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Dicionário Filosófico P - 3 / Voltaire
Dicionário Filosófico P - 3 / Voltaire

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Dicionário Filosófico

 

DESTINO

De todos os livros que até nós chegaram, o mais antigo é Homero. É em Homero que se nos deparam os costumes da antigüidade profana, os heróis e deuses toscamente talhados à imagem do homem. Em Homero também encontramos os embriões da filosofia e sobretudo a idéia do destino, que é senhor dos deuses como são os deuses senhores dos homens.

Debalde quer Júpiter salvar Heitor. Consulta os destinos, pesando numa balança os destinos de Heitor e Aquiles: diz a sorte que o troiano será irrevogavelmente morto pelo grego, e nada pode opor-lhe o soberano dos deuses. Apolo, o gênio guardião de Heitor, é então obrigado a abandoná-lo (26). Não que Homero não seja pródigo de idéias opostas, consoante o privilégio da antigüidade. Mas enfim é o primeiro em que aparece a noção do destino. Devia estar, pois, muito em voga em seu tempo.

Os fariseus, na pequena nação judaica, só conceberam o destino muitos séculos depois, porquanto, embora tenham sido os primeiros judeus letrados, eram muito novos em relação aos gregos. Mesclaram em Alexandria parte dos dogmas dos estóicos às antigas idéias judaicas. Chega a pretender S. Jerônimo não ser sua seita muito anterior à nossa era. Os filósofos sempre prescindiram de Homero e dos fariseus para se persuadirem de que tudo está sujeito a leis imutáveis, tudo está determinado, tudo é efeito necessário.

Ou o mundo subsiste pela própria natureza, pelas leis físicas, ou formou-o um Ser Supremo conforme supremas leis. Num caso como noutro as leis são imutáveis e tudo é necessário. Os corpos graves tendem para o centro da terra, não podendo tender a repousar no ar. Pereiras nunca poderiam dar ananases. O instinto de um espanhol não pode ser o instinto de um austríaco Tudo se acha ordenado, engranzado e limitado.

Não pode o homem ter mais que certo número de dentes, cabelos e idéias. Tempo vem em que inevitavelmente perde os dentes, os cabelos e as idéias

Contraditório seria que ontem não fosse ontem e hoje não fosse hoje. Tão contraditório como se o que há de ser pudesse deixar de sê-lo.

Se pudesses torcer o destino de uma mosca, nada te impediria de traçar o destino de todas as outras moscas, de todos os outros animais, de todos os homens, de toda a natureza. Enfim, serias mais poderoso que Deus.

Dizem os cretinos: O médico arrancou minha tia aos braços da morte, fê-la viver dez anos mais do que deveria viver. Outra modalidade de imbecis – os capazes, – sentenciam: O homem prudente forja o próprio destino.

Nullum numen abest, si sit prudentia, sed te

nos facimus, fortuna, deam, coeloque locamus.

Asseveram profundos políticos que se oito dias antes que se decapitasse Carlos I se tivessem assassinado Cromwell, Ludlow, Ireton e uma dúzia de outros parlamentares, esse rei ainda podia ter vivido e morrer no leito. Têm razão. E poderiam acrescentar que se o mar houvesse tragado toda a Inglaterra esse monarca não teria morrido em um patíbulo junto a Whitehall, ou sala, branca. Porém as coisas estavam dispostas de maneira que Carlos teria irrevogavelmente o pescoço cortado.

Não resta dúvida que o cardeal de Ossat era mais prudente que um louco das Petites-Maisons. Mas não é evidente que os órgãos do sábio de Ossat não eram os mesmos que os de um desmiolado, da mesma forma como os de uma raposa diferem dos de um grou ou uma calhandra.

O médico salvou tua tia. Mas não contradisse a natureza: obedeceu-lhe. Claro que tua tia não podia deixar de nascer senão na cidade em que nasceu, em ocasião certa ter certa moléstia, que o médico não podia estar alhures senão na cidade em que estava, que tua tia forçosamente o chamaria a ele, o qual necessariamente lhe prescreveria os remédios que a curaram.

Crê um camponês haver geado em seu campo por acaso. Mas um filósofo sabe que não existe acaso e que era impossível, na constituição deste mundo, que precisamente naquele dia não geasse precisamente naquele lugar.

Há pessoas que, aterrorizadas ante essa verdade, só concordam pela metade, como devedores que oferecem metade aos credores e pedem mora para a outra metade. Existem, dizem elas, acontecimentos necessários e acontecimentos não necessários. Engraçado um mundo metade em ordem metade em desordem. Que parte do que acontece precisava acontecer, outra não. Basta chegar-se-lhe um pouco mais o nariz para ver ser absurda semelhante teoria. Mas há muitos indivíduos que nasceram para raciocinar mal, outros para não raciocinar .e outros para perseguir os que raciocinam.

Perguntareis:

— E a liberdade?

Não vos entendo. Não sei o que seja essa liberdade de que falais. Há tanto tempo discutis acerca de sua natureza que seguramente não a conheceis. Se quiserdes, ou melhor, se puderdes examinar calmamente comigo o que se deve entender por essa palavra, saltai à letra L.

DEUS

Imperante Arcádio, Logômacos, teologal de Constantinopla, empreendeu uma viagem à Cítia, e deteve-se ao pé do Cáucaso, nos férteis plainos de Zefirim, nos términos da Cólchida. Estava o bom velho Dondindaque em sua ampla sala baixa, entre seu grande aprisco e a vasta granja. Estava ajoelhado em companhia da mulher, dos cinco filhos e cinco filhas, seus pais e seus criados, e cantavam os louvores a Deus após ligeiro repasto.

— Que fazes, idólatra? – perguntou-lhe Logômacos.

— Não sou idólatra – retorquiu Dondindaque.

— Claro que o és, pois és cita e não grego. Que cantavas em tua bárbara geringonça da Cítia I

— Todas as línguas soam da mesma forma aos ouvidos de Deus. Cantávamo-lhe os louvores.

— Eis uma coisa extraordinária! Uma família cita que ora a Deus sem ter sido instruída por nós!

Seguiu-se um diálogo entre o grego Logômacos e o cita Dondindaque, pois o teologal sabia um pouco de cita e o outro um pouco de grego. Encontrou-se esse diálogo num manuscrito conservado na biblioteca de Constantinopla

Logômacos

Vejamos se sabes teu catecismo. Por que oras a Deus?

Dondindaque

Justo é que adoremos o Ser Supremo que tudo nos deu.

Logômacos

Oh! Para um bárbaro não está mal. E que lhe pedes? Dondindaque

Agradeço-lhe os bens de que gozo e os males com que lhe apraz provar-me. Abstenho-me porém de pedir-lhe seja o que for. Melhor que nós sabe ele o que nos falta. Demais poderia dar-se que quando eu pedisse bom tempo meu vizinho pedisse chuva.

Logômacos

Ah! Logo vi que ia dizer alguma asneira. Passemos a plano mais elevado. Bárbaro, quem te disse que Deus existe?

Dondindaque

Toda a natureza.

Logômacos

Não basta. Que idéia tens do Ser Supremo?

Dondindaque

Que é o meu criador, meu soberano, que me recompensará quando praticar o bem e me castigará quando cometer o mal.

Logômacos

Que frioleiras! Vamos ao essencial – Deus é infinito secundum quid ou segundo a essência?

Dondindaque

Não vos entendo.

Logômacos

Sujeito tapado! Deus está algures ou ao mesmo tempo em tudo e fora de tudo?

Dondindaque

Não sei... Como quiserdes.

Logômacos

Ignorante! Pode Deus demover o acontecido? Pode fazer que um bastão não tenha duas pontes? Como verá o futuro: como futuro ou como presente? Como faz para tirar o ser do nada e para aniquilar o ser?

Dondindaque

Tais coisas nunca me passaram pela cabeça.

Logômacos

Que sujeito bronco! Bem, vejo que preciso baixar a trave. Dize-me, meu amigo, achas que a matéria possa ser eterna?

Dondindaque

Que me importa que seja eterna ou não? Eu, posso afirmar que não o sou. De qualquer forma, Deus é o meu senhor. Deu-me a noção de justiça, devo segui-la. Não quero ser filósofo, quero ser homem.

Logômacos

São o diabo, essas cabeças duras! Vamos aos poucos: Que é Deus?

Dondindaque

Meu soberano, meu juiz, meu pai.

