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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COMO E PORQUE SOU ROMANCISTA / José de Alencar
COMO E PORQUE SOU ROMANCISTA / José de Alencar

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Como e Porque sou Romancista

AUTOBIOGRAFIA INTELECTUAL

 

Capítulo I

Meu amigo,

Na conversa que tivemos, há cinco dias, exprimiu V.  o desejo de colher acerca de minha peregrinação literária, alguns pormenores  dessa parte íntima de nossa existência, que geralmente fica à sombra, no regaço  da família ou na reserva da amizade.

Sabendo de seus constantes esforços para enriquecer  o ilustrado autor do Dicionário Bibliográfico, de copiosas notícias que ele  dificilmente obteria a respeito de escritores brasileiros, sem a valiosa  coadjuvação de tão erudito glossólogo, pensei que me não devia eximir de  satisfazer seu desejo e trazer a minha pequena quota para a amortização desta  dívida de nossa ainda infante literatura. Como bem reflexionou V., há na existência dos  escritores fatos comuns, do viver quotidiano, que todavia exercem uma  influência notável em seu futuro e imprimem em suas obras o cunho individual.

Estes fatos jornaleiros, que à própria pessoa muitas  vezes passam despercebidos sob a monotonia do presente, formam na biografia do  escritor a urdidura da tela, que o mundo somente vê pela face do matiz e dos  recamos.

Já me lembrei de escrever para meus filhos essa  autobiografia literária, onde se acharia a história das criaturinhas enfezadas,  de que, pôr mal de meus pecados, tenho povoado as estantes do Sr. Garnier.

Seria esse o livro de meus livros. Se alguma hora  de pachorra, me dispusesse a refazer a cansada jornada dos quarenta e quatro  anos, já completos os curiosos de anedotas literárias saberiam, além de muitas  outras coisas mínimas, como a inspiração d’O Guarani, pôr mim escrito aos 27  anos, caiu na imaginação da criança de nove, ao atravessar as matas e sertões  do norte, em jornada do Ceará à Bahia.

Enquanto não vem ao lume do papel, que para o da  imprensa ainda é cedo, essa obra futura, quero em sua intenção fazer o rascunho  de um capítulo.

Será daquele, onde se referem as circunstâncias, a  que atribuo a predileção de meu espírito pela forma literária do romance.

 

Capítulo II

No ano de 1840, freqüentava eu o Colégio de  Instrução Elementar, estabelecido à Rua do Lavradio, nº 17, e dirigido pelo Sr.  Januário Matheus Ferreira, a cuja memória eu tributo a maior veneração.

Depois daquele que é para nós meninos a encarnação  de Deus e o nosso humano Criador, foi esse o primeiro homem que me incutiu  respeito, em quem acatei o símbolo da autoridade.

Quando me recolho da labutação diária com o  espírito mais desprendido das preocupações do presente, e sucede-me ao passar  pela Rua do Lavradio pôr os olhos na tabuleta do colégio, que ainda lá está na  sacada do nº.17, mas com diversa designação; transporto-me insensivelmente  àquele tempo, em que de fraque e boné, com os livros sobraçados, eu esperava  ali na calçada fronteira o toque da sineta que anunciava a abertura das aulas.

Toda a minha vida colegial se desenha no espírito  com tão vivas cores, que parecem frescas de ontem, e todavia mais de trinta  anos já lhes pairaram sobre. Vejo o enxame dos meninos, alvoriçando na loja,  que servia de saguão; assisto aos manejos da cabala para a próxima eleição do  monitor geral; ouço o tropel do bando que sobe as escadas, e se dispersa no  vasto salão, onde cada um busca o seu banco numerado.

Mas o que sobretudo assoma nessa tela é o vulto  grave de Januário Mateus Ferreira, como eu o via passeando diante da classe,  com um livro na mão e a cabeça reclinada pelo hábito da reflexão.

Usava ele de sapatos rinchadores; nenhum dos alunos  do seu colégio ouvia de longe aquele som particular, na volta de um corredor,  que não sentisse um involuntário sobressalto.

Januário era talvez ríspido e severo em demasia;  orem nenhum professor o excedeu no zelo e entusiasmo com que desempenhava o seu  árduo ministério. Identificava-se com o discípulo; transmitia-lhe suas emoções  e tinha o dom de criar no coração infantil os mais nobres estímulos, educando o  espírito com a emulação escolástica para os grandes certames da inteligência.

Dividia-se o diretor pôr todas as classes, embora  tivesse cada uma seu professor especial; desse modo andava sempre ao corrente  do aproveitamento de seus alunos, e trazia os mestres como os discípulos em  constante inspeção. Quando, nesse revezamento de lições, que ele de propósito  salteava, acontecia achar atrasada alguma classe, demorava-se com ela dias e  semanas, até que obtinha adianta-la e só então a restituía ao respectivo  professor.

Meado o ano, porém, o melhor dos cuidados do  diretor voltava-se para as últimas classes, que ele se esmerava em preparar  para os exames.

Eram estes dias de gala e de honra para o colégio,  visitado pôr quanto havia na Corte de ilustre em política e letras.

Pertencia eu à sexta classe, e havia conquistado a  frente da mesma, não pôr superioridade intelectual, sim pôr mais assídua  aplicação e maior desejo de aprender.

Januário exultava a cada uma de minhas vitórias,  como se fora ele próprio que estivesse no banco dos alunos, a disputar-lhes o  lugar, em vez de achar-se como professor dirigindo os seus discípulos.

Rara vez sentava-se o diretor; o mais do tempo  levava a andar de um a outro lado da sala em passo moderado. Parecia  inteiramente distraído da classe, para a qual nem volvia os olhos; e todavia  nada lhe escapava. O aparente descuido punha em prova a atenção incessante que  ele exigia dos alunos, e da qual sobretudo confiava a educação da inteligência.

Uma tarde ao findar a aula, houve pelo meio da  classe um erro. – Adiante, disse Januário, sem altear a voz, nem tirar os olhos  do livro. Não recebendo resposta ao cabo de meio minuto, repetiu a palavra, e  assim de seguida mais seis vezes.

Calculando pelo número dos alunos, estava na mente  de que só à sétima vez, depois de chegar ao fim da classe é que me tocava  responder como o primeiro na ordem da colocação.

Mas um menino dos últimos lugares tinha saído  poucos momentos antes com licença, e escapava-me esta circunstância. Assim,  quando sorrindo eu esperava a palavra do professor para dar o quinau, e ao  ouvir o sétimo adiante, perfilei-me no impulso de responder; um olhar de  Januário gelou-me a voz nos lábios.

Compreendi; tanto mais quanto o menino ausente  voltava a tomar seu lugar. Não me animei a reclamar; porém creio que em minha  fisionomia se estampou, com a sinceridade e a energia da infância, o  confrangimento de minha alma.

Meu imediato e êmulo, que me foi depois amigo e  colega de ano em São Paulo, era o Aguiarzinho (Dr. Antônio Nunes de Aguiar),  filho do distinto general do mesmo nome, bela inteligência e nobre coração  ceifados em flor, quando o mundo lhe abria de par em par as suas portas de ouro  e pórfiro.

