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As Cartas de Amabed / Voltaire
As Cartas de Amabed / Voltaire

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

As Cartas de Amabed

PRIMEIRA CARTA

de Amabed a Xastasid, grande brâmane de Madura Benares, a dois do mês do rato do ano 115.652 da renovação do mundo. (1)

 

Luz de minh’alma, pai de meus pensamentos, tu que conduzes os homens nas vias do Eterno, a ti, sábio Xastasid, respeito e ternura.

De tal forma já me familiarizei com a língua chinesa, conforme os teus sábios conselhos, que leio com proveito os seus cinco Kings, que me parecem igualar-se em antigüidade ao nosso Xasta, de que és intérprete, às sentenças do primeiro Zoroastro e aos livros do egípcio Thaut.

Afigura-se a minh“alma, que sempre se abre diante de ti, que esses escritos e esses cultos nada tomaram uns dos outros: pois somos os únicos a quem Brama, confidente do Eterno, ensinou a rebelião das criaturas celestes, o perdão que o Eterno lhes concede e a formação do homem; os outros nada disseram, ao que me parece, dessas coisas sublimes.

Creio sobretudo que nada tomamos, nem nós, nem os chineses, aos egípcios. Não conseguiram formar uma sociedade policiada e sensata senão muito tempo depois de nós, pois tiveram de dominar o Nilo antes que pudessem cultivar os campos e construir cidades.

Confesso que o nosso divino Xasta tem apenas 4.552 anos de antigüidade; mas está provado por nossos monumentos que essa doutrina era ensinada de pai para filho e mais de cem séculos antes da publicação desse livro sagrado. Espero, quanto a isto, as instruções de tua paternidade. Depois da tomada de Goa pelos portugueses, chegaram a Benares alguns doutores da Europa. Ensino a um deles a língua hindu, e ele, em recompensa, ensina-me um jargão que tem curso na Europa e a que chamam italiano. É uma língua engraçada. Quase todas as palavras terminam em a, em e, em i, em o; aprendo-o facilmente, e em breve terei o prazer de ler livros europeus.

Esse doutor chama-se o padre Fa Tutto; parece polido e insinuante; apresentei-o a Encanto dos Olhos, a bela Adate, que os meus pais e os seus me destinam para esposa; ela aprende italiano comigo. Conjugamos juntos o verbo amar, logo no primeiro dia. Levamos dois dias com todos os outros verbos. Depois dela, és tu o mortal mais perto de meu coração. Rogo a Birma e a Brama que conservem teus dias até a idade de cento e trinta anos, passados os quais a vida não é mais que um fardo.

 

RESPOSTA de Xastasid

Recebi tua carta, espírito filho de meu espírito. Possa Druga (2), montada no seu dragão, estender sempre sobre ti os seus dez braços vencedores dos vícios.

É verdade (e por isso não nos devemos envaidecer) que somos o povo mais antigamente civilizado do mundo. Os próprios chineses não o negam. Os egípcios são um povo muito recente, que foi ensinado pelos caldeus. Não nos gloriemos por sermos os mais antigos; e tratemos de ser sempre os mais justos.

Saberás, meu caro Amabed, que, não faz muito, chegou até os ocidentais uma fraca imagem da nossa revelação sobre a queda dos seres celestiais e a renovação do mundo. Encontro, numa tradução árabe de um livro sírio, composto apenas há uns mil e quatrocentos anos, estas palavras textuais: E os anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, conservou-os o Senhor em prisões eternas, até o juízo daquele grande dia (3). Cita o autor em abono um livro composto por um de seus primeiros homens, chamado Enoch. Bem vês que as nações bárbaras não foram jamais esclarecidas senão por um flébil raio enganoso, que até eles se desviou do seio da nossa luz.

Muito receio, caro filho, a irrupção dos bárbaros da Europa em nossas felizes plagas. Sei muito bem quem é esse Albuquerque que aportou das ribas do Ocidente a estas terras prediletas do sol. E um dos mais ilustres salteadores que já assolaram a face da terra. Apoderou-se de Goa contra a fé pública. Afogou no sangue a homens justos e pacíficos. Esses ocidentais habitam um país pobre que lhes dá muito pouca seda: nada de algodão, nada de açúcar, nenhuma especiaria. Falta-lhes até a espécie de terra com que fabricamos porcelana. Deus lhes recusou o coqueiro, que dá sombra, abriga, veste, nutre e dessedenta aos filhos de Brama. Não conhecem senão um licor, que lhes tira a razão. Sua verdadeira divindade é o ouro; saem em busca desse deus até os confins do mundo.

Quero crer que o teu doutor seja um homem de bem; mas o Eterno nos permite desconfiar desses estrangeiros. Se são carneiros em Benares, dizem que são tigres nas regiões onde os europeus se estabeleceram.

Queira Deus que nem tu, nem a bela Adate tenha jamais a mínima razão de queixa contra o padre Fa Tutto! Mas alarma-me um secreto pressentimento. Adeus. Que em breve Adate, a ti unida por um santo matrimônio, possa gozar nos teus braços as alegrias celestiais! Esta carta te chegará por um baniano, que só partirá na lua cheia do elefante.

 

SEGUNDA CARTA de Amabed a Xastasid

Pai de meus pensamentos, tive tempo de aprender esse jargão da Europa antes que o teu comerciante baniano chegasse às margens do Ganges. O padre Fa Tutto continua a testemunhar-me sincera amizade. Na verdade, começo a crer que ele não se assemelha em nada aos pérfidos cuja maldade temes com tamanha razão. A única coisa que me poderia causar desconfiança é que ele me louva em demasia e não louva suficientemente a Encanto dos Olhos; parece-me, contudo, cheio de virtude e unção. Lemos juntos um livro de seu país, que me pareceu bastante estranho. É uma história universal na qual não se diz uma só palavra sobre o nosso antigo império, nem nada das imensas regiões de além do Ganges, nada da China, nada da vasta Tartária. Evidentemente, os autores, nesta parte da Europa, devem ser muito ignorantes. Comparo-os a aldeões que falam com ênfase das suas choupanas e não sabem onde é a capital; ou antes àqueles que pensam que o mundo termina nos limites de seu horizonte. O que mais me surpreendeu é que eles contam o tempo, desde a criação do seu mundo, de maneira inteiramente diversa da nossa. O meu doutor europeu mostrou-me um de seus almanaques sagrados, pelo qual os seus patrícios estão agora no ano 5.552 da sua criação, ou no ano 6.244, ou então no ano 6.940, à vontade (4). Essa esquisitice muito me surpreendeu. Perguntei-lhe como podiam ter três épocas diferentes da mesma aventura. “Não podes ter ao mesmo tempo – disse-lhe eu – trinta, quarenta e cinqüenta anos. Como pode o teu mundo ter três datas que se contrariam?” Respondeu-me que essas três datas se encontram no mesmo livro e que, entre eles, se é obrigado a acreditar nas contradições para humilhar a soberbia do espírito.

Esse mesmo livro trata de um primeiro homem que se chamava Adão, de um Caim, de um Matusalém, de um Noé que plantou vinhas depois que o oceano submergiu todo o globo; enfim, de uma infinidade de coisas de que nunca ouvi falar e que não li em nenhum dos nossos livros. Isso tudo nos fez rir, à bela Adate e a mim, na ausência do padre Fa Tutto: pois somos muito bem educados e muito cônscios das tuas máximas para rirmos das pessoas na sua presença.

Lamento esses infelizes da Europa que só foram criados há 6940 anos, quando muito; ao passo que a nossa era é de 115.652 anos. Muito mais os lamento por não terem pimenta, canela, cravo, chá, café, algodão, verniz, incenso, arômatas e tudo quanto pode tornar a vida agradável: na verdade a Providência deve tê-los negligenciado por muito tempo. Mas ainda mais os lamento por virem de tão longe, em meio a tantos perigos, arrebatar de arma em punho os nossos gêneros. Dizem que em Calicute, por causa da pimenta, cometeram crueldades espantosas: isso faz fremir a natureza indiana, que é muito diferente da sua, pois os seus peitos e coxas são peludos. Usam longas barbas, e seus estômagos são carnívoros. Embriagam-se com o suco fermentado da vinha, plantada, dizem eles, pelo seu Noé. O próprio padre Fa Tutto, por mais polido que seja, torceu o pescoço a dois franguinhos; mandou-os cozinhar numa caldeira e comeu-os impiedosamente. Esse bárbaro ato atraiu-lhes o ódio de toda a vizinhança, que só com muita dificuldade pudemos apaziguar. Deus me perdoe! Creio que esse estrangeiro seria capaz de comer as nossas vacas sagradas, que nos dão leite, se lho tivessem permitido. Ele prometeu que não mais cometeria assassínio contra os frangos, e que se contentaria com ovos frescos, leite, arroz, os nossos excelentes legumes, pistaches, tâmaras, cocos, doces de amêndoas, biscoitos, ananazes, laranjas e tudo o que produz o nosso clima abençoado pelo Eterno. De alguns dias para cá, parece mais solícito com Encanto dos Olhos. Chegou a fazer para ela dois versos italianos que terminam em o. Agrada-me essa polidez, pois sabes que a minha maior felicidade é que façam justiça à minha querida Adate.

Adeus. Coloco-me a teus pés, que sempre te levaram pelo caminho reto, e beijo as tuas mãos, que jamais escreveram senão a verdade.

 

RESPOSTA de Xastasid

Meu caro filho em Birma, em Brama, não gosto do teu Fa Tutto que mata frangos e que faz versos para a tua querida Adate. Praza a Birma tornar vãs as minhas suspeitas!

Posso jurar-te que jamais foram conhecidos o Adão nem o Noé deles em nenhuma parte do mundo, apesar de tão recentes. A própria Grécia, que era a assembléia de todas fábulas quando Alexandre se aproximou de nossas fronteiras, nunca ouviu falar de tais nomes. Não me espanta que amadores de vinho como os povos ocidentais façam tanto caso daquele que, segundo eles, plantou a vinha; mas podes ficar certo de que Noé foi ignorado de toda a antigüidade conhecida. É verdade que nos tempos de Alexandre havia, em um recanto da Fenícia, um pequeno povo de corretores e usurários, que durante muito tempo estivera cativo em Babilônia. Durante a sua escravidão, arranjaram eles uma história, e é essa a única história do mundo em que se trata de Noé. Esse pequeno povo, depois que obteve privilégios em Alexandria, traduziu ali os seus anais para o grego. Foram depois traduzidos para o árabe, e só nos últimos tempos é que os nossos sábios tiveram algum conhecimento dos referidos anais. Mas essa história é tão desprezada por eles quanto a miserável horda que a escreveu (5).

Seria muito engraçado, com efeito, que todos os homens, que são irmãos, tivessem perdido os seus títulos de família, e que esses títulos só se encontrem num pequeno ramo de usurários e leprosos. Receio, meu caro amigo, que os concidadãos do teu padre Fa Tutto, que, como dizes, adotaram tais idéias, sejam tão insensatos e ridículos quanto interesseiros, pérfidos e cruéis.

Desposa o quanto antes a tua encantadora Adate, pois, inda uma vez te digo, temo mais os Fa Tutto que os Noés.

 

TERCEIRA CARTA de Amabed a Xastasid

Abençoado seja para sempre Birma, que fez o homem para a mulher! Abençoado sejas tu, ó caro Xastasid, que tanto te interessas pela minha felicidade! Encanto dos Olhos é minha; desposei-a. Já não toco a terra, estou no céu: só tu me faltavas nessa divina cerimônia. O doutor Fa Tutto foi testemunha de nossos santos compromissos; e, embora não pertença à nossa religião, não fez objeção alguma em escutar os nossos cantos e preces; esteve muito alegre no festim das núpcias. Sucumbo de felicidade. Tu gozas de outra espécie de ventura, tu possuía a sabedoria; mas a incomparável Adate me possui. Sê por muito tempo feliz, sem paixões, enquanto a minha me afoga num mar de volúpias. Nada mais te posso dizer: torno a voar para os braços de Adate.