Logômacos

Não é isso o que pergunto. Qual é sua natureza?

Dondindaque

Ser poderoso e bom.

Logômacos

Mas é corporal ou espiritual?

Dondindaque

Como quereis que o saiba?

Logômacos

Arre! Não sabes o que é um espírito?

Dondindaque

Nem imagino: de que me serviria isso? Tornar-me-ia acaso mais justo? Seria melhor marido, melhor pai, melhor amo, melhor cidadão?

Logômacos

É absolutamente necessário ensinar-te o que seja espírito. Escuta: é, é, é... Bem, fica para outra ocasião.

Dondindaque

Muito receio que me fôsseis dizer o que ele não é. Permiti-me fazer-vos a meu turno uma pergunta. Vi há muito um de vossos templos: por que motivo pintais Deus com uma longa barba?

Logômacos

É questão muito complexa, que requer instruções preliminares.

Dondindaque

Antes de receber vossas instruções, vou contar-vos o que me aconteceu certo dia. Eu acabava de fazer construir uma privada no fim de meu jardim, quando ouvi uma toupeira conversando com um besouro:

— Eis uma bela fábrica! – dizia a toupeira. – Deve ser uma toupeira bem poderosa o autor dessa obra.

— Gracejais – respondeu o besouro. – Bem sabeis que foi um besouro, um besouro genial o arquiteto desse edifício.

Desde então resolvi nunca discutir.

ESCALA DOS SERES

A primeira vez em que li Platão e observei essa gradação de seres desde o mais ínfimo átomo até o Ser Supremo, essa escala impressionou-me fundamente. Considerando-a porém atentamente, esvaeceu-se o grande fantasma, como outrora fugiam as aparições ao canto do galo.

De princípio compraz-se a imaginação em ver a transição imperceptível da matéria bruta à matéria organizada, das plantas aos zoófitos, dos zoófitos aos animais, dos animais ao homem, do homem aos gênios, dos gênios revestidos de corpo aéreo a substâncias imateriais, e enfim mil ordens diferentes dessas substâncias que, de belezas a perfeições, se escadeiam até Deus. Essa hierarquia é muito do gosto dos ingênuos, que vêem o papa e seus cardeais seguidos dos arcebispos e bispos, após quem vêm os curas, os vigários, os simples padres, os diáconos, os subdiáconos, os frades e finalmente, fechando a coluna, os capuchinhos.

Porém há um pouco mais de distância entre Deus e suas mais perfeitas criaturas que entre o santo padre e o decano do sacro colégio. O decano pode vir a ser papa, enquanto o mais perfeito dos gênios criados pelo Ser Supremo jamais poderá vir a ser Deus. Entre Deus e ele há o infinito.

Tão pouco entre os animais e vegetais se verifica essa pretensa escala ou gradação. Prova está em existirem plantas e animais extintos. Já não temos múrices. Era proibido entre os judeus comer o grifo e o ixião, espécies hoje desaparecidas, diga o que disser o Sr. Bochart. Onde então escala?

Ainda que não se houvessem extinto algumas espécies, patente é que isso pode acontecer. Os leões, os rinocerontes começam a rarear.

Muito provavelmente existiram raças humanas hoje desaparecidas. Quero crer contudo que todas hajam subsistido, da mesma forma como os brancos, negros, cafres, a quem a natureza deu um avental da própria pele, caindo do ventre ao meio das coxas; os samoiedas, cujas mulheres têm um mamilo de belo ébano, etc.

Não há visivelmente um vazio entre o macaco e o homem? Não é fácil imaginar um bípede implume que seria inteligente sem usar da palavra nem ter o nosso aspecto, que poderíamos domesticar, que correspondesse aos nossos macacos e nos servisse? E entre essa nova espécie e o homem não poderíamos conceber outras?

Acima do homem colocais no céu, vós, divino Platão, uma série de substâncias celestes. Cremos nós outros em algumas dessas substâncias porque no-lo ensina a fé. Mas vós, que razão tendes para crê-las? Até parece que não falastes ao gênio de Sócrates, e que o simplório Heres, expressamente ressurreto para vos pôr ao corrente dos segredos do outro mundo, nada vos tenha ensinado acerca de tais substâncias.

A pretensa escala não é menos descontínua no mundo sensível.

Que gradação – pergunto – há entre os vossos planetas? A Lua é quarenta vezes menor que o nosso globo. Vênus é quase do tamanho da Terra. Mercúrio descreve uma elipse muito diferente da circunferência percorrida por Vênus e é vinte e sete vezes menor que nós. O Sol é um milhão de vezes maior que o planeta em que vivemos, Marte cinco vezes menor. Marte completa seu giro em dois anos, Júpiter, seu vizinho, em doze, Saturno, o mais afastado de todos, conquanto menor que Júpiter, em trinta. Onde a tal gradação?

Depois, como quereis que em imensos espaços vazios haja uma cadeia que tudo ligue? Se alguma cadeia existe, é certamente a descoberta por Newton. É ela que faz todos os globos do mundo planetário gravitarem uns em torno dos outros no vácuo infinito.

Admirado Platão, vós não contastes mais que fábulas! Na ilha de Cassitérides, onde em vosso tempo os homens viviam completamente nus, nasceu um filósofo que ensinou aos homens verdades tão grandes quanto pueris eram vossos devaneios.

ESTADOS, GOVERNOS

Qual o melhor? – Até o presente não conheci quem não tenha governado algum estado. Não falo dos ministros que governam efetivamente, uns dois ou três anos, outros seis meses, outros seis semanas. Falo de todos esses senhores que, à hora das refeições ou em seus gabinetes, expõem seu sistema de governo, reformando os exércitos, a igreja, a magistratura e as finanças.

O abade de Bourzeis meteu-se a governar a França pelo ano de 1645, sob o nome do cardeal de Richelieu, e escreveu seu Testamento Político, no qual procurou arrolar a nobreza na cavalaria por três anos, fazer pagar a talha aos tribunais de contas e aos parlamentos e privar o rei do produto dos seus impostos sobre o consumo. Afirma ele que, para entrar em campanha com cinqüenta mil homens, por economia é preciso levar cem mil. Assevera que só a Provença tem mais belos portas de mar que a Espanha e Itália juntas

O abade de Bourzeis não tinha viajado. Aliás sua viagem acha-se repleta de anacronismos e erros. Faz o cardeal de Richelieu assinar como nunca assinou e falar como nunca falou. E gasta um capítulo inteiro para dizer que a razão deve ser a pauta do estado, e a se esforçar por provar essa descoberta. Essa obra das trevas, esse bastardo do abade de Bourzeis passou muito tempo por filho legítimo do cardeal de Richelieu. E todos os acadêmicos, em seus discursos de recepção, não deixavam de louvar desmedidamente essa obra prima de política.

O senhor Gatien de Courtilz, vendo o extraordinário sucesso do Testamento Político de Richelieu, fez imprimir em Haia o Testamento de Colbert, com uma pomposa carta do senhor Colbert ao rei. Está claro que se esse ministro tivesse feito semelhante testamento, seria preciso interdizê-lo; entretanto, esse livro foi citado por alguns autores.

Outro velhaco cujo nome se ignora partejou o Testamento de Louvois, pior ainda, se possível, que o de Colbert. E um abade de Chevremont também fez testar Carlos, duque de Lorena (27).

O senhor de Bois Guillebert, autor do Détail de la France, impresso em 1695, apresenta o projeto inexeqüível do dízimo real sob o nome do marechal de Vauban (28).

Um louco sem eira nem beira chamado La Jonchêre escreveu em 1720 um projeto de finança em 4 volumes. E alguns parvos citaram essa produção como obra de La Jonchêre, o tesoureiro geral, imaginando que um tesoureiro não pode escrever um mau livro de finanças.

Mas é preciso convir em que homens avisados, dignos sem dúvida de governar, têm escrito sobre a administração dos estados, seja na França, na Espanha ou na Inglaterra. Seus livros têm feito muito bem: não porque hajam corrigido os ministros então no governo, já que um ministro não se corrige de modo algum nem pode ser corrigido: é árvore já muito crescida; basta de instruções, basta de conselhos; escasseia-lhe tempo para os ouvir, arrasta-o a corrente dos negócios. Mas esses bons livros formam a juventude destinada aos cargos. Formam os príncipes, e a segunda geração é instruída.