Ansioso aguardava ele a ocasião de se desforrar da  partida que lhe eu havia ganho, depois de uma luta porfiada – Todavia não lhe  acudiu a resposta de pronto; e passaria a sua vez, se o diretor não lhe  deixasse tempo bastante para maior esforço do que fora dado aos outros e  sobretudo a mim – Afinal ocorreu-lhe a resposta, e eu com o coração transido,  cedi ao meu vencedor o lugar da honra que tinha conquistado de grau em grau, e  conseguia sustentar havia mais de dois meses.

Nos trinta anos vividos desde então, muita vez fui  esbulhado do fruto de meu trabalho pela mediocridade agaloada; nunca senti senão  o desprezo que merecem tais pirraças da fortuna, despeitada contra aqueles que  não a incensam.

Naquele momento, porém, vendo perdido o prêmio de  um estudo assíduo, e mais pôr surpresa, do que eu traguei silenciosamente, para  não abater-me ante a adversidade.

Nossa classe trabalhava em uma varanda ao rés do  chão, cercada pelo arvoredo do quintal.

Quando, pouco antes da Ave-Maria, a sineta dava  sinal da hora de encerrar as sulas, Januário fechava o livro; e com o tom breve  do comando ordenava uma espécie de manobra que os alunos executavam com  exatidão militar.

Pôr causa da distância da varanda, era quando todo  o colégio já estava reunido no grande salão e os meninos em seus assentos  numerados, que entrava em passo de marcha a sexta classe, a cuja frente vinha  eu, o mais pirralho e enfezadinho da turma, em que o geral se avantajava na  estatura, fazendo eu assim as vezes de um ponto.

A constância com que me conservava à frente da  classe no meio das alterações que em outras se davam todos os dias, causava  sensação no povo colegial; faziam-se apostas de lápis e canetas; e todos os  olhos se voltavam para ver se o caturrinha do Alencar 2º (era o meu apelido  colegial) tinha afinal descido de monitor de classe.

O general derrotado a quem a sua ventura reservava  a humilhação de assistir à festa da vitória, jungido ao carro triunfal de seu  êmulo, não sofria talvez a dor que eu então curti, só com a idéia de entrar no  salão, rebaixado de meu título de monitor, e rechaçado para o segundo lugar.

Se ao menos se tivesse dado o fato no começo da  lição, restava-me a esperança de com algum esforço recuperar o meu posto; mas  pôr cúmulo da infelicidade sobreviera o meu desastre justamente nos últimos  momentos, quando a hora estava a findar.

Foi no meio dessas reflexões que tocou a sineta, e  as suas badaladas ressoaram em minha alma como o dobre de uma campa.

Mas Januário que era acerca de disciplina colegial  de uma pontualidade militar, não deu pelo aviso e amiudou as perguntas,  percorrendo apressadamente a classe. Poucos minutos depois eu recobrava meu  lugar, e erguia-me trêmulo para tomar a cabeça do banco.

O júbilo, que expandiu a fisionomia sempre  carregada do diretor, eu próprio não o tive maior, com o abalo que sofri. Ele  não se pôde conter e abraçou-me diante da classe.

Naturalmente a questão proposta e cuja solução  deu-me a vitória, era difícil; e pôr isso atribuía-me ele o mérito, que não  provinha talvez senão da sorte, para não dizer do acaso.

Momentos depois entrava eu pelo salão à frente da  classe, onde me conservei até o exame.

 

Capítulo III

Mais tarde, quando a razão, como o fruto, despontou  sob a flor da juventude, muitas vezes cogitei sobre esse episódio de infância,  que deixara em meu espírito, uma vaga dúvida a respeito do caráter de Januário.

Então o excessivo rigor que se me tinha afigurado  injusto, tomava o seu real aspecto; e me aparecia como o golpe rude, mas  necessário que dá têmpera ao aço. Porventura notara o diretor de minha parte  uma confiança que deixava em repouso as minhas faculdades, e da qual proviera o  meu descuido.

Este episódio escolástico veio aqui pôr demais,  trazido pelo fio das reminiscências. Serve entretanto para mostrar-lhe o  aproveitamento que deviam tirar os alunos desse método de ensino.

Sabíamos pouco; mas esse pouco sabíamos bem. Aos  onze anos não conhecia uma só palavra de língua estrangeira, nem aprendera mais  do que as chamadas primeiras letras.

Muitos meninos, porém, que nessa idade tagarelam em  várias línguas e já babujam nas ciências, não recitam uma página de Frei  Francisco de São Luís, ou uma ode do Padre Caldas, com a correção, nobreza,  eloqüência e alma que Januário sabia transmitir a seus alunos.

Essa prenda que a educação deu-me para toma-la  pouco depois, valeu-me em casa o honroso cargo de ledor, com que me eu  desvanecia, como nunca me sucedeu ao depois no magistério ou no parlamento.

Era eu quem lia para minha boa mãe não somente as  cartas e os jornais, como os volumes de uma diminuta livraria romântica formada  ao gosto do tempo.

Morávamos, então, na Rua do Conde, nº 55. Aí nessa  casa preparou-se a grande revolução parlamentar que entregou ao Sr. D. Pedro II  o exercício antecipado de suas prerrogativas constitucionais.

A propósito desse acontecimento histórico, deixe  passar aqui nesta confidência inteiramente literária, uma observação que me  acode e, se escapa agora, talvez não volte nunca mais.

Uma noite pôr semana, entravam misteriosamente em  nossa casa os altos personagens filiados ao Clube Maiorista de que era  presidente o Conselheiro Antônio Carlos e Secretário o Senador Alencar.

Celebravam-se os serões em um aposento do fundo,  fechando-se nessas ocasiões a casa às visitas habituais, a fim de que nem elas  nem os curiosos da rua suspeitassem do plano político, vendo iluminada a sala  de frente.

Enquanto deliberavam os membros do Clube, minha boa  mãe assistia ao preparo de chocolate com bolinhos, que era costume oferecer aos  convidados pôr volta de nove horas, e eu, ao lado com impertinências de filho  querido, insistia pôr saber o que ali ia fazer aquela gente.

Conforme o humor em que estava, minha boa mãe às  vezes divertia-se logrando com histórias a minha curiosidade infantil; outras  deixava-me falar às paredes e não se distraía de suas ocupações de dona de  casa.

Até que chegava a hora do chocolate. Vendo partir  carregada de tantas gulosinas a bandeja que voltava completamente destroçada,  eu que tinha os convidados na conta de cidadãos respeitáveis, preocupados dos  mais graves assuntos, indignava-me ante aquela devastação e dizia com a mais  profunda convicção:

-O que estes homens vêm fazer aqui é regalarem-se  de chocolate.

Essa, a primeira observação do menino em coisas de  política, ainda a não desmentiu a experiência do homem. No fundo de todas as  evoluções lá está o chocolate embora sob vários aspectos.

Há caracteres íntegros, como o do Senador Alencar,  apóstolos sinceros de uma idéia e mártires dela. Mas estes são esquecidos na  hora do triunfo, quando não servem de vítimas para aplacar as iras celestes.

Suprima este mau trecho que insinuou-se malgrado e  contra todas as usanças em uma palestra, senão au coin du feu, em todo o caso  aqui neste cantinho da imprensa.

Afora os dias de sessão, a sala do fundo era a  estação habitual da família.

Não havendo visitas de cerimônia sentava-se minha  boa mãe e sua irmã D. Florinda com os amigos que pareciam, ao redor de uma mesa  redonda de jacarandá, no centro da qual havia um candeeiro.

Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de  costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros  momentos à conversação, passava-se à leitura e era eu chamado ao lugar de  honra.

Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem  a contragosto de um sono começado ou de um folguedo querido; já naquela idade a  reputação é um fardo e bem pesado.

Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão  interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso, as  pausas para dar lugar às expansões do auditório, o qual desfazia-se em  recriminações contra algum mau personagem, ou acompanhava de seus votos e  simpatias o herói perseguido.

Uma noite, daquelas em que eu estava mais possuído  do livro, lia com expressão uma das páginas mais comoventes da nossa  biblioteca. As senhoras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucos  momentos depois não puderam conter os soluços que rompiam-lhes o seio.

Com a voz afogada pela comoção e a vista empanada  pelas lágrimas, eu também cerrando ao peito o livro aberto, disparei em pranto  e respondia com palavras de consolo às lamentações de minha mãe e suas amigas.

Nesse instante assomava à porta um parente nosso, o  Revd.º Padre Carlos Peixoto de Alencar, já assustado com o choro que ouvira ao  entrar – Vendo-nos a todos naquele estado de aflição, ainda mais perturbou-se:

-Que aconteceu? Alguma desgraça? Perguntou  arrebatadamente.

As senhoras, escondendo o rosto no lenço para  ocultar do Padre Carlos o pranto e evitar seus remoques, não proferiram  palavra. Tomei eu a mim responder:

-Foi o pai de Amanda que morreu! Disse,  mostrando-lhe o livro aberto. Compreendeu o Padre Carlos e soltou uma gargalhada,  como ele as sabia dar, verdadeira gargalhada homérica, que mais parecia uma  salva de sinos a repicarem do que riso humano. E após esta, outra e outra, que  era ele inesgotável, quando ria de abundância de coração, com o gênio  prazenteiro de que a natureza o dotara.

Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e  romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma  literária que é entre todas a de minha predileção?

Não me animo a resolver esta questão psicológica,  mas creio que ninguém contestará a influência das primeiras impressões.

Já vi atribuir o gênio de Mozart e sua precoce  revelação à circunstância de ter ele sido acalentado no berço e criado com  música.

Nosso repertório romântico era pequeno; compunha-se  de uma dúzia de obras entre as quais primavam a Amanda e Oscar, Saint-Clair das  Ilhas, Celestina e outras de que já não me recordo.

Esta mesma escassez, e a necessidade de reler uma e  muitas vezes o mesmo romance, quiçá contribuiu para mais gravar em meu espírito  os moldes dessa estrutura literária, que mais tarde deviam servir aos informes  esboços do novel escritor.

 

Capítulo IV

O primeiro broto da semente que minha boa mãe  lançara em meu espírito infantil, ignara dos desgostos que preparava a seu  filho querido, veio dois anos depois.

Entretanto é preciso que lhe diga. Se a novela foi  a minha primeira lição de literatura, não foi ela que me estreou na carreira de  escritor. Este título cabe a outra composição, modesta e ligeira, e pôr isso  mesmo mais própria para exercitar um espírito infantil.

O dom de produzir a faculdade criadora, se a tenho,  foi a charada que a desenvolveu em mim, e eu teria prazer em referir-lhe esse  episódio psicológico, se não fosse o receio de alongar-me demasiado, fazendo  novas excursões fora do assunto que me produz.

Foi em 1842.

Já então havíamos deixado a casa da Rua do Conde e  morávamos na Chácara da Rua Maruí, nº 7, donde também saíram importantes  acontecimentos de nossa história política. E todavia ninguém se lembrou ainda  de memorar o nome do Senador Alencar, nem mesmo pôr esse meio econômico de uma  esquina de rua.

Não vai nisso mais que um reparo, pois sou avesso a  semelhante modo de honrar a memória de beneméritos; além de que ainda não perdi  a esperança de escrever esse nome de minha veneração no frontispício de um  livro que lhe sirva de monumento. O seu vulto histórico, não o atingem pôr  certo as calúnias póstumas que, sem reflexão, foram acolhidas em umas páginas  ditas de história constitucional; mas quantos dentre vós estudam  conscienciosamente o passado?

Como a revolução parlamentar da maioridade, a  revolução popular de 1842 também saiu de nossa casa, embora o plano definitivo  fosse adotado em casa do Senador José Bento, à Rua do Conde, 39

Nos paroxismos, quando a abortada revolução já não  tinha glórias, mas só perigos para os seus adeptos, foi na Chácara do Senador  Alencar que os perseguidos acharam asilo, em 1842 como em 1848.

Entre os nossos hóspedes da primeira revolução,  estava o meu excelente amigo Joaquim Sombra, que tomara parte no movimento  sedicioso do Exu e sertões de Pernambuco.

Contava ele então os seus vinte e poucos anos:  estava na flor da mocidade, cheio de ilusões e entusiasmos. Meus versos  arrebentados à força de os esticar, agradavam-lhe ainda assim, porque no fim de  contas eram um arremedo de poesia; e porventura levavam um perfume da primavera  da alma.

Vendo-me ele essa mania de rabiscar, certo dia  propôs-me que aproveitasse para uma novela o interessante episódio da sedição,  do qual era ele o protagonista.

A idéia foi aceita com fervor e tratamos logo de a  pôr em obra.

A cena era em Pajeú de Flores, nome que só pôr si  enchia-me o espírito da fragrância dos campos nativos, sem falar dos encantos  com que os descrevia o meu amigo.

Esse primeiro rascunho foi-se com os folguedos da  infância que o viram nascer. Das minhas primícias literárias nada conservo;  lancei-as ao vento, como palhiço que eram da primeira copa.

Não acabei o romance do meu amigo Sombra; mas em  compensação de não te-lo feito herói de um poema, coube-me, vinte e sete anos  depois, a fortuna mais prosaica de nomeá-lo coronel, posto que ele dignamente  ocupa e no qual presta relevantes serviços à causa pública.

Um ano depois, parti para São Paulo, onde ia estudar  os preparatórios que me faltavam para a matrícula no curso jurídico.

 

Capítulo V

Com a minha bagagem, lá no fundo da canastra, iam  uns cadernos escritos em letra miúda e conchegada. Eram o meu tesouro  literário.

Ali estavam fragmentos de romances, alguns apenas  começados, outros já no desfecho, mas ainda sem princípio.

De charadas e versos, nem lembrança. Estas flores  efêmeras das primeiras águas tinham passado com elas. Rasgara as páginas dos  meus canhenhos e atirara os fragmentos no turbilhão das folhas secas das  mangueiras, a cuja sombra folgara aquele ano feliz de minha infância.

Nessa época tinha eu dois moldes para o romance.

Um merencório, cheio de mistérios e pavores; esse,  o recebera das novelas que tinha lido. Nele a cena começava nas ruínas de um  castelo, amortalhadas pelo baço clarão da lua; ou nalguma capela gótica  frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma  campa.

O outro molde, que me fora inspirado pela narrativa  pitoresca do meu amigo Sombra, era risonho, loução, brincado, recendendo graças  e perfumes agrestes. Aí a cena abria-se em uma campina, marchetada de flores, e  regada pelo sussurrante arroio que a bordava de recamos cristalinos.

Tudo isto, porém, era esfumilho que mais tarde  devia apagar-se.