 

QUARTA CARTA de Amabed a Xastasid

Caro amigo, caro pai, nós partimos, a terna Adate e eu, para te pedir a bênção.

Nossa felicidade seria incompleta se não cumpríssemos esse dever de nossos corações; mas – acreditas? – passamos por Goa, em companhia do famoso comerciante Coursom e sua esposa. Diz Fa Tutto que Goa se tornou a mais bela cidade da Índia, que o grande Albuquerque nos receberá como embaixadores, que nos cederá um navio de três velas para nos levar a Madura. Fa Tutto convenceu minha mulher; e eu concordei com a viagem logo que ela concordou. Fa Tutto nos garante que em Goa se fala mais italiano do que português Encanto dos Olhos anseia por fazer uso de uma língua que acaba de aprender. Dizem que há pessoas que têm duas vontades; mas Adate e eu não temos mais que uma, porque, entre os dois, possuímos uma única alma. Enfim, partimos amanhã, com a doce esperança de derramar nos teus braços, antes de dois meses, as lágrimas da alegria e da ternura.

 

PRIMEIRA CARTA de Adate a Xastasid

Goa, 5 do mês do tigre do ano 115.652 da renovação do mundo.

Birma, ouve meus gritos, vê minhas lágrimas, salva meu caro esposo! Brama, filho de Birma, leva minha dor e meu temor a teu pai! Generoso Xastasid, mais sábio do que nós, bem que havias previsto os nossos males. O meu caro Amabed, teu discípulo, meu terno esposo, não mais te escreverá; acha-se em uma fossa a que os bárbaros chamam prisão. Indivíduos que não posso definir (aqui são chamados de inquisitori, não sei o que essa palavra significa) esses monstros, no dia seguinte ao da nossa chegada, prenderam a meu marido e a mim, e nos puseram cada um em uma fossa separada, corno se estivéssemos mortos. Mas, se o estivéssemos, teriam ao menos de nos sepultar juntos. Não sei o que fizeram de meu querido Amabed. Disse a meus antropófagos: “Onde está Amabed? Não o matem. Matem a mim”. Nada me responderam. “Onde está ele? Por que me separaram dele?” Conservaram-se em silêncio, e puseram-me grilhões. Há já uma hora que desfruto de um pouco mais de liberdade; o comerciante Coursom achou meios de conseguir-me papel, um pincel e tinta. Minhas lágrimas embebem tudo, minha mão treme, meus olhos se turvam, eu morro.

 

SEGUNDA CARTA de Adate a Xastasid

Escrita da prisão da Inquisição

Divino Xastasid, estive ontem por muito tempo desfalecida; não pude terminar a carta. Dobrei-a quando recuperei um pouco os sentidos; guardei-a no seio, que não amamentará os filhos que eu esperava ter de Amabed; morrerei antes que Birma me haja concedido a fecundidade.

Esta manhã, ao clarear do dia, entraram na minha fossa dois espectros, armados de alabardas e trazendo cada um ao pescoço uns grãos enfiados e no peito quatro pequenas fitas vermelhas cruzadas. Tomaram-me pelas mãos, sempre sem me dizer palavra, e levaram-me para uma peça onde, por toda mobília, havia uma grande mesa, cinco cadeiras, e um enorme quadro que representava um homem nu, com os braços estendidos e os pés juntos.

Entram em seguida cinco personagens de vestido negro e uma camisa por cima do vestido e duas longas tiras, de um tecido variegado, sobre a camisa. Tombei de terror. Mas qual não foi a minha surpresa! Vi o padre Fa Tutto entre aqueles cinco fantasmas. Vi-o, ele enrubesceu; mas olhou-me com um ar de doçura e compaixão que me tranqüilizou um pouco por um momento.

 

— Ah! padre Fa Tutto – disse eu, – onde é que estou? Que é feito de Amabed? Em que abismo me lançou o senhor? Dizem que há nações que se alimentam de sangue humano: vão matar-nos? vão devorar-nos? Ele só me respondeu erguendo os olhos e as mãos ao céu, mas com uma atitude tão dolorosa e tão terna que eu não sabia mais o que pensar.

 

O presidente daquele conselho de mudos desprendeu afinal a língua e dirigiu-se a mim; disse-me estas palavras: “É verdade que foste batizada?” Tão abismada estava eu no meu pasmo e na minha dor que a princípio não pude responder. Repetiu a mesma pergunta com voz terrível Meu sangue gelou-se, e minha língua grudou no céu da boca. Ele repetiu as mesmas palavras pela segunda vez, e afinal eu respondi sim, pois nunca se deve mentir. Fui batizada no Ganges, como o são todos os fiéis filhos de Brama, como tu o foste, divino Xastasid, como o foi o meu querido e infeliz Amabed. Sim, eu sou batizada, é o meu consolo, é a minha glória. Confessei-o diante daqueles espectros.

Mal essa palavra sim, símbolo da verdade, saiu de minha boca, um dos cinco monstros negros e brancos gritou: Apóstata! os outros repetiram: Apóstata! Não sei o que quer dizer esta palavra, mas eles a pronunciaram num tom tão lúgubre e terrível que os meus três dedos se convulsionam ao escrevê-la.

Então o padre Fa Tutto, tomando a palavra, e sempre a fitar-me com olhar benigno, assegurou-lhes que eu tinha no fundo bons sentimentos, que ele respondia por mim, que a graça operaria, que ele se encarregaria de minha consciência; e terminou seu discurso, do qual eu não compreendia nada, com estas palavras: Io la converteró. Isso significa em italiano, pelo que eu posso alcançar: Eu a reverterei.

Como! dizia eu comigo, ele me reverterá! Que entende ele por reverter-me? Quer dizer que me devolverá à minha pátria! — Ah! padre Fa Tutto – disse-lhe eu, – reverta então o jovem Amabed, meu terno esposo; devolva a minha alma, devolva a minha vida.

Então ele baixou os olhos; falou em segredo aos quatro fantasmas, a um canto da peça. Partiram com os dois alabardeiros. Todos fizeram uma profunda reverência ao quadro que representa um homem nu; e o padre Fa Tutto ficou a sós comigo.

Conduziu-me a um quarto bastante limpo e prometeu-me que, se eu quisesse abandonar-me a seus conselhos, não mais seria encerrada em uma fossa.

 

— Estou tão desesperado como a senhora – me disse ele – com tudo o que aconteceu. Opus-me o quanto pude; mas as nossas santas leis me ataram as mãos; afinal, graças ao céu e a mim, a senhora está livre, em um bom quarto, de onde não pode sair. Virei vê-la seguidamente tratarei de a consolar, trabalharei por sua felicidade presente e futura.

 

— Ah! – respondi-lhe – não há senão o meu querido Amabed que a possa fazer, essa felicidade, e acha-se em uma fossa! Por que me puseram lá? Quem são esses espectros que me perguntaram se eu tinha sido banhada? Aonde me conduziu o senhor? Não me terá enganado? Será o causador destas horríveis crueldades? Mande chamar o negociante Coursom, que é de meu país e homem de bem. Devolvam-me a minha aia, a minha companheira, a minha amiga Dera, de quem me separaram. Estará ela também num calabouço por haver sido banhada? Que venha; que eu torne a ver Amabed, ou que morra! Respondeu às minhas palavras, e aos soluços que as entrecortavam, com protestos de dedicação e zelo, que bastante me comoveram. Prometeu-me que me esclareceria as causas de toda esta espantosa aventura, e que faria que me devolvessem a minha pobre Dera, enquanto trataria de libertar a meu marido. Ele me lamentou; notei até que tinha os olhos um tanto úmidos. Enfim, quando bateu um sino, retirou-se do meu quarto e, tomando a minha mão, colocou-a sobre o seu peito. É o sinal visível, como bem sabes, da sinceridade, que é invisível. Já que ele pôs a minha mão sobre o seu peito, não me enganará. E por que me há de enganar? Que lhe fiz eu, para que me persiga? Nós o tratamos tão bem em Benares, o meu marido e eu! Dei-lhe tantos presentes, quando me ensinava italiano! E ele, que fez versos em italiano para mim, não me poderá odiar. Hei de considerá-lo como meu benfeitor, se ele me devolver meu infeliz esposo, se pudermos ambos sair desta terra invadida e habitada por antropófagos, se pudermos ir abraçar teus joelhos em Madura e receber a tua santa benção.

 

TERCEIRA CARTA de Adate a Xastasid

Sem dúvida permites, generoso Xastasid, que eu te envie o diário de meus inauditos infortúnios; tu amas Amabed, tens piedade de minhas lágrimas, lês com interesse num coração ferido de todos os lados, que te expõe as suas inconsoláveis aflições.

Devolveram-me a minha amiga Dera, e eu choro com ela. Os monstros a tinham posto numa fossa, como a mim. Não temos notícia alguma de Amabed. Estamos na mesma casa, e há entre nós um espaço infinito, um caos impenetrável. Mas aqui estão coisas que hão de arrepiar tua virtude e dilacerar tua alma justa.

Minha pobre Dera soube, por um desses dois satélites que marcham sempre à frente dos cinco antropófagos, que esta nação tem um batismo, como nós. Ignoro como puderam chegar até eles os nossos ritos sagrados. Pretenderam que havíamos sido batizados segundo os ritos de sua seita. São tão ignorantes que não sabem que adotaram de nós o batismo, há muito poucos séculos. Imaginaram esses bárbaros que éramos da sua seita e havíamos renunciado ao seu culto. Eis o que queria dizer essa palavra apóstata, que os antropófagos faziam reboar a meus ouvidos com tamanha ferocidade. Dizem que é um crime horrível e digno dos maiores suplícios pertencer a outra religião que não a sua. Quando o padre Fa Tutto lhes dizia: Io la converteró – eu a reverterei – entendia que me faria reverter à religião dos bandidos. Não compreendo nada; meu espírito acha-se coberto de uma nuvem, como os meus olhos. Talvez o desespero me perturbe o entendimento; mas não posso compreender como é que esse Fa Tutto, que me conhece tão bem, pode dizer que me traria de volta a uma religião que eu jamais conheci; e que é tão ignorada em nossos climas como o eram os portugueses quando chegaram pela primeira vez à Índia para procurar pimenta de armas em punho. Perdemo-nos em nossas conjeturas, a boa Dera e eu. Ela suspeita o padre Fa Tutto de alguns secretos desígnios; mas livre-me Birma de formar um juízo temerário! Quis escrever ao grande bandido Albuquerque para implorar sua justiça, e para lhe pedir a liberdade de meu caro esposo. Mas disseram-me que havia partido para atacar e pilhar Bombaim. Como! vir de tão longe no intento de assolar nossas habitações e matar-nos! e no entanto esses monstros são batizados como nós! Dizem todavia que esse Albuquerque fez algumas belas ações. Enfim, só tenho esperança no Ser dos seres, que deve punir o crime e proteger a inocência. Mas vi esta manhã um tigre devorar dois cordeiros. Muito receio não ser bastante preciosa perante o Ser dos seres para que ele se digne socorrer-me.

 

QUARTA CARTA de Adate a Xastasid

Acaba de sair de meu quarto esse padre Fa Tutto: que entrevista! que complicações de perfídias, de paixões e de torpezas! O coração humano é então capaz de reunir tantas atrocidades? Como as descrever a um justo? Ele tremia quando entrou. Seus olhos estavam baixos; eu tremi mais do que ele. Logo se acalmou.

 

— Não sei – disse-me – se poderei salvar teu marido. Os juizes daqui às vezes mostram compaixão para com as mulheres moças, mas são muito severos com os homens.