Ultimamente tem sido examinado de perto o forte e o fraco dos governos. Dizei-me, vós que haveis viajado, vivestes e vistes, sob que espécie de governo desejaríeis ter nascido? Compreendo que um grande proprietário de terra, na França, não desgostaria de haver nascido na Alemanha: seria soberano em vez de vassalo. A um par de França muito agradariam os privilégios do pariato inglês: seria legislador.

O magistrado e o financeiro achar-se-iam melhor em França que alhures.

Mas que pátria escolheria um homem sábio, livre, um homem de fortuna medíocre e sem preconceitos?

Um membro do conselho de Pondichéry, senhor de sólida cultura, voltou à Europa por terra em companhia de um brâmane mais instruído do que o comum dos brâmanes.

— Que tal achais o governo do grão mogol? – perguntou o conselheiro.

— Abominável – respondeu o brâmane. – Como quereis que um estado seja bem governado pelos tártaros? Nossos rajas, nossos omrás, nossos nababos estão muito contentes; mas os cidadãos muito ao contrário, e milhões de cidadãos são alguma coisa.

O conselheiro e o brâmane percorreram, conversando, toda a alta Ásia.

— Cheguei a uma conclusão – disse o brâmane: – que não existe sequer uma república em toda esta vasta parte do mundo.

— Houve outrora a de Tiro, – retrucou o conselheiro – mas não durou muito. Houve ainda outra, perto da Arábia Pétrea, num recanto denominado Palestina, se é que se pode honrar com o nome de república uma horda de ladrões e de onzeneiros governados ora por juizes, ora por espécies de reis, ora por grandes pontífices, escravizados sete ou oito vezes e enfim expulsos do país que usurparam.

— Julgo, – disse o brâmane – que não deve haver sobre a terra senão pouquíssimas repúblicas. Raramente são os homens dignos de se governar por si mesmos. Tal felicidade não deve pertencer senão a povos pequenos, que se insulem em ilhas ou entre montanhas, como coelhos a se esconderem dos carnívoros. Mas sempre acabam sendo descobertos e devorados.

Quando os dois viajantes chegaram à Ásia Menor, perguntou o conselheiro ao brâmane:

— Acreditaríeis ter existido uma república formada num canto da Itália, que durou mais de quinhentos anos e possuiu esta Ásia Menor, Ásia, África, Grécia, Gálias, Espanha e toda a Itália?

— Então, cedo se transformou em monarquia? – perguntou o brâmane.

— Adivinhastes – respondeu o outro; – porém essa monarquia caiu e vivemos a fazer empoladas dissertações para encontrar a causa de sua decadência.

— Perdeis vosso tempo inutilmente, – disse o hindu: – esse império caiu porque existia. Tudo cai. Espero que assim aconteça também ao império da Mongólia.

— A propósito – disse o europeu. Julgais ser necessário mais honra num estado despótico e mais virtude numa república? – Tendo feito com que se lhe explicasse o que se entende por honra, respondeu o hindu ser de opinião que ela era mais necessária numa república, e a virtude a mais precisa num estado monárquico.

— Porque – explicou – um homem que pretenda ser eleito pelo povo não o será se não for honrado. Ao passo que na corte poderá obter facilmente um cargo, segundo a máxima de um grande príncipe, que disse que para o conseguir não deve o cortesão ter honra nem humor. Com respeito à virtude, é preciso te-la muita numa corte para ousar dizer a verdade. O homem virtuoso está bem mais à vontade na república, por não precisar bajular ninguém.

— Acreditais – interrogou o europeu – que as leis e religiões sejam feitas para os climas assim como os agasalhos forrados para Moscou e os tecidos de gaza para Delí?

— Sim, sem dúvida – disse o brâmane. Todas as leis que concernem o físico são calculadas pelo meridiano em que se habita; para um alemão basta uma mulher, um persa precisa de três ou quatro. Da mesma natureza são os ritos da religião. Como desejaríeis que eu, se fosse cristão, dissesse a missa em minha província, onde não há pão nem vinho? Quanto aos dogmas, o caso é outro: o clima nada faz. Vossa religião não nasceu na Ásia, de onde foi expulsa? Não subsiste no Mar Báltico, onde era desconhecida?

— Em que estado, sob que domínio preferiríeis viver? – perguntou o conselheiro.

— Em qualquer parte que não a minha terra, – respondeu o companheiro – e encontrei muitos siameses, tonquineses, persas e turcos que diziam outro tanto.

—.Mas, – ainda uma vez disse o europeu – que estado escolheríeis? – Respondeu o brâmane:

— Aquele onde apenas se obedecesse às leis.

— É uma velha resposta, – argüiu o conselheiro.

— E não é má – disse o brâmane.

— Onde fica esse país? – perguntou o conselheiro.

— É de mister procurá-lo – respondeu o brâmane.

EZEQUIEL (DE)

De alguns passos singulares desse profeta e de alguns hábitos antigos

Sabe-se hoje muito bem que não se devem julgar os costumes antigos pelos modernos. Quem desejasse reformar a corte de Alcinos, na Odisséia, tomando como modelo a do grão turco ou a de Luís XIV, não seria bem recebido pelos sábios. Quem reprovasse a Virgílio o haver representado o rei Evandro coberto com uma pele de urso e acompanhado de dois cães para receber os embaixadores, seria um mau crítico.

Os costumes dos judeus de antanho são ainda mais diferentes dos nossos que aqueles do rei Alcinos, de Nausica, de sua filha e do bonacheirão Evandro.

Ezequiel, escravo dos caldeus, teve uma visão perto do ribeirão de Cobar, que se perde no Eufrates.

Não nos devemos admirar de que ele tenha visto animais de quatro faces e quatro asas, com pés de bezerro, nem das rodas que caminhavam por si mesmas e continham o espírito da vida: esses símbolos até agradam à imaginação. Mas vários críticos se revoltaram contra a ordem que lhe deu o Senhor de comer durante trezentos e noventa dias, pão de cevada, de frumento e de milho, coberto de excremento.

— Irra! – exclamou o profeta. – Minh’alma até hoje não tinha sido poluída.

Respondeu-lhe o Senhor:

— Pois bem, eu te darei estrume de boi em lugar de excrementos humanos, e tu comerás teu pão com esse estrume.

Visto não ser absolutamente de uso comer tais confeitos com o pão, a maioria dos homens acha essas ordens indignas da majestade divina. Entretanto, deve-se lembrar que o estrume de vaca e os diamantes do grão mogol são perfeitamente iguais, não só ante os olhos de um ser divino mas também aos do verdadeiro filósofo. Com respeito às razões que Deus poderia ter para impor ao profeta um tal almoço, não nos cabe procurá-las. Basta fazer ver que essas ordens, que nos parecem estranhas, não se afiguraram tais aos judeus.

É verdade que a sinagoga não permitia, no tempo de S. Jerônimo, a leitura de Ezequiel antes da idade de trinta anos. Mas isso porque no capítulo 18 ele diz que os filhos não arcarão com a iniqüidade dos pais e que já não se dirá: os pais comeram raízes verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados.

Nesse ponto ele se achava em contradição com Moisés, que no capítulo 28 dos Números afirma que os filhos sofrem a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.

Ezequiel, no capítulo 20, faz ainda dizer ao Senhor ter ele dado aos judeus preceitos que não são bons. Eis por que a sinagoga interdisse aos jovens uma leitura que poderia pôr em dúvida a irrefragabilidade das leis de Moisés.

Aos censores de nossos dias, ainda mais os surpreende o capítulo 26 de Ezequiel: eis como o profeta se arranja para fazer conhecer os crimes de Jerusalém. Ele apresenta o Senhor dizendo a uma moça:

“Quando nascestes, ainda não vos tinham cortado o cordão umbilical, ainda não éreis batizada, estáveis completamente nua, eu me apiedei de vós; depois crescestes, vosso seio se formou, vossas axilas cobriram-se de veios; eu passei, eu vos vi, eu compreendi que era o tempo dos amantes; eu cobri vossa ignomínia; estendi por sobre vós o meu manto; viestes a mim; eu vos lavei, perfumei, vesti bem e bem aqueci; dei-vos um chale de lã, braceletes, um colar; eu vos pus jóias no nariz, brincos nas orelhas e uma coroa na fronte, etc.