A página acadêmica é para mim, como para os que a  viveram, riquíssima de reminiscências, e nem podia ser de outra forma, pois  abrange a melhor monção da existência.

Não tomarei dela, porém, senão o que tem relação  com esta carta.

Ao chegar a São Paulo, era eu uma criança de treze  anos, cometida aos cuidados de um parente, então estudante do terceiro ano, e  que atualmente figura com lustre na política e na magistratura.

Algum tempo depois de chegado, instalou-se a nossa  república ou comunhão acadêmica à Rua de São Bento, esquina da Rua da Quitanda,  em um sobradinho acachapado, cujas lojas do fundo eram ocupadas pôr  quitandeiras.

Nossos companheiros foram dois estudantes do quinto  ano; um deles já não é deste mundo; o outro pertence à alta magistratura, de  que é ornamento. Naqueles bons tempos da mocidade, deleitava-o a literatura e  era entusiasta do Dr. Joaquim Manuel de Macedo que pouco havia publicado o seu  primeiro e gentil romance. – A Moreninha.

Ainda me recordo das palestras em que meu  companheiro de casa falava com abundâncias de coração em seu amigo e nas festas  campestres do romântico Itaboraí, das quais o jovem escritor era o ídolo  querido.

Nenhum dos ouvintes bebia esses pormenores com  tamanha avidez como eu, para quem eram completamente novos. Com a timidez e o  acanhamento de meus treze anos, não me animava a intervir na palestra; escutava  à parte; e pôr isso ainda hoje tenho-as gravadas em minhas reminiscências, a  estas cenas do viver escolástico.

Que estranho sentir não despertava em meu coração  adolescente a notícia dessas homenagens de admiração e respeito tributados ao  jovem autor d’A Moreninha! Qual régio diadema valia essa auréola de entusiasmo  a cingir o nome de um escritor?

Não sabia eu então que em meu país essa luz, que  dizem glória, e de longe se nos afigura radiante e esplêndida, não é senão o  baço lampejo de um fogo de palha.

Naquele tempo o comércio dos livros era, como ainda  hoje, artigo de luxo; todavia, apesar de mais baratas, as obras literárias  tinham menor circulação. Provinha isso da escassez das comunicações com a  Europa, e da maior raridade de livrarias e gabinetes de leitura.

Cada estudante, porém, levava consigo a modesta  provisão que juntara durante as férias, e cujo uso entrava logo para a comunhão  escolástica. Assim correspondia São Paulo às honras de sede de uma academia,  tornando-se o centro do movimento literário.

Uma das livrarias, a que maior cabedal trazia a  nossa biblioteca, era de Francisco Otaviano, que herdou do pai uma escolhida  coleção das obras dos melhores escritores da literatura moderna, a qual o jovem  poeta não se descuidava de enriquecer com as últimas publicações.

Meu companheiro de casa era dos amigos de Otaviano,  e estava no direito de usufruir sua opulência literária. Foi assim que um dia  vi pela primeira vez o volume das obras completas de Balzac, nessa edição em  folha que os tipógrafos da Bélgica vulgarizam pôr preço módico.

As horas que meu companheiro permanecia fora,  passava-as eu com o volume na mão, a reler os títulos de cada romance da  coleção, hesitando na escolha daquele pôr onde havia de começar. Afinal  decidia-me pôr um dos mais pequenos; porém, mal começada a leitura, desistia  ante a dificuldade.

Tinha eu feito exame de francês à minha chegada em  São Paulo e obtivera aprovação plena, traduzindo uns trechos do Telêmaco e da  Henriqueida; mas, ou soubesse eu de outiva a versão que repeti, ou o francês de  Balzac não se parecesse em nada com o de Fenelon e Voltaire; o caso é que não  conseguia compreender um período de qualquer dos romances da coleção.

Todavia achava eu um prazer singular em percorrer  aquelas páginas, e pôr um ou outro fragmento de idéia que podia colher nas  frases indecifráveis, imaginava os tesouros que ali estavam defesos à minha  ignorância.

Conto-lhe este pormenor para que veja quão  descurado foi o meu ensino de francês, falta que se deu em geral com toda a  minha instrução secundária, a qual eu tive de refazer na máxima parte, depois  de concluído o meu curso de direito, quando senti a necessidade de criar uma  individualidade literária.

Tendo meu companheiro concluído a leitura de  Balzac, a instâncias minhas, passou-me o volume, mas constrangido pela oposição  de meu parente que receava dessa diversão.

Encerrei-me com o livro e preparei-me para a luta.  Escolhido o mais breve dos romances, armei-me do dicionário e, tropeçando a  cada instante, buscando significados de palavra em palavra, tornando atrás para  reatar o fio da oração, arquei sem esmorecer com a ímproba tarefa. Gastei oito  dias com a Grenadière; porém um mês depois acabei o volume de Balzac; e no  resto do ano li o que então havia de Alexandre Dumas e Alfredo Vigny, além de  muito de Chateaubriand e Victor Hugo.

A escola francesa, que eu então estudava nesses  mestres da moderna literatura, achava-me preparado para ela. O molde do  romance, qual mo havia revelado pôr mera casualidade aquele arrojo de criança a  tecer uma novela com os fios de uma ventura real, fui encontra-lo fundido com a  elegância e beleza que jamais lhe poderia dar.

E aí está, porque justamente quando a sorte me  deparava o modelo a imitar, meu espírito desquita-se dessa, a primeira e a mais  cara de suas aspirações, para devanear pôr outras devesas literárias, onde  brotam flores mais singelas e modestas.

O romance, como eu agora o admirava, poema da vida  real, me aparecia na altura dessas criações sublimes, que a Providência só  concede aos semideuses do pensamento; e que os simples mortais não podem ousar,  pois arriscam-se a derreter-lhes o sol, como a Ícaro, as penas de cisnes  grudadas com cera.

Os arremedos de novelas, que eu escondia no fundo  de meu baú, desprezei-os ao vento. Pesa-me ter destruído as provas desses  primeiros tentamens que seriam agora relíquias para meus filhos e estímulos  para fazerem melhor. Só pôr isso, que de valor literário não tinham nem ceitil.

Os dois primeiros anos que passei em São Paulo.  Foram para mim de contemplação e recolhimento de espírito. Assistia arredio ao  bulício acadêmico e familiariza-me de parte com esse viver original,  inteiramente desconhecido para mim, que nunca fora pensionista de colégio, nem  havia até então deixado o regaço da família.

As palestras à mesa do chá, as noites de cinismo  conversadas até o romper da alva, entre a fumaça dos cigarros; as anedotas e  aventuras da vida acadêmica, sempre repetidas; as poesias clássicas da  literatura paulistana e as cantigas tradicionais do povo estudante; tudo isto  sugava o meu espírito a linfa, para mais tarde desabrochar a talvez pálida  florinha.

Depois vinham os discursos recitados nas  solenidades escolares, alguma nova poesia de Otaviano, os brindes nos banquetes  de estudantes, o aparecimento de alguma obra recentemente publicada na Europa e  outras novidades literárias, que agitavam a rotina de nosso viver habitual e  comoviam um instante a colônia acadêmica.

Não me recordo de qualquer tentâmen literário de  minha parte, até fins de 1844. Os estudos de filosofia e história preenchiam o  melhor de meu tempo, e de todo me traíam..

