que apontou no limiar da entrada, ia principiar a contar-me a sua história.

 

 Primeiramente fiz-lhe saber que me chamava Eduardo Prendick e que me ocupava muito de história natural para esquivar-me ao tédio das horas desocupadas que me proporcionava a minha relativa fortuna e a minha posição independente. Isto pareceu interessá-lo.

 

- Eu também me dedico às ciências, - confessou ele. Fiz os meus estudos de biologia no University College de Londres, estirpando os óvulos das lombrigas e os órgãos dos caracóis. Ah! sim, já lá se vão dez anos. Mas continue...continue...diga-me porque estava naquele barco.

 

 Contei-lhe o naufrágio da Senhora Altiva, o modo pelo qual pude escapar-me na iole de bordo com Helmar e Constans, a discussão que houve sobre a partilha das rações, e como os meus dois companheiros caíram por cima da borda, no meio de uma luta corpo a corpo.

 Parece que lhe agradou a franqueza com que lhe narrei a minha história.

 Sentia-me horrivelmente fraco e falara-lhe em frases curtas e concisas. Assim que acabei, ele tornou a conversar sobre história natural e sobre os seus estudos biológicos.

 Segundo todas as probabilidades, devia ter sido um estudante de medicina muito medíocre; por fim principiou a falar de Londres e dos prazeres que ai se encontram; até mesmo chegou a me contar algumas anedotas.

 

- Há dez anos que abandonei tudo isso. Era moço e divertia-me! Mas fui demasiado estúpido... Aos vinte e um anos tinha dissipado tudo quanto possuía. Posso dizer que hoje estou muito diferente... Mas preciso de ir ver o que o idiota do cozinheiro está fazendo do seu carneiro.

 

 O grunhido, por cima da minha cabeça, recomeçou tão inesperadamente e com uma cólera tão selvagem que estremeci.

 

- Que é isto? - gritei; mas a porta estava fechada.

 

 Daí a pouco ele voltou com o carneiro cozido e o cheiro apetitoso fez-me esquecer de perguntar-lhe a causa daqueles bramidos de animais que eu tinha ouvido.

 Após um dia passado entre refeições e somos alternados, recobrei um pouco as forças perdidas durante aqueles oito dias de inanição e de febre, e pude ir do meu beliche até o postigo da amurada e ver as vagas lutarem conosco em velocidade. Calculei que a goleta navegava no rumo do vento. Montgomery – era este o nome do médico louro - entrou nesse momento e pedi-lhe a minha roupa.

 Aquela que eu vestia na ocasião em que me salvaram, tinha sido atirada ao mar.

 Emprestou-me um terno de brim que lhe pertencia, mas como ele tinha pernas muito compridas e era um tanto corpulento, a roupa que me cedeu ficava-me folgada em demasia.

 Principiamos a falar em diversas coisas, e disse-me ele então que o capitão se achava no seu camarote, tendo já bebido três quartas partes do que era preciso

 para ficar completamente embriagado. Enquanto eu me vestia, fazia-lhe perguntas

 sobre o destino do navio. Respondeu-me que o navio ia para o Hawai, mas que ele ia desembarcar antes.

 

 - Onde? - perguntei.

 

 - Em uma ilha... onde moro. Pelo menos que eu saiba, ela não tem nome.

 

 E olhou pra mim com uma expressão tal que imaginei que a minha pergunta o constrangia.

 

- Estou pronto, - exclamei, e saímos do camarote, indo ele adiante.

 

 Na escada do tombadilho, um homem impediu-nos a passagem. Estava de pé num dos últimos degraus passando a cabeça pela escotilha. Era um ente disforme, baixo, corpulento e desajeitado, com as costas arqueadas, o pescoço peludo e a cabeça enterrada nos ombros. Vestia uma roupa de sarja azul escuro. Ouvi rosnarem os cães furiosamente e imediatamente o homem principiou a descer aos arrancos; empurrei-o para não ser empurrado na passagem e ele voltou-se com uma vivacidade puramente animal.

 Ao ver-lhe de relance o rosto preto, estremeci involuntariamente. Esse rosto projetava-se para a frente de modo a lembrar um focinho; a boca imensa e semi-aberta mostrava duas fileiras de dentes brancos, os maiores de todos quantos tenho visto em uma boca humana. Os olhos, injetados de sangue, tinham um círculo branco extremamente estreito e volta das pupilas fulvas. Havia em toda aquela figura uma estranha expressão de sobressalto e de excitação.

 

- Maldita criatura! Está sempre no meio do caminho, - disse Montgomery.

 

 O homem desviou-se sem dizer uma palavra. Subi até acima, seguindo com os olhos, quase involuntariamente, aquele ente esquisito. Montgomery demorou-se um instante em baixo.

 

- Nada tens que fazer aqui, o teu lugar é na proa, - disse ele em tom autoritário.

 

- Eles... não me querem na proa, balbuciou a tremer o homem de rosto preto.

 

 Falava lentamente, com um pouco de rouquidão na voz.

 

- Não te querem na proa! Mas sou eu quem te manda para lá! - gritou Montgomery em tom ameaçador.

 

 Ele ia acrescentar qualquer coisa ao que já dissera, quando, dando comigo, subiu a escada, seguindo-me. Eu estava parado, com a metade do corpo para fora da escotilha, contemplando e observando ainda, com extrema surpresa, a grotesca fealdade daquele ente. Nunca me acontecera ver um todo de criatura humana mais extraordinariamente repulsivo e não obstante - a ser admissível esta contradiçã - experimentei ao mesmo tempo a impressão inexplicável de ter já notado, não me recordava onde, as mesmas feições e os mesmos gestos que naquela ocasião tanto me intimidavam. Mais tarde, lembrou-me que provavelmente já o tinha visto quando me içavam para bordo; isto porém não conseguiu desfazer a suspeita que eu conservava de um encontro anterior. Mas quem haverá que, tendo uma vez avistado um semblante tão singular, poderia esquecer em que circunstâncias ele se lhe apresentara?

 O movimento que fez Montgomery para me acompanhar, desviou-me a atenção e voltei os olhos para o tombadilho da pequena goleta. Os ruídos, que eu tinha ouvido, já tinham preparado mais ou menos para o que se me ofereceu ao olhar. Certo eu nunca tinha visto um tombadilho tão pouco asseado; estava completamente juncado o chão de detritos e de imundícies de toda espécie. Uma grande matilha de cães galgos estava atada ao grande mastro, com correntes de ferro, e eles puseram-se todos a latir e saltar assim que me viram.

 Perto do mastro de mezena, um enorme jaguar estava deitado ao comprido no fundo de uma jaula de ferro pequena demais para que ele se pudesse mover é vontade.

 Mais ao longe, encostadas aos paveses de estibordo, viam-se imensas caixas gradeadas, contendo uma grande quantidade de coelhos, e à proa, um lama solitário estava encerado entre paredes de uma gaiola estreita. Os cães estavam amordaçados com correias de couro. O único ente humano que se encontrava no tombadilho era um marinheiro magro e silencioso que dirigia o leme.

 As barganteias, sujas e remendadas, enfunavam-se ao sopro do vento, e a pequena embarcação parecia levar todas as suas velas. O céu estava límpido; o sol ia descendo para o oeste; longas vagas que o vento coroava de espuma, lutavam de celeridade com a marcha do navio. Ao passar junto ao homem do leme, voltamos para a popa, e apoiando-nos ao corrimão das trincheiras, estivemos lado a lado a olhar durante um instante a água que espumava ao casco da goleta, e as bolhas enormes que giravam e desapareciam na esteira do navio. Voltei-me para a coberta atravancada de animais e de detritos.

 

- É um curral oceânico? - perguntei.

 

 - Dir-se-ia que sim, - respondeu Montgomery.

 

- Que se irá fazer daqueles animais? Será uma bagagem? Pensará o capitão em vendê-los aos naturais do Pacífico?

 

-Dir-se-ia que sim, não é verdade? - repetiu Montgomery, e voltou-se novamente para a esteira do navio.

 

 Repentinamente ouvimos um ganido acompanhado de pragas que vinham da escotilha, e o homem disforme, de rosto negro, apareceu precipitadamente no tombadilho. Ao verem-no, os cães, que já se haviam calado, cansados de latir para mim, pareceram tomados de furor, principiaram a rosnar e a ladrar sacudindo violentamente as caudas. O negro hesitou um momento, diante deles, o que permitiu ao homem de cabelos vermelhos, que o perseguia, acertar-lhe um terrível murro entre os ombros. O pobre diabo caiu como um boi no matadouro e foi rolar por cima dos detritos, no meio dos cães furiosos. Foi para ele uma felicidade que estes estivessem amordaçados. O homem de cabelos vermelhos que vestia uma roupa de sarja bastante suja, soltou então um rugido de alegria e ficou parado, titubeante, com grave risco, segundo me pareceu, de cair para trás pela abertura da escotilha, ou para a frente por cima da sua vítima.

 No momento em que aparecera o segundo homem, Montgomery estremecera violentamente.

 

- Olá! Então, - gritou ele em tom sério.

 

 No castelo de proa apareceram dois marinheiros.

 O negro, que soltava urros estranhos, contorcia-se entre as patas dos cães, sem que ninguém lhe fosse em socorro. Os animais furiosos faziam todos os esforços para mordê-lo entre as correias das mordaças. Seus corpos cinzentos e ágeis se misturavam, em uma luta renhida, com o do negro que rolava em todos os sentidos.

 Os dois marinheiros presenciavam a cena, como se aquilo fosse um divertimento inigualável. Montgomery deixou escapar uma exclamação de cólera e dirigiu-se para a matilha.

 A esse tempo já o negro se tinha erguido e voltava cambaleando para a proa. Lá chegando, agarrou-se às trincheiras, perto dos ovens da mezena, olhando para os cães, ainda desconfiado. O homem de cabelos vermelhos dava gargalhadas de satisfação.

 

- Olhe, capitão, é bom que saiba que essa maneira de proceder não me agrada, disse Montgomery sacudindo o homem ruivo pelo braço.

 

 Eu estava por detrás do médico. O capitão voltou-se e olhou para seu interlocutor com a expressão melancólica e ao mesmo tempo solene de ébrio.

 

- Que?... Que é que... não lhe agrada? Perguntou ele... imundo remendeiro!

 

 Imundo serrador de ossos! Acrescentou, depois de ter fixado Montgomery por um instante com ar sonolento.

 Tentou livrar o braço, mas, após duas tentativas infrutíferas, enterrou nos bolsos do casaco as enormes mãos avermelhadas.

 

- Este homem é o diabo! - bramiu o capitão. Faço o que quero dentro do meu navio.

 

 Dito isso, voltou-se na intenção de tornar à trincheira.

 Julguei que, vendo-o embriagado, Montgomery ia deixá-lo, mas este apenas se tornou um pouco mais pálido e seguiu o capitão.

 

- Ouça bem o que digo, capitão, insistiu ele, não quero que maltratem aquele homem. Desde que ele está a bordo, não cessam de o insultar.

 

 Os vapores do álcool impediram por um instante que o capitão respondesse.

 

- Imundo remendeiro de ossos! Foi tudo quanto ele julgou necessário replicar por fim.

 

 Conheci claramente que Montgomery tinha mau caráter, e que aquela rixa devia estar incubada desde há muito tempo.

 

- Este homem está embriagado, o senhor nada poderá obter dele, - disse eu um pouco oficiosamente.

 

 Montgomery fez com seu lábio superior pendente, uma contorção horrorosa.

 

- Está sempre embriagado. Pensa então que seja uma desculpa aos maus tratos que dá aos passageiros?

 

- O meu navio, - principiou o capitão, fazendo gestos pouco firmes para mostrar os animais, - era uma embarcação asseada... Veja-o agora. (Realmente o que ele menos estava então era limpo). A minha equipagem era limpa e digna de toda a consideração...

 

 - O senhor anuiu em receber a bordo estes animais.

 

- Bem quisera nunca ter avistado a sua ilha infernal. Para que diabo se precisa... de animais em uma ilha como aquela? E depois, seu criado...julguei que fosse um homem...mas é um louco... Nada tem que fazer a ré. Julga que o malfadado barco lhe pertence todo inteiro?

 

- Desde o primeiro dia os seus marinheiros têm deixado de maltratar o pobre diabo.

 

- Sim! É isso mesmo o que ele é... um diabo, um ignóbil diabo... Os meus homens não podem tolerá-lo. Cá por mim, não o posso ver. Ninguém o pode aturar, nem mesmo o senhor.

 

 Montgomery interrompeu-o.

 

- Pouco importa; ao senhor compete-lhe deixar aquele homem tranqüilo.

 

 E acentuava as palavras por meio de veementes sacudidelas com a cabeça; o capitão, porém, que parecia então querer continuar a disputa, levantou a voz.

 

- Se ele tornar a vir aqui, furo-lhe a pança. Sim, furo-lhe a maldita pança. Quem é o senhor, o senhor para me dar ordens, a mim. Sou o capitão e o navio me pertence. Aqui sou a lei, digo-o e repito-o, a lei e os profetas. Ficou decidido que eu levaria um homem e seu criado a Arisca e que os reconduziria com alguns animais. Mas não me comprometi a transportar um maldito idiota e um serrador de ossos, um imundo remendeiro, um...

 

 Pouco importa, porém, saber as injúrias que ele dirigiu a Montgomery. Vi este último dar um passo para a frente, e intervi.

 

- Ele está embriagado, disse-lhe eu.

 

 O capitão vociferava investidas cada vez mais grosseiras.

 

- Basta! Que é isso? - exclamei voltando-me para ele, pois vira que ameaçavam perigo os olhos e o rosto pálido de Montgomery, mas tão somente logrei atrair sobre mim a saraivada de injúrias.

 

 Contudo dava-me por feliz em ter, embora a troco de inimizade do beberrão, desviado as conseqüências de uma rixa. Não me lembro ter ouvido jamais tão soezes grosserias correrem a fluxo dos lábios de um homem, se bem que, no decurso das minhas peregrinações, me tenha acontecido freqüentar companhias não pouco excêntricas. Elas foram por vezes tão ultrajantes que muito me custou manter a calma - conquanto seja naturalmente pacífico o meu caráter. Todavia, é

 fora de dúvida que, ao dizer ao capitão que se calasse, esqueci-me de que pouco mais era eu que um destroço humano, privado de todo e qualquer recurso, não tendo sequer pago a minha passagem, - que dependia simplesmente da generosidade - ou do espírito especulativo - do patrão do navio. Isto tudo soube ele lembrar-me com notável energia.

 Mas, em todo caso, a rixa tinha sido evitada.

 

 

 

 Ao por do sol, nessa mesma tarde, avistou-se terra, e a goleta preparou-se para abordar. Montgomery anuncio-me que aquela ilha, ilha sem nome, era o seu destino. Achávamo-nos ainda muito longe para distinguir o litoral: eu avistava simplesmente uma lista baixa de um azul escuro, no meio cinzento azulado incerto, que formava o mar. Uma coluna de fumo subia para o céu em direção quase vertical.

 Quando vigia anunciou: Terra! O capitão não se achava no convés. Depois de desabafar a sua cólera, recolhera-se vacilante ao seu camarote e aí adormecera no meio do chão. O imediato tomou conta do comando. Era aquele indivíduo taciturno e magro que tínhamos visto a cana do leme e também ele parecia estar de prevenção contra Montgomery. Nunca nos prestava a mínima atenção. Jantamos com ele, no meio de um silêncio desagradável, depois de ter eu tentado inutilmente encetar a conversação. Reparei também que os homens da equipagem encaravam de um modo singularmente hostil o meu companheiro e os seus respectivos animais. Montgomery mostrava-se cheio de evasivas sempre que eu o interrogava sobre seu destino e sobre o que intencionava fazer daqueles animais; mas, conquanto a minha curiosidade aumentasse constantemente, não procurei insistir sobre esse ponto.

 Demoramo-nos a conversar no convés até o céu ficar crivado de estrelas. A noite estava completamente serena, apenas perturbada por um ou outro rumor passageiro no castelo de proa, ou alguns movimentos dos animais. O jaguar, deitado no fundo da gaiola, nos observava com olhos brilhantes, e os cães estavam todos adormecidos. Acendemos um cigarro.

 Montgomery principiou a conversa sobre Londres, em tom meio pesaroso, fazendo-me toda a espécie de perguntas relativas às transformações recentes ali operadas.

 Falava como homem tinha amado a vida passada nessa cidade e que teve de deixar súbita e irrevogavelmente. Eu respondia-lhe o melhor que podia, palestrando sobre uma e outra coisa, e, durante esse tempo, tudo o que havia nele de estranho principiava a parecer-me perfeitamente claro. Enquanto conversávamos, eu examinava-lhe o rosto macilento e esquisito, ao tênue clarão da lanterna da bitácula, que iluminava a bússola e o compasso de rota. Em seguida, procurei com o olhar, no horizonte escuro do mar, a sua ilha oculta nas trevas.

 Aquele homem parecia-me ter saído da imensidade para me salvar a vida. Amanhã ia ele abandonar o navio, e desapareceria da minha existência. Mesmo em circunstâncias mais banais, esse fato me tornaria um tanto pensativo; mas que havia, primeiramente, a singularidade de um homem de educação vivendo naquela pequena ilha desconhecida, e depois, acrescentando-se a isso, a extraordinária natureza da sua bagagem. E repetia de mim para mim a pergunta do capitão: Que quereria ele fazer daqueles animais? Porque, também, quando eu lhe fizera minhas

 primeiras observações, pretendera-me ele fazer-me supor que ela não lhe pertencia? Demais a mais, havia também no aspecto do criado um não sei que de estranho que sobremaneira me impressionava. Todos esses detalhes envolviam aquele homem de um nevoeiro misterioso; e tudo isso se apoderava da minha imaginação e me impedia de interrogá-lo.

 Pela meia noite, a nossa conversação sobre Londres esgotou-se, e ficamos um ao lado do outro, inclinados sobre a murada, percorrendo com o olhar errante e cismador a vasta planura do mar, que silencioso refletia imensidade de estrelas, cada um de nós seguindo o seu próprio pensamento. Era uma bela ocasião para sentimentalizar e principiei a conversar sobre o meu reconhecimento.

 

 - Permita-me que lhe diga que me salvou a vida.

 

- O acaso, - respondeu ele; única e simplesmente o acaso.

 

 -Dado que assim fosse, prefiro dirigir os meus agradecimentos aquele que foi dele o instrumento.

 

- Não agradeça a ninguém. Precisava de socorro; eu tinha o saber e o poder. Prodigalizei-lhe cuidados, e amparei-o, do mesmo modo que teria acolhido um espécime raro. Aborrecia-me consideravelmente a forçada inatividade e sentia grande necessidade de ocupar-me em qualquer coisa. Se me achasse então em um dos meus dias de inércia, ou se a sua fisionomia não me tivesse agradado, pois bem!... nesse caso, não sei onde o senhor estaria neste momento.

 

 Estas palavras acalmaram alguma coisa as minhas disposições.

 

 - Em todo caso..., principiei eu.

 

- Foi uma questão de boa ou má fortuna, asseguro-lhe, - interrompeu ele, - como tudo o que acontece na vida de um homem. Só os tolos não reconhecem isso. Por que razão estou aqui agora, - proscrito da civilização, - em vez de ser um homem feliz e gozar de todos os prazeres de Londres? Simplesmente porque, há onze anos, por uma noite de cerração, perdi a cabeça durante dez minutos.

 

 Deteve-se.

 

 - Deveras? - disse eu.

 

 - Nada demais.

 

 Tornamos a ficar silenciosos. Subitamente, ele principiou a rir-se.

 

- Há o que quer que seja nesta noite estrelada que me compele a falar. Bem sei que é tolice, mas, não obstante, parece-me que me seria grato contar-lhe...

 

- Seja o que o for que me diga, pode contar que guardarei para mim... Se é isto o que...

 

 Estava prestes a principiar, mas logo sacudiu a cabeça com um gesto de dúvida.

 

- Não diga nada, - continuei - não importa. Afinal de contas, é preferível que o senhor guarde o seu segredo. Quando muito, só poderá lucrar um tênue alívio, se eu receber a sua confidência. Senão... palavra!...

 

 Ele gaguejou algumas palavras incompreensíveis. Senti que compreendera mal as suas intenções, que ele estava imensamente disposto a expandir-se, e, a dizer a verdade, não era muita a minha curiosidade em saber o que poderia ter afastado para tão longe de Londres um estudante de medicina. Tenho também uma imaginação.

 

 Ergui os ombros e afastei-me. Sobre o corrimão da popa estava inclinado um vulto negro e silencioso olhando fixo para as vagas. Era o estranho criado de Montgomery. Quando me aproximei, ele deitou por cima do ombro um rápido golpe de vista, em seguida prosseguiu na sua contemplação.

 Isto parecerá sem dúvida uma coisa insignificante, mas o fato causou-me forte impressão. A única luz que havia perto de nós era a lanterna da bússola. O vulto daquela criatura fez um movimento rápido, voltando-se da escuridão da coberta para a claridade da lanterna, e vi então que nos olhos que me fitavam se refletia uma pálida luz esverdeada.

 Eu não sabia então que não é raro ver-se em olhos humanos reflexos de luz avermelhada, e aquele tom verde nos olhos que fixaram me pareceu absolutamente extra-humano. Aquele rosto negro, com os seus olhos de fogo, transtornou todos os meus pensamentos e todos os meus sentimentos de homem, e, durante um momento, invadiram-me o espírito os já esquecidos terrores da minha infância. Depois, o efeito desvaneceu-se, como tinha vindo. Não mais percebi senão um estranho vulto negro, apoiado no corrimão da amurada, e ouvi a voz de Montgomery que me falava.

 

- Julgo que podíamos recolher-nos - dizia ele, - se está disposto a isso.

 

 Respondi vagamente e descemos. À porta do camarote ele deu-me boa noite e separamo-nos. Durante o sono tive sonhos bem desagradáveis. A lua minguante nasceu tarde. A sua claridade lançava através do meu camarote um raio pálido e tristonho que desenhava sombras sinistras. Depois os cães despertaram e puseram-se a ladrar e a uivar, de modo que o meu sonho foi agitado por pesadelos e não pude adormecer senão ao romper do dia.

 

 

 

 Pela manhã muito cedo - era o segundo dia após o meu regresso à vida, e o quarto após a minha acolhida a bordo da goleta - despertei em meio dos sonhos mais tumultuosos, sonhos povoados de canhões e de multidões ululantes, e ouvi por

 cima de mim gritos abafados. Esfreguei os olhos, atento a esse ruído, e buscando recordar-me do lugar em que me achava. Ouvi depois de uma bolha de pés descalços batendo no chão, de objetos pesados que alguém arrastava, um estalo violento e um tinido de correntes de ferro. Chegou-me depois aos ouvidos o tumulto das vagas batendo de encontro à goleta que ia virando de bordo, e uma onda espumante, de uma cor verde amarelada, veio quebrar contra o vidro do pequenopostigo redondo, em cuja superfície exterior a água ficou escorrendo. Vestia-me às pressas e subi ao convés.

 Ao chegar à escotilha, avistei, de encontro ao fundo róseo do céu - pois que o sol estava despontando - as largas costas e a cabeça ruiva do capitão, e, por cima dos ombros deste, a gaiola do jaguar baloiçando-se a uma polia atada à retranca da mezena. O pobre animal parecia terrivelmente assustado e encolhia-se todo no fundo da pequena prisão.

 

- Para cima da borda, para cima da borda toda esta bicharada! - bramia o capitão. - O navio vai ficar limpo agora, meu Deus, o navio vai em breve ficar limpo! Ele impedia-me a passagem, de modo que, para chegar à coberta, tive de por a mão sobre o seu ombro. Ele voltou-se sobressaltado, e, cambaleando, deu alguns passos para trás, afim de me ver melhor. Não era precisa muita sagacidade para se ver que o homem estava ainda embriagado.

 

 - Oh! Oh! - exclamou com ar aparvalhado.

 

 Depois passou-lhe pelos olhos um reflexo de razão.

 

- Mas... este é Mister... Mister... ?

 

 - Prendick, - disse-lhe eu.

 

- Maldito seja Prendick! - exclamou. Bem fechado, é este o seu nome. Mister Bem fechado! Não valia a pena responder àquele bruto, eu, porém, não esperava de certo a peça que ele me ia pregar. Estendeu a mão para o bailéu, perto do qual Montgomery conversava com uma personagem de alta estatura, cabelos brancos, vestido de flanela azul e suja, e que, sem dúvida, acabara de chegara a bordo.

 

- Por ali! Maldito Bem fechado! Por ali! - rugia o capitão.

 

 Montgomery e o seu companheiro, ouvindo aqueles gritos, voltaram-se.

 

 - Que quer dizer? - perguntei.

 

- Por ali! Maldito Bem fechado - é o que quero dizer. Por cima da borda, Mister Bem fechado! - e depressa! Então varrendo e limpando! Estão desobstruindo o meu bem aventurado navio, e tu, tu vais passar por cima da borda.

 

 Eu olhava-o estupefato. Depois, viu-me à idéia que era justamente isso o que mais me convinha. A perspectiva de uma travessia a fazer, como único passageiro, em companhia daquele bruto irascível era pouco tento tentadora. Voltei-me para Montgomery.

 

- Não podemos levá-lo conosco, - respondeu secamente o companheiro.

 

- Não me podem levar? - repeti consternado. Aquele homem tinha a fisionomia mais voluntariosa e mais resoluta que tenho encontrado em minha vida.

 

- Vamos a saber? - principiei a dizer, voltando-me para o capitão.

 

- Por cima da borda! Respondeu o beberrão. - O meu navio não é para animais, nem para gente pior que animais. Há de passar por cima da borda! Mister Bem fechado! Se eles não o quiserem, deixa-lo-ão à mercê das vagas. Mas, seja como for, há de desembarcar com os seus amigos. Aí ninguém mais me verá nunca, nessa maldita ilha. Amém! Estou farto dela!

 

 - Mas, Montgomery... - implorei. Ele torceu o lábio inferior, bateu com a cabeça, indicando o ancião alto, para me significar a impossibilidade em que se achava de me salvar.

 

 - Espere! Vou ocupar-me da sua pessoa.

 

 Então encetou-se um curioso debate entre os três. Eu dirigi-me alternativamente aos três homens: primeiramente ao personagem de cabelos brancos, para que me permitisse desembarcar, depois ao capitão embriagado para que me consentisse em conservar-me a bordo, e até aos próprios marinheiros. Montgomery não descerrava os dentes e contentava-se em bater a cabeça.

 

- Estou a dizer-lhe que há de passar por cima da borda! Diabos levem a lei! Aqui o senhor sou eu! Repetissem cessar o capitão.

 

 Por fim, não sabendo mais o que havia de fazer, esquivei-me às violentas ameaças em princípio, e refugiei-me na popa.

 Durante esse intervalo, a equipagem ocupava-se apressadamente no desembarque das caixas, das gaiolas e dos animais. Uma grande chalupa aparelhada em lugre, conservava-se sob a escotilha da goleta, e nela era empilhada a estranha bagagem animal. Não me era possível avistar então aqueles que recebiam as caixas, pois o casco da chalupa ficava oculto pelo costado da nossa embarcação.

 Nem Montgomery, nem o seu companheiro me prestavam a menor atenção; achavam-se enormemente ocupados em dirigir os marinheiros que transportavam a sua bagagem.

 O capitão intrometia-se também, mas sempre desastradamente.

 Ocorriam-me, umas após as outras, à idéia as resoluções mais temerárias e mais desesperadas. Por duas ou três vezes esperando que se decidisse a minha sorte, não pude deixar de me rir da minha miserável perplexidade. Eu nada tinha tomado ainda, o que me tornava inconsolável e mais desgraçado ainda. A fome e a ausência de certos corpúsculos no sangue, bastam para tirar a um homem toda a coragem. Tornava-me bem patente que me faleciam as forças necessárias tanto para resistir ao capitão que me queria expulsar, como para impor-me a Montgomery e ao seu companheiro. Por isso pois, aguardei passivamente o resultado dos acontecimentos, - e o transporte da carga de Montgomery continuava como se eu nunca tivesse existido.

 Dentro em pouco ficou completamente terminado o desembarque. Então fui arrastado, opondo apenas uma débil resistência, até a ponte da tolda, e foi nesse momento que notei nas estranheza dos personagens que estavam na chalupa com Montgomery. Esta, porém, sem mais demora, fez-se rapidamente ao largo. Um pélago de água verde alastrou-se diante de mim, e atirei-me de costas com todas as minhas forças, para não cair de cabeça para baixo.

 A gente da chalupa soltou gritos de escárnio e ouvi Montgomery incentivá-los.

 Depois, o capitão, o imediato e um dos marinheiros me reconduziram para a ré. A canoa da Senhora Altiva tinha ficado a reboque. Achava-se com água até ao meio, sem remos, e não continha provisão de espécie alguma. Recusei embarcar nela e

 deixei-me cair ao comprido no chão. Por fim, conseguiram fazer-me descer para dentro dela por meio de uma corda - por isso que não possuíam escada de ré - e cortaram o cabo de reboque.

 Afastei-me da goleta, sendo arrastado lentamente pela corrente. Presa de uma espécie de assombro, vi toda a equipagem pôr-se à manobra e tranqüilamente a goleta virar de bordo para apanhar o vento de feição. As velas palpitaram e enfunaram-se, impelidas pela brisa. Eu olhava fixo para o seu costado batido pelas ondas e vi-o voltar-se de lado para mim; em seguida, afastar-se rapidamente.

 Não desviei a cabeça para segui-la com a vista, pois a custo podia crer no que acabava de se passar. Deixei-me cair no fundo da canoa boquiaberto e contemplando confusamente o mar calmo e deserto.

 Depois, considerei na minha situação e vi que me achava novamente naquele inferno em miniatura, prestes a naufragar. Deitando um olhar por cima da borda, avistei ainda a goleta , que recuava ao longe, e por cima do corrimão da ré, a cabeça do capitão que me dirigia pilhérias. Voltando-me na direção da ilha, vi a chalupa diminuindo também de tamanho, à proporção que se aproximava da praia.

 Subitamente, patenteou-se em toda a sua nitidez ao meu espírito toda a crueldade daquele abandono. Não havia para mim um meio a tentar para alcançar a terra, a

 menos que a corrente para lá não me arrastasse. Demais a mais, sentia-me enfraquecido em conseqüência dos dias de febre e de jejum por que havia passado recentemente; parecia-me que ia desfalecer de inanição a cada momento, sem o que, talvez tivesse um pouco mais de coragem. De repente, principiei a soluçar e a chorar, porque, como nunca o tinha feito desde a infância. Corriam-me as lágrimas pelas faces. Tomado de um acesso de desespero dei enormes murros na água que alagava o fundo da canoa, e enchi de pontapés as bordas da embarcação.

 Supliquei em altas vozes a Deus que me deixasse morrer.

 A corrente enviou-me muito lentamente para leste, aproximando-me da ilha, e em breve reparei que a chalupa virava de bordo e voltava para o meu lado. Ela estava extraordinariamente carregada e, quando chegou mais perto, pude distinguir os ombros largos e a cabeça branca do companheiro de Montgomery, instalado com os cães e diversas caixas entre as escotas de ré. Olhava-me fixamente, sem se mover e sem falar. O aleijado, de rosto negro, acocorado junto da gaiola do jaguar, à proa, fixava também sobre mim os olhos ferozes. Além desses havia também a bordo três outros homens, entes esquisitos, com aspectos de brutos, para os quais os cães latiam furiosamente. Montgomery, que dirigia o leme, levou a embarcação até junto da minha e, inclinando-se, amarrou a proa da minha canoa à popa da chalupa, afim de me levar a reboque - porquanto não havia mais lugar para me receberem a bordo.

 O meu acesso de desânimo tinha agora passado e acudi com grande presteza ao apelo que ele me dirigiu ao aproximar-se. Disse-lhe que a canoa estava com água pelo meio e ele passou-me uma caçamba. No momento em que a corda que ligava asduas embarcações se retesou, tropecei e quase cai para trás, mas logo principiei a esvaziar com a máxima atividade a canoa, o que levou algum tempo.

 A pequena embarcação estava em perfeito estado; a água que continha entrara pelas bordas; quando ficou vazia, tive então vagar para examinar de novo a equipagem da chalupa.

 O homem de cabelos brancos observava-me ainda atentamente, mas presentemente, parecia-me descobrir-lhe no semblante uma expressão algum tanto indecisa. Quando os nossos olhares se cruzaram, abaixou a cabeça e olhou para o cão que estava deitado entre as suas pernas. Era um homem de vigorosa constituição, com uma bela fronte e feições não muito delicadas; apresentava por baixo dos olhos esse singular enrugamento da pele que se acentua com a idade, e os sulcos pendentes, que se lhe notavam na boca bastante grande, davam-lhe uma expressão de vontade enérgica. Estava conversando com Montgomery, mas em voz muito baixa, de modo que eu não o podia ouvir.

 Desviei os olhos dele para examinar os três homens da equipagem que eram uns marinheiros do mais estranho aspecto. Não lhes via senão os rostos, mas havia naqueles semblantes uma qualquer coisa indefinível que me reproduzia uma repugnância invencível. Examinei-o mais atentamente, sem que se dissipasse aquela impressão e sem que eu pudesse descobrir qual a causa que a determinava.

 Pareceram-me então homens de tez escura, mas tinham os membros, até os dedos dos pés e das mãos, envolvidos numa espécie de tecido ralo de um branco sujo. A não serem certas mulheres do Oriente, nunca me tinha sido dado ver gente tão completamente envolvida. Traziam também turbantes na cabeça, por baixo dos quais os seus olhos me examinavam com curiosidade. Tinham saliente a mandíbula inferior, cabelos pretos, longos e lisos; e, sentados como estavam, pareciam-me de estatura superior às das diversas raças de homens que eu tinha visto; excedia muito em estatura o homem de cabelos brancos, que tinha bem seis pés de altura e

 cuja cabeça lhes ficava pelo ombro. Pouco depois, reparei que na realidade não eram mais altos que eu, mas que tinham o busto de um comprimento anormal e que parte de seus membros inferiores correspondente à coxa era muito curta e curiosamente retorcida. Em todo caso, era uma equipagem extraordinariamente feia; por cima deles, sob a vela de proa, ostentava-se o rosto negro do homem, cujos olhos reluziam nas trevas.

 Enquanto eu os examinava, eles deram com os olhos nos meus e cada um voltou a cabeça para esquivar-se ao meu olhar direto, ao passo que continuavam a observar-me furtivamente. Afigurou-me que os incomodava a minha insistência em os observar, por isso voltei toda minha atenção para a ilha, de que nos íamos aproximando.

 O litoral era baixo e coberto de espessa vegetação, principalmente composta de uma variedade de palmeiras. De certo ponto, um tênue filete de vapor elevava-se até grande altura e lá em cima desfazia-se como branda penugem. Nesse momento entrávamos em uma vasta Bahia, limitada, de um e outro lado, por um promontório baixo. A areia era de cor cinzenta embaciada e a praia formava uma ribanceira em declive íngreme até acabar em uma aresta de sessenta pés de altura, mais ou menos, guarnecida de árvores e de urzes. A meia encosta, via-se um espaço em quadrado, fechado com muros, construídos, como mais tarde tive ocasião de notar, em parte de corais e em parte de lava e de pedra-pomes. Por cima, viam-se dois tetos de colmos.