“Então, confiando em vossa beleza, fornicastes por vossa conta com todos os passantes... E trilhastes um mau caminho... e vos prostituístes até nas praças públicas e abristes as pernas a todos os passantes... e vos deitastes com os egípcios... e enfim pagastes amantes e lhes fizestes presentes a fim de que se deleitassem com outras moças. O provérbio é: Tal mãe, tal filha; e é isso que se diz de vós, etc.”

Ainda com maior indignação se insurgem contra o capítulo 28. Uma mãe tinha duas filhas que perderam muito cedo a virgindade; a maior chamava-se Oola e a menor Ooliba. “...Oola era louca pelos jovens senhores, magistrados, cavaleiros; deitou-se com egípcios desde a mais tenra mocidade... Ooliba, sua irmã, fornicou mais ainda com oficiais, magistrados e cavaleiros bem parecidos; descobriu sua vergonha e multiplicou suas fornicações. Procurou com arrebatamento os abraços daqueles cujo membro se parece com o de um asno e que expandem a sua semente como cavalos...”

Essas descrições que escandalizam tantos espíritos fracos não significam, entretanto, senão as iniqüidades de Jerusalém e de Samaria; as expressões que nos parecem livres não o eram então. A mesma franqueza aparece sem receio em mais de um ponto das Escrituras. Fala-se freqüentemente em abrir a vulva. Os termos de que elas se servem para explicar o contato de Booz com Rute, de Judas com sua nora, não são desonestos em hebreu, mas se-lo-iam em nossa língua.

Não se usa véu quando não se tem vergonha de sua nudez. Como é possível que se ruborizasse uma pessoa nos tempos passados ao ouvir falar dos órgãos genitais, quando era costume tocá-los àqueles a quem se fazia alguma promessa? Era um sinal de respeito, um símbolo de fidelidade, como outrora entre nós punham os senhores feudais suas mãos entre as dos seus senhores soberanos.

Traduzimos os testículos por coxa. Eliezer pousa a mão sobre a, coxa de Abraão; José pousa a mão sobre a coxa de Jacó. Esse costume era antiqüissimo no Egito. Os egípcios estavam tão longe de ligar à ignomínia coisas que nós não ousamos nem descobrir nem nomear, que conduziam em procissão uma grande figura do membro viril chamada phallum, para agradecer aos deuses a bondade demonstrada em fazer servir esse membro à propagação do gênero humano.

Todos esses fatos provam bem que nossos decoros não são os mesmos dos outros povos. Em que tempo houve entre os romanos maior polidez do que no século de Augusto? Entretanto, Horácio não tergiversou em dizer numa peça moral:

Nec vereor ne, dum futuo, vir rure recurrat(29).

Um homem que entre nós pronunciasse a palavra correspondente a futuo seria considerado um bêbado indecente; essa e várias outras palavras de que se servem Horácio e outros autores nos parecem ainda mais indecorosas do que as expressões de Ezequiel. Desfaçamo-nos de nossos preconceitos quando lermos autores antigos ou quando viajarmos por nações longínquas. A natureza é a mesma em toda parte e os costumes em toda parte diferentes.

FÁBULAS

Não são as mais antigas fábulas visivelmente alegóricas? A primeira que conhecemos dentro de nossa maneira de calcular o tempo não é aquela que vem no nono capítulo do livro dos Juizes? Tratava-se de escolher um rei entre as árvores; a oliveira não queria abandonar o cuidado do seu azeite, nem a figueira o de seus figos, nem a vinha o de seu vinho, nem as outras árvores o de seus frutos; o espinheiro, que nada tinha de bom, tornou-se rei, porque tinha espinhos e podia praticar o mal

A antiga fábula de Vênus, tal como a relata Hesíodo, não é uma alegoria de toda a natureza? As partes da geração caíram do éter às costas do mar; Vênus nasce dessa escuma preciosa; seu primeiro nome é o de amante da geração: existirá imagem mais sensível Vênus é a deusa da beleza; a beleza deixa de ser amada se caminhar sem as graças; a beleza faz nascer o amor; o amor tem qualidades que trespassam os corações; leva uma venda que esconde os defeitos do objeto amado.

A sabedoria é concebida no cérebro do senhor dos deuses sob o nome de Minerva; a alma do homem é um fogo divino que Minerva mostra a Prometeu, que se serve desse fogo divino para animar o homem.

É impossível deixar de reconhecer nessas fábulas uma pintura viva de toda a natureza. A maioria das outras fábulas são ou corrupções de histórias antigas ou caprichos da imaginação. Sucede com as antigas fábulas o mesmo que com os nossos contos modernos: há as morais que são encantadoras; outras são insípidas.

FALSIDADE DAS VIRTUDES HUMANAS

Quando o duque de La Rochefoucaud escreveu os seus pensamentos sobre o amor próprio, pondo a descoberto esse impulso do homem, um senhor Espírito, do Oratório, escreveu um livro capcioso intitulado: Da falsidade das virtudes humanas. Diz esse Espírito que a virtude não existe; mas, por graça termina cada capítulo reconsiderando a caridade cristã. Assim, segundo o senhor Espírito, nem Catão, nem Aristides, nem Marco Aurélio, nem Epicteto foram pessoas de bem; estas apenas podem ser encontradas entre os cristãos. Entre os cristãos, apenas os católicos são virtuosos ; entre os católicos seria ainda necessário excetuar os jesuítas, inimigos dos oratorianos; portanto a virtude não se acha senão entre os inimigos dos jesuítas.

Esse senhor Espírito começa por dizer que a prudência não é uma virtude, e a razão é o ser freqüentemente enganada. É como se se dissesse que César não foi um grande capitão por ter sido derrotado em Dirráquio.

Se o senhor Espírito fosse um filósofo, não teria examinado a prudência como uma virtude e sim como um talento, como uma qualidade útil, feliz: pois um celerado pode ser prudente e eu conheci gente dessa espécie. Que infâmia pretender que ninguém pode ter virtude senão nós e nossos amigos!(30).

Que é a virtude, meu amigo? É praticar o bem: pratiquemo-lo e será o suficiente. Então, nós te explicaremos o motivo. Como! Segundo teu modo de ver não existiria nenhuma diferença entre o presidente de Thou e Ravaillac, entre Cícero e esse Popílio ao qual ele salvou a vida e que lhe cortou a cabeça por dinheiro? E considerarás Epicteto e Porfírio libertinos por terem seguido os nossos dogmas? Tamanha insolência revolta. E não vou adiante para não perder as estribeiras.

FANATISMO

Fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático. João Diaz, retirado em Nuremberg, firmemente convicto de que o papa é o Anticristo do Apocalipse e que tem o signo da besta, não era mais que um entusiasta; Bartolomeu Diaz, que partiu de Roma para ir assassinar santamente o seu irmão e que efetivamente o matou pelo amor de Deus, foi um dos mais abomináveis fanáticos que em todos os tempos pôde produzir a superstição.

Polieuto, que vai ao templo num dia de solenidade derrubar a destruir as estátuas e os ornamentos, é um fanático menos horrível do que Diaz, mas não menos tolo. Os assassinos do duque Francisco de Guise, de Guilherme, príncipe de Orange, do rei Henrique III, do rei Henrique IV e de tantos outros foram energúmenos enfermos da mesma raiva de Diaz

O mais detestável exemplo de fanatismo é aquele dos burgueses de Paris que correram a assassinar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar, na noite de São Bartolomeu, seus concidadãos que não iam à missa. Há fanáticos de sangue frio: são os juizes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles; e esses juizes são tanto mais culpados, tanto mais merecedores da execração do gênero humano, quanto, não estando tomados de um acesso de furor como os Clément, os Chatêl, os Ravaillac, os Gérard, os Damien, parece que poderiam ouvir a razão.

Quando uma vez o fanatismo gangrenou um cérebro a doença é quase incurável. Eu vi convulsionários que, falando dos milagres de S. Páris, sem querer se acaloravam cada vez mais; seus olhos encarniçavam-se, seus membros tremiam, o furor desfigurava seus rostos e teriam morto quem quer que os houvesse contrariado.

Não há outro remédio contra essa doença epidêmica senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido, adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal porque, desde que o mal fez alguns progressos, é preciso fugir e esperar que o ar seja purificado. As leis e a religião não bastam contra a peste das almas; a religião, longe de ser para elas um alimento salutar, transforma-se em veneno nos cérebros infeccionados. Esses miseráveis têm incessantemente presente no espírito o exemplo de Aode, que assassina o rei Eglão; de Judite, que corta a cabeça de Holoferne quando deitada com ele; de Samuel, que corta em pedaços o rei Agague. Eles não vêem que esses exemplos respeitáveis para a antigüidade são abomináveis na época atual; eles haurem seus furores da mesma religião que os condena.