 

— Como! A vida de meu esposo não está em segurança? E tombei desfalecida. Ele procurou águas espirituosas para me reanimar; não as havia. Mandou minha aia Dera comprá-las na casa de um baniano, no outro extremo da rua. Enquanto isto, desenlaçou-me o corpete, para dar passagem aos vapores que me sufocavam. Fiquei atônita, quando recuperei os sentidos, ao notar suas mãos sobre o meu seio e sua boca sobre a minha. Lancei um grito terrível e recuei de horror. Ele disse: — Estava tomando umas precauções que a simples caridade indicava. Era preciso que o teu peito, ficasse desafogado e eu verificava a tua respiração.

 

— Ah! tome as precauções necessárias para que meu marido respire. Ainda está naquela fossa horrível? — Não. Consegui, com muita dificuldade, fazer que o transferissem para um calabouço mais cômodo.

 

— Mas, ainda uma vez, qual é o crime dele, qual é o meu? De que provém essa terrível desumanidade? Por que violar conosco os direitos da hospitalidade, o das gentes, o da natureza? — A nossa santa religião é que nos exige essas pequenas severidades. Pesa sobre ti e teu marido a acusação de haverem renegado ambos o batismo.

 

— Que quer dizer?! – exclamei então. – Jamais fomos batizados à vossa moda; fomos batizados no Ganges, em nome de Brama. Foi o senhor quem impingiu essa execrável impostura aos espectros que me interrogaram? Qual seria o seu desígnio? Ele refugou tal idéia. Falou-me de virtude, de verdade, de caridade; quase dissipou por um momento as minhas suspeitas, assegurando-me que aqueles espectros são pessoas de bem, homens de Deus, juizes da alma, que têm por toda parte santos espiões, e principalmente junto aos estrangeiros que aportam a Goa. Esses espiões, disse ele, juraram a seus confrades, juizes da alma, diante do quadro do homem nu, que Amabed e eu fomos batizados à moda dos salteadores portugueses, e que Amabed é apóstato e eu sou apóstata.

 

Ó virtuoso Xastasid, o que eu ouço, o que eu vejo, de momento para momento me enche de terror, desde a raiz dos cabelos até a unha do dedo mínimo do pé! — Como! Então o senhor é – disse eu ao padre Fa Tutto – um dos cinco homens de Deus, um dos juizes da alma? — Sim, minha cara Adate, sim, Encanto dos Olhos, eu sou um dos cinco dominicanos delegados pelo vice-Deus do universo para dispor soberanamente das almas e dos corpos.

 

— Que é um dominicano? Que é um vice-Deus? — Um dominicano é um sacerdote, filho de S. Domingos, inquisidor da fé. E um vice-Deus é um sacerdote que Deus escolheu para representá-lo, para dispor de dez milhões de rúpias por ano, e para enviar a toda a terra dominicanos vigários do vigário de Deus.

 

— Espero, grande Xastasid, que me expliques essa algaravia infernal, essa incompreensível mistura de absurdos e de horrores, de hipocrisia e de barbárie.

 

Fa Tutto disse-me tudo aquilo com tal ar de compunção, tal acento de verdade, que, em qualquer outra época, poderia produzir algum efeito em minha alma simples e ignorante. Ora erguia os olhos ao céu, ora os pousava em mim. Estavam animados e cheios de enternecimento. Mas esse enternecimento lançava em todo o meu corpo um frêmito de horror e medo. Amabed está continuamente em minha boca como em meu coração. “Devolvam-me o meu querido Amabed” era o começo, o meio, o fim de tudo quanto eu dizia.

Neste momento chega a minha boa Dera; traz-me águas de cinnamum e de amomum. Essa encantadora criatura achou meios de entregar ao comerciante Coursom as minhas três cartas precedentes. Coursom parte esta noite; dentro em pouco estará em Madura. Serei pranteada pelo grande Xastasid; ele derramará lágrimas sobre a sorte de meu marido, me dará conselhos, um raio da sua sabedoria penetrará na noite de meu túmulo.

 

RESPOSTA do brâmane Xastasid às quatro cartas precedentes de Adate

Virtuosa e infortunada Adate, esposa de meu caro discípulo Amabed, Encanto dos Olhos, os meus lançaram rios de lágrimas sobre as tuas quatro cartas. Que demônio inimigo da natureza desencadeou do fundo das trevas da Europa os monstros a cuja mercê se acha a Índia? Como! terna esposa de meu caro discípulo, não vês que o padre Fa Tutto é um celerado que te fez cair numa armadilha? Não vês que não foi senão ele quem mandou encerrar teu marido numa fossa, e a ti fez o mesmo, para que lhe devesses a obrigação de te retirar dali? O que não irá exigir do teu reconhecimento! Tremo contigo: acabo de denunciar essa violação do direito das gentes a todos os pontífices de Brama, a todos os omras, a todos os raias, aos nababos, e até mesmo ao grande imperador das Índias, o sublime Babar, rei dos reis, primo do sol e da lua, filho de Mirsamacamed, filho de Semcor, filho de Abucaid, filho de Miraca, filho de Timur, a fim de que se oponham de todos os lados aos abusos dos ladrões da Europa. Que abismos de banditismo! Jamais os sacerdotes de Timur, de Gengiscã, de Alexandre, de Oguskan, de Sesac, de Baco, que vieram sucessivamente subjugar as nossas santas e pacíficas regiões, permitiram esses hipócritas horrores; pelo contrário, Alexandre deixou por toda parte eternas marcas da sua generosidade. Baco só fez o bem: era o favorito do céu; uma coluna de fogo conduzia o seu exército durante a noite, e uma nuvem lhe marchava à frente durante o dia (6); atravessava o Mar Vermelho a pé enxuto; quando lhe convinha, ordenava ao sol e à lua que parassem; dois feixes de raios divinos lhe saíam da fronte; o anjo exterminador estava de pé a seu lado; mas ele empregava sempre o anjo da alegria. Quanto a Albuquerque, pelo contrário, só veio com monges, comerciantes velhacos e com assassinos. Coursom, o justo, confirmou-me a infelicidade de Amabed e a tua. Possa eu, antes de minha morte, salvar a ambos, ou vingar-vos! Possa o eterno Birma arrebatar-vos das mãos do monge Fa Tutto! O meu coração sangra com os ferimentos do teu. N.B. Esta carta só chegou a Encanto dos Olhos muito tempo depois, quando ela partiu da cidade de Goa.

 

QUINTA CARTA de Adate ao grande brâmane Xastasid

De que termos ousarei servir-me para exprimir a minha nova desgraça! Como poderá o pudor falar da vergonha? Birma viu o crime, e o sofreu! Que será de mim? A fossa onde eu estava enterrada é menos horrível que a minha situação O padre Fa Tutto entrou esta manhã no meu quarto, todo perfumado, e coberto de uma simarra de seda leve. Eu estava no leito. “Vitória! – exclamou ele. – Foi assinada a ordem de libertação de teu marido”.

A tais palavras, os transportes da alegria se apoderaram de todos os meus sentidos; chamei-o meu protetor, meu pai. Ele inclinou-se sobre mim, abraçou-me. Julguei a princípio que se tratava de uma carícia inocente, um testemunho casto da sua bondade para comigo; mas, no mesmo instante, afastando-me as cobertas, despindo a simarra, lançando-se sobre mim como uma ave de rapina sobre uma pomba, apertando-me com o peso de seu corpo, tirando com seus braços nervosos todo movimento a meus frágeis braços, afogando no meu lábio a voz queixosa com criminosos beijos, inflamado, invencível, inexorável... Que momento! E por que foi que eu não morri? Dera, quase nua, veio em meu socorro, mas quando só um raio me poderia socorrer. O providência de Birma! o raio não tombou, e o detestável Fa Tutto fez chover em meu seio o ardente orvalho de seu crime. Não, nem a própria Druga, com os seus dez braços celestes, poderia afastar aquele indomável Mosasor (7).

A minha querida Dera puxava-o com todas as suas forças, mas imagina tu um passarinho que bicasse a ponta das penas de um abutre encarniçado sobre uma rola: é a imagem do Padre Fa Tutto, de Dera e da pobre Adate.

Para se vingar das importunações de Dera, ele agarra-a, derruba-a com uma das mãos, retendo-me com a outra; trata-a da mesma forma como a mim me tratou, sem misericórdia; em seguida sai altivamente, como um senhor que acaba de castigar a duas escravas, e nos diz: “Fiquem sabendo que eu punirei assim as duas, quando se mostrarem teimosas”.

Ficamos, Dera e eu, um quarto de hora sem que ousássemos dizer uma palavra, sem coragem de olhar uma para a outra. Afinal Dera exclamou: “Ah! minha querida ama, que homem! Todos os da sua espécie serão tão cruéis como ele” Quanto a mim, só pensava no infeliz Amabed. Prometeram-me devolvê-lo, e não mo devolvem. Matar-me, seria abandoná-lo; por isso não me matei.

Há já um dia que eu não me alimentava senão de minha dor. Não nos trouxeram comida na hora do costume. Dera se espantava e queixava-se. Parecia-me vergonhoso comer depois do que nos acontecera. No entanto, estávamos com um apetite devorador. Nada vinha e, depois de desfalecer de dor, desmaiávamos de fome.

Enfim, à noite, serviram-nos uma torta de pombos, um frango e duas perdizes, com um único pãozinho; e, para cúmulo do ultraje, uma garrafa de vinho sem água. Era a peça mais cruel que podiam pregar a duas mulheres como nós, depois de tudo o que já tínhamos sofrido; mas, que fazer? Pus-me de joelhos: “O Birma! ó Vixnu! ó Brama! sabem que a alma não é maculada pelo que entra no corpo. Se me destes uma alma, perdoai-lhe a necessidade funesta em que se acha meu corpo de não poder restringir-se aos legumes; sei que é um pecado horrível comer frango, mas a isso somos forçadas. Possam tantos crimes retumbar sobre a cabeça do padre Fa Tutto! Que ele seja, após a morte, transformado em uma jovem e infeliz indiana; que eu seja transformada em dominicano: que eu lhe devolva todos os males que me fez, e que eu seja ainda mais impiedosa com ele do que ele o foi comigo.” Não fiques escandalizado, perdoa, virtuoso Xastasid. Sentamo-nos à mesa. Como é duro ter prazeres que nos censuramos.

P. S. Imediatamente após o jantar, escrevi ao magistrado de Goa a que chamam o corregedor. Peço-lhe a liberdade de Amabed e a minha; informo-o de todos os crimes do padre Fa Tutto. Minha querida Dera diz que fará chegar minha carta ao seu destino, por intermédio desse aguazil dos inquisidores que às vezes vem visitá-la na minha antecâmara e que lhe tem grande estima. Vejamos em que poderá dar esse arrojado passo.

 

SEXTA CARTA de Adate

Crerás em mim, sábio instrutor dos homens? Há justos em Goa! E dom Jerônimo, o corregedor, é um deles. Sentiu-se tocado com a minha desgraça e a de Amabed. A injustiça o revolta, o crime o indigna. Transportou-se com oficiais de justiça à prisão que nos encerra. Acabo de saber que chamam a este covil o palácio do Santo Oficio. Mas, o que te espantará, negaram entrada ao corregedor. Os cinco espectros, seguidos de seus alabardeiros, apresentaram-se à porta, e disseram à justiça: — Em nome de Deus, não entrarás.

 

— Entrarei em nome do rei – disse o corregedor, – é um caso real.

 

— É um caso sagrado – responderam os espectros.

 

Dom Jerônimo, o justo, disse então: — Devo interrogar Amabed, Adate, Dera e o padre Fa Tutto.

 

— Interrogar um inquisidor, um dominicano! – exclamou o chefe dos espectros. – E um sacrilégio: scommunicao, scommunicao.

 

Dizem que são palavras terríveis, e que um homem sobre quem as pronunciaram morre ordinariamente ao cabo de três dias.