 De pé na praia, esperava-nos um homem. Pareceu-me ver de longe outras criaturas grotescas fugindo entre as urzes da encosta, mas de perto não mais vi nenhuma. O homem, que estava à espera, era de estatura mediana, tinha o rosto quase negro, a boca grande e quase sem lábios, braços extremamente compridos e frágeis, pés enormes e estreitos, e pernas arqueadas. Via-nos chegar e, olhando-nos, projetava para a frente a cabeça semelhante a de um animal. Como Montgomery e o seu companheiro, achava-se vestido com casaco e calças de sarja azul.

 Quando as embarcações se aproximaram, aquele indivíduo começou a correr em todos os sentidos sobre a praia, fazendo as mais grotescas contorções. A uma ordem de Montgomery, levantaram-se os quatro homens da chalupa e, fazendo gestos singularmente desajeitados, amainaram as velas. Montgomery governou habilmente em uma espécie de pequena doca estreita, aberta no cascalho da praia, e do tamanho exato para, àquela hora da maré, poder abrigar a chalupa.

 Ouvi a quilha arrastar no fundo, e, com a minha caçamba, impedi que a canoa fosse de encontro ao leme da chalupa; daí a pouco, tendo desatado o cabo, saltei em terra. Os três homens das ligaduras içaram-se para fora da chalupa, e, com as mais extravagantes contorções, principiaram imediatamente a descarregar a embarcação, auxiliados pelo homem da praia que correra a reunir-lhes. Fiquei particularmente impressionado ao ver os curiosos movimentos dos marinheiros envoltos em tiras e ligaduras - esses movimentos não eram nem rígidos nem constrangidos, mas desfigurados de um modo estranho, como se as juntas estivessem às avessas. Os cães continuaram a puxar pelas correntes e a ladrar para todos, enquanto o homem de cabelos brancos desembarcava, sofreando-os.

 As três criaturas de bustos compridos trocavam entre si sons estranhamente guturais, e o homem que nos esperava na praia, começou a falar-lhes muito agitado - um dialeto desconhecido para mim - no momento em que eles punham as mãos sobre alguns fardos amontoados à ré da chalupa. Lembrava-me de ter ouvido em qualquer parte sons semelhantes àqueles; sem toda via saber com certeza onde isso fora.

 O homem de cabelos brancos, contendo com esforço os cães excitados, dava ordens em voz alta, no meio do tumulto que eles faziam latindo furiosamente.

 Montgomery, depois de ter tirado o leme, saltou em terra e pôs-se a dirigir o serviço de descarga. Achando-me fraco demais, após o meu prolongado jejum e debaixo daquele sol que me abrasava a cabeça descoberta, nem pude oferecer o meu auxílio.

 De súbito, o homem de cabelos brancos pareceu lembrar-se da minha presença e dirigiu-se para mim.

 

- O senhor tem aspecto de quem ainda não almoçou, - disse-me.

 

 Por baixo da espessa sobrancelha brilhavam-lhe os olhos negros.

 

- Queira desculpar-me de não ter pensado nisso há mais tempo... presentemente, é nosso hóspede. E vamos deixá-lo à vontade, posto que, como sabe, o senhor não tivesse sido convidado.

 

 Enquanto falava, seus olhos vivos me fixavam bem de frente.

 

- Montgomery disse-me que o senhor é um homem instruído, senhor Prendick... que se ocupa de ciência. Posso pedir-lhe mais amplos detalhes? Disse-lhe que tinha estudado durante alguns anos no Colégio Real das Ciências, e que tinha feito diversas experiências biológicas sob a direção de Huxley.

 

A estas palavras, ele ergueu levemente as sobrancelhas.

 

 - Isto muda um pouco a face das coisas, senhor Prendick, disse ele, dando um leve tom de respeito às suas palavras. Acontece que, também nós, somos biologistas. Temos aqui uma estação biológica... até certo ponto.

 

 Seus olhos seguiam as criaturas vestidas de branco que arrastavam sobre rolos a jaula do jaguar, para dentro do recinto murado.

 

 - Somos aqui biologistas... pelo menos Montgomery e eu, acrescentou.

 Depois, passado um instante, continuou: - Não lhe posso dizer quando poderá sair daqui. Achamo-nos fora de qualquer rota conhecida. Não vemos um navio senão de ano em ano ou de quinze em quinze meses.

 

 Logo em seguida, deixou-me bruscamente, trepou pela ribanceira, apanhou a meio caminho o séqüito dos que conduziam o jaguar, e entrou, creio, no recinto

 murado. Os outros dois homens tinham ficado com Montgomery e, nessa ocasião, estavam empilhando em uma carrocinha, uma porção de bagagens de menores dimensões. O lama estava ainda na chalupa, com as gaiolas dos coelhos; e uma outra matilha de cães tinha ficado amarrada a um banco. A carrocinha estava bem carregada e os três homens principiaram a puxá-la em direção ao recinto murado, seguindo o mesmo trajeto que os precedentes.

 Daí a pouco, Montgomery voltou e estendeu-me a mão.

 

- Pela minha parte, - disse - estou satisfeitíssimo. Aquele capitão não passava de um bugre asqueroso. Ter-lhe-ia tornado a vida muito desgraçada.

 

 - Foi o senhor quem mais uma vez me salvou a vida.

 

- Isso depende. Verá dentro em pouco que esta ilha é um lugar infernal, aviso-o disso. No seu lugar, eu examinaria cautelosamente os meus atos e gestos. Ele...

 

 Hesitou em prosseguir e pareceu mudar de opinião sobre o que ia dizer.

 

 - Quer ajudar-me a descarregar estas gaiolas? - perguntou-me.

 

 E principiou a proceder de um modo singular com as gaiolas dos coelhos.

 Auxiliei-o a levar para terra uma delas, e apenas feito isso, ele tirou-lhe a tampa e, inclinando-a, deitou por terra todo o seu conteúdo. Os coelhos rolaram em monte, uns por cima dos outros. Montgomery bateu com uma mão na outra e uns vinte daqueles animalejos treparam aos saltos pela encosta acima a toda a velocidade.

 

- Crescei-vos e multiplicai-vos, meus amigos, e povoai a ilha. A carne estava-nos faltando um pouco nestes últimos tempos, - disse Montgomery.

 

 Enquanto eu olhava para os fugitivos, o homem de cabelos brancos voltou com um frasco de aguardente e biscoitos.

 

- Aqui está alguma coisa para passar o tempo, Prendick, - disse-me em tom muito mais familiar do que anteriormente.

 

 Sem fazer cerimônia, achei-me no dever de comer os biscoitos, ao passo que o homem de cabelos brancos ajudava Montgomery a soltar mais uns outros vinte coelhos. Todavia, foram levados para dentro do recinto murado mais três grandes gaiolas.

 Não toquei na aguardente porque sempre me abstive do álcool.

 

 

 

 Afigurava-me sobremodo estranho tudo quanto então me rodeava, e a minha posição era o resultado de tantas aventuras imprevistas que não me era dadodiscernir de um modo exato a anomalia de cada coisa em particular. Acompanhei a

 gaiola do lama que iam transportando para o recinto murado; mas pouco depois de

 alguns passos, acercou-se Montgomery de mim e rogou-me que não transpusesse os muros de pedra. Reparei então que o jaguar dentro de sua gaiola e a pilha das

 outras bagagens tinham sido colocados fora da entrada do recinto.

 Voltando-me, vi que tinham acabado de descarregar a chalupa e que ela já estava

 encalhada na areia. O homem de cabelos brancos dirigiu-se para nós e voltando-se

 para Montgomery disse: - Trata-se agora de ocupar-nos deste hóspede inesperado.

 Que devemos fazer dele?

 

- Ele possui sólidos conhecimentos científicos, respondeu Montgomery.

 

- Estou impaciente para por mãos a obra com esses novos materiais, disse o

 homem, fazendo com a cabeça um sinal para o recinto, ao passo que lhe passava

 pelos olhos um súbito fulgor.

 

 - Bem me parece! Replicou Montgomery em tom nada menos que o cordial.

 

- Não podemos mandá-lo para acolá, e não temos tempo de construir uma nova

 cabana. Tampouco nos é possível, de certo, admiti-lo desde já em nossa intimidade.

 

- Estou nas suas mãos, disse eu.

 

 Era-me de todo o ponto impossível adivinhar o que queria ele dizer falando de

 acolá.

 

- Já pensei em tudo isso, respondeu Montgomery. Temos o meu quarto com a porta

 exterior.

 

- Perfeitamente, interrompeu com vivacidade o ancião.

 

 Dirigimo-nos todos três para o lado do recinto murado.

 

 - Aflige-me todo esse mistério, senhor Prendick - mas não o esperávamos aqui. O

 nosso pequeno estabelecimento oculta um ou dois segredos: é, em suma, o quarto

 do Barba-Azul, mas, na realidade não são coisas muito terríveis... para um homem

 de bom senso. Mas, por enquanto... como não o conhecemos...

 

 - De certo, respondi, eu seria bem mal agradecido, se me ofendesse com as

 precauções tomadas a esse respeito.

 

 A sua enorme boca se contorceu em um leve sorriso e ele fez um movimento de

 cabeça, como para dar a entender que reconhecia a minha amabilidade. Aquele

 homem era uma dessas pessoas taciturnas que sorriem abaixando os cantos da boca.

 Passamos por diante da entrada principal do recinto murado. Era uma pesada

 portada feita de madeira, encaixilhada em armação de ferro e solidamente

 fechada, perto da qual estava amontoada a bagagem que viera de bordo; a um

 canto, achava-se uma pequena porta em que eu ainda não havia reparado. O homem de cabelos brancos tirou um molho de chaves de dentro do bolso engordurado do casaco azul, abriu a porta e entrou. Aquelas chaves e aquela fechadura complicada surpreenderam-me de um modo particular.

 Segui-o e achei-me dentro de uma pequena sala mobiliada com simplicidade, mas

 bastante confortavelmente e cuja porta inferior, ligeiramente entreaberta, dava para um pátio lajeado. Montgomery foi imediatamente fechar aquela porta. Uma

 rede estava suspensa no canto mais escuro do aposento e uma janela, sem vidraças e de acanhadas dimensões, defendia por uma grade de ferro, iluminava o quarto, abrindo para o lado do mar.

 Aquele aposento, disse-me o homem de cabelos brancos, ia ser o meu habitáculo, e

 a porta interior que, por temor de algum acidente, acrescentou, ele ia inutilizar pelo outro lado, - era um limite que eu não devia transpor. Chamou-me a atenção para uma poltrona de molas comodamente instalada em frente à janela, e para uma estante, perto da rede, sobre a qual estava uma fileira de velhos livros, entre os quais se achavam vários manuais de cirurgia e edições de clássicos latinos e gregos - os quais só a muito custo consigo ler.

 Saiu pela porta exterior, como querendo evitar abrir segunda vez a porta interior.

 

- Aqui fazemos de ordinário as nossas refeições, comunicou-me Montgomery;

 depois, como que tomado de uma dúvida súbita, saiu para ir ao encontro do outro.

 

- Moreau! Ouvi-o chamar, sem, de momento, notar particularmente essas sílabas.

 

 Um instante depois, enquanto eu examinava os livros, elas me voltaram ao

 espírito. Onde teria eu já ouvido aquele nome?

 Sentei-me diante da janela e principiei a comer com apetite os poucos biscoitos

 que me restavam.

 

 - Moreau?...

 

 Pela janela avistei um daqueles entes extraordinários vestidos de branco, arrastando uma caixa sobre a areia. Depois, ouvi uma chave entrar na fechadura e

 fechar com duas voltas a porta interior. Pouco tempo depois, por trás da porta

 fechada, percebi o rumor que faziam os cães que tinham trazido da chalupa. Não

 ladravam, mas rosnavam e roncavam de um modo curioso. Eu ouvia-lhes o impaciente bater de pés e a voz de Montgomery que lhes falava para acalmá-los.

 Sentia-me sobremodo impressionado com as múltiplas precauções que tomavam os

 dois homens para manter em segredo o mistério que encerrava aquele recinto

 fechado. Durante muito tempo pensei nisso e no que havia de inexplicavelmente

 familiar para mim no nome de Moreau. Mas a memória humana é tão instável que não logrei então lembrar-me de coisa alguma relativa aquele nome bem meu conhecido.

 Em seguida, os meus pensamentos se voltaram para o que de indefinível havia

 naquele ente disforme todo envolto em ligaduras brancas, que eu tinha visto há

 pouco na praia.

 Jamais me acontecera ver um andar semelhante ao dele, movimentos tão

 extravagantes como os que fazia ao arrastar o caixão sobre a areia. Lembrei-me

 de que nenhum daqueles homens me falara, posto que, por várias vezes, me

 tivessem observado de um modo singularmente furtivo e completamente diferente do olhar franco do comum dos selvagens. Era-me impossível perceber qual a linguagem que falavam. Todos me tinham parecido particularmente taciturnos e, quando falavam, eram com uma voz inteiramente anormal. Qual seria a causa de tudo isso?

 Depois depararam-me os olhos do criado disforme de Montgomery.

 Precisamente naquele momento, pensava eu nele, quando entrou no aposento.

 Achava-se então vestido de branco e trazia uma pequena bandeja sobre a qual se

 achavam legumes cozidos e café. A custo pude reprimir um frêmito de repugnância

 ao vê-lo fazer uma saudação e colocar a bandeja em cima da mesa diante de mim.

 O espanto paralisou-me. Por baixo das longas madeixas de cabelos lisos, lobriguei-lhe uma das orelhas. Via-a repentinamente, muito próxima. O homem tinha orelhas pontudas e cobertas de pelos pardos muito finos.

 

- Seu almoço, meu sr., disse ele.

 

 Eu considerava-o fixamente, sem pensar em responder-lhe. Então, voltando-se,

 dirigiu-se para a porta, olhando sempre para mim por cima do ombro, da maneira

 mais esquisita.

 Enquanto o seguia com os olhos, voltou-me à idéia, uma frase que me trouxe à

 memória coisas passadas há dez anos. Essa frase flutuou indecisa no meu espírito

 durante um momento, depois tornei a ver um título escrito com letras vermelhas:

 Doutor Moreau, na capa de uma brochura, revelando experiências de fazer arrepios

 de horror em quem as lia. Pouco e pouco foi-me aclarando a memória e recordei-me daquela brochura, de há muito esquecida, com uma nitidez pastosa.

 Era eu ainda bastante jovem nessa época, e Moreau devia ter no mínimo uns

 cinqüenta anos. Era um fisiologista famoso e de reconhecida competência, muito

 notado nos círculos científicos pela sua extraordinária imaginação e pela brutal

 franqueza com que expunha as suas opiniões. Seria esse o mesmo Moreau que eu

 acabava de ver? Ele publicara, sobre a transfusão do sangue, alguns fatos que

 causaram a maior admiração e, além disso, adquirira uma grande reputação, mercê

 de vários trabalhos sobre as fermentações mórbidas. Subitamente aquela carreira

 invejável foi interrompida; ele teve de ausentar-se da Inglaterra. Com a intenção bem deliberada de surpreender e publicar segredos sensacionais, um jornalista fizera-se admitir no seu laboratório na qualidade de auxiliar; depois, em conseqüência de um acidente desagradável - se é que foi um acidente - a sua brochura revoltante adquiriu uma enorme notoriedade. Exatamente no dia da publicação dela, um mísero cão, esfoliado vivo e mutilado, escapou-se do laboratório de Moreau.

 Deu-se este fato em ocasião em que faltavam notícias de sensação, e um hábil

 diretor de jornal, primo do pseudo auxiliar de laboratório, apelou para a

 consciência da nação inteira. Não foi esta a primeira vez que a consciência se voltou contra o método experimental; foram tais e tão tumultuosos os protestos,

 que o doutor Moreau teve simplesmente de ausentar-se do país. É possível que

 tivesse merecido essa reprovação, mas teimo em considerar como uma verdadeira

 vergonha o apoio vacilante que o desditoso sábio encontrou da parte dos seus

 confrades e o modo indigno como foi abandonado pelos homens da ciência. Segundo revelações do jornalista, certas das suas experiências eram inutilmente cruéis.

 Teria talvez feito as pazes com a sociedade, se abandonasse tais investigações,

 todavia preferiu, sem dúvida, prosseguir nos mesmos trabalhos, como o teriam

 feito, no lugar dele, a maioria das pessoas que uma vez cederam às delícias

 embriagadoras das descobertas científicas. Era celibatário e, em suma, só tinha

 a considerar os seus interesses pessoais...

 Acabei por convencer-me de que tinha encontrado aquele mesmo Moreau. Tudo me

 levava a essa conclusão. E compreendi então a que fim eram destinados o jaguar e

 todos os animais que tinham , não havia muito, conduzido, como todas as

 bagagens, para o pátio situado atrás do meu aposento. Um cheiro forte e

 esquisito, lembrando vagamente um odor que não me era desconhecido, volveu a

 agitar as minhas recordações. Era o cheiro anti-séptico peculiar às salas de

 operações. Através da parede, ouvi bramir o jaguar, e um dos cães ganir como se

 o tivessem ferido.

 Contudo, a vivisseção era coisa tão horrível - mormente para um homem de

 ciência - que poderia servir para explicar todas aquelas precauções misteriosas.

 De um salto imprevisto e subitâneo, o meu pensamento voltou, com a mais perfeita

 nitidez, às orelhas pontudas e aos olhos reluzentes do criado de Montgomery.

 Depois passei o olhar sobre o mar verde, que se encrespava impelido por uma

 brisa fresca, e as recordações estranhas daqueles últimos dias ocuparam-me todos

 os pensamentos.

 Que significava tudo aquilo? Um recinto fechado, em uma ilha deserta, um vivissecador afamadíssimo e aqueles entes aleijados e disformes?...

 Pela uma hora, entrou Montgomery no aposento, tirando-me assim do labirinto de

 enigmas e de suspeitas em que me debatia. Seguia-o o seu grotesco servidor,

 trazendo uma bandeja em que se achavam alguns legumes cozidos, uma garrafinha de whisky, um moringa com água, três copos e três facas. Observei às furtadelas a

 estranha criatura, enquanto ele, por seu turno, me espiava com os seus olhos

 singulares e esquivos.

 Montgomery participou-me que vinha almoçar comigo, mas que Moreau, muito ocupado em novos trabalhos, não viria.

 

- Moreau! disse eu, conheço este nome.

 

- Como!... Ah! Bem, é o diabo então! Fui simplesmente um asno em o ter pronunciado! Devia ter pensado nisso. Não importa. Não importa; assim como

 assim, há de ter alguns indícios dos nossos mistérios. Um pouco de whisky?

 

- Não, obrigado - nunca tomo álcool.

 

- Eu devia ter sempre feito como o senhor. Mas agora... de que serve fechar a porta depois de ter fugido o ladrão? Foi esta infernal bebida que me trouxe aqui... ela e uma noite de nevoeiro. Acreditei em uma boa forma para mim, quando Moreau me propôs acompanhá-lo. É singular...

 

- Montgomery, disse eu de repente, no momento em que a porta exterior se tornava a fechar, porque é que o seu criado tem as orelhas pontudas?

 

 Ele soltou uma praga, mesmo com a boca cheia, olhou-me fixamente durante um

 instante e repetiu: - Orelhas pontudas?

 

- Sim, continuei, com a maior calma possível, apesar de sentir um enorme aperto

 de garganta, sim tem as orelhas terminando em ponta e guarnecidas de pelos finos

 e pretos.

 

 Montgomery serviu-se do whisky e da água, com afetada indiferença, e afirmou: -

Parece-me que... os cabelos lhe cobriam as orelhas.

 

- Sem dúvida, mas vi-as quando ele se inclinou para por em cima da mesa o café

 que o senhor me enviou esta manhã. Além disso, os olhos dele são luminosos em

 plena escuridão.

 

 Montgomery, entretanto, tinha voltado a si da surpresa causada pela minha pergunta.

 

- Sempre reparei, declarou ele, acentuando a sua pronúncia ciciosa, que as

 orelhas dele tinham uma qualquer coisa anormal... A maneira como procura

 encobri-las... A que se assemelham elas?

 

 O modo pelo qual me respondeu, tudo isso me convenceu de que a sua ignorância

 era simulada. Fosse como fosse, era-me difícil dizer-lhes que mentia.

 

- Elas são pontudas, repeti, pontudas... algum tanto pequenas... e peludas...

 sim, muito distintamente peludas... mas aquele homem, desde os pés até a cabeça,

 é seguramente umas das criaturas mais estranhas que tenho visto em minha vida.

 

 Através do muro que nos separava do recinto murado, chegou até nós o bramido

 violento e rouco de um animal que parecia sofrer muito. Pelo volume e pela

 intensidade pareceu-me ter sido soltado pelo jaguar. Montgomery teve um sobressalto e mostrou-se inquieto.

 

 - Ah! exclamou ele.

 

- Onde encontrou aquele extravagante indivíduo?

 

 - Foi... em S. Francisco... Confesso que ele tem o aspecto de um perfeito

 bruto... Meio idiota, como sabe. Não me lembro mais donde ele vinha. Mas,

 estamos habituados um ao outro. Que impressão tem dele?

 

- Não parece um ser natural. Há nele qualquer coisa... Não creia que seja gracejo... mas produz-me uma pequena sensação desagradável, uma crispação dos músculos, quando se me aproxima. Como que um contato... diabólico, em suma...

 Enquanto eu falava, Montgomery deixara de comer.

 

- É esquisito, observou ele, nada de tudo isso eu sinto.

 

 E continuou a comer os legumes.

 Não me passava pela idéia nada de quanto me está a dizer, continuou ele, com a

 boca cheia. A equipagem da goleta... de certo havia de ter experimentado a mesma

 coisa... Caíam todos sobre o pobre diabo... O senhor mesmo não viu como o

 capitão?... De repente o jaguar pôs-se novamente a bramir e desta vez mais

 dolorosamente. Montgomery deixou escapar uma série de pragas em voz baixa.

 Veio-me à idéia interrogá-lo no tocante aos seres que eu vira na chalupa, mas o

 pobre animal soltou, de dentro do recinto, uma série de gritos agudos e curtos.

 

- De que raça são as criaturas que descarregam a chalupa? Perguntei.

 

- Que robustos rapagões, hein? Respondeu ele distraidamente, carregando as

 sobrancelhas, ao passo que o animal continuava a gritar.

 

 Nada mais acrescentei. Ele volveu para mim os olhos cinzentos, embaciados e serviu-se do whisky. Tentou arrastar-me a uma discussão sobre o álcool,

 pretendendo ter-me salvo a vida unicamente com esse remédio, e parecendo ligar

 uma grande importância ao fato de lhe dever eu a vida. Respondi-lhe distraidamente, e em breve a nossa refeição ficou terminada. O monstro disforme,

 de orelhas pontudas, entrou para levar os restos e Montgomery deixou-me outra

 vez só no aposento. Durante o fim da refeição, ele se conservava em um estado de

 irritação mal dissimulada, evidentemente causada pelos gritos do jaguar

 submetido a vivisseção; já anteriormente me tinha dado a conhecer a sua

 inexplicável falta de coragem, deixando-me assim o cuidado de dar-lhe oportunamente a fácil aplicação.

 Eu mesmo achava singularmente irritantes aqueles gritos, e, à medida que a tarde

 se aproximava, eles aumentavam de intensidade e de extensão. A princípio

 foram-me penosos, mas com o repetirem-se constantemente, acabaram por me

 transtornarem completamente. Atirei para o lado uma tradução de Horário que

 tentava ler e, crispando os dedos, mordendo os lábios, principiei a andar pelo

 quarto em todos os sentidos.

 Dentro em pouco, tapei os ouvidos com os dedos. O apelo emocionante daqueles

 gritos penetravam-me pouco a pouco, e afinal transformaram-se em uma expressão de sofrimento tão atroz que não pude ficar encerrado naquele quarto. Transpus o limiar e, debaixo do calor abrasador daquela tarde em princípio, pus-me a caminho; ao passar diante da entrada principal, notei que estava de novo

 fechada.

 Ao ar livre, os gritos ressoavam ainda mais intensamente; dir-se-ia que toda a dor do mundo se condensara naquela voz para se exprimir. Parece-me todavia - nisso pensei depois - que me seria bem mais fácil suportar a idéia daquela dor junto de mim, se ela fosse muda. A piedade nos contrista ainda mais profundamente, quando o sofrimento encontra uma voz para nos torturar os nervos.

 Não obstante, porém, todo o fulgor do sol e o verdejante dócil das árvores agitadas por uma branda aragem marítima, tudo, em volta de mim, não era senão confusão e, até ver-me fora do alcance dos gritos, dançaram-me diante dos olhos uma multidão de fantasmas negros e rubros.

 Caminhei através das urzes que revestiam as ribanceiras, por detrás da casa, pouco me importando saber para onde ia, continuei depois a marchar debaixo de um espesso e escuro renque de árvores de troncos lisos, e em breve achei-me a

 alguma distância, na outra encosta, que descia na direção de um regato, cujas águas banhavam um estreito vale. Parei para escutar. A distância a que tinha

 chegado, e as massas de bosque que se interpunham, amorteciam os sons que

 porventura viessem do recinto fechado. O ar estava sereno. Então, após um leve

 ruído, apareceu um coelho e imediatamente se sumiu por detrás da encosta.

 Hesitei um momento e sentei-me à sombra da ramaria. O leito do ribeiro ficava

 oculto pela vegetação luxuriante que lhe bordava as margens, menos em um ponto

 em que eu lhe podia ver os reflexos de água cintilante. Para o outro lado, eu

 avistava, através da névoa azulada, um emaranhado de árvores e de trepadeiras,

 por sobre o qual pendia o azul luminoso do céu. Aqui e ali, salpicos brancos e

 encarnados indicavam moitas floridas de epífitos rastejantes. Deixei que os meus

 olhos vagueassem um instante sobre aquela paisagem, depois tornaram-me à idéia

 as estranhas singularidades do criado de Montgomery. Fazia, porém, demasiado

 calor para me ser possível refletir por muito tempo; assim pois, cai em breve em

 uma espécie de torpor, isto é, qualquer coisa que participava do adormecimento e

 da vigília.

 Inopinadamente, fui despertado, não sei passado quanto tempo, por um ruído leve e prolongado que partia de entre a vegetação do lado oposto do ribeiro. Durante um momento, não pude ver mais que os cumes agitados das giestas e das urzes.

 Depois, repentinamente, à beira do ribeiro apareceu o que quer que fosse – à primeira vista não pude distinguir o que fosse. Uma cabeça inclinou-se para a água e principiou a beber. Vi então que era um homem andando de quatro pés como

 um animal.

 Estava vestido de azul. Tinha a pela acobreada e os pelos pretos. Dir-se-ia que

 a mais grotesca fealdade era o traço característico daqueles insulares.

 Chegava-me até os ouvidos o rumor que ele fazia bebendo água.

 Inclinei-me para diante, afim de melhor o ver; um pedaço de lava que se lhe

 destacou debaixo da mão rolou pela encosta ruidosamente. O ente levantou

 receosamente a cabeça e deu com os olhos nos meus. Imediatamente se pôs de pé e, sem deixar de me olhar, pôs-se a limpar a boca, mas com um gesto completamente desajeitado. As pernas dele tinham a metade do comprimento do tronco. Assim ficamos, talvez pelo espaço de um minuto, a nos observarmos mutuamente, tão desapontado um como outro; depois ele esquivou-se no meio das urzes, para a direita, parando uma ou duas vezes a olhar para trás, e percebi que o rumor dos ramos ia enfraquecendo a pouco e pouco à distância. Muito tempo depois dele ter desaparecido, continuei de pé, olhos fixos na direção que ele tomara na fuga.

 Não logrei readquirir a minha calma sonolência.

 Fez-me estremecer um ruído atrás de mim e, ao voltar-me subitamente, vi a cauda

 branca de um coelho que desaparecia no alto da encosta. Ergui-me de um salto.

 A aparição daquela criatura grotesca e semi animal tinha de súbito povoado para a minha imaginação a tranqüila solidão daquela tarde. Olhei em volta de mim contrariado e lamentando achar-me sem armas. Depois veio-me à idéia que aquele

 homem estava vestido de azul, ao passo que, a ser um selvagem, estaria nu; e,

 partindo desse fato, busquei persuadir-me de que provavelmente era dotado de

 caráter pacífico e que o caluniava a sombria ferocidade que lhe transparecia no

 aspecto.

 Contudo, aquela aparição preocupava-me enormemente.

 Caminhei para a frente, seguindo ao longo de um despenhadeiro, atento e

 examinando as cercanias por entre os troncos lisos das árvores.

 Porque razão iria um homem, à maneira dos animais, beber água no regato? Dentro de pouco ouvi novamente gemidos e, julgando que havia de ser o jaguar, voltei em direção diametralmente oposta. Cheguei assim à beira da corrente, atravessei-a e continuei a abrir caminho através dos tojais da outra margem.

 De súbito, atraiu-me a atenção uma grande mancha de cor vermelha carregada, e,

 aproximando-me vi que era uma espécie de vegetal fungoso, de ramos enrugados,

 como um líquen foliácio, mas transformando-se ao tocar-lhe, em uma espécie de

 matéria glutinosa. Mais adiante, é sombra de uns arbustos gigantescos, cai sobre

 um objeto desagradável: o cadáver ainda quente de um coelho, com a cabeça

 arrancada e coberto de moscas reluzentes. Estaquei surpreso à vista do sangue

 espalhado. Assim pois, a ilha estava já desembaraçada de um dos seus visitantes.

 Não havia nas imediações nenhum outro vestígio de violência. Parecia que o

 animalejo fora apanhado de imprevisto e morto; e, enquanto eu contemplava o

 pequeno cadáver, procurava compreender como se teria dado o caso. O vago temor

 de que não conseguira defender-me, desde que se me apresentara à vista aquele ente de semblante tão pouco humano a beber água no ribeiro, esse temor foi

 crescendo pouco a pouco. Principiei convencer-me da temeridade da minha exploração entre gente desconhecida. A minha imaginação transformou os pequenos bosques que me circundavam. Cada sombra mudou-se em coisa mais importante que uma simples sombra; eu via a cada passo uma cilada, cada ruído se me tornou uma ameaça. Parecia-me ser espiado por coisas invisíveis.

 E, pois, resolvi voltar ao meu aposento. Fazendo de súbito meia volta, pus-me a

 caminho, correndo a toda a pressa através das urzes, ansioso por encontrar-me em

 um espaço livre.

 Afrouxei a pouco e pouco a corrida e parei exatamente no momento em que

 desembocava em uma clareira. Era uma espécie de escavamento feito na floresta pela queda de uma grande árvore; os rebentos irrompiam já por todos os lados para reconquistar o espaço despendido e, para além, continuavam os troncos densos, as trepadeiras entrelaçadas e as moitas de plantas parasitas e de flores. Diante de mim, acocoradas sobre os restos da árvore e ignorando ainda a minha presença, estavam três criaturas grotescamente humanas. Pude ver que dois eram machos e outro evidentemente uma fêmea. À parte alguns farrapos de tecido encarnado, em volta dos quadris, estavam nus e a pele apresentava-lhes de um rosado escuro e sem brilho, cor que nunca vira em nenhum selvagem. Tinham o rosto de feições grosseiras, sem queixo, com a testa reentrante e, na cabeça, uma cabeleira rara e eriçada. Nunca se me apresentara ocasião de ver criaturas

 de aspecto tão acentuadamente bestial.

 Conversavam, ou pelo menos um dos machos falava aos outros dois e todos três

 pareciam estar extraordinariamente interessados por terem notado o rumor da minha aproximação. Embalavam a cabeça e os ombros para um e outro lado. As

 palavras chegavam até mim confusas e indistintas; eu podia ouvi-las distintamente, sem todavia lhes entender o sentido. Aquele que falava parecia-me recitar uma espécie de dialeto inteligível. Em pouco, articulou de um modo mais agudo e, estendendo os braços, levantou-se.

 Então os outros principiaram a gritar em uníssono, erguendo-se também, estendendo os braços e balançando o corpo, seguindo a cadência daquela melopéia.

 Notei-lhes a pequenez anormal das pernas e o comprimento enorme dos pés informes. Todos três giravam lentamente no mesmo círculo, batendo com o pé e

 agitando o braço; à recitação rítmica misturavam uma espécie de melodia, bem

 como um estribilho que devia ser: A lula ou Balula. Dentro em pouco brilharam-lhes os olhos, e uma expressão de estranho prazer lhes animou os horrendos semblantes. Dos cantos das bocas sem lábios escorria a saliva.

 Subitamente, enquanto eu lhes observava a mímica grotesca e inexplicável, percebi claramente, pela primeira vez, o que me impressionara tão desagradavelmente na atitude daqueles entes, o que me tinha dado aquelas duas impressões incompatíveis e contraditórias de completa estranheza e, não obstante, de singular familiaridade. As três criaturas que praticavam aquele rito misterioso eram de forma humana, e, contudo, aqueles entes humanos evocavam, no seu conjunto, uma singular semelhança com um animal qualquer muito conhecido. Cada um daqueles monstros, apesar da sua aparência humana, dos seus farrapos de vestimenta e da grosseira humanidade dos seus membros, patenteava em si, pelos movimentos, pela expressão dos traços e dos gestos, por todo seu modo

 de andar, um não sei que irresistível que sugeria à idéia a lembrança do porco, o cunho mais evidente da animalidade.

 Ali me deixei ficar, pasmado, em virtude da minha descoberta, e então se me

 baralham no espírito as mais horríveis interrogações. Depois as esquisitas

 criaturas principiaram a saltar uma após a outra, soltando gritos e grunhidos.

 Uma delas tropeçando ficou um instante de quatro pés, embora se tornasse a

 levantar quase imediatamente. Mas aquela revelação passageira do verdadeiro

 animalismo daqueles monstros era-me suficiente. Fazendo o mínimo rumor possível, voltei atrás, detendo-me a cada instante, pelo temor de que o estalido de um galho, ou o ruído de uma folha me fizessem descobrir, e assim fui seguindo por

 muito tempo, antes de me atrever a recuperar a minha liberdade de movimentos.

 A minha única idéia naquele momento foi afastar-me daquelas repugnantes

 criaturas e, sem o perceber, ia seguindo um atalho apenas indicado entre as

 árvores. Ao atravessar uma estreita clareira, distingui, com um frêmito

 desagradável, duas pernas esquisitas que iam andando pelo meio da mata, seguindo silenciosamente a mesma direção que eu, mas a uma distância de trinta metros. A cabeça e o tronco estavam ocultos por um emaranhamento de cipoais. Parei bruscamente, esperando que a criatura não me tivesse visto. Imediatamente as pernas pararam. Eu tinha os nervos tão irritados que só a muito custo pude

 conter um impulso irresistível e súbito de correr a toda a velocidade.

 Fiquei ali um momento, olhar fixo e atento, e logrei por fim divisar no entrelaçamento dos galhos, a cabeça e o tronco do bruto que eu vira a beber no

 ribeiro. Agitou a cabeça. Quando o seu olhar cruzou com o meu, vi-lhe nos olhos um lampejo esverdeado, meio luminoso, que se desvaneceu quando se tornou a mover. Ficou imóvel um instante, observando-me na penumbra, depois, com silenciosas passadas pôs-se a correr através da vegetação do bosque. Um momento

 depois tinha desaparecido atrás dos tojais. Não o podia ver, mas sentia que ele tinha parado e continuava a observar-me furtivamente.

 Quem poderia ser aquele ente? Homem ou animal? Que quereria de mim? Eu não tinha arma alguma; em todo caso, fosse quem fosse, não tinha a coragem de assaltar-me.