As leis são ainda muito impotentes contra tais acessos de raiva; é como se lêsseis um aresto do Conselho a um frenético. Essa gente está persuadida de que o espírito santo que os penetra está acima das leis e que o seu entusiasmo é a única lei a que devem obedecer.

Que responder a um homem que vos diz que prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens e que, consequentemente, está certo de merecer o céu se vos degolar?

De ordinário, são os velhacos que conduzem os fanáticos e que lhes põem o punhal nas mãos: assemelham-se a esse Velho da Montanha que fazia – segundo se diz – imbecis gozarem as alegrias do paraíso e que lhes prometia uma eternidade desses prazeres que lhes havia feito provar com a condição de assassinarem todos aqueles que ele lhes apontasse. Só houve uma religião no mundo que não foi abalada pelo fanatismo, é a dos letrados da China. As seitas dos filósofos estavam não somente isentas dessa peste como constituíam o remédio para ela: pois o efeito da filosofia é tornar a alma tranqüila e o fanatismo é incompatível com a tranqüilidade. Se a nossa santa religião tem sido freqüentemente corrompida por esse furor infernal, é à loucura humana que se deve culpar.

Assim, das asas que teve,

Ícaro perverteu o uso;

teve-as para seu bem

e as empregou em seu dano.

(Bertaud, bispo de Séez).

FIM, CAUSAS FINAIS

Parece que seria preciso estar fora de si para negar que os estômagos sejam feitos para digerir, os olhos para ver e os ouvidos para ouvir. De outro lado, é preciso ter um estranho amor às causas finais para afirmar que a pedra foi feita para construir casas e que os bichos da seda nasceram na China para que tenhamos cetim na Europa.

Mas, objeta-se, se Deus fez visivelmente uma coisa preconcebida, fez portanto todas as outras com um desígnio. É ridículo admitir a Providência num caso e negá-la em outros. Tudo o que está feito foi previsto, coordenado. Nenhuma coordenação há sem objeto, nenhum efeito sem causa; portanto tudo é igualmente o resultado, o produto de uma causa final; portanto é tão verdadeiro dizer que os narizes foram feitos para levar lunetas e os dedos para ser ornados de diamantes quanto é verdade que os ouvidos foram feitos para ouvir os sons e os olhos para receber a luz.

Creio ser muito fácil esclarecer essa dificuldade. Quando os efeitos são invariáveis em todo lugar e em todos os tempos, quando esses efeitos uniformes são independentes dos seres a que pertencem, então existe uma causa final visível.

Todos os animais têm olhos, e enxergam; todos têm uma boca com a qual comem; um estômago ou coisa semelhante, pelo qual digerem; todos, um orifício que expele os excrementos, todos um órgão gerador: e esses dons da natureza operam neles sem auxílio de meios artificiais. Eis ai causas finais claramente estabelecidas, e seria perverter nossa faculdade de pensar pretender negar uma verdade tão universal. Porém as pedras, em toda parte e em todos os tempos, não fazem construções. Nem todos os narizes levam lunetas. Nem todos os dedos têm anel; nem todas as pernas são cobertas por uma meia de seda. Um bicho de seda, portanto, não foi criado para cobrir as pernas assim como a vossa boca foi feita para comer e vosso posterior para ir à secreta. Existem, pois, efeitos produzidos por causas finais e grande número de outros que não o são.

Porém tanto uns como outros figuram igualmente no plano da providência geral: nada sem dúvida pode ser feito mau grado seu, nem mesmo sem ela. Tudo que pertence à natureza é uniforme, imutável, é obra imediata do Senhor; foi ele quem criou leis pelas quais a Lua entra em três quartos nas causas do fluxo e do refluxo do oceano e o Sol no quarto; foi ele que deu movimento de rotação ao Sol, mediante o qual esse astro envia, em cinco minutos e meio, raios de luz aos olhos dos homens, dos crocodilos e dos gatos.

Mas se depois de tantos séculos nós nos lembramos de inventar tesouras e espetos, de tosquiar com umas a lã dos carneiros e de os cozer com os outros para comê-los, que outra coisa se pode inferir senão. que Deus nos fez de modo que um dia nos tornássemos necessariamente industriosos e carniceiros?

Naturalmente os cordeiros não foram feitos de forma alguma para ser cozidos e comidos, porquanto grande número de nações se abstêm dessa coisa horrorosa; os homens não foram criados essencialmente para se chacinarem, pois os brâmanes e os quakers não matam ninguém; mas a massa de que somos feitos produz morticínios freqüentes, assim como produz calúnias, vaidades, persecuções e impertinências. Não que a formação do homem seja precisamente a causa final de nossos furores e de nossas tolices: porque uma causa final é invariável em todos os tempos e lugares; porém os horrores e os absurdos da espécie humana não figuram menos na ordem eterna das coisas. Quando batemos o trigo, o batedor é a causa final da separação do grão. Mas se esse batedor, batendo o grão, esmaga também milhares de insetos, não é por nossa vontade determinada, nem tão pouco por acaso: é que esses insetos se encontraram nessa ocasião sob o nosso cacete e aí deviam estar.

É em virtude da natureza das coisas que um homem é ambicioso, que esse homem arregimenta algumas vezes outros homens, que seja vencedor ou que seja batido; mas jamais se poderá dizer: o homem foi criado por Deus para ser morto na guerra.

Os instrumentos que a natureza nos deu não podem ser sempre causas finais em movimento, que tenham efeito infalível. Os olhos, dados para ver, não estão sempre abertos; cada sentido tem seus momentos de repouso. Existem até sentidos que nunca usamos. Por exemplo, uma pobre imbecil, encerrada num convento aos catorze anos, fecha para si a porta de onde deveria sair uma nova geração, para sempre; mas a causa final não deixa de subsistir, ela agirá logo que seja livre.

FRAUDE

Se é preciso usar de fraudes piedosas com o povo.

O faquir Bambabefe encontrou um dia um dos discípulos de Cong-fu-tseu, que chamamos Confúcio, e esse discípulo chamava-se Uang; e Bambabefe sustinha que o povo tem necessidade de ser enganado, e Uang pretendia que jamais se deve enganar quem quer que seja; e eis em resumo a sua disputa.

Bambabefe

É preciso imitar o Ente Supremo, que não nos mostra as coisas tais como são; ele nos faz ver o Sol sob um diâmetro de dois ou três pés, não obstante esse astro ser um milhão de vezes maior do que a Terra; ele nos faz ver a Lua e as estrelas deitadas sobre um mesmo fundo azul, enquanto na realidade estão a distâncias diferentes; quer que uma torre quadrada nos pareça redonda de longe; quer que o fogo nos pareça quente, apesar de não ser nem frio nem quente; enfim ele nos cerca de erros convenientes a nossa natureza.

Uang

Isso a que chamais erro não o é absolutamente. O Sol, tal como está colocado a milhões de milhões de léguas além do nosso globo, não é o que vemos. Realmente, nós não percebemos, nem podia deixar de sê-lo, senão o Sol que se grava em nossa retina, sob um ângulo determinado. Nossos olhos não nos foram dados para conhecermos as grandezas e as distâncias; são precisos outros recursos e operações para conhecê-las.

Bambabefe ficou muito admirado dessas proposições. Uang, que era muito paciente, explicou-lhe a teoria da ótica; e Bambabefe, que tinha um certo tino, rendeu-se à evidência das demonstrações do discípulo de Cong-fu-tseu; em seguida reencetou a disputa nestes termos:

Bambabefe

Se Deus não nos engana quanto aos nossos sentidos, como eu pensava, deveis convir ao menos em que os médicos enganam sempre as crianças para o seu próprio bem: dizem-lhes que lhes estão dando açúcar, e na realidade trata-se de ruibarbo. Portanto, meu caro faquir, posso muito bem enganar o povo, que é tão ignorante como as crianças.

Uang

Tenho dois filhos e jamais os enganei; disse-lhes quando estiveram doentes: “Eis um remédio muito amargo, é preciso ter coragem para tomá-lo; se fosse doce vos faria mal”. Nunca admiti que suas amas e seus preceptores lhes metessem medo contando-lhes histórias de feitiçarias; é assim que os criei, como cidadãos corajosos e sábios.