 

As partes se acaloraram e estavam prestes a chegar a vias de fato, quando afinal resolveram recorrer ao bispo de Goa. Um bispo é mais ou menos entre estes bárbaros o que tu és entre os filhos de Brama; é um intendente de sua religião; veste-se de roxo e usa nas mãos sapatos roxos. Traz à cabeça, nos dias de cerimônia, um pão-de-açúcar dividido em dois. Esse homem decidiu que nenhuma das duas partes estava com a razão, e que só ao seu vice-Deus competia julgar o padre Fa Tutto. Ficou combinado que o enviariam a Sua Divindade, comigo e Amabed, e a minha fiel Dera.

Não sei onde mora esse vice, se na vizinhança do Grão Lama ou na Pérsia, mas não importa. Tornarei a ver Amabed; iria com ele ao fim do mundo, ao céu, ao inferno. Esqueço neste momento a minha fossa, a minha prisão, as violências de Fa Tutto, suas perdizes, que tive a covardia de comer, e seu vinho, que tive a fraqueza de beber.

 

SÉTIMA CARTA de Adate

Tornei a vê-lo, o meu terno esposo; reuniram-nos, tive-o em meus braços. Ele apagou a mancha do crime com que esse abominável Fa Tutto me maculara; semelhante à água santa do Ganges, que lava todas as máculas das almas, ele me deu uma nova vida. Só essa pobre Dera é que ainda permanece profanada; mas as tuas preces e as tuas bênçãos recolocarão a inocência dela em todo o seu esplendor

Fazem-nos partir, amanhã, em um navio que veleja para Lisboa. E a pátria do altivo Albuquerque. É lá sem dúvida que habita esse vice-Deus que deve decidir entre Fa Tutto e nós. Se é vice-Deus, como todos aqui asseguram, é certo que causará a perdição de Fa Tutto. É um pequeno consolo, mas eu procuro menos a punição desse terrível culpado que a felicidade do terno Amabed.

Qual o destino dos fracos mortais, dessas folhas que o vento arrebata! Nascemos, Amabed e eu, às margens do Ganges; levam-nos a Portugal; vão julgar-nos em um mundo desconhecido, a nós que nascemos livres! Tornaremos a ver a nossa pátria um dia? Poderemos cumprir à peregrinação que projetávamos, até a tua sagrada pessoa? Como poderemos, eu e minha querida Dera, ficar encerradas no mesmo navio com o padre Fa Tutto? Esta idéia me faz tremer. Felizmente terei o meu bravo esposo para defender-me. Mas que será de Dera, que não tem marido? Enfim, recomendamo-nos à Providência.

Daqui por diante, vai ser o meu querido Amabed quem te escreverá; fará o diário de nossos destinos e te pintará as novas terras e novos céus que vamos ver. Possa Brama conservar por muito tempo a tua cabeça calva e o entendimento divino que colocou no miolo de teu cérebro!

 

PRIMEIRA CARTA de Amabed a Xastasid, após o seu cativeiro

Estou pois ainda no número dos vivos! Portanto, quem te escreve sou eu próprio, divino Xastasid! Eu soube de tudo, e tu sabes de tudo. Encanto dos Olhos não teve culpa; não pode tê-la. A virtude está no coração, e não alhures. Esse rinoceronte do Fa Tutto, que cosera à sua pele a da raposa, sustenta ousadamente que nos havia batizado, a Adate e a mim, em Benares, à moda da Europa; que eu sou apóstato e que Encanto dos Olhos é apóstata. Jura, pelo homem nu que está aqui pintado em quase todas as paredes, que é injustamente acusado de ter violado a minha querida esposa e a jovem Dera. Encanto dos Olhos, por sua vez, e a suave Dera, juram que foram violadas. Os espíritos europeus não podem varar essa densa nuvem; dizem todos que só o seu vice-Deus é que pode discernir nisso tudo alguma coisa, visto que é infalível.

Dom Jerônimo, o corregedor, faz-nos embarcar a todos amanhã, para comparecermos perante essa criatura extraordinária que jamais se engana. Esse grande juiz dos bárbaros não tem assento em Lisboa, mas muito mais longe, em uma cidade magnifica chamada Roma, nome este completamente desconhecido entre os indianos. Terrível viagem essa! A que não estão expostos os filhos de Brama nesta curta vida! Temos, como companheiros de viagem, comerciantes europeus, cantoras, dois velhos oficiais das tropas do rei de Portugal, que ganharam muito dinheiro em nosso país, sacerdotes do vice-Deus, e alguns soldados.

É uma grande felicidade termos aprendido italiano, que é a língua corrente de todos eles; pois como poderíamos entender o jargão português? Mas o horrível é estar no mesmo barco com um Fa Tutto. Fazem-nos dormir a bordo, para zarpar amanhã, de madrugada. Minha mulher, eu e Dera teremos um pequeno quarto de seis pés de comprimento por quatro de largura. Dizem que é um grande favor. A multidão precipita-se. Encanto dos Olhos chora. Dera treme. É preciso coragem. Adeus; dirige por nós as tuas santas preces ao Eterno que criou os infelizes mortais há justamente cento e quinze mil seiscentos e cinqüenta e duas revoluções anuais do sol em torno da terra, ou da terra em torno do sol.

 

SEGUNDA CARTA de Amabed, em viagem

Após um dia de viagem, estávamos à vista de Bombaim, da qual se apoderou o exterminador Albuquerque, a quem chamam aqui o grande. Logo em seguida se ouviu um ruído infernal: o nosso navio disparou nove tiros de canhão; responderam com outros tantos da fortaleza da cidade. Encanto dos Olhos e a jovem Dera julgaram que era chegado o seu último dia. Estávamos cobertos de um fumo espesso. Pois acreditas, sábio Xastasid, que isso tudo são delicadezas? E o modo como esses bárbaros se saúdam. Uma chalupa trouxe cartas para Portugal; velejamos para o alto mar, deixando à direita o grande rio Zombudipo, a que os bárbaros chamam Indo.

Não vemos nada mais que os ares, chamados de céu por estes bandidos tão pouco dignos do céu, e este grande mar que a cobiça e a crueldade os fez atravessar.

Contudo, o capitão parece às direitas é sensato. Não permite que o padre Fa Tutto esteja no tombadilho quando ali tomamos a fresca; e, quando ele está em cima, nós nos conservamos embaixo. Somos como o dia e a noite, que nunca aparecem juntos no mesmo horizonte. Não cesso de refletir sobre o destino, que zomba dos infelizes mortais. Vogamos sobre o mar das Índias com um dominicano, para sermos julgados em Roma, a seis mil léguas de nossa pátria.

Há a bordo um personagem considerável a que chamam esmoler. Não quer dizer que ele distribua esmola; pelo contrário, dão-lhe dinheiro para rezar em uma língua que não é nem a portuguesa nem a italiana, e que ninguém da equipagem entende; talvez nem ele próprio a entenda: pois está sempre a discutir sobre o sentido das palavras com o padre Fa Tutto. Disse-me o capitão que esse esmoler é franciscano e que, sendo o outro dominicano, vêem-se obrigados em consciência a nunca estar de acordo. As suas seitas são inimigas declaradas uma da outra; assim, vestem-se eles diversamente, para marcar a sua diversidade de opiniões.

Esse Franciscano chama-se Fa Molto. Empresta-me livros italianos referentes à religião do vice-Deus perante o qual compareceremos. Lemos esses livros, a minha querida Adate e eu. Dera assiste à leitura. A princípio ela sentiu repugnância, temendo desagradar a Brama; mas, quanto mais lemos, mais fortalecidos ficamos no amor dos santos dogmas que tu ensinas aos fiéis.

 

TERCEIRA CARTA do diário de Amabed

Lemos com o esmoler as epístolas de um dos grandes santos da religião italiana e portuguesa. Seu nome é Paulo. Tu que possuía a ciência universal conheces Paulo, sem dúvida. E um grande homem: foi jogado fora do cavalo por uma voz, e cegado por um raio; gaba-se de ter estado, como eu, na prisão; acrescenta que recebeu, por cinco vezes, trinta e nove vergastadas, o que soma cento e noventa e cinco vergões nas nádegas; depois, por três vezes, bastonadas, sem especificar o número; depois diz que foi lapidado uma vez, o que é estranho, pois disso a gente não se refaz; jura, depois, que esteve um dia e uma noite no fundo do mar. Lamento-o muito; mas, em compensação foi arrebatado ao terceiro céu. Confesso-te, iluminado Xastasid, que desejaria fazer o mesmo, ainda que devesse comprar essa glória por noventa e cinco vergastadas bem aplicadas no traseiro:

É belo que um mortal se eleve ao Céu; É belo até cair de lá, como diz um dos nossos mais estimáveis poetas hindus, que é algumas vezes sublime.

Vejo finalmente que, exatamente como eu, Paulo foi conduzido a Roma, para ser julgado. Como, meu caro Xastasid! Então Roma tem julgado a totalidade das mortais, em todos os tempos? Nesta cidade deve haver com certeza algo superior ao resto da terra, todas as pessoas que estão a bordo só juram por essa Roma. Tudo o que se fazia em Goa era em nome de Roma.

Digo-te mais. O Deus do nosso esmoler Fa Molto, que é o mesmo que o de Fa Tutto, nasceu e morreu em um país dependente de Roma, e pagou tributo ao samorim que reinava nessa cidade. Não achas tudo isso surpreendente? Quanto a mim, parece-me que sonho, e que todos os que me cercam também estão sonhando.

O nosso esmoler Fa Molto leu-nos coisas ainda mais maravilhosas. Ora é um burro que fala, ora um dos seus santos que passa três dias e três noites no ventre de uma baleia e que dali sai de muito mau-humor. Aqui é um pregador que foi pregar no céu, sobre um carro de fogo puxado por quatro cavalos de fogo. Acolá é um doutor que atravessa o mar a seco, seguido de dois ou três milhões de homens que fogem a seco. Outro doutor faz parar o sol e a lua; mas isto não me surpreende: tu mo ensinaste.

O que mais me penaliza, a mim que faço questão de asseio e de pudor, é que o Deus dessa gente ordena a um de seus pregadores que coma certa matéria com o seu pão (8), e a um outro que durma por dinheiro com mulheres alegres e lhes faça filhos (9).

Ainda há pior. O erudito homem nos deu a conhecer as duas irmãs Oola e Ooliba (10). Tu bem as conheces, pois tudo leste. Esse trecho muito escandalizou a minha mulher, que enrubesceu até o branco dos olhos. Notei que a boa Dera ficava toda vermelha. Esse franciscano deve ser um pândego. Mas fechou o livro logo que viu como Encanto dos Olhos e eu estávamos alarmados, e retirou-se para ir meditar sobre o texto.

Deixou-me com o seu livro sagrado. Li algumas páginas ao acaso. Ó Brama! Ó justiça eterna! Que gente aquela! Deitam todos com as criadas, na velhice. Um faz coisas à sua sogra, outro à sua nora. Aqui é uma cidade inteira que quer absolutamente tratar um pobre sacerdote como a uma linda rapariga (11). Acolá, duas senhoritas de condição embriagam o pai, deitam com ele uma após outra, e ambas engravidam (12).

Mas o que mais me espantou, o que mais me horrorizou, é que os habitantes de uma cidade magnífica, a que Deus enviara duas criaturas eternas que estão sempre ao pé de seu trono, dois espíritos puros resplandecentes de luz divina... minha pena estremece como minh“alma... ousarei dizê-lo? sim, esses habitantes fizeram o possível para violar aqueles mensageiros de Deus (13). Que pecado abominável com homens! Mas, com anjos, será mesmo possível? Caro Xastasid, abençoemos Birma, Vixnu e Brama. Agradeçamo-lhes não termos jamais conhecido essas inconcebíveis torpezas. Dizem que o conquistador Alexandre pretendeu outrora introduzir entre nós esse costume supersticioso; que conspurcava, publicamente, o seu mignon Efestião. O Céu o puniu. Efestião e ele morreram na flor da idade Saúdo-te, senhor de minha alma, espírito de meu espírito. Adate, a triste Adate recomenda-me às tuas preces.