 Com os dentes cerrados avancei direto para ele. Não me convinha por preço algum,

 deixar transparecer o temor que me gelava. Abri caminho através de uma grande

 moita de arbustos enormes com flores brancas e avistei o monstro a vinte passos

 de distância, observando-me por cima do ombro, hesitante. Dei dois ou três

 passos, olhando-o fixamente de frente.

 

- Quem é? gritei.

 

 Tentou sustentar o meu olhar.

 

- Não! exclamou de repente, e dando uma volta para trás, pôs-se a correr aos

 saltos através do bosque sombrio. Depois, voltando-se novamente, principiou a

 espiar-me: vi-lhe os olhos a brilharem na escuridão das moitas espessas.

 

 Eu sufocava, sentido bem que minha única esperança de salvação era fazer frente

 ao perigo, dirigi-me resolutamente para ele. Fazendo meia volta, ele desapareceu

 na escuridão. Pareceu-me perceber mais uma vez o reflexo dos seus olhos, e foi

 tudo.

 Só então reparei que a hora tardia podia trazer-me conseqüências desagradáveis.

 Havia alguns minutos que o sol descambara no horizonte; o breve crepúsculo dos

 trópicos desaparecia já do oriente; uma falena, predecessora das trevas, voava

 silenciosamente ao redor da minha cabeça. A menos que não quisesse passar a

 noite no meio dos perigos desconhecidos da floresta misteriosa, cumpria apressar-me para voltar para junto do recinto murado.

 Era-me sobremodo desagradável a idéia de voltar a aquele refúgio de sofrimento,

 mas era-o ainda mais a idéia de ser surpreendido pela escuridão e tudo quanto

 ela ocultava. Deitando um último olhar para as sombras azuladas que escondiam a

 extravagante criatura, principiei a descer a encosta em direção ao ribeiro, na persuasão de ser esse o caminho pelo qual eu tinha vindo.

 Caminhei precipitadamente, em extremo perturbado, por quanto tinha visto, e em

 breve fui ter a um lugar plano, onde havia grande número de troncos de árvores

 derrubadas. Ia a pouco diminuindo a claridade incolor que persiste após os rubores do ocaso. O azul do céu tornou-se de momento a momento mais carregado e, uma a uma, as pequeninas estrelas foram penetrando através da luz desmaiada. Os

 intervalos das árvores, as abertas entre os ramos, que de dia eram de um azul

 enevoado, tornaram-se negros e misteriosos. Continuei a avançar. O mundo perdia

 aos meus olhos todo o colorido: as árvores erguiam-se em silhuetas escuras contra o céu límpido e embaixo os contornos se misturavam em trevas informes.

 Dentro em pouco, as árvores rarearam e as urzes se foram tornando mais abundantes. Em seguida, apareceu uma extensão desolada, coberta de areia branca, depois uma outra de massas intrincadas de vegetação.

 A direita ouvi um breve rumor que me inquietou. A princípio acreditei em uma

 fantasia de imaginação, pois, todas as vezes que me detinha, não percebia no

 silêncio nada mais senão o sussurro da brisa da tarde agitando as frondes das

 mais altas árvores. Quando continuava a caminhar, ouvia um eco persistente a me

 seguir os passos.

 Desviei-me das sombrias espessuras, seguindo exclusivamente pelos espaços

 descobertos e procurando, por viravoltas súbitas, surpreender, se de fato existia , a causa daquele ruído. Nada vi, e entretanto, a certeza de uma outra presença se me impunha cada vez mais. Acelerei o passo e, passado pouco, cheguei a um pequeno montículo; galguei-o, e, voltando-me bruscamente, examinei com muita atenção o caminho que acabava de percorrer. Tudo se destacava negro e nítido contra a escuridão do céu.

 Daí a pouco, uma sombra informe apareceu momentaneamente contra a linha do horizonte e logo se extinguiu. Convenci-me então de que o meu torvo antagonista

 me perseguia ainda, e a isto se veio juntar uma outra convicção deplorável: achava-me perdido, não sabia mais o caminho por onde ali viera ter.

 Posto que perplexo até o desespero, continuei a fugir a toda pressa, sempre acompanhado por aquele furtivo perseguidor. Fosse pelo que fosse, a criatura não

 tinha a coragem de me atacar, ou então esperava o momento de me apanhar

 desprevenido. Sempre caminhando, eu me mantinha cuidadosamente alerta, voltando-me às vezes para escutar; mas, acabei novamente por me persuadir de que o adversário abandonara a perseguição, ou que o mesmo nada mais era que uma simples alucinação do meu espírito desordenado. Ouvi o rumor das vagas. Apressei o passo, correndo quase , e imediatamente percebi que alguém tropeçava atrás de mim.

 Voltei-me com a maior presteza, buscando lobrigar qualquer coisa entre as árvores indistintas. Uma sombra pareceu-me saltar em outra direção. Escutei, imóvel: nada mais ouvi senão o afluxo do sangue nos meus ouvidos. Julguei que os meus nervos estivessem desarranjados e que a minha imaginação se comprazia em ludibriar-me. Tornei a me por em marcha resolutamente, na direção do ruído do mar.

 As árvores rarearam e dois ou três minutos depois, fui ter a um promontório baixo e escalpado que entrava pelas águas escuras. A noite estava calma e límpida e os reflexos da multidão crescente das estrelas tremulavam sobre as tranqüilas ondulações do mar. Um pouco para o largo, as ondas quebravam sobre uma fita irregular de recifes, e sobre a espuma por elas formada brilhava uma luz desmaiada. Para o lado do oeste, vi misturar-se à claridade amarela da estrela vespertina a faixa esbranquiçada da luz zodiacal. A costa desaparecia bruscamente a leste, e a oeste, ficava encoberta por uma curva do promontório.

 Foi então que me lembrei de que o recinto de Moreau ficava a oeste.

 Fez-me um leve rumor e um ramo seco partiu-se atrás de mim. Dei a frente às árvores escuras, sem que me fosse possível ver coisa alguma, ou antes eu via demais. Na escuridão, cada vulto indeciso tomava um aspecto ameaçador, sugeria a idéia de uma hostilidade à minha espreita. Assim fiquei, durante um minuto talvez; depois, dirigi-me para oeste, no intuito de transpor o promontório. No

 momento preciso em que eu me voltava, no meio das trevas vigilantes, vi uma

 sombra mover-se para me seguir.

 O meu coração batia precipitadamente. Em breve se tornou visível a ampla curva de uma Bahia que ficava voltada para oeste, e fiz alto. A sombra silenciosa parou

 também a uns quinze passos. No outro extremo da curva brilhava um pequeno ponto luminoso e a extensão acizentada que formava a praia arenosa prolongava-se quase indistinta sob a luz das estrelas. O ponto luminoso devia achar-se a cerca de duas milhas de distância. Para chegar à beira do mar, era-me necessário

 atravessar o bosque, onde as sombras me espiavam, e descer uma encosta coberta

 de tojais espessos.

 Desde então mais fácil se me tornava avistar o meu inimigo. Este não era um animal, porque andava de pé. Abri então a boca para falar, mas cortou-me a voz

 uma súbita rouquidão. Tentei novamente: - Quem está ali? clamei.

 Não ouvi resposta. Dei um passo. O vulto não se moveu, apenas pareceu encolher-se; dei com o pé em uma pedra. Isto proporcionou-me um alvitre. Sem deixar de olhar para o vulto negro, abaixei-me para apanhar a pedra. A este movimento, porém, a sombra deu uma súbita viravolta, à maneira de um cão, e internou-se obliquamente nas trevas. Lembrou-me então um meio engenhoso de que se servem os colegiais contra os cães: amarrei a pedra a um canto do lenço que enrolei solidamente ao redor do pulso. No meio das sombras afastadas, ouvi o ruído do meu inimigo em retirada, e repentinamente vi-me livre da intensa excitação que me acabrunhava. Principiei a tremer e senti um suor frio inundar-me todo o corpo, enquanto ele se punha em fuga e eu permanecia ali com uma arma inútil na mão.

 Decorreu um momento antes que eu pudesse resolver-me a descer, através dos bosques e das matas, pela encosta do promontório até alcançar a praia.

 Finalmente, galguei-os de uma assentada e, na ocasião em que transpunha a orla das densas espessuras e punha o pé sobre a areia da praia, ouvi os estalidos dos passos do outro, empenhado em minha perseguição.

 Então o medo fez-me perder completamente a cabeça e pus-me a correr como um

 louco. Imediatamente, senti que me seguia aquele mesmo rumor de passos leves e

 rápidos. Dei um grito feroz e redobrei de celeridade. De passagem, vi subirem a

 ribanceira, correndo e saltando, umas coisas pretas, vagamente perceptíveis, cujo tamanho era três ou quatro vezes o de um coelho. Por mais que eu viva sempre me recordarei do terror que me infundiu aquela perseguição. Eu corria à beira da água e ouvia, de vez em vez, baterem dentro dela os pés dos que vinham atrás de mim. Ao longe, desesperadoramente longe, brilhava tenuemente a luz amarela. A noite muda envolvia-nos como um manto negro. Plaf! Plaf! Faziam continuamente os pés do meu inimigo. Senti-me completamente exausto; a minha respiração era sibilante e, além disso, eu experimentava do lado uma dor aguda como se tivesse ali espetada uma ponta de faca. Corríamos assim sob a luz das estrelas serenas, sempre na direção do ponto amarelo, que indicava a casa, ainda tão desesperadamente afastada. Mas em breve, com indivisível alívio, ouvi o lastimoso gemido do jaguar, aquele grito de sofrimento que tinha sido a causa da minha fuga e me impelira a partir em exploração através da ilha misteriosa.

 Então, não obstante a minha fraqueza e o meu horrível cansaço, reunindo tudo o que me restava de forças, principiei de novo a correr em direção da luz.

 Pareceu-me ouvir uma voz que me chamava. Depois, o rumor dos passos atrás de mim diminuiu repentinamente, mudou de direção, e ouvi-o afastar-se no meio das

 trevas da noite.

 

 

 

 Quando me achei bastante perto, vi que a luz vinha da porta aberta do meu quarto; e ouvi, saindo da obscuridade que contornava aquele pequeno foco, a voz de Montgomery chamando-me com todas as suas forças.

 Continuei a correr. Daí a pouco ouvi novamente a voz. Respondi fracamente e um momento depois, trêmulo e ofegante, cheguei junto dele.

 

- Donde vem? Perguntou-me ele pegando-me no braço e mantendo-me em posição tal que a luz me iluminasse em cheio o rosto. Temos estado ambos tão atarefados, que nos esquecemos do senhor e há apenas um instante que nos ocupamos do que lhe diz respeito.

 

 Conduziu-me ao aposento e fez-me sentar na poltrona de molas. A luz produziu-me

 na vista, por alguns minutos, uma desagradável impressão.

 

- Não julgávamos que se arriscasse a explorar a ilha sem primeiro nos prevenir, disse ele... Tive receio... mas... que?... ora! e então! Abandonou-me o meu último resto de energia e deixei cair a cabeça sobre o peito. Creio que ele experimentou uma certa satisfação em dar-me me conhaque a beber.

 

- Por amor a Deus! implorei, peço-lhes que feche essa porta.

 

 - Encontrou porventura alguma... alguma criatura esquisita? inquiriu ele.

 

 Foi fechar a porta e voltou. Sem me fazer outras perguntas, deu-me novo gole de

 conhaque misturado com água e obrigou-me a comer. Eu estava completamente

 prostrado. Montgomery disse entre dentes algumas palavras muito vagas, a propósito de "esquecimento" e de "aviso"; depois perguntou-me sem rodeios quando eu tinha partido e o que tinha visto. Respondi-lhe exatamente no mesmo tom e em frases lacônicas.

 

- Diga-me o que significa tudo aquilo? gritei para ele em um estado de indescritível irritação.

 

- Não é lá das coisas mais terríveis. Creio todavia que para o senhor isso foi bastante por hoje.

 

 Súbito, o jaguar deu um brado lancinante, e ouvi Montgomery praguejar a meia voz.

 

- Diabos me levem, se aquele caixão não é pior que o laboratório... em Londres... com os seus gatos...

 

 - Montgomery, interrompi, que coisa foi aquela que me perseguiu? Seria um animal

 ou seria um homem?

 

- Se o senhor não procurar dormir, aconselhou-me ele, amanhã estará perdido.

 

 - Que coisa foi aquela que me perseguiu? Repeti levantando-me e pondo-me diante

 dele.

 

 Ele olhou-me frente a frente e uma crispação contorceu-lhe a boca. Seu olhar, que, um momento antes, se havia animado, tornou-se novamente sombrio.

 

 - Segundo o que me diz, prosseguiu ele, penso que devia ser um espectro.

 

 Apoderou-se de mim um violento acesso de irritação, que quase imediatamente

 desapareceu. Deixei-me cair outra vez na poltrona e apertei a fronte dentro das mãos. O jaguar recomeçou a gemer. Montgomery foi colocar-se atrás de mim e pondo a mão sobre o meu ombro, assim falou:

 

- Escute bem, Prendick, eu não devia tê-lo deixado vaguear por esta estúpida ilha... Mas nada é tão terrível como pensa, meu caro. Os seus nervos estão excessivamente excitados. Quer que lhe dê qualquer coisa que o faça dormir? Isto... (referia-se aos gritos do jaguar) vai durar ainda muitas horas. O que lhe é mais preciso é simplesmente dormir, ou não respondo por mais nada.

 

 Não repliquei, e, com os cotovelos enterrados nos joelhos, escondi o rosto nas mãos. Dentro em pouco, ele voltou trazendo um pequeno frasco contendo um líquido muito escuro que me fez beber. Engoli-o sem resistência e Montgomery ajudou-me a instalar-me na minha rede.

 Quando despertei, era dia claro. Conservei-me por muito tempo sem me mover,

 contemplando o teto. Notei que os caibros eram feitos com os restos de um navio.

 Voltando a cabeça, avistei em cima da mesa uma refeição preparada. Sentindo fome, tratei de sair da rede, e esta, indo muito cortesmente ao encontro da minha intenção, balançou-me e depositou-me de gatinhas sobre o assoalho.

 Levantei-me e instalei-me à mesa; pesava-me a cabeça, e, a princípio, só encontrei vagas recordações do que se havia passado na véspera. A aragem matinal, entrando de mansinho pela janela sem vidros, e o alimento que tomei, contribuíram para proporcionar-me uma sensação de bem-estar físico que experimentei durante toda aquela manhã. De repente, abriu-se a porta interior que dava para o recinto murado e que, nessa ocasião, estava situada atrás de mim. Voltei-me e deparou-me à vista Montgomery.

 

 - A coisa vai indo? Disse ele. Estou terrivelmente ocupado.

 

 Puxou a porta atrás de si, e notei logo que lhe esquecera fechá-la a chave.

 A expressão que na véspera tinha no rosto, tornou a voltar-me à lembrança, e bem assim as recordações das minhas experiências se reproduziam sucessivamente na

 minha memória. Apoderou-se novamente de mim uma espécie de temor, e, no mesmo momento, ouviu-se mais um grito de dor. Desta vez, não era mais a voz do jaguar.

 Depositei o talher sobre o prato e escutei. Por toda a parte o silêncio, apenas quebrado pelo murmúrio da brisa matutina. Principiei a crer que os ouvidos me

 iludiam.

 Após longa pausa, pus-me de novo a comer, continuando porém, à escuta. Em breve, percebi um outro ruído, muito fraco e baixo. Fiquei como que petrificado. Posto que o ruído fosse fraco e surdo, emocionou-me ainda mais profundamente que todas as abominações que eu ouvira até aí atrás daquela parede. Desta vez, não havia erro possível sobre aqueles sons abafados e intermitentes, nenhuma dúvida quanto à sua procedência. Eram uns gemidos entrecortados de soluços e de espasmos de angústia. Desta vez, não podia enganar-me sobre a significação deles: era um ser humano que estavam torturando! A esta idéia, levantei-me; em três passadas tinha atravessado o aposento, e, agarrando o trinco, abri de par em par a porta inferior.

 

- Olá, Prendick! Pare aí! Gritou Montgomery.

 

 Um grande cão surpreendido , latiu e rosnou. Vi sangue em uma regueira, sangue

 coagulado e sangue ainda vermelho, e respirei o cheiro particular do ácido fênico. Pela abertura de uma porta semicerrada, do outro lado do pátio, avistei, apenas distinta na meia escuridão, qualquer coisa que estava atada a uma espécie de cavalete, um ente mutilado, sanguinolento e envolto em ligaduras. Depois, ocultando esse espetáculo, apareceu o velho Moreau, pálido, terrível.

 Em um instante, com a mão toda manchada de sangue, agarrou-me pelo ombro, e,

 levantando-me do chão, como se eu fosse uma criança, arremessou-me de cabeça

 para baixo, para dentro do meu quarto. Caí ao comprido no meio do chão; a porta

 fechou-se violentamente, ocultando-me aos olhos a expressão de formidável cólera

 da sua fisionomia. Depois a chave girou na fechadura, e ouvi a voz de Montgomery

 desculpando-se.

 

 - ... deitar a perder a obra da minha vida! dizia Moreau.

 

- Ele não compreende nada, explicava Montgomery, entre outras frases não muito

 claras.

 

- Não tenho ainda vagar... respondia Moreau.

 

 O resto escapou-me. Levantei-me, ainda todo trêmulo, enquanto que o meu espírito

 não era mais que um caos de apreensões das mais terrificantes. Pode-se conceber,

 pensava eu, que semelhante coisa fosse possível? A vivisseção humana! Aquela

 pergunta passava como um relâmpago em céu tempestuoso. Subitamente, o horror

 confuso do meu espírito se concretizou em uma realização viva do perigo que eu

 corria.

 Ocorreu-me à lembrança, como uma esperança desarrazoada de salvação, que a porta do quarto estava ainda ao meu dispor. Achava-me agora convencido, absolutamente certo mesmo, de que Moreau estavam ocupado a vivissecar um ente humano. Desde que, pela primeira vez, após a minha chegada, eu tinha ouvido pronunciar o seu nome, nem por um momento havia cessado de esforçar-me, de uma ou outra maneira, por aproximar daquelas abominações o grotesco animalismo dos insulares; e presentemente pareceu-me adivinhar tudo. Veio-me à idéia a lembrança dos trabalhos de Moreau sobre a transfusão do sangue. Aquelas criaturas que eu vira eram as vítimas das suas abomináveis experiências.

 Os miseráveis tratantes, que eram Moreau e Montgomery, tinham simplesmente a

 intenção de me conservarem, de me iludirem com promessas de confidências, para

 em breve me fazerem vítima de um destino pior que a morte: a tortura, e depois

 da tortura me entregariam à mais asquerosa degradação que é possível conceber,

 isto é, reunir-me-iam, alma perdida e embrutecida, ao resto dos seus monstros.

 Procurei com os olhos uma arma qualquer: nada. Tive uma inspiração. Deitei no

 chão a poltrona de molas e, apoiando com o pé um dos lados dela no chão, arranquei a barra mais resistente. Por acaso um prego foi arrancado ao mesmo

 tempo que a madeira, e, tendo ficado atravessado de um ao outro lado, dava um ar

 perigoso a essa arma que, sem isso, seria inofensiva. Ouvi um passo do lado de

 fora e imediatamente abri a porta: Montgomery estava a pouca distância e ali

 viera no intuito de fechar também a passagem exterior.

 Levantei para ele a arma, visando-lhe a cabeça, mas, infelizmente, ele deu um salto para trás. Hesitei um momento, depois deitei a correr o mais que podia e voltei ao canto do muro.

 

- Prendick!... Olá!... Prendick!... Ouvi-o gritar, muito espantado. Prendick!... Não te faças de tolo!...

 

 Um minuto mais, pensei, e estaria preso, tão certo da minha sorte, como uma

 cobaia de laboratório. Apareceu na esquina do recinto de onde o ouvi chamar-me

 outra vez. Depois deitou também a correr atrás de mim, gritando e dizendo coisas

 que eu não lograva compreender.

 Desta vez, ia eu a toda a velocidade, sem saber para onde, na direção de

 nordeste, formando ângulo reto com o caminho que seguira na minha precedente

 expedição. De uma feita, ao galgar a ribanceira da praia, olhei para trás, e vi

 Montgomery seguido agora pelo seu criado. Subi como um desesperado até ao alto da encosta e enveredei por um vale escabroso, margeado de impenetráveis brenhas.

 Corri assim talvez a distância de uma milha, com o peito arquejante, o coração a bater-me nos ouvidos; depois não ouvindo mais nem Montgomery, nem o criado

 deste, e sentindo-me quase desfalecido de fadiga, quebrei direto em direção à praia, segundo me parecia, e abriguei-me por detrás de uma moita de caniços.

 Ali fiquei largo tempo, assustado em demasia para ousar mexer-me, e até mesmo,

 tão fora de mim mesmo, que nem pensei em conceber um plano de ação. A paisagem agreste que me rodeava, dormia silenciosa, banhada pelos raios do sol, e o único ruído que me chegava aos ouvidos era o que faziam os insetos desalojados pela minha presença. Dali a pouco pude perceber também um som cadenciado e

 adormecedor - o suspiro do mar morrendo sobre a areia.

 No fim de uma hora, mais ou menos, ouvi Montgomery gritando pelo meu nome; a sua voz vinha de longe na direção do norte. Isto decidiu-me a combinar um plano de ação. Consoante às minhas conjeturas de então, aquela ilha só era habitada pelos dois vivissetores e pelas suas vítimas animalizadas. Era indubitável que eles

 poderiam servir-se de alguns daqueles monstros contra mim, caso se lhes tornasse

 necessário. De outro lado, era fato sabido por mim que ambos possuíam revólveres, e, a não ser aquele frágil pedaço de madeira branca, guarnecido de

 um pequeno prego - o que o tornava uma caricatura de clava - eu estava sem

 defesa.

 Por isso, me deixei ficar onde estava, até que me visse forçado à rendição pela

 fome e pela sede e, nesse momento, convenci-me de que a minha situação era

 realmente lastimosa. Eu não via meio algum de poder achar o que comer. Os meus

 conhecimentos de botânica eram muito pequenos para me auxiliarem a descobrir ao redor de mim o mínimo recurso em raízes ou em frutas; de outro lado, não me era possível fazer aquisição de uma armadilha para apanhar os raros coelhos que

 tinham soltado na ilha. Quanto mais pensava nisso, mais desanimado ficava. Por

 fim, em face daquela conjetura difícil e insuperável, voltou-me de novo ao

 espírito a idéia daqueles homens animalizados que já eu tinha encontrado. Tentei

 recobrar alguma esperança com o que me pude lembrar a respeito deles. Pensei

 sucessivamente em cada um daqueles que tinha visto e procurei tirar da minha

 memória algum bom augúrio que eu pudesse encarar como uma promessa de auxílio.

 Repentinamente, ouvi latir um cão, o que me fez pensar em um novo perigo. Sem

 perder tempo em refletir - de outro modo eles me teriam apanhado - peguei no meu bordão de defesa, e deitei a correr o mais que podia para o lado donde vinha o

 murmúrio do mar. Lembro-me ainda de um bosquezinho de plantas armadas de

 espinhos cortantes como canivetes. Saí dali gotejando sangue e com a roupa em

 farrapos, e logo desemboquei na orla de uma longa enseada que se abria ao norte.

 Sem um minuto de hesitação, entrei diretamente pela água a dentro, e em pouco

 estava com ela pelos joelhos. Finalmente, logrei chegar à outra margem, e, com o

 coração batendo, enveredei por uma brenha confusa, formada de trepadeiras e de

 giestas, onde aguardei o resultado da perseguição de que era alvo. Ouvi

 aproximar-se o cão - não havia mais que um - e latir quando atravessou pelos

 espinhos. Depois cessou de todo o rumor e principiei a acreditar que tinha

 escapado.

 Passavam os minutos, o silêncio prolongava-se, e afinal, no fim de uma hora de

 segurança, voltou-me a coragem.

 Não me sentia então nem muito apavorado nem muito miserável, pois já tinha, a

 bem dizer, ultrapassado os limites do terror e do desespero. Não me restava

 dúvida de que a minha vida estava positivamente perdida, e essa persuasão me

 tornava capaz de tudo tentar. Tinha mesmo um certo desejo de encontrar-me com

 Moreau, de vê-lo frente a frente. E visto que eu tinha atravessado a corrente,

 restava-me a consolação de que, se me estavam sitiando, havia um meio pelo qual

 fácil me seria subtrair-me aos tormentos, porquanto ninguém podia impedir-me de

 me afogar. Veio-me quase à idéia afogar-me imediatamente, mas conteve-me nesse desígnio uma inexplicável curiosidade de ver como acabaria aquela aventura, e bem assim um interesse uma estranha e impessoal necessidade de me dar a mim

 mesmo em espetáculo. Estiquei os membros entorpecidos e magoados pelos arranhões dos espinhos; examinei as árvores que me rodeavam, e, tão rapidamente quanto rápido foi o momento em que ele se projetou para fora da moldura de vegetação que a ocultava, o meu olhar se deteve sobre um rosto negro que me observava.

 Reconheci a criatura simiesca, por isso que já a tinha visto quando ela fôra ao encontro da chalupa; o monstro estava suspenso ao tronco oblíquo de uma palmeira. Apertei na mão a minha triste arma de defesa e levantei-me,

 fazendo-lhe frente. Ele principiou a gaguejar em linguagem ininteligível:

 

- Vo... vo... vo... foi tudo quanto a princípio pude compreender.

 

 Inopinadamente, ele saltou ao chão e, afastando os galhos, examinou-me

 curiosamente.

 Eu não experimentava por aquele ente a mesma repugnância que sentira por ocasião dos meus outros encontros com os homens animalizados.

 

 - Vi-o,... disse ele... no barco...

 

 Já que falava é que era homem, - pelo menos tanto quanto o criado de Montgomery.

 

 - Sim, respondi, cheguei no barco... tendo desembarcado do navio...

 

 - Oh! exclamou.

 

 E os seus olhos brilhantes e irrequietos me percorriam dos pés à cabeça, fixando-se nas minhas mãos, no pau que eu tinha na mão, nos meus pés, nos lugares do meu corpo que deixavam ver os arranhões feitos pelos espinhos. Havia uma coisa qualquer que parecia torná-lo perplexo. Voltou de novo a olhar-me para as mãos. Estendeu uma das suas e lentamente contou os dedos.

 

- Um, dois, três, quatro, cinco, - hein?

 

 Não compreendi então o que ele queria dizer. Mais tarde achei que um certo número daqueles bípedes tinham as mãos mal conformadas, às quais faltavam às

 vezes até três dedos. Supondo, porém, que aquilo era um sinal de boa vinda, correspondi-lhe com o mesmo gesto. Ele fez uma careta como que para manifestar a sua perfeita satisfação. Então me tornou a examinar com o seu olhar furtivo e

 rápido. Depois, fazendo um brusco movimento de recuo, desapareceu; as ramagens dos fetos arborescentes que ele tinha conservado afastadas tornaram a juntar-se.

 Dei alguns passos para dentro do pequeno bosque, no intuito de acompanhá-lo, e

 fiquei admirado de o ver embalar-se jovialmente, suspenso por um dos braços,

 longo e muito magro, a um punhado de cipós que caíam dos galhos mais elevados.

 Estava voltado de costas para mim.

 

- E então! exclamei.

 

 Saltou ao chão voltando-se com rapidez e ficou de frente para o meu lado.

 

 - Diga-me, perguntei-lhe, onde poderei achar alguma coisa para comer.

 

 - Comer! exclamou. Comer alimento dos homens, agora... Nas cabanas! E volveu o

 olhar para os cipós pendentes.

 

- Mas, onde estão as cabanas?

 

 - Ah! - Sou novo aqui, compreende.

 

 Ouvindo o que, ele deu meia volta e principiou a caminhar a passos muito rápidos. Todos os seus movimentos eram curiosos.

 

 - Siga-me, ordenou-me.

 

 Decidido a levar até o fim a aventura, acertei os meus passos com os dele.

 Adivinhei que o que chamava cabanas devia ser algum abrigo tosco, em que ele

 habitava com alguns outros daqueles bípedes. Talvez os achasse animados de boas

 intenções a meu respeito; talvez também me ocorresse um meio de lhes dominar o

 espírito. Eu ignorava ainda quanto estavam distanciados do patrimônio humano que

 lhes atribuía.

 O meu simiesco companheiro marchava ao meu lado, com os braços em constante

 movimento e destacando-lhe no perfil a protuberância formada pela maxila

 inferior. Eu perguntava a mim mesmo que faculdade de se lembrar ele poderia possuir.

 

- Há quanto tempo está nesta ilha? perguntei-lhe.

 

 - Quanto tempo?... disse ele.

 

 Depois de lhe ter repetido a mesma pergunta, ele abriu três dedos da mão. Por

 conseguinte, era evidente que valia um pouco mais que um idiota. Tentei obrigá-lo a esclarecer o que queria exprimir com aquele gesto, mas pareceu-me que isso era penoso demais para ele. Após duas ou três interrogações, afastou-se rapidamente e saltou em busca de um fruto qualquer que pendia de um galho de árvore. Apanhou um punhado de vagens guarnecidas de espinhos e principiou a comer-lhes o conteúdo. Observei-o com satisfação, porque assim adquiria, ao menos, uma indicação para achar com que me sustentar. Experimentei fazer-lhe outras perguntas, mas as respostas, rápidas e garrulas, eram quase todas inoportunas e incoerentes: raramente aparecia alguma um pouco mais apropriada, o resto pareciam frases de papagaio.

 A minha atenção estava de tal modo absorvida por todos esses detalhes, que pouco

 notei no atalho por onde seguíamos. Em breve passamos perto dos troncos de árvores cortados e enegrecidos, depois, tomamos por um lugar descampado, cheio de incrustações de um branco amarelado, através do qual se espalhava um fumaça de cheiro acre que entrava pelo nariz e pela garganta. À direita, por cima de um

 fragmento de rocha escalvada, avistei a superfície azul do mar. O atalho formava

 quebra repentina em um estreito barranco apertado entre duas massas desmoronadas de escórias negras e nodosas. Descemos ambos por ali.

 Aquela passagem, depois da deslumbrante claridade que se refletia no solo

 sulfuroso, pareceu-me escura em extremo. As paredes rochas erguiam-se a pique e

 aproximavam-se no alto. Dançavam-se diante dos olhos clarões vermelhos e verdes.

 O meu guia deteve-se repentinamente.

 

- Está em minha casa, disse.

 

 Achávamo-nos então no fundo de uma cavidade, que, primeiramente se me afigurou completamente às escuras. Ouvi diversos ruídos estranhos e esfreguei com força os olhos com as costas da mão esquerda. Desprendeu-se um cheiro desagradável, como o de uma gaiola de macaco pouco asseada. Para além, a rocha abria-se novamente sobre um declive regular de vegetação banhada de sol, e, de cada lado, a luz vinha ao encontro da escuridão, entrando por uma estreita abertura.

 Foi então que senti uma coisa fria tocar-me na mão. Estremeci violentamente e

 avistei, muito junto de mim, um vulto indistinto, róseo, que mais se assemelhava a uma criança esfolada que a outro qualquer ser. A criatura tinha exatamente as mesmas feições brandas e repugnantes da preguiça, a mesma fronte baixa e os

 mesmos gestos lentos. Passada a primeira impressão causada pelo súbito contraste

 entre a luz deslumbrante do dia e a escuridão quase completa, principiei a ver mais distintamente. A pequena criatura que me tinha tocado estava em pé diante de mim, examinando-me. O meu guia tinha desaparecido.

 O local era uma estreita passagem cavada entre paredes de lava, uma profunda

 escavação; aos lados dela, montes de ervas marinhas, de palmas e de caniços

 entrelaçados, e apoiados contra a rocha, formavam esconderijos grosseiros e

 impenetravelmente escuros. O interstício sinuoso que subia pelo barranco tinha

 apenas três metros de largura e estava repleto de restos de frutas e de toda a sorte de detritos que explicavam o fétido ali existente.

 O pequeno ente róseo continuava a me examinar fixando em mim os olhos piscos,

 quando na abertura da mais próxima daquelas tocas, reapareceu o meu Homem-Macaco, fazendo-me sinal para que entrasse. No mesmo momento, um monstro

 grosseiro e desengonçado, saiu, retorcendo-se todo, de um dos covis que se

 achavam no extremo daquela rua estranha; o seu vulto disforme destacou-se contra o verde luzente da folhagem e ele olhou para mim fixamente. Hesitei, - meio

 resolvido a escapar-me pelo mesmo caminho por onde ali viera ter, - depois, determinado a levar a aventura até ao fim, apertei com mais força o pau que tinha na mão e esgueirei-me para dentro do nojento antro atrás do meu guia.

 Era um espaço semicircular, tendo a forma de uma metade de colmeia de abelhas,

 e, junto à parede rochosa que formava o resguardo interior, achava-se uma

 provisão de várias frutas, nozes, cocos e outras. Espalhados pelo chão, viam-se

 utensílios grosseiros, feitos de lava e de madeira, e um deles estava em cima de uma espécie de tamborete muito mal feito. Não havia fogo. No canto mais escuro da cabana estava acocorada uma massa informe que rosnou ao ver-me; o meu Homem-Macaco ficou de pé, alumiado pela débil claridade que vinha da entrada e

 ofereceu-me um coco aberto, enquanto eu resvalava para o canto oposto, onde me

 acocorei. Tomei o coco e principiei a comê-lo devagar, do modo mais calmo

 possível, não obstante o meu temor intenso e a intolerável falta de ar que havia

 na cabana. A pequena criatura rósea apareceu na abertura, bem como um outro

 bípede qualquer, de cara tisnada e olhos brilhantes, o qual veio olhar por cima

 dos ombros do primeiro.

 

- Hum! rosnou a massa informe, quase invisível no canto oposto.

 

- É um Homem, é um Homem, proclamou o meu guia; um Homem, um Homem, um

 

 Homem vivo, como eu! - Basta! interveio com um grunhido a voz que saía das trevas.

 Eu continuava a roer o meu coco no meio de um silêncio impressionante,

 procurando, sem poder consegui-lo, distinguir o que se passava nas trevas.

 

- É um Homem? repetiu a voz. Vem viver conosco?

 

 Aquela voz forte, um pouco hesitante, tinha qualquer coisa de estranha, uma espécie de entonação sibilante que me impressionou de um modo particular, mas a

 pronúncia era inexplicavelmente correta.

 O Homem-Macaco olhou-me, como se aguardasse qualquer coisa. Tive quase a certeza de que aquele silêncio era interrogativo.

 

 - Vem viver convosco, sim, disse eu.

 

- É um Homem; cumpre que aprenda a Lei.

 

 Eu principiava então a ver alguma coisa mais no meio da escuridão, como que o vago contorno de um ente acocorado e com a cabeça enterrada nos ombros. Reparei também que a abertura da cabana estava encoberta por outras duas cabeças. A minha mão apertou ainda com mais força a arma. No meio das trevas aquela mesma voz se fez ouvir em tom mais alto: - Diga as palavras.

 Eu não tinha ouvido o que o outro tinha balbuciado antes, por isso ele repetiu

 em uma espécie de melopéia.

 

- Não andar de quatro pés. É esta a Lei...

 

 Eu estava atordoado de surpresa.

 

 - Diga as palavras, gaguejou o Homem-Macaco.

 

 Ele mesmo as repetiu, e todos os entes que se achavam à entrada fizeram coro, com uma entonação mais ou menos ameaçadora, segundo me pareceu.

