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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Esaú e Jacó / Machado de Assis
Esaú e Jacó / Machado de Assis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Esaú e Jacó

 

Dico, che quando l'anima mal nata...

Dante

 

CAPÍTULO PRIMEIRO / COUSAS FUTURAS!

Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castelo. Começaram de subir pelo lado da Rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo Natividade e Perpétua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o morro do Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava em 1871, era-lhes tão estranho e remoto como o clube. O íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. Não obstante, continuavam a subir, como se fosse penitência, devagarinho, cara no chão, véu para baixo. A manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, crianças que desciam ou subiam, lavadeiras e soldados, algum empregado, algum lojista, algum padre, todos olhavam espantados para elas, que aliás vestiam com grande simplicidade; mas há um donaire que se não perde, e não era vulgar naquelas alturas. A mesma lentidão do andar, comparada à rapidez das outras pessoas, fazia desconfiar que era a primeira vez que ali iam. Uma crioula perguntou a um sargento: "Você quer ver que elas vão à cabocla?" E ambos pararam a distancia, tomados daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana.

Com efeito, as duas senhoras buscavam disfarçadamente o número da casa da cabocla, até que deram com ele. A casa era como as outras, trepada no morro. Subia-se por uma escadinha, estreita, sombria, adequada à aventura. Quiseram entrar depressa, mas esbarraram com dous sujeitos que vinham saindo, e coseram-se ao portal. Um deles perguntou-lhes familiarmente se iam consultar a adivinha.

—Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir muito disparate...

—É mentira dele, emendou o outro rindo; a cabocla sabe muito bem onde tem o nariz.

Hesitaram um pouco; mas, logo depois advertiram que as palavras do primeiro eram sinal certo da vidência e da franqueza da adivinha; nem todos teriam a mesma sorte alegre. A dos meninos de Natividade podia ser miserável, e então... Enquanto cogitavam passou fora um carteiro, que as fez subir mais depressa, para escapar a outros olhos. Tinham fé, mas tinham também vexame da opinião, como um devoto que se benzesse às escondidas.

Velho caboclo, pai da adivinha, conduziu as senhoras à sala. Esta era simples, as paredes nuas, nada que lembrasse mistério ou incutis se pavor, nenhum petrecho simbólico, nenhum bicho empalhado: esqueleto ou desenho de aleijões. Quando muito um registro da Conceição colado à parede podia lembrar um mistério, apesar de encardido e roído, mas não metia medo. Sobre uma cadeira, uma viola.

—Minha filha já vem, disse o velho. As senhoras como se chamam? Natividade deu o nome de batismo somente, Maria, como um véu mais espesso que o que trazia no rosto, e recebeu um cartão, porque a consulta era só de uma, — com o número 1.012. Não há que pasmar do algarismo; a freguesia era numerosa, e vinha de muitos meses. Também não há que dizer do costume, que é velho e velhíssimo. Relê Esquilo, meu amigo, relê as Sumenides, lá verás a Pítia, chamando os que iam à consulta: "Se há aqui Helenos, venham, aproximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela sorte"... A sorte outrora, a numeração agora, tudo é que a verdade se ajuste à prioridade, e ninguém perca a sua vez de audiência. Natividade guardou o bilhete, e ambas foram à janela.

A falar verdade, temiam o seu tanto, Perpétua menos que Natividade. A aventura parecia audaz, e algum perigo possível. Não ponho aqui os seus gestos: imaginai que eram inquietos e desconcertados. Nenhuma dizia nada. Natividade confessou depois que tinha um nó na garganta. Felizmente, a cabocla não se demorou muito; ao cabo de três ou quatro minutos, o pai a trouxe pela mão, erguendo a cortina do fundo.

—Entra, Bárbara.

Bárbara entrou, enquanto o pai pegou da viola e passou ao patamar de pedra, à porta da esquerda. Era uma criaturinha leve e breve, saia bordada, chinelinha no pé. Não se lhe podia negar um corpo airoso. Os cabelos, apanhados no alto da cabeça por um pedaço de fita enxovalhada, faziam-lhe um solidéu natural, cuja borla era suprida por um raminho de arruda. Já vai nisto um pouco de sacerdotisa. O mistério estava nos olhos. Estes eram opacos, não sempre nem tanto que não fossem também lúcidos e agudos, e neste último estado eram; igualmente compridos; tão compridos e tão agudos que entravam pela gente abaixo, revolviam o coração e tornavam cá fora, prontos para nova entrada e outro revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiram tal ou qual fascinação. Bárbara interrogou-as; Natividade disse ao que vinha e entregou-lhe os retratos dos filhos e os cabelos cortados, por lhe haverem dito que bastava.

—Basta, confirmou Bárbara. Os meninos são seus filhos? —São.

—Cara de um é cara de outro.

—São gêmeos; nasceram há pouco mais de um ano.

—As senhoras podem sentar-se.

Natividade disse baixinho à outra que "a cabocla era simpática", não tão baixo que esta não pudesse ouvir também; e daí pode ser que ela, receosa da predição, quisesse aquilo mesmo para obter um bom destino aos filhos. A cabocla foi sentar-se à mesa redonda que estava no centro da sala, virada para as duas. Pôs os cabelos e os retratos defronte de si. Olhou alternadamente para eles e para a mãe, fez algumas perguntas a esta, e ficou a mirar os retratos e os cabelos, boca aberta, sobrancelhas cerradas. Custa-me dizer que acendeu um cigarro, mas digo, porque é verdade, e o fundo concorda com o ofício. Fora, o pai roçava os dedos na viola, murmurando uma cantiga do sertão do Norte: Menina da saia branca, Saltadeira de riacho...

Enquanto o fumo do cigarro ia subindo, a cara da adivinha mudava de expressão, radiante ou sombria, ora interrogativa, ora explicativa. Bárbara inclinava-se aos retratos, apertava uma madeixa de cabelos em cada mão, e fitava-as, e cheirava-as, e escutava-as, sem afetação que porventura aches nesta linha. Tais gestos não se poderiam contar naturalmente. Natividade não tirava os olhos dela, como se quisesse lê-la por dentro. E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer.

—Brigado? —Brigado, sim, senhora.

—Antes de nascer? —Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado no ventre de sua mãe; não se lembra? Natividade, que não tivera a gestação sossegada, respondeu que efetivamente sentira movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e insônias... Mas então que era? Brigariam por quê? A cabocla não respondeu. Ergueu-se pouco depois, e andou à volta da mesa, lenta, como sonâmbula, os olhos abertos e fixos; depois entrou a dividi-los novamente entre a mãe e os retratos. Agitava-se agora mais, respirando grosso. Toda ela, cara e braços. ombros e pernas, toda era pouca para arrancar a palavra ao Destino. Enfim, parou, sentou-se exausta, até que se ergueu de salto e foi ter com as duas, tão radiante, os olhos tão vivos e cálidos, que a mãe ficou pendente deles, e não se pôde ter que lhe não pegasse das mãos e lhe perguntasse ansiosa: —Então? Diga, posso ouvir tudo.

Bárbara, cheia de alma e riso, deu um respiro de gosto. A primeira palavra parece que lhe chegou à boca, mas recolheu-se ao coração, virgem dos lábios dela e de alheios ouvidos. Natividade instou pela resposta, que lhe dissesse tudo, sem falta...

—Cousas futuras! murmurou finalmente a cabocla.

—Mas, cousas feias? —Oh! não! não! Cousas bonitas, cousas futuras! —Mas isso não basta: diga-me o resto. Esta senhora é minha irmã e de segredo, mas se é preciso sair, ela sai; eu fico, diga-me a mim só... Serão felizes? —Sim.

—Serão grandes? —Serão grandes, Oh! grandes! Deus há de dar-lhes muitos benefícios. Eles hão de subir, subir, subir... Brigaram no ventre de sua veio busca mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É! só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, cousas futuras! Lá dentro, a voz do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do sertão: Trepa-me neste coqueiro, Bota-me os cocos abaixo.

E a filha, não tendo mais que dizer, ou não sabendo que explicar, dava aos quadris o gesto da toada, que o velho repetia lá dentro: Menina da saia branca, Saltadeira de riacho, Trepa-me neste coqueiro, Bota-me os cocos abaixo, Quebra coco, sinhá, Lá no cocá, Se te dá na cabeça, Há de rachá; Muito hei de me ri, Muito hei de gostá, Lelê, coco, naiá.

CAPÍTULO II / MELHOR DE DESCER QUE DE SUBIR

Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se. Natividade acabou entendendo a cabocla, apesar de lhe não ouvir mas nada; bastou saber que as cousas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e gloriosos para ficar alegre e tirar da bolsa uma nota de cinqüenta mil-réis. Era cinco vezes o preço do costume, e valia tanto ou mais que as ricas dádivas de Creso à Pítia. Arrecadou os retratos e os cabelos, e as duas saíram, enquanto a cabocla ia para os fundos à espera de outros. Já havia alguns fregueses à porta, com os números de ordem, e elas desceram rapidamente, escondendo a cara.

Perpétua compartia as alegrias da irmã, as pedras também, o muro do lado do mar, as camisas penduradas às janelas, as cascas de banana no chão. Os mesmos sapatos de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da Rua da Misericórdia para a de S. José, Fale ciam rir de alegria, quando realmente gemiam de cansaço. Natividade estava tão fora de si que, ao ouvir-lhe pedir: "Para a missa das almas!" tirou da bolsa uma nota de dous mil-réis, nova em folha, e deitou-a à bacia. A irmã chamou-lhe a atenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do purgatório.

E seguiram lépidas para o coupé, que as esperava no espaço que fica entre a igreja de S. José e a Câmara dos Deputados. Não tinham querido que o carro as levasse até ao princípio da ladeira, para que o cocheiro e o lacaio não desconfiassem da consulta. Toda a gente falava lava então da cabocla do Castelo, era o assunto da cidade; atribuíam-lhe um poder infinito, uma série de milagres, sortes, achados casamentos. Se as descobrissem, estavam perdidas embora muita gente boa lá fosse. Ao vê-las dando a esmola ao irmão das almas, o lacaio trepou à almofada e o cocheiro tocou os cavalos, a carruagem veio buscá-las, e guiou para Botafogo.

CAPÍTULO III / A ESMOLA DA FELICIDADE

—Deus lhe acrescente, minha senhora devota! exclamou o irmão das almas ao ver a nota cair em cima de dous níqueis de tostão e alguns vinténs antigos. Deus lhe dê todas as felicidades do céu e da terra, e as almas do purgatório peçam a Maria Santíssima que recomende a senhora dona a seu bendito filho! Quando a sorte ri, toda a natureza ri também, e o coração ri como tudo o mais. Tal foi a explicação que, por outras palavras menos especulativas, deu o irmão das almas aos dous mil-réis. A suspeita de ser a nota falsa não chegou a tomar pé no cérebro deste: foi alucinação rápida. Compreendeu que as damas eram felizes, e, tendo o uso de pensar alto, disse piscando o olho, enquanto elas entravam no carro: —Aquelas duas viram passarinho verde, com certeza.

Sem rodeios, supôs que as duas senhoras vinham de alguma aventura amorosa, e deduziu isto de três fatos, que sou obrigado a enfileirar aqui para não deixar este homem sob a suspeita de caluniador gratuito. O primeiro foi a alegria delas, o segundo o valor da esmola. o terceiro o carro que as esperava a um canto, como se elas quisessem esconder do cocheiro o ponto dos namorados. Não concluas tu que ele tivesse sido cocheiro algum dia. e andasse a conduzir moças antes de servir às almas. Também não creias que fosse outrora rico e adúltero, aberto de mãos, quando vinha de dizer adeus às suas amigas. Ni cet excès d'honneur, ni cette indignité. Era um pobre-diabo sem mais ofício que a devoção. Demais, não teria tido tempo; contava apenas vinte e sete anos.

Cumprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois ficou a olhar para a nota tão fresca, tão valiosa, nota que almas nunca viram sair das mãos dele. Foi subindo a Rua de S. José. Já não tinha ânimo de pedir; a nota fazia-se ouro, e a idéia de ser falsa voltou-lhe ao cérebro, e agora mais freqüente, até que se lhe pegou por alguns instantes. Se fosse falsa... "Para a missa das almas!" gemeu à porta de uma quitanda e deram-lhe um vintém, — um vintém sujo e triste ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo. Seguia-se um corredor de sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhe dous vinténs, o dobro da outra moeda no valor e no azinhavre.