O único tributo que paguei então à moda acadêmica,  foi o das citações. Era nesse ano bom-tom ter de memórias frases e trechos  escolhidos dos melhores autores, para repeti-los a propósito.

Vistos de longe, e através da razão, esses  arremedos de erudição, arranjados com seus remendos alheios, nos parecem  ridículos; e todavia é esse jogo de imitação que primeiro imprime ao espírito a  flexibilidade, como ao corpo o da ginástica.

Em 1845, voltou-me o prurido de escritor; mas esse  ano foi consagrado à mania, que então grassava, de baironizar. Todo estudante  de alguma imaginação queria ser um Byron; e tinha pôr destino inexorável copiar  ou traduzir o bardo inglês.

Confesso que não me sentia o menor jeito para essa  transfusão; talvez pelo meu gênio taciturno e concentrado que já tinha em si  melancolia de sobejo, para não carecer desse empréstimo. Assim é que nunca  passei de algumas peças ligeiras, das quais não me figurava herói e nem mesmo  autor; pois divertia-me em escreve-las, com o nome de Byron, Hugo ou Lamartine,  nas paredes de meu aposento, à Rua de Santa Tereza, onde alguns camaradas  daquele tempo, ainda hoje meus bons amigos, os Doutores Costa Pinto e José  Brusque talvez se recordem de as terem lido.

Era um discurso aos ilustres poetas atribuir-lhes  versos de confecção minha; mas a broxa do caiador, incumbido de limpar a casa  pouco tempo depois de minha partida, vingou-os desse inocente estratagema, com  que nesse tempo eu libava a delícia mais suave para o escritor: ouvir ignoto o  louvor de seu trabalho.

Que satisfação íntima não tive eu, quando um  estudante que era então o inseparável amigo de Otaviano e seu irmão em letras,  mas hoje chama-se o Barão de Ourém, releu com entusiasmo uma dessas poesias,  seduzido sem dúvida, pelo nome de pseudo-autor! É natural que hoje nem se lembre  desse pormenor; e mal saiba que todos os cumprimentos que depois recebi de sua  cortesia, nenhum valia aquele espontâneo movimento.

Os dois anos seguintes pertencem à imprensa  periódica. Em outra ocasião escreverei esta, uma das páginas mais agitadas da  minha adolescência. Daí datam as primeiras raízes de jornalista; como todas as  manifestações de minha individualidade, essa também iniciou-se no período  orgânico.

O único homem novo e quase estranho que nasceu em  mim com a virilidade, foi o político. Ou não tinha vocação para essa carreira,  ou considerava o governo do estado coisa tão importante e grave, que não me  animei nunca a ingerir-me nesses negócios. Entretanto eu saía de uma família  para quem a política era uma religião e onde se haviam elaborado grandes  acontecimentos de nossa história.

Fundamos, os primeiranistas de 1846, uma revista  semanal sob o título – Ensaios Literários.

Dos primitivos colaboradores desse periódico,  saudado no seu aparecimento pôr Otaviano e Olímpio Machado, já então redatores  da Gazeta Oficial, faleceu, ao terminar o curso, o Dr. Araújo, inspirado poeta.  Os outros aí andam dispersos pelo mundo. O Dr. José Machado Coelho de Castro é  presidente do Banco do Brasil; o Dr. João Guilherme Whitaker é juiz de direito  em São João do Rio Claro; e o conselheiro João de Almeida Pereira, depois de  ter luzido no ministério e no parlamento, repousa das lides políticas no  remanso da vida privada.

 

Capítulo VI

Foi somente em 1848 que ressurgiu em mim a veia do  romance.

Acabava de passar dois meses em minha terra natal.  Tinha-me repassado das primeiras e tão fagueiras recordações da infância, ali  nos mesmos sítios queridos onde nascera.

Em Olinda onde estudava meu terceiro ano e na velha  biblioteca do convento de São Bento a ler os cronistas da era colonial,  desenhavam-se a cada instante, na tela das reminiscências, as paisagens de meu  pátrio Ceará.

Eram agora os seus tabuleiros gentis; logo após as  várzeas amenas e graciosas; e pôr fim as matas seculares que vestiam as seras  como a ararróia verde do guerreiro tabajara. E através destas também esfumavam-se outros  painéis, que me representavam o sertão em todas as suas galas de inverno, as  selvas gigantes que se prolongam até os Andes, os raios caudalosos que  avassalam o deserto, e o majestoso São Francisco transformado em um oceano,  sobre o qual eu navegara um dia.

Cenas estas que eu havia contemplado com olhos de  menino dez anos antes, ao atravessar essas regiões em jornada do Ceará à Bahia;  e que agora se debuxavam na memória do adolescente, e coloriam-se ao vivo com  as tintas frescas da palheta cearense.

Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com  o primeiro broto d’O Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando  as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um  tema para o meu romance; ou peço menos um protagonista, uma cena e uma época.

Recordo-me de que para o martírio do Padre  Francisco Pinto, morto pelos índios do Jaguaribe, se volvia meu espírito com  predileção. Intentava eu figurá-lo na mesma situação em que se achou o Padre  Anchieta, na praia de Iperoíg; mas sucumbindo afinal à tentação. A luta entre o  apóstolo e o homem, tal seria o drama, para o qual de certo me faleciam as  forças.

Atualmente que, embora em cena diversa, já tratei o  assunto em um livro próximo a vir a luma, posso avaliar da dificuldade da  empresa.

Súbito todas aquelas lucubrações literárias  apagaram-se em meu espírito. A moléstia tocara-me com sua mão descarnada ; e  deixou-me uma espécie de terror da solidão em que tanto se deleitava o meu  espírito, e onde se embalavam as cismas e devaneios de fantasia. Foi quando  desertei de Olinda, onde só tinha casa de estado, e aceitei a boa hospitalidade  de meu velho amigo Dr. Camarim, então colega de ano e um dos seis da colônia  paulistana, a que também pertenciam o conselheiro Jesuíno Marcondes e o Dr.  Luís Álvares.

Dormiram as letras, e creio que também a ciência,  um sono folgado. De pouco se carecia para fazer então em Olinda um exame  sofrível e obter a aprovação plena. Em novembro regressei à Corte, com a  certidão precisa para a matrícula do 4º ano,. Tinha cumprido o meu dever. Nessas férias, enquanto se desenrolava a rebelião  de que eu vira o assomo e cuja catástrofe chorei com os meus olhos, refugiei-me  da tristeza que envolvia nossa casa, na literatura amena.

Com as minhas bem parcas sobras, tomei uma  assinatura em um gabinete de leitura que então havia à Rua da Alfândega, e que  possuía copiosa coleção das melhores novelas e romances até então saídos dos  prelos franceses e belgas.

Nesse tempo, como ainda hoje, gostava de mar; mas  naquela idade as predileções têm mais vigor e são paixões. Não somente a vista  do oceano, suas majestosas perspectivas, a magnitude de sua criação, como  também a vida marítima, essa temeridade do homem em luta com o abismo, me  enchiam de entusiasmo e admiração.

Tinha em um ano atravessado o oceano quatro vezes,  e uma delas no brigue-escuna Laura que me transportou do Ceará ao Recife com  uma viagem de onze dias à vela. Essas impressões recentes alimentavam a minha  fantasia.