 Vim a perceber que me cumpria repetir também aquela estúpida fórmula, e então

 começou uma cerimônia insensata. A voz entoou nas trevas uma série de sentenças tresloucadas, as quais eu e os mais repetíamos. Ao articularem as palavras, balançavam-se de um para outro lado, batendo nas pernas, e eu segui-lhes o exemplo. Bem podia julgar-me já morto e em um outro mundo naquela cabana escura, com aquelas personagens vagas e grotescas, manchadas aqui e ali por um reflexo de luz, todas balançando-se e cantando em uníssono: - Não andar de quatro pés.

 Esta é a Lei. Não somos Homens?

 

- Não beber água com a língua. Esta é a Lei. Não somos Homens?

 

- Não comer carne, nem peixe. Esta é a Lei. Não somos Homens?

 

- Não rapar com as unhas a casca das árvores. Esta é a Lei. Não somos Homens?

 

- Não dar caça aos outros Homens. Esta é a Lei. Não somos Homens?

 

 Pode-se facilmente conjeturar o resto, desde a proibição desses atos de loucura,

 até à proibição do que eu considerava então serem as coisas mais insensatas, mais impossíveis e mais indecentes. Apoderou-se de todos nós uma espécie de fervor rítmico; com um balanço e um patuá cada vez mais acelerados, repetimos os artigos daquela lei estranha. Superficialmente, invadia-me o contágio daqueles brutos, mas, bem no íntimo, o riso e o asco disputavam a palma. Percorremos uma

 lista interminável de proibições, depois a melopéia continuou sob nova fórmula.

 

 - Para ele, a casa de sofrimento.

 

- Para ele, a mão que cria.

 

- Para ele, a mão que fere.

 

- Para ele, a mão que cura.

 

 E assim por diante, uma série inteira e longa, as mais das vezes em um calão

 absolutamente incompreensível para mim, foi mais uma vez repetida sobre ele, quem quer que fosse. Eu juraria estar sonhando, mas ainda nunca me acontecera

 ouvir cantar em sonho.

 

- Para ele o relâmpago que mata.

 

- Para ele o mar profundo, cantávamos nós.

 

 Uma idéia horrível me ocorreu ao pensamento, isto é, que Moreau, depois de ter

 animalizado aqueles homens, lhes havia infeccionado os cérebros definhados com

 uma espécie de deificação de si mesmo. Todavia, eu não ignorava que dentes

 agudos e que potentes garras me rodeavam, para interromper o canto, mesmo após essa explicação.

 

- Para ele, as estrelas do céu.

 

 No entanto, deu-se fim àquela cantilena. Vi escorrer o suor pela face do Homem-Macaco e, tendo-se habituado os meus olhos às trevas, distingui melhor a

 personagem que estava sentada no canto donde vinha a voz. Tinha a estatura de um homem, mas parecia coberta de um pelo cinzento e sem brilho, muito semelhante ao do cão. Quem era ela? Quem eram todos eles? Imagine o leitor que está rodeado dos mis hediondos loucos e aleijados que lhe seja possível conceber, e poderá compreender alguns dos meus sentimentos, quando me achava no meio daquelas grotescas caricaturas da humanidade.

 

- É um homem de cinco dedos, de cinco dedos, de cinco dedos... como eu, dizia o

 Homem-Macaco.

 

 Estendi as mãos. A criatura cinzenta do canto inclinou-se para diante.

 

- Não andar de quatro pés. Esta é a Lei. Não somos Homens? disse ela.

 E projetou para a frente uma espécie de coto estranhamente disforme e pegou-me nos dedos. Dir-se-ia a pata de um gamo dividida em garras. Contive-me para não gritar de surpresa e de dor. O outro inclinou-se ainda mais para examinar-me as unhas; o monstro caminhou para a luz que vinha da abertura e, com um frêmito de

 repugnância, vi que ele não tinha conformação de homem nem de animal, mas era

 apenas uma massa de pelos cinzentos com três arcadas escuras que indicavam o

 lugar dos olhos e da boca.

 

- Ele tem as unhas curtas, observou entre os seus longos pelos a aterradora criatura. Assim é melhor: há tantos que se constrangem por causa das unhas

 enormes.

 Deixou-me cair a mão e instintivamente tomei da minha arma.

 

- Comer somente raízes e árvores - esta é a sua vontade, proferiu o Homem-Macaco.

 

- Sou eu que ensino a Lei, disse o monstro cinzento. Aqui vêm ter todos os que são novos para aprenderem a Lei. Estou sentado nas trevas e repito a Lei.

 

- É verdade, confirmou um dos bípedes da entrada.

 

- Tremendo é o castigo daqueles que transgridem a Lei. Nenhum deles escapa.

 

 - Nenhum deles escapa, repetiram todos, olhando uns para os outros furtivamente.

 

 - Nenhum, nenhum, nenhum escapa, confirmou o Homem-Macaco. Olhe! Fiz uma

 Pequena coisa, uma coisa má, uma vez. Eu falava, falava, deixei de falar. Ninguém

 compreendia. Fui queimado, marcado a fogo na mão. Ele é grande; ele é bom.

 

- Ninguém escapa, repetiu no canto o monstro cinzento.

 

- Ninguém escapa, repetiram os outros olhando-se de lado.

 

- Todos têm uma necessidade que é má, continuou o monstro cinzento. A sua

 necessidade nós não a sabemos. Havemos de sabê-la. Uns têm necessidade de seguir as coisas que se mexem, de espiar, de resvalar às furtadelas, de esperar e de saltar, de matar e de morder, de morder fundo... É mau. - Não dar caça aos

 outros Homens. Esta é a Lei. Não somos Homens? - Não comer carne nem peixe. Esta é a Lei. Não somos Homens?

 

- Ninguém escapa, interrompeu um bruto que estava de pé à entrada.

 

- Todos têm uma necessidade que é má, retorquiu o monstro, guarda da Lei. Alguns têm necessidade de escavar com os dentes e com as mãos entre as raízes, e de sorver a terra... isto é mau.

 

- Ninguém escapa, repetiram os bípedes da entrada.

 

- Alguns descascam as árvores, outros vão cavar sobre os túmulos dos mortos, uns

 combatem com a fronte, com os pés, ou com as unhas, outros mordem bruscamente sem provocação, outros gostam do cisco.

 

- Ninguém escapa, pronunciou o Homem-Macaco e ao mesmo tempo coçava a barriga da perna.

 

- Ninguém escapa, disse também a pequena criatura rósea.

 

- O castigo é certo e rigoroso. Assim pois, aprendam a Lei. Repitam as palavras.

 

 Imediatamente, recomeçou a estranha cantilena daquela lei, e de novo todos

 aqueles entes e eu nos pusemos a cantar e balançar-nos. Andava-me a cabeça à

 roda, por causa daquela monotonia de ritmo aliada ao cheiro repugnante do local,

 mas agüentei firme, contando achar em breve ocasião de informar-me de mais

 alguma coisa.

 

- Não andar de quatro pés. Esta é a Lei. Não somos Homens?

 

 Fazíamos tal alarido que não prestei atenção a um ruído que vinha de fora, até

 que alguém que era, segundo me pareceu, um dos dois Homens-Porcos que eu tinha avistado, passando a cabeça por cima da pequena criatura rósea, gritou em tom de temor qualquer coisa que não pude compreender.

 No mesmo instante desapareceram os que estavam de pé à entrada; o meu Homem-Macaco precipitou-se para fora, sendo seguido pelo ente que se conservava sentado no escuro - nessa ocasião reparei que ele era volumoso e desajeitado e coberto de pelos prateados - e achei-me completamente só.

 Em seguida, antes de chegar à abertura, ouvi o latido de um cão.

 No mesmo instante, achei-me do lado de fora da cabana, com o meu pau de cadeira na mão, tremendo dos pés à cabeça. Diante de mim estavam as costas mal

 conformadas de uns vinte daqueles bípedes, cujas cabeças enterravam-se nas omoplatas. Gesticulavam com grande animação. Das outras cabanas saíam inquietas outras caras semi-animais. Voltando os olhos para o ponto em cuja direção eles todos se voltavam, lobriguei, caminhando através do nevoeiro, por baixo das árvores, no fim da passagem que ia ter às tocas, o vulto sombrio e a terrível cabeça branca de Moreau. Ele continha o cão que saltava, e seguindo-o de perto, vinha Montgomery, de revólver em punho.

 Fiquei um momento gelado de terror.

 Voltando-me, vi que por detrás de mim a passagem estava bloqueada por um enorme bruto, de cara larga e cinzenta e de pequenos olhos piscos, o qual tinha vindo ao meu encontro. Olhei para todos os lados e avistei à direita, na parece de

 pedra, a uns cinco ou seis metros de distância, uma estreita fenda, através da

 qual coava uma réstia de luz, cortando obliquamente a sombra.

 

- Não prossiga! gritou Moreau ao ver que eu me dirigia para a fenda; depois ordenou: - Segurem-no! A estas palavras as caras dos brutos voltaram-se uma a

 uma para mim. Por felicidade aqueles cérebros bestiais eram lentos em compreender.

 

 Com um empurrão, fiz rolar por terra um monstro desengonçado e inábil, que se ia

 voltar para ver o que queria Moreau dizer, e que, ao cair, arrastou um outro consigo. Procurou, porém, agarrar-me, o que não conseguiu. A pequena criatura

 rósea precipitou-se para segurar-me, porém derrubei-a com uma pancada do meu pau e o prego lacerou-lhe a medonha face. Um instante depois, galgava eu uma vereda a pique, uma espécie de chaminé inclinada que saía do barranco. Ouvi um brado e muitos gritos: - Agarrem-no! Agarrem-no! O monstro cinzento apareceu atrás de mim e meteu a sua corpulência na brecha. Os outros seguiam-no em grita.

 Escalei a estreita cavidade e fui sair sobre a oeste da aldeia dos homens-animais. Transpus a correr aquele espaço, desci um declive quase a pique, onde cresciam algumas árvores esparsas, e cheguei a uma camada baixa, onde havia grandes moitas de altos caniços. Meti-me nelas, avançando até um matagal sombrio e espesso, onde o solo cedia debaixo dos pés.

 A brecha tinha sido para mim uma fortuna inesperada, porquanto o atalho, estreito e subindo obliquamente, devia dificultar enormemente o acesso e retardar aqueles que me perseguiam. No momento em que eu me embrenhava entre os caniços o mais próximo dentre eles apontava na fenda. Durante alguns minutos, continuei a correr dentro do matagal. Dali a pouco, todo o ambiente em volta de mim encheu-se de gritos ameaçadores. Ouvi o tumulto dos meus perseguidores, o ruído dos caniços quebrados, e, de vez em vez, o estalo dos ramos das árvores.

 Alguns dos monstros rugiam como animais ferozes. O cão latia à esquerda; na mesma direção, ouvi os chamados de Moreau e de Montgomery. Voltei bruscamente para a direita. Nesse momento pareceu-me ouvir Montgomery gritar-me que fugisse, caso desejasse conservar a vida.

 Dentro em pouco, o solo, gorduroso e lamacento, cedeu sob a pressão dos meus pés; mas, com a energia do desespero, lancei-me para diante de cabeça baixa, enterrado na lama até aos joelhos, e consegui alcançar enfim um atalho sinuoso

 entre grandes caniços. O tumulto dos perseguidores afastou-se para a esquerda.

 Em um certo lugar vi fugirem saltitando na minha frente, três estranhos animais

 róseos. Aquele atalho subia através de um outro espaço livre, coberto de depósitos calcários esbranquiçados, e ia meter-se novamente entre as moitas de altos caniços.

 Depois, quebrava inesperadamente, seguindo à beira de uma fenda aberta a prumo, e que surgia, como os fossos defensivos de um parque inglês, brusca e

 imprevistamente. Eu ia chegando a correr com todas as minhas forças e só notei o

 precipício quando me senti rolar no espaço.

 Caí, com a cabeça e os ombros para a frente, no meio dos espinhos; quando me

 levantei, tinha uma orelha ferida e o rosto a escorrer sangue. Foi então que vi que tinha rolado por uma ribanceira escarpada, cheia de rochas e de espinhos. O nevoeiro enrolava-se ao redor de mim em longas volutas, e um pequeno e estreito

 riacho donde subia aquela névoa, serpenteava até o fundo do despenhadeiro.

 Fiquei muito surpreendido de encontrar névoa em pleno dia e ao calor ardente do

 sol, mas não me sobrava tempo para demorar-me a refletir. Prossegui no meu

 caminho, seguindo a direção da corrente e esperando chegar assim até ao mar e ter o espaço livre para me afogar; só mais tarde reparei que perdera o meu pau na ocasião da queda.

 Mais adiante, o despenhadeiro encolhia-se em um certo espaço, e, inadvertidamente, entrei na água. Tive de sair bem depressa, porque a água quase

 me queimava os pés. Notei também uma delgada massa de escuma sulfurosa flutuando à superfície dela. Quase imediatamente a ribanceira fazia um ângulo brusco e avistei o horizonte azul, indistinto. O mar próximo refletia o sol em miríades de facetas. Vi a morte diante de mim.

 Mas estava alagado em suor e ofegante. Sentia também uma certa exaltação por ter distanciado de muito os que me perseguiam, alegria essa que me impediu de

 afogar-me.

 Voltei-me na direção em que acabava de chegar, ouvido à escuta. A não ser o zumbido dos mosquitos e o rumor produzido por alguns insetos que saltavam entre

 os arbustos, todo o ambiente estava absolutamente sereno.

 Só então me chegaram aos ouvidos, muito fracos, o latido de um cão, depois um

 murmúrio confuso de vozes e o estalo de um chicote. Esses ruídos cresceram, depois diminuíram, subiram a corrente, para logo se extinguirem. A caçada parecia terminada, ao menos por algum tempo.

 Eu, porém, sabia agora as probabilidades de socorro que podia achar entre aqueles bípedes.

 Continuei o meu caminho na direção do mar. O riacho de água quente ampliava-se

 em uma embocadura onde havia areia e pedras em confusão. Sobre estas uma grande quantidade de caranguejos e de animais de corpo comprido e de inúmeros pés principiaram a mexer-se à minha aproximação. Caminhei até à beira d`água, onde, enfim, me senti em segurança. Voltei-me para trás e, com as mãos sobre os

 quadris, contemplei a espessa vegetação em meio da qual o despenhadeiro vaporoso formava uma brecha encimada de névoa não muito densa. Mas eu estava excitado em demasia e - coisa real, de que só duvidarão aqueles que jamais conheceram o perigo - excessivamente desesperado para morrer.

 Então me ocorreu ao espírito que me restava ainda uma probabilidade. Enquanto Moreau, Montgomery e a sua respectiva turba de brutos, me perseguiam através da ilha, não poderia eu contornar a praia e ir ter ao recinto murado? e também tentar fazer uma marcha de flanco contra eles e então, com uma pedra arrancada ao muro pouco sólido, quebrar a fechadura da pequena porta e procurar apoderar-me de um canivete, de uma pistola, fosse o que fosse, para lhes fazer frente quando voltassem? Em todo caso, era uma probabilidade de vender caro a minha vida.

 Voltei-me para oeste, caminhando ao longo das vagas. A deslumbrante claridade do sol poente faiscava-me diante dos olhos; e a mansa maré do Pacífico subia em

 longas ondulações.

 Em breve a praia afastou-se para o sul e fiquei com o sol à direita. Depois, de

 imprevisto, vi ao longe, diante de mim, várias figuras emergirem uma a uma

 dentre os tojos: Moreau com o seu enorme cão cinzento, depois Montgomery e dois

 outros. A esta vista, detive-me.

 Avistaram-se e principiaram a gesticular e a caminhar para mim. Fiquei imóvel a

 vê-los aproximarem-se. Os dois homens-animais deitaram a correr para me cortarem a retirada na direção dos bosques interiores. Montgomery pôs-se a correr também, mas em linha reta para mim. Moreau seguia mais lentamente com o cão.

 Sacudi enfim a minha inação e, voltando em direção ao mar, entrei deliberadamente pela água a dentro. Percorri assim a distância de uns trinta metros antes da água me chegar até a cintura. Fácil me era ver os habitantes do fundo do mar fugirem à minha aproximação.

 

- Mas que está fazendo? gritou Montgomery.

 

 Voltei-me para trás, com metade do corpo embaixo d`água e olhei para eles.

 Montgomery detivera-se ofegante à beira da água. Após aquela corrida, o rosto se

 lhe apresentava de um vermelho intenso, os longos cabelos lisos tinha-os em

 desordem e viam-lhe, através do lábio inferior pendente, os dentes irregulares. Moreau vinha-se aproximando, com o rosto pálido e feições enérgicas, e o cão que trazia preso latiu ao ver-me. Os dois homens estavam munidos de sólidos chicotes. Mais acima, na orla do bosque de espinheiros, estavam os homens-animais à espreita: - Que estou fazendo? - Vou afogar-me.

 Montgomery e Moreau trocaram um olhar.

 

 - Por que? perguntou Moreau.

 

 - Porque prefiro isso a ser torturado pelos senhores.

 

 - Eu bem lhe tinha dito, advertiu Montgomery; e Moreau respondeu-lhe qualquer coisa em voz baixa.

 

- Por que é que julga que vou torturá-lo? perguntou Moreau.

 

- Pelo que tenho visto, respondi. E demais, aqueles - acolá! - Psiu! exclamou

 Moreau levantando a mão.

 

- Não me calarei, disse eu. Eles eram homens: que é que são agora? Comigo, ao

 menos, não se dará o mesmo.

 

 O meu olhar passou além da distância em que se achavam os meus dois interlocutores. Atrás deles, na praia, estavam M`ling, o criado de Montgomery, e

 um dos brutos vestidos de branco que haviam manobrado a chalupa. Mais longe

 ainda, à sombra das árvores, vi um pequeno Homem-Macaco, e, atrás dele, alguns

 vultos vagamente distintos.

 

- Quem são essas criaturas? exclamei, indicando-as com o dedo, e levantando

 progressivamente a voz para que eles me ouvissem. Eles eram homens - homens como

 nós, de quem o senhor fez uns entes abjetos, por meio de uma abominável

 ignomínia qualquer - homens aos quais o senhor fez seus escravos, e dos quais ainda se receia. - Vós todos que me ouvis, clamei, indicando Moreau, e

 esgoelando-me para ser ouvido pelos monstros, vós que me estais escutando, não

 vedes que esses homens vos temem, que têm medo de vós? Por que não vos atreveis?

 Sois numerosos...

 

 - Pelo amor de Deus, gritou Montgomery, cale-se Prendick! - Prendick! exclamou

 Moreau.

 

 Gritaram ambos ao mesmo tempo como para abafar-me a voz. Atrás deles, as faces curiosas dos monstros apareceram mais visivelmente, vi-lhes os olhos

 interrogadores, as mãos informes e pendentes, os ombros acanhados. Como eu

 imaginara, pareciam esforçar-se por compreender, por desenterrar do esquecimento qualquer coisa do seu passado humano.

 Continuei a vociferar mil coisas de que não me lembro mais: era fora de dúvida

 que Moreau e Montgomery podiam ser mortos; e que não havia razão para os temer.

 Tais foram as idéias que revelei àqueles monstros para a minha irremissível

 perdição. Vi o ente de olhos verdes e andrajos escuros, que tinha ido ao meu

 encontro, na tarde da minha chegada, vi-o sair do meio do arvoredo seguido de

 outros que buscavam ouvir melhor o que eu dizia.

 Finalmente, já sem forças para falar, calei-me.

 

- Escute-me um instante, disse Moreau com a sua voz firme e breve, e depois dirá

 tudo quanto quiser.

 

 - Deveras? exclamei.

 

 Moreau tossiu, refletiu alguns instantes, depois gritou: - Em latim, Prendick, em péssimo latim, em latim de cozinha, mas procure compreender. Hi non sunt homines, sunt animalia quoe nos habemus... vivesetado. Fabricação de

 humanidade. Hei de explicar-lhe. Mas saia daí.

 

- Esta é boa! exclamei sorrindo. Eles falam, constroem cabanas, cozinham. Eram

 homens, afinal. Vão cuidando que eu saia daqui.

 

- A água, justamente um pouco para além de onde o senhor se acha, é muito

 profunda... e abundam aí os tubarões.

 

- É o que me serve, respondi. Breve e boa. Daqui a pouco.

 

 - Espere.

 

 Tirou do bolso qualquer coisa que reluziu ao sol e atirou o objeto ao chão.

 

- É um revólver carregado, disse ele. Montgomery vai fazer o mesmo. Em seguida,

 vamos afastar-nos da praia até que o senhor avalie a distância que lhe convém.

 Então venha e apanhe os revólveres.

 

- É isso; e um dos dois tem consigo outro revólver.

 

- Peço-lhe que reflita um pouco, Prendick. Primeiramente, não lhe pedi que viesse para esta ilha; depois, demos-lhe uma droga a noite passada e a ocasião teria sido aproveitável. Demais a mais, agora que passou o seu primeiro terror e que pode melhor pesar as coisas - será possível que Montgomery lhe pareça pertencer ao tipo de que fala? Se o procuramos e o temos seguido é para o seu bem, é porque esta ilha está cheia de... fenômenos hostis. Porque razão havíamos de atirar contra o senhor, quando de modo próprio quer afogar-se?

 

- Porque razão lançaram a sua... gente contra mim, quando eu estava na cabana?

 

- Estávamos certos de alcançá-lo e tirá-lo do perigo. Depois disso, para sua salvação, perdemos voluntariamente a sua pista.

 

 Refleti. Aquilo parecia possível. Depois lembrou-me mais alguma coisa.

 

 - Mas o que vi... no recinto..., disse eu.

 

 - Era o jaguar.

 

- Ouça, Prendick, disse Montgomery. O senhor é um rematado imbecil. Saia da

 água, tome os revólveres e conversaremos. Nada mais podemos fazer do que o que

 estamos fazendo agora.

 

 Cumpre-me confessar que então, e, a bem dizer, sempre, eu desconfiava e tinha

 medo de Moreau. Mas Montgomery era um homem com quem eu me podia entender.

 

- Afastem-se da praia e levantem as mãos para o ar, acrescentei, depois de refletir.

 

- Isso não, disse Montgomery, fazendo com a cabeça um sinal explicativo. É falta

 de dignidade.

 

- Nesse caso, façam o favor de ir até onde estão as árvores.

 

- Que estúpidas cerimônias! disse Montgomery. Ambos se voltaram e ficaram de

 frente para os seis ou sete bípedes, que estavam de pé ao sol, móveis, sólidos,

 tendo uma sombra e, apesar disso, tão incrivelmente irreais. Montgomery fez

 estalar o chicote e, voltando-se todos ao mesmo tempo, eles se puseram em

 debandada por baixo das árvores. Quando Moreau e Montgomery se achavam a uma distância que julguei conveniente, voltei para a praia, apanhei os revólveres e

 examinei-os. Para certificar-me de que não se tratava de algum subterfúgio,

 atirei sobre um bocado de lava arredondada e tive o prazer de ver a pedra

 pulverizada e a areia coberta de fragmentos e de chumbo. Todavia, hesitei ainda

 um momento.

 

- Aceito o risco, disse por fim, e com um revólver em cada mão afastei-me da

 praia para me reunir a eles.

 

- Assim é melhor, disse Moreau sem afetação. Com todas essas coisas o senhor

 estragou a melhor parte do meu dia.

 

 E com um ar desdenhoso, que me humilhou, Montgomery e ele principiaram a

 caminhar em silêncio diante de mim.

 O bando de monstros, ainda surpresos, tinha-se afastado por baixo das árvores.

 Passei por diante deles o mais tranqüilamente que me foi possível. Um deles fez

 um gesto como para me seguir, mas desistiu, assim que Montgomery fez estalar o

 chicote. Os mais sem ruído, seguiram-nos com os olhos. Eles podiam de certo ter

 sido animais; eu, porém, jamais tinha visto um animal esforçar-se para pensar.

 

 

 

 

 - E agora, Prendick, vou explicar-me, disse o Doutor Moreau, assim que acabamos

 de comer e beber. Devo confessar que o senhor é, na verdade, o hóspede mais

 exigente que tenho tido em minha vida e previno-o que é a última coisa que faço

 para lhe ser agradável. Pode à sua vontade ameaçar suicidar-se; não farei mais

 um só movimento, ainda mesmo que isso me pudesse causar algum desgosto.

 

 Assentou-se na poltrona de molas tendo um cigarro entre os dedos pálidos e

 flexíveis. A luz de uma lâmpada suspensa caía-lhe sobre os cabelos brancos; pela

 pequena janela sem vidros o seu olhar contemplava as estrelas. Eu estava sentado

 o mais longe dele que me era possível; a mesa estava entre nós e os revólveres

 ao alcance da mão. Montgomery não se achava presente. Não me era ainda aliás

 muito agradável achar-me com os dois encerrado dentro daquele estreito aposento.

 

- Está disposto a admitir que o ente humano vivissetado, como lhe chamou, não passa, afinal, de um simples jaguar? disse Moreau.

 

 Ele me havia conduzido ao interior do recinto fechado para que eu pudesse

 certificar-me bem do fato.

 

- É o jaguar, respondi, o jaguar ainda vivo, mas retalhado e mutilado de modo

 tal que todo o meu desejo é nunca mais ver carne viva em tal estado. De todos os

 objetos...

 

- Isso não importa! interrompeu Moreau. Poupe-me ao menos esses sentimentos

 generosos. Montgomery era a mesma coisa. Então está admitido que é o jaguar.

 Agora fique quieto, enquanto lhe vou fazer a minha preleção sobre fisiologia.

 

 Dito isto, no tom de um homem soberanamente enfastiado, mas entusiasmando-se a pouco e pouco, principiou a explicar-me os seus trabalhos. Exprimia-se de um

 modo simples e convincente. De vez em quando, notei-lhe uma leve acentuação

 irônica na maneira de falar, e não tardou que me sentisse rubro de vergonha ante

 as nossas respectivas posições.

 Não eram homens, nunca tinham sido homens, as criaturas que eu tinha visto. Eram animais, - animais humanizados - triunfo da vivisseção.

 

- O senhor esquece-se de tudo quanto um hábil vivissecador pode fazer dos entes

 vivos, dizia Moreau. Da minha parte, ignoro absolutamente a razão porque ainda

 não foram feitas as coisas que aqui tenho experimentado. Não há dúvida de que se

 têm tentado alguns trabalhos - amputações, ressecações, excisões. Sabe

 provavelmente que o estrabismo pode ser produzido ou curado pela cirurgia. Nos

 casos de ablação, temos todas as espécies de transformações secretoriais, de

 perturbações orgânicas, de modificações das paixões, de mudança na sensação dos

 tecidos. Tenho certeza de que já ouviu falar de tudo isso?

 

- Sem dúvida, respondi. Mas aqueles repugnantes bípedes que...

 

- Cada coisa no seu tempo, disse ele com um gesto tranqüilizador. Estou apenas

 principiando. Esses são casos ordinários de transformação. A cirurgia pode fazer

 coisa muito melhor. Pode-se construir tão facilmente como se destrói, ou como se

 transforma. Talvez tivesse ouvido falar de uma operação, assas freqüente em

 cirurgia, a que se recorre no caso de destruição ou eliminação do nariz.

 Retira-se da fronte um fragmento de pele, coloca-se no lugar do nariz e ela se

 adapta e adere ao seu novo lugar. É uma espécie de enxerto de uma parte de um

 animal sobre uma outra parte qualquer desse mesmo animal. Pode-se igualmente

 enxertar uma parte morta, recentemente tirada de outro animal. É o que acontece

 com os dentes, por exemplo. O enxerto da pele e do osso feito para facilitar a

 cura. O cirurgião coloca no meio da ferida pedaços de pele cortados em outro

 animal, ou fragmentos de ossos de uma vítima morta recentemente. Já ouviu talvez falar do esporão de galo que Hunter havia enxertado no pescoço de um touro. E os ratos de tromba da Algéria, devo também mencioná-los - monstros

 manufaturados por meio de um fragmento de cauda de um rato vulgar transplantado por uma incisão feita no focinho e continuando a viver nessa nova posição.

 

- Monstros manufaturados! Quer então dizer que...

 

- Sim. Aquelas criaturas, que o senhor viu, são animais talhados e modelados em

 novas formas. Foi a isto - estuda da plasticidade das formas vivas - que

 consagrei toda a minha vida. Tenho estado, durante anos e anos, a adquirir

 gradativamente novos conhecimentos. Veja que está horrorizado, e todavia não lhe

 digo nada de novo. Tudo isto se encontra de há muito na superfície da anatomia

 prática, mas o que é verdade é que ninguém ainda teve a temeridade de pô-lo

 prática. Não é somente a forma exterior do animal que posso mudar: a fisionomia,

 o ritmo químico da criatura, podem também sofrer uma modificação duradoura, do

 que são exemplos, que lhe são perfeitamente familiares, a vacinação e outros

 métodos de inoculação de matérias-vivas ou mortas. Uma operação similar é a

 transfusão do sangue, e, a dizer-lhe a verdade, foi por aí que comecei. Esses

 casos são freqüentes. Menos comuns, mas por ventura muito mais ousadas, eram as operações daqueles patrícios da idade média que fabricavam anões, mendigos

 aleijados e monstros de feira; vestígios dessa arte existem ainda nas manipulações preliminares por que passam os saltimbancos e os acrobatas. Tudo isso menciona Victor Hugo no Homme qui Rit... Mas o senhor compreende talvez melhor o que quero dizer. Está principiando a ver que é muito possível transplantar um tecido de uma parte qualquer de um animal para outra, ou de um animal para outro animal, e também modificar as suas reações químicas e os seus métodos de crescimento, retocar as articulações dos seus membros, e, em suma, mudá-lo na sua mais íntima estrutura.

 Contudo, este maravilhoso ramo de conhecimentos nunca tinha sido cultivado, como um fim e sistematicamente, pelos investigadores modernos, até eu me dedicar a ele. Diversas coisas desse gênero têm sido indicadas em algumas tentativas cirúrgicas; a maior parte dos exemplos análogos que lhe ocorrerem ao espírito, têm sido demonstrados, por assim dizer, acidentalmente - por tiranos, por

 criminosos, pelos criadores de cavalos e cães, por toda a sorte de ignorantes e

 de ineptos que trabalham para obterem resultados egoístas e imediatos. Fui eu o

 primeiro que agitei esta questão, aparelhado com a cirurgia anti-séptica e

 possuindo um conhecimento real da ciência das leis naturais.

 É de crer que isso fosse praticado em segredo antes. Entes tais como os irmãos

 siameses... E dentro dos cárceres da Inquisição... Sem dúvida, o fim principal

 que tinham em vista era a tortura artística, mas alguns dos inquisidores, pelo

 menos, deviam ter uma vaga curiosidade científica...

 

 - Mas, interrompi, aquelas coisas, aqueles animais falam.

 

 Moreau respondeu-me confirmando que com efeito eles falavam e continuou a

 demonstrar que as possibilidades da vivisseção não se limitam a uma simples

 metamorfose física. O porco pode receber uma educação. A estrutura mental é

 ainda menos determinada que a estrutura corporal. Na ciência do hipnotismo, que dia a dia mais progride e se desenvolve, achamos a possibilidade prometida de

 substituir instintos atávicos inveterados por sugestões novas, enxertadas em idéias hereditárias e fixas, ou tomando-lhes o lugar. A bem dizer, grande parte do que nós chamamos a educação moral é uma modificação artificial semelhante àquela, e uma corrupção do instinto combativo; a pugnacidade se canaliza em corajoso sacrifício de si mesmo e a sexualidade suprimida, em emoção religiosa.

 A grande diferença entre o homem e o macaco reside na laringe, disse ele, na capacidade de formar delicadamente diferentes sons-símbolos pelos quais se pode

 sustentar o pensamento.

 Nesse ponto, eu não era da opinião dele, mas, com uma certa maneira descortês, ele se recusou a atender à minha objeção. Repetiu que o fato era exato e continuou a expor os seus trabalhos. Perguntei-lhe por que razão tinha tomado por modelo a forma humana. Parecia-me então, como ainda hoje, que tinha havido nessa escolha uma inexplicável perversidade.

 Ele confessou que tinha escolhido essa forma por acaso.

 

- Ser-me-ia igualmente possível transformar carneiros em lamas, e lamas em

 carneiros. Suponho que existe na forma humana qualquer coisa que fala ao gosto

 artístico do espírito mais poderosamente que qualquer outra forma animal. Não me

 limito, porém, a fabricar homens.

 

 - Uma ou duas vezes...

 

 Calou-se por um momento.

 

- Estes anos! com que rapidez têm decorrido! E eis que perdi um dia para lhe salvar a vida e estou perdendo mais uma hora para lhe dar explicações.

 

- Entretanto, disse eu, não compreendo ainda. Qual é a sua justificação para infligir todos esses sofrimentos? A única coisa que, a meu ver, poderia desculpar a vivisseção seria uma aplicação qualquer...

 

- Exatamente, disse ele. Mas, como vê, a minha constituição é diferente da sua.

 Estamos colocados em pontos de vista muito diversos. O senhor é materialista.

 

- Não sou materialista, interrompi com veemência.

 

- No meu ponto de vista, no meu ponto de vista. Porquanto é precisamente nessa

 questão de sofrimento que estamos em contradição. Enquanto o tornar doente o

 sofrimento que se vê, ou se ouve; enquanto os seus próprios sofrimentos o

 demoverem, enquanto a dor for a base das suas idéias sobre o mal, sobre o pecado, o senhor será um animal, digo-lhe eu, pensando um pouco menos confusamente do que um animal sente. Essa dor...

 

 Fiz um gesto de ombros como demonstrando a minha impaciência ante semelhantes sofismas.

 

- Mas é tão pouca coisa, prosseguiu ele. Um espírito realmente aberto ao que revela a ciência, deve reconhecer que isso é muito pouca coisa. É possível que, a não ser neste pequeno planeta, neste átomo de poeira cósmica, invisível à mais

 próxima estrela, é bem possível que em mais nenhuma outra parte se encontre o

 que se chama sofrimento. As leis para que nos encaminhamos às apalpadelas...

 Demais, aqui mesmo sobre a terra, mesmo entre tudo quanto vive, que vem a ser a dor?

 

 Ao falar, tirou do bolso um pequeno canivete, abriu-lhe uma das lâminas, chegou

 à cadeira de modo que eu lhe pudesse ver a perna; depois, escolhendo o lugar,

 enterrou propositadamente a lâmina pela carne a dentro e tirou-a.

 

- Provavelmente já viu fazer isto. Não se sente mais do que fosse uma picada de

 alfinete. Que se conclui daí? A capacidade de sofrer não é necessária ao músculo e não se acha nele; só na pele é que é necessária, e, na coxa, apenas aqui e ali se encontra um ponto capaz de sentir a dor. A dor nada mais é do que o nosso conselheiro médico íntimo para nos avisar e nos estimular. Nem toda carne viva é

 suscetível de dor, nem tampouco os nervos sensacionais. Não há nenhum vestígio de sofrimento real nas sensações do nervo óptico. Se o senhor ferir o nervo óptico, apenas verá passarem-lhe por diante dos olhos faixas de luz, assim como uma lesão do nervo auditivo se manifesta simplesmente por um zumbido nos ouvidos. Os vegetais não sentem dor alguma; os animais inferiores - é provável que animais do gênero das astérias ou do camarão, não sintam dor. Então, quanto aos homens, quanto mais inteligentes se tornarem e quanto mais inteligentemente trabalharem para o seu bem-estar, menos necessário lhes será o aguilhão que os adverte do perigo. Ainda não vi uma coisa inútil que tarde ou cedo não venha a ser desarraigada e suprimida da existência - não lhe parece? Ora, a dor torna-se inútil.