 

QUARTA CARTA de Amabed a Xastasid

Do cabo a que chamam da Boa Esperança, a 15 do mês do rinoceronte.

Há muito que não estendo minhas folhas de algodão sobre uma prancha, nem mergulho o pincel na laca negra líquida, para te fazer um fiel relato de nossa vida. Deixamos atrás o golfo de Bab-el-Mandeb, que entra no famoso Mar Vermelho, cujas ondas outrora se apartavam, acumulando-se como montanhas, para que passasse Baco com o seu exército. Lamentava que não houvéssemos aportado às costas da Arábia Feliz, esse país quase tão belo como o nosso, e no qual Alexandre queria estabelecer a sede do seu império e o entreposto comercial do mundo. Desejaria ver esse Áden ou Éden, cujos jardins sagrados foram tão famosos na antigüidade; essa Moca famosa pelo seu café, que até hoje só ali é produzido; Meca, onde o grande profeta dos muçulmanos estabeleceu a sede do seu império, e onde tantos povos da Ásia, da África e da Europa vêm todos os anos beijar uma pedra negra caída do céu, que não manda todos os dias essas pedras aos mortais; mas não nos é permitido satisfazer a curiosidade. Navegamos sempre e sempre para ir a Lisboa, e dali a Roma.

Já passamos alinha equinocial; desembarcamos no reino de Melinde, onde os portugueses têm um porto considerável. Nossa equipagem ali embarcou marfim, âmbar cinzento, cobre, prata e ouro. Eis-nos chegados ao grande cabo: é a terra dos hotentotes. Essa gente não parece descender dos filhos de Brama. Ali a natureza deu às mulheres um avental formado pela sua pele; esse avental cobre o seu tesouro, de que os hotentotes são idólatras e para o qual fazem madrigais e canções. Andam completamente nus. Essa moda é muito natural; mas não me parece nem correta nem hábil. Um hotentote é muito infeliz; nada mais tem que desejar, depois que viu a sua hotentote por diante e por trás. Falta-lhe o encanto dos obstáculos. Não há mais nada de picante para ele. Os vestidos de nossas indianas, inventados para serem erguidos, denotam um gênio bastante superior. Estou persuadido de que o sábio hindu, a quem devemos o jogo do xadrez e o do trique-traque, inventou também a indumentária das damas, para felicidade nossa.

Ficaremos dois dias neste cabo, que é o marco do mundo e que parece separar o Oriente do Ocidente. Quanto mais reflito sobre a cor destes povos, sobre o murmurejo de que se servem para se fazerem entender, em vez de uma linguagem articulada, sobre o seu aspecto, sobre o avental de suas damas, mais me convenço de que tal raça não pode ter a mesma origem que a nossa. Seria o mesmo que dizer que as galinhas, as árvores e a relva deste país provém das galinhas, das árvores e da relva de Benares ou de Pequim.

 

QUINTA CARTA de Amabed

16 à noite, no cabo chamado da Boa Esperança.

Mais outra aventura. O capitão passeava com Encanto dos Olhos e comigo por uma vasta rocha ao pé da qual vem quebrar o mar as suas vagas. O esmoler Fa Molto levou jeitosamente a nossa jovem Dera a uma pequena casa recém-construída a que chamam estalagem. A pobre moça não via nenhum mal naquilo, e julgava que nada havia a temer, visto que o referido esmoler não é dominicano. Pois acreditas que o Padre Fa Tutto ficou todo enciumado com isso? Entrou como uma fúria na estalagem. Havia lá dois marinheiros, que também se enciumaram. Terrível paixão, o ciúme. Os dois marinheiros e os dois padres haviam bebido muito desse licor que dizem Inventado pelo seu Noé e cuja autoria atribuímos a Baco: funesto presente, que poderia ser útil, se não nos fosse tão fácil abusar dele. Dizem os europeus que essa beberagem lhes dá espírito. Como pode ser isso, se lhes tira a razão? Os dois homens do mar e os dois bonzos da Europa esmurraram-se valentemente, batendo um marinheiro em Fa Tutto, este no esmoler, este último no segundo marinheiro, que devolvia o que recebia; todos os quatro mudavam de mão a cada momento, dois contra dois, três contra um, todos contra todos, e cada qual a praguejar, cada qual a puxar para si a nossa desgraçada, que lançava gritos lancinantes. Ao ruído, acorreu o capitão; esbordoou indiferentemente os quatro adversários; e, para pôr Dera em segurança, levou-a para os seus aposentos, onde ficaram ambos encerrados durante duas horas inteiras. Os oficiais e os passageiros, que são muito polidos, reuniram-se todos em redor de nós, e nos garantiram que os dois monges (é assim que os chamam) seriam severamente castigados pelo vice-Deus, assim que chegassem a Roma. Essa esperança nos consolou um pouco. Ao cabo de duas horas, voltou o capitão, trazendo-nos Dera, com muitas atenções e cumprimentos, de que minha querida mulher se mostrou muito satisfeita. Ó Brama, que estranhas coisas sucedem em viagem, e que sensato é nunca sair de casa!

 

SEXTA CARTA de Amabed, em viagem

Não te escrevi desde a aventura da nossa pequena Dera. O capitão, durante a travessia, sempre lhe demonstrou a mais atenta solicitude. Eu tinha medo de que ele também se desfizesse em atenções com minha mulher; mas esta fingiu estar grávida de quatro meses. Os portugueses consideram as mulheres grávidas como pessoas sagradas, a quem não é permitido importunar. E ao menos um bom costume, que põe em segurança a honra de Adate. O dominicano recebeu ordem de não se apresentar jamais diante de nós, e obedeceu.

O franciscano, alguns dias após a cena da estalagem, veio pedir-nos perdão. Chamei-o à parte. Perguntei-lhe como era que, tendo feito voto de castidade, se havia emancipado daquela maneira. Respondeu-me: “É verdade que fiz tal voto; mas, se tivesse prometido que meu sangue não correria nas veias e que minhas unhas e cabelos não cresceriam, seria o primeiro a confessar que me era impossível cumprir tal promessa. Em vez de nos fazerem jurar que seremos castos, seria preciso forçar-nos a sê-lo e tornar eunucos a todos os monges. Quando um pássaro tem penas, voa. O único meio de impedir que um cervo corra é cortar-lhe as pernas. Não tenhas dúvida de que os padres vigorosos como eu, e que não dispõem de mulheres, abandonam-se, mau grado seu, a excessos que fazem corar a natureza, após o que vão celebrar os santos mistérios.” Muito aprendi na conversação com esse homem. Instruiu-me de todos esses mistérios da sua religião, que me espantaram imenso. “O reverendo padre Fa Tutto, disse-me ele, é um velhaco que não acredita uma palavra de tudo o que ensina; quanto a mim, tenho fortes dúvidas, mas afasto-as, ponho uma venda nos olhos, repilo os meus pensamentos, e marcho como posso no caminho que sigo. Todos os monges se acham reduzidos a esta alternativa: ou a incredulidade lhes faz detestar a profissão, ou a estupidez a torna suportável.” Acreditas que, depois de tais confidências, ele ainda me propôs fazer-me cristão? — Como podes – disse-lhe eu – oferecer-me uma religião de que nem tu mesmo estás persuadido, a mim que fui criado na mais antiga religião do mundo, cujo culto existia, segundo a vossa própria confissão, no mínimo uns cento e quinze mil e trezentos anos antes que houvesse franciscanos no mundo? — Ah! meu caro indiano, se eu conseguisse fazer-vos cristãos, a ti e a bela Adate, faria rebentar de raiva aquele maroto do dominicano que não acredita na imaculada concepção da Virgem. Faríeis a minha fortuna; eu poderia tornar-me bispo (14): uma boa ação que Deus vos saberia recompensar.

É assim, divino Xastasid, que entre esses bárbaros da Europa se encontram homens que são um misto de erro, fraqueza, avidez e tolice, e outros que são patifes declarados e empedernidos. Contei essa conversa a Encanto dos Olhos, que sorriu de piedade. Quem diria que havia de ser a bordo de um navio, em plena costa da África, que aprenderíamos a conhecer os homens?!

 

SÉTIMA CARTA de Amabed

Que belo clima o destas costas meridionais, mas que tristes nativos! que brutos! Quanto mais faz por nós a natureza, menos fazemos nós por ela. Nenhuma arte é conhecida entre todos esses povos. Um grande problema seu é saber se descendem dos macacos, ou se os macacos é que descendem deles Disseram nossos sábios que o homem é a imagem de Deus: fresca imagem de Deus, essas cabeças negras e de nariz chato, e com pouquíssima ou nenhuma inteligência! Dia virá, sem dúvida, em que esses animais saberão cultivar devidamente a terra, embelezá-la com casas e jardins, e conhecer a rota dos astros. Datamos nós outros os nossos conhecimentos de cento e quinze mil seiscentos e cinqüenta e dois anos: na verdade, salvo o respeito que te devo, penso que estamos enganados; na verdade é preciso muito mais tempo para chegar ao ponto a que chegamos. Ponhamos apenas vinte mil anos para inventar uma linguagem tolerável, outro tanto para escrever por meio de um alfabeto, outro tanto para a metalurgia, outro tanto para a charrua e o tear, outro tanto para a navegação; e quantas outras artes ainda não exigem séculos! Os caldeus datam de quatrocentos mil anos, e ainda não é bastante.

Na costa chamada de Angola, o capitão comprou seis negros, pelo preço corrente de seis bois. Essa terra deve ser muito mais povoada que a nossa, visto vender os homens tão barato. Mas, por outro lado, como é que tão abundante população se coaduna com tamanha ignorância? O capitão traz alguns músicos a bordo: mandou-os que tocassem, e eis que aqueles pobres negros começaram a dançar com uma justeza quase igual à dos nossos elefantes. Será possível que, amando assim a música, não tenham sabido inventar a rabeca, ou ao menos a gaita? Hás de dizer-me, grande Xastasid, que nem a habilidade dos próprios elefantes conseguiu chegar a esse resultado, e que cumpre esperarmos. A isto, nada tenho que replicar.

 

OITAVA CARTA de Amabed

Logo à entrada do Ano Novo, avistamos Lisboa, à margem do rio Tejo, o qual tem fama de que rola ouro em suas águas. Se assim é, por que é que os portugueses, vão procurá-lo tão longe? Toda essa gente da Europa retruca que ouro nunca é demais Lisboa é, como me havias dito, a capital de um pequenino reino a pátria desse Albuquerque que me fez tanto mal. Confesso que há algo de grande nesses portugueses, que subjugaram parte dos nossos belos domínios. O desejo de conseguir pimenta deve dar mesmo habilidade e coragem.

Encanto dos Olhos e eu esperávamos entrar na cidade; mas não o permitiram, porque dizem que somos prisioneiros do vice-Deus, e que o dominicano Fa Tutto, o franciscano esmoler Fa Molto, Dera, Adate e eu, devemos todos ser julgados em Roma.

Fomos transferidos para um outro navio que parte para a cidade do vice-Deus.

O capitão é um velho espanhol diferente em tudo do português, que tão cavalheirescamente nos tratava. Só fala por monossílabos, e ainda assim muito raramente. Traz à cinta uns grãos enfiados, que não cessa de contar: dizem que é isso grande sinal de virtude.

Dera lamenta muito a falta do outro capitão; acha que ele era muito mais polido. Entregaram ao espanhol um grande maço de papéis para instruir nosso processo na corte de Roma. Um escriba do navio os leu em voz alta. Julga ele que o padre Fa Tutto será condenado a remar numa das galeras do vice-Deus e que o esmoler Fa Molto será fustigado de chegada. Toda a equipagem é da mesma opinião; o capitão guardou os papéis sem nada dizer. Partimos. Que Brama tenha piedade de nós e te cumule de seus favores! Brama é justo; mas é uma coisa muito singular, que, tendo eu nascido às margens do Ganges, vá ser julgado em Roma. Assegura-se no entanto que o mesmo aconteceu a mais de um estrangeiro.