Devorei os romances marítimos de Walter Scott e  Cooper, um após outro; passei aos do Capitão Marryat e depois a quantos se  tinham escrito desse gênero, pesquisa em que me ajudava o dono do gabinete, em  francês, de nome Cremieux, se bem me recordo, o qual tinha na cabeça toda a sua  livraria.

Li nesse discurso muita coisa mais: o que me  faltava de Alexandre Dumas e Balzac, o que encontrei de Arlincourt, Frederico  Soulié, Eugênio Sue e outros. Mas nada valia para mim as grandiosas marinhas de  Scott e Cooper e os combates heróicos de Marryat.

Foi então, faz agora vinte e seis anos, que formei  o primeiro esboço regular de um romance, e meti ombros à empresa com  infatigável porfia. Enchi rimas de papel que tiveram a má sorte de servir de  mecha para acender o cachimbo.

Eis o caso. Já formado e praticante no escritório  do Dr. Caetano Alberto, passava eu o dia, ausente de nossa chácara, à Rua do  Maruí, nº 7 A.

Meus queridos manuscritos, o mais precioso tesouro  para mim, eu os trancara na cômoda; como, porém, tomassem o lugar da roupa, os  tinham, sem que eu soubesse, arrumado na estante.

Daí, um desalmado hóspede, todas as noites quando  queria pitar, arrancava uma folha, que torcia a modo de pavio e acendia na  vela. Apenas escaparam ao incendiário alguns capítulos em dois canhenhos, cuja  letra miúda a custo se distingue no borrão de que a tinta. Oxidando-se com o  tempo,saturou o papel.

Tinha esse romance pôr título – Os Contrabandistas.  Sua feitura havia de ser consoante à inexperiência de um moço de 18 anos, que  nem possuía o gênio precoce de Victor Hugo, nem tinha outra educação literária,  senão essa superficial e imperfeita, bebida em leituras a esmo. Minha  ignorância dos estudos clássicos era tal, que eu só conhecia Virgílio e  Horácio, como pontos difíceis do exame de latim, e de Homero apenas sabia o  nome e a reputação.

Mas o traço d’Os Contrabandistas, como o gizei aos  18 anos, ainda hoje o tenho pôr um dos melhores e mais felizes de quantos me  sugeriu a imaginação. Houvesse editor para as obras de longo fôlego, que já  essa andaria a correr mundo, de preferência a muitas outras que dei à estampa  nestes últimos anos.

A variedade dos gêneros que abrangia este romance,  desde o idílio até a epopéia, era o que sobretudo me prendia e agradava.  Trabalhava, não pela ordem dos capítulos, mas destacadamente esta ou aquela das  partes em que se dividia a obra. Conforme a disposição do espírito e veia da  imaginação, buscava entre todos o episódio que mais se moldava às idéias do  momento. Tinha para não perder-me nesse Dédalo o fio da ação que não cessava de  percorrer.

A estas circunstâncias atribuo ter o meu pensamento, que eu sempre conheci     ávida de novidade, se demorado nesse esboço pôr tanto     tempo; pois, quatro anos depois, já então formado, ainda era     aquele o tema único de meus tentamens no romance; e se alguma outra     idéia despontou, foi ela tão pálida e efêmera que     não deixou vestígios.

 

Capítulo VII

Eis-me de repente lançado no turbilhão do mundo.

Ao cabo de quatro anos de tirocínio na advocacia, a imprensa diária,     na qual apenas me arriscara como folhetinista, arrebatou-me. Em fins de 1856     achei-me redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro.

É longa a história dessa luta, que absorveu cerca de três     dos melhores anos de minha mocidade. Aí se acrisolaram as audácias     que desgostos, insultos, nem ameaças conseguiram quebrar até     agora; antes parece que as afiam com o tempo.

Ao findar o ano, houve idéia de oferecer aos assinantes da folha,     um mimo de festa. Saiu um romancete, meu primeiro livro, se tal nome cabe     a um folheto de 60 páginas.

Escrevi Cinco Minutos em meia dúzia de folhetins que iam saindo na     folha dia pôr dia, e que foram depois tirados em avulso sem nome do     autor. A prontidão com que em geral antigos e novos assinantes reclamavam     seu exemplar, e a procura de algumas pessoas que insistiam pôr comprar     a brochura, somente destinada à distribuição gratuita     entre os subscritores do jornal; foi a única, muda mas real, animação     que recebeu essa primeira prova.

Bastou para suster a minha natural perseverança. Tinha leitores e     espontâneos, não iludidos pôr falsos anúncios. Os     mais pomposos elogios não valiam, e nunca valerão para mim,     essa silenciosa manifestação, ainda mais sincera nos países     como o nosso de opinião indolente.

Logo depois do primeiro ensaio, veio A Viuvinha. Havia eu em época     anterior começado este romancete, invertendo a ordem cronológica     dos acontecimentos. Deliberei porém mudar o plano, e abri a cena com     o princípio da ação.

Tinha eu escrito toda a primeira parte, que era logo publicada em folhetins;     e contava aproveitar na segunda o primeiro fragmento; mas, quando o procuro,dou     pela falta.

Sabidas as contas, Leonel que era então o encarregado da revista semanal,     Livro do Domingo, como ele intitulou, achando-se um sábado em branco,     pediu-me alguma coisa com que encher o rodapé da folha. Ocupado com     outros assuntos, deixei que buscasse entre os meus borrões. No dia     seguinte lograva ele aos leitões dando-lhes em vez da habitual palestra,     um conto. Era este o meu princípio de romance ao qual ele tinha posto,     com uma linha de reticências e duas de prosa, um desses súbitos     desenlaces que fazem o efeito de uma guilhotina literária.

Fatigado do trabalho da véspera, urgido pelas ocupações     do dia, em constantes tribulações, nem sempre podia eu passar     os olhos pôr toda a folha.

Nesse domingo não li a revista, cujo teor já me era conhecido,     pois saíra-me da pasta.

Imagine, como fiquei, em meio de um romance, cuja continuação     o leitor já conhecia oito dias antes. Que fazer? Arrancar do Livro     do Domingo, as páginas já publicadas? Podia-o fazer; pois o     folhetinista não as dera como suas, e deixara entrever o autor; mas     fora matar a ilusão.

Daí veio o abandono desse romance, apesar dos pedidos que surgiam     a espaços, instando pela conclusão. Só três anos     depois, quando meu amigo e hoje meu cunhado, Dr. Joaquim Bento de Souza Andrade,     quis publicar uma segunda edição de Cinco Minutos, escrevi eu     o final d’A Viuvinha, que faz parte do mesmo volume.

O desgosto que me obrigou a truncar o segundo romance, levou-me o pensamento     para um terceiro, porém este já de maior fôlego. Foi O     Guarani, que escrevi dia pôr dia para o folhetim do Diário, entre     os meses de fevereiro e abril de 1857, se bem me recordo.

No meio das labutações do jornalismo, oberado não somente     com a redação de uma folha diária, mas com a administração     da empresa, desempenhei-me da tarefa que me impusera, e cujo alcance eu não     medira ao começar a publicação, apenas com os dois primeiros     capítulos escritos.

Meu tempo dividia-se desta forma. Acordava, pôr assim dizer, na mesa     do trabalho; e escrevia o resto do capítulo começado no dia     antecedente para envia-lo à tipografia. Depois do almoço entrava     pôr novo capítulo que deixava em meio. Saía então     para fazer algum exercício antes do jantar no “Hotel de Europa”.      A tarde, até nove ou dez horas da noite, passava no escritório     da redação, onde escrevia o artigo editorial e o mais que era     preciso.