E a nota sempre limpa, uns dous mil-réis que pareciam vinte. Não era falsa. No corredor pegou dela, mirou-a bem; era verdadeira De repente, ouviu abrir a cancela em cima, e uns passos rápidos Ele, mais rápido, amarrotou a nota e meteu-a na algibeira das calças: ficaram só os vinténs azinhavrados e tristes, o óbolo da viúva. Saiu. foi à primeira oficina, à primeira loja, ao primeiro corredor, pedindo longa e lastimosamente: —Para a missa das almas! Na igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão ouviu uma voz débil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dous mil-réis... Os dous mil-réis, dizia outra voz menos débil eram naturalmente dele, que, em primeiro lugar, também tinha alma, e, em segundo lugar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vai à igreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas.

Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não saíram assim articuladas e claras, nem as débeis, nem as menos débeis; todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciência. Traduzi-as em língua falada, a fim de ser entendido das pessoas que me lêem; não sei como se poderia transcrever para o papel um rumor surdo e outro menos surdo, um atrás de outro e todos confusos para o fim, até que o segundo ficou só: "não tirou a nota a ninguém... a dona é que a pôs na bacia por sua mão... também ele era alma"... A porta da sacristia que dava para a rua, ao deixar cair o reposteiro azul-escuro debruado de amarelo, não ouviu mais nada. Viu um mendigo que lhe estendia o chapéu roto e sebento, meteu vagarosamente a mão no bolso do colete, também roto, e aventou uma moedinha de cobre que deitou ao chapéu do mendigo, rápido, às escondidas, como quer o Evangelho. Eram dous vinténs, ficavam-lhe mil novecentos e noventa e oito réis. E o mendigo, como ele saísse depressa, mandou-lhe atrás estas palavras de agradecimento, parecidas com as suas: —Deus lhe acrescente, meu senhor, e lhe dê...

CAPÍTULO IV / A MISSA DO COUPÉ

Natividade ia pensando na cabocla do Castelo, na predição da grandeza e na notícia da briga. Tornava a lembrar-se que, de fato, a gestação não fora sossegada; mas só lhe ficava a sorte da glória e da grandeza. A briga lá ia, se a houve, o futuro, sim, esse é que era o principal ou tudo. Não deu pela Praia de Santa Luzia. No Largo da Lapa interrogou a irmã sobre o que pensava da adivinha. Perpétua respondeu que bem, que acreditava, e ambas concordaram que ela parecia falar dos próprios filhos, tal era o entusiasmo. Perpétua ainda a repreendeu pelos cinqüenta mil-réis dados em paga; bastavam vinte.

—Não faz mal. Cousas futuras! —Que cousas serão? —Não sei; futuras.

Mergulharam outra vez no silêncio. Ao entrar no Catete, Natividade recordou a manhã em que ali passou, naquele mesmo coupé, e confiou ao marido o estado de gravidez. Voltavam de uma missa de defunto, na igreja de S. Domingos...

"Na igreja de S. Domingos diz-se hoje uma missa por alma de João de Melo, falecido em Maricá". Tal foi o anúncio que ainda agora podes ler em algumas folhas de 1869. Não me ficou o dia. o mês foi agosto. O anúncio está certo, foi aquilo mesmo, sem mais nada, nem o nome da pessoa ou pessoas que mandaram dizer a missa, nem hora, nem convite. Não se disse sequer que o defunto era escrivão, ofício que só perdeu com a morte. Enfim, parece que até lhe tiraram um nome; ele era, se estou bem informado, João de Melo e Barros.

Não se sabendo quem mandava dizer a missa, ninguém lá foi. A igreja escolhida deu ainda menos relevo ao ato; não era vistosa, nem buscada, mas velhota, sem galas nem gente, metida ao canto de um pequeno largo, adequada à missa recôndita e anônima.

As oito horas parou um coupé à porta; o lacaio desceu, abriu a portinhola, desbarretou-se e perfilou-se. Saiu um senhor e deu a mão a uma senhora, a senhora saiu e tomou o braço ao senhor, atravessaram o pedacinho de largo e entraram na igreja. Na sacristia era tudo espanto. A alma que a tais sítios atraíra um carro de luxo, cavalos de raça, e duas pessoas tão finas não seria como as outras almas ali sufragadas. A missa foi ouvida sem pêsames nem lágrimas. Quando acabou, o senhor foi à sacristia dar as espórtulas. O sacristão, agasalhando na algibeira a nota de dez-mil-réis que recebeu, achou que ela provava a sublimidade do defunto; mas que defunto era esse? O mesmo pensaria a caixa das almas, se pensasse, quando a luva da senhora deixou cair dentro uma pratinha de cinco tostões. Já então havia na igreja meia dúzia de crianças maltrapilhas, e fora, alguma gente às portas e no largo, esperando. O senhor, chegando à porta, relanceou os olhos, ainda que vagamente, e viu que era objeto de curiosidade. A senhora trazia os seus no chão. E os dous entravam no carro, com o mesmo gesto, o lacaio bateu a portinhola e partiram.

A gente local não falou de outra cousa naquele e nos dias seguintes. Sacristão e vizinhos relembravam o coupé, com orgulho. Era a missa do coupé. As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas de sapato roto, não raras descalças, capinhas velhas, morins estragados, missas de chita ao domingo, missas de tamancos. Tudo voltou ao costume, mas a missa do coupé viveu na memória por muitos meses. Afinal não se falou mais nela; esqueceu como um baile.

Pois o coupé era este mesmo. A missa foi mandada dizer por aquele senhor, cujo nome é Santos, e o defunto era seu parente, ainda que pobre. Também ele foi pobre, também ele nasceu em Maricá. Vindo para o Rio de Janeiro, por ocasião da febre das ações (1855), dizem que revelou grandes qualidades para ganhar dinheiro depressa. Ganhou logo muito, e fe-lo perder a outros. Casou em 1859 com esta Natividade, que ia então nos vinte anos e não tinha dinheiro, mas era bela e amava apaixonadamente. A Fortuna os abençoou com a riqueza. Anos depois tinham eles uma casa nobre, carruagem, cavalos e relações novas e distintas. Dos dous parentes pobres de Natividade morreu o pai em 1866, restava-lhe uma irmã. Santos tinha alguns em Maricá, a quem nunca mandou dinheiro, fosse mesquinhez, fosse habilidade. Mesquinhez não creio, ele gastava largo e dava muitas esmolas. Habilidade seria; tirava-lhes o gosto de vir cá pedir-lhe mais.

Não lhe valeu isto com João de Melo, que um dia apareceu aqui, a pedir-lhe emprego. Queria ser. como ele, diretor de banco. Santos arranjou-lhe depressa um lugar de escrivão no cível em Maricá, e despachou-o com os melhores conselhos deste mundo.

João de Melo retirou-se com a escrivania, e dizem que uma grande paixão também. Natividade era a mais bela mulher daquele tempo. No fim, com os seus cabelos quase sexagenários, fazia crer na tradição. João de Melo ficou alucinado quando a viu, ela conheceu isso, e portou-se bem. Não lhe fechou o rosto, é verdade, e era mais bela assim que zangada; também não lhe fechou os olhos que eram negros e cálidos. Só lhe fechou o coração, um coração que devia amar como nenhum outro, foi a conclusão de João de Melo uma noite em que a viu ir decotada a um baile. Teve ímpeto de pegar dela, descer, voar, perderem-se...

Em vez disso, uma escrivania e Maricá; era um abismo. Caiu nele; três dias depois saiu do Rio de Janeiro para não voltar. A princípio escreveu muitas cartas ao parente, com a esperança de que ela as lesse também, e compreendesse que algumas palavras eram para si.

Mas Santos não lhe deu resposta, e o tempo e a ausência acabaram por fazer de João de Melo um excelente escrivão. Morreu de uma pneumonia.

Que o motivo da pratinha de Natividade deitada à caixa das almas fosse pagar a adoração do defunto não digo que sim, nem que não; faltam-me pormenores. Mas pode ser que sim, porque esta senhora era não menos grata que honesta. Quanto às larguezas do marido, não esqueças que o parente era defunto, e o defunto um parente menos.

CAPÍTULO V / HÁ CONTRADIÇÕES EXPLICÁVEIS

Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua história, ou prezasse a lógica aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as cousas se passaram, e refiro-as tais quais. Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não pegue. Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O melhor é ler com atenção.

Quanto à contradição de que se trata aqui, é de ver que naquele recanto de um larguinho modesto, nenhum conhecido daria com eles, ao passo que eles gozariam o assombro local; tal foi a reflexão de Santos, se pode dar semelhante nome a um movimento interior que leva a gente a fazer antes uma cousa que outra. Resta a missa; a missa em si mesma bastava que fosse sabida no céu e em Maricá. Propriamente vestiram-se para o céu. O luxo do casal temperava a pobreza da oração; era uma espécie de homenagem ao finado. Se a alma de João de Melo os visse de cima, alegrar-se-ia do apuro em que eles foram rezar por um pobre escrivão. Não sou eu que o digo; Santos é que o pensou.

CAPÍTULO VI / MATERNIDADE

A princípio, vieram calados. Quando muito, Natividade queixou-se da igreja, que lhe sujara o vestido.

—Venho cheia de pulgas, continuou ela; por que não fomos a S. Francisco de Paula ou à Glória, que estão mais perto, e são limpas? Santos trocou as mãos à conversa, e falou das ruas mal calçadas, que faziam dar solavancos ao carro. Com certeza, quebravam-lhe as molas.

Natividade não replicou, mergulhou no silêncio, como naquele outro capítulo, vinte meses depois, quando tornava do Castelo com a irmã. Os olhos não tinham a nota de deslumbramento que trariam então; iam parados e sombrios, como de manhã e na véspera. Santos, que já reparara nisso, perguntou-lhe o que é que tinha; ela não sei se lhe respondeu de palavra; se alguma disse, foi tão breve e surda que inteiramente se perdeu. Talvez não passasse de um simples gesto de olhos, um suspiro, ou cousa assim. Fosse o que fosse, quando o coupé chegou ao meio do Catete, os dous levavam as mãos presas, e a expressão do rosto era de abençoados. Não davam sequer pela gente das ruas; não davam talvez por si mesmos.

Leitor, não é muito que percebas a causa daquela expressão; destes dedos abotoados. Já lá ficou dita atrás, quando era melhor deixar que a adivinhasses; mas provavelmente não a adivinharias. não que tenhas o entendimento curto ou escuro, mas porque o homem na varia do homem, e tu talvez ficasses com igual expressão, simplesmente por saber que ias dançar sábado. Santos não dançava; preferia o voltarete, como distração. A causa era virtuosa, como sabes; Natividade estava grávida, acabava de o dizer ao marido.

Aos trinta anos não era cedo nem tarde; era imprevisto. Santos sentiu mais que ela o prazer da vida nova. Eis aí vinha a realidade do sonho de dez anos, uma criatura tirada da coxa de Abraão, como diziam aqueles bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora empresta generosamente o seu dinheiro às companhias e às nações. Levam juro por ele; mas os hebraísmos são dados de graça. Aquele é desses. Santos, que só conhecia a parte do empréstimo, sentia inconscientemente a do hebraísmo, e deleitava-se com ele. A emoção atava-lhe a língua; os olhos que estendia à esposa e a cobriam eram de patriarca; o sorriso parecia chover luz sobre a pessoa amadas abençoada e formosa entre as formosas.

Natividade não foi logo, logo, assim; a pouco e pouco é que veio sendo vencida e tinha já a expressão da esperança e da Maternidade. Nos primeiros dias, os sintomas desconcertaram a nossa amiga. É duro dizê-lo, mas é verdade. Lá se iam bailes e festas, lá ia a liberdade e a folga. Natividade andava já na alta roda do tempo; acabou de entrar por ela, com tal arte que parecia haver ali nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas também outra em Petrópolis; nem só carro, mas também camarote no Teatro Lírico, não contando os bailes do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus; todo o repertório, em suma, da vi da elegante. Era nomeada nas gazetas. pertencia àquela dúzia de nomes planetários que figuram no meio da plebe de estrelas. O marido era capitalista e diretor de um banco.