Bambabefe

O povo não nasceu tão feliz como vossa família.

Uang

Todos os homens se parecem; nasceram com as mesmas disposições. Os faquires é que corrompem a natureza dos homens

Bambabefe

Ensinamos-lhes muitos erros, reconheço-o; mas é para o seu próprio bem. Fazemo-lhes crer que se não comprarem nossos cravos bentos, se não expiarem seus pecados dando-nos dinheiro, tornar-se-ão, na outra vida, cavalos de posta, cães ou lagartos: isto os intimida, e então eles se tornam pessoas de bem.

Uang

Mas não percebeis que dessa forma perverteis essa pobre gente? Existem entre o povo, mais do que se pensa, pessoas que raciocinam, que zombam de vossos cravos, de vossos milagres, de vossas superstições, que vêem muito bem que não se irão transformar nem em lagartos nem em cavalos de posta. Que acontece? Elas têm bastante bom senso para ver que vós lhes pregais uma religião impertinente, e não o têm, entretanto, suficiente para se elevar numa religião pura e isenta de superstições como é a nossa. Suas paixões lhes fazem pensar que não existe religião, uma vez que a única que lhes ensinam é ridícula; tornai-vos pois culpado de todos os vícios aos quais elas se atiram.

Bambabefe

De forma alguma, porquanto nós apenas lhes ensinamos uma boa moral.

Uang

Seríeis lapidado pelo povo se lhe ensinásseis uma moral impura. Os homens são feitos de forma tal que querem cometer o mal mas não admitem que lho preguemos. Seria simplesmente necessário não imiscuir uma sábia moral com fábulas absurdas, pois enfraqueceis com vossas imposturas, de que poderíeis vos abster, essa moral que sois forçados a ensinar.

Bambabefe

Como! Julgais que se pode ensinar a verdade ao povo sem a sustentar pelas fábulas?

Uang

Creio-o firmemente. Nossos letrados são da mesma massa que nossos alfaiates, tintureiros e camponeses. Adoram um Deus criador, remunerador e vingador Eles não contaminam o seu culto com sistemas absurdos nem cerimônias extravagantes; e há muito menos crimes entre os letrados que entre o povo. Por que não nos dignarmos instruir nossos operários como instruímos nossos letrados?

Bambabefe

Cometeríeis uma grande tolice; é como se pretendêsseis que eles tivessem a mesma polidez, que fossem jurisconsultos: isso não é possível nem conveniente. É preciso que exista pão branco para os amos e pão negro para os domésticos.

Uang

Reconheço que nem todos os homens devam ter os mesmos conhecimentos; mas há coisas necessárias a todos. É necessário que cada um seja justo, e a maneira mais segura de inspirar a justiça a todos os homens é inspirar-lhes a religião sem superstição.

Bambabefe

É um belo projeto, mas impraticável. Julgais que seja suficiente aos homens acreditar num Deus que puna e recompense? Vós me dissestes acontecer freqüentemente que os mais avisados entre o povo se revoltam contra minhas fábulas; da mesma forma se revoltarão contra vossa verdade. Dirão: Quem me pode assegurar que um Deus pune a recompensa? Onde está a prova? Que missão tendes? Que milagre fizestes para que eu vos creia? Eles zombarão de vós muito mais do que de mim

Uang

Eis o vosso erro. Imaginais que hão de sacudir o jugo de uma idéia honesta, verossímil, útil a toda gente, uma idéia que está em perfeito acordo com a razão humana, por que se rejeitam as coisas indecorosas, absurdas, inúteis, nocivas, que fazem fremir o bom senso.

O povo está sempre muito disposto a crer nos magistrados: quando seus magistrados não lhe propõem senão uma crença razoável, aceita-a de boa vontade; essa idéia é muito natural para ser combatida. Não é necessário dizer precisamente como é que Deus punirá e recompensará; basta que se creia em sua justiça. Asseguro vos que vi cidades inteiras que não tinham outro dogma, e são também aquelas onde mais encontrei a virtude.

Bambabefe

Tomai tento; encontrareis nessas cidades filósofos que vos negarão tanto as penas como as recompenses.

Uang

Deveríeis dizer que tais filósofos negariam ainda com maior vigor vossas invenções; assim nada lucrais nesse ponto. Quando mesmo existissem filósofos que não estivessem em acordo com meus princípios, não deixariam de ser pessoas de bem; não deixariam de cultivar a virtude, que deverá ser abraçada por amor, e não por medo. Mas afirmo-vos que filósofo algum jamais estará plenamente certo de que a Providência não reserve castigos aos maus e recompensas aos bons; porque se eles me perguntarem quem me disse que Deus pune, eu lhes perguntarei quem lhes disse que Deus não pune. Enfim, asseguro-vos que os filósofos me auxiliarão, longe de me contradizerem. Quereis ser filósofo?

Bambabefe

Com todo gesto; não o digais porém aos faquires.

FRONTEIRAS DO ESPÍRITO HUMANO

Estão em toda parte, meu pobre doutor. Queres saber por que teus pés obedecem a tua vontade e teu fígado não? Desejas saber como se forma o pensamento em teu miserável entendimento e esta criança no útero desta mulher? Dou-te tempo para me responderes. Que é a matéria? Dez mil tratados escreveram teus colegas em torno do assunto. Encontraram algumas qualidades dessa substância: as crianças conhecem-nas tanto como tu. Mas afinal que é essa substância? E que vem a ser isso que batizaste de espírito, do vocábulo latino que quer dizer sopro, não lhe dando nome melhor por não teres a menor idéia do que seja?

Olha este grão de trigo que lanço à terra e dize-me como cresce para produzir uma haste apendoada de uma espiga. Explica-me como a mesma terra produz uma maçã no alto daquela arvore e naqueloutra uma castanha. Poderia desfiar-te um infólio de

perguntas a que não deverias responder senão por estas palavras: Nada sei. No entanto tu colaste grau, arreias chapéu alto e envergas nasóculos, e te chamam mestre.

E aquele outro impertinente, por ter comprado um cargo, presume haver comprado o direito de julgar e condenar o que não entendei A divisa de Montaigne era: Que sei eu? A tua é: Que não sei eu?

GLÓRIA

Ben al Betif, digno chefe dos dervís, disse-lhes um dia: “Meus irmãos, muito conveniente é que useis com toda freqüência esta fórmula sagrada do nosso Alcorão: Em nome de Deus mui misericordioso, pois Deus usa de misericórdia e vós aprendereis a praticá-la com repetir freqüentemente os termos que recomendam uma virtude sem a qual poucos homens restariam sobre a terra. Mas, meus irmãos, abstende-vos de imitar esses temerários que a todo transe se jactam de trabalhar pela glória de Deus. Se um jovem imbecil sustenta uma tese sobre as categorias, tese presidida por um ignorante encasacado, não deixa de escrever em grossos caracteres no cabeçalho de sua tese: Ek Allah abron doxa: ad majorem Dei gloriam. Um bom muçulmano fez pintar o seu salão gravando em sua porta essa tolice; um saca carrega água para maior glória de Deus. É um costume ímpio, piedosamente posto em uso. Que diríeis de um pequeno tchauch que ao limpar a privada do nosso ilustre sultão gritasse: “Para maior glória do nosso invencível monarca”? Há certamente maior distância do sultão a Deus que do sultão ao pequeno tchauch.

“Que tendes de comum, vermes miseráveis da terra chamados homens, com a glória do Ser Infinito? Pode ele amar a glória? Pode recebê-la de vós? Pode saboreá-la? Até quando, bípedes implumes, fareis Deus. à vossa imagem? Como!. Por serdes vãos, porque amais a glória, pretendeis que Deus a ame também Se existissem vários deuses, cada um deles, é possível, poderia desejar obter o sufrágio dos seus semelhantes. Seria essa a glória de Deus. Se se pudesse comparar a grandeza infinita com a extrema baixeza, esse Deus seria como o rei Alexandre ou Scander, que não desejava entrar em lide senão com reis. Mas vós, pobres diabos, que glória poderíeis dar a Deus? Cessai de profanar o seu nome sagrado. Um imperador chamado Otávio Augusto proibiu que o louvassem nas escolas de Roma por temer que seu nome fosse envilecido. Mas vós não podeis nem envilecer o ente supremo nem honrá-lo. Humilhai-vos, adorai e calai-vos”.