O resto do serão era repousar o espírito dessa árdua     tarefa jornaleira, em alguma distração, como o teatro e as sociedades.

Nossa casa no Largo do Rocio, nº 73, estava em reparos. Trabalhava eu     num quarto do segundo andar, ao estrépito do martelo, sobre uma banquinha     de cedro, que apenas chegava para o mister da escrita; e onde a minha velha     caseira Ângela servia-me o parco almoço. Não tinha comigo     um livro; e socorria-me unicamente a um canhenho, em que havia em notas o     fruto de meus estudos sobre a natureza e os indígenas do Brasil.

Disse alguém, e repete-se pôr aí de outiva que O Guarani     é um romance ao gosto de Cooper. Se assim fosse, haveria coincidência,     e nunca imitação; mas não é. Meus escritos se     parecem tanto com os do ilustre romancista americano, como as várzeas     do Ceará com as margens do Delaware.

A impressão profunda que em mim deixou Cooper foi, já lhe disse,     como poeta do mar. D’Os Contrabandistas, sim, poder-se-ia dizer, apesar     da originalidade da concepção, que foram inspirados pela leitura     do Piloto, do Corsário, do Varredor do Mar etc. Quanto à poesia     americana, o modelo para mim ainda hoje é Chateaubriand; mas o mestre     que eu tive, foi esta esplêndida natureza que me envolve, e particularmente     a magnificência dos desertos que eu perlustrei ao entrar na adolescência,     e foram o pórtico majestoso pôr onde minha alma penetrou no passado     de sua pátria.

Daí, desse livro secular e imenso, é que eu tirei as páginas     d’O Guarani, as de Iracema, e outras muitas que uma vida não     bastaria a escrever. Daí e não das obras de Chateaubriand, e     menos das de Cooper, que não eram senão a cópia do original     sublime, que eu havia lido com o coração.

O Brasil tem, como os Estados Unidos, e quaisquer outros povos da América,     um período de conquista, em que a raça invasora destrói     a raça indígena. Essa luta apresenta um caráter análogo,     pela semelhança dos aborígenes. Só no Peru e México     difere.

Assim o romancista brasileiro que buscar o assunto do seu drama nesse período     da invasão, não pode escapar ao ponto de contacto com o escritor     americano. Mas essa aproximação vem da história, é     fatal, e não resulta de uma imitação.

Se Chateaubriand e Cooper não houvessem existido, o romance americano     havia de aparecer no Brasil a seu tempo.

Anos depois de escrito O Guarani, reli Cooper a fim de verificar a observação     dos críticos e convenci-me de que ela não passa de um rojão.     Não há no romance brasileiro um só personagem de cujo     tipo se encontre o molde nos Moicanos, Espíão, Ontário,     Sapadores e Leonel Lincoln.

N’O Guarani derrama-se o lirismo de uma imaginação mpça,     que tem como a primeira rama o vício da exuberância; pôr     toda a parte a linfa, pobre de seiva, brota em flor ou folha. Nas obras do     eminente romancista americano, nota-se a singeleza e parcimônia do prosador,     que se não deixa arrebatar pela fantasia, antes a castiga.

Cooper considera o indígena sob o ponto de vista social, e na descrição     dos seus costumes foi realista; apresentou-o sob aspecto vulgar.

N’O Guarani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar,     despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o     ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase     extinta raça.

Mas Cooper descreve a natureza americana, dizem os críticos. E que     havia ele de descrever, senão a cena de seu drama? Antes dele Walter     Scott deu o modelo dessas paisagens à pena, que fazem parte da cor     local.

O que se precisa examinar é se as descrições d’O     Guarani têm algum parentesco ou afinidade com as descrições     de Cooper; mas isso não fazem os críticos, porque dá     trabalho e exige que se pense. Entretanto basta o confronto para conhecer     que não se parecem nem no assunto, nem no gênero e estilo.

A edição avulsa que se tirou d’O Guarani, logo depois     de concluída a publicação em folhetim, foi comprada pela     livraria do Brandão, pôr um conto e quatrocentos mil réis     que cedi à empresa. Era essa edição de mil exemplares,     porém trezentos estavam truncados, com as vendas de volumes que se     faziam à formiga na tipografia. Restavam pois setecentos, saindo o     exemplar a 2$000.

Foi isso em 1857. Dois anos depois comprava-se o exemplar a 5$000 e mais.     Nos belchiores que o tinham a cavalo do cordel, embaixo dos arcos do Paço,     donde o tirou o Xavier Pinto para a sua livraria da Rua dos Ciganos. A indiferença     pública, senão o pretensioso desdém da roda literária,     o tinha deixado cair nas pocilgas dos alfarrabistas.

Durante todo esse tempo e ainda muito depois, não vi na imprensa qualquer     elogio, crítica ou simples notícia do romance, a não     ser em uma folha do Rio Grande do Sul, como razão para a transcrição     dos folhetins. Reclamei contra esse abuso, que cessou; mas posteriormente     soube que aproveitou-se a composição já adiantada para     uma tiragem avulsa. Com esta anda atualmente a obra na sexta edição.

Na bela introdução que Mendes Leal escreveu ao seu Calabar,     se extasiava ante os tesouros da poesia brasileira, que ele supunha completamente     desconhecidos para nós. “E tudo isto oferecido ao romancista,     virgem, intacto, para escrever, para animar, para reviver”.

Que ele o dissesse, não há estranhar, pois ainda hoje os literatos     portugueses não conhecem da nossa literatura, senão o que se     lhes manda de encomenda com um ofertório de mirra e incenso. Do mais     não se ocupam; uns pôr economia, outros pôr desdém.     O Brasil é um mercado para seus livros e nada mais.

Não se compreende, porém, que uma folha brasileira, como era     o Correio Mercantil, anunciando a publicação do Calabar, insistisse     na idéia de ser essa obra uma primeira lição do romance     nacional dada aos escritores brasileiros, e não advertisse que dois     anos antes um compatriota e seu ex-redator se havia estreado nessa província     literária.

“Há muito que o autor pensava na tentativa de criar no Brasil     para o Brasil um gênero de literatura para que ele parece tão     afeito e que lhe pode fazer serviços reais”. Quando Mendes Leal     escrevia em Lisboa estas palavras, o romance americano já não     era uma novidade para nós; e tinha n’O Guarani um exemplar, não     arreado dos primores do Calabar, porém incontestavelmente mais brasileiro.

 

Capítulo VIII

Hoje em dia quando surge algum novel escritor, o aparecimento de seu primeiro     trabalho é uma festa, que celebra-se na imprensa com luminárias     e fogos de vistas. Rufam todos os tambores do jornalismo, e a literatura forma     parada e apresenta armas ao gênio triunfante que sobe ao Panteão.

Compare-se essa estrada, tapeçada de flores, com a rota aspérrima     que eu tive de abrir, através da indiferença e do desdém,     desbravando as urzes da intriga e da maledicência.

Outros romances é de crer que sucedessem a O Guarani no folhetim do     Diário; se meu gosto não se voltasse então para o teatro.     De outra vez falarei da feição dramática de minha vida     literária; e contarei como e porque veio-me essa fantasia. Aqui não     se trata senão do romancista.