No meio disso, a que vinha agora uma criança deformá-la por meses, obrigá-la a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto? Tal foi a primeira sensação da mãe, e o primeiro ímpeto foi esmagar o gérmen. Criou raiva ao marido. A segunda sensação foi melhor. A maternidade, chegando ao meio-dia, era como urna aurora nova e fresca. Natividade viu a figura do filho ou filha brincando na relva da chácara ou no regaço da aia, com três anos de idade, e este quadro daria aos trinta e quatro anos que teria então um aspecto de vinte e poucos...

Foi o que a reconciliou com o marido. Não exagero; também não quero mal a esta senhora. Algumas teriam medo, a maior parte amor. A conclusão é que, por uma ou por outra porta, amor ou vaidade. o que o embrião quer é entrar na vida. César ou João Fernandes, tudo é viver, assegurar a dinastia e sair do mundo o mais tarde que puder.

O casal ia calado. Ao desembocar na Praia de Botafogo, a enseada trouxe o gosto de costume. A casa descobria-se a distancia, magnífica; Santos deleitou-se de a ver, mirou-se nela, cresceu com ela. subiu por ela. A estatueta de Narciso, no meio do jardim, sorriu à entrada deles, a areia fez-se relva, duas andorinhas cruzaram por cima do repuxo, figurando no ar a alegria de ambos. A mesma cerimônia d descida. Santos ainda parou alguns instantes para ver o coupé dar a volta, sair e tornar à cocheira; depois seguiu a mulher que entrava no saguão.

CAPÍTULO VII / GESTAÇÃO

Em cima, esperava por eles Perpétua, aquela irmã de Natividade, que a acompanhou ao Castelo, e lá ficou no carro, onde as deixei para narrar os antecedentes dos meninos.

—Então? Houve muita gente? —Não, ninguém, pulgas.

Perpétua também não entendera a escolha da igreja. Quanto à concorrência, sempre lhe pareceu que seria pouca ou nenhuma; mas o cunhado vinha entrando, e ela calou o resto. Era pessoa circunspecta, que não se perdia por um dito ou gesto descuidado. Entretanto, foi lhe impossível calar o espanto, quando viu o cunhado entrar e dar à mulher um abraço longo e terno, abrochado por um beijo.

—Que é isso? exclamou espantada.

Sem reparar no vexame da mulher, Santos deu um abraço à cunhada, e ia dar-lhe um beijo também, se ela não recuasse a tempo e com força.

—Mas que é isso? Você tirou a sorte grande de Espanha? —Não, cousa melhor, gente nova.

Santos conservara alguns gestos e modos de dizer dos primeiros anos, tais que o leitor não chamará propriamente familiares, também não é preciso chamar-lhes nada. Perpétua, afeita a eles, acabou sorrindo e dando-lhe parabéns. Já então Natividade os deixara para se ir despir. Santos, meio arrependido da expansão, fez-se sério e conversou da missa e da igreja. Concordou que esta era decrépita e metida a um canto, mas alegou razões espirituais. Que a oração era sempre oração, onde quer que a alma falasse a Deus. Que a missa, a rigor, não precisava estritamente de altar; o rito e o padre bastavam ao sacrifício. Talvez essas razões não fossem propriamente dele, mas ouvidas a alguém, decoradas sem esforço e repetidas com convicção. A cunhada opinou de cabeça que sim. Depois falaram do parente morto e concordaram piamente que era um asno; — não disseram este nome, mas a totalidade das apreciações vinha a dar nele, acrescentado de honesto e honestíssimo.

—Era uma pérola, concluiu Santos.

Foi a última palavra da necrologia; paz aos mortos. Dali em diante, vingou a soberania da criança que alvorecia. Não alteraram os hábitos, nos primeiros tempos, e as visitas e os bailes continuaram como dantes, até que pouco a pouco, Natividade se fechou totalmente em casa. As amigas iam vê-la. Os amigos iam visitá-los ou jogar cartas com o marido.

Natividade queria um filho, Santos uma filha, e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer. Então ela ficava com a filha, e vestia-lhe as melhores rendas e cambraias, enquanto ele enfiava uma beca no jovem advogado, dava-lhe um lugar no parlamento, outro no ministério. Também lhe ensinava a enriquecer depressa; e ajudá-lo-ia começando por uma caderneta na Caixa Econômica, desde o dia em que nascesse até os vinte e um anos. Alguma vez, às noites, se estavam sós, Santos pegava de um lápis e desenhava a figura do filho, com bigodes, — ou então riscava uma menina vaporosa.

—Deixa, Agostinho, disse-lhe a mulher uma noite; você sempre há de ser criança.

E pouco depois, deu por si a desenhar de palavra a figura do filho ou filha, e ambos escolhiam a cor dos olhos, os cabelos, a tez, a estatura. Vês que também ela era criança. A maternidade tem dessas incoerências, a felicidade também, e por fim a esperança, que é a meninice do mundo.

A perfeição seria nascer um casal. Assim os desejos do pai e da mãe ficariam satisfeitos. Santos pensou em fazer sobre isso uma consulta espírita. Começava a ser iniciado nessa religião, e tinha a fé noviça e firme. Mas a mulher opôs-se; a consultar alguém, antes a cabocla do Castelo, a adivinha célebre do tempo, que descobria as cousas perdidas e predizia as futuras. Entretanto, recusava também, por desnecessário. A que vinha consultar sobre uma dúvida, que dali a meses estaria esclarecida? Santos achou, em relação à cabocla, que seria imitar as crendices da gente reles; mas a cunhada acudiu que não, e citou um caso recente de pessoa distinta, um juiz municipal, cuja nomeação foi anunciada pela cabocla.

—Talvez o ministro da Justiça goste da cabocla, explicou Santos.

As duas riram da graça, e assim se fechou uma vez o capítulo da adivinha, para se abrir mais tarde. Por agora é deixar que o feto se desenvolva, a criança se agite e se atire, como impaciente de nascer. Em verdade, a mãe padeceu muito durante a gestação, e principalmente nas últimas semanas. Cuidava trazer um general que iniciava a campanha da vida, a não ser um casal que aprendia a desamar de véspera.

CAPÍTULO VIII / NEM CASAL, NEM GENERAL

Nem casal, nem general. No dia sete de abril de 1870 veio à luz um par de varões tão iguais, que antes pareciam a sombra um do outro, se não era simplesmente a impressão do olho, que via dobrado.

Tudo esperavam, menos os dous gêmeos, e nem por ser o espanto grande, foi menor o amor. Entende-se isto sem ser preciso insistir, assim como se entende que a mãe desse aos dous filhos aquele pão inteiro e dividido do poeta; eu acrescento que o pai fazia a mesma cousa. Viveu os primeiros tempos a contemplar os meninos, a compará-los, a medi-los, a pesá-los. Tinham o mesmo peso e cresciam por igual medida. A mudança ia-se fazendo por um só teor. O rosto comprido, cabelos castanhos, dedos finos e tais que, cruzados os da mão direita de um com os da esquerda de outro, não se podia saber que eram de duas pessoas. Viriam a ter gênio diferente, mas por ora eram os mesmos estranhões. Começaram a sorrir no mesmo dia. O mesmo dia os viu batizar.

Antes do parto tinham combinado em dar o nome do pai ou da mãe, segundo fosse o sexo da criança. Sendo um par de rapazes, e não havendo a forma masculina do nome materno, não quis o pai que figurasse só o dele, e meteram-se a catar outros. A mãe propunha franceses ou ingleses, conforme os romances que lia. Algumas novelas russas em moda sugeriram nomes eslavos. O pai aceitava uns e outros, mas consultava a terceiros, e não acertava com opinião definitiva. Geralmente, os consultados trariam outro nome, que não era aceito em casa. Também veio a antiga onomástica lusitana, mas sem melhor fortuna. Um dia. estando Perpétua à missa, rezou o Credo, advertiu nas palavras: "...os santos apóstolos S. Pedro e S. Paulo", e mal pôde acabar a oração. Tinha descoberto os nomes; eram simples e gêmeos. Os pais concordaram com ela e a pendência acabou.

A alegria de Perpétua foi quase tamanha como a do pai e da mãe, se não maior. Maior não foi, nem tão profunda, mas foi grande, ainda que rápida. O achado dos nomes valia quase que pela feitura das crianças. Viúva, sem filhos, não se julgava incapaz de os ter, e era alguma cousa nomeá-los. Contava mais cinco ou seis anos que a irmã. Casara com um tenente de artilharia que morreu capitão na guerra do Paraguai. Era mais baixa que alta, e era gorda, ao contrário de Natividade que, sem ser magra, não tinha as mesmas carnes, e era alta e reta. Ambas vendiam saúde.

—Pedro e Paulo, disse Perpétua à irmã e ao cunhado, quando rezei estes dous nomes, senti uma cousa no coração...

—Você será madrinha de um, disse a irmã.

Os pequenos, que se distinguiam por uma fita de cor, passaram a receber medalhas de ouro, uma com a imagem de S. Pedro, outra com a de S. Paulo. A confusão não cedeu logo, mas tarde, lento e pouco, ficando tal semelhança que os advertidos se enganavam muita vez ou sempre. A mãe é que não precisou de grandes sinais externos para saber quem eram aqueles dous pedaços de si mesma. As amas, apesar de os distinguirem entre si, não deixavam de querer mal uma à outra, pelo motivo da semelhança dos "seus filhos de criação". Cada uma afirmava que o seu era mais bonito. Natividade concordava com ambas.

Pedro seria médico, Paulo advogado; tal foi a primeira escolha das profissões. Mas logo depois trocaram de carreira. Também pensaram em dar um deles à engenharia. A marinha sorria à mãe, pela distinção particular da escola. Tinha só o inconveniente da primeira viagem remota; mas Natividade pensou em meter empenhos com o ministro. Santos falava em fazer um deles banqueiro, ou ambos. Assim passavam as horas vadias. Íntimos da casa entravam nos cálculos. Houve quem os fizesse ministros, desembargadores, bispos, cardeais...

—Não peço tanto, dizia o pai.

Natividade não dizia nada ao pé de estranhos, apenas sorria, como se tratasse de folguedo de São João, um lançar de dados e ler no livro de sortes a quadra correspondente ao número. Não importa; lá dentro de si cobiçava algum brilhante destino aos filhos. Cria deveras, esperava, rezava às noites, pedia ao céu que os fizesse grandes homens.

Uma das amas, parece que a de Pedro, sabendo daquelas ânsias e conversas, perguntou a Natividade por que é que não ia consultar a cabocla do Castelo. Afirmou que ela adivinhava tudo, o que era e o que viria a ser; conhecia o número da sorte grande, não dizia qual era nem comprava bilhete para não roubar os escolhidos de Nosso Senhor. Parece que era mandada de Deus.

A outra ama confirmou as notícias e acrescentou novas. Conhecia pessoas que tinham perdido e achado jóias e escravos. A polícia mesma, quando não acabava de apanhar um criminoso, ia ao Castelo falar à cabocla e descia sabendo; por isso é que não a botava para fora, como os invejosos andavam a pedir. Muita gente não embarcava sem subir primeiro ao morro. A cabocla explicava sonhos e pensamentos, curava de quebranto...

Ao jantar, Natividade repetiu ao marido a lembrança das amas. Santos encolhia os ombros. Depois examinou rindo a sabedoria da cabocla; principalmente a sorte grande era incrível que, conhecendo o número, não comprasse bilhete. Natividade achou que era o mais difícil de explicar, mas podia ser invenção do povo. On ne prete qu'aux riches, acrescentou rindo. O marido, que estivera na véspera com um desembargador, repetiu as palavras dele que "enquanto a polícia não pusesse cobro ao escândalo..." O desembargador não concluíra. Santos concluiu com um gesto vago.

—Mas você é espírita, ponderou a mulher.

—Perdão, não confundamos, replicou ele com gravidade.