Assim falou Ben al Betif; e os dervis exclamaram: “Glória a Deus! Ben al Betif bem falou”.

GRAÇA

Consultores sagrados da Roma moderna, ilustres e infalíveis teólogos, ninguém mais do que eu respeita vossas divinas decisões; mas se Paulo Emílio, Cípião, Catão, Cícero, César, Tito, Trajano, Marco Aurélio tornassem a essa Roma a que dedicavam outrora certo crédito, havíeis de dizer-me que ficariam um tanto admirados de vossas decisões sobre as graças. Que diriam eles se ouvissem falar da graça de saúde segundo Sto. Tomás e da graça medicinal segundo Cajetan; da graça exterior e interior, da graça gratuita, da santificante, da atual, da habitual, da cooperante; da eficaz, que algumas vezes não surte efeito; da suficiente, que às vezes não basta; da versátil e da côngrua? Em boa fé, compreenderiam eles mais do que eu e vós?

Que necessidade teriam esses pobres homens de vossas instruções sublimes? Parece-me ouvi-los dizer:

Meus reverendos padres, sois uns gênios terríveis; pensávamos tolamente que o Ser Eterno não se guia jamais pelas leis particulares como os vís humanos, mas sim por suas leis gerais, eternas como eles. Nenhum de nós jamais imaginou que Deus se assemelhasse a um suserano insensato que concede um pecúlio a um escravo e recusa alimentação a outro; que ordena ao maneta amassar-lhe a farinha, a um mudo que lhe leia o jornal, a um perneta que lhe sirva de mensageiro.

Tudo é graça da parte de Deus. Fez, ao globo que habitamos, a graça de formá-lo; às árvores, a graça de fazê-las crescer; aos animais a de os nutrir. Mas, – dir-se-á – no caso de um lobo encontrar no seu caminho um cordeiro para seu almoço, enquanto outro lobo morre de fome, terá feito Deus a esse primeiro lobo uma graça particular? Ter-se-á ocupado, por uma graça obsequiosa, em fazer nascer um carvalho de preferência a outro carvalho ao qual faltou seiva? Se em toda a natureza todos os seres estão sujeitos às leis gerais, por que motivo uma única espécie constituiria exceção? Por que deveria o senhor absoluto de tudo ocupar-se mais em dirigir o interior de um único homem do que conduzir o resto da natureza inteira? Por que extravagância mudaria ele alguma coisa no coração de um curlandês ou biscainho, enquanto nada modifica das leis que impôs a todos os astros?

Que miséria o supor que ele faz, desfaz, refaz continuamente nossos sentimentos! E que audácia o nos julgarmos à parte de todos os seres! Ainda não é senão para aqueles que confessam serem todas essas mudanças imaginadas. Um savoiano, um bergamásio, terá na segunda feira a graça de mandar dizer uma missa por doze soldos; na terça irá à tasca, e a graça lhe faltará; na quarta terá uma graça cooperante que o conduzirá à confissão, mas não terá a graça eficaz da contrição perfeita; na quinta feira haverá uma graça suficiente que não lhe bastará, como já dissemos. Deus trabalhará continuamente no cérebro desse bergamásio, ora com energia, ora debilmente, e o resto da terra nada será para ele! Não se dignará imiscuir-se no interior dos hindus e dos chineses! Se ainda vos sobrar uma partícula de razão, meus reverendos padres, não achais esse sistema prodigiosamente ridículo?

Desgraçados, vede esse carvalho que alevanta a fronde às nuvens e esse caniço que rasteja a seus pés! Não direis que a graça eficaz foi dada ao carvalho e faltou ao caniço. Elevai os olhos ao céu, vede o eterno demiurgo criando milhões de mundos que gravitam todos entre si mercê de leis gerais e eternas. Vede a mesma luz refletir-se do Sol a Saturno e de Saturno a nós; e, nesse acordo de tantos astros arrastados por uma rápida corrente, nessa obediência geral de toda a natureza, ousai crer, se o puderdes, que Deus se ocupa em conceder uma graça versátil a sóror Teresa e uma graça concomitante a sóror Inês.

Átomo, a quem um tolo átomo disse que o Eterno tem leis particulares para alguns átomos de tua vizinhança; que ele concede sua graça àquele e nega-a a este; que aquele que não possuía graça ontem te-la-á amanhã, – não repitas essa tolice. Deus fez o universo e não criará ventos novos para remover alguns gravetos de palha num canto desse universo. Os teólogos são como os combatentes de Homero, que acreditavam que seus deuses ora se armavam contra eles, ora a seu favor. Se Homero não fosse considerado como poeta, se-lo-ia como blasfemador.

É Marco Aurélio quem fala e não eu: porque Deus, que vos inspira, me concede a graça de acreditar em tudo o que dizeis, tudo o que tendes dito, tudo o que disserdes.

GUERRA

A miséria, a peste e a guerra são os três ingredientes mais famosos deste mundo vil. Podem-se colocar na classe da miséria todas as más alimentações a que a penúria nos força a recorrer para abreviar nossa vida na esperança de a suster.

Compreendem-se na peste todas as doenças contagiosas, que são em número de, dois ou três mil. Esses dois presentes nos vêm da Providência, A guerra, porém, que reúne todos esses dons, nos vem da imaginação de trezentas ou quatrocentas pessoas disseminadas pela superfície do globo sob o nome de príncipes ou ministros; é provavelmente por essa razão que em várias dedicatórias se chamam imagens vivas da Divindade (31).

O mais determinado adulador convirá sem esforço em que a guerra acarreta sempre a peste e a miséria, por pouco que tenha visto os hospitais dos exércitos da Alemanha (32), ou que tenha passado em aldeias onde se fez algum grande movimento militar.

É sem dúvida uma bela arte a de desolar os campos, destruir as casas e fazer morrer, anualmente, quarenta mil homens sobre cem mil. A principio essa invenção foi cultivada por nações reunidas para o bem comum; por exemplo, a dieta dos gregos declarou à dieta da Frígia e dos povos vizinhos que ia partir num milheiro de barcos de pesca a fim de os exterminar, se o pudesse.

O povo romano reunido julgou ser de seu interesse ir combater antes da colheita contra o povo dos véios ou contra os volscos. E, alguns anos antes, todos os romanos, estando encolerizados contra todos os cartagineses, bateram-se longo tempo em mar e em terra. Não sucede o mesmo hoje em dia.

Um genealogista prova a um príncipe que este descende em linha reta de um conde cujos pais tinham feito um pacto de família, há trezentos ou quatrocentos anos, com uma casa de que nem sequer existe memória. Essa casa tinha vastas pretensões sobre uma província cujo último possessor morreu de apoplexia: o príncipe e seu conselho concluem sem dificuldade que essa província lhe pertence por direito divino. Essa província, que está situada a algumas centenas de léguas, perde seu tempo em protestar que não o conhece, que não tem nenhum desejo de vir a ser governada por ele; que, para dar leis à gente, é preciso ao menos ter o seu consentimento: tais discursos chegam aos ouvidos do príncipe, cujo direito é incontestável. Este encontra imediatamente um grande número de homens que nada têm que fazer nem que perder; veste-os com um grosso pano azul a cento e dez soldos cada um, borda seus chapéus com fio branco ordinário, fá-los manobrar um pouco e marcha para a glória.

Os outros príncipes que ouvem falar desse exército tomam parte nele, cada um segundo seu poder, e cobrem uma pequena planície do país de tantos matadores mercenário como Gengis Cã, Tamerlão, Bajazés jamais tiveram em seu séquito.

Povos bastante afastados ouvem dizer que vai haver guerra e que há cinco ou seis soldos diários a ganhar se quiserem participar da coisa: dividem-se dentro em pouco em dois bandos, como ceifeiros, e vão vender seus serviços a quem os queira empregar.

Então essas multidões se atiram umas contra outras, não só sem ter interesse algum no processo, mas sem mesmo saber do que se trata. São seis potências beligerantes ao mesmo tempo, ora três contra três, ora duas contra quatro, ora uma contra cinco, detestando-se todas igualmente entre si, unindo-se e atacando turno a turno; todas de acordo num único ponto, o de fazer todo o mal possível.