 Além de que, eu sou um homem religioso, Prendick, como deve sê-lo todo o homem sensato. É de presumir que me considere um pouco mais informado que o senhor, no que concerne aos métodos do Criador deste mundo - visto como toda a minha vida tenho procurado as suas leis ao meu modo, ao passo que o senhor, creio, limita-se a colecionar borboletas. E posso provar-lhe que o prazer e a dor nada têm que ver com o céu ou com o inferno. O prazer e a dor!... Ora! Que é o êxtase do teólogo, senão a houri de Mahomet nas trevas? Esta importância que os homens e as mulheres dão ao prazer, Prendick, é o sinal da animalidade que neles está, é o estigma do animal de que eles descendem. O sofrimento! O prazer e a dor!...

 Não os sentimos senão enquanto nos deixamos rolar pela poeira.

 Bem vê que continuei as minhas pesquisas na estrada a que elas me levaram. É este o único modo que conheço para se conduzirem pesquisas. Proponho uma questão, invento algum método para obter uma resposta e, obtendo... uma nova dúvida. Qual será possível, isto ou aquilo? Não pode imaginar o que isto significa para uminvestigador, que paixão intelectual se apodera dele. Não pode imaginar as

 estranhas delícias desses desejos intelectuais. A coisa que ele tem diante de si não é um animal, uma criatura como ele, mas sim um problema. O sofrimento por simpatia - tudo o que sei a esse respeito, é a recordação de uma coisa que sofri há muitos anos. Eu queria - era esse o meu único desejo - encontrar o limite extremo de plasticidade em uma forma viva.

 

- Mas, retorqui, isto é uma coisa abominável...

 

- Até hoje não me tenho absolutamente preocupado com a ética da matéria. O

 estudo da Natureza torna o homem pelo menos tão inflexível como a própria

 natureza. Prossegui nas minhas investigações sem me lembrar de mais nada senão

 da questão que me propusera resolver, e os materiais... estão acolá, nas cabanas... Há perto de onze anos que para aqui viemos, Montgomery e eu, com seis caledônios. Lembro-me ainda como se fosse hoje da impressão que me causou a

 tranqüilidade da ilha verdejante circundada pelo oceano. O lugar parecia esperar-me. Desembarcaram-se as provisões e construiu-se a casa. Os caledônios dispuseram as suas cabanas perto da ribanceira. Principiei a trabalhar aqui com os materiais trazidos. A princípio aconteceram coisas bem desagradáveis. Comecei

 as experiências com um carneiro, mas, após um dia e meio de trabalho, o meu

 bisturi resvalou e o animal morreu; arranjei outro carneiro; fiz dele um objeto de dor e de medo e liguei-lhe os ferimentos para que sarasse. Uma vez terminado, pareceu-me perfeitamente humano, mas, quando tornei a vê-lo, fiquei descontente.

 Ele lembrava-se de mim, experimentava um terror indizível e não tinha mais espírito do que um carneiro. Quanto mais eu olhava para ele, mais disforme ele me parecia, e por fim pus termo às misérias daquele monstro. Esses animais sem coragem, entes tímidos e sensíveis, sem a mínima centelha de energia combativa para afrontar o sofrimento, não prestam para com eles se manipularem homens.

 Depois, tomei um gorila de minha propriedade, e com ele, trabalhando com o

 máximo cuidado, vencendo cada novo obstáculo, um após outro, fiz o meu primeiro

 homem. Durante uma semana inteira, dia e noite, modelei-lo; era sobretudo o

 cérebro que precisava de ser muito bem retocado: foi-me preciso acrescentar-lhe

 muita coisa e mudá-lo muito. Quando acabei, e o vi diante de mim, coberto de

 ligaduras, imóvel, achei que era um belo espécime do tipo negróide. Não o deixei

 senão depois que me certifiquei de que sobreviveria, e vim ter a este aposento,

 onde encontrei Montgomery em um estado bastante semelhante ao seu. Ele ouvira

 alguns dos gritos do animal à proporção que ele se ia humanizando, gritos como

 aqueles que tanto o impressionaram. A princípio eu não o tinha admitido

 inteiramente nas minhas confidências. Os caledônios, por seu turno, andavam

 inquietos e a minha simples vista os afugentava. Recobrei até certo ponto a

 confiança de Montgomery, mas tivemos a maior dificuldade em impedir que os

 caledônios desertassem. Por fim, conseguiram-no e assim perdemos o iate. Levei

 dias sem conta a fazer a educação do meu bruto - ao todo três ou quatro meses.

 Ensinei-lhe os rudimentos do inglês, dei-lhe uma idéia da numeração, e até lhe

 ensinei o alfabeto. Ele, porém, tinha a compreensão curta - se bem que eu tenha

 visto alguns idiotas mais curtos certamente. Principiou sem a mínima idéia

 anterior à sua nova condição, não lhe ficara no espírito a menor lembrança do

 que havia sido. Quando as cicatrizes ficaram completamente fechadas, quando não

 sentiu mais dificuldade em mover-se nem sensação alguma de dor, e depois de já

 poder pronunciar algumas palavras, levei-o para junto dos caledônios e lhe

 apresentei como um novo companheiro.

 Ao princípio tiveram-lhe um medo horrível - o que me ofendeu um tanto, pois eu

 experimentava um certo orgulho da minha obra - mas as suas maneiras pareciam tão brandas, e ele era tão servil que no fim de pouco tempo foi aceito por todos e

 eles tomaram a si a sua educação. Aprendia então com rapidez, imitando tudo,

 apropriando-se de tudo, e até chegou a construir uma cabana, mais bem feita, assim me pareceu, do que as deles. Havia um entre eles, com tendências a

 missionário, que lhe ensinou a ler, ou pelo menos a soletrar, deu-lhe algumas

 idéias rudimentares de moralidade, mas parece que os hábitos do animal não eram

 o que se pudesse chamar uma coisa das mais apreciáveis.

 Depois disso, repousei alguns dias, e veio-me à idéia redigir o caso por inteiro para despertar os fisiologistas europeus. Mas, uma vez, encontrei a minha criatura empoleirada em uma árvore, pairando e fazendo caretas a dois dos caledônios que a tinham contrariado. Ameacei-a e censurei-lhe tal procedimento impróprio de um homem, procurando despertar nele o sentimento do pejo, e voltei aqui, resolvido a tentar melhor resultado antes de dar a conhecer as conseqüências dos meus estudos. E fiz melhor; mas, seja pelo que for, os brutos retrogradam, a bestialidade indômita, vai ganhando terreno dia a dia. Tenho tenção de fazer melhor ainda. E hei de consegui-lo. Este jaguar...

 Mas voltemos à narração. Todos os caledônios já morreram. Um caiu por cima da borda da chalupa; outro morreu de um ferimento no pé que envenenou, não sei de

 que modo, com o caldo de uma planta. Três fugiram com o iate e afogaram-se, assim o suponho e espero. O último... foi morto. Contudo - eu os substituí.

 Montgomery portou-se a princípio como o senhor estava decidido a fazê-lo,

 depois...

 

- Que foi feito do outro, perguntei com vivacidade, do outro caledônio que foi

 morto?

 

- O que é fato é que, depois de ter fabricado certo número de criaturas humanas,

 eu fiz um... Hesitou.

 

- E então? disse eu.

 

 - Ele foi morto.

 

- Não compreendo. Quer dizer que...

 

- Ele matou o caledônio... sim. Matou várias outras coisas que apanhou. Nós levamos dois dias a persegui-lo. Tinha sido solto por acidente - não era intenção minha pô-lo em liberdade. Ainda não estava concluído. Era simplesmente uma experiência. Uma coisa em membros que se contorcia no meio do chão à maneira

 de uma serpente. Aquele monstro tinha uma força imensa e a dor o tornara

 furioso; avançava para diante com grande rapidez; dir-se-ia um golfinho a nadar,

 ao vê-lo rebolar no chão com tamanha celeridade de movimentos. Ocultou-se no

 bosque durante alguns dias, investindo contra tudo o que encontrava, até que lhe

 saímos no encalce; então arrastou-se para a parte norte da ilha, e tivemos que nos dividir para sitiá-lo. Montgomery tinha insistido para se unir a mim. O

 caledônio tinha uma carabina e quando encontramos o seu corpo, o cabo da arma

 estava torcido em forma de S e quase atravessado de lado a lado por dentadas...

 Montgomery derribou o monstro com um tiro de espingarda... Desde então, tenho-me limitado ao ideal da humanidade... exceto em coisas pequenas.

 Calou-se. Eu conservei-me silencioso, contemplando-lhe o semblante.

 

 - E, pois, continuou ele, durante vinte anos inteiros - contando nove anos na

 Inglaterra - tenho trabalhado, e há ainda o que quer que seja, em tudo o que

 faço, que frustra os meus planos, que me descontenta, que me provoca a novas

 tentativas. Algumas vezes excedo o meu nível, outras, desço abaixo dele, mas

 sempre fico longe das coisas que sonho. A forma humana posso obtê-la agora,

 quase que com facilidade, seja ela flexível e graciosa, seja pesada e possante;

 as mais das vezes, porém, as mãos e as unhas intimidam-se sobremaneira - estas

 últimas são apêndices dolorosos que não me atrevo a modelar muito livremente.

 Mas é o enxerto,a transformação sutil que é preciso sujeitar o cérebro, que

 maiores dificuldades me apresenta. Não raro a inteligência se conserva

 singularmente primitiva, com inexplicáveis lacunas, vácuos inesperados. E não posso atingir, em qualquer parte - não posso determinar onde - na sede das

 emoções. São necessidades, instintos, desejos que prejudicam a humanidade, um

 estranho reservatório oculto, que irrompe subitamente e inunda a individualidade

 toda inteira da criatura: de cólera, de ódio ou de temor. Aqueles entes que

 modelei lhe pareceram esquisitos e perigosos assim que principiou a observá-los,

 mas a mim, assim que os acabei, pareceram-me ser incontestavelmente uns seres

 humanos. Só depois de passado algum tempo, depois que os observo mais

 detidamente, é que desaparece a minha convicção. Primeiramente, um leve cunho

 animal, depois outro, vem vindo à superfície e me aparece em flagrante. Mas

 ainda hei de vencer todos esses obstáculos. Todas as vezes que mergulho uma

 criatura viva nesse banho de dor cruciante, digo comigo mesmo: desta vez, toda a

 animalidade nele existente será aniquilada; desta vez, vou criar com as minhas

 mãos uma criatura de razão. Afinal de contas, que são dez anos? Foram precisos

 centenas de milhares de anos para fazer o homem.

 Pareceu mergulhado em pensamentos profundos.

 

- Mas estou próximo da meta, hei de saber o segredo. Este jaguar que eu...

 

 Calou-se novamente.

 

- E eles retrogradam, prosseguiu. Assim que sai de sob as minhas mãos, o animal,

 o bruto principia a reaparecer, e reivindicar os seus direitos...

 

 Fez-se outra longa pausa.

 

- Então, disse eu, manda depois para as tocas do despenhadeiro os monstros que

 fabrica?

 

- Vão para lá. Solto-os, quando principio a pressentir predominar neles o

 animal, e em breve lá vão ter. Todos eles temem sobremaneira esta casa e a minha

 pessoa. Há entre eles uma paródia da humanidade. Montgomery sabe qualquer coisa a esse respeito, porque imiscui-se nos negócios deles. Adaptou ao nosso serviço um ou dois de entre eles. Envergonha-se disso, mas creio que tem uma espécie de afeição a alguns daqueles entes. Isso é lá com ele, não me compete intervir.

 Todos eles me dão uma impressão de projeto malogrado e fico desgostoso. Não me

 interesso absolutamente por nenhum deles. Creio que seguem as regras que lhes

 indicou o missionário caledônio e que põem em prática uma espécie de imitação

 irrisória de vida racional - míseros brutos! Têm qualquer coisa a que chamam

 Lei, cantam melopéias em que proclamam que tudo é para ele. Constroem eles

 mesmos os seus covis, colhem frutas e arrancam ervas - até mesmo unem-se em

 casais. Todavia, em tudo isso não se me depara outra coisa, mesmo nas suas

 almas, senão almas de animais, de animais que perecem - com todas as

 necessidades de viver e de satisfazer-se... No entanto, eles são bem extraordinários - complexos como tudo quanto vive. Há neles uma espécie de

 tendência para qualquer coisa superior - formada em parte de vaidade, em parte

 de emoção cruel supérflua, em parte de curiosidade inculta. É um puro arremedo,

 uma zombaria... Tenho alguma esperança neste jaguar. Modelei-lhe a cabeça e o

 cérebro com penoso trabalho...

 E agora, continuou ele - levantando-se após um longo intervalo de silêncio, durante o qual ambos nos absorvemos nos próprios pensamentos - que diz de tudo

 isto? Ainda tem medo de mim?

 

 Olhei para ele e vi unicamente um homem pálido, de cabelos brancos e olhar

 calmo. Sob essa notável serenidade, o aspecto de quase beleza, resultante da sua

 inalterável tranqüilidade e da sua magnífica constituição física, ele poderia

 fazer boa figura entre cem outros velhos cavalheiros de aparência respeitável.

 Para responder à sua segunda pergunta, apresentei-lhe o revólver.

 

 - Fique com eles, disse, dissimulando um bocejo.

 

 Ele ergueu-se, considerou-me um momento e sorriu.

 

 - O senhor teve dois dias bem preenchidos.

 

 Ficou um instante pensativo e saiu pela porta interior. Imediatamente fui dar uma volta à chave da porta exterior.

 Tornei a sentar-me, e ali fiquei durante algum tempo, mergulhado em um estado de completa apatia, como que uma espécie de entorpecimento, tão fatigado,

 mentalmente, fisicamente e emocionalmente, que não podia levar os meus

 pensamentos além do ponto aonde ele os tinha conduzido. A janela parecia

 contemplar-me como um grande olho negro. Finalmente, fazendo um esforço, apaguei a lâmpada e estendi-me na rede. Em breve, dormia profundamente.

 

 

 

 Despertei muito cedo, tendo ainda no espírito, clara e nítida, a explicação de Moreau. Tendo deixado a rede, fui até a porta afim de certificar-me de que

 estava fechada à chave. Em seguida puxei pela tranca da janela que estava

 solidamente fixa. Sabendo que aquelas criaturas de aspecto humano não eram na

 realidade mais que uns monstros bestiais, grotescas paródias da humanidade,

 senti uma vaga inquietação pelo que eram capazes de fazer, e esta impressão era

 bem pior que um temor definido. Bateram à porta e ouvi a voz aglutinada de

 M`ling a falar-me. Meti no bolso um dos revólveres, conservando o outro na mão,

 e fui abri-la.

 

- Bom dia, sior, disse ele, trazendo, com o almoço habitual de ervas ensopadas,

 um coelho mal cozido. Acompanhava-o Montgomery. O seu olhar vago notou a posição do meu braço e ele riu-se de soslaio.

 

 Nesse dia, o jaguar ficava em repouso para apressar a cicatrização, mas Moreau,

 cujos hábitos eram singularmente solitários, não se reuniu a nós. Incitei a

 conversação com Montgomery, no intuito de esclarecer um pouco as minhas idéias

 em relação à vida que levavam os bípedes do navio. Desejava imensamente saber,

 em particular, o que impedia que aqueles monstros investissem todos contra

 Moreau e Montgomery e se despedaçassem uns aos outros.

 Explicou-me ele que a relativa segurança, de que eles e Moreau gostavam, provinha da cerebralidade limitada que caracterizava aqueles monstros. A

 despeito da inteligência ampliada e da tendência retrograda para os instintos animais, eles possuíam certas idéias fixas, que Moreau lhes implantara no espírito, as quais limitavam-lhes em absoluto a imaginação. Estavam, por assim dizer, hipnotizados, tinham-lhes dito que certas coisas eram impossíveis, que outras não se deviam fazer, e essas proibições se lhes entremeavam na contextura do espírito até aniquilarem toda e qualquer possibilidade de desobediência ou de discussão. Certas coisas, porém, para as quais o antigo instinto estava em conflito com as intenções de Moreau, se achavam menos estáveis. Uma série de proposições a que chamavam a Lei, - e cuja recitação já eu tinha ouvido - pelejavam naqueles cérebros contra os apetites profundamente arraigados e sempre rebeldes da natureza animal daqueles entes. Repetiam constantemente aquela lei e constantemente a transgrediam. Montgomery e Moreau exerciam uma vigilância especial para os deixar ignorar o sabor do sangue. Eles temiam as inevitáveis

 sugestões daquele sabor.

 Disse-me Montgomery que o jugo da lei, especialmente entre os monstros felinos,

 enfraquecia singularmente ao cair da noite; o animal neles existente, predominava então, ao crepúsculo; agitava-os um espírito de aventura que não lhes viria à idéia durante o dia. Foi esse o motivo por que me vi perseguido pelo Homem-Leopardo, na tarde da minha chegada. Mas, nos primeiros dias da minha estadia na ilha, eles não ousavam infringir a lei senão furtivamente e depois do pôr do sol; durante o dia, posto que latente, havia um respeito geral pelas proibições.

 É aqui talvez o momento de dar alguns detalhes gerais e apresentar alguns fatos

 relativos à ilha e aos seus habitantes. Essa ilha, de contornos irregulares e baixa em relação ao nível do mar, tinha uma superfície total de oito a dez quilômetros quadrados, mais ou menos. Era de origem vulcânica e rodeada por três lados de recifes de coral. Algumas irrupções de gazes inflamados na parte norte, e uma nascente de água quente eram os únicos vestígios sobreviventes das forças que lhe tinham sido origem. De vez em vez sentia-se um tênue prenúncio de tremor de terra, e algumas vezes as inofensivas espirais de fumaça que subiam para o alto, tornavam-se tumultuosas ao impulso de violentos jatos de vapores. Mas não passava disto. Montgomery informou-se de que a população elevava-se então a mais de sessenta daquelas criações de Moreau, sem contar as monstruosidades menos consideráveis que viviam ocultas nas brenhas mais espessas dos bosques e não tinham forma humana. Ele tinha fabricado já, ao todo, cento e vinte, mas um

 grande número delas tinham morrido, e outras, como o monstro que se rolava pelo

 chão, de que ele me tinha falado, tinham acabado tragicamente. E resposta a uma

 pergunta que lhe fiz, Montgomery disse-me que deles nasciam filhos, mas que, em

 geral, não viviam, ou não podiam por nenhum sinal ter herdado os característicos

 humanos impostos aos pais. Quando sobreviviam, Moreau tomava-os para lhes

 imprimir uma forma humana. As fêmeas eram menos numerosas que os machos e

 estavam expostas a mil perseguições sorrateiras, malogrado a monogamia prescrita pela Lei.

 Ser-me-ia impossível descrever em detalhe esses animais homens - não tenho para

 isso os olhos exercitados e, infelizmente, não sei desenhar. O que havia porventura mais palpável no seu aspecto geral era uma desproporção enorme entre as pernas e comprimento do corpo; e entretanto, é tão relativa a nossa concepção da graça, que o meu olhar habituou-se a ver aquela conformação de corpo, e por fim quase concordei com eles em que as minhas longas pernas eram bem desairosas.

 Um outro ponto importante era a posição da cabeça para diante e a curvatura

 acentuada e bestial da espinha. Mesmo ao Homem-Macaco faltava-lhe esse

 arqueamento das costas que torna tão graciosa a forma humana. A maior parte

 daqueles bípedes tinham os ombros desengraçadamente arredondados e os braços tão curtos que as mãos lhes batiam pelos quadris. Alguns deles apenas eram

 visivelmente peludos - pelo menos enquanto durou a minha estadia na ilha.

 Outra deformidade, entre as mais evidentes, era a das caras, que, quase no total, eram prognatas, mal conformadas na articulação das maxilas, perto das orelhas, com narizes largos e protuberantes, uma cabeleira muito espessa, arrepiada, e, não raro, olhos estranhamente coloridos ou estranhamente colocados. Nenhum desses bípedes sabia rir, se bem que ao Homem-Macaco era acessível uma espécie de risada escarnecedora não muito acentuada. Excetuados esses caracteres gerais, as cabeças tinham poucos traços comuns; cada uma conservava as qualidades da sua espécie particular: o cunho humano desnaturava, sem o dissimular, o leopardo, o touro, a porca, o animal ou os animais diferentes com os quais a criatura tinha sido manufaturada. As vozes também variavam em extremo. As mãos eram sempre mal formadas, se bem que eu por vezes tivesse ficado surpreendido de lhes notar um característico humano imprevisto; ou então eram munidas de unhas esquisitas, ou desprovidas de sensibilidade tátil.

 Os dois bípedes mais formidáveis eram o Homem-Leopardo e uma criatura meio hiena e meio porco. Os de maiores dimensões eram os três Homens-Touros que remavam na chalupa. Depois, vinham logo em seguida o homem de pelo prateado que era o catequista da Lei, M`ling, uma espécie de Sátiro, formado de macaco e de cabra.

 Havia mais três Homens-Porcos e uma Mulher-Porco, uma Mulher-Rinoceronte

 Rinoceronte e várias outras fêmeas, cujas origens não averigüei, vários

 Homens-Lobos, um Homem-Urso e Touro e um Homem-Cão de São Bernardo. Já

 descrevi o Homem-Macaco, e havia também uma mulher velha, particularmente

 detestável e mal cheirosa, e que desde o princípio me causou horror. Ela era, ao que se dizia, uma fanática da Lei. Além dessas, havia um certo número de criaturas mais pequenas.

 A princípio senti uma invencível repugnância por todos aqueles entes, levado

 pela impressão muito intensa de que eles eram ainda brutos demais;

 insensivelmente, porém, fui-me habituando a eles, e, aliás fui nisso em grande

 parte influenciado pela atitude de Montgomery para com eles. Vivia há tanto

 tempo em companhia deles que afinal viera a considerá-los quase como entes

 humanos normais - o tempo da sua juventude em Londres se lhe afigurava, já

 então, um passado glorioso que nunca mais voltaria. Somente uma vez por ano, ia

 até Arisca, para fazer negócio com o agente de Moreau que, nessa cidade, fazia

 comércio de animais. Certo não seria naquela aldeia marítima de mestiços

 espanhóis que ele iria encontrar belos tipos de criaturas humanas, e os homens,

 a bordo do navio, lhe pareciam, à primeira vista, tão estranhos, como o eram

 para mim os homens-animais da ilha - as pernas desmesuradamente longas, a face

 achatada, a testa proeminente, desconfiados, traiçoeiros, insensíveis. De feito,

 ele não gostava dos homens, e o coração se lhe abrandara a meu favor, pensava

 ele, pelo fato de me ter salvo a vida.

 Afigurou-me até que ele tinha uma espécie de benevolência dissimulada por

 alguns daqueles brutos metamorfoseados, uma simpatia perversa para com algumas das suas maneiras de proceder, que primeiramente procurou ocultar-me.

 M`ling, o bípede de cara negra, seu criado, o primeiros dos monstros que se me

 deparara, não vivia com os outros na extremidade da ilha, mas sim em uma espécie de canil encostado ao recinto fechado. Não era tão inteligente como o

 Homem-Macaco, porém muito mais dócil, e, de entre todos os monstros, era ele

 quem tinha o aspecto mais humano. Montgomery ensinara-lhe a preparar a comida e, em uma palavra, a desempenhar-se de todos os pequenos cuidados domésticos que dele se requeriam. Era um exemplar complexo da horrível habilidade de Moreau, um urso mesclado de cão e de boi, e uma das suas criaturas mais laboriosamente compostas. M`ling tinha para com Montgomery uma dedicação e uma ternura fora do comum; algumas vezes este notava-o, acariciava-o dando-lhe nomes meio motejadores e meio pilhéricos, pelo que o pobre ente dava saltos de alegria; outras vezes, Montgomery, depois de ter absorvido algumas doses de uísque, dava-lhe pontapés e murros, atirava-lhe pedras e arremessava para cima dele foguetes acesos. Mas, fosse bem, ou fosse mal tratado, M`ling preferia estar

 junto dele a tudo o mais.

 Assim pois, habituei-me àquelas criaturas, de modo que inúmeras particularidades

 que primeiro me tinham parecido insensatas e repugnantes tornavam-se rapidamente naturais e vulgares. Tudo aquilo de que compõe a existência toma o seu colorido à tonalidade média do que nos rodeia: Montgomery e Moreau eram demasiado individuais e demasiado particularistas para que eu pudesse, a exemplo deles, guardar bem definidas as minhas impressões gerais de humanidade. Se eu avistava alguma das criaturas bovinas - as da chalupa - andando vagarosamente através das urzes do bosque, pensava a sós comigo e tentava notar bem em que diferiam de qualquer campônio humano a valer, voltando penosamente para a sua cabana, após o labor mecânico diário, ou então, ao encontrar a Mulher-Urso e Raposa, de cara pontuda e móvel, estranhamente humana, com a sua expressão de astúcia refletida, eu imaginava tê-la já encontrado em alguma rua mal afamada de grande cidade.

 Todavia, de vez em quando, o animal se me manifestava neles; sem a menor dúvida e sem desmentido possível. Um homem hediondo e, segundo todas as probabilidades, um selvagem de ombros contrafeitos, acocorado à entrada de uma choça, subitamente principiava a espreguiçar-se e a bocejar, mostrando, com espantosa rapidez, uns incisivos afiados e uns caninos acerados, brilhantes e finos como navalhas. Em algum estreito atalho, se me acontecia examinar, com passageira audácia, os olhos de uma fêmea ágil, eu avistava de súbito, com um frêmito de repulsão, as suas pupilas fendidas, ou, abaixando o olhar, via a garra encurvada com que ela mantinha na cintura o seu farrapo de vestimenta. É aliás uma coisa curiosa, e cuja razão eu não poderia explicar, o fato de possuírem aquelas estranhas criaturas o sentimento instintivo do seu repugnante aspecto e, por conseguinte, mostrarem, nos primeiros tempos da minha estadia, uma atenção mais que humana pela decência e pelo decoro exterior.

 Mas vejo que me trai a minha inexperiência da arte de escrever, e que me estou

 desviando do assunto da minha narração. Quando acabei de almoçar com Montgomery, saímos ambos para ver, na extremidade da ilha, as exalações de vapores e a fonte de água quente em cujas águas eu tinha patinado na véspera. Cada um de nós estava armado de um revólver carregado e de um chicote. Ao atravessarmos uma moita espessa, ouvimos gritar um coelho; paramos prestando ouvido, mas, nada mais tendo ouvido, pusemo-nos de novo a caminho e em breve esquecemos este incidente. Montgomery chamou-me a atenção para certos animalzinhos levemente róseos que tinham as patas traseiras muito compridas e corriam aos saltos por entre os espinheiros; informou-me de que eram criaturas inventadas e formadas por Moreau com a progenitura dos grandes bípedes. Julgava este que eles poderiam vir a fornecer carne para as refeições, mas o hábito que eles tinham, como costuma acontecer com os coelhos, de devorarem os filhos, havia malogrado esse projeto. Eu tinha já encontrado algumas daquelas criaturas na noite em que fui perseguido pelo Homem-Leopardo e, na véspera, quando ia fugindo diante de Moreau. Por acaso, um desses animais que ia correndo para nos evitar, saltou dentro de um buraco feito pelas raízes de uma árvore arrancada pelo vento. Antes que pudesse esquivar-se-lhe dali, conseguimos apanhá-lo; ele principiou a cuspir e arranhar como um gato, sacudindo vigorosamente a cauda, tentou até morder-nos, mas seus dentes eram muito fracos para poderem fazer mais que picar levemente. O animal pareceu-me ser uma linda criaturinha e, tendo-me dito Montgomery que eles nunca abriam tocas e tinham hábitos de perfeito asseio, lembrei-me de que aquela espécie de animal podia substituir com vantagem o coelho ordinário nos parques.

 Vimos também no caminho um tronco marcado com longas arranhadelas e, em alguns pontos, profundamente vincado. Montgomery fez-me reparar nisso.

 

- Não raspar com a unha a casca das árvores, esta é a Lei, disse ele. Bem se vê

 que eles se importam muito com isso.

 

 Creio que foi depois disso que encontramos o Sátiro e o Homem-Macaco. O Sátiro

 era uma recordação clássica da parte de Moreau, com a sua face de expressão

 ovina, tal o tipo semita acentuado, a sua voz semelhante a um balido forte e as

 suas extremidades inferiores perfeitamente satânicas. No momento em que cruzou

 perto de nós, estava comendo um fruto qualquer em forma de vagem. Os dois

 bípedes saudaram Montgomery.

 

 - Saudemos ao Outro com o chicote, disseram.

 

- Há um terceiro com um chicote, disse Montgomery. Assim, pois, tomem sentido.

 

- Não o fabricaram? perguntou o Homem-Macaco. Ele disse... Sim, disse que o

 tinham fabricado.

 

 O Sátiro examinou-me com curiosidade.

 

 - O terceiro com o chicote, o que caminha dentro do mar chorando, tem um rosto

 pálido.

 

 - Ele tem um chicote comprido e fino, disse Montgomery.

 

- Ontem estava a escorrer sangue e a chorar, disse o Sátiro. O senhor não está a

 escorrer sangue nem a chorar. O Mestre não está a escorrer sangue nem a chorar.

 

- O método Olendorf, de cor, disse gracejando Montgomery. Vocês ficarão a

 escorrer sangue e a chorar se não tomarem sentido consigo.

 

- Ele tem cinco dedos - é um cinco de dedos como eu, disse o Homem-Macaco.

 Vamos! ponhamo-nos a caminho Prendick! disse Montgomery pegando-me por um braço, e prosseguimos a nossa exploração da ilha.

 

 O Sátiro e o Homem-Macaco ficaram a observar-nos e a comunicar um ao outro as

 suas impressões.

 

- Ele não diz nada, gritou o Sátiro. Os homens têm voz.

 

- Ontem pediu-me coisas para comer; ele não sabia, replicou o Homem-Macaco.

 

 Falaram ainda durante um instante e ouvi de longe a risada sarcástica do Sátiro.

 Foi à volta que encontramos os restos do coelho morto. O corpo ensangüentado do

 pobre animalejo estava todo despedaçado, viam-lhe as costelas, e a coluna

 vertebral tinha sido evidentemente roída.

 Ao ver isto, Montgomery deteve-se.

 

 - Meu Deus! exclamou ele.

 

 Abaixou-se para apanhar alguns ossos quebrados e examiná-los de mais perto.

 

 - Meu Deus! repetiu, que quer isto dizer?

 

- Algum dos seus carnívoros lembrou-se dos tempos antigos, respondi, após um

 momento de reflexão. Essas vértebras foram mordidas de lado a lado.

 

 Ele quedou-se, com os olhos fixos, o rosto pálido e os lábios contraídos.

 

- Isto não pressagia nada de bom, disse depois lentamente.

 

- Vi qualquer coisa desse gênero, disse eu, no mesmo dia da minha chegada.

 

- O diabo está metido nisto então? Que foi que viu?

 

- Um coelho com a cabeça arrancada.

 

 - No dia da sua chegada?

 

- Na mesma tarde, foi na espessura do bosque, por detrás do recinto murado,

 quando saí ao cair da noite. A cabeça estava completamente arrancada.

 

 Ele fez ouvir entre os dentes um demorado assobio.

 

- E o que mais é, tenho idéia de conhecer aquele dos seus brutos que praticou o

 delito. Todavia, é apenas uma suspeita. Antes de encontrar o coelho, eu tinha

 visto um dos seus monstros bebendo água no ribeiro.

 

- Chupando com a língua.

 

 - Sim.

 

- Não chupar com a língua para beber, esta é a Lei. Pelo que se vê, eles importam-se muito com a Lei, hein, quando Moreau não os está vigiando?

 

 - Foi o bruto que me perseguiu.

 

- Naturalmente, afirmou Montgomery. É tal qual o que fazem os carnívoros. Depois

 de matarem, vão beber. É, como sabe, o gosto do sangue.

 

- Como era esse bruto? perguntou-me ele. Poderia acaso reconhecê-lo?

 

 Deitou um olhar ao redor de nós, tendo as pernas afastadas por cima dos restos

 do coelho morto, vagueando o olhar por entre as sombras e os dóceis de folhagem,

 espreitando as ciladas e emboscadas da floresta que nos circundava.

 

 - O gosto do sangue, repetiu.

 

 Tomou do revólver, examinou-lhe os cartuchos e tornou a pousá-lo. Depois

 principiou a puxar o lábio pendente.

 

 - Creio que reconheceria perfeitamente o monstro.

 

- Mas então seria preciso provarmos que foi ele quem matou o coelho, disse

 Montgomery. Ser-me-ia bem preferível nunca ter aqui trazido estes pobres

 animais.

 

 Eu queira tornar a se por a caminho, mas ele continuava ali parado, a meditar junto daquele coelho mutilado, como sobre um profundo enigma. Dentro em pouco, afastando-me aos poucos, não vi mais os restos do coelho.

 

- Então, não vem? gritei-lhe.

 

 Montgomery estremeceu e veio juntar-se a mim.

 

- Veja isto, pronunciou ele quase em voz baixa, nós inculcamos em todos eles a

 idéia de não comer coisa alguma que se mova sobre o solo. Se, por acaso, algum

 desses brutos provou o gosto do sangue...

 

 Caminhamos algum tempo em silêncio.

 

- Não posso saber o que poderia ter acontecido, disse consigo mesmo. Fiz uma

 grande asneira há alguns dias, continuou após uma pausa. Aquele bruto que me

 serve de criado... Ensinei-lhe a esfolar e cozinhar um coelho. É esquisito...

 Vi-o lamber os dedos... Não me veio à idéia tal coisa... Cumpre darmos cobro a

 isso. Vou falar a esse respeito com Moreau.

 

 E durante o regresso, ele não pôde pensar em outra coisa.

 Moreau tomou o fato ainda mais a sério que Montgomery, e é inútil dizer que a

 manifesta consternação de ambos logo se apoderou também de mim.

 

- É mister dar um exemplo, disse Moreau. Não tenho a menor dúvida de que o

 Homem-Leopardo seja o delinqüente. Mas como prová-lo? Era preferível que

 Montgomery tivesse resistido ao seu gosto de comer carne e que não tivesse

 trazido para aqui essas novidades excitantes. Com isso, é possível que venhamos

 a passar um mau bocado.

 

- Procedi como um pateta, disse Montgomery, mas o mal está feito. E depois, o

 senhor não opôs objeção a isso.

 

 - Cumpre que nos ocupemos imediatamente em sanar o mal, disse Moreau. Suponho que, no caso de sobrevir algum acontecimento, M`ling poderia desempenhar-se, com felicidade, da empresa?

 

- Não estou lá muito seguro da fidelidade de M`ling, confessou Montgomery;

 receio muito conhecê-lo de mais perto.

 

 Pela tarde, Moreau, Montgomery e eu, acompanhados de M`ling, tendo atravessado a ilha, nos dirigimos para as tocas do despenhadeiro. Íamos todos três armados.

 M`ling levava um rolo de arame e uma pequena machadinha de que se servia para

 abrir caminho por entre o matagal, e Moreau tinha suspensa a tiracolo uma grande

 buzina de pastor.