Sim, podia consentir numa consulta espírita; já pensara nela Algum espírito podia dizer-lhe a verdade em vez de uma adivinha de farsa... Natividade defendeu a cabocla. Pessoas da sociedade falavam dela a sério. Não queria confessar ainda que tinha fé, mas tinha. Recusando ir outrora, foi naturalmente a insuficiência do motivo que lhe deu a força negativa. Que importava saber o sexo do filho? Conhecer o destino dos dous era mais imperioso e útil. Velhas idéias que lhe incutiram em criança vinham agora emergindo do cérebro e descendo ao coração. Imaginava ir com os pequenos ao morro do Castelo, a título de passeio... Para quê? Para confirmá-la na esperança de que seriam grandes homens. Não lhe passara pela cabeça a predição contrária. Talvez a leitora, no mesmo caso, ficasse aguardando o destino; mas a leitora, além de não crer (nem todos crêem) pode ser que não conte mais de vinte a vinte e dous anos de idade, e terá a paciência de esperar. Natividade, de si para si, confessava os trinta e um, e temia não ver a grandeza dos filhos. Podia ser que a visse, pois também se morre velha, e alguma vez de velhice, mas acaso teria o mesmo gosto? Ao serão, a matéria da palestra foi a cabocla do Castelo, por iniciativa de Santos, que repetia as opiniões da véspera e do jantar. Das visitas algumas contavam o que ouviam dela. Natividade não dormiu aquela noite sem obter do marido que a deixasse ir com a irmã à cabocla. Não se perdia nada, bastava levar os retratos dos meninos e um pouco dos cabelos. As amas não saberiam nada da aventura.

No dia aprazado meteram-se as duas no carro, entre sete e oito horas com pretexto de passeio, e lá se foram para a Rua da Misericórdia. Sabes já que ali se apearam, entre a igreja de S. José e a Câmara dos Deputados, e subiram aquela até à Rua do Carmo, onde esta pega com a ladeira do Castelo. Indo a subir, hesitaram, mas a mãe era mãe, e já agora faltava pouco para ouvir o destino. Viste que subiram, que desceram, deram os dous mil réis às almas, entraram no carro e voltaram para Botafogo.

CAPÍTULO IX / VISTA DE PALÁCIO

No catete, o coupé e uma vitória cruzaram-se e pararam a um tempo. Um homem saltou da vitória e caminhou para o coupé. Era o marido de Natividade, que ia agora para o escritório, um pouco mais tarde que de costume, por haver esperado a volta da mulher. Ia pensando nela e nos negócios da praça, nos meninos e na Lei Rio Branco, então discutida na Câmara dos Deputados; o banco era credor da lavoura. Também pensava na cabocla do Castelo e no que teria dito à mulher...

Ao passar pelo palácio Nova Friburgo, levantou os olhos para ele com o desejo do costume, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos destinos que o palácio viria a ter na República; mas quem então previa nada? Quem prevê cousa nenhuma? Para Santos a questão era só possuí-lo, dar ali grandes festas únicas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos e inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de inveja. Não pensava nas saudades que as matronas futuras contariam às suas netas, menos ainda nos livros de crônicas, escritos e impressos neste outro século. Santos não tinha a imaginação da posteridade. Via o presente e suas maravilhas.

Já lhe não bastava o que era. A casa de Botafogo, posto que bela, não era um palácio, e depois, não estava tão exposta como aqui no Catete, passagem obrigada de toda a gente, que olharia para as grandes janelas, as grandes portas, as grandes águias no alto, de asas abertas. Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas do palácio, os jardins e os lagos... Oh! gozo infinito! Santos imaginava os bronzes, mármores, luzes, flores, danças, carruagens, músicas, ceias... Tudo isso foi pensado depressa, porque a vitória, embora não corresse (os cavalos tinham ordem de moderar a andadura), todavia, não atrasava as rodas para que os sonhos de Santos acabassem. Assim foi que, antes de chegar à Praia da Glória, a vitória avistou o coupé da família, e as duas carruagens pararam, a curta distancia uma da outra, como ficou dito.

CAPÍTULO X / O JURAMENTO

Também ficou dito que o marido saiu da vitória e caminhou para o coupé, onde a mulher e a cunhada, adivinhando que ele vinha ter com elas, sorriam de antemão.

—Não lhe digas nada, aconselhou Perpétua.

A cabeça de Santos apareceu logo, com as suíças curtas, o cabelo rente, o bigode rapado. Era homem simpático. Quieto, não ficava mal. A agitação com que chegou, parou e falou, tirou-lhe a gravidade com que ia no carro, as mãos postas sobre o castão de ouro da bengala, e a bengala entre os joelhos.

—Então? então? perguntou.

—Logo digo.

—Mas que foi? —Logo.

—Bem ou mal? Dize só se bem.

—Bem. Cousas futuras.

—Si pessoa séria? —Séria, sim: até logo. repetiu Natividade estendendo-lhe os dedos.

Mas o marido não podia despegar-se do coupé; queria saber ali mesmo tudo, as perguntas e as respostas, a gente que lá estava à espera, e se era o mesmo destino para os dous, ou se cada um tinha o seu. Nada disso foi escrito como aqui vai, devagar, para que a ruim letra do autor não faça mal à sua prosa. Não, senhor; as palavras de Santos saíram de atropelo, umas sobre outras, embrulhadas, sem princípio ou sem fim. A bela esposa tinha já as orelhas tão afeitas ao falar do marido, mormente em lances de emoção ou curiosidade, que entendia tudo, e ia dizendo que não. A cabeça e o dedo sublinhavam a negativa. Santos não teve remédio e despediu-se.

Em caminho, advertiu que, não crendo na cabocla, era ocioso instar pela predição. Era mais; era dar razão à mulher. Prometeu não indagar nada quando voltasse. Não prometeu esquecer, e daí a teima com que pensou muitas vezes no oráculo. De resto, elas lhe diriam tudo sem que ele perguntasse nada, e esta certeza trouxe a paz do dia.

Não concluas daqui que os fregueses do banco padecessem alguma desatenção aos seus negócios. Tudo correu bem, como se ele não tivesse mulher nem filhos ou não houvesse Castelo nem cabocla Não era só a mão que fazia o seu ofício, assinando; a boca ia falando, mandando, chamando e rindo, se era preciso. Não obstante! a ânsia existia e as figuras passavam e repassavam diante dele; no intervalo de duas letras, Santos resolvia uma cousa ou outra, se não eram ambas a um tempo. Entrando no carro, à tarde, agarrou-se inteiramente ao oráculo. Trazia as mãos sobre o castão, a bengala entre os joelhos, como de manhã, mas vinha pensando no destino dos filhos.

Quando chegou a casa, viu Natividade a contemplar os meninos, ambos nos berços, as amas ao pé, um pouco admiradas da insistência com que ela os procurava desde manhã. Não era só fitá-los, ou perder os olhos no espaço e no tempo; era beijá-los também e apertá-los ao coração. Esqueceu-me dizer que, de manhã, Perpétua mudou primeiro de roupa que a irmã e foi achá-la diante dos berços, vestida como viera do Castelo.

—Logo vi que você estava com os grandes homens, disse ela.

—Estou, mas não sei em que é que eles serão grandes.

—Seja em que for, vamos almoçar.

Ao almoço e durante o dia. falaram muita vez da cabocla e da predição. Agora, ao ver entrar o marido, Natividade leu-lhe a dissimulação nos olhos. Quis calar e esperar, mas estava tão ansiosa de lhe dizer tudo, e era tão boa, que resolveu o contrário. Unicamente não teve o tempo de cumpri-lo; antes mesmo de começar, já ele acabava de perguntar o que era. Natividade referiu a subida, a consulta, a resposta e o resto; descreveu a cabocla e o pai.

—Mas então grandes destinos! —Cousas futuras, repetiu ela.

—Seguramente futuras. Só a pergunta da briga é que não entendo. Brigar por quê? E brigar como? E teriam deveras brigado? Natividade recordou os seus padecimentos do tempo da gestação, confessando que não falou mais deles para o não afligir; naturais mente é o que a outra adivinhou que fosse briga.

—Mas briga por quê? —Isso não sei, nem creio que fosse nada mau.

—Vou consultar...

—Consultar a quem? —Uma pessoa.

—Já sei, o seu amigo Plácido.

—Se fosse só amigo não consultava, mas ele é o meu chefe e mestre, tem uma vista clara e comprida, dada pelo céu... Consulto só por hipótese, não digo os nossos nomes...

—Não! Não!? Não! —Só por hipótese.

—Não, Agostinho, não fale disto. Não interrogue ninguém a meu respeito, ouviu? Ande, prometa que não falará disto a ninguém, espíritas nem amigos. O melhor é calar. Basta saber que terão sorte feliz. Grandes homens, cousas futuras... Jure, Agostinho.

—Mas você não foi em pessoa à cabocla? —Não me conhece, nem de nome; viu-me uma vez, não me tornará a ver. Ande, jure! —Você é esquisita. Vá lá, prometo. Que tem que falasse, assim, por acaso? —Não quero. Jure! —Pois isto é cousa de juramento? —Sem isso, não confio, disse ela sorrindo.

—Juro.

—Jure por Deus Nosso Senhor! —Juro por Deus Nosso Senhor!

CAPÍTULO XI / UM CASO ÚNICO!

Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu, mas enfim cedeu e jurou. Entretanto, o pensamento não lhe saiu mais da briga uterina dos filhos. Quis esquecê-la. Jogou essa noite, como de costume; na seguinte, foi ao teatro; na outra a uma visita; e tornou ao voltarete do costume, e a briga sempre com ele. Era um mistério. Talvez fosse um caso único... único! Um caso único! A singularidade do caso fê-lo agarrar-se mais à idéia, ou a idéia a ele, não posso explicar melhor este fenômeno íntimo, passado lá onde não entra olho de homem, nem bastam reflexões ou conjeturas. Nem por isso durou muito tempo. No primeiro domingo, Santos pegou em si, e foi à casa do doutor Plácido, Rua do Senador Vergueiro, uma casa baixa, de três janelas, com muito terreno para o lado do mar. Creio que já não exista. datava do tempo em que a rua era o Caminho Velho, para diferençar do Caminho Novo.

Perdoa estas minúcias. A ação podia ir sem elas, mas eu quero que saibas que casa era, e que rua, e mais digo que ali havia uma espécie de clube, templo ou que quer que era espírita. Plácido fazia de sacerdote e presidente a um tempo. Era um velho de grandes barbas. olho azul e brilhante, enfiado em larga camisola de seda. Põe-lhe uma vara na mão, e fica um mágico, mas, em verdade, as barbas e a camisola não as trazia por lhe darem tal aspecto. Ao contrário de Santos, que teria trocado dez vezes a cara, se não fora a oposição da mulher Plácido usava as barbas inteiras desde moço e a camisola há dez anos.

—Venha, venha, disse ele, ande ajudar-me a converter o nosso amigo Aires; há meia hora que procuro incutir-lhe as verdades eternas, mas ele resiste.

—Não, não, não resisto, acudiu um homem de cerca de quarenta anos, estendendo a mão ao recém-chegado.

CAPÍTULO XII / ESSE AIRES

Esses Aires que aí aparece conserva ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício. Não atribuas tal estado a qualquer propósito. Nem creias que vai nisto um pouco de homenagem à modéstia da pessoa. Não, senhor, é verdade pura e natural efeito. Apesar dos quarenta anos, ou quarenta e dous, e talvez por isso mesmo, era um belo tipo de homem. Diplomata de carreira, chegara dias antes do Pacífico, com uma licença de seis meses.

Não me demoro em descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo do ofício, o sorriso aprovador, a fala brande a cautelosa, o ar da ocasião, a expressão adequada, tudo tão bem distribuído que era um gosto ouvi-lo e vê-lo. Talvez a pele da cara rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do tempo. Ainda assim o bigode, que era moço na cor e no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando o meio século chegasse. O mesmo faria o cabelo, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabeça havia um início de calva. Na botoeira uma flor eterna.

Tempo houve, — foi por ocasião da anterior licença, sendo ele apenas secretário de legação, — tempo houve em que também ele gostou de Natividade. Não foi propriamente paixão; não era homem disso. Gostou dela, como de outras jóias e raridades, mas tão depressa viu que não era aceito, trocou de conversação. Não era frouxidão ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas A questão para ele é que nem as queria à força, nem curava de as persuadir. Não era general para escala à vista, nem para assédios demorados; contentava-se de simples passeios militares, — longos ou breves, conforme o tempo fosse claro ou turvo. Em suma, extremamente cordato.

Coincidência interessante: foi por esse tempo que Santos pensou em casá-lo com a cunhada, recentemente viúva. Esta parece que queria. Natividade opôs-se, nunca se soube por quê. Não eram ciúmes; invejas não .creio que fossem. O simples desejo de o não ver entrar na família pela porta lateral é apenas uma figura, que vale qualquer das primeiras hipóteses negadas. O desgosto de cedê-lo a outra, ou tê-los felizes ao pé de si, não podia ser. posto que o coração seja o abismo dos abismos. Suponhamos que era com o fim de o punir por havê-la amado.