O maravilhoso dessa empresa infernal é que cada chefe dos matadores faz benzer suas bandeiras e invoca solenemente a Deus antes de ir exterminar o próximo.

Se um chefe não teve a felicidade de fazer degolar senão dois ou três mil homens, não agradece a Deus; mas assim alcance um ativo de uns dez mil exterminados pelo fogo e pelo ferro, e por cúmulo de graça alguma cidade seja totalmente destruída, então canta-se aos quatro ventos uma longa canção, composta numa língua desconhecida de todos os que combateram e repleta de barbarismos. A mesma canção serve tanto para os casamentos ou nascimentos como para as mortes: o que é imperdoável, sobretudo na nação mais famosa por suas novas canções.

Paga-se por toda parte um certo número de arengadores a fim de celebrar essas jornadas mortíferas; uns vestem-se com longos gibões pretos, encimados por uma capa curta; outros usam uma camisa por cima da roupa; outros levam um tirante matizado por cima da camisa. Todos falam muito; citam o que se fez outrora na Palestina, a propósito de um combate em Veterávia.

O resto do ano esses indivíduos declamam contra os vícios. Provam em três pontos e por antíteses que as damas que espalham ligeiramente um pouco de carmim nas bochechas serão objeto de eternas vinganças do Eterno; que Polieuto e Atália são obras demoníacas; que um homem que manda pôr sobre sua mesa duzentos escudos de peixe fresco num dia de quaresma beneficia sua saúde, e que um pobre homem que come dois soldos de carneiro irá para sempre a todos os diabos.

De cinco ou seis mil declamações dessa espécie, apenas existem três ou quatro, compostas por um gaulês chamado Massilão, que um homem honesto pode ler sem desgosto; mas em todos esses discursos não há um só orador que ouse insurgir-se contra esse flagelo e esse crime da guerra, que contém todos os flagelos e todos os crimes. Os desgraçados arengadores falam sem cessar contra o amor, que é a única consolação do gênero humano e a única maneira de o reparar; nada dizem dos esforços abomináveis que fazemos para destruí-lo.

Fizestes um péssimo sermão sobre a impureza, ó Bourdaloue! mas nenhum sobre essas mortes variadas em tantos lugares, sobre essas rapinas, sobre esses banditismos, sobre essa raiva universal que desola o mundo. Todos os vícios reunidos de todas as idades e de todos os lugares jamais igualarão os males produzidos por uma única campanha.

Miserável módico de almas, gritais durante cinco quartos de hora por causa de algumas picadas de espinho e nada dizeis sobre a enfermidade que nos estraçalha em mil pedaços! Filósofos moralistas, queimai todos os vossos livros, Enquanto o capricho de alguns homens fizer lealmente degolar milhares de nossos confrades, a parte do gênero humano consagrada ao heroísmo será o que de mais afrontoso existe em toda a natureza.

Que são, que me importam a humanidade, a beneficência, a modéstia, a temperança, a doçura, a sabedoria, a piedade, quando meia libra de chumbo atirada de seiscentos passos me inutiliza o corpo e morro aos vinte anos entre padecimentos inexprimíveis, no meio de cinco ou seis mil agonizantes, enquanto meus olhos que se abrem pela última vez vêem a cidade em que nasci destruída pelo fogo e pelas chamas, e os derradeiros sons que meu ouvido percebe são gritos de mulheres e de crianças que expiram sob as ruínas, tudo pelos pretensos interesses de um homem que não conhecemos?

E o que é pior, a guerra é um flagelo inevitável, Se observarmos bem, todos os homens adoraram o deus Marte. Sabaote, entre os judeus, significa o deus das armas; mas Minerva, em Homero, considera Marte um deus furioso, insensato e infernal.

HISTÓRIA DOS REIS JUDEUS E PARALIPÔMENOS

Todos os povos escreveram sua história, desde que o puderam fazer. Os judeus também escreveram a sua. Antes que tivessem reis viviam sob o regime teocrítico; eram julgados e governados pelo próprio Deus.

Quando os judeus desejaram um rei como os povos seus vizinhos, o profeta Samuel declarou-lhes da parte de Deus que eles rejeitavam o próprio Deus: assim findou a teocracia entre os judeus quando teve princípio a monarquia.

Poder-se-ia, pois, dizer sem blasfemar que a história dos reis judeus foi escrita como a dos outros povos, e que Deus não se deu ao trabalho de contar, ele mesmo, a história de um povo que já não governava.

É com extrema desconfiança que se aventa essa opinião. O que a poderia confirmar é que os Paralipômenos contradizem freqüentemente o Livro dos Reis na cronologia e nos fatos, assim como os nossos historiadores profanos se contradizem algumas vezes. Demais, se Deus sempre escreveu a história dos judeus, será preciso crer, portanto, que continua a escrevê-la, porque os judeus continuam a ser o seu povo querido. Eles dever-se-ão converter um dia e parece que então estarão também no direito de considerar a história de sua dispersão como sagrada, assim como têm direito de dizer que Deus escreveu a história dos seus reis.

Pode-se ainda fazer uma reflexão: é que, tendo sido Deus o seu úico rei durante longo tempo e em seguida seu historiador, deveremos ter para com todos os judeus o mais profundo respeito. Não há algibebe judeu que não esteja infinitamente acima de César e Alexandre. Como evitar prosternar-se diante de um adelo que vos prova que sua história foi escrita peia própria Divindade, enquanto as histórias gregas e romanas não nos foram transmitidas senão por profanos?

Se o estilo da História dos Reis e dos Paralipômenos é divino, as ações relatadas nessas histórias nada têm de divino. Davi assassina Urias; Isbosete e Mifibosete são assassinados; Absalão assassina Amão; Joabe assassina Absalão; Salomão assassina Adonias, seu irmão; Baasa assassina Nadabe; Zambri assassina Ela; Amri assassina Zambri; Acabe assassina Nabote; Jeú assassina Acabe e Jorâm; os habitantes de Jerusalém assassinam Amazias, filho de Joas; Selum, filho de Jabes, assassina Zacarias, filho de Jeroboão; Manaêm assassina Selum, filho de Jabes; Faceu, filho de Romélio, assassina Facéia, filho de Manaêm; Ozeu, filho de Ela, assassina Faceu, filho de Romélio. Silenciamos outros cardápios de assassínios. É preciso compreender que se o Espírito Santo escreveu essa história, não escolheu um assunto muito edificante.

                                                                                            

Parte 1 ABRAÃO  -  ALMA - AMIZADE - AMOR - AMOR PRÓPRIO -  AMOR SOCRÁTICO  - ANJO - ANTROPÓFAGOS - APIS - APOCALIPSE - ATEU, ATEÍSMO - BATISMO - BELO, BELEZA - BEM (SUPREMO) - BEM (TUDO ESTÁ)

Parte 2 CADEIA DOS ACONTECIMENTOS - CARÁTER - CATECISMO CHINÊS - CATECISMO DO JAPONÊS (20) - CATECISMO DO PÁROCO - CERTO, CERTEZA - CÉU DOS ANTIGOS (O) - CHINA (DA) - CIRCUNCISÃO - CONVULSÕES - CORPO – CRISTIANISMO - CRÍTICA 

Parte 3 DESTINO - DEUS - ESCALA DOS SERES - ESTADOS, GOVERNOS - EZEQUIEL (DE) - FÁBULAS - FALSIDADE DAS VIRTUDES HUMANAS - FANATISMO - FIM, CAUSAS FINAIS - FRAUDE - FRONTEIRAS DO ESPÍRITO HUMANO - GLÓRIA - GRAÇA - GUERRA - HISTÓRIA DOS REIS JUDEUS E PARALIPÔMENOS

Parte 4  ÍDOLO, IDÓLATRA, IDOLATRIA - IGUALDADE - INFERNO - INUNDAÇÃO - IRRACIONAIS - JEFTÉ - JOSÉ - LEIS (DAS) - LEIS CIVIS E ECLESIÁSTICAS - LIBERDADE (DA) - LOUCURA - LUXO

Parte 5 MATÉRIA - MAU - MESSIAS - METAMORFOSE, METEMPSICOSE - MILAGRES - MOISÉS - PÁTRIA - PEDRO - PRECONCEITOS - RELIGIÃO - RESSURREIÇÃO - SALOMÃO - SENSAÇÃO - SONHOS - SUPERSTIÇÃO - TIRANIA - TOLERÂNCIA - VIRTUDE

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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