 

- Vai ver agora uma assembléia dos monstros, disse Montgomery. É um bonito

 espetáculo.

 

 Moreau não pronunciou uma só palavra durante o caminho, mas lia-lhe uma

 resolução firme nos traços sombrios da sua fisionomia aureolada de branco.

 Transpusemos a ribanceira, no fundo da qual borbulhava a corrente de água

 quente, e seguimos o atalho sinuoso, que atravessava os tojais, até chegarmos a

 uma vasta planura coberta de uma espessa substância amarela e pulverulenta, que

 me pareceu ser enxofre. Para lá de uma aglomeração de rochas escarpadas,

 avistava-se a superfície reluzente do mar. Chegamos a uma espécie de anfiteatro

 natural, pouco profundo, e ali todos quatro fizemos alto. Então Moreau soprou na

 buzina, cuja vos atroadora rompeu a serena quietude daquela tarde tropical. Ele

 devia ter uns sólidos pulmões. O som volumoso repercutiu de eco em eco até uma

 intensidade ensurdecedora.

 

 - Ah! ah! exclamou Moreau, deixando cair o instrumento a seu lado.

 

 Imediatamente, ouviram-se entre os caniços amarelados, estalidos de galhos e

 rumores de vozes, que vinham do espesso matagal que margeava o pântano através do qual eu me tinha aventurado na véspera. Então, em diversos pontos, à beira da superfície sulfurosa, apareceram os vultos grotescos dos animais humanos, dirigindo-se todos à pressa para o nosso lado. Não pude deixar de sentir um horror crescente à proporção que ia vendo, uns após outros, surgirem aqueles

 monstros do meio das árvores e dos caniços, e caminharem arrastando os pés pela

 poeira quente. Mas Moreau e Montgomery mantinham-se imóveis e calmos, e, embora a custo, tive de ficar junto deles.

 O primeiro que chegou foi o Sátiro, estranhamente irreal, se bem que projetasse

 uma sombra e sacudisse a poeira com os pés recurvados; depois dele, emergiu de

 entre os espinheiros um ente monstruoso, meio cavalo e meio rinoceronte,

 mastigando uma palha enquanto caminhava; apareceram em seguida a Mulher-Porco e as duas Mulheres-Lobos; depois, a feiticeira Urso-Raposa de olhos vermelhos e cara pontuda e fulva, e depois outros e outros, - todos solícitos e apressados.

 À proporção que se vinham aproximando, principiavam a fazer mesuras diante de

 Moreau e a cantar sem cuidarem uns dos outros, fragmentos da segunda metade das melopéias da Lei.

 

- Dele é a mão que fere; dele é a mão que fere; dele é a mão que cura; e assim

 por diante.

 

 Chegados à distância de uns trinta metros, paravam e, prostrados sobre os

 joelhos e os cotovelos, atiravam poeira sobre a cabeça. Imagine-se a seguinte

 cena: nós três, vestidos de azul, bem como o nosso criado disforme e negro, de

 pé em um largo espaço coberto de pó amarelo, faiscando aos raios do sol ardente,

 e rodeados daquele círculo rastejante e gesticulante de monstruosidades, algumas

 quase humanas na expressão e nos gestos flexíveis, outras semelhando aleijados

 ou tão estranhamente desfiguradas que se diria esses entes que nos povoam os

 sonhos mais sinistros. Mais ao longe achavam-se, de um lado, as fileiras

 ondulantes dos caniços, do outro, um denso emaranhamento de palmeiras nos

 separava do despenhadeiro das cabanas, e para o norte, o horizonte brumoso do

 Pacífico.

 

- Sessenta e dois, sessenta e três, contou Moreau, faltam quatro.

 

- Não vejo o Homem-Leopardo, disse eu.

 

 De repente Moreau soprou segunda vez na buzina, e a este som todos os animais

 humanos rolaram e revolveram-se na poeira. Então, resvalando furtivamente para

 fora dos caniços, rojando-se quase e procurando reunir-se aos outros por detrás

 de Moreau, apareceu o Homem-Leopardo. O último a vir foi o pequeno Homem-Macaco.

 Os outros, estimulados e cansados pelas gesticulações, lançaram-lhes olhares de

 cólera.

 

 - Basta! gritou Moreau, com a sua voz sonora e firme.

 

 Todos os animais se sentaram sobre os calcanhares, e cessaram a sua adoração.

 

- Onde está aquele que ensina a Lei? perguntou Moreau.

 

 O monstro de pelo cinzento inclinou-se até ao chão.

 

 - Diga as palavras, ordenou Moreau.

 

 Sem demora alguma, a assembléia ajoelhada, todos, balançando com regularidade o corpo e atirando poeira sulfurosa para o ar com a mão esquerda e com a direita

 alternadamente, entoaram mais uma vez a sua estranha melopéia.

 Chegados que foram à frase: não comer carne nem peixe, esta é a Lei, Moreau

 estendeu para eles a sua longa mão branca: - Stop, exclamou ele.

 Fez-se completo silêncio.

 Creio que todos sabiam e temiam o que estava para acontecer. O meu olhar

 percorreu o círculo daquelas caras estranhas.

 Quando lhes vi as atitudes receosas e o terror furtivo dos olhos brilhantes,

 espantei-me de os ter tomado por homens um só instante.

 

 - Esta lei foi infringida, disse Moreau.

 

- Ninguém escapa! exclamou o monstro sem cara e de pelo prateado.

 

- Ninguém escapa! repetiu o círculo dos brutos ajoelhados.

 

 - Quem a infringiu? gritou Moreau, e o seu olhar penetrante percorreu todas as

 fisionomias, enquanto ele fazia estalar chicote.

 

 A Hiena-Porco, a meu ver, pareceu muito assustada e abatida, e a mesma impressão me causou o Homem-Leopardo. Moreau voltou-se para este último que se deitou felinamente diante dele, com a idéia e o receio de infinitos tormentos.

 

- Quem é aquele? exclamou Moreau com voz de trovão.

 

- Desgraçado daquele que infringe a Lei, começou aquele que ensinava a Lei.

 Moreau fincou o olhar nos olhos do Homem-Leopardo, que se torceu todo como se

 lhe estivessem extirpando a alma.

 

- Aquele que infringe a Lei..., disse Moreau, desviando os olhos da vítima e

 voltando para junto de nós. Pareceu-me descobrir no tom destas últimas palavras

 uma espécie de exaltação.

 

 - ... Volta para a casa da dor! exclamaram todos... volta para a casa da dor,

 

- Mestre! - ... Para a casa da dor... para a casa da dor... repetiu o Homem-Macaco, como se aquela perspectiva lhe fosse muito aprazível.

 

- Ouviste? gritou Moreau voltando-se para o culpado. Ouviste... E então?

 

 O Homem-Leopardo, ao ver-se livre do olhar de Moreau, tinha-se posto em pé e,

 inesperadamente, de olhos em fogo e a brilharem-lhe sob os lábios retorcidos os

 enormes dentes de felino, saltou sobre o seu algoz. Estou convencido de que só o

 desvairamento produzido pelo excesso do furor o poderia impelir a semelhante

 ataque. O círculo inteiro daqueles sessenta monstros pareceu erguer-se em volta

 de nós. Empunhei o meu revólver. O homem e o animal entrechocaram-se; vi Moreau cambalear sob a violência do choque; vimos rodeados de latidos e de rugidos; tudo era confusão e, por um instante, pensei que aquilo fosse uma revolta geral.

 A cara furiosa do Homem-Leopardo passou rente de mim, seguida de perto por

 M`ling que o perseguia. Vi faiscarem de exacerbação os olhos amarelos das

 Hiena-Porco e percebi que ela estava decidida a investir contra mim. O Sátiro,

 por seu turno, observava-me por cima dos ombros protuberantes da Hiena-Porco.

 Ouvi o estalido do revólver de Moreau e vi também o clarão da chama dardejar no

 meio do tumulto. A turba toda se voltou para a direção em que partira o tiro, e

 eu mesmo fui arrastado pelo magnetismo daquele movimento. Passado um instante, deitei a correr, em meio de uma horda ululante e tumultuosa, no encalço do Homem-Leopardo.

 É isto o que posso dizer com clareza. Vi o Homem-Leopardo cair sobre Moreau,

 depois tudo torvelinhou ao redor de mim e, quando dei por mim, já estava

 correndo como um desesperado. M`ling ia na vanguarda, seguindo de perto o fugitivo. Na retaguarda, já com a língua pendente, corriam a bom correr as Mulheres-Lobos. Seguiam-nas os Homens e as Mulheres-Porcos com os dois Homens-Touros, com as ilhargas cingidas de pano branco. Depois vinha Moreau em um grupo de bípedes diversos. Tinha perdido o seu chapéu de palha de abas grandes e corria de revólver em punho e com os longos cabelos brancos flutuando ao vento. A Hiena-Porco ia saltando a meu lado, conservando sempre a mesma distância que eu e lançando-me com os seus olhosfelinos, olhares furtivos; os outros seguiam mais atrás, pulando e gritando.

 O Homem-Leopardo abria caminho através dos altos caniços que se tornavam a

 fechar atrás dele fustigando a cara de M`ling. Nós que íamos atrás, ao chegarmos

 ao pântano, encontramos um atajá sulcado. A caçada continuou destarte durante

 cerca de um quarto de milha, depois do que afundamo-nos em uma espessa brenha

 que nos retardou imensamente os movimentos, conquanto avançássemos em bando – os galhos secos açoitavam-nos o rosto, os cipós nos enlaçavam por baixo do queixo e entrelaçavam-se nos nossos pés, as plantas espinhosas enterravam-nos nas roupas os seus espinhos e dilaceravam-nos as carnes.

 

- Ele tem feito toda esta caminhada de quatro pés, disse Moreau, que então se

 achava justamente ao pé de mim.

 

- Ninguém escapa! gritou-me o Lobo-Urso excitado pela perseguição.

 

 Desembocamos de novo entre as rochas e avistamos o bruto correndo de mansinho a quatro pés e rosnando para nós ao voltar-se para traz. Ao vê-lo, toda a tribo dos Lobos fremiu de gozo. O animal estava ainda vestido, e, à distância, a sua figura tinha ainda o que quer que fosse de humano, mas o movimento dos seus quatro membros era perfeitamente felino e a curvatura flexível dos seus ombros era exatamente a de um animal acossado. Ele saltou por cima de uma moita de urzes espinhosas de flores amarelas e desapareceu. M`ling ia a meio caminho entre nós e a presa. A maior parte dos perseguidores tinham agora perdido a primeira rapidez com que se iniciara a caçada e haviam adotado uma marcha mais regular e mais demorada. Ao atravessar um espaço descoberto, vi que o bando dos perseguidores desenvolvia-se então em uma longa fileira. A Hiena-Porco continuava a corre ao meu lado, espreitando-me de momento a momento e fazendo de vez em vez uma careta com o focinho, acompanhada de um gruído de mofa.

 Na extremidade dos rochedos, o Homem-Leopardo notou que ia ter direito ao promontório no qual me tinha perseguido na tarde da minha chegada, e imediatamente fez um desvio, no meio dos espinheiros, para voltar atrás.

 Montgomery, porém que lhe percebera a manobra, obrigou-o a retroceder.

 Assim pois, arquejante, tropeçando em meios dos rochedos, ferido pelos espinhos,

 rolando sobre os tojais e os caniços, ia eu ajudando a perseguir o Homem-Leopardo, que rinha transgredido a Lei, seguindo sempre ao meu lado a Hiena-Porco, com o seu grunhido selvagem e escarnecedor. Eu continuava a correr,

 cambaleando, a cabeça a andar-me à roda, o coração a martelar-me ao lado, quase

 exaurido, e sem ousar todavia perder de vista a caçada, pelo temor de me ver a sós com aquele temível companheiro. Eu corria apesar de tudo, a despeito da

 minha extrema fadiga e do calor intenso daquela tarde tropical.

 Finalmente, afrouxou o ardor da cabeça, depois de termos sitiado o miserável

 bruto em um canto da ilha. Moreau, de chicote na mão, nos dispôs todos em uma

 ilha regular, e agora avançávamos com precaução, avisando-nos por sinais e

 chamadas e apertando o cerco em volta da vítima que se escondia, silenciosa e

 invisível, na espessura dos espinheiros através dos quais já eu tinha

 precipitado durante uma outra perseguição.

 

- Atenção! Firme! gritava Moreau, ao passo que os extremos da ilha contornavam o

 maciço de espinheiros para cercar o animal.

 

 - Sentido com a investida! gritou a voz de Montgomery por detrás de um moita.

 

 Eu me achava sobre a encosta que ficava por cima da mata. Montgomery e Moreau em baixo batiam a praia. Lentamente, íamos ganhando terreno através do

 emaranhamento de galhos de árvores e de folhagem. O animal não se movia.

 

- Para a casa de dor, para a casa de dor, gania a voz do Homem-Macaco, a uns vinte metros à direita.

 

 Ao ouvir estas palavras, perdoei à miseranda criatura todo o medo que ela me tinha causado. À minha direita, ouvi os passos pesados do Cavalo-Rinoceronte que afastava ruidosamente as gavinhas e as hastes das plantas. Depois, subitamente,

 em uma espécie de bosquezinho verdejante e na semi-escuridão produzida pela

 vegetação luxuriante, avistei a presa que perseguíamos. O bruto estava agachado

 e como que enrolado de modo a fazer o menor volume possível, e vi-lhe , a

 olharem-me por cima dos seus ombros, os olhos verdes luminosos.

 Não posso explicar oeste fato - que poderá ser tomado como uma inexplicável

 contradição da minha parte - mas, vendo ali aquele ente, em uma atitude

 inteiramente anima, com a luz a refletir-se-lhe nos olhos a face imperfeitamente

 humana a fazer caretas de terror, tive mais uma vez a percepção de sua

 humanidade evidente. Daí a um instante, sobreviria qualquer outro dos

 perseguidores e o nobre bruto seria derribado e capturado para ir de novo sofrer

 as horríveis torturas por que já tinha passado. Bruscamente, saquei o meu

 revólver e, alvejando entre os seus olhos desvairados, disparei.

 No mesmo instante, a Hiena-Porco , dando um grito, atirou-se sobre o corpo e

 fisgou no pescoço os dentes acerados. Em volta de mim, as massas verdejantes dos espessos arbustos estalavam e afastavam-se para dar passagem àqueles animais humanizados que, um a um, iam aparecendo.

 

- Não mate, Prendick, Moreau, não o mate! Vi-o inclinar-se, abrindo passagem

 entre as hastes dos altos caniços.

 

 Um instante depois, com o cabo de chicote, tinha ele expulsado a Hiena-Porco, e

 já Montgomery e ele mantinham em respeito os outros bípedes carnívoros,

 especialmente M`ling ansioso por tomar o seu quinhão da presa, O monstro de pelo

 prateado passou a cabeça por baixo do meu pelo braço e sorveu o ar pelo nariz.

 Os outros, no seu ardor bestial, empurravam-me para ver melhor.

 

 - Com a breca, Prendick! exclamou Moreau Eu queria-o vivo.

 

- Estou sobremodo penalizado, repliquei, embora estivesse muitíssimo satisfeito,

 não pude resistir a um impulso irrefletido.

 

 Sentia-me doente de extenuado e super excitado que estava. Rodeando nos

 calcanhares, abandonei ali todo aquele bando e subi sozinho a encosta que ia ter

 à parte superior do promontório, Moreau deu algumas ordens em voz alta, e ouvi

 os três Homens-Touros arrastarem a vítima para o mar. Era-me então bem fácil

 estar só. Aqueles animais manifestavam uma curiosidade perfeitamente humana em relação ao cadáver e seguiam-no em grupo compacto, roncando e grunhindo,

 enquanto os Homens-Touros o arrastavam ao longo da praia. Do promontório, eu

 avistava, negros de encontro ao céu crepuscular, os três carregadores que tinham

 agora colocado o corpo sobre os ombros para o deitarem ao mar. Foi então que,

 como uma invasão subitânea, me viu inexprimivelmente à idéia a infrutífera

 inutilidade e a evidente aberração de todas as coisas da ilha. Na praia, por

 entre os rochedos que ficavam aos meus pés, o Homem-Macaco, a Hiena-Porco e

 diversos outros bípedes, mantinham-se ao lado de Montgomery e de Moreau. Todos

 eles se achavam ainda violentamente excitados e desfaziam-se em protestos de

 fidelidades à Lei. Todavia, era-me fora de dúvida que a Hiena-Porco estava

 também implicada no morticínio do coelho. Tive a estranha persuasão de que,

 pondo de parte a aspereza dos contornos, o grotesco das formas, tinha eu debaixo

 dos olhos, em miniatura, as relações recíprocas da vida humana, com todas as

 gradações do instinto, da razão, do destino, sob a sua forma mais simples. O

 Homem-Leopardo fôra subjugado, esta era a única diferença. Míseros brutos! eu

 principiava a ver o reverso da medalha. Não me tinham ainda até então passado

 pela idéia as penas e os tormentos que acometiam aquelas desgraçadas vítimas

 depois de saírem das mãos de Moreau. Sentira um frêmito de horror somente à

 idéia das torturas que sofreiam no recinto urrando. Isto, porém, me parecia

 então menor parte das suas desdita. Antes, eles eram apenas animais, cujos

 instintos se adaptavam normalmente às condições exteriores, felizes quanto seres

 viventes o podem ser. Agora, eles esbarravam nos inumeráveis obstáculos que

 acompanham a vida humana, viviam sob a pressão de um perpétuo temor, manietados por uma lei que não podiam compreender; o simulacro de existência deles, começando em um agonia, era uma interminável luta interior, um eterno terror de Montgomery - e porque? Era oeste caprichoso contra-senso que mais de me irritava.

 Se Moreau tivesse em mente um intuito aceitável, fosse qual fosse, eu teria pelo

 menos simpatizado com ele. Não sou tão esmiuçador sobre o sofrimento que me

 negasse a isso. Até mesmo o desculparia, si o seu procedimento tivesse o ódio

 por motivo. Não tinha, porém, causa alguma que o escusasse, nem mesmo disso

 cogitou jamais. Era simplesmente impelido pela curiosidade e pelas investigações

 loucas e sem desígnio certo, e modelava aqueles míseros seres para depois

 viveram assim um ou dois anos, lutando, sucumbindo, e morrerem depois

 miseravelmente. Eles eram desgraçados em si mesmos, incitava-os velho ódio

 animal a torturarem-se reciprocamente, mas a Lei impedia-os se deixarem levar ao

 extremo de um violento e curto conflito que lhes daria um termo decisivo às

 animosidades naturais.

 Durante os dias que se seguiram, o meu receio pelos brutos monstruosos teve a

 mesma sorte que teve o meu terror pessoal por Moreau. Caí um estado mórbido,

 profundo e duradouro, perfeita oposição do temor, estado esse que me deixou no

 espírito vestígios indeléveis. Confesso que, ao ver a penosa desordem que

 reinava naquela ilha, perdi toda a fé que tinha na inteligência e na razão do

 mundo. Um destino cego, um vasto machismo inflexível, parecia talhar e modelar

 as existências, e Moreau, com a sua paixão pelas pesquisas, Montgomery com a sua paixão pela bebida, eu mesmo e os animais humanizados, com os seus instintos e o seu jugo mental, todos nós éramos atormentados e oprimidos cruelmente, inevitavelmente, na infinita complexidade daquela engrenagem constantemente em movimento. Mas esse aspecto não me apareceu à primeira vista... Creio mesmo que me antecipo um pouco falando nisso desde já.

 

 

 

 

 Passaram-se perto de seis semanas, no fim das quais eu continuava a não

 experimentar, em relação aos resultados das infames experiências de Moreau,

 outro sentimento que não fosse a aversão e a repugnância. A minha única

 preocupação era fugir daquelas hediondas caricaturas da imagem do Criador, e

 voltar às agradáveis e salutares relações com os outros homens. Os meus

 semelhantes, de quem me achava assim separado, principiaram a revestir-se na

 minha lembrança de uma virtude e de uma beleza idílicas. Pouco progrediu a minha

 amizade de a princípio para com Montgomery; a sua longa separação do resto da

 humanidade, o seu vício secreto pela bebida, a sua simpatia evidente pelos

 animais humanos o tornavam suspeito. Por diversas vezes, deixei-o ir só ao

 interior da ilha, por isso que evitava de todas as maneiras a minha relação com

 os monstros. Pouco a pouco acostumei-me a passar a maior parte de tempo na

 praia, procurando divisar alguma vela libertadora, que nunca aparecia, até que

 um dia desabou sobre nós um formidável desastre que revestiu de um aspecto

 completamente diverso o estranho meio em que eu me achava. Foi sete ou oito

 semanas, mais ou menos, após a minha chegada - talvez mais, pois nunca me dei ao trabalho de contar o tempo - que se produziu a catástrofe. Ela ocorreu de manhã muito cedo - suponho que pelas seis horas. Tinha-me eu levantado e almoçara cedo, sendo que o que me tinha despertado fora o barulho que faziam três bípedes carregando lenha para dentro do recinto fechado.

 Depois de almoçar, caminhei até à porta do recinto, que estava aberta, e parei

 apoiando-me a ela; aí fiquei a fumar um cigarro e a gozar a frescura das

 primeiras horas da manhã: Daí a pouco apareceu Moreau dando a volta à esquina

 formada pelo muro do recinto, e trocamos os nossos cumprimentos. Ele passou sem parar e ouvi-o, por detrás de mim, abrir e depois fechar a porta do seu

 laboratório. Eu estava já então insensível às abominações que me rodeavam, que

 ouvi, sem a menor emoção, a sua vítima, o jaguar fêmea, no início daquele novo

 dia de tortura, acolher o seu algoz com um rugido cavo, quase perfeitamente

 semelhante ao de uma virago encolerizada.

 Então aconteceu o que quer que fosse. Ouvi atrás de mim um grito estridente, um

 baque, e, voltando-me, vi aproximar-se diretamente de mim uma cara medonha, nem humana, nem animal, mas infernal, carrancuda, cozida de cicatrizes atravessadas uma sobre outras, das quais dissoravam ainda gotas de sangue, com os olhos em brasa e sem pálpebras. Ergui o braço para aparar a pancada que me fez rolar ao comprido comum braço quebrado, e o monstro, envolvido em linho e cheio de ligaduras tintas de sangue, que flutuavam ao redor dele, saltou por cima de mim e fugiu. Rolando várias vezes sobre mim mesmo, despenhei-me até abaixo e fui parar na praia, onde, tentando levantar-me, tornei a cair sobre o braço ferido.

 Então apareceu Moreau, com o rosto lívido e demudado e parecendo ainda mais

 terrível com o sangue que lhe corria da fronte. De revólver na mão, sem me

 prestar atenção, deitou a correr no encalço do jaguar.

 Com o auxílio do outro braço, consegui afinal levantar-me. O animal envolvido em

 ligaduras corria dando saltos enormes ao longo da praia seguido por Moreau. De

 repente, voltando a cabeça, avistou-o; então, fazendo de imprevisto uma volta,

 encaminhou-se para a mata. A cada salto aumentava a distância que a separava do

 seu perseguidor e vi-o embrenhar-se pelo bosque a dentro; Moreau, correndo em

 sentido oblíquo para lhe cortar a retirada, disparou a arma e quase a atingiu no

 momento em que ela desaparecia. Depois ele também desapareceu no meio da

 vegetação espessa e confusa.

 Fiquei um momento imóvel, com os olhos fixos; por fim senti uma dor intensa no

 braço magoado e, dando um gemido, pus-me a caminho.

 Nesse momento, aparecia Montgomery no limiar da entrada, com o revólver em

 punho. - Meu Deus! Prendick! exclamou sem perceber que eu estava ferido! O bruto está solto! Arrancou a corrente que estava pregada na parede. Viu-os?... Que lhe aconteceu? acrescentou de repente, ao notar que eu estava amparando o braço.

 

 - Achava-me ali, junto da porta..., principiei a dizer. Ele adiantou-se e

 pegou-me no braço.

 

 - Vejo sangue na sua manga, disse ele soerguendo a flanela.

 

 Meteu a arma no bolso, apalpou-me, examinou-me o braço muito dolorido e levou-me para o quarto.

 

- É uma fratura, declarou; depois acrescentou: Diga-me exatamente o que houve...

 

 Contei-lhe o que tinha presenciado, em frases entrecortadas por contrações de dor, enquanto muito ágil e mui rapidamente ele me ligava o braço. Quando acabou, atou-me ao pescoço uma tira e suspendeu-me o braço nela, depois afastou-se e pôs-se a contemplar-me.

 

- Está bem assim, não é verdade? perguntou. E agora... Refletiu um instante,

 depois saiu e fechou a porta do recinto murado. Ficou ausente por algum tempo.

 

 Nesse momento, nada mais me inquietava senão o meu ferimento, o resto não me

 parecia mais que um simples incidente no meio de todas aquelas coisas horríveis.

 Estendi-me na poltrona de molas, e, devo confessá-lo, principiei a praguejar e a

 amaldiçoar aquela ilha. O sofrimento pouco profundo que a princípio me causava a

 fratura, tinha-se transformado em uma dor lancinante. Quando Montgomery voltou,

 tinha o rosto inteiramente pálido e viam-lhe mais que de costume as gengivas

 inferiores. - Não o vi, nem ouvi falarem nele, disse. Lembrei-me de que podia

 talvez precisar do meu auxílio... Aquele bruto era vigoroso... Arrancou a

 corrente de um só impulso... Olhava para mim, enquanto falava, depois chegou à

 janela, em seguida dirigiu-se para a porta, daí tornou a vir para junto de mim.

 

- Vou sair a procurá-lo, concluiu ele; há um outro revólver que vou

 deixar-lhe. A falar com franqueza, sinto-me um tanto inquieto.

 

 Pegou na arma e colocou-a ao meu alcance, deixando no ar uma inquietação

 contagiosa. Não me pude conservar sentado por muito tempo depois de o ver

 ausentar-se, e, pegando do revólver, cheguei até à porta.

 A manhã estava tranqüila como a morte. Não havia o menor murmúrio de vento, o

 mar estava luzente como um espelho polido, o céu sem nuvens, e a praia parecia

 deserta. No estado de sobre excitação em que me achava aquela serenidade das

 coisas oprimiu-me.

 Tentei assobiar e cantarolar, mas morria-me nos lábios o que eu queria cantar.

 Pus-me de novo a praguejar - pela segunda vez naquela manhã. Depois, fui até ao

 canto do recinto murado e detive-me um instante a observar a mata vertente que

 tinha engolido Moreau e Montgomery. Quando voltarão? E como voltarão?

 Então, apareceu na praia, ao longe, um pequeno bípede cinzento, desceu-a

 correndo, chegou até junto da água e principiou a patinhar à beira dela; eu

 tornei a chegar porta, depois voltei ao canto do recinto murado e assim

 continuei a ir e vir como uma sentinela. Uma vez detive-me, ouvindo a voz

 longínqua de Montgomery que gritava: Olá, Moreau! Doía-me o braço muito menos,

 mas estava ainda bastante dolorido. Senti febre, e a sede começou a torturar-me.

 A minha sombra ia encurtando pouco a pouco: fiquei a observar o bípede até ele

 desaparecer. Moreau e Montgomery não voltariam? Três aves marítimas principiaram a disputar entre si, talvez a primazia nos, despojos de alguma presa.

 Ouvi então, ao longe, por detrás do recinto, a detonação de um tiro de revólver;

 depois, passado um longo silêncio, ouvi outra; em seguida, mais. próximo ainda,

 um uivo selvático seguido de outro lúgubre intervalo de silêncio. A minha

 imaginação pôs-se em campo para me atormentar. Depois, de repente, uma detonação muito próxima.

 Surpreendido, fui até ao canto do muro, e avistei Montgomery, com o rosto rubro,

 os cabelos em desordem e uma perna das calças rasgada no joelho. Lia-lhe no

 semblante profunda consternação. Atrás dele caminhava cabisbaixo o bípede

 M`ling, em cujas maxilas se viam algumas manchas escuras de sinistro augúrio.

 

 - Ele voltou? perguntou Montgomery.

 

- Moreau? Não.

 

 - Meu Deus! O desventurado vinha arquejante, prestes a desfalecer a cada

 respiração. - Recolhamo-nos! disse ele tomando-me por um braço. Estão loucos.

 

 Correm para todos os lados, desatinados. Que podia ter acontecido? Não sei. Vou

 contar-lhe como tudo se passou... assim que recobrar alento... Onde está o

 conhaque?

 Entrou no quarto manquejando e sentou-se na poltrona. M`ling estendeu-se fora do

 limiar da porta e começou a arquejar, como um cão. Dei a Montgomery um copo de

 conhaque com água. Ele continuou sentado, tomando fôlego e fixando diretamente

 para a sua frente as olhos amortecidos.

 Passado um momento, principiou a contar-me o que tinha acontecido.

 Durante uma certa distância, havia seguido a pista de Moreau e do animal. A

 princípio a passagem deles ficava bastante assinalada, em conseqüência dos

 galhos quebrados, e dos pequenos arbustos esmagados, bem como pelos farrapos

 arrancados às ligaduras e por um ou outro vestígio de sangue nas folhas das

 urzes e dos espinheiros. Contudo, esses sinais desapareciam por completo no solo

 pedregoso que se estendia do outro lado do ribeiro, onde eu tinha visto um

 bípede bebendo água; e Montgomery vagueara ao acaso, rumo de oeste, chamando por Moreau. M`ling, armado da sua machadinha foi ter com ele, mas M`ling nada tinha visto do que se passara com o jaguar, pois estava na mata apanhando lenha, e somente ouvira os gritos de Montgomery chamando por Moreau. Tinham procurado juntos e chamado, mas inutilmente. Viram aproximar-lhes de rastos dois bípedes e espreitá-los através da espessura do bosque, com uma atitude e uns gestos tão furtivos e esquisitos que alarmaram Montgomery. Oeste chamou-os e interrogou-os; eles, porem, deitaram em fuga como si houvessem sido apanhados em falta. Finalmente cessou de chamar e, depois de ter vagueado sem destino certo durante algum tempo, resolvera-se a fazer uma visita às cabanas.

 Encontrou a ribanceira deserta. Cada vez mais assustado, voltou para trás.

 Foi então que encontrou os dois Homens-Porcos que eu tinha visto aos saltos na

 tarde da minha chegada; tinham a boca suja de sangue e pareciam muito excitados.

 Caminhavam com grande estrondo através dos tojais e pararam com uma expressão feroz quando o viram. Um tanto receoso, fez estalar o chicote, e, imediatamente, os brutos se precipitaram sobre ele. Nunca até então acontecera ter um daqueles animais humanizados semelhante audácia. Com um tiro ele atravessou a cabeça do primeiro, e M`ling atirou-se sobre o outro: os dois caíram ao chão lutando, mas M`ling suplantou o adversário e enterrou-lhe os dentes na garganta, com outro tiro de revólver Montgomery acabou de matá-lo, e teve alguma dificuldade em trazer M`ling consigo.

 Depois disso, tinham voltado a toda a pressa para o recinto murado. Em caminho,

 M`ling tinha-se precipitado repentinamente em uma espessura do bosque, donde

 saiu trazendo uma dessas espécies de gato montês, também todo manchado de sangue e coxeando por causa de uma ferida que tinha num pé. O primeiro movimento do animal foi fugir, mas, daí a pouco, voltou-se furioso para investir, e

 Montgomery - na minha opinião, assas inutilmente - descarregou-lhe uma bala.

 

 - Que quer tudo isto dizer? perguntei.

 

 Montgomery sacudiu a cabeça e engoliu mais um copo de conhaque.

 Quando o vi ingerir aquela terceira dose, achei-me no dever de intervir. Ele já

 estava meio embriagado. Observei-lhe que com certeza havia de ter acontecido

 qualquer coisa a Moreau, sem o que, ele já estaria de volta, e que devíamos ir

 averiguar o que lhe tinha sucedido. Montgomery suscitou umas vagas objeções e

 acabou por concordar comigo. Tomamos algum alimento, em seguida partimos com

 M`ling.

 Sem dúvida em virtude da tensão do meu espírito naquele momento, aquela partida, sob a ardente calma de uma tarde tropical, mesmo ainda hoje conserva para mim uma impressão singularmente intensa. M`ling marchava na frente, ombros curvados, movendo a cabeça negra em rápidos estremecimentos, enquanto com o olhar investigava cada um dos lados do caminho por onde íamos seguindo. Estava sem armas, porquanto havia perdido a sua machadinha durante a luta com o Homem-Porco. Demais, quando ele entrava em luta, os dentes serviam-lhe de

 verdadeiras armas. Seguia-se Montgomery, como andar vacilante, as mãos nos

 bolsos e a cabeça baixa. Tinha a expressão embrutecida e estava de mau humor

 comigo, por causa do conhaque. Eu caminhava atrás, com o braço amarrado ao

 peito, - felizmente para mim era o braço esquerdo, - e na mão direita apertava o

 revólver.

 Seguimos um atalho através da Uruguai vegetação agreste e exuberante da ilha,

 dirigindo-nos sempre no rumo de oeste. Súbito M`ling deteve-se, ficou imóvel, à

 espreita. Montgomery foi de encontro a ele e parou também. Depois, pondo-nos

 todos três à escuta, ouvimos um sussurro de vozes e passos que se aproximavam

 através das árvores.

 

- Está morto, dizia uma voz profunda e vibrante. - Não está morto, não está

 morto, insistia uma outra voz.

 

- Nós vimos, nós vimos, respondiam varias vozes.

 

- Oh! exclamou repentinamente Montgomery, oh!..., olá! - Com a breca! disse eu

 engatilhando o meu revólver.

 

 Seguiu-se uma pausa durante a qual se ouviram os estalidos produzidos entre a

 vegetação entrelaçada, depois apareceram aqui e ali umas cinco ou seis caras,

 umas faces de estranho aspecto, alumiadas de uma luz esquisita. M`ling deixou

 ouvir um grunhido rouco. Reconheci o Homem-Macaco - a bem dizer, eu tinha já

 reconhecido a sua voz - e duas das criaturas enfaixadas em panos brancos que eu

 vira na chalupa. Achavam-se no grupo os dois brutos manchados de sangue e aquele ente cinzento e horrivelmente contrafeito, que ensinava a Lei, com longos pelos cinzentos caindo-lhe pela cara, sobrancelhas espessas e grandes mechas cinzentas a rolarem-lhe em ondas pela fronte oblíqua, vi, aquela criatura bruta e sem feições, com estranhos olhos vermelhos, que nos espreitava curiosamente por

 entre a vegetação espessa.

 Durante um instante ninguém falou.

 

 - Quem... disse... que ele estava morto? perguntou Montgomery entre dois

 soluços.

 

 O Homem-Macaco deitou um olhar furtivo ao monstro cinzento. - Está morto,

 afirmou o monstro: eles viram.

 Em todo caso, nada tinha de ameaçadora a atitude daquele bando. Pareciam

 intimidados e vagamente aterrorizados.

 

- Onde está ele? perguntou Montgomery.

 

- Acolá , exclamou o monstro estendendo o braço.

 

- Haverá ainda uma Lei? perguntou o Homem-Macaco.

 

- Haverá ainda isto e aquilo? É verdade que ele está morto? Há uma Lei? repetiu

 o bípede vestido de branco.

 

- Ouve, o Outro com o chicote, haverá uma lei? Ele está morto? perguntou o

 monstro de pelo cinzento. E todos nos examinavam com atenção.

 

- Prendick, disse Montgomery voltando para mim os olhos baços, ele está morto...