Pode ser; em todo caso, o maior obstáculo viria dele mesmo. Posto que viúvo, Aires não foi propriamente casado. Não amava o casamento. Casou por necessidade do ofício; cuidou que era melhor ser diplomata casado que solteiro, e pediu a primeira moça que lhe pareceu adequada ao seu destino. Enganou-se: a diferença de temperamento e de espírito era tal que ele, ainda vivendo com a mulher, era como se vivesse só. Não se afligiu com a perda; tinha o feitio do solteirão.

Era cordato, repito, embora esta palavra não exprima exatamente o que quero dizer. Tinha o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia. Para conhecer esta aversão, bastava tê-lo visto entrar, antes, em visita ao casal Santos. Pessoas de fora e da família conversavam da cabocla do Castelo.

—Chega a propósito, conselheiro, disse Perpétua. Que pensa o senhor da cabocla do Castelo? Aires não pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam alguma cousa, e fez um gesto de dous sexos. Como insistissem, não escolheu nenhuma das duas opiniões, achou outra, média, que contentou a ambos os lados, cousa rara em opiniões médias. Sabes que o destino delas é serem de desdenhadas. Mas este Aires, — José da Costa Marcondes Aires, — tinha que nas controvérsias uma opinião dúbia ou média pode trazer a oportunidade de uma pílula, e compunha as suas de tal jeito, que o enfermo, se não sarava, não morria, e é o mais que fazem pílulas. Não lhe queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com açúcar. Aires opinou com pausa, delicadeza, circunlóquios, limpando o monóculo ao lenço de seda, pingando as palavras a graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem busca uma lembrança, e achava a lembrança, e arredondava com ela o parecer. Um dos ouvintes aceitou-o logo, outro divergiu um pouco e acabou de acordo, assim terceiro, e quarto, e a sala toda.

Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava de ter a mesma opinião, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava também guardar por escrito as descobertas, observações, reflexões críticas e anedotas, tendo para isso uma série de cadernos, a que dava o nome de Memorial. Naquela noite escreveu estas linhas: "Noite em casa da família Santos, sem voltarete. Falou-se na cabocla do Castelo. Desconfio que Natividade ou a irmã quer consultá-la; não será decerto a meu respeito.

Natividade e um Padre Guedes que lá estava, gordo e maduro eram as únicas pessoas interessantes da noite. O resto insípido, mas insípido por necessidade, não podendo ser outra cousa mais que insípido. Quando o padre e Natividade me deixavam entregue à insipidez dos outros, eu tentava fugir-lhe pela memória, recordando sensações, revivendo quadros, viagens, pessoas. Foi assim que pensei na Capponi, a quem vi hoje pelas costas, na Rua da Quitanda. Conheci-a aqui no finado Hotel de D. Pedro, lá vão anos. Era dançarina; eu mesmo já a tinha visto dançar em Veneza. Pobre Capponi! Andando o pé esquerdo saía-lhe do sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade.

Afinal tornei à eterna insipidez dos outros. Não acabo de crer como é que esta senhora, aliás tão fina, pode organizar noites como a de hoje. Não é que os outros não buscassem ser interessantes, e, se intenções valessem, nenhum livro os valeria; mas não o eram. por mais que tentassem. Enfim, lá vão; esperemos outras noites que tragam melhores sujeitos sem esforço algum. O que o berço dá só a cova o tira, diz um velho adágio nosso. Eu posso, truncando um verso ao meu Dante, escrever de tais insípidos: Dico, que quando l'anima mal nata...

CAPÍTULO XIII / A EPÍGRAFE

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro.

Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trabalhos.

Se aceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa fazer de torre, nem a torre de peão. Há ainda. a diferença da cor, branca e preta, mas esta não tira o poder da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai o mundo. Talvez conviesse pôr aqui, de quando em quando, como nas publicações do jogo, um diagrama das posições belas ou difíceis. Não havendo tabuleiro, é um grande auxílio este processo para acompanhar os lances, mas também pode ser que tenhas visão bastante para reproduzir na memória as situações diversas. Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo irá como se realmente visses jogar a partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo.

CAPÍTULO XIV / A LIÇÃO DO DISCÍPULO

—Fique, fique, conselheiro, disse Santos apertando a mão ao diplomata. Aprenda as verdades eternas.

—Verdades eternas pedem horas eternas, ponderou este, consultando o relógio.

Um tal Aires não era fácil de convencer. Plácido falou-lhe de leis científicas para excluir qualquer mácula de seita, e Santos foi com ele. Toda a terminologia espírita saiu fora, e mais os casos, fenômenos, mistérios, testemunhos, atestados verbais e escritos... Santos acudiu com um exemplo: dous espíritos podiam tornar juntos a este mundo; e, se brigassem antes de nascer? —Antes de nascer, crianças não brigam, replicou Aires, temperando o sentido afirmativo com a entonação dubitativa.

—Então nega que dous espíritos? ...Essa cá me fica, conselheiro! Pois que impede que dous espíritos?...

Aires viu o abismo da controvérsia, e forrou-se à vertigem por uma concessão, dizendo: —Esaú e Jacó brigaram no seio materno, isso é verdade. Conhece-se a causa do conflito. Quanto a outros, dado que briguem também, tudo está em saber a causa do conflito, e não a sabendo, porque a Providência a esconde da notícia humana... Se fosse uma causa espiritual, por exemplo...

—Por exemplo? —Por exemplo, se as duas crianças quiserem ajoelhar-se ao mesmo tempo para adorar o Criador. Aí está um caso de conflito, mas de conflito espiritual, cujos processos escapam à sagacidade humana. Também poderia ser um motivo temporal. Suponhamos a necessidade de se acotovelarem para ficar melhor acomodados; é uma hipótese que a ciência aceitaria; isto. não sei... Há ainda o caso de quererem ambos a primogenitura.

—Para quê? perguntou Plácido.

—Conquanto este privilégio esteja hoje limitado às famílias régias, à câmara dos lords e não sei se mais, tem todavia um valor simbólico. O simples gosto de nascer primeiro, sem outra vantagem social ou política, pode dar-se por instinto, principalmente se as crianças se destinarem a galgar os altos deste mundo.

Santos afiou o ouvido neste ponto, lembrando-se das "cousas futuras". Aires disse ainda algumas palavras bonitas, e acrescentou outras feias, admitindo que a briga podia ser. prenuncio de graves conflitos na terra; mas logo temperou esse conceito com este outro: —Não importa; não esqueçamos o que dizia um antigo, que "a guerra é a mãe de todas as cousas". Na minha opinião, Empédocles, referindo-se à guerra, não o fez só no sentido técnico. O amor, que é a primeira das artes da paz, pode-se dizer que é um duelo, não de morte, mas de vida, — concluiu Aires sorrindo leve, como falava baixo, e despediu-se.

CAPÍTULO XV / TESTE DAVID CUM SIBYLLA

—E Então? disse Santos. Não é que o conselheiro, em vez de aprender, ensina-nos? Eu acho que ele deu algumas razões boas.

—Quando menos, plausíveis, completou mestre Plácido.

—Foi pena que se despedisse, continuou Santos, mas felizmente o meu caso é com o senhor. Venho consultá-lo, e as suas luzes são as verdadeiras do mundo.

Plácido agradeceu sorrindo. Não era novo o elogio, ao contrário; mas ele estava tão acostumado a ouvi-lo que o sorriso era já agora um sestro. Não podia deixar de pagar com essa moeda aos seus discípulos.

—Trata-se...

—Trata-se disto. Aquela história que eu formulei é um fato real; sucedeu com os meus filhos.

—Como? —É o que me parece, e vim justamente para que me explique. Nunca lhe falei por temer que achasse absurdo, mas tenho pensado, e suspeito que tal briga se deu, e que é um caso extraordinário.

Santos expôs então a consulta, gravemente, com um gesto particular que tinha de arregalar os olhos para arregalar a novidade. Não esqueceu nem escondeu nada; contou a própria ida da mulher ao Castelo, com desdém, é verdade, mas ponto por ponto. Plácido ouvia atento, perguntando, voltando atrás, e acabou por meditar alguns minutos. Enfim, declarou que o fenômeno, caso se houvesse dado, era raro, se não único, mas possível. Já o fato de se chamarem Pedro e Paulo indicava alguma rivalidade, porque esses dous apóstolos brigaram também.

—Perdão, mas o batismo...

—Foi posterior, sei, mas os nomes podem ter sido predestinados, tanto mais que a escolha dos nomes veio, como o senhor me disse, por inspiração à tia dos meninos.

—Justamente.

—D. Perpétua é muito devota.

—Muito.

—Creio que os próprios espíritos de S. Pedro e S. Paulo houvessem escolhido aquela senhora para inspirar os nomes que estão no Credo; advirta que ela reza muitas vezes o Credo, mas foi naquela ocasião que se lembrou deles.

—Exato, exato! O doutor foi à estante e tirou uma Bíblia, encadernada em couro, com grandes fechos de metal. Abriu a Epistola de S. Paulo aos Gálatas, e leu a passagem do capitulo II, versículo 11, em que o após tolo conta que, indo a Antioquia, onde estava S. Pedro, "resistiu-lhe na cara".

Santos leu e teve uma idéia. As idéias querem-se festejadas, quando são belas, e examinadas, quando novas; a dele era a um tempo nova e bela. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando: —Sem contar que este número onze do versículo, composto de dous algarismos iguais, 1 e 1, é um número gêmeo, não lhe parece? —Justamente. E mais: o capítulo é o segundo, isto é, dous, que é o próprio número dos irmãos gêmeos.

Mistério engendra mistério. Havia mais de um elo íntimo, substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, números gêmeos, tudo eram águas de mistério que eles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dous meninos os próprios espíritos de S. Pedro e de S. Paulo, que renasciam agora, e ele, pai dos dous apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quase divino, trepou em si mesmo, e os olhos, ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chama da vida. Pai de apóstolos! E que apóstolos! Plácido esteve quase, quase a crer também, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que es espíritos de S. Pedro e S. Paulo tinham chegado à perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia.

—Deixe às senhoras as suas crenças da meninice, concluiu; se elas têm fé na tal mulher do Castelo, e acham que é um veículo de verdade, não as desminta por hora. Diga-lhes que eu estou de acordo com o seu oráculo. Teste David cum Sibylla.

—Digo, digo! escreva a frase.

Plácido foi à secretária, escreveu o verso, e deu-lhe o papel, mas já então Santos advertira que mostrá-lo à mulher era confessar a consulta espírita, e naturalmente o perjúrio. Referiu ao amigo os escrúpulos de Natividade e pediu que calassem tudo.

—Estando com ela, não lhe diga o que se passou entre nós.

Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, m as deslumbrado da revelação. Ia cheio de números da Escritura, de Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó. O ar da rua não espanou a poeira do mistério; ao contrário, o céu azul, a praia sossegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de um véu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, fato raro ou único, era uma distinção divina. Contrariamente à esposa, que cuidava somente da grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflito passado.

Entrou em casa, correu aos pequenos, e acarinhou-os com tão estranha expressão, que a mãe desconfiou alguma cousa, e quis saber o que era.

—Não é nada, respondeu ele rindo.

—É! alguma cousa, anda, acaba.

—Que há de ser? —Seja o que for, Agostinho, acaba.

Santos pediu-lhe que se não zangasse, e contou tudo, a sorte, a rixa, a Escritura, os apóstolos, o símbolo, tudo tão espalhadamente, que ela mal pôde entender, mas entendeu ao final, e replicou com os dentes cerrados: —Ah! você! você! —Perdoa, amiguinha, estava tão ansioso de saber a verdade... E nota que eu creio na cabocla, e o doutor também; ele até me escreveu isto em latim, concluiu tirando e lendo o papelinho: Teste David cum Sibylla.

CAPÍTULO XVI / PATERNALISMO

Daí A pouco, Santos pegou na mão da mulher, que a deixou ir à toa, sem apertar a dele; ambos fitavam os meninos, tendo esquecido a zanga para só ficarem pais.

Já não era espiritismo, nem outra religião nova; era a mais velha de todas, fundada por Adão e Eva, à qual chama, se queres, paternalismo. Rezavam sem palavras, persignavam-se sem dedos, uma espécie de cerimônia quieta e muda, que abrangia o passado e o futuro. Qual deles era o padre, qual o sacristão, não sei, nem é preciso. A missa é que era a mesma, e o evangelho começava como o de S. João (emendado): "No princípio era o amor, e o amor se fez carne". Mas venhamos aos nossos gêmeos.