Em 1862 escrevi Lucíola, que editei pôr minha conta e com o     maior sigilo. Talvez não me animasse a esse cometimento, se a venda     da segunda e terceira edição ao Sr. Garnier, não me alentasse     a confiança, provendo-me de recursos para os gastos da impressão.     O aparecimento de meu novo livro fez-se com a etiqueta, ainda hoje em voga,     dos anúncios e remessa de exemplares à redação     dos jornais. Entretanto toda a imprensa diária resumiu-se nesta notícia     de um laconismo esmagador, publicada pelo Correio Mercantil: “Saiu à     luz um livro intitulado Lucíola”. Uma folha de caricaturas trouxe     algumas linhas pondo ao romance tachas de francesia.

Há de ter ouvido algures, que eu sou um mimoso do público,     cortejado pela imprensa, cercado de uma voga de favor, vivendo da falsa e     ridícula idolatria a um romance oficial. Aí tem as provas cabais;     e pôr elas avalie dessa nova     conspiração do despeito que veio substituir a antiga conspiração     do silêncio e da indiferença.

Apesar do desdém da crítica de barrete, Lucíola conquistou     seu público, e não somente fez caminho como ganhou popularidade.     Em um ano esgotou-se a primeira edição de mil exemplares, e     o Sr. Garnier comprou-me a segunda, propondo-me tomar em iguais condições     ouro perfil de mulher, que eu então gizava.

Pôr esse tempo fundou a sua Biblioteca Brasileira, o meu amigo Sr.     Quintino Bocaiúva, que teve sempre um fraco pelas minhas sensaborias     literárias. Reservou-me um de seus volumes, e pediu-me com que enche-lo.     Além de esboços e fragmentos, não guardava na pasta senão     uns dez capítulos de romance começado.

Aceitou-os, e em boa hora os deu a lume; pois esse primeiro tomo desgarrado     excitou alguma curiosidade que induziu o Sr. Garnier a editar a conclusão.     Sem aquela insistência de Quintino Bocaiúva, As Minas de Prata,     obra de maior traço, nunca sairia da crisálida e os capítulos     já escritos estariam fazendo companhia a Os Contrabandistas.

De volta de São Paulo, onde fiz uma excursão de saúde,     e já em férias de política, com a dissolução     de 13 de maio de 1863, escrevi Diva que saiu a lume no ano seguinte, editada     pelo Sr. Garnier.

Foi dos meus romances – e já andava no quinto, não contando     o volume d’As Minas de Prata – o primeiro que recebeu hospedagem     da imprensa diária, e foi acolhido com os cumprimentos banais da cortesia     jornalística. Teve mais: o Sr. H Muzzio consagrou-lhe no Diário     do Rio um elegante folhetim, mas de amigo que não de crítico.

Pouco depois (20 de junho de 1864) deixei a existência descuidosa e     solteira para entrar na vida da família onde o homem se completa. Como     a literatura nunca fora para mim uma Boêmia, e somente um modesto Tibur     para o espírito arredio, este sempre grande acontecimento da história     individual não marca época na minha crônica literária.

A composição dos cinco últimos volumes d’As Minas  de Prata ocupou-me três meses entre 1864 e 1865, porém a demorada  impressão estorvou-me um ano, que tanto durou. Ninguém sabe  da má influência que tem exercido na minha carreira de escritor,  o atraso de nossa arte tipográfica, que um constante caiporismo torna  em péssima para mim.

Se eu tivesse a fortuna de achar oficinas bem montadas com hábeis     revisores, meus livros sairiam mais corretos; a atenção e o     tempo pôr mim despendidos em rever, e mal, provas truncadas, seriam     melhor aproveitados em compor outra obra.

Para publicar Iracema em 1869, fui obrigado a edita-lo pôr minha conta;     e não andei mal inspirado, pois antes de dois anos a edição     extinguiu-se.

De todos os meus trabalhos deste gênero nenhum havia merecido as honras     que a simpatia e a confraternidade literária se esmeram em prestar-lhes.     Além de agasalhado pôr todos os jornais, inspirou a Machado de     Assis uma de suas mais elegantes revistas bibliográficas.

Até com surpresa minha atravessou o oceano, e granjeou a atenção     de um crítico ilustrado e primoroso escritor português, o Sr.     Pinheiros Chagas, que dedicou-lhe um de seus ensaios críticos.

Em 1868 a alta política arrebatou-me às letras para só     restituir-me em 1870. Tão vivas eram as saudades dos meus borrões,     que apenas despedi a pasta auri-verde dos negócios de estado, fui tirar     da gaveta onde a havia escondido, a outra pasta de velho papelão, todo     rabiscado, que era então a arca de meu tesouro.

Aí começa outra idade de autor, a qual eu chamei de minha velhice     literária, adotando o pseudônimo de Sênio, e outros querem     seja a da decrepitude. Não me afligi com isto, eu que, digo-lhe com     todas as veras, desejaria fazer-me escritor póstumo, trocando de boa     vontade os favores do presente pelas severidades do futuro.

Desta segunda idade, que V. tem acompanhado, nada lhe poderia referir de     novo, senão um ou outro pormenor de psicologia literária, que     omito pôr não alongar-me ainda mais. Afora isso, o resto é     monótono, e não passaria de datas, entremeadas da inesgotável     serrazina dos autores contra os tipógrafos que lhes estripam o pensamento.

Ao cabo de vinte e dois anos de gleba na imprensa, achei afinal um editor,     o Senhor B. Garnier, que espontaneamente ofereceu-me um contrato vantajoso     em meados de 1870.

O que lhe deve a minha coleção, ainda antes do contrato, terá     visto nesta carta; depois, trouxe-me esta vantagem, que na concepção     de um romance e na sua feitura, não me turva a mente a lembrança     do tropeço material, que pode matar o livro, ou fazer dele uma larva.

Deixe arrotarem os poetas mendicantes. O Magnus Apollo da poesia moderna,     o deus da inspiração e pai das musas deste século, é     essa entidade que se chama editor e o seu Parnaso uma livraria. Se outrora     houvesse Homeros, Sófocles, Virgílios, Horácios e Dantes,     sem tipografia nem impressor, é porque então escrevia-se nessa     página imortal que se chama a tradição. O poeta cantava;     e seus carmes se iam gravando no coração do povo.

Todavia ainda para o que teve a fortuna de obter um editor, o bom livro é     no Brasil e pôr muito tempo será para seu autor, um desastre     financeiro. O cabedal de inteligência e trabalho que nele se emprega,     daria em qualquer outra aplicação, lucro cêntuplo.

Mas muita gente acredita que eu me estou cevando em ouro, produto de minhas     obras. E, ninguém ousaria acredita-lo, imputaram-me isso a crime, alguma     cousa como sórdida cobiça.

Que país é este onde forja-se uma falsidade, e para que? Para     tornar odiosa e desprezível a riqueza honestamente ganha pelo mais     nobre trabalho, o da inteligência!

Dir-me-á que em toda a parte há dessa praga; sem dúvida, mas é praga; e não tem foros e respeitos de jornal,admitindo ao grêmio da imprensa.

Excedi-me além do que devia; o prazer da conversa...

 

Maio de 1873.

 

                                                                                        José de Alencar

Carlos Cunha Arte & Produção Visual

 

 

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