 

NONA CARTA de Amabed

Nada de novo; toda a equipagem é silenciosa e sombria como o capitão. Bem conheces o provérbio indiano: Amarra-se o burro à vontade do dono. Atravessamos um mar que tem apenas nove mil passos de largura entre duas montanhas; entramos em outro mar semeado de ilhas, uma das quais é bastante estranha. Os que a governam são religiosos cristãos, que usam chapéu e vestes curtas e juraram matar todos aqueles que usam barrete e hábito. Devem também fazer orações. Ancoramos numa ilha maior e muito linda, a que chamam Sicília; era muito mais bela antigamente; fala-se de cidades admiráveis, de que só existem ruínas. Foi habitada por deuses, deusas, gigantes, heróis; ali se forjava o raio. Uma deusa chamada Cerca a cobriu de ricas messes. O vice-Deus mudou tudo isso; vêem-se agora ali muitas procissões e gatunos.

 

DÉCIMA CARTA de Amabed

Eis-nos enfim na terra sagrada do vice-Deus. Lera eu no livro do esmoler que esse país era todo ouro e azul; que as muralhas eram de esmeraldas e rubis; que eram de azeite os arroios, as fontes de leite, e os campos cobertos de vinhas, que produziam cada uma cem toneladas (15). Talvez encontremos tudo isso quando nos aproximarmos de Roma.

Abordamos com dificuldade, num pequeno porto muito incomodo, chamado cidade velha. Tomba em ruínas, e tem um nome bastante apropriado. Conduziram-nos em carroças puxadas a boi. Esses animais devem vir de longe, pois as terras que margeiam o caminho não são cultivadas; tudo uns pântanos infetos, charnecas, landes estéreis. Vimos pela estrada gente vestida com a metade de um manto, e sem camisa, que nos pedia esmola altivamente. Só se alimentam, dizem-nos, de pãezinhos minúsculos que lhes dão de graça pela manhã e só bebem água benta.

Se não fossem esses bandos de maltrapilhos, que dão cinco ou seis mil passos para obter, com suas lamentações, a trigésima parte de uma rúpia, este cantão seria um medonho deserto. Avisaram-nos até de que a pessoa que passasse aqui a noite estaria em perigo de morte. Com certeza Deus se acha incomodado com o seu vigário, pois lhe deu um país que é a cloaca da natureza. Acabo de saber que esta região foi outrora muito linda e fértil e que só se tornou tão miserável depois que esses vigários se apoderaram dela.

Escrevo-te, sábio Xastasid, sobre a minha carroça, para desenfastiar-me. Adate mostra-se muito espantada. Escrever-te-ei logo que chegar a Roma.

 

UNDÉCIMA CARTA de Amabed

Eis-nos aqui, nesta cidade de Roma. Chegamos em pleno dia, a 3 do mês da ovelha, que corresponde aqui a 15 de março de 1513. Presenciamos, no princípio, exatamente o contrário do que esperávamos.

Mal chegáramos à porta chamada de S. Pancrácio (16), vimos dois bandos de espectros, um vestido à maneira do nosso esmoler, o outro à maneira do padre Fa Tutto. Cada bando trazia à frente um estandarte e um grande bastão, no qual estava esculpido um homem nu, na mesma atitude que o de Goa. Marchavam dois a dois e entoavam uma cantoria de fazer bocejar uma província inteira. Quando essa procissão chegou à carroça, um bando gritou: “E São Fa Tutto!” E o outro: “E São Fa Molto!” Beijaram-lhes as batinas. O povo ajoelhou-se.

 

— Quantos hindus converteu, meu Reverendo Padre? — Quinze mil e setecentos – dizia um.

 

— Onze mil e novecentos – dizia o outro.

 

— Louvada seja a Virgem Maria! Todo o mundo tinha os olhos pregados em nós, todo o mundo nos cercava.

 

— São seus catecúmenos, meu Reverendo Padre? — Sim, nós os batizamos.

 

— Na verdade são muito bonitos. Glória nas alturas! Glória nas alturas! O padre Fa Tutto e o padre Fa Molto foram conduzidos, cada um por sua procissão, a uma casa magnífica e, quanto a nós, rumamos para a hospedaria. O povo nos seguiu, até a porta, gritando Cazzo, Cazzo, abençoando-nos, beijando-nos as mãos, louvando a Adate, a Dera e, a mim. Infindável era a nossa surpresa.

 

Mal nos instaláramos, um homem vestido de roxo, acompanhado de dois outros de manto negro, veio apresentar-nos as boas-vindas. A primeira coisa que fez foi oferecer-nos dinheiro, da parte da Propaganda, caso tivéssemos necessidade. Respondi-lhe que ainda nos restava dinheiro e muitos diamantes (com efeito, sempre tivera eu o cuidado de ocultar nas ceroulas a minha bolsa e um cofre de brilhantes). Imediatamente o homem quase se prosternou diante de mim, tratando-me por Excelência “Sua Excelência a signora não está muito fatigada da viagem? Não vai repousar? Temo importuná-la mas estarei sempre às suas ordens. O signor Amabed pode dispor de mim; eu lhe enviarei um cicerone que ficará a seu serviço; é só ordenar. Depois de bem descansados, não querem ambos dar-me a honra de tomar uns refrescos em minha casa? Terei a honra de lhes enviar uma carruagem.” Cumpre confessar, meu divino Xastasid, que os chineses não são mais polidos do que este povo ocidental. O referido senhor retirou-se. Dormimos seis horas, a bela Adate e eu. Ao anoitecer, veio a carruagem buscar-nos. Dirigimo-nos à casa daquele homem tão amável. Seu apartamento era iluminado e ornado de quadros muito mais agradáveis que o do homem nu que vimos em Goa. Uma numerosa companhia nos encheu de carinhos; admiraram-nos por sermos hindus, felicitaram-nos pelo nosso batismo, e ofereceram-nos os seus préstimos por todo o tempo em que quiséssemos permanecer em Roma.

Queríamos solicitar a punição do padre Fa Tutto. Não nos deram tempo de falar nisso. Fomos reconduzidas afinal atônitos, confusos com tal acolhida, e sem compreender coisa alguma.

 

DUODÉCIMA CARTA de Amabed

Recebemos hoje Inúmeras visitas, e uma princesa de Piombino mandou-nos dois escudeiros com um convite para irmos jantar com ela. Dirigimo-nos à sua casa em uma equipagem magnífica. Lá se achava o homem de roxo. Soube que era um dos senhores, isto é, um dos servos do vice-Deus, a que chamam prediletos, prelati. Ninguém mais amável do que essa princesa de Piombino. Fez-me sentar a seu lado. Muito a surpreendeu a nossa repugnância em comer pombos romanos e perdizes. Disse-nos o predileto que, como éramos batizados, tínhamos de comer perdizes e beber vinho de Montepulciano; que todos os vice-Deus assim faziam; que era esse o sinal distintivo de um verdadeiro cristão.

Retrucou a bela Adate, com a sua habitual simplicidade, que não era cristã, que fora batizada no Ganges.

 

— Ó minha senhora! – exclamou o predileto. – Por amor de Deus! No Ganges, no Tibre, ou numa bacia, isso que importa? A senhora é dos nossos. A senhora foi convertida pelo padre Fa Tutto; é para nós uma honra que não queremos perder. Veja que superioridade tem a nossa religião sobre a dos hindus! E em seguida encheu os nossos pratos de asas de frango. A princesa bebeu pela nossa saúde e salvação. Instaram-nos com tanta graça, com tão amáveis expressões, mostraram-se tão polidos, tão alegres, tão sedutores, que afinal, enfeitiçados pelo prazer (peço perdão a Brama), fizemos, Adate e eu, a mais opípara refeição do mundo, com o firme propósito de nos lavarmos no Ganges até as orelhas, ao regressar, para apagar nosso pecado. Não tinham a menor dúvida de que fôssemos cristãos.

 

— Esse padre Fa Tutto – dizia a princesa – deve ser mesmo um grande missionário. Tenho vontade de toma-lo para confessor.

 

Nós corávamos e baixávamos os olhos, minha pobre mulher e eu.

De tempos em tempos, a signora Adate dizia que viéramos para ser julgados pelo vice-Deus e que tinha o maior desejo de avistar-se com ele.

Não temos nenhum por enquanto – explicou-nos a princesa. – Ele morreu. Estão ocupados em fazer um outro: logo que este fique pronto, sereis apresentados a Sua Santidade. Assistireis então à mais augusta festa que os humanos possam ver, e da qual sereis o mais belo ornamento.

Adate respondeu com espírito, e a princesa ficou muito afeiçoada a ela.

No final da refeição tivemos música, que era (se assim ouso dizer) superior à de Benares e de Madura.

Ao sairmos da mesa, a princesa mandou aprestar quatro carruagens douradas; fez-nos subir na sua. Mostrou-nos belos edifícios, estátuas, pinturas. À noite, dançou-se. Eu comparava secretamente essa encantadora recepção com o calabouço a que fôramos lançados em Goa, e mal conseguia compreender, como o mesmo governo e a mesma religião podiam ter tamanha doçura e encanto em Roma, e exercer ao longe tantos horrores.

 

DÉCIMA-TERCEIRA CARTA de Amabed

Enquanto esta cidade se acha surdamente dividida em pequenas facções para eleger um vice-Deus, enquanto estas facções, animadas do mais ferrenho ódio, se tratam todas com uma polidez que se assemelha à afeição, enquanto o povo olha os padres Fa Tutto e Fa Molto como favoritos da Divindade, enquanto nos assediam com uma curiosidade respeitosa, eu faço, meu caro Xastasid, profundas reflexões sobre o governo de Roma.

Comparo-o à ceia que nos ofereceu a princesa de Piombino. A sala era limpa, cômoda, ornamentada; o ouro e a prata fulgiam nos aparadores; a alegria, o espírito e as graças animavam os convivas; mas, na cozinha, escorria o sangue e a graxa; as peles dos quadrúpedes, as penas das aves, as suas entranhas, tudo misturado, revoltavam o estômago e espalhavam a infecção.

Tal é, ao que me parece, a corte romana. Polida e lisonjeira em sua terra, traiçoeira e despótica nos demais lugares. Quando dizemos que esperamos obter justiça contra Fa Tutto, todos riem com brandura; dizem que estamos muito acima dessas bagatelas; que o governo nos considera muito para permitir que guardemos lembrança de tal facécia; que os Fa Tutto e os Fa Molto são espécies de macacos cuidadosamente amestrados para fazer peloticagens diante do povo; e terminam com protestos de respeito e amizade para conosco. Que partido queres tu que tomemos, grande Xastasid? Creio que o mais sábio é rir com os outros e ser polidos como eles Vou estudar Roma, que bem vale a pena.

 

DÉCIMA QUARTA CARTA de Amabed

Grande é o intervalo entre minha última carta. e a presente. Li, vi, conversei, meditei. Juro-te que jamais houve no mundo maior contradição do que a existente entre o governo romano e a sua religião. Falava eu nisso ontem a um teólogo do vice-Deus. Um teólogo é, nesta corte, o que são os últimos criados numa casa; encarregam-se do trabalho pesado, fazem os despejos e, se encontram algum trapo que possa servir, guardam-no para o que der e vier.

 

— O vosso Deus – dizia-lhe eu – nasceu em um estábulo, entre um boi e um burro; foi criado, viveu e morreu na pobreza; ordenou expressamente a pobreza a seus discípulos; declarou-lhes que não haveria entre eles nem primeiro nem último e que aquele que quisesse comandar aos outros os serviria. No entanto, vejo que fazem aqui exatamente o contrário do que quer o vosso Deus. O vosso próprio culto é inteiramente diverso do seu. Obrigais os homens a acreditar em coisas de que ele não disse uma única palavra.