CAPÍTULO XVII / TUDO O QUE RESTRINJO

Os gêmeos, não tendo que fazer, iam mamando. Nesse ofício portavam-se sem rivalidade, a não ser quando as amas estavam às boas, e eles mamavam ao pé um do outro; cada qual então parecia querer mostrar que mamava mais e melhor, passeando os dedos pelo seio amigo, e chupando com alma. Elas, à sua partes tinham glória dos peitos e os comparavam entre si; os pequenos, fartos, soltavam afinal os bicos e riam para elas.

Se não fosse a necessidade de pôr os meninos em pé , crescidos e homens, espraiava este capítulo. Realmente, o espetáculo, posto que comum, era belo. Os peraltas nutriam-se ao contrário dos pais, sem as artes do cozinheiro, nem a vista das comidas e bebidas, todas postas em cristais e porcelanas para emendar ou colorir a dura necessidade de comer. A eles nem se lhes via a comida; a boca ligada ao peito não deixava aparecer o leite. A natureza mostrava-se satisfeita pelo riso ou pelo sono. Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa. Este cotejo dar-me-ia três ou quatro páginas sólidas.

Uma página bastava para os chocalhos que embelezavam os pequenos, como se fosse a própria música do céu. Eles sorriam, estendiam as mãos, alguma vez zangavam-se com as negaças, mas tanto que lhos davam, calavam-se, e se não podiam tocar não se zangavam por isso. A propósito de chocalhos, diria que esses instrumentos não deixam memória de si; alguém que os veja em mãos de crianças, se parecer que lhe lembram os seus, que logo no engano, e adverte que a recordação há de ser mais recente, alguma arenga do ano passado, se não foi a vaca de leite da véspera.

A operação de desmamar, podia fazer-se em meia linha, mas as lástimas das amas, as despedidas, as bichas de ouro que a mãe deu a cada uma delas, como um presente final, tudo isso exigia uma boa página ou mais. Poucas linhas bastariam para as amas-secas, por quanto não diria se eram altas nem baixas, feias ou bonitas. Eram mansas, zelosas do ofício, amigas dos pequenos, e logo uma da outra Cavalinhos de pau, bandeirolas, teatros de bonecos, barretinas e tambores, toda a quinquilharia da infância ocuparia muito mais que o lugar de seus nomes.

Tudo isso restrinjo só para não enfadar a leitora curiosa de ver os meus meninos homens e acabados. Vamos vê-los, querida. Com pouco, estão crescidos e fortes. Depois, entrego-os a si mesmos; eles que abram a ferro ou língua, ou simples cotovelos, o caminho da vida e do mundo.

CAPÍTULO XVIII / DE COMO VIERAM CRESCENDO

Hei-los que vêm crescendo. A semelhança, sem os confundir já, continuava a ser grande. Os mesmos olhos claros e atentos, a mesma boca cheia de graça, as mãos finas, e uma cor viva nas faces que as fazia crer pintadas de sangue. Eram sadios; excetuada a crise dos dentes, não tiveram moléstia alguma, porque eu não conto uma ou outra indigestão de doces, que os pais lhes davam, ou eles tiravam às escondidas. Eram ambos gulosos, Pedro mais que Paulo, e Paulo mais que ninguém.

Aos sete anos eram duas obras-primas, ou antes uma só em dous volumes, como quiseres. Em verdade, não havia por toda aquela praia, nem por Flamengos ou Glórias, Cajus e outras redondezas, não havia uma, quanto mais duas crianças tão graciosas. Nota que eram também robustos. Pedro com um murro derrubava Paulo; em compensação, Paulo com um pontapé deitava Pedro ao chão. Corriam muito na chácara por aposta. Alguma vez quiseram trepar às árvores, mas a mãe não consentia; não era bonito. Contentavam-se de espiar cá de baixo a fruta.

Paulo era mais agressivo, Pedro mais dissimulado, e, como ambos acabavam por comer a fruta das árvores, era um moleque que a ia buscar acima, fosse a cascudo de um ou com promessa de outro. A promessa não se cumpria nunca; o cascudo, por ser antecipado, cumpria-se sempre, e às vezes com repetição depois do serviço. Não digo com isto que um e outro dos gêmeos não soubessem agredir e dissimular; a diferença é que cada um sabia melhor o seu gosto, cousa tão óbvia que custa escrever.

Obedeciam aos pais sem grande esforço, posto fossem teimosos. Nem mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira é alguma vez meia virtude. Assim é que, quando eles disseram não ter visto furtar um relógio da mãe, presente do pai, quando eram noivos, mentiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por eles em plena ação de furto. Mas era tão amiga deles! e com tais lágrimas lhes pediu que não dissessem a ninguém, que os gêmeos negaram absolutamente ter visto nada. Contavam sete anos. Aos nove, quando já a moça ia longe, é que descobriram, não sei a que propósito, o caso escondido. A mãe quis saber por que é que eles calaram outrora; não souberam explicar-se, mas é claro que o silêncio de l878 foi obra da afeição e da Piedade, e daí a meia virtude, porque é alguma cousa pagar amor com amor. Quanto à revelação de 1880 só se pode explicar pela distancia do tempo. Já não estava presente a boa Miquelina; talvez já estivesse morta. Demais, veio tão naturalmente a referência...

—Mas, por que é que vocês até agora não me disseram? teimava a mãe.

Não sabendo mais que razão dessem, um deles, creio que Pedro, resolveu acusar o irmão: —Foi ele, mamãe! —Eu? redargüiu Paulo. Foi ele, mamãe, ele é que não disse nada.

—Foi você! —Foi você! Não minta! —Mentiroso é ele! Cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhe os braços a tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaçar, beijou-os com tamanha ternura que eles não acharam melhor ocasião de lhe pedir doce. Tiveram doce; tiveram também um passeio, à tarde, no carrinho do pai.

Na volta estavam amigos ou reconciliados. Contaram à mãe o passeio, a gente da rua, as outras crianças que olhavam para eles com inveja, uma que metia o dedo na boca, outra no nariz, e as moças que estavam às janelas, algumas que os acharam bonitos Neste último ponto divergiam, porque cada um deles tomava para si só as admirações, mas a mãe interveio: —Foi para ambos. Vocês são tão parecidos, que não podia senão para ambos. E sabem por que é que as moças elogiaram vocês? Foi por ver que iam amigos, chegadinhos um ao outro. Meninos bonitos não brigam, ainda menos sendo irmãos. Quero vê-los quietos e amigos, brincando juntos sem rusga nem nada. Estão entendendo? Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, e deu igual resposta. Enfim, porque esta mandasse, abraçaram-se, mas foi um abraçar sem gosto, sem força, quase sem braços; encostaram-se um ao outro, estenderam as mãos às costas do irmão, e deixaram-nas cair.

De noite, na alcova, cada um deles concluiu para si que devia os obséquios daquela tarde, o doce, os beijos e o carro, à briga que tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, como um romance ao piano, resolveram ir à cara um do outro, na primeira ocasião. Isto que devia ser um laço armado à ternura da mãe, trouxe ao coração de ambos uma sensação particular, que não era só consolo e desforra do soco recebido naquele dia. mas também satisfação de um desejo íntimo, profundo, necessário. Sem ódio, disseram ainda algumas palavras de cama a cama, riram de uma ou outra lembrança da rua, até que o sono entrou com os seus pés de lã e bico calado, e tomou conta da alcova inteira.

CAPÍTULO XIX / APENAS DUAS. — QUARENTA ANOS. TERCEIRA CAUSA

Um dos meus propósitos neste livro é não lhe pôr lágrimas. Entretanto, não posso calar as duas que rebentaram certa vez dos olhos de Natividade depois de uma rixa dos pequenos. Apenas duas, e foram morrer-lhe aos cantos da boca. Tão depressa as verteu como as engoliu, renovando às avessas e por palavras mudas o fecho daquelas histórias de crianças: "entrou por uma porta, saiu por outra, manda el-rei nosso senhor que nos conte outra". E a segunda criança contava segunda história, a terceira terceira, a quarta quarta, até que vinha o fastio ou o sono. Pessoas que datam do tempo em que se contavam tais histórias afirmam que as crianças não punham naquela fórmula nenhuma fé monárquica, fosse absoluta, fosse constitucional; era um modo de ligar o seu Decameron delas, herdado do velho reino português, quando os reis mandavam o que queriam, e a nação dizia que era muito bem.

Engolidas as duas lágrimas, Natividade riu da própria fraqueza. Não se chamou tola, porque esses desabafos raramente se usam, ainda em particular; mas no secreto do coração, lá muito ao fundo, onde não penetra olho de homem, creio que sentiu alguma cousa parecida com isso. Não tendo prova clara, limito-me a defender a nossa dama.

Em verdade, qualquer outra viveria a tremer pela sorte dos filhos, uma vez que houvera a rixa anterior e interior. Agora as lutas eram mais freqüentes, as mãos cada vez mais aptas, e tudo fazia recear que eles acabassem estripando-se um ao outro... Mas aqui surgia a idéia da grandeza e da prosperidade, — cousas futuras! — e esta esperança era como um lenço que enxugasse os olhos da bela senhora. As Sibilas não terão dito só do mal, nem os Profetas, mas ainda do bem, e principalmente dele.

Com esse lenço verde enxugou ela os olhos, e teria outros lenços, se aquele ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma dela. Ainda lhes não disse que a alma de Natividade era azul. Aí fica. Um azul celeste, claro e transparente, que alguma vez se embruscava, raro tempestuava, e nunca a noite escurecia.

Não, leitor, não me esqueceu a idade da nossa amiga; lembra-me como se fosse hoje. Chegou assim aos quarenta anos. Não importa; o céu é mais velho e não trocou de cor. Uma vez que lhe não atribuas ao azul da alma nenhuma significação romântica, estás na conta. Quando muito, no dia em que perfez aquela idade, a nossa dona sentiu um calefrio. Que passara? Nada, um dia mais que na véspera, algumas horas apenas. Toda uma questão de número, menos que número, o nome do número, esta palavra quarenta, es o mal único. Daí a melancolia com que ela disse ao marido, agradecendo o mimo do aniversário: "Estou velha, Agostinho!" Santos quis esganá-la brincando.

Pois faria mal se a esganasse. Natividade ainda tinha as formas do tempo anterior à concepção, a mesma flexibilidade, a mesma graça miúda e viva. Conservava o donaire dos trinta. A costureira punha em relevo todos os pensamentos restantes da figura, e ainda lhe emprestava alguns do seu bolsinho. A cintura teimava em não querer engrossar, e os quadris e o colo eram do mesmo estofador antigo.

Há dessas regiões em que o verão se confunde com o outono, como se dá na nossa terra, onde as duas estações só diferem pela temperatura. Nela nem pela temperatura. Maio tinha o calor de janeiro. Ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul.

Esta cor vinha-lhe do pai e do avo, mas o pai morreu cedo, antes do avô, que chegara aos oitenta e quatro. Nessa idade cria sincera mente que todas as delícias deste mundo, desde o café de manhã até os sonos sossegados, haviam sido inventados somente para ele O melhor cozinheiro da terra nascera na China para o único fim de deixar família, pátria, língua, religião, tudo, e vir assar-lhe as costeletas e fazer-lhe o chá. As estrelas davam às suas noites um aspecto esplêndido, o luar também, e a chuva, se chovia, era para que ele descansasse do sol. Lá está agora no cemitério de S. Francisco Xavier; se alguém pudesse ouvir a voz dos mortos, dentro das sepulturas, ouviria a ele, bradando que é tempo de fechar a porta ao cemitério, e não deixar entrar ninguém, uma vez que ele já lá descansa para todo sempre. Morreu azul; se chegasse aos cem anos, não teria outra cor.

Ora, se a natureza queria poupar esta senhora, a riqueza dava a mão à natureza, e de uma e de outra saía a mais bela cor que alma de gente pode ter. Tudo concorria assim para lhe secarem os olhos depressa, como vimos atrás. Se ela bebeu aquelas duas lágrimas solitárias, pudera ter bebido outras pela idade adiante, e isto é ainda uma prova daquele matiz espiritual; mostrará assim que as tem poucas, e engole-as para poupá-las.