 é evidente.

 

 Eu me havia conservado atrás dele durante todo o colóquio precedente. Principiei

 a compreender a verdade do que sucedera, e, pondo-me inospinadamente diante dele, disse com voz firme: - Filhos da Lei, ele não morreu. M`ling volveu para mim os olhos brilhantes.

 

- Ele mudou de forma, continuei - ele mudou de corpo. Durante certo tempo, não o

 haveis de ver. Ele está ... lá - e levantei a mão para o céu - de onde vos observa. Não o podeis ver, mas ele vos vê. Respeitai a Lei.

 

 Eu fixava-os propositadamente: eles recuaram.

 

- Ele é grande! Ele é bom! disse o Homem-Macaco, erguendo timidamente os olhos

 para a folhagem densa.

 

 - E a outra Coisa? perguntei.

 

 - A Coisa que estava gotejando sangue e que ia correndo a gemer e a chorar -

 está também morta, respondeu o monstro cinzento que me seguia com o olhar.

 

 - Isto vai perfeitamente, resmungou Montgomery.

 

 - O Outro com o chicote... principiou o monstro cinzento.

 

- E então exclamei.

 

 - ...disse que ele estava morto.

 

 Montgomery não estava assas embriagado para não ter compreendido qual o motivo por que eu havia negado a morte de Moreau.

 

- Ele não está morto, confirmou ele mui lentamente. Não está absolutamente

 morto: Não está mais morto que eu. - Há alguns aqui que têm transgredido a Lei.

 Eles hão de morrer. Alguns morreram já. Mostrem-nos em que lugar se acha o corpo dele, o corpo que ele abandonou para não ter mais necessidade dele.

 

- É por aqui, Homem que anda dentro do mar, disse o monstro.

 

 Então, guiados por aquelas seis criaturas, avançamos para noroeste atravessando

 o chão formado pelos caniços, pelos cipós e enormes troncos de árvores.

 Repentinamente, ouviu-se um bramido forte, um estalo por entre os galhos, e

 chegou junto de nós um homúnculo róseo soltando gritos agudos. Imediatamente

 surgiu também um monstro todo ensopado em sangue, perseguindo-o e correndo com incrível rapidez, o qual esbarrou conosco antes de se poder voltar. O monstro

 cinzento saltou para um lado, M`ling saltou para outro rosnando e foi derribado

 ao chão, Montgomery disparou a arma, mas falhou o tiro; então ele, abaixando a

 cabeça, estendeu o braço para diante e deu meia volta para se pôr em fuga. Então

 eu atirei também, e o monstro continuou a avançar; tornei a descarregar o

 revólver e desta vez à queima-roupa, visando-lhe a hedionda cara. Vi-a

 desaparecer no meio de um clarão, depois tornar a aparecer como que amassada.

 Contudo, o monstro passou por mim, agarrou Montgomery e, sem o largar, caiu ao

 comprido no chão, arrastando-o na queda, enquanto o convulsionavam os últimos

 arrancos da agonia.

 Achei-me só com M`ling, vendo o bruto morto e Montgomery estendido por terra.

 Afinal, oeste último levantou-se lentamente e, com ar embrutecido, contemplou a

 cabeça do Homem-Animal que tinha ao lado. Esse acontecimento desembaraçou-o um pouco dos vapores alcoólicos e ele pôs-se firme nos pés. Então avistei o monstro cinzento que vinha vindo cautelosamente para junto de nós.

 

- Olhe! e mostrei-lhe com o dedo a cabeça do bruto. Há ainda uma Lei, e oeste a

 transgrediu.

 

 O monstro examinou o cadáver.

 

 - Ele manda o fogo que mata, disse ele com a sua voz cava, repetindo um

 fragmento qualquer do ritual.

 

 Os outros aproximaram-se e olharam.

 Enfim, pusemo-nos a caminho em direção à extremidade ocidental da ilha.

 Encontramos o corpo roído e mutilado do jaguar, com a espádua esmigalhada por

 uma bala, e, a uns vinte metros dele, descobrimos aquele que procurávamos. O seu corpo jazia com o rosto encostado na terra, em um espaço calcado de pés, no meio de uma moita, de caniços. Tinha uma das mãos inteiramente separada do pulso e os cabelos brancos sujos de sangue. A cabeça tinha sido ferida pelas correntes do jaguar, e os caniços, esmagados por baixo dele, estavam completamente ensangüentados. Não conseguimos achar o seu revólver; Montgomery voltou o corpo para cima.

 Fazendo repetidas paragens, e auxiliados pelos sete bípedes que nos acompanhavam - pois ele era alto e pesado - conseguimos levar o seu corpo para o recinto murado. Era ao cair da noite. Por duas vezes ouvimos uivarem e grunhirem umas criaturas invisíveis, passagem do nosso pequeno bando, uma das quais veio também espreitar-nos, o homúnculo róseo, desaparecendo logo em seguida. Todavia não fomos assaltados. A entrada do recinto, o bando de brutos deixou-nos - e M`ling acompanhou-os. Nós nos fechamos cuidadosamente e transportamos para o pátio, em um monte de feixes, o cadáver mutilado de Moreau.

 Depois do que, penetrando no laboratório, acabamos com tudo o que ali

 encontramos com vida.

 

 

 

 

 Terminada que foi aquela penosa tarefa, e depois de nos acharmos limpos e

 restaurados, Montgomery e eu nos instalamos no meu pequeno aposento para

 examinarmos seriamente e pela primeira vez a nossa situação. Era então pouco

 menos de meia noite. Montgomery achava-se já quase completamente restabelecido da sua embriaguez, mas tinha ainda o espírito sobremaneira conturbado. Tinha-se deixado dominar pela influência de Moreau e não creio que jamais houvesse admitido a possibilidade dele morrer. E, pois, aquele desastre era a derrocada súbita de hábitos que tinham chegado a fazer parte da sua natureza, durante perto de dez anos que tinha passado na ilha. Ele titubeou umas coisas vagas, respondeu de mau humor às minhas perguntas e perdeu-se em considerações de ordemgeral.

 

- Que estúpida invenção ‚ oeste mundo disse ele. Como ‚ desprezível tudo isto!

 Eu nunca vivi. O que desejava era saber quando isto irá principiar. Dezesseis

 anos tiranizado, oprimido, embotado pelas amas e mestre escolas; cinco anos em

 Londres, a moer medicina - cinco anos de alimento execrável, de habitação

 sórdida, de costumes sórdidos, de vícios sórdidos; - uma tolice que cometo -

nunca conheci coisa melhor - e eis me proscrito nesta ilha maldita. Dez anos

 aqui! E tudo isto porque, Prendick? Que ilusão! Era difícil tirar qualquer coisa

 de semelhantes extravagâncias. - O que mais nos deve agora preocupar‚ é acharmos

 um meio de deixarmos esta ilha.

 

 - De que me serviria ir-me daqui? Sou um proscrito, um condenado. Para onde me

 hei de retirar! Tudo isso ‚ muito bom para o senhor, Prendick. Pobre velho Moreau! Não devemos abandoná-lo aqui, para que os animais lhe descarnem os

 ossos. E depois... Mas, além disso, que será daquelas das suas criaturas que não

 degeneraram! - Ora muito bem! trataremos disso amanhã. Tenho pensado em que

 podíamos fazer uma fogueira cm o monte de lenha e assim queimar o seu corpo -

com as outras coisas... Depois disso que será feito dos monstros?

 

- Não sei. Suponho que os que foram formados de animais ferozes, mais tarde ou

 mais cedo acabarão por voltarem ao estado primitivo. Não os podemos trucidar a

 todos, não ‚ verdade? Creio que ‚ isso que lhe poderia sugerir o seu sentimento

 humanitário?... Mas eles hão de mudar, certamente.

 

 Continuou a falar assim a torto e a direito até que senti faltar-me a paciência.

 

- Com a breca! exclamou ele, em seguida a uma observação um tanto enérgica da

 minha parte, não vê que o transe por que estamos passando‚ é pior para mim do

 que para o senhor?

 

 Levantou-se e foi em busca do conhaque.

 

- Beber! exclamou ao voltar. Senhor discutidor, devorador de argumentos, espécie

 de santo ateu caiado de branco, beba também num gole.

 

- Não, disse eu, e assentei-me, observando com expressão severa, à claridade

 amarela do petróleo, como a sua fisionomia se ia inflamando à proporção que

 bebia, e se deixava levar a uma loquacidade degradante. Lembra-me a impressão de indizível tédio que se apoderou então de mim. Ele enleou-se em uma defesa

 enternecida dos animais humanizados e de M`ling. M`ling, pretendia ele, era o

 único ente que em toda a sua vida lhe testemunhara alguma amizade. Súbito,

 ocorreu-lhe uma idéia.

 

- E então depois... leve-me o diabo! exclamou ele.

 

 Ergueu-se titubeante, e tomou da garrafa de conhaque. Por uma repentina intuição

 adivinhei o que ele ia fazer.

 

- Não consinto que vá dar bebida alguma àquele animal, exclamei levantando-me

 para impedir-lhe a passagem.

 

- Aquele animal!... O senhor‚ que‚ um animal. Ele pode beber o seu copinho como

 um cristão... Saia do caminho, Prendick! - Pelo amor de Deus ! ... principiei eu.

 

- Tire-se dali! rugiu ele, sacando bruscamente do revólver.

 

- Está bem, concordei, e afastei-me, quase decido a atirar-me sobre ele no

 momento em que pusesse a mão no trinco da porta; mas desisti do meu intento ao

 lembrar-me do meu braço inutilizado. - O senhor desceu à categoria de animal e o

 seu lugar é junto dos animais.

 

 Ele abriu a porta de par em par, e, semi-voltado para mim, de pé entre a luz

 amarela da lâmpada e a claridade baça da lua, com os olhos semelhantes a duas

 pústulas negras dentro das órbitas, sob as sobrancelhas rudes e espessas, disse:

 

- O senhor é um estúpido vilão, Prendick, um asno albardado, que engendra

 temores fantásticos. Estamos à beira do poço. Só me resta cortar a garganta

 amanhã, mas, esta noite, vou me embora gozar um pouco de bom tempo.

 

 E saiu alumiado pelo luar.

 

 - M`ling! M`ling! meu velho camarada! chamou ele.

 

 Sob a claridade branca, três criaturas vagamente perceptíveis apontaram na orla

 da mata, uma, envolvida em pano branco, as outras duas, quais manchas escuras,

 seguiam a primeira. Pararam atentas. Divisei então os ombros arqueados de M`ling

 caminhando ao longo da parede.

 

- Bebam! gritou Montgomery, bebam, ainda que pareçam brutos! Bebam e sejam

 homens! Com mil diabos, eu cá por mim sou muito hábil! Moreau nunca pensou

 nisto! É a última! experiência Vamos! digo-lhes que bebam! E brandindo a

 garrafa, principiou a correr na direção de oeste, seguido de M`ling que corria

 na frente das três criaturas que o acompanhavam.

 

 Cheguei ao limiar da porta; daí a pouco, todo o bando, apenas distinto à

 vaporosa claridade da lua, parou mais distante, e vi Montgomery administrar uma

 dose de conhaque a M`ling; um instante depois, as cinco personagens daquela cena

 eram apenas uma mancha confusa. De repente, ouvi a voz de Montgomery gritando:

 

 - Cantemos!... Cantemos todos juntos: afrontemos Prendick!... Muito bem. Agora,

 mais uma vez: Afrontemos Prendick ! afrontemos Prendick ! O grupo negro

 dividiu-se em cinco sombras separadas e recuou lentamente à distância ao longo

 da faixa de areia da praia iluminada pelo luar. Cada um daqueles desgraçados

 berrava à sua vontade, cuspindo-me insultos, e dando livre curso a todas as

 fantasias que lhes sugeria aquela nova inspiração de embriaguez. - Em fila à

 direita! ordenou a voz afastada de Montgomery, e no meio dos gritos e dos

 clamores afundaram-se nas trevas do arvoredo. Lentamente muito lentamente,

 afastaram-se, e tudo foi recaindo em silêncio.

 

 De novo me envolveu a serena magnificência da noite. A lua já tinha passado o

 meridiano e ia rumo de oeste; estava no plenilúnio e, muito brilhante, parecia flutuar isolada em um céu completamente azul. A meus pés projetava-se a sombra

 do muro, tendo apenas um metro de largura e absolutamente negra. Para este, o

 mar apresentava-sede um cinzento uniforme, sombrio e misterioso, e, entre as

 vagas e a sombra, as areias esbranquiçadas, provenientes de cristalizações

 vulcânicas, cintilavam e brilhavam como uma região de diamantes. Atrás de mim, a

 lâmpada de petróleo irradiava uma luz quente e avermelhada.

 Então tornei a entrar e fechei à chave a porta. Fui até ao pátio onde jazia o

 cadáver de Moreau perto das suas derradeiras vítimas; - os cães, o lama e alguns

 outros míseros animais; - o seu rosto cheio estava calmo, mesmo após aquela

 morte horrível, e os olhos muito abertos parecia contemplarem com severidade a

 lua morta e baça. Sentei-me à beira do poço e, fixando aquele contraste de luz

 prateada e de sombra lúgubre, principiei a imaginar um meio de fugir.

 Quando fosse dia, eu trataria de transportar algumas provisões para a chalupa,

 e, depois de atear fogo no que tinha diante de mim, arrostaria mais uma vez a

 desolação do oceano. Capacitei-me de que nada havia a esperar de Montgomery,

 porquanto, a falar a verdade, ele era quase da mesma natureza daqueles animais

 humanizados. Não me lembro quanto tempo me deixei ficar ali a fazer projetos:

 uma ou duas horas talvez. Fui interrompido nas minhas reflexões pela volta de

 Montgomery. Ouvi gritos roucos pelas imediações, depois passou ao longo da praia

 um tumulto de brados exultantes, de clamores, de vociferações, de gritos agudos

 que pareceram diminuir ao aproximarem-se da beira do mar. O alarido aumentou e

 diminuiu depois repentinamente; ouvi pancadas surdas, um rumor de madeira

 quebrada, mas não me inquietei com isso. Em seguida principiei a ouvir uma

 espécie de canto discordante.

 Volvi a pensar nos meus planos de fuga. Ergui-me, peguei na lâmpada, e fui a um

 alpendre examinar alguns pequenos barris em que já tinha reparado. A minha

 atenção foi atraída por diversas caixas de biscoitos e abri uma delas. Nesse

 momento, percebi ao meu lado um reflexo de luz vermelha e voltei-me bruscamente.

 Por detrás de mim estendia-se o pátio, nitidamente cortado de sombra e de luz, e

 o monte de lenha e de feixes sobre que repousavam Moreau e as suas vítimas

 mutiladas. Parecia que eles ainda se iam agarrar uns aos outros em uma última

 luta vingadora. Os ferimentos de Moreau eram negros como a noite, e o

 sangue que deles correra alastrava-se sobre a areia como uma poeira negrejante.

 Vi então, sem compreender a causa, que o reflexo avermelhado e fantástico,

 dançava de um para outro lado no muro oposto. Interpretei mal a causa disso,

 imaginando que não fosse mais que um simples reflexo da luz tremula da minha

 lâmpada, e continuei a inspecionar as provisões que se achavam no alpendre.

 Esquadrinhei tudo tanto quanto o podia fazer com o meu único braço, pondo de

 parte, para transportar no dia seguinte para dentro da chalupa, tudo o que me

 parecia conveniente e útil. Os meus movimentos eram deficientes e lentos e o

 tempo passava rapidamente; dentro em pouco, fui surpreendido pela alvorada.

 Calou-se o canto discordante, substituindo-o um terrível clamor, depois

 recomeçou e repentinamente se transformou em tumulto. Ouvi gritos de: Mais!

 Mais! um rumor de discussão e subitamente um baque tremendo. O tom daqueles

 gritos diversos mudava tão freqüentemente que isso acabou por me atrair a

 atenção. Cheguei até ao pátio para escutar. Então, destacando-se claramente no

 meio da confusão ‚ do tumulto, ouviu-se um tiro de revólver. Precipitei-me

 imediatamente através do meu quarto até à pequena porta exterior. Nesse momento,

 algumas das caixas de provisões, que se achavam por traz de mim, resvalaram e

 caíram ao chão umas sobre as outras com um estampido de vidro quebrado. Mas, sem prestar a isso a menor atenção, abri vivamente a porta e procurei ver o que se

 passava do lado de fora. Sobre a areia da praia, perto do abrigo da chalupa,

 ardia uma fogueira festiva, cujas fagulhas chispavam na meia claridade da

 aurora; em volta dela movia-se um conjunto de vultos negros. Ouvi Montgomery

 chamar-me pelo meu nome. Tomando do revólver, corri a toda pressa em direção às chamas. Vi a língua de fogo do revólver de Montgomery jorrar uma vez de muito

 perto do chão. Ele estava atirado por terra. Principiei a gritar com todas as

 minhas forças e atirei a esmo.

 Ouvi um grito: O Mestre! A massa confusa e tripudiante separou-se em várias

 unidades que se dispersaram, a fogueira deitou um clarão e extinguiu-se. A turba

 dos bípedes pôs-se em fuga diante de mim, tomada de um súbito pânico. Na minha

 super excitação, atirei sobre eles, antes que tivessem desaparecido entre os

 maciços de verdura. Então, voltei para junto do vulto negro que jazia por terra.

 Montgomery estava deitado de costas e o monstro cinzento caído por cima dele com todo o seu peso. O bruto estava morto, mas apertava ainda nas garras encurvadas a garganta de Montgomery. Ao pé deles estava M`ling deitado de bruços, imóvel, com o pescoço ferido e segurando na mão a parte superior de uma garrafa de conhaque quebrada. Dois outros entes achavam-se caídos perto da fogueara, um sem movimento, o outro gemendo de quando em quando, e soerguendo a cabeça lentamente para deixá-la cair de novo.

 Com uma só mão agarrei no monstro cinzento e tirei-o de cima de Montgomery; as

 suas garras puseram-me as vestes em farrapos enquanto eu o arrastava.

 Montgomery tinha o rosto apenas enegrecido.

 Atirei-lhe sobre a fronte água do mar e instalei debaixo da sua cabeça o meu

 casaco dobrado M`ling estava morto. A criatura ferida que gemia perto da

 fogueira - era um dos Homens-Lobos de cara coberta de pelos acinzentados – estava estendida no chão, como depois pude verificar, tendo a parte superior do corpo caída sobre as brasas ainda acesas. O mísero animal estava em tão lastimoso

 estado que, por piedade, dei-lhe um tiro na cabeça. O outro monstro - morto

 também - era um dos Homens-Touros vestidos de branco. O resto dos bípedes havia desaparecido no bosque. Voltei para junto de Montgomery e ajoelhei-me ao seu lado, amaldiçoando a minha ignorância da medicina.

 A meu lado, a fogueira continuava a extinguir-se e só restavam dela alguns

 tições, carbonizados, ou consumindo-se ainda, no meio das cinzas esbranquiçadas.

 Eu buscava adivinhar onde Montgomery teria podido encontrar toda aquela lenha, e

 vi então que a aurora invadira o céu, que resplandecia agora, ao passo que a lua

 em declínio se tornava mais pálida e mais opaca na luminosa claridade azul. Todo

 o horizonte de oeste apresentava-se franjado de vermelho.

 Nesse momento, ouvi atrás de mim uns ruídos surdos acompanhados de um assobio e, tendo-me voltado, ergui-me de um salto, dando ao mesmo tempo um grito de horror.

 Destacando-se contra o esplendor do dia nascente, grandes massas tumultuosas de

 fumo negro desenrolavam-se por sobre o recinto murado e através da sua

 tempestuosa escuridão irrompiam de momento a momento longas e trêmulas línguas de fogo de um rubro sangüíneo. O teto de colmo ficou reduzido a um braseiro; vi as labaredas flexuosas escalarem os telheiros próximos e um grande jato de fogo irromper subitamente da janela do meu quarto.

 Imediatamente compreendi o que se havia passado, lembrando-me do estampido que ouvira precedentemente. Quando eu acorrera em auxilio de Montgomery tinha

 derribado a lâmpada. Desde logo me convenci da manifesta impossibilidade de

 salvar o que quer que fosse do que se continha nas dependências do recinto

 incendiado. Voltou-me à idéia o pensamento da minha fuga, e, em um movimento

 súbito voltei-me para o ponto da praia onde costumavam abrigar as duas

 embarcações.

 Não se achavam mais ali! Não longe de mim, avistei sobre a areia dois machados;

 por todos os lados se achavam esparsos fragmentos de lenha e lascas de madeira,

 no meio dos quais fumegavam ainda as cinzas da fogueira enegrecida sob a

 claridade da aurora. Para se vingar e impedir o nosso regresso ao seio da

 humanidade, Montgomery tinha queimado as embarcações.

 Um súbito acesso de raiva convulsionou-me todo. Estive a ponto de despedaçar-lhe

 a pancadas a cabeça estúpida, quando o vi ali indefeso estendido no chão aos

 meus pés. Mas,ele moveu a mão com um gesto tão débil, tão

 lastimoso que toda a minha raiva desapareceu. Soltou um gemido e ergueu por um

 instante as pálpebras.

 Ajoelhei-me perto dele e levantei-lhe a cabeça.

 Tornou a abrir os olhos, contemplando silenciosamente a aurora, depois o seu

 olhar encontrou o meu: deixou cair novamente as pálpebras pesadas. - Aflito,

 articulou ele com esforço.

 Dir-se-ia que tentava pensar.

 

- É o fim, murmurou ele, o fim deste universo idiota. Que imundície... Eu

 escutava-o. A sua cabeça pendeu. Pensei que um líquido qualquer o poderia

 reanimar. Não me restava porém o recurso de uma bebida qualquer, nem de uma

 vasilha em que lhe desse a beber. De repente ele me pareceu mais pesado, e o

 coração se me apertou no peito.

 

 Inclinei-me sobre o seu rosto e pus-lhe a mão sobre o peito através de um rasgão

 que tinha no casaco. Estava morto, e, no momento em que expirava, uma lista de

 fogo, branca e ardente, o limbo do sol, subiu no oriente, para além do

 promontório, salpicando o céu com os seus raios e transformando o mar sombrio em um tumulto efervescente de luz deslumbradora que passou como uma glória sobre a face contraída do morto.

 Deixei cair de mansinho a sua cabeça sobre o rude travesseiro que eu lhe tinha

 feito, e levantei-me. Diante de mim, apresentava-se a cintilante desolação do

 mar, a formulável solidão onde tanto eu tinha já sofrido; por detrás, a ilha

 adormecida ainda sob a límpida luz da aurora, com os seus animais invisíveis. O

 recinto murado com todas as suas provisões e munições ardia no meio de um

 estrondo confuso, despedindo rajadas de chamas, com violentas crepitações,

 acompanhadas de vez em vez por um ruído de desmoronamento. A espessa e pesada fumaça afastava-se contornando a praia, rolando rente ao cimo das árvores em direção às cabanas do despenhadeiro.

 

 

 

 

 Então, saíram de entre as urzes três monstros bípedes, de ombros arqueados,

 cabeça inclinada para diante, mãos informes baloiçando-se desajeitadamente,

 olhar inquisidor e hostil, e dirigiram-se para mim com gestos indecisos.

 Encarei-os frente a frente, afrontando conjuntamente com eles o meu destino,

 vendo-me então só, com um único braço válido, e, na algibeira, um revólver

 carregado ainda com quatro balas. Entre os fragmentos e os estilhaços de madeira

 espalhados pela praia, encontravam-se os dois machados que tinham servido para

 demolir as embarcações. Atrás de mim, a maré ia subindo.

 Nada mais me restava a fazer senão revestir-me de coragem. Fitei acintosamente,

 cara a cara, os monstros que se vinham aproximando. Eles evitaram-me o olhar, e

 as suas narinas frementes farejaram os cadáveres que estavam no chão ao pé de

 mim. Dei alguns passos, apanhei o chicote manchado de sangue, que tinha ficado

 embaixo do cadáver do Homem-Lobo e o fiz estalar.

 Eles pararam e olharam-me com espanto. - Saúdem! ordenei. Façam a saudação.

 Hesitaram um momento. Um deles dobrou o joelho. Reiterei a minha ordem, dando um passo para eles e sentindo um horrível aperto de garganta. Um deles ajoelhou-se, depois os outros dois.

 Virei-me um pouco, para voltar para junto dos cadáveres, sem deixar de olhar

 para os três bípedes ajoelhados, à maneira como um ator vai ao fundo da cena

 voltado de frente para o público.

 

- Eles infringiram a Lei, expliquei pondo o pé em cima do monstro de pelo

 cinzento. Foram por isso mortos, até aquele que ensinava a Lei. Até o Outro com

 o chicote. Muito poderosa ‚ a Lei! Venham ver.

 

- Ninguém escapa! disse um deles, chegando-se para ver.

 

- Ninguém escapa, repeti. Por isso ouçam e façam o que eu lhes ordenar.

 

 Eles levantaram-se, interrogando-se uns aos outros com o olhar.

 

 - Fiquem ai, ordenei.

 

 Apanhei os dois machados e suspendi-os à tira de pano que me sustinha o braço;

 depois voltei o corpo de Montgomery, tirei-lhe o revólver ainda carregado com

 duas balas, e revistando-lhe os bolsos encontrei umas seis cápsulas.

 Depois de me levantar, indiquei o cadáver com o cabo do chicote.

 

 - Vamos, peguem nele e atirem-no ao mar.

 

 Ainda atemorizados, eles se aproximaram de Montgomery, sobretudo receosos do

 chicote cujas correias tintas de sangue eu fazia estalar, depois, em seguida a

 algumas hesitações, a algumas ameaças e a algumas chicotadas, eles suspenderam o corpo com precaução, desceram a beira da praia e entraram pelo mar a dentro

 salpicando para o alto a água prateada.

 

- Continuem! continuem! gritei. Mais para longe ainda. Eles afastaram se - até

 ficarem com a água por baixo dos braços; então pararam e olharam para mim.

 

 - Larguem agora, ordenei.

 

 O Cadáver de Montgomery desapareceu em um refluxo e senti qualquer coisa

 compungir-me o coração. - Bom! exclamei, com uma espécie de soluço na Voz. E,

 timidamente, os monstros voltaram precipites para a praia, deixando atrás de si,

 longos sulcos escuros na água prateada. Chegados que foram à beira das vagas,

 voltaram-se inquietos Para o mar, como se receassem ver Montgomery ressurgir

 para exercer alguma vingança.

 

- Agora estes, disse eu, indicando os outros cadáveres.

 

 Tiveram o cuidado de se não aproximarem do ponto onde tinham lançado Montgomery e, antes de os mergulhar, levaram os quatro animais mortos, a cem metros de distância cortando o mar em linha diagonal.

 Quando eu os estava observando, enquanto eles transportavam os restos mutilados

 de M`ling, ouvi atrás de mim um rumor de passos leves e, voltando-me

 repentinamente, avistei a uns doze metros a grande Hiena-Porco. O monstro estava

 com a cabeça abaixada; tinha fixos em mim os olhos penetrantes e apertava contra

 si os toros de mãos. Quando me voltei de todo, ele deteve-se em atitude curvada,

 a olhar-me de soslaio. Durante um instante conservamo-nos um em frente do outro.

 Deixei cair o chicote e tirei do bolso o revólver, porquanto era minha intenção,

 ao primeiro pretexto, matar aquele bruto, o mais temível de quantos então

 restavam na ilha. Tal procedimento poder parecer desleal, mas era essa a minha

 firme resolução. Eu temia aquele monstro muito mais do que a qualquer outro dos

 animais humanizados. A sua existência, bem o sabia eu, era uma constante ameaça

 para a minha. Durante uns doze segundos, procurei reunir todo o meu animo.

 

- Saúda! De joelhos! ordenei.

 

 Ela deixou ouvir um grunhido que lhe descobriu os dentes.

 

- Quem é o senhor para...?

 

 Um tanto nervoso demais talvez, levantei o revólver, fiz a pontaria e disparei o tiro. Ouvi a ganir e depois vi-a correr de lado no intuito de fugir; compreendi que o tiro não a atingira e, com o polegar, levantei o gatilho para atirar de novo. Mas o bruto fugia a toda a velocidade, saltando de um para outro lado, e não ousei atirar-lhe novamente com receio de perder a bala inutilmente. De vez em quando ela olhava para mim, voltando-se para traz; ia cortando a praia em diagonal, até que desapareceu por detrás das massas de fumaça rastejante que ainda se escapavam do meio do incêndio. Fiquei um instante com os olhos fixos no luar em que tinha desaparecido o monstro, depois voltei-me para os meus três bípedes obedientes e fiz-lhes sinal para que deixassem cair na água o cadáver que sustinham ainda. Voltei então para junto do monte de cinza no lugar em que tinham caído os corpos, e com o pé, revolvi a areia, até terem desaparecido os vestígios de sangue.

 Com um gesto de mão despedi os meus três servos e, subindo a praia, entrei nas

 sombrias espessuras do arvoredo. Tinha na mão o revólver e, suspensos à tira de

 pano a que apoiava o braço, os dois machadinhos e o chicote. Sentia grande

 necessidade de estar só para refletir na posição em que me achava.

 Uma das coisas terríveis que me deparava a minha situação naquele momento, e em que só então principiei a pensar, era que, em toda aquela ilha não havia um só

 lugar em que me pudesse achar isolado e em segurança para repousar ou dormir.

 Desde que eu ali chegara, tinha recuperado as minhas forças de um moio

 surpreendente, mas, não raro, sentia-me acometido de acessos nervosos e de

 desânimos que me punham em estado verdadeiramente lastimoso. Tive a impressão de que me ia ser preciso atravessar a ilha e estabelecer-me no meio dos bípedes humanizados para, confiando-me a eles,contar com alguma segurança. Faltou-me a coragem. Tornei a voltar em direção à praia, e, tomando rumo de este, para o lado do recinto incendiado, encaminhei-me para um ponto em que havia um banco de coral e de areia avançando para o lado dos recifes. Ali me seria possível

 assentar-me e refletir, voltado de costas para o mar e fazendo frente a qualquer

 possível surpresa. Para lá fui assentar-me, e deixei-me ficar com o queixo

 encostado aos joelhos; o sol caia-me a prumo sobre a cabeça e, conquanto me

 invadisse o espírito um terror crescente, eu buscava o meio de viver até o

 momento da liberdade - si esse momento tinha de chegar jamais. Procurei encarar

 toda a situação com a maior calma possível, mas não logrei vencer de todo a

 minha emoção.

 Principiei a remoer no espírito as razões do desespero de Montgomery... Eles hão

 de mudar... eles estão certos de que hão de mudar... E Moreau? Que tinha dito

 Moreau? A obstinada bestialidade deles vai reaparecendo de dia para dia...

 Depois, o meu pensamento volveu a preocupar-se com a Hiena-Porco. Eu tinha a

 certeza de que, se não matasse aquele bruto, seria ele que me mataria... Aquele

 que ensinava a Lei estava morto... O pior dos infortúnios!... Eles sabiam agora

 que os portadores de chicote podiam ser mortos como eles... Estariam já a

 espreitar-me, de longe, por entre os maciços verdejantes de bétulas e de

 palmeiras? Talvez estivessem de emboscada à espera de que eu lhes passasse ao

 alcance da mão? Que estariam tramando contra mim? Que lhes teria sugerido a

 Hiena-Porco? A imaginação se me escapava para vaguear em um pélago de temores infundados. Fui distraído dos meus pensamentos por gritos de aves marítimas que se precipitavam para um objeto negro que as vagas tinham impelido para a praia e que se achava perto do local onde fora o recinto murado. Eu sabia perfeitamente o que era aquele objeto, mas não tive animo de ir afugentar aquelas aves. Pus-me a andar ao longo da praia na direção oposta, com o intuito de contornar a extremidade oeste da ilha e assim me aproximar da ribanceira das cabanas, sem me expor às possíveis emboscadas ocultas entre os maciços.

 Depois de ter andado cerca de meia milha, sempre à beira-mar, avistei um dos

 meus três bípedes submissos que ia saindo do bosque e seguia direto para o meu

 lado. De tal modo me haviam tornado nervoso as fantasias da minha imaginação,

 que imediatamente puxei do revólver. Nem mesmo o gesto suplicante do animal

 conseguiu demover-me.

 Este continuou a adiantar-se, posto que hesitante.

 

- Vá embora! gritei.

 

 Havia na atitude timorata daquele ente muito da submissão canina. Ele recuou um

 pouco, tal como um cão enxotado; parou, e voltou para mim os olhos pardos e

 suplicantes.

 

- Vá embora! repeti, não se aproxime de mim.

 

- Não posso chegar ao pé do senhor? perguntou ele.

 

- Não! vá embora, insisti, fazendo estalar o chicote; depois, tomando o cabo

 entre os dedos, abaixei-me para apanhar uma pedra, e esta ameaça fez fugir o

 animal.

 

 Assim, contornei sozinho a ribanceira dos animais humanizados, e, oculto entre

 as árvores e os arbustos que separavam o despenhadeiro do mar observei aqueles

 de entre eles que me apareceram à vista, tentando julgar, pelos seus gestos e

 atitudes, qual a impressão que neles produzira a morte de Moreau e de Montgomery e a destruição da casa de dor. Compreendi então a loucura da minha covardia: si eu tivesse conservado a minha coragem no nível em que estava ao romper da aurora, se não a tivesse deixado declinar e aniquilar-se, em infrutíferas

 reflexões solitárias, teria podido empunhar o cetro de Moreau e governar os

 monstros. Mas a ocasião propícia tinha passado e eu havia descido à categoria de

 simples chefe no meio de iguais.

 Pelo meio-dia alguns bípedes vieram deitar-se na areia quente. A voz imperiosa

 da sede e da fome prevaleceu sobre os meus temores. Sai do maciço de verdura e,

 com o revólver na mão, desci em direção a eles. Um daqueles monstros - uma

 Mulher-Lobo - voltou a cabeça e olhou-me com espanto. Depois, o mesmo fizeram os outros, sem que nenhum deles parecesse disposto a levantar-se para me saudar.

 Sentia-me demasiado enfraquecido e fatigado para insistir diante do número deles

 e deixei passar o momento.

 

 - Quero comer, anunciei, quase em tom de desculpa, e continuando a aproximar-me.

 

- Há o que comer nas cabanas, respondeu um Homem-Boi, semi-adormecido, desviando a cabeça para o outro lado.

 

 Passei ao lado deles e internei-me na escuridão e nos odores da ribanceira quase

 deserta. Em uma cabana vazia regalei-me de frutas e depois de dispor na abertura

 dela alguns ramos meio secos, deitei-me com o rosto voltado para a entrada e com

 o revólver na mão. A fadiga das trinta horas passadas sem dormir reclamou o que

 lhe era devido e deixei-me levar a uma espécie de torpor, certo de que a minha

 improvisada barricada faria bastante rumor para me despertar em caso de surpresa.

 E, pois, tornara-me um ente qualquer entre os animais humanizados naquela ilha

 do doutor Moureau. Quando acordei, tudo em volta de mim continuava na escuridão, doía-me o braço dentro das ataduras; sentei-me e a princípio não me pude lembrar do lugar em que me achava. Ouvi vozes roucas que falavam do lado de fora e só então reparei que a minha barricada não existia mais e que a abertura da toca estava completamente livre. 0 revólver continuava ainda ao alcance da minha mão.