 

— Tudo isso é verdade – respondeu-me. – O nosso Deus não ordenou formalmente a nossos superiores que enriquecessem à custa dos povos, nem que se apoderassem dos bens alheios; mas ordenou-o virtualmente. Nasceu entre um boi e um burro; mas três reis vieram adorá-lo no seu estábulo. Os bois e os burros figuram os povos a quem doutrinamos; e os três reis figuram os monarcas que estão a nossos pés. Seus discípulos viviam na indigência; portanto, os nossos superiores devem hoje regurgitar de riquezas. Pois, se aqueles primeiros vice-Deus apenas tiveram necessidade de um escudo, os de hoje têm premente necessidade de dez milhões de escudos. Ora, ser pobre é não ter senão o estritamente necessário. Portanto, os nossos superiores, não dispondo nem mesmo do necessário, seguem a rigor o voto de pobreza.

 

— Quanto aos dogmas – continuou ele, – o nosso Deus jamais escreveu coisa alguma, e nós sabemos escrever; portanto, a nós compete escrever os dogmas: de modo que os temos fabricado com o tempo, conforme a necessidade. Por exemplo, fizemos do casamento o sinal visível de uma coisa invisível; isso faz que todos os processos suscitados por causa de casamentos venham ter, de todos os recantos da Europa, ao nosso tribunal de Roma, visto que só nós é que podemos ver coisas invisíveis. É uma copiosa fonte de tesouros que vêm despejar-se em nossa sagrada câmara de finanças, para estancar a sede da nossa pobreza.

 

Perguntei-lhe se a sagrada câmara não dispunha de outros recursos.

 

— Não descuramos disso – afiançou-me o teólogo. – Tiramos partido dos vivos e dos mortos. Por exemplo, logo que alguém morre, nós enviamos a respectiva alma para uma enfermaria; fazemo-la tomar mezinhas na botica das almas; e o senhor nem imagina quanto nos rende essa botica.

 

— Como assim, monsenhor? Pois a mim me parece que a bolsa de uma alma se acha ordinariamente muito mal recheada.

 

— Lá isso é verdade, Signor; mas as almas possuem parentes que se apressam em retirar seus parentes mortos da enfermaria, acomodando-os em local mais aprazível. É triste para uma alma passar toda uma eternidade a tomar remédios. Entendemo-nos então com os vivos; compram eles a saúde das almas de seus falecidos parentes, uns mais caro, outros mais barato, conforme as posses. Entregamo-lhes cartões de indulgência para a botica. Asseguro-lhe que é uma das nossas melhores rendas.

 

— Mas, Monsenhor, como podem esses cartões de indulgência chegar até às almas? Ele pôs-se a rir: — Isso é com os parentes; e de resto, não lhe disse eu que temos um poder incontestável sobre as coisas invisíveis? Esse monsenhor me parece bastante esperto; muito tenho aprendido com ele, e já me sinto inteiramente outro.

 

DÉCIMA-QUINTA CARTA de Amabed

Deves saber, meu caro Xastasid, que o cicerone a quem monsenhor me recomendou e de quem te falei algo nas cartas precedentes, é um homem muito inteligente que mostra aos estrangeiros as curiosidades da antiga e da nova Roma. Uma e outra, como vês, governaram os reis; mas os primeiros romanos adquiriram o poder com a espada, e os últimos com a pena. A disciplina militar deu o Império aos Césares, cuja história conheces; a disciplina monástica dá outra espécie de Império a esses vice-Deus a que chamam Papas. Vêem-se procissões no mesmo local onde outrora se viam triunfos. Os cicerones explicam tudo isso aos estrangeiros; fornecem-lhes livros e raparigas. Quanto a mim (por mais jovem que, seja) não quero ser infiel à minha bela Adate; limito-me pois aos livros; e estudo principalmente a religião do país, que muito me diverte.

Lia com o meu cicerone a história da vida do Deus da terra. É deveras extraordinária. Era um homem que secava figueiras com uma só palavra, que mudava água em vinho e que afogava porcos. Tinha muitos inimigos. Bem sabes que ele nascera em um burgo pertencente ao imperador de Roma. Seus inimigos eram mesmo astutos; perguntaram-lhe um dia se deviam pagar tributo ao imperador, ao que ele lhes respondeu: “Dai ao príncipe o que é do príncipe, mas dai a Deus o que é de Deus.” Essa resposta me parece sábia, e nisso falávamos, o meu cicerone e eu, quando chegou monsenhor. Falei-lhe muito bem do seu Deus e pedi-lhe que me explicasse como a sua câmara de finanças observava tal preceito, tomando tudo para si, sem dar coisa alguma ao imperador. Pois deves saber que os romanos, embora tenham um vice-Deus têm também um imperador, ao qual dão o título de rei dos romanos. Eis o que me respondeu aquele homem tão avisado: — É verdade que temos um imperador; mas só o é em aparência. Acha-se banido de Roma; nem ao menos possui uma casa; deixamo-lo habitar perto de um grande rio que gela durante quatro meses por ano, em um país cuja linguagem nos arranha os ouvidos. O verdadeiro imperador é o papa, visto que reina na capital do império. Assim, dai ao imperador quer dizer dai ao papa; e dai a Deus também significa dai ao papa, pois com efeito é ele vice-Deus. E o único senhor de todos os corações e de todas as bolsas. Se o outro imperador que mora à margem de um grande rio ousasse dizer ao menos uma palavra, nós então sublevaríamos contra ele todos os habitantes das margens do grande rio, que são na maioria uns grandes corpos sem espírito, e armaríamos contra ele os outros reis, que partilhariam, com o papa, dos seus despojos.

Eis-te, divino Xastasid, inteirado do espírito de Roma. O papa é, em ponto grande, o que é, em ponto pequeno, o dalai-lama; se não é imortal como o lama, é todo-poderoso durante a vida, o que é coisa muito melhor. Se algumas vezes lhe resistem, se o depõem, se lhe dão bofetadas, se até mesmo o matam (17) entre os braços da amante, como por vezes aconteceu, esses inconvenientes jamais atingem o seu caráter divino. Podem dar-lhe mil estribaços, mas cumpre acreditar sempre em tudo quanto ele diz, O papa morre, o papado é imortal, Já houve três ou quatro vice-Deus que disputavam tal lugar ao mesmo tempo. A divindade achava-se então dividida entre eles: cada qual tinha o seu bocado, cada qual era infalível no seu partido.

Perguntei a monsenhor por que artes conseguira a sua corte governar todas as outras cortes. “De pouca arte necessitam as pessoas de espírito – disse-me ele – para governar aos tolos”. Quis eu saber se nunca se haviam revoltado contra as decisões do vice-Deus. Confessou-me que homens houvera bastante temerários para erguerem os olhos, mas que lhos haviam vasado em seguida, ou tinham exterminado esses miseráveis, e que tais revoltas até agora só tinham servido para melhor firmar a infalibilidade no trono da verdade.

Acabam de nomear um novo vice-Deus. Repicam sinos, rufam tambores, ressoam trombetas, atroa o canhão, a que cem mil vozes fazem eco. Escreverei informando-te de tudo o que tiver visto.

 

DÉCIMA-SEXTA CARTA de Amabed

Foi a 25 do mês do crocodilo, e a 13 do planeta Marte (18), como se diz aqui, que homens de vermelho e inspirados elegeram o homem infalível perante o qual devia eu ser julgado, tal como Encanto dos Olhos, na qualidade de apóstata.

Esse Deus na terra chama-se Leão, décimo do nome. É um belo homem de trinta e quatro a trinta e cinco anos, e muito amável; as mulheres estão loucas por ele. Achava-se atacado de um mal imundo, que só é bem conhecido na Europa, mas que os portugueses começam a introduzir no Indostão. Julgavam que disso morreria, e foi por isso mesmo que o elegeram, a fim de que o sublime posto ficasse logo vago; mas curou-se, e zomba daqueles que o nomearam. Nada. mais magnífico do que a sua coroação, na qual gastou ele cinco milhões de rúpias, para prover às necessidades de seu Deus, que foi tão pobre! Não pude escrever-te na agitação das festas; sucederam-se tão rapidamente, tive de assistir a tantas diversões, que não sobrou um momento de lazer.

O vice-Deus Leão ofereceu espetáculos de que não tens idéia. Há principalmente um, chamado comédia, que me agradou mais que todos os outros. É uma representação da vida humana; é um quadro vivo; os personagens falam e agem; expõem os seus interesses; desenvolvem as suas paixões: abalam a alma dos espectadores.

A comédia que vi anteontem no palácio do papa intitula-se A Mandrágora. O argumento da peça é a história de um jovem espertalhão que quer dormir com a mulher do vizinho. Contrata por dinheiro um monge, um Fa Tutto ou um Fa Molto, para seduzir a amante do marido e fazê-lo cair numa ridícula cilada. Zomba-se, durante toda a comédia, da religião que a Europa professa, de que Roma é o centro, e cujo trono é o assento papal. Tais prazeres talvez te pareçam indecentes, meu caro e pio Xastasid. Encanto dos Olhos ficou escandalizada; mas a comédia é tão linda que o prazer sobrepuja o escândalo.

Os festins, os bailes, as belas cerimônias religiosas, os dançarinos de corda, sucedem-se sem interrupção. Principalmente os bailes são muito divertidos. Cada convidado veste um hábito estranho e põe sobre o próprio rosto outro rosto de papelão. Assim disfarçados, dizem coisas de rebentar de riso. Durante as refeições toca sempre uma música muito agradável; em suma, um verdadeiro encanto.

Contaram-me que um vice-Deus, predecessor de Leão, chamado Alexandre, dera, por ocasião das núpcias de um bastardo seu, uma festa muito mais extraordinária, durante a qual fez dançar cinqüenta raparigas inteiramente nuas. Os brâmanes jamais instituíram semelhantes danças: bem vês que cada país tem os seus costumes. Abraço-te com respeito e deixo-te para ir dançar com a bela Adate. Que Birma te cumule de bênçãos!

 

DÉCIMA-SÉTIMA CARTA de Amabed

Na verdade, meu grande brâmane, nem todos os vice-Deus foram tão divertidos como este. É um verdadeiro prazer viver sob o seu domínio. O falecido, por nome Júlio, era de caráter muito diverso; tratava-se de um velho soldado turbulento, que amava a guerra como um louco; sempre a cavalo, sempre de capacete, distribuindo bênçãos e espadaços, atacando a todos os seus vizinhos, danando-lhes as almas e matando-lhes os corpos o mais que podia: morreu de um acesso de raiva. Que diabo de vice-Deus era aquele! Imagina que, com um pedaço de papel, pretendia ele despojar os reis de seus reinos! Resolveu destronar dessa maneira o rei de um país muito lindo, chamado França. Esse rei era um bom homem. Passa aqui por tolo porque não foi feliz. O pobre príncipe viu-se um dia obrigado a reunir os mais esclarecidos homens de seu reino (19) para lhes perguntar se lhe era permitido defender-se de um vice-Deus que o destronava com um pedaço de papel.

É preciso ser mesmo muito bom para fazer tal pergunta! Testemunhava eu minha surpresa ao senhor de roxo que me tomou amizade.

 

— Será. possível – lhe dizia eu – que se seja tão tolo na Europa? — Receio muito – respondeu-me – que tanto abusem os vice-Deus da complacência dos homens que acabarão por lhes dar inteligência.

 

É de presumir, pois, que haja revoltas contra a religião da Europa. O que te surpreenderá, douto e penetrante Xastasid, é que não as houve sob o vice-Deus Alexandre, que reinava antes de Júlio. Mandava assassinar, enforcar, afogar, envenenar impunemente a todos os senhores seus vizinhos. E o instrumento dessa multidão de crimes, cometidos à vista de toda a Itália, foi um dos seus cinco bastardos. Como puderam persistir os povos na religião desse monstro!! Era esse mesmo que fazia as raparigas dançarem sem nenhum ornamento supérfluo. Seus escândalos deviam inspirar desprezo, seus atos de barbárie deviam aguçar mil punhais contra ele; no entanto, viveu cheio de veneração e com toda a tranqüilidade, na sua corte. A razão disso, ao que me parece, é que os padres afinal saíam ganhando com todos os seus crimes, e os povos não perdiam nada. Mas logo que estes se sentirem por demais afrontados, hão de quebrar as cadeias. Cem golpes de aríete não puderam abalar o colosso: um seixo o deitará por terra. É o que dizem por aqui as pessoas esclarecidas que gostam de profetizar.