Mas há ainda uma terceira causa que dava a esta senhora o sentimento da cor azul, causa tão particular que merecia ir em capítulo seu, mas não vai, por economia. Era a isenção, era o ter atravessado a vida intacta e pura. O Cabo das Tormentas converteu-se em Cabo da Boa Esperança, e ela venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe derribassem a nau, nem as ondas a engolissem. Não negaria que alguma lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso de João de Melo, ou ainda pior, no de Aires, mas foram bocejos de Adamastor. Consertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da índia. Agora lembrava-se da viagem próspera. Honrava-se dos ventos inúteis e perdidos. A memória trazia-lhe o sabor do perigo passado. Es aqui a terra encoberta, os dous filhos nados, criados e amados da fortuna.

CAPÍTULO XX / A JÓIA

Os quarenta e um anos não lhe trouxeram arrepio. Já estava acostumada à casa dos quarenta. Sentiu, sim, um grande espanto; acordou e não viu o presente do costume, a "surpresa" do marido ao pé da cama. Não a achou no toucador, abriu gavetas, espiou, nada Creu que o marido esquecera a data e ficou triste; era a primeira vez! Desceu olhando; nada. No gabinete estava o marido, calado, metido consigo, a ler jornais, mal lhe estendeu a mão. Os rapazes, apesar de ser domingo, estudavam a um canto; vieram dar-lhe o beijo do costume e tornaram aos livros. A mãe ainda relanceou os olhos pelo gabinete, a ver se achava algum mimo, um painel, um vestido, foi tudo vão. Embaixo de uma das folhas do dia que estava na cadeira fronteira à do marido podia ser que... Nada. Então sentou-se, e, abrindo a folha, ia dizendo consigo: "Será possível que não se lembre do dia de hoje? Será possível?" Os olhos entraram a ler à toa, saltando as notícias, tornando atrás...

Defronte o marido espreitava a mulher, sem absolutamente importar-lhe o que parecia ler. Assim se passaram alguns minutos. De repente, Santos viu uma expressão nova no rosto de Natividade; os olhos dela pareciam crescer, a boca entreabriu-se, a cabeça erguesse, a dele também, ambos deixaram a cadeira, deram dous passos e caíram nos braços um do outro, como dous namorados desesperados de amor. Um, dous, três, muitos beijos. Pedro e Paulo, espantados, estavam ao canto, de pé. O pai, quando pôde falar, disse-lhes: —Venham beijar a mão da Senhora Baronesa de Santos.

Não entenderam logo. Natividade não sabia que fizesse; dava a mão aos filhos, ao marido, e tornava ao jornal para ler e reler que do despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José dos Santos fora agraciado com o título de Barão de Santos. Compreendeu tudo. O presente do dia era aquele; o ourives desta vez foi o imperador.

—Vão, vão, agora podem ir brincar, disse o pai aos filhos.

E os rapazes saíram a espalhar a notícia pela casa. Os criados ficaram felizes com a mudança dos amos. Os próprios escravos pareciam receber uma parcela da liberdade e condecoravam-se com ela: "Nhã Baronesa!" exclamavam saltando. E João puxava Maria, batendo castanholas com os dedos: "Gente, quem é esta crioula? Sou escrava de Nhã Baronesa!" Mas o imperador não foi o único ourives. Santos tirou do bolso uma caixinha, com um broche em que a coroa nova rutilava de brilhantes. Natividade agradeceu-lhe a jóia e consentiu em pô-la, para que o marido a visse. Santos sentia-se autor da jóia, inventor da forma e das pedras; mas deixou logo que ela a tirasse e guardasse, e pegou das gazetas, para lhe mostrar que em todas vinha a notícia, algumas com adjetivo, conceituado aqui, ali distinto, etc.

Quando Perpétua entrou no gabinete, achou-os andando de um lado para outro, com os braços passados pela cintura, conversando, calando, mirando os pés. Também ela deu e recebeu abraços.

Toda a casa estava alegre. Na chácara as árvores pareciam mais verdes que nunca, os botões do jardim explicavam as folhas, e o sol cobria a terra de uma claridade infinita. O céu, para colaborar com o resto, ficou azul o dia inteiro. Logo cedo entraram a vir cartões e cartas de parabéns. Mais tarde visitas. Homens do foro, homens do comércio, homens de sociedade muitas senhoras, algumas titulares também, vieram ou mandaram. Devedores de Santos acudiram depressa, outros preferiram continuar o esquecimento. Nomes houve que eles só puderam reconhecer à força de grande pesquisa e muito almanaque.

Sei que há um ponto escuro no capítulo que passou; escrevo este para esclarecê-lo.

Quando a esposa inquiriu dos antecedentes e circunstancias do despacho, Santos deu as explicações pedidas. Nem todas seriam estritamente exatas; o tempo é um rato roedor das cousas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto. Demais, a matéria era tão propícia ao alvoroço que facilmente traria confusão à memória. Há, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação inventa para suprir os perdidos, e nem por isso a história morre.

Resta saber (é o ponto escuro) como é que Santos pôde calar por longos dias um negócio tão importante para ele e para a esposa.

Em verdade, esteve mais de uma vez a dizer por palavra ou por gesto, se achasse algum, aquele segredo de poucos; mas, sempre havia uma força maior que lhe tapava a boca. Ao que parece, foi a expectação de uma alegria nova e inesperada que lhe deu a alma de pacientar. Naquela cena do gabinete tudo foi composto de antemão, o silêncio, a indiferença, os filhos que ele pôs ali, estudando ao domingo, só para efeito daquela frase: "Venham beijar a mão da Senhora Baronesa de Santos!"

CAPÍTULO XXI / UM PONTO ESCURO

Sei que há um ponto escuro no capítulo que passou; escrevo este para esclarecê-lo.

Quando a esposa inquiriu dos antecedentes e circunstancias do despacho, Santos deu as explicações pedidas. Nem todas seriam estritamente exatas; o tempo é um rato roedor das cousas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto. Demais, a matéria era tão propícia ao alvoroço que facilmente traria confusão à memória. Há, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação inventa para suprir os perdidos, e nem por isso a história morre.

Resta saber (é o ponto escuro) como é que Santos pôde calar por longos dias um negócio tão importante para ele e para a esposa.

Em verdade, esteve mais de uma vez a dizer por palavra ou por gesto, se achasse algum, aquele segredo de poucos; mas, sempre havia uma força maior que lhe tapava a boca. Ao que parece, foi a expectação de uma alegria nova e inesperada que lhe deu a alma de pacientar. Naquela cena do gabinete tudo foi composto de antemão, o silêncio, a indiferença, os filhos que ele pôs ali, estudando ao domingo, só para efeito daquela frase: "Venham beijar a mão da Senhora Baronesa de Santos!"

CAPÍTULO XXII / AGORA UM SALTO

Que os dous gêmeos participassem da lua-de-mel nobiliária dos pais não é cousa que se precise escrever. O amor que lhes tinham bastava a explicá-lo, mas acresce que, havendo o título produzido em outros meninos dous sentimentos opostos, um de estima, outro de inveja, Pedro e Paulo concluíram ter recebido com ele um mérito especial. Quando, mais tarde, Paulo adotou a opinião republicana nunca envolveu aquela distinção da família na condenação das instituições. Os estados de alma que daqui nasceram davam matéria a um capítulo especial, se eu não preferisse agora um salto, e ir a 1886. O salto é grande, mas o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama. um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais subtil obra deste mundo, e acaso do outro.

CAPÍTULO XXIII / QUANDO TIVEREM BARBAS

Naquele ano, uma noite de agosto, como estivessem algumas pessoas na casa de Botafogo, sucedeu que uma delas, não sei se homem ou mulher, perguntou aos dous irmãos que idade tinham.

Paulo respondeu: —Nasci no aniversário do dia em que Pedro I caiu do trono.

E Pedro: —Nasci no aniversário do dia em que Sua Majestade subiu ao trono.

As respostas foram simultâneas, não sucessivas, tanto que a pessoa pediu-lhes que falasse cada um por sua vez. A mãe explicou: —Nasceram no dia 7 de abril de 1870.

Pedro repetiu vagarosamente: —Nasci no dia em que Sua Majestade subiu ao trono.

E Paulo, em seguida: —Nasci no dia em que Pedro caiu do trono.

Natividade repreendeu a Paulo a sua resposta subversiva. Paulo explicou-se, Pedro contestou a explicação e deu outra, e a sala viraria clube, se a mãe não os acomodasse por esta maneira: —Isto hão de ser grupos de colégio; vocês não estão em idade de falar em política. Quando tiverem barbas.

As barbas não queriam vir, por mais que eles chamassem o buço com os dedos, mas as opiniões políticas e outras vinham e cresciam. Não eram propriamente opiniões, não tinham raízes grandes nem pequenas. Eram (mal comparando) gravatas de cor particular, que eles atavam ao pescoço, à espera que a cor cansasse e viesse outra. Naturalmente cada um tinha a sua. Também se pode crer que a de cada um era, mais ou menos, adequada à pessoa. Como recebiam as mesmas aprovações e distinções nos exames, faltava-lhe s matéria a invejas; e, se a ambição os dividisse algum dia. não era por ora águia nem condor, ou sequer filhote; quando muito, um ovo. No colégio de Pedro II todos lhe queriam bem. As barbas é que não queriam vir. Que é que se lhes há de fazer quando as barbas não querem vir? Esperar que venham por seu pé, que apareçam, que cresçam, que embranqueçam, como é seu costume delas, salvo as que não embranquecem nunca, ou só em parte e temporariamente. Tudo isto é sabido e banal, mas dá ensejo a dizer de duas barbas do último gênero, célebres naquele tempo, e ora totalmente esquecidas. Não tendo outro lugar em que fale delas, aproveito este capítulo, e o leitor que volte a página, se prefere ir atrás da história. Eu ficarei durante algumas linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender agora, como não as entendemos então, as mais inexplicáveis barbas do mundo.

A primeira daquelas barbas era de um amigo de Pedro, um capucho, um italiano, frei***. Podia escrever-lhe o nome, — ninguém mais o conheceria, — mas prefiro esse sinal trino, número de mistério, expresso por estrelas, que são os olhos do céu. Trata-se de um frade. Pedro não lhe conheceu a barba preta, mas já grisalha, longa e basta, adornando uma cabeça máscula e formosa. A boca era risonha, os olhos rútilos. Ria por ela e por eles, tão docemente que metia a gente no coração. Tinha o peito largo, as espáduas fortes. O pé nu, atado à sandália, mostrava agüentar um corpo de Hércules. Tudo isso meigo e espiritual, como uma página evangélica. A fé era viva, a afeição segura, a paciência infinita.

Frei*** despediu-se um dia de Pedro. Ia ao interior, Minas, Rio de Janeiro, S. Paulo, — creio que ao Paraná também, — viagem espiritual, como a de outros confrades, e lá ficou por um semestre ou mais. Quando voltou trouxe-nos a todos grande alegria e maior espanto. A barba estava negra, não sei se tanto ou mais que dantes, mas negríssima e brilhantíssima. Não explicou a mudança, nem ninguém lhe perguntou por ela; podia ser milagre ou capricho da natureza; também podia ser correção de homem, posto que o último caso fosse mais difícil de crer que o primeiro. Durou nove meses esta cor; feita outra viagem por trinta dias, a barba apareceu de prata ou de neve, como vos parecer mais branca.

Quanto à segunda de tais barbas, foi ainda mais espantosa. Não era de frade, mas de maltrapilho, um sujeito de vivia de dívidas, e na mocidade corrigira um velho rifão da nossa língua por esta maneira: "Paga o que deves, vê o que te não fica". Chegou aos Cinqüenta anos sem dinheiro, sem emprego, sem amigos. A roupa teria a mesma idade, os sapatos não menor que ela. A barba ó que não chegou aos cinqüenta; ele pintava-a de negro e mal, provavelmente por não ser a tinta de primeira qualidade e não possuir espelho. Andava só, descia ou subia muita vez a mesma rua. Um dia dobrou a esquina da Vida e caiu na praça da Morte, com as barbas enxovalhadas, por não haver quem lhas pintasse na Santa Casa.