 Percebi o rumor de uma respiração e divisei um ente qualquer acocorado junto de

 mim. Contive a respiração, tentando ver o que era. Aquilo principiou a mexer-se

 lentamente, interminavelmente, depois senti passar-me sobre a mão uma coisa

 leve, tépida e macia.

 Todos os músculos se me contraíram e retirei precipitadamente o braço. Um grito

 de alarme ficou-me sufocado na garganta e compreendi suficientemente o que se

 tinha passado para pôr a mão sobre o revólver.

 

- Quem está aí? perguntei em um murmúrio cavo e apontando a arma.

 

 - Sou eu, Mestre.

 

- Quem é que fala?

 

- Dizem-me que agora não há Mestre. Mas eu, bem sei, bem sei. Levei os corpos

 para o mar, os corpos daqueles que mataste, tu que caminhas dentro do mar. Eu sou teu escravo, Mestre.

 

- És tu aquele que encontrei na praia? perguntei.

 

 - Sou eu mesmo, Mestre.

 

 Eu devia evidentemente fiar-me no animal, por isso que ele me podia ter atacado

 enquanto dormia.

 

- Pois bem, disse eu, deixando-o lamber-me a mão.

 

 Principiei a compreender então o que significava a suma presença e recuperei toda a minha coragem.

 

- Onde estão os outros?

 

- Eles estão loucos, estão desvairados, afirmou o Homem-Cão. Estão agora

 conversando juntos acolá. Eles dizem: o Mestre morreu; o Outro com o chicote

 morreu; o Outro que caminhava dentro do mar é... como nós. Não temos mais nem

 Mestre, nem Chicotes, nem casa de Dor. É o fim. Amamos a Lei e havemos de

 observá-la; mas nunca mais haverá, nem Mestre, nem Chicotes, nunca mais. É isto

 o que dizem. Mas eu, Mestre, bem sei, bem sei.

 Estendi a mão na escuridão e acariciei a cabeça do Homem-Cão. - Está bem,

 aquiesci novamente.

 

- Em breve os matará a todos, disse o Homem-Cão.

 

 - Sim, respondi, em breve os matarei a todos, depois de certo tempo e depois que

 tiverem acontecido certas coisas; todos à exceção daqueles que quiseres poupar,

 todos serão mortos. - Aqueles que o Mestre quer matar, o Mestre os mata,

 declarou o Homem-Cão, com uma certa satisfação na voz.

 

- E afim de que o número das sumas faltas aumente, ordenei, quero que persistam

 na suma loucura até chegar o tempo. Quero que ignorem que sou o Mestre.

 

- A vontade do Mestre é boa, respondeu o Homem-Cão, patenteando a rápida

 percepção canina que lhe era hereditária.

 

- Mas há um deles que cometeu uma grave ofensa. A esse matarei onde quer que o

 encontre. Quando eu te disser: é ele, tu saltarás sobre ele sem hesitar. E agora,

 vou ao encontro dos que estão reunidos.

 

 Por um instante a abertura da toca ficou obstruída pelo vulto do Homem-Cão que

 ia saindo. Em seguida, saí eu e achei-me de pé quase exatamente no lugar em que

 estava quando ouvi Moreau perseguir-me acompanhado de seu cão. Mas era noite

 então e aquela ribanceira cheia de miasmas infectos estava toda envolta em

 trevas, e mais longe, em vez de uma colina verdejante e iluminada pelo sol, vi

 as chamas rubras de uma fogueira, diante da qual se agitavam grotescas

 personagens de ombros arredondados. Mais longe ainda, erguiam-se os troncos das

 árvores, uns ao lado dos outros, formando uma lista de trevas franjada pelos

 sombrios rendilhados da ramaria superior. A lua despontava na orla do declive

 formado pela ribanceira; e, como uma barra atravessada por diante dela, via-se a

 coluna de vapor que, sem cessar, jorrava das exalações gasosas da ilha.

 

- Caminha ao pé de mim, ordenei, apelando para toda a minha coragem; e, lado a

 lado, descemos a estreita passagem sem dar atenção aos vultos indecisos que nos

 espreitavam pela abertura das tocas.

 

 Nenhum daqueles que estavam ao redor da fogueira fez o menor gesto para me

 saudar. A maioria deles ostensivamente afetou indiferença. Procurei com o olhar

 a Hiena-Porco mas não se achava ali. Formavam ao todo uns vinte, pelo menos,

 acocorados, contemplando o fogo, ou conversando uns com outros.

 

- Ele está morto, ele está morto, o Mestre está morto, disse a voz do Homem-Macaco, à minha direita. A Casa de Sofrimento, não há mais Casa de Sofrimento.

 

- Ele não está morto, asseverei com voz forte. Neste momento mesmo, ele os está

 vendo.

 

 Isto surpreendeu-os. Vinte pares de olhos se voltaram para mim.

 

- A Casa de Sofrimento não existe mais, continuei, mas ele há de voltar. Não podem ver o Mestre, e todavia, neste momento, ele está escutando por cima de

 todos.

 

- É verdade, é verdade, confirmou o Homem-Cão.

 

 A minha afirmativa encheu-os de estupefação. Um animal poderá ser feroz e

 astuto, mas só o homem pode mentir.

 

- 0 Homem de braço ligado está dizendo uma coisa estranha, proferiu um dos

 animais.

 

- Digo-lhes que assim é! afirmei. 0 mestre da Casa de Dor há de reaparecer

 dentro em pouco. Desgraçado daquele que transgredir a Lei! Eles entreolharam-se

 com curiosidade. Com uma indiferença afetada, principiei a enterrar o machadinho

 no solo diante de mim, e notei que eles examinavam os profundos entalhes que eu

 fazia na relva.

 

 Depois Sátiro emitiu uma dúvida, que eu desfiz; depois do que, um dos entes

 sarapintados fez uma objeção e levantou-se uma discussão animada em redor da

 fogueira. De momento a momento, eu me sentia mais robustecido na minha segurança presente, conversando já então sem arrancos na voz, causados pela intensidade da minha excitação nervosa e que primeiramente muito me haviam inquietado. Em uma hora de conversação, convenci-me de que realmente conseguira que alguns dos monstros acreditassem no que eu lhes dizia e que os mais ficassem em um estado de dúvida perturbadora. Mantive-me sempre alerta esperando a cada momento ver surgir o meu inimigo Hiena-Porco, este porém não me apareceu. De vez em quando um movimento suspeito me fazia estremecer, mas eu recuperava rapidamente a confiança. Enfim, quando a lua começou a declinar no horizonte, um a um os discutidos principiaram a bocejar, mostrando fileiras de dentes esquisitos, ao clarão da fogueira, que se extinguia, e, em pouco, foram-se retirando para as tocas do despenhadeiro. E eu, receando o silêncio e as trevas, tratei de me ir com eles, certo de que me acharia mais em segurança em companhia de vários deles do que com um só.

 Deste modo principiou a parte mais longa da minha estadia na ilhado Doutor

 Moreau. Contudo, desde essa noite até chegar o fim do meu cativeiro ali, só me

 aconteceu uma coisa importante, além de uma série de inúmeros detalhes

 insignificantes e desagradáveis, e da irritação causada pelo meu perpétuo

 sobressalto. De modo que prefiro não fazer a crônica daquele intervalo de tempo,

 mas relatar apenas um único incidente sobrevindo no decurso dos dez meses que

 passei na intimidade daqueles brutos humanizados. Tenho guardados na memória

 muitos fatos que poderia escrever, se bem que de boa vontade daria a minha mão

 direita para os esquecer. Esses fatos, porém, nada adiantariam no interesse da

 minha narrativa. Retrospectivamente‚ é para mim coisa bem extraordinária

 recordar-me da facilidade com que me adaptei a viver ao lado daqueles monstros,

 como me acomodei aos seus costumes e como readquiri toda a minha confiança.

 Houve, certo, algumas contendas, e eu poderia mostrar ainda os sinais que me

 ficaram de algumas delas, mas, dentro em pouco, eles se tomaram de um respeito

 salutar por mim, graças à minha habilidade em atirar pedras - talento esse que

 não possuíam - e graças também aos entalhes do meu machadinho. Também me foi de infinito proveito a dedicação do meu Homem-Cão de S. Bernardo. Verifiquei que a concepção rudimentar que eles tinham do respeito baseava-se em particular sobre a capacidade de infligir golpes cortantes. Posso mesmo dizer - sem vaidade,

 espero, - que consegui ter sobre eles uma espécie de supremacia. Um ou outro

 daqueles monstros me guardava rancor, por eu os ter ferido seriamente em

 diversas discussões, mas esse ressentimento se manifestava por caretas feitas

 atrás de mim e a uma distância suficiente para os pôr a salvo dos meus

 projéteis.

 A Hiena-Porco evitava-me, e eu me conservava sempre em guarda a seu respeito. 0 meu inseparável Homem-Cão a odiava e temia extraordinariamente. Creio realmente que era esse o fundamento da dedicação que me tinha. Não tardei a convencer-me de que o feroz monstro tinha provado o gosto do sangue e seguido as pegadas do Homem-Leopardo. Ele arranjou uma toca em qualquer parte da floresta e tornou-se solitário. Uma ocasião tentei persuadir os brutos semi-humanos de que o deviam exterminar, mas não tive a autoridade necessária para os obrigar a cooperarem em um esforço comum. Por várias vezes procurei aproximar-me do seu covil e surpreendê-lo de imprevisto, ele porém tinha o ouvido muito sutil e sempre farejou a minha aproximação a tempo de se pôr em fuga. Demais, por seu turno, com as sumas emboscadas, ele tornava perigosos os atalhos da floresta, tanto para mim como para os meus aliados, e o Homem-Cão a custo ousava afastar-se.

 No primeiro mês, os monstros, relativamente à suma subseqüente condição,

 conservaram-se bastante humanos, e mesmo com mais um ou dois deles, além do meu Homem-Cão, cheguei a ter uma tolerância perfeitamente amistosa. 0 pequeno ente róseo mostrava-me uma estranha afeição e principiou também a seguir-me. Todavia, o Homem-Macaco me era infinitamente desagradável. Por causa dos seus cinco dedos, pretendia ser meu igual e, logo que me via, não cessava de repetir

 perpetuamente as mais insípidas tolices. Uma só coisa nele me distraía um pouco:

 era o seu prodigioso talento para inventar palavras novas. Creio que ele pensava

 que falar confusamente em termos que nada significavam era o uso mais natural

 para formar a linguagem. Chamava a isto "grande pensar" para o distinguir do

 "pequeno pensar" - que significava tudo o que concerne às coisas úteis da

 existência quotidiana. Se por acaso eu fazia alguma observação, que ele não

 compreendia, desfazia-se em louvores, pedia-me que a repetisse, aprendia-a de

 cor, e ia repeti-la adiante, aos companheiros, estropiando-a e trocando sílabas

 aqui e ali. Não fazia caso do que era simples e compreensível e eu inventei para

 o seu uso pessoal alguns curiosos "grandes pensares". Estou persuadido agora de

 que ele era a criatura mais estúpida que tenho visto em minha vida. Ele tinha,

 em suma, desenvolvido em si, do modo mais surpreendente, a fatuidade distintiva

 do homem, sem nada ter perdido da parvoíce natural do macaco. Tudo isso, como já disse, se refere às primeiras semanas que passei só, no meio dos brutos. Durante esse período, eles respeitaram o uso estabelecido pela Lei e conservaram na suma conduta um decoro exterior. Tornei a encontrar mais um coelho despedaçado, pela Hiena-Porco sem a menor dúvida - mas não passou disso.Pelo mês Maio foi que principiei a notar de um modo preciso uma diferença crescente nos seus discursos e nas sumas atitudes, uma aspereza de articulação mais acentuada, e uma tendência cada vez mais evidente a perderem o hábito da linguagem. A loquacidade do meu Homem-Macaco aumentou de volume, mas tornou-se cada vez menos compreensível e mais simiesca. Alguns dos outros parecia abandonarem por completo a faculdade de expressão, embora nessa época fossem ainda capazes de compreender o que eu lhes dizia. Imagine-se uma linguagem que se conheceu exata e definida, mas que a pouco e pouco se vai enfraquecendo e desagregando, perdendo por fim a forma e a significação,até se transformar em simples parcelas de som. Além disso, eles já não andavam de pé senão com uma dificuldade que aumentava de dia para dia, e, não obstante a vergonha que tinham disso, de tempos a tempos eu surpreendia um ou outro deles a correr sobre os pés e as mãos, perfeitamente incapaz de tomar a posição vertical. As sumas mãos pegavam desastradamente nos objetos, muito mais do que acontecia antes. Cada dia mais se deixavam arrastar a beber água com a língua ou sorvendo-a, e a roer e dilacerar em vez de mastigar. Mais intensamente do que nunca, eu reparava no que Moreau me dissera da refratária e tenaz bestialidade daquelas criaturas. Eles volviam à animalidade e com uma incrível rapidez. Alguns deles, - e foram primeiramente as fêmeas, com grande surpresa minha, - principiaram a descuidar-se das necessidades da decência, e quase todos deliberadamente. Outros chegaram a ponto de tentarem infringir publicamente a instituição da monogamia. A tradição imposta pela Lei perdia manifestamente a suma força, e não ouso prosseguir no que concerne a este assunto. 0 meu Homem-Cão tornava a pouco e pouco aos seus costumes caninos; de dia para dia tornava-se mudo, quadrúpede, e cobria-se de pelos, sem que eu pudesse notar transição entre o companheiro que caminhava ao meu lado e o cão farejador sempre alerta, que me precedia ou me acompanhava.

 Como dia a dia aumentava a desorganização e o descuido, a ribanceira das

 cabanas, que nunca tinha sido uma morada agradável, veio a ficar de tal modo

 infecta e nauseabunda que tive de a abandonar, e, atravessando a ilha construí

 para mim, uma espécie de abrigo, formado de ramos de árvores, no meio das ruínas incendiadas da morada de Moreau. As vagas lembranças que os brutos conservavam de sofrimentos ali passados, faziam daquele lugar o recanto mais seguro.

 Ser-me-ia impossível notar todos os detalhes do retorno gradual daqueles

 monstros para a animalidade, e dizer como, dia por dia, se lhes ia obliterando a

 aparência humana; como deixaram de se cobrir ou de se envolver e finalmente como abandonaram de todo o menor vestígio de vestuário; como lhes principiou a

 crescer o pelo nos membros expostos ao ar; como se lhes achataram as frontes e

 se lhes afilaram as maxilas. A mudança ia-se fazendo lenta e inevitavelmente;

 tanto para eles como para mim, ela se efetuava sem abalo nem impressão penosa.

 Eu continuava a chegar-me para o meio deles com toda a confiança, pois nenhum

 choque, nessa descida ao primitivo estado, tinha podido livrá-los do jugo mais

 pesado da suma animalidade, eliminando pouco a pouco o que lhes tinham imposto de humano.

 Mas principiei a temer que esse choque se viesse a produzir. 0 meu bruto de S.

 Bernardo me acompanhava ao meu novo acampamento e a suma vigilância me permitiu às vezes dormir de um modo mais ou menos tranqüilo. 0 pequeno monstro róseo, preguiça, tornou-se excessivamente tímido e abandonou-me para tornar aos seus costumes nativos entre os ramos das árvores. Achávamo-nos exatamente naquele estado de equilíbrio em que se encontraria uma dessas gaiolas povoadas de diferentes animais, que certos domadores exibem à curiosidade do povo, depois que o domador a houvesse abandonado para sempre.

 Todavia aquelas criaturas não se tornaram animais exatamente iguais aos que o

 leitor pode ver nos jardins zoológicos - tais como os nossos conhecidos lobos,

 ursos, tigres, bois, porcos ou macacos. Conservavam qualquer coisa estranha na

 conformação exterior; em todos eles Moreau tinha misturado tal animal com tal

 outro: um deles era talvez sobretudo urso, outro felino, aquele boi, mas todos

 tinham qualquer coisa proveniente de uma outra criatura, e apresentavam uma

 espécie de animalismo generalizado sob caracteres especiais. Surpreendiam-me

 ainda neles de vez em quando uns vagos restos de humanidade, uma recrudescência passageira de palavras, uma destreza inesperada dos membros anteriores, ou uma penosa tentativa para retomarem a posição vertical.

 Pela minha parte, tive, sem dúvida, que sofrer também estranhas mudanças. A

 minha roupa estava a cair em farrapos amarelados por baixo dos quais aparecia a

 pele cortida pelas intempéries. 0s meus cabelos que haviam crescido até ficarem

 extraordinariamente compridos, estavam completamente emaranhados, e não raro me dizem que, ainda agora, os meus olhos têm um brilho estranho e uma vivacidade surpreendente.

 A princípio, passei horas e horas do dia à beira do mar, do lado sul da ilha,

 explorando o horizonte, esperando e orando para que aparecesse um navio. Eu

 contava com a volta animal da Ipecacuanha, mas, infelizmente ela não apareceu.

 Por cinco vezes avistei velas longínquas, e por três vezes uma esteira de fumaça, nunca, porém, abordou à ilha embarcação alguma. Eu conservava sempre pronta uma grande fogueira que acendia em caso de necessidade; mas, sem dúvida, a reputação vulcânica da ilha fazia com que a tomassem por uma manifestação dessa espécie.

 Só em Setembro ou Outubro foi que principiei seriamente a pensar em construir

 uma jangada. Nessa época achava-me completamente curado do braço, e tinha

 novamente ao meu serviço as mãos ambas. A princípio fiquei aterrorizado da minha

 inaptidão. Nunca em minha vida me entregara a nenhum trabalho de carpintaria,

 nem aliás de gênero algum manual, e levava todo o tempo no bosque, dias

 seguidos, a tentar fender os troncos e ligá-los entre si. Não havia cordas de

 que me pudesse aproveitar para isso e nada pude achar que as pudesse substituir.

 Nenhuma das abundantes espécies de cipós me pareceu assas flexível e sólida, e,

 não obstante todo o acervo dos meus conhecimentos científicos, eu ignorava um

 meio que os tornasse resistentes e flexíveis. Passei mais de quinze dias a

 esquadrinhar as ruínas do recinto murado, bem como o local da praia em que as

 embarcações tinham sido queimadas, em busca de pregos ou de outros fragmentos de metal que me pudessem ser de alguma utilidade. De tempos a tempos, um dos brutos vinha espreitar-me e fugia aos saltos quando eu lhe dirigia alguns gritos.

 Depois, seguiu-se uma estação de trovoadas, de tempestades e de chuvas

 violentas, que retardaram imensamente o meu trabalho; contudo consegui afinal

 concluir a jangada.

 Fiquei maravilhado com a minha obra. Mas, com essa carência de senso prático a

 que devo em grande parte a minha desgraça, eu tinha-a construído à distância de

 mais de uma milha do mar, e, antes de ter logrado arrastá-la até à praia, ela

 fizera-se em pedaços. Foi talvez uma felicidade eu não meter embarcado nela;

 mas, naquele momento, o desespero que me causou aquele revés foi tão grande que, durante alguns dias, nada mais pude fizer senão vaguear pela praia contemplando as ondas e pensando na morte.

 Mas eu não queria de modo algum morrer, e deu-se um incidente que me provou, sem que eu me pudesse enganar sobre isso, a minha rematada loucura em deixar que assim se passassem os dias, pois cada nova manhã vinha mais cheia de perigos que iam crescendo na vizinhança dos monstros.

 Achava-se à sombra de uma aba de parede ainda de pé, com o olhar fito no mar, quando me senti estremecer ao contato de uma coisa fria no calcanhar, e, voltando-me, vi a preguiça piscando os olhos diante de mim. Ela havia de há muito perdido o uso da palavra e toda a atividade de atitudes; o seu longo e vasto pelo tornava-se dia a dia mais espesso, e as sumas sólidas garras mais recurvadas. Quando viu que me tinha chamado a atenção, fez ouvir uma espécie de grunhido, afastou-se alguns passos na direção das tocas e voltou-se para mim.

 Primeiramente não compreendi, mas dali a pouco veio-me à idéia que ela desejava

 que eu a seguisse e foi o que fiz enfim, lentamente - pois fazia muito calor.

 Quando chegou debaixo das árvores, ela trepou para os galhos, porquanto era-lhe

 muito mais fácil avançar entre as trepadeiras do que sobre o solo.

 Súbito, em um espaço cheio de vestígios de pisadas, encontrei-me diante de um

 grupo horrível. O meu S. Bernardo estava estendido no chão, morto, e acocorada

 perto dele a Hiena-Porco apertava nas garras informes a carne palpitante,

 grunhindo e sorvendo o ar com delícia. Quando me aproximei, o monstro levantou

 para mim os olhos faiscantes, revolveu sobre os dentes ensangüentados os grossos

 beiços frementes e deu um ronco ameaçador. Não estava nem assustada nem

 envergonhada; desvanecera-lhe todo e qualquer vestígio de humanidade. Dei um

 passo para a frente, parei e puxei do revólver. Enfim encontrávamo-nos frente a

 frente.

 0 bruto não fez absolutamente gesto de querer fugir. Encrespou o pelo, abaixou

 as orelhas e todo o seu corpo se dobrou.Apontei entre os dois olhos e disparei.

 No mesmo momento o monstro ergueu-se de um salto, atirou-se sobre mim e

 derribou-me como um palito. Procurou agarrar-me com as sumas unhas medonhas e informes e alcançou-me o rosto, mas o salto levou-a mais longe e achei-me

 estendido sob a parte posterior do seu corpo. Felizmente, eu a tinha atingido no

 lugar certo para o qual fizera a pontaria e ela morrera ao saltar.

 Desembaracei-me e saí de sob o seu pesado corpo, trêmulo ainda e sacudido por

 débeis convulsões. Em todo caso, era para mim um perigo de menos, mas apenas o

 primeiro de uma série de recaídas na bestialidade, que, tinha eu a certeza, se

 iam produzir dali em diante.

 Queimei os dois cadáveres em uma fogueira de espinheiros. Então, vi claramente

 que, a não ser que lograsse abandonar a ilha sem demora, a minha morte não era

 mais que uma questão de dias. Salvo uma ou duas exceções, os monstros tinham

 nesse momento deixado a ribanceira para fazerem os seus covis entre as brenhas

 da ilha e conforme o seu gosto. Raramente vagavam por fora durante o dia; a

 maior parte deles dormiam desde o alvorecer até o cair da noite, e a ilha

 poderia parecer deserta a qualquer recém-chegado. Mas, durante a noite, o ar

 enchia-se de bramidos e de uivos. Veio-me à idéia um extermínio geral - dispor

 armadilhas e assaltá-los a golpes de machado. Se eu tivesse bastantes cápsulas

 de revólver, não teria hesitado um só instante em principiar logo a exterminá-los, pois não deviam restar mais que uns vinte carnívoros perigosos, achando-se já mortos os mais ferozes. Após a morte do desditoso Homem-Cão, meu último amigo, adotei também, até certo ponto, o hábito de dormir de dia, afim de poder ficar de vigia durante a noite. Construí a minha cabana entre as ruínas das paredes do recinto fechado, com uma abertura tão estreita que não se podia tentar entrar sem fazer um barulho enorme. Demais a mais, os monstros tinham desaprendido a arte de acender fogo e o medo das chamas apossara-se deles. Mais uma vez, principiei a reunir e a ligar toros e galhos de árvores para fazer uma jangada em que pudesse fugir dali.

 Depararam-me obstáculos sem conta. Na época em que fiz os meus estudos, não

 tinham sido ainda adotados os métodos de Slojd, e por conseqüência eu era

 sobremaneira inábil nos trabalhos manuais; mas, não obstante isso, de um modo ou de outro, e por meios muito complicados, consegui vencer as exigências da minha tarefa, e desta vez preocupei-me particularmente com a solidez. 0 único

 obstáculo insuperável foi o ter eu de flutuar sobre aqueles mares pouco

 freqüentados. Eu bem quisera experimentar o fabrico de objetos de barro, mas o

 solo da ilha não continha argila. Procurei-a por todos os lados, tentando, com

 todos os recursos das minhas faculdades, resolver este último problema. Às

 vezes, deixava-me tomar de violentos acessos de cólera, e, nesses momentos de

 intolerável agitação, punha-me a retalhar a golpes de machado o tronco de

 algumas pobres árvores, sem com isso conseguir achar uma solução qualquer.

 Foi então que chegou um dia, um dia prodigioso que passei em êxtase. Para

 sudoeste, avistei uma vela, uma vela minúscula, como a de uma pequena escuna,

 imediatamente acendi uma grande pilha de espinheiros, e ali fiquei de

 observação. Durante todo o dia, observei aquela vela, não pensando nem em comer, nem em beber, conquanto a cabeça me andasse à roda; os animais chegavam-se, olhavam-me surpreendidos e afastavam-se. A embarcação estava ainda muito distante quando a noite caiu e a envolveu; durante toda essa noite extenuei-me a manter acesa a fogueira; as labaredas elevavam-se muito altas e brilhantes, enquanto, no meio das trevas, cintilavam os olhos dos animais. Quando despontou a aurora, a embarcação estava mais próxima e pude distinguir a vela de uma pequena barca. 0s meus olhos estavam fatigados da longa observação minha, e, apesar dos meus esforços para ver distintamente, eu não podia acreditar neles. Dois homens estavam sentados na barca, muito em baixo, um aproa, outro perto do leme. Mas o barco governava de modo estranho, sem apanhar o vento de feição e dando guinadas.

 Quando o dia se tornou mais claro, principiei a agitar os últimos vestígios do meu casaco, à guisa de sinal. Eles, porém, não pareceram dar por isso e continuaram sentados um em frente do outro. Fui até a ponta mais baixa do promontório, gesticulando e chamando, sem obter resposta, enquanto a barca prosseguia a sua rota, aparentemente sem destino, mas que a ia aproximando quase insensivelmente da enseada. De repente, sem que nenhum dos dois homens fizesse o menor movimento, um grande pássaro branco voou de dentro do navio, ficou-se um instante, e subiu pelo espaço afora com as suas enormes asas estendidas.

 Cessei então os meus gritos e assentando-me, com o queixo na mão, segui com o

 olhar o estranho barco. Lentamente, lentamente a barca ia-se afastando para

 oeste. Eu teria podido alcançá-la a nado, mas qualquer coisa, como um receio

 vago, me reteve.Pela tarde, a maré fê-la encalhar na areia e deixou-a uns cem

 metros a oeste das ruínas do recinto murado.

 Estavam mortos os homens que a ocupavam; estavam mortos de há muito tempo, tanto assim que eu quis levantá-los de onde se achavam. Um deles tinha uma espessa cabeleira ruiva como o capitão da Ipecacuanha e, no fundo da embarcação,

 achava-se um boné branco muito sujo. Enquanto eu estava assim ocupado ao pé do barco, três dos monstros resvalaram furtivamente para fora das moitas de

 arbustos e avançaram para mim sorvendo o ar pelas narinas. Ao vê-los, fui tomado

 de um dos meus espasmos de repugnância. Impeli com todas as minhas forças a

 pequena barca para fazê-la flutuar e saltei dentrodela. Dois dos brutos eram lobos que chegavam, com as narinas frementes e os olhos brilhantes; o terceiro era aquela indescritível hediondez formada de urso e de touro.

 Quando os vi aproximarem-se daqueles míseros restos, e os ouvi grunhir ameaçando-se uns aos outros, e quando vi o reflexo dos seus dentes brancos, um terror frenético sucedeu à minha repulsão. Voltei-lhes as costas, amainei a vela

 e principiei a remar para o mar largo, sem ousar voltar-me para trás.

 Aquela noite, conservei-me entre os recifes e a ilha; ao amanhecer, dirigi-me até a corrente de água doce para encher o pequeno barril que encontrei na barca.

 Então, com toda a paciência de que fui capaz, colhi uma certa quantidade de frutas, surpreendi e matei dois coelhos com os meus três últimos tiros; durante

 esse tempo a barca ficara amarrada a uma saliência muito pronunciada que havia

 no recife, onde a deixei com receio dos monstros.

 

 

 

 

 Durante as primeiras horas da noite, impelido por uma branda aragem de sudoeste,

 avancei lentamente e contentemente para o mar alto, enquanto a ilha diminuía

 cada vez mais na distância e a tênue espiral de fumaça das solfataras não

 parecia mais que uma linha cada vez mais delgada contra o céu brilhante e

 ardente do ocaso. 0 oceano elevava-se em volta de mim, ocultando-me aos olhos

 aquela mancha escura e baixa. 0 rastro glorioso do sol parecia desmoronar do céu

 em cascata rutilante, depois a claridade do dia diminuiu como se tivessem

 deixado cair uma cortina luminosa, e por fim os meus olhos exploraram aquele

 pélago de imensidade azul, que o sol enche e dissimula, e avistei as flutuantes

 multidões de estrelas. Do mar até às profundezas do céu reinava completo

 silêncio, e eu estava só, em meio da noite e daquele silêncio. Assim andei

 errante por espaço de três dias, meditando no que me tinha acontecido, sem

 realmente desejar muito tornar a ver a raça dos homens. Só restava a cobrir-me

 um trapo muito sujo que me envolvia o corpo; a minha cabeleira nada mais era do

 que uma intrincada confusão negra, portanto não é de espantar que aqueles que me encontraram me houvessem tomado por um louco. Isto poderá parecer

 extraordinário, mas, satisfeito tão somente por ter deixado a odiosa sociedade

 dos brutos, eu não experimentava desejo algum de me ver restituído à humanidade.

 Ao terceiro dia, fui recolhido por um brigue que ia de Apia para S. Francisco:

 nem o capitão, nem o imediato quiseram crer na minha história, presumindo que

 uma longa solidão e constantes perigos me houvessem feito perder a razão. Por

 isso, temendo que a opinião deles seja a dos outros, evitei contar a minha

 aventura, e pretendi não mais me lembrar do que me tinha acontecido, desde o

 naufrágio da Senhora Altiva até ao momento em que fui encontrado, isto é‚

durante o espaço de um ano.

 Tive de proceder com a máxima circunspeção para evitar que me julgassem atacado de alienação mental. Perseguiam-me as recordações da Lei, dos dois marinheiros mortos, das emboscadas nas trevas, do cadáver nas moitas de caniços. Enfim, por menos natural que isto possa parecer, ao regressar ao seio da humanidade, encontrei, em vez daquela confiança e daquela simpatia que contava tornar a experimentar, um acréscimo da incerteza e do temor que continuamente havia sentido durante a minha estadia na ilha. Ninguém me queria dar crédito, e eu

 parecia tão estranho aos homens, tendo naturalmente conservado o que quer que

 fosse de selvageria dos meus companheiros.

 Pretendem que o medo é uma moléstia; seja como for, posso assegurar que, há

 alguns anos, persegue-me o espírito um perpétuo temor, semelhante ao que poderia sentir um pequeno leão meio domesticado. A minha perturbação toma uma das mais esquisitas formas. Eu não me podia persuadir de que os homens e as mulheres que encontrava não fossem também um outro gênero, sofrivelmente humano, de monstros, de animais meio formados em conformidade com aparência exterior, de uma alma humana, os quais dentro em pouco se iam revestir da primitiva animalidade e deixar a descoberto sucessivamente uns e outros, sinais de bestialidade atávica.

 Mas confiei o caso a um homem extraordinariamente inteligente, um especialista

 de moléstias mentais, que tinha conhecido Moreau e que pareceu dar algum crédito

 às minhas narrações - e isto me foi um imenso alivio.

 Não ouso esperar que o terror daquela ilha me deixe jamais completamente, muito

 embora ele não seja a maior parte do tempo, mais que uma nuvem afastada, muito

 no fundo de meu espírito, uma lembrança, uma tímida suspeita; momentos há,

 porém, em que essa pequena nuvem se alastra e cresce até escurecer todo o céu.

 Se, então, eu olho para os meus semelhantes, que estão ao redor de mim, sinto

 recrudescerem as minha apreensões.

 Vejo semblantes carrancudos e irritados, outros amortecidos e perigosos, outros

 dúbios e mentirosos; nenhum deles possui a calma superioridade de uma alma

 razoável. Tenho a impressão de que o animal vai reaparecer de repente naqueles

 semblantes, que dentro em pouco a degradação dos monstros da ilha se vai

 novamente manifestar em maior escala. Sei que isto é uma ilusão, que essas

 aparências de homens e de mulheres que me rodeiam são realmente verdadeiros

 humanos, que se conservaram até o fim umas criaturas perfeitamente razoáveis,

 cheias de intenções benévolas e de terna solicitude, emancipadas da tirania do

 instinto e do modo algum submissas a qualquer Lei, seja qual for - em uma

 palavra, uns seres absolutamente diferentes dos monstros humanizados. E no

 entanto, não pude abster-me de fugir deles, de fugir dos seus olhares curiosos,

 das suas questões e do auxílio, e apenas almejava achar-me longe deles e só.

 Eis pela qual vivo agora perto da vasta planície, onde me posso refugiar, quando

 aquela sombra me oprime a alma. Então, muito aprazível se me torna a grande

 planura deserta sob o céu azul, varrido por todos os ventos. Quando eu vivia em

 Londres, esse horror era intolerável. Não havia meio de esquivar-me aos homens;

 as suas vozes entravam-me pelas janelas, e as portas fechadas não mais eram que

 uma insuficiente salvaguarda; eu saia a percorrer as ruas para combater a minha

 ilusão, e mulheres que andavam perambulando principiavam a cantarolar atrás de

 mim, homens famélicos e furtivos lançavam-me olhares de inveja, operários

 pálidos e extenuados passavam junto a mim tossindo, com os olhos abatidos e o

 andar apressado, como animais feridos perdendo o sangue; pessoas idosas,

 curvadas e melancólicas, caminhavam resmungando, indiferentes à loquacidade

 mofadora do rapazio que as seguia. Entrei então em uma capela, e, mesmo ai, tal

 era a minha perturbação, parecia-me que o sacerdote balbuciava "grandes

 pensares" como tinha feito o Homem-Macaco; ou então, ao entrar em uma

 biblioteca, os rostos atentos, inclinados sobre os livros, me pareciam os de

 pacientes criaturas à espreita da presa. Mas os semblantes sombrios e

 inexpressivos das pessoas que se me deparavam nos trens e nos ônibus eram-me .

 sobremodo repugnantes. Não me pareciam mais meus semelhantes do que se fossem uns cadáveres, de modo que não ousei mais viajar, a não ser quando tinha certeza de estar só. Até me parecia que eu mesmo não era uma criatura racional senão um animal torturado por uma estranha desordem moral que me impelia a vaguear solitário como um carneiro atacado de vertigem.

 Mas - mercê de Deus - esses acessos só raramente me acometem agora. Afastei-me da confusão das cidades e das multidões, e passo os dias rodeado de livros

 criteriosos, que são como que umas janelas abertas sobre esta vida que vivemos,

 refletindo as almas luminosas dos homens. Poucas pessoas estranhas vejo e o meu

 serviço doméstico é dos mais restritos.

 Consagro todo o tempo à leitura e a fazer experiências de química e, quando a

 atmosfera esta límpida, passo a maior parte das noites a estudar astronomia.

 Porquanto, posto que sem que eu saiba como nem porque, das cintilantes multidões do céu, vem-me o sentimento de uma proteção e de uma paz infindas. É, creio eu, nas eternas e vastas leis da matéria, e não nos cuidados, nos crimes e nos

 tormentos quotidianos dos homens, que o que em nós é superior ao animal, deve

 achar a consolação e a esperança. Espero-o ou ser-me-ia impossível viver. E assim termina a minha história na esperança e na solidão. 

 

H. G. Wells

 

Carlos Cunha  Arte & Produção Visual