Enfim, acabaram-se as comemorações; de festas não se deve abusar: nada cansa tanto como as coisas extraordinárias quando se tornam comuns Só as verdadeiras necessidades, que quotidianamente renascem, podem dar prazer todos os dias Recomendo-me às tuas santas orações.

 

DÉCIMA-OITAVA CARTA de Amabed

O Infalível nos quis ver em particular, a Encanto dos Olhos e a mim. O nosso monsenhor nos conduziu a seu palácio. Mandou-nos ajoelhar três vezes. O vice-Deus nos fez beijar seu pé direito, enquanto segurava as ilhargas de tanto rir. Perguntou-nos se o padre Fa Tutto nos convertera e se com efeito éramos cristãos. Minha mulher respondeu que o padre Fa Tutto era um atrevido, e o papa se pôs a rir com redobrado gosto. Beijou duas vezes a minha mulher, e a mim também.

Em seguida nos mandou sentar ao lado do seu banquinho de beija-pé. Perguntou-nos como se praticava o amor em Benares, em que idade casavam geralmente as moças, se o grande Brama possuía um serralho. Minha mulher corava; eu respondia com respeitoso recato. Depois nos despediu, recomendando-nos o cristianismo, beijando-nos, e dando-nos palmadinhas nas nádegas, em sinal de benevolência. Encontramos, na saída, os padres Fa Tutto e Fa Molto, que nos beijaram a fímbria das vestes. O primeiro impulso, que vem sempre da alma, fez-nos a princípio recuar de horror. Mas o de roxo nos disse: — Bem se vê que os amigos Amabed e Adate ainda não completaram a sua educação: é dever essencial neste país beijar os nossos maiores inimigos; na primeira oportunidade mandem envenená-los, se puderem; mas, enquanto isto, não deixem de lhes demonstrar a mais profunda amizade.

Beijei-os, pois, mas Encanto dos Olhos fez-lhes uma saudação muito seca, e Fa Tutto fitava-a com o rabo do olho, inclinando-se até o chão diante dela. Um verdadeiro encantamento, tudo isto. Passamos os dias a espantar-nos. Na verdade duvido que Madura seja mais agradável do que Roma.

 

DÉCIMA-NONA CARTA de Amabed

Nada de castigarem o padre Fa Tutto! Ontem de manhã a nossa jovem Dera resolveu ir por curiosidade a um pequeno templo. O povo estava de joelhos. Um brâmane da terra, magnificamente vestido, curvava-se sobre uma mesa; tinha o traseiro voltado para o público, Dizem que ele fazia Deus. Depois que fez Deus, mostrou-nos a dianteira. Dera soltou um grito e exclamou: “Olhem o patife que me pegou à força!” Felizmente, no auge da revolta e da surpresa, ela pronunciou tais palavras em hindu. Asseguram-me, que se a tivessem compreendido, o populacho se lançaria a ela como a uma feiticeira. Fa Tutto respondeu-lhe em italiano: “Que a graça da Virgem te acompanhe, minha filha! Fala mais baixo.” Ela veio, desesperada, contar-nos a sua história. Nossos amigos nos aconselharam que nunca nos queixássemos. Disseram-nos que Fa Tutto era um santo, e que nunca se devia falar mal dos santos. Que queres tu? O que está feito está feito. Aceitamos pacientemente todas as diversões em que nos fazem tomar parte neste país. Cada dia nos ensinam coisas de que nem suspeitávamos. As viagens educam muito a gente.

Chegou à corte de Leão um grande poeta; seu nome é messer Ariosto: não gosta de padres; eis como se refere a eles:

Non sa quel che sia amor, non sa che vaglia La caritade e quindi avvien che i frati Sono si ingorda e si crudel canaglia (20).

O que quer dizer em hindu:

Modermen sebar eso La te ben sofa meso.

Bem vês que superioridade a língua indiana, que é tão antiga, sempre conservará sobre todos esses recentes jargões da Europa: exprimimos em quatro palavras o que eles, com tanta dificuldade exprimem em dez. Compreendo perfeitamente que esse Ariosto diga que os monges são uma verdadeira canalha, mas não sei por que pretende que eles desconhecem o amor. Nós que o digamos! Com certeza quer dizer que eles apenas gozam, e não amam.

 

VIGÉSIMA CARTA de Amabed

Faz alguns dias que não te escrevo, meu estimado grande brâmane. É devido às solicitudes com que aqui nos honram. O nosso monsenhor ofereceu-nos uma excelente ceia, a que compareceram dois jovens vestidos de vermelho da cabeça aos pés. Sua dignidade é a de cardeal, que é como quem diz gonzo de porta. Um é o cardeal Sacripante e o outro o cardeal Faquinetti. São os primeiros na terra depois do vice-Deus; de maneira que os intitulam vigários do vigário. O seu direito, sem dúvida um direito divino, consiste em serem iguais aos reis e superiores aos príncipes, e em possuírem sobretudo imensas riquezas.

Esses dois gentis-homens, durante a ceia, nos convidaram para passar alguns dias em sua casa de campo, pois cada qual porfia em nos ter consigo. Após disputarem a preferência o mais divertidamente possível, Faquinetti apoderou-se da bela Adate, sob a condição de trocarem de convidados no dia seguinte e de nos reunirmos os quatro no terceiro dia. Dera também ia conosco. Não sei com que palavras contar-te o que nos aconteceu, mas vou tentá-lo como melhor puder.

 

Nota: Aqui termina o manuscrito das Cartas de Amabed Procurou-se em todas as bibliotecas de Madura e Benares a continuação destas cartas. E seguro que não existe.

Assim, no caso de que algum infeliz falsário edite um dia o resto das aventuras dos dois jovens indianos, Novas Cartas de Amabed, Novas Cartas de Encanto dos Olhos, Respostas do Grande Brâmane Xastasid, pode estar certo o leitor de que o enganam, e de que o aborrecem, como mil vezes tem acontecido em casos tais.

 

NOTAS

(1) – Corresponde tal data ao ano 1512 da nossa era vulgar, dois anos depois da tomada de Goa, por Afonso de Albuquerque. Cumpre saber que os brâmanes contavam 111.100 anos desde a rebelião e queda dos seres celestiais 4.552 anos desde a promulgação do Xasta, seu primeiro livro sagrado; o que dava 115.652 para o ano correspondente ao nosso ano de 1512, tempo em que reinava Babar na Mongólia, Ismael Bophi na Pérsia, Selim na Turquia, Maximiliano I na Alemanha, Luís XII na França, Júlio II em Roma, Joana a Louca na Espanha, Manuel em Portugal.

(2) – Druga é a palavra indiana que significa “virtude”. É representada com dez braços e montada num dragão para combater os vícios, que são a intemperança, a incontinência, o furto, o assassínio, a injúria, a maledicência, a calúnia, a ociosidade, a resistência aos pais, a ingratidão. Foi essa figura que vários missionários tomaram pelo diabo.

(3) – Vê-se que Xastasid lera a nossa Bíblia em árabe, atentando ali na epístola de S. Judas, onde com efeito se encontram estas palavras, no versículo 6. 0 livro apócrifo que jamais existiu é o de Enoch, citado por S. Judas no versículo 14 

(4) – É a diferença entre os textos hebraico, samaritano e dos Setenta.

(5) – Bem se vê que Xastasid fala aqui como brâmane que não tem o dom da fé e a quem foi negada a graça.

(6) – É indubitável que as fábulas concernentes a Baco eram muito comuns na Arábia e na Grécia, muito tempo antes de que as nações fossem informadas se os judeus tinham ou não uma história. Josephus confessa até que os judeus sempre conservaram os seus livros ocultos para os povos vizinhos. Baco era venerado no Egito, na Arábia, na Grécia, muito antes que o nome de Moisés penetrasse nessas regiões. Os antigos versos órficos chamam a Baco de Misa ou Mesa. Foi criado na montanha de Nisa, que é precisamente o monte Sina. Fugiu em direção ao Mar Vermelho; ali reuniu um exército e atravessou com ele esse mar, a pé enxuto. Fez parar o sol e a lua. Seu cão o seguiu em todas as expedições, e o nome de Caleb, um dos conquistadores hebreus, significa “cão”.

Os sábios muito discutiram e ainda não chegaram a um acordo sobre se Moisés é anterior a Baco, ou Baco a Moisés. Ambos são grandes homens; mas Moisés, ao bater um rochedo com a sua vara, só fez sair água, ao passo que Baco, ao bater a terra com o seu tirso, fez sair vinho. Vem dai que todas as canções de mesa celebram a Baco, não havendo talvez duas canções em favor de Moisés.

(7) – Esse Mosasor é um dos principais anjos rebeldes que combateram contra o Eterno, como o relata o Autoraxasta, o mais antigo livro dos brâmanes, e onde está provavelmente a origem de todas as guerras dos Titãs e de todas as fábulas imaginadas depois conforme esse modelo.

(8) – Ezequiel – Cap. IV.

(9) – Oseas – Cap. I.

(10) – Ezequiel – Cap. XVI.

(11) – Juizes – Cap. XIX

(12) – Gênesis – Cap. XIX.

(13) – Gênesis – Cap. XIX.

(14) – Palavra portuguesa que significa episcopus Não está em nenhum dos quatro Evangelhos.

(15) – Aparentemente quer ele referir-se â santa Jerusalém descrita no minucioso livro do Apocalipse, em Justino, Tertuliano, Irineu e outros grandes personagens. Mas bem se vê que esse pobre brâmane tinha disso uma idéia muito imperfeita.

(16) – Era outrora a porta do Janículo, vede como a nova Roma sobrepujou a antiga.

(17) – João VIII, assassinado a martelo por um marido ciumento. João X, amante de Teodora, estrangulado no leito da mesma. Estêvão VIII, aprisionado no castelo a que chamam hoje de Sto. Ângelo. Estêvão IX, acutilado no rosto pelos romanos. João XII, deposto pelo imperador Otão I e assassinado em casa de uma de suas amantes. Benedito V, exilado pelo imperador Otão I Benedito VII, estrangulado pelo bastardo de João X. Benedito IX, que comprou, com mais dois outros, o pontificado, e revendeu a sua parte. Etc, etc, Todos eles eram infalíveis.

(18) – Mars, Março, Mars, Marte.

(19) – Em 1510 o papa Júlio II excomungou o rei de França Luis XII e interditou o reino de França, oferecendo-o ao primeiro que dele se quisesse apoderar, excomunhão e interdição estas que foram reiteradas em 1512. Custa acreditar hoje em tal excesso de insolência e ridículo Mas, desde Gregório VII, não houve quase nenhum bispo de Roma que não fizesse ou não quisesse fazer e desfazer soberanos, a seu bel-prazer. Os soberanos mereciam todos esse infame tratamento, pois haviam sido bastante imbecis para fortalecerem, eles próprios, em seus súditos, a convicção da infalibilidade do papa e do seu poder sobre todas as Igrejas. Eles mesmos é que forjavam as próprias cadeias, tão difíceis de quebrar. O governo era por toda parte um caos formado pela superstição. Só muito tarde penetrou a razão nos povos do Ocidente; curou algumas feridas que fizera essa superstição inimiga do gênero humano, mas ainda restam profundas cicatrizes.

(20) – Não sabe o que é o amor, nem o que vale a caridade, e assim acontece que os frades sejam tão ávida e cruel canalha.

 

 

                                                                                            Voltaire

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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