Or, bene, para falar como o meu capucho, por que é que este e o maltrapilho voltaram do grisalho ao negro? A leitora que adivinhe, se pode: dou-lhe vinte capítulos para alcançá-lo. Talvez eu, por essas alturas, lobrigue alguma explicação, mas por ora não sei nem aventuro nada. Vá que malignos atribuam a frei*** alguma paixão profana; ainda assim não se compreende que ele se descobrisse por aquele modo. Quanto ao maltrapilho, a que damas queria ele agra dar, a ponto de trocar algumas vezes o pão pela tinta? Que um e outro cedessem ao desejo de prender a mocidade fugitiva, pode ser. O frade, lido na Escritura, sabendo que Israel chorou pelas cebolas do Egito, teria também chorado, e as suas lágrimas caíram negras. Pode ser, repito. Este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos; mas ao tempo dá Deus habeas corpus.

CAPÍTULO XXIV / ROBESPIERRE E LUÍS XVI

Tanto cresceram as opiniões de Pedro e Paulo que, um dia. chegaram a incorporar-se em alguma cousa. Iam descendo pela Rua da Carioca. Havia ali uma loja de vidraceiro, com espelhos de vário tamanho, e, mais que espelhos, também tinha retratos velhos e gravuras baratas, com e sem caixilho. Pararam alguns instantes, olhando à toa. Logo depois, Pedro viu pendurado um retrato de Luís XVI, entrou e comprou-o por oitocentos réis; era uma simples gravura atada ao mostrador por um barbante. Paulo quis ter igual fortuna, adequada às suas opiniões, e descobriu um Robespierre. Como o lojista pedisse por este mil e duzentos, Pedro exaltou-se um pouco.

—Então o senhor vende mais barato um rei, e um rei mártir? —Há de perdoar, mas é que esta outra gravura custou-me mais caro, redargüiu o velho lojista. Nós vendemos conforme o preço da compra. Veja; está mais nova.

—Lá isso, não, acudiu Paulo. São do mesmo tempo; mas é que este vale mais que aquele.

—Ouvi dizer que também era rei...

—Qual rei! responderam os dous.

—Ou quis sê-lo não sei bem...

Que eu de histórias, apenas conheço a dos mouros que aprendi na minha terra com a avó, alguns bocados em verso. E ele ainda há mouras lindas; por exemplo, esta; apesar do nome, creio que era moura, ou ainda é, se vive... Mal lhe saiba ao marido! E foi a um canto e trouxe um retrato de Madame de Stael, com o famoso turbante na cabeça. (O efeito da beleza! Os rapazes esqueceram por um instante as opiniões políticas e ficaram a olhar longamente a figura de Corina. O lojista, apesar dos seus setenta anos, tinha os olhos babados. Cuidou de sublinhar as formas, a cabeça, a boca um tanto grossa, mas expressiva, e dizia que não era caro. Como nenhum quisesse comprá-la, talvez por ser só uma, disse-lhes que ainda tinha outra, mas esse era "uma pouca-vergonha", frase que os deuses lhe perdoariam, quando soubessem que ele não quis mais que abrir o apetite aos fregueses. E foi a um armário, tirou de lá, e trouxe uma Diana, nua como vivia cá embaixo, outrora nos matos. Nem por isso a vendeu. Teve de contentar-se com os retratos políticos.

Quis ainda ver se colhia algum dinheiro, vendendo-lhes um retrato de Pedro I, encaixilhado, que pendia da parede; mas, Pedro recusou por não ter dinheiro disponível, e Paulo disse que não daria um vintém pela "cara de traidores". Antes não dissesse nada! O lojista, tão depressa lhe ouviu a resposta como despiu as formas obsequiosas, vestiu outras indignadas, c bradou que sim, senhor, que o moço tinha razão.

—Tem muita razão. Foi um traidor, mau filho, mau irmão, mau tudo. Fez todo o mal que pôde a este mundo; e no Inferno, onde está, se a religião não mente, deve ainda fazer mal ao Diabo. Este moço falou há pouso em rei mártir, — continuou mostrando-lhes um retrato de D. Miguel de Bragança, meio perfil, sobrecasaca, mão ao peito, — este é que foi um verdadeiro mártir daquele, que lhe roubou o trono, que não era seu, para dá-lo a quem não pertencia; e foi morrer à míngua o meu pobre rei e senhor, dizem que na Alemanha, ou não sei onde. Ah! malhados! Ah! filhos do Diabo! Os senhores não podem imaginar o que era aquela canalha de liberais.

Liberais! Liberais do alheio! —E tudo a mesma farinha, reflexionou Paulo.

—Eu não sei se eles eram de farinha, sei que levaram muita pancada. Venceram, mas apanharam deveras. Meu pobre rei! Pedro quis responder ao remoque do irmão; e propôs comprar o retrato de Pedro I. Quando o lojista tornou a si, começou a negociar a venda, mas não puderam entender-se no preço; Pedro dava os mesmos oitocentos réis do outro, o lojista pedia dous mil-réis. Nota, va-lhe que estava encaixilhado, e Luís XVI não, além disto, era mais novo. E vinha à porta, a buscar melhor luz, chamava-lhe a atenção para o rosto, os olhos principalmente, que bela expressão que tinham! E o manto imperial.

—Que lhe custa dar dous mil-réis? —Dou-lhe dez tostões: serve? —Não serve. Mais que isso me custou ele.

—Pois então...

—Veja sempre. Pois isto não vale até três mil-réis? O papel não está encardido; a gravura é fina.

—Dez tostões, já disse.

—Não, senhor. Olhe, por dez tostões leve este de D. Miguel; o papel está bem conservado, e, com pouco dinheiro, manda-lhe pôr um caixilho. Vá; dez tostões.

—Se eu já estou arrependido... Dez tostões pelo imperador.

—Ah! isso não! Custou-me mil e setecentos, há três semanas ganho uns trezentos réis, quase nada. Ganho menos com o Senhor D. Miguel, mas também concordo que é menos procurado. Este de D. Pedro I, se passar amanhã, talvez já o não ache. Vá, sim? —Eu passo depois.

Paulo já ia andando e mirando Robespierre; Pedro alcançou-o.

—Olhe, leve por sete tostões o senhor D. Miguel.

Pedro abanou a cabeça.

—Seis tostões serve? Pedro, ao lado do irmão, desenrolara a sua gravura. O velho lojista quis ainda bradar: "Cinco tostões!" mas iam já longe, e ficava mal negociar assim.

CAPÍTULO XXV / D. MIGUEL

"Assim como assim, ficou pensando o velho, não há de ser enrolado e guardado que o hei de vender, vou mandá-lo encaixilhar põem-se-lhe aqui umas tabuinhas velhas..." D. Miguel voltou para ele os olhos turvos de tristeza e reproche; assim lhe pareceu ao vidraceiro, mas podia ter sido ilusão. Em todo caso, pareceu também que os olhos tornavam ao seu lugar, fitando à direita, ao longe... Para onde? Para onde há justiça eterna, cuidou naturalmente o dono. Como estivesse a contemplá-lo, à porta, parou um homem, entrou, e olhou com interesse para o retrato. O lojista reparou na expressão; podia ser algum miguelista, mãe também podia ser um colecionador...

—Quanto pede o senhor por isto? —Isto? Há de perdoar; quer saber quanto peço pelo meu rico Senhor D. Miguel? Não peço muito, está um tanto encardido, mas ainda se lhe aprecia bem a figura. Que soberba que ela é! Não é caro; dou-lhe pelo custo; se estivesse encaixilhado, valeria uns quatro mil-réis. Leve-o por três.

O freguês tirou tranqüilamente o dinheiro do bolso, enquanto o velho enrolava o retrato, e, trocados um por outro, despediram-se corteses e satisfeitos; o lojista, depois de ir até à porta, tornou à cadeira do costume. Talvez pensasse no mal a que escapara, se vendesse o retrato por dez tostões. Em todo caso, ficou a olhar para fora, para longe, para onde há justiça eterna... Três mil-réis!

CAPÍTULO XXVI / A LUTA DOS RETRATOS

Quase que não é preciso dizer o destino dos retratos do rei e o convencional. Cada um dos pequenos pregou o seu à cabeceira da cama. Pouso durou esta situação, porque ambos faziam pirraças às pobres gravuras, que não tinham culpa de nada. Eram orelhas de burro, nomes feios, desenhos de animais, até que um dia Paulo rasgou a de Pedro, e Pedro a de Paulo. Naturalmente, vingaram-se a murro, a mãe ouviu rumor e subiu apressada. Conteve os filhos, mas já os achou arranhados e recolheu-se triste. Nunca mais acabaria aquela maldição de rivalidade? Fez esta pergunta calada, atirada à cama, a cara metida no travesseiro, que desta vez ficou seco, mas a alma chorou.

Natividade confiava na educação, mas a educação, por mais que ela a apurasse, apenas quebrava as arestas ao caráter dos pequenos, o essencial ficava; as paixões embrionárias trabalhavam por viver, crescer, romper, tais quais ela sentira os dous no próprio seio, durante a gestação... E recordava a crise de então, acabando por maldizer da cabocla do Castelo. Realmente, a cabocla devia ter calado; o mal calado não se muda, mas não se sabe. Agora, pode ser que isto de não calar confirme a opinião de que a Cabocla era mandada por Deus para dizer a verdade aos homens. E afinal o que é que ela disse a Natividade? Não fez mais que uma pergunta misteriosa; a predição é que foi luminosa e clara... E outra vez as palavras do Castelo ressoaram aos ouvidos da mãe, e a imaginação fez o resto. Cousas futuras! Hei-los grandes e sublimes. Algumas brigas em pequenos, que importa? Natividade sorriu, ergueu-se, foi à porta, deu com o filho Pedro, que vinha explicar-se.

—Mamãe, Paulo é mau. Se mamãe ouvisse os horrores que ele solta pela boca fora, mamãe morria de medo. Custa-me muito não ir à cara dele; ainda lhe não tirei um olho...

—Meu filho, não fales assim, é teu irmão.

—Pois que não se meta comigo, não me aborreça. Que blasfêmias que ele dizia! Como eu rezava por alma de Luís XVI, ele para machucar-me bem, rezava a Robespierre; compôs uma ladainha chamando santo ao outro e cantarolava baixinho para que papai nem mamãe ouvissem. Eu sempre lhe dei alguns cascudos...

—Aí está! —Mas é que ele é que me dava primeiro, porque eu punha orelhas de burro em Robespierre... Então, eu havia de apanhar calado? —Nem calado, nem falando.

—Então, como? Apanhar sempre, não é? —Não, senhor; não quero pancadas; o melhor é que esqueçam tudo e se queiram bem. Você não vê como seus pais se querem? As brigas acabaram de todo. Não quero ouvir rusgas nem queixas. Afinal que têm vocês com um sujeito mau que morreu há tantos anos? —É o que eu digo, mas ele não se emenda.

—Há de emendar-se os estudos fazem esquecer criancices. Você também quando for médico tem muito que brigar com as moléstias e a morte — é melhor que andar dando pancada em seu irmão... Que e lá isso? Não quero arremessos, Pedro! Sossegue, ouça-me.

—Mamãe é sempre contra mim.

—Não sou contra nenhum, sou por ambos, ambos são meus filhos. E demais gêmeos. Anda cá, Pedro. Não penses que eu desaprovo as tuas opiniões políticas. Até gosto e são as minhas, são as nossas. Paulo há de tê-las também. Na idade dele aceita-se quanta tolice há, mas o tempo corrige. Olha, Pedro, a minha esperança é que vocês sejam grandes homens, mas com a condição de serem também grandes amigos.

—Estou pronto a ser grande homem, assentiu Pedro com ingenuidade, quase com resignação.

—E grande amigo também.

—Se ele for, serei.

—Grandes homens! exclamou Natividade, dando-lhe dous abraços, um para ele, outro para o irmão quando viesse.

Mas Paulo veio logo, e recebeu o abraço inteiro e de verdade. Vinha também queixar-se, e sempre resmungou alguma cousa, mas a mãe não quis ouvi-lo, e falou outra vez a linguagem das grandezas. Paulo consentiu também em ser grande.

—Você será médico, disse Natividade a Pedro, e você advogado. Quero ver quem faz as melhores curas, e ganha as piores demandas.

—Eu, disseram ambos a um tempo.

—Patetas! Cada um terá a sua carreira especial, a sua ciência diferente. Já estão curados do nariz? Já; não há mais sangue. Agora o primeiro que ferir seu irmão será degradado.

Foi um recurso hábil separá-los; um ficava no Rio, estudando Medicina, outro ia para São Paulo, estudar Direito. O tempo faria o resto, não contando que cada um casava e iria com a mulher para o seu lado. Era a paz perpétua; mais tarde viria a perpétua amizade.

                                                                                